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PRAZER DE MATAR - P.3 / Tami Hoag
PRAZER DE MATAR - P.3 / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PRAZER DE MATAR

3º Parte

 

O D’Cup estava quase vazio. Não fosse a presença do mesmo par de velhotes, um de boina e o outro com a sua pêra em forma de mosca que naquele momento discutiam sobre pornografia, e um tipo diferente de aspirante a artista de artes plásticas que contemplava a sua mediocridade junto da janela com um latte, que lhe custara três dólares, na mão.

 

Michele Fine telefonara a dizer que estava doente, informação que Liska obteve do machão italiano por detrás do balcão, tendo tomado nota mentalmente de que devia começar os seus dias com um cappuccino. O facto de o D’Cup se situar a quilómetros de qualquer dos locais onde a sua rotina diária a levava era irrelevante. Na realidade, o pormenor de o café ficar fora do seu caminho era o que mais a atraía.

 

Você conhecia a amiga dela? perguntou Quinn. A Jillian Bondurant?

 

O deus grego cerrou os lábios carnudos e abanou a cabeça.

 

Não se pode dizer que a conhecesse. Quer dizer... ela vinha cá muitas vezes, mas não era uma pessoa muito sociável. Era muito reservada, sabe? Ela e a Chell eram muito amigas. E é tudo o que sei, além do que pude ler nos jornais.

 

Deu por ela ter vindo aqui alguma vez com outra pessoa? atirou Quinn.

 

Está a referir-se à Jillian Bondurant ou à Michele?

 

À Jillian.

 

Não me parece.

 

E quanto à Michele? Ela tem algum namorado?

 

O homem pareceu não ter gostado daquela pergunta, como se eles estivessem a devassar a privacidade de alguém. estando a considerar se deveria invocar o artigo da Constituição que reconhecia o direito à privacidade de qualquer cidadão. Liska sacou da fotografia que tirara a Vanlees com a Polaroid, mostrando-a ao italiano.

 

Viu alguma delas com este homem? Ou deu conta de ele cá ter vindo sozinho?

 

O machão semicerrou os olhos, da maneira que as pessoas costumam fazer quando se esforçam por melhorar quer a memória quer a visão.

 

Não... A cara dele não me diz nada.

 

E quanto às canções que as duas compunham? perguntou Quinn por sua vez. A Michele disse que elas às vezes cantavam aqui.

 

A Chell canta e toca viola nas noites em que o microfone está aberto aos aspirantes a cantores. Sei que elas escreveram umas coisas em conjunto, mas não lhe sei dizer qual foi o contributo de cada uma. A Jillian nunca cantou aqui. Era uma mera espectadora. Gostava de observar os outros.

 

Qual era o tipo de música? continuou Quinn.

 

O tipo de coisa popular com um cunho feminista. Montes de raiva, montes de angústias, um tanto ou quanto tétrico.

 

Tétrico, sob que aspecto?

 

Relações amorosas que davam para o torto, perturbações sentimentais, uma data de sofrimento emocional. Ele descrevia a música como se estivesse a dizer «o costume», exibindo um certo ar de tédio. Um mero comentário sobre a vida moderna.

 

Quinn agradeceu-lhe. Liska mandou vir um cate moca para levar, dando-lhe um dólar de gorjeta. Quinn esboçava um sorriso vago enquanto mantinha a porta aberta.

 

Ei disse Liska. Não prejudica nada ser simpática.

 

Eu não disse nada.

 

Não foi preciso dizer.

 

A neve continuava a cair. A rua em frente do café estava numa tremenda confusão. A marcação das faixas de rodagem não se via, e os condutores haviam adoptado a mentalidade da sobrevivência dos mais aptos. Enquanto ambos observavam a confusão, um reclame em tubos de néon esteve quase a ir à vida por causa de um autocarro da empresa de transportes da cidade.

 

Você é muito competente nestas coisas de polícia comentou Liska procurando as chaves do carro nas algibeiras do casaco comprido. Devia pensar em largar os deslumbramentos da Brigada para o Sequestro Infantil e Assassínio Múltiplo e do FBI, trocando-os pela relativa ignomínia da Brigada de Homicídios da Polícia de Minneapolis. Temos a oportunidade de ser chateados pelos manda-chuvas, a imprensa abusa de nós a torto e a direito e temos o privilégio de nos deslocarmos num carro que é um monte de merda como este.

 

Todas essas vantagens e ainda por cima passaria a viver neste belo clima? replicou Quinn com ironia levantando a gola do sobretudo, tentando proteger-se da neve e do vento. Como é que eu poderia resistir a uma oferta dessas?

 

Bom, de acordo... concedeu Liska, trocista, com uma expressão resignada sentando-se ao volante. Também junto todo o sexo que quiser. Mas tem de prometer que vai querer muito.

 

Tinks, você é impagável - replicou Quinn, rindo-se à socapa e olhando pelo vidro traseiro enquanto ela fazia marcha atrás.

 

O apartamento de Michele Fine ficava a pouco mais de um quilómetro; situava-se numa área um tanto degradada, cheia de prédios de dois andares, de aspecto deteriorado, e blocos de apartamentos de uma arquitectura feia com linhas quadradas, onde residia um elevado número de pessoas em liberdade condicional e criminosos de pequenos delitos, de acordo com o que Liska dizia.

 

O apartamento do Vanlees, em Lyndale, fica apenas a alguns quarteirões daqui, para sul explicava ela enquanto percorriam o passeio, tropeçando nos obstáculos em que outros já haviam tropeçado na neve molhada. Não adora uma coincidência como esta?

 

Mas quando você esteve em casa da Jillian não lhe pareceu que eles se conhecessem, pois não?

 

Liska ficou a pensar na cena franzindo as sobrancelhas.

 

Não mais do que talvez de vista. Não se falaram. Pensa realmente que ela talvez o tenha apanhado a espreitar pelas janelas da casa da Jillian?

 

Isso foi apenas um tiro no escuro, mas não há dúvida de que deixou o nosso rapaz abalado. Aqui o que me tem andado a moer é saber por que motivo é que ela não nos disse nada, se de facto o apanhou a fazer uma coisa dessas.

 

Boa pergunta retrucou Liska tentando abrir a porta do prédio que verificou não estar trancada. Vamos ver se obtemos uma resposta a isso.

 

O interior do elevador cheirava a comida chinesa de má qualidade fornecida ao domicílio. Subiram até ao quarto andar tendo por companhia um indivíduo pedrado e bastante emaciado que se encolhia a um canto, ao mesmo tempo que tentava passar despercebido enquanto olhava de través para a gabardina estilo militar de Quinn, obviamente cara. Quinn lançou-lhe um olhar de poucos amigos, observando o suor que começara a acumular-se imediatamente na testa pastosa do homem. Quando as portas se abriram, o toxicodependente deixou-se ficar no elevador, voltando a descer até ao piso térreo.

 

Você deve ser qualquer coisa digna de ser vista a uma mesa de póquer comentou Liska.

 

Não tenho tempo para isso.

 

Liska arqueou o sobrolho imprimindo uma expressão convidativa aos seus olhos azuis.

 

É melhor ter cuidado. Só trabalho e nada de brincadeira faz com que qualquer homem se torne enfadonho.

 

Tinks, eu era capaz de a pôr a dormir de aborrecimento retorquiu Quinn, furtando-se ao olhar dela enquanto mostrava um sorriso de falso acanhamento.

 

Ora bem, duvido muito, mas caso precise de o provar cientificamente... Liska deteve-se em frente da porta do apartamento de Fine, fitando Quinn. Só estou a tentar fazer com que você se sinta encabulado. A triste verdade é que você me dá a impressão de ser um homem que tem alguém especial na cabeça.

 

Quinn tocou à campainha sem afastar os olhos da porta.

 

Sim, tenho. Um assassino disse ele por fim, embora, pela primeira vez em muito tempo, os seus pensamentos não estivessem exclusivamente concentrados no seu trabalho. Como se Liska lhe tivesse dado autorização para tal, mentalmente e de fugida, viu a imagem de Kate. Imaginava o que ela estaria a sentir, em que estaria a pensar. Perguntou a si mesmo se ela já teria recebido a mensagem que ele lhe deixara, dizendo-lhe que a vítima encontrada no automóvel incendiado não era a sua testemunha. Detestava saber que ela se culpabilizava pelo que acontecera, e detestava ainda mais saber que o chefe dela lhe assacava as culpas todas. Aquilo fazia com que os seus instintos protectores viessem à superfície, instilando-lhe a vontade de agir de modo mais violento contra Rob Marshall do que dar-lhe um simples pontapé no traseiro. Perguntava a si mesmo se Kate ficaria divertida ou irritada ao saber aquilo. Voltou a premir o botão da campainha.

 

Quem é? perguntou uma voz autoritária do interior do apartamento.

 

A sargento Liska, Michele identificou-se Liska colocando-se no ângulo de visão do ralo da porta. - Preciso de lhe fazer mais umas duas perguntas a respeito da Jillian.

 

Estou doente.

 

Só lhe roubo dois minutos. É muito importante. Não sei se sabe, mas houve outro assassínio.

 

A porta abriu-se, uma fresta apenas, e Fine espreitou-os do outro lado da corrente de segurança. Pela pequena abertura descortinava-se apenas uma zona com cicatrizes do rosto angular de feições afiladas.

 

Eu não tenho nada a ver com isso. Não vos posso ajudar em nada. Só então é que deu pela presença de Quinn, o que fez com que a sua expressão endurecesse de desconfiança. Quem é ele?

 

Chamo-me John Quinn e sou do FBI apresentou-se Quinn. Gostaria de ter uma pequena conversa consigo acerca da Jillian, Miss Fine. Estou a tentar formar uma ideia melhor da pessoa que ela era. Tanto quanto sei, você e ela eram boas amigas.

 

Os segundos passavam enquanto ela o olhava com fixidez, avaliando-o de uma maneira que até certo ponto parecia estranha numa empregada de mesa de um café muito em moda. Tinha um ar que se adequaria mais a alguém que já tivesse visto muito da vida passada nas ruas da cidade. Quando ela ergueu a mão para soltar a corrente de segurança, Quinn viu de relance a serpente que a rapariga tinha tatuada à volta do pulso.

 

Com alguma relutância, Michele franqueou-lhes a entrada.

 

Não sabe nada dela desde sexta-feira, não é verdade? perguntou Quinn.

 

Como é que eu podia ter tido notícias dela? respondeu-lhe Fine com amargura, lançando-lhe um olhar de desconfiança e desagrado; tinha os olhos cheios de lágrimas. Ela morreu. O que o leva a fazer-me uma pergunta como essa?

 

Porque não estou tão seguro quanto a essa morte como você parece estar.

 

De que diabo está para aí a falar? perguntou Michele num tom de quem exigia resposta, mostrando-se perplexa e frustrada. As notícias só falam disso. O pai dela até já ofereceu uma recompensa. Que jogada é que você pretende fazer comigo?

 

Quinn deixou-a ficar em suspenso enquanto observava tudo em seu redor. O apartamento era do melhor que havia ao estilo dos anos setenta original, nada de imitações. Quinn concluiu que desde essa década nada tinha sido alterado, nem sequer o pó que cobria tudo. Os cortinados de um tecido grosso davam a impressão de estar prestes a desintegrar-se logo que se desprendessem as argolas que os seguravam. Na sala de estar exígua, o conjunto de sofá e poltrona de linhas rectilíneas estava forrado com um tecido de padrão escocês em tons de laranja e castanho, com as molas quebradas e os estofos muito coçados. Em cima da mesinha de café, uma peça barata, viam-se várias revistas com roteiros turísticos; algumas das folhas tinham um canto dobrado, quais sonhos abandonados, ao lado de um cinzeiro a transbordar de beatas. Tudo o que ali se encontrava estava permeado pelo cheiro a fumo de cigarros e de marijuana.

 

Não preciso que venham a minha casa fornicar-me o juízo disse Fine. Estou doente. Estou doente por causa da Jillian. Ela era minha amiga... A voz embargou-se-lhe e ela desviou o olhar; os lábios apertavam-se de uma maneira que dava ainda mais realce à cicatriz curva que parecia pender de uma das comissuras da boca. Sinto-me... sinto-me adoentada. Portanto, façam as perguntas que querem fazer e depois desapareçam da minha vida de uma vez por todas. Pegou no cigarro e afastou-se da mesinha; colocou o outro braço à largura do estômago. Era de uma magreza doentia, pensou Quinn, muito pálida e escanzelada. Talvez estivesse realmente doente. Usava um casaco de malha de um preto desbotado que era demasiado largo para o seu corpo, e por baixo tinha uma camisola de algodão de um branco encardido, tão pequena que dava a impressão de ser de criança. Nas pernas que mais pareciam canivetes, usava umas calças pretas muito justas já bastante estafadas. Estava descalça sobre uma alcatifa imunda.

 

Então, o que é que tem? perguntou Liska.

 

O quê?

 

Você disse que estava doente. De que é que se queixa?

 

Ummmm... estou constipada respondeu Michele com uma expressão abstracta, olhando para o televisor onde uma mulher grotescamente obesa dava a impressão de estar a contar a Jerry Springer todos os pormenores sobre as suas relações com um anão, que tinha a cara toda marcada, e um transexual de raça negra; estava sentada entre os dois. Fine retirou uma partícula de tabaco que se lhe prendera na língua, dando-lhe um piparote em direcção ao ecrã. Estou indisposta do estômago.

 

Sabe o que é que ouvi dizer que era muito bom contra as náuseas? perguntou Liska com uma cara inexpressiva. Marijuana. Até já começaram a dá-la a doentes que têm de se submeter a tratamentos de quimioterapia. É evidente que é ilegal para outros fins...

 

A ameaça era quase imperceptível. Talvez apenas o suficiente para pesar a favor deles, caso Fine desse consigo a debater-se com a ideia de vir a cooperar ou não. Esta fitou-os com um olhar que não traía qualquer emoção.

 

Aqui há uns dias... quando nos cruzámos com o zelador que toma conta da casa da Jillian continuou Liska. Você não teve grande coisa a dizer a respeito dele.

 

E o que é que havia a dizer?

 

Até que ponto é que a Jillian o conhecia? Eram amigos?

 

Não. O grau de conhecimento não ia além de ela o tratar pelo primeiro nome respondeu Michele dirigindo-se para a mesa das refeições que parecia ter o tamanho de um selo postal, sentando-se e encostando-se à extremidade do tampo como se não tivesse forças para se sentar de costas direitas sem se apoiar. Ele andava de olho nela.

 

O que é que quer dizer com isso?

 

Da maneira que os homens costumam fazer replicou olhando para Quinn.

 

A Jillian disse alguma vez que ele andava a fazer-se a ela, que a observava, alguma coisa desse género? perguntou Liska.

 

Você pensa que foi ele quem a matou.

 

O que é que lhe parece, Michele? perguntou Quinn por seu turno. Que opinião é que tem desse fulano?

 

É um falhado.

 

Teve alguma discussão com ele?

 

Talvez lhe tenha dito que se fosse foder numa ou duas ocasiões retorquiu Michele, encolhendo um ombro tão franzino como a asa de um pássaro.

 

Porquê?

 

Porque ele não parava de olhar para nós. Como se nos estivesse a imaginar juntas e todas nuas. Um sacana de merda.

 

E o que é que a Jillian disse a isso?

 

Numa ocasião disse que, se essa era a grande excitação da vida dele, então que olhasse à vontade respondeu ela com outro encolher de ombros.

 

Alguma vez lhe disse alguma coisa sobre ele andara incomodá-la?

 

Não.

 

Alguma vez lhe mencionou ter a impressão de estar a ser observada ou seguida por alguém, qualquer coisa nesses moldes?

 

Não, apesar de isso estar a acontecer.

 

O que quer dizer? perguntou Liska olhando-a com toda a sua atenção.

 

O pai dela e o nazi, o psiquiatra, observavam-na como falcões. O pai tinha uma chave de casa dela. Às vezes chegávamos a casa e lá estava ele à espera que ela chegasse, Vá-se lá falar de violação de privacidade.

 

A Jillian sentia-se incomodada quando o pai aparecia sem a avisar?

 

A boca de Michele Fine contorceu-se, esboçando um pequeno sorriso estranho que reflectia amargura e mantendo os olhos no cinzeiro enquanto esmagava a ponta do cigarro,

 

Não. Ao fim e ao cabo, ela era uma menina do papá.

 

O que é que isso quer dizer?

 

Nada de especial. Ela permitia que ele puxasse os cordelinhos todos, mais nada.

 

Falou-lhe da relação que tinha com o padrasto. Alguma vez lhe disse alguma coisa sobre o tipo de relacionamento que mantinha com o pai?

 

Não costumávamos falar dele. Ela sabia qual era a opinião que eu tinha quanto ao facto de ele tentar controlar a vida dela. Era um assunto fora de questão. Por que razão pergunta? indagou Michele de uma maneira desinteressada. Pensa que ele também andava a tentar fodê-la?

 

Não lhe sei dizer respondeu Quinn. - O que é que essa hipótese lhe parece?

 

Penso que nunca conheci um homem que não comesse uma mulher se tivesse oportunidade para isso replicou ela, mostrando-se deliberadamente provocadora enquanto com o olhar percorria o corpo de Quinn detendo-se nas virilhas. Este permitiu que ela olhasse, esperando a sua vez de lhe dar troco. Finalmente, o olhar dela regressou ao seu. Se a intenção dele era essa, ela nunca o expressou por palavras

 

Quinn sentou-se na cadeira à cabeceira da pequena mesa, imstalando-se confortavelmente como se estivesse à espera que o jantar fosse servido. Uma vez mais, olhou em redor, reparando na falta de objectos decorativos, próprios de um lar Ou de cunho pessoal. Não avistou nenhuma fotografia. A única coisa que parecia estar bem cuidada era a aparelhagem estereofónica instalada no canto mais afastado da pequena sala de estar. Junto deste equipamento havia uma viola colocada ao alto

 

Tanto quanto sei, você e a Jilhan compunham música de parceria acrescentou Quinn. Qual era a parte da Jilhan nessa parceria?

 

Fine acendeu outro cigarro soprando o fumo para o candeeiro do tecto de qualidade inferior. O olhar de Quinn voltou a prender-se na serpente tatuada que ela tinha à volta do pulso, o desenho contorcia-se em redor das cicatrizes que haviam sido suturadas há muitos anos. A serpente do paraíso, com uma pequena maçã vermelha na boca

 

Por vezes escrevia os poemas das canções explicou Michele deixando que o fumo lhe saísse pelo espaço entre os dentes da frente. Mas outras vezes compunha a música. Fazia o que mais lhe apetecia no momento. O que queria fazer

 

Já gravaram alguma coisa das vossas músicas?

 

Ainda não.

 

Qual era o tema sobre o qual ela mais gostava de escrever?

 

Acerca da vida. Das pessoas. Das relações entre as pessoas.

 

Más relações?

 

Existem outras?

 

Ela tinha cópias daquilo que você escrevia?

 

Claro que tinha.

 

Onde? perguntou Liska.

 

Em casa dela. Dentro do banco do piano e na estante.

 

Mas quando lá estive há uns dias não encontrei nada disso retorquiu Liska.

 

Ora bem, mas era aí que ela guardava as músicas reiterou Fine na defensiva, soprando outra baforada de fumo.

 

Tem algumas cópias que possa mostrar-me? inquiriu Quinn. Gostaria de ler os poemas que ela escreveu, pode ser que me digam alguma coisa a respeito da sua maneira de ser.

 

A poesia é uma janela que dá para a alma retorquiu Michele Fine num tom de voz estranho e sonhador. O seu olhar pareceu perder-se novamente no vazio, o que levou Quinn a perguntar-se o que é que ela teria tomado e porquê. Teria o assassínio de Jillian sido de mais, tendo feito com que ficasse desnorteada? Ao que tudo indicava, ela fora a única amiga de Jillian. Talvez Jillian também tivesse sido a única amiga que ela tinha. E agora não restava ninguém... nenhuma amiga, nem parceira com quem escrever música, nada além daquele apartamento, que mais parecia uma espelunca, e um emprego sem qualquer futuro em termos profissionais.

 

É precisamente com essa janela que eu estou a contar disse Quinn por fim.

 

Só então é que Michele o olhou bem de frente; era uma rapariga um tanto sem graça, ligeiramente exótica, com uns cabelos pretos bastante oleosos penteados para trás, afastados do rosto, uma cara vagamente familiar na sua opinião, semelhante a todos os rostos em qualquer parte do mundo que encontrara decorridos tantos casos. Os olhos pequenos de Michele de súbito adquiriram uma tonalidade muito clara quando disse:

 

Mas será que reflecte quem nós somos ou aquilo que desejamos? Pôs-se de pé e encaminhou-se para um conjunto de prateleiras feitas de blocos de cimento e tábuas no outro extremo da sala, regressando com uma pasta de arquivo que folheava. Quinn ergueu-se estendendo a mão para a pasta que Fine desviou do seu alcance, brindando-o com um olhar velado por entre um pestanejar que era quase uma manifestação de coquetismo. Também é a janela que dá para a minha alma, senhor agente federal... Talvez eu não queira que o senhor espreite lá para dentro. Michele tinha na mão meia dúzia de pautas de música. Roera as unhas até ao sabugo. Em seguida, encostou a pasta à barriga, um gesto que dava realce aos seus pequenos seios por baixo da T-shirt demasiado justa ao corpo. Não usava soutien.

 

Liska colocou a sua pasta em cima da mesa, abriu os fechos e do interior tirou um estojo com material que se destinava à recolha de impressões digitais.

 

Continuamos a precisar das suas impressões digitais, Michele, para que possamos eliminá-las das outras que recolhemos em casa da Jillian. Calculei que não teria tido tempo para ir à esquadra tratar disso, ocupada como você tem andado.

 

Michele ficou a olhar fixamente para a almofada de carimbo saturada de tinta e a ficha de cartolina, mostrando uma expressão de desconfiança e desagrado.

 

Não demora mais do que um minuto disse Liska como que a tranquilizá-la. Sente-se, por favor.

 

Michele deixou-se cair em cima da cadeira, estendendo a mão com mostras evidentes de relutância.

 

Qual foi a última vez que teve notícias da Jillian? perguntou Quinn.

 

Vi-a na sexta-feira antes da sessão com o fornicador de mentes respondeu Michele enquanto Liska lhe rolava o polegar pela almofada de tinta, após o que o premiu contra a ficha.

 

Ela não lhe telefonou na sexta-feira à noite?

 

Não.

 

Não veio a sua casa?

 

Não.

 

Onde é que você estava por volta da meia-noite, uma da manhã?

 

Na cama. Nua e sozinha replicou Michele lançando-lhe um olhar por entre as pestanas. Mormacento.

 

Isso parece um tanto estranho, não acha? perguntou Quinn. Ela teve uma discussão com o pai. Ficou tão perturbada que saiu a correr de casa dele. No entanto, não tentou contactar a melhor amiga.

 

Pois bem, agente Quinn replicou Michele, a voz de experiências tristes. Há muito tempo que aprendi que nunca sabemos o que vai no coração de outra pessoa. O que, por vezes, é preferível.

 

Com alguma dificuldade, Kovac estacionou o Caprice no espaço assinalado com «Reservado Apenas a Veículos da Polícia», na Rua 5, ao lado da Câmara Municipal, onde deixou o carro. Articulando um chorrilho de impropérios, atravessou a neve acumulada pelo limpa-neves que cobria o passeio; a dada altura ficou enterrado em neve até aos joelhos. Tropeçando e aos cambaleios lá conseguiu passar para o outro lado da elevação, subindo apressadamente os degraus que lhe davam acesso à entrada do edifício. A sua respiração formava nuvens de vapor, enquanto o seu coração pulsava aceleradamente, bombeando sangue e adrenalina através de artérias que, muito provavelmente, pareceriam o interior dos canos de uma canalização em mau estado de conservação.

 

Por Deus, ele teria de se pôr em forma caso quisesse sobreviver a outra investigação como aquela. Mas, por outro lado, as esperanças de que a sua carreira conseguisse sobreviver àquela não eram muito animadoras.

 

O átrio estava cheio de mulheres iradas que se abateram sobre ele qual avalancha incontrolável, enquanto tentava furar para se dirigir ao departamento de investigação criminal. Só quando ficou cercado por todas aquelas mulheres é que viu os cartazes de protesto que oscilavam acima das suas cabeças: AS NOSSAS VIDAS TAMBÉM SÃO IMPORTANTES! JUSTIÇA! UMA EXIGÊNCIA DA CASA PHOENIX!

 

As vozes das mulheres chegavam-lhe como uma barragem de fogo, como se fossem duas dúzias de caçadeiras disparadas em simultâneo.

 

Assédio policial!

 

Só os Urskine é que querem uma justiça verdadeira!

 

Porque é que não tratam de descobrir o verdadeiro assassino?!

 

É isso que eu tento fazer, minha irmã ripostou Kovac dirigindo-se à mulher que lhe bloqueava o caminho com uma expressão carrancuda, a que juntava uma barriga do tamanho de um barril de cerveja. Portanto, porque não afasta a bagagem, permitindo-me fazer isso mesmo?

 

Foi nessa altura que Kovac reparou na presença dos meios de comunicação social. Os flashes entraram em acção vindos de todas as direcções. «Merda!» Kovac continuou a andar. A única regra de sobrevivência numa situação daquelas: calar a boca e continuar a andar.

 

Sargento Kovac, é verdade que ordenou a detenção do Gregg Urskine?

 

Ninguém está sob detenção! gritou o polícia tentando furar por entre aquela multidão agitada.

 

Kovac, ele já confessou?

 

A Melanie Hessler era a sua testemunha mistério?

 

«Fuga de informações do gabinete do promotor público?», pensou com um abanar de cabeça. Era isso que estava mal no país: as pessoas estavam dispostas a vender a própria mãe se o dinheiro em jogo fosse o suficiente, sem pensarem duas vezes nas consequências que daí pudessem advir para os outros.

 

Não tenho comentários a fazer grunhiu Kovac furando por entre as últimas pessoas do grupo.

 

Depois de ter passado com alguma dificuldade pelas caixas amontoadas e armários de arquivo das instalações provisórias da secção de homicídios, virando à direita até ao gabinete temporário do tenente Fowler, começou a ouvir a voz de Toni Urskine que parecia seccionar-lhe os nervos que nem cutelo em carne viva.

 

... e pode ter a certeza de que todos os canais televisivos, todos os jornais, todos os repórteres ouvirão o que tenho a dizer, ficando bem inteirados desta situação! Isto é absolutamente ultrajante! Nós somos vítimas por causa destes crimes. Nós perdemos amigas! Nós sofremos. E este é o modo como somos tratadas pelo Departamento de Polícia de Minneapolis depois de termos feito tudo e mais alguma coisa para cooperar!

 

Kovac esgueirou-se pela porta que dava para os outros gabinetes. Yurek saltou da sua mesa de trabalho, com o auscultador do telefone preso entre a face e o ombro, estabelecendo contacto visual com Kovac através de um olhar selvático, erguendo uma mão que lhe pedia que não se afastasse das proximidades. Kovac aguardou durante cinco segundos, o motor a trabalhar, a excitação que trouxera consigo para dentro do edifício como uma corrente de energia que lhe atravessasse os braços e as pernas, percorrendo-lhe as veias e as artérias. Elevava-se e baixava-se sobre os calcanhares como se fosse um rapazinho aflito para fazer chichi.

 

Há lugares onde tenho de ir e gente a quem preciso de apertar os calos, Charm.

 

Yurek assentiu com a cabeça, falando ao bocal do auscultador.

 

Lamento muito, minha senhora, mas agora vejo-me forçado a desligar. Tenho uma situação de emergência que precisa da minha presença. Peço desculpa. Sim, será contactada por alguém. Lamento muito, minha senhora. Desligou, levantou-se e contornou a secretária abanando a cabeça. Esta gente está a dar comigo em doido. Há uma mulher que não se cala, insistindo em que o vizinho dela é o Cremador; afirmando que ele não só assassinou brutalmente quatro mulheres, mas também está convencida de que ele matou e comeu o seu cão.

 

Tenho tanto tempo para essas merdas como tenho para ir ao dentista desvitalizar um dente ripostou Kovac desabridamente. O Quinn está cá?

 

Acabou de voltar. Está a assistir ao interrogatório do Urskine informou Yurek, colocando-se ao lado de Kovac, que se dirigia para as salas reservadas aos interrogatórios. Acabei de receber uma chamada lá de cima...

 

E então... a mulher a quem morreu o cãozinho é a presidente da Câmara? Isso ilustra bem as dimensões grotescas que este caso está a adquirir.

 

Não, antes da senhora do cão. Foste convocado para ires ao gabinete da presidente da Câmara. Eles têm tentado contactar-te através do teu telemóvel.

 

A carga foi-se abaixo. E tu nem sequer me viste. A batalha à machadada pode esperar. Tenho um grande peixe para fritar. Tenho a porra da baleia do Jonas.

 

O que é que queres dizer com isso de «um grande peixe»? A testa perfeitamente lisa de Yurek enrugou-se. Onde é que tens estado?

 

Kovac não lhe deu resposta; os seus pensamentos já se concentravam na confrontação que o aguardava. Quinn encontrava-se perto do vidro que só permitia a visão do seu lado, dando a impressão de estar preso ao chão, enquanto olhava fixamente através da janela para o que se passava na sala do outro lado, onde Gregg Urskine se sentava à mesa em frente de Elwood.

 

Pagámos em dinheiro. Não consegui encontrar o recibo dizia Urskine exasperado, esforçando-se por manter um sorriso de alguém bem instalado na vida. O senhor costuma guardar todos os seus recibos? Era capaz de encontrar um recibo de uma despesa que fez há vários meses?

 

Sim, pode crer que conseguiria encontrar. Em casa mantenho um sistema de arquivo que, embora simples, é bastante eficaz respondeu Elwood em tom de palestra. Nunca se sabe quando é que se pode precisar de um documento qualquer. Por causa dos impostos, por causa de um álibi...

 

Não necessito de nenhum álibi.

 

Conheço alguém que necessita retrucou Kovac despertando a atenção de Quinn. Quer ir dar outra volta?

 

O que é que se passa?

 

Acabei de falar com Mistress Donald Thorton, o ex-sócio do Peter Bondurant. Quer saber como é que a emocionalmente instável Sophie Bondurant conseguiu a tutela da Jillian aquando do divórcio? Você vai adorar isto prometeu o detective com sarcasmo.

 

Quase tenho medo de perguntar.

 

Ela ameaçou contar tudo em tribunal e aos meios de comunicação social. Acusou o marido de atentado contra o pudor na pessoa da filha, a Jillian.

 

 

Oh, meu Deus gemeu Yurek manifestando apreensão

 

O que é que se passa agora? perguntou Kovac pouco satisfeito. Queres que eu finja que o Bondurant não abusava sexualmente da filha?

 

Abusava, alegadamente

 

Pensas que eu não sei que acabei de arranjar lenha para me queimar?

 

Acho que é melhor ouvires o que a presidente da Câmara quer

 

Ela quer que vás ao seu gabinete para, pessoalmente pores ao corrente Mister Bondurant dos últimos desenvolvi mentos da investigação. Neste momento, estão lá em cima à tua espera

 

Durante uma fracção de segundos, o silêncio abateu-se sobre a sala até que foi quebrado pela voz calma de Ellwood difundida pelo altifalante ligado à sala de interrogatórios contígua

 

Alguma vez teve relações sexuais a troco de dinheiro Mister Urskine?

 

Não.

 

Não foi minha intenção ofendê-lo Mas o facto de trabalhar junto de todas aquelas mulheres que vendiam o corpo como modo de vida, muito naturalmente, pode ter despertado em si uma certa curiosidade Por assim dizer

 

Já chega disse Urskine peremptório afastando a cadeira da mesa. Vou-me embora. Se quiserem voltar a falar comigo, poderão fazê-lo através do meu advogado

 

Muito bem acrescentou Kovac dirigindo-se a Quimn; os seus nervos Antecipavam o nó que sentiria no estômago. Vamos lá dar à presidente da Câmara e a Mister Bondurant as grandes novidades. Pelo caminho até ao gabinete vou aproveitar para o pôr a par dos últimos acontecimentos

 

- Tenho a certeza de que compreenderá a necessidade que o Peter sente em ver este assunto encerrado o mais depressa possível dizia Edwyn Noble ao comandante de polícia Greer. Há alguma previsão quanto à data em que o corpo será entregue à família?

 

Especificamente não respondeu Greer, que se encontrava perto da cabeceira da mesa de reuniões no gabinete da presidente da Câmara, com os pés ligeiramente afastados e mãos enclavinhadas defronte de si, como um militar em posição de à-vontade, ou como um arruaceiro com uma atitude agressiva. Já mandei chamar o sargento Kovac. Tanto quanto sei, ele está à espera de informações do laboratório do FBI com relação a alguns exames periciais. Provavelmente só depois de estarem concluídos, o que pode acontecer num destes dias mais próximos

 

Eu quero sepultar a minha filha, comandante Greer interrompeu Bondurant numa voz cheia de tensão. Não olhou para o comandante da polícia, dando a impressão de olhar com fixidez para uma dimensão que só a mente dele conseguia ver. Ignorara o convite para que se sentasse, andando em redor da sala de reuniões num passo que manifestava inquietude. Só de pensar no seu corpo dentro da gaveta de uma câmara frigorífica, como se fosse uma peça de carne. Quero que me entreguem o corpo da minha filha.

 

Peter, meu querido, nós compreendemos aquilo por que está a passar disse Grace Noble tentando apaziguá-lo. Todos partilhamos o seu desgosto E posso garantir-lhe que o grupo de trabalho formado para esta investigação está a fazer tudo humanamente possível com vista á resoluÇão deste

 

Está a falar a sério? O seu chefe de detectives tem Passado mais tempo a assediar-me do que em perseguição de quaisquer suspeitos

 

O sargento Kovac pode ser um tudo-nada desabrido, retorquiu Greer Mas a sua folha de serviços na secÇão de homicídios fala por si própria

 

Correndo o risco de parecer pecar por excesso de verbosidade, comandante Greer atalhou Edwyn Noble

 

não obstante a folha de serviços do sargento Kovac, ultima mente, o que é que ele tem feito por nós? Temos outra víti ma. O assassino dá a impressão de estar a troçar de nós, não só do grupo de trabalho, mas também de toda a cidade. Nesta fase das investigações, o sargento Kovac já descobriu algum suspeito minimamente viável?

 

O tenente Fowler disse-me que interrogaram alguém há algumas horas.

 

Quem? Um suspeito genuíno?

 

Não estou em posição de... começou Greer a responder de cenho franzido.

 

Ela era minha filha! vociferou Peter numa voz tão enraivecida que reverberou pelas paredes. Desviou o olhar dos outros que o olhavam fixamente, cobrindo o rosto com as mãos.

 

A presidente da Câmara pousou uma mão nos seios generosos, como se aquela visão lhe provocasse dores no peito.

 

Se já detiveram alguém começou Noble a dizer, a voz da razão, então, será apenas uma questão de algumas horas antes que a imprensa revele essa informação. Isto não é nenhum reparo sobre o sigilo nas suas forças, de per se, comandante. Muito simplesmente, é impossível eliminar todas as fugas de informação num caso com esta magnitude.

 

O olhar de Greer ia do advogado de Bondurant à mulher do advogado de Bondurant... a sua superiora hierárquica. Sentindo-se acabrunhado e incapaz de encontrar formas» de escapar àquela situação, soltou um profundo suspiro.

 

O zelador do complexo residencial onde Miss Bondurant vivia.

 

Entretanto, começou a ouvir-se o som ensurdecido do intercomunicador; Grace Noble respondeu pelo telefone em cima de uma mesinha de apoio.

 

Senhora presidente, o sargento Kovac e o agente especial Quinn estão aqui para falar com a senhora.

 

Mande-os entrar, Cynthia.

 

A presidente ainda mal acabara de falar e já Kovac transpunha a porta; os seus olhos procuraram Peter Bondurant como se fossem dois mísseis que encontrassem os alvos através de ondas térmicas. Bondurant dava a impressão de ter emagrecido desde o dia anterior, ao que se aliava um tom de pele mais emaciado. Fitou Kovac com uma expressão empedernida de muito desagrado.

Sargento Kovac, agente especial Quinn, quero agradecer-vos por nos fazerem companhia disse a presidente da Câmara. Proponho que nos sentemos e que comecemos a conversar. ^

 

Não tenho intenção de divulgar nenhuns pormenores relativos a este caso declarou Kovac numa atitude de teimosia. Da mesma maneira, recusou sentar-se uma vez que não tencionava ser um alvo estático para as investidas de Bondurant ou Edwyn Noble.

 

Nenhum dos outros se sentou.

 

Tanto quanto sabemos, você tem um suspeito disse Edwyn Noble.

 

Kovac lançou-lhe um olhar arguto, após o que se virou para Greer pensando para consigo: «Grande lambe-botas.»

 

Não efectuámos nenhuma detenção - continuou Kovac. Continuamos a seguir todas as pistas possíveis. Eu próprio acabei de ter uma conversa extremamente interessante.

 

Mister Vanlees apresentou algum álibi para a noite em que a minha filha desapareceu? perguntou Bondurant com brusquidão. Enquanto percorria o comprimento da mesa nos dois sentidos, fitou Kovac quando passou a cerca de trinta centímetros deste.

 

E você... tem um álibi para a noite em que a sua filha desapareceu, Mister Bondurant?

 

Kovac!!! ripostou o comandante, estupefacto.

 

Com todo o respeito que me merece, comandante, não tenho o hábito de revelar pormenores sobre os meus casos seja a quem for.

 

Mas Mister Bondurant é o pai da vítima. Existem circunstâncias atenuantes, para utilizar esta expressão.

 

__ Sim, como por exemplo uns quantos milhões de milhões delas resmungou Kovac.

 

Sargento!

 

O sargento Kovac é da opinião que eu devia ser punido pela minha riqueza, comandante adiantou Bondurant, continuando a andar de um lado para o outro, olhando com fixidez para o chão. É provável que ele esteja convencido de que mereço ter perdido a minha filha, para poder sentir na pele o que é um verdadeiro sofrimento.

 

Depois de tudo o que ouvi hoje, acredito que nunca mereceu ter uma filha; de maneira nenhuma! retorquiu Kovac suscitando um arfar de perplexidade por parte da presidente da Câmara. Tenho a certeza de que mereceu perdê-la, mas não da forma como ela aparentemente morreu. Isto é, se vier a comprovar-se que de facto está morta... e você não tem o mínimo fundamento para afirmar que assim seja.

 

Sargento Kovac, espero que tenha uma explicação muito boa que justifique o seu comportamento atalhou Greer dirigindo-se a ele com uma atitude agressiva, erguendo os seus ombros de halterofilista.

 

Kovac afastou-se do comandante de polícia. Toda a sua atenção estava concentrada em Peter Bondurant. E toda a atenção de Peter Bondurant estava focada nele. Deteve os seus passos; os olhos semicerrados reflectiam uma prudência instintiva, como um animal que pressentisse a aproximação de perigo.

 

Hoje tive uma longa conversa com a Cheryl Thorton

 

prosseguiu Kovac, observando a pouca cor que ainda não deixara o rosto de Peter Bondurant, como se o sangue tivesse sido sugado por uma sanguessuga. Ela contou-me umas coisas deveras interessantes sobre as circunstâncias que rodearam o divórcio entre si e a mãe da Jillian.

 

Não estou a ver qual é a relevância que... começou Edwyn Noble a dizer, mostrando-se desconcertado.

 

Pelo contrário, acho que até é muito relevante redarguiu Kovac sem despregar o olhar de Bondurant.

 

A Cheryl é uma mulher amargurada e vingativa atalhou Bondurant.

 

Acha que sim? Mesmo depois de ela se ter mantido calada durante tanto tempo? Atrevo-me a dizer que você é um filho da puta muito ingrato...

 

Kovac! Já chega! gritou Greer.

 

Não me parece replicou Kovac. Se quiser lamber as botas de um homem que abusa sexualmente de crianças, chefe, é um assunto que só a si diz respeito. Mas eu recuso-me a agir dessa maneira. Estou-me a cagar para todo o dinheiro que ele possa ter.

 

Oh! exclamou Grace Noble, chocada, levando uma vez mais a mão ao peito.

 

Talvez devêssemos discutir este assunto lá em baixo sugeriu Quinn numa voz serena.

 

Por mim não há problema retorquiu Kovac. Temos uma sala de interrogatórios bem aquecida à nossa espera.

 

. Eu nunca abusei da Jillian afirmou Bondurant, que começou a tremer visivelmente.

 

É possível que pense não o ter feito replicou Kovac descrevendo lentamente um círculo à volta do homem, afastando-se de Greer; os olhos de Bondurant mantinham-se presos em Kovac que voltara costas ao advogado do multimilionário. Há um grande número de pedófilos que se convencem de que estão a fazer um favor à criança em causa. Alguns chegam mesmo ao ponto de confundirem a fornicação com menores, considerando que é um acto de amor. Foi isso que se obrigou a acreditar?

 

Seu filho da puta! invectivou Bondurant atirando-se a Kovac que agarrou pelas lapelas, empurrando-o para trás até ao outro extremo da sala. Ambos embateram violentamente contra uma mesinha encostada à parede, fazendo com que um par de castiçais de latão voassem pelo ar como se fossem pinos de bowling.

 

Kovac conteve a grande vontade que tinha de lançar Bondurant ao chão, dando-lhe uma tareia de que ele nunca mais se esqueceria. Depois do que ouvira, era o que mais lhe apetecia fazer, desejo que talvez viesse a concretizar caso se cruzassem num beco escuro. Mas os indivíduos do tipo de Peter Bondurant não costumavam frequentar vielas escuras, e a dureza da justiça nunca os afectava.

 

Bondurant desferiu um bom golpe, atingindo um canto da boca de Kovac com os nós dos dedos. Mas foi então que Quinn o agarrou pela parte de trás da gola separando-o do outro. Greer apressou-se a interpor-se entre os dois homens como se fosse um árbitro, com os braços completamente abertos para os lados e a revirar os olhos em que o branco se destacava no rosto de pele escura.

 

Sargento Kovac, estou em crer que você devia ir até lá fora disse ele numa voz alterada.

 

Kovac endireitou a gravata e o casaco. Limpou um fio de sangue que lhe escorria da comissura dos lábios, esboçando um esgar com um trejeito de desprezo enquanto olhava para Peter Bondurant.

 

Pergunte-lhe onde é que ele esteve ontem à noite às duas da madrugada disse Kovac. Enquanto havia alguém que deitava fogo ao automóvel da filha, em cujo interior estava uma mulher morta terrivelmente mutilada.

 

Nem sequer me dignarei comentar o que acabou de dizer retorquiu Bondurant, limpando as lentes dos óculos.

 

Jesus, você é qualquer coisa de inacreditável, não é?

 

insistiu Kovac, perplexo. Abusa de crianças e não lhe acontece nada. Ataca um oficial das forças de segurança e as consequências são nulas. Você surge neste caso como uma infecção perniciosa. Está convencido de que pode cometer um assassínio sem sofrer quaisquer represálias, se for essa a sua vontade?

 

Kovac, berrou Greer.

 

Kovac olhou para Quinn, sacudiu a cabeça e dirigiu-se para a porta.

 

Bondurant soltou-se com brusquidão da mão de Quinn que o agarrara por um braço.

 

Eu quero que ele seja retirado das investigações’ Quero que seja expulso da Polícia!

 

Só porque está a cumprir as suas funções? perguntou Quinn com toda a calma. As averiguações fazem parte do seu trabalho. Não tem culpa por nada do que venha a descobrir, Peter. Você é como um cão que não conhece o dono.

 

Ele não tem andado a investigar o caso gritou Bondurant descontrolado, tendo recomeçado a andar, gesticulando freneticamente. Ele tem andado a investigar a minha pessoa. Não pára de me assediar. Por amor de Deus. eu perdi a minha filha!

 

Naquele momento, Edwyn Noble tentou agarrá-lo pelo braço quando ele passou junto de si. Com um gesto brusco. Bondurant contorceu-se, afastando-se.

 

Peter, veja se se acalma. O sargento Kovac será tratado como merece.

 

Na minha opinião, acho que devíamos tratar as informações que o Kovac recolheu, não lhe parece? perguntou Quinn ao advogado.

 

É tudo um chorrilho de disparates ripostou Noble

 

As alegações que ele fez não têm o mínimo cabimento

 

De verdade? A Sophie Bondurant era uma mulher emocionalmente instável. Dado esse facto, por que motivo os tribunais lhe atribuíram a tutela da JilHan? Mais concretammente, por que razão você não contestou essa decisão, Peter? inquiriu Quinn, tentando estabelecer contacto visual com Bondurant.

 

Este não parava de andar de um lado para o outro, mostrando-se extremamente agitado, com uma palidez que levou Quinn a pensar que talvez estivesse doente.

