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Setembro, 2005
Todas as paisagens guardam seus próprios segredos. Por trás de uma sobreposição de camadas, o passado se esconde sob a superfície. Raramente irrecuperável, ele espreita, aguardando que o homem ou um acidente meteorológico puxe, com força, o esqueleto, rompendo a carne, de volta ao presente. Assim como os pobres, o passado está sempre entre nós.
Naquele verão, choveu como se a Inglaterra tivesse migrado para os trópicos. A água desabou em torrentes, arruinando gloriosos jardins, transformando prados em pântanos onde o gado atolava, com lama pelos jarretes. Os rios extravasaram suas margens, as águas libertas, buscando se nivelar, demoliram tudo o que encontraram de vulnerável pela frente. Nas ruas alagadas de uma cidadezinha outrora pitoresca, os carros eram varridos como se fossem de brinquedo, depositados na enseada, engasgada num caos de metal destroçado. Deslizamentos de terra atolavam os carros na lama e os fazendeiros lamentavam suas colheitas perdidas.
Nenhuma parte do país ficou imune à torrente de chuva aguilhoante. Tanto a cidade quanto o campo pelejaram sob o peso da água. Em Lake District, o aguaceiro cobriu montanhas e vales, alterando sutilmente os contornos de uma paisagem secular. O nível da água atingiu uma altura recorde para o verão; o único benefício aparente foi o sol, que, ao emitir seu brilho ocasional, revelou um verde ainda mais exuberante que o de costume.
Sobre a aldeia de Fellhead, às margens do Langmere, antigas fossas de turfa ganharam novas formas esculpidas pelo ataque violento da chuva. E, com a chegada do outono, gradualmente a terra foi revelando um dos seus mais bem guardados segredos.
De longe, via-se como uma lona retorcida, manchada de marrom pela água lodosa do charco. À primeira vista, parecia insignificante, apenas mais um lixo descartado que se arrastara até a superfície. Mas, vista de perto, revelou ser algo muito mais atemorizante. Algo que ultrapassara os séculos para trazer mudanças ainda mais profundas em seu rastro do que as climáticas.
Meu querido filho,
Espero que você e as crianças estejam bem de saúde. Hoje encontrei algo perturbador entre os escritos de seu pai. Creio que você vai se surpreender ao saber que, a despeito da íntima cumplicidade que compartilhávamos, eu desconhecia o assunto enquanto ele ainda era vivo, e desejava, de coração, ter permanecido nesse estado de ignorância. Você logo vai compreender a necessidade de sigilo que afligiu seu pai em vida, e ele não me deixou nenhuma instrução sobre o que devo fazer com isso.
Uma vez que lhe diz respeito, e pode dar ensejo a mais sofrimento, gostaria de deixar a decisão a seu encargo. Enviarei o material por um mensageiro de confiança.
Faça o que julgar mais correto.
Sua saudosa Mãe
1
Naquele verão as chuvas Ofuscaram o meu peito.
Água caindo do céu Rompendo em estilhaços Escorrendo pelo telhado corrugado De melancólicas estações de trem.
E eu sentada à espera. Pés submersos em poças. Cabelo estrelado de pingos.
Você, alhures
Banhado pelo sol da Grécia Distante,
Impermeável.
Jane Gresham contemplou o que havia escrito e então, com um rabisco impaciente, deslizou a caneta pelo papel, riscando-o com tanta violência que ele se rasgou. Maldito
Jake, pensou, irritada. Era uma mulher adulta, não uma adolescente perdida de amor. Divagações poéticas de quinta categoria eram algo que já devia ter abandonado
há muitos anos. Antes mesmo de se graduar, já possuía uma boa dose de discernimento para saber que jamais seria poeta. Tinha talento para estudar a poesia dos outros,
interpretar suas obras, explorar vínculos temáticos em seus versos e expor sua complexidade para aqueles que, assim esperava, estavam alguns passos atrás dela nesse
processo.
- Maldito, maldito Jake - disse ela em voz alta, amassando com raiva o papel e atirando-o na lixeira. Ele não valia aquele desgaste de energia intelectual.
Nem o familiar aperto no peito que sentia sempre que pensava nele.
Aflita para tirar Jake da cabeça, Jane recorreu à pilha de CDs ao lado da escrivaninha do pardieiro que o conselho classificava como quarto e que ela, consciente
de sua presunção, chamava de gabinete. Vasculhou os títulos, começando de baixo para cima, buscando algo que não guardava nenhuma lembrança do seu... O que ele era,
afinal? Seu ex? Seu antigo amor? Seu namorado "suspenso"? Quem poderia dizer? Ela certamente não podia. E duvidava muito que ele parasse um minuto para pensar nela,
à medida que as semanas avançavam. Resmungando baixinho, apanhou o CD Murder Ballads, de Nick Cave, e o colocou na entrada para CDs do seu computador. O rosnar sombrio
da voz do cantor assentava tão perfeitamente com o seu estado de espírito que se tornou um antídoto paradoxal. Jane percebeu que, mesmo sem querer, estava quase
sorrindo.
Apanhou o livro que estava tentando estudar antes de a lembrança de Jake Hartnell invadir os seus pensamentos. Mas logo percebeu que divagava novamente. Irritada
consigo mesma, fechou o livro com raiva. As cartas de Wordsworth de 1807 teriam de esperar.
Antes que pudesse decidir o que faria em seguida, o alarme do seu celular tocou. Jane fez uma careta, conferindo a hora exibida em seu telefone com a do relógio
de pulso.
- Ô inferno - bufou. Como já podia ser 11:30? Que fim tinha levado a manhã? - Maldito Jake - repetiu, levantando-se depressa e desligando o computador. Todo
aquele tempo perdido sonhando acordada com ele, quando havia sonhos melhores para se deleitar. Apanhou a bolsa e dirigiu-se ao quarto contíguo. Oficialmente, era
a sala de estar, embora Jane o usasse como quarto e sala, preferindo ter um espaço separado para trabalhar. O que tornava o resto da sua vida muito mais amontoado,
mas lhe parecia um preço pequeno a pagar pelo luxo de ter um espaço para espalhar seus livros e papéis sem precisar removê-los do lugar sempre que quisesse comer
ou dormir.
O quartinho mal podia acomodar a sua existência espartana. Seu sofá-cama, embora dobrado, dominava o espaço. Na parede oposta, havia uma mesa, três cadeiras de madeira
enfiadas sob ela. Um pequeno aparelho de
tevê estava encaixado em um suporte, no alto da parede, e havia também uma poltrona molenga no canto. Mas o quarto era agradável, com sua pintura verde-clara suave
e luminosa. A parede oposta ao sofá estava decorada com uma série de fotografias digitais coloridas de Lake District, ampliadas em tamanho A3 e laminadas. No meio
da paisagem, a Fazenda Gresham, onde a família de Jane ganhava a vida com bastante dificuldade havia muitos e muitos anos. A despeito do que havia do lado de fora
das janelas, Jane podia acordar todos os dias contemplando o mundo onde crescera, um mundo do qual sentia falta a cada dia na cidade.
Tirou a calça de moletom e o casaco de lã felpuda, trocando-os por um jeans preto justo e uma blusa preta decotada que acentuava seus seios generosos. Não era exatamente
como gostava de se vestir, mas aprendera que valorizar seus atributos rendia melhores gorjetas dos clientes. Por sorte sua pele morena não a fazia parecer fúnebre
de preto, e Harry, seu colega de trabalho, lhe garantira que não ficava gorda, como se sentia com uma blusa tão colada. Conferiu o tempo pela janela e apanhou seu
casaco impermeável do cabide, vestindo-o enquanto saía apressada pela porta da frente. Pouco importava se não parecia nada chique; com um temporal daqueles, estava
mais preocupada em chegar ao trabalho seca e aquecida.
Jane lançou seu costumeiro último olhar para a paisagem da Região dos Lagos antes de mergulhar em um universo completamente diferente. Duvidava muito que alguém
em Fellhead fosse capaz de sonhar com o ambiente em que ela vivia - nem mesmo em seus piores pesadelos. Quando dissera à mãe que havia conseguido um apartamento
mais barato, pago pelo governo, no Marshpool Farm Estate, o rosto de Judy Gresham se iluminara. "Que maravilha, meu bem", dissera ela. "Eu não sabia que havia fazendas
em Londres." Jane balançara a cabeça, achando graça. "Há milhares de anos não existe uma fazenda por lá, mãe. É só um prédio do governo da década de 60. Cercado
de concreto por todos os lados."
Sua mãe ficara visivelmente decepcionada. "Bem, pelo menos você tem um teto para morar."
E não tocaram mais no assunto. Jane conhecia a mãe o bastante para saber que ela não ia gostar de conhecer a verdade - que as qualificações de
Jane eram tão insignificantes que o único tipo de acomodação que o governo pudera lhe oferecer era exatamente o pardieiro onde fora parar. Um buraco difícil de alugar
em um edifício caindo aos pedaços onde quase ninguém tinha um emprego decente, onde crianças corriam desvairadas noite e dia e onde havia mais preservativos usados
e agulhas hipodérmicas no chão do que grama. Não, Judy Gresham definitivamente não gostaria de imaginar a filha morando num lugar desses. Dentre outros motivos,
iria prejudicar bastante a sua capacidade de alardear como a sua Jane era bem-sucedida.
Mas contou ao seu irmão Matthew. Qualquer coisa para atenuar o ressentimento que ele nutria por ela ter se mandado, enquanto ele - em suas próprias palavras - ficara
apodrecendo naquele fim de mundo, porque um dos dois precisava ficar com os pais. Pouco importava que ele tivesse sido o primeiro a deixar o ninho para ir à universidade
e que tivesse escolhido voltar para o emprego que sempre quisera. Matthew, Jane chegara à conclusão, já nascera melindrado.
A grande ironia era que Jane teria trocado Londres por Fellhead num piscar de olhos, se houvesse a mínima possibilidade de trabalhar no que gostava lá. Mas não havia
trabalho para acadêmicos na região, nem mesmo para uma especialista em Wordsworth como ela. A não ser que estivesse disposta a trocar rigor intelectual e pesquisas
por dar aula para crianças sobre os poetas da Região dos Lagos, o que na certa esgotaria sua paixão pela literatura. Por isso, via-se presa no pior tipo de inferno
urbano. Jane encolheu o queixo contra o peito enquanto atravessava a galeria do edifício, até as escadas. Pelo que só podia julgar como sendo um capricho cruel do
arquiteto, o seu bloco havia sido construído de modo que o vento dominante se afunilava pelos corredores abaixo, transformando até mesmo uma amena brisa de verão
em algo ruidoso e desconfortável. Em um dia chuvoso de outono, carregava a chuva para cada canto e fresta do edifício, assim como para as roupas de qualquer morador
que se aventurasse a sair de seu apartamento.
Jane alcançou as escadas e parou para tomar coragem. Nem adiantava tentar o elevador. Ignorando os rabiscos ortograficamente incorretos, o lixo repugnante que se
acumulava nos cantos e o fedor de coisas podres e urina, ela começou a descê-la. Mal terminou o primeiro lance, sentiu o estômago
revirar. Era uma visão tão habitual que já deveria ter se acostumado a ela, mas todas as vezes que deparava com a pequena figura empoleirada precariamente na posição
de lótus sobre o estreito corrimão de concreto, os joelhos de Jane tremiam.
- E aí, Jane? - disse a menina, baixinho.
- Oi, Tenille - respondeu Jane, esforçando-se para sorrir, apesar de estar tensa.
Com o que parecia ser uma tranqüilidade que zombava da morte, Tenille descruzou as pernas e desceu no chão molhado, ao lado de Jane.
- Qual é a boa? - perguntou a menina de 13 anos, pondo-se a caminhar com ela.
- A boa é que eu vou me atrasar para o trabalho se não me apressar - respondeu Jane, deixando a gravidade lhe dar impulso e descendo as escadas mais depressa.
Tenille a acompanhava, o cabelo comprido em dreads balançando em seus ombros estreitos.
- Tamos aê - disse Tenille, tentando parecer confiante em uma paródia patética dos metidos a gângster que perambulavam pelos decadentes corredores do prédio,
aprendendo a fazer negócios com seus irmãos mais velhos, primos ou qualquer um que conseguisse ficar longe da cadeia tempo suficiente para ensiná-los.
- Odeio parecer uma chata medieval da classe média, Tenille, mas você não deveria estar na escola? - Era uma pergunta costumeira e Jane, mentalmente, já previa
a resposta.
- Os professores não têm nada pra me ensinar - respondeu Tenille, mecanicamente, aumentando o passo para alcançar Jane, já na rua. - O que eles sabem sobre
a minha vida?
Jane suspirou:
- Estou cansada de ouvir sempre a mesma desculpa, Tenille. Você é esperta demais para se conformar com a vidinha de merda que pode ter se não correr atrás
de uma educação decente.
Tenille enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta justa de couro falso e ergueu os ombros, na defensiva.
- Ih, num fode - respondeu ela. - Eu é que não vou embarrigar de um babaca qualquer. Nada de bebê pro bebê aqui.
Cortaram caminho por uma passagem sob o bloco de edifícios e saíram direto em uma faixa da rodovia de duas pistas, onde os carros passavam voando, os motoristas
satisfeitos por finalmente poderem sair da segunda marcha, pneus sibilando no asfalto molhado.
- A única maneira de evitar isso é botando juízo nessa cabeça - disse Jane, ríspida, afastando-se na calçada para se proteger das borrifadas de água que os
carros em movimento provocavam.
- Quero ser como você, Jane. - Era uma lamúria que Jane já ouvira de Tenille incontáveis vezes.
- Então, vá para a escola - respondeu ela, tentando disfarçar sua impaciência.
- Eu não suporto aquelas coisas inúteis que eles nos obrigam a fazer
- justificou ela, torcendo os lábios em uma careta que transformava sua beleza despudorada em uma máscara de deboche. - Não tem nada a ver com o que você
me dá pra ler. - A sua fala havia mudado de dialeto de rua para inglês padrão, como se o simples ato de transpor os limites do prédio permitisse que abandonasse
um personagem e voltasse a ser uma pessoa normal.
- Eu sei que não. Mas eu não cheguei ainda aonde quero chegar, você sabe. Trabalhar meio expediente em bares e escolas enquanto termino o meu livro, pra ver
se arrumo um emprego decente, está bem longe do que eu imaginava quando comecei. Mas, até para chegar aqui, eu tive que passar por essa chatice toda. E, eu admito,
a maior parte é pura chatice mesmo
- acrescentou ela, ao ver que Tenille estava prestes a fazer algum protesto. Gostaria de poder oferecer algo mais do que chavões, mas não sabia o que dizer
a uma órfã mestiça de 13 anos que não só adorava, como parecia compreender o significado das obras de Wordsworth, Coleridge, Shelley e De Quincey com uma facilidade
que a própria Jane levara uma década e muito estudo para adquirir.
Tenille deu um passo para o lado para desviar-se de um carrinho com um bebê de rosto rechonchudo, com as bochechas sujas de chocolate e uma chupeta enfiada na boca,
como se para impedi-lo de desinflar. A mãe que empurrava o carrinho não aparentava ser muito mais velha do que Tenille.
- Eu não vou terminar assim, Jane - disse ela, melancólica. - Talvez eu possa usar a poesia para outra coisa. Ser uma cantora de rap, como Miss Dinamite -
acrescentou, sem muita convicção.
Ambas sabiam que era pouco provável. A não ser que alguém inventasse uma droga de auto-estima que Jane pudesse injetar nas veias de Tenille antes da heroína que
parecia deixar metade do edifício sedado. Jane parou no ponto de ônibus, virando-se para a menina.
- Ninguém pode roubar as palavras da sua cabeça - disse ela.
Tenille pôs uma unha roída na boca e fitou o chão.
- Você acha que eu não sei disso? - respondeu ela, quase gritando. - Como é que você acha que eu sobrevivo, porra? - Súbito, girou nos calcanhares e partiu,
saltitando pela calçada como uma gazela, os membros esguios surpreendentemente elegantes em movimento. Desapareceu dentro de um beco e Jane experimentou a familiar
mistura de afeto e frustração - que permaneceu com ela durante o trajeto de dez minutos no ônibus, e ainda a incomodava quando empurrou a porta do bar.
Cinco minutos antes do meio-dia, o Viking Bar e Grill parecia oco de tão vazio. A madeira clara, os acabamentos cromados e os espelhos ainda reluziam sob as lâmpadas
de halogênio, sinal de que ninguém havia estado ali desde que a faxineira encerrara seu turno. Harry pôs a trilha de Michael Nyman do filme Fim de Caso no aparelho
de CD e as cordas pareciam tremeluzir visivelmente no ar parado. Em vinte minutos, o Viking sofreria uma transformação, à medida que as crias da cidade invadissem
o bar, desesperadas para se entupir de comida e bebida em suas curtas pausas para o almoço. O ambiente ficaria lotado de vozes, calor humano e fumaça e Jane não
teria um segundo para pensar em outra coisa senão nos corpos espremidos contra o balcão.
Mas, por enquanto, estava tudo tranqüilo. Harry Lambton estava sentado diante do balcão do bar, apoiado nos cotovelos, folheando o jornal. A luz batia sobre a auréola
arrepiada do seu cabelo claro e curto, transformando-o num santo pós-modemo. Ao ouvir o rumor dos passos de Jane no chão de madeira, ele levantou a cabeça e deu
um tchau com a mão, um sorriso iluminando o seu rosto fino e anguloso.
- Ainda está chovendo? - perguntou.
- Ainda. - Jane inclinou-se, estalando um beijo na bochecha de Harry ao passar por ele, a caminho do cubículo onde os funcionários penduravam seus casacos.
- Todo mundo já chegou? - perguntou, de volta ao balcão
do bar, juntando seu cabelo encaracolado em um rabo-de-cavalo e prendendo-o com um elástico.
Harry fez um gesto afirmativo com a cabeça. Que alívio, pensou Jane, passando pelas costas musculosas de Harry e conferindo se tudo estava em ordem, para que seu
turno corresse da maneira mais tranqüila possível. Conseguira esse emprego porque Dan, o namorado de Harry, era seu amigo e colega de faculdade, mas não queria ninguém
a acusando de ter se prevalecido de sua amizade. E, além do mais, Harry dizia que ser gerente de bar era apenas um quebra-galho temporário. Um belo dia, ele podia
decidir o que fazer da vida e Jane não queria dar nenhum pretexto para que seus colegas a tachassem de preguiçosa e incompetente para um novo chefe. O trabalho no
Viking era puxado, exaustivo e mal pago, mas ela precisava dele.
- Finalmente arrumei um título - disse ela, amarrando o avental branco comprido em volta da cintura. - Para o livro. - Harry meneou a cabeça, com uma expressão
de curiosidade. - O poeta laureado da manipulação: política, poética e simulacro na obra de William Wordsworth. O que você acha?
Harry franziu a testa, pensando.
- Gostei - disse ele. - Faz o velho chato parecer até meio interessante.
- Interessante é bom, vende livros.
Harry assentiu com a cabeça, virando uma página do jornal e inspecionando-a en passant. Então, seus olhos azuis se estreitaram e vincos surgiram em sua testa.
- Ei, você não é de Fellhead?
Jane virou-se, com um vidro de azeitonas na mão.
- Sou. Não me diga que alguém por lá finalmente fez algo digno de ir parar no jornal?
Harry suspendeu as sobrancelhas.
- Eles encontraram um corpo.
Lembrei-me esta noite do período que passamos em Alfoxden e da suspeita que recaiu sobre mim e Coleridge, de que seríamos agentes do inimigo, reunindo informações
como espiões a serviço de Bonaparte. Lembro-me de Coleridge afirmando que dar crédito à idéia de que poetas se prestavam a tal tarefa ultrapassava os limites do
bom senso, já que vemos tudo à nossa volta como matéria para versos e não teríamos o menor talento para guardar segredos que poderiam servir à nossa vocação. Nesse
importante quesito, ele estava correto, pois os acontecimentos de hoje já borbulham em mim, buscando uma expressão em versos. Mas, no que diz respeito à suprema
questão de guardarmos segredo, espero que ele esteja enganado, pois o encontro que tive dentro dos protegidos limites do nosso jardim já depositou um pesado fardo
sobre os meus ombros, fardo esse que pode recair brutalmente sobre mim e minha família. A princípio, pensei que estivesse sonhando, pois não creio nas manifestações
fantasmagóricas dos mortos. Mas não era nenhuma aparição. Era um homem, de carne e osso, um homem que julguei jamais voltar a encontrar.
2
Matthew Gresham tomou seu último gole de café e largou a xícara na pia. Os membros do corpo docente deviam lavar a própria louça, mas Matthew supunha que a hierarquia
devia conceder as suas vantagens, de modo que, desde que fora promovido a diretor, deixava sua louça para alguém lavar. Além do mais, tinha coisas mais importantes
a fazer. Até então ninguém reclamara da sua arrogância, embora tivesse notado olhares de desaprovação de Mareia Porter em mais de uma ocasião. Mas Mareia era uma
mal-amada presunçosa. Quando se deu conta de que ele a vencera na corrida pelo cargo principal, ela parou de tentar fazer o mundo girar ao seu redor e se deu por
vencida. Podia até não gostar do que Matthew fazia, mas não ousava desafiá-lo. Muito diferente de antes, quando estavam teoricamente nivelados, a não ser pela sua
constante afirmação de precedência. Ultimamente, ela o evitava tanto quanto possível em uma escola provinciana com uma equipe composta de cinco professores e quatro
assistentes.
Assistentes. Aquilo era uma piada. Mães com tempo de sobra e a noção equivocada de que, de algum modo, pelo simples fato de terem parido, sabiam exatamente como
as crianças deviam ser educadas. Mas elas haviam freqüentado a escola antes dos exames de cursos e da instituição de um currículo nacional. Não faziam a menor idéia
da pressão que afligia professores de verdade como ele, diariamente. Matthew não perdia uma única oportunidade de lembrá-las o quanto o mundo havia mudado. O resultado
era que, assim como o resto da equipe, elas passavam o menor tempo possível à toa na sala dos professores. O que, no fundo, era bom para Matthew: o seu gabinete,
em sua opinião, não era adequado às suas necessidades. Ele preferia trabalhar na sala dos professores, onde podia servir-se de café sempre que tinha vontade.
Tinha de se curvar para se ver no espelho sobre a pia, instalado para atender à estatura das professoras e não diretores de um metro e oitenta. Fitou seus olhos
azul-escuros e uma pele morena alguns tons mais escura do que a norma local. Herança do avô, natural da Cornualha, transmitida a Matthew e Jane através da mãe. Deslizou
a mão pela cabeleira negra de cachos rebeldes, herdados do outro lado da família. Ficavam lindos em sua irmã, mas o deixavam parecido com um Harpo Marx dos pobres.
Abriu um sorriso torto, pensando na aula que estava prestes a dar às duas turmas principais. Genealogia e genética, aquelas molas torcidas que se enroscavam como
a hélice dupla do DNA, com todas as complicações que davam gênese a todo tipo de conseqüências imprevistas. Não havia dúvida quanto ao seu parentesco. O pai tinha
o
mesmo cabelo cacheado, assim como o pai antes dele.
O sinal tocou, anunciando as aulas da tarde, e Matthew saiu correndo da sala dos professores. Ao aproximar-se da sala de aula, ouviu um murmúrio discreto de vozes,
que se calaram assim que as 15 crianças o viram surgir no vão da porta. Um dos pontos positivos de pequenas escolas rurais, pensou Matthew. Além da grade curricular
nacional, elas ainda aprendiam boas maneiras. Não invejava os pobres coitados que tinham que dar aula para os jovens do lugar onde Jane morava.
- Boa-tarde, crianças - cumprimentou ele, vencendo depressa a distância até sua mesa, com suas pernas compridas.
- Boa-tarde, sr. Gresham - a turma respondeu em um coro dissonante.
Ele abriu seu laptop e apertou a tecla que o tirava do stand-by. Na mesma hora, o painel interativo atrás dele exibiu uma tela onde se podia ler Árvores Genealógicas.
Matthew empoleirou-se na quina da mesa, de onde podia manusear o teclado sem dificuldade.
- Hoje vamos começar um novo projeto muito importante, que vai fazer parte das comemorações de Natal da cidade. Bem, uma coisa que todos nós temos são ancestrais.
Quem pode me dizer o que é um ancestral?
Um garotinho com uma cabeleira negra, que mais parecia um filhote de macaco-aranha, ergueu depressa a mão. Estava inclinado sobre a carteira, ansioso.
- Sam? - disse Matthew, tentando disfarçar o seu cansaço. Era sempre Sam Clewlow.
- É a nossa família, professor. Não a família que está viva agora, mas os que vieram antes. Como os avós e os avós deles.
- Isso mesmo. Nossos ancestrais são os que vieram antes de nós. Responsáveis pelo que somos. Cada um de nós é a pessoa que é e do jeito que é graças ao modo
como nossos genes se combinaram através dos séculos. Então, alguém aqui sabe o que é uma árvore genealógica?
Sam Clewlow ergueu a mão novamente. Os outros o contemplavam, indiferentes ou satisfeitos por ele estar respondendo a todas as perguntas e poupando-os desse trabalho.
Dessa vez, ele nem esperou:
- É como um mapa da história da família, professor. Tem o aniversário de todo mundo, quando eles se casaram, com quem e quando tiveram filhos, morreram e
tudo o mais.
- Exatamente, Sam. E o que nós vamos fazer nas próximas semanas é tentar mapear as nossas famílias. O que vai ser mais fácil para alguns de vocês do que para
outros; aqueles que têm famílias morando aqui na região há várias gerações vão conseguir rastreá-las consultando os registros da paróquia. Vai ser mais complicado
para aqueles cujas famílias são novas na área. Mas uma das coisas que vamos fazer nesse trabalho é explorar as diversas maneiras de se mapear nosso passado. O legal
é que vocês vão ter que pesquisar junto com outros membros de suas famílias, especialmente os mais velhos, como avós e tios-avós. - Matthew experimentou mais uma
vez certo alívio por não estar encalhado numa escola falida na metrópole, onde um trabalho desses seria inviável, devido às vidas fragmentadas e visões alternativas
sobre o que constituía uma família. Mas em Fellhead, ou eles vinham de famílias tradicionais que perduravam há gerações ou eram recém-chegados simpáticos de classe
média que, mesmo quando fingiam ser moderninhos, ainda prezavam bastante suas certidões de casamento.
- Para mostrar a vocês o que vamos fazer, vou lhes mostrar a minha árvore genealógica. - Com um clique no mouse, seu nome surgiu na tela. Abaixo dele, sua
data de nascimento. Mais um clique e dessa vez seu nome aparecia ligado ao de Diane Brotherton por um sinal de igual. - Alguém sabe o que significa este sinal, Jonathan?
- perguntou ele a um ruivinho rechonchudo, ignorando a mão suspensa e frenética de Sam.
Jonathan Bramley parecia levemente atordoado. Franziu a testa, concentrando-se.
- Sei não - disse ele, finalmente se dando por vencido.
Tentando disfarçar sua impaciência, Matthew respondeu com calma:
- Significa "casado com". A sra. Gresham era Diane Brotherton até se casar comigo. - Ele clicou no mouse mais uma vez e uma linha vertical surgiu, ligando-os
a Gabriel Stephen Gresham.
- É o seu bebê - disse uma das meninas, sem ser solicitada.
- Isso mesmo, Kylie. - Matthew clicou novamente. Dessa vez, pequenas fotos apareceram ao lado de cada um dos nomes. - Podemos até mesmo acrescentar fotos.
Assim, é possível ver as semelhanças familiares evoluindo através das gerações. Agora, podemos começar nossas árvores genealógicas com o que já sabemos.
Ele deu um toque no teclado e uma nova tela surgiu, mostrando seus pais e sua irmã, com fotos, locais de nascimento e profissões.
- Mas iremos ainda mais além. Vamos mergulhar fundo no passado e rastrear nossas árvores genealógicas o máximo que pudermos.
Agora, a árvore incluía seus avós; um deles, um imigrante, refugiado das minas de estanho na Cornualha que viera para a Região dos Lagos trabalhar com minério de
ardósia; o outro, um pastor de Cumberland. Ele ainda incluíra suas tias, tios e primos.
- Uma das coisas que vamos aprender é o modo como uma comunidade como a nossa cresceu ao longo dos anos. Vamos encontrar todo tipo de ligação entre famílias
que vocês nem devem imaginar. Talvez até descubram ancestrais em comum e comecem a compreender como a vida das pessoas foi mudando através dos séculos.
O dom de Matthew para compartilhar seu entusiasmo estava funcionando com as crianças. Estavam atentas, vidradas.
- Vamos começar com nossos parentes mais próximos. Vejam o meu exemplo no quadro, para terem idéia de como organizar a árvore de vocês. E, hoje à noite, quando
estiverem em casa, podem pedir ajuda ao resto da família para irem completando as lacunas. À medida que dermos continuidade ao trabalho, vamos explorar novas maneiras
de descobrir mais informações sobre a nossa história e os nossos ancestrais. Agora, peguem uma folha em branco em seus cadernos e mãos à obra.
Matthew esperou que todos começassem e só então se sentou à mesa. Puxou uma pilha de cadernos de exercícios de matemática e começou a
corrigi-los. Estava absorto em seu trabalho até ser interrompido por cochichos e risinhos que percorriam a turma. Quando levantou a cabeça, Sam Clewlow estava vermelho
como um tomate, os olhos brilhavam com lágrimas contidas. Jonathan Bramley sorria descaradamente.
- O que está acontecendo? - perguntou Matthew, ficando de pé. Estavam todos de cabeça baixa. - Jonathan? O que está acontecendo?
Jonathan comprimiu os lábios em um fino esgar. Ele ainda não sabia disso, mas passaria o resto de sua vida sendo flagrado em suas idiotices, graças a sua inerente
incapacidade de disfarçá-las.
- Nada - sussurrou.
- Você pode me contar agora ou ficar depois da escola - disse Matthew, ríspido. Jamais entendia os professores que reclamavam por não conseguir controlar
os alunos. Bastava mostrar quem era o chefe, e continuar mostrando sempre que necessário.
- Eu só disse... - A voz de Jonathan morreu enquanto ele olhava à sua volta, desesperado por uma ajuda que não chegava.
- Você só disse o quê?
- Eu disse que todos nós sabíamos quem era o ancestral de Sam - resmungou.
- Não vejo a hora de escutar - retrucou Matthew. - Posso saber quem você tem em mente?
As orelhas de Jonathan ardiam e ele não despregava os olhos do chão.
- O Homem-Macaco, o do lodo - disse ele com uma voz quase inaudível.
- Você está se referindo ao corpo encontrado no pântano? - arriscou Matthew. A espantosa descoberta era o assunto do momento havia alguns dias.
Jonathan assentiu com a cabeça, engolindo em seco.
- Era só uma piada.
- Piadas em geral são engraçadas - repreendeu Matthew. - Insultos não são piadas. E não é correto debochar dos mortos. Quando aquele homem estava vivo, ele
tinha amigos e uma família que o amavam, assim como você. Imagina como você ia se sentir se alguém de que gostasse muito morresse e um insensível qualquer fizesse
uma piada às suas custas.
- Mas, professor, não tem ninguém vivo para se importar com o Homem-Macaco - disse a irreprimível Kylie.
Matthew resmungou por dentro. Ia ser uma daquelas conversas, sabia. Gostava de ser professor, mas às vezes desejava não ter feito um trabalho tão bom para que seus
alunos desenvolvessem mentes inquiridoras.
- Por que vocês o chamam de Homem-Macaco? - perguntou.
- Porque ele parece um - disse um menino. - Vi um programa na tevê sobre um que eles encontraram em Cheshire; parecia um chimpanzé.
- É por isso que a gente chama de Homem-Macaco - disse outro menino.
Sam Clewlow mostrou desdém.
- Isso é idiotice - disse ele.
- O que é idiotice, Sam? - perguntou Matthew.
- O homem que eles encontraram numa turfa em Cheshire morreu na Idade da Pedra. Por isso tem aquela aparência. Mas o daqui não é tão velho assim. Então não
parece com um macaco, parece com a gente - disse Sam, firme.
As outras crianças bufaram em protestos.
- Comigo ele não parece - disse Jonathan. - O Jason disse que ele parecia uma bolsa de couro velha com um rosto. E ele está por dentro do assunto, ele joga
dardos com Paul Lister, que encontrou o corpo. - Jonathan reclinou-se para trás, sua prévia humilhação esquecida enquanto tentava cativar a atenção dos colegas.
- Então, vai ver que ele é um dos nossos ancestrais - interrompeu Sam.
- É - concordou Kylie, entusiasmada. - Vai ver que foi assassinado e enterrado lá.
- Isso aí. Por que, senão, como é que ele ia parar lá no pântano? - indagou outra criança.
- Ele pode simplesmente ter sofrido um acidente quando estava passeando na colina - justificou Matthew, tentando amenizar o entusiasmo macabro de seus alunos.
- Pode ter ido cuidar de suas ovelhas, tropeçado e morrido na queda.
- Mas aí alguém teria ido atrás dele e encontrado o seu corpo - argumentou Sam, não sem razão. - Acho que ele foi parar lá porque alguém o
enterrou, para que ninguém ficasse sabendo o que aconteceu com ele. Acho que Kylie tem razão, acho que alguém matou ele.
- Bem, até que os peritos tenham feito os seus testes, não podemos afirmar nada - ponderou Matthew com firmeza.
- Vai ser como naquele seriado da tevê - disse Kylie. - A médica vai descobrir como ele morreu, e então a polícia terá que descobrir o que aconteceu de verdade.
Matthew não pôde conter um sorriso.
- Não creio que vá ser assim, Kylie. Pelo que sei, se o homem do pântano tiver sido realmente assassinado, o assassino deve ter morrido há muito tempo. Mas,
até termos alguns fatos concretos, sugiro que nos concentremos no que estávamos fazendo. - Ele ergueu a mão para calar a algazarra de protestos. - E quem sabe? Talvez
um de vocês descubra quem desapareceu na época do crime.
Sam Clewlow o encarou, boquiaberto.
- Isso ia ser fantástico - sussurrou.
Estava entretido em minha labuta poética no grande Poema de minha vida, ponderando de que modo poderia ilustrar melhor os assuntos que me são mais caros, quando
avistei uma figura no portão. À primeira vista, tomei-o por um desses viajantes ou andarilhos que por vezes surgem à nossa porta, buscando amparo. Minha irmã está
acostumada a lhes fornecer comida e bebida, antes de dispensá-los. Em algumas ocasiões ela já recolheu histórias que me forneceram material a ser adaptado para poemas,
de modo que não a desencorajo nesse pequeno ato de caridade. O homem ao portão parecia um desses tipos, com roupas gastas de viagem e um chapéu de abas largas para
protegê-lo do sol e da chuva. Estava prestes a conduzi-lo até a porta da cozinha quando ele falou comigo. Para o meu espanto, cumprimentou-me pelo meu primeiro nome,
dirigindo-se a mim com afeto e intimidade: "William, vejo que está trabalhando a sério. Disseram-me que te tornastes o Poeta do Século e agora vejo com meus próprios
olhos!' Eu ainda não fazia idéia de quem era o homem, mas ele abriu o portão e atravessou o jardim, vindo em minha direção. Seu andar de pernas arqueadas tinha um
quê de homem do mar e, à medida que se aproximava, uma suspeita improvável se acentuou em minha mente.
3
Por volta de 3:30 da tarde, o Viking já havia retornado ao seu estado natural de deserta calmaria. Algumas mesas no fundo ainda estavam ocupadas por homens que falavam
sobre trabalho enquanto tomavam café. Uma vez paga a conta, os funcionários se tornavam invisíveis para eles. Jane pôs os últimos copos na máquina de lavar louça
e depois se instalou em um banquinho no canto do bar, para descansar os pés doídos. Harry surgiu da cozinha carregando uma bandeja com restos de sanduíche.
Jane apanhou um enquanto Harry puxou um banco e sentou ao seu lado.
- Onde foi que você guardou o jornal? - perguntou ela.
- Vou pegar. - Harry pulou do banco e caminhou até a parte de trás do bar. Apanhou o jornal de uma das estantes e passou para ela.
Jane foi direto para a matéria que não tinha tido tempo de ler direito antes da correria da hora do almoço.
MISTÉRIO DO CORPO NO PÂNTANO NA REGIÃO DOS LAGOS
O corpo do homem encontrado em um pântano em Lake District pode ter centenas de anos, informou a polícia ontem.
No início, pensava-se que os restos mortais estivessem ocultos há milhares de anos, como os cadáveres da Idade da Pedra encontrados em localidades similares.
Mas os primeiros exames médico-legais indicam que o corpo é muito mais recente. O inspetor-chefe Ewan Rigston disse: "Acreditamos que o corpo esteve soterrado por
muito tempo, talvez centenas de anos. Mas não supomos ser tão antigo quanto os restos mortais encontrados em outros lugares. Vamos saber mais quando os peritos terminarem
o seu trabalho."
Quando indagado sobre como o homem havia morrido, o inspetor-chefe Rigston disse que ainda era muito cedo para responder.
O corpo foi descoberto por um pastor local, que procurava uma ovelha perdida. A polícia acredita que as abundantes chuvas de verão possam ter provocado uma erosão
no solo, revolvendo os velhos depósitos do pântano em Carts Moss, próximo ao vilarejo de Fellhead.
Paul Lister, 37 anos, de Coniston Cottages, em Fellhead, falou ontem à noite de sua terrível descoberta: "Eu estava seguindo meu cão em Carts Moss, em busca de uma
ovelha desgarrada. Escorreguei na grama molhada e caí em um dos canais entre as fossas de turfa. Minha mão deslizou sobre algo e eu olhei para baixo. A princípio,
pensei que fosse um couro de vaca ou algo parecido. Então percebi que era um rosto humano. Mal pude acreditar, parecia saído de um filme de terror."
Enquanto esperava a chegada da polícia, o sr. Lister teve a oportunidade de examinar melhor a sua macabra descoberta. "Ele tinha cabelo preto e parecia ter umas
tatuagens pretas nos braços em outras partes do corpo. Mas eu não sei se isso era apenas a conseqüência de ter ficado no pântano por todo esse tempo."
A antropóloga forense dra. River Wilde, da Universidade Northern England, foi chamada para auxiliar os peritos locais, em uma tentativa de desvendar o mistério do
corpo no pântano. O inspetor-chefe disse: "Até a dra. Wilde ter completado sua investigação, não há mais nada que possamos dizer."
Jane quase engasgou com o sanduíche.
- Olha isso, Harry - disse ela, assim que se recompôs, apontando para o penúltimo parágrafo.
Antes que Harry pudesse responder, duas mãos surgiram em seus ombros e uma cabeça raspada se insinuou entre eles.
- O que é tão fascinante assim, hein? - perguntou uma voz familiar.
Jane virou-se para beijar a bochecha macia de Dan Seaboume.
- Dan! Que surpresa maravilhosa. Harry não disse que você vinha.
- Harry não sabia - respondeu Harry, com um tom de voz meio ríspido.
- O meu aluno das três horas cancelou a aula, então resolvi dar uma fugida e vir te buscar - disse Dan, acariciando o cabelo do namorado.
- Acho que você veio é vigiar Harry e o novo chef italiano, isso sim - implicou Jane. - Eu sabia que jamais ficaríamos livres de você depois que visse Giaco
de avental branco.
Dan fez um gesto teatral, apertando a mão contra o peito, fingindo-se em choque.
- Tão perspicaz - suspirou ele. Passando por Jane, apanhou um banco. - Jane, há uma semana que eu não te vejo. Está fugindo de mim?
Jane deixou escapar um gemido.
- É o livro. Eu tenho que terminar no fim do ano e, a não ser que Mefistófeles surja por aquela porta e me faça uma proposta irrecusável, começo a perceber
que não vai dar. Quando assinei o contrato, achei que ia ser moleza transformar minha tese num livro. - Ela bufou, debochada. - Santa ignorância.
- E se você saísse da cidade por uns tempos, para esfriar a cabeça e terminar o livro? - sugeriu Dan. - Eu poderia te substituir nas aulas.
Jane abriu um sorriso. Ela e Dan estavam no mesmo barco; pesquisadores pós-graduados, lutando por uma oportunidade no magistério que pudesse lhes conduzir ao tão
sonhado emprego fixo como professores, desesperados para causar boa impressão ao supervisor e vivendo com dificuldade enquanto isso. Deveriam ser inimigos, mas uma
amizade que vinha desde a época da faculdade impedia qualquer rivalidade.
- E receber o meu salário também? Boa tentativa, Dan. - Ela o acertou com o cotovelo nas costelas, de brincadeira. - Você não tem escrúpulos, sabia disso?
Devia levantar a bunda e escrever um livro também.
Dan espalmou as mãos, num gesto de inocência.
- Ei, só estava tentando ajudar. Menos estresse poderia lhe fazer bem, não acha?
Harry empurrou o jornal para ele.
- Ao que parece, Fellhead tem seus próprios estresses. - Ele apontou para a reportagem, passando-o para Dan. - A morte ronda as montanhas.
Harry e Jane continuaram comendo enquanto Dan lia a matéria.
- Bem, pelo menos você não terá de se preocupar com um doido com um machado à solta - comentou ele. - Se essa é uma vítima de homicídio, o assassino já deve
estar morto e enterrado há muito tempo.
- Esqueça o homicídio - disse Jane, apontando para o penúltimo parágrafo. - Estou mais interessada nas tatuagens.
- Tatuagens? - perguntou Dan.
- Tatuagens pretas. O que isso te faz lembrar?
Dan deu de ombros.
- Tirando David Beckham, nada.
- Século XVIII, marinheiros, ilhas dos Mares do Sul. Muitos fizeram tatuagens quando as visitaram. Como Fletcher Christian.
Dan abriu um sorriso.
- A sua lenda rural favorita.
- Sobre o que vocês estão falando? - perguntou Harry.
- O que você sabe sobre o motim no Bounty? - perguntou Jane.
Harry deu de ombros.
- Mel Gibson. Muito gato naquelas calças justas.
Jane suspirou:
- Ótimo saber que você estava prestando atenção à história.
- Ei, estou brincando. Não sou um loiro burro, Jane - reclamou Harry. - Eu me lembro da parte em que Mel lidera o motim e lança o malvado capitão Bligh à
deriva em um bote, se mandando depois para o Taiti.
- Muito bem, Harry. Só que na verdade não foi o Mel Gibson, e sim Fletcher Christian quem comandou o motim. E eu não estou interessada no motim em si, e sim
no que aconteceu depois. Depois que Bligh fez a sua épica viagem de volta, são e salvo, e finalmente regressou a Londres, a Marinha foi instruída a ir atrás dos
amotinados e trazê-los de volta a Londres, onde teriam de se apresentar perante a Corte Marcial. Anos depois, um grupo foi localizado no Taiti e trazido de volta.
Mas o destino de Fletcher e dos outros amotinados mais radicais continuou sendo um mistério por muito tempo. Eles acabaram indo parar na Ilha Pitcaim com algumas
das mulheres e homens nativos e se instalaram lá.
Harry assentiu com a cabeça.
- Pitcaim... Aquele escândalo sexual com uma criança há alguns anos foi lá, não foi?
- Foi. E descendentes diretos de alguns dos amotinados estavam envolvidos. Mas esse não foi o primeiro problema no paraíso - disse Jane.
- Basicamente, não havia mulheres o suficiente. A versão oficial é que os amotinados saíram no braço com os nativos e que houve um massacre. Tudo indica que
Fletcher Christian foi o primeiro homem branco a morrer. Fim da história.
- Mas... Quer dizer, há um "mas", não é mesmo? Do contrário, você não ia ficar tão animada com um cadáver com tatuagens pretas - disse Harry.
- Aí é que entra a viagem de Jane - anunciou Dan.
Jane pareceu levemente constrangida.
- Corria um boato em Lake District de que Fletcher Christian não morreu em Pitcaim. Que o massacre foi forjado. De algum modo, ele conseguiu escapar da ilha
e voltar para a Inglaterra, onde passou o resto de seus dias foragido da lei com a ajuda da família e de amigos. Foi uma empreitada de risco para todos os envolvidos.
Se Fletcher fosse traído ou descoberto, teria certamente sido enforcado por ter liderado o motim. Assim como qualquer um que tivesse estado em contato com ele sem
entregá-lo às autoridades.
A expressão no rosto de Harry mudou de surpresa para incrédula.
- Você está brincando, né? Quero dizer, isso não passa de fofoca, não é mesmo?
- Como eu disse, é a lenda rural favorita de Jane - disse Dan, acendendo um cigarro.
Jane sacudiu a cabeça, a luz banhando seus longos cachos.
- Não é só fofoca. O livro do John Barrow diz que essa teoria existe desde 1831.
- Em termos de teorias da conspiração, temos de admitir que essa é boa - comentou Dan. - O sr. Christian forjou um massacre e partiu de navio ao pôr-do-sol.
Ih, não, esperem aí. Como foi que ele partiu, Jane? Eles não queimaram o navio?
Jane inclinou-se sobre o bar.
- Queimaram. Mas havia dois escaleres a bordo do Bounty que nunca foram encontrados. E há também a questão do diário de bordo desaparecido. - Ela sorriu.
- É aí que vocês deveriam perguntar: "Que diário de bordo desaparecido?"
Dan inclinou a cabeça e ergueu as mãos, fingindo espanto.
- Que diário de bordo desaparecido?
- Fletcher Christian era oficial da vigília. Estava acostumado a manter um diário. Era hábito dele.
- Faz sentido - concordou Harry.
- Seria muito estranho se não houvesse nenhum registro de como eles povoaram Pitcaim. Não havia escassez de papel e canetas. Continuaram a usá-los anos mais
tarde, na escola que montaram para os filhos. Mas o único registro já visto foi escrito por um dos outros amotinados, Edward Young. E só começa após o massacre,
o que dá a entender que outra pessoa estava tomando notas até então. Quem mais, a não ser Fletcher? Se ele tivesse morrido, é óbvio que o diário teria sobrevivido
a ele. Mas se ele tivesse ido embora... - A voz de Jane dissipou-se.
- Ele o teria levado consigo, não é mesmo? - concluiu Harry. Ela percebeu que ele também estava interessado, apesar de seu ar blasé de sempre.
- Tá, tenho que admitir que é mesmo, no mínimo, curioso. Mas, como você mesma disse, não passa de uma especulação.
- Nem tudo. Deixe-me contar sobre Peter Heywood. Foi um dos amotinados que voltou para a Inglaterra. Só que, ao contrário dos outros que padeceram diante
da Corte Marcial, a família dele tinha o dinheiro e os contatos para garantir o perdão ao seu menininho dos olhos azuis. Em vez de ser enforcado, ele teve uma carreira
na marinha brilhante. Mas o mais interessante sobre Peter Heywood é que ele era um primo distante de Fletcher Christian. Foi criado na Ilha de Man, onde Christian
passou boa parte de sua juventude. Então, além de navegar com ele, Heywood estava pessoalmente ligado a Fletcher. Ele o conhecia bem - sentenciou Jane. - E, por
volta de 1809, Peter Heywood viu Fletcher Christian em Plymouth.
Harry franziu o cenho.
- Mas Plymouth era uma base naval, não era? Ele teria de ser maluco para perambular por Plymouth em plena luz do dia! O amotinado mais famoso da história
da Marinha britânica! Até mesmo alguém como eu, que não se interessa muito por história, já ouviu falar do sujeito. E, pelo que você está dizendo, ele não mediu
esforços para ficar longe do perigo depois do motim, um homem que certamente iria para a forca se tivesse sido capturado. E ele lá ia resolver dar uma voltinha justo
em uma cidade apinhada
de oficiais e postos navais? E ainda dá de cara com o seu velho camarada Peter Heywood? - Harry estirou as mãos, no gesto de alguém que propõe um mistério sem solução.
- E, mesmo supondo que isso tenha de fato acontecido, se Heywood e Christian eram íntimos como você disse, porque ele confessaria ter visto o foragido? Não faz sentido.
- Ele não confessou, Harry. Pelo menos, não publicamente. Isso só foi descoberto após a morte dele. E eu fico aqui pensando - disse Jane, com a voz suave.
- E se ele marcou um encontro com Heywood e, no último minuto, Heywood não conseguiu se desvencilhar de um de seus colegas? E, quando Fletcher viu que ele não estava
sozinho, se mandou.
Harry sacudiu a cabeça.
- Mas por que Fletcher sairia de Pitcaim, para começo de conversa? Estava seguro lá, não estava? Por que abriria mão disso?
- Não sei se ele se sentia seguro - arriscou Jane. - Não resta dúvida de que havia profundas divisões entre os amotinados, assim como os problemas com os
nativos. Existem também indícios de que os outros amotinados não estavam satisfeitos por ele estar no comando, por ser o único oficial restante entre eles. E ele
era um sujeito correto, lembram-se? Talvez quisesse acertar suas contas, assim como o Velho Marinheiro do poema de Coleridge. Talvez quisesse explicar o que o levou
a se rebelar - argumentou Jane. - Só que, ao voltar, deve ter descoberto que o capitão Bligh não só havia sobrevivido, como se tornara um herói graças à sua fantástica
navegação pelo Pacífico. Sem contar que ele havia tido bastante tempo para espalhar sua versão do motim. Fossem quais fossem os motivos de Fletcher para incitar
a-tripulação contra Bligh, já era tarde demais para se justificar.
- Mas justificar-se de quê? - perguntou Harry. - Um motim é um motim, não é?
- Havia uma justificativa para o motim da qual Christian podia ter lançado mão - disse Dan.
Harry ergueu as sobrancelhas.
- Agora você é um especialista em leis navais?
- Não, mas eu conheço bem a história da opressão dos gays, meu bem
- retrucou Dan. - E se Christian alegasse sodomia contra Bligh? Era um crime a ser punido com a forca naquela época, não era? Se ele conseguisse provar que
Bligh o obrigara a fazer sexo com ele contra sua vontade, isso
não teria atenuado o motim? - Ele fez uma pausa, a testa vincada, mordiscando o lábio inferior. - Se bem que ele precisaria de uma testemunha para sustentar sua
acusação. Naquela época, por ser uma alegação fácil de se fazer e difícil de se provar, as cortes marciais exigiam que houvesse mais do que a simples palavra de
um homem contra a do outro. E Christian devia estar a par disso.
- Talvez houvesse uma testemunha - disse Jane, pensativa. - E talvez um dos motivos de Fletcher para liderar o motim fosse proteger a testemunha... - A voz
de Jane foi sumindo e ela se pôs a fitar o bar vazio com um olhar perdido.
- Como assim? - perguntou Harry, ainda intrigado.
Jane ergueu o dedo, fazendo uma pausa para organizar as idéias.
- Vamos voltar para Peter Heywood - sugeriu ela, os olhos voltados para dentro enquanto vasculhava todas as informações que armazenara ao longo de anos de
fascínio sobre esse assunto. - Fletcher já havia navegado com Bligh antes e existe um registro de que era o favorito do capitão. O mesmo que aconteceu durante a
viagem do Bounty até o Taiti. Mas então Fletcher passou seis meses em terra firme, arrumou uma concubina entre as nativas...
- Concubina. Adoro essa palavra - comentou Dan, enrolando a língua.
- Enfim - disse Jane, ignorando-o -, quando o navio deixou o Taiti, Fletcher não quis mais voltar a ser o...
- Passivo. É a palavra que você está procurando. Outra palavrinha fofa - interrompeu Dan.
- Como você quiser. Bligh começa a tratá-lo como lixo. E a decisão de Fletcher também o colocou numa sinuca de bico. Ele sente que tem o dever de zelar pelo
jovem Peter Heywood, seu parente. Por que também foi bem documentado que Heywood era o segundo favorito de Bligh, depois de Fletcher. Então Fletcher queria proteger
Heywood, mas não estava disposto a se submeter a Bligh novamente.
- Então ele vai e lidera um motim, sabendo que, se for pego, vai ser morte certa? Tudo isso para proteger a honra de Peter Heywood? - Harry parecia incrédulo.
- Talvez ele também estivesse protegendo a si mesmo - ponderou Dan. - Se Bligh chegou a tentar alguma coisa com Heywood, então ele era
a testemunha de Christian. E Christian podia alegar que o motim havia sido a única maneira de deter um predador sexual que explorava sua tripulação fora do seu porto.
Não podia funcionar?
- Acho que sim - resmungou Harry. - Você virou casaca, hein? Estava aí falando que tudo não passava de uma fantasia de Jane e agora está defendendo as idéias
dela, e eu sou o único aqui a não enxergar nada de concreto, a não ser a imaginação dela.
Jane levantou-se e se dirigiu até os fundos do bar para terminar de lavar a louça.
- São os meus poderes femininos de persuasão, Harry. Além do mais, você está muito enganado. Há algo de concreto, sim. Os amotinados que acabaram perante
a Corte Marcial foram os que pediram a Christian que os levasse de volta ao Taiti. Peter Heywood estava entre eles. Esses sujeitos nunca chegaram a ver Pitcaim.
Quando os dois grupos estavam se despedindo, Fletcher chamou Heywood de lado. Pediu-lhe que transmitisse alguma informação à família de Christian, na Inglaterra.
Mas Heywood jamais revelou o que Fletcher lhe dissera. Por que manteria o bico calado, a não ser que a mensagem fosse algo que pudesse ser vista como vergonhosa,
tanto para ele quanto para Fletcher? Essa informação pode ter sido o motivo subjacente para o motim. Que Bligh abusara sexualmente de Christian e Heywood.
Harry soltou uma ruidosa gargalhada.
- Jane, você devia estar escrevendo romances, não críticas literárias. É isso que eles chamam de rigor intelectual no Departamento de Letras? - Ele foi ter
com ela no bar, apanhando copos da máquina de lavar louça e recolocando-os nas prateleiras.
Jane debruçou-se no balcão e sorriu.
- Talvez eu deva mesmo investir na ficção. E, se eu fosse mesmo fazer isso, começaria com o épico perdido de William Wordsworth.
- Épico perdido de Wordsworth? - perguntou Harry, um tanto confuso.
- Ela guardou o melhor para o final, Harry - alertou Dan. - Este é o grande momento. Você vai adorar isso.
Jane continuou, sem se importar com Dan:
- "Inocência e corrupção: A verdadeira história do motim no Bounty nos Mares do Sul." Ou algo parecido, bem ao estilo de Wordsworth.
- Hein? - perguntou Harry.
- Eles estudaram juntos, Harry. William Wordsworth, o poeta laureado da Região dos Lagos e todo-poderoso da poesia romântica, e Fletcher Christian, amotinado
do Bounty, foram contemporâneos na Escola Hawkshead. O irmão de Fletcher, Edward, foi o professor deles. Ele acabou se tornando professor de direito na mesma faculdade
em Cambridge onde Wordsworth se formou. E ele representou a família Wordsworth em um processo importante. Então, quem mais Fletcher escolheria para contar a sua
versão dos acontecimentos senão o seu antigo colega? O amigo da família que se tornara um poeta famoso. E, mesmo sabendo que jamais poderia publicá-la sem gerar
possíveis
conseqüências graves, Wordsworth não teria ignorado uma história dessas, teria?
Apesar de eu não ter respondido, ele continuou a me abordar. O homem aparentava estar absolutamente à vontade enquanto se acomodava num banco ao lado da minha escrivaninha.
Esticou as pernas, cruzando-as na altura dos calcanhares. "Ainda não está me reconhecendo, WiliiamT', perguntou ele, com um certo divertimento embutido no tom de
voz. Enquanto falava, deslizou o chapéu para trás, deixando que eu contemplasse por inteiro o seu rosto pela primeira vez. Há muitos anos que eu não deitava meus
olhos naquela face, mas o reconheci de imediato. As vicissitudes do tempo e da experiência haviam imprimido as suas marcas, mas não eram o bastante para embotar
suas principais características. Minha suspeita se tornou realidade e meu coração saltou dentro do peito.
4
Tenille sabia tudo sobre escolhas. Entendia que, embora os professores adorassem encher a boca e dizer aos seus alunos que "cada um faz seu próprio caminho", lá
no fundo não acreditavam que pessoas como ela tivessem uma escolha. Não de verdade, não como os professores e seus pestinhas de classe média. No fundo do coração,
achavam que crianças como Tenille estavam aprisionadas sem perspectivas na vida que levavam. De modo que suas bocas diziam uma coisa, mas seus atos comunicavam outra
completamente diferente. Algo como: "Você vai se envolver com drogas, cometer furtos em lojas, engravidar na adolescência e ter uma vida de merda em um pardieiro
até uma morte prematura, causada por fumo, bebida, drogas ou miséria. Então, pra que perder meu tempo te ensinando alguma coisa?"
