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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRECISO VIVER / Mafalda Gameiro
PRECISO VIVER / Mafalda Gameiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

PRECISO VIVER

 

Surpreendi-me, admito-o. Surpreendi-me com o desafio; surpreendi-me com a minha noção do tempo; surpreendi-me com a noção que o tempo tem de mim; surpreendi-me com os outros e com a sua capacidade; surpreendi-me com o percurso que tracei; surpreendi-me com o engenho que tive para me desviar da tentação, que com o seu sentido oportunista me espicaçava quando podia para me arredar do caminho certo; surpreendi-me comigo porque esta é a prova de como fintamos um monstro dissimulado de príncipe perverso e manhoso, sempre preparado para cuspir veneno. Vou aonde quero e sei que sou capaz de chegar com a consciência tranquila àquilo que desejo, sem ter martirizado as minhas energias com inutilidades e desperdícios que só me assombrariam a alma, estado em que prezo nunca ter vivido, e peço a quem eu sei que devo pedir que nunca me dê a conhecer essa desgraça que é ser podre por dentro. Gosto de estar limpa de espírito, para assim me entregar a todos os projectos da vida e deles tirar o melhor, sem nunca pensar no pior. Por vezes, a estúpida fugacidade dos dias hipnotiza-nos, desvaira-nos e encerra-nos a mente. Se não a formos sacudindo com a essência das coisas, ela acaba por cicatrizar banalidades que apenas existem para ocupar espaço e fazer perder tempo.

Não sei se este livro me ajudou a descobrir quem sou ou se confirmou a certeza que já tinha de ser quem sou. Ainda não sei. Sei, no entanto, que passei a evocar certos estados de simplicidade, nos quais, por vezes, me esquecia de mergulhar e que tanta falta fazem para soltar as impurezas e a pele destilar preconceitos insensatos. Consegui-o porque permiti que estes admiráveis seres humanos se atravessassem no meu caminho (ou, para dizer a verdade, eles permitiram que eu me cruzasse no deles) e me revelassem como a verdade das suas vidas está despojada de futilidades e sinais exteriores de abastança, deixando transparecer uma enorme riqueza interior, à qual se agarram na hora do repouso e na hora do despertar. Permiti que me tivessem relembrado que o que há de mais grandioso na vida não cabe na palma de uma mão e nem mesmo nas duas, porque não tem peso nem volume e porque simplesmente não se tacteia, apenas se pressente. Eu ganhei e enaltecer-me-ia em saber que eles também conquistaram comigo, pelo menos, algum ânimo para vencerem esse combate diário com o presente e a aposta com o futuro, porque melhor que ninguém eles sabem como foi difícil a luta que tiveram de travar com o passado, que se mostrou desleal e sem escrúpulos. Venceram-na, não duvide. Venceram-na porque estão vivos e essa é uma conquista da qual se devem orgulhar.

Lamento não poder ter escrito, uma a uma, as letras que, alinhadas, compõem os seus verdadeiros nomes, apenas para que todos aprendessem a soletrar melhor a palavra «viver»; mas compreendo o motivo por que desejaram guardá-las para si. Se o não tivessem feito, eu teria sido a primeira pessoa a pedir-lhes que o fizessem, acredite. Peço-lhe a si, que também compreenda e estou segura de que, quando finalizar a sua viagem por este livro, perceberá porque agiram desta forma. Todos nós faríamos o mesmo. Preciso Viver conta, em quatro histórias verídicas, o percurso de vida de cinco refugiados e das suas famílias que, desesperadamente, vieram bater à porta de Portugal e por aqui ficaram. Kudret, Rojhat, Rosine, Christopher e «ela» (assim deseja ser designada) provêm de continentes diferentes e chegaram a Lisboa em condições distintas, depois de se terem cruzado com a morte, com o sofrimento, com a perseguição, com a tortura, com a perda e com a raiva, mas também com a paixão. É gente que foi perseguida por dizer o que pensava, por lutar pelos seus ideais, por acreditar no seu Deus, por ter feições diferentes, por ter outra cultura. É gente que foi humilhada, mas que queria viver e lutou por isso. A verdade dos factos comanda estas histórias, cujos contornos são tão intensos que quase parecem ficcionados. Reconheço que me deixei envolver muito mais do que aquilo que é permitido a um jornalista, mas, se assim não fosse, nunca conseguiria fazê-lo sentir aquilo que eu senti ao longo de muitos meses de trabalho.

Antes de terminar, quero confessar-lhe outra certeza que conquistei ao longo deste tempo e que talvez o venha a ajudar em algumas ocasiões. Nem nada nem ninguém conseguem impedir-nos de alcançar o pensamento do outro, de descobrirmos as suas dúvidas e de confirmarmos as suas verdades, porque, quando as palavras não se soltam, soltam-se as imagens cujos traços não permitem incertezas. Admito que esbocei, no meu caderno, desenhos que substituíram frases que eles não pronunciavam com princípio, meio e fim, porque ainda tropeçam no português. Admito que, por não terem tido tempo de trazer lembranças e fotografias, rabiscámos paisagens, casas e roupas. Admito que folheámos dicionários para nos fazermos entender e que, por exemplo, saltámos do turco para o inglês e do inglês para português. Admito-o e aprendi.

Preciso Viver, mais do que um livro sobre histórias de vida, é um ensinamento para todos nós.

 

À Volta da Burma

Estou cheio de vergonha, é a primeira vez e não sei como abordá-los. Eles chegam e depois digo o quê? Ensaiei umas poucas de vezes antes de vir, mas uma coisa é falar para quem não nos está a ver, outra é enfrentar gente que não conheço de parte alguma. A ideia não foi minha, eu sei; foram os meus amigos que me meteram nisto, porque sabem que falo bem inglês e que, assim, tenho boas hipóteses de me sair bem. Alguns até são motoristas, mas não dominam o idioma universal, e nessa matéria contam comigo. Sendo assim, sou eu quem conduz o carro deles e, no final, partilho os lucros da minha nova profissão, se vier a tê-los.

Tinham-me dito que isto dava para ganhar dinheiro e confesso que me faz falta. Não posso dizer que a minha família seja muito pobre, mas a abastança nunca andou lá por casa. Fazemos tudo para vivermos melhor. A minha mãe passa horas na cozinha, de volta das malaguetas e das mangas, a enfiá-las em frascos, para fazer pickles, e o meu pai, se mais tempo tivesse, mais trabalhava.

Respiro fundo e ponho as mãos nos bolsos para as limpar, porque suam como nunca as senti suar - e não é por não estar habituado a este clima húmido e quente. Mal de mim, se não estivesse acostumado: nasci aqui e já não sou propriamente uma criança. Quase nunca dei pelo frio. Senti-o meia dúzia de vezes quando estive doente, com febre, era eu miúdo. Sei que nas montanhas mais altas do Norte cai neve, mas nunca a vi. De resto, é sempre este bafo, que apenas me incomoda durante os Verões insuportáveis em que as monções tropicais de sudoeste deixam tudo empapado. Mas agora é diferente, as temperaturas estão amenas e a humidade não se compara com a de Julho ou Agosto. Caem uns pingos de vez em quando, que não dão para aborrecer. É assim o Inverno, e quem chega sabe que esta é a melhor época do ano. Hoje o céu até está limpo; é mesmo possível que me traga sorte e que eu os convença à primeira. Novembro é um dos melhores meses por aqui!

Olho para o relógio de pulso e reparo que já passaram quase quinze minutos desde que cheguei. Tenho a sensação de estar ainda mais nervoso do que quando passei a porta da entrada. Aflige-me esta espera e considero a possibilidade de regressar a casa. Provavelmente, estou a ser estúpido e acanhado. Se vim até aqui é porque preciso de fazer qualquer coisa e, pensando melhor, só desisto se for esmagado por esta multidão à minha volta ou, então, se me prenderem os movimentos e me impedirem de levantar o braço para me mostrar. Também é possível que nem sequer consiga abrir a boca. Só vejo gente à minha volta. Isto está cheio. O melhor é tentar avançar uns metros até à zona das chegadas; assim eles vêem-me, falo alto e agarro-os. Mas, como todos pensam como eu, não sei se serei bem sucedido. Avisaram-me de que muitos homens da cidade já tinham tido a mesma ideia. Pudera!

Reparo que há algum frenesi e que todos os rapazes se alvoroçam ao mesmo tempo. Logo entendo o porquê do desassossego. Os primeiros carrinhos com malas empilhadas começam a aparecer e, a empurrá-los, saem os turistas. Preparo-me para a minha primeira experiência como guia e começo a gritar: «Hello! Hello!» Ninguém repara em mim. É tal a confusão que se torna impossível entender o que alguém diz. Concluo que assim não me safo e que tenho de me aproximar mais para me fazer ouvir.

«Hello! How are you? Do you want to go downtown? I've got a car. It's five dollars per person and I'll take you sightseeing!» Parece que me saí bem. Um casal parou para me escutar e não me engasguei; pela cara, nem se aperceberam de que esta era a minha primeira missão no mundo do turismo, à volta de Yangon ou até mais longe. Isso não dependia de mim. Para já, aceitaram que os fosse levar ao hotel, o que me pareceu fabuloso. Ao longo do percurso, teria sempre oportunidade de me mostrar disponível para os transportar durante os dias de férias que passassem na Birmânia.

Seguimos em direcção ao parque de estacionamento, onde eu tinha deixado a carrinha. Estava lavada e aspirada para melhor impressionar e o brio com que o fizera pareceu-me evidente, porque, quando nos aproximámos, a pintura reluzia, sem um grão de pó em cima. Certamente só eu notei o asseio. Era uma espécie de minibus de cor branca, com seis lugares, e, por isso mesmo, com espaço suficiente para organizar um tour de grupo pela cidade. Mas não me pareceu que o fosse conseguir. Abro a porta lateral para os dois se poderem sentar e, com cuidado, vou acondicionar, na bagageira, as três malas de viagem que traziam. Não sei de onde vêm, mas certamente será da Europa.

«Wellcome to Birmania!», digo-lhes, enquanto me sento ao volante. Sinto que estou preparado para arrancar em direcção ao Hotel Yangon, mesmo no centro da cidade. Tinham-me perguntado se sabia onde ficava, quando vínhamos a pé para o parque. Claro que sei. Mesmo que não soubesse, nunca daria parte de fraco, porque teria sempre alguém a quem perguntar em birmanês, para que eles não me entendessem. Estamos a sair da zona do Aeroporto Internacional de Yangon quando penso em começar a falar sobre os locais que devem visitar, mas entendo que ainda não estou suficientemente à vontade para lhes fazer um roteiro muito exaustivo e, por isso, calo-me por uns momentos, até ganhar coragem para abordar o assunto que me interessa então - o câmbio de dólares.

«Do you need to change money? I'm sure I can make you a nice price!» Pronto, disse! Não domino o mercado da candonga nem ando lá perto, mas alguns amigos com quem me dou estão por dentro do assunto e conseguem trocar dólares por kyats a um preço mais atraente para qualquer turista do que num hotel ou num banco. Olho pelo espelho retrovisor para tentar perceber a reacção e vejo que comentam algo um com o outro, embora não consiga ouvir o quê. Não me respondem imediatamente. Deduzo que estão à espera de que pergunte de novo e é isso que faço: «I'll make you a nice price, ok? If you want I can change it now, inside the van. There's no problem!» A resposta é um não seco, mas agradecem a minha amabilidade. Vê-se mesmo que estão com medo e eu estou cheio de vergonha. Não voltei a abrir a boca até chegarmos ao hotel.

Puxo por uma mala, porque as outras duas já o homem as tinha arrastado bruscamente para fora da bagageira, não fosse eu fazer outra proposta «indecente». Perco a coragem para lhe falar em tours e preços convidativos para viagens de grupo. Limito-me a receber o dinheiro, que me dá trocado. Uma nota de dez dólares e nem mais um cêntimo. «Thank you very much!» é a única frase que me sai. Pagaram-me, recebi e, por isso, só tenho de agradecer; tudo o mais não vale a pena. Estou de rastos: a minha primeira experiência como guia foi um fracasso!

Há mais de uma semana que vivo entre o aeroporto de Yangon e as fachadas dos hotéis da cidade. Não tenho passado disso. Pode ser que hoje seja diferente. Vou, mais uma vez, a caminho das chegadas. Decidi informar-me acerca dos horários, o que me permitiu escolher com mais facilidade aquele que me convém. Sei que dentro de minutos há-de aterrar um avião vindo dos Estados Unidos da América. Disseram-me que esses turistas são dos melhores que um guia pode ter. Trazem dinheiro e não se privam de descobrir o país durante várias semanas.

Vejo-me novamente no meio da multidão de guias, que entretanto começo a conhecer de vista. É óbvio que a concorrência é enorme e, por esse motivo, tenho de ser mais persuasivo e eficaz na minha abordagem. A partir do momento em que o avião aterra na pista, os turistas não costumam demorar mais do que meia hora a sair. Passam pelo controlo de passaportes, depois a aduana e, a seguir, estão cá fora.

Eis que vejo os primeiros americanos. São grandes e gordos, o oposto desta gente que é baixa e magra. Não me sinto pequeno no meio deles, mas, olhando em redor, todos os outros birmaneses mal lhes chegam ao pescoço. Saem em grupos, sem que entenda onde começam e onde terminam. Uns já têm representantes da operadora à espera, mas desses não preciso; é nos outros, que vêm soltos, que tenho de investir todo o meu esforço. Estão três homens preparados para abandonar o terminal sem que se façam acompanhar por mais alguém. Dirijo-me a eles e ofereço-me para os transportar até ao hotel. Aceitam.

Apercebo-me de que o Beauty Land Hotel está bem localizado quando me passam para a mão o voucher, a fim de me certificar da morada. Fica na Bo Cho Street, o que quer dizer que está a poucos minutos a pé do templo budista de Shedagon, a atracção mais importante de todo o país e o maior templo do mundo coberto a ouro. Estão, portanto, a cinco minutos de carro do coração da cidade. Nada mal situados.

De dia para dia, vou memorizando o mapa da cidade e é cada vez com mais facilidade que começo a circular pelas ruas e avenidas de Yangon, que se dispõem perpendiculares e paralelas umas às outras, resultado da colonização do Império Britânico no século XIX. Sem modéstia, tenho de reconhecer que estou a sair-me ágil a conduzir.

Chegamos ao Beauty Land e reparo que tem aspecto de já ter sido uma casa particular, indiscutivelmente agradável, que, com sentido de oportunidade, foi convertida num hotel. O jardim que o envolve verdeja, não destoando da paisagem que emoldura o país de norte a sul.

Dizem-me que têm um visto de turismo para três semanas e que contam ficar durante esse tempo, o que me deixa entusiasmado. Falo-lhes na possibilidade de fazermos um programa pelas zonas turísticas, mas não querem decidir nesse momento. Pedem-me que regresse no dia seguinte, à hora do pequeno-almoço, para falarmos sobre o assunto. Comprometo-me, não podia ser de outra forma. Estou perante a oportunidade que ainda não tinha tido, a de me estrear. Volto para casa com duzentos dólares no bolso, resultado de um câmbio por kyats que lhes fiz às escondidas e, por sinal, a um preço irrecusável.

No dia seguinte, à hora combinada, encontro-os sentados a tomar o pequeno-almoço no restaurante do hotel, num esplêndido terraço de madeira mesmo em frente do jardim. A mesa é para quatro; três lugares estão ocupados, mas o outro está livre e permite que me sente. Aproximo-me. Desejam-me bom dia, retribuo e convidam-me a partilhar a refeição. Ainda tento recusar, mas não me dão alternativa, tal a insistência. Por acaso não tinha comido nada antes de sair de casa. Deleitam-se com um prato inundado de geleia de manga, uma imensidão de tostas e bananas verdes. Para acompanhar, escolheram sumo de laranja e café. Opto pelo pão com doce e um chá verde, porque não quero exibicionismos exóticos que os agoniem, embora prefira outro tipo de alimentos ao pequeno-almoço.

Fico à espera do momento certo para falar do que me interessa e, felizmente, são eles que puxam pelo assunto. «Ainda estou verde nisto», penso. Querem fazer um programa à volta da Burma, ou melhor, Myanmar, foi assim que ouvi. Nem todos os que vêm de fora chamam Myanmar à Burma ou à Birmânia. A União da Burma foi o nome do país até Junho de 1989, data em que o general Saw Maung decidiu alterá-lo para Myanmar. No entanto, o país continua a ser conhecido internacionalmente como a Birmânia, e até entre o povo isso acontece. Também lhe chamam Terra da Imortalidade, Terra das Jóias ou Terra Dourada, a Golden Land, e é fácil perceber porquê. Os templos e os mosteiros estão revestidos a ouro e todos os acessórios mais nobres são feitos do precioso metal.

Tiro da pasta um mapa e estendo-o sobre a mesa do restaurante, ocupando metade desta, quando vejo que deram por terminada a refeição. Eu já tinha acabado a minha. Quero impressionar e inicio a minha sessão de esclarecimento. Sei que um guia sem carta geográfica não vai a lado algum. O meu dedo indicador desliza sobre o papel à volta dos limites do país, ao mesmo tempo que exponho os conhecimentos que adquiri, uns para o efeito e outros que já são meus há muito tempo. Estão interessados e debruçam-se para verem melhor. Viro o mapa não sei quantas vezes, de modo a que cada um deles tenha a perspectiva correcta do território.

«Há investigadores que não duvidam de que o berço da humanidade está aqui», revelo-lhes. É vulgar os visitantes deixarem enfeitiçar-se pela exuberância do país, situado no Sudeste Asiático, onde as influências culturais são imensas, resultado da proximidade geográfica com o Bangladesh, a China, a Índia, o Laos e a Tailândia, países com os quais faz fronteira. Dizem que está entre os territórios com mais etnias. «A Birmânia é circundada pelo Mar de Andaman e pela Baía de Bengala, ambos no Oceano Índico», concluo. Estão entusiasmados. Vou, finalmente, propor-lhes uma viagem ao passado, que será o meu primeiro passeio à volta da Burma. «Que tal fazermos um tour por Bagan, Mandalay, Taunggyie e Meiktila?», pergunto-lhes. Era isso mesmo que procuravam.

Tenho tudo a postos. Trouxe uma carrinha de cinco lugares que aluguei a um amigo e que conta, atrás, com espaço suficiente para transportar as malas dos três turistas e também a minha. É que uma viagem destas há-de durar, pelo menos, uma semana. Não estipularam o regresso nem me pediram para reservar hotéis; preferem ir à aventura.

Um segue sentado ao meu lado e os outros dois, inevitavelmente, vão atrás. Esforço-me por não lhes confundir os nomes e, antes de chamar por algum, sou obrigado a pensar uns segundos, para não me enganar. James é o que vai à frente; esse eu sei, porque é o mais alto. Mark e Sebastian são os outros; ainda tenho tendência para os confundir, mas mais umas horas de viagem e estou certo de que as minhas dúvidas se dissiparão e até talvez comece a saber mais a respeito deles.

Olho pelo espelho retrovisor e surpreendo-me com aquilo que vejo. Já me tinha apercebido de que estava perante gente estranha, embora até agora nada fosse tão explícito como o que acabava de observar. Eles são gays. Beijaram-se e eu vi. Estou constrangido, para não dizer envergonhado.

Entre o meu povo não há comportamentos destes em público. Para ser sincero, não se fala de homossexualidade. Preciso de disfarçar e reagir como se fosse vulgar. Um guia é alguém que tem de estar habituado ao comportamento diferente dos turistas. Eles notaram que eu notei e começam a rir. Acho que coro, mas não posso confirmar porque não me olho ao espelho. Provocam-me, e o melhor que tenho a fazer é entrar na brincadeira. Provocar é uma forma de dizer - testam o meu embaraço em relação à sua orientação sexual e, sem rodeios, perguntam-me se tenho namorada. Não, não tenho namorada. Tenho vinte e dois anos e uma vontade enorme de ser livre, isso sim. É de mulheres que gosto, só que ainda não encontrei a pessoa certa. Para que não haja dúvidas, deixo-os esclarecidos. Eles entendem.

Já sei o que fazem. Fui eu que quis saber. James é professor e trabalha para uma organização de saúde, nos Estados Unidos, cujo nome não consegui fixar; Sebastian é empregado num banco norte-americano e está ligado à gestão; Mark, que nasceu na Alemanha, é funcionário de um ministério qualquer. Depois de ficar mais ou menos esclarecido, foi a sua vez de me bombardearem com perguntas. Não tenho qualquer problema em contar. Sou de uma família humilde mas honesta.

Nasci na capital, mais precisamente na Maternity and Child Hospital of Yangon, a maternidade onde a minha mãe trabalhava como enfermeira-parteira. Não foi coincidência, porque só podia ter sido ali. O meu pai é engenheiro civil e foi contratado pelo Ministério das Obras Públicas da Birmânia quando eu tinha dois meses. Mudámo-nos para Insein mais ou menos nessa altura, é o que dizem. Tinha comprado aí um pedaço de terra e decidiu levar a família. Insein fica a quarenta quilómetros de Yangon e o preço da terra à volta da cidade é muito mais baixo do que no centro. Os meus tios, o irmão do meu pai e o irmão da minha mãe, foram viver connosco; ao que parece, ajudaram a construir a casa onde passámos a viver.

Tento explicar-lhes que tipo de casa era a minha e olho em redor, à medida que avanço para Bagan, na tentativa de descobrir uma que se assemelhe. Estico o braço esquerdo e aponto o dedo na direcção de uma cabana. Era mais ou menos como aquela, uma casa modesta com telhado feito de folhas secas, de paredes de bambu entrelaçado, assente em estacas de madeira e com umas escadas de lado que davam acesso ao interior, onde reinava a simplicidade em duas divisões e uma cozinha. A sala servia, ao mesmo tempo, para estar e tomar as refeições; o quarto dava para todos.

Não esqueço o silvar do vento por entre os caules. Era um assobio constante e incomodativo que, por vezes, me interrompia o sono. Do lado de fora, fizeram a casa de banho e também um poço de onde puxavam a água para beber, para a higiene diária, para cozinhar e também para alimentar os campos de cultivo que, entretanto, foram crescendo, graças à dedicação dos meus tios. O meu pai continuava a trabalhar para o ministério e praticamente só estava em casa aos fins-de-semana.

Dou por mim a falar há muito tempo e não sei se ouviram metade do que lhes disse. Reparei que comentavam a paisagem e se colavam aos vidros do carro, como se dessa forma conseguissem tocar em alguma coisa. Pedem-me para parar. Parecem deslumbrados com tudo o que vêem e querem tirar fotografias. É o primeiro momento de descanso desde que saímos. Não tenho ultrapassado os setenta quilómetros por hora. As estradas não dão para mais e a carrinha não é propriamente uma Chevrolet.

O encanto da planície deixou-os atordoados. Viram-se para a direita e fazem pose, disparam umas quantas vezes e logo depois registam o momento, tendo também como fundo o lado oposto. Até eu, que nasci aqui, fico fascinado quando estou perante esta extensão soberba de terra que se alcança num lance de vista. Pedem-me que segure a máquina e os enquadre com a serrania. Vão ter muito para fotografar até chegarmos a Bagan. As planícies centrais estão rodeadas por montanhas em forma de ladeira e são uma constante da paisagem, que provoca um deslumbramento que, creio eu, se há-de repetir ao longo do caminho. Os campos de arrozais, harmoniosos e extensos, parecem pintados à mão, tal a perfeição com que crescem. As mulheres, curvadas sobre a plantação, parecem venerar a terra que as alimenta e assim permanecem uma imensidão de tempo.

Aviso-os de que devemos retomar a nossa viagem, caso contrário não chegamos a Bagan a horas decentes. A estrada é péssima e torna-se um entrave à condução. Julgo que, se estivesse conservada, quero dizer menos esburacada, em nove ou dez horas chegaríamos ao destino, mas assim não sei o que lhes dizer. Pelo menos doze horas havemos de demorar, é esse o tempo que leva um autocarro. Vamos andando!

A propósito de nada, recordo a minha mãe. Talvez tenha sido sugestionado por duas mulheres que vi ali atrás, de volta de uma banca de fruta. Ela também tinha uma, em Insein. Ficava mesmo em frente de casa e, por isso, junto ao caminho. Não era uma banca igual àquela, mas uma espécie de mercearia onde, para além da fruta, vendia os ovos que as nossas galinhas punham, legumes frescos e imensos frascos de pickles de manga com pimentão-doce, que ela enchia sabiamente. Ganhava algum dinheiro assim. Havia gente que preferia dedicar-se a fazer tijolos à mão para depois vender na cidade, outros ficavam à espera de que os construtores de Yangon os fossem comprar. Insein é uma zona de lagos, riquíssima em água, e os aldeões aproveitam-na como podem.

Foram tempos difíceis, aqueles que ali passámos. A minha mãe estava grávida do meu irmão e eu tinha uns quatro meses quando o meu pai foi preso. Andava a trabalhar na construção de uma fábrica de madeira ao serviço do Estado e caiu nas malhas de um regime corrupto. Acho que o chefe dele, militar, o obrigou a assinar uma nota de encomenda de material que nunca chegou a aparecer; sabe-se lá quem ficou com esse material ou com o dinheiro. A polícia foi lá a casa, algemou-o e levou-o sem dizer porquê. A minha mãe disse-me que isso aconteceu em 1972. Foi em Julho. Soubemos uns dias depois que os colegas do meu pai também tinham sido presos e foi através das suas famílias que tivemos notícias dele. A mulher de um desses colegas garantiu à minha mãe que, se fosse com ela, o conseguia ver. Ela foi, na esperança de reencontrar o meu pai, mas, quando chegou à prisão, surpreendeu-se com uma proposta nojenta para o poder ver. Recusou a indecência, em nome do amor que os unia. «Vou continuar a rezar!», disse-me nesse dia, quando regressou a casa. Era uma mulher muito forte, a imagem da coragem numa casa pobre e aparentemente à deriva.

Aperceberam-se os três de que me ausentei. Confirmo que estava a pensar na época em que vivi em Insein, a aldeia de que lhes tinha falado. Bem a propósito, querem saber a minha opinião sobre a situação política do país. Sabem que são os militares que mandam na Birmânia, mas, até agora, não sentiram qualquer espécie de repressão. Assumo que tenho medo de falar no assunto. Aprendi a desconfiar de tudo e de todos e nunca sei até onde vão parar as minhas opiniões. Mas também não devo esconder a verdade. São pessoas informadas e digo apenas aquilo que posso.

O meu país está debaixo de uma ditadura militar desde 1962. O general Ne Win, juntamente com outros generais, tomou o poder. Dissolveram todas as instituições parlamentares e substituíram-nas pelo Conselho Revolucionário. Um mês depois, publicaram o «Burmese Way to Socialism», onde consideram a Burma como um estado de filosofia budista. Eles escutam-me e vão confirmando com um acenar de cabeça e um «yeh» aquilo que lhes digo. Estou dentro do assunto, é verdade. Sempre me interessei por política, sobretudo porque não aceito esta opressão em que vivemos; mas isto não lhes digo. Aguardo que sejam eles a puxar a conversa, se é que lhes interessa. Felizmente, não o fazem.

Nem sei quantos quilómetros faltam para chegarmos a Bagan. Estou perdido. É o meu primeiro tour, relembro-me. Com estas escapadelas para ver isto e aquilo, parar aqui e acolá, nem amanhã lá chegamos. Isso é certo! Estou justamente a pensar nas dificuldades de uma viagem destas quando me pedem que pare, outra vez, o carro. Vêem umas mulheres com fatos tradicionais que já nada me dizem e querem fotografá-las. Não sei se vamos a tempo nem se é uma boa ideia. Creio que não vão gostar, já têm uma certa idade. Explico-lhes que o país tem mais de cento e trinta e cinco grupos étnicos, cada um com a sua identidade, dialecto e costumes, que diferem inclusive na forma de vestir. Aparentemente, para quem não sabe, apresentam-se todos de igual, mas o fato tradicional composto pelo longyi (sarongue) e pelo eingyi (blusa ou camisa) tem uma imensidão de padrões e cores que permitem distinguir cada uma das etnias. Os Shan, os Kayin, os Chin, os Kachin, os Mon, os Rakhine e os Bamar são os principais grupos.

Indiferentes ao meu conselho, tentam aproximar-se delas. «Estas são Bamar», explico-lhes. Pertencem ao povo dominante no país, mas até nos Estados Unidos da América é possível encontrar uma vasta comunidade de população deste grupo étnico. Ficam estupefactos com a revelação. Garanto-lhes que, mulheres assim vestidas, havemos de encontrar várias pelo caminho. Não me dão ouvidos. Duas das mulheres usam longyis floridos e com cores fortes e a outra enverga um num padrão em ziguezague. Trazem um eingyi ajustado ao corpo, com colarinho direito, e calçam uns pe nut, uns chinelos de enfiar no dedo. São a imagem típica da gente oriunda do Tibete, que começou a imigrar para aqui há mais de três mil anos.

É Sebastian quem tem a máquina e, pelo som do obturador, julgo que as conseguiu fotografar, provavelmente de vários ângulos. Eu também gosto de fotografia, embora não passe de um amador. Julgo que, num país como este, qualquer inexperiente nesta matéria tem potencial para se tornar num expert. Seria ousadia minha considerar-me como tal, mas também posso dizer que tenho lá em casa um álbum a considerar, tal a qualidade do registo!

São eles que se aproximam do carro para retomarmos a viagem, antes que seja eu a sugeri-lo. Decididamente, as doze horas não vão chegar. Já passaram cerca de seis e ainda falta outro tanto de caminho. Mais uns quilómetros e devo parar para comermos. Deduzo, pela estatura que têm, que comem mais do que eu. Não são gordos, como a maioria dos americanos que chegaram no mesmo avião ao aeroporto de Yangon, mas grandes e largos. Proponho essa paragem dentro de meia hora; no entanto, ao que parece, podemos fazer mais uns quilómetros antes de tomarmos uma refeição ligeira, porque me dizem que ainda não têm fome. Faço ideia de como foi o repasto matinal, no hotel, para não terem apetite a esta hora... É quase uma hora da tarde. Por mim, já comia uns feijões fritos com camarões secos e umas folhas de chá mergulhadas em óleo de amendoim e sal, que a minha mãe sabe fazer melhor que ninguém.

Sigo em frente. Já saímos do distrito de Bago, conhecido pela histórica cidade de Pegu, terra de gente Mon, outra das etnias de Myanmar. Vou em direcção a Meiktila porque considero ser esta a melhor alternativa, uma vez que a Bagan só vamos chegar amanhã. Não tomo a decisão sem os consultar, mas é-lhes indiferente. Não sabem onde estão e confiam nos meus conhecimentos. Asseguro-lhes que, assim, será o ideal.

É Mark quem puxa a conversa que iniciei com eles. Pergunta-me, com uma pronúncia diferente da dos outros, se vivi sempre em Isan. Digo-lhe que não é Isan, mas Insein. Não, não vivi sempre ali. Saí de Insein quando tinha cinco ou seis meses. Conto-lhes o motivo, A minha mãe foi obrigada a vender a cabana e o pedaço de terra à volta, para poder, com esse dinheiro, subornar o homem que haveria de a deixar visitar o meu pai. Conseguiu-o, mas ficámos sem nada. Tivemos de ir viver para casa dos meus avós maternos. O meu pai também foi viver connosco quando foi libertado, tinha eu mais de um ano. Contou-me a minha mãe que chegou magríssimo e malencarado e que, para além de estar fraco e doente, deixou de poder trabalhar como funcionário do Estado. Aqui é assim: quando alguém é preso, nunca mais pode servir o país. Inevitavelmente, vejo-me obrigado a contar a história desde o início para que percebam a razão da detenção do meu pai.

Estão indignados e, sem rodeios, puxam por mim. Querem saber mais sobre a situação política do país. Sem medo, continuo o que não tinha terminado horas antes. Desde 1962 até 1988 foi o general Ne Win que comandou os destinos de Myanmar ou, como eu costumo dizer, da Burma, mas uma onda de protestos populares obrigou-o a renunciar ao poder. A economia do país estava de rastos e os meses que se seguiram foram difíceis. Houve imensos tumultos, muita gente foi presa e a polícia actuou com a brutalidade que se lhe conhece, a ponto de se falar em milhares de mortos em Yangon e pelo resto do país. Diz-se que chegaram aos quatro mil mortos e mais ou menos doze mil feridos. O início dessas manifestações ficou conhecido pela 8888, pois aconteceu a 8 de Agosto de 1988. Nesse ano, deu-se outro golpe militar que levou ao poder o general Than Shwe, o tipo que alterou o nome do país para Myanmar e formou o State Law and Order Restoration Council, conhecido pelo SLORC.

Iam perguntar-me o que era isso do SLORC quando me apressei a parar o carro. É aqui mesmo que vamos comer. Decido sem querer saber se concordam comigo, porque me parece inútil fazê-lo. Já vão ter tanta dificuldade em escolher o prato que não vale a pena pô-los a escolher ainda o restaurante. É nesta altura que surge a oportunidade de mostrar que também sei alguma coisa de culinária. A diversidade gastronómica é imensa, devido às influências da China e da Índia, sobretudo. Por um lado temos especialidades à base de noddles e soy sauce, por outro temos comida picante. «Atenção, não é insuportável», alerto-os. O arroz come-se com tudo e, por isso, está sempre em cima da mesa! São as tais influências desses dois países. Não é surpresa para eles. «Há vários restaurantes birmaneses em São Francisco», contam-me. James diz-me que foi a um chamado Irrawaddy Restaurant. Explico-lhes que esse é o nome do rio que corre ao longo do interior do país e que banha Mandalay. «Se tivermos oportunidade, quando visitarmos a região, havemos de fazer um pequeno cruzeiro», prometo. Provavelmente não foi uma boa sugestão, porque nunca fiz nenhum e o risco de me aventurar com turistas numa viagem de barco é enorme. Logo se vê!

Querem saber o que lhes aconselho para o almoço. Não sei o que dizer. Folhas de chá embebidas em óleo de amendoim não são uma sugestão extraordinária e, por isso, começo por lhes falar de outros pratos da minha preferência. Gosto muito de nga baung doke, que é qualquer coisa como peixe com folhas de banana. Não estou consciente do que representa para eles a minha sugestão, mas o seu silêncio deve querer dizer tudo. Pior seria se falasse em macaco, perninhas de rã ou tartarugas-bebé. Já sei que na América e na Europa nem todos apreciam esta gastronomia e aconselharam-me a ter cuidado antes de levar turistas a um restaurante fora de Yangon.

Entramos e sentamo-nos. É um espaço tradicional. As mesas estão vestidas com toalhas coloridas e a cozinha é simples, como todas na Birmânia. Quando não têm uma lareira de tijolo, como é o caso, têm um grelhador a carvão. Os utensílios são poucos, provando que não é preciso muito para confeccionar uma refeição. Olho em redor, não vejo nada que lhes possa revoltar o estômago e fico tranquilo. Quando me apercebo, já tinham escolhido. Decidiram pedir chicken curry with noodles. O restaurante tinha a lista em inglês e eles já conheciam o prato. Provaram a especialidade no primeiro jantar que fizeram em Yangon. Eu sabia que a minha opção não ia trazer problemas, porque me disseram que quase todos os guias param neste restaurante. Entretanto, apercebo-me de que outro grupo de turistas está sentado duas mesas atrás daquela que escolhemos. Tenho sorte, há nga baung doke. Peço-o e como-o sem falar durante os intervalos em que não estou a mastigar, porque esses quase nem existem. Eles fazem o mesmo. É óbvio que estamos com fome.

Faltam cerca de trezentos quilómetros para Meiktila, onde lhes tinha dito que haveríamos de pernoitar. Antes assim do que chegarmos a Bagan sem hotel marcado e já de madrugada. Acho que não devo arriscar e seguir, de noite, por uma estrada que não conheço, em péssimas condições e com três desconhecidos à minha responsabilidade.

«Estudaste?» É a pergunta que ouço sem ter razão aparente. «Estudei, claro que estudei, e creio que isso se nota», penso. Estudei, em miúdo, numa escola primária em Yangon. Andava quatro quilómetros a pé. Saía de casa às sete da manhã e chegava às aulas às oito. Entrei com cinco anos, quando nos mudámos para casa dos meus avós paternos, porque até ali estávamos em casa da avó Joe Gore, a mãe da minha mãe. «Fomos para lá na altura em que o meu pai estava preso», recordo-lhes. «Essa minha escola era diferente das vossas: não tinha janelas nem divisões, apenas telhado e uns pilares à volta. Sentávamo-nos em bancos corridos, todos juntos, com as várias classes ao mesmo tempo, e a professora escrevia num quadro enorme, que ia quase de uma ponta da escola à outra. Parece que estou a vê-la. Os miúdos eram muito pobres, e ainda são. Eu nunca tive livros; o meu pai não tinha dinheiro para os comprar e, por isso, pedia aos nossos vizinhos que lhe dessem os dos filhos deles quando passassem de ano. E davam!»

Reparo que Mark começa a ficar impaciente por estar enfiado num carro horas seguidas. Resmunga, diz umas coisas em alemão e solta o mau humor com uns tiques irritantes que me incomodam. «Bolas, parece uma mulher frenética!», penso. Não é o único que está cansado: eu estou e os outros dois também, acho eu. Sente-se desconfortável... Paciência, aguente-se!

Acho que não volto a falar até chegarmos a Meiktila. Só me faltava começar a contar-lhes mais pormenores sobre a minha vida privada. O que é que lhes interessa saber que o meu pai comprou aquele pedaço de terra em Zion Gone, onde construiu uma casa parecida com a de Insein, e outro, bem maior, a cerca de cento e vinte quilómetros dali, que começou a cultivar? Aqui, quase toda a gente se dedica à agricultura, porque é a única solução para alimentar a família. O meu pai até já estava novamente a trabalhar na construção civil quando comprou esta propriedade. Foram uns amigos que lhe arranjaram umas obras onde ele podia fazer alguma coisa e ganhar algum dinheiro. Mas o gosto pelo campo, nunca o perdeu!

Aquela fazenda tinha, mais ou menos, a dimensão de quatro campos de futebol e ficava no meio de outras fazendas. Para lá chegarmos, o meu pai teve de desbravar a terra e abrir um caminho. O trilho tinha, seguramente, uns quatro quilómetros, porque ficava cansado cada vez que atravessava a vereda. Ele chegava a ficar por lá um mês, enquanto nós estávamos em Zion Gone. Só aos fins-de-semana e durante as férias é que a minha mãe, o meu irmão e eu íamos com ele. O lugar era magnífico e, ao que parece, permitiu aos meus pais ganhar um bom dinheiro, pois nem tudo o que produziam era para comermos. A minha mãe voltou a ter uma mercearia junto ao colmado, onde punha à venda os produtos hortícolas e uma enorme quantidade de velas de diferentes tamanhos. Não havia luz eléctrica e só os círios alumiavam as casas depois de o Sol se recolher. Não me importava, também não sabia o que era ter electricidade. O que me enfurece mesmo é recordar como ele perdeu a terra de um dia para o outro. Nada que não tivesse acontecido a alguns amigos dele.

Um dia chegaram ali e arrasaram tudo. O pomar já estava feito, mas as catanas acabaram com ele, à custa da força maléfica dos militares. Roubaram toda a fruta e deixaram as árvores a chorar no chão. Mataram o porco e as galinhas e levaram-nos em cima do jipe. Destruíram a cabana e deram ao meu pai três meses para sair dali. Para quê três meses, se já não havia nada? Se não abandonasse a terra, podia ser preso outra vez ou mesmo morto. Há tantos casos assim! Foi em 1989. Já era o general Than Shwe quem estava no poder, o presidente do Conselho de Estado da Paz e do Desenvolvimento, aquele de que lhes falei. Era prática comum: já tínhamos ouvido falar em terras confiscadas e gente forçada a ir trabalhar para obras do Estado, recrutada com métodos coercivos e abuso de poder. Nunca pensámos que nos pudesse acontecer, mas eles sabiam de quem andavam à procura.

«Stop here!», pede-me outra vez o alemão, como se fosse um caso de vida ou de morte. Vou devagar e paro quando ouço a ordem. Sou um guia submisso. Eles apeiam-se com tanta agilidade que nem parecem ter o tamanho que têm. Seguem três raparigas, com dez ou onze anos, a caminho da escola, carregadas com as sacolas tricotadas à mão, em linha de algodão. Levam-nas, como habitualmente, apoiadas na cabeça pela alça, larga e comprida, como se de um lenço se tratasse, e sempre viradas para trás, a tocar na bainha da saia. Na estrada em terra batida, na nossa direcção, aproxima-se uma menina com uma vasilha de água à cabeça e sem um único sinal de sofrimento, como se fosse a tarefa mais ligeira para alguém daquela idade. Sempre me indignei com os trabalhos forçados que as crianças são obrigadas a fazer.

Mark, James e Sebastian tentam chamar as pequenas a fim de lhes tirarem umas fotografias. Sebastian puxa de uma nota e dá-a à menina que está mais perto dele. E, em inglês, diz-lhe que divida o dinheiro com as amigas, ao mesmo tempo que estica o braço e aponta o dedo para as outras duas para se fazer entender. Creio que compreenderam o que lhes quis dizer, não pela frase em inglês, mas pelo gesto, porque abanam a cabeça e começam a rir-se. Não sei o valor da nota que Sebastian lhe deu; de qualquer forma, a menina não terá facilidade em trocá-la por kyats, aqui nesta aldeola, a não ser junto de um tipo como eu. Podia oferecer-me para fazê-lo, mas talvez pareça mal.

Agora, tenho a certeza de que entenderam o que lhes disse, porque a miúda exclama: «É para nós as três! É para nós as três! Depois dividimos!» Falou em birmanês, embora na Birmânia seja possível ouvir cento e onze línguas diferentes, quase tantas quantos os grupos étnicos existentes. Confuso para quem chega, certamente. Há também quem consiga comunicar em inglês, mas, creio eu, não por aqui, algures entre Toungoo e Meiktila e a centenas de quilómetros de Yangon. Pelos vistos, não há nada que uns dólares não façam e vejo que uma nota bastou para que se entendessem.

O governo não aceita as aventuras turísticas para lá de certas zonas. Por aqui, julgo que não há problema, mas, caso estivéssemos numa das regiões do país habitadas por minorias, seria muito provável que fôssemos interceptados. O contacto com os indígenas é malvisto pelo regime e os militares fazem tudo para o evitar. É o que acontece no estado de Kayin, onde habita o povo Karen, a mais importante minoria étnica. Dizem que são mais de dois milhões e vivem sobretudo nas montanhas, junto à fronteira com a Tailândia. O regime tem-nos escorraçado e perseguido e eles vão respondendo com um estado de guerrilha há quase sessenta anos, desde que terminou a segunda guerra, altura em que reclamaram pela independência que nunca foi concedida. Revolto-me cada vez que penso nisto. Fico irado com este constante vexame, violento e desumano, de um povo simples e hospitaleiro que vive para a família e para a paz. A tortura, a exploração, os assassinatos e a tentativa de matar a cultura são constantes. As crianças Karen não podem estudar nas suas escolas porque estas já não existem, foram destruídas, e também não podem aprender a sua língua porque o Estado não permite. É a política nacional da «burmanização»!

Voltámos à estrada, na direcção de Meiktila, depois de mais um momento de deslumbre. É normal que assim seja, sabem lá se vão voltar... Eu é que sinto que estou a atingir o estado de exaustão e já tudo me irrita. Não posso mostrar o meu cansaço, pois pagam-me pelo que faço; no entanto, admito que ser guia tem as suas dificuldades. Não vejo a hora de chegarmos a um hotel qualquer, para poder esticar as pernas.

Retomo o meu pensamento e partilho-o com eles. Aquelas meninas ali atrás eram Bamar, como as outras mulheres que vimos; se fossem da tribo Karen, não teria sido fácil fotografá-las, porque o exército birmanês está em todo o lado. James já tinha lido acerca dos Karen antes de sair de Nova Iorque, mas quer saber mais. Conto-lhe que é gente que o Estado mata, tortura, viola, que obriga a fazer trabalhos forçados, que empurra para onde bem entende e a quem queima as casas e dizima as culturas. Acabo de dizer isto e calo-me. Querem saber o que tenho e por que razão fiquei em silêncio. «Nada, não tenho nada», garanto-lhes, mas estou a mentir. O que tenho é uma imensa revolta dentro de mim, ao pensar num drama que também me diz respeito e que não me apetece contar neste momento. Insistem, porque não acreditam. Devo estar desfigurado, pois não me conhecem o suficiente a ponto de não aceitarem o que estou a dizer. É verdade que uma viagem destas dá para muito mais do que aquilo que se pensa. Ouço Sebastian pedir-me que continue, faço-lhe a vontade e digo-lhe o que me afecta. Tenho família Karen. Olham uns para os outros. «Sorry!», dizem-me. Estão desculpados, se não quisesse contar também não contava. «O meu pai foi preso por ser Karen.» Ficam confusos. «O que têm os Karen para serem presos?», perguntam-me. Não têm nada, absolutamente nada, apenas são católicos.

Estamos a chegar a Meiktila, no distrito de Mandalay. O Sol já se pôs e não pudemos ver o lago. Fica para amanhã. Acho que é artificial e que serve de reservatório de água para irrigar os solos e para o consumo da população. Esta zona é muito seca. A lenda diz que quem o criou foi o avô de Gautama Buddha, há 2400 anos, li algures. É a primeira vez que aqui estou e, neste momento, o que me interessa mesmo é saber onde vamos dormir. No estado em que me encontro, qualquer lugar serve. Nunca estive habituado ao conforto, como certamente estes aqui. Tenho de arranjar um hotel decente. Deixaram-me à vontade, desde que saímos de Yangon, e não os posso desapontar. Até agora tudo tem corrido bem, à excepção da birra do alemão e de estarmos perante uma viagem longuíssima. Ao que tudo indica, não vou ter dificuldade em encontrar um hotel, porque Meiktila fica na estrada principal e junto à linha de caminho-de-ferro e, como foi sempre um lugar de convergência no centro da Burma, deve haver onde pernoitar. Não me enganei, vai ser ali. Eles concordam e nem põem outra hipótese. Estão arrasados!

Sou outro. Dormi profundamente e, se algo de anormal se passou durante a noite, nem dei por isso. Foi suficiente, este repouso, porque sinto que estou preparado para me sentar ao volante da carrinha e, finalmente, chegar a Bagan. Visto uma camisa branca de algodão, com o colarinho redondo, que não tem mais do que quatro botões, e deixo-a por fora das calças de ganga. Não posso andar de longyi, não me dá jeito, porque passei a ser guia e julgo que me devo apresentar à semelhança de um ocidental. Estou bem. Sim, acho que estou bem, o espelho não deixa margem para dúvidas. Sou um tipo alto, bem mais alto do que todos os outros birmaneses, muito menos escuro do que eles e com os olhos ligeiramente menos amendoados. Não tenho má figura e, ao lado dos meus três companheiros de viagem, não me sinto mal.

Primeiro bato à porta do quarto de Mark e Sebastian e depois à do quarto de James. Aqueles dois dormiram juntos, suspeito. Acho estranhíssimo; se calhar, não dormiram os três porque não cabiam na cama. Digo que está na hora, mas não quero entrar. «We are ready», ouço dizer e, nesse momento, o puxador da porta dá meia volta e eles saem. James, no quarto ao lado, sai a seguir. «A manhã está maravilhosa, não há uma nuvem no céu. Vai dar para tirar óptimas fotografias», digo-lhes. «Nem quero imaginar quantas», penso. Se foi o que foi durante a viagem, faço ideia em Bagan... Até em andamento disparavam. O que sei de Bagan foi o que aprendi na escola, o que li e vi nos livros. A paisagem é soberba, mas não há nada como vê-la com os próprios olhos.

Saímos do hotel, depois de termos tomado o pequeno-almoço. Eles pouco comeram. Prometi-lhes passar pelo lago Meiktila e não posso fingir que me esqueci. Vamos ver. Desde o tempo colonial que esta região tem uma base militar. Acho que é uma zona estratégica, porque fica perto de Bagan, Taunggyi e Mandalay e na direcção de Yangon. Foi aqui que o meu avô esteve, o pai do meu pai. Nasceu em Macau, depois foi para Singapura e, durante a Segunda Guerra Mundial, chegou à Birmânia. Vinha ao serviço do exército britânico, contou-me o meu pai, que também me disse que ele conheceu a minha avó no hospital de campanha, aqui em Meiktila, quando adoeceu. Ela era enfermeira, apaixonaram-se, casaram e foram viver para Pathein. Sei que ele deixou o exército, porque, entretanto, a guerra terminou; as tropas japonesas renderam-se em Agosto de 1945 e o país tornou-se independente de Inglaterra dois anos depois. O meu avô nunca se adaptou à Birmânia e, após a minha avó ter morrido, decidiu voltar para Singapura, onde acabou por falecer oito meses depois de ter chegado. O meu pai devia ter uns dezoito ou dezanove anos.

Valeu a pena termos vindo espreitar o lago, mas mais do que isso é perda de tempo. Bagan está a uns quarenta quilómetros daqui, o que significa que dentro de uma hora estaremos lá, se tudo correr como eu prevejo. Não precisamos de chegar à cidade para admirarmos a beleza natural e arquitectónica da região de Bagan. A sul, perto da localidade de Myinkaba, está o templo de Manuha e a uns setenta quilómetros mais a leste está o Monte Popa, que não são mais do que cinza e lava vulcânicas solidificadas, em forma de ladeira. Por ser terra fértil, permitiu que ali nascesse uma exuberante vegetação, que se destaca de toda a outra. Perguntam-me o que sei sobre Bagan. Sei o suficiente para que fiquem minimamente informados sobre a cidade, que chegou a chamar-se Pagan, que foi a capital birmanesa e que os Burmans fundaram em 849, na margem esquerda do rio Irrawaddy.

Bagan é conhecida pelos seus numerosos templos. Tem mais de treze mil pagodes e outros edifícios religiosos, onde se encontram diversas imagens de Buda. Mas, neste momento, apenas dois mil estão totalmente preservados. Em 1975, depois de um terramoto ter destruído muitos desses templos, a UNESCO lançou um programa para os restaurar, onde estão a trabalhar centenas de pessoas. James e Sebastian não sabiam, Mark já tinha lido a este respeito.

Pedem-me para irmos ao monte Popa. Não estava a contar com este desvio, mas, como são eles que mandam e me pagam, só tenho de ir. Também não conheço. Temos de nos desviar vários quilómetros e, por isso, não estaremos em Bagan a tempo de iniciarmos o passeio ainda hoje. Sigo para leste, olho para o nível da gasolina e reparo que, por precaução, devo abastecer o carro. É a segunda vez que o faço desde que saímos. Atestei o depósito ontem, junto ao restaurante onde almoçámos, e ainda está ligeiramente a menos de meio; mas nunca se sabe o que vamos encontrar pela frente até ao monte Popa. Pedem-me para almoçarmos mais cedo. É natural, comeram pouquíssimo ao pequeno-almoço e devem estar esfomeados. Agora tenho duas preocupações: uma é encontrar uma bomba de gasolina e a outra, um restaurante onde eles consigam almoçar.

Tenho a certeza de que já fizemos pelo menos uns cinquenta quilómetros depois de nos termos desviado da estrada que trazíamos de Yangon, o que quer dizer que já passou mais de uma hora desde que deixámos Meiktila. Lá atrás reparei que havia uma tabuleta a anunciar «Popa Restaurant», «typical food» e mais não sei o quê. É portanto para a frente, estou no bom caminho, e o restaurante deve surgir a qualquer momento, depois de uma destas curvas. Não me posso queixar dos últimos quilómetros de estrada, viemos quase a direito, mas a partir de agora não antevejo facilidades. Para trás ficou uma planície árida e quase nua, ornamentada apenas por palmeiras desordenadas; daqui para a frente temos um oásis. Consegue-se avistar a reserva natural lá em baixo, parece um labirinto plantado no meio do deserto. Fico tranquilo, porque apenas nos locais turísticos há este tipo de preocupações e isto quer dizer que não estamos sozinhos. Volto a ver uma placa idêntica à de lá atrás, o que me garante que estou perto, tão perto que acabo de dar de caras com o Popa Restaurant, ao lado uma bomba de gasolina. O que posso querer mais? É aqui que vamos almoçar, está decidido.

Estão satisfeitos com a visita ao Popa Mountain Park, mas desgostosos com a escolha do restaurante. Saíram de estômago vazio. Têm muitas esquisitices. Para quem tinha tanta fome, mostraram-se enfartados e deixaram a comida no prato. Queixaram-se de excesso de picante. «Quem vem para um país destes tem de se sujeitar, aqui não é a América!», penso-o mas não o digo. Asseguro-lhes que o jantar há-de ser óptimo e mudo de conversa.

Este parque abriu há três anos, em 1989. «Está tudo explicado no panfleto que tirámos de cima do balcão do restaurante», digo-lhes. Abrem a brochura, onde vêem imensas espécies de plantas e inúmeros animais selvagens. Com um bocadinho de sorte, podemos cruzar-nos com um macaco, um porco selvagem ou um gato. A brochura está em inglês e eles vão-se entretendo a lê-la, enquanto sigo viagem em direcção a Bagan. Finalmente, Bagan! Julgam que não vale a pena ficarmos por aqui mais tempo à espera de que um macaco nos caia em cima. Querem seguir viagem.

«Pagodes à vista!», anuncio entusiasmado, embora não fosse preciso. É por demais evidente e eles percebem imediatamente quando os primeiros templos se avistam na planície. Não se calam e estão estupefactos com a paisagem de Bagan. «Wonderful!», «Oh! My God, this so beautiful!», «This is much more amazing than I imagined!», «Look at there!», «What a sight!», dizem os americanos. E o outro, o alemão, não se cala com o «Wunderbar! Wunderbar!». Já o disse para aí umas cinco ou seis vezes. Pergunto-lhe e fico a saber o significado - maravilhoso. É uma palavra que não devo esquecer tão cedo, pois é provável que venha a ouvi-la mais vezes, daqui para a frente.

Percebo agora por que razão Bagan é uma das principais atracções turísticas da Burma e uma das maiores riquezas arqueológicas da Ásia. Eu próprio estou seduzido com o que vejo. Sou um viajante inexperiente confesso que até agora nunca tinha saído de Yangon e dos arredores e que, depois deste tour, jamais será o mesmo. Há muito para ver e ainda não sei quantos dias é que querem ficar por aqui, mas, se se puserem a fotografar todos os pagodes, então nunca mais regressamos a Yangon e é provável que percam o avião. Vou deixar este assunto para mais tarde.

Está na altura de procurar um hotel. O ideal seria um junto ao rio Irrawaddy. Quero deslumbrá-los e já reparei que apreciam certos pormenores que me passam despercebidos. É natural! Este rio é o mais importante da Birmânia: nasce no Tibete e corre ao longo de mais de dois mil quilómetros, dividindo o país ao meio e a oeste, antes de desaguar no Mar de Andaman.

O seu vale fértil faz desta região umas das zonas agrícolas mais ricas do mundo. Informo-os e dirijo-me para o centro.