 

A Cheryl Thorton diz que a razão por que você não contestou a decisão do tribunal se deveu à ameaça que a Sophie fez de revelar que você abusava sexualmente da Jillian.

 

Eu nunca fiz mal à minha filha. É coisa que jamais faria!

 

A Cheryl incrimina o Peter desde sempre pelo acidente que o marido teve interveio Noble com rispidez. Ela não queria que o Donald vendesse a quota que tinha na Paragon. Pelo que também o castigou. Levou-o à bebida. Ela é que foi a causa do acidente... ainda que indirectamente, mas culpabiliza o Peter.

 

E essa mulher vingativa e cheia de azedume nunca abriu a boca até agora para falar desse alegado abuso? continuou Quinn. O que, convenhamos, seria difícil de imaginar, não fossem os generosos pagamentos mensais que o Peter remete para a clínica onde o Donald Thorton passa o resto da sua vida.

 

Algumas pessoas considerariam isso um acto de generosidade observou Noble.

 

Mas há outros que classificariam isso de chantagem. Há algumas pessoas que diriam que o Peter tem andado a comprar o silêncio da Cheryl Thorton.

 

Essas pessoas estariam enganadas declarou Noble inequivocamente. O Donald e o Peter eram amigos além de serem sócios. Porque não haveria ele de garantir que as necessidades do homem fossem amplamente satisfeitas?

 

Porque ele tratou muito bem desse assunto quando comprou a parte dele na Paragon... o que, uma coincidência curiosa, teve lugar mais ou menos na altura do divórcio continuou Quinn. Até se poderia considerar que esse negócio foi excessivamente generoso por parte do Peter.

 

O que acha então que ele devia ter feito? perguntou Noble num timbre de exigência. Tentar roubar a companhia ao homem que o havia ajudado a construí-la?

 

Quinn reparou que Bondurant tinha parado de andar, confinando-se ao canto junto da janela. Como se tivesse batido em retirada. Mantinha a cabeça baixa, levando constantemente as mãos à testa, como se estivesse a ver se tinha febre. Assumindo uma postura casual, Quinn começou a aproximar-se dele e, disfarçadamente, reduziu-lhe para metade a área de manobra. Sub-reptício, invadia-lhe o espaço.

 

Por que razão não opôs resistência à Sophie, batendo-se pela tutela da sua filha? perguntou com suavidade, uma pergunta do foro íntimo entre dois amigos. Também mantinha a cabeça baixa e as mãos dentro dos bolsos das calças.

 

Nessa altura decorriam as negociações para a aquisição da quota do meu sócio. Não tinha tempo para tratar do assunto de uma criança.

 

Portanto, permitiu que ela ficasse com a Sophie. Uma mulher que passava a vida a entrar e a sair de clínicas para doentes mentais?

 

As coisas não se passaram assim. Não se pode dizer que ela sofria de uma doença mental. A Sophie tinha alguns problemas de ordem psíquica. Mas todos nós temos problemas.

 

Não do tipo que nos levam a tentar o suicídio.

 

Os olhos do homem ficaram marejados de lágrimas. Ergueu uma mão como se tentasse velar os olhos do olhar atento de Quinn.

 

Por que motivo é que você e a Jillian discutiram nessa noite?

 

Bondurant fez um ligeiro acenar de cabeça, deslocando-se agora por uma linha curta e restrita. Dava três passos, fazia meia volta, dava outros três passos e fazia o mesmo no sentido inverso.

 

Ela tinha recebido um telefonema do padrasto insistiu Quinn. Você sentiu-se encolerizado.

 

Já analisámos esse assunto atalhou Edwyn Noble com impaciência; era óbvio que queria interpor-se entre Quinn e o seu cliente. Mas o primeiro colocou um ombro estrategicamente de modo a gorar-lhe os intentos.

 

Por que razão insiste em afirmar que a Jillian está morta, Peter? Eu não tenho a certeza de que esteja. Penso que é possível que continue viva. O que o leva a pensar que morreu? Qual foi o assunto por que discutiram nessa noite?

 

Por que razão está a sujeitar-me a isto? Murmurou Bondurant numa voz torturada. Os seus lábios, sempre com um sorriso afectado, naquele momento cerravam-se numa linha apertada e tremiam.

 

Porque precisamos de saber a verdade, Peter, e penso que você tem andado a esconder peças que faltam neste quebra-cabeças. Se quiser conhecer a verdade, como você diz que quer, então, terá de me entregar essas peças. Está a compreender? Precisamos de ter uma panorâmica completa da situação.

 

Quinn susteve a respiração. Bondurant estava prestes a ceder. Sentia-o, quase podia ver essa cedência. Com a força da sua mente, tentou forçá-lo a abrir-se.

 

Bondurant olhava para a neve, que naquele momento tinha parado de cair, através da janela com uma expressão abstracta.

 

Tudo o que eu desejava era que tivéssemos uma relação normal entre pai e filha...

 

Já chega, Peter interrompeu Noble colocando-se diante de Quinn e agarrando o seu cliente por um braço. Vamo-nos embora. Pensei que você e eu nos compreendíamos acrescentou lançando um olhar furioso a Quinn.

 

Ora bem, eu compreendo-o perfeitamente, doutor Noble replicou Quinn. O que não significa que esteja interessado em jogar pela sua equipa. Estou interessado única e exclusivamente em duas coisas: na verdade e na justiça. Mas não estou certo que o senhor deseje qualquer delas.

 

Noble não lhe deu resposta. Conduziu Bondurant para fora da sala, como se fosse um auxiliar de enfermagem que acompanhasse um doente sob o efeito de tranquilizantes.

 

Quinn fitou a presidente da Câmara, a qual, finalmente, decidira sentar-se, apesar de os outros terem optado por continuar de pé. A expressão no seu rosto era um misto de reflexão e perplexidade, como se tentasse analisar recordações de outros tempos, procurando alguma que pudesse implicar Peter Bondurant em qualquer coisa de que ela nunca suspeitara. O comandante Greer tinha a aparência de um homem que sofresse das fases iniciais de diverticulite.

 

É o risco que se corre quando se começa a escavar buracos disse Quinn. Nunca temos a garantia de irmos encontrar o que procuramos... ou de que queiramos aquilo que podemos encontrar.

 

Por volta das dezassete horas, todas as agências noticiosas sediadas ou acampadas nas Twin Cities tinham conhecimento do nome de Gil Vanlees. Os mesmos meios de comunicação social que haveriam de escrever esse nome em grandes parangonas por todos os jornais, e encher os ecrãs de todos os televisores com fotografias de má qualidade do homem, apontariam o dedo ao departamento da polícia por ter permitido aquela fuga de informações.

 

Quinn não tinha a mínima dúvida quanto à origem dessa mesma quebra de sigilo, o que o deixava profundamente irritado. O facto de a gente de Bondurant ter acesso a informações privilegiadas prejudicara as investigações. E à luz das revelações que Kovac fizera nessa mesma tarde, a intromissão de Bondurant adquiriria contornos ainda mais tenebrosos.

 

Ninguém tinha sido o autor daquela fuga de informações junto da imprensa. Nem sequer Cheryl Thorton, alegadamente uma mulher vingativa e cheia de azedume, cujo marido, cerebralmente incapacitado, era sustentado por Peter Bondurant. Quinn perguntava a si mesmo qual seria o montante necessário para ela ter calado um ressentimento daquela natureza ao longo de uma década.

 

O que teria acontecido nas vidas de Jillian, da mãe e do pai nesse período crucial que antecedera o divórcio? Era uma pergunta que fazia a si mesmo no gabinete sem janelas que lhe fora atribuído nos escritórios do FBI naquela cidade Desde o princípio do caso que Bondurant lhe dera a impressão de ser um homem que guardava segredos. Segredos respeitantes ao presente. Segredos sobre o passado. Estariam esses segredos relacionados com actos degradantes de incesto?

 

De que outra maneira teria Sophie Bondurant conseguido a tutela de Jillian, levando em linha de conta a sua instabilidade mental? E não obstante toda a influência e poder de que Peter gozava?

 

Começou a folhear o processo correspondente ao caso até chegar às fotografias tiradas no local em que a vítima do terceiro assassínio fora encontrada. Havia determinados aspectos desse homicídio que pareciam dar a impressão de que o assassino e a vítima talvez se conhecessem. A decapitação que não se verificara com nenhuma das outras vítimas, a despersonalização levada ao extremo. Eram dois factores que sugeriam a existência de um tipo de raiva de natureza muito pessoal. Mas e o que fazer em relação à ultima teoria, segundo a qual o assassino trabalhava de parceria, nomeadamente com uma mulher. Esse aspecto não se ajustava a Peter Bondurant. E o que dizer da hipótese de que talvez essa mulher fosse a própria Jillian Bondurant.

 

Os antecedentes de abuso sexual ajustar-se-iam ao perfil de uma mulher que estivesse envolvida naquele tipo de homicídio. Ela teria uma perspectiva distorcida quanto aos relacionamentos entre homens e mulheres, o que também se aplicaria às relações sexuais. Muito plausivelmente, o seu parceiro seria mais velho, e nele estaria subjacente uma inspiração doentiamente distorcida da figura paternal, o parceiro dominador

 

Quinn pensou em Jilhan, na fotografia que Bondurant tinha no escritório. Uma jovem emocionalmente perturbada, com um amor-próprio muito em baixo, uma rapariga que bastante a contragosto fingia ser uma pessoa que não era, com o objectivo de conseguir agradar. A que extremos é que ela teria estado disposta a ir a fim de ser merecedora da aprovação por que tanto ansiava.Reflectiu no envolvimento emocional que ela tivera com o padrasto por pressuposto, uma relação de mutuo acordo se bem que aquele tipo de situação nunca fosse realmente o que parecia ser. As crianças precisavam de amor, uma carência afectiva que permitiria que fossem facilmente manipuladas E se de facto Jilhan fugira a uma relação abusiva por parte do pai, apenas para ser coagida a manter uma similar com o padrasto, isso teria reforçado todas as noções distorcidas que havia formado em relação aos homens

 

Se Peter tivesse abusado dela

 

Se Jilhan não fosse uma vitima de assassínio, mas sim uma vitima por sua livre e espontânea vontade

 

Se Gil Vanlees fosse seu parceiro naqueles actos perversos

 

Se ao fim e ao cabo Gil Vanlees fosse um assassino

 

Se se se se

 

Vanlees parecia ajustar-se na perfeição ao perfil do assassino excepção feita ao facto de Quinn não acreditar que ele possuísse a inteligência necessária para levar a melhor à polícia durante tanto tempo, ou que tivesse tomates suficientes para aquela jogada do rato e do gato a que o assassino se dedicava. Esse indivíduo não era o Gil Vanlees que ele vira nesse mesmo dia na sala de interrogatórios. Todavia, sabia por experiência que a personalidade das pessoas podia ter mais de uma faceta, e que um lado sombrio que levasse a matar da maneira como aquele criminoso fazia seria capaz de qualquer coisa, incluindo fazer-se passar pelo que não era com uma eficácia levada ao extremo.

 

Mentalmente, Quinn visualizou a imagem de Gil Vanlees, esperando por um baque nas entranhas que lhe desse a entender estar em presença desse tipo de indivíduo. Mas essa sensação não surgiu. Não se recordava da última vez que esse instinto estivera presente. Nem sequer mesmo depois do facto, depois de um homicida ter sido apanhado, vindo a verificar-se que se enquadrava no perfil psicológico por ele elaborado ponto a ponto, Essa percepção que lhe dizia estar na senda da verdade tinha deixado de se materializar. A arrogância da certeza havia-o abandonado. O terror ocupara o seu lugar.

 

Continuou a folhear o processo relativo ao homicídio até chegar às fotografias da autópsia a que o corpo de Melanie Hessler fora recentemente submetido. Tal como acontecia com a terceira vítima, os ferimentos infligidos, quer antes quer depois da morte, caracterizavam-se pela brutalidade, eram inadmissivelmente cruéis, mais impiedosos do que os das duas primeiras vítimas. Enquanto examinava as fotografias, ouvia na sua cabeça o eco das vozes na gravação em fita magnética. Grito após grito, numa sucessão de gritos desesperados.

 

Aqueles gritos encadeavam-se numa cacofonia que enchia os seus pesadelos, num crescendo de sons cada vez mais intenso. Os gritos pareciam inchar, expandindo-se no seu cérebro, até que começava a sentir a cabeça prestes a explodir, dando saída a toda a matéria que continha sob a forma de uma substância pastosa de um cinzento repugnante. Enquanto aqueles pensamentos lhe desfilavam pela mente, Quinn continuava a observar as fotografias, analisando aquela coisa mutilada e carbonizada que em tempos fora uma mulher, perguntando-se que tipo de raiva é que era necessário para fazer aquilo a outro ser humano. O género de emoções sinistras e pervertidas que eram mantidas sob controlo até que a pressão atingisse o limite. Pensou em Peter Bondurant e em Gil Vanlees, a par de um milhar de rostos anónimos que caminhavam pelas ruas daquelas cidades, de gente que aguardava apenas que esse limite principal do ódio começasse a soprar, empurrando-os para o precipício. Qualquer dessas pessoas podia ser aquele assassino. As componentes necessárias residiam no interior de um grande número de indivíduos, sendo apenas exigido que o elemento catalisador adequado fosse alertado para que entrassem em acção O grupo de trabalho apostava singelo contra dobrado em Gil Vanlees, fundamentando-se nas circunstâncias e no perfil psicológico. Mas tudo o que possuíam não ia além de alguns palpites e sentido de lógica. Provas circunstanciais, nada de concreto. Teria Vanlees conseguido agir de forma tão inteligente, com tanta precaução? A polícia não tinha qualquer testemunha que o associasse a nenhuma das vítimas. A única testemunha com que contavam tinha desaparecido. Não existia um único elo de ligação que, aparentemente, indicasse a existência de qualquer relação entre as quatro vitimas e Vanlees, exceptuando Jillian se é que Jillian se contava entre as vítimas. Se isto.. Se aquilo...

 

De uma das algibeiras das calças, Quinn tirou uma pastilha de Tagamel que tomou com um gole de Coca-Cola. Ocaso estava como que a sufocá-lo; não conseguia ter uma perspectiva clara. Os jogadores rodeavam-no demasiado próximos; as suas ideias e as suas emoções sangravam os factos frios e neutros que era tudo aquilo de que precisava para proceder ao seu processo analítico.

 

O profissional que existia dentro de si desejava o distanciamento que o seu gabinete em Quântico lhe proporcionaria. Mas se tivesse ficado em Quântico, ele e Kate teriam continuado no pretérito imperfeito.

 

Movido por um impulso, pegou no auscultador do telefone e ligou o número do gabinete dela. Ao quarto toque, o atendedor de chamadas começou a funcionar. Voltou a deixar o seu número de telefone, desligou e marcou o número de casa de Kate, obtendo o mesmo resultado. Já eram dezanove horas. Onde diabo é que ela estaria?

 

Ocorreu-lhe imediatamente ao pensamento a imagem da garagem decrépita no beco escuro das traseiras da casa onde ela vivia, soltando um palavrão. Mas então recordou a si mesmo tal como Kate certamente faria que ela tinha passado muito bem sem a sua presença ao longo dos últimos cinco anos.

 

Naquela noite, até os conhecimentos dela lhe teriam dado jeito, para já não mencionar um longo beijo e um abraço afectuoso. Voltou a concentrar-se no caso que tinha em mãos, folheando-o até aos pormenores do processo de vitimação, à procura de algo que sentia ter-lhe passado despercebido, o aspecto que daria coerência a todas as informações fragmentadas, apontando para um suspeito.

 

Os apontamentos referentes a Melanie Hessler tinham sido escritos por si; eram pouco precisos e demasiado abreviados. Kovac incumbira a detective Moss da tarefa de recolher informações sobre a última vítima do Cremador, mas ela ainda não lhe trouxera nada de relevante. Sabia que a mulher assassinada trabalhara numa livraria especializada em material pornográfico o que, na mente do assassino, muito plausivelmente, a teria colocado na mesma categoria que ele atribuíra às duas prostitutas. Ela fora atacada na viela por detrás da livraria alguns meses antes, mas os dois homens que a violaram tinham apresentado álibis sólidos, pelo que não eram considerados suspeitos da sua morte.

 

Era bastante triste pensar na maneira como aquelas mulheres haviam sido vitimadas repetidamente ao longo das suas curtas vidas. Lila White e Fawn Pierce, duas mulheres que se dedicavam a uma actividade e a um estilo de vida em que a nota dominante eram os abusos e a degradação. No caso de White, ela fora agredida pelo traficante que lhe fornecia drogas no Verão passado, enquanto a Pierce fora hospitalizada por três vezes no espaço de dois anos; numa dessas ocasiões tinha sido vitima da brutalidade do seu chulo, ao que se seguiram um assalto por esticão e um crime de estupro de que fora vítima.

 

Porém, no caso de Jillian Bondurant, esta fora vitimada por detrás das portas fechadas da casa de família. Se é que Jillian era uma das vítimas.

 

Voltou a focar novamente a sua atenção nas fotografias da vítima número três, examinando os ferimentos no peito infligidos com uma faca. A assinatura do assassino. Um golpe longo e outro curto, um golpe longo e outro curto. Como as pontas de uma estrela, ou as pétalas de uma flor tenebrosa, Gosto de ti, não gosto de ti. Eu morra se estiver a mentir

 

Pensou nas vozes pouco definidas na gravação em cassete.

 

Vira-te... faz isso...

 

Querer... de mim.. Era com a maior das facilidades que imaginava os assassinos a ladearem o corpo inerte, mas ainda quente, da vítima, cada um munido de uma faca com que, à vez, apunham a sua assinatura no peito da mulher, selando assim o pacto daquela parceria tenebrosa.

 

Aquele pensamento deveria ter horrorizado Quinn, contudo, não era o pior de tudo o que já vira. Nem de perto nem de longe. Em grande parte, aquele tipo de cenas deixava-o como que entorpecido.

 

E isso deixava-o arrepiado.

 

Um homem e uma mulher. Começou a analisar as possibilidades, levando em linha de conta as pessoas que se sabia terem mantido contactos com as vítimas, de uma maneira ou de outra. Gil Vanlees, Peter Bondurant, Lucas Brandt. Os Urskine. estes tinham algumas probabilidades. A prostituta que estivera na Casa Phoenix na noite anterior, à hora a que Angie DiMarco tinha desaparecido a qual afirmava não ter visto ou ouvido nada de anormal, e que também conhecera a segunda vítima. Michele Fine, a única amiga de Jillian. Uma mulher estranha e um tanto duvidosa. Muito marcada pelas adversidades da vida quer física quer emocionalmente. Com um passado atrás de si muito sombrio e extenso, do que não restava a mínima dúvida além de não poder apresentar um álibi credível para a noite em que Jillian desaparecera.

 

Estendeu a mão para a pauta de música que Michele lhe entregara, interrogando-se quanto às composições de Jillian que ela guardara tão ciosamente.

 

Um Estranho

 

Lá fora No lado escuro

 

Sozinha

 

Olhando para dentro

 

Motivada por um capricho

 

Quer um lar

 

Um estranho No meu sangue

 

Nos meus ossos

 

Não pode ter

 

Aquilo que quero

 

Condenada a vaguear

 

Completamente sozinha

 

Lá por fora

 

Deixa-me entrar Querendo um amigo Querendo um amante

 

Fica comigo

 

Sê o meu rapaz

 

Sê o meu pai

 

Um estranho No meu sangue Nos meus ossos

 

Não pode ter

 

Aquilo que quero

 

Condenada a vaguear

 

Completamente sozinha

 

Lá por fora.

 

Alguém bateu à porta com os nós dos dedos; Kovac espreitou pela fresta sem esperar que o convidassem a entrar

 

O cheiro chega até si? perguntou, entrando no gabinete. Encostou-se à parede onde Quinn afixava os seus apontamentos, com o seu fato todo amarrotado e o lábio inchado onde Peter Bondurant lhe assestara um murro, aspecto que a gravata de esguelha não beneficiava em nada Feito num oito, um grande pontapé no cu, queimado que nem um tição.

 

Puseram-no no olho da rua adiantou Quinn

 

Ofereça um charuto aqui ao homem. Estou fora do grupo de trabalho. Vão anunciar o nome do meu sucessor durante uma conferência de imprensa que terá lugar amanhã, a hora ainda por determinar.

 

Ao menos o Bondurant não fez com que corressem consigo da Polícia retorquiu Quinn. Desta vez, você brincou ao polícia mau com um pouco de dureza a mais. Sam.

 

Polícia mau repetiu Kovac com uma expressão de desprezo. De facto, foi assim que me comportei e não me arrependo de nenhuma das minhas palavras. Estou farto do Peter Bondurant até à ponta dos cabelos, do seu dinheiro e poder, da sua gente. O que a Cheryl Thorton me disse levou-me a ultrapassar todos os limites. Os corpos das mulheres mortas, por quem ninguém se interessou, não me saiam do pensamento, enquanto o Bondurant manipulava o caso como se fosse um concurso muito pessoal ao vivo em que mais ninguém participava. Tenho pensado muito na filha que devia ter tido uma vida a todos os títulos digna de inveja, mas que ao invés... morta ou viva, ficou com a vida irremediavelmente estragada graças ao pai. Se ele de facto abusou dela sexualmente. Não sabemos se o que a Cheryl Thorton disse corresponde à verdade.

 

É o Bondurant quem paga todas as despesas médicas do marido. Por que motivo teria ela dito uma coisa tão negativa contra o homem, se não fosse verdade?

 

Ela deu-lhe alguma indicação que o leve a pensar que acredita ter sido o Peter quem matou a Jillian?

 

Não foi tão longe quanto isso respondeu Kovac.

 

Aqui tem, faça a leitura que mais lhe aprouver disse Quinn estendendo-lhe a pauta de música. Pode indicar que você se encontra numa pista quente.

 

Jesus! exclamou Kovac franzindo o sobrolho ao ler o poema da canção.

 

Pode ter implicações de natureza sexual, mas, por outro lado, talvez não acrescentou Quinn abrindo as mãos num gesto de dúvida. Tanto pode referir-se ao pai como ao padrasto, mas também temos de admitir que possa não ter o mínimo significado. Quero ter outra conversa com a amiga, a Michele. Para ver se ela dá alguma interpretação especial a este poema... Talvez a queira partilhar comigo.

 

Kovac voltou-se para a parede, observando as fotografias que Quinn prendera no quadro. As vítimas em vida sorrindo para a câmara fotográfica.

 

Não existe nada que eu odeie mais do que um homem que abuse sexualmente de crianças. É por isso que não quero trabalhar em crimes de natureza sexual... ainda que as horas de trabalho sejam melhores. Se alguma vez me dedicasse a esse tipo de crimes, iria parar ao chilindró mais depressa do que o diabo esfrega um olho. Não seria capaz de me conter, não hesitaria em agarrar pelo gasganete um filho da puta qualquer que tivesse violado a sua própria filha; não teria o mínimo pejo em matar o cabrão. Fazer com que desaparecessem de uma vez por todas do receptáculo genético. percebe o que quero dizer?

 

Compreendo, sim.

 

Não sou capaz de conceber como é que um homem pode olhar para a própria filha e pensar: «Ei, tenho de comer aquilo.» Kovac abanou a cabeça, tirando um cigarro do maço que tinha no bolso da camisa branca bastante largueirona. No interior dos escritórios do FBI era proibido fumar, mas Quinn não lhe chamou a atenção para isso.

 

Sabe... eu tenho uma filha continuou Kovac soprando a primeira baforada de fumo. Isto é, você não sabe. Quase ninguém sabe que ela existe. É do meu primeiro casamento que durou cerca de um minuto e meio depois de eu ter sido integrado nos quadros da polícia. É a Gma. Já fez dezasseis anos. Nunca a vejo. A mãe voltou a casar com uma pressa constrangedora, tendo-se mudado para Seattle. Há outro tipo qualquer que passou a ser o pai da minha filha. Kovac ergueu os ombros, voltando a olhar para as fotografias. Uma situação não muito diferente da do Bondurant, não acha? acrescentou com um trejeito. Deixou descair os ombros soltando um fundo suspiro. Meu Deus, detesto as ironias da vida.

 

Quinn via a mágoa que se reflectia no olhar de Kovac Uma expressão que observara em muitas ocasiões reflectida num grande número de rostos por todo o país. Aquele tipo de trabalho exigia o seu preço, e as pessoas dispostas a pagá-lo não recebiam o suficiente em troca desse preço.

 

O que é que tenciona fazer em relação ao caso? perguntou.

 

Kovac mostrou-se surpreendido ao ouvir aquela pergunta.

 

Continuar a trabalhar na porra do grupo de trabalho, mais nada. Estou-me nas tintas para o que os sacanas possam dizer. O caso pertence-me, continuo a ser o responsável pela investigação, eles podem nomear quem muito bem lhes apetecer.

 

O seu tenente não vai destacá-lo para outra missão. O Fowler está do meu lado. Ele destacou-me para a equipa de apoio ao grupo de trabalho. Portanto, devo manter a cabeça baixa e a boca fechada.

 

Há quanto tempo é que ele o conhece?

 

Há tempo suficiente para me conhecer bem.

 

Sam, você é extraordinário disse Quinn com uma risada de cansaço.

 

Sim, de facto sou. Mas não comece a perguntar a muita gente porquê acrescentou Kovac com uma careta sorridente, uma jovialidade que se esfumou logo de seguida. Colocou a ponta do cigarro dentro de uma lata que contivera Coca-Cola. Sabe, isto não tem nada a ver com o meu ego. Não preciso de ver o meu nome nos jornais. Os galões que possa ter no casaco são-me completamente indiferentes. Nunca procurei ser promovido, e não me restam dúvidas de que nunca mais verei outra promoção. Só quero apanhar este monte de merda disse ele numa voz inflexível. Eu devia ter agido dessa maneira e com a mesma veemência quando a Lila White foi assassinada, o que não aconteceu. Não porque ela me fosse indiferente, mas você tinha razão: limitei-me a cingir-me estritamente às regras. Não me empenhei o suficiente, não aprofundei a investigação como devia ter feito. Quando o caso não se resolveu com a rapidez que eu desejava, deixei que as coisas morressem por si porque os manda-chuvas já andavam a chatear-me; ela era apenas uma pega e a verdade é que estas mulheres de vez em quando vão desta para melhor. Riscos da profissão. Mas agora o número de vítimas já vai em quatro. Quero a cabeça do Joe «Fumacento» numa bandeja antes que o número de cadáveres aumente.

 

Quinn limitava-se a ouvir o desabafo de Kovac, fazendo um acenar de cabeça quando este terminou. Ali, à sua frente, tinha um polícia competente. Um homem bom. E aquele caso destruiria a sua carreira com muito mais facilidade do que a consolidaria ainda que ele conseguisse resolver o mistério. O que aconteceria muito em especial se a resposta ao enigma viesse a provar ser Peter Bondurant.

 

Quais são as últimas notícias a respeito do Vanlees? perguntou Quinn.

 

O Tippen tem andado colado a ele como um gato atrás de um rato. Em Hennepin, chamaram-no à parte para lhe fazerem perguntas sobre o compincha, o negociante de equipamento electrónico. O Tip diz que ele ficou tão acagaçado que quase borrou as calças.

 

E quanto a esse fulano das electrónicas, o que é que conseguiram descobrir?

 

O Adler investigou a página que o tipo tem na Internet. A especialidade dele são os computadores e engenhocas relacionadas, mas, desde que seja qualquer coisa que se ligue a uma tomada, ele conseguirá arranjar o que quisermos Por conseguinte, só se pode dizer que ele está até à ponta dos cabelos em equipamento de gravação. Quem me dera podermos arranjar um mandado de busca que nos permitisse passar a casa dele a pente fino, mas não existe um único juiz neste estado que o fizesse com base no que temos contra este rafeiro... o que é rigorosamente nada.

 

O que me deixa incomodado admitiu Quinn, tamborilando com a ponta da caneta sobre o processo de Vanlees. Não me parece que o Gil seja o tipo mais esperto do planeta. Sob muitos aspectos, ele enquadra-se na perfeição no perfil do criminoso, mas acontece que o Joe «Fumacento» é um tipo esperto e temerário, enquanto o Vanlees não me parece possuir nenhuma destas características... o que também faz com que seja um bode expiatório perfeito

 

Kovac deixou-se cair em cima de uma cadeira, como se o peso da sua preocupação mais recente, de súbito, se tivesse tornado excessivo para as suas forças.

 

Existe uma ligação qualquer entre o Vanlees e a Jillian, e com o Peter. O que não me agrada nada. Tenho um pesadelo que não me larga, em que o Peter Bondurant é o nosso Joe «Fumacento», mas ninguém me dá ouvidos, tal como ninguém quer olhar para ele, pelo que o grande filho da puta consegue safar-se.

 

«Tentei averiguar um pouco mais e o estupor quase consegue fazer com que eu seja despedido. Isto não me agrada mesmo nada. Kovac tirou outro cigarro do maço, limitando-se a percorrê-lo com a ponta dos dedos, como se esperasse que esse gesto, por si só, fosse o suficiente para o acalmar. Mas depois penso: Sam, tu és um idiota chapado. Foi o Bondurant quem fez com que o Quinn investigasse o caso.» Por que razão ele teria feito isso se fosse o assassino?

 

Pelo gozo que isso lhe daria respondeu Quinn sem hesitar. Ou então para ser apanhado. Mas, neste caso, sinto-me mais inclinado para a primeira hipótese. Só de saber que estou aqui, e que não tenho nada que o possa incriminar, o gajo vem-se. Na perspectiva deste assassino, mostrar-se mais esperto do que a polícia é um ponto muito importante. Mas se o Bondurant for de facto o Joe «Fumacento», então, quem é o cúmplice?

 

A Jillian alvitrou Kovac. -- E tudo isto em redor da sua morte não passa de um grande embuste.

 

Não me parece replicou Quinn com um abanar de cabeça. O Bondurant acredita firmemente que a filha está morta. Acredita nisso com mais certeza do que nós próprios. E isso não é a fingir.

 

Portanto, regressamos ao Vanlees.

 

Ou aos Urskine. Ou a alguém em que nem sequer pensámos até agora.

 

Não há dúvida de que você é uma grande ajuda atalhou Kovac, carrancudo.

 

É por isso que eles me pagam uma pipa de massa.

 

Os dólares dos meus impostos em acção disse Kovac mostrando-se enojado. Prendeu o cigarro entre os lábios durante um segundo, para o retirar logo de seguida. Os Urskine. Até que ponto é que essa hipótese é aberrante? Limpam o sebo a duas das pegas que acolheram, após o que mandam duas cidadãs desta para melhor, e tudo com a finalidade de ilustrarem um ponto de vista de ordem política.

 

E também com o objectivo de afastarem de si qualquer suspeita sugeriu Quinn. Nunca ninguém leva em consideração uma pessoa que tente chamar sobre si a atenção dos outros.

 

Mas sequestrar a testemunha que estava alojada na casa por que eles próprios são responsáveis? Isso é ter tomates de titânio acrescentou Kovac, inclinando a cabeça de lado como se avaliasse aquela possibilidade. Aposto que a Toni Urskine, se quiser, é capaz de fazer com que cresçam pelos nos seus.

 

Quinn abeirou-se da parede onde afixara os seus apontamentos passando-lhes uma rápida vista de olhos, sem estar realmente a lê-los, vendo apenas uma mistura de letras e factos que se enredavam na sua mente, juntamente com as teorias, rostos e nomes.

 

Alguma novidade sobre o paradeiro da Angie DiMarco? perguntou.

 

Ninguém lhe pôs a vista em cima replicou Kovac abanando a cabeça. Ninguém teve notícias dela. Temos andado a mostrar a fotografia dela na televisão, pedindo às pessoas que liguem pelo número especial caso a tenham visto.

 

Pessoalmente, receio que o facto de termos encontrado o cadáver de outra mulher no carro incendiado, ontem à noite, só serviu para adiar o inevitável. Mas que diabo acrescentou levantando-se a custo da cadeira onde se instalara, eu sou, de acordo com o que a minha segunda mulher costumava dizer, um pessimista infernal. Bocejou abrindo uma boca enorme enquanto via as horas no seu relógio. Muito bem, chefe, por mim, o dia acabou. Já me esqueci de qual foi a última vez em que dormi numa cama. Esse é o meu único objectivo para esta noite... isto é, caso não adormeça durante o duche. E quanto a si? Se quiser posso dar-lhe boleia até ao hotel.

 

Para quê? Para dormir? Há muito que desisti disso. O sono andava a evitar os meus ataques de ansiedade disse Quinn desviando o olhar do de Kovac. De qualquer maneira, obrigado, Sam, mas está-me a parecer que para já vou ficar por aqui mais um pouco. Há qualquer coisa neste caso que me tem andado a escapar. Fez um gesto na direcção da pasta de cartolina aberta. Talvez se eu ficar a olhar fixamente para os papéis durante mais algum tempo...

 

Kovac observou-o durante uns momentos sem dizer nada, após o que fez um acenar de cabeça.

 

Faça como entender. Falamos amanhã de manhã. Quer que vá buscá-lo ao hotel?

 

Não, obrigado.

 

Hum... hum. Bom, então boa noite despediu-se Kovac encaminhando-se para a porta, mas a meio caminho olhou para trás. Diga olá à Kate por mim, caso fale com ela.

 

Quinn não lhe deu resposta. Depois de Kovac ter saído, não fez nada durante uns bons cinco minutos, tendo ficado imobilizado a pensar que o homem tinha um golpe de vista extraordinário. Só depois é que se aproximou do telefone, ligando uma vez mais o número de Kate.

 

 

Kate, sou eu. Hum... o John. Hum... ainda estou no escritório. Se puderes, telefona-me. Gostaria de rever contigo alguns pontos referentes às vítimas. Quero saber qual é a tua opinião. Agradeço-te que me telefones.

 

Kate ficou a olhar para o telefone quando a ligação foi cortada e a pequena luz do atendedor de chamadas começou a piscar. Parte dela sentia-se mal por não ter atendido. Mas a outra parte sentia-se aliviada. Bem no seu íntimo, sofria pela oportunidade perdida de poder voltar a tocar-lhe, fosse de que maneira fosse. Um mau indício, mas ali estava.

 

Sentia-se exausta, cheia de tensão, avassalada pelas suas emoções, sentindo-se deprimida, como não lhe acontecia há muitos anos... e queria os braços de John Quinn à volta do seu corpo. Fora precisamente por essa razão que decidira não atender o telefone. Tinha receio.

 

Um sentimento bem desagradável e nada bem-vindo.

 

O silêncio reinava naquela secção dos escritórios. Ela e Rob eram os únicos que ainda não tinham ido para casa. Rob fechara-se no seu gabinete ao fundo do corredor; sem dúvida que estaria a escrever um relatório virulento que acabaria arquivado na pasta que registava a sua evolução profissional. No outro extremo da área da recepção, nos gabinetes reservados ao promotor público, estariam alguns assistentes deste a trabalhar em processos que seriam levados a tribunal, definindo estratégias e procedendo a pesquisas, além de elaborarem moções e mandados judiciais. Mas grande parte do edifício estava vazio. Para todos os efeitos, Kate encontrava-se sozinha.

 

Sentia os nervos em franja por ter passado várias horas a ouvir as gravações de conversas com a vítima cujos interesses ela defendera, em que esta confessara o medo que tinha de que alguém lhe fizesse mal, o receio que sentira de que a violassem de novo, que a matassem, o medo de morrer sozinha, e a voz da própria Kate a tentar instilar-lhe confiança. prometendo-lhe que olharia pelo seu bem-estar, que arranjaria forma de ela ser ajudada, incutindo-lhe uma segurança enganadora que, em última análise, tinha defraudado Melanie Hessler da pior maneira possível.

 

Rob insistira em ouvir essas gravações vezes sem conto, parando a meio e voltando atrás em determinados pontos, fazendo repetidamente as mesmas perguntas a Kate. Como se alguma coisa que ele pudesse fazer viesse a alterar a situação. Os polícias não estavam interessados em ouvir as nuances quase imperceptíveis na maneira como Melanie se expressara. Tudo o que os interessava era saber se Melanie tinha mostrado medo de alguém em particular durante as suas últimas semanas de vida.

 

Rob estivera a castigá-la, do que Kate se apercebera. Odiava-o por essa atitude, mas recusou-se a dar parte de fraca. Apesar do muito que a audição daquelas cassetes a perturbava, ficou sentada sujeitando-se a horas e horas de tormento, aparando-lhe todos os pequenos golpes.

 

Ela confiava verdadeiramente em ti, Kate... É por de mais evidente que te tinha em grande consideração, Kate.. Pobre mulher, sentia-se tão receosa... Pensa nisso: o seu pior pesadelo tornou-se realidade... Pensa no quanto ela deve ter-se sentido aterrorizada... Tenho a certeza de que isto deve ser muito difícil para ti, Kate... Com certeza que estás a sentir-te muito mal... Especialmente depois do que sucedeu à Angie...

 

E assim por diante, sem se calar. Pequenos remoques cheios de astúcia que se lhe entranhavam debaixo da pele com a perícia de um acupunctor, mas cuja intenção era magoar, aplicando as agulhas de forma a doer.

 

Finalmente, atingira um ponto nevrálgico, afligindo-a mais do que ela fora capaz de suportar. Enquanto manuseava os botões do gravador, para voltar atrás num determinado diálogo, o que fazia pela terceira vez, Kate levantara-se da cadeira, inclinando-se sobre a mesa para premir o botão que interrompia a repetição da gravação.

 

Já ilustraste por de mais o que pretendias dizer. Tiveste a tua vingança. O que é de mais cheira mal dissera ela numa voz calma.

 

Não sei de que é que estás para aí a falar ripostara Rob como que a atazaná-la ainda mais, sem um mínimo de sinceridade. Recusava-se a olhá-la de frente.

 

Sabes, Rob, das muitas coisas que desprezo na tua maneira de ser, isto terá de encabeçar a minha lista. És um merdas insignificante simultaneamente passivo e agressivo, e, na minha opinião, talvez me despeças por ter dito isto, mas tenho a certeza de que essa seria uma atitude demasiado directa para a tua maneira de ser. Mas, se por algum milagre tiveres os tomates para o fazer, óptimo. Quanto a mim, prefiro continuar aqui. Este escritório agrada-me. Gosto da maior parte das pessoas com quem trabalho. Mas convém não esquecer que também sou muito boa no que faço, pelo que não me será difícil arranjar outro emprego de um momento para o outro. Recuso-me a permitir que tentes manipular-me e castigar-me, obrigando-me a participar nas tuas pequenas jogadas mentais de passividade e agressividade.

 

Lamento que penses assim dissera ele por entre dentes cerrados. Apoiando a palma das mãos sobre o tampo da mesa, firmou-se levantando-se da cadeira com uma respiração pesada. Pede desculpa pelo que acabaste de me dizer.

 

De acordo replicou Kate, retrocedendo uns passos e fitando-o com um longo olhar cheio de frieza. Peço desculpa. Lamento muito não gostar de ti, Rob. Lamento não ser capaz de sentir respeito por ti. Se pensasse que eras merecedor, seria capaz de me bater por ti até ao dia da minha morte. Contudo, não conseguiste ganhar o meu respeito, portanto, recuso-me a mostrar algo que não sinto. E agora, se me permites prosseguiu ela -, e porque acabei de viver as terceiras piores vinte e quatro horas da minha vida, e sinto que estou à beira de um colapso psicótico, vou para casa. Se não quiseres que eu volte, telefona-me.

 

Rob viu-a sair sem dizer uma só palavra. Pelo menos, além da pulsação do seu coração que lhe rugia aos ouvidos, não tivera de ouvir mais nada da boca dele. Estivera à espera que ele a mimoseasse com um dos seus pequenos fanicos em voz sibilante; Deus sabia que ela talvez merecesse que ele a despedisse, mas a verdade é que não lhe restava o mínimo resquício de tacto. Qualquer fingimento de boas maneiras da parte de Kate, a par de todas as tretas de boa convivência em sociedade, tinham sido postas de lado, nada deixando no seu lugar alem de emoções à flor da pele.

 

Continuava a sentir os efeitos desse estado de espírito, como se uma artéria vital tivesse rebentado dentro de si. Sentia-se como se estivesse prestes a sufocar nesse fluxo, correndo o risco de se afogar.

 

Aquilo que mais desejava naquele momento era ir ao encontro de Quinn caindo-lhe nos braços.

 

Esforçara-se tanto para que a sua vida voltasse a entrar nos eixos, juntando peça a peça em novos alicerces, e agora esses alicerces começavam a dar de si. Não, pior ainda. Ela tinha descoberto que fora edificada directamente em cima de uma falha tectónica do seu passado, que estivera apenas superficialmente coberta. Alicerces que não eram novos nem mais sólidos, somente uma mentira que contara a si mesma todos os dias ao longo dos últimos cinco anos: que não precisava de John Quinn para se sentir completa.

 

Os olhos marejaram-se de lágrimas e um sentimento de desespero que se insinuava dentro de si deixava-a ferida e com uma sensação de vazio, sozinha e receosa. Deus do céu, como ela estava cansada. Mas conteve as lágrimas, colocando um pé à frente do outro, um de cada vez. Ir para casa, reorganizar as ideias, tomar uma bebida e tentar dormir. Amanhã seria outro dia.

 

Aconchegou mais o casaco, pegando na pasta de cartolina que continha o processo de Angie, ao que juntou a correspondência, mensagens e faxes que se haviam acumulado no tabuleiro dos papéis ao longo do dia; guardou tudo na sua pasta. Estendeu a mão e desligou o candeeiro de mesa mas, inadvertidamente, a mão desviou-se até às prateleiras do módulo lateral, fazendo tombar a moldura com a fotografia de Emily.

 

Uma carinha de boneca com um sorriso cheio de doçura num dia em que usara um alegre vestido amarelo. Uma garota que tivera um futuro radiante à sua frente. Pelo menos era o que qualquer pessoa com o nível normal de arrogância humana teria pensado. Kate perguntou a si mesma se numa qualquer caixa de sapatos de outras épocas alguém teria guardado uma fotografia similar de Angie DiMarco... ou de Melanie Hessler... de Lila White, de Fawn Pierce, de Jillian Bondurant...

 

A vida não nos era concedida com nenhuma garantia. Nunca houvera uma promessa que não pudesse ser quebrada. O que sabia em primeira mão. Fizera demasiadas promessas na melhor das intenções, para depois ver que se desfaziam uma a uma.

 

Tenho tanta pena, Em murmurou Kate expressando uma grande mágoa. Levou a fotografia aos lábios, dando-lhe um beijo de boas-noites antes de voltar a colocar a moldura no lugar onde ficaria oculta até à próxima vez em que a empregada de limpeza a encontrasse, voltando a dar-lhe lugar de realce.

 

Saiu do gabinete fechando a porta à chave. Ouviu o som de um aspirador a funcionar no gabinete defronte do seu. Ao fundo do corredor, a porta de Rob Marshall mantinha-se fechada. Possivelmente, ainda estaria dentro do gabinete, a congeminar um plano qualquer que lhe permitisse privá-la da indemnização a que teria direito em caso de despedimento. Ou talvez já tivesse ido para casa, para junto de... do quê? Kate nem sequer sabia se ele tinha alguma namorada ou um namorado, para o caso tanto fazia. Era quinta-feira, talvez fosse o dia da semana em que se realizariam os jogos da sua liga, tanto quanto o que ela conhecia dele lhe permitia dizer. Dentro do departamento, o homem não fizera nenhuma amizade pessoal. Para além das festas obrigatórias do escritório por ocasião do Natal, Kate nunca convivera com ele socialmente. Naquele momento, imaginou se ele teria alguém à espera em sua casa, junto de quem poderia queixar-se da cabra que era obrigado a aturar no escritório. Finalmente, a neve parara de cair, reparou Kate entrando no elevador panorâmico que a levaria à rampa de saída de acesso à Rua 4. Tinha ouvido alguém dizer que havia caído um total de cerca de quinze centímetros de neve. A rua mais abaixo estava coberta por uma camada compacta, mas durante a noite as equipas dos serviços municipais encarregar-se-iam da limpeza necessária, embora, dada a época do ano, fosse possível que optassem por deixar as coisas como estavam na esperança de dois dias quentes que poupariam algum dinheiro aos cofres do município, verba que seria aplicada quando chegassem as tempestades de neve que, inevitavelmente, teriam lugar nos próximos meses.

 

Tirou as chaves da mala passando a corrente do porta-chaves em redor do punho fechado, de modo a que o extremo mais aguçado e comprido lhe saísse por entre o dedo indicador e o do meio um hábito que adquirira quando vivera nos subúrbios de Washington. A rampa estava bem iluminada, mas àquela hora da noite o movimento de pessoas era bastante reduzido; sempre que tinha de andar por ali sozinha sentia-se enervada. O que se acentuava ainda mais naquela altura, tendo em vista os últimos acontecimentos. Devido aos assassínios e à falta de noites bem descansadas, sentia-se num estado latente de paranóia. Uma sombra fugidia que avistou entre dois automóveis, um arrastar de passos, o bater repentino de uma porta cada um destes sons repercutia-se nos seus nervos. Tinha a impressão de que o 4Runner ficara estacionado a mais de um quilómetro de distância.