Mas eles estavam enganados. Ela tinha escolhas, embora não fossem tão óbvias ou amplas como as da maioria dos adolescentes de 13 anos. Mas Tenille tinha certeza
de que a vida reservava algo mais para ela do que para o resto dos casos perdidos do seu prédio. Era por isso que não andava com os outros cabuladores de aula. Não
tinha o menor interesse em ficar driblando supervisores ou guardas de segurança nos shoppings ou nas casas de jogos eletrônicos. Juntar-se às gangues que furtavam
roupas mixurucas e maquiagem barata não lhe enchia os olhos. Não que estivesse acima dos furtos, simplesmente não ligava para o lixo que eles curtiam. Não conseguia
se imaginar convencendo Aleesha Graham e seu grupo a afanar livros de poesia. E, além do mais, o simples fato de estarem dentro de uma livraria fazia com que destoassem
do ambiente como um executivo engravatado no gargarejo de um show de hip-hop. Essa simples idéia já a fazia revirar os olhos e enrijecer os lábios em um sorriso
de deboche. Também não tinha
nenhuma vontade de passar o resto de seus dias em um apartamentinho horroroso assistindo a DVDs furtados com um bando de fracassados que só queriam ficar doidões
de maconha, sidra extraforte e bacardi.
Não era tão ruim quando Sharon era solteira e trabalhava no café. Com a sua tia fora de casa por volta de 10:00 da manhã, Tenille podia voltar de fininho para casa,
enroscar-se no seu cobertor e ficar lendo até o horário da aula terminar - podendo, em seguida, tentar acessar a internet de um dos computadores da biblioteca e
trocar idéias em salas de bate-papo. Nessas salas, podia encontrar outros malucos que liam poesia, dispostos a falar sobre o assunto. Se sentia falta do som de uma
voz humana, descia furtiva e dava um pulo no apartamento de Jane Gresham. Quando estava em casa, Jane normalmente a deixava atacar suas estantes, e, se estivesse
com tempo livre, as duas ficavam sentadas tomando café e conversando. A não ser quando Jane tinha alguma aula e decidia lhe passar um sermão sobre como Tenille não
devia estar matando as suas. Como se alguém naquela escola vagabunda pudesse lhe ensinar alguma coisa que facilitasse sua vida.
Fora Jane quem lhe falara sobre as salas de bate-papo, até mesmo deixando Tenille utilizar seu computador às vezes, quando estava lendo e não precisava dele. Agora,
haviam se tornado a tábua de salvação de Tenille, concedendo um refúgio onde estava livre para ser a pessoa que sabia ser em seu íntimo. Para o padrão da maioria
das pessoas, não era grande coisa. Mas já era o bastante para permitir um fiapo de otimismo na vida de Tenille.
Mas tudo isso havia ido por água abaixo algumas semanas antes. Tudo começou quando Sharon saiu do café para ir trabalhar na cantina de uma fábrica de plástico local.
Em vez da rotina diária, ela passou a trabalhar em turnos, de maneira que, a cada duas semanas em três, Tenille perdia uma parte considerável do seu refúgio matinal.
Não fora nada fácil, mas a menina era engenhosa e logo encontrou maneiras de contornar o problema. Foi então que Sharon arrumou um namorado novo.
Há sete anos sob a tutela nominal da tia, Tenille havia se acostumado com o fluxo constante de homens inconstantes no apartamento por períodos indeterminados de
tempo. Aprendera desde cedo a desaparecer quando eles estavam por perto. Sharon não queria que a filha bastarda da sua falecida irmã viciada fosse um empecilho,
então deixara claro para Tenille que ela não devia ser vista nem ouvida quando ela estava com visitas. Então,
Tenille se trancava no quarto por horas intermináveis, ignorando os sons animalescos que penetravam pelas paredes e sob a porta, saindo disfarçadamente quando a
barra estava limpa para atacar a geladeira e os armários da cozinha, buscando qualquer coisa que pudesse encontrar para matar a fome que a consumia. Às vezes, sentia-se
como uma criança invisível, um fantasma que se infiltrava pelas fendas e os cantos que ninguém mais queria ocupar. Não era uma idéia agradável, mas, nos últimos
tempos, começara a sentir falta daquela invisibilidade.
Decerto já lhe havia ocorrido, antes da chegada de Geno Marley à sua vida, que havia vantagens distintas em escapar do radar dos outros, como matar aula e cometer
furtos em lojas sem ser percebida. Mas, no que dizia respeito aos namorados de Sharon, tinha a impressão de que o único benefício que ganhava por permanecer invisível
era escapar da ira de Sharon, caso ela atrapalhasse inadvertidamente a vida amorosa da tia. Embora soubesse, na teoria, que existiam homens que caçavam meninas da
sua idade, ela própria jamais vivenciara isso. Os sujeitos que costumavam se sentir atraídos pelos encantos demasiadamente maduros da tia até então não haviam demonstrado
nenhum interesse por ela. Afinal de contas, não havia nada de infantil em Sharon, uma mulata durona que exalava uma sexualidade madura e consciente, que prometia
mais os prazeres da experiência do que a tentação da inocência. Não era uma dessas mulheres que lutavam contra o tempo em uma retaguarda fadada ao fracasso; Sharon
aceitava o fato de já estar longe do desabrochar da juventude e compreendia que a experiência podia contar a seu favor. Seus namorados tendiam a ser o tipo que prefere
uma mulher bem versada nos princípios do prazer.
Se tivesse confinado sua carência à esfera sexual, os relacionamentos de Sharon talvez tivessem durado mais do que normalmente duravam. Mas até então ela não conseguira
encontrar um homem que aturasse as exigências irritantes e constantes de suas inseguranças por mais do que alguns meses. Tenille já se acostumara a ser injustamente
culpada pela partida de mais de um amante intimidado, e, sempre que isso acontecia, acabava por reforçar seu desejo de manter-se ainda mais distante da próxima vez.
Não fora rápida o bastante para evitar Geno Marley, sobretudo porque não estava esperando que ele aparecesse. Normalmente, quando um novo
homem se aboletava na cama de Sharon pela primeira vez, ela já estava protegida em seu quarto. Mas Tenille não levara em consideração os turnos do trabalho de Sharon.
Naquele dia, ela devia terminar o expediente às duas, de modo que Tenille fora embora a tempo. Não dera sorte na biblioteca naquela tarde: um quarteto de velhas
corocas havia se apossado dos computadores, e um neto de cabelo ensebado lhes estava ensinando o essencial para surfar na internet. Como se fossem começar a baixar
músicas e ficar de papo nas salas a qualquer hora, pensou Tenille, com desdém. Ficou lá por um tempo, mas era óbvio que a trupe grisalha não ia largar o osso tão
cedo.
De volta para casa, ficara surpresa ao encontrar o apartamento vazio. Sharon deveria ter chegado há duas horas. Tenille imaginou que a tia teria ido fazer compras.
Bem, esperava que sim, porque não havia porra nenhuma para comer ou beber naquela casa. Ligou a televisão e afundou no sofá, irritada e faminta demais para ler.
Quase não distinguiu o som da porta da frente se abrindo, mas o rumor de uma risadinha abafada e uma voz grossa de homem pôs seus sentidos em alerta. Pulou do sofá,
pronta para fugir, mas não havia possibilidade de fuga.
A porta da sala de estar abriu-se. Sharon sacudia os ombros e os quadris em uma dança improvisada, um homem enlaçava sua cintura, um sorriso idiota de bebida estampado
no rosto e um rubor escarlate na pele morena. Ao ver Tenille, fechou a cara e toda a animação desapareceu imediatamente.
- Que que cê tá fazendo aqui? - perguntou ela.
- Eu moro aqui - resmungou Tenille.
Um rosto surgiu sobre o ombro de Sharon, exibindo um misto de curiosidade e impaciência.
- Quem é esta? - perguntou ele, com a voz enrolada e uma certa lascívia no sorriso.
- Minha sobrinha. Eu te falei dela, lembra? - Sharon estava danada da vida, qualquer um podia ver.
O homem tirou as mãos da cintura de Sharon e deu um passo para o lado, entrando por inteiro no cômodo. Tenille reconheceu uma expressão que já vira direcionada a
outras, mas jamais a ela própria, provavelmente porque as roupas maltrapilhas que ela escolhia para sair mais escondiam do
que valorizavam seu corpo recém-amadurecido. Mas, na privacidade do seu lar, usava apenas uma camiseta e um jeans colado. E aquele sujeito a estava engolindo com
os olhos, assim como Sharon devia ter engolido muito álcool naquela tarde. Tenille não estava gostando nada daquilo.
- Então, sobrinha, você tem um nome? - perguntou ele, aproxi-mando-se, uma das mãos distraidamente apoiada no quadril de Sharon.
- Tenille - murmurou ela, relutante.
- Nome bonito para uma garota bonita.
- E o seu? - perguntou Tenille, abruptamente.
Ele sorriu, revelando um canino de ouro.
- Geno - respondeu ele. - Como Geno Washington.
Tenille especulava se deveria ter ficado impressionada por um nome que jamais ouvira antes. Levantou as sobrancelhas em um vago gesto de desdém.
- Quem é este cara?
Ele fingiu surpresa.
- Você nunca ouviu falar no Geno? Garota, você está por fora. Geno é nada mais, nada menos do que o melhor cantor de soul que este triste país já produziu.
Sharon, incomodada com tanta atenção dispensada à menina, interrompeu:
- Você não tem nada pra fazer não, hein? - perguntou ela, petulante.
Grata pela oportunidade para escapar, Tenille avançou em direção à
porta. Mas Geno não arredou pé. Tenille teve de se apertar para passar por ele, Sharon desviando do caminho, num muxoxo, irritada. Então, viu-se livre no corredor
e percebeu, subitamente, o ritmo acelerado da sua respiração.
Fora apenas o começo. Desconforto e mal-estar tomavam conta de Tenille sempre que Geno estava por perto e ela não conseguia escapar depressa. Normalmente, conseguia
ficar longe dele, mas foi ficando cada vez mais difícil à medida que as semanas passavam e ficava claro que ele não ia abandonar Sharon tão cedo. Três semanas depois,
ele havia praticamente se mudado para o apartamento, sempre presente quando Sharon estava em casa e, às vezes, mesmo quando ela estava trabalhando. Tenille começou
a passar mais tempo fora de casa - no apartamento de Jane
quando podia, ou nas varandas onde o vento corria e escadarias úmidas do prédio quando não podia. Fingia até para si mesma que os seus atos eram produto de uma escolha;
era melhor do que reconhecer um medo que ela preferia ignorar.
Mas não podia ficar se enganando para sempre. Mais cedo ou mais tarde Sharon teria que trabalhar no turno da noite, e, quando finalmente este dia chegou, Tenille
não ficou surpresa ao ouvir a tia anunciar que Geno passaria a noite no apartamento, para ficar de olho nela. Surpresa nenhuma, apenas um frio na barriga.
- Nunca precisei de ninguém me vigiando quando você trabalhava de noite antes - reclamou Tenille.
- E você acha que eu me sentia bem deixando você aqui sozinha? - retrucou Sharon.
- Não sou um bebê, não preciso de babá.
- Pela lei, você ainda não é independente, garota. Fico mais tranqüila sabendo que tem alguém aqui com você. - Sharon recolheu seus apetrechos de maquiagem,
jogando-os na bolsa Louis Vuitton falsa que Geno lhe dera de presente. Pavoneara-se orgulhoso, enquanto Tenille a contemplava com desprezo, sabendo que ele a comprara
em um camelô por uma mixaria.
- Você nunca se incomodou com isso antes. Desde que eu tinha oito anos você me deixa trancada aqui sozinha.
- E eu estava errada. Geno me fez perceber isso. Ele me disse que andaram acontecendo umas coisas horríveis com as meninas por aqui.
Tenille sentiu um calafrio.
- Não vai acontecer nada comigo. Não preciso de Geno pra me proteger. Não gosto dele - apelou ela, desesperada, sentindo-se meio envergonhada por confessar
o que realmente a incomodava nele.
- Ele é um bom homem - garantiu Sharon. - Então, vê se não enche o saco, ouviu? - Tenille sabia que quando ela empregava aquele tom, a discussão estava encerrada.
Sharon apanhou o casaco do espaldar da cadeira e caminhou em direção à porta. - Ele chega mais tarde. Vê se não fica atazanando ele. Ouviu, garota? - acrescentou
ela, virando-se com ar de raiva e desconfiança em seu rosto bonito.
Tenille franziu a testa.
- Ouvi - resmungou ela.
Mal a porta se fechou, ela se levantou num salto, vestiu o casaco e jogou o seu tocador de MP3 e alguns livros na mochila e saiu, adentrando a penumbra do entardecer.
Foi direto para o apartamento de Jane, mas as luzes estavam apagadas e ninguém atendeu a porta. Tenille mergulhou a mão no bolso e tateou os contornos irregulares
da chave. Ela havia pegado a chave que ficava na gaveta da cozinha "emprestada" alguns meses atrás, copiara-a e devolvera antes mesmo que Jane notasse sua ausência.
Mas a usava com cautela. Só seria útil enquanto Jane desconhecesse sua existência. Quando o tal Jake, aquele babaca imprestável, ainda estava na área, ela jamais
ousara entrar escondida, por desconhecer suas idas e vindas. Desde então, só se arriscara duas vezes e nas duas vezes, vira Jane entrando no ônibus e tinha certeza
de que ela estaria no Viking nas próximas quatro horas. Naquela noite, porém, não fazia idéia de onde Jane estava ou quando iria voltar. Era muito arriscado.
Suspirando, Tenille virou-se e desceu as escadas fedorentas. Uma chuva fina atingiu o seu rosto assim que dobrou a galeria, e ela xingou baixinho. Pela primeira
vez na vida, desejou não detestar todos os seus colegas. Naquela noite, a idéia de assistir a um DVD idiota com Aleesha Graham e sua turma não lhe parecia assim
tão má. Revirou os bolsos. Havia o suficiente para alguns copos de Coca-Cola. Se passasse direto pelo Burger King mais próximo e andasse até o seguinte, a uns dois
quilômetros dali, a possibilidade de encontrar alguém conhecido era praticamente nula. Com sorte, não estaria muito barulhento e ela poderia aconchegar-se em um
canto por algumas horas, com o nariz enfiado num livro.
Entretida com Childe Harold, de Lord Byron, o tempo voou e Tenille tomou um susto quando o rapazinho magro e cheio de espinhas do balcão inclinou-se apoiado em uma
vassoura contra a sua mesa e anunciou: "Estamos fechando." Ela recolheu seus pertences e caminhou até a porta, conferindo o relógio. Dez e meia. A chuva tinha parado,
podia voltar com calma para casa, com o capuz na cabeça para se proteger do vento.
Eram 11:15 quando Tenille encaixou a chave na fechadura e abriu a porta da sala sem fazer barulho. Deslizou pelo corredor escuro, silenciosa como uma sombra, os
sentidos aguçados pelo medo. Uma nesga de luz bruxuleante vazava no corredor, vinda da porta entreaberta da sala de estar.
Podia ouvir vozes arrastadas num sotaque americano da televisão. Fez uma careta, identificando um cheiro adocicado de maconha e outro mais acre, de cerveja. Arriscou
uma rápida olhadela pela porta. Geno estava esparramado no sofá, as pernas abertas, uma das mãos repousada na parte interna da coxa, a outra pendurada, quase tocando
o chão. A cabeça pendia para trás, contra o estofado ensebado imitando veludo, e um filete de baba reluzia em um dos cantos da boca. Encheu a cara e caiu duro, pensou
ela, aliviada e com nojo ao mesmo tempo.
Tenille entrou no seu quarto e, sem fazer barulho, arrastou a cômoda contra a porta fechada. Sem se despir, enfiou-se debaixo do seu cobertor velho e pegou no sono
com fantasias macabras de uma lâmina afiada abrindo uma fenda na convidativa garganta exposta de Geno Marley.
"Eu o conheço, senhor", eu disse, assim que me recuperei da surpresa e pude falar. Disse-lhe que o imaginava ou morto ou a muitos e muitos quilômetros distante destas
paragens e que nunca imaginara revê-lo. Ele respondeu que, se algum oficial de Sua Majestade deitasse os olhos nele, decerto seria sua sentença de morte, e acrescentou
que esperava estar protegido por minha misericórdia. Eu lhe assegurei que os bons préstimos de seu irmão me deixaram com uma dívida de gratidão com a sua família
e que eu guardaria os seus segredos lacrados em meu peito. Ele me agradeceu e apertou minha mão, oportunidade em que pude notar que ele ainda padece da mesma transpiração
excessiva nas palmas que tanto o afligiram quando era menino e jovem. Quaisquer dúvidas remanescentes que eu pudesse ainda acalentar foram atiradas aos quatro ventos
ao sentir o toque de sua pele.
5
A dra. River Wilde deu uma leve batida com a extremidade de sua caneta contra o bloco de papel sobre a sua mesa.
- Olhe, eu entendo que você esteja ocupado, mas não é o único. Fui jogada de um lado para outro hoje. Você não faz idéia de quanta gente é contratada para
impedir que pessoas como eu tenham acesso a um homem na sua posição. Tudo o que peço é uma decisão. É tão difícil assim?
A voz do outro lado do telefone parecia exasperada:
- Eu já expliquei. Para conseguir uma autorização da emissora, temos de vencer várias etapas antes. Eu não tenho autoridade para tomar uma decisão como essa
com a corda no pescoço.
River contorceu o rosto em uma careta grotesca ao telefone.
- Phil, você me disse que era o chefe da programação factual da TV Northern. Não é possível que não tenha nenhum poder de decisão sobre o que vai ao ar!
- Eu só tenho autonomia sobre um número limitado de programas regionais. Qualquer outra coisa tem que passar por todas as etapas.
River tentou controlar sua vontade de gritar com o homem. Começara a perceber aos poucos que a burocracia da televisão deixava até mesmo a dos administradores de
universidades para trás. Perfurou o papel violentamente com a caneta.
- Mas isso não pode esperar. Preciso começar a trabalhar no cadáver o mais rápido possível. Não estou pedindo nenhuma fortuna. Já lhe mandei por e-mail um
esboço dos custos. - Ele tentou interromper, mas ela continuou insistindo assim mesmo: - Escuta, isso é televisão barata, Phil. Praticamente de graça. Tudo que você
vai precisar é de uma equipe de filmagem. Você acompanha a minha investigação do cadáver. Sua equipe participa
de toda a parte inicial do processo. Vai por mim, o lugar é incrível. Já combinei com a funerária local para fazer a maior parte do meu trabalho lá; é uma
daquelas instalações antigas maravilhosas, bem ao estilo vitoriano, com mogno e paredes de azulejos, uma coisa muito Conan Doyle, um climão, um megacontraste com
as coisas modernas. Você pode filmar nos laboratórios onde vão rolar as paradas técnicas, sem problema. Pode filmar no local onde o corpo foi enterrado. Você vai
ter a minha opinião sobre o caso e a de especialistas de outras áreas, convidados para dar seu parecer sobre o cadáver, tudo isso a preços módicos, simbólicos. Vamos
lá, Phil. Você sabe que o seu público adora esse tipo de coisa. Um misto de reality show com documentário. Corpos mumificados não aparecem todos os dias. E esse
tem características bem incomuns; aquelas tatuagens são extraordinárias. Tenho certeza de que vamos descobrir coisas ainda mais interessantes ao longo da investigação.
Não se trata de um bêbado local que caiu em um pântano. É algo especial. Acho que pode estar relacionado aos Mares do Sul. Pense em como é mais interessante, e muito
mais barato, poder acompanhar todos os passos de uma investigação forense de verdade do que confiar em reconstituições o tempo todo. - Colocou o máximo de persuasão
possível em sua voz.
- Dra. Wilde, eu concordo que o programa que você está propondo prenderia bastante a atenção dos telespectadores. Mas não é possível pular etapas no processo
de autorização.
River bufou:
- E aqueles documentários produzidos a toque de caixa, que vocês sacam do fundo do baú sempre que acontece um tremendo desastre ou um escândalo político?
Vai me dizer que não queimam etapas do protocolo?
Phil Toner suspirou:
- Um corpo mumificado no pântano não é uma questão de relevância nacional. Bem, se você quiser dar um pulo aqui na semana que vem...
- Não, péssimo. Olha, Phil, por que você não esquece o protocolo e faz a parada assim mesmo? O que pode acontecer de tão ruim? Você ficar com uma série regional
interessantíssima, que lhe terá saído praticamente de graça. E, se ficar boa como nós dois sabemos que pode ficar, você pode apresentar à emissora um puta sucesso
que não vai ter custado quase nada. Você sabe que não estou brincando. - Ela captou a hesitação do outro lado da linha. - Phil, eu já te disse que sou bonita pra
cacete? E que a câmera me adora? - acrescentou ela, disfarçando uma incontrolável vontade de rir.
Foi recompensada com um ruído surdo de contentamento.
- Sem contar que você arrumou um grande título. Vou pensar no assunto - disse ele, finalmente. - Eu te ligo depois.
- Depois quando? - River sabia que tinha fama de ser inconveniente, mas ela preferia pensar que era apenas tenaz.
- No final do expediente, hoje. E te dou uma resposta.
- Obrigada, Phil. Vou ficar esperando a sua ligação. - River desligou o telefone e deu um soco no ar. - U-hu! - Levantou-se e saiu correndo do armário melhorado
que a Universidade Northern England, em uma rara demonstração de humor, chamara de seu gabinete. Dez segundos depois voltou, apanhou uma pasta em sua mesa e saiu
apressada novamente.
Encontrou seu chefe de departamento examinando com ar desconfiado um osso maxilar humano. Donald Percival tinha tendência à dúvida. Desconfiava de qualquer certeza,
a não ser que estivesse respaldada por dados científicos impecáveis. Sua pequena boca estava permanentemente franzida, em tom de desaprovação, e River podia jurar
que, sempre que estava em sua presença, as sobrancelhas de Donald ficavam ainda mais erguidas. Quando ela entrou de supetão no laboratório, os ombros dele pareceram
curvar-se para proteger seu artefato e ele a fez esperar durante um minuto inteiro antes de voltar os seus olhos azul-claros para ela.
- Boa-tarde, dra. Wilde - cumprimentou ele.
- Excelentes notícias, professor - anunciou River. - Acho que vou conseguir fechar com a TV Northern para fazer um documentário da investigação do cadáver
de Fellhead. O que significa que vamos poder ir além do trabalho básico para o qual você já me concedeu uma verba.
Percival franziu o cenho.
- Televisão? E isso é uma boa idéia? Queremos mesmo câmeras grudadas no nosso ombro enquanto trabalhamos?
River descartou a objeção com um gesto.
- Eles não vão atrapalhar.
- Mas vamos passar a impressão certa do nosso departamento para o resto do mundo?
- Acho que vamos mostrar ao resto do mundo que somos muito competentes. O que, por sua vez, equivale a mais projetos de fora vindo para a gente, trazendo
mais dinheiro para o departamento - disse River, atingindo,
muito esperta, o calcanhar-de-aquiles de todos os acadêmicos contemporâneos. - Mais dinheiro significa melhores equipamentos e mais alunos
- acrescentou ela, que nunca tinha medo de não saber a hora de parar. - E, no que diz respeito ao projeto, significa que poderemos bancar uma tomografia computadorizada
de corpo inteiro, análise de isótopos estáveis, anulação cementária. Tudo a que temos direito. E ainda poderemos contar com os paleobotânicos e os especialistas
em ciências arqueológicas sem nos preocupar com seus orçamentos. Imagine os benefícios para os alunos dessas matérias interligadas. Uma boa prática para seus trabalhos.
Percival fitava o osso maxilar com impaciência, manuseando-o com suas mãos em luvas.
- Você está aqui para lecionar e fazer pesquisas, dra. Wilde, não para usar este departamento como um trampolim para seu crescimento pessoal.
Era um golpe baixo, mas fez River perceber que Percival não conseguira arrumar uma objeção profissional decente à sua proposta. Ela abriu um sorriso.
- Não estou fazendo isso para aparecer na televisão - disse ela. - Só estou interessada no trabalho em si. E estou disposta a fazer o que for necessário para
realizá-lo da melhor forma possível.
Percival deixou escapar um suspiro cansado.
- Eu sei disso, dra. Wilde. Foi por isso que decidi contratá-la. Muito bem. Pode prosseguir com a sua idéia. Mas não feche nada com esse pessoal antes de
me mostrar os termos e as condições do acordo.
- Obrigada, professor - agradeceu River, controlando a vontade de dar outro soco no ar. - Você não vai se arrepender.
Ele suspirou novamente.
- Espero que não. Agora, antes que você saia correndo para se maquiar, talvez possa dar uma olhada nisto aqui. - Ele lhe entregou o osso maxilar, o que ela
considerou como um gesto de reconciliação. - Estou intrigado com a natureza do desgaste desses molares.
Com o seu próprio trabalho à frente, Jane Gresham tentava se concentrar no seminário para alunos de faculdade que ela deveria conduzir na semana seguinte, sobre
o papel da falácia patética na poesia romântica. A escassez
de inspiração era tanta que ela apelara para os volumes encapados das Atas da Associação de Línguas Modernas, em busca de algo que pudesse ajudá-la a estruturar
sua
apresentação. Estava entretida com um artigo particularmente chato sobre os primeiros trabalhos de Coleridge, quando a cabeça de Dan surgiu sobre o compartimento
onde ela estava na biblioteca.
- Sabia que ia te encontrar aqui - disse ele, com um leve ar de pretensão na voz.
- Não precisa ser nenhum gênio para isso - respondeu Jane, em tom de reprimenda. - Ainda mais levando em consideração que sempre sento no mesmo lugar.
Ele deu a volta e fez uma careta de desgosto ao ver o que ela estava fazendo.
- Meu Deus. Para você ter apelado para as atas é porque o desespero está chegando mesmo.
Jane empurrou o livro.
- Já chegou.
- Então fuja comigo pra longe de tudo isso e eu lhe pago um café.
- Não posso; sério. Tenho que preparar esta aula.
Dan ergueu as sobrancelhas e franziu os lábios.
- Acredite, você vai se sentir bem melhor após uma dose de cafeína e meia hora ao meu lado.
Fingindo uma briga, Jane se levantou e colocou a caneta no bolso.
- Vou deixar as minhas anotações aqui - avisou ela, deixando claro que havia limites para o grau da sua predisposição a ser distraída.
Sem perder mais tempo discutindo, caminharam para fora do prédio e dobraram a esquina, em direção ao Bear and Staff. O pub servia um bom café e, ao contrário do
refeitório para os alunos, ainda permitia que os fumantes desfrutassem seu vício. Jane abriu um sorriso largo assim que Dan voltou para a mesa com duas xícaras grandes
de mocha com uma pirâmide de creme chantilly em cima.
- Você é um homem muito mau - brincou ela.
- Não acredito em meias medidas.
- Não sei como consegue continuar tão magro - reclamou Jane, contemplando a barriga tanquinho por trás da camiseta branca.
- Muitos exercícios, querida. E cigarros. Eles acabam com o apetite, você sabe.
- Quem tem que aturar você fumando que o diga. - Jane tomou um gole do seu café, saboreando o contraste do creme gelado com a bebida quente por baixo. - Humm.
É o paraíso. Então, Dan, por que estou aqui?
Ele fez uma expressão dissimulada de inocência.
- Jane, estou bobo com você. Até parece que nunca te convidei para um café antes.
Jane girou os olhos.
- Você nunca se deu ao trabalho de ir me catar na biblioteca e me arrastar para o pub antes. Eu tenho que voltar para o que estava fazendo, então não me obrigue
a arrancar de você à força. - Com um dar de ombros, ele abriu as mãos em um gesto que ela reconhecia. Garotinho se fazendo de inocente, pensou ela. Você está ficando
velho para isso, caro Danny.
- O que posso fazer? Você me pegou, gata. Sim, eu realmente estou com segundas intenções.
- Bem, acho bom você me contar logo o que é, porque eu não tenho tempo para brincar de adivinha. Desembucha.
Dan alisou a sobrancelha em um gesto que ela já vira muitas vezes em reuniões de professores. Era o seu modo de ganhar tempo.
- Lembra o que estávamos conversando noutro dia, sobre Christian e Wordsworth? Aquilo está meio que me incomodando - disse ele.
- Incomodando? Como?
- Somos amigos há muito tempo, Jane. Acho que te conheço muito bem. - Ele balançou a cabeça, para dar mais ênfase. - Até aquele dia, não tinha me dado conta
de como você leva a sério essa história do Fletcher Christian. E, de todas as pessoas com quem trabalho, eu diria que você é a menos suscetível a se deixar influenciar
por um boato infundado.
Jane sentiu uma súbita tensão no pescoço.
- Estou lisonjeada, Dan. Mas todos nós temos o nosso ponto fraco. Arthur Conan Doyle acreditava em fadas. Hugh Trevor-Roper levava a sério os diários de Hitler.
Eu acredito no épico perdido de Wordsworth. Você não deve perder o sono por causa disso.
- Boa tentativa, Jane, mas não colou. Você não me engana. Acho que tem mais coisa nessa história que você não me contou. E eu quero te ajudar.
Jane fitou a xícara de café. Fazia tanto tempo que guardava aquele segredo que, às vezes, especulava se não o sonhara. Não contara para
ninguém, nem mesmo para Jake, apesar de amá-lo e de estar ciente de que, se existia alguém capaz de autenticar o que ela havia visto, era ele. Ou pelo menos devia
conhecer alguém que pudesse. E, não tendo compartilhado com Jake, como oferecê-lo a Dan? Embora fosse difícil negar que ele lhe poderia ser útil. O trabalho de pós-graduação
dele sobre as congruências lingüísticas entre os poetas românticos da Região dos Lagos bem que poderia ajudá-la a verificar qualquer coisa que encontrasse como sendo
típica de Wordsworth, em sua escolha de palavras e estruturas gramaticais. Mas ainda assim estava relutante.
- Por favor, Dan. Acredite.
- Jane, olhe para mim - pediu ele, com preocupação e seriedade na voz. Ela levantou a cabeça. - Você deve seguir os seus sonhos. Como é que vai se sentir
se realmente houver algo e outra pessoa descobrir primeiro?
Já havia feito aquela pergunta a si mesma inúmeras vezes. Tirou o cabelo do rosto e tomou uma decisão.
- Você conhece bem o arquivo do Dove Cottage?
Dan pareceu surpreso. Certamente não devia ser o que ele estava esperando.
- Eu já fiz algumas pesquisas lá, quando estava trabalhando nas comparações lingüísticas entre os primeiros trabalhos do De Quincey e a prosa de Wordsworth.
É um arquivo imenso. Mais de 50 mil itens ou algo assim.
- Tantos que nunca foram catalogados em definitivo. Bem, eles estavam para abrir uma biblioteca e um centro de estudos, de modo que boa parte do material
estava encaixotada, esperando a mudança. Mais ou menos inacessível para quem precisasse consultá-la. - Jane se calou, descartando os últimos vestígios de dúvida.
- Então -, continuou ela - eu queria dar uma olhada numas cartas de família e, para variar, justo o que eu queria já estava encaixotado. Mas eu conhecia Anthony
Catto, o diretor do centro, desde que estava na escola. Trabalhei lá duas vezes nas férias de verão, antes de me formar. Acabei convencendo Anthony a me deixar vasculhar
as caixas. E, no meio das coisas que esperava encontrar, me deparei com algo sobre o qual jamais vi uma única referência na literatura.
- Pausa dramática - queixou-se Dan, secamente. - Vamos lá, Jane, você está me matando com esse suspense.
- Foi colocado no envelope errado, junto com a carta que deveria estar lá. Não creio que alguém tenha notado antes. A carta que estava junto não tinha nenhuma
relevância específica, sabe? Provavelmente, não manuseada havia muitos anos.
- Jane - protestou Dan em voz alta.
Ela fechou os olhos por um momento, conjurando a imagem em sua memória.
- Era uma carta de Mary Wordsworth para um de seus filhos. Acho que para o John, já que ela menciona crianças, mas não uma mulher, e John era viúvo. "Meu
querido filho, espero que você e as crianças estejam bem de saúde. Hoje encontrei algo perturbador entre os escritos de seu pai. Creio que você vai se surpreender
ao saber que, a despeito da íntima cumplicidade que compartilhávamos, eu desconhecia o assunto enquanto ele ainda era vivo, e desejava, de coração, ter permanecido
nesse estado de ignorância. Você logo vai compreender a necessidade de sigilo que afligiu seu pai em vida, e ele não me deixou nenhuma instrução sobre o que devo
fazer com isso. Uma vez que lhe diz respeito, e pode dar ensejo a mais sofrimento, gostaria de deixar a decisão a seu encargo. Enviarei o material por um mensageiro
de confiança. Faça o que julgar mais correto." - Jane abriu os olhos e fitou Dan, muito séria. - Você percebe o que isso pode significar?
Dan franziu as sobrancelhas.
- Pode significar praticamente qualquer coisa, Jane - disse ele, dócil.
- Mais ou menos, Dan. William e Mary tinham uma relação extraordinariamente íntima. Não tinham segredos um com o outro. Não obstante, eram bons em guardar
segredos de família. Veja quanto tempo se passou até o mundo ficar sabendo do caso que William teve com Annette Vallon e sua filha ilegítima. Gerações inteiras se
sucederam sem nenhum sinal de escândalo.
- Está bem, está bem, nisso eu tenho que concordar com você. Mas mesmo assim...
Jane continuou, ignorando-o:
- Para William ter escondido algo de sua mulher, devia ser uma coisa bem séria. Uma questão de vida ou morte. Isso é um argumento. O outro é o trecho sobre
o assunto dizer respeito ao filho. Ora, John era casado com Isabella Christian Curwen, filha de Henry Christian Curwen. E ele era
primo de Fletcher Christian. Na época em que Wordsworth morreu, Isabella também já estava morta. E o casamento tinha sido péssimo. Ela era uma menina rica e mimada,
que gostava de ficar doente. É isso mesmo que eu disse. John já havia sofrido bastante nas mãos dos Christian Curwen. Quebrei a cabeça procurando uma alternativa,
mas a única coisa que pode explicar tanto o segredo quanto o possível motivo de sofrimento para John é minha tese de que Fletcher não só voltou, como contou toda
a história para William.
- Mas, mesmo assim, ainda é muita forçação de barra - ponderou Dan. - Podia ser, sei lá, algo desabonador sobre Isabella que William tivesse descoberto.
Jane parecia decepcionada:
- Viu só, eu disse que era bobagem minha - disse ela, trêmula, tentando não dar importância ao assunto.
- Não, não foi isso que eu quis dizer. Acho que tem alguma coisa aí, sim. A despeito do que Mary quisesse dizer, é algo jamais abordado por alguém antes,
e isso por si só já é interessante do ponto de vista acadêmico. Acho que temos que investigar isso. E logo, Jane.
- Mas já se passou mais de um ano, Dan. E ainda vai ter que esperar até eu ter algum tempo livre para examinar o novo arquivo direito. - Ela terminou o café
e vestiu o casaco, preparando-se para ir embora.
- Será que espera?
- E por que não esperaria?
- Jane, foi você quem chamou a atenção para as tatuagens do corpo mumificado, que poderiam ser dos Mares do Sul. E se acabarem descobrindo que o corpo é mesmo
de Fletcher Christian? Depois que conversamos naquele dia, eu fiz uma pesquisa básica na internet. E uma das coisas que eu li foi que Fletcher pode ter virado contrabandista
depois que voltou para a Inglaterra. É exatamente o tipo de carreira que poderia levá-lo a uma morte misteriosa nas montanhas. Pode ser ele mesmo. E, se for, Deus
e o mundo vão revirar todos os arquivos da Região dos Lagos. E vai ser tarde demais. Alguém terá roubado o seu sonho. - Ele segurou a mão de Jane, apertando-a. -
Você precisa se apressar. E precisa da ajuda de um especialista. E ninguém melhor do que eu.
Sabia que podia contar com você, Willy", disse ele. "Meu irmão me contou o quanto foi gentil ao me defender das calúnias publicadas nos jornais. De fato, eu havia
escrito para o editor do Weekly Entertainer denunciando as mentiras que haviam sido publicadas em relação ao meu velho amigo, como uma gentileza ao seu irmão Edward.
"Como veio parar aqui", perguntei-lhe. Ele respondeu que era uma longa história e que gostaria muito de compartilhá-la comigo. "Espalharam mentiras infames sobre
mim e eu gostaria muito de contar a verdade. Não conheço ninguém mais capaz de tornar a minha história adequada ao público do que você, meu velho amigo." Confesso
que fiquei estupefato perante a idéia de me tornar seu amanuense, mas, quanto mais ponderava a respeito, mais aquela me parecia uma história digna de versos. A composição
do longo Poema sobre a minha vida me rendeu um gosto para o épico em detrimento do lírico, e o seu relato na certa há de ser épico, abarcando forçosamente o melhor
e o pior da natureza humana.
6
Jake Hartnell parou por um momento na sombra amena sob o pórtico de ferro corrugado do mercadinho de Koutras, segurando as pesadas sacolas plásticas em uma das mãos.
Deixara a Inglaterra fazia três semanas e desde então não escutara um noticiário ou lera alguma notícia em um jornal inglês, fora uma ou outra manchete de relance.
O sol podia até ter escurecido sua pele morena a ponto de ele quase poder passar por um nativo do sul do Mediterrâneo, mas ainda estava longe disso. Ao ver as manchetes
familiares, sentiu uma súbita pontada de saudade.
Atravessou a rua estreita, depositou as compras na traseira da picape aberta e voltou para a banca de jornais estrangeiros. Imaginou que deviam estar alguns dias
atrasados, mas, estando tão distante, não faria a menor diferença. Apanhou o Times e o Guardian e voltou para o ar-condicionado gelado para pagar a quantia exorbitante
cobrada pelas edições importadas. Partiu em seguida, sentindo-se curiosamente mais leve.
Quando Caroline Kerr o convidara para dar uma escapada até sua casa em Creta, ele imaginara uma propriedade suntuosa, com terraço e olivedo, apesar de ela ter empregado
a palavra "pequena". Afinal de contas, em Londres, ela morava numa casa de três andares a cinco minutos de Hampstead Heath, primorosamente mobiliada com o tipo de
antiguidade que alardeia em silêncio que as visitas estão diante de alguém rico há tempo suficiente para ter desenvolvido bom gosto. E, além do mais, pessoas como
ela jamais se gabavam de suas posses. As suas "pequenas" casas de campo normalmente eram imponentes como casa de reitor ou chalés georgianos, cujas proporções haviam
triplicado no decorrer dos anos. De modo que ele esperava muito da casa em Creta.
O percurso de vinte minutos desde o aeroporto através da península escarlate e verde-acinzentada de Akrotiri não fora grande coisa. Mas, ao avistar o mar turquesa,
seu coração disparou. Caroline havia embarricado a caminhonete por uma estrada íngreme, passando por uma minúscula capela branca esculpida num escarpamento rochoso
até uma praia em meia-lua dominada por uma taverna de madeira com mesas espalhadas pela areia. Ela parou abruptamente atrás da taverna para apanhar as chaves. Jake
olhara à sua volta, apreciando a vista e notando, entusiasmado, várias casas imponentes nos arredores da baía, especulando qual delas serviria de abrigo para sua
nova vida sob o sol.
Para sua surpresa, Caroline avançou de carro para depois das casas, subindo uma trilha ao lado de uma pequena doca de concreto até um trio de chalés empoleirados
em um cume estreito, com uma vista para a baía que descortinava o mar adiante.
- Chegamos - anunciara ela com um tom de profunda satisfação. Jake mal pôde disfarçar a sua decepção enquanto a seguia, atravessando um pequeno pátio de cimento
até o minúsculo interior da residência. Não podia acreditar que abandonara sua vida em troca daquilo, pensava ele, xingando por dentro. A porta se abriu e revelou
uma pequena sala de estar, mobiliada com duas poltronas, uma mesa simples com quatro cadeiras e um aparelho de som caríssimo. Uma das paredes revelava uma cozinha
rudimentar
- pia, geladeira, fogão, dois armários e uma bancada. O piso frio de ladrilhos estava despido de tapetes. Na estante sobre a lareira, havia um grupo de pequenas
figuras minóicas. Era a única decoração do cômodo. Caroline deixou escapar um leve gemido de satisfação. Atravessou a sala em poucos passos e abriu uma das duas
portas. -Aqui é o quarto - disse ela. - Pode deixar as malas aqui.
Era mais um cômodo sem graça, dominado por uma imensa armação de cama em madeira esculpida. Um mosquiteiro pendurado no teto. A mobília se resumia a um armário.
A única coisa que distinguia o quarto de uma acomodação básica para mochileiros eram dois esplêndidos tapetes Bokhara de seda, um de cada lado da cama. Meu Deus,
pensou ele, é só um pouquinho melhor do que uma vida miserável de camponês. Jake largou as malas no chão e voltou para a sala de estar. Caroline fez um gesto para
a outra porta. - O banheiro - disse ela. - Um banheiro grego antigo um pouco melhorado.
Curioso, ele abriu a porta. Sabia, a julgar pela casa de Caroline em Londres, que ela levava seus banhos a sério, mas ele já experimentara o encanamento grego antes
e tinha lá as suas dúvidas. Para a sua surpresa, viu-se diante de uma pequena réplica do toalete principal de Highgate. Piso de mármore, uma bela banheira, um box
com chuveiro onde cabiam duas pessoas, duas pias - tudo o que havia de melhor em termos de decoração moderna de luxo.
- Caramba - disse ele, voltando para a sala. - Como conseguiu isso?
Caroline sacudiu o cabelo loiro-escuro do rosto em um gesto habitual de indiferença.
- Contatos, meu bem, contatos. - Ela entrou no quarto e abriu a sua mala. - Roupas limpas e um bom drinque depois.
Jake gostou da idéia.
- É tudo muito simples e maravilhoso - elogiou ele, seguindo a sua deixa e caçando um short na mala. - Mas como vamos conseguir trabalhar aqui?
Mal-entendido, Caroline achou graça.
- Eu sei, é tão tentador, não é? O mar, a praia, a taverna. É duro, mas eu tenho que me lembrar que a única maneira de justificar dois meses por ano aqui
é fazendo alguma coisa produtiva.
- Não, eu quis dizer em termos práticos mesmo. Você não tem um computador, um fax, uma linha telefônica, pelo que estou vendo.
Caroline se empertigou, com um short e uma camiseta na mão.
- Francamente, Jake, você às vezes é tão século XX. Laptop, Blackberry, conexão wireless, isso é tudo de que eu preciso. Eu pego os catálogos do leilão pelo
site e, se quero dar algum lance, faço por telefone. E eu tenho bons contatos locais que ficam de olho em tudo o que possa minimamente me interessar. E, acredite,
há coisas maravilhosas para se arrematar por aqui. Belos textos ilustrados dos mosteiros, partituras da Idade Média, tão lindas que dão vontade de chorar. Garanto
que você não vai ficar desapontado com o que vamos encontrar nessa viagem. Eu própria sempre me surpreendo. Fico me lembrando do prazer de sentir essas coisas maravilhosas
passando pelas minhas mãos. Você vai ver só.
- Mas eles não são meio chatos com essa história de antiguidades sendo levadas para fora do país? - perguntou Jake distraído, enquanto tirava o jeans, suado
da viagem de avião e de carro.
- São. Mas sempre se dá um jeito - garantiu ela, desencorajando mais perguntas com o seu tom de voz.
Àquela altura, já compreendia o que ela quisera dizer com aquilo. Para alguém que trabalhava com compra e venda de pedaços de papel - cartas holográficas, manuscritos
antigos e modernos, partituras ilustradas -, era fácil enviar um material irregularmente adquirido para a Inglaterra. Desde que o envelope parecesse com o de uma
postagem inocente de negócios - o folheto para uma vila ou o prospecto para um novo empreendimento comercial -, ninguém nos correios gregos ou ingleses prestaria
atenção nele.
- Faço isso há mais de dez anos e até hoje só perdi um item - lhe dissera Caroline tranqüilamente na primeira vez em que o levara à principal agência dos
Correios em Chania. - E nem era de muito valor. As pessoas só se interessam se você começa a enviar o produto como mercadoria registrada e o põe no seguro. Do contrário,
passa despercebido.
Rapidamente, os seus dias ganharam uma rotina. Dormiam até tarde, depois Jake dirigia até Horafakia para comprar pão fresco, frutas e iogurte. Tomavam café no terraço,
depois desciam até a praia, para um banho de mar. Às vezes, iam até Chania, para Caroline encontrar-se com um dos seus contatos gregos que, de vez em quando, apareciam
com algum trabalho que o deixava pasmo; do contrário, Caroline disparava e-mails e dava telefonemas, enquanto Jake examinava catálogos de leilão ou repousava com
um livro sob o sol. De vez em quando, mergulhavam em um manuscrito, discutindo a caligrafia do escriba, suas prováveis origens e, por fim, o seu valor em potencial.
Ele ficou alegremente surpreso ao constatar o quanto estava aprendendo com Caroline. O almoço na taverna era seguido por uma tarde de sexo e sono, depois drinques
e partidas de gamão. À noitinha, saíam para jantar. O dia terminava com outra rodada de atividade sexual. Jake estava começando a entender por que Caroline preferia
namorados mais jovens; os homens da idade dela, agora compreendia, normalmente não tinham mais pique para agüentar seu ritmo. Não que ele se incomodasse. Gostava
de sexo e ela era uma parceira entusiasmada e criativa.
O que de fato o incomodava era a semente de tédio que começava a germinar em sua mente, cada vez mais rápido. Como a maioria dos homens de vinte e tantos anos, ele
sonhara com uma vida daquelas. Sol, mar, sexo e uma coroa gostosa para bancar suas contas. Caroline era uma companhia divertida, dona de um humor sarcástico, jamais
pegajosa, raramente deixava de ter um temperamento sereno e uma tremenda generosidade para compartilhar seus conhecimentos. Mas, ainda assim, Jake sentia os primeiros
indícios de insatisfação.
Não que se sentisse culpado. Estava convencido de que fizera bem em não contar a Jane a verdade sobre Caroline. Só iria magoá-la. Em vez disso, explicara que havia
bons motivos de ordem prática para que ele e Jane afrouxassem os laços de seu relacionamento - ele teria de viajar a trabalho, ficaria na Grécia por dois meses,
Jane não deveria ficar à espera dele. Dissera que Caroline estava na casa dos quarenta, mas omitira o seu físico esguio e enxuto, suas pernas bem torneadas, sua
vasta cabeleira loira e seus inquietos olhos verdes. Ou que o sexo fora fantástico, desde a primeira trepada movida a cocaína na festa de Tom D'Arblay. A festa a
que Jane não pudera ir porque estava apresentando um ensaio em um maldito simpósio idiota em Cardiff.
Ele achou que não passava de uma noite de sexo casual. Ficara surpreso quando Caroline lhe mandou uma mensagem de texto no dia seguinte, sugerindo que se encontrassem
para um drinque. Tomando coquetéis em um bar chique no Soho, Caroline fora radiante e inteligente, mostrando-lhe uma carta autografada de John Keats que ela acabara
de comprar naquela mesma tarde. Foi então que lhe fizera a proposta. Estava cansada da sua carreira solo. Queria um sócio no seu negócio de compra e venda de documentos
raros. E ele era, ela garantira, o candidato ideal. Conhecia os aspectos técnicos do que estariam comprando e vendendo o bastante para evitar as armadilhas das falsificações
óbvias e procedências falsas. Ele era visivelmente esperto e ambicioso.
- E além de tudo trepa bem - acrescentou ela, sorrindo, maliciosa, com os lábios tocando o copo.
Ela lhe dera uma semana para pensar no assunto. Ele tomou sua decisão na manhã seguinte. Seu chefe ficara furioso, Jane ficara estarrecida por vê-lo abandonar a
suposta pureza da vida no museu para o universo implacável
dos colecionadores e endinheirados, e seu pai lhe antecipara o que acontece quando as mulheres bonitas ficam entediadas. Nada disso importava. Pela primeira
vez em um bom tempo, Jake estava se divertindo. Creta fora apenas a cereja do bolo.
Até a realidade substituir a fantasia e ele se sentir de saco cheio pela primeira vez desde que tinha 13 anos.
Jake deteve-se do lado de fora do chalé. Deslizou os dedos pelo cabelo grosso e escuro, imaginando se Caroline perceberia alguma coisa ao ler os jornais. Apanhou
as sacolas e pôs-se a espalhar as compras junto das comidas já organizadas na mesa do pátio. Caroline apareceu com uma jarra de suco fresco assim que ele se deixou
desabar em uma cadeira, segurando os jornais como um escudo diante do peito.
Ela sorriu com um dos cantos da boca.
- Bom trabalho, Jake - disse, enchendo os copos.
- Hein?
- Você agüentou mais tempo do que todos os que eu já trouxe aqui até hoje. Três semanas e dois dias. É um recorde. - Inclinou-se para beijá-lo, bagunçando
seu cabelo com uma das mãos e acariciando seu sexo com a outra.
- Você não vai ficar chateada? - perguntou ele, surpreso.
- E por que ficaria? Não costumo tapar o sol com a peneira. Não estou aqui para fugir de nada. - Sentou-se, elegante, em uma cadeira e deslizou os óculos
escuros do cabelo para cobrir os olhos. - Estou aqui porque adoro e porque posso estar aqui sem estragar a minha vida, ou os meus negócios. O único motivo pelo qual
não peço a você para comprar jornal em Koutras todas as manhãs é porque posso ler as notícias na internet, meu bem.
Puseram-se a ler os jornais, Jake se mostrou incomodado com o ar de superioridade de Caroline. Estava começando a questionar se ela levava sua capacidade a sério;
cada vez mais se sentia como um gigolô, valorizado apenas pelas suas habilidades na cama e não pela inteligência. Não estava prestando muita atenção no que lia,
mas de repente deparou-se com um nome familiar e ele resolveu reler a reportagem do início.
- Caralho - murmurou baixinho.
Caroline suspendeu os olhos.
- Onde? - perguntou ela, brincando. - O que foi, querido?
Jake balançou a cabeça.
- Nada de mais. - Ele esticou o braço sobre a mesa, apontando a matéria no jornal. - É que eu conheço esse lugar.
Caroline passou os olhos pela matéria.
- Fellhead - disse ela, um tom blasé na voz e uma expressão inescrutável no rosto. - A simpática Jane não é de lá?
Nenhum dos dois havia discorrido muito sobre o passado por um acordo tácito, mas Jake mencionara suas idas para a Região dos Lagos com Jane quando Caroline cogitara
comprar algumas cartas de Robert Southey.
- É - respondeu ele, abrindo um sorriso em seguida. - Tomara que ela tenha lido isso.
- Por quê? Fellhead não aparece nos jornais todos os dias?
- Não... - Debruçando-se sobre a mesa, ele apontou o penúltimo parágrafo. - Porque ela vai ficar convencida de que isso aqui é a prova para uma das suas teorias
malucas.
- Não estou entendendo nada - confessou Caroline em um tom que deixava claro que não era por opção.
- As tatuagens pretas. São do tipo que os marinheiros usavam para ingressar nos Mares do Sul antigamente, quando os navios à vela aportavam nas ilhas para
buscar provisões e fazer trocas com os nativos - explicou Jake. - Por exemplo, a maioria dos marinheiros do Bounty fez tatuagens quando estavam no Taiti, recolhendo
a fruta-pão que deveriam levar para a Inglaterra.
- Hum você está por dentro, hein?
- Jane repetiu a sua teoria de estimação tantas vezes que eu acabei decorando. - Jake reclinou-se na cadeira, satisfeito por estar no comando daquela vez.
- Ela acha que Fletcher Christian não morreu em Pitcaim. Que ele voltou para a Região dos Lagos e foi escondido pela família. É um boato que corre na região há duzentos
anos.
- Divertido - disse Caroline. - É impressionante como as lendas urbanas surgiram antes mesmo do conceito de urbano.
Ele sorriu, divertindo-se com ela.
- Mas Jane não parou por aí. Aí é que entra a maluquice. Ela está convencida de que, se Christian voltou para a terra natal, ele devia estar doido para contar
sua história, limpar seu nome.
- Ela deve ter razão - disse Caroline, lânguida, apanhando um cigarro e o acendendo. - Se você estivesse no lugar do sujeito, não ia querer contar a sua versão
da história?
- Bem, Jane acha que ele foi procurar o seu antigo colega de colégio William Wordsworth e lhe contou sua versão dos acontecimentos. E que William o escreveu
sob a forma de um longo poema narrativo que, é claro, jamais pôde publicar, temendo as graves conseqüências que poderiam recair sobre ele e a família Christian.
Caroline ficara ereta na cadeira, tirara os óculos escuros e o estava encarando com um olhar fixo.
- Fletcher Christian estudou com Wordsworth? - perguntou ela.
- Ao que parece, sim. Jane diz que essa parte da história é um fato incontroverso. O resto é especulação, boato, fantasia da cabeça dela.
- Jake, você faz idéia do que um poema desses valeria, supondo que realmente existisse? - Súbito, a máscara grega caíra, revelando a impetuosa negociante
londrina que ele conhecera.
Ele franziu o cenho, constrangido e pego de surpresa.
- Nunca pensei a respeito. Uns 100 mil?
Caroline sacudiu a cabeça, incrédula.
- No mínimo, dez vezes mais. Talvez até mais. Eu estimaria algo entre um e dois milhões, dependendo do tamanho do poema.
Jake assoviou.
- Pena que não existe de verdade - sentenciou ele, com firmeza.
Caroline o fitou com uma expressão inescrutável.
- Como é que você sabe que não existe?
- Não há nenhum indício de que exista. De que já existiu algum dia. É só uma idéia maluca de Jane - balbuciou ele.
- Jane, que é especialista em Wordsworth - disse Caroline, com um tom ácido escapando de sua doçura.
- É, mas...
- Ela deve saber bem do que está falando.
- Não acredito que você esteja levando isso a sério - criticou Jake, sentindo uma pontada de raiva por estar sendo ignorado mais uma vez.
- Você está começando a sua carreira como negociante, Jake. Acha que pode se dar ao luxo de não levar isso a sério?
Eu lhe disse que estava disposto a aceitar seu pedido, mas que temia as conseqüências desastrosas que tal relato pudesse provocar, caso fosse publicado. Você é um
homem procurado e, se o meu poema fosse revelar a verdade, eu também estaria em perigo. Oferecer refúgio a um conhecido fugitivo da lei é crime contra Sua Majestade
e eu detestaria privar minha mulher do marido, e os meus filhos do pai, mesmo para defender a honra de um velho amigo como você. E, depois, viriam persegui-lo justo
no lugar em que se sente mais protegido. Tais preocupações não haviam ocorrido ao meu amigo, mas ele rapidamente percebeu a força da razão em meus argumentos. "O
que dizem não me incomoda, mas gostaria de fazer isso pela minha família", disse ele. Finalmente, concordamos que, se eu criasse um poema de sua história, ninguém
ficaria a par dele até que nós dois estivéssemos mortos. Assim, estaríamos nos protegendo e restaurando sua reputação em um só golpe.
7
A professora Maggie Elliott a fitou através dos óculos de grau que se equilibravam na pontinha do nariz.
- Parece-me, Jane, que existem dois elementos distintos aqui. Um é a carta de Mary Wordsworth se referindo a algo que, até onde sabemos, ainda não foi elucidado
por nenhum outro especialista acadêmico. O segundo é a descoberta de um corpo em Lake District, que pode ter ou não tatuagens típicas das ilhas dos Mares do Sul
durante a época do motim no Bounty. Você concorda com esta análise?
Jane se remexeu discretamente na cadeira.
- Bem, concordo.
- Mas você acredita que esses dois elementos podem estar inextrica-velmente ligados? Tendo como base apenas um boato que você ouviu quando era criança?
- Um boato que já dura duzentos anos - ponderou Jane, com uma certa teimosia na expressão.
- Mas, mesmo assim, um boato.
Jane detestava o modo como a professora Elliott assumia um ar pedante de acadêmica formada em Oxford ou Cambridfte, quando na verdade conseguira seus três diplomas
em universidades muito menos prestigiadas. Por ser jovem, devia ser mais acessível e descontraída, não uma antiquada agindo como se fosse vinte anos mais velha e
em posição muito superior a seus alunos.
- Um boato respaldado por uma quantidade significativa de indícios circunstanciais - disse Jane, determinada a não receber um banho de água fria. - Como eu
resumi. E tem outro detalhe...
A professora Elliott ergueu as sobrancelhas, intrigada.
- Qual?
- Os cadernos de Samuel Taylor Coleridge estão no Museu Britânico e em um deles está escrito: "As aventuras de Christian, o amotinado." É o mesmo caderno
que ele estava usando na época em que compôs O Velho Marinheiro. E, se você ler o poema sob esta luz, não é difícil encontrar conexões com a viagem do Bounty.
- Por exemplo?