Esta é a principal zona turística da cidade. Os melhores hotéis estão aqui e procuro um que tenha vista para o rio, mas não o faço sem antes perguntar se me dão liberdade para tal. Estou tranquilo, pois a oferta de hotéis é bastante, embora talvez não haja outro como este. Quatro estrelas, fabulosa fachada envidraçada, tipicamente asiática, que se estende ao longo de imensos metros e com uma vista magnífica para a enorme piscina rectangular rodeada por relva. De luxo, certamente. Consegui deixar os meus turistas num estado de euforia e excitação como ainda não tinha visto. O Thiripyitsaya Sakura Hotel é uma excelente escolha. Nunca antes estivera perante tanto conforto, que ainda por cima me vai ser oferecido. Pagam-me a estadia.

Tínhamos combinado jantar no restaurante do hotel, quando fizemos o check-in. Tomei a liberdade de vir andando e de escolher a melhor mesa. Sento-me na cadeira que fica de costas para a janela e deixo as outras para eles. Dali vão poder admirar o Sol a esconder-se atrás das montanhas Ten gyi Toung. Comunico ao empregado que estou à espera de três amigos. Tenho a certeza de que há-de pensar que faço parte do grupo e que também sou maricas. Não sou e pouco me importa se pensa assim. Vêm aí! Mark veste uma T-shirt preta justa, para não dizer justíssima, e umas calças brancas. É louro, usa risco ao lado e tem bigode da mesma cor do cabelo. Sebastian e James chegam ambos vestidos de preto da cabeça aos pés e, por acaso ou não, também têm bigode, mas são morenos. O bigode deve ser moda entre eles. São os três bastante entroncados e têm aspecto de quem passa horas a fazer musculação. Estão com um ar fresco. Dei-lhes tempo para descansarem um pouco e se assim o aproveitaram não sei, mas que estão com boa cara, isso é notório! Estou a ser maldoso e rio-me para dentro. Eles sentam-se e elogiam-me. Dizem que fiz uma escolha excelente, que o hotel é espectacular e que fazemos dois pares engraçados e multicolores. Não me agrada a piada. Sei que estão a provocar-me, mas creio que fui muito claro quando puxaram o assunto pela primeira vez. «Don’t worry!», diz Sebastian. «We are joking with you, Chris!», continuam. Sorrio, certamente com ar de estúpido e de quem não achou graça alguma, mas que tenta disfarçar. «I know, I know!», respondo.

Sim, sou Chris. Querem saber como é que um birmanês se pode chamar Chris? É simples, Chris vem de Christopher e, como a minha avó materna era inglesa, a minha mãe decidiu dar-me um nome inglês. Também me podem chamar de Thant Zin, o meu nome birmanês, mas creio que é mais difícil. Acharam curioso. Definitivamente, o meu passado interessa-lhes! Onde estudei, por que razão sou guia, se tirei o curso de Turismo ou se me lancei à aventura, se já saí daqui e se gosto do meu país. Sou bombardeado com perguntas e vou respondendo até onde julgo que devo. Não quero ter mais problemas do que aqueles que já tive.

Quando acabei a Insein High School, queria tirar o curso de Engenharia Civil. «Como se isso fosse possível», ironizo. Sorrio e começo, com entusiasmo, a revelar-lhes a história mirabolante de um tipo que não passa de um mero aprendiz de guia turístico e que, por necessidade, se fez à estrada com três gays dentro de um carro. Acho que foi por influência do meu pai, que queria ser engenheiro, mas não tive sorte. O meu nome não apareceu na lista que a escola afixou, no final do ano, em 1990, com os nomes dos finalistas e os respectivos cursos para onde tinham de entrar. «Tinham de entrar?», pergunta o alemão. «Sim! É o Estado quem escolhe, e não os alunos.» Dou-lhes a primeira novidade da noite. James interrompe o meu discurso e pede que desfrutemos desta beleza inigualável que é o pôr-do-sol em Bagan, frente ao rio Irrawaddy, a esconder-se nas montanhas cujo nome já não recorda, num hotel de luxo e à espera de serem servidos. Deslumbre absoluto.

«Continua!», pede-me James. «Sabem porque é que o meu nome não apareceu na lista?» Não dou tempo para responderem, porque sou eu quem tem de o fazer. «Claro que não sabem, nem suspeitam», asseguro com toda a certeza. Eu sempre fui bom aluno, tinha boas notas e o meu certificado é prova disso. Nunca faltei às aulas, era considerado inteligente e um miúdo com um sentido crítico demasiado apurado. Talvez esse excesso me tenha tramado. Nunca mais fui o mesmo depois de os militares terem roubado uma propriedade ao meu pai e de terem morto e levado os animais que estávamos a criar. Tinha dezassete anos, andava no 12.° ano e, a partir dessa altura, comecei a insurgir-me. Tinha um grupinho de colegas de turma com quem me dava bem e, juntos, começámos a escrever nas paredes da casa de banho e a colar uns papéis nos troncos das árvores em frente da escola. Escrevíamos umas frases soltas sobre tudo o que nos incomodava e que sabíamos que provocava. Gozávamos com o presidente e com o seu excessivo apetite sexual, conhecido de todos; denunciávamos as más condições em que estudávamos e, depois, munidos de fisgas, atirávamos pedras às janelas das salas de aula, para mostrarmos que não estávamos satisfeitos. A polícia conhecia-nos um a um. As escolas estavam controladas por dentro e por fora, e ainda hoje estão. Da parte de dentro havia seguranças municipais, e em frente aos portões estava o exército e a polícia. Muitas escolas e universidades têm estado fechadas desde os motins de 1988 e o presidente tem colocado homens em todo o lado. Desde que os militares chegaram ao poder, em 1962, o sistema educativo tem sido controlado pelos sucessivos ditadores. No ano passado, os campos universitários que estavam fechados foram abertos, embora por pouco tempo. As manifestações na Universidade de Yangon e as celebrações pela entrega do Prémio Nobel da Paz a Daw Aung San Suu Kyi fizeram com que o presidente voltasse a fechar os estabelecimentos. As associações de estudantes estão proibidas, mas não são as únicas. Na Birmânia, as organizações culturais, religiosas e étnicas estão condenadas, porque o Estado faz tudo para as banir ou impedir que cheguem a existir.

Escutam-me atentos, ao mesmo tempo que saboreiam um dos pratos típicos da Burma, o moh hingha, confeccionado e apresentado com o rigor que um hotel destes impõe e que eu recomendei. James quer saber quem foi San Suu Kyi, mas Mark e Sebastian apressam-se a esclarecê-lo. É a líder do NLD, o partido da oposição que venceu as eleições livres de 1990. «Eleições!», exclama James. Já estava à espera desta reacção. Foram as primeiras em trinta anos, mas foi como se não tivessem existido. O partido de San Suu Kyi ganhou, embora os militares não tenham aceitado a vitória: acabaram por prendê-la na sua própria casa e tomar o poder. «Democrático!», conclui Sebastian. «Sem dúvida», penso.

Mudo de conversa. Sugiro que façamos um plano para os dias seguintes. Mas antes quero saber quanto tempo pretendem ficar em Bagan. Olham uns para os outros e concordam que dois ou três dias são suficientes. Puxo de um mapa da região e aviso-os de que temos de seleccionar os nossos pontos de interesse. Concordam. Começo por identificar os locais obrigatórios. O pagode Shwezigon é o mais importante e imperdível. Foi construído no século XI pelo rei Anawrahta e é famoso pela sua cúpula de ouro; consta que um dente de Buda e vários ossos estão lá depositados. O templo serviu de protótipo para os que se seguiram e é visitado por inúmeros peregrinos vindos de todo o país, mantendo-se fiel aos seus traços originais.

Depois, acho que devemos ir ver o Dhammyangyi, porque dizem que é extremamente elegante, e ainda ao Thatbyinnyu, pois é altíssimo, o mais alto do planalto de Bagan. Não podemos perder Ananda, ao que parece de uma beleza extraordinária, onde existem diversas imagens de Buda. Acho que, para lá chegarmos, temos de atravessar várias galerias. O plano inicial está feito. Agora, resta-me avisá-los de um pormenor importante e que ainda não lhes tinha dito. «Antes de entrarem em qualquer templo, têm de se descalçar. Mas não devem deixar os sapatos com as solas viradas para cima, dá azar!» Não sabiam e mostraram-se surpreendidos.

Conseguiram jantar e isso agradou-me. Seja como for, sinto-me responsável pelo bem-estar dos meus turistas. Confiaram em mim e, até agora, não tive uma única despesa. Estamos num salão ao lado do restaurante, sentados nuns cadeirões e a aguardar pelo início do espectáculo. Quando entrámos, o recepcionista do hotel disse-me que não o podíamos perder e que era composto por danças tradicionais birmanesas. É o tipo de atracções de que, certamente, todos os turistas gostam, mas estes aqui não sei! Sebastian pergunta-me se estou informado sobre a hora de início do espectáculo e digo-lhe que deve estar para breve. Acabo de responder e às bailarinas avançam, delicadas, pela sala, até chegarem ao centro. Vamos ver! Anyeint é a dança mais popular na Birmânia. Anyeint quer dizer qualquer coisa como suavidade e harmonia. Basta olhar para elas para se ver a harmonia. Nesta dança conjuga-se a música e a canção com a elegância corporal. Durante a monarquia, a Anyeint estava confinada à corte, mas, com o domínio do Império Britânico, passou a ser apreciada pelo povo. Graciosas, as dançarinas dão início à actuação, os braços e as pernas ondulando em suaves movimentos que deixam a assistência relaxada. É assim que vejo os meus turistas!

Nos últimos dois dias, percorremos as planícies de Bagan de trás e para a frente, de volta dos pagodes, dos melhores ângulos e da melhor luz, vimos aqueles que lhes recomendei e agora estamos a explorar os arredores. Andam munidos de imensos panfletos que têm recolhido por onde passam. Querem ir a Bagaya Kyaung ver um dos maiores mosteiros budistas do país. Ali se recolhem centenas de monges, certamente conferindo ao local uma espiritualidade e cor interessantes. Partem do princípio de que também sou budista, mas até agora não me fizeram uma única pergunta a esse respeito. As minhas práticas religiosas não lhes suscitam dúvidas nem curiosidade. Quero dizer: não suscitavam. Sebastian, bem a propósito, pede-me que lhe fale um pouco sobre esta religião, que considera enigmática; julga, com certeza, que domino o tema.

Sem perder tempo, dou início a uma sessão de esclarecimento, enfiado numa carrinha que, por sorte, ainda não deu problemas. Estou consciente de que não sou a pessoa indicada para o fazer. Devem pensar que não sei tanto como os monges, mas que sei muito mais do que eles. Confesso que não domino os rituais nem os pormenores. Eles não reagem. Sei aquilo que leio, aquilo que vejo e aquilo que me obrigam a saber, não mais do que isso. «Obrigam a saber?!», repete James, em inglês. «Sim, obrigam a saber!», confirmo. Na Birmânia, a Junta Militar é defensora do budismo; por um lado, ajuda as ordens monásticas para legitimar o próprio poder e, por outro, discrimina os cristãos. «Cristãos na Birmânia?», perguntam-me. Estão surpreendidos e avanço com números. São para aí uns dois milhões; não muitos, se pensarmos que a Birmânia tem quarenta e cinco milhões de habitantes. Na minha opinião, isso faz pouca diferença, porque deveriam ser livres de seguir as suas orientações espirituais, o que não acontece. Têm sido perseguidos ao longo das últimas décadas e até há relatos de gente que não consegue licença para construir uma casa porque é cristã, que vai à igreja às escondidas e, mais grave do que isso, é raptada! Há homens que são apanhados pelo exército para irem trabalhar, gratuitamente, em mosteiros budistas e mulheres que são obrigadas a tornar-se monjas. O Theravada é o dominante na Birmânia, digamos que é ortodoxo. Tal como o catolicismo tem os católicos romanos e os protestantes, o budismo tem o Theravada e o Mahayana. Acho que entenderam.

«You’re always meditating, am I right?», perguntou James. Ele julga que sou budista. Vou ser claro e assumir, de uma vez por todas, que não pratico essa concentração mental que pretende abrir o caminho para a liberdade espiritual, a que chamam Nirvana. «Não sou budista!», digo-lhes. Acho que não ouviram bem e pedem-me que repita. Assim faço. «Não sou budista, sou católico!» «Catholic?! Are you catholic, Chris?» Sou católico, o meu pai é católico, a minha mãe é católica, somos todos católicos. Os Karen são católicos e o meu pai é Karen. Já lhes tinha dito. «If you’re catholic, you’re being persecuted all the time!», deduz Mark, assustado, como se por este motivo estivesse em causa a sua segurança. Sou perseguido, mas não tenho a polícia atrás de mim, julgo eu. Sou perseguido, assim como a minha família. Temos sido sempre perseguidos. O meu pai foi preso porque é Karen, roubaram-lhe a terra porque é Karen, eu não apareci na lista da escola porque sou católico e filho de um Karen e de uma mulher profundamente devota. Parece que estou a ver a minha querida mãe de Bíblia na mão. Adorava ler-nos à noite, a mim e ao meu irmão, uma passagem qualquer, que depois fazia questão de explicar e comentar. É uma mulher que reza todas as noites em frente da imagem de Cristo, onde tem uma lamparina com azeite que lhe alumia a casa e a alma. Tem uma força imensa e pediu-nos, sempre, para não termos pena de sermos pobres, porque a pobreza não passa de um teste que nos faz acreditar que melhores dias estão para chegar. Dizia tantas vezes que, quando passássemos este teste, iríamos viver no paraíso! Foi com esta fé que conseguiu ultrapassar todos os problemas e é com esta fé que nos tem encorajado.

É linda, a minha mãe. Gabo-lhe os cabelos lisos, pretos e brilhantes, que usa enrolados para dentro, cortados a direito, e que não passam do pescoço. Os seus olhos são amendoados como os de todas as mulheres daqui, mas muito mais bonitos. Quando sorri, sobressaem as maçãs do rosto e os dentes branquíssimos e vistosos; quando está mais séria, realçam-lhe os lábios carnudos. O meu pai tem os lábios muito mais finos do que os dela e o nariz bem mais comprido. Ele usa o cabelo penteado para trás, que lhe nasceu ondulado. Eu sou parecido com ele, mas tenho o cabelo mais claro, digamos castanho-escuro. Partilho com os meus três turistas estes pensamentos íntimos. Eles acabam de iniciar um momento de reflexão, depois do que lhes contei, e nenhum abre a boca. Creio que, a partir de agora, se identificam um pouco mais comigo. A importância que damos à religião é inegável. Raciocino como se estivesse também perante três católicos. Não me disseram, mas creio que o são.

Estamos de regresso ao centro de Bagan. Fomos a Bagaya Kyaung, vimos o mosteiro por fora e passámos, ainda, pelo lago Taungthaman, na zona sul. O lago seca durante esta época do ano, no Inverno, altura em que os agricultores aproveitam para cultivar a terra fértil; depois, no Verão, na altura das monções, o lago volta a encher-se de água. Passámos pela ponte U Bein, construída em madeira, e repousámos um pouco por aí, porque há várias horas que os três se queixavam com calor. Isto não é nada; tivessem eles vindo em Julho ou Agosto e iam ver como era. Desde que saímos de Yangon que lhes tenho dito para terem atenção à escolha da roupa que vão vestir. Sugeri-lhes que usassem camisolas e calças claras, largas e de algodão. Aceitaram o meu conselho, mas mesmo assim andam afogueados. É normal, estivesse eu na Alemanha e morria congelado. Amanhã vamos partir para Mandalay. Fica um pouco mais a norte, mas não muito. Talvez uns cinquenta ou sessenta quilómetros, não estou seguro. Em Bagan, foram três dias bem aproveitados.

Saímos já a manhã ia a meio. Aquilo que sei sobre Mandalay não os entusiasmou. O forte é uma das atracções da cidade, mas, para passarmos as muralhas, é necessário termos uma autorização especial e não sei onde é que se arranja. Dentro das muralhas havia um antigo palácio real, hoje há uma base militar e não se consegue entrar de qualquer maneira. Conclusão: não podemos ver! Depois, há que ter em conta que não é uma cidade muito antiga e, por isso, os vestígios históricos não são os mesmos de uma cidade velha. Foi fundada em 1857 pelo rei Mindon, que transferiu para aqui a capital daquele que foi o último reino independente da Birmânia. Em 1886, as forças britânicas passaram a controlar tudo. Quer dizer que não há muito para ver. A zona do templo Shwe Nandaw Kyaung parece-me a mais atractiva. É uma questão de irmos espreitar.

Depois de Mandalay, havemos de ir a Taunggyi. Fica para sudeste e isso significa que iniciamos, aí, a viagem de regresso a Yangon. Taunggyi é a quarta maior cidade do país, mas não tem mais do que cento e cinquenta mil habitantes. Capital do estado de Shan, é habitada sobretudo por gente dessa etnia. As Casas são pitorescas. Li que à entrada têm sempre um lavapés, depois reservam uma parte da habitação para receber hóspedes e têm uma espécie de varandim que confere à arquitectura alguma simetria. A beleza natural é a maior atracção de Taunggyi, dominada pela paisagem de montanha e pelo pitoresco lago Inle. «Mesmo assim, vale a pena irmos lá», dizem-me. Na verdade, não temos nada a perder. A intenção é pernoitar nas duas cidades; não mais do que uma noite em cada uma delas, porque ainda temos pela frente um dia de viagem até chegarmos à capital.

Não sei se estou mais fascinado com este passeio do que eles próprios, mas ia jurar que sim. Está a ser a melhor experiência da minha vida. O que tenho aprendido nestes dias há-de ter, talvez, mais resultados práticos do que aquilo que me obrigaram a aprender, na escola, em certas disciplinas. Subitamente, apercebo-me de que esta é uma profissão que gostaria de ter, mas não creio que consiga levar para a frente a minha intenção. As probabilidades de ser bem sucedido não dependem de mim, porque, tendo em conta o passado conturbado da minha família, não vou ter grandes hipóteses de seguir em frente. Acho que a Junta Militar não quer um tipo como eu, a contactar com turistas todos os dias; mas que lhe interessa o dinheiro que eles cá deixam, disso eu já não duvido. São eles que alimentam muita coisa e, até agora, não ouvi uma notícia a respeito de turistas maltratados na Birmânia. Seja como for, isto tem-me aberto ainda mais os olhos e obrigado a reflectir sobre a minha condição de homem considerado diferente por um regime autoritário e de mentecaptos. Durante estes últimos dias, e depois de todas as conversas que tivemos, já me passou pela cabeça sair daqui, ir embora, fugir, descobrir a liberdade. Mas talvez esteja a ser imaturo e precipitado e até deslumbrado com o desconhecido. Vontade não me falta, coragem é que ainda não ganhei. Prendem-me os meus pais, eles sim!

Dou por mim a pensar que tudo serve para nos enriquecermos, e até o facto de ter metido na carrinha do meu amigo três homens com uma tendência sexual diferente da minha também tem servido para eu conhecer um pouco melhor uma realidade de que não se fala na Birmânia, mas que todos sabem que existe. Já tinha ouvido dizer que este é um dos paraísos dos homossexuais, assim como a Tailândia, mas nunca tinha visto nada. Na verdade, agora também não vi. Apenas conversámos como pessoas civilizadas, e sem dúvida que o são. Fiquei surpreendido quando o Sebastian me disse que tinha dois filhos. Para mim, ele é, dos três, o único que não aparenta ser gay. E depois, essa história de ter dois filhos, acho-a estranha. Como é que alguém tem dois filhos e é homossexual? Isso é que não entendo. Ainda não tive coragem de lhe perguntar e nem sei se a terei; até é provável que não me interesse ouvir a resposta.

Sigo a rota que tracei, a viável. Tendo em conta o estado em que as estradas se encontram, esta é a única solução sensata. James e Sebastian deixaram cair a cabeça para trás. Vão de olhos fechados. Talvez por educação, Mark, ao meu lado, ainda se mantém acordado. A vida nocturna em Bagan é intensa e, se pensar na hora a que chegaram ao hotel, esta madrugada, por sinal pouco apropriada para quem ia viajar de manhã, devem estar atordoados. Eu não fui, sou responsável. Não tenho intenção de os acordar e digo ao Mark para estar à vontade, se quiser dormir um pouco. «Danke, Chris!», responde-me em alemão. Ele sabe que eu já sei o que quer dizer. Primeiro Mandalay e depois Taunggyi. Vamos a isso!

Não são cidades com o encanto de Bagan, mas não devemos ignorá-las, se estivermos a cem ou cento e poucos quilómetros, como foi o caso. Têm história e uma beleza natural que eu próprio não sei explicar. Às vezes até duvido de que haja no mundo um país tão belo como este. Gostei e eles também gostaram. Até agora, só a comida lhes desagradou. Em Mandalay, visitámos locais diferentes e andámos de trishaws (bicicletas de três rodas conduzidas por um homem) e de carroça. Chamam-lhe a cidade dos brancos templos e dos arrozais pintados pelo rio Irrawaddy. Dos arrozais, percebi logo porquê; dos brancos templos, tive de ver. É por causa do pagode de Kuthodaw, que é branco e tem mais de setecentas lápides em mármore, alinhadas, com textos do cânone budista, como se fossem as páginas da Bíblia da minha mãe, mas feitas em pedra. É maravilhoso. Tiraram imensas fotografias. Também vimos o mosteiro de Shwe Nandaw Eyaung, feito praticamente com uma só peça, em madeira, de cor preta, uma das amostras da arquitectura birmanesa. Um encanto! Da colina de Mandalay conseguimos ter a melhor vista da cidade e ficámos com a percepção da aridez que a rodeia. Fascinante! Em Taunggyi, encantou-me sobretudo o lago Inle, onde quiseram tomar banho. Não tem mais do que quatro metros de profundidade, mas desaconselhei a aventura. Sabia lá o que lhes podia acontecer! De resto, andámos pela montanha e de volta dos Shan. Para falar verdade, eles andaram de volta dos Shan e dos rostos das crianças que, em troca de nada, sorriam para as câmaras dos meus turistas. Já gastaram tantos rolos!

A viagem de regresso a Yangon parece-me mais rápida do que quando fomos para cima, há sete dias. Já conheço a estrada. Taunggyi fica um pouco mais a sul do que Bagan e de Taunggyi à capital devem ser uns quinhentos quilómetros. Mas isso também não quer dizer nada. Quando chegarmos, chegámos. James está interessado em saber onde é o melhor local, em Yangon, para fazer compras. Vão perder-se, estou certo disso. Se lhes disser que a oferta é imensa e que, tendo em conta o valor do dólar, os preços são uma pechincha, não saem dos mercados. É isso mesmo que acabo de lhes dizer. Aconselho-lhes o mercado de Bogyoke. Se quiserem, posso levá-los lá; se me dispensarem quando chegarmos ao Beauty Land Hotel, qualquer taxista também fará esse serviço. Toda a gente sabe onde fica, mas nem todos podem fazer compras por ali, porque sem dinheiro não trazem nada e o povo não o tem. Em Bagyoke, levam-se no bolso dólares americanos ou então kyats, a moeda nacional, porque as outras divisas são dispensáveis, uma vez que ninguém as quer. Aconselho-os a nunca trocarem dinheiro por lá. Acabo de soltar a frase e lembro-me dos duzentos dólares que lhes troquei quando chegaram. Mas eu sou honesto, não enganei ninguém, antes pelo contrário, e eles até ficaram beneficiados. Passo à frente e inicio a lista de compras para os três. Indico-lhes aquilo que podem comprar ou que vão encontrar em abundância. Começo por lhes dizer que têm por lá garrafas de whisky a bom preço (não sei se é de qualidade porque não bebo), que há imensos chocolates em caixas enormes, que podem adquirir telas pintadas à mão, tecidos a metro, chapéus, pé nut (os chinelos de enfiar no dedo) e ainda inúmeras bugigangas que se compram por uma ninharia. Não sei se é disto que andam à procura ou se é das antiguidades e das pedras preciosas, como as peças em jade, em safira e com rubis e em ouro. Haja dinheiro! Se pagarem em kyats, precisam de quilos e quilos e, se chegarem mesmo a comprar, aviso-os para terem cuidado. Porque, na alfândega, a polícia está sempre alerta. Estão informados e isso é que importa.

Avisto o pagode de Shwedagon, no monte Singuttara, a três quilómetros do centro da cidade. Está iluminado. Mede quase cem metros e, por isso, não é difícil darmos por ele quando entramos em Yangon. Ainda não o conhecem. Tem cerca de dois mil e quinhentos anos, mas nem sempre foi assim. Começou por ter nove metros e só por volta de 1774, creio eu, atingiu os cem. Há uma lenda qualquer a este respeito, embora não a conheça bem. Acho que tem que ver com uns cabelos que Buda deu a mercadores quando entraram no templo, mas não sei mais do que isto. Entretanto, Sebastian pergunta-me porque é que quase todos os pagodes se chamam Shwe. Mark e James também já tinham reparado. É muito simples. Shwe quer dizer dourado e muitos dos pagodes são revestidos a ouro. Está dada a explicação. Dizem-me que, ao longo da próxima semana, querem conhecer a cidade e, para a última, estão a planear umas idas à praia e às compras.

Yangon está nas margens do rio Hlaing e a trinta quilómetros da costa. Se tivessem vindo com mais tempo, iam para sul, até ao delta do rio Irrawaddy, junto ao Mar de Andaman. Já me contaram que é lindo, mas eu nunca lá estive. Só há pouco tempo é que os turistas começaram a ir para aquela zona, porque até agora não havia quem os transportasse. Mesmo assim, a estrada entre Yangon e Pathein é má. Lembram-se de Pathein, a terra para onde o meu avô, que era militar, e a minha avó, que era inglesa, a enfermeira, foram viver? É para aí. Também já me disseram que as praias dessa região são um deslumbre. São as praias da Baía de Bengala, mas para se chegar lá é preciso ir de barco, e creio que não vão ter tempo. Quem sabe se não têm aqui um pretexto para regressarem à Birmânia? «Who knows?», dizem eles.

Estaciono a carrinha junto ao Beauty Land Hotel. Já é de noite, mas não é tarde. Passam uns minutos das nove. Descarrego a bagagem e pergunto-lhes se querem que regresse amanhã. Agradecem-me, no entanto preferem descobrir a cidade por eles próprios. Compreendo. Pergunto-lhes também se querem que os leve ao aeroporto no dia da partida. Também não. Ainda não sabem a hora do check-out nem se lembram da hora do voo. Mark, Sebastian e James despedem-se de mim. Gostaram da companhia e garantem-me que tenho futuro como guia. Rio-me. Aceno, entro na carrinha e vou para casa. Já me tinham pago durante o caminho. O dinheiro que aqui levo é para entregar à minha mãe e para pagar o aluguer da viatura ao meu amigo. Sinceramente, gostei. Nunca me passou pela cabeça poder descobrir tanto do meu país e da vida com três maricas. Foram correctos!

Não era isto que a minha mãe queria para mim. Acha que a profissão que escolhi tem tudo para me trazer mais problemas e que não vou muito longe neste meu contacto com gente estranha. Eu penso exactamente o contrário, mas não deixo de lhe dar razão quando me avisa de que, mais tarde ou mais cedo, a polícia pode estar em cima de mim. Há um ano que moro em Mandalay, com um amigo que também é guia. Estamos numa casa arrendada. Ele comprou um carro usado e convenceu-me a vir trabalhar para aqui. Aceitei e não me arrependo. Tenho ganho bastante dinheiro, que vou enviando para casa sempre que posso. Estamos perto do aeroporto de Mandalay e da estação de caminho-de-ferro, o que nos permite contactar com os turistas mais facilmente. Para além disso, há menos concorrência, porque a cidade tem muito menos habitantes do que Yangon. Agora é que eu conheço bem Mandalay. Lembro-me imensas vezes da minha primeira viagem à volta da Burma com aqueles três. Aprendi bastante nestes últimos dois anos e tenho até receio de ter aprendido demais.

A insistência da minha mãe começa a destabilizar-me. Acha que tenho de voltar para casa e retomar os estudos. Fala-me em tirar um curso profissional, como o meu pai tirou, e expõe o assunto de forma perturbada, como se temesse pelo meu futuro. Vou respeitar a sua opinião. Deixo o turismo, regresso a Yangon e depois vejo o que faço. E assim fiz.

É em Yangon que me apercebo de que o meu pai tinha tudo combinado com ela, mas era a minha mãe quem falava comigo. Já tinha arranjado maneira de eu ir tirar um curso de Construção Civil no Government Technical Institute, e sem pagar absolutamente nada. Ele lá tem os seus contactos; tem-nos feito ao longo da vida e conhece muita gente do ramo. É um curso de três anos apoiado pelo Colomb Project, mas isso a mim nada me diz. Sou obrigado a ir, contrariado, porque não quero este curso. Quero ser guia e acho que vou perder tempo. Os meus pais, esses, estão felizes; a minha mãe, então, nem se fala. Fiz-lhe a vontade, nada mais!

Receio que, com o meu regresso à escola, volte a ter problemas. Os estudantes têm sido perseguidos pelo Estado, que lhes tem negado o acesso ao conhecimento. Eu falo por mim. Não é justo ter terminado o ensino secundário com boas notas e depois não ver o meu nome na lista dos admitidos à universidade. Aqui, só os filhos de pais ricos e poderosos conseguem ter uma educação com qualidade e muitos saem do país para frequentar universidades estrangeiras. O regime consegue destruir facilmente os desejos intelectuais dos jovens birmaneses pobres e com famílias pouco influentes e faz tudo para controlar os passos que dão. Proíbe as associações de estudantes, com receio de que dali surjam manifestações. Quando terminei a High School, entrei para o Grupo de Estudantes de Yangon e, depois, sofri as consequências da minha decisão. Prometi a mim mesmo não voltar a envolver-me em questões políticas e quero cumprir a promessa; não apenas por mim, mas também pelos meus pais.

O primeiro ano deste curso, que o meu pai me arranjou contra a minha vontade, correu sem graves problemas, mas com notas péssimas. Não sei bem porquê. O segundo está mais conturbado. Na semana passada, os militares cercaram a escola com arame farpado e, desde então, passaram a vigiá-la como se estivessem perante criminosos. Estão a fazer o mesmo que fizeram em 1988, era eu miúdo, quando colocaram vedações de ferro à volta do campo universitário de Yangon, para assim poderem controlar melhor as acções estudantis. Sinto-me revoltado, mas tento não me envolver nem reagir.

«Libertem os estudantes!», «Pela democracia!», «Parem as detenções!»... Estamos eufóricos. Grito, tal como gritam todos os que estão à minha volta. Sentimo-nos um balão que já não aguenta mais ar e que pode explodir a qualquer momento. Estamos fartos, cansados, e saímos à rua para lutar pela liberdade. Queremos ser ouvidos, mas o mais provável é sermos perseguidos e detidos. Há anos que andamos nisto. Estamos em 1996 e conseguimos pouco, para não dizer nada. Os que vão à frente a desfilar, aqui na Yangon Insein Road, levam uma enorme fotografia de Daw Aung San Suu Kyi, a Prémio Nobel da Paz. Felizmente, não aconteceu nada. Amanhã voltamos a sair e depois também, até chegarmos a algum lado, ou a lado nenhum.

O primeiro dia de manifestação e o de ontem correram bem, porque conseguimos regressar a casa sem problemas. Mas hoje vejo o caso mal parado. As ruas estão cheias de militares preparados para actuar a qualquer momento. Tinha estranhado a falta de reacção do exército durante os dias anteriores. Foi estratégia, provavelmente. Alguns dos meus companheiros dizem-me que vão fazer greve de fome e que, assim, conseguem pressionar a Junta Militar. São loucos e aviso-os de que não o devem fazer, porque a probabilidade de serem mortos é enorme. Não aceitam o meu conselho. Eles são mais ou menos uns vinte.

É de noite e os meus companheiros grevistas mantêm-se no mesmo lugar, sem vacilar, inclusive depois de os tanques militares terem cercado a zona. Estou no topo de um edifício e daqui avisto tudo. Um militar puxa de um megafone e começa a ameaçar os estudantes. «Se não se dispersarem dentro de dez minutos, vão ter problemas!», anunciava. Eles não se desmobilizam e creio que algo vai acontecer. De repente, começam a ser atingidos por jactos de água. São jactos intensos que os empurram. Estão a ser detidos. Sabia que isto não ia terminar sem consequências. A experiência que ganhei durante os últimos anos fez com que tivesse decidido correctamente. Fujo de cima do telhado. Quero ir para casa, mas sem ser apanhado. Está escuro e sinto perigo à minha volta. Entro numa rua, saio dela, entro noutra e saio, e assim sucessivamente até chegar a casa dos meus pais. Demorei horas. O Sol não tarda a nascer e eu estou esgotado.

O Government Technical Institute está fechado, a Junta encerrou-o depois das manifestações da semana passada. Acabei o terceiro ano, mas saí sem certificado. Não houve tempo. Tenho muitos amigos cá fora, mais ou menos livres como eu. Encontramo-nos em reuniões e acabamos sempre por passar para o papel a nossa revolta. Às vezes sou eu que escrevo. Hoje calhou-me a mim. Sento-me à secretária, com a máquina de escrever à frente, e ali vou teclando as mensagens que queremos passar. Denunciamos os massacres e o regime prepotente e fazemos valer os nossos direitos. «QUEREMOS DEMOCRACIA PARLAMENTAR!», «QUEREMOS LIBERDADE!», escrevo em letras maiúsculas. Estes panfletos são para distribuir pela cidade. Havemos de os fazer chegar a muita gente.

O meu envolvimento no movimento dos jovens estudantes é cada vez maior. Passaram dois meses desde que deixei o curso de Construção Civil e não tenho feito outra coisa a não ser reunir-me com eles. No entanto, acabei de receber um convite que me deixou, ao mesmo tempo, surpreendido e desconfiado. A que propósito o departamento de Engenharia Civil da Universidade de Yangon me convida para tirar lá um curso? Escreve não sei quem que me revelei um excelente estudante e que gostaria de me dar oportunidade de continuar a minha formação. Mas obrigam-me a leccionar na universidade pelo menos durante cinco anos, depois de eu terminar o curso. É um presente envenenado! O meu pai não pensa como eu. Mostrei-lhe a carta e acha que devo assiná-la e aceitar a proposta. Mais uma vez, estou a agir contra a minha vontade. Vou fazê-lo contrariado.

Passaram vários meses desde que mandei a resposta à Universidade de Yangon e ainda estou à espera de que me chamem. Estamos em Outubro de 1996. Se calhar, posso ficar à espera para o resto da vida. Soube que tinha facilidade em entrar na universidade para tirar uma espécie de pós-graduação, de seis meses, em Matemática. Está dirigida apenas aos diplomados em Construção Civil. É o meu caso e, desta vez, sou eu que quero ir. Não é muito tempo, sempre fui bom aluno a Matemática e este aperfeiçoamento pode vir a fazer-me falta. Decido sem hesitar. Os meus pais e eu estamos de acordo.

Estou satisfeito com o curso, com as actividades e com os novos amigos que fiz. O ambiente aqui dentro é diferente daquele a que estava habituado. Não pensava que fosse assim. Quero dizer: não pensava que a política tivesse a força que tem, nos corredores, nas salas de aula, por todo o lado. A universidade tem destas coisas: entra-se para estudar, para pensar, e acaba-se a agir. Aqui é a sério. Em pouco tempo, vejo-me a pertencer ao ABSTF, o All Burms Student Freedom, e a participar em todas as manifestações. Os líderes da organização estão nas montanhas e eu e os outros estamos aqui. Planeamos e actuamos, mas tenho medo; acho que algo não está bem e a ABSTF tem práticas de que discordo. É excessivamente nacionalista, penso eu.

O cerco aperta-se. A pós-graduação está terminada e o melhor que tenho a fazer é não voltar a envolver-me na política deste país, se quero continuar vivo. Sei de estudantes que morreram de sede na prisão, de outros que foram torturados até à morte, de outros ainda que estão desaparecidos. Entrámos numa fase em que todos se espiam uns aos outros. Não existe o mínimo de liberdade. É incrível como o Estado conseguiu pôr o povo a controlar o próprio povo. Agora, em cada dez casas do país, há uma onde mora um gajo, um civil, um vizinho do bairro que controla as movimentações junto das casas dos outros e depois passa a informação aos militares. Controlam quem entra e quem sai, a que horas e com quem, se os moradores varrem ou não a rua (porque é obrigatório) e se se levantam todos à mesma hora ou não. Controlam tudo. É gente que está comprada, só pode ser. O SLORC deixou de existir ou mudou de nome: a Junta passou a chamar-lhe SPDC (State Peace and Development Council). Mas é tudo igual ou ainda pior. Os adultos e até as crianças estão a ser obrigados, pelas autoridades, a fazer trabalhos forçados em obras do Estado, por todo o país. E as tentativas de negociação das forças pró-democráticas e das minorias étnicas com os generais não têm passado disso mesmo. O regime não aceita propostas. Estou consciente de tudo isto e, por este motivo, vou manter-me afastado o mais possível, sobretudo agora que encontrei alguém por quem me apaixonei. É a filha de um vizinho nosso e vive mesmo em frente da minha casa, ou melhor, da casa dos meus pais. Conheço-a há imenso tempo, mas até agora não passava de uma miúda com quem tinha alguma convivência, nada mais do que isso. O tempo encarregou-se de fazer o resto, julgo eu. É uma mulher bonita. Tem os cabelos longos e negros, que usa muitas vezes soltos. Eu gosto de a ver assim. O sorriso enfeitiça-me e é muito elegante e meiga. É enfermeira, como a minha mãe.

A minha mãe morreu há um mês. Estou abalado. Era maravilhosa, cheia de fé e de energia. Orientava a casa com um rigor implacável. O meu pai estava quase sempre ausente, a trabalhar, e ela controlava tudo sem deixar escapar um pormenor que fosse. Desdobrava-se em tarefas para nos dar o máximo que conseguia, a mim e ao meu irmão. Cuidava da casa, do campo e da lojinha de mercearia. Depois, rezava, rezava a toda a hora. Era mesmo uma mulher cheia de fé. Choro tantas vezes quando penso nela... Mas encoraja-me a lição de vida que me deixou. E, sabendo eu que era profundamente católica, julgo que há-de estar em paz. Assim desejo e acredito. Amo-a muito.

Amo a minha namorada e quero casar com ela. Está na altura de o fazer; talvez para o ano, em 1998. Estou no bom caminho, se é que posso chamar a esta vida um bom caminho. Comecei a trabalhar como designer de interiores. Tenho feito alguns contactos com clientes através de amigos.

Há alguns meses, pediram-me para remodelar um apartamento, aqui em Yangon; por sinal era novo, porque a construção do prédio tinha terminado há pouco tempo, mas a cliente queria-o com outro requinte. Revesti quase toda a casa a madeira. O chão, pu-lo em parque envernizado, bastante brilhante até, em tons de castanho-avermelhado, e aproveitei a mesma cor e o mesmo tipo de madeira para pôr um lambri em redor de todas as paredes da sala e até da entrada. Trabalhei a sala de uma forma bastante agradável: desenhei uns móveis que ficaram embutidos na parede, feitos da mesma madeira do chão e do lambri. E ainda mudei as casas de banho, mandei pôr azulejos novos e loiças, tudo em cor-de-rosa. A casa ficou linda! Fiz o mesmo em três apartamentos desse prédio. A senhora gostou tanto que mostrou aos outros vizinhos; como eram gente com dinheiro, também quiseram. Pagaram-me todos. Ganha-se bem. Como guia não ganhava tanto, nem pensar! O problema desta profissão é que hoje tenho trabalho, mas amanhã não sei, porque estou sempre dependente dos contactos que faço. Aqui não há contratos com ninguém, eu é que tenho de me arranjar. No entanto, as coisas não estão a correr mal e ainda bem, porque tenho um lar para sustentar.

Casei pela igreja, escondido, discreto, e não assinei um único papel, nem eu nem ela. Infelizmente, tem de ser assim, não podemos usar o nosso nome, porque é perigoso. A minha família tem tentado ser prudente em relação a isso, mas de pouco nos tem valido. Somos em quase tudo diferentes dos birmaneses, até a nossa estatura e as feições se distinguem das dos outros. Sou bastante mais alto, tenho a pele mais clara e os olhos amendoados, que fui buscar ao meu avô materno, de ascendência malaia, embora não tão amendoados como os da maioria. Por causa dele nasci com traços orientais, mas foi por causa da minha avó inglesa, da parte do meu pai, que os atenuei e cresci mais do que os outros. Por exemplo, o meu irmão em nada se parece com um oriental. Quando vejo fotografias e imagens de ocidentais, acho-o parecido com eles. Ele tem muito mais sangue da minha avó do que eu. A aparência, neste país, é o primeiro passaporte para se ser discriminado, e é assim que me sinto, discriminado! Não estou sozinho.

O número de refugiados birmaneses está a aumentar. Há gente que tem fugido para os países fronteiriços, sobretudo para Tailândia. Fala-se em muito mais de duzentos mil que tentam escapar às torturas e querem ser livres, mas não conseguem. Ouvi dizer que o Exército Budista Democrático, o grupo armado de oposição Karen, se aliou ao exército birmanês e está a atacar os campos de refugiados na província de Tak, no Noroeste da Tailândia. Isso é grave. O país está novamente agitado, se é que alguma vez deixou de estar, desde que o conheço. Esta onda de fuga começa a atingir os meus amigos. Tento não me envolver, mas sei de uns quantos que já escaparam. Continuo a trabalhar, apesar de ter feito três obras e, até agora, não ter visto a cor do dinheiro; nem sei se vou ver. Ando atrás deles, mas não me pagam. Assim, não dá!

Tentei evitar a todo o custo aquela viagem a Taunggyi, para a zona da Grande Montanha. A minha mulher não queria que fosse, por causa dela e da nossa filha de dois anos e meio, mas fui convencido por um grupo de amigos que andou várias semanas a combinar o encontro com um outro grupo, também nosso conhecido, fugido de Yangon para a Tailândia e cujo paradeiro até então desconhecíamos. Saímos de carro e fomos a Mandalay para recolher informação. Depois seguimos para as montanhas. O pior aconteceu quando estávamos de regresso a Yangon: fomos atacados. Os militares seguiram-nos e, no momento que julgaram oportuno, tentaram capturar-nos. Foi muito confuso. Tive medo de morrer e as probabilidades eram muitas, mas escapei. Não digo como, não me quero lembrar. Sei que estive uma semana escondido em Mandalay e depois regressei a casa, a Yangon, onde estou novamente, mas preparado para fugir de vez. Está tudo combinado. Os amigos que foram comigo nessa viagem mal sucedida conseguiram regressar vivos e, a partir deste momento, ou agimos ou morremos. O exército sabe quem somos e anda atrás de nós, por isso tivemos de fazer um acordo: vamos desaparecer.

Tenho medo e uma enorme dor de deixar a minha mulher, a minha filha, o meu pai e esta paisagem maravilhosa. No entanto, não há alternativa. O meu irmão já chegou de Londres e tem um plano para eu escapar. Diz que o melhor que tenho a fazer é ir como turista para Portugal. Arranjou-me um visto de uma semana. A ideia é ir de avião de Yangon para Banguecoque, na Tailândia, depois ir de autocarro até à fronteira com a Birmânia, para me despedir dos meus companheiros, porque faço questão disso, e voltar novamente de autocarro para Banguecoque, onde apanharei o avião para Frankfurt; daí seguirei para Lisboa. Não vou sozinho, o meu irmão vai comigo, mas eu fico em Lisboa e ele regressa a Londres. Tem estado em Inglaterra a estudar. Ganhou algum dinheiro aqui e foi mais esperto do que eu, porque soube aproveitá-lo e saiu. Agora vai ajudar-me e confesso que agradeço. Vamos tentar saber mais sobre o meu avô paterno, aquele que nasceu em Macau, o militar, e que tinha família portuguesa. Consegui arranjar a sua certidão de nascimento e, com ela, estou seguro de que as autoridades não vão desconfiar das minhas intenções. É verdade que tenho família portuguesa, mas também é verdade que nunca me passou pela cabeça ir ao seu encontro e confesso que não é por este motivo que estou a sair da Birmânia. No entanto, se acontecer, melhor. Este é, sim, um excelente argumento para conseguir passar a fronteira e chegar sem problemas a Lisboa. Tenho outro argumento, ainda melhor, que é o meu nome português. Chamo-me Christopher Patrick da Silva.

Christopher Patrick da Silva* chegou a Portugal no dia 29 de Dezembro de 2003 e obteve o estatuto de refugiado em Abril de 2004.

Em Dezembro de 2005 deslocou-se à Tailândia para ir buscar a mulher e a filha, que se encontravam naquele país asiático a aguardar pela oportunidade de também elas recomeçarem uma vida nova. Christopher foi bem sucedido na sua viagem e conseguiu trazê-las para Portugal, onde adquiriram imediatamente após a chegada, o estatuto de refugiado.

 

Nota: * Christopher Patrick da Silva é o nome verdadeiro deste refugiado. Thant Zin é um pseudónimo por ele escolhido, uma vez que em Myanmar (Birmânia) está registado com o nome birmanês.

 

Corria desafogada, a vida dos Baz. Tinham uma boa casa, comida em abundância sobre a mesa, uma frota de automóveis que não os envergonhava, ouro para ostentarem e investirem e dinheiro para gastarem onde fosse preciso. Tudo isto porque sempre mostraram uma especial vocação para o negócio. A loja de têxteis-lar em Ankara, na Turquia, era, sem dúvida, o maná que dava para os sustentar. Numa capital onde fervilhavam milhões de pessoas, todos os dias, havia sempre lugar para mais um comerciante singrar no ramo que escolhesse, fosse ele qual fosse. Tanto assim era que a família não se queixava de falta de clientela, antes pelo contrário.

Rojhat Baz não se dera conta de tanta prosperidade nem de tamanho florescimento empresarial. Uma criança com quatro ou cinco anos direcciona os seus interesses para as simples necessidades. No entanto, hoje julga que se recorda desses tempos áureos talvez por ter ouvido falar de bons rendimentos e da excepcional década de 70 para a expansão da empresa, apesar da profunda crise económica que atingia o país. Parecia uma contradição.

Quando Kudret nasceu, precisamente em meados de 70, ainda vinha longe a época de ouro dos Baris, o apelido da família. Os venturosos negócios do pai não passavam, então, de um restaurante no centro da vila de Batman, a leste do Curdistão turco, na Ásia Central, a cerca de mil e quinhentos quilómetros da capital Ankara, onde os Baz há muito vinham construindo a sua riqueza.

O pai de Kudret começara a trabalhar, como pintor de sapatos, estava perto de fazer dez anos. A tradicional profissão curda era escolhida por muitos moços como a única forma de conseguirem amealhar algum dinheiro para ajudarem a minorar a miséria em que viviam, apesar da riqueza que corria no subsolo da terra: o petróleo.

De cabeça sempre protegida com um kulik (chapéu em curdo), enfiado numas calças de fazenda grossa, de comprimento e largura superiores às suas pernas que, mesmo assim escondidas, se adivinhavam esguias; apertado pela cintura por uma corda que lhe ajustava o cós ao corpo e envergando, à falta de outra, uma camisa escura, de um tecido de lã empapado, ajustada com botões até ao pescoço, o pequeno Ali Baris vingava-se da pobreza no momento de abrilhantar o calçado dos vilões, que em troca do rejuvenescimento lhe davam dois ou três kurus (cêntimos da lira turca). Nem sempre lhes pintara de preto as botas e os sapatos. Dentro da caixa, que arrastava consigo para onde quer que fosse, cambaleavam latinhas de tinta de cores diversas, capazes de agradar a todos os clientes. É certo que o preto era a mais requisitada, mas havia sempre quem gostasse de ver os pés vestidos de couro alegremente tingido.

Ali fora crescendo a percorrer o vale de Batman, as suas estradas empoeiradas e despidas de alcatrão, vergado sobre a parte terminal dos membros inferiores dos homens da terra. Assim passava os dias enquanto as quatro irmãs ficavam em casa e os dois irmãos mais novos frequentavam a escola. Ele, não sendo o primogénito da família, tivera a obrigação de se fazer à vida enquanto não chegava a vez dos outros. O irmão mais velho, a quem deveria caber o sustento do lar, já estava casado e abandonara a terra sem que alguém tivesse contado com ele.

Entretanto, Ali julgara-se capaz de assumir outra profissão e decidira ser condutor de carroça. Montado no carro grosseiro, puxado à tracção por um cavalo que lhe levara todas as poupanças no momento de o comprar, transportava gente e mercadoria por toda a vila e entre uma aldeia e outra. Na hora do regresso a casa, o moço ouvia tilintar, no bolso das calças, muito mais liras do que quando trabalhava como pintor.

Com dezasseis anos, achara-se homem para casar e ter filhos. O compromisso aumentara-lhe as responsabilidades e também a necessidade de arranjar outra actividade. Na verdade, o jovem nunca se rendera à sua condição de pouco afortunado e, por essa razão, correra atrás do dinheiro como cão que fareja a presa. Em 1971, dera por si a abrir um restaurante, que em poucos anos mostrou ser um negócio bem sucedido. «O restaurante teve sucesso e o meu pai começou a enriquecer.» Kudret relembra os tempos em que o Baskent («capital» na língua curda) se apinhava de gente. Estava situado no centro de Batman e servira, sobretudo, a povoação de camponeses curdos e alguns trabalhadores recém-chegados que então começavam a frequentar esta zona do Curdistão, fruto da descoberta de petróleo na montanha de Raman.

Enquanto a família Baris tirava partido do achado, servindo cada vez mais pratos de kebap (carne fatiada), guveç (guisado de beringela), sopas e saladas, a família Baz enriquecia a vender atoalhados, tecido a metro, cortinas de renda, acolchoados, almofadas, mantas, cobertores e tudo o mais que lhe permitisse fazer dinheiro. Os Baris já tinham sido mais pobres e os Baz nunca tinham sido tão ricos e, por isso, nenhuma das famílias sentira, na realidade, a crise que se instalara no país.

O aumento do preço do petróleo em 1973 magoara, com profundidade, a economia turca, que quase se vira afundada, quatro anos depois, quando em 1977 a taxa de inflação atingiu os impensáveis e devastadores 50%. A década decorrera prisioneira de uma debilidade que se apodera de todos os sectores. O desemprego aumentara assustadoramente e fizera crescer o número de gente carente de meios para subsistir com dignidade. A indústria perdera competitividade. O mercado de exportações adormecera, uma vez que o preço das matérias-primas e da energia não o deixava espevitar. A concessão de créditos estrangeiros ficara congelada e o país mergulhara, realmente, numa bancarrota. Os trabalhos parlamentares estavam suspensos e a figura do presidente não passava de uma miragem. A Turquia estava à deriva.

Face à instabilidade que se vivia, os militares começaram a controlar o país, mesmo antes de realizarem o golpe de estado de 12 de Setembro de 1980. Decididos a restabelecer a ordem e a lei, tapavam a boca à inconveniência, aprisionando todos aqueles que consideravam rebeldes e suspeitos. Suspeitos de serem militantes de facções políticas antigoverno. Suspeitos de pertencerem a organizações sindicais. Suspeitos de serem estudantes activistas. A suspeição passara a ser uma certeza e a certeza nunca deixara dúvidas no momento de capturar os «inimigos» do regime militar que estava prestes a ser instalado. Pela primeira vez, a família de Rojhat vira-se envolvida em conturbadas divergências com os ideais repressivos que começavam a ser difundidos pelo Estado.

A maior desconfiança que poderia recair sobre os Baz era a sua origem curda. No entanto, o motivo da perseguição não foi o tronco de gerações, mas sim o espírito inconformista do irmão mais velho de Rojhat. A sua postura de rebelde lutador nunca fora apoiada pelos pais e o seu espírito contestatário e activista revelara-se um motivo de preocupação constante e um sinal evidente de que, mais tarde ou mais cedo, iam ter problemas, tal o clima conturbado em que se vivia. Assim acontecera. Tinha o jovem dezassete anos quando caiu nas malhas opressivas da ditadura militar.

Ia no início o mês de Setembro do ano de 1980 quando uma gigantesca operação, montada pela polícia militar, foi posta em acção. O objectivo era deter todos os agitadores, anarquistas e perturbadores do regime, mas o irmão de Rojhat estava a par desta intenção há algum tempo. O pai chegara a avisá-lo de que corria perigo de vida e fora mesmo instigado pela polícia a pedir ao filho que abandonasse o país. A conversa que mantivera com ele, dias antes da tragédia, fora bastante clara. Mas, indiferente às ameaças, o rapaz não aceitara o conselho do pai e respondera-lhe dizendo que estava preparado para o contra-ataque. Provara-o puxando e erguendo, uma em cada mão, as duas armas que escondera debaixo da camisa, entaladas na parte de trás do cós das calças. Depois de as exibir, voltara a aconchegá-las junto à cintura e saíra de casa. O filho servira-se delas no dia da operação e acabara por ser atingido no braço direito. «Eu ouvi tiros lá fora», relembra Rojhat, que tinha na altura sete anos.

De cabeça tapada, o irmão fora arrastado até ao carro militar. Puxaram-lhe a camisola pelas costas, de modo a que chegasse ao rosto, e deixaram-lhe o dorso a descoberto. Não era o único: mais homens estavam a ser enfiados, um a um, dentro daquele veículo. Apesar da agitação, a mãe reconhecera o seu menino, de imediato, pelos sapatos que calçava. Agarrada ao ventre, varrera com os olhos os pés dos detidos e identificara os que lhe pertenciam. Mesmo grávida de seis meses, saíra para a rua com o marido e os outros cinco filhos em defesa daquele que era seu. Durante as horas de agitação, toda a gente se escondera da polícia. Mas só alguns estavam na sua mira, e infelizmente a família Baz estava.

Em menos de duas horas, a «limpeza» fora feita. A polícia detivera quem achara que deveria deter e não abandonara aquele quarteirão da cidade de Ankara sem antes ter destruído por completo a casa dos Baz. Os vidros das janelas, estilhaçara-os em mil fragmentos; as portas, trespassara-as de um lado ao outro; aos móveis amputaram-lhes os pés, deixando-os a tombar, desequilibrados; as loiças que enchiam as prateleiras, transformaram-nas em cacos, com que cobriram os mosaicos atapetados; as roupas, tiraram-nas das gavetas, e as gavetas, arrancaram-nas das cómodas. Até as paredes feriram, ao ponto de deixarem a descoberto os tijolos. A casa do Baz revelara um incomensurável ódio.

Quando tentaram entrar, impediram-lhes o acesso. Perceberam, nesse instante, que acabavam de perder quase tudo o que tinham ganho. Acabavam de perder uma casa e, provavelmente, um filho. Exaltado, o pai quisera saber o motivo, mas não obtivera resposta. Em vez de uma justificação, soara uma pergunta, proferida num tom em que cada palavra era mais vociferada que a anterior. «Onde estão as outras armas?», berrara um dos elementos da polícia militar. «Nós não temos armas em casa!», respondera o pai de Rojhat, de beiço a tremer e já desfigurado pela ira. Em jeito de provocação, o polícia virara-se para a mulher e, sublinhando bem cada sílaba, perguntara: «Quantas crianças já mataste até agora?» Depois de ter escutado a mais insensata e ofensiva das perguntas, a mãe de Rojhat sentira as lágrimas a deslizarem pelo rosto, começara a soluçar e, quase sem se fazer entender, dissera: «Eu não matei ninguém. Tenho cinco filhos, senhor, e estou grávida. Quero é ver aquele que me levaram. Mostrem-mo.» Ao mesmo tempo que implorava, o marido tentava protegê-la, esticando os braços para os lados, como se dessa forma fosse possível impedir uma investida mais brusca. «Os problemas do meu filho mais velho são apenas com ele e não com a família», argumentara. Mas o argumento não surtira efeito. A polícia acabara por detê-los.