 

Todavia, pouco depois já estava dentro do veículo com as portas trancadas, o motor a funcionar e a caminho de casa, tendo a sensação de que se descartara de uma camada de tensão. Tentou concentrar-se nos nós de tensão muscular que sentia nos ombros, fazendo um esforço mental para que desaparecessem. Tencionava vestir o pijama e tomar uma bebida, após o que iria para a cama. Estava a pensar em levar a pasta para o quarto, encostando-a às almofadas em cima dos lençóis que ainda estavam desalinhados por terem feito amor neles na noite anterior.

 

Talvez decidisse mudar os lençóis.

 

Havia um fulano empreendedor que vivia mais abaixo no mesmo quarteirão; durante cinco meses do ano, ele costumava acoplar uma espécie de pá horizontal à parte da frente da sua pequena camioneta de caixa aberta, aumentando assim o seu rendimento normal a limpar a neve dos caminhos particulares de acesso às vivendas dos vizinhos. Tinha limpo a neve que caíra no beco das traseiras. Kate teria de lhe passar um cheque que colocaria na sua caixa de correio na manhã seguinte.

 

Entrou com o jipe na garagem, recordando-se tarde de mais da lâmpada fundida. Praguejando entre dentes, tirou uma lanterna enorme que tinha no porta-luvas, após o que desceu do veículo, tentando levar ao mesmo tempo tudo o que trouxera consigo.

 

O cheiro chegou-lhe às narinas um segundo antes de o pé ter calcado a substância pastosa.

 

Oh, merda! Literalmente. Grande merda!

 

Kate?

 

A voz vinha da direcção da casa. A voz de Quinn.

 

Estou aqui! gritou ela, tentando não deixar caíra pasta, nem a lanterna, nem a mala de mão.

 

O que é que se passa? Ouvi-te a praguejar acrescentou Quinn aproximando-se.

 

Acabei de pisar um monte de merda.

 

O quê... Jesus, estou a cheirar. Deve ter sido deixada por um cão qualquer.

 

Kate ligou a lanterna fazendo incidir o feixe de luz sobre a porcaria.

 

Não pode ter sido um cão. A porta estava fechada. Que nojeira!

 

Tem o aspecto de serem excrementos humanos disse Quinn. Onde é que tens uma pá?

 

Ali indicou Kate apontando o feixe de luz para a parede. Meu Deus, achas que houve alguém que tenha entrado na minha garagem para fazer este serviço?

 

Tens alguma teoria mais plausível? perguntou ele.

 

Não sou capaz de imaginar por que razão alguém teria feito uma coisa destas.

 

É um sinal de desrespeito.

 

Eu sei isso. Quer dizer, porquê a mim? Quem é que eu conheço que pudesse fazer uma coisa tão estranha, tão primitiva?

 

Quem é que chateaste ultimamente?

 

O meu chefe. Mas, não sei bem porquê, não sou capaz de o imaginar agachado na minha garagem. Diga-se de passagem que é coisa que nem quero imaginar. Quase ao pé-coxinho, Kate saiu da garagem acompanhada de Quinn, apoiando no chão apenas a biqueira da bota suja, numa tentativa para não espalhar mais fezes pelo chão da garagem.

 

As vitimas e testemunhas a que dás apoio sabem a tua morada?

 

Se alguma souber onde moro não será por eu lhe ter dado essa informação. Têm o número de telefone do meu escritório e caso eu não atenda, depois das horas de expediente, o telefonema é automaticamente encaminhado para o meu atendedor de chamadas, além de terem o número do telemóvel para o caso de alguma emergência. Mais nada. O número de telefone da minha casa não consta da lista telefónica, não que isso possa impedir alguém de vir a saber onde moro. O que não é muito difícil de fazer desde que se saiba como proceder.

 

Quinn deixou os excrementos entre a garagem e a vedação do vizinho. Limpou a pá num monte de neve enquanto Kate tentava fazer o mesmo à sola da bota.

 

Este é o ponto de exclamação que faltava ao meu dia resmungou ela quando regressaram à garagem para arrumar a pá. Kate ligou a lanterna tentando ver se faltava alguma coisa. Mas, segundo parecia, estava tudo em ordem

 

Ultimamente aconteceu-te alguma coisa de anormal?

 

O que é que ultimamente não é anormal?

 

Estou a referir-me a actos de vandalismo, telefonemas em que quando atendes desligam, correspondência estranha, alguma coisa desse género?

 

Não respondeu ela, mas então, automaticamente, pensou nos três telefonemas em que ninguém falara na noite anterior. Nossa Senhora, teria sido a noite passada?, parecia-lhe que isso se passara há tanto tempo. Na altura atribuíra essas chamadas a Angie. O que na sua óptica era o que fazia mais sentido. A hipótese de haver alguém que a espreitasse furtivamente era coisa que não lhe ocorrera. Continuava a parecer-lhe que era uma possibilidade pouco credível.

 

Acho que devias passar a estacionar na rua aconselhou Quinn. Este incidente pode ter sido obra de alguém que passou por acaso nas proximidades, ou um miúdo qualquer para te pregar uma partida, mas as precauções nunca são de mais, Kate.

 

Eu sei. A partir de amanhã... vou começar a deixar o carro na rua. Há quanto tempo é que estás aqui? perguntou Kate quando já se encaminhavam para casa.

 

Não o tempo suficiente para me ter dado vontade de fazer aquilo.

 

Não foi isso que quis perguntar.

 

Cheguei há pouco tempo. Tentei ligar-te para o escritório, também tentei telefonar-te para casa. Decidi passar pelo escritório... mas tu já tinhas saído. Apanhei um táxi até aqui. Ouviste as mensagens que te deixei no gravador?

 

Sim, mas já era tarde e eu estava muito cansada. Tive um dia horrível, do pior que possas imaginar; só me apetecia sair do escritório. Kate abriu a porta das traseiras e ambos foram saudados por Thor com um miado de indignação. Kate deixou as botas à entrada e largou a pasta em cima de uma das cadeiras da cozinha, dirigindo-se imediatamente para o frigorífico de onde tirou a comida para o gato

 

Não estavas a evitar-me, pois não? perguntou Quinn despindo a gabardina.

 

Talvez. Um pouco.

 

Estava preocupado contigo, Kate.

 

Esta colocou o prato do gato no chão, acariciou-lhe o pêlo e endireitou-se mantendo-se de costas para Quinn. Só precisou daquela pequena frase para que todas as emoções voláteis surgissem, uma vez mais, à superfície, fazendo com que as lágrimas lhe assomassem aos olhos. Se conseguisse evitar, não permitiria que ele as visse. Se estivesse ao seu alcance, sufocá-las-ia. Ele estava como que a convidá-la a sentir necessidade da sua presença. O que ela desejava com todas as forças da sua alma.

 

Lamento disse Kate. Não estou habituada a que as pessoas se preocupem com o meu bem-estar... Jesus, que escolha de palavras tão inadequada. Mas a verdade é que correspondiam à verdade, se bem que pudessem dar uma impressão melodramática, sem ninguém que se interessasse por ela. Aquilo levou-a a pensar em Melanie Hessler, a qual estivera desaparecida durante uma semana sem que ninguém se importasse o suficiente para tentar saber por que motivo.

 

Ela era minha cliente acrescentou Kate. Estou a referir-me à Melanie Hessler. A vítima número quatro. Numa só noite, consegui perder duas. O que é que te parece como recorde?

 

Oh, Kate... -- Quinn aproximou-se dela por detrás prendendo-a nos seus braços, envolvendo-a como que num manto de calor e força. Porque é que não me ligaste?

 

Porque tenho medo de vir a precisar de ti. Porque receio vir a apaixonar-me por ti.

 

Não havia nada que pudesses fazer que aliviasse o que senti respondeu Kate.

 

Quinn virou-a de frente para si, afastando-lhe os cabelos do rosto, mas sem tentar obrigá-la a olhá-lo de frente.

 

Podia ter feito isto murmurou. Podia ter ido até junto de ti para te abraçar, para te dar um pouco de conforto.

 

Não me parece que isso tivesse sido uma ideia por aí além replicou Kate falando em voz baixa.

 

E porque não?

 

Por nada. Tu estás aqui para investigares um caso. Tens coisas mais importantes com que ocupar o teu tempo.

 

Kate, eu amo-te.

 

Assim, sem mais nem menos.

 

Sabes bem que não é «assim, sem mais nem menos» Kate afastou-se, sentindo imediatamente a falta do contacto com o corpo de Quinn.

 

Sei que passámos cinco anos sem que trocássemos uma só palavra, uma pequena carta, nada. E agora, apenas no espaço de um dia e meio, voltámos a ficar apaixonados um pelo outro. E dentro de uma semana partirás. E depois o que é que acontece? perguntou Kate movimentando-se com mostras de grande agitação, levando as mãos nas ancas

 

Mas em que é que eu estarei a pensar?

 

Aparentemente, em nada de bom retorquiu Quinn Kate apercebia-se de que o tinha magoado, o que não

 

fora minimamente a sua intenção. Amaldiçoou-se por ser tão desajeitada face a sentimentos tão frágeis, mas a verdade é que estava com falta de prática, além de se sentir extremamente receosa; o medo é que fazia com que se comportasse de modo estranho.

 

Estou a pensar em todas as vezes ao longo destes cinco anos em que quis pegar no telefone sem nunca o ter feito

 

disse Quinn. Mas agora estou aqui.

 

Por um mero acaso. Não és capaz de perceber o quanto isso me deixa receosa, John? Se não fosse este caso, alguma vez terias vindo cá? Terias telefonado?

 

E tu, terias tentado entrar em contacto comigo?

 

Não respondeu ela sem a mínima hesitação, para logo em seguida moderar a sua atitude, abanando a cabeça

 

Não... não... Já sofri o suficiente para me durar pelo resto dos meus dias. Nunca teria ido à tua procura. Não quero voltar a fazer isso. Prefiro não sentir nada de nada. E tu fazes com que eu sinta tanto acrescentou Kate, com um aperto na garganta. Fazes-me sentir em demasia. E não confio em que tudo isto desapareça de um momento para o outro.

 

- - Não. Não... protestou Quinn agarrando-a pelos braços, imobilizando-a à sua frente. Olha para mim, Kate.

 

Ela recusava-se a olhá-lo, não se atrevia, só queria estar onde quer que fosse excepto ali, diante dele, prestes a desfazer-se em lágrimas.

 

Kate, olha para mim. O que poderíamos ter feito, agora não interessa. O que importa é estarmos aqui, juntos. O importante é sentirmos exactamente o mesmo que sentimos há tantos anos. Interessa que o ter feito amor contigo, esta manhã, para mim foi a coisa mais natural e perfeita deste mundo... como se nunca tivéssemos estado separados. É isso que importa. E não tudo o mais que nos sucedeu. Amo-te. De verdade que sim murmurou ele. E isso é que interessa. E tu, continuas apaixonada por mim?

 

Com a cabeça baixa, Kate acenou que sim, como se tivesse vergonha de admitir os seus sentimentos.

 

Nunca deixei de te amar respondeu ela com lágrimas que lhe caíam livremente pelas faces abaixo.

 

Quinn deteve-as com os polegares, limpando-as.

 

Isso é o que importa acrescentou num sussurro. Tudo o que vier por acréscimo havemos de conseguir resolver. A minha vida tem sido um grande vazio desde que partiste, Kate. Tentei preencher esse vazio com o trabalho, mas o trabalho só levou outra parte de mim e com o passar do tempo o vazio foi ficando cada vez maior, apesar de eu me ter esforçado desesperadamente para o preencher. Nos últimos tempos tenho-me sentido como se não restasse nada. Deitei as culpas ao trabalho, convencido de que tinha dado tanto de mim mesmo que já nem sabia quem era. No entanto, sei exactamente quem sou quando estou contigo? Kate. Tu é que me tens faltado durante todos estes anos... És uma parte de mim que te dei há tanto tempo.

 

Kate olhou-o com fixidez, sabendo que falava com toda a sinceridade. Era possível que Quinn agisse como uma espécie de camaleão sempre que se tratava do seu trabalho, mudando de cor com a maior das facilidades a fim de obter os resultados que desejava; porém, na relação que existira entre ambos, ele nunca faltara à verdade pelo menos até essa relação ter acabado, altura em que os dois tinham erguido as defesas impenetráveis em redor dos seus corações feridos. Kate sabia o quanto custava a Quinn ter-se aberto com tanta franqueza. A vulnerabilidade não era uma faceta com que John Quinn lidasse facilmente. Era algo que a própria Kate se esforçara por não sentir. Todavia, naquele momento sentia essa fragilidade dentro de si, a empurrar o portão com toda a força.

 

Já te apercebeste de como o nosso sentido de oportunidade é desastroso? perguntou ela de uma maneira que mereceu um sorriso da parte de Quinn.

 

Ele conhecia-a suficientemente bem para compreender que ela tentava afastar os dois da beira do precipício. Uma pequena piada que se destinava a aliviar a tensão. Um sinal quase imperceptível de que não se encontrava preparada não tendo ainda a força necessária para lidar com todos os aspectos daquela situação.

 

Oh, não sei replicou Quinn aliviando a pressão dos braços à volta dela. Acho que neste momento estás a precisar de alguém que te abrace, enquanto eu necessito de ti nos meus braços. Portanto, parece-me que as necessidades de ambos se coadunam na perfeição.

 

Sim, calculo que sim. Deixou que a sua cabeça repousasse encostada ao ombro dele. Resignada foi a palavra que lhe ocorreu ao pensamento, mas não lhe opôs resistência. Sentia-se demasiado fatigada para resistir, além de ser verdade que precisava de alguém que a abraçasse. Ultimamente, as oportunidades para manifestações de carinho não haviam sido muitas. Sabia que a culpa dessa carência era inteiramente sua. Passava a vida a dizer a si mesma que andava demasiado ocupada, que não tinha tempo para encontros de carácter romântico, convencendo-se de que naquela fase da sua vida não precisava das complicações que a presença de um homem lhe acarretaria, quando a verdade era que para ela havia apenas um homem. Bem no seu íntimo não queria outro.

 

Beija-me pediu Quinn num murmúrio. Kate ergueu a cabeça num convite para que a boca dele fosse ao encontro da sua, descerrando os lábios num convite à intimidade. Tal como acontecera com todos os beijos que tinham partilhado, sentiu uma calidez radiante, uma sensação de excitação sexual, mas também um grande sentido de contentamento no mais profundo da sua alma. Sentia-se como se, inconscientemente, tivesse estado a conter a respiração, à espera daquele momento que lhe permitia relaxar voltando a respirar. Um sentimento de que tudo estava certo, de inteireza pessoal.

 

Preciso de ti, Kate segredou Quinn acariciando-a com os lábios, beijando-a da face à orelha.

 

Sim murmurou Kate sentindo que as suas carências afectivas batiam dentro de si como vagas contra rochedos. A voz da necessidade sobrepunha-se à do medo que a fazia recear que tudo aquilo acabasse num coração destroçado, o seu, dentro de um dia ou de uma semana.

 

Voltou a beijá-la com mais ardor, cada vez com maior frenesim, dando largas ao desejo ardente que o consumia. Ela sentia-o nos músculos dele, no calor que irradiava do seu corpo; saboreava esse desejo na boca de Quinn. A língua dele procurava ansiosamente a sua até mesmo quando fez deslizar a mão pelas costas dela, exercendo pressão sobre as ancas e empurrando-as mais contra o seu corpo, de modo a que ela sentisse o quanto a desejava. Do fundo da garganta de Kate soltou-se um gemido que traduzia o espanto pela intensidade com que ele a desejava, sentindo a dureza do pénis erecto contra o seu corpo.

 

Interrompendo o beijo, Quinn inclinou-se ligeiramente para trás fitando-a com uma expressão intensa; os seus olhos escuros e brilhantes reflectiam determinação. Tinha os lábios ligeiramente entreabertos. A sua respiração era ofegante.

 

-Meu Deus, como eu preciso de ti.

 

Kate agarrou-o pela mão levando-o pelo corredor. Ao fundo das escadas, Quinn voltou a puxá-la contra si, beijando-a de novo, cada vez com mais ardor e ansiedade, manifestando um maior sentido de urgência. Encostou-a de costas contra a parede. Apanhou a orla da camisola preta, puxando-a e prendendo-a entre os dois, expondo-lhe a pele, acessível ao toque dos seus dedos, permitindo-lhe que lhe acariciasse os seios. Kate ficou com a respiração arquejante quando ele tirou um seio do soutien, enchendo com ele a mão em forma de concha. o local onde se encontravam deixara de ser relevante. Não importava que alguém que passasse por acaso pudesse observá-los através dos vidros na vertical que ladeavam a porta da frente. o desejo avassalador sobrepunha-se a toda e qualquer noção de decoro. Um desejo ardente, primário e de grande intensidade.

 

Quando a boca de Quinn lhe envolveu o seu mamilo, Kate soltou um som ofegante. Com as mãos rodeou-lhe a cabeça arqueando o corpo ao sentir o contacto físico. Afastou as ancas da parede, soerguendo-as quando ele lhe puxou a saia justa de malha para cima, despindo-lhe os collants pretos. Subitamente, para ela a investigação criminal e o passado deixaram de existir, considerando apenas a necessidade de sentir os dedos dele que lhe exploravam o corpo, acariciando-a, encontrando os pontos de maior sensibilidade erógena, entrando suavemente dentro dela.

 

John. Oh, meu Deus, John disse ela num sussurro. Os seus dedos enterraram-se-lhe nos ombros. Preciso de ti. Preciso de ti agora. Quinn endireitou-se beijando-a com veemência, duas vezes, em seguida olhou para o cimo das escadas e depois para ela para logo a seguir olhar por cima do ombro para a porta entreaberta do pequeno escritório, onde o candeeiro de mesa irradiava um clarão ambarino que mal se estendia ao velho sofá de couro.

 

No momento seguinte, os dois já se encontravam junto do sofá; Quinn despia-lhe a camisola de lã pela cabeça enquanto Kate, com gestos apressados, lhe puxava a gravata. Com uma impaciência que era fruto do desejo, despiram todas as peças de roupa que deixaram abandonadas no chão. Deitaram-se em cima do sofá, braços e pernas entrelaçados; os dois ficaram com a respiração cortada ao sentirem a frialdade do couro. Mas pouco depois essa sensação de desconforto já estava esquecida, desaparecera por completo, queimada pelo calor dos seus corpos e pelo ardor da paixão que ambos partilhavam.

 

Kate rodeou-lhe o corpo com as suas pernas compridas e num só movimento vigoroso, mas suave, tomou-o dentro de si. Ele enchia-a perfeitamente, por inteiro, fisicamente e no mais profundo da sua alma. Movimentavam-se em uníssono, como bailarinos, com movimentos em que cada um dos corpos completava delicadamente o outro; a paixão que ambos sentiam ia-se construindo qual poderosa composição musical que gradualmente, atingia um crescendo tremendo.

 

Foi então que alcançaram o clímax, entrando em queda livre, fortemente agarrados um ao outro, murmurando palavras de ternura, garantias que Kate desde logo receava não serem capazes de resistir às pressões da realidade, tendo em vista um futuro a dois. Contudo, não tentou desfazer o mito nem quebrar a promessa do «tudo correrá pelo melhor». Sabia que ambos desejavam poder acreditar naquilo, e nada os impedia de o fazerem naqueles escassos momentos de tranquilidade, antes que as realidades do mundo lá fora se fizessem sentir uma vez mais.

 

Kate sabia que John tinha necessidade de fazer aquela promessa. Ele sempre manifestara uma forte compulsão para a proteger. O que sempre a tinha tocado muito profundamente que ele fosse capaz de se aperceber das vulnerabilidades dela quando mais ninguém dava por isso. Nem sequer o marido fora capaz de apreender essa sua faceta. Ela e John, porém, sempre haviam dado conta das carências secretas um do outro, desde sempre alcançando a parte mais

escondida do coração um do outro, como se, desde sempre, estivessem destinados um ao outro. Desde os meus dezassete anos que não fazia marmelada neste sofá comentou Kate numa voz cheia de ternura observando os olhos dele á luz suave do candeeiro. Estavam deitados de lado, corpos unidos, quase nariz contra nariz

 

Como é que o fulano se chamava? quero ir à procura dele para o matar disse Quinn com um sorriso de tubarão

 

Meu homem das cavernas

 

Estou contigo! Sempre estive

 

Kate não ofereceu qualquer comentário, embora lhe tivesse ocorrido de imediato à mente a cena escabrosa em que Steven a confrontara, assim como a John, no seu gabinete. Nessa ocasião, Steven optara pelas armas que melhor sabia manejar. Palavras cruéis e ameaças. Quinn a aguentar tudo o que o outro dizia, até que Steven fez menção de se virar a ela. Um nariz quebrado e algum trabalho dentário. Mais tarde, o marido levara a guerra para um novo terreno de hostilidades, tendo feito todos os possíveis e impossíveis para arruinar a carreira de ambos

 

Quinn ergueu-lhe o queixo com a ponta de um dedo, aproximando mais de si a cabeça de Kate, de modo a poder olhá-la bem nos olhos. Sabia exactamente quais as recordações que lhe ocorriam à mente. O que ela detectou na expressão do seu rosto, no franzir da sua testa

 

Não faças isso acautelou ele

 

Eu sei. O presente já era suficientemente perturbador. Porque haveria ela de estar a desenterrar o passado. Quinn acariciou-lhe a face beijando-a ternamente, como se aquele gesto de afecto selasse as portas dessas recordações

 

Amo-te Agora Neste preciso momento. No presente ainda que esteja numa grande confusão.

 

Kate encaixou a cabeça sob o queixo de Quinn, beijando a concavidade na base da sua garganta. Parte dela desejava Perguntar-lhe o que ambos iriam fazer perante aquela situação, mas, contrariando a sua maneira de ser habitual, manteve-se calada. Naquela noite isso era de somenos importância.

 

Lamento muito o que aconteceu à tua cliente -_ continuou Quinn. O Kovac disse-me que ela trabalhava numa livraria que vende material pornográfico. Muito provavelmente, essa é a relação que nos levará até ao Joe «Fumacento».

 

Possivelmente, mas a verdade é que me deixou apavorada admitiu Kate; com gestos abstractos acariciava-lhe as costas nuas, um dorso que era só músculos sólidos e ossos duros, de uma magreza excessiva. Ele não cuidava convenientemente de si próprio. Há uma semana, eu não tinha rigorosamente nada a ver com este caso. Mas hoje perdi duas mulheres por quem me sentia responsável por causa dele.

 

Não te podes culpar pela morte da última vítima Kate.

 

Claro que posso. Eu sou assim.

 

Sempre que se quer qualquer coisa, haverá uma maneira de a concretizar.

 

Mas eu não quero que seja assim protestou Kate. Quem me dera ter telefonado à Melanie na segunda-feira, como habitualmente teria feito. Se eu não tivesse andado tão preocupada por causa da Angie, ter-me-ia sentido alarmada por não receber notícias dela. Ela tornou-se emocionalmente dependente de mim. Segundo parecia, eu era a única pessoa que ela sentia poder dar-lhe apoio. Eu sei que isto pode parecer estranho, mas quem me dera, no mínimo dos mínimos, ter-me preocupado com o seu bem-estar. Só de pensar que ela se viu apanhada num pesadelo desses sem que tivesse ninguém à sua espera, que se perguntasse o que é que lhe teria acontecido...

 

É uma grande tristeza.

 

Quinn abraçou-a ternamente, beijando-lhe os cabelos, pensando que ela tinha um coração tão macio como manteiga por detrás das defesas que erguera à sua volta. Faceta que para ele ainda era mais querida por ela tentar com tanto denodo ocultá-la dos outros. Desde o princípio que ele dera conta desse aspecto, desde o primeiro instante em que a conhecera.

 

Nunca poderias ter impedido o que sucedeu continuou Quinn. Mas agora está na tua mão ajudá-la.

 

De que maneira? Ao reviver todas as conversas que mantive com ela? Tentando descobrir qualquer pista com referência a um crime que ela não fazia a mínima ideia que seria cometido contra si? Foi assim que passei toda a tarde. Podes crer que teria preferido passar o dia a espetar os olhos com uma agulha.

 

Não conseguiste descobrir nada de importante nas gravações?

 

Ansiedade e depressão culminadas por uma discussão com o Rob Marshall que poderá fazer com que eu, muito em breve, comece a ler os anúncios de ofertas de emprego nos jornais.

 

Estás a abusar um bocado da sorte com relação ao teu emprego, Kate.

 

Eu sei. Mas tenho a impressão de que isso é mais forte do que eu. Ele sabe muito bem o que tem de fazer para me irritar. O que é que queres que eu faça? Posso considerar a tarefa como sendo uma nova carreira?

 

Estou a falar da tua antiga carreira. Trouxe-te cópias de processos relativos a casos de vitimação. Tenho andado com a sensação nítida de que a chave de que precisamos está mesmo à frente do meu nariz, mas não consigo vê-la. Preciso de uns olhos mais frescos.

 

Mas tu tens ao teu dispor todos os recursos da BSIAM e da gente das Ciências Comportamentais. Porquê eu?

 

Porque tu precisas disto respondeu Quinn simplesmente. Precisas de fazer qualquer coisa, para não mencionar que tens tantas qualificações para isto como qualquer outra pessoa do FBI. Já enviei tudo para Quântico, mas tu estás aqui, para não mencionar que deposito total confiança em ti. Importas-te de passar uma vista de olhos?

 

De acordo anuiu Kate precisamente pela mesma razão que ele invocara: porque necessitava de fazer aquilo. Perdera Angie. Tal como perdera Melanie Hessler. Se houvesse alguma coisa que pudesse fazer para contrabalançar aquele revés, não hesitaria.

 

Deixa-me só vestir qualquer coisa disse Kate sentando-se e envolvendo-se na pequena manta de veludo.

 

- Eu sabia que teria de haver qualquer coisa de negativo disse Quinn fingindo mau humor.

 

Kate brindou-o com um sorriso de esguelha, aproximando-se da secretária onde a luzinha do atendedor de chamadas piscava. Ela constituía uma visão digna de ser admirada à luz ambarina do candeeiro de mesa, com os seus cabelos de um avermelhado flamejante e com uma curva de costas que seria o sonho de qualquer escultor. Só de olhar para ela Quinn sentia como que uma dor pungente. Não queria acreditar na sorte que tinha por dispor de uma segunda oportunidade.

 

Kate, fala o David Willis disse a voz petulante num tom lamuriento que ficara gravada no aparelho. Preciso de falar consigo. Telefone-me ainda esta noite. Sabe que não estou em casa durante o dia. Tenho a impressão de que anda a evitar-me deliberadamente. Agora... quando o meu grau de autoconfiança está tão baixo. Preciso de si

 

Kate carregou no botão que adiantava a fita magnética até à mensagem seguinte.

 

Se fossem todos como ele, podes crer que trataria de arranjar um emprego como caixa da Wal-Mart comentou Kate com ironia.

 

A mensagem seguinte fora deixada por uma mulher que era líder de um grupo de mulheres de negócios, a qual lhe perguntava se poderia ser oradora numa determinada reunião.

 

A mensagem seguinte era um silêncio bastante prolongado. Kate retribuiu o olhar circunspecto de Quinn com outro semelhante.

 

Ontem à noite recebi três telefonemas como este Pensei que talvez tivesse sido a Angie. Quis acreditar nessa possibilidade.

 

Também podiam ter sido feitos pela pessoa que tinha Angie em seu poder, pensou Quinn. Joe «Fumacento».

 

Temos de colocar o teu telefone sob escuta, Kate. Se ele mantém a Angie sequestrada, isso significa que tem o teu número de telefone. Quinn apercebeu-se de que aquela probabilidade ainda não ocorrera a Kate. Viu a expressão súbita de surpresa, seguida por uma profunda irritação consigo própria por não ter pensado naquilo. Mas é evidente que Kate jamais pensaria na sua pessoa como sendo uma vítima em perspectiva. Era uma mulher forte, muito senhora de si mesma, sempre em controlo da sua vida. Não obstante, não era invulnerável.

 

Quinn levantou-se do sofá abeirando-se dela e rodeando-lhe os ombros com um braço; continuava todo nu.

 

Meu Deus, mas que pesadelo! exclamou Kate num murmúrio. Achas possível que ela ainda esteja viva?

 

Pode ser que sim respondeu-lhe, porque sabia que aquela era a resposta que Kate necessitava de ouvir. Mas também sabia que ela se encontrava tão ciente das probabilidades, quer pela positiva quer pela negativa, quanto ele próprio. Sabia tão bem como ele que Angie DiMarco talvez continuasse viva, apesar de saber que talvez fosse mais misericordioso da parte deles esperarem que estivesse morta.

 

Estou morta A minha necessidade está viva

 

Faz-me continuar Mantém-me a esperança viva

 

Será que ele me quer?

 

Será que ele me aceitará?

 

Será que ele me magoará?

 

Será que ele me amará?

 

As palavras, para ele, eram como facadas. A música era como garras que lhe dilaceravam os sentidos. Ainda assim, começou a ouvir a gravação. Permitindo que o magoasse, precisando de sentir aquela dor.

 

Peter estava sentado no seu escritório onde a única luz era a que se filtrava pela janela, apenas o grau de luminosidade suficiente para emprestar uma tonalidade de antracite ao negro, dando ao cinzento um tom de cinza-claro. A ansiedade, o sentimento de culpa, a saudade, a mágoa, a necessidade, as emoções que só muito raramente era capaz de apreender, e que nunca expressava, encontravam-se encurraladas dentro de si, com a pressão a acumular-se continuamente até ele pensar que o seu corpo, muito simplesmente, explodiria a qualquer momento e da sua pessoa restariam apenas alguns fragmentos de tecidos e cabelo presos às paredes e ao tecto e ao vidro das molduras com as fotografias dele junto de pessoas que considerara importantes na sua vida ao longo da última década.

 

Perguntou a si mesmo se qualquer parte de si atingiria as fotografias de Jillie agrupadas num pequeno espaço a um canto, como que separadas das outras. Num lugar discreto onde não chamavam a atenção de ninguém. Uma vergonha impalpável... dela, do seu fracasso, dos seus erros.

 

Precisamos de saber a verdade, Peter, e penso que você tem andado a esconder peças que faltam neste quebra-cabeças... Precisamos de ter uma panorâmica completa da situação. Peças funestas de uma panorâmica perturbadora que ele não queria que ninguém visse. As vagas de vergonha e raiva eram como ácido nas suas veias. Estou morta. A minha necessidade está viva. Faz-me continuar. Mantém-me a esperança viva. Será que ele me quer? Será que ele me aceitará? Será que ele me magoará? Será que ele me amará? O som da campainha do telefone ecoou como uma lâmina que lhe seccionasse os nervos em fatias. Pegou no auscultador com uma mão tremente. Estou? Pai...zinho, Pai...zinho, Pai...zinho A voz cantava como uma sereia. Vem visitar-me. Vem dar-me o que eu quero. Sabes o que eu quero. Quero isso agora. Bondurant engoliu em seco, sentindo a bílis na garganta. Se eu for, prometes que me deixas em paz? Paizinho, não gostas de mim?

 

Por favor respondeu numa voz sussurrada. Dou-te tudo o que quiseres. Mas depois não vais continuar a querer-me. Não vais gostar do que eu tenho reservado para ti. Mas de qualquer] maneira sei que virás. Virás por causa de mim. Diz que vens. Sim respondeu ele quase sem respiração. Quando! desligou; chorava lágrimas que lhe escaldavam as pálpebras, que lhe queimavam as faces, que lhe desfocavam a visão. Abriu a gaveta inferior do lado direito da sua secretária, de onde tirou uma Glock de nove milímetros semiautomática de um preto fosco, depositando a arma com todo o cuidado dentro do saco maleável negro que tinha aos pés. Deixou o escritório com o saco que lhe pesava na mão. Em seguida, saiu de casa, meteu-se no automóvel e começou a conduzir por entre as trevas da noite

 

 

Na tua opinião, qual é o emprego de sonho? perguntou Elwood.

 

Ser consultor técnico num filme sobre polícias, cuja acção decorra no Havai, e que tenha por intérprete principal o Mel Gibson respondeu Liska sem hesitações. Liga o motor, tenho frio. Toda ela tremia, mantendo as mãos nas algibeiras do casaco comprido.

 

Haviam estacionado nos lugares reservados ao pessoal do Centro Target, observando a pequena camioneta de caixa aberta de Gil Vanlees iluminada pela luz esbranquiçada das luzes de segurança. À semelhança dos abutres com que tantas vezes eram comparados, os repórteres circulavam em redor do edifício, estacionando nos inúmeros parques de estacionamento de pequenas dimensões, espalhados pelas proximidades enquanto aguardavam. Quais carraças, tinham assediado Vanlees a partir do momento em que a fuga de informações dera a conhecer o seu nome em relação ao assassínio de Jillian Bondurant.

 

Vanlees ainda não abandonara o edifício. As admiradoras frenéticas da Banda Dave Matthews, que ainda se mantinham por perto depois do espectáculo, requeriam toda a sua atenção. De acordo com o que os detectives no interior do Centro Target tinham dito, a gerência optara por mantê-lo restrito aos bastidores receosos de virem a ser processados judicialmente por parte de Vanlees, caso o despedissem tendo como fundamento apenas suspeitas; por outro lado, também receavam processos judiciais por parte do público, se alguma coisa desse para o torto, se permitissem que continuasse a trabalhar no seu posto habitual. Os livre-trânsitos para a imprensa haviam sido distribuídos a um vasto leque de gente, desde os críticos de música aos repórteres especializados em casos criminais, os quais percorriam o interior do recinto à procura dele.

 

Ele já está a caminho daí, Elwood ouviu-se uma voz através dos estalidos da electricidade estática do radiotransmissor.

Recebido respondeu Elwood pousando o aparelho, mastigando pensativamente a sandes que estava a comer. O interior do automóvel tresandava a manteiga de amendoim. O Mel Gibson é casado e tem seis filhos.

 

Não nas minhas fantasias. Ali vem ele. Mostrando uma atitude truculenta, Vanlees transpunha o portão. De imediato, ficou rodeado por meia dúzia de repórteres que foram atrás dele, qual nuvem de mosquitos. Elwood correu a janela para baixo para ouvir o que diziam.

 

Mister Vanlees, o John Quinn deu a entender que é um suspeito nos assassínios do Cremador. O que é que tem a dizer a esse respeito?

 

Assassinou a Jillian Bondurant?

 

O que é que fez à cabeça? Teve relações sexuais com a cabeça?

 

Isto é o suficiente para se deixar de acreditar no artigo da constituição que garante o direito à privacidade de todos os cidadãos desabafou Elwood com um suspiro pesado.

 

São uns caras de cu retorquiu Liska num tom de protesto. São piores do que caras de cu. São como as bactérias que se alojam no olho do cu.

 

Vanlees não fez qualquer comentário às perguntas dos jornalistas. Continuou a andar, uma regra de sobrevivência que fora forçado a aprender rapidamente nos últimos tempos. Quando já se encontrava directamente em frente do carro dos dois detectives, Elwood rodou a chave da ignição pondo o motor a funcionar. Gil Vanlees deu um salto rápido para o lado, dirigindo-se apressadamente para o seu veículo.

 

Um indivíduo nervoso e anti-social comentou Elwood colocando o que lhe restava da sanduíche dentro de um pequeno saco de plástico transparente, do tipo em que costumavam recolher provas incriminatórias, enquanto Vanlees sacava das chaves da carrinha.

 

Este tipo é um idiota chapado disse Nikki. O meu idiota. Achas que conseguirei alguma coisa se o implicarmos por estes homicídios?

 

Não.

 

Não estejas com rodeios, sê brutalmente sincero. Não quero albergar falsas expectativas.

 

Vanlees ligou o motor saindo do lugar onde estacionara. acto contínuo, os repórteres começaram a dispersar. Elwood foi logo no encalço de Vanlees e pouco depois ligou os máximos por alguns instantes.

 

Um louvor ficaria bem no meu currículo quando o enviar para a gente do Mel Gibson.

 

Os méritos irão todos para o Quinn replicou Elwood. Todos os meios de comunicação social estão enamorados dos caçadores de mentes.

 

Além de que ele se apresenta de forma magnífica na televisão.

 

Até podia vir a ser o próximo Mel Gibson.

 

Melhor... o cabelo não lhe começou a cair. Continuaram atrás de Vanlees enquanto este esperava a oportunidade de poder entrar na Primeira Avenida; dado que se mantinham quase colados a ele, fizeram com que o condutor de uma viatura que vinha do outro lado fosse forçado a meter travões a fundo, ao mesmo tempo que buzinava de indignação.

 

Parece-te que o Quinn talvez pudesse contratar-me como consultora técnica quando for para Hollywood? perguntou Liska.

 

Está-me cá a cheirar que o teu objectivo não é exactamente um trabalho de consultadoria comentou Elwood.

 

É verdade. Preferia até desempenhar um papel mais participativo, mas não acho que isso venha a acontecer. Tenho a impressão de que ele está assombrado. Não te parece que ele esteja assombrado?

 

Extremamente motivado.

 

Motivado e assombrado. Uma gulodice a dobrar.

 

Muito romântico.

 

Caso sejas a Jane Eyre retorquiu Liska com um abanar de cabeça. Não tenho tempo para motivados ou assombrados. Tenho trinta e dois anos. Tenho filhos. Preciso do Ward Cleaver.

 

Esse já morreu.

 

O que só prova que não tenho sorte nenhuma.

 

Continuaram atrás do veículo de Vanlees, percorrendo um labirinto de ruas a caminho de Lyndale. Com um resmungo, Elwood observou o trânsito atrás de si pelo espelho retrovisor.

 

Parecemos um cortejo funerário. Devem vir uns nove carros atrás de nós com gente dos jornais.

 

Hão-de recolher tudo em vídeo. Guarda os bastões luminosos e as correias de couro.

 

O trabalho de polícia já não é nada do que costumava ser lamentou-se Elwood.

 

Fica de olho nele - advertiu Liska quando chegaram ao ponto pior do emaranhado confuso de ruas. Até pode ser que o apanhemos por uma infracção do código. De todas as vezes que tenho de passar por aqui infrinjo umas nove regras de trânsito.

 

Gil Vanlees, porém, não cometeu nenhuma infracção. Mantinha-se a uma velocidade muito ligeiramente abaixo do limite, conduzindo como se transportasse um carregamento de ovos dentro de taças de cristal. Elwood seguia muito próximo da traseira da pequena carrinha, aproximando-se um tudo-nada excessivamente do pára-choques de Vanlees, violando o seu espaço como se quisesse provocá-lo.

 

O que é que te parece, Tinks? Será ele o fulano que procuramos ou estaremos uma vez mais perante uma situação estilo bomba no Parque Olímpico?

 

Ele ajusta-se ao perfil. Anda a esconder-nos qualquer coisa.

 

Mas isso não significa que seja um assassino. Todos nós temos algo a ocultar.

 

Sim, mas eu gostaria de ter tido a oportunidade de descobrir o quê, sem ter uma matilha de repórteres que não nos largam os calcanhares. Ele seria um autêntico idiota se tentasse alguma coisa neste momento.

 

Talvez eles não se aguentem durante muito mais tempo atrás de nós disse Elwood voltando a olhar pelo espelho retrovisor. Olha-me bem para este filho da puta.

 

Um Mustang de tejadilho baixo, de um modelo já antigo, aproximou-se dos detectives pelo lado esquerdo; nos lugares da frente seguiam dois homens cuja atenção se concentrava na pequena carrinha de Vanlees.

 

Aquilo é que é ter tomates comentou Liska.

 

Provavelmente pensam que somos da concorrência.

 

O Mustang acelerou, ultrapassando os dois detectives, tendo-se colocado ao lado de Vanlees com a janela do lado do passageiro da frente aberta.

 

Grande filha da puta! berrou Elwood.

 

Vanlees aumentou a velocidade do seu veículo. O outro automóvel manteve-se ao seu lado.

 

Liska pegou no transmissor indicando à central a sua posição, pedindo reforços e informando o número da chapa de matrícula do Mustang. Elwood agarrou na luz intermitente que estava sobre o assento, colocando-a no suporte para o efeito no tejadilho, após o que a ligou. Defronte do veículo da polícia, o passageiro que seguia à frente no outro automóvel debruçava-se fora da janela munido de uma máquina fotográfica com teleobjectiva.

 

Vanlees aumentou ainda mais a velocidade a que seguia. O carro continuou a acompanhá-lo.

 

O flash brilhou com uma intensidade capaz de cegar

 

A carrinha de Vanlees guinou bruscamente, embatendo no Mustang e empurrando-o de traseira para a faixa de rodagem seguinte, colocando-o directamente no caminho de um táxi que se aproximava. Nem sequer houve tempo para se ouvir o chiar dos pneus ou meter travões a fundo, somente o estrondo horrível do impacte da colisão de toneladas de metal. O repórter fotográfico foi violentamente cuspido do carro no momento do choque. Rolou pelo alcatroado como se fosse uma boneca de trapos que tivesse sido arremessada pela janela. O Mustang foi percorrido por uma gigantesca bola de fogo.

Liska assistiu àquelas cenas que pareciam projectadas em câmara lenta - a colisão, as chamas, o utilitário de Vanlees guinando em direcção ao passeio com uma das rodas a erguer-se do pavimento, enquanto o pára-choques da frente batia contra um parquímetro que não aguentou o impacte. Pouco depois, numa viragem brusca, a passagem do tempo retomou o ritmo normal, e Elwood manobrou o Lumina passando rente à carrinha, embatendo contra o passeio e posicionando-se de forma a cortar a retirada ao outro veículo. Desligou o motor e no minuto seguinte saía do automóvel. Liska pegava no microfone com uma mão que tremia, pedindo uma ambulância e um carro de bombeiros.

 

Alguns dos automóveis que se tinham mantido atrás dos dois detectives estacionaram junto ao passeio.

 

Houve outros que passaram pelo local do acidente a

grande velocidade, obrigando Elwood a esquivar-se deles enquanto corria para o carro em chamas. Com um empurrão brusco, Liska abriu a porta e correu para Vanlees, que a cambalear saía da carrinha. A pouco mais de meio metro de distância, chegou-lhe o cheiro a uísque.

 

Não fiz nada! gritou ele lavado em lágrimas. Os flashes das máquinas fotográficas eram como clarões de luzes estroboscópicas, iluminando a fisionomia do homem sob uma luz de um branco-cru. O sangue escorria-lhe das narinas e da boca; era óbvio que o rosto embatera no volante. Ergueu as mãos defronte do rosto para se proteger dos clarões e estragar as fotografias.

 

’ Raios vos partam! Deixem-me em paz!

 

Não me parece, Gil disse Liska pegando-lhe por um braço. Encoste-se ao veículo. Estou a dar-lhe voz de prisão.

 

Agora já sei como é que eles vergam os espiões privando-os de dormir disse Kovac aproximando-se em passos largos do utilitário de Gil Vanlees, o qual continuava com uma roda suspensa no passeio. Estou disposto a aceitar a transferência para os arquivos, pelo menos poderei dormir algumas horas.

 

Vem-te chorar ao pé de mim quando tiveres a cara de um garotinho de nove anos retorquiu Liska, simulando uma expressão carrancuda, com uns grandes olhos azuis, cheios de lágrimas, que pergunte por que razão não foram ver no dia de Acção de Graças a peça teatral na sua escola, em que ele representava o papel de peregrino e tudo o mais.

 

Jesus, Tinks resmungou Kovac metendo um cigarro entre os lábios. Os seus olhos mostravam um pedido de desculpas. Não nos devia ser permitido respirar.

 

Diz isso aos meus ovários. E já agora, que diabo é que tu estás a fazer aqui? perguntou Liska virando-o de forma a ficar de costas para os jornalistas. Estás a fazer tudo para que eles te despeçam de uma vez por todas? Em princípio, devias tentar não dar nas vistas.

 

Só vim trazer-te um cafezinho respondeu Kovac. a expressão da inocência, estendendo-lhe um copo de cartão com café fumegante. Só estou a dar o meu apoio à primeira equipa. Enquanto apresentava aquela justificação, o seu olhar percorria o utilitário de Vanlees.

 

Naquele momento, já o veículo estava rodeado por agentes de uniforme e pela equipa de perícia criminal, os quais se preparavam para fazer o seu trabalho. Os projectores portáteis iluminavam a viatura sob todos os ângulos, emprestando à cena o aspecto de um cenário que poderia servir para qualquer fotografia publicitária de um Chevy. Todos os carros que tinham ficado imobilizados no meio da rua estavam a ser rebocados.