- As terríveis tempestades que eles tiveram de enfrentar ao contornar o cabo. O modo como foram levados para o sul, rumo ao gelo, até conseguirem alcançar
os Mares do Sul. E o albatroz. Existem registros de que a tripulação do Bounty caçou e comeu albatrozes durante sua viagem. Pelo que sei, não havia nenhuma superstição
relacionada à matança desses pássaros na época. Mas, para fazer o poema funcionar, Coleridge precisou inventar uma metáfora para o pecado. E a morte de um belo pássaro
errante alimentava sua alma romântica. - As mãos de Jane simularam um movimento sensual de onda para descrever o pássaro. - No entanto, hoje em dia existem relatos
de que foi Wordsworth quem teve a idéia do pássaro em uma de suas caminhadas com Coleridge. Não acho exagero sugerir que o conceito já tivesse sido plantado na mente
de Wordswoth pelo que soube ào Bounty.
A professora Elliott balançou a cabeça.
- Você deve estar confundindo as épocas. Coleridge estava trabalhando no Velho Marinheiro quando ele e Wordsworth se encontravam em Dorset. É cedo demais
para Fletcher Christian ter voltado à Inglaterra. E é claro que não temos motivo para supor que ele estivesse em Dorset.
Jane assentiu com a cabeça.
- Não estou dizendo que Wordsworth estava a par da história em primeira mão nessa época. Mas acho que comprova a existência de um interesse no motim. E ele
pode muito bem ter matado sua curiosidade por intermédio de Edward Christian. É muito provável que Edward tivesse ouvido falar da matança aos albatrozes pelos amotinados
que voltaram ou pelos relatos de Bligh. É o típico detalhe que teria chamado a atenção de Wordsworth. E, se ele já tivesse demonstrado interesse no motim, mais um
motivo para Edward mandar Fletcher ir procurar Wordsworth quando ele finalmente regressou à Inglaterra.
A professora Elliott deu um sorriso em que não era difícil notar o desdém.
- Essa teoria é ainda mais vaga do que a suposta relação entre o corpo e a carta. O que a faz pensar que há alguma urgência ligada à exegese dessa carta?
Nas três horas de que dispusera depois de se despedir de Dan, Jane havia tido oportunidade de organizar seus argumentos.
- Não é só o corpo que torna o assunto mais urgente. O Jerwood Centre está prestes a ser inaugurado na Fundação Wordsworth. Em dois tempos, cada pedacinho
de papel daquele arquivo será examinado e provavelmente a pessoa que encontrar a carta de Mary terá uma boa noção do que tem em mãos e vai querer pesquisar. Eu encontrei
a carta. Eu quero pesquisar primeiro.
A professora Elliott deixou escapar um suspiro.
- Isso não é novidade nenhuma para você, Jane. Você disse que encontrou a carta um ano atrás. Por que não investigou antes? Durante as férias prolongadas,
por exemplo? Por que esperou o semestre começar, quando está cheia de compromissos acadêmicos?
Jane pôde sentir a raiva despontando e tentou manter a voz calma:
- Maggie, caso não tenha percebido, eu não ganho o bastante para me manter dando aula aqui. Passei uma boa parte das férias de verão trabalhando no balcão
de um bar e o resto tentando transformar minha tese em um livro, pelo qual consegui, por milagre, um contrato numa editora. Mas, mesmo supondo que eu tivesse tido
tempo de investigar isso, a maior parte do arquivo de Wordsworth está inacessível por causa das obras. Mesmo que eu quisesse, não poderia ter feito nada. E o corpo
de fato acrescenta uma certa urgência ao assunto para mim, mas está longe de ser o único motivo.
A coordenadora do seu departamento sorriu, mas dessa vez sem nenhum ar de superioridade.
- Eu sei disso, Jane. Acredite, se eu pudesse encontrar um modo de pagar mais a você e aos outros professores, eu o faria. Compreendo totalmente o impacto
negativo que causa em sua pesquisa. E, apesar da sua conclusão precipitada, não descarto a possível relevância do corpo mumificado. Se ficar provado que é Fletcher
Christian, ou qualquer outro tripulante
do Bounty, as chances de existir um manuscrito como você supõe aumentam exponencialmente. - Ela puxou o teclado do computador para si e lançou um olhar para Jane
por cima dos óculos. - Por mais estranho que possa lhe parecer, eu me lembro bem da euforia das descobertas acadêmicas. Ainda não foi completamente esmagada pelo
fardo da coordenação do departamento. - Ela deu um clique no mouse e examinou o monitor. - Você ministra três aulas por semana e está orientando três alunos, não
é isso?
- Estou, mas...
A professora Elliott ergueu o dedo pedindo silêncio enquanto verificava a escala do departamento.
- Deixe-me ver - disse ela, com a voz arrastada.
- Dan Seabourne se ofereceu para assumir minhas aulas por duas semanas, desde que possamos alterar os horários para que as aulas caiam no mesmo dia. - Jane
ousou interromper o processo.
Elliott ergueu as sobrancelhas.
- Mesmo? Não é típico dele se sobrecarregar de trabalho.
Jane abriu um sorriso.
- Ele não é tão preguiçoso quanto parece. Só não definiu ainda o que vai fazer da vida, em termos de trabalho.
Elliott deixou escapar um grunhido.
- E você está certa de que ele domina bem a sua área para dar conta do trabalho?
- Acho que sim. São aulas para universitários. Não é difícil se manter um passo à frente do grupo. Não ultimamente, com aulas do tamanho de palestras - acrescentou
Jane, com uma pitada de amargor.
- Mais uma coisa sobre a qual não exerço controle - retrucou Elliott. Voltou a fitar a tela. - Acho que não tem problema, então. Muito bem. O sr. Seabourne
vai substituir você. Vou mandar um e-mail para garantir que ele está a par de quando e onde deve comparecer. Você tem duas semanas e três dias antes de ter que se
apresentar aqui. Imagino que será tempo suficiente - disse ela, consultando os horários no computador.
Jane ficou de pé.
- Se eu não tiver feito nenhum progresso até lá, é sinal de que não vai ser uma investigação rápida.
- E se tiver?
Jane apanhou sua bolsa.
- Então, é possível que eu volte aqui para implorar.
Maggie Elliott lhe lançou um olhar mordaz.
- Faço votos que não. Não quero a sua ficha como a de alguém que não está comprometido com o departamento. Nunca se sabe quando é preciso fazer cortes.
Era o mais próximo que chegara de um endosso sincero de Maggie Elliott, pensou Jane enquanto descia o corredor sombrio. Não chegava a ser um incentivo entusiasmado
para sair em campo e descobrir o que estava procurando, mas era infinitamente melhor do que nada.
A noite já havia caído sobre as altaneiras montanhas e negras águas de Lake District quando o carro fúnebre surgiu na discreta entrada dos fundos do Keswick Memorial
Hospital. As portas se abriram, revelando um saco preto para cadáveres em uma maca de hospital, que fora empurrada por um carregador. River Wilde supervisionara
a entrada da preciosa carga no carro e, em seguida, combinara de encontrar-se com os agentes funerários.
Formamos um cortejo bem esquisito, pensou enquanto manobrava seu Land Rover para fora da vaga no estacionamento, pronta para seguir o carro fúnebre. Isso é o que
se chama de um estranho casal: um cadáver sem ninguém para pranteá-lo e uma antropóloga forense disposta a desvendar todos os seus segredos. Uma limusine e um utilitário
esportivo. Droga, era melhor ter colocado o corpo aqui atrás e não ter amolado os caras da Gibson.
Seria muito mais simples ter deixado o corpo no hospital, mas a diretoria alegara, inflexível, que a sala mortuária era para ser ocupada por corpos recentes e não
cadáveres que foram soterrados mesmo antes de o hospital sonhar em existir. Ela os fizera recordar que já tinham concordado em deixá-la alugar seus equipamentos,
o que significaria ter de transportar o corpo novamente, "como um grande e inconveniente embrulho", mas eles não estavam dispostos a mover uma palha. Ao contrário
do Pirata do Pântano, como ela o batizara em seu íntimo. Talvez aquele fosse o tipo de toque de humanidade que a equipe de tevê apreciaria.
Estava bastante satisfeita consigo mesma. Uma hora antes, Phil Toner ligara para dizer que havia decidido levar o projeto adiante. Um pesquisador viria encontrar
com ela pela manhã, para discutirem o cronograma e as filmagens. E não era tudo: haviam aceitado o orçamento sem questionar e concordado com o pagamento que ela
sugerira. River fez uma careta de arrependimento. "Você se vendeu muito barato, garota", resmungou ela. Mas, pelo menos, teria condições de arcar com todas as técnicas
necessárias para esmiuçar ao máximo os segredos do homem misterioso. Era um luxo raro, uma vez que o lado prático do seu trabalho normalmente lidava apenas com o
mínimo exigido para a identificação de restos humanos. Na maioria das vezes, o que fazia era trazer uma espécie de conclusão aos vivos, aos parentes dos soldados,
dos civis perdidos em massacres, das vítimas de catástrofes naturais, dos alpinistas perdidos em montanhas, dos corpos enterrados em covas rasas. A identidade era
tudo. Aquele, porém, era um caso completamente diferente. Tratava-se da descoberta da história de um homem. A identificação seria apenas um bônus.
Seguiu o carro até o estacionamento que ficava localizado atrás da imponente construção vitoriana que abrigava a Funerária Gibson e aguardou com toda a paciência
enquanto os funcionários transferiam o corpo para uma maca, empurrando-a em seguida para a sala de embalsamamen-to. De acordo com Andrew Gibson, um tetraneto na
casa dos trinta anos do primeiro Gibson, ela fora instalada durante a construção da casa, em 1884, e não sofrera nenhuma mudança desde então, a não ser pela instalação
de um encanamento mais moderno. As paredes eram revestidas por ladrilhos brancos em formato de tijolo, mas a leve deterioração causada pelo tempo tornava o ambiente
menos gélido. As mesas de embalsamamento eram de mogno maciço, com seus revestimentos de cerâmica originais substituídos por aço inoxidável. As bancadas e os armários
eram da mesma madeira. Através de suas portas de vidro, ela pôde ver béqueres e colunas de medição que provavelmente datavam da mesma época. Não era difícil imaginar
homens com colarinho de ponta virada e sobrecasaca examinando os mortos dentro daquelas quatro paredes. Desde que batera os olhos naquele lugar, River o adorara.
Sabia que o pessoal da televisão também ia gostar. Seria uma espécie de drama à la Sherlock Holmes, só que de verdade.
Os funcionários colocaram a carga em uma das mesas. River abriu o saco plástico, deslizando o zíper devagar e expondo o corpo ao ar livre. Ao contemplar a pele manchada,
os membros encarquilhados e o cabelo negro, ela tentou imaginar qual teria sido a sua aparência quando vivo. Aquelas pernas já o haviam conduzido pelas trilhas das
montanhas; talvez algum dia, ela podia apostar, o tivessem escorado no oscilante tombadilho de um navio. Aqueles braços haviam içado velas, escalado massames, cordas
remendadas, envolvido corpos ardentes. Aquela boca havia beijado, comido, falado, bebido. Ele havia sido um ser humano vivo, assim como River. Agora, cabia a ela
trazê-lo de volta à vida.
A quase quinhentos quilômetros dali, Jane devorava um generoso prato de espaguete na Trattoria Guido com Dan e Harry. O restaurante era um achado de Dan; ele o descobrira
enfurnado num beco em uma ruazinha perto da universidade. Parecia que nada havia mudado em seu interior desde a década de 1970 - toalhas de mesa de xadrez vermelho
e branco, velas derretidas encaixadas em garrafas de Chianti e murais de Sorrento mal pintados, tudo reforçando a sensação de dobra temporal. O cardápio também permanecia
intocado pelas modernidades culinárias. Um cliente procuraria em vão por vinagre balsâmico, tomates secos, mozarela de búfala ou rúcula. Ali, os pratos principais
eram espaguete, penne e tagliatelle e os molhos preferidos, à bolonhesa, carbonara, arrabiata e marinara. Mas a comida era saborosa, as porções, bem servidas; e
o preço, barato, de modo que se mantinha fiel à sua clientela de funcionários de escritório e estudantes que preferiam conteúdo à forma. Jane costumava comer ali
pelo menos duas vezes por semana.
Harry disse, com a boca cheia de lasanha:
- Não acredito que dona Maggie Elliott engoliu a sua história, Jane. Pelo que Dan me conta, pensei que fosse uma durona implacável.
- Ela é - reiterou Dan. - Mas é esperta, não quer ser posta para escanteio se Jane acabar ficando rica com essa história. Mas, então, Jane, qual é o nosso
plano de ação?
- Vamos do começo - disse ela. - Você assume as aulas amanhã e eu volto para a Região dos Lagos para conversar com Anthony Catto, da
Fundação Wordsworth, e ver se eles receberam mais algum material não-catalogado nos últimos tempos. Enquanto isso, você pode estudar a árvore genealógica da família
Wordsworth e verificar os descendentes de John. A última coisa que sabemos sobre o que Mary encontrou entre os papéis de William é que ela o mandou para John. O
que me leva a crer que foi guardado pela família nos últimos 150 anos.
- Até parece - resmungou Harry.
- Harry, estamos falando de uma família que conseguiu manter em segredo a amante francesa de William e sua filha ilegítima durante 120 anos - ponderou Jane.
- Nenhum outro poeta na história da literatura inglesa nutriu tamanho fetiche pela criação de sua própria imagem, e a família dele adotou a mesma cartilha. Nunca
nada foi dito ou feito que contradissesse a imagem que William tinha de si mesmo, nem mesmo quando isso implicava ignorar as omissões mais gritantes. O Prelúdio
é um feito poético admirável, mas também é um exemplo chocante de manipulação da própria imagem. É uma espécie de Dorian Gray às avessas - quanto mais o tempo privava
William de sua juventude e vigor, mais artificioso ficava o Prelúdio.
- Ela tem razão, sabe? - disse Dan, enchendo os copos com o forte vinho tinto sem rótulo que era servido às mesas na trattoria Guido. - A mania compulsiva
de Wordsworth de reconstruir sua vida é um dos motivos pelos quais acho que Jane pode realmente estar na pista certa. De todos os escritores que conheço, Wordsworth
talvez seja o único capaz de escrever uma obra desta proporção e então decidir que ninguém jamais a lerá porque as circunstâncias de sua composição podem prejudicar
sua imagem.
- Mesmo assim, é de espantar que alguém, ao longo dos anos, não ficasse tentado a ganhar uma grana com tudo isso, se é que existe mesmo.
- Harry empurrou seu prato, vencido pela garfada final de macarrão com bife.
- Não naquela família - garantiu Jane. - Reputação, reputação, reputação. Devia ter sido gravado no brasão deles.
- E você será a mulher que vai quebrar esse silêncio, Jane - disse Dan, confiante. - Agora, onde é que vamos comemorar a sua missão?
- Eu ia para casa fazer as malas.
Dan deu um muxoxo.
- Jane, Jane, o que vamos fazer com você?
- Está ficando velha, hein? - concordou Harry. - Dan tem razão, devíamos cair na noite.
Jane gemeu.
- Ah, está bem. Mas não vou dançar até de madrugada como da última vez. Vou virar abóbora à meia-noite, ouviram?
Três horas depois, deixavam um bar no Soho, partindo para uma boate nas redondezas, um pouco altos, mas não embriagados. O mesmo não podia ser dito de Geno Marley,
cujos sentidos se aprumaram assim que escutou a porta do apartamento de Sharon se abrir sorrateira.
A sorte de Tenille acabara de chegar ao fim.
Meu amigo teme por sua segurança, como qualquer um em sua posição temeria. Se for encontrado, seu destino na forca é certo, não há dúvida. Embora muitos anos tenham
se passado desde o sensacional caso do motim do Bounty, e embora poucos se lembrem do capitão Bligh agora que o nome do almirante Nelson está em todas as bocas,
ainda existem aqueles que ostentariam um sorriso quando o algoz apertasse o laço em torno do seu pescoço bronzeado e vigoroso. "Estamos a salvo de olhares curiosos
aqui?", perguntou-me ele. Eu lhe disse que o jardim do Dove Cottage é de meu uso exclusivo quando estou trabalhando. Há o que chamamos de Porta Nova, que dá para
o corredor, mas ninguém a utiliza quando sabem que estou trabalhando. O jardim fica protegido da curiosidade dos passantes por um bosque espesso de rosas e madressilvas.
Estamos tão isolados aqui quanto se estivéssemos no topo da Montanha Helvellyn.
8
As batidas, Jane percebeu aos poucos, não estavam vindo de dentro da sua cabeça. Resmungando, tentou forçar as pálpebras a se abrirem.
- Idiota - xingou a si mesma, percebendo que havia despencado na cama sem ao menos remover a maquiagem. Esfregou os olhos borrados de rímel e gemeu. Sentou-se,
desejando imediatamente ter continuado deitada. Sentiu um mal-estar no estômago e um arroto ácido se juntou ao azedume de sua boca em uma combinação infeliz. Sentia
sinusite e, inexplicavelmente, suas pernas doíam quando tentava movê-las.
Aos trancos e barrancos, arrastou-se para fora da cama e avançou cam-baleante até a porta, apanhando seu roupão no caminho com muito esforço. Lutando para enfiar
as mangas, ela gritou "Já vai, já vai!" para quem quer que fosse que estava tentando derrubar a sua porta. Levou um susto com o som da própria voz. Jane destrancou
o cadeado e a corrente que trancavam a porta e a escancarou. "Que diabos...", começou a reclamar, mas se viu esbravejando para o ar, uma vez que Tenille passou em
disparada por ela, mergulhando no quarto. Jane esfregou a mão no rosto. O gesto não tornou nada mais claro. Suspirando, ela fechou a porta e foi ter com Tenille.
Jane encostou-se na maçaneta da porta para manter-se de pé e contemplou a personificação de tristeza apavorada encolhida no pufe.
- Antes que você abra a boca, Tenille, vou logo avisando que estou com uma ressaca dos infernos. Então, é bom que isso valha a pena.
Tenille estremeceu, enfiando a mão fechada em punho na boca e a mordendo com força. No estado confuso em que se encontrava, Jane demorou um pouco para perceber,
mas por fim constatou que a menina estava lutando com todas as forças para não chorar. Aquilo foi suficiente para deixá-la
mais próxima de um estado relativamente normal de sobriedade. Desde que conhecera Tenille, já a vira com raiva, frustrada, lamentando alguma injustiça, rebelde e
revoltada. Mas nunca prestes a chorar. Também a menina nunca lhe parecera tão infantil. Os olhos estavam arregalados, mas o resto do rosto parecia ter sido sugado
pelos ossos. O charme que pressagiava sua futura beleza desaparecera, dando lugar a uma tensa fragilidade.
Jane atravessou o quarto e se agachou ao lado de Tenille. Receosa, arriscou passar o braço sobre os ombros dela. Não estavam acostumadas ao contato físico, mas logo
percebeu que se preocupara à toa. Tenille encostou-se nela, com o corpo ainda tenso. Jane não disse nada, apenas deixou que sua mão livre acariciasse repetidas vezes
o braço da menina. Então, de repente, as barreiras caíram por terra. Tenille se aninhou em seu abraço e começou a chorar. No início era um choro manso, mas depois
se transformou em um soluçar desesperado e arquejante que sacudiu ambas com sua força.
Jane estava completamente perdida. Não se lembrava de nenhum trauma adolescente que a tivesse deixado naquele estado. Já tivera a sua cota de lágrimas, mas nunca
daquela maneira desamparada, indefesa. Viu-se consolando Tenille com os chavões tradicionais - "Pronto, pronto" e "Está tudo bem, Tenille, estou aqui com você".
Mas pareciam inúteis diante daquela maré de angústia.
Por fim, os terríveis soluços acalmaram e Tenille se desvencilhou, enxugando os olhos e o nariz com as costas da mão. As pálpebras estavam inchadas e ela respirava
pesadamente pela boca.
- Desculpe - disse ela, fungando.
- Tudo bem. É para isso que servem os amigos - disse Jane, irritada com sua incapacidade de proferir algo que não fosse um clichê. - Você quer me contar o
que aconteceu?
Tenille desviou o olhar.
- Você saiu ontem à noite - disse ela, em tom de acusação. - Eu vim aqui, mas você não estava.
- Saí para dançar com uns amigos - disse Jane.
- Aí eu voltei pro apartamento. Eu não queria, porque sabia que ele ia estar lá, mas, como você não estava em casa, não tive opção.
- Ele quem? - perguntou Jane, imaginando se a bebida lhe provocara uma perda de memória recente. Tinha a impressão de estar perdendo etapas lógicas cruciais
naquela conversa.
- Geno - Tenille cuspiu o nome, como se tentasse livrar a boca de um gosto ruim.
- O namorado de Sharon? - Jane sentiu um aperto no peito.
- O babaca do namorado de Sharon.
Meu Deus, ah, não, merda.
- Sharon não estava em casa?
- Ela trabalha à noite agora. E ela cismou que ele tem que dormir lá para garantir que nada de ruim aconteça comigo. - Ela deu uma risada amarga. - Ela é
burra pra cacete e não percebe que a coisa ruim é ele.
Jane afagou as costas da menina.
- Ele andou... mexendo com você?
- Ele fica me olhando. Sabe?
Jane sabia.
- E o que mais? - Tinha medo da resposta.
- Ele diz coisas quando Sharon não está por perto. Diz que gosta de carne nova e macia, essas merdas. Cara, eu sabia que ele estava só esperando uma noite
em que ela estivesse fora.
- O que aconteceu, Tenille?
Ela começou a mexer compulsivamente no zíper do casaco.
- Nas duas primeiras noites, ele encheu a cara e apagou no sofá. Mas ontem ele ficou me esperando. Assim que eu entrei em casa, lá estava ele, parado na porta,
desabotoando as calças. - Ela estremeceu. - Disse que era hora de eu experimentar um amorzinho de verdade. - Tenille torceu os lábios, numa careta de desdém. - Babaca.
Eu tentei sair correndo, mas ele foi mais rápido. Segurou meu braço e me arrastou até a sala, me atirando no sofá. - Ela sacudiu a cabeça, como se tentasse afugentar
a lembrança.
- Aí, ele colocou o pau pra fora. Cara, nunca fiquei tão apavorada na minha vida. Eu tinha certeza de que ele ia me estuprar. Foi aí que saquei que ele queria
um boquete. Só a idéia nojenta já me deu vontade de vomitar. Então eu peguei a luminária da mesa e meti na cabeça dele.
Jane sentiu o coração pesado de medo e de pena.
- Você fez a coisa certa, Tenille.
- Não bati com força suficiente. Devia era ter matado o babaca. Mas ele ficou meio chapado. Então eu saí correndo pro meu quarto e empurrei a cômoda e a cama
contra a porta, pra ele não conseguir entrar. Eu estava tremendo, cara, tremendo pra cacete. Ele começou a esmurrar a porta, berrando como um animal, Jane. Eu não
sabia o que fazer. Ele parecia doido. A porta estava sacudindo, eu pensei que ele fosse derrubar tudo. - Ela deu uma risada vacilante. - Então, fui salva.
- O que aconteceu?
- Sabe o babaca do nosso vizinho? Aquele velho gordo e ensebado da bicicleta?
Jane assentiu com a cabeça.
- Sei quem é. Feio pra cacete, não é?
- Feio e invocado. Quando dei por mim, ele estava na porta da frente, mandando Geno parar de fazer barulho, senão ele ia botar a porta abaixo e arrancar o
fígado dele. Aí, ficou o maior silêncio. A última coisa que ouvi foi Geno do lado de fora do meu quarto dizendo "você não pode ficar aí pra sempre, cachorra". Eu
quase mijei nas calças. Juro pra você, não preguei os olhos um segundo a noite inteira. Fiquei esperando até Sharon voltar pra casa, aí saí correndo e vim direto
pra cá. Cara, estava rezando pra você estar em casa.
- Você fez a coisa certa, Tenille. - Jane esforçava-se para organizar suas idéias. Ia ter que tomar alguma providência. Tenille não podia ficar à mercê do
namorado doentio de Sharon. - Você pode ficar aqui por enquanto - disse ela. - Eu tenho que viajar hoje, pra ficar umas duas semanas fora, mas vou resolver isso
antes de ir.
Tenille parecia incrédula.
- Você? O que você vai fazer? Geno não vai te ouvir. E não adianta nada contar pra Sharon, ela vai distorcer a história e dar um jeito de pôr a culpa em mim,
como sempre.
Jane ficou de pé. Tenille podia ser a malandra da dupla, mas Jane sabia de algo que a menina desconhecia. Podia ser apenas uma fofoca do prédio, mas tinha a impressão
de que era mais do que isso. E, se estivesse correta, teria uma arma que faria Geno dar no pé mais depressa do que um touro
desembestado. Jane endireitou os ombros, tentando passar o ar confiante de alguém capaz de resolver as coisas.
- Deixa comigo, Tenille. Vou resolver essa parada.
Jake tirou as sandálias e deixou o mármore gelado operar um milagre em seus pés. Estava febril de calor, o que era loucura, já que o ar-condicionado devia estar
no máximo no aeroporto de Chania. Desconfiava que a decoração em azul-marinho, cinza e branco tivesse sido projetada para acalmar os nervos, mas ela não o ajudava
a se sentir menos indisposto. Engraçado pensar que na véspera mesmo estava se deliciando com a idéia de voltar para casa. Agora, na sala de embarque com uma passagem
para Londres no bolso, experimentava uma curiosa mistura de apreensão e determinação em provar a Caroline que podia se virar sozinho.
Tudo acontecera rápido demais. Minutos após aquela primeira conversa, Caroline já estava na internet, procurando uma passagem de avião para ele em agências de turismo
barateiras. Quando ele tentou sondar o que ela tinha em mente, ela o calou com um impaciente:
- Quieto, Jake. Deixe-me resolver isso agora.
Um bom tempo se passou até ela exclamar:
- Perfeito! - Deu mais alguns cliques no mouse sem fio e recostou-se, sorrindo satisfeita. - Prontinho, Jake - disse ela, virando-se da tela para ele. Ao
que tudo indicava, tinha feito uma reserva aérea de Chania para Atenas, com uma conexão para o aeroporto de Heathrow. Para o dia seguinte.
- Você não vai comigo?
Caroline lhe lançou um olhar intrigado.
- É a sua hora de brilhar, Jake. Eu só iria atrapalhar o seu show. Você acha que Jane vai pular de alegria ao me ver pendurada no seu braço?
- Ainda não entendi o que você quer que eu faça, Caroline. - Ele tentou parecer despretensioso, mas o tom foi petulante.
- É muito simples. Você acaba de aventar a possibilidade de um achado fascinante e inestimável. Eu quero que você o encontre. E, se não consegue fazer isso
sozinho, quero que fique colado na pessoa que consegue.
Ele afastou o cabelo do rosto em um gesto de exasperação.
- Mas, Caroline, não temos nenhuma prova de que essa porcaria exista.
- Pelo que você disse, Jane acha que sim - disse ela muito convicta em um vestido de verão.
- É só uma teoria maluca.
- Acredite, já fiz descobertas fantásticas indo atrás de coisas bem menos prováveis. Veja da seguinte maneira: Jane está numa posição singular. Ela é uma
acadêmica especializada em Wordsworth. E nasceu em Fellhead. Bem, pela minha experiência, acadêmicos não se empolgam com as coisas, a não ser por um excelente motivo.
E, lembre-se, Jane pode não ter te contado tudo o que sabe.
A dúvida afugentou a surpresa do rosto bonito de Jake.
- E por que não me contaria? Está querendo dizer que ela não confiava em mim?
Caroline soltou uma risada.
- Quando acadêmicos encontram algo que pode vir a lhes dar alguma vantagem, não confiam em ninguém. Querido, a despeito do amor de Jane por você, pode apostar
que, se ela tivesse alguma informação que pudesse alavancar seu sucesso profissional, ela a guardaria para si. E esse corpo no pântano pode ser o elemento catalisador,
que a fará agir com mais pressa.
- Isso é loucura - retrucou Jake.
- Não, Jake, isso é o mundo dos negócios. Se você quer seguir carreira, precisa estar preparado para explorar os seus contatos e descobrir maneiras para garantir
que, quando algo de bom acontecer, você vai estar ao lado da pessoa que puser as mãozinhas ensebadas no tesouro.
- Isso eu entendi - disse ele, sentindo-se desprestigiado e diminuído e sem conseguir encontrar um modo de se auto-afirmar. - O que eu não entendi é o que
você espera que eu faça. Em termos práticos.
Caroline exalou uma fina torrente de fumaça.
- Vá procurar Jane. Faça o que for preciso para ficar ao seu lado. Peça perdão. Diga que leu a história no jornal e percebeu que estava errado por não levar
as teorias dela a sério. Convença-a de que é a única pessoa que pode encontrar esse maldito manuscrito e a convença a ir atrás dele. É isso que eu quero que você
faça. - Ela virou a cabeça para fitar a baía, irritada como ele jamais a vira.
- Não creio que ela vá ficar muito feliz em me ver - resmungou ele.
- Claro que não vai. Você a deixou. Mas faça o que for preciso para voltar às boas com ela, Jake.
- O que você quer dizer com "o que for preciso"?
- Vou ter que soletrar? Diga que quer encontrar esse manuscrito para me espezinhar, se for o caso. - Ela abriu um sorriso sereno. - Isso é com você.
- Não vai ser fácil.
- Use o seu charme, Jake. Não faz sentido ter charme se não for usá-lo, não é mesmo?
Enquanto se lembrava das palavras dela, uma nova onda de determinação inundou Jake. Ele mostraria a Caroline que podia ser muito mais do que um brinquedinho dela.
Faria com que ela o levasse a sério, a qualquer preço.
O banho ajudou um pouco, mas Jane ainda se sentia dolorida e esgotada. Tomou dois analgésicos enquanto esperava a água da chaleira ferver para fazer café. Não sabia
muito bem se o que estava planejando era a coisa certa a fazer, mas não via alternativa e queria chegar o mais perto possível de usar todos os trunfos. Ela levou
as xícaras e empoleirou-se no canto de sua cama.
- Preciso ir falar com uma pessoa - disse ela. - Quero que você me espere aqui.
- Com quem você vai falar? - perguntou Tenille. Agora que já havia desabafado, seus antigos modos voltavam à tona.
- Alguém que acho que pode ajudar. - Jane esperava que o seu tom desencorajasse mais perguntas.
Tenille fixou o olhar dentro da xícara de café.
- Meu pai - disse ela, inexpressiva.
Jane tentou disfarçar sua surpresa. Não muito depois de Tenille ter começado a andar com ela, Jane foi abordada no ponto de ônibus por uma das vizinhas, uma jovem
mãe que morava um pouco abaixo do seu apartamento.
- Não é da minha conta - dissera a mulher -, mas notei que Tenille tem freqüentado a sua casa. Cuidado, hein!
- Posso saber por quê? - perguntara Jane, irritada. - Ela me parece uma menina muito inteligente.
- Ela é inteligente, sim. É com o pai dela que você deve ficar ligada.
Jane franziu a testa.
- Acho que você a está confundindo com outra pessoa. Ela não tem pai. Ela falou que nem sabe quem é o pai. A mãe nunca quis contar e Sharon diz que não faz
a menor idéia.
A mulher bufou com desdém.
- Se Tenille não sabe, deve ser a única. Todo mundo aqui sabe que o Martelo é pai dela.
Jane sentiu que arregalava os olhos em choque.
- John Hampton?
- O próprio. Ele está sempre de olho na menina, mas de longe, sabe? Sharon não quer que ela saiba, entende? Bem, dá para imaginar o motivo, não é?
Jane imaginava muito bem. Soubera desde cedo que John "Martelo" Hampton era o equivalente criminal do prefeito de Marshpool Farm. Era um gângster de verdade, não
um aprendiz adolescente. Drogas, sexo e violência faziam parte dos seus negócios e não havia dúvidas de que detinha um poder sobre as atividades ilegais do prédio.
Jane ouvira histórias sobre espancamentos e castigos infligidos aos que achavam que podiam atuar como autônomos na marginalidade sem pagar uma parte a Martelo.
E agora ali estava Tenille reconhecendo abertamente algo que Jane supunha estar muito bem enterrado.
- Você sabe sobre o seu pai? - perguntou Jane, tentando ganhar tempo para se acostumar com a idéia.
- Que é o Martelo?
Jane assentiu com a cabeça. Tenille deu de ombros.
- Eu meio que sei disso há anos. Alguém me disse na escola. No início, não acreditei. Acho que não queria acreditar. Mas um dia, quando Sharon não estava
em casa, fui fuxicar as coisas dela. E no fundo de uma das suas gavetas estava enfiada uma foto da minha mãe com o Martelo. Ele a abraçava
e eles estavam sorrindo um para o outro, como se estivessem apaixonados ou algo assim. E foi aí que eu tive certeza. - Ela respirou fundo. - Mas ele nunca falou
comigo, sabe? Sempre passou direto, sem nem olhar pra minha cara. Acho que ele nem quer saber.
- Ou, então, quer te proteger - disse Jane, apelando para um verniz que pudesse dar a Tenille uma imagem mais positiva do pai. - Ele deve ter inimigos. Ao
fingir que nem te conhece, passa a imagem de "não estou nem aí", o que faz de você um alvo menos interessante a qualquer um que queira atingi-lo.
Tenille parecia não acreditar muito.
- Ou então ele não quer saber da sua filha bastarda, agora que a mãe dela está morta. Ele já teve outras mulheres depois que mamãe morreu. Vai ver que já
esqueceu ela, a essa altura.
Tenille provavelmente tinha razão, pensou Jane, desanimada. Mas, naquele momento, ir falar com o Martelo era a única coisa que ela imaginava poder restaurar a segurança
de Tenille. Não era uma idéia agradável. Ficava arrepiada, de medo e repugnância, só de pensar. As coisas que ela ficara sabendo, atribuídas a Martelo, não haviam
sido calculadas para inspirar desejo de passar algum tempo em sua companhia.
- Isso é o que a gente vai ver - respondeu ela, um pouco para si mesma.
- Você vai contar pra ele do Geno? - Tenille a fitava, incrédula.
- É claro que vou. - Jane terminou o café e levantou.
- Mandou bem - disse Tenille, surpresa consigo mesma. - Você é bem abusada para uma garota branca. Ou bem idiota.
- Fique aqui até eu voltar. Não abra a porta para ninguém, ouviu?
- Você sabe onde ele está? - perguntou Tenille.
- Eu tenho boca pra perguntar.
- Não precisa. A essa hora da manhã, ele deve estar em casa. Bloco D, final do corredor, apartamento 87.
Jane assentiu com a cabeça e apanhou o casaco.
- Não se preocupe, Tenille. Geno vai pagar por isso.
Combinamos que ele retornará em três dias, quando ambos estaremos livres de empecilhos e obrigações. Confesso que estou ansioso para ouvir a sua história. Tanto
foi escrito e dito sobre o destino daquele navio, mas apenas um dos principais foi ouvido. Certamente, o relato do meu amigo vai nos fornecer uma nova perspectiva
acerca do motim e solucionar o mistério do que aconteceu depois ao Bounty e àqueles que o guiaram. Além do meu amigo, não creio que haja alguém nestas ilhas que
faça idéia do destino do Bounty após sua partida de Otaheite, com sua tripulação de amotinados e nativos. Estou ávido para compreender tais acontecimentos e traduzi-los
em versos. Há muito que o trabalho no meu grande Poema vem me preparando. Vai ser uma tarefa extraordinária.
9
Jane fechou a porta da sala e fez uma pausa, respirando fundo. Devia estar louca para fazer uma coisa daquelas. Quaisquer que fossem as regras não escritas, ela
tinha quase certeza de estar quebrando uma quantidade exorbitante delas ao aparecer sem avisar na porta de Martelo para lhe dizer que estava na hora de ele cuidar
da filha não reconhecida. Mas Tenille não tinha mais ninguém para cuidar dela. A menina tinha um tremendo potencial e Jane sabia que não podia virar as costas e
deixá-la entregue à própria sorte.
Suspendeu a gola para proteger-se do vento e seguiu em direção ao Bloco D, o mais alto dos oito edifícios em L que formavam a Marshpool Farm. Ficava ao norte do
conjunto, com dois andares a mais do que os outros blocos. Para sua surpresa, o saguão de entrada não era sujo, nem tinha pichações. Sentiu até mesmo um suave cheiro
de desinfetante de pinho. Pensou em arriscar o elevador, já que estava indo para o oitavo andar. Não só ele chegou quando solicitado, como seu interior estava tão
limpo como o de um edifício chique de executivos. Se ela precisava de alguma prova do poder de John Hampton, ali estava, diante de seus olhos.
O apartamento 87 ficava de frente para o elevador. A porta estava pintada em um tom escuro de vinho, formando um contraste acentuado com o gasto cinza-azulado das
outras portas do andar. Persianas verticais nas janelas obscureciam o interior. Jane endireitou os ombros e apertou a campainha. Durante algum tempo, nada aconteceu.
Então, a porta se abriu, revelando um sujeito mestiço muito forte, que devia ter vinte e poucos anos e usava apenas uma calça de moletom. Seu amplo torso poderia
ser usado como um diagrama vivo em uma aula de anatomia, os músculos grandes e bem definidos. Ele lançou um olhar feroz para Jane.
- Qual é? - perguntou, em um sotaque americano arrastado.
- Preciso falar com John Hampton - disse ela, a voz meia oitava mais alta do que o normal e com um sotaque classe média de meter medo, até mesmo para os seus
ouvidos.
O sujeito achou graça.
- Ele não está te esperando - disse ele, já fechando a porta.
Jane esticou o braço para impedi-lo, certa de que não tinha a menor chance contra a força dos seus ombros, mas tentando mesmo assim.
- Eu realmente preciso falar com ele - insistiu ela. - É um assunto de família.
Ele a encarou, incrédulo.
- Duvido.
- Por favor, diga apenas que Jane Gresham precisa falar com ele sobre um assunto de família. Eu vou esperar.
- Vai mofar aí, Jane Gresham. - Ele empurrou a porta delicadamente e ela removeu o braço. Estava contando que a mulher do ponto de ônibus tivesse dito a verdade
sobre o Martelo monitorar Tenille de longe. Se isso fosse verdade, certamente ele estava a par da amizade de Jane com a menina. Poderia ser o suficiente para que
a deixasse entrar.
Andou de um lado para outro, entre a porta e o elevador, pelo que lhe pareceu uma eternidade, mas que, provavelmente, haviam sido apenas alguns minutos. Quando ouviu
o som da porta se abrindo, virou-se para trás e viu o mesmo sujeito, fazendo um gesto para que entrasse.
- Seu dia de sorte - disse ele. - O sr. Hampton é um homem muito ocupado, mas vai lhe conceder cinco minutos.
- É tudo de que eu preciso. - Ela o acompanhou pelo apartamento, cujo interior era diferente de tudo o que ela já tinha visto em Marshpool Farm. O grosso
carpete no hall combinava com o tom vinho da porta de entrada e as paredes claras estavam decoradas com fotografias emolduradas de carros de corrida. O rapaz fez
um sinal para que ela entrasse na sala de estar e depois fechou a porta ao sair. O cômodo tinha um leve odor de sândalo. Sentado à sua frente, em um sofá creme de
couro, sob uma enorme reprodução emoldurada em dourado de uma das pinturas estilo film noir de Jack Vettriano, estava um negro atarracado, usando jeans e uma camisa
branca. Sua cabeça era tão lisa quanto uma bola de boliche e seus fundos olhos castanhos pareciam os buracos onde se enfiam os dedos. Jane nunca estivera assim tão
próxima de John Hampton, mas já o vira de longe. Não estava preparada para o seu carisma. Lembrando em retrospecto, não conseguia descrever o ambiente; a presença
dele dominava sua memória. Compreendeu no ato como John Hampton viera a deter tamanho poder.
- Dra. Jane Gresham - disse ele, com a voz grave e possante. - O que traz uma professora de inglês à minha porta para falar sobre família?
- Queria falar sobre Tenille - respondeu ela, tentando disfarçar seu medo. - Posso me sentar?
Ele assentiu com um gesto, apontando uma poltrona no canto.
- À vontade. Tenille? - perguntou, fingindo estar tentando se lembrar de quem se tratava. - É uma das meninas do prédio, não é?
- As pessoas dizem que ela é sua filha.
- As pessoas dizem muitas coisas, dra. Gresham. A maioria, bobagem. - Sua expressão estava impassível, seu corpo, imóvel.
- De fato, ela não se parece fisicamente com você - disse Jane. - Mas desconfio que tenha herdado a sua ambição. E a sua firmeza. E sua inteligência.
- Puxar meu saco não vai garantir apoio financeiro, se é isso o que você quer.
- Existem outros tipos de apoio, sr. Hampton. E agora, Tenille precisa do senhor. - Ela mal podia acreditar na sua empáfia.
Ele suspirou e girou o pescoço, como se quisesse soltar a tensão na nuca.
- Você é corajosa, tenho que reconhecer. Mas deve estar me confundindo com alguém que se importa com ela, e eu estou me lixando.
Jane insistiu, mesmo assim. Enquanto ainda estava naquele apartamento, tinha uma chance de quebrar sua aparente indiferença.
- A tia dela tem um namorado chamado Geno Marley. Ele tem rondado Tenille. E ontem à noite tentou estuprá-la. - Finalmente, sentiu que ele lhe dava atenção,
embora não pudesse precisar exatamente o que havia mudado.
- Não entendo por que está me contando isso, dra. Gresham. Esse tal de Marley não é um dos meus.
- Mas Tenille é. E basta uma palavra sua para que ele desapareça da vida dela.
- E por que eu faria isso?
Jane deu de ombros.
- Se ela for sua filha, a resposta é óbvia. E se não for, bem, seria a coisa certa a fazer, não acha?
- Você acha que eu sou algum tipo de assistente social? Que estou aqui para resolver os problemas dos outros?
Sentia que ele estava jogando com ela, mas não sabia como entrar no jogo. Pôs-se de pé. Ficar ali não adiantaria nada.
- Faça o que achar melhor - disse ela. - Agora, se me dá licença. Tenho mais o que fazer.
Ele assentiu com a cabeça.
- Deixa comigo, dra. Gresham. Assim como você, não suporto idiotas que molestam menininhas. Pode dizer a Tenille que ela está segura.
- Obrigada. - Jane virou-se para ir embora, mas parou, com a mão na porta. - Seja quem for o pai de Tenille, ele devia se orgulhar dela. É uma menina extraordinária.
- Adeus, dra. Gresham. Não creio que nos vejamos novamente - disse ele. O seu jeito de vilão de James Bond quebrou o encanto.
Jane sorriu.
- Nunca se sabe - disse ela.
Ao sair do apartamento, sentiu-se exultante. Apesar da indiferença forjada de Martelo, tinha certeza de que conseguira o que queria. Podia partir para Fellhead com
a consciência tranqüila, certa de que nada de ruim aconteceria a Tenille durante sua ausência.
Uma das melhores coisas de se morar e trabalhar em Carlisle era a paisagem espetacular à sua porta, pensava River. Descobrira que era difícil dirigir por algum tempo
em qualquer direção sem deparar com uma paisagem de beleza surpreendente, fossem os gélidos planaltos rolantes da Northum-berland, com a Muralha de Adriano fazendo
às vezes de viga mestra para os Montes Peninos, fosse a grandiosidade do Parque Nacional de Lake District, com suas montanhas, florestas e águas soturnas. Fora criada
nos arredores de Cambridge em uma paisagem de platitude implacável que exibia uma gama limitada de variedade. No norte, a mudança das estações parecia,
de algum modo, mais perceptível, com alterações sutis surgindo diariamente à sua volta. Concluiu estar diante de uma paisagem tão suscetível a ser analisada
em busca de sua história quanto o corpo humano. Recentemente, juntara-se a um grupo de funcionários da universidade que costumava fazer caminhadas todos os domingos,
e, na semana anterior, o comentário casual de um dos colegas de caminhada lhe chamara a atenção. Enquanto subiam o lado leste do Great Gable, ele comentara que,
se Wordsworth pudesse voltar à Inglaterra agora, encontraria mais mudanças na sua região nativa dos Lagos do que nos pátios de sua universidade em Cambridge.
- Costumamos considerar a paisagem imutável, mas não é bem assim
- disse ele. - Aqui, para onde quer que voltemos nosso olhar, vemos a mão, ou melhor, o pé do homem. Olhem a erosão nessas trilhas. Olhem as estradas - acrescentou,
fazendo um gesto com as mãos na direção de Buttermere e Derwent Water, onde o sol refletia sobre os tetos metálicos dos carros. - Obstruídas com carros a cada dia
decente de verão. Na época de Wordsworth, havia trilhas de vaqueiros errantes, não estradas recortadas nas encostas como nacos de queijo. E estavam, em sua maioria,
vazias. Esta paisagem conta pelo menos duzentos anos de história mais claramente do que qualquer complexo urbano.
- Sem contar a história da casa de chá - comentou outro colega, num tom sombrio. - Não duvido nada que haja uma nos esperando no topo do Great Gable.
River pôs a idéia de lado, para refletir melhor sobre ela depois, e naquela manhã, quando saía de Carlisle pela antiga estrada romana rumo a Bothel, ela lhe ocorreu
novamente. Quase dois mil anos haviam se passado desde que aquela estrada fora construída por legionários, distantes muitas milhas de suas casas, forçados a se alimentar
com comidas estranhas e a se acostumar com os invernos freqüentemente desumanos da região mais setentrional do Império. Indagou até que ponto a paisagem que contemplava
agora teria reavivado a memória daqueles fantasmas. Talvez a linha do horizonte, talvez as cores. Não mais do que isso.
Também adorava os nomes dos lugares, com seus ecos de outra onda de invasores. Os vikings haviam deixado a sua marca nos lugares por eles ocupados
com sufixos - Ireby, Branthwaite, Whitrigg. E havia ainda outros nomes maravilhosos, cujas origens ela desconhecia - Blennerhasset, Dubwath e Bewaldeth. O
percurso de carro de Carlisle até Keswick não era apenas bonito, era poesia em movimento.
Virou à esquerda na estrada sinuosa entre o arborizado Maciço de Skiddaw e o Lago Bassenthwaite. À sua volta, as árvores estavam mudando de cor. Nas colinas, as
samambaias ganhavam um tom amarronzado sobre a relva irregular do planalto que exibia um verde mais pujante do que o normal graças às chuvas de verão. O lago reluzia
sob o sol de outono e River sentiu-se afortunada não só por estar viva, mas por testemunhar a natureza em seu momento mais exuberante.
Ficou imaginando como havia sido para o Pirata do Pântano em sua última jornada na colina sobre Coniston Water. Com sorte, os paleobotâni-cos conseguiriam lhe dizer
em que época do ano ele havia morrido. Mas o que nenhum deles jamais saberia dizer era se havia feito seu derradeiro passeio de dia ou de noite, sob a luz do sol,
sob chuva, em um dia nublado. Fora tocado pela beleza ao seu redor ou acaso seria um desses a quem a paisagem não provoca nenhuma reação? Estava em casa ou apenas
de passagem? Pelo menos isso ela talvez pudesse responder. E, assim que tivessem determinado a idade do corpo, ela poderia levantar desenhos e pinturas contemporâneas
que talvez dessem uma idéia do que o cadáver havia visto ao caminhar por aquelas paragens. Tudo aquilo serviria para incrementar o programa de televisão, além de
saciar sua sede de conhecimento.
Todas as suas especulações se dissiparam assim que ela atingiu os arredores de Keswick e precisou se concentrar em localizar seu destino. Colocou o carro na vaga
para visitantes do estacionamento da delegacia e apressou o passo, adotando uma postura profissional para o seu encontro com o inspetor-chefe Rigston. Achava uma
pena não estarem trabalhando juntos; gostara dele desde o primeiro contato, algo que não acontecia com freqüência em seus encontros com policiais.
O recepcionista a direcionou até a cantina, onde ela encontrou Rigston devorando enroladinhos de bacon. Ele se ergueu imediatamente, limpou os dedos em um guardanapo
de papel e a cumprimentou com um aperto de mãos.
- Posso lhe oferecer algo para comer? Tive uma chamada bem cedo, acabei não tomando o café-da-manhã - justificou ele, apontando para o seu prato.
- Não, obrigada - agradeceu River, acomodando-se na cadeira à sua frente. - Desculpe por interromper sua refeição, mas não vou demorar. Achei que você fosse
gostar de saber que minhas investigações preliminares me levam a crer que o corpo está fora da sua circunscrição.
Rigston sorriu, exibindo uma fileira de dentes uniformemente brancos.
- Foi o que eu pensei - disse ele. - Mas fico contente de ter uma confirmação formal. Você sabe há quanto tempo ele estava lá?
- Ainda é difícil precisar com exatidão. Mas, por alto, eu diria que desde 1785, no máximo 1815. Mas ainda estamos na base do achômetro
- ela acrescentou depressa. - Não é nada oficial. Vou ter uma idéia melhor assim que completarmos o exame.
- Vocês estão fazendo o serviço completo, então? - Rigston pareceu levemente surpreso.
- Com tudo o que tem direito. E a melhor parte é que tenho alguém para bancar tudo isso. - Enquanto falava, observava-o comendo. Pode-se dizer muito sobre
uma pessoa pelo modo como ela come. Ewan Rigston dava mordidas contidas, mastigando devagar com a boca fechada antes de engolir. Fazia pausa entre as garfadas, analisando
o próximo ponto de ataque. Ou seja, não era o tipo de homem que partia para cima como um touro desgovernado. Comedido, ponderado, talvez um pouco reprimido, pensou
ela.
- Como é que você conseguiu isso?
- A TV Northern vai filmar todo o processo. Vão fazer uma série de documentários sobre o meu Pirata do Pântano.
- Bom para você. Eles bem que podiam bancar a minha investigação de assalto à mão armada - disse ele, num sorriso debochado. - Mas qual é a do "Pirata do
Pântano"?
- Eles gostam de apelidos que possam pegar. Achamos o corpo em um pântano e suas tatuagens são típicas de um marinheiro, então deixei minha mente vagar. E
soa melhor do que "Marinheiro do Pântano".
- Isso é verdade. Boa sorte.
- Obrigada. Quer que o mantenha informado?
Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Seria ótimo. Para falar a verdade... - Ele hesitou por um instante, depois disparou: - Você não gostaria de tomar um drinque comigo?
Aquela idéia não tinha sequer passado pela cabeça de River até então. Mas, quanto mais a considerava, mais lhe parecia agradável. Abriu um sorriso.
- Taí, gostaria, sim. E ainda posso me aproveitar da sua especialidade.
- Como assim?
- Bem... - Calou-se num riso envergonhado. - Acabo de perceber que não sei seu primeiro nome.
Ele também achou graça.
- É Ewan. Isso quer dizer que também posso perguntar de onde saiu o seu nome?
River fez uma careta.
- Pais hippies.
- Deve ser duro ser levada a sério com um nome desses. Tenho que admitir que no início achei que estavam de sacanagem comigo.
- Não me diga. - Ela lhe deu um sorriso sutil. - Mas, veja bem, serve para quebrar o gelo. - O sorriso morreu. - E eu realmente espero ser levada a sério.
Sua determinação em não ser depreciada fez Ewan lembrar de sua filha, uma menina de 12 anos que ele via cada vez menos à medida que suas próprias preocupações se
tornavam mais importantes do que estar com um pai que não morava com ela havia cinco anos. Assim como Mamie, River Wilde tinha o ar de alguém com algo a provar e
uma determinação absoluta de alcançar seus objetivos. Lembrou que aquela mulher não era uma criança, ainda que parecesse bem jovem. Estava acostumada a cenas que
esperava que a filha jamais tivesse que presenciar.
- Naturalmente - disse ele. - Eu jamais sonharia em não levar você a sério. - Sua fisionomia era simpática e franca. River sentiu-se relaxada novamente. -
Mas por que você quer se aproveitar da minha especialidade? - perguntou ele.
- Porque, se descobrirmos que ele não estava morto há tanto tempo assim, acho que definitivamente seria um caso para você. Não vou ter certeza
até fazermos os raios X completos do corpo e a tomografia computadorizada, mas, pelo andar da carruagem, estou inclinada a acreditar que o nosso Pirata do Pântano
não morreu de causas naturais. Acho que alguém deu cabo dele.
Para Tenille, poder ficar sozinha no apartamento de Jane era uma vantagem que fazia tudo valer a pena. Jane voltara toda animada do seu encontro com Martelo, mas
não entrara em detalhes, dizendo apenas estar convencida de que Tenille não precisava mais se preocupar com Geno.
- Sei - bufou Tenille.
- Entendo que você possa ter lá suas dúvidas - acudira Jane. - Mas minha intuição me diz que Martelo não é de falar as coisas da boca para fora. Agora, sinto
muito, mas tenho que ir, Tenille. Está na hora do meu trem. Vou ficar fora umas duas semanas. Você pode ficar aqui até o fim da tarde, se quiser, só não se esqueça
de fechar a porta quando sair, OK?
- Tá, pode deixar. Posso usar seu computador?
Jane ponderou por um instante e concordou em seguida.
- Mas você deve voltar para casa de noite. Não quero você enfurnada aqui para sempre. Promete?
Tenille fez cara feia, mas prometeu. Ia dar uma passada no apartamento mais tarde e, se Geno estivesse por lá, voltaria para o de Jane. Tinha a chave e, sabendo
que Jane estava fora, estava livre para usar o apartamento como se fosse seu nas próximas duas semanas. Até lá, as coisas iam estar resolvidas, de um jeito ou de
outro, pensou. A despeito da intuição de Jane, não estava convencida de que Martelo fosse dar um jeito em Geno. Ele não era do tipo que acata ordens de mulher, muito
menos uma branquela de classe média.
Tenille aguardou pacientemente enquanto Jane arrumava uma bolsa de viagem com roupas e livros, e então, assim que ela saiu, foi para o escritório. Sentou-se e ficou
parada, hesitando diante do computador desligado. Sentia-se esquisita demais, agitada demais para ficar na internet. Nos últimos anos, forçara-se a se ver sozinha
no mundo, uma mera partícula transitando por constelações de vidas alheias. Desde que a mãe morrera, não se
permitira pensar que pertencia a algum lugar. Sharon não a queria e ela sabia disso. A tia estava com ela por obrigação, não por amor. Sem a mãe, Tenille estava
desconectada do mundo, sem amarras, livre. Esforçava-se para acreditar que assim era melhor e, na maioria das vezes, conseguia. Quando soube que Martelo era o seu
pai verdadeiro, uma parte sua, auto-suficiente, não quis acreditar. Não conseguiria traduzir aquele sentimento em palavras, mas tinha algo a ver com não querer sentir-se
ligada a alguém porque estar ligada a alguém era algo que a tornava vulnerável.
O que lhe rendera certo conforto era a constatação de que, mesmo que fosse seu pai, Martelo não queria saber dela. Mal sabia de sua existência, não estava interessado
em ter nenhum tipo de relacionamento com ela. Jamais fizera aquelas coisas que até mesmo o mais imprestável dos pais ausentes fazia de vez em quando. Nunca aparecera
na véspera de Natal com as mãos cheias de presentes mal embrulhados, caros e inadequados. Nunca se esgueirara na última fileira de um auto natalino da escola. Nunca
a levara ao cinema ou para fazer um lanche no McDonald's. Resumindo: nunca demonstrara o menor interesse por ela.
E era exatamente por isso que a probabilidade de ele mover uma palha para defendê-la de Geno lhe parecia mínima. E, depois, seria dar muita bandeira se o fizesse.
Era o mesmo que gritar do telhado do Bloco D que ela era a sua filha. Ele podia acabar resolvendo fazer as coisas que os pais supostamente devem fazer, como fiscalizar
se ela estava indo à escola todos os dias e coisas assim. Tenille não estava nem um pouco a fim de mais essa pressão em sua vida.
Por outro lado, ela também não queria Geno por perto. E, se Martelo não tomasse uma providência, ela não fazia idéia de como se livrar dele. Não conhecia mais ninguém
que pudesse pôr Geno para correr, nem tinha dinheiro para pagar os capangas da vizinhança para fazer isso por ela. Xingando baixinho, ela suspirou e ligou o computador,
determinada a não pensar mais naquele assunto.
