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Series & Trilogias Literarias
Diogo tinha deixado de corresponder ao amor de Alice. As relações sexuais, cada vez mais raras, agora eram sem paixão, praticamente uma obrigação da parte dele. E isso a magoava. Magoava porque ela o amava e queria se sentir desejada pelo homem com quem tinha se casado. Mas eram outras mulheres que os olhos dele desejavam. Seu coração sabia disso, seus olhos também. Ele tinha perdido o pudor de disfarçar quando uma mulher o interessava sexualmente. Era humilhante estar com ele e ver o prazer estampado em seu rosto, ao receber um olhar mais demorado, de alguma dessas mulheres que o interessavam. Diogo se achava o próprio garanhão.
Cansada de ser humilhada e, muito provavelmente, de estar sendo traída, Alice decidiu que buscaria ajuda psicanalítica, para conseguir se libertar daquela relação. A vontade antiga de fazer análise agora era uma urgência, já que sua dor crescia diretamente proporcional ao pouco caso com o qual vinha sendo tratada. O que será que tinha acontecido? Ela se perguntava. Como tinha passado da posição de mulher desejada, aos olhos do marido, para a de desprezada? Seria sua culpa? Seriam os dois quilos a mais? Os seios sem silicone? As unhas sem pintar? O que será que as outras tinham que ela não tinha mais?
A tortura mental a que vinha se submetendo era tão insuportável, que ficava fácil buscar as causas do problema em sua aparência física. Afinal sempre haveria mulheres muito mais bonitas, mais extrovertidas, mais magras, mais divertidas, mais bem vestidas, mais vividas do que ela. Pensar que o problema poderia ser do homem com quem vivia nem lhe passava pela cabeça.
Determinada a parar de sofrer, Alice começou uma busca por psicanalistas que atendessem perto da região em que morava. Ficou surpresa ao encontrar uma sociedade psicanalítica bem próxima ao seu endereço, com atividades de divulgação e ensino. E haveria um evento cultural, aberto ao público, no final de semana, um debate sobre o filme “De Olhos Bem Fechados”, que foi dirigido por Stanley Kubrick. Alice não pensou duas vezes e fez sua inscrição pela internet. Muitos analistas estariam presentes naquele evento e caso simpatizasse com algum pediria seu contato, para agendar um horário. Quando comunicou ao marido que iria ao debate, ele nem tirou os olhos do celular para responder que ela deveria mesmo ir, para se distrair.
Diogo não se importava, nem se interessava pelo o que ela fazia, mas gostava de ser bem tratado e adorado por Alice. Ter a certeza de que ela o amava o deixava tranquilo para seguir com seus flertes e traições. Era confortável ter casa, comida e a roupa sempre lavada. Transar com sua mulher de vez em quando não era um preço tão alto a pagar. Valia a pena.
Sábado pela manhã, Alice tomou banho e arrumou os cabelos enquanto o marido ainda dormia. Escolheu uma roupa que a deixava sexy, jeans justos e rasgados, saltos altos, camisa, jaqueta de couro, echarpe, óculos escuros e uma bolsa maravilhosa. Queria que Diogo sentisse ciúmes por ela estar saindo vestida daquele jeito, com seus longos cabelos louros ondulados, mas ele nem abriu os olhos quando se despediu, apenas disse um tchau sonolento, esparramando-se de bruços na cama.
Alice suspirou. Definitivamente seu casamento estava acabado. Não queria permanecer ao lado de um homem que nem a olhava, muito menos desejava. Precisava sair daquela relação antes que caísse na asneira de querer ter filhos e depois nunca mais ter a coragem de se separar. Diogo era bem capaz de querer que ela engravidasse, para provar sua virilidade ao mundo e para deixá-la cuidando das crianças enquanto a traía.