 

Os repórteres encontravam-se no perímetro do local onde ocorrera o acidente, mantidos à distância pelos polícias de uniforme; o interesse que o acidente lhes despertara tinha-se aguçado pelo seu próprio envolvimento no drama que continuava a desenrolar-se.

 

Já sabes alguma coisa sobre quem te vai substituir? inquiriu Liska.

 

Kovac acendeu um cigarro ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

 

Dei uma palavrinha ao Fowler a teu respeito.

 

Dessa é que eu não estava à espera; obrigada, Sam redarguiu Liska mostrando-se surpreendida. Achas que eles levarão isso em consideração?

 

Nem pensar. Aposto o meu dinheiro em Yurek porque ele deixa-se acagaçar por eles. Mas, mudando de assunto, o que é que há de novo por aqui?

 

O Vanlees está no hospital, sob observação nas urgências, antes de lhe arrastarmos o desgraçado do coiro até à esquadra. Acho que fracturou o nariz. Além dele, temos um morto, outro em estado crítico e um que está de boa saúde explicou Liska, encostando-se ao automóvel em que ela e Elwood tinham vindo. O motorista do Mustang ficou todo estorricado. O taxista fracturou os dois tornozelos e partiu a cabeça, mas não corre perigo de vida. O fotógrafo já está no bloco operatório. Os médicos acham que sofre de hemorragias cerebrais. Por mim, não me sentiria muito optimista. Por outro lado, atrever-me-ia a dizer que o homem não tinha dois dedos de miolos, depois de ter visto o que ele fez.

 

Sabemos quem são estes fulanos... quem eram?

 

Um tal Kevin Pardee e um Michael Morin. Fotógrafos que trabalhavam por conta própria à procura de um furo, uma fotografia exclusiva. A vida e a morte na era das notícias sensacionalistas. Agora eles próprios é que serão o tema das parangonas nos jornais.

 

Como é que o Vanlees se sentou ao volante de um carro, se estava bêbedo ao ponto de teres conseguido cheirar-lhe o álcool no bafo?

 

Vais ter de fazer essa pergunta aos repórteres. Eles é que não o largavam quando saiu do trabalho. Aos nossos só restava mantê-lo sob vigilância à distância, a fim de evitar que ele nos processasse por violação da sua privacidade.

 

Perguntar aos repórteres resmungou Sam. Serão os primeiros a levantar questões sobre a nossa negligência. Uma escumalha, é o que eles são. Como é que está o Elwood?

Ainda queimou as mãos com alguma gravidade quando tentou tirar o Morin do carro. Já vai a caminho do hospital. Também ficou com as sobrancelhas chamuscadas. Está com um aspecto muito patusco.

 

Mesmo sem isso, ele já tinha uma aparência patusca.

 

O Vanlees acusou uma leitura de ponto zero oito quando soprou no balão. Uma sorte para nós. Permitiu-me apreender o veículo. Tenho de fazer um inventário a tudo o que ele deixou lá dentro acrescentou Liska com um encolher de ombros de uma falsa inocência manifestamente cúmplice. Nunca se sabe o que poderemos vir a encontrar.

 

Esperemos que seja uma faca ensanguentada debaixo do assento alvitrou Kovac, esperançado. Ele parece-me ser suficientemente estúpido para uma tolice dessas, não concordas? Jesus, está um frio de rachar. E ainda nem sequer estamos perto do Dia de Acção de Graças.

 

Bingo! exclamou subitamente um dos membros da equipa de perícia criminal.

 

O quê? perguntou Kovac, que de um salto se afastou do carro. O que é que descobriu? Diga-me que está manchado de sangue.

 

A investigadora afastou-se da porta do lado do condutor.

 

O estojo das poupanças do «dê prazer a si mesmo» respondeu ela virando-se para Kovac e erguendo no ar um exemplar da Hustler, juntamente com um par de cuecas de mulher, em seda negra, de aspecto imundo.

 

A versão do revólver com o cano a fumegar dos pervertidos comentou Kovac. Guarde o que encontrou num saco de provas. Talvez estejamos de posse da chave que nos abra a cabeça deste mentecapto.

 

O que é que há quanto ao mandado de busca para revistarmos a casa do Vanlees? perguntou Quinn despindo a gabardina. Usava o mesmo fato que vestira no dia anterior, o que não passou despercebido a Kovac. Muitíssimo amarrotado.

 

Com base no que temos até agora começou Kovac a dizer com um abanar de cabeça, nem pensar em consegui-lo. Nem sequer com o nome do Peter Bondurant ligado ao caso. Passámos a pente fino cada centímetro do veículo sem termos encontrado absolutamente nada que o relacione directamente com qualquer das vítimas de assassínio. É possível que tenhamos mais sorte com as cuecas... daqui a algumas semanas quando as análises ao ADN nos vierem parar ás mãos. Nem sequer podemos obter resultados imediatos dessas análises. As cuecas em questão passaram a fazer parte do inventário de tudo o que foi encontrado dentro da carrinha. Não sabemos a quem pertencem. Não podemos dizer que ele as tenha roubado. Além do mais, bater punhetas ainda não é crime nenhum.

 

Ouviste isto, Tippen? perguntou Liska ao colega. Não tens nada a recear.

 

Ouvi dizer que essas cuecas são tuas, Tinks.

 

A Tinks costuma usar cuecas? atalhou Adler.

 

Muito engraçadinhos.

 

Encontravam-se na sala de reuniões das instalações da polícia, todo o grupo de trabalho menos Elwood, o qual, apesar de ferido, se recusara a ir para casa, estando nesse momento junto de Vanlees numa sala de interrogatórios ao fundo do corredor.

 

Por que é que ele não foi suficientemente estúpido para ter guardado uma faca manchada de sangue debaixo do assento da viatura? perguntou Adler, desiludido. Ele tem todo o aspecto de quem faria uma estupidez dessas,

 

Sim concordou Quinn. E é isso que está a incomodar-me. Não se pode dizer que estejamos a lidar com um grande crânio... a menos que ele sofra de personalidade múltipla, e um dos seus outros eus tenha o cérebro todo por sua conta. O que é que conhecemos do passado dele, para além dos pecadilhos mais recentes?

 

É o que tenho andado a averiguar respondeu Walsh. A sua voz tinha-se sumido quase por completo, estrangulada por uma constipação a que se aliava o hábito de fumar um maço de cigarros por dia.

A Nikki e eu já falámos com a mulher dele adiantou a detective Moss. Quer que trate de a convocar para que venha cá falar connosco?

 

Por favor respondeu Quinn dando o seu acordo.

 

É forçoso que ela saiba se o marido é um depravado ou não interveio Tippen.

 

Não, necessariamente discordou Quinn abanando a cabeça. Ao que tudo indica, ela é a parceira dominadora na relação que existe entre os dois. O mais certo é ele ter ocultado dela esse seu passatempo, mantendo-o em segredo, o que terá feito em parte por receio e, por outro lado, como um acto de desafio. Mas se de facto ele tiver uma parceira... e acredito que tenha, então quem é ela? Temos alguma coisa que se possa apontar à mulher dele?

 

Talvez a Jillian? alvitrou Liska.

 

Possivelmente. A mulher deu alguma indicação que nos leve a pensar que desconfiava que ele tivesse uma namorada?

 

Não.

 

Quinn viu as horas no seu relógio de pulso. Queria manter Vanlees à espera durante o tempo suficiente para começar a sentir-se enervado.

 

Já recebemos alguma informação acerca das impressões digitais da Michele Fine?

 

Nos registos de Minnesota não consta nada.

 

O Vanlees já telefonou a algum advogado?

 

Ainda não respondeu Liska. Ele tem-se cingido aos seus princípios de lógica. Alega que não tenciona telefonar a nenhum advogado porque um homem inocente não precisa de apoio jurídico.

 

Meu Deus, como é que ele conseguirá sair do reino da fantasia? comentou Tippen com uma expressão desdenhosa.

 

Sorte de idiota. Eu disse-lhe que não tencionávamos acusá-lo de nada por causa do acidente de viação. Disse-lhe que tínhamos de nos sentar para tentarmos descobrir o que se passou anteriormente, antes de podermos concluir se cometeu ou não um acto de negligência, mas que no entanto éramos forçados a detê-lo por conduzir sob a influência do álcool. Ele pareceu-me não ser capaz de decidir se devia sentir-se aliviado ou lixado.

 

Nesse caso, vamo-nos a ele antes que tenha tempo para se decidir sugeriu Quinn. Sam... você, a Tinks e eu. Vamos trabalhá-lo como fizemos antes.

 

Se eu estivesse no teu lugar, Sam, não faria isso acautelou Yurek. O Fowler, o chefão Greer, o Sabin e o Logan, o assistente do promotor público, estarão presentes como observadores.

 

Que se fodam! exclamou Kovac mostrando um desprezo que expressava o asco que sentia.

 

E depois, continuarás a sentir respeito por mim? perguntou Liska arqueando o sobrolho.

 

E respeito-te neste momento? Liska deu-lhe um pontapé na canela.

 

Charm continuou Kovac entre dentes, dirigindo-se a Yurek. Se estivesses no meu lugar, eu agora não estaria metido nesta trapalhada.

 

Greer, Sabin, Logan e Fowler encontravam-se no corredor do lado de fora da sala de interrogatórios, à espera. Ao avistar Kovac, a expressão fisionómica de Fowler era a imagem de quem sofria de angina de peito. Os olhos de Greer ficaram esbugalhados.

 

O que é que está a fazer aqui, sargento? perguntou num timbre autoritário. - O senhor foi oficialmente afastado do grupo de trabalho.

 

Encontra-se aqui a meu pedido, senhor comandante atalhou Quinn numa voz muito calma. -- Já tínhamos delineado uma determinada maneira de lidar com Mister Vanlees. Nesta fase, não quero ser forçado a mudar nada. Preciso que ele confie em mim.

 

Greer e Sabin afivelaram expressões amuadas; Logan manifestou impaciência. Fowler tirou um rolo de Tuim da algibeira, começando a desembrulhar uma das pastilhas.

 

Quinn deu o assunto por encerrado antes que alguém pudesse pensar em desafiá-lo. Manteve a porta aberta, dando passagem a Liska e a Kovac, entrando atrás dos dois.

 

Gil Vanlees tinha algumas parecenças com um guaxinim gigantesco Decorridas algumas horas depois do acidente, ficara com os olhos todos negros. Também tinha um lábio ferido e um adesivo largo sobre a cana do nariz. Mantinha-se de pé num dos extremos da sala com as mãos nas ilhargas, mostrando se irritado e enervado

 

Elwood sentava-se numa cadeira cujo espaldar estava encostado á parede. Tinha as duas mãos ligadas e o rosto de um vermelho muito acentuado. Sem sobrancelhas, a sua fisionomia mostrava uma expressão de perplexidade, traduzindo um descontentamento que ameaçava perpetuar-se

 

Ouvi dizer que teve um pequeno acidente, Gil começou Kovac sentando-se numa das cadeiras da mesa

 

Tenciono processar-vos replicou Vanlees apontando-lhe um dedo. Vocês assediaram-me e permitiram que a imprensa violasse a minha privacidade

 

E você sentou-se ao volante de uma viatura bêbedo que nem um cacho atalhou Kovac acendendo um cigarro. Fui eu quem lhe pagou os copos que tomou? Deitei-lhe a bebida pela garganta abaixo? Foi a vossa gente que permitiu que eu me sentasse ao volante contrapôs Vanlees com uma indignação cheia de hipocrisia digna de qualquer mestre em racionalização. Lançou um olhar de fugida, que reflectia nervosismo, a Elwood

 

Com certeza que a próxima coisa que me vai dizer é que a culpa é minha por ter assassinado a Jilhan Bondurant e as outras mulheres replicou Kovac com cara de poucos amigos

 

Vanlees ficou corado e lacrimoso. Emitiu o som semelhante ao de um homem que fizesse força sentado numa sanita

 

Não fui eu’ ripostou virando-se para Liska. Você disse-me que esta conversa era sobre o acidente. Você é uma putéfia, uma cabra aldrabona. Ei! gritou Kovac indignado. A sargento Liska está a fazer-lhe um favor. Você ontem causou a morte de uma pessoa, seu cabrão, grande bêbedo. Não foi por minha culpa. O filho da puta do fotógrafo encandeou-me com o flash da máquina. Fiquei sem poder ver. É o que a sargento Liska diz. Ela estava presente no local. É a sua testemunha. Quer chamar-lhe de putéfia outra vez? Se eu estivesse no lugar dela, punha-o a comer a sua própria pixa ao jantar. Você é um desgraçado, um monte de merda!

 

Contrito, Vanlees olhou para Liska.

 

A sargento Liska afirma que você está tão inocente quanto uma sacerdotisa virgem prosseguiu Kovac, e também diz que você não quer a presença de um advogado. Isso é verdade?

 

Não fiz nada de mal replicou Vanlees mostrando uma expressão de amuo.

 

Essa é muito boa! exclamou Kovac abanando a cabeça num gesto de incredulidade. Você parece ter uma definição bastante alargada da realidade, Gil. Sem margem para qualquer dúvida, podemos pegar-lhe por ter conduzido sob a influência do álcool... o que, ao abrigo da lei, é uma infracção. Sei que se entretinha a espreitar a Jillian Bondurant através das janelas da casa dela. O que também é uma infracção ao código penal.

 

Vanlees sentou-se; a cadeira estava virada de viés para a mesa, ficando ele de costas para Kovac e para as outras pessoas que se encontravam do outro lado do vidro que só permitia a visão desse lado. Apoiava os antebraços sobre as coxas, olhando fixamente para o chão. Parecia estar preparado para ficar ali durante toda a noite sem dizer uma única palavra. Quinn observava-o atentamente. A sua experiência dizia-lhe que não se encontrava em presença de um homem inocente que, por esse motivo, recusava aconselhamento jurídico, mas sim de um homem que tinha a consciência pesada, desejando desabafar.

 

Portanto, as cuecas que encontrámos debaixo do assento da sua viatura eram da Jillian? - perguntou Kovac sem estar com meias-palavras.

 

Não respondeu Vanlees mantendo-se de cabeça baixa.

 

Eram da Lila White? Da Fawn Pierce? Da Melanie Hessler?

 

Não. Não. Não!

 

Devo dizer-lhe que ao olhar para si não diria isso, mas a verdade é que você é um indivíduo bastante complexo continuou Kovac. Uma pessoa com muitas facetas... como a casca de uma cebola. E cada camada que eu vou removendo cheira pior do que a última. Você tem a aparência de uma pessoa comum. Mas retiramos uma das camadas e... oh!... descobrimos que a sua mulher está prestes a deixá-lo. Ora bem, isso não tem nada de invulgar. Eu próprio já fracassei por duas vezes por esse caminho. Mas retiramos outra camada e... credo!... ela vai abandoná-lo porque você gosta de espreitar através das janelas de outras mulheres! Mas não, calma aí, você não se dedica apenas a esse passatempo. Você também é um autêntico «bate-punhetas»! Você não passa de uma grande anedota, uma anedota de mau gosto, cada vez pior. Você é um bêbedo. Você é um bêbedo que conduz sob o efeito do álcool. Você é o bêbedo que se senta ao volante de um veículo e que provoca a morte de uma pessoa!

 

Vanlees baixou a cabeça ainda mais. Quinn via os lábios inchados do homem começarem a tremer.

 

Não tive a intenção de provocar essa morte. Não conseguia ver alegou Vanlees numa voz pastosa. Eles não me dão sossego. E a culpa é vossa. Não fiz nada de mal.

 

Eles querem saber o que é que aconteceu à Jillian prosseguiu Kovac. Tal como eu também quero saber o que é que lhe sucedeu. Na minha opinião, entre vocês dois passava-se mais qualquer coisa além do que você nos revelou, Gil. Cá para mim, você andava a fazer-se a ela. Acho que não perdia uma oportunidade de a espreitar. Acredito que tenha roubado essas cuecas da gaveta da cómoda dela e, enquanto se entregava às suas fantasias, batia punhetas nas cuecas, o que hei-de conseguir provar. Já sabemos que as cuecas são do tamanho e do género das que ela usava adiantou Kovac, atirando o barro à parede. É tudo uma questão de tempo até as análises ao ADN provarem que temos razão. Apenas umas semanas. É melhor começar a habituar-se ao assédio desses jornalistas, porque eles vão andar em cima de si como moscas num monte de merda.

 

Naquele momento, Vanlees já chorava. Em silêncio. As lágrimas corriam-lhe pelas costas das mãos. Tremia tal o esforço que fazia para conter o choro.

 

Sargento, gostaria de estar uns momentos a sós com Mister Vanlees disse Quinn fitando Kovac.

 

Com certeza, como se eu não tivesse mais nada que fazer queixou-se Kovac levantando-se da sua cadeira. Sei muito bem em que é que isto vai dar, Quinn. Vocês, os federais querem ficar com os louros todos. Mas, quanto a mim, vão-se foder com o que querem! O coiro dele é meu.

 

Eu só quero trocar algumas palavras com Mister Vanlees.

 

Sim, sim. Você não gosta da maneira como eu falo com este lindinho. Está aí sentado a pensar que eu devia ser mais meiguinho com ele, porque a mãe era uma prostituta que costumava bater-lhe no cu com um cabide de arame, ou por causa de outra treta de merda das vossas psicologias. Muito bem. Tenho a certeza de que hei-de ler o seu nome nos cabeçalhos dos jornais.

 

Quinn não disse mais nada até os polícias terem saído. mutismo que se prolongou por bastante mais tempo depois de se terem ido embora. Tomou um Tagamet, que engoliu com água do jarro de plástico que estava em cima da mesa Disfarçadamente, virou a cadeira em que se sentava de forma a que ficasse perpendicular à de Vanlees, inclinando-se para a frente e pousando os antebraços sobre as coxas; manteve-se em silêncio durante mais algum tempo até que Vanlees ergueu o olhar, fitando-o.

 

Lá vem de novo a merda do polícia mau e do polícia bom disse Vanlees, fazendo beicinho. Você deve pensar que eu sou burro, que só tenho merda na cabeça.

 

Acho que você vê televisão a mais retorquiu Quinn. Estamos no mundo a sério, Gil. O sargento Kovac e eu não temos os mesmos objectivos em relação a este assunto. Não estou interessado em aparecer nos cabeçalhos dos jornais, Gil. Já tive mais disso do que a minha quota-parte. Você está bem ciente disso. É uma coisa que me acontece automaticamente. Mas você sabe muito bem em que é que eu estou interessado, não é verdade? Sabe bem quem eu sou. Já leu coisas a meu respeito.

 

Vanlees não lhe deu réplica.

 

Só estou interessado na verdade e na justiça. Em mais nada. Não me interessa o tipo de verdade que venha a revelar-se. No que me diz respeito, isto não me afecta pessoalmente. Mas, com o Kovac, tudo adquire um carácter pessoal. É uma coisa que está muito arreigada na sua maneira de ser. Tudo o que eu quero saber é a verdade, Gil. Quero ouvir a sua verdade. Tenho a impressão de que você tem qualquer coisa que lhe pesa na consciência, e talvez deseje desabafar, mas a verdade é que não confia no Kovac.

 

Você também não me inspira confiança.

 

Está enganado, Gil. Você conhece-me. Tenho-me portado sempre bem consigo, Gil, sempre com toda a frontalidade e estou convencido de que bem no fundo você dá valor a isso. Também está convencido de que eu matei a Jillian...

 

O que eu penso é que você se ajusta ao perfil do criminoso em muitos aspectos. O que tenho de admitir. Mais ainda, se você olhar objectivamente para a situação, terá de concordar comigo. Estudei este tipo de coisas. Sabemos exactamente o que procuramos. Você sabe muito bem que algumas das suas peças ajustam-se perfeitamente neste quebra-cabeças. Mas isso não significa que eu acredite que foi você quem a matou. De facto, nem sequer estou convencido de que a Jillian tenha morrido.

 

O quê?! Vanlees fitava-o como se pensasse que ele perdera o juízo.

 

Estou em crer que a Jillian tem muito que se lhe diga, bastante mais do que à primeira vista possa parecer. E acho que você tem alguma coisa a dizer-nos a esse respeito. Estarei enganado, Gil?

 

Vanlees voltou a fixar o olhar no chão. Quinn sentia a pressão crescente que se acumulava dentro do homem, enquanto pesava os prós e os contras, caso decidisse responder com verdade.

 

Se você costumava espreitá-la à socapa, Gil continuou Quinn numa voz que tentava instilar-lhe confiança, não terá qualquer problema por causa disso. Para este caso, isso não tem a mínima importância. Será com satisfação que a polícia passará isso em branco se, em troca, lhes der qualquer coisa que lhes possa ser útil na investigação.

 

Vanlees deu a impressão de estar a considerar aquela hipótese, sem nunca pensar, facto de que o Quinn tinha a certeza, que essa «qualquer coisa» de que andavam à procura poderia, por seu lado, ser utilizada contra ele. Pensava em Jillian, na maneira como projectar alguma luz estranha sobre ela, desviando-a de si próprio, porque era isso que, de uma maneira geral, as pessoas tendiam a fazer sempre que se viam metidas num problema muito grave: incriminar o outro. Por via de regra, os criminosos culpavam as suas vítimas pelos crimes que eles próprios cometiam contra elas.

 

Você sentia-se atraído por ela, não é verdade? perguntou Quinn. Isso não é nenhum crime. Ela era uma rapariga bonita. Por que razão não havia de olhar?

 

Porque sou casado tartamudeou Vanlees.

 

O facto de ser casado não quer dizer que esteja morto. Olhar não é contra a lei. Portanto, você olhava para ela Isso não me parece ser nada de mais.

 

Ela era... diferente prosseguiu Vanlees, continuando a manter o olhar preso no chão, vendo mentalmente a imagem de Jillian Bondurant, pensava Quinn. Era a modos que... exótica.

 

Você disse ao sargento Kovac que ela não se atirava a si, mas isso não corresponde exactamente à verdade, pois não? aventurou-se Quinn, continuando a falar numa voz suave, um diálogo íntimo entre duas pessoas que se conheciam. Ela tinha bem a percepção da sua presença, não é verdade, Gil?

 

Ela nunca me deu a entender nada, mas o certo é que olhava para mim de uma determinada maneira admitiu Vanlees.

 

Como se o quisesse. Uma afirmação e não uma pergunta, como se para Quinn aquilo não fosse surpresa nenhuma.

 

Não sei replicou Vanlees sem pegar no assunto. Apenas como se ela quisesse que eu soubesse que estava a olhar para mim, mais nada.

 

Assim como se ela lhe enviasse sinais ambíguos.

 

Sim, sinais ambíguos.

 

E isso deu em alguma coisa?

 

Vanlees hesitou, como se se debatesse consigo mesmo. Quinn aguardava com a respiração suspensa.

 

Eu só pretendo apurar a verdade, Gil. Se você estiver inocente, nada o prejudicará. Isto fica apenas entre nós dois. De homem para homem.

 

O silêncio pareceu arrastar-se indefinidamente.

 

Eu... eu sei que estava errado murmurou Vanlees por fim. Não foi minha intenção fazê-lo. Mas houve uma noite em que inspeccionava os jardins na minha ronda habitual...

 

Quando é que isso se passou?

 

Este Verão. E... eu estava lá...

 

Perto da casa da Jillian?

 

Ela estava a tocar piano... retorquiu Vanlees anuindo com a cabeça e vestia apenas um robe de seda quase a escorregar-lhe do ombro. Tinha a alça do soutien à mostra.

 

Por isso, você ficou a espreitá-la durante algum tempo disse Quinn como se aquilo fosse uma coisa muito natural que qualquer homem teria feito, nada de mal.

 

Pouco depois despiu o robe, pôs-se de pé e começou a espreguiçar-se. Vanlees revia a cena em pensamento. O ritmo da sua respiração acelerara-se e tinha a cara coberta por uma fina camada de suor. Ela começou a fazer movimentos com o corpo, como se estivesse a dançar. Lentamente, muito devagar... fazia movimentos eróticos.

 

Ela sabia que você estava a espreitá-la?

 

Não me parece. Mas então aproximou-se da janela e puxou o soutien todo para baixo... de modo que eu pudesse ver-lhe as mamas, e encostou-as ao vidro e começou a esfregar-se explicou Vanlees num sussurro que mal se ouvia, envergonhado, excitado. Ela... lambeu o vidro.

 

Jesus, você deve ter-se sentido incrivelmente excitado.

 

Vanlees pestanejou; era óbvio que se sentia constrangido, desviando o olhar. Era ali que ele ocultaria parte dos acontecimentos. Não mencionaria que tinha tido uma erecção, nem sequer diria que abrira a braguilha tirando o pénis para fora, tendo começado a masturbar-se enquanto a observava. Por outro lado, não era preciso que o confessasse. Quinn conhecia bem aquela história, estava bem por dentro daqueles padrões de comportamento, os quais tivera oportunidade de estudar ao longo dos muitos anos em que se dedicara ao comportamento sexual de natureza criminosa. Não estava a aprender nada de novo quanto à maneira de ser de Vanlees. Mas, se aquela história fosse verdadeira, estaria, isso sim, a aprender algo muito significativo a respeito da personalidade de Jillian Bondurant.

 

E depois, o que é que ela fez? perguntou Quinn no mesmo tom de voz suave.

 

Vanlees agitou-se na sua cadeira numa manifestação evidente de mal-estar físico.

 

Ela... ela puxou as cuecas para baixo e... começou a mexer entre as pernas.

 

Ela masturbou-se à sua frente?

 

Corado que nem um tomate, Vanlees respondeu:

 

Ela abriu a janela e eu assustei-me, desatando a correr. Mas voltei mais tarde e vi que ela tinha atirado as cuecas pela janela.

 

repetiu Quinn.

 

voltou a repetir-se?

 

E essas são as cuecas que os polícias encontraram dentro da sua carrinha. Pertencem à Jillian.

 

Ele assentiu com a cabeça, levando uma mão à testa como se tentasse esconder o rosto. Quinn observava-o atentamente, tentando avaliá-lo. Seria aquilo verdade ou era uma patranha para salvar o coiro, justificando assim o facto de ter em seu poder peças de roupa interior de uma possível vítima de assassínio?

 

Quando é que isso se passou? repetiu Quinn.

 

No último Verão, em Julho.

 

Essa cena, ou algo do género, voltou a repetir-se?

 

Não.

 

Ela alguma vez lhe mencionou esse assunto?

 

Não. Ela quase não falava comigo.

 

Sinais ambíguos voltou a dizer Quinn. E você ficou furioso por causa disso, Gil? O facto de ela se ter despido à sua frente, masturbando-se mesmo diante de si, para depois fingir que não tinha acontecido nada? Fingir que mal o conhecia, como se você fosse um homem que não estivesse à altura dela. Isso fez com que se sentisse irritado?

 

Eu não lhe fiz mal nenhum declarou ele num murmúrio.

 

Ela era uma provocadora. Se alguma mulher me fizesse uma coisa dessas... fazer com que eu ficasse com tesão ao ponto de só querer pôr-me em cima dela, para depois não me dar nada... eu ficaria muito lixado. Havia de querer fodê-la com toda a gana, obrigá-la a prestar-me atenção. Você não quereria fazer a mesma coisa, Gil?

 

Mas nunca o fiz.

 

Mas a verdade é que você queria ter relações sexuais com ela, não é? Não houve uma parte de si que quis dar uma lição à Jillian? Esse lado sombrio que todos nós temos, onde guardamos os ressentimentos e planeamos as vinganças. Você não tem uma parte sombria, Gil? Eu tenho. Quinn resignou-se a outro compasso de espera, sentindo que a tensão crescia dentro de si.

 

Vanlees exibia uma expressão desoladora, de derrota, como se as implicações em tudo o que lhe acontecera naquela noite tivessem, por fim, começado a registar-se inteiramente na sua mente.

 

O Kovac vai tentar assacar-me este assassínio disse Vanlees, porque essas cuecas pertencem à Jillian.

 

devido a tudo o que acabei de lhe dizer. Até mesmo quando ela é que se portou mal e não eu. É o que vai suceder, não é verdade?

 

Até que você é um bom suspeito, Gil. Do que você se apercebe, não é verdade?

 

Vanlees acenou vagarosamente com a cabeça, mostrando-se pensativo.

 

O pai dela esteve lá em casa acrescentou numa voz sumida. No domingo de manhã. Bastante cedo. Antes do nascer do dia. Vi-o quando saiu de casa. Na segunda-feira seguinte, o advogado dele deu-me quinhentos dólares para que eu não dissesse nada a esse respeito.

 

Em silêncio, Quinn registou aquela informação, sopesando-a, avaliando-a. Gil Vanlees estava atolado até às orelhas. Poderia dizer fosse o que fosse. Era possível que afirmasse ter visto um estranho, um vagabundo, um homem só com um braço, perto da casa de Jillian. Optara por dizer que tinha visto Peter Bondurant e que este lhe tinha pago para que ficasse de boca calada.

 

Cedo, na segunda-feira de manhã replicou Quinn. Vanlees confirmou com um acenar de cabeça. Não estabeleceu contacto visual.

 

Antes do nascer do dia acrescentou Quinn.

 

Sim.

 

O que andava você a fazer por lá a essa hora da manhã, Gil? Onde é que se encontrava para poder tê-lo visto... e para ele também o ter visto?

 

Desta feita, Vanlees abanou a cabeça quer fosse por causa da pergunta quer por qualquer coisa que revivesse em pensamento. Dava a impressão de ter envelhecido dez anos durante os últimos dez minutos. Adivinhava-se algo de patético nele, sentado naquela sala com o seu uniforme de segurança, um aspirante falhado a polícia a brincar ao faz-de-conta. O melhor que estava ao seu alcance.

 

Agora, quero telefonar a um advogado disse Vanlees por fim em voz baixa, quase a medo.

 

 

Kate sentava-se no velho sofá de couro no pequeno escritório de sua casa, aninhada a um canto, defendendo-se da frialdade matutina que se sentia na casa antiga; calçara umas meias grossas de lã, umas calças pretas justas ao corpo e a camisola velha de um fato de treino, bastante larga, que há muitos anos não vestia. Fora Quinn quem lha oferecera nos tempos em que entre ambos existia uma relação amorosa. O nome do ginásio que ele frequentava estava bordado à largura da parte da frente. O facto de a ter guardado durante tanto tempo, por si só, deveria ter-lhe dito alguma coisa, mas a verdade é que ela sempre fora selectivamente surda

 

Tirara-a do roupeiro depois de Quinn ter saído de sua casa para a reunião com o grupo de trabalho, tendo-a metido no secador da roupa por uns minutos para lhe tirar o cheiro a mofo, após o que a vestira ainda morna, fingindo que era o calor do corpo dele. Um pobre substituto para a calidez dos braços dele a abraçarem-na. Mas, mesmo assim, aquela peça de roupa dava-lhe a ilusão de estar mais próxima dele. E depois de uma noite passada nos braços de Quinn, a necessidade que sentia desse contacto físico era muito forte

 

Que altura tão inconveniente para redescobrir o amor. Mas levando em linha de conta a profissão de ambos e estilo de vida, que outra opção é que poderiam ter? Tanto um como o outro estavam por de mais cientes de que a vida não lhes oferecia garantias. Ambos tinham bem a percepção de que já haviam abdicado de muito tempo que jamais conseguiriam reaver devido ao medo, ao orgulho e à mágoa.

 

Kate imaginava ser capaz de olhar para baixo do alto de outra dimensão, vendo os dois como se esse período de tempo não tivesse passado. O tempo que ela gastara focando-se sem qualquer discernimento nas minúcias inerentes à reconstrução de uma vida «normal» para si própria, de que fazia parte um emprego e alguns passatempos, a par de pessoas com quem se encontrava socialmente durante as férias e funções a que não podia faltar. Nada de relevante, limitando-se apenas a fazer ofício de corpo presente, fingindo que o torpor que sentia na alma lhe era indiferente. Decidindo que era preferível à alternativa. Todo o tempo de Quinn dedicado ao seu trabalho, o trabalho, o trabalho. Chamando a si mais responsabilidades para preencher o vazio, até que o peso do trabalho ameaçava esmagá-lo. Enchendo o cérebro com um número infindável de casos e factos até lhe ser impossível organizá-los coerentemente. Dando ao desbarato parte de si mesmo, mascarando outras facetas até ser incapaz de se recordar do que era genuíno. Esgotando o manancial de forças que em tempos lhe parecera ser inesgotável. Desgastando a confiança que depositava nas suas capacidades e na sua faculdade de discernimento, fazendo com que ficassem tão puídas quanto os tecidos que revestiam o seu estômago.

 

Os dois negavam a si próprios a única coisa de que ambos precisavam depois de tudo aquilo por que haviam passado: um ao outro.

 

Era uma tristeza ver o que as pessoas eram capazes de fazerem a si próprias, e àqueles que amavam, pensava Kate enquanto dava uma vista de olhos às páginas que continham pormenores de processos de vitimação que ela espalhara pela mesinha de café. Mais quatro vidas destruídas irremediavelmente antes mesmo de essas vidas se terem cruzado com o Cremador. Cinco, se contasse com Angie. Arruinadas porque haviam tido uma grande carência de amor, tendo encontrado apenas uma réplica ordinária e distorcida desse sentimento. Porque quiseram coisas que se encontravam fora do seu alcance. Porque lhes parecera que seria mais fácil contentarem-se com menos do que se se esforçassem por conseguir mais. Porque tinham acreditado não serem merecedoras de nada que fosse melhor. Porque as pessoas que as haviam rodeado também não acreditavam que merecessem melhor, embora devessem ter sentido a obrigação de as incentivar. Porque eram mulheres e, na sociedade norte-americana, estas eram automaticamente alvo de tudo e mais alguma coisa.

 

Todas essas razões davam origem a uma vítima.

 

Não havia ninguém que não fosse vítima de qualquer coisa. A diferença que se verificava entre as pessoas era aquilo que faziam para mudar as coisas sucumbir ou elevarem-se acima da adversidade, seguindo em frente. As mulheres que figuravam nas fotografias que Kate tinha defronte de si não voltariam a poder fazer essa escolha.

 

Kate inclinou-se sobre a mesa de café, passando uma vista de olhos pelos relatórios. Telefonara para o escritório informando que tiraria um dia de férias. Disseram-lhe que Rob também estava ausente, e as especulações que corriam pelos serviços era que tinham andado à tareia um com o outro e nenhum queria que os colegas vissem as nódoas negras. Kate disse a si mesma que o mais provável era Rob ter ficado a trabalhar na participação por escrito que arquivaria no seu cadastro profissional.

 

Pelo menos, via-se livre dele durante todo o dia. O que teria sido magnífico não fossem as fotografias que era obrigada a ver de mulheres carbonizadas e mutiladas, e se não fossem todas as emoções e realidades deprimentes que aquelas fotografias evocavam.

 

Não havia ninguém que não fosse vítima de qualquer coisa.

 

Aquele grupo representava como que uma lista de lavandaria bastante deprimente. Prostituição, estupefacientes, álcool, agressões, violações, incesto este último, caso o que haviam dito a Kovac em relação a Jillian Bondurant correspondesse à verdade. Vítimas de crimes, vítimas da maneira como haviam sido criadas.

 

Vista à distância, Jillian Bondurant daria a impressão de ter sido o factor anómalo porque não se entregava à prostituição, não estando envolvida em nenhuma actividade de natureza sexual, mas na perspectiva do seu perfil psicológico, ela não se encontrava assim tão distanciada de Lila White ou de Fawn Pierce. Sentimentos confusos e em conflito acerca da sua sexualidade e sobre os homens. Um amor-próprio muito reduzido. Carências emocionais. Aparentemente, pareceria que ela não teria tido a vida difícil de uma prostituta que se oferecesse pelas ruas da cidade, uma vez que não era tão vulnerável ao mesmo tipo de crime e violência aberta. No entanto, não havia nada de fácil no sofrimento em silêncio, ocultando a dor e as lesões psicológicas para não desacreditar a família.

 

Quinn dissera que existiam dúvidas consideráveis quanto à possível morte de Jillian, mas isso não significava que ela não fosse uma vítima. Na hipótese de ser cúmplice de Joe «Fumacento», seria tão-somente uma vítima de outra espécie. O próprio Cremador, em tempos, também fora uma vítima. A vitimação de uma pessoa aquando da sua infância era uma das muitas componentes que integravam a formação de um assassino em série.

 

Todos eram vítimas de qualquer coisa.

 

Kate concentrou-se nos apontamentos que ela própria fizera com respeito a Angie. Escassos, em grande parte, apenas palpites, notas que ela baseara no que aprendera ao longo dos anos em que se dedicara ao estudo das pessoas, tentando descobrir o que formava as suas mentes e personalidades. Os abusos haviam formado Angie DiMarco. Muito plausivelmente, desde uma idade bastante precoce. A jovem sempre esperara o pior de toda a gente, desafiando as pessoas de modo a que lhe mostrassem precisamente essa faceta, comprovando assim que ela tinha razão. O que, inquestionavelmente, acontecera em inúmeras ocasiões, porque o tipo de pessoas que viviam no mundo de Angie tinham tendência a estar muito aquém das expectativas. Um tipo de indivíduos em que Angie se incluía.

 

Esperara sempre que as pessoas não gostassem de si, que não confiassem em si, que a enganassem, que se utilizassem dela, não tendo feito absolutamente nada para que isso não viesse a concretizar-se. Aquele caso não constituíra excepção. Tudo o que Sabin e a Polícia queriam era servir-se dela e Kate fora a ferramenta das duas partes. O desaparecimento de Angie, para eles, fora um grande inconveniente e não uma tragédia. Não tivesse sido o seu estatuto de testemunha, ninguém à face da Terra teria oferecido uma recompensa ou mostrado a sua fotografia na televisão, perguntando: «Alguém viu esta rapariga?» Mas, mesmo assim, a Polícia não estava a fazer um esforço para além das suas possibilidades com vista a descobrir o seu paradeiro. Todas as energias do grupo de trabalho se concentravam em encontrar um suspeito, e não uma testemunha que se encontrasse ausente em parte incerta.

 

Kate perguntava a si mesma se Angie teria visto essas imagens nos noticiários televisivos. Teria gostado da notoriedade de que era objecto, da atenção. No seu íntimo, até teria sido capaz de fingir acreditar que havia alguém que se interessava por ela.

 

«Por que motivo é que você haveria de se importar com o que me possa acontecer!», perguntara a rapariga numa ocasião em que ambas haviam estado no corredor que dava para o gabinete de Kate.

 

«Porque mais ninguém se importa.»

 

«E a verdade é que não me preocupei o suficiente», pensou Kate sentindo um peso no coração. Receara envolver-se de mais. Tal como se sentira receosa em deixar que John voltasse a entrar na sua vida. Atemorizara-se perante emoções tão profundas. Com medo do sofrimento que esse tipo de sentimentos podia trazer consigo.

 

Que maneira de viver tão patética. Não... isso nem sequer era viver, não passava de uma mera existência vegetativa.

 

A rapariga continuaria viva?, perguntava-se Kate levantando-se do sofá e começando a andar de um lado para o outro. Estaria ela morta? Teria sido sequestrada? Ou teria abandonado a casa de sua livre vontade?

 

«Estarei eu a ser irrealista pensando que ainda resta alguma dúvida quanto a isto?»

 

Vira o sangue com os seus próprios olhos. Demasiado abundante para que houvesse uma explicação satisfatória.

 

Mas como é que Joe «Fumacento» teria tido conhecimento do paradeiro da rapariga? Quais seriam as probabilidades de ele a poder ter visto nas instalações da polícia, tendo-a seguido até à Casa Phoenix? Muito escassas. O que significava que ele devia ter sabido por outro meio. O que, a ser verdade, queria dizer que conhecia alguém que estava por dentro das investigações... ou que conhecia Angie.

 

Quem é que tinha tido conhecimento do local onde Angie fora alojada? Sabin, Rob, os membros do grupo de trabalho, uns dois agentes de polícia, os Urskine, o advogado de Peter Bondurant e, consequentemente, o próprio Bondurant.

 

Os Urskine tinham conhecido a primeira vítima e, por interposta pessoa, era possível que viessem a ser relacionados com a segunda. Todavia, não conheciam Jillian Bondurant, mas a relação que se estabelecera entre ela e os outros crimes havia propiciado a Toni Urskine uma plataforma para se bater pela sua causa.

 

Gregg estivera na casa na quarta-feira à noite, na altura em que Kate deixara Angie. Apenas Gregg e Rita Renner, a qual, ao que tudo indicava, era uma marioneta nas mãos dos Urskine. Rita Renner que fora amiga de Fawn Pierce.

 

Havia anos que Kate conhecia os Urskine. Embora Toni fosse capaz de levar alguém à loucura de matar, não conseguia imaginar o casal a praticar esse «passatempo» com as suas próprias mãos. Mas, por outro lado, nunca ninguém em Toronto tivera a menor suspeita em relação aos assassinos Ken e Barbie, um casal que cometera assassínios de tal modo hediondos que os polícias mais experimentados se tinham ido abaixo chorando no banco das testemunhas aquando do julgamento.

 

Que pensamento tão sinistro a hipótese de que os Urskine talvez acolhessem mulheres, apresentando uma fachada de bondade e interesse humano unicamente com a finalidade de porem em prática uma caçada ao ser humano com um sadismo levado ao extremo. Mas com certeza que não seriam estúpidos ao ponto de abaterem a sua própria clientela. Automaticamente, seriam considerados suspeitos. E se o homem que Angie vira no parque nessa noite fosse Gregg Urskine, então, tê-lo-ia reconhecido quando chegara à Casa Phoenix, não seria verdade?

 

Kate começou a pensar na descrição muito vaga que a rapariga dera de Joe «Fumacento», a qual originara o esboço de um retrato-robô sem quaisquer características de realce, esforçando-se por ver algum sentido em tudo aquilo. Ter-se-ia ela mostrado tão relutante, e tão vaga, porque estava assustada, tal como Kate tinha desconfiado? Ou porque de acordo com as palavras de Angie estava muito escuro, ele usava um capucho e porque tudo acontecera muito depressa? Ou seriam os seus motivos derivados de outra razão qualquer?

 

O grupo de trabalho encontrara um suspeito que achavam ser muito promissor, o que Kate sabia. O mais certo era Quinn estar a interrogá-lo naquele preciso momento. O zelador da casa no complexo residencial onde Jillian vivia na cidade. Tanto quanto se sabia, o homem não estava directamente ligado ao caso, mas ela supunha que ele talvez tivesse conhecido Angie, caso esta alguma vez tivesse andado à procura de clientes nas proximidades do Centro Target, onde ele trabalhava como segurança.

 

Contudo, não fazia o minimo sentido que Angie tivesse qualquer relação com o assassino. Se ela o conhecesse, e quisesse que fosse apanhado pela Polícia, não teria hesitado em denunciá-lo. Mas, caso o conhecesse e não quisesse que ele fosse apanhado, teria feito uma descrição pormenorizada de um fantasma a que a Polícia começaria a dar caça.

 

No entanto, na hipótese de não ter visto nada de nada nessa noite no parque, o que é que a teria levado a dizer o contrário? Para poder passar a ter três refeições completas por dia e uma cama onde dormir? Para ser alvo das atenções? Se fosse esse o caso, teria feito muito mais sentido que tivesse cooperado, ao invés de se ter mostrado tão relutante.

 

Tudo em relação àquela miúda era um verdadeiro mistério dentro de um quebra-cabeças, que por sua vez estava envolto em enigma.

 

Motivo por que me recuso a trabalhar com miúdos

 

Mas aquela era ou fora da sua responsabilidade, pelo que havia de descobrir a verdade sobre o que lhe acontecera ou morreria a tentar.

 

Uma escolha bastante infeliz de palavras, Kate resmungou, admoestando-se a si mesma enquanto subia as escadas até ao andar de cima para mudar de roupa. Vinte minutos depois, já Kate saía pela porta das traseiras. Durante a noite tinham caído mais uns dois centímetros de neve, cobrindo a paisagem com um manto muito fino e branco que se estendia até aos degraus... onde um par de botas deixara algumas pegadas.

 

Naquela manhã, Quinn saíra pela porta da frente, entrando num táxi que estivera à sua espera. Em qualquer dos casos, aquelas pegadas eram demasiado pequenas para serem dele. Tinham mais o tamanho dos pés de Kate, apesar de esse pormenor não determinar obrigatoriamente o sexo da pessoa que as deixara.

 

Tomando a precaução de não as pisar, Kate seguiu as pegadas pelos degraus abaixo até ao jardim. O rasto passava pelo fundo da garagem continuando pelo lado mais afastado. percorrendo o caminho estreito entre a vivenda e a vedação acinzentada do seu vizinho, seguindo até à entrada lateral da garagem. Todas as portas estavam fechadas.