«Não assino. Mesmo que me cortem as pernas, não assino!», dissera o irmão de Rojhat quando a polícia lhe estendeu, mesmo à frente dos olhos, que não podia focar, uns documentos para assinar. A recusa fê-lo sofrer, ali mesmo. Um punhado de sal fora-lhe esfregado, lentamente, sobre a ferida ensanguentada do braço direito. Espalharam-no em circunferências de modo a entranhar-se bem e a provocar um grito intenso de dor. Mas ele conseguira controlar-se e, mesmo quando era pontapeado e esbofeteado, evitara qualquer sinal de sofrimento. Os pais e os irmãos estavam lá. A polícia levara-os até à prisão e satisfizera o desejo da mãe de ver o filho. Ela vira-o, chorara e percebera que muitos dias, meses e talvez anos de tortura estariam pela frente.

A mãe compreendera que os ideais que o filho levara avante eram demasiado provocadores para um período tão conturbado como aquele, na Turquia. O rapaz tornara-se membro de uma organização de esquerda revolucionária, a Dev-Sol, formada em 1978. A Frente para a Libertação do Povo Turco passara a ser a sua razão de viver, e em pouco tempo ele assumira a liderança da juventude. Sem olhar a limites e apoiado por outros jovens camaradas de luta, construíra no jardim das traseiras da moradia dos pais, sem hesitar nem gerar desconfiança, aquela que viria a ser a casa de reuniões clandestinas dos jovens membros. Ergueram-na numa noite, para estupefacção e insuspeição dos pais. A partir desse momento, o silêncio tornara-se ouro e a discrição também. Aquela fora, para todos os efeitos, a casa dos Baz, e não passara disso. O que sucedera na retaguarda, os encontros que se realizaram e as estratégias que se delinearam, preferiram nunca saber e fizeram por isso. Em períodos como aqueles, ninguém conhecia ninguém. O pai deixara de ser pai e o filho nunca vira esse homem que, por acaso, até era seu pai e que, na hora de o defender, estava lá.

O irmão mais velho de Rojhat Baz fora condenado à pena de morte. A forma como instigara a desordem pública, mobilizara os outros, participara em movimentos anti-regime e se fizera membro de uma organização anarquista ilegal foram os «motivos» julgados suficientes para pôr fim a uma vida que caminhava para os dezoito anos. A sentença fora encarada pela família como um golpe doloroso, mas não irremediável. Ficara a aguardar, na prisão de Mamak, pela chegada da hora em que a decisão irrevogável lhe ia extinguir os desejos.

Quando foi transferido para Mamak, o país já se encontrava formalmente sob as ordens militares. O golpe de estado dera-se na manhã de 12 de Setembro desse ano de 1980. Habituados a tomadas de poder, os turcos receberam-no sem qualquer resistência. As forças armadas foram vistas como a alternativa ao vazio, o fim da anarquia e o assumir do controlo da nação por alguém com pulso de ferro. As reformas institucionais, tal como nos golpes de estado de 1960 e de 1971, foram assumidas como o motor das intervenções armadas. Fora movido por estas intenções que o general Kenan Evren comandara as forças e fora para pôr em acção os seus planos que assumira a presidência do Conselho Nacional de Segurança, tendo mais tarde, já despojado das vestes e do perfil militar, assumido as funções de Chefe de Estado da República da Turquia.

Com oito anos, Rojhat Baz iniciara as suas visitas regulares ao irmão, na prisão militar de Mamak. Aos sábados ou aos domingos atravessava, com os pais e os outros três irmãos, os avantajados portões do estabelecimento prisional, na cidade de Ankara. Mamak era apenas mais uma prisão, entre muitas, ao serviço do regime. A família Baz chegava por volta das três da manhã. O pai estacionava o Fiat Mirafiori azul-escuro, um dos vinte e sete que circulavam, naquela altura, pelas estradas da Turquia, considerado por isso um luxo, e saía na direcção do aglomerado de gente que àquela hora já se apinhava em frente à entrada. Ali ficava de pé tanto tempo quanto as suas pernas mandavam. Depois regressava ao lugar do condutor que deixara vazio, e um dos filhos ocupava o que ele deixara livre na fila para a entrada. Assim não perdiam a vez e iam-se revezando até o relógio marcar nove da manhã.

Madrugavam na expectativa de conseguirem um bom lugar na viatura militar que haveria de os levar às entranhas da masmorra. Às centenas e perfilados, os veículos começavam a percorrer as estradas que desembocavam, por fim, nas várias alas da prisão. O pequeno Rojhat permanecia os quinze minutos de viagem de olhos esbugalhados e com os lábios e a ponta do nariz espalmados contra o vidro da janela do autocarro, que se ia embaciando à medida que a sua respiração aumentava de intensidade. Em cada visita conseguia descobrir sempre mais do que aquilo que tinha visto durante o último percurso. Aquela imensidão de campo, observada do exterior, aparentava ser uma fértil propriedade reservada à exploração agrícola, mas, afinal, não passava de um campo de tortura dissimulado.

Quinze minutos depois de ter entrado, Rojhat saltava do autocarro. Com ele, desciam os irmãos, os pais e centenas de famílias que abandonavam ao mesmo tempo as viaturas que os tinham transportado até ali. Lado a lado, intervalados por um guarda prisional, aguardavam no pátio pela chegada dos presos. Ninguém entrava, ficavam ali mesmo. Pressentia-se o pulsar do coração das mães no momento de verem os filhos. Elas erguiam o pescoço, viravam a cabeça ora para a esquerda ora para a direita, mostrando-se, por vezes, confundidas com as semelhanças, resultado de lhes terem rapado o cabelo. E eles procuravam, ali mesmo, à sua frente, os familiares que nem sempre estavam presentes. Mas os Baz estavam lá e o irmão mais velho de Rojhat identificara-os em pouco tempo. Tinham uma hora para conversar e nem mais um minuto, provavelmente tinham até menos que uma hora. O tempo, cronometravam-no os guardas de Mamak, que raramente conseguiam fazer corresponder uma hora aos seus sessenta minutos.

Até lhes calarem a voz, os Baz falavam sobretudo de banalidades. Mas as perguntas vulgares, em circunstâncias como aquelas, mereciam tanta consideração como os pormenores de uma conversa reflectida. E, em cada visita, repetiam-nas de modo a parecerem decorrer numa ordem que nunca fora estipulada por nenhum deles. A mãe fora sempre a primeira a tentar saber mais do que aquilo que depreendia pelo que lhe era dado ver. A sua feição apavorada nunca escondera a angústia sentida ao saber que um dos seus filhos estava condenado a morrer. Aquele rapaz deixara de parecer o mesmo, mudara de traços desde que entrara nos calabouços. O cabelo preto e farto, que lhe cobria a cabeça desde o dia em que nascera, ficara reduzido a uma rala pelugem. O bigode engrossara e, assim, de moleira despida, revelava um rosto acabrunhado. Os olhos encovados faziam sobressair umas olheiras fundas. Emagrecera bastante, apesar de nunca ter sido gordo. A mãe, depois de, numa fracção de segundos, ter feito o seu reparo, soltava as perguntas, de rompante, quase sem dar tempo para o filho lhe responder. «Como estás?», «Como te tratam?», «O que comes?», «Como dormes?», indagava num desassossego evidente.

Por vezes, durante escassos segundos, o pai falava dos negócios, do abalo que sofrera desde o golpe de estado; mas, em outras ocasiões, passava por cima do assunto, sem que o filho mostrasse interesse em abordá-lo. Na verdade, prendiam-lhe mais a atenção as notícias dos colegas de partido, tanto daqueles que também estavam presos como dos que ainda se reuniam na clandestinidade, do que saber em que ponto estava a conta bancária dos Baz. Qualquer conversa acerca da Dev-Sol não era mais do que subentendida. A presença hirta e próxima dos guardas, ao ponto de lhes sentirem o bafo, intimidava a abordagem de questões consideradas perigosas.

Rojhat Baz raramente trocava uma palavra com o irmão. Limitava-se a olhar a imensa enfiada de gente cochichando frente a frente, encadeada por vigias, de semblante severo, capazes de espavorir qualquer um, ou a contar os pares de botas calçados pelos guardas. Quando não se distraía com os números, conseguia fixar o teor de algumas conversas.

Lembra-se de como fora irreflectida a frase que um dia a mãe deixara escapar em curdo, a língua em que sempre a ouvira falar. Não tem presente o que dissera, mas nunca se esqueceu de que aquela expressão despertara o ímpeto dos guardas, como se reagissem por reflexos condicionados. Naquele instante, sem que nada parecesse justificá-lo, o irmão de Rojhat fora violentamente agredido, porque a mãe articulara umas palavras numa língua em que não lhe era permitido falar. Ele próprio tivera a impressão de também ter sentido no corpo as pancadas coléricas. Era assim, gratuita, a violência durante aquela hora.

Rojhat tem ideia de ter ido a Mamak numa dessas jornadas de fim-de-semana, mas sem a companhia da mãe. Daquela vez, cumpriram, como sempre, o ritual das visitas, percorreram o mesmo trajecto até chegarem ao pátio e apearam-se do autocarro ordeiramente. Saíram todos, um a um, e perfilaram-se como impunham as regras, mas a mãe não estava lá. Durante a última visita que fizera ao filho, já revelara alguma dificuldade em se deslocar. Todos notaram que a barriga de quase nove meses lhe estorvava os movimentos. Daquela vez, o irmão de Rojhat apercebera-se imediatamente de que faltava alguém da família. A primeira pergunta que fizera, depois de abandonar a cela e enfrentar o pai e os irmãos para aquele contacto fulminante e controlado, fora: «Já nasceu?» Em surdina, porque ninguém se atrevia a falar de outro modo, procurara saber. Tinha nascido, sim, o filho mais novo dos Baz. «Como se chama?», inquirira de seguida, parecendo nunca ter ouvido falar do nome preferido para o irmão mais novo. Na verdade, não se apercebera da intenção dos pais.

Durante a gravidez da mãe, de facto, andara mais preocupado com os movimentos da juventude da Frente para a Libertação do Povo Turco do que em acompanhar os pormenores que envolviam o nascimento de mais um membro da família. Porém, quando escutou o nome que haviam escolhido, os olhos explodiram de emoção. Esbugalharam-se, mas não fraquejaram. Brilharam, mas não o envergonharam. Não chorara. O irmão mais novo dos Baz tinha o nome dos três jovens camaradas da Dev-Sol que haviam sido assassinados durante aquela violenta operação. Naquele preciso momento, submergira num banho de coragem com a prova de consideração dos pais. Durante os meses que se seguiram, a deferência dera-lhe força para não sucumbir à aspereza do cativeiro.

Rojhat também guarda na memória o dia em que o pai tentara aflorar a possibilidade de fuga do irmão à sentença capital. Fora uma conversa, quase em código, que entenderam nas entrelinhas.

O ano de 1980 aproximava-se do fim. O mês de Dezembro já contava com duas semanas e desde o golpe militar tinham passado três meses e três dias, o tempo suficiente para alterar o rumo dos Baris. A família decidira mudar-se, de vez, para Istambul, a maior metrópole da Turquia. O relógio da estação marcava nove horas e quinze minutos, quando Ali Baris o fixou com o olhar. Franzira a testa, passara a mão pelo bigode preto que lhe contornava o lábio superior pouco proeminente, pestanejara tantas vezes quantas foram precisas para que pudesse verificar o tempo que faltava para o embarque e confirmara que a sua visão já não era perfeita. Ele já o tinha notado noutras ocasiões. Puxara, depois, pelo bilhete que tinha no bolso do casaco e reparara que, pela hora que estava registada, já deveriam ter partido há mais de trinta minutos. Fora precisamente nesse momento que o comboio assomara no vale de Batman. A estação estava apinhada de gente rodeada de pertences, que, mal escutara ao longe o bufar dos motores, virara a cabeça ao mesmo tempo na direcção da locomotiva e do fumo que esta vinha soltando em movimentos harmoniosos, dissipando-se depois no ar. Ainda era a vapor, o comboio que haveria de os levar a Istambul. Nas zonas montanhosas continuavam a preferir o carvão ao diesel, por ser menos afectado pela pressão atmosférica. Cinco, seis minutos fora o tempo que o comboio demorara a chegar à estação da vila e a imobilizar-se. Mas, mal os travões começaram a ranger na linha, logo se instalara a confusão. De caixotes aos ombros, os homens acotovelavam-se na tentativa de chegarem primeiro a uma das unidades de carga, para ali soltarem os haveres. Desorientadas, as mulheres arrastavam, ao mesmo tempo, os filhos e os sacos inchados com loiças e roupas. As bagatelas e os miúdos eram puxados, entre a multidão, até chegarem a qualquer uma das carruagens. De braços erguidos, chamavam pelos maridos que, depois de se livrarem das televisões encaixotadas, dos colchões, dos cobertores e tudo o mais, corriam para junto delas. Era tal a agitação na estação de Batman que parecia não haver lugar para todos, apesar de todos terem comprado bilhete. Os Baris também lá estavam, no meio de tantas outras famílias curdas.

O comboio apitara, finalmente. Tinha passado quase meia hora desde que parara. Dentro das carruagens, muitos estavam por se instalar. Os Baris já sabiam com que lugares contavam para uma viagem de dois dias até chegarem a Istambul. No momento em que o comboio começara a deslizar sobre os carris, Kudret Baris levantara-se, tal como os seus cinco irmãos.

O pai, Ali, hesitara, acabando também por se levantar. A mãe não conseguira puxar pelas pernas para se despedir de Batman, não porque lhe faltassem as forças, mas porque não quisera ficar com a imagem de terra a perder de vista e a sumir-se no horizonte, como, às vezes, se lhe chegara a sumir por entre os dedos o bulgur (cereal esmagado) que tirava da lata com a mão em forma de concha. Provavelmente, nunca mais voltaria a Batman, pensara. Kudret pusera-se em bicos dos pés e os irmãos imitaram-na. Era baixa demais, tinha apenas cinco anos. E, assim, quase em pontas, esticara depois o pescoço, na tentativa de chegar à janela e de conseguir ver, talvez, o seu gato que ficara de volta da tigela de comida e que, se fosse esperto o suficiente, lhe teria seguido o rasto. Mas não avistara o companheiro de brincadeiras, que em muitas ocasiões sofrera no pêlo os puxões da menina. O pai, ao perceber o desassossego da pequena, agarrara-a pela cintura, encostara-a ao vidro e deixara que visse como eram imponentes as montanhas da sua terra, cobertas de neve, e como era fértil o vale de onde sempre tiraram o pão que serviram à mesa. Parecia pobre, aquela terra, não porque lhe faltassem recursos naturais nem porque fosse incipiente a cultura do povo, mas sim porque não interessava dar muito a uma gente considerada insignificante pelo Estado turco. Esta não era uma questão que inquietasse Kudret, ao contrário da ausência do felino, que a deixara sem vontade de esboçar um sorriso.

Esse Inverno estava a revelar-se particularmente rigoroso, mas as temperaturas baixíssimas nunca congelaram os movimentos de quem sempre convivera com a severidade desta estação do ano. Se no vale estavam uns sete graus negativos, na montanha deveriam estar, pelo menos, uns dezassete ou dezoito. Os Invernos são implacáveis nesta zona do Médio Oriente, pensara por instantes. Ali Baris sacudiu esse pensamento quando os outros filhos lhe puxaram o casaco desajeitado e lhe pediram que também lhes mostrasse a paisagem. Assim fizera. Ali Baris pegara nos irmãos mais novos de Kudret.

A família tinha pela frente quarenta e oito dolorosas horas de viagem. Para além de Ali Baris, da mulher e dos filhos, outros familiares decidiram acompanhá-los nessa fuga. Eram, ao todo, dezanove pessoas. Tios, tias, primos e primas de Kudret, que eram irmãos e sobrinhos do pai Ali. Da parte da mãe não viera ninguém.

Desde os anos 70 que o exército turco vinha infligindo maus-tratos e humilhaçõ       es à população curda, invadindo aldeias e povoações. Mas as perseguições intensificaram-se a partir da instauração do regime militar, na sequência do golpe de Setembro de 1980. Na mira do Conselho Nacional de Segurança estavam, sobretudo, os curdos que revelassem ideias separatistas, e isso significava que todos os membros e simpatizantes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) corriam perigo de vida. A família Baris constava da lista da polícia secreta turca (MIT) e da polícia militar.

O pai de Kudret, Ali Baris, nunca se interessara por questões políticas e, por isso, nunca se envolvera na luta por um Estado curdo nem defendera, de forma acesa, os valores e a cultura do povo a que pertencia, ao ponto de sofrer com a entrega. A terra onde nascera fora considerada, pelo Estado, apenas o Sudeste da Turquia, e ele, apesar de não a considerar simplesmente como tal, não se empolgava com o assunto. Para todos os efeitos, era turco e o seu bilhete de identidade confirmava-o, tal como o de todos os nascidos naquele território a que chamam Curdistão turco. Ali Baris preferia fazer dinheiro a fazer política. Ao invés, os seus irmãos, os tios de Kudret, mostravam empenho em lutar pela causa do povo.

Fora enquanto estudantes que os tios de Kudret tiveram o primeiro contacto com o PKK, fundado em 1973 por Abdullah Ocalan. Poucos anos depois da fundação do partido, o líder Ocalan decidira começar a divulgar a causa pelas escolas do Curdistão. A vila de Batman fazia parte das povoações a visitar, justamente na altura em que eles andavam a estudar. As actividades eram organizadas entre os jovens, que difundiam os ideais políticos de boca em boca, devido à falta de material de propaganda. A emancipação do Curdistão começara a ser tema de conversa em casa dos Baris e os irmãos de Ali Baris tornaram-se simpatizantes do PKK.

De dia para dia, a família estava cada vez mais envolvida com o partido e essas ligações ao PKK fizeram com que o cerco se apertasse. Uma das causas fora o casamento de um dos tios de Kudret. A mulher a quem ele se unira mantinha contactos muito estreitos com o núcleo duro da organização, porque um dos seus irmãos era presidente da câmara de Batman e era tido como um fervoroso simpatizante do PKK. No entanto, o homem ficara à frente da edilidade apenas o tempo suficiente para dar a conhecer a sua política para a região, que passava pelo desenvolvimento de Batman através da construção de vias de comunicação, de mais escolas e de mais fábricas. As suas boas intenções transformaram-se na prova que faltava ao exército turco para ter a certeza de que aquela família estava demasiado próxima dos ideais separatistas curdos. Sem hesitar, assassinaram o autarca trinta dias depois de ter tomado posse, no ano de 1979.

O pai de Kudret, Ali Baris, encontrava-se, por essa altura, a cumprir o serviço militar obrigatório. Fora chamado a Istambul para ingressar no exército por dois anos. Já a recruta tinha terminado quando teve conhecimento da morte do presidente da câmara da sua terra. A notícia deixara-o amedrontado. Ele, que nunca fora homem de temores, pressentiu o aproximar das represálias sobre os Baris. Sempre julgara demasiado evidente e perigoso o envolvimento dos irmãos nos meandros da pofítica, sobretudo a dedicação exacerbada de um deles ao PKK. O outro era ligeiramente mais comedido.

Ali entregara a gerência do restaurante aos seus irmãos, enquanto ficara em Istambul. Mas estes permaneceram à frente do Baskent apenas um ano e meio, porque, à medida que os meses se sucediam, todos sentiram que mais uma sangrenta investida iria atingir o povo curdo. Aqueles que ousavam manifestar as suas origens e intenções corriam perigo de vida. Temendo por si próprio, o mais entusiasta irmão de Ali desertara ao saber que o seu nome constava da lista dos homens a integrar uma leva de recrutas.

De regresso a Batman, Ali não tivera outra solução a não ser a de encerrar, de vez, as portas do restaurante. Não lhe faltavam comensais, mas sim tranquilidade suficiente para manter o negócio. Os Baris podiam ser aniquilados a qualquer momento e, antes que isso acontecesse, decidiram abandonar Batman, rumo a Istambul.

A rotina dos Baz distanciara-se da prática constante que seguiram nos tempos em que foram atingidos pela sorte e pelo êxito. O golpe de estado encerrara a loja de têxteis-lar e os afazeres com as vendas esvaneceram-se. Os fins-de-semana passaram a ser gozados a caminho de Mamak e as semanas revelaram-se curtas para os contactos incessantes do pai de Rojhat Baris com conceituados advogados turcos. Ele nunca se conformara com a pena imputada ao filho e sabia que as suas poupanças podiam anular a sentença. Julgava peçonhenta aquela massa corruptível que se movimentava na justiça, na política e em todos os sectores onde existisse algum poder e sabia que o veneno que corria nesses meios evidenciava instituições perigosas, onde o antídoto tinha a cor do dinheiro.

Esperançado em salvar o filho, o pai contratara dois dos melhores advogados do país. Tinha dinheiro para lhes pagar e para muito mais; até para comprar a liberdade, se fosse caso disso. A estratégia passara por subornar polícias e juízes e todos aqueles que se atravessassem no caminho e constituíssem obstáculos. Quanto oferecera, nunca revelara. Sabe, hoje, Rojhat Baz, que o montante do suborno do pai daria para comprar um prédio com, pelo menos, uns dez andares. Fora muito dinheiro, o bastante para que, quatro anos depois da detenção do irmão, ele conseguisse sair vivo e em liberdade, mas na condição de não se envolver em movimentos que lhe voltassem a provocar graves problemas. Assim fizera. Poucos meses depois de ter saído em liberdade, chamaram-no para a tropa, sem que lhe tivesse sido entregue uma arma. Entrara e saíra do quartel sem praticar fogo real e nunca conseguira provar que já tinha manejado, agilmente, apetrechos de guerra.

Sentado no lugar do pendura, começara a percorrer as aldeias da Turquia. Ao volante da carrinha seguia o pai. O chefe da família sentia-se mais confortável a conduzir do que a ceder o assento a um filho inexperiente nas andanças de caixeiro-viajante. Os dois faziam-se à estrada, correndo atrás dos lucros de um negócio que já tivera melhores dias. A empresa de têxteis-lar falira, vítima do golpe militar e das convulsões familiares, mas era preciso continuar a alimentar seis filhos e uma mulher. A conta bancária também sofrera um abalo significativo. Começavam por esmiuçar os subúrbios de Ankara a fim de encontrar potenciais clientes e, depois, prosseguiam caminho em direcção às terras que distavam da capital umas boas centenas de quilómetros. Por vezes, chegavam a fazer mais de mil. Despachavam a mercadoria e pernoitavam em pensões. Na manhã seguinte estavam de abalada para outras povoações, que, à sua passagem, se agitavam no frenesi próprio de um povo que não prescinde de regatear, nem que seja por uns gramas de açafrão.

Ao mesmo tempo que envolvera o filho mais velho nesse enredo de bem saber vender, o pai permitira que o filho Rojhat se dedicasse aos estudos. O miúdo frequentava uma das escolas públicas de Ankara, que, de fachada e no interior, tinham crescido todas iguais. Eram três andares que se esticavam, de igual forma, em todo o comprimento, arquitectado com dimensões mais avantajadas do que a altura. O exterior, revestiram-no de cinzento tão esbatido que parecia despido de tinta. Rojhat sentava-se na segunda carteira, na fila encostada à janela. Eram mais de cinquenta crianças enfiadas numa sala. Como parceiro de lugar tinha um rapazito turco que, com o passar dos dias, fora conhecendo melhor e com quem criara uma convivência própria de miúdos da mesma idade e de companheiros de tampo de mesa. Para todos os efeitos, Rojhat também era turco. Tratavam-no como tal e aprendia como se o fosse, mas nunca se sentira igual ao colega do lado, aos outros que compunham a turma e a todos aqueles que circulavam no recreio. Era como que se tivesse de ajustar uma máscara ao corpo para poder sair à rua e entrar na escola, que depois despia quando regressava a casa, sentindo cumprida a tarefa de estudante que o afastava da companhia da mãe, diariamente, durante aquelas horas da manhã.

Todas as tradições da família eram originárias da zona montanhosa do Sudeste Asiático a que vulgarmente se chama Curdistão, do qual faz parte um pedaço da Turquia, do Irão, do Iraque, da Síria, da Arménia e do Líbano. À mesa dos Baz imperava a gastronomia da região e o curdo era o idioma muitas vezes escolhido para comunicarem. A mãe de Rojhat resistia a fazer-se entender em turco e optava quase sempre pelo kurmanji, um dos dialectos desta língua de origem indo-europeia. O pai dominava na perfeição os dois idiomas e, sabiamente, utilizava-os de acordo com as circunstâncias. Mas, aos filhos, implorara que nunca proferissem, em público, uma única palavra em curdo. «Se te perguntarem se és curdo, diz que não, que és turco.» Rojhat recorda o aviso incessante e amedrontado do pai, que as crianças respeitavam sem entenderem porquê.

Mais de dez milhões de curdos a habitar a Turquia estavam proibidos de se exprimirem na sua própria língua e de darem a conhecer a sua proveniência. Foi Mustafa Kemal, o fundador da Turquia moderna, conhecido pelo nome que o próprio adoptou, Ataturk (o pai dos turcos), quem baniu da constituição todas as minorias que habitavam o território.

Ataturk fundara a República da Turquia, em 1923, depois da desintegração do Império Otomano, no final da Segunda Guerra Mundial. O presidente convertera-se no construtor de um Estado que ambicionava moderno, negociara as fronteiras do país e liderara um processo de transformações que ainda hoje fazem parte da Lei Fundamental. Uns consideraram-no o salvador do país, outros julgaram-no um extremista que subjugara a Turquia à «europeização», sem olhar a meios. Abafara o islamismo. Encerrara as escolas teológicas (madrasas). Substituíra a lei islâmica por um código penal inspirado no suíço. Proibira o uso do véu islâmico pelas mulheres, tal como o típico chapéu otomano, que considerava símbolo do feudalismo. Depois de tentar que os turcos se assemelhassem aos europeus, Atat”urk fizera tudo para esculpir a mentalidade do povo segundo os seus ideais.

Tinham passado seis décadas de interiorização dos princípios impostos pelo antigo presidente quando a família Baris chegou a Istambul. De entre os quartos de hotel disponíveis e a preço aceitável, os Baris escolheram os necessários para albergar dezanove familiares que acabavam de chegar de Batman, no Curdistão. O hotel ficava situado nos arredores da cidade e não tinha mais do que três estrelas, mas Kudret não se recorda do nome que figurava na inscrição da entrada. Em poucos meses, o pai considerara a hipótese de o substituir por um apartamento. Da consideração à decisão mediara apenas o tempo suficiente para que Ali Baris se fizesse à vida. Nunca fora homem de cruzar os braços, e qualquer negócio que surgisse era sempre explorado ao máximo. A ele, bastava-lhe a habilidade de tirar partido da oportunidade.

A ocasião mostrara-se favorável no início da compra e da venda de ferro para a desenfreada construção de prédios que passaram a tomar conta dos resquícios de terreno em redor do centro da cidade de Istambul. O jeito que tinha para a construção civil era nenhum, mas a vontade de ganhar dinheiro era tanta que passara a dominar o sector. Conhecera as pessoas certas, e o seu modo afável, para o que lhe convinha, fizera dele um empresário de sucesso no ramo. Começara a adjudicar obras. E assim substituíra o quarto de hotel, onde vivia com a mulher e os filhos, por um apartamento de luxo na zona de Barkirkóy, no lado europeu da metrópole.

Dois quartos, uma sala, uma cozinha e duas casas de banho: não era uma imensidão de apartamento. Integrava, no entanto, um condomínio fechado, com apenas quatro pisos, situado numa artéria nobre. Compunham a urbanização três prédios contíguos de fachada em amarelo-torrado e cercados por uma vedação baixa, em ferro, pintada em tons de verde-garrafa. Evidenciava-se, desta forma, a propriedade privada e, ao mesmo tempo, impunha-se respeito pela vegetação que crescia em redor dos edifícios. Ligeiro era também o portão que dava acesso ao prédio. Não tinha mais do que três ferros dispostos na horizontal e o dobro destes na vertical, que, cruzados, formavam uns dez rectângulos.

O primeiro andar direito pertencia à família Baris. Era um primeiro andar que, devido à pouca altura que distava do jardim, mais parecia um rés-do-chão. Até a janela da sala ficava encostada à porta principal, feita de madeira e composta, de um dos lados, por cinco vidros quadrados do género martelado e que puxavam à cor do prédio.

Kudret não se podia queixar da casa que tinha. Nem ela, nem os irmãos; nem mesmo a mãe. Estavam, todos, muito bem instalados, mas daí a dizer-se que tinham deixado de ser pobres, era uma ousadia. Quando o pai Ali começou a revelar os primeiros sinais de riqueza, não se dignou a afortunar a família com a aventurança que ia bafejando o seu negócio, excepto no tecto que arranjara para a albergar. De resto, era tudo racionado. O vício do jogo que dele se apoderara tornara-se uma doença crónica. A amante que, entretanto, arranjara, uma engenheira civil, começara por lhe roubar o tempo que dedicava aos seus, para depois estender os seus interesses à conta bancária. Fora-se sentindo sugado, mas também indiferente a essa sensação. A vida corria-lhe de feição e, por isso, aquele que desaparecia num dia haveria, num outro, de se fazer notar. O dinheiro quase lhe nascia entre os dedos, como se de um mago se tratasse.

«Não chores, Musa, não chores. Assim também me dá vontade de chorar», implorava Kudret ao irmão mais velho, vendo-o lavado em lágrimas quando este se sentiu à deriva nos imensos corredores da escola. Iam os dois despojados de sacolas. De mãos a abanar, enfrentavam o primeiro dia de aulas, em Istambul. Kudret tinha seis anos feitos a 15 de Abril de 1981 e estava, por isso, na idade de começar a aprender. O pai apressara-se a registá-la na conservatória, como fizera com os outros filhos, para que pudessem frequentar um estabelecimento de ensino. Tinham vindo sem identidade.

Kudret tornara-se graciosa. Dera um pulo razoável desde que chegara das montanhas. O cabelo chegava-lhe quase aos ombros e crescia castanho-cacau, com jeitos ondulados. Puxava à mãe no tom de pele. A palidez, ligeiramente rosácea nas maçãs do rosto, fazia-lhe sobressair o uniforme preto de pregas que envergava por obrigação. A graciosidade das golas brancas arredondadas atenuava a dureza da cor do vestido colegial. Nada fazia adivinhar que Kudret também fosse filha de Ali. O pai tinha a pele intensamente morena e não destoava, por isso, da maioria dos turcos. A filha não lhe roubara nem a cor, nem os traços, e diziam que era a cara chapada da mãe; mas, como o tempo continuava a esculpir-lhe as feições, era cedo demais para se perceber com quem iria ficar parecida.

O irmão de Kudret entrara na sala, desgostoso com o destino de estudante. Soluçava até, como costumava soluçar quando esfolava os joelhos depois de uma queda aparatosa, durante uma corrida de rapazes. Kudret aconselhara-o a terminar o queixume, fazendo ver que isso só o envergonharia, mas a possibilidade de vir a ser vexado não esvanecera a sua angústia. O rapaz vira-se incapaz de enfrentar a professora e os colegas, que não conhecia de parte alguma, e fugira da escola no primeiro dia de aulas. Kudret ficara. Numa das turmas do primeiro ano, a menina sentara-se numa carteira, que haveria de dividir com outra rapariga da mesma idade. Ao todo, eram cinquenta e cinco miúdos.

A professora do primeiro ciclo nunca simpatizara com Kudret. Quando fixou nela o olhar, percebeu onde estava a diferença entre ela e a colega com quem partilhava a secretária da escola. Kudret trazia, todos os dias, o cabelo desalinhado. Não era fácil domá-lo com um pente qualquer e, mesmo que preferisse esticá-lo com uma escova, não conseguia que ficasse muito melhor, porque o volume que ganhava lhe impunha uma aparência desleixada. Para além da rebeldia dos cabelos, vinha sempre sem material escolar. Servia-se dos lápis e das canetas da parceira do lado, que, com boa vontade, partilhava com ela.

A pobreza de Kudret irritava a professora e o ar empertigado desta nunca dera hipótese a que a menina se lhe afeiçoasse. A mulher andava muito arranjadinha, com o cabelo armado, pintado de louro, a fingir que nascera assim. Empoleirava-se em saltos altos, a imitar a moda europeia, e pedia emprestados aos tacões dez centímetros de altura, que acrescentava ao seu metro e sessenta. Era uma trintona magra, presunçosa, que sem grande esforço marginalizara Kudret desde o dia em que descobrira de onde vinha e a que povo pertencia. Esse fora o motivo para a execrar. Nunca entendera a ambição dos curdos, não alcançava os seus propósitos e, mais do que isso, não gostava deles. Reprovara Kudret no final do segundo ano e em boa hora o fizera. A nova professora ganhara por ela uma simpatia que a anterior jamais conseguira mostrar, mesmo que fosse obrigada a esconder-se por detrás de uma capa, que, por hábito, os hipócritas costumam envergar. Sem grande esforço, progredira na escola e fora retribuída pelo empenho com boas notas, que orgulhosamente apresentava em casa.

Kudret gostava de livros porque gostava de aprender, e preferia descobrir, sozinha, as respostas para as suas dúvidas a perder tempo a fazer perguntas ao pai ou à mãe. Era frequente vê-la agachada, no chão do quarto, de cobertor fino a tapá-la da cabeça aos pés, folheando livros. Contentava-se com a claridade autorizada a entrar pela textura da manta e, assim, recolhida sobre si própria, conseguia concentrar-se no que lia e até era capaz de fingir que não escutava o que se passava à sua volta. O pai estava, mais uma vez, a bater na mãe.

Ali Baris era um homem violento. Kudret nunca sentira o peso das suas mãos, mas a mãe sabia-o de cor. Sem razão, sacudia com violência a ira que lhe paralisava a consciência. Esbofeteava-a, pontapeava-a e puxava-lhe os cabelos, que ela escondia debaixo de um lenço. Agia como se estivesse possuído por um espírito maléfico. «O meu pai era mau!», recorda Kudret. A mãe rendia-se à ira do marido, sujeitava-se à condição de mulher maltratada e nunca pusera em causa o motivo que o empolgava quando a agredia. Parecia sentir-se satisfeito e entusiasmado com a descarga de cólera e, depois de aliviado, deixava-a destroçada, magoada e ferida no corpo e na alma até ela se recompor.

A mãe de Kudret não era uma mulher bonita. Os olhos pequenos e escuros, o nariz comprido e pontiagudo e a boca grande, de lábios demasiado finos, não lhe davam um ar airoso. Agasalhava a cabeça com um lenço, que atava à nuca e depois cruzava à volta do pescoço, e cobria-se com uma camisola de gola redonda, que nunca condizia com a saia comprida rodada, a tapar-lhe as pernas até aos tornozelos. De sapatos rasteiros e descuidadamente vestida, aparentava ser ainda mais baixa e anafada. Era uma típica mulher das montanhas do Curdistão, em nada semelhante a um considerável número de turcas que tentavam copiar as tendências da moda europeia.

Enfiada em casa, a mãe de Kudret estava ao serviço dos filhos e do marido a qualquer hora, caso fosse necessário. Passava parte do dia na cozinha, a confeccionar comida. Quando o marido trazia alguns amigos para jantar, esmerava-se a preparar as iguarias. Nessas ocasiões, a mesa da sala tinha a utilização para que fora feita e comprada: servir os convivas do chefe da família. Ali Baris sentava-se na cadeira colocada no topo da mesa de madeira escura, e ao longo desta sentavam-se os convidados. Os filhos e a mulher não tinham lugar na sala para desfrutar do manjar. Recolhiam-se na cozinha ou no quarto e, sobre o soalho, degustavam a comida. Tinham trazido de Batman o costume de prescindirem de mobiliário durante as refeições. A gente do Curdistão apoiava o prato sobre as pernas, que, cruzadas e em cima de um tapete, faziam as vezes de um tampo. Não fora a mudança para um apartamento de luxo de um condomínio fechado que fizera dos Baris uma família diferente.

Servido o jantar, a mãe de Kudret voltava a entrar na sala para oferecer o tradicional chá turco. Nessa altura, o marido Ali e os amigos já iniciavam a digestão, refastelados sobre o canapé estofado. O berrante tecido que o revestia, de flores castanhas e enormes cornucópias da mesma cor, não passava despercebido, nem que de relance se olhasse para ele. Aligeirava a alarvidade do padrão o amarelo discreto dos cortinados que vestiam a janela da sala, à frente da qual estava colocado o sofá. Sentados e de chávena na mão, prosseguiam a conversa que tinham iniciado à mesa. Falavam de negócios, de mulheres e de uma ou outra feliz partida de jogo num dos casinos de Suadiye, em Istambul, frequentados por gente com dinheiro. Infelizmente, Ali contava as boas partidas pelos dedos de uma das mãos.

Os passatempos de Ali Baris nunca deram bons resultados. A fortuna que habilmente amealhara com a empresa de construção civil, conseguira estoirá-la tão depressa como se faz rebentar um foguete. Embeiçava-se com facilidade pelas esguias mulheres de leste, que, astutas, lhe sorviam as poupanças. Os jogos de sedução saíram-lhe caros e a maior parte das jogadas de casino foram arrasadoras. Os gastos imprudentes levaram à falência da empresa. Kudret, os irmãos e a mãe apenas se aperceberam do infortúnio quando, em 1987, deixaram a casa que habitavam para a trocarem por um humilde quarto andar, em Bascilor, também no lado europeu de Istambul, mas em nada semelhante ao requinte da zona de Barkirkóy.

«Ajuda-me, Musa!», pedia Kudret ao irmão quando precisava de descer à cave do prédio para partir o carvão que havia de aquecer a nova casa, enregelada e desconfortável. Ela tinha pavor de se enfiar sozinha nas catacumbas do edifício, por causa das ratazanas que por lá vagueavam e porque a escuridão e a frieza do local faziam lembrar uma gruta com um ossário. Musa ia com Kudret e os dois, num ápice, faziam o que tinham a fazer: enfiavam o carvão num saco, carregavam-no às costas até ao quarto andar e despejavam o suficiente na soba, (salamandra). Quando não era Kudret ou Musa a fazê-lo, era outro dos irmãos ou mesmo a mãe; o pai nunca se mexera para desempenhar essa tarefa ou outra qualquer.

Os anos dourados dos Baris tinham ficado para trás; pelo menos para Ali, que, de um dia para outro, ficara sem dinheiro. Para remediar a pobreza inesperada e da qual se desabituara, obrigara todos os filhos-homem a fazerem-se à vida. Musa tornara-se engraxador e pintor de sapatos, tal como o pai fora, em Batman, quando rapaz, e os outros dois começaram a servir à mesa num restaurante de Istambul. O sustento ficara por conta da prole.

Os momentos difíceis tornaram-se frequentes. Um dos tios de Kudret, irmão do pai, que se envolvera demasiado na causa do povo curdo, acabara preso. A tia e os primos foram obrigados a fugir para a Suécia e o pai Ali andava com os nervos à flor da pele. O homem encolerizava-se facilmente e o desnorteamento dava-lhe para espancar a mulher quase até à morte. «Tinha eu doze anos, lembro-me como se fosse hoje. Estava a estudar na sala, junto à salamandra, quando o meu pai me pediu para chamar a minha mãe. Chamei-a. Ela obedeceu, como sempre obedecia. Sem explicação, ele começou a bater-lhe, tanto, tanto que o corpo mudou de cor. Em pouco tempo, manchou-se de vermelho e, logo depois, de negro. Havia cabelos dela por toda a parte. Custou-me muito.» Kudret Baris recorda, sofrida, esse final de tarde violento. «Mas eu não me posso queixar», continua. «O meu pai gostava muito de mim, nunca me bateu. Dizia que eu era inteligente. Até chegou a comprar-me um vestido de pregas em tons de azul e branco para uma festa do Ramadão! Nunca mais me esqueci», confessa, emocionada com uma das poucas boas recordações que tem do pai.

Ali nascera para ganhar e para perder. Aquilo que tinha num dia deixava escapar no outro; mas, como nunca se rendia, conseguia, fosse como fosse, endireitar os negócios. Voltara a abrir outra empresa de construção civil graças ao apoio dos amigos, que nunca o abandonaram nos momentos difíceis.

Corria satisfatória a vida de estudante de Rojhat Baz. Nunca se saíra mal como aluno. Era daqueles que, apesar de não se mostrarem brilhantes, também não envergonhavam os pais com os resultados das avaliações. Mas, por força das circunstâncias, vira-se obrigado a abandonar os estudos quando decorria o ano de 1988. Jamais seria o homem que é hoje se a sua vida não tivesse mudado de rumo naquela altura crucial que é a juventude.

Os negócios da família estavam encarreirados. Os Baz tinham conseguido ultrapassar o alvoroço do período pós-golpe militar, porque o pai Baz sabia multiplicar dinheiro como ninguém. Nunca o filho Rojhat chegaria aos seus calcanhares; nem o filho mais velho, que até se adaptara bem à vida de caixeiro-viajante, parecia passar disso mesmo. Apesar de desajeitados e sem aptidão especial para gerirem a empresa e as contas bancárias, os herdeiros viram-se obrigados a ocupar o lugar deixado vazio pelo pai, que caíra numa cama, vítima de um acidente vascular cerebral. O lado esquerdo do corpo do patriarca da família ficara totalmente paralisado. A doença empurrara-o para o leito, ao qual permanecia preso dia e noite, e dele libertava-se somente quando a disponibilidade daqueles que o rodeavam o permitia.

Os últimos anos da década de 80 serviram para Rojhat se adaptar à sua condição de jovem empresário. Para sua própria admiração, estava a sair-se menos-mal, apesar de não ter sido talhado para a venda, porta a porta ou ao balcão, de panos de cozinha ou de colchas de cama. Até chegara a surpreender-se com esporádicas transacções mercantis que fizera, mas, na verdade, durante a maior parte do tempo mostrava desinteresse pela profissão que fora obrigado a escolher. Ainda nem dezasseis anos tinha feito. Esse desapego crescia sempre que escutava as últimas notícias do seu povo. Rojhat empolgava-se de tal maneira que parecia sentir-se repuxado, no âmago, como se quisessem sugar-lhe a alma até às entranhas. Naquela fracção de segundos, via-se nas montanhas do Curdistão turco a combater ao lado dos seus; mas em pouco tempo perdia o fôlego, como se fosse um balão desatado que rodopia sem destino e cai prostrado no chão. Assim ficava Rojhat, desmoralizado e caído sobre si próprio.

O rapaz tomara conhecimento da rebelião curda, na zona sudeste da Turquia, que despoletara no início de 1984. Desde a instauração da Junta Militar, quatro anos antes, milhares de curdos tinham sido presos, torturados e executados. Hoje fala-se em duzentos mil detidos só até esse ano. O aumento da repressão fizera com que os dirigentes do Partido dos Trabalhadores Curdos iniciassem a construção das bases da organização, com o intuito de lutarem contra a ditadura militar e por um Curdistão livre e democrático. Se, durante os anos 70, o povo curdo se rendera à sua fatalidade, a partir da década de 80 a ideia de revolta chegara com o PKK.

Os fundadores do partido estruturaram-no a partir do Líbano e conseguiram realizar o primeiro congresso em Julho de 1981. Estava, assim, dado o passo necessário para encetarem uma estratégia política. Entretanto, a prisão militar da cidade de Diyarbakir, no Curdistão, convertera-se no centro da resistência, resultado da organização dos presos políticos curdos que lá se encontravam detidos pelo governo turco. Do nascer ao pôr-do-sol, gritavam dos seus aposentos: «Fim à tortura! Fim à tortura!» A execução de alguns destes dirigentes nas suas próprias celas fizera esmorecer, momentaneamente, a força dos futuros combatentes.

Após o segundo congresso, em 1982, regressaram às montanhas do Sudeste da Turquia pequenas unidades de guerrilheiros curdos que, a partir da região de Botan, onde instalaram a central da luta, se expandiram para outras zonas. Dois anos depois, a 15 de Agosto, o líder Abdullah Ocalan dera início à luta armada, começando por ocupar as zonas de Eruh e Semdinli. Estava dado o passo para uma sangria, sem precedentes, perpetrada pelo governo turco, que reagira a esta ocupação e desencadeara, com o apoio da NATO, da qual é membro, campanhas regressivas que arrasaram por completo aldeias curdas habitadas por civis.

Rojhat mantinha-se atento ao desenrolar dos acontecimentos políticos e, ao mesmo tempo, procurava defender os interesses dos Baz. Partilhava as preocupações inerentes à vida de comerciante com o irmão mais velho e um dos tios, irmão do pai, também ele sócio da empresa de têxteis, e acompanhava as notícias que chegavam do Curdistão. O tio era tido por todos como um dos Baz mais destemidos da família. Tinha um espírito jovem, bem mais jovem do que a aparência sugeria, e o convite que formulara ao sobrinho viera provar que não tinha temores que o impedissem de chegar aonde pretendia.

«Cuidado! Hepsi Kulahli, Aksan Silahli! É gente que de dia anda de chapéu e à noite de arma!», alertou o militar no posto de controlo, quando Rojhat Baz lhe perguntou o porquê daquele aparato e de tanta vigilância. Ao mesmo tempo que matava a curiosidade fingida de Rojhat, o soldado mirava o carro que transportara os dois até ali. Passara revista à viatura, hesitara ao aproximar-se da bagageira, voltara atrás, como se quisesse cheirar o seu interior, avançara sem pedir que a abrissem e, por fim, debruçara-se sobre a matrícula. «Ah! É de Ankara! É uma cidade muito bonita!», exclamara. De seguida fizera de chofre umas tantas perguntas que, por hábito, costumam irritar quem é inquirido, porque são feitas num tom pouco afável, inspirando desconfiança: «Para onde vão?», «De onde vêm?», «O que fazem?», «Em que hotel vão ficar?». Rojhat e o tio iam respondendo, calmamente, às perguntas, mas sabe Deus como estavam. Ficara tudo registado num impresso próprio para o questionário.

Rojhat estava com medo. Aceitara o convite do tio de se fazerem à estrada até Hakkari, mas a inexperiência resultante dos seus 16 anos não permitira prever uma viagem tão atribulada como aquela. O posto de controlo junto às portas da cidade era o quadragésimo que tinham apanhado desde a saída de Ankara.

A cidade de Hakkari, cuja província tem o mesmo nome, está situada a setenta quilómetros da fronteira com o Iraque e a cento e cinquenta da fronteira com o Irão, no Sudeste da Turquia. Hakkari é terra de curdos e, por esse motivo, encontrava-se na mira do exército turco. «Se pensam que isto aqui é Turquia, enganam-se!», comentou um dos militares quando Rojhat e o tio saíram do carro, sob ordem militar. Dali só passava quem os homens do regime permitiam. Hakkari era considerada uma das zonas mais perigosas do país. Tinham endurecido os ataques do exército turco contra as aldeias curdas e, por isso, as respostas dos guerrilheiros do PKK tinham-se intensificado.

«Podem passar, mas não voltem! Não vos quero cá ver outra vez. Depois de fazerem o que têm a fazer, regressem imediatamente a Ankara. Isto é uma ordem! Não arranjem problemas!» O aviso fora recebido pelo tio e pelo sobrinho com consecutivos acenos de cabeça, que confirmavam às ordens recebidas. Valera-lhes a condição de vendedores e a firmeza com que mostraram a sua identificação e que provava terem nascido em Ankara, na capital turca, para que lhes fosse autorizado saírem dali sem problemas de maior.

O Sol estava quase a pôr-se quando entraram na cidade. No vale, já não batia um raio luminoso e, no pico das montanhas, restavam apenas vestígios de luz e de neve. Era Primavera. Hakkari está situada a mil e setecentos metros acima do nível do mar e a mais alta das montanhas, a Cilo, atinge os quatro mil e cem metros. Rojhat estava, pela primeira vez, no Curdistão. A beleza da paisagem deixara-o atónito, mas muito mais haveria de o perturbar.

Antes de pernoitarem, o estômago sugerira-lhes que se sentassem para saciar o apetite, que só começaram a sentir depois de terem deixado para trás o posto de controlo, junto às portas da cidade. Entraram, então, num restaurante. As primeiras palavras que Rojhat pronunciara quase levaram à fuga do empregado, que ficara tão atemorizado que não conseguia responder. Era provável que não tivesse entendido o pedido, mas também era possível que estivesse a fazer tudo para não o entender. Talvez pensasse tratar-se de alguém que pertencesse à família de um militar turco em serviço na zona, uma vez que era intensa a agitação blindada naquela província e, pelo que sabia, também por todas as outras províncias do Curdistão. Mas, afinal, enganara-se.

Rojaht, aconselhado pelo pai a nunca pronunciar uma palavra em curdo, sentira-se receoso, também naquele momento, em formular o seu pedido na língua que os habitantes de Hakkiri dominam e reconhecem como sua: o curdo. O tio apercebera-se do mal-estar que o descuido tinha gerado e apressara-se a pedir, em curdo, duas sopas, dois kebab e duas garrafas de água. A prontidão fora suficiente para desfazer as dúvidas e tranquilizara o rapaz do restaurante, que não perdera tempo a responder à solicitação daqueles dois. Em menos de meia hora, o tio e o sobrinho saciaram o apetite.

Se tudo corresse como tinham dito à polícia, no posto de controlo, impunha-se que pernoitassem num hotel. Na verdade, isso nunca fora previsto. O plano que tinham trazido de Ankara não era atrevido nem audaz, mas antes vulgar entre o povo curdo. Conhecido por ser hospitaleiro, mantinha sempre livre uma assoalhada da sua casa para albergar qualquer hóspede de confiança que, inesperadamente, batesse à porta. Durante uma semana, dormiram e comeram, ora numa habitação, ora noutra, e os anfitriões fizeram jus ao costume da região. Uma semana fora o tempo suficiente para conseguirem vender a mercadoria que traziam, amontoada na bagageira do carro, para fazerem novos clientes e para que Rojhat percebesse a razão daquela luta desenfreada entre o exército turco e a guerrilha curda. Ali Baz tivera o primeiro contacto a sério com o seu povo, a sua cultura e a sua causa. A realidade perturbara-o e a consciência dissera-lhe que acabava de mudar o trajecto que até ali tinha dado à sua vida, mesmo que imposto pelo pai. Estava determinado a mudar de direcção, a deixar a vida de caixeiro-viajante e comerciante afortunado.

Abandonara Hakkari, juntamente com o tio, no dia que previra, mas não à hora considerada apropriada para a autoridade turca. «Meia-noite não é hora para alguém sair de Hakkari e se fazer à estrada. É perigoso!», comunicara um dos militares que se encontravam no posto de controlo à saída da cidade. O tio de Rojhat escutara o aviso sentado ao volante do carro, com o pescoço inclinado para trás, para daquela posição conseguir avistar melhor a cara de quem estava a impedi-los de avançar. Era propositadamente insuficiente a luz que alumiava o posto militar e, por isso, não era fácil descortinar as feições de quem quer que fosse, pelo menos para quem não estava habituado a trabalhar na escuridão. «Há guerrilheiros e ataques inesperados de terroristas do PKK», continuara o militar, que, sem mais conversas, acabara por concluir que o melhor era não autorizar a saída, à aquela hora da noite, dos dois comerciantes «turcos» que há uma semana tinham passado na direcção oposta.

O recolher do exército turco era ditado pelo pôr-do-sol, que por volta das dezoito horas começava a ceder a vez à noite. Ao longo da madrugada, permaneciam junto aos acessos da cidade apenas as sentinelas. Os restantes militares regressavam aos aposentos. Ficava, assim, livre o caminho para que os guerrilheiros do PKK ocupassem os seus lugares e entrassem, então, em acção. Por este motivo, o recolher obrigatório era decretado e, para todos os efeitos, aqueles dois eram turcos de Ankara, gente boa, que nada tinha que ver com a «escória social» que habitava as montanhas e urgia exterminar. Receosos pela segurança de Rojhat e do tio, os militares começaram por lhes impedir a saída tardia, mas acabaram por ceder aos seus intentos quando estes alvitraram negócios inadiáveis na capital.

O mês de Maio ia quase a meio e a manhã de sábado também. Por ser fim-de-semana, levantara-se mais tarde do que o habitual. Sem pressa, fizera o mesmo que costumava fazer nos dias de escola: primeiro escolhera a roupa, depois tomara o pequeno-almoço e, por último, cumprira a preceito o ritual de higiene matinal. Há muito que largara os vestidos de golas arredondadas, as saias de pregas e as blusas de folhos e deixara crescer o cabelo, que já lhe tocava nas costas. Passara a vestir roupas de marca, sobretudo desportivas. Kudret estava uma rapariga diferente, mais moderna, mas não muito feminina. Nessa manhã, preparava-se para se encontrar com um grupo de amigos com quem combinara, na sexta-feira anterior, ir passear até ao centro de Istambul, almoçar por lá, ver um filme num dos cinemas da cidade e fazer umas compras. Um vasto programa. O ponto de encontro fora, das últimas vezes, à porta do prédio e, naquela manhã, nem se pusera outra hipótese. Os amigos prescindiam de subir, porque o mau feitio do pai de Kudret não lhes agradava particularmente. Para não terem de o aturar, ficavam-se pela entrada. A campainha tocara à hora prevista: dez e quarenta e cinco. Dois amigos e duas amigas, colegas de escola, juntaram-se a Kudret, que, sem os fazer esperar, descera num ápice.

O autocarro que os levara até ao centro da cidade contara com alguns lugares vazios, mas fizera o percurso consideravelmente cheio para a hora e até para o dia. É que os turcos gostam de andar na rua, de vasculhar as bancas dos mercados, de fazer, de uma ponta a outra, rondas pelo Grande Bazar ou pelo Bazar Egypt especiarias e, por isso, não se privam de se enfiar em transportes públicos para irem regatear seja o que for, mesmo que não precisem daquilo que compram.

Nessa manhã, Kudret e os amigos não tinham saído com intenção de se perderem nos bazares da cidade. As tendas de contrafacção a preços incrivelmente baixos multiplicavam-se em todos os mercados, mas nem todos os modelos das melhores marcas estavam copiados. Dessa vez tinham ido à procura de originais nas lojas de pronto-a-vestir de Istambul que vendiam roupas internacionais e estavam sempre cheias de gente, sobretudo turistas. Kudret saíra de casa com o intuito de comprar, pelo menos, umas calças de ganga tidas como as mais in de momento: as Levi’s. No roupeiro já contava com três pares da mesma marca e mais um não seria uma extravagância para quem se dava ao luxo de apenas vestir os jeans que as miúdas americanas usavam. «Eu sentia-me muito bem. Todos os meses recebia quinhentos euros que o meu pai me dava para gastar em roupa, sapatos, livros, idas ao cinema e almoços e jantares em restaurantes. Foram dos melhores tempos da minha vida.» Kudret relembra esses anos de juventude que vivera como se nunca tivesse sido pobre.

Estava magra e o número 28 dos jeans 506 assentava-lhe bem. Os amigos confirmaram e o empregado da loja também. Ela escolhera um modelo de homem que se ajustara bem ao seu corpo, bastante elegante e bem proporcionado. Aos quinze anos tinha já um metro e sessenta e seis centímetros, o mesmo que tem hoje, mas menos dez quilos.

Entusiasmadas com o corte, as duas amigas também experimentaram um par de jeans do mesmo modelo. Eram ligeiramente mais cheias, mas ainda não eram gordas. Enquanto se miravam ao espelho, de todos os ângulos, Kudret já estava de volta das sweatshirts. Tirara do expositor uma em cinzento-claro, que na parte da frente tinha estampado, em letras vermelhas de tamanho considerável, o nome da marca - Levi’s. Era moda. Com aquela camisola, tinha a certeza de que não passaria despercebida, antes pelo contrário. Comprara-a. as duas amigas ficaram-se, cada uma delas, pela aquisição de um par de jeans. Pagaram a conta sem estranhar e saíram, para alívio dos rapazes que já estavam à porta à espera. Ficava a faltar uma ida às sapatarias, um quarteirão acima.

Kudret acostumara-se a usar ténis quase todos os dias. Era o único calçado que lhe permitia aguentar longas caminhadas aos fins-de-semana. Desabituara-se de usar sapatos afivelados, redondos à frente, muito pueris, desde que entrara para o Erenkôy Kiz Lisesi (liceu feminino de Erenkôy). Crescera e adoptara um estilo «casual», em muito semelhante ao dos rapazes. Em certas ocasiões, conseguia caprichar na aparência, mesmo que isso lhe provocasse momentos de agonia cada vez que tinha de escolher a roupa adequada. Assomavam-lhe dúvidas. Hesitava entre as calças e as saias, entre as camisolas e as blusas, entre esta cor e aquela, entre o cabelo solto e o apanhado. Nunca tivera tanto para vestir, mas também nunca estivera tão indecisa como naquele tempo em relação à sua aparência. Às vezes entrava em depressões momentâneas de adolescente; porém, como nunca fora miúda para se entregar a crises profundas, rapidamente se recompunha. Estava naquela fase, entre a puberdade e o estado adulto, em que o corpo assume os contornos de mulher, mas com o qual se resiste a conviver bem durante algum tempo. Andava à procura de um estilo que raramente se afastava da imitação daquele que o seu grupo adoptara. O que usavam uns usavam também os outros, e assim não destoavam.

Os ténis Adidas faziam parte do seu visual. Há quinze dias que Kudret andava a namorar um par de cor branca com riscas azuis. Saíra de casa convicta de que também haveria de os comprar naquele dia. Em meia hora, percorrera com os amigos vários armazéns de desporto que expunham, em prateleiras idênticas, os mesmos modelos a preços semelhantes. Depois de ter entrado e saído de várias lojas, concluíra que a azáfama apenas servira para perder tempo, porque acabara por comprar os ténis num dos primeiros armazéns em que entrara e onde os rapazes se deixaram embeiçar pelo último modelo que a Adidas lançara e que eles chegaram a adquirir.

Entraram no restaurante carregados com sacos. O McDonald’s estava atafulhado e o grupo dividira-se por duas filas. Eles ficaram numa e elas noutra, mas chegaram ao mesmo tempo ao balcão e, em menos de dez minutos, estavam sentados. Com cheeseburgers, batatas fritas e coca-cola, encheram os tabuleiros, que se esvaziaram ao mesmo ritmo a que a empregada os servira. Os almoços de sábado variavam entre a fast-food americana e a fast-food turca. Kudret deliciava-se com as típicas sandes turcas de pão pitta recheadas com carne assada, alface, tomate, cebola e salsa, que comia num dos restaurantes D’oner Kebap de Istambul. Quando não conseguia convencer os amigos a besuntarem-se com um kebap, empanturravam-se com um hambúrguer com queijo, ou dois, se fosse caso disso. Com o final do almoço no McDonald’s, davam por concluída a primeira parte do programa de sábado. A tarde, os amigos reservaram-na para a sessão de cinema numa das salas Kadikoy da cidade.

Danças com Lobos não gerara discórdia no momento da escolha. Todos estavam interessados em ver o filme que tinha ganho, nesse ano de 1990, o Oscar para a melhor obra cinematográfica, segundo a Academia de Hollywood. O argumento e a banda sonora conseguiram dominar a conversa durante o percurso de regresso a casa, e o facto de Kevin Costner ter sido, ao mesmo tempo, o realizador e o actor principal também alimentara a discussão. Kudret ficara presa ao argumento e admirara a coragem daquele oficial de cavalaria, ao ter abandonado a sua carreira e os laços que mantinha com o exército americano para passar a defender um grupo de índios Lakota. A interpretação de Kevin Costner também fora abordada e acabara numa acesa algazarra sobre as preferências de cada um em matéria de actores e actrizes americanas e o potencial dos artistas turcos. O tema vinha a propósito, porque acabava de ser fundada a Associação de Actores de Cinema e os jovens cinéfilos estavam à altura de discutir o assunto.

Apearam-se na mesma paragem onde apanharam o autocarro para o centro da cidade, que era apenas uma das mais de sete mil da rede urbana de transportes públicos. Aquela ficava perto da casa de Kudret, em Anadoluhisan, na zona asiática de Istambul. Mudara-se para ali aproximadamente dois anos antes. Nunca morara naquela margem do estreito do Bósforo, que divide ao meio a cidade e une o Mar Negro ao Mar de Mármara. As duas casas que habitara anteriormente situavam-se em bairros residenciais do lado europeu.

Hoje, Kudret respira fundo quando relembra a época dos seus quinze, dezasseis e dezassete anos. E, ao mesmo tempo que toma fôlego para continuar a conversa e revelar a sua vida, inclina a cabeça sobre o peito, passa as duas mãos pela face em direcção à testa e deixa-as deslizar sobre os cabelos puxados para trás, presos junto à nuca com uma mola de plástico. Mesmo assim, percebe-se até onde chegariam se estivessem soltos - no mínimo ao meio das costas. E já não são totalmente castanhos-escuros, porque alguns brancos crescem desordenadamente. Depois de os percorrer, ergue o tronco, deixa ver o rosto que tomara cores saudáveis e sorri. Está sentada no chão, com as pernas dobradas para o lado direito em ângulo quase recto e, entretanto, apoiara a mão esquerda sobre o tapete, para assim equilibrar melhor o corpo. Nunca perdera o hábito de fazer do soalho um divã. Depreende-se, pela expressão agradável que exibe, que nada se evadira da memória e começa a falar. «Tinha voltado a ter uma boa casa, que continuava a partilhar com os meus irmãos e os meus pais, frequentava um liceu só para raparigas, considerado o melhor de Istambul, tinha amigos a quem chegava a dar dinheiro e algumas coisas, como já me tinham feito a mim muitos outros quando era pobre, comprava a roupa que queria, não perdia um bom concerto e passava a vida no cinema. Sabe, fiquei a conhecer Istambul. Mas o mais importante foi quando a amante do meu pai o deixou, porque percebeu que ele nunca largaria a minha mãe para casar com ela. Era muito feliz», conclui.

Até então, poucos episódios a tinham perturbado tanto como este, no momento de puxar pelo passado. Sentira-se transtornada ao recordar a desprezível professora do primeiro ciclo e os impulsos agressivos do pai, ao ponto de a sua batida cardíaca se alterar, assim como a respiração. E, desta vez, voltara a desassossegar-se ao relembrar os tempos de adolescente e a perfeição exacerbada da rotina diária, que, dezoito anos depois, lhe parece pouco crível devido ao rumo que a sua vida tomara. Ao contrário de muitas amigas, nunca tivera crises existenciais profundas nem conflitos com os pais, mas sim liberdade suficiente e muito dinheiro.

«Essa escola de condução foi muito boa para a família. O meu tio tinha aberto uma em Istambul que estava a resultar bastante bem e perguntou ao meu pai por que razão não fazia o mesmo», relembra. O pai aceitara os conselhos do seu irmão, aproveitara o sentido de oportunidade que tinha e abrira a Ipek Suricu Kursu. Fora um dos seus melhores negócios. O empréstimo de duzentos mil euros que pedira ao banco para o montar fora liquidado em quatro meses.

A escola estava situada na zona de Ipek, como o próprio nome referia, e funcionava num edifício novo de cinco andares, com a fachada forrada a azulejos castanhos-claros e varandas de alto a baixo onde encaixavam corrimãos de ferro a todo o comprimento. Centenas de turcos aprenderam a conduzir na escola de Ali Baris, que conseguira pôr todos os fílhos-homem a trabalhar com ele.

O mês estava a começar e o ano a terminar. Estava-se no início de Dezembro de 1991. Nessa noite, o termómetro registava uns quatro ou cinco graus centígrados. Ao longo do dia não passara dos oito. Kudret aproximara-se da janela do quarto e ficara de pé, atrás dos reposteiros, com a boca a embaciar os vidros. Dali percebera como andavam encolhidos os turcos. O sopro brando e morno que exalavam e o escape dos carros confirmavam a baixa temperatura. Nada de estranho para a costa do Mar de Mármara, onde os Verões abrasam e os Invernos regelam. Em casa, o aquecimento a água, cujo circuito abrangia todas as assoalhadas, deixava o ambiente confortável. Naquele fim-de-semana, não planeara nada com o grupo de amigos. Mas, inesperadamente, a campainha tocara. Era sexta-feira. «O meu tio vinha buscar-me para ir passar o fim-de-semana com ele, com a minha tia e com a minha prima. Eu não estava à espera. E convidou também a minha irmã», recorda. As duas aceitaram o convite e enfiaram meia dúzia de coisas dentro de um saco e saíram com o tio. Esse tio era conhecido por ser o mais devoto muçulmano da família Baris.

Até ele se sentar no sofá da sala, os estudos foram o tema de conversa entre Kudret, a irmã e a prima. Mas, quando se instalou no canapé em frente das raparigas, o assunto mudara. Começara, sem rodeios, a falar-lhes de algo até então quase proibido entre eles - o Curdistão. Atónitas, não conseguiram entender o propósito. «O que é que se passa com ele? A falar sobre o Curdistão?», interrogara-se Kudret naquele momento. Porventura tinha alguma razão de ser o desabafo da tia, uns dias antes, quando esteve em sua casa a cochichar com a mãe sobre o comportamento do marido. Kudret escutara quase tudo atrás da porta do seu quarto e ouvira bem o falatório. A mãe e a tia pronunciavam-se sobre o jejum que o tio deixara de fazer durante o Ramadão, o seu desinteresse pelo Alcorão e a mania que ganhara em encher a casa de gente com quem nunca se dera antes. Para além de tudo isto, andava sempre a dizer: «Tu és curda, tu és curda!» Insistira nesta frase no decorrer da conversa com as sobrinhas e a filha. Tentou explicar-lhes quem era o povo curdo, mas não fora mais além. O assunto não lhes suscitara qualquer pergunta, embora tivesse deixado as miúdas confusas. O serão de sexta-feira terminara ali. O verdadeiro motivo desse fim-de-semana inesperado em casa do tio Baris fora deixado para mais tarde. «Kudret, Zehra, Remziye buraya gelin. Sizi bir arkadasimla tanistiracasim!», gritou o tio de Kudret. Ela, a irmã e a prima estavam no quarto e correram de imediato quando ouviram chamar pelos seus nomes. Quem seria o amigo que lhes queria apresentar, ao ponto de gerar aquela euforia? «Este senhor chama-se Musa Anter e esta noite quer falar convosco!», recorda as palavras do tio no momento em que as três apareceram no salão. O senhor já tinha uma certa idade, pensara. Nunca o vira antes, nem ouvira falar dele. Confirmara o que percebera de relance, depois de o ter mirado dos pés à cabeça. Estava calvo no cimo da cabeça, mas ainda lhe restava bastante cabelo branco ondulado, que usava puxado para trás. Era anafado e tinha umas mãos grandes. Usava os óculos de massa pendurados ao pescoço.

O senhor tinha vindo para falar e para jantar. Mas fora preciso esperar pelo final da refeição para perceber que se aproximava a hora de sermão. Enquanto comiam, ninguém tocara em qualquer assunto considerado especial. Tinham-se deliciado com kutilik, uma carne picada com pimentos verdes e vermelhos, arroz, nozes e especiarias enroladas em massa. Estava óptimo. A tia era uma excelente cozinheira. O chá preto fora servido na zona de estar do salão, onde cada um ocupara um lugar no sofá. Musa Anter acomodara-se numa poltrona acolchoada, que arrastara ligeiramente para poder alcançar todos daquela posição, deixando o tapete um pouco enrolado.

«Vocês são todas lindas!», exclamara, depois de ter olhado cada uma das jovens, olhos nos olhos. Kudret recorda-se de ele ter acrescentado, logo de seguida, uma frase do género: «Com a idade que têm, já podem perceber certas coisas!» Que coisas seriam essas?, pensara. Musa Anter queria falar sobre o Curdistão. O tema começara a ser abordado na noite anterior pelo tio Baris e servira para preparar uma catadupa de revelações surpreendentes relativas a um assunto que raramente alguém abordava sem medo e sem vergonha.

«Olha lá, a tua mãe fala que língua?», perguntara o velhote a Kudret, que se mostrara surpreendida por não estar à espera de ser a primeira a ser inquirida e, ainda por cima, com uma pergunta tão simples e, ao mesmo tempo, envolta em tanto mistério. Hesitou uns segundos e disse: «Fala curdo!» Na verdade, a mãe falava quase sempre curdo e raramente conseguia manter uma conversa em turco, porque não dominava a língua. «Mas porque falaria a mãe curdo? Uma língua não tinha nada que ver com a outra», pensara.

Musa Anter tomara, então, conta da palavra. «Sabem uma coisa? O curdo é a língua de um país e nós, os curdos, temos um país. Mas até agora nunca lutámos por isso. E sabem mais? O Curdistão é o coração do mundo. É uma parte da Mesopotâmia, onde nasceu a primeira civilização. Esta região sempre esteve em guerra e temos sido usados por todos os povos e religiões. Os muçulmanos, por exemplo, têm agido contra nós.» Enquanto falava, Kudret, a irmã e a prima escutavam, atentas. Não eram revelações, porque já tinham ouvido falar sobre o assunto, mas nunca daquela maneira e, sobretudo, com a forma calma e serena de quem estudara e reflectira muito sobre o que estava a dizer. E Musa Anter continuara: «O Curdistão é muito rico. Tem uma cultura preciosa e um subsolo com petróleo, ouro e água abundantes. É por isso que todos querem esta zona, sabiam?» Kudret estava estupefacta e pensava: «Este homem tem razão! Mas daí a conseguirmos alguma coisa, parece-me difícil.»

Foram muitos os momentos que levaram Kudret a sentir vergonha das suas origens e muitas as ocasiões em que ficara perturbada e até irritada com a mãe pelos comentários que fazia em curdo junto dos seus amigos. Kudret sentia-se uma miúda turca, estudava em escolas turcas e absorvera muitos padrões de comportamento e valores morais e materiais da sociedade onde estava a crescer e, por isso, as suas origens não lhe diziam absolutamente nada. Por outro lado, conseguira perder hábitos e tradições do povo a que diziam pertencer e que alguns membros da sua família ainda praticavam. De súbito, porém, começara a achar que agira mal. «Mas o que é isto, o que é que se passa comigo?», interrogara-se.

«Agora, pela primeira vez, os curdos estão a defender os seus interesses e têm uma organização partidária, o PKK», dissera Musa Anter. Ela ouvira, baixara a cabeça e pensara para si, receosa de que alguém lhe escutasse as ideias. «Ah! O PKK... a organização terrorista de que tanto se fala na televisão. Será possível o que estou a ouvir ou algo estará mal em tudo isto?» Aquelas três horas deixaram-na confusa, perplexa, até mesmo aturdida.

Kudret não conseguira deixar de pensar nas palavras de Musa Anter, nos dias e nas noites que se seguiram. «Tirsa mirine bi mirinere feydeye we nine» («Quando uma pessoa tem medo de morrer, o medo não ajuda a viver.») - fora uma das últimas frases que dissera, em curdo, e que o tio traduzira, de imediato, para turco. A expressão andava a estorvar-lhe o pensamento. Entendera-a, mas sentira dificuldade em ir além da simples percepção da mensagem. Haveria de perceber tudo quando lesse o Kimil, pensara.

Musa Anter entregara a cada uma das raparigas um exemplar de um pequeno livro, de cerca de oitenta páginas, que ele acreditava que as ajudaria a reflectir sobre tudo o que lhes contara durante aquele serão. O Kimil era, para o povo curdo, um guia para toda a vida. Escrevera-o e concluíra-o no final da década de 50.

Musa Anter era um conhecido escritor e jornalista curdo, mas Kudret nunca tinha ouvido falar dele antes daquela noite. Soubera depois, pelo tio, que tinha outros livros e artigos políticos publicados e desenvolvera actividades políticas pró-Curdistão consideradas provocatórias pelo regime turco.

«Aquela noite foi muito importante para mim. Depois de conhecer Musa Anter, percebi coisas que não entendia, deixei de ter medo de dizer quem era (pelo menos a quem achava que o podia dizer) e passei a frequentar lugares que nunca pensaria frequentar», recorda Kudret, que entretanto começara a fazer visitas regulares ao Centro Cultural da Mesopotâmia, em Istambul, onde clandestinamente se desenvolviam actividades culturais pró-curdas e se exibiam peças de teatro e espectáculos, também de cariz político. A polícia andava de olho nos artistas e fazia investidas frequentes ao edifício, na mira de deter os actores «revolucionários». De vez em quando lá prendiam alguns e encerravam as portas ao centro, que, poucos dias depois, recuperava do sucedido. Um grupo de jovens actores Jiyana nû dera corpo a uma peça de teatro que, até hoje, ela nunca mais esqueceu, porque fora a primeira que vira e porque conseguira responder a outras dúvidas que ainda lhe assomavam à mente. «Chamava-se, em português, Como Vive o Povo Curdo.»

Ali Baris começara a estranhar a alteração do comportamento da filha, ao ponto de se irritar com as suas escapadelas constantes com os amigos e com o tio em direcção ao Centro Cultural. «O que queres da minha filha?», perguntara, um dia, Ali ao irmão, num tom crispado. Mas o que ele queria já o tinha conseguido, porque a sobrinha estava, definitivamente, envolvida na causa do seu povo. Tudo nela mudara, até a religião. Deixara de se interessar, tal como o seu tio, pela religião muçulmana, seguida pela família; ao mesmo tempo, porém, começara a ler muitos livros religiosos de escritores muçulmanos, para saber se optara pelo caminho certo. Não gostara do que lera quando se confrontou com o insignificante papel da mulher muçulmana na sociedade turca. «Porque é que a mulher não pode dizer o que pensa, porque não pode questionar nada?», interrogara-se. Kudret tornara-se yezidi.

O yezidismo é uma religião ancestral curda que, para alguns estudiosos, data do século XIV e, para outros, é muito mais antiga. É um misto de crenças e tradições do judaísmo, do cristianismo, do islamismo e até do zoroastrismo e do gnosticismo. O lugar mais sagrado está situado na vila de Lalish, a norte de Mosul, no Curdistão iraquiano, onde se encontra o túmulo do Sheikh Adi Ibn Mustafa, um reformador da doutrina. Uma vez por ano, yezidis do Iraque, da Turquia e da Síria fazem uma peregrinação de seis dias até Lalish e, três vezes por dia, rezam na direcção do Sol. Kudret percebera que estava perante uma religião fechada mas que respondia a muitas das suas perguntas e, sobretudo, aceitava a mulher como um ser com opinião e direitos.

Rojhat saturara-se da vida de comerciante e a sua enorme vontade de entrar para a guerrilha tornara-o impaciente. «Olha, arranjas-me alguém que me ajude a entrar na guerrilha?», fora assim, sem rodeios, que perguntara ao primo se conhecia gente de confiança na Universidade de Ankara a quem pudesse pedir ajuda e informações sobre como se processava o «recrutamento» de gente para o partido. Desde que chegara daquela viagem a Hakkari, nunca mais pensara nem agira como antes. Andava obcecado e o primo, melhor que ninguém, conhecia os movimentos académicos, uma vez que era estudante na universidade. Pedira-lhe o contacto de gente ligada ao PKK, mas com o compromisso de ele ficar calado. Rojhat estava confiante na estratégia que adoptara.

Uma semana depois de ter falado com o primo, ele apresentara-lhe dois estudantes de Medicina influentes no assunto. Estiveram uma hora juntos, embora quase não tivessem conversado: os rapazes limitaram-se a escutar os argumentos de quem queria ser guerrilheiro. Rojhat desabafara e prontificara-se a assumir, de corpo e alma, as funções que lhe fossem destinadas. Quando terminou a sua exposição, um dos estudantes ergueu o dedo indicador direito, aproximou-o dos lábios e pediu, daquela forma, que se mantivesse calado. Começara ali o percurso pela clandestinidade.

«Prepara as tuas coisas. Faz a mala e põe lá uma camisola, umas botas de montanha, dois pares de calças e uma mochila pequena. Não te esqueças do bilhete de identidade e de algum dinheiro. Vais ser guerrilheiro», relembra as palavras do primo, que, em nome desses dois rapazes, lhe trouxera a notícia, oito dias depois de ter falado com eles e três semanas após o início de 1991. Rojhat ficara radiante. Preocupara-o apenas a reacção dos pais. Conhecia-os bem, ao ponto de saber que nunca concordariam com a sua decisão. Já tinham sofrido o suficiente durante os anos em que o irmão estivera preso e prestes a ser executado, por se ter envolvido demasiado na política. Fazer sofrer os pais era a última coisa que queria, mas, se tivesse de acontecer, seria para lutar pelas origens da sua família, e isso parecia-lhe inquestionável.

Rojhat era um homem moreno, de um moreno amarelado, tipicamente árabe e de cabelo preto liso, brilhante, que usava acachapado. Apesar da cor amortecida, era bastante saudável. Em criança, quase nunca estivera doente; apoquentaram-no apenas umas febres fulminantes próprias da idade, ao contrário de muitos filhos de amigos dos pais. Crescera e chegara a um metro e oitenta e quatro. Era, sem dúvida, alto, o mais alto dos irmãos, e magro, mas não exageradamente delgado, ao ponto de parecer escanzelado. Tinha estrutura, era, diga-se, entroncado, e só por isso parecia estar fisicamente preparado para cumprir o serviço militar. Mas, para Rojhat, ir para a tropa era impensável, um pesadelo. Jamais seria capaz de defender os interesses estratégicos da Turquia. Definitivamente, não queria ingressar nas forças armadas, nunca o faria. Na verdade, não o fez mesmo!

Cheirava a comida. O odor que se fazia sentir dava para perceber que a mãe estava na cozinha a preparar o jantar, e não se enganara. Ela começara cedo, às cinco e pouco da tarde, altura em que Rojhat entrara em casa. Pressentira a presença do filho e virara-se na sua direcção, sorrindo. «Adeus!», disse ele de chofre. Perplexa, a mãe não entendera bem o adeus do filho. «Neden veda ediyorsun?» - «Porque estás a dizer adeus?», perguntou-lhe, mas a pergunta ficara sem resposta. Rojhat dissera apenas à mãe que não podia revelar o motivo por que queria partir. Ela sentira-se estonteada, sobretudo depois de ele lhe ter dito que talvez nunca mais voltasse. Duvidara, porque o filho tinha por hábito sair durante uma, duas semanas ou até um mês, em trabalho ou em férias. Como essas saídas eram tidas como vulgares, acostumara-se à sua ausência temporária. Provavelmente, essa seria mais uma.

«A bênção, mãe!», Rojhat recorda o pedido que lhe fizera de braço esticado e com a mão pendurada na direcção do seu rosto. Sempre que entrava ou saía de casa, fazia questão de ser abençoado, cumprindo o ritual instituído desde miúdo. Mas, daquela vez, recusara-se a dar-lhe a bênção. Rojhat estranhara a atitude, porque ela nunca agira assim. Surpreendido, hesitara entre insistir e partir sem a bendição. Saíra sem a bênção da mãe e sem se despedir do pai, que não estava em casa. O pai Baz melhorara bastante desde que tivera o acidente vascular cerebral: recuperara alguma mobilidade, já conseguia fazer pequenas caminhadas e recomeçara a inteirar-se dos negócios.

Com uma pancada seca, fechara a porta de casa. De mala na mão, seguira ao encontro do irmão mais novo, que o esperava junto à paragem da camioneta, cem metros abaixo do prédio onde morava, na zona de Kecioren, a norte de Ankara. Um distrito conhecido pelo seu campo universitário e por estar muito perto do jardim zoológico Ataturk Orman Çiftligi. Na paragem, perderam pouco tempo à espera do transporte, que chegara em menos de dez minutos. Os dois irmãos seguiram em direcção a Ulus, um distrito próximo, mais a sul, cuja referência era, e continua a ser, a escultura equestre do artista austríaco Krippel, do tempo de Ataturk, conhecida como um símbolo de Ankara antiga. O ponto de encontro era um café ali perto da praça. Rojhat apontara o nome num papel que guardara no bolso da camisa, não fosse a memória atraiçoá-lo, e puxara por ele quando os dois se apearam da camioneta. Andaram ali às voltas até darem com o nome que procuravam.

«Tem ar de ser aquele!», pensara Rojhat ao entrar no café. O rapaz encontrava-se sozinho, sentado à mesa, e levantara-se ao vê-los entrar, como se fosse essa a senha combinada. Depois voltara a sentar-se. Rojhat e o irmão puxaram de duas cadeiras e sentaram-se também. O outro saboreava um chá e, mesmo que eles tivessem intenção de pedir qualquer coisa, não tinham tido tempo. O rapaz, estudante universitário, não falara quase nada, à semelhança dos outros que o primo lhe apresentara. Prudente, não se sentira à vontade para entrar em pormenores e, por isso, não dissera uma palavra sobre a organização em que Rojhat ia entrar. Mas, fosse como fosse, aquele aparato revelara algo de suspeito para quem estivesse atento à agitação dos três rapazes. O estudante sugerira que saíssem dali e que conversassem numa casa onde residiam seis camaradas da universidade e também de luta. Rojhat aceitara; não teria adiantado nada, se tivesse tido alguma opinião sobre o assunto.

«Espera, também quero ir contigo!» À porta do café, o irmão de Rojhat quase se desfizera em lágrimas. A sua missão fora apenas a de o acompanhar até ali e nunca a de lhe seguir o destino. Rojhat recorda as palavras do irmão, que escutara, pouco convencido, o seu argumento: «Tu és muito novo, ainda não podes ir. Estás a ver este amigo aqui? Dentro de algum tempo, ele vai contactar-te. Fica à espera, está bem?» Rojhat seguira a pé, com esse rapaz a quem chamara de amigo, em direcção à casa de que lhe falara. O irmão voltara a apanhar a camioneta para Kecioren.

Há vários meses que se via fardado de guerrilheiro, enfiado nas montanhas, a defender o seu povo e a fugir dos ataques do exército turco. Mas o que sabia ele da vida na guerrilha? Nada. Julgava-a por aquilo que ouvira dizer, apenas isso. Chegara mesmo a convencer-se de que, mal entrasse para o partido, seria enviado para o terreno. Mas iludira-se. Descobriu a realidade quando um dos responsáveis pela organização estudantil curda lhe abriu os olhos. Esse homem aparecera em casa dos novos companheiros de Rojhat na manhã seguinte à primeira pernoita deste, com o intuito de deixar tudo esclarecido. Sem rodeios, explicara-lhe a missão que tinha para ele e alertara-o para o risco que corria, caso os planos corressem mal. «Aqui não damos a ninguém garantias de viver. Talvez possas ser atingido e venhas a morrer. Não sabemos, entendes?», dissera-lhe com frontalidade.

Ele entendera tudo e ficara a saber que, para se tornar guerrilheiro, teria, primeiro, de efectuar outras tarefas. Por ter nascido em Ankara, por o seu bilhete de identidade não levantar suspeitas, por ter carta de condução e conhecer bem as estradas do país, começara a desempenhar funções de motorista e moço de recados ao serviço da causa. Estivera seis meses em Ankara e em Istambul. Em carros emprestados, que eram substituídos ao primeiro sinal de perigo, fazia entregas, levantava encomendas e transportava guerrilheiros feridos em estado grave, que chegavam das montanhas em viaturas insuspeitas. Encaminhava-os para os hospitais particulares onde médicos curdos estavam de serviço e onde não se punha em causa a assistência condigna. Vivera esses meses atormentado com a possibilidade de, num desses percursos pela cidade de Ankara, ter de enfrentar um familiar seu. Quem sabe o pai, de quem não chegara a despedir-se? Não o encontrara, mas tivera de chamar pelo tio numa ocasião.

Marcaram o encontro para as vinte horas. O local escolhido fora um apartamento da capital onde residia uma família curda, com filhos pequenos. Rojhat nunca lá estivera antes. A reunião começara à hora combinada e a campainha tocara, inesperadamente, para admiração de todos. Não estavam à espera de mais gente; os que lhes interessavam já se tinham juntado. «Quem seria?», perguntaram. «Boa noite. Podemos entrar? É controlo!», relembra a abordagem da polícia, que se apresentara à civil. Era a polícia política. «Aqui não há qualquer problema. Procuram droga, é?», fora a reacção de Rojhat, que abrira a boca sem esperar que um camarada seu tivesse a iniciativa dizer algo. Naquela noite começara a primeira dolorosa experiência de pertencer ao PKK. Fora detido ali mesmo. Esteve preso seis dias.

A polícia entrara naquela casa convicta de que ali se conspirava contra o regime e estava certa. Começara por vasculhar em todos os cantos à procura de armas, mas não se saíra bem. Depois provocara Rojhat com perguntas do género: «Conheces algum terrorista? Não viste noutro dia, na televisão, a anunciarem que os soldados turcos tinham morto um? O que estás aqui a fazer?» Ele, porém, não se intimidara nem perdera a serenidade com o questionário, porque estava consciente de que nada tinha que ver com a palavra «terrorista», pronunciada de forma provocatória. Defendera-se dizendo que era vendedor e que viera cobrar dívidas. Insatisfeita com o argumento, a polícia detivera-o para interrogatório, assim como todos os outros.

Optara pela táctica do silêncio, pois aprendera que, estando calado, não se comprometeria. Nunca vira quem o inquirira. Nem quem o torturara. A polícia vendara-lhe os olhos, como sempre fazia, no momento de o martirizar com choques eléctricos e jactos de água e de o ameaçar de que até a sua mãe poderia ser torturada. Nada o dissuadira de permanecer calado. A polícia estava segura de que pertencia à guerrilha, mas preferira libertá-lo a conceder-lhe a oportunidade de aprender táctica política durante o tempo em que estivesse preso. Rojhat ia fazer dezoito anos dentro de seis meses e saíra dos calabouços, obrigado a outros comportamentos.

«Não quero o teu nome outra vez em cima da minha secretária. Estás a ouvir? Nem quero voltar a ver a tua cara à minha frente! Tens uma boa família! Não te metas nisto, entendido?» Foram as palavras que escutara no momento de sair. O tio apressara-se a responder ao pedido de presença que a polícia lhe fizera para ir buscar o sobrinho e convencera-se de que o episódio lhe alterara o rumo que pretendia dar à vida. Enganara-se!

«Vamos comer. Há vários dias que não como nada de jeito», sugerira Rojhat ao tio. Apetecia-lhe uma sopa. Os dois entraram num restaurante, perto da esquadra, mas não chegaram sequer a sentar-se, porque Rojhat lembrara-se de que não tinha cigarros ao ser invadido por uma súbita vontade de fumar. «Dá-me dinheiro, tio. Quero ir ali comprar cigarros.» Pedira-lhe com a certeza de que uma choruda nota lhe saltaria do bolso. E, na verdade,

5 000 000 de liras passaram a ser seus. O tio puxara de uma nota que trazia no meio de um maço e dera-lha. Com ela compraria os cigarros e ainda sobraria bastante. Agradecera, virara-lhe as costas e dissera: «Adeus! Vou fugir!» «O meu tio foi atrás de mim e pediu-me que ficasse, que não fizesse isso. Lembro-me de que disse que era muito novo e que estava com os olhos tapados, que já não tínhamos família no Curdistão e, por isso, não fazia sentido a minha atitude. Não dei importância à sua opinião», recorda Rojhat, que acabara por apanhar uma camioneta em direcção a Istambul. Não ia à deriva.

Fizera muitos contactos ao longo dos meses que estivera com o grupo da universidade. Esse tempo não servira apenas para saber como eram as dolorosas torturas da polícia, servira para muito mais.

Sentara-se à janela, na terceira fila. Esse fora o primeiro lugar que encontrara livre. Não se dera ao trabalho de procurar outro. Optara por seguir viagem num otobus público, que demoraria cerca de quatro horas. As duas cidades distavam mais de trezentos quilómetros uma da outra e tivera, pois, tempo suficiente para pensar em tudo. Pensara como fora denunciado por um sacana que se dera ao trabalho de escutar as poucas palavras que dissera durante o fugaz encontro no café de Ulus; pensara na família que já pouco tinha de curda, porque agia como se fosse turca; pensara no motivo que o levara a deixar a sua casa sem se despedir do pai e sem a bênção da mãe; pensara como seria glorioso combater nas montanhas e como seria tenebroso andar fugido e escondido; e pensara que, por tudo isto, poderia morrer no meio de uma emboscada. Depois, não pensara em mais nada e adormecera.

Acordou para a realidade quando chegou a hora de entregar a encomenda mais perigosa que até então lhe tinham solicitado. Fazê-la chegar ao destino era o mais difícil. Se não o conseguisse, não passaria de um inútil convencido. Delineara a missão com o grupo de amigos, membros da organização, com quem estava a partilhar um apartamento em Istambul. A primeira fase não lhe parecera complicada; um pouco de subtileza seria o suficiente.

O carro parara à hora combinada junto à bomba de gasolina previamente escolhida para dar início ao plano. Tinha matrícula francesa e transportara até ali um casal que não parecia nem turco nem francês, mas falava às duas línguas. Nunca o vira antes e nem fora preciso, percebera imediatamente que estava perante as pessoas certas. Primeiro saíra ele e depois ela. O homem deixara as chaves na ignição e, ao mesmo tempo que dizia em turco «Está lá tudo!», olhava para Rojhat. Logo a seguir virara-se para a mulher e dissera-lhe: «Je vais appeler un taxi.» Rojhat pusera o carro a trabalhar e saíra da estação de abastecimento deixando para trás o casal. Eram 14h36 e correra tudo com a maior subtileza. Dois dias depois, à mesma hora, a viatura fora-lhes devolvida noutra bomba de gasolina de Istambul, mas sem a carga que escondia. Tudo o que estava debaixo do motor, na parte interior das portas e debaixo do chassi, fora retirado.

Os guerrilheiros de Dersim, nas montanhas do Curdistão, aguardavam há várias semanas por esse material, que só lhes chegaria às mãos se Rojhat fosse bem sucedido na entrega, o que não acontecera. A primeira tentativa, falhara-a. Naquela manhã, a «fronteira» da Turquia com as montanhas curdas parecera-lhe demasiado agitada. As patrulhas tinham intensificado a sua acção e o exército atacara em força durante os últimos dias. Era arriscado tentar passar. Tivera de voltar a fazer a viagem de mais de mil quilómetros, rumo a Istambul, mas sempre convencido de que haveria de voltar.

Mais de duzentos e cinquenta mil curdos habitavam a província de Dresim. Uns dispersaram-se pela montanha, outros viviam em pequenos aglomerados populacionais. «A porta de prata», como lhes chamaram os persas, era rodeada de montanhas imponentes que iam perdendo a vegetação à medida que o pico se aproximava. Os vales, profundos, tinham sempre um ribeiro que se fazia notar. A culpa era da água que torneava os calhaus de um jeito violento e constante, como se aquela fonte de vida parecesse inesgotável. De um lado está o rio Eufrates e do outro, a região este da Anatólia. Tudo a mais de mil metros de altitude. Os turcos fizeram questão de dar outro nome à terra e chamaram-lhe Tunceli. Se lhes perguntarem onde fica Dresim, não sabem ou fingem que desconhecem.

Na noite em que Rojhat regressara para tentar fazer passar a encomenda, os militares encontravam-se as portas de Tunceli. Não se surpreendera. Espreitara pela janela e parecera-lhe ver os mesmos que patrulhavam a zona, da última vez que lá estivera. Mas como poderia ter visto quem eram, se assim vestidos pareciam todos iguais? Viajava com o pensamento quando ouviu dizer: «Saiam, por favor, e tragam o bilhete de identidade.» Foram estas as palavras da polícia quando o autocarro que transportara Rojhat e outros passageiros chegou à zona de controlo que dava acesso à província. Não era a primeira vez que Rojhat passava por uma situação daquelas. O rigor da fiscalização fizera-o recordar a viagem com o tio a Hakkari, que chegara a intimidá-lo, apesar de ter sido bem sucedida. Fora motivado pela proeza que se aventurara de autocarro, tentando fazer passar uma mala carregada de objectos justamente pelo mesmo sítio onde estivera quinze dias antes. Julgara ser esta a melhor alternativa para cumprir a incumbência. Munira-se de uma agenda com contactos de clientes que um dos irmãos lhe fizera chegar às mãos e, sem receio, apresentou-a à polícia quando esta pediu aos passageiros que saíssem. «Sou comerciante e venho visitar alguns clientes que tenho aqui. Daqui a duas semanas vai chegar um camião com mercadoria ao nosso armazém, em Istambul, e temos de ir buscar os pedidos de encomendas e cobrar algum dinheiro em dívida, entende?» Convincente, fizera com que o polícia lhe dissesse que conhecia a sua empresa e que também já tinha ouvido falar de alguns dos seus clientes em Tunceli, mais precisamente na cidade de Nazimiye. «Você vai dormir em que hotel?», perguntara-lhe logo de seguida. Rojhat vinha preparado para tudo e respondera sem hesitar: «No Otel Korkmaz. Sabe onde é, não sabe?» O Otel Korkmaz era sobejamente conhecido. O dono fora presidente da câmara e todos sabiam de quem se tratava. A reacção do polícia tranquilizara Rojhat, que, pelos vistos, para além de conhecer os seus clientes, também sabia de que hotel estava a falar. «Estou safo!», pensara naquele instante. «Você tem de ir num tanque militar até à cidade», dissera-lhe o membro da Ozel Tim com quem estava a falar. Pela primeira vez, sentira-se a tremer. Não esperava aquela reacção. A única alternativa que lhe parecera insuspeita e capaz de evitar a sua detenção ali mesmo fora sugerir outro meio de transporte, vulgarmente utilizado por quem chega em circunstâncias idênticas. «Eu vou de táxi, não há problema. Não se preocupem comigo!», respondera.

Para se chegar à cidade de Nazimiye, era preciso atravessar uma ponte sobre o rio Munzur. Uma construção antiga, feita de pedra e rigorosamente patrulhada de ambos os lados. À entrada do tabuleiro, o controlo pertencia à Ozel Tim, uma polícia especial treinada para combater a guerrilha curda; na outra margem, à saída da ponte, já dentro da localidade, o controlo era feito, então, pela Polis Asayis, a polícia de segurança pública. Dificilmente alguém atravessaria o rio sem ser fiscalizado e sem estar sujeito às ordens da autoridade, que chegava a impor o meio de transporte mais adequado para seguir caminho até à cidade mais próxima. A ideia de ir num tanque atormentara Rojhat, que fizera tudo para convencer o oficial da Ozel Tim de que não corria risco algum se apanhasse um táxi. Indeciso, o militar entrara em contacto com um agente da Polis Asayis, do outro lado da ponte, e, surpreendentemente, as duas forças de segurança desentenderam-se. A polícia de segurança pública não via qualquer inconveniente em deixar Rojhat entrar de táxi e a força especial insistia num blindado. Rojhat fingira não estar incomodado com a hipótese de ser levado num carro militar. E, enquanto nenhum se decidia, ouvira, inesperadamente, a pergunta que não queria ouvir: «O que traz dentro dessa mala?» Quase deixara de respirar. As pernas pareciam querer tombar. Eram duas molas demasiado fracas para aguentarem o peso do corpo. O coração tornara-se uma máquina maluca e descontrolada; se fosse de dia, perceber-se-ia como batia rapidamente, só de olhar para o casaco. «São mostruários, são mostruários!», dissera, muito convicto e apressado, a satisfazer a curiosidade. «Será que me vão abrir a mala?», pensara, amedrontado. Mas a resposta não gerara suspeitas. Só podiam ser mostruários! Ele, para todos os efeitos, era vendedor.

«Os dois polícias ficaram a conversar, em cima da ponte, durante algum tempo. Eu estava ali no meio a olhar para eles, de mala na mão, à espera que se decidissem. A cena pareceu-me incrível. Confesso que estava cheio de medo», recorda Rojhat, que se mantivera sereno enquanto os dois agentes tentavam chegar a um consenso. Para aligeirar a situação, um dos polícias fora buscar um koyun çay, chá preto bem forte e quente, e oferecera um copo ao colega. Beberam-no e decidiram-se entre um gole e outro. «Bem, vamos chamar-lhe um táxi que há-de levá-lo ao hotel onde diz que vai ficar hospedado. E fique a saber que esta hora não é aconselhada para entrar em Tunceli. Que isto não se repita, está entendido?» Não entendera Rojhat outra coisa. Até já tinha ouvido um sermão do género alguns anos antes. O que ele mais queria era entrar na cidade com a sua mala de viagem e, desde que o conseguisse, qualquer sermão lhe pareceria inocente.

Rojhat dissera a senha e logo ouvira a contra-senha. Estava encontrado o homem que procurava e sobre o qual trouxera referências. Era o dono de um restaurante e a pessoa certa para o ajudar a entregar a encomenda aos guerrilheiros escondidos nas montanhas. Fora no seu restaurante que tomara o pequeno-almoço, depois de ter descansado no Otel Korkmaz e ter pago antecipadamente, no momento do check-in, duas dormidas. Assim, poderia sair à vontade e deixar a mala escondida no quarto, sem que houvesse qualquer problema. «Como chegaste até aqui? De autocarro, com essas coisas todas?», perguntara-lhe, surpreendido. Rojhat contara-lhe as peripécias da viagem e, depois de o ter inteirado do sucedido, sugerira-lhe que fossem ao hotel buscar a mala para acertarem a etapa seguinte.

«Isto tem de ficar dividido em três sacos. É extremamente perigoso levar tudo junto», avisara o dono do restaurante, quando estavam em sua casa. E, tal como ele dissera, assim fizeram. Separaram o material e, depois de o acondicionarem, Rojhat dirigiu-se à esquadra para comunicar a sua saída de Dresim. Tornara-se imperioso deixar registadas, na Polis Asayis, a data e a hora da sua partida rumo a Istambul. Mas não passara de uma partida forjada. Saíra dez minutos depois de ter entrado na esquadra, no preciso momento em que passava, à porta, um táxi que Rojhat mandou parar. A conduzi-lo vinha o dono do restaurante, também proprietário de uma empresa de táxis, com quem combinara o estratagema. Ali mesmo regatearam o preço e seguiram na direcção da ponte do Munzur, onde a polícia de segurança pública confirmara a saída. Quando chegaram à outra margem, em vez de virarem à direita para a estrada vigiada pela polícia especial, seguiram em frente por um caminho que também dava acesso à cidade. Rojhat fingira que saíra da povoação. O motorista, dono do restaurante, fora deixá-lo em casa de uma família curda e regressara à praça para largar o táxi em que o seu empregado, entretanto, haveria de pegar. O plano resultara na perfeição.

«Rojhat, temos de ir de cavalo para as montanhas», comunicara-lhe um miliciano ao serviço da guerrilha que habitava a casa onde Rojhat se encontrava. «Mas não podemos seguir já, temos de esperar até amanhã à noite», acrescentara.

A ideia de esperar mais um dia desagradara-lhe. O material deveria seguir o mais rapidamente possível, e andar a escondê-lo de casa em casa só poderia causar problemas a todos. Para além disso, trouxera de Istambul dois documentos confidenciais que guardava escondidos num bolso falso do casaco, costurado no forro junto à parte de trás da bainha, e que o chefe da guerrilha tinha urgência em receber.

«Este caminho está livre?», perguntara ao miliciano, preocupado com o trajecto escolhido. A resposta não lhe inspirara a mínima confiança. «Sim, é sempre por este que costumamos ir», dissera-lhe. Mas, se era sempre por aquele, a probabilidade de virem a ser descobertos era elevada. Partiram cerca das vinte horas. Na caravana seguiam três cavalos e seis homens. Os cavalos transportavam a carga de mantimentos e agasalhos, assim como os três sacos de material; os homens carregavam-se a si próprios e às kalashnikovs. Apenas o primeiro e o último da caravana é que seguiam armados, porque não havia espingardas para todos. A caminhada não se adivinhava fácil. O terreno era agreste, a noite estava fria e a qualquer momento uma investida surpresa do exército turco poderia acabar com eles. Quando alcançassem o primeiro monte das montanhas Munzur, estariam seguros de que chegariam ao fim. Depois de muito terem palmilhado, ultrapassaram essa difícil etapa quatro horas após a saída. Sem repousar, continuaram a galgar a montanha, mas, infelizmente, sucedera aquilo que Rojhat temera desde que abandonara Dresim. Foram atacados.

«Acabou tudo!», pensara naquele momento. Três camaradas foram imediatamente abatidos e os três cavalos sucumbiram também. Estava desnorteado. Ainda assim, conseguiu rastejar uns cinco metros até encontrar outro camarada. «Vi uma perna dele e puxei-a, mas atrás veio o resto do corpo.» Pensara que o próximo poderia ser ele. «Tinham morrido quatro, excepto eu e outro, que não sabia onde estava», relembra.

O que poderia fazer um homem que nunca passara pela tropa, não tinha uma arma, nunca disparara um tiro e nem sequer conhecia a zona onde se encontrava? A sua ignorância tornara-se um guia para a morte. Estivera cerca de uma hora sem se mexer, com o pensamento e o corpo paralisados, minado pelo pânico e pelo frio que se faziam sentir. Atormentado, avançara ainda uns três ou quatro metros, o bastante para ser atingido nas duas pernas. Mesmo ferido, tentara alcançar, no meio dos penedos, uma das kalashnikovs. Um disparo deteve-o quando estava prestes a agarrá-la e deixou-se cair com dores. Não se dera, porém, por vencido. Tentara caminhar, novamente, não mais que dois minutos, mas perdera as forças e voltara a tombar. As dores que sentia eram insuportáveis; a perna esquerda doía-lhe mais do que a direita. Percebera que, se ficasse onde estava, não tardaria a morrer. Por isso, arriscara tudo ao puxar pelos membros ensanguentados e com as três balas cravejadas. Fugira até alcançar um penhasco mais seguro. Foram dez minutos de agonia e sofrimento.

Sentira-se exausto e perdido. Não dormira um segundo que fosse e dera pelo amanhecer minuto a minuto. Quando a claridade lhe feriu os olhos, reconheceu a zona onde tinha sido atacado e viu a patrulha movimentar-se e abandonar o local, percebendo que a alvura da manhã a podia comprometer. Carregava os sacos que Rojhat deveria fazer chegar aos guerrilheiros. Ele dera por eles ao longe e sentira-se um inábil desgraçado. Nem acreditava que trinta e seis walkie-talkies, dois telefones-satélite e quilos de dinheiro se tivessem evaporado em menos de um segundo. Não morrera, mas sentira-se, naquele momento, um incompetente moribundo.

O Sol estava a pique quando desceu para ver onde tudo tinha acontecido. Agonizava e andava com dificuldade. Pelo chão, vira espalhadas latas de conserva de atum, ainda por abrir, que os militares se dispensaram de levar e que já tinham sido suas e dos camaradas que morreram. Abrira-as e comera o seu conteúdo. Depois tentara repousar, mas as dores não lhe deram tréguas. Se alguém por ali passasse, seguramente o ouviria gemer. Não passara gente e o dia fizera-se de uma expectativa frustrada e dolorosa. À noite, dormitara na borda de um ribeiro, que facilmente torneava a montanha, ou não fosse a água abundante na região. Ali permanecera seguro de que mataria a sede sempre que a sentisse. Já durante o dia conseguira escutar o silêncio a ser incomodado por um rebanho de cabras e de ovelhas que aconchegaram o estômago no regato, porque de pasto não se via grande coisa. No meio do rebanho, seguia o pastor. «Como o pastor conhecia muito bem a zona, disse-lhe o que tinha acontecido e pedi-lhe o contacto dos guerrilheiros», recorda Rojhat a sua abordagem. Ficou surpreendido quando o guardador de gado lhe contou que o camarada que sobrevivera tinha regressado a casa naquela mesma noite. Era o miliciano e partira sem dizer nada.

Voltar para Istambul ou para Ankara de mãos a abanar e apenas com os dois relatórios escondidos no casaco seria uma ofensa para quem confiara nele. Mesmo incompleta, a sua missão teria de chegar ao fim, custasse o que custasse. «Voltei à aldeia, nem sei como. Doía-me tudo. Desci durante o dia e fui bater à porta do miliciano que engendrara a trágica jornada. Ele arranjou-me outro cavalo e disse-me que ia comigo», recorda Rojhat.

Fizeram-se outra vez ao caminho, mas montados no quadrúpede. Rojhat ia com o coração apertado, as pernas dormentes e apavorado com a possibilidade de outra ofensiva. Passara a noite sem que tivesse acontecido o que temia e a manhã chegara quando já estavam a pisar solo guerrilheiro. «Senti-me mal, estava ferido. Queria chegar ali saudável e, afinal, cheguei naquele estado.» Relembra o desânimo e a vergonha no momento de enfrentar, pela primeira vez, a gente da guerrilha.

«Estamos numa situação complicada, sem os telefones-satélite, sem o dinheiro, com quatro pessoas mortas e consigo ferido. Quem é o responsável por tudo isto?», perguntara, irritado, o chefe da guerrilha. Rojhat negara prontamente a sua responsabilidade e o miliciano não tivera alternativa senão assumir-se como culpado. Estava encontrado o homem que respondia por toda aquela desgraça, mas isso de nada valera porque jamais conseguiriam reaver tudo o que os militares lhes tinham tirado. O miliciano regressara a Tunceli sem que tivesse sido penalizado pela errada decisão que tomara e Rojhat ficara na montanha.

Rojhat recorda o manjar servido: «Trouxeram-me um pedaço de pão chapata, queijo e um chá.» Agradecera a gentileza e, se tivesse tido oportunidade de se ver ao espelho, não estranharia a sua cara de faminto. Os guerrilheiros notaram-no esfaimado e com o rosto encovado, pelo que se prontificaram a alimentá-lo, apesar de terem os mantimentos racionados. Rojhat comera, bebera sôfrego e sentira-se um deles, porque, pela primeira vez, estava a tomar «chá de guerrilheiro», servido num tronco de árvore.

Cinquenta homens compunham aquele grupo de combate, mas só vinte estavam no activo. Os outros trinta tinham chegado há pouco tempo e ainda se encontravam na recruta. O que deveria ser uma força combatente de dimensões razoáveis não passava de meia dúzia de homens perfeitamente autónomos em relação aos níveis hierárquicos superiores e à entidade beligerante. Eram poucos para fazer frente a uma investida que, segundo informações que obtiveram, poderia acontecer a qualquer momento. Apesar da extrema mobilidade e da facilidade de ocultação, os guerrilheiros caíam nas malhas do exército com bastante facilidade devido à carência de equipamento.

«Estamos cercados!», ouvira-se gritar. Naquele instante, Rojhat agachara-se como se fosse capaz de se esconder a si próprio e pusera as duas mãos sobre a cabeça na esperança de a proteger. Ao mesmo tempo que ouvia o barulho ensurdecedor de um helicóptero a aproximar-se, uma bomba caíra sobre o seu acampamento e estilhaçara tudo à sua volta. Estava vivo, apesar de sentir dores em todo o corpo. Uns metros à sua frente, onde se despenhara o engenho, vira muitos corpos estendidos e logo percebera que tinha perdido camaradas. Os que sobreviveram e ainda tiveram forças para se movimentar correram, corcundas, na tentativa de escapar a um segundo bombardeamento. Sentira-os à deriva naquela montanha que conheciam melhor que ninguém. Também percebera que estava perdido e começara a rastejar. Implorara aos braços que lhe puxassem o tronco e as pernas, que naquela posição pareciam ter o dobro do peso. Quando parava, ouvia apenas o som que provinha das folhas da vegetação a serem chicoteadas pelo vento. Estava escondido no meio de pedras e arbustos. Ao levantar a cabeça é que dera por eles. No meio dos mortos, prontos para exterminar os vivos, estavam os soldados turcos.

Rojhat relembra o dia em que a sua vida mudara: «Eu vi tudo. Vi os soldados espancarem, com uma pedra, um rapaz desarmado que morreu logo ali. Vi-os dançarem e rirem à volta dos cadáveres e ouvi dizer “Já chega!”. Os soldados pensavam que tinham morto todos os guerrilheiros, mas, quando começaram a descer a montanha, os nossos homens, os que tinham sobrevivido e estavam armados, investiram e mataram muitos militares.» O balanço fora terrível para o grupo de combatentes, que acabara de perder ali doze homens. «Ficámos sem saber quantos soldados morreram», relembra Rojhat, que vira todos os corpos serem transportados pelo helicóptero.

«Está aí alguém?», soara uma voz curda. «Seria táctica ou um dos seus?», pensara. Era o chefe da guerrilha, que, de madrugada, começara a procurar a sua gente. Encontrara Rojhat imobilizado, como sempre estivera desde que chegara à montanha. «Você não pode ficar aqui connosco, nesse estado. Não conhece a guerrilha, não sabe que realidade é esta nem conhece o regime turco!», foram as palavras do chefe ao deparar com um homem prostrado, chocado com tamanha barbárie e inútil para o combate, mas que lhe perguntara, inconformado: «Como é possível terem morto um homem ferido e desarmado?» «A realidade é muito diferente daquilo que se vê na televisão, sabia?», respondera o guerrilheiro. Perante a resposta, Rojhat ficara em silêncio durante uns minutos, reflectindo apressadamente sobre o rumo que deveria dar à sua vida. Não queria regressar a Ankara; não podia voltar para casa dos pais, porque não seria honesto, depois de ter visto o que vira; não tinha vontade de retomar a vida de empresário. «Então faria o quê?», questionara-se. «Decidi ficar. Doíam-me as pernas, mas o coração doía muito mais! O chefe compreendeu-me. Disse que aceitava a minha decisão. Fiquei satisfeito», recorda. Numa noite de Agosto do ano de 1991, nascera mais um guerrilheiro do PKK.

As balas continuavam alojadas nas pernas. Durante aquelas semanas não surgira, felizmente, uma infecção incontrolável. Os enfermeiros da guerrilha prontificaram-se a prestar-lhe os primeiros socorros, medicando-o e fazendo-lhe os curativos básicos; mas nunca fora, até àquela altura, assistido por um médico. Aguentara, assim, trinta dias de recruta. Passara a ser um guerrilheiro teórico. Não disparara um tiro durante a instrução, porque, face à escassez de projécteis, isso era um desperdício. No entanto, aprendera tudo o que era possível aprender. Ficara a saber o que era a guerra não convencional, compreendera a obrigatoriedade de andarem sempre de um lado para o outro, executando os objectivos sem fixarem sede de operações, e consciencializara-se de que a sobrevivência do grupo dependia da gestão das rações. Fizera a recruta com três copos de chá e duas refeições ligeiras por dia.

«O primeiro ano na guerrilha foi muito difícil. Não sabia nada, não conseguia comer. Só tínhamos carne mal cozida e pão. Para quem estava habituado a comer bem, foi muito difícil.» Rojhat traz de novo à memória esse tempo custoso que coincidira com o primeiro Inverno na montanha. Nevara quase todos os dias e a temperatura baixíssima enregelara os menos acostumados à aspereza da região. Foram três meses a saltar de refúgio em refúgio, quase desapossados de mantimentos. Leram muito, escreveram bastante e reuniram-se, todos os dias, para planear estratégias e transmitir ensinamentos. Em certas ocasiões, juntaram-se a eles mais de quinhentos homens que regressavam aos seus postos, no final dos encontros.

Com a Primavera, chegaram novos guerrilheiros, o que permitira agrupar ali cento e vinte combatentes, alguns homens com bastante experiência. A guerrilha mostrara-se preparada para lutar pelo povo e pela terra, mas, inesperadamente, deparam com uma deserção: um amigo fugira. «Se conseguiu ultrapassar as dificuldades durante o Inverno, por que motivo fugiu na Primavera?», perguntara Rojhat ao comandante. «Isto é um comboio: entra um, sai outro. Tens de aprender que é a guerra de um povo e nós temos de escrever com sangue os nossos direitos. Não temos nem um país, nem um sistema, nem uma organização, e estamos a lutar por isso. A nossa força não é grande, porque não temos um exército, ao contrário dos soldados turcos, que têm armas. O nosso propósito não é fazer guerra, mas não temos outra solução para dar a conhecer a nossa causa, entendes? Se esse camarada se foi embora, é porque perdeu a coragem.» Rojhat escutara tudo sem desviar o olhar do seu comandante e decifrara as suas palavras uma a uma. Pela primeira vez, o comandante tratara-o por tu. Rojhat dera por si a entender a razão do desertor, mas também a julgar que jamais faria o que ele acabara de fazer, porque, na sua opinião, nada o justificaria.

Os meses que antecederam o Verão de 1992 passaram sem sobressaltos de maior. Não sofreram qualquer baixa, o que consideraram uma vitória.

Tocara o telefone. Esperavam a notícia a qualquer momento e, cada vez que o aparelho soava, havia uma grande agitação lá em casa. Há quinze dias que o pai e o tio Baris se encontravam em Londres. Ali telefonava ora de manhã, ora à tarde, umas vezes para sua casa, outras para casa do seu irmão. Não tinha hora exacta para fazer o ponto da situação. Kudret atendera e do outro lado da linha estava a prima, a filha do tio Baris, que lhe dissera aquilo que não queria ouvir. O tio Baris tinha falecido no Cromwell Hospital, em Londres, onze dias depois de ter sido submetido a um transplante de medula. A leucemia tinha-lhe sido detectada há quatro meses e em quatro meses acabara com ele. A família ficara destroçada e Kudret sentira que perdera alguém a quem devia muito. Fora aquele tio que lhe apresentara Musa Anter, mudara o rumo da sua vida e fizera dela uma mulher com outros valores.

Esse ano de 1992 trouxera-lhe um rol de más notícias, ao ponto de não conseguir recuperar de sucessivos choques emocionais. Quando recuperava de um abalo, logo deparava com outro. Um dos melhores amigos do tio, que fizera questão de estar no funeral, morrera assassinado poucas semanas depois. Era um fervoroso simpatizante do PKK e um subsidiário do partido, há muito perseguido pelo exército turco, e o regime não lhe perdoara. Esse triste acontecimento atordoara-a de novo. Outro rude golpe chegaria quase no final do mês de Setembro, abalando a sua força interior: Musa Anter fora atingido a tiro por um homicida desconhecido, quando circulava na região de Diyarbakir, no Sudeste da Turquia, e não resistira aos ferimentos. Falecera no dia 20 e deixara Kudret num profundo estado de sofrimento. «A minha vida mudou nesse ano. Aprendi muito com Musa Anter e recebi do meu tio uma herança, o PKK», comenta Kudret.

A rapariga mudara por dentro e por fora. Tornara-se outra pessoa. Desmazelara-se, engordara mais de dez quilos, já não soltava os longos cabelos negros, deixara de cumprir horários, arranjara um grupinho de amigos do mesmo género e parecia sempre obcecada com qualquer coisa. Os pais estranhavam-na, porque Kudret já não era a menina Kudret que tinha vergonha de ser curda.

A mudança dera-se seis meses depois de ter entrado para a universidade. Terminara o ensino secundário com boas notas e optara por um curso com que nunca sonhara em criança: Engenharia de Minas. Responsabilizara Musa Anter pela decisão e sonhava consigo a explorar o riquíssimo subsolo curdo. O pai tinha-lhe escolhido outras profissões - engenheira civil, engenheira informática ou mesmo médica, mas não lhe dera ouvidos e entrara para a Universidade de Istambul, em 1994, confiante que de lá sairia a saber tudo sobre minério.

No entanto, pela sua rebeldia e renitência, o mau humor do pai começou a azedar ainda mais. Cansada de perder três horas em viagens de autocarro e de barco para ir estudar, e outras tantas para regressar a casa, fizera tudo para o convencer a deixá-la mudar-se para a margem europeia do Bósforo, mas o seu pedido fora considerado absurdo e uma ousadia de adolescente. Uma filha solteira a viver sozinha era impensável para a família Baris. O pai preferira pagar-lhe o transporte numa carrinha particular, poupando-a às andanças demoradas em transportes públicos. «Detestava ir de carrinha. Os estudantes que lá iam eram todos filhos de ricos. Passavam o caminho a ouvir música, só comiam no McDonald’s e vestiam roupas de marca. Não tinham uma conversa de jeito», recorda. Passara a odiar gente da sua idade, com vícios que ela própria já tivera e cultivara. Os seus amigos eram outros.

«Onde está a Kudret Baris?», perguntaram dois rapazes que entraram na sala de aula da Universidade de Istambul. A porta estava aberta e tanto o burburinho que se ouvia como a desordem visível eram próprios de um final de teste, em que todos ficam para discutir o grau de dificuldade das perguntas. Os alunos daquela turma tinham terminado o exame de Técnica de Desenho do final do primeiro semestre e conversavam, em grupinhos, sobre as respostas que tinham dado. No meio da barafunda, Kudret ouvira o seu nome e imediatamente virara a cabeça em todas as direcções, procurando quem chamava por ela. «Kudret sou eu!», respondera, ao dar de caras com os rapazes. Um era estudante de Engenharia Informática e o outro de Geologia. Ambos tinham família no Curdistão. «És curda?», perguntaram-lhe sem rodeios, pois tinham a certeza das suas origens. No entanto, queriam que fosse ela a confirmar. «Sim, sou curda», respondera, convicta e sem pudor, e logo quisera saber o motivo por que a procuravam. «Nós temos uma lista de todos os curdos a estudar na universidade. Temos um grupo aqui dentro e precisamos de saber se o queres conhecer. Se quiseres, podemos falar.» Ela não hesitara nem duvidara dos intentos dos rapazes. «Claro que quero conhecer!», respondera, entusiasmada, como se lhe oferecessem um presente há muito desejado. Na verdade, o que mais queria era entrar para uma organização que defendesse os interesses do seu povo. Estiveram mais de duas horas à conversa.

Em pequenos cartazes, estrategicamente colados nas paredes da universidade, lia-se: «Biji Kurdistan! Biji azadi!» («Viva o Curdistão! Viva a liberdade!», em curdo) e «Kurt Gençligi Ayakta!» («Jovens curdos, acordem!», em turco). As frases em curdo e em turco despertavam a atenção de quem não estava acostumado a conviver com inscrições do género e também de quem tinha a intenção de as arrancar. Aquilo que para Kudret fora uma surpresa quando ali entrara passara a fazer parte das suas tarefas a partir do dia em que iniciara funções na estrutura. Escrevia e colava papéis nas paredes da escola, como se fosse o seu primeiro dever como estudante de Engenharia de Minas, e dedicara-se também a contactar outros estudantes curdos. Aceitara entrar no grupo e envolvera-se tão rapidamente que começara a oferecer quase toda a sua mesada, tal como o dinheiro que entretanto ganhara a dar explicações.

Kudret tinha todos os dias um programa diferente. Se não era uma reunião clandestina para falar de política e de religião, era um contacto que urgia fazer com alguém num café de Istambul. Se não era uma visita ao Centro Cultural, era uma manifestação de estudantes curdos na baixa da cidade, onde queria estar presente. «O meu pai andava cheio de medo. Um dia, num fim-de-semana, tentou fechar-me em casa, mas eu consegui sair», relembra como ousava desafiar o pai, desobedecendo-lhe, e como azoava a cabeça à mãe com constantes observações sempre à volta do mesmo tema. «Nós somos curdos, mãe! Somos curdos. Temos direitos. Porque é que nunca nos envolvemos nesta guerra, diga-me? Sabe? O pai só pensa em dinheiro. Sempre pensou apenas em dinheiro.» A mãe nunca desconfiara de que aquele interesse da filha pelo povo curdo fosse além de uma preocupação inconsequente e, por isso, enfadada, pedia-lhe que se deixasse daquelas coisas. O pai também não se apercebera de que andava envolvida com jovens activistas, apesar de a saber irrequieta e perturbada.

«Um dia fui a uma manifestação em Istambul, mesmo no centro da cidade, do lado europeu. Para cada estudante curdo devia haver dois mil polícias turcos. Eles eram tantos, tantos! De repente começaram a atacar-nos. Era gente a fugir por todos os lados. Também comecei a correr, mas caí e fiquei ali no chão, à espera que me batessem, como faziam aos outros. Ainda tentaram, mas o comandante não deixou. Tive sorte. Acho que foi por causa das câmaras de vídeo espalhadas pela cidade. Estava cheia de medo de que o meu pai me visse. Ele tinha aberto uma loja de peles na rua Beyazit, onde nos encontrávamos, e por pouco não fui apanhada.» Kudret lembra aquela tarde em que, por sorte, não fora espancada nem detida, como acontecera com mais de cem camaradas seus, que acabaram nos calabouços da esquadra.

Depois da dispersão da manifestação, aproveitara a oportunidade de estar perto da loja do pai e decidira-se a passar por lá, juntamente com os amigos que tinham ido com ela. Bastara-lhes atravessar a estrada. «A loja estava cheia. O meu pai tinha sempre imensos clientes russos que iam comprar casacos. Quando me viu, ficou admirado. Não era normal ir ali», recorda. O pai, surpreendido, quisera saber o motivo da visita inesperada da filha. Ela desculpara-se com um dia sem matéria para estudar. «Como não tinha nada para fazer, decidi vir visitá-lo com os meus amigos!», assim lhe respondera. Satisfeito com a surpresa, Ali Baris puxara de umas quantas notas que trazia no bolso das calças e entregara-as à filha. «Lembro-me como se fosse hoje. Perguntou-me se queria dinheiro para ir passear e eu disse-lhe logo que sim. Fiquei radiante. Saí dali com os meus amigos e fui com eles comprar roupa. Só comprei coisas para eles. Eram muito pobres.»

Entrara, definitivamente, no mundo da clandestinidade. Tudo o que fizera a partir daí fora pela calada. Sorrateira, chegara a aninhar-se umas quantas vezes junto ao aparador da sua sala de jantar para alcançar uns copos de chá que há muito queria oferecer a uns amigos da organização. Do roupeiro do seu quarto abarbatara camisolas e sapatos que, dias depois, vira envergados por camaradas seus. Até comida levara várias vezes, numa lancheira, depois de convencer a mãe de que o almoço servido na universidade já tivera melhor sabor. Aprendera a partilhar com os desapossados e, assim, descobrira a essência do Partido dos Trabalhadores do Curdistão.

Era de noite, alguém batera à porta. Uma, duas, três punhadas bem fortes e, segundos depois, abrira-se a portinhola. Por detrás da cortina que a vestia, estava uma mulher de cabeça tapada com um lenço semelhante aos de todas as outras mulheres da região. Espreitara de soslaio e, pela cara que fizera, percebia-se que não esperava visitas. Mostrara-se cautelosa e amedrontada. Do lado da rua vira seis homens que não pareciam nem militares, nem civis. Um deles era Rojhat. Há vários dias que andava com camaradas seus pelas aldeias do Curdistão a falar com o povo. Ausentara-se com um grupo pequeno, desde o pico das montanhas Munzur até quase ao sopé da serra, para conhecer uma realidade de que até então apenas ouvira falar. Era Verão e o tempo ajudara à jornada.

«Podemos entrar para falar consigo e beber um chá?», perguntara à senhora. Ela, atrapalhada com a presença daquela gente, desculpara-se dizendo que não valia a pena porque estava sozinha. Para o provar, puxara pela maçaneta da porta até a deixar entreaberta, mas esquecera-se de esconder uns pares de sapatos de homem que se avistavam da entrada. Rojhat dera por eles. Estava encontrado um motivo suficiente para entrar na casa, sem pedir licença. Fora direito ao quarto, seguido pelos outros dois companheiros. Um abrira o armário, o outro agachara-se para procurar debaixo da cama, o terceiro ficara na cozinha, enquanto os outros três permaneciam na rua a patrulhar as redondezas. A casa era pequena e em menos de dois minutos encontraram os donos dos sapatos. Eram seis, os homens que estavam escondidos.

«Porque estão aí?», perguntara Rojhat, ao mesmo tempo que tentava justificar a sua presença: «Não viemos fazer mal a ninguém. Só queremos conversar um bocado, está bem?» A mulher estava lívida. Os homens, enfezados e paralisados pelo medo, encostaram-se à parede do quarto sem que alguém lhes pedisse que o fizessem. «Tivemos medo. Estávamos a ver a televisão turca, a ouvir as notícias, e tivemos medo. Dizem que os guerrilheiros curdos só querem matar», respondera um deles.

Fora, justamente, instigado pelos boatos que circulavam que Rojhat e os companheiros deixaram o esconderijo nas montanhas Munzur e desceram até às aldeias da serra. Queriam saber o que pensavam as pessoas do povo sobre a guerrilha, uma vez que apenas viam televisão turca, ouviam rádio turca e liam jornais turcos quando estes lhes chegavam às mãos. A probabilidade de os recearem era enorme e não se enganaram. Mas, dez minutos depois de terem entrado naquela casa, estavam todos à conversa. O grupo apresentara-se e pedira a colaboração da família. Quisera saber se havia por ali perto soldados turcos. «Sim, aqui perto!», respondera um dos homens. «Eu quero saber tudo. Quero que me digam tudo o que sabem, mas quero a informação correcta, está bem?», pedira-lhe Rojhat, num tom cordial.

Pela primeira vez, pusera em prática uma das tácticas que aprendera durante o Inverno: oferecer para receber. Em troca das mensagens que lhe eram facultadas, impunha-se que oferecesse produtos de mercearia, sapatos e até dinheiro. A estratégia resultara e, em pouco tempo, conseguira controlar várias aldeias e dissipar a ideia que o povo tinha em relação aos guerrilheiros do PKK. «Passei o ano de 1994 a falar com gente, a conhecer o Curdistão. Fui quase sempre bem sucedido, mas, uma vez, tive de fugir à pressa de uma casa, porque quando lá entrei estavam a denunciar-me, pelo telefone, aos militares turcos. Escapei por pouco. Nós tínhamos medo deles, porém também sabia que eles tinham medo de nós», lembra Rojhat.

Amedrontada, Kudret apercebera-se de que as suas artimanhas já não conseguiam ocultar a verdade por muito mais tempo. O pai apenas precisava de ter a certeza, porque a suspeita há muito que a tinha. A filha reprovara o ano e envolvera-se numa qualquer organização curda. Disso não duvidava. Hoje, Kudret recua alguns anos e traz à memória esse tempo em que o pai a tentara dissuadir de enveredar por um caminho perigoso e inútil. «O meu pai descobriu tudo poucos meses depois daquela manifestação em Beyazit. Estávamos em 1995. Percebeu que eu tinha entrado para um grupo ligado ao PKK. Veio ter comigo com uma conversa que me fez logo desconfiar. Perguntou-me se queria ir com ele ao Cazaquistão vender peles. Eu nunca tinha vendido nada na vida!», recorda. Mas Kudret dissera-lhe que não lhe dava jeito algum e não queria perder a Newroz, a Festa do Ano Novo Curdo, no dia 21 de Março. O pai convencera-a a ir, garantindo-lhe que nesse dia já estariam em Istambul. Ela acreditara, mas a viagem pelo Cazaquistão ainda ia a meio quando, na Turquia, os curdos saíram à rua para comemorarem a data.

Há muitas décadas que a Newroz era considerada uma festa ilegal, de cariz simbólico. Celebrava a morte de um tirano que assassinara milhares de jovens curdos e bebera o seu sangue, na esperança de viver para sempre. Mas, nesse ano, as celebrações não correram bem, como não vinham correndo desde 1992, ano em que mais de cem curdos foram massacrados pelas forças turcas. Kudret soubera que, naquela tarde em que ela se encontrava no Cazaquistão com o pai, muitos curdos tinham sido presos em Istambul.

Regressara três semanas depois de ter partido, preocupada com a reacção dos camaradas. Abalara sem os avisar e, compreensivelmente, mostraram-se desiludidos com a sua evasão. Julgaram-na traidora desde a primeira hora e aceitaram a verdade apenas quando deixara de fazer sentido a palavra «abandono». No entanto, repetiram-se episódios como a viagem pelo antigo estado da ex-União Soviética, pois Ali Baris decidira convidar a filha para uma viagem a Londres alguns meses depois. Tinha intenção de a afastar de Istambul por mais uns dias, fazer contactos junto de alguns comerciantes e aproveitar para passar o Natal de 1995 na capital inglesa. O convite teria sido bem-vindo dois ou três anos antes, mas, naquela altura, não a conseguira entusiasmar. Estranhara a sua reacção. Se milhares de raparigas soubessem como desprezava aquela viagem, não duvidariam de que estava louca. Londres não lhe dizia nada e nada fazia mais sentido na sua vida do que a luta desigual em que se envolvera.

O avião aterrara no aeroporto de Heathrow à hora prevista. Kudret nunca dera um ar da sua graça durante a viagem. Saíra com má cara e chegara da mesma forma. Irritavam-na aquelas formalidades. Sentira o mesmo na viagem ao Cazaquistão: tudo aquilo não passava de uma perda de tempo. O pai seguia à frente e ela ligeiramente mais atrás. Recolheram a bagagem e dirigiram-se para a estação do Heathrow Express para apanhar o autocarro que haveria de os levar, em apenas quinze minutos, até Paddington, onde ficariam hospedados. Um hotel «bed and breakfast», recomendado por um amigo e cuja morada o pai levava escrita na agenda, fora a opção. A semana fizera-se de metro a partir dali. Ao final do segundo dia, Kudret descobrira que Londres tinha muito mais para oferecer do que apenas monumentos, galerias de arte, teatros e lojas. Tinha livrarias fascinantes com publicações preciosas e um centro curdo repleto de documentação sobre o seu povo. Entusiasmada, comprara dezenas de livros de bolso, enquanto o pai passara a tarde num qualquer pub do Soho, com um qualquer amigo que se mudara para a cidade. Embrulhara tudo no meio da roupa, entre a sua e aquela que comprara para oferecer à mãe, à irmã e à prima, filha do falecido tio Baris, e aguardara ansiosa pelo regresso à Turquia.

A viagem a Londres revelara-se mais proveitosa do que ela acreditara no início. Carregada de pequenos volumes, distribuíra-os pelos camaradas da organização, um dia depois de ter regressado a Istambul. Estava eufórica com o préstimo. Eram todos em inglês, mas isso parecera-lhe indiferente, apesar de não dominar o idioma. Fizera um esforço para os descodificar.

A simplicidade com que tudo, então, se passara, a partir dali, parecera-lhe um manifesto sinal de que as más notícias não tardariam a chegar. Se o primeiro semestre do ano correra sem sobressaltos, o segundo confirmara os pressentimentos. «A polícia prendeu dois amigos meus, estudantes da universidade e membros da organização. Apanhou-os e torturou-os quase até à morte. Um deles não conseguiu ficar calado e revelou o que a polícia queria saber: nomes. Ele disse o meu nome.» Kudret relembra o dia em que a sua identificação passara a figurar na lista da polícia turca.

Nunca sentira temor. Estivera sempre segura de que o medo não se escondia na sua sombra nem lhe seguia as pegadas, mas também sabia que a sensação de confiança absoluta tinha os dias contados. Ficara à espera do momento em que ele se fizesse notado. E, quando um dia o coração palpitou acelerado, fugiu. Enchera a mala com o indispensável, dissera adeus aos pais e aos irmãos e mudara-se para a casa de uns amigos. Saltitara de uma para a outra mais depressa do que a polícia. Quando os militares bateram à porta da casa dos pais, ela já não estava lá. Quando rondaram a seguinte habitação, já tinha passado por outras duas. Conseguira despistá-los sem nunca planear a fuga. Na universidade nunca mais fora vista e nas suas imediações também não. As debandadas fizeram com que a polícia lhe perdesse o rasto. E, onde quer que estivesse, o dinheiro chegava-lhe sempre às mãos. Ali Baris não tivera alternativa senão ajudar a filha, mesmo que desaprovasse um tamanho desvario.

Parara de caminhar. A claridade do dia podia atraiçoá-lo e não valia a pena arriscar a vida por mais uma hora a andar a pé. Havia mais de um mês que trilhava as montanhas curdas em direcção ao Iraque. Andava durante a noite, repousava durante o dia e, nessa altura, sentia-se a agonizar com dores em todo o corpo. Para além das pernas maltratadas, onde ainda estavam cravadas as balas, tinha a mão direita ferida, que pendurava ao peito com um lenço, o olho inchado do mesmo lado e enegrecido e a cabeça, golpeada, envolta numa ligadura. Todo ele era sofrimento. Por milagre, os militares turcos não o liquidaram durante um ataque diurno. Uma patrulha descobrira o local exacto onde o grupo se resguardara e investira intensivamente. Tanques e helicópteros fustigaram, então, a zona e abateram um número considerável de homens. Eram dezassete guerrilheiros, sobreviveram quatro. Rojhat fora dado como morto durante os dez dias que precederam o bombardeamento, mas conseguira encontrar outros combatentes, vários quilómetros à frente. Padecia quando se aproximara deles. Emagrecera, desfigurara-se e dera sinais de estar acabado para o combate. «Tens de ir ao Iraque. Precisas de um bom médico. Não podes ficar aqui, nesse estado!», comunicara-lhe o comandante, quando o vira esfarrapado por dentro e maltrapilho por fora. Perante aquela realidade, não tivera alternativa senão tentar chegar ao Curdistão iraquiano. Levara dois meses a atingir as montanhas e a juntar-se aos seus camaradas no Iraque. Só depois seguira de carro para Arbil, no norte do país, em direcção ao hospital onde seria acompanhado por médicos e enfermeiros curdos.

Arbil, Zakho e Dahuk eram consideradas cidades seguras. Os soldados de Saddam estavam impedidos de exercer acções militares nestas povoações, que faziam parte de uma zona de exclusão aérea, a norte do paralelo 36. A instituição desta área resultara de negociações entre a Turquia, a Inglaterra, a França e os Estados Unidos, quatro meses depois do fim da Guerra do Golfo, em Fevereiro de 1991.

O Iraque não aceitara o apoio que os curdos deram ao Irão durante a guerra Irão-Iraque, entre 1980 e 1988, e muito menos a rebelião que fizeram depois da Guerra do Golfo. Saddam, insatisfeito, começara a perseguilos, desencadeando um êxodo em massa de milhares de curdos do Norte do Iraque para o Irão e para a Turquia. Os turcos resistiam a absorver esses refugiados, receando que os campos criados para os albergar se tornassem focos de um nacionalismo militante. A solução encontrada passara pela criação de uma zona de exclusão aérea no Iraque, para onde retornara essa população.

Rojhat entrara no hospital de Arbil acompanhado por um militar iraquiano, que conhecera junto da guerrilha e que, tendo em conta o quadro de segurança da zona, apenas poderia estar ali para o ajudar. Não duvidara. Lá dentro, os médicos observaram-no, radiografaram-no e apresentaram-lhe um diagnóstico que impunha uma cirurgia com carácter de urgência, a fim de lhe serem retirados os projécteis há muito alojados nas pernas. Mas ele não chegara a fazer essa cirurgia. «Quando, nesse dia, voltei para a montanha, os turcos tinham entrado no Iraque. Montaram uma operação, juntamente com o Partido Democrático do Curdistão, e atacaram o povo curdo. Morreram milhares de pessoas.» A Celik Harekati (Operação Aço) está bem viva na memória de Rojhat, porque a operação conseguira pôr curdos contra curdos.

Era evidente a tensão entre o Partido Democrático do Curdistão (KDP), liderado por Massoud Barzani, e o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), liderado por Abdullah Ocalan. Barzani, que controlava a fronteira turco-iraquiana, acusava Ocalan de estabelecer bases militares dentro do Curdistão iraquiano com o objectivo de atacar a Turquia; e Ocalan acusava Barzani de não defender o povo curdo. «O KDP trabalhava por dinheiro e servia os interesses dos turcos. A Turquia chegou a financiar o partido. A estratégia era dividir para reinar», afirma Rojhat, indignado com uma política que acabara por desunir um povo.

«Só que aquela operação não correu nada bem para a Turquia. Morreram milhares de soldados. Conseguimos abater um helicóptero deles, apesar de estarmos mal munidos de armamento. Mesmo assim, não se renderam e enviaram mais de quinze mil soldados para as montanhas iraquianas. Até tinham preparado um ataque com uma bomba química, embora nós tivéssemos conseguido escutar as conversações via Walkie-talkie. Eu estava num grupo que capturou dois soldados turcos, a quem descobrimos seringas com droga. Lembro-me de que um deles me disse: ”Isto é para dar coragem, pá!” Por um lado, foi uma operação importante para a guerrilha, porque ganhou coragem; por outro, foi muito má porque tive de fazer guerra contra os curdos do KDP. Isso nós não queríamos!», recorda Rojhat.

A supremacia do PKK, a norte do Iraque, assumira proporções notáveis. Quase todas as cidades, antes controladas pelo KDP, passaram para o domínio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. «Mas os americanos não nos queriam lá. Exigiram a nossa retirada imediata da zona. O intuito era expulsarem-nos, definitivamente, para as montanhas. Ainda tentaram comprar camaradas meus, em vão. Nós ganhámos esta força com o nosso povo e não nos vendemos por nada», afirma, convicto, Rojhat Baz, ao mesmo tempo que faz questão de lembrar a evidente aliança entre a Turquia, membro da NATO, e os Estados Unidos da América. «Eles não nos largavam. No final de 1997 preparam outra operação, a Operação Tudo ou Nada, e entraram em Dohok, uma das cidades na zona de exclusão aérea. Eu vi dois aviões israelitas a sobrevoar a região, conheço-os bem! Foram quinze dias de guerra que nos obrigaram a retirar.»

A cidade de Arbil também fora atacada. O hospital onde Rojhat estivera, e de onde abalara com uma cirurgia marcada que não chegara a fazer, ficara vazio. O exército turco tomara conta do estabelecimento e executara enfermeiros e médicos curdos. «Eles apanharam o hospital e mataram toda a gente», confirma Rojhat Baz, que não encontra palavras para exprimir a revolta que sentira e ainda sente.

Dominada pela cólera, a guerrilha decidira responder em nome daqueles que tinham sido assassinados. Rojhat e outros combatentes do PKK montaram uma acção militar na ponte de Derelog, na região de Dahuk, por onde tinham a certeza de que os soldados turcos haveriam de passar. Foram rápidos e eficientes e, mesmo abraçados pela escuridão, não deixaram de preparar tudo ao pormenor. Depois de terem instalado o que havia para instalar, afastaram-se o suficiente para ficarem em segurança. Não conseguiam ver um palmo à frente dos olhos, apenas escutavam a dança do vento e a respiração de cada um. O silêncio jogara a seu favor. Mal os turcos se aproximaram, o ruído fizera o favor de os denunciar. Os guerrilheiros camuflados estavam à escuta e, no momento preciso, dinamitaram a ponte! «A ponte caiu e muitos homens morreram. Mas eu também fui apanhado, quando ia a atravessar a estrada para me juntar aos meus companheiros. Fui atingido por um M16 americano. Tinha andado apenas uns cinquenta metros e passava junto ao tanque das tropas turcas quando fiquei outra vez ferido nas duas pernas e na mão esquerda. Mesmo assim, consegui reunir-me logo ali com os meus camaradas. Depois, seguimos a cavalo para as montanhas», afirma Rojhat, que chegara mais uma vez ferido ao acampamento.

«Então ainda não morreste?», perguntara-lhe o comandante, surpreendido com a finta que voltara a fazer à morte, mas que o deixara pronto para entrar num hospital. O do campo de refugiados de Marmur fora tido como a única hipótese; no entanto, para lá chegar seriam precisos mais de dez dias a andar a pé. Não tivera outra escolha. Ou ficava ali a apodrecer, aos poucos, ou tentava continuar vivo. «Quando lá cheguei, foi uma grande confusão. Um médico dizia que conseguia tirar-me as balas das pernas, outro dizia que era muito complicado. Mas, depois de ter feito várias radiografias, lá entrei para a sala de operações e, passados quarenta e cinco minutos, estava a sair. Estava a sair da sala e do hospital. Não havia cama para eu lá ficar e tinha de me arranjar por outro lado», recorda. Em vez de regressar ao campo de refugiados, optara por pernoitar numa casa de gente de confiança, em Mosul, que o médico lhe indicara. Nunca o deveria ter feito. Ainda hoje se aflige por ter aceitado aquele convite.

Soara sempre vaga, a Kudret, a exposição de ideias que lhe chegara aos ouvidos sobre o Partido dos Trabalhadores Curdos. Os camaradas com quem convivera mostraram-lhe um caminho, mas não as veredas. Mostraram-lhe uma organização, mas não a orientação para a vida. É na Síria que Kudret sente o pulsar do partido. Cansada de andar escondida e de pedir albergue, encetara contactos directos com o PKK a partir de Mardin, na fronteira do Curdistão turco com a Síria, onde se encontrava há dois meses, depois de ter deixado Istambul. «Eu queria a liberdade, não queria estar hoje numa casa e amanhã noutra. Foi a partir dali que fiz o contacto com o PKK. Percebi que eles tinham uma boa organização, pedi-lhes para entrar e eles aceitaram.»

Preparara tudo para transpor a fronteira. Com um empurrão, acachapara na mala a roupa mal dobrada, que por estar desajeitada parecia muito mais do que realmente era. Certificara-se de que a quantia em dinheiro que guardara no bolso do blusão, que resultara das economias feitas graças às liras que todos os meses o pai lhe entregara, era suficiente para o suborno. Ajustara os atacadores dos sapatos vela que gostava de usar e partira decidida a ir ao encontro de um primo sírio com quem iria casar, mas que nunca tivera. «Saí de Mardin e fui até uma aldeia fronteiriça. Quando cheguei à fronteira, ainda do lado da Turquia, tive de dar dinheiro ao polícia. Disse-lhe que precisava de passar porque tinha casamento marcado com um primo, do outro lado, na Síria, e que ele estava à minha espera. Acreditou e deixou-me passar. Depois, já na Síria, foi mais fácil. Não tive problemas em entrar, porque ali também é Curdistão. Fiquei em Kamisla, desde o final de Dezembro de 1997 até aos primeiros dias de 1998. Nessa altura parti para Damasco.» Em Damasco, entrara definitivamente no PKK.

Com a admissão no partido, a sua vida passara a ter apenas o sentido ditado pelos princípios da organização. Não assumira isso como inevitável, mas como a razão da sua existência. Tudo o que fizera fora por dedicação a um povo de quem apenas se lembraram na hora de exterminar, queimar, torturar, escorraçar.

Os rigorosos horários impuseram a Kudret uma disciplina de que se desabituara desde que ingressara na universidade e começara a relacionar-se com o grupo de estudantes. Na academia, o regime não era conciliável com a flexibilidade e, como todos os outros, sofrera nos primeiros tempos com a severidade da alvorada, que era às quatro da madrugada. Depois certificara-se de que o corpo só tem os vícios que se lhe oferecem até na hora do despertar, porque, pouco tempo após a chegada, entrara no ritmo da instituição. Kudret estava na Matsun Korkaz Akademisi (Academia Matsun Korkaz).

Na fronteira, apresentava-se mais magra e perfilada, de uniforme liso, verde-azeitona, e com o cabelo enrolado, escondido debaixo da boina. Fizera a recruta durante os primeiros meses, mas, passada a instrução, nunca deixara de exercitar o corpo, como impõe o regime militar. Cumprida essa obrigação matinal, dedicava-se depois à aprendizagem. Devorava livros, convivia em harmonia com o saber. Hoje reconhece que na Matsun Korkaz aprendera tudo o que hoje sabe sobre estratégia, política, religião e história, história internacional e a conturbada evolução do seu povo.

A primeira referência histórica aos curdos data do ano 3000 a.C. nas escritas cuneiformes (em forma de cunha) dos sumérios (povo mesopotâmico cuja civilização floresceu entre cerca de 3500 e 2000 a.C.), que falavam da «Terra de Karda». Os relatos remotos dão conta de terem estado sob o domínio não apenas desta civilização, mas também dos acadianos, partos, babilónios, assírios, persas, romanos e arménios, que os escravizaram. Para fugirem aos impiedosos impérios, esconderam-se nas montanhas e nas regiões mais inóspitas. Nascera, motivada por esta fuga, uma sociedade tribal de pastores, na Ásia Central, imbuída do espírito guerreiro que ainda hoje a caracteriza. No século VII, os árabes tomaram conta da região e converteram os curdos ao islamismo, impedindo-os de desenvolver valores nacionalistas, que apenas conseguiram instituir três séculos mais tarde, quando se deu a retirada árabe. Mas o destino do povo curdo parecia estar escrito. As tribos turcas tomaram conta do Curdistão e no século XIII fora a vez dos mongóis, que, duzentos anos mais tarde, deram lugar ao Império Otomano. Durante o domínio otomano, a população curda optara pelo nomadismo e dedicara-se ao pastoreio e à agricultura nas planícies da Mesopotâmia e nas cordilheiras turcas e iranianas. Mas, com o colapso deste império, no final da Primeira Guerra Mundial, os curdos ficaram divididos em diferentes estados. Fora o Tratado de Sèvres, em 1920, que pusera fim ao domínio otomano e criara o Iraque, a Síria e o Kuwait, tendo sido considerada a hipótese de também constituir o Estado curdo. Isso fora apenas um sonho que se esvanecera ao final de três anos, quando o líder Mustafa Kemal Ataturk subira ao poder, na Turquia. Começara, com Ataturk, uma nova era de perseguições aos «turcos das montanhas», como se designara. Proibira-os de, por exemplo, vestirem os seus trajes tradicionais e falarem a sua língua. Até hoje, a Turquia não reconheceu o Curdistão como um estado, tal como não o fizeram nem o Iraque, nem o Irão, nem a Síria, os seus países vizinhos. Ao longo das últimas décadas, estes países têm vindo a empurrar e a fazer desaparecer um povo que ainda conta com trinta e seis milhões de pessoas a habitar uma região com dimensões semelhantes às da Alemanha e da Grã-Bretanha juntas, da França ou do estado americano do Texas. Os achados arqueológicos encontrados na região do Curdistão demonstram que o nascimento da agricultura, a domesticação de animais e o aparecimento da metalurgia e das tecnologias domésticas aconteceram nas montanhas da Ásia Central.

Kudret surpreendera-se com tudo o que passara a saber sobre a história da sua gente, desde que chegara à Academia: «Reflecti muito sobre o que está certo e o que está errado. Nós pertencemos a um povo com muitos problemas e isso faz-nos pensar! Também aprendi tudo sobre a ideologia do PKK. Aquela academia era muito boa. Vinham curdos de todo o lado para aprender. O líder Ocalan ia lá ensinar, mas teve de fugir em 1998.»

Rojhat recorda a noite em que tivera intenção de repousar numa casa de gente curda, indicada pelo médico do hospital de Mosul, mas onde não chegara a descansar, porque a tropa iraquiana viera ao seu encontro: «Eu pressentia qualquer coisa! Ouvi bater à porta e olhei pela janela. Comecei a fugir. A casa tinha divisões com passagens de umas para as outras e, assim, cheguei até ao jardim. Quando estava fora, já eles estavam dentro. Sei que andaram à minha procura. E, quando me apercebi, tinham cercado a casa. Atirei, mas sei que não matei. Tinha um revólver e catorze balas. Disparei-as todas.»

Cá fora, já sem munições, tivera de se render aos militares de Saddam que não estavam ali por engano. Era mesmo Rojhat que procuravam. Algemaram-no, vendaram-lhe os olhos, enfiaram-no num carro, puseram a viatura a trabalhar e arrancaram, sem que lhe tivessem dito para onde o iam levar. Percorreram alguns quilómetros, mas não conseguira calcular quantos. Percebera, entretanto, que tinham parado. A porta do carro abrira-se e ele saíra, com a ajuda de um empurrão. Notara, naquele instante, por uma nesga da venda que lhe tapava os olhos, que estava junto a uma enorme torre de comunicações. Fora a única imagem que registara, todas as outras não passaram de negro. Entrara num edifício e depois num elevador. Descera vários andares; a tensão não permitira que se concentrasse o suficiente para saber se eram dois, três ou mais. Lá em baixo ecoava, mas descobrira-o apenas pelo ranger das portas e pelos passos, e não pelas vozes, porque até ali ainda ninguém tinha falado com ele. Deduzira que o tinham enfiado num qualquer calabouço, mas, quando lhe tiraram a venda, dera-se conta de que estava numa sala com Saddam Hussein à sua frente. «Um deles destapou-me os olhos e exclamou: ”Surpresa!” Vi à minha frente, pendurada na parede, uma fotografia de Saddam. Nessa altura, começaram a falar comigo em árabe e eu disse-lhes que não falava árabe, mas turco ou curdo. Chegou, então, um soldado que falava curdo. Conheci-o: era o homem que me tinha levado até ao hospital de Arbil, o soldado iraquiano. Perguntoume: ”Então, porque não foste para a montanha? Sabemos que tens um plano contra Saddam.” Fiquei espantado e disse-lhe que não conhecia Saddam e que não ia atacar nada nem ninguém.» Rojhat recorda os minutos que antecederam os dolorosos e humilhantes momentos que vivera.

Mentira-lhes. A guerrilha planeara realmente um ataque contra o Iraque, mas a espionagem conseguira fazer abortar a operação. E, quando ele pensava na forma como o tinham apanhado nas malhas do regime de Saddam, os iraquianos deram-lhe as boas-vindas e perguntaram-lhe se queria conhecer melhor a prisão. Rojhat respondera-lhes que não e dissera-lhes também que nada o amedrontara até ali e que, portanto, não haveria de ser a tropa iraquiana a consegui-lo. Mostrara-se inabalável e provocador, ao dizer que viera para aquela guerra para morrer e que, se fosse preciso, poderia estar ali dez anos. Era-lhe indiferente, porque não tinha família. «Assim vais arranjar problemas aqui no Iraque!», garantira-lhe a polícia.

Rojhat começara a perceber que era, realmente, o tudo ou nada e, para o provar, tirara do salvar (calças cortadas de modo a sobejar muito tecido entre as pernas) uma granada, puxara da cavilha e ficara com a munição na mão esquerda e o fecho na mão direita. «Eu posso matar-te. Tenho esta granada na mão, mas dentro de sete segundos, se a abrir, podemos morrer os dois. Eu, não tenho medo de morrer! Tu, não sei!», recorda as suas palavras naquele momento. E continua o relato: «Lembro-me de lhe ter dito qualquer coisa do género: ”Eu não sou um palhaço. Vocês apanharam-me, mas eu quero ser um preso normal.”» Depois de impor as suas exigências, levara a mão direita ao encontro da esquerda e voltara a tapar a granada.

Dera por si perdido no tempo. Descontrolara-se e deixara de perceber se já tinham passado cinco, seis, sete dias desde que chegara. Para si, as manhãs, as tardes e as noites sucediam-se sem que desse por isso. Era precisamente o que os iraquianos pretendiam. A tortura iniciara-se com a entrada na cela. Agachara-se, a ponto de ficar com metade do seu mais de metro e oitenta, e, de cócoras, pusera-se lá dentro. Não tivera ilusões, ao olhar à volta. Teria de sobreviver num espaço com um metro e meio de comprimento, sessenta centímetros de largura, três metros de altura, sujo, húmido e farejado por ratazanas. Dobrara depois os joelhos e ficara de pernas flectidas e com o tronco encostado à parede. Inclinara o pescoço para trás e tocara com a nuca na cervical para poder ver por onde saía aquele ar frio e onde estava a lâmpada que nunca apagavam. O ar vinha de um ventilador e a lâmpada estava instalada na parede do topo. Habituara-se. Nunca tivera direito nem a colchão, nem a mesa, e a comida miserável que lhe serviam num pires, enfiava-a na boca com as mãos, antes de vomitar, agoniado com o que via e engolia. Os ruminantes rondavam-no. E, sempre que necessitava, era de um balde repugnante que se socorria.

«Não sei quanto tempo depois, recebi a visita do tal soldado que conheci na guerrilha. Ele veio ter comigo à cela. Quando saí, taparam-me os olhos e meteram-me numa sala. Depois tiraram-me a venda e trouxeram-me comida. Entretanto chegaram uns dez soldados armados com kalashnikovs. Um deles, muito gordo, começou a perguntar porque é que eu era guerrilheiro, há quantos anos era e quem era o meu chefe.» Rojhat não quisera falar. Apenas lhes dissera que tudo o que queriam saber estava na Internet e que ele era um guerrilheiro e não o responsável.

Saddam estava disposto a comprá-lo. Oferecia-lhe casa, dinheiro, duas ou três mulheres em troca dos seus préstimos. A dádiva não o convencera. «Eu não quero trabalhar com vocês!», deixara claro. Mas a tortura começara ali. «Despiram-me e começaram a agredir-me com jactos de água. Depois deram-me choques eléctricos na língua, nos pés, nas orelhas... Em todo o lado. Vi um relógio que marcava dez horas, mas não sabia se eram da manhã ou da noite. Diziam que tinha de chorar, mas eu não chorei. No final daquilo tudo, admitiram que me tinham feito um teste e que eu tinha muita força e coragem. Disse-lhes que, mesmo que me cortassem as mãos e as pernas e me arrancassem os olhos, voltaria para a guerrilha.» Percebe-se que tem a voz embargada quando fala deste assunto. Parece que ainda lhe dói o corpo. Contorce-se no sofá, gagueja e envergonha-se de contar tudo o que fizeram com ele, dias e dias seguidos, semanas e meses consecutivos.

Prestes a atingir o estado de exaustão, Rojhat pedira para falar com o polícia iraquiano que ele conhecia. Surpreso, o militar recebera-o, pensando que Rojhat tinha recuado e considerado a hipótese de trabalhar para o regime. Mas este deixara claro que não valia a pena voltar a falar do mesmo assunto e lembrara o episódio da granada. A conversa, entre os dois, decorria numa sala com dois guardas armados à porta. Estavam sentados a uma mesa, o polícia refastelara-se num dos topos e Rojhat deixara cair o corpo dorido numa das cadeiras laterais, quando o guarda puxara por ela, para que ele se sentasse. Estava numa posição ideal para pedir um cigarro e para aceitar lume e fora isso que fizera. O polícia dera-lhe um cigarro e depois esticara o braço na direcção de Rojhat, já com o isqueiro na mão e na posição de o acender. Nesse instante, o guerrilheiro levantara-se, levara a mão ao interior das calças, enfiara-a pelo cós traseiro abaixo e, quando voltara a descobri-la, trazia a segunda e última granada que conseguira esconder no salvar até àquele momento. Agredira-o na cabeça com o explosivo, apenas com um impulso. A cena assemelhara-se à do dia em que entrara na prisão, só que o projéctil era outro.

«Nós vamos morrer juntos aqui! Vai chamar os responsáveis, já!», impusera Rojhat e exigira, de seguida, que os guardas lhes dessem as kalashnikovs. Com a mão esquerda pegara nas armas, porque tinha a direita ocupada com a granada, e com o pé verificara se tinha munição na câmara. Não tinha. Desenvolto, conseguira depois puxar a culatra atrás e armara a espingarda. Os guardas, assombrados com o que acabavam de ver, saíram para irem chamar o responsável, que chegara em menos de um minuto.

«Eu não fiz nada! Não quero ficar aqui!», exclamara, exaltado.

Depois tranquilizara-os, dizendo que não pretendia matar ninguém e apenas queria voltar para a montanha. «Apanho um táxi e sigo para a montanha, ok? Até posso morrer aqui com vocês, mas o que quero é morrer como guerrilheiro, entendem?» O director da prisão parecia entender e mostrara-se disponível para saber o que é que ele queria, exactamente. «Quero que as torturas acabem já, quero comida melhor e que me digam quando vou sair. Se é daqui a dez, quinze ou vinte anos», esclarecera. Nesse instante, alguém a falar árabe batera à porta. Era o comandante-chefe da região que entrara armado, mas pousara a espingarda e sentara-se em frente a Rojhat, depois de ele o impor. Decidido a conseguir alguma coisa com aquele acto de coragem, estendera o braço direito e entregara-lhe a granada que tinha tirado de dentro das calças. Destemido, dissera-lhe que, se quisesse, podia matá-lo, ali e naquele momento. O comandante, aparvalhado, mostrara tudo menos autoridade. Estava estupefacto, trémulo, ofegante e suava da cabeça aos pés. «Nunca vi ninguém como tu, com tanta coragem. Tens de ficar connosco, tens de trabalhar para nós», dissera-lhe. Mas o pedido tivera, por parte de Rojhat, a mesma resposta de sempre: um «Não!», que soara estridente.

A partir desse dia, as torturas abrandaram, mas a comida mantivera-se intragável. Conseguira, no entanto, aproximar-se de um guarda que descobrira ser curdo, quando este o levara para tomar banho. Começara a relacionar-se com ele, porém sem nunca confiar na sua palavra. «Um dia, pedi-lhe que me fosse comprar tabaco. Disse-me que durante o dia não podia fazer nada, mas durante a noite talvez fosse possível. Tinha quinhentos dólares escondidos entre a sola e a palmilha das botas, desde que entrei. Tirei cem e entreguei-lhos. Esse guarda ia buscar-me muitas vezes à cela e, por isso, começámos a conversar muito.»

«Chega aqui! Chega aqui!», dizia Rojhat por entre os dentes, mas de modo a fazer-se ouvir nos corredores dos calabouços. Encostara a boca à porta de ferro, pusera as duas mãos no chão e, de gatas, começara a falar para alguém que estava lá fora. Alguém que falava curdo, mas que não era o guarda, porque conhecia muito bem a sua voz. Era alguém com a pronúncia da zona de Marmur e que acabara de ser libertado. Em vinte segundos pedira-lhe que dissesse, no campo de refugiados de Marmur, que o guerrilheiro Rojhat Baz estava ali preso. «Ele disse-me: ”Ok, não te preocupes!”» Ficara à espera, mas a mensagem tanto poderia chegar a Marmur como morrer à saída da prisão.

Sentira-se a desesperar, embora nunca tivesse dado a entender as suas fraquezas. Um dia, pedira ao guarda curdo que o levasse a ver o Sol e respirar ar que não o da masmorra. Ele aceitara. Subiram por entre os caixotes do lixo e, nessa altura, começara a contar os andares. Dera-se conta, então, da profundidade a que estava a cela onde o encafuaram: eram sete pisos abaixo da terra. No rés-do-chão, tudo lhe parecera uma visão que julgara nunca mais conseguir ter. Não vira o Sol, mas as estrelas, porque a noite há muito tinha caído. Jamais o guarda arriscaria uma escapadela diurna. Nos breves instantes que o guarda ali o deixara ficar, Rojhat admirara o céu e enchera o peito de ar como se o conseguisse armazenar para uma outra ocasião. Desceram os dois tão depressa como subiram.

«Queres beber chá?», perguntaram-lhe, alguns dias depois de ter ido ver as estrelas. Mas a amabilidade trazia novidades. Nunca lhe tinham oferecido chá até àquele dia. Aceitara e levara à boca o copo de vidro igual ao do polícia que estava à sua frente, o mesmo que lhe tinha feito a pergunta. Bebera um golo e ainda a infusão ia na traqueia quando ouviu: «Tens de te ir embora!» Rojhat não se engasgara, mas sentira um espasmo no abdómen. «Tens de sair hoje. Não te podemos dizer para onde», continuara o polícia. Das duas uma: ou saía para morrer ou saía ao encontro da liberdade.

«Subi o elevador e entrei num carro de olhos tapados. Lá dentro tiraram-me a venda. Era uma viatura sem janelas. Percorremos uns quilómetros e, quando o carro parou, voltaram-me a tapar-me os olhos. Andei uns cem metros até chegar a um edifício. Aí, já numa sala, tiraram-me outra vez a venda. Pensava que ia ver o Sol, mas era de noite. Depois de ter ido à casa de banho e me terem oferecido um maço de cigarros, chegaram uns militares à civil, armados, que me disseram: “Vamos! Depois dizemos-te para onde!”»

Saíra num jipe Toyota de cor branca. Vira tudo. A prisão ficara para trás e, a partir dali, já não consideravam perímetro secreto. Precisaram de duas horas para chegar ao controlo iraquiano, na fronteira com a Síria. Quando pararam, um soldado dissera-lhe: «Ali tens uma organização curda.» E apontara com o braço na direcção do país vizinho. «Eu não queria ir para a Síria, queria ir para as montanhas iraquianas. Não conhecia ninguém lá. Mas tive de ir. Andei dois quilómetros a pé até chegar a uma ponte. Tinham-me deixado numa zona com guerrilheiros do PKK», relembra.

O cabelo e a barba estavam longos e sujos, pois nunca tinham sido cortados, envergava vestes miseráveis e esfarrapadas e dele emanava um cheiro pestilento por falta de água. Sentia-se podre e molhado. Suava com dores e também devido ao calor excessivo. Batera a uma porta muito tempo depois de ter passado a ponte, mas ninguém a abrira. Tentara a sorte, novamente, dizendo que era um guerrilheiro do PKK e que tinha estado preso durante dois anos. Nessa altura, alguém, cuidadoso, puxara a maçaneta devagar e, admirado com o que vira, dissera-lhe: «Você não é soldado!» Rojhat confirmara que naquele momento não era, mas podia dizer muitos nomes de guerrilheiros para confirmarem que dizia a verdade. E começara a lançar nomes. «Conheço esse!», exclamara o homem com quem falava.

Kudret encontrava-se na cidade de Halep, na Síria, desde Maio de 1999. Deixara Damasco, a capital, e fora levada para uma casa da Academia Matsun Korkaz, para se dedicar ao ensino especial das mulheres do PKK. O papel da mulher nas sociedades curda e turca, onde crescera, fora sempre uma das suas preocupações. Nunca se conformara com as restrições que lhe eram impostas e revoltara-se ao perceber que uma solteira tem menos valor do que uma casada. Por vezes, perturbava-se com a imagem insignificante da mulher e o desprezo a que era sujeita no momento de tomar decisões. Decidira reflectir sobre isso e escrevera a «Kadin Deurimi - Yekitiya Azadiya Jinen Kurdistan» («A Revolução da Mulher - União para a Liberdade da Mulher do Curdistão»). Não estivera sozinha na criação desse tratado: vinte outras jovens mulheres foram também responsáveis pelo livro. «Fizemos pesquisa sobre a história da mulher desde o Neolítico, passando pelo tempo da escravatura, até aos dias de hoje. Descobrimos novas ideias e criámos este livro, que é o caminho para todas as gerações. Quando terminámos, algumas regressaram às montanhas do Curdistão e outras fugiram para a Europa. Eu fiquei na Síria, em Afrin, onde dei aulas às crianças curdas. Ensinava a nossa língua, ajudava jovens a entrar no PKK e angariava dinheiro para a organização. Fazia de tudo um pouco», recorda.

As tarefas que lhe tinham atribuído deixaram-na satisfeita, até ao dia em que tomou conhecimento da notícia que fizera vacilar o Partido dos Trabalhadores Curdos e acabara por abater Kudret e abalar o seu entusiasmo: o líder Abdullah Ocalan tinha sido capturado pelas forças especiais turcas na embaixada da Grécia em Nairobi, no Quénia, e levado para a Turquia. Ocalan chegara a andar pela Rússia e por Itália, durante vários meses, e acabara por ser detido em África. Não sabia o que ia suceder a partir desse momento, porque ainda era demasiado cedo para se encontrar uma resposta.

«Toma, trouxe para ti!», dissera-lhe a mãe, ao retirar da mala uma fotografia que escondera dentro de um envelope, que, por sua vez, entalara entre duas páginas do Alcorão. Era uma fotografia de Ocalan, que ela tinha trazido de Istambul propositadamente para dar à filha, no primeiro encontro das duas, depois de mais de um ano de separação. A mãe de Kudret arriscara uma visita à Síria, alegando que tinha lá uma filha casada com um sírio que há muito não via. A passagem na fronteira correra bem e voltara, confiante, alguns meses mais tarde, para uma segunda visita. Mas não fizera mais nenhuma a partir do dia em que tentara regressar à Turquia e fora apanhada pelo controlo.

«Ah! Foste visitar a tua filha. Então porque não lhe dizes para voltar para a Turquia? É aqui que ela deve estar!», exclamara o polícia para a mãe de Kudret. Atemorizada, apenas era capaz de proferir: «Eu digo, eu digo, mas ela não vem!» A desculpa da mulher não contrariara as intenções da autoridade, que acabara por detê-la durante dois dias. Kudret entendera a prisão da mãe como um alerta para si própria. Não tinha condições para se manter na cidade de Afrin e fugira para Damasco, convicta de que a polícia já conhecia o seu paradeiro. Pedira ao partido para começar a trabalhar como enfermeira, no hospital da Academia, na capital da síria. Aprendera muito sobre primeiros socorros durante o tempo em que estivera na Academia Matsun Korkaz e, por isso, não temera a nova função.

«Pensávamos que tinhas morrido», dissera a Rojhat um dos camaradas, emocionado e com os olhos encharcados em lágrimas que teimavam em soltar-se, embora tentasse sustê-las. Era um dos camaradas de Rojhat, um guerrilheiro que encontrara quando batera à porta de uma família curda, na Síria, depois de ter sido largado pela polícia iraquiana junto à fronteira; o chefe da casa mandara chamá-lo. Ele e três amigos de Rojhat encontraram um homem emagrecido, quase esquelético, parecendo por isso ainda mais alto, com as feições alteradas e a pele despida de qualquer sinal de saúde; em suma, um homem doente e faminto. Suspeitaram que não saboreava uma refeição em condições desde que fora apanhado e, por isso, levaram-lhe um farnel, que devorara, sôfrego, quase ao ponto de asfixiar.

«Tens de sair desta casa, tens de ir para um lugar mais seguro», sussurrara, ao ouvido de Rojhat, um dos camaradas. Ele entendera, de imediato, que aquela não era gente de confiança e, três horas depois de ter entrado, saía. De carro, deslocara-se com o grupo para uma aldeia próxima e seguira em direcção a uma casa onde não teria problemas, mas um quarto vazio para o albergar, como todas as casas curdas costumavam ter. Ali ficara, mas os quatro amigos, não.

Um prurido em todo o corpo agitava-o. Para aliviar o incómodo, coçava-se, com violência, até deixar a pele em ferida. Pedira para tomar um banho. Precisava de sentir a água correr-lhe abundante pelo corpo, e não racionada a quatro ou cinco litros, que mal davam para enxaguar o cabelo. Depois do duche, caíra exausto e dormente. Dormira durante dois dias seguidos e acordara a arder com febre e inchado. Tinha borbulhas no peito, nas costas, nos braços, nas pernas, em todo o lado. Sentia-se infectado. As pulgas não o tinham largado durante o repouso e a pele começara a dar os primeiros sinais de fragilidade por ter estado privada de luz. Passara a ser acompanhado por médicos curdos, no hospital da Academia Matsun Korkaz, em Damasco. E, ao mesmo tempo que cumpria os tratamentos prescritos, reiniciara funções na guerrilha. «Cheguei a ir buscar doentes ao Iraque para transportar para a Síria, ou a transportar combatentes da Turquia para a Síria», relembra.

Seis meses depois de ter recomeçado a trabalhar, sentira-se novamente vencido pela doença. O seu sistema imunitário fragilizara-se e deixara de o proteger de possíveis infecções. O problema de pele agravara-se e o seu estado febril era constante. Fora internado e assistido no mesmo hospital. Já não era o mesmo homem.

«Mas o que é isto? O que me está a acontecer?», interrogara-se. Nunca antes tivera essa sensação, quase patética, de corar sem lhe dirigirem palavra, de notar o coração bater descontrolado, de se desajeitar a fazer um penso ou a dar uma injecção. Tanto deixava cair uma seringa, como lhe escapava das mãos um tubo de pomada ou um frasco de comprimidos. Kudret admirava-se consigo e com a estranha reacção que o seu corpo nunca tivera até aos vinte e oito anos: «Não pode ser, isto não é possível!»

Naquele dia de 2002, vários feridos do PKK tinham chegado ao hospital da academia. Entre eles, um guerrilheiro febril, infectado com tifo e com varicela, quase a delirar, chamado Rojhat Baz. Kudret Baris ficara incumbida de lhe prestar os cuidados primários. Era ela quem se aproximava da maca no momento de lhe administrar a dose de antibiótico, era ela quem lhe controlava a temperatura do corpo, era ela quem lhe media a tensão arterial. Sentia-se retraída e incomodada sempre que se aproximava do doente que mais a preocupava em toda a enfermaria, não porque corresse perigo de vida, mas porque ele estava a pôr em perigo a sua. Tentara negar o que se passava consigo e arranjara artimanhas para desculpar os trejeitos absurdos. Por mais que tentasse desvalorizar o seu comportamento, não havia volta a dar: estava apaixonada.

Rojhat já não recordava a última vez que estivera assim tão perto de uma mulher. Nas montanhas, nunca se cruzara com uma, a não ser com as aldeãs curdas que lhe abriram a porta de casa, quando decidira conhecer a sua gente. De resto, nunca mais falara com uma mulher. Kudret não lhe era indiferente e o seu comportamento delicado e comprometido tocara-o, quando a temperatura e o estado clínico começaram a estabilizar.

Ambos sabiam que o sentimento não era motivo de orgulho, apesar de o terem encontrado de forma inesperada. Conscientes, evitaram falar um com o outro, do amor que os unia, na esperança de acordarem salvos e até imunizados, para sempre. «Eu não aceitava!», relembra Kudret, quase envergonhada. «Eu não podia nem queria!», recorda, tímido, Rojhat, que tentara enganar-se a si próprio. Ele sabia, pelos médicos, que nunca mais poderia voltar a ser guerrilheiro devido à fragilidade física e psicológica em que se encontrava. No entanto, apesar de inábil para andar nas montanhas, não queria deixar o partido, tal como não tinha essa intenção a mulher que passara a amar. Mas o inevitável acontecera.

Kudret recorda a difícil decisão que tomaram: «Um dia, fomos falar com o comandante e dissemos-lhe que tínhamos de deixar o PKK.» A reacção não fora a melhor, mas também não os surpreendera: ele não aceitara. O casamento entre guerrilheiros não era permitido pelo partido, e apenas saindo da organização seria possível uma vida a dois, incompatível com a entrega absoluta e incondicional à organização. Fugir ao destino feria-os tanto como fugir do partido. Mas tinham de se decidir. Desertaram por amor.

«Um dia, à noite, decidimos fugir. Deixámos o hospital e fomos para um hotel em Damasco. O Rojhat telefonou à família dele e alguns familiares foram ter connosco à Síria. Arranjaram-nos dois bilhetes de identidade falsos e seguimos de autocarro. Passámos para a Turquia ilegais, pelo mesmo sítio onde eu tinha entrado na Síria, em Mardin. Depois, seguimos, também de autocarro, para a zona de fronteira entre o Curdistão turco e Istambul», lembra Kudret.

Chovia torrencialmente e o tempo agreste afastara a polícia turca do posto de controlo. O caminho apresentara-se livre e o casal seguira para a metrópole sem ter sido incomodado com interrogatórios nem verificações de identidade. «Chegámos a Istambul e fomos ter com a família de Rojhat.» Rojhat começara a sentir-se inquieto só de pensar que ia reencontrar os pais, depois de ter estado tantos anos desaparecido, depois de ter abandonado a mãe sem a sua bênção e de ter ignorado o pai no momento de fugir. Almejava profundamente aquele reencontro e a notícia que então recebera deixara-o perturbado e indescritivelmente infeliz: o pai tinha morrido. O senhor Baz falecera dois dias antes de o casal ter chegado a Istambul e o filho não conseguira ir a tempo de lhe dar um beijo.

Kudret também se decidira a ir visitar a sua família, mas não estava à espera da indiferença com que fora recebida. Fizera-se acompanhar por Rojhat, o seu futuro marido, porém acabara por perceber que estava perante uma inglória tentativa de remar contra a prepotência. Os pais não aceitaram a escolha da filha, que, desgostosa, tentara falar com o pai; em vão, porque ele não quisera conversar sobre o assunto. «Ficámos, então, em casa de uns primos de Rojhat, em Istambul.» Mesmo rejeitado pelos Baris, o casal fora capaz de gozar algumas semanas inesquecíveis e desfrutar de uma relação ainda pouco madura. Porém, as preocupações não tardaram. «O que vai ser da nossa vida? Até quando existirá esta felicidade falsa? Não podemos estar escondidos, para sempre, em casa da nossa família. E quando tivermos um filho, como vai ser?», interrogara-se Rojhat. Fugir para a Europa parecera-lhe a alternativa mais viável e Kudret concordara.

«A minha família conhecia alguém que fazia passaportes falsos. Essa pessoa pertencia a uma rede com ligações à chefia do aeroporto e à polícia. Levou três mil euros por cada passaporte e mais dezoito mil pelos dois vistos turísticos para Portugal, que foram pedidos na embaixada portuguesa em Istambul. Demoraram um mês», relembra Rojhat. Por questões de segurança, ele passara a chamar-se Abdulkadir e ela, Ozlem Kartal, ambos nascidos em Istambul. Com uma nova identidade e o caminho livre para seguir até Portugal, o casal começara a preparar a partida. Primeiro, adquirira dois bilhetes na Turkey Airlines, com escala em Frankfurt. Depois Rojhat comprara um fato completo azul-escuro, uma camisa branca e uma gravata às riscas diagonais, em tons de vermelho e amarelo. Kudret fora ao cabeleireiro, um dia antes de fugirem de Istambul, para mudar de visual; cortara mais de dois palmos à longa cabeleira negra, desgrenhada e maltratada com que chegara da Síria e, aconselhada pela profissional, mudara de tom de cabelo. Deixara o salão com o cabelo pintado de castanho-claro, alindado por madeixas louras, esticado atrás mas ligeiramente enrolado para fora, na parte da frente.

«Sei que era um fim-de-semana de Fevereiro de 2002, não me recordo do dia. Lembro-me de que saímos de Istambul para apanhar o avião em Ankara, onde dormimos uma noite antes de irmos para o aeroporto. Fizemos o check-in três horas antes de partirmos e seguimos para a zona de controlo», recorda Kudret. A bagagem seguira aos tombos sobre o tapete rolante, ficava a faltar o casal. A garantia de que tudo ia correr sem sobressaltos, nenhum deles a tinha. No caso de um vir a ser interceptado pela polícia e impedido de prosseguir caminho, o outro seguiria o seu destino. Era o plano.

Estavam desassossegados e sentiam a inquietação perfurar-lhes o corpo como se fossem estilhaços lançados com violência. Disfarçavam a ansiedade percorrendo, lado a lado, o corredor que dava acesso ao controlo policial, antes de passarem para o terminal, a partir do qual haveriam de chegar à porta de embarque. Temiam que a aflição fosse demasiado evidente, mas, para quem estivesse a observá-los, não revelavam um único sinal que pudesse levar à suspeita. Kudret, elegantemente vestida, penteada e maquilhada, ostentando um cordão de ouro e sete escravas no pulso direito, parecia tudo menos uma guerrilheira. Rojhat transformara-se num distinto homem de negócios. Valeram-lhe os tempos em que estivera à frente da empresa do pai; mais que não fosse aprendeu a saber o que era ter dinheiro no bolso. Assumiram a pose de um casal de jovens turcos, bem apessoados, filhos de famílias afortunadas, abastadas o suficiente para fazerem viagens de avião e férias no estrangeiro. Assim confiantes, chegaram ao controlo.

«Mostrámos o passaporte e os bilhetes. Eu ia à frente. O polícia perguntou-me para onde ia e por quanto tempo. Disse-lhes que por dez dias. Ele confirmou o regresso porque tínhamos comprado bilhetes de ida e volta e, depois de os ver, deixou-me seguir. Kudret estava atrás de mim; quando chegou a sua vez, perguntou-lhe qual era a sua morada. Ela não se atrapalhou e deu a morada do meu primo. O polícia confirmou, mas perguntoulhe por que razão estava a apanhar o avião em Ankara, se vivia em Istambul. Respondeu que era estudante e que ia muitas vezes a Ankara.» A polícia deixara-a passar e os dois respiraram fundo. O ar que inspiraram naquele momento, quase o extraíram do ponto mais longínquo do terminal, porque o oxigénio que os rodeava parecera-lhes insuficiente para se manterem vivos, tal a ansiedade em que se encontravam.

«Quando cheguei junto à porta de embarque, liguei ao meu irmão de uma cabina e usei um cartão telefónico. Fiz a chamada e disse-lhe apenas: ”Está tudo pronto!” Ele desligou e depois desliguei eu. Entretanto ouvi a chamada para Frankfurt e seguimos de autocarro até ao avião.» Rojhat recorda os momentos que antecederam a partida e o alívio que sentiu quando ouviu o roncar dos motores. Do ressoar até à descolagem decorreram quinze minutos, mas parecera-lhe uma eternidade. A opressão que sentia no peito apenas abrandara ao ver as rodas do aparelho a serem recolhidas. O casal precisava de três horas para alcançar Frankfurt, porque o visto para Portugal não passara de uma táctica para sair da Turquia.

Informaram-se de todos os detalhes. O avião que acabavam de apanhar não tinha como destino Lisboa, mas sim a cidade alemã. Em trânsito, seriam obrigados a aguardar cinco horas até apanharem outro avião que os levasse para Portugal. Mas Portugal nunca estivera nos seus planos e, por isso, a escolha da companhia aérea e do voo fora feita tendo em conta esses pormenores. O que realmente lhes interessava era poderem sair do aeroporto durante o tempo de espera, para nunca mais regressarem. Tudo parecia bater certo. «Eu sabia que podíamos sair do aeroporto durante aquelas cinco horas.» E saíram. «Quando chegámos à Alemanha, tínhamos uma amiga à espera.» Uma amiga de Rojhat.

O casal abandonara o terminal de chegadas sem recolher as malas, porque, essas, seguiram para o terminal correspondente ao voo Frankfurt-Lisboa. Entrar na Alemanha sem bagagem era-lhes indiferente, pois o seu conteúdo valia muito menos do que a liberdade que procuravam. Acreditaram que a localização dos donos daqueles pertences não reclamados, que viajavam com falsa identidade, não se faria de um dia para o outro. Quando fossem descobertos, já estariam a tratar de tudo para pedirem asilo à Alemanha.

Rojhat sabia da existência de pelo menos meio milhão de curdos a viver naquele país. Era gente que fugira das perseguições do regime turco e chegara desesperada à procura de paz e de segurança, exactamente o que ele desejava alcançar. Era ali que queria ficar com a mulher que lhe alterara os planos para a vida. «Começámos por arranjar um advogado. Precisávamos que ele nos ajudasse a conseguir asilo político. Ficámos num campo de refugiados e passámos a receber do Estado duzentos euros por mês, para cada um.»

Os meses sucederam-se. A resposta que desesperadamente desejavam receber enleara-se na burocracia de um processo de contornos demasiado complexos. Passara meio ano sem novidades e outro meio ia a caminho do fim quando o advogado lhes trouxe a notícia que não queriam ouvir. Tinham de abandonar a Alemanha o mais rapidamente possível, porque o Estado alemão jamais lhes concederia o estatuto de refugiados. Fora Portugal que lhes carimbara o passaporte com o visto de turismo, era a Portugal que deveriam pedir refúgio. Os planos de Rojhat e Kudret acabavam de falhar.

«Chegámos a Lisboa no dia 16 de Dezembro de 2003», relembra Kudret. Chegaram sem haveres, sem dinheiro, sem conhecer Portugal, sem saber português, sem casa nem comida, sem esperança em alguma coisa, sem gente conhecida, sem querer esquecer a guerrilha nem a terra que lhe pertence, sem se perdoarem por terem fugido, sem saberem como recomeçar, sem forças para mudar. Chegaram esfarrapados do avesso.

Rojhat e Kudret chegaram a Portugal a 16 de Dezembro de 2003. Adquiriram o estatuto de refugiado a 15 de Junho de 2005, assim como a filha de ambos, que já nasceu em Portugal.

 

O Lugar da Estrela

 

Passado que passou

Ainda me lembro de ti

Sonhos que tive por criar

Sabes que o passado pertence ao passado

Ainda não me conformo

Durmo e sonho contigo, passado

Onde ficaste? Agora só me resta criar o futuro.

 

Muitos morreram

Poucos sobreviveram

Num país amaldiçoado

Para sempre condenado

Ah! Odeio a miséria

Nos corações em fúria, dizem que foi massacre

Massacre? O nome está escrito

nos corações dos que sobreviveram.

Rosine

(pseudónimo)

23/09/2004

 

Entre os segredos que escondia, alinhados em folhas de papel, guardava este, uma angustiante viagem ao passado, uma confidência que lhe remói a memória sempre que não a tem ocupada com o presente. Hesitou, antes de se revelar uma sobrevivente de coração ferido e sem cura, receosa de que a exposição da dor lhe viesse a devassar a vida e a família. Acabou por ceder, livremente, e por soltar a página de um caderno, ordenadamente atafulhado de pensamentos, que não fazia intenção de partilhar.

Tivesse a inocência da idade conseguido vendar-lhe os olhos e ela não teria visto mais do que aquilo que devia. Mas a tragédia foi explícita e monstruosa e ninguém fez por ocultá-la, antes pelo contrário. Os horrores foram exibidos como conquistas moribundas, por gente que não parecia gente, tal o seu perfil animalesco, bruto e desvairado pelo ódio, ditado pela alma e entranhado no corpo. Perturbada por ter dado conta da ferocidade humana, tentara tranquilizar, muitas vezes, os pais, fingindo que não entendia o que se passava para lá de cunhenheri e que conseguia ver quando se empoleirava em bicos dos pés num dos sofás da sala, ou quando espreitava por entre as brechas da vedação de colmo que envolvia a casa, mas que, ao mesmo tempo, a deixava a descoberto.

Não compreendia a razão para a indefinível crueldade a que assistira e hoje, por mais que tente, continua sem compreender. No entanto, lamenta a certeza de ter visto muito para além do que é permitido a uma criança, e é por isso que escreve. Com a ajuda da caneta e do papel, talvez exorcize a raiva escondida e dela se liberte. Não o disse! Disse, sim, que tinha apenas seis anos.

O pai prometera que, caso passasse de ano, podia ir gozar parte das férias grandes em casa da avó. Cumpriu a promessa, porque a filha se mostrou cumpridora e aplicada e porque ele era um homem de palavra. Nunca lhe passara pela cabeça mudar de ideias à última hora, mas mais valia tê-lo feito.

Rosine tinha uma simpatia especial pela avó paterna. Não sei se a afeição se devia ao sumo de banana verde que ela tão bem sabia fazer, e que deixava a neta beber quase à discrição, até sentir os primeiros sinais de cólicas provocadas pelo exagero, ou se era por outra razão qualquer. Atraída pela doçura do sabor, excedia-se muitas vezes, o que não lhe fazia nada bem. Mas o regalo pela bebida começava no dia em que a avó levava as bananas maduras até ao lagar, empilhadas sobre uma tábua própria para o efeito.

A menina descobrira que, por esses dias, a avó se aprontava para produzir alguns litros de sumo e, por isso, não queria de modo algum perder a oportunidade de assistir à sua feitura e até de ajudar a despejá-los para as garrafas de vidro que eram guardadas durante uns tempos numa das prateleiras da cozinha.

Quando Rosine chegou a casa da avó, ela já tinha apanhado e posto a repousar as bananas, envoltas em casca e cobertas por folhas da bananeira, como se fossem uma manta, e por terra bem acamada e prensada que graciosamente aconchegara com as duas mãos. Assim repousadas e agasalhadas, deixara-as a amadurecer o tempo que necessitassem. Até aqui, nada de fascinante para Rosine, mas o processo que se seguia a este era para ela deveras divertido e não tardava a começar. Chamavam-lhe o calcar das bananas, do qual saía o suco e, neste caso, também uma menina coberta de polpa mole e a exalar ao fruto, para quem o ritual não passava de uma divertidíssima e imperdível aventura.

O dia em que todos se dirigiam para o tanque chegara finalmente. Ela estava preparada para ajudar a avó a espremer as bananas com os seus pezinhos, mas sobretudo com as suas pequenas mãos, que a uma velocidade alucinante viajavam pelos cabelos, pela roupa e pela cara, deixando desperdiçada, pelo caminho, uma boa porção da fruta. Antes disso impusera-se ainda o desenterro das bananas, algures na fazenda, que ela antecipadamente combinara com a avó. No momento em que se encaminhavam para o local para realizar a operação, a menina surpreendera-se com uma cena que não estava à espera de ver.

«Quando fomos verificar se elas já estavam maduras, vi ao fundo uns homens a correr atrás de uma vaca», recorda Rosine. Avistara um estranho grupo de homens a andar a alta velocidade atrás do animal, meio entontecidos e a estrebucharem. A vaca não pertencia à avó, mas ruminava a sua pastagem sem que isso causasse problemas entre a vizinhança. Até ali, nada lhe parecera exageradamente estranho. Julgara a situação caricata e, por isso, não deixara de acompanhar a agitação com o olhar de criança curiosa, na ânsia de descobrir como e quando tencionariam aqueles dar por terminada a brincadeira. Mas não era brincadeira. De súbito, com violência, um dos homens içou a catana que segurava com a mão direita e atingiu a vaca no cachaço, de onde saiu, sem demora, um medonho jorro de sangue que lhe pareceu ter tingido a roupa dos agressores. A vaca tombou e todos os outros camponeses se aproximaram dela, para se assegurarem de que estava morta. Camponeses, julgara Rosine.

A menina ficara entontecida e especada ao ver a carnificina, que terminara no esquartejamento do animal em tantos pedaços quantos os homens que ali estavam. Ela, que tanto amava a natureza e os animais, testemunhara ali, bem perto de si, um assassinato horrível. Temera, de imediato, pela segurança da galinha que partilhava consigo o quarto e que a mãe comprara, um dia, no mercado da terra, para as empregadas matarem, depenarem e estufarem. Mas mal se apercebera da cruel intenção, pedira, quase em soluços, para «perfilhar» a ave, como se de uma boneca de penas se tratasse. O pedido fora concedido e a galinha ganhara uma amiga que fazia tudo para a livrar das mãos criminosas. No entanto, nada conseguira fazer para salvar a vaca, que acabara em pedaços ensanguentados e transportados aos ombros dos criminosos, ao longo da quinta, até Rosine os perder de vista. Estava chocada, agoniada, sem forças para sacudir da memória aquela imagem e com as férias de Verão estragadas, que terminaram antes de terem começado. «O meu pai veio buscar-me nessa tarde», relembra. Ele viera assim que soubera do alvoroço.

A menina regressara a casa, nesse dia, sem ter bebido um único copo de sumo de banana feito pela avó e sem saber quando poderia voltar a passar pelo portão da vivenda, porque o pai suspeitara do despoletar iminente de uma mortandade qualquer. O cargo que ocupava fizera dele um homem com contactos privilegiados e, por esse motivo, uma pessoa bem informada. Era presidente da Câmara Municipal de Mabanza, cidade da prefeitura de Kibuye, a oeste do Ruanda, próximo do lago Kivu. A cena a que a filha assistira não fora um bom presságio e achara que o melhor seria proteger os seus seis filhos.

Por imposição, Rosine e os irmãos ficaram enfiados na propriedade que a família ocupava e que era pertença do Estado. Mas o pai continuava a cumprir as suas obrigações como autarca, na expectativa de ver como se desenrolavam os acontecimentos, e a mãe arriscava apresentar-se no tribunal de Rubengeri, onde era escrivã, não se privando de sair de casa e seguir sentada ao volante do seu carro, como se nada tivesse acontecido ou estivesse para acontecer.

Não se vislumbrava mais do que uma claridade frouxa no céu quando alguém se deu ao trabalho de ir bater à janela da sala do presidente da câmara.

Apenas uma mensagem urgentíssima provocaria aquele alarde. Indiferente à inoportunidade da hora, a filha do casal suíço que vivia com os pais na moradia ao lado começara, desenfreada, a dar pancadas nos vidros como se fosse um caso de vida ou de morte aquele que tinha para contar. E era, por sinal, um caso de morte. Trazia uma notícia de última hora. O presidente do Ruanda morrera num acidente de aviação na noite anterior, por volta das 20h30, e o pai de Rosine precisava de saber do sucedido o mais rapidamente possível, para tomar medidas, se as pudesse tomar ou tivesse poder para tal.

Aos suíços, vizinhos com quem a família de Rosine tinha alguma intimidade, não escapava nada, tal como a todos os outros estrangeiros que estavam a viver no país. Alguém lhes contara que o presidente do Ruanda, o general Juvenal Habyarimana, tinha morrido em circunstâncias anormais, juntamente com o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, com quem viajava. Ouviram dizer que, quando o Falcon 50 se aproximava de Kigali, a capital do Ruanda fora atingida por fogo e o avião se despenhara imediatamente. O aparelho tinha deixado a Tanzânia, onde os dois chefes de estado presidiram a uma conferência que pretendia pôr fim às hostilidades entre hutus e tutsis, nos respectivos territórios africanos. Como a família suíça tivera conhecimento do sucedido antes dos outros, ninguém entendera e, para o caso, também não tinha interesse; mas que era verdade, lá isso era, e sem demoras queriam contar. O casal mandara a filha dar a má notícia.

Uma das empregadas da casa, depois de escutar o bulício, abrira a porta principal que dava para o alpendre, para ver quem batia assim à janela da sala, e vira a miúda do lado. Ali, naquele instante, soubera do caso, que criança lhe contara a gaguejar de tão atrapalhada. Sem perder tempo, a criada avisara o patrão, que se mostrara incrédulo perante o sucedido e que, sem hesitar, ligara o rádio para se certificar de que o que acabara de ouvir era mesmo verdade. Mal ligara o aparelho já sintonizado na Rádio das Mil Colinas, escutara música fúnebre. A sinfonia fora o bastante para confirmar a notícia sem sair de casa ou fazer um telefonema. O presidente morrera mesmo. E agora?

Parecera-lhe que algo de muito grave poderia acontecer e, por esse motivo, impusera a Rosine e aos outros filhos que respeitassem a sua decisão de nunca mais saírem de casa sozinhos. Nesse dia, a 7 de Abril de 1994, a mãe ficara com as crianças, que até então tinham estado apenas acompanhadas pelos empregados, e o pai vira-se obrigado a comparecer no edifício da autarquia para tentar perceber o que se seguiria àquele acontecimento funesto. Caso se confirmassem os rumores, poderia esperar-se o pior.

As ameaças de vingança prometidas pelos dois grupos étnicos do Ruanda indiciavam uma iminente guerra civil. A minoria tutsi queria vingar-se da maioria hutu e vice-versa, mas faltava um pretexto para avançarem. Com a morte do presidente, estava encontrada a razão para que ambas as etnias desencadeassem uma luta desenfreada, a que hoje a história tenta responder com factos.

Depois de os pigmeus terem habitado a região, dera-se a chegada de gente proveniente da bacia do rio Congo: os hutus. Até ao século XV fora esta a etnia dominante, mas, a partir daí, uns pastores oriundos da Etiópia, chamados tutsis, passaram a controlar a zona. Em 1889, a Alemanha declarara o seu protectorado ao Ruanda, embora a derrota na Primeira Guerra Mundial tivesse permitido que os belgas ocupassem o território. Inicialmente, a Bélgica dera aos tutsis poder político, económico e militar, fazendo deles uma elite, mas durante os anos 50 invertera o seu apoio e possibilitara a criação de outra elite, desta vez hutu. A rivalidade estava criada e agudizara-se com a independência do país em 1962, conseguida sob a liderança dos hutus, que, sem hesitar, pressionaram os tutsis ao ponto de estes se exilarem nos países vizinhos. Com a morte do presidente, o general Habyarimana, acendera-se o rastilho.

Correra o boato de que o clã Akazu, ligado ao presidente e controlado pela mulher de Habyarimana depois da sua morte, preparava ao pormenor o genocídio do povo de minoria tutsi e de todos os hutus moderados considerados inimigos internos. Também circulara que a Interahamwe, uma organização militar de hutus extremistas, tinha sido treinada e equipada para investir em qualquer momento, tal como as próprias forças armadas do país. Mas, por outro lado, soara que a minoria tutsi, representada pela Frente Patriótica Ruandesa (FPR), planeara, com alguma minúcia, o ataque à maioria hutu.

A Frente Patriótica Ruandesa era dirigida pelo general Paul Kagame (actual presidente do Ruanda) e composta, principalmente, por exilados tutsis expulsos do país que há muito lutavam contra a ditadura do general Habyarimana, que estivera no poder durante vinte e um anos. Em 1990, invadira o norte do país com o apoio de alguns hutus e exigira a participação no governo e o direito de fazer regressar o povo exilado. No ano seguinte, o presidente acabara por aprovar o pluripartidarismo e abrira negociações com os guerrilheiros. Em 1993, porém, a nova ofensiva tutsi anulara esse acordo. O governo dera início a um massacre de civis da minoria tutsi e, em resposta, a FPR avançara em força até chegar a cerca de trinta quilómetros da capital Kigali, depois de ter deixado para trás inúmeras aldeias hutus completamente destruídas. Junto à fronteira com a Tanzânia e com o Uganda, aglomerara-se mais de um milhão de refugiados. A crise política e humanitária obrigara à intervenção da ONU e da Organização para a Unidade Africana (OUA), que apoiaram a assinatura dos Acordos de Arusha, na Tanzânia, entre o presidente e a guerrilha, os quais estipulavam a formação de um governo de transição com a FPR e outros partidos da oposição. O país ficara embrulhado em profundas divergências e aquilo que parecera ser um acordo bilateral para cumprir deixara crescer, fulminantemente, um ódio que germinava há centenas de anos.

Tal como o pai de Rosine suspeitara, vivia-se por todo o país um clima muito confuso que fizera com que a mãe deixasse de ir trabalhar. Apenas arriscara sair de casa dois ou três dias depois do incidente na fazenda da sogra, mas acabara por concluir que o melhor seria não voltar ao tribunal de Rubengeri. Sensatez e ponderação eram qualidades atribuídas à mãe de Rosine, que também era tida como uma mulher instruída, muito mais instruída do que a maioria das ruandesas da sua idade, e astuta por natureza, qualidade que vira apurada pela actividade que até então desempenhara no meio judicial. Terminara o ensino secundário e depois concluíra os cursos de secretariado e dactilografia, que muita falta lhe fizeram enquanto escrivã.

Para além do que sucedera na propriedade da sogra e da morte do presidente, a mãe tomara a decisão de ficar com os filhos quando descobrira que um grupo de militares bêbados lhe tinha invadido a casa na altura em que as crianças brincavam no jardim das traseiras da propriedade. Estas contaram-lhe que os homens entraram sem pedir licença e, num tom rude, perguntaram pelos pais e pela hora a que regressavam. Depois, sem modos, exigiram que a irmã mais velha de Rosine lhes fosse buscar os copos mais bonitos que tinham para beberem, ali mesmo, um licor qualquer que traziam numa garrafa nojenta. Assustada, a menina assim o fizera, mas acabara, tal como os irmãos, por ser obrigada a provar do mesmo xarope. A mãe percebera, com o sucedido, que deixara de haver segurança, até dentro da sua própria casa. Rosine soubera, mais tarde, que os mesmos militares embriagados e assustadores tinham voltado lá a casa, nessa noite, quando escutava, na cozinha das traseiras, histórias infantis contadas pelas empregadas. Era habitual escapar até à zona de serviço e esse era um dos poucos costumes que não se tinham alterado. «Eu e os meus irmãos sentávamo-nos em cima de umas pedras e ouvíamos histórias inventadas e anedotas contadas pelas empregadas, enquanto elas cozinhavam no forno a lenha», relembra.

A partir daí, dera pela ausência do pai quase todos os dias. Ninguém lhe dissera por onde andava e ela também não perguntara. Nunca fora tão estranho, como naquela altura, o ambiente que se vivia em casa. Junto ao portão da moradia passara a estar um guarda. O homem parecia um sentinela especado em frente do gradeamento de ferro, pintado de vermelho, como se protegesse um forte, controlando tudo e todos. As ordens do patrão eram cumpridas com um rigor absoluto e, por isso, começara a dar lições de defesa às crianças. Com apenas seis anos, Rosine aprendera a rastejar e fora treinada para o fazer caso ouvisse tiros, assim como a dormir com várias peças de roupa se tivesse de fugir rapidamente, sem fazer as malas. Só não aprendera a disparar, ao contrário das irmãs mais velhas, que chegaram a empunhar armas. O guarda ensinara-as a fazer fogo real, mas ela ficara fora desses treinos porque o homem considerava demasiado arriscado fazer um número daqueles com uma menina tão nova.

A mãe evitara pronunciar-se acerca do que sucedia na rua e o pai não era homem de quem se pudesse esperar um comentário, pois até mesmo em situações normais se conseguia contar as palavras que dizia. «O meu pai era muito sério, não dizia nada. Só quando iam amigos lá a casa é que ria. Às vezes nós dizíamos umas piadas para o fazer rir, mas não conseguíamos», e recorda como a postura militar do pai até à mesa se revelava. No entanto, os cochichos entre os empregados e as observações conseguidas de cima do sofá da sala começaram a ser suficientes para que Rosine saciasse a curiosidade de criança e concluísse que os vizinhos andavam metidos em sarilhos esquisitos. Empoleirava-se num canapé do salão, forrado a couro amarelecido, que fazia parte de um conjunto de três, e dali avistava gente, em grupo, a circular de um lado para outro, quase em jeito de manifestação. Tivera sorte, porque esse canapé estava colocado junto à janela e não precisara de arredar uma das cadeiras que compunham a mesa. E também tivera sorte em morar no cimo de uma montanha, a que chamavam cunhenheri («na estrela», em ruandês), por aquela ter sido a primeira casa da zona a ter luz eléctrica, instalada por um casal de alemães que chegaram a habitar a quinta. Quem avistava a propriedade de baixo para cima, da zona do mercado, dizia que ali estava uma estrela. E fora da estrela que a menina começara a ver imensos grupos de homens a empunharem catanas que reluziam à custa dos raios de sol que nelas incidiam. Para onde seguia essa gente, nunca soubera.

As movimentações estranhas em casa de Rosine passaram a fazer parte do dia-a-dia. Sem avisar, a mãe levara umas amigas lá para casa que começaram a dormir e a comer como se da família fizessem parte. Instalaram-se no quarto de hóspedes, onde as crianças deixaram de poder entrar, tendo sido transferidas para o quarto dos empregados, nas traseiras, para assim ficarem mais longe dos problemas. Essas mulheres eram colegas da mãe, que também trabalhavam no tribunal, e estavam ali escondidas porque os militares queriam assassiná-las. Eram de etnia tutsi. Ela sabia que havia algumas diferenças entre os tutsis e os hutus, mas apenas dera por elas quando fora alertada para comparar a altura e o tom de pele de cada uma das etnias. Achara os tutsis muito mais altos, mais claros e de lábios mais finos que os hutus, e não se enganara. No entanto, ela própria não percebera a que etnia pertencia. A mãe tinha sangue tutsi, o pai era hutu. Ela acabara por se parecer mais com o pai, sem nunca entender a importância de ser mais semelhante a um do que a outro, ou se eram as parecenças que faziam de alguém membro de um dos dois grupos. Mas, naquele momento, a aparência tinha mais importância que qualquer outro factor e fora por esse motivo que as amigas da mãe lhe pediram protecção.

Exceptuando o aparato fora de portas, correra tudo sem inquietações de maior, até ao dia em que uns militares entraram na quinta à procura dessas mulheres, que asseguravam estarem lá escondidas. O guarda tinha sido dispensado e substituído por um grupo de civis que rondavam o quarteirão, mas que não conseguiram impedir a entrada dos homens armados em casa do presidente da câmara, porque estes os convenceram de que estavam ali por bem e apenas tinham intenções de falar com a dona da casa. Era mentira: queriam matá-la.

«Estava na cozinha com a minha mãe e comecei a chorar. Escondi-me atrás da porta. Eles gritavam, com catanas e paus nas mãos. Perguntei à minha mãe se íamos morrer e ela respondeu-me que não.» Mas Rosine percebera a aflição da mãe no momento em que se dera conta da presença dos militares. Impulsivamente, escondera a menina, sem saber, no entanto, com quem estavam os outros cinco filhos. Depois saltara a vedação de caniços que contornava a propriedade e ficara no matagal até os militares desistirem de esperar por ela. Enquanto estiveram lá em casa, puxaram, enraivecidos, por todas as mantas de algodão bordadas à mão que cobriam os sofás da sala e atiraram-nas para o chão, assim como aos panos de croché que enfeitavam as mesas. Insistiam, furiosos, em falar com a mãe, mas fora-lhes dito pelos empregados e pela irmã mais velha de Rosine que ela não estava. Saíram a espumar ódio, prometendo regressar em breve. «Essa foi a primeira vez que tive medo», assegura.

Rosine e os irmãos deixaram de dormir de pijama. As empregadas passaram a vestir-lhes inúmeras peças de roupa, umas sobre as outras, que lhes davam um ar engraçado e os punham às voltas na cama quase a morrer de calor, mas prontos para a debandada. Também os obrigara a encher uns sacos com produtos de higiene, que pousavam à noite, desajeitados, junto à cabeceira; esses sacos eram as mochilas da escola. Assim, atabalhoados, os meninos poderiam fugir caso fosse dada ordem para tal.

Correra a notícia de que as milícias hutus se preparavam para arrasar cunhenheri, porque suspeitavam que tanto a mãe como o pai de Rosine, autarca de Mabanza, eram traidores que protegiam tutsis. E isso até era verdade, eles protegiam tutsis. «O meu pai protegeu muitos tutsis. Ele ia a muitos lugares impedir que os matassem», relembra. Perante a evidência, a família tivera de escapar antes que os génocidaires aparecessem e arrasassem tudo e com todos. «Fomos todos para casa dos meus avós paternos e por lá ficámos uns dois dias. Depois voltámos para casa.» Regressaram sem que algo de grave lhes tivesse acontecido, mas sem terem a certeza de estarem vivos no dia seguinte. Felizmente, para alívio e consolo de Rosine, a sua galinha de estimação ainda debicava a relva do jardim.

Com a morte a bater à porta, o pai praticamente desaparecera de casa. Os rituais de família cumpriram-se sem ele, inclusive o das refeições. Mãe e filhos distribuíam-se à mesa e deixavam vazio o lugar no topo, reservado para ele, mesmo que não aparecesse. A gritaria entre miúdos de outros tempos sumira-se de vez, pelo menos em ocasiões como aquela, e Rosine sentira um ambiente anormal que lhe roubara a liberdade a que estava habituada e alguma alegria. A mãe andava nervosa e o episódio que ocorrera durante um dos almoços não deixara dúvidas de que a perturbação tomara conta de todos. Mal pousara uma tigela de feijão cozido sobre a toalha da mesa do salão, que trouxera da cozinha com o cuidado do costume, o vaso de vidro desfizera-se em mil bocados. Os cacos levaram-na às lágrimas, sem que os filhos encontrassem justificação para tal atitude. A mãe receara que a quebra da tigela fosse um mau presságio. Era uma mulher muito supersticiosa e dada a premonições. Por coincidência ou não, o telefone tocara poucos minutos depois do sucedido. A notícia deixara a família abatida. Um dos irmãos da mãe fora encontrado morto e cortado aos bocados entre as ervas de um matagal, nas traseiras da sua casa. O juiz fora assassinado pelos vizinhos, que, assim, quiseram vingar-se dos mandatos de captura emitidos a alguns deles.

Os rumores de esquartejamentos, decapitações, habitações incendiadas e pilhadas e gente em fuga circularam a uma velocidade alucinante. A criadagem embasbacava-se a falar de mortandades, entre os seus afazeres na copa e as ocupações na vacaria. O assassinato de Agathe Uwilingyimana, primeira-ministra ruandesa (a primeira mulher em África a desempenhar este cargo), e dos dez soldados belgas da ONU que a protegiam, imediatamente após a morte do presidente, fora motivo para sussurros durante vários dias. No entanto, nunca amedrontaram os pequenos com pormenores hediondos. Até a estação radiofónica, a Radio Télévision Libre des Mille Collines (Rádio das Mil Colinas), fundada pelo clã Akazu e a emitir desde Julho de 1993, passara a ser um posto emissor interdito lá em casa. As palavras de ordem, difundidas consecutivamente, eram de tal modo bizarras e chocantes que se tornara forçoso impedir o acesso a tamanha brutalidade. «Cortem os pés das crianças para que andem toda a vida sobre os joelhos», «matem as meninas para que não existam futuras gerações» e «As valas comuns ainda não estão cheias» eram as monstruosidades que se escutavam. Uma imposição sórdida, se é que há palavras para as descrever. Tudo valera aos radicais hutus para tentar o extermínio da etnia tutsi.

Inicialmente, os assassinos planearam atacar, um a um, todos tutsis e todos os hutus que se opuseram ao presidente Habyarimana e que protegeram gente da minoria. Assim planearam e assim actuaram. Foram, de casa em casa, executar famílias inteiras. Mas, semanas depois do início da chacina, mudaram de táctica e passaram a pôr em prática outro método maquiavélico, que julgaram muito mais prático e eficaz: obrigaram os tutsis a abandonar as suas casas e a dirigir-se para os edifícios governamentais, para as igrejas e para as escolas e aí, sem perder tempo, extinguiram-nos de uma vez só. A destruição metódica dos tutsis estava a ser conseguida. Eram exterminados com um rigor selvaticamente incomensurável!

Rosine nunca fizera nada para escutar esses pormenores macabros: bastara-lhe a vista que conseguira ter da janela da sala de onde observara o céu azul a ficar pintado de cinzento, por causa do fumo que emanava das casas cercanas, no rescaldo do fogo que lhes fora ateado, quem sabe se com gente dentro; bastara-lhe ter testemunhado as estranhas movimentações de homens com machetes na mão; ter visto a sua mãe mais transtornada do que nunca; nunca mais ter posto os olhos em cima do pai; ter sabido que as ameaças de morte à família se tinham tornado constantes. Bastara-lhe tudo isso. Nunca tivera a certeza de nada porque ninguém lho dissera, mas desconfiara e isso fora suficiente para pôr a sua imaginação de criança a trabalhar. Desconfiara que os homens estavam zangados uns com os outros, mas nunca a ouvira a palavra genocídio e, mesmo que a tivesse ouvido, não alcançaria o seu significado.

O certo é que a destruição metódica dos tutsis, pelo extermínio meticuloso de cada um deles, era a verdade dolorosa e já ninguém duvidava. Milhares de facas, enxadas, machados, lâminas, martelos e catanas eram selvaticamente erguidos e arremessados, ensanguentando tudo à sua volta. Mais de cento e trinta milhões de dólares tinham sido investidos na preparação do genocídio, dinheiro proveniente de programas de ajuda internacionais, fornecido pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Uma aberração sem palavras, numa das nações mais pobres do mundo.

Face ao avanço hutu, a Frente Patriótica Ruandesa entrara em acção, na tentativa de pôr fim à chacina da sua própria etnia. E não fora preciso muito tempo para que os tutsis iniciassem a limpeza hutu. O país ficara, literalmente, com as entranhas à mostra, e a família de Rosine a correr perigo de vida. Um presidente de câmara hutu não teria muitas hipóteses de sobreviver, assim como os seus filhos e a sua mulher. A fuga definitiva do Ruanda tornara-se a opção mais sensata antes que acabassem retalhados, entre os escombros de cunhenheri. Se não tinham morrido nas mãos dos hutus por terem escondido tutsis, acabariam por morrer nas mãos dos tutsis porque o pai de Rosine era hutu.

«Temos de fugir já! Vistam umas camisolas e metam num saco meia dúzia de coisas de que gostem mais e que queiram levar, mas têm de ser rápidos», ordenara a mãe de Rosine no final de uma tarde, quando o Sol se aprontava para se recolher, semanas depois de o tio ter morrido esquartejado. Depois da ordem da mãe, dera várias voltas ao seu quarto e não conseguira escolher um único brinquedo para levar nessa viagem. Em vez de bugigangas, preferira pedir para levar a sua galinha. Só uma criança faria uma proposta destas numa ocasião como aquela. Mas, infelizmente, a mãe não autorizara Rosine a levar o animal de estimação, que julgara incompatível com um longo passeio de carro. A menina não tivera alternativa a não ser conformar-se com uma despedida dolorosa.

Praticamente despojados de bagagem, partiram discretos e sem saudarem a família. Cunhenheri estava numa lista de casas a atacar e o apelido da família estava noutra. Tinham de fugir rapidamente. Seguiram amontoados no Toyota Corolla apodrecido, castanho-chocolate, que a mãe utilizava todas as manhãs para se deslocar até ao tribunal e para à tarde regressar a casa. Outras andanças que não essas estavam expressamente proibidas pelo marido, a quem nem sempre dera ouvidos e que, por esse motivo, sofrera as consequências da desobediência, sem que isso lhe tivesse mudado o carácter desafiador e astuto. Era uma mulher imune a retaliações, porque a confiança que tinha em si era suficiente para as superar. Deixara cunhenheri sem o marido, com os seis filhos para criar e uma empregada para a ajudar, ou quem sabe para a atrapalhar, caso tudo se complicasse.

«Não olhem pela janela», implorara a mãe. A ordem assumira, contudo, um efeito contrário junto das crianças. Rosine, aterrorizada com a imensidão de cadáveres espalhados ao longo da estrada, não conseguira evitar o fascínio pelo macabro. Os olhos negros, brilhantes e esbugalhados, colara-os ao vidro traseiro do carro, como se quisesse pôr a cabeça de fora para ver ainda melhor. Não hesitaria, caso a autorizassem. Tudo o que escutara e deduzira das investidas feitas até à janela da sala via agora a apodrecer nas valetas, infestado de bichos, desfigurado, desmembrado, decapitado, ali à sua frente, ao lado, atrás e ao longo de quilómetros. Observara o espectáculo pavoroso de corpos meio enterrados, pernas já decompostas, mãos que emergiam mirradas como se pedissem para puxarem por elas. Tremera de medo, mas, mesmo assim, pusera as palmas das suas mãos nos vidros como se fossem duas ventosas, a cabeça entre elas e os lábios grossos espalmados. Mantivera-se nesta posição, quase hipnotizada, até se cansar do horror e sem nunca ter prestado atenção ao pedido da mãe. Só se lhe vendassem os olhos é que não olharia pela janela; mas não o fizeram, assim como ela também não fizera uma única pergunta sobre o motivo daquele cenário. «Mais tarde, soube de casos de bebés que se amamentaram do leite das mães assassinadas e de uma filha que teve de enterrar a mãe no caminho quando fugiam as duas do Ruanda», recorda, perturbada.

Um mar de gente caminhava em direcção à fronteira com a República do Zaire (actual República Democrática do Congo). Eram famílias inteiras e outras desmembradas. Homens, mulheres e crianças que cambaleavam desnorteados, descalços, esfarrapados, desfigurados, quase mortos mas perfilados rumo à incerteza. Uns seguiam sem haveres, outros com trouxas inchadas de modestos pertences e equilibradas no cimo da cabeça. Uns iam agarrados a cajados para não tombarem com dores, outros apoiados em bicicletas, em vez de se montarem nelas. Uns puxavam pelos cabritos sempre que estes resistiam a avançar, outros carregavam ao colo crianças exaustas e quase desidratadas. Um êxodo! Eram milhares. Rosine, a família e a empregada também seguiam naquele magote, mas de carro. Escapar para o Zaire tinha sido considerada a fuga mais rápida da morte, mas, para tal, precisavam de chegar vivos.

Depois de terem passado por um controlo policial e terem dormido em Kibuye, a cidade mais próxima de Rubengeri, onde moravam uma tia e primos que se lhes juntaram, seguiram em caravana até Bukavu, a leste do Zaire. Milhares de ruandeses tropeçavam em si próprios e uns nos outros, cansados e doridos de tantas horas a rumar para o lado de lá e receosos de que um punhal lhes trespassasse o dorso até ao peito e os dividisse ao meio, deixando-os a esvair-se em sangue. No meio seguia o Toyota castanho, também ele cansado. O motor começara a dar sinais de fraqueza, engasgara-se várias vezes, até sufocar de vez alguns quilómetros antes de atingir a fronteira. Fora preciso aconchegar as famílias apenas num carro, uns ao colo dos outros. As crianças, irrequietas, começavam a dar sinais evidentes de esgotamento. Nem as maduras goiabas que a mãe de Rosine comprara a mulheres de cestos à cabeça, à beira da estrada, conseguiram atenuar a inquietude e a preocupação.

«Vem ali, vem ali, é ele!», dissera, num tom sereno, a mãe de Rosine quando avistara uma carrinha de caixa aberta igual àquela com que o marido costumava circular, pertença do município de Mabanza, e que deveria ter escrito na porta lateral «Comine Mabanza». Não se enganara. Vinha do Zaire com um dos irmãos, que, por sinal, era o marido da senhora que também decidira fugir com os filhos e se juntara à família do presidente da câmara. Era tia por afinidade de Rosine e era ela quem conduzia o carro que transportava a família.

Os dois homens seguiam na direcção de Mabanza, quando as mulheres e os miúdos deram por eles. Tinham ido à procura de uma casa onde pudessem ficar, caso fosse preciso fugir do Ruanda. Mas, inesperadamente, elas escaparam com os filhos antes do previsto, seguras de que, assim, teriam mais probabilidades de não morrerem com os meninos nos braços do que se ficassem escondidas. Estavam certas. Mabanza acabava de ser atacada e Kigali já estava sob o controlo dos tutsis. Cunhenheri fora certamente saqueada e os animais abatidos.

Talvez mais de oitocentos mil cadáveres, ou até um milhão, estivessem a apodrecer, espalhados por todo o país, sem a mínima dignidade. O número de vítimas tutsi era difícil de quantificar. Oitocentos mil mortos equivalia a onze por cento da população e a quatro quintos dos tutsis que viviam no país. E, em relação aos mortos hutus, que a vingança tutsi, entretanto, provocara, ainda ninguém conseguia quantificar; mesmo hoje há dificuldade em avançar com números.

Quando o pai e o tio de Rosine encontraram as mulheres e os filhos, deram imediatamente por terminada a viagem de regresso ao Ruanda. Sem hesitar, inverteram a marcha e juntaram-se à caravana, depois de os miúdos se terem acomodado na caixa de carga da carrinha e os homens se terem apeado para dar uma palavra às mulheres, que não chegaram a sair do carro. Enfileirados, atingiram a fronteira, onde os viraram do avesso, um a um, adultos e crianças. A polícia quase os desnudara a fim de os despojar dos francos ruandeses que traziam e das armas entaladas entre o corpo e as roupas - as armas das mulheres, porque as dos homens já ali tinham ficado quando por lá passaram. Apenas escaparam ao saque os produtos de higiene, peças de vestuário e um frasco cheio de vaselina que a mãe usava para untar o cabelo e a pele dos seus meninos. E em boa hora escapara o frasco, porque no meio do preparado se escondiam, besuntados, uns miseráveis trocos arrebanhados à pressa.

Entregues a si próprios, entraram no Zaire. Rosine odiara até ali aquela estranha aventura. Assim considerara a marcha rumo ao infortúnio, chamado Bukavu, uma região situada junto ao maior lago de África, o lago Kivu, na fronteira ruando-zairense. Se em Bukavu se considerasse apenas a sua espantosa beleza natural, seria ofensivo denominá-la de calamitosa; mas a zona transformara-se num manto de tendas azuis onde se aninharam milhares de refugiados. Rosine e a família passaram a habitar a casa que o fugitivo presidente da câmara de Mabanza descobrira durante a súbita retirada para o Zaire. Para quem vivera em cunhenheri, mudar para um acampamento poderia ser um rebaixamento moral para o qual nenhum deles ainda estava preparado. Evitaram a humilhação com as poupanças que escaparam ao faro apurado dos salteadores da fronteira e com outras que só o pai de Rosine soubera aonde ir buscar.

«Vocês, os ruandeses refugiados, voltem para casa! Não vos queremos cá!», gritavam, enraivecidos, os miúdos zairenses quando se cruzavam com Rosine e os irmãos. Os berros proferidos em grupo enfureciam-na; geravam nela ódio, humilhação e tristeza, sentimentos que ainda hoje lhe ocupam a memória. Eles julgavam-na diferente. Tinha a altura de uma menina de quatro ou cinco anos e, por isso, aparentava ser mais nova e mais frágil do que era. Esse aspecto devia-o também ao cabelo que usava quase rapado, tal como o usavam todos os seus irmãos e todas as outras crianças ruandesas, por imposição do Estado. Nunca o deixara crescer mais do que um centímetro a contar do couro cabeludo. A única razão para o pente um era evitar a propagação de parasitas. O argumento nunca fora questionado. Habituara-se a ver-se ao espelho com o cabelo curto e nunca tivera vontade de vê-lo entrançado, até ao dia em que chegara ao Zaire e reparara que as miúdas o usavam enroladinho e até podiam perfurar as orelhas e nelas pendurar adornos. «Achei tudo muito diferente e isso chocou-me. As crianças eram diferentes, as roupas eram diferentes, havia muito mais gente e muito mais dinheiro. Até os cheiros eram outros, mais intensos.»

O Zaire não era, definitivamente, a sua terra. Percebera-o pouco tempo depois de ter chegado. A mãe tentara minorar a consternação da filha e pedira a uma mulher para lhe furar as orelhas; mas os pendentes que lhes enfiaram em cada uma em nada alteraram o que os outros pensavam de si e até o que ela pensava dos outros. «Os zairenses não gostavam de nos ver lá», garante Rosine, apenas porque o sentira na pele e não porque alguém lho contasse. Era verdade, os zairenses opunham-se à presença dos refugiados, a quem acusavam de destruir os campos e o gado, de propagar epidemias, de vender armas e de receber ajuda quando eles, afinal, também precisavam. Mas Mobuto, o presidente zairense, vira nos refugiados uma estratégia para desviar a atenção da má governação do país e recuperar o estatuto internacional que perdera com o final da Guerra Fria. O governo assumira, por escrito, a responsabilidade pelo bem-estar dos refugiados, mas isso fora apenas no papel.

Sem alternativa a não ser conformar-se com as condições em que passara a viver, Rosine matara saudades do passado sonhando com cunhenheri. Ficara-lhe na memória o enorme abacateiro plantado nas traseiras da casa, onde, tardes a fio, jogara às escondidas com os irmãos, tais eram as dimensões da árvore. Sentira saudades de ver a mãe de volta dos canteiros que mandara fazer em frente à moradia e onde semeara uma imensidão de malmequeres brancos, a ponto de ao longe parecerem um manto a ondear ao sabor do vento. Nunca mais repetira as cambalhotas que dera na erva rasteira e fina que cobria a terra em redor da casa. Deixara de escutar as histórias que as empregadas lhe contavam sempre que ia à copa do anexo, junto ao curral e à vacaria. Nunca mais vira as cassetes de vídeo que o pai lhe oferecera e que variavam entre as do Charlot e as do Mr. Bean, as do Buggs Bunny e as do Bucha e o Estica. Nunca mais se repetira o acordar doce da baby-sitter, que fazia as vezes da mãe, porque à hora do seu despertar ela já tinha saído para o tribunal. Nunca mais voltara ao mercado que ficava no sopé da encosta onde construíram o «lugar da estrela» e nunca mais sentira as mordidelas de um provocador pato branco que se atirava à sua saia, sempre que ela se atravessava no caminho. Em nada Bukavu se assemelhava ao «lugar da estrela».

Passara manhãs e tardes sentada no chão, debaixo de uma tenda, a procurar entender o pensamento do seu novo professor, que também fazia um esforço para se fazer perceber e impulsivamente varria a ardósia com o apagador apenas com uma braçada, eliminando tudo o que tinha acabado de escrever, para logo a seguir voltar a ornamentar o quadro com frases curtas e pueris, que contavam igualmente com pouco tempo de vida. Escrevia e fazia sumir as frases inúmeras vezes até ficar com as mãos quase brancas, do fino pó que se soltava do pau de giz, como se fossem um par de luvas. Rosine adaptara-se à nova escola, confessa. «Nós nem pensávamos nas condições em que estávamos.» Mas, ali, nunca mais ouvira o batucar para a entrada ou para a saída, provocado por um ferro a agredir uma velha jante, pertença de um automóvel qualquer e que alguém pendurara numa das árvores plantadas no recreio, como se fosse uma campainha, e que ela própria chegara a pôr num virote. Nunca mais ouvira porque a escola do campo de refugiados de Bukavu não era igual à escola primária de Rubengeri. Por lá andara até entrar numa oficial.

«Depois comecei a ter aulas numa escola do Zaire, eu e os meus irmãos, porque os meus pais queriam que nos adaptássemos. Essa escola ficava a quinze minutos a pé da casa onde estávamos, perto da margem de um rio. Para lá chegarmos tínhamos de passar por um mercado onde as crianças cantavam umas músicas de que nós não gostávamos e onde se vendia uma areia em que as formigas faziam os ninhos e que diziam ser boa para as grávidas comerem. Também se vendiam folhas secas, que nunca soube se eram de tabaco ou de outra planta qualquer, e que as velhas mascavam a toda a hora.» Rosine relembra o que vira a caminho da école do Zaire, onde o rigor militar não lhe agradara: «Parecíamos soldados. Era uma escola muito severa.» O rigor começava na farda de saia azul e uma camisa branca e acabava no tratamento austero. Ali começara a aprender francês e a exibir-se junto do pai.

«Quando chegava a casa, ia ter com o meu pai e lia-lhe uns poemas. Mostrava-lhe que já sabia falar francês. À tarde ainda voltava para o campo de refugiados para ter umas lições extras. Acho que eram explicações. Mas, um dia, aquilo começou a ficar perigoso e tive de deixar de ir. Falavam em militares infiltrados e soube até que chegaram a atacar as tendas e que muitas pessoas tiveram de fugir para as florestas do Zaire, porque não podiam voltar nem para o Ruanda, nem para Kinshasa. Também cheguei a ouvir dizer que tinham morrido refugiados depois de terem comido fruta envenenada e que alguns andavam loucos, de um lado para o outro, com problemas de consciência, por terem morto muita gente.» Nessa altura já os avós paternos, uns tios e uns primos de Rosine viviam no acampamento de Bukavu, porque não sobrara um metro quadrado que fosse para albergar mais alguém na casa que o pai arranjara. Mas, pouco tempo depois de a família ter chegado, Rosine, os pais e os irmãos estavam a partir.

«Uma vez, os meus irmãos e eu estávamos a brincar com a filha do chefe da polícia da zona e que era nossa vizinha, quando houve uma confusão entre nós durante uma brincadeira. A miúda começou a chorar e foi a correr para casa contar não sei o quê ao pai. Sei que, pouco tempo depois, estavam a prender o meu. Levaram-no para a prisão e espancaram-no. Esteve lá um dia», recorda Rosine o derradeiro motivo que levara a família a fugir do Zaire, na manhã seguinte à libertação do pai.

«Arrumem as coisas, vamos embora», dissera a mãe aos miúdos, sabendo que já não havia muito para ensacar. Ela aprontara quase tudo: a mala preta, a cinza mais pequena e as duas de mão. E pedira às crianças que verificassem as suas mochilas, a fim de poderem fugir, desta vez para a República da Zâmbia. Aguardava apenas a saída em liberdade do marido, que estava por horas, e também pela prometida protecção do cardeal até ao porto de Kalemie. «Não sei como a minha mãe o conheceu, mas lembro-me de ela ter contactado um cardeal africano que a ajudou a libertar o meu pai. O cardeal sugeriu que o meu pai se disfarçasse de pastor de igreja e que nós fingíssemos que éramos a família do pastor, para assim conseguirmos passar a fronteira do Zaire com a Zâmbia», recorda Rosine.

Seguiram à boleia. O cardeal fizera questão de os levar. Soubera que a carrinha da «Comine Mabanza» não tinha escapado ao sentido de oportunidade dos zairenses para se apoderarem dos bens do alheio e, por esse motivo, oferecera-se para ser o próprio a fazer o transporte. «Levou-nos até ao lago Tanganica, a uma zona portuária de cujo nome não me recordo, para ali apanharmos um barco de mercadorias. Mas, antes disso, ainda dormimos uma noite em casa dele e só depois é que partimos.» Os tios e os avós ficaram no Zaire.

Em magote, estouvados e meio desnorteados, apearam-se do carro do cardeal. Ele tinha-o estacionado no porto de Kalemie, situado na cidade com o mesmo nome, na província da Katanga, que chegara a ser a cidade de Albertville. Uma zona frenética que desagradara imediatamente a Rosine, mas esse frenesi era próprio dos grandes centros de transacções comerciais, como aquele, um interposto debruçado sobre o lago Tanganica, onde várias embarcações são carregadas e descarregadas ao longo do dia. Daquelas que estavam aportadas mas já prontas para largar amarras, apenas uma lhes servira. O cardeal tinha tratado de tudo previamente.

O pestilento cargueiro onde embarcaram estava atafulhado de sacas de arroz e de açúcar que tinham como destino a Zâmbia, tal como eles próprios. Ajeitaram-se no porão como puderam e, ali, entalados entre a mercadoria, aguentaram uma semana. «O cheiro era péssimo, por causa do arroz africano, que cheira muito mal», conta Rosine. «Ainda hoje me agonio quando penso nisso e naquela porção cozinhada pela empregada, toda amassada, que eu tive de comer.» Foram sete dolorosos dias que lhe pareceram infindáveis. Aquela travessia para outra terra, que ouvira dizer chamar-se Zâmbia, vira-a como uma etapa de uma estranha viagem, e não como uma fuga sem regresso: «Sempre vi a nossa fuga como um passeio.» O Ruanda começava a ficar demasiado distante.

A viagem contava com apenas um ou dois dias quando a irmã mais nova de Rosine começou a ficar febril. Habituada a lidar com as doenças próprias das crianças, a mãe desvalorizara o estado prostrado da filha. No entanto, em vez de melhorar, a menina piorava e a ansiedade de atingir a outra margem aumentava, mesmo sem saber o quê e quem iriam encontrar do outro lado. «A minha irmã mais nova ficou doente. Estava com muita febre. Não sei que doença tinha, mas vim depois a saber que podia ter morrido. A minha mãe passou todo o tempo de volta dela e, por isso, nem me recordo de a ter visto, muitas vezes, durante a viagem, porque me escapava para ir ver os peixes.»

Suspeitara estar a um palmo de tocar na paisagem quando, ao longe, avistou uma floresta. Finalmente, uma floresta. «Quando nos estávamos a aproximar da margem, vi uma floresta com animais. Adorei.» Mas faltava muito mais do que um palmo. A ânsia de chegar à nova terra deixou-a especada o tempo necessário até julgar que, se esticasse o braço, conseguiria empoleirar-se numa árvore ou acariciar uma cria. Ficara assim, de olhos feitos em duas miras, a focar constantemente o alvo. Era a Zâmbia ali tão perto.

Desde que o cargueiro atracara até que saíram, passara muito tempo. A ânsia de zarpar daquele barco asqueroso deixara a menina rabugenta de tanta impaciência. Era próprio da idade e de quem já não suportava estar ali encafuada. «Tivemos imensos problemas para entrar na Zâmbia, queriam que voltássemos para trás. A minha mãe, ao ver a minha irmã naquele estado doente, revoltou-se, mas de pouco lhe valeu. Para podermos sair, teve de entregar as jóias que lhe sobravam e que, não sei porquê, ainda ninguém tinha conseguido roubar. Eram para a mulher do capitão.» Não tiveram outra hipótese. As jóias ficaram e eles saíram. Um país desconhecido aguardava-os com boa cara, porque estava um dia lindo.

Uma camioneta apodrecida transportara-os até Lusaka, a capital do Zaire. O motorista ajudara o pai de Rosine a acondicionar as malas no tejadilho, que não pararam de dançar durante a viagem, talvez por não estarem apertadas. O autocarro fora sempre folgado, desde que o apanharam até que chegaram, e atrás dele seguira um carro conduzido por um conhecido de um conhecido de um amigo do pai que fizera questão de estar à sua espera para o ajudar. O cargo que ocupara em Mabanza fizera dele um homem com contactos em África. Lusaka era o destino possível.

A caminho de Lusaka, «parámos para irmos à casa de banho, em casa desse conhecido, mas, quando entrámos, eu vi umas baratas voadoras enormes e fiquei cheia de medo. Eram horríveis.» Ainda assim, entre manter-se desconfortável e enfrentar as baratas, Rosine não tivera alternativa a não ser socorrerse daquele lavado. «Ficámos naquela casa um dia ou pouco mais e, depois, seguimos para outra, já na capital, que era de um amigo próximo do meu pai. Não era político, mas também não sei o que fazia. Tinha uma casa muito bonita, moderna e enorme. Os filhos estudavam em escolas privadas e eram crianças da nossa idade, com quem brincávamos.» O conforto da casa do amigo do pai durara apenas um mês.

O homem, receoso de vir a ter problemas por continuar a albergar um antigo presidente de câmara hutu e a sua prole, sugerira que se mudassem para outro lugar qualquer o mais rapidamente possível. «O meu pai encontrou uma casa nos arredores da capital, onde ficámos uns seis meses.» Alugaram-na durante esse tempo e cuidaram dela com o esmero possível de quem sabe que não está ali para sempre, mas que precisa de ter o mínimo de condições: «Tínhamos uma casa muito limpa. Estávamos sempre a esfregar o chão com uma cera vermelha e íamos buscar água muito longe, com baldes de plástico brancos e vermelhos que eu trazia à cabeça. A luz estava sempre a faltar e era por causa disso que havia imensa gente na rua a vender velas, a gritar: “Candle, candle!”»

Porém, menos de um ano depois de terem chegado à Zâmbia estavam, novamente, a partir. Rosine e os irmãos ainda frequentaram a escola, onde aprenderam as primeiras palavras em inglês, língua oficial do país, e a mãe amealhara alguns kwachas (moeda da Zâmbia), com a venda de uns bolos que eram uma espécie de queques e que ela aprendera a confeccionar muito bem. Cozia-os no forno do fogão que o amigo do pai de Rosine oferecera, por caridade, e entregava-os à empregada para que ela os fosse vender aos donos dos cafés e dos restaurantes das redondezas. A rapariga levava os queques e também as ibijumba (batatas-doces) que comprava no mercado a bom preço. «A batata-doce é muito boa», assegura Rosine, como se nunca mais tivesse conseguido provar outras tão gostosas como aquelas.

A Zâmbia entendera-se com o Ruanda e a notícia chegara-lhe aos ouvidos, como se fosse um assunto que lhe dissesse respeito. Com sete anos feitos e a caminho dos oito, em Bakavu, no Zaire, a menina começara a dominar algumas questões políticas. «A Zâmbia tinha de entregar toda a gente. Procuravam pelo meu pai, mas os vizinhos diziam que não sabiam de nada e que nem sequer o conheciam», relembra. O seu pai estava na lista dos homens a capturar. A Frente Patriótica Ruandesa assumira o poder e lançara uma caça aos hutus dentro e fora do país. O antigo presidente da câmara da Mabanza era um inimigo a abater, julgado um pactuante com os génocidaires hutus, os mentores do genocídio da etnia tutsi. No entanto, as suspeitas que recaíam sobre o pai de Rosine não correspondiam à verdade.

«Para onde vamos?», «Com quem vamos?», «Vamos encontrar-nos com alguém?», perguntara Rosine à mãe, que lhe respondera com consecutivos «Não sei! Não sei!». Ficara sem saber se ela não queria contar ou se não sabia mesmo, mas essa resposta evasiva evidenciara a iminência de mais uma etapa da aventura por África, envolta em mistério e cansaço. Pela terceira vez, tivera de arrumar a escova e a pasta de dentes, o pente e o champô, as meias e as cuecas, dentro da mochila que trouxera do Ruanda e que também lhe servia para guardar o estojo da escola onde ficavam a nadar um lápis roído e metade de uma borracha.

Era de noite quando um carro, conduzido por um conhecido do pai, que ela nunca vira antes, estacionara à porta de casa. Pouco tempo depois de a viatura ter parado, a família enfiara-se nela com a agilidade e a discrição exigidas pela situação. Tudo se complicara durante os últimos dias, mas sobretudo durante as últimas horas, e qualquer sinal de fuga mais evidente poderia terminar da pior maneira. Chegaram de madrugada à estação de camionetas de Lusaka. «Ali havia pessoas à nossa procura e tivemos de disfarçar. Separámo-nos e começámos a andar dois a dois para que ninguém nos conseguisse identificar. Tivemos imenso medo e foi aí que comecei a ficar traumatizada com os polícias.»

Cada um deles sentou-se numa zona diferente do autocarro, para que não parecessem relacionar-se uns com os outros. Apenas a mãe de Rosine e o irmão mais novo seguiram no mesmo lugar, porque o pequeno acomodara-se ao colo, na esperança de conseguir permanecer assim o máximo de tempo possível. Aconchegara-se nos braços da mãe e, não muito tempo depois da partida, adormecera. A família levantara-se cedo e as crianças viram-se vencidas pelo sono, que dera sinal mal sentiram os primeiros solavancos do autocarro. «A determinada altura, a polícia mandou parar o autocarro e pediu para sairmos todos. Fizeram um interrogatório aos meus pais que nunca mais acabava, mas, no final, deixaram-nos entrar e não lhes tiraram nada. Foi um dia e meio de viagem.»

Fatigados, quase esgotados, chegaram à estação terminal de autocarros de longo curso de Lilongue. Estavam finalmente na capital do Malaui e, também ali, alguém se disponibilizara para os receber. Um senhor, que Rosine desconhecia, abordara-os gentilmente e pedira-lhes que o seguissem, a pé. Depois de tantas horas sentados, desentorpecer as pernas à custa de uma caminhada poderia ter sido uma proposta interessante, não estivessem todos quase no limite da resistência. «Pediu-nos que nos fôssemos registar no centro do ACNUR, onde nos deram vacinas e nos tiraram sangue. Estiquei o dedo anelar da minha mão esquerda e assim fiquei algum tempo, enquanto me picavam até preencherem uma folha inteira. Dali saímos de carro até ao campo de refugiados de Dzeleka.»

Em fileiras, alinhadas com precisão, indiscriminadamente iguais na cor de cinza-cimento e nas dimensões tipo armazém, assim descreve Rosine as casas do campo de refugiados de Dzeleka, cujo solo em redor eram indiscretas pedras britadas que denunciavam alguém sempre que lhes punham os pés em cima. Por dentro, as divisões eram feitas de panos esticados, desde o tecto até abaixo, ficando cada um desses compartimentos por conta de uma família que dormia em beliches, comia sobre as esteiras riscadas desenroladas no chão e saía do seu recanto sempre que necessitava de se socorrer dos balneários colectivos, instalados em frente dos pavilhões. «Era muito bom, porque à volta do campo havia sementeiras. O sítio era muito calmo, não era perigoso, mas também não tinha futuro.» Recorda a preocupação dos pais.

Dzeleka, situada no distrito de Dowa, a norte de Lilongue, albergava mais de mil requerentes de asilo provenientes de vários países de África. Entre os ruandeses, estavam também zairenses, somalis e burundis. «Dávamo-nos todos bem. As crianças brincavam umas com as outras e frequentavam a escola do campo. Eu tinha um professor muito pobre que ia ter com a minha mãe para ela lhe dar comida, que cozinhávamos em casa.»

Saturada dos afazeres que nunca tivera em cunhenheri, a mãe de Rosine encorajara o marido a tomar aquela que julgava ser a melhor decisão para todos: abandonar rapidamente o Malaui. Acreditava que recomeçar a vida em Moçambique seria mais proveitoso do que ficar naquele campo de refugiados à espera do dia seguinte, que se mostrava igual e, por vezes, pior do que o anterior. Ela sabia o que era estar acompanhada por criadas que a assistiam em todas as tarefas, inclusive a cuidar das crianças. Uma cozinheira, uma empregada doméstica e uma baby-sitter desempenhavam funções que nunca fora obrigada a fazer, depois de casada, porque contava com alguém para a assistir em qualquer momento. Mas em Dzeleka atingira o desgaste que nunca conhecera antes. A empregada que trouxera consigo já não parecia a mesma; a rapariga começara a mostrar-se mais preocupada em zelar pelos seus interesses do que em tratar com desvelo absoluto, como até então fazia, tanto os patrões como as crianças. Aos vinte e oito anos, desejava ardentemente encontrar um homem que a fizesse feliz e lhe desse filhos. Tinha a certeza de que, andando atrelada à família do ex-autarca, muito dificilmente organizaria a sua vida e, afinal, já não era propriamente uma criança. Atingida por uma súbita devoção, a rapariga passara a dedicar a sua existência à Igreja Protestante do Malaui, na tentativa de encontrar um caminho. Até Rosine estranhara a evangelização da criada.

Há várias horas que não parava de chover. A abundância de água era tanta que as torrentes corriam impetuosas e com uma irritação violenta, capazes de arrastar, à sua passagem, os mais desprevenidos. Tudo à volta se mostrava lodacento e desfigurado. Algumas mulheres do campo de refugiados arriscaram enfrentar o dilúvio e saíram na direcção do mercado, à semelhança do que faziam todos os fins-de-semana. O caminho até ao lugar das vendas fora feito de camioneta e correra sem sobressaltos de maior, exceptuando a dificuldade que o motorista tivera em se aperceber onde terminava a via e começavam as bermas. Mas o regresso não correra bem. Um violento e tresloucado curso de água, que vinha ganhando força à medida que avançava, apoderara-se da estrada como se fosse sua e empurrara o autocarro até este tombar com o vigor da corrente. Morrera muita gente. «Foi um dia muito triste. Felizmente, não ia ninguém da nossa família. O meu tio que tinha ficado no Zaire foi ter connosco ao Malaui, juntamente com a minha tia, dois irmãos dele, duas irmãs dela e os filhos, os meus primos.»

Esta tragédia não evitara que a família cumprisse o que tinha programado: partir para Moçambique. O ano de 1996 estava a terminar, o mês de Dezembro chegava ao fim e, com ele, iniciavam mais uma etapa do périplo por África, que Rosine ansiava por ver terminado. Desta vez, a criada ficara por sua conta e não viajara desde Lilongue até à província de Tete.

Fora na estação de Tete que terminara a viagem. Sem modos, o motorista saíra da viatura e, desajeitado, despejara as malas que transportara até ali, assim como os passageiros, que também pareciam coisas, tal a rudeza com que foram tratados. A bagagem ficara amontoada entre as famílias, que, por sua vez, também estavam amontoadas, e sobretudo à deriva, sem saber como iriam sair dali. O estado em que chegaram em nada dizia respeito ao condutor, que se mostrara indiferente quando lhes virara as costas. Para a família de Rosine, Tete fora apenas o trampolim para alcançar Maputo, e nada fazia crer que pela frente estaria, finalmente, uma aventura turística agradável.

O calor que se fazia sentir começara quase por entontecê-los, como se não estivessem habituados à ardência do clima tropical. Para quem nascera a respirar o bafo quente e húmido, a temperatura de Tete, que facilmente atinge mais de quarenta graus, não deveria causar estranheza nem motivo para observação, mas, efectivamente, até para um africano era demais. Ainda hoje recorda a sensação desconfortável de ter a roupa colada à pele. Rosine não conseguira confirmar a temperatura num termómetro, porque não tinha onde. Dera pelo clima abrasador mal pusera um pé fora do autocarro, que, por sinal, já lhe vinha queimando as pernas, de ter os bancos tão quentes. Para além dessa sensação desagradável, também estranhara a língua dos moçambicanos, que lhe parecera ser uma espécie de francês mal pronunciado, mas que era português. Como se tudo isso não bastasse, deparara com gente quase branca como até ali nunca tinha visto, mas que achara curiosa, e que fora resultado da presença lusitana. «Vimos gente muito branquinha. Eles não eram brancos nem pretos, tinham uma cor diferente», relembra.

Sem planos para as horas seguintes, a família apoderara-se de uma parte da estação terminal de Tete e estatelara no chão as malas, os sacos e as mochilas para neles se recostarem, até a extenuação dar sinal de querer sumir, o que não acontecera. A madrugada dera lugar à alvorada sem que nenhum deles estivesse preparado para outra penosa retirada, que em breve teria início. Com a família de Rosine pernoitara outra que também viera de camioneta desde Lilongue e que residia junto do campo de refugiados de Dzeleka. O «chefe» dessa família fizera amizade com o ex-autarca e decidira oferecer-se como seu guia na travessia mais difícil, que era, nem mais nem menos, atingir Maputo atravessando a pé a Suazilândia.

A pequenez do país fora responsável pela decisão tresloucada da família de Rosine, que, na ânsia de alcançar a capital moçambicana, se aventurara a galgar montanhas, percorrer trilhos e cortar mato. Um autocarro levara-os de Tete até bem perto da fronteira com a Suazilândia e não mais do que isso. A partir dali deixaram de contar com qualquer meio de transporte, a não ser as próprias pernas. Estaria pela frente um dia a andar a pé, se tudo corresse bem. «A polícia sabia que havia pessoas a fazer aquele percurso a pé e, por isso, tínhamos de ser muito discretos e não podíamos fazer barulho», relembra Rosine. A discrição não fora suficiente para evitar a reviravolta do plano traçado. A polícia agarrara-os. «Havia um sítio que tinha arame enrolado; quando estávamos a tentar atravessá-lo, fomos apanhados. Levaram-nos para uma esquadra, onde ficámos uns dez dias e, no final desse tempo, fomos para uma esquadra da capital.» Aí ficaram quinze, sob pressão e inúmeros interrogatórios. Trocaram a esquadra de Mbabane, a capital administrativa, pelo campo de refugiados. «Eu não sei em que campo de refugiados ficámos. Estava tão confusa que, por mais que me queira recordar, não consigo», admite Rosine.

«Estivemos três meses na Suazilândia. Os meus pais nem tiveram tempo para começar a trabalhar. A minha mãe ficava sozinha em casa, a lavar loiça e roupa, enquanto o meu pai andava não sei por onde. Nós, os mais velhos, estávamos na escola.» No entanto, as crianças tão depressa ingressaram na escola como saíram dela. A sombra impertinente dos tutsis seguira-os até à Suazilândia. A lista onde constava o nome do ex-presidente da autarquia de Mabanza rapidamente começara a circular por ali, e não fora preciso muito tempo para que o próprio foragido tomasse conhecimento da relação ordenada de nomes a eliminar. Mais uma vez, a família ficara cercada e apenas com uma saída: despistar os perseguidores. Sozinho, o pai de Rosine fugira do campo de refugiados em direcção a Maputo, a capital moçambicana, e deixara para trás, propositadamente, a mulher e os filhos, que dias depois conseguiram ir ao seu encontro.

Rosine deixara de se chamar Rosine, os pais perderam o nome que tinham e os irmãos também, à excepção do irmão mais novo, não fosse o menino desmascarar inocentemente toda a família, pondo em causa a vida de cada um deles. Depois de adquirida nova identidade, que, para todos os efeitos, passara a ser a verdadeira, a mãe e os filhos pediram ajuda junto do NAR (Núcleo de Apoio aos Refugiados), enquanto o pai continuava a viver numa casa situada a caminho do campo e que, mais tarde, fora identificada por Rosine como a casa que ficava nas traseiras da «Casa Branca», ou seja, junto ao palácio presidencial da Ponta Vermelha.

O desmembramento da família não acontecera por acaso. O objectivo era confundir quem estivesse interessado em acabar com o antigo edil. Levaram a cabo a encenação ao longo de dois meses. Enquanto simulavam a separação, acreditavam que também as gentes com quem conviviam diariamente lamentavam desconhecer o paradeiro do ex-presidente. No entanto, ninguém fizera nada para os ajudar a restabelecer a união, perdida à custa dos empurrões de país para país. Não o fizeram e em boa hora, porque o pai de Rosine aparecera dois meses depois, quando julgara oportuno mostrar-se. Dirigira-se ao campo de refugiados de Massaca II, no distrito de Boane, a pouco mais de trinta quilómetros a oeste de Maputo, e fizera um espalhafato na altura do suposto reencontro. «Dois meses depois de termos chegado, o meu pai fez de conta que tinha aparecido naquele momento», confirma Rosine.

Inábeis para oferecer aos filhos o que sempre almejaram e que Massaca não conseguira oferecer, decidiram pedir abrigo às Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição. Em Lhanguene, a Casa da Madre Maria Clara do Menino Jesus, nome pelo qual era conhecida a instituição, albergava, por caridade, crianças abandonadas, órfãs e estrangeiras, e este era o caso de Rosine e dos seus irmãos. À excepção do mais novo da família, todas as meninas foram aceites no convento.

Rosine entrara contrariada para o colégio da comunidade religiosa e assim se mostrara durante os primeiros tempos. O rigor dos horários, a que não estava habituada, aborrecia-a. Ficava rabugenta com as penosas alvoradas e desagradada com o recolher prematuro. Passara a viver controlada de manhã à noite, sujeita ao ritmo da vida conventual, pouco dada a esbanjamentos, nem mesmo de tempo. Caso se distraísse quanto às suas responsabilidades, a madre fazia tudo para que não voltasse a sair do bom caminho. Com castigos apropriados à idade, avivava-lhe a memória; e não se privava de os repetir, se fosse necessário, até a menina não voltar a esquecer a disciplinada rotina a que estava obrigada.

Os castigos não passavam de tarefas instrutivas, que Rosine se habituara a fazer em cunhenheri, mas que não voltara a repetir desde que deixara o Ruanda. A limpeza dos galinheiros não era um encargo que desconhecesse. Quantas vezes ajudara a dar de comida às galinhas e a mudar a água dos bebedouros com o mesmo carinho com que cuidava da sua ave de estimação, que partilhava consigo o quarto e que deixara desamparada no «lugar da estrela», dando assim licença a depenarem-na para um repasto! Dispensava os afazeres na cozinha e na lavandaria, assim como a limpeza das casas de banho e dos dormitórios, mas tentar escapar a esses deveres era atrevimento que não seria bem sucedido.

As manhãs começavam com um vómito que nunca conseguira evitar. As papas servidas ao pequeno-almoço, onde Rosine era capaz de descobrir gorgulho, mesmo que o não tivesse, deixavam-na agoniada até à refeição seguinte, feita à base de feijão e arroz, que num ápice a irmã despejava no seu prato, tal a agilidade com que o soltava da colher. Mas o olho clínico da menina também descobria aí, já inanimados, alguns bichinhos característicos da planta gramínea e das vagens do feijoeiro. Não recomposta do pequeno-almoço, era obrigada a engolir a refeição do almoço, que a deixava enfastiada para o resto do dia. «Eu não era capaz de comer», relembra Rosine a dificuldade que sentira nas horas das refeições. «As irmãs punham a comida do almoço por cima das papas que sobravam do pequeno-almoço e depois ameaçavam-nos, dizendo que tínhamos de comer.» A descrição ainda hoje lhe dá a volta ao estômago.

Com o passar do tempo, adaptara-se aos novos hábitos e aceitara o convento das Irmãs Franciscanas como sendo a sua própria casa. Ali ficara os primeiros meses sem poder sair para ir visitar os pais. As regras assim o determinavam e nada fazia contrariar o ritmo da vida conventual. Conformada, aguardara até ao dia em que a madre permitira a primeira saída. Rosine deixara o convento com as quatro irmãs para um fim-de-semana entre Massaca e Maputo.

A idade despertara na pequena interesses que até então nunca tivera. Estava quase com onze anos. Os passeios de machimbombo ao longo das largas e modernas artérias de Maputo, salpicadas de acácias rubras e de jacarandás de flor lilás, deixaram-na seduzida. Achara soberba a avenida Marginal, debruçada sobre a praia da Costa do Sol, banhada pelo Oceano Índico. A Catembe, lá ao fundo, aonde nunca chegara a ir, prendera-lhe a visão. Maputo era a cidade mais moderna por onde até então tinha passado, e os fins-de-semana fora das portas do convento trazem-lhe, hoje, recordações que a memória faz questão de não querer extinguir.

«Estávamos nas freiras, as minhas irmãs e eu, quando recebemos a notícia de que a casa no campo de refugiados em Massaca II, onde os meus pais estavam a viver com o meu irmão, tinha ardido completamente. Ardeu a casa e ardeu o resto, ardeu tudo; até o dinheiro que eles lá tinham. Os meus pais viram-se obrigados a sair de lá e vir para Maputo», relembra Rosine o desagradável episódio, que, no entanto, não conseguira deixar a família de rastos. Habituada às más notícias, a mãe encarara a contrariedade como um acaso a ultrapassar e que, comparado com todos os acontecimentos anteriores, não tinha a menor importância. «A minha mãe sempre foi uma mulher com muita força. Consegue apagar da memória aquilo que não interessa.» E assim fez a mãe de Rosine.

A primeira decisão que tomara fora arranjar maneira de meter num avião a filha mais velha, já com dezasseis anos, em direcção à Bélgica. Conseguira-o. Na hora da partida, pedira-lhe que fosse esperta o suficiente para conseguir dos belgas o estatuto de refugiada, que seria melhor num país europeu do que num africano. A rapariga cumprira os conselhos e, sempre que lhe perguntavam onde estavam os pais, encolhia os ombros e fingia não saber do seu paradeiro. Fora o que a mãe lhe pedira para fazer. Ao mesmo tempo que encaminhava a filha mais velha, começava a trabalhar na farmácia do Hospital Polana Caniço, em Maputo. O emprego surgira-lhe depois de as Irmãs Franciscanas terem tido conhecimento da desgraça que acontecera à família e de terem pedido ajuda à directora do estabelecimento hospitalar, que se prontificara a arranjar uma ocupação para a senhora e até uma casa onde ela pudesse morar com o marido e o filho mais novo.

O incêndio na habitação do campo de refugiados trouxera, afinal, boas notícias. A mãe de Rosine conseguira arranjar uma ocupação, o pai começara a vender roupas pelos mercados da cidade juntamente com uns amigos, a irmã mais velha estava na Bélgica e, ainda por cima, tinham-se mudado para o centro. «Essa casa ficava em Eduardo Mondlane, era um apartamento bom.» Mas não gozaram por muito tempo esse apartamento: «Os meus pais foram obrigados a ir para uma casa mais modesta e conseguiram arranjar um rés-do-chão, perto do aeroporto.»

O que estava bem encaminhado rapidamente se invertera. A Frente Patriótica Ruandesa não desistira de procurar o antigo autarca de Mabanza e seguira-lhe o rasto até Moçambique. A lista onde constava o seu nome nunca deixara de circular e chegara, finalmente, a Maputo. «Os espiões ruandeses andavam atrás do meu pai. Ele estava numa lista de pessoas a abater.» O cerco começara a apertar-se e o pai ficara, praticamente, sem saída. Vira como a única solução a fuga para a África do Sul. Deixara Maputo e partira sem saber quando nem como ia chegar, ou mesmo se ia chegar.

Dias depois, a mãe de Rosine fora surpreendida por um carro que a aguardava à hora a que habitualmente largava o trabalho, na farmácia Polana Caniço. Quando ia apanhar o transporte que a levaria a casa, alguém tentara empurrá-la para dentro do veículo; porém a resistência e o aparato dissuadiram os raptores, deixando-a atarantada mas decidida a agir. Não podia ficar ali. Mãe e filhos estavam descobertos, não havia dúvida. A qualquer momento, as mãos da vingança agarrá-los-iam e, para que isso não acontecesse, uma debandada repentina era a alternativa.

Não viveram mais do que quatro meses no apartamento do rés-do-chão, onde o pai nem chegara a dormir, tal o aperto com que se retirara. A promessa de que em Portugal havia gente disposta a ajudá-los fizera com que a mãe de Rosine mandasse encher as mochilas para se porem a caminho. Há mais de um ano que não era escutada tal imposição. «Quem nos ajudou foi a dona do hospital. Ela tinha uns contactos em Portugal e arranjou maneira de virmos para cá. Depois, as freiras conseguiram juntar algum dinheiro para as passagens aéreas.» Mas o dinheiro que juntaram não fora suficiente, pois ficara a faltar algum para trazer duas irmãs. «Duas das minhas irmãs ficaram em Moçambique, porque não havia dinheiro para as trazer.» Animosa, como era seu hábito, a mãe optara por deixar no convento as irmãs mais velhas de Rosine, esperançada de, mais cedo ou mais tarde, as chamar para junto de si. Mas, apesar da energia que a caracterizava, a alma ficara-lhe presa, por garras, à cidade de Maputo e à casa da madre Maria Clara. E, com o coração feito em cacos, abandonara Moçambique de mão dada com Rosine, com a filha mais nova e o seu único menino. Partiram os quatro.

Confundida com tudo ao seu redor; espantada com a velocidade com que mudava de país, de casa, de escola, de professores, de língua e de nome; estranhando a desordem em que se encontrara e a velocidade com que tudo era e deixava de ser; forçada a perder, aos bocadinhos, a inocência; acostumada a livrar-se de hábitos e de gentes, de ideias e de costumes; acanhada de medo; de mochila às costas; de cabelo entrançado, de orelhas furadas e quase com onze anos, assim chegara Rosine a Portugal.

Chegara sem a sua galinha, que ficara em cunhenheri, sem ter bebido o sumo de banana da avó; sem o pai, porque o perdera pelo caminho; sem as irmãs, porque se desprendera delas; sem a empregada, porque ela preferira outro rumo; sem saber falar português, porque não teve tempo de aprender a língua; sem casa onde morar, nem amigos com que brincar, nem a certeza de ficar. Rosine chegara triste de um passeio que lhe parecera sem fim.

Rosine chegou a Portugal no dia 19 de Novembro de 1998 e foi-lhe concedido o estatuto de refugiada a 8 de Fevereiro de 1999.

 

Três dias e três noites

Guardou-se para aquele homem, foi o primeiro da sua vida. Sempre embrenhada nos estudos, sempre preocupada em aprender, nunca perdeu tempo em namoricos de miúda nem em relações mais sérias, até ao dia em que ele a convenceu a assumir um compromisso. Já se tinham cruzado nos bancos da escola, nos recreios, na fila para o almoço e até nas ruas lá da terra, mas isso não foi o bastante para distrair uma menina que não ligava a essas coisas. Os rapazes ainda não lhe despertavam nenhum interesse especial.

Persistente na corte, ele fez dos amigos dela o seu círculo de amigos. Sábio, conseguiu prendê-la. Distraía-se com as formas airosas da rapariga. Ela era alta, magra, de cabelo farto mas escorrido, a tocar nos ombros, em castanho-escuro mas sem espreitar o preto. E ele apreciava a pacatez do seu comportamento, porque era tímida, compenetrada, e transbordava de sentido de responsabilidade, fruto de uma família que sempre soube gerir o lar e educar os filhos.

Aos dezoito anos, ela julgava-se demasiado nova para enfrentar um caso daqueles que obrigam a apresentações à família e a perguntas incómodas. Fosse por esse motivo ou por outro, o certo é que gozou dois anos de namoro escondido e só no final desses dois anos é que o segredo foi revelado.

Durante meses a fio, ele esforçou-se por não quebrar o pacto de silêncio que tinha assumido com ela e manteve-se-lhe fiel, arrastando consigo o compromisso para onde quer que fosse. Mas, um dia, explodindo de vontade de contar, deu a conhecer o caso à sua irmã, e isso foi o suficiente para que a notícia corresse depressa. Moravam num daqueles lugares onde os mexericos se sabem num instante.

A alcoviteirice fez com que o pai dele tivesse ido a casa do pai dela formalizar a relação, porque a tradição o impunha. O encontro entre os compadres correu bem e, a partir daí, os filhos namoraram, despreocupadamente, mais dois anos. Ela passou a andar solta e tranquila e ele agradeceu a sua serenidade. A atitude dela era própria de quem já não temia a descoberta de um segredo.

Ela sabia que um namoro assim tinha tudo para terminar em casamento. «Ele amava-me», comenta. A expressão, solta-a doce dos lábios e profere-a num tom quase sussurrado, capaz de denunciar alguém que sente cada letra que a compõe. Era tão certo esse amor que, seguramente, era possível prever o futuro, e isso era tudo aquilo de que ela precisava para casar com ele. Queria ser feliz e era capaz de jurar que aquele homem iria fazer dela uma mulher bem-aventurada.

Escolheram o dia 6 de Abril de 1995. Respirava-se o ar fresco que vinha das montanhas, sentia-se um vento soprando de mansinho, atenuado pelo calor do Sol, que se fez convidado, e adivinhava-se uma tarde quente, como as que as solarengas alvoradas de Primavera sempre anunciam. Estava, na verdade, um dia radioso em Kukes, a cidade onde ela nasceu, cresceu e decidiu casar.

Kukes emerge num dos mais deslumbrantes vales da Albânia, forrado de verde profundo, onde a esplêndida vegetação se alimenta durante o ano inteiro das águas dos rios Negro e Drin Branco, que desaguam no Mar Adriático. Do sopé avistam-se as montanhas que emergem em redor dos prados. São esguias, agrestes, quase nuas. Altivo, entre a cordilheira, está o pico do país, o monte Korab. Um cenário natural que qualquer fotógrafo desejaria ter para enquadrar a pose de um par de noivos, que parece ser igual em qualquer parte do mundo.

Ela estava com boa aparência para enfrentar a objectiva, apesar de já não dormir há quase um dia. Não tinha sido atingida por uma súbita insónia pré-nupcial: simplesmente o penteado não lhe tinha permitido gozar o amparo da almofada. Trocou a cama por um sofá e aí tentou repousar, dormitando, mas pouco. Afinal, as cinco horas que tinha passado no cabeleireiro não podiam ser postas em causa, apesar de o corpo pedir um descanso mais profundo.

Dizia-se, na terra, que para os lados de Pogradec havia uma cabeleireira bastante experiente e capaz de fazer milagres com qualquer cabelo. Mas o dela não era um cabelo qualquer. Tinha uma abundante, longa e forte cabeleira de cor castanha, que facilitava o trabalho da profissional. O rosto era perfeitamente emoldurado por essa melena escorrida, que em harmonia combinava com o seu rosto rosáceo, a espelhar saúde, onde a genética lhe esculpira uns expressivos olhos castanhos e uma boca grande de lábios finos. Ela queria que a penteassem bem, como qualquer noiva merece, e isso nem todas as cabeleireiras sabiam fazer. Cobiçava um penteado arquitectado com rosas feitas do próprio cabelo e com uma madeixa sua, que ela tinha guardado de um corte menos ponderado, para uma ocasião especial como aquela. A cabeleireira de Pogradec estava à altura da sua exigência e, na verdade, de quase todas as noivas, porque a moda eram os penteados estruturados.

Cinco horas depois de ter entrado no salão, saiu envaidecida com o cabelo enroladinho em forma de rosas, que a profissional aconchegou a outras verdadeiras, de cor branca, e que agarrou com ganchinhos. Para além dos adornos, tinha uma madeixa, que sobrava ao comprimento, a pender para cima do ombro esquerdo. Assim penteada, e já maquilhada, chegou a casa dos pais para iniciar as festas de casamento, tal como se costuma dizer. É que estas cerimónias começam um dia antes do casamento propriamente dito. A partir de sábado à tarde e até às doze horas de domingo, a noiva chama para junto de si aqueles de quem mais gosta e com eles inicia a despedida de solteira. É uma tradição albanesa.

Ia a tarde de sábado já a meio quando os convidados começaram a chegar. Uns chegavam a pé, outros de carro; ora entrava um vizinho, ora um amigo que morava mais longe. Vinham famílias inteiras ou casais sem descendentes. Mais de quatro dezenas tinham recebido um convite formal para o jantar em casa da noiva.

Foi com algum esforço que o pai ganhou dinheiro para pôr de pé aquela casa, uma moradia suficientemente grande para acolher os filhos que viessem. Nasceram cinco, três rapazes e duas raparigas, agora homens e mulheres já feitos. A habitação cresceu apenas com um piso, por sinal bastante avantajado. Pintada de branco e discreta, estava rodeada por um pedaço de terreno de tamanho razoável, com mais ou menos quinhentos metros quadrados de cultivo e uma zona de passagem tanto à frente como atrás. Havia espaço suficiente para os convidados circularem.

As mesas foram colocadas dentro de casa. Instalaram umas na sala, outras nos corredores e mais umas quantas num quarto que desmontaram para o efeito. Não estava mal, mas também não tinha o requinte de um restaurante vocacionado para servir convivas de festas matrimoniais, onde alguns noivos gostavam de fazer o copo de água.

Mal as iguarias começaram a sair da cozinha, todos se ajeitaram para o manjar. As cadeiras, puxadas pelos convivas quase ao mesmo tempo, rojaram os seus pés de madeira no mosaico amarelado, em direcção aos pratos e talheres. Com estes movimentos, quase instintivos, deu-se o início daquilo que, para a maioria dos convidados, é o melhor momento de qualquer casamento.

Ao repasto juntou-se a música. O pai fez questão de pagar a um grupo para tocar durante a festa. Os sons tradicionais foram entoados por três rapazes que trouxeram consigo bombos e flautas. Cantou-se e dançou-se pela noite dentro até a família da noiva dar por encerrada a primeira parte do casamento.

Sem energia para mais, ela apoderou-se do sofá onde iria tentar repousar durante as horas que faltavam para receber o noivo, mas fingia estar a dormir, porque o seu penteado tinha de se manter intocável até ao meio-dia desse domingo e já passava das três da manhã.

O relógio de pulso marcava dez e pouco quando ele enfrentou o espelho para a derradeira miragem. Ergueu o pulso esquerdo, confirmou as horas duas vezes seguidas e olhou-se finalmente. Escolheu o espelho do toucador do quarto, onde só se conseguia ver pela cintura se estivesse muito próximo. Era essa perspectiva de meio corpo que desejava alcançar e, por esse motivo, aproximou-se do móvel. Ajeitou a rosa branca que a mãe lhe tinha posto na lapela, igualzinha àquelas que ela ainda não tinha deixado que se desprendessem do cabelo, e observou-se de perfil, primeiro do lado esquerdo e depois do lado direito. Tinha vestido um fato preto, uma camisa branca e uma gravata de nó fino e pouco vistoso, feita em cinzento-azulado, também com uma rosa branca mas bordada à máquina. «Estou bem!», confirmou. «Estás lindo!», exclamou a mãe.

O vestido da noiva assentava-lhe bem. Não tinha emagrecido nem engordado desde o dia em que o fora buscar. Era tufado nas mangas, muito rodado e salpicado de rosas brancas iguais às do cabelo e à da lapela dele. Era de um branco puríssimo, acetinado. E alugado. «Não valia a pena dar uma fortuna por um vestido que nunca mais se vai usar», comenta ela. Por este motivo, preferiu escolher o mais bonito, na loja de aluguer, a comprar um. O aluguer ficava por metade do preço e era vulgar entre as noivas que não podiam alimentar luxos.

O meio-dia de 6 de Abril de 1995 foi o momento marcado para o registo civil do enlace. Nem a noiva nem o noivo fizeram questão de celebrar um casamento religioso, fiel aos ritos da tradição muçulmana, religião dominante na Albânia e assumida pela família de ambos. «Eu sou muçulmana porque os meus pais me disseram que éramos, mas nunca fiz nada de especial.» Sincera no comentário, pergunta-se a si própria por que motivo haveria de praticar o Alcorão se nunca o lera, nem albanês nem em árabe, língua que desconhecia por completo; pergunta-se a si própria por que motivo haveria de seguir os ritos do mundo islâmico, na altura de aceitar aquele homem como marido, se nunca os tinha praticado; pergunta-se a si própria por que motivo teria de se comportar à luz do livro sagrado, se cresceu a esconder a religião com receio de ser presa ou executada. No entanto, sempre se conheceu com fé, nunca duvidou do mais profundo sentimento de crença. Acabou por descobri-la na religião católica. Aos 18 anos, pegou na Bíblia e leu-a de uma ponta à outra, do Antigo ao Novo Testamento. Descobriu aí um ser superior, igual para todos, um Deus que não é destes nem daqueles. «Deus, Tu que sabes tudo, ajuda-me!» Sem rodeios, assim se dirige, nos momentos de incerteza, ao ser supremo que não é muçulmano nem católico, e que é dela e talvez de todos.

Não se conhecia motivo mais forte para o casal ter preferido o registo civil à celebração religiosa do que esta entrega ao culto do divino, sem a crença numa religião.

Foi na conservatória de Kukes que as famílias dos noivos testemunharam a união. Os padrinhos estavam ao lado deles, como sempre estiveram desde o primeiro dia, desde o momento em que cortaram o primeiro pedacinho de cabelo dos pequenos, como dita a tradição albanesa. Foram os pais que os escolheram, tendo em conta a gratidão, a confiança e a proximidade. São sempre pessoas muito queridas da família e são elas que cortam a primeira madeixa de cabelo dos filhos, como prova desse reconhecimento.

O casal estava sentado e os padrinhos ficaram de lado, em pé, preparados para testemunhar o enlace. O livro de registos já estava sobre a mesa, mas, no momento em que o noivo se aprontava para ser o primeiro a inscrever no papel o seu nome completo, lembrou-se de que não tinha trazido uma daquelas canetas apropriadas para a ocasião e que se destacam por serem douradas ou prateadas. Ele até tinha uma, que guardava na cómoda do quarto, solta e misturada com a papelada, rebolando cada vez que abria e fechava a gaveta, porém tinha-se esquecido de a trazer. Ainda fingiu que levava a mão ao bolso interior do casaco, costurado no forro entre a cava esquerda e a gola, mas logo a fez recuar, a tempo de conseguir disfarçar a sua intenção, e sem hesitação pegou na esferográfica que o conservador lhe oferecia. Ele assinou. Ela assinou. Eram marido e mulher e estavam satisfeitos por terem selado quatro anos de namoro. Ela não vertera uma lágrima, no entanto o enlace ainda não passava de um papel assinado. Sabia que o mais difícil estava para vir.

Na casa dos pais da noiva voltava a estar tudo preparado para receber mais convivas. Do jantar da noite anterior tinham sobrado apenas alguns vestígios, mas nada que se aparentasse a uma balbúrdia. Estavam umas cadeiras fora do sítio: uma num canto da sala, outras no corredor e mais uma esquecida junto à porta da cozinha que dá para o quintal. Havia também, sobre a bancada da copa, dois tabuleiros com restos de carne e batatas e mais uma travessa com meia dúzia de doces folhados. De resto, as mesas estavam impecavelmente vestidas com toalhas brancas, lavadas e imaculadamente esticadas, que não deixavam imaginar que por ali tinha havido um banquete no dia anterior.

Para o almoço de domingo, em casa dos sogros, o noivo convidou apenas onze pessoas, familiares chegados, porque era habitual restringir o festim a um pequeno grupo. A noiva tinha mais gente, cerca de duas dezenas, mas menos do que na festa de sábado.

Desde a noite anterior que ela não comia nada. Ainda assim, o jejum não lhe tinha despertado o apetite, pois o estado de ansiedade em que se encontrava conseguira roubar-lhe a fome. Comeu apenas por comer, porque se não o fizesse não seria agradável e porque, afinal, era a festa do seu casamento. O tasibub estava até com excelente aspecto e ela comprovou o que a aparência lhe sugeria quando saboreou a primeira garfada de carne com batata, embebida num molho aromático à base de ervas que marinaram durante a noite no preparado. Era o seu prato favorito, mas, dessa vez, não degustou a sua preferência em matéria de gastronomia com a vontade habitual. O nervosismo tinha tomado conta dela e ela sabia que faltava pouco para que o ritual dos abraços e das despedidas a deixasse lavada em lágrimas e abalada.

O almoço propriamente dito já tinha terminado há muito quando o noivo se levantou. Ela seguiu-lhe o movimento e todos os familiares deixaram as conversas a meio, para acompanharem o erguer do casal. Na mesa sobravam os pratos de sobremesa e entre os convivas sobravam motivos para uma amena discussão. O casal estava preparado para as despedidas. Ela aproximou-se dos pais na mesma altura em que a mãe foi ao seu encontro. De braços estendidos, recebeu a filha, apertou-a contra o seu peito e beijou-a na face, ora num lado, ora no outro, uma, duas, três vezes. A filha retribuiu com emoção o carinho maternal e temeu que se soltasse a primeira lágrima. O pai, que aguardava pela sua vez com trejeitos mais contidos, mas não menos emocionado, beijou a filha quando esta se aproximou. E, no momento em que lhe passava a mão pelo rosto, o genro juntou-se aos dois e tomou os braços do sogro, num abraço forte. Não se ouviram palavras, apenas o som das palmas das mãos a bater nas costas. A restante família estava especada a assistir às despedidas. No final daquele instante mais íntimo entre pais e filhos, fez questão de desejar boa sorte ao casal.

Ela deixou a casa dos pais para a trocar pela dos sogros, em Hotolisht. Na ocasião de sair, levantou, timidamente, a mão direita, acenou a todos e conseguiu evitar que as lágrimas lhe corressem descontroladas. A mãe não se conteve e levou as mãos à cara para esconder os olhos humedecidos de emoção. Ele saiu atrás dela sem olhar para trás, assim preferiu. Dormiram nessa noite em casa dos pais dele, que já eram os sogros dela. Na segunda-feira partiram de carro para Durres.

Ele já conhecia Durres, ela nunca tinha estado lá. A lua-de-mel era, por isso, motivo suficiente para a levar até uma das cidades mais bonitas do país e também a mais antiga. Chegaram ao final da tarde, preparados para jantar no hotel. Ela não se sentia muito à vontade com os pormenores da recepção, que obrigam a preencher fichas com nomes e moradas, números e mais números. Foi ele que tratou de identificar o casal. Foi-lhes atribuído o quarto número 403, tendo em consideração que estavam em lua-de-mel. «É no quarto andar e tem vista para o mar. O elevador fica ali, depois destas escadas, do lado direito», disse-lhes a recepcionista.

Ele soltou a pega da mala preta de rodinhas, que puxava com a mão direita, para poder abrir a porta. O sorriso dela deu a entender que estava satisfeita com a escolha do aposento. Aproximou-se da janela, vestida de cortinas azuis e brancas, e contemplou o mar. Assim ficou durante alguns minutos.

Já não havia sol nem claridade que o revelasse escondido na linha do horizonte, quando o casal desceu para jantar, no restaurante do hotel. Dispostas ao longo de três mesas, travessas e estufas de inox recheadas de iguarias tradicionais, carne de aves estufada, lombos de peixe mergulhados em molho aveludado e pastas e saladas variadas deixavam qualquer hóspede indeciso no momento de compor o prato. Ele insistiu na carne, mas não conseguiu evitar outras propostas gastronómicas que, apesar do bom aspecto, não combinavam entre si. Ela preferiu repetir a massa. Durante a refeição petiscaram do prato um do outro e foi evidente a troca de colheres quando se deliciaram com os doces.

O restaurante não estava cheio, mas sim composto. A época estival ainda vinha longe, porém Durres é uma cidade que atrai visitantes durante todo o ano. As praias estendidas em redor da baía do Adriático, o porto fundado no século VII a.C., as muralhas e as torres medievais que se mantêm de pé e a concentração de poder económico, fruto de uma indústria e de uma agricultura em crescimento, fazem de Durres um centro de interesse.

Uma hora depois de terem descido para jantar, regressaram ao quarto, para a primeira noite a dois. Ela era uma jovem inexperiente e ele, apesar de ligeiramente mais velho, também não tinha muito para lhe ensinar. Estavam bem um para o outro. Na manhã seguinte, ela acordou mais tarde do que o habitual, eram 11h33. Confirmou o adiantado da hora, espreitando sobre o peito descoberto do marido, que, na posição em que se encontrava, encobria o relógio digital que compunha, juntamente com um pequeno candeeiro de pé, a mesa-de-cabeceira do lado dele. Confirmou duas vezes a hora e deixou cair a cabeça sobre o travesseiro que servia de apoio aos dois. Assim ficou, com os olhos bem abertos, dirigidos para o tecto do quarto, até se cansar dos seus pensamentos. Recordou o estatuto de mulher casada que tinha adquirido dois dias antes; estremeceu com as novas obrigações que por ela esperavam; pensou na relação que ia construir com os sogros e até nos filhos que gostaria de ter. Depois de pensar demais, saltou da cama e começou a preparar-se para gozar uma semana de lua-de-mel. O hotel Butrinti tinha sido a escolha de ambos.

Chegaram a Hotolisht, à casa dos pais dele, agora sogros dela, mais cansados do que partiram. O fim da lua-de-mel pôs termo a uma semana de férias bem aproveitada e deu início a uma nova fase na vida de ambos. Iam ficar a morar ali.

A casa era grande e tinha sido construída nas mesmas condições que o pai dela construíra a sua. Estava implementada num terreno de dimensões aceitáveis, que o sogro conseguira para ele e para os filhos, que entretanto foram nascendo e crescendo. Dali tirava o sustento da família e mais algumas sobras. Estava pintada de branco, era simples por fora e por dentro, rectangular, espaçosa, e encontrava-se erguida à custa de pilares dispostos em dois andares e de materiais de qualidade duvidosa. Apenas seis degraus, que davam acesso à porta principal, distanciavam a entrada da estrada que passava bem perto. Uma vedação de rede, em frente e dos lados, impunha algum respeito, mas não privacidade. Um quarto no primeiro andar tinha ficado reservado para o casal desde o dia em que decidiram casar.

Os primeiros tempos em casa dos sogros deixaram-na perdida e invadida por uma profunda saudade dos pais. Estivera sempre muito próxima deles e o casamento veio diminuir essa proximidade. Ainda levou quatro ou cinco semanas a ultrapassar os instáveis momentos próprios de um matrimónio fresco. No entanto, nunca teve motivos para se queixar da família do marido, porque, desde o primeiro dia em que chegou à sua casa, a sogra fez questão de a pôr à vontade. Circulava e mexia sem restrições onde fosse preciso, sem que essa liberdade fosse notada; pelo menos, nunca notara que os sogros tivessem feito, alguma vez, reparos desagradáveis. Mas, mesmo assim, chegou a sentir-se intimidada, e só o tempo desvaneceu essa sensação de estar num espaço que não era o seu. O sentimento de acomodação coincidiu com a altura em que recomeçou a trabalhar.

Encontrou em si jeito para a costura. Reconhece que foi uma das tias, a irmã mais velha do pai, que a ajudou a descobrir essa aptidão. Recorda-se bem de a ver sentada numa cadeira baixinha, com os joelhos sempre cobertos de tecido, o pescoço ligeiramente curvado sobre as mãos, que delicadamente faziam bailar uma agulha em movimentos ondulares, e os óculos quase a caírem da ponta do nariz. Recorda-se, também, do «tique» da máquina de costura, do pé a pressionar o pedal que ainda não era eléctrico e das mãos a empurrar o pano. Foram tantas as vezes que a viu de volta dos trapos e tantos os trabalhos que lhe mostrou que, na altura de optar por um curso, não teve dúvida de que tinha nascido para ser costureira. Durante três meses aprendeu a fazer cortinados, colchas e edredões, toalhas e tapetes.

Preferiu especializar-se naquilo que chamam o têxtil do lar. Tinha uns dezoito anos quando tirou o curso.

Depois do casamento, levou para casa dos sogros peças de enxoval feitas por si, que muito a orgulhavam. A rapariga tinha costurado algumas para guardar e outras para vender, quando ainda era solteira. Armazenara várias na arca de madeira, a pensar no casamento, e vendera outras para juntar dinheiro. Para além de colchas, lençóis e peças do género, levou também a máquina que os pais lhe tinham oferecido. Colocou-a num dos quartos do primeiro andar da casa dos sogros, que passou a fazer as vezes de um atelier.

Durante o primeiro ano de casamento ouviu a campainha tocar muitas vezes por sua causa. As mulheres das redondezas, algumas delas vizinhas da sogra, vinham atrás da habilidade da costureira, que não se cansava de finalizar encomendas de cortinados, mantas e outras peças de decoração para a casa, em troca de dinheiro sempre bem-vindo.

Logo pela manhã, entregava-se a alinhavar, cozer e chulear os trabalhos que tinha entre mãos. Sentava-se, pegava na costura que largara no final do dia anterior e iniciava o seu processo de concentração, auxiliado pela agulha e pelo dedal. Depois escutava o som estrondoso da porta da rua a bater. Esse barulho era a prova de que o marido acabara de sair a caminho das minas. Os horários dele cumpriam-se umas vezes bem cedo, outras mais tarde. Era técnico de minas, num subsolo rico em ferro, cromo, cobre, carvão, betume e até petróleo, na zona norte da Albânia, perto da fronteira com a Sérvia e Montenegro.

As investidas do marido com destino às profundezas da terra faziam lembrar as do pai, quando era miúda. «Recordo-me de ver o meu pai descer até à ponte, atravessá-la a pé e depois subir até à entrada da mina.» A mina de Menik ficava a pouca distância de casa, em Kukes. O pai descia o vale, subia o monte e mergulhava na montanha pela entrada que ficava mesmo em frente à aldeia. Ora fazia o percurso de dia, ora fazia-o de noite, mas isso dependia dos turnos. Era exactamente como o marido.

Foram mais de trinta anos aqueles que o pai gastou a extrair minério. Os homens da terra sabiam que tinham ali um trabalho para toda a vida e o sustento da família. Enquanto eles desciam até às entranhas da cordilheira, elas deixavam-se engolir pelas searas e andavam penduradas nas macieiras, pereiras, ameixeiras e pessegueiros e também debruçadas sobre a rama dos batatais, puxando pela enxada e extraindo da terra os tubérculos. Elas trabalhavam nas cooperativas. O poder albanês estava, nessa altura, nas mãos do comunista Enver Hoxha, o Chefe de Estado.

Hoxha declarou-se, ele próprio, um marxista-leninista e um profundo admirador de Joseph Stalin. Lutou contra a ocupação fascista no decorrer da Segunda Grande Guerra, dirigiu a resistência comunista durante esse tempo e conseguiu instalar o regime socialista, imediatamente após o fim do conflito mundial. Ao longo de quarenta anos, até 1992, a Albânia esteve fechada sobre si própria e sobre a imagem do ditador, que cultivou a sua figura, chamou a si o povo, impôs-se pela força e actuou de forma a legitimar os moldes estalinistas que defendera.

O regime de Hoxha levou a cabo uma industrialização forçada, sustentada nas riquezas naturais do país, no subsolo rico em minério e num solo fértil para o cultivo. Os contributos da União Soviética e, mais tarde, da China ajudaram a modernizar a indústria albanesa. Todos os distritos rurais foram electrificados, mas quem passou a explorá-los foi o Estado. A propriedade privada foi confiscada pelo governo, parcelas de terra dos ricos latifundiários foram distribuídas pelo povo e, mais tarde, vieram a ser transformadas em cooperativas.

Tanto os pais como os sogros dela conseguiram apoderar-se de um terreno onde ergueram a casa que viu crescer os filhos. Remexeram a terra, fizeram brotar dela o pão para a boca, para a sua e também para a de toda a comunidade. Sabiam que o pedaço que lhes calhara não fora recebido por herança nem comprado, mas uma dádiva de um regime que sorvera a classe poderosa semifeudal.

Dedicadas aos trabalhos do campo, as mulheres albanesas contribuíram para a produção de cereais suficiente para as necessidades do país. Dividiam o dia entre os afazeres domésticos e as tarefas nas cooperativas e, pouco a pouco, foram adquirindo direitos que estavam confinados aos homens, começando a participar, activamente, em todas as áreas sociais. O acesso ao conhecimento passou a ser para todos, para todos poderem servir o Estado e estarem ao serviço do Socialismo.

Homens e mulheres, rapazes e raparigas sentavam-se lado a lado nos bancos da escola. Ela fora sempre boa aluna e cumpria, sem a ânsia de falhar, a missão de aprender. Tinha confiança em si e sabia que o regime não permitia vacilações. Envergava o rigor do ensino todos os dias, mal punha o pé fora de casa. Um vestido preto de golas brancas arredondadas servia de farda para todas as crianças que frequentavam o ensino primário e revelava uma escola onde todos deveriam parecer iguais. Foi passando cada etapa de estudante sem qualquer espécie de dificuldade até chegar aos dezoito anos. Nessa altura, a decisão do pai sobrepôs-se à do Estado. Ela deveria largar os estudos, ficar por ali no percurso académico, e optar rapidamente por uma profissão, e ela optou.

Ainda não tinha completado dois meses de casada quando deu a notícia da primeira gravidez. O seu menino nasceu a 22 de Fevereiro de 1996, quatro anos depois de a Albânia se ter libertado do regime ditatorial, que, por acaso ou não, nunca foi motivo de queixume por parte da sua família, pois o controlo exacerbado do Estado sobre tudo e todos, durante as várias décadas de opressão, passou-lhe um pouco ao lado. Ela nunca sentiu falta de comida sobre a mesa, de uma saia ou blusa para estrear em ocasiões especiais nem de uma boneca para pentear ou despentear. Sabia que aquilo que não se podia dizer não se dizia e já poder pensar não era tido como mau. A única forma de levar uma vida sem a pôr em risco era conviver sem perguntar porquê.

O Estado controlador não gostava de ser interrogado e Hoxha, o seu chefe, convencera-se de que só com a subserviência absoluta era capaz de declarar a Albânia como um modelo de república socialista. Mandou executar vários líderes partidários e oficiais de governo de forma a assegurar uma sucessão de jovens dirigentes esculpidos à sua imagem e semelhança. Ramiz Alia foi o seu sucessor.

Durante sete anos, Ramiz Alia viu desmoronar-se a estrutura montada pelo antecessor. A queda do comunismo na Europa de Leste, em 1989, foi o primeiro rude golpe. Seguiu-se o fervilhar da classe trabalhadora albanesa e de muitos intelectuais e jovens estudantes do país. às massas estavam cansadas de tantos anos de restrições e começaram a agitar-se. As mudanças pressentiram-se.

Ela lembra-se de ter ouvido falar em saídas do país e de ter ouvido comentar que um amigo de um amigo do marido tinha partido de férias sozinho para uma viagem pela Europa e que nunca mais regressara. Lembra-se de ter visto uns homens em redor da mesquita, a entrar e a sair, como nunca antes vira, porque estavam mais agitados que o habitual e não tinham aspecto de quem estava ali para rezar. Lembra-se de ter ouvido falar na expressão mercado livre e tem bem presente a altura em que, pela primeira vez, ouviu um comentário sobre partidos políticos. Tudo isso aconteceu quando ela começou a namorar com o marido. Na altura, o rapaz falava destes assuntos com um fervor nunca visto. O monopólio comunista terminou em Março de 1992, com a vitória eleitoral do Partido Democrático, a retirada do Ramiz Alia e a subida ao poder de Sali Berish. A democracia estava instalada, mas ela jamais pensara que uma viragem de regime se traduzisse numa viragem brutal e amarga na sua vida.

Naquela manhã, acordou com um mau pressentimento. O filho estivera inquieto durante toda a noite e tanto o marido como ela praticamente não descansaram. Estava possuída por uma sensação estranha que deixava adivinhar más notícias, uma impressão que parecia alertar para acontecimentos escusáveis, porque têm tudo para gerar problemas. Há várias semanas que previa um dia com um desfecho em lágrimas e os sinais eram mais do que evidentes. Desde que o novo presidente restaurara a propriedade privada, o terror espalhara-se por toda a Albânia. O temor de perder o que o Estado distribuíra e que, agora, permitia que se retirasse estava a deixar famílias inteiras à deriva. A propriedade rural colectiva, vínculo do Estado, tinha sido convertida em milhares de pequenas parcelas agrícolas durante o regime de Hoxha, mas, com a implementação da democracia, a pequena burguesia agrária estava a emergir, o que provocava um desassossego por todo o país.

O primeiro alerta chegou por carta. O proprietário do terreno onde os sogros dela, pais dele, construíram a casa de família estava vivo, identificara-se e queria de volta o que era seu. Fingindo não dar importância às intenções do dono da terra, os sogros dela continuaram a cultivar o que mais falta lhes fazia: os cereais, as batatas e toda a espécie de legumes. Assumiram-se, sempre, como os legítimos donos da parcela de terreno que, afinal, nunca usurparam. Sabiam que não a tinham comprado nem herdado da família, mas sim do Estado, e, em última instância, caso as coisas não corressem bem, podiam apresentar o documento que comprovava serem eles os legítimos donos da parcela.

Os avisos sucederam-se. Todas as semanas, pelo correio e em mão, começaram a chegar cartas ameaçadoras às quais nunca foi dada resposta. Insatisfeito com a indiferença, o dono da terra fez a sua primeira investida, acreditando que o acto iria alterar a atitude dos usurpadores da sua propriedade. O homem começou pelas sementeiras e, numa noite, devastou-as, espezinhou-as e dizimou-as por completo. Com este acto de fúria, conseguiu instalar uma escaramuça sem precedentes. Após a destruição, o marido dela, o sogro e um tio por afinidade, que já estava na casa dos sessenta anos e também morava com eles, passaram a render-se, durante todas as madrugadas, num posto de vigia nocturno que montaram atrás da janela da cozinha e de onde avistavam o campo de cultivo. O intuito era apanhar em flagrante o invasor. Tinham a certeza de que ele haveria de voltar, até porque varrer as culturas de uma ponta a outra não era tarefa difícil, uma vez que a propriedade não tinha vedação nas traseiras.

Os momentos de tensão naquela casa aumentaram dia após dia. Começou a ser admitido um desfecho, em nada consensual, porque nenhuma das partes estava disposta a ceder. Os sogros dela não mostravam intenções de abandonar a casa e o proprietário não prescindia de reconquistar o que, anos antes, já fora seu. Foi naquele dia que tudo se decidiu, no dia em que ela pressentiu, para o impasse, um desfecho amargo, no dia em que não conseguiu dormir.

A campainha tocou sem parar, por volta da hora do almoço. Tocou tantas vezes seguidas que, entre os toques sucessivos, não houve tempo para abrir a porta. Ninguém pressionaria desta forma o botão, se viesse por bem. Com um passo lento, o peito carregado de ar e de ira e o rosto fechado, ele esticou o braço, apoderou-se da maçaneta e, sem perguntar por quem batia, abriu de rompante a porta e deu de caras com quem não queria. O homem que há semanas dava sinais de impaciência estava ali. Exasperado, investiu casa dentro, sem pedir licença e com vontade de levar tudo à sua passagem. A discussão entre ambos começou ali.

Ela estava na cozinha e tinha acabado de pôr a mesa para o almoço e um tacho com carne guisada ao lume. Mas, quando se apercebeu de que ninguém ia almoçar naquele dia, rodou o botão do fogão, desligou-o, deu ao filho um pedaço de pão para a mão e mandou-o para o quarto. A sogra tinha-se sentado num dos bancos de pinho envelhecido que faziam conjunto com a mesa e ela, ao ver que a refeição tinha ficado adiada, puxou de outro banco e sentou-se ao lado da sogra. As duas ficaram ali a escutar o alarido feito pelo marido e pelo homem, que se tinha apoderado da casa que já considerava como sua. Poucas palavras conseguiam perceber, porque os vigorosos berros não permitiam que alguém entendesse mais do que um ou outro palavrão. Ela espreitou pela janela da cozinha na altura em que desconfiou que o motivo da exaltação estava a arrastar os homens desde o interior da casa até às traseiras da moradia. E, no momento em que afastava as cortinas brancas de renda a metro para observar o que se passava, viu que o sogro e o tio do marido também já se tinham juntado à discussão e esbracejavam, como dois estouvados, no meio do grupo.

Passaram duas horas sem que alguém tivesse chegado a um acordo. A discussão atingiu um tal ponto que as palavras pronunciadas com raiva deram lugar à agressão. O marido e aquele homem, que irrompera pela casa dentro, estavam desfigurados e com o ódio à flor da pele. Sem hesitar, o tio curvou-se sobre uma pedra pontiaguda, escondida entre as ervas que cresciam em redor do pé de uma macieira, apanhou-a e ergueu-se. Não foi capaz de esconder a arma que tinha na mão e com a qual ia acabar com aquele imbecil, porque o tempo que mediou entre o momento de apanhar o calhau e o instante de o atirar foi nenhum. Com um impulso brusco e carregado de raiva, levou o braço atrás das costas até onde conseguia chegar e, com uma energia colérica, atirou a pedra contra a cabeça do homem. Não o matou ali, mas no dia seguinte foi dado como cadáver, ao ter sucumbido numa cama do hospital de Hotolisht.

Ela não se apercebeu de como terminou trágica a entrada enfurecida do intruso à hora da refeição, que, por sinal, nunca chegara a ser servida. Ninguém lhe contou, nem o marido nem o sogro, e muito menos o tio dele, o que tinha acontecido naquela tarde. Mas o caso tornou-se público três dias depois do incidente, altura em que o coração do agressor começou a sofrer de remorsos. Um ataque cardíaco fora fatal para o tio do marido, seu tio por afinidade.

Enterraram-se os mortos, mas não os problemas. A vida dela, tal como a do filho que acabava de completar cinco anos, passara a confinar-se aos aposentos da casa. As sucessivas ameaças de morte, que entretanto começaram a chegar, muito discretas, pela mão do carteiro ou através de recados intimidativos mandados pela família do falecido proprietário, não permitiam que se ausentassem fosse para onde fosse. Ele deixou de trabalhar com receio de ser apanhado à revelia e só saía, às vezes, com o pai já reformado, mas protegido pelo breu da noite, para ir à farmácia aviar o que fosse preciso, enquanto as mulheres da casa e o filho ficavam trancados e em permanente sobressalto.

Ela sabia que não podia permanecer por muito tempo escondida em casa, protegendo-se e guardando o filho como se de uma coisa se tratasse.

Sabia que a filha que trazia no ventre também não podia ficar prisioneira de um impulso trágico que destruíra a esperança da sua família. Durante o tempo em que fugia das ameaças de morte, sem pôr um pé na rua, engravidou pela segunda vez. A menina nasceu com o cair da folha, em Outubro de 2002.

Chuviscava naquela tarde de Outono. O Sol já tinha dado um ar da sua graça, mas depois envergonhou-se e não voltou a aparecer após a hora do almoço. Foi precisamente nessa altura, quando a chuva começou a borrifar as terras e a refrescar os corpos de quem não se tinha precavido, nem com um guarda-chuva nem com uma gabardina, que recebeu a ordem do médico para sair da maternidade. Tinha arriscado parir no hospital, porque se tivesse ficado em casa o risco seria muito maior, e o marido também ousara sair para a ir levar e buscar. À hora combinada estava na unidade de obstetrícia, para transportar a mulher e a filha para a casa dos pais dela, respeitando os costumes que o povo albanês segue e que quase todas a mães honram cada vez que dão à luz.

Chegaram já a tarde havia dado lugar à noite. Tinham passado, entretanto, por casa dos pais dele, para irem buscar o filho mais velho e para acondicionarem, numa mala de viagem, três pares de calças e outras tantas camisolas para o menino, um pijama e roupa interior também para ele, mais duas blusas, um soutien e três camisas de noite para ela. Numa bolsinha, daquelas rectangulares, em xadrez azul e vermelho e com um fecho em cima a todo o comprimento, um nécessaire barato, colocaram produtos de higiene: duas escovas de dentes, um champô infantil e um body lotion de uma marca que serve tanto o filho como a mãe. Ele estacionou o carro mesmo em frente à casa dos sogros, porque quanto menos passos desse a mulher tanto melhor para ela. Foi este o pensamento que lhe assomou à mente e, provavelmente, ocorre a qualquer marido em ocasiões como aquela. Mas, no momento em que ela se apeava do carro, ele não lhe estendeu a mão e ela conseguiu levantar-se sem que a dor se tivesse manifestado. Depois de ter saudado os sogros à entrada da casa, o homem carregou as malas até ao quarto de solteira da mulher e deixou a família entregue.

Tinham passado apenas dois dias desde que ele levara a mulher e os filhos para a casa dos sogros. Na cozinha, ela acabava de tirar a chaleira do lume com a água a ferver para o café, quando o pai se levantou para responder ao toque da campainha. Já passavam das onze da noite e, devido ao adiantado da hora, não seria boa notícia. Ela reconheceu a voz do marido mal o ouviu desejar as boas noites ao sogro. Os dois dirigiram-se para a cozinha, onde ela começava a coar as borras de café. Ele aproximou-se dela, deu-lhe um beijo na face e ela retribuiu-lhe com outro também na face, respeitando a presença do pai. Entendeu aquela visita, assim de repente, como uma manifestação de saudades. A conversa decorreu ora a falar da menina, das noites e das mamadas, ora do menino, das brincadeiras e de como estava a reagir à irmã. Ele rodeou, vezes sem conta, o tema que realmente o levara até ali, mas estava com dificuldade em começar a abordagem. Ao final de duas ou três tentativas, que só ele se deu conta de ter feito, encheu o peito de ar e de coragem e acabou por revelar a profunda intenção da sua visita, motivada pelo desenrolar dos últimos acontecimentos. E começou a falar. O dinheiro estava a acabar, dissera. Há um ano que deixara de trabalhar para poder resguardar-se, a si e à família, e nem por isso as ameaças deixaram de o atormentar, continuara. Ceder era, pois, a única hipótese sensata, concluíra. Ceder como, interrogou imediatamente a mulher, mas apenas para si, porque ele nem deu tempo para que ela abrisse a boca e lhe fizesse a pergunta. Ali de pé, encostado à bancada da cozinha, com o sogro à sua frente e ela de olhos arregalados, disse o que mais lhe custou assumir: estava com medo e queria fugir. «Vou fugir, não me resta alternativa. Não voltes para lá, os meus pais vão para casa da minha irmã. Não há outra maneira.»

Ela não conseguiu dizer uma palavra. Tinha a certeza de que, se tentasse, nos segundos que se seguiam, reagir à notícia do marido, a voz lhe falharia e não obedeceria ao seu apelo. Sentiu o coração bater depressa demais, as mãos trémulas começaram a pressionar os dedos uns contra os outros e as pernas perderam a força necessária para que se aguentasse, por muito mais tempo, de pé. Sentou-se e começou a chorar convulsivamente. Nessa noite não se recorda, sequer, de ter parado de chorar e, muito menos, de ter dormido algum tempo que fosse. Hoje, sempre que se vê obrigada a relembrar tamanha dor, só lhe assoma à memória a última frase pronunciada pelo marido antes de deixar atrás de si uma família desmoronada: «Cuida dos filhos, cuida dos filhos.»

A partir dessa noite, renegou algum esmero que ainda conseguia ter consigo e, cautelosa, passou a cuidar exclusivamente das crianças, evitando revelar-lhes um estado de alma magoado e sem norte, que elas quase sempre conseguem perceber mas que nunca conseguem dizer. Permaneceu escondida na sua própria casa, aquela que sempre fora a sua casa, e aninhando, em seu redor, o fruto de um amor que acabara de partir. Ao mesmo tempo que cumpria as suas obrigações de mãe, sentia germinar dentro de si um sentimento esquisito e um impulso assustador. De dia para dia essa sensação estranha começou a tornar-se mais intensa, ao ponto de passar a ser uma obsessão constante. Queria fugir com os filhos. Sentava-se à beira da cama, com a cabeça ligeiramente curvada, a olhar para a ponta dos chinelos que espreitavam lado a lado, sob os joelhos cobertos por uma manta. O corpo permanecia ali, mas o pensamento viajava pelo futuro, que tinha tudo para ser igual ao presente, não fizesse ela qualquer coisa para mudar o destino. Sempre que a mãe procurava por ela, encontrava-a assim, encolhida. Foram muitas as vezes que a ouviu pronunciar doces palavras às quais deixara de dar valor, foram muitas as vezes que a consolou com meiguice. «Não te preocupes, eles é que são maus. Não chores, fica connosco. Pede é saúde para os teus filhos», repetia a mãe, na esperança de arredar daquele quarto uma filha a quem tinham tirado vontade de viver.

Porquê pedir saúde se, afinal, sentia que estava a matar aos poucos os filhos, escondendo-os do mundo? Porquê pedir saúde, se estava a privar o seu menino, já com seis anos de idade, de gozar uma infância saudável e feliz e de poder desfrutar da agitação dos tempos de escola? Não se sentia no direito de não o deixar aprender a ler e a escrever; não se sentia no direito de não o deixar correr à vontade atrás dos pássaros ou das folhas secas que voam com o vento de Outono; não se sentia no direito de não o deixar pontapear uma bola e de subir às árvores, livre como uma ave; não se sentia no direito de não o deixar sujar a roupa e de nela esfregar as mãos sujas de terra; não se sentia no direito de não o deixar esfolar os joelhos durante uma corrida entre rapazes. Foi sentada à beira da cama que decidiu libertar-se.

Já era tarde quando entrou no camião. Passava da meia-noite. Alto, de barriga ligeiramente proeminente, na casa dos quarenta, de cabelo encaracolado, parecendo preto, talvez pela escuridão do local, envergando um blusão curto de golas e punhos de malha de lã e umas calças de ganga a caírem pela cintura, um homem surgiu da cabina, cujos vidros estavam envoltos por cortinas lisas, de cor imperceptível mas escura, e com um tecido que já tinha rasgões, talvez provocados pelo calor do Sol. «Pode entrar aí para trás», disse ele, num tom distante, sem querer parecer que estava comprometido com a carga que se preparava para acondicionar: uma mulher e duas crianças.

Ela subiu para o atrelado, segurando a filha, com força e jeito, apenas pelo braço esquerdo. O camionista tinha aberto um escadote de alumínio, com uns cinco degraus, para facilitar a subida daquele grupo até à clandestinidade. Depois foi a vez de o menino subir, auxiliado pelo tio, o irmão mais velho da mãe, que também ali estava. A criança pulou para junto da mãe e da irmã graças ao impulso que o tio lhe deu quando a segurava pela cintura. Foi nesse preciso momento que a mãe esticou o braço direito, desimpedido, e puxou o filho. Ficaram a faltar uma mala e uma mochila. Sem ter em conta o que nelas ia dentro, o camionista apressou-se a lançá-las para o interior do camião como se pouca importância tivessem, sabendo que o dono também não iria protestar pela falta de cuidado.

Ela ainda não se tinha virado para ver a carga que partilharia consigo e com os filhos durante a viagem que estava prestes a começar. Quando o fez, apercebeu-se da presença de mais gente, enfiada no meio de caixotes de madeira e papelão, carregados sabe-se lá de quê. Afinal não estavam sozinhos, pensou. Não contou as cabeças, mas pareceu-lhe, assim de repente, serem mais de meia dúzia de homens. Todos eles tapavam a cara, uns com as mãos, outros com os chapéus. Estavam sentados e encostados à carroçaria, com as pernas dobradas ao nível do nariz ou esticadas e sobrepostas. Viu quase todos, sem ver ninguém. Não quis saber, não se interessou, apenas percebeu que não estava sozinha na fuga para a liberdade, fosse qual fosse o motivo de cada um.

Sentou-se com a filha ao colo, e ao filho pediu que se sentasse ao seu lado. Ficaram juntos, mas ligeiramente afastados dos outros viajantes. Ela reparou que o menino começava a estranhar o aparato, porém não mostrava pavor, antes sim alguma ansiedade. Tinha-lhe dito que iam dar um passeio numa camioneta muito grande, mas nunca lhe contara que a viagem duraria três dias e três noites. A ligeireza com que as crianças tratam a mais grave das situações provoca uma preocupação acrescida num adulto e, por esse motivo, ela receava algum comportamento estranho por parte do seu menino. Tinha tomado a difícil decisão de fugir para libertar os filhos de uma prisão sem grades, que era a própria casa, e sabia que, por eles, o plano não poderia falhar. Levava consigo uma herança sem preço, uma dádiva de um amor que ainda ardia no peito sempre que pensava no marido. Estava confusa e muito assustada.

Arredou o pensamento da responsabilidade, quando ouviu o ranger das portas, que, pelo barulho que fizeram, pareciam pesar uma tonelada. Levantou a cabeça e viu o camionista a empurrar, primeiro, a porta da direita e, depois, a puxar pela alavanca da esquerda. Nesse momento, acenou ao irmão que aguardava pela partida do camião e, num ápice, ficaram às escuras. Respirou fundo, mas pareceu-lhe que o ar não chegava para si, quanto mais para os outros. O motor começou a trabalhar e apercebeu-se de que as rodas já se mexiam quando sentiu o seu tronco balançar para a direita e logo para a esquerda e o filho deixou tombar a cabeça para cima do seu peito. Estavam a caminho de Portugal.

Três horas depois, a filha começava a revelar os primeiros sinais de impaciência, que a mãe, de imediato, percebeu tratar-se de apetite. O filho tinha deixado cair a cabeça sobre as suas pernas, que iam, por isso, esticadas, mas levantou-a quando a mãe teve de se ajeitar para dar de mamar à irmã. Pela primeira vez, o interior do atrelado alumiou-se. Um foco, ainda potente, incidiu sobre o rosto da bebé, depois de ter andado perdido à sua procura no meio das caixas de eventual mercadoria e entre os outros clandestinos espalhados pelo camião. A lanterna acendeu-se quando a bebé começou a chorar, e sempre que chorava alguém tornava-se automático o movimento de ligar o aparelho a pilhas, que foram perdendo potência à medida que a viagem decorria.

Ela perdeu a noção das horas e deixou de perceber se era de dia ou de noite. O cansaço que começava a apoderar-se do seu corpo revelava apenas o incómodo e a dormência de estar na mesma posição há muito tempo. As vezes que a filha lhe pediu para mamar e que o filho lhe pediu para comer foram tantas que, tendo em conta as solicitações das crianças, já podiam ter chegado ao destino. Julgava ter trazido consigo comida suficiente para alimentar o seu menino, porque por si era bem capaz de passar todo o percurso sem mastigar o que quer que fosse. Pão e queijo, leite e água eram os únicos mantimentos que tinha para lhe oferecer, e com eles teria de saciar o seu apetite até alcançar Lisboa.

Contrariava a sua vontade de chorar cada vez que os filhos chamavam por si, mas só nessas ocasiões. Se ali tivesse um espelho, assustar-se-ia ao ver os seus olhos, tão vermelhos e inchados. Fungava, assoava-se, deixava as lágrimas escolherem o seu percurso pelo rosto, até serem embebidas pela camisola de gola alta de lã preta ou pela fazenda das calças, também pretas, que decidira usar para a viagem. Estava exausta, extenuada. À memória assomavam-lhe os piores e os melhores pensamentos. Começou por percorrer as etapas da sua vida, desde a meninice até se fazer mulher. Recordou o temor dos primeiros anos de namoro escondido e a felicidade do assumir de uma relação com o homem que amava. Lembrou-se de como tinha sido agradável a lua-de-mel e como ficara radiante ao anunciar ao marido a primeira gravidez. Mas, subitamente, sem pedir licença, avassalou-a a memória do triste homicídio em casa dos sogros e que a obrigou a pagar ao camionista a sua fuga e a dos seus filhos.

Tomou a decisão de fugir durante uma das tardes que passou sentada na ponta da sua cama de solteira, sobre a colcha de nylon florida, que tinha quase tantos anos quantos a sua idade e cujo padrão já a enjoava. Nesse dia, pegou num mapa da Europa que há muito tempo andava escondido debaixo de uns papéis da sua antiga escrivaninha, que também nunca mudara de sítio, e abriu-o, decidida a traçar com a ponta do dedo o percurso que iria fazer. Pelas conversas que já tinha tido com os irmãos, Portugal poderia ser o país de asilo ideal para ela: ficava longe da Albânia, tinha poucos refugiados albaneses e não constava que ali viesse a ter problemas políticos, até porque a sociedade portuguesa era considerada bastante pacata. A decisão de partir para Portugal foi tomada numa dessas tardes de angústia, com a certeza de que nunca teria a aprovação dos pais.

A seu pedido, o irmão mais velho informou-se de quanto custaria uma fuga com destino ao país mais ocidental da Europa. E, depois de ele ter encetado os contactos certos junto de uma rede de transporte ilegal de emigrantes, comunicou-lhe que, com três mil e quinhentos euros, ela era capaz de conseguir fugir com os dois filhos. Assim que ela soube quanto era o montante exigido pelos traficantes, ganhou coragem e pediu o dinheiro ao pai. Ele nunca se tinha manifestado a favor desse acto irracional e arrojado da filha, que considerava uma perigosíssima aventura e com tudo para ter um triste desfecho, mas, na altura de se decidir se haveria ou não de pactuar com a evasão, abriu mão de umas poupanças e, sem hesitar, ofereceu aquilo que acreditava ser a liberdade da filha e dos netos. A quantia tinha sido entregue, no momento da partida, pela mão do seu irmão mais velho, que se deslocou ao local para cumprir o acordado com a rede de mafiosos. Escolheram um sítio discreto, às portas de Hotolist, mas não excessivamente discreto ao ponto de provocar o efeito contrário. Levava o dinheiro embrulhado numa camisola de lã, enfiado num saco de plástico e dividido em maços de cinquenta euros. Foi assim entregue, despercebidamente, não na divisa albanesa, o lek, mas em euros, tal como fora exigido.

Acordou das memórias quando a bebé voltou a chorar. A menina estava outra vez com fome e, provavelmente, as fraldas precisavam de ser mudadas. Tinha trazido na mala umas fraldas que julgava serem suficientes para toda a viagem, mas, pelo sim pelo não, ia tentar evitar mudas desnecessárias. Foi precisamente no momento em que deitava a filha sobre uma envolta estendida entre as suas pernas que o camião começou a reduzir a velocidade, até parar. «Será possível já estarmos em Portugal? Será que alguém vai sair aqui?», interrogou-se quando ouviu os travões do camião a ranger no asfalto. Depois escutou a porta do condutor a abrir e a fechar, percebendo-se que tinha sido empurrada de longe e fechada sem delicadeza. Mas, entretanto, nada sucedeu. Em silêncio, ficaram no interior do atrelado até o motorista fazer aquilo que tinha a fazer.

Ela nunca dormiu, apenas dormitou. Ora mergulhava no medo que deixara para trás, ora mergulhava no medo que se apoderava agora dela e que se chamava futuro. E, assim, sofrida, cansada, de rosto molhado pelas lágrimas que praticamente nunca pararam de cair, de olhos inchados e raiados de vermelho, balançava a cabeça que tanto tombava para a direita como para a esquerda, ao sabor do ritmo de condução do camionista e das curvas da estrada. Às vezes parecia que seguiam sempre a direito e à mesma velocidade, outras vezes nem tanto. Não sabia que percurso o condutor tinha escolhido, nem era assunto que lhe interessasse.

De quando em vez, era capaz de se abstrair do som persistente e irritante do rodado sobre o alcatrão, devido às conversas, em surdina, entre os outros emigrantes que viajavam consigo e com os filhos, a quem, porém, nunca vira a cara. As suas vozes conseguiam distraí-la, mas não o tempo suficiente para deixar de sentir o aperto que levava no peito e que a obrigava a respirar fundo. Era nessas alturas, e também quando ligavam aquela lanterna, numa resposta imediata ao choro perturbado da filha, que se apercebia de que, afinal, não iam sós. Dos cochichos dessa gente, percebeu pouco e nem se deu ao trabalho de se concentrar para escutar melhor.

O camião parou e a porta traseira foi destrancada, mas apenas a da esquerda foi aberta. Era de dia e pareceu-lhe ser ainda bastante cedo. Tentou confirmar a sua suspeita ao espreitar para fora com o pescoço esticado, sem se levantar de onde estava. O camionista, sem rodeios, chamou pelo nome de Aleksander. Esse homem estava sentado sozinho, encostado às caixas de mercadoria que enchiam menos de metade do atrelado. Alçou a perna direita e depois a esquerda, passou por cima das pernas estendidas de outro homem e, com apenas uma mochila, pendurada no ombro esquerdo por uma alça, saltou para a rua. A porta voltou a fechar-se tão depressa como foi aberta. E, desta forma repentina, foram saindo todos os emigrantes que viajavam com ela. Onde é que eles iam saindo é que nunca percebeu. Talvez na Alemanha, talvez em França ou mesmo em Espanha. Na tarde em que pegou no mapa da Europa, em casa dos pais, recordou-se de ter percorrido, com o dedo indicador direito, o possível percurso para chegar a Portugal. Se fosse sempre a direito, teria de passar por esses países.

Parecera-lhe que já teriam passado, pelo menos, dois dias desde que deixara Hotolist, o tempo suficiente para se habituar ao abrir e fechar da porta, às momentâneas paragens do camionista e às outras, mais morosas, em que ele aproveitava para saciar o apetite, para se dirigir aos lavabos, para descansar e para se livrar de quase toda a carga clandestina que transportava. Ela habituara-se às irritantes formalidades dos condutores de longo curso, porque praticamente deixara de raciocinar. As dores que formigavam em todo o corpo, castigado pela posição em que seguia, não lhe permitiam que qualquer pensamento discorresse, para além daquele que lhe vinha minando o cérebro desde que partira, e que era um constante martelar de dúvidas sobre o rumo que estava a dar à sua vida e, principalmente, à dos seus filhos. Estava de tal forma fatigada que nunca se deu ao trabalho de confrontar a escuridão e procurar os ponteiros do relógio que tinha trazido apertado ao pulso esquerdo, prenda de aniversário dos pais aquando dos seus dezassete ou dezoito anos. Podia tê-lo feito cada vez que a luz envergonhada da lanterna alumiava como podia o interior do atrelado, mas não o fez.

«Provavelmente, a próxima paragem será para nós», pensou, mas não o disse, e nem valia a pena tê-lo feito, porque não tinha a certeza de nada. Teria sido inútil comentar com o filho as suas incertezas, uma vez que também não lhe tinha explicado o motivo do estranho passeio que estavam a fazer.

Mas a sua vez estava, realmente, a chegar. Dentro do camião apenas seguiam os três e uns caixotes, porque todos os outros já tinham pulado dali para fora. Começou a sentir-se invadida por uma perturbação doentia que ia crescendo à medida que o tempo passava. Pressentia que a hora de cair desamparada num país de estranhos não tardava a chegar e, aos poucos, foi notando os minutos a pularem nas veias, numa cadência tão acelerada que começou a sentir o coração desvairado e a respiração ofegante.

«Aqui é Portugal. Eu não posso fazer mais nada, agora vai à tua vida.» Foi sem rodeios, que o camionista lhe comunicou a chegada ao país de destino, da mesma forma que fez com os outros. Com medo de estar a ser observado, abriu rapidamente a porta direita e, com a mesma velocidade com que a abriu, fechou-a. Demorou mais tempo do que aquele que pretendia por causa da bebé. Ela percebe que a presença dos miúdos o tinha deixado comprometido, mas não ao ponto de pronunciar mais uma palavra nem manifestar qualquer gesto de carinho para com os pequenos. O seu trabalho estava terminado e a maquia que lhe pertencia, já a tinha guardado. A discrição passara a ser uma das suas qualidades desde o dia em que se iniciara naquele tipo de serviço.

«Fiquei no meio da rua sozinha com os meus filhos, mais uma mala com rodas e uma mochila. A menina gritava e chorava. O meu filho pedia comida, mas já não havia mais.» Era Dezembro e o mês já ia a mais de meio. Era o dia 19 de Dezembro de 2002. Estava uma tarde quente de um Outono prestes a ceder a vez ao Inverno e talvez fossem treze ou catorze horas, mas não tinha a certeza, porque não olhou para o relógio. Sabia que estava na capital de Portugal, uma cidade chamada Lisboa, mas onde estava, em que rua caminhava e para onde caminhava, isso ela não sabia. Apenas sabia que chorava, e chorava tanto que hoje pergunta aonde foi buscar forças para derramar tantas lágrimas durante esse ano da sua vida e, sobretudo, durante esses três dias e três noites de viagem. Desnorteada, começou a andar de um lado para o outro sem saber para onde ir. Subiu uma rua e voltou a descê-la, subiu outra e voltou a descer, passou por gente, muita gente, e por entre os dentes foi perguntando «Policia, policia?», na esperança de escutar uma resposta de quem com ela se cruzava. Ninguém acedeu ao apelo, se é que o entendeu. Sem levantarem muito a cabeça, encolhiam os ombros e seguiam o seu destino, movidos pela indiferença de quem já está habituado a ver mulheres carregando os filhos ao colo e a pedinchar pelas ruas da cidade. Ela não pedia dinheiro, pedia apenas que lhe dissessem onde era a esquadra da polícia mais próxima.

Apercebeu-se de que, junto ao passeio da rua onde seguia, estava um táxi estacionado com um condutor preto sentado ao volante. Sem hesitar, abriu a porta traseira do carro e acomodou-se no banco, juntamente com os filhos e com a mala de viagem que trazia, que entretanto foi colocada na bagageira da viatura, a pedido do taxista. Quando já estavam todos sentados e prontos para seguir viagem, ela exclamou: «Asilo! Asilo!» O irmão tinha-lhe dito, na noite da partida, que deveria dizer esta palavra quando chegasse a Portugal, para que a pudessem ajudar. E ela disse-a àquele taxista. Ele respondeu ao seu apelo, mas ela não entendeu uma única palavra daquelas que ele disse.

Percorreram várias ruas, que para ela não tinham nome mas sim muita gente, andaram às voltas pela cidade e acabaram por parar num local que lhe parecia igual aos outros por onde entretanto tinham passado. Quando o taxista deu por terminado o percurso, disse qualquer coisa do género «Vai aqui à polícia!» e acompanhou a frase com um gesto que dava a entender que lhe estava a indicar o sítio onde deveria pedir ajuda. Ela agradeceu e, com uma nota de vinte euros que trazia consigo da Albânia, dobrada em quatro no bolso das calças, pagou o serviço e ainda recebeu troco. Deixou o táxi, carregando os filhos, a mala de rodas e a mochila completamente destruída, e foi tentar descobrir onde era a esquadra. Estava, porém, de tal forma alucinada que passou à sua porta e não se apercebeu. Nessa altura, voltou a perguntar a alguém que passava «Asilo? Asilo?», mas apenas um idoso, para quem provavelmente o tempo anda com a lentidão do seu passo, se apercebeu da aflição daquela mãe e se mostrou disponível para apontar na direcção da esquadra.

«Já a tinha visto passar para cima», assim entendeu que tinha dito o agente da polícia de segurança pública que estava na entrada da esquadra, pela forma como quase espetou nos olhos os dois dedos da mão direita, esticados em forma de V. Disse mais umas frases que ela não compreendeu e chamou-a com a mão. Ela obedeceu à ordem e sentou-se numa cadeira em frente de uma secretária e diante de outro agente que já se encontrava sentado. Quando ela acabou de se instalar, ele levantou a cabeça e os dois polícias trocaram umas palavras. Pausadamente, o agente que estava sentado começou quase a soletrar, em jeito de pergunta: «Ucrânia? Rússia? Roménia?

Albânia?...» Quando ele pronunciou Albânia, ela sentiu que tinha acabado de ultrapassar mais uma etapa e teve a sensação de ter atingido o cume de uma montanha, depois de quase ter resvalado pela colina abaixo. Aparvalhada, começou a acenar com a cabeça, confirmando a sua proveniência e a das crianças.

«A que horas chegou?», perguntou-lhe a tradutora pelo telefone, mas a resposta tardou a ouvir-se. A pausa que mediou entre a pergunta e o «não sei», em albanês, levou a intérprete a perceber que estava perante uma mulher desorientada com ela própria e com o tempo. «Você não está bem, não sabe quando chegou? Você não sabe o que está a dizer! Vai para o centro de refugiados. A polícia chama-lhe um táxi e fica lá a aguardar», disse-lhe. A polícia tinha contactado alguém que fosse capaz de saber mais sobre aquela mulher, mas, infelizmente, a conversa entre as duas apenas permitiu aos agentes perceber que estavam perante uma requerente de asilo, fugida da Albânia.

«Leve esta mulher e os miúdos para o Centro de Acolhimento da Bobadela, aquela casa para os refugiados. Sabe onde fica isso?», perguntou o agente de serviço, à porta da esquadra, ao taxista que tinha sido chamado para fazer o serviço e que acabava de parar a viatura em segunda fila, ao lado de uma da polícia. «Eles estão à espera dela, já estão avisados e pagam-lhe lá», continuou o agente, que subentendeu a resposta do taxista pela forma como este foi confirmando com a cabeça.

Do radioso dia de Outono, demasiado quente para quem estava habituado a temperaturas baixas naquela época do ano, na Albânia, restava apenas um céu limpo de nuvens, já escurecido, porque o Sol há mais de duas horas que não se via. Dentro do táxi, ela fingia estar interessada em ver as avenidas inundadas de carros e os passeios atafulhados de gente, que corria, desenfreada, com sacos de compras nas mãos. Era Dezembro e faltavam cinco dias para o Natal. Mas, indiferente à azáfama da época, ansiava por dar repouso aos filhos, aos seus braços doridos de carregar a menina e de puxar a mala e às suas pernas entorpecidas pela fraqueza e trémulas de medo. Talvez tivessem demorado mais de uma hora a chegar ao Centro de Acolhimento.

Daquele ponto alto, salpicado, sem rigor, por casas mais baixas do que aquelas que emergem no centro da cidade e pouco alumiado por candeeiros de rua e sem montras de lojas, ela poderia ter visto como estava estrelado o céu e como corria pintado de prata um rio, que hoje sabe que se chama Tejo. Ela poderia ter visto tudo, se tivesse tido forças para se concentrar na paisagem. Mas, afinal, não viu nada. O táxi parou numa rua sem gente, sem carros e sem barulho e ali a deixou com os filhos. Era naquele prédio que iriam tentar descansar e engolir algum pedaço de pão.

Depois de ter comido um prato de carne com massa, o menino caiu rendido e saciado sobre a cama. Nem o choro perturbado da irmã, gerado pelas incómodas cólicas próprias dos primeiros meses de vida, lhe perturbou o sono, que se fez profundo numa fracção de segundos. À mãe, não lhe foi permitido descansar. Trocou a fralda suja da filha por uma nova, que lhe deram no centro, deu-lhe de mamar, aconchegou-a ao colo, balançou-a e tentou que se esquecesse das dores que a faziam retorcer-se. Passou quase toda a noite em claro.

As semanas que se seguiram foram preenchidas a responder a perguntas no SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e no CPR (Conselho Português para os Refugiados). Sempre com tradutor ao lado, fazia entender a sua história de vida e o motivo que a tinha trazido até Portugal, para pedir o estatuto de refugiada. «Foram difíceis, os primeiros tempos no Conselho», admite. Foram difíceis porque não falava nem entendia uma palavra de português, porque não sabia se a deixavam ficar, porque não tinha futuro para oferecer aos filhos.

«Um dia, a doutora Isabel, a professora de Português do CPR, veio ter comigo e perguntou-me se queria levar o meu filho para a escola. Esse foi o dia mais feliz da minha vida», confessa. «No meu país, ele não podia sair de casa e, quando entrou na escola, eu fiquei radiante.» Entrou sem saber uma palavra de português, sem conhecer meninos portugueses, porém ficou na mesma turma desses meninos, sentado ao lado deles, para aprender a ler e a escrever uma língua que não era a sua, mas que ia passar a ser. O seu primeiro dia de escola, em Portugal, foi o dia 3 de Janeiro de 2004.

O empenho e o interesse do rapaz tornaram-se evidentes. O primeiro ano correu melhor do que aquilo que se podia esperar e terminou o segundo ano com resultados excepcionais - foi considerado o melhor aluno da turma. O peito da mãe arfa quando fala sobre este assunto, solta sem dificuldade um sorriso que não lhe é habitual e que apenas os filhos conseguem oferecer ao seu rosto, deixa os olhos brilharem de felicidade e a face reluzir de orgulho. O rapaz é o orgulho da mãe, a força que a move e o motivo que a arrancou das raízes do seu país. Ele e a menina são tudo o que tem e foi por eles que veio para Portugal.

«Nunca pensei sair do meu país. Nunca pensei meter-me num camião. Não voltava a viajar nessas circunstâncias», comenta. No entanto, não se sente arrependida de ter feito o que fez e continua a falar: «Talvez estivéssemos mortos se lá tivéssemos ficado; ou ainda escondidos em casa. Quem sabe?» Mas, imediatamente após ter dito o que pensava e ter reflectido em voz alta sobre aquilo que poderia ter acontecido se não tivesse fugido, baixa a cabeça, aperta com força os dedos das mãos e deixa que se note que o assunto a incomoda e a entristece tão profundamente que não consegue guardar para si as lágrimas que lhe crescem nos olhos e se soltam precipitadas. Na Albânia, ficaram os pais, que ainda estão vivos, ficaram os quatro irmãos, cada um com o seu emprego, e ficou um amor. É esse amor que lhe fere o espírito e lhe deixa prostrado o corpo. Sempre que os filhos lhe perguntam pelo pai, responde, sem rodeios, que não está em Portugal, não fosse a sua ausência mais do que evidente. Quando o filho mais velho lhe pergunta onde está, diz que não sabe, mas, quando lhe pergunta por que motivo fugiram da Albânia, ela diz que «aqui é que a escola é boa». A verdade há-de ser contada no dia em que perceber que os filhos estão suficientemente crescidos para entenderem a sua decisão. Há-de contar-lhes que amou um homem a quem eles podiam chamar de pai, se ele não os tivesse abandonado. Essa é a verdade que a amordaça e que lhe provocou uma ferida difícil de sarar.

Ele, o marido, nunca mais deu notícias. Não sabe se está morto ou se está vivo.

Ela chegou a Portugal no dia 19 de Dezembro de 2002. Até ao mês de Março de 2006, ainda não lhe tinha sido concedido o estatuto de refugiada.

 

 

As histórias de vida contadas neste livro demonstram-nos como, no início do século XXI, o mundo tem cada vez mais necessidade da solidariedade dos povos, dos Estados e de organizações não governamentais que se dediquem exclusivamente aos refugiados. Com efeito, a sociedade ainda não conseguiu encontrar meios para evitar as guerras, as perseguições, os preconceitos e outras fontes de conflitos.

Deveria constituir uma indignação para todos nós que existam, actualmente, no mundo cerca de 10 milhões de refugiados e 25 milhões de deslocados internos, expulsos das suas casas por exércitos ou milícias, vítimas de conflitos ou até mesmo de catástrofes naturais, perseguidos devido às suas convicções religiosas, opiniões políticas ou por qualquer outra razão.

Estas populações, retiradas do seu habitat natural, ficam indefesas face a agressões, muitas vezes mortais, de que são vítimas durante a fuga, depois de terem encontrado países que consideraram seguros ou mesmo quando regressam aos seus países de origem após o fim do conflito.

A história e a coragem dos refugiados e deslocados merecem ser recordadas. Tendo, muitas vezes, perdido tudo, à excepção da esperança, eles fazem parte dos grandes sobreviventes do nosso século e são dignos do nosso respeito.

Desde sempre, na história da humanidade, existiram grandes deslocações de povos, quer como conquistadores e dominadores de outros povos, quer fugidos de agressões nas suas terras. Nesse sentido, no imaginário das populações dos países de acolhimento há sempre um sentimento inicial de medo e receio face ao desconhecido, fenómeno facilmente explorado por alguns governos e governantes nos tempos modernos.

No entanto, apesar de certos fracassos, os Estados têm dado provas de grande hospitalidade ao acolherem refugiados e deslocados, propiciando-lhes o começo de uma nova vida. Para isso, contam com a acção humanitária, que, por seu lado, isolada, também não consegue resolver os problemas de natureza estritamente política. Mesmo assim, em muitos casos, são quase exclusivamente as organizações humanitárias, entre elas o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a apoiar, sem grandes recursos financeiros e políticos, estas populações.

Porém, uma vez terminado o conflito e desviada a atenção dos media internacionais desse foco, esses mesmos Estados demonstram, frequentemente, uma elevada falta de interesse político na resolução dos problemas dos refugiados ao iniciar-se o seu repatriamento (muitas vezes para zonas onde a paz é frágil e as infra-estruturas quase sempre são nulas).

O ACNUR é uma organização com pouco mais de 50 anos, que deu os primeiros passos ao ajudar a reinstalar 1,2 milhões de refugiados europeus após a Segunda Grande Guerra Mundial. Desde então, a sua expansão não tem parado e presta, actualmente, assistência a cerca de 19 milhões de refugiados e deslocados em todo o mundo.

O refugiado está no centro das preocupações da política europeia em matéria de asilo e imigração; no entanto, é no Médio Oriente e em África que se encontram quase dois terços dos refugiados do mundo.

No início deste século, quase metade do total de refugiados eram palestinianos, afegãos e iraquianos. Constituíam também grandes fontes de refugiados países como a Serra Leoa, a Somália, o Sudão, a Jugoslávia, Angola, a Croácia e a Eritreia.

De acordo com dados da ONU, as mulheres e as crianças (um dos grupos mais vulneráveis) constituem 80 por cento dos refugiados e das pessoas deslocadas em todo o mundo. As estatísticas variam sem cessar. Em 2001, os afegãos formavam, de longe, a maior população de refugiados do mundo, com 3,8 milhões de pessoas a viver fora do país. Em segundo lugar, encontravam-se os burundeses, com mais de meio milhão a viver nos campos da Tanzânia. Em terceiro, estavam os 530 mil iraquianos a viver no Irão.

Em 2004, as crises do Sudão, da República Democrática do Congo e do Uganda provocaram um êxodo de três milhões de pessoas.

No início de 2005, o mundo foi abalado pelas consequências dramáticas do tsunami que varreu as costas do Oceano Índico. No Paquistão, um sismo não menos devastador colocou esse ano sob o signo dos acontecimentos mais graves em termos de calamidades naturais. Perto de 300 000 pessoas perderam a vida nestas duas catástrofes naturais e milhares de outras vidas foram reduzidos a nada.

Paradoxalmente, 2005 foi também o ano de todos os contrastes. Se, por um lado, explodiram fenómenos de grande violência, abusos sistemáticos dos direitos humanos e um retrocesso nas políticas generosas de acolhimento dos Estados, por outro, assistiu-se a um retorno maciço de populações, em certas regiões do mundo, e a uma baixa significativa do número de pedidos de asilo.

Procurando um rasto de segurança ou regressando para as suas casas, na esperança de uma paz enfim encontrada, em Angola, na Libéria, no Sudão, no Iraque e no Afeganistão, muitos milhares de refugiados tomaram o caminho do retorno depois de um longo exílio.

Ninguém quer, escolhe ou gosta de ser um refugiado. Ser refugiado significa viver num país estrangeiro e depender dos outros para satisfazer as suas necessidades básicas. Segundo as leis internacionais, os países de acolhimento devem assegurar que estas necessidades sejam satisfeitas de acordo com os mais elementares direitos humanos, que incluem também a protecção a todas as pessoas que procuram asilo.

Na última década, vários conflitos se agravaram, alguns nasceram e poucos foram resolvidos. Em consequência disso, homens, mulheres e crianças continuam a ser obrigados a fugir. Podemos dizer que todos os dias, num ponto qualquer do planeta, existem pessoas que se tornam refugiados.

Há várias maneiras de proteger um refugiado: prestando assistência e procurando soluções permanentes. Todavia, é, também, preciso promover a adesão a acordos internacionais sobre refugiados e fiscalizar constantemente o seu cumprimento por parte dos governos.

O pessoal nacional e internacional - as ONG e o ACNUR - trabalham nos países de acolhimento e nos campos de refugiados na tentativa de proporcionar protecção e de reduzir as ameaças e agressões, frequentemente físicas.

Alguns refugiados passam, às vezes, por novos horrores após terem deixado o seu país de origem. Exploração, violência sexual, segregação racial ou outra são apenas alguns exemplos de más condutas dos países receptores. É preciso protegê-los e proporcionar-lhes, para além de alimentos, água, abrigo, cobertores, medicamentos, saneamento básico e equipamentos, emprego, escolas e centros de saúde.

Para uma cidadania plena nos países de acolhimento, os refugiados devem tornar-se autónomos o mais depressa possível. Conceder-lhes apoio jurídico e social com vista à concessão do estatuto de refugiado é essencial, bem como providenciar - no início - pequenos subsídios financeiros, facilitando-lhes a procura de emprego, o arrendamento de casas e a aprendizagem da língua do país.

Portugal é o país da União Europeia que acolhe menos requerentes de asilo. Nestes últimos anos, apenas tem recebido pouco mais de 100 pedidos de asilo por ano, com uma taxa de concessão de estatuto de refugiado e protecção humanitária inferior aos 10 por cento. A origem geográfica dos requerentes de asilo é muito diversificada. Predominam, no entanto, os cidadãos vindos de países africanos (32 pedidos), seguidos dos requerentes provenientes do continente americano (25), entre eles os colombianos, com elevada expressão no ano de 2005.

Trata-se de uma população maioritariamente constituída por homens, cujo perfil etário tem vindo a diminuir nos últimos anos. A maioria dos requerentes de asilo chega desacompanhada. A vinda em família (cônjuge, ou cônjuge e filhos, ou filhos) é mais frequente no caso de pessoas oriundas da Europa de Leste e da América Latina. Estas diferenças decorrem da diversidade cultural, associada aos modelos familiares, e também do tipo de projecto de vida que se encontra na génese do próprio pedido de asilo de cada indivíduo. De igual modo, a maioria dos requerentes não tem família em Portugal ou noutro país da UE.

As religiões professadas pelos requerentes de asilo são, como seria de esperar, muito variadas e estreitamente relacionadas com as suas origens geográficas. No cômputo geral, predominam, em parcelas idênticas, os muçulmanos e os católicos.

Os níveis de escolaridade mais elevados residem nos latino-americanos, seguidos pelo grupo dos europeus de Leste. Em situação oposta, encontram-se os vários grupos de africanos.

Por razões que se relacionam com as motivações subjacentes à fuga do país de origem, mais de metade dos requerentes de asilo chega indocumentada, sendo uma grande parte portadora de passaporte falsificado.

A maioria passa por países terceiros antes de chegar a Portugal, não fazendo, portanto, um percurso directo para o nosso país.

Não existe um refugiado «tipo». Cada história é diferente, cada perda é pessoal. Mas, através dos tempos, as crises mundiais têm tocado grupos de populações muito distintas. Algumas dessas crises são quase constantes, outras apresentam novas formas e criam problemas novos. Outras, ainda, são originadas por conflitos internos que se propagam por muito tempo, e cujas vítimas são pessoas comuns que vivem o seu dia-a-dia, apenas, na esperança de encontrar paz e tranquilidade.

O Conselho Português para os Refugiados (CPR) foi criado para defender o direito de asilo como um direito fundamental e universal para todos aqueles que procuram protecção e segurança em Portugal, por terem sido vítimas de perseguição por razões de raça, religião, pertença a um determinado grupo étnico, filiação partidária e opiniões políticas, graves violações dos seus direitos fundamentais (de acordo com a definição constante na Convenção de Genebra de 1951, relativa ao Estatuto de Refugiado).

O CPR desenvolve as suas actividades no âmbito jurídico e social com a determinação de melhorar o acolhimento dos refugiados em Portugal, investindo simultaneamente em projectos de integração, na formação de técnicos e estudantes universitários, assim como na divulgação e informação pública relativa a esta matéria. E, sobretudo, mantendo o espírito crítico, independente, humanista e solidário que sempre caracterizou esta organização.

As quatro histórias de vida narradas neste livro são um exemplo vivo dessas centenas de pessoas, tão diferentes entre si, que chegam a Portugal em busca de paz e de um local a que possam chamar casa. Devem ser entendidas enquanto um testemunho da sua incrível força, coragem e determinação no percurso da fuga, bem como uma esperança num futuro melhor no nosso país.

Dra. Teresa Tito de Morais

Presidente da Direcção do Conselho Português para os Refugiados

 

                                                                                Mafalda Gameiro  

 

                      

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