Fechou a porta do quarto e deixou-o dormindo. Como estava de saltos altos, decidiu ir de carro até a sede da sociedade psicanalítica, mas pela distância poderia ter ido a pé. Gostava de caminhar, ajudava a amenizar as mágoas. Fazia isso diariamente ao se dirigir ao trabalho, menos quando estava chovendo. Tinha vários conhecidos ao longo do caminho, que sempre lhe cumprimentavam com simpatia e alegria. Recebia mais calor humano daquelas pessoas do que do marido. Como podia ter se enganado tanto a respeito dele?
Diogo tinha feito tudo para conquistá-la, depois de tê-la conhecido numa festa. Foi romântico trazendo flores, foi gentil abrindo a porta do carro para ela entrar, foi surpreendente com os presentes que escolhia, foi sedutor e garanhão todo dia. Até que a conquistou, até que conseguiu que ela abrisse as pernas e dissesse sim. Daí perdeu o interesse. Não adiantou pedir para conversarem, ele dizia que não curtia discutir relação, não adiantou perguntar se ele a traía, ele dizia que ela estava imaginando coisas.
Dirigiu ensimesmada e desceu do carro ainda com a mente focada em seus problemas, até que quase perdeu o equilíbrio com a irregularidade da calçada, mas foi amparada por um braço que se estendeu para ajudá-la a se colocar novamente no prumo, em cima dos seus saltos altos. Alice se voltou para agradecer, mas o homem já tinha se afastado. Observou-o pelas costas. Grisalho. Elegante. Perfumado. Devia ter uns quarenta e dois anos. Uns quinze a mais do que ela. Tinha uma queda por homens mais velhos, mas foi se casar com um da mesma idade, infiel e imaturo. Que tremendo vacilo.
Sentou-se praticamente escondida no fundo da sala. Não queria participar fazendo perguntas, queria apenas escutar e observar os psicanalistas que ali estavam. Tinha esperanças de ir para casa com uma sessão agendada. Queria recomeçar a vida, queria voltar a ser desejada, queria se livrar do encosto que tinha arranjado. Não precisava dele para nada. Ganhava seu próprio dinheiro, podia muito bem se virar sozinha. Só faltava se preparar emocionalmente para isso, para se divorciar e nunca mais repetir o erro. Más escolhas costumam ser sucedidas por outras igualmente desastrosas.
Discretamente começou a olhar os participantes do debate, muitos estudantes esperavam com seus blocos de anotações abertos, outros, que pareciam já serem psicanalistas, conversavam com os debatedores da mesa principal. Um burburinho gostoso, de uma gente animada para trocar ideias sobre o filme em questão. Por coincidência, a personagem principal, protagonizada pela Nicole Kidman, também se chamava Alice e ela o marido, protagonizado pelo Tom Cruise, tinham problemas no casamento no enredo do filme, assim como no casamento da vida real. Os dois ainda eram casados naquele tempo.
Alice tinha assistido ao filme na noite anterior e se identificado muito com a personagem. Com certeza o debate a ajudaria a compreender muitas coisas, que sua cegueira neurótica não lhe permitia ver. Quando todos se sentaram, lá estava ele junto aos debatedores, o homem grisalho, que se chamava Fernando. Apresentado como sendo um escritor e filósofo, ele agradeceu com um sotaque espanhol delicioso para os ouvidos. Sua voz era grave, rouca e sensual e Alice se arrepiou inteira, como se estivesse sendo acariciada pelo tom melodioso e envolvente. Ficou totalmente fascinada por ele. Era inteligente, preparado, o que tinha a visão mais espetacular sobre o enredo.
Ele discorreu sobre a separação do sexo e do amor no psiquismo humano. Falou sobre os maridos que amam suas esposas, mas que desejam as outras, algo totalmente explicável pela psicanálise, já que no inconsciente as duas coisas podem até coexistir, mas são disjuntas. No filme, a personagem Alice boceja entediada. Seu marido já não lhe presta atenção como antigamente e os dois não se importam de dividir suas intimidades físicas. Ela faz xixi na presença dele. Não existe mais a fantasia da sedução, só o real do corpo e o tédio do dia a dia.