 

O corpo de Kate foi percorrido por um arrepio de frio. Pensou nos acontecimentos da noite anterior, em que alguém defecara no interior da garagem. Pensou na lâmpada que se fundira subitamente, revivendo o que sentira na quarta-feira à noite, em que tivera a sensação de ser observada por alguém, enquanto se dirigira da garagem até sua casa.

 

Olhou em redor, abarcando o beco deserto num só olhar. A maior parte dos seus vizinhos tinha vedações que ocultavam o piso térreo das suas vivendas. Não avistou ninguém às janelas do primeiro andar. Naquela área residia um grande número de pessoas que trabalhavam em escritórios, a maioria das quais saía para o trabalho por volta das sete e meia.

 

Kate retrocedeu afastando-se da garagem; sentia o coração a bater-lhe desordenadamente enquanto procurava o telemóvel na mala de mão. Seguindo em direcção à casa, tirou o telefone, abriu a metade inferior e carregou no botão que o ligava. Não sucedeu nada. Durante a noite ficara sem carga. As desvantagens das conveniências modernas.

 

Mantinha os olhos presos na garagem, parecendo-lhe ter visto um movimento através da janela lateral. Um ladrão de automóveis? Um violador? Um cliente descontente? O Cremador?

 

Voltou a guardar o telemóvel dentro da mala pegando nas chaves de casa. Entrou e fechou a porta à chave; só então é que voltou a respirar com normalidade.

 

Preciso tanto disto como da peste resmungou entre dentes dirigindo-se para a cozinha. Pousou a mala em cima da mesa e começou a despir o casaco comprido quando o som se registou no seu cérebro. O miado roufenho e feroz de um gato. Thor colocara-se debaixo da mesa rosnando com as orelhas achatadas.

 

Os pêlos finos na parte de trás do pescoço de Kate ficaram eriçados, o que se devia a uma sensação nítida de estar a ser observada.

 

As opções passaram-lhe velozmente pelo pensamento. Não fazia a mais pequena ideia da proximidade a que a pessoa atrás de si poderia estar, ou a que distância se encontraria da porta. O telefone de parede ficava no extremo oposto... demasiado afastado.

 

Abrindo casualmente a mala de mão, pelo canto do olho procurou uma arma. Mas ela não costumava andar armada. O pequeno aerossol que continha uma substância irritante, e que trouxera sempre consigo durante algum tempo, tinha acabado e deitara-o fora. Encontrou um frasco de plástico contendo Aleve, um pacote de lenços de papel e o salto do sapato que estragara na segunda-feira. Foi um pouco mais ao fundo da mala e descobriu uma lima de metal para as unhas; encostou-a à palma da mão e sub-repticiamente meteu-a dentro da algibeira do casaco. Kate revia mentalmente os sítios por onde poderia escapar. Virar-se-ia, confrontaria o intruso e apressar-se-ia a fugir quer pela direita quer pela esquerda. Estabelecido o plano, contou até cinco e deu meia volta.

 

A cozinha estava vazia. Mas enquadrada pela ombreira da porta que dava para a sala de jantar, sentada numa das cadeiras de carvalho de costas direitas de Kate, estava Angie DiMarco.

 

Ele confessou ter umas cuecas que pertenciam à Jillian Bondurant e você pensa que ele não é o nosso homem? perguntou Kovac, incrédulo.

 

O seu mau humor tinha um efeito directo na sua maneira de conduzir, o que não passou despercebido a Quinn. O Caprice seguia a grande velocidade pela Estrada 94, balançando como se fosse um automóvel de brincar. Quinn firmava os pés no chão, sabendo de antemão que as pernas se quebrariam que nem palitos em caso de acidente. Era evidente que, provavelmente, isso não faria diferença nenhuma porque acabaria por morrer. Aquele carro a cair de podre amarfanhar-se-ia como se fosse uma lata de cerveja vazia.

 

Só estou a dizer que há algumas coisas que não me agradam disse Quinn. O Vanlees não me dá a impressão de ser um jogador de equipa. Falta-lhe a arrogância necessária para ser um chefe de matilha, e o macho sádico é virtualmente sempre o parceiro dominador num casal que mata. A mulher mostra-se subserviente perante ele, uma vítima que se considera com sorte por não ser uma das mulheres que ele assassina.

 

Portanto, desta feita a situação reverteu-se insistiu Kovac. É a mulher quem manda no espectáculo. E porque não? A Moss e a Liska dizem que a mulher é que mandava lá em casa.

 

O que provavelmente também acontecia com a mãe. E sim, é frequente que exista uma mulher dominadora ou manipuladora ou que, de outro modo, exerça influência no passado ou no presente de um homem sexualmente sádico, a qual ele mata simbolicamente sempre que assassina uma das suas vítimas. Tudo isto se enquadra, embora existam lacunas por preencher. Quem me dera poder dizer que quando olho para ele sinto que está envolvido nestes assassínios, mas a verdade é que não sinto esse impacto semelhante ao de um relâmpago.

 

Também era verdade que não devia esquecer-se de que essa sensação o tinha abandonado, mais ou menos, nos anos mais recentes. A dúvida tornara-se mais a regra do que a excepção, portanto, o que diabo é que ele continuava a saber? Por que razão devia confiar nos seus instintos face àquela situação?

 

Kovac guinou o carro atravessando três faixas de rodagem para chegar à saída por onde queria seguir.

 

Pois bem, posso dizer-lhe que os poderes instituídos gostam deste fulano. Mas você está para aí a falar de relâmpagos. Por causa do Vanlees, eles estão todos a sentir a porra de uma tempestade nas calças. Ele tem um passado pouco abonatório, ajusta-se ao perfil do criminoso. Existe uma relação que o liga à Jillian, tem acesso a prostitutas e, acima de tudo, não é o Peter Bondurant. Se eles conseguirem arranjar maneira de o indiciarem, fá-lo-ão sem a menor relutância, o que certamente acontecerá a tempo da conferência de imprensa marcada para hoje.

 

E caso Vanlees não fosse o indivíduo que procuravam, correriam o risco de forçar o verdadeiro assassino a pôr-se à prova uma vez mais. Este pensamento fez com que Quinn se sentisse transtornado.

 

O Vanlees diz que o Peter esteve em casa da Jillian antes do amanhecer, na manhã de domingo, tendo mandado o Noble até lá na segunda-feira seguinte com a incumbência de lhe pagar para que ficasse de boca fechada adiantou Quinn suscitando um olhar assustadoramente longo da parte de Kovac. O Caprice começou a aproximar-se perigosamente de um Escort corroído pela ferrugem, que seguia na faixa seguinte. Jesus, importa-se de olhar para a estrada! disse Quinn com brusquidão. Como é que eles concedem as cartas de condução neste estado? Guardam-nas em tampas de garrafas ou qualquer coisa no género?

 

Nas argolas de abertura das latas de cerveja respondeu Kovac voltando a concentrar-se no trânsito. Isso quer dizer que foi o Bondurant quem limpou e arrumou a casa da Jillian e que também apagou as mensagens gravadas no atendedor de chamadas.

 

Eu diria que sim... isto é, se o Vanlees estiver a dizer a verdade. E estou em crer que é uma aposta segura assumir que o Peter é a razão por que vocês não conseguiram encontrar nenhuma das composições musicais da autoria da Jillian. É possível que ele as tenha sonegado porque revelavam qualquer coisa acerca do seu relacionamento com a filha.

 

Os abusos sexuais alvitrou Kovac.

 

Muito possivelmente.

 

Grande filho da puta! resmungou Kovac. No domingo de manhã. O Joe «Fumacento» só pegou fogo ao corpo à meia-noite. Por que motivo é que o Bondurant teria ido a casa dela na manhã de domingo, dando-se ao trabalho de limpar e arrumar a casa, levar as pautas de música consigo, se não soubesse desde logo que ela estava morta?

 

E por que motivo se deu ao trabalho de limpar e arrumar a casa? perguntou Quinn. Essa vivenda pertence-lhe, embora fosse a filha quem vivia lá. Se as suas impressões digitais fossem encontradas, isso não teria grande significado.

 

A menos que estivessem ensanguentadas replicou Kovac.

 

Quinn lançou-lhe um olhar de poucos amigos, enquanto se agarrava ao painel de instrumentos quando um reboque se meteu repentinamente à frente deles, obrigando Kovac a meter travões a fundo.

 

Limite-se a conduzir, Kovak. Caso contrário, não viveremos o tempo suficiente para deslindar este mistério.

 

Face aos rumores de que havia um suspeito sob detenção, o circo dos meios de comunicação social tinham voltado a assentar arraiais em frente da residência de Peter Bondurant. Os técnicos de vídeo percorriam a rua, filmando o exterior da mansão de todos os ângulos, enquanto os especialistas em áudio verificavam a qualidade do som. Quinn perguntou a si mesmo se teria havido alguém que se tivesse dado ao incómodo de ligar às famílias de Lila White e Fawn Pierce.

 

De serviço aos portões, viam-se dois seguranças da Paragon munidos de radiotransmissores portáteis. Quinn apresentou a sua identificação e, com um gesto, os seguranças indicaram-lhe que passasse, permitindo-lhe o acesso à casa. O Lincoln preto de Edwyn Noble encontrava-se estacionado no caminho particular ao lado de um Mercedes sedan azul metalizado. Kovac estacionou atrás do Lincoln, tão perto do outro que os pára-choques dos dois quase se tocavam.

 

Prometa-me que vai portar-se como deve ser disse Quinn a Kovac com um olhar que não augurava nada de bom caso ele agisse em contrário.

 

Kovac fingiu-se inocente. Havia sido relegado para o papel de motorista, não devendo sair do automóvel. Em princípio, não devia atravessar-se no ângulo de visão de Peter Bondurant. Como medida de precaução suplementar, Quinn guardara para si mesmo a revelação que Gil Vanlees lhe fizera. A última coisa de que precisava era ter Kovac a intrometer-se à força naquele assunto.

 

Leve o tempo que for preciso, chefe. Eu fico aqui sossegadinho a ler o jornal prometeu Kovac pegando num exemplar do Star Tribune de entre o amontoado de coisas inúteis que acumulara no assento. Gil Vanlees ocupava metade da folha de rosto era a história principal, a caixa lateral, junto de uma fotografia que não lhe fazia justiça, uma vez que mostrava bastantes parecenças com Brutus, o adversário de Popeye. Os olhos de Kovac não largavam a casa, perscrutando as janelas.

 

A porta foi aberta por Noble que, de cenho franzido, olhava para um ponto atrás de Quinn, mais concretamente, para o Caprice onde Kovac tinha o jornal aberto à sua frente. Pegava-lhe de uma maneira que lhe permitia fazer um gesto obsceno com o dedo médio a Edwyn Noble.

 

Não se preocupe disse Quinn. Vocês conseguiram fazer com que o melhor polícia no caso fosse repreendido e relegado para o lugar de motorista.

 

Ouvimos dizer que o Vanlees foi detido pela polícia retorquiu o advogado quando já se encontravam no vestíbulo, ignorando Kovac como se este fosse um tópico que não valia a pena discutir.

 

Foi preso por conduzir sob a influência do álcool. Permanecerá sob custódia policial enquanto for possível detê-lo porque, de momento, a polícia não possui nenhuma prova que o aponte como sendo o Cremador.

 

Mas ele tinha... uma coisa da Jillian adiantou Noble com o pouco à-vontade de um puritano.

 

Que ele afirma ter-lhe sido dado pela Jillian.

 

Isso é absolutamente ridículo.

 

A verdade é que ele me contou uma história deveras interessante. E a propósito, você encontra-se incluído nela por ter pago um suborno.

 

Pelos olhos do advogado passou uma expressão momentânea de temor. Durou apenas uns brevíssimos instantes

 

Isso é um absurdo. Ele é um mentiroso.

 

Não se pode dizer que ele tenha o monopólio nesse ramo retorquiu Quinn. Quero falar com o Peter. Preciso de lhe fazer umas perguntas acerca do estado de espírito da Jillian na noite em questão, e também de uma maneira geral nos outros dias.

 

O advogado lançou um olhar de nervosismo às escadas

 

O Peter não quer falar com ninguém esta manhã. Não está a sentir-se bem.

 

Tenho a certeza de que falará comigo. Sem mais palavras, Quinn dirigiu-se para as escadas, como se soubesse exactamente para onde deveria ir. Noble apressou-se a segui-lo.

 

Não me parece que o senhor esteja a compreender, agente Quinn. Este assunto foi de mais para os nervos dele

 

Está a tentar dizer-me o quê? Que ele está bêbedo? Drogado? Num estado catatónico?

 

O doutor Lucas Brandt está com ele replicou Noble afivelando uma expressão obstinada quando Quinn o olhou por cima do ombro.

 

Melhor ainda. Poderei matar dois coelhos de uma só cajadada. Chegado ao cimo das escadas, afastou-se para o lado e com um gesto indicou a Noble que lhe mostrasse o caminho.

 

A antecâmara que dava acesso ao quarto de Peter Bondurant poderia ser considerada a vitrina de um decorador que, possivelmente, seria mais conhecedor da casa do que do próprio Peter. Era uma sala que se adequaria a um nobre inglês do século xvi, toda em mogno e brocados, decorada com quadros a óleo que representavam cenas de caça em ricas molduras douradas. As poltronas de orelhas, estofadas a damasco em tons de dourado, tinham o aspecto de nunca terem sido utilizadas por ninguém.

 

Noble bateu suavemente à porta do quarto entrando imediatamente e deixando Quinn à espera. Momentos mais tarde, Noble e Brandt saíram juntos. Brandt exibia o seu semblante profissional uma expressão estudada, cuidadosamente neutra. Talvez a fisionomia que ele apresentava em tribunal ao testemunhar a favor de quem quer que fosse que lhe pagasse mais nesse dia.

 

Agente Quinn começou ele a dizer num tom de voz baixa, como se costumava falar na enfermaria de um hospital, tanto quanto sei, a polícia já tem um suspeito.

 

Possivelmente. Tenho uma ou duas questões que gostaria de discutir com o Peter.

 

Esta manhã o Peter está fora de si, não é a mesma pessoa.

 

Realmente?! exclamou Quinn arqueando os sobrolhos. Então, quem é ele?

 

Estou em crer que o sargento Kovac tem tido uma má influência em si replicou Noble de cenho carregado.

 

Esta não é a ocasião mais apropriada para grandes conversas.

 

Tal como não é a ocasião mais apropriada para o senhor estar a brincar comigo, doutor Noble atalhou Quinn. Voltou-se para Brandt. Preciso de falar com ele a respeito da Jillian. Se pretender estar presente, por mim não vejo nenhum inconveniente. Na verdade, até seria bom se quisesse dar-nos a sua opinião quanto ao estado mental e emocional dela nos últimos tempos.

 

Mas já discutimos esse assunto alegou o psiquiatra.

 

Quinn inclinou a cabeça, mostrando um acanhamento que servia para dissimular a cólera.

 

Óptimo. Sendo assim, não diga nada.

 

Começou a encaminhar-se para a porta com uma determinação indicadora de que não hesitaria em derrubar Brandt, passando por cima dele, se tal fosse necessário.

 

Ele está sob o efeito de tranquilizantes informou Brandt com a firmeza de quem tencionava não arredar pé.

 

Responderei às suas perguntas o melhor que me for possível.

 

Quinn observava-o por entre olhos semicerrados, para a seguir fitar o advogado com um olhar inquiridor.

 

Satisfaçam-me a curiosidade pediu Quinn. Estão a protegê-lo para bem dele e para vosso próprio bem.’

 

Nenhum dos dois homens pestanejou.

 

Não interessa... acrescentou Quinn com um abanar de cabeça pelo menos no que me diz respeito. A única coisa que me interessa é descobrir toda a verdade.

 

Narrou a história que Vanlees lhe contara em relação ao episódio de ter espreitado pela janela.

 

Edwyn Noble rejeitou a história com todas as veras da sua alma em termos intelectuais, emocionais e físicos reiterando a sua opinião de que Vanlees era um mentiroso. Começou a andar de um lado para o outro, abanando a cabeça numa grande agitação, negando tudo o que Quinn lhe dissera, excepção feita à possibilidade de Vanlees ter espreitado pela janela da casa de Jillian. Brandt, por seu lado, mantinha-se de costas para a porta do quarto, mostrando uma expressão abatida no olhar e com as mãos enclavinhadas à sua frente, ouvindo atentamente.

 

O que quero saber, doutor Brandt, é se a Jillian era pessoa para ter esse género de comportamento ou não.

 

E o senhor dispunha-se a contar essa história ao Peter, fazendo-lhe essa mesma pergunta, sobre a própria filha. não é verdade? perguntou Brandt mostrando-se indignado.

 

Não. Eu teria perguntado ao Peter uma coisa inteiramente diversa replicou Quinn brindando-o com um olhar de poucos amigos. Como por exemplo, o que é que ele estava a fazer em casa da Jillian às primeiras horas da manhã de domingo, que tenha valido a compra do silêncio de uma testemunha.

 

Mostrando-se afrontado, Noble arremessou a cabeça para trás, fazendo menção de abrir a boca.

 

Poupe-se, Edwyn aconselhou-o Quinn virando-se para Brandt.

 

Eu já lhe tinha dito que a Jillian tinha muitas emoções contraditórias, era uma rapariga confusa quanto à sua sexualidade devido à relação carnal que manteve com o padrasto.

 

Portanto, a resposta à minha pergunta é sim. Brandt remeteu-se ao silêncio. Quinn aguardava pacientemente.

 

Por vezes, ela tinha uma conduta pouco apropriada.

 

Digamos que promíscua contrapôs Quinn.

 

Eu não iria tão longe, não. Ela costumava... provocar reacções. Deliberadamente.

 

De modo manipulador alvitrou Quinn.

 

Sim concordou o psiquiatra.

 

Com crueldade?

 

Esta pergunta fez com que Brandt erguesse a cabeça, ficando a olhar para o agente especial.

 

O que é que o leva a fazer essa pergunta?

 

Porque se a Jillian não tiver morrido, doutor Brandt, então, só existe uma possibilidade lógica do que ela é: uma suspeita.

 

 

A miúda tinha o aspecto de quem tivesse acabado de sair do inferno, pensou Kate uma palidez de defunta, os olhos vidrados e raiados de sangue, os cabelos muito oleosos. Mas, pelo menos, estava viva; o alívio que Kate sentiu foi enorme. Não tinha de continuar a carregar com o peso da morte de Angie na sua consciência. Ainda que não aparentasse estar bem, a rapariga estava viva.

 

«E está sentada na minha cozinha.»

 

Angie, meu Deus... Tu pregaste-me um susto enorme!

 

disse Kate. Como é que conseguiste entrar? A porta estava fechada à chave. Como é que descobriste onde eu morava?

 

A rapariga não lhe deu resposta. Kate abeirou-se dela um pouco mais, tentando avaliar o seu estado de saúde. Tinha vários hematomas no rosto. Na boca de lábios carnudos, o inferior tinha um lanho onde o sangue já coagulara.

 

Ei... miúda, onde é que tens estado? insistiu Kate

 

As pessoas têm andado preocupadas por causa de ti.

- Vi o seu endereço num sobrescrito no seu gabinete

 

explicou a jovem, continuando a fitá-la atentamente, numa voz enrouquecida que não traía qualquer emoção.

 

Tens muito expediente replicou Kate aproximando-se. Se ao menos conseguíssemos utilizar os teus talentos para o bem da humanidade... Onde é que tens estado, Angie? Quem é que te magoou? Naquele momento, Kate já se aproximara da ombreira da porta. A rapariga não se tinha mexido na cadeira onde continuava sentada. Usava o mesmo par de calças de ganga que vestira desde o primeiro dia; agora tinham algumas manchas escuras na zona das coxas que pareciam ser de sangue, com o mesmo blusão de ganga bastante enxovalhado que, certamente, não a agasalharia convenientemente naquele tempo frio, por baixo vestia uma camisola encardida que Kate já lhe vira. À volta do pescoço, via-se um conjunto de vergões avermelhados de estrangulamento nódoas negras de cor púrpura, onde os dedos de alguém haviam exercido uma pressão suficiente para lhe cortar o oxigénio e o afluxo de sangue ao cérebro.

 

Já me fizeram pior replicou Angie com o assomo de um sorriso amargo que lhe contorceu os lábios.

 

Eu sei que sim, minha querida disse Kate com afecto. Só quando começou a agachar-se, para poder ver melhor os hematomas que ela tinha na garganta é que Kate reparou numa espécie de navalha que Angie tinha no colo, uma lâmina de barbear presa a um cabo estreito e grosso de metal cinzento. Em movimentos lentos, endireitou-se retrocedendo um pouco. Quem é que te fez isso? Por onde é que tens andado, Angie?

 

Na cave do Diabo respondeu a rapariga com ironia, como se achasse que aquilo era amargamente engraçado.

 

Angie, vou chamar uma ambulância que te leve ao hospital, de acordo? sugeriu Kate retrocedendo outro passo que a aproximou mais do telefone.

 

Não replicou Angie, que de súbito ficou com os olhos rasos de lágrimas. Não, não preciso de nenhuma ambulância acrescentou num quase estado de frenesim perante aquela perspectiva.

 

Houve alguém que te fez muito mal, miúda. Kate perguntava a si mesma onde é que essa pessoa estaria. Teria

Angie conseguido fugir a quem a sequestrara, indo para casa de Kate de sua livre vontade, ou teria sido levada por alguém? Estaria o seu sequestrador na sala contígua, à espera, observando tudo? Se conseguisse chegar ao telefone, poderia ligar o 112 e a polícia estaria em sua casa numa questão de alguns minutos.

 

Não, por favor implorou Angie. Não posso ficar aqui? Não posso ficar aqui consigo? Apenas durante algum tempo?

 

Minha querida, tu precisas de ser vista por um médico.

 

Não! Não! Não! replicou a rapariga sacudindo a cabeça. Os seus dedos envolveram o cabo daquela espécie de navalha. Pegou-lhe de maneira que a lâmina ficasse voltada contra a palma da mão esquerda.

 

O sangue começou a gotejar onde a ponta da lâmina tinha perfurado a pele.

 

O telefone tocou, quebrando o silêncio tenso que pairava no ar.

 

Não atenda! gritou Angie erguendo a mão e fazendo um golpe com a lâmina, milímetro a milímetro, abrindo a camada de pele à superfície; o sangue começou a escorrer da mão. Pode crer que me cortarei realmente ameaçou Angie. Sei como fazê-lo.

 

Caso estivesse a falar a sério, se a lâmina continuasse a descer por mais alguns centímetros até chegar ao pulso, o mais certo seria sangrar até ficar exangue antes que Kate terminasse o telefonema para o 112.

 

Entretanto, a campainha do telefone parou de tocar O atendedor de chamadas informou cortesmente a pessoa que telefonara que devia deixar uma mensagem. Teria sido Quinn?, perguntou-se Kate. Kovac, com alguma novidade? Ter-lhe-ia Rob ligado com a intenção de a despedir? Kate imaginava que ele seria capaz de deixar esse tipo de mensagem, tal como o patrão de Melanie Hessler fizera a esta

 

Por que razão queres cortar-te, Angie? perguntou Kate. Agora estás em segurança. Eu vou ajudar-te. Ajudar-te-ei a ultrapassar tudo isto. Tenciono ajudar-te a começar uma vida nova.

 

Você não me ajudou até agora.

 

Não me deste a oportunidade de o poder fazer.

 

Às vezes gosto de me cortar admitiu Angie baixando a cabeça, envergonhada. Há ocasiões em que preciso de fazer isto. Quando começo a sentir... Fico assustada. Mas se me cortar, essa sensação desaparece. É uma loucura, não acha? Ergueu a cabeça fitando Kate com um olhar que reflectia tal desespero que Kate sentiu um aperto no coração.

 

Kate levou o seu tempo para lhe responder. Já lera alguma matéria sobre raparigas que faziam o que Angie acabara de descrever, e, sim, o seu primeiro pensamento foi de que aquilo era uma loucura. Como é que uma pessoa poderia mutilar-se a si mesma, a menos que tivesse perdido o juízo?

 

Eu posso arranjar quem te ajude em termos terapêuticos, Angie disse Kate por fim. Há pessoas que podem ensinar-te a lidar com esses sentimentos sem que para isso tenhas de infligir mal a ti própria.

 

E o que é que essas pessoas sabem? perguntou Angie com um ar de desdém e um olhar que reflectia um desprezo infinito. O que é que eles sabem acerca de «lidar com» o que quer que seja? Não sabem merda nenhuma!

 

«Nem eu tão-pouco», pensou Kate. Deus do céu, porque não tinha ela telefonado para o escritório na segunda-feira dando parte de doente?

 

Ainda considerou a ideia de lhe tirar a navalha à força, mas de imediato a afastou. O potencial para que ocorresse uma tragédia era excessivo. Se fosse capaz de fazer com que Angie continuasse a falar, talvez acabasse por conseguir persuadi-la a largar o objecto cortante. Dispunham de todo o tempo do mundo... desde que estivessem sozinhas.

 

Angie, vieste até aqui sozinha?

 

Angie ficou a olhar fixamente para a lâmina, enquanto, com muita delicadeza, percorria com a ponta o contorno azulado da tatuagem junto do polegar, a letra «A» cortada por uma linha na horizontal na parte de cima da letra.

 

Vieste com alguém?

 

Eu ando sempre sozinha murmurou a rapariga.

 

O que é que aconteceu na outra noite, quando eu te deixei na Casa Phoenix? Estavas sozinha?

 

Não respondeu Angie espetando a ponta da lâmina nas gotículas de sangue que saíam da tatuagem sobre a bracelete de espinhos que lhe rodeava o pulso. Eu sabia que ele me queria. Ele mandou-me chamar.

 

Quem é que te queria? O Gregg Urskine?

 

O Anjo do Mal.

 

Que personagem é essa? perguntou Kate.

 

Eu estava no chuveiro - explicou a rapariga com um olhar vitrificado enquanto remontava ao passado. Eu estava a cortar-me. A observar o sangue a misturar-se com a água. E foi então que ele mandou chamar-me. Como se lhe tivesse cheirado a sangue ou qualquer coisa assim.

 

Quem? tentou Kate uma vez mais.

 

Ele não estava nada satisfeito continuou ela com uma expressão sinistra. Num contraste fantasmagórico, esboçou um pequeno sorriso matreiro que lhe contorceu os lábios. Ele estava furioso porque não obedeci às ordens.

 

Estou a ver que é uma história muito comprida atalhou Kate observando o sangue que gotejava da mão de Angie, caindo na carpete da sua sala de jantar. E que tal se nos sentássemos na outra sala? Posso acender a lareira. Para te aqueceres. O que é que te parece?

 

Kate só queria distraí-la, fazer com que se esquecesse da navalha, de forma a que não visse aquele telefone, embora ficasse próxima de outro. De uma maneira ou de outra, Kate tinha a esperança de conseguir fazer um telefonema. O telefone-fax do escritório tinha o número de emergência previamente registado. Se conseguisse que Angie se sentasse no sofá, poderia instalar-se despercebidamente em cima da secretária, tirar o auscultador do descanso e premir o botão. Talvez desse resultado. Quanto mais não fosse, era preferível a continuar onde estava, vendo a rapariga a sangrar mesmo defronte de si.

 

Tenho os pés frios disse Angie.

 

Vamos para a outra sala onde podes descalçar essas botas todas molhadas.

 

A rapariga fitou-a com um olhar semicerrado, erguendo a mão ensanguentada que levou à boca e começando a lamber um dos ferimentos.

 

Vá você à minha frente.

 

À frente de alguém num estado psicótico, munido de uma navalha, indo ao encontro, muito possivelmente, de um louco qualquer, um assassino em série, que estaria à sua espera. Magnífico. Kate começou a dirigir-se para o pequeno escritório, caminhando quase de lado, tentando observar Angie, e simultaneamente o que tinha pela frente, ao mesmo tempo que se esforçava por continuar a manter o diálogo. Angie não largava a navalha, pronta para a usar a qualquer instante. Caminhava um pouco curvada mantendo o outro braço à largura do estômago, fazendo pressão, sendo óbvio que estava com dores.

 

O Gregg Urskine fez-te algum mal, Angie? Eu vi o sangue na casa de banho.

 

Eu estava na «Zona» replicou Angie com um pestanejar de confusão.

 

Não entendo o que queres dizer com isso.

 

Não, claro que não entende.

 

Kate continuou à frente dela dirigindo-se para o escritório.

 

Senta-te. Com um gesto, imdicou-lhe o sofá onde ela e Quinn tinham feito amor havia poucas horas. Vou acender a lareira. Ainda pensou em usar o atiçador de brasas como arma para logo pôr a ideia de parte. Se conseguisse apoderar-se da navalha que Angie tinha na mão, recorrendo a uma artimanha qualquer, isso seria preferível a um acto de violência, por várias razões, entre as quais o estado de espírito de Angie não seria a menos importante.

 

Esta aninhou-se a um canto do sofá, começando a percorrer com a lâmina da navalha o contorno das manchas de sangue seco que tinha nas calças de ganga.

 

Quem é que tentou estrangular-te, Angie? perguntou Kate abeirando-se da secretária. Reparou que entretanto tinha chegado um fax. O toque do telefone a que não respondera.

 

Alguém que é amigo de um amigo.

 

Precisas de encontrar amigos melhores do que esses redarguiu Kate encostando a anca ao tampo da mesa e mantendo os olhos presos na máquina de fax... a cópia de um artigo publicado num jornal de Milwaukee. E conhecias essa pessoa?

 

Claro que sim murmurou a rapariga olhando com fixidez para as chamas na lareira. E você também a conhece.

 

Kate mal conseguiu ouvi-la. Tinha toda a sua atenção centrada no fax que a secretária dos serviços jurídicos lhe enviara juntamente com uma pequena missiva, em que dizia: Pensei que talvez quisesse ver isto imediatamente. O artigo tinha data de 21 de Janeiro de 1996. No cabeçalho, lia-se: Irmãs ilibadas da Acusação de Terem Morto os Pais Pegando-lhes Fogo Junto do artigo haviam sido reproduzidas duas fotografias de fraca qualidade que o envio por fax adulterara ainda mais. Mas, mesmo assim, Kate reconheceu a rapariga na fotografia à direita. Angie DiMarco.

 

Peter estava sentado no seu quarto numa cadeira junto da janela; tinha o saco preto sobre o colo, mantendo os braços à volta dele como se o abraçasse. Usava as mesmas roupas que vestira na noite anterior um par de calças pretas e uma camisola. As calças estavam sujas. Tinha vomitado na camisola. Sentia o cheiro a azedo que vinha do vomitado, misturado com o suor e medo, envolvendo-o como se fosse uma nuvem nauseabunda, todavia, não estava interessado em mudar de roupa nem em tomar um duche

 

Calculava que devia estar muito pálido. Sentia-se como se todo o sangue do seu corpo houvesse sido drenado. O que passara a fluir-lhe pelas veias era o ácido da culpa que o queimava e continuava a queimar sem nunca parar. Imaginava que talvez o corroesse de dentro para fora, transformando todos os seus ossos em pó

 

Edwyn viera imformá-lo de que o zelador, Vanlees, tinha sido detido pelas forças policiais, e dera com ele no salão de música a desfazer o pequeno piano de cauda com uma alavanca de remoção de pneus. Edwyn chamara Brandt de imediato, que chegara com uma maleta preta cheia de agulhas e seringas.

 

Todavia, Peter não permitira que lhe administrassem qualquer medicamento. Não queria sentir-se entorpecido. Já tinha passado um período da sua vida, demasiado longo. num grande torpor, ignorando a vida das pessoas que o rodeavam. Se se tivesse ousado sentir qualquer coisa mais cedo, talvez a situação não chegasse àquele ponto. Naquele momento, só lhe restava sentir a dor excruciante do remorso

 

Olhando pela janela, observara Kovac quando este encostara a dianteira do seu automóvel ao pára-choques do Lincoln de Edwyn, para depois fazer marcha atrás invertendo o sentido. Parte de si experimentou alívio ao ver que John Quinn se ia embora Mas a outra parte só sentia desespero

 

Ouvira a conversa travada do outro lado da porta. Noble e Brandt a arranjarem desculpas que justificassem a sua impossibilidade de falar com o agente especial, mentindo por causa dele. Também ouvira Quinn a fazer a pergunta definitiva. Estariam eles a protegê-lo pelo seu bem-estar ou pelo bem-estar deles próprios?

 

O tempo passava e ele continuava sentado na mesma cadeira, meditando no passado, revivendo-o desde o nascimento de Jilhan, pensando em todos os erros devastadores que haviam sido cometidos desde então até ao presente. Olhava fixamente através da janela sem ver as carrinhas dos jornalistas, os repórteres que aguardavam que ele aparecesse à porta de sua casa, querendo ouvir o que teria a dizer-lhes. Apertou o saco mais contra si, embalando-se de um lado para o outro, chegando à única conclusão que na sua óptica fazia algum sentido.

 

Em seguida viu as horas no seu relógio de pulso; ficou à espera.

 

Kate não despregava o olhar do fax, sentindo um calafrio que lhe percorreu o corpo de cima a baixo. O seu cérebro destacava algumas palavras: incinerados, mortos, mãe, padrasto, álcool, drogas, famílias de acolhimento, cadastro de delinquência juvenil, historial de abusos sexuais.

 

O que é que se passa consigo? perguntou Angie.

 

Nada respondeu Kate automaticamente, desviando a custo o olhar do artigo. Senti-me apenas um pouco tonta por uns momentos.

 

Pensei que talvez você estivesse na Zona. Sorria qual duende travesso. Não acha que teria muita graça?

 

Não sei. Primeiro tens de me dizer como é essa «Zona».

 

O sorriso desapareceu imediatamente.

 

É escura e vazia e engole-nos inteiros, sentimo-nos como se nunca mais conseguíssemos sair de lá e nunca ninguém nos vai buscar respondeu Angie com outro olhar sem vida. Não era um olhar vazio, apenas sem vida, de medo, cheio de sofrimento... o que significava que dentro dela ainda existia alguma coisa que podia ser salva. O que quer que lhe tivesse acontecido durante a sua meninice, que culminara na morte suspeita dos pais, havia um resquício de humanidade que conseguira resistir às adversidades. Tendo mesmo sido capaz de sobreviver aos últimos dias passados na «cave do Diabo», o que quer que isso fosse. Mas por vezes também é um lugar seguro acrescentou Angie em voz baixa sem desviar o olhar dos fios de sangue que lhe corriam pela mão esquerda, tanto pelas costas como pela palma e pelo pulso. Posso esconder-me lá... se me atrever a isso.

 

Angie? Deixas-me ir buscar um pano molhado para enrolares à volta da mão? perguntou Kate.

 

Não gosta de ver o meu sangue? Eu gosto.

 

Prefiro não o ver a pingar para cima da minha alcatifa replicou Kate no seu tom habitual onde se insinuava alguma ironia, mais para acicatar Angie do que por estar realmente preocupada com o estado da alcatifa.

 

Angie pôs-se a observar a palma da mão durante alguns momentos, após o que a levou ao rosto, esfregando o sangue na face numa carícia cheia de suavidade.

 

Devagar, Kate afastou-se da sua mesa de trabalho dirigindo-se para a porta.

 

Vai deixar-me aqui sozinha? perguntou Angie erguendo o olhar para ela.

 

Não, minha querida, não vou deixar-te sozinha. Vou só buscar um pano molhado. E ligar para o cento e doze», pensou Kate dando mais um passo em direcção à porta, naquele momento receava deixar a rapariga sozinha, com medo do que ela pudesse fazer a si mesma.

 

Quando chegou ao vestíbulo ouviu a campainha da porta, imobilizando-se por uma fracção de segundos. Avistou um rosto através de um dos painéis altos de vidro que ladeavam a porta, uma cabeça de forma arredondada sobre um blusão acolchoado, que tentava espreitar através das cortinas de tecido fino. Rob.

 

Kate, sei que estás em casa disse ele, petulante, encostando a cabeça ao vidro. Estou a ver-te aí dentro.

 

O que é que estás a fazer aqui? perguntou Kate numa voz sussurrada e áspera, abrindo a porta de repente.

 

Disseram-me do escritório que não ias trabalhar. Precisamos de falar acerca deste...

 

Não sabes servir-te do telefone? começou ela a perguntar, mas conteve-se não dando continuidade à discussão que se avizinhava. Esta não é a melhor altura para...

 

Mas Rob mostrava uma tenacidade irredutível. Aproximou-se um pouco mais de Kate.

 

Kate, precisamos de conversar.

 

Esta cerrou os dentes impedindo a saída de um suspiro de exasperação.

 

Importas-te de baixar a voz?

 

Porquê? O facto de tentares evitar-me é um segredo para a tua vizinhança?

 

Não sejas idiota. Eu não ando a evitar-te. Tenho uma situação melindrosa entre mãos. A Angie apareceu inesperadamente e está num estado psíquico muito fragilizado.

 

Ela está aqui? perguntou Rob com os seus pequenos olhos porcinos arregalados. O que é que ela está a fazer aqui? Já telefonaste à polícia a informá-los?

 

Ainda não. Não quero agravar a situação ainda mais.

 

Ela tem uma navalha e está disposta a utilizá-la... nela mesma.

 

Meu Deus! E tu ainda não lha tiraste, ó supermulher? perguntou ele com sarcasmo passando por Kate e entrando no vestíbulo.

 

Se não te importas, prefiro continuar a ter todos os meus apêndices, obrigadinha.

 

Ela já se feriu?

 

Até agora só fez uns quantos cortes superficiais, embora haja um que vai precisar de levar pontos.

 

Onde é que ela está?

 

Talvez possas distraí-la enquanto eu ligo para o cento e doze respondeu Kate fazendo um gesto na direcção do pequeno escritório.

 

Ela já te disse onde é que tem estado? Quem é que a levou?

 

Não exactamente.

 

Se a obrigarmos a ir a um hospital, com certeza que fechará a boca por se sentir ressentida. O mais certo é passarem várias horas, ou mesmo dias, antes de conseguirmos extrair-lhe qualquer informação acrescentou Rob imprimindo à voz uma nota de urgência. A polícia já procedeu a uma detenção. A conferência de imprensa está marcada para daqui a pouco. Se conseguirmos fazer com que ela nos diga o que é que se passou, podemos ligar ao Sabin antes que termine.

 

Kate cruzou os braços, avaliando o que Rob acabara de dizer. Imaginava Angie, que continuava sentada no sofá, desenhando arabescos com a ponta de um dedo na palma da mão ensanguentada. Caso chamassem os paramédicos para que estes a levassem ao hospital, sem dúvida que ela reagiria de maneira adversa, no que Kate estava disposta a apostar. Por outro lado, o que é que eles lhe fariam? Tentariam arrancar-lhe o que pretendiam saber enquanto ela continuaria a sangrar, uma rapariga extremamente vulnerável.

 

Tentando apanhar um assassino.

 

Soltou um suspiro sentido.

 

Muito bem. Vamos tentar, mas se o caso ficar sério por causa da navalha, telefono a pedir ajuda.

 

Rob olhou-a de esguelha com um sorriso de quem tinha uma dor de dentes.

 

Eu sei que te provoca muitos engulhos, Kate, mas acontece que eu, às vezes, tenho razão. Verás que esta é uma dessas ocasiões. Sei exactamente o que estou a falar. O que é que ele está a fazer aqui? perguntou Angie como se cuspisse as palavras por elas lhe saberem mal na boca.

 

Só estou aqui para ajudar, Angie replicou Rob sorrindo novamente como se estivesse com dor de dentes, encostando-se de costas para a secretária.

 

Duvido muito disse ela lançando-lhe um olhar duro que pareceu eternizar-se.

 

Parece que tiveste alguns problemas desde a última vez em que nos vimos. És capaz de nos dizer o que é que se passou?

 

Quer saber o que é que aconteceu? perguntou a rapariga estreitando os olhos e expressando-se numa voz enrouquecida a que imprimia uma entoação quase sedutora Ergueu a mão e, muito devagar, começou a lamber, uma vez mais, o sangue que lhe manchava a palma da mão, mantendo o olhar preso no dele. Quer saber quem é que me fez isto? Ou só pretende ouvir a parte que diz respeito à actividade sexual?

 

Seja o que for que nos queiras dizer, Angie respondeu Rob numa entoação de voz que não deixava adivinhar nada. Para ti, acho que é importante falares disso. Estamos aqui para ouvir o que tiveres a dizer.

 

Tenho a certeza que sim. Você gosta de ouvir os outros falarem dos seus sofrimentos e desgostos. Você é um cabrãozinho mórbido, não é verdade?

 

Uma das faces de Rob agitou-se quando o músculo se contraiu. Continuava a manter o arremedo de sorriso, embora desse mais a impressão de ser obrigado a engolir cobras e lagartos.

 

Estás a pôr à prova a minha paciência, Angie disse Rob, tenso. Tenho a certeza de que, de facto, não é isso que pretendes. Não é verdade?

 

A rapariga desviou o olhar, concentrando-se nas chamas do fogo que ardia na lareira durante tanto tempo que Kate chegou a pensar que ela nunca mais voltaria a proferir palavra. Ou talvez se tivesse recolhido nessa tal «Zona» de que falara. Continuava a ter aquela espécie de navalha na mão direita, fazendo pressão com a ponta dos dedos contra a lâmina.

 

Angie chamou Kate passando por detrás do sofá e pegando na pequena manta de veludo. Estamos a tentar ajudar-te. Sentou-se no braço desocupado mantendo a manta solta em cima das pernas.

 

Não, não estão - replicou Angie com os olhos marejados de lágrimas, abanando a cabeça. Eu procurei a vossa ajuda, mas vocês não me deram atenção. Só estavam interessados naquilo que eu pudesse dizer-vos. A boca inchada ficou arrepanhada num sorriso amargo. O que é engraçado é vocês pensarem que estão a obter aquilo que desejam, mas na verdade estão tão enganados.

 

Diz-nos o que é que aconteceu nessa noite na Casa Phoenix incentivou Rob, tentando atrair a atenção da rapariga. -- A Kate deixou-te lá. Tu foste para o primeiro andar para tomares um duche... Foste interrompida por alguém?

 

Angie olhou-o com fixidez; com lentidão, arranhava as calças de ganga nas coxas em movimentos incessantes com a ponta da lâmina.

 

Quem é que te levou, Angie? perguntou Rob num tom insistente.

 

Não respondeu a rapariga.

 

Quem é que te levou, Angie? perguntou Rob de novo, articulando as palavras enfaticamente.

 

Não repetiu ela lançando-lhe um olhar furioso. Não farei isso. A lâmina da navalha perfurou mais fundo. À luz das labaredas da lareira, o suor brilhava no rosto pálido. A ganga rasgou-se. O sangue começou a jorrar, vermelho e brilhante, através dos rasgões.

 

Ao ver aquilo, Kate sentiu-se agoniada.

 

Rob, pára com isso.

 

Ela precisa de fazer isto, Kate retorquiu ele. Angie, quem é que te foi buscar?

 

Não. As lágrimas corriam-lhe pelas faces magoadas. Não podem obrigar-me a falar.

 

Deixa-a em paz ordenou Kate levantando-se do braço do sofá. Jesus, sentia que tinha de fazer qualquer coisa antes que a rapariga se cortasse toda.

 

Mas o olhar de Rob Marshall continuava fixo em Angie.

 

Diz-nos, Angie. Vamos acabar com as brincadeiras. Visivelmente abalada, Angie lançou-lhe um olhar feroz.

 

Para onde é que ele te levou? O que é que ele te fez?

 

Vá-se foder! vociferou ela como se escarrasse as palavras. Não estou para entrar na sua jogada.

 

Vais entrar, sim, Angie redarguiu Rob num tom de voz cada vez mais sombrio. Terás de concordar, não te resta alternativa.

 

Vá-se foder! Odeio-o! Aos gritos, Angie levantou-se do sofá com o braço erguido, a lâmina da navalha a cintilar.

 

Kate agiu com toda a rapidez, arremessando a manta de veludo para cima da navalha, lançando-se de lado em direcção à rapariga quase em simultâneo. Quando as duas embateram violentamente contra o chão, Angie gritou, derrubando a mesinha de café e espalhando os relatórios que Kate estivera a examinar.

 

Kate conseguiu imobilizá-la no soalho apesar de ela continuar a debater-se, sentindo-se percorrida pela primeira vaga de alívio. Rob apanhou a navalha, fechou a lâmina e guardou-a dentro do bolso.

 

Angie chorava convulsivamente. Kate, de joelhos, aproximou-se dela abraçando-a e apertando-a contra si.

 

Está tudo bem, Angie murmurou. A partir de agora estás em segurança.

 

Angie soltou-se dos braços dela, olhando-a como que hipnotizada, mostrando uma expressão de fúria e incredulidade.

 

Você é uma cabra muito estúpida! ripostou numa voz ríspida. A partir de agora, considere-se morta.