Relato o que me foi contado, nas palavras do meu amigo:
"Já havia navegado com o tenente Bligh antes de integrar a tripulação do Bounty e percebera que era um homem de temperamento imprevisível. Quando tudo estava correndo
bem na viagem, era o encanto em pessoa. Sei disso melhor do que qualquer um, pois em nossa primeira viagem ele solicitou bastante a minha companhia, convidando-me
amiúde para jantar em sua cabine. Mas, se algo de errado porventura ocorria a bordo, tornava-se irascível e violento, sempre procurando responsabilizar alguém, uma
vez que jamais assumia a culpa. Também era muito cioso de sua posição, exigindo, por direito, o respeito que um capitão precisa conquistar. Bligh desperdiçava suas
oportunidades de inspirar a boa opinião dos homens por causa de sua virulência. Os marinheiros não são conhecidos pelo seu linguajar elegante, mas até mesmo abaixo
do convés, nas condições mais precárias, jamais ouvi termos tão obscenos quanto os que Bligh proferia em suas explosões de escárnio e furia. Mas era um bom navegador
e eu sabia que podia aprender muito ao seu lado, de modo que estava disposto a abandonar meus receios e acompanhá-lo mais uma vez, especialmente em uma viagem tão
longa.
10
Até o ar parecia diferente, pensou Jane enquanto caminhava pela plataforma em Oxenholme. Avistou seu pai perto da saída e acenou para ele, animada. Allan Gresham
retribuiu levantando a mão discretamente, o gesto comedido de um homem modesto que se sentia mais à vontade nas montanhas com suas ovelhas Herdwick do que jamais
se sentiria em locais públicos lotados.
Jane jogou a bolsa de viagem no chão e o abraçou, roçando um beijo em sua bochecha áspera.
- Obrigada por ter vindo, pai - agradeceu ela.
- Não dá para confiar nos ônibus - disse ele, apanhando a bolsa da filha e deixando escapar um grunhido de surpresa ao constatar seu peso. - O que você colocou
aqui dentro? Barras de ouro?
- Quem dera. Livros, papéis. Umas roupas. - Jane emparelhou ao seu lado enquanto caminhavam até o estacionamento, onde ele deixara seu Land Rover.
Quando as luzes da estação ficaram para trás e seus rostos foram obscurecidos pela escuridão da noite que se aproximava, Allan pigarreou.
- Há algum problema com você?
- Por quê? - A voz de Jane traiu sua surpresa.
Allan ergueu a bolsa, acomodando-a na mala do Land Rover, e deu de ombros, com ar indefeso, abrindo os braços.
- Não sei. É que... Está no meio do semestre. Você tem o seu trabalho, seus alunos. Eu não sabia que podia deixar tudo ao deus-dará, do nada.
- Eu não deixei, pai. Tive permissão. Estou de licença. Surgiu uma coisa urgente que eu preciso investigar agora e a minha chefe me deu duas semanas de folga.
Entraram no carro e Allan ligou o motor. Levantou a voz, para que ela pudesse ouvi-lo, apesar do ronco rítmico do diesel.
- Pensei que você só estudasse poetas mortos. Como pode ser uma questão urgente?
- É sobre o corpo no pântano, pai - admitiu Jane.
Ele deixou escapar um risinho.
- Fletcher Christian, né? Estava esperando para ver quanto tempo você ia demorar até se convencer de que se tratava dele.
- Pode não ser ele - objetou Jane. - Eu não disse que era. É bem possível que não tenha nada a ver com ele ou com o Bounty. Mas me deu um bom pretexto para
explorar minha teoria e isso me dá a oportunidade de ganhar tempo para examinar com calma algo que encontrei no verão passado.
- Você sempre teve o dom de persuadir os outros - disse Allan, deixando transparecer um eco resignado de velhos conflitos. - Mas se for, como é que ele veio
parar morto em um pântano em Cumberland?
- Não faço a menor idéia. E, para ser sincera, é o que menos me interessa. Isso eu vou deixar para os historiadores.
Seu pai assentiu com a cabeça.
- De todo modo, fico feliz por não ser nenhum problema. - Ele lançou um olhar de esguelha para ela. - É difícil não nos preocuparmos com você tão longe.
Sabia que era uma maneira velada de perguntar sobre Jake. O costumeiro hábito familiar de falar sobre os assuntos sem de fato mencioná-los.
- Eu estou bem, pai. O que não tem remédio, remediado está. E eu sou boa nisso.
- Tem gente que não enxerga um palmo diante do nariz. - Calaram-se em um silêncio plácido, rompido apenas pelo som dos limpadores de pára-brisa.
- E como está o Gabriel? - perguntou Jane enquanto pegavam o caminho para Fellhead.
- Está ótimo - respondeu seu pai, orgulhoso. - É um bebê forte, grande. Começou a engatinhar. Sua mãe já disse a Diane: agora você não tem mais sossego. -
Ele riu. - Lembrei-me de você nessa época. Enfiava na cabecinha que ia até algum lugar e não havia quem a segurasse. Engraçado como você era diferente do Matthew.
Ele era muito curioso,
tínhamos que ficar sempre de olho. Mas nunca teve a mesma determinação ferrenha que você, nem quando eram pequenos. Então, imagino que, agora que ele está começando
a engatinhar, já vamos ter uma idéia de como Gabriel vai ser quando crescer.
Jane conhecia bem aquela história. Era uma das que sempre deixavam Matthew mal-humorado.
- Vai ser bom rever o Gabriel. Eles mudam tanto tão depressa quando são pequenos... Ele ainda se parece com o vovô Trevithick?
- Hum-hum. Sua mãe diz que é só porque é careca e tem o rosto redondo, mas tenho a impressão de que ela só fala isso para agradar à mãe de Diane. Ela acha
que ele parece com o irmão dela quando tinha essa idade. No fim das contas, ele vai ter a cara dele e pronto.
- Será que ele vai herdar os cachinhos dos Gresham? - perguntou Jane, esticando o braço e despenteando o cabelo grosso do pai.
- Ele não vai agradecer por isso. Fica bem nas mulheres, mas para nós dá a impressão de que passamos o dia inteiro num salão de cabeleireiro.
Quando alcançaram os arredores da aldeia, Jane espiou pela janela. Cada um daqueles chalés estava gravado em sua lembrança. Eram todos incrivelmente familiares.
Impecáveis, em sua maioria, embora houvesse sempre aquele cujo dono ou não queria ou não podia se dar ao luxo de manter em boas condições. Os moradores locais temiam
a morte desses habitantes mais que a de qualquer outro; as casas sempre iam parar na mão de pessoas de fora da cidade que, encantadas com o conceito romântico de
ter um chalé para passar as férias nas montanhas, ficavam exultantes com a idéia de uma pechincha que podiam remodelar a seu modo. Suas ambições haviam até mesmo
transformado propriedades caindo aos pedaços em luxos que aqueles que sobreviviam com salários locais não podiam pagar. Jane sentiu um aperto no peito ao avistar
mais uma placa de "Vende-se".
- O que aconteceu com a sra. Forsyth? - perguntou ela.
- Teve outro derrame. Não conseguia mais cuidar da casa sozinha, então foi para um asilo em Keswick - respondeu seu pai sucintamente, avançando o Land Rover
pela alameda estreita que conduzia à sua fazenda, nos confins da aldeia.
- Pelo visto, vai ser mais um chalé de veraneio - disse Jane, suspirando. Em sua curta existência, ela vira quase um terço das casas na aldeia
passar de famílias ancestrais para recém-chegados que faziam compras em supermercados distantes e cujo interesse na vida da aldeia não ia além de uma curiosidade
superficial.
- Acho que ninguém aqui tem dinheiro para isso - concordou Allan.
- Observe só aquela casa ao lado dos Correios; o casal que comprou mora aqui direto. Ela trabalha com alguma coisa de computador e ele publica uma revista
para excursionistas. - Ele sacudiu a cabeça. - Não me parecem trabalhos de verdade, mas pelo menos não são veranistas.
Allan avançou pelo portão que conduzia ao seu jardim e estacionou ao lado do abrigo das ovelhas. A casa baixa parecia agachada sob a colina, suas pedras desgastadas
mimetizando-se com a paisagem. Uma luz amarelada vazava pelas janelas da cozinha, embaçadas pela garoa que aumentava. Correram embaixo de chuva até a porta dos fundos,
sacudindo-se como cães assim que chegaram ao vestíbulo lajeado. O delicioso cheirinho do cordeiro com alecrim e alho evolava à sua volta numa bruma acolhedora.
Judy Gresham surgiu na porta da cozinha, limpando as mãos no jeans.
- Jane! - exclamou, visivelmente contente. Apesar da vida dura como esposa de fazendeiro, Judy envelhecera bem. Parecia mais uma mulher na casa dos quarenta
que na dos cinqüenta. Seu cabelo castanho-escuro continuava denso e viçoso como quando Jane era criança e gostava de enroscá-lo entre seus dedos. Jane divertia-se
com a expressão de surpresa dos colegas da universidade que levava até lá quando viam sua mãe. O pai era exatamente o que eles esperavam - rosto castigado pelo tempo,
corpo atarracado coberto por macacão e camisa xadrez. Mas a mãe os deixava confusos. Em vez de uma senhora de bochechas rosadas, usando saia pregueada e avental,
fazendo geléias para a quermesse e cantando hinos patrióticos, viam-se diante de uma mulher esbelta, bem-cuidada, usando calça jeans e camisa, que jamais se apresentava
em público sem maquiagem, brincos e esmalte nas unhas. Em seu rosto oval, as feições eram delicadas e bem-feitas; Jane gostaria de ter herdado seus traços, em vez
dos olhos profundos, dos malares largos e do nariz protuberante do pai. Ao lado da mãe, Jane sempre se sentia um fracasso grandalhão e desmazelado. Mas era uma impressão
sua; Judy jamais dera a entender, por palavras ou gestos, que sentia outra coisa senão alegria diante da filha.
Envolveu Jane em um abraço apertado, empurrando-a logo em seguida para examiná-la direito.
- Você é um colírio para os meus olhos - disse ela. - Parece que não vem aqui há séculos.
- Foram só algumas semanas, mãe - protestou Jane.
- Meses, isso sim. - Sua mãe virou-se de volta para a cozinha, sabendo que o marido e a filha viriam logo atrás. A mesa de pinho polido, onde a família havia
feito inúmeras refeições, estava posta para o jantar, com copos de água reluzindo sob a luz suave.
- Chegaram bem na hora - disse Judy. - A carne está no ponto. Podem sentar.
Cinco minutos em casa e Londres parecia um país estrangeiro, pensou Jane enquanto observava a mãe empilhando batatas cozidas e pastinacas em volta das grossas fatias
de cordeiro. Não importava o quanto tentava se convencer do contrário: seu lugar era ali. Era ali que se sentia viva. Mal podia acreditar que naquela manhã estivera
peitando um marginal londrino em sua própria sala de estar. Se contasse aos pais, o choque os deixaria boquiabertos, com os olhos rutilantes de preocupação, sem
compreender sua atitude. E com toda razão, pensou ela, apanhando um prato e o colocando à sua frente.
Jane mal começara a se deliciar com o cordeiro, que desmanchava na boca, quando ouviu a porta dos fundos se abrir.
- Sou eu - anunciou o irmão, vindo do corredor, a voz misturada ao barulho de uma jaqueta sendo removida.
Judy parecia levemente culpada.
- Matthew, que surpresa agradável - disse assim que o filho entrou na cozinha, jogando seus cachos molhados para trás.
Matthew contemplou a cena e deu um sorriso amargo.
- Que beleza, hein? - disse ele. - Eu trouxe a tal revista que Diane disse que você queria - avisou ele a Judy, jogando a edição mensal de uma revista de
jardinagem sobre a mesa. Puxou uma cadeira e deixou-se cair pesadamente sobre ela, como uma criança emburrada. Jane assistia ao desenrolar da cena, aguardando o
desfecho. - O que você está fazendo em
casa, no meio da semana, no meio do semestre? - perguntou ele, com um falso tom de satisfação. - Pisou na bola, maninha?
- Licença para fazer uma pesquisa - respondeu Jane. - Bom te ver, Matthew - disse ela, tentando parecer contente.
- Quem pode, pode - retrucou Matthew. Ele farejou o ar. - Que beleza de cordeiro. Andou abatendo hoje, pai? Isso quer dizer que posso esperar algo mais incrementado
do que macarrão arrabiata para o almoço de domingo.
Judy cerrou os lábios, mas não disse nada. Jane se perguntou o quanto seu irmão seria diferente se a mãe lhe tivesse imposto limites quando criança.
- Sua mãe faz um macarrão delicioso - disse o pai. - Massa feita em casa é imbatível. E leva muito mais tempo para ficar pronta do que uma carne. Coisa que
você saberia se desse uma ajuda na cozinha.
Matthew suspendeu as sobrancelhas.
- Então, qual é a dessa licença de pesquisa? Estava precisando de tempo para curtir a dor-de-cotovelo?
Jane sacudiu a cabeça, com um sorriso engessado no rosto.
- É bom ver que nunca pára de aperfeiçoar seu charme e seu tato. Não, Matthew, isso não tem nada a ver com Jake. Preciso pesquisar uns documentos aqui e minha
supervisora concordou que era melhor vir o quanto antes.
- Documentos? Não vai me dizer que você ainda está com aquela história da obra-prima perdida de Wordsworth na cabeça? - Matthew inclinou-se sobre a mesa e
apanhou um pedaço de cordeiro do prato, enfiando-o na boca com um murmúrio de aprovação. E, de repente, caiu na gargalhada. - Ah, já entendi! Você convenceu sua
incauta chefe de que o corpo no pântano é - tam-tam-tam-tam! - ninguém mais, ninguém menos do que Fletcher Christian. - Matthew fechou a cara novamente. - Meu Deus,
que vidinha fácil essa sua. Deu vontade de relaxar uns dias nas montanhas, desfrutar uma comidinha caseira? Simples, basta aparecer com uma idéia idiota e sair convencendo
todo mundo a embarcar na sua viagem.
- Dá um tempo, Matthew - interrompeu Allan. - Não tem nem cinco minutos que sua irmã chegou.
- E até parece que você tem muito a reclamar - disse Judy, animada. - Um bebê lindo, uma esposa adorável e um bom emprego. Milhares de pessoas ficariam
muito satisfeitas com o que você tem.
- Então é isso mesmo, Jane? - Matthew continuou, implacável, ignorando o comentário da mãe. - Você veio baixar aqui em busca do épico de Willie sobre o motim
do Bounty, para fazer uma fortuna com sua descoberta?
Jane engoliu sua garfada mastigada pela metade e dardejou um olhar feroz para o irmão.
- Estou seguindo uma linha de pesquisa. E se, por acaso, encontrar mesmo alguma coisa, quem vai fazer fortuna não sou eu, e sim os herdeiros de Wordsworth.
Ou seja lá quem tiver o direito sobre o que for encontrado.
Matthew conservava sua expressão de desdém.
- Vamos deixar a ingenuidade de lado, maninha. Tudo bem, você é a única pessoa no mundo que acredita na existência desse manuscrito mágico. Mas, se realmente
encontrá-lo, vai tirar a sorte grande. Uma carreira de sucesso, tudo à custa da nossa cidade.
- E como é que você acha que as pessoas faturam por aqui, se não graças a essa herança? - retrucou Jane. - Existem outras regiões na Inglaterra tão bonitas
quanto a nossa, mas não lucram tanto com turismo quanto aqui. A história das conexões literárias com Lake District é um dos principais motivos pelos quais as pessoas
vêm para cá. Seja Wordsworth, Beatrix Potter, Ruskin ou Arthur Ransome. O legado destes autores prestou mais serviço à região do que ela contribuiu para a arte deles.
- Mas isso? Isso não seria algo que geraria dinheiro e empregos para a indústria do turismo, não é? Não vai ajudar a criar empregos para os meus alunos e
suas famílias. Vai é enriquecer um bando de gente que nem é daqui. - Ele sacudiu a cabeça. - Nunca imaginei que você seria uma dessas que tratam o lugar como um
garimpo.
- Faz parte de uma velha e nobre tradição, Matthew. Wordsworth e seus amigos também fizeram a mesma coisa. Você os despreza também? - Jane começou a levantar
a voz. Sabia que era o suficiente para Matthew entregar os pontos.
Ele ergueu as mãos, rendendo-se.
- Você sempre tem uma resposta na ponta da língua, Jane. - Ele empurrou a cadeira para trás, produzindo um som estridente ao arrastar os
pés no piso de pedra. - Melhor eu ir andando. Tenho que preparar minhas aulas. Isso é o mais próximo que eu tenho de uma licença do trabalho. - Ele ficou de pé.
- Quanto tempo você pretende ficar?
- Umas duas semanas. Qual a melhor hora para ir lá ver Diane no sábado?
Matthew deu de ombros.
- Qualquer hora, se estiver chovendo. O que, pelo visto, vai acontecer nos próximos dias.
- Avise a ela que eu vou dar um pulo lá então. Estou doida para ver o Gabriel.
- Tem certeza de que pode perder tempo brincando de titia e sobrinho? Quero dizer, você deveria estar estudando, não é mesmo?
- Deixa de ser infantil, Matthew - disse Allan, cansado.
Matthew bufou.
- Não sou eu quem está atrás do sapatinho de cristal, pai. Se tem alguém aqui que precisa sair da Ilha da Fantasia é Jane. Acorda pra vida, maninha. Não existe
nenhum pote de ouro no final do arco-íris. Está na hora de cair na real.
O Bounty sofreu algumas modificações antes de zarpar para os Mares do Sul, para que pudesse acomodar o nosso carregamento de fruta-pão na viagem de volta. Por esse
motivo, o espaço ficou bastante limitado para todos a bordo, tanto para os oficiais, quanto para os marinheiros. A proximidade das acomodações costuma gerar desavenças
entre os homens, e era impossível para nós, oficiais, ficar indiferente às altercações banais que podiam contaminar todo o navio. Mas nada disso se comparava à tirania
de Bligh. Era um déspota com os homens e não agia de modo muito diferente com os oficiais. Na maioria das vezes, tive a sorte de ser poupado desse tratamento generalizado.
Bligh ainda parecia interessado que eu lhe tivesse em alta conta e continuava me convidando para jantar em sua cabine sempre que eu não estava de vigia. Confesso
que me senti constrangido desde o início por gozar desse privilégio. Não queria que os homens pensassem que eu era aliado de Bligh. E começava também a questionar
a natureza do afeto que ele nutria por mim.
11
Uma bruma úmida mantinha o forte odor da cidade poluída impregnado no chão. Ficava preso na garganta, fazendo os fumantes tossirem mais forte e cobria a cabeça dos
transeuntes como auréolas de postes de luz. O brilho das janelas era romantizado pela neblina, mas não enganava ninguém. As calçadas estavam silenciosas; não era
o tipo de noite que tentava as pessoas a sair da frente da televisão.
Tenille se espreguiçou e conferiu a hora no relógio do computador. Passava um pouco das 10:00. Estava na hora de tomar uma decisão. Uma parte sua queria ficar ali,
protegida no casulo do apartamento de Jane, isolada num lugar onde podia fingir que a sua vida era diferente da dura realidade. Mas outra parte queria testar o vigor
de Jane sobre seu suposto pai. Recolheu suas coisas e arrastou-se até a porta. Deu uma última olhada, verificando se a chave estava no seu bolso, e saiu noite afora.
O corpo, acostumado ao calor do apartamento, estremeceu diante da umidade gelada enquanto ela corria até as escadas. Tinha começado a subir os dois lances que conduziam
ao seu andar quando ouviu um estouro abafado, possivelmente pela neblina, que tornava impossível adivinhar sua direção ou identificar sua procedência. Mas sons inexplicáveis
estavam longe de ser raros em Marshpool Farm e ela deu pouca importância.
Virando-se para o último lance de escadas, Tenille ouviu um rumor de passos descendo em sua direção. Eram os passos de alguém grande e confiante, a julgar pelo som.
Instintivamente, desviou para o lado, dando espaço para que a pessoa pudesse passar. Naquele prédio, dar espaço para alguém passar às vezes era a diferença entre
voltar para casa inteiro ou não.
Contornou a escada e deu de cara com John Hampton, que descia apressado. Foi atingida por uma confusão de sentimentos: apreensão, ansiedade, curiosidade. Ele, por
sua vez, se ficou surpreso ao vê-la, não demonstrou. Nem sequer parou, apenas lhe lançando um rápido olhar de esguelha, inexpressivo. Mas, ao passar bem perto dela,
sussurrou suavemente:
- Não é uma boa hora para voltar para casa, Tenille.
Ela estacou, olhando-o se afastar. Uma onda de felicidade a inundou de repente. Ele tomara uma providência. Fizera isso por ela. Tenille abriu um sorriso e subiu
depressa os degraus remanescentes, pela primeira vez na vida apressada para ver Geno. Sabia que agora ele não se atreveria a se meter a besta com ela tão cedo.
A porta do apartamento estava ligeiramente entreaberta; Tenille entrou. Sentiu um cheiro esquisito, semelhante ao de pólvora usada em fogos de artifício. O vestíbulo
estava escuro, exceto por uma estreita fresta de luz delineando a porta da sala de estar. Tenille a empurrou, uma curiosidade aflita levando um sorriso ao seu rosto.
A visão com a qual se deparou não era a que imaginara. Esperava ver Geno encolhido de dor no sofá, mas tudo o que restara dele eram as suas calças.
A parte superior do seu corpo estava irreconhecível. Era uma mistura de carne estraçalhada com tecido estropiado. Na cabeça e no pescoço, farrapos de pele pendurados
como uma decoração macabra. Sangue, cabelo e carne manchavam o sofá e a parede de trás. Dentro do quarto, o fedor era diferente. Merda, pólvora e um gosto metálico
travaram a garganta de Tenille. Sentia-se invadida por uma repulsa, mas os restos macabros no sofá a paralisavam em um fascínio medonho. Era como se sua cabeça tivesse
sido dividida em duas. Uma parte comemorava a constatação de que agora ela estava segura. A outra queria entender por que não estava gritando.
Tenille deu um passo à frente, quase tropeçando sobre algo caído no carpete arruinado. No choque do seu atordoamento, ela inclinou-se e o apanhou. Sentiu a soleira
de madeira da espingarda curta quente em uma das mãos. Deslizou a outra, distraída, sobre o metal polido dos canos. Aquela arma fora sua amiga. Aquela arma a salvara.
Aquele fora o instrumento escolhido pelo seu pai.
A lembrança de John Hampton a despertou do transe. O horror do que estava à sua frente a atingiu como o murrar de uma porta. Lançou a arma longe, apavorada e trêmula.
Suas impressões digitais agora estavam na arma do crime. Sabia vagamente pelos programas de televisão o que isso significava. Precisava fazer alguma coisa. Não bastava
limpar a arma. Sabia que, por mais esperto que seu pai pudesse ser, haveria sempre vestígios microscópicos. Já assistira a muitos episódios de seriados policiais
para entender que tanto ela quanto o pai estavam encrencados.
Esforçando-se para desviar o olhar de Geno, Tenille tentou se controlar, enchendo de ar os pulmões. Precisava fazer alguma coisa. Mas o quê? Tinha que sair daquele
quarto para poder pensar direito.
Tenille cambaleou até o vestíbulo e ficou agachada com a cabeça entre as mãos. Tinha de haver alguma coisa que ela pudesse fazer para ter certeza de que seu pai
sairia limpo daquilo. Agora ela sentia a necessidade de retribuir aquele gesto. Algo para demonstrar que ela estava agradecida pelo que ele fizera por ela.
Quebrou a cabeça tentando recordar as reportagens sobre crimes de verdade que vira se desenrolar madrugada adentro na televisão por assinatura. Toda noite um crime.
E, para cada crime, uma investigação. Dicas e pistas para quem tivesse inteligência suficiente para compreender seus significados e cabeça fria para colocá-las em
prática.
Seu rosto se iluminou. Fogo, nada eliminava vestígios como o fogo. Não disfarçaria o fato de Geno ter sido aniquilado por uma espingarda antes do incêndio. Mas eliminaria
as pistas que ela ou seu pai pudessem ter deixado na cena do crime. Tenille se pôs de pé. Tudo de que precisava era algo para garantir que a chama vingasse. Desejou
morar em uma daquelas casas com um galpão de jardim lotado de coisas inflamáveis. Latas de gasolina para o cortador de grama. Botijões de gás para a churrasqueira.
Esse tipo de coisa.
Tenille foi até a cozinha e abriu o armário debaixo da pia. Água sanitária, amaciante de roupas, detergente. Tudo inútil. Fechou a porta e foi até o quarto da tia.
Perfume era álcool, o vapor produzido ajudaria num incêndio, pensou ela. Apanhou os poucos frascos que Sharon guardava em sua penteadeira, e foi então que notou
um frasco grande de removedor de esmaltes. Aquilo ia provocar fogo, tinha certeza absoluta. Tenille o acrescentou ao seu pacote. Estava prestes a retornar à sala
de estar quando
notou uma lata em uma gaveta entreaberta. Abrindo-a, deparou com fluido para isqueiro.
Fechou os olhos por um instante, prostrada diante da porta da sala de estar, tentando se acalmar. - "Fica fria, garota"- disse em voz alta, entrando no cômodo. Dessa
vez, esforçou-se para não olhar para Geno. Foi até o sofá, esvaziou todos os frascos. Os aromas adocicados e enjoativos neutralizaram os odores da morte violenta.
Apertou o bico do fluido para isqueiro com força sobre o braço de madeira do sofá. O gás líquido vazou, espalhando-se sobre o verniz descascado e encharcando o estofado
enquanto evaporava. O cheiro acre do butano fez Tenille franzir o nariz e desviar o rosto. Verteu todo o conteúdo da lata antes de atirá-la no chão.
Agora, só precisava acender aquela merda. Onde é que estava o isqueiro daquele filho-da-mãe? A sua prévia euforia esmorecera; começara a perceber a irrevogabilidade
de sua morte e a maneira quase casual como fora providenciada. Por mais grata que estivesse ao pai, não podia continuar se enganando de que aquilo era uma coisa
boa. E não queria mesmo olhar para Geno.
Tenille desviou do pé pendurado para fora do sofá, chutando a arma para perto dele. O sofá queimaria como uma tocha. Sharon o arrematara em alguma escusa loja de
segunda mão, não havia a menor possibilidade de não ser de madeira vagabunda. Olhou para a mesa de apoio ao lado de Geno, toda bagunçada. O copo que ele estava usando
havia sido estilhaçado por uma bala e seus cigarros e o isqueiro estavam cobertos por cacos de vidro e rum. Tenille catou o isqueiro e fez uma careta de nojo ao
sentir a bebida viscosa grudando em seus dedos. Recuou até a porta e hesitou, na dúvida sobre o que fazer em seguida. Não queria estar muito perto do sofá quando
acendesse a chama. Mas tinha de estar próxima o bastante para deflagrar o incêndio.
"Pára de enrolar", pensou, repreendendo a si mesma. Deu um passo à frente novamente, aproximando-se do sofá, e acendeu o isqueiro. Teve a impressão de que a chama
subiu mais forte do que o normal. Com o braço esticado, alcançou o estofado encharcado. Ainda estava alguns centímetros distante quando ouviu um chiado e uma onda
de fogo se alastrou por toda a área que ela havia encharcado. No mesmo instante, as chamas começaram a lamber as almofadas, abocanhando Geno.
Tenille deu um pulo para trás, nervosa, prestes a fugir. Mas queria se certificar de que o fogo ia pegar mesmo, que iria queimar tudo como ela planejara. Em questão
de segundos, teve sua resposta. As labaredas espalhavam-se rapidamente pelo material sintético barato, derretendo tudo em seu caminho, formando negras e gordurosas
espirais de fumaça no ar.
Era a hora de dar no pé, pensou Tenille com seus botões, girando nos calcanhares e correndo até a porta. Fechou-a com um estrondo e partiu em direção às escadas.
Ainda bem que tinha as chaves do apartamento de Jane. Podia ficar entocada lá, lavar suas roupas na máquina de lavar e jurar de pés juntos que não estivera nem perto
do apartamento naquela noite. Jane ia ter que lhe dar cobertura, porque nem desconfiava da história da chave. Até onde sabia, uma vez fora, Tenille não tinha como
entrar no apartamento.
Tenille alcançou o topo da escada e virou-se para trás a fim de dar uma última olhada. O único detalhe diferente do normal era uma luz mais alaranjada por trás das
cortinas. Chegou a pensar se deveria chamar o corpo de bombeiros. Não queria que o incêndio se alastrasse, causando mais mortes. Seria a pior coisa que podia acontecer.
Mas, se ela fizesse a ligação, estava roubada: as chamadas de emergência, como ela bem sabia, eram gravadas e arquivadas.
As cortinas balançaram. Logo, não sobraria mais nada delas e alguém veria o que estava se passando e chamaria os bombeiros. Tenille virou-se de costas e desceu as
escadas depressa. Daria tudo certo. Alguém ia ver.
O que ela não sabia é que alguém já tinha visto.
Ao dizer tais coisas, não desejo atribuir motivos sórdidos a Bligh. Ele jamais tentou o crime de sodomia comigo, nem sequer chegou algum dia aos meus ouvidos que
tenha demonstrado tal inclinação com qualquer outro. O que aconteceu é que, tendo me selecionado como seu protegido, ele passou a tomar minha amizade por qualquer
outro como uma desfeita pessoal. Um dos meus colegas oficiais nessa viagem era um parente distante, Peter Heywood. Sua família havia sido muito gentil com a minha
quando fomos obrigados a nos mudar para a Ilha de Man. Era por obrigação, assim como por amizade que eu gostava de tomar conta daquele jovem, e Bligh sempre me repreendia
por isso. Seu tolo, o rapaz precisa aprender a caminhar com as próprias pernas, costumava repetir amiúde. Parecia não compreender que o meu zelo por Heywood era
idêntico à sua conduta para comigo, ao me pôr sob sua proteção. Sua vaidade não podia suportar o que ele tomava como minha preferência pela companhia de terceiros.
Essa situação atingiu um ponto crítico da pior maneira possível quando aportamos em Otaheite.
12
Ao deixar os limites da fazenda aboletada em sua mountain bike, Jane respirou fundo, apreciando o aroma da manhã de outono. O dia estava agradável, surpreendentemente
ameno para a época do ano. A chuva que caíra durante a noite deixara uma centelha no ar, iluminando as folhas avermelhadas e acentuando a tonalidade cinza e o verde
da paisagem. O sol nascia por trás de Helvellyn, espraiando uma auréola dourada em volta do cume da montanha. Virou-se, erguendo os olhos para o imenso penhasco
de Langmere Fell, seus afloramentos encarpados formando uma mancha negra sob o céu. Podia ver as ovelhas do pai, borrões acinzentados e claros sobre a grama coberta
de arbustos da charneca onde pastavam. Abrindo um sorriso, desfez-se dos resquícios da cidade grande. Aquele era o seu lugar.
Engatou a bicicleta morro abaixo e desceu sem frear até o vilarejo, um percurso que já fizera incontáveis vezes. Como sempre, o súbito descortinar da paisagem provocou
um baque em seu peito, a luz cintilante na cauda do Lago Thirlmere, os picos das montanhas e os penhascos erguendo-se além do horizonte. Gostaria de saber o que
Fletcher Christian sentira ao rever aquela paisagem depois de ter regressado dos Mares do Sul. Acaso seu espírito se enchera de júbilo e alívio ao ver-se rodeado
por aquelas montanhas conhecidas, suas cores tênues as mesmas que haviam composto a palheta da sua juventude? Ou teria ansiado pelos exuberantes trópicos com suas
cores improváveis? Teriam o frio e a umidade feito os seus ossos sentirem saudade da quentura do sol meridional? Teriam as mulheres lhe parecido pálidas e desinteressantes
após a beldade exótica que lhe dera um filho? Teria tido a sensação de que voltara para casa ou aquela lhe parecera apenas uma espécie de prisão diferente da Ilha
de Pitcairn?
Qualquer que fosse a sua história, certamente havia despertado a imaginação de William Wordsworth. Jane conseguia imaginar o poeta sentado em seu jardim no Dove
Cottage, a cabeça inclinada sobre os versos espinhosos de O Prelúdio, aquela longa narrativa dos primeiros anos de sua vida cuja escrita e reescrita o ocuparam durante
uns bons cinqüenta anos. Tanta coisa omitida, tanta coisa encoberta. Embora tivesse a aparência de revelação franca, mais tarde os biógrafos demonstraram que, na
verdade, era uma construção que removera qualquer assunto pessoalmente escandaloso ou politicamente questionável da juventude de Wordsworth. O que não diminuiu seu
mérito poético, mas lançou sérias dúvidas quanto ao seu valor biográfico. O que, paradoxalmente, fazia Jane ter ainda mais convicção em sua teoria. A ausência de
indícios escritos nas obras publicadas de William, diante das outras ausências, não significava que os acontecimentos que ela imaginara não tivessem ocorrido.
Jane pedalou por Langmere Fell, sentindo a trepidação das águas inquietas do Lang Bum à sua esquerda, seguindo em generosa cascata até Thirlmere. Enquanto diminuía
a velocidade diante do cruzamento da avenida principal de Town Head, imaginava se, no reencontro, William havia reconhecido o "rapaz pródigo" de imediato. A descrição
feita por Bligh do jovem de vinte e três anos no início da viagem não lhe saía da cabeça. Media 1,75m, uma altura considerada acima da média naquela época. A pele
visivelmente morena devia ter escurecido ainda mais ao longo dos anos pela exposição aos ventos marítimos e ao sol forte dos oceanos meridionais. Segundo Bligh,
ele tinha uma "constituição forte", embora as pernas fossem ligeiramente arqueadas. Jane o imaginava como uma espécie de figura de Caravaggio, um chiaroscuro de
luz e sombra à mesa do capitão, seus olhos negros cintilando à luz de velas. Uma aparência notável, inconfundível. Imaginava que o poeta observador não devia ter
levado muito tempo para associar o aparente estranho com o menino vigoroso que conhecera em sua infância. O reencontro deve ter abalado seus alicerces. Justo quando
ele havia atenuado o seu próprio passado levemente infame e se reinventado como poeta de autoridade moral, ficava cara a cara com uma das figuras mais famosas da
história recente, reivindicando o compromisso da velha amizade. Era uma cena para lá de dramática. Tudo levava a crer
que William fora poupado de pelo menos uma testemunha para o seu embaraço; o encontro com certeza fora reservado, uma vez que Fletcher dificilmente se arriscaria
diante de terceiros.
Jane passou pelo cruzamento para Grasmere e contornou a curva na estrada. Já podia ver as placas indicando o Dove Cottage e o Museu Wordsworth. Pelo menos não vai
estar muito cheio hoje, pensou. Ao contrário do que acontecia na alta temporada de verão, quando turistas se espremiam nos cômodos minúsculos onde Wordsworth e sua
família haviam vivido sua restrita vida social. Para William, tudo aquilo decerto lhe pareceria à altura do seu mérito; ele jamais duvidara de sua genialidade, reclamando
apenas que o mundo estava um pouco mais atrasado do que ele nesse aspecto.
Jane estacionou sua bicicleta e entrou no elegante café, decorado com cadeiras e mesas de pinho. Anthony Catto estava sentado em um canto lendo o jornal matutino.
Ele estava mais para um roqueiro envelhecido do que um curador de museu, o cabelo grisalho comprido preso em um rabo-de-cavalo e os óculos retangulares de grife
pendurados no nariz. Trajava o que Jane já reconhecia como seu uniforme de trabalho - botas, calça jeans desbotada, camisa de brim e um colete marrom de couro com
os bolsos sempre abarrotados de lembretes que ele vivia rabiscando para si mesmo, antes de depositá-los prontamente no que chamava de "arquivos de trabalho". Mas,
a despeito de sua aparência, não havia ninguém vivo que soubesse mais a respeito da vida e da obra de William Wordsworth e sua família. Dedicara sua vida adulta
a uma busca que beirava o fanatismo por informações sobre o poeta e seu universo. E, sobretudo, não era do tipo que esconde seu conhecimento a sete chaves, como
os que, para o desgosto de Jane, predominavam na vida acadêmica. Anthony era incrivelmente generoso com sua erudição. Alguns podiam considerá-lo generoso até demais,
quase chato. Mas Jane não estava entre eles.
- Bom-dia, Anthony - cumprimentou ela, aproximando-se de sua mesa.
Ele levantou a cabeça e enrugou seu rosto áspero em um sorriso.
- Jane, querida - disse ele, a voz saborosa e suculenta como um pudim de leite. - Estou feliz em revê-la. - Ergueu seu corpo alto e magro
da cadeira e esticou a mão para cumprimentá-la. Jane apertou a palma da mão quente e seca dele com a sua, fria. - Meu Deus, você está gelada! - comentou ele.
- Vim de bicicleta, de Fellhead. Estava ameno quando saí de casa, mas acabou que esfriou mais do que eu imaginava no caminho - admitiu, pesarosa.
- A vida na cidade está deixando você frágil. Está perdendo aquele vigor típico da Região dos Lagos - disse ele, servindo-lhe um café.
- Que nada, isso está nos ossos. É preciso bem mais do que um friozinho para me derrubar - respondeu Jane, bebericando satisfeita o seu café.
- Bem, Jane, estou intrigadíssimo com essa carta de Mary. Depois que nos falamos, eu a localizei, exatamente no lugar onde você me disse que estava. - Ele
balançou a cabeça, a boca retorcida em uma expressão de desaprovação. - É incrível que ninguém tenha visto isso antes. Bem, eu acho incrível. Mas ainda existem inúmeros
itens no arquivo que ainda não foram catalogados.
- E estava no envelope errado. Você acha que ela se refere a um poema?
Ele puxou o lóbulo da orelha.
- Mary é irritantemente vaga, não é mesmo? Pode ser uma carta, anotações para um poema ou até mesmo um poema propriamente dito. Ou até mesmo as três coisas.
Diga-me por que você acha que é um poema.
- Eu acho que Fletcher Christian voltou para a Inglaterra - disse Jane, bruscamente. Tinha a sensação de estar contando aquela história, de um jeito ou de
outro, há dias. Mas sabia que precisava obter a ajuda de Anthony, de modo que preparara uma nova estratégia.
Anthony abriu um sorriso quase complacente.
- Ah, aquela velha baboseira que circula pela Região dos Lagos. Mas, embora um tanto quanto improvável, não chega a ultrapassar os limites da possibilidade.
- Fico feliz por você pensar assim. Agora, eu acho que ele deixou Pitcairn em algum momento, por volta de 1793 ou 1794. Certamente antes que as crianças estivessem
crescidas o bastante para ter alguma lembrança dele. É difícil especular quanto tempo ele levou para voltar à
Inglaterra. Mesmo que ele tenha escapado em um baleeiro ou conseguido navegar até a América do Sul em um escaler, ainda assim ele teria de atravessar o Atlântico
e arrumar um jeito de reingressar, provavelmente como um marinheiro comum. Tudo isso deve ter levado um bom tempo. Talvez até mesmo anos.
Anthony assentiu com a cabeça.
- Certo.
- Bem, embora ele soubesse que possivelmente havia sido condenado pelo motim em sua ausência, não tinha motivo para supor que qualquer um fora da Marinha
estaria sabendo disso. Ele não tinha como saber que a viagem fenomenal de Bligh havia transformado o motim em uma espécie de reality show do século XVIII. Ele deve
ter levado um susto e tanto ao descobrir que era famoso.
Anthony franziu a testa.
- Ele era um sujeito esperto, o seu caro Fletcher, não era?
- De acordo com a opinião geral, sim. Por que a pergunta?
- Acho que, para ele, faria um certo sentido permanecer além-mar enquanto buscava alguém em quem pudesse confiar aqui. Nem que fosse apenas para tomar as
devidas providências para o seu regresso.
Jane concordou.
- Faz todo o sentido.
- E isso pode explicar muito bem o curioso incidente da carta de William para o jornal - disse Anthony. - Você conhece a história da carta, não conhece?
- William escreveu ao jornal rejeitando a autoria de um panfleto supostamente escrito por Fletcher, descrevendo suas aventuras após o motim. Eu já vi o panfleto,
é uma bobajada absurda.
- Mas decerto recebeu bastante crédito do público em geral para fazer com que William se mobilizasse ostensivamente para denunciá-lo como falso. Não só é
a única referência ao motim em seus escritos, como também a única carta que ele mandou a um jornal assinada com seu nome verdadeiro, e não um pseudônimo. E ele não
diz algo do tipo "eu afirmo isso com conhecimento de causa"? O que pode sugerir que Edward Christian conhecia exatamente o paradeiro do irmão, ou pelo menos sabia
o bastante para
convencer Wordsworth a afirmar categoricamente que o panfleto era uma miscelânea de mentiras. - Anthony reclinou-se na cadeira, satisfeito com seu raciocínio. -
Até aqui, tudo muito lógico. Mas como chegamos daqui até o suposto poema?
Jane sorriu.
- É tudo uma questão de sincronia. Eu acho que Fletcher Christian não deu as caras até o Bounty virar assunto velho. Acho que ele retornou por volta de 1804.
- Por que 1804, especificamente?
- Aquela altura, a Inglaterra estava em guerra com a França e todos os marinheiros estavam focados em Napoleão. Nelson, e não Bligh, era o herói naval do
momento. Já haviam se passado dez anos desde que Fletcher escapara de Pitcaim e eu acho que ele devia estar bastante chateado e frustrado por Bligh lhe ter roubado
tanto tempo longe de casa. Ele deve ter sentido uma necessidade desesperada de revelar sua versão da história. Você não sentiria?
- Claro. - Anthony esfregou o queixo. - Entendi aonde você quer chegar. Em 1804, Wordsworth não só era um poeta que já gozava de certa reputação, como havia
transferido seu interesse da poesia lírica para os épicos. Ele estava trabalhando em O Prelúdio. Devia estar até mesmo sonhando em pentâmetro iâmbico. Era o momento
criativo perfeito para abordar uma história como a do motim.
- Exatamente. E o que podia ser mais natural do que Fletcher ir procurar William? Quem poderia relatar melhor a sua versão da história do que alguém que ele
conhecia desde a infância?
- Imagina como Fletcher deve ter ficado decepcionado ao perceber que William nunca ia publicar sua versão. - Anthony sorriu para ela, enrugando o canto dos
seus olhos acinzentados. - Jane, você teceu uma bela trama a partir de um pressuposto pífio. Como pretende fundamentá-la com mais firmeza à realidade?
Jane abriu um largo sorriso.
- Bem, num mundo ideal, Anthony, nós abriríamos uma das suas caixas e encontraríamos as anotações e o poema completo de William.
- E qual o plano B?
- Preciso encontrar a resposta de John a Mary. Isso pode me dar algumas pistas sobre onde começar a procurar pela coisa misteriosa que William não queria
que ninguém visse.
Anthony franziu os lábios.
- Não me lembro de ter lido nada parecido.
E você teria se lembrado, pensou Jane. Ela ainda se recordava da vez em que perguntara a Anthony se ele sabia quando a porta dos fundos do Dove Cottage havia sido
instalada. Ele respondera, sem titubear: "Deve ter sido ou em março de 1804 ou por volta dessa época. Dorothy menciona sua instalação em uma carta desse mês." Se
a carta de John para sua mãe estava nos arquivos, Anthony saberia.
- Que pena - disse ela.
Anthony ergueu o dedo, em um gesto admonitório.
- Mas ainda existem algumas caixas com cartas de família que nunca foram catalogadas. Estão largadas no fundo de um armário há anos. Só as encontramos quando
estávamos encaixotando o arquivo para transferi-lo para o novo centro. Deborah deu uma olhadela rápida e elas haviam sido escritas após a morte de Wordsworth, de
modo que não havia nenhuma urgência em examiná-las. Você pode vasculhá-las à vontade. - Do tipo que não deixa nada para depois, ele esvaziou sua xícara de café e
se levantou, esperando que ela o imitasse. - Há um preço, é claro - acrescentou enquanto caminhavam de volta para a cozinha.
Jane sentiu uma leve pontada de surpresa. Não era típico de Anthony agir de maneira tão direta sobre uma troca de favores. Ele, normalmente, era diplomático até
demais.
- Está bem - concordou ela.
- Você deve expressar uma admiração eterna pelo nosso novo Jerwood Centre - disse ele, virando-se de costas para ela para exibir um sorriso brincalhão.
- Eu acho um preço absolutamente razoável - disse ela, seguindo-o para fora do café.
Chegamos a Otaheite no dia 25 de outubro de 1788, após uma viagem longa e traiçoeira. Não conseguimos contornar o Cabo Horn, de modo que tivemos de voltar e fazer
o caminho mais longo, pelo Cabo da Boa Esperança. Os homens estavam exaustos e nauseados, não obstante, o tenente Bligh os obrigava a dançar todos os dias no convés
para manter um bom preparo físico. Otaheite nos parecia um paraíso na Terra, rico em tudo que um homem pode desejar. Eu me considerei afortunado por ser enviado
para montar um acampamento em terra firme, onde deveria supervisionar a coleta da fruta-pão, cujo transporte constituía o propósito de nossa viagem. Entre os homens
que escolhi para me acompanhar estava o jovem Peter Heywood, em parte por julgá-lo mais protegido sob os meus cuidados do que a bordo, com um capitão que não hesitaria
em transformá-lo em vítima de seu espírito vingativo. Agora, olhando em retrospecto, creio ter escolhido o caminho errado.
13
Tenille despertou do sono em pânico, esquecendo-se por um instante por que a luz estava vindo da direção contrária. Livrou-se da coberta desconhecida em uma cama
estranha, examinando o aposento com os olhos arregalados enquanto se esforçava para recobrar seu senso de orientação. Então, a lembrança da noite anterior a atingiu
em cheio, as cenas se aglutinando em um caleidoscópio de horror. O sono deixara seus olhos colados e seu corpo suado, os sonhos atormentados lhe renderam um gosto
amargo na boca.
Pulou para fora da cama e correu até o banheiro, conseguindo chegar a tempo de vomitar no vaso sanitário. Prostrou-se encolhida no chão, estremecendo diante das
imagens indesejáveis que desfilavam em sua mente. O sangue de Geno, sua carne espatifada, suas roupas reduzidas a trapos. Não lamentava a morte dele; sua visão adolescente
do mundo não aceitava meio-termo e, no que lhe dizia respeito, ele não valia nada. Mas lamentava ter presenciado o que havia restado de Geno após seu pai ter lhe
dado o merecido castigo.
Levantou-se com dificuldade, como uma senhora idosa, e caminhou arrastando os pés até a cozinha. Por algum motivo, ter limpado o estômago a deixara com fome. Tudo
que encontrou na geladeira foi um pedaço de queijo cheddar, uma embalagem de suco de laranja, meio pote de maionese e os restos de uma porção de cebolinha. Nenhum
leite, nenhuma Coca-Cola. "Nada que preste", resmungou consigo mesma, abrindo os armários. Um pacote de biscoito de aveia. Macarrão, arroz, tomate enlatado, feijão,
lentilhas e alguns pacotes de macarrão instantâneo. Café, chá preto, achocolatado. Uma caixa de cereal matinal, do tipo composto por frutas secas e grãos.
Muito a contragosto, Tenille apanhou o cereal e serviu um pouco em uma tigela. Jogou suco de laranja por cima e voltou para a sala de estar.
Ligou o rádio e sintonizou na estação local. Precisava descobrir o que estavam falando sobre a morte de Geno. Voltou para a cama com a comida e mastigou desanimada
enquanto esperava o boletim de notícias.
Primeiro, teve de escutar uma baboseira sobre política. Tenille gostaria de saber por que os locutores sempre pareciam tão animados. Quem estavam tentando enganar?
Será que achavam que as pessoas não iam notar os podres se fizessem um tom de voz do tipo "você ganhou na loteria"? A animação implacável continuou na segunda notícia:
"A polícia abriu uma investigação de homicídio após um grave incêndio no conhecido conjunto habitacional Marshpool Farm em Bow. O corpo de um homem foi descoberto
pelos bombeiros que estavam trabalhando no local. A inspetora Donna Blair, que está conduzindo a investigação, busca a ajuda de possíveis testemunhas." Uma voz diferente
disse: "Acreditamos que a vítima pode ter sido baleada e que o incêndio tenha sido provocado para encobrir o crime", disse ela, com um tom de voz direto e oficial.
"Pedimos a qualquer pessoa que tenha presenciado algo suspeito no Bloco G do conjunto habitacional ou em seus arredores entre as 10:00 e 11:00 horas da noite de
ontem que, por favor, se apresente."
Tenille bufou, debochada. Sem chance. Ninguém com um mínimo apreço à própria vida ia dedurar Martelo. O locutor passou para a próxima história e ela ignorou o som
de sua voz. Nenhuma surpresa nas notícias. Graças aos documentários forenses que havia assistido, sabia que o incêndio não ocultaria o fato de Geno ter levado um
tiro antes. Mas torcia para que tivesse destruído qualquer vestígio capaz de incriminar seu pai.
Devia pensar num jeito de dar as caras. Sharon não ficaria muito preocupada quando a polícia lhe dissesse que havia apenas um corpo no incêndio. Apenas ia presumir
que Tenille havia voltado tarde para casa e, ao ver o lugar apinhado de policiais e bombeiros, tivesse feito o que qualquer morador de Marshpool Farm faria naquelas
circunstâncias: dado no pé. Mas era melhor não esperar muito. Decidiu monitorar as notícias até o final da tarde e só então aparecer, alegando ter passado a noite
na casa de uma amiga, assustada demais para voltar. Era uma boa desculpa.
Duas horas mais tarde, seu papo na internet sobre a "Ode à Uma Grega", de Keats, foi interrompido por uma batida na porta.
- Merda - resmungou ela. Caminhou em silêncio até a porta, estremecendo nervosa ao ouvir mais uma batida, dessa vez mais alta e mais demorada. Tenille avançou
lentamente em direção à porta, aproximando-se devagar do olho mágico. Arriscou uma espiadela.
Ficou boquiaberta com a surpresa. A última pessoa que ela esperava ver plantada do lado de fora da porta de Jane era o babaca do Jake Hartnell. Ele havia se mandado
fazia séculos. Jane não tocara muito no assunto, mas Tenille captara a tristeza em seu rosto quando ela falava sobre a ida dele para a Grécia. Agora, pelo visto,
a Grécia tinha ido para as cucuias e o palhaço imprestável estava de volta. Bem, era óbvio que ela não ia abrir a porta para ele de jeito nenhum. Nem tinha a menor
intenção de comunicar a Jane que ele estivera lá.
Ele chacoalhou a caixa de correio e Tenille grudou as costas na parede, prendendo o fôlego.
- Jane? - chamou ele. Como se aquilo fosse fazer Jane vir correndo para atender a porta, pensou Tenille com desdém. Ouviu-o suspirar e depois fechar a caixa
de correio. Ela permaneceu imóvel, querendo garantir que ele já estava longe antes de voltar depressa para o escritório. Intermináveis segundos se passaram até que
ela escutou outro barulho na caixa de correio e uma folha de papel, arrancada de um caderno, voou até o tapete. Tenille contou até sessenta e depois se inclinou
para apanhar o papel. Enquanto lia, balançava a cabeça, em uma descrente irritação. Querida Jane, acabo de chegar de Creta e vim direto te procurar, mas não estavas
em casa. Senti tua falta e quero muito te ver. Te ligo mais tarde. Espero que possamos nos encontrar para tomar um drinque, ou jantar. Um beijo, Jake.
E ainda manda beijo, pensou Tenille. Os adultos eram patéticos. Não era preciso ser nenhum gênio para saber que o recado idiota de Jake não tinha a menor chance
de surtir efeito. Depois do que ele fizera com Jane, teria de esvaziar o estoque inteiro de uma loja de flores para que ela talvez, quem sabe, aceitasse que ele
lhe pagasse uma garrafa de champanhe. Era o ideal, se Jane agisse com o mínimo de bom senso. O que, em se tratando de
Jake, Tenille duvidava muito. Amassou o papel e o jogou no lixo antes de voltar para o seu bate-papo no computador. Não ia permitir de modo algum que Jane fizesse
papel de palhaça com Jake novamente.
Era o mínimo que podia fazer em troca, por Jane ter providenciado a morte de Geno.
Jake girou nos calcanhares e caminhou rapidamente pela galeria sombria, frustrado com a ausência de Jane, perguntando-se onde ela poderia estar. Tinha certeza de
que não era dia de trabalho no Viking e sabia que ela também não dava aula naquele dia. Deveria estar em casa. Jamais lhe ocorrera que era absurdo esperar que a
vida de Jane continuasse obedecendo à mesma rotina da época em que ele fizera parte dela.
Desceu as escadas correndo, tentando não pensar por que elas fediam a fumaça acre e não a urina e dirigiu-se depressa até o local onde havia estacionado o carro.
Para seu alívio, o Audi de Caroline continuava no mesmo lugar, aparentemente intocado. Conhecia Marshpool Farm bem o suficiente para saber que a luz do dia não proporcionava
garantia à segurança de um carro sofisticado. O mesmo podia ser dito das duas viaturas policiais estacionadas ao lado. Entrou no carro, trancou as portas e ponderou
qual seria o próximo passo. Ia ter que dar duro para conquistar Jane novamente. Cara a cara, um diante do outro a sós, era a maneira ideal para isso. O Viking estava
fora de questão; Harry estaria lá ao lado dela, pronto para meter o bedelho. Harry jamais simpatizara com ele. A universidade também não era uma alternativa melhor.
Lá, ela estaria rodeada de colegas, amigos, alunos, todos servindo de escudos convenientes para protegê-la. E a biblioteca era uma péssima idéia, pois Jane teria
a chance de refugiar-se no silêncio.
Uma coisa era certa: não podia ficar zanzando pelo conjunto habitacional, vigiando o apartamento dela como um detetive de quinta categoria. Acabaria chamando muita
atenção, e justo do tipo de gente que não pensaria duas vezes em fazer o que fosse preciso para privá-lo do seu carro, de sua carteira, de seu celular. Sem contar
com a polícia, que decerto ficaria intrigada com qualquer um rondando num carro como o Audi por Marshpool.
Enfim, por não saber mais o que fazer, telefonou para a universidade. Se ela tivesse mudado os seus horários e estivesse lecionando naquele dia, seria muito mais
fácil vigiá-la por lá. Só então poderia segui-la e escolher o momento mais apropriado para abordá-la.
Quando finalmente conseguiu falar com a secretária do Departamento de Letras, ela o deixou esperando na linha enquanto apurava alguma notícia de Jane. Jake tamborilou
os dedos impacientemente no volante, tentando ignorar a voz ranheta de Sting. O que passava pela cabeça das pessoas que escolhiam as músicas de espera nos telefones?,
indagava-se ele. Será possível que não podiam escolher algo tranqüilo e sereno, para que a pessoa mofando do outro lado da linha pudesse acalmar os seus impulsos
homicidas em vez de exacerbá-los? Sentiu-se tremendamente grato quando a música foi interrompida de supetão e a voz da mulher ressoou mais uma vez em seus ouvidos.
- O senhor deu azar - disse ela. - Jane Gresham não está dando aula hoje. Para falar a verdade, ela tirou uma licença. Só volta daqui a duas semanas.
- Licença? Por quê? Algum problema com a família ou algo parecido?
- Só posso lhe informar o que consta aqui no sistema. "Licença para fins de pesquisa" é o que está escrito aqui. Se quiser deixar um recado, posso colocar
no escaninho dela.
- Não, obrigado mesmo assim. Valeu pela ajuda. - Jake desligou, sentindo o coração disparar no peito. Licença para fins de pesquisa, no meio do semestre.
Só podia significar que algo imprevisto e urgente havia surgido.
Algo como um cadáver num pântano, por exemplo.
A inspetora Donna Blair franziu o cenho, contemplando o laudo do legista.
- Tem certeza? - perguntou ela.
- Tenho - respondeu o papiloscopista. - Sua equipe trouxe os resíduos de uma espingarda de cano curto, recolhidos na cena do crime. A coronha estava carbonizada,
o que impossibilitou a análise das digitais, mas tivemos sorte com o cano. Embora o fogo faça o conteúdo aquoso evaporar, quando não é muito forte, os depósitos
de gordura permanecem no metal. Fizemos um teste microquímico com o corante Sudan Black...
- Poupe-me dos detalhes - interrompeu Donna.
O técnico deu de ombros.
- Está tudo no laudo. Conseguimos algumas digitais. Elas não são compatíveis com as de ninguém do banco de dados, mas sim com as impressões de eliminação
que colhemos do quarto de Tenille Cole.
Donna sacudiu a cabeça, deprimida com a idéia.
- Encaixa perfeitamente. Temos uma testemunha que viu a menina saindo do apartamento uns cinco minutos antes de o incêndio ser relatado. OK, obrigada.
Filho de peixe, peixinho é, pensou Donna enquanto descia correndo as escadas até a sala de interrogatórios. A filha de Martelo parecia estar seguindo os passos do
pai. Ia ser um prato cheio para a imprensa. Haveria uma comoção geral quando soubessem que a principal suspeita era uma adolescente bonita com o tipo de histórico
triste que os jornalistas adoravam explorar. O fato de Martelo não ter participado de sua criação não faria a menor diferença; o parentesco por si só já seria o
bastante para transformar Tenille Cole no tipo de assassina fria e calculista que enregelaria o coração dos leitores, todos ávidos para demonizar qualquer ala da
sociedade à qual não pertencessem.