De caráter narcisista, que ama a si próprio, Bill, o personagem do Tom Cruise, leva um choque quando sua mulher, provavelmente uma histérica eternamente insatisfeita, revela que sentiu desejo por outro homem. Seu mundo desaba. E ele parte numa jornada cheia de angústia pelo ego ferido, que culmina com sua participação numa festa secreta, com rituais igualmente secretos e pornografia generalizada.
Os olhos do filósofo grisalho brilhavam ao falar de sua admiração pelo Kubrick, que morreu poucos dias depois da edição do filme terminar. Cheio de simbolismos, ele explicava que “De Olhos Bem Fechados” era um filme de muitas camadas de interpretação, cujo debate dificilmente esgotaria, pela riqueza da escolha de cada detalhe selecionado por Stanley Kubrick. E realmente as perguntas foram muitas e o debate de altíssimo nível.
Alice estava tão embevecida pelo filósofo que seu propósito de procurar um analista ficou para outro dia. Sua vontade era perguntar se ele acreditava que o pedido final da Nicole Kidman, de que o marido a fodesse, significava que o casamento deles daria certo dali para a frente. Mas tinha medo que sua pergunta fosse boba, de que ficasse claro seu conhecimento limitado sobre a psicanálise. Então decidiu ficar quieta. Mas não conseguiu ir embora ao término do debate. Ficou esperando que os alunos saíssem da sala e torcendo para que o filósofo ficasse um tempo sozinho, para que ela pudesse se aproximar. E aconteceu. E num impulso Alice se dirigiu a ele.
– Desculpe incomodar, mas eu gostaria de lhe agradecer por ter me segurado, quando eu me desiquilibrei na calçada – a voz de Alice demonstrava seu constrangimento.
– Não precisa agradecer – respondeu sorrindo, com seu tom de voz fazendo as pernas dela amolecerem. – Gostou do debate? – ele continuou.
– Muito. Fiquei fascinada e pretendo assistir ao filme novamente, de olhos bem abertos desta vez – ela brincou, reagindo com uma espontaneidade que há muito tempo não sentia.
– Faz muito bem. Eu já o vi várias vezes e a cada vez aprendo mais, com o mestre que foi o Stanley Kubrick – os olhos dele brilhavam.
– Confesso que não conheço muito a fundo o trabalho dele – revelou sem medo, porque sentia que ele acolhia suas palavras com interesse verdadeiro.
– Ele foi, na minha opinião, um dos melhores cineastas de todos os tempos.
– Pelo o que aprendi hoje, foi um profissional incrível mesmo.
– Já que gostou do debate, eu gostaria de te convidar para uma homenagem que faremos, hoje à noite, ao trabalho dele. Você teria interesse em participar?
Alice sentiu as batidas do coração acelerarem, enquanto processava o convite que aquele homem interessantíssimo tinha lhe feito.
– A homenagem será aqui? – ela perguntou, na esperança de uma resposta positiva, já que pela proximidade ficaria mais fácil aceitar o convite.
– Não. Será na casa de um amigo argentino, um cineasta que coloca muita psicanálise no enredo de seus filmes. Posso te mandar o endereço por mensagem e, se decidir comparecer, será muito bem-vinda, pode ter certeza – acrescentou, fazendo-a desejar que ele a desejasse com intenções menos didáticas.
– Obrigada! Aceito que me envie o endereço. Tentarei ir.
– Então me diga teu número para eu acrescentar nos meus contatos. E seu nome também, é claro!
– Eu me chamo Alice e não estou brincando desta vez – ela sorriu ao ver o brilho divertido de espanto nos olhos dele.
– Muito interessante, gostei de saber disso, Alice – o tom sedutor na voz dele arrepiou até a alma dela.