 

 

Os tubarões cheiram o sangue na água do mar comentou Quinn enquanto observavam a multidão que se juntava para a conferência de imprensa.

 

Sim, e algum desse sangue é meu resmungou Kovac, carrancudo.

 

Sam, posso garantir-lhe que, dada a presença de Vanlees pelas redondezas, eles estão-se rigorosamente nas tintas para si.

 

Aquela probabilidade deu a impressão de deprimir Kovac ainda mais. Também não contribuiu em nada para o bom humor de Quinn. O facto de a gente de Bondurant permitir a fuga de informações junto da imprensa a respeito de Vanlees, por si só, era bastante mau, mas ter a polícia a falar abertamente perante os meios de comunicação social acerca de Gil Vanlees, naquela fase das investigações, era perigosamente prematuro. O que ele dera a saber à presidente da Câmara, a Greer e a Sabin. O facto de eles terem optado por ignorar os seus conselhos era algo que se encontrava fora do seu controlo. E contudo, sentia a ansiedade a corroer-lhe outra porção dos tecidos das paredes do estômago, escavando outro buraco.

 

Era ele quem tinha elaborado um perfil inicial, ao qual Vanlees se ajustava quase na perfeição. Mas, reflectindo a posteriori, pensava que não devia ter-se apressado tanto a dar uma opinião. A probabilidade de existirem assassinos conluiados alterava radicalmente aquela situação. No entanto, a imprensa e os poderes que dirigiam o espectáculo tinham-se apoderado de Vanlees, sentindo-se extremamente felizes por poderem ferrar-lhe o dente.

 

A presidente da Câmara escolhera a majestosa entrada da Rua 4 como cenário para a conferência de imprensa. Um edifício, que mais se assemelhava a uma catedral, de mármore polido, com uma impressionante escadaria dupla e vitrais de belas cores. O género de lugar onde os políticos podiam colocar-se no topo das escadas, posicionando-se acima do comum dos cidadãos, mostrando-se do alto da sua importância, onde o brilho do mármore parecia reflectir-se na pele deles, emprestando-lhes uma aparência mais radiante do que a do comum dos mortais.

 

Quinn e Kovac observavam de um recesso escurecido, enquanto as equipas das estações de televisão instalavam o seu equipamento e a gente da imprensa disputava os lugares de onde o ângulo de visão fosse melhor. Na escadaria, a presidente da Câmara e Sabin conferenciavam, ao mesmo tempo que o assistente da primeira sacudia algumas partículas de cotão que tinha no fato. Gary Yurek estava profundamente embrenhado numa conversa que mantinha com o comandante Greer, e em que também participavam Fowler e dois capitães que pareciam ter vindo dos confins das instalações da polícia expressamente para se mostrarem em público. Dentro de momentos, Quinn juntar-se-ia ao circo mediático contribuindo com o pouco que teria a dizer, altura em que se esforçaria por imprimir uma nota de prudência ao anúncio de um possível suspeito sob custódia policial, palavras que não iriam merecer a atenção de quase ninguém. A multidão preferiria de longe dar ouvidos às mentiras que Edwyn Noble teceria em benefício de Peter Bondurant, o que de certeza estaria a fazer junto de um repórter da MSNBC.

 

Não viu sinais da presença de Peter. Não que Quinn tivesse estado à espera de o ver, sobretudo depois do que acontecera naquela mesma manhã e dada a possibilidade de se fazerem alegações de incesto junto dos representantes da imprensa. Mesmo assim, era mais forte do que ele, tinha de se interrogar quanto ao estado mental de Bondurant, além de também sentir curiosidade em saber qual o motivo que levara Lucas Brandt a correr com a sua maleta de médico até casa do milionário. O suposto falecimento de Jillian ou a revelação do que talvez tivesse acontecido há muitos anos atrás?

 

O Charm disse Kovac num tom trocista olhando fixamente para Yurek. Destinado a um gabinete de esquina com vista panorâmica. É adorado pelos manda-chuvas lá de cima. Sempre com um sorriso nos lábios que parecia valer um milhão de dólares, e que não hesitará em utilizar para lhes beijar o cu.

 

Está com ciúmes? perguntou Quinn.

 

Eu fui feito para dar pontapés no cu e não para o beijar respondeu Kovac com ar de poucos amigos. Para que é que eu preciso de um gabinete de gaveto, quando posso ter uma trampa de uma pequena secretária num cubículo de merda, em que os armários de arquivo não são minimamente decentes?

 

Pelo menos vive sem amarguras.

 

Eu já nasci amargo.

 

Vince Walsh anunciou a sua chegada com um ataque de tosse acompanhada de muita expectoração. Kovac voltou-se para trás, fitando-o.

 

Jesus, Vince, cuspa um pulmão, o que é que o está a impedir?

 

A porra desta constipação queixou-se Walsh. A cor da sua pele tinha a tonalidade fúnebre do amarelo cor de terra de um corpo embalsamado. Entregou a Kovac um sobrescrito de papel grosso amarelado. Os registos clínicos da Jillian Bondurant... pelo menos, os que o LeBlanc concordou em ceder-nos. Contém algumas radiografias. Quer levá-los ou prefere que eu os deixe no gabinete do médico legista?

 

Não sei se sabe, mas fui afastado do caso informou Kovac aceitando o sobrescrito. A partir de agora, o chefe passa a ser o Yurek.

 

Walsh tossiu novamente engolindo a expectoração, o que lhe provocou uma cara azeda.

 

Sim, foi isso que eu disse acrescentou Kovac com um acenar de cabeça.

 

Peter esperou que a conferência de imprensa estivesse em franca progressão para entrar no edifício. Era apenas uma simples questão de ligar a Edwyn através do telemóvel enquanto ainda estivesse no carro. Noble não tinha maneira de saber que ele não se encontrava em casa. Peter mandara embora os empregados que o advogado incumbira de ficarem a vigiá-lo. Todos se tinham ido embora sem levantar qualquer objecção. Ao fim e ao cabo, era ele quem lhes pagava os ordenados.

 

Entrou no átrio do prédio levando o saco negro nos braços; o seu olhar perscrutava a nuca de cinco dúzias de cabeças. Greer ocupava o palanque, arengando de uma maneira excessivamente dramática sobre as qualificações profissionais do homem que tinha escolhido para substituir Kovac, o qual passaria a ser o chefe do grupo de trabalho. Peter não estava interessado em ouvir o que o comandante da polícia tinha a comunicar. No que lhe dizia respeito, o grupo de trabalho passara a ser-lhe indiferente. Sabia quem tinha assassinado Jillian.

 

Os jornalistas gritavam perguntas dirigidas ao orador. Os flashes sucediam-se quais estrelas que explodissem no céu. Peter aproximou-se da frente por um dos extremos da multidão, seguindo em direcção às escadas; sentia-se como se fosse invisível. Talvez fosse. Talvez se tivesse transformado num fantasma. Ao longo de toda a sua vida sentira sempre um certo vazio na alma, um espaço que nunca nada conseguira preencher. Talvez o seu organismo tivesse sofrido um processo de erosão de dentro para fora durante tanto tempo que a essência do que o tornava um ser humano tivesse sido sugado por completo, transformando-o num ser invisível,

 

Quinn deu pela chegada de Bondurant. Estranhamente, pareceu-lhe que mais ninguém se apercebera da presença dele. Supôs que nenhum dos presentes prestava muita atenção ao que se passava em redor. Todos estavam concentrados no palanque e na última fornada de balelas que desejavam divulgar através das notícias, quer televisivas quer escritas. Ao que se acrescia o facto de ele apresentar um aspecto um tanto ou quanto desmazelado com a barba por fazer e o vestuário pouco cuidado, sem ter nada a ver com o Peter Bondurant que só usava fatos de bom corte, com todos os cabelos no seu devido lugar.

 

Estava tão pálido que a sua pele parecia ter ficado translúcida. Tinha uma aparência doentia, como se o seu corpo se devorasse a si próprio a partir de dentro. O olhar do multimilionário cruzou-se com o de Quinn, tendo-se detido por detrás dos operadores de câmara onde se deixou ficar com um saco de tecido preto nos braços.

 

Os instintos de Quinn ficaram imediatamente em estado de alerta... no preciso momento em que Greer o convidou a subir ao estrado.

 

O clarão dos projectores impediu-o de continuar a ver Bondurant. Perguntou-se se Kovac teria dado pela presença do homem.

 

Gostaria de salientar começou a dizer que o facto de termos interrogado um possível suspeito não põe fim às investigações.

 

Acredita que o Vanlees seja o Cremador? perguntou um dos repórteres.

 

Não seria prudente da minha parte responder-lhe quer confirmando quer negando o que acabou de me perguntar. Tentou colocar-se num ângulo de onde pudesse ver Bondurant de novo, mas este já tinha desaparecido do local onde estivera. Sentiu os nervos tensos.

 

Mas o Vanlees enquadra-se no perfil do criminoso. Além de ter conhecido a Jillian Bondurant...

 

Não é verdade que ele tinha na sua posse algumas peças do vestuário dela quando foi preso? perguntou outro jornalista.

 

Diabo das fugas de informação, pensou Quinn com a sua atenção mais concentrada em voltar a ter Bondurant no seu ângulo de visão do que nos repórteres. O que estaria o homem a fazer ali, sozinho e com a aparência de um vagabundo?

 

Agente especial Quinn...?

 

Nesta fase da investigação não tenho nenhum comentário a fazer.

 

Tem alguma coisa a dizer a respeito do caso Bondurant?

 

Fui eu quem a matou. Peter saiu de trás de um operador de câmara ao fundo das escadas, virando-se de modo a ficar de frente para a multidão. Durante uns momentos, ninguém, além de Quinn, compreendeu que aquela admissão de culpa tinha vindo dele. Nesse momento, Bondurant ergueu uma arma semiautomática de nove milímetros apontando-a à cabeça, e só então é que a multidão pasmada se apercebeu do que se estava a passar.

 

Eu matei-a! gritou Peter num tom de voz mais elevado. Mostrava-se atordoado com a sua própria confissão; tinha os olhos esbugalhados e estava de uma palidez cerácea, com a boca aberta. Ficou a olhar para a arma com uma expressão aterrorizada, como se esta fosse empunhada por outra pessoa. De lado, começou a subir as escadas com uns olhos que pareciam querer fuzilar os presentes, mormente os que se encontravam mais próximos do palanque: a presidente da Câmara, Mrs. Noble, o comandante Greer e Ted Sabin; todos retrocederam fítando-o como se nunca o tivessem visto.

 

Quinn deixou-se ficar no mesmo lugar em cima do estrado.

 

Peter, largue a arma disse com firmeza numa voz que o microfone transmitiu para todos os que se encontravam no recinto.

 

Bondurant não acatou aquelas palavras, o que indicou com um abanar de cabeça. As feições tremiam-lhe, arrepanhadas e contorcidas. Com o braço esquerdo agarrava o saco com bastante força, mantendo-o junto do corpo. Atrás dele, Quinn avistou dois agentes de uniforme, os quais se aproximavam procurando colocar-se estrategicamente de armas empunhadas, mas com o cano apontado para baixo.

 

Peter, você não quer cometer essa loucura acrescentou Quinn em voz baixa falando com calma, afastando-se quase imperceptivelmente do palanque.

 

Eu arruinei a vida dela. Matei-a. Agora chegou a minha vez.

 

E porquê aqui? Porquê agora?

 

Para que toda a gente fique a saber replicou Bondurant numa voz estrangulada. Todos ficarão a saber quem eu sou realmente.

 

Edwyn Noble começou a afastar-se da multidão, à frente da qual tinha estado, dirigindo-se para os degraus.

 

Peter, não faça uma coisa dessas.

 

Porquê? perguntou Bondurant. Porque a minha reputação sairá prejudicada. Ou receia pela sua?

 

Só está a dizer disparates! ripostou o advogado com uma firmeza feita de autoritarismo. Largue a arma imediatamente!

 

Peter não lhe deu ouvidos. A angústia que sentia era quase palpável. Adivinhava-se no suor que lhe escorria pelas faces, no odor que emanava dele. Na respiração que lhe saía dos pulmões com demasiada rapidez.

 

O que aconteceu foi por minha culpa continuou ele deixando que as lágrimas lhe assomassem livremente aos olhos. Eu sou o responsável por tudo. Tenho de pagar. Aqui. Agora. Não sou capaz de suportar esta situação por mais tempo.

 

Venha comigo, Peter disse Quinn aproximando-se um pouco mais dele, oferecendo-lhe a mão esquerda. Vamo-nos sentar os dois e depois você poderá contar-me toda essa história. É o que deseja fazer, não é verdade? Quinn tinha a percepção do som abafado e monótono das máquinas fotográficas que registavam tudo numa sucessão de imagens. As câmaras de vídeo também não tinham descanso, muitas das quais, sem dúvida alguma, estariam a transmitir em directo para os respectivos canais de televisão. Todos registavam a agonia por que aquele homem estava a passar para gáudio das suas audiências.

 

Você pode confiar em mim, Peter. Desde o primeiro dia que lhe tenho pedido que me diga a verdade. Não pretendo mais nada: apenas a verdade. E você está em posição de ma dar.

 

Eu matei-a. Quem a matou fui eu tartamudeava ele repetidamente com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo.

 

A mão com que empunhava a arma tremia exageradamente. Mais alguns minutos e os seus próprios músculos deixariam de poder continuar a aguentar, obrigando-o a baixá-la. Isto é, se ele não estourasse os miolos entretanto.

 

Foi você que me chamou a este caso, Peter prosseguiu Quinn. Quis a minha presença por uma razão. Você queria pôr-me a par da verdade.

 

Oh, meu Deus. Oh, meu Deus! gemia Bondurant a chorar convulsivamente. A luta que tinha lugar dentro de si era tremenda, levada ao extremo, deixando-o completamente desfeito. Naquele momento, todo o braço esquerdo tremia descontroladamente. Engatilhou o cão da arma.

 

Peter, não! ordenou Quinn numa voz autoritária lançando-se na direcção de Bondurant.

 

Ouviu-se uma explosão vinda do cano da arma. Com o disparo, começaram a ouvir-se gritos e berros que ecoavam de todas as direcções. Uma fracção de segundos tarde de mais, Quinn agarrou o pulso de Bondurant forçando-o para cima. Ouviu-se o troar de outro disparo. Apressadamente, Kovac surgiu por detrás de Peter, com os agentes de uniforme logo atrás de si, arrancando a arma da mão de Peter Bondurant.

 

O homem caiu desamparado contra Quinn, chorando convulsivamente e a sangrar, mas vivo. Com suavidade, Quinn colocou-o em cima dos degraus de mármore. O primeiro tiro tinha-lhe passado de raspão acima das têmporas deixando-lhe um sulco de carne e cabelos com cinco centímetros de comprimento, quando o projéctil ia a caminho do primeiro andar do edifício. Os resíduos de pólvora tinham-lhe escurecido a pele. Deixou cair a cabeça entre os joelhos e começou a vomitar.

 

O barulho que se ouvia no átrio era ensurdecedor. Os repórteres fotográficos corriam para a frente à procura dos ângulos mais favoráveis. Edwyn Noble passou por dois que afastou à cotovelada para poder aproximar-se do seu patrão.

 

Não diga nada, Peter.

 

Não sei se sabe, mas está-me a parecer que é um tudo-nada tarde de mais para estar com isso atalhou Kovac lançando-lhe um olhar de desprezo.

 

Entretanto, Ted Sabin subiu ao palanque pedindo a todos que se acalmassem e que mantivessem a ordem. A presidente da Câmara já chorava. Dick Greer falava com rispidez aos seus dois capitães. No meio da confusão, os polícias cumpriam a sua missão, tomando posse da arma e abrindo caminho para que o paramédico pudesse passar.

 

Quinn acocorou-se ao lado de Peter Bondurant, continuando a manter a mão à volta do pulso deste, sentindo que a pulsação batia a um ritmo desordenado. O próprio coração de Quinn batia como se quisesse saltar-lhe do peito. Uma fracção de milímetros, uma mão mais firme, e Peter Bondurant teria estourado os miolos mesmo defronte de metade do país, em directo. Um acontecimento que seria transmitido nos noticiários da noite com a seguinte advertência: «Queremos avisar o senhor telespectador de que as cenas que vão ver a seguir poderão ferir a susceptibilidade das pessoas mais sensíveis...»

 

Você tem o direito de se remeter ao silêncio, Peter começou Quinn a dizer numa voz serena. Qualquer coisa ou tudo o que disser poderá vir a ser utilizado contra si em tribunal.

 

É mesmo necessário que faça isso agora? perguntou Noble em voz baixa com brusquidão. Toda a imprensa está de olhos postos em nós.

 

Tal como estavam a olhar quando ele subiu ao estrado com uma arma carregada ripostou Quinn tocando no saco preto onde Peter tinha ocultado a semiautomática. Bondurant, que continuava a chorar descontroladamente, tentou agarrar o saco por uns momentos, mas acabou por largá-lo. O seu corpo como que ruiu sobre si mesmo.

 

Estou em crer que já houve muita gente que fez vista grossa a um grande número de procedimentos incorrectos no tocante ao Peter acrescentou Quinn. Entregou o saco a Vince Walsh. Está bastante pesado. É possível que ele tenha trazido mais armas.

 

Assiste-lhe o direito de ter a presença do seu advogado aquando do interrogatório prosseguiu Kovac continuando a informá-lo dos direitos que a lei lhe conferia, ao mesmo tempo que sacava das algemas.

 

Jesus Cristo!!! Uma exclamação numa voz enrouquecida. Quinn ergueu o olhar deparando-se-lhe Walsh que deixara cair o saco como se este queimasse, levando a mão à região lateral do pescoço; o seu rosto ficara rubro.

 

Os paramédicos disseram mais tarde que tinha morrido antes de cair no chão... exactamente ao lado do saco onde a cabeça decapitada de Jillian Bondurant fora transportada.

 

 

Kate retrocedeu afastando-se de Angie, sem tentar decifrar o que a rapariga lhe dissera. Tinha uma respiração arquejante; magoara o cotovelo na esquina da mesinha de café quando caíra no chão. Esfregou-o tentando organizar os pensamentos de forma clara. Angie estava de joelhos, soltando um lamento pungente que parecia anunciar a morte, batendo repetidamente na sua própria cabeça com as mãos ensanguentadas. O sangue que lhe escorrera das coxas tinha-lhe ensopado as calças de ganga que ela cortara com a lâmina da navalha.

 

Meu Deus murmurou Kate sentindo-se abalada perante a visão de tanto sangue. Recuou até à secretária voltando-se para o telefone.

 

Rob mantinha-se de pé a uma distância de cerca de um metro, fitando a rapariga com um interesse muito peculiar, como se fosse um cientista que estivesse a observar um espécime invulgar.

 

Fala connosco, Angie encorajou ele numa voz suave. Diz-nos o que sentes.

 

Meu Deus, Rob! ripostou Kate, desabrida, pegando no auscultador do telefone. Deixa-a em paz e sossego. Vai à cozinha e traz-me uns panos molhados.

 

Ao invés de fazer o que ela lhe pedira, o homem abeirou-se de Angie e tirou uma correia de couro, com mais ou menos treze centímetros de comprimento, de uma das algibeiras do casaco, chicoteando-a à largura das costas. A rapariga soltou um grito de dor caindo de lado e arqueando as costas como se tentasse escapar à dor.

 

Kate ficou aparvalhada, olhando fixamente para o seu chefe de boca aberta.

 

O... O que é que...? começou ela a perguntar; engoliu em seco e recomeçou, sentindo a pulsação a um ritmo acelerado. O que raio é que se passa contigo? perguntou ela por fim quase sem respiração, tal a perplexidade que sentia.

 

Com um ódio indisfarçável, Rob Marshall virou-se para ela. Os seus olhos reflectiam uma fúria inacreditável. Um olhar que trespassou Kate como a lâmina de uma espada. Sentia todo o desdém que ele nutria por ela, tendo a sensação de que emanava dele como chagas escaldantes, exalando um cheiro que se intensificava cada vez mais, saindo-lhe dos poros, azedo e maléfico. Kate não arredou pé, a passagem do tempo eternizava-se; os seus instintos adquiriram nova vida quando se apercebeu de que o telefone estava desligado.

 

Tu não sentes o mínimo respeito por mim, Kate, minha grande, grandessíssima puta! invectivou ele numa voz sibilada e baixa, mais semelhante a um rosnar.

 

As palavras e o ódio por detrás delas atingiram-na como um punho cerrado, deixando-a atordoada por breves instantes, após o que toda ela começou a tremer à medida que na sua mente as peças se iam ajustando umas às outras.

 

«Quem é que tentou estrangular-te, Angie? Conhecias essa pessoa’?»

 

«Claro... e você também a conhece...»

 

«... Está tudo bem, Angie. A partir de agora estás em segurança.»

 

«Você é uma cabra estúpida. A partir de agora, considere-se morta.»

 

Rob Marshall? Não. A ideia era quase risível. Quase. Com a excepção de que o telefone funcionara bem antes de ele ter aparecido, e ali estava ele de pé, defronte de si com uma arma na mão.

 

Kate pousou o auscultador no descanso.

 

Estou farto de ti continuou ele com azedume. A implicar, sempre a implicar. Constantemente a atazanar-me, não te cansavas de me atazanar. A amesquinhar-me. Sempre a olhares de alto para mim. Pisava os relatórios que continham pormenores de processos de vitimação espalhados pelo soalho. Todos são vítimas de qualquer coisa. Assim pensara Kate, pelo menos meia dúzia de vezes, nessa mesma manhã, quando tinha passado uma vista de olhos pelos relatórios. No entanto, não os tinha estudado com a atenção necessária.

 

Lila White fora vítima de uma agressão.

 

Fawn Pierce fora vítima de um crime de estupro.

 

Melanie Hessler, outra vítima de violação.

 

Em épocas diversificadas das suas vidas, todas elas tinham mantido contacto com os serviços de apoio a vítimas e testemunhas.

 

A única que não se enquadrava naquele quadro era Jillian Bondurant.

 

Mas tu és um defensor dos interesses das vítimas, por amor de Deus! murmurou Kate.

 

Um defensor que, devido à posição que ocupava, tinha oportunidade de ouvir relato após relato em grande parte de mulheres que eram vitimadas, brutalizadas, espancadas, violadas, degradadas...

 

Quantas vezes é que ele a obrigara a sentar-se para ouvir as cassetes onde as conversas com Melanie Hessler haviam sido gravadas? Nessas ocasiões, Rob ouvira atentamente, voltando com a fita magnética atrás, ouvindo vezes sem conto algumas partes das gravações.

 

Mentalmente, viu-se de súbito no automóvel de Kovac no local onde o corpo de Melanie Hessler fora encontrado, ouvindo a microcassete que o assassino inadvertidamente deixara cair. Melanie a implorar pela sua vida, gritando tal a agonia em que estava, suplicando que a matassem. Visualizou Rob aproximando-se do corpo carbonizado para o ver melhor, afastando-se combalido, mostrando-se perturbado. Mas o que ela erroneamente julgara ser perturbação tinha sido, de facto, excitação.

 

Oh, meu Deus.

 

Kate sentiu a bílis no fundo da garganta, enquanto tudo o que ela lhe dissera, do mais desagradável que se pudesse conceber, começou a passar-lhe pelo pensamento.

 

Oh, meu Deus, estou morta.

 

Lamento muito limitou-se Kate a dizer pensando nas opções que lhe desfilavam pela mente. A porta da frente ficava a apenas cerca de três metros ao fundo do vestíbulo.

 

Um espasmo de escárnio atravessou o semblante de Rob. Semicerrou os olhos, fechando-os quase completamente, olhando para ela como se de repente lhe tivesse chegado às narinas o cheiro de um esgoto a céu aberto.

 

-Não, não lamentas nada. Não estás arrependida pela maneira como me trataste. Só lamentas o facto de eu estar a preparar-me para te matar precisamente por causa dessa falta de respeito.

 

Angie, foge! gritou Kate. Pegou na máquina de fax, que estava em cima da mesa, puxando o fio ligado à tomada por detrás da secretária, arremessando a máquina na direcção de Rob. Acertou-lhe em cheio no peito fazendo com que ele perdesse o equilíbrio. Kate começou a correr para a porta, escorregando num dos relatórios espalhados pelo chão um erro que lhe custou uma fracção preciosa de segundo. Rob atirou-se a ela, agarrando-a pela manga do casaco com uma mão, enquanto com a outra desferia selvaticamente a correia de couro.

 

Até mesmo através da fazenda grossa da gola do casaco, Kate sentiu o impacte da correia que lhe atingiu o ombro. Pesada, mortífera, um golpe a sério. Se ele lhe tivesse apanhado a cabeça, ela teria caído por terra que nem uma pedra. Esquivou-se num movimento para o lado, escapando à mão dele e aproveitando a força do impacte com que Rob tentara agarrá-la para o empurrar em direcção ao vestíbulo. Agarrou-o pelo braço esquerdo e, torcendo-o atrás das costas dele, Kate empurrou-o contra a mesa no vestíbulo, afastando-se rapidamente antes que ele caísse; correu para a porta da frente que, de súbito, lhe pareceu estar a mais de um quilómetro de distância.

 

Rob soltou um grito que mais se assemelhava a um rugido, derrubando-a por detrás. Ambos caíram aparatosamente embatendo no soalho; Kate gritou ao sentir o braço direito a contorcer-se debaixo do corpo de uma maneira pouco natural, ao que se seguiu uma distensão horrível nos músculos dos ombros. Sentiu o corpo percorrido por uma dor ardente. Esforçou-se por ignorá-la enquanto tentava libertar-se, esperneando freneticamente para poder correr para a porta. Rob apanhou uma mancheia dos seus cabelos, puxando-lhe a cabeça violentamente para trás e esmurrando-a com o punho fechado no lado direito da cabeça. Kate ficou com a visão desfocada, como se um sino lhe badalasse nos ouvidos, queimando-a, envolta no fogo do inferno. Sentiu uma dor aguda que lhe percorreu o rosto até ao maxilar.

 

Grande cabra! Cabra de merda! gritava ele repetidamente.

 

Pouco depois, Kate sentiu as mãos de Rob em redor da sua garganta, apercebendo-se de que ele tentava estrangulá-la; os gritos dele começaram a soar muito ao longe no seu cérebro. Opunha-lhe resistência automaticamente, com um grande frenesim, tentando manietar-lhe as mãos, mas os dedos dele eram curtos, grossos e muito poderosos.

 

Kate não conseguia respirar, tendo a sensação de que os olhos estavam prestes a rebentar, parecendo-lhe que o cérebro lhe inchava.

 

Com o último resquício de raciocínio que lhe restava, Kate obrigou o corpo a ficar inerte. Rob continuou a apertar-lhe a garganta por mais uns segundos que mais lhe pareceram uma eternidade, após o que lhe bateu com a cabeça contra o chão. Sabia que ele estava a arengar qualquer coisa mas não era capaz de apreender o sentido do que dizia; o sangue recomeçara a afluir-lhe ao cérebro com um rugido ensurdecedor. Tentava não inspirar grandes golfadas de oxigénio, ao contrário do que instintivamente queria fazer e de que tão desesperadamente necessitava. Esforçou-se por não perder a consciência. Tinha de continuar a raciocinar e não sobre o local do crime que visitara, nem tão-pouco sobre o corpo incinerado da vítima cujos interesses devia ter defendido, nem acerca das fotografias da autópsia das quatro mulheres que aquele homem torturara e mutilara impiedosamente.

 

Tu estás convencida de que eu não sou capaz de fazer nada de jeito! arengava Rob soerguendo-se para sair de cima dela. Pensas que eu sou um idiota! Estás convencida de que és melhor do que os demais e que eu sou um zero à esquerda!

 

Sem conseguir vê-lo, milímetro a milímetro, Kate levava a mão esquerda ao bolso do casaco.

 

És uma putéfia de merda! vociferou ele dando-lhe um pontapé, demasiado embrenhado na sua arenga para poder ouvir o gemido de dor que Kate soltara involuntariamente, quando a bota dele a atingira na anca. Kate cerrou os dentes, rilhando-os, tentando concentrar-se em continuar a deslocar a mão, quase milímetro a milímetro, metendo-a dentro da algibeira. Tu não me conheces declarou Rob enfaticamente. Pegou em qualquer coisa que se encontrava sobre a mesa que ela tinha no vestíbulo, arremessando-a.

 

O que quer que fosse, despedaçou-se algures nas proximidades da cozinha. Não sabes nada de nada a meu respeito, acerca do meu verdadeiro eu.

 

E ela jamais teria suspeitado. Deus do céu, trabalhara ao lado do homem durante um ano e meio. Nunca lhe teria passado pela cabeça que ele fosse capaz de um comportamento daqueles. Nem uma única vez ela questionara os motivos que o haviam levado a optar por aquela profissão. Pelo contrário, o facto de ele ser um defensor que zelava pelo interesse das vitimas sempre tão pronto a ouvir o que tinham a dizer, sempre tão disposto a passar tempo com elas fora o único aspecto que a seus olhos o redimira de todos os defeitos. Pelo menos, era o que Kate havia acreditado

 

Pensas que eu sou um zé-ninguem berrou ele.

EU SOU ALGUÉM! SOU o ANJO DO MAL! SOU o CABRÃO DO CREMADOR! E agora, o que é que pensas de mim, sua cabra? Rob Marshall agachou-se ao lado de Kate, fazendo-a rolar até ficar deitada de costas.

Kate mantinha os olhos quase fechados, pouco mais vendo do que uma mancha desfocada de cores que observava por entre as pálpebras. Tinha a mão na algibeira com os dedos a envolverem o cabo da lima de metal das unhas

 

Guardei-te para ultima continuou ele. Hás-de implorar-me que te mate E podes crer que vou adorar fazê-lo

 

 

O que é que aconteceu nessa noite, Peter? perguntou Quinn. Ambos estavam sentados numa sala pequena de aspecto desconfortável nos confins do edifício da Câmara Municipal, próximo da área reservada ao registo de detenções prisionais de adultos. Bondurant renunciara aos direitos que a lei lhe conferia, além de se ter recusado a ir ao hospital. Um dos paramédicos desinfectara-lhe o ferimento provocado pela bala que lhe atingira o couro cabeludo de raspão, no local onde tentara acabar com a vida.

 

Edwyn Noble insistira veementemente em estar presente durante o interrogatório, alegando que Peter deveria ir de imediato ao hospital, quer por vontade própria quer a contragosto. Mas Peter saíra a ganhar, jurando perante uma dúzia de câmaras de repórteres que desejava confessar.

 

Presentes na sala estavam Bondurant, Quinn e Yurek. Peter manifestara vontade de querer falar apenas com Quinn, mas a polícia insistira na presença de alguém que a representasse. O nome de Sam Kovac nem sequer fora mencionado.

 

A Jillian foi jantar lá a casa começou Peter a narrar. Dava a impressão de estar mais pequeno, como se tivesse encolhido, qual viciado de há muitos anos em heroína. Pálido, olhos avermelhados e com uma expressão vazia. Ela estava num dos seus estados de espírito mal-humorados, com altos e baixos, ora muito risonha ora a falar-me com sete pedras na mão. Ela era assim... inconstante. Como a mãe. Até mesmo quando era bebé.

 

Por que motivo é que discutiram? Bondurant ficou a olhar para um ponto no outro extremo da sala, observando uma mancha rosada que talvez tivesse sido sangue antes de alguém ter tentado limpá-la.

 

Os estudos, a música que ela compunha, as idas ao psiquiatra, o padrasto, nós.

 

Ela queria reatar o relacionamento com o LeBlanc?

 

Tinha andado a falar com ele. Disse-me que estava a pensar em regressar a França.

 

E você ficou irritado.

 

Irritado... repetiu com um suspiro. Essa não é a palavra mais adequada. Fiquei preocupado. Tinha sentimentos de culpa terríveis.

 

Porquê culpa?

 

Bondurant levou muito tempo a formular uma resposta, como se escolhesse premeditadamente cada uma das palavras que utilizaria. Porque foi tudo por minha culpa... o que aconteceu entre a Jillian e o LeBlanc. Eu podia ter evitado. Nada me impedia de disputar a tutela da Jillian que tinha sido atribuída à Sophie, mas deixei passar.

 

Porque ela ameaçou expô-lo, dizendo que abusava sexualmente da Jillian recordou-lhe Quinn.

 

Ela ameaçou afirmar que eu tinha abusado da Jillian corrigiu Peter. Mas a verdade é que ela ensinou à Jillian o que dizer, como devia comportar-se com a finalidade de convencer as pessoas de que isso correspondia à verdade.

 

Mas não era?

 

Ela era minha filha. Eu jamais teria feito fosse o que fosse que a magoasse.

 

Bondurant ficou a reflectir na sua resposta; estava a perder a compostura, o verniz começava a estalar. Com uma mão tremente cobriu a boca, dando largas às lágrimas em silêncio por breves momentos.

 

Como é que eu teria podido saber?

 

O estado mental da Sophie não era nenhum segredo para si salientou Quinn.

 

Nessa altura estava eu a meio das negociações para comprar a parte do Don Thorton na empresa em que éramos sócios. Ao mesmo tempo, tinha pendentes alguns contratos importantes que negociava com o governo. Ela podia ter-me arruinado.

 

Quinn não ofereceu qualquer comentário, dando a Bondurant a oportunidade de organizar as suas ideias, como sem dúvida teria feito mil vezes só ao longo da última semana.

 

Bondurant soltou um suspiro fundo de derrota fixando o olhar no tampo da mesa.

 

Entreguei a minha filha a uma louca e a um homem que abusa de crianças. Teria sido mais misericordioso tê-la matado nessa altura.

 

O que é que se passou na sexta-feira à noite? perguntou Quinn uma vez mais, despertando Bondurant para o presente.

 

Discutimos a respeito do LeBlanc. Ela acusou-me de não lhe ter amor. Durante algum tempo, fechou-se no salão de música. Deixei-a em paz. Fui para a biblioteca, sentei-me em frente da lareira e tomei um conhaque. Por volta das onze e meia, ela entrou na biblioteca e aproximou-se por detrás de mim a cantar. A Jillian tinha uma voz maravilhosa.. obsessiva, etérea. A canção era obscena, repugnante, perversa. Tudo o que a Sophie lhe tinha ensinado a dizer sobre mim ao longo de tantos anos: as coisas que, supostamente. eu lhe teria feito.

 

Claro que isso o encolerizou.

 

Meteu-me nojo. Levantei-me e voltei-me para ela com a intenção de lhe dizer precisamente isso, mas ali estava ela, defronte de mim, toda despida. «Não me desejas, paizinho?», perguntou-me ela. «Não me amas?»

 

Por si só, a recordação daquela cena escabrosa deixava-o atónito, sentia-se repugnado. Dobrou-se sobre o cesto do lixo que estava mesmo ao lado da cadeira e começou aos arrancos, mas não lhe restava nada no estômago que pudesse vomitar. Mantendo-se calmo, Quinn esperava sem mostrar qualquer emoção, exibindo um distanciamento estudado

 

Você teve relações sexuais com ela? perguntou Yurek, que se mantivera calado até então.

 

Quinn lançou-lhe um olhar furibundo.

 

Não! Meu Deus! negou Peter veementemente, ultrajado perante aquela hipótese.

 

O que é que sucedeu? perguntou Quinn. Você discutiu com a sua filha e ela acabou por sair de casa a correr.

 

Sim confirmou Bondurant muito sereno. Discutimos. Eu disse-lhe algumas coisas que não deveria ter dito. Ela estava extremamente fragilizada. No entanto, eu sentia-me tão chocado, tão irado. Ela saiu da biblioteca a correr, vestiu-se e saiu de casa. Não voltei a vê-la com vida.

 

Mas você afirmou que a tinha matado atalhou Yurek mostrando um misto de confusão e decepção.

 

- Não está a ver? Eu podia ter salvo a minha filha, mas não o fiz. Da primeira vez, para me salvar a mim, aos meus negócios e à minha fortuna, abdiquei dela. Eu é que sou o culpado por ela se ter tornado a pessoa que era. Na sexta-feira à noite permiti que ela se fosse embora porque não queria ter de lidar com uma situação daquelas, e agora ela está morta. Matei-a, senhor detective, tal como se tivesse sido eu a esfaqueá-la no coração.

 

Yurek arrastou a cadeira em que se sentava para trás, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro; quem olhasse para ele diria estar em presença de um homem que acabara de ser vítima de batota num jogo de cartas.

 

Vamos lá, Mister Bondurant. Está à espera que acreditemos nisso? Yurek não era dotado do jeito nem do tipo de voz para representar o papel do polícia duro, até mesmo quando não representava. Você trazia a cabeça da sua filha num saco. O que é que nos tem a dizer quanto a isso? Será uma pequena recordação que o verdadeiro assassino teve a gentileza de lhe enviar?

 

Bondurant não lhe deu resposta. Era óbvio que à menção da cabeça de Jillian ficara perturbado, voltando a fechar-se dentro de si mesmo. Quinn via que ele estava a distanciar-se, permitindo que a sua mente fosse atraída para outro lugar que não aquela realidade medonha. Existia a possibilidade de Bondurant se refugiar aí, de onde não sairia durante muito tempo.

 

Peter, o que é que você foi fazer a casa da Jillian no domingo de manhã?

 

Fui lá para ver se ela estava bem.

 

Às primeiras horas da manhã? perguntou Yurek mostrando-se duvidoso.

 

Apesar das mensagens que deixei no atendedor de chamadas, ela não me telefonou. No sábado, deixei-a sozinha seguindo o conselho que o Lucas Brandt me deu. Mas na madrugada de domingo... senti que tinha de fazer alguma coisa.

 

Portanto, foi a casa dela e abriu a porta com a sua própria chave aventou Quinn.

 

Bondurant baixou o olhar fixando-se numa nódoa que tinha na camisola e, com uma expressão abstracta, começou a raspá-la com a unha do polegar.

 

Pensei que devia estar na cama... mas pouco depois perguntei-me de quem seria a cama onde ela teria dormido. Decidi esperar por ela.

 

O que é que fez enquanto esperava que ela chegasse? Limpei e arrumei respondeu Bondurant, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, algo que fizesse todo o sentido. A casa parecia... parecia... uma pocilga acrescentou imprimindo aos lábios um trejeito de nojo. Havia imundície por toda a parte, tudo coberto de sujidade, lixo e desarrumação.

 

Tal como a vida da Jillian? perguntou Quinn com suavidade.

 

Os olhos de Bondurant ficaram marejados de lágrimas. O que o levara a proceder àquela arrumação e limpeza fora mais simbólico do que o desejo de repor condições de higiene. Não conseguira mudar o estilo de vida da filha, todavia. podia limpar e arrumar a casa, imprimindo assim alguma ordem ao ambiente em que ela vivia. Um acto de controlo e talvez mesmo de afecto, pensou Quinn.

 

Apagou as mensagens gravadas no atendedor de chamadas? perguntou Quinn.

 

Bondurant acenou que sim. As lágrimas eram mais abundantes. Com os cotovelos sobre a mesa, tapou os olhos com as mãos em forma de concha.

 

Havia alguma deixada pelo LeBlanc? aventurou-se Quinn a perguntar.

 

Esse filho da puta! Ele matou-a tanto quanto eu próprio. Dobrou-se sobre o tampo da mesa, entregando-se sem peias a um choro convulsivo; do meio do peito saiu-lhe um grito rouco extremamente pungente que lhe subiu à garganta. Quinn esperou que Peter se recompusesse, imaginando-o a encontrar a música de Jillian enquanto arrumava e limpava. Possivelmente, essa mesma música teria sido a razão que o levara a casa da filha, depois do incidente que tivera lugar na biblioteca de sua casa na sexta-feira à noite, mas Peter, aguilhoado por um sentimento de culpa, naquele momento não hesitaria em afirmar que o motivo que o movera fora o bem-estar de Jillian, o que para si, de acordo com as suas palavras, seria prioritário.

 

Quinn inclinou-se para a frente pousando uma mão sobre o pulso que Bondurant apoiava na mesa, estabelecendo um contacto físico e tentando fazer com que ele regressasse ao momento presente.

 

Peter? Sabe quem é que realmente matou a Jillian?

 

A amiga respondeu ele numa voz fina e de abatimento; os lábios mostraram um trejeito de ironia. A única amiga que ela tinha. Michele Fine.

 

O que é que o leva a acreditar nisso?

 

O facto de ela ter tentado chantagear-me.

 

Tentou?

 

Sim, até ontem à noite.

 

O que é que sucedeu ontem à noite? inquiriu Quinn.

 

Matei-a.

 

Edwyn Noble abordou Quinn no instante em que ele transpôs a porta da sala de interrogatórios.

 

Nem uma só palavra que tenha sido proferida ali dentro terá validade perante um tribunal, Quinn garantiu o advogado.

 

Ele renunciou aos direitos que a lei lhe confere, doutor Noble.

 

É por de mais evidente que ele não tem competência mental para tomar esse tipo de decisões.

 

Leve o assunto perante um juiz interveio Sabin.

 

Os dois advogados assanharam-se um contra o outro como se fossem duas cobras. Yurek chamou o assistente do promotor público à parte, Logan, para falar com ele sobre um mandado de busca que lhes permitisse passar a casa de Michele Fine a pente fino. Kovac encontrava-se ao fundo do corredor, a uns três metros de distância, encostado à parede e, para variar, não estava a fumar. O coiote solitário.

 

Precisa de boleia, chefe? perguntou com um olhar esperançado.

 

Sem margem para qualquer dúvida, a partir de agora considero-me um masochista confirmado replicou Quinn brindando Kovac com um olhar que tinha a chancela dele próprio. Não sou capaz de acreditar que esteja a dizer isto, mas vamos lá.

 

Correram com todos os jornalistas e fotógrafos, pondo-os fora do edifício, enquanto Quinn exibia uma expressão empedernida de «Sem comentário» a todas as perguntas que lhe eram feitas. Kovac estacionara o automóvel no lado do prédio que dava para a Quarta Avenida. Durante todo o caminho até ao carro foram seguidos por meia dúzia de repórteres. Quinn não disse nada até ao momento em que Kovac ligou a ignição, afastando-se do passeio a grande velocidade.

 

O Bondurant disse-me que tinha disparado contra a Michele Fine, tendo deixado o corpo no Jardim de Esculturas de Minneapolis. Ela andava a tentar chantageá-lo. ameaçando-o com algumas das peças de música mais reveladoras da Jillian, ao que juntava tudo o que a Jillian, alegadamente. lhe confidenciara. Em princípio, a noite passada devia ser o grande dia do pagamento. Ele levaria o dinheiro e ela entregar-lhe-ia as pautas musicais, assim como as cassetes que tinha em seu poder e tudo o mais.

 

«Nessa altura, ele não sabia que ela tinha estado envolvida no assassínio da Jillian. Ele disse que decidira pagar com a finalidade de abafar a história, mas, apesar disso, precaveu-se com uma arma.

 

Na minha opinião, isso indica premeditação replicou Kovac ligando as luzes do automóvel.

 

Ora bem, temos então que a Michele Fine apareceu com as coisas dentro do saco; mostra-lhe algumas pautas de música, umas duas cassetes e fecha o saco. Efectuam a transacção. Ela prepara-se para se ir embora, sem lhe passar pela cabeça que ele inspeccionasse de novo o interior do saco.

 

Nunca se deve assumir nada como certo disse Quinn firmemente agarrado à porta quando o Lwnina guinou bruscamente para a direita, se bem que a luz do semáforo estivesse vermelha. Ouviram-se buzinadas estridentes.

 

Mas ele olhou. Deu-lhe um tiro na nuca e abandonou-a onde caiu.

 

Em que diabo é que ela teria estado a pensar quando lhe entregou a cabeça.

 

Ela esperava já estar muito longe antes de ele ligar para a Polícia especulou Quinn. Quando eu e a Liska estivemos no apartamento dela, há uns dias atrás, reparei em algumas brochuras de viagens. Aposto que a intenção dela foi seguir directamente para o aeroporto, indo de avião para um lugar qualquer.

 

E quanto ao Vanlees? O Bondurant disse alguma coisa a respeito dele?

 

Quinn ficou com a respiração suspensa quando Kovac se colocou repentinamente entre um autocarro da empresa de transportes da cidade e uma carrinha da Snap-On Tool.

 

Nada.

 

Com certeza que não acha que ela trabalhava sozinha, pois não?

 

- Não. Sabemos que ela não cometeu os assassínios sozinha. Tal como sabemos que também não teria tentado exercer chantagem sobre o Bondurant por sua própria iniciativa. As vítimas voluntárias de sádicos de natureza sexual são, virtualmente, umas marionetas. O parceiro é quem detém o poder, ele controla-as pela prática de sevícias físicas, além de abusos de ordem psicológica e sexual. Não há maneira nenhuma de ela ter feito isto sozinha.

 

E o Vanlees encontrava-se sob custódia policial na altura em que este homicídio teve lugar.