Donna desviou seu caminho e entrou no banheiro feminino, trancando-se em uma das cabines. Se a sua principal suspeita fosse a assassina, não havia muitos motivos
prováveis. O mais óbvio era o mais previsível para irritar Sharon Cole de cara. Donna queria estar preparada para o efeito colateral. Sentada na tampa do vaso sanitário,
fechou os olhos, respirando fundo. Esvaziou sua mente, visualizando ondas se quebrando numa praia no inverno, até sentir seus ombros relaxarem.
Minutos depois, caminhava pelo corredor em direção à sala de interrogatórios. Sharon Cole ergueu a cabeça assim que Donna entrou no aposento. Seus olhos estavam
avermelhados, mas se mantinha ereta em sua cadeira.
- Por que estão me segurando até agora? - perguntou ela. - Eu sou a vítima aqui.
Donna compreendia as emoções ocultas por trás da bravata de Sharon. Tinha um dom para empatia. Mas, enquanto a maioria dos policiais que possuía esse dom o usava
para ganhar a confiança de seus alvos e obter
informações, Donna tinha uma abordagem diferente. Ela usava sua compreensão para derrubar a guarda das pessoas e atingir seus pontos fracos. Quanto mais desconfortável
ela se sentia, maior a sua certeza de estar desconcertando o oponente. Até chegar a um determinado momento em que eles abriam o jogo. Sua habilidade forense para
dissecar testemunhas e suspeitos fazia com que seus colegas a olhassem com certa cautela. Mas ela não ligava. Conseguia resultados e isso era o que importava. Estava
ali para tirar os canalhas das ruas, não para fazer assistência social.
Donna só abriu a boca após acomodar-se diante de Sharon.
- Não me venha com essa de vítima, Sharon. Você é culpada sim e sabe muito bem disso.
Sharon ficou visivelmente confusa. Não era daquela maneira que ela esperava ser tratada, não após a gentileza demonstrada pelos policiais que a trouxeram.
- Eu estava trabalhando a noite inteira. Pode perguntar pra qualquer um e vai ver que é a verdade.
- Você pode até não ter mandado Geno dessa para melhor. Pode não ter tocado fogo no seu apartamento. Mas você é responsável pelo que aconteceu lá ontem à
noite. - Donna podia sentir a raiva de Sharon. O que ela queria era o desconforto, mas ainda não havia chegado lá.
- Isso é ridículo. Você está insinuando que eu contratei um assassino profissional? Por que eu faria uma coisa dessas? Eu amava Geno.
Donna revirou os olhos.
- Ah, por favor, me poupe disso. Vocês não passavam de uma trepada de conveniência um para o outro. Embora, pensando bem agora, algumas pessoas no seu lugar
teriam pensado em contratar um assassino.
- O que você quer dizer com "no meu lugar"?
Agora sim; o desconforto. Hora de Donna fazer sua jogada:
- Uma mulher sendo traída pelo seu homem com sua sobrinha de 13 anos - disse Donna. -Algumas mulheres...
- Peraí, porra - interrompeu Sharon, num ganido. - Que merda é essa agora? Você está me dizendo que Geno estava mexendo com Tenille?
- Ela tentou parecer blasée, mas o beicinho trêmulo entregava seu nervosismo.
- Não consigo imaginar outro motivo para Tenille ter metido uma bala nos cornos dele, você consegue?
Sharon arregalou os olhos e encolheu os lábios, sibilando entre os dentes:
- Você tá maluca, sua vagabunda. Tenille não faria uma coisa dessas.
- Não acho que eu esteja maluca, não - disse Donna. - Encontramos as digitais de Tenille na arma. E ela foi vista fugindo do apartamento alguns minutos antes
de o alarme de incêndio ser acionado. Sem contar que está sumida desde então. O filme da garota está queimado, Sharon.
Sharon agitou-se na cadeira, lançando um olhar penetrante para Donna, incapaz de disfarçar seu temor.
- Geno não era pedófilo, nem aqui nem na China. Ele estava interessado em mim. Você só está tentando me irritar. Não acredito em uma palavra.
Donna deu de ombros.
- Problema seu. No momento, Tenille é a minha suspeita número um. E você vai me dizer onde posso encontrá-la.
- Pensa bem, sua vaca. Por que eu iria te ajudar a incriminar uma inocente por assassinato?
O tom desafiador era apenas superficial e Donna sabia disso. Não demoraria muito para neutralizá-lo. Inclinando-se para a frente, cravou seus ferozes olhos azuis
nos olhos castanhos e lacrimejantes de Sharon.
- Porque, se não me ajudar, vou começar a levar em consideração a hipótese de você estar ciente de que Geno abusava de Tenille e tramou tudo para a menina
dar cabo dele. Para proteger sua sobrinha e vingar seu orgulho ferido. E vou fazer questão de que Tenille saiba disso, vou escrever isso no relatório. A barra vai
ficar mais limpa pra ela, Sharon, e suja pra você.
Sharon a encarou com ódio.
- Mesmo que eu soubesse onde Tenille está, não ia te dizer, sua vaca. Impossível Geno estar mexendo com ela, e, ainda que eu tivesse achado isso, jamais teria
mandado Tenille resolver a situação sozinha.
- Ah, não? E quem você teria procurado? O pai dela?
Sharon desviou o olhar.
- Ela não tem pai.
- Não é o que dizem em Marshpool Farm. Eles dizem que Martelo é o pai da menina. - Donna fez uma pausa intencional. - Na verdade, pode
ser uma boa idéia, eu podia ir procurar Martelo e sugerir que a melhor maneira de proteger a filha é incriminando sua titia Sharon. Tenho certeza de que Martelo
não teria dificuldade em encontrar um pobre coitado para confessar que arrumou uma arma pra você, Sharon. Acho que Martelo vai se preocupar mais em salvar a filha
do que você.
Sharon sacou o maço de cigarros do bolso. Donna arrancou o maço da mão dela.
- É proibido fumar aqui - disse ela. - E, além disso, você vai precisar de bem mais do que uma dose de nicotina para se proteger de Martelo. Onde ela está,
Sharon?
Sharon a encarou com uma expressão de repúdio e depois desviou o olhar.
- Eu não sei onde ela está, tô falando sério.
- Amigos. Coleguinhas. Com quem ela costuma andar?
Sharon suspirou:
- Ela tá sempre sozinha. Não se dá com ninguém. Vive enfiada na biblioteca.
Donna bufou:
- Ah, qual é? Você acha que eu vou acreditar que a filha de Martelo passa o seu tempo livre lendo os clássicos?
- Não somos todos uns ignorantes, sabia? - disparou Sharon. - Tenille é uma menina inteligente. Quer ser alguém na vida.
- Não é o que dizem na escola. Ela vive matando aula e você sabe disso.
Sharon deixou escapar um som agudo de irritação.
- Pode até ser. Mas a garota podia ensinar umas coisinhas aos seus professores.
- E ela aprende tudo isso na biblioteca? - perguntou Donna, com incredulidade na voz.
- Alguns professores enxergam mais longe que os da escola - disse Sharon. - Tem uma mulher que mora lá no conjunto. Ela dá aula na universidade. Tenille freqüenta
o apartamento dela às vezes.
O interesse de Donna aumentou assim que percebeu que Sharon estava falando a verdade.
- Nome e endereço - exigiu ela, apanhando papel e caneta.
Sharon deu de ombros.
- Eu não sei. Ela mora no mesmo bloco que a gente, eu acho. Mas não sei onde.
- Você está querendo me dizer que Tenille vive enfurnada na casa de uma mulher estranha e você nem sabe onde ela mora? - Donna fingiu uma indignação beligerante.
Sabia que não havia nada de incomum no comportamento de Sharon, não em Marshpool, onde um número deprimente de pais não fazia a menor idéia de onde estavam seus
filhos em nenhum momento da noite ou do dia.
- É melhor do que zanzar pelo prédio usando drogas e tomando porres - retrucou Sharon, comprando a briga. - Tudo o que sei sobre a tal fulana é que
se chama Jane e é professora na universidade.
- Qual?
Sharon pareceu desnorteada:
- Na universidade, ué.
Donna arrastou sua cadeira para trás, fazendo os pés do móvel se arrastarem e produzindo um barulho estridente no piso de vinil.
- Vou verificar essa história. É melhor você não estar mentindo pra mim, Sharon. No que me diz respeito, até eu conversar com Tenille, você continua aqui.
- Você não pode fazer isso - protestou Sharon, ficando de pé. - Eu quero ir embora.
Donna levantou-se num ímpeto e contornou a mesa em uma velocidade estonteante. Ficou cara a cara com Sharon, tão próxima que pôde sentir o cheiro de óleo de cozinha
em seu cabelo, e olhou fixamente em seus olhos.
- Não me obrigue a prendê-la, Sharon. Eu posso te trancar aqui, por suspeita de conspiração para cometer homicídio e incêndio criminoso, em dois tempos. Agora,
seja uma boa moça e trate de ficar sentada.
Sharon deu um passo para trás, batendo com a parte interna dos joelhos na cadeira dura ao sentar-se de volta pesadamente.
Donna sorriu.
- Vou mandar alguém lhe trazer um chá - disse ela, avançando em direção à porta. Te peguei, Tenille.
Nosso trabalho, embora maçante, era bastante simples. Nossa missão era coletar oitocentos pés de fruta-pão e a cumprimos em apenas duas semanas. Mas empreender
uma viagem de volta, àquela altura, seria praticamente um suicídio. Nenhum capitão com um mínimo de consideração pelo seu navio ou sua carga ousaria atravessar o
Pacífico na temporada das chuvas, nem sequer cogitaria zarpar pelo Estreito de Endeavour enfrentando os ventos predominantes de frente. De modo que ficamos confinados
em Otaheite até o dia 4 de abril do ano seguinte. O que não foi, para ser franco, nenhum sacrifício nem para os oficiais nem para os homens. Os nativos eram hospitaleiros;
as mulheres, generosas em seus favores; a comida, saborosa e farta; o clima, extremamente agradável. Aprendemos a falar o idioma local e eles me chamavam Titreano,
o mais próximo que conseguiam chegar da pronúncia do meu primeiro nome. Fiz muitas amizades, entre elas com Mauatua, que depois veio a ser minha esposa e a quem
eu batizei de Isabella, em homenagem à minha prima Isabella Curwen. Para mim, estar longe de Bligh era apenas um benefício adicional à época em que fui mais feliz
em minha vida.
14
À primeira vista, não parecia muito. Meia dúzia de caixas de arquivo e olhe lá. Mas Jane sabia o que a esperava. Dentro de cada uma daquelas caixas estaria um amontoado
de papéis frágeis, alguns intocados por uma geração ou mais. Cartas com caligrafias distintas, de difícil leitura ou escritas à mão sobre lâminas de cobre; anotações
garatujadas e fragmentos em tinta desbotada; rascunhos indecifráveis com rabiscos e marcas de revisão - tudo ali em estado caótico, pronto a forçar seus olhos e
os limites do seu conhecimento.
Anthony lhe garantira que a fundação não tinha nenhum outro material ainda não catalogado.
- É claro que existe uma quantidade considerável de material sobre Wordsworth por aí afora, mas não temos como saber exatamente o que e com quem - dissera
ele. Ao perceber a expressão aborrecida no rosto de Jane, ele sorriu. - Não fique desanimada. Nós temos mais material do que qualquer outra pessoa. E não vamos esquecer
que você encontrou a primeira pista aqui.
Jane devolveu um sorriso tão gélido quanto o inverno de Fellhead.
- Vou tentar me lembrar disso - respondeu, suspendendo a primeira caixa e apoiando-a sobre a mesa do gabinete de estudos que Anthony cedera a ela. - Que família
desgraçada. Acho que nunca jogaram um pedaço de papel no lixo.
- É uma boa estratégia para esconder o que não se quer que ninguém encontre - disse Anthony, apoiando uma pilha de livros no chão para abrir mais espaço para
Jane na mesa. - Passa uma impressão de idoneidade graças ao volume imenso do que está disponível. E, por ter muita coisa, ninguém pensa em questionar o que pode
estar faltando. Só quando podres como Annette Vallon são desencavados é que percebemos que aceitamos os fatos sem questioná-los. - Ele abriu um sorriso. - Mas até
mesmo o sistema
mais eficaz não pode ser melhor do que os seres humanos que o adotaram. E, de quando em quando, algo passa despercebido. Como a carta de Mary. Se for mesmo o
que você está pensando, você vai entrar para os anais da literatura acadêmica.
Jane deu de ombros.
- Não é por isso que eu estou aqui.
- Eu sei disso. - Os olhos de Anthony faiscaram e ele abriu um sorriso. - Você quer poder ler, não é?
- É. O motim no Bounty é uma história extraordinária. E, se eu estiver correta, Wordsworth o abordou no auge do seu talento. Eu quero ver como é que ficou.
- Ela abriu os braços. - É algo que tem a ver com a minha especialidade. Wordsworth empregou sua personalidade e seu dom poético em uma história que ainda era explosiva.
E todo esse mistério, tão típico de Wordsworth.
- Já pensou? Toda aquela imaginação trabalhando com um material tão fantástico e cru. É possível que tenha sido a melhor coisa que ele escreveu na vida.
Jane sentiu um calafrio.
- Não diga isso, Anthony. Não posso me dar ao luxo de pensar isso agora. Pode ser que eu esteja enganada, ou então posso até estar certa, mas não encontrar
o que estou procurando. Preciso tentar manter meus pés no chão.
- Eu entendo. Boa sorte, Jane. Vou ficar por aqui o dia todo, caso precise de mim. Ou no escritório ou no museu.
Ele saiu do gabinete, deixou Jane a sós com a papelada. Ela removeu a tampa da primeira caixa e examinou seu conteúdo. Estava lotada até a borda com uma pilha de
envelopes em papel pardo e pastas de papelão. Alguém ao menos tomara as primeiras providências para preservar aquele material, mesmo sem tê-lo catalogado. Com um
suspiro, Jane apanhou o primeiro envelope da caixa e começou a sua enfadonha tarefa.
A inspetora Donna Blair olhou para trás, verificando se a viatura com os policiais estava estacionando atrás dela. Sabia que seus colegas homens deviam estar ridicularizando-a
pelas costas por recusar-se a investigar os moradores de Marshpool sem a proteção da polícia, mas ela pouco se importava. E, de mais a mais, nenhum deles estaria
mais tranqüilo do que ela para aventurar-se em território inimigo sem estar escoltado. A única
diferença era que os homens iriam arrumar algum pretexto para aumentar o suposto nível de perigo. Como uma pista completamente inventada de um de seus informantes
de que o vilão pelo qual procuravam estava armado. Donna não tinha saco para aquele tipo de joguinho idiota. Talvez fosse exatamente isso o que os deixava mais irritados,
pensou ela saindo do carro e ajeitando seu blazer feito sob medida.
O sargento-detetive Liam Chappel veio em sua direção enquanto ela se aproximava dos quatro policiais, o rosto encovado tão animado quanto um fim de semana chuvoso.
- Nada dramático, rapazes - disse Donna, traindo no tom sarcástico a tensão que todos estavam sentindo. Levara horas para conseguir o nome e o endereço com
os responsáveis pelo conjunto habitacional e a demora não ajudara em nada a melhorar seu estado de espírito. Uma série de burocratas insignificantes tentou detê-la
com uma besteirada sobre proteção de dados, mas ela salientou que o registro eleitoral era de domínio público e forneceria todas as informações de que precisava.
- Só estou pedindo isso a vocês para facilitar um pouquinho a minha vida, verificando o seu registro de locatários - resmungou ela. - Nossos ordenados vêm da mesma
fonte, devíamos estar do mesmo lado. - No fim das contas, conseguiu a informação que queria, embora tenha desperdiçado mais energia do que aqueles funcionários borra-botas
da prefeitura mereciam.
Donna exibiu o papel impresso que havia custado tanto a ela para arrancar do funcionário ranzinza na prefeitura.
- Esta não é uma batida típica em Marshpool. Jane Gresham não é nenhuma perua da periferia. É uma cidadã respeitável. Ela tem até um emprego, o que é tão
raro aqui quanto um aluno que freqüenta a escola de verdade. Então, vamos bater à porta da srta. Gresham e indagar educadamente sobre o paradeiro de Tenille Cole,
não sair arrombando tudo aos pontapés.
- E se ela for uma dessas feministas radicais, uma lésbica defensora da liberdade civil, e se recusar a bater um papinho civilizado com a gente? - perguntou
o sargento-detetive Chappel.
- Aí a gente arromba tudo aos pontapés - respondeu Donna, desviando seu olhar do sargento e contemplando o gigantesco paredão de concreto à sua frente. -
OK, rapazes, tragam os porretes. - Ela começou a caminhar em direção ao prédio. - Alguém aí tem esperanças de o elevador estar funcionando?
Era estranho, pensou Tenille, que algo que parecia tão desejável quando escasso pudesse perder o encanto ao transformar-se na única opção. Geralmente ela nunca se
cansava de ficar em salas de bate-papo na internet, conversando com pessoas com idéias afins sobre os assuntos que a interessavam. Mas naquele dia, com acesso irrestrito
e nada que a distraísse, a internet nunca lhe pareceu tão chata. Pensou em assistir a televisão, pelo menos o noticiário local. Mas ela ficava na sala de estar e
suas luzes piscando provavelmente poderiam ser vistas do corredor pelas frestas na janela de Jane. O que fatalmente denunciaria aos eventuais passantes que havia
alguém no apartamento.
Por fim, levou o pufe e o rádio para o escritório e manteve o volume baixinho, enquanto tentava se concentrar numa leitura, esparramada no chão. Mas não conseguia
sossegar. Estava consumida por uma tremenda ansiedade e, quanto mais ela tentava se convencer de que tudo estava bem, menos confiante ficava.
Sentiu quase uma espécie de alívio ao escutar as batidas na porta da frente. Ficou paralisada, os olhos arregalados e as mãos crispadas no livro com os dedos retesados.
As batidas se repetiram e então ela ouviu uma voz de mulher:
- Srta. Gresham? Aqui é a polícia. Por favor, abra a porta. - O silêncio que se deu em seguida parecia interminável:
Ouviu um barulho na caixa de correio. A mesma voz, agora ainda mais nítida:
- Srta. Gresham, devo avisá-la que, se não abrir a porta voluntariamente, seremos obrigados a entrar à força.
Tenille sentiu a boca ficando seca e um bolo na garganta. O pavor apunhalava sua bexiga, deixando-a com vontade de urinar. Que merda era aquela? Não deviam estar
ameaçando derrubar a porta de Jane aos berros. Mesmo que tivessem descoberto a ligação entre ela e Jane, nenhum policial procuraria uma testemunha esmurrando sua
porta com um porrete.
Antes que pudesse imaginar qual seria seu próximo passo, ouviu mais batidas, dessa vez acompanhadas por uma gritaria. Em seguida, um súbito silêncio, interrompido
pela inconfundível voz da irlandesa maluca que morava no apartamento ao lado.
-Jesus, Maria e José, por que, em nome de Deus, vocês estão fazendo essa algazarra toda? - A pergunta foi seguida por sua costumeira tosse encatarrada.
- Quem é a senhora?
- Meu nome é Noreen Gallagher. Eu estava tentando tirar um cochilo na frente da tevê quando o seu bando resolveu acordar até os defuntos.
- Estamos procurando Jane Gresham - disse a mulher. Tenille cerrou os olhos, concentrada, tentando desesperadamente não perder uma palavra.
- Não vão encontrar ela aí, não - disse Noreen, em tom de desdém.
- Este é o apartamento dela, não é?
- Claro que é. Mas ela não está. Foi passar umas duas semanas em sua casa, em Lake District. Viajou ontem de manhã. Ela bateu aqui para me avisar e tudo.
Estava levando só uma mochila bem grande nas costas, nada mais. Por isso, vocês não vão encontrar Jane aí dentro. Por que estão atrás dela, afinal?
- Isso é um assunto da polícia, sra. Gallagher. Tem alguém no apartamento da srta. Gresham?
Noreen pigarreou.
- Não, desde que ela se livrou do tal namorado. Um vagabundo imprestável. Eu disse a ela: você merece coisa melhor. Mas os jovens não querem ouvir conselhos,
não é mesmo? Eles insistem em cometer seus próprios erros.
- A senhora tem certeza de que ninguém mais possui uma cópia da chave?
Noreen fungou tão alto que Tenille chegou a ouvir o catarro sendo tragado pelas narinas.
- Acredite, se tivesse alguém aí dentro, eu saberia. Essas paredes são tão finas que dá pra ouvir um rato peidando.
Fez-se uma pausa. Então, a mulher atacou novamente:
- A senhora conhece Tenille Cole?
- Conheço, sim. Ela é uma boa menina. Não tem a boca suja como a dessas crioulas sem-vergonha.
- A senhora viu Tenille hoje?
- Acabei de dizer a vocês que Jane viajou. Ora, vejam só, o que Tenille estaria fazendo aqui com Jane fora?
- Ela não tem uma chave do apartamento?
Noreen calou-se em uma longa e áspera tosse.
- Jane não é burra. Ela fica de olho na menina, mas não faria uma coisa idiota dessas. Estou dizendo, nunca vi, nem ouvi Tenille aí do lado quando Jane não
está. Peraí - disse ela, elevando a voz diante de sua constatação. - Não me digam que vocês estão querendo culpar Tenille de ter atirado naquele crioulo safado que
estava amigado com a tia dela?
- Não posso discutir assuntos da polícia, sra. Gallagher. - Estava claro que a mulher sabia se impor.
- Engraçado, você não parece burra - disse Noreen. - Se bem que as aparências enganam. Só quero dizer uma coisa: você vai fazer papel de trouxa se continuar
indo por esse caminho. Tem muita gente aqui que, só de olhar pra você, poderia te meter uma bala, mas Tenille não está entre eles.
Agora, xô todo mundo daqui, que eu tenho mais o que fazer.
Houve um burburinho de vozes e então Noreen Gallagher soltou um grito medonho:
- Vocês não vão derrubar essa porta! Que história é essa? Estou dizendo, não tem ninguém aí dentro. Jane Gresham é uma moça decente, tem coisas de valor no
apartamento. Não vou ficar aqui parada enquanto vocês põem a porta dela abaixo à toa e depois ainda deixam tudo arrombado para os marginais do prédio fazerem a festa.
Sem contar que ela é o tipo de pessoa que conhece advogados, capazes de processar vocês todos por isso.
- Afaste-se da porta - advertiu uma voz masculina. - Não quero ser obrigado a prendê-la, meu bem.
- Tudo bem, sargento. - Disse Donna, tomando as rédeas da situação novamente. - A sra. Gallagher tem razão. Vamos fazer o seguinte, sra. Gallagher. Vou deixar
um policial aqui vigiando o apartamento da srta. Gresham até conseguirmos localizá-la e esclarecermos esse assunto. A sra. sabe exatamente para que lugar de Lake
District ela foi?
- Não faço a menor idéia. Sei que é onde mora a família dela. Um vilarejo, não é na cidade, não. É tudo o que sei. Mas no trabalho dela eles devem saber,
não é?
- Vamos tentar, então. Muito obrigada, sra. Gallagher.
- Da próxima vez, vê se fazem menos barulho. - Ela se afastou e Tenille não pôde ouvir mais nada além do seu ataque de tosse através da parede.
Puta que pariu, pensou Tenille. E agora? Não podia mais ficar ali, obviamente. E, com um policial do lado de fora, também não tinha como sair. Estava, sentenciou
ela, completamente fodida.
Jane bocejou e esticou as costas, doloridas após ficar horas inclinada sobre o material escrito mais maçante com que ela já deparara na vida. Seus olhos ardiam,
forçados a decifrar aquela coletânea de papéis escritos à mão, em várias letras diferentes, que datavam de 150 anos atrás. Havia cartas de família, fragmentos de
anotações de viagens e até mesmo instruções para o encarregado da construção de uma sala de ordenha em uma fazenda não-especificada. Mas, até então, nada escrito
por William Wordsworth, nem nada associado à carta enigmática de Mary Wordsworth. Deparara somente com assuntos mundanos e chatíssimos, registrados por pessoas que
não tinham os dons literários do poeta nem os demonstrados por sua irmã Dorothy nos diários.
Jane consultou as horas no relógio. Esperaria mais 15 minutos antes de descer, na esperança de que uma xícara de café recobrasse seu ânimo para continuar a tarefa.
Deixando escapar um suspiro, apanhou a terceira caixa e retirou uma pasta de papelão, dentro da qual estavam armazenadas seis folhas de papel amarelado com as costumeiras
manchas escuras. Todas compostas pela mesma letra miúda e inclinada que Jane reconhecera como do filho mais velho de Wordsworth, John. Todas as cartas pareciam endereçadas
a seu irmão Willy e haviam sido escritas em datas variadas no verão e no outono de 1850, alguns meses após a morte de Wordsworth. As três primeiras versavam apenas
sobre assuntos triviais de família, sem nada digno de nota. Mas, assim que começou a ler a quarta, percebeu que era diferente. Parecia ser a segunda página de outra
carta e, à medida que lia, Jane sentiu o rosto corando e o suor brotando na testa.
A princípio, mal pôde acreditar nos seus olhos. Chegou mesmo a desconfiar de que seu desejo de alguma maneira havia materializado o que procurava. Mas não era nenhuma
ilusão. Quanto mais ela lia, mais convicta ficava de que tinha em mãos a outra peça do quebra-cabeça.
Com os dedos trêmulos, pôs a delicada folha em um envelope transparente de plástico. Ficou alguns minutos fitando-a fixamente, até levantar-se com relativa firmeza.
Precisava encontrar Anthony.
(...) que você vai compreender ser um assunto que me é muito caro. Não tenho intenção de difamar os mortos, mas os últimos anos do meu casamento com Isabella trouxeram
mais sofrimento do que alegria para todos nós. Não posso acreditar que esperem que eu suporte mais vergonha e pesar devido à minha ligação com essa família desafortunada.
As palavras do nosso pai permaneceram desconhecidas e insuspeitadas durante sua vida e eu não vejo nenhum benefício para qualquer um de nós em revelá-las. Em suma,
segui as instruções de nossa mãe e fiz o que julguei mais correto. Instruí Dorcas que levasse o material para fora da minha casa imediatamente e que garantisse que
ninguém mais tornasse a vê-lo. Asseguro-lhe que, enquanto escrevo estas linhas, ele já não existe mais. Não serviria para nada além de denegrir o nome do nosso pai,
como creio que você há de concordar. Não toquemos mais no assunto. Faço votos que vocês todos estejam bem de saúde e espero encontrá-lo até o final do mês.
Seu caro irmão John
15
Anthony segurou o envelope de plástico pela ponta e franziu o cenho, concentrado. Jane mordeu o lábio e aguardou o veredicto. Após o que lhe pareceram minutos intermináveis,
ele o devolveu à sua mesa, mexeu no rabo-de-cavalo e finalmente volveu os olhos em sua direção.
- Você quer ligar para Jake ou prefere que eu ligue? - perguntou ele.
As palavras de Anthony provocaram um súbito frio na barriga de Jane.
- Jake?
- Precisamos de uma autenticação. Para a carta de Mary também. Ao que parece, você descobriu mais um elemento para reforçar sua teoria, mas, antes que possamos
ter certeza de que isso não é uma farsa bem elaborada, precisamos de alguém para examinar os documentos. - Ele sorriu. - O que vai proporcionar ao jovem Jake a desculpa
perfeita para vir nos visitar. Não que eu ache que ele precise de uma desculpa.
Jane foi tomada por um misto de constrangimento e tolice. Fora graças a Anthony que ela e Jake haviam se conhecido. Ele fora chamado ao Dove Cottage para àutenticar
um punhado de cartas cuja venda havia sido oferecida à fundação. Devido ao interesse especial de Jane em Wordsworth, Anthony o levara até o café para conhecê-la.
Não bancara o cupido de propósito; teria estremecido de pavor perante a simples idéia de lhe atribuírem motivos tão banais. Mas convidara os dois para jantar com
ele e sua mulher, Deborah, e, embora não tivesse atuado exatamente como uma fada madrinha, estivera presente no início do conto de fadas.
- Não seria conveniente pedir ao Jake - protelou ela, tentando encontrar uma maneira de contar a Anthony que eles haviam terminado sem deixar a ambos constrangidos.
Anthony ergueu as sobrancelhas, buscando a coisa certa a dizer.
- Ah - disse ele. - Isso quer dizer que vocês dois não estão mais juntos?
Jane sentiu o rubor se espalhando em suas bochechas.
- Não estamos mais juntos, mas isso não tem nada a ver com a questão das cartas. Jake não é a pessoa adequada para o serviço porque ele saiu do museu.
- Sério? Eu não sabia disso.
Jane gostava muito de Anthony para salientar que as fofocas dificilmente chegavam àquele fim de mundo.
- Ele foi trabalhar para uma mulher chamada Caroline Kerr. Ela é uma...
- Negociante - completou Anthony, condensando um mundo de desdém em uma única palavra. - Eu conheço Caroline Kerr. Já fiz negócios com ela. Não por opção,
veja bem, mas sim porque ela possuía algo no qual estávamos muito interessados e, misteriosamente, uma estimativa precisa do quanto estávamos interessados e quanto
podíamos pagar. Ela nos fez gastar até o último centavo. - Ele crispou a boca em sinal de aversão. - É uma mulher inteligente e apaixonada pelo que faz, mas não
gostei do estilo dela. Bem, Jake se apresentou como uma decepção para todos nós. Sinto muito, Jane.
Ela deu um sorriso forçado.
- Supondo que ele tenha ido para o lado negro, quem sabe não foi melhor assim, Anthony? Tenho certeza de que o museu pode lhe oferecer alguém, no mínimo,
tão bem qualificado quanto ele.
- Sim, sem dúvida - disse ele, sôfrego para mudar para um assunto menos embaraçoso. - Vou providenciar imediatamente. Mas, presumindo que os documentos sejam
mesmo o que parecem ser, é um achado e tanto, Jane. No mínimo, não contradiz sua teoria. E esta frase reveladora: "Não posso acreditar que esperem que eu suporte
mais vergonha e pesar devido a minha ligação com essa família desafortunada. " Parece referir-se inevitavelmente aos Christian Curwen. Não consigo pensar em nenhuma
outra família a quem John pudesse se referir nesses termos. Ele guardava muito rancor de Isabella, mesmo após sua morte.
- Não se pode inventar uma história dessas, não é? - comentou Jane.
- Alguns historiadores acreditam que Fletcher Christian era apaixonado por Isabella Curwen, e foi por isso que ele deu o nome de Isabella à sua esposa taitiana.
Mas, sabe-se lá por quê, ela preferiu o seu primo John e ele partiu no navio. Então, Fletcher volta após o Bounty, é possivelmente protegido por John Christian Curwen
e Isabella, e depois compartilha seu segredo com Wordsworth, que escreve a história, mas a mantém oculta. Para completar, quinze anos depois o filho dele se casa
com a filha de Isabella. Parece um romance de Barbara Cartland.
- Mas é outra ligação que reforça a sua teoria. Mesmo que Wordsworth tenha se sentido remotamente tentado a publicar a história anos depois, a ligação com
o seu filho teria sido um poderoso obstáculo. - Ele apanhou a carta novamente. - Mas o que importa aqui é saber se isso nos dá alguma pista para seguir adiante.
- Daria, se eu soubesse quem é Dorcas.
Anthony pareceu levemente surpreso.
- Desculpe, pensei que você tivesse se dado conta.
Jane suspirou:
- Não, Anthony, não tenho o seu conhecimento enciclopédico da lista de personagens. Não faço idéia de quem seja Dorcas.
- Dorcas foi contratada como empregada no Dove Cottage quando Janet, que os servira por muitos anos, morreu, em 1847. - Anthony franziu a testa. - Dorcas
Mason era o nome completo dela. Não deve ter sido uma época boa para trabalhar para os Wordsworth. William estava arrasado com a morte de sua filha favorita, Dora.
Sua irmã Dorothy se tornava cada vez mais tirânica. Depois, teve a morte de Isabella e todos os cuidados com os netos. Deve ter sido por isso que ela não agüentou
ficar muito tempo.
- Quando é que ela foi embora?
- Isso eu vou ter que verificar. - Ele alcançou o seu mouse e começou a clicar, erguendo os olhos para Jane com uma piscadela. - Viu, não sou nenhuma fonte
infalível de conhecimento, Jane. - Deteve-se por um instante, digitou algo no teclado e depois clicou no mouse novamente. - Aqui está. Carta de Mary Wordsworth à
sua amiga Isabella Fenwick, agosto de 1851. Um ano e quatro meses após a morte de William. "Estamos prestes
a perder a nossa fiel e dedicada Dorcas, que vai se casar ainda este mês. Creio que será uma excelente esposa e merece a sua parcela de felicidade após ter suportado
nossa pesarosa família com tanta tolerância." Pronto, Jane. Agora você sabe tudo o que eu sei sobre Dorcas Mason.
- É, mas infelizmente isso não nos fornece nenhuma pista do que ela pode ter feito com o manuscrito após John tê-lo entregue a ela. - Jane suspirou. - É tão
frustrante.
- Creio que tudo depende de como ela acatou as instruções de John. Ela pode ter devolvido o manuscrito para Mary, mas isso seria contrariar a vontade de John.
Pode ter entendido que ele gostaria que ela o destruísse. Mas convivera com aquela família por três anos, tempo suficiente para ter plena noção da posição superior
que William ocupava na literatura. É possível que não tenha conseguido encontrar outra solução, a não ser preservar o manuscrito. Ela pode o ter guardado, Jane.
Guardado e nunca mostrado a ninguém, obedecendo a vontade de John.
Jane inclinou-se em sua cadeira.
- Se Dorcas guardou o manuscrito, você não acha que ele já teria aparecido a essa altura?
- Talvez. Mas é possível que tenha sido passado aos seus descendentes junto com outros papéis que nunca foram examinados direito. Ou então ficou bem claro
para a pessoa que herdou o manuscrito que ele não pertencia à família e deveria ser mantido em segredo. - Anthony deu de ombros.
- Alguns documentos que nos foram entregues ficaram mofando em caixas lacradas por três ou quatro gerações.
- Eu queria acreditar que o manuscrito possa ter sobrevivido - disse Jane, melancólica. - Mas é pouco provável, não é?
- É uma possibilidade e isso basta. Jane, você precisa começar a localizar os descendentes de Dorcas Mason. Por menor que seja a chance, não pode deixá-la
escapar. -Anthony afastou-se da escrivaninha, produzindo um ruído surdo ao deslizar as rodinhas do assento sobre o chão de madeira.
Jane assentiu com a cabeça, ciente de que ele tinha razão.
- Não faço nem idéia de por onde devo começar. Não entendo nada de genealogia.
- O cartório de registro civil em Carlisle tem todos os registros antigos da paróquia. Nascimentos, casamentos, óbitos. E tem também os censos.
E o Registro Geral em Londres. Você é uma pesquisadora capacitada, Jane, vai tirar de letra.
- Estou trabalhando com um colega, ele ainda está em Londres. Ele podia ir se mexendo por lá enquanto eu começo por aqui - disse Jane, animando-se visivelmente
com a idéia.
- Isso mesmo. - Anthony levantou-se. - Agora, vá. Eu preciso tomar as providências para autenticar esses documentos.
Quando ela saiu do escritório de Anthony, o céu azul estava encoberto por um turvo nevoeiro. Grossos pingos de chuva caíam, deixando marcas que pareciam um punhado
de moedas espalhadas pelo chão. Voltou depressa para o café, apanhando o celular, e ligou para sua mãe. Bancar a mártir nunca foi o ponto forte de Jane. Não ia voltar
para casa de bicicleta naquela chuva nem por um decreto.
O desespero adolescente não conhece meio-termo. Ou desaparece como uma marca de giz em uma tempestade ou ganha o peso insustentável de uma laje de granito. Com Tenille,
era o primeiro caso. Minutos após ter mergulhado no fundo do poço, ao perceber que suas chances de fugir do apartamento de Jane eram mínimas, ela já estava tramando
um plano para pôr em ação assim que surgisse a menor oportunidade.
O mais importante era ficar longe de Marshpool. Precisava esperar a poeira assentar até descobrir uma maneira de sair daquela enrascada. Só lhe ocorria um lugar
onde podia encontrar refúgio: com Jane, em Fellhead. Sendo assim, a prioridade era pensar em como faria para chegar lá. Tinha algum dinheiro, mas não era burra a
ponto de pensar em pegar um trem ou um ônibus expresso. Se os policiais estavam querendo incriminá-la, certamente já haviam espalhado sua descrição e talvez até
mesmo alguma fotografia sua por todos os cantos. Estariam todos procurando por ela e as estações de trem e de ônibus eram lugares óbvios. Pegar carona estava fora
de questão, pelo mesmo motivo. Sua única opção eram os ônibus comuns. Tinha que bolar um itinerário que a levasse de Londres a Fellhead fazendo baldeações em todas
as cidades.
Tenille acessou a internet e encontrou um site de planejamento de viagens para motoristas, onde solicitou uma rota que evitasse as vias expressas. Aquilo lhe daria
uma idéia dos pontos em que teria de descer. Imprimiu um mapa e circulou com caneta as cidades pelas quais teria de passar. Então, começou a procurar os sites das
empresas de ônibus. Foi uma tarefa ingrata, mas no fim ela conseguiu imprimir uma lista dos horários dos ônibus locais que a levariam a Fellhead. Seriam alguns dias
viajando, mas estava certa de que o plano funcionaria.
De todo modo, não podia correr riscos. Não iria facilitar para os policiais. Precisava mudar sua aparência, caso algum espertinho com olhos de águia estivesse a
fim de ficar famoso à sua custa. Contemplou sua imagem no espelho, analisando-a. Cortar os dreadlocks seria um bom começo. Mas podia e devia fazer algo melhor do
que isso. Em roupas justas, não havia como confundir o seu sexo. Mas, se usasse aquelas roupas largas que eram uma espécie de uniforme de jovens cantores negros
de rap, poderia facilmente passar por um menino. Qualquer um que estivesse buscando uma menina adolescente não iria reparar em um garoto desengonçado. Ficaria praticamente
invisível em sua camuflagem. Sobretudo porque em geral as pessoas tinham medo de ficar encarando um jovem negro. O estereótipo tem lá as suas vantagens.
Perguntou a si mesma se poderia encontrar algo apropriado para o seu disfarce no armário de Jane. Jane não era gorda, mas era mais alta e mais larga que Tenille.
Não precisou examinar muito para perceber que estava sem sorte. Nenhuma peça com o logotipo ideal, só roupas que um rapper não usaria nem morto. E, pior ainda: nenhum
casaco grande e volumoso para protegê-la do frio e dos olhares curiosos.
Tenille foi até o banheiro e vasculhou o armário embutido até que encontrou uma tesourinha de unha. Então, cuidadosamente, cortou o cabelo, deixando apenas cachos
curtos no lugar das tranças. Mal reconheceu sua imagem no espelho; sem o cabelo emoldurando seu rosto, os traços bonitos e os lábios carnudos sobressaíram ainda
mais. Podia passar por um garoto, pensou ela. Certamente não se parecia mais com ela mesma. Catou o cabelo da pia e voltou para o escritório. Não ia deixar uma pista
daquelas para os policiais. Debruçando-se sobre a escrivaninha, abriu a janela e deixou
que suas madeixas fossem carregadas pelo ar gelado da noite. Observou-as descendo em espiral e as imaginou espalhadas pelo chão como estranhas lagartas cabeludas.
Atravessou a cozinha na ponta dos pés. Sabia onde Jane guardava o que ela estava precisando. Sob a pia, encontrou um martelo e, na gaveta, uma lanterna. Apanhou
os dois e colocou na mochila.
Tenille fitou a noite deserta. Por ora, tudo o que podia fazer estava feito. E ela continuava presa, continuava sem saída. Desanimada, deixou-se cair na cadeira
e imaginou como conseguiria chegar a algum lugar para pôr seu plano em prática. Estava prostrada, olhando para os horários dos ônibus há uns dez minutos, quando
um susto quase a derrubou da cadeira. Uma súbita batida na parede a deixou completamente apavorada. Que diabos a maluca da Noreen Gallagher estava fazendo? Ouviu
seis pancadinhas ágeis, seguidas por uma pausa, depois mais algumas batidas. E então, silêncio.
Um silêncio rompido pelo inconfundível som da porta da frente da sra. Gallagher se abrindo. Tenille ouviu o tradicional pigarro da vizinha de Jane e, logo em seguida:
- Você deve estar congelando até os ossos aí fora. É melhor entrar e tomar um pouco de chá. - Aquela voz de má vontade parecia autêntica.
Tenille esgueirou-se pelo corredor para ouvir melhor. Escutou a resposta perfeitamente, embora o policial falasse mais baixo do que a sra. Gallagher:
- Obrigado pela gentileza, minha senhora, mas eu não posso abandonar o meu posto.
Tenille ouviu um riso gutural de deboche.
- Quem ouve você falando assim, vai achar que está tomando conta das jóias da Coroa, meu filho. Olha, você ouviu o que eu disse pra sua chefe. Essas paredes
são de papel; se tivesse alguém aí do lado, eu teria ouvido. Se Tenille aparecer, você vai escutar as batidas na porta. Ou, se ela tiver mesmo uma chave, você vai
ouvir a porta abrindo. Privacidade é uma coisa que não existe aqui, veja bem. E depois, você não tem a menor chance de capturá-la aí parado feito um dois-de-paus.
Assim que ela aparecer no patamar da escada, vai dar de cara com você aí, igual um pateta, e sair correndo como o diabo foge da cruz. Já sentado na minha sala de
estar, vai poder ouvi-la se aproximando, dar uma espiada e atacar de surpresa. -
Tenille podia imaginar a sra. Gallagher de braços cruzados sobre o peito esquálido, cigarro pendurado no canto da boca e uma expressão confiante de astúcia no rosto.
- A senhora acha? - perguntou o policial, indeciso.
- Eu não acho, eu tenho certeza. Eu escuto o que ela toma no café-da-manhã. Vamos, vamos entrando. A chaleira já está no fogo, te sirvo uma boa xícara de
chá em um minuto.
Tenille ouviu o rumor dos passos do policial cruzando a soleira da porta e entrando na casa da sra. Gallagher. Ouviu o ruído da porta da frente se fechando e um
burburinho de conversa. Não sabia por que a sra. Gallagher estava decidida a lhe dar uma chance, só sabia que ia aproveitá-la.
Voltou sorrateira para a sala de estar, pegou seu casaco, sua mochila e caminhou na ponta dos pés até a porta. Abriu uma fresta e apurou os ouvidos. Nenhum barulho
suspeito. Fechou novamente, deixando apenas espaço para deslizar o corpo para fora. Pôs a chave na fechadura e a girou, colocando a lingüeta no encaixe. Fechou a
porta com cuidado, destravando a fechadura e soltando a chave. Girou nos calcanhares e avançou devagar pela galeria, como se estivesse caminhando sobre ovos.
A próxima parte do plano pedia escuridão, de modo que teria de esperar mais uma hora. Mas estava tranqüila. Conhecia o prédio como a palma de sua mão. Manter-se
escondida não ia ser problema. O pior já tinha passado. O resto era moleza.
Tão logo regressei a bordo para a viagem de volta, ficou claro para mim que teria de pagar pelos meus prazeres em terra firme. Desde o começo, Bligh passou a encontrar
defeito em todas as tarefas que eu desempenhava no cumprimento dos meus deveres. Ele me agredia verbalmente na frente dos homens, humilhando-me e acusando-me das
atitudes mais absurdas. Todavia, ainda esperava que eu lhe fizesse companhia em sua cabine e o ouvisse discorrer longa e tediosamente sobre a forma insultante como
todos o tratavam. Ele também costumava aproveitar tais ocasiões para castigar-me pelas minhas falhas. Lutei para suportar esse tratamento atroz com tranqüilidade,
mas não podia tolerá-lo para sempre. Quando, por fim, ele me acusou de nutrir sentimentos anormais por Peter Heywood e de ter me deixado levar por estes em Otaheite,
não pude mais me conter e o confrontei, tomado de furia. Ele disse que, se eu não me calasse, passaria o resto da viagem na cela. Sua arrogância atingiu-me profundamente
e eu me vi à beira do desespero perante seu comportamento para comigo.
16
Quando Judy chegou ao Dove Cottage, Jane já havia recuperado seu entusiasmo natural. Enquanto voltavam de carro para casa, a bicicleta guardada no banco de trás,
Jane contou para a mãe sua descoberta.
- Não sei se entendi todos os detalhes - disse Judy. - Mas, pelo que você está me dizendo, há chances de isso ter realmente acontecido? De Fletcher Christian
ter voltado e contado a história dele para Wordsworth?
Jane fez uma careta.
- O problema é que ainda não tenho nenhuma prova. Mas as evidências circunstanciais não param de crescer.
- Você deve estar empolgada - disse Judy. - Deve ser uma grande descoberta na sua área esse manuscrito, não é?
- Ia ser incrível, mãe. Imagina, poder ler um poema de Wordsworth que praticamente não foi visto desde que foi escrito há duzentos anos.
Judy deu uma risada.
- Não conte comigo para ler. Sempre achei Wordsworth um chato de galocha.
- Mas devemos nosso modo de vida a ele - retrucou Jane.
Judy deu uma olhadela surpresa para a filha.
- O que quer dizer com isso?
- Ele transformou Lake District em um lugar da moda, popular. As pessoas passaram a vir para cá por causa dele.
- Ah, obrigada, William, pelos turistas que vêm para cá emporcalhar tudo, poluir nosso ar com seus canos de descarga e destruir nossas estradas
- disse Judy, sarcástica.
- Está bem, concordo. Mas devíamos agradecer a ele pelo rebanho.
Judy olhou para ela, incrédula.
- O que ele tem a ver com o rebanho?
- Se Beatrix Potter não tivesse vindo passar férias aqui, se encantado com as ovelhas Herdwick e as transformado em seu grande projeto de vida, elas provavelmente
teriam morrido e o que estaríamos pastoreando agora? Não teríamos um campo aberto, com ovelhas espertas que não fogem do pasto onde nasceram. Os campos seriam cercados,
como os das ovelhas Cheviot, que não são lá muito espertas. O que papai chama de raça inferior. Então, embora eu deteste a invasão de turistas tanto quanto você,
acho que é um preço justo pelas ovelhas e pela paisagem.
- Não está mais aqui quem falou - disse Judy, sabendo, por experiência própria, que não adiantava contrariar a paixão da filha pela sua terra natal. Às vezes,
tinha a impressão de que Jane era tão apegada a Langmere Fell quanto as próprias ovelhas. - Obrigada, William, pelo rebanho. Então, qual é o próximo passo? Você
precisa encontrar mais documentos?
Jane fez um gesto negativo com a cabeça.
- Já olhei todo o material que não foi catalogado. Não encontrei mais nada. O que eu preciso fazer agora é descobrir se Dorcas Mason tem algum descendente
vivo que eu possa ir procurar, para ver se sabem alguma coisa sobre o manuscrito. Também quero pedir ao Dan para ir ao Registro Geral em Londres e quero começar
a pesquisar os registros daqui.
- Você precisa procurar Barbara Field.
- Barbara Field, aquela metida, diretora da Associação das Mulheres?
- Quantas Barbara Field você conhece por aqui? - perguntou Judy, secamente. - Ela mesma, a metida que dirige a Associação das Mulheres. O passatempo dela
é história das famílias. Ela até dá palestra sobre o assunto para outras associações, ensinando como as pessoas podem descobrir seus ancestrais. Seu irmão está fazendo
um trabalho sobre árvore genealógica com as crianças e conseguiu a maior parte das informações com Barbara. Ela tem sido bastante prestativa, sabe? - Judy estacionou
no curral. - Deixe a bicicleta aqui dentro até a chuva parar - disse ela, abrindo a porta do carro e correndo para se proteger da chuva.
Jane correu atrás dela, sacudindo a cabeça como um cachorro molhado ao entrar em casa.
- De repente dou uma ligada para ela.
- Vou ligar agora. Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje. -
Judy atirou seu casaco impermeável no cabide e dirigiu-se até o escritório. Jane foi direto para a cozinha, atraída pelo delicioso aroma de um suculento guisado
de carne.
Seu pai, que estava lendo um suplemento de agricultura no jornal, suspendeu a cabeça para cumprimentá-la.
- Tudo bem?
- Tudo ótimo. Encontrei mais uma peça para o meu quebra-cabeça. Uma carta que respalda a minha teoria.
- Que bom. Se você encontrar o tal poema, vai ficar rica?
Jane sacudiu a cabeça, um sorriso torto no canto da boca.
- Acho que não. Vai me deixar famosa nos círculos acadêmicos. E fazer com que eu decole na carreira que eu quero. - Percebeu um leve traço de decepção no
olhar de seu pai. - Você está me perguntando isso por algum motivo específico?
Allan esfregou a palma da mão no rosto.
- Não, mas a esperança é a última que morre - disse ele. - Um pouco de dinheiro nunca é demais numa fazenda, você sabe. Quando você disse ontem à noite que
era algo de valor inestimável, imaginei que podia lhe render uns trocados.
- Vai render, mas não para mim. Quem tiver os direitos confirmados, vai ficar rico. Desculpe, pai. Mas, se eu realmente conseguir encontrá-lo, posso arrumar
contrato para um livro e talvez até alguns artigos para jornais. - Ela esticou o braço sobre a mesa e apoiou a mão sobre a mão embrutecida pelo trabalho do pai.
- Ficarei feliz em dividir com vocês.
Allan fez um gesto negativo com a cabeça.
- Eu não aceitaria dinheiro do seu trabalho. Dinheiro caído do céu é uma coisa, mas não quero você trabalhando para me sustentar. Estamos bem, sua mãe e eu.
Não se preocupe conosco.
Antes que Jane pudesse responder, Judy adentrou abruptamente na cozinha.
- Já está tudo certo. A metida da Barbara está te esperando hoje às 8:00, na casa dela.
Jane girou os olhos.
- Você é boa demais pra mim.
Judy fez um afago na cabeça da filha e foi direto ao fogão.
- E vai ter rocambole de carne no jantar.
- Pelo visto, ela não quer que você volte para Londres tão cedo - disse Allan.
- Somos duas, então - confessou Jane, dirigindo-se para a porta. - Tenho que ligar para o Dan. - Sentou-se à escrivaninha atulhada do escritório. - Oi, Dan
- disse ela. - Tenho boas e más notícias para te dar.
Ele resmungou:
- Diga as más primeiro.
- Você está pesquisando a família errada. Desculpe, fiz você perder tempo com os Wordsworth.
- Você fala como se houvesse outra família a ser pesquisada - retrucou ele, intrigado. - O que aconteceu? Descobriu alguma coisa? - Jane explicou o que havia
descoberto, lendo a carta para ele ao telefone. - Mas isso é fantástico - disse ele, quando ela terminou a leitura. - Não é conclusivo, eu sei, mas demonstra que
de fato existe algo a ser procurado. Mesmo que não seja um poema sobre o Bounty, pode ser algo tão importante quanto. Você quer que eu pesquise Dorcas Mason e a
família dela, então? - perguntou ele.
- Seria uma ajuda e tanto. Vou fazer o que der por aqui. Anthony disse que tem bastante coisa em Carlisle e mamãe me pôs em contato com uma amiga dela que
aparentemente é uma sumidade em genealogia. Acho que vale a pena tentar.
- Vai ser um trabalho de cão, mas claro que vai valer se descobrirmos alguma coisa.
- Eu nunca estive no Registro Geral de Londres, e você? - perguntou Jane, ansiosa.
- Não. Mas genealogia está tão na moda atualmente que eu aposto que eles têm tudo simplificado, fácil de consultar. Deixa comigo, eu dou um pulo lá.
- Obrigada.
- Não, eu é que devia estar te agradecendo por me deixar fazer parte disso.
- Como foi o seminário hoje?
Dan gemeu, de um modo teatral.
- Você tem razão, Damien Joplin é um pé no saco. - Ele relatou como havia sido a aula que dera em seu lugar naquela tarde. No final da história,
estavam os dois às gargalhadas, imitando os alunos e suas respostas nada perspicazes sobre as Baladas líricas. - Você não está perdendo nada - concluiu Dan.
- É o que parece. OK, nos falamos em breve, então. - Após desligar o telefone, Jane ficou sentada, fitando o vale pela janela. Não estava nem aí para o dinheiro,
nem para a fama. Tudo o que queria era segurar o manuscrito com as próprias mãos e ler o que estava escrito nele.
River deslizou o dedo, pensativa, sobre a tomografia computadorizada. Passara o dia com a equipe de filmagem, de quem estava íntima, levando o Pirata do Pântano
de volta ao hospital, onde supervisionou as radiografias do corpo inteiro e a tomografia antes de devolvê-lo à Funerária Gibson. O processo demorara o dobro do tempo
por causa das exigências da filmagem, mas ela não se importara muito. As vantagens que o dinheiro deles lhe garantiam superavam suas inconveniências. Mas havia combinado
de sair para tomar um drinque com Ewan Rigston e não tivera tempo de voltar ao escritório para deixar os filmes e as fotos antes de encontrá-lo em Keswick às 19:00.
Em vez disso, encontrou um canto tranqüilo no bar do hotel onde haviam combinado e espalhou as imagens da tomografia sobre a mesa. Para dizer a verdade, esse provavelmente
era o processo menos investigativo ao qual o coipo seria submetido, mas, mesmo assim, servira para que aprendesse mais sobre o sujeito em questão. Não conseguia
deixar de pensar se Ewan Rigston também seria um desafio a ser desvendado.
Hà muito tempo que River não cogitava a idéia de um relacionamento que não fosse estritamente profissional. Experiências prévias desagradáveis haviam lhe ensinado
que os homens ficavam enojados pelo seu trabalho ou inconvenientemente excitados com ele. Nenhuma das alternativas lhe agradava. Não estava muito convicta de que
com Ewan Rigston seria diferente, mas não ia descartá-lo de modo precipitado. Tomou um longo gole do seu suco de tomate e tentou pensar em outra coisa, voltando
sua atenção para as imagens à sua frente.
Estava examinando o que lhe parecia ser uma fratura profunda no crânio quando Rigston puxou uma cadeira diante dela.
- Não estou interrompendo, estou? - perguntou ele, franzindo a testa, constrangido. - Sei que cheguei um pouquinho antes da hora. Posso ficar sentado ali
no bar enquanto você termina, se ainda precisa trabalhar mais um pouco.
- Não, eu só estava fazendo hora - disse ela, um tanto surpresa ao notar que ficara contente em revê-lo. - Também cheguei mais cedo.
- Está pronta para mais uma dose? - Ele apontou para os resquícios avermelhados que a bebida deixara em seu copo.
- Estou, obrigada - agradeceu ela, entregando-lhe o copo.
- Com ou sem álcool?
- Sem. Estou dirigindo.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça e dirigiu-se até o bar. Era um sujeito corpulento, sem dúvida; ombros largos e coxas grossas que o terno comprado pronto
não ajudava a disfarçar, a cabeça grande com o cabelo cortado bem rente circundando a careca e mãos enormes que engoliram o delicado copo quando ele o segurou. Imaginou
que ele devia ser útil em um campo de rúgbi. Devia ser uns dez anos mais velho do que ela, mas, na disputa do físico, os músculos ainda sobrepujavam a gordura. Desconfiava
que o seu tamanho exigisse que fosse cauteloso com as mulheres, com medo de machucá-las sem querer. Foi acometida por uma inesperada faísca de desejo. Queria dissolver
aquela pretensa delicadeza e ir direto ao assunto com ele. "Controle-se", disse baixinho, admoestando a si própria.
Quando ele voltou com suco de tomate para ela e um quartilho de cerveja amarga para ele, River já havia recobrado o prumo, embora ainda tentasse compreender aquele
lampejo de atração. Aceitou o drinque e recolheu seus papéis.
- Este é o nosso cadáver do pântano? - perguntou Rigston.
- O próprio. Acabamos de fazer as radiografias de corpo inteiro e as tomografias computadorizadas. Confirmou minha suspeita, que eu comentei com você naquele
dia. - Ela apanhou uma radiografia. - Olha só... - disse ela, circulando determinada área com a ponta do dedo. - Não há dúvida de que se trata de uma fratura no
crânio. Parece ter sido causada por um instrumento não-pontiagudo, arredondado, possivelmente com menos de cinco centímetros de diâmetro. Se tivesse que dar um palpite,
levando em consideração a época e o local, eu diria que o castão de uma bengala ou algo semelhante.
Rigston coçou a sobrancelha, com a fisionomia impassível de alguém treinado para não deixar transparecer nenhuma emoção.
- Morte suspeita.
River deu de ombros.
- É o que parece. Assassinato. Ou talvez ele estivesse tentando roubar alguém, que reagiu. Será?
- Isso nós nunca vamos saber. - Rigston tomou um longo gole de sua cerveja.
- Mas já sabemos várias coisas - disse River. Ela apontou para as fendas que ligavam os ossos do crânio. - Veja as suturas. Elas vão se unindo gradualmente,
à medida que envelhecemos. Posso lhe dizer que o nosso cadáver estava com uns quarenta anos, mais ou menos. - Ela vasculhou a pilha, apanhando outra radiografia
e duas imagens da tomografia computadorizada. - E também descobrimos que ele levou um tiro no ombro quando tinha uns vinte e poucos anos. - Ela apontou para a lâmina
que mostrava o ombro, onde um círculo irregular parecia franzido e desigual comparado com a ossatura plana que o rodeava. - Lesão penetrante típica.
- Você consegue estabelecer a idade com tanta precisão assim? - Rigston parecia impressionado.
- O esqueleto se reconstrói sozinho. Os ossos se regeneram. Ossos diferentes levam mais ou menos tempo para se regenerar. As costelas são rápidas, o fêmur
demora mais, o crânio, mais ainda. Uma lesão como essa em uma superfície plana como a escápula demora anos e mesmo assim nunca sara completamente, por causa da extensão
do dano. Devia doer no inverno. Eu diria que ele levou essa bala uns 10 ou 15 anos antes de morrer.
- Você parece estar bem certa de que foi uma bala.
River abriu um sorriso.
- Elementar, meu caro Rigston. - Ela apontou para uma mancha na radiografia, na extremidade do osso danificado. - Fragmentos de metal. Naquela época, os projéteis
eram feitos de chumbo e suas ligas. Metal leve prendia no osso quando penetrava a pele. - Ele sorriu e ela se sentiu incrivelmente satisfeita consigo mesma.
- Impressionante - reconheceu ele. - O que mais?
Ela abriu as mãos.
- Por enquanto, mais nada. Mas ainda temos muito trabalho pela frente.
- Tipo o quê?
Ela lhe lançou um olhar desconfiado.
- Você realmente quer saber? Ou está apenas tentando me agradar?
Rigston sacudiu a cabeça, enrugando a pele em volta de seus olhos azuis ao abrir um sorriso.
- Estou interessado de verdade. Eu sei o que acontece numa autópsia, mas não faço a menor idéia do que vocês realmente fazem. E eu não gosto de viver na ignorância.
River o examinou atentamente. Seu instinto lhe dizia que o interesse dele era uma curiosidade intelectual autêntica, não uma excitação pelo mórbido. Decidiu confiar
na sua intuição.
- Bem, vamos fazer uma autópsia, mas não como essas que você está acostumado a ver, com a grande incisão em Y. Meu objetivo é ser o menos invasiva possível.
Então, a maior parte da investigação vai ser feita por uma câmera, como numa laparoscopia. Vou colher amostras de tecidos internos do que tiver restado dos órgãos
principais, como numa biópsia percutânea.
- Por quê?
- Para preservar a integridade do corpo. Algo desse gênero vai acabar parando em um museu ou numa universidade. Ajuda muito se eu não estragá-lo durante a
minha investigação. - Ela inclinou o copo na direção dele. - Daqui a alguns anos, os seus patologistas vão executar mais trabalhos como esse. Já fizeram a primeira
autópsia virtual em Leicester. Sem contar que ajuda a aplacar a sensibilidade religiosa dos judeus e muçulmanos.
Rigston riu.
- E a sensibilidade dos policiais obrigados a assistir às autópsias. Não será mais preciso levantar os novatos do chão quando desmaiarem ao sentir o cheiro
dos cadáveres.
River assentiu com a cabeça.
- Sabia que o cheiro depende do que nós comemos? Os seres humanos e os porcos têm um cheiro doce; os cães, rançoso; e os cavalos, um cheiro azedo. Tem a ver
com os níveis de nitrogênio.
Ele fez uma cara feia.
- Eu não chamaria de doce.
- Mas os poetas, sim. Eles o chamam de o doce odor da decomposição.
- Não leio muita poesia - disse Rigston. - Acho que poucos policiais lêem. Não tem lá muito a ver com as minúcias do nosso métier.
- Nem com o meu. Não há nada de poético em remover o conteúdo de um estômago ou de um intestino.
- Vocês têm que fazer isso? - Rigston parecia intrigado, e não enojado. River ficou contente por seus instintos estarem se provando corretos até então.
- Ahn-ahn. Sobretudo num caso como esse, quando o conteúdo do estômago possivelmente está bem preservado. E a parte inferior do trato gastrointestinal pode
muito bem conter grãos e fibras vegetais que vão nos dar ainda mais pistas sobre a dieta dele. Um colega meu uma vez encontrou uma couve-de-bruxelas inteira.
Dessa vez Rigston fez uma careta de nojo.
- Isso já é mais informação do que eu preciso - disse ele, contorcendo-se na cadeira. - Podemos voltar para a parte científica?
- Frouxo - disse River, num tom simpático. - Está bem. Estamos torcendo para encontrar tecidos moles o bastante para colhermos amostras musculares e talvez
até mesmo de tecido cerebral para a toxicologia e o exame de DNA. E então chegamos à parte que realmente interessa. Os dentes vão nos revelar onde ele estava morando
quando foram formados. Vamos poder dizer se ele nasceu no Reino Unido, e, se for o caso, em que parte. E os ossos revelarão se ele morou no exterior durante os seus
últimos dez a quinze anos de vida. - Ela sorriu, triunfante.
Rigston abriu um largo sorriso, revelando dentes brancos e alinhados.
- Isso é fantástico - comentou ele. - E dá para saber quais doenças ele teve?
Ela deu de ombros.
- Algumas. Não tanto quanto gostaríamos. Mas já posso lhe adiantar que ele não tinha sífilis. Nem fraturas nos ossos. De modo que ou o nosso marinheiro era
incrivelmente safo ou muito sortudo.
Rigston tomou um longo gole.
- Eu invejo você, sabe? - disse ele.
- Por quê?
- Você faz um trabalho genuíno de investigação. Na maioria das vezes, tudo o que faço é deduzir qual dos meliantes locais pode ter cometido o crime idiota
que veio parar na minha mesa. Ao contrário de todos os livros e dos seriados de tevê, eu raramente tenho a chance de juntar diversos elementos de um caso para desvendar
um quebra-cabeça. Quando comecei na polícia, pensei que fosse ter que usar o meu raciocínio. - Ele exalou um suspiro. - O problema é que a maioria dos criminosos
tem a inteligência de uma ameba.
- Isso deve ser deprimente.
- Se é. Vamos parar por aqui, então. - Ele esvaziou o seu copo e arrastou a cadeira para trás. Ela sentiu uma pontada de decepção. O primeiro homem há meses
que não quisera saber o que uma moça bonita como ela estava fazendo com cadáveres caquéticos não ia ficar nem para o segundo drinque? - Você está com pressa de voltar
para Carlisle ou topa uma comida indiana? - perguntou Rigston.
River sentiu um frio na barriga, que não tinha nada a ver com fome.
- Só se a gente não falar mais de trabalho. Nem do seu, nem do meu.
Ele abriu um sorriso.
- Combinado.
Naquela noite, fiquei acordado refletindo sobre o sentido das palavras de Bligh. Estava claro para mim que, se eu não suportasse seu tratamento injusto e inexplicável,
seria forçado a tolerar uma modalidade diferente de tortura. Nenhuma alternativa me era tolerável. Com o sono inquieto e agitado, recordei a tarde que passei em
companhia do meu irmão Charles em Spithead. Encontrávamo-nos no Bounty, aguardando ordens para zarpar, e Charles estava voltando de Madras como cirurgião de bordo
a serviço da Companhia das índias Orientais. Valendo-me de um pequeno barco, alcancei e embarquei em seu navio, o Middlesex, enquanto ainda singrava os mares. Durante
nossa agradável conversa, meu irmão me confessou que havia ocorrido um motim durante a viagem de volta e que ele fora um dos oficiais envolvidos no caso. O capitão
havia provocado tamanha inquietação e descontentamento entre os homens que, por fim, um oficial apontara uma pistola carregada contra seu peito. Quatro oficiais,
incluindo o meu irmão, tentaram dissuadi-lo à força, mas em vão. Quando conversamos, meu irmão ainda não fazia idéia do tipo de castigo que haveria de encontrar.
Mas o seu motim se dera em um navio particular e a única punição era ser impedido de servir para a Companhia das índias Orientais por um período de dois anos. Curioso,
não é mesmo, que o meu irmão possa ter sofrido conseqüências tão brandas pela mesma transgressão pela qual eu teria padecido na forca, caso tivessem me encontrado.
17
Uma nuança mais escura na sombra da escadaria se mexeu. A noite guardava muito bem seus segredos em Marshpool Farm, em grande parte porque metade dos postes de luz
estava apagada. Algumas lâmpadas haviam queimado naturalmente, outras foram desativadas porque, ao contrário dos comerciantes legítimos, os revendedores em Marshpool
preferiam o manto da escuridão para executar suas transações. Pouco importava se estavam vendendo drogas, bebidas e cigarros contrabandeados, aparelhos de DVD roubados
ou seu próprio corpo; o processo era favorecido pela ausência de luz. Não havia como negar que também favorecera Tenille naquela noite. Se alguém a percebeu zanzando
pelo conjunto habitacional, não falou nada, nem para ela nem para a polícia.
Com muita cautela, Tenille dirigiu-se até os fundos de Marshpool, onde uma fileira decrépita de garagens delimitava a fronteira do conjunto habitacional com o resto
do mundo. Um parapeito baixo impedia que alguém no estacionamento avistasse os telhados. Tenille foi até os fundos das garagens e esgueirou-se no vão entre suas
paredes e as altas cercas de madeira das casas particulares mais adiante. Caminhou cerca de quarenta metros até encontrar uma parte da cerca que era mais firme do
que as outras. Um dos marginais mais engenhosos de Marshpool havia atarraxado pequenos blocos de madeira na cerca, criando uma escada rudimentar. Era um caminho
fácil para o jardim da casa vizinha, que, por sua vez, levava a todas as outras ao lado.
Mas Tenille descobrira, havia algum tempo, que também servia como um caminho alternativo para os telhados das garagens. Gostava de sentar-se ali quando o tempo estava
bom, pegando sol enquanto fazia suas leituras
em paz. No entanto, o telhado era frágil: aprendera a tomar cuidado para garantir que estava sempre pisando sobre as vigas de sustentação, pois todo o resto enfraquecera
com o passar do tempo. Naquela noite, porém, pretendia usar o perigo a seu favor.
Não havia uma nesga de luz no vão e Tenille teve de guiar-se pelo tato. Quando encontrou o trecho que procurava, inclinou-se sobre a cerca, agarrando os blocos de
madeira mais altos com os dedos enquanto subia. Após galgar um tempo com alguma dificuldade, viu-se com uma perna de cada lado da cerca, a uns três metros do chão.
Cuidadosamente venceu o obstáculo, mantendo uma das mãos na cerca para não cair. Com toda a cautela do mundo, esticou a mão livre em direção ao telhado da garagem.
Assim que sentiu sua textura áspera, precipitou-se sobre ele. Apoiando as duas mãos, impulsionou-se com toda força da cerca, num salto que a fez aterrissar na beira
do telhado.
Estava ofegante, mas até ali seu plano seguia conforme o havia traçado. Agora, a parte mais complicada. Dali de cima, não havia nenhuma marca visível delimitando
o espaço das garagens, de modo que não era possível saber onde uma terminava e outra começava. Mas ela sabia que eram dez. Estava procurando a terceira a partir
do vão onde adentrara. Era impossível ter certeza, mas calculou que precisava estar uns dois metros à sua esquerda para certificar-se de que estava no lugar certo.
Tenille avançou devagar pela beirada do telhado, sem se importar em arruinar suas roupas. Em breve, não precisaria mais delas. Quando julgou estar sobre o lugar
exato, jogou a mochila no chão e apanhou o martelo.
Um único golpe rachou o revestimento curtido; o segundo, o rompeu. Tenille usou a orelha do martelo para esgarçar o material avariado ao máximo e depois fazer um
buraco na placa de reboco do teto. Enfiando uma lanterna no buraco, permitiu-se um suspiro de alívio. Acertara em cheio. Estava exatamente sobre a garagem onde Júnior
B e seu irmão guardavam seu estoque. Podia ver as caixas de papelão empilhadas contra a parede, algumas já abertas, a lanterna lançando uma luz ofuscante sobre as
sacolas de plástico que armazenavam o acervo do mercado negro de Júnior B.
Não demorou muito para aumentar o buraco o bastante para passar por ele, embora agisse com cuidado, evitando fazer barulho. Apesar de a maioria dos moradores em
Marshpool estar acostumada a se fazer de surda e
cega, alguns ruídos inesperados podiam provocar uma investigação mais detalhada. Quando teve certeza de que havia espaço para entrar e sair depois, Tenille jogou
a mochila pelo buraco. A mochila aterrissou em uma pilha de caixas alguns metros abaixo e Tenille constatou que não se machucaria ao pular ali dentro.
Dez minutos depois, desprovida de qualquer atrativo feminino, vestia calças largas, uma camisa pólo, um camisão por cima, um casaco impermeável e um boné de beisebol,
todos das melhores grifes, para fazê-la passar por um sujeito cheio de estilo. Tudo falsificado, é claro. Apanhara também outra calça e duas camisas e as enfiara
na mochila. Pronto. Agora só precisava dar o fora daquele lugar.
Amontoar as caixas em uma pilha alta o bastante foi mais difícil do que ela havia previsto. Demorou mais do que devia e era uma tarefa árdua. Quando terminou de
construir uma pirâmide que pudesse escalar, estava ofegante, suava. O que a motivava era um desejo desesperado de não ser pega.
Finalmente, quase uma hora após ter entrado na garagem, conseguiu subir de volta ao telhado. Desceu o máximo que pôde, antes de deixar-se cair uns dois metros do
chão, sentindo todos os ossos de seu corpo chacoalharem ao chocar-se contra o solo ingrato. Puxou do bolso o papel com o horário dos ônibus. Precisava chegar até
a Estação Victoria a tempo de apanhar a última condução para Oxford. Moleza, pensou ela, empertigando-se ao se embrenhar na noite. Estava a caminho.
A casa de Barbara Field era um monumento à flora rural da Inglaterra. Rosas em profusão revestiam o sofá e as poltronas, clematites subiam enrodilhadas pelas cortinas
e o papel de parede exibia mais buquês de flores-do-campo do que uma igreja enfeitada para um casamento. Havia arranjos de flores secas por toda parte e, nas paredes,
bordados em ponto-de-cruz emoldurados com cenas campestres. Jane não pôde deixar de pensar que deveria haver um guia de campo só para a sala de estar de Barbara.
- Vamos tomar um chá e você me conta o que está procurando. Depois, passamos para o escritório e vemos o que conseguimos descobrir -
disse Barbara. Obviamente, a xícara também exibia motivos florais - uma sebe pródiga em prímulas.
Enquanto Jane explicava o que esperava encontrar, Barbara a ouvia atentamente, assentindo ocasionalmente com a cabeça de uma maneira exagerada, que fazia Jane se
sentir muito jovem e muito boba. Se bem que a Manda-Chuva, como Jane a apelidara quando criança, sempre a fazia se sentir muito jovem e muito boba. Havia algo em
seu penteado impecável, tão rígido quanto um capacete de motociclista, e em sua blusa branca, sempre engomada, que parecia calculado para deixar todos se sentindo
inferiorizados, pensou Jane.
- Bem, tudo isso me parece bem simples - disse ela, quando Jane terminou de falar. - Vamos ver o que a caixinha de surpresas tem para nos mostrar - acrescentou,
fazendo Jane recordar a mania de Barbara de usar metáforas absurdas para todas as coisas. Ela enxotou Jane para fora do quarto e seguiram pelo corredor até o que
Jane se lembrava vagamente de ser chamado de "sala familiar" em sua infância. O que sempre a confundira uma vez que Barbara e Brian Field não tinham filhos. Era
quase tão estranho quanto o fascínio de Barbara pela genealogia, dado que seus próprios genes pereceriam com ela.
O cômodo havia sido transformado em um escritório surpreendentemente simples. Havia uma escrivaninha com um computador, uma mesa de trabalho com três cadeiras, e
uma televisão portátil em um pequeno rack com rodinhas. No lugar dos bordados, árvores genealógicas enfeitavam as paredes, traçadas com esmero em bela caligrafia.
- Meu refúgio sagrado - anunciou Barbara, satisfeita. - Brian tem seu galpão no jardim e eu meu pequeno templo aos nossos ancestrais. - Ela puxou uma das
cadeiras e a posicionou próximo à de Jane. - Agora vamos ver o que a via expressa das informações tem a nos dizer sobre Dorcas Mason.
Seus dedos correram pelo teclado com uma agilidade que surpreendeu Jane, acostumada que estava a ver a mãe catando milho ao digitar a contabilidade da fazenda.
- A senhora é boa nisso, hein? - comentou Jane.
Barbara deu um sorriso forçado.
- Gosto de pensar que sempre dou o meu melhor em tudo o que me proponho fazer. Vocês, jovens, acham que ficamos inúteis assim que adquirimos nossos passes
de ônibus, mas ainda temos muito a oferecer.
Jane trincou os dentes e sorriu.
- Eu não seria estúpida a ponto de subestimá-la, sra. Field.
Barbara acessou o menu "Favoritos" e clicou em "Registros Civis".
Enquanto clicava aqui e digitava acolá, ia conversando com Jane.
- Quando comecei a montar nossas árvores genealógicas, tive que correr todas as casas paroquiais e examinar todos os registros. Mas atualmente quase tudo
está concentrado nos cartórios de registro civil e a gente pode acessá-los por uma pequena taxa. Os registros de censo estão disponíveis na internet, bem como os
testamentos a partir de 1858, quando o Tribunal de Sucessões foi criado. E, é claro, temos os mórmons.
- Os mórmons? - perguntou Jane, tentando educadamente disfarçar sua surpresa diante do que lhe parecia um total disparate.
- Eles possuem um enorme banco de dados genealógicos. Creio que a idéia é batizar os mortos... - A voz de Barbara extinguiu-se, distraída pelos comandos que
digitava em uma ferramenta de busca. - Dorcas Mason, não é isso?
- Isso mesmo.
- Você tem alguma idéia do ano em que ela nasceu?
- Ela estava trabalhando como criada para a família de Wordsworth em 1847, então devia ter pelo menos uns quatorze anos na época. Eu diria que antes de 1833.
- Vamos começar procurando em 1800 então - definiu Barbara, digitando as datas e clicando no mouse com um floreio. Segundos depois, surgiu uma mensagem na
tela do computador: 1 ocorrência encontrada. Por favor, digite a sua senha.
Barbara olhou fixamente para Jane, que demorou algum tempo até perceber que devia desviar os olhos enquanto ela digitava sua senha. Quando Jane tornou a olhar para
a tela, viu que exibia detalhes dos registros paroquiais. Dorcas Mason nascera em 5 de abril de 1831, no Sheepfold Cottage, Cockermouth, na paróquia de Brigham,
filha de Thomas e Jean Mason. Seu pai era descrito como um ferreiro e ela fora batizada três semanas
após o nascimento. Barbara se voltou para Jane, exibindo um sorriso triunfante.
- O milagre da tecnologia moderna - anunciou ela, como se fosse uma invenção exclusivamente sua. - Vou imprimir para você.
- Incrível - respondeu Jane, animada diante da primeira pista oficial da mulher que dispusera do manuscrito misterioso de Wordsworth. - E muito útil. Mas,
na verdade, estou mais interessada em saber o que aconteceu com ela depois. Ao que parece, deixou a casa dos Wordsworth em 1851 para se casar. Será que existem registros
de casamento ou de filhos? Ou de sua morte?
- É claro, querida. - Voltando-se para o monitor, Barbara digitou as palavras-chave. Dessa vez, a espera foi um pouco maior. E o resultado, frustrante: Nenhuma
ocorrência. Jane ficou desolada. Era como se tivesse tido Dorcas ao alcance das mãos e ela tivesse acabado de escapar entre os dedos.
- Droga - reclamou Barbara.
- Mas ela não pode ter desaparecido do mapa, não é?
- Bem, não. Nessa época, a sociedade já era bem organizada. As pessoas não se casavam e tinham filhos sem os devidos registros. Talvez ela tenha se casado
e o registro da família esteja em outra paróquia, que não disponibilizou informações na internet, o que acontece mais vezes do que eu gostaria. - Barbara fez isso
parecer uma ofensa pessoal. - Ou ela se casou fora do condado e se mudou.
- E como posso descobrir o que aconteceu?
- Veja bem, a sua abordagem não está sendo exatamente convencional. Na maioria das vezes, as pessoas começam de trás para frente. Elas têm uma vaga noção
do que fazer porque cada documento lhes fornece pistas indicando qual deve ser o próximo passo. No seu caso, é completamente diferente, já que você não sabe por
onde deve começar. Se não se casou com um sujeito das redondezas, a tal Dorcas pode ter ido parar em qualquer lugar do país. Até mesmo lá na Escócia. - Barbara fez
a Escócia parecer situada nos confins da galáxia.
- Então qual deve ser o meu próximo passo? - perguntou Jane, tentando disfarçar sua impaciência.
- Sugiro o cartório de registros civis em Carlisle. Eles têm os originais de todos os registros. Se Dorcas não pode ser localizada na internet,
os documentos ainda devem estar lá. Se isso não der certo, você vai ter que passar um pente-fino nos registros de nascimento, casamento e óbito na St. Catherine's
House, o Registro Geral de Londres. Eles têm pesquisadores profissionais que podem fazer isso por você. Não é um serviço barato, mas eles são muito eficientes.
- Já estou tratando disso. Um dos meus colegas está fazendo as pesquisas em Londres. E quanto ao testamento dela? Por acaso estaria na internet?
- Depende da data do óbito. Antes de 1870 as mulheres não tinham direito a propriedades, de modo que não podiam fazer testamentos. Depois só as mulheres casadas
tinham esse direito, e, mesmo assim, só podiam incluir propriedades destinadas ao seu uso pessoal e exclusivo. - E não creio que uma simples empregada teria uma
propriedade nesses moldes. Você concorda, Jane?
- Provavelmente não teria. Mas poderia haver alguma outra coisa... - A voz de Jane desvaneceu.
- Se houver, deve estar sob seu nome de casada. E, como não sabemos que nome é esse, parece que estamos emperradas. - Barbara saiu da internet com um ar de
conclusão. - Acho que a melhor coisa é torcer para o seu colega ter mais sorte em Londres.
Jane reconheceu a deixa para ir embora.
- Obrigada, sra. Field. A senhora me ajudou muito. - Três minutos depois, estava a caminho de casa, determinada a não perder as esperanças. Os descendentes
de Dorcas Mason estavam por aí, em algum lugar. E ela e Dan iam encontrá-los. E, quando isso acontecesse, finalmente haveriam de descobrir o que a família Wordsworth
se esforçara tanto para manter em segredo.
- Chuva dos infernos. Ô cidadezinha desgraçada - gritou Jake Hartnell, exasperado. - Que imbecil passeia de trator às 10:00 da noite, caramba? Tudo porque
eu perdi a porra da placa e acabei numa estrada para lugar nenhum.
Alheio à sua frustração, o trator continuava se arrastando a trinta quilômetros por hora. A estrada era sinuosa demais para que Jake arriscasse uma ultrapassagem,
de modo que continuava preso atrás do trator, recuando
somente quando ele respingava mais lama em seu pára-brisa. O que poderia ter sido um pouco engraçado em Akrotiri era insuportável na escuridão em pleno Lake District.
- Meu Deus, isso aqui é um buraco - reclamou ele. - O que você está fazendo num lugarzinho desses, Jane? Pensei que você fosse dar graças a Deus por se livrar
desse fim de mundo dos infernos, e não voltar correndo para cá a qualquer oportunidade. Meu Deus do céu, como pude ter sido tão idiota, falando do assunto com Caroline?
Tenho mais chance de encontrar a tripulação da porra do Marie Celeste do que de encontrar a tal obra-prima perdida de Wordsworth. Ô trator dos infernos!
Alguns quilômetros depois, o trator finalmente saiu do caminho e Jake passou voando por ele. Em questão de minutos chegou aos arredores de Keswick.
- Graças a Deus - disse ele. Circulou pelo minúsculo centro da cidade até decidir-se pelo que lhe parecera o hotel mais civilizado. Atravessou a ponte até
um pátio pavimentado surpreendentemente cheio. Por fim, conseguiu uma vaga num canto remoto do estacionamento e espremeu seu Audi entre uma van e um Range Rover
que exibia uma preocupante abundância de arranhões e amassados.
Não havia ninguém na recepção, embora o bar ainda parecesse estar em plena atividade. Cansado, Jake tocou a campainha no balcão. Enquanto aguardava, consultou distraidamente
um folheto com as atrações locais. Meu Deus, museu do lápis, pensou ele. O que esperar de uma cidade cuja principal atração para os dias chuvosos era um museu inteiro
dedicado à colocação de grafite dentro de um pedaço de madeira?
Finalmente, uma senhora gorducha apareceu e o cumprimentou com um sorriso radiante.
- Desculpe tê-lo feito esperar. Em que posso servi-lo, senhor? - perguntou ela, efusiva.
Jake ponderou por um segundo sobre que tipo de remédio ela devia estar tomando para estar naquela alegria e se não havia uma dose sobrando para ele.
- Há algum quarto disponível?
A mulher fez uma expressão de incerteza.
- É apenas para pernoitar? - perguntou, abrindo um gordo livro e correndo o dedinho pela página.
Quem me dera.
- Vou ficar alguns dias - respondeu ele. - Ainda não sei exatamente quanto tempo.
O dedo gordinho estacou.
- Temos um quarto de solteiro - disse ela. - Posso lhe garantir quatro diárias.
- Está ótimo - respondeu ele, torcendo para que fossem mais do que o bastante para se acertar com Jane. Ele apanhou a carteira e entregou-lhe
o cartão de crédito. - Vocês têm acesso à internet? - perguntou, sem muita esperança de uma resposta afirmativa.
- Você pode conectar direto no telefone, se quiser um acesso analógico, mas há uma área wireless do lado de fora do Derwent Bar - disse ela, na maior tranqüilidade,
como se ele tivesse perguntado se tinham água corrente. - O senhor deseja algo para comer? A cozinha já está fechada, mas eu posso providenciar uma sopinha e um
sanduíche, se o senhor quiser.
- Seria ótimo - disse ele, realmente faminto. - E a senhora teria como me arrumar uma edição do jornal local?
Menos de uma hora depois, estava deitado na cama, a barriga forrada com o sanduíche de presunto e alho-poró e a sopa de batata, acompanhados de uma boa cerveja amarga.
- O nome do jornal é Keswick Reminder - disse ele para Caroline, que parecia incrivelmente animada, considerando que já passava de 1:00 da manhã em Greta.
- Que coisa fantasticamente vitoriana - respondeu ela. - Eles ainda trazem os preços dos animais de engorda na primeira página?
Ele riu.
- Não chega a tanto.
- Bem, mas para quem está perdido no meio do mato, imagino que informe o necessário - disse Caroline. - Então, você descobriu mais alguma coisa sobre o corpo
no pântano?
- Informações locais pitorescas, mas poucos detalhes sobre o corpo em si. Imagino que a antropóloga forense não teve tempo de realizar os exames antes da
impressão do jornal.
- Que pena. E aí, já falou com Jane?
- Acabei de chegar e eles dormem cedo por aqui - reclamou Jake. - Além do mais, acho que vou sondar o terreno antes. Ver se consigo bater
um papo com essa tal dra. Wilde, a antropóloga forense. Talvez ela possa definir a idade do corpo.
Ouviu Caroline suspirando alto do outro lado da linha.
- O corpo não é o principal, Jake. O que nos interessa é o manuscrito de Jane. Você precisa cair nas graças dela de novo o mais rápido possível.
- Não é tão simples aqui quanto teria sido em Londres - justificou-se ele. - Não vai ser nada fácil conseguir falar com ela a sós. E eu preciso ter uma conversa
particular, cara a cara, olho no olho. Se eu aparecer lá na fazenda, o pai dela vai me petrificar com os olhos e a mãe me servirá um assado caseiro com molho envenenado.
- Então o que você pretende fazer?
Foi a vez de Jake suspirar alto.
- Vou ter que me render ao ridículo e bancar o espião. Descobrir um ponto onde eu possa observar a fazenda, segui-la quando ela sair de casa e torcer para
ir parar em algum lugar onde eu possa abordá-la.
A voz de Caroline estava carregada de humor:
- Meu Deus, eu dava tudo para ser uma mosquinha agora, só para acompanhar de perto a sua investigação clandestina.
- Eu dou notícia - disse ele, ressentido com a aparente falta de confiança de Caroline.
- Dê sim. Estou apostando todas as minhas fichas em você, Jake. Durma bem.
Caroline desligou. Durma bem, pensou ele, testando o colchão exageradamente mole. Até parece.
A lua minguante banhava precariamente de luz o estacionamento, transformando as folhas remanescentes das árvores em trapos esfalfados. Ewan Rigston abriu a porta
do hotel para River, que estremeceu ao sentir a friagem úmida da noite lá fora.
- Meu Deus - disse ela, tiritando de frio ao passar por ele. - Nada como o ar da Região dos Lagos para esfriar qualquer clima.
- Não fica tentada a dar um passeio noturno pelo Lago Derwent então? - brincou ele, caminhando ao lado dela.
- Você está brincando, não é?
Ele riu.
- Não estou vestido para isso. E, mesmo que estivesse, não escolheria uma noite como a de hoje. - Ele farejou o ar e apontou para uma densa concentração de
nuvens avançando sobre Castlerigg Fell. - Vai chover.
- Melhor darmos a noite por encerrada, então. Não gostaria de estragá-la. - Aproximaram-se do Land Rover dela e River virou-se para encará-lo, subitamente
hesitante. - Foi uma noite muito agradável, Ewan.
Ele inclinou a cabeça.
- Para mim também. Há muito tempo que eu não me divertia tanto.
Estava escuro e River não podia decifrar a expressão dele.
- Podemos repetir qualquer dia desses, não é?
- Eu adoraria. E você poderia me atualizar sobre o Pirata do Pântano.
Ela sentiu uma pontada de decepção.
- Se você quiser.
Ele se debruçou sobre o carro dela.
- Você sabe o que os moradores estão dizendo?
- Sobre o Pirata do Pântano? Não. O quê?
- Estão dizendo que finalmente Fletcher Christian vai poder descansar em paz.
River franziu a testa.
- Fletcher Christian? Do motim no Bounty? O que ele tem a ver com o nosso cadáver?
- Fletcher morava aqui. E todo mundo sempre comentou que ele deve ter conseguido voltar para casa um dia. Alguns dizem que ele havia virado um contrabandista
no Solway Firth. E outros acham que a família dele na Ilha de Man o acolheu. - Ele deu de ombros. - Quem sabe?
River ficou intrigada. Recordou o que sabia sobre o cadáver e tentou encaixar com o pouco que conhecia sobre a história do motim.
- Não é de todo impossível. O Pirata do Pântano esteve nos Mares do Sul, não há dúvidas quanto a isso. Mas eu precisaria fazer algumas pesquisas, verificar
datas e coisas assim. - Ela abriu um sorriso. - Agora, isso ia deixar o pessoal da tevê pra lá de eufórico. Preciso contar isso para eles amanhã de manhã. - Ela
ficou na ponta dos pés e deu um beijo no rosto de Rigston. - Obrigada pela informação.
Antes que pudesse recuar, ele a puxou para si.
- Obrigado por esta noite - disse ele, a voz baixa e rouca. Então, pressionando os lábios com vontade contra os dela, a beijou. O leve roçar da sua barba
rente no rosto dela provocou um arrepio que nada tinha a ver com o frio.
Com os lábios entreabertos, tocando a lingua dele com a sua, sentiu um calor repentino e deslizou as mãos por dentro do casaco dele. Interromperam o beijo, ofegantes.
- Desculpe - murmurou ele. - Eu não tinha a intenção...
Ela deslizou a mão no gancho da calça dele e correu os dedos sobre o volume enrijecido do seu sexo.
- Ah, eu acho que tinha, sim - sussurrou ela. - Daqui até a minha casa são 46 minutos. Quanto tempo até a sua?
A quatrocentos quilômetros de distância, um ônibus se arrastava pelos arredores de Oxford. Os passageiros formavam um grupo bastante heterogêneo: um jovem funcionário
público que passara a tarde no cinema com uma colega, um punhado de estudantes voltando de um show alternativo em Shepherd's Bush, três mochileiros australianos
cumprindo mais uma etapa de sua volta ao mundo e alguns casais e solteiros voltando para casa após uma noitada na cidade grande. Alguns cochilavam, outros liam,
alguns conversavam e outros contemplavam pela janela as lojas e as casas que ladeavam o caminho do ônibus através de Headington em direção à estreita auto-estrada
de St. Clements.
O jovem rapaz negro refestelado em um assento no meio do ônibus não chamara a atenção de ninguém. A sombra produzida pela aba do boné de beisebol escondia seu rosto,
uma defesa contra o tipo de olhar insolente que talvez tivesse despertado certa apreensão entre os outros passageiros.
Tenille remexeu-se inquieta e consultou o relógio. O ônibus estava no horário. Não sabia muita coisa sobre Oxford, a não ser que havia muitos estudantes e construções
antigas por lá. Mas imaginava que não teria muita dificuldade em encontrar um lugar tranqüilo para passar a noite. Não estava preocupada em dormir muito. Passaria
o dia seguinte inteiro fazendo baldeações em ônibus, poderia tirar um cochilo. Além do mais, cada vez que adormecia corria o risco de ser novamente assombrada pelas
imagens grotescas de Geno. O sono não era importante. O que importava era ficar longe da polícia. E isso estava certa de que podia conseguir.
Estava curiosa para saber se já tinham começado a procurar por ela fora de Marshpool. Será que tinham ido atrás de Jane?
Mas não parara um minuto para refletir se estava realmente fazendo a coisa certa.
A lembrança da história do meu irmão não me saía da cabeça, por mais que eu tentasse esquecê-la. O motim no Middlesex malograra porque não havia um desejo verdadeiro
de subversão entre os marinheiros. Mas eu podia apostar que Bligh tinha poucos aliados na tripulação do Bounty. Muitos homens já haviam sido vítimas de seus comentários
cruéis e de sua conduta tirana. Foi então que concluí que, se porventura a situação se tornasse ainda mais intolerável, eu seguiria os passos do meu irmão, estava
disposto a assumir as conseqüências, fossem quais fossem. No dia seguinte, caiu a derradeira gota d'água em um tonel cheio até a borda; Bligh acusou-me, na presença
de todos os homens, de ser um ladrão ordinário e puniu toda a tripulação pelo meu suposto crime, o roubo de seus cocos. Não sei o que um homem mais leniente teria
feito em meu lugar. Sei apenas que foi então que percebi que já não podia mais suportar o fardo de sua instabilidade, sua vaidade e sua depravação.
18
Uma única estrada atravessava Fellhead. A não ser que o motorista estivesse disposto a contorná-la e ir parar numa trilha complicada e estreita por dentro da montanha
em Langmere Fell, aquela era a única rota de acesso sensata para a cidade. Jake programou seu despertador para as 6:00 da manhã e às 6:45 já estava plantado na estrada
de Fellhead, exausto com a viagem da véspera e frustrado por não ter encontrado em Keswick algum lugar que pudesse lhe oferecer um café decente para viagem. Não
conseguia raciocinar direito sem um bom café pela manhã. Caía uma garoa fininha, incessante, que diminuía a visibilidade e descoloria a paisagem. Nuvens carregadas
cobriam o topo das montanhas e ovelhas no vale abaixo se aconchegavam contra muros de pedra e árvores, buscando proteção.
Ele não queria entrar de carro na cidade: havia alguns moradores que poderiam reconhecê-lo das visitas anteriores que fizera com Jane. E decerto não tinha a menor
vontade de dar de cara com Judy Gresham entrando em uma loja. A despeito do que Jane pudesse lhes ter contado sobre o término do relacionamento, na certa não causara
boa impressão aos olhos de seus pais. Então decidiu estacionar em uma área coberta de cascalhos a vinte metros do cruzamento, um local onde as pessoas interessadas
em fazer uma caminhada podiam deixar seus carros e subir a pé pela trilha que ia até Langmere Fell.
Havia mais tráfego na estrada estreita do que Jake previra e ele teve dois alarmes falsos; de longe, todos os Land Rover eram bastante parecidos. Mas, pouco depois
das 8:00, sua paciência foi recompensada. Fiestas vermelhos como os de Judy eram menos comuns e, quando um deles surgiu, vindo da aldeia e atravessando a estrada
em sua direção, Jake puxou a aba
do seu boné de beisebol para cobrir melhor o rosto e ficou à espreita. Quando o carro se aproximou, pôde reconhecer o perfil de Jane. Esperou até ela ter virado
ao norte na estrada principal e, em seguida, acionou a engrenagem e partiu no seu encalço.
A estrada rumo a Thirlmere seguia o modelo reto romano, o que facilitou a vida de Jake. Devido ao mau tempo, Jane era obrigada a dirigir com os faróis ligados e
desse modo era fácil não perdê-la de vista. Não estava interessado em apreciar a beleza nebulosa do lago à sua esquerda, nem as silhuetas fantasmagóricas à sua direita,
atento apenas às luzes vermelhas da lanterna traseira mais adiante. Nem sequer notou as placas de alerta anunciando as obras na estrada. O carro de Jane desapareceu
numa longa curva e, assim que seguiu atrás dela, percebeu que estava encrencado. O sinal de trânsito que controlava o tráfego de mão única na estrada em obras mudou
de amarelo para vermelho assim que Jane passou voando por ele. Ficou tentado a pisar no acelerador e tentar a sorte, mas no último minuto perdeu a coragem e freou
com força, rodopiando com o carro até parar de vez, no exato momento em que faróis dianteiros se aproximavam, vindos da direção contrária. Com o coração aos pulos,
agarrou o volante com força. Meu Deus, essa foi por pouco.
Jake enxugou uma fina camada de suor sobre o lábio superior e aguardou o sinal. Deu uma olhadela no mapa para confirmar o que já imaginava. Não havia nenhum lugar
para Jane virar, pelo menos não até alcançar a nascente do lago. De um lado, havia água, do outro, os íngremes declives arborizados de Helvellyn. Se pisasse fundo
no acelerador, talvez ainda conseguisse alcançá-la. Assim que a luz vermelha mudou para verde, ele partiu depressa em correria pela estrada. Mas, quando chegou perto
da bifurcação, não havia nem sinal do Fiesta. Jane poderia ter seguido direto para Keswick ou ter virado à direita, em direção à rua principal que levava à M6 e
para qualquer outro lugar. Jake hesitou por um momento, antes de apostar no caminho que considerava rumo à civilização. Talvez ainda conseguisse encontrá-la, devido
à sua velocidade acelerada e à estabilidade do seu carro. E, se não conseguisse, podia voltar para Keswick e fazer uma ronda pelos estacionamentos.
Quase dois quilômetros depois, fez uma curva e por pouco não se chocou contra a traseira de um trator que avançava sem pressa entre os muros de pedra que ladeavam
a estrada. Hora de desistir da caçada. Altamente frustrado, valeu-se da primeira entrada que encontrou para fazer o retorno e voltar para Keswick. Após meia hora
de perseguição, foi obrigado a admitir que fracassara em sua empreitada.
Não adiantava muito voltar até o fim da estrada. Quando Jane retornasse, estaria indo para casa, de volta ao seio protetor da família. E não conseguia imaginar nenhuma
outra maneira de encontrar-se com ela. Pelo menos, ficara relativamente convicto de que Jane não havia descoberto nenhum documento que corroborasse sua teoria, do
contrário estaria trabalhando com Anthony Catto no Dove Cottage.
Foi então que, ao pensar nisso, foi acometido pelo que os cientistas chamam de inspiração, e os sacerdotes, de intervenção divina. Quando ele e Jane ainda estavam
namorando, haviam passado uma semana em Barcelona. Para economizar nas bagagens, haviam levado apenas o laptop dele. Ela havia instalado seu programa de e-mail no
computador dele e ele não o removera. Decerto ainda estava lá, com senha armazenada e tudo. Podia vasculhar a sua caixa postal sem que ela jamais soubesse. Tinha
certeza absoluta de que encontraria alguma pista. Hoje em dia, há sempre alguma coisa nos e-mails.
River vestiu um jaleco branco sobre a roupa que usara na véspera. Apesar de ter dormido apenas algumas horas, sentia-se renovada. Uma boa noite de sexo sempre a
deixava daquele jeito, pensou, esticando os braços sobre a cabeça e desfrutando a sensação de bem-estar que a inundava. Há muito tempo não tinha um encontro tão
agradável.
Acordar ao lado dele também não despertara nenhuma estranheza. Não haviam conversado muito, é verdade - ela estava muito ansiosa para acessar a internet e ver se
conseguia garimpar algumas informações básicas sobre Fletcher Christian e ele lhe oferecera o seu computador de bom grado. Tudo muito descontraído, muito natural.
Não fazia a menor idéia do que aconteceria dali em diante. Mas, por enquanto, estava mais do que feliz em aproveitar o momento.
River abotoou o jaleco, apanhou uma prancheta com suas anotações e dirigiu-se apressadamente à sala de embalsamamento onde o Pirata do Pântano esperava por ela,
o corpo exposto sob a claridade das luzes fluorescentes e das lâmpadas de arco voltaico da equipe de televisão. Ao entrar, avaliou sua platéia. Dois alunos de mestrado
em antropologia forense, um de ciências arqueológicas e um paleobotânico. E, do outro lado, o cinegrafista, a operadora de som e o diretor.
- Antes de começarmos - disse ela, dirigindo-se aos estudantes -, já quero pedir desculpas a vocês. Vou abordar coisas absolutamente básicas hoje, uma vez
que tenho que me dirigir a um público de televisão que não tem a vantagem dos seus diplomas. Após o término das filmagens, podemos sentar com calma e repassar o
que vimos aqui com maior rigor científico. Mas peço que observem com bastante atenção o que vou fazer e que tomem notas quando precisarem. Estão todos de acordo?
Todos concordaram com a cabeça e murmuraram respostas afirmativas.
- Precisamos que vocês assinem um documento nos autorizando a utilizar suas imagens na edição final do programa - interrompeu o diretor.
- Vamos receber algum cachê por acaso? - perguntou um dos alunos, um tanto revoltado.
- Deviam estar satisfeitos só por estar aqui - disse River. - Essa é uma oportunidade rara. Estou quase certa de que vocês dois serão os únicos alunos de
mestrado no país a terem uma experiência prática com um cadáver mumificado este ano. Então, tratem de agradecer por não estarmos cobrando nada por esse favor. -
Voltou-se para o diretor. - Antes de começarmos, gostaria de comentar uma coisa com você. Fiquei sabendo que há um boato pela cidade de que este poderia ser o corpo
de Fletcher Christian.
- Quem é Fletcher Christian? - perguntou o diretor.
River fez um esforço para não perder a paciência.
- O sujeito que liderou o motim do Bounty.
- O quê? Aquele do filme com o Mel Gibson?
- Ele mesmo.
O diretor olhou para River como se ela tivesse perdido o juízo.
- E como ele foi parar num pântano em Langmere Fell? Quero dizer, o motim ocorreu no Pacífico Sul, não foi?
- Foi. Mas, ao que parece, ele nasceu aqui. E há um boato de que retornou à sua terra natal.
- Legal. - O diretor parecia vagamente impressionado.
- Andei pensando... E se nós incorporássemos essa suspeita no nosso projeto? Não teria um apelo ainda maior para o público?
- Acho que sim. Mas preciso falar com Phil primeiro. Ele é o chefe.
River tentou conter a impaciência.
-Já dei uma pesquisada hoje de manhã na internet. Por que não vamos em frente como se fôssemos trabalhar com essa hipótese? Posso tocar no assunto enquanto trabalho.
Depois, se Phil for contra, é só cortar na edição. O que você acha?
O diretor abriu os braços.
- Por que não? Vale tudo para deixar um cadáver mais sexy.
River exibiu o sorriso de uma mulher que sabia exatamente o que significava a palavra sexy.
- Todos prontos?
A operadora de som fitou seus equipamentos e murmurou:
- Vamos lá.
- O cinegrafista olhou através da lente e disse: - Gravando.
River contemplou o cadáver.
- Até mesmo um corpo antigo como esse nos fornece um poço de informações. Nossos corpos codificam nossa identidade pessoal. Informam sobre o mundo a que foram
submetidos e a que nós os submetemos. Até mesmo a análise mais superficial pode nos oferecer alguma pista - disse ela, apontando o corpo. - O crânio, a síntese pubiana,
a degeneração das articulações, tudo isso nos diz que o homem devia ter por volta de quarenta anos.
Ela fitou os alunos.
- O corpo foi encontrado em Carts Moss, uma área pantanosa próxima ao pé de Langmere Fell. O que, por si só, já é o bastante para gerar um interesse local.
Mas quando a notícia dessas tatuagens se espalhou... - disse ela, apontando para o sombreado escuro sobre a pele adamascada e olhando de novo para os alunos. - Bem,
foi então que o interesse aumentou consideravelmente.
Deslizou as mãos delicadamente sobre os restos mortais na mesa.
- A antropologia forense trata da identidade. Quem era este homem? O que aconteceu com ele quando estava vivo? E qual o impacto do seu
modo de vida na maneira como morreu? Trabalhamos quase exclusivamente com fatos científicos concretos. Mas, assim como os arqueólogos, também precisamos nos fiar
em outros indícios, alguns históricos e outros sociais, porque a ciência não tem sentido sem contexto. E, no que diz respeito aos históricos, já temos uma possibilidade
intrigante nesse caso. Seria este o cadáver de um inglês nascido em Cumbria, chamado Fletcher Christian, que partiu a bordo do Bounty em uma viagem aos Mares do
Sul, onde liderou um motim contra o capitão do navio? Alguns moradores locais crêem que sim. No nosso processo de investigação para descobrir tudo o que este corpo
tem a nos revelar, é fundamental levarmos em consideração a possibilidade de conseguirmos identificar o corpo com bastante precisão, embora ele tenha passado algumas
centenas de anos sob a terra.
River virou-se para o quadro instalado atrás dela.
- Corta! - disse o diretor. - Precisamos mudar a posição da câmera, River. Para vermos o que você vai escrever.
Alguns minutos depois, estavam todos a postos novamente. River apanhou uma caneta pilot azul e começou a fazer uma lista no canto direito do quadro. O título era
Fletcher Christian. Abaixo, ela listou todas as informações que apurara em sua rápida pesquisa na internet:
Nascido em 25/9/1764 em Moorland Close, perto de Cockermouth, Cumbria Sexo: masculino Altura: 1,75m Cabelo: castanho bem escuro Pele: morena Constituição forte
Tatuagem de estrela no lado esquerdo do peito
Tatuagem típica dos Mares do Sul - nádegas completamente tatuadas em preto, possivelmente com traços ornamentais na parte superior Pernas ligeiramente arqueadas
Suava muito, sobretudo nas mãos - hiper-hidrose primária?
Uma das versões para sua morte em Pitcaim afirma que ele levou um tiro no ombro.
Ela deu um passo para trás e examinou o que havia escrito.
- Eu sei que não é muito, mas temos sorte porque de fato nos dá algum indício físico concreto para analisarmos.
River voltou-se para o corpo.
- Bem, sabemos que o nosso cadáver é de um homem. Também sabemos que sua idade condiz com a do sr. Christian. E ele também tem cabelo comprido e escuro. Pode
ter escurecido pela exposição à turfa, mas podemos realizar testes para determinar com mais precisão sua cor original. - Ela apanhou uma fita métrica do bolso e
a esticou na altura do corpo. - Um metro e setenta. Aparentemente, cinco centímetros mais baixo do que Fletcher Christian. Alguém deseja fazer algum comentário?
A antropóloga forense disse:
- Todos nós ficamos mais baixos à medida que envelhecemos. E não podemos estipular a exatidão das medidas iniciais. De modo que isso não exclui a possibilidade
de ser mesmo ele.
- Exato - assentiu River. - Infelizmente, não podemos estimar seu peso porque não temos idéia da quantidade de tecidos moles que foram removidos pelo ácido
na turfa. Sobrou bem pouco e está longe de ser o bastante para até mesmo um palpite. Mas ele de fato parece ter os ombros largos. O que também não contradiz a nossa
extravagante hipótese. Outra decepção devido à falta de tecidos moles é que não temos como saber se o nosso cadáver sofria de alguma desordem do sistema nervoso
simpático que poderia provocar a hiper-hidrose. Agora vamos examinar os ossos da perna. Algum comentário?
Agruparam-se em torno da mesa. O diretor aproveitou para reorganizar sua equipe, para que pudessem filmar de outro ângulo. A mesma aluna que havia comentado antes
disse:
- Os ossos me parecem retos. Não diria que tinha as pernas arqueadas.
- Eu não acho - disse outro aluno. - Olhe os joelhos. O ligamento medial do fêmur com a tíbia está enfraquecido nas duas pernas. Se ele possuía as pernas
arqueadas,
com o passar do tempo isso teria posto pressão na parte interna da articulação do joelho, causando esse tipo de artrite. Sobretudo se ele levou uma vida física ativa.
- A artrite não tem necessariamente a ver com as pernas arqueadas - discordou a aluna. - Pode ser um mero desgaste, especialmente se ele estava acima do peso.
- Não creio que existissem muitos marinheiros obesos no século XVIII - retrucou o rapaz. - A comida era péssima e o trabalho, bastante pesado. E, além do
mais,
ele era muito jovem aos quarenta anos para ter esse nível de desgaste nas articulações.
- Estou tentada a concordar com você - disse River. - E, sendo assim, não podemos descartar o sr. Christian com base nas nossas descobertas. Até agora, então,
tudo que podemos afirmar é que nada do que vimos aqui contradiz essa possibilidade. E temos um indício não-invasivo que fortalece a nossa idéia.
River apanhou as imagens da radiografia e da tomografia computadorizada do ombro do cadáver, de trás da mesa. Enquanto aguardava a câmera posicionar-se no mostrador
de slides portátil que ela pedira que os alunos trouxessem de Carlisle, ela repetiu o que já havia contado a Ewan Rigston sobre a lesão no ombro do cadáver. Depois,
repetiu tudo para a câmera. Ao fim da narrativa, ela própria já estava enjoada do assunto. Hora de avançar mais depressa:
- O que vamos fazer hoje é colher amostras. Vamos remover dentes para análise de isótopos estáveis, para descobrirmos onde ele estava morando quando seus
dentes se formaram. Outros dentes servirão para estipularmos com mais certeza a sua idade. Uma amostra óssea do fêmur para, também na análise de isótopos estáveis,
descobrirmos por onde ele andou entre 10 e 15 anos antes de sua morte. Vamos analisar todo o material na universidade com o espectrômetro de massa. Também recolheremos
amostras de cabelo e unhas para verificar a toxicologia e diferentes substâncias alimentares. E o conteúdo do trato gastrointestinal, para os paleobotânicos se divertirem
um pouquinho. Vamos procurar encontrar o máximo de tecidos moles para serem usados no exame de DNA e no de toxicologia. E, quando acabarmos tudo isso, teremos uma
idéia melhor da identidade deste homem. Sendo ou não Fletcher Christian, não poderá mais se esconder de nós.
River olhou fixamente para a lente da câmera.
- E, quando soubermos mais a seu respeito, talvez possamos até mesmo ter uma idéia de quem foi o responsável pelo seu assassinato.
Os acontecimentos daquela fatídica noite foram narrados por muitos que a testemunharam. Meu irmão Edward me mostrou esses relatos e eu os julguei de modo geral fiéis
aos fatos em questão, ainda que necessariamente imperfeitos no que diz respeito à atribuição de pensamentos e motivos. Tais histórias podem facilmente narrar o verdadeiro
desenrolar dos acontecimentos. O que eu preciso atestar, com absoluta clareza e veemência em minha própria defesa, é que não tinha intenção de fazer o tenente Bligh
e seus companheiros perecerem ou serem obrigados a suportar as vicissitudes daquela terrível travessia pelo Pacífico em uma embarcação aberta. Havia terra à vista
quando os expulsamos do Bounty. Um navegador do porte de Bligh e com tamanho conhecimento daquela região deveria saber que poderia facilmente alcançar a terra, sem
muito dispêndio de tempo e energia. Não havia necessidade de padecerem as tormentas que Bligh os forçou a suportar em nome de sua presunçosa vaidade. Acabou se tornando
um herói, mas poderia ter sacrificado a vida de todos naquela viagem. E isso diz muito a seu respeito.
19
A inspetora Donna Blair despachou o último documento supostamente urgente em sua mesa e levantou os olhos em direção à sala de ocorrências.
- Kumar - gritou ela.
O jovem policial, que deveria estar localizando Jane Gresham, ergueu a cabeça, apreensivo.
- Pois não, senhora.
- Chega aqui. - Donna tamborilou os dedos sobre a mesa enquanto ele se arrastava até sua sala. - Já localizou Jane Gresham?
- Não, senhora. Mas consegui finalmente descobrir onde ela trabalha. No Centre for Editing Lives and Letters, na Queen Mary University de Londres, mas o único
endereço que eles têm cadastrado é o Marshpool. Falei com uma moça, ela disse que Jane tirou uma licença para pesquisa e que talvez sua chefe saiba onde ela está.
Pedi para ela me ligar.
- Meu Deus. Eu continuo mantendo um policial na porta dela. Isso custa um dinheiro que nós não temos. Você sabe como funciona numa investigação dessas, não
somos a elite da polícia, então não recebemos orçamento para isso.
- A senhora não acha que a menina já teria dado as caras por lá se estivesse querendo se esconder no apartamento da outra? - perguntou Kumar, ainda inexperiente
no trabalho para achar que poderia ganhar pontos com a chefia fazendo sugestões óbvias.
Donna girou os olhos.
- Ou ela pode estar escondida em algum lugar no edifício, esperando a poeira baixar para poder entrar tranqüilamente. - Ela suspirou. - Bem,
continue insistindo. Você já tentou verificar se tem algum Gresham na lista telefônica de Lake District?
- Eu ia fazer isso, mas a moça na universidade falou "licença para pesquisa", então pensei que talvez a vizinha tivesse se enganado. - Assim que proferiu
essas palavras, o policial Kumar percebeu que tinha falado besteira.
- Eu sou paga para pensar, não você - rebateu Donna. - Enquanto está aí esperando a chefe de Jane Gresham ligar de volta, comece a procurar na lista telefônica.
Imagino que deva existir uma boa dúzia de Greshams na região. E, antes de você começar, entre em contato com a central de mídia, ou seja lá como estão chamando a
agência de notícias agora. Estou começando a achar que a menina fugiu; está na hora de divulgar um retrato. - Kumar partiu e Donna fez cara feia pelas suas costas.
Não estava irritada com ele. O que realmente a incomodava era ter sido passada para trás por uma garota de 13 anos. Se alguém duvidava da identidade do pai de Tenille,
ali estava a resposta.
Vasculhou a gaveta até encontrar seu chiclete de nicotina. Não queria ir falar com o Martelo, mas tinha a desagradável sensação de que não haveria outro jeito. Não
que a idéia a assustasse; o que temia era mais um embate inútil que não adiantaria em nada na solução do caso. Mas não havia como evitar. Era uma investigação de
homicídio e, na era das esquadras de casos não-resolvidos, seria um suicídio profissional negligenciar qualquer pista, como vários de seus colegas veteranos estavam
percebendo ultimamente.
Tomara que Kumar encontre Jane Gresham, pensou ela. E tomara que Jane Gresham saiba onde podemos encontrar Tenille.
Matthew sorriu para os seus alunos, um sorriso franco que desanuviava a carranca em que seu rosto havia se transformado nos últimos tempos. Acentuava sua semelhança
com a irmã, cuja postura mais otimista perante a vida lhe rendia uma fisionomia radiante. Era um sorriso que seu filho via mais do que qualquer outra pessoa, e seus
alunos haviam aprendido a relaxar ao contemplá-lo.
- Vocês fizeram um excelente trabalho - disse ele, num elogio sincero. Ficara alegremente surpreso ao ver como todos haviam se esforçado
para rastrear seus ancestrais e os detalhes que haviam apurado para compor suas árvores genealógicas. Havia trabalhos de todo tipo, claro. Dois feitos no computador,
com direito a fotografias escaneadas, ambos realizados por filhos de imigrantes cujos pais trabalham com tecnologia da informação. Mas até mesmo Jonathan Bramley,
cuja caligrafia ainda deixava Matthew desesperado, tentara produzir uma árvore genealógica decente.
- Isso vai render um destaque fantástico no nosso mural de fim de semestre - continuou ele. - E teremos tempo suficiente para ver se conseguimos voltar ainda
mais no tempo. O que também vamos fazer é examinar mais detalhadamente o modo de vida dos nossos ancestrais: como eram suas condições de vida, em que trabalhavam,
quais eram suas relações familiares.
Ele tornou a sorrir.
- Mas, antes de fazermos tudo isso, gostaria que Sam e Jonathan trouxessem suas árvores genealógicas aqui na frente.
Os dois meninos entreolharam-se enquanto avançavam até o professor, diante da classe. Sam parecia desconfiado, e Jonathan, de mau humor. O projeto de Sam tinha uma
apresentação impecável, era claro e informativo. O de Jonathan parecia ainda mais incompleto ao lado do de Sam, mas servia perfeitamente para o intento de Matthew.
- Vocês olharam o trabalho um do outro? - perguntou ele, agachando-se para ficar na mesma altura dos meninos.
Ambos fizeram um gesto negativo com a cabeça.
- Está bem. Agora, virem-se para o resto da classe para que possamos vê-los. - Matthew aguardou enquanto eles faziam o que havia pedido. - A primeira coisa
que observamos nas duas árvores genealógicas é que tanto Sam quanto Jonathan puderam rastrear suas origens até várias gerações passadas. Isso foi possível porque
ambos vieram de famílias locais. As pessoas só começaram a se mudar mais nos últimos trinta anos. Antes disso, costumavam passar a vida inteira muito próximas do
local onde haviam nascido. Se iam morar a mais de trinta quilômetros de distância, por exemplo, geralmente era porque precisavam arrumar emprego. É o caso do meu
avô, que se mudou da Cornualha para Cumbria porque era mineiro e as minas de estanho na Cornualha estavam fechando. Mas ele ficou sabendo
que havia trabalho em uma mina em Cumbria, de modo que deixou seu lar e sua família e mudou-se para cá. Casou-se com uma moça daqui e, por isso, acabou ficando.
Sam e Jonathan vêm de uma longa linhagem de nativos de Cumbria, e, se voltarmos seis gerações - disse Matthew, pairando atrás dos meninos e deslizando o dedo pelas
ramificações das árvores -, encontraremos algo realmente interessante. Aqui nós temos o tetravô de Sam, Arthur Clewlow. E aqui, a tetravó de Jonathan, May Bramley.
O nome de solteira dela era May Clewlow. E, se examinarmos um galho acima na árvore, constataremos que a família de Jonathan e a de Sam têm a mesma raiz: o casamento
de Amold Clewlow com Dorcas Mayson em agosto de 1851.
Matthew afagou o cabelo dos dois meninos.
- Então, se o corpo encontrado no pântano for o ancestral símio de Sam Clewlow, Jonathan, isso significa que você também é um macaco.
Jane esfregou os olhos, mas eles continuaram arenosos e cansados quando ela os abriu novamente. Estava claro que os registros civis não haviam sido compilados levando
a legibilidade em consideração. Garranchos ilegíveis rivalizavam com letrinhas minúsculas; arabescos a confundiam e abreviações a deixavam desconcertada. Mesmo com
a ajuda de uma lente de aumento, era árduo decifrar as anotações. Tinha pena dos pobres coitados encarregados de disponibilizar aquelas informações na internet.
O que a fez também duvidar um pouco da exatidão dos registros na rede. Estava acostumada a ler manuscritos antigos, mas fora obrigada a desistir de algumas anotações
que não pudera decifrar de todo e das que tinham interpretação questionável. Será que um tecelão de Ambleside em 1851 realmente batizara o seu filho de Endócrino?
Não era possível, mas nenhuma outra palavra casava tão bem com o garrancho.
A pesquisa de que se encarregava era exaustiva e bem menos divertida do que as costumeiras. Normalmente quando se dedicava aos seus interesses acadêmicos, encontrava
apartes interessantes e desvios que acabavam rendendo certo colorido à pesquisa. Mas, no cartório de registros civis, era tudo preto-e-branco.
Jane suspirou e voltou para mais um volume empoeirado. Esperava de coração que Dan estivesse tendo mais sorte do que ela.
Jake sentara-se de pernas cruzadas na cama com o laptop aberto diante de si. A conexão discada era tediosamente lenta se comparada com o acesso wireless, mas, já
que ia invadir a caixa postal de Jane, queria certa privacidade para o seu ato. Abriu o programa de e-mail e ficou contente ao ver que, como imaginara, ela havia
deixado a sua senha armazenada na tela de acesso. Hesitou por um instante. Esse era um gesto injusto e decadente e Jake não gostava de se ver como um sujeito decadente.
Mas precisava pensar no futuro. E, francamente, o que era uma reles baixeza considerando que podia ser o único caminho entre ele e a descoberta literária do século?
Esse foi um argumento bastante persuasivo para que esquecesse seus escrúpulos. A caixa postal de Jane tinha uma lista de mensagens que já haviam sido lidas e armazenadas
como novas; Jake sabia por experiência que aqueles eram e-mails que ela ainda não tinha respondido ou queria deixar à mão para facilitar sua consulta. Havia apenas
uma mensagem não lida na caixa postal e, assim que Jake viu o remetente, ficou ainda mais curioso. Se Anthony Catto estava escrevendo para Jane, provavelmente tinha
algo a ver com a sua pesquisa. Mas, se lesse o e-mail antes dela, ficaria claro que alguém havia invadido a sua conta. E ninguém mais, exceto ele, tinha as informações
para acessá-la. Essa constatação arruinaria qualquer esperança de aproximar-çe dela novamente.
A única alternativa era ler o e-mail e apagá-lo em seguida. Se fosse importante, ele poderia forjar um e-mail de Jane para Anthony pedindo que tornasse a enviar
a
mensagem. Antes que pudesse perder a coragem, abriu o e-mail de uma vez:
Cara Jane,
Hoje cedo entrei em contato com a equipe responsável pelos documentos na Biblioteca de Londres e eles concordaram em examinar as cartas com o intuito de autenticá-las
e reconhecer sua
procedência. Você está de parabéns por tê-las encontrado e compreendido sua provável relevância.
Após a conversa que tivemos ontem, eu me lembrei de algo que pode corroborar, ainda que pouco, a sua hipótese. WW escreveu em 1841 acerca da região de Windermere:
"Esta região foi durante tanto tempo considerada inacessível que pessoas fugindo da lei amiúde a buscavam como esconderijo, e algumas eram ousadas o bastante para,
com temerária freqüência, se ausentarem de seu abrigo para impetrar novos crimes." Parece um comentário um tanto quanto inusitado, a não ser que tangesse alguma
esfera pessoal, não acha?
Mande notícias de como você vai com Dorcas.
Um abraço,
Anthony
- Filha-da-puta - reclamou Jake em voz baixa. Então ela de fato havia descoberto alguma coisa. Algo que dava suporte à sua teoria sobre Fletcher Christian.
Com renovada curiosidade, ele acessou as mensagens enviadas por Jane. O último e-mail fora para Dan Seabourne. Lembrava-se de Dan - sempre com uma resposta inteligente
na ponta da língua, a aparência impecável e sua mal disfarçada antipatia por Jake. Dan sempre fora muito amigo de Jane. Se ela fosse confidenciar algo para algum
colega, certamente seria para ele. Impaciente, abriu o e-mail e percebeu na mesma hora que havia descoberto ouro. Jane mencionava uma carta de Mary Wordsworth sobre
um material misterioso escrito por William. Ela também anexara a cópia de uma carta para John, o filho de William e Mary. Tudo levava a crer que serviria para ajudar
Dan na busca pelos descendentes de Dorcas Mason no Registro Geral de St. Catherine, em Londres. Rapidamente, Jake copiou os dois e-mails e os encaminhou para a sua
própria caixa postal. Então, redigiu um breve recado para Anthony Catto, fingindo ser Jane, alegando ter apagado sua mensagem sem querer, pedindo-lhe que a reenviasse.
Por fim, apagou as cópias do que havia enviado. Um especialista em computadores sem dúvida seria capaz de recuperar o que ele havia feito, mas ele não acreditava
que o seu laptop fosse despertar tamanho interesse. Fizera o possível para apagar seus rastros, estava convencido disso.
Fechou o e-mail de Jane e abriu o seu próprio, verificando se as mensagens encaminhadas haviam chegado para ele. Em seguida, apanhou o celular e ligou para Caroline.
- Já sei o que ela encontrou - anunciou ele sem delongas assim que ela atendeu o telefone.
- Ela te contou?
- Não exatamente. Eu acessei os e-mails dela.
- E é coisa boa?
Jake resumiu o que havia descoberto.
- Não há dúvida de que havia alguma coisa - concluiu ele. - Agora, se ainda está com ela, aí já são outros quinhentos. Mas, desde que eu consiga ficar ao
lado dela, podemos deixar Jane fazer o trabalho pesado.
- Não acho - retrucou Caroline lentamente. - Não vejo motivo para não tentarmos passar na frente dela. De todo modo, continue com o nosso plano original.
Saber exatamente o que Jane pretende não nos fará mal. Mas, se conseguirmos encontrar os descendentes de Dorcas antes dela, melhor ainda.
- E como vamos fazer isso?
- Vamos contratar ajuda profissional para vasculhar os registros em Londres. - O tom de voz de Caroline era veloz, sistemático.
- E onde encontramos um?
- Conheço um advogado em Lincoln's Inn. Ele está acostumado a fazer serviços do gênero. Você nem imagina como as pessoas mentem quando tem dinheiro envolvido
na história. E onde ela está agora?
- Não sei. Tentei segui-la hoje de manhã, mas perdi o carro de vista graças a uns reparos na estrada.
- Tudo bem. Pelo menos, você conseguiu algo por hoje. Te ligo assim que tiver alguma novidade lá de Londres. E boa sorte com Jane, querido. Faça o que for
preciso.
Não era só em Lake District que a chuva não dava trégua: Derbyshire também estava embaixo d'água. Tenille não dava a mínima para o mau tempo.
Usava a mochila como travesseiro entre a cabeça e a janela respingada de chuva do ônibus que prosseguia lentamente de Ashboume até Buxton. Era o quarto que pegava
naquele dia e estava exausta até os ossos.
Não encontrara muitos lugares para se abrigar em Oxford. Como havia gente no centro da cidade pela madrugada, os policiais faziam a patrulha até tarde. Os poucos
lugares que avistara nos arredores da estação rodoviária já estavam ocupados por pessoas ao lado das quais não estava inclinada a dormir, mesmo que topassem sua
presença. Não queria se afastar muito da rodoviária também, com medo de não chegar a tempo para o ônibus que saía bem cedo e haveria de levá-la até o próximo trecho
de sua viagem. Terminou escolhendo um beco atrás de um restaurante, espremida entre duas lixeiras que fediam a comida podre. Dormira mal, pois o espaço era tão apertado
que acordava toda hora com câimbras nas pernas. A noite parecera durar uma eternidade.
Quando finalmente se arrastou de volta à rodoviária, estava questionando seriamente a sanidade do seu plano. Talvez fosse melhor dirigir-se à delegacia mais próxima
e se entregar de uma vez. Nada poderia ser pior do que a noite anterior. Mas, depois de ter comido um sanduíche de bacon e bebido uma latinha de Coca-Cola como café-da-manhã,
recobrara seu ânimo. Tomara o ônibus 7.22 para Banbury, disposta a chegar a Fellhead. Não sabia ao certo o que Jane poderia fazer por ela. Mas Jane era a única pessoa
adulta em sua vida que ela acreditava capaz de fazer algo. E, além do mais, fora Jane quem a metera nessa confusão. Agora, era tarefa de Jane se virar para resolvê-la.
Muitas vezes especulei sobre que tipo de capitão eu me tornaria, caso algum dia fosse afortunado o bastante para ser senhor do meu próprio navio. E devo confessar
que, em diversas ocasiões durante a viagem de ida, constatei que, em seu lugar, controlaria o navio de modo inteiramente diferente do meu capitão. Pôr tais idéias
em prática seria um feito e tanto. Eu sabia que teria de dominar aqueles gestos capazes de transmitir aos homens que prezava o seu bem-estar, merecia seu respeito
e era digno de liderá-los. Gostaria de impor disciplina sem autocracia e desde o começo incentivei os homens a fazer reuniões para discutir como deveríamos proceder.
No segundo dia após o motim, ordenei que as velas do mastro real fossem cortadas e transformadas em uniformes para a tripulação, cedendo minha própria farda de comandante
para confeccionar o acabamento em azul. Julguei que isso fosse impressionar os nativos e também engendrar um espírito de camaradagem e disciplina entre os meus homens.
Também supervisionei a divisão dos pertences e bens dos que haviam partido com Bligh. Resumindo, tentei ser o homem que eu me sentiria honrado em servir.
20
Matthew não pôde disfarçar sua alegria com a ausência de Jane quando chegou à fazenda com Gabriel para sua costumeira visita das sextas-feiras na hora do chá. Por
ela não estar lá, tratavam-no com deferência, raramente questionavam suas opiniões e o acolhiam com gratidão, como se ele, ao visitá-los, estivesse lhes concedendo
uma grande honra. O que, é claro, ele acreditava piamente estar.
De modo que gostava de levar Gabriel para tomar chá com os avós. Como era de esperar, eles enchiam o bebê de mimos, mas Matthew via isso como uma alforria dos aspectos
tediosos da obrigatoriedade de se tomar conta de uma criança pequena. Amava o filho, sem dúvida. Só não era muito chegado às aplicações práticas desse amor, sobretudo
no que dizia respeito à troca de fraldas e ao preparo de mamadeiras.
- Jane voltou para Londres, então? - perguntou ele assim que acomodou Gabriel no velho tapete da cozinha com um punhado de brinquedos à sua volta. - Imaginei
que ela fosse mesmo enjoar daqui em dois tempos.
- Muito pelo contrário - respondeu Judy. - Ela está na pista certa. Encontrou uma carta no Jerwood Centre ontem e foi correndo para o Registro Geral em Carlisle
para tentar localizar uma mulher que trabalhou para a família Wordsworth.
- Perda de tempo - zombou Matthew. - Bem típico do mundinho acadêmico. Qualquer bobagem e lá vão eles em campo, solicitando fundos, desesperados para se dar
bem.
- Não mesmo. Jane não é assim - disse Judy, sentando-se no chão junto a Gabriel e fazendo cócegas em sua barriguinha. O menino contorceu-se,
às gargalhadas, sentindo a ponta dos dedos da avó. - Ela realmente acredita no que está fazendo.
Matthew girou os olhos.
- Ela devia era tentar trabalhar no mundo real por uma semana para ver o que é bom. Se fizesse o que eu faço, ia pedir arrego no primeiro dia.
Allan Gresham entrou na cozinha a tempo de escutar as palavras do filho. Ninguém precisou lhe dizer de quem estavam falando.
- Jane trabalha no mundo real, Matthew. Ela serve bebidas atrás de um balcão, dá aulas. Nunca passou um verão à toa. E, além disso tudo, ainda tem o trabalho
dela. Você não pode acusar sua irmã de ser uma desocupada.
- Talvez não. Mas ela só faz o que quer. Sempre foi assim. Ela não tem responsabilidades como eu tenho.
Allan não respondeu. Aprendera a ignorar a eterna insatisfação do filho. Lutar contra só serviria para reforçá-la. Atravessou a cozinha e pôs a chaleira para ferver,
e, enquanto fazia isso, Jane apareceu. Seus olhos brilharam assim que ela viu o sobrinho abanando as pernas e os bracinhos no ar.
- Olá, Gabriel - disse ela, indo direto para o local onde a mãe brincava com ele. Agachou-se e lhe ofereceu um dedo para o menino agarrar. - Meu Deus, ele
é lindo - disse ela. Sua voz mudou para o tom que os adultos normalmente usam para falar com crianças: - Você é lindo, não é, garotão?
- Boa-tarde para você também, Jane - disse Matthew.
- Correu tudo bem? - perguntou a mãe, adotando seu freqüente papel como pára-choque antes que Jane pudesse responder.
Jane sentou sobre os tornozelos.
- Uma decepção. É estranho, como se essa mulher tivesse desaparecido da face da Terra. Eu estou com a certidão de nascimento, vi a carta na qual Mary diz
que ela estava saindo em 1851 para se casar, mas não há nem sinal da certidão de casamento. Vasculhei todos os registros até o fim de 1853 e nada. E também não achei
nenhum atestado de óbito. Dorcas Mason sumiu sem deixar vestígios.
Matthew disfarçou sua surpresa ao escutar um nome que tinha ouvido naquele mesmo dia.
- Quem? - perguntou ele.
Jane colocou o sobrinho no colo e ficou de pé, sorrindo para ele.
- Dorcas Mason. Trabalhou como criada para a família Wordsworth.
- Por que você está interessada em uma serviçal? O velho Willie estava de gracinha com as criadas?
Jane o encarou fixamente.
- Mesmo que não tivesse sido um marido dedicado e fiel, na época em que ela foi trabalhar para a família eu acho que ele já havia perdido o interesse nisso.
- E o que tem a tal Dorcas-sei-lá-o-quê? - insistiu Matthew, fingindo incerteza.
- Mary Wordsworth encontrou um manuscrito após a morte de William. Seja lá o que for, ficou aborrecida. Ela o enviou para seu filho John, alegando dizer respeito
a ele e a sua família. John era casado com Isabella Christian Curwen, a filha do primo de Fletcher Christian.
- Então você acha que o manuscrito é o tal poema que você sonha existir?
- Não sei. Mas pode ser.
- Interessante. - Matthew aceitou a xícara de chá que o pai lhe oferecia. - E o que isso tem a ver com Dorcas?
- Dorcas levou o manuscrito para John, que não o quis em sua casa após a mágoa que Isabella lhe causou. Ele pediu que Dorcas desse um fim no manuscrito. E
não se sabe mais nada do assunto.
Matthew ergueu as sobrancelhas.
- Então ela o queimou ou guardou em segredo, é isso o que você quer dizer?
Jane assentiu com a cabeça.
- Se ele sobreviveu, foi como um bem guardado segredo de família. Supondo que eles tivessem consciência do que tinham nas mãos.
- Alguém se incomoda se eu ligar a tevê para ver as notícias? - perguntou Allan com a mão apoiada no controle remoto da televisão portátil que ficava na cozinha.
- Não, pode ligar - respondeu Jane, distraída, ainda pensando em seu trabalho. - Sinceramente, eu não tenho lá grandes esperanças, mas não
posso deixar isso passar. Preciso tentar descobrir o que aconteceu com Dorcas.
Matthew fez menção de dizer algo, mas a mãe o interrompeu:
- Claro que sim. Você vai voltar para Carlisle semana que vem?
- Não, já vasculhei todo o material relevante por lá. Minha única esperança é Dan ter encontrado algo em Londres.
As notícias prosseguiam ao fundo, o volume alto o suficiente para ser ouvido, mas não a ponto de atrapalhar a conversa.
- Olha, é onde você mora! - disse Allan, aumentando o volume do aparelho com o controle remoto. - Marshpool Farm Estate.
Todos se viraram para a televisão, onde a apresentadora se esforçava para parecer bastante séria diante das câmeras.
- ... duas noites atrás. A polícia está ansiosa para descobrir o paradeiro de uma menina de 13 anos que morava com a tia no apartamento onde ocorreu o crime.
- Uma fotografia escolar preencheu a tela. Jane sobressaltou-se.
- Meu Deus do céu - suspirou ela.
A apresentadora prosseguiu:
- Tenille Cole não foi mais vista desde que o incêndio destruiu o apartamento no sexto andar onde o homem assassinado, Geno Marley, foi encontrado. - Dessa
vez, um inspetor de polícia surgiu na tela, com o concreto familiar de Marshpool Farm ao fundo.
- Estamos muito ansiosos para localizar Tenille - disse ele. - Não temos notícias dela desde o homicídio e o incêndio e estamos extremamente preocupados
com sua segurança. Insistimos para que ela, ou alguém que conheça seu paradeiro, por favor entre em contato conosco o quanto antes.
De volta para a apresentadora.
- O governo anunciou novas medidas para lidar com... - Allan tirou o som da televisão e virou-se para Jane. Ela estava pálida e apertava tanto o Gabriel que
o menino começara a choramingar.
- Pelo amor de Deus - reclamou Matthew, levantando-se e pegando seu filho do colo de Jane. - Assim você assusta o menino.
Jane entregou o sobrinho sem dizer palavra, os olhos arregalados, mordendo o lábio inferior. Judy olhou para a filha e apressou-se em consolá-la, envolvendo-a num
abraço.
- Você está bem?
- Londres é isso aí - comentou Matthew. - Quando não são terroristas suicidas, são assassinos. Você não tem segurança nem dentro de casa.
Allan balançou a cabeça.
- Graças a Deus que você estava aqui, Jane.
Jane deixou que a mãe a abraçasse.
- Eu sabia que não prestava esse lugar onde você mora - disse Judy, a voz carregada de culpa. - Jamais devíamos ter deixado você alugar um apartamento num
lugar desses. Vamos tomar providências para você se mudar de lá.
Jane desvencilhou-se, afagando o ombro da mãe.
- Não é bem assim, mãe. Pessoas como eu não correm nenhum risco. Esse tipo de coisa é controlado. São eles lidando com sua própria gente. As suas vidas, seu
universo, nada disso chega até mim.
- Então por que você está aí como se tivesse visto um fantasma? - perguntou Matthew, num raro tom que não era descortês. - O que você está escondendo, Jane?
Jane fez um óbvio esforço para se controlar.
- Eu conheço Tenille, é isso.
- A menina negra da foto? Você a conhece? - Seu pai parecia perplexo, como se um univèrso alienígena tivesse tocado o seu. - Como você pode conhecer alguém
assim?
- Por ela ser negra ou adolescente? - perguntou Jane, demonstrando uma rara irritação com seu pai.
- Por ela estar envolvida em um homicídio, foi isso o que seu pai quis dizer - contemporizou Judy, a árbitra da paz. - E é uma boa pergunta. Como você conhece
uma menina procurada pela polícia por estar ligada a um assassinato?
- Ela não está sendo procurada pela polícia desse jeito. Estão preocupados com ela - respondeu Jane, na defensiva.
- É o que eles sempre dizem quando um suspeito está foragido - salientou Matthew. - Então, como foi que a conheceu?
- Moramos no mesmo bloco. Um dia conversamos e descobri que ela adora poesia. Mora com uma tia, que não está nem aí pra ela, e não recebe nenhum incentivo
na escola, por isso passou a ir ao meu apartamento para
pegar uns livros emprestados e conversar sobre poesia. - Jane balançou a cabeça. - Não acredito nisso.
- Você está querendo dizer que ela é a única menina negra no seu maldito conjunto habitacional que tem a ficha limpa? - perguntou Matthew, incrédulo.
- Ah, por favor, poupem-me do preconceito provinciano - disse Jane, exasperada. - Existem muitas pessoas decentes, negras e brancas, morando em Marshpool
Farm. Para falar a verdade, considerando as oportunidades que ela teve na vida, é um milagre que Tenille tenha se saído tão bem.
- Como assim? Sendo alvo de uma caçada policial por todo o país? - bufou Matthew, debochado. - Ela obviamente tem outra vida que você desconhece.
- Isso não tem nada a ver com Tenille - acudiu Jane, impaciente. - O sujeito assassinado, Geno Marley, era namorado da tia dela. Seja lá a confusão que ele
tenha plantado para si mesmo, não tem nada a ver com Tenille. - Jane virou-se abruptamente, para que a mãe não visse seu rosto. Judy tinha um bom faro para detectar
mentiras. - Vou subir, quero verificar essa história na internet, ver se descubro alguma coisa.
- Jane... - disse sua mãe inutilmente enquanto ela subia. Judy olhou com uma expressão desamparada para Allan. - Não podemos deixar que ela volte para esse
lugar. Já era horrível ficar preocupada com os atentados, agora então...
- Não sei como podemos detê-la. Ela é uma mulher adulta, Judy, dona do seu nariz.
- E não foi sempre? - perguntou Matthew, ficando de pé e entregando o filho para Judy. - Preciso voltar - disse ele, recolhendo a parafernália do bebê, que
carregava consigo para todos os lugares onde o levava e colocando tudo no carrinho. - E, ah... vou fazer uma excursão com os alunos amanhã para a Muralha de Adriano.
Diane disse que vai estar em casa com certeza pela manhã, se Jane quiser ir tomar um café. Você pode dar o recado quando ela terminar de pesquisar o submundo de
Londres?
Mas, enquanto empurrava o carrinho de bebê de volta para casa, não era no crime que Matthew pensava. O nome de Dorcas Mason fora uma surpresa absoluta. Precisava
verificar quando chegasse em casa, mas tinha certeza
de que sabia muito bem como ter acesso aos descendentes dela. Se ajudasse Jane a encontrar seu querido manuscrito, teria a sua parte no sucesso da irmã. E ainda
poria um ponto final nas queixas paranóicas de que vivia pegando no pé dela. No fundo, estava tão cansado de brigar com Jane quanto ela. Essa poderia ser a sua grande
chance de mostrar que era um bom irmão, afinal. E ela não teria como distorcê-la para mostrá-lo como vilão. Um sorriso iluminou os olhos de Matthew novamente e ele
se pôs a cantarolar baixinho enquanto caminhava.
O ônibus para Lancaster chegara atrasado e Tenille perdera a conexão que a levaria até Kendal, a entrada para Lake District. Encontrou uma lanchonete perto da estação
onde ficou tentando esticar ao máximo um cheese-burger e uma Coca-Cola. Mas o sujeito magricela atrás do balcão não parava de encará-la. No início, pensou que ele
tivesse descoberto seu disfarce, mas à medida que o tempo foi passando e ela pôde observar o resto da clientela, percebeu que talvez estivesse sendo olhada por ser
a única pessoa negra no local. Sempre soubera que fora de Londres não havia tantos negros, mas isso não a preparara para sentir-se tão visada.
Se chamava tanta atenção em um lugar como aquela lanchonete, dormir na rua seria ainda mais complicado do que imaginara. Aquele era o tipo de cidade pequena na qual
os policiais conhecem os habitués e iam perceber na hora que ela era nova por ali. Se os policiais de Londres haviam espalhado a notícia de que ela estava foragida,
até mesmo um tira pateta e provinciano seria capaz de reconhecê-la.
Tenille baixou os olhos e contemplou a mesa. Enganava a si mesma com a idéia de que isso era uma espécie de aventura. Não era. Era algo solitário e assustador, e,
por mais que se esforçasse para esquecer, Geno estava morto. E estava morto por sua causa.
Durante toda a sua vida, seu pai estivera afastado. Convencera-se de que pouco se importava com isso, que estava melhor sem ele. Mas, agora que ele dera o ar de
sua graça, não conseguia desembaraçar a confusão de sentimentos que isso provocava. Claro que estava orgulhosa por ele ter mostrado seu respeito por ela eliminando
quem a ameaçava. Mas o outro
lado desse orgulho era pavor diante do que ele havia feito e do modo como havia feito, permitindo que ela encontrasse Geno daquele jeito. E agora estava fugindo
por causa de algo que nem sequer pedira.
Tenille sentiu um bolo na garganta, como se um pedaço do sanduíche tivesse ficado entalado no caminho. Estava na pior. Cansada, deprimida e possivelmente correndo
mais perigo na estrada do que com Geno. Não era justo. Não devia estar sendo obrigada a se cuidar sozinha daquele jeito. Ninguém precisava resolver encrencas como
aquela.
Esfregou os olhos, determinada a não cair no choro sob as luzes implacáveis da lanchonete. Precisava se controlar. Encontrar um jeito de acalmar os nervos. Fechou
os olhos e lembrou-se de uns versos:
Meu coração sofre e a dor embota meus sentidos
Como se um veneno corresse em meu sangue...
Era uma saída, pensou ela, aliviada. Deixar que as palavras a inundassem, transformá-las no foco de sua mente. Keats e Shelley, Coleridge e Byron. Eles a ajudariam
a sobreviver àquela noite. Não estava sozinha. Haveria de conseguir passar por tudo isso.
A uma hora de distância dali, Jane sentou-se diante do seu laptop, apoiando a cabeça nas mãos. A mãe a chamara para o jantar, mas ela alegara estar passando mal
do estômago. Judy não questionara a desculpa dada pela filha, de que comera um sanduíche de frango estragado em Carlisle; Jane apelava diretamente à desconfiança
inata da mãe em relação a qualquer comida que não tivesse sido preparada por um membro credenciado da Associação das Mulheres.
A história do sanduíche era mentira, mas Jane estava mesmo enjoada. Sentira seu estômago revirar ao ouvir as palavras da apresentadora e, enquanto a reportagem prosseguia,
sua náusea só aumentara. Geno Marley estava morto. Assassinado. Baleado até a morte, de acordo com um dos sites que ela acessara. Executado a sangue-frio apenas
algumas horas após ela ter alertado John Hampton da ameaça que o homem representava à sua filha. Não podia ser uma coincidência.
Não era o que ela queria ou esperava. Imaginou que Hampton ou algum dos seus capangas fossem apenas dar um chega-pra-lá em Geno. Talvez até algumas porradas para
deixar claro que não estavam brincando. Jamais imaginara uma reação tão radical. Adentrara um universo cujas regras desconhecia. Na tentativa de evitar um crime,
acabara provocando outro. E agora tinha sangue nas mãos e a vida de um homem na consciência. Nada em seu passado a preparara para esse peso.
Primeiro, pensara em ligar para a polícia. Mas, assim que parou para refletir, percebeu que não era uma alternativa. Precisava pensar em Tenille. Por que a polícia
estava atrás dela era um grande mistério para Jane. Onde ela estava? O que havia feito para que estivessem tão desesperados para encontrá-la? O chato do Matthew
estava mesmo com a razão. Não divulgavam nomes de foragidos inocentes. De algum modo, Tenille havia se envolvido naquilo tudo. Jane não conseguia entender como,
mas sabia do fundo de seu coração que procurar a polícia não ia ajudar a amiga.
Além do mais, não tinha nenhuma prova de que John Hampton havia matado Geno. Se os tiras começassem a interrogá-lo, ele saberia exatamente quem levantara o seu nome.
Seu maior medo, agora que o nome de Tenille já virara domínio público, era que Martelo a visse como um potencial elo na corrente. Ele não sabia nada sobre ela; podia
não confiar que ficaria de bico calado para a polícia. Levando em consideração o que ele era capaz de fazer, Jane estava certa de que não pensaria duas vezes em
executar o que imaginava ser uma vingança justa contra ela. E Jane não queria morrer.
Sentiu um calafrio, apesar do calor confortável do seu quarto. Salvara Tenille. O problema é que não imaginara o preço que teria de pagar por isso.
Havia uma euforia e um arrebatamento em sentir-se um homem livre em um oceano que poucos ingleses haviam tido a chance de contemplar. Mas tais sentimentos eram
maculados pelo fardo que pesava sobre mim, o de encontrar um refugio seguro para minha tripulação. Os homens que haviam me apoiado mereciam viver livres do medo
de serem descobertos, e voltar para Otaheite teria posto esta liberdade em risco. Os capitães que singravam aqueles mares o conheciam como um porto seguro e muitos
navios atracavam lá, de modo que não seria um esconderijo adequado para tantos homens. Mesmo se tivéssemos convencido os nativos a nos esconder, alguém poderia trair
nossa confiança por acidente ou de propósito. Passei muitas horas na cabine do capitão, examinando os mapas de Bligh nas minhas tentativas de encontrar um abrigo.
Finalmente, decidi-me porToobouai, 350 milhas ao sul de Otaheite. Aportamos no dia 24 de maio. Eu esperava outra ilha paradisíaca. Não podia estar mais enganado.
21
Pela primeira vez, acordar em sua própria cama não serviu para recompor o ânimo de Jane. Dormira mal, acordando de hora em hora em uma barafunda de lençóis embolados
e pesadelos. Imagens de Tenille, de sangue, fogo e fumaça perseguiam montagens caóticas de sua família e seus amigos através de intermináveis galerias de concreto
em Marshpool. A culpa revirava seu estômago. Seus olhos doíam e sentia a cabeça pesada e inútil. Mas, apesar dos pesares, o cheiro da fritura de bacon subindo pelas
escadas provocou uma forte pontada de apetite. Odiava-se ainda mais por estar com fome.
Jane arrastou-se para fora da cama e foi para o banheiro. Qual era o problema com a geração dos seus pais? Ninguém acima de cinqüenta anos tinha um chuveiro decente.
Queria uma cascata revigorante de água escaldante, não aquela mixaria de gotas esparsas. Compreendia que o seu desejo era mais pelo simbólico do que pelo real, mas
essa constatação não tornava a experiência mais satisfatória.
Antes de descer, decidiu checar seus e-mails mais uma vez, esperando uma mensagem de Tenille. Não havia nenhuma notícia dela, mas Dan lhe enviara um e-mail de madrugada:
Oi, coração,
Tudo bem por aí? Queria ter boas notícias para te dar, mas, até agora, nada. Passei boa parte do dia enfurnado na St. Catherine's House e zero de Dorcas Mason. Achei
a certidão de nascimento que você já tem, mas, tirando isso, nadinha. É como
se ela tivesse desaparecido da face da Terra após deixar a casa dos Wordsworth. A única idéia que me ocorreu foi a de ela ter se casado com algum estrangeiro. Isso
explicaria o seu sumiço dos registros. Talvez tenha conhecido um marinheiro e ido morar na França, talvez na Espanha, quem sabe? Estou mais do que disposto a voltar
lá na segunda e dar mais uma geral, mas, para ser absolutamente sincero, os registros aqui não são assim tão difíceis de ser rastreados e não sei ao certo de que
outro modo (ou em que outro lugar) eu poderia continuar buscando.
Nos falamos em breve.
Beijos e abraços,
Danny
- Merda - disse Jane em voz alta. Estava apostando todas as suas fichas em Dan, mas ele não tivera mais sorte do que ela. E, é claro, Jane sabia que não havia
mais nenhum lugar óbvio para se procurar. Mas um quê de obstinação a impedia de desistir. - Vou dar um jeito - murmurou.
Quando apareceu na cozinha, viu que a mãe estava fritando salsichas; um prato coberto de bacon estava à sua espera. Judy a olhou por cima do ombro, lançando um olhar
examinador de mãe, aperfeiçoado com a prática.
- Você está com uma aparência medonha - disse ela.
- Dan não conseguiu nada em Londres.
Judy virou-se, mostrando-se preocupada.
- Oh, Jane, querida, lamento muito. Eu sei que você estava contando com isso.
Allan surgiu no meio da conversa.
- Bom-dia - cumprimentou ele, largando as botas no chão da cozinha.
- Jane recebeu más notícias - anunciou Judy, dividindo com sábia desenvoltura o café-da-manhã em três pratos quentes.
- Sobre a tal que apareceu na televisão? - perguntou Allan, fechando o rosto.
- Não, sobre o projeto dela - explicou Judy, sua voz praticamente submersa pelo barulho de água na pia onde Allan lavava as mãos. - Dan não encontrou nenhuma
pista da moça chamada Dorcas.
Ele fitou Jane.
- Por que não espalha uns anúncios por aí, falando o que está procurando? De repente alguém aparece com alguma informação.
- É uma ótima idéia - respondeu Jane. - Posso pedir ajuda para a metida da Barbara, ver o que ela consegue levantar, com seus contatos, sobre nossa história
local. Aposto que ela tem acesso a algum site fanático pela genealogia cúmbria. Enquanto isso, pensei em sair para dar uma volta agora de manhã. Ver se um passeio
pelas montanhas me anima um pouco.
- Ah, falando nisso, Matthew disse que Diane ia ficar em casa hoje pela manhã, se você quiser passar lá para tomar um café - disse Judy.
- Matthew vai estar lá?
- Não, ele vai passar o dia fora com os alunos mais velhos; foram fazer uma excursão à Muralha de Adriano. Ele é bom nisso, em organizar passeios escolares.
Com um bando de pais para fazer o trabalho pesado, pensou Jane, sarcástica.
- Vou dar um pulo para ver Diane, então. Deixo a caminhada para de tarde.
- Faz muito bem - disse Allan. - Até o final da manhã, essas nuvens já devem ter desaparecido. Vai fazer uma tarde bonita.
Jane lançou um olhar de gratidão para o pai.
- O senhor só está me dando boas idéias hoje. Uma tarde bonita em Langmere Fell é exatamente o que estou precisando.
Jake acordou com uma pressão imprecisa e inescapável na cabeça. Estava empapado de suor e com um gosto ruim na boca. Grogue, ele apertou os olhos, esforçando-se
para enxergar os dígitos vermelhos do despertador ao lado da cama, e espreguiçou-se. Tarde demais até mesmo para cogitar sair à espreita em Fellhead. Deitou a cabeça
no travesseiro novamente e perguntou-se por que encher a cara com um time visitante de rúgbi lhe parecera uma boa idéia na véspera. Ele nem gostava de rúgbi. Tossiu,
arrependendo-se imediatamente. Queria ficar deitado no escuro para o resto da vida. O que, se ele tivesse sorte, não demoraria muito.
Mas o seu corpo tinha outros planos. Primeiro, o estômago, e, depois, o intestino - com o breve intervalo de alguns minutos -, levaram-no a correr para o banheiro.
Após a segunda ida, começou a achar que era possível continuar vivendo. Arrastou-se até o box e apoiou-se contra a parede, deixando a água bater em seu corpo.
Meia hora depois, conseguiu até mesmo vestir uma roupa e ligar seu computador. O brilho do monitor lhe parecia desumano, mas ele insistiu e conseguiu conectar-se
à internet. Resmungou ao ver um e-mail de Caroline. A última coisa que queria naquela manhã era levar uma bronca, mesmo que virtual. Abriu-o assim mesmo, não podia
deixar de saber o que Caroline tinha a dizer:
Bom dia, Jake. Tentei ligar para o seu celular, mas estava desligado. Espero que você esteja na cola de Jane ou conversando com alguma antropóloga forense. Enfim,
aí vão os resultados da busca na St. Catherine's House. Como você vai ver, o sujeito fez um trabalho bem completo. Esta é a vantagem dos pesquisadores profissionais
- eles são sagazes para tentar grafias alternativas para uma época na qual a maioria nem sabia escrever. Você vai ver que, na ocasião em que se casou, a sra. Mason
já havia se tornado oficialmente Mayson. Você pode começar a rastrear o paradeiro da geração atual imediatamente. Me diga como está se saindo.
Nos falamos em breve.
Beijos,
Caroline
Anexado ao e-mail estava um documento que delineava a árvore genealógica de Dorcas Ma(y)son. Ela havia se casado com um rapaz de Yorkshire e tivera três filhos até
a morte prematura do marido. Obviamente, depois disso, havia retornado a Cockermouth, sua terra natal, uma vez que era lá que seu atestado de óbito, de 1887, e o
casamento de seus filhos haviam sido registrados. Passando os olhos no final, Jake viu que ela teve diversos descendentes diretos. Ficou desanimado. Isso não ia
ser nada divertido. Mas valeria a pena, a longo prazo, repetiu para si mesmo. Valeria muito a pena.
Decidiu verificar os e-mails de Jane, já que estava na internet. Se ela tivesse feito algum progresso, queria saber logo antes de perder tempo com pistas que ela
já tivesse descoberto serem inúteis. Quando abriu o e-mail de Dan, esperava encontrar o mesmo excesso de novidades que Caroline lhe enviara. Ficara alegremente surpreso
ao ler que ele não havia conseguido nada. "Típico de Dan", murmurou. "Preguiçoso ou burro demais para verificar grafias diferentes."
Finalmente, ligou para o celular de Caroline.
- Jake, que bom que você ligou - disse ela, alegre.
- Recebi o seu e-mail - respondeu ele. - Fiquei impressionado com a pesquisa.
- Imaginei. Já te dá alguma coisa para começar.
- É verdade. Mas ainda acho que seria melhor pegar uma carona na trilha de Jane, se possível. - TUdo para ganhar tempo. Não preciso contar a Caroline que
descobri que Jane não está indo a lugar algum tão cedo. Silêncio do outro lado da linha. - As pessoas vão ver os seus motivos como sendo mais puros, sei lá. Ela
pode chegar longe assim.
Caroline deu uma risada.
- Acho que você passou tempo demais no setor público, Jake. O que importa é dinheiro. Basta sacudir um maço de notas sob o nariz deles e eles ficarão felizes
em vender até suas avós, e que dirá um punhado de papéis velhos e bolorentos. Você está oferecendo uma oportunidade de ouro, caída do céu, e eles vão ficar extasiados
com a perspectiva de uma bolada surgindo em suas contas correntes. Bem, faça como achar melhor. Largamos na frente, temos que aproveitar ao máximo a nossa vantagem.
O vento está a nosso favor. Estou começando a ficar otimista com essa história, querido. Estou contando com você. Ah, e se você tiver a oportunidade de dar uma investida
em Jane vá em frente. E, se não der certo, pelo menos você ainda tem o e-mail dela.
- Sim, sim - disse Jake. - Estou no comando da situação. - Espionar a ex-namorada e esconder os resultados da atual o deixava com uma curiosa sensação de
poder. Por mais que pensassem que podiam descartá-lo, ele mostraria com quem realmente estavam lidando. - Falo com você mais tarde.
- Está bem. Pense em mim, nadando na baía. O dia aqui está incrível, você precisa voltar logo antes que o clima mude.
A linha ficou muda. Jake olhou fixamente para o telefone. Despreocupado, desdenhoso, indulgente - esse havia sido o tom de Caroline. Estava na hora de ele começar
a se impor com aquelas mulheres.
A maternidade fizera bem a Diane, pensou Jane, observando a cunhada acomodar Gabriel na sua cadeirinha para um cochilo. Quando ela estava trabalhando no banco, era
uma mulher dinâmica, cheia de energia, que precisava ser canalizada no trabalho ou em projetos para casa. Ela redecorou a cozinha deles praticamente sozinha, solicitando
a ajuda de Allan apenas quando algum serviço realmente precisava de mais uma mão. Tinha o bom senso de não envolver o notoriamente desajeitado Matthew em nenhuma
esfera prática.
De modo que mergulhara na maternidade com a mesma determinação de ser bem-sucedida, mas o processo de alguma maneira a suavizara. Ela perdera a sua urgência aflitiva,
adotando um ritmo mais calmo e comedido, aparentemente encontrando tempo para apreciar as flores. Assim que as pálpebras de Gabriel tremelicaram e seus olhinhos
se fecharam, ela reclinou-se apoiada nos cotovelos e sorriu.
- Agora podemos ter uma conversa de adultos - disse ela.
- Ele é um amor - disse Jane. - Acho que nunca vi um bebê tão calmo.
- Isso é porque você não o viu querendo atenção às 3:00 da manhã. Ou quando está com fome - disse Diane. - Deixa de ser calmo rapidinho.
- Ela ficou de pé e sentou-se no outro canto do sofá, virada para Jane. - Mas, em geral, sim, ele é um amor. Eu só queria que ele dormisse a noite toda. Você
não imagina o que eu daria por oito horas ininterruptas de sono.
- Então, pelo visto, você não está pensando em ter outro tão cedo, não é? - brincou Jane.
- Não penso em ter outro nunca - respondeu Diane, séria.
- Jura? Foi tão traumatizante assim?
Diane a olhou fixamente. Como não era mulher de fazer rodeios, foi logo dizendo:
- As pessoas acham que ser filho único é uma desvantagem. Bem, eu fui filha única e isso nunca me criou nenhum problema. Para ser sincera, Jane, eu passei
muito tempo vendo você e Matt se bicando para querer ser espectadora desse tipo de luta no dia-a-dia.
Jane havia muito aprendera a não se ofender com a sinceridade de Diane, aceitando-a como parte de sua personalidade, assim como sua generosidade e sua lealdade.
- Não somos tão ruins assim - disse ela.
- Para quem está assistindo, são, sim.
- Sinto muito. Eu só queria que ele não fosse tão ressentido comigo o tempo todo. Afinal de contas, ele tem a vida perfeita: você, Gabriel, mora em Fellhead
em uma bela casa, pagando um aluguel simbólico por causa do trabalho, que ele adora, por sinal. Eu estou enterrada num pardieiro, me Virando em dois empregcs para
poder pagar minhas contas e ter a mínima chance de conquistar a carreira que quero.
Diane abriu um sorriso.
- Ele não é bom em valorizar o que tem, não é mesmo? Mas é um bom homem, você sabe. Os alunos são loucos por ele e crianças são um bom termômetro.
Jane realmente não queria entrar naquele mérito com Diane. Jamais falara sobre o modo como Matthew a atormentara quando eram crianças e não ia romper o silêncio
justo com a mulher dele. Mas sabia que, a despeito do disfarce que usasse para Diane e para o resto do mundo, havia uma semente de maldade em Matthew que ela não
julgava extinta.
- Eu acredito em você. - Foi a mentira inofensiva que escolheu.
- E então, como vai seu projeto? - perguntou Diane, vendo que estava na hora de mudar de assunto. - Matthew me disse que você havia esbarrado num empecilho,
mas estava torcendo para receber boas notícias de Londres.
Jane afastou o cabelo da testa.
- Eu pensei que estava na pista certa, mas a coisa degringolou. - Ela se distraía brincando com a franja de uma das almofadas que Diane fizera para o sofá.
- Você se importa se falarmos de outra coisa? Esse assunto me deprime.
- Sinto muito, Jane. - Diane aproximou-se, dando-lhe um tapinha na mão de modo curiosamente impessoal, como se estivesse ocupada pensando no próximo tópico.
Levantou-se. - Vamos fazer uma loucura de verdade e tomar uma bebida.
- Mas ainda são 11:30 - protestou Jane, sem muita convicção.
- Eu sei, mas estou acordada desde as 6:00, então parece muito mais tarde. Anda, vamos deixar o bom senso de lado. O sol está brilhando e eu tenho uma garrafa
de Pimms na cozinha. - Diane puxou Jane pela mão, erguendo-a do sofá. - Duvido que você tenha se permitido alguma diversão desde que terminou com aquele merda do
Jake.
Jane deixou-se conduzir pela imensa cozinha nos fundos da casa. A gigantesca casa de quatro cômodos estava acima da faixa de preço da maioria dos moradores locais,
mas Matthew e Diane haviam sido os beneficiários de um daqueles ingleses excêntricos que se apaixonaram por Lake District. Na década de 1970, a autoridade local
havia decidido vender as escolas remanescentes para quem desse o maior lance. Richard Grace, um londrino que havia feito fortuna em incorporações imobiliárias antes
de comprar a maior casa de Fellhead para usá-la como retiro nos fins de semana, entendeu que o vilarejo manteria seus altos padrões educacionais se atraísse diretores
dinâmicos. Por isso, comprou a escola e criou um fundo que permitia o aluguel para o diretor a um preço simbólico. À medida que os preços dos imóveis subiram, a
estratégia mostrou-se um incentivo poderoso. De modo que agora seu irmão morava na casa que Jane sempre sonhara em morar. E, mesmo assim, não estava satisfeito.
- Eu amo essa vista - disse ela, contemplando a silhueta encarpada da cadeia de montanhas em Langmere Fell.
- É incrível - concordou Diane, apanhando pepino e limão da geladeira. - Ah, droga, esqueci a jarra. Me faz esse favor, pega a jarra grande de cristal no
armário da sala de jantar?
- Tudo bem. - Jane atravessou o corredor até a sala de jantar, que dava para um muro revestido por uma densa folhagem, um crime composto por paredes revestidas
por uma madeira escura. Até mesmo no mais claro dos dias de verão o cômodo era sombrio e obscuro. Não era de admirar que nunca fizessem as refeições ali. Em vez
disso, Matthew o havia colonizado, transformando-o em uma espécie de anexo da escola, que servia
exclusivamente para correção de provas e preparo das aulas - e não devia ser confundido com o escritório que ele fizera no quarto sobressalente, onde se recolhia
para navegar na internet e brincar com jogos no computador. Sortudo desgraçado, pensou Jane, acendendo a luz e lançando um olhar vago para os papéis sobre a mesa.
Ela avançou em direção ao grande armário com portas de vidro onde ficavam guardados os cristais, mas quando seu cérebro processou o que havia visto, Jane estacou
e quase tropeçou. Apoiou-se em uma pesada cadeira de carvalho para equilibrar-se e fitou a ampla gama de árvores genealógicas executadas em caligrafias infantis.
Alguns utilizaram folhas de papel grandes, outros, pedaços de papel de parede, havia os que juntaram folhas de papel A4 com fita adesiva em um mosaico que melhor
acomodasse o formato de suas famílias. Dois trabalhos estavam notadamente separados dos outros, chamando a atenção de Jane.
Um deles fora confeccionado com certo estilo, incluindo fotografias nos galhos mais baixos. O outro era garatujado, exibindo linhas trêmulas e irregulares. Mas,
à medida que Jane rastreou os ancestrais de Sam Clewlow e Jonathan Bramley, ela compreendeu imediatamente por que Matthew havia separado os dois trabalhos.
Jonathan e Sam tinham um ancestral comum, na virada do século XIX. Dorcas Mayson havia se casado com vinte anos e tivera três filhos. A linhagem de Sam provinha
do seu primogênito; a de Jonathan, da sua caçula, a única menina.
Jane mal podia acreditar em seus olhos. A grafia era diferente, mas dentro dos limites de variação do século XIX, tinha de ser a sua Dorcas. Não podia haver duas
nascidas e casadas no mesmo ano. Ali estava a pista crucial de que ela precisava para dar o próximo passo, a prova da linhagem de Dorcas Mason. E Matthew não só
sabia disso, como de propósito escondera dela. Como pôde fazer isso? E, mais importante ainda, o que estava planejando fazer com aquilo?
Furiosa, Jane saiu desarvorada da sala de jantar e adentrou a cozinha. Diane ergueu os olhos e sustentou o olhar ao notar a expressão de Jane. Ela fez um esforço
para manter a calma, mas em vão.
- Que diabos Matthew está tramando? - perguntou ela.
Com dificuldade para adentrar a baía, mantivemos distância e enviamos um dos botes do navio para a costa. Nossa primeira tentativa de aportar na ilha foi recebida
por uma canoa de guerra que tentou afundar nosso bote e só recuou após disparos de armas de fogo. No segundo dia, conseguimos manobrar o navio para dentro da baía.
Os nativos se aproximaram em massa para olhar. Suas canoas agruparam-se cada vez mais próximas, os guerreiros entoando cânticos e soprando suas conchas, uma visão
atemorizante em seus trajes de guerra vermelhos e brancos que testaram nossos nervos. Nenhum dos nativos parecia disposto a nos oferecer algum sinal amistoso, apesar
de conseguirmos nos fazer entender no dialeto otaheitiano. O cheiro de batalha estava no ar. Estipulei vigilâncias noturnas e pela manhã; o número de canoas já
era grande demais para ser contado. Três dias após termos avistado terra, uma canoa dupla com dezoito mulheres e com uma dúzia de homens no remo se avizinhou. Tomamos
o gesto como um sinal de paz. Mas, na realidade, era apenas um cavalo de Tróia dos nativos.
22
Jake sabia que havia algo nele que agradava as mulheres. Talvez fosse porque ele realmente tivesse mais prazer em estar na companhia delas que na dos homens. Ou
talvez acenasse com a promessa de uma vida mansa, um homem que não ia dar trabalho ou fazer exigências e sim acomodar-se com uma existência tranqüila. Fosse o que
fosse, ele tinha consciência de tirar bom proveito e que isso lhe custara o desprezo mal disfarçado do pai. Também sabia o quanto seu charme era uma fraude; por
trás do encanto, ele abrigava uma crueldade que raramente se mostrava, mas que usaria sem hesitar, caso necessário. Não imaginara que teria de usá-la justo naquele
dia. Mesmo estando de ressaca, achara que sua graça natural seria suficiente para conquistar uma viúva de 73 anos.
De acordo com a informação que recebera da pesquisadora de Caroline, Edith Clewlow morava no Chalé Cotovia, em Langmere Stile. Seu marido, David, tetraneto de Dorcas
Mason e Amold Clewlow, morrera em 1998 e o censo de 2001 listava Edith como única moradora do chalé. Jake escolhera Edith como seu primeiro alvo seguindo o raciocínio
de que a herança geralmente passava aos primogênitos na linhagem masculina. O fato de saber onde Langmere Stile ficava também contou pontos. No estado em que se
encontrava, qualquer ajuda era de grande valia. Não que a idéia de dirigir por Fellhead o agradasse, mas não estava em seus planos parar no caminho.
O sol estava inclemente quando ele partiu. Os óculos escuros não serviam para muita coisa e ele podia sentir sua incômoda dor de cabeça ficando cada vez mais intensa
enquanto contornava a encosta da montanha. Fellhead em si estava tranqüila. Os únicos pedestres que avistara eram excursionistas que avançavam rumo à trilha íngreme
que conduzia ao topo.
Cerca de um quilômetro depois, chegou ao conjunto esparso de chalés. Quatro residências baixas junto à beira da estrada, todas aparentando precisar de mais cuidado
e atenção do que seus ocupantes estavam dispostos a lhes dar. Expostas no lado estéril da montanha, logo acima da linha de árvores, com uma vista ilimitada da velha
pedreira, eram deprimentes demais, mesmo em um dia ensolarado, para exercer algum tipo de apelo aos viajantes de fim de semana. Jake imaginou que originalmente deviam
ter sido construídas para os trabalhadores da pedreira, que na certa deviam ter ficado satisfeitos por conseguirem um teto para suas cabeças.
Diminuiu a velocidade ao se aproximar, verificando os nomes dos chalés. Campânula, Açafrão, Narciso e Jacinto. Alguém deve ter tido senso de humor, pensou. Mas nada
de Chalé Cotovia. Frustrado, Jake olhou à sua volta, como se outro chalé pudesse estar escondido em algum lugar na paisagem descoberta. Mais adiante, a estrada fazia
uma curva brusca para a direita, em cuja margem ele pôde avistar uma parte das cumeeiras.
Fazendo a curva, ele deparou com um chalé de pedra de um único andar, pintado recentemente e com um pequeno jardim muito bem-cuidado. Ao contrário dos vizinhos,
o Chalé Cotovia tinha uma vista para a própria Langmere e para Helvellyn, mais adiante. Jake estacionou o Audi um pouco depois do chalé e voltou caminhando. Guardou
seus óculos de sol no bolso da camisa e tentou forjar uma expressão franca e amistosa em seu rosto.
A senhora que abriu a porta parecia mais velha do que realmente era. A avó de Jake estava com quase oitenta e parecia dez anos mais jovem do que Edith Clewlow. Ela
ergueu a cabeça para observá-lo. Miúda e encurvada, exibia uma corcunda típica da osteoporose. Em seu rosto ossudo, a pele enrugada, pálida e flácida. O cabelo grisalho
estava cortado bem curto, simples como o de uma criança. Mas os olhos azuis por trás das grandes lentes multifocais eram vivazes e sua expressão era de desconfiança
esperta.
- Sra. Clewlow? - perguntou Jake.
- É. A gente já se conhece, rapaz?
Ele sorriu.
- Não, sra. Clewlow. Eu me chamo Jake Hartnell. Posso tomar um pouco do seu tempo?
- Não se estiver vendendo alguma coisa. Eu já tenho janelas com camada dupla de vidro e gosto da minha cozinha exatamente como ela é. E qualquer reparo que
precise ser feito, Frank, o meu neto, faz para mim.
- O que é muito louvável da parte dele. Mas eu não estou vendendo nada. Na verdade, trata-se justamente do oposto. O que gostaria de conversar com a senhora
pode inclusive beneficiá-la. - Ele apostou numa expressão tranqüilizadora.
- Não é sobre excursão de férias, é? Não estou interessada em passar tempo no estrangeiro. Ainda mais depois de Mavis Twiby ter tido uma experiência horrível
quando quebrou o quadril na Grécia. No exterior, é cada um por si, meu filho. Por ser jovem, você pode achar tudo isso uma bobagem, mas não é não. Ainda mais com
todo esse terrorismo.
- Não tem a ver com férias, sra. Clewlow. Gostaria de conversar com a senhora sobre um dos seus ancestrais.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Meus ancestrais? Você é a segunda pessoa a me perguntar por eles de uns tempos para cá. Bem, a terceira, para dizer a verdade, se contarmos o nosso Sam.
Jake sentiu um espasmo no peito ao ouvir essas palavras. Como podia ter sido passado para trás desse jeito? Tinha certeza de que estava na frente de Jane.
- Outra pessoa? - perguntou ele. Esforçava-se para manter o tom de voz.
- É. O nosso Sam, na verdade o meu bisneto, ele está fazendo um trabalho na escola sobre história familiar. É um menino encantador, o Sam, um orgulho para
o pai e a mãe. Sempre tem um tempinho para a velha bisavó também, não só quando quer que eu me lembre de tudo sobre nossa árvore genealógica. De todo modo, parece
que ele fez um ótimo trabalho. O diretor disse hoje de manhã. Ligou especialmente para me dizer isso. Disse que eu fui de grande ajuda para Sam e que queria me agradecer
pessoalmente.
O cérebro de Jake não parava de funcionar.
- A senhora está se referindo a Matthew Gresham?
- É, ele mesmo. Você conhece o sr. Gresham?
Jake assentiu com a cabeça.
- Conheço. Conheço melhor a irmã dele, Jane, mas estive com Matthew algumas vezes. - Que diabos estava se passando ali? Seria possível que Jane tivesse conseguido
superar o antagonismo de Matthew em relação a ela a ponto de recrutar sua ajuda?
O ar de desconfiança desaparecera completamente do rosto de Edith perante tamanha prova das boas credenciais de Jake.
- É melhor você entrar, então. Não consigo ficar muito tempo de pé, sofro de dor crônica na coluna, sabe? E nenhum desses remédios que eles me dão adianta
- continuou ela, conduzindo-o a uma sala de estar desordenada, mas excepcionalmente limpa. Nada parecia ter sido deixado em seu estado original. Um plástico transparente
cobria o tapete que se estendia da porta até as poltronas. As próprias poltronas tinham capas soltas sob as capas protetoras de móveis, proteção nos braços e mantas
para ocultar as capas removíveis. Os porta-retratos eram adornados com os laços que os floristas usam para decorar os buquês; até mesmo o livro que Edith estava
lendo era encapado com um filme de poliéster. O cômodo tinha um cheiro químico de lustrador de móveis e purificador de ambiente. Jake estava surpreso por ela não
ter pedido que ele retirasse os sapatos na entrada e colocado um daqueles jalecos brancos que os cientistas forenses usam. - Médicos - continuou Edith, sentando-se
pesadamente na poltrona mais próxima da lareira. Encolheu-se como um ouriço. - E o que é que eles sabem? Passam um comprimido e, quando você vai ver, não consegue
nem mexer mais os braços porque eles reagiram aos outros comprimidos que você já estava tomando. É remédio para a pressão, para o colesterol, para o coração. Se
você me sacudir, vou parecer um chocalho. Não sei o que seria de mim sem minha família por perto. Acomode-se, meu jovem, não fique aí parado feito um dois-de-paus.
Jake sentou-se cautelosamente na beirada da poltrona.
- Obrigado. Agradeço por estar me concedendo um pouco do seu tempo.
Edith bufou:
- Na minha idade, o tempo existe para ser preenchido. Quando eu era jovem, o dia sempre parecia muito curto. Hoje, do café-da-manhã até a hora de deitar parece
uma eternidade. Tempo para conversar é o que não me falta, meu filho. Então, o que meus ancestrais têm de tão interessante assim
para fazer alguém como você se arrastar até Langmere Stile? Vê-se que não mora por aqui, não é mesmo?
Jake fez um gesto negativo com a cabeça.
- Moro em Londres. Sou especialista em manuscritos antigos. Eu trabalhava na Biblioteca de Londres, mas agora trabalho por conta própria, como intermediador
entre compradores e vendedores.
Edith parecia confusa:
- Não estou entendendo. E o que isso tem a ver comigo e com minha família?
- Na verdade, estou interessado na família do seu falecido marido. Em uma pessoa da família, para ser mais exato. A tetravô dele, Dorcas. Ele chegou a mencioná-la
alguma vez?
Edith franziu o cenho.
- Não que eu me lembre. Obviamente já devia estar morta e enterrada muito antes de ele nascer, não?
- Mais de quarenta anos antes. Mas a senhora sabe como é essa coisa de família, às vezes histórias antigas vão sendo passadas de geração para geração.
Edith esfregou o queixo.
- Não me recordo de nenhuma história tão antiga. E não é que minha memória esteja ruim. Meu corpo pode estar caindo aos pedaços, mas estou longe de estar
caduca. - Edith deu um tapinha na cabeça para ilustrar seu ponto de vista. - Acho que nunca ouvi nada mais antigo do que o tio-avô Eddie ter recebido uma medalha
na Primeira Guerra Mundial. O que não lhe adiantou de nada; morreu em ação na segunda batalha de Ypres. Mas Dorcas? Nunca ouvi nada sobre ela. Só a conheço de nome
porque ela está no livro de família. Tive que pesquisar isso tudo para o Sam. Por isso que ainda está fresco na minha cabeça.
As esperanças de Jake se reacenderam novamente. Se ela possuía uma bíblia familiar, talvez tivesse documentos familiares também.
- A senhora tem um livro de família?
- Tenho. Está caindo aos pedaços agora, mas está conosco desde 1747.
- É algo fascinante para se guardar. E existem outros documentos familiares?
Edith riu.
- Do jeito que você fala, parece que somos da nobreza. Não somos do tipo que tem documentos familiares guardados, meu filho. Mal sabíamos ler e escrever naquela
época. Não, a única coisa que eu tenho da família de David é o velho livro de família. O que o faz pensar que teríamos documentos familiares capazes de interessar
gente como você?
- Fico pensando se Dorcas não deixou nenhum documento. Um diário talvez. Ou algo do tipo.
- Mas para quê? O que o leva a pensar isso? - Edith soltou uma risadinha desconfiada. - O que Dorcas Clewlow tem de tão especial?
Jake abriu os braços, tentando diminuir o grau do seu interesse.
- Era só um palpite. O que há de interessante a respeito de Dorcas é que, antes de se casar com Amold Clewlow, ela serviu como criada na casa dos Wordsworth.
Ela trabalhou para a família nos últimos anos de vida de William Wordsworth e permaneceu lá por um tempo depois que ele morreu.
Edith empertigou-se ainda mais na poltrona.
- William Wordsworth, você disse? Ponha uma coroa na minha cabeça e me chame de rainha. Quem poderia imaginar? A família do meu marido ligada a gente famosa
e eu nunca soube disso.
- Agora a senhora entende por que estou interessado em qualquer coisa que Dorcas possa ter deixado. Muitos acadêmicos e colecionadores estão dispostos a pagar
uma gorda quantia por qualquer coisa ligada a Wordsworth. Eu deparei com o nome de Dorcas em algumas cartas da família e pensei que valia a pena tentar. Mas agora
percebo que desperdicei o tempo da senhora à toa. - Jake fez menção de se levantar.
- Não, nada disso. Mas, mesmo que eu pudesse ser de mais valia, não poderia me desfazer assim de algo da família. Vamos fazer uma coisa, eu vou comentar o
assunto com Frank quando ele chegar aqui amanhã cedo. Ele é um bom rapaz, o Frank. Vem aqui todo dia pela manhã para ver se eu passei bem durante a noite. Vou pedir
para ele perguntar ao resto da família, sondar se alguém está sabendo de alguma coisa.
- Isso seria de grande ajuda. -Jake pescou sua carteira do bolso, procurando um cartão de visitas. - A senhora pode me encontrar no celular - disse ele. -
Deixa tocar que eu ligo de volta, para economizar na conta de telefone.
- Não alimente muita esperança - aconselhou Edith, esforçando-se para levantar da poltrona. - Eles se gabam de ter boa memória por essas bandas, mas vá por
mim: só se lembram dos velhos ressentimentos. - Ela sorriu. - E isso é o que não falta por aqui.
Jake arrastou-se de volta até o carro, tentando não se sentir muito desanimado. Olhando pelo lado bom, o passado de Dorcas parecia ser uma história secreta até mesmo
para sua própria família. O que significava que alguém, em algum lugar, devia ter uma arca do tesouro cujo conteúdo jamais havia sido devidamente explorado. Quanto
mais pensava a respeito, pior lhe parecia a idéia de Edith Clewlow sair falando sobre o assunto com o resto da família. Não tinha dúvida de que as gerações mais
novas estariam mais de olho na grande oportunidade que se lhes apresentava do que preocupadas em manter as coisas da família em família - não quando se tratava de
uma mina de ouro em potencial. Falar diretamente com cada um teria sido melhor do que fazê-los amargar Edith discorrendo sobre a necessidade de conservar tudo para
seus herdeiros. Pensava em ligar para ela mais tarde e sugerir que não comentasse nada sobre sua visita. Será que surtiria algum efeito ou só serviria para deixá-la
desconfiada? Chutou um monte de grama, irritado consigo mesmo por não ter sido mais perspicaz com Edith.
Ao chegar ao carro, percebeu que a ressaca parecia estar melhorando. O que ele precisava era de um pouco de exercício físico para acabar com ela de vez. Depois então
decidiria se incomodaria outras velhas corocas naquele dia ou se tentaria mais uma vez entrar em contato com Jane. Apanhou o mapa dentro do carro e o estendeu sobre
o teto. Examinando a sua localização, descobriu que, seguindo naquela estrada, estava a menos de dois quilômetros de Carts Moss. Uma das centenas de trilhas para
pedestres que recortavam Lake District atravessava a estrada quatrocentos metros adiante. De lá, eram cerca de dois quilômetros até a charneca onde o corpo do pântano
fora encontrado. Seria interessante, pensou, conferir o suposto derradeiro descanso de Fletcher Christian. Pegou a mochila e seguiu caminho.
Meia hora depois, estava parado às margens de uma estranha paisagem. Em um longo planalto da charneca, mãos humanas se aliaram ao clima esculpindo fossas de turfa
em formatos curiosos, tufos de relva como ilhas
dispersas em um negro lamaçal. Poças de água turva pareciam ressumar do solo e um discreto odor putrefato pairava no ar. Era um lugar deplorável para se chegar ao
fim da vida, pensou Jake. Seria hoje muito diferente do que há tantos anos, quando um homem deparara com sua morte enquanto caminhava por aquelas colinas? Ele jamais
saberia. Se o morto fosse realmente Fletcher Christian, era um desfecho patético para uma vida tão excepcional.
O lugar estava deixando Jake deprimido, então ele se afastou, subindo por um dos lados da colina. Quinze minutos depois, viu-se contornando o amplo flanco de Langmere
Fell, com um panorama espetacular da região dos Lagos se descortinando à sua frente. Para sua surpresa, estava diante de Fellhead. E lá embaixo, a fazenda dos Gresham.
Vasculhando a mochila, apanhou seus binóculos.
Correu os olhos pela aldeia e, quando viu o caminho que conduzia até a fazenda, ficou surpreso ao flagrar Jane caminhando em direção à estrada. "Droga", disse ele,
em voz alta. "Deixei você escapar mais uma vez." Observou-a subindo pela colina, seus movimentos familiares despertando suas lembranças e fazendo-o recordar os bons
tempos. Passearam por aquelas colinas algumas vezes e ele ficara admirado com a força e a agilidade de Jane. O que não deveria ter sido nenhuma surpresa, levando
em consideração a energia sexual que compartilhavam, mas ele ficara bobo ao constatar que ela era capaz de deixá-lo no chinelo.
Quando ela alcançou o portão da fazenda, outra figura surgiu no seu campo de visão, envolvendo Jane em um abraço. Jake ficou chocado. Ajustou o foco do binóculo,
como se isso pudesse de algum modo alterar a identidade da pessoa que ele estava vendo. "Que merda é essa?"
Que brincadeira era aquela? Será que ela havia descoberto os seus planos? Estaria tramando uma farsa elaborada para sacaneá-lo? Jake abaixou os binóculos e mordiscou
a unha do polegar. Havia algo de errado acontecendo. Algo muito errado.
Oferecemos presentes às mulheres e fomos bem-educados com elas. Os cinco homens que as acompanhavam eram verdadeiros oportunistas. Tentavam roubar tudo o que podiam
e eu mesmo fui obrigado a repelir um nativo que tentava roubar nossa bússola. Expulsei-o na hora e seus companheiros imediatamente partiram também. Ficamos contentes
por termos nos livrado deles, mas enquanto isso outro grupo havia cortado a bóia indicadora da âncora. Atirei contra eles de mosquete e dei ordem para que a tripulação
disparasse os canhões munidos de metralhas. Ao vê-los fugir, decidi tirar proveito da nossa vantagem e seguimos para terra firme nos botes do nosso navio. Eles arremessaram
pedras em nossa direção; disparamos nossos mosquetes até que fugissem. Matamos 11 nativos e não tivemos nenhuma baixa entre os nossos. Os homens batizaram o ancoradouro
de Baía Sangrenta. Mas, mesmo assim, gostei do lugar e o julguei longínquo o suficiente para nos servir de abrigo. Mas foram tantas as reclamações da tripulação
sobre Toobouai que eu decidi que devíamos retornar a Otaheite por algum tempo.
23
Nunca pensei que essa merda fosse tão difícil, pensou Tenille enquanto lutava para vencer mais um declive íngreme na colina. Considerava-se em forma, mas agilidade
e velocidade não adiantavam grande coisa naquelas subidas tortuosas. As descidas eram quase piores. Era como se alguém tivesse cravado um espeto em brasa no meio
de suas coxas. Começou a nutrir um novo respeito por Wordsworth, que vencera longas distâncias naquelas colinas com a naturalidade de quem dá um passeio no parque.
Era bem verdade que Wordsworth não tinha nada além de poesia para se preocupar. Ele não estava fugindo da polícia, sem dinheiro, sem dormir, apavorado e exausto
de tanto viajar. Tenille apanhou o mapa de dentro do bolso novamente e tentou localizar suas linhas estranhas e manchas azuis na paisagem à sua frente. Aquele mapa
lhe era tão pouco familiar quanto as colinas e os vales à sua volta. Ela o comprara na estação rodoviária de Kendal, ao descobrir que não havia ônibus para Fellhead
aos sábados. Um dos motoristas lhe informara que o ônibus para Keswick a levaria até o fim da estrada, mas ela resolvera não arriscar. Já percebera que naquelas
paragens a presença de negros era tão inusitada quanto a de uma cabeça de porco em um açougue judeu. Todos haveriam de se recordar de um jovem de cor descendo do
ônibus e, se a polícia já tivesse descoberto o paradeiro de Jane, alguém poderia acabar juntando os fatos. Pensando em tudo isso, comprara o mapa e começara a estudá-lo.
Era como tentar solucionar um dos testes de Q.I. que a obrigavam a fazer na escola primária. Qual a diferença entre um caminho, uma senda, uma vereda, afinal? E
era mesmo importante saber distingui-los?
Por fim, chegou à conclusão de que, se descesse do ônibus no Dove Cottage, como todos os turistas na rota de Wordsworth, poderia atravessar a Grasmere Common a pé
e sair do lado direito de Langmere Fell. De lá, poderia descer em paz a colina para Fellhead. Poderia até mesmo encontrar um lugar para se esconder até a noite,
quando seria mais fácil prosseguir em direção à fazenda, protegida pelo manto da escuridão.
Era um bom plano, pensou. Estava aliviada por ter deixado Lancaster para trás. Lembrando-se do que havia acontecido lá, sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Julgara
estar a salvo quando, após ter vagado por um bom tempo, deparara com um pequeno parque próximo do centro da cidade. Já devia ser quase meia-noite quando encontrou
um banco cercado por uma alta sebe, pelos lados e atrás, como um caramanchão secreto. Embora sentisse frio e o hambúrguer não tivesse matado sua fome, aconchegou-se
como pôde e caiu no sono.
Não sabia dizer ao certo o que a despertara, mas, quando abriu os olhos, viu, assustada, a silhueta de um homem delineada contra a nesga de luz vinda dos distantes
postes de luz. Ele era baixo, atarracado e fedia a bebida. Apavorada, Tenille recuara no banco, já calculando as chances de fugir, que não eram nada boas, não àquela
altura.
- Está trabalhando, garoto? - perguntou o homem, o sotaque do Norte acentuado pela embriaguez.
Levou alguns segundos para processar a pergunta; esquecera-se de que estava vestida como um menino. Conhecia a existência daquelas coisas, é claro, mas jamais passara
pela sua cabeça que poderia ser vítima de assédio sexual em seu disfarce. Que diabos faria agora?
- Não - respondeu, tentando engrossar a voz. - Eu estava dormindo, valeu?
O homem resmungou:
- Você não estaria aqui se não estivesse a trabalho. Qual o problema? Não faço o seu tipo? - Ele avançou em sua direção e ela ouviu o indefectível som de
um zíper sendo aberto. Não podia enxergar o rosto do homem e avaliar se estava sério. - Dá uma olhada nisso aqui.
Distinguiu na penumbra que ele abrira as calças e colocara o pênis para fora. Tenille subiu pelo banco, meio de cócoras, prestes a escapar assim que tivesse oportunidade.
Um suor de pânico descia-lhe pela espinha, podia sentir seu odor rançoso. O homem avançou em sua direção.
- Vamos lá, seu michezinho de merda, eu só quero uma chupada, eu vou pagar, porra. - Ele tentou agarrar a cabeça de Tenille, mas ela conseguiu desviár, quase
perdendo o equilíbrio.
O homem enfiou a mão entre as pernas dela, pressionando os dedos com força no tecido da calça. Foi então que ele parou e deu um pulo para trás.
- Cadela - gritou ele. - Você não passa de uma putinha. Está tentando me fazer de babaca, é isso?
Ele estava fechando as calças, e era a chance dela escapar. Quando Tenille desceu do banco e tentou passar por ele, o homem a acertou com um soco, que a atingiu
de raspão no ombro, mas não foi suficiente para detê-la. Correndo, embrenhou-se na escuridão, um soluço áspero escapando da garganta enquanto mergulhava nos galhos
emaranhados de uma moita de rododendros. Avançou penosamente até estar cercada pela mata e encolheu-se, o coração aos solavancos e a respiração ofegante, as lágrimas
lhe turvando a vista. Precisou de um bom tempo para se acalmar, mas acabou conseguindo cochilar novamente.
O descanso fora irregular e superficial. Cada som noturno bastava para penetrar em seu sono e quase todos a despertaram. Quando o céu começou a clarear, Tenille
já
estava mais do que pronta para deixar Lancaster para trás. Um ônibus a levara bem cedo até Kendal, depois pegara a estrada local, fazendo-a perceber que estava em
Lake District. Havia visto as fotografias no apartamento de Jane, lera a respeito em poemas e livros, mas nada a preparara para isso. Sempre tivera lá suas dúvidas
de que uma paisagem fosse capaz de provocar as mais profundas emoções. Tenille raramente deixara os confins de Londres, e, mesmo assim, fora apenas para balneários
na costa, como Southend e Clacton. Sua limitada experiência não oferecera nem aos olhos nem ao coração algo inspirador. Mas à medida que contemplava tamanha beleza,
quilômetro após quilômetro, começou a entender vagamente o modo como a simples idéia de estar vivo em um lugar daqueles podia ser apaixonante. Descobriu-se cada
vez mais ansiosa para deixar os limites do ônibus, lançar-se pelo campo e apreciá-lo de perto. Fora o bastante para fazê-la esquecer o quanto estava cansada, esfaimada
e imunda.
Mas agora, algumas horas depois, o entusiasmo inicial pela beleza da paisagem havia passado e ela começava a sentir a caminhada castigando
suas pernas. Encontrou uma pedra plana e sentou-se para descansar, ainda admirada pelo lugar ser tão deserto. Grasmere estava lotada de turistas, mas bastara afastar-se
dez minutos de caminhada da aldeia e era como se fosse a única pessoa viva no mundo. Tenille jamais desfrutara tanto espaço só para ela. Só cruzara com duas pessoas,
descendo a colina. Deparara com elas antes que pudesse ter tempo para se esconder e ficara surpresa quando sorriram e disseram:
- Um belo dia para um passeio, não é mesmo?
Ela abaixou a cabeça, sem saber o que fazer numa situação daquelas. Como deveria responder? Se falasse, será que tomariam como um convite à conversa? Mas eles passaram
direto, as botas estalando sobre as pedras soltas à margem da trilha. E ficou sozinha novamente, a não ser pelo pássaro estranho que sobrevoava em círculos. Tenille
examinou o mapa e tentou descobrir onde estava. Aos poucos, começou a fazer correlações entre os desenhos e a realidade. Havia uma pequena elevação mais adiante.
Uma vez vencida, poderia ver Fellhead logo abaixo.
Guardou o mapa de volta na mochila. Estava com calor e gostaria de ter tido algum dinheiro sobrando para comprar água e alguma coisa para comer. Mas só tinha mais
alguns trocados e não quisera gastá-los. Passara por um ribeirão e chegara a cogitar beber sua água, mas ficou com medo de que não estivesse limpa. Não tinha como
saber se havia uma ovelha morta ou algo do tipo boiando mais à frente. Afinal, havia um motivo para a água ser tratada antes que a liberassem para o consumo.
Exausta, Tenille levantou-se e preparou-se para subir a pequena ladeira que lhe daria uma visão de Fellhead e da casa de Jane. Enquanto contornava um afloramento
pedregoso no cume, avistou uma pessoa parada numa trilha não muito longe de onde ela estava. De binóculo em punho, ele examinava o vale lá embaixo. Tenille estacou,
com medo de chamar sua atenção.
O homem afastou o binóculo dos olhos e Tenille ficou boquiaberta. Ela não era a única a ter seguido Jane até Lake District. Mas que diabos Jake estava fazendo, espionando
a ex-namorada?
Jane subiu a colina, atarantada em uma mistura de raiva e alegria. Diane saíra em defesa de Matthew, é claro. O trabalho dos alunos já estava em curso muito antes
de Jane ter voltado para casa. Não havia motivo para que ele se lembrasse de um nome entre centenas que haviam surgido no trabalho das árvores genealógicas. Era
óbvio que Matthew havia separado aqueles dois trabalhos especificamente porque eles tinham um ancestral comum. Se pretendia esconder esta informação dela, por que
deixaria os papéis expostos sobre a mesa, à vista de qualquer um? Jane estava paranóica. Matthew jamais tentaria arruinar a pesquisa dela de propósito e era um absurdo
sugerir que ele estava planejando usurpar seu trabalho. Como podia sequer cogitar a idéia de que seu próprio irmão agiria pelas suas costas e tentaria localizar
o manuscrito perdido sozinho?
De certa forma, Diane tinha razão. Deveria mesmo ser algo impensável. Mas, em se tratando de Matthew, Jane não teve nenhuma dificuldade em imaginar seu irmão guardando
a informação para si e depois tirando proveito dela para conduzir sua própria pesquisa. Se ele não estava tramando uma traição, por que não havia compartilhado com
ela o que sabia sobre Dorcas Mason?
Jane tentara não descontar sua raiva em Diane, mas teve dificuldades para se controlar. A bebida foi deixada de lado e Jane insistiu em copiar as árvores genealógicas
relevantes antes de ir embora. Era bem verdade que as crianças haviam se concentrado em suas linhas diretas de descendência. Mas, com o material que recolhera a
partir dos esforços dos alunos de Matthew, ela podia procurar Barbara Field novamente e ver se conseguiam rastrear todos os descendentes ainda vivos de Dorcas Mason.
Então, poderia dar início ao lento processo de entrevistá-los para ver se descobria alguma coisa.
Nem mesmo esse pensamento positivo foi suficiente para aplacar o mau humor de Jane. Mas, ao virar em direção à fazenda, deparou com algo capaz de fazê-la esquecer
por ora a traição de Matthew. Sentada no banco que ficava rente à parede da casa, com a cabeça inclinada para trás e o rosto banhado de sol, estava a última pessoa
que ela esperava ver. Jane estacou na hora.
- Dan! O que você está fazendo aqui? - perguntou Jane.
Dan aprumou-se e abriu um sorriso.
- Duas cabeças pensam melhor do que uma, mesmo quando tudo que têm a fazer é encostar uma no ombro da outra - disse ele. - Achei que podíamos juntar nossas
forças, ver se conseguimos bolar um plano, já que te deixei na mão. - Ele ficou de pé e se encontraram no meio do quintal, entrelaçados em um reconfortante abraço.
Jane subitamente se sentiu revigorada. Talvez seu irmão não passasse de um inútil, mas ela contava com amigos que a amavam o bastante para lhe estender a mão quando
mais precisava.
- E onde está o carro? - perguntou Jane.
- Deixei no pub da aldeia. Não quis abusar da hospitalidade dos seus pais, então acabei reservando um quarto lá.
- Bobo. É óbvio que você vai ficar aqui. Vamos lá cancelar a reserva depois do almoço. - Foram andando em direção à casa, Dan com o braço nos ombros de Jane.
- Você não me deixou na mão, sabe disso. Fico grata por ter tentado. Estou tão feliz em te ver - disse ela. - Sobretudo agora. Você não vai acreditar no que eu acabei
de descobrir.
Dan arregalou os olhos, seu belo rosto aguçado pela surpresa.
- O manuscrito?
Jane riu.
- Quem dera. Não, descobri por que você não encontrou nada no Registro Geral em Londres.
- Como assim?
Ela diminuiu o passo e mostrou as cópias que havia feito das árvores genealógicas de Sam e Jonathan.
- Porque alguém não soube soletrar. - Ela apontou para uma linha no desenho. - Mayson, e não Mason.
Dan estava pasmo:
- Mas isso é incrível, Jane. Como foi que você descobriu?
Ela resumiu em poucas palavras a história da traição de Matthew.
- Inacreditável - sentenciou Dan, o rosto crispado de raiva, os lábios retesados.
- Pois pode acreditar. Mas agora tenho tudo de que preciso. Vai ser fácil preencher as lacunas.
Dan abriu os braços e a envolveu novamente.
- Que sintonia perfeita, veja você. Agora que estou aqui, podemos começar a fazer as entrevistas juntos.
- Mas vai dar para você ficar? - perguntou Jane, franzindo a testa. - Esta não é a sua semana no asilo?
Dan ergueu uma sobrancelha.
- Quem diria que você ia lembrar disso. Sim, eu deveria estar lá, lendo para os moribundos. Mas achei que os vivos eram mais importantes e pedi a Seb para
me substituir. Ele estava mesmo me devendo um fim de semana. O que importa é que deu tudo certo.
- É, mas Harry não está aqui - disse Jane abrindo a porta de casa.
Dan fez sua cara de menino travesso, abaixando a cabeça e erguendo os olhos.
- Eu não contei ao Harry que estava vindo pra cá. Ele acha que você está perdendo seu tempo com essa história, e, para ser sincero, eu mereço uma semana sem
ter que ouvir sermão. Além do mais, ele foi para Yorkshire, para um desses jogos de guerra. Eles vão reconstituir a batalha de Marston Moor. De novo. - Ele girou
os olhos. - Quem sabe ela não termina diferente dessa vez?
- Francamente, Dan, você adora uma boa conspiração, não é? - Jane o conduziu até a cozinha, onde Judy estava tentando compreender uma pilha de faturas sobre
a mesa. - Mãe, este é o meu amigo Dan.
- Já nos apresentamos - disse Judy. Ela juntou os papéis e ficou de pé.
- Venha se sentar, Dan. Eu só estava esperando Jane voltar para servir o almoço. - Virando-se para Jane, ela disse: - Seu pai foi para Borrowdale ver um carneiro.
Ele quer sangue novo no rebanho. Então, seremos só nós três. - Ela tirou uma torta de carne do forno e a colocou sobre a mesa, seguida por um prato de batatas assadas
e outro de purê de nabo.
- Uau - comentou Dan. - Vocês comem bem assim em todas as refeições?
- Ahn-ahn - assentiu Jane, servindo torta para Dan e para ela. - Minha mãe tenta me subornar com comida para ficar aqui.
Dan provou a torta.
- Deus do céu, sra. Gresham, isto é o paraíso servido num prato.
- Obrigada, Dan, é sempre um prazer ter um convidado que aprecia a nossa comida. Você vai ficar conosco, não vai? - perguntou Judy, animada.
Dan assentiu com a cabeça, mastigando freneticamente antes de falar:
- Se não for causar nenhum incômodo. Eu ia embora amanhã, mas agora... bem, posso ficar mais uns dias para ajudar Jane.
- Temos que fazer umas entrevistas. - Jane sorriu, desanimada. - Acabei conseguindo algo onde eu menos esperava. Acredita que Matthew sabia esse tempo todo
onde encontrar os descendentes de Dorcas Mason? Ele simplesmente não se deu ao trabalho de me contar. Diane me pediu para buscar uma jarra na sala de jantar e lá
estava, em cima da mesa. Duas ramificações essenciais da árvore de Dorcas Mason. Graças aos alunos de Matthew, que estão fazendo um trabalho sobre genealogia - disse
ela, com um tom ríspido na voz.
- Que sorte, meu amor - respondeu sua mãe, a calma da voz disfarçando a aflição que os olhos traíam. - E que gentil da parte de Matthew, separá-los para mostrar
a você.
Jane suspirou profundamente.
- Seja como for - disse ela. - Mas vou precisar ir até a casa da metida da Barbara de novo. O que tenho aqui não está completo e acho que ela vai poder me
ajudar a preencher as lacunas. Vou ligar para ela depois do almoço e ver quando estará disponível.
- Que Deus nos ajude - disse Dan.
- Estou tão feliz por você estar aqui - disse Jane. - Pelo menos agora vou ter a chance de te mostrar um pouco da vida campestre. Podemos subir a montanha,
quero que você veja o rebanho do meu pai.
Dan olhou para os seus tênis de grife.
- Oba. Mal posso esperar.
- Vou te emprestar umas galochas. Você vai adorar - afirmou Jane.
- Podemos ir até o Dove Cottage depois?
Jane concordou com a cabeça, entusiasmada.
- Podemos, sim. E, se você for um bom menino, eu te apresento a Anthony Catto, o maior especialista em Wordsworth que existe.
Dan fez uma careta de medo.
- Ótimo. Agora eu posso ser desmascarado como a fraude literária que sou.
Jane soltou uma risada.
- Não se preocupe, ele não morde. Eu prometo, Dan, vai ser uma visita inesquecível.
Aportamos na Baía de Matavai, em Otaheite, no dia 6 de junho. Eu estava apreensivo com a recepção, mas a necessidade nos concede as habilidades de que precisamos
para sobreviver. Descobri, para minha surpresa, que era capaz de mentir com tamanha convicção que conseguiria facilmente ludibriar os nativos. Lembrei-me de que
o capitão Bligh havia convencido os nativos de que o capitão Cook ainda estava vivo e navegando pelo Pacífico, de modo que disse ao chefe Teina que Cook em pessoa
me dera ordens para adquirir o necessário para a criação de um novo povoado, para onde Bligh e Cook foram na frente, a fim de assentar as bases. Adquirimos 312 porcos,
38 cabras, oito dúzias de galinhas, um touro e uma vaca com os nativos. Além disso, nove mulheres nativas se ofereceram para juntar-se ao nosso grupo, incluindo
a minha Isabella. E mais oito homens e dez meninos. Partimos então paraToobouai, onde chegamos no dia 26 de junho. Dessa vez, para minha surpresa, encontramos uma
aparente boa acolhida.
24
- Pare o carro, eu vou vomitar. - A urgência na voz de Dan era inquestionável. Jane encostou na estreita margem de grama, acionando as luzes de segurança
enquanto freava o carro. Antes mesmo de ela ter parado completamente, Dan já havia aberto a porta do carona e se lançado para fora do carro. Quase imediatamente,
Jane o ouviu tendo ânsias de vômito e tossindo. Inclinou-se sobre o banco do carona e, na luz fraca da iluminação interna do carro, pôde vê-lo curvado, esforçando-se
para vomitar.
- Você está bem? - perguntou ela, percebendo na mesma hora a tolice da pergunta.
- Meu Deus - disse ele, ofegante, erguendo-se trôpego e encostando-se no carro. - Bem que eu achei que um daqueles mexilhões estava com um gosto esquisito.
- Caramba, Dan, eu sinto muito.
- A culpa não é sua - gemeu ele, deixando-se cair novamente no banco do carona. - Se o maldito do chef não sabe quando os frutos do mar estão estragados,
você não tem nada a ver com isso.
Ela lhe passou uma garrafa de água.
- Beba um pouquinho.
Dan tomou alguns goles e estremeceu.
- Foi mal. - Ele enxugou o rosto com as costas da mão. - Caralho, estou me sentindo péssimo.
- Você precisa deitar. Vou deixar você na fazenda e depois dou um pulo na casa da Barbara sozinha.
- Mas eu quero ouvir o que ela tem a dizer - objetou ele debilmente.
- Eu conto tudo amanhã de manhã. Acredite, não vai ser legal ficar na casa de Barbara passando mal. É um santuário dedicado aos aromatizadores
de ambiente. Juro que a única coisa que a deixa excitada no mundo é o anúncio de um produto novo. "Deixe sua casa com cheirinho de floresta com esse gel purificador
que ventila o ar e funciona a pilha" e ela fica de quatro. Uma respirada lá dentro e você vomita na hora. Não, é melhor você se cuidar. Vai estar tranqüilo lá em
casa, meus pais foram a uma festa de bodas de prata em Grasmere e só vão voltar tarde da noite.
- Não, não quero voltar para a fazenda. Me deixe no pub. Vou ficar lá. Eles têm uma suíte. Eu não quero ficar incomodando todo mundo, levantando de madrugada
para vomitar ou sei lá mais o quê. Nem quero me sentir inibido e envergonhado. Me leve até o pub, Jane.
- Deixa de ser bobo, Dan. Você não vai gostar de ficar no pub. É muito barulhento, você não vai conseguir descansar. Não tem problema, ninguém lá em casa
vai fazer você ficar sem graça porque está passando mal.
Ele franziu o rosto.
- Não é por você ou por seus pais. É uma coisa minha. Eu fico sem jeito. Prefiro ficar no pub.
- Não. Nada disso. - Jane estava inflexível, o rosto fechado. - Tenho uma idéia melhor. Temos um chalé no topo da colina. Está vazio agora, você pode ficar
lá. Vai dar para descansar tranqüilamente e lá você pode fazer o barulho que quiser. Acho que as ovelhas não vão se importar. E as suas coisas estão aqui no porta-malas
desde que as pegamos depois do almoço.
- Está bem, eu não tenho forças para discutir - concordou Dan num fiapo de voz, fechando a porta do carro e abrindo a janela. - Mas vá devagar, pelo amor
de Deus.
Jane partiu numa velocidade de tartaruga, dirigindo por Fellhead e passando direto pela fazenda, subindo a alameda, enquanto tentava ignorar os gemidos de Dan. Uns
oitocentos metros acima de Langmere Fell, ela estacionou em uma entrada para automóveis estreita.
- Chegamos - anunciou.
Dan a seguiu por uma construção de pedra, cujo único pavimento havia sido dividido em quarto, sala de estar, cozinha e banheiro. Foi direto para o banheiro, enquanto
Jane ligava a calefação, fazia a cama e destrancava o pequeno armário onde Judy guardava um estoque de saquinhos de chá, café, açúcar e papel higiênico. Quando terminou,
ela bateu na porta do banheiro.
- A gente se vê pela manhã - disse ela.
- Obrigado - gemeu Dan. - Desculpe.
Como a noite estava agradável, Jane decidiu deixar o carro na fazenda e voltou para Fellhead a pé. Barbara estava esperando por ela e a conduziu imediatamente para
a sua sala de genealogia.
- Se ela se casou em Yorkshire, estava na cara que não íamos localizá-la nunca - disse de um jeito exagerado que mais parecia que Dorcas havia se mudado para
o Taiti. - Sem contar a grafia errada. Mas, com essas novas informações, vai ser sopa no mel. Vamos começar já.
Já eram quase 10:00 da noite quando Jane foi embora, abraçando um calhamaço de folhas impressas no computador. Um novelo de nuvens baixas havia obscurecido a lua
enquanto ela estava na casa de Barbara, deixando a noite sombria. Um turista teria penado para vencer a subida até a fazenda, mas, mesmo no escuro, Jane seguiu confiante
pela trilha familiar sem um pingo de hesitação.
Graças a Barbara, tinha em mãos toda a árvore genealógica de Dorcas. Talvez pela manhã pudesse estudá-la com Dan, avaliando quais familiares restantes tinham mais
chance de estar com o manuscrito. Seria bastante útil ter outro par de olhos examinando aquelas letrinhas miúdas. Mesmo sentindo que era algo egoísta de sua parte,
estava feliz por ter alguém por perto para ocupar sua mente. Desde que Dan chegara, percebeu que não havia parado para pensar uma única vez no assassinato de Geno
Marley.
Os acordes da música Crockett's Theme, de Jan Hammer, invadiram o sonho de Rigston. Ele demorou alguns segundos para perceber que o som era real, que o seu telefone
celular estava tocando. Erguendo-se confuso, apanhou o telefone na mesa-de-cabeceira.
- Desculpe - murmurou ele, esfregando os olhos com a mão livre. - Inspetor Rigston falando - disse. Fez-se uma pausa, durante a qual ele ficou de pé. - Por
que eu? Não dá para esperar até amanhã de manhã? - suspirou. - Está bem, deixe-me apanhar uma caneta. - Ele ultrapassou a quina da cama e caminhou sem roupa até
a sua jaqueta de couro. Brigando com o bolso interno, apanhou uma caneta e um bloco de anotações e sentou-se ao pé da cama. - Certo, pode me passar os detalhes...
Como é que se escreve isso?... Tá... Ahn-ahn, eu ligo para a inspetora Blair...
Certo... Fellhead? Vou demorar um bom tempo para chegar lá. OK, diga ao chefe que estou a caminho. - Ele desligou o telefone e olhou com uma expressão triste para
River.
- Mil desculpas, amor. Vou ter que sair.
Ela se aproximou dele na cama e acariciou suas costas.
- Tudo bem, eu entendo. No seu trabalho, não existe essa de folga.
Ele estremeceu ao sentir seu toque e depois discou o número que o oficial de plantão lhe passara.
- Inspetora Blair? - perguntou ele assim que atenderam do outro lado da linha. - Aqui é o inspetor Rigston, de Keswick.
- É você quem vai checar Jane Gresham para mim, não é? - perguntou ela, esgotada.
- Sim, sem problemas. Imagino que não há motivos para supor que essa... - Rigston conferiu suas anotações - ... Tenille Cole vá reagir com violência, não
é?
- Também acho que não. Ela não tem histórico, mas está ligada a gente bastante perigosa.
- Quem?
- O pai dela é o chefão de Marshpool, um dos nossos conjuntos habitacionais que é uma espécie de escola para criminosos. Ele é durão. Um bandido de verdade.
Dizem que ela não tem contato direto com ele, mas, levando em consideração que está sendo procurada por ter liquidado um sujeito com uma espingarda e provocado um
incêndio para não deixar vestígios, eu diria que não é bem o que parece.
Rigston sentiu um calafrio que não tinha nada a ver com a temperatura do seu quarto.
- Você acha que existe a possibilidade de ela estar armada?
- Não. Acho que ela entrou em pânico e fugiu. Não creio que fosse atrás de Jane Gresham se contasse com a segurança de uma arma.
- E será que o pai dela não está por aqui, vigiando a menina de longe?
Donna Blair riu.
- Não faz muito o estilo dele.
Rigston estava apreensivo, mas disposto a confiar na palavra de alguém cujo trabalho era bem mais arriscado que o dele.
- Está bem. Estou indo para lá agora. Dou notícias assim que chegar. - Ele terminou a ligação e virou-se para River. - Volto o mais rápido que puder.
- Armada? Eu ouvi direito? - perguntou River, deixando transparecer preocupação em seus olhos cinzentos.
- Ao que parece, não - respondeu Rigston. Ele enfiou uma camisa de rúgbi pela cabeça. - Vamos torcer para a polícia de Londres ter dado uma
dentro, certo?
A nuvem era sua aliada, reduzindo tanto a visibilidade quanto a disposição para ficar à toa apreciando o céu noturno. Ele vira poucas pessoas entrando e saindo do
pub na última hora e estava convicto de que ninguém sequer notara seu carro, muito menos que havia alguém atrás do volante. Estava preparado para sair, se fosse
detectado. Só os idiotas corriam riscos e ele não era nenhum idiota. Além do mais, haveria outras oportunidades para vencer o obstáculo que ela se tornara. As vítimas
que não tinham noção de estar em perigo eram as mais fáceis de se acertar; a experiência lhe ensinara isso. Mas ele tivera sorte. Ninguém o vira, muito menos a pessoa
na qual estava interessado.
Saíra de casa sem ao menos olhar para os lados, como se tivesse mais com que se preocupar do que prestar atenção na rua. Ele aguardara até ela pegar a alameda e
só então ligara o motor, dando-lhe um minuto inteiro de vantagem à sua frente, tomando coragem para pôr seu plano em ação. Desceu a rua da aldeia devagar, abandonando
seu posto de observação, e depois dobrou para pegar a alameda.
O intenso raio de luz dos faróis a distinguiu, uma silhueta escura contra a sebe. Ele respirou fundo e engatou a segunda marcha. Com o motor rangendo, pisou fundo
no acelerador e partiu para cima de Jane.
As estradas estavam tranqüilas. Às 9:00 de sábado, naquela região, a maioria das pessoas estava ou em casa, diante da televisão, ou enfurnadas onde haviam planejado
passar o resto da noite. Enquanto dirigia, ele remoía sua insatisfação por ter sido tirado da cama. Bandidos de outras bandas. Era a última coisa de que precisava.
Pelo menos a inspetora da polícia de Londres teve a decência de avisá-lo que a mídia estava interessada naquela garota.
Não podia deixar de pensar em sua própria filha. Ela e a suspeita tinham mais ou menos a mesma idade. Queria acreditar que esse tipo de coisa não podia acontecer
na sua área, mas sabia que não era bem assim.
Pensou em Dewsbury. Uma cidadezinha pacata no meio de West Yorkshire. Um lugar onde nunca acontecia nada. Não obstante, no intervalo de poucos meses, os policiais
em Dewsbury tiveram de lidar com uma adolescente que seqüestrou um menino de cinco anos de idade e o pendurou em uma árvore, ensangüentado, e um ataque suicida com
uma bomba explodindo um trem no metrô de Londres. Antigamente, esse tipo de coisa só acontecia nas cidades grandes, onde as classes baixas estavam cada vez mais
insatisfeitas. Mas ele sabia que o veneno estava se espalhando e temia pela própria filha.
E aquela menina tinha lá seus recursos. Um pai gângster no currículo não era algo a ser desconsiderado. Num mundo onde as auto-estradas e a comunicação eletrônica
encurtavam todas as distâncias, os crimes não se limitavam aos confins de suas circunscrições. Um sujeito pode jantar em Londres enquanto o assassino de aluguel
que ele contratou pelo celular executa seu serviço em Manchester. Ou, pensou Rigston, naquela região. Não era uma idéia muito reconfortante.
Rigston girou o volante e dobrou na alameda que conduzia à fazenda dos Gresham. Viu o brilho distante das lanternas traseiras de um carro desaparecer mais adiante
e foi forçado a frear de supetão ao ver um corpo estatelado na beira da estrada.
Rigston desligou o motor e desceu imediatamente do seu carro com tração.
- Eu sou da polícia. Você está bem? - perguntou ele. Nada. Nenhum som, nenhum movimento. Rigston avançou em direção ao corpo, fragmentado em luz e sombra
ao passar diante dos faróis acesos.
Assim que ele se agachou para examiná-lo, o corpo ergueu-se, apoiando-se em um dos cotovelos. Viu, então, que se tratava de uma jovem, com o rosto enlameado, os
olhos arregalados de susto e o cabelo emaranhado com folhas.
- Você estava perseguindo aquele maluco? - perguntou ela, ofegante.
- Não, só vi as lanternas acesas. O que aconteceu? - Ele ofereceu a mão para ajudá-la a se levantar.
- O carro veio subindo a colina a toda. - Ela sacudiu a cabeça, tentando organizar as idéias. - E aí... - Ela franziu a testa, incrédula. - Eu sei que parece
loucura, mas tive a impressão de que ele avançou em cima de mim de propósito. Tive que mergulhar na cerca viva. - Ela esfregou o ombro. - Acho que tem um muro por
trás.
- Deve ter sido um bêbado - disse Rigston. - Você conseguiu ver o carro? Marca? Placa?
- Nada. Fiquei cega com os faróis. E depois me joguei na cerca. - Ela passou as mãos pelo corpo, removendo a sujeira.
- Sem nenhuma identificação, não há muito a ser feito - concluiu Rigston, suspirando irritado.
- Pelo menos estou inteira.
- Está indo para muito longe?
- Não. - A moça apontou para sua esquerda. - Eu moro naquela fazenda ali.
Rigston franziu o cenho.
- Você é Jane Gresham?
Ela deu um passo para trás.
- Como sabe o meu nome?
- Um palpite. Estava indo vê-la, srta. Gresham. Posso lhe dar uma carona até lá.
Ela cruzou os braços sobre o peito em um gesto defensivo.
- Desculpe, mas como posso saber que você é realmente quem diz ser? - Ela dava a impressão de mal se agüentar em pé.
- É prudente de sua parte duvidar. - Rigston apanhou a sua identificação e a abaixou até a altura dos faróis para que ela pudesse vê-la nitidamente. - Podemos
conversar?
- Já passa das 10:00 - ponderou Jane. - Não dá para esperar até amanhã de manhã? Quero dizer, eu quase fui atropelada agorinha mesmo.
- Não dá para esperar, é um assunto sério. - Curioso, pensou ele, ela nem sequer indagou sobre o assunto. E ainda quis adiar para o dia seguinte.
Alguns minutos depois, ele seguiu Jane até a cozinha aconchegante da fazenda. Sob a luz clara, pôde ver que ela era bonita, morena, com traços fortes. Era um rosto
marcante, olhos fundos, lábios firmes e o nariz que lhe rendia personalidade sem ser grande demais. Ela lançou sua jaqueta imunda sobre uma cadeira e foi direto
para a pia, correndo os dedos pelo cabelo para remover folhas e gravetos.
- Só um minuto - pediu ela, com a torneira ligada, lavando o rosto e as mãos. Depois se encostou no fogão, cruzando os braços, muito pálida. - É sobre Tenille?
- Por que está perguntando isso?
- Nós temos televisão aqui, inspetor-chefe. Eu vi o apelo para que qualquer um que a tivesse visto se apresentasse à polícia. E não consigo pensar em nenhum
outro motivo para um policial veterano querer conversar comigo a essa hora da noite num sábado. - Ela o olhou fixamente.
- Você viu Tenille Cole depois da tarde de quarta-feira?
Jane fez um gesto negativo com a cabeça.
- Eu vim para cá na quarta. Ou seja, não vi, não.
- E teve alguma notícia dela? Um e-mail, talvez? Uma mensagem, um telefonema?
- Sinto muito decepcioná-lo. Não, não tive nenhuma notícia de Tenille. O que não é de admirar; desde que nos conhecemos acho que ela nunca me mandou um e-mail,
mensagem ou me ligou. Você pode verificar o meu lap-top se não acredita em mim.
- Não creio que vá ser necessário a essa altura da investigação. Como ela costuma entrar em contato? - perguntou Rigston.
- Ela simplesmente aparece na minha porta.
- Como você caracterizaria o seu relacionamento com Tenille Cole?
- Eu diria que sou mentora dela. E amiga.
- Mentora? Como assim?
Jane suspirou.
- Eu sei que é difícil para policiais como você acreditarem nisso sobre uma menina pobre e negra, mas Tenille ama poesia. Ela não só adora, mas compreende
o real sentido. Seu conhecimento dos poetas românticos deixaria a maioria dos estudantes no chinelo. E esta, por acaso, é a minha especialidade. Então ela fica lá
no meu apartamento, lendo poesia e crítica literária, e, às vezes, a gente conversa sobre os livros.
- Vocês conversam sobre poesia?
- E crítica literária. - Jane sorriu, com ar de superioridade. Rigston considerou isso uma tentativa proposital de irritá-lo.
- E você não acha isso estranho?
- Muito estranho. Mas é a mais pura verdade. Não há nada patológico, depravado ou criminoso nisso.
Rigston balançou a cabeça, desconcertado.
- Vocês conversam sobre a vida pessoal dela?
- Muito pouco. Ela vai para o meu apartamento para abstrair todo o resto. Ela cruza a minha porta e esquece o resto do lado de fora.
- Então você não saberia dizer por que ela teria matado... - Rigston consultou rapidamente suas anotações - Geno Marley?
- Tenille não matou Geno Marley - afirmou Jane com um habitual grau de convicção que deprimiu Rigston. Já vira muita gente cometer esse mesmo erro trágico.
- Como pode ter certeza? - perguntou ele, calmo.
- Porque não é do feitio dela. Ela não anda com os marginais e as mães solteiras adolescentes. Ela despreza esse estilo de vida.
- De acordo com as informações que recebi, o pai dela é a personificação desse estilo de vida.
Jane sacudiu a cabeça, impaciente.
- Tenille não tem pai. Ou, melhor, não um pai do qual ela tome conhecimento. Ela foi criada pela tia. A mãe morreu, ela nunca teve um pai na vida.
- Então o nome John Hampton não lhe diz nada?
- Claro que sim. Eu moro em Marshpool.
- Você está ciente de que ele é o pai de Tenille?
- Já ouvi boatos, sim. Mas nunca o vi sequer notá-la de passagem. - Jane desviou o rosto, triste. - Tenille diz que não tem pai. Estou disposta a acreditar
nela.
Rigston mudou sua tática, na esperança de pegar Jane desprevenida:
- Ela está aqui, srta. Gresham?
Jane ergueu o rosto, chocada.
- Claro que não. Ela não faz a menor idéia de como me encontrar aqui.
- Posso revistar o local?
Jane se mostrou surpresa e irritada:
- Vocês da polícia... francamente - disse ela, amarga. - Se eu me recusar, vão achar que estou escondendo alguma coisa. Se deixar, vou me sentir insultada
e invadida. - Levantando o rosto, dardejou um olhar fixo para Rigston. - Tudo bem. Sinta-se à vontade. - Rigston pôde ler nos olhos dela que ele estava perdendo
seu tempo. Mas, ainda assim, não pegava bem aliviar.
- Obrigado - agradeceu ele.
Ela deu de ombros.
- Você só está cumprindo seu papel. Não tenho nada a esconder.
Idealizei Toobouai como nosso novo Éden, um pequeno paraíso para os que entre nós haviam padecido a pior das tempestades. Aproveitei-me da suposta amabilidade recém-descoberta
dos nativos, negociei terra para um forte, e nossas relações foram boas no início. Mas surgiram facções entre nossa tripulação. Não havia mulheres de Otaheite suficientes
e as nativas só se rendiam à força, o que eu não podia aprovar. Alguns dos homens queriam voltar para Otaheite, outros simplesmente zombar de minha autoridade por
se julgarem livres do meu comando, ignorando a necessidade de uma liderança para nos dar um objetivo único até que a colônia pudesse ser devidamente estabelecida.
Por fim, decidi que deveríamos regressar a Otaheite para que os que não estavam satisfeitos pudessem desembarcar. Mas, enquanto nos preparávamos para partir, estourou
uma guerra com os nativos de Toobouai e eu percebi claramente que jamais poderíamos voltar e nos estabelecer ali. Fiquei amargamente decepcionado e não pude deixar
de me considerar responsável por esse fracasso.
25
Uma rajada de vento cortante se infiltrou no vão da formação rochosa onde Tenille se abrigara ao cair da tarde, fazendo-a estremecer. Após ter flagrado Jake na encosta,
escalara a montanha, afastando-se da trilha, agachando-se entre as frondes marrons das samambaias até ele finalmente partir, desaparecendo de sua vista. Enfraquecida
e com frio, avançara cautelosa em seu rastro, prostrando-se no mesmo local onde ele estivera.
Havia uma fazenda em seu campo de visão e ela concluiu que só podia ser a casa de Jane. Quem mais ele estaria espionando, afinal? Tenille devia até agradecer a ele.
Não tinha a menor idéia de como iria localizá-la. Não queria sair do esconderijo e pedir informações. E, embora estivesse quase certa de que reconheceria o lugar
pelas fotografias de Jane, não sabia ao certo a quantidade de fazendas espalhadas ao redor de Fellhead.
Uma vez detectada a fazenda, o próximo passo era descobrir como chegar até lá. Franziu a testa, examinando o mapa. O trajeto mais óbvio era seguir a trilha até alcançar
a estrada que descia para Fellhead. Então teria de atravessar a aldeia e subir a alameda até a fazenda dos Gresham. Para evitar riscos de ser vista, precisava esperar
anoitecer, mas então não teria como saber quem estava em casa. Encontrar Jane sem que ninguém soubesse ia ser difícil.
Uma alternativa era prosseguir em campo aberto, descendo a colina num ângulo que a deixaria logo acima da fazenda. Avistou um afloramento rochoso que talvez lhe
desse cobertura na medida certa para montar guarda e esperar até ter certeza de que Jane estava sozinha. Por mais desanimadora que a rota lhe parecesse do alto,
era a opção mais sensata.
Pôs-se então a caminho, percebendo em questão de minutos que a descida era muito mais árdua do que a caminhada pelas trilhas. O solo era irregular, com tufos de
relva ásperos e urzes que pinicavam seus tornozelos. Vez por outra pisava sem querer numa turfa pantanosa e por pouco não perdia os sapatos. Era uma caminhada lenta
e a tarde já havia caído quando ela alcançou as pedras que determinara como objetivo. Para seu alívio, havia uma fenda estreita na rocha que dava para a fazenda,
e foi lá que ela se acomodou. O sólo ali estava relativamente seco, protegido por uma protuberância, de modo que ela pôde se sentar, emitindo um profundo suspiro
de alívio. Tinha a impressão de jamais ter se sentido tão exausta. A única coisa que a mantinha acordada eram as pontadas agudas de fome que faziam sua barriga roncar.
Tenille ficara surpresa com a amplidão da fazenda e suas dependências. Sua idéia de fazenda eram chalés de sapê cercados por campos, com no máximo um ocasional estábulo
de pedra em algum canto. Mas ali, três lados da fazenda eram tomados por construções. A casa em si era uma sólida construção de dois andares que tomava grande parte
da extensão do lado que dava para a entrada. As laterais eram ocupadas por dependências variadas, que iam de um galpão baixo e comprido com paredes revestidas de
metal e teto de plástico corrugado até uma variedade de construções de pedra. Não fazia a menor idéia de para que serviam.
O primeiro sinal de vida foi a chegada de um Land Rover, que estacionou em um dos lados do pátio. Um homem desceu do carro, seguido por dois cães. Os cães desapareceram
dentro de um chalé de madeira próximo ao galpão e o homem entrou em casa. Meia hora depois, ele reapareceu, pôs dois pacotes de feno no Land Rover e partiu com os
cães, para voltar vinte minutos depois.
Pouco antes das 7:00, um veículo verde-escuro com tração nas quatro rodas parou no pátio. Um homem e uma mulher saíram da casa e entraram no banco traseiro antes
de o motorista dar partida novamente. Os pais de Jane, supôs Tenille. Mas nenhum sinal da própria. Tenille estava começando a ficar aflita. E se ela estivesse com
alguns amigos e fosse passar a noite fora?
E se tivesse ido para outro lugar para fazer a pesquisa do seu trabalho? Tenille
não sabia o que fazer. Estava morta de fome e com a boca tão seca que mal conseguiria falar.
Já passava das 8:00 quando as luzes do pátio se acenderam, revelando um Fiesta vermelho que acabara de chegar. Tenille se levantou, entusiasmada, ao ver Jane descer
do carro. Mas, em vez de seguir direto para a casa, Jane fez o caminho inverso, atravessando o portão e descendo a colina em direção a Fellhead.
Desanimada, Tenille sentou-se pesadamente sobre a pedra. Lutava contra as lágrimas. Vencera todo tipo de obstáculo, mas acabara por exaurir suas reservas. Sabia
que não havia chance de suportar uma noite na montanha sem ter onde se abrigar. Fez um trato consigo mesma. Se Jane não voltasse para casa até meia-noite, desceria
furtiva até a fazenda e buscaria um lugar para dormir. Não podia ser assim tão difícil.
O tempo parecia se arrastar. Tenille descobria coisas surpreendentes: a quietude que descia como um manto sobre a escuridão; o teto de estrelas inteiramente desconhecido
para alguém que crescera na poluição nebulosa de Londres; o modo como o ar ganhava outro cheiro à medida que ficava mais frio e, sobretudo, o fato de não estar assustada
perante toda aquela estranheza. Como Jane podia suportar o barulho, o fedor e o néon perpétuo de Londres tendo crescido daquela maneira?
Pouco depois das 10:00, surgiu um carro diferente, também com tração nas quatro rodas. E, aleluia, lá estava Jane. O motorista saltou do carro e seguiu Jane até
o interior da casa. Alguns minutos depois, luzes começaram a se acender e a se apagar em todos os cômodos. Que diabos estava se passando?
Depois que a casa tornou a ficar escura, com exceção de uma única janela, a porta se abriu e