Despediu-se depois que ele anotou seu número, com a promessa do envio do endereço mais tarde. A tentação de ir era enorme e sentia-se levemente culpada, como se estivesse traindo Diogo. Apesar de decidida a pedir o divórcio, suas emoções ainda estavam bem confusas. Decidiu então que esperaria para ver como Diogo a receberia em casa. Se ele mostrasse um mínimo de consideração, passaria a noite ao lado dele, mas, se a tratasse mal, iria na homenagem na casa do cineasta argentino. Quem sabe lá encontrasse um psicanalista que a aceitasse como paciente.
Ao chegar em casa, Alice encontrou um bilhete de Diogo em cima da mesa.
Querida, recebi um convite de última hora e decidi ir para a praia com os meus amigos. Vamos velejar e voltamos amanhã. Não mandei mensagem para não atrapalhar o seu debate e provavelmente já estarei em alto mar quando você estiver de volta. Ligo para você se tiver sinal. Beijos e até amanhã!
Alice sentiu ódio invadir seu coração. O canalha não teve nem a coragem de mandar uma mensagem e aquilo foi a gota d’água. Não esperaria um ano fazendo análise para se divorciar, empacotaria todas as coisas do marido e o expulsaria com todas as tralhas quando voltasse. O apartamento era dela, adquirido antes do casamento, ele não teria como reivindicar nada. Que ficasse com seus amigos e amigas da praia e que se entendesse depois com o seu advogado.
O bom do ódio é que o ódio dá força. Alice retirou tudo o que era do marido dos armários. Não queria que restasse nada dele para atormentar sua vida. Quando terminou, deitou-se no sofá exausta, física e emocionalmente. Viu que a aliança continuava em seu dedo. Não queria sair. Arrancou-a puxando com os dentes e atirou longe, sentindo o ódio aumentar de intensidade ao abrir o celular, e ver que um dos amigos do marido tinha postado a foto deles no veleiro, acompanhados de quatro mulheres sorridentes e quase nuas. Não queria acreditar naquilo. Era muita falta de sensibilidade.
O banner do aviso de uma mensagem apareceu na tela, cobrindo a cara do marido, decapitando-o simbolicamente para Alice. Fernando estava enviando o horário e o endereço do local da homenagem, junto com a indicação de traje de gala e uma senha de entrada, “Prazer Desmedido”.
Alice achou divertida a ideia da senha como homenagem ao cineasta morto, mas sua intuição deu sinal de que algo estava esquisito. De olhos bem fechados para a intuição, ela decidiu que iria e que colocaria seu vestido mais maravilhoso, um preto esvoaçante de caimento perfeito, que deixava seus braços, ombros e costas à mostra. O enfeite do vestido era um colar bordado em pedrarias, em que uma ponta do tecido se transpassava. Era simples, mas ficava chiquérrimo com suas sandálias de tiras finas e saltos altos.
Enquanto se arrumava, percebeu que desde a chegada da mensagem de Fernando não tinha pensado no marido. Começava a achar que seria mais fácil do que imaginava superar o divórcio que assinaria. Ficaria livre do sofrimento, livre das desculpas esfarrapadas, livre das traições. Já começava a sentir os benefícios daquilo. Um desejo percorria seu corpo, um desejo como o da personagem da Nicole Kidman, o de fazer algo urgentemente, trepar.
Colocou o vestido sobre o corpo nu. Se usasse calcinhas marcaria o tecido e estragaria o perfil das deliciosas curvas de seus glúteos. Alice queria que os homens que lá estivessem a olhassem e a quisessem comer. Precisava se reafirmar como mulher desejada e desejante. Precisava de caralho, grosso de preferência. Precisava ser prensada numa parede por um pau dentro da buceta, precisava ser colocada em cima de uma mesa, com as pernas abertas para em seu buraco alguém meter. Seu desejo era chulo, vulgar. De que adiantava ser fina e não gozar.
Chamou um táxi pelo aplicativo. O motorista a deixou em frente a uma mansão. “Prazer Desmedido,” ela disse ao encarregado da entrada e ele respondeu ao lhe entregar uma máscara: “É o que terás!”. Ao ser conduzida mascarada para adentrar na mansão, sua intuição agora gritava: “Perigo, perigo, perigo!” Mas ela fechou os ouvidos para a gritaria e abriu bem os olhos para a putaria, que já rolava pelo salão.
No ambiente sofisticado, com música suave, que simulava o cenário da festa do filme do Stanley Kubrick, mulheres nuas e mascaradas desfilavam pelo salão, fazendo perguntas para os convidados. Alice reparou que elas marcavam as pessoas com tinta invisível, revelando com luz negra o desenho das marcas para elas.
Tentando entender o que estava acontecendo, escondeu-se atrás de uma coluna para poder observar melhor. Alguns casais estavam se formando e se pegando nos cantos mais escuros ou sobre os sofás dispostos em lugares estratégicos. Não podia negar que era excitante assistir, mas estava se perguntando se deveria fugir calmamente ou em disparada.
– Eu estava esperando você... – o sotaque espanhol, quente e sensual a alcançou por detrás, quando ele se aproximou. – Não se assuste, nada vai te acontecer se não quiser.
– Fernando – ela falou baixinho para si mesma, enquanto sentia os braços dele a envolvendo e sua boca se aproximando para sussurrar em seus ouvidos.
– Quero você Alice... – o sussurro quente da voz dele era como uma droga que a impedia de raciocinar direito.
– Mas todo mundo fica olhando... – apesar dos receios, a umidade escorria pelo meio de suas pernas.
– Só se você deixar. Há salas mais privativas...
– Prefiro privacidade.
– Então terás privacidade. Mas antes quero que saiba o que essas moças estão fazendo. Estão perguntando a cada um dos convidados se permitem ser filmados fazendo sexo, com uma ou mais pessoas, mostrando ou não o rosto, com ou sem detalhes do coito. Cada opção tem um carimbo de uma figura diferente, que reveladas pela luz negra, dão a autorização para as câmeras filmarem o que ficou combinado. O local todo foi preparado como um reality show, com câmeras escondidas para não provocarem inibição. Meu amigo pretende captar cenas verdadeiras para o próximo filme que está produzindo.
– Você já fez isso alguma vez?
– Não. Foi um impulso que tive no momento em que você se aproximou de mim. Eu te desejei naquele instante. Eu já havia dito não ao meu amigo e depois, quando concordei em vir, também não dei garantia de que você viria ou que permitiria a filmagem.
– Mas por que você me escolheu para ser sua parceira nessa loucura?
– Porque você é enigmática, linda e desejável e eu quero te decifrar...
Ela não continuou com as perguntas porque ele a virou e beijou seus lábios, invadindo-a com a língua ávida de provar seu gosto. Tudo nele era envolvente e sua experiência nas artes do amor ficava evidente, a cada toque que dava em seu corpo. Derretida nas mãos dele, nem notou quando as mascaradas nuas se aproximaram, esperando para marcá-la com o símbolo que escolhesse.
– Sem rosto, sem plateia, só com um homem... – Alice estendeu o braço, hipnotizada pelo desejo que via nos olhos dele.
Fernando apoiou a mão dela na dele, enquanto ela era marcada pelos símbolos sexuais masculino e feminino, entrelaçados dentro de um círculo fechado. Ele não deixou de notar o sulco deixado em sua pele, pela ausência da aliança em seu dedo. Envergonhada, ela tentou esconder a mão, mas ele não deixou. Ele a olhou bem dentro dos olhos, enquanto introduzia seu dedo sem aliança em sua boca, sugando os restos do casamento que ali estavam, libertando-a para um prazer desconhecido. Desmedido.
Começa então a jornada de Alice, através do espelho dos próprios desejos que agora começava a conhecer. É Fernando que a conduz pela vitrine de possibilidades expostas no salão. Homens com homens, mulheres com mulheres, mulheres com mais de um homem, trocas de todos os tipos, de parceiros, de saliva, de fluídos... A elegância das vestimentas e das máscaras sem dar conta de disfarçar a falta que desliza sobre a sexualidade humana. Não existe completude. O círculo fechado era uma ilusão, mas Alice queria fechar os olhos e por um momento na vida se iludir e eternizar essa ilusão, numa cena em que ela e Fernando seriam os protagonistas filmados.
Foi num quarto decorado em tons de vermelho que ele a deita na cama e levanta seu vestido. A ausência da calcinha o pega de surpresa e ele a puxa deliciado para a beirada, para chupá-la no meio das pernas. Por um momento Alice sente medo, mas o champagne que havia tomado começa a fazer efeito, dissolvendo as preocupações de estar sendo filmada. Ela se entrega de vez, entrega-se de vez ao que acreditava ser putaria. E como era bom... Ah, como era bom. A língua de Fernando era sensual nos sussurros e na chupada. “Você é perfeita para a minha boca e para outra parte de mim que já, já vou provar...” Ele a lambia... Ela gemia já antecipando o prazer que a enfiada dele lhe daria. Mas antes também o chuparia.
Abra o zíper ela pediu. “Me deixe te chupar.” Fernando tirou o pênis para fora das elegantes calças de seu smoking e Alice o abocanhou com seus lábios macios, deixando que ele se aprofundasse em sua garganta. Fazia muito tempo que não sentia o gosto de um pau explodindo de tesão. O ardido salgado da lubrificação, que brotava do olho do pênis, era prova palatável do quanto ele estava excitado, desejando comê-la.
E foi com uma urgência violenta que ele a puxou para cima para se encaixar nela. Mas conteve os movimentos bruscos para não lhe estragar o vestido sofisticado. Eram personagens de um filme, além deles mesmos. E a cena foi sendo trabalhada com seu talento de escritor e com sua performance de amante para que ela brilhasse. O gozo dela era o mais importante, a personagem principal era ela, sua entrega à pulsão o ápice de tudo.
Diferente dos animais o ser humano não se satisfaz. Ele não é regido por um instinto que desperte e termine sua função, sinalizado pela biologia de um período de fertilidade. O ser humano é pulsional, nenhuma busca traz o resultado esperado, nenhum coito é suficiente, nenhum casamento resulta em completude. Sempre se quer mais. Sempre se quer encontrar prazer por todos os orifícios, com sons, cheiros, imagens, comidas, texturas. Sexo oral, anal, voyerismo, fetichismo, sadismo, masoquismo...
A pulsão é destruidora, a pulsão não quer formar laço e ficar presa dentro de uma relação monogâmica. A pulsão quer completude, mas como não a encontra, relança-se noutra busca e em mais outra, e assim sucessivamente. Alice estava agora nessa jornada ditada por sua pulsão. Insatisfeita com o casamento, buscava completude naquela experiência. Queria se satisfazer em suas zonas erógenas, queria que Fernando a preenchesse com seu caralho grosso e a fizesse gozar.
O lindo vestido, a máscara, a decoração sofisticada do quarto, estavam ali para velar a impossibilidade da Alice, ou do ser humano, de se completar. Uma cena planejada por um cineasta, mas também por cada um de nós, quando fazemos escolhas em nossas vidas, para nos iludirmos de que a completude é possível. Estudamos, nos formamos, casamos, trabalhamos, temos filhos, ou não casamos, viajamos, nos drogamos, temos amantes ou não temos, ..., e sempre a insatisfação dá um jeito de se mostrar, de revelar que não era bem isso que queríamos.
Numa segunda rodada de sexo e de mais bebida, as máscaras e as roupas já tinham sumido. A porta do quarto aberta para quem quisesse ser testemunha do prazer desmedido de Alice e Fernando, que se entregavam aos prazeres da diferença de idade e da experiência de seus corpos. A completude podia não ser total, mas era quase. Por uns instantes o gozo pareceu pleno e foi captado pela câmera que focou na dilatação da pupila de um só olho de Alice. De sua íris só restou uma finíssima linha verde, um resto a completar, quem sabe da próxima vez...
De volta ao salão já vestidos, os convidados foram recebidos com aplausos pelo cineasta argentino. Num telão, uma prévia das cenas que seriam rodadas no filme, se contratos fossem assinados por aqueles que desejassem aparecer na película. “Prazeres Desmedidos”, seria em breve lançado e prometia ser mais um grande sucesso do diretor argentino.
Alice se arrepiou inteira ao se ver nas imagens. Parecia outra mulher, muito mais sexy do que se imaginava, totalmente entregue ao prazer. Seu rosto inteiro não tinha sido filmado, só a cena do olho, que tinha ficado sensacional. Muitos convidados se voltaram para Alice e Fernando com admiração. Homens a olhavam com desejo, sinalizando aplausos com as mãos.
Já estava quase amanhecendo quando Fernando a deixou em casa. O contrato tinha sido assinado com a promessa de que as cenas fossem editadas sem revelar sua identidade, mas da cena do olho o cineasta não abriu mão. Ele implorou para que Alice lhe deixasse usar a cena do olho. E ela acabou deixando.
Alice tentou dormir, mas umas ideias começaram a ganhar forma em seus pensamentos. Tinha aprendido durante a noite que podia fazer a própria edição de sua vida e, portanto, decidiu que queria um final mais memorável para o fim de seu casamento, um final que a agradasse mais.
Desempacotou todas as coisas do marido, guardando-as cuidadosamente nos armários. Diogo notou quando chegou, todo bronzeado, a arrumação das roupas, e elogiou a esposa crente que ela queria lhe agradar, para que não a deixasse mais sozinha. Pediu desculpas por não ter se comunicado avisando dos planos, mas Alice se mostrou compreensiva e disse que não tinha problema, pois também tinha se divertido bastante na companhia de novos amigos.
Alguns meses se passaram. Alice estava fazendo análise e estudando psicanálise na instituição perto de sua casa. Estava tão boazinha, que o marido não se importou de acompanhá-la na sessão de estreia de um novo filme argentino. A sala estava lotada. O silêncio era total quando o filme começou. Até Diogo ficou completamente tomado pelo enredo, com as cenas se alternando entre fantasia e realidade, entre o que era do amor e o que era da pulsão. No final do filme, quando as cenas reais estavam sendo apresentadas, um mal-estar começou a tomar conta de Diogo.
Ele olhava as cenas e olhava depois para a esposa, que tinha os olhos fixos na tela. Ele conhecia aquele corpo. Já tinha fodido aquele corpo. Mas nunca com a intensidade e sedução com a qual aquele homem grisalho a estava fodendo e sendo correspondido. Alice tinha um leve sorriso no rosto e ele não queria acreditar que a esposa tinha sido capaz de fazer aquilo. Devia estar enganado, não era possível!
A cena final foi a da pupila do olho de Alice dilatando. Daí não restou dúvida. Os aplausos espontâneos da plateia eram o termômetro que marcava o sucesso que o filme faria. Alice se levantou e foi com um olhar distante que se dirigiu ao marido, entregando-lhe as chaves e o endereço de um depósito onde suas coisas estariam. Desculpe, ela disse, não tive tempo de avisar que estou entrando com um pedido de divórcio e que você não é mais bem-vindo em minha vida. Seja feliz. Ele a olhou desestruturado, abismado com a frieza em seus olhos. Mas o olhar dela logo se afastou da pessoa dele, para se iluminar ao reconhecer o homem que a tinha fodido no filme e que a esperava para juntos irem embora.
Nic Chaud
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