 

O mais provável é eles terem estabelecido previamente um plano que ela pôs em prática sem saber onde ele estava. Teria tido receio de não conseguir concretizá-lo. Se ele for de facto o fulano que procuramos.

 

Eles conheciam-se.

 

Você e eu também nos conhecemos. No entanto, não matámos ninguém. Tenho muita dificuldade em ver o Vanlees a manipular uma pessoa a esse nível. Ele ajusta-se ao perfil errado.

 

Então, quem é?

 

Não sei admitiu Quinn, afivelando uma expressão carrancuda mais para si mesmo do que para Kovac, que naquele momento acelerava a fundo passando a rasar ao lado da carrinha. Mas uma vez que temos a Fine, dispomos de uma pista que podemos seguir.

 

Quando chegaram, depararam-se-lhes quatro carros-patrulha. O Jardim de Esculturas de Minneapolis era um parque com uma superfície de aproximadamente quatro hectares, onde se viam mais de quarenta trabalhos da autoria de artistas de nomeada, em que a peça principal era uma colher gigantesca com um comprimento de quase dezasseis metros em cima da qual havia uma cereja vermelha com uma altura de cerca de três metros. No mínimo dos mínimos, poderia considerar-se aquele lugar como sendo um tudo-nada surrealista, pensou Quinn. Como cenário de um crime era algo extraído do livro Alice no País das Maravilhas.

 

De acordo com as informações colhidas junto das urgências dos hospitais disse Yurek em voz alta quando saía do carro, não há conhecimento de nenhum corpo com o tipo de ferimentos de bala como os descritos em relação a Michele Fine.

 

Ele disse que combinaram encontrar-se junto da colher adiantou Quinn enquanto seguia nessa direcção estugando o passo.

 

Ele tem a certeza de que a atingiu? perguntou Kovac. Não nos esqueçamos de que estava escuro.

 

Ele afirma que a atingiu, disse que ela gritou e depois caiu.

 

Aqui! chamou um dos agentes de uniforme, acenando perto do cabo da colher. No ar frio e pardacento a sua respiração era como um sinal de fumo.

 

Quinn apressou o passo, exemplo que os outros seguiram. As equipas de filmagens das estações televisivas não estariam muito atrás.

 

Ela está morta? perguntou Yurek num tom autoritário enquanto corria.

 

Morta? retorquiu o agente de uniforme, apontando para uma extensa mancha de um vermelho de cereja na neve. Ela levou sumiço!

 

 

Rob apanhou Kate pelos cabelos começando a levantá-la do chão. Os dedos desta fecharam-se à volta do cabo da lima de unhas que tinha na algibeira. Esperava o momento mais apropriado. Aquela talvez fosse a melhor arma a que conseguisse deitar a mão. Mas tinha de a usar com toda a precisão, no momento mais oportuno. Pela cabeça, passaram-lhe várias estratégias como ratos num labirinto, em que cada um procurava desesperadamente encontrar a saída.

 

Rob deu-lhe uma bofetada e ela sentiu o sabor do sangue na boca como uma rosa que se abria.

 

Sei que não estás morta. Continuas a subestimar-me, Kate disse ele. Até mesmo na situação em que te encontras não deixas de me atazanar. O que é uma grande estupidez da tua parte.

 

Kate baixou a cabeça, encolhendo as pernas debaixo de si. Ele queria instilar-lhe medo. Queria ver esse medo nos seus olhos. Queria cheirá-lo na pele dela. Queria ouvi-lo na entoação da sua voz. Era isso que o excitava. Era isso que absorvia sofregamente quando ouvia as gravações da voz das vítimas as suas próprias vítimas, assim como as de outros assassinos. Kate sentia-se doente só de pensar no número de vítimas que lhe haviam aberto o coração, alturas que ele aproveitava para saciar as suas compulsões doentias com os sofrimentos e os medos que essas pessoas sentiam.

 

E agora queria que Kate desse largas ao medo, queria que ela se mostrasse submissa. Queria que ela lamentasse todas as ocasiões em que lhe falara com pouco respeito, por cada vez que ela o desafiara. E caso Kate lhe desse o que ele desejava, o sentimento de vitória que ele sentiria só iria servir para alimentar ainda mais a sua crueldade.

 

Hoje serei o teu amo e senhor, Kate continuou Rob numa atitude de grande dramatismo.

 

Kate ergueu a cabeça lançando-lhe um longo olhar rancoroso sem pestanejar, reunindo toda a sua coragem ao mesmo tempo que sugava o sangue que saía do corte que tinha no lábio. Ele obrigá-la-ia a pagar por aquela atitude, mas para ela parecia ser a única a tomar. Com toda a deliberação, cuspiu o sangue acertando-lhe em cheio na cara.

 

Uma porra é que hás-de levar a tua avante, meu monte de merda! És um desgraçado que mete dó!

 

Reagindo de imediato, dando largas à raiva que sentia, Rob brandiu a correia de couro. Kate esquivou-se ao golpe, levantando-se de repente e colocando o cotovelo esquerdo de modo a atingi-lo debaixo do queixo; os dentes dele entrechocaram-se com violência. Kate sacou da lima espetando-lha no pescoço até o cabo, logo acima da clavícula.

 

Rob gritou de dor agarrando a lima, o que fez com que se desequilibrasse caindo para trás e indo estatelar-se em cima da mesa. Kate apressou-se a correr para a cozinha.

 

Se conseguisse sair de casa e chegar à rua. Com certeza que ele teria feito alguma coisa à sua viatura, impedindo-a de a usar, ou talvez a tivesse bloqueado. Para tentar arranjar ajuda, tinha forçosamente de sair de casa. A correr, atravessou a sala de jantar, tombando as cadeiras que encontrou pelo caminho. Mas Rob vinha logo atrás dela, soltando um grunhido quando embateu em qualquer coisa, praguejando, cuspindo as palavras entre dentes como se fossem balas.

 

Com as suas pernas curtas, ele não conseguiria correr mais do que ela. Tanto quanto ela podia ver, não estava armado. Se conseguisse atravessar a cozinha, depressa chegaria à rua. Correria para casa do vizinho que morava no outro lado da rua. Era um desenhador gráfico que tinha o atelier no sótão da vivenda. O homem estava sempre em casa. Entrou na cozinha de rompante, tropeçou mas conseguiu equilibrar-se, sentindo que o coração quase lhe caía aos pés.

 

Angie encontrava-se do lado de dentro da porta das traseiras, as lágrimas corriam-lhe livremente pelas faces e empunhava uma faca de cozinha directamente apontada para o peito de Kate.

 

Lamento muito. Lamento muito. Lamento muito repetia ela por entre um pranto de desolação tremendo que nem varas verdes.

 

Subitamente, a troca de palavras que tivera lugar no escritório entre Angie e Rob adquiriu novos contornos. Fragmentos da verdade começaram a constituir um todo. A imagem que formavam era distorcida e com matizes surrealistas

 

Caso Rob fosse o Cremador, então, ele seria o homem que Angie avistara no parque E contudo, o esboço do indivíduo que Oscar desenhara, de acordo com a descrição de Angie, não tinha mais parecenças com Rob Marshall do que com Ted Sabin. A rapariga estivera sentada mesmo diante dele na sala de interrogatórios sem ter dado a mínima indicação de que

 

No segundo seguinte, Rob Marshall já transpusera a porta atrás de Kate, e duzentos gramas de aço, envoltos num punhado de areia comprimida em couro, atingiram-na na região posterior do crânio Falharam-lhe as pernas e caiu de joelhos no chão da cozinha, a ultima coisa que viu foi Angie DiMarco

 

É por estas e por outras que não quero trabalhar com miúdos. Nunca se sabe o que é que lhes passa pela cabeça ”

 

Mas pouco depois ficou mergulhada na escuridão

 

As revistas com roteiros turísticos continuavam espalhadas na mesinha de café de Michele Fine, com os cantos de algumas páginas dobrados e determinados destinos assinalados com um círculo, tendo algumas anotações à margem. Ficar com um belo bronzeado Demasiados. Vida nocturna^

 

A assassina na pele de uma turista, pensou Quinn folheando uma das revistas

 

Quando a polícia começasse a averiguar junto das com panhias aéreas, era possível que viesse a apurar que ela tinha marcado passagens para um ou mais desses destinos turísticos. Caso a sorte estivesse do lado deles, também ficariam a saber que haviam sido marcados voos idênticos em nome do parceiro de Michele. Quem quer que este fosse

 

Dada a quantidade de sangue no local onde o corpo fora encontrado no jardim de esculturas, parecia altamente improvável que ela tivesse ido para o parque pelos seus próprios meios. Nesse momento, Gil Vanlees encontrava-se sob custódia policial. Tanto Michele Fine como o dinheiro que Peter Bondurant levara consigo para o encontro no parque, local que este abandonara posteriormente, haviam desaparecido.

 

Os polícias acotovelavam-se pelo apartamento quais formigas numa grande azáfama, invadindo cada um dos armários, fenda e pequeno espaço, procurando qualquer coisa que lhes pudesse fornecer uma pista quanto à identidade do parceiro de Fine na actividade criminal a que ambos se dedicavam. Uma mensagem rabiscada à pressa, uns rabiscos que fossem um número de telefone, um sobrescrito, uma fotografia, em suma, qualquer coisa que lhes desse uma pista. Adler e Yurek batiam à porta dos vizinhos tentando recolher informações. Conheciam a rapariga? Tinham-na visto ultimamente? E quanto a um possível namorado?

 

As áreas de estar principais do apartamento, à primeira vista, estavam exactamente como no dia anterior. O mesmo pó que cobria tudo e os cinzeiros a transbordar. Tippen encontrou um cachimbo de cruck na gaveta de uma mesinha de apoio.

 

Quinn percorreu o corredor, passando uma vista de olhos pela casa de banho que faria jus a qualquer retrete de um manhoso posto de abastecimento de combustíveis, passando ao quarto de Michele Fine. A cama estava por fazer. Havia peças de vestuário espalhadas pelo chão do quarto, como se fossem contornos traçados a giz onde haviam caído corpos sem vida. À semelhança do resto do apartamento, não se viam quaisquer toques pessoais, nenhum objecto que servisse de decoração à excepção da janela virada a sul e de frente para as traseiras de um outro prédio.

 

Olhem para as cortinas disse Liska atravessando o quarto.

 

Estavam suspensas em camarões presos ao vidro por meio de ventosas. Pequenas argolas com cerca de sete centímetros de diâmetro; cada uma delas segurando uma obra de arte em miniatura. A luz que se filtrava através destes objectos imprimia ás cores uma impressão de vida. O ar que saía de uma grelha acima da janela fazia com que oscilassem ligeiramente contra o vidro, quais asas de borboletas que imprimiam vibrações às decorações presas a cada uma das pequenas argolas um pedaço de fita, um botão em madrepérola suspenso de um fio, um brinco que oscilava, uma madeixa de cabelo cuidadosamente entrançado...

 

Liska ficou de boca aberta quando chegou junto de Quinn; só então é que apreendeu o sentido do que via.

 

O lírio de Lila White. O trevo de Fawn Pierce. Uma boca com a língua de fora. Um coração atravessado pela palavra «paizinho». Havia meia dúzia de coisas no género.

 

Tatuagens.

 

As tatuagens que haviam sido removidas dos corpos das vítimas do Cremador com um objecto cortante. Esticadas em pequenas argolas que secavam ao sol. Enfeitadas com lembranças das mulheres de quem tinham sido cortadas. Recordações de torturas e assassínio.

 

 

O seu grande triunfo está próximo. A sua coroa de glória. O seu momento de apoteose por agora, para aquele lugar. Já colocara a Cabra em cima da mesa a seu contento, tendo-lhe amarrado as mãos e os pés às quatro pernas da mesa, servindo-se da corda plástica que surripiara da sala de recepção e expedição de correspondência do escritório. Parte da corda está enrolada à volta do pescoço da Cabra, tendo deixado as pontas compridas e soltas que ele enrolaria em redor dos seus próprios pulsos. Para poder ter uma luz apropriada à ocasião, tivera o cuidado de trazer alguns círios para a cave, os quais recolhera noutras partes da casa. Acha que as chamas lhe inspiram sensualidade, excitação e erotismo. Essa excitação sexual é acentuada pelo cheiro a gasolina que paira pesadamente no ar.

 

Recua uns passos para poder observar melhor o que se encontra diante de si. A Cabra submetida ao... domínio absoluto. Ela continua vestida porque ele deseja que se mantenha consciente para melhor se aperceber da degradação por que está a passar. Quer que tenha a percepção de todos os segundos da sua humilhação. Pretende gravar tudo aquilo em fita magnética.

 

Insere uma microcassete nova no gravador que coloca em cima de um banco alto com o estofo do assento rasgado, forrado com um material de plástico preto. Não está preocupado com as impressões digitais que possa deixar. Não faltará muito para que o mundo fique a conhecer a «verdadeira» identidade do Cremador.

 

Não vê razão nenhuma que o impeça de dar prosseguimento ao seu plano. Era possível que Michele tivesse saído de cena, mas continua a ter Angie. Caso ela se saia bem na prova que ele lhe impuser, talvez a leve consigo Mas, caso ela fracasse, então, terá de a matar. Ela não é como Michele o seu complemento perfeito. Michele, a qual estava sempre disposta a fazer tudo o que lhe pedisse, se pensasse que essa aquiescência faria com que ele a amasse. Michele, a qual obedecera às suas instruções nos jogos de tortura a pessoa que o encorajara a incinerar os corpos e que se deleitava nas suas artes e ofícios fazendo tatuagens

 

Sente a falta dela tanto quanto possa sentir a falta de uma pessoa Com um certo distanciamento. Mrs Vetter certamente que sentira mais a falta da sua pequena e horrenda cadela

 

Angie observa-o enquanto ele desaperta o rolo de couro onde guarda todas as ferramentas que prefere usar, abrindo a faixa de couro sobre a mesa A rapariga parece uma personagem tirada de um filme de delinquência juvenil. O aspecto das suas roupas é de desmazelo, a parte das calças de ganga que lhe cobre as coxas está toda rasgada e ensopada em sangue. Continua a empunhar a faca de cozinha e, sub-repticiamente, espeta a ponta da lâmina no polegar, olhando para o sangue que começa a gotejar. Uma putefiazinha completamente passada do juízo

 

Rob olha para os vergões que a tentativa de estrangulamento lhe haviam deixado na garganta. Começa a pensar em todas as maneiras a que ela recorreu para o desafiar ao longo da execução do seu «Grande Plano» Fazendo com que ele parecesse estúpido aquando do primeiro interrogatório, em que se recusara a indicar o nome do bar onde ele a tinha apanhado nessa noite, o que teria dado mais credibilidade à sua história Recusando-se a descrever acuradamente o Cremador ao artista que desenhara o retrato-robô da forma como ele a instruíra. Passara um período considerável de tempo a criar na sua mente a imagem de um assassino fantasma Propositadamente, a rapariga tinha feito uma descrição de tal modo vaga que se ajustava a metade dos homens que viviam nas Twm Cities incluindo o desgraçado Gil Vanlees. A hipótese de Vanlees vir a colher os louros por ser o Cremador inspira-lhe uma fúria enorme E até mesmo depois das tareias selváticas a que ele a sujeitara a partir de quarta-feira, ela recusara-lhe o seu momento perfeito, o da revelação na sala de estar de Kate

 

Quem é que te veio buscar, Angie

 

«Não

 

«Quem é que te veio buscar!»

 

«Não. Recuso-me a fazer isso.»

 

Angie, quem é que te veio buscar? Não. Não me pode obrigar.»

 

Ele instruíra-a para que respondesse: «O Anjo do Mal. O facto de não ter sido ele quem a fora buscar não interessava para o caso, que tivesse sido Michele quem salvara a putéfía insignificante e estúpida, impedindo que se escortinhasse em pedaços no chuveiro, a que limpara a porcaria que ela tinha feito, arranjando maneira de as duas se escaparem furtivamente pela porta das traseiras da Casa Phoenix. Apesar de lhe terem sido dadas instruções, ela atrevera-se a desafiá-las abertamente.

 

Rob Marshall decide que ao fim e ao cabo também a matará, não obstante a cooperação que ela lhe dera na cozinha. A rapariga era demasiado imprevisível.

 

Tenciona matá-la ali. Depois de ter morto a Cabra. Já se imagina possuído de um grande frenesim, sentindo uma euforia desregrada quando matasse a Cabra. Já se vê a atirar a rapariga para cima da mesa, sobre o corpo todo ensanguentado e mutilado, amarrando-a aí onde tenciona fodê-la e estrangulá-la, esfaqueando-lhe o rosto que ficará com um número infinito de golpes. Punindo-a precisamente da mesma maneira como planeia punir a Cabra.

 

A sua intenção é aniquilar as duas, queimando-as em conjunto, ali mesmo, após o que deitará fogo à casa. Já teve o cuidado de preparar o cenário para a cremação; regaria as duas com o catalisador o gás de um aerossol que ele próprio já colocara na garagem da Cabra na noite em que tinha cagado no chão.

 

As fantasias que envolvem os assassínios que se prepara para cometer provocam-lhe uma grande excitação, como acontece sempre com as fantasias de uma forma fundamental em termos intelectuais e sexuais. Os padrões mentais dos da sua espécie: fantasia, fantasias violentas, ao que se seguem os facilitadores que desencadeiam a acção: os assassínios. O ciclo natural da sua vida e a morte da sua vítima.

 

Tomada a decisão, concentra os seus pensamentos no assunto que tem em mãos: Kate Conlan.

 

Kate começa a recuperar a consciência com arrancos espasmódicos, como um televisor cuja recepção de imagem não seja nítida. Conseguia ouvir mas não via. Pouco depois, já tinha alguma visão, embora desfocada; a única coisa de que tinha uma percepção clara era um tocar de sinos horrível nos ouvidos. O único sinal nítido e constante era a dor latejante que sentia na nuca. Absolutamente agonizante. Tinha a impressão de não ser capaz de mexer os braços nem as pernas, perguntando-se se Rob lhe teria fracturado o pescoço ou seccionado a medula espinal. Mas pouco depois apercebeu-se de que conseguia sentir as mãos que lhe doíam horrivelmente.

 

Estava amarrada.

 

O estuque do tecto, o cheiro a poeira, um certo grau de humidade no ar. A cave. Percebeu que estava estendida de braços e pernas abertas sobre a velha mesa de pingue-pongue, na sua própria cave.

 

Um outro cheiro desenquadrado chegou-lhe às narinas, espesso e acre, de algo oleoso. Gasolina.

 

Oh, doce Jesus.

 

Kate fitou Rob Marshall que se encontrava ao fundo da mesa, olhando-a com fixidez. Rob Marshall, um assassino em série. A incongruência que revestia aquela cena fê-la querer acreditar que se tratava de um pesadelo, mas sabia que não era assim. Nos seus tempos de agente especial tivera oportunidade de ver muita coisa. As recordações empilhavam-se na sua memória, quais processos arquivados num armário. O engenheiro da NASA que raptara gente que andava à boleia para lhes drenar o sangue que bebia. O técnico de electrónica, um homem casado e com dois filhos, que guardava na arca congeladora na garagem de sua casa determinadas partes do corpo das suas vítimas. O jovem republicano que estudava direito e que trabalhava como voluntário numa linha de emergência para pessoas com tendências suicidas, o qual veio a revelar-se ser Ted Bundy.

 

A acrescentar a essa lista havia o defensor dos direitos de vítimas e testemunhas, que seleccionava as suas próprias vítimas de entre as pessoas que recorriam a esses serviços. Sentia-se como uma autêntica idiota por não ter desconfiado de nada. embora soubesse que um assassino com o tipo de sofisticação que Joe «Fumacento» demonstrava era do género característico de camaleões perfeitos que a natureza criava. Até mesmo naquelas circunstâncias, Kate recusava-se a pensar em Rob Marshall como sendo um homem dotado daquele tipo de inteligência.

 

Ele despira o casaco, mostrando uma camisola cinzenta de lã ensopada em sangue junto da garganta onde ela o tinha perfurado com a lima das unhas. Mais uns escassos centímetros na direcção certa e ela teria acertado na jugular.

 

Perdi alguma coisa de interesse? perguntou Kate numa voz ainda enrouquecida por ele lhe ter apertado a garganta. Detectou a expressão de surpresa no rosto dele, a confusão que lhe suscitara. Um ponto a favor da vítima.

 

Continuas a ter uma língua afiada ripostou ele. Não és capaz de aprender, minha grande cabra.

 

E porque havia eu de aprender? O que é que me poderás fazer, Rob? Torturar-me e matar-me? perguntou Kate esforçando-se desesperadamente por falar numa voz que não deixasse adivinhar o medo que sentia. Era como se esse medo a mantivesse presa pela garganta, mas foi então que se recordou com outro sobressalto de adrenalina das marcas de aperto que vira na garganta das vítimas. Seja como for, levarás os teus intentos avante, portanto, nada me impede de ter a satisfação de te dizer na cara que és um falhado impotente.

 

De pé num dos lados da mesa, iluminada pelas costas pela luz das velas, empunhando a faca de açougueiro, Angie continha a respiração soltando da garganta um som que metia dó. Agarrava a faca junto do corpo como se fosse um brinquedo precioso que a reconfortasse.

 

A fisionomia de Rob endureceu. De um dos bolsos das calças tirou um canivete, espetando a lâmina até ao cabo na planta do pé direito de Kate, e ela aprendeu muito rápida e dolorosamente qual o preço que ele a obrigaria a pagar pela estratégia que adoptara. Kate soltou gritos lancinantes; todo o seu corpo foi percorrido por espasmos, uma reacção contra as cordas que lhe penetravam na pele dos pulsos e dos tornozelos. Quando voltou a imobilizar-se, ficou com a sensação de que as cordas tinham cedido um pouco, permitindo-lhe mais alguma mobilidade.

 

Concentrou-se de modo a pensar com clareza focando-se em Angie, pensando na expressão que vira não havia muito tempo nos olhos da rapariga, quando se sentira desconcertada pensando que Angie não tinha um olhar vazio, deduzindo que desde que houvesse alguma luz na escuridão continuaria a existir alguma esperança. Ocorreu-lhe a atitude com que a rapariga começara a atirar-se a Rob com a espécie de navalha que não largava.

 

Angie, sai daqui! gritou-lhe Kate na sua voz enrouquecida. Põe-te a salvo!

 

A rapariga retraiu-se lançando a Rob um olhar de nervosismo.

 

Ela não arreda pé daqui! ripostou ele voltando a espetar-lhe o canivete no pé, fazendo com que Kate gritasse outra vez. Ela é minha acrescentou Rob com um olhar ardente, fruto da sensação intoxicante que sentia ao infligir dor.

 

Não me parece retorquiu Kate numa voz entrecortada pela dor. Ela não é estúpida.

 

Não, a estúpida aqui és tu! replicou ele retrocedendo um passo. Tirou um círio delgado e comprido do candelabro que trouxera da sala de jantar, sentando-se em cima da máquina de secar roupa.

 

Porque sei que és uma criatura patética, um ser aberrante que tenta passar por um ser humano?

 

Sou patético; é isso, minha cabra? perguntou ele num tom que não augurava nada de bom, chegando a chama da vela aos dedos do pé direito de Kate, um a um.

 

Instintivamente, ela impulsionou o pé, como se desse um pontapé, tentando afastar o que a atormentava e fazendo com que a vela caísse da mão do homem. Com um gesto brusco, Rob apanhou o círio, praguejando e desaparecendo ao fundo da mesa, momentaneamente fora do ângulo de visão de Kate.

 

Cabra estúpida! vociferou freneticamente. Grande puta, cabra de merda!

 

O cheiro a gasolina chegava com intensidade às narinas de Kate, entranhando-se-lhe na boca; estremeceu ao pensar na perspectiva de ser queimada em vida. A sensação de terror era como um punho que se fechava ao fundo da sua garganta. As dores nos dedos que Rob já tinha queimado eram como algo que possuísse vida própria, como se as chamas tivessem desencadeado uma combustão que não tardaria a alastrar-se por toda a perna.

 

O que é que se passa, Rob? perguntou Kate reprimindo a enorme vontade e necessidade de chorar. Pensei que gostasses do fogo. Tens medo de umas chamazitas?

 

Cambaleando, ele endireitou-se olhando-a com uma expressão de fúria.

 

Eu sou o Cremador! gritou enclavinhando os dedos à volta da vela. Kate apercebia-se da agitação crescente em que ele estava, que adivinhava no ritmo respiratório e nos movimentos descoordenados. Aquilo não estava a correr da maneira como ele imaginara nas suas fantasias.

 

Eu sou superior! vociferou de olhos esbugalhados. Eu sou o Anjo do Mal! Tenho a tua vida nas minhas mãos! Eu sou o teu deus!

 

Kate canalizou as dores que sentia para um sentimento de cólera.

 

És uma sanguessuga. És um parasita. Tu não és ninguém! O mais provável era ela estar a fazer com que ele a esfaqueasse quarenta e sete vezes, extraindo-lhe a laringe que depois deitaria para o triturador do lava-louça de desperdícios orgânicos. Mas foi então que Kate pensou nas fotografias das outras vítimas que ele matara, na cassete em que a voz de Melanie Hessler estava gravada, nas horas de tortura de violações repetidas e de estrangulamento. Estava decidida a arriscar. Quem com ferro matava com ferro morria.

 

Metes-me nojo. meu monte de merda, és um frouxo.

 

O que correspondia à verdade. Sentia vontade de vomitar só de pensar que tinha trabalhado ao lado dele, dia após dia, e de cada vez que ele se entregava a devaneios, esses devaneios centravam-se em fantasias de abusos e brutalidades de natureza sexual, em assassínios precisamente as situações em que supostamente eles deviam tentar ajudar as pessoas que recorriam aos serviços onde trabalhavam, a ultrapassar e a lidar com esses momentos traumáticos.

 

Rob começou a andar de um extremo ao outro do fundo da mesa, resmungando entre dentes, como se estivesse a falar com vozes que ouvia na sua cabeça, apesar de Kate pensar que era improvável ele ouvir alguma voz. Rob Marshall não era um psicótico. Tinha perfeita consciência de todos os seus actos. Tinha a noção clara das suas acções embora, caso fosse apanhado, muito provavelmente tentasse persuadir as autoridades do contrário.

 

Não és capaz de ficar com tusa, a menos que sintas que és o dominador, não é verdade? continuou Kate tentando acicatá-lo. Qual é a mulher que te quereria se não a amarrasses?

 

Cala essa boca! gritou ele. Cala essa cloaca! Atirou-lhe com a vela, não lhe acertando na cabeça por pouco, correndo ao longo do comprimento da mesa de pingue-pongue e agarrando uma faca que estava na mesa ao lado dela, encostando-lhe a ponta da lâmina à laringe. Instintivamente, Kate engoliu em seco, sentindo a ponta do aço a morder-lhe a pele do pescoço.

 

Vou cortá-la! gritou-lhe ele na cara. Vou cortá-la, minha putéfia! Estou tão farto de te ouvir sempre a reclamar! Estou tão farto de ouvir a tua voz!

 

Kate fechou os olhos fazendo um esforço tremendo para não voltar a engolir, mantendo o corpo rígido enquanto ele empurrava a extremidade da pequena faca afiada na sua garganta. Sentiu-se invadida por uma onda de terror. O instinto dizia-lhe que se desviasse num movimento brusco. Mas a lógica dizia-lhe que não se mexesse. Mas então sentiu que a pressão da lâmina era ligeiramente aliviada.

 

Rob olhava fixamente para o gravador que colocara em cima do banco alto. Possivelmente, não quereria ouvir as críticas que ela lhe fizera, embora desejasse ouvir os gritos dela, tal como ouvira os gritos, choro e súplicas de todas as outras mulheres que vitimara. De facto, em relação a ela, possivelmente quereria mais. Mas se lhe cortasse as cordas vocais, tal não lhe seria possível. Se não pudesse ouvir essas manifestações de desespero, o acto de matar perderia todo o seu significado.

 

Tu queres ouvir, não é verdade, Rob? perguntou Kate. Queres poder ouvir mais tarde, ouvir o preciso momento em que eu começar a ter medo de ti, tendo tu passado a assumir o domínio da situação. Não queres desistir desse prazer, pois não?

 

Rob agarrou no gravador aproximando-o da boca de Kate. Largou a faca e agarrou num alicate, pegando num dos mamilos de Kate que começou a apertar brutalmente. Até mesmo através da protecção que a camisola de lã e o soutien lhe proporcionavam, Kate sentiu uma dor aguda que não tardou a ser excruciante; o sofrimento era tanto que não conseguiu conter os gritos. Quando ele finalmente soltou o mamilo, recuou exibindo um sorriso maléfico enquanto erguia o gravador.

 

Aqui tens disse Rob. Gravei os teus gritos. Kate teve a impressão de que passara uma eternidade até que o zunido que lhe ecoava na cabeça começou a atenuar-se. Ela respirava como se tivesse acabado de correr os quatrocentos metros, toda transpirada e a tremer. A visão desfocada, a pouco e pouco, começou a focar-se, permitindo-lhe olhar para Angie, que continuava no mesmo lugar, mantendo a faca junto do corpo. Kate perguntou a si mesma se a rapariga estaria num estado catatónico. Angie era a única esperança que lhe restava, o elo mais fraco no cenário de Rob. Precisava que a jovem tomasse o seu partido, que se mantivesse lúcida e capaz de agir.

 

Angie chamou Kate numa voz estridente. Ele não é o teu dono. Podes fazer-lhe frente. Tu tens vindo a oferecer-lhe resistência, não é verdade? Mentalmente. Kate reviu a situação que se desenrolara no andar de cima, altura em que Rob quisera que Angie descrevesse o que ele lhe tinha feito depois de a ter levado da Casa Phoenix, tendo esta recusado numa atitude de desafio. Atitude que a rapariga já assumira anteriormente, no escritório.

 

Pára de falar com ela! ordenou Rob com as bochechas vermelhas.

 

Estás com medo que ela se vire contra ti, Rob? perguntou Kate, embora adoptasse uma maneira muito menos acintosa do que a que mostrara momentos antes.

 

Cala-te! Ela é minha. E tu também és minha, grande cabra! ripostou ele atirando-se a ela e agarrando-a pela gola da camisola, começando a tentar rasgá-la com as mãos. mas sem muito sucesso. Praguejando por entre a saliva que lhe saía da boca, congestionado e embaraçado, começou a procurar outra faca entre as muitas ferramentas que tão cuidadosamente havia disposto sobre a mesa.

 

És tão dono dela quanto eu sou propriedade tua ripostou Kate lançando-lhe um olhar furioso, esforçando-se por alargar as cordas que a prendiam. E fica ciente de que jamais, nunca por nunca ser, serás meu dono, grande mentecapto!

 

Cala essa boca! vociferou ele voltando-se para trás e dando-lhe uma bofetada na boca com as costas da mão. Cala essa boca! Cala-te! Grande puta de merda!

 

As facas bateram umas contra as outras enquanto ele optava por uma bastante grande. Kate inspirou aquilo que pensou ser, talvez, a sua última golfada de ar, sustendo-a. Rob voltou a agarrá-la pela gola da camisola, cortando-a com a faca, desmanchando a malha com grandes cortes irregulares. A ponta da lâmina feriu a pele de um dos seios de Kate, deslizando-lhe pela barriga e espetando-lhe a anca.

 

Eu vou mostrar-te como é! Eu mostro-te! Angie! gritou Rob numa voz rosnada, cambaleando e fazendo um gesto com a faca na direcção da rapariga. Chega aqui! Vem cá imediatamente! Não esperou que ela lhe obedecesse. Contornou o fundo da mesa de pingue-pongue, agarrou a rapariga por um braço e arrastou-a até junto de Kate.

 

Fá-lo! disse-lhe ao ouvido. Pela Michele. Tu, queres fazer isto pela Michele. Tu queres que a Michele goste de ti, não é verdade, Angie?

 

Michele? Um factor desconhecido, pensou Kate sentindo uma nova vaga de terror a percorrer-lhe o corpo. Quem diabo era aquela Michele e que significado é que ela tinha para Angie? Como é que ela poderia lutar contra um inimigo de ’ que nunca ouvira falar?

 

As lágrimas corriam pelas faces de Angie. O seu lábio inferior tremia descontroladamente. Empunhou a faca de açougueiro com as duas mãos que tremiam.

 

Não faças isso, Angie disse-lhe Kate numa voz que vibrava de medo. Não permitas que ele se sirva de ti desta maneira. Kate não sabia sequer se a rapariga tinha ouvido o que lhe dissera. Pensou no que ela lhe dissera a respeito da «Zona», perguntando-se se naquele momento Angie estaria nesse lugar fictício, tentando escapar àquele pesadelo. E depois, o que é que aconteceria? Agiria ela como se estivesse sob piloto automático? Seria essa Zona um estado de espírito dissociativo? Teria feito com que ela tivesse participado em outras matanças de Rob?

 

Uma vez mais, Kate experimentou alargar as cordas que a manietavam, conseguindo soltar o plástico mais uma fracção de centímetro.

 

Fá-lo! gritou Rob mesmo na cara de Angie. Fá-lo, puta de merda, estúpida! Fá-lo pela tua irmã. Fá-lo por Michele. Tu queres que a Michele goste de ti.

 

Irmã. O cabeçalho do jornal passou pelo pensamento de Kate como se fosse um cometa: Irmãs Ilibadas da Acusação de Terem Morto os Pais Pegando-lhes Fogo.

 

Os olhos porcinos pareciam querer saltar da cabeça feia e redonda. Rob berrava de frustração erguendo a faca que empunhava.

 

Fá-lo

 

A luz reflectiu-se na faca, qual miríade de estrelas, quando a lâmina cortou o ar, perfurando o espaço oco do ombro de Kate, no momento exacto em que conseguiu virar o corpo uns escassos centímetros que foram cruciais. A ponta da lâmina roçou pelo osso tendo ressaltado; a dor que sentiu foi como se tivesse sido atingida por um relâmpago.

 

Fá-lo! berrou Rob uma vez mais a Angie, batendo-lhe na parte de trás da cabeça com o cabo da faca ensanguentada. És uma puta que não vale nada!

 

Não! gritou a rapariga.

 

Fá-lo

 

A chorar. Angie ergueu a faca.

 

A Polícia de Wisconsin tem as impressões digitais da Michele Fine informou Yurek assomando à ombreira da porta do quarto.

 

Entretanto, a equipa de perícia criminal já tinha começado a retirar os fetiches, sob a forma de tatuagens, do vidro da janela, embrulhando-os com todo o cuidado em papel de seda, um a um, e colocando cada um dentro de um pequeno saco de papel.

 

O nome verdadeiro dela é Michele Finlow. O cadastro dela regista uma mancheia de pequenos delitos; também tem um cadastro selado por algo que cometeu quando era de menor idade.

 

Será que esfolar pessoas, como se fossem coelhos, é um crime menor no Wisconsin? perguntou Kovac arqueando o sobrolho.

 

O estado que nos deu o Ed Gein1 e o Jeffrey Dahmer2 comentou Tippen.

 

Tu não és do Wisconsin, Tipi perguntou um dos membros da equipa de perícia criminal.

 

1 Necrófilo que excisava os órgãos sexuais femininos, além de outras partes do corpo, com que decorava a casa na quinta no Wisconsin onde nasceu. Em 1978. quando foi condenado a passar o resto da vida em instituições mentais, não se recordava do número de mulheres de meia-idade que tinha assassinado. (N. da T.)

2 Homossexual responsável pelo assassínio de vários jovens que posteriormente desmembrou. O assassino de Milwaukee foi condenado a quinze penas consecutivas de prisão perpétua num total de 957 anos. Posteriormente foi assassinado na cadeia por outro condenado. (N. da T.)

 

Sim, sim. De Menominie. Queres vir jantar a minha casa no Dia de Acção de Graças?

 

Quinn meteu um dedo na orelha que tinha livre, ouvindo o tocar do telefone que estaria a ouvir-se em casa de Kate; era a terceira vez que ela não atendia no espaço de vinte minutos. O atendedor de chamadas devia ter apanhado o telefonema. Desligou experimentando ligar para o número do telemóvel. Ao fim de quatro toques, a chamada foi encaminhada para o serviço de mensagens. As vítimas e testemunhas a que dava apoio costumavam ligar-lhe por esse telefone. Angie DiMarco tinha conhecimento desse número. Kate não deixaria de atender. Nunca, tendo em vista o quanto ela se sentia responsável pela rapariga.

 

Levou a mão ao estômago esfregando-o; sentia um ardor enorme.

 

Entretanto, Mary Moss juntou-se ao grupo.

 

Uma das vizinhas que vive ao fundo do corredor disse que às vezes via a Michele com um homem baixinho, um fulano careca que usava óculos. Nunca ouviu o nome dele, mas sabe que ele tinha um utilitário preto que numa ocasião fez marcha atrás batendo no automóvel do tipo que vive no Apartamento Três F.

 

Até que enfim! exclamou Kovac erguendo um braço num sinal de vitória. Joe «Fumacento», estás feito!

 

Neste preciso momento, o Hamill já está a falar com o fulano que mora nesse apartamento, colhendo informações relativas ao seguro da viatura em questão.

 

Vamos poder deitar a mão ao Cremador a tempo do noticiário das seis da tarde, e ainda teremos tempo para ir ao Patrick’s durante a happy hour disse Kovac esboçando um sorriso de orelha a orelha. Até que este está a transformar-se num dos meus melhores dias.

 

Hamill entrou apressadamente no apartamento, esquivando-se para não atrapalhar o pessoal da perícia criminal.

 

Vocês não vão acreditar nisto! disse ele dirigindo-se a ninguém em particular do grupo de trabalho. O namorado da Michele Fine era o Rob Marshall.

 

Mas que grande merda!

 

Quinn agarrou Kovac pelo ombro empurrando-o em direcção à porta.

 

Tenho de ir buscar a Kate. Dê-me as chaves. Eu conduzo.

 

Fá-lo! Fá-lo!!!

 

Angie soltou um grito, longo e distorcido, que soou muito à distância até mesmo aos seus próprios ouvidos, como se fosse um gemido que ecoasse ao fundo de um túnel muito extenso. A Zona agigantava-se ao seu lado, uma boca escura desmedidamente aberta. E no outro lado, a Voz adquiriu vida.

 

Es uma putéfia insignificante e estúpida! Faz o que te digo. Não posso! gritou ela.

 

Fá-LO!

 

O medo era como uma bola macia que se lhe alojara na garganta, bloqueando a entrada do ar, engasgando-a, ameaçando estrangulá-la.

 

Ninguém te ama, minha maluca, putéfia insignificante.

 

Tu amas-me, Michele ripostou Angie numa voz miada, sem ter a certeza se proferira as palavras em voz alta ou se haviam sido articuladas apenas na sua mente.

 

FÁ-LO.

 

Fá-llo. Angie olhava, hipnotizada, para Kate.

 

A Zona acercava-se dela. Sentia a respiração ardente da coisa. Podia cair dentro dela para nunca mais sair. Ficaria em segurança.

 

Ficaria sozinha. Para todo o sempre.

 

Fá-LO!

 

Sabes o que fazer, Anjo. Faz o que te dizem, Anjo. O corpo de Angie tremia descontroladamente. Cobarde!

 

Tu podes salvar a Michele, Angie. Faz isso pela Michele.

 

Baixou o olhar até Kate, observando o ponto no peito onde supostamente deveria espetar a faca. Tal como Michele tinha feito. Vira a irmã fazer isso. Ele obrigara-a a assistir; durante esse acto ele e ela haviam ladeado a mulher, um de cada lado, firmando o seu pacto, selando a união que os ligava, jurando o amor que os unia. Tinha sido uma cena que aterrorizara Angie, provocando-lhe náuseas. Michele rira-se dela, após o que a entregara a ele para que tivesse relações sexuais com a irmã.

 

Ele magoara-a. Ela tinha-o odiado. Michele amava-o. Ela amava Michele.

 

Ninguém te ama minha maluca putéfia insignificante. Isso fora tudo o que Angie sempre quisera, alguém que se interessasse por ela, alguém que impedisse que ficasse sozinha. No entanto, só tinha recebido maus tratos, os outros tinham-se servido dela até mesmo Michele procedera dessa maneira, apesar de ter feito com que ela não se sentisse sozinha Mas Michele amara-a Amor e ódio Amor e ódio Amor-e-ódio, amor-e-ódio amor-e-ódio Na perspectiva de Angie, não havia uma linha que delimitasse os dois. Ela tinha amado Michele, quisera salvá-la. Michele fora tudo o que tinha

 

Fá-lo! mata-a. MATA-A. Baixou o olhar fitando Kate que se esforçava por libertar-se das cordas, com o terror espelhado no rosto

 

«Por que razão se interessa com o que possa acontecer comigo^»

 

«Porque mais ninguém se interessa»

 

Tenho muita pena disse Angie numa voz choramingada

 

Angie, não faças isso.

 

Dá-lhe uma facada Agora.

 

A pressão dentro de Angie era tremenda A pressão que lhe vinha de fora ainda era maior. Sentia-se como se os seus ossos estivessem prestes a fragmentar-se, esse peso esmagá-la-ia, e depois a Zona sugaria tudo o que restasse dela fazendo com que desaparecesse para sempre

 

Talvez fosse melhor assim. Pelo menos, deixaria de sofrer

 

Fá-lo ou deixarei com que a puta da tua irmã morra. vociferou ele Mata-a ou acabarei com a vida da Michele diante de ti. Fá-LO.

 

Angie amava a irmã. Estava nas mãos dela salvar a irmã. Ergueu a faca

 

NÃO’

 

Kate susteve a respiração preparando-se para o pior mas sem nunca afastar o olhar de Angie

 

A rapariga soltou um grito que não era humano enquanto elevava a faca de açougueiro acima da cabeça, empunhando-a com as duas mãos, mas então contorceu o corpo e lançou a faca contra o pescoço de Rob Marshall

 

O sangue começou a jorrar como que de um géiser enquanto ela puxava a faca num gesto violento. Havia sangue nas paredes, em cima da mesa de bilhar, no corpo de Kate. esguichando como que de uma mangueira de bombeiros que ninguém manejasse. Rob cambaleou para trás, perplexo, levando as mãos ao ferimento; o sangue escorria-lhe por entre os dedos.

 

Angie continuou a gritar, esfaqueando-o outra vez, atingindo-o nas mãos e golpeando-lhe o peito. Enquanto ele recuava a cambalear, tentando escapar, mas ela ia atrás dele. Rob ainda tentou gritar por socorro ou por misericórdia mas sufocou devido ao seu próprio sangue; da garganta saíam-lhe apenas sons gorgolejantes. Os joelhos cederam e tombou contra a máquina de secar roupa, derrubando o candelabro, que caiu no chão.

 

Angie retrocedeu ficando a olhá-lo fixamente durante uns momentos, como se não fizesse a mínima ideia de quem ele era, ou como é que caíra no chão com o que lhe restava de vida a esvair-se com o sangue, enquanto gorgolejava e se engasgava. Pouco depois. Angie olhou para a faca e para as mãos cobertas de sangue peganhento e, em movimentos lentos, virou-se para Kate.

 

Quinn conduzia sem qualquer respeito pelas regras do trânsito ou pelas leis da física, impelido por um sentimento crescente de pânico que se alojara nas suas entranhas. Kovac agarrava-se ao fecho da porta do automóvel, tendo gritado a Quinn mais de uma vez enquanto este manobrava o volante do Caprice, esgueirando-se por entre os outros carros.

 

Se ele for esperto, já se terá posto a andar da cidade disse Kovac.

 

A esperteza não tem nada a ver com a questão retorquiu Quinn em voz alta para se fazer ouvir acima do barulho ensurdecedor do motor. Ele designou a Kate para trabalhar neste caso como sendo parte da sua jogada. Matou a Melanie Hessler porque ela tinha sido uma das vítimas cujos interesses a Kate defendeu. Deixou uma espécie de cartão-de-visita no chão da garagem há umas noites atrás. Ele não abandonará a cidade até ter resolvido a disputa entre os dois.

 

Quando o carro derrapou antes de estacionar em frente da casa de Kate, Quinn viu a luz acesa no vestíbulo. A luz filtrava-se através dos cortinados de tecido fino dos painéis de vidro que ladeavam a porta, vidraças que ela nunca deveria ter instalado. Antes que o automóvel tivesse parado por completo, pô-lo em ponto morto com um gesto brusco; da transmissão veio um barulho pouco animador. Saiu do Caprice antes mesmo de este ter parado de oscilar, correndo em direcção à casa ao mesmo tempo que dois carros-patrulha chegavam com as sirenas a soarem estridentemente pela rua fora. Num passo apressado, subiu os degraus do alpendre batendo à porta com toda a sua força, experimentando a maçaneta; estava trancada por dentro.

 

Kate! Kate! chamou em voz alta encostando a face a um dos painéis laterais de vidro. A mesinha do vestíbulo estava parcialmente tombada. O que estivera em cima do tampo fora derrubado ou caíra para o chão. A carpete tinha uma ponta dobrada.

 

Kate!

 

Não! O grito que ecoou pela casa, vindo não sabia de onde, percorreu-lhe o corpo qual lâmina de aço.

 

Quinn arrancou a caixa do correio fixa à parede, servindo-se dela para estilhaçar o painel de vidro quando Kovac chegava ao alpendre a correr. Alguns segundos depois, ambos já estavam dentro de casa. Os olhos de Quinn detiveram-se numa mancha de sangue na parede junto do escritório.

 

Kate!

 

Angie! NÃO! O grito dela ecoou vindo de algures do fundo da casa.

 

Angie virou a faca nas mãos ensanguentadas, olhando fixamente para a lâmina. Deixou que a ponta aguçada lhe aflorasse a pele frágil do pulso.

 

Angie, não! gritou Kate, debatendo-se num esforço para se libertar das cordas que a imobilizavam. Não faças isso! Por favor, não faças isso! Vem cá e corta-me estas cordas. Depois trataremos de arranjar quem te ajude. Kate não conseguia ver Rob, mas sabia que ele estava no chão, amarfanhado, perto da máquina de secar roupa. Ouvia os sons gorgolejantes que saíam da garganta dele. Quando caíra, Rob tinha tombado o candelabro; as chamas propagaram-se a alguma da gasolina que ele devia ter derramado quando Kate estivera inconsciente. Entrou em combustão com um som sibilante.

 

As labaredas haviam de seguir o rastro do combustível procurando algo mais que pudesse arder. A cave estava atulhada de possibilidades caixas cheias de bugigangas que os pais haviam guardado e abandonado, coisas que Kate tivera a intenção de deitar fora, mas que nunca chegara a fazer e em que se incluíam as obrigatórias latas de tinta meio cheias e outras substâncias químicas inflamáveis.

 

Angie! Angie! chamou Kate numa tentativa para atrair a atenção da rapariga. Angie mantinha-se imóvel observando o rosto da sua própria morte.

 

A Michele deixará de me amar murmurou a rapariga olhando para o homem que tinha acabado de matar. Na entoação da sua voz adivinhava-se um sentimento de desilusão, como se fosse uma criança que tivesse escrito numa parede com lápis de cera, para só depois se dar conta de que as consequências não seriam agradáveis.

 

Kate! gritava a voz de Quinn vinda do piso térreo. Angie dava a impressão de não ouvir os gritos nem o barulho dos passos pesados de homens corpulentos. Encostou a lâmina da faca, no sentido do comprimento, ao sombreado de uma veia do seu pulso.

 

Kate!

 

Ela tentou gritar: «Estou na cave!»; a voz saiu-lhe tão fraca que mal se conseguia ouvir a si mesma. As chamas propagaram-se a uma caixa de cartão que continha roupa, a qual se destinava, uma coincidência estranha, à Casa Phoenix; as labaredas começaram a consumi-la rapidamente demasiado próximas da mesa de pingue-pongue. Kate contorceu o corpo uma vez mais tentando em vão libertar-se das cordas, conseguindo apenas apertá-las ainda mais à volta dos pulsos e dos tornozelos. Estava a ficar com as mãos entorpecidas.

 

Tentou aclarar a garganta de modo a poder falar. O fumo evolava-se escuro e espesso das caixas.

 

Angie, ajuda-me. Se me ajudares eu poderei ajudar-te. O que é que te parece?

 

A rapariga continuava a olhar fixamente para a faca.

 

O detector de fumo no cimo das escadas, finalmente, entrou em acção; de imediato, ouviu-se o som de passos que se abeiravam do dispositivo de alarme.

 

Angie fez um pouco mais de pressão com a lâmina da faca contra o pulso. À superfície da pele começaram a surgir umas gotículas de sangue, como pequenas pedras preciosas numa pulseira.

 

Angie, não, por favor pediu Kate numa voz sussurrada, sabendo que a rapariga não a teria ouvido ainda que tivesse conseguido gritar.

 

Angie olhou-a bem de frente e, pela primeira vez desde que a conhecera, Kate viu o que ela era realmente: uma criança. Uma criança que nunca ninguém quisera, que nunca fora amada por ninguém.

 

Tenho dores disse ela.

 

Ligue imediatamente para os bombeiros! gritou Quinn ao cimo das escadas. Kate!

John... A voz de Kate não lhe permitiu mais; começou a tossir. O fumo elevava-se até ao tecto e espalhava-se pelas escadas em direcção à fonte de ar fresco.

 

Kate! Quinn começou a descer os degraus empunhando um revólver que Kovac lhe emprestara; o receio que sentia obliterava todas as regras de procedimento conhecidas. Quando desceu abaixo do manto de fumo, a sua atenção concentrou-se imediatamente em Kate, amarrada de pés e mãos à mesa de pingue-pongue, com a camisola de lã cortada e o sangue a escorrer-lhe da pele. Mas depois a sua atenção foi atraida pela rapariga ao lado da mesa: Angie DiMarco, que tinha nas mãos uma faca de açougueiro.

 

Angie, larga a faca! gritou ele.

 

A rapariga olhou-o; o brilho nos seus olhos parecia querer sumir-se.

 

Ninguém me ama disse ela e num movimento rápido e violento deu um golpe no pulso que chegou ao osso.

 

NÃO! berrou Kate.

 

Jesus! exclamou Quinn, atónito, atravessando a cave num passo rápido, de arma em riste.

 

Angie deixou-se cair de joelhos enquanto o sangue lhe jorrava do braço. A faca caiu no chão. Quinn deu-lhe um pontapé afastando-a para o lado após o que se pôs de joelhos, agarrando a rapariga por um braço com toda a força da sua mão. O sangue começou a sair em golfadas por entre os seus dedos. Angie tombou desamparada contra o corpo do agente especial.

 

Kate observava tudo aquilo com uma expressão horrorizada, sem sequer se aperceber da presença de Kovac, que entretanto cortava as cordas que a prendiam. Rolou para fora da mesa levantando-se logo sobre uns pés que não sentia, caindo por terra desamparada. Teve de rastejar até junto de Angie. As mãos eram-lhe tão inúteis quanto bastões, todas inchadas e roxas; não conseguia obrigar os dedos a mexer. Mesmo assim, colocou os braços em redor da rapariga.

 

Temos de a levar daqui para fora! gritou a Quinn. As chamas já se haviam alastrado às escadas da cave.

 

Um agente de uniforme começara a combatê-las com um extintor portátil. Mas apesar de ter conseguido apagar as labaredas que lambiam os degraus, estas propagavam-se por toda a cave, alastrando pelo rastro de gasolina, consumindo tudo o que fosse combustível.

 

Quinn, ajudado por outro polícia de uniforme, subiu as escadas levando Angie; chegaram ao piso térreo e saíram pela porta das traseiras. As sirenas ecoavam estridentemente pela rua, embora ainda estivessem a dois quarteirões de distância. Entregou a rapariga aos cuidados de um agente de uniforme, correndo de volta à casa deparando-se-lhe Kovac que amparava Kate, que de outro modo não conseguiria andar; os dois tossiam devido ao fumo espesso que se evolava atrás de ambos, um cheiro acre devido às substâncias químicas.

 

Kate!

 

Ela tombou contra Quinn, que a apanhou nos seus braços.

 

Vou voltar à cave para ir buscar o Marshall! gritou Kovac acima do barulho. As chamas já tinham atravessado a porta, propagando-se à gasolina que Rob derramara por toda a casa.

 

Ele está morto! gritou Kate, mas Kovac já tinha começado a descer as escadas. Sam!

 

Um dos polícias de uniforme foi apressadamente atrás do detective.

 

As sirenas continuavam a ouvir-se próximas da casa. vindas dos carros dos bombeiros que percorriam a rua estreita. Quinn conseguiu descer os degraus da porta das traseiras com Kate nos braços, contornando a parte lateral da casa até ao relvado da frente e saindo para a rua. Pousou-a no assento de trás do automóvel de Kovac, precisamente no momento em que se ouviu o estrondo de uma explosão na cave; os vidros das janelas do piso térreo partiram-se em estilhaços. A cambalear, Kovac e o agente surgiram na esquina das traseiras da vivenda, deixando-se cair na neve sobre as mãos e os joelhos. Os bombeiros e os paramédicos correram apressadamente em direcção aos dois, que continuavam perto da casa.

 

Estás bem? perguntou Quinn prendendo o olhar no de Kate, com os dedos a apertarem-lhe os ombros.

 

Kate olhou para a sua casa onde as chamas já eram visíveis através das janelas do rés-do-chão. Atrás do carro de Kovac via-se uma ambulância para onde Angie estava a ser levada. O medo e o pânico, que ela se esforçara tanto por manter afastados de si durante toda aquela tragédia, só naquele momento é que se fizeram sentir, qual vaga que tivesse chegado repentinamente.

 

Não respondeu Kate num murmúrio, voltando-se para Quinn a tremer com os olhos marejados de lágrimas. Ele abraçou-a carinhosamente tomando-a nos seus braços.

 

 

Eu nunca gostei dele dizia Yvonne Vetter ao agente de uniforme que se mantinha de guarda à porta da garagem da casa que fora de Rob Marshall. A mulher quase se perdia dentro de um casaco de malha cheio de borbotos; parecia que tinha o corpo deformado. Os olhos no rosto de formato redondo, com uma expressão azeda, olhavam-no de esguelha por baixo de uma boina vermelha de aspecto incongruentemente espalhafatosa. Telefonei várias vezes para o vosso número especial. Estou em crer que ele comeu a minha Bitsy, «canibalizou-a».

 

O que é que disse, minha senhora?

 

A minha Bitsy. A minha cadelinha que era tão amorosa.

 

Não será antes «animalizou-a?» aventou Tippen. Liska deu-lhe uma cotovelada discreta num braço.

 

O grupo de trabalho passaria uma primeira vista de olhos pela câmara dos horrores de Rob antes de iniciarem a recolha de provas. O técnico de vídeo seguiu logo atrás deles. Quando se preparavam para entrar em casa, os veículos das equipas dos meios de comunicação social aproximavam-se do passeio de ambos os lados da rua.

 

A casa era acolhedora, situada numa área residencial tranquila em que a vizinhança era gente pacata. Estava localizada num lote de terreno mais extenso do que a maioria e em que havia muitas árvores, próximo de um dos lagos mais populares das Twin Cities. Tinha uma cave com uns acabamentos primorosos. Qualquer agente de bens imobiliários ficaria babado perante a oportunidade de poder comercializar aquela vivenda, não fora o facto de Rob Marshall ter torturado e assassinado no seu interior pelo menos quatro mulheres.

 

Começaram pela cave, inspeccionando uma sala dotada de equipamento topo de gama: vários televisores, aparelhos de vídeo, aparelhagem estereofónica e uma estante repleta de cassetes de vídeo e áudio.

 

Não comece a filmar já a aparelhagem estereofónica disse Tippen dirigindo-se ao técnico de vídeo. Estou a precisar de um equipamento deste género.

 

De imediato, o técnico ligou a câmara de vídeo filmando o equipamento em questão.

 

Foi apenas uma brincadeira acrescentou Tippen com os olhos em alvo. Vocês, os coca-bichinhos da tecnologia não têm nenhum sentido de humor.

 

O técnico de vídeo assestou a câmara de filmar de forma a abranger o traseiro de Tippen quando esta se afastou.

 

Num dos cantos da sala havia um manequim sem cabeça, a quem alguém vestira um soutien exíguo de renda preta transparente e uma mini-saia de um tecido elástico vermelho.

 

Ei, Tinks, podias escolher algumas fatiotas novas disse Tippen na brincadeira examinando uma substância pegajosa num dos ombros do manequim. Possivelmente, tratar-se-ia de sangue misturado com outro fluido qualquer mais translúcido.

 

Liska continuava ao fundo do corredor a inspeccionar uma arrecadação, terminando pouco depois. Os seus filhos teriam adorado aquela casa. Falavam constantemente em viverem numa casa como a do amigo Mark, com uma bela sala de jogos na cave onde poderiam escapar à vigilância da mãe, com uma mesa de bilhar e um televisor com um ecrã gigantesco.

 

Naquela cave também havia uma mesa de bilhar ao fundo do corredor. Em cima do feltro estava um corpo coberto por um plástico branco ensanguentado. O cheiro a sangue misturado com urina e excrementos pairava pesadamente no ar. O fedor de morte violenta.

 

Tippen! chamou Liska dirigindo-se apressadamente para a mesa.

 

Míchele Fine estava deitada de costas com o corpo contorcido num ângulo estranho, olhando fixamente para a luz que incidia fortemente sobre o seu rosto. Não pestanejava. Os seus olhos mostravam a expressão vidrada de um cadáver. Tinha a boca aberta; o fio de saliva que lhe escorrera da boca até ao queixo secara, esbranquiçado. Os seus lábios mexiam-se quase imperceptivelmente.

 

Liska inclinou-se para baixo, aproximando-se mais e colocando dois dedos na região lateral do pescoço de Fine, tentando detectar quaisquer indícios de uma pulsação cardíaca que não conseguiu encontrar.

 

orram... me... judem... me... Fragmentos de palavras numa respiração prestes a apagar-se.

 

Merda! exclamou Tippen que chegou à cave num passo apressado, imobilizando-se de repente.

 

Chama uma ambulância pediu Liska num tom autoritário. É possível que ela consiga sobreviver o tempo suficiente para nos contar o que se passou aqui.

 

 

Eu não queria cooperar dizia Angie em voz baixa.

 

Aquela não era a sua voz habitual. O pensamento passou-lhe vagamente pelo cérebro, como que numa nuvem, entorpecido pelos sedativos. Parecia-se com a voz da garotinha que vivia dentro de si, aquela que ela sempre se esforçara por esconder, protegendo-a. Ficou a olhar fixamente para a ligadura que lhe envolvia o braço esquerdo; o desejo que tinha de a tirar para que o sangue voltasse a brotar existia furtivamente no limiar sombrio da sua mente.

 

Eu não queria fazer o que ele me dizia. Esperou que a Voz começasse a escarnecer dela, todavia, esta manteve-se estranhamente silenciosa. Ficou à espera de ver a Zona fazer-lhe o cerco, mas os medicamentos mantinham-na à distância.

 

Angie estava sentada a uma mesa numa sala que, em princípio, devia ter um ambiente semelhante ao resto de um hospital. Vestia uma bata com um padrão de flores azuis com mangas curtas, revelando os braços magros com várias cicatrizes para quem os quisesse ver. Começou a examinar as cicatrizes, uma ao lado da outra, como barras de ferro da porta de uma cela prisional. Marcas que ela tinha golpeado na sua própria carne. Marcas que a vida deixara na sua alma. Uma lembrança constante que jamais lhe permitiria esquecer totalmente quem era e o que era.

 

Foi o Rob Marshall quem te levou para o parque nessa noite, Angie? perguntou Kate numa voz tranquila. Também estava sentada à mesa ao lado de Angie; virara a cadeira de forma a poder ficar de frente para a rapariga. O cliente de quem me falaste era ele?

 

Angie acenou que sim, continuando a olhar para as suas cicatrizes.

 

O seu «grande plano» replicou numa voz murmurada. Queria tanto que os medicamentos lhe obscurecessem as recordações, mas as imagens continuavam tão vívidas na sua memória como se estivesse a vê-las num televisor. Sentada na carrinha, sabendo que o corpo da mulher morta se encontrava na parte de trás, sabendo que o homem que estava sentado ao volante a tinha assassinado, ciente de que Michele também participara nesse crime. Em pensamento, via os dois a esfaquearem a mulher, infligindo-lhe cortes sucessivos, apercebendo-se da excitação sexual dos dois que aumentava à medida que iam desferindo os golpes. Depois do assassínio consumado, Michele entregara-a a ele. Nessa mesma noite, ele possuíra-a outra vez no parque, excitado por causa da mulher morta que sabia estar na carrinha e do seu «Grande Plano».

 

Ele deu-me instruções para que descrevesse outra pessoa à polícia.

 

Como sendo o assassino? perguntou Kate.

 

Uma pessoa que ele inventou. Todos os pormenores. Ele obrigou-me a repeti-los não sei quantas vezes. Angie pegou numa ponta de fio solto da ligadura, desejando que o sangue repassasse das camadas de gaze branca. Essa visão tê-la-ia confortado, fazendo com que se sentisse menos odiosa sentada ao lado de Kate. Depois de tudo o que tinha acontecido, sentia-se incapaz de a encarar de frente.

 

Odeio-o!

 

O verbo dito no presente, notou Kate. Como se não soubesse que ele estava morto, que o tinha liquidado. Talvez não tivesse essa percepção. Talvez o seu subconsciente lhe concedesse ao menos essa única consolação.

 

Também o odeio disse Kate numa voz suave. Os factos a respeito de Rob e das irmãs Finlow tinham começado a chegar do Wisconsin, peças que formavam uma história sórdida e terrível que a população dos Estados Unidos iam recebendo por episódios todas as noites através dos noticiários televisivos. O aspecto sórdido que envolvia assassinos que eram amantes, assim como a queda de um multimilionário, propiciavam níveis de audiência muito apetecíveis. Michele Finlow, que estivera entre a vida e a morte durante dez horas depois de a terem encontrado na cave da casa de Rob, preenchera alguns dos espaços em branco. Por seu lado, Angie forneceria alguns fragmentos que a mente lhe permitisse

 

Embora irmãs, eram filhas de homens diferentes, e de uma mãe com um historial de toxicodependência, a par de uma vida doméstica desgraçada sob vários aspectos, Michele e Angie tinham passado grande parte da sua curta vida nos meandros do sistema de assistência social para a infância, sem nunca terem beneficiado dos cuidados de ternura de que tão carenciadas estavam Crianças que se escapavam involuntariamente pelas malhas da rede do sistema que, na melhor das hipóteses, enfermava de muitos defeitos. Tanto uma como a outra tinham cadastro por delinquência juvenil, sendo que o de Michele era mais alongado, denotando mais tendências para um comportamento violento

 

Kate lera os artigos publicados aquando do incêndio que vitimara a mãe e o padrasto das duas. O consenso geral entre os investigadores policiais que haviam sido responsáveis pelo caso era de que uma das raparigas, ou ambas, tinham dado origem ao fogo, contudo, não haviam sido recolhidas provas imcriminatórias suficientes para as levar a tribunal. Uma das testemunhas recordara-se de ter visto Michele, calmamente, no jardim, enquanto a casa era pasto das chamas, ouvindo os gritos das duas pessoas que estavam encurraladas no interior. De facto, ela até se encontrava demasiado perto de uma das janelas, tendo ficado queimada quando os vidros explodiram, dando passagem às labaredas que consumiam o oxigénio fresco no lado de fora da casa. O caso levara Rob Marshall à vida das duas jovens pelo sistema jurídico. Fora Rob quem trouxera as duas raparigas para Mineapolis

 

Amor Pelo menos, na óptica de Michele, apesar de ser bastante duvidoso que ela tivesse tido uma noção verdadeira quanto ao significado da palavra. Nenhum homem apaixonado abandonaria a sua amada sozinha, condenando-a a uma morte horrível na cave da sua casa enquanto ele se preparava para fugir do país, exactamente o que Rob teria feito se não tivesse sido impedido

 

A bala disparada por Peter Bondurant atingira Michele nas costas, seccionando-lhe a medula espinal. Rob, que observara a cena à distância, esperou que Bondurant se afastasse, após o que pegou em Michele levando-a para sua casa. O caso de qualquer pessoa, com um ferimento provocado por bala, que desse entrada nos serviços de urgência de um hospital qualquer, teria de ser automaticamente participado à Polícia. Ele não estivera disposto a arriscar-se a uma situação dessas, nem sequer para salvar a vida daquela mulher que, alegadamente, estava apaixonada por ele.

 

Deixara-a abandonada em cima da mesa onde ambos tinham concretizado as suas fantasias de natureza sádica e doentia; onde tinham assassinado quatro mulheres. Não hesitara em deixá-la paralisada, em estado de choque, a sangrar até à morte. Nem sequer se dera ao incómodo de a cobrir com um cobertor. O dinheiro da chantagem fora recuperado depois de ter sido encontrado na viatura de Rob.

 

De acordo com o que Michele dissera, Rob tinha começado a ter uma fixação por Jillian devido a uma questão de ciúmes, mas Michele dissuadira-o dessa obsessão. Então, nessa noite trágica de sexta-feira, Jillian telefonara à amiga de uma cabina pública porque ficara sem carga no telemóvel. Queria conversar sobre a discussão que tivera com o pai. Precisara do apoio de uma amiga. Mas a amiga não vacilara em entregá-la nas mãos de Rob Marshall.

 

A Michele ama-o disse Angie, continuando a tirar os fios da ligadura. Os seus lábios franziram-se num trejeito de desagrado, acrescentando: Mais do que a mim.

 

Mas Michele fora tudo o que ela possuíra, a sua única família, a mãe substituta, consequentemente, tinha feito sempre tudo o que a irmã lhe pedira. Kate perguntava-se o que é que se passaria na mente de Angie quando, finalmente, lhe dissessem que Michele morrera, que ficara sozinha a coisa que ela mais temia.

 

Ouviu-se um leve bater à porta, o que significava que o tempo de que Kate dispusera como visita chegara ao fim. Quando saísse, seria interrogada sem tréguas pelas pessoas que se encontravam do outro lado do vidro, observando o que se passara na sala. Sabin, o tenente Fowler, Gary Yurek e Kovac que voltara a cair nas boas graças de todos depois de ter sido o herói nas notícias aquando do incêndio que devorara a casa de Kate: a fotografia dele e de Quinn, levando-a para fora pela porta das traseiras da vivenda, merecera honras de primeira página nos dois jornais diários das Twin Cities, além de ter sido capa da Newsweek. Acreditavam que ela se encontrava ali a pedido deles. Todavia, ela não fizera a Angie as perguntas que eles queriam ver respondidas, não tendo exercido pressão nenhuma nesse sentido. Não fora àquela enfermaria psiquiátrica, fechada a sete chaves, com a finalidade de explorar Angie Finlow. Tal como não fora na qualidade de defensora dos direitos da jovem. Fora isso sim, com a intenção de visitar alguém com quem partilhara uma tragédia. Alguém cuja vida estaria para sempre ligada à sua de uma maneira como jamais outra pessoa estaria ligada a si.

 

Estendeu a mão por cima do tampo da mesa, tocando com afecto na de Angie, tentando mantê-la no presente, encorajando-a a fazer parte daquele momento. As suas próprias mãos ainda estavam um pouco descoloridas e inchadas; as marcas que as cordas lhe haviam deixado nos pulsos também se encontravam tapadas com ligaduras de um branco imaculado. Tinham decorrido três dias desde o incidente em sua casa.

 

Não estás sozinha, miúda segredou Kate num timbre de voz cheio de suavidade. Não podes salvar a minha vida para depois desapareceres assim sem mais nem menos. Podes crer que a partir de agora tenciono ficar de olho em ti. Aqui está uma pequena lembrança disso mesmo.

 

Com a habilidade própria de um ilusionista, fez deslizar a coisa que tinha na mão para a de Angie. O anjo de cerâmica em miniatura que Angie furtara da secretária no seu gabinete e que, posteriormente, deixara na Casa Phoenix.

 

Angie ficou a olhar fixamente para a pequena figurinha, um anjo da guarda num mundo onde essas coisas não existiam verdadeiramente ou pelo menos era o que a rapariga sempre pensara. A necessidade de acreditar era de tal forma forte naquele momento que ela se sentia aterrorizada, o que a levava a recolher-se no lado sombrio da sua mente a fim de escapar ao medo. Era preferível acreditar em nada do que esperar pela desilusão inevitável que se abateria sobre si, qual machadada.

 

Angie fechou a mão em redor da figurinha, agarrando-a como quem agarrava um segredo. Cerrou os olhos e a mente, sem sequer se aperceber das lágrimas que lhe corriam de mansinho pelas faces.

 

Kate pestanejou para afastar as suas próprias lágrimas, levantando-se lenta e cautelosamente da cadeira. Levou uma mão à cabeça de Angie, afagando-lhe os cabelos, inclinou-se e depositou-lhe o mais suave dos beijos no cimo da cabeça.

 

Voltarei mais tarde murmurou à jovem; pegou nas canadianas e num passo pouco firme dirigiu-se para a porta, resmungando consigo própria. Calculo que depois disto tudo, vou ter de parar de dizer que não trabalho com miúdos. Aquela ideia veio acompanhada de uma onda de emoções que, naquele dia, ela, muito simplesmente, não estava com forças para encarar. Felizmente, teria pela frente muitos amanhãs que poderia dedicar a esse assunto.

 

Quando saiu para o corredor, a porta que dava para a pequena sala de observação abriu-se de imediato, dando saída a Sabin, Fowler e Yurek, que mostravam uma expressão frustrada. Kovac vinha atrás deles com um sorriso de escárnio onde se lia: «Olhem-me bem para estes palhaços.» Ao mesmo tempo, apareceu no corredor um homem baixo, bem-parecido e com uma aparência de latino, que usava um fato antracite que deveria ter custado três mil e quinhentos dólares, o qual vinha a bufar com o cenho franzido, dirigindo-se a eles na companhia de Lucas Brandt.

 

Estiveram a falar com a rapariga sem a presença de um advogado? perguntou num tom autoritário.

 

Kate brindou-o com um olhar capaz de gelar qualquer pessoa.

 

Vocês não podem levar isto por diante sem que a competência mental dela seja previamente determinada acrescentou Brandt dirigindo-se a Sabin.

 

Não me diga como desempenhar as minhas funções ripostou Sabin com os ombros descaídos, como se estivesse a preparar-se para erguer os punhos. O que é que está a fazer aqui, Costello?

 

Estou aqui em representação da Angie Finlow a pedido de Peter Bondurant.

 

Anthony Costello, o advogado untuoso dos ricos e famosos.

 

Kate quase desatou a rir-se. Quando estava a pensar que não existia nada que a pudesse espantar... Peter Bondurant estava disposto a arcar com a despesa dos honorários de um advogado que defendesse os interesses de Angie. Seria uma espécie de compensação por ter disparado contra as costas da irmã da rapariga? Uma boa medida no campo das relações públicas por parte de um homem que teria de se apresentar em tribunal, defendendo-se das acusações que lhe seriam feitas’ Ou, muito simplesmente, talvez desejasse, de certo modo, reparar a anormalidade que reinara na vida da filha, ao ajudar Angie a endireitar uma vida que sempre fora de infelicidade Carma

 

Tudo o que ela lhe possa ter dito é confidencial. acrescentou Costello desabridamente dirigimdo-se a Kate

 

Eu vim aqui com o único objectivo de visitar uma amiga redarguiu Kate pouco firme nos pés, permitindo que o homem desse largas à sua fúria

 

Um novo acto para benefício do circo mediático

 

Ei, Ruiva

 

Kate virou-se para trás, parando quando Kovac começou a aproximar-se. O aspecto era de quem adormecera ao sol na praia. Tinha a face muito avermelhada, como se tivesse estado exposto aos raios solares durante muito tempo. As suas sobrancelhas eram um par de hífenes empalidecidos, todas chamuscadas. O indispensável bigode de polícia tinha desaparecido, dando-lhe uma aparência mais jovem

 

O que é que achas das muletas perguntou ele numa voz esganiçada, tentando conter um ataque de tosse. Os efeitos a posterior da inalação de fumos

 

Isto está cada vez mais curioso

 

O Quinn já voltou?

 

Só amanhã

 

O agente especial regressara a Quântico a fim de dar o caso por concluído, e para exercer o seu direito a gozar o único feriado que tivera ao longo de cinco anos o Dia de Acção de Graças

 

Então, esta noite vais até lá casa?

 

Não me parece, Sam respondeu Kate com uma careta. Não estou a sentir-me muito sociável

 

Kate acrescentou Kovac com uma expressão de repreensão. Trata-se do velório do peru. Eu serei a porra do bispo, por amor de Deus’ Temos muita coisa que merece ser celebrada

 

O que era verdade, mas a perspectiva de um galináceo no forno não era coisa que a excitasse por aí alem, para não mencionar a companhia, um grupo de polícias bêbedos e funcionários do tribunal a dizerem grosserias Depois de tudo o que lhe acontecera, os meios de comunicação social a que ela tivera de fazer face ao longo dos últimos dias, era a ultima coisa que a seduziria

 

Vou pôr-me a par das notícias disse Kate. Com um suspiro saído bem do fundo. Kovac desistiu,

 

encarando com seriedade a razão que o levara a afastar-se da matilha.

 

Foi um caso que nos deu água pela barba. Portaste-te muito bem, Ruiva acrescentou, assomando-lhe ao canto da boca o esgar sorridente que lhe era tão habitual. Para civil, até que não estás nada mal.

 

Vai-te lixar, Kovak retorquiu Kate com uma careta sorridente. A cambalear abeirou-se mais dele, inclinou-se para a frente e pespegou-lhe um beijo na bochecha. Obrigada por me teres salvo a vida.

 

Sempre ao teu dispor.

 

No dia anterior, a cidade de Minnesota beneficiava dos efeitos de uma frente quente, oferecendo consigo o sol e temperaturas elevadas para a estação do ano. A neve quase tinha desaparecido, trazendo à luz relvados ressequidos de uma tonalidade amarelada, sebes despidas de folhas e terra. Sempre muito conscientes da duração dos seus longos Invernos, depois de estes se terem instalado com armas e bagagens, os residentes de Minneapolis tinham saído de uma hibernação encurtada, pegando nas suas bicicletas e patins em linha. Pequenos grupos de senhoras idosas cheias de determinação percorriam o quarteirão onde Kate vivia, a caminho do lago, ficando a olhar pasmadas para as paredes exteriores enegrecidas pelo fumo do incêndio.

 

A maior parte dos estragos restringira-se à cave e ao piso térreo. A casa seria recuperada, reparada e restaurada; depois, Kate tentaria não pensar muito, de cada vez que descesse à cave, nos acontecimentos que tinham tido lugar em sua casa. Esforçar-se-ia por não pensar em Rob Marshall caído por terra, sem vida e com o corpo completamente carbonizado, sempre que tivesse de se aproximar da máquina de secar roupa.

 

Pela frente, teria tarefas bem mais difíceis de levar a cabo do que a de escolher armários novos para a cozinha. Kate começou a percorrer cuidadosamente o que fora o piso térreo agora cheio de escombros calcinados. Um dos compinchas de Kovac, que tivera oportunidade de fazer muitas investigações no campo do fogo posto, oferecera-se para inspeccionar a estrutura, dizendo-lhe onde é que poderia ir sem se arriscar a sofrer um acidente, aconselhando-a quanto às medidas de segurança a tomar e o que não devia fazer. Usava o capacete amarelo de protecção que ele lhe oferecera, protegendo-se assim de qualquer pedaço de estuque que pudesse cair-lhe na cabeça. Um dos pés estava calçado com uma bota de sola grossa própria para a prática de montanhismo. Por cima das ligaduras do outro pé calçava uma meia grossa de lã que cobria com um saco de plástico resistente.

 

Passava por entre os escombros inspeccionando tudo com uma espécie de tenaz de cabos compridos com que procurava os objectos que valesse a pena recuperar. Aquela tarefa provocava-lhe uma depressão capaz de a levar às lágrimas. Até mesmo com a chegada atempada dos bombeiros, as explosões com origem nas tintas e solventes que guardara na cave tinham provocado muitos prejuízos no rés-do-chão. O que as chamas não haviam destruído ficara arruinado pela água das mangueiras dos bombeiros.

 

A perda de bens vulgares não a incomodava por aí além. Poderia comprar outro televisor. Um sofá era um sofá, mais nada. O seu guarda-roupa ficara arruinado pelo fumo, mas a indemnização do seguro serviria para comprar roupas novas. Era a perda de coisas que para si tinham um enorme valor sentimental que lhe custava muito. Crescera naquela casa. Aquela coisa que agora se assemelhava a dois troncos queimados de árvore fora a mesa de trabalho de seu pai. Recordava-se de ir de gatas para o espaço entre as duas extremidades quando brincava às escondidas com a irmã. A cadeira de balouço na sala de estar que pertencera à sua tia-avó. Os álbuns de fotografias que tinham contido toda uma vida de recordações haviam desaparecido nas chamas, derretidos, ou ficado encharcados.

 

Pegou no que restara de um desses álbuns com fotografias de Emily, começando a folheá-lo; sentiu os olhos rasos de lágrimas ao ver que a maior parte ficara destruída. Era como se voltasse a perder a filha, com todo o sofrimento que isso implicava. Fechou o álbum chegando-o ao peito, olhando para toda aquela devastação com um olhar desfocado pelas lágrimas. Talvez aquele não fosse o dia mais indicado para se dedicar àquela tarefa. Falando com ela pelo telefone, Quinn tentara dissuadi-la. Mas Kate insistira, alegando que era suficientemente forte, além de estar a precisar de fazer qualquer coisa de positivo.

 

No entanto, a verdade é que não era suficientemente forte. Não da maneira que era necessário ser. Sentia-se muito vulnerável, demasiado cansada, com as emoções à flor da pele. Tinha a sensação de ter perdido bastante mais do que aquilo que o fogo lhe levara. A fé que depositara na sua capacidade de discernimento ficara muito abalada. A ordem que regera o seu mundo invertera-se. Estava profundamente convencida de que poderia ter evitado o que viera a suceder.

 

A maldição da vítima. Sempre a pensar no que poderia ter acontecido se tivesse agido de outra forma. Detestando a falta de controlo sobre o mundo que a rodeava. O teste era apurar se uma pessoa conseguia elevar-se acima das contrariedades, ultrapassando-as, crescer como pessoa à custa das experiências de vida.

 

Kate levou o álbum de fotografias para fora de casa, colocando-o dentro de uma caixa que colocara em cima dos degraus da porta das traseiras. O jardim estava banhado por uma luminosidade em tons de laranja e amarelo que o sol lhe emprestava quando a luz do dia começava a despedir-se. A luminosidade, de matizes brumosos, cobria o jardim com a vegetação morta pelo Inverno rigoroso, revelando um canto afastado onde se esquecera de uma estátua que não guardara durante a estação de invernia uma fada sobre um pedestal lendo um livro. Rodeada apenas por caules despidos de folhas, a peça de estatuária tinha um aspecto vulnerável, demasiado exposta. Kate sentiu uma ânsia estranhíssima de lhe pegar ao colo como se fosse uma criança. Uma vontade quase irresistível de a proteger.

 

Uma outra vaga de emoção fez com que as lágrimas lhe assomassem aos olhos, quando voltou a pensar em Angie que lhe parecera tão pequena e jovem, tão perdida na sua bata de hospital demasiado larga para o seu tamanho, a olhar com fixidez para a pequena figurinha do anjo da guarda que tinha na mão.

 

Mas foi então que Kate ouviu o bater da porta de um automóvel que estacionara em frente da casa; espreitou, deparando-se-lhe Quinn que se afastava do táxi que o trouxera. Ao vê-lo, a maneira como andava, o seu aspecto físico, a testa franzida ao erguer o olhar para a casa, sem se aperceber de que ela o observava, sentiu imediatamente o coração mais leve. E, com a mesma rapidez, alguma tensão nos nervos.

 

Desde o incêndio que não se tinham visto muito.

O encerramento da investigação criminal tomara grande parte do tempo de Quinn. Fora muito requisitado por todos os meios de comunicação social que, insistentemente, queriam ser informados de todos os aspectos do caso para poderem analisar e voltar a analisar todos os pormenores Em seguida, a sua presença fora oficialmente requerida em Quântico, onde vários casos que investigara estavam prestes a resolver-se simultaneamente até mesmo as conversas através do telefone tinham sido breves, diálogos em que ambos evitavam abordar as questões mais importantes que se prendiam com a relação existente entre os dois. O caso trouxera-o a Minneapolis. O caso tinha voltado a reuni-los. O caso fora encerrado E agora, o que é que aconteceria?

 

Estou nas traseiras - gritou Kate

 

Quinn prendeu o olhar nela enquanto percorria o caminho ao lado da casa. Kate estava com um ar ridículo e ao mesmo tempo maravilhoso, com o capacete de protecção e um blusão encerado verde que era um tudo-nada grande de mais para ela. Muito bonita, apesar das nódoas negras e demais mazelas, abalada de dentro para fora

 

Quinn estivera prestes a ficar sem ela Uma vez mais. Desta feita teria sido para sempre. Aquela ideia atingia-o com a força de um martelo em pleno plexo solar de cinco em cinco minutos Estivera quase a perdê-la em parte, porque ela não fora capaz de ver que tinha mesmo à frente dos olhos o monstro que, presumivelmente, devia conhecer tão bem como qualquer homem à face da Terra.

 

Olá, bonita saudou Quinn. Pousou as malas no chão tomando-a nos braços e beijando-a não com um ardor sexual, mas sim de um modo que propiciava conforto a ambos. O capacete rijo descaiu para trás caindo no solo, permitindo que o cabelo de Kate se soltasse pelas costas, qual cascata. Como é que tens passado?

 

Muito mal Detesto tudo isto respondeu ela sem rodeios, ao estilo de Kate. Gostava muito da minha casa. Tinha muito amor às minhas coisas. Já fui obrigada a começar tudo de novo numa ocasião Não quero ter de voltar a fazer o mesmo. Mas a vida diz-nos que o que é duro ressalta, e que outras opções é que eu tenho? Há que aparar os golpes e continuar a marchar prosseguiu com um encolher de ombros desviando o olhar. Sempre é melhor do que aquilo que a vida reservou a Angie Ou o destino que a Melanie Hessler teve

 

Quinn pegou-lhe no queixo de linhas obstinadas obrigando-a a olhá-lo de frente.

 

Estás a bater em ti mesma, Kathryn Elizabeth? Kate fez que sim com a cabeça, limpando as lágrimas das faces com os polegares.

 

Também eu confessou ele com o arremedo de um sorriso. Fazemos um belo par. Pensa no quanto o mundo seria uma maravilha se tu e eu o controlássemos realmente.

 

Com certeza que nos sairíamos bastante melhor do que quem quer que seja que neste momento tenha essa função garantiu Kate estremecendo. Ou então não faria nada de jeito e as pessoas de quem gosto sofreriam as consequências.

 

Ora bem, aqui vai um rumor muito desagradável que ouvi hoje mesmo: todos somos humanos. Os erros fazem parte do território.

 

Humanos? repetiu Kate franzindo o sobrolho. Deu a mão a Quinn levando-o até ao velho banco corrido de cedro que mostrava os efeitos da passagem do tempo. Tu e eu? Quem é que te disse isso? Deixa que eu derreta os seus cérebros com os raios da morte.

 

Sentaram-se e, num gesto automático, o braço dele rodeou-lhe os ombros, tal como, também automaticamente, a cabeça dela encontrou o ombro dele.

 

O que é que se passa? Chegaste mais cedo disse Kate.

 

Bom, não quis perder o velório do peru» replicou ele com uma expressão circunspecta. Sentes-te feliz por me veres?

 

Não depois dessa resposta.

 

Quinn riu-se dando-lhe um beijo ao de leve na testa. Ficaram sentados em silêncio durante alguns minutos, olhando fixamente para a porta das traseiras enegrecida pelo incêndio por onde Quinn e Kovac a tinham trazido para fora de casa.

 

Regressei a esta casa começando a construir uma vida muito específica acrescentou Kate em voz baixa. Pensando que se o fizesse dessa maneira, passaria a controlá-la e as coisas más nunca mais aconteceriam. Como ingenuidade da minha parte, o que é que te parece?

 

Quanto a mim, pensei que se conseguisse agarrar o mundo pelos tomates, seria capaz de livrá-lo de todos os seus demónios replicou Quinn encolhendo os ombros Mas as coisas não funcionam dessa forma. Existe sempre outro demónio. Perdi-lhes o conto. Não sou capaz de ter uma noção clara do seu número. Que diabo, nem sequer sou capaz de os ver quando os tenho mesmo defronte dos olhos. Kate adivinhava os traços de desespero subjacentes a toda aquela dureza, apercebendo-se de que a fé que ele depositava nas suas capacidades também fora abalada. O todo-poderoso Quinn Sempre com a razão do seu lado, sempre seguro das suas acções, avançando qual flecha, sempre em frente. Ela sempre adorara a força inexpugnável que ele demonstrava, sempre admirara a obstinação tão característica na sua maneira de ser. Amava-o ainda mais pela sua vulnerabilidade

 

Ninguém podia prever que isso viesse a acontecer, John. Desde o primeiro dia em que ele foi nomeado para o cargo que eu o detestei, e nem sequer eu desconfiei disto. Nós só vemos aquilo que esperamos ver. O que é assustador quando se considera tudo o que poderá estar abaixo da superfície acrescentou Kate fitando o jardim com a sua vegetação morta de tons acastanhados, com um aspecto surrealista sob aquele lusco-fusco prestes a dar lugar à noite. Imagina a crueldade mais hedionda e repulsiva que um ser humano seja capaz de cometer contra outro. Neste preciso momento, haverá alguém algures a pô-la em prática. Não sou capaz de imaginar como é que consegues continuar a suportar esta situação, John

 

Nem eu sei admitiu Quinn. Sabes como é quando se começa a trabalhar nesta profissão. Somos afectados por tudo e mais alguma coisa. Somos obrigados a endurecer. É preciso vestir essa armadura que nos protege das emoções. Passado algum tempo, chega-se a um ponto em que já vimos tanta coisa que nada nos afecta, altura em que começamos a questionar o nosso humanismo. Se continuarmos a fazer a mesma coisa durante o tempo suficiente, a armadura começa a ficar corroída, o mal começa a penetrá-la. devorando-a, e encontramo-nos no ponto onde começámos, com a diferença de que estamos mais velhos e mais cansados, sabendo de antemão que jamais conseguiremos abater os dragões todos, apesar dos muitos esforços que possamos fazer nesse sentido

 

E depois, o que é que nos resta? perguntou Kate em voz baixa E depois as alternativas são: ou nos afastamos, ou acabamos por nos resignar, ou vamo-nos abaixo como aconteceu ao Vince Walsh, morrendo de um momento para o outro.

 

À primeira vista, essa alternativa pode ser uma manifestação de falta de inteligência.

 

Não quando o trabalho é tudo o que nos resta. Quando nos deixamos submergir por ele porque nos sentimos demasiado receosos para tentar ter o tipo de vida que realmente almejamos. O meu retrato ao longo dos últimos cinco anos disse Quinn. Mas, a partir de hoje, isso acabou-se; oficialmente, estou de licença. Chegou a altura de me libertar de todas as tensões da profissão e apertar todos os parafusos da cabeça como deve ser.

 

Para poderes decidir o que queres da vida acrescentou Kate à lista de intenções de Quinn.

 

Eu sei bem o que quero retorquiu ele com toda a simplicidade. Tomou as mãos dela nas suas. Preciso de ter alguma coisa boa na minha vida, Kate. Preciso de ti. Preciso de nós dois. E tu, de que é que precisas?

 

Kate ficou a olhar para ele, para a sua casa destruída que via pelo canto do olho, pensando, entre tudo o que lhe poderia ter ocorrido, na fénix elevando-se das cinzas. Os acontecimentos que os haviam levado àquele lugar naquela altura poderiam ser considerados como devastadores, mas ali estava a oportunidade de ambos virem a ter um novo começo de vida. Juntos.

 

Pela primeira vez no espaço de cinco anos, Kate sentiu-se invadida por uma sensação de calor humano, uma paz cheia de doçura em lugar do vazio duro e sofrido que fizera com que ela quase tivesse vivido num torpor constante. Passara todos esses anos sem ele, limitando-se, pura e simplesmente, a existir. Chegara a altura de viver uma existência plena. Ao cabo de todas as mortes, tanto em termos literais como metafóricos, chegara o momento de ambos começarem a construir uma vida em conjunto.

 

Preciso de sentir os teus braços à volta de mim, John Quinn disse Kate com um sorriso cheio de ternura. Todos os dias e todas as noites da minha vida.

 

Quinn susteve a respiração que contivera, mostrando um sorriso de orelha a orelha.

 

Levaste o teu tempo a responder. Com cuidado para não a magoar, devido aos ferimentos, tomou-a nos braços apertando-a contra si. Imaginou que sentia as batidas do coração de Kate através do encerado espesso que ela usava. ÉS dona do meu coração, Kate Conlan acrescentou ele enterrando o nariz frio na espessura dos cabelos sedosos. Foi teu durante todo este tempo. Já vivi tempo de mais sem ele.

 

Com o rosto encostado ao peito de Quinn, Kate esboçou um sorriso, sabendo que aquilo era o seu lar. o abraço que ele lhe dava, o seu amor.

 

Pois bem, John Quinn, tenho muita pena continuou Kate olhando para ele à luz dos últimos raios solares do pôr do Sol, mas não tenciono devolvê-lo.

 

 

                                                                                 Tami Hoag  

 

                      

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