Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PREDADOR / Patricia Cornwell
PREDADOR / Patricia Cornwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PREDADOR

 

 “A maioria dos psicólogos forenses nunca foi a um depósito de cadáveres. Jamais viram uma autópsia e nem desejam ver as fotografias. Se interessam mais pelos detalhes do perpetrador do que pelo o que este fez a sua vítima, porque o perpetrador é o paciente e a vítima não é mais que o meio que este utiliza para expressar sua violência. Esta é a desculpa que muitos psicológicos e psiquiatras forenses dão. Outra explicação, mais plausível, é a de que carecem de valor ou da inclinação para entrevistar as vítimas ou, ainda pior, para dedicar um tempo a seus cadáveres. Benton é diferente. Depois de mais de uma década com Scarpetta, não poderia ser de outra maneira.”

A forense Kay Scarpetta investiga uma série de assassinatos perpetrados, a priori, por uma mesma pessoa. O caso a levará a investigar na Flórida e em Boston, onde seu companheiro sentimental, Benton Wesley, participa de um estudo científico sobre assassinos em série. Um e outro se servirão de suas respectivas investigações para tentar solucionar o complexo caso.

 

É domingo à tarde e a doutora Kay Scarpetta se encontra em seu escritório da Academia Nacional de Medicina Legal, em Hollywood, Flórida, aonde começam a formarem-se nuvens que pressagiam outro temporal. Não é normal que chova tanto e faça tanto calor em fevereiro.

 

Soam disparos por todas as partes e se ouvem vozes que gritam coisas que não se consegue entender. Durante os fins de semana são muito populares os combates de ficção. Os agentes de Operações Especiais podem correr de cá para lá vestidos com seus trajes negros, disparando a torto e a direito. Scarpetta apenas presta pouquíssima atenção. Segue repassando uma parte do relatório de um médico forense de Luisiana, o exame de uma paciente, uma mulher que assassinou cinco pessoas e afirma não lembrar-se de nada. Scarpetta, vagamente consciente do ruído cada vez mais alto que está fazendo uma motocicleta no recinto da Academia, chega à conclusão de que o mais provável é que o caso não seja um candidato válido para a investigação “Psico-Reguladores de Agressividade Total Reativa”, conhecida como PREDADOR.

 

Escreve uma mensagem eletrônica ao psicólogo forense Benton Wesley: «Seria interessante contar com uma mulher no seu estudo, porém, de que serviriam os dados? Tinha entendido que PREDADOR é um estudo só com homens». A motocicleta se aproxima rugindo do edifício e se detém justo ao pé da janela do escritório de Scarpetta. «Já está usando-a outra vez Pete Marino», pensa irritada enquanto Benton lhe envia uma mensagem instantânea: «É provável que Luisiana não nos deixe incluí-la no estudo. Por aqui gostam muito de estudar pessoas, embora se coma muito bem».

 

Scarpetta chega à janela e vê que Marino desliga o motor, apeia da moto e olha a seu redor com o habitual gesto de macho, sempre atento a quem possa estar olhando. Scarpetta está guardando debaixo de chave vários expedientes de casos PREDADORES na gaveta de sua mesa, quando Marino entra no escritório sem bater e toma assento em uma cadeira.

 

—        Sabe algo do caso de Johnny Swift? Pergunta, com seus enormes braços tatuados sobressaindo de uma camisa esportiva sem mangas, que tem o emblema da Harley nas costas. Marino é o chefe de investigação da Academia e investigador a meio expediente no Instituto de Medicina Legal no condado de Broward. Ultimamente parece uma paródia de motociclista valentão. Larga o capacete sobre a mesa de Scarpetta, um capacete negro cheio de rachaduras e com marcas de orifícios de bala por todas as partes.

—        Refresque-me a memória. Este capacete não é mais do que um enfeite. Aponta para o objeto. — Pura fachada. Não lhe servirá de nada se tiver um acidente com essa motocicleta de desenho animado que usas. Ele joga um pacote sobre a mesa.

—        Um médico de São Francisco com consultório aqui, em Miami. Ele e seu irmão tinham um apartamento em Hollywood, na praia, não muito longe do Renaissance, você sabe, essas duas torres de apartamentos ao lado do parque John Lloyd. Faz uns três meses, no Dia de Ação de Graças, seu irmão o encontrou caído no sofá do apartamento, morto por causa de um disparo de escopeta no peito. A propósito, vinha de operar as mãos e a intervenção não tinha saído bem. À primeira vista, um caso de suicídio.

—        Você não estava ainda no Instituto de Medicina Legal, lembra Scarpetta. Ainda que por aquela data já fosse a diretora de ciência e medicina forense da Academia, não aceitou o posto de patologista do Instituto de Medicina Legal do condado de Broward, até o mês de dezembro passado, quando o doutor Bronson, o chefe, começou a reduzir horário e a falar de demissão. —     Lembro-me de haver escutado algo acerca desse caso, admite, incomodada pela presença de Marino, a quem rara vez se alegrava de ver.

—        Da autópsia se encarregou o doutor Bronson, falou Marino olhando o que havia em cima da mesa, fixando a vista em qualquer coisa menos nela.

—        Você participou?

—        Não. Estava fora da cidade. O caso continua pendente porque a polícia de Hollywood pensava que pudesse haver algo mais. Suspeitavam de Laurel.

—        Laurel?

—        O irmão de Johnny Swift. São gêmeos idênticos. Não havia nada que provasse nada, de modo que o assunto esfriou. Então, anteontem, lá pelas três da manhã, recebi uma ligação telefônica muito rara em casa. A rastreamos e sabemos que foi efetuada de uma cabine de Boston.

—        Massachusetts?

—        Outra que adivinhaste.

—        Achava que seu número não figurava na lista.

—        Pois está lá. Marino retira de um bolso traseiro da calça um papel marrom dobrado e o abre.

—        Vou ler o que me disse esse tipo, porque anotei palavra por palavra. Chamava-se a si mesmo Porco.

—        Animal? A isso se referia? Scarpetta olha fixamente Marino, perguntando-se se ele não estará enganando-a, tentando deixá-la em ridículo. Porque isto é o que estiveram fazendo ultimamente.

—        Se limitou a dizer: «Sou o Porco. Tinham enviado um castigo que era uma brincadeira». Não sei o quer dizer isto. E depois concluiu: «Existe um motivo para que faltassem vários objetos no lugar do crime de Johnny Swift, e se tiver algo no cérebro, deveria dar uma boa vista de olhos no que aconteceu a Christian Christian. Nada acontece por casualidade. Faria bem em perguntar a Scarpetta, porque a mão de Deus arrasará a todos os perversos, incluída essa asquerosa sobrinha lésbica dela». Scarpetta não permite que o que sente se note no tom de voz quando responde:

—        Está certo de que isso é o que disse exatamente?

—        Tenho pinta de ser um escritor de ficção?

—        Porém Christian Christian?

—        Vá alguém saber. A esse tipo não interessava precisamente que me pusesse a perguntar por que duplicou uma palavra. Falava com voz suave, como uma pessoa que não sente nada, em um tom bem inexpressivo, e depois desligou.

—        Chegou a mencionar Lucy por seu nome ou simplesmente... ?

—        Repeti exatamente o que disse, cortou Marino. — É a única sobrinha que tens, não? Portanto é obvio que se referia a Lucy. Além disso, o nome de Porco poderia significar «mão de Deus»1, não é? Resumindo, me pus em contato com a polícia de Hollywood e me pediram que déssemos uma olhada no caso de Johnny Swift o quanto antes possível. Parece que, existe alguma coisa nas provas que demonstra que dispararam de próximo ou de longe. Digo eu que será ou um ou outro, não?

—        Se só houve um disparo, sim. Tem que haver algum erro de interpretação. Temos ideia de quem é esse Christian Christian? E mais: estamos falando de uma pessoa?

—        Até agora não demos com nada de utilidade nas buscas por computador.

—        E por que me conta isso só agora? Estive aqui todo o fim de semana.

—        Estive ocupado.

—        Se obténs informação sobre um caso como este não deveria esperar dois dias para me contar, replica ela com tanta calma quanto possível.

—        Você não é precisamente a mais adequada para falar de se guardar informação.

—        Que informação? Pergunta Scarpetta, confusa.

—        Deverias ter mais cuidado. Não falo mais.

—        Ficando misterioso não é de muita ajuda, Marino.

—        Quase se me esqueço. Em Hollywood sentem curiosidade por saber qual poderá ser a opinião profissional de Benton, adiciona como se acabasse de lhe ocorrer. Como de costume, se dá muito mal ao ocultar o que sente por Benton Wesley.

—        Podem lhe pedir que acompanhe este caso, responde Scarpetta. — Eu não posso falar por ele.

—        Querem que investigue se a chamada que recebi desse tal Porco é uma excentricidade, e eu disse a eles que isso vai ser bem difícil levando em conta que não foi gravada e que a única coisa que vai contar é minha versão particular em taquigrafia escrita em um pedaço de papel.

 

Levanta-se da cadeira e sua enorme presença parece ainda maior, e Scarpetta se sente menor que de costume. Ele apanha seu inútil capacete e põe os óculos de sol. Não olhou Scarpetta uma só vez ao longo de toda a conversa e agora ela não lhe vê os olhos. Não vê que existe neles.

 

—        Dedicarei toda a minha atenção. De imediato. Diz ela ao mesmo tempo em que ele se dirige até a porta. — Se quiser que voltemos a falar do assunto mais tarde, podemos.

—        Bom.

—        Por que não vai à minha casa?

—        Bom, repete ele. — A que horas?

—        Às sete.

 

1 - Mão de Deus, em inglês Hand of God, cujas iniciais formam a palavra hog, «porco». (N. da T.)

 

Na sala de ressonância magnética, Benton Wesley examina seu paciente através de um tabique de plexiglás. A iluminação é tênue, existem vários terminais de vídeo acesos ao longo do mostrador que percorre toda a parede. Colocou o relógio de pulso em cima da mesa. Tem frio. Ao cabo de várias horas dentro do Laboratório de Imagens Neuronais Cognitivas, estava gelado até os ossos, ou ao menos essa é a sensação que tem.

 

O paciente desta tarde não tem um número de identificação, porém tem nome. Basil Jenrette. É um assassino compulsivo de trinta e três anos, inteligente e com uma ligeira ansiedade. Benton evita o termo «assassino em série», tão utilizado e que já não significa nada, e que nunca serviu para outra coisa, do que insinuar vagamente que um criminoso assassinou três pessoas dentro de um determinado período de tempo. O qualificativo «em série» sugere que algo ocorre de maneira sucessiva. Não indica nada acerca dos motivos nem o estado mental de um agressor violento, e quando Basil Jenrette estava ocupado em matar, atuava de maneira compulsiva. Não podia parar.

 

A razão por que se está explorando seu cérebro, mediante um aparelho de obtenção de imagens por ressonância magnética cujo campo magnético é sessenta mil vezes mais potente que o da Terra, é ver se existe algo entre sua matéria branca e sua matéria cinzenta e se suas funções podem explicar seu comportamento. Durante as entrevistas clínicas Benton perguntou numerosas vezes por que o fez.

 

—        Tinha que fazê-lo.

—        Tinha que fazê-lo precisamente naquele instante?

—        Ali mesmo, na rua, não. Tinha que segui-la até ver se me ocorria um plano. Para dizer a verdade, quanto mais calculava mais gostava.

—        E quanto tempo decorria? Segui-la, calcular a situação. Pode me dar um prazo aproximado? Dias, horas, minutos?

—        Minutos. Talvez horas. Às vezes dias. Depende. Eram todas umas idiotas. Refiro-me a que, se você se desse conta de que iam sequestra-lo, ficaria sentado no carro sem tentar fugir sequer?

—        Era isso o que elas faziam, Basil? Ficavam sentadas no carro e não tentavam escapar?

—        As duas últimas não. Você sabe quem sou, porque essa é a razão de eu estar aqui. Não resistiram, porém quebrou o carro. Que tontas. Você preferiria que o matassem ali mesmo, dentro do carro, ou esperar para ver o que ia acontecer quando chegassem a meu lugar especial?

—        Aonde era esse seu lugar especial? Era sempre o mesmo?

—        E tudo porque quebrou o maldito carro.

 

No momento, a estrutura cerebral de Basil Jenrette não revelava nada de particular salvo o achado acidental de uma anomalia na zona posterior do cerebelo, um quisto de aproximadamente seis milímetros que pode ter afetado um pouco seu sentido do equilíbrio, porém nada mais. O que não é do todo normal é o modo como funciona seu cérebro. Não podia ser. Se o fosse, não seria um sujeito candidato para a investigação PREDADOR, e provavelmente não tinha dado seu consentimento. Para Basil tudo é um jogo e, além disso, é mais inteligente que Einstein, que se acredita que seja a pessoa mais superdotada do mundo. Jamais sentiu o mais leve remorso pelo o que fez e é bastante ingênuo para afirmar que, se tivesse oportunidade, mataria mais mulheres. Por desgraça, Basil parece muito com várias pessoas.

 

Os dois guardas presentes na sala de ressonâncias magnéticas se debatem entre a confusão e a curiosidade enquanto observam fixamente o tubo de mais de dois metros de comprimento e o grande imã, situado do outro lado do cristal. Estão de uniforme, porém não usam pistola. Ali dentro não pode haver armas, nada que contenha ferro, de modo que Basil tem os tornozelos e os pulsos presos por braçadeiras de plástico enquanto permanece deitado na cama dentro do aparelho, escutando o desagradável chiado dos impulsos de radiofrequência que soam como se alguém tocasse uma música infernal por grandes alto-falantes... Ou pelo menos assim parece a Benton.

 

—        Atenção. O teste seguinte são blocos de cores. O que quero que faça é nomear a cor, diz pelo intercomunicador a doutora Susan Lane, a neuropsicóloga. — Não, senhor Jenrette, peço que não balance a cabeça. Lembre-se que tem um cinto em cima do queixo para se lembrar de que não deve se mover.

—        Dez-quatro, soa a voz de Basil através do intercomunicador.

 

São oito e meia da tarde e Benton está inquieto. Está há meses inquieto, não tanto pela preocupação de que os Basil Jenrette do mundo venham a ter um acesso de violência entre as elegantes paredes de ladrilho antigo do hospital McLean e matem tudo o que encontrem a sua passagem, mas pela possibilidade de que o estudo esteja condenado ao fracasso, que seja um desperdício do dinheiro das subvenções e uma insensata perca de valioso tempo. O McLean está associado à Faculdade de Medicina de Harvard e nem o hospital nem a universidade aceitam com elegância os fracassos.

 

—        Não se preocupe em acertar tudo, está falando a doutora Lane pelo intercomunicador. — Não esperamos que acerte todos.

—        Verde, vermelho, azul, vermelho, azul, verde. A voz segura de Basil enche a sala. Um investigador marca os resultados em uma folha de dados enquanto o técnico que maneja o aparelho comprova as imagens em seu terminal de vídeo. A doutora Lane aperta de novo o botão para falar.

—        Senhor Jenrette, está indo muito bem. Está vendo tudo?

—        Dez-quatro.

—        Muito bem. Cada vez que veja esse terminal ficar escuro, fique tranquilo e sem se mover. Não fale, só concentre-se no ponto branco do terminal.

—        Dez-quatro. A doutora solta o botão de comunicação e pergunta a Benton:

—        Por que fala com o jargão dos policiais?

—        Porque foi policial. Com certeza por isso conseguia meter a as vítimas em seu carro.

—        Doutor Wesley, diz o investigador girando em sua cadeira. — É para você. O detetive Thrush. Benton apanha o telefone.

—        Que aconteceu? Pergunta a Thrush, um detetive de homicídios que trabalha para a polícia estadual de Massachusetts.

—        Espero que não tenha pensado ir cedo para a cama, diz Thrush. — Se soube do cadáver que encontraram esta manhã junto à laguna de Walden?

—        Não. Estive todo o dia encerrado aqui.

—        Mulher branca, sem identificação, de idade difícil de calcular. Terá uns trinta ou quarenta anos. Tem um disparo na cabeça.

—        Não sabia.

—        Já fizeram a autópsia, porém me ocorreu que talvez você quisesse dar uma olhada.

—        Dentro de menos de uma hora terei terminado, diz Benton.

—        Nos veremos na morgue.

 

A casa está em silêncio e Kay Scarpetta anda de um aposento a outro, acendendo todas as luzes, nervosa, alerta para ouvir o motor de um carro ou de uma motocicleta, avisando que está chegando Marino; ele está atrasado e não retorna as ligações.

 

Aproxima-se ansiosa para verificar se o alarme contra intrusos está ativado e que as luzes estejam acesas. Detém-se junto ao terminal de vídeo do telefone da cozinha para se certificar de que as câmaras que vigiam a parte dianteira, lateral e traseira da casa funcionam corretamente. No terminal de vídeo a casa aparece em sombras e se veem as formas escuras das árvores, as palmeiras e os hibiscos mexendo-se ao vento. O cais que existe detrás da piscina e, mais para lá, a superfície da água são uma mancha negra salpicada de luzes difusas procedentes das luminárias do edifício vizinho. Em uma panela de cobre que tem ao fogo remove um molho de tomate e champignons. Verifica como vai cozinhando a massa e como se embebe a mozarela fresca.

 

São quase nove; e se supõe que Marino deveria ter chegado há duas horas. Amanhã estará cheia com casos e turmas e não terá tempo para aguentar sua má educação. Se sente enganada, está cheia dele. Esteve três horas trabalhando sem parar no caso do presumido suicídio de Johnny Swift e Marino nem sequer se incomoda em aparecer. Se sente doída e, depois, furiosa. É mais fácil ficar furiosa. Cada vez mais chateada, vai até seu quarto sem deixar de prestar atenção no barulho de um carro ou uma moto. Apanha do sofá uma Remington Marine Magnum de calibre doze e se senta. Sentindo o peso da escopeta niquelada no colo, introduz uma chave no seguro, gira até a direita, tira do seguro e o libera. Em seguida desliza o cão até atrás para certificar-se de que não existe nenhum cartucho na câmara.

 

—        Agora vamos ler palavras, diz a doutora Lane a Basil pelo intercomunicador. — Não tem mais que ler as palavras da esquerda para a direita, certo? E lembre que não deve se mover. Está fazendo tudo muito bem.

—        Dez-quatro.

—        Ei, querem saber como ele é? Pergunta o técnico aos guardas. Chama-se Josh. Graduou-se em Física no MIT, trabalha como técnico enquanto prepara outra carreira, é rápido, porém excêntrico e tem um sentido do humor algo retorcido.

—        Já sei como ele é. Acontece que esta manhã o acompanhei ao banho, responde um dos guardas.

—        E depois o que fazia? Pergunta a doutora Lane a Benton. — Que fazia às vítimas depois de colocá-las no carro?

—        Vermelho, azul, azul, vermelho... Os guardas se aproximam um pouco mais do terminal de vídeo de Josh.

—        Levava-as a algum lugar, arrancava os olhos, conservava-as vivas um par de dias mais, violava-as repetidamente, degolava-as, jogava por ali seus cadáveres, colocando-os de maneira que impressionassem a todos, diz Benton à doutora Lane em tom prático, com seu estilo clínico. — Assim são os casos que conhecemos. Suspeito que matou mais. Na mesma época desapareceram na Flórida várias mulheres. Dão-se como mortas, embora ainda não encontrassem seus cadáveres.

—        Aonde as levava? A um motel, a sua casa?

—        Esperem um segundo, diz Josh aos guardas ao mesmo tempo em que seleciona a opção de menu 3D e em seguida SSD, ou seja, Visualização com Sombreado de Superfície. — Isto é verdadeiramente genial. Nunca mostramos aos pacientes.

—        Por quê?

—        Lhes da pânico.

—        Não sabemos onde, está dizendo Benton à doutora Lane sem tirar o olho de Josh, preparado para intervir se o outro passa dos limites. — Porém é interessante. Os cadáveres que deixou abandonados, todos, continham partículas microscópicas de cobre.

—        Do que me estás falando?

—        Mesclado com a terra e tudo o mais que ficou aderido, no sangue, na pele, nos pelos.

—        Azul, verde, azul, vermelho...

—        Isso é muito estranho. Aperta o botão para falar.

—        Senhor Jenrette, como vamos? Encontra-se bem?

—        Dez-quatro.

—        Em seguida vai ver palavras impressas em uma cor diferente do que significam. Quero que nomeie a cor da tinta. Diga somente a cor.

—        Dez-quatro.

—        Que fantástico! Exclama Josh enquanto seu terminal se enche com uma espécie de máscara mortuária, uma composição de numerosas quadrículas de alta resolução, de um milímetro de largura, que formam a imagem escaneada da cabeça de Basil Jenrette, pálida, sem cabelos e sem olhos, que termina bruscamente por baixo da mandíbula, como se o sujeito tivesse sido decapitado. Josh faz rotar a imagem para que os guardas possam vê-la de diferentes ângulos.

—        Por que parece que lhe cortaram a cabeça? Pergunta um deles.

—        É onde se interrompeu o sinal.

—        A pele não parece de verdade.

—        Vermelho, er... Verde, azul, quero dizer vermelho, verde... A voz de Basil chega à sala.

—        Não é pele autêntica. Como vou explicar... O que faz o computador é reconstruir o volume, descrever a superfície.

—        Vermelho, azul, er... Verde, azul, quero dizer verde...

—        Só o usamos com PowerPoint, quase sempre para superpor o estrutural ao funcional. Não é mais do que um pacote de análise de imagens obtidas por ressonância magnética com o que se pode juntar dados e examiná-los como um desenho, brincar com ele.

—        Deus, é muito feio. Benton já não pode mais. O sujeito deixou de nomear cores. Dá uma olhada fulminante a Josh.

—        Josh, está pronto?

—        Quatro, três, dois, um, pronto, responde Josh e, em seguida, a doutora Lane começa ao teste de interferência.

—        Azul, vermelho... Quero dizer... Merda, isto... Vermelho, quero dizer azul, verde, vermelho... A voz de Basil irrompe com violência na sala ao errar todas as cores.

—        Alguma vez disse por quê? Pergunta a doutora Lane a Benton.

—        Desculpe, responde ele, distraído. — Por que, o quê?

—        Vermelho, azul, merda! Isto... Vermelho, azul-verde...

—        Por que retirava os olhos.

—        Disse que não queria que vissem o pênis pequeno.

—        Azul, azul-vermelho, vermelho, verde...

—        Desta vez não o faz tão bem, comenta ela. — De fato, errou em quase todos. Em que departamento de polícia trabalhou, para que me lembre de não provocá-los e evitar que me deem uma multa por excesso de velocidade nessa parte do mundo? Aperta o botão do intercomunicador. — Tudo bem ali dentro?

—        Dez-quatro.

—        No condado de Dade.

—        Lástima. Sempre gostei de Miami. De modo que assim é como conseguiu retirar este da cadeia. Graças a seus contatos no sul da Flórida, responde a doutora voltando a apertar o botão para falar.

—        Não exatamente.

 

Benton observa através do vidro a cabeça de Basil, situada no extremo mais longínquo do imã, e imagina o resto de seu corpo vestido como o de uma pessoa normal, com jeans e uma camisa branca. Aos reclusos não se é permitido usar macacão de presidiário dentro do recinto do hospital; da má imagem.

 

—        Quando começamos a solicitar aas penitenciárias estaduais que nos enviassem sujeitos para nosso estudo, Flórida pensou que este era justo o tipo adequado. Se alegraram de livrar-se dele. Diz Benton.

—        Muito bem, senhor Jenrette, anuncia a doutora Lane pelo intercomunicador. — Agora vai começar o doutor Wesley para lhe dar os comandos. Depois verá uns rostos.

—        Dez-quatro.

—        Alguma vez disse por quê? Pergunta a doutora Lane a Benton.

—        Desculpe, responde ele, distraído. — Por que, o quê?

—        Vermelho, azul, merda! Isto... Vermelho, azul-verde...

—        Por que retirava os olhos.

—        Disse que não queria que vissem o pênis pequeno.

—        Azul, azul-vermelho, vermelho, verde...

—        Desta vez não o faz tão bem, comenta ela. — De fato, errou em quase todos. Em que departamento de polícia trabalhou, para que me lembre de não provocá-los e evitar que me deem uma multa por excesso de velocidade nessa parte do mundo? Aperta o botão do intercomunicador. — Tudo bem aí dentro?

—        Dez-quatro.

—        No condado de Dade.

—        Lástima. Sempre gostei de Miami. De modo que assim é como conseguiu retirar este da cadeia. Graças a seus contatos no sul da Flórida, responde a doutora voltando a apertar o botão para falar.

—        Não exatamente.

 

Benton observa através do vidro a cabeça de Basil, situada no extremo mais longínquo do imã, e vê o resto de seu corpo vestido como o de uma pessoa normal, com jeans e uma camisa branca. Aos reclusos não é permitido usar macacão de presidiário dentro do recinto do hospital; dá má imagem.

 

—        Quando começamos a solicitar às penitenciárias estaduais que nos enviassem sujeitos para nosso estudo, Flórida pensou que este era justo o tipo adequado. Alegraram-se de se livrar dele, diz Benton.

—        Muito bem, senhor Jenrette, anuncia a doutora Lane pelo intercomunicador. — Agora o doutor Wesley vai entrar e lhe passar o mouse. Depois verá uns rostos.

—        Dez-quatro.

 

Em qualquer outro caso a doutora Lane seria quem iria entrar na sala da ressonância magnética e trataria com o paciente. Entretanto no caso do estudo PREDADOR não se permite as doutoras nem as cientistas que tenham contato físico com o sujeito. Os médicos e cientistas masculinos também devem tomar precauções enquanto se encontram dentro da sala. Fora dela, corresponde aos internistas decidir se devem colocar restrições aos sujeitos de estudo durante as entrevistas. Benton entra acompanhado dos dois guardas, acende as luzes da sala e fecha a porta. Os guardas ficam próximos do imã e prestam atenção enquanto Benton apanha o mouse e o coloca nas mãos de Basil.

 

Fisicamente, Basil não é grande coisa: um indivíduo miúdo, de cabelo ruivo que começa a rarear, e uns olhos pequenos e cinzentos, um pouco juntos. No reino animal, os leões, os tigres e os ursos, os predadores, têm os olhos muito juntos. As girafas, os coelhos, as pombas, as presas, têm os olhos mais espaçados e orientados para os lados da cabeça, porque necessitam de visão periférica para sobreviver. Benton sempre se perguntou se esse mesmo fenômeno evolutivo é aplicável aos humanos; uma investigação que ninguém vai financiar.

 

—        Está tudo bem, Basil? Pergunta Benton.

—        Que tipos de rostos? A cabeça de Basil fala desde o extremo do imã, o que faz pensar em um pulmão de aço.

—        A doutora Lane já explicará.

—        Tenho uma surpresa, diz Basil. — Contarei quando tivermos terminado. Tem um olhar estranho, como se através de seus olhos estivesse observando uma criatura maligna.

 

—        Genial. Adoro surpresas. Só uns minutos mais e começamos, responde Benton com um sorriso. — Logo teremos uma conversa para comentar a sessão.

 

Os guardas acompanham de novo Benton para fora da sala e retornam a seus postos enquanto a doutora Lane começa a explicar pelo intercomunicador que o quer que Basil faça é apertar o botão esquerdo do mouse se o rosto que está vendo é de um homem e o direito se for de uma mulher. — Não tem que dizer, nem fazer nada, só apertar o botão, insiste.

 

São três testes, cuja finalidade não é averiguar a capacidade do paciente para distinguir entre os dois gêneros. O que medem estes scanners funcionais é o processo afetivo. Os rostos de homem e de mulher aparecem no terminal atrás de outros rostos que se mostram demasiado rápido para que as detecte o olho, porém o cérebro o vê todo. O cérebro de Jenrette vê os rostos mascarados, rostos de alegria, enfado ou medo, rostos que provocam uma reação .

 

Depois de cada desenho, a doutora Lane pergunta o que ele viu e, se tiver que associar uma emoção aos rostos, qual seria.

 

—        Os rostos masculinos são mais sérios que os femininos, responde Jenrette.

 

Disse basicamente o mesmo de cada desenho. Ainda não significa nada; nada do que acontece nestas salas significará algo, até que se analisem as imagens neuronais. Então os cientistas poderão visualizar que áreas de seu cérebro estiveram mais ativas durante as provas. Trata-se de saber se o cérebro de Jenrette funciona de modo distinto do de uma pessoa à que se supõe normal e de descobrir algo mais fora o fato de que ele tem um quisto que não deve ter absolutamente nenhuma relação com suas tendências depredadoras.

 

—        Algo que tenha chamado à atenção? Pergunta Benton à doutora Lane. — E a propósito, obrigado, como sempre, Susan. É uma boa pessoa.

 

Procuram programar outras explorações de internos para última hora do dia ou para o fim de semana, quando existem poucas pessoas.

 

—        Baseando-nos só nos localizadores, parece estar tudo bem. Não vejo anormalidades de importância, aparte de que não pára de falar, de sua loquacidade. Alguma vez foi diagnosticado um transtorno bipolar?

—        Suas evaluações e sua história me fizeram pensar nisso também. Entretanto não; nunca foi diagnosticado. Não recebeu medicação por desordens psiquiátricas, só esteve um ano na prisão. É o sujeito perfeito.

—        Bom, pois o seu sujeito perfeito cometeu um monte de erros na prova. Eu diria que não se concentra em nada, o qual, de fato, concorda com o transtorno bipolar. Mais adiante saberemos algo mais.

 

Aperta outra vez o botão para falar e diz:

 

—        Senhor Jenrette, já temos terminado. Você o fez estupendamente. Em seguida voltará a entrar o doutor Wesley para retirá-lo de ali. Quero que se levante muito devagar, certo? Muito devagar, para que não enjoe. De acordo?

—        Isto é tudo? Simplesmente estas provas estúpidas? Mostre-me as fotos. A doutora Lane olha Benton e solta o botão. — Você disse que estaria vendo meu cérebro quando eu estivesse vendo as fotos.

—        Se refere a fotografias das autópsias de suas vítimas, explica Benton à doutora Lane.

—        Me prometeu as fotos! Prometeu que eu receberia as fotos!

—        Está bem, diz a doutora a Benton. — É todo seu.

 

A escopeta é pesada é extremamente difícil estender-se no sofá e apontar o cano até seu peito enquanto tenta apertar o gatilho com o dedo do pé esquerdo. Scarpetta baixa a escopeta e imagina tentar isto, depois de ter-se submetido a uma intervenção cirúrgica nos pulsos. Sua escopeta pesa aproximadamente três quilos e meio e as mãos começam a tremer quando a segura pelo cano, que mede quarenta e cinco centímetros. Baixa os pés até ao chão e retira a tênis e o meia do pé direito. Seu pé esquerdo é o dominante, porém terá que tentá-lo com o direito, e se pergunta qual seria o pé dominante de Johnny Swift, se o direito ou esquerdo. Havia diferença, porém não necessariamente significativa, sobretudo se estivesse deprimido e decidido. Não está certa de que se sentisse de um modo nem de outro, não está certa de nada.

 

Pensa em Marino, e quanto mais volta a ele seu pensamento, mais se altera. Marino não tem o direito de tratá-la assim, não tem o direito a faltar-lhe ao respeito da mesma maneira que fazia quando se conheceram, e isso foi há muitos anos, tantos que surpreende que Marino inclusive se lembre a estas alturas de tratá-la como a tratava antes. O aroma da pizza caseira chega até a sala de estar. Enche a casa e o ressentimento acelera o coração e causa um aperto no peito. Deita-se sobre o lado esquerdo, apoia a culatra da escopeta contra o encosto do sofá, aponta o cano para o centro de seu peito e aciona o gatilho com o dedo do pé direito.

 

Basil Jenrette não vai machucá-lo. Está sentado, relaxado, no outro lado da mesa, em frente à Benton, na pequena sala de exploração, com a porta fechada. Permanece calado e em atitude cortês. Sua irritação dentro do imã durou quem sabe uns dois minutos e, quando se acalmou, a doutora Lane já havia saído. Não a havia visto quando a acompanharam para fora da sala e Benton se assegurará de que nunca a veja.

 

—        Tem certeza que não se sente aturdido ou enjoado? Pergunta Benton na sua maneira tranquila e compreensiva.

—        Estou muito bem. Os Testes foram muito bons. Sempre gostei dos testes. Sabia que ia acertar tudo. Onde estão as fotos? Me prometeu.

—        Em nenhum momento falamos sobre algo parecido, Basil.

—        Da próxima vez mostre-me as fotos, tal como me prometeu.

—        Eu não prometi isso, Basil. Foi importante a experiência?

—        Suponho que aqui não se pode fumar.

—        Não.

—        Que aspecto tem o meu cérebro? Tinha boa pinta? Viu algo? É capaz de decidir como é que é uma pessoa, olhando-lhe o cérebro? Se me mostrasse as fotos, veria que coincidem com as que tenho dentro do cérebro.

 

Agora fala depressa e em voz baixa, com os olhos brilhantes, quase vidrados, referindo-se continuamente ao que os cientistas poderiam encontrar em seu cérebro, supondo que fossem capazes de decifrar o que existe nele, e existe sem dúvida alguma, repete uma e outra vez.

 

—        Existe? Pergunta Benton. — Pode explicar a que se refere Basil?

—        A minha memória. Se você pode ver ali dentro, ver o que existe, ver minhas recordações.

—        Acho que não.

—        Não me diga. Tenho certeza de que quando estava fazendo todos esses ruidozinhos e golpezinhos apareceram todo o tipo de imagens. Tenho certeza de que as viu, porém não quer me contar. Eram dez e você as viu. Viu essas imagens, dez, não quatro. Eu sempre digo dez-quatro de brincadeira, para rir um pouco. Você acha que são quatro e eu sei que são dez, e saberia se me mostrasse as fotos, porque então veria que coincidem com as imagens que tenho no meu cérebro. Veria minhas imagens ao entrar em meu cérebro. Dez-quatro.

—        Fale-me de que fotos se refere Basil.

—        Só estou brincando com você, replica ele com um grunhido. — Quero as fotos.

—        Que fotos poderíamos ver em seu cérebro?

—        As dessas mulheres idiotas. Você não quer me dar as fotos.

—        Está dizendo que matou dez mulheres? Benton formula esta pergunta sem dar mostras de surpresa nem fazer juízos de valor. Basil sorri como se lhe tivesse ocorrido algo.

—        Oh. Agora posso mover a cabeça, heim? Já não tenho uma fita no queixo. Me prenderão o queixo com uma fita quando me aplicarem a injeção?

—        Não vão aplicar-lhe nenhuma injeção, Basil. Isto faz parte do trato. Sua sentença foi comutada por cadeia perpétua. Não se lembra de que já falamos disso?

—        Porque estou louco, comenta ele com um sorriso. — Por isso estou aqui.

—        Não. Vamos falar outra vez disto, porque é importante que eu entenda. Está aqui porque concordou em participar de nosso estudo, Basil. O governador da Flórida deu permissão para que você fosse transferido para o nosso hospital estatal, Butler, porém Massachusetts não queria dar seu consentimento a menos que fosse comutada a sentença por cadeia perpétua. Em Massachusetts não temos pena de morte.

—        Sé que você deseja ver as dez mulheres. Deseja vê-las tal como eu as recordo. Estão dentro do meu cérebro.

 

Sabe que não é possível ver os pensamentos e as recordações de uma pessoa com um scanner. Jenrette está comportando-se como o tipo inteligente que é. Quer ver as fotografias das autópsias para alimentar suas fantasias violentas e, tal como ocorre com os sociopatas narcisistas, acha que é um cara bastante divertido.

 

—        É essa a surpresa, Basil? Pergunta Benton. — Que realizou dez assassinatos em vez dos quatro a que foi acusado? Jenrette sacode a cabeça e responde:

—        Existe uma sobre a qual você deseja ter informação. Essa é a surpresa. Especial para você porque foi muito amável comigo. Entretanto quero as fotos. Esse é o trato.

—        Me interessa muito essa surpresa.

—        A mulher da loja de artigos de Natal. Responde Jenrette. — Se lembra dela?

—        Por que não me conta? Pergunta por sua vez Benton, sem saber a que se refere Basil. Não lembra em absoluto de um assassinato cometido em uma loja de artigos de Natal.

—        Que me diz das fotos?

—        Verei que o posso fazer.

—        Jura pelo mais sagrado?

—        Estudarei o assunto.

—        Não lembro a data exata. Vamos ver. Fica olhando o teto com as mãos sobre os joelhos. — Uns três anos, creio que foi mais ou menos em julho. Assim acho que pode fazer uns dois anos e meio. Quem se lembra de comprar merdas de Natal no mês de julho no sul da Flórida? Vendia bonequinhos de Papai Noel, com suas renas, e também calendários e figurinhas do menino Jesus. Entrei naquela loja uma manhã depois de haver passado a noite em claro.

—        Se lembra de como se chamava?

—        Jamais soube. Bem, sim, porém já me esqueci. Se me mostrasse as fotos, pode ser que me refrescassem a memória ou talvez você pudesse vê-la dentro de meu cérebro. Vamos ver se sou capaz de descrevê-la. Vejamos. Ah, sim. Era uma mulher branca, de cabelo longo e tingido da cor de I Love Lucy. Um tanto magra. Teria uns trinta e cinco ou quarenta anos. Entrei, fechei a porta com chave e a ameacei com uma faca. A violei nos fundos da loja, na zona do almoxarifado e cortei o pescoço desde aqui até aqui de um só corte. Fez o gesto de cortar o pescoço. — Foi bonito de se ver. Havia um desses ventiladores que oscilam e o liguei, porque ali dentro fazia um calor descomunal, e o sangue saiu voando para todos os lados... Então, vamos ver... Olha outra vez para o teto, como faz com frequência quando mente. — Aquele dia não ia com meu carro patrulha. Havia ido com minha duas rodas, que havia deixado em um estacionamento pago que existe atrás do hotel Riverside.

—        Se refere a uma moto ou a uma bicicleta?

—        A minha Honda Shadow. Como se eu fosse de bicicleta matar alguém...

—        Então tinha pensado matar a alguém essa manhã?

—        Me pareceu uma boa ideia.

—        Tinha pensado matá-la ou simplesmente achou que devia matar alguém?

—        Lembro que no estacionamento havia muitos patos ao redor das poças porque estava chovendo há vários dias. Mamães pato com seus patinhos por todas as partes. Isto sempre me preocupou. Pobres patinhos, muitos terminam atropelados. Veem-se patinhos esborrachados no asfalto e a sua mamãe dando voltas e voltas ao redor de seu pequeno morto, com uma expressão muito triste.

—        Alguma vez você atropelou os patos, Basil?

—        Eu jamais faria dano a um animal, doutor Wesley.

—        Disse que quando era pequeno matava pássaros e coelhos.

—        Isto foi há muito tempo. Já sabe, os vizinhos e suas carabinas de ar comprimido... Seja como for, para seguir com a história, a única coisa que consegui foram vinte e seis dólares e noventa e um centavos. Tem que fazer algo pelas as minhas fotos.

—        Não pára de dizer isso, Basil. Já disse que farei tudo o que puder.

—        Depois daquilo fiquei um pouco decepcionado. Vinte e seis dólares e noventa e um centavos...

—        Retirados do caixa.

—        Dez-quatro.

—        Deve ter-se manchado muito de sangue, Basil.

—        Aquela mulher tinha um banheiro nos fundos da loja. Volta a levantar a vista até o teto. — Me limpei e limpei-a com Clorox, agora acabo de me lembrar. Para destruir meu DNA, minhas digitais. Agora está você em dívida comigo. Quero minhas fotos. Me tire da cela dos suicidas. Quero uma cela normal, aonde não me espiem.

—        Nos temos certeza de que se encontra a salvo.

—        Quero outra cela e as fotos, me dê-as e contarei mais coisas sobre a loja de Natal. Agora Jenrette tem os olhos muito vidrados e se mexe inquieto na cadeira, com os punhos apertados, dando golpezinhos com o pé. — Mereço uma recompensa.

 

Lucy senta-se aonde possa ver a porta principal, quem entra e quem sai. Observa às pessoas dissimuladamente. Observa inclusive quando se supõe que esteja relaxando. Estas últimas noites se deixou cair por Lorraine e conversou com os garçons do balcão, Buddy e Tônia. Nenhum dos dois conhece o verdadeiro nome de Lucy, porém ambos lembram-se de Johnny Swift, lembram-se dele como aquele médico hetero de aspecto estranho. Um «médico de cabeça que por desgraça era hetero», comenta Buddy. Que lástima. «Sempre só, menos da última vez que esteve aqui», diz Tônia. Essa noite era o seu turno de trabalho e lembra que Johnny tinha os pulsos enfaixados. Quando perguntou o que tinha acontecido, ele respondeu que acabavam de operá-lo e a intervenção não havia saído muito bem. Johnny e uma mulher se sentaram ao balcão e ficaram muito amigos, conversaram como se não houvesse ninguém mais no bar. Ela se chamava Jam e parecia muito inteligente; era bonita e educada, muito tímida, nada caída, jovem. Estava vestida de maneira descontraída, com jeans e camiseta, lembra Tônia. Era óbvio que Johnny a conhecia há pouco, ou melhor, acabava de conhecê-la e que a estava achando interessante, confirma Tônia.

 

—        Estava atraído sexualmente? Pergunta Lucy a Tônia.

—        Não me deu essa impressão. Sua atitude era mais de... Enfim, como se ela tivesse um problema e ele a estivesse ajudando. Você sabe, ele era médico. Isto não surpreende Lucy. Johnny não era egoísta, em absoluto, era extraordinariamente bom.

 

Senta-se ao balcão e imagina Johnny entrando no local do mesmo modo que ela e sentando-se no mesmo balcão, talvez no mesmo banco. Imagina-o em companhia de Jam, uma mulher à que, quem sabe, acaba de conhecer. Não era seu estilo ter encontros casuais. Não gostava dos rolos de uma noite e é muito possível que estivesse ajudando à garota, aconselhando-a. Entretanto sobre o quê? Sobre algum problema médico, algum problema psicológico? O relato sobre essa mulher jovem e tímida chamada Jam é enigmático e desconcertante. Lucy não está certa de por que. Talvez Johnny não se sentisse bem consigo mesmo. Talvez estivesse assustado porque a intervenção do túnel carpiano não havia tido o êxito que ele esperava. Talvez o fato de aconselhar e travar amizade com uma jovem tímida e bonita o fez esquecer-se de seus medos e se sentir importante e poderoso. Lucy bebe tequila e pensa no que Johnny disse em São Francisco quando esteve com ele em setembro, a última vez que o viu.

 

—        Que cruel é a biologia, disse Johnny. — As incapacidades físicas são implacáveis. Ninguém quer a alguém, se este tem cicatrizes.

—        Por Deus, Johnny. Não foi mais do que uma operação do túnel carpiano, não foi uma amputação.

—        Desculpe, disse ele. — Não estamos aqui para falar de mim.

 

Lucy pensa em Johnny no balcão, observando como a clientela, homens em sua maioria, entra e sai do restaurante e se limpam dos flocos de neve.

 

Começou a nevar em Boston. Benton, ao volante de seu Porsche Turbo S, passa adiante dos edifícios Vitorianos de ladrilho do campus médico da universidade e lembra os tempos em que Scarpetta o chamava ao depósito de cadáveres à meia noite. Sabia sempre que se trataria de um caso desagradável.

 

As maiorias dos psicólogos forenses não estiveram nunca em um depósito de cadáveres. Jamais viram uma autópsia e nem sequer desejam ver as fotografias. Seu interesse se concentra mais nos detalhes do perpetrador do que o que este fez a sua vítima, porque o criminoso é o paciente e a vítima não é mais que o meio que ele utiliza para expressar sua violência. Esta é a desculpa que muitos psicólogos e psiquiatras forenses dão. É a de que carecem de valor ou da inclinação para entrevistar as vítimas ou, ainda pior, para dedicar um tempo a seus cadáveres. Benton é diferente. Depois de mais de uma década com Scarpetta não poderia ser de outra maneira.

 

—        Você não tem o direito a trabalhar em um caso se não está disposto a escutar o que têm a dizer os mortos, disse ela, há uns quinze anos, quando estavam trabalhando em seu primeiro homicídio juntos. — Se não é capaz de sacrificar-se por eles, então, francamente, eu não vou me dedicar a você, agente especial Wesley.

—        Me parece justo, doutora Scarpetta. Deixarei que você faça as apresentações.

—        De acordo, pois, ela respondeu. — Venha comigo.

 

Aquela foi a primeira vez que Benton esteve na câmara frigorífica de um depósito de cadáveres. Entretanto se lembra do forte barulho do trinco quando abriu a porta e da lufada de ar frio e viciado que saiu por ela. Seria capaz de reconhecer esse odor em qualquer parte, esse fedor sinistro, a morto. Flutua no ar e sempre lhe pareceu, que se pudesse vê-lo, seria como uma névoa suja, rente ao chão e que emana do morto.

 

Reconstrói sua conversa com Basil, analisa cada palavra, cada gesto imperceptível, cada expressão facial. Os delinquentes violentos prometem todo o tipo de coisas. Manipulam habilmente a todo o mundo para conseguir o que querem; prometem revelar o lugar donde se encontram os cadáveres; reconhecem haver cometido crimes que jamais foram resolvidos; confessam os detalhes do que fizeram; oferecem sua própria opinião acerca de suas motivações e seu estado psicológico. Na maioria dos casos mentem. Neste caso Benton está preocupado; pelo menos uma parte do que confessou Basil, soa a verdade.

 

Tenta localizar Scarpetta pelo telefone celular; ela não responde. Uns minutos mais tarde volta a tentá-lo, porém continua sem conseguir falar com ela. Deixa uma mensagem: «Por favor, me ligue quando ler isto».

Abre-se a porta de novo e com a neve entra uma mulher, como se a tivesse trazido a nevasca. Usa um casaco negro longo que sacode ao mesmo tempo em que joga para trás o capuz. Tem uma cútis clara, rosada por causa do frio, e uns olhos bastante luminosos. É bonita, com as melenas de um ruivo escuro, os olhos castanhos e um corpo escultural. Lucy observa como anda até o fundo do restaurante passando entre as mesas como uma peregrina ou uma bruxa sensual com seu longo casaco negro que flutua ao redor de suas botas negras quando vem até o balcão, onde existem vários assentos vazios. Escolhe um próximo ao de Lucy, retira e dobra o casaco e senta-se sem uma palavra nem um olhar.

 

Lucy bebe um pouco de tequila e fixa a vista no televisor que está sobre o balcão, fingindo interesse no último romance de um famoso. Buddy prepara uma bebida para a recém-chegada, como se soubesse do que gosta.

 

—        Sirva-me outro, se apressa a pedir Lucy.

—        Já está saindo.

 

A mulher do casaco negro com capuz olha a vistosa garrafa de tequila que Buddy apanha de uma prateleira. Observa atentamente como o licor âmbar se transforma em um delicado jorro e vai enchendo o fundo da taça de conhaque. Lucy agita a tequila e sente como seu aroma inunda as fossas nasais e sobe até o cérebro.

 

—        Isto vai lhe dar uma dor de cabeça «endiabrada», adverte a mulher do casaco negro com uma voz rouca sedutora e repleta de segredos.

—        É muito mais puro que outros destilados, responde Lucy. — Estava há muito tempo sem ouvir a expressão «endiabrada». A maioria das pessoas que conheço diz infernal.

—        Os piores dores de cabeça, me causaram as margaritas, comenta a mulher, que toma um gole de Cosmopolitan, um líquido rosa de aspecto letal em copo de champanhe. — Além disso, eu não creio no inferno.

—        Acreditará se continuar bebendo essa merda, replica Lucy. Pelo espelho que existe atrás do balcão vê como se abre de novo a porta e entra mais neve no local.

 

As rajadas de vento que sopram da rua produzem o mesmo som que a seda ao agitar-se com força. Lembra-lhe meias de seda agitando-se em um varal, embora nunca tenha visto meias de seda em um varal nem tenha escutado como soam quando as açoita o vento. Sabe que a mulher usa meias negras porque os banquinhos altos e a saia curta não são a vestimenta mais adequada para uma mulher se sentar a salvo, a não ser que esteja em um bar em que os homens se interessam só por si mesmos, e em Provincetown este é o caso.

 

—        Outro Cosmo, Stevie? Pergunta Buddy. Assim Lucy descobre como se chama a garota.

—        Não. Responde Lucy por ela. — Deixe que Stevie prove o que estou bebendo.

—        Sou capaz de provar o que quiser, acerta Stevie. — Acho que a vi no Piece e no Vixen, dançando com pessoas diferentes.

—        Eu não danço.

—        Pois lhe vi. É difícil não reparar em você.

—        Vens muito por aqui? Pergunta Lucy, que não viu Stevie na vida, nem no Piece nem no Vixen nem em nenhum outro clube nem restaurante de Ptown.

 

Stevie observa como Buddy serve mais tequila e em seguida deixa a garrafa no balcão, se afasta e vai atender a outro cliente.

 

—        Esta é a primeira vez, responde Stevie. — Um presente do Dia de São Valentim que faço a mim mesma, uma semana em Ptown.

—        No inverno?

—        Que eu saiba, São Valentim cai sempre em pleno inverno. É minha festa favorita.

—        Não é festa. Esta semana tenho vindo aqui todas as noites e não lhe vi.

—        Quem você é? A polícia do bar? Stevie sorri e olha para Lucy nos olhos com tanta intensidade que consegue um certo efeito. Lucy sente algo. «Não, pensa. Outra vez, não». — É que não venho aqui todas as noites, como você faz, fala Stevie estendendo a mão para alcançar a garrafa de tequila e roçando no braço de Lucy. A sensação se acentua. Stevie estuda o vistoso rótulo e volta a deixar a garrafa sobre o balcão, sem pressa, tocando com o corpo Lucy. A sensação aumenta. — Corvo? Que tem de especial Corvo? Pergunta Stevie.

—        Como sabe que venho todas as noites? Pergunta Lucy. Força que se dissipe a sensação.

—        Imaginei. Tens pinta de ser uma pessoa da noite, responde Stevie.

 

É ruiva natural? Quem sabe de um tom madeira mesclada com vermelho intenso. O cabelo natural não é assim. E não o tem usado longo, tão longo como agora.

 

—        É uma espécie de vidente? A sensação é terrível. Não quer desaparecer.

—        Não são mais que suposições, responde a sedutora voz de Stevie. — Vai, não me respondeu. Que tem de especial Corvo?

—        Corvo Reserva da Família. Isto é bastante especial.

—        Enfim, algo é algo. Parece que esta é minha noite de estreia em muitas coisas, diz Stevie tocando o braço de Lucy e deixando ali a mão pelo espaço de uns segundos. — É a primeira vez que venho a Ptown. A primeira vez que provo uma tequila cem por cem familiar, e que custa trinta dólares a dose. Lucy se surpreende que Stevie saiba que a tequila custa trinta dólares a dose. Para ser uma pessoa pouco acostumada a tomá-lo, sabe muito a respeito. —        Acho que vou beber outro, diz Stevie a Buddy. — E, a verdade é que poderias encher um pouco mais o copo. Seja bondoso comigo.

 

Buddy sorri enquanto serve de novo. Dois copos mais tarde, Stevie se apoia em Lucy e sussurra:

 

—        Tens algo?

—        Como o que? Pergunta Lucy, rendendo-se por completo. A sensação, avivada pela tequila, não tem intenção de desvanecer-se durante toda a noite.

—        Já sabe o que, responde suavemente a voz de Stevie roçando com seu suspiro a orelha de Lucy, apoiando o peito em seu braço. — Algo para fumar. Algo que mereça a pena.

—        Que a faz pensar que tenho algo?

—        É uma suposição.

—        Você é muito boa em supor.

—        Aqui se consegue em qualquer parte. Tenho visto.

 

Lucy faz uma transação por noite. Sabe exatamente onde fazê-la, no Vixen, o lugar onde não dança. Não se lembra de ter visto Stevie. Não havia tantas pessoas, nunca nesta época do ano. Se havia fixado em Stevie, se havia fixado nela em meio de uma multidão enorme, em uma rua atestada de pessoas, em alguma parte.

 

—        A polícia do bar é você, comenta Lucy.

—        Não tens nem ideia do divertido que é isso, responde a voz sedutora de Stevie. — Onde mora?

—        Não longe daqui.

 

O Instituto Estadual de Medicina Legal está onde todos normalmente estão, no limite de um bairro da cidade mais agradável, normalmente nos arredores da Faculdade de Medicina. O complexo de ladrilho vermelho e cimento dá as costas à Massachusetts Turnpike e a seu outro lado se encontra o presídio correcional do condado de Suffolk. Não tem vistas e o ruído do trânsito não cessa nunca.

 

Benton estaciona junto à porta traseira e vê em que no estacionamento só existem outros dois carros. O Crowm Vitoria azul escuro é do detetive Thrush. O Honda SUV provavelmente será de um patologista forense, a que não pagam o suficiente e que sem dúvida não se alegrou em absoluto quando Thrush o convenceu a ir trabalhar a esta hora. Benton toca a campainha e percorre com o olhar o deserto estacionamento, porque nunca pressupõe que esteja seguro nem só. Nesse momento se abre a porta e aparece Thrush fazendo sinal para que entre.

 

—        Deus, odeio este lugar à noite, comenta Thrush.

—        Não tem nada de agradável a nenhuma hora do dia, comenta Benton.

—        Agradeço que tenha vindo. Custo a crer que tenha saído à rua nisso, diz olhando o Porsche negro enquanto fecha a porta. — Com este tempo? Está louco?

—        Têm tração nas quatro rodas. Quando fui trabalhar esta manhã não nevava.

—        Os outros psicólogos com os que tive ocasião de trabalhar jamais saíam de casa, chovesse, nevasse ou fizesse sol, diz Thrush. — Nem tampouco os que elaboram perfis. A maioria dos agentes do FBI que conheci jamais viu um cadáver.

—        Salvo os do Escritório Central.

—        É uma merda. Também muitos da Chefatura Central de Polícia. Toma. Entrega a Benton um envelope enquanto ambos caminham por um corredor.

—        Gravei tudo em um disco. Todas as fotografias dos distintos lugares do crime e das autópsias, além dos escritos até a data. Está tudo ai. Dizem que vai continuar nevando.

 

Benton volta a pensar em Scarpetta. São Valentim é amanhã e imagina que vão a passar a data juntos, a desfrutar de uma cena romântica no porto. Está previsto que ela não trabalhe até o fim de semana do Dia dos Presidentes. Estão quase um mês sem se encontrar.

 

—        O prognóstico, pelo que sei, é que nevará um pouco, responde Benton.

—        Aproxima-se uma tormenta proveniente do cabo. Espero que tenha algum outro carro que não seja esse desportivo de um milhão de dólares.

 

Thrush é um velho homem que passou toda sua vida em Massachusetts e fala com o acento da área. Em seu vocabulário não existe nem um só erre. Já cinquentão, usa o cabelo cinzento cortado de a maneira militar e está vestido com um terno marrom enrugado. Provavelmente está todo o dia trabalhando sem parar. Benton e ele avançam pelo bem iluminado corredor. Está imaculado, perfumado com aerossol e cheio de salas com arquivos e armazenamento de provas, para as quais se requer um passe eletrônico. Inclusive existe um carrinho com equipamento de reanimação, -Benton não sabe para que fim- e um microscópio eletrônico. É o mais espaçoso e melhor equipado de todos os depósitos de cadáveres que viu em sua vida. A dotação de pessoal é outra história.

 

O departamento está há anos com graves problemas de pessoal por causa dos salários, tão baixos que não atraem os bons patologistas forenses nem a profissionais competentes de nenhum outro tipo. Além disso, devem-se somar os presuntos, erros e trapalhadas que trazem como consequência as polêmicas e os problemas de imagem que complicam a vida e a morte de todos os implicados. O departamento não está aberto aos meios de comunicação nem aos intrusos e a hostilidade e a desconfiança envenenam tudo. Benton prefere vir aqui de noite; visitar este lugar de dia equivale a se sentir indesejado e mal tolerado.

 

Thrush e ele se detêm em frente à porta fechada de uma sala de autópsias que se usa para os casos muito importantes, estranhos ou que contenham risco para a vida. Nesse momento toca seu telefone celular. Observa o aparelho; quando não aparece a identificação do número só pode ser ela.

 

—        Olá, diz Scarpetta. — Espero que esteja passando melhor noite do que eu.

—        Estou no depósito. E dirigindo-se a Thrush: — Será um minuto.

—        Isto não pode ser nada bom, diz Scarpetta.

—        Contarei depois. Tenho uma pergunta a fazer: alguma vez teve notícia de um fato que teve lugar em uma loja de artigos de Natal há a aproximadamente dois anos e meio?

—        Quando dizes «um fato» suponho que se refere a um homicídio.

—        Exato.

—        Assim, que agora me lembre, não. Quem sabe Lucy possa pesquisar algo. Tenho certeza de que aí está nevando.

—        Irei embora daqui a pouco, nem que tenha de que contratar as renas do Papai Noel.

—        Te amo.

—        Eu também. Benton termina a ligação e Pergunta a Thrush:

—        Quem iremos ver?

—        O doutor Lonsdale teve a amabilidade de me ajudar.

—        Se quer minha opinião, diz Thrush, — As mulheres não deveria fazer isto. Que tipo de mulher ia a querer fazer este trabalho?

—        As boas, responde Benton. — Muito boas. Nem todas chegam até onde chegam devido ao fato de ser mulher. O mais provável é que tenham chegado apesar de ser. Thrush não conhece Scarpetta. Benton nunca a menciona, nem sequer a quem o conhece mais ou menos bem.

—        As mulheres não deveriam ver esta merda, insiste Thrush.

 

Entretanto a autópsia não foi realizada por ele, e sim por ela. «Ela» é a chefa. Chegou até onde chegou porque é mulher.

 

O ar da noite é pungente e de uma cor branco leitosa na Rua Comercial. A neve pisca à luz dos faróis e ilumina a noite até que o mundo começa a resplandecer e adquire um aspecto surrealista, enquanto as duas caminham pelo centro da rua deserta e silenciosa, junto ao meio-fio, em direção à casa que Lucy alugou uns dias depois de que Marino recebera a estranha chamada telefônica daquele indivíduo chamado Porco.

 

Lucy acende o fogo e, em seguida, ela e Stevie se sentam diante dele, sobre umas mantas e fumam um cigarro de erva de muito boa qualidade, da Columbia Britânica. Dão tragadas curtas, conversam e riem, porém Stevie quer mais.

 

—        Só um mais, suplica, enquanto Lucy começa a desnudá-la.

—        Isto sim que é original, comenta Lucy contemplando o esbelto corpo desnudo de Stevie e os desenhos de mãos, na cor vermelha em sua pele, tatuagens talvez.

 

Têm quatro. Dois nos peitos, como se alguém os estivesse agarrando, e outros dois no interior dos músculos, como se alguém estivesse obrigando-a a separar as pernas. Não tem nenhum nas costas, nenhum que Stevie não tenha podido aplicar ela mesma, supondo que sejam falsos. Lucy a olha fixamente. Toca uma deles, pondo uma mão em cima, acariciando o peito de Stevie.

 

—        É só para verificar se sou do tamanho adequado, fala — É falso?

—        Por que não tira a roupa?

 

Lucy faz o que quer, porém não tem intenção de tirar a roupa. Faz o que quer durante horas, ao calor do fogo, sobre as mantas, e Stevie a deixa fazê-lo. Está mais viva do que alguém a quem Lucy tenha tocado. Seu corpo é liso e de contornos suaves, delgado como nunca voltará a ser o seu. Quando Stevie tenta desnudá-la, quase pela força, não o permite, e por fim a outra se cansa e Lucy a leva para a cama. Quando Stevie adormece, Lucy permanece desperta, escutando o gemido do vento, tentando descobrir como soa exatamente, chegando à conclusão de que, depois de tudo, não soa como as meias de seda e sim, parece algo angustiado e dolente.

 

A sala de autópsias é pequena, tem um chão de lajotas e o habitual carrinho de instrumental, uma balança digital, um armário de provas, serras e diversas facas de autópsias, mesas de dissecações e uma mesa portátil anexa à parte dianteira de um lavabo de dissecação mural. A câmara frigorífica tem a porta entreaberta. Thrush entrega a Benton um par de luvas azuis e pergunta:

 

—        Queres botas ou uma máscara ou algo mais?

—        Não, obrigado, responde Benton justo no momento em que sai da câmara frigorífica o doutor Lonsdale empurrando uma maca de aço inoxidável sobre a qual está um cadáver dentro de uma bolsa.

—        Temos que andar depressa, diz estacionando-a próxima do lavabo e travando duas das rodas da maca. — Já estou com merda até o pescoço com minha mulher. Hoje é seu aniversário.

 

Abre a bolsa. A vítima tem o cabelo negro húmido e ensanguentado, cheio de pedaços de massa encefálica e outros tecidos. Quase não sobra nada do rosto. É como se tivesse estourado uma bomba pequena dentro da sua cabeça, o que se aproxima bastante ao acontecido na realidade.

           

—        Deram um tiro na sua boca, explica o doutor Lonsdale. É jovem, fala com um tom de impaciência. — Fratura massiva de crânio, com o cérebro destroçado, o que, em princípio, podemos atribuir a um caso de suicídio, porém nesta ocasião não existe nenhuma outra coisa que indique suicídio. Em minha opinião, a vítima tinha a cabeça muito inclinada para trás quando apertaram o gatilho, o que explicaria por que o rosto desapareceu quase por completo e do sumiço de vários dentes. Uma vez mais, detalhes impróprios de um suicídio. Acende uma lâmpada de aumento e a aproxima da cabeça. — Não existe necessidade de abrir a boca, comenta, — Já que não tem rosto. Demos graças a Deus por estes pequenos favores. Benton se aproxima um pouco mais e aspira o cheiro pútrido do sangue em decomposição. — Lacerações grandes na língua, na pele em redor e no nasolabial, prossegue o doutor Lonsdale. — Devidas ao efeito de estouro produzido pela expansão dos gases na explosão de uma escopeta. Não é uma maneira muito agradável de morrer. Termina de abrir o saco até os pés.

—        Deixei o melhor para o final, comenta Thrush. — Que acha disso? A mim me lembra do Cavalo Louco.

—        Se refere ao índio? O doutor Lonsdale o olha com expressão interrogativa ao mesmo tempo em que desenrosca a tampa de um pequeno frasco de vidro cheio de um líquido transparente.

—        Sim. Eu sei que gravava impressões de mãos vermelhas nas ancas de seu cavalo.

 

A mulher apresenta impressões vermelhas de mãos nos peitos, no abdome e na parte interna dos músculos. Benton aproxima um pouco mais a lâmpada de aumento. O doutor Lonsdale passa um algodão humedecido pela borda de uma das impressões e anuncia:

 

—        É álcool isopropílico, um solvente como este faz desaparecer uma mancha. É obvio que não é solúvel em água. Me faz pensar no tipo de substância que as pessoas utilizam para as tatuagens temporais. Deve ser algum tipo de pintura ou desenho. Também poderiam tê-lo feito com um rotulador indelével, suponho.

—        Suponho que não viu nada parecido em nenhum outro caso por aqui, pergunta Benton.

—        Nunca.

 

Vista com aumento, as impressões de mãos aparecem bem definidas e com os perfis limpos, como se tivessem sido desenhadas. Benton procura traços leves de pincel, qualquer coisa que possa indicar como foi aplicada a tatuagem. Não está certo, porém a julgar pela densidade da cor, suspeita que esta obra artística seja recente.

 

—        Suponho que a vítima poderia ter feito estes desenhos em algum momento anterior. Dito de outra forma: que não guardam relação com sua morte. Conclui o doutor Lonsdale.

—        Isto também penso eu. Concorda Thrush. — Por aqui existe muita bruxaria, como Salem e tudo o resto.

—        O que eu queria saber é com que rapidez estes desenhos começam a apagar. Diz Benton. — Os mediu para ver se são do mesmo tamanho que a mão da vítima? Indica o corpo.

—        A mim me parecem maiores, responde Thrush estendendo sua própria mão.

—        E nas costas? Pergunta Benton.

—        Tem um desenho em cada nádega e outro entre as omoplatas, responde o doutor Lonsdale. — Por seu tamanho as mãos parecem de homem.

—        Sim. Confirma Thrush. O doutor Lonsdale coloca o cadáver parcialmente de costado e Benton estuda as impressões de mãos nas costas.

—        Parece que aqui existe uma abrasão, fala, fixando-se em uma zona raspada do desenho, entre as omoplatas. Está um pouco inflamado.

—        Não conheço todos os detalhes, comenta o doutor Lonsdale. — O caso não é meu.

—        Parece que tivessem pintado o desenho quando já estava feita a abrasão, comenta Benton. — E isso aqui são contusões?

—        Talvez tenha um certo inchaço localizado. Histologia nos dirá. Não é meu caso, insiste o doutor. — Não participei desta autópsia, volta a lembrar. — Só dei uma olhada na vítima. Isto foi tudo, antes de retirá-la da câmara. Li um pouco por cima o relatório da autópsia.

 

Se a chefa fez um trabalho negligente ou incompetente não está disposto a assumir as culpas.

 

—        Tem alguma ideia de quanto tempo está morta? Pergunta Benton.

—        Bom, as baixas temperaturas terão atrasado o rigor mortis.

—        Estava congelada quando a encontraram?

—        Não. Quando chegou aqui, sua temperatura corporal era de trinta e oito graus. Fahrenheit. Eu não fui ao lugar do crime, não posso proporcionar esses detalhes.

—        As dez desta manhã a temperatura era de sete graus abaixo de zero, comenta Thrush com Benton. — As condições climáticas constam no disco que te entreguei.

—        Então o relatório da autópsia já foi escrito, diz Benton.

—        Está no disco, responde Thrush.

—        Temos provas circunstanciais?

—        Um pouco de terra, fibras, outros resíduos com o sangue. Responde Thrush. — Farei com que os analisem no laboratório o quanto antes for possível.

—        Conte do cartucho de escopeta que recuperaste, fala Benton.

—        Estava dentro do reto. Por fora não se via, porém os raios X o detectaram. Que coisa mais asquerosa. Quando me mostraram na primeira vez, achei que estava debaixo do corpo, sobre a mesa de raios X. Não tinha nem ideia de que essa merda estivesse dentro da vítima.

—        De que tipo era?

—        Remington Express Magnum, calibre doze.

—        Bem, se ela mesma disparou, não foi ela quem o colocou no reto, raciocina Benton. — Vai entregá-lo a Balística?

—        Já estão com ele, responde Thrush. — O percursor deixou uma bonita marca. É possível que tenhamos sorte.

 

A primeira hora da manhã seguinte a neve cai obliquamente sobre o cabo Code e derrete quando toca a água. Apenas cobre a areia de praia que se estende em frente as janelas da casa de Lucy, porém se amontoa nos telhados próximos e no peitoril da janela de seu quarto. Lucy puxa o edredom até o queixo e passeia o olhar pela água e a neve, irritada por ter que levantar-se e enfrentar à mulher que está dormindo a seu lado, Stevie.

 

Não deveria ter ido ao bar na noite passada. Lamenta ter ido, não pode deixar de lamentá-lo. Está enojada de si mesma e desejosa de sair desta casa diminuta, com sujeira por todo o redor, seu telhado de goteiras, os móveis sem brilho, por causa do interminável desfile de inquilinos, da cozinha, pequena e com odor a humidade, cheia de eletrodomésticos antiquados. Observa como a manhã joga com o horizonte tingindo-o de diversos tons de cinza e como a neve cai quase com a mesma intensidade que a noite. Pensa em Johnny. Johnny vindo aqui, a Provincetown, uma semana antes de morrer, e conhecer alguém. Deveria ter averiguado essa informação há muito tempo, porém é que não podia. Não podia afrontá-lo. Observa a respiração regular de Stevie.

 

—        Está acordada? Pergunta Lucy. — Tens de levantar.

 

Observa a neve, os patos que nadam na superfície agitada, assombrada de que não congelem. Apesar de que sabe acerca das propriedades isolantes das penas, ainda assim custa crer que uma criatura de sangue quente possa flutuar comodamente na água gélida no meio de uma nevasca. Tem frio debaixo do edredom, está gelada, se sente rechaçada e incomodada por usar a camisa abotoada.

 

—        Stevie, acorda. Tenho que ir, diz levantando a voz.

 

Stevie não se move sequer, suas costas sobem e baixam suavemente com cada lenta inspiração, e Lucy se sente doente de remorso e irritada porque não é capaz de deixar de fazer isto, isto que tanto odeia.

 

Está a quase um ano dizendo que nunca mais, e ainda acontecem noites como a passada. Não é inteligente nem lógico e sempre termina lamentando, porque o considera degradante, e agora tem de sair como puder da situação e contar mais mentiras. Não tem outro remédio. Sua vida já não permite escolher; está demasiado envolvida para escolher algo distinto e existem decisões que outros já tomaram por ela. Ainda não pode acreditar. Toca os seios sensíveis e o ventre inchado para certificar-se de que é verdade, e continua sem entender. Como pode ter acontecido isto a ela?

 

Como Johnny pode estar morto?

 

Nunca chegou a investigar o que aconteceu com Johnny. Foi embora e levou consigo seus segredos.

 

«Sinto», pensa, com a esperança de que, onde quer que ele se encontre, saiba o que está pensando, tal como fazia, só que de um modo distinto. Ou melhor, agora é capaz de ler seus pensamentos. Agora deve entender por que ela se manteve afastada e simplesmente aceitou que ele o havia feito a si mesmo. Vivia deprimido. Sentia-se destroçado. Lucy nunca acreditou que seu irmão o tivesse matado e não aceitava a possibilidade de que o tivesse feito outra pessoa. E então Marino recebeu essa ligação, essa ligação ameaçadora do tal Porco.

 

—        Tem que levantar, fala novamente com Stevie.

 

Lucy estica o braço para apanhar a pistola Colt Mustang 380 que descansa sobre a mesinha de cabeceira.

 

—        Vamos, acorda.

 

 

Na cela de Basil Jenrette, o prisioneiro está deitado em sua cama de aço com uma delgada manta por cima, das que não desprendem gases venenosos como o cianureto se acontecer um incêndio. O colchão é fino e duro, e também se acontecer um incêndio não produz emanações de gases letais.

 

Pensa em como seria se fosse executado. A injeção teria sido desagradável; a cadeira elétrica, pior; porém a câmara de gás, não. A asfixia, o não poder respirar, a sensação de afogamento... «Deus, não.»

 

Ao olhar o colchão enquanto faz a cama, pensa nos incêndios e na impossibilidade de respirar. Agora não está tão mal; pelo menos ele nunca fez isso a alguém como fazia seu professor de educação física, até que Basil deixou de assistir a suas aulas. Largou as aulas e não quis voltar a passar nem uma só vez mais pela situação de chegar a se sentir afogar, de quase asfixiar. Por outro lado, era-lhe indiferente o muito que fora açoitado por sua mãe com o cinto. Não pensava muito nesses assuntos até que surgiu o tema da câmara de gás. Apesar de que sabia que executam as pessoas aqui em Gainesville com a injeção, os guardas o ameaçavam com a câmara de gás, brincavam e davam risadas quando ele se enrolava na cama e começava a tremer.

 

Agora já não tem que se preocupar pela câmara de gás nem por nenhuma outra forma de execução. Agora faz parte de um projeto científico.

 

Escuta abrir a gaveta que existe na parte inferior da porta de aço, e ouve deslizar a bandeja do café da manhã. Não vê que lá fora está claro porque não tem janela, porém sabe que é o amanhecer pelos sons dos guardas que fazem a ronda e as gavetas que se abrem e fecham de golpe para outros reclusos que recebem ovos, às vezes fritos, outros mexidos com toucinho. Chega até ele o cheiro da comida enquanto está estendido na cama debaixo de sua manta inócua e sobre seu inócuo colchão, e pensa em sua correspondência. Está furioso e ansioso como nunca. Ouve uns passos e aparece de repente o rosto negro e gorducho de Tio Remus por trás da abertura com fecho que existe na parte superior da porta. Assim é como o chama Basil: Tio Remus. Por chamá-lo assim deixaram de entregar-lhe a correspondência. Está há um mês sem recebê-la.

 

—        Quero minha correspondência, fala ao rosto do Tio Remus, que continua por trás da abertura. — Tenho o direito constitucional de que me seja entregue.

—        Que o faz pensar que alguém queira escrever a um tipo como você? Replica o rosto de detrás da abertura.

 

Basil não consegue distinguir grande coisa, só a forma escura do rosto e a humidade de uns olhos voltados para ele. Sabe o que fazer com os olhos, como retirá-los para que não o olhem com esse brilho, para que não vejam lugares que não devem ver antes de enlouquecer, antes que ele chegue quase a asfixiar. Aqui dentro, em sua cela de suicida, não pode fazer grande coisa, e a raiva e o desassossego lhe retorcem o estômago como se fosse um trapo de cozinha.

 

—        Sei que tenho correspondência, diz Basil. — Quero que me entreguem. O rosto desaparece e em seguida abre-se a portinhola. Basil se levanta da cama, apanha sua bandeja e a gaveta volta a fechar com um golpe metálico ao pé da grossa porta de aço cinzenta.

—        Espero que ninguém tenha cuspido na comida, diz Tio Remus através da abertura. — Delicie-se com o café da manhã.

 

O chão de largas tábuas está frio ao contato com os pés descalços de Lucy quando esta retorna ao quarto. Stevie continua adormecida debaixo das mantas e Lucy deixa dois cafés sobre a mesinha de cabeceira e mete uma mão debaixo do colchão para apalpar os carregadores da pistola. É possível que à noite fosse um pouco temerária, porém não tanto para deixar a pistola carregada tendo uma desconhecida em casa.

 

—        Stevie, repete. — Vamos. Acorda!

 

Stevie abre os olhos e olha fixamente Lucy, que está de pé junto à cama colocando um carregador na pistola.

 

—        Me assusto ao ver isso, diz Stevie bocejando.

—        Tenho que ir. Lucy lhe dá um café. Stevie continua olhando a arma.

—        Deves desconfiar de mim para ter deixado isso aí, na mesinha de cabeceira, toda a noite.

—        E por que não haveria de desconfiar de você?

—        Suponho que os advogados estão muito preocupados com todas essas pessoas que estão tentando destruir a vida alheia, responde Stevie. — Nos tempos atuais nunca se conhece suficientemente as pessoas.

 

Lucy disse que é uma advogada de Boston. Provavelmente Stevie pensa um monte de coisas que não são corretas.

 

—        Como soube que gosto só de café?

—        Não sabia. Responde Lucy. — Não tenho em casa leite, pão e nem manteiga. Tenho que ir.

—        Pois eu creio que deveria ficar. Aposto que eu consigo que valha a pena. Não terminamos ainda, não acha? Embebedou-me tal maneira que não cheguei a tirar sua roupa. É a primeira vez que me acontece isso.

—        Parece que para você foi a primeira vez em muitas coisas.

—        Você não tirou a roupa. Lembra Stevie tomando o café a goles. — Isto sim é que é novo.

—        Você não estava exatamente sóbria.

—        Estava bastante sóbria para tentar. Não é demasiado tarde para voltar a fazê-lo.

 

Levanta-se e se acomoda contra as almofadas. O edredom desliza até cair abaixo de seus seios, os bicos duros de frio. Sabe exatamente com que conta e o que tem que fazer com isso, e Lucy não acredita que o acontecido à noite tenha sido pela primeira vez.

 

—        Deus, que dor de cabeça, se queixa Stevie observando como Lucy a olha. — E me falou que tequila da boa não dava enxaqueca.

—        Misturou com vodca.

 

Stevie afofa as almofadas a suas costas, com o que o edredom escorrega até ao quadril. Afasta um cacho de cabelo dos olhos. É um quadro muito agradável à luz matinal, porém Lucy já não quer nada com ela e, além disso, esfria de novo ao ver as impressões de mãos da cor vermelha no corpo dela.

 

—        Se lembra de que à noite perguntei por essas tatuagens? Pergunta, sem afastar os olhos delas.

—        À noite me perguntou muitas coisas.

—        Perguntei onde as havias feito.

—        Por que não volta para a cama? Stevie acaricia o edredom e seus olhos queimam a pele.

—        Deve ter doído fazê-las. A não ser que sejam falsas, coisa que me parece que são.

—        Posso retirá-las com óleo para bebê. Estou certa de que você não tem óleo para bebê.

—        Por que as fez? Lucy olha fixamente os desenhos.

—        Não foi minha ideia.

—        Então, de quem?

—        De uma pessoa muito irritante. Ela me faz e eu tenho que retirá-las. Lucy franze o cenho sem deixar de olhá-la.

—        De modo que deixa que alguém lhe pinte o corpo. Bem, fica um tanto excêntrico. Experimenta uma espetada de agulha ao imaginar alguém pintando o corpo desnudo de Stevie. — Não é necessário que me diga quem é, conclui, como se não tivesse importância.

—        É muito melhor ser a pessoa que o faz do que a outra, diz Stevie, e Lucy volta a se sentir preocupada. — Vem para cá, convida Stevie com sua voz tranquilizadora, acariciando de novo a cama.

—        Preciso ir. Tenho coisas para fazer, responde Lucy ao mesmo tempo em que veste umas calças largas negras, um folgado jersey, também negro e apanha a pistola, entrando em seguida no minúsculo banheiro, anexo ao quarto.

 

Fecha a porta e passa a chave. Continua a se vestir sem olhar no espelho, desejando que o que tenha ocorrido com seu corpo seja imaginário ou um pesadelo. No banho, se toca para ver se algo mudou e evita o espelho quando se seca com a toalha.

 

—        Olhe, fala Stevie quando ela sai do banheiro vestida e um tanto alterada, de um humor muito pior do que momentos antes. — Parece um agente secreto. Queria ser como você.

—        Você não me conhece.

—        Depois de ontem à noite, já a conheço o suficiente. Olha Lucy de cima a baixo. — Quem não gostaria de ser como você? Não parece que tenha medo de nada. Existe algo que a assuste?

 

Lucy se inclina para frente e ajeita o edredom em Stevie, subindo-o até o queixo, e o semblante de Stevie muda. Fica rígida e fixa a vista na cama.

 

—        Desculpe, não foi minha intenção ofender, diz Stevie submissa, ruborizada.

—        Aqui dentro faz frio. Só ajeito por que...

—        Está bem. Já me aconteceu isso antes. Levanta a vista. Seus olhos são dois poços sem fundo cheios de medo e tristeza. — Me considera feia, não é verdade? Feia e gorda. Não gosto. A luz do dia não gosto nem um pouco.

—        Você é tudo menos feia e gorda, responde Lucy. — É que... Merda, me desculpe, não era minha intenção...

—        Não me surpreende. Por que uma pessoa como você ia gostar de alguém como eu? Fala Stevie envolvendo-se na manta e afastando-a da cama para se cobrir completamente e levantar-se. — Pode ter a quem quiser. Obrigado. Não contarei a ninguém.

 

Lucy, sem fala, observa Stevie apanhar sua roupa na sala de estar e se vestir, tremendo, fazendo movimentos peculiares com a boca.

 

—        Deus, por favor, não chore, Stevie.

—        Pelo menos me chame como é devido!

—        A que se refere? Com os olhos muito abertos e expressão assustada, Stevie responde:

—        Agora eu queria ir, por favor. Não contarei a ninguém. Obrigado, estou muito agradecida.

—        Por que fala assim? Pergunta Lucy.

 

Stevie apanha seu longo casaco negro com capuz e o veste. Lucy olha pela janela como se estivesse levantando um redemoinho de neve, como seu longo casaco negro ondeando ao redor de suas botas altas, também negras.

 

Meia hora depois, Lucy puxa o zíper do casaco e guarda a pistola e os dois carregadores em um bolso. Fecha a casa com chave e desce os degraus de madeira cobertos de neve para alcançar a rua, pensando acerca de Stevie e de seu inexplicável comportamento, desse sentimento de culpa. Pensa em Johnny e também ela se sente culpada quando se lembra de São Francisco, do dia em que ele a levou a jantar e a tranquilizou dizendo que tudo iria acabar bem.

 

—        Não vai acontecer nada de mal, prometeu.

—        Não posso viver assim, disse ela.

 

Era a noite das garotas no restaurante Meca da rua Market e o local estava abarrotado de mulheres, mulheres atraentes que pareciam satisfeitas, felizes e confiantes em si mesmas. Lucy se sentia observada e isso a irritava de um modo inusual.

 

—        Quero fazer algo ao respeito já, disse.

—        Lucy, você está bem.

—        Não fico tão gorda desde os dez anos.

—        Se deixar de tomar a medicação...

—        Me enjoa e me deixa cansada.

—        Não penso em permitir que cometa uma imprudência. Tem que confiar em mim.

 

Johnny manteve o olhar à luz das velas. Seu rosto permanecerá para sempre em sua lembrança com a expressão daquela noite. Johnny era bonito. Tinha umas feições agradáveis e uns olhos pouco comuns, da mesma cor que os dos tigres, e Lucy não era capaz de ocultar-lhe nada. Johnny sabia tudo o que precisava saber de todas as maneiras que se podia imaginar.

 

A solidão e a culpa a acompanham enquanto prossegue até o oeste pela nevasca. Lembra-se de quando soube da morte de Johnny. Soube como não deveria ninguém saber: pelo rádio.

 

«Em um apartamento de Hollywood encontraram morto a tiro, um famoso médico, e fontes próximas à investigação afirmam que se trata de um possível suicídio...»

 

Não tinha a ninguém a quem perguntar. Supunham que ela não conhecia Johnny e que jamais havia visto seu irmão Laurel nem a nenhum dos amigos de ambos, assim a quem poderia perguntar? Nesse momento toca seu telefone celular. Coloca o auricular no ouvido e responde.

 

—        Onde está? Pergunta Benton.

—        Caminhando em meio de uma nevasca, em Ptowm. Bem, não é uma nevasca literalmente; está começando a amainar. Está enjoada, com um pouco de ressaca.

—        Algo interessante para contar? Lucy pensa na noite passada e se sente desconcertada e envergonhada. Entretanto o que responde é:

—        A última vez que Johnny esteve aqui, na semana antes de morrer, teve companhia. Parece que tinha vindo logo depois de operar e depois foi embora para a Flórida.

—        Laurel o acompanhou?

—        Não.

—        Como se arranjou sozinho?

—        Como disse, parece que não estava sozinho.

—        Quem te contou isso?

—        Um garçom. Parece que conheceu uma pessoa.

—        Sabemos de quem se trata?

—        De uma mulher. Uma garota muito mais jovem.

—        Sabe seu nome?

—        Jam. Só isso. Johnny estava chateado porque a cirurgia não havia ido bem, como sabe. As pessoas fazem muitas coisas quando tem medo e não se sentem bem consigo mesmas.

—        Como você se sente?

—        Bem, mente Lucy. Era uma covarde. Era uma egoísta.

—        Pela sua voz não parece estar muito bem, comenta Benton. — O que aconteceu a Johnny não é sua culpa.

—        Fugi do problema. Não fiz nada em absoluto.

—        Por que não vem passar uma temporada conosco? Kay vai ficar por aqui uma semana. Ficaríamos felizes em vê-la. Encontraremos um tempo de intimidade para conversar você e eu, promete Benton, o psicólogo.

—        Não quero vê-la. Faça-a entender de algum modo.

—        Lucy, não pode prosseguir fazendo isto.

—        Não é minha intenção causar mal a ninguém, responde Lucy pensando de novo em Stevie.

—        Então lhe diga a verdade. É mais simples.

—        Você me chamou. Muda bruscamente de tema.

—        Preciso que me faça um favor o mais rápido possível, diz Benton. — Estou falando por uma linha protegida.

—        A não ser que tenha alguém por aqui com um sistema capaz de interceptar o sinal, eu também. Adiante.

 

Benton conta de um assassinato que parece foi cometido em uma espécie de loja de artigos de Natal, provavelmente na área de As Olas, há mais ou menos dois anos e meio. Conta-lhe tudo o que falou Basil Jenrette. Disse que Scarpetta não se lembra de algum caso parecido, porém que, por aquela data, ela ainda não trabalhava no sul da Flórida.

 

—        A informação vem de um sociopata, lembra, — Assim eu não tenho ilusões de que nos sirva para algo.

—        Da vítima da loja de artigos de Natal foram retirados os olhos?

—        Disso não me falou nada. Não quis fazer demasiadas perguntas até conseguir verificar a veracidade desta história. Pode passar pelo HIT, e ver o que encontra?

—        Porei mãos à obra no avião, responde Lucy.

 

O relógio de parede que existe em cima do armário marca meio dia e meia e, do outro lado da mesa de Kay Scarpetta, o advogado que representa uma criança que provavelmente assassinou seu irmão, um bebê, não está tendo nenhuma pressa em examinar os papéis.

 

Dave é jovem, moreno, com boa aparência, um de esses homens cujas feições irregulares por alguma razão encaixam perfeitamente com um bom resultado. É famoso por sua extravagância no terreno da negligência profissional e cada vez que vem à Academia, as secretárias e as alunas, de repente encontram motivos para passar diante do escritório de Scarpetta, exceto Rose, em princípio.

 

Rose, há quinze anos é secretária de Scarpetta, já passou algum tempo da idade de aposentadoria e não é precisamente vulnerável aos encantos masculinos a não ser que se trate dos de Marino. Este é, provavelmente, o único homem cujos chiliques Rose tolera, e Scarpetta liga pelo telefone para perguntá-la onde está Marino; se supõe que devia assistir a esta reunião.

 

—        À noite tentei localizá-lo, fala a Rose pelo telefone. — Várias vezes.

—        Deixe-me ver se eu posso dar com ele, responde Rose. — Ultimamente vem se comportando de um modo um tanto estranho.

—        Não só ultimamente.

—        Estas últimas semanas foi pior. Tenho a sensação de que se trata de uma mulher.

—        Vá ver se consegue localizá-lo. Dave está estudando o relatório de uma autópsia com a cabeça inclinada para trás e com os óculos de armação de osso apoiados na ponta do nariz.

 

Scarpetta desliga e olha para ver se do outro lado de sua mesa, Dave já está preparado para continuar com suas perguntas sobre outra morte difícil, de que está convencido de poder resolver em troca de uns honorários substanciais. Diferentemente da maioria dos departamentos de polícia, que solicitam a ajuda gratuita dos cientistas e médicos da Academia, os advogados, quando isso acontece, pagam e, portanto a maioria dos advogados que podem pagar representam as pessoas que provavelmente são as culpadas.

 

—        Marino não vem? Pergunta Dave.

—        Estamos tentando localizá-lo.

—        Farei uma declaração dentro de menos de uma hora. Vira uma página do relatório. — Em minha opinião, ao final das contas, os resultados da investigação apontam para um impacto e nada mais.

—        Não penso em testemunhar isso em juízo, diz Scarpetta olhando o relatório, os detalhes de uma autópsia que não foi realizada por ela. — O que direi é que, embora um hematoma subdural possa ser causado por um impacto, no caso do possível tombo do sofá ao chão, é totalmente improvável; o mais provável é que se deva a uma violenta sacudida que gerou ruptura na cavidade cranial, hemorragia subdural e lesão da coluna vertebral.

—        E quanto às hemorragias da retina, não concordamos em que também possam ser causadas por um trauma, como o choque da cabeça contra o chão, que teria como resultado uma hemorragia subdural?

—        Em um tombo de pouca altura como este, em absoluto. Uma vez mais, é mais provável de que a causa esteja em que; a cabeça sacudiu para frente e para trás. Tal como diz claramente o relatório.

—        Parece que não está me ajudando muito, Kay.

—        Se não quer uma opinião imparcial, deveria buscar outro expert.

—        Não existe outro expert. Você não tem rival. Sorri. — E o que me diz de uma deficiência de vitamina K?

—        Se tens uma amostra de sangue retirada antes da morte e que revele uma deficiência de vitamina K... Replica Scarpetta. — Andas procurando estranhos caminhos...

—        O problema é que não temos esse sangue ante mortem. A criança não sobreviveu o suficiente para chegar ao hospital.

—        É um problema, sim.

—        Bem, é impossível demostrar que a criança tenha sofrido sacudidelas. Decididamente não está claro e é improvável. Ao menos isso você poderá dizer.

—        O que está claro é que uma mãe não encarrega um filho de catorze anos, de cuidar de seu irmão recém-nascido, quando esse garoto já passou duas vezes pelo tribunal de menores por ter agredido a outras crianças e que possui um famoso temperamento explosivo.

—        E isso você não vai testemunhar.

—        Não.

—        Olha, a única coisa que peço é que diga que não existem provas definitivas de que esta criança tenha sofrido sacudidelas.

—        Também direi não existem provas irrefutáveis do contrário e que não encontro falha alguma no relatório da autópsia em questão.

—        A Academia é genial, diz Dave levantando-se de sua cadeira. — Entretanto vocês estão me atacando os nervos. Marino não apareceu e agora você me deixa preocupado.

—        Sinto pelo Marino, diz Scarpetta.

—        Talvez devessem controlá-lo melhor.

—        Isto não é assim tão fácil.

 

Dave ajeita sua atrevida camisa listrada, ajeita a gravata de seda e põe o cachecol de seda feito sob medida. Por fim, ordena os papéis na maleta de pele de crocodilo.

 

—        Corre o rumor de que está investigando o caso de Johnny Swift, diz em seguida, fazendo barulho ao manusear os fechos de prata. Scarpetta fica perplexa. Não tem nem ideia de como Dave pode ter sabido disso. Ela responde:

—        Tenho por costume prestar escassa atenção aos rumores, Dave.

—        Seu irmão é dono de um de meus restaurantes preferidos de South Beach. Ironicamente, se chama Rumores, completa. — Laurel tem tido alguns problemas.

—        Eu não sei nada sobre ele.

—        Uma pessoa que trabalha em seu restaurante está fazendo circular a história de que Laurel matou Johnny por dinheiro, pelo que Johnny deixava em seu testamento.

—        Isto soa a mentira. Talvez seja alguém que lhe guarde rancor. Dave vai até a porta.

—        Não tenho conversado com essa pessoa. Sempre que o tento não está. Pessoalmente, acho que Laurel é uma pessoa das mais agradáveis. Simplesmente, me parece muita coincidência que eu comece a ouvir rumores de que vai se abrir de novo o caso de Johnny.

—        Não me consta que estivesse fechado, diz Scarpetta.

 

Os flocos de neve caem gélidos e afiados, o meio-fio e as ruas estão cobertas de branco. Veem-se poucas pessoas.

 

Lucy caminha com passo rápido, bebendo a goles um café com leite fumegante, em direção à Anchor Inn, onde se hospedou a uns dias usando um nome falso para poder ocultar seu Humer alugado. Não o estacionou nem uma só vez junto a casa porque não interessa que os desconhecidos saibam que carro utiliza. Vira para alcançar uma estreita avenida que descreve uma curva antes de chegar ao estacionamento situado sobre a água, onde encontra o Humer coberto de neve. Desbloqueia as portas, liga o motor e conecta o sistema de calefação. O manto branco que cobre as janelas produz a fresca e sombreada sensação de se encontrar no interior de um iglu.

 

Está ligando para um de seus auxiliares, quando de repente vê uma mão que começa a limpar a neve do vidro ao lado do motorista e um rosto com um capuz negro que enche a janela. Corta a chamada e deixa o telefone no assento. Para olhando para Stevie e baixa a janela, enquanto sua mente raciocina a toda pressa um monte de possibilidades. Não é nada bom que Stevie a tenha seguido até aqui. É muito ruim que ela não se tenha dado conta de que a seguiam.

 

—        Que está fazendo? Pergunta Lucy.

—        Só queria dizer-lhe uma coisa.

 

O rosto de Stevie tem uma expressão que é difícil de decifrar. Pode ser que esteja a ponto de chorar e se sinta profundamente perturbada, ou pode ser que seja o vento frio e cortante soprando que faz com que lhe brilhem tanto os olhos.

 

—        É a pessoa mais fascinante que já conheci, diz Stevie. — Acho que é minha heroína. Minha nova heroína. Lucy não está certa se Stevie está brincando com ela. Pode ser que não.

—        Stevie, tenho que ir para o aeroporto.

—        Ainda bem que não começaram a cancelar voos. Entretanto é possível que o resto da semana seja terrível.

—        Obrigado por me posicionar sobre o tempo, responde Lucy, provocando um olhar feroz e desconcertante nos olhos de Stevie. — Olhe, me desculpe. Não foi minha intenção ferir seus sentimentos.

—        Não feriu, respondeu Stevie, como se a ouvisse pela primeira vez. — Na realidade, não acreditei que gostasse de você. Queria lhe ver para dizer isto. Nunca acreditei que gostasse de você de verdade.

—        Não para de falar nisso.

—        Tem graça. Aparenta ser tão certa de você mesma, arrogante na realidade. Dura e distante. Entretanto vejo que não é assim por dentro. É curioso que as coisas sejam tão diferentes do que esperamos. Está aumentando a neve sobre o Humer, humedecendo o interior.

—        Como me encontrou? Pergunta Lucy.

—        Voltei a sua casa, porém já havia saído. Segui suas pisadas na neve que me trouxeram até aqui. Que número calça? Trinta e oito? Não foi difícil.

—        Enfim, sinto que...

—        Por favor, interrompe Stevie, com intensidade, com força. — Já sei que não sou simplesmente outra marca em seu cinturão, como dizem.

—        Não me interessam essas coisas, diz Lucy, porém não é verdade. Sabe disso, embora jamais o houvesse pensado desse modo. Se sente mal por Stevie. Se sente mal por sua tia, por Johnny, por todas as pessoas com quem falhou em todos esses anos.

—        Haverá quem diga que você é que é uma marca no meu cinturão, comenta Stevie em tom jocoso, sedutor, e Lucy não deseja experimentar a mesma sensação de novo.

 

Stevie é outra vez a pessoa confiante em si mesma, outra vez a mulher cheia de segredos, outra vez incrivelmente atraente. Lucy faz um esforço para engatar a marcha à ré enquanto continua caindo a neve. Dói-lhe o rosto pelo açoitar da neve e do vento que sopra desde a água. Stevie rebusca o bolso de seu casaco, apanha um papelzinho e o passa pela janela aberta.

 

—        É meu número de telefone, diz.

 

O código de zona é 617, área de Boston. Stevie não havia dito em nenhum momento onde morava; Lucy tampouco o havia perguntado.

 

—        Isto é tudo o que queria falar, diz Stevie. — E feliz São Valentim.

 

Olham-se uma à outra através da janela aberta, com o motor ronronando, a neve caindo e agarrando-se ao casaco negro de Stevie. É interessante, e Lucy sente o mesmo que sentiu no bar. Acreditava que a sensação havia desaparecido. Entretanto volta a notá-la.

 

—        Eu não sou como as demais, afirma Stevie olhando-a aos olhos.

—        Certo.

—        Meu número do celular, diz Stevie. — De fato moro na Flórida. Quando saí de Harvard não mudei o número do celular. Não importa. É pelos minutos grátis.

—        Esteve em Harvard?

—        Não acho bom mencionar. Pode esfriar as pessoas.

—        Em que parte da Flórida mora?

—        Em Gainesville, responde Stevie. — Feliz São Valentim, repete. — Espero que tenha sido o mais especial de toda sua vida.

 

O quadro eletrônico da turma 1A está ocupado por inteiro com uma fotografia a cores de um torso masculino. A camisa está desabotoada e tem uma faca enorme enfiada no peito cabeludo.

 

—        Suicídio, aponta um dos alunos voluntários desde a sua cadeira.

—        Temos outro dado. Ainda não se pode deduzir a partir da foto, explica Scarpetta aos dezesseis estudantes desta turma da Academia. — Apresenta múltiplas feridas de arma branca.

—        Homicídio. O aluno muda rapidamente sua resposta e todo o mundo começa a rir. Scarpetta põe o diapositivo seguinte, em que se vêm múltiplas feridas agrupadas próximas da que foi fatal.

—        Parecem superficiais, aventura outro aluno.

—        E o ângulo? Se o tipo se tivesse suicidado, não deveriam as feridas serem oblíquas? Fala um terceiro.

—        Não necessariamente, porém tenho uma pergunta, replica Scarpetta. — O que nos diz esta camisa desabotoada?

 

Silêncio.

 

—        Se vai cravar uma faca, o faria sem retirar a roupa? Pergunta. — E, a propósito, tem razão. Dirige-se ao aluno que fez o comentário sobre o superficial das feridas. — A maioria dos cortes apenas feriu a pele. Aponta-os no terminal. — É o que chamamos de «marcas de vacilação».

 

Os alunos tomam notas. São um punhado de pessoas inteligentes e entusiastas, de formação diversa e procedentes de distintas partes do país, dois deles da Inglaterra. Vários são detetives que desejam receber uma formação forense intensiva em criminologia. Outros são investigadores que desejam o mesmo. Alguns são ex-universitários que estudam para ter um título superior em psicologia, biologia nuclear e microscópica. Um é suplente de fiscal de distrito que quer mais condenações nos tribunais.

 

Coloca outro diapositivo no quadro eletrônico, desta vez uma particularmente horripilante de um homem em que estão saindo os intestinos por uma grande incisão no abdome. Vários dos alunos deixam escapar um gemido. Um exclama: «Oh!»

 

—        Quem de vocês conhece sepuku? Pergunta Scarpetta.

—        É o mesmo que o haraquiri, diz uma voz da porta.

 

Trata-se do doutor Joe Amos, membro este ano da Junta de Governo de Patologia Forense, que entra como se esta fosse sua turma. É alto, com uma mata revolta de cabelo negro, um queixo largo e pontiagudo, olhos escuros e brilhantes. Scarpetta lembra-se de um pássaro, o corvo.

 

—        Não queria interromper, diz, porém o faz. — Este tipo, aponta com um gesto de cabeça a imagem horrorosa que enche o terminal, — Agarrou uma grande faca e a enfiou em um lado do abdome cortando até o outro lado. Isto sim e que é motivação.

—        O caso era seu, doutor Amos? Pergunta uma aluna, e bonita. O doutor Amos se aproxima dela com ar de homem muito sério e importante.

—        Não. O que deve saber é o seguinte: a forma de diferenciar um suicídio de um homicídio é que, se for suicídio, a pessoa corta o abdome no sentido horizontal até acima, para formar o clássico L do haraquiri. Entretanto não é isso o que estamos vendo neste caso.

 

Dirige a atenção dos alunos até o terminal. Scarpetta domina sua raiva.

 

—        Em um homicídio é bem difícil fazer isso, continua o doutor Amos.

—        Esta ferida não tem forma de L.

—        Exatamente, responde Amos. — Quem vota a favor de um homicídio? Uns quantos alunos levantam a mão. — Eu também voto por isso, declara Amos com um ar superior.

—        Doutor Amos, quanto tempo supõe que demorou a morrer?

—        Poderá ter sobrevivido alguns minutos, porque o sangue se esvai muito rapidamente. Doutora Scarpetta, queria falar um minuto com você. Lamento interromper, diz aos alunos. Ambos saíram ao corredor.

—        De que se trata? Pergunta Scarpetta.

—        O horrível delito que temos programado para esta tarde, responde Amos. — Gostaria de modificá-lo um pouco.

—        Não podia esperar que eu terminasse a aula?

—        Bem, pensei que você poderia conseguir que se apresente com voluntário um dos alunos. Farão qualquer coisa que você peça. Pergunte se algum deles está disposto a participar esta tarde dessa reconstituição, porém não pode revelar os detalhes diante de todos.

—        E quais são os detalhes, exatamente?

—        Estava pensando em Jenny. Poderia deixar que faltasse a sua aula das três para me ajudar. Refere-se à aluna bonita que perguntou se o caso do eviscerado era seu.

 

Scarpetta os viu juntos em mais de uma ocasião. Joe está comprometido, porém isto não parece ser um obstáculo para que se mostre bastante amistoso com as alunas atraentes, por mais que a Academia o proíba. Até o momento não o surpreenderam cometendo alguma infração imperdoável, e de certo modo Scarpetta desejaria que o tivessem feito. Adoraria livrar-se dele.

 

—        Faremos com que represente o papel de criminoso, explica Amos em voz baixa. — Parece tão inocente, tão encantadora. Escolheremos dois alunos de cada vez, faremos com que entrem no lugar onde foi cometido um homicídio e cuja vítima recebeu múltiplas tiros enquanto estava no banheiro. Isto ocorre no quarto de um motel, em princípio, e então aparece Jenny fazendo-se de mulher destroçada, histérica. É a filha do morto. Veremos se os alunos abaixam a guarda.

 

Scarpetta fica em silêncio.

 

—        Naturalmente, no lugar existirão uns quantos policiais. Digamos que andam por ali olhando, acreditando que o autor dos tiros já fugiu. Queremos é ver se alguém é suficiente inteligente para certificar-se de que essa garota tão chorosa não é a pessoa que acabou de matar a tiros à vítima, seu pai, enquanto estava no banho. E sabe de uma coisa? Realmente foi ela. Os demais baixam a guarda, ela apanha uma pistola, começa a disparar, e os policiais respondem... Voilá... O clássico caso de suicídio por meio da polícia.

—        Pode pedir a Jenny você mesmo depois da aula, diz Scarpetta enquanto tenta decidir por que é tão familiar essa situação.

 

Joe está obcecado com as reconstruções de crimes, uma inovação de Marino, cenas extremas, paródias que se supõe, deva ser um reflexo dos riscos autênticos e dos detalhes desagradáveis dos casos reais de morte. Às vezes pensa que Joe deveria abandonar a patologia forense e vender sua alma a Hollywood. Se é que tem alma. A situação hipotética que acaba de propor lhe lembra de algo.

 

—        Genial, não acha? Diz Joe. — Poderia acontecer na vida real. Então Scarpetta se lembra. De fato, aconteceu na vida real.

—        Tivemos um caso assim na Virginia, lembra. — Quando eu estava na chefia.

—        Verdade? Responde Joe, surpreso. — Penso que não existe mais nada novo debaixo do sol.

—        E, a propósito, Joe, continua Scarpetta, — Na maior parte dos casos de sepuku, de haraquiri, a causa da morte é uma parada cardíaca em consequência de um súbito colapso, produzido por uma caída repentina da pressão intra-abdominal devida à evisceração. Não o fato de sangrar.

—        O caso era seu? Esse ali de dentro? Indica a sala.

—        Meu e de Marino. Há vários anos. E outra coisa, adiciona: — É um suicídio, não um homicídio.

 

A citação X viaja até o sul pela velocidade do som quando Lucy envia arquivos a uma rede virtual privada protegida por tantos firewalls que nem sequer podem penetrar nela os profissionais da Homeland Security.

 

Ela está convencida de que sua infraestrutura de informação é excelente. Tem a certeza de que nenhum pirata informático, nem sequer o Governo, pode controlar as transmissões de dados que gerou o sistema de gestão de bases de dados Transação de Imagens Heterogênicas, cujas siglas são TIH. Ela mesma desenvolveu e programou o TIH. O Governo desconhece sua existência, disso está certa. Poucas pessoas o conhecem, disso também está certa. O TIH é software de seu desenvolvimento e poderia vendê-lo facilmente, porém não lhe faz falta o dinheiro. Fez fortuna há anos com outro software, com vários dos mesmos motores de busca que está dirigindo através do ciberespaço neste momento, tentando localizar mortes violentas que tenham tido lugar em um comércio, do tipo que procura, no sul da Flórida.

 

Fora dos homicídios cometidos, como era previsível, em lojas de licores e de comida rápida, salões de massagens e locais pornôs, não encontrou nenhum crime violento, resolvido ou não, que coincida com o que falou Basil Jenrette a Benton. Existia há algum tempo um comércio chamado A Loja de Natal, na confluência entre a A1A e a Rua de As Olas, junto a uma zona de boutiques para turistas, cafés e lojinhas de sorvetes. Há dois anos A Loja de Natal foi vendida a uma cadeia especializada em camisetas, roupa de banho e souvenires.

 

Joe custa a acreditar nos muitos casos em que trabalhou Scarpetta ao longo de uma carreira relativamente curta. Os patologistas forenses rara vez conseguem seu primeiro trabalho antes de fazer trinta anos, isso supondo que sua árdua trajetória de formação seja contínua. Além dos seis anos de Medicina, Scarpetta cursou mais três de Direito. Aos trinta e cinco era a chefa do sistema forense mais importante dos Estados Unidos. Diferentemente da maior parte dos chefes do dito sistema, ela não era simplesmente uma administradora; ela fazia autópsias, milhares de autópsias.

 

A maioria delas está em uma base de dados à que se supõe que somente ela pode acessar. Inclusive recebeu várias subvenções federais para realizar estudos sobre a violência: violência sexual, violência relacionada com as drogas, violência doméstica, todo o tipo de violência. Em vários de seus antigos casos o investigador principal foi Marino, detetive local de homicídios na época em que ela era chefa. De maneira que, em sua base de dados, guarda também os relatórios dele. É como uma loja de guloseimas. É uma fonte que emana champanhe do bom. É orgásmico.

 

Joe está repassando o caso C328-3, o suicídio por meio da polícia que servirá de modelo para a reconstituição desta tarde. Localiza outra vez as fotografias do lugar do crime, pensando em Jenny. No caso real, a filha que tão alegremente apertou o gatilho está caída no quarto, de boca para baixo em um charco de sangue. Recebeu três tiros: um no abdome e dois no peito, e Joe pensa sobre a maneira de como estava vestida, quando matou seu pai no banheiro e depois fez uma pantomina diante da polícia, antes de sacar de novo sua arma. Morreu descalça, com uns jeans azuis e uma camiseta. Joe revê as fotografias de sua autópsia, não tão interessado pela incisão em forma de E da garota como por seu aspecto, ali nua, sobre a mesa de aço frio. Quando a polícia a matou só tinha quinze anos. E Joe pensa em Jenny.

 

Levanta a vista e sorri do outro lado da mesa, onde ela está aguardando pacientemente à espera de instruções. Joe abre uma gaveta e retira uma Glock nove milímetros, desliza para trás o percursor para certificar-se de que a câmara está vazia, deixa cair o carregador e por último empurra a arma sobre a mesa para a garota.

 

—        Alguma vez já disparou uma arma? Pergunta a sua nova aluna predileta. Jenny tem um precioso narizinho e uns enormes olhos na cor chocolate com leite. Joe a imagina nua e morta, como a garota da fotografia que tem no terminal.

—        Me criei entre armas, ela responde. — O que está olhando, se não se importa que eu pergunte?

—        O correio eletrônico, responde Joe. Nunca o perturbou não dizer a verdade. Gosta de não dizer, gosta muito mais do que desgosta. A verdade não é sempre a verdade? O que é certo? É o que ele decide que é. Tudo é questão de ponto de vista. Jenny torce o pescoço para ver melhor o que está no terminal.

—        Genial. Vejo que as pessoas enviam por correio eletrônico casos inteiros.

—        Às vezes, ele responde localizando uma fotografia distinta; Em seguida põe em funcionamento a impressora a cores que tem atrás da mesa. — Isto é material classificado, agrega. — Posso confiar em você?

—        Claro doutor Amos. Entendo perfeitamente o que é o material classificado. Se não entendesse, não estaria me preparando para esta profissão.

 

Na bandeja da impressora aparece a fotografia a cores de uma rapariga morta estendida em um charco de sangue na sala de estar. Joe vira-se para apanhá-la, dá uma rápida olhada e a passa a Jenny.

 

—        Esta é a pessoa que você vai ser esta tarde, fala.

—        Espero que não literalmente, ela brinca.

—        E esta é a sua arma. Olha a Glock que descansa sobre a mesa, em frente a Jenny. — Onde pensa em escondê-la? Jenny olha a fotografia sem pestanejar e responde:

—        Onde ela escondeu?

—        Na fotografia não se vê, responde Joe. — Em um livro de bolso que, a propósito, deveria ter sido uma pista para alguém. A garota encontra seu pai morto, presumivelmente, chama a emergência, abre a porta quando chega a polícia e tem na sua mão um livro de bolso. Está histérica, em nenhum momento saiu de casa; assim, por que está andando por aí com um livro de bolso?

—        Isto é o que quer que eu faça.

—        A pistola está dentro do livro. Em um dado momento, você procura lenço de papel, porque está chorando, e então saca a pistola e começa a disparar.

—        Algo mais?

—        Em seguida responderão. Procure estar bonita. Ela sorri.

—        Algo mais?

—        A forma como está vestida a garota. Joe a olha tentando transmitir com os olhos o que é o que quer. Ela se dá conta.

—        Não uso exatamente o mesmo, responde brincando um pouco com ele, fazendo-se de ingênua. Jenny é qualquer coisa menos ingênua.

—        Enfim, Jenny, faça o que puder para parecer o melhor possível. Jeans, camiseta, sem meias nem sapatos.

—        Não usa roupa interior, me dá a impressão.

—        Exato.

—        Parece uma gatinha.

—        Está bem. Então pareça com uma gatinha, diz Joe. Jenny acha engraçado. — Quero dizer, que você é uma gatinha, não é? Ele pergunta olhando-a com seus olhos escuros. — Se não, pedirei a outro. Para esta reconstituição preciso de uma gatinha...

—        Não precisa de mais ninguém.

—        Oh, não me diga.

—        Digo. Jenny se volta para olhar a porta fechada, como se estivesse preocupada que pudesse entrar alguém. Joe não diz nada. — Poderíamos ter problemas, diz.

—        Não os teremos.

—        Não queria que me expulsassem, diz ela.

—        Porque quer ser investigadora forense. Jenny confirma com a cabeça sem deixar de olhá-lo, brincando tranquilamente com o primeiro botão de sua pólo da Academia. Cai-lhe muito bem. Joe gosta de como ela parece ser um presente para ele.

—        Já sou uma garota crescidinha, diz Jenny.

—        Você é do Texas, diz Joe então, observando como a pólo gruda no corpo dela, como está apertada a calça cáqui. — No Texas as coisas crescem muito, não é verdade?

—        Por que me diz coisas tão grosseiras, doutor Amos? Ela pergunta fazendo charme.

 

Joe a imagina morta. Imagina-a em um charco de sangue, morta a tiro. A imagina nua sobre uma mesa de aço. Uma das mentiras da vida é a que os cadáveres não têm atrativo sexual. Entretanto um nu é um nu se a pessoa for atraente e não está a muito tempo morta. Dizer que um homem nunca teve pensamentos sobre uma mulher bonita que casualmente está morta é uma piada. Os policiais guardam fotos em suas mesas, imagens de vítimas femininas com um corpo excepcional. Os forenses homens conversam com os policiais e mostram a eles determinadas fotos, escolhem deliberadamente as que sabem que eles vão gostar. Joe viu, sabe que o fazem.

 

—        Se fizer bem seu papel de morta no lugar do crime, fala a Jenny, — A convidarei para jantar em minha casa. Sou um expert em vinhos.

—        E também está comprometido.

—        Ela está em Chicago, em uma conferência. É possível que a neve a retenha. Jenny se levanta. Consulta o relógio e depois olha ao doutor Amos.

—        Quem era sua aluna predileta antes de mim? Pergunta.

—        Você é especial, responde Joe.

 

Transcorrida uma hora desde que partiu de Fort Lauderdale, Lucy se levanta para tomar outro café e fazer uma pausa indo ao banheiro. Pelas pequenas janelas ovais do avião vê o céu encapotado por nuvens de tormenta cada vez mais densas.

 

Volta a se acomodar em sua cadeira de couro e realiza novas solicitações de informação, consultando dados de cálculos de impostos e registros de propriedade imobiliária do condado de Broward, notícias publicadas nos jornais e tudo o que aconteceu, para ver o que pode encontrar sobre a antiga loja de artigos de Natal. Desde meados dos anos setenta até princípios dos noventa era um restaurante chamado Run Runer. Depois durante dois anos foi uma loja chamada Coco Nuts. Mais tarde, no ano 2000, alugou o local a senhora Florrie Ana Quincy, viúva de um paisagista de West Palm Beach.

 

Lucy descansa ligeiramente os dedos sobre o teclado enquanto lê um artigo que saiu publicado em The Miami Herald, não muito tempo depois de ser aberta A Loja de Natal. Diz que a senhora Quincy se criou em Chicago, onde seu pai era agente de Bolsa e todas os natais trabalhava como voluntária fazendo-se de Papai Noel nos grandes armazéns Macy's.

 

«A Natal para nós era a época mágica, dizia a senhora Quincy. Meu pai se encantava com os brinquedos de madeira e, possivelmente devido a que tenha se criado no território madeireiro de Alberta, em Canadá, em casa tínhamos árvores de Natal todo o ano, grandes pinheiros, decorados com luzes brancas e figurinhas talhadas. Suponho que por isso eu gosto de ter ao meu redor o Natal o ano todo».

 

Sua loja é uma impressionante coleção de adornos, caixas de música, bonecos de Papai Noel de todos os tipos, paisagens invernais e trenzinhos elétricos que correm por vias diminutas. É preciso ter cuidado ao se mover pelos corredores de seu frágil mundo de fantasia e fica fácil esquecer-se de que do outro lado da porta o sol brilha, existem palmeiras e o mar. Desde o mês passado, quando inaugurou a Loja de Natal, a senhora Quincy afirma que tem tido muitas pessoas entrando e saindo, porém que são muitos mais os clientes que vão olhar do que os que compram...

 

Lucy bebe um gole de café e olha o pãozinho recheado de creme que espera na bandeja. Está com fome, porém tem medo de comer. Pensa constantemente na comida, está obcecada com seu peso, porque sabe que fazer regime não servirá de nada. Pode se matar de fome, que isso não mudará como se vê e como se sente. Seu corpo era sua máquina melhor afinada e a traiu.

 

Executa mais outra busca e tenta localizar Marino servindo-se do telefone existente no braço de sua cadeira, sem deixar de ler os resultados da consulta. Marino responde, porém a qualidade da comunicação não é boa.

 

—        Estou voando, explica lendo o que aparece no terminal.

—        Quando vai aprender a pilotar essa coisa?

—        Provavelmente nunca. Não tenho tempo para reunir todos os conhecimentos. Ultimamente, apenas tenho tempo para os helicópteros.

 

E não quer ter. Quanto mais pilota, mais gosta, e não quer continuar gostando. Tem de declarar que medicação toma à Administração Federal de Aviação, a não ser que se trate de um medicamento inócuo que se possa adquirir sem receita, e na próxima vez que for ao médico para renovar seu certificado médico terá que adicionar à lista o Dostinex. Farão-lhe perguntas, os burocratas do Governo entrarão em sua intimidade e provavelmente encontrarão alguma desculpa para revogar sua licença. A única maneira de evitar é não tomar o remédio, e já tentou passar uma temporada sem tomá-lo. Ou também pode abandonar para sempre a pilotagem.

 

—        Eu fico com as Harley, está dizendo Marino.

—        Acabo de conseguir uma pista. Não sobre esse caso. Sobre outro distinto, quem sabe.

—        Quem deu? Ele pergunta, perspicaz.

—        Benton. Parece que alguém contou uma história sobre um assassinato sem resolver cometido em As Olas.

 

Escolhe as palavras com cuidado. Marino não está informado sobre o programa PREDADOR. Benton não quer colocar Marino neste assunto, porque teme que ele não o entenda nem seja de utilidade. A filosofia de Marino acerca dos delinquentes violentos consiste em maltratá-los, prendê-los e matá-los da forma mais cruel possível. Seria certamente a última pessoa deste planeta a se importar, se um psicopata assassino é um doente mental em vez de ser um malvado, ou se um pedófilo não pode evitar suas inclinações tanto quanto um psicótico os seus delírios. Marino defende que a exploração física e psicológica por meio de imagens estruturais e funcionais do cérebro não passa de uma estupidez.

 

—        Segundo parece, esta pessoa afirma que, há uns dois anos e meio, violaram e assassinaram uma mulher em um local chamado A Loja de Natal, explica Lucy a Marino, preocupada em que um destes dias lhe escape que Benton está avaliando reclusos.

 

Marino sabe que o McLean, o hospital universitário de Harvard, o modelar hospital psiquiátrico, que atende aos ricos e famosos, não é uma instituição psiquiátrica forense. Se estão transferindo para ali reclusos para avaliá-los, está acontecendo algo inusual e clandestino.

 

—        E? Pergunta Marino. Lucy repete o que acaba de dizer e agrega:

—        Era propriedade de uma tal Florrie Ann Quincy, mulher branca, trinta e oito anos, seu marido tinha vários viveiros em West Palm...

—        De plantas?

—        De árvores. Em sua maioria cítricas. A Loja de Natal ficou aberta só dois anos, de 2000 a 2002.

 

Lucy digita mais instruções e converte arquivos de dados em arquivos de texto que vai enviar por correio eletrônico a Benton.

 

—        Alguma vez escutou mencionarem um lugar que se chama Apetrechos de Praia?

—        Aumente a voz, diz Marino.

—        Está melhor assim? Marino?

—        Agora te ouço.

—        É o nome da loja que está agora no local. A senhora Quincy e sua filha de dezessete anos, Helen, desapareceram em julho de 2002. Encontrei alguns artigos no jornal que contam sobre isso. Não é muito, só um artigo aqui e outro acolá, e no ano passado não saiu nada de nada.

—        Devem ter fechado e a imprensa não fez eco disso, propõe Marino.

—        Nada do que encontrei indica que estejam vivas. De fato, na primavera passada o filho tentou que as declarassem legalmente falecidas, porém não conseguiu. Quem sabe você pudesse consultar a polícia de Fort Lauderdale e ver se alguém lembra algo acerca do desaparecimento da senhora Quincy e de sua filha. Eu tenho pensado em passar amanhã pelo Apetrechos de Praia.

—        Os policiais de Fort Lauderdale não vão me dar informação, sem que eu tenha um bom motivo.

—        Vamos continuar averiguando, responde Lucy.

 

 

Em frente ao guichê de passagens da USAir, Scarpetta continua discutindo.

 

—        É impossível, diz uma vez mais, a ponto de perder os estribos de frustração. — Aqui tem meu recibo impresso. Está bem claro. Primeira classe, partida às seis e vinte. Como pode estar cancelada a minha reserva?

—        Senhora, é o que aparece no computador. Sua reserva foi cancelada as duas e um quarto.

—        De hoje? Scarpetta se nega a acreditar. Deve haver algum erro.

—        Sim, de hoje.

—        Isto é impossível. Eu não liguei para cancelá-la.

—        Pois alguém o fez.

—        Nesse caso, volte a fazer a reserva, ordena Scarpetta mexendo na bolsa em busca da carteira.

—        O voo está lotado. Posso colocá-la em lista de espera para classe turística, porém têm outras sete pessoas na frente da senhora.

 

Scarpetta transfere sua viajem para o dia seguinte e liga para Rose.

 

—        Vai ter que voltar a me apanhar, fala.

—        Oh, não. Que aconteceu? É o mau tempo?

—        Alguém cancelou minha reserva. E para o voo tem lista de espera. Rose, você ligou para confirmar a passagem?

—        Claro que sim. Liguei na hora do almoço.

—        Não sei o que aconteceu, fala Scarpetta pensando em Benton e na ideia de passar juntos Dia de São Valentim. — Merda! Exclama.

 

A lua amarela tem um aspecto esmaecido. Como uma manga demasiada madura cai pesadamente sobre as árvores, a vegetação e as densas sombras. Debaixo da luz desigual dessa lua, Porco consegue ver o suficiente dentro da mata para distinguir do que se trata. O vê chegar porque sabe onde olhar. Está há vários minutos olhando para a sua energia infravermelha pelo detector de calor que move debaixo da escuridão, em uma varrida horizontal, como uma varinha, como uma varinha mágica. No visor posterior do tubo de PVC verde oliva aparece uma linha intermitente de luzinhas vermelho vivo quando o aparelho detecta as diferenças entre a temperatura do ser de sangue quente e do chão.

 

É Porco, e o ser é um objeto que pode abandonar quando quiser, sem que alguém o veja. Ninguém o vê neste momento, na escuridão da noite vazia, sustentando o detector de infravermelho como se fosse um nível enquanto este capta o calor que irradia da carne viva e o avisa com suas luzinhas brilhantes que desfilam em linha reta pelo vidro escuro.

 

Provavelmente se trata de um animal.

 

«Bicho idiota». Porco resmunga em silêncio e se senta com as pernas cruzadas sobre o chão arenoso, sem deixar de olhar pelo visor. Observa as brilhantes luzinhas que cruzam a lente de um lado a outro pelo extremo oposto do tubo com que enfoca a coisa. Explora a área em sombras e sente a suas costas a presença da velha casa em ruínas. Tem a cabeça embotada por culpa dos fones de ouvido e ouve respirar a si mesmo, como se respirasse por um tubo debaixo d’água, submerso e silencioso, sem que ouça nada além da própria respiração, rápida e superficial. Não gosta dos fones, porém é importante usá-los.

 

«Já sabe o que vai acontecer agora, pensa. Como se não soubesse».

 

Observa a forma gorda e escura que avança quase junto ao chão. Move-se como um gato gordo e peludo, coisa que talvez seja. Muito depressa, a forma abre passagem entre grama e juncos, entrando e saindo das densas sombras debaixo das silhuetas espinhentas dos longos pinus e dos restos quebradiços de árvores mortas. Observa a coisa, observa as luzes vermelhas que serpenteiam no interior da lente. A coisa é pouco inteligente, porque a brisa que sopra em contrário impede-a de captar o cheiro de quem a vigia.

 

Porco desliga o detector infravermelho e o põe sobre os joelhos. Em seguida apanha sua Mossberg 835 Ulti-Mag com acabamento de camuflagem; nota a culatra dura e fria contra o ombro ao alinhar o óculo de trítio com o ser.

 

«Aonde acha que vai?», brinca. O ser não começa a correr. Que idiota. «Vamos. Corre». O ser continua avançando lentamente, alheio a tudo, junto ao chão.

 

Porco sente que o coração bate forte e pausadamente; percebe sua própria respiração, rápida, enquanto segue ao ser com o verde luminoso do óculo. Aperta o gatilho e o estrondo da escopeta vara o silêncio da noite. O ser dá uma sacudida e fica imóvel no chão. Porco coloca os fones e escuta com atenção, esperando um grito ou um gemido, porém não ouve nada, só o trânsito da Sul 27 ao longe e o roçar de seus próprios pés ao se levantar e estirar as pernas para desentumecer.

Com movimentos lentos, apanha o cartucho, guarda-o em um bolso e começa a andar cruzando a mata. Ativa o percursor da escopeta e no mesmo instante a luz de tiro ilumina a criatura.

 

É um gato, peludo e rajado, com o ventre inchado. Empurra-o para virá-lo. Trata-se de uma fêmea prenha. Estuda a possibilidade de lhe dar outro tiro. Escuta com atenção. Nada, nem um movimento, nem um ruído, nem um só sinal de vida. Provavelmente a gata se dirigia sigilosamente para a casa em ruínas em busca de comida. Pensa sobre o detalhe de que a gata tenha ouvido a comida; se acreditava que havia comida na casa, certamente é porque pode detectar a ocupação recente da mesma. Sopesando tal possibilidade, coloca a escopeta sobre o ombro e coloca o antebraço sobre a culatra, como um lenhador com o machado ao ombro. Observa o ser morto e pensa na figura do lenhador de madeira que havia em A Loja de Natal, aquele grande situado junto à porta.

 

—        Que idiota, diz, porém não existe ninguém que possa ouvi-lo, só o ser morto.

—        Não, o idiota é você, ressoa a voz de Deus atrás dele.

 

Retira os fones dos ouvidos e dá a volta. Ali está ela, de negro, uma figura negra e fluida à luz da lua.

 

—        Falei que não fizesse isso, diz ela.

—        Aqui ninguém me ouve, protesta ele, passando a escopeta ao outro ombro e vendo o lenhador de madeira como se o tivesse adiante. — Não penso em fazer de novo. Não sabia que estava aqui.

—        Saberá onde estou se se eu quiser que saiba.

—        Trouxe dois exemplares de Campo e Rio. E o papel, o papel laser brilhante.

—        Eu disse que me trouxesse seis, incluídos os dois da pesca com mosca e outros dois da Revista de pesca.

—        Os roubei. Era muito difícil conseguir seis de uma só vez.

—        Pois então volta. Como pode ser tão imbecil? Ela é Deus. Tem um coeficiente intelectual de cento e cinquenta. — Fará o que eu disser.

 

Deus é uma mulher; é ela, não existe outra. Convertera-se em Deus depois que ele cometeu aquela maldade e fora enviado para longe, muito longe, a um lugar em que fazia frio e nevava constantemente. Quando regressou ela havia se transformado em Deus e disse que ele era sua mão. A mão de Deus.

 

Observa como Deus vai embora, como se funde na noite. Ouve o ruído do motor e a ela voando, voando pela estrada. E se pergunta se alguma vez voltará a ter relações sexuais com ela. Pensa o tempo todo nisso. Quando se transformou em Deus, não quis ter relações sexuais com ele. A deles é uma união sagrada, explica. Ela tem relações sexuais com outras pessoas, porém não com ele, porque ele é a sua mão. Riu dele, diz que não é possível ter relações sexuais com sua própria mão. Seria como ter relações consigo mesma. E começa a rir.

 

—        Que idiota foi, hem? Fala Porco ao ser morto que jaz no chão.

 

Tem vontade de sexo. Deseja agora mesmo, enquanto contempla o ser morto e o empurra de novo com a bota pensando em Deus e em vê-la nua, percorrendo seu corpo com as mãos.

 

—        Já sei o que deseja Porco.

—        Sim, afirma ele. — O desejo.

—        Já sei onde quer colocar as mãos. Não errei, não é verdade?

—        Não.

—        Quer colocá-las onde eu permito que as outras pessoas ponham, não é verdade?

—        Quem dera que não permitisse isso a mais ninguém. Sim, é isso o que eu quero.

 

 

Ela o obriga a pintar as impressões de mãos em vermelho em lugares que não quer que outras pessoas toquem, lugares em que ele pôs as mãos quando cometeu aquela maldade e o enviaram para longe, para aquele lugar frio onde neva, aquele lugar onde o meteram na máquina e reordenaram suas moléculas.

 

Na manhã seguinte, se aproximam nuvens vindas do mar distante e a gata prenha e morta está rígida no chão. As moscas já a descobriram.

 

—        Olha o que fez. Matou todas as suas crias. Que idiota és.

 

Porco empurra a gata com a bota e as moscas se dispersam. Observa como retornam zumbindo para a cabeça coberta de sangue coagulado. Fica olhando o corpo morto e rígido e as moscas que se abatem sobre ele. Olha fixamente, sem se perturbar. Agacha-se de joelhos a seu lado e se aproxima o suficiente para voltar a espantar as moscas, e desta vez sente o odor. Cheira a morte, um fedor que durante vários dias invadirá tudo e se notará a vários hectares à volta, dependendo do vento. As moscas depositarão seus ovos nos orifícios e nas feridas, e rapidamente o cadáver será invadido por vermes. Entretanto isso não o incomodará. Gosta de observar o produto da morte.

 

Levanta-se e começa a andar em direção à casa em ruínas com a escopeta entre os braços. Escuta ao longe o rumor do trânsito da Sul 27, porém não há motivo para que alguém venha até aqui. Com o tempo sim, haverá motivo, porém agora não.

 

Sobe ao portal estragado e uma tábua podre cede debaixo de suas botas. Abre a porta de um empurrão e entra em um espaço escuro cheio de pó. Reina lá dentro uma escuridão asfixiante; esta manhã é pior porque se avizinha uma tempestade. São oito horas e o interior da casa está quase tão escuro como se fosse noite. Porco começa a suar.

 

—        É você? A voz vem da escuridão, do fundo da casa, onde deve estar.

 

Contra a parede existe uma mesa bamba de madeira com tampo de ladrilhos cinzentos e, em cima, uma urna de vidro. Porco aponta para a urna com a escopeta, e ativa a luz de xênon, que arranca imediatamente um brilho luminoso do vidro e ilumina a forma negra da tarântula que tem do outro lado. O bicho se encontra imóvel sobre um leito de areia e pedaços de madeira, dentro da urna, serena como uma mão negra e junto à sua esponja de água e da sua pedra favorita. Em algum lugar da urna se agitam vários grilos de pequeno tamanho, irritados pela luz.

 

—        Vem falar comigo, exclama a voz exigente, porém mais fraca do que estava há apenas um dia.

 

Porco não está certo de se alegrar, ao descobrir que a voz não se apagou, porém se alegra. Retira a tampa da urna e fala à aranha em voz baixa e carinhosa. Tem o abdome calvo e com uma crosta seca de sangue amarelo pálido. O ódio o invade quando pensa no motivo dessa calva e por causa do animal que quase morreu dessangrado. Os pelos da aranha não crescerão até o momento da muda, e pode ser que se cure ou pode ser que não.

 

—        Sabe quem tem a culpa, não é verdade? Fala à aranha. — E já resolvi, não é? Vem aqui, chama a meia voz. — Me ouves?

 

A aranha não se move. É possível que morra. Existem muitas probabilidades de que assim seja.

 

—        Sinto ter estado fora tanto tempo. Já sei que deve se sentir só, diz à aranha. Mete uma mão na urna de vidro e acaricia suavemente a aranha, que apenas se move.

—        É você? A voz soa mais débil e rouca, porém exigente.

 

Porco tenta imaginar como será quando desaparecer essa voz, e se lembra do ser morto, no chão, rígido e infestado de moscas.

 

—        É você?

 

Aperta com o dedo o botão de pressão e a luz aponta para onde aponta a escopeta, iluminando o chão de madeira sujo e cheio ovos secos de insetos. Suas botas se movem atrás da luz.

 

—        Quem está aí?

 

No Laboratório de Armas de Fogo e de Marcas de Ferramentas, Joe Amos está abotoando uma jaqueta Harley-Davidson de couro negro ao redor de um bloco de gelatina de trinta e cinco quilos. Em cima deste existe outro bloco menor, de nove quilos, com uns óculos de sol Ray-Ban e um lenço negro com umas tíbias e uma caveira. Joe dá um passo para trás para ver seu trabalho. Está satisfeito, porém um pouco cansado; à noite se deitou muito tarde por culpa de sua nova aluna predileta. Bebeu demasiado vinho.

 

—        Está bonito, não é verdade? Fala a Jenny.

—        Bonito, porém ridículo. É melhor que ele não saiba disso; Não é alguém com quem convenha se meter, responde Jenny sentando sobre um mostrador.

—        A pessoa que menos quer se meter com ele sou eu. Estou pensando em lhe colocar um pouco de corante alimentício. Para que pareça mais com sangue.

—        Genial.

—        E também um pouco de marrom e assim parecerá que está em decomposição. É melhor fazermos algo que impressione.

—        Você e suas reconstruções de crimes.

—        Minha cabeça nunca descansa. Doem-me as costas, se queixa, verificando sua obra. — Este trabalho machucou minhas costas e penso em acioná-la na justiça.

 

As gelatinas, um material transparente e elástico fabricado com osso animal desnaturalizado e colágeno de tecido conjuntivo, não são fáceis de manipular. Os blocos que está utilizando foram dificilíssimos de transportar desde os contêineres de gelo até a parede posterior acolchoada da galeria de tiro. A porta do laboratório está fechada com chave. A luz vermelha que fica acesa na parede lembra que a galeria está sendo utilizada.

 

—        Vestido de cima a baixo para não ir a nenhuma parte, comenta Joe a pouco atraente massa de gelatina.

 

Mais conhecido como hidrolisado de gelatina, é utilizado também para fabricar xampus e condicionadores, batons, bebidas com proteínas, fórmulas para aliviar a artrite e muitos outros produtos que Joe não pensa voltar a provar na vida. Nem sequer beijará a sua noiva se ela estiver com os lábios pintados. A última vez que a beijou fechou os olhos quando ela grudou os lábios aos seus e de repente imaginou uma enorme onda em que fervia merda de vaca, de porco e de pescado. Agora lê as etiquetas. Se existir entre os ingredientes proteína animal hidrolisada, o artigo vai parar na lixeira ou volta para a prateleira.

 

Corretamente preparada, a gelatina simula a carne humana. É um meio quase tão bom como o tecido de porco, que Joe preferiria usar. Escutou falar de laboratórios de armas de fogo em que disparam sobre porcos mortos para verificar a penetração e a expansão da bala em uma variedade de situações diferentes. Joe preferiria disparar em um porco. Preferiria vestir o cadáver de um porco grande que se parecesse com uma pessoa e deixar que os alunos o varassem a tiros de distâncias diferentes e com armas e munição diferentes. Isto sim é que seria uma boa reconstrução de um crime. Para fazê-la ainda pior deveriam disparar em um porco vivo, porém Scarpetta não consentiria em algo assim.

 

—        Acioná-la não servirá de nada, está dizendo Jenny. — Também é advogada.

—        Uma merda.

—        Bem, pelo que você me contou, já tentou em outra ocasião e não conseguiu nada. Seja como for, quem tem o dinheiro é Lucy. Me disseram que é uma pessoa importante. Eu não a conheço. Nenhum de nós a conhece.

—        Não perdes nada. Um destes dias alguém a porá em seu lugar.

—        Como você?

—        É possível que eu já esteja. Sorri. — Vou dizer uma coisa: não penso em sair daqui sem conseguir o que algo muito bom. Mereço algo, depois de toda a merda pela que me fizeram passar. Volta a pensar em Scarpetta. — Me tratam como um merda.

—        Conheci Lucy antes de me formar, diz Jenny pensativa, sentada no mostrador e com o olhar fixo nele e no boneco de gelatina disfarçado de Marino.

—        São todos escória, diz Joe. — A puta trindade. Bem, pois terei uma surpresinha para eles.

—        Qual?

—        Já saberá. Depois te conto.

—        De que se trata?

—        Penso conseguir algo disto, digamos assim. Ela me subestima e isso é um grande equívoco. Ao final do dia vão ser dadas muitas risadas.

 

Uma parte do trabalho de Joe é ajudar Scarpetta no depósito de cadáveres do condado de Broward, onde ela o trata como a um trabalhador normal, obrigando-o a suturar os cadáveres depois das autópsias, a contar as pílulas que os frascos de remédios, que vêm com o morto, contém e catalogar os objetos pessoais, como se Joe fosse um humilde ajudante e não um médico. Deu-lhe a responsabilidade de pesar, medir, fotografar e desnudar os cadáveres, assim como de retirar qualquer material repugnante que possa ter ficado no fundo da bolsa aonde chega o cadáver, sobretudo se se tratar de um afogado pútrido, infestado de vermes e empapado de água suja, ou da carne e dos ossos de restos parcialmente esqueletizados. Mais insultante ainda é a tarefa de misturar uns dez por cento de gelatina nos blocos de Balística que os cientistas e os alunos usam.

 

—        Por quê? Me dê uma boa razão, disse a Scarpetta quando ela encarregou-o no verão passado.

—        Faz parte de sua formação, Joe, ela respondeu como sempre imperturbável.

—        Tento ser patologista forense, não técnico de laboratório nem muito menos cozinheiro, ele se queixou.

—        Meu método consiste em formar forenses partindo de zero, explicou ela. — Não deve existir nada que você não deva poder ou querer fazer.

—        Oh. E suponho que vai contar que você fez blocos com a gelatina e que fazia quando começou, disse ele.

—        Continuo fazendo, e estou muito contente de transferir a outro minha receita favorita. Eu prefiro Wyse, porém serve igualmente Kinde & Knox Type 250A. Deve começar sempre com água fria, entre 7 e 10 °C, e adicionar a gelatina na água, não ao contrário, sem deixar de mexer, porém não muito vigorosamente para não incorporar ar à mistura. Em seguida adicionar 2,5 ml de Foan Eater por cada bloco de 9 kg, tendo certeza de que o molde esteja bem limpo. Para a piece de resistance deve adicionar 0,5 ml de azeite.

—        Isto sim é que é curioso.

—        O azeite impede a proliferação de fungos, explicou ela.

 

Escreveu em um papel a sua receita pessoal e uma lista de equipamentos, a saber: uma balança, uma proveta graduada, solvente, uma seringa hipodérmica de 12 cm3, ácido propanoico, mangueira de plástico, papel de alumínio, uma colher grande, etecetera. Em seguida fez uma demonstração prática na cozinha do laboratório, como se com isso ficasse mais elegante tomar chuvaradas de pó de uns tambores de onze quilos e pesar, levantar ou arrastrar recipientes enormes e colocá-los nos contêineres de gelo ou na câmara frigorífica e depois fazer com que os alunos se reunissem na galeria de tiro ou no campo de tiro ao ar livre antes que essas malditas coisas estragassem, porque se estragam. Derretem-se como marmelada, assim o melhor é servi-las antes que tenham se passado vinte minutos desde que os retirou da câmara frigorífica, dependendo da temperatura ambiente.

 

Retira uma mala de janela de um armário e a coloca na frente do bloco de gelatina vestido com a jaqueta Harley. Em seguida põe fones de ouvido e óculos. Com um gesto da cabeça, indica a Jenny que faça o mesmo. Apanha uma Beretta 92 de aço inoxidável, uma pistola de dupla ação, a melhor de sua gama, com óculo frontal de trítio. Insere um carregador de munição Speer Gold Dot de 147 grãos e seis dentes ao redor da ponta para que o projétil se expanda como uma flor mesmo depois de atravessar a largura de quatro capas de roupa de algodão ou uma jaqueta de couro como as dos motociclistas. O que vai ser diferente nesta prova de tiro é o desenho que se produzirá quando a bala atravessar a mala antes de alcançar a jaqueta Harley e perfurar limpamente o peito do boneco de gelatina que ele montou.

 

Desbloqueia a arma e dispara quinze balas, imaginando que o boneco é na realidade Marino.

 

O vento agita as palmeiras com fúria, no outro lado das janelas da sala. «Vai chover», pensa Scarpetta. Tem pinta de avizinhar-se uma forte tempestade. Marino volta a se atrasar e não responde às suas ligações telefônicas.

 

—        Bons dias, vamos começar, anuncia a sua plateia. — Temos muito que fazer e já são nove menos um quarto.

 

Odeia se atrasar. Odeia quando o causador de seu atraso é outra pessoa, neste caso Marino. Marino outra vez. Está deixando a perder sua organização. Está deixando tudo a perder.

 

—        Esta noite espero estar em um avião a caminho de Boston, diz. — Desde que a minha reserva não tenha sido anulada magicamente outra vez.

—        As companhias aéreas trabalham muito mal, comenta Joe. — Não é de estranhar que estejam todas na bancarrota.

—        Nos pediram que déssemos uma olhada num caso de Hollywood, um possível caso de suicídio, mas ao qual estão associadas certas circunstâncias inquietantes, começa Scarpetta.

—        Antes temos um assunto que eu gostaria de comentar, interrompe Vince, o expert em armas de fogo.

—        Adiante. Scarpetta retira de um envelope várias fotografias de grande formato e começa a passá-las ao longo da mesa.

—        Há aproximadamente uma hora, alguém esteve fazendo provas de tiro na galeria. Olha para Joe. — Não estava programado.

—        Tinha a intenção de reservar a galeria de tiro à noite, porém esqueci, responde Joe. — Não havia ninguém a utilizando.

—        Tem que reservá-la. É a única maneira que temos para controlar a...

—        Estive testando um novo lote de gelatina para a Balística, utilizando água quente em lugar de fria para ver se havia alguma diferença na prova de calibração. Encontrei uma diferença de um centímetro. Uma boa noticia.

—        Tenho certeza de que encontrará diferenças de mais ou menos um centímetro cada vez que mexa nessa substância, replica Vince, irritado.

—        Não devemos utilizar algum bloco que não seja válido. Assim reviso muito a miúdo a calibração e tento aperfeiçoá-la. Isto me exige passar muito tempo no Laboratório de Armas de Fogo. Não é algo que eu tenha decidido. Joe olha para Scarpetta. — A gelatina é uma das coisas das que tenho que me ocupar. Olha-a outra vez.

—        Espero que tenha se lembrado de utilizar blocos firmes antes de começar a golpear a parede posterior com um monte de munição, diz Vince. — Já o lembrei disso várias vezes.

—        Já conhece as normas, doutor Amos, aponta Scarpetta.

 

Diante de seus colegas sempre o chama de doutor Amos em vez de Joe. O trata com mais respeito do que merece.

 

—        Temos que anotar tudo no livro de registro, continua Scarpetta. — Cada arma que se retira da coleção de referência, cada prova de tiro. Temos que respeitar os protocolos.

—        Sim, senhora.

—        Têm repercussões legais. A maior parte de nossos casos termina em um tribunal, conclui Scarpetta.

—        Sim, senhora.

—        Está bem. E começa a falar de Johnny Swift. — Em princípios de novembro foi operado dos pulsos e pouco depois foi para Hollywood e ficou com seu irmão. Eram gêmeos. Um dia antes do dia de Ação de Graças, o irmão, Laurel, saiu para fazer compras e retornou para casa aproximadamente às quatro e meia da tarde. Ao entrar, descobriu o doutor Swift caído no sofá, morto por causa de um tiro de escopeta no peito.

—        Acho que me lembro desse caso, diz Vince. — Saiu nos jornais.

—        Pois eu me lembro muito bem do doutor Swift, interveio Joe. — Deveriam chamar a doutora Self. Em certa ocasião em que eu estava em seu programa, ela chamou-o e fez uma pergunta sobre a síndrome de Tourette. Acontece que eu estou de acordo com ela, porque geralmente não é mais do que uma desculpa para portarem-se mal. Ele falou sem parar da disfunção neuroquímica, de anomalias do cérebro, como um expert, diz com sarcasmo.

 

A ninguém interessa as aparições de Joe no programa da doutora Self. A ninguém interessa suas aparições em nenhum programa.

 

—        E que se sabe do cartucho e da arma? Pergunta Vince a Scarpetta.

—        Segundo o relatório da polícia, Laurel Swift descobriu que havia uma escopeta no chão, a um metro atrás do encosto do sofá. Não encontrou nenhum cartucho.

—        Pois isso não é normal. Disparar contra si mesmo no peito e em seguida, não se sabe como, se levantar para jogar a escopeta atrás do sofá? De novo é Joe o que fala. — Não vejo nenhuma fotografia do lugar do crime em que se veja a escopeta.

—        O irmão afirma que viu a escopeta no chão, atrás do sofá. E eu digo que ele está certo. Veremos isso dentro de um momento, diz Scarpetta.

—        Tinha algum resíduo do tiro?

—        Lamento que Marino não esteja aqui, já que é nosso investigador, e neste caso trabalha estreitamente com a polícia de Hollywood, responde Scarpetta, guardando para si as suspeitas de que Marino tenha encerrado o caso. — A única coisa que sei é que não foi analisada a roupa de Laurel em busca de resíduos.

—        E as mãos?

—        Deram positivo. Entretanto ele afirma que tocou no seu irmão, que o virou, que se sujou de sangue. Assim que, na teoria, isso se explicaria. Existem alguns detalhes mais. Quando morreu, tinha os pulsos enfaixados, a prova de alcoolemia mostrou 0,1 e, segundo o relatório da polícia, na cozinha haviam numerosas garrafas de vinho vazias.

—        Estamos certos de que estava bebendo a sós?

—        Não estamos certos de nada.

—        Segundo parece, não deveria ser muito fácil para ele segurar uma escopeta, se tinha acabado de ser operado.

—        Possivelmente, Concorda Scarpetta. — E se ele não pôde usar as mãos, então, como?

—        Com os pés.

—        É factível. Eu tentei com minha Remington doze. Descarregada é claro, adiciona Scarpetta com um toque de humor.

 

Ela tentou sozinha, porque Marino não apareceu. Nem ligou. Não se importava nem um pouco.

 

—        Não tenho fotografias da demonstração, diz. É suficientemente diplomática para não dizer que a razão pela que não as tem é que Marino não apareceu. — É preciso dizer que o tiro gerou um retrocesso na arma. Talvez aí o pé tenha dado um solavanco, jogado a arma para trás e esta caiu atrás do encosto do sofá. O que mostraria que se suicidou. A propósito, não se encontraram abrasões em nenhum dos dedos gordos dos pés.

—        Alguma ferida por contato? Pergunta Vince.

—        A densidade dos resíduos na camisa, a margem de abrasão, o diâmetro e a forma da ferida, a ausência de marcas em forma de pétalas no algodão que ainda estava no corpo; tudo isso é coerente com uma ferida por contato. O problema é que, em minha opinião, temos uma grave incoerência devido a que o patologista se serviu de um radiologista para determinar a distância à que se efetuou o disparo.

—        De quem?

—        O caso é do doutor Bronson, responde Scarpetta; Vários dos presentes reagiram com um gemido.

—        O radiologista chegou à conclusão de que a ferida de escopeta é, e eu cito textualmente, uma ferida distante, continua Scarpetta. — Efetuada a uma distância de pelo menos um metro. Agora o que temos é um homicídio, porque a uma pessoa não é possível segurar o cano de uma escopeta a três metros do peito, não acham?

 

Vários golpezinhos de mouse e aparece no terminal eletrônico uma nítida imagem digital de raios X da ferida de escopeta em Johnny Swift. Os fragmentos do disparo parecem uma nuvem branca que flutua entre as formas fantasmais das costelas.

 

—        As marcas estão muito dispersas, aponta Scarpetta, — E para conceder certo mérito ao radiologista, a dispersão no interior do peito é coerente com uma distância de entre um metro e um metro e meio; porém o que eu creio que temos aqui é um exemplo perfeito do efeito bola de bilhar.

 

Imprime a imagem de raios X do terminal e apanha vários lápis de diferentes cores.

 

—        Os primeiros fragmentos diminuíram de velocidade ao se chocar com o corpo, e no momento da colisão rebateram e se espalharam formando um desenho que simula um tiro efetuado a certa distância, explica enquanto desenha em vermelho os fragmentos que rebateram e se chocaram com o corpo, desenhado em azul, como se fossem bolas de bilhar. — Portanto, este resultado cria o efeito de uma ferida feita por um tiro dado de longe, quando na realidade não foi um tiro longínquo mais sim uma ferida por contato.

—        Nenhum dos vizinhos ouviu um tiro de escopeta?

—        Parece que não.

—        Quem sabe estavam na praia ou fora da cidade, já que era o dia de Ação de Graças.

—        Quem sabe.

—        Que tipo de escopeta era e a quem pertencia?

—        A única coisa que sabemos é que era de calibre doze, responde Scarpetta. — Parece que a arma desapareceu antes de chegada da polícia.

 

Ev está acordada e sentada em um colchão enegrecido e que agora está certa de que é sangue seco.

 

Espalhadas pelo chão da pequena e suja casa, com o papel de parede cheio de manchas de humidade, se encontram várias revistas. Enxerga muito pouco sem os óculos, e a duras penas consegue ver as capas pornográficas. Distingue apenas as latas de água tônica e os envoltórios de comida rápida que estão pelo chão. Entre o colchão e a parede está um pequeno tênis de cor rosa, de marca infantil. Ev já o apanhou incontáveis vezes perguntando-se o que significa e a quem haverá pertencido, preocupada de que sua dona possa estar morta. Às vezes esconde o tênis atrás do corpo quando ele entra temerosa de que lhe tire. É tudo quanto tem.

 

Nunca dorme mais de uma ou duas horas de uma vez só e não tem ideia de quanto tempo já se passou. Perdeu a noção do tempo. Uma luz cinzenta enche a janela estragada que está no outro extremo da casa e não vê o sol. Não sabe que fez ele com Kristin e com as crianças. Lembra vagamente das primeiras horas, àquelas horas horrorosas e irreais nas quais ele trazia comida e água e a contemplava da escuridão, como um espírito sinistro, de pé no umbral.

 

—        O que está sentindo? Disse ele em um tom suave e frio. — O que se sente quando sabe que vai morrer? A casa sempre é escura. Entretanto muito mais quando ele está lá dentro.

—        Não tenho medo. Não pode tocar minha alma.

—        Diga que lamenta. Não é demasiado tarde para se arrepender.

—        Eu não fiz nada que deva lamentar. Você é que precisa. Deus desculpará até o mais horrendo de seus pecados se te humilhas e te arrependes.

—        Deus é uma mulher. E eu sou sua mão. Diga que lamenta.

—        Blasfemas. Deverias se envergonhar. Eu não fiz nada que deva lamentar.

—        Eu já lhe ensinarei o que é a vergonha. Dirá que lamenta, da mesma maneira que ela disse.

—        Kristin?

 

E depois desapareceu e Ev ouviu vozes procedentes de outra parte da casa. Não conseguiu distinguir o que diziam, porém ele estava falando com Kristin, tinha que ser isso. Estava falando a uma mulher. Na realidade não entendia a conversa, porém os ouvia falar. Não conseguia decifrar o que diziam. Lembra-se de uns pés que se arrastravam e umas vozes do outro lado da parede, e agora de ter escutado Kristin. Imaginou que era ela. Quando pensa nisso, se pergunta se não terá sonhado.

 

—        Kristin! Kristin! Estou aqui! Estou aqui mesmo! Não se atreva a machucá-la!

 

Ouve mentalmente sua própria voz, porém poderia ter sido um sonho.

 

—        Kristin? Kristin? Responda!

 

Então voltou a escutar alguém falar, mas não está certa. Poderia ter sonhado. Poderia ter sonhado que ouviu as botas dele avançando pelo corredor e a porta da rua ao fechar. Tudo isso poderia ter acontecido em questão de minutos, talvez horas. Também ouviu o motor de um carro. Também pode ter sido um sonho, uma fantasia. Ev ficou sentada na escuridão, escutando com o coração acelerado para ver se ouvia Kristin e as crianças, porém não escutou nada. Gritou até que começou a lhe doer a garganta.

 

A luz do dia vem e vai, e algumas vezes aparece a silhueta escura dele trazendo copos de papel cheios de água e algo para comer e em seguida fica ali de pé observando-a, porém ela não pode ver-lhe o rosto. Nunca viu o rosto, nem sequer na primeira vez, quando ele entrou na casa. Usa um capuz negro com aberturas para os olhos, um capuz que parece uma fronha de almofada, longa e folgada ao redor dos ombros. Essa silhueta encapuzada gosta de conversar cutucando-a com o cano da escopeta, como se ela fosse um animal do zoo, tendo curiosidade pelo modo como vai reagir. Toca em suas partes íntimas e fica observando a reação.

 

—        Deveria se envergonhar, fala Ev quando ele a toca. — Pode ferir minha carne, porém não pode tocar minha alma. Minha alma pertence a Deus.

—        Ela não está aqui. Eu sou sua mão. Diga que lamenta.

—        Meu Deus é um Deus único. «Não terás outro Deus a parte de mim».

—        Ela não está aqui.

 

Ele continua tocando-a com o cano da escopeta, às vezes com tanta força que deixa uns círculos negros e azulados marcados na pele.

 

—        Diga que lamenta, repete.

 

Ev senta-se no colchão hediondo e putrefato. Já foi usado antes, provavelmente usado de uma maneira horrível, está duro e manchado de negro, e ela senta nele, nessa casa hedionda, agoniante, entupida de lixo, escutando e tentando pensar, escutando, rezando e pedindo socorro a gritos. Ninguém responde. Ninguém a ouve e Ev se pergunta em que lugar está. Onde estará que ninguém ouve seus gritos?

 

Não pode escapar porque ele, muito inteligente, amarrou-lhe os pulsos e os tornozelos com cordas que passou por cima de uma viga do teto, como se ela fosse uma espécie de marionete grotesca, cheia de hematomas e coberta de picadas de insetos, sentindo seu corpo nu assediado pelos insetos e pela dor. Fazendo um esforço, consegue se colocar de pé. Pode abandonar o colchão para aliviar a bexiga e o intestino. Quando o faz, o dor é tão lacerante que quase perde o conhecimento.

 

Ele faz tudo na escuridão. É capaz de ver na escuridão. Ela o ouve respirar na escuridão. É uma forma negra. É Satanás.

 

—        Deus meu, me ajude, exclama dirigindo-se à janela, ao céu de cor cinzenta que se vê através dela, a esse Deus que está mais além do céu, em alguma parte de seu paraíso. — Te suplico meu Deus, me ajude.

 

Scarpetta ouve ao longe o rugido de uma motocicleta que tem de tubos de escape muito barulhentos. Procura concentrar-se à medida que a motocicleta vai se aproximando e passa adiante do edifício a caminho do estacionamento dos professores. Pensa em Marino e se pergunta se terá que despedi-lo. Não está certa de poder fazê-lo.

 

Está explicando que dentro da casa de Laurel Swift haviam dois telefones e que os dois tinham sido desligados e estavam sem o cabo. Laurel havia deixado o celular no carro e afirma que não conseguiu encontrar o de seu irmão, assim não tinha como chamar para pedir socorro. Preso do pânico fugiu e parou um táxi. Não regressou à casa até que chegou a polícia e então, a escopeta havia desaparecido.

 

—        Esta é informação que recebi do doutor Bronson, diz Scarpetta. — Tenho falado várias vezes com ele e sinto dizer que não tenho mais detalhes.

—        Os cabos dos telefones. Chegaram a aparecer?

—        Não sei, responde Scarpetta, porque Marino não a informou a respeito.

—        Poderia tê-los retirado Johnny Swift, para ter certeza de que ninguém pudesse ligar pedindo socorro em caso de não morrer imediatamente, supondo que se trate de um suicídio. Joe oferece outra de suas criativas situações hipotéticas.

 

Scarpetta não responde por que não sabe nada sobre os cabos telefônicos fora do que disse o doutor Bronson à sua maneira ambígua e um tanto deslavada.

 

—        Falta algo na casa? Alguma outra coisa fora os cabos telefônicos, o motivo do falecido e a escopeta? Como se isso fosse pouco.

—        Terá que perguntar a Marino, responde Scarpetta.

—        Acho que está aqui. A não ser que alguém mais tenha uma motocicleta que faz mais ruído que o transportador espacial.

—        Me surpreende que Laurel não tenha sido acusado de assassinato, se querem saber minha opinião, diz Joe.

—        Não se pode acusar de assassinato a uma pessoa quando ainda não se determinou como morreu a vítima, diz Scarpetta. — A forma da morte continua sem ser clara e não existem provas suficientes para determinar se foi suicídio, homicídio ou acidente, embora eu não consiga compreender como se pode considerar isto um acidente. Se a morte não se resolve à satisfação do doutor Bronson, este terminará por declará-la indeterminada. Nesse momento se ouvem umas fortes pisadas no corredor.

 

—        Que aconteceu com o senso comum? Pergunta Joe.

—        Não se determina a forma de uma morte baseando-se no senso comum, responde Scarpetta. Quem dera que Joe guardasse para si mesmo seus inoportunos comentários.

 

Abre-se a porta da sala e entra Pete Marino carregando uma maleta e uma caixa de donuts Krispy Kreme, vestido com jeans negros, botas e casaco de couro negro com o emblema da Harley nas costas, sua indumentária habitual. Faz caso omisso de Scarpetta, senta-se em sua cadeira de costume, a seu lado, e deixa a caixa de donuts sobre a mesa.

 

—        Gostaria que pudéssemos analisar a roupa do irmão para ver se nela existem resíduos do tiro, diz Joe recostando-se em sua cadeira como faz sempre que se dispõe a opinar, e tende a opinar mais do que o habitual quando Marino está presente. — Dar uma olhada por raios X, Faxitróm, SEM/espectrometria.

 

Marino fica olhando-o como se fosse sacudi-lo pelo pescoço.

 

—        Naturalmente, é possível encontrar pequenos restos em uma pessoa, provenientes de uma fonte que não seja uma escopeta. De material de solda, pilhas, graxa de automóveis, pinturas. Como em minhas práticas de laboratório do mês passado, diz Joe ao mesmo tempo em que apanha um donut de chocolate, com a maior parte do chocolate agarrado à caixa e lambe os dedos com o olhar fixo em Marino, do outro lado da mesa.

—        Foram boas práticas, comenta Marino. — Queria saber de onde tirou esta ideia.

—        O que eu pergunto é se sabem o que aconteceu com a roupa do irmão, diz Joe.

—        Me parece que você viu demasiados filmes de patologistas, responde Marino com seu enorme rosto virado para ele. — Demasiados Harry Potter nesse seu televisor de tela plana. Acredita que é patologista forense, ou quase, advogado, cientista, investigador do lugar do crime, polícia, capitão Kirk e o Coelhinho de Páscoa, tudo isso em um só.

—        A propósito, a reconstrução de ontem foi um rotundo êxito, diz Joe. — É uma lástima que a perdeu.

—        Bem, qual é a história desta roupa, Pete? Pergunta Vince a Marino. — Sabemos o que Laurel estava fazendo quando encontrou o cadáver de seu irmão?

—        O que estava, segundo ele, era nada, responde Marino. — Parece que entrou pela porta da cozinha, deixou as compras em cima da mesa e, em seguida, foi diretamente ao banheiro. Supostamente. Depois tomou um banho porque naquela noite tinha que trabalhar em seu restaurante e, por casualidade, olhou para a porta e viu a escopeta caída atrás do sofá. Naquele momento estava nu, isso ele afirma.

—        A mim tudo isso me parece um monte de merda. Joe fala com a boca cheia.

—        Minha opinião é que provavelmente se trate da interrupção de um roubo, diz Marino. — Ou da interrupção de algo. Um médico rico que talvez se enredasse com quem não devia. Alguém viu minha jaqueta Harley? É negra, com umas tíbias e uma caveira em um ombro e uma bandeira americana no outro.

—        Onde estava a última vez que a usou?

—        Tirei-a no hangar no outro dia, quando Lucy e eu estivemos fazendo um exercício aéreo. Quando voltei, já não estava lá.

—        Eu não a vi.

—        Eu tampouco.

—        Merda. Me custou uma nota. E os adornos eram feitos sob encomenda. Maldito seja. Se alguém a roubou...

—        Aqui ninguém rouba, diz Joe.

—        Ah, sim? E que me diz dos que roubam ideias? Marino o olha furioso. — Isto me lembra, se dirige a Scarpetta, — Que já que estamos com o tema das reconstruções de crimes...

—        Não estamos com esse tema, interrompe Scarpetta.

—        Esta manhã trago umas quantas coisas para dizer a esse respeito.

—        Em outra ocasião.

—        Algumas são muito boas, deixei um memorando em sua mesa, fala Marino. — Para que tenha algo interessante em que pensar durante as horas vagas. Sobretudo levando em conta que provavelmente ficará presa pela neve. Suponho que voltaremos a nos ver só na primavera.

 

Scarpetta controla sua irritação, procura mantê-la em um lugar oculto onde espera que ninguém a veja. Marino está desbaratando a reunião de pessoal e tratando-a como fazia há quinze anos, quando era a nova chefa da patologia de Virginia, uma mulher em um mundo sem mulheres, uma mulher com personalidade própria, segundo chegou Marino à conclusão, porque tinha um título de Medicina e outro de Direito.

 

—        Acho que o caso Swift seria muito bom para uma reconstituição do crime, afirma Joe. — Os resíduos do tiro e a espectrometria de raios X e outros fatos contam duas histórias diferentes. Vamos ver se os alunos descobrem algo. Tenho certeza de que não terão a mínima ideia do que é o efeito bola de bilhar.

—        Não perguntei ao público do galinheiro. Marino alça a voz: — Alguém me escutou perguntar ao público do galinheiro?

—        Bem, já sabe qual é minha opinião acerca de sua criatividade, fala Joe. — Francamente, é perigosa.

—        Sua opinião para mim é merda.

—        Temos sorte de que a Academia não esteja quebrada, continua Joe, como se em nenhum momento lhe tivesse ocorrido que um destes dias Marino pode mandá-lo ao outro extremo da sala com um soco. — Realmente é uma sorte, depois do que você fez.

 

No verão passado, uma das reconstituições de crimes de Marino traumatizou uma aluna, que abandonou a Academia e ameaçou com levá-los a juízo e, afortunadamente, dela não se voltou a saber. Scarpetta está paranoica a não permitir que Marino participe na formação dos alunos, seja em reconstruções de crimes, desagradáveis ou não, ou participando de uma aula.

 

—        Não creia que o que aconteceu não me vem à cabeça quando planejo a reconstrução de um crime, prossegue dizendo Joe.

—        Que você planeja? Exclama Marino. — Se refere a todas essas ideias que me roubou?

—        Me parece que isso se chama ciúme. Eu não preciso roubar as ideias de ninguém, e muito menos de você.

—        Não me diga! Acha que não sei reconhecer o que é meu? Você não sabe o suficiente para pensar as coisas que eu penso, doutor Quase Forense.

—        Chega! Intervém Scarpetta e agora levanta a voz: — Já basta.

—        Acontece que tenho um caso muito interessante, um cadáver encontrado no lugar onde aconteceram tiros vindo de um carro, diz Joe. — Porém quando se recuperou a bala descobriu-se que tem um insólito desenho quadriculado, de tecido, não pesado, porque na realidade à vítima dispararam através de um alambrado da janela e depois avermelharam seu cadáver...

—        Isto é meu! Exclama Marino batendo o punho sobre a mesa.

 

O homem desceu de um estropeado caminhão carregado de espigas de milho, estacionado a certa distância do posto de gasolina, e entrou na cabine telefônica. Porco está a um tempo observando-o.

 

—        Algum filho de puta me roubou a carteira e o telefone celular. Acho que foi quando estava no banho, está dizendo o homem na cabine telefônica, de costas para o posto CITGO.

 

Porco disfarça que se diverte ao observar como o homem blasfema sem parar acerca do fato de que outra vez terá que trabalhar de noite, queixando-se e maldizendo porque vai ter que dormir na cabine do caminhão já que não tem telefone nem dinheiro para pagar um motel. Nem sequer tem dinheiro para tomar um banho; embora de qualquer maneira os banhos subiram para cinco paus e isso é muito por um banho quando no preço não entra nem sequer o sabonete.

 

Alguns se juntam de dois em dois para que tenham desconto. Passam atrás de uma cerca sem pintar que existe no lado oeste do supermercado CITGO, amontoam a roupa e o calçado em um banco e se metem em um banheiro minúsculo de cimento, mal iluminado e que tem uma única pia e um ralo grande e oxidado no centro do chão.

 

O banheiro está sempre molhado. A torneira pinga e os metais rangem. Os homens trazem seu próprio sabonete, xampu, escova de dente e dentífrico, normalmente em uma bolsa de plástico. Também trazem sua toalha. Porco nunca tomou banho ali, porém olhou os homens, tentando adivinhar o que trazem na bolsa. Dinheiro. Celulares. Às vezes drogas. As mulheres tomam banho em um lugar parecido, no lado este do supermercado, nunca de duas em duas seja qual for o desconto, e o fazem nervosas e com pressa, envergonhadas de sua nudez e aterrorizadas de que entre alguém para atacá-las, de que venha um homem forte que possa fazer o que quiser.

 

Porco disca o número 0800 do cartão verde que está no bolso traseiro, um cartão retangular, de uns vinte centímetros de largura, com um grande orifício e uma ranhura em um extremo para poder pendurá-lo da maçaneta da porta. Está impresso, além dessa informação, um desenho animado de um limão vestido com uma camisa tropical e óculos de sol.

 

Está fazendo com que se cumpra a vontade de Deus. Ele é mão de Deus e está fazendo o trabalho de Deus. Deus possui um coeficiente intelectual de cento e cinquenta.

 

—        Obrigado por ligar para o Programa de Erradicação de Cancros, diz a gravação, já familiar. — Sua chamada poderá ser gravada por razões de controle de qualidade.

 

A metálica voz feminina continua dizendo que, se ligou para informar acerca de danos em Palm Beach, ou condado de Dade, ou condado de Broward, marque, por favor, o número seguinte. Porco observa como o homem sobe no seu caminhão, e sua camisa de xadrez vermelho lembra a de um lenhador, o boneco de madeira que havia junto à porta da Loja de Natal. Marca o número que informou a voz gravada.

 

—        Departamento de Agricultura, responde uma mulher.

—        Preciso falar com um fiscal, por favor, diz sem tirar o olho do homem e pensando nos indivíduos que lutam com jacarés.

—        Em que posso ajudar?

—        Você é fiscal? Pergunta Porco pensando no jacaré que viu há aproximadamente uma hora na orla do estreito canal que corre paralelo a Sul 27.

 

Pareceu um bom presságio. O jacaré media pelo menos um metro e meio, era muito escuro e seco e não prestava a menor atenção aos grandes caminhões madeireiros que passavam rugindo junto a ele. Teria parado o carro se soubesse onde. Teria observado o jacaré, estudado como vive a sua vida sem medo de nada, tranquilo e silencioso, porém preparado para submergir na água rapidamente ou para apanhar sua incauta presa e arrastá-la até o fundo do canal, onde se afogará e será devorada. Teria observado o jacaré um bom tempo, porém não poderia sair da estrada sem perigo e, além disso, cumpre uma missão.

 

—        Tem algo para informar? Está perguntando a voz feminina na linha.

—        Trabalho para uma empresa de serviços de jardinagem e por casualidade, ontem, quando aparava o gramado, descobri um cítrico afetado por cancro em um jardim situado a uma quadra de distância.

—        Pode me dar o endereço? Dá à mulher um endereço da zona de West Lake Park.

—        Importaria em me dizer seu nome?

—        Prefiro dar parte disto de maneira anônima. Teria problemas com minha chefa.

—        Está bem. Queria fazer umas perguntas. Entrou pessoalmente nesse jardim em que acha que encontrou cancro?

—        É um jardim público, assim entrei porque ali existe um monte de árvores muito bonitas. Supus que poderia aparecer algum trabalho se necessitassem de alguém. Então descobri umas folhas de aspecto suspeito. Tinham várias árvores com pequenas manchas nas folhas.

—        Verificou se essas manchas tinham ao redor uma borda como se fosse água?

—        Me dá a impressão de que essas árvores se infectaram há pouco, provavelmente por isso vocês não detectaram em suas inspeções rotineiras. O que me preocupa são os jardins que têm de cada lado. Tem cítricos, segundo meus cálculos, a menos de sessenta metros das árvores afetadas, o que significa que é provável que estejam também, e os cítricos de outros jardins mais próximos, também segundo meus cálculos, se encontram a menos de sessenta metros. E assim em todo o bairro. De modo que já pode imaginar como estou preocupado.

—        O que o faz pensar que em nossas inspeções rotineiras não detectamos o que você menciona?

—        Que não existe nada que indique que vocês tenham estado aqui. Estou há muito tempo trabalhando com cítricos, estou quase a vida toda trabalhando para serviços de jardinagem profissionais. Tenho visto o pior do pior, jardins inteiros que tiveram que serem queimados. Pessoas que ficaram na ruína.

—        Viu manchas na fruta?

—        Como estou explicando, tenho a impressão de que a doença se encontra na primeira etapa. Vi jardins inteiros queimados por culpa do cancro. Pessoas com a vida destroçada.

—        Entrou no jardim em que acreditou detectá-lo e se desinfetou quando saiu dali? Pergunta a mulher. Porco não gosta do tom que usa. Não gosta desta mulher. É egocêntrica e tirânica.

—        Claro que me descontaminei. Estou há muito tempo no setor de jardinagem. Sempre uso minhas ferramentas com GX-1027, como ditam as normas. Estou sabendo de tudo o que acontece. Vi jardins inteiros destruídos, queimados e abandonados. Gente arruinada.

—        Me desculpe...

—        Aconteceram coisas horríveis.

—        Me desculpe...

—        As pessoas têm que levar a sério o cancro, diz Porco.

—        Qual é o número de registro de seu veículo, o que utiliza para o serviço de jardinagem? Suponho que você levará a obrigatória autorização negra e amarela no lado esquerdo do para-brisa. Preciso desse número.

—        Meu número não vem ao caso, replica Porco à fiscal, que se acha muito mais importante e poderosa do que ele. — O veículo pertence a minha chefa e terei problemas se ela souber que fiz esta ligação. Se ela descobre que seu serviço de jardinagem deu parte de um caso de cancro dos cítricos... Certamente teremos como consequência a perca de todas as árvores do local... O que você acha que acontecerá com nosso negócio de jardinagem?

—        Entendo senhor. Entretanto é importante que me proporcione o número da autorização para nossos arquivos. E também gostaria de saber de que modo poderíamos nos colocar em contato com você, se for necessário.

—        Não, ele responde. — Me despedirão.

 

O Posto de Gasolina CITGO está começando a encher de caminhoneiros que estacionam seus veículos atrás do supermercado e a um lado do restaurante Chickee Hut; estacionam em fila junto as árvores e dormem neles. Os caminhoneiros comem no Chickee Hut, cujo rótulo está mal escrito porque a pessoas que vêm aqui são demasiado ignorantes para saber como se escreve chikee e provavelmente nem sequer sabem o que significa. Chikee é uma palavra indígena que nem sequer os indígenas escrevem bem.

 

Os ignorantes caminhoneiros vivem de quilômetro em quilômetro e param aqui para gastar o dinheiro no supermercado, onde encontram gasolina, cerveja, cachorro quente e cigarros, além de uma seleção de navalhas debaixo de um mostrador de vidro. Podem jogar bilhar na sala de recreativos Golden Tee e consertar seus caminhões no trailer CB de eletricidade e pneus. A CITGO é uma parada que proporciona serviços completos no meio da nada, aonde as pessoas vem e vão sem se meter na vida de ninguém.

 

Ninguém incomoda Porco; apenas olham. Com tantas pessoas entrando e saindo, estranho seria que alguém o olhasse duas vezes, a não ser o tipo que trabalha no restaurante Chickee Hut.

 

O local se encontra atrás de uma cerca de tela metálica, que fica ao lado do estacionamento. Uns cartazes pendurados na cerca anunciam que se processarão advogados, que os únicos cachorros que podem entrar são os K9 e que os animais selvagens podem fazê-lo por sua conta e risco. À noite aparecem alguns animais selvagens, porém Porco não pode saber disso porque ele não gasta o dinheiro na sala de jogos recreativos, nem no bilhar nem na máquina de discos. Não bebe. Não fuma. Não quer deitar com nenhuma das mulheres da CITGO.

 

As mulheres aparecem com seus pequenos shortinhos, a camiseta justa e os rostos ásperos de tanta maquilagem barata e sol. Sentam-se no restaurante ao ar livre, que não mais é do que um telhadinho de folhas de palmeira com o balcão de madeira todo arranhado e oito banquinhos. Pedem o prato do dia e bebem. A comida é boa e feita ali mesmo. Porco gosta do hambúrguer do caminhoneiro, e só custa três e noventa e cinco. Um sanduíche quente de queijo custa três dólares e vinte e cinco centavos. Mulheres baratas; às mulheres assim ocorrem coisas desagradáveis. E merecem. Estão desejando. Estão pedindo aos gritos.

 

—        Um sanduíche quente de queijo e um hambúrguer, Porco pede ao homem que está atrás do balcão. — E vou comer aqui.

 

O homem tem uma enorme barriga e usa um avental branco cheio de manchas. Está ocupado em servir copos de chope porque os guarda no gelo. Já o atendeu em outras ocasiões, porém parece que nunca se lembra dele.

 

—        Quer o sanduíche de queijo junto com o hambúrguer? Pergunta enquanto empurra dois copos de chope até um caminhoneiro e sua garota, que já estão bêbados.

—        Você tenha certeza de que o sanduíche de queijo esteja quente.

—        Pergunto se quer os dois ao mesmo tempo. O tipo não parece irritado, mas indiferente.

—        Quero.

—        E para beber?

—        Água corrente.

—        E que diabos é isso de água corrente? Pergunta quase gritando o caminhoneiro bêbado enquanto sua garota dá uma risadinha e aperta o busto contra o enorme braço tatuado de seu companheiro. — Uma garrafa de água com patas para correr?

—        Só água corrente, repete Porco ao atendente.

—        Eu não gosto de nada correndo não é verdade, céu? Sussurra a garota bêbada do caminhoneiro bêbado abraçando o banquinho com suas pernas rechonchudas enfiadas num minúsculo shortinho. Tem uns peitos tão grandes que parecem a ponto de pular do enorme decote. — Para onde vai? Pergunta a garota bêbada.

—        Para o norte, responde Porco.

—        Pois tenha cuidado quando dirigir por aqui sozinho, fala rindo a mulher. — Anda muito louco solto por aí.

 

—        Temos alguma ideia de onde está? Pergunta Scarpetta a Rose.

—        Não está em sua mesa e tampouco responde ao celular. Quando liguei ao terminar a reunião para falar que você precisava vê-lo, me disse que tinha um assunto para resolver e que voltaria em seguida, lembra Rose. — Isto já faz hora e meia.

—        A que hora me disse que tínhamos que sair para o aeroporto? Scarpetta olha pela janela para as palmeiras que se agitam ao vento e pensa outra vez em despedi-lo. — Vamos ter tempestade, uma muito forte. Tem toda a pinta. Bem, não penso em ficar sentada a esperá-lo. Deveria sair agora mesmo.

—        Seu voo não sai antes das seis e meia, lembra Rose, e entrega a Scarpetta vários recados telefônicos.

—        Não sei por que me irrito. Por que deveria me irritar em falar com ele? Dá uma breve olhada nos recados.

 

Rose a olha de um modo em que só ela pode olhá-la. Está de pé na porta, em silêncio, pensativa, com o cabelo cinzento amarrado em um coque francês alto e com um vestido de linho pérola fora de moda, porém elegante e bem passado. Ao cabo de dez anos, seus sapatos cinzentos continuam parecendo novos.

 

—        Primeiro quer falar com ele, e no minuto seguinte já não quer. O que está acontecendo? Aponta Rose.

—        Acho que devo ir.

—        Não perguntei o que você quer, e sim o que está acontecendo.

—        Não sei que vou fazer com ele. Não deixo de pensar em despedi-lo, porém prefiro isso a falar com ele.

—        Acho que você esqueceu, mas Marino é um dos seus investigadores, de maneira que não vai escapar dele demitindo-o da Academia para terminar trabalhando a jornada completa no Instituto de Medicina Legal. Poderia aceitar o posto de chefa, lembra Rose. — Se você aceitasse, obrigariam o doutor Bronson a se aposentar, deveria pensar seriamente nisso.

 

Rose sabe o que faz. Pode parecer muito sincera quando sugere algo que sabe que no fundo Scarpetta não deseja fazer e o resultado é previsível.

 

—        Não, obrigado, responde Scarpetta. — Já conheço essa história... Quem é a senhora Simister, a que Igreja pertence? Pergunta, desconcertada por causa de um dos recados telefônicos.

—        Não sei quem é, porém falava como se a conhecesse.

—        Não a conheço nem pouco nem muito.

—        Ligou há uns minutos e me disse que queria falar com você acerca de uma família desaparecida na zona de West Lake Park. Não deixou seu número, disse que voltaria a ligar.

—        Família desaparecida? Aqui, em Hollywood?

—        Isto é o que disse. Seu voo sai de Miami, por desgraça. É o pior aeroporto do mundo. Eu diria que não é necessário sair até as... Enfim, já sabe como está o trânsito. Acho que deveria sair lá pelas quatro, entretanto não irá a nenhuma parte até que eu confirme o voo.

—        Está certa de que vou pela primeira classe e de que não anularam a reserva?

—        Tenho a reserva impressa, porém vai ter que pagar mais porque se trata de uma reserva feita na última hora.

—        É incrível. Anulam a reserva e agora a que tenho é de última hora porque tive que fazer uma reserva nova.

—        Está tudo pronto.

—        Não se irrite, porém você me disse isso mesmo o mês passado, Rose. E no fim eu não figurava no computador e terminei indo na classe turística. A viajem inteira até Los Angeles. E olhe o que aconteceu ontem.

—        A primeira coisa que fiz esta manhã foi confirmar a reserva. Farei de novo.

—        Você acredita que tudo isto é por causa das reconstituições de crimes de Marino? Talvez seja esse o seu problema.

—        Acho que tem ele a impressão de que depois daquilo você o rechaça, que não acredita dele nem o respeita.

—        Como vou confiar em seu critério?

—        Eu continuo sem estar certa de que foi exatamente o que Marino fez, diz Rose. — Aquela reconstituição em particular eu datilografei a máquina exatamente como faço com todas as suas reconstituições. Como já disse outro dia, no rascunho não aparecia nenhuma agulha hipodérmica dentro do bolso daquele morto grande, velho e gordo.

—        Ele preparou a cena. E a supervisionou.

—        Ele jura que outra pessoa colocou a agulha no bolso. Provavelmente foi ela. Por dinheiro, que, graças a Deus, não obteve. Não reprovo o Marino por se sentir assim. As reconstituições de crimes foram sua ideia, e agora o doutor Amos está tendo toda a atenção dos alunos enquanto que a Marino tratam como...

—        Não é amável com os alunos. Desde o primeiro dia.

—        Bem, pois agora é pior. Eles não o conhecem e o consideram um dinossauro de mal carácter, uma excêntrica velha glória. E eu sei bem o que é ser tratado como um velho excêntrico ou, pior ainda, se sentir um.

—        Você é qualquer coisa menos uma velha glória excêntrica.

—        Pelo menos está de acordo em que sou velha, comenta Rose ao mesmo tempo em que retorna a sua mesa adicionando: — vou tentar localizá-lo outra vez.

 

No quarto 112 do motel Última Parada, Joe Amos está sentado a uma mesa barata situada ao lado de uma cama barata, procurando no computador a reserva de Scarpetta para obter o número de voo e outras informações. Liga para a companhia aérea.

 

—        Preciso mudar uma reserva, solicita.

 

Em seguida recita os dados da reserva e muda o assento para a classe mais econômica, tão perto do fundo do avião o quanto seja possível, preferivelmente um assento no meio, porque a sua chefa não gosta de janela nem corredor. Justo o que fez da última vez e que se saiu tão bem, quando ela se dirigia a Los Angeles. Poderia voltar a cancelar a passagem, porém isto é mais divertido.

 

—        Sim, senhor.

—        Pode expedir uma passagem eletrônica?

—        Não, senhor, tratando-se de uma mudança tão próxima à hora de embarque. Terá de se apresentar no balcão de pagamento.

 

Joe desliga, entusiasmado. Já está imaginando a toda poderosa Scarpetta enganchada entre dois desconhecidos, podendo ser dois indivíduos enormes e mal encarados, durante três horas. Sorri e conecta uma gravadora digital em seu auricular telefônico de sistema híbrido. O aparelho de ar acondicionado instalado na janela faz ruído, porém não é eficaz; está começando a ter uma incômoda sensação de calor e a detectar o leve cheiro a ranço de carne putrefata vindo de uma recente reconstituição de um crime em que haviam espetos de costela de porco, fígado de vaca e pele de frango enrolados em um pano e escondidos debaixo do chão de um armário.

 

Programou esse exercício justo depois de um almoço especial, cuja fatura mandou debitar à Academia, consistente em costelas à barbacoa com arroz. Em consequência disso, vários alunos tiveram náuseas quando se descobriu o asqueroso vulto lotado de fluidos putrefatos e invadido de vermes. Em sua pressa por recuperar aqueles restos humanos simulados e limpar o lugar, a Equipe A não prestou atenção em um pedaço de unha que também se encontrava no fundo do armário, perdido naquele líquido hediondo e pútrido, e que era a única prova capaz de revelar a identidade do assassino.

 

Joe acende um cigarro recordando com satisfação o êxito daquela reconstituição, um êxito que ainda foi maior devido ao escândalo de Marino, a sua insistência de que Joe, uma vez mais, havia roubado a ideia. Esse polícia pateta ainda não descobriu que o sistema de controle de comunicações escolhido por Lucy, que se conecta com o PABX da Academia, permite, uma vez informada a apropriada senha de segurança, controlar a qualquer um.

 

Lucy foi descuidada. A intrépida superagente Lucy deixou seu Treo (um instrumento de comunicações da mais alta tecnologia que cabe na palma da mão e que é por vez assistente pessoal digital, telefone celular, correio eletrônico, câmara fotográfica e tudo o mais) dentro de um de seus helicópteros. Isto aconteceu há quase um ano. Ele apenas começava quando teve o mais assombroso golpe de sorte: estava no hangar com uma de suas alunas, uma especialmente bonita, mostrando-lhe os helicópteros de Lucy, quando encontrou por acaso um Treo no Bell 407.

 

O Treo de Lucy.

 

Ela estava conectada como usuário, assim ele não necessitou utilizar a contrassenha para acessar a tudo o que havia dentro. Ficou com o Treo o tempo suficiente para descarregar todos os arquivos antes de devolvê-lo ao helicóptero e deixá-lo no chão, parcialmente debaixo de um assento, onde Lucy o encontrou naquele mesmo dia sem saber do ocorrido. E continua sem ter nem ideia.

 

Joe tem contrassenhas, dezenas de contrassenhas, incluída a do administrador de sistema de Lucy, que permite a ela, e agora a ele, acessar e introduzir modificações no computador e nos sistemas de comunicações da sede regional do sul da Flórida, da sede central de Knoxville, das delegações de Nova Iorque e Los Angeles, assim como acessar Benton Wesley e seu ultrassecreto estudo de investigação PREDADOR e a tudo o que Scarpetta e ele confiam um ao outro. Joe pode redirecionar arquivos e correio eletrônico, saber dos números telefônicos ocultos de tudo o que alguma vez tenham tido algo a ver com a Academia, provocar desastres. Acaba o seu contrato dentro de um mês e, quando passar a se dedicar a outra coisa, e tem pensado em fazê-lo, quem sabe terá conseguido que a Academia e todos os seus inquilinos se danem e, sobretudo, que esta besta imbecil do Marino e a autoritária Scarpetta, se odeiem.

 

É fácil entrar na linha da mesa do imbecil e ativar a escuta. Marino dita tudo, inclusive as reconstituições de crimes, e Rose as digita corrigindo, porque ele tem uma gramática e uma ortografia que dá pena, lê em raras ocasiões e é praticamente analfabeto. Joe experimenta uma onda de euforia enquanto joga um pouco de cinza do cigarro em uma lata de Coca-Cola e entra no sistema do PABX. Conecta-se na linha da mesa de Marino para ver se ele está preparando alguma coisa.

 

Quando Scarpetta concordou em ser a patologista do projeto PREDADOR o fez sem o menor entusiasmo. Advertiu a Benton, tentou convencê-lo para que abandonasse o projeto, recordou uma e outra vez que para os criminosos do dito estudo não importa que ele seja médico, psicólogo ou professor de Harvard.

 

—        Cortarão o seu pescoço ou arrebentarão com sua cabeça contra uma parede da mesma maneira que fazem com todo o mundo, disse. — Não tens nenhuma imunidade por ser do projeto.

—        Estou quase toda a vida tratando com pessoas assim, respondeu ele. — A isso é ao que me dedico Kay.

—        Entretanto nunca o fez em um local como este, um hospital psiquiátrico da Ivy League onde nunca trataram com assassinos convictos. Não só está próximo do abismo, como está instalando nele escadas e um trampolim, Benton.

 

Ouve Rose falar do outro lado da parede de seu escritório.

 

—        Onde demônios se enfiou? Está dizendo.

—        Bem, e quando vai me deixar que a leve para dar uma volta na moto? Responde Marino em voz alta.

—        Já falei, não penso subir naquele traste. Acontece alguma coisa com seu telefone...

—        Sempre tive a fantasia de vê-la vestida de couro negro.

—        Fui procurá-lo, porém você não estava em seu escritório. Ou pelo menos não abriu a porta...

—        Estive fora toda a manhã.

—        Entretanto sua linha está acesa.

—        Não está.

—        Estava há alguns minutos.

—        Já está me controlando outra vez? Parece que está apaixonada por mim, Rose.

 

Marino continua falando em seu tom escandaloso enquanto Scarpetta revisa um correio eletrônico que acaba de receber de Benton, outro anúncio de trabalho que vai ser publicado no The Boston Globe e na Internet. Vários cientistas adjuntos à Faculdade de Medicina de Harvard estudam atualmente a estrutura e o funcionamento do cérebro no Centro de Imagens Cerebrais do Hospital McLean de Belmont, Massachusetts.

 

—        Vamos, a doutora Scarpetta está esperando e já voltou a se atrasar. Ouve Rose reprender Marino em tom firme, porém carinhoso. — Tem de parar de desaparecer de repente.

 

ADULTOS SÃOS PARA ESTUDO IRM.

OS CANDIDATOS DEVEM REUNIR OS SEGUINTES REQUISITOS:

 

•          SEXO MASCULINO ENTRE 17 E 45 ANOS

•          PODER COMPARECER AO HOSPITAL MCLEAN EM NO MÍNIMO CINCO VISITAS

•          NÃO TER SOFRIDO TRAUMATISMOS NA CABEÇA NEM TER CONSUMIDO DROGAS

•          NUNCA TER SIDO DIAGNOSTICADO ESQUIZOFRENIA OU TRANSTORNO BIPOLAR

 

Scarpetta lê rapidamente o resto do anúncio até chegar à melhor parte, um aditivo de Benton:

 

«Ficaria espantada ao descobrir quantas pessoas se acham normais. Quem dera que parasse de nevar de uma vez. Te amo».

 

A enorme presença de Marino enche o vão da porta.

 

—        Que foi? Pergunta.

—        Feche a porta, por favor, diz Scarpetta desligando o telefone.

 

Marino entra, fecha a porta e senta-se em uma cadeira, não diretamente em frente a ela, mas em ângulo, para não ter que olhá-la diretamente quando ela sentar atrás de sua grande mesa na sua grande cadeira de couro. Scarpetta já conhece esses truques, conhece todas as suas toscas manipulações. Marino não gosta de tratar com ela desde o outro lado de sua grande mesa; preferiria que estivessem sentados sem que houvesse nada entre eles, como iguais. Scarpetta entende de psicologia de escritório, entende muito mais do que ele.

 

—        Me dê só um minuto, fala.

 

BONG-BONG-BONG-BONG-BONG-BONG. Os rápidos sinais dos impulsos de radiofrequência fazem com que um campo magnético excite os prótons. No laboratório de IRM está se efetuando uma varrida na estrutura de outro cérebro provavelmente normal.

 

—        Há muito mau tempo por ai? Está perguntando Scarpetta no telefone.

 

A doutora Lane aperta o botão do intercomunicador.

 

—        Está bem? Pergunta ao atual objeto do estudo de PREDADOR, um sujeito que afirma ser normal, porém provavelmente não é. Não tem nem ideia de que se procura comparar seu cérebro com o de um assassino.

—        Não sei, responde desconcertado.

—        Não faz mau tempo, diz Benton a Scarpetta por telefone, — Se não você volta a se atrasar. Entretanto parece que até amanhã à tarde vai piorar...

 

BUAU... BUAU... BUAU... BUAU...

 

—        Não ouço nada! Exclama exasperado.

 

A cobertura é péssima. Às vezes o celular sequer funciona aqui dentro, e ele está ficando nervoso, frustrado, cansado. A exploração não vai como deveria. Hoje nada foi como deveria. A doutora Lane está desanimada. Josh, sentado diante de seu terminal, está com sonolento.

 

—        Não tenho mais esperanças, fala a Benton a doutora Lane com uma expressão de resignação no rosto. — Nem sequer com os fones nos ouvidos.

 

Duas vezes hoje, sujeitos normais se negaram a serem escaneados alegando claustrofobia, um detalhe que não mencionaram quando foram entrevistados para o estudo. E agora este outro se queixa do ruído, diz que ouve como se alguém estivesse tocando uma guitarra elétrica no inferno. Pelo menos é criativo.

 

—        Ligarei antes de partir, está dizendo Scarpetta no telefone. — O anúncio ficou muito bom, como os demais.

—        Obrigado pelo entusiasmo. Necessitamos que muitas pessoas respondam, porque as baixas são cada vez mais numerosas. As fobias flutuam no ar. E, como se fosse pouco, aproximadamente um de cada três sujeitos normais não é normal.

—        Já não estou certa do seja normal. Benton tapa o outro ouvido e caminha pela sala tentando captar melhor o sinal.

—        Acho que apareceu um caso importante, Kay. Vamos ter um monte de trabalho.

—        Que tal aí dentro? Pergunta a doutora Lane pelo intercomunicador.

—        Não muito bem, volta a se ouvir a voz do sujeito.

—        Sempre acontece o mesmo quando estamos a ponto de nos encontrar, está dizendo Scarpetta segurando o que parece um martelo e que bate com insistência em uma tábua de madeira. — Ajudarei o quanto puder.

—        Na realidade começo a alucinar, diz a voz do sujeito normal.

—        Assim não vai. Benton olha através do plexiglás ao sujeito, localizado no extremo oposto do imã. O sujeito balança a cabeça, presa com fita adesiva.

—        Susan, diz Benton à doutora Lane.

—        Já vi, responde. — Vou ter que realocá-lo.

—        Boa sorte. Eu creio que terminamos, diz Benton.

—        Destruiu o ponto de referência, diz Josh levantando o olhar.

—        Está bem, diz a doutora Lane ao sujeito. — Vamos terminar. Em seguida o tiro daí.

—        Sinto, porém não consigo suportar, diz a voz tensa do sujeito.

—        Desculpe. Outro que não serve, diz Benton a Scarpetta por telefone enquanto observa como a doutora Lane entra na sala do imã para liberá-lo. — Acabo de passar duas horas testando este indivíduo para nada. Josh, ordena. — Ligue para pedir um táxi.

 

Marino faz barulho com o couro negro de sua jaqueta Harley enquanto se acomoda. Esforça-se para demonstrar que está relaxado, esparramando-se na cadeira com as pernas estiradas.

 

—        Que anúncio é esse? Pergunta quando Scarpetta desliga o telefone.

—        Para outro estudo de investigação em que anda metido, isso é tudo.

—        Ah. Que tipo de estudo? Pergunta Marino como se suspeitasse de algo.

—        De neuropsicologia. Como distintas pessoas processam tipos de informação distintos, esse tipo de coisas.

—        Ah. Esta resposta é muito boa. Provavelmente é a mesma que fala sempre que liga um jornalista, uma resposta inócua. Porque queria me ver?

—        Recebeu minhas mensagens? Desde domingo à noite deixei quatro.

—        Sim, recebi.

—        Teria sido um mero detalhe se respondesse.

—        Não falou que era um nove-um-um.

 

Esse era o código que utilizavam nos anos em que se enviavam mensagens, quando não se usavam tanto os telefones celulares e, mais tarde, porque não estavam seguros. Agora Lucy tem distorsionadores de voz e Deus sabe o que mais para proteger a intimidade, assim já se pode deixar uma mensagem de voz explícita.

 

—        Quando é uma mensagem telefônica não digo nove-um-um, replica Scarpetta. — Como funciona isso? Tenho que dizer nove-um-um depois do sinal?

—        Não disse que se tratasse de uma emergência. Que queria?

—        Me deixou esperando. Íamos repassar o caso Swift, não se lembra? E, além disso, preparou uma cena, porém isso ela prefere pular.

—        Estive ocupado, viajando.

—        Importaria em me dizer o que anda fazendo e onde?

—        Estive testando a minha nova moto.

—        Dois dias inteiros? Não parou para colocar gasolina, nem para ir ao banheiro? Não teve nem um momento para ligar pelo telefone? Scarpetta se reclina contra a grande cadeira, atrás de sua mesa, mas se sente pequena olhando-o.

—        Por que tenho que dizer a você o que faço?

—        Porque sou a diretora de Medicina e Ciência Forense, embora só seja por isso.

—        E eu sou o chefe de Investigação, que de fato está debaixo de Formação e Operações Especiais. De maneira que na realidade minha supervisora é Lucy, não você.

—        Lucy não é sua supervisora.

—        Suponho que será melhor que fale com ela a respeito.

—        Investigação faz parte de Medicina e Ciência Forense. Você não é um agente de Operações Especiais, Marino. Seu salário é pago por meu departamento. Está a ponto de pular no pescoço dele e sabe que não deve.

 

Marino a olha com seu rosto grande e rude, tamborilando com seus dedos sobre o braço da cadeira. Cruza as pernas e começa a mover um pé enorme embutido em uma bota Harley.

 

—        Seu trabalho consiste em me ajudar com os casos, diz ela. — É a pessoa de mais dependo.

—        Melhor será que discuta isso com Lucy.

 

Segue tamborilando e move o pé com lentidão, com seus olhos duros como pedras fixos além dela.

 

—        Supõe que eu tenho que lhe contar tudo e você não me conta uma merda, se queixa. — Faz o que lhe vem na telha e nunca pensa que possa me dever uma explicação. Estou aqui sentado, escutando-a como se fosse um imbecil incapaz de nada entender. Não me pergunta nem me conta nada, a menos que lhe convenha.

—        Eu não trabalho para você, Marino. Não pode evitar dizê-lo. — Mais acho que acontece justo ao contrário.

—        Ah, sim?

 

Marino se aproxima um pouco da enorme mesa com o rosto avermelhado.

 

—        Pergunte a Lucy, diz. — Ela é a dona deste maldito lugar. Ela paga o salário de todo o mundo. Pergunte a ela.

—        É evidente que não estava durante a maior parte de nossa conversa sobre o caso Swift, diz Scarpetta mudando de assunto, tentando dar fim ao que está a ponto de se converter em uma batalha.

—        Para que deveria estar? Sou eu quem tem a maldita informação.

—        Tínhamos a esperança de que a dividisse conosco. Estamos juntos nisto.

—        Deixa de história. Todo o mundo está metido em tudo. Já não tenho nada meu. Abriram a janela para meus casos antigos e minhas reconstituições de crimes. Você se limita a contar o que quer e não se importa com o que eu sinta.

—        Isto não é verdade. Quem dera que se acalmasse um pouco. Não quero que tenha um ataque.

—        Está sabendo da reconstituição de ontem? De onde acredita que saiu? Este tipo está entrando em nossos arquivos.

—        Isto é impossível. As cópias impressas estão guardadas debaixo de chave e as eletrônicas são completamente inaccessíveis. E quanto à reconstituição de ontem, estou de acordo em que se parece muito com a...

—        Se parece é o cacete. É idêntica!

—        Marino, foi publicado na imprensa. Circula na Internet. Eu verifiquei.

 

O enorme rosto congestionado de Marino a olha fixamente, um rosto tão pouco amistoso que não mais o reconhece.

 

—        Podemos falar um momento de Johnny Swift, por favor? Pergunta Scarpetta.

—        Pergunte o que quiser, responde Marino, taciturno.

—        Me confunde a possibilidade de que o celular tenha sido roubado. Foi um roubo ou não?

—        Não se deu por falta de nada de valor, salvo o que não pudemos encontrar da merda do cartão de crédito.

—        Que merda de cartão de crédito?

—        Na semana posterior a sua morte, alguém sacou um total de dois mil e quinhentos dólares em espécie, em notas de quinhentos paus, de cinco caixas distintos, na área de Hollywood.

—        Descobriu de quais? Marino encolhe os ombros e diz:

—        Sim. Dos caixas situados em estacionamentos, em dias e horas diferentes, tudo diferente salvo a quantidade. Sempre quinhentos paus. Quando a companhia do cartão de crédito tentou informar a Johnny Swift, que então já estava morto, acerca de um comportamento que não coincidia com a pauta habitual e que poderia indicar que seu cartão estava sendo utilizado por outra pessoa, as retiradas cessaram.

—        E as câmeras? Existe alguma possibilidade de que essa pessoa apareça em um vídeo?

—        Escolheu caixas sem câmera. O tipo sabia o que fazia, provavelmente não era a primeira vez.

—        Laurel tinha a senha?

—        Johnny não podia dirigir devido à intervenção cirúrgica. Assim Laurel teve que encarregar-se de tudo, inclusive sacar dinheiro no caixa.

—        Alguém mais tem a senha?

—        Não, que soubéssemos.

—        Agora, a coisa não pinta bem para ele, comenta Scarpetta.

—        Porém eu não me creio que matasse seu irmão pela senha do caixa automático.

—        Têm pessoas que matam por muito menos.

—        A mim me parece que se trate de outra pessoa, talvez alguém com quem Johnny Swift teve algum encontro. Talvez essa pessoa tivesse acabado de matá-lo quando de repente ouviu chegar o carro de Laurel. Assim se escondeu o que explica por que a escopeta estava no chão. Depois, quando Laurel saiu correndo da casa, apanhou a arma e fugiu.

—        Por que estava a escopeta no chão, em primeiro lugar?

—        Devia estar preparando o lugar para que parecesse um suicídio quando o interromperam.

—        Está me dizendo que não tem nenhuma dúvida de que foi um homicídio?

—        Está me dizendo que não acredita que foi?

—        Não faço mais do que perguntar.

 

Os olhos de Marino passeiam pelo escritório, pousam na superfície da mesa de Scarpetta, percorrem os montes de papéis e memorandos de casos. Em seguida olha para ela com uma expressão dura que intimidaria a Scarpetta se esta não tivesse visto tantas vezes nesses olhos, insegurança e dor. Marino parece diferente e distante só porque enfeita a cabeça calva e tem um pendente de diamante. Exercita-se no ginásio de maneira obsessiva e está mais musculoso do que nunca.

 

—        Agradeceria que revisse minhas reconstituições de crimes, diz Marino. — Neste disco gravei todas as que me lembrei. Gostaria que as estudasse detidamente, já que vai estar sentada em um avião sem nada melhor para fazer.

—        Está certo. Não tenho algo melhor a fazer. Sua intenção é conseguir que melhore o ânimo. Entretanto não funcionou.

—        Rose gravou-as todas, desde a primeira do ano passado, no disco que está dentro da pasta. Em um envelope selado. Indica uns memorandos que estão em cima da mesa. — Quem sabe possa abri-lo em seu portátil e dar uma olhada. A bala com as estrias em quadrícula produzidas por tecido também está ali. Essa merda. Juro que fui eu o primeiro que a encontrou.

—        Faz uma busca na Internet sobre tiroteios e lhe garanto que encontrará casos e provas com armas de fogo em que aparece uma bala disparada através de um tecido, diz Scarpetta. — Acho que na realidade já não existam muitas coisas novas nem particulares.

—        Esse cara não é mais do que um rato de laboratório que até a um ano morava dentro de um microscópio. Não pode conhecer as coisas sobre as quais escreve. É impossível. É pelo que aconteceu na Granja de Corpos. Pelo menos poderia ter sido sincera nisso.

—        Tem razão, responde Scarpetta. — Deveria ter lhe contado e depois daquilo deixei de receber suas reconstituições de crimes. Como todos nós. Deveria ter sentado e explicar, porém você estava tão furioso e tão combativo que ninguém queria conversar com você.

—        Se lhe fizessem a cama como fizeram para mim também estaria furiosa e combativa.

—        Joe não estava na Granja de Corpos nem em Knoxville quando aconteceu aquilo. — Lembra Scarpetta. — Assim que, por favor, me explique como conseguiram colocar uma agulha hipodérmica no bolso do casaco de um morto.

—        Aquele exercício sobre o terreno tinha por finalidade colocar os alunos ante um cadáver real que está apodrecendo na Granja de Corpos e ver se eram capazes de dominar as náuseas e apanhar várias provas. Uma agulha suja não era uma delas. Isto ele preparou para me pegar.

—        Nem todo o mundo está empenhado em pegá-lo.

—        Se ele não queria puxar meu tapete, porque a garota não nos denunciou? Porque era tudo mentira, por isso. A maldita agulha não estava infectada, sabia? Nunca foi utilizada. Um pequeno descuido desse safado. Scarpetta se levanta de sua mesa.

—        O problema principal é o que vou fazer com você, diz ao mesmo tempo em que fecha com chave a sua maleta.

—        Eu não sou o único que guarda segredos, ele comenta, observando-a.

—        Você tem um monte de segredos. Nunca sei onde está nem que faz.

 

Apanha o casaco na parte posterior da porta. Marino a olha tranquilamente com seus olhos duros como pedras. Deixa de tamborilar na cadeira. Depois se levanta fazendo barulho com o couro.

 

—        Benton deve de sentir como um autêntico peixe gordo trabalhando com todas essas pessoas de Harvard, comenta, e não é a primeira vez que o diz. — Todos esses cientistas com seus segredos. Scarpetta para e o olha com a mão na maçaneta da porta. Também está paranoica. — Sim. Deve ser emocionante o que faz ali. Entretanto, se quiser minha opinião, diria que não percas o tempo com isso. Não é possível que se refira a PREDADOR. — Para não mencionar que é jogar dinheiro fora. Um dinheiro que sem dúvida alguma poderia ser gasto muito melhor. Eu não suportaria a ideia de usar tanto dinheiro e atenção com criminosos.

 

Ninguém pode estar ao corrente do estudo PREDADOR, salvo a equipe que está realizando-o, o diretor do hospital, o Conselho Interno de Revisão e alguns funcionários de prisões importantes. Nem sequer os sujeitos em estudo sabem como se chama nem para que serve. Marino não pode saber dele a não ser que de alguma maneira tenha acessado a sua correspondência eletrônica ou as cópias impressas que ela guarda chaveada nos arquivos. Pela primeira vez pensa que, se alguém está violando a segurança, pode ser que seja ele.

 

—        Do que está falando? Pergunta em voz baixa.

—        Quem sabe você deveria ter um pouco mais de cuidado quando enviar arquivos, certificando-se de que não levem nenhum documento anexo, replica Marino.

—        Ao enviar arquivos?

—        As notas que tomou depois de sua primeira reunião com o querido Dave sobre esse caso do bebê que sacudiram e que ele quer que todo o mundo pense que foi um acidente.

—        Não enviei nenhuma nota para você.

—        Enviou sim. Na semana passada, só que não abri a mensagem até passar o domingo. Eram umas notas anexadas de forma acidental a um correio que Benton lhe enviou. Um correio, que eu tenho certeza, não teria que ter visto.

—        Não fui eu, ela insiste cada vez mais alarmada. — Eu não lhe enviei nada.

—        Quem sabe o fez sem notar. É curioso como se pega as pessoas em uma mentira, comenta Marino ao mesmo tempo em que soam uns leves golpezinhos na porta.

—        Por isso não foi na minha casa o domingo à noite? Por isso não foi à reunião de ontem pela manhã com Dave?

—        Desculpem, diz Rose entrando na sala. — Acho que um de vocês deveria se ocupar de uma coisa.

—        Poderia ter dito algo, ter dado uma oportunidade para me defender, diz Scarpetta. — Pode ser que eu não comente tudo, porém não minto.

—        Não falar por omissão é mentir de qualquer maneira.

—        Desculpem, interrompe de novo Rose.

—        PREDADOR, fala Marino a Scarpetta.

—        É a senhora Simister, interrompe Rose subindo o tom de voz. — A senhora da igreja que ligou há pouco. Parece urgente.

 

Marino não faz esforço algum para se aproximar do telefone, como se quisesse lembrar a Scarpetta de que não trabalha para ela e que ela deve atender pessoalmente a ligação.

 

—        Oh, pelo amor de Deus! Exclama Scarpetta retornando a sua mesa. — Transfira para cá.

 

Marino afunda as mãos nos bolsos dos jeans e se apoia na porta para ver como se arruma Scarpetta com a tal senhora Simister.

 

Nos velhos tempos gostava de passar horas sentado no escritório de Scarpetta, escutando-a enquanto tomava café e fumava. Não se importava em lhe pedir que explicasse o que não entendia, não importava de esperar quando interrompiam ela, coisa que sucedia a miúdo. Tampouco importava que ele chegasse tarde.

 

Agora as coisas são diferentes e por culpa dela. Não tem a menor intenção de esperá-la. Não quer que explique nada e prefere continuar na ignorância sem fazer qualquer pergunta médica, profissional ou pessoal, embora esteja se mordendo por dentro, quando antes perguntava tudo o que podia. Entretanto ela o traiu. O humilhou, com toda a intenção, e está fazendo-o de novo, também intencionadamente, diga o que disser. Sempre justifica o que faz, sempre faz coisas que doem em nome da lógica e da ciência, como se o considerasse um imbecil incapaz de ver além de seu nariz.

 

O mesmo que aconteceu a Dóris. Chegou um dia em casa chorando, ele não soube se de fúria ou de tristeza, porém estava muito alterada, quem sabe mais alterada do que a havia visto alguma vez.

 

—        O que aconteceu? Perguntou Marino, que estava bebendo uma cerveja, sentado em sua poltrona favorita e vendo as notícias. Dóris se sentou no sofá e começou a soluçar. — Merda. Que aconteceu, nena?

 

Ela cobriu o rosto com as mãos e chorou como se fosse morrer alguém, assim Marino se sentou a seu lado e a rodeou com o braço. Manteve-a abraçada vários minutos e, como ela não contava nada, exigiu que explicasse o que acontecera.

 

—        Me tocou, respondeu ela chorando. — Eu sabia que aquilo não estava certo e não parava de perguntar por que o fazia, porém ele me disse que relaxasse, que era médico, mas uma parte de mim sabia o que estava fazendo, porém tinha medo. Eu deveria saber o que fazer, deveria ter dito não, porém tinha medo. Ele em seguida explicou que o dentista, o especialista em raízes, como demônios se chamava a si mesmo, havia descoberto que eu tinha sofrido uma infeção por ter quebrado uma raiz e ele tinha que examinar as glândulas. Essa foi a palavra que empregou, segundo Dóris. Glândulas.

 

—        Não desligue, está dizendo Scarpetta à tal senhora Simister. — Tenho aqui comigo um investigador.

 

Dá um olhar a Marino para fazê-lo entender que está preocupada pelo que conversam e ele tenta tirar Dóris da cabeça. Entretanto pensa nela com frequência e, quanto mais velho vai ficando, mais se lembra do que houve entre ambos e do que sentiu quando a tocou aquele dentista e quando ela o abandonou pelo vendedor de carros, aquele condenado vendedor de carros de merda. Todo o mundo o abandona. Todo o mundo o trai. Todo o mundo quer o que ele possui. Todo o mundo o considera demasiado idiota para aceitar suas maquinações e suas manipulações. Nas últimas semanas a situação ultrapassou o suportável.

 

E agora isto. Scarpetta mente sobre esse estudo que estão levando a cabo. O exclui, o degrada. Toma tranquilamente o que precisa e quando ele concorda, o trata como se não fosse alguém.

 

—        Quem dera que tivesse mais informação. A voz da senhora Simister entra no espaço onde se encontram, uma voz mais velha que a de Matusalém. — Espero que não tenha acontecido alguma desgraça, porém temo que assim tenha acontecido. É horrível que à polícia não se importe o mínimo.

 

Marino não tem nem ideia de que está falando a senhora Simister nem de quem é nem por que ligou para a Academia Nacional de Medicina Legal, e também não consegue exorcizar Dóris. Quem dera que tivesse feito algo a mais do que ameaçar aquele maldito dentista, o especialista em raízes ou que fosse. Deveria ter quebrado o rosto daquele sem vergonha ou, quem sabe, ter lhe quebrado uns quantos dedos.

 

—        Explique ao investigador Marino a quando se refere com isso de que a polícia não se importa, diz Scarpetta.

—        A última vez que vi algum sinal de vida foi segunda passada à noite. Quando caí na real de que todo o mundo havia desaparecido sem deixar rastro, liguei imediatamente para o nove-um-um e enviaram um agente de polícia até a casa, e que chamou uma detetive. Está claro que não se importam.

—        Você se refere à polícia de Hollywood, aclara Scarpetta, olhando a Marino.

—        Sim. A uma tal detetive Wagner.

 

Marino revira os olhos. Isto é incrível. Com a má sorte que está tendo ultimamente tinha que aparecer isto. Pergunta da porta:

 

—        Se refere à Reba Wagner?

—        Como? Responde uma voz cansada.

 

Marino se aproxima um pouco mais do telefone que descansa sobre a mesa e repete a pergunta.

 

—        A única coisa que sei é que as iniciais que figuram em sua identidade são R. T., assim suponho que possa se chamar Reba.

 

Marino volta a virar os olhos e dá uns golpes na cabeça para indicar que a detetive R. T. Wagner é tão inteligente quanto um ladrilho.

 

—        Deu um olhar pelo jardim e pela casa e disse que não havia nada que a polícia pudesse fazer.

—        Você conhece essas pessoas? Pergunta Marino.

—        Eu moro em frente a eles, do outro lado do canal. E vou à mesma igreja. Estou certa de que aconteceu alguma desgraça.

—        Está bem, responde Scarpetta. — O que quer que nós façamos senhora Simister?

—        Que pelo menos venham ver a casa. A igreja é a locatária, e desde que os inquilinos desapareceram está fechada com chave. O aluguel vence dentro de três dias e o caseiro diz que vai evacuá-la porque já tem outro inquilino. Algumas das senhoras da igreja estão pensando em passar por ali na primeira hora da manhã e encaixotar tudo. Assim, o que acha que aconteceu segundo todos os indícios?

—        Está bem, diz outra vez Scarpetta. — Vou dizer o que podemos fazer. Vamos chamar a detetive Wagner. Nós não podemos entrar na casa sem a permissão da polícia. Não temos jurisdição a não ser que solicitem nossa ajuda.

—        Entendo. Muito obrigado. Mas, por favor, façam algo.

—        Muito bem, senhora Simister, voltaremos a ligar para a senhora. Precisamos do seu número de telefone.

—        Hum, diz Marino quando Scarpetta desliga. — Provavelmente será um caso mental.

—        Que tal se você chamasse a detetive Wagner, já que parece que a conhece? Propõe Scarpetta.

—        Antes era uma policial de moto. Burra como ela só, porém dirigia muito bem sua Road King. Custo a acreditar que tenha chegado a detetive.

 

Apanha seu Treo com medo de ouvir a voz de Reba e desejando poder tirar Dóris da cabeça. Liga para a delegacia de Hollywood e pede que digam à detetive Wagner que se ponha em contato com ele o mais rápido possível. Terminada a ligação percorre com a vista o escritório de Scarpetta olhando tudo exceto a ela, sem deixar de pensar em Dóris, no dentista e, que diabos, no vendedor de carros. Pensa que com quanta satisfação teria dado uma surra no dentista, até deixá-lo inconsciente, em lugar de se embebedar e irromper em sua sala exigindo que saísse e, no meio de um vestíbulo cheio de pacientes, lhe perguntar por que havia sido necessário examinar as tetas de sua mulher e lhe pedir que, por favor, explicasse o que tinham a ver as tetas com as raízes dos dentes.

 

—        Marino?

 

É um mistério porque aquele incidente continua retornando com tanta insistência depois de todos esses anos. Não entende por que reapareceu um monte de coisas que começaram a irritá-lo de novo. As últimas semanas foram um inferno.

 

—        Marino?

 

Volta à realidade e olha para Scarpetta ao mesmo tempo em que nota que está vibrando seu celular.

 

—        Sim, responde.

—        Sou a detetive Wagner.

—        Investigador Pete Marino, diz ele, como se não a conhecesse.

—        O que precisa, investigador Pete Marino? Ela também fala como se não o conhecesse.

—        Soube que uma família desapareceu na zona de West Lake. Pelo visto, desapareceu na segunda pela noite.

—        Como soube disso?

—        Comenta-se por lá que vocês não estão sendo de muita ajuda.

—        Se achássemos que aconteceu algo inusual estaríamos investigando a fundo. De qual fonte vem a sua informação?

—        De uma senhora da igreja da tal família. Tem os nomes das pessoas que presumivelmente desapareceram?

—        Deixe-me pensar. Tem uns nomes um tanto estranhos, Eva Christian e Crystal, ou Christine, Christian. Algo assim. Os nomes das crianças não me recordo.

—        Poderia ser Christian Christian? Scarpetta e Marino se olham.

—        Algo que se parece muito. Não tenho diante de mim as notas sobre o caso. Se você quiser investigar, será benvindo. Meu departamento não vai dedicar demasiados recursos a um caso enquanto não tivermos alguma prova de...

—        Isto eu já entendi, corta Marino de forma grosseira. — Parece que amanhã a congregação vai começar a embalar os pertences dessa casa. Se quisermos dar uma olhada, esta é a ocasião.

—        Não estão nem há uma semana desaparecidos e a igreja já quer fazer a mudança? Eu tenho a sensação de que saíram e não pensam em voltar. O que você acha?

—        Eu acho que deveríamos nos acertar, responde Marino.

 

O homem que está atrás do balcão é maior e mais distinto do que Lucy esperava. Achava que o tipo pareceria um velho surfista, curtido e coberto de tatuagens. Esse é o tipo de indivíduo que trabalharia em uma loja chamada Apetrechos de Praia.

 

Deixa no chão a caixa da câmera e começa a passar os dedos pelos cabides de camisetas, com estampados enormes de tubarões, flores, palmeiras e outros motivos tropicais. Observa com atenção os vários chapéus de palha, os cestos com bugigangas e os expositores de óculos de sol e cremes solares, sem interesse em comprar nada, porém pensando que oxalá pudesse fazê-lo. Disfarça para passar o tempo até que apareçam outras clientes. Pergunta-se como se sentiria sendo como as demais, preocupada com souvenires e em passar o dia ao sol, como seria se sentir bem com a própria imagem, seminua em traje de banho.

 

—        Tens creme que contenha óxido de zinco? Pergunta uma das clientes a Larry, que está sentado atrás do balcão.

 

Larry, de cabelo branco e espesso, usa a barba cuidadosamente recortada. Tem sessenta e dois anos, nasceu no Alaska, tem um Jeep, jamais foi dono de uma casa, não foi à Universidade e em 1957 o detiveram por embriaguez e alteração da ordem pública. Larry está há uns dois anos à frente da Apetrechos de Praia.

 

—        Desse eu não gosto, responde.

—        Pois eu sim. Não me destrói a pele como os demais cremes. Acho que sou alérgica ao aloés.

—        Estes cremes solares não contém aloés.

—        Tem óculos de Maui Jim?

—        Muito caros, céu. Os únicos óculos de sol que temos são os que você está vendo.

 

A coisa prossegue assim um tempo, as duas realizam pequenas compras e por fim vão embora. Então Lucy se aproxima do balcão.

 

—        Em que posso servi-la? Pergunta Larry reparando-se em como está vestida. — De onde saiu você, de um filme de Missão impossível?

—        Vim de moto.

—        Ah, pois você é uma das poucas pessoas com bom senso. Olhe pela janela. Todo mundo está de camiseta e shorts, sem capacete. Alguns inclusive estão de chinelos.

—        Você deve ser Larry. Ele faz cara de surpresa e diz:

—        Já veio aqui outras vezes? Não me recordo de você, e olha que gravo muito bem os rostos.

—        Queria falar de Florrie e Helen Quincy, diz ela. — Entretanto gostaria que fechasse a porta com chave.

 

A Harley-Davidson Screaming Eagle Deuce, com suas labaredas desenhadas sobre fundo azul e cromo, está estacionada em uma esquina, ao fundo do estacionamento do professorado. Marino aperta o passo enquanto se aproxima.

 

—        Maldito filho da puta. E começa a andar mais rápido. Grita várias obscenidades, suficientemente forte para que Link, o encarregado do estacionamento, que está aparando um canteiro de flores, deixe o que está fazendo e se levante rapidamente.

—        O que foi?

—        Filho da puta! Repete Marino.

 

O pneu dianteiro de sua nova moto está esvaziado até a reluzente fita cromada. Marino se agacha para olhá-lo bem, alterado e furioso, buscando um caco ou um prego, algum objeto pontiagudo que pudesse ter-se enfiado na roda esta manhã no caminho de ida ao trabalho. Move a moto para diante e para trás e descobre o que aconteceu; um corte de aproximadamente meio centímetro, aparentemente causado por algo afiado, possivelmente uma navalha. Talvez por um bisturi de aço inoxidável. Olha em seguida para um e outro lado, procurando Joe Amos.

 

—        Sim, eu já vi, diz Link, que se aproxima limpando a sujeira das mãos no macacão azul.

—        Muito amável de sua parte que me diga, diz Marino furioso, procurando na maleta o equipamento de conserto e pensa indignado em Joe Amos.

—        Deve ter passado por cima de um prego, aventura Link agachando-se para inspecionar o pneu mais de perto.

—        Viu por aqui alguém olhando para a minha moto? Onde diabos está meu equipamento para conserto?

—        Estive aqui o dia todo e não vi ninguém rondando próximo de sua moto. É uma moto estupenda. Ela tem uns mil quatrocentos centímetros cúbicos de cilindrada? Eu tinha uma Springer até que um maluco parou de repente diante de mim e saí voando por cima. Comecei a trabalhar nos canteiros lá pelas dez da manhã. E nessa hora o pneu já estava vazio.

 

Marino faz contas. Ele tinha chegado entre as nove e quinze e nove e meia.

 

—        Com um furo assim e o pneu tão vazio não teria chegado a este maldito estacionamento, e tenho a certeza de que não estava furado quando parei para comprar os donuts, recapitula. — Só pode ter sido depois que parei aqui. Marino olha a seu redor pensando em Joe Amos. Vai matá-lo. Se mexeu na moto, é um homem morto.

—        Não quero nem pensar, está dizendo Link. — Tem que ser maluco para vir aqui em plena manhã e fazer algo assim. Se foi isso o que aconteceu.

—        Maldito seja, onde estará? Você tem algo para selar o buraco? Que diabos. Continua rebuscando. — Ainda assim é mais provável que não dê certo com um buraco tão grande, maldito seja!

—        Vai ter que trocar o pneu. No hangar tem alguns de sobra.

—        E que me diz de Joe Amos? Ele esteve aqui? Viu seu asqueroso cu a um quilômetro à volta?

—        Não.

—        E a algum dos alunos? Os alunos o odeiam. Todos sem exceção.

—        Não, responde Link. — Teria visto se alguém viesse ao estacionamento e tivesse mexido em sua moto ou em um dos carros.

—        Ninguém? Marino continua insistindo e, então, começa a criar a suspeita de que Link tenha algo a ver com o assunto.

 

Provavelmente Marino não cai bem a ninguém da Academia. Meio mundo tem raiva de sua preciosa Harley. É verdade que a pessoas ficam olhando quando entra nos postos de gasolina e estacionamentos.

 

—        Vai ter que empurrá-la até a garagem ali debaixo, junto ao hangar, diz Link.

 

Marino está pensando nas portas da entrada dianteira tanto como na traseira da Academia. Ninguém pode entrar sem um código. Foi alguém de dentro que fez isto. Volta a pensar em Joe Amos e lembra-se de um detalhe importante: Joe já estava na reunião de pessoal. Estava ali sentado falando bobagem, quando ele chegou.

 

A casa de cor alaranjada e telhado branco foi construída na mesma década em que nasceu Scarpetta, nos anos cinquenta. Imagina como serão as pessoas que vivem nela e percebe sua falta ao caminhar dando a volta ao jardim.

 

Não retira da cabeça a pessoa que disse que se chamava Porco, sua críptica referência a Johnny Swift e ao que Marino pensou que era Christian Christian. Acredita que o que disse Porco de fato foi Kristin Christian. Johnny está morto. Kristin desapareceu. Com frequência ocorre-lhe pensar que no sul da Flórida existem lugares de sobra para desaparecer com cadáveres: numerosos pântanos, canais e extensos lagos. Nas zonas subtropicais a carne se decompõe com rapidez e os insetos fazem a festa; os animais roem os ossos e os espalham por ali como pedras e paus. Na água a carne não dura muito e o sal do mar branqueia o esqueleto e o dissolve totalmente.

 

O canal que passa por trás da casa tem a cor do sangue putrefato. Em suas águas pardas e estancadas flutuam folhas mortas como escombros de uma explosão, cocos verdes e marrons que bamboleiam semelhantes a cabeças cortadas. O sol surge e se esconde atrás de grossas nuvens de tempestade, o ar cálido está pesado e úmido, o vento é forte.

 

A detetive Wagner prefere que a chamem Reba. É atraente e sensual, com um estilo pretencioso, queimada pelo sol, com o cabelo desgrenhado e tingido de ruivo e os olhos muito azuis. Não tem cérebro de mosquito. Não é tão idiota como uma vaca e está muito longe de dar a impressão de ser uma cachorra sobre rodas, para citar Marino, que a chamou também de persegue galinhas, embora Scarpetta não tenha muito claro o que isso significa. O que está claro é que a Reba falta experiência, porém se esforça. Scarpetta não sabe se conta ou não sobre a ligação anônima acerca de Kristin Christian.

 

—        Estão morando aqui à uma temporada, porém não estão registradas, diz Reba acerca das duas irmãs que vivem nesta casa com duas crianças, na situação de refugiados. — São de origem sul-africana. As duas crianças também, certamente por isso as trouxeram para viver com elas. Se quiser minha opinião, os quatro voltaram para o lugar de onde vieram.

—        E por que razões iam desaparecer, talvez fugir, para a África? Pergunta Scarpetta olhando fixamente o estreito e escuro canal; sente a humidade oprimindo-a como uma mão quente e pegajosa.

—        Soube que queriam adotar as duas crianças. E não era muito provável que o conseguissem.

—        Por que não?

—        Parece que as crianças têm parentes na África, que querem recuperá-las. Só que elas não iam conseguir adotar até mudar para uma casa maior. E as irmãs são fanáticas religiosas, o que pode ter atrapalhado muito.

 

Scarpetta olha para as casas do outro lado do canal, olha para os jardins de um verde intenso e as pequenas piscinas azuis claras. Não está certa de qual casa é a da senhora Simister e se pergunta se Marino já terá falado com ela.

 

—        Que idade as crianças têm? Pergunta.

—        Sete e doze. Scarpetta dá um olhar para o seu caderno de notas e retrocede várias páginas.

—        Eva e Kristin Christian. Não está claro por que cuidam deles. Tem muito cuidado em falar dos desaparecidos no presente.

—        Não, não é Eva. É sem a, corrige Reba.

—        Ev ou Eve?

—        É Ev, como Evelyn, só que ela se chama só Ev. Sem mais. Só Ev.

 

Scarpetta escreve «Ev» em seu caderno negro pensando, que nomezinho! Em seguida contempla o canal, cujas águas tinham adquirido uma cor de chá forte ao serem tocadas pelo sol. Ev e Kristin Christian. Que nomes para umas mulheres religiosas que se esfumaçaram como fantasmas. De repente o sol se esconde outra vez atrás das nuvens e a água se torna escura.

 

—        Ev e Kristin Christian são seus verdadeiros nomes? Tem certeza de que não são sobrenomes ou apelidos? Tem certeza de que não mudaram o nome em algum momento, quem sabe para dar uma conotação religiosa? Pergunta Scarpetta contemplando as casas da outra orla do canal, que parecem desenhadas com giz.

 

Olha para uma figura de calça escura e camisa branca que entra no jardim dos fundos de alguém, possivelmente o da senhora Simister.

 

—        Que saibamos, são seus nomes autênticos, responde Reba olhando para o mesmo lugar que Scarpetta. — Estes malditos fiscais do cancro estão por toda a parte. Política. Empenham-se em impedir que a pessoas cultivem seus próprios frutos para que tenham de comprá-los.

—        Na realidade, não é bem assim. O cancro dos cítricos é uma praga terrível. Se não for controlado, ninguém voltará a cultivar cítricos no jardim.

—        É uma conspiração. Escutei o que dizem os comentaristas no rádio. Alguma vez escutou o programa da doutora Self? Deveria ouvir o que ela fala.

 

Scarpetta não escuta a doutora Self, se puder evitar. Observa que a figura do outro lado do canal se agacha no jardim e mexe no interior do que parece ser uma bolsa escura. Em seguida retira um objeto.

 

—        Ev Christian é reverenda, ou sacerdote, ou como se queira chamar, de uma Igreja minoritária um tanto excêntrica que se chama... Vou ter que procurar, é demasiado longo para recordar de memória, diz Reba passando as páginas de seu caderno. — As Verdadeiras Filhas do Selo de Deus.

—        Jamais escutei falar dela, comenta Scarpetta com ironia ao mesmo tempo em que toma nota. — E Kristin? O que faz?

 

O fiscal de cítricos se põe de pé e monta um instrumento. O levanta até uma árvore e joga para baixo um fruto que vai aterrissar sobre o jardim.

 

—        Kristin também trabalha no templo, de ajudante. Encarrega-se das leituras e das rezas durante o serviço religioso. Os pais das crianças morreram em um acidente de moto há aproximadamente um ano. Uma dessas Vespas.

—        Onde?

—        Na África.

—        E de onde vem essa informação? Pergunta Scarpetta.

—        De uma pessoa da congregação.

—        Tem um relatório desse acidente?

—        Como disse, teve lugar na África, responde a detetive Wagner. — Estamos tentando verificar. Scarpetta continua deliberando se deve falar da inquietante ligação do Porco.

—        Como se chamam as crianças?

—        David e Tony Fortuna. Tem graça, quando se pensa. Fortuna.

—        Não está conseguindo colaboração das autoridades da África? De que parte da África?

—        De Cidade do Cabo, na África do Sul.

—        E as irmãs são dali também?

—        Isto é o que me disseram. Ao falecer os pais, as irmãs tomaram as crianças a seu encargo. Seu templo se encontra há uns vinte minutos daqui, na Rua David, justo ao lado de uma dessas lojas de animais de companhia exóticos, lógico.

—        Consultou o Departamento de Medicina Legal da Cidade do Cabo?

—        Ainda não.

—        Posso ajudá-la nisso.

—        Seria estupendo. Tudo encaixa, não acha? Aranhas, escorpiões, rãs venenosas, essas crias de rata branca que se compram para dar de comer as serpentes, diz Reba. — Tem toda a pinta de existir por aqui uma seita de fanáticos.

—        Nunca permito que alguém fotografe um local meu a menos que se trate de algo que incumba à polícia. Em certa ocasião me roubaram. Isto aconteceu há algum tempo, explica Larry detrás do balcão.

 

Do outro lado da janela se vê o trânsito constante e, mais além, o mar. Começou a cair uma chuva fina e se avizinha uma tempestade que se dirige até o sul. Lucy pensa no que disse Marino há uns minutos acerca da casa e das pessoas desaparecidas, e sobre o furo do pneu, que foi do que mais se queixou. Pensa no que deve estar fazendo sua tia neste mesmo instante e na tempestade que vem até ela.

 

—        Claro que escutei muitos comentários sobre isso. Larry volta ao tema de Florrie e Helen Quincy após uma longa digressão sobre o muito que mudou a Flórida, o muito que está a pensar seriamente em se mudar de novo para o Alaska. — É como tudo. Com o tempo, os detalhes terminam azedando tudo. Mas me parece que não quero que você grave meu local em vídeo, volta a dizer.

—        É um caso policial, insiste Lucy. — Me pediram que investigasse de maneira particular.

—        E como eu vou saber que você não é uma repórter ou algo assim?          

—        Trabalhei para o FBI e para a ATE. Escutou falar da Academia Nacional Forense?

—        É esse gigantesco campo de treinamento que fica no parque Everglades?

—        Não fica exatamente no Everglades. Temos laboratórios privados, técnicos, e um acordo com a maioria dos departamentos de polícia da Flórida. Os ajudamos quando necessitam.

—        Isto soa a caro. Deixe-me adivinhar, a contribuintes como eu.

—        De forma indireta. Um serviço em troca de outro. Eles nos ajudam e nós os ajudamos. Em todo o tipo de coisas.

 

Lucy coloca a mão em um dos bolsos de trás da calça e retira uma carteira negra que entrega a Larry. Ele estuda suas credenciais: uma identidade falsa, uma placa de investigadora que não vale o papel onde está porque é também falsa.

 

—        Onde está a foto? Pergunta.

—        Não é uma permissão para dirigir.

 

Larry lê o nome fictício em voz alta e também que ela pertence a Operações Especiais.

 

—        Exato.

—        Se você diz... E devolve a carteira.

—        Conte o que soube, Lucy pede, colocando a câmera de vídeo em cima do balcão.

 

Dá um olhar para a porta da rua, fechada com chave. Uma dupla de jovens com exíguos trajes de banho tentam abri-la. Olham pelo vidro e Larry nega com a cabeça. «Não, não está aberto».

 

—        Está me fazendo perder negócios, fala para Lucy, porém não parece se importar muito. — Quando apareceu a oportunidade de ocupar este local, ouvi falar muito do desaparecimento das Quincy. O que me contaram é que ela sempre chegava às sete e meia da manhã para ligar os trenzinhos elétricos, acender as luzes das árvores, colocar música natalina e todas essas coisas. Parece que naquele dia não chegou a abrir a loja. O cartaz de fechado continuou na porta quando seu filho por fim começou a se preocupar e veio procurá-las, a ela e à filha.

 

Lucy procura em um bolso da calça e apanha uma caneta negra com uma gravadora oculta. Apanha também um pequeno caderno.

 

—        Importa-se que eu escreva algumas notas?

—        Não tome tudo o que eu disser como se fosse o Evangelho. Quando aconteceu aquilo, eu não estava aqui. Não estou fazendo mais do que contar a você o que contaram a mim.

 

—        Entendi que a senhora Quincy ligou para um restaurante, diz Lucy. — No jornal dizia algo a respeito.

—        O Floridian, esse velho restaurante que tem do outro lado da ponte levadiça. É um lugar muito ruim, se não o conhece.

—        Encomendou também algo para a filha, Helen?

—        Disso não me lembro.

—        A senhora Quincy ia apanhar ela mesma?

—        A não ser que estivesse seu filho por aqui. Ele é uma das razões por eu saber umas quantas coisas sobre o que aconteceu.

—        Gostaria de falar com ele.

—        Há um ano que eu não o vejo. No princípio, durante uma temporada, vinha aqui, olhava, conversávamos. Suponho que se pode dizer que esteve obcecado mais ou menos um ano pelo desaparecimento de sua família, e depois, e é minha opinião, já não pode suportar mais pensar nisso. Vive em uma casa muito bonita em Hollywood. Lucy passa um olhar pela loja. — Aqui não temos artigos de Natal, diz Larry, se for isso o que está se perguntando o seu visitante.

 

Lucy não pergunta nada sobre o filho da senhora Quincy. Já sabe pelo HIT que Fred Anderson Quincy tem vinte e seis anos. Conhece seu endere3ço e sabe que trabalha como autônomo em infografia e desenho de páginas web. Larry continua dizendo que, no dia em que desapareceram a senhora Quincy e Helen, Fred tentou muitas vezes falar com elas e finalmente foi até a loja e a encontrou fechada, porém que o Audi de sua mãe continuava estacionado atrás.

 

—        Temos certeza de que naquela manhã chegaram a abrir a loja? Pergunta Lucy. — Existe alguma possibilidade de que tivesse acontecido alguma coisa ao saltarem do carro?

—        Suponho que é possível qualquer coisa.

—        O caderninho de endereços da senhora Quincy e as chaves de seu carro estavam na loja? Tinha feito café, utilizou o telefone, fez algo que pudesse indicar que Helen e ela haviam estado ali? Por exemplo, as árvores estavam iluminadas e os trenzinhos funcionando? Ligada a música de Natal? As luzes da loja acesas?

—        Acho que não chegaram a encontrar o caderninho nem as chaves do carro. Escutei contar diferentes histórias sobre as coisas da loja. Uns dizem que estavam ligadas, outros dizem que não estavam.

 

A atenção de Lucy se concentra na parte traseira. Pensa no que contou Basil Jenrette a Benton. Não compreende como é possível que Basil violasse e assassinasse uma pessoa ali. Custa crer que pudesse limpar tudo e retirar o cadáver, colocá-lo em um carro e sair sem que ninguém o visse, em plena luz do dia e nessa área, muito movimentada inclusive em julho, fora de temporada. Além disso, a hipótese não explica o que aconteceu à filha, a não ser que Basil a sequestrasse e quem sabe a matasse em outro lugar, como fez com suas outras vítimas. Uma ideia espantosa. A garota tinha dezessete anos.

 

—        Que aconteceu com este local após o desaparecimento das duas? Pergunta Lucy. — Voltaram a abri-lo?

—        Não. De qualquer maneira, não havia muito mercado para artigos de Natal. Se quiser que lhe dê a minha opinião, era mais uma excentricidade dela do que outra coisa. O negócio não voltou a abrir e o filho levou toda a mercadoria um mês ou dois depois. Em setembro chegaram os de Apetrechos de Praia e contrataram a mim.

—        Gostaria de dar uma olhada na parte de trás, diz Lucy. — Depois o deixarei.

 

 

Porco apanha duas mais laranjas, em seguida coloca-as na cesta em forma de garra que tem no extremo do longo instrumento. Depois olha para o outro lado do canal e observa como Scarpetta e a detetive Wagner caminham ao redor da piscina.

 

A detetive gesticula muito. Scarpetta toma notas e olha tudo. Porco tem um prazer enorme em contemplar o espetáculo. Idiotas. Nenhuma das duas é tão inteligente como acredita ser. Ele os supera a todos. Sorri imaginando Marino chegando um pouco tarde, atrasado por um inesperado furo, situação que poderia remediar de maneira fácil e rápida vindo até aqui em um veículo da Academia. Entretanto ele não. Ele não pode suportar, tem que consertar tudo imediatamente. Porco se agacha no jardim, desmonta o aparelho desenroscando os segmentos de alumínio que o compõem e volta a guardá-lo na grande bolsa negra de nylon. Pesa muito e coloca-a no ombro como um lenhador carregando um machado, igual ao lenhador da Loja de Natal.

 

Cruza o jardim sem ter pressa, a caminho da casinha branca de estuque que tem ao lado. A vê andando pelo pórtico luminoso, enfocando com binóculos a casa de cor alaranjada que tem do outro lado do canal. Estão há vários dias vigiando a casa. Que divertido. Porco já entrou e saiu dela três vezes e ninguém se deu conta. Tem entrado e saído para lembrar-se do que aconteceu, para reviver, para passar ali dentro todo o tempo que quiser. Ninguém pode vê-lo; é capaz de desaparecer.

 

Entra no jardim da senhora Simister e começa a examinar uma de suas árvores. Ao cabo de um momento abre a porta corrediça, porém não sai do jardim. Não a viu no jardim nem uma só vez. O jardineiro vai e vem, porém ela jamais sai da casa nem fala com ele. Fica em casa em companhia sempre do mesmo indivíduo. Pode ser que seja um familiar ou um filho, quem sabe. A única coisa que ele faz é entrar com as bolsas na casa, nunca fica por muito tempo. Ninguém se preocupa com ela. Deveria estar agradecida a Porco. Muito rápido receberá atenção de sobra. Muitas pessoas ouvirão falar dela quando sair no programa da doutora Self.

 

—        Não toque em minhas árvores, exclama em voz alta a senhora Simister com um marcado acento. — Esta semana vocês já vieram três vezes, isto é absurdo.

—        Perdão, senhora. Já quase terminei, diz Porco com amabilidade ao mesmo tempo em que arranca uma folha e a examina.

—        Saia de minha propriedade ou chamo à polícia. Sua voz adquire um tom mais agudo.

 

Está assustada e irritada porque não quer perder suas apreciadas árvores, e as perderá, porém então já não terá importância. As árvores estão infectadas. São velhas, pelo menos vinte anos, e não existe solução para isso. Foi fácil. Por onde quer que passem os caminhões que recolhem as árvores infectadas de cancro, sempre caem folhas na estrada. Ele as apanha, põe em água e observa como sobem as bactérias em forma de pequenas borbulhas. Em seguida enche uma seringa, a que Deus lhe deu.

 

Porco abre o zíper de sua enorme bolsa e apanha uma lata de pintura vermelha em aerossol. Em seguida pinta uma faixa vermelha em redor do tronco da árvore. Uma marca de sangue no dintel da porta, como o anjo da morte, só que ninguém se salvará. Porco ouve uma oração em algum lugar escuro e recôndito de sua cabeça, como uma caixa de som oculta e fora de alcance.

 

Um falso testemunho será castigado.

Não penso dizer nada.

Os mentirosos são castigados.

Eu não disse nada. Nada.

O alcance de minha mão não tem fim.

Não disse nada. Nada!

 

—        Que está fazendo? Não toque em minhas árvores!

—        Com muito gosto lhe explicarei o que está acontecendo senhora, responde Porco educadamente, solidário.

 

A senhora Simister sacode a cabeça em um gesto negativo. E em seguida, irritada, fecha a porta corrediça de vidro e passa a chave.

 

Ultimamente tem feito um tempo insolitamente quente e chuvoso, e Scarpetta sente a grama esponjosa debaixo dos pés. Quando o sol aparece de novo por trás das nuvens escuras, irradia uma luz intensa e quente sobre sua cabeça e ombros enquanto ela perambula pelo jardim traseiro da casa.

 

Observa os hibiscos rosados e vermelhos, as palmeiras, umas árvores com uma faixa vermelha pintada ao redor do tronco e fica olhando o fiscal que, do outro lado do canal, nesse momento está fechando o zíper de sua bolsa. Pergunta-se se a anciã que acaba de aumentar a voz não seria a senhora Simister. Marino ainda não chegou na casa, supõe. Sempre se atrasa, nunca tem pressa para fazer o que lhe pede Scarpetta, se é que faz. Aproxima-se de um muro de concreto que desce verticalmente até o canal; é provável que não tenha jacarés, porém sem cerca de proteção uma criança ou um cachorro poderia cair facilmente e se afogar.

 

Ev e Kristin assumiram a custódia de duas crianças e não se se preocuparam em colocar uma cerca ao longo do jardim traseiro da casa. Scarpetta imagina o lugar de noite, deve ser fácil esquecer-se de onde termina o jardim e onde começa a água. O canal vem do oeste e afunila ao passar atrás da casa e depois alarga de novo. Ao longe se vêm veleiros amarrados atrás de casas muito melhores do que a casa em que moravam Ev, Kristin, David e Tony.

 

Segundo Reba, as duas irmãs e as crianças foram vistas pela última vez na segunda à noite, dez de fevereiro. Na manhã seguinte, Marino recebeu a ligação telefônica daquele homem que disse se chamar Porco. Então a família já havia desaparecido.

 

—        Foi publicado algo nos jornais sobre seu desaparecimento? Pergunta Scarpetta a Reba. Quem sabe o anônimo comunicante poderia ter descoberto o nome de Kristin pelo jornal.

—        Não, que eu saiba.

—        Você escreveu o relatório policial.

—        Não era um caso interessante para a imprensa. Temo que aqui desapareçam pessoas todos os dias, doutora Scarpetta. Bem vinda ao sul da Flórida.

—        Conte-me o que mais descobriu sobre a última vez que os viram.

 

Reba responde que Ev pregou em seu templo e que Kristin fez várias leituras da Bíblia. Ao ver que nenhuma das duas aparecia na igreja no dia seguinte para assistir a uma oração comunitária, um fiel ligou, porém não obteve resposta, assim o dito fiel, uma mulher, veio até a casa de carro. Tinha uma chave e entrou. Nada parecia fora do normal, fora que Ev, Kristin e os garotos haviam desaparecido e haviam deixado uma frigideira vazia sobre um fogão da cozinha aceso. O detalhe da cozinha é importante e Scarpetta prestará atenção quando entrar na casa, porém ainda não está preparada. Aproxima-se do lugar onde foi cometido um crime, vindo da periferia até o centro, deixando o pior para o final.

 

Lucy pergunta a Larry se o almoxarifado é diferente agora de como era quando ele se instalou, há aproximadamente dois anos e meio.

 

—        Não mudou nada, responde Larry.

 

Percorre com o olhar as grandes embalagens de cartolina e as estantes repletas de camisetas, cremes solares, toalhas de praia, óculos de sol, produtos de limpeza e demais à fraca luz de uma única lâmpada que pende do teto.

 

—        Não vale a pena se preocupar com o aspecto que tem tudo isto, comenta Larry. — O que é lhe interessa, exatamente?

 

Lucy vai até o banheiro, apertado e sem janelas, com uma pia e um vaso. As paredes são de ladrilho com uma ligeira capa de pintura verde pálida e o chão é de cerâmica marrom. Do teto pende outra lâmpada de luz fraca.

 

—        Não pintou nem trocou o piso? Pergunta Lucy.

—        Quando eu cheguei isto estava exatamente como agora. Não está pensando que algo aconteceu aqui, não é?

—        Gostaria de voltar com outra pessoa, diz Lucy.

 

Do outro lado do canal, a senhora Simister está vigilante.

 

Anda em seu corredor envidraçado e empurra a porta corrediça com o pé, para frente e para trás, tocando apenas o chão com os sapatos e fazendo um suave barulho de deslizamento. Está procurando à mulher ruiva de traje escuro que andava pelo jardim da casa alaranjada. Também procura o fiscal intruso que se atreveu a mexer outra vez em suas árvores, a pintá-las com tinta vermelha. Foi embora. Também a ruiva se foi.

 

No princípio, a senhora Simister pensou que a mulher ruiva era outra fanática religiosa, porque ultimamente tem havido muitas como ela rondando a casa. Entretanto depois de observá-la com os binóculos já não está tão certa. A ruiva tomava notas e estava com uma bolsa preta ao ombro. Seria uma bancária ou uma advogada, estava a ponto de decidir quando apareceu a outra mulher, esta bastante bronzeada, de cabelo ruivíssimo, calças caqui e uma arma em um coldre. Pode ser a mesma que esteve ali outro dia. Era de pele morena e muito ruiva. Entretanto a senhora Simister não está certa.

 

As duas mulheres estavam conversando e em seguida desapareceram da vista por um canto da casa, em direção à frente. Pode ser que voltem. A senhora Simister está atenta para ver se reaparece o fiscal, o mesmo que foi tão agradável da primeira vez, perguntando por suas árvores, quando as havia plantado e o que significavam para ela. E agora vem outra vez e as pinta! Esse homem conseguiu que pense na sua arma pela primeira vez em muitos anos. Quando seu filho a presenteou, ela disse que a única coisa para que serviria, seria para que ele a utilizasse para matá-la. Guarda-a debaixo da cama, fora das vistas.

 

No fiscal não teria disparado. Ainda que tivesse gostado de assustá-lo um pouco. Todos esses fiscais a quem o governo paga para que arranquem árvores que as pessoas tem tido a vida toda em sua casa. Ouve quando falam disso pelo rádio. É provável que suas árvores sejam as próximas. Adora suas árvores. O jardineiro cuida delas, apanha as frutas e as deixa no corredor. Jake plantou o jardim inteiro de árvores quando comprou a casa, logo depois que se casaram. A senhora Simister está absorta em seu passado quando de repente soa o telefone da mesa que existe junto à porta corrediça.

 

—        Alô, responde.

—        É a senhora Simister?

—        Quem é?

—        O investigador Pete Marino. Já falamos anteriormente.

—        Ah, sim? E quem é você?

—        Você ligou para a Academia Nacional de Medicina Legal.

—        Posso garantir que não. Você vende algo?

—        Não, senhora. Queria passar um momento para falar com a senhora, se for possível.

—        Não é possível, replica ela, e desliga.

 

Agarra-se ao frio braço metálico da cadeira com tanta força que suas juntas empalidecem debaixo da pele flácida e salpicada de manchas das velhas e inúteis mãos. Não param de ligar para ela pessoas que nem sequer conhece. Recebe inclusive ligações automáticas; não entende como existem pessoas capazes de ficar sentadas escutando uma gravação de algum agente que pede dinheiro.

 

De novo toca o telefone, porém não faz caso e empunha os binóculos para observar a casa alaranjada em que vivem as duas mulheres com esses dois pequenos encrenqueiros. Foca o canal e agora outra vez a casa. Imediatamente a piscina aparece com um intenso verde azulado, porém a ruiva de traje escuro e a bronzeada que está com a arma não são vistas em nenhuma parte. Que estarão procurando? Onde estarão as duas mulheres que vivem ali? E os encrenqueiros? Hoje em dia todas as crianças são encrenqueiras.

 

Soa a campainha da porta e a senhora Simister deixa de se mexer, com o coração aos pulos. Quanto mais velha fica, se sobressalta mais facilmente com os movimentos e os sons repentinos, teme a morte e o que esta implica, se é que implica em algo. Passam-se vários minutos; a campainha volta a soar e ela permanece imóvel, esperando. Toca uma vez mais e alguém golpeia vigorosamente a porta. Finalmente se levanta.

 

—        Um momento, já vou, murmura nervosa. Espero que não seja um vendedor. Entra na sala arrastando os pés descalços. Já não pode levantá-los como antes, apenas pode caminhar. — Um momento, estou indo, diz impaciente quando volta a soar a campainha.

 

Deve ser a UPS. Às vezes seu filho compra coisas pela Internet. Dá uma olhada pela viseira da porta. A pessoa que aguarda não veste uniforme azul nem marrom, nem traz correio nem embrulhos. É ele outra vez.

 

—        Que aconteceu agora? Pergunta irritada com o olho pegado à viseira.

—        Senhora Simister? Trago uns impressos para que leia.

 

No jardim dianteiro, Scarpetta está observando uns frondosos hibiscos que separam a casa da alameda que desemboca no canal.

 

Não existem ramos quebrados, nem grandes nem pequenos, nada que indique que alguém tenha entrado na propriedade abrindo caminho por entre eles. Mete a mão na bolsa de nylon negro que sempre leva ao lugar do crime e apanha um par de luvas de exploração de algodão branco, sem deixar de olhar o automóvel estacionado no remendado concreto do caminho de entrada, um mono-volume velho e cinzento parado de qualquer maneira, com um pneu parcialmente sobre a calçada. Calça os luvas pouco a pouco se perguntando por que Ev ou Kristin terão estacionado o carro dessa forma, supondo que estivesse ao volante uma das duas.

 

Observa pelas janelas do veículo os assentos de vinil cinza e o GPSdelicadamente colado no interior do para-brisa. Toma mais notas. Começa a ver uma linha de comportamento. O jardim traseiro e a piscina estão escrupulosamente cuidados; o pátio e o mobiliário do exterior, também; dentro do carro não viu lixo nem objetos velhos, fora um guarda-chuva preto no banco de trás. Em troca o carro está estacionado de maneira descuidada, sem esmero, como se o motorista tivesse muita pressa. Agacha-se para olhar mais próximo, a terra e os restos de vegetação incrustados no desenho do pneu. Observa a grossa capa de pó que deu a parte de baixo do carro um tom acinzentado de ossos velhos.

 

—        Pelo que está parecendo, saiu da estrada em algum lugar de terra, comenta Scarpetta. Levanta-se e continua estudando os sujos pneus, indo de um a outro.

 

Reba a segue em seu exame do carro, olhando, com expressão de curiosidade no rosto bronzeado e cheio de rugas.

 

—        A terra incrustada no desenho dos pneus me diz que o chão estava úmido ou molhado quando o carro saiu da estrada, diz Scarpetta. — O estacionamento da igreja é asfaltado?

—        Bem, pode ter saído daqui, aponta Reba olhando a grama debaixo de um pneu traseiro.

—        Isto não basta para explicar. Os quatro pneus têm terra incrustada.

—        O centro comercial onde se encontra a igreja tem um grande estacionamento, mas nessa área não existe nada sem asfaltar.

—        O carro estava aqui quando veio a pessoa da igreja procurar Kristin e Ev? Reba dá a volta, interessada pela sujeira dos pneus.

—        Parece, e posso garantir que estava na tarde que eu vim.

—        Não seria má ideia examinar o GPS para descobrir por onde passou o carro e quando. Abriu as portas?

—        Sim. Não estava trancado. Não vi nada que me chamasse atenção.

—        De modo que o carro não foi examinado detalhadamente em nenhum momento.

—        Não posso pedir aos técnicos que examinem algo quando não existem indícios de que se cometeu um crime.

—        Entendo o problema.

 

O rosto escuro e bronzeado de Reba observa a sua colega outra vez através das janelas cobertas por uma fina capa de pó. Scarpetta retrocede ligeiramente e caminha ao redor do carro estudando-o centímetro a centímetro.

 

—        Quem é o proprietário? Pergunta.

—        A paróquia.

—        De quem é a casa?

—        Da paróquia também.

—        Me disseram que a paróquia só a aluga.

—        Não, é de sua propriedade, pode estar certa.

—        Conhece uma tal senhora Simister? Pergunta Scarpetta. Começa a ter uma sensação estranha que nasce no estômago e sobe pela garganta, a mesma que teve quando Reba mencionou a Marino o nome de Christian Christian.

—        Quem? Reba franze o cenho e, nesse momento, se ouve um estampido atenuado do outro lado do canal.

 

As duas param de falar. Aproximam-se um pouco mais do canal e observam as casas do outro lado. Não se vê ninguém.

 

—        Terá sido o tubo de escapamento de um carro, chega Reba à conclusão. — Por aqui as pessoas dirigem muito mal. A maioria não deveria sequer ter carro. São todos mais velhos que Matusalém e mais cegos que um morcego.

 

Scarpetta repete o nome Simister.

 

—        Nunca o escutei, responde Reba.

—        Disse que falou várias vezes com você. Acho que disse três, para ser exata.

—        Não me soa nada e nunca falou comigo. Suponho que é a pessoa que falou mal de mim dizendo que não me preocupo com esse caso.

—        Desculpe, diz nesse momento Scarpetta. Chama Marino pelo celular. Ninguém atende. Deixa recado na caixa postal para que ele retorne o mais breve possível.

—        Quando descobrir quem é essa tal senhora Simister, diz Reba, — Gostaria que me avisasse. Em tudo isto existe alguma coisa estranha. Quem sabe deveríamos ao menos limpar o pó do interior do carro para ver se existem impressões. Já que não para outra coisa, pelo menos para excluir algumas hipóteses.

—        O mais provável é que não consiga as impressões das crianças no interior do carro, diz Scarpetta. — Já se passaram quatro dias. E provavelmente tampouco as encontrará dentro de casa. As do menor, o de sete anos, com certeza não.

—        Não entendo por que diz isso.

—        As impressões dos pré-adolescentes duram pouco. Horas, um par de dias se muito. Não estamos totalmente certos do motivo, porém é provável que tenha algo a ver com o tipo de gordura que segregam as pessoas quando alcançam a puberdade. David tem doze anos? Talvez encontre suas impressões. Talvez, insisto.

—        Isso é novo para mim.

—        Sugiro que leve este carro ao laboratório, examine em busca de provas e verifique o interior o mais rápido possível para ver se ficaram impressões. Podemos fazer na Academia, se quiser; dispomos de instalações para examinar veículos e poderíamos nos ocupar disso.

—        Quem sabe não seja má ideia, aceita Reba.

—        Devemos encontrar impressões de Ev e de Kristin dentro da casa. E também DNA, incluindo as duas crianças. Nas escovas de dente, nas escovas de cabelo, nos sapatos, na roupa.

 

E em seguida conta a Reba do comunicante anônimo que falou o nome de Kristin Christian.

 

A senhora Simister vive só em um pequeno bangalô de estuque branco. O que só pode se encontrar no sul da Flórida. A garagem está vazia, o que não quer dizer que não esteja em casa porque já não tem carro nem permissão de dirigir em vigor. Marino também vê que as janelas situadas à direita da porta principal estão com as cortinas fechadas e em que não tem nenhum jornal no jardim. Entregam-lhe diariamente o The Miami Herald, o que mostra que enxerga o suficiente para ler, se estiver com os óculos.

 

Seu telefone está ocupado há meia hora. Marino desliga o motor da moto e salta enquanto passa pela rua um Chevy Blazer branco com as laterais pintadas. É uma rua tranquila; provavelmente muitas das pessoas que vivem neste bairro são anciãs, estão há muito tempo aqui e não podem pagar os impostos sobre a casa. Marino se indigna ao pensar que uma pessoa passa vinte ou trinta anos morando no mesmo lugar e quando por fim termina de pagar a casa, descobre que não pode assumir o pagamento dos impostos por culpa de pessoas ricas que querem viver junto ao canal. A velha casa da senhora Simister está valorizada em quase três quartos de milhão de dólares e terá que vendê-la, provavelmente dentro de pouco tempo. Só tem três mil dólares guardados.

 

Marino se informou muito bem sobre Dagmara Schudrich Simister. Depois de falar no escritório de Scarpetta com uma pessoa que, segundo suspeita agora, era alguém que afirmava ser ela, fez uma busca no HIT. A senhora Simister responde pelo apelido de Daggie e tem oitenta e sete anos. É judia e membro de uma sinagoga local à que já não vai há vários anos. Jamais foi da mesma paróquia que as pessoas desaparecidas do outro lado, de modo que, o que disse por telefone não era verdade, supondo que a do telefone fosse Daggie Simister, e Marino não acredita que tenha sido ela.

 

Nasceu em Lublin, Polônia, sobreviveu ao Holocausto e não deixou seu país natal até aos trinta anos, o que explica a marcada pronúncia que notou Marino quando tentou ligar à uns minutos. A mulher com que falou agora não tinha pronúncia, simplesmente parecia idosa. O filho da senhora Simister vive em Fort Lauderdale e, ao longo dos dez últimos anos foi acusado em duas ocasiões por condução temerária e em três por violação. O irônico é que é promotor imobiliário, ou seja, é um dos responsáveis pelo aumento dos impostos de sua mãe.

 

Quatro médicos tratam da senhora Simister por suas artrites, problemas de coração, de pés e da visão falha. Não viaja, pelo menos em linhas aéreas comerciais. Segundo parece, passa a vida em casa e é muito possível que esteja atenta ao que ocorre a seu redor. Em lugares como este, é frequente que pessoas que vivem reclusas se dediquem a observar, e Marino espera que a senhora Simister seja uma delas. Abriga a esperança de que tenha observado o que aconteceu no outro lado do canal, na casa alaranjada. Também abriga a esperança de que tenha uma ideia de quem ligou para o escritório de Scarpetta afirmando ser ela, supondo que foi isso o que aconteceu.

 

Toca a campainha, com a carteira preparada para mostrar a identidade, que não é exatamente legal, já que está afastado, nunca foi policial na Flórida e deveria ter entregado a pistola e suas credenciais quando deixou o último departamento de polícia para o qual trabalhou, em Richmond, Virgínia, onde sempre se sentiu forasteiro, rechaçado e subestimado. Toca a campainha outra vez e de novo tenta falar com a senhora Simister por telefone.

 

—        Polícia! Tem alguém em casa? Exclama em voz alta ao mesmo tempo em que golpeia a porta.

 

Scarpetta tem calor com a roupa escura, porém não pensa em fazer nada para evitá-lo. Se retirar o casaco terá que deixá-lo em alguma parte e não se sente cômoda no lugar de um crime, ainda mais quando a polícia não ache que seja. Agora que entrou na casa, está a ponto de chegar à conclusão de que uma das irmãs sofre um transtorno obsessivo-compulsivo. As janelas, os pisos e os móveis estão impecáveis e primorosamente limpos. Há um tapete escrupulosamente centrado com os fios tão arrumados que parece que os tenham desenredado. Descobre um termostato na parede e anota em seu caderno que o ar acondicionado está ligado e que a temperatura da sala é de vinte e dois graus.

 

—        Mexeram no termostato? Pergunta. — Estava assim?

—        Tudo ficou tal como estava, responde Reba da cozinha, onde se encontra em companhia de Lex, investigadora forense da Academia. — Exceto o queimador do fogão, que foi apagado. A senhora que veio aqui ver porque Ev e Kristin não apareceram na igreja o apagou.

 

Scarpetta toma nota de que não existe sistema de alarme.

 

Reba abre a geladeira.

 

—        Eu seguiria adiante e passaria o pincel pelas portas dos armários, Reba fala a Lex. — Pode passar o pincel em tudo, já que estamos aqui. Não tem muita comida para duas crianças em idade de crescimento, diz para Scarpetta. — Não tem muita coisa para comer, de qualquer maneira. Acho que são vegetarianos. Fecha a porta da geladeira.

—        O pó estragará a madeira, objeta Lex.

—        Isto é problema seu.

—        Sabemos a que hora chegaram em casa, se é que chegaram, ao voltar da igreja? Pergunta Scarpetta.

—        O serviço religioso terminou as sete e Ev e Kristin ficaram um tempo mais, falando com as pessoas. Em seguida tiveram uma reunião na sala de Ev. É uma sala pequena. A igreja é muito pequena. No espaço em que celebram os serviços não cabem mais de cinquenta pessoas, me deu a impressão. Reba sai da cozinha e passa para a sala.

—        Uma reunião com quem? Onde estavam as crianças? Pergunta Scarpetta, levantando uma almofada do sofá estampado de flores.

—        Se reuniram várias mulheres. Não sei como as chamam. São as que organizam coisas na igreja e, segundo entendi, as crianças não assistiram a essa reunião, estavam fora da sala, brincando. Depois saíram com Ev e Kristin, isso às oito da noite.

—        Sempre fazem as reuniões na quarta à tarde, depois do serviço religioso?

—        Acho que sim. Os serviços se celebram habitualmente as terças, assim se reúnem um dia antes. Não mencionam Jesus Cristo, só a Deus; não falam além do pecado e de ir para o inferno. É uma Igreja um pouco excêntrica, como uma seita, diria eu. Provavelmente manipulam serpentes ou coisas assim.

 

Lex coloca uma pequena quantidade de óxido em pó Silk Black em uma folha de papel. A superficie branca da mesa da cozinha está arranhada, porém limpa e completamente vazia. Apanha com um pincel de fibra de vidro o pó do papel e começa a passar suavemente, com movimentos circulares, pela superfície da mesa, até ficar de cor cinza uniforme onde o pó adere à gordura e a outros resíduos que não se notam a simples vista.

 

—        Não encontrei nenhuma carteira, nenhum caderno de endereços, nada pelo estilo, conta Reba a Scarpetta. — O qual ratifica a minha suspeita de que fugiram.

—        Alguém pode ser sequestrado quando está com seu caderno de endereços, diz Scarpetta. — As pessoas são sequestradas com a carteira, as chaves, o carro, os filhos. Há uns anos trabalhei em um caso de sequestro e homicídio em que à vítima foi permitida que levasse a maleta.

—        Eu também sei de casos em que tudo se falseia para parecer um delito quando o que aconteceu na realidade é que o interessado fugiu. Essa estranha ligação telefônica que me falou pode ter sido de algum pirado da congregação.

 

Scarpetta entra na cozinha para examinar o queimador. Em cima dele tem uma frigideira de cobre coberta com uma tampa; o metal é cinza escuro.

 

—        É este o queimador que estava aceso? Pergunta levantando a tampa.

 

No interior da frigideira, de aço inoxidável, se vê um descolorido cinza escuro. Lex desgruda um fragmento de fita adesiva de um sonoro puxão.

 

—        Quando a senhora da paróquia chegou, esse queimador esquerdo estava no mínimo e a frigideira tremendamente quente, sem nada dentro, explica Reba. — Isto me disseram.

 

Scarpetta repara em um pó esbranquiçado na frigideira.

 

—        Pode ser que tivesse algo dentro, talvez azeite. Comida não. Não havia comida sobre a mesa? Pergunta.

—        Está vendo tudo tal como estava quando eu cheguei. E a paroquiana disse que não havia encontrado comida fora da frigideira.

—        Se vê algum detalhe em relevo, porém em geral são borrões, anuncia Lex desgrudando a fita. — Não vou me preocupar com os armários; a madeira não é uma superfície muito boa. Não vale a pena estragá-la sem motivo.

 

Scarpetta abre a porta da geladeira e sente o ar frio no rosto enquanto vai olhando as prateleiras uma a uma. Um pedaço de ave sugere que pelo menos alguém não é vegetariano. Há batata, repolho, cenoura, aipo e hortaliças, montes de hortaliças, dezenove bolsas de hortaliças pequenas e peladas: um grupo baixo de calorias.

 

A porta corrediça de vidro da senhora Simister não está fechada a chave; Marino fica em frente a ela, de pé no jardim, olhando ao redor.

 

Olha para o outro lado do canal, perguntando-se se Scarpetta está encontrando algo na casa alaranjada. Já deve ter chegado, porque ele se atrasou. Teve que colocar a moto em um caminhão, ir ao hangar e trocar o pneu; tudo isso levou algum tempo. Perdeu outros minutos ao falar com o pessoal da manutenção e com uns quantos alunos e membros do professorado cujos carros se encontravam no mesmo estacionamento, com a esperança de que alguém tivesse visto algo. Entretanto ninguém viu nada. Ou pelo menos isso é o que disseram.

 

Abre um pouco a porta corrediça da senhora Simister e a chama. Ninguém responde, de modo que bate no vidro fazendo um pouco de ruído.

 

—        Tem alguém em casa? Fala. Volta a apanhar o telefone e a linha continua ocupada. Vê que Scarpetta tentou localizá-lo há um tempo, provavelmente quando vinha na moto. Devolve a chamada.

—        Que aconteceu? Pergunta falando baixo.

—        Reba diz que jamais escutou o nome da senhora Simister.

—        Alguém está brincando conosco, replica Marino. — E a senhora Simister não responde a campainha da porta. Vou entrar.

 

Uma vez mais se volta para olhar a casa alaranjada do outro lado. Em seguida, abre a porta corrediça e entra na casa.

 

—        Senhora Simister? Pergunta falando mais alto. — Há alguém em casa? Polícia!

 

Topa com uma segunda porta corrediça, também fechada sem chave, e passa ao interior da cozinha, faz uma pausa e volta a chamar a dona. Dentro da casa tem uma televisão ligada a todo volume; avança até o ruído sem deixar de anunciar-se aos gritos, agora com a pistola na mão. Percorre um corredor e descobre que se trata de uma comédia televisiva, com muitas risadas.

 

—        Senhora Simister? Tem alguém aí?

 

A televisão se encontra na parte traseira, provavelmente em um quarto, cuja porta está fechada. Titubeia, volta a chamar à dona. Primeiro dá uns golpes na porta e agora a abre de um empurrão. Ao entrar vê sangue, um corpo pequeno sobre a cama e o que sobra da cabeça.

 

Dentro de uma gaveta do escritório existem lápis, canetas e rotuladores. Dois dos lápis e uma caneta estão mordidos e Scarpetta observa as marcas de dentes na madeira e no plástico, perguntando-se qual das crianças será a que morde nervosa as coisas.

 

Coloca os lápis, as canetas e os rotuladores em bolsas de provas distintas. Fecha a gaveta e olha ao seu redor pensando na vida dos sul-africanos órfãos. Na casa não se encontram joguinhos, nem cartazes nas paredes, nem algum indício de que os irmãos gostem de garotas, de carros, de filmes, de música ou esportes, nem que tenham heróis, nem sequer que se divirtam. O banheiro está uma porta mais além. É um banheiro velho com azulejos verdes, um lavabo e uma banheira brancos. Scarpetta vê o seu rosto no espelho do armário de primeiros socorros quando o abre. Percorre com o olhar as estreitas prateleiras metálicas cheias de pasta dental, aspirinas e sabonetes sem abrir, dos que só se pode encontrar nos banheiros dos motéis. Apanha um pote de remédio de plástico alaranjado pela tampa branca, lê a etiqueta e se surpreende ao encontrar o nome da doutora Marilyn Self.

 

A célebre psiquiatra, a doutora Self, receitou Ritalin a David Fortuna. Toma dez miligramas três vezes ao dia; no mês passado, exatamente há três semanas, receitou outra centena de pílulas. Scarpetta fecha a tampa e coloca em sua mão as pílulas verdes. Conta quarenta e nove. Ao final de três semanas na dose prescrita deveriam restar trinta e sete, calcula. O garoto provavelmente desapareceu há cinco dias, então são quinze pílulas. Quinze mais trinta e sete são cinquenta e duas. Bastante aproximado. Se o desaparecimento de David foi voluntário, por que deixou o Ritalin? E por que deixaram aceso o fogão da cozinha?

 

Devolve as pílulas ao pote e o guarda em uma bolsa de provas. Ao final do corredor encontra o outro quarto da casa, que obviamente é dividido pelas duas irmãs. Existem nele duas camas, ambas com uma colcha verde esmeralda. O papel pintado e a janela são verdes. Os móveis estão laqueados de verde. As lâmpadas e o ventilador de teto são verdes e umas cortinas verdes fechadas não deixam passar nem um raio de luz. A lâmpada da mesinha de cabeceira está acesa e seu débil brilho, somado à luz do corredor, constitui a única iluminação do quarto.

 

Não existem espelho nem quadros, só duas fotografias envelhecidas em cima do toucador: uma do sol se pondo sobre o oceano com as crianças na praia sorridentes em traje de banho, os dois muito ruivos; a outra de duas mulheres com muletas e os olhos entrefechados por causa do sol, rodeadas de um enorme céu azul. Atrás delas se vê a caprichosa forma de uma montanha que se eleva sobre o horizonte e cujo cimo aparece oculto por uma capa de nuvens que sobem desde as rochas como um denso vapor branco. Uma das mulheres é baixa e está com o cabelo longo e acinzentado preso, enquanto a outra é mais alta e delgada e tem cabelos negros ondulados que está afastando do rosto por culpa do vento.

 

Scarpetta apanha uma lupa da bolsa e estuda as fotografias mais de perto, fixando-se detidamente na pele das crianças, em seus rostos. Estuda também a pele e o rosto das duas mulheres em busca de cicatrizes, tatuagens, anomalias físicas, joias. Passa a lente por cima da mais delgada das duas, a do cabelo longo e negro, e repara que sua pele não parece boa. Talvez seja a iluminação ou um bronzeador sem sol o que dá a sua pele um tom ligeiramente amarelado, porém diria que sofre de icterícia.

 

Abre o armário. Contem sapatos e roupa comum e inexpressiva, assim como algumas blusas de medidas oito e doze. Scarpetta apanha todas as de cor branca ou muito clara e examina o tecido em busca de manchas amarelas de suor. As encontra nas axilas de várias blusas da medida oito. Depois volta a centrar sua atenção na fotografia da mulher de cabelo longo e pele amarelada; pensa nas verduras cruas que tem na geladeira, nas hortaliças e também na doutora Self.

 

No quarto não existe outro livro fora uma Bíblia de couro marrom sobre uma mesinha de cabeceira. É velha e está aberta nos Apócrifos. A luz da lâmpada cai sobre suas frágeis páginas, secas e escurecidas pelo passar de muitos anos. Scarpetta põe os óculos e se inclina um pouco mais. Anota que a Bíblia está aberta no livro da Sabedoria e que o versículo vinte e cinco do capítulo doze está marcado com três pequenos xis a lápis: «Por isto, como as crianças que não tem uso de razão, haveis enviado um castigo que era um logro».

 

Liga para o celular de Marino e novamente ele não atende. Abre as cortinas para ver se as persianas corrediças que as ocultam estão fechadas, ao mesmo tempo em que insiste de novo com Marino e deixa outra mensagem urgente. Começou a chover e as gotas de chuva caem sobre a superfície da piscina e do canal. As nuvens de tempestade se amontoam como grandes edifícios. As palmeiras se agitam furiosamente e os hibiscos que crescem a um e outro lado estão cheios de flores rosadas e vermelhas que sacodem ao vento. Vê dois borrões no vidro; têm uma forma que lhe parece familiar.

 

Encontra Reba e Lex na área de serviço, examinando o que tem dentro da lavadora e da secadora.

 

—        No quarto principal tem uma Bíblia, informa Scarpetta. — Está aberta nos Apócrifos. E também existe uma lâmpada acesa, junto à cama. Reba parece desconcertada. — Minha pergunta é: está o quarto exatamente como quando veio àquela paroquiana a casa? Está da mesma maneira que da primeira vez que você o viu?

—        Quando eu entrei no quarto não parecia que alguém o tivesse mexido. Lembro que as cortinas estavam fechadas. Não vi nenhuma Bíblia nem nada parecido, e não lembro que tivesse uma lâmpada acesa, responde Reba.

—        Existe uma fotografia de duas mulheres. São Ev e Kristin?

—        Isto disse a senhora da congregação.

—        A outra é de Tony e David?

—        Acho que sim.

—        Uma das mulheres sofre de algum tipo de desordem alimentícia? Está doente? Sabemos se uma delas ou as duas se encontram em tratamento médico? E sabemos quem é quem na fotografia?

 

Reba não tem respostas. Até agora as respostas não pareciam ter demasiada importância, a ninguém ocorrem perguntas como as que as está formulando Scarpetta.

 

—        Você ou alguma outra pessoa abriu a porta corrediça de vidro do quarto, a verde?

—        Não.

—        Não está fechada com chave e reparei que o vidro tem umas manchas por fora. São impressões de orelhas. Gostaria saber se já estavam ali quando você deu uma olhada na casa.

—        Marcas de orelhas?

—        Duas são de uma orelha direita, responde Scarpetta quando seu telefone toca.

 

Chove intensamente quando se detém à frente casa da senhora Simister. Diante dela estão estacionados três carros de polícia e uma ambulância.

 

Scarpetta desce do carro e sem se preocupar em apanhar um guarda-chuva, continua a ligação com o Instituto de Medicina Legal do condado de Broward, que tem jurisdição sobre todas as mortes súbitas e violentas que acontecem entre Palm Beach e Miami. Examinará o cadáver in situ porque já está no lugar dos fatos, está falando, e necessitará o mais rápido possível de um meio para transportar o cadáver ao depósito. Recomenda que a autópsia se realize imediatamente.

 

—        Não pode esperar até manhã? Acho que pode ser um suicídio, já que a falecida tem uma história de depressão, comenta o administrador com cautela, porque não quer que pareça que questiona o critério de Scarpetta.

 

Não deseja falar de que não está certo que o caso é urgente. Tem muito cuidado ao escolher as palavras, porém Scarpetta sabe o que está pensando.

 

—        Marino diz que não tem nenhuma arma no lugar do crime, explica, apressando-se em subir as escadas da casa, empapada.

—        Está bem. Isto eu não sabia.

—        Não tenho noticia de que alguém ache que se trate de um suicídio.

 

Scarpetta pensa na presumível explosão de um tubo de escape que escutaram há um tempo Reba e ela. Tenta se lembrar do momento exato.

 

—        Então, vem para cá?

—        Claro, responde Scarpetta. — Diga ao doutor Amos que tenha tudo preparado.

 

Quando alcança a porta e passa ao interior afastando o cabelo molhado dos olhos, vê que Marino já a está esperando.

 

—        Onde está Wagner? Ele pergunta. — Suponho que virá. Por desgraça. Merda, não nos faz nenhuma falta que venha a manejar o hospício, alguma atrasada mental.

—        Saiu uns minutos depois de mim. Não sei onde está.

—        É provável que tenha se perdido. Tem o sentido da orientação mais nefasto que eu já vi.

 

Scarpetta fala da Bíblia encontrada no quarto de Ev e Kristin e do versículo marcado com vários xis.

 

—        É o mesmo que me disse o tipo que me ligou! Exclama Marino. — Deus. Que acontece aqui? Maldita imbecil! Protesta, referindo-se outra vez a Reba. — Vou ter que afastá-la e procurar um detetive de verdade para que não foda este assunto.

 

Scarpetta já está farta dos comentários depreciativos de Marino.

 

—        Faz-me um favor: ajuda-a em tudo o que puder e guarde suas rivalidades pessoais. Fale o que sabe.

 

Observa, atrás de Marino, o que se vê pela porta da casa, que está entreaberta. Dois enfermeiros de urgências estão apanhando suas maletas, pondo fim a um esforço que resultou ser uma perda de tempo.

 

—        Morta por um tiro de escopeta na boca que arrancou a parte superior da cabeça, recita Marino parando no meio para deixar passar os enfermeiros, que saíam com destino a ambulância. — Está estendida sobre a cama de costas e completamente vestida. A televisão está ligada. Não vi nada que indique que tenham forçado a entrada ou que tenha sido uma tentativa de roubo nem de agressão sexual. Encontramos um par de luvas de látex no lavabo do banheiro. Uma está manchada de sangue.

 

—        Que banheiro?

—        O do quarto.

—        Algum outro indício de que o assassino tenha limpado o lugar antes de sair?

—        Não. Somente as luvas do lavabo. Nem toalhas manchadas de sangue nem água ensanguentada.

—        Tenho que dar uma olhada. Estamos certos da identidade da falecida?

—        Sabemos a quem pertence a casa: a Daggie Simister. Ainda não posso dizer com segurança quem é que está estendida na cama.

 

Scarpetta mexe no interior de sua bolsa procurando um par de luvas e passa ao vestíbulo. Detém-se a olhar ao redor pensando nas portas corrediças sem chave que viu no quarto principal da outra casa. Percorre com o olhar o chão, a parede azul claro e a pequena sala. Está abarrotada de móveis, fotografias, pássaros de porcelana e outras figurinhas fora de moda. Nada parece estar fora de lugar. Marino a conduz até a cozinha do outro lado da casa, onde se encontra o cadáver, em um quarto que dá para o canal.

 

A anciã, vestida com um penhoar rosa e chinelos de mesma cor, está estendida de costas sobre a cama. Tem a boca aberta e os olhos inexpressivos e fixos debaixo de uma tremenda ferida que lhe abriu a parte superior da cabeça como uma casca de ovo. Massa encefálica e fragmentos de osso estão espalhados pela almofada empapada de sangue, de um vermelho escuro, que começa a coagular. Também se encontram pedaços de pele e ossos agarrados à cabeceira da cama e à parede, ambos salpicados de resíduos sanguinolentos.

 

Scarpetta mete uma mão por debaixo do penhoar ensanguentado para apalpar o peito e o ventre, e depois toca as mãos. O corpo ainda está fresco e não aparece o rigor mortis. Abre o penhoar e coloca um termômetro de mercúrio no sovaco direito. Enquanto espera a leitura da temperatura corporal, busca outras lesões fora da óbvia da cabeça.

 

—        Quanto tempo calcula que está morta? Pergunta Marino.

—        Ainda está muito quente. Nem sequer apareceu a rigidez.

 

Pensa outra vez no que Reba e ela acharam que era um tubo de escapamento de um carro e chega à conclusão de que foi há aproximadamente uma hora. Aproxima-se de um termostato que está na parede. O ar acondicionado está funcionando, e no quarto a temperatura é de vinte graus. Toma nota e em seguida olha a seu redor, sem pressa, percorrendo tudo com o olhar. O pequeno quarto tem chão de cerâmica coberto em boa parte por um tapete azul escuro que vem desde o pé da cama, coberta por um edredom de bolinhas azuis, até a janela que dá para o canal. As persianas estão fechadas. Sobre uma mesinha de cabeceira está um copo que parece ser de água, uma edição em letra grande de uma novela de Dan Brown e uns óculos. A primeira vista, não existem sinais de arrombamento.

 

—        Assim a mataram antes de eu chegar, está dizendo Marino com certo desassossego. — De modo que pode ter ocorrido minutos antes que eu chegasse de moto. Me atrasei. Alguém me furouumpneu.

—        De propósito? Pergunta Scarpetta, intrigada pela coincidência.

 

Se Marino tivesse chegado antes, talvez a mulher não estivesse morta. Então fala do que agora supõe que foi um tiro de escopeta. Nesse momento sai do banheiro um agente uniformizado carregado de remédios que deposita sobre um toucador.

 

—        Sim, foi de propósito, responde Marino.

—        Obviamente, não estava morta há muito tempo. Que horas quando a encontrou?

—        Quando liguei para você já estava aqui há uns quinze minutos. Queria ter certeza de que a casa estivesse limpa antes de fazer algo, de que quem a havia matado não estivesse escondido em um armário ou algo parecido.

—        Os vizinhos não escutaram nada?

 

Marino responde que não tem ninguém nas casas de ambos os lados, já verificou um dos agentes uniformizados. Sua profusamente e tem o rosto congestionado e os olhos muito abertos, com expressão perturbada.

 

—        De verdade que não sei aonde vai tudo isto, volta a dizer, enquanto a chuva bate sobre o telhado. — Tenho a sensação de que de alguma maneira nos pegaram. Wagner e você estavam na outra margemdo canal. E eu cheguei tarde por culpa de um furo.

 

—        Havia um fiscal aqui, diz Scarpetta. — Um tipo que andava inspecionando os cítricos. Conta do instrumento para apanhar fruta que o indivíduo desmontou e guardou em uma bolsa grande. — Eu verificaria isso imediatamente.

 

Retira o termômetro de debaixo do braço da morta e anota trinta e quatro vírgula oito graus. Em seguida entra no banheiro e olha no chuveiro, no vaso e na cesta de papel usado. O lavabo está seco, não tem rastro de sangue, o que não tem lógica. Volta-se até Marino e pergunta:

 

—        As luvas estavam no lavabo?

—        Estavam.

—        Se o assassino... Ou a assassina, suponho, retirou-as depois de matar à anciã e as jogou no lavabo, deveria ter deixado um rastro de sangue, ou pelo menos manchas.

—        A não ser que o sangue já tivesse secado.

—        Não deveria, replica Scarpetta abrindo o armário, onde encontra a típica mescla de fármacos para dores e doenças intestinais. — A menos que o assassino tenha ficado com elas o tempo suficiente para que o sangue secasse.

—        Não seria tanto tempo assim.

—        Pode ser que não. Estão a mão?

 

Saem do banheiro e Marino apanha de uma maleta um envelope grande de provas, de papel marrom e abre-o para que Scarpetta olhe dentro sem tocar as luvas. Uma está limpa, a outra parcialmente do avesso e manchada de sangue seco marrom escuro. As luvas não estão com talco, e parecem novas.

 

—        Necessitaremos analisar o DNA do interior, também. E procurar impressões, diz.

—        Tenho certeza de que o assassino não sabe que se podem deixar impressões no interior das luvas de látex, aponta Marino.

—        Então é que não vê televisão, comenta um agente.

—        Não me fale da merda que sai na televisão. Está me destruindo a vida, comenta outro com meio corpo debaixo da cama, e adiciona: — Bem, bem.

 

Levanta-se segurando nas mãos uma lanterna e um pequeno revólver de aço inoxidável com culatra de pau rosa. Abre a câmara procurando tocar o metal o menos possível.

 

—        Está descarregado. De bem pouco serviu à vítima. Tem pinta de não haver sido disparado desde a última vez que foi limpo, se é que se disparou alguma vez.

—        De qualquer maneira analisaremos as impressões, fala Marino. — Lugar estranho para esconder uma arma. Estava muito lá dentro?

—        Demasiado longe para ser alcançado sem se abaixar até ao chão e arrastar-se debaixo da cama, como eu fiz. Calibre vinte e dois. Que demônios é uma Viúva Negra?

—        Está de brincadeira, diz Marino dando uma olhada. — Armas norte-americanas, de um só tiro. Uma pistola absurda para uma velhinha de mãos artríticas.

—        Alguém a presenteou para que se protegesse e ela não fez caso.

—        Viu em alguma parte uma caixa de munição?

—        De momento, não.

 

O agente mete a pistola em uma bolsa de provas, que deposita sobre o toucador em que outro agente começa a fazer inventário dos frascos de remédios.

 

—        Accuretic, Diurese e Enduron, diz lendo as etiquetas.

—        Um inibidor da ACE e diuréticos. Para a hipertensão, explica Scarpetta.

—        Verapamil, com a validade já vencida. É do mês de julho.

—        Hipertensão, angina, arritmia.

—        Apresoline e Lonitem. Quero ver quem é o esperto que sabe pronunciar isto. Está a um ano vencido.

—        São vasodilatadores. Para a hipertensão, também.

—        Viodim. Isto eu sei o que é. E Ultram. Estes remédios são mais novos.

—        São analgésicos. Possivelmente para a artrite.

—        E Zithromax. Isto é um antibiótico, não? Venceu em dezembro.

—        Nada mais? Pergunta Scarpetta.

—        Não, senhora.

—        Quem disse ao Instituto de Medicina Legal que a vítima tinha uma história de depressão? Pergunta, olhando para Marino. Em princípio não responde ninguém. Então Marino responde:

—        Eu não fui.

—        Quem ligou para o Instituto de Medicina Legal? Os dois agentes e Marino se olham.

—        Merda, resmunga Marino.

—        Um momento, diz Scarpetta; liga para ao Instituto de Medicina Legal e consegue que o administrador atenda ao telefone. — Quem lhe informou sobre o caso de morte por tiro de escopeta?

—        A polícia de Hollywood.

—        Que agente?

—        A detetive Wagner.

—        A detetive Wagner? Scarpetta fica perplexa. — Que hora está anotada no registro de ligações?

—        Pois... Vamos ver. Às duas horas e onze minutos. Scarpetta olha outra vez para Marino e pergunta:

—        Sabe a que horas você me ligou? Ele consulta seu telefone celular e responde:

—        As duas e vinte e um. Scarpetta consulta o relógio de pulso; já são quase três e meia. Não vai conseguir chegar ao voo das seis e meia.

—        Tudo bem? Pergunta o administrador por telefone.

—        Aparecia algo no identificador de chamadas quando recebeu esta ligação, a que provavelmente lhe fez a detetive Wagner?

—        Provavelmente?

—        Porque foi uma mulher que ligou...

—        Sim.

—        Tinha algo estranho em sua maneira de falar?

—        Não, responde e faz uma pausa. — Não tinha nada de suspeito.

—        Alguma pronúncia diferente?

—        O que está acontecendo, Kay?

—        Nada bom.

—        Estou olhando... Aqui está, as duas e onze. Número desconhecido.

—        Certo, diz Scarpetta. — Nos veremos dentro de uma hora.

 

Em seguida se inclina sobre a cama e observa detidamente as mãos da anciã antes de virá-las com suavidade. Sempre trabalha com suavidade, independentemente do fato de que seus pacientes já não sentirem nada. Não vê abrasões, cortes nem contusões que sugiram que a tenham amarrado ou que tenha se defendido. Volta a olhar com ajuda da lupa e encontra fibras e sujeira agarradas nas palmas de ambas as mãos.

 

—        É possível que em algum momento tenha estado no chão, diz. Nesse momento entra Reba no quarto, pálida e molhada por causa da chuva, e toda agitada.

—        Aqui as ruas são um labirinto, comenta.

—        Ouça, interpela Marino, — A que horas ligou para o Instituto de Medicina Legal?

—        Em relação a que tema?

—        Em relação ao preço dos ovos na China.

—        Como? Ela responde olhando o cadáver na cama.

—        Em relação a este caso, replica Marino furioso. — De que diabos imagina do que estou falando? E por que não compra um maldito GPS?

—        Eu não liguei para o Instituto de Medicina Legal. Por que ia ligar, tendo a ela a meu lado? Responde Reba olhando para Scarpetta.

—        Ponham sacos nas mãos e nos pés, diz Scarpetta. — E quero que a envolvam na colcha e em um plástico limpo. As roupas de cama também levarão.

 

Aproxima-se de uma janela que dá para o jardim traseiro da casa e o canal. Observa como a chuva golpeia as árvores e pensa no fiscal de cítricos. Estava neste jardim, disso não tem nenhuma dúvida, e trata de calcular com exatidão a hora em que o viu. Sabe que não foi muito antes de ouvir a explosão que agora suspeita que foi um tiro de escopeta.

 

Volta a correr o quarto com o olhar e repara em duas manchas escuras que estão no tapete, próximo da janela que dá para as árvores e o canal. Custa muito a vê-las sobre o fundo azul escuro. Decide apanhar em sua bolsa equipamento para analisar amostras que supõe sejam de sangue, assim retira produtos químicos e um conta-gotas. Existem duas manchas, a vários centímetros de distância uma da outra, mais ou menos do tamanho de uma moeda de vinte e cinco centavos e de forma ovalada. Passa um algodão por uma delas e, em seguida, coloca nela umas gotas de álcool isopropílico, depois fenolftaleína e, por último, peróxido de hidrogênio; o algodão adquire uma cor rosa vivo. Isto não prova que as manchas sejam de sangue humano, porém existem muitas possibilidades de que sejam.

 

—        Se é sangue da vítima, que faz aqui tão longe? Scarpetta fala para si mesma.

—        Quem sabe tenha salpicado até aí, aventura Reba.

—        Não é possível.

—        As gotas não são redondas, aponta Marino. — É como se quem estivesse sangrando se encontrasse erguido, ou quase. Procura mais manchas ao redor. — É bem estranho que estejam aqui e em nenhum outro lugar. Se alguém sangrou muito, poderíamos esperar mais gotas, segue dizendo, como se Reba não estivesse presente.

—        Dá trabalho distingui-las sobre uma superfície escura como esta, responde Scarpetta. — Entretanto não vejo mais nenhuma.

—        Talvez devêssemos voltar com luminol. Marino fala sem incluir Reba na conversa e começa a se notar a raiva no rosto dela.

—        Colheremos uma amostra das fibras deste tapete quando chegarem os técnicos, diz Scarpetta dirigindo-se a todo o mundo.

—        Vamos aspirá-lo e procurar rastros, adiciona Marino evitando o olhar de Reba.

—        Vou ter que lhe pedir uma declaração antes que se vá, já que foi você quem encontrou a vítima, fala Reba a Marino. — Não estou certa do que esperava entrando na casa.

 

Marino não responde. Reba não existe.

 

—        Mark, Reba se dirige a um dos agentes. — Que tal examinarmos o investigador Marino, para ver se encontramos resíduos do tiro de uma escopeta?

—        Que se fodam, responde Marino.

 

Scarpetta reconhece o tom de sua voz; só pode ser o prelúdio de um arrebato descontrolado.

 

—        Não é mais do que um exame pró-forma, diz Reba. — Já sei que não quer que alguém o acuse de algo.

—        Para isso... Reba, diz o agente que responde ao nome de Mark. — Nós não temos material. Os técnicos terão que fazê-lo.

—        Bem, e onde demônios estão? Pergunta Reba irritada, sem cuidado, porque ainda é nova neste trabalho.

—        Marino, diz Scarpetta, — Que acha de se encarregar do serviço de retirada do cadáver?

—        Sinto curiosidade, diz Marino aproximando-se tanto a Reba que esta se vê obrigada a dar um passo atrás. — Quantas vezes você foi a única detetive presente em um lugar onde tivesse um cadáver?

—        Vou ter que pedir que saiam daqui, ela responde. — Os dois, você e a doutora Scarpetta. Assim poderemos começar a trabalhar.

—        A resposta é não. Marino continua falando. — Definitivamente não. Eleva a voz. — Olhe, dê um olhar nas suas notas de detetive para tontos. Leia que quando se descobre que o cadáver cai dentro da jurisdição do forense, passa a mandar a doutora, não você. E já que se dá o caso de eu ser investigador juramentado, além de todos os meus outros títulos, dos mais estrambóticos e que sou ajudante da doutora quando necessário, tampouco pode ordenar ao meu cu que saia daqui.

 

Os agentes uniformizados fazem esforços para não começar a rir.

 

—        Tudo leva a uma importante conclusão, prossegue Marino: — Que a doutora e eu somos os que mandam aqui e que você não tem nem puta ideia e já está estorvando.

—        Não pode me falar assim! Exclama Reba, quase as lágrimas.

—        Poderia algum de vocês localizar um detetive de verdade? Pergunta Marino aos policiais uniformizados. — Porque não penso sair até então.

 

Benton está sentado em seu escritório, situado no primeiro andar do Laboratório de Imagens Neuronais Cognitivas, um dos poucos edifícios contemporâneos em um campus de quase noventa e cinco hectares construído com ladrilhos e pedrascentenárias e cheio de árvores. Diferentemente da maioria dos escritórios do McLean, o seu não tem vistas. Dá para um estacionamento, que fica em frente à janela, uma estrada e, mais além, a um terreno famoso por ter gansos do Canadá.

 

Seu escritório, no centro do leque que o laboratório forma, é pequeno e está entupido de papéis e livros. Em cada canto do laboratório se encontra um escâner de ressonância magnética que em conjunto criam um campo eletromagnético suficientemente potente para fazer descarrilar um trem. Ele é o único psicólogo forense cujo escritório se encontra dentro do laboratório; tem que estar a mão dos neurocientistas por causa do estudo PREDADOR. 

 

Liga para o coordenador do estudo.

 

—        Voltou a ligar para o nosso último indivíduo normal? Observa pela janela dois gansos que perambulam pela estrada. — Keny Jumper?

—        Um momento, pode ser que seja ele. E em seguida adiciona: — Doutor Benton, ele está ao telefone.

—        Olá, cumprimenta Benton. — Boas tardes, Keny. Sou o doutor Wesley. Como se encontra hoje?

—        Não demasiado mal.

—        Pela sua voz parece um pouco encatarrado.

—        Quem sabe é alergia. Ganhei um gato.

—        Vou fazer umas quantas perguntas mais, Keny, diz Benton olhando um formulário telefônico.

—        Já me fez várias perguntas.

—        Estas são distintas. Perguntas de rotina, fazemos a todos os que participam em nosso estudo.

—        Está bem.

—        De onde liga? Pergunta Benton.

—        De uma cabine. Você não pode me ligar, eu é que tenho de ligar.

—        Não tem telefone onde mora?

—        Como já disse, estou em casa de um amigo aqui, em Walthan, e não tem telefone.

—        Está bem. Queria confirmar umas quantas coisas que me disse ontem, Keny. É solteiro.

—        Sim.

—        Tem vinte e quatro anos.

—        Sim.

—        É de raça branca.

—        Sim.

—        Keny, você é destro ou canhoto?

—        Destro. Não tenho carteira de dirigir, se quiser uma identificação.

—        Não importa, responde Benton. — Não nos faz falta.

 

Não só não faz falta, mas pedir um documento de identificação, fotografar os pacientes ou fazer qualquer tentativa de verificar quem são, constitui uma infração da Restrição de Informação para a Proteção da Saúde da HIPPA.

 

Benton percorre todas as perguntas do questionário e vai interrogando Keny. Se ele usa dentadura ou aparelho de ortodontia, implantes médicos, placas ou cravos metálicos e como se mantém. Pergunta sobre possíveis alergias fora aos gatos, problemas respiratórios, enfermidades ou medicação; também se alguma vez sofreu uma ferida na cabeça ou se aconteceu de se auto machucar ou causar mal a outras pessoas, se se encontra atualmente seguindo uma terapia ou em um período de testes. O típico é que as respostas sejam negativas. Mais de um terço dos que se apresentam como sujeitos normais são eliminados do estudo porque de normais não têm nada. Até o momento Keny parece prometedor.

 

—        Quais foram seus hábitos com a bebida ao longo do mês passado? Benton continua fazendo perguntas da lista, que já está ficando odiosa.

 

Os questionários por telefone são tediosos, embora não seja ele que os realize. De qualquer maneira sempre termina ao telefone, porque não se fia na informação coletada pelos ajudantes de investigação e do pessoal sem qualificação. Não serviria de nada apanhar na rua um potencial sujeito de estudo e descobrir, após investir incontáveis horas de valioso tempo em interrogatórios, entrevistas de diagnóstico, classificações, provas neuro-cognitivas, obtenção de imagens cerebrais e trabalho de laboratório, que não é um sujeito adequado, que é instável ou potencialmente perigoso.

 

—        Bem, quem sabe uma ou duas cervejas de vez em quando, está dizendo Keny. — A verdade é que não bebo muito. E não fumo. E quando posso começar? O anúncio dizia que me pagariam oitocentos dólares e que vocês se encarregariam do táxi. É que não tenho carro, de modo que não tenho transporte, e não me cairia mal o dinheiro.

—        Por que não vem segunda? Às duas da tarde. 

—        É para o escâner?

—        Exato.

—        Não, melhor terça às cinco. Terça às cinco eu posso ir.

—        Muito bem, pois, terça às cinco. Benton toma nota.

—        E vocês me enviam um táxi.

 

Benton diz que mandará um táxi e pede o endereço. A resposta de Keny o deixa desconcertado: diz para mandar o táxi à funerária Alfa e Ômega de Everett, uma casa de pompas fúnebres que ele jamais escutou falar e que se encontra em uma zona não muito agradável da periferia de Boston.

 

—        Por que uma funerária? Pergunta Benton dando golpezinhos com o lápis sobre o papel.

—        Porque é próxima de onde eu moro. E tem cabine telefônica.

—        Keny, gostaria que me ligasse outra vez amanhã para confirmar que vai vir na terça, as cinco. De acordo?

—        De acordo. Ligarei desta mesma cabine.

 

Wesley desliga e consulta a lista para ver se existe em Everett uma funerária chamada Alfa e Ômega. Existe. Liga e o põem em espera escutando «A razão de Hoobastank». A razão de que? Pensa com impaciência. — De morrer?

 

—        Benton?

 

Levanta os olhos e vê a doutora Susan Lane na porta do escritório, com um relatório na mão.

 

—        Olá, cumprimenta, desligando o telefone.

—        Tenho notícias de seu amigo Basil Jenrette, diz a doutora olhando-o fixamente. — Você parece estressado.

—        E como não? Já está terminada a análise?

—        Talvez devesse ir para casa, Benton. Tem cara de estar esgotado.

—        Preocupado. Deito demasiado tarde. Explique como funciona o cérebro de nosso rapaz. Estou ansioso, diz Benton.

 

A doutora entrega uma cópia das análises das imagens estruturais e funcionais e começa a explicar:

 

—        Aumento da atividade amigdalar como reação aos estímulos afetivos. Sobretudo nos rostos, que foram mostradas abertamente ou ocultos e que revelavam medo ou possuíam um conteúdo negativo.

—        É uma informação interessante, comenta Benton. — É possível que o tempo nos revele algo aproximado sobre a maneira de como eles escolhem as vítimas. Uma expressão facial que interpretaríamos como de curiosidade ou surpresa, eles poderiam interpretá-la como de cólera ou medo.

—        Inquieta pensar.

—        Tenho que insistir mais energicamente sobre esse ponto quando falar com eles. Começando por Basil. Em seguida abre uma gaveta e apanha um vidro de aspirinas.

—        Vamos ver. Durante o exercício de interferências de Stroop, diz a doutora olhando o relatório. — Verificamos uma diminuição da atividade do cíngulo anterior, tanto na região dorsal como na sub-genual, acompanhada de um aumento da atividade pré-frontal dorso-lateral.

—        Faz um resumo, Susan. Tenho dor de cabeça.

 

Sacode o vidro para fazer cair três aspirinas na palma de sua mão e as engole sem água.

 

—        Como demônios faz isso?

—        Com a prática.

—        Tá. Recomeça a leitura da análise do cérebro de Basil. — Em conjunto, o estudo reflete sem dúvida uma conectividade anômala das estruturas límbicas frontais, o que sugere uma má inibição das reações, devido provavelmente a um déficit em vários processos em que intervém a área frontal.

—        E isso afeta a sua capacidade para controlar e inibir a conduta, diz Benton. — Estamos vendo isto uma e outra vez em nossos encantadores convidados de Butler. Encaixa com o transtorno bipolar?

—        Sim. Com este e com outros transtornos psiquiátricos.

—        Desculpe-me um minuto, diz Benton apanhando o telefone. Disca a extensão da coordenadora do estudo e pergunta: — Pode consultar seu registro de entradas e dizer de que número ligou Keny?

—        Era uma chamada sem identificar.

—        Ah, responde. — Não sabia que nas chamadas de uma cabine telefônica não ficasse anotado o número.

—        De fato, deveria ficar. Acabo de desligar de um telefonema de Butler, diz ela. — Parece que Basil não está bem. Perguntou se poderia ir vê-lo.

 

São cinco e meia da tarde e o estacionamento do Instituto de Medicina Legal do condado de Broward está quase vazio. Os empregados, em particular os que não pertencem à área médica, rara vez ficam por ali fora do horário.

 

O laboratório se encontra no número 31 da avenida Southwest, em meio de um terreno meio urbanizado, repleto de palmeiras, carvalhos, pinos e salpicado de folhas. Típico da arquitetura do sul da Flórida, o edifício de um só andar é revestido de coralina e estuque. A parte posterior dá para um estreito canal de água salobra infestada de mosquitos e onde os jacarés em várias ocasiões já apareceram, fora de seu hábitat. Junto ao prédio se encontra o serviço de resgate e anti-incêndio, o que lembra constantemente aos de emergências onde terminam seus pacientes menos afortunados.

 

Praticamente deixou de chover e Scarpetta e Joe vão se esquivando de poças quando se encaminham para um Humer H2 prateado; ela não o escolheu, porém é bastante útil para ir a lugares afastados da estrada onde se cometeram crimes e para transportar equipamento complexo. Lucy gosta dos Humer; Scarpetta se preocupa em estacioná-los.

 

—        Não entendo como uma pessoa se preparou para entrar com uma escopeta em pleno dia, diz Joe, um comentário que não deixa de repetir à uma hora. — Tem que haver um modo de saber se era recortada.

—        Se não lixaram o cano depois de recortá-lo, poderia haver marcas de serra,  responde Scarpetta.

—        Entretanto a ausência de marcas de serra não significa que não tenha sido serrada.

—        Exato.

—        Porque ele mesmo poderia ter limado o cano. Se o fez, não temos forma de saber sem recuperar a arma. É de calibre doze. Até aqui nós sabemos.

 

Até aqui ele sabe, porque se baseou na bala de plástico Power Piston de quatro pétalas da Remington, que Scarpetta recuperou do interior da cabeça destroçada de Daggie Simister. Fora isso, Scarpetta só pode confirmar uns quantos fatos mais, como por exemplo, o tipo da agressão sofrida pela senhora Simister, que, segundo revelou a autópsia, foi diferente da que todo o mundo imaginava. Se não tivessem lhe dado um tiro, as possibilidades de que tivesse morrido eram muitas. Scarpetta está certa de que a senhora Simister se encontrava inconsciente quando seu assassino colocou o cano da escopeta na sua boca e apertou o gatilho. Não foi fácil chegar a esta conclusão.   

 

Grandes feridas abertas na cabeça podem mascarar lesões que talvez tivessem sido produzidas antes do trauma mutilador e definitivo. Em algumas ocasiões a patologia forense requer cirurgia plástica. No depósito Scarpetta fez o que pôde para reconstruir a cabeça da senhora Simister, encaixando pedaços de osso e de couro cabeludo e depois recolocando o cabelo. Assim encontrou uma laceração na parte posterior da cabeça e uma fratura de crânio. O ponto do impacto estava se sobrepondo a um hematoma subdural, em uma zona subjacente do cérebro que havia ficado relativamente intacta após a explosão da escopeta.

 

Se as manchas do tapete que ficava junto à janela do quarto forem do sangue da senhora Simister, é possível que tenha sido ali onde a agrediram inicialmente; isso também explicaria a sujeira e as fibras azuladas que tinha nas palmas das mãos. Golpearam-na atrás fortemente com um objeto rombudo e ela caiu. Em seguida seu agressor a tomou nos braços, levantando seus quarenta e três quilos e a deixou sobre a cama.

 

—        É muito fácil levar uma escopeta de cano recortado em uma mochila, Joe está dizendo.

 

Scarpetta aponta com o comando a distância para desbloquear as portas do Humer e responde em tom cansado:

 

—        Não necessariamente. Joe a cansa. A cada dia que passa a cansa mais. — Ainda que o assassino serrasse trinta ou quarenta centímetros do cano e quinze da culatra, observa, — Seria uma arma de quarenta centímetros de comprimento, pelo menos, supondo que se tratasse de uma de carga automática. Pensa na bolsa negra grande que o fiscal de cítricos usava. — Se se tratasse de uma de carga manual certamente seria mais longa, adiciona. — Em nenhuma das duas hipóteses caberia em uma mochila, a não ser que essa fosse enorme.

 

—        Num equipamento, então.

 

Scarpetta pensa outra vez no fiscal de cítricos, no longo equipamento que desmontou e guardou em sua bolsa negra. Já observou fiscais de cítricos em outras ocasiões e nunca viu utilizarem um equipamento deste tipo. Normalmente fiscalizam o que fica na sua altura.

 

—        Tenho certeza de que estava num equipamento, diz Joe. 

—        Não tenho ideia. Scarpetta está a ponto de pular em seu pescoço.  

 

Durante toda a autópsia, Joe não deixou de assuntar o que ela estava pensando. Parecia necessário anunciar tudo o que ia fazendo, tudo o que ia escrevendo no protocolo anexo a seu caderno. Parecia necessário falar o peso de cada órgão e deduzir o que a senhora Simister havia comido na última vez a julgar pela carne e as verduras parcialmente digeridas que se encontravam no estômago. Acertou-se de que Scarpetta ouvisse o barulhinho dos depósitos de cálcio quando abriu as coronárias entupidas com o escalpelo e anunciou que a arteriosclerose em breve a teria matado.

 

Enfim, a senhora Simister não tinha muitas esperanças. Estava doente do coração. Seus pulmões apresentavam obstruções, provavelmente por causa de uma antiga pneumonia, e seu cérebro estava um tanto atrofiado, de maneira que o mais certo era que tivesse Alzheimer.

 

—        Se alguém tem que morrer assassinado, disse antes Joe, é melhor ter má saúde. — Estou pensando que o assassino a golpeou na cabeça com a culatra da escopeta, diz agora. — Assim. Arremete com uma culatra imaginária contra uma cabeça imaginária. — Ela nem sequer chegava ao metro e meio de altura, continua explicando sua hipótese. — De modo que, para golpear a sua cabeça com a culatra de uma arma que pesa, quem sabe, três ou quatro quilos, supondo que não tivesse sido recortada, o assassino precisaria ser razoavelmente forte e mais alto do que ela.

—        Não podemos afirmar isso em absoluto. Scarpetta sai com o carro do estacionamento. — Depende muito de sua posição em relação à vítima. Depende de muitas coisas. E não sabemos se a golpeou com a arma. Não sabemos nem se o assassino é homem. Tenha cuidado, Joe.

—        Com o quê?

—        Em seu entusiasmo por reconstituir exatamente como morreu a senhora Simister, corre o risco de confundir a teoria com a realidade e de transformar a realidade em ficção. Isto não é uma reconstituição, isto é um ser humano de verdade que morreu.

—        A criatividade não tem nada de ruim, protesta ele com a vista fixa na frente, os lábios apertados e o queixo longo e pontiagudo em tensão, o gesto que adota sempre que está de mau humor.

—        A criatividade é boa, diz Scarpetta. — Deve sugerir-nos até onde olhar e o que procurar, porém não necessariamente coreografar reconstituições como as que se veem na televisão e no cinema.

 

A pequena sala para convidados se encontra atrás de uma piscina de azulejos espanhóis, rodeada de árvores frutíferas e arbustos coalhadosde flores. Não é um lugar normal para atender pacientes nem, provavelmente, o melhor lugar para fazê-lo, porém o entorno é poético e está repleto de símbolos. Quando chove, a doutora Marilyn Self se sente tão criativa como a terra cálida e úmida.

 

Tende a interpretar o tempo atmosférico como uma manifestação do que acontece quando os pacientes saem pela porta de seu consultório. As emoções reprimidas, algumas delas torrenciais, se liberam na segurança de seu entorno terapêutico. As veleidades do tempo têm lugar a seu redor e são unicamente para ela, vão dirigidas a ela. Estão repletas de significados.

 

«Bem vindo a minha tempestade. Agora falemos da sua».

 

É uma boa frase e a emprega com frequência em seu consultório, em seu programa de rádio e, agora também, em seu novo programa de televisão. As emoções humanas são sistemas atmosféricos interiores, explica a seus pacientes, ou a multidão de ouvintes. Todas as tempestades têm uma causa. Nada é por nada. Falar do tempo não é nem ocioso nem trivial.

 

—        Estou vendo a expressão de seu rosto, diz desde a sua poltrona de couro, na acolhedora salinha. — Voltou a ter essa expressão quando parou de chover.

—        Repito de novo que não tenho nenhuma expressão no rosto.

—        É interessante que adote essa expressão cada vez que a chuva para. Não quando começa chover nem quando está em seu pior momento, e sim quando cessa de pronto, como ocorreu agora, insiste ela.

—        Eu não tenho nenhuma expressão no rosto.

—        Quando deixou de chover você adotou essa expressão, repete a doutora Self. — É a mesma que aparece quando nossa sessão chega ao fim.

—        Não é.

—        Afirmo que sim.

—        Não pago trezentos dólares por uma puta hora para falar de tempestades. Eu não tenho nenhuma expressão no rosto.

—        Pete, estou falando o que vejo.

—        Eu não tenho nenhuma expressão, repete Pete Marino desde o divã colocado em frente à doutora. — Isto é uma estupidez. Por que ia me ocupar com uma tempestade? Estive toda a vida vendo tempestades. Não me criei em um deserto.

 

A doutora estuda seu rosto. É bem parecido, de uma forma muito rude e masculina. Observa os olhos cinza escuro atrás dos óculos de armação metálica. Sua calvície lembra a bundinha de um bebê, pálida e nua à suave luz da lâmpada. Essa calva arredondada e carnosa é uma nádega branquinha que pede que lhe deem uma palmada.

 

—        Me parece que temos um problema de confiança, diz.

 

Ele a olha desde o divã com cara de poucos amigos.

 

—        Por que não me conta porque se preocupa com as tempestades, e também porque se preocupa quando acaba, Pete. Porque eu vejo que é assim. Inclusive enquanto estamos conversando continua com esta expressão no rosto. Ainda a tem, ela fala. Marino toca o rosto como se fosse uma máscara, como se fosse algo que não lhe pertencesse.

—        Meu rosto é normal. Não mudou nada. Nada. Toca a larga mandíbula e depois a ampla fronte. — Se tivesse uma expressão especial, eu notaria. Entretanto não tenho nenhuma.

 

Os últimos minutos se passaram em silêncio dentro do carro, enquanto vão para o estacionamento do Departamento de Polícia de Hollywood, onde Joe poderá apanhar seu Corvette vermelho e deixá-la tranquila o resto do dia. De repente ele diz:

 

—        Eu contei que apanhei a carteira de mergulhador?

—        Me alegro por você, responde Scarpetta sem fingir interesse.

—        Vou comprar um terreno nas ilhas Cayman. Bem, não exatamente; vamos comprar minha noiva e eu, juntos. Ela ganha mais dinheiro que eu, diz. — O que acha? Eu sou médico e ela é ajudante de um advogado, nem sequer é uma advogada de verdade e ganha mais do que eu.

—        Nunca soube que tivesse cursado patologia forense por dinheiro.

—        Não me meti nisto com a intenção de continuar pobre.

—        Nesse caso, deveria pensar em se dedicar a outra coisa, Joe.

—        Pois não me dá a impressão de que a você não falte dinheiro.

 

Vira-se até ela quando param em um sinal. Scarpetta sente seu olhar.

 

—        Imagino que não cai mal ter uma sobrinha tão milionária quanto Bill Gates, adiciona. — E um noivo de uma família rica da Nova Inglaterra.

—        Que está insinuando exatamente? Diz Scarpetta, pensando em Marino. Pensa em suas reconstituições de crimes.

—        Que é fácil não se preocupar com dinheiro quando se tem em abundância. E, quem sabe,  você não o ganhou exatamente.

—        Minhas finanças não são de sua incumbência, porém, se trabalhar tantos anos quanto eu trabalhei e for inteligente, poderá ficar muito bem.

—        Depende do que queira dizer com isso de «ficar».

 

Scarpetta como Joe era impressionante no papel. Quando solicitou a entrada para a Academia, parecia que seria o estudante mais promissor que tivera. Não entende como pôde errar tanto.

 

—        Nenhum dos seus, que eu saiba, se limita a participar, afirma Joe, cada vez mais sarcástico. — Até Marino ganha mais do que eu.

—        E como você sabe quanto ganham?

 

O Departamento de Polícia de Hollywood aparece em frente, à esquerda. É um edifício de concreto de quatro andares tão próximo a um campo de golfe que não é raro bolas perdidas sobrevoarem a cerca e atingirem os carros patrulha. Acha o apreciado Corvette vermelho de Joe em um lugar longínquo, afastado da trajetória de qualquer coisa que o pudesse tocar sequer de raspão. 

 

—        Todo o mundo sabe mais ou menos quanto ganham os demais, está falando Joe. — É de domínio público.

—        Não é.

—        Em um lugar tão pequeno não se pode guardar um segredo.

—        A Academia não é tão pequena assim e nela existem muitas coisas confidenciais. Como os salários.

—        Eu deveria ganhar mais. Marino não é um puto médico, apenas terminou o instituto e ganha mais do que eu. E Lucy, a única coisa que faz, é andar por ali brincando de ser agente secreto com suas Ferraris, seus helicópteros, seus aviões e suas motos. Gostaria de saber que diabos ela faz para ter todas essas coisas. É um peixe gordo, uma supermulher, pura arrogância, pura pose. Não é estranho que os alunos a detestem tanto.

 

Scarpetta para o carro atrás do Corvette e se volta para Joe com o semblante mais sério do que nunca.

 

—        Joe, fala, — Falta um mês. Vamos passá-lo em paz.

 

 

Na opinião profissional da doutora Self, a causa das maiores dificuldades na vida de Marino é a expressão de seu rosto, que ela vê neste preciso momento.

 

É a sutileza dessa expressão facial de negatividade, que contradiz a expressão facial em si, que dificultam as coisas. Quando ele precisa de algo a expressão o torna mais difícil. Quem dera que ela não precisasse ser sutil para se aproximar de seus medos secretos, as coisas que detesta, suas imoralidades, sua insegurança sexual, seu fanatismo e outras negatividades reprimidas. A doutora ainda detecta a tensão em sua boca e em seus olhos, o que outras pessoas provavelmente não o fazem, pelo menos não de forma consciente. Entretanto inconscientemente a captam e reagem em consequência.  

 

Marino é frequentemente vítima de insultos, o tratam mal, com falta de sinceridade, o rechaçam e o traem. Ele mesmo procura as confusões. Afirma ter matado várias pessoas ao longo de sua exigente e perigosa carreira. Fica claro que quem quer que seja suficientemente insensato para se meter com ele, sai pior do que merece, porém Marino não vê assim. Acha que a pessoas se metem com ele sem motivo algum. Segundo ele, essa hostilidade tem a ver em parte com seu trabalho. A maioria de seus problemas nascem dos prejuízos, porque se criou pobre em Nova Jersey. Não entende por que as pessoas o prejudicaram a vida toda, diz com frequência.

 

Nas últimas semanas tem ficado pior. E esta tarde está pior ainda.

 

—        Nos minutos que nos restam, vamos falar de Nova Jersey. A doutora Self lembra que a sessão está a ponto de terminar. — Na semana passada mencionou Nova Jersey várias vezes. Por que pensa que esse lugar continua tendo importância?

—        Se você tivesse se criado em Nova Jersey, saberia por que, replica Marino, e a expressão de seu rosto se intensifica.

—        Isto não é uma resposta, Pete.

—        Meu pai era um bêbado. Ficávamos no lado errado das vias. As pessoas continuam me vendo como uma pessoa de Nova Jersey, e ai me arrancam tudo.

—        Quem sabe deva ser ao rosto que põe, Pete, não ao que os demais põem, repete a doutora. — Quem sabe você seja a causa de tudo.

 

Nesse momento o telefone situado na mesa contigua à poltrona de couro da doutora Self toca e no rosto de Marino aflora a mesma expressão, desta vez muito mais intensa. Não gosta que uma ligação interrompa sua sessão, embora a doutora não atenda. Não compreende por que continua utilizando uma tecnologia tão antiquada em lugar da secretária eletrônica, que é silenciosa e não faz ruidozinhos quando alguém deixa uma mensagem, que não irrita, lembra a miúdo à doutora. Ela, discretamente, olha o relógio de pulso, grande e de ouro, com números romanos que enxerga bem sem os óculos.

 

Dentro de doze minutos terminará a sessão. Pete Marino tem dificuldades com os finais, com tudo o que termina, se extingue, ou morre. Não é por casualidade a doutora Self programa suas conversas para as últimas horas da tarde, preferivelmente ao redor das cinco, quando começa a escurecer e cessam os chuviscos e as tempestades do meio-dia. Marino é um caso curioso; se não fosse assim, ela não o trataria. É só questão de tempo para conseguir convencê-lo a ir como paciente convidado a seu programa de rádio ou talvez a seu espaço na televisão. Seria impressionante diante da câmera, muito melhor do que esse insípido e néscio doutor Amos.

 

Nunca teve um policial como convidado. Quando ela foi a palestrante convidada de uma sessão de verão da Academia Nacional de Medicina Legal, e ele se sentou a seu lado, colocou na cabeça que aquele homem poderia ser um convidado fascinante para seu programa, possivelmente um convidado assíduo. Desde aquela época, necessitava de terapia. Bebia demasiado. Tomou quatro whiskies diante dela. Fumava, se notava no hálito. Também comia compulsivamente: serviu-se de três pastéis. Quando ela o conheceu se encontrava próximo da autodestruição, cheio de ódio até de si mesmo.

 

—        Eu posso ajudá-lo, disse naquela noite.

—        Em que? Reagiu como se o tivesse chutado por baixo da mesa.

—        Com suas tempestades, Pete. Suas tempestades internas. Fale-me de suas tempestades. Afirmo o mesmo que afirmei a todos estes jovens alunos tão inteligentes. Pode dominar esse tempo intempestivo, pode fazer o que quiser. Pode ter tempestades ou tempo ensolarado. Pode agachar-se e esconder-se ou caminhar ao descoberto.

—        Em meu tipo de trabalho, preciso ter cuidado de caminhar ao descoberto, disse ele.

—        Eu não quero que se mate Pete. Você é um homem interiormente grande, inteligente, aposto. Eu quero que continue muito tempo conosco.

—        Entretanto se nem sequer me conhece.

—        Conheço-o melhor do que você imagina.

 

E começou a vê-la. Ao cabo de um mês, reduziu a dose de álcool e tabaco e emagreceu cinco quilos.

 

—        Agora mesmo não tenho esse rosto. Não sei do que fala, diz Marino apalpando-se com os dedos como faria um cego.

—        Sabe que tem. No instante em que parou de chover, você adotou essa expressão. Pete, seja o que for o que sente, se reflete no seu rosto, afirma com ênfase. — Me pergunto se essa expressão não é da época de Nova Jersey. O que acha?

—        Acho que tudo isto é uma bobagem. No princípio vim vê-la porque não conseguia deixar de fumar e estava comendo e bebendo um pouco de mais. Não vim porque tivesse uma expressão estúpida no rosto. Nunca reclamaram que eu tivesse uma expressão estúpida no rosto. Ela não me deixou por culpa de nenhum rosto que eu tivesse. Nenhuma das mulheres com quem saí o fez.

—        E a doutora Scarpetta?

 

Marino fica tenso, pois uma parte dele sempre foge quando surge o tema Scarpetta. A doutora Self esperou intencionadamente que a sessão estivesse a ponto de terminar para colocar o tema Scarpetta.

 

—        Agora mesmo deve estar no depósito.

—        Sempre está, mesmo que não seja como paciente... Comenta a doutora com ligeireza.

—        Hoje não estou com humor para brincadeiras. Trabalhava em um caso e me afastaram dele. Ultimamente, essa é a história de minha vida.

—        Foi Scarpetta quem o afastou?

—        Não teve tempo de fazê-lo. Eu não desejava que se criasse um conflito de interesses, assim não assisti à autópsia, porque alguém poderia me acusar de algo. Além disso, é bastante óbvio do que morreu essa mulher.

—        Acusá-lo de que?

—        As pessoas estão sempre me acusando de algo.

—        Na semana que vem falaremos de sua mania de perseguição. Tudo termina girando ao redor da expressão de seu rosto. Não acredita que Scarpetta pode ter captado alguma vez esse gesto? Porque eu estou certa de que sim. Deveria perguntar.

—        Isto é uma puta merda.

—        Lembre que o que falamos nos aproxima dos fatos. Lembre o pacto que fizemos. Falar sobre fatos não é mais do que uma representação. Eu quero que me fale o que sente não que me faça uma interpretação.

—        Pois o que sinto é que isto é uma puta merda. A doutora Self sorri como se fosse uma criança travessa que necessita de uma palmada. — Não teria iniciado isto porque tenho uma expressão concreta no rosto, uma expressão que você acha que eu tenho e que eu acho que não tenho.

—        Por que não pergunta a Scarpetta a respeito?

—        Porque sinto que não devo fazê-lo.

—        Falemos disso, sem representar.

 

Realiza-se ao falar isso. Pensa na frase com que promove seu programa na rádio: «Fale disso com a doutora Self».

 

—        O que aconteceu hoje? Pergunta a seu paciente.

—        Está brincando comigo? Encontrei com uma anciã à que haviam estourado a cabeça. E não adivinha quem era o detetive?

—        Eu diria que é você, Pete.

—        Não estou precisamente no comando, replica ele. — Nos velhos tempos estaria. Já falei isso. Posso ser o investigador do assassinato e ajudar o médico. Entretanto não posso responsabilizar-me globalmente pelo caso a não ser que a jurisdição à que corresponda me passe, e Reba não fará isso de modo nenhum. Ela não sabe uma merda.

—        Que eu me lembre, você teve contato com ela até que ela lhe faltou ao respeito e tentou humilhá-lo, segundo o que você me disse.

—        Não deveria ser uma puta detetive, exclama Marino com o rosto congestionado.

—        Fale-me disso.

—        Não posso falar de meu trabalho. Nem sequer com você.

—        Não estou pedindo detalhes de casos nem de investigações, embora possa me falar o que quiser. O que acontece nesta sala jamais sai daqui.

—        A menos que comente pelo rádio ou por esse novo programa de televisão que tem agora.

—        Isto não sai no rádio nem na televisão, ela responde com outro sorriso. — Se quiser ir a um dos programas, posso ajeitar. Sua participação seria muito mais interessante que a do doutor Amos.

—        Esse é um imbecilem tempo integral.

—        Pete... Adverte a doutora, com amabilidade naturalmente. — Sei muito bem que não gosta do doutor Amos e que também tem ideias paranoicas sobre ele. Neste momento nesta sala não tem nenhum microfone nem nenhuma câmera, tão só você e eu.

 

Marino olha ao redor como se não estivesse certo de acreditar nela e diz:

 

—        Não gostei que falasse com ele justo diante do meu nariz.

—        Suponho que se refere à Benton e Scarpetta.

—        Me obriga a reunir com ela e agora se põe a falar por telefone tendo a mim sentado à frente.

—        Se parece muito ao que acontece quando meu telefone faz ruídos.

—        Poderia ter ligado quando eu não estivesse. Fez de propósito.

—        É um costume que tem, não é verdade? Comenta a doutora Self. Questionar a sua amante diante de você quando sem dúvida sabe o que sente, mas têm suspeitas.

—        Suspeitas? De que? Ele é uma criança rica, um antigo elaborador de perfis do FBI de fancaria.

—        Isto não é verdade. É psicólogo forense, membro do professorado de Harvard, e provém de uma distinta família da Nova Inglaterra. Parece bastante impressionante.

 

Ela não conhece Benton. Gostaria de conhecê-lo. Ficaria feliz em tê-lo em seu programa.

 

—        É uma velha glória. As velhas glórias se dedicam a ensinar.

—        Acho que ele faz alguma coisa a mais do que ensinar.

—        É uma puta sacanagem.

—        Parece que as maiorias das pessoas que conhece já são velhas glórias. Inclusive Scarpetta. Também disse isso dela.

—        Eu falo como vejo.

—        Me pergunto se você não se sente também uma velha glória.

—        Quem, eu? Está de brincadeira? Eu sou capaz de levantar o dobro do meu peso, e o outro dia estive correndo na rua. A primeira vez em vinte putos anos.

—        Está quase acabando o nosso tempo, lembra a doutora de novo. — Falemos de sua raiva de Scarpetta. Tem a ver com confiança, não é?

—        Tem a ver com respeito. Com o fato de que me trata como se fosse um merda e de que mente para mim.

—        Você pensa que ela já não confia em você pelo que aconteceu o verão passado nesse lugar de Knoxville em que estão realizando todas essas investigações sobre cadáveres. Como se chama? A Investigação da Morte ou algo assim.

—        A Granja de Corpos.

—        Ah, sim.

 

Que interessante tema de conversa para falar em um de seus programas: «A Granja de Corpos não é o nome de um balneário”. O que é a morte? Fale disso com a doutora Self». Já tem a frase de promoção.

 

Marino consulta seu relógio levantando o pulso com teatralidade para ver as horas, como se não se importasse que estivesse a ponto de esgotar o tempo, como se estivesse desejando isso.  Entretanto ela não se deixa enganar..

 

—        Medo. A doutora Self inicia seu resumo. — Um medo existencial de não valer para ninguém, de não ser importante para ninguém, de estar completamente só. Quando termina o dia, quando termina a tempestade. Quando acabam as coisas. Dá medo que acabem as coisas, não é verdade? Acaba o dinheiro, acaba a saúde, acabam a juventude e o amor. Talvez acabe a sua relação com a doutora Scarpetta? Ou pode ser que finalmente a refaça?

—        Não há nada para acabar, exceto o trabalho, e isso vai durar para sempre porque as pessoas são uma merda e continuarão matando-se muito depois de eu receber minhas asinhas de anjo. Não penso voltar mais aqui para ouvir todas estas sandices. A única coisa que você faz é falar da doutora. Acho que é bastante óbvio que meu problema não é ela.

—        Agora sim que temos que deixá-lo. Levanta-se de sua poltrona e sorri.

—        Parei de tomar esse remédio que me receitou. Faz já um par de semanas, porém me esqueci de contar. Marino se levanta também e sua enorme presença parece encher a sala. — Não faz nenhum efeito, assim parei, diz.

 

Quando Marino está de pé, a doutora Self sempre fica um pouco surpreendida de como é grande. Suas mãos bronzeadas pelo sol lembram luvas de beisebol ou dois melões. Imagina-o afundando o crânio ou pescoço de alguém, fazendo picadinho dos ossos de outra pessoa como se foram batatas fritas.

 

—        Falaremos do Effexor a semana que vem. Marcaremos para... Apanha a agenda de consultas, — Na próxima segunda às cinco.

 

Marino olha pela porta aberta, escudrinhando a pequena e ensolarada sala exterior, com sua mesa, suas duas poltronas e suas plantas, várias delas palmeiras, tão altas que quase tocam o teto. Não existem outros pacientes esperando, nunca a esta hora do dia.

 

—        Sim, responde. — Menos mal que nos apressamos e terminamos na hora. Odeio fazer as pessoas esperarem.

—        Me pagará na próxima consulta? É a maneira que a doutora Self tem de recordar que lhe deve trezentos dólares.

—        Sim, sim. Esqueci o talonário de cheques, responde.

 

Naturalmente que esqueceu. Não é sua intenção dever dinheiro à doutora. Pensa em retornar.

 

Benton estaciona seu Porsche em um local reservado para visitas, do outro lado da alta cerca metálica, curvada como uma onda a ponto de romper e coroada por arame farpado em espiral. As torres de vigilância se elevam em cada esquina do recinto, recortadas contra o céu frio e nublado. Paradas em um estacionamento lateral se encontram várias camionetes brancas e sem distintivos, que têm painéis divisórios de aço, sem janelas nem portas interiores; são celas que são utilizadas para apanhar do recinto a pessoas como Basil.

 

Os oito andares de concreto com janelas protegidas por tecido de aço do hospital estatal Butler ocupam uma superfície de oito hectares. Rodado de bosques, o edifício se encontra a menos de uma hora a sudoeste de Boston. Ao Butler enviam a quem infringe a lei devido a alguma enfermidade mental; é considerado um modelo de bom tratamento por suas condições especiais de alojamento, onde cada um é especializado em acolher pacientes que requerem diferentes graus de segurança e de atenção. No Pavilhão D, independente e não muito longe do edifício de Administração, se alojam aproximadamente uma centena de perigosos criminosos.

 

Segregados do resto do hospital, passam a maior parte do dia, dependendo de sua condição, em celas individuais, cada uma delas com seu banheiro, que podem utilizar dez minutos ao dia. Os vasos sanitários podem ser utilizados duas vezes por hora. O Pavilhão D tem um grupo de psiquiatras forenses e de outros profissionais do sistema judicial e de saúde mental, que entram e saem, como Benton, com regularidade. Dizem que o Butler é um espaço humano e construtivo, um lugar onde se restabelecer. Entretanto para Benton não é mais que um belo lugar de confinamento de máxima segurança para pessoas que jamais poderão se reabilitar. Não abriga ilusões. Os indivíduos como Basil não têm uma vida e nunca a tiveram. São criminosos e sempre serão se tiverem oportunidade.

 

No vestíbulo pintado de branco, Benton se aproxima de um vidro blindado e fala por um intercomunicador.

 

—        Como vai, George?

—        Não muito melhor que da última vez que me perguntou.

—        Lamento que fale isso, diz Benton. Nesse instante, um sonoro rangido metálico permite a entrada na primeira série de portas herméticas. — Isto quer dizer que ainda não o convenceram a ver o seu médico?

 

A porta se fecha às suas costas e ele deposita sua maleta sobre uma mesinha metálica. George tem sessenta e tantos anos e nunca está bem. Odeia seu trabalho, a sua esposa, o tempo que faz. Também odeia os políticos e, quando pode, retira a fotografia do governador que fica na parede do vestíbulo. Está a um ano lutando contra o esgotamento extremo, problemas de estômago e a sensação de que lhe dói todo o corpo. Também odeia os médicos.

 

—        Não penso em tomar remédios. Para que? Isto é o que fazem agora os médicos, enchê-lo de remédios. George revista a maleta de Benton antes de devolvê-la. — Seu amigo está no lugar de sempre. Que se divirta.

 

Outro rangido e Benton atravessa uma segunda porta de aço. Um guarda de uniforme marrom, Geoff, o conduz por um corredor muito brilhante e o faz passar por outra série de portas herméticas que ficam na unidade de segurança máxima em que os trabalhadores de saúde mental e os advogados se reúnem com os internos em umas salas pequenas e sem janelas, de ladrilhos cinzentos.

 

—        Basil diz que não lhe entregam a correspondência, comenta Benton. 

—        Basil diz muitas coisas, responde Geoff sem sorrir. — A única coisa que faz é reclamar. Em seguida abre uma porta de aço cinzenta para que Benton entre.

—        Obrigado, diz Benton.

—        Estarei aqui mesmo. Geoff dirige um olhar fulminante para Basil e fecha a porta.

 

Basil está sentado a uma mesinha de madeira e não se levanta. Não está algemado e está usando a roupa normal da cadeia: calça azul, camiseta branca e sandálias com meias. Tem os olhos injetados de sangue e o olhar distraído.

 

—        Como está, Basil? Pergunta Benton sentando em frente a ele.

—        Tive um mal dia.

—        Isto me disseram. Fale.

—        Estou nervoso.

—        Está dormindo bem?

—        Passo quase toda a noite acordado. Não paro de pensar em nossa conversa.

—        Parece agitado, fala Benton.

—        É que não consigo ficar quieto. É por culpa do que disse. Preciso de algo, doutor Wesley. Preciso de Ativam ou que seja. Já viu as imagens?

—        Que imagens?

—        As de minha cabeça. Deve tê-las visto, sei que é um homem curioso. Por aqui todo o mundo sente curiosidade, não é? Fala com um sorriso nervoso.

—        É para isso que queria me ver?

—        Principalmente.. Além disso, quero minha correspondência. Não querem me dar e eu não posso comer nem dormir, alterado e estressado que estou. E quem sabe também um pouco de Ativam. Espero que tenha pensado naquilo.

—        Em que?

—        No que contei da mulher que foi assassinada.

—        A mulher da Loja de Natal.

—        Dez-quatro.

—        Sim, estive pensando no que me contou, Basil, afirma Benton, como se aceitasse que o que falou Basil é verdadeiro.

 

Não pode deixar que descubram que ele pode identificar quando um paciente está mentindo, em nenhum caso. Neste não está certo de que Basil minta, nem muito menos.

 

—        Voltemos a esse dia de julho, há dois anos e meio, propõe Benton.

 

Marino se irrita porque a doutora Self fechou a porta e passou imediatamente o ferrolho, como se ele não existisse. Se sente insultado por esse gesto e pelo que implica. Sempre lhe acontece o mesmo. Ela não se importa, ele não passa de um cliente. Alegra-se de encerrar no horário e de não precisar suportar sua companhia até a próxima semana, e então aguentará cinquenta minutos justos, nem um segundo mais, embora tenha deixado de tomar os remédios. O remédio é uma merda. Se quer se deprimir, tome um antidepressivo que anule as relações sexuais.

 

Fica um instante de pé em frente à porta fechada do consultório, no ensolarado portal, contemplando com expressão aturdida as duas poltronas com almofadas verde claro e a mesa de vidro verde com uma pilha de revistas. Já leu todas as revistas, porque sempre chega cedo às consultas. Isto também o irrita. Preferiria chegar tarde, passar à sala como se tivesse melhores coisas a fazer do que ir ao médico, porém se ele se atrasa perde minutos, e não pode se permitir o luxo de perder nem sequer um, quando cada minuto conta e custa tão caro.

 

Seis dólares, para ser exatos. Cinquenta minutos e nem um mais, nem um segundo a mais. A doutora não vai exceder-se um ou dos minutos por acaso, nem como gesto de boa vontade nem por nenhum outro motivo. Poderia ameaçar se matar, que ela olharia o relógio de pulso e diria: «Temos que encerrar.» Ele poderia estar contando um caso de assassinato, a ponto de apertar o gatilho, que ela diria: «Temos que encerrar».

 

—        Entretanto não sente curiosidade? Perguntou no passado. — Como pode terminar assim, de repente, quando nem cheguei ainda à parte interessante?

—        Me contará o resto na próxima ocasião, Pete. Sempre sorri.

—        Não. Terá sorte se eu contar, ponto. Muitas pessoas pagariam para conhecer o resto da história, a história verídica.

—        Na próxima ocasião.

—        Esqueça. Não haverá próxima ocasião.

 

A doutora não discute com ele quando é hora de encerrar. Faça o que fizer para roubar outro minuto, ou dois, ela se levanta, abre a porta e espera que saia para passar o ferrolho. Quando é hora de encerrar, não existe negociação. Seis dólares o minuto, em troca de quê? De ser insultado. Não sabe por que continua voltando.

 

Observa a pequena piscina em forma de rim com sua borda de azulejos espanhóis em cores. Observa as flores e as árvores carregados de fruta, as faixas vermelhas pintadas ao redor dos troncos. Mil e duzentos dólares ao mês. Por que o faz? Com esse dinheiro poderia comprar uma dessas camionetes Dodge com motor Viper V-10. Com mil e duzentos dólares por mês poderia comprar um monte de coisas.

 

Nisto ouve a voz da doutora atrás da porta fechada. Está ao telefone. Marino finge ler uma revista e escuta.

 

—        Perdão, quem é? Está falando a doutora Self.

 

Possui uma voz potente, uma voz radiofônica, que se projeta e transmite tanta autoridade como uma arma ou uma placa. Essa voz agarra de verdade. Gosta dela e ela também causa certo efeito sobre ele. E é bonita, é muito bonita, tanto que fica difícil sentar-se em frente a ela e imaginar outros homens sentados nessa mesma poltrona e vendo o que ele vê: esse cabelo escuro e essas feições delicadas, esses olhos brilhantes e esses dentes brancos e perfeitos. Não gosta que tenha começado a aparecer em um programa de televisão, não quer que outros homens vejam o sensual que ela é.

 

—        Quem é você e como conseguiu este número? Diz ela ao outro lado da porta fechada. — Não, não está e tampouco atende pessoalmente esse tipo de ligação. Quem é você?

 

Marino escuta, cada vez mais inquieto no ensolarado portal. Faz uma tarde quente e a água goteja das árvores e se condensa sobre a grama. A doutora Self não parece muito contente; fala com alguém a quem pelo visto não conhece.

 

—        Compreendo sua preocupação pela privacidade e estou certa de que entende que não é possível verificar a veracidade de sua afirmação se não diz quem é. Estas coisas têm que se submeter a uma ordem e ser verificada, do contrário a doutora Self não pode se ocupar delas. Entretanto isso é uma alcunha e não um nome autêntico. Ah, sim, entendo. Muito bem.

 

Marino se da conta de que ela está fingindo ser outra pessoa. Não sabe quem fala no telefone e isso a coloca nervosa.

 

—        Sim, muito bem, diz a pessoa que finge ser. — Pode fazer isso. Naturalmente, pode falar com o produtor. Reconheço que é interessante, certo, porém tem de falar com o produtor. Sugiro que o faça imediatamente porque o próximo programa trata desse tema. Não, o de rádio não; o novo programa de televisão, diz com a mesma voz firme, uma voz que atravessa com facilidade a madeira da porta e se derrama sobre o portal.

 

Por telefone fala muito mais alto do que durante as sessões. Isto é bom; não ficaria bem se os outros pacientes sentados no portal ouvissem tudo o que diz a Marino durante os breves, porém intensos cinquenta minutos de consulta. Quando estão juntos após essa porta fechada ela não fala tão alto. Claro, durante sua sessão nunca tem alguém aguardando no portal; ele sempre é o último, razão a mais para que afrouxasse um pouco e adicionasse uns quantos minutos. Ninguém esperaria, porque nunca tem alguém. Nunca. Um destes dias vai dizer algo tão importante e tão comovedor que concederá uns minutos adicionais. Pode ser que seja a primeira vez que faça algo assim em sua vida, e o fará com ele. E pode ser que nessa ocasião não seja ele quem disponha de mais tempo.

 

«Tenho de ir». Imagina-a falando, «Por favor, termine. Estou desejando saber o que aconteceu». «Não posso. Tenho que ir a um lugar». Se levanta da poltrona. «Na próxima ocasião. Prometo que contarei como acaba, quando... Vamos ver... Na semana que vem. Lembre-me».

 

Marino se dá conta de que a doutora Self já não está ao telefone; então cruza o portal silencioso como uma sombra e sai pela porta de vidro. Fecha-a sem fazer ruído e toma o caminho que rodeia a piscina, atravessa a horta de cítricos pintados com uma faixa vermelha e passa junto à pequena casa branca de estuque em que mora a doutora Self, porém não deveria morar. Simplesmente, não convém viver ali. Qualquer um poderia chegar andando até a porta da sua casa. Poderia até chegar andando ao seu consultório, situado na parte de trás, junto à piscina sombreada pelas palmeiras. Não é seguro. Todas as semanas escutam-na milhões de pessoas e ela morando desta maneira. Não é seguro. Deveria dar meia volta, bater à porta e falar isso.

 

Marino se irrita porque a doutora Self fechou a porta e passado imediatamente o ferrolho, como se o excluísse. Se sente insultado por esse gesto e pelo que implica. Sempre lhe acontece o mesmo. Ela não se importa, ele não passa de uma consulta. Alegra-se de encerrar no horário e de não precisar suportar sua companhia até a próxima semana, e então aguentará cinquenta minutos justos, nem um segundo mais, embora tenha deixado de tomar os remédios. O remédio é uma merda. Se quiser se deprimir, tome um antidepressivo que anule as relações sexuais.

 

Permanece uns instantes de pé frente à porta fechada do consultório, no ensolarado portal, contemplando com expressão aturdida as duas poltronas com almofadas verde claro e a mesa de vidro verde com uma pilha de revistas. As revistas já as leu todas, porque sempre chega cedo as consultas. Isto também o irrita. Preferiria chegar tarde, passar à sala como se tivesse melhores coisas a fazer do que ir ao médico, porém se ele se atrasa perde minutos, e não pode se permitir o luxo de perder nem sequer um, quando cada minuto conta e custa tão caro.

 

Seis dólares, para ser exatos. Cinquenta minutos e nem um mais, nem um segundo a mais. A doutora não vai exceder-se um ou dos minutos por acaso, nem como gesto de boa vontade nem por nenhum outro motivo. Já poderia ameaçá-la em se matar, que ela olharia o relógio de pulso e diria: «Temos que terminar.» Ele poderia estar contando um caso de assassinato, a ponto de apertar o gatilho, que ela diria: «Temos que terminar».

 

—        Entretanto não sente curiosidade? Perguntou no passado. — Como pode terminar assim, de repente, quando nem cheguei ainda à parte interessante?

—        Me contará o resto na próxima ocasião, Pete. Sempre sorri.

—        Não. Terá sorte se eu contar, ponto. Muitas pessoas pagariam para conhecer o resto da história, a história verídica.

—        Na próxima ocasião.

—        Esqueça. Não haverá próxima ocasião.

 

A doutora não discute com ele quando é hora de terminar. Faça o que fizer para roubar outro minuto, ou dois, ela se levanta, abre a porta e espera a que saia para passar o ferrolho. Quando é hora de terminar, não existe negociação. Seis dólares o minuto, em troca de que? De ser insultado. Não sabe por que continua voltando.

 

Observa a pequena piscina em forma de rim com sua borda de azulejos espanhóis em cores. Observa as flores e as árvores carregados de fruta, as faixas vermelhas pintadas ao redor dos troncos. Mil e duzentos dólares ao mês. Por que o faz? Com esse dinheiro poderia comprar uma dessas camionetas Dodge com motor Viper V-10. Com mil e duzentos dólares ao mês poderia comprar um monte de coisas.

 

Nisto ouve a voz da doutora atrás da porta fechada. Está ao telefone. Marino finge ler uma revista e escuta.

 

—        Perdão, quem é? Está falando a doutora Self.

 

Possui uma voz potente, uma voz radiofônica, que se projeta e transmite tanta autoridade como uma arma ou uma placa. Essa voz agarra de verdade. Gosta dela e ela também causa certo efeito sobre ele. E é bonita, é muito bonita, tanto que fica difícil sentar-se em frente a ela e imaginar outros homens sentados nessa mesma poltrona e vendo o que ele vê: esse cabelo escuro e essas feições delicadas, esses olhos brilhantes e esses dentes brancos e perfeitos. Não gosta que tenha começado a sair em um programa de televisão, não quer que outros homens vejam a sensual que ela é.

 

—        Quem é você e como conseguiu este número? Diz ela ao outro lado da porta fechada. — Não, não está e tampouco atende pessoalmente esse tipo de ligação. Quem é você?

 

Marino escuta, cada vez mais inquieto no ensolarado portal. Faz uma tarde calorosa e a água goteja das árvores e se condensa sobre a grama. A doutora Self não parece muito contente; fala com alguém a quem pelo visto não conhece.

 

—        Compreendo sua preocupação pela privacidade e estou certa de que entende que não é possível verificar a veracidade de sua afirmação se não diz quem é. Estas coisas têm que se submeter a um seguimento e serem verificadas, do contrário a doutora Self não pode se ocupar delas. Entretanto isso é uma alcunha não um nome autêntico. Ah, sim, entendo. Muito bem.

 

Marino se da conta de que está fingindo ser outra pessoa. Não sabe quem fala no telefone e isso a coloca nervosa.

 

—        Sim, muito bem, diz a pessoa que finge ser. — Pode fazer isso. Naturalmente, pode falar com o produtor. Reconheço que é interessante, certo, porém tem de falar com o produtor. Sugiro que o faça imediatamente porque o próximo programa trata desse tema. Não, o de rádio não; meu novo programa de televisão, diz com a mesma voz firme, uma voz que atravessa com facilidade a madeira da porta e se derrama sobre o portal.

 

Por telefone fala muito mais alto do que durante as sessões. Isto é bom; não ficaria bem se os outros pacientes sentados no portal ouvissem tudo o que diz a Marino durante os breves, porém intensos cinquenta minutos que passam juntos. Quando estão juntos após essa porta fechada ela não fala tão alto. Claro, durante sua sessão nunca tem alguém aguardando no portal; ele sempre é o último, razão a mais para que afrouxasse um pouco e adicionasse uns quantos minutos. Ninguém esperaria, porque nunca tem alguém. Nunca. Um destes dias vai dizer algo tão importante e tão comovedor que concederá uns minutos adicionais. Pode ser que seja a primeira vez que faça algo assim em sua vida, e o fará com ele. E pode ser que nessa ocasião não seja ele quem disponha de mais tempo.

 

«Tenho que ir», imagina-a falando. «Por favor, termine. Estou desejando saber o que aconteceu». «Não posso. Tenho que ir a um lugar». Se levanta da poltrona. «Na próxima ocasião. Prometo que contarei como acaba, quando... Vamos ver... Na semana que vem. Lembre-me».

 

Marino se dá conta de que a doutora Self já não está ao telefone; então cruza o portal silencioso como uma sombra e sai pela porta de vidro. Fecha-a sem fazer ruído e toma o caminho que rodeia a piscina, atravessa a horta de cítricos pintados com uma faixa vermelha e passa junto à pequena casa branca de estuque em que mora a doutora Self, porém não deveria morar. Simplesmente, não convém viver ali.

 

Qualquer um poderia chegar andando até a porta da sua casa. Poderia até chegar andando ao seu consultório, situado na parte de trás, junto à piscina sombreada pelas palmeiras. Não é seguro. Todas as semanas a escutam milhões de pessoas e ela morando desta maneira. Não é seguro. Deveria dar meia volta, bater na porta e falar isso.

 

Sua decorada Screamin Eagle Deuce está estacionada na rua; dá uma volta a seu redor para certificar-se de que ninguém tenha feito algo enquanto estava com a doutora. Pensa no pneu furado. Quando colocar as mãos em cima de quem fez isso, seja quem for... Uma ligeira capa de pó cobre a pintura azul e os cromados, e isso o irrita profundamente. Limpou a moto esta manhã, poliu centímetro a centímetro, e primeiro acontece um pneu furado e agora esta capa de pó. A doutora Self deveria ter um estacionamento coberto, deveria ter uma maldita garagem. Sua bonita Mercedes branca conversível se encontra no caminho de entrada, onde não cabe outro carro, de modo que seus pacientes estacionam na rua. Não é seguro.

 

Desbloqueia a moto e o contato e em seguida passa uma perna por cima do selim, pensando em que gosta muito de não precisar mais viver como o pobre polícia de cidade que foi durante quase toda sua vida. A Academia fornece um Humer H2, negro com motor V8 turbo diesel de 250 cavalos, transmissão de quatro velocidades, área exterior para transportar pesos, elevador e equipamento para todo o terreno. Comprou a Deuce e a decorou tal como pedia o corpo e, além disso, pode se permitir o luxo de ter um psiquiatra.

 

Põe em ponto morto e aperta o botão de ignição enquanto contempla a atraente casinha branca em que mora, porém não deveria morar a doutora Self. Acelera um pouco o motor, fazendo rugir os tubos de escapamento Thunder Head, enquanto, ao longe, se distingue o fulgor dos relâmpagos e um sinistro exército de nuvens que retroceden para descarregar sua artilharia sobre o mar.

 

Basil volta a sorrir.

 

—        Não encontrei nada parecido a um assassinato, está falando Benton. — Porém há dois anos e meio desapareceram uma mulher e sua filha de uma loja chamada A Loja de Natal.

—        Não contei isso? Diz Basil sorrindo.

—        Você não disse nada sobre o desaparecimento de alguém, nem da existência de alguma filha.

—        Não querem me dar a correspondência.

—        Já providenciei isso, Basil.

—        Me disse isso mesmo há uma semana. Quero minha correspondência. E quero hoje. Pararam de me entregar quando tive essa disputa.

—        Quando se aborreceu com Geoff e o chamou de Tio Remus?

—        E por isso não me entregam a correspondência. Acho que cospem na minha comida. Quero toda, toda a correspondência atrasada que estou a um mês esperando. Depois me mudará para outro lugar.

—        Isto eu não posso fazer, Basil. É para seu próprio bem.

—        Então imagino que não quer saber nada, replica Basil.

—        Que tal se eu prometer que terá sua correspondência antes que termine o dia?

—        Ou me entregam ou acabará nossa conversa sobre a Loja de Natal. Estou começando a me encher do seu projetinho científico.

—        A única loja de artigos de Natal que encontrei é uma que havia na praia, diz Benton. — Em catorze de julho desapareceram dali Florrie Quincy e sua filha de dezessete anos, Helen. Lhe diz algo, Basil?

—        Não me dou bem com nomes.

—        Descreva o que se lembra da Loja de Natal, Basil.

—        Árvores com luzes, trenzinhos e muitos enfeites, responde Basil, que já não sorri. — Já contei tudo isso. Fale-me do que encontrou dentro de minha cabeça. Viu as imagens? Aponta para a cabeça. — Deveria ver nelas tudo o que quer saber. Olhe, está me fazendo perder tempo. Quero minha maldita correspondência!

—        Já não prometi?

—        Também havia um baú na parte de trás, um desses grandes. Era uma estupidez. Dentro guardava um monte de enfeites fabricados na Alemanha, em caixas de madeira pintada. Coisas como Hansel e Gretel, Snoopy e Chapeuzinho Vermelho. Guardava debaixo de chave porque eram muito caros e eu disse: «Para quê? A única coisa que um ladrão precisa fazer é levar o baú inteiro. Acha mesmo que guardando estas coisas aqui debaixo de chave vai impedir que as roubassem?»

 

Imediatamente emudece e fica olhando fixamente para a parede de ladrilhos cinzentos.

 

—        O que mais falou com ela antes de matá-la?

—        Eu disse: «Vais morrer, puta.»

—        Em que momento falou do baú?

—        Não fiz nada disso.

—        Entretanto acaba de dizer que...

—        Em nenhum momento disse que falara do baú, replica Basil impaciente. — Quero que me deem algo. Por que não pode me dar algo? Não consigo dormir, não consigo ficar sentado quieto. Me dão ganas de foder tudo e agora entrei em depressão e não consigo me levantar da cama. Quero minha correspondência.

—        Quantas vezes ao dia se masturba? Pergunta Benton.

—        Seis ou sete. Quem sabe dez.

—        Mais do que de costume.

—        Você e eu tivemos nossa conversa à noite e durante o dia não fiz outra coisa. Não me levantei da cama a não ser para urinar e comer. Não me preocupei em tomar banho. Sei onde está essa mulher, diz então. — Quero minha correspondência.

—        A senhora Quincy?

—        Olhe, estou aqui dentro. Basil se reclina na cadeira. — Que tenho a perder? Que incentivo tenho para fazer o certo? Favores, um pouquinho de tratamento especial, colaboração quem sabe. Quero minha puta correspondência.

 

Benton se põe de pé e abre a porta. Fala para Geoff ir à sala do correio e descobrir o que aconteceu com a correspondência de Basil. Pela reação do guarda, descobre que está sabendo o que aconteceu e que não acha nenhuma graça em Basil se ocupar de algo que lhe transforme a vida em mais agradável. Assim, provavelmente é verdade: estavam retendo.

 

—        Preciso que o faça agora mesmo, fala Benton a Geoff, sustentando o olhar. — É importante.

 

Geoff confirma com a cabeça e sai. Benton fecha outra vez a porta e volta a sentar-se à mesa. Quinze minutos depois, Benton e Basil terminam a conversa, um conjunto de desinformação e joguinhos. Benton está chateado, porém dissimula; experimenta uma sensação de alívio quando aparece Geoff.

 

—        Sua correspondência está sobre a cama, lhe esperando, diz Geoff da porta, observando Basil com um olhar inexpressivo e frio.

—        Espero que não tenha roubado as revistas.

—        Não interessa a ninguém suas putas revistas de pesca. Desculpe doutor Wesley. E adiciona, dirigindo-se outra vez a Basil: — Tem quatro em cima da cama.

 

Basil lança a linha de uma imaginária vara de pesca.

 

—        O que escapa sempre é o maior, diz. — Quando eu era pequeno meu pai me levava para pescar. Quando não estava dando uma surra na minha mãe.

—        Estou lhe avisando Basil, diz Geoff. — Estou lhe avisando diante do doutor Wesley. Se voltar a me foder, Jenrette, sua correspondência e suas revistas de pesca não serão o único problema que vai ter.

—        Veja que é a isto me refiro, fala Basil a Benton. — Assim é como me tratam aqui.

 

Na loja, Scarpetta abre uma maleta para recolher provas que trouxe do Humer. Apanha uns vidros de perclorato sódico, carbonato sódico e Luminol, mistura-os com água destilada em um recipiente, agita e transfere a solução para um pulverizador negro.

 

—        Não é exatamente assim que pensava passar a sua semana de férias, não é? Diz Lucy enquanto fixa uma câmera de trinta e cinco milímetros a um tripé.

—        Nada como um pouco de tempo de qualidade, responde Scarpetta. — Pelo menos nos encontramos.

 

As duas estão protegidas com macacões brancos descartáveis, protetores para o sapato, óculos de segurança, máscaras e gorros. A porta do almoxarifado está fechada. São quase oito da noite e, uma vez mais, Apetrechos de Praia fechou antes da hora habitual.

 

—        Me dê só um minuto para fotografar o contexto, diz Lucy enroscando um disparador com o cabo no interruptor da câmera. — Lembra-se da época em que você tinha que usar uma meia?

 

É importante que o pulverizador não saia na fotografia e isso não é possível a não ser que o frasco e a boca sejam negros ou estejam cobertos com algo negro. Se não há outra coisa a mão, uma meia negra cai à perfeição.

 

—        É agradável contar com mais equipamentos, não é? Adiciona Lucy apertando o botão do disparador para abrir a objetiva. — Há muito que não fazíamos algo assim juntas. Seja como for, os problemas de dinheiro não são engraçados.

 

Enquadra uma área das estantes e do chão de concreto com a câmera em posição.

 

—        Não sei, diz Scarpetta. — Sempre os tivemos. Em muitos sentidos era melhor, porque os defensores não tinham uma lista interminável de perguntas às quais temos de contestar de forma negativa: você utilizou um microscópio Mini-CR? Utilizou fita métrica especial? Utilizou marcadores de trajetória à laser? Utilizou ampolas de água estéril? O quê? Utilizou água destilada engarrafada? E a comprou onde? Em um Seven-Eleven? Comprou artigos para recolher provas em uma loja vinte e quatro horas?

 

Lucy tira outra fotografia. 

 

—        Verificou o DNA das árvores, dos pássaros e a grama do jardim? Continua Scarpetta, pondo um pedaço de plástico negro em cima do pedaço de algodão que já tem na mão esquerda. — E pulverizou o setor inteiro em busca de alguma evidência?

—        Parece que está de muito mau humor.

—        E a mim me parece que estou cansada de que me evite. Só liga em ocasiões como esta.

—        Nenhuma melhor.

—        E o que eu sou para você? Um item da sua lista?

—        Não acredito que me pergunte isso. Pronta para que apague a luz?

—        Adiante.

 

Lucy puxa uma corda e apaga a lâmpada do teto. A sala fica completamente às escuras. Scarpetta começa por pulverizar com Luminol uma amostra de sangue de controle, uma única gota de sangue seca sobre um quadrado de papelão: resplandece um momento com um brilho azul esverdeado e se desvanece. Então começa a pulverizar à direita e à esquerda humedecendo áreas ladrilhadas que começam a brilhar intensamente, como se o chão inteiro estivesse em chamas, chamas de neon azul esverdeado.

 

—        Deus santo, exclama Lucy. A objetiva funciona de novo e Scarpetta pulveriza um pouco mais. — Nunca havia visto algo assim.

 

A intensa luminescência azul esverdeada se desvanece após uns segundos ao ritmo lento e fantasmal da pulverização. Quando esta termina, a escuridão volta e Lucy acende a luz. Scarpetta e ela estudam o chão de cimento.

 

—        Eu não vejo nada além de sujeira, diz Lucy, frustrada.

—        Vamos varrer antes de pisá-lo mais do que já pisamos.

—        Merda! Exclama Lucy. — Quem dera que tivéssemos utilizado antes o microscópio Mini-Cr.

—        Poderemos fazê-lo mais tarde, diz Scarpetta.

 

Com ajuda de um pincel limpo, Lucy varre um pouco de sujeira do chão e a coloca em uma bolsa de plástico para provas. Em seguida volta para a câmera e o tripé. Tira mais fotografias do contexto, agora das estantes de madeira; apaga a luz e desta vez o Luminol reage de um modo diferente. Iluminam-se de azul elétrico várias áreas manchadas que dançam como chispas, e a câmera dispara uma e outra vez, e Scarpetta não para de pulverizar, e o intenso azul palpita rapidamente, se ilumina e se apaga muito mais depressa do que é o normal no caso de sangue e da maioria das substâncias que reagem à luminescência química.

 

—        Detergente, diz Lucy, porque várias substâncias dão falsos positivos e o detergente é uma delas; seu aspecto é característico.

—        É algo com um espectro diferente; embora se pareça bastante com detergente, responde Scarpetta. — Poderia ser um produto de limpeza que contenha detergente com base de hipoclorito. Clourox, Drano, Fantastic, The Works, Babo Cleaner, para nomear uns quantos. Não me surpreenderia encontrar algo assim neste lugar. 

—        Ok?

—        Ok.

 

A luz se acende e ambas piscam os olhos ao brilho da lâmpada do teto.

 

—        Basil disse a Benton que havia limpado com detergente, aponta Lucy. — Entretanto o Luminol não vai reagir ao detergente ao cabo de dois anos e meio, não é?

—        Quem sabe, se infiltrou na madeira e ficou tal qual. E digo quem sabe por que não sei o que aconteceu na realidade, não sei se alguém realizou alguma vez uma prova como esta, diz Scarpetta procurando uma lupa com luz em sua bolsa. Em seguida olha através dela pelas bordas das estantes, lotadas de bugigangas e camisetas. — Se olhar bem, agrega, — Distinguirá a madeira um tanto descolorida aqui e acolá. Possivelmente tem um desenho em forma de salpicos.

 

Lucy fica a seu lado e empunha a lupa.

 

—        Acho que vi, anuncia.

 

Hoje esteve entrando e saindo e a ignorou por completo, exceto para trazer-lhe um sanduíche de queijo e mais água. Ele não mora aqui. Nunca está à noite, e se está é mais silencioso que um morto.

 

É noite, porém não sabe se muito ou pouco, e do outro lado da janela a lua se ocultou atrás de umas nuvens. Ouve-o se mover pela casa. Seu pulso acelera quando escuta suas passadas se aproximarem dela e esconde o pequeno tênis rosa às costas porque ele o tirará se descobrir que tem importância para ela. Agora aparece na forma de uma sombra escura que faz desaparecer um longo faixo de luz. Está com a aranha na mão. É a maior aranha que já viu em sua vida.

 

Tenta escutar para ver se ouve Kristin e as crianças enquanto a luz explora seus pulsos e seus tornozelos inchados e em carne viva. A luz explora o colchão e a túnica suja de cor verde escandaloso que tem sobre a parte baixa das pernas. Levanta os joelhos e os braços na tentativa de se cobrir quando a luz toca partes privadas de seu corpo. Encolhe-se sobre si mesma ao notar que ele a está olhando fixamente. Não consegue ver o seu rosto. Não tem ideia de como é. Sempre está de negro. De dia tapa o rosto com o capuz e se veste de negro dos pés a cabeça; de noite não pode vê-lo em absoluto, só distingue uma forma, porque ele lhe tirou os óculos.

 

Foi a primeira coisa que fez quando entrou a força na casa.

 

—        Me dê os óculos, ordenou. — Vamos.

 

Ela ficou paralisada na cozinha. O terror e a incredulidade a haviam deixado insensível. Não conseguia pensar, sentia como se o sangue tivesse escapado de seu corpo. Então o azeite de oliva que havia na frigideira começou a fumegar, as crianças desandaram a chorar e ele apontou a escopeta para elas. Também apontou para Kristin. Estava com o capuz, a roupa negra, quando Tony abriu a porta traseira e ele apareceu. Todo aconteceu muito depressa.

 

—        Me dê os óculos. 

—        Dê para ele, aconselhou Kristin. — Por favor, não nos faça mal. Leve o que quiser.

—        Se não fechar a boca mato a todos.

 

Ordenou as crianças que deitassem de cara para baixo no chão da sala e lhes deu um forte golpe na nuca com a culatra da arma para que não tentassem correr. Depois apagou todas as luzes e ordenou a Ev e a Kristin que arrastassem os corpos inertes das crianças pelo corredor e os apanhou pela porta corrediça do quarto principal. O chão manchou-se de sangue e não deixa de pensar que alguém deve ter visto esse sangue. A estas alturas, alguém deve ter estado na casa tentando descobrir o que aconteceu e deve ter visto o sangue. Onde está a polícia?

 

As crianças não saíram do jardim da piscina e ele as amarrou com cabos de telefone e as amordaçou com toalhas, embora não se movessem nem emitissem nenhum som. Em seguida, obrigou a Ev e a Kristin a ir caminhando na escuridão até o mono volume. Ev ficou ao volante. Kristin se instalou no assento dianteiro e ele se acomodou atrás, com o cano da escopeta apontando para a sua cabeça.

 

Sua voz fria e apagada disse onde devia ir.

 

—        Vou levar vocês a um lugar e depois retornarei para apanhar as crianças, disse a voz fria e apagada enquanto ela dirigia.

—        Por favor, chame alguém, rogou Kristin. — Precisam ir para um hospital. Por favor, não deixe que morram ali. São crianças.

—        Já disse que voltarei para apanhá-los.

—        Precisam de ajuda. Não são mais do que crianças pequenas. Órfãos. Seus pais morreram.

—        Bem, assim ninguém dará falta deles.

 

Sua voz era fria e inexpressiva, inumana, uma voz impessoal e sem sentimentos.

 

Lembra-se de ter visto sinais na estrada que indicavam Naples. Dirigiam-se ao oeste, até as Everglades.

 

—        Não consigo dirigir sem óculos, disse Ev. O coração batia com tanta força que acreditou que ia partir-lhe as costelas. Apenas conseguia respirar. Chegou a sair da calçada e então ele lhe devolveu os óculos, porém voltou a apanhá-los quando chegaram naquele lugar sinistro e horroroso em que se encontra desde então.

 

Scarpetta pulveriza as paredes de ladrilho do banheiro, que brilham formando um desenho, invisível com a luz acesa.

 

—        Limparam, aponta Lucy às escuras.

—        Não vou mexer mais, não quero correr o risco de destruir o sangue, se é que ainda existe. Fotografou?

—        Sim. Acende a luz.

 

Scarpetta apanha um equipamento de análise de manchas de sangue e passa um algodão pelas áreas em que viu reagir o Luminol, introduzindo a ponta do algodão no concreto poroso onde pode haver sangue incrustado, inclusive depois de limpo. Servindo-se de um conta-gotas, coloca sua mistura química sobre o algodão e este passa a ser de uma cor rosa forte, o que pode confirmar que o que brilhou na parede pode ser sangue, possivelmente sangue humano. Terá que verificar no laboratório.

 

Se for sangue, não se surpreenderia que fosse velho, de há dois anos e meio. O Luminol reage à hemoglobina dos glóbulos vermelhos e, quanto mais antigo é o sangue, mais se oxida e mais intensa é a reação. Continua passando o algodão empapado de água destilada, recolhendo amostras e guardando-as dentro de caixas de provas que em seguida etiqueta, com fita e as iniciais. Todo o trabalho durou uma hora, e ela e Lucy sentem calor com os trajes de proteção. Ouvem Larry do outro lado da porta, movendo-se pela loja. Em várias ocasiões toca o telefone.

 

Regressam ao almoxarifado e Lucy abre uma robusta maleta negra e apanha dela uma fonte luminosa forense para um microscópio Mini-Cr, uma unidade metálica portátil, quadrada e com entradas laterais, e uma lâmpada alógena de alta intensidade com braço flexível que parece uma mangueira de aço brilhante. A unidade tem uma luz guia que permite mudar a longitude de onda. Liga o microscópio, aciona o interruptor de corrente e um ventilador começa a zumbir. Ajusta com o comando a intensidade e fixa a longitude de onda em 455 nanômetros. As duas colocam óculos alaranjados que aumentam o contraste e protegem os olhos.  

 

Uma vez apagada a luz, Scarpetta carrega a unidade segurando pela asa e vai passando lentamente a luz azul pelas paredes, as estantes e o chão. O sangue e outras substâncias que reagiram ao Luminol não reagem a esta fonte luminosa, e as áreas que antes brilharam agora permanecem escuras. Entretanto aparecem várias manchas pequenas no chão de um tom vermelho intenso. Acendem a luz e Lucy volta a situar o tripé em posição e põe um filtro alaranjado sobre a lente da câmera. De novo com a luz apagada, fotografa as marcas vermelhas fluorescentes. Com a luz outra vez acesa as manchas apenas são visíveis, não são mais que uma suja decoração de um chão sujo e descolorido, porém ao olhá-lo com a lente de aumento Scarpetta detecta um ligeiríssimo tom vermelho. Seja o for, essa substância não se dissolve em água destilada, e não quer utilizar um solvente e arriscar-se a destruí-la.

 

—        Precisamos apanhar uma amostra. Scarpetta estuda o cimento.

 

Lucy abre a porta e chama Larry, que se encontra uma vez mais atrás do balcão, falando no telefone. Quando alça a vista e a vê coberta de papel plastificado dos pés a cabeça, se surpreende visivelmente.

 

—        Fui transportado em um raio luminoso à estação espacial Mir? Pergunta.

—        Tem ferramentas aqui? É para evitar ir até o carro.

—        Ali atrás tem uma caixa de ferramentas pequena. Na estanteria que está contra a parede. Mostra a parede em questão. — É uma caixa vermelha pequena.

—        Pode ser que eu tenha que estragar um pouco o chão. Só um pouco.

 

Parece que Larry vai dizer algo, porém muda de opinião, encolhe de ombros e ela fecha a porta. Apanha um martelo e uma cunha da caixa e, com uns quantos golpes, faz saltar lascas que contêm parte das manchas vermelhas e as guarda em bolsas de plástico. Em seguida Scarpetta e ela retiram os trajes protetores e os jogam numa lata de lixo. Apanham o equipamento e se vão.

 

—        Por que faz isto? Ev faz a mesma pergunta sempre que ele aparece, falando com voz rouca enquanto ele aponta a luz, que se crava nos olhos dela como se fosse uma faca. — Por favor, afaste esta luz do meu rosto.

—        É a porca mais gorda e feia que vi em minha vida, replica ele. — Não estranho que ninguém goste de você.

—        As palavras não podem me fazer mal. Você não pode me fazer mal. Eu pertenço a Deus.

—        Olhe. Quem ia querer ficar consigo? Pode agradecer que eu preste atenção.

—        Onde estão os outros?

—        Diga que sente. Sabe perfeitamente o que fez. Os pecadores devem ser castigados.

—        Por que fez isso? Faz a mesma pergunta de sempre. — Me solte. Deus te me desculpará.

—        Diga que sente. Empurra-lhe os tornozelos com as botas; a dor é horrível.

—        Deus santo, perdoa-o, reza Ev em voz alta. — Não vais querer ir para o inferno, fala. — Não é demasiado tarde.

 

A noite está muito escura, a lua se vê como uma forma desvaída em uma radiografia, imprecisa atrás das nuvens. Pequenos insetos voam ao redor das lâmpadas da rua. O trânsito não para em nenhum momento e a noite está cheia de ruído.

 

—        O que está lhe chateando? Pergunta Scarpetta a Lucy, que vai ao volante. — Esta é a primeira vez que estamos as duas a sós desde... Não lembro quando. Por favor, fale.

—        Poderia ter chamado Lex. Não era a minha intenção obrigá-la a vir.

—        E eu poderia ter dito que o chamasse. Não era necessário que eu fosse sua sócia esta noite.

 

As duas estão cansadas e de mau humor.

 

—        Pois aqui estamos, diz Lucy. — Me aproveitei deste caso para ter uma oportunidade de que nos coloquemos em dia. Poderia ter chamado Lex, repete, dirigindo com o olhar fixo à frente.

—        Não consigo decidir se está rindo de mim.

—        Em absoluto. Lucy se volta para ela sem sorrir. — Lamento algumas coisas.

—        E com razão.

—        Não precisa se apressar em ficar de acordo. Pode ser que nem sempre saiba como é minha vida.

—        O problema é que eu quero saber. Entretanto você constantemente me deixa de fora.

—        Tia Kay, na verdade não sabe tanto quanto imagina. Alguma vez pensou que estou lhe fazendo um favor? Que quem sabe deveria me ver tal como me conhece e esquecer-se do resto?

—        O que é o resto?

—        Eu não sou como você.

—        No importante sim, Lucy. Nós duas somos inteligentes, decentes, trabalhadoras. Tentamos fazer diferença. Assumimos riscos. Somos honradas. Quando tentamos, tentamos de verdade.

—        Eu não sou tão decente como você pensa. A única coisa que eu faço é machucar as pessoas; Se me dou bem, vou continuando com o tempo. E cada vez que faço me importo menos. Quem sabe eu esteja me convertendo em um Basil Jenrette. Quem sabe Benton deveria me levar para esse seu estudo. Tenho certeza de que minha cabeça é como a de Basil, como todos os demais putos psicopatas.

—        Não sei o que está acontecendo com você, diz Scarpetta reservadamente.

—        Eu creio que é sangue. Lucy faz de novo um de seus cortes bruscos, muda de tema de uma forma tão abrupta que fica chocante. — Acho que Basil está falando a verdade. Acho que matou essa mulher na loja. Tenho a impressão de que será sangue o que encontramos.

—        Esperemos para ver o que dizem no laboratório.

—        Iluminou o chão inteiro. Isto é muito estranho.

—        E por que Basil ia falar nisso? Por que agora? Por que a Benton? Responde Scarpetta. — Isto me intriga. Preocupa, de fato.

—        Com essas pessoas sempre existe um motivo. Por manipulação.

—        Me preocupo.

—        Fala para conseguir algo que deseja. Como poderia inventar?

—        Poderia estar sabendo do desaparecimento dessas pessoas da Loja de Natal. Saiu no jornal e ele era polícia de Miami. Pode ter escutado outros policiais falarem, sugere Scarpetta.

 

Quanto mais falam disso, mais se preocupam que Basil realmente tenha algo a ver com o que aconteceu a Florrie e Helen Quincy. Entretanto não entende como pode violentar e assassinar a mãe na loja; como retirou dali seu cadáver ensanguentado, ou os dois cadáveres, supondo que também tivesse matado Helen.

 

—        Sei, diz Lucy. — Eu também não entendo. E se as matou, por que não as deixou ali, simplesmente? A menos que não queria que soubessem que haviam sido assassinadas, a menos que queria que as dessem por desaparecidas, desaparecidas por vontade própria.

—        Isto me sugere a existência de um motivo, diz Scarpetta. — Não um homicídio sexual compulsivo.

—        Me esqueci de perguntar, diz Lucy. — Estou levando-a para casa, não é?

—        A estas horas, sim.

—        Que vai fazer com Boston?

—        Temos que nos encarregar do lugar do crime da senhora Simister, e neste preciso momento não estou para nada. Já tenho o suficiente por hoje. E Reba provavelmente também.

—        Nos terá dado permissão para entrar, suponho.

—        Sempre que ela nos acompanhe. Faremos já pela manhã. Estou pensando em não ir a Boston, porém isso não é justo com Benton. Não é justo para nenhum dos dois, se queixa Scarpetta, incapaz de eliminar de seu tom de voz a frustração e a desilusão que sente. — Claro, é sempre o mesmo. De repente aparecem casos urgentes para mim e de repente aparecem para ele. Não fazemos outra coisa a não ser trabalhar.

—        Que caso apareceu?

—        Uma mulher que encontraram próxima da lagoa de Walden, nua e com umas peculiares tatuagens falsas no corpo. Acho que as fizeram depois de assassiná-la. Umas impressões de mãos vermelhas.

 

Lucy segura o volante com mais força.

 

—        Porque acha que são falsas?

—        Porque são pintadas. Arte corporal define Benton. Apareceu com um capuz na cabeça, um cartucho de escopeta enfiado no reto, colocada em uma postura especial, degradante, etecetera. Não sei muito ao respeito, porém já saberei.

—        Sabem de quem se trata?

—        Sabem muito pouco.

—        Aconteceu algo parecido nessa zona? Homicídios semelhantes? Incluídas as impressões de mãos?

—        Pode desviar a conversa, Lucy, porém não vai lhe servir de nada. Não é você mesma. Engordou, então aconteceu algo grave, muito grave. Não é que se sentes mal, em absoluto, porém eu sei como é. Cansa-se muito a miúdo e não tem muito boa cara. Já me falaram. Eu não disse nada, porém sei que aconteceu algo ruim. Já estou sabendo há um tempo. Vai me contar?

—        Preciso saber mais sobre essas impressões de mãos.

 

—        Contei o que sei. Por quê? Scarpetta não afasta os olhos do rosto tenso de Lucy. — O que está acontecendo?

 

Ela continua olhando em frente e parece estar calibrando a forma de dar uma resposta adequada. Dá-se muito bem, é muito esperta, muito rápida e sabe reorganizar a informação até que suas invenções terminam sendo mais críveis que a verdade, e rara vez alguém dúvida ou pergunta. O que a salva é que ela não acredita nas suas próprias distorções nem manipulações da informação. Nem por um instante se esquece de quais são os fatos nem cai nas suas próprias invenções. Lucy sempre tem um motivo racional para o que faz, e às vezes é um bom motivo.

 

—        Deve ter fome, diz Scarpetta nesse momento. Fala em voz baixa, com suavidade, da mesma maneira que dizia as coisas quando Lucy era uma menina impossível, sempre fingindo que ela a fazia sofrer muito.

—        Quando já não pode comigo, sempre me dá de comer, diz Lucy com voz mansa.

—        Antes funcionava. Quando era pequena, era capaz de convencê-la do que fosse em troca de minha pizza.

 

Lucy fica em silêncio, com o semblante sério e desconhecido à luz vermelha de um sinal.

 

—        Lucy? Pensa em sorrir ou me olhar só uma vez?

—        Estive fazendo besteira. Rolos de uma noite. Machuquei pessoas. Na outra noite em Ptowm, voltei a fazer. Não quero ter intimidade com ninguém, quero que me deixem em paz. Parece que não posso evitar. Desta vez cometi uma autêntica estupidez. Porque não prestei atenção. Porque não me importo.

—        Nem sequer sabia que tivesse estado em Ptowm, aponta Scarpetta sem que soe a crítica. Não é a orientação sexual de Lucy o que a preocupa. — Antes tinha cuidado, diz Scarpetta. — Mais do que ninguém.

—        Tia Kay, estou doente.

 

A forma negra da aranha cobre o dorso da mão, e se aproxima dela flutuando, atravessando o facho de luz e se movimentando a poucos centímetros de seu rosto. Nunca havia aproximado tanto a aranha. Deixou as pernas sobre o colchão e as ilumina brevemente com a luz.

 

—        Diga que sente, insiste. — Tudo isto é sua culpa.

—        Abandona sua maldade antes que seja demasiado tarde, responde Ev, já com as pernas a seu alcance.

 

Está tentando-a para que as pegue. Apenas consegue vê-las, debaixo do facho de luz. Escuta para ver se ouve Kristin e às crianças, com a aranha em frente ao rosto como uma forma borrada.

 

—        Não deveria acontecer nada disto. Você procurou. Agora chegará o castigo.

—        Isto pode remediar-se, diz ela.

—        É a hora do castigo. Diga que sente.

 

Ev nota como bate o coração, seu medo é tão intenso que sente vontade de vomitar. Não pensa em pedir perdão. Não cometeu nenhum pecado. Se disser que sente, ele a matará. De alguma maneira, sabe.

 

—        Diga que sente! Exclama ele.

 

Nega-se a falar.

 

Ordena-lhe que diga que sente e ela não quer. Fica a rezar. Reza essa oração estúpida que a aproxima de seu débil Deus. Se esse seu Deus fosse tão poderoso, não estaria no colchão.

 

—        Poderíamos fazer como se isto não tivesse acontecido, diz ela com seu tom de voz rouco e exigente.

 

Nota seu medo. Ele exige que diga que sente. Por muitos sermões que lhe faça, está assustada. A aranha a faz tremer, suas pernas dão pulos sobre o colchão.

 

—        Serás perdoado. Serás perdoado se te arrependeres e nos deixar livres. Não contarei à polícia.

 

—        Não, não o fará. Jamais contará nada. As pessoas que contam coisas são castigadas, castigadas de um modo que nem sequer imagina. Tem uns dentes capazes de atravessar um dedo, de cravar-se na unha até o fundo, diz, referindo-se à aranha. — Existem tarântulas que mordem sem parar.

 

A aranha quase toca o rosto de Ev. Esta joga a cabeça para trás com uma exclamação surda.

 

—        Atacam uma e outra vez, e não param até que as arranque de cima. Se o mordem em uma artéria importante, morres. São capazes de lançar fluidos nos olhos e o deixar cego. É muito doloroso. Diga que sente.

 

Porco ordenou que dissesse, que dissesse que sentia, e então vê que a porta se fecha, a madeira velha com a pintura descolorida e o colchão sobre o chão velho e sujo; depois ouve o som da pá cavando na terra porque ele disse a ela que não contaria a ninguém a má ação que havia cometido e que as pessoas que contam coisas são castigadas por Deus, são castigadas de maneiras inimagináveis até que aprendem a lição.

 

—        Pede perdão. Deus te perdoará.

—        Diga que sente!

 

Enfoca com o facho os olhos de Ev, que os fecha de repente e afasta o rosto da luz, porém ele a encontra de novo.

 

Não pensa em chorar.

 

Quando cometeu aquela má ação, ela chorou. E disse que ia chorar, claro, se alguma vez contasse. E finalmente o fez. Contou, e então Porco não teve outro remédio a não ser confessar porque era verdade que ele havia cometido aquela má ação, e a mãe de Porco não acreditou nem uma palavra, disse que Porco não poderia haver feito aquilo, que não era possível, que ficava claro que se encontrava doente e transtornado.

 

Fazia frio e nevava. Ele não conhecia um tempo assim, havia visto pela televisão e no cinema, porém não o conhecia por experiência própria. Lembra-se de edifícios antigos de ladrilho, lembra-se de vê-los pelas janelas do carro quando estiveram ali, lembra-se do pequeno vestíbulo em que se sentou com sua mãe para esperar o médico, um lugar muito iluminado em que havia um homem sentado em uma cadeira e movendo os lábios, colocando os olhos em branco, conversando com alguém que não estava presente.

 

Sua mãe entrou para falar com o médico e deixou-o sozinho no vestíbulo. Ela contou ao médico a má ação que Porco afirmava ter cometido, disse que não era verdade e que ele estava muito doente, que se tratava de um assunto privado e que a única coisa que importava era que Porco fosse embora e não ficasse por ali falando daquela maneira, destroçando o bom nome da família com suas mentiras.

 

Ela não acreditava que Porco tivesse cometido a má ação.

 

Disse a Porco o que ele deveria falar ao médico: «Que você não está bem. Que não pode evitar. Imaginas coisas, mente e se deixa influir facilmente. Vou rezar por você. E seria bom que você também rezasse para você mesmo, que pedisse a Deus que o perdoe, diga que sente muito ter causado mal as pessoas que não fizeram outra coisa a não ser serem boas consigo. Sei que está doente, porém deveria ter vergonha».

 

—        Vou colocá-la em cima de você, diz Porco se aproximando da luz. — Se a machucar, toca-a com o cano da escopeta, — Saberá qual é o verdadeiro significado da palavra castigo.

—        Deveria ter vergonha.

—        Já falei que não repita isso.

 

Empurra o cano da escopeta com mais força, até o osso, e ela grita. Dirige a luz até seu rosto feio, rechonchudo e cheio de manchas. Está sangrando. Corre sangue pelo seu rosto. Quando a outra a jogou no chão, a aranha machucou o abdome e derramou sangue amarelo.

 

—        Diga que sente muito. Ela disse que sentia. Sabe quantas vezes disse?

 

Imagina-a sentindo o movimento das patas peludas da aranha sobre o ombro direito, imagina-a sentindo como se move o animal por sua pele, como se detém e a ferra suavemente. Ela se senta contra a parede e estremece violentamente, olhando as patas que estão sobre o colchão.

 

Todo o caminho, até Boston foi uma viagem muito longa e fazia frio na parte de trás, onde ela viajava nua e amarrada. Ali atrás não tem bancos, só um chão de metal frio. Ela tinha frio.

 

Lembra-se dos edifícios antigos de ladrilho e os telhados de telhas cinzentas. Lembra quando sua mãe o levou ali em carro depois de que cometera a má ação, e de novo anos mais tarde, quando regressou por sua conta e morou entre os ladrilhos velhos e as telhas, porém não durou muito. Por culpa da má ação, não durou muito.

 

—        O que fez com as crianças? Ev tenta falar com vigor, tenta não dar a impressão de ter medo. — Solte-os.

 

Toca com a escopeta as suas partes íntimas e ela grita, e ele ri, chama-a de feia e gorda, diz que ninguém mais vai gostar dela, a mesma coisa que disse quando cometeu a má ação.

 

—        Estranho, continua, olhando fixamente seus peitos caídos, seu corpo gordo e fofo. — Tem sorte de que eu esteja fazendo isto. Ninguém mais faria. É demasiado repugnante.

—        Não contarei a ninguém. Solte-me. Onde estão Kristin e as crianças?

—        Voltei para apanhá-los, esses pobres órfãozinhos. Tal como disse. Inclusive voltei para deixar seu carro em casa. Eu tenho um coração puro, não sou um pecador como você. Não se preocupe. Os trouxe para aqui, tal como disse.

—        Não os ouço.

—        Diga, também os levou a Boston?

—        Não.

—        Na realidade não levou Kristin...

—        Lhe dei algo em que pensar. Estou certo de que ela ficou impressionada. Espero que saiba. E logo saberá de um modo ou de outro. Já não resta muito tempo.

—        A quem se refere? Comigo pode falar, eu não te odeio. Agora parece solidária.

 

Porco sabe o que ela tenta fazer. Ela acredita que vão ser amigos. Se falar com ele o necessário e fingir que não tem medo, até o ponto de dar a entender que gosta, ficarão amigos e ele não a castigará.

 

—        Não vai funcionar, diz Porco. — Todas tentaram e não funcionou. Foi genial. Se soubesse, ficaria impressionado. Estou mantendo muito ocupado aos dali de cima. Já não sobra muito tempo. Mais vale que o aproveite ao máximo. Diga que sente muito!

—        Não sei do que está falando, ela responde no mesmo tom hipócrita.

 

A aranha se agita sobre seu ombro; então ele estende uma mão na escuridão e a aranha volta a subir nela. Em seguida cruza a sala deixando-a sobre o colchão.

 

—        Corta esse cabelo asqueroso, diz. — Corte tudo. Se quando voltar não o tiver cortado, será pior para você. E não tente cortar as cordas, não existe nenhum lugar para que possa ir.

 

A neve brilha à luz da lua fora da janela do escritório de Benton, no andar superior. Sentado em frente a seu computador, com a luz apagada, olha fotografias no terminal até que encontra as que andava procurando.

 

Existem cem noventa e sete imagens perturbadoras e grotescas. Foi um autêntico calvário encontrar estas duas em particular porque está desconcertado com o que vê à frente. Se sente inquieto. Percebe que existe algo mais do que aparentemente aconteceu e está acontecendo, e se sente pessoalmente insultado com esse caso, que a estas alturas, com sua experiência, custa acreditar. Distraído, não havia anotado os números de série, pelo que demorou quase meia hora para encontrar as fotografias em questão, a 62 e a 74. Está impressionado com o detetive Thrush, com a polícia do estado de Massachusetts. Em um homicídio, sobretudo um como este, nunca se pode fazer grande coisa.

 

Nas mortes violentas nada melhora com o tempo. O lugar do crime desaparece ou se contamina e não se pode voltar a ele. O corpo muda com a morte, sobretudo após a autópsia, e não se pode voltar atrás. Assim os investigadores da polícia do estado colocaram todo o seu empenho nas câmeras, e agora Benton se sente entristecido pelas fotografias e as gravações de vídeo que está estudando desde que chegou a casa após sua visita a Basil Jenrette. Em seus vinte e tantos anos no FBI, acreditava ter visto tudo. Como psicólogo forense supunha que havia visto todas as combinações possíveis de excentricidades. Entretanto nunca viu nada parecido com isto.

 

As fotografias 62 e 74 não são tão explícitas como a maioria porque não mostram o que sobrou da destroçada cabeça dessa mulher sem identificar. Não a mostra em todo seu horror, ensanguentada e sem rosto. A morta lembra uma colher, uma casca vazia saindo de um pescoço, o cabelo negro e cortado a tesouradas irregulares com partes de matéria cinzenta, tecido e sangue seco. As fotografias 62 e 74, primeiros planos do cadáver do pescoço até os joelhos, causam uma impressão indefinível, a mesma que experimenta quando algo lembra um fato perturbador que não consegue recordar. Essas imagens estão tentando falar algo que já sabe, porém não consegue identificar. O quê? De que se trata?

 

Nas 62 se vê o torso colocado para cima sobre a mesa de autópsias. Na 74 está de colocado para baixo. Benton passa repetidamente de uma imagem à outra, estudando este torso nu, tentando encontrar alguma lógica nas impressões de mãos vermelho vivo e na abrasão da pele entre as omoplatas, uma zona de quinze por vinte centímetros em carne viva que parecem ser «fragmentos de madeira e terra», segundo o relatório da autópsia.

 

Imaginou a possibilidade de que as impressões de mãos tenham sido pintadas antes da morte, de que não tenham nada a ver com seu assassinato. Quem sabe, por alguma razão, a vítima já havia pintado essas impressões antes de se encontrar com seu agressor. Tem que pensar sobre isso, porém não acredita. O mais provável é que tenha sido o assassino que converteu o torso em uma obra de arte, um quadro que está degradando e que sugere violência sexual, umas mãos que agarram os peitos e a obrigam a abrir as pernas, símbolos que o assassino pintou no corpo enquanto a mantinha prisioneira, possivelmente quando ela se encontrava indefesa ou morta. Benton não sabe, não pode saber. Quem dera que este caso fosse de Scarpetta, oxalá tivesse ela ido ao lugar do crime e tivesse ela feito a autópsia. Quem dera que estivesse aqui. Entretanto, como de costume, algo aconteceu. 

 

Repassa mais fotografias e relatórios. Calcula que a vítima tivesse trinta e tantos ou quarenta e poucos anos, e seus restos mortais confirmam o que disse o doutor Lonsdale, que não estava morta há muito tempo quando acharam seu cadáver em uma estradinha que cruza o bosque de Walden, na próspera cidade de Lincoln. As amostras físicas retiradas deram negativo quanto a fluído seminal e o primeiro pensamento de Benton é que quem a matou e colocou seu cadáver no bosque estava motivado por fantasias sádicas, o tipo de fantasias sexuais que fazem da vítima um objeto.

 

Qualquer que seja a vítima, para ele não significa nada. Não é uma pessoa, mas sim um símbolo, uma coisa para fazer o que imaginasse, e o que imaginou foi degradá-la, aterrorizá-la, castigá-la, fazê-la sofrer, obrigá-la a enfrentar a sua própria morte iminente, violenta e humilhante, provar o sabor do cano da escopeta na boca e ver quando ele apertava o gatilho. Talvez a conhecesse ou talvez fosse uma completa desconhecida. Quem sabe a cercou e a sequestrou. Em toda Nova Inglaterra não se deu parte do desaparecimento de alguma pessoa que coincida com sua descrição, segundo a polícia estatal de Massachusetts. Não foi comunicado um desaparecimento como este em parte alguma. 

 

Além da piscina se encontra a garagem de barcos. É suficiente grande para uma embarcação de vinte metros, embora Scarpetta não tenha nenhuma nem nunca desejou ter, de nenhum tamanho nem modelo. Gosta de observar os barcos, sobretudo de noite, quando as luzes de proa e de popa se movem como as dos aviões ao longo do escuro canal, silenciosos salvo pelo rumor dos motores. Se as luzes dos camarotes estão acesas, observa como se movem as pessoas de um lado para outro, riem ou ficam sérias, ou simplesmente observa, e não sente nenhum desejo de ser um deles, nem de estar com eles.

 

Nunca foi como eles. Nunca quis ter nada a ver com eles. Desde pequena, quando era pobre e se sentia marginalizada, não se parecia com eles e não poderia estar com eles, e não por decisão própria. Agora sim, é por decisão própria. Sabe o que sabe, está aqui fora se imiscuindo em vidas que não têm interesse para ela, que são deprimentes e vazias, que dão medo.

 

Sempre temeu que ocorresse algo trágico a sua sobrinha. É natural que tenha pensamentos mórbidos sobre as pessoas de quem gosta, porém sempre tendeu mais a tê-los com Lucy. Scarpetta sempre teve medo de que Lucy sofresse uma morte violenta. Jamais havia pensado que pudesse adoecer, que a biologia pudesse voltar-se contra ela.

 

—        Comecei a ter sintomas absurdos, diz Lucy na escuridão, onde ambas estão sentadas em cadeiras de teca, entre dois pilares de madeira.

 

Sobre uma mesa se encontram bebidas, queijo e biscoitos salgados. Não tocaram no queijo nem nos biscoitos. Estão na segunda rodada.

 

—        Às vezes gostaria de ser fumante, agrega Lucy esticando a mão para apanhar sua tequila.

—        Você fala cada coisa estranha...

—        Não lhe era estranho em todos os anos que fumou. E continua sentindo vontade.

—        O que eu desejo não importa.

—        Isto é só uma frase, como se você estivesse a salvo de ter os mesmos sentimentos que outras pessoas, replica Lucy na escuridão, olhando a água. — Claro que importa. Importa tudo o que cada um deseja. Sobretudo quando não se pode ter.

—        Deseja-a? Pergunta Scarpetta.

—        A quem se refere?

—        A última mulher com quem ficou, lembra sua tia. — Sua conquista mais recente. Em Ptowm.

—        Não as considero conquistas, as vejo como breves fugas. Como fumar maconha. Suponho que isso é o mais deprimente. Que não significa nada. Só que desta vez pode ser que signifique algo, algo que não entendo. Pode ser que tenha me envolvido em algo. Tenho sido uma cega e uma imbecil.

 

Conta a Scarpetta de Stevie, de suas tatuagens, das impressões de mãos. É muito difícil falar disso, porém procura parecer indiferente, como se estivesse falando do que fez outra pessoa, como se estivesse falando friamente de um caso. Scarpetta fica em silêncio. Apanha seu copo e tenta pensar sobre o que Lucy acaba de falar. 

 

—        Quem sabe não signifique nada, continua Lucy. — Quem sabe seja uma coincidência. Existem muitas pessoas que gostam de arte corporal, pintam em cima todo o tipo de coisas estranhas, com tinta acrílica e látex.

—        Já estou me cansando das coincidências. Ultimamente têm acontecido muitas, diz Scarpetta.

—        Esta tequila é muito boa. Neste momento não me importaria em fumar um baseado.

—        Tenta me surpreender?

—        O fumo não é tão ruim como você pensa.

—        Então, você agora é médica.

—        É verdade.

—        Por que eu tenho a impressão de que você odeia a si mesma, Lucy?

—        Sabe uma coisa, tia Kay? Lucy se levanta e se volta até ela, com uma expressão tensa e marcada sob as tênues luzes da garagem. — Na realidade, não tens nem ideia do que eu fiz ou que estou fazendo. Assim que não finja que não sabe.

—        Isto parece uma espécie de acusação. Se eu falhei em algo, sinto muito. Sinto mais do que você possa imaginar.

—        Eu não sou você.

—        Naturalmente que não. E não para de repetir isso.

—        Eu não procuro algo permanente, alguém que me importe de verdade, uma pessoa com quem eu queira viver. Eu não quero ter um Benton, quero pessoas que possa esquecer. Rolos de uma só noite. Quer saber quantos eu já tive? Porque eu não contei.

—        Este ano, praticamente não teve nenhum contato comigo. Foi por isso?

—        É mais fácil.

—        Tens medo que eu a julgue?

—        Deveria.

—        O que me chateia não são estas acusações, e sim todo o resto. Na Academia se mostra muito reservada, não tem contato com os alunos, praticamente nunca está lá e, quando está, é se matando no ginásio ou subindo em um helicóptero ou na galeria de tiro ou testando algo, preferivelmente uma máquina, uma que seja bem perigosa.

—        Pode ser que utilizar máquinas seja a única coisa que eu faça bem.

—        Seja o que for que te falta, está frustrando-a, Lucy. Como bem sabe.

—        Também o meu corpo.

—        E o seu coração e sua alma? Que acha se começamos por aí.

—        Frios. Demasiado.

—        Eu sinto qualquer coisa menos frio. E sua saúde me interessa mais do que a minha própria.

—        Acho que ela preparou a jogada, sabia que eu estava no bar, trazia algo entre mãos.

 

Volta a falar dessa mulher, a das impressões vermelhas tão parecidas com as do caso de Benton.

 

—        Tem que falar a Benton sobre Stevie. Qual era seu sobrenome? Que sabe dela? Pergunta Scarpetta.

—        Sei muito pouco. Estou certa de que não tem relação, porém é muito estranho. Estava lá ao mesmo tempo em que matavam essa mulher e se desfaziam de seu cadáver. Nessa área.

 

Scarpetta não diz nada.

 

—        Pode ser que tenha alguma seita por essa área, diz Lucy. — Pode ser que exista um monte de pessoas que pintam impressões de mãos por todo o corpo. Não me julgue. Não preciso que me diga a imbecil e irresponsável que eu sou.  Scarpetta a olha em silêncio. Lucy seca os olhos.

—        Não estou julgando-a. Tento entender por que virou as costas a tudo que importava para você. A Academia é sua, era sua ilusão. Você odiava a autoridade organizada, em particular os federais. Assim criou uma unidade própria, seu próprio pelotão. E agora seu cavalo sem ginete deambula sem rumo pelo pátio do desfile. Onde está você? E nós, todas as pessoas que atraiu para a sua causa estamos nos sentimos abandonados. A maior parte dos alunos do ano passado não chegou a conhecê-la e temos professores que não a viram nunca e que não a reconheceriam se a vissem.

 

Lucy observa um veleiro com as velas arriadas que cruza adiante na noite. Seca outra vez os olhos.

 

—        Tenho um tumor, anuncia. — Na cabeça.

 

Benton amplia outra fotografia, uma que foi tirada no lugar onde encontraram o corpo.

 

A vítima parece uma repugnante criação de pornografia violenta, estendida de costas e aberta de braços e pernas, com uma calça branca ensanguentada ao redor dos quadris como um cinto e um par de calcinhas brancas ligeiramente ensanguentadas e com manchas de evacuação sobre a destroçada cabeça, como uma máscara, com duas aberturas para os olhos. Benton se reclina em sua cadeira, pensando. Seria simples imaginar que quem a deixou no bosque o fez só para chamar a atenção. Há algo mais.

 

Este caso o lembra de algo.

 

Medita sobre a calça dobrada como um cinto. Está do avesso, o que sugerem várias possibilidades. Em um dado momento, a vítima poderia ter-se visto obrigada a retirar ela mesma e em seguida voltar a vestir. Também poderia ser que o assassino a tivesse retirado depois de morta. É de linho. Na Nova Inglaterra nesta época do ano, a pessoas não usam nada de linho branco. Em uma fotografia que mostra a calça sobre uma mesa de autópsias forrada de papel, o desenho das manchas de sangue é revelador. A calça está cheia de sangue escuro na parte da frente, do joelho para cima. Do joelho para baixo mais umas quantas manchas e nada mais. Benton a imagina de joelhos no momento do tiro. Imagina-a ajoelhando-se. Tenta localizar Scarpetta pelo telefone. Não responde.

 

Humilhação. Controle. Completa degradação, deixar a vítima absolutamente desamparada, tão desamparada como uma criança pequena. Encapuzada como alguém a ponto de ser executado, possivelmente. Encapuzada como um prisioneiro de guerra a quem é necessário torturar e aterrorizar, possivelmente. O assassino monta uma cena que é parte de sua própria vida. Provavelmente de sua infância. Abusos sexuais, talvez. Sadismo, quem sabe. Isto é muito frequente. Faz à vítima o mesmo que fizeram com ele. De novo tenta ligar para Scarpetta, porém sem êxito.

 

Basil vem a sua mente. Basil deixou algumas de suas vítimas colocadas numa certa postura, reclinadas contra objetos, e, em um dos casos contra a parede de um banheiro de senhoras. Benton relembra o lugar do crime e as fotografias da autópsia das vítimas de Basil, e revê os rostos ensanguentados e sem olhos dos mortos. A semelhança está nisso; as aberturas para os olhos nas calcinhas lhe trazem à memória as vítimas sem olhos de Basil.

 

Entretanto claro, a chave poderia estar no capuz. Por alguma razão parece estar no capuz. Encapuzar uma pessoa é dominá-la por completo, eliminar toda a possibilidade de luta e de fuga, atormentá-la, aterrorizá-la, castigá-la. Nenhuma das vítimas de Basil aparecia encapuzada, que se saiba, porém sempre existem muitas coisas que se desconhecem a respeito do que acontece durante um homicídio sádico. E a vítima não vai contá-las.  

 

Benton se preocupa com a possibilidade de que tenha dedicado demasiado tempo ao cérebro de Basil. Tenta uma vez mais localizar Scarpetta.

 

—        Sou eu, anuncia quando ela responde.

—        Estava a ponto de ligar, diz ela laconicamente, friamente, com voz trêmula.

—        Parece alterada por algo.

—        Você primeiro, Benton, responde no mesmo tom, impróprio dela.

—        Esteve chorando? Benton não entende por que se comporta assim. — Queria falar do caso que tenho nas mãos. Ela é a única pessoa capaz de fazê-lo sentir-se assim, assustado. — Esperava poder falar consigo dele. Estou estudando-o neste preciso momento.

—        Me alegro de que queira falar comigo de algo. Ressalta a palavra «algo».

—        O que está acontecendo, Kay?

—        É Lucy, ela responde. — Isto é o que está acontecendo. E você já sabe há um ano. Como pôde me fazer isto?

—        Então ela contou para você, diz Benton, esfregando a testa.

—        Fizeram um escâner em seu maldito hospital e você não me disse nada. Bem, pois sabe de uma coisa? Lucy é minha sobrinha, não sua. Não tem o direito a...

—        Ela me fez prometer que...

—        Pois você não tinha esse direito.

—        Claro que tinha Kay. Ninguém pode falar com alguém sem o seu consentimento. Nem sequer os médicos.

—        Entretanto a você ela contou.

—        Por uma boa razão...

—        Isto é grave. Vamos ter que falar a sério. Não estou certa de que possa continuar acreditando em você.

 

Benton suspira. Sente o estômago encolhido como um punho. Raras vezes brigam e, quando o fazem, é terrível.

 

—        Agora vou desligar, diz Scarpetta. — Voltaremos a falar disso depois, repete.

 

Scarpetta desliga sem se despedir e Benton fica incapaz de se mover durante uns instantes em sua poltrona. Observa com o olhar perdido uma desagradável fotografia no terminal do computador e começa a digitar ociosamente, repassando de novo o caso, lendo relatórios, revisando o relato dos fatos que escreveu Thrush, tentando afastar de sua mente o que acaba de acontecer.

 

Foram encontradas marcas de arrasto na neve, que iam desde uma área de estacionamento até o ponto onde se achou o cadáver. Não existem impressões de pisadas que pudessem pertencer à vítima, só as de seu assassino. São aproximadamente do número nove, do dez quem sabe, e longas, de algum tipo de bota de motorista.

 

Não é justo que Scarpetta jogue a culpa nele. Não teve alternativa. Lucy o fez jurar que guardaria o segredo, disse que nunca o desculparia se falasse com alguém, sobretudo com sua tia ou Marino.

 

Não aparecem gotas nem manchas de sangue ao longo do rastro que deixou o assassino, o que sugere que envolveu o cadáver em algo antes de arrastá-lo. A polícia recuperou várias fibras das marcas do chão.

 

Scarpetta está provocando, ataca a ele porque não pode atacar Lucy. Não pode atacar o tumor de Lucy. Não pode se irritar com uma pessoa doente.

 

Entre as provas encontradas no cadáver existem fibras e resíduos microscópicos debaixo das unhas e colados com o sangue à pele aranhada e ao cabelo. A análise preliminar indica que em sua maior parte os ditos resíduos são fibras de tapete e de algodão; além disso, encontram-se minerais, fragmentos de insetos, de vegetação e de pólen do chão, que o médico legista chamou tão eloquentemente de «sujeira».

 

Quando toca o telefone da mesa de Benton, no identificador de chamadas aparece que é um número desconhecido e Benton imagina que se trata de Scarpetta. Assim se apressa a atender.

 

—        Alô, responde.

—        Quem está falando é a operadora do hospital McLean.

 

Titubeia um momento, profundamente desiludido. Scarpetta já poderia ter ligado; não lembra quando foi a última vez que atendeu ao telefone.

 

—        Queria falar com o doutor Wesley, diz a operadora.

 

É raro que o chamem assim. Há muitos anos que obteve este título, desde sua carreira no FBI, porém nunca insistiu para que as pessoas o chamassem de doutor.

 

—        É ele, responde.

 

Lucy se levanta na cama do quarto de convidados de sua tia. As luzes estão apagadas. Estava com muitas doses de tequila em cima para dirigir. Olha o número que aparece no terminal iluminado de seu Treo, o que tem prefixo 617. Se sente um pouco enjoada, um pouco bêbada.

 

Pensa em Stevie, lembra como fingiu se sentir irritada e foi embora bruscamente da casa. Pensa como Stevie a seguiu até o Humer estacionado e se transformou outra vez na mulher sedutora, misteriosa e segura de si mesma, da mesma maneira quando a conheceu no bar e, ao pensar nesse primeiro encontro no bar, sente o que sentiu então. Não quer sentir nada, porém sente e isso a inquieta.

 

Stevie a inquieta. Ela sabe de algo. Estava na Nova Inglaterra mais ou menos quando assassinaram essa mulher e deixaram na lagoa de Walden. As duas tinham impressões de mãos em vermelho no corpo. Stevie comentou que ela não as fizera que fora outra pessoa.

 

Quem?

 

Lucy aperta a tecla de discar, um pouco adormecida, um pouco assustada. Deveria ter investigado o número 617 que Stevie lhe deu, saber a quem pertence, se realmente é o número de Stevie ou mesmo se ela se chama Stevie. 

 

—        Alô.

—        Stevie? É o seu número. — Se lembra de mim?

—        Como ia esquecer? Ninguém poderia.

 

Sedutora. Seu tom de voz é doce, profundo, e Lucy sente o mesmo que sentiu no bar. Tem que se esforçar para lembrar por que está ligando. As impressões de mãos. Onde foram feitas? Quem?

 

—        Estava certa de que jamais voltaria a saber algo de você, diz a voz sedutora de Stevie.

—        Pois errou, responde Lucy.

—        Por que fala tão baixo?

—        Porque não estou em minha casa.

—        Suponho que não devo perguntar o que quer dizer isso. Entretanto faço muitas coisas que não deveria fazer. Com quem está?

—        Com ninguém, responde Lucy. — Continua em Ptown?

—        Saí depois de que você foi embora. Fiz a viagem de carro de uma só vez. Estou em casa.

—        Em Gainesville?

—        E você onde está?

—        Não me disse seu sobrenome, sonda Lucy.

—        Em que casa está se não é a sua? Achei que morasse em uma casa. Entretanto não sei.

—        Alguma vez voltará ao Sul?

—        Posso ir onde quiser. Ao Sul, onde? Em Boston?

—        Estou na Flórida, diz Lucy. — E gostaria de vê-la. Temos que conversar. Que tal se me disser seu sobrenome, para que não sejamos duas desconhecidas.

—        De que quer falar?

 

Não quer falar a Lucy qual é o seu nome completo. Não vale a pena perguntar outra vez; provavelmente não dirá, pelo menos por telefone.

 

—        Falaremos pessoalmente, diz Lucy.

—        Isto sempre é melhor.

 

Fala a Stevie que se encontre com ela em South Beach no dia seguinte às dez da noite.

 

—        Conhece um lugar que se chama Deuce? Pergunta.

—        É bastante famoso, fala Stevie com sua voz sedutora. — Conheço-o bem.

 

A redonda cabeça de metal brilha como uma estrela sobre o terminal.

 

No Laboratório de Armas da Polícia Estadual de Massachusetts, Tom, um forense especialista em armas de fogo, está sentado em meio a um conjunto de computadores e microscópios de comparação em uma sala tenuemente iluminada. Finalmente a Rede Nacional Integrada de Informação sobre Balística, a NIBIN, respondeu a sua pergunta.

 

Observa com atenção as imagens aumentadas das estrias e raspaduras transferidas das partes metálicas de uma escopeta e as cabeças de metal de dois cartuchos. Ambas as imagens estão superpostas, centradas, e as assinaturas microscópicas, como as chama Tom, perfeitamente alinhadas.

 

—        Claro, oficialmente, considerarei uma coincidência até que possa validá-la com o microscópio de comparação, está explicando por telefone ao doutor Wesley, o legendário Benton Wesley. «Isto é genial», não pode evitar pensar. — O que quer dizer que o forense do condado de Broward deve me enviar sua prova. Afortunadamente, isso não constitui nenhum problema, prossegue Tom. — De maneira provisória, permita que lhe diga que não acredito que exista a menor dúvida de que seja um acerto casual do computador; e em minha opinião, uma vez mais de maneira provisória, os dois cartuchos foram disparados pela mesma escopeta.

 

Aguarda a reação tenso, excitado, tão eufórico como se tivesse bebido dois whiskies sozinho. Dizer que foi um acerto é como falar ao investigador que ganhou na loteria.

 

—        Quem sabe sobre este caso de Hollywood? Pergunta o doutor Wesley sem sequer mostrar uma sombra de gratidão.

—        Para começar, que está solucionado, responde Tom, sentindo-se insultado.

—        Não estou certo de ter entendido, diz o doutor Wesley no mesmo tom descortês.

 

Está mostrando-se desagradecido e despótico, e é lógico. Tom não o conhece pessoalmente, nunca havia falado com ele e não tinha nem ideia do que poderia esperar. Entretanto escutou falar dele, escutou falar de sua antiga carreira no FBI, e todo o mundo sabe que o FBI se aproveita, que explora os demais investigadores, tratam-nos como se fossem inferiores e depois se atribui o mérito dos resultados que surjam do caso. É um prepotente. Lógico. Não é de estranhar que Thrush o tenha obrigado a falar diretamente com o legendário doutor Benton Wesley; Thrush não quer tratar com ele nem com ninguém que esteja ou tenha estado no FBI.

 

—        Foi fechado há dos anos, está falando Tom, recolhendo sua atitude amistosa.

 

Parece um lerdo. Isto sua mulher diz quando ferido em seu ego reage de maneira justificada. Tem direito a reagir, porém não quer comportar-se como um lerdo, como se tivessem lhe golpeado a cabeça com um porrete, como diz sua mulher.  

 

—        Em Hollywood houve um roubo, em uma loja das que abrem vinte e quatro horas, diz, procurando não parecer idiota. — Entrou um tipo com uma máscara apontando uma escopeta. Disparou contra um garoto que estava varrendo o chão e, em seguida, o encarregado do turno da noite disparou contra ele, com a pistola que guardava debaixo o balcão, acertando-o na cabeça.

—        Examinaram o cartucho na Balística?

—        Parece que sim, para ver se esse tinha relação com outros casos ainda por resolver.

—        Não entendo, repete o doutor Wesley impaciente. — O que aconteceu com a arma depois da morte do tipo da máscara? A polícia deveria tê-la recolhido. E agora voltam a utilizá-la em um homicídio, aqui, em Massachusetts?

—        Eu perguntei o mesmo ao forense do condado de Broward, Tom tenta com todas as suas forças não parecer um obtuso. — Me disse que depois de efetuar a prova de tiro com a arma, a devolveu ao Departamento de Polícia de Hollywood.

—        Bem, pois posso garantir que não está aqui, diz o doutor Wesley como se Tom fosse um simplório.

 

Tom morde uma parte do dedo até sair sangue da cutícula, um velho costume que irrita muito a sua mulher.

 

—        Obrigado, diz o doutor Wesley retirando-se do telefone, despedindo-o.

 

A atenção de Tom vaga até o microscópio da NIBIN em que está montado o cartucho em questão, do calibre doze, de plástico vermelho, com uma cabeça de metal que apresenta uma inusual marca causada pelo percussor. Fez deste caso uma prioridade. Passou o dia inteiro sentado em sua cadeira e também parte da noite, empregando iluminação anular, iluminação lateral e as devidas orientações nas posições três e seis, guardando cada imagem digitalizada, repetindo o resultado uma e outra vez com as marcas da câmera, a impressão do percussor e a marca do ejetor antes de procurar na base de dados da NIBIN.

 

Depois teve que esperar quatro horas até o resultado, enquanto sua família ia ao cinema sem ele. Em seguida Thrush saiu para jantar e pediu que ligasse para o doutor Wesley, porém esqueceu-se de dar o número do telefone direto, de modo que teve que chamar o serviço geral do hospital McLean e permitir que no princípio o tratassem como se fosse um paciente. Menos mal que aqui o apreciam um pouco. O doutor Wesley sequer agradeceu ou comentou «você fez um bom trabalho» ou «não posso acreditar que tenha conseguido o resultado tão rapidamente». É que não sabe como é difícil examinar um cartucho de escopeta na NIBIN. Na realidade a maioria dos investigadores nem sequer tenta.

 

Fica olhando o cartucho. Nunca havia visto um apanhado do ânus de um morto. Consulta o relógio e liga para Thrush em sua casa.

 

—        Só me diga uma coisa, diz quando Thrush atende, — Como é que me fez falar com esse doutor do FBI? Não seria nada demais se ele agradecesse.

—        Está falando de Benton?

—        Não, estou falando de Bond. James Bond.

—        É uma pessoa agradável. E sabe de outra coisa, Tom? Continua falando Thrush, um tanto irritado. — Vou lhe dar um conselho. A NIBIN pertence ao FBI, e, portanto você também. De onde diabos acha que conseguiu todos esses bonitos equipamentos para trabalhar e toda essa formação para poder ficar ai sentado e fazer o que faz todos os dias? Não adivinha de onde? Pois foi do FBI.

—        Neste momento não me interessa nada disso, replica Tom com o telefone metido debaixo do queixo enquanto digita no computador fechando arquivos, preparando-se para ir para casa, a sua casa vazia, enquanto sua família se diverte no cinema sem ele.

—        Além disso, como sabe, Benton deixou o departamento há muito tempo e já não tem nada a ver com ele.

—        Pois deveria ficar agradecido. Isto é tudo. É a primeira vez que temos na NIBIN uma coincidência em um cartucho de escopeta.

—        Agradecido? Agradecido, por quê? Porque o cartucho que apanharam do cu dessa mulher coincide com a arma de um crime, e que se supõe que a mesma esteja debaixo da custódia da maldita polícia de Hollywood, mas que a estas alturas terá sido vendida como escória? Exclama Thrush em voz alta; quando bebe tende muito a maldizer. — Olhe, ele não sente nenhum maldito agradecimento. Como eu, a única coisa que desejaria fazer neste momento é chutar o balde.

 

Faz calor dentro da casa em ruínas, e o ar está pesado e imóvel. Cheira a mofo, a comida rançosa; o lugar está empesteado com se fosse uma latrina.

 

Porco se move na escuridão seguro de si mesmo, de um cômodo a outro. Distingue pelo odor e pelo tato onde se encontra exatamente. É capaz de passar agilmente de um lugar a outro e, quando tem lua, como nesta noite, seus olhos captam o brilho e enxerga com tanta clareza como se fosse meio dia. Vê mais além das sombras, tanto que elas poderiam não existir. Vê as marcas vermelhas que a mulher tem no rosto e no pescoço, sua pele suja e reluzente de suor, vê o medo em seus olhos, seu cabelo cortado espalhado pelo colchão e pelo chão, porém ela não pode vê-lo.

 

Caminha até ela, até o colchão cheio de manchas jogado no chão de madeira podre; está sentada, apoiada contra a parede, com as pernas cobertas por uma túnica verde, estendidas em frente a si. Tem várias pontas no cabelo, como se tivesse metido os dedos em uma tomada, como se tivesse visto um fantasma. Teve a sensatez de deixar a aranha sobre o colchão. Ele a apanha e, com a ponta da bota, toca a túnica verde ouvindo-a respirar, sentindo seu olhar, esses olhos semelhantes a duas manchas úmidas sobre ele.

 

Levou a bonita túnica verde que estava sobre o sofá. Ela acabava de trazê-la do carro, da igreja onde a havia vestido horas antes. Apanhou-a porque gostou. Agora está sem cor e enrugada, e lembra um dragão morto. Ele capturou o dragão. É seu, e a decepção que o invade ao ver o que sobrou dele o irrita e o incita à violência. O dragão falhou, o traiu. Quando o dragão verde se movia pelo ar em completa liberdade as pessoas o escutavam e não podiam afastar os olhos dele. O desejava. O amava, quase. E olhe-o agora.

 

Aproxima-se um pouco mais e dá um pontapé nos seus tornozelos cobertos pela túnica e atados com arame. A mulher apenas se move. Estava mais atenta há um tempo, porém a aranha parece tê-la deixada sem forças. Não fez o sermão de costume com essa expressão justiceira. Não disse nada. Desde que ele esteve aqui, não faz nem uma hora, urinou. O odor a amoníaco penetra com força em suas fossas nasais.

 

—        Por que é tão asquerosa? Diz Porco, olhando-a.

—        As crianças estão dormindo? Não as ouço. Fala como se delirasse.

—        Pare de falar neles.

—        Já sei que não quer machucá-los, sei que é uma boa pessoa.

—        Não vai lhe servir de nada, replica Porco. — Assim já pode fechar o bico. Você não sabe uma merda, nem nunca saberá. É feia e idiota. É asquerosa. Ninguém gosta de você. Diga que sente muito. Tudo isto é por sua culpa.

 

Dá outro pontapé nos seus tornozelos, desta vez mais forte, e ela grita de dor.

 

—        Que graça. Olhe. Quem é agora a pequena bonita? É uma escória, uma mocinha malcriada, uma desagradecida sabe tudo. Já lhe ensinarei humildade. Diga que sente muito.

 

Dá-lhe outro forte pontapé nos tornozelos e ela chora, enchendo os olhos de lágrimas que reluzem como o vidro à luz da lua.

 

—        Agora não é tão arrogante nem tão poderosa, não é verdade? Achava-se melhor, muito melhor que os demais? Olhe. Já vi que vou ter de procurar uma maneira mais eficaz de castigar. Vou colocar os seus sapatos.

 

Nos olhos dela se lê confusão.

 

—        Vamos voltar a sair. Diga que sente muito!

 

Ela o olha fixamente com seus olhos como vidros, muito abertos.

 

—        Quer outra vez o tubo de pasta de dente? Diga que sente muito!

 

A toca com a escopeta e seus pernas estremecem.

 

—        Vai me dizer o quanto sente, não é? Agradeça, porque é tão feia que ninguém vai querer lhe tocar jamais. Isto é um honra para você, não é? Fala baixando o tom de voz, ele sabe como assustá-la.

 

A toca de novo, desta vez nos peitos.

 

—        É feia e tonta. Ponha os sapatos. Não me deixou outra alternativa.

 

Ela não diz nada. Ele dá mais pontapés nos tornozelos, pontapés fortes, e volta a caírem lágrimas por seu rosto manchado de sangue. Provavelmente tem o nariz quebrado.

 

Ela quebrou o nariz de Porco, deu uma bofetada tão forte que o nariz esteve sangrando várias horas e Porco entendeu que o havia quebrado. Nota o inchaço na ponta do nariz. Ela o esbofeteou quando ele cometeu a má ação, a má ação que teve lugar na sala da porta de pintura estragada. Então sua mãe o levou para esse lugar em que os edifícios são antigos e neva. Nunca havia visto a neve, nunca havia passado tanto frio. Ela o levou ali porque havia mentido.

 

—        Dói, não é verdade? Diz Porco. — Dói muito quando se tem os tornozelos amarrados com arame que se cravam no osso e te dão um pontapé. Isto acontece por que me desobedeceu. Por mentir.

 

Volta a chutá-la e ela deixa escapar um gemido. Tremem-lhe as pernas debaixo da túnica verde, debaixo do dragão verde morto que a cobre.

 

—        Não ouço às crianças, diz ela, e sua voz é cada vez mais débil, está perdendo energia.

—        Diga que sente muito.

—        Te perdoo, ela responde com os olhos brilhantes e muito abertos.

 

Porco levanta a escopeta e aponta à cabeça de Ev, que olha fixamente o cano, o olha como se já não se importasse, e ele arde de fúria.

 

—        Pode me perdoar tudo o que quiser, porém Deus está comigo, fala. — Merece o seu castigo. Por isso está aqui. Entende? É sua culpa. Você mesma colocou estes carvões acesos na cabeça. Faz o que digo! Diga que sente muito!

 

Suas grandes botas fazem muito pouco barulho quando se move no ar denso e quente, até que se detém no umbral da porta e olha de novo para a sala. O dragão morto se agita e pela janela quebrada passa o ar quente. A sala está construída para o oeste e a tarde o sol se filtra pelos buracos da janela e sua luz toca o brilhante dragão verde, que reluz e brilha em chamas esmeraldas. Entretanto não se move. Já não é nada. Está quebrado e feio, e é por culpa dela.

 

Porco observa suas carnes pálidas, suas carnes cobertas de picadas de insetos e de erupções. Percebe seu fedor, que alcança até a metade do corredor. O dragão verde morto se agita quando ela se agita e o deixa doente lembrar quando capturou o dragão e descobriu o que havia debaixo dele. Era ela. Foi um engano. É culpa dela. Ela quis que acontecesse isto, o enganou. É culpa sua.

 

—        Diga que sente muito!

—        Te perdoo. Seus olhos grandes e brilhantes estão fixos nele.

—        Suponho que já sabe o que vai acontecer agora, diz Porco.

 

Ev apenas move a boca e dela não sai nenhum som.

 

—        Me parece que não sabe.

 

Olha-a fixamente, observa sua figura maltratada e repugnante sobre o sujo colchão e sente frio no peito, e esse frio é como a morte, como se a única coisa que sentiu em sua vida esteja tão morta como o dragão.

 

—        Me parece que realmente não sabe.

 

Empurra para trás o deslizador da escopeta, que produz um sonoro barulho na casa vazia.

 

—        Corre, ele ordena.

—        Te perdoo, articula ela com os lábios, com seus olhos grandes e aquosos fixos nele. Imediatamente Porco sai ao corredor, surpreso pelo ruído da porta principal ao fechar-se.

 

—        Quem está ai? Pergunta. Baixa a escopeta e vai até a parte dianteira da casa com o pulso cada vez mais acelerado. Não a esperava.

—        Já lhe disse que não faça isso, cumprimenta a voz de Deus, porém não pode vê-la. — Só deve fazer o que eu disser.

 

Então se materializa na escuridão, seu ser negro flui até ele. É bonita, e tão poderosa que a ama e já não poderia viver sem ela.

 

—        Que acha que está fazendo? Ela pergunta.

—        Continua sem dizer que sente. Não quer falar, tenta explicar Porco.

—        Não é a hora. Lembrou-se de trazer a pintura antes de se entusiasmar ali dentro?

—        Não a tenho aqui. Está no carro. Onde a utilizei com a última.

—        Traga-a. Primeiro tem que se preparar, sempre tem que se preparar. Se perder o controle, o que acontece? Já sabe o que tens de fazer. Não me decepcione.

 

Deus se aproxima dele fluindo. Possui um quociente intelectual de cento e cinquenta.

 

—        Quase terminou o tempo, diz Porco.

—        Não é nada sem mim, diz Deus. — Não me decepcione.

 

A doutora Self, sentada a sua mesa, contempla a piscina, cada vez mais nervosa. Todos os dias pela manhã deve estar no estúdio lá pelas dez para preparar-se para o programa de rádio.

 

—        Não posso afirmar em absoluto, diz por telefone; se não tivesse tanta pressa curtiria esta conversa por todos os motivos inadequados.

—        Não tenho nenhuma dúvida de que você receitou Ritalim a David Fortuna, responde a doutora Kay Scarpetta.

 

A doutora Self não pode evitar pensar em Marino e em tudo o que falou sobre Scarpetta. Não se sente intimidada. Neste momento tem vantagem sobre esta mulher, que só viu em uma ocasião e de quem ouve falar de forma incessante todas as semanas, sem falta.

 

—        Dez miligramas três vezes ao dia, soa na linha, a forte voz da doutora Scarpetta.

 

Parece cansada, talvez deprimida. A doutora Self poderia ajudá-la. Assim pensou quando se encontraram no mês de junho passado na Academia, no jantar que deram em sua homenagem.

 

—        As mulheres motivadas e profissionais de êxito como nós, devem ter cuidado para não descuidar de nosso cenário emocional, disse a Scarpetta quando se encontraram casualmente no banheiro das senhoras.

—        Obrigado pelas aulas. Sei que os alunos estão adorando, respondeu Scarpetta, e a doutora Self se calou em seguida.

 

As Scarpetta que existem pelo mundo são experientes em burlar as perguntas pessoais ou qualquer coisa que possa deixar ao descoberto sua secreta vulnerabilidade.

 

—        Estou certa de que é você uma inspiração para os alunos, disse Scarpetta lavando as mãos no lavabo como se estivesse se preparando para uma operação. — Todo o mundo agradece que tenha encontrado tempo em sua agenda apertada para vir aqui.

—        Vejo que na realidade não acredita no que diz, respondeu a doutora Self com candidez. — A grande maioria de meus colegas de profissão despreciam aquele que trabalha, em algum lugar que não seja atrás de portas fechadas, em terreno aberto, no rádio e televisão. A verdade, naturalmente, é que têm ciúmes. Acho que a metade das pessoas que me criticam venderia sua alma ao diabo para estar no ar.

—        É provável que tenha razão, respondeu Scarpetta secando as mãos.

 

Foi um comentário que se prestava a interpretações muito diversas: a doutora Self está no rádio e a maioria de seus colegas de profissão a deprecia, ou a metade das pessoas que a criticam é por ciúme. Por mais que rememorasse esta conversa do banheiro de senhoras e por mais que analisasse esse comentário em particular não consegue decidir o quis dizer a doutora Self e se a estava insultando de maneira muito inteligente e sutil.

 

—        Você fala como se estivesse preocupada com algo, fala a Scarpetta pelo telefone.

—        Quero saber o que aconteceu com seu paciente, David. Esquiva-se do comentário pessoal. — Faz pouco mais de três semanas que receitou cem comprimidos, agrega.

—        Isto eu não posso confirmar.

—        Não preciso que confirme; recolhi o pote correspondente à receita na casa de David. Sei que você receitou Ritalim e sei exatamente onde o remédio foi comprado: na farmácia do centro comercial onde está o templo de Ev e Kristin. A doutora Self não confirma, porém está correto. O que diz é:

—        Você deve entender o que é a confidencialidade.

—        Pois eu esperava que você entendesse que estamos sumamente preocupados com o bem estar de David e de seu irmão, e também pelo das duas mulheres com quem moram.

—        Alguém considerou a possibilidade de que os garotos pudessem sentir saudades da África do Sul? Não estou falando que sentissem, adiciona. — Simplesmente é uma hipótese.

—        Seus pais faleceram no ano passado na Cidade do Cabo, diz Scarpetta. — Conversei com o forense que...

—        Sim, sim, interrompe a doutora Self. — Foi uma tragédia terrível.

—        As crianças eram seus pacientes?

—        Imagina o trauma que foi isso? Segundo soube por comentários que chegaram aos meus ouvidos, fora das sessões que possa ter tido com eles, seu lar adotivo era provisório. Acho que sempre se deu por certo que quando chegasse o momento apropriado retornariam a Cidade do Cabo, para morar com uns familiares que deveriam se mudar para uma casa maior ou algo assim antes de poder adotar os pequenos.

 

Provavelmente não deveria dar mais detalhes, porém é que disfruta demasiado da conversa para lhe dar fim.

 

—        Como os enviaram a você? Pergunta Scarpetta.

—        Ev Christian se pôs em contato comigo, me conhecia, em princípio, por meus programas.

—        Isto deve acontecer muito a miúdo. As pessoas a escutam e tem vontade de ser seus pacientes.

—        De fato.

—        O que quer dizer que deve rechaçar muitas pessoas.

—        Não tenho outra solução.

—        E então, o que a fez decidir a aceitar a David e talvez seu irmão?

 

A doutora Self repara em que apareceram duas pessoas junto a sua piscina. Dois homens de camisa pólo branco, quepe negro de viseira e óculos escuros, observam os árvores frutíferas com as faixas vermelhas.

 

—        Parece que tenho intrusos, diz em tom irritado.

—        Perdão?

—        Os malditos fiscais. Amanhã mesmo vou tratar deste tema no programa, em meu novo programa de televisão. Olhe, agora é que vou ser agressiva de verdade ante o microfone. Deveria ver com que liberdade entram em minha propriedade. Perdão, mas tenho que desligar.

—        Isto é de suma importância, doutora Self. Não teria ligado se não tivesse um sério motivo para...

—        Tenho muita pressa e agora por cima, isto. Esses idiotas voltaram, provavelmente para acabar com todas as minhas preciosas árvores frutíferas. Enfim, veremos. Não vou permitir que entrem aqui como uma tropa de soldados, armados de serras de corte e tesouras para podar. Veremos, repete ameaçadora. — Se quiser maiores informações terá de conseguir uma ordem judicial ou uma permissão do paciente.

—        É bem difícil obter uma permissão de uma pessoa que desapareceu.

 

A doutora Self desliga e sai à cálida e luminosa manhã para se dirigir com atitude resoluta aos homens de camisa pólo branco que vistos mais de perto, exibem um logotipo na parte da frente, o mesmo que no quepe. As camisas também tem nas costas um letreiro em letras negras que diz: «Departamento de Agricultura e Serviços ao Consumidor da Flórida.» Um dos fiscais usa um PDA e está fazendo algo com ele enquanto o outro fala por seu telefone celular.

 

—        Desculpem, diz a doutora Self em tom agressivo. — Em que posso ajudá-los?

—        Bons dias. Somos fiscais de cítricos do Departamento de Agricultura, responde o homem do PDA.

—        Sei quem são, replica a doutora sem sorrir.

 

Os dois usam uma carteirinha verde com suas fotografias, porém a doutora Self sem óculos não consegue ler os nomes.

 

—        Tocamos a campainha e pensamos que não havia ninguém em casa.

—        Então entram em minha propriedade assim sem mais, diz a doutora.

—        Temos permissão para entrar em jardins abertos e, como disse, pensávamos que não havia ninguém. Tocamos a campainha várias vezes.

—        Do meu consultório não ouço a campainha, diz ela, como se a culpa fosse dos outros.

—        Desculpe. Mas tínhamos que inspecionar suas árvores e não nos demos conta de que já haviam passado por aqui outros fiscais...

—        Já vieram aqui. Assim reconhecem que já entraram sem permissão em outra ocasião.

—        Nós, não. O que quero dizer é que não inspecionamos sua propriedade, porém alguém o fez. Não tínhamos informações disso, fala o fiscal da PDA.

—        Senhora, você pintou essas faixas? A doutora Self olha sem compreender as faixas pintadas em suas árvores.

—        Por que eu iria fazer isso? Para mim quem as pintou foram vocês.

—        Não, senhora. Já estavam assim. Quer dizer que não havia observado?

—        Naturalmente que sim.

—        Se não importa que pergunte, desde quando?

—        Há alguns uns dias. Não estou certa.

—        As faixas indicam que suas árvores estão infectadas com cancro e que deveria arrancá-las. Estas faixas foram pintadas há mais de ano.

—        Ano?

—        Deveria tê-las arrancado há muito tempo, explica o outro fiscal.

—        De que demônios estão falando?

—        Faz um par de anos que deixamos de pintar faixas vermelhas. Agora empregamos fita laranja. De modo que alguém marcou suas árvores para eliminá-las e, segundo parece, ninguém se preocupou em fazê-lo. Não entendo, porém de fato estas árvores tem cancro.

—        Pois não tem muito tempo assim, me parece. Não entendo.

—        Senhora, não recebeu um aviso, uma nota de cor verde que diz que encontramos sintomas e que determina que ligue para um determinado número de telefone gratuito? Ninguém mostrou o relatório de uma amostra?

—        Não tenho a menor ideia do que estão falando, responde a doutora Self. Imediatamente se lembra da ligação anônima de ontem à tarde, quando Marino saiu. — É de verdade que estão infectadas as minhas árvores?

 

Aproxima-se de uma árvore. Está carregada de fruta e parece sã. Inclina-se para olhar um ramo em que o dedo do fiscal aponta para algumas folhas que apresentam lesões de cor clara, apenas perceptíveis, em forma de leque.

 

—        Está vendo esta área? Explica. — Indicam uma infeção recente, pode ser que só de umas semanas. Entretanto são peculiares.

—        Não entendo, diz o outro fiscal. — Se acreditarmos nas faixas vermelhas a esta altura a árvore deveria estar secando e as frutas caindo. Teríamos que contar os anéis para ver quanto tempo faz. São quatro ou cinco brotos ao ano, assim se contarmos os anéis...

—        Não me importa nem um pouco contar anéis nem ver fruta no chão! Do que estão falando? Exclama a doutora Self.

—        Precisamente nisso que eu estou pensando. Se as faixas foram pintadas há um par de anos...

—        Estou em branco.

—        Tenta ser engraçado? Reclama a doutora Self. — Porque a mim não me parece que isto tenha alguma graça. Observa as lesões claras em forma de leque e pensa de novo na ligação telefônica de ontem. — Por que vieram hoje?

—        Pois isso é o estranho do caso, responde o fiscal do PDA. — Não consta que suas árvores tenham sido inspecionadas, postas em quarentena nem programadas para erradicação. Não entendo. Tudo fica registrado no computador. As lesões das folhas são peculiares. Vê?

 

Toma uma folha, mostra à doutora, e esta olha outra vez a estranha lesão em forma de leque.

 

—        Normalmente não tem esta forma. Temos que trazer aqui um patologista.

—        Por que em meu maldito jardim, precisamente hoje? Quer saber a doutora Self.

—        Nos disseram por telefone que suas árvores poderiam estar infectadas, porém...

—        Por telefone? Quem?

—        Uma pessoa que realiza trabalhos nos jardins desta área.

—        Isto é uma loucura. Eu tenho jardineiro e ele nunca me disse que acontecia algo com minhas árvores. Tudo isto é absurdo. Não estranho que as pessoas estejam furiosas. Vocês não sabem o que fazer, se limitam a irromper nas propriedades privadas e nem sequer são capazes de decidir que árvores cortar.

—        Senhora, eu compreendo sua posição, porém o cancro não é nenhuma brincadeira. Se não cortarmos o problema não ficará nenhuma árvore...

—        Quero saber quem ligou.

—        Isto nós não sabemos senhora. Esclareceremos este assunto e pedimos desculpas pelos transtornos. Queremos explicar o que vamos fazer. Quando será um bom momento para que voltemos? Vai estar em casa outra hora? Traremos um patologista.

—        Podem falar a seus malditos patologistas e supervisores e a quem quer que seja que foi última vez que entraram aqui. Sabe quem eu sou?

—        Não senhora.

—        Pois ligue o rádio hoje ao meio dia no programa fale disso com a doutora Self.

—        É você? Exclama um dos dois fiscais, o do PDA, impressionado, como deve ser. — Eu a escuto sempre.

—        E também tenho um programa na televisão. Na ABC, manhã à uma e meia. Todas as terças, explica a doutora, de repente apaziguada e sentindo um pouco mais de compaixão por eles.

 

O ruído que se ouve pela janela quebrada é de alguém que cava. Ev respira de forma superficial, acelerada, com os braços levantados por cima da cabeça. Respira e escuta. Acredita ter escutado o mesmo ruído há uns dias, porém não lembra quando. Ou melhor, foi à noite. Ouve uma pá, alguém que enfia uma pá na terra, atrás da casa. Muda de postura no colchão e, ao fazê-lo, sente uma intensa dor nos pulsos e nos tornozelos, como se os golpeassem, e também uma sensação de ardor nos ombros. Tem calor e sede. Apenas pode pensar e provavelmente tem febre. As infecções são graves e todos os pontos sensíveis produzem uma queimação insuportável. Não pode baixar os braços a menos que se ponha de pé.

 

Vai morrer. Se ele não a matar antes, de qualquer maneira morrerá. A casa está silenciosa e sabe que os demais desapareceram. Seja o que for o que ele fez, já não estão na casa. Agora já sabe.

 

—        Água, tenta falar.

 

As palavras nascem no fundo dela e se desintegram no ar como borbulhas. Borbulhas que sobem flutuando e se desfazem sem produzir o menor som no ar quente e viciado.

 

—        Por favor, oh, por favor. Suas palavras não vão a nenhuma parte; então começa a chorar.

 

Explode em soluços e as lágrimas caem sobre a destroçada túnica verde que tem sobre os joelhos. Soluça como se tivesse acontecido algo, algo definitivo, um destino que jamais pôde imaginar, e fica olhando as manchas escuras que suas lágrimas deixam na destroçada túnica verde, essa esplêndida túnica que colocava para predicar. Abaixo dela está o tênis cor de rosa que alguém deixou, marca Keds. Sente pelo tato o pequeno sapatinho contra o músculo, porém como tem os braços levantados não é possível segurá-lo nem escondê-lo, e sua aflição aumenta.  

 

Escuta de novo o ruído de escavação e começa a notar o fedor. Quanto mais se prolonga a tarefa de cavar, mais penetra na casa o fedor, um fedor diferente, terrível, acre e pútrido de algo morto.

 

«Leve-me para casa, pede a Deus. — Por favor, leve-me para casa. Mostre-me o caminho».

 

Consegue se colocar de joelhos e, de repente, cessa o ruído da pá, que agora recomeça, para de novo. Cambaleia, quase cai, porém empurrada pelo desejo de se levantar se debate, cai e tenta de novo, soluçando, até que consegue se colocar de pé. A dor é tão intensa que vê tudo escuro. Aspira profundamente e a negrura desaparece.

 

«Mostre-me o caminho», reza.

 

As cordas são finas, de nylon branco. Uma delas está atada ao arame retorcido que lhe prende os pulsos inchados e inflamados. Quando se põe de pé, a corda afrouxa. Quando está sentada, os braços ficam por cima da cabeça. Já não pode se deitar. A última crueldade de seu captor foi encurtar a corda para obrigá-la a permanecer de pé o tempo todo que puder e apoiando-se contra a madeira da parede até que não aguente mais e termine sentando, e então os braços sobem inevitavelmente. Sua última crueldade foi obrigá-la a cortar o cabelo e encurtar a corda.

 

Olha as vigas do teto e as cordas passadas sobre elas, uma atada ao arame que prende os pulsos e a outra que imobiliza os tornozelos.

 

«Mostre-me o caminho. Por favor, Meu Deus.»

 

Nisso, cessa o ruído e o fedor entra na sala e provoca ardor nos olhos, e então compreende de que se trata. Já não estão mais aqui. A única que ficou é ela.

 

Levanta os olhos até a corda que lhe amarram os pulsos. Se ficar de pé, a corda afrouxará o suficiente para dar uma volta ao redor do pescoço. Nota o fedor e sabe o que é, e reza outra vez, passa a corda pelo pescoço e as pernas desaparecem atrás do corpo.

 

O ar é denso e ondulado, como a água, e oferece bastante resistência, porém a V-Rod não balança nem parece andar forçada. Lucy se agarra ao selim de couro com os músculos e aumenta a velocidade até cento e noventa por hora. Mantém a cabeça baixa e os joelhos agarrados como um jóquei para testar a sua última aquisição na pista.

 

Faz uma manhã luminosa e inusualmente calorosa e já desapareceu todo o vestígio das tempestades de ontem. Volta a descer até cento e cinquenta, satisfeita de que a Harley, com suas bielas e pistões maiores, com sua roda traseira raiada e o motor trucado, seja capaz de queimar o pavimento quando é necessário; porém não quer testar a sorte demasiadamente. Inclusive a cento e setenta e cinco vai mais depressa do que o possível para enxergar bem, e esse não é um bom costume. Fora de sua imaculada pista de provas existem estradas públicas e, a semelhantes velocidades, a mais ligeira imperfeição do solo vai ser mortal.

 

—        Que tal? Ressoa a voz de Marino dentro do capacete.

—        Como deve ser, ela responde baixando a cento e trinta, apertando ligeiramente o pedal do freio, para virar ao redor de uns pequenos cones de cor laranja forte.

—        É muito silenciosa. Quase não a escuto daqui, comenta Marino da torre de controle.

 

«É que se imagina que tenha que ser silenciosa», pensa Lucy. A V-Rod é uma Harley que não faz ruído, uma moto de estrada que parece uma moto de corrida e não chama a atenção.

 

Lucy puxa o selim para trás, reduz a velocidade para noventa e aperta com o polegar a rosca de fricção para colocar o acelerador em uma versão aproximada de cruzeiro. Inclina-se para fazer uma curva e apanha uma pistola Glock de calibre quarenta do coldre que está levando próximo ao músculo direito, em sua calça negra.

 

—        Ninguém à vista, transmite.

—        Bem. Adiante.

 

Da torre de controle, Marino observa como Lucy faz a fechada curva que fica no extremo norte da pista, cuja longitude total é de um quilômetro e meio.

 

Percorre com o olhar os altos montículos de terra, o céu azul, os campos de tiro cobertos de grama, a estrada que percorre o centro do terreno e, depois, o hangar e a pista de pouso, a oitocentos metros de distância. Certifica-se de que na área não tenha alguém do pessoal, nem veículos nem aviões. Quando a pista está sendo utilizada não se permite a presença de alguém em um quilômetro e meio à volta, nem sequer no espaço aéreo.

 

Marino experimenta uma mistura confusa de emoções quando olha para Lucy. Sua valentia e suas notáveis habilidades o impressionam. Gosta dela, porém ao mesmo tempo ele lhe inspira ressentimento, e preferiria não sentir nada por ela. Lucy é como sua tia Kay, inacessível. Observa como Lucy acelera pela pista de provas manobrando sua nova motocicleta, rápida como uma bala, como se fizesse parte dela, e pensa em Scarpetta, que está a caminho do aeroporto, a caminho para se reunir com Benton.

 

—        Em ação dentro de cinco segundos, fala ao microfone.

 

Do outro lado do vidro, a figura de Lucy sobre a estilizada motocicleta negra avança a toda velocidade, suavemente, quase sem fazer ruído. Marino detecta um movimento do braço direito quando Lucy aperta a pistola contra seu corpo, com a coronha na cintura para que o vento não lhe arranque a arma da mão. Observa como passam os segundos no relógio digital e, após contar até cinco, aperta o botão da Zona Dois. No lado oriental da pista se levantam uns alvos pequenos e redondos que em seguida caem para trás com fortes ruídos metálicos ao serem alcançadas pela rajada de balas de calibre quarenta. Lucy não falha. Faz com que tudo pareça muito fácil.

 

—        Longa distância na curva base. A voz de Lucy enche o auricular.

—        A favor do vento?

—        Roger.

 

Seus passos rápidos e carregadas de emoção ressoam com força pelo corredor. Ouve e sente na maneira em que suas botas avançam pela madeira velha e desgastada. Leva a escopeta. Também leva a caixa de sapatos com o aerógrafo, a tinta vermelha e o molde.

 

Vem preparado.

 

—        Agora sim vai dizer que sente, diz em direção à porta aberta que existe ao final do corredor. — Agora vai ter o que merece, adiciona, caminhando rápido.

 

Penetra no fedor. Quando ultrapassa o umbral, é como um muro, pior que lá fora, junto à fossa. Dentro da sala o ar não se move e o odor a morto se estanca. Para olhando, pasmado.

 

Isto não pode ter acontecido. Como pode Deus ter permitido que acontecesse isto!

 

Ouve Deus no corredor, que atravessa o umbral fluindo, sacudindo a cabeça em um gesto de negação.

 

—        Me havia preparado tão bem! Reclama.

 

Deus olha à morta, enforcada, que se livrou do castigo, e balança a cabeça outra vez. É culpa de Porco, é um imbecil, não previu, deveria ter se assegurado de que não acontecesse uma coisa assim.

 

A morta não chegou a dizer que sente, todas dizem ao final, quando tem o cano da escopeta metido na boca, falam como podem, tentam dizer: «Sinto. Por favor. Eu sinto».

 

Deus desaparece do umbral e o deixa a só com seu erro e com o sapatinho rosa de criança em cima do colchão cheio de manchas. Porco começa a sacudir por dentro, com uma raiva tão intensa que não sabe o que fazer com ela.

 

Solta um grito, cruza rapidamente o chão asqueroso, pegajoso, sujo de urina e merda e se põe a dar chutes com todas as suas forças no corpo nu, repugnante e sem vida. Ela sacode com cada pontapé; balança na corda que lhe rodeia o pescoço, indo até o ouvido esquerdo. A língua aparece como se risse dele. Seu rosto tem uma cor vermelha escura e azulada, como se estivesse gritando algo. Seu peso se apoia sobre os joelhos, em cima do colchão, e a cabeça está inclinada para frente, como se estivesse rezando. Os braços, atados, estão levantados e as mãos juntas, como se celebrasse a vitória.

 

«Bem! Bem!». Balança na corda, vitoriosa e com o sapatinho rosa a seu lado.

 

—        Cale-se! Vocifera Porco.

 

E outra vez se põe a dar pontapés com suas grandes botas, até que sente as pernas demasiado cansadas para continuar. Então a golpeia uma e outra vez com a culatra da escopeta, até que sente os braços demasiado cansados para continuar golpeando.

 

Marino aguarda para ativar uma série de silhuetas humanas, que surgirão detrás de uns arbustos, uma cerca e uma árvore na curva base, a Curva do Morto como a chama Lucy.

 

Observa o tubo de orientação do vento, laranja forte, que fica no centro do campo e confere que o vento continua soprando do este a uma velocidade aproximada de cinco nós. Acompanha o braço direito de Lucy que ainda empunha a Glock e continua seguindo-a até a parte de trás do circuito onde ela está procurando uma enorme maleta de couro. Mantém uma velocidade estável de noventa quilômetros por hora ao tomar a curva que corta o vento e entrar na reta com o vento a favor. Em seguida ela apanha com calma uma carabina Beretta Cx4 Storm de nove milímetros.

 

—        Em ação dentro de cinco segundos, anuncia Marino.

 

Fabricada em um polímero negro antirreflexivo e que usa o mesmo telescópico de um fuzil Uzi, a Storm é uma das paixões de Lucy. Pesa menos de três quilos, tem culatra de pistola que facilita seu manejo e a ejeção pode ser mudada da esquerda para a direita. De modo que é ágil e prática. Quando Marino ativa a Zona Três, Lucy aparece e um monte de cartuchos de metal relampejam ao sol, voando atrás dela. Mata tudo o que existe na Curva do Morto, mata tudo mais de uma vez. Marino conta quinze séries de tiros. Todas as silhuetas caíram e ainda falta uma série.

 

Marino pensa na mulher que se chama Stevie, em que Lucy vai encontrar hoje, no Deuce. O número com prefixo 617 que Stevie deu a Lucy pertence a um cara de Concord, Massachusetts, chamado Doug. Afirma que há vários dias esteve em um bar de Ptowm e perdeu o telefone celular. Disse que, entretanto ainda não deu de baixa do número porque uma mulher encontrou o telefone, ligou para um dos números que tinha na memória e falou com um de seus amigos, que deu o telefone de sua casa. A mulher ligou, disse que havia encontrado seu celular e prometeu que o enviaria por correio. Mas, até esta data ainda não enviou.

 

É um truque muito hábil, pensa Marino. Se encontrar ou roubar um telefone celular e prometer devolver a seu dono, é possível que este não desative imediatamente sua linha, de modo que você pode utilizar o telefone algum tempo até que o proprietário reaja. O que Marino não entende é por que Stevie, quem quer que seja, vai ter este tipo de preocupação. Se a razão é que não deseja ter um contrato com uma companhia de celulares como Verizon ou Sprint, por que não compra um telefone de cartão? Quem quer que seja Stevie, constitui um problema. Lucy está a tempos vivendo demasiado próxima do precipício, já está assim há quase um ano. Mudou. Ficou descuidada e indiferente, e às vezes Marino se pergunta se não está tentando machucar a si mesma, e com fúria.

 

—        Acaba de sair outro carro por trás, transmite por rádio.

—        Tenho munição outra vez.

—        Nem falar. Não pode acreditar.

 

De alguma maneira Lucy conseguiu desfazer-se do carregador vazio e colocar outro novo sem que ele tenha se dado conta. Lucy diminui a velocidade até deter-se em frente à torre de controle.  Marino deixa o auricular sobre o console e, se detém quando chega ao pé da escada de madeira, Lucy já retirou o capacete e as luvas e está abrindo o zíper da roupa.

 

—        Como fez isso? Pergunta Marino.

—        Com fraude.

—        Sabia.

 

Vira o olhar perguntando-se onde terá deixado os óculos de sol. Ultimamente vai deixando tudo por ai.

 

—        Tinha outro carregador aqui dentro. Lucy apalpa o bolso.

—        Na vida real, provavelmente não teria. Então realmente fraudou.

—        O que sobrevive escreve as regras.

—        Qual é sua opinião sobre a Z-Rod? Pensa em converter todas em Z-Rod? Fala Marino, já sabendo a opinião dela, porém perguntando com a esperança de que tenha mudado de opinião.

 

Não tem sentido aumentar aproximadamente treze por cento, um motor já ampliado de 1.150 para 1.318 centímetros cúbicos e a potência de 120 para 170 cavalos para que a moto possa acelerar de zero a duzentos em 9,4 segundos. Quanto mais peso se retira da moto, maior será seu rendimento, porém isso implica em substituir o selim de couro e a defesa traseira por outros de fibra de vidro e prescindir das maletas, e destas não se pode prescindir. Espera que Lucy não tenha interesse em fazer picadinho da nova frota de motos das Operações Especiais. Espera que desta vez se conforme com o que tem.

 

—        É pouco prático e desnecessário, surpreende-o Lucy. — Um motor Z-Rod só tem uma vida útil de dezesseis mil quilômetros, assim imagine as dores de cabeça que causaria à manutenção. Se começarmos a remover coisas, chamará a atenção. E não falamos ainda que vai aumentar o barulho devido ao aumento da tomada de ar.   

—        Agora que aconteceu? Pergunta Marino com um grunhido porque toca seu telefone celular. — Alô, responde em tom áspero. Escuta um instante e desliga a ligação e diz «merda» antes de explicar a Lucy:

—        Vão examinar o mono volume. Importaria de ir começando sem mim na casa da senhora Simister?

—        Não se preocupe com isso. Levarei Lex. Lucy desengancha do cinturão um rádio bidirecional e conecta.

—        Zero-zero-um a estabulo.

—        Que posso fazer por você, zero-zero-um?

—        Coloque gasolina no meu cavalo. Vou retirá-lo da rua.

—        Precisa de algo especial debaixo da cadeira de montar?

—        Está bem tal como está.

—        Me alegro em saber. Ficará pronto em seguida.

—        Nós iremos a South Beach ao redor das nove, fala Lucy a Marino. — Verei você lá.

—        Não sei. Seria melhor que fôssemos juntos, propõe, olhando-a, tentando adivinhar o que passa pela cabeça dela. Entretanto nunca consegue, com uma cabeça como essa. Se Lucy fosse mais complicada, precisaria de um intérprete.

—        Não podemos nos arriscar que ela nos veja no mesmo carro, diz Lucy retirando a jaqueta de tiro e reclamando de que as mangas são largas como as das esposas chinesas.

—        Pode ser que se trate de uma seita, diz Marino. — De uma quadrilha de bruxas que pintam mãos vermelhas por todo o corpo. Salem está nesta área e por ali se encontra todo o tipo de bruxas.

—        As bruxas se reúnem em grupos, não em quadrilhas, corrige Lucy espetando um dedo no ombro dele.

—        Vai ver ela é, insiste Marino. — Nossa nova amiga deve ser uma bruxa que rouba telefones celulares.

—        Se puder, pergunto. Responde Lucy.

—        Deveria ter mais cuidado com as pessoas. É seu único defeito, a falta de critério para escolher a quem se ligar. Gostaria que fosse mais cuidadosa.

—        Acho que nós dois compartilhamos o mesmo problema. Parece que o seu critério nessa matéria é quase tão bom como o meu. A propósito, tia Kay diz que Reba é uma pessoa agradável e que você se portou muito mal com ela na casa da senhora Simister.

—        Melhor faria a doutora em não haver dito isso. Melhor faria em não dizer nada.

—        Pois não é a única coisa que disse. Além disso, que Reba é inteligente; novata, porém inteligente. Que não é mais burra que um arado e nem todos esses tópicos que você tanto gosta.

—        Bobagens.

—        Deve ser a garota com quem esteve saindo uma temporada, diz Lucy.

—        Quem te disse? Explode Marino.

—        Você mesmo.

 

Lucy tem um adenoma. A glândula pituitária, suspensa de um pedúnculo do hipotálamo, na base do cérebro, tem um tumor.

 

O tamanho normal da pituitária é aproximadamente o de um pequeno fruto. É conhecida como glândula mestra porque transmite ordens à tiroide, às glândulas suprarrenais e aos ovários ou testículos para controlar a produção de hormônios que afetam drasticamente o metabolismo, a pressão sanguínea, a reprodução e outras funções vitais. O tumor de Lucy mede aproximadamente doze milímetros de diâmetro. É benigno, porém não vai desaparecer por si só. Seus sintomas são dores de cabeça e um excesso de prolactina que produz sintomas desagradáveis parecidos aos da menstruação. No momento controla seu tamanho com um tratamento que se supõe que vai reduzir os níveis de prolactina e fazer com que tumor encolha. Sua reação não foi a ideal; Lucy odeia tomar a medicação e não segue uma pauta ordenada. Com o tempo poderá precisar de uma intervenção cirúrgica.

 

Scarpetta estaciona o carro diante da Signature, a FBO do aeroporto Fort Lauderdale, onde Lucy guarda seu avião em um hangar. Desce do carro e cumprimenta os pilotos pensando em Benton. Não sabe se poderá desculpá-lo. Se sente tão profundamente machucada, tão furiosa que o coração vai a cem por hora e tremem-lhe as mãos.

 

—        Estão caindo algumas nevascas mais acima, diz Bruce, o chefe dos pilotos. — Estaremos no ar lá pelas duas e vinte. Temos um bom vento de proa.

—        Já sei que não quer alimentação de bordo, porém conseguimos uma bandeja de queijos, diz seu copiloto. — Trouxe bagagem?

—        Não, ela responde.

 

Os pilotos de Lucy não estão de uniforme. São agentes especialmente treinados ao gosto dela: não bebem, não fumam, não usam nenhum tipo de droga, estão em muito boa forma física e receberam treinamento em defesa pessoal. Escoltam Scarpetta até a pista de embarque onde aguarda o Citation X, parecido a um enorme pássaro branco com barriga. Scarpetta se lembra do ventre de Lucy. Uma vez dentro do avião se acomoda no grande assento de couro e, enquanto os pilotos estão ocupados no interior da cabine, liga para Benton.

 

—        Chegarei lá para uma, uma e quinze, fala.

—        Por favor, procure entender, Kay. Sei como deve se sentir.

—        Falaremos disso quando eu chegar.

—        Nunca deixamos as coisas assim, ele responde.

 

É a norma, o antigo princípio: nunca deixe que o sol se ponha estando furioso, nunca se meta em um carro, um avião ou saia de casa brigado. Se existem pessoas que sabem quão rapidamente o azar golpeia e vira tragédia, são Scarpetta e ele.

 

—        Bom voo, fala Benton. — Te amo.

 

 

Lex e Reba andam ao redor da casa como se procurassem algo. Deixam de procurar quando Lucy faz sua espetacular aparição no caminho de entrada de Daggie Simister. Apaga o motor da V-Rod, retira o capacete negro e desce o zíper da jaqueta negra.

 

—        Parece Darth Vader, fala Lex em tom jocoso.

 

Lucy jamais havia conhecido alguém com felicidade constante. Lex é um achado. Quando se graduou na Academia não quis de nenhum modo deixá-la sair. É inteligente e cuidadosa e sabe quando falar ou calar.

 

—        O que estamos procurando aqui fora? Pergunta Lucy percorrendo com o olhar o pequeno jardim.

—        Essas árvores ali, responde Lex. — Não que eu seja detetive, porém quando estivemos na outra casa, na da família desaparecida, indica a casa alaranjada que se vê na outra margem do canal, — A doutora Scarpetta disse algo sobre um fiscal de cítricos que andava por aqui. Disse que o havia visto examinar as árvores da área, quem sabe no jardim da casa do vizinho. Daqui não se distingue, porém algumas dessas árvores têm as mesmas faixas vermelhas. Aponta de novo para a casa alaranjada de frente.

—        Claro, o cancro contagia muito rápido. Se estes árvores estão infectadas, suponho que também estarão muitas outras da área. A propósito, sou Reba Wagner, diz dirigindo-se a Lucy. — Provavelmente terá escutado falar de mim por Pete Marino. Lucy a olha aos olhos.

—        E o que ele poderia ter dito de você?

—        A débil mental que eu sou.

—        Débil mental é uma expressão que amplia vocabulário dele até um ponto inimaginável. Certamente disse que é atrasada mental.

—        É isso aí.

—        Vamos para dentro, propõe Lucy encaminhando-se para a porta de entrada. — Vejamos o que passou por alto da primeira vez, fala a Reba, — Já que é mentalmente tão incapaz.

—        Não brinque, Lex fala a Reba, recolhendo a maleta de provas que havia deixado junto à porta da casa.

—        Antes que façamos algo, Lucy diz isto também para Reba, — Quero verificar se a casa continua intocada desde que vocês vasculharam o lugar.

—        Está sim. Eu mesma conferi. Selamos todas as portas e janelas.

—        Sistema de alarme?

—        Ficaria espantada de saber quantas pessoas por aqui não tem.

 

Lucy observa que existem etiquetas da companhia de alarmes H & M nas janelas e comenta:

 

—        Se vê que estavam preocupados. Provavelmente não poderia ter um alarme de verdade, porém ainda assim quis afugentar os ladrões.

—        O problema é que os ladrões já sabem do truque, comenta Reba. — Etiquetas e cartazes nos jardins. Um ladrão dá um olhar para esta casa e calcula que o mais provável é que não disponha de sistema de alarme, que a pessoa que mora nela não pode ter ou é demasiado velha para se preocupar com isso.

—        Existem muitas pessoas velhas que não se preocupam com isso, é verdade, reconhece Lucy. — Além disso, se esquecem do código e não ligam o alarme. Falo sério.

 

Reba abre a porta e é recebida por uma lufada de ar viciado, como se a vida que havia no interior tivesse fugido há muito tempo. Entra e acende as luzes.

 

—        O que foi feito até agora? Pergunta Lex olhando o chão de cerâmica.

—        Nada, salvo no quarto.

—        Muito bem, vamos ficar aqui um minuto pensando, diz Lucy. — Sabemos duas coisas. O assassino se preparou para entrar na casa sem jogar a porta a abaixo e, depois de matar a vítima, se preparou para sair. Também pela porta? Pergunta a Reba.

—        Eu diria que sim. A casa tem janelas com persianas. Não existe forma de passar por uma a não ser que seja de borracha.

—        Nesse caso, o que deveríamos fazer é começar por esta porta e retroceder até o quarto em que assassinaram a anciã, diz Lucy. — Depois faremos o mesmo com as demais portas, triangulando.

—        Então são: esta porta, a da cozinha e as corrediças da cozinha, diz Reba. — Os dois jogos de portas corrediças não estavam fechadas com chave quando Pete chegou, isso ele afirma.

 

Entra no vestíbulo seguida de Lucy e Lex. Fecham a porta.

 

—        Conhecemos algum detalhe a mais sobre o fiscal de cítricos que você e a doutora Scarpetta viram mais ou menos quando mataram a anciã? Pergunta Lucy; quando trabalha jamais se refere à Scarpetta como sua tia.

—        Eu descobri um par de coisas. Em primeiro lugar, os fiscais trabalham em dupla. A pessoa que vimos estava sozinha.

—        E como sabe que seu colega não se encontrava fora das vistas naquele momento? Poderia estar no jardim da frente, sugere Lucy.

—        Não sabemos. Entretanto só vimos essa pessoa. E não consta em nenhuma parte que os fiscais estejam vistoriando esta área. Outra coisa: utilizou um desses apanhadores de fruta, um tubo longo com uma garra ou algo assim para retirar frutas da árvore sem ter que subir nela. Entretanto, segundo o que me disseram, os fiscais não utilizam nada parecido.

—        Aonde quer chegar? Pergunta Lucy.

—        Esse tipo desmontou o apanhador e o guardou em uma bolsa grande negra.

—        Gostaria de saber o que mais havia nessa bolsa, comenta Lex.

—        Uma escopeta, quem sabe, sugere Reba.

—        Não podemos descartar nenhuma possibilidade, diz Lucy.

—        Eu diria que está rindo da nossa cara, adiciona Reba. — Esteve totalmente à vista na outra margem do canal. Sou polícia. Estou com a doutora Scarpetta e é evidente que estamos dando uma olhada, investigando, e ele está ali andando, nos olhando, fingindo que examina as árvores.

—        É possível, porém podemos não estar certas, responde Lucy. — Não descartemos nenhuma possibilidade, lembra uma vez mais.

 

Lex se ajoelha no frio chão de cerâmica e abre a maleta. Fecham todas as persianas da casa e colocam os trajes de proteção. Lucy instala o tripé, fixa a câmera e o disparador de cabo enquanto Lex mistura o Luminol e o transfere para um vaporizador negro. Tiram fotografias da área em volta da entrada da porta principal, depois apagam as luzes e a sorte lhes sorri logo no início.

 

—        Névoa sagrada. A voz de Reba ressoa na escuridão.

 

A forma característica de uns passos brilha em verde e azul quando Lex humedece o chão; Lucy o capta com sua câmera.

 

—        Devia ter muito sangue nas botas para deixar um rastro como este depois de andar pela casa inteira, comenta Reba.

—        Eu estaria de acordo a não ser por uma coisa, diz Lucy na escuridão. — As passadas vão em direção contrária. Em vez de sair, entra.

 

Tem um aspeto muito sério, porém está bonito com o negro casaco longo e o cabelo prateado aparecendo por baixo de um boné de beisebol dos Red Sox. Cada vez que Scarpetta passa uma temporada longa sem ver Benton fica impressionada com sua refinada postura, sua estilizada elegância. Não deseja ficar irritada com ele, não suporta. Coloca-a doente. 

 

—        Como sempre, foi um prazer voar com você. Ligue para nós quando souber exatamente quando vai retornar, fala Bruce, o piloto, apertando-lhe a mão com afeto. — Se precisar de algo, é só me ligar. Tem todos os meus números, não é?

—        Obrigado, Bruce, responde Scarpetta.

—        Sinto que teve de esperar, fala Bruce a Benton. — Soprava um vento de proa incômodo.

 

Benton não tem uma atitude amistosa. Não responde. Observa quando vão embora.

 

—        Vamos ver se adivinho, fala a Scarpetta. — Outro triatleta que decidiu brincar de polícia e ladrão. É a única coisa que não gosto ao voar nos aviões de Lucy: seus pilotos de cabeça oca.

—        Eu me dou muito bem com eles.

—        Pois eu, não.

 

Scarpetta abotoa o casaco de lã e saem da FBO.

 

—        Espero que não tenham tentado entabuar conversa, que não a tenham molestado, comenta.

—        Eu também me alegro em lhe ver, Benton, responde Scarpetta caminhando um passo adiante dele.

—        Por sorte sei que não se alegra em absoluto.

 

Benton aperta o passo. Abre a porta para que Scarpetta passe e entra um vento frio que arrasta pequenos flocos de neve. Faz um dia triste e cinzento, tão escuro que estão acesas as luzes do estacionamento.

 

—        Lucy contrata estes tipos, todos muito fortes e adeptos da academia, e eles acreditam que são heróis de ação, comenta Benton.

—        Já falou o que queria dizer. Vai começar uma discussão antes de me dar a oportunidade de falar?

—        É importante que se dê conta de certas coisas, que não pressuponha que alguém está limitando-se a ser amável. Preocupa-me que não entendas sinais importantes.

—        Isto é ridículo, ela responde com certo nojo. — Acaso entendo demasiado. Ainda, obviamente, este ano me passaram por alto alguns essenciais. Se queria guerra, encontrou.

 

Estão cruzando o estacionamento nevado e as lâmpadas que iluminam o asfalto estão enfumaçadas pela neve. Todos os sons estão amortecidos. Scarpetta não entende como Benton pode haver feito o que fez. Enchem seus olhos de lágrimas. Talvez seja o vento.

 

—        Me preocupa o que pode acontecer aqui fora, diz Benton desbloqueando o Porsche, um modelo SUV quatro por quatro.

 

Benton gosta de carros. Lucy e ele gostam de potência. A diferença consiste em que Benton se acha poderoso e Lucy não tem a sensação de ser.

 

—        Se preocupa com o quê? Pergunta Scarpetta, supondo que fala de todos os sinais que provavelmente ela deixou de captar.

—        Estou falando da pessoa que assassinou a mulher de nosso caso. A NIBIN tem em seu poder um cartucho de escopeta que parece ter sido disparado pela mesma arma que foi empregada para cometer um homicídio em Hollywood há dois anos: Um caso de roubo em uma loja das que abrem vinte e quatro horas. O tipo estava de máscara, matou um garoto da loja e depois o encarregado matou ele. Gira a cabeça até Scarpetta enquanto se afastam do aeroporto no carro.

—        Escutei falar desse caso, ela responde. — Dezessete anos e sem outra arma a não ser um pano. Alguém tem alguma pista de por que essa escopeta voltou a circular? Pergunta enquanto seu ressentimento vai aumentando.

—        Não.

—        Ultimamente aconteceram muitas mortes por escopeta, comenta em tom frio e profissional.

 

Se Benton quer assim as coisas, por ela que não pare.

 

—        Queria saber aonde vai dar tudo isto, adiciona com certa indiferença. — A que se utilizou no caso de Johnny Swift desaparece e agora a utilizam no caso de Daggie Simister. Tem que explicar a Benton o caso de Daggie Simister. Ele ainda não está ao corrente. — Uma escopeta que supunham estar debaixo de custódia ou que havia sido destruída volta a ser utilizada aqui, prossegue. — E agora temos a Bíblia encontrada em casa dessa família desaparecida.

—        Que Bíblia e que família desaparecida?

 

Isto também tem que explicar, contar da ligação anônima de um indivíduo que se autodenomina Porco. Tem que contar sobre a velhíssima Bíblia que encontraram na casa das mulheres e as crianças desaparecidas, falar que estava aberta no livro da sabedoria, e que o versículo é o mesmo que recitou a Marino por telefone o indivíduo chamado Porco.

 

«Por isto, como a crianças que não tem uso de razão, haveis enviado um castigo que era uma brincadeira».

 

—        Estava marcado com vários xis a lápis, explica. — A Bíblia era uma edição de 1756.

—        É raro que tenham uma Bíblia tão antiga.

—        Naquela casa não havia nenhum outro livro tão antigo, segundo a detetive Wagner. Você não a conhece. As pessoas que trabalhavam com elas na paróquia dizem que nunca haviam visto essa Bíblia.

—        Procurou impressões e DNA?

—        Não existem nem impressões nem DNA.

—        Tem alguma teoria sobre o que pode ter acontecido? Pergunta Benton, como se a única e exclusiva razão de Scarpetta ter vindo rapidamente em avião particular seja para falar de trabalho.

—        Nada consistente, ela responde, cada vez mais ressentida. Benton não sabe como foi sua vida ultimamente.

—        Alguma prova?

—        Ainda nos falta muito a fazer nos laboratórios. Trabalham a toda máquina. Encontrei impressões de uma orelha em uma porta corrediça do quarto principal. Alguém apertou a orelha contra o vidro.

—        Quem sabe de uma das crianças.

—        Não, replica Scarpetta, já furiosa. — Conseguimos o DNA das crianças, da roupa, das escovas de dentes, de um pote de remédios.

—        Não me parece que as impressões de uma orelha sejam algo muito científico precisamente para um forense. Já foram detidas várias pessoas erroneamente por culpa de impressões de orelha.

—        É uma ferramenta a mais, como o polígrafo, diz Scarpetta quase atacando.

—        Não penso em discutir consigo Kay.

—        Obtemos o DNA de uma impressão de orelha do mesmo modo que obtemos de uma impressão datiloscópica, diz Scarpetta. — Já analisamos e é desconhecido, parece que não pertence a nenhuma das pessoas que moravam na casa. Tampouco encontramos algo no CODIS. Pedi a nossos amigos da DNA Prints Genomics de Sarasota que analisem para averiguar o sexo e a inferência ancestral ou a filiação racial. Por desgraça, isso demorará uns dias. Na realidade pouco me importa encontrar a coincidência entre a orelha de uma pessoa e essa impressão. Benton não diz uma palavra. — Tem algo para comer em casa? Além disso, preciso de uma bebida. Não me importa que seja de dia. E também preciso que falemos de outra coisa, fora de trabalho. Não vim até aqui no meio de uma nevasca para falar de trabalho.

—        Ainda não é uma nevasca, comenta Benton sombrio. — Mas será.

 

Scarpetta olha pela janela enquanto ele dirige em direção a Cambridge.

 

—        Em casa tenho um monte de comida. E o que quiser para beber, diz Benton em voz baixa.

 

E agora diz algo mais. Scarpetta não está certa de ter escutado corretamente; o que acredita ter escutado não pode ser isso.

 

—        Desculpe, o que acaba de dizer? Pergunta, desconcertada.

—        Que se quiser terminar, é melhor que me diga agora.

—        Se quero terminar? O olha com incredulidade. — Assim sem mais, Benton? Tivemos uma discussão importante e já fala em colocar um fim na nossa relação?

—        Só estou lhe dando a opção.

—        Não preciso que me dê nada.

—        Não quis dizer que precise da minha permissão. É que não sei como vai funcionar a nossa relação se já não confia mais em mim.

—        Pode ser que tenha razão. Scarpetta luta por conter as lágrimas e desvia o rosto para olhar a neve.

—        Assim está certa de que já não confia em mim.

—        E se eu fizesse isso com você?

—        Me sentiria muito chateado, ele responde. — Entretanto tentaria compreender seus motivos. Lucy tem direito a sua intimidade, é um direito legal. A única razão para eu saber que ela tem esse tumor é porque me disse que tinha um problema e perguntou se eu poderia conseguir que ela fizesse um escâner no McLean, mas que era para manter em absoluto sigilo. Não queria fazer em outro hospital da cidade.

—        Antes eu sabia o que acontecia com Lucy.

—        Kay. Benton se vira até ela. — Lucy não queria que constasse em um relatório. Hoje já não sobra nada que seja privado, não depois da entrada em vigor do Ato Patriótico.

—        Bem, isso eu não vou discutir.

—        A pessoa tem que assumir que: a sua história médica, os remédios que utiliza, as contas bancárias, os hábitos de compra, todo o íntimo de sua vida pode ser escudrinhado pelos federais com o fim de deter os terroristas. A polêmica carreira de Lucy no FBI e no ATF é uma preocupação fundada. Não acredita que exista algo que eles possam descobrir, mas que termine sofrendo uma auditoria do IRS, ou aparecendo em uma lista de pilotos inabilitados, ou acusada de manejar informação privilegiada, ou vítima de algum escândalo nos jornais, e Deus sabe o quê mais.

—        E o que me diz você, de seu passado não muito lisonjeiro no FBI?

 

Benton encolhe de ombros e continua dirigindo rápido. Cai uma neve ligeira que apenas parece tocar o vidro.

 

—        Não há muito mais que possam me fazer, responde. — O certo é que provavelmente eu seria uma perda de tempo. Preocupa-me muito mais quem anda por aí com uma escopeta que deveria estar nas mãos da polícia de Hollywood ou ter sido destruída.

—        O que Lucy faz com a medicação que receitam? Se ela se preocupa tanto em não deixar qualquer rastro eletrônico ou em papel...

—        E com razão. Lucy não tem ilusão. São capazes de fazer qualquer coisa que desejem. Ainda que falte uma ordem judicial, o que você acha que vai acontecer se o FBI precisar obter uma com um juiz que foi nomeado pelo Governo atual, um juiz preocupado com as possíveis consequências que podem advir se não colaborar? Quer que descreva aproximadamente umas cinquenta possibilidades reais?

—        Antes os Estados Unidos era um lugar agradável para viver.

—        No caso de Lucy nós fazemos tudo para nós mesmos, diz Benton.

 

Continua falando sobre o McLean, afirma que Lucy não poderia ter ido a um lugar melhor, que pelo menos o McLean tem os melhores médicos e cientistas do país, do mundo inteiro. Entretanto nada do que diz faz com que Scarpetta se sinta melhor.

 

Já chegaram a Cambridge e passam na frente das esplêndidas mansões antigas da Rua Brattle.

 

—        Lucy não teve que seguir pelos canais normais nem uma só vez, nem sequer para as consultas médicas. Não ficou constando nada a não ser que alguém cometa um erro ou uma indiscrição, está falando Benton.

—        Não existe nada infalível. Lucy não pode passar o resto da vida com a paranoia de que as pessoas vão saber que tem um tumor cerebral e de que está tomando um inibidor de dopamina para se manter racional. Ou, que operou, se for o caso.

 

Para ela é duro dizer isso. Mesmo que as estatísticas digam que a extirpação cirúrgica dos tumores na pituitária quase sempre tem êxito, ainda assim, existem possibilidades de que algo dê errado.

 

—        Não é câncer, diz Benton. — Se fosse, provavelmente eu teria contado, dissesse ela o que dissesse.

—        Lucy é minha sobrinha. Criei como uma filha. Você não tem o direito de decidir o que constitui ou não uma ameaça grave para a sua saúde.

—        Você sabe melhor do que ninguém que os tumores de pituitária não são raros. Os estudos demonstram que aproximadamente vinte por cento da população sofre com tumores na pituitária.

—        Isto depende de quem faça a pesquisa. Dez por cento, ou vinte, pouco me importa.

—        Estou certo de que viu isso nas autópsias. A pessoa nem sequer sabia que tinha; um tumor na pituitária não foi o motivo para que terminasse em seu depósito de cadáveres.

—        Entretanto Lucy sabe que tem. E as porcentagens se baseiam em pessoas que tinham micro, não macro, adenomas e permaneceram assintomáticas. O tumor de Lucy, segundo o último escâner, mede doze milímetros e não é assintomático. Precisa tomar medicação para reduzir o nível de prolactina, anormalmente alto, e é possível que tenha que passar o resto de sua vida se medicando, a não ser que extirpem o tumor. Sei que você é muito consciente dos riscos; pelo menos do risco de que a operação não saia bem e tenha que deixar o tumor como está.

 

Benton se mete no caminho de entrada de sua casa, aponta o comando a distância e abre a porta da garagem independente da casa, uma para carruagens do século passado. Nenhum dos dois fala nada até que deixa o SUV estacionado junto a seu outro Porsche e fecha a porta. Em seguida vão andando até a entrada lateral da mansão, uma construção vitoriana de ladrilho vermelho escuro que dá para a Praça Harvard.

 

—        Quem é o médico de Lucy? Pergunta Scarpetta entrando na cozinha.

—        Neste momento, ninguém. Ela para olhando-o. Benton retira o casaco e o deixa com cuidado sobre uma cadeira.

—        Não tem médico? Não está falando sério. E que diabos você está fazendo com ela aqui? Exclama Scarpetta lutando para tirar o casaco e depois jogando-o com raiva sobre uma cadeira.

 

Benton abre um armário de madeira e apanha uma garrafa de whisky escocês e dois copos. Enche ambos com gelo.

 

—        Não vai gostar nada da explicação, adverte. — Seu médico morreu.

 

A sala de provas forenses da Academia é um hangar com três portas que se abre para uma estrada de acesso, que por sua vez dá entrada para um segundo hangar onde Lucy guarda helicópteros, motocicletas, militares blindados, lanchas rápidas e um globo aerostático.

 

Reba sabe que Lucy possui helicópteros e motocicletas, isso todo mundo sabe. Entretanto não está tão certa de que deva acreditar no que disse Marino das demais coisas que existem dentro desse hangar. Desconfia que Marino brincava, uma brincadeira sem nenhuma graça porque a teria feito ficar com cara de idiota se tivesse acreditado e repetisse por aí. Marino mentiu muitas vezes. Falava o que ela gostava. Disse que as relações sexuais que tinha com ela eram as melhores de sua vida. Disse que, acontecesse o que acontecesse, sempre seriam amigos. E nada disso era verdade.

 

Conheceu-o há alguns meses, quando ela ainda estava na unidade motorizada e ele apareceu um dia montado na Softail que tinha antes de comprar sua espetacular Deuce. Ela acabava de estacionar sua Road King junto à entrada traseira do Departamento de Polícia quando ouviu o estrondo dos tubos de escape, e ali estava ele. Em seguida, ele passou a perna por cima do selim como um vaqueiro descendo de seu cavalo, depois ajeitou as calças jeans e se aproximou para inspecionar a moto, enquanto ela dava volta à chave e apanhava umas quantas coisas do maleiro.

 

—        Quantas vezes já caiu disso?

—        Nenhuma.

—        Olhe, só existem dois tipos de motociclistas: os que se caíram da moto e os que cairão.

—        Existe uma terceira classe, respondeu ela bastante satisfeita de seu uniforme e das botas altas negras: — O que caiu e não quer contar.

—        Ah, porém esse não é o meu caso.

—        Não é isso o que me disseram, respondeu ela para provocá-lo, coqueteando um pouco. — O que me contaram é que esqueceu de baixar o apoio no posto de gasolina.

—        Mentira.

—        E também me contaram que estava participando em uma corrida de obstáculos e esqueceu de desbloquear o manete antes de ir para o obstáculo seguinte.

—        Essa é a maior mentira que escutei em minha vida.

—        E o que me diz da vez que ligou o pisca-alerta em vez do intermitente direito?

 

Marino desandou a rir e perguntou se ela gostaria de ir almoçar com ele em Miami no Monty Tariner's, sobre a água. Depois daquilo fizeram vários viagens de moto, em uma ocasião até Cayo Oeste, voando como pássaros pela autopista US 1 e atravessando a água como se pudessem caminhar sobre ela, indo até as velhas pontes de trens em Flagler no oeste, um monumento destruído pelo tempo, mas que a transportava a um romântico passado em que o sul da Flórida era um paraíso tropical de hotéis modernistas, Jackie Gleason e Hemingway... Não tudo ao mesmo tempo, naturalmente. 

 

Tudo era perfeito até a pouco mais de um mês, justo quando a promoveram para a divisão de detetives. Marino começou a evitar o sexo. Comportava-se de um modo estranho a respeito. Reba se preocupava de que aquilo tivesse a ver com sua promoção. Quem sabe já não a achasse atraente. Outros homens haviam se cansado dela, assim porque não poderia acontecer de novo? A relação entre ambos se rompeu definitivamente um dia que jantavam no Hooters, que não era precisamente o seu restaurante favorito, diga-se de passagem, e sem saber como, surgiu o tema Scarpetta.

 

—        A metade dos tios que estão no Departamento de Polícia são doidos por ela, disse Reba.

—        Ah, respondeu Marino mudando de cara.

 

Assim, sem mais, havia se transformado em outra pessoa.

 

—        Não tinha ideia, disse Marino, porém não parecia em nada com o Marino que tanto havia chegado a gostar.

—        Conhece o Bobby? Perguntou Reba, e agora pensa que oxalá tivesse fechado a boca.

 

Marino colocou açúcar no café. Era a primeira vez que Reba o via fazer isso; Marino havia dito que não iria voltar a tocar no açúcar.

 

—        No primeiro homicídio em que trabalhamos juntos, continuou falando Reba. — Estava ali a doutora Scarpetta e, quando se preparava para transportar o cadáver ao depósito, Bobby me sussurrou que morreria de gosto se pudesse conseguir que ela o acariciasse com as mãos de cima a baixo. E eu disse: «Bem, se você morrer farei com que ela abra o seu crânio com uma serra para saber se realmente tem um cérebro dentro.»

 

Marino tomou seu café com açúcar olhando para uma cliente de seios volumosos que se inclinava até seu prato de salada.

 

—        Bobby se referia a Scarpetta, agregou Reba, não muito certa de que Marino tivesse entendido, desejando que sorrisse ou algo assim, qualquer coisa menos aquela expressão dura e distante que tinha no rosto, olhando os seios e as bundas que passavam. — Foi então quando a conheci, continuou Reba falando com nervosismo. — Lembro que pensei que você e ela eram aliados. Claro que agora me alegrei muito quando soube que não.

—        Deveria trabalhar em todos seus casos com Bobby. E em seguida Marino fez um comentário que não tinha nada que ver com o que Reba acabava de dizer. — Até que saiba que diabos faz, você não deveria ficar sozinha em algum caso. De fato, quem sabe deveria deixar a divisão de detetives. Não acredito que saiba onde se meteu. Não é como o que se vê na televisão.

 

Reba percorre o lugar com o olhar e se sente envergonhada e inútil. É a primeira hora da tarde. Os da polícia científica estão há várias horas trabalhando, o mono volume cinza está colocado em um elevador hidráulico, com as janelas opacas devido aos vapores do cianocrilato. As almofadas já foram examinadas e aspiradas. Uma coisa no assento do motorista se iluminou; pode ser sangue.

 

A polícia científica está recolhendo restos dos pneus servindo-se de uns pincéis para eliminar o pó e a terra do desenho e recolhendo os restos em uns envelopes brancos que em seguida dobram e selam com fita amarela. Há um minuto, um dos técnicos, uma mulher jovem e bonita, disse a Reba que não utilizam recipientes metálicos para as provas porque quando estas passam pelo SEM...

 

—        O quê? Perguntou Reba.

—        Um microscópio eletrônico de varredura com um sistema de energia dispersiva de raios X.

—        Oh! Respondeu Reba, e em seguida a bonita técnica continuou a explicar que se colocarem as provas em recipientes metálicos e a varredura der positivo em ferro ou em alumínio, como vamos saber que não são partículas microscópicas do recipiente?

 

Um bom argumento, que jamais tinha ocorrido a Reba. A maior parte do que estão fazendo ali não tinha ocorrido a ela. Se sente inexperiente e tonta. Fica de pé a um lado, pensando quando Marino disse que não deveria ficar em nenhum caso sozinha, pensando na expressão de seu rosto e em seu tom de voz quando disse aquilo.

 

Observa o caminhão grua, os elevadores hidráulicos e as mesas cheias de equipamento fotográfico, microscópios, brochas, pincéis e pós luminescentes, aspiradores de resíduos, trajes protetores e maletas de material para usar nos lugares onde foi cometido um delito e que parecem enormes caixas de equipamento. No extremo mais longínquo do hangar existe inclusive um veículo e bonecos fazer provas de choque. Nisso ouve a voz de Marino. Ouve-a clara como o dia, dentro de seu cérebro.

 

«Não é como o que se vê em televisão». Não tinha direito a falar isso. «Quem sabe deveria deixar a divisão de detetives».

 

Então ouve sua voz novamente, e desta vez é real. Surpreendida, dá meia volta. Marino vai caminhado em direção ao mono volume, e passa diante dela com um café na mão.

 

—        Alguma novidade? Pergunta Marino à técnica bonita, que está selando com fita um envelope dobrado.

 

Para contemplando o mono volume no elevador, agindo como se Reba fosse uma sombra na parede, uma ilusão de estrada, algo que não significa nada.

 

—        Pode ser que dentro achemos sangue, está falando a técnica bonita. — É uma substância que reagiu ao Luminol.

—        Vou apanhar um café e olha o que perdi. E havia impressões?

—        Ainda não testamos todo o carro. Estava me preparando para isso, não quero queimá-lo em excesso.

 

A técnica bonita tem cabelo longo, brilhante e de um tom castanho escuro que lembra a Reba um alazão. Também possui uma pele perfeita. O que não daria Reba para ter uma pele assim, para retroceder todos os anos que passou sob o sol da Flórida. Vale a pena continuar se preocupando porque, além disso, a pele com rugas tem um aspeto ainda pior quando está pálida, de modo que ela se preocupa. Olha a cútis lisa e o corpo juvenil da técnica bonita e tem vontade de chorar.

 

A sala de jantar tem piso e portas de madeira e também uma lareira de mármore. Benton se agacha em frente a ela, joga uma acha e no mesmo instante sobem umas pequenas colunas de fumaça da lenha úmida.

 

—        Johnny Swift se graduou na Faculdade de Medicina de Harvard, foi residente no Mas General, entrou como estudante no Departamento de Neurologia do McLean, diz, levantando-se e voltando ao sofá. — Há um par de anos começou a trabalhar em Stanford, e também abriu um consultório em Miami. Enviamos Lucy a Johnny porque era muito conhecido no McLean, era excelente e o tinha a mão. Foi seu médico, e acho que ficaram bons amigos.

—        Lucy deveria me ter dito. Scarpetta continua sem entender. — Estamos investigando este caso, e ela esconde uma coisa tão importante? Não deixa de repetir. — Pode ser que o tenham assassinado, e ela não diz nada?

—        Johnny era um candidato ao suicídio, Kay. Não estou falando que não o assassinaram, porém quando estava em Harvard começou a sofrer alterações do estado de ânimo, se converteu em paciente externo do McLean, foi diagnosticado como tendo transtorno bipolar, que controlava com lítio. Como digo, era muito conhecido no McLean.

—        Não é necessário que continue insistindo em que era uma pessoa qualificada e não um médico escolhido ao azar.

—        Era mais que qualificado, e não era um médico escolhido ao azar.

—        Estamos investigando este caso, um caso muito suspeito, repete Scarpetta. — E descubro que Lucy não foi suficientemente sincera para me dizer a verdade. Como diabos pode ser objetiva?

 

Benton bebe um gole de whisky e contempla o fogo enquanto as chamas continuam desenhando sombras em seu rosto.

 

—        Estou certo de que não faz parte do caso. A morte de Johnny não tem nada a ver com Lucy, Kay.

—        E eu não estou certa de que temos certeza disso, ela responde.

 

Reba observa Marino comer com os olhos à técnica bonita, que deixa o pincel sobre um papel branco e limpo e abre a porta do motorista do mono volume.

 

Marino se aproxima da bonita quando esta apanha uns potes de cianocrilato do carro e tira um saco de lixo laranja para resíduos perigosos. Estão ombro com ombro, ambos inclinados, olhando a parte dianteira do interior do carro, depois a parte de trás, agora uma lateral, agora a outra, falando coisas que Reba não consegue ouvir. A técnica bonita ri por algo que Marino disse e Reba se sente mal.

 

—        Não vejo nada no vidro, diz Marino em voz alta, levantando-se.

—        Eu tampouco.

 

Marino fica de joelhos e volta a inspecionar o interior da porta que está atrás do assento do motorista, sem pressa, como se tivesse notado algo.

 

—        Vem aqui, fala à técnica bonita como se Reba não estivesse presente.

 

Os dois estão tão juntos que entre eles não caberia nem uma folha de papel.

 

—        Bingo, diz Marino. — Aqui está uma peça metálica que faz parte de um broche.

—        Parte dela. A técnica bonita olha atentamente. — Vejo uma pequena rebarba.

 

Não encontram nenhuma outra impressão, parcial nem de nenhum outro tipo, nem sequer manchas difusas, e Marino manifesta sua suspeita de que tenham limpado o carro por dentro. Reba tenta se aproximar, não deixar espaço. O caso é seu, não dele. Com independência do que Marino pense ou diga dela, a detetive é Reba e o caso é seu.

 

—        Desculpem, diz Reba com uma autoridade que não sente. — Que tal me dar um pouco de espaço? E em seguida adiciona, dirigindo-se à técnica bonita: — O que encontrou nos assentos?

—        Estavam relativamente limpos, só havia neles um pouco de terra, como quando se limpa com um aspirador que não absorve bem. Pode ser também um pouco de sangue, porém teremos de confirmar.

—        Então é possível que este mono volume tenha sido utilizado e depois devolvido a casa. Reba fala com audácia, e no rosto de Marino aflora de novo aquela expressão dura e distante que tinha no Hooters. — E não passou por nenhum pedágio após o desaparecimento dessas pessoas.

—        De que está falando? Marino a olha por fim.

—        Examinamos o Sun Pass, porém isso não prova nada de forma definitiva. Ela também possui informação. —Muitas estradas não tem pedágio. Quem sabe o carro foi por uma dessas.

—        Isto é muito imaginação, comenta Marino evitando de novo seu olhar.

—        As suposições não tem nada de ruim, responde Reba.

—        Vamos ver que tal funciona isso em um juízo, diz ele, negando-se a olhá-la. — Tente utilizar suposições. Se disser «quem sabe» o advogado defensor a come com batatas.

—        Tampouco nada têm de ruim as hipóteses, diz Reba. — Como a de que uma pessoa, ou mais de uma, tenha sequestrado esta família neste mono volume e depois o deixou na entrada, com as portas destravadas e parcialmente sobre a grama. Isto seria bastante inteligente, não acha? Se alguém tivesse visto que o carro saía da casa, não pensaria que fosse algo anormal. E tampouco teria estranhado ao vê-lo retornar. Além disso, com certeza ninguém viu nada, porque era de noite.

—        Quero que analisem imediatamente esses resíduos e que passem as impressões digitais pelo AFIS. Marino tenta reafirmar seu domínio empregando um tom mais prepotente ainda.

—        Como não, diz com sarcasmo a bonita. — Em seguida retorno com minha caixinha mágica.

—        Sinto curiosidade, fala Reba. — É verdade que Lucy tem nesse hangar, veículos blindados, lanchas rápidas e um globo aerostático? A técnica bonita ri, retira as luvas e as joga no lixo.

—        Quem falou isso?

—        Algum idiota, ela responde.

 

Às sete e meia da noite, na casa de Daggie Simister todas as luzes estão apagadas e, também, a da porta principal. Lucy segura o disparador de cabo, preparando-se.

 

—        Adiante, diz, e Lex enche de Luminol a porta dianteira da casa. Não puderam fazê-lo antes que anoitecesse. Aparecem umas impressões de passos que se desvanecem em seguida, desta vez com mais intensidade. Lucy tira fotos e para.

—        Que aconteceu? Pergunta Lex.

—        Tenho uma sensação estranha, responde Lucy. — Me dê o pulverizador. Lex entrega. — Qual é o falso positivo mais comum que obtemos com o Luminol? Pergunta Lucy.

—        O detergente.

—        Outra coisa.

—        O cobre.

 

Lucy começa a pulverizar o jardim dando amplas passadas. A grama fica de uma cor verde azulada, brilha um instante e se apaga de novo ali onde a toca o Luminol, como um fantasmagórico oceano luminescente. Nunca viu nada igual.

 

—        A única explicação é que tenham utilizado um fungicida, diz Lucy. — Fumigação com cobre. O que empregam nos cítricos para prevenir o cancro. O método não é demasiado efetivo; testemunho disso são estas árvores secas com essa bonita faixa vermelha ao redor.

—        As impressões indicam que alguém cruzou o jardim e entrou na casa, diz Lex. — Alguém como um fiscal de cítricos.

—        Temos que descobrir quem foi, afirma Lucy.

 

Marino detesta os restaurantes de moda de South Beach e nunca estaciona sua Harley próxima a essas motos inferiores, em sua maioria brinquedinhos japoneses, que sempre são vistas na passarela de madeira a esta hora do dia. Circula por Ocean Drive com lentidão e muito ruído, contente de que seus tubos de escapamento irritem a todos os que tomam vinho e martinis com diversos adereços nas mesas iluminadas com velas. Que modernos!

 

Para a escassos centímetros do para-choque traseiro de um Lamborghini vermelho, mete o ponto morto e dá uma pequena aceleração para revolucionar o motor uns instantes, com o fim de mostrar a todo o mundo sua presença. O Lamborghini avança uns centímetros e Marino também, quase tocando o para-choque, e volta a acelerar o motor; o Lamborghini avança de novo e Marino faz o mesmo. Sua Harley ruge como um leão mecânico. Por fim, pela janela do Lamborghini sai bruscamente um braço desnudo cuja mão mostra o dedo médio rematado por uma unha vermelha longuíssima.

 

Marino sorri, acelera outra vez e anda serpenteando entre os carros para ficar próximo do Lamborghini. Aproxima-se mais e vê uma mulher de pele olivácea sentada ao volante de liga de aço. Pela sua aparência terá uns vinte anos. Veste uma camiseta, um short de jeans e pouco mais. A mulher que vai sentada a seu lado é pouco atraente, porém compensa com um vestido que parece uma estreita faixa sobre o peito e um short curto que apenas cobre o imprescindível.

 

—        Como consegue escrever no computador ou fazer o serviço da casa com essas unhas? Pergunta Marino à motorista por cima do barulho do motor grande e potente, estendendo suas enormes mãos como as garras de um gato para apontar para as unhas postiças longas e vermelhas, de porcelana ou algo semelhante.

 

A garota mantém seu bonito rosto olhando em frente, para o sinal, provavelmente desesperada para que fique verde e sair disparada e livrar-se do louco vestido de negro, porém antes diz:

 

—        Não encoste em meu carro, filho da puta. Fala com um marcado acento hispânico.

—        Essa forma de falar não é própria de uma senhorita, replica Marino. — Acaba de ferir meus sentimentos.

—        Pois foda-se.

—        Que tal se eu convidar as duas para uma bebida? E depois poderíamos ir dançar.

—        Nos deixe em paz de uma puta vez, diz a motorista.

—        Vou a chamar à polícia! Ameaça a que vai vestida com a faixa.     

 

Marino toca o capacete, decorado com decalques de orifícios de bala e, quando o sinal fica verde, sai como uma flecha diante das garotas. Antes que o Lamborghini tenha posto a segunda ele já dobrou a esquina da Rua Catorze. Estaciona junto a um parquímetro, em frente a Tatuagens Lou, e desliga o motor ao desmontar de sua moto. Ajeita-a e em seguida atravessa a rua a caminho do bar mais antigo de South Beach, o único que frequenta por estes lados, Mac's Club Deuce, ou simplesmente Deuce, como chamam os clientes, e que não pode ser confundido com sua Harley Deuce. Uma noite «dupla Deuce» diz Marino quando vai ao Deuce em sua Deuce. O local é um tugúrio de má fama com chão de lajotas brancas e negras, uma mesa de bilhar e uma lâmpada de néon em cima do balcão.

 

Rosie logo serve um chope Budweiser do barril. Não tem nem que pedir.

 

—        Espera companhia? Pergunta empurrando sobre o velho balcão de madeira o copo alto transbordante de espuma.

—        Não a conhece. Esta noite não conheces ninguém.

—        Certo, certo. Rosie coloca uma medida de vodca em um copo para um indivíduo mais velho que está sentado em um tamborete próximo. — Não conheço ninguém daqui, fora vocês dois. Perfeitamente.  Ou melhor, também não quero conhecê-los.

—        Não me destrua o coração, diz Marino. — Por que não põe um pouquinho de limão? Devolve-lhe o copo.

—        Esta noite estamos caprichosos. Após pingar umas gotas de limão, devolve-lhe o copo. — Gosta assim?

—        Está ótimo.

—        Não perguntei se está ótimo. Perguntei se gosta assim.

 

Como de costume, os clientes habituais não lhes prestam atenção. Estão agrupados no outro extremo do balcão, olhando hipnotizados para uma partida de beisebol na televisão, mas na realidade não estão acompanhando. Marino não os conhece pelo nome, porém não faz falta. O tipo gordo de barba, a mulher obesa que está sempre se queixando e seu noivo, que tem um terço do tamanho dela e parece um furão de dentes amarelos. Marino gostaria de saber como diabos fazem sexo, e imagina-o um vaqueiro do tamanho de um jóquei sacudindo-se como um peixe em cima de um touro que não para de corcovear. Todos fumam. Em uma noite dupla Deuce, Marino só pode acender uns quantos cigarros sem pensar na doutora Self; o que acontece aqui não sai daqui.

 

Leva a sua cerveja com limão até a mesa de bilhar e escolhe um taco do variado sortimento apoiado contra uma parede. Em seguida ordena as bolas e dá uns passos ao redor da mesa com um cigarro pendurado no lábio, esfregando o taco com giz. Olha de lado o furão, vê que se levanta de sua cadeira para ir ao banheiro masculino com sua cerveja. Sempre faz o mesmo porque teme que alguém batize a bebida. Os olhos de Marino veem tudo e todos.

 

Nesse momento entra no bar um indivíduo com pinta de vagabundo, barba desalinhada, rabo de cavalo, moreno, com roupa Goodwill que não é de seu tamanho, um velho boné dos Miami Dolphins e uns estranhos óculos de vidros rosados. Com gestos inseguros se senta em uma cadeira, próxima da porta, guardando um lenço no bolso traseiro da calça, escuro e deformado. Fora, na calçada, um rapaz sacode um parquímetro avariado que acaba de engolir seu dinheiro.

 

Marino, entrecerrando os olhos por causa da fumaça do cigarro, mete limpamente duas bolas nas caçapas laterais.

 

—        Isso. Continua metendo as bolas na caçapa, fala Rosie em voz baixa enquanto serve outra cerveja. — Bem, e onde tens estado?

 

Rosie possui uma certa atração agressiva, é uma mulher com a qual ninguém que esteja em seu juízo se atreveria a brincar, por muito bêbado que esteja. Marino a viu em uma ocasião estropiar o pulso de uma pessoa de cento e quarenta quilos com uma garrafa de cerveja porque não deixava de olhar o seu traseiro.

 

—        Para de servir a todo o mundo e vem aqui, fala Marino golpeando a bola oito.

 

A bola vai rodando até o centro do tapete verde e se detém.

 

—        Perfeito, murmura; deixa o taco apoiado contra a mesa e se aproxima da máquina de discos enquanto Rosie abre duas latas de Miller Lite e as deixa em frente do tipo gordo e do furão.

 

Rosie sempre se move a um ritmo frenético, parecida com um limpador de para-brisas a toda velocidade. Seca as mãos na parte de trás dos jeans enquanto Marino escolhe uns quantos favoritos de uma recopilação dos anos setenta.

 

—        Que está olhando? Pergunta o homem com pinta de vagabundo sentado junto à porta. —Gostaria de uma partida?

—        Estou ocupado, responde Marino sem girar, escolhendo discos na máquina.

—        Não se pode jogar nada sem pedir antes uma consumação, adverte Rosie ao vagabundo, que está fundido em sua cadeira. — E não quero lhe ver sem fazer nada, estando aqui por estar. Quantas vezes tenho que dizer isto?

—        Achei que este tipo queria jogar uma partida comigo. Apanha o lenço e começa a retorcê-lo com angustia.

—        Vou falar a mesma coisa que falei da última vez que entrou aqui. Se não consumir nada não pode sentar, jogar nem usar o banheiro, fala Rosie na sua cara, com as mãos nas cadeiras. — Se quiser algo, tem de consumir.

 

O tipo se levanta rápido da cadeira, retorcendo o lenço, e olha fixamente para Marino; seus olhos revelam cansaço e derrota, porém existe algo mais neles.

 

—        Achei que você gostaria de jogar uma partida, fala a Marino.

—        Fora! Explode Rosie.  

—        Deixe que eu me encarregue disso, se oferece Marino, aproximando-se do outro. — Vamos amigo, acompanho-o à rua antes que a coisa piore. Já sabe como é Rosie. O homem não opõe resistência. Não fede nem a metade do que esperava Marino, que o acompanha para fora do local, até a calçada onde o idiota de antes continua sacudindo o parquímetro.

—        Que se foda. Então Marino se aproxima mais desse garoto ficando de frente a ele erguido em toda a sua estatura. O outro abre os olhos como pratos.

—        O que disse? Espeta Marino levando uma mão ao ouvido, inclinando-se para ele. — Escutei o que escutei?

—        Coloquei três moedas de vinte e cinco.

—        Que pena. Sugiro que suba na sua merda de carro e tire a bunda daqui antes que eu o detenha por causar danos ao mobiliário público, ameaça Marino, embora na realidade já não possa deter ninguém.

 

O indivíduo com pinta de vagabundo caminha rápido pela calçada, olhando para trás como se esperasse que Marino o seguisse. Disse algo quando o garoto arranca o Mustang e sai voando dali.

 

—        Está falando comigo? Pergunta Marino ao vagabundo, indo até ele.

—        Sempre faz o mesmo, responde em voz baixa o vagabundo. — O mesmo garoto. Nunca coloca moedas nos parquímetros por aqui e se põe a sacudi-los sem parar até que quebram.

—        Que quer?

—        Johnny veio aqui na noite antes do que aconteceu, diz o andrajoso com os sapatos de saltos gastos.

—        De que está falando?

—        Já sabe. Não se suicidou. Eu sei quem o matou.

 

Marino experimenta uma sensação curiosa, a mesma que teve quando entrou na casa da senhora Simister. Nisto vê Lucy a uma quadra dali, dando um tempo na calçada, sem sua habitual roupa folgada negra.

 

—        Ele e eu jogamos bilhar na noite anterior. Estava com os pulsos enfaixados, porém não dava a impressão de que isso fosse um impedimento. Jogou muito bem.

 

Marino observa Lucy sem que ela note. Esta noite, ela encaixa perfeitamente. Poderia ser qualquer mulher de vida alegre das que rodeiam por aqui, de estilo masculino, porém atraente com seus jeans caros, descoloridos e rasgados. Debaixo da jaqueta de couro suave veste uma camiseta branca ajustada ao peito, e ele sempre gostou de seus peitos, apesar de que pensa que não deve olhar para eles.

 

—        O vi na única vez que trouxe sua garota aqui, está falando o vagabundo, olhando a seu redor como se algo o desassossegasse, voltando-se para o bar. — É uma pessoa a quem deveria procurar. Isto é tudo o que tenho a dizer.

—        Que garota é essa e por que vou me importar? Pergunta Marino observando Lucy. Aproxima-se um pouco, percorrendo a área com o olhar, assegurando-se de que ninguém tenha uma ideia errada sobre ela.

—        É bonita, diz o homem. — Dessas que olham tanto os homens como as mulheres neste bairro. Veste-se muito sexy. Ninguém a queria por aqui.

—        Me dá a impressão de que tampouco você. Acabam de expulsá-lo a pontapés.

 

Lucy entra no Deuce sem olhar, como se Marino e o vagabundo fossem invisíveis.

 

—        A única razão por que não me chutaram também naquela noite foi porque Johnny me convidou para uma cerveja. Estivemos jogando bilhar enquanto a garota ficava sentada ao lado da máquina de discos, olhando ao redor como se nunca em sua vida tivesse estado num tugúrio assim. Entrou no lavabo um par de vezes e o deixou colhendo a grama.

—        Você tem costume de olhar o lavabo das senhoras?

—        Ouvi dizer uma mulher no balcão. Essa garota tinha pinta de ser das que causam problemas.

—        Tem ideia de como se chamava?

—        Não. Marino acende mais um cigarro.

—        Que o faz pensar que tem algo a ver com o que aconteceu a Johnny?

—        Não gostei dela. Ninguém gostava. Isto é a única coisa que sei.

—        Está certo?

—        Sim, senhor.

—        Não conte isto a mais ninguém, certo?

—        Não existe motivo.  

—        Exista motivo ou não, mantenha a boca fechada. E agora vai me dizer como diabos sabia que eu ia a vir ao Deuce esta noite e por que diabos achou que poderia falar comigo.

—        Você tem uma moto espetacular. O vagabundo volta o olhar até o outro lado da rua. — Custa não reparar nela. Por aqui muitas pessoas sabem que você era detetive de homicídios e que agora se dedica a fazer investigações privadas em algum centro da polícia ou algo assim, ao norte daqui.

—        O que? Acaso sou o prefeito?

—        Você é cliente habitual. Eu o vi com alguns desses das Harley, estou a semanas procurando-o, esperando ter oportunidade de falar com você. Sempre ando por aqui, faço o que posso. Não me encontro precisamente no melhor momento de minha vida, porém não perco a esperança de que a coisa melhore. Marino apanha a carteira e lhe dá uma nota de cinquenta dólares.

—        Se descobrir algo mais sobre essa garota que viu aqui, o compensarei pelo esforço, fala. — Onde posso encontrá-lo?

—        Cada noite estou em um lugar diferente. Como digo, faço o que posso.

 

Então Marino dá seu número do celular.

 

—        Quer outra? Pergunta Rosie a Marino quando este retorna ao bar.

—        Melhor colocar uma sem álcool. Lembra-se de ter visto, nas vésperas de Ação de Graças, um médico ruivo que entrou aqui com uma garota? Esse tipo que acaba de botar para fora disse que ele e o médico jogaram uma partida de bilhar nessa noite.  

 

Rosie adota uma expressão pensativa sem deixar de limpar o balcão e por fim nega com a cabeça.

 

—        Muitas pessoas vêm aqui e isso foi há muito tempo. Antes do dia de Ação de Graças, quando exatamente? Marino vigia a porta. Faltam poucos minutos para as dez.

—        Pode ter sido na noite anterior.

—        Eu não estava aqui. Já sei que custa acreditar, comenta Rosie, — Porém tenho uma vida, não trabalho aqui todas as putas noites. Em Ação de Graças estava fora, em Atlanta, com minha filha.

—        Parece que havia aqui uma garota um tanto problemática, com o médico que lhe falei. Esteve com ele na noite anterior à sua morte.

—        Não tenho ideia.

—        Pode ser que ela tivesse vindo aqui nessa noite com o médico quando você estava fora? Rosie continua limpando o balcão.

—        Não quero problemas.

 

Lucy está sentada junto à janela, próxima da máquina de discos, e Marino em outra mesa, na ponta oposta do local, com o receptor colocado e acoplado a um aparelho que parece um telefone celular. Bebe uma cerveja sem álcool e fuma.

 

Os clientes não lhes prestam nenhuma atenção. Nunca olham. Cada vez que Lucy vem a este bar com Marino encontra aos mesmos desgraçados sentados nos mesmos tamboretes, fumando cigarros mentolados e tomando cerveja de baixa graduação. A única pessoa com quem falam fora das que formam seu pequeno círculo de amizades é Rosie, que disse a Lucy em uma ocasião que a mulher gordíssima e seu noivo haviam morado em um bonito condomínio em Miami, com guarda de segurança na entrada e todas as comodidades até que prenderam o noivo, por vender meta-anfetamina a um policial à paisana. Agora a gorda tem que mantê-lo com o que ganha como caixa de um banco. O gordo da barba trabalha como cozinheiro em uma cafeteria à que Lucy nunca irá. Vem aqui todas as noites, se embebeda e de algum modo consegue retornar dirigindo para sua casa.

 

Lucy e Marino se ignoram mutuamente. Por muitas vezes que tenham representado esta cena, em diversas operações, sempre é desagradável, uma intrusão. Ela não gosta que a espiem, embora a ideia tenha sido sua e que seja lógico que Marino esteja esta noite no bar. Lucy se ressente de sua presença.

 

Confere o microfone que está preso ao forro da sua jaqueta de couro. Inclina-se para frente como se quisesse atar os cordões dos sapatos para que ninguém a veja falar.

 

—        Nada até momento, transmite a Marino.

 

Passam três minutos das dez. Lucy espera. Toma devagar uma cerveja sem álcool, com as costas viradas para Marino, e espera. Consulta novamente seu relógio. São dez e oito. Nisto se abre a porta e entram dois homens. Passados mais dois minutos Lucy transmite a Marino:

 

—        Algo vai mal. Vou sair para dar uma olhada. Fique aqui.

 

Lucy atravessa o distrito seguindo a Avenida Ocean, procurando Stevie entre a multidão. Quanto mais tarde se faz, mais ruidosos e bêbados são os paroquianos de South Beach, e tão cheia está a rua de carros que a percorrem procurando lugar para estacionar, que o trânsito apenas se move. É irracional procurar Stevie. Não veio. O mais provável é que se encontre a um milhão de quilômetros daqui. Entretanto Lucy continua procurando.

 

Lembra que Stevie afirmou haver seguido suas pisadas na neve até o Humer estacionado atrás do Anchor Inn. Pergunta-se em como acreditou no que disse Stevie, como não o pôs em dúvida. Se bem que suas pisadas fossem muito claras junto a casa, ao longo da calçada teriam-se mesclado com muitas outras. Lucy não era a única pessoa que havia em Ptown naquela manhã. Pensa no telefone celular pertencente a um homem chamado Doug, nas impressões de mãos, em Johnny, e se desespera por haver sido tão descuidada, tão míope, tão autodestrutiva. 

 

Tem certeza de que Stevie em nenhum momento teve intenção de encontrar-se com ela no Deuce; brincou com ela como fez aquela noite no bar. Para Stevie nada é novo; é experiente em seus jogos, uns jogos arrevesados e doentes.

 

—        A vê em alguma parte? Aparece a voz de Marino no ouvido.

—        Vou dar uma volta, ela responde. — Fique onde está.

 

Entra na Rua Onze e em seguida se dirige para o norte pela Avenida Washington, quando de repente passa junto dela um Chevy Blazer com os espelhos pintados. Aperta o passo, nervosa, de repente menos valente, consciente da pistola que está em uma cartucheira presa ao tornozelo e com a respiração agitada.

 

Outra tempestade invernal se abate sobre Cambridge e Benton a duras penas distingue as casas da calçada em frente. A neve cai copiosamente em flocos cortantes e o mundo que o rodeia vai se tingindo de branco.

 

—        Posso fazer mais café, se quiser, fala Scarpetta quando ele entra na sala.

—        Já bebi o suficiente, ele responde, de costas.

—        Eu também.

 

Benton ouve ela se sentar em frente à lareira com uma xícara de café; sente seus olhos pousados nele e dá a volta para olhá-la, sem estar muito certo do que falar. Scarpetta tem o cabelo úmido e colocou uma bata de seda negra. Debaixo não veste nada e a tela acetinada lhe acaricia o corpo e deixa ver o profundo vale que separam os seios, por causa da postura em que está sentada, de lado, inclinada sobre si mesma, rodeando os joelhos com seus fortes braços, mostrando uma pele sem imperfeições e muito tersa para sua idade. O brilho do fogo toca seu cabelo curto e ruivo e seu belíssimo rosto; o fogo e o sol amam seu cabelo e seu rosto tanto como ele os ama. Benton a ama, inteira, porém neste preciso instante não sabe o que dizer. Não sabe como consertar as coisas.

 

A noite ela disse que ia abandoná-lo. Teria feito a mala se tivesse uma, porém ela nunca traz mala. Tem algumas coisas aqui. Este também é seu lugar e, durante toda a manhã, Benton escutou o ruído das gavetas e das portas do armário, sabendo que ela ia para não voltar.

 

—        Não pode dirigir, fala.

 

As árvores delineiam delicados traços de pincel em contraste com a brancura luminosa, e não existe um só carro circulando a vista.

 

—        Sei como se sente e o que quer fazer, fala, — Porém hoje não vai à parte alguma. Ninguém se moverá. Em Cambridge algumas das ruas as máquinas limpa-neve não passam. E esta é uma delas.

—        Você tem um carro com tração nas quatro rodas, responde Scarpetta olhando para as mãos apoiadas no regaço.

—        Espera-se que caia sessenta centímetros de neve. Ainda que eu pudesse levá-la até o aeroporto, seu avião não iria à parte alguma. Hoje não.

—        Deveria comer algo.

—        Não tenho fome.

—        Que tal uma torta de queijo cheddar de Vermont? Precisa comer. Sentir-se-ia melhor.

 

Scarpetta o observa da lareira, com o queixo apoiado em uma mão. Tem a bata amarrada firmemente à cintura, de modo que seu corpo parece esculpido em seda negra e brilhante, e Benton a deseja como sempre. Desejou-a na primeira vez que se viram, há uns quinze anos. Os dois eram chefes. O departamento de Benton era a Unidade de Ciências da Conduta do FBI, o dela o sistema forense da Virginia. Trabalhavam em um caso especialmente atroz e ela entrou na sala de análise. Lembra-se de como estava vestida na primeira vez que a viu, com um jaleco de laboratório largo e branco por cima de um vestido pérola e vários canetas nos bolsos. Levava um monte de expedientes de casos nos braços. Chamaram-lhe a atenção suas mãos, fortes e capazes, porém elegantes.

 

Vê que ela o está olhando fixamente.

 

—        Com quem falava no telefone ainda agora? Pergunta Benton. — Escutei falar com alguém. Ligou para seu advogado, supõe. Ligou para Lucy. Ligou para alguém para falar que vai deixá-lo e desta vez é sério.

—        Liguei para a doutora Self, responde Scarpetta. — Não estava e deixei uma mensagem. Benton fica perplexo e se nota. — Tenho certeza de que se lembra dela, — Ou melhor, deve tê-la escutado no rádio... Adiciona com ironia.

—        Por favor...

—        Milhões de pessoas a escutam.

—        E para que ligou? Pergunta Benton.

 

Scarpetta fala de David Fortuna e de sua medicação. Diz-lhe que a doutora Self não a ajudou em nada na primeira vez que ligou. 

 

—        Não me surpreende. É uma enlouquecida, uma egomaníaca. Faz justiça a seu sobrenome, Self.

—        Na realidade, estava em seu pleno direito. Eu não tenho jurisdição. E pelo que sabemos, não morreu ninguém. No momento a doutora não é obrigada a responder nenhuma pergunta, e não estou certa de que seja uma enlouquecida.

—        Que tal psiquiatra enlouquecida? Escutou-a ultimamente?

—        De modo que ouve o seu programa...

—        Da próxima vez, convide para falar na Academia um psiquiatra de verdade, não a um fantoche da televisão.

—        Não foi ideia minha e deixei bem claro que era contra. A responsável é Lucy.

—        Isto é ridículo. Lucy não suporta pessoas como ela.

—        Acho que foi Joe quem sugeriu trazer a doutora Self como conferencista convidada, foi seu primeiro grande ícone quando começou como estudante. Isto e estar em seu programa como convidado fixo. De fato, falou da Academia no rádio, o que não me alegra em absoluto.

—        Que idiota. Merecem um ao outro.

—        Lucy não estava atenta. Claro, jamais assistiu às palestras. Não se importava nem um pouco com o que Joe fizesse. Ultimamente muitas coisas deixaram de interessá-la. Não sei o que vamos fazer.  Agora não está falando de Lucy.

—        Também não.

—        Você é psicólogo. Deveria saber. Você trata todos os dias de disfunções e desgraças.

—        Esta manhã eu é que me sinto desgraçado, responde Benton. — Nisso tens razão. Suponho que se eu fosse seu psicólogo sugeriria que desafogasse sua dor e sua raiva comigo porque não podes desafogá-la com Lucy. Não pode brigar com uma pessoa que tem um tumor cerebral.

 

Scarpetta joga outro acha no fogo, que levanta uma nuvem de fagulhas e faz crepitar a lenha.

 

—        Está à vida toda me deixando furiosa, confessa. — Nunca houve uma pessoa que pusesse minha paciência à prova como ela.

—        Lucy é filha única, criada por uma mãe que sofre de uma desordem de personalidade limite, diz Benton. — Uma narcisista hipersexual. Sua irmã. E a isso se some que Lucy é superdotada. Não pensa como o resto das pessoas. É lésbica. O resultado é uma pessoa que aprendeu há muito tempo bastar-se a si mesma.

—        Uma pessoa profundamente egoísta, quer dizer.

—        Os insultos a nossa psique podem nos transformar em egoístas. Lucy tinha medo de que se soubesse que tinha um tumor fosse tratá-la de modo diferente, e isso afetaria em cheio sua maneira de agir. De algum modo este medo se converteu em algo real.

 

Scarpetta fica olhando fixamente pela janela que está atrás de Benton como se estivesse hipnotizada pela neve. Esta já alcançou pelo menos vinte centímetros de espessura e os carros estacionados na rua começam a parecer de gelo; até as crianças do vizinho ficaram em casa.

 

—        Agradeço a Deus que fui às compras, comenta Benton.

—        Falando desse tema, deixe ver o que posso preparar para o almoço. Deveríamos preparar um bom almoço. Deveríamos tentar passar um bom dia.

—        Alguma vez viste um corpo pintado? Pergunta Benton.

—        O meu ou de outro? Benton esboça um sorriso.

—        Decididamente, o seu não. Seu corpo não tem nada para ser pintado. Falo do caso que tenho sobre a mesa, o cadáver dessa mulher pintado com umas impressões de mãos. Gostaria de saber se as pintaram quando ainda estava viva ou depois de matá-la. Quem dera que existisse uma maneira de diferenciar.

 

Scarpetta olha um bom tempo para o fogo da lareira.

 

—        Se o assassino a pintou estando viva, enfrentamos um tipo de assassino muito diferente. Isto seria tremendamente humilhante e aterrador, diz Benton. — Estar manietada...

—        Sabemos que estava manietada?

—        Tem marcas nos pulsos e nos tornozelos. Zonas avermelhadas que o patologista define como possíveis contusões.

—        Possíveis?

—        Outra possibilidade seria um acidente post mortem, explica Benton. — Sobretudo tendo em vista que o cadáver esteve exposto ao frio. Isto ela diz.

—        Ela?

—        A chefa daqui.

—        Um resto do não muito glorioso passado do Instituto de Medicina Legal de Boston, diz Scarpetta. — Lástima. Ela só deixou esse lugar a perder.

—        Agradeceria se desse uma olhada no relatório. Tenho em disco. Quero saber o que acha das pinturas do cadáver, de tudo. É realmente importante para mim, saber se o assassino pintou a vítima quando estava viva ou quando estava morta. É uma lástima que ainda não possamos fazer um escâner cerebral para reconstruir o acontecido.

 

Scarpetta o toma como um comentário a sério.

 

—        Isto é um pesadelo pelo que não estou certa de que queira passar. Nem sequer você queria ver algo semelhante. Supondo que fosse possível.

—        Basil gostaria de ver.

—        Sim, o querido Basil, responde Scarpetta, que não está nada contente com a entrada de Basil na vida de Benton.

—        Teoricamente, diz ele, — Você gostaria de ver? Gostaria de ver a reconstituição, se for possível?

—        Ainda que existisse um modo de reproduzir os últimos momentos de uma pessoa, ela responde da lareira, — Não estou certa de que fosse muito fiável. O cérebro possui a notável capacidade de reprocessar os acontecimentos para garantir a menor quantidade de dor e trauma.

—        Algumas pessoas dissociam, eu acho, diz Benton, e nesse momento toca seu telefone celular.

 

É Marino.

 

—        Peça a Scarpetta para ligar para o ramal dois quatro três, pede. — Agora mesmo.

 

O ramal 243 é do Laboratório de Impressões Digitais. Também é o foro preferido dos altos comandos da Academia, um lugar para se reunir e falar de provas que requerem mais de um tipo de análise forense.

 

As impressões digitais já não são mais só impressões digitais. Podem constituir uma fonte de DNA, e não só do DNA de quem as deixou, mas também do da vítima tocada pelo criminoso. Podem ser uma fonte de resíduos do material que se encontrava nas mãos da pessoa, talvez tinta ou pintura. Precisam ser analisadas com instrumentos como o cromatógrafo de gases, ou o espectrofotômetro de infravermelho, ou por espectrofotometria infravermelha com «Transformação de Fourier». Nos velhos tempos uma prova era uma só prova; na atualidade, devido à sofisticação e a sensibilidade dos instrumentos e dos processes científicos, pode se converter em um quarteto de cordas ou em uma sinfonia. O problema é o que iniciar primeiro, porque a análise de uma coisa pode destruir a outra. De modo que os técnicos se juntam, normalmente no laboratório de Matthew, e ali debatem e decidem o que se deve fazer e em que ordem.

 

Quando Matthew recebeu as luvas de látex do lugar do assassinato de Daggie Simister, enfrentou todo um leque de possibilidades, nenhuma delas fáceis de se decidir. Poderia colocar luvas de algodão para examinar as de látex do avesso. Ao se servir de suas próprias mãos para preencher o látex, seria mais fácil levantar e fotografar as impressões latentes. Entretanto ao fazê-lo corre o risco de perder qualquer possibilidade de testar as impressões com cianocrilato ou de buscá-las com uma fonte de luz alternativa e pós luminescentes ou de tratá-las com produtos químicos tais como a ninidrina ou diazofluoreno. Um tratamento pode transformar em inútil o outro, e uma vez feito o dano não há como voltar atrás.

 

São oito e meia, e neste momento neste pequeno laboratório estão realizando uma miniconferência do tipo militar, com a presença de Matthew, Marino, Joe Amos e três técnicos, todos ao redor de uma grande caixa de plástico transparente, o tanque de cianocrilato. Dentro estão duas luvas de látex voltados do avesso, uma delas com manchas de sangue. Na luva ensanguentada foram feitos uns pequenos orifícios. Nas outras partes do látex, por dentro e por fora, foi passado um algodão para recolher o DNA de modo que não altere as possíveis impressões. Em seguida Matthew teve que decidir o teste número um, o teste número dos, o teste número três, que é como gosta de descrever uma decisão que requer instinto, experiência e sorte. Decidiu colocar as luvas dentro do tanque com papel alumínio, cianocrilato e um prato de água pura. Obteve como resultado uma impressão digital visível, a de um polegar esquerdo, conservada em cianocrilato. Passou gel negro e a fotografou.

 

—        Está reunida toda a banda, fala a Scarpetta com as mãos livres. — Quem quer começar? Pergunta aos reunidos ao redor da mesa de exploração. — Randy?

 

Randy, especialista em DNA, é um homenzinho estranho de nariz grande e com um olhar vago. Matthew nunca gostou dele e lembra por que, quando ele começa a falar.

 

—        Bem. Foram-me entregues três potenciais fontes de DNA, diz Randy com seu típico modo pedante. — Duas luvas e duas impressões de orelha.

—        Isto são quatro coisas, replica a voz de Scarpetta.

—        Sim, senhora, queria dizer quatro. Claro, tinha a esperança de achar DNA no exterior de uma das luvas, a que tem sangue seco, e talvez DNA na parte interior de ambas. Já consegui DNA das impressões de orelha, lembra a todo o mundo. — Consegui recuperá-lo de forma não destrutiva, evitando o que poderiam considerar-se variações individuais de rasgos potencialmente característicos como a extensão inferior da anti-hélice. Como sabem, depois de passar esse perfil pelo CODIS continuávamos com as mãos vazias, porém o que acabamos de descobrir é que o DNA da impressão de orelha coincide com o do interior de uma das luvas.

—        Só de uma? Pergunta a voz de Scarpetta.

—        A que está manchada de sangue. Da outra não consegui nada. Não estou certo de que sequer tenha sido usada.

—        Isto é muito curioso, comenta a voz desconcertada de Scarpetta.

—        Claro, contei com a ajuda de Matthew, já que eu não sou muito versado em anatomia de orelha, e as impressões de todo tipo correspondem mais a seu departamento que ao meu, agrega Randy, como se isso tivesse importância. — Como acabo de apontar, obtivemos o DNA da impressão de orelha, especificamente das áreas da hélice e do lóbulo. E não tenho dúvidas de que pertence à mesma pessoa que pôs uma das luvas, de maneira que suponho que se poderia afirmar que quem apoiou a orelha, contra o vidro da casa em que desapareceu essa família, era a mesma que estava pelo menos com uma das luvas de látex recolhidas no lugar do crime.

—        Quantas vezes apontou seu puto lápis enquanto fazia tudo isso? Sussurra Marino.

—        Como diz?

—        Não queria que omitisse nem um só de esses fascinantes detalhes, diz Marino em voz baixa para que Scarpetta não o ouça. — Aposto que anda pela calçada contando as gretas do chão e que liga o temporizador cada vez que se deita com alguém.

—        Randy, continua, por favor, incentiva Scarpetta. — Disse que não encontrou nada no CODIS. Isto é uma lástima.

 

Randy prossegue falando com seu estilo carregado e tedioso, e confirma uma vez mais que a busca que se realizou na base de dados do Sistema de índice de DNA Combinado, conhecida como CODIS, foi infrutífera. A pessoa que deixou o DNA não figura na base de dados, o que possivelmente sugere que dita pessoa nunca foi detida.

 

—        Também saímos com as mãos vazias no caso do sangue encontrado na loja de praia. Entretanto várias dessas amostras não são de sangue, diz Randy dirigindo-se ao telefone negro. — Não sei do que são. De algo que deu um falso positivo. Lucy mencionou a possibilidade de que seja cobre; ela acha que o que reagiu ao Luminol pode ser o fungicida utilizado para prevenir o cancro. Já sabe, fumigação com cobre.

—        Baseando-se em que? Pergunta Joe, outro membro do grupo que Matthew tampouco suporta.

—        No lugar do assassinato da senhora Simister havia grande quantidade de cobre, dentro e fora da casa.

—        Concretamente que amostras da loja Apetrechos de Praia eram de sangue humano? Pergunta a voz de Scarpetta.

—        As do banheiro. As amostras do chão do armazém não são de sangue. Outro falso positivo. Também neste caso poderia tratar-se de cobre.

—        Phil? Estás por aí?

—        Aqui mesmo, responde Phil, o examinador de provas.

—        Lamento de verdade, diz então a voz de Scarpetta, e parece sincera. — Entretanto quero que os laboratórios trabalhem no máximo.

—        Acreditava que já estávamos fazendo isso. De fato, estamos a ponto de passar do ponto de exaustão. Joe não seria capaz de manter a boca fechada nem debaixo d’água.

—        Todas as amostras biológicas que ainda não tenham sido analisadas, quero que analisem o mais rápido possível. A voz de Scarpetta fica mais inflexível. — Incluídas todas as fontes potenciais de DNA retiradas na casa de Hollywood em que desapareceram as duas crianças e as duas mulheres. Está todo no CODIS. Vamos tratá-los como se já estivessem mortos.

 

Os técnicos, Joe e Marino se olham. Nunca haviam escutado Scarpetta dizer nada parecido.

 

—        Isto sim é que é otimismo de sua parte, aponta Joe.

—        Phil, por que não passa pelo SEM-EDS os resíduos do tapete, os resíduos do caso Simister e os do mono volume, todos os resíduos, diz a voz de Scarpetta. — Vejamos se é cobre de verdade.

—        Se encontram em todo o lugar.

—        Não, nada disso, replica a voz de Scarpetta. — Nem todo o mundo o utiliza. Nem todo o mundo tem cítricos. Entretanto até agora, nos casos que temos entre as mãos, é um denominador comum.

—        E a loja da praia? Não creio que haja cítricos próximos dali.

—        Tem razão. Boa observação.

—        Nesse caso, digamos que alguns desses resíduos dão positivos em cobre...

—        Isto será significativo, responde a voz de Scarpetta. — Teremos que nos perguntar por quê. Quem o colocou na loja. Quem o pôs no mono volume. E vamos ter que voltar à casa da família desaparecida e procurar cobre em seu interior, também. Existe algo interessante sobre a substância similar à pintura vermelha que encontramos no chão?

—        Se trata de um pigmento de hena com base de álcool, não é como a tinta de roupa ou de pintura de paredes, responde Phil.

—        E que me diz de tatuagens ou de desenhos corporais?

—        De fato, poderia ser, porém se tem uma base de álcool não o detectaríamos. A estas alturas já haveriam evaporado o etanol ou isopropanol.

—        É interessante que surja ali, onde parece que já está há tempos. Que alguém ponha Lucy ao corrente sobre o que estamos falando. Onde está?

—        Não sei, responde Marino.

—        Precisamos o DNA de Florrie Quincy e de sua filha Helen, diz em seguida a voz de Scarpetta. — Para ver se o sangue na loja da praia são delas.

—        A do banheiro é de um só doador, intervém Randy. — Não há sangue de duas pessoas e, se tivesse, sem dúvida alguma poderíamos saber se entre ambas existia algum parentesco. Por exemplo, se eram mãe e filha.

—        Farei isso, diz Phil. — Me refiro à parte do SEM.

—        Quantos casos existem? Pergunta Joe. — E dá por verdadeiro que todos estão relacionados? É por isso pelo que devemos tratar todos como se estivessem mortos?

—        Não estou dando por verdadeiro que todos estejam relacionados, responde a voz de Scarpetta. — Entretanto me preocupa que possam estar.

—        Como ia falando a respeito do caso Simister, não tivemos sorte com o CODIS, prossegue Randy, — Porém o DNA do interior da luva de látex não coincide com o do sangue que está por fora. O que não é de estranhar. Dentro da luva havia células cutâneas descamadas da pessoa que a usava. O sangue do exterior é de outro indivíduo, ao menos isso eu posso afirmar, explica.

 

Matthew se surpreende que este tipo seja casado. Quem é capaz de morar com ele? Quem é capaz de suportá-lo?

 

—        O sangue pertence à Daggie Simister? Pergunta diretamente Scarpetta.

 

Como os demais, é lógico que suspeite que a luva ensanguentada que foi encontrada na casa de Daggie Simister esteja manchada com o sangue da anciã.

 

—        Bem, na realidade, é dela o sangue no tapete.

—        Se refere ao tapete que fica junto à janela, onde pensamos que a golpearam na cabeça, aclara Joe.

—        Eu estou falando do sangue na luva. Pertence a Daggie Simister? Pergunta a voz de Scarpetta, que já começa a parecer um pouco tensa.

—        Não, senhora. — O sangue dessa luva não é dela, definitivamente, o que não deixa de ser curioso, explica Randy. — Já que deveríamos esperar que fosse dela.

 

«Oh, Deus, já começa outra vez», pensa Matthew.

 

—        Temos luvas de látex encontradas na cena do crime, e sangue no exterior de uma delas, não no interior.

—        E por que ia ter sangue no interior? Marino o olha irritado.

—        Não existe.

—        Já sei que não existe, porém por que deveria existir?

—        Pois, por exemplo, se o agressor se feriu de alguma forma e sangrou dentro da luva. Ou se se cortou com as luvas colocadas. Já vi isso em casos de esfaqueamento. O agressor está de luvas, se fere e sangra dentro da luva, e está claro que isso não aconteceu neste caso. Daí eu faço perguntas importantes. Se no caso Simister o sangue é do assassino, por que está presente em toda a parte exterior de uma luva? E por que o DNA desse sangue é diferente do que encontrei dentro dessa mesma luva?

—        Acho que as perguntas estão claras, intervém Matthew, porque só lhe resta paciência para aguentar o monólogo talvez mais um minuto, depois do que terá que sair do laboratório fingindo uma visita ao banheiro e ir beber veneno.

—        No exterior da luva é onde se poderia esperar encontrar sangue se o agressor tocou algo ou alguém ensanguentado, afirma Randy.

 

Todos sabem a resposta, porém Scarpetta não. O discurso de Randy é toda uma representação e ninguém pode lhe roubar o êxito: o departamento de DNA é seu.

 

—        Randy? Soa a voz de Scarpetta.

 

É o tom de voz que emprega quando Randy está confundindo e enfadando a todo o mundo, inclusive ela mesma.

 

—        Sabemos de quem é o sangue dessa luva? Pergunta.

—        Sim, senhora, sabemos. Bem, quase. Pertence a Johnny Swift ou seu irmão Laurel. São gêmeos. Por fim falou. — De modo que têm o mesmo DNA.

—        Continua ai? Pergunta Matthew a Scarpetta ao final de um longo silêncio. Então Marino comenta:

—        Não consigo entender como pode ser o sangue de Laurel. Não era o seu sangue que ficou espalhado por toda a sala quando destruíram a cabeça de seu irmão.

 

—        Bem, eu, de minha parte, estou completamente desconcertada, intervém Mary, a toxicóloga. — Johnny Swift foi assassinado no mês de novembro; então, como pode ser que seu sangue apareça de repente, ao cabo de dez semanas, em um caso que não parece ter nenhuma relação com o seu?

—        E já que vamos a isso, como é que seu sangue apareceu no lugar onde mataram Daggie Simister? A voz de Scarpetta enche a sala.

—        Efetivamente, pode ser que as luvas fossem deixadas ali de propósito, aponta Joe.

—        Ou melhor, deveria afirmar o que é mais óbvio, salta Marino. — Quem quer que tenha estourado a cabeça dessa pobre anciã, está nos dizendo que teve algo a ver com a morte de Johnny Swift. Está jogando com conosco.

—        Acabavam de operá-lo...

—        Histórias, corta Marino. — Não é possível que essas luvas fodidas viessem de uma operação do túnel carpiano. Por Deus. Que maneira de complicar a vida. Estão colocando três patas no gato.

—        Que?

—        A mim me parece que a mensagem está bem clara, repete Marino caminhando pelo laboratório, falando a altas vozes, com o rosto avermelhado. — Quem matou nessa anciã está falando que também matou Johnny Swift. E as luvas são para brincar conosco.

—        Não podemos afirmar que esse sangue não seja de Laurel, diz a voz de Scarpetta.

—        Se é, explicaria algumas coisas, diz Randy.

—        Não explicaria uma merda. Se Laurel matou a senhora Simister, para que diabos ia deixar seu DNA no lavabo? Replica Marino.

—        Então pode ser que seja o sangue de Johnny Swift.

—        Cale-se, Randy, ou vou começar a arrancar meus cabelos.

—        Você é calvo, Pete, responde Randy muito sério.

—        Quer me dizer como vamos saber se o sangue é de Laurel ou de Johnny, já que provavelmente tem o mesmo DNA? Exclama Marino. — Isto é uma cagada tão grande que nem sequer fica divertida.

 

Lança um olhar acusador a Randy, depois a Matthew e agora a Randy outra vez.

 

—        Está certo de não ter misturado com outra coisa quando fez os testes?

 

Jamais se preocupa em quem está ouvindo quando põe em cheque a credibilidade de uma pessoa ou quando, simplesmente, está sendo desagradável.

 

—        Ou pode ser que algum de vocês tenha confundido os algodões ou o que seja, diz Marino.

—        Não, senhor. De nenhuma maneira, replica Randy. — Matthew recebeu as amostras e eu fiz as extrações, as análises e as passei pelo CODIS. Não houve nenhuma interrupção da cadeia, e o DNA de Johnny Swift se encontra na base de dados porque atualmente todo cadáver em que se realiza uma autópsia entra na base de dados, e isso quer dizer que o DNA de Johnny Swift entrou na CODIS em novembro passado, se não me equivoco. Continua ai? Pergunta a Scarpetta.

—        Sim, mas... Começa ela a dizer.

—        Desde o ano passado, a política que se aplica é a de registrar todos os casos, sejam suicídios, acidentes, homicídios ou mortes naturais, pontifica Joe, interrompendo-a como de costume. — O mero fato de que alguém seja uma vítima ou que sua morte não tenha relação alguma com um delito não significa que não possa ter-se visto envolvida em alguma atividade delituosa em algum momento de sua vida. E suponho que estamos certos de que os irmãos Swift eram gêmeos.

—        São iguais, falam da mesma maneira, vestem da mesma maneira, fodem da mesma maneira, sussurra Marino.

—        Marino. A voz de Scarpetta da fé de sua presença. — A polícia recolheu uma amostra do DNA de Laurel Swift quando teve lugar a morte de seu irmão?

—        Não. Não havia motivo para isso.

—        Nem sequer para excluir outras hipóteses? Pergunta Joe.

—        O que é o que havia para excluir? O DNA não vinha ao caso, responde Marino. — Havia DNA de Laurel por toda a casa. Ele mora lá.

—        Conviria que pudéssemos submeter à análise o DNA de Laurel, diz a voz de Scarpetta. — Matthew, que produtos químicos aplicaram na luva ensanguentada da casa de Daggie Simister? Usou algo que possa nos criar problemas se fizermos umas quantas provas a mais?

—        Usei cianocrilato, responde Matthew. — E a propósito, também analisei a única impressão que encontrei, porém nada. Não existe nada na AFIS. Não pude compará-la com a amostra do cinturão do assento do mono volume. Não havia detalhes suficientes.

—        Mary, quero que recolha amostras do sangue dessa luva.

—        O cianocrilato não altera nada, já que reage aos aminoácidos presentes na graxa da pele e no suor, e não no sangue, se sente obrigado a explicar Joe. — Não tem como criar problema nenhum.

—        Com gosto proporcionarei uma amostra, diz Matthew dirigindo-se ao telefone negro. — Sobrou látex ensanguentado de sobra.

—        Marino, chama a voz de Scarpetta. — Quero que vá ao Instituto de Medicina Legal e traga cópias do processo de Johnny Swift.

—        Isto eu posso fazê-lo, se apressa a dizer Joe.

—        Marino, insiste ela, — Dentro do processo devem estar suas etiquetas de DNA. Sempre fazemos mais de uma.

—        Se tocar nesse processo, terminará com uma dentadura inteira na nuca, sussurra Marino a Joe.

—        Pode colocar uma das tarjetas em um envelope de provas e enviar a Mary, está falando a voz de Scarpetta. — Mary, recolha uma amostra do sangue dessa tarjeta e uma amostra da luva.

—        Parece que me perdi, diz Mary.

 

Não imagina o que vai poder fazer uma toxicóloga com uma gota de sangue seco de uma tarjeta de DNA e uma quantidade igualmente minúscula de sangue seco de uma luva.

 

—        Talvez quisesse dizer Randy, sugere Mary. — Está falando em realizar mais provas de DNA?

—        Não, responde Scarpetta. — Quero que procure a presença de lítio.

 

Algum tempo depois, Scarpetta está preparando um frango inteiro no fogão. Está com o Treo no bolso e o auricular no ouvido.

 

—        Porque naquele momento não precisavam buscar esse componente em seu sangue, está falando a Marino por telefone. — Se estava tomando lítio, parece que seu irmão não se preocupou em contar à polícia.

—        Deveriam ter encontrado um frasco do remédio no lugar do crime, responde Marino. — Que barulho é esse?

—        Estou abrindo umas latas de caldo de frango. É uma pena que não esteja aqui. Não sei por que não encontraram lítio, diz Scarpetta, esvaziando as latas em uma frigideira de cobre. — Entretanto é possível que seu irmão apanhasse todos os frascos de remédios para que a polícia não os encontrasse.

—        E por quê? Não é cocaína, nem nada parecido.

—        Johnny Swift era um destacado médico. Talvez não quisesse que as pessoas soubessem que sofria de um transtorno psiquiátrico.

—        Eu não gostaria que me revolvesse o cérebro alguém que tivesse mudanças de humor, já que falou nisso.

 

Scarpetta se põe a picar cebola.

 

—        Na realidade, seu transtorno bipolar provavelmente não tinha nenhum efeito sobre sua capacidade como médico, porém o mundo está cheio de pessoas ignorantes. E, como disse, é possível que Laurel não quisesse que a polícia ou outras pessoas soubessem do problema que seu irmão tinha.  

—        Isto não faz sentido. Se o que disse é verdade, saiu correndo da casa após encontrar o cadáver. Não me parece que antes andasse por ali recolhendo frascos de remédios.

—        Acho que vai ter que perguntar.

—        Quando tiver os resultados do lítio. Prefiro entrar em matéria sabendo a que me ater. Além disso, neste momento temos um problema mais grave.

—        Não estou certa de que nossos problemas possam agravar-se ainda mais, diz Scarpetta temperando o frango.

—        Trata-se do cartucho da escopeta, diz Marino. — O que localizaram os da Balística ali, no caso da lagoa de Walden. — Não quis dizer nada a respeito diante dos demais, explica Marino por telefone. — Tem que ser alguém de dentro. Não tem outra explicação.

 

Está sentado à mesa de seu escritório, com a porta fechada á chave.

 

—        Isto é o que aconteceu, continua falando. — Não quis falar diante dos outros, porém nesta manhã tive uma breve conversa com um colega meu do Departamento de Polícia de Hollywood que é o responsável pela sala de provas. Pôs-se no computador e demorou cinco minutos inteiros em acessar a informação sobre a escopeta que foi utilizada no homicídio dessa loja aberta vinte e quatro horas de dois anos atrás. E adivinha onde deveria estar a escopeta, doutora. Está sentada?

—        Nunca me serviu de nada me sentar, ela respondeu. — Fale.

—        Em nossa coleção de referência.

—        Na Academia? Em nossa coleção de armas de referência da Academia?

—        O Departamento de Polícia de Hollywood nos doou há coisa de um ano, no mesmo tempo que outro conjunto de armas que já não necessitavam, não se lembra?

—        Entrou pessoalmente no Laboratório de Armas para ter certeza de que não está lá?

—        Não vai estar. Sabemos que acaba de ser utilizada para matar uma mulher, onde você está agora.

—        Vá verificar agora mesmo, ordena Scarpetta. — E me ligue em seguida.

 

Porco está atrás de uma gorda vestida com uma roupa azul. Leva as botas e a bolsa em uma mão, a carteira de motorista e a bilhete de embarque na outra. Avança uns passos e põe as botas e a jaqueta em um recipiente de plástico. Em seguida põe o recipiente de plástico e a bolsa na esteira e ambas as coisas se afastam dele. Depois coloca os pés em cima dos dois pés desenhados em branco no tapete e um agente de segurança do aeroporto faz um sinal com a cabeça para que passe pelo arco de raios X. Obedece, não fala nada e mostra seu bilhete de embarque ao agente. Apanha as botas, a jaqueta e a bolsa. Começa a andar até a porta vinte e um sem que ninguém olhe para ele.

 

Ainda fede a corpos putrefatos. Parece que não consegue retirar o fedor do nariz. Talvez seja uma alucinação olfativa, já teve outras vezes. Há ocasiões em que cheira a colônia, a colônia Old Spice que usava quando cometeu a má ação no colchão e o enviaram para longe, onde havia casas antigas de ladrilho, onde nevava e fazia frio, ao lugar para onde se dirige agora. Está nevando; não muito, porém um pouco. Consultou a previsão do tempo antes de apanhar um táxi para o aeroporto. Não queria deixar sua Blazer no estacionamento de longa estadia, porque isso custa muito dinheiro e não quer que alguém olhe no interior do porta-malas. Não o limpou muito bem.

 

Na bolsa leva umas quantas coisas, não muitas. As únicas coisas que precisa são uma muda de roupa, uns quantos utensílios de asseio, umas botas que caiam melhor. Não vai precisar de suas botas velhas por muito mais tempo; constituem um perigo para o meio ambiente e essa ideia lhe parece divertida. Agora que pensa nisso enquanto as botas vão em direção ao embarque, talvez devesse guardá-las. Têm a sua história, percorreram lugares como se fossem de sua propriedade, levaram pessoas como se fossem de sua propriedade, retornaram de lugares e subiram em coisas para espiar, irromperam em lugares com todo o descaramento, o levaram de uma casa a outra e de um lugar a outro, fazendo o que lhe ordena Deus. Castigando. Confundindo as pessoas. A escopeta. A luva. Para confundir.

 

Deus tem um coeficiente intelectual de cento e cinquenta.

 

Suas botas o levaram até o interior da casa, e ele colocava o capuz antes que soubessem sequer o que estava acontecendo. Essas estúpidas fanáticas religiosas. E esses órfãozinhos imbecis. Esse imbecil do órfãozinho entrando na farmácia na mão da Melhor Mãe do Mundo para que reenchessem o frasco de remédios. Lunática. Porco odeia os lunáticos, aos fanáticos religiosos, odeia às crianças pequenas, odeia a colônia Old Spice. Marino usa a Old Spice, esse policial grande e burro. Porco odeia à doutora Self, deveria tê-la posto em cima do colchão e se divertido com as cordas, deveria tê-la castigado pelo que fez.

 

Entretanto acabou o tempo. Deus não está contente. Não teve tempo para castigar o maior pecador de todos.

 

—        Vai ter que voltar, disse Deus. — E desta vez com Basil.

 

Porco caminha até a porta de embarque, o levam a Basil. Voltarão a tratá-lo bem, como nos velhos tempos, quando ele cometeu a má ação e foi enviado para longe, para retornar muito tempo depois e então conhecer Basil em um bar. Em nenhum momento teve medo de Basil, não lhe desagradou em nada desde o instante em que ambos se encontraram sentados um junto ao outro, tomando tequila. Beberam juntos mais de uma vez e Porco viu que Basil tinha algo.

 

—        Você é diferente, disse.

—        Sou policial, respondeu Basil.

 

Aquilo aconteceu em South Beach, onde ia conversar com Porco a dar uma volta em busca de sexo e de drogas.

 

—        Não é só policial, disse a Porco. — Eu noto.

—        Não me diga.

—        Pois sim. Conheço as pessoas.

—        Que acha se o levar a um lugar? Propôs Basil, e Porco teve a impressão de que Basil também havia se fixado nele. — Tenho uma coisa que pode fazer por mim, disse Basil.

—        E por que eu iria fazer algo por você?

—        Porque vai gostar.

 

Naquela mesma noite, Porco se encontrou no carro de Basil, não em seu carro patrulha e sim em um Ford LTD branco exatamente igual a um carro de polícia sem distintivos. Era seu carro particular. Não estavam em Miami e de nenhuma maneira poderia dirigir um carro com distintivos do condado de Dade, alguém poderia se lembrar de o ter visto. Porco estava um pouco desiludido. Adora os carros patrulha, as sirenes, as luzes. Todas essas luzes e esses detalhes lembram A Loja de Natal.

 

—        Se falar com eles, não pensarão duas vezes, disse Basil na primeira noite que se encontraram, depois de ter dado uma volta por ali fumando crack.

—        E por que eu? Perguntou Porco sim o menor pingo de medo.

 

O senso comum deveria ter-lhe dito que tivesse. Basil mata a quem quer, sempre foi assim. Poderia tê-lo matado. Facilmente. Deus disse a Porco o que tinha que fazer. Isto foi o que o manteve a salvo.

 

Basil viu a garota. Mais tarde descobriu que só tinha dezoito anos. Estava apanhando dinheiro de um caixa automático, com o carro próximo e o motor ligado. Que burra. Nunca se deve retirar dinheiro de noite, sobretudo se é uma garota bonita e sozinha, usando um short e camiseta justa. Quando se é uma mocinha, e, além disso, bonita, acontecem coisas ruins.

 

—        Me dê sua navalha e sua pistola, disse Porco a Basil.

 

Porco guardou a arma no cinturão e fez um corte no dedo polegar com a navalha. Manchou o rosto com o sangue e em seguida passou para o assento de atrás e deitou. Basil se aproximou do caixa automático, desceu do carro e abriu a porta traseira para atender a Porco, que parecia muito angustiado.

 

—        Tudo se ajeitará, disse a Porco. E depois se dirigiu à garota: — Por favor, nos ajude. Minha amiga se feriu. Onde é o hospital mais próximo?

—        Oh, meu Deus. Deveríamos ligar para o nove-um-um.

 

Frenética, a garota se apressou a apanhar o celular do bolso, e nesse momento Basil a empurrou com força para o assento traseiro, onde Porco lhe pôs a pistola no rosto.

 

E se foram.

 

—        Merda, disse Basil. — É muito bom, exclamou eufórico, rindo as gargalhadas. — É melhor que pensemos aonde ir.

—        Por favor, não me machuquem, chorava a garota. Porco sentiu algo ali sentado, apontando a pistola enquanto ela chorava e suplicava. Deu-lhe vontade de foder.

—        Cale-se, ordenou Basil. — Não vai lhe servir de nada. É melhor que encontremos um lugar. Quem sabe o parque. Não o patrulham.

—        Eu conheço um lugar, disse Porco. — Ninguém jamais nos encontrará, é perfeito. Poderemos fazê-lo sem pressa, com todo o tempo do mundo.

 

Sentia-se excitado. Queria sexo, desejava com urgência.

 

Levou a Basil até a casa, a casa que está caindo, que não tem eletricidade nem água corrente, só um colchão e umas quantas revistas sujas no quarto do fundo. Foi Porco quem deu a ideia de atá-la para que não pudesse sentar sem ter que levantar os braços.

 

—        Mãos para cima! Como nos desenhos animados. — Mãos para cima! Como nos antigos filmes de faroeste.

 

Basil disse que Porco era muito inteligente, o tipo mais inteligente que havia conhecido em sua vida. Depois de ter estado com umas quantas mulheres e tê-las imobilizadas até que começavam a cheirar mal ou já estavam demasiado contaminadas ou demasiado usadas, Porco falou para Basil da Loja de Natal.

 

—        A viu alguma vez?

—        Não.

—        É impossível não vê-la. Fica próxima da praia, em As Olas. A dona é rica.

 

Porco explicou que nos sábados ela ficava só com sua filha. Quase ninguém entrava nessa loja. Quem compra artigos de Natal, na praia, no mês de julho?

 

—        Não me fode. Não pensaria que ia fazer ali dentro.

 

Então, antes que Porco soubesse o que estava acontecendo, Basil já tinha a garota de costas e a estava violando com sangue por todo o lado, enquanto Porco olhava e calculava como iam sair daquilo.

 

O lenhador da porta media um e oitenta e era talhado a mão. Usava um machado autêntico, um antigo com bainha curva de madeira e folha de aço brilhante, a metade pintada de vermelho sangue. Foi Porco quem se lembrou.

 

Aproximadamente uma hora mais tarde, Porco retirou as bolsas de lixo e se assegurou de que não havia ninguém na rua. As colocou no porta-malas do carro de Basil. Ninguém os viu.

 

—        Tivemos sorte, disse Porco a Basil, de volta em seu lugar secreto, a casa velha, cavando uma fossa. — Não volte a fazer isso.

 

Um mês depois voltou a fazer algo, tentou raptar duas mulheres de uma vez. Porco não o acompanhava. Basil as obrigou a entrar no carro e então o maldito enguiçou. Basil nunca falou a alguém sobre Porco. Protegeu Porco. E agora toca a Porco fazer algo.

 

«Estão fazendo um estudo, escreveu Porco. — A prisão está sabendo e solicitaram voluntários. Seria bom para você. Poderia fazer algo construtivo».

 

Era uma carta agradável e inócua. Nenhum funcionário da prisão pensaria mal dela. Basil fez saber ao guarda que; desejava se oferecer como voluntário para um estudo que estavam realizando em Massachusetts; que queria fazer algo para expiar seus pecados; que se os médicos conseguissem aprender sobre o que acontecia com as pessoas como ele, talvez servisse de algo. Se o guarda da prisão entendeu ou não as manipulações de Basil é objeto de especulação. Entretanto em dezembro passado Basil foi transferido para o hospital estatal Butler.

 

A Mão de Deus.

 

Desde então, suas comunicações tiveram que ser mais engenhosas. Deus ensinou a Porco como falar a Basil o que quer. Deus possui um coeficiente intelectual de cento e cinquenta.

 

Porco encontra uma poltrona em frente à porta de embarque número vinte e um. Senta-se o mais longe que pode das pessoas, esperando o voo das nove. Não está atrasado. Aterrissará próximo do meio-dia. Abre o zíper da bolsa e apanha uma carta que Basil escreveu há mais de um mês.

 

Já tenho as revistas de pesca. Muito obrigado. Sempre aprendo muito com esses artigos. 

Basil Jenrette

 

PS.: Vão me colocar outra vez nesse maldito tubo, no dia 17 de fevereiro. Entretanto me prometeram que será rápido: Entrarei as cinco e sairei às cinco e quinze. Promessas, promessas.

 

A neve parou de cair e o caldo de galinha borbulha. Scarpetta mede dois copos de arroz italiano Arbóreo e abre uma garrafa de vindo branco seco. Aproxima-se da porta e chama Benton:

 

—        Pode descer?

—        Você pode subir aqui, por favor? Responde a voz dele, vinda do escritório que fica no alto das escadas.

 

Scarpetta põe um pouco de manteiga em uma frigideira de cobre e começa a dourar o frango. Em seguida coloca o arroz no caldo. Toca o celular. É Benton.

 

—        Isto é ridículo, protesta, olhando as escadas que conduzem ao escritório do segundo andar. — Pode descer, por favor? Estou cozinhando. Na Flórida estão complicando muito as coisas. Preciso falar contigo. Apanha uma e colher banha o frango com um pouco de caldo.

—        E eu preciso que dê um olhar nisso aqui, responde Benton. Que estranho é ouvir sua voz acima e pelo telefone ao mesmo tempo.

—        Isto é ridículo, diz outra vez.

—        Deixe que eu faça uma pergunta, diz a voz de Benton por telefone desde o andar de cima, como se fossem duas vozes idênticas falando ao mesmo tempo. — Por que a vítima tinha fragmentos entre as omoplatas? Por que alguém teria?

—        Fragmentos de madeira?

—        Existe uma área arranhada da pele com fragmentos cravados. Nas costas, entre as omoplatas. E queria saber se você consegue distinguir se foram cravados antes ou depois da morte.

—        Se a arrastaram por um chão de madeira, ou se a golpearam com um objeto de madeira pode ser depois. Aliais, podem ter vários motivos, suponho. — Vira o frango com ajuda de um espeto.

—        Se a arrastaram e foi assim que se cravaram os fragmentos, não os teria também em outras partes do corpo? Supondo que estivesse nua quando a arrastraram por um chão velho e cheio de fragmentos.

—        Não necessariamente.

—        Gostaria que subisse.

—        Apresenta feridas por ter-se defendido?

—        Por que não sobe?

—        Só quanto tiver controlada a comida. Agressão sexual?

—        Não temos provas disso, porém havia uma motivação sexual. No momento não tenho fome.

Scarpetta mexe um pouco mais o arroz e deixa a colher sobre um guardanapo de papel dobrado.

—        Existe alguma outra possível fonte de DNA? Pergunta.

—        Como o que?

—        Não sei. Quem sabe a vítima deu uma mordida no nariz ou em um dedo e encontraram esse pedaço no seu estômago.

—        Falo sério.

—        Saliva, cabelo, sangue, responde Scarpetta. — Espero que tenham passado o algodão de cima a baixo e se tenham posto a analisá-lo com toda a consciência.

—        Por que não falamos disto aqui em cima?

 

Scarpetta apaga o fogo e, sem deixar de falar pelo celular, sobe as escadas pensando na besteira de estar na mesma casa e falar pelo telefone.

 

—        Vou desligar, diz uma vez que chegou em cima, olhando para Benton. Está sentado em sua poltrona de couro e os olhares de ambos se encontram.

—        Me alegro de que não tenha chegado há um minuto, diz Benton, — Porque estava falando no telefone com uma mulher incrivelmente bonita.

—        E menos mal que você não estava na cozinha para ouvir com quem eu falava.

 

Scarpetta aproxima uma cadeira e olha a fotografia que aparece no terminal do computador: uma mulher morta, de bruços sobre uma mesa de autópsia. Olha as impressões de mãos vermelhas que têm no corpo.

 

—        Pode ser que as pintaram usando um molde, provavelmente com um aerossol, comenta.

 

Benton amplia a área de pele que fica entre as omoplatas e Scarpetta estuda a profunda abrasão.

 

—        Para responder a uma de suas perguntas, fala, — Sim, é possível distinguir se uma abrasão cheia de fragmentos foi feita antes ou depois da morte. Depende se existe ou não reação dos tecidos. E suponho que não temos a análise histológica.

—        Se fizeram, eu não estou sabendo, responde Benton.

—        Thrush tem acesso a um SEM-EDS, um microscópio eletrônico de varredura com um sistema de energia dispersiva de raios X?

—        Nos laboratórios da polícia estatal tem de tudo.

—        O que eu gostaria de sugerir é que obtivesse uma amostra dos supostos fragmentos, ampliasse de cem a quinhentas vezes e observasse como são. E também seria uma boa ideia que procurasse restos de cobre. Benton a olha e encolhe os ombros.

—        Por quê?

—        É possível que encontremos. Estão por todos os lados. Até na antiga loja de artigos de Natal. Possivelmente venha de fumigações.

—        A família Quincy estava metida no negócio da jardinagem. É possível imaginar que muitos cultivadores de cítricos com fins comerciais usam cobre para fumigar. Talvez a família tenha levado para a Loja de Natal.

—        E é possível que também tivessem tinta para o corpo na parte da loja onde encontramos sangue.

 

Benton fica em silêncio, algo mais está lhe ocorrendo.

 

—        É um denominador comum dos assassinatos de Basil, diz. — Todas as vítimas, pelo menos aquelas cujos corpos se recuperaram, tinham restos de cobre. Nos cadáveres havia cobre e também pólen de cítricos, o que não quer dizer grande coisa já que na Flórida temos pólen de cítricos por todas as partes. Ninguém pensou em fumigações com cobre. Ou melhor, Basil levou suas vítimas a algum lugar em que se fumigava com cobre, algum lugar onde havia cítricos.

 

Benton vai até a janela para olhar o céu cinzento e vê uma máquina limpa-neve trabalhando ruidosamente na rua.

 

—        A que hora tens de ir? Scarpetta toca uma fotografia da área das costas que apresenta a abrasão.

—        Não tenho que ir até esta noite. Vou ver o caso Basil até as cinco.

—        Estupendo. Vê como está inflamada esta área? Aponta. — É uma área onde se levantou a capa epitelial esfregando-a com alguma superfície rugosa. E se ampliarmos, faz o próprio, — Verá que antes de lavar o cadáver havia fluido sero-hemático na superfície da abrasão. Vê?

—        De acordo. Tem um pouco o aspeto de uma crosta. Entretanto não em toda a área.

—        Se uma abrasão é suficientemente profunda, produz uma perda de fluido dos vasos. E tens razão, não é em toda a área que existe crosta, o que me faz pensar que a abrasão é formada por várias abrasões de diferentes antiguidades, lesões causadas por um contato repetido com uma superfície rugosa.

—        Isto é estranho. Estou tentando imaginar.

—        Quem dera que eu tivesse a histologia. Os glóbulos brancos polimorfo-nucleares indicariam que a ferida tem, quem sabe, entre quatro e seis horas. E pelo que sei, as crostas geralmente começam quando se passou um mínimo de oito horas. A vítima viveu um tempo depois que fizeram estas feridas, estas raspaduras.

 

Scarpetta estuda mais fotografias examinando-as detidamente. Vai tomando notas em um caderno. Em seguida diz:

 

—        Se olhar as fotografias 13 a 18, verá, embora com dificuldade, áreas em que aparece um inchaço vermelho, localizadas na parte posterior das pernas e nas nádegas. Acho que são picadas de insetos que começaram a se curar. E se voltarmos à fotografia da abrasão, vemos que também existem inchaços localizados e uma hemorragia petequial apenas visível, o que pode ser associado a picadas de aranha. Se não estou errada, no microscópio se verá uma congestão dos vasos sanguíneos e uma infiltração de glóbulos brancos, principalmente eosinófilos, dependendo da reação. Não é muito exato, porém poderíamos analisar também os níveis de triptase, para ver se teve uma reação anafilática. Entretanto me surpreenderia. Esta mulher não morreu de uma picada de inseto. Quem dera que tivesse a maldita análise histológica, porque aqui poderia haver muito mais que fragmentos. Pelos urticantes. As aranhas, concretamente as tarântulas, os lançam, fazem parte do seu sistema de defesa. O templo de Ev e Kristin é ao lado de uma loja de animais em que vendem tarântulas.

—        Coceiras? Pergunta Benton.

—        Se a aranha lançou um pelo, certamente sofreu coceiras tremendas, responde Scarpetta. — É possível que se esfregasse contra algo até perder a pele.

 

Sofreu.

—        Fosse qual fosse o lugar onde esteve prisioneira, sofreu picadas dolorosas, coceiras tremendas, declara Scarpetta.

—        De mosquitos? Sugere Benton.

—        Um só? Uma só picada entre as omoplatas? Em nenhuma outra parte do corpo encontramos abrasões similares com inflamação, salvo nos cotovelos e nos joelhos, continua falando Scarpetta. — Abrasões leves, raspaduras, como as que se poderia esperar de uma pessoa que estivesse de joelhos ou apoiada sobre os cotovelos em cima de uma superfície rugosa. Entretanto essas abrasões não tem esse aspecto nem muito menos. Aponta de novo a área inflamada.

—        Minha teoria é que, quando o assassino disparou, ela estava de joelhos, diz Benton.

—        Para isso se baseia na forma das manchas de sangue da calça. Quando alguém está ajoelhado, pode causar abrasões nos joelhos tendo a calça colocada?

—        Claro que sim.

—        Então o assassino primeiro a matou e depois tirou sua roupa. Isto mostra uma situação muito diferente, não? Se quisesse humilhá-la sexualmente e aterrorizá-la, teria obrigado a tirar a roupa, ajoelhar-se e uma vez nua, metido o cano da escopeta na boca e apertado o gatilho.

—        E o que me diz do cartucho encontrado no reto.

—        Poderia ser um ato de raiva. O assassino queria que o encontrássemos e o relacionássemos com o caso da Flórida.

—        Está sugerindo que o assassinato desta mulher poderia ter sido devido a um impulso, talvez a um acesso de ira. E também está sugerindo que existiu um grau significativo de premeditação, de jogar um jogo, como se o assassino quisesse que relacionássemos este caso com aquele roubo com homicídio. Scarpetta o olha. — Tudo tem significado, ao menos para ele. Bem vinda ao mundo dos sociopatas violentos.

—        Bem, uma coisa é clara, diz ela. — Ao menos durante um tempo a vítima esteve prisioneira em um lugar em que havia atividade de insetos. Possivelmente formigas vermelhas, quem sabe aranhas, e os quartos dos hotéis normais não estão infestados de formigas nem de aranhas, ao menos por aqui. Nem nesta época do ano.

—        Entretanto a tarântula geralmente só pode ser mascote, com independência do clima, aponta Benton.

—        A vítima foi raptada em outro lugar. Exatamente onde foi achado o cadáver? Pergunta Scarpetta. — Ao lado da lagoa de Walden?

—        Aproximadamente a quinze metros de um caminho pouco transitado nesta época do ano. Encontrou-a uma família que andava de bicicleta pelas imediações do lago. Seu cachorro, um labrador, escapou até as árvores e começou a latir.

—        Que coisa horrível para acontecer a alguém quando está ocupado com suas coisas na lagoa de Walden.

 

Scarpetta examina o relatório da autópsia que aparece no terminal.

 

—        Não estava ali há muito tempo, deixaram o cadáver nesse lugar depois do anoitecer, diz. — Se o que estou lendo aqui é correto. Depois de anoitecer faz sentido. E talvez o assassino tenha deixado o cadáver nesse lugar, fora do caminho e não à vista de todo o mundo, porque não queria arriscar a que o vissem. Se de repente tivesse aparecido alguém, embora depois de anoitecer não fosse muito provável, ele ficaria oculto entre as árvores com a vítima. E tudo isto, aponta o capuz que cobre o rosto e que parece um lenço, — Se pode fazer em questão de minutos se tiver premeditado, já fez os buracos para os olhos, o cadáver já está nu, etecetera. Tudo isso me faz suspeitar que o assassino conhecesse a área.  

—        Tem lógica.

—        Tem fome ou pensa em passar o dia inteiro obcecado aqui em cima?

—        O que preparou? Conforme for, decidirei.

—        Risotto alia Sbirraglia. Também conhecido como arroz com frango.

—        Sbirraglia? Benton a toma pela mão. — Uma exótica raça de frango veneziano?

—        Supostamente o nome vem da palavra sbirri, que é um termo pejorativo que se aplica à polícia. Um pouco de humor para um dia que não tem nada de engraçado.

—        Não entendo o que tem que ver a polícia com um prato de frango.

—        Aparentemente, quando os austríacos ocuparam Veneza, a polícia gostou muito deste prato em particular, se forem confiáveis as minhas fontes de informação culinária. E estava pensando em abrir uma garrafa de Pinot Bianco, que tem mais corpo. Tem garrafa na adega e, como dizem os venezianos, «O que bebe bem dorme bem, e o que dorme bem não pensa mal, não faz o mal e vai para o céu», ou algo assim.

—        Acredito que não existe no mundo nenhum vinho capaz de impedir em pensar mal, ou no mal, melhor dito, comenta Benton. — E eu não acredito no céu. Só no inferno.

 

No andar baixo do espaçoso edifício central da Academia, os laboratórios tem por fora a luz vermelha acesa. Desde o corredor chega a Marino o surdo impacto de uns tiros. Entra sem se preocupar, na galeria de tiro em uso e vê que é Vince quem dispara.  

 

Vince apanha uma pistola pequena da boca do tanque horizontal de aço inoxidável para recuperar as balas, que, quando está cheio de água, pesa cinco toneladas, o que explica por que o laboratório está situado onde está situado.

 

—        Já está voando? Pergunta Marino ao mesmo tempo em que sobe os degraus de alumínio que conduzem à plataforma de tiro.

 

Vince usa um traje de voo negro e botas negras. Quando não está absorto em seu mundo de marcas de ferramentas e armas de fogo, é um dos pilotos de helicóptero de Lucy. Tal como acontece com vários dos contratados por Lucy, seu aspeto não tem relação alguma com a atividade à que se dedica. Vince tem sessenta e cinco anos, pilotou um Black Hawk no Vietnam e mais tarde trabalhou para o ATE. Tem as pernas curtas e o peito forte, e está com o cabelo recolhido. Afirma não tê-lo cortado nos últimos dez anos.

 

—        Falou algo? Pergunta Vince retirando o protetor de ouvido e os óculos de disparar.

—        É um milagre que ainda possa ouvir algo.

—        Já não tenho tão bom ouvido como antes. Quando chego à minha casa estou mais surdo do que uma porta, segundo minha mulher.

 

Marino reconhece a pistola que Vince está testando: é a Black Widow com culatra de pau rosa que encontrou debaixo da cama de Daggie Simister.

 

—        Uma vinte e dois, diz Vince. — Pensei que não custava nada adicioná-la à base de dados.

—        Eu tenho a impressão de que nunca havia disparado.

—        Não me surpreenderia. Não imagina quantas pessoas compram uma pistola para se proteger e depois não se lembra de que a tem, de onde a pôs, ou sequer sabe quando desaparece.

—        Temos um problema com uma coisa que desapareceu, diz Marino.

 

Vince abre uma caixa de munição e começa a colocar balas do calibre vinte e dois no cilindro.

 

—        Quer testar? Oferece. — É estranho que uma anciã tenha isto para se proteger. Tenho certeza de que a presentearam. Eu recomendaria algo mais natural, como uma Lady Smith trinta e oito ou um cachorro pit bull. Entendi que a encontraram debaixo da cama, fora do alcance da mão.

—        Quem disse isso? Pergunta Marino; tem a mesma sensação que ultimamente vem experimentando.

—        O doutor Amos.

—        Não esteve no lugar do crime. Que diabos ele pode saber?

—        Nem metade do que acredita. Ronda por aqui constantemente, me põe furioso. Espero que a doutora Scarpetta não tenha a intenção de contratá-lo quando acabe o estágio. Se o contratar, sou capaz de ir trabalhar em um Wal-Mart. Toma. Oferece a pistola a Marino.

—        Não, obrigado. Só gostaria de disparar neste momento nele.

—        A que se refere quando diz que desapareceu uma coisa?

—        Desapareceu uma escopeta da coleção de referência, Vince.

—        Não é possível, ele responde sacudindo a cabeça.

 

Descem da plataforma e Vince deixa a pistola em uma mesa de provas cheia de outras armas de fogo com etiquetas, caixas de munição, uma série de papéis com diversos desenhos de pólvora para determinar a distância e o vidro destroçado de uma janela de carro.

 

—        Uma Mossberg 835 Ulti-Mag, diz Marino. — Foi utilizada há dois anos em um roubo com homicídio feito aqui mesmo. O caso foi esclarecido de maneira rápida porque o tipo que estava atrás do balcão deu um tiro no suspeito.

—        É curioso que diga isso, diz Vince, perplexo. — Não tem nem cinco minutos que o doutor Amos me chamou para perguntar se poderia vir aqui verificar uma coisa no computador. Vai até um balcão ocupado por vários microscópios de comparação, um medidor digital de distância percorrida por um gatilho e um computador. Tecla algo, aparece um menu e seleciona nele a coleção de referência. Em seguida, introduz a escopeta em questão. — Disse a ele que não, que não poderia. Eu estava efetuando umas provas de tiro e não poderia deixá-lo vir. Perguntei o que era, o que queria verificar e ele disse que não tinha importância. 

—        Não sei como pode ter-se metido aqui, diz Marino. — Como ficou sabendo disto? Um colega meu do Departamento de Polícia de Hollywood sabe, porém é uma tumba. E as outras duas pessoas com quem falei são a doutora e, agora, você.

—        Culatra Camo, cano de sessenta e um centímetros, telescópio de trítio, lê Vince. — Tem razão, foi utilizada em um homicídio. O suspeito morreu. É uma doação da polícia de Hollywood, março do ano passado. Volta-se para Marino. — Que eu me lembre, foi uma das dez ou doze armas de fogo que eliminaram do seu inventário, com a generosidade que os caracteriza. Sempre que proporcionemos formação e assessoramento gratuitos, cerveja e algum que outro detalhe. Vamos ver. Vai descendo pelo terminal. Segundo diz aqui, desde que a recebemos só foi utilizada duas vezes. A primeira por mim, em oito de abril, na plataforma de tiro de longa distância, para ter certeza de que não tinha nada estranho.

—        Filho da puta, diz Marino lendo por em cima de seu ombro.

—        E a segunda pelo doutor Amos em vinte e oito de junho, às três e quinze da tarde.

—        Para que?

—        Quem sabe para fazer uma prova de tiro com gelatina regulamentar. Foi no verão passado que a doutora Scarpetta começou a lhe dar aulas de cozinha. Entra e sai com tanta frequência, por desgraça, que me dá trabalho lembrar. Aqui diz que a utilizou em vinte e oito de junho e a devolveu à coleção nesse mesmo dia, às cinco e quinze. E se procuro essa data no computador, aparece a entrada. O que quer dizer que eu efetivamente a apanhei da câmara e voltei a metê-la lá.

—        Então, como a escopeta saiu à rua e matou pessoas?

—        A não ser que este registro esteja... Pensa Vince com o cenho franzido.

—        Era para isso para o que Amos queria olhar uma coisa no computador. Que filho da puta. Quem se encarrega da manutenção dos registros? Você ou o usuário? Alguém mais toca neste computador, fora você?

—        Eletronicamente, eu. Fazem uma solicitação por escrito nesse livro ali, Vince indica um livro de registro que está junto ao telefone, — E depois o solicitante assina quando está com a arma e outra vez quando a devolve, tudo com nome e sobrenome. Depois eu introduzo a informação no computador para registrar que a arma foi utilizada e devolvida à câmara. Vejo que você nunca brincou com armas aqui em cima.

—        Não sou especializado em armas de fogo. Isto eu deixo para você. Maldito filho da puta...

—        Na solicitação é preciso anotar que tipo de arma de fogo se solicita e para quando se deseja reservar a galeria de tiro ou tanque de água. Vou mostrar.

 

Vince abre o livro de registro na última página escrita.

 

—        Aqui está outra vez o doutor Amos, diz. — Prova de tiro com gelatina regulamentar utilizando uma Taurus PT-145, há duas semanas. Pelo menos desta vez se preocupou em anotar. No outro dia esteve aqui e não anotou nada.

—        E como entrou na câmara?

—        Trouxe sua própria pistola. Coleciona armas, é um autêntico maníaco.

—        Importaria em me dizer quando colocou no computador a anotação da Mossberg? Pede Marino. — Já sabe, quando se olha um arquivo para saber a data e a hora em que a guardou pela última vez. O que eu queria saber é se existe alguma maneira para que Joe possa alterar os dados posteriormente, registrando a escopeta para que parecesse que você a entregou e depois a devolveu à câmara.

—        Isto não é mais que um programa de tratamento de textos chamado Log. Assim vou fechá-lo agora sem arquivar, para ver a última data registrada. Para olhando fixamente, assombrado. — Aqui diz que foi modificado pela última vez há vinte e três minutos. Não posso acreditar!

—        Este bicho não está protegido por uma senha?

—        Naturalmente que sim. Eu sou a única pessoa que pode entrar. Exceto Lucy. Pois agora não entendo por que o doutor Amos me ligou para dizer que queria descer para olhar o computador. Se modificou o arquivo, para que se preocupar em me ligar?

—        Muito simples. Se você abre o arquivo e o fecha em seguida, isso explicaria a mudança de data e hora.

—        Então é mais esperto que o cão.

—        Já veremos se é tão esperto.

—        Isto é alarmante. Se faz isso, é porque sabe minha senha.

—        Está escrita em alguma parte?

—        Não. Tenho muito cuidado.

—        Fora você, quem mais tem acesso à combinação da câmara? Desta vez vou pegá-lo. De um modo ou de outro.

—        Lucy. Ela pode entrar em tudo. Venha, vamos olhar.

 

A câmara é uma sala a prova de incêndio, dotada de uma porta de aço cuja abertura requer um código. Dentro se encontram gavetas e arquivos com milhares de amostras de cartuchos de bala e cartuchos conhecidos, e também suportes na parede com centenas de rifles, escopetas e pistolas, todas etiquetadas com um número de entrada.

 

—        Uma verdadeira loja de guloseimas, comenta Marino, olhando ao redor.

—        Ainda não havia vindo aqui?

—        Não sou um maluco por armas. Tive algumas experiências desagradáveis com elas.

—        Como o que?

—        Usá-las.

 

Vince percorre com a vista as filas de rifles, vai apanhando as escopetas, uma a uma, e verifica duas vezes a etiqueta. Marino e ele passam fila por fila procurando a Mossberg. Ela não está na câmara.

 

Scarpetta aponta o desenho no livor mortis, o escurecimento devido a uma acumulação de sangue estancado pelo efeito da gravidade. As áreas claras ou esbranquiçadas que se notam na face direita da vítima, nos peitos, no ventre, nos músculos e na parte interior dos antebraços mostram que essas partes do corpo estiveram contra uma superfície dura, talvez o chão.

 

—        Esteve um tempo caída de bruços, diz Scarpetta. — Pelo menos horas, com a cabeça voltada para a esquerda, por isso tem a face direita pálida.  Certamente foi comprimida contra o chão ou uma superfície plana.

 

Põe outra fotografia no terminal, desta vez uma em que se vê à vítima de bruços na mesa de autópsia depois de haver sido lavada, com o corpo e o cabelo molhados, as impressões de mãos nítidas e intactas, evidentemente impermeáveis. Volta para outra fotografia que acaba de ver e vai alternando entre umas e outras, tentando entender todos os dados da morte desta mulher.

 

—        Assim depois de matá-la, diz Benton, — O assassino a deitou de bruços para pintar as impressões de mãos nas costas e passou várias horas trabalhando. O sangue da morta foi estancando e começou a formar a lividez, e por isso temos este desenho.

—        Eu tenho outra hipótese, responde Scarpetta. — O assassino primeiro a deitou de costas, a pintou e depois a colocou de bruços e pintou as costas, e essa foi a posição em que a deixou. Agora não fez tudo isso ao ar livre, e sim em algum lugar em que não corria o risco de que alguém ouvisse o tiro da escopeta ou o visse tentando meter o cadáver em um veículo. De fato, pode ser até que fizesse tudo isso dentro do veículo em que a transportou, uma camioneta, um utilitário fechado. Matou, pintou e transportou.

—        Tudo no mesmo lugar.

—        Bem, isso diminuiria o risco, não? Sequestra, leva para um lugar afastado e mata dentro do veículo, desde que seja um veículo com suficiente espaço na parte traseira e, depois se desfaz do cadáver, diz Scarpetta passando mais fotografias, até que se detém em uma que já viu.

 

Desta vez a vê de forma diferente. É a fotografia do cérebro da vítima, o que resta dele, colocado sobre uma mesa de dissecação. A membrana rígida e fibrosa que reveste o interior do crânio deveria ser esbranquiçada. Entretanto na fotografia tem um tom amarelado. Então lembra do retrato das duas irmãs, Ev e Kristin, com suas bengalas de caminhar, entrecerrando os olhos ao sol, na foto que estava no quarto. Lembra a pele macilenta de uma delas e volta ao relatório da autópsia para ver o que diz sobre a esclerótica da morta, o branco do olho. É normal.

 

Lembra-se das verduras da geladeira da casa de Ev e Kristin, as bolsas de hortaliças. Pensa no linho branco que a morta estava enrolada como um lenço, própria de um clima cálido. Benton a está olhando com curiosidade.

 

—        Xantocromia cutânea, anuncia Scarpetta. — Uma coloração amarela que não afeta a esclerótica, possivelmente causada por uma carotenemia. Acho que descobrimos quem é a vítima.

 

O doutor Bronson está em sua mesa, dando a volta em uma amostra no porta-objetos de seu complexo microscópio, quando Marino da uns golpezinhos na porta aberta.

 

O doutor Bronson é inteligente, competente e está sempre impecável, com seu jaleco de laboratório branco e engomado. É um chefe decente, porém não é capaz de deixar para trás o passado. Continua fazendo as coisas tal como fazia antes, inclusive tem o mesmo modo de promover as pessoas. Marino duvida que se preocupe em estudar a formação de alguém ou de realizar qualquer outro tipo de escrutínio intenso que deveria ser a prática habitual no mundo de hoje.

 

Bate de novo, desta vez mais forte, e o doutor Bronson levanta a vista do microscópio.

 

—        Entre, entre, diz sorridente. — A que devo este prazer?

 

É um homem de outro mundo, educado e encantador, com uma cabeça completamente calva e uns olhos cinzentos e vagos. No cinzeiro que fica sobre sua ordenada mesa descansa um cachimbo de arbusto já frio, porém o aroma do tabaco permanece flutuando no ar.

 

—        Pelo menos aqui, no ensolarado Sul, ainda permitem fumar no interior dos edifícios, diz Marino aproximando uma cadeira.

—        Bem, na realidade não deveria fumar, responde doutor Bronson. — Minha mulher não para de repetir que vou ter um câncer de garganta ou de língua. E eu digo que se tiver, pelo menos não me queixarei muito quando me for.

 

Nesse momento Marino lembra que não fechou a porta. Levanta-se, fecha e volta a sentar.

 

—        Se me extirpam a língua ou as cordas vocais, parece que não me vai sobrar muito como me queixar, continua o doutor Bronson, para Marino entender a piada.

—        Preciso um par de coisas, começa Marino. — Em primeiro lugar, queria que apanhassem uma amostra do DNA de Johnny Swift. A doutora Scarpetta diz que deve haver várias etiquetas de DNA em seu processo.

—        A doutora deveria ocupar meu posto, sabe? Não me importaria que fosse ela que ocupasse meu posto, diz o médico, e pela forma que fala Marino se dá conta de que provavelmente sabe de sobra o que as pessoas opinam. Todo o mundo quer que se aposente. Há anos que querem que o faça.

—        Este lugar eu o construí, sabe? Prossegue. — E não posso permitir que viesse qualquer Tom, Dick ou Harry e colocar tudo a perder. Não seria justo para as pessoas nem para mim. Levanta o telefone e aperta um botão. — Polly, se importaria em ir buscar o caso de Johnny Swift e trazer para a minha mesa? Terá que assinar toda a papelada necessária. Escuta uns instantes. — Porque preciso entregar uma etiqueta de DNA para Pete. Vão trabalhar com ela nos laboratórios.

 

Desliga, retira os óculos e se põe a limpá-las com um lenço.

 

—        E bem, devo imaginar que houve algum progresso? Pergunta.

—        Começa a parecer que sim, responde Marino. — Quando tivermos alguma certeza, você será o primeiro a saber. Entretanto se pode dizer que descobriram alguns detalhes que apontam para a possibilidade de que Johnny Swift tenha sido assassinado.

—        Com muito gosto mudarei minha posição se puder demonstrar isso. Nunca estive convencido deste caso. Entretanto, claro, não posso negar o evidente, e é que não houve nada significativo na investigação que me permita estar certo de assassinato. Eu creio mais na hipótese de suicídio.

—        A não ser pelo detalhe de que a escopeta não foi encontrada no lugar do crime... Marino não pode evitar recordar.

—        Ocorrem muitas coisas estranhas, Pete. Não imagina quantas vezes fui ao lugar onde se cometeu um delito e descobri que a família destruiu completamente as provas em seu afã de proteger a dignidade do seu ser querido. Sobretudo em casos de asfixia auto erótica. Chego lá e não está à vista nem uma só revista pornográfica nem a parafernália sadomasoquista. E o mesmo ocorre com os suicídios. As famílias não querem que ninguém saiba e pretendem cobrar o dinheiro do seguro, assim escondem a arma ou faca. Fazem de tudo.

—        Temos que falar de Joe Amos, diz Marino.

—        Uma decepção, diz o doutor, e sua expressão, normalmente afável, se desvanece. — O certo é que lamento havê-lo recomendado para vossa valiosa instituição. Lamento, sobretudo porque Kay merece algo muito melhor que um sem vergonha tão arrogante como esse.

—        Em que se baseou? Em que você se baseou para recomendá-lo?

—        Em sua impressionante preparação e em suas referências. Possui um curriculum vultoso.

—        Onde está seu processo? Ainda conserva o original?

—        Claro que sim. O original ficou comigo. A Kay enviei uma cópia.

—        Quando leu essa impressionante preparação e essas referências, verificou para ter certeza de que eram autênticas? Marino odeia fazer esta pergunta. — Atualmente as pessoas conseguem falsificar um monte de coisas. Sobretudo nos computadores, na Internet, ao que seja. Esse é um dos motivos pelos quais o roubo de identidade se converteu em um problema.

 

O doutor Bronson gira em sua poltrona para alcançar um armário e abre uma gaveta. Passa os dedos pelos processos etiquetados e retira um em que está o nome de Joe Amos. O entrega a Marino.

 

—        Olhe você mesmo.

—        Se importaria que eu olhasse um minuto?

—        Não sei por que Polly demora tanto, comenta o doutor Bronson girando de novo sua poltrona até o microscópio. — Olhe o tempo que quiser, Pete. Eu vou voltar as minhas amostras. Um caso muito triste, uma pobre mulher encontrada na piscina. Inclina a cabeça até o ocular e ajusta o foco. — Foi sua filha de dez anos que a encontrou. A questão é se ela se afogou ou se sofreu algum outro acidente fatal, como um infarto de miocárdio. Era bulímica.

 

Marino examina as cartas de recomendação de vários chefes de departamento da Faculdade de Medicina e outros patologistas para Joe Amos, e depois lê um curriculum de cinco páginas.

 

—        Doutor Bronson, você ligou para alguma destas pessoas? Pergunta Marino.

—        Para que? Não levanta a vista. — Não existem cicatrizes antigas no coração. Claro que se sofreu um infarto e sobreviveu algumas horas não vou ver nada. Perguntei se fizeram uma lavagem de estômago; isso destrói os eletrólitos.

—        Para informar-se sobre Joe, responde Marino. — Para ter certeza de que todos esses importantes doutores efetivamente o conheciam.

—        Claro que o conheciam. Escreveram todas essas cartas.

 

Marino levanta uma carta até a luz. Observa uma marca d’água: uma coroa com uma espada que a atravessa. Examina as demais cartas, uma por uma; todas tem a mesma marca d’água. Os cabeçalhos das cartas são convincentes, porém como não estão em relevo nem em baixo relevo, poderiam ter sido escaneados ou reproduzidos com ajuda de algum ferramental de infografia. Apanha uma carta, provavelmente do chefe de Patologia do John Hopkins e liga para o número que está na carta. Responde uma secretária.

 

—        Está viajando, informa.

—        Ligo para perguntar pelo doutor Amos, diz Marino.

—        Quem? Explica. E pede que, por favor, olhe no arquivo.

—        Escreveu uma carta de recomendação para Joe Amos há pouco mais de um ano, em sete de dezembro, fala Marino. — Aqui, ao pé da carta, diz que a pessoa que a escreveu tem as iniciais L. F. C.

—        Aqui não tem ninguém com essas iniciais. Além disso, a pessoa que poderia ter escrito algo assim aqui sou eu, e não são as minhas iniciais. De que assunto se trata?

—        De um simples caso de fraude, responde Marino.

 

Lucy pilota uma de suas V-Rod trucadas pela As Olas na direção norte, pulando todos os sinais vermelhos que se encontram em seu caminho até a casa de Fred Quincy.

 

Fred não dirige seu negócio de desenho de páginas web em sua casa de Hollywood. Não espera a visita de Lucy, porém ela sabe que ele está, ou ao menos estava quando ligou há meia hora para vender uma assinatura do The Miami Herald. Foi muito educado com ela, muito mais do que seria Lucy se um vendedor se atrevesse a chamá-la pelo telefone.

 

A casa de Quincy se localiza a duas quadras ao oeste da praia. Deve ter dinheiro porque o edifício é de dois andares, com pastilha verde claro, portão de ferro forjado, caminho de entrada de pedriscos. Lucy para a moto diante de um interfone e aperta o botão.

 

—        Em que posso ajudar? Responde uma voz masculina.

—        Polícia, diz Lucy.

—        Eu não chamei à polícia.

—        Venho falar de sua mãe e sua irmã.

—        De que departamento de polícia é? Parece perspicaz.

—        Do xerife de Broward.

 

Lucy apanha a carteira e mostra suas falsas credenciais colocando a foto em frente à câmera do circuito fechado de televisão. Soa um apito e o portão de ferro forjado começa a se abrir. Então mete a marcha na moto e salta sobre os pedriscos para ir estacionar diante de uma grande porta negra que se abre no instante em que está desligando o motor.

 

—        Isto sim é que é uma moto, comenta o homem que supõe seja Fred.

 

É de média estatura, ombros estreitos e constituição esbelta. Tem o cabelo ruivo escuro e os olhos de um cinza azulado. Bonito, de feições bem delicadas.

 

 

—        Não me lembro de alguma vez ter visto uma Harley como essa, diz, andando ao redor da moto.

—        Você pilota? Pergunta Lucy.

—        Não. As coisas perigosas eu deixo para os demais.

—        Deve ser Fred. Lucy aperta-lhe a mão. — Se importa que eu entre? Cruzam o vestíbulo com chão de mármore e passam para uma sala que dá para um canal de águas turvas.

—        Que aconteceu com minha mãe e com Helen? Descobriram algo?

 

Pela forma de falar, parece sentir de verdade. Não é só curiosidade paranoica; a dor nubla seus olhos e em seu tom de voz se encontra certa avidez, uma ligeira sombra de esperança.

 

—        Fred, diz Lucy. — Eu não trabalho no Departamento do Xerife do condado de Broward. Tenho investigadores e laboratórios privados e solicitaram nossa ajuda.

—        De modo que mentiu na entrada, fala com uma súbita expressão de animosidade nos olhos. — Isto não começou nada bem. Tenho certeza de que você foi também que me ligou dizendo que era do Herald. Para ver se eu estava em casa.  

—        Acertou nas duas coisas.

—        E acha que devo falar com você?

—        Sinto, diz Lucy. — Eram explicações demasiadas para dá-las pelo interfone.

—        O que aconteceu para que isto voltasse a ter interesse? Por que agora, precisamente?

—        Temo que vá ser eu que faça as perguntas, responde Lucy.

 

O Tio Sam aponta com o dedo e diz: QUERO SEUS CÍTRICOS.

 

A doutora Self faz uma pausa teatral. Parece se encontrar muito cômoda e confiante em si mesma sentada em uma poltrona de couro, no programa “Fale disso”. Neste bloco não tem convidados. Não necessita. Dispõe de um telefone no centro da mesa, junto a ela, e as câmeras a enfocam de diferentes ângulos enquanto aperta botões e diz: “Sou a doutora Self, está você no ar”.

 

—        O que acha? Continua falando. — O Departamento de Agricultura está pisoteando os direitos que assistem a você em virtude da quarta Emenda?

 

É uma pergunta fácil e está desejando lançar-se ao pescoço da imbecil que acaba de ligar. Olha o monitor, satisfeita que a iluminação e o ângulo a favoreçam.

 

—        Claro que sim, diz a imbecil.

—        Como disse que se chama? Sandy?

—        Sim e...

—        Quer pensar antes de levantar a bandeira, Sandy?

—        Er... Que...?

—        Tio Sam com uma bandeira? Não é essa a imagem que as pessoas têm?

—        Estão nos enganando. É uma conspiração.

—        Essa é a sua opinião. O bom Tio Sam cortando todas as suas árvores. Cortar, cortar, cortar. Olha nas câmeras, o produtor está sorrindo.

—        Esses caras entraram em meu jardim sem permissão, e dizem que vão cortar todas as minhas árvores...

—        E onde você mora, Sandy?

—        Em Copper City. É por isso que as pessoas tem vontade de dar-lhes um tiro ou de atiçar os cachorros...

—        Escute uma coisa, Sandy. Prepara-se para o que vai a dizer em seguida e as câmeras focam mais perto. — As pessoas não prestam atenção aos fatos. Você assistiu a alguma reunião? Escreveu aos legisladores? Teve o trabalho de formular perguntas à queima-roupa ou de pensar que as explicações que o Departamento de Agricultura deu, poderiam ter a sua lógica?

 

Seu estilo consiste em adotar justamente a postura contrária à de seu interlocutor. É famosa por isso.

 

—        Bem, tudo isso é uma [piiip], exclama a imbecil; a doutora Self suspeitava que não fosse tardar muito em dizer alguma obscenidade.

—        Não é uma piiip, diz imitando o som. — Isto não tem nada de piiip. É um fato. Olha para a câmera. — Que no outono passado tivemos quatro furacões importantes, e é um fato que o cancro é uma enfermidade bacteriana que se espalha com o vento. Quando voltarmos, exploraremos a realidade desta temida praga e falaremos dela com um convidado muito especial. Não desliguem.

—        Estamos fora, diz um câmera.

 

A doutora Self toma um gole de sua garrafa de água com um canudo para que não escorra o batom e aguarda que o encarregado de maquiagem retoque a testa e o nariz. Impacienta-se quando o tipo se põe a secá-la com lentidão, se impacienta porque demora em terminar de uma vez.

 

—        Está bom. Diz levantando uma mão para afastar o encarregado de maquiagem. — Isto vai muito bem, fala a seu produtor.

—        Acho que no próximo bloco devemos nos centrar na psicologia. Essa é a razão pela qual as pessoas veem o seu programa, Marilyn. Não é pela política e sim pelos problemas com a noiva, com o chefe, com os pais.

—        Não preciso que me dê lições.

—        Não era minha intenção...

—        Olha, o que faz que meu programa seja único é a mistura de temas da atualidade com a nossa reação emocional.

—        Claro.

—        Três, dois, um.

—        E aqui estamos outra vez, diz a doutora Self sorrindo para a câmera.

 

Marino está debaixo de uma palmeira, em frente à Academia, observando Reba, que se aproxima de seu Crown Vitória sem distintivos. Repara na atitude provocadora de sua forma de andar, tenta decidir se é autêntica ou fingida. Pergunta-se se o haverá visto ali de pé, debaixo da palmeira, fumando. Reba o chamou de imbecil. Já foi chamado muitas vezes, porém jamais imaginou que ela pudesse chama-lo de imbecil.

 

Reba abre o carro, porém parece duvidar de entrar nele. Não olha para Marino, porém este tem a sensação de que ela sabe que ele está ali, à sombra da palmeira, com seu Treo na mão, o auricular no ouvido e um cigarro aceso. Reba não deveria ter dito o que disse; não tem o direito de falar de Scarpetta. O Effexor foi quem o prejudicou. Se não estava deprimido antes, ficou depois, e agora aquele comentário sobre Scarpetta, aproximou-a de todos esses policiais que bebiam os ventos por ela.

 

O Effexor foi uma maldição. A doutora Self não tinha o direito de prescrever um remédio que destruiu sua vida sexual. Não tinha o direito de falar todo o tempo de Scarpetta, como se Scarpetta fosse a pessoa mais importante para Marino. Reba teve que se lembrar disso; disse o que disse para lembrá-lo de que não poderia fazer sexo, para lembrá-lo dos homens que poderiam e que queriam fazê-lo com Scarpetta. Está há várias semanas sem tomar o Effexor e seu problema está melhorando, salvo pelo detalhe de que continua se sentindo deprimido.

 

Reba aperta a tecla para abrir o porta-malas e, em seguida, vai até a parte de trás e o abre.

 

Marino se pergunta que estará fazendo. Chega à conclusão de que deveria averiguar e ser suficientemente honrado para confessar que não pode prender ninguém e que provavelmente não seria ruim se ela o ajudasse. Pode ameaçar às pessoas tudo o que quiser, porém legalmente não pode prender ninguém. É o único que não gosta de fato ser polícia.

 

Reba apanha do porta-malas o que parece ser uma bolsa de roupa, que joga sobre o assento traseiro com gesto de irritação.

 

—        Está com um cadáver ai dentro? Pergunta Marino aproximando-se dela como por casualidade, jogando o fim do cigarro na grama.

—        Sabe o que é um cesto? Reba fecha a porta de repente sem olhar para Marino.

—        O que leva nessa bolsa?

—        Tenho que ir à tinturaria. Não tive tempo em toda a semana, embora não seja assunto seu, responde ocultando-se atrás de uns óculos escuros. — Não volte a me tratar como um merda, pelo menos diante de outras pessoas. Se quiser se portar como um imbecil, ao menos o faça discretamente.

 

Marino se volta para olhar a palmeira como se fosse seu lugar favorito, olha a silhueta do edifício recortada contra o azul intenso do céu, buscando uma maneira de falar.

 

—        Bem, você me faltou ao respeito, diz. Reba o olha com expressão atônita.

—        Eu? Do que está falando? Ficou louco? Que eu me lembre, fizemos um agradável passeio de moto e você me levou ao Hooters sem perguntar sequer se eu queria ir. Na verdade o que me deixou mais irritada foi tentar descobrir o que você pensava ao levar uma mulher a um lugar como aquele, cheio de peitos e bundas. E você fala de faltar ao respeito? Está de brincadeira? Depois de ter me obrigado a ficar ali sentada enquanto você comia com os olhos todas as putas que passavam na nossa frente rebolando!

—        Não é verdade.

—        Eu creio que sim.

—        E eu digo que não, insiste Marino, apanhando o maço de cigarros.

—        Fumas demasiado.

—        Eu não olhava nada. Estava ocupado com meus assuntos enquanto tomava o café e de repente você começou com todas essas histórias sobre a doutora, e nem de brincadeira eu ia escutar todo esse rosario de falta de respeito. «Está ressentida», pensa Marino, satisfeito. Disse o que disse por que acreditava que ele estava olhando para a garçonete do Hooters, e talvez fosse verdade. Para deixar clara sua postura, continua: — Estou a um milhão de anos trabalhando com ela e nunca permiti que alguém falasse dela desse modo, e não penso em começar agora, conclui.

 

Segura o cigarro, estreitando os olhos sob o sol, e olha para um grupo de alunos usando macacão de trabalho que cruzam a estrada e se encaminham até os carros parados no estacionamento, provavelmente para ir ao Centro de Formação da Polícia de Hollywood, assistir a uma demonstração de equipamentos.

 

Parece que tinham programada essa atividade para hoje, brincar com Eddie, o robô RemoteTec, ver como se move sobre suas correias de tração fazendo o mesmo ruído que um caranguejo ao descer se arrastando pela rampa de alumínio do caminhão, conectado a um cabo de fibra óptica, exibindo-se, e Bunky o cachorro bomba exibindo-se também, os bombeiros em seus grandes caminhões, também exibindo-se, e a uns tipos exibindo-se também com dinamite, cabos detonadores e rompedores de explosivos, quem sabe fazendo voar pelos ares a algum carro.

 

Marino perderá. Está cansado de que o deixem à margem.

 

—        Sinto muito, diz Reba. — Não era minha intenção dizer nada desrespeitoso sobre ela. A única coisa que disse foi que alguns dos tipos com os que trabalho...

—        Preciso que prenda uma pessoa, interrompe Marino consultando seu relógio, sem interesse algum em ouvi-la repetir o que disse no Hooters, sem interesse em ter que encarar o fato de que parte da culpa foi sua. A maior parte foi sua.

 

O Effexor. Reba teria descoberto mais cedo que tarde. Aquele maldito remédio havia destruído a sua vida.

 

—        Quem sabe dentro de uma hora. Se puder deixar para outro momento ir à lavanderia... Continua falando.

—        É limpeza a seco, imbecil, salta ela com uma hostilidade muito pouco convincente.

 

Continua gostando dele.

 

—        Tenho em casa lavadora e secadora, adiciona. — Eu não vivo em uma caravana.

—        Marino disca o número de Lucy no celular ao mesmo tempo em que diz a Reba: — Tenho uma ideia. Não estou certo de que funcione, porém pode ser que tenhamos sorte.

 

Lucy responde e diz que não pode falar.

 

—        É importante, insiste Marino olhando para Reba, lembrando-se do fim de semana que passaram juntos em Cayo Oeste, quando ele não estava tomando Effexor. — Só cinco minutos.

 

Dá-se conta de que Lucy está falando com alguém, falando que tem que atender a ligação e que em seguida estará de volta. Uma voz de homem diz que não tem problema. Marino ouve que Lucy dá uns passos. Olha para Reba e se lembra de quando se embebedou com rum Morgan no Salão Paraíso do Holiday Inn e de quando contemplavam o pôr do sol e tomavam aqueles banhos quentes à noite, quando ele ainda não tomava o Effexor.

 

—        Estás aí? Está perguntando Lucy.

—        Seria possível fazer uma ligação a três com dois telefones celulares e um fixo e só duas pessoas? Pergunta.

—        O que é isso, uma pergunta do Trivial Pursuit?

—        O que quero é que pareça que estou falando consigo pelo telefone de minha mesa, porém na realidade estaria falando pelo celular. Alô? Estás aí?

—        Está sugerindo que é possível que alguém esteja escutando suas ligações de um telefone multilinha conectado ao sistema da PABX?

—        Do maldito telefone da minha mesa, diz Marino olhando para Reba, que está olhando para ele, para ver se está impressionada.

—        Isto é o que quero dizer. Quem? Pergunta Lucy.

—        Tentarei confirmar, porém estou quase certo de saber.

—        Ninguém poderia fazer algo assim sem a senha do administrador do sistema, que sou eu.

—        Pois acredito que alguém a tem. Isto explicaria muitas coisas. Pode fazer o que pedi? Pergunta de novo. — Posso ligar para você pelo telefone de minha mesa, depois entrar em conferência no meu celular e deixar a linha de minha mesa aberta para que pareça que continuo falando dali?

—        Sim, poderíamos, responde Lucy. — Entretanto neste preciso momento, não.

 

A doutora Self aperta um botão luminoso do telefone.

 

—        Nossa ligação seguinte... Enfim, está há vários minutos esperando e tem um apelido curioso. Porco? Peço perdão. Continua aí?

—        Sim, senhora, diz uma suave voz que enche o estúdio.

—        Você está no ar, diz ela. — Bem, Porco, por que não nos fala primeiro desse seu apelido? Estou certa de que todo o mundo sente muita curiosidade.

—        Assim é como eu me chamo. Faz-se silêncio e a doutora Self o enche imediatamente. Quando está no ar não podem acontecer tempos mortos.

—        Bem, Porco então. Ele liga para contar uma história surpreendente. Você trabalha no setor da jardinagem e esteve em determinado bairro em que foi detectado cancro no jardim de uma casa...

—        Não. Não, em absoluto.

 

A doutora Self sente uma pontada de irritação. Porco não segue a norma. Quando ligou num dia à tarde fingindo ser outra pessoa, disse com toda a clareza que havia descoberto cancro no jardim da casa de uma anciã de Hollywood, em um só pé de laranja, porém agora precisaria cortar todos os cítricos desse jardim e de todo o bairro, e que quando explicou o problema à dona daquela árvore infectada em particular a anciã ameaçou suicidar-se se desse parte da dita infeção ao Departamento de Agricultura. Ameaçou se dar um tiro com a escopeta de seu finado esposo.

 

O marido da anciã plantou as árvores quando se casaram. Agora está morto e essas árvores são a única lembrança dele, a única coisa viva. Cortá-las equivale a destruir uma apreciada parte de sua vida que ninguém tem direito de tocar.

 

—        Erradicar essas árvores supõe obrigá-la a que por fim aceite sua perda. A doutora Self está explicando tudo isto a sua audiência. — E ao aceitá-la considera que já não sobra nada pelo que viver. Deseja morrer. Sim é um bom dilema para você, não, Porco? É brincar de ser Deus, conclui.

—        Eu não brinco de ser Deus. Eu faço o que Deus me diz. Não finjo nada. A doutora Self se sente confusa, porém continua adiante.

—        Difícil decisão para você tomar. Obedeceu ao Governo ou seguiu o seu coração?

—        Pintei umas faixas vermelhas nessas árvores, responde Porco. — E agora a anciã está morta. Você seria a seguinte. Entretanto não deu tempo.

 

Estão sentados na cozinha, em uma mesa situada em frente à janela que dá para o canal de águas turvas.

 

—        Quando dei parte à polícia, está falando Fred Quincy, — Me pediram umas quantas coisas que poderiam conter DNA: escovas de cabelo, escovas de dentes, não lembro o que mais. Jamais soube o que fizeram com essas coisas.

—        Provavelmente não chegaram a analisá-las, diz Lucy, pensando na conversa que acaba de ter com Marino. — É possível que ainda estejam no quarto de provas. Poderia perguntar, porém preferiria não esperar.

 

A sugestão de que alguém tenha acesso a sua senha de administradora do sistema é incrível. É algo doente. Marino deve estar errado. Não pode tirar este assunto da cabeça.  

 

—        Obviamente, este caso não é prioritário para eles. Sempre estiveram convencidos de que, simplesmente elas fugiram. Não havia sinais de violência, diz Fred. — Disseram que para investigar precisariam encontrar algum indício de luta ou alguém que tivesse visto algo. Aconteceu no meio da manhã, tinham pessoas na rua. E o carro de minha mãe havia desaparecido.

—        Me disseram que estava ali. Um Audi.

—        Pois não é verdade. Além disso, minha mãe não tinha um Audi. Eu tinha. Alguém deve ter visto meu carro quando cheguei mais tarde, procurando-as. Minha mãe tinha um Chevy Blazer, utilizava-o para transportar coisas. As pessoas distorcem tudo. Depois de haver passado o dia inteiro ligando pelo telefone, por fim fui à loja. Tinham desaparecido a bolsa e a Blazer de minha mãe, e não havia rastro dela nem de minha irmã.

—        Viu algum sinal de que tivessem estado dentro da loja?

—        Não havia nada aceso nem ligado. E o cartaz de fechado estava colocado.

—        Faltava algo?

—        Não que eu visse. Nada que me chamasse a atenção. A caixa estava vazia, porém isso não significa muito. Se minha mãe deixou dinheiro na noite anterior, não seria muito. Algo aconteceu para que de repente vocês peçam DNA.

—        Já explicarei, diz Lucy. — É possível que tenhamos uma pista.

—        Não pode me contar?

—        Prometo que contarei. Qual foi a primeira coisa que pensou quando foi buscá-las na loja?

—        Pensei que não haviam ido ali, que haviam ido a alguma parte.

—        E por que pensou isso?

—        Tínhamos tido muitos problemas. Altos e baixos econômicos, problemas pessoais. Meu pai teve um tremendo êxito em seu negocio de jardinagem.

—        Em Palm Beach.

—        Ali é onde ficavam as lojas principais, porém, tinha viveiros e granjas em outros lugares, alguns aqui mesmo. Em meados dos anos oitenta se arruinou por culpa do cancro. Teve que arrancar até o último dos cítricos, teve que despedir quase todos os seus empregados e andou muito próximo de declarar-se quebrado. Isto foi muito duro para minha mãe. Em seguida ele se recuperou e teve mais êxito que antes, e isto também foi muito duro para minha mãe. Não estou certo de que devia contar tudo isto.

—        Fred eu estou tentando ajudá-lo. Entretanto não poderei fazer se não falar comigo.

—        Começarei por contar quando Helen tinha doze anos, diz Fred. — Eu estava começando meu primeiro curso na universidade. Sou maior que ela, obviamente. Helen foi morar com o irmão de meu pai e sua esposa uns seis meses.

—        Por quê?

—        Foi algo muito triste. Uma garota tão bonita e com tanto talento... Entrou em Harvard só com dezesseis anos e não durou nem sequer um semestre, deu uma caída e voltou para casa.

—        Quando?

—        Deve ter sido no outono anterior em que desaparecessem minha mãe e ela. Só ficou até novembro... Em Harvard.

—        Oito meses antes que desaparecessem ela e sua mãe?

—        Sim. Helen teve umas heranças genéticas realmente horríveis. Faz uma pausa como se estivesse tentando decidir se continuava ou não, e então diz: — Está bem. Minha mãe não era a mulher mais estável do mundo. É possível que já tenha dado conta disso por causa dessa obsessão que tinha pelo Natal. Tinha extravagâncias, uma após outra, desde que eu posso lembrar. Entretanto a coisa piorou de vez quando Helen fez doze anos. Minha mãe fazia coisas bastante irracionais.

—        Ia a um psiquiatra?

—        O melhor que se pudesse conseguir com dinheiro. Foi nessa tão famosa, a doutora Self, que naquela época morava em Palm Beach. Recomendou que se tratasse em um hospital. Essa foi a verdadeira razão para Helen ir morar com nossos tios. Minha mãe estava hospitalizada e meu pai andava muito ocupado e não estava preparado para cuidar sozinho de uma menina de doze anos. Em seguida minha mãe voltou para casa, e Helen também, e a partir daquele momento nenhuma das duas se comportou de um modo... Enfim, normal.

—        Helen foi a um psiquiatra?

—        Naquela época, não, responde Fred. — Simplesmente estava estranha; não instável como minha mãe, e sim estranha. No colégio ia bem, bem de verdade, porém foi para Harvard e piorou. Encontraram-na no vestíbulo de uma funerária. Não sabia quem era. Depois, se as coisas já iam muito mal, meu pai morreu. Minha mãe entrou em uma espiral. Nos fins de semana saía por aí sem dizer onde, o que me esculhambava os nervos. Foi horrível.

—        De maneira que a polícia pensou que era uma pessoa instável e que tendia a desaparecer, ou que talvez tivesse fugido com Helen?  

—        Eu mesmo cheguei a pensar. E ainda me pergunto se minha mãe e minha irmã não estarão por aí, em alguma parte.

—        Como seu pai morreu?

—        Caiu de uma escada de mão na biblioteca de livros raros. A casa de Palm Beach tinha três andares, todos de mármore e lajotas.  

—        Se encontrava só em casa quando aconteceu isso?

—        Helen o encontrou no chão do primeiro andar.

—        Era a única pessoa que estava em casa naquele momento?

—        Com um namorado, quem sabe. Não sei quem.

—        Quando aconteceu isso?

—        Um par de meses antes do desaparecimento. Naquele momento Helen tinha dezessete anos e era uma garota precoce. Bem, para dizer verdade, quando voltou de Harvard estava completamente descontrolada. Sempre me perguntei se não foi uma reação a meu pai, a meu tio, aos familiares paternos. Eram pessoas sumamente sérias e religiosas, Jesus isto, Jesus aquilo, sempre indo à igreja. Eram diáconos, davam aulas de catequese, estavam sempre tentando «dar testemunho» aos demais.

—        Você conheceu algum dos namorados de Helen?

—        Não. Helen ia por aí, desaparecia uns quantos dias. Sempre causando problemas. Eu não teria vindo na loja se não tivesse sido obrigado. A obsessão de minha mãe com o Natal não deixa de ter graça: em nossa casa nunca era Natal, tudo era sempre horroroso.

 

Levanta-se da mesa.

 

—        Importa-se que eu tome uma cerveja? Apanha uma Michelob, retira a tampa de rosca, fecha a geladeira e volta a sentar-se.

—        Alguma vez Helen esteve hospitalizada? Pergunta Lucy.

—        No mesmo lugar que minha mãe. Esteve internada um mês, logo depois de abandonar Harvard. O Club McLean eu o chamava. A maravilhosa genética familiar.

—        O McLean de Massachusetts?

—        Sim. Você nunca toma notas? Não sei como pode se lembrar de tudo isto.

 

Lucy toca com os dedos a caneta que tem na mão. A pequena gravadora está ligada, invisível em seu bolso.

 

—        Precisamos do DNA de sua mãe e o de sua irmã, diz.

—        Não tenho a menor ideia de como vamos consegui-lo agora. A não ser que a polícia ainda o tenha.

—        Servirá o seu. É chamado de DNA da árvore genealógica, responde Lucy.

 

Scarpetta olha pela janela a rua fria e branca. São quase três e está há quase todo o dia no telefone.

 

—        Que tipo de filtro vocês tem? Devem contar com um sistema para controlar as pessoas que entram no ar, diz.

—        Naturalmente. Um dos produtores fala com a pessoa e verifica se não é louca. Palavras muito fortes na boca de uma psiquiatra. — Neste caso eu já havia tido uma conversa com esse homem, o do serviço de jardinagem. É uma história muito longa. A doutora Self fala depressa.

—        Quando você falou com ele na primeira vez, disse que se chamava Porco?

—        Não dei importância. Muitas pessoas têm apelidos estrambóticos. Entretanto eu preciso saber se alguma anciã apareceu morta de repente, em um suicídio. Você saberia, não é? Esse tipo ameaçou me matar.

—        Infelizmente são muitas as anciãs que aparecem mortas, responde Scarpetta evasiva. — Poderia me dar algum outro detalhe? Que disse exatamente?

 

Em seguida, a doutora Self relata a história dos cítricos infectados que tinha a anciã no jardim, sua pena pela perda do marido, a ameaça de suicidar-se se o tipo do serviço de jardinagem, o tal Porco, cortasse suas árvores. Nisto entra Benton na sala com dois cafés e Scarpetta passa a ligação à posição de mãos livres.

 

—        E então ameaçou me matar, repete a doutora Self. — Me disse que ia fazer, porém havia mudado de ideia.

—        Tenho uma pessoa aqui comigo que precisa ouvir isto, diz Scarpetta, e em seguida apresenta Benton. — Conte a ele o que acaba de contar para mim.

 

Benton senta no sofá enquanto a doutora Self responde que não compreende por que interesse a um psicólogo forense de Massachusetts, um suicídio que pode ter acontecido na Flórida. Em troca pode ser que tenha uma opinião válida sobre o fato de que alguém a tenha ameaçado de morte e ficaria feliz em tê-lo em seu programa de televisão. Que tipo de pessoa seria capaz de ameaçá-la dessa forma? Encontra-se em perigo?

 

—        Seu estúdio de televisão tem um registro das pessoas que ligam para o programa mediante um sistema de identificação de ligações? Pergunta Benton. — Guardam os números, durante algum tempo?

—        Acho que sim.

—        Queria que descobrisse isso imediatamente, pede Benton. — Talvez pudéssemos determinar de onde fizeram essa ligação.

—        O que sei é que não aceitamos ligações de pessoas que não se identificam, porque em certa ocasião me ligou uma louca que me ameaçou no ar. Não é a primeira vez que isso acontece. Essa ligação entrou como não identificada. Nunca mais.

—        Então fica claro que vocês veem número da pessoa que liga, afirma Benton. — O que eu queria é uma lista dos números de todas as pessoas que ligaram para o programa de hoje. Que me diz dessa primeira conversa que teve com o jardineiro? Acaba de dizer que teve uma conversa com ele. Ficou anotado seu número em algum registro?

—        Eu não tenho identificador de ligações. Tenho um número que não figura na lista, por isso não preciso.

—        Esse homem se identificou?

—        Como Porco.

—        Ligou para a sua casa?

—        Para o meu consultório. Atendo os pacientes no consultório que tenho atrás da casa. Na realidade é uma sala para convidados com uma piscininha.

—        Como pode ter conseguido o seu número?

—        Não tenho ideia. Naturalmente meus colegas, todas as pessoas com as quais trabalho, meus pacientes, o tem.

—        Existe alguma possibilidade de que esse homem tenha sido um de seus pacientes?

—        Não reconheci sua voz. Não me lembro de ninguém que possa ser ele. Aqui está acontecendo algo. Adota uma atitude mais agressiva. — Acho que tenho direito de saber se existe algo mais do que parece a simples vista. Em primeiro lugar, você não me confirmou se alguma anciã tenha se suicidado com uma escopeta porque tinha as árvores contaminadas.

—        Não sabemos de nada parecido. É Scarpetta quem fala. — Entretanto um caso muito recente se parece muito com o que você acaba de descrever: uma anciã cujas árvores haviam sido marcadas para corte morreu com um tiro de escopeta.

—        Deus meu. E isso aconteceu depois das seis da tarde?

—        Provavelmente antes, responde Scarpetta, bastante certa de saber por que pergunta a doutora Self.

—        Isto é um alivio. Que já estava morta quando me ligou esse jardineiro, o tal Porco. Ligou aproximadamente cinco ou dez minutos após as seis e pediu para aparecer em meu programa, me contou a história da anciã que ameaçou suicidar-se. De modo que já devia de ter-se suicidado. Não queria pensar que a morte dessa anciã tivesse algo a ver com o fato de que esse homem queria aparecer em meu programa.

 

Benton dirige a Scarpetta um olhar que diz «uma tia narcisista e insensível» e em seguida fala ao telefone:

 

—        Neste momento tentamos descobrir outras coisas, doutora Self. E nos seria de grande ajuda que nos proporcionasse informação sobre David Fortuna. Você receitou Ritalim.

—        Vai me dizer agora que também ocorreu com ele algo espantoso? Já estou sabendo de seu desaparecimento. Houve alguma novidade?

—        Existem motivos de preocupação. Scarpetta repete o que já disse. — Temos razões para estar muito inquietos por ele, por seu irmão e pelas duas mulheres que moravam com eles. Há quanto tempo David é seu paciente?

—        Desde o verão passado. Acho que a primeira vez que veio foi em julho, embora também pudesse ter sido em finais de junho. Seus pais haviam falecido em um acidente e ele estava sentindo profundamente, levando ao fracasso escolar. Seu irmão e ele tinham aulas em casa.

—        Com que frequência você o via? Pergunta Benton.

—        Normalmente uma vez por semana.

—        Quem o acompanhava nas sessões?

—        Às vezes Kristin, outras vezes Ev. De vez em quando as duas o traziam, e em mais de uma ocasião me reuni com os três juntos.

—        Quem enviou David a seu consultório? É Scarpetta a que pergunta. — Como terminou chegando a você?

—        Bem, é bastante comovedor. Kristin ligou para o meu programa. Parece que o escuta frequentemente e assim decidiu que talvez eu pudesse me interessar pelo caso. Ligou para a rádio e me disse que estava cuidando de uma criança sul-africana, que acabava de perder seus pais e que necessitava de ajuda, etecetera, etecetera. Foi uma história bastante comovente e aceitei vê-lo no ar. Você se surpreenderia da quantidade de cartas que recebi de meus ouvintes depois daquilo. E ainda continuo recebendo de pessoas que querem saber como vai o pequeno órfão sul-africano.

—        Tem uma gravação do programa que está se referindo? Pergunta Benton. — Um corte de áudio?

—        Temos gravações de tudo.

—        Quanto tempo demoraria em me fazer chegar essa gravação e uma do programa de televisão de hoje? Infelizmente aqui estamos bloqueados pela neve, pelo menos no momento. Fazemos o que podemos a distância, porém nos limita muito.

—        Sim, já soube de que aí tem uma boa nevasca. Espero que não cortem a energia elétrica, comenta a doutora Self, que já está há meia hora nessa conversa. — Posso ligar imediatamente para o meu produtor para que envie as gravações por correio eletrônico. Estou certa de que falará com vocês sobre a possibilidade de trazê-los ao meu programa.

—        E os números de telefone dos que ligaram, lembra Benton.

—        Doutora Self, intervém Scarpetta, olhando pela janela com desânimo, porque está começando a nevar outra vez. — Que me diz de Tony, o irmão de David?

—        Brigavam muito.

—        Você também tratava de Tony?

—        Não cheguei a conhecê-lo, responde a doutora.

—        Disse que conhece Ev e a Kristin. Alguma delas sofria de uma desordem alimentar?

—        Eu não tratava nenhuma das duas. Não eram minhas pacientes.

—        Imagino que saberia distinguir só de olhar. Uma delas seguia uma dieta a base de hortaliças.

—        A julgar por seu aspeto físico, seria Kristin, responde a doutora Self.

 

Scarpetta olha para Benton. Depois de descobrir a cor amarelada da mãe pediu ao laboratório de DNA da Academia que se pusesse em contato com o detetive Thrush. O DNA da mulher que foi encontrada morta aqui coincide com o encontrado em umas manchas amareladas na blusa que Scarpetta apanhou na casa de Ev e Kristin. O cadáver que está no depósito de Boston muito provavelmente será o de Kristin, e Scarpetta não tem intenção de dar essa informação à doutora Self, já que seria muito capaz de contá-la no ar.

 

Benton se levanta do sofá para jogar outra acha ao fogo e Scarpetta desliga o telefone. Observa a neve; cai com rapidez à luz das lâmpadas da porta da casa.

 

—        Acabou o café, diz Benton. — Tenho os nervos destroçados.

—        Aqui não faz outra coisa a não ser nevar?

—        As ruas principais já devem estar limpas. Têm uma pressa incrível. Não creio que as crianças tenham algo a ver com isto.

—        Sim, tem algo a ver, diz Scarpetta aproximando-se da lareira para sentar-se em frente ao fogo. — Desapareceram. E parece que Kristin está morta. Provavelmente todos estão.

 

Marino liga para Joe. Reba está sentada em silêncio não muito longe dele, enfiada em reconstituições de crimes.

 

—        Tenho umas quantas coisas para comentar, fala Marino a Joe. — Temos um problema.

—        Que problema? Diz o outro com cautela.

—        Tem de saber disso por mim. Tenho que devolver umas quantas ligações em meu escritório e fazer uns quantos recados. Onde vai estar durante a próxima hora?

—        Na cem doze.

—        Está aí agora?

—        Vou para lá.

—        Vou ver se adivinho, diz Marino. — Não estará preparando outra reconstituição que me tenha roubado?

—        Se é disso que quer falar comigo...

—        Não é disso, corta Marino. — É de algo muito pior.

—        É incrível, fala Reba a Marino voltando a deixar na mesa os processos das reconstituições. — São muito boas. São extraordinárias, Pete.

—        Vamos fazer isto em cinco minutos, para dar tempo para que ele chegue a sua mesa. Agora está com Lucy ao telefone. — Confia em mim. Que faço?

—        Vai desligar e eu também. Depois, aperte o botão de conferência de seu telefone fixo e disca meu número de celular. Quando eu responder, aperte outra vez conferência e disca o número de seu celular. Em seguida coloca em espera seu telefone fixo para manter a linha aberta. Se alguém está controlando sua ligação, pensará que está no escritório.

 

Marino aguarda alguns minutos e faz o que Lucy mandou. Reba e ele saem do edifício enquanto Marino e Lucy mantém uma conversa pelo celular, uma conversa autêntica. Marino espera fervorosamente que Joe esteja escutando. Até o momento estão tendo sorte, a recepção é boa; a voz de Lucy soa como se ela estivesse na sala ao lado. Conversam sobre as novas motocicletas. Conversam sobre todo tipo de coisas enquanto Marino e Reba caminham.

 

O motel Última Parada foi dividido em três seções que são utilizadas para representar cenas de crimes. Cada seção consta de uma porta individual com um número. A seção 112 é a do centro. Marino vê que a janela dianteira tem a cortina fechada e ouve o zumbido do ar acondicionado. Testa a porta, que está fechada com chave, e a abre com um pontapé de sua enorme bota Harley. A porta barata se choca contra a parede. Joe está sentado à mesa com o receptor no ouvido e uma gravadora conectada ao telefone. Em seu rosto se desenha uma expressão primeiro de surpresa e em seguida de terror. Marino e Reba ficam olhando.

 

—        Sabe por que este motel se chama Última Parada? Pergunta Marino aproximando-se dele. Agarra-o e levanta da cadeira como se não pesasse nada. — Porque está mais morto que o coronel Custer.

—        Me solte! Vocifera Joe.

 

Não consegue apoiar os pés no chão porque Marino o segura pelas axilas, com o rosto a escassos centímetros do seu. Por fim o bate contra uma parede.

 

—        Me solte! Está me machucando! Marino o deixa cair. Joe bate o traseiro contra o chão.

—        Sabe por que ela veio comigo? Aponta Reba. — Para prendê-lo, safado.

—        Eu não fiz nada!

—        Falsificação de dados, furto, quem sabe homicídio, já que roubou uma escopeta que foi usada para estourar a cabeça de uma anciã. Ah, e também fraude, agrega Marino à lista sem se preocupar de que tudo isso seja válido ou não.

—        Não é verdade! Não sei do que está falando!

—        Pare de gritar. Não sou surdo. O detetive Wagner é uma testemunha.

 

A aludida confirma com uma expressão dura no semblante. Marino nunca a viu tão séria.

 

—        Me viu colocar-lhe um dedo em cima? Pergunta Marino.

—        Claro que não, ela responde.

 

Joe está tão assustado que poderia mijar nas calças.

 

—        Quer nos contar por que roubou essa escopeta e a quem deu de presente ou vendeu? Marino aproxima a cadeira da mesa, dá a volta e se senta às gargalhadas, apoiando seus enormes braços sobre o encosto. — Talvez tenha sido você que estourou a cabeça nessa anciã. Ou melhor, andou praticando reconstituições de crimes, só que essa eu não escrevi. Deve ter roubado de outro.

 

—        Que anciã? Eu não matei ninguém. Nem roubei uma escopeta. Que escopeta?

—        A que registraste em vinte e oito de junho às três e quarto da tarde. A que pertence ao registro que acabou de atualizar, falsificando esse dado também.

 

Joe tem a boca aberta e os olhos como pratos.

 

Marino coloca uma mão no bolso de trás, apanha um papel, o desdobra e dá a Joe. É uma fotocópia de uma página do livro de registro que demonstra o momento em que Joe assinou, ao apanhar a escopeta Mossberg que provavelmente não devolveu. Joe olha fixamente a fotocópia. Tremem-lhe as mãos.

 

—        Juro por Deus que não a apanhei, diz. — Me lembro do que aconteceu. Estava fazendo umas investigações com gelatina regulamentar e quem sabe disparei uma vez a modo de prova. Em seguida fui fazer algo na cozinha do laboratório, creio que para verificar uns quantos blocos que acabava de fazer, estávamos utilizando para simular passageiros em um acidente de avião. Lembra quando Lucy usou aquele helicóptero grande fazendo cair do céu um pedaço de fuselagem de avião, para que os alunos... ?

—        Chega!

—        Quando voltei, a escopeta não estava. Supus que Vince havia voltado a guardá-la na câmera. Já era muito tarde, provavelmente a guardou porque estava a ponto de ir a casa. Lembro que me irritou muito porque queria dispará-la um par de vezes mais.

—        Não estranho que tenha me roubado as reconstituições, diz Marino. — Não tens um pingo de imaginação. 

—        Estou falando a verdade.

—        Quer sair daqui preso? Exclama Marino apontando com o polegar a Reba.

—        Não pode provar que fui eu.

—        Posso provar que cometeu uma fraude, replica Marino. — Quer que falemos de todas essas cartas de recomendação que falsificou para que a doutora o admitisse como estagiário?

 

Joe fica um instante sem fala. Em seguida recobra a compostura e, uma vez mais, adota sua habitual expressão de sabetudo.

 

—        Prove, desafia.

—        Todas e cada uma dessas cartas estão escritas no mesmo papel com a mesma marca d’água.

—        Isto não prova nada. Joe se levanta e esfrega a testa. — Vou processá-lo, ameaça.

—        Bem. Nesse caso, fica igual se acontecer um acidente, responde Marino acariciando o punho. — Não me viu tocar nele, não é verdade, detetive Wagner?

—        Nem num fio cabelo, responde Reba, e adiciona: — Se você não levou a escopeta, quem foi? Tinha alguém com você naquela tarde no laboratório de armas de fogo? Joe pensa uns segundos e no fim se lê algo em seus olhos.

—        Não, responde.

 

Vinte e quatro horas por dia os guardas da sala de controle vigiam os internos considerados potenciais suicidas. Vigiam Basil Jenrette. Observam como dorme, como toma banho, como come. Observam como utiliza a latrina de aço. Observam como dá as costas à câmera do circuito fechado e alivia sua tensão sexual debaixo das cobertas de sua estreita cama de aço.

 

Basil os imagina rindo-se dele. Imagina o que dizem na sala de controle observando-o nos monitores. Fazem piadas sobre ele em frente aos outros guardas, o adivinha pelo sorrisinho satisfeito que põem quando trazem a comida ou quando o apanham da cela para que faça exercício ou uma ligação telefônica. Às vezes fazem comentários. Às vezes aparecem na porta de sua cela quando está se masturbando e imitam o ruído que faz, dão gargalhadas e batem na porta.

 

Basil, sentado na cama, olha até a câmera montada na parte de cima da parede de frente. Folheia o número deste mês de Campo e Rio enquanto pensa na primeira vez que conversou com Benton Wesley e cometeu o erro de responder com sinceridade a uma de suas perguntas.

 

—        Alguma vez pensou em machucar a si mesmo ou aos demais?

—        Já machuquei os demais, assim, suponho que isso quer dizer que sim, que penso nisso, respondeu Basil.

—        Que tipo de pensamentos você tem, Basil? Poderia descrever o que imagina quando pensa em causar mal a outras pessoas ou a você mesmo?

—        Acho que em fazer o de sempre. Ver uma mulher e sentir uma necessidade urgente. Metê-la em meu carro patrulha, apanhar a pistola e falar que vou detê-la, e que se resistir a detenção, se tocar a porta sequer, vou disparar. Todas colaboraram.

—        Nenhuma resistiu. 

—        Só as duas últimas. Por culpa de uma avaria no carro. Que idiotice.

—        As outras, antes dessas duas, acreditaram que você era polícia e que ia detê-las?

—        Acreditaram. Entretanto sabiam o que estava acontecendo. Eu queria que soubessem. Fazia-me de duro. As obrigava a me tocar com a mão. Mas iam morrer. Que idiotice.

—        O que é uma idiotice, Basil?

—        Uma idiotice. Falei mil vezes. Você me escutou, não? Preferiria que desse um tiro ali mesmo, no carro, ou que as levasse para outro lugar e fazer o que elas suspeitavam? Por que iam me permitir levá-las um lugar oculto e atá-las ali?

—        Fale como as atava, Basil. Sempre da mesma forma?

—        Sim. Tenho um método realmente genial. É absolutamente singular. Inventei quando comecei as detenções.

—        Por detenções se refere a sequestrar e agredir a mulheres.

—        Quando comecei a fazê-lo, sim.

 

Basil sorri sentado na cama, recordando a emoção de amarrar os tornozelos e os pulsos de suas vítimas com arame e depois passar por eles uma corda para poder pendurá-las no teto.

 

—        Eram minhas marionetes, explicou ao doutor Wesley durante aquela primeira entrevista, perguntando-se que faltava para provocar nele uma reação.

 

Dissesse o que dissesse, o doutor Wesley sempre mantinha o olhar sereno e escutava sem deixar revelar em seu semblante algo que pudesse estar sentindo. É que não sente nada. É igual à Basil.

 

—        Nesse lugar que eu tinha, havia umas vigas à mostra em uma parte em que o teto havia cedido, principalmente no quarto do fundo. Eu passava as cordas por cima das vigas e assim podia esticá-las ou afrouxá-las à vontade, deixando-as longas ou curtas.

—        E elas nunca resistiam, nem sequer ao se dar conta do que ia acontecer quando você as levava a aquele edifício? Que tipo de edifício era? Uma casa?

—        Não me lembro.

—        Resistiam, Basil? Tenho a impressão de que devia ser difícil sujeitá-las de uma maneira tão complicada sem deixar de apontar a arma.

—        Sempre tive a fantasia de que alguém estivesse olhando. Basil não respondeu à pergunta. — E depois trepar uma vez que tivesse terminado. Trepar durante horas com o corpo, ali mesmo, sobre o mesmo colchão.

—        Trepar com o cadáver ou com outra pessoa?

—        Disto nunca gostei. Não é para mim. Gosto de ouvi-las quer dizer, tinha que doer muito. Às vezes deslocavam um ombro. Eu dava suficiente corda para que usassem o banheiro. Essa é a parte que eu não gostava. A de esvaziar a latrina.

—        E que me diz dos olhos, Basil?

—        Pois... Vejamos. Não é minha intenção fazer um jogo de palavras. O doutor Wesley não riu e isso irritou Basil um pouco.

—        Eu as deixava dançar atadas à corda, tampouco é um jogo de palavras. Você não sorri nunca? Venha, homem, isto tem sua graça.

—        Estou escutando, Basil. Estou escutando tudo o que diz.

 

Isto ele estava, pelo menos. E assim era. O doutor Wesley escutava e pensava que cada palavra era importante e fascinante, pensava que Basil era a pessoa mais interessante e mais original que havia entrevistado em toda sua vida.

 

—        Quando ia trepar com elas, prossegui, — Então era quando fazia o dos olhos. Verá, se eu tivesse nascido com um pênis de tamanho decente, não teria feito nada disto.

—        Estavam conscientes quando as deixava cegas.

—        Se pudesse deixá-las inconscientes enquanto fazia a cirurgia, teria feito. Não gostava que gritassem e se agitassem como loucas. Entretanto é que eu não poderia trepar até que estivessem cegas. Já expliquei. Dizia: sinto muito ter que fazer isto. Farei o mais rápido possível, mas vai doer um pouco. Não tem graça? Vai doer um pouco. Cada vez que alguém me diz isso já sei que vai doer prá cacete. Depois dizia que ia desamarrá-las para que pudéssemos trepar. Dizia que se tentassem escapar ou fazer alguma besteira eu faria coisas piores do que as que já havia feito. Em seguida trepávamos.

—        Quanto tempo durava isso?

—        Se refere a trepar?

—        Quanto tempo as mantinha vivas para se deitar com elas?

—        Depende. Se eu gostasse de trepar com elas às vezes as mantinha ali vários dias. Acho que no máximo foram dez dias. Entretanto não terminou bem porque a garota pegou uma infeção grave de verdade e foi repugnante.

—        Fazia alguma coisa mais? Além de deixá-las cegas e deitar-se com elas?

—        Experimentava. Um pouco.

—        Alguma vez praticou a tortura?

—        Eu diria que tirar os olhos de alguém... Enfim, respondeu Basil, e agora desejava não ter dito isso.

 

Porque abriu toda uma nova linha de interrogatório. O doutor Wesley se empenhou em distinguir o bem do mal e em compreender o sofrimento que estava causando Basil a outro ser humano, que se ele sabia que determinada coisa era tortura, então estava consciente do que fazia no momento em que fazia e também ao pensar. Não foi exatamente assim como disse, porém isso era o que pretendia dizer. O mesmo estribilho que ouvia sempre em Gainesville quando os médicos tentavam descobrir se era competente para enfrentar um juiz. Não deveria ter permitido que soubessem como era. Aquilo também foi uma idiotice. Um hospital psiquiátrico forense é um hotel cinco estrelas comparado com a prisão, sobretudo se você está no corredor da morte e passa o dia sentado em uma cela minúscula e claustrofóbica sentindo-se como um palhaço com uma calça listrada azul e branca e uma camiseta laranja.

 

Basil levanta de sua cama de aço e se estira. Finge não ter o menor interesse pela câmera da parede. Não deveria ter reconhecido que às vezes fantasiou com a ideia de se matar, que seu método favorito seria cortar as veias e vê-las sangrar, gota a gota, contemplar o charco que iria se se formando no chão, porque isso lembraria suas anteriores ocupações com... Quantas mulheres? Ao doutor Wesley disse que foram oito. Ou terão sido dez?

 

Estira-se um pouco mais. Utiliza a latrina de aço e retorna à cama. Abre o número mais recente de Campo e Rio e procura a página 52. Nela existe uma suposta coluna sobre o primeiro rifle de calibre 22 de um caçador e as felizes recordações que ele tem de quando caçava coelhos e pescava no Missouri. Esta página 52 não é a autêntica. A página 52 original foi arrancada, escaneada e copiada em um computador. Empregando um tipo de letra e um formato idênticos, foi inserida uma carta no texto da revista. A página 52 escaneada foi colocada de novo na revista com ajuda de um pouco de cola. O que parece uma coluna de comentários sobre caça e pesca é uma comunicação clandestina dirigida a Basil.

 

Os guardas não se importam que os internos recebam revistas de pesca. Não é provável que as leiam, porque são chatas, sem sexo nem violência.

 

Basil se mete debaixo das cobertas e se estende sobre o costado esquerdo no eixo diagonal da cama, tal como faz quando necessita aliviar sua tensão sexual. Mete uma mão debaixo do delgado colchão e apanha dois pares de meias brancas que está a semana toda cortando em tiras. Debaixo das cobertas, utilizando os dentes vai cortando-as. Em seguida amarra as tiras ao que se converteu em uma corda de nós de quase dois metros. Ainda sobra material suficiente para mais duas tiras. Agarra com os dentes e corta. Respira com força e se move um pouco, como se estivesse masturbando-se, e vai cortando e amarrando, até que por fim amarra a última tira.

 

Na sala de computadores da Academia, Lucy está sentada em frente a três grandes terminais de vídeo, lendo correios que recupera do servidor.

 

O que Marino e ela descobriram até o momento é que, antes de iniciar seu período como estagiário, Joe Amos mantinha contatos com um produtor de televisão que afirmava estar interessado em criar outra série forense para uma das cadeias por cabo. Além de sua contratação, prometeram a Joe cinco mil dólares por episódio, supondo que a série chegasse a ser realizada. Parece que Joe começou a ter ideias brilhantes em finais de janeiro, mais ou menos quando Lucy se sentiu indisposta quando testava um de seus helicópteros, precisando correr até o banheiro de senhoras e esquecendo o Treo. Em princípio agiu de maneira sutil, plagiando reconstituições de crimes; porém depois ficou descarado e começou a roubá-las abertamente, entrando nas bases de dados e mexendo em seu conteúdo. 

 

Lucy recupera outra correspondência, esta datada de dez de fevereiro, há um ano. É de uma aluna do verão passado, Jam Hamilton, a que se feriu com a agulha e ameaçou com processo a Academia.

 

Estimado doutor Amos:

Na outra noite o ouvi no programa de rádio da doutora Self e fiquei fascinada pelo que você falou sobre a Academia Nacional de Medicina Legal. Parece um lugar espetacular e, a propósito, o felicito por haver obtido esse estágio. É impressionante. Talvez pudesse me ajudar a conseguir que me admitam como aluna nas aulas deste verão. Estou estudando biologia nuclear e genética em Harvard e quero ser forense especialista em DNA. Anexo um arquivo com minha fotografia e informações pessoais.

Jam Hamilton

 

PS.: A melhor maneira de contatar comigo é neste endereço. Minha conta em Harvard está protegida por um firewall e não posso utilizá-la se não estiver no campus.

 

—        Merda, diz Marino. — Que puta merda.

 

Lucy recupera mais mensagens, abre várias delas, mensagens entre Joe e Jam, cada vez mais pessoais, agora românticas e ao final eróticas. As mensagens continuaram ao longo do período de práticas dela na Academia, até culminar numa que ele enviou em primeiro de julho, e que sugeria que tentasse colocar um pouco de criatividade em uma reconstituição programada para ser realizada na Granja de Corpos. Joe organizou tudo de maneira que a garota passasse pela sala dele para apanhar agulhas hipodérmicas ou «qualquer outra coisa que interessasse».

 

Lucy nunca viu a filmagem daquela desafortunada reconstituição. Nunca viu filmagens de nenhuma. Até agora, não interessavam.

 

—        Como se chama esse lugar? Pergunta já um pouco frenética.

—        A Granja de Corpos, responde Marino.

 

Encontra o vídeo e o coloca.

 

Vê os alunos caminhando ao redor do cadáver de um dos indivíduos mais obesos que Lucy viu em sua vida. Encontra-se no chão, completamente vestido com um traje barato de cor cinzenta, provavelmente o que estava vestindo quando faleceu por causa de um repentino infarto. Está começando a decompor-se. Tem o rosto invadido por vermes.

 

A câmera enfoca uma bonita jovem que rebusca no bolso da jaqueta do morto, se volta até a objetiva e afasta a mão com um grito... Porque acaba de se machucar com algo através da luva.

 

É Stevie.

 

Lucy tenta localizar Benton. Não responde. Tenta sua tia e tampouco consegue. Então liga para o Laboratório de Imagens Neuronais e a doutora Susan Lane atende ao telefone. Diz a Lucy que Benton e Scarpetta estão a ponto de chegar porque tem entrevista com um paciente, Basil Jenrette.

 

—        Vou enviar um vídeo, diz Lucy. — Há uns três anos você fez um escâner em uma jovem paciente de nome Helen Quincy. Queria saber se pode ser a mesma pessoa que aparece no vídeo.

—        Lucy, eu imagino que não devo fazer isso, por...

—        Eu sei, eu sei. Por favor. É muito importante.

 

BONG... BONG... BONG... BONG...

 

A doutora Lane tem Keny Jumper dentro do imã. Está na metade da varrida estrutural do sujeito e no laboratório reina o estrondo de costume.

 

—        Poderia entrar na base de dados? Pergunta a doutora Lane a seu ajudante de investigação. — Para descobrir se exploramos uma paciente de nome Helen Quincy, possivelmente há três anos. Josh, não pare, fala ao técnico. — Pode continuar sem mim um momento?

—        Tentarei, ele sorri.

 

Beth, a ajudante de investigação, digita em um computador situado ao fundo. Não demora muito em dar com Helen Quincy. A doutora Lane tem Lucy no telefone.

 

—        Tem uma foto? Pede Lucy.

 

WOP. WOP. WOP. WOP.

 

O ruído dos gradientes criando imagens lembra à doutora Lane o soar dos submarinos.

 

—        Só de seu cérebro. Não tiramos fotografias dos pacientes.

—        Viu o vídeo que acabei de enviar? Pode ser que se lembre de algo. Pela sua voz, Lucy parece frustrada.

 

TAP-TAP-TAP-TAP-TAP...

 

—        Não desligue. Entretanto não sei o que acha que eu posso fazer com isso, replica a doutora Lane.

—        Lembrar-se de quando esteve lá. Há três anos você trabalhava lá. Você a escaneou ou alguém. Por essa data também Johnny Swift era estudante, e pode ser que ele também a visse, que revisasse seu escâner.

 

A doutora Lane não está muito certa de haver entendido.

 

—        Talvez tenha sido você a explorá-la, insiste Lucy. — Pode ser que se lembre dela se olhar uma foto... A doutora Lane não se lembrará. Viu muitos pacientes, e três anos é muito tempo.

—        Não desligue, repete.

 

BAUN... BAUN... BAUN... BAUN...

 

Transfere-se a um terminal de computador e entra em sua correspondência eletrônica sem se sentar. Abre o arquivo do vídeo e reproduz várias vezes. Vê uma jovem bonita de cabelo ruivo escuro e olhos castanhos que levanta a vista do cadáver de um indivíduo enorme com o rosto cheio de vermes.

 

—        Deus santo, diz a doutora Lane.

 

A jovem bonita do vídeo volta a cabeça, diretamente até a câmera, e olha de frente para doutora Lane. Em seguida mete a mão no bolso da jaqueta cinzenta do morto. Ao chegar a esse ponto o vídeo interrompe, porém a doutora Lane o reproduz uma vez mais porque reparou em algo.

 

Olha além do plexiglás, onde se encontra Keny Jumper, cuja cabeça, que está no outro extremo do imã, apenas consegue ver. É um homem miúdo e delgado, com roupa folgada escura, botas que não são de seu número e um aspecto de vagabundo. Entretanto em troca possui um rosto de feições delicadas e está com o cabelo ruivo escuro amarrado. Tem os olhos escuros e a revelação que teve a doutora Lane aumenta de intensidade. Keny se parece tanto com a jovem do vídeo que poderiam ser irmãos, talvez gêmeos.

 

—        Josh, diz a doutora Lane. — Poderia fazer seu truque favorito com a opção SSD?

—        Com ele?

—        Sim. Agora mesmo, ordena a doutora — Beth, dê-lhe o CD do caso Helen Quincy. Agora mesmo.

 

Para Benton parece um pouco estranho que um táxi esteja estacionado em frente ao Laboratório de Imagens Neuronais. É um carro tipo SUV, azul, e não tem ninguém dentro. Quem sabe é o táxi que devia apanhar Keny Jumper na funerária Alfa e Ômega, porém por que está estacionado ali fora e onde está o taxista? Junto a ele se encontra a camioneta branca da prisão que trouxe Basil para sua entrevista das cinco. Não se encontra nada bem, diz que tem pensamentos suicidas e que quer deixar o estudo.

 

—        Temos investido muito nele, fala Benton a Scarpetta enquanto ambos se dirigem ao laboratório. — Não tens nem ideia do transtorno que causa quando estas pessoas abandonam. Sobretudo Basil. Maldito seja. Talvez você influa positivamente nele.

 

—        Não penso em fazer o menor comentário, ela responde.

 

Existem dois guardas diante da sala em que Benton vai falar com Basil para tentar convencê-lo a não abandonar o estudo PREDADOR, de que não se suicide. Essa sala faz parte do laboratório de IRM, é a mesma que Benton já utilizou em outras ocasiões para falar com Basil. Lembra a Scarpetta que os guardas não estão armados.

 

Ela e Benton entram na sala de interrogatórios. Basil está sentado à pequena mesa. Não está algemado, nem sequer com algemas de plástico. Scarpetta a cada dia gosta menos de PREDADOR, e é isso o que pensa, que não é possível que tal coisa funcione.

 

—        Apresento-o à doutora Scarpetta, fala Benton a Basil. — Faz parte da equipe de investigação. Importa-se que nos acompanhe?

—        Não, responde Basil. Os olhos de Basil dão voltas sem parar, inspiram um pouco de medo. Pousam em Scarpetta, inquietos.

—        Bem, me conte que aconteceu, diz Benton sentando.

—        Vocês dois estão juntos, diz Basil olhando para Scarpetta. — Não o reprovo, se dirige a Benton. — Tentei me afogar na latrina e, engraçado, os guardas nem sequer se deram conta. Sim, tem graça a coisa. Tem uma câmera que me espia o tempo todo e quando tento me matar ninguém vê.

 

Basil está vestido com jeans, sapatos esportivos e uma camisa branca. Não usa cinto, nem anéis e nem relógio. Não é como Scarpetta imaginava. Não é corpulento e sim pequeno e insignificante, de constituição miúda, cabelo ruivo e ralo. Não é que seja feio, mas simplesmente insignificante. Supõe que quando se aproximava de suas vítimas, estas provavelmente sentiam o mesmo que ela agora, pelo menos no princípio. A única coisa que se destaca nele são os olhos. Neste preciso momento tem uma expressão estranha e inquietante.

 

—        Posso fazer uma pergunta? Fala Basil.

—        Adiante. Não se mostra especialmente amável com ele.

—        Se tropeçasse com você na rua e dissesse que entrasse em meu carro ou do contrário lhe daria um tiro, o que você faria?

—        Deixaria que atirasse, responde Scarpetta. — Não entraria em seu carro. Basil olha para Benton e dispara com o dedo como se fosse uma pistola.

—        Bingo, diz. — Sabe aparar os goles. Que horas são? A sala não tem relógio.

—        Passam onze minutos das cinco, responde Benton. — Temos de conversar sobre porque tem vontade de se suicidar, Basil.

 

Dois minutos depois, a doutora Lane tem a visualização com sombreado da superfície de Helen Quincy no terminal do computador. E ao lado tem a visualização do sujeito normal, o que se encontra dentro do imã.

 

Keny Jumper.

 

Não faz nem um minuto que ele perguntou pelo intercomunicador as horas. E, em seguida, nem um minuto depois, começou a agitar-se e a se queixar.

 

BUONG-BUONG-BUONG...

 

É o que se ouve dentro do laboratório quando Josh faz rotar a cabeça de Keny Jumper, pálida, calva e sem olhos. A imagem se interrompe bruscamente justo em debaixo da mandíbula, como se o tivessem decapitado. Josh faz rotar a imagem um pouco mais no terminal, tentando reproduzir a posição exata da cabeça decapitada, calva e sem olhos de Helen Quincy que se vê em outro terminal.

 

—        Ah!

—        Parece que preciso sair, soa a voz de Keny pelo intercomunicador. — Que horas são?

—        Olhe... Diz Josh dirigindo-se à doutora Lane ao mesmo tempo em que gira um pouco mais a imagem, olhando alternativamente a um e outro terminal.

—        Tenho que sair daqui.

—        Um pouco mais nessa direção, está falando a doutora Lane olhando de um terminal à outro, comparando as duas cabeças pálidas, calvas e sem olhos.

—        Preciso sair!

—        Calma, diz a doutora Lane. — Deus meu.

—        Toma!

 

 

Basil se mostra cada vez mais inquieto e não deixa de olhar para a porta fechada. Pergunta uma vez mais que horas são.

 

—        Cinco e dezessete, responde Benton. — Tem de ir a alguma parte? Adiciona com ironia.

 

Aonde Basil vai? A sua cela não é. Tem sorte de estar aqui; não merece.

 

Nisto, Basil apanha um objeto da manga. Num primeiro momento Scarpetta não distingue de que se trata e não entende o que acontece, porém no instante seguinte Basil se levanta da cadeira, coloca-se ao lado da mesa em que ela está e põe algo ao redor do seu pescoço. Algo longo, branco e fino.

 

—        Se tentar qualquer coisa, apertarei! Ameaça Basil.

 

Scarpetta vê que Benton fica de pé e grita com Basil. Sente como bate o pulso. Então a porta se abre. Basil leva-a até o exterior. O pulso bate com força. Está com o objeto no seu pescoço. Benton grita. Também gritam os guardas.

 

Há três anos, no McLean, Helen Quincy foi diagnosticada como tendo um transtorno de identidade dissociativa. Podia ser que não tivesse quinze ou vinte personalidades diferentes e autônomas, mas só três ou quatro. Benton continua explicando que a desordem se deve ao fato de que a pessoa se afasta de sua personalidade primária.

 

—        É uma reação de adaptação a um trauma terrível, diz Benton enquanto ele e Scarpetta viajam de carro em direção oeste, até as Everglades. — Noventa e sete por cento das pessoas diagnosticadas sofreram abusos sexuais ou físicos, e as mulheres tem nove vezes mais possibilidades que os homens de sofrer deste transtorno.

 

O sol se reflete no para-brisa e Scarpetta aperta os olhos deslumbrada, apesar dos óculos de sol.

 

Diante deles está o helicóptero de Lucy, suspenso no ar por cima de uma horta de cítricos abandonada, mas que ainda é propriedade da família Quincy, concretamente do tio de Helen, Adger Quincy. O cancro atacou a horta há coisa de vinte anos e todas as árvores foram cortadas e queimadas. Desde então a propriedade ficou tal como estava, invadida pelo mato, com a casa em ruínas; uma inversão, um projeto de desurbanização. Adger Quincy ainda vive. É um homem miúdo, de aspeto físico pouco impressionante e sumamente religioso: «Um diabinho da Bíblia», como o chama Marino. «Existem pessoas que compram ou ganham uma Bíblia e a partir daí se dedicam a infernizar a vida alheia».

 

Adger nega que tenha acontecido algo fora do normal quando Helen tinha doze anos e foi morar com ele e sua esposa enquanto Florrie estava hospitalizada no McLean. De fato, afirma que foi bastante atento com aquela jovenzinha doida e incontrolável «Que precisava ser salva».

 

—        Eu fiz o que pude, tudo o que pude, disse, quando Marino gravou a conversa mantida com ele ontem.

—        Como ela soube da existência de seu velho horto e de sua casa? Foi uma das perguntas que formulou Marino.

 

Adger não se sentia inclinado a falar muito disso, porém disse que de vez em quando levava à pequena Helen ao velho horto abandonado para verificar as coisas.

 

—        Que coisas?

—        Para ter certeza de que não o haviam destruído ou algo assim.

—        O que havia ali que pudesse ser destruído? Quatro hectares de árvores queimadas e mato além de uma casa semidestruída?

—        Não há mau nenhum em verificar as coisas. E, além disso, me punha a rezar com ela. Falava-lhe do Senhor.

 

—        O fato de que falasse dessa forma, comenta agora Benton ao volante enquanto o helicóptero de Lucy parece descer flutuando igual a uma pluma, a ponto de aterrissar a bastante distância do horto abandonado que ainda pertence a Adger, — Indica que sabe que fez algo muito ruim.

—        É um monstro, diz Scarpetta.

—        Provavelmente nunca chegaremos a saber exatamente o que fizeram ele e outras pessoas com essa menina, comenta Benton com gesto deprimido e a mandíbula em tensão. Está irritado. Está muito chateado pelo que suspeita. — Entretanto uma coisa é evidente, continua. — As diferentes identidades de Helen, suas outras personalidades, foram sua reação adaptativa a um trauma insuportável que sofreu quando não tinha ninguém a quem recorrer, o mesmo que se vê em alguns sobreviventes de campos de concentração.

—        É um monstro, repete Scarpetta.

—        É um homem muito doente. E agora temos uma mulher muito doente.

—        Não deveria escapar.

—        Temo que já tenha conseguido.

—        Pois espero que apodreça no inferno, diz Scarpetta.

—        Provavelmente já mora nele.

—        Por que se empenha em defendê-lo? Scarpetta se volta até Benton e esfrega o pescoço com ar ausente.

 

Está dolorido. Ainda está sensível, e cada vez que toca lembra de que Basil o apertou com uma corda caseira de meia branca, obstruindo levemente os vasos que administram sangue, e portanto oxigênio, ao cérebro. Desmaiou. Agora está bem. Não seria assim se os guardas não tivessem pulado em cima de Basil com tanta rapidez.

 

Ele e Helen se encontram em custódia no Butler. Basil já não é o sujeito perfeito do estudo PREDADOR para Benton. Basil não visitará mais o hospital McLean.

 

—        Não o estou defendendo. Estou tentando explicar, responde Benton.

 

Vai freando para entrar em uma saída da Sul 27 que tem uma parada de caminhoneiros CITGO. Entra à direita por uma estrada sem asfaltar e para o carro. A estrada está bloqueada por uma corrente grossa e oxidada e se veem muitas marcas de pneus. Benton desce e desengancha a corrente, que cai para um lado fazendo um ruído metálico. Passa com o carro, para outra vez, desce e volta a enganchar a corrente tal como estava. A imprensa e os curiosos ainda não sabem o que aconteceu aqui. Não é que uma corrente oxidada vá espantar aos intrusos, porém não pode causar mal a ninguém.

 

—        Há quem diga que, uma vez que se viu um caso de personalidade dissociativa, viram-se todos, diz Benton. — Eu discordo. Tratar-se de um transtorno tão incrivelmente complicado e raro, com sintomas notavelmente constantes. Produz-se uma transformação espetacular quando uma personalidade dá passagem à outra, a outra conduta dominante, determinante. Mudanças faciais, mudanças na postura, na maneira de andar, nos gestos, inclusive alterações chamativas no timbre de voz, no tom, na fala. É uma desordem a miúdo associada com a possessão demoníaca.

—        Você acredita que as outras personalidades de Helen, Jam, Stevie, a pessoa que fingiu ser um fiscal de cítricos, matando as pessoas a tiros e Deus sabe o que mais, se conhecem entre si?

—        Quando esteve no McLean, negou ter personalidade múltipla, inclusive quando vários membros importantes do pessoal testemunharam várias vezes de como se transformava em outras personalidades diante deles. Sofria alucinações auditivas e visuais. Em algumas ocasiões uma personalidade falou com a outra diante do médico. E depois voltava a ser de novo Helen Quincy, sentada em sua cadeira em atitude afável e cortês, agindo como se o louco fosse o psiquiatra por acreditar que ela tinha personalidade múltipla.

—        Me pergunto se alguma vez Helen voltará a emergir, diz Scarpetta.

—        Quando Basil e Helen mataram a mãe dela, mudou sua identidade para Jam Hamilton. Isto foi uma manobra prática, não uma personalidade alternativa, Kay. Não se imagina Jam como uma personalidade, se entende o que estou falando. Não era mais do que uma identidade falsa atrás da qual se escondiam Helen, Stevie, Porco e quem sabe a quem mais.

 

Avançam dando pulos pela estrada sem asfaltar, levantando uma nuvem de pó. Ao longe se vê uma casa em ruínas, rodeada de mato.

 

—        Acho que, falando em sentido figurado, Helen Quincy deixou de existir aos doze anos, diz Scarpetta.

 

O helicóptero de Lucy aterrissou em uma pequena clareira e as pás continuam girando enquanto ela desliga o motor. Estacionados próximas da casa estão uma camionete de um serviço de mudanças, três carros patrulha com distintivos, dos SUV, da Academia e o Ford LTD de Reba.

 

 

O Complexo Turístico Brisa Marinha se encontra demasiado dentro da terra para que chegue a ele a brisa do mar e não é um complexo turístico. Nem sequer tem piscina. Segundo o indivíduo do balcão do escritório de recepção, que tem um ruidoso condicionador de ar e é enfeitado com várias peças de plástico, os hóspedes de longa estadia obtém descontos especiais.

 

Afirma que Jam Hamilton tinha horários loucos, desaparecia durante vários dias, sobretudo ultimamente, e às vezes se vestia de forma muito estranha. Poderia ser do mais sensual e de repente aparecia vestida com andrajos. «Meu lema? Viva e deixe viver», disse o tipo quando Marino seguiu a pista de Jam até este lugar.

 

Não foi difícil. Depois de sair do imã, quando os guardas imobilizaram Basil no chão e tudo tivesse terminado, se acocorou em um canto e começou a chorar. Já não era Keny Jumper, jamais havia escutado falar dele, negou ter a menor ideia do que falava todo o mundo, incluído o fato de conhecer Basil, incluído o motivo pelo que estava no chão do laboratório de IRM do hospital McLean em Belmont, Massachusetts. Foi muito educada e colaboradora com Benton, deu seu endereço, disse que trabalhava de garçonete a meia jornada em South Beach, em um restaurante chamado Rumores, propriedade de um homem encantador chamado Laurel Swift.

 

Marino se põe de cócoras diante do armário aberto, sem porta. Não existe mais do que uma prateleira para colocar a roupa. No velho armário encontram-se montes de roupas cuidadosamente dobradas. As examina com as luvas colocadas. Pisca os olhos pelo suor, porque o aparelho de ar condicionado não funciona bem.

 

—        Um casaco negro com capuz, fala com Gus, um dos agentes de Operações Especiais de Lucy. — Me é familiar.

 

Entrega o casaco a Gus, que o mete em uma bolsa de papel marrom e em seguida anota a data, o artigo e o lugar onde foi encontrado. A estas alturas já tem dezenas de bolsas de papel marrom, todas fechadas com fita adesiva que as identificam como amostras. Ocupam todo o quarto de Jam.

 

Suas grandes mãos suadas examinam mais roupas, a roupa folgada de homem, um par de botas com os saltos gastos, um boné dos Miami Dolphins, uma pólo branco com os dizeres «Departamento de Agricultura» nas costas, sem mais, não Departamento de Agricultura e Serviço ao Consumidor da Flórida, e sim só Departamento de Agricultura, com letras feitas à mão com a ajuda de algum molde.

 

—        Como pôde não se dar conta de que na realidade era uma garota? Pergunta Gus enquanto fecha outra bolsa.

—        Você não estava lá.

—        Terei que confiar em você, diz Gus estendendo a mão, esperando o objeto seguinte, um par de meias negras.

 

Gus está armado e vestido com um macacão de trabalho, porque assim é como se vestem sempre os agentes de Operações Especiais de Lucy, ainda que não seja necessário, e hoje, com trinta graus na rua e estando o suspeito, uma rapariga de vinte anos, bem a salvo em um hospital estatal de Massachusetts, provavelmente não seria necessário mandar quatro agentes de Operações Especiais ao Complexo Turístico Brisa Marinha. Entretanto Lucy quis assim e assim fizeram seus agentes. Por mais detalhada que tenha sido a explicação de Marino sobre o que Benton falou das diferentes personalidades, o álter ego, como as chama ele, os agentes não acreditaram que não existissem outras pessoas perigosas rondando por ali, e, além disso, é possível que Helen tenha cúmplices (como Basil, apontam) reais. 

 

Dois dos homens examinam um computador situado em uma mesa junto a uma janela que dá para o estacionamento. Encontram também um escâner, uma impressora a cores, vários embrulhos de papel acetinado e meia dezena de revistas de pesca.

 

As madeiras da porta dianteira estão caídas, algumas delas já podres, outras desapareceram e ficou ao descoberto o chão arenoso sobre o qual se eleva a casa de madeira, de um só andar e com a pintura descascada. O lugar não fica muito longe dos Everglades.

 

Reina o silêncio, quebrado apenas pelo som do trânsito longínquo que lembra o vento e pelo barulho das pás. O ar está infestado pelo cheiro da morte que no calor da tarde parece flutuar suavemente em ondas mais penetrantes conforme vai se aproximando das fossas. Os agentes, a polícia e os técnicos já encontraram quatro. A julgar pelo terreno e pelas marcas no chão, haverá mais. 

 

Scarpetta e Benton se encontram no vestíbulo do outro lado da porta dianteira, onde descobrem em um aquário uma grande aranha morta, encolhida sobre uma pedra. Apoiada contra a parede está uma escopeta Mossberg de calibre doze e cinco caixas de cartuchos. Scarpetta e Benton observam como dois homens, suando dentro de seus trajes e usando luvas de nitrilo azuis empurram uma maca que transporta os restos inchados de Ev Christian. Ao chegar à porta aberta de par em par, se detém um momento.

 

—        Quando a deixarem no depósito, diz Scarpetta, — Voltem imediatamente.

—        Já imaginávamos. Acho que é o pior que vi em minha vida, fala um dos homens.

—        Não é feito para este trabalho, diz o outro.

 

Em seguida suspendem os pés da maca com um sonoro barulho e levam Ev Christian para a camionete azul marino.

 

—        Como isto vai terminar nos tribunais? Pergunta um dos ajudantes desde o pé das escadas. — Quero dizer, se esta mulher se suicidou, como se pode acusar alguém de seu assassinato?

 

Os homens discutem um instante, e continuam. Scarpetta vê que nesse momento aparece Lucy por trás da casa. Está com roupa protetora e óculos escuros, porém retirou o capacete e as luvas. Vai correndo até o helicóptero, o mesmo em que ficou o Treo não muito depois de que Joe Amos iniciasse como estagiário.

 

—        Na realidade, não se pode afirmar que ela não é a autora desta morte, comenta Scarpetta com Benton abrindo uns embrulhos de roupa protetora descartável, um para ela e outro para ele. Está se se referindo a Helen Quincy.

—        E tampouco se pode afirmar que é. Tem razão. Benton observa a maca e sua triste carga enquanto os ajudantes arriam os pés da maca de alumínio para ter as mãos livres e poder abrir a parte posterior da camionete. — Um suicídio que é um homicídio e um criminoso que sofre de personalidade múltipla. O promotor vai ter trabalho.

 

A maca bamboleia sobre o chão arenoso e asfixiado pelo mato, e Scarpetta teme que vá cair. Já aconteceu outras vezes de um cadáver inchado cair até ao chão; é muito inconveniente, muito pouco respeitoso. A cada momento que passa fica mais nervosa.

 

—        Provavelmente a autópsia revelará que foi uma morte por enforcamento, diz, contemplando a tarde luminosa e quente e a atividade que a rodeia, observando como Lucy apanha algo na parte posterior do helicóptero.

 

O mesmo helicóptero em que ficou esquecido o Treo, um acontecimento que em muitos sentidos foi o início e conduziu todo o mundo até este sinistro buraco, esta fossa empesteada.

 

—        Certamente essa será na aparência a única causa da morte, está falando Scarpetta. — O resto é outra história.

 

O demais é a dor e o sofrimento de Ev, seu corpo nu, atado com cordas a uma viga do teto, uma delas ao redor de seu pescoço, coberta de picadas de insetos, com os pulsos e os tornozelos invadidos por fulminantes infeções. Quando Scarpetta apalpou a cabeça, notou fragmentos de ossos quebrados, o rosto machucado, o couro cabeludo lacerado, contusões por todo o corpo, áreas avermelhadas por abrasões produzidas no momento da morte ou muito próxima dela. Scarpetta suspeita que Jam, ou Stevie, ou Porco, ou quem quer que fosse quando torturou Ev nesta casa, pisou com fúria e repetidamente o corpo de Ev ao descobrir que esta havia se enforcado. Na parte baixa das costas, no ventre e nas nádegas se observam ligeiras marcas em forma sola de sapato ou de bota.

 

Nesse momento aparece Reba por um lado da casa e sobe as escadas podres da entrada olhando com cuidado onde pisa. Está toda de branco com sua roupa protetora. Afasta a máscara do rosto. Traz uma bolsa de papel marrom cuidadosamente dobrada pela parte de cima.

 

—        Encontramos várias bolsas de lixo, de plástico negro, diz. — Em uma tumba, a pouca profundidade. E dentro um par de adornos de Natal. Estão quebrados, porém parece que é um Snoopy com gorro de Papai Noel e o outro talvez Chapeuzinho Vermelho.

—        Quantos cadáveres nós já encontramos? Pergunta Benton, que adotou sua atitude habitual.

 

Quando tem a morte no semblante, inclusive a morte mais vil de todas, não se imuta. Mostra-se calmo e racional, quase impassível, como se Snoopy e Chapeuzinho Vermelho fossem simplesmente mais informação para arquivar.

 

É possível que se mostre racional, porém não está calmo. Scarpetta viu como ficou no carro há apenas umas horas, e também mais recentemente, na casa, quando começaram a compreender com muita mais clareza a natureza do crime original, o que foi cometido quando Helen Quincy tinha apenas doze anos. Na cozinha, uma geladeira oxidada está cheia de barras de chocolate, refrescos de laranja e de uva e uma caixinha de leite com cacau, tudo vencido há oito anos, quando Helen tinha doze anos e a obrigaram a morar com seus tios. Também dezenas de revistas pornográficas desta mesma época, o que sugere que o devoto e religioso professor de catequese Adger certamente não trouxe aqui a sua jovem sobrinha em uma única ocasião e sim com certa frequência.

 

—        Bem, encontramos as crianças, está falando Reba movendo a máscara apoiada no queixo ao falar. — A mim me parece que estão as cabeças destroçadas. Entretanto esse não é o meu departamento, fala a Scarpetta. — Também apareceram uns restos misturados. Parecem estar nus, porém também encontramos roupas, não sobre os cadáveres e sim na fossa, como se tivessem jogado as vítimas dentro e depois tivessem se limitado a jogar também a roupa que usavam.

—        É evidente que matou mais pessoas do que sabemos, diz Benton enquanto Reba abre a bolsa de papel. — Umas, deixou ao ar livre e a outras, enterrou.

 

Reba aproxima a bolsa aberta para que Scarpetta e Benton vejam o tubo de imersão e o tênis rosa, infantil, que contém.

 

—        Faz jogo com o que havia sobre o colchão, informa Reba. — Esta estava em um buraco onde imaginamos que íamos encontrar mais cadáveres. Entretanto não encontramos nada mais do que isto. Indica o tubo e o tênis rosa. — Lucy o encontrou.  Eu não tinha ideia.

—        Eu sim, responde Scarpetta apanhando o tubo e o tênis com as mãos suadas, imaginando a pequena Helen enfiada neste buraco enquanto jogavam terra em cima e com o tubo de imersão como único meio para respirar, quando a torturava seu tio. — Meter as crianças em baús, prendê-los em sótãos, enterrá-los sem outra coisa a não ser um tubo que chega até a superfície, diz Scarpetta a Reba, que a olha fixamente.

—        Não estranho que Helen tenha personalidade múltipla, comenta Benton, já não tão estoico. — O grandessíssimo filho da puta.

 

Reba dá a volta para olhar a outra parte e engole saliva. Consegue se dominar e começa a dobrar de novo a bolsa de papel, com movimentos lentos e esmerados.

 

—        Enfim, diz por fim, aclarando a garganta. — Temos bebidas geladas. Não tocamos em nada. Tampouco abrimos as bolsas de lixo que estão dentro da fossa com o desenho em forma de Snoopy, porém a julgar pelo odor e pelo tato, contêm restos humanos. Uma das bolsas tem um rasgo pelo qual se vê algo que parece cabelo vermelho mate, cor de hena. Um braço e uma manga. Acho que esse cadáver está vestido, os demais com certeza não. Temos Coca-Cola light, Gatorade e água. Estou recolhendo pedidos. Ou se quiserem alguma outra coisa, poderíamos enviar alguém para. Olha em volta. — Bem, talvez não.

 

Volta-se até a parte posterior da casa, para as fossas. Continua engolindo saliva e piscando. Treme-lhe o lábio inferior.

 

—        Não creio que algum de nós esteja muito apresentável neste momento, adiciona, aclarando de novo a garganta. — Não podemos entrar em um Seven Elevem cheirando assim. Não sei como... Se isto foi o que fez esse tipo, devíamos prendê-lo. Deveriam fazer nele o mesmo que fez nessa mulher! Enterrá-lo vivo e não deixar nenhum tubo para que respire! Cortar-lhe as putas bolas!

—        Vamos nos vestir, fala Scarpetta em voz baixa a Benton. Apanham os trajes descartáveis e começam a colocá-los.

—        Não temos maneira de provar, diz Reba. — Nenhuma maneira.

—        Não esteja tão certa disso, responde Scarpetta estendendo a Benton protetores para os sapatos. — Esse tipo deixou muitas coisas ali dentro, em nenhum momento pensou que nós fossemos encontrar.

 

Cobrem o cabelo com os gorros e, em seguida, descem os degraus, põem os luvas e protegem o rosto com as máscaras.

 

                                                                                            Patricia Cornwell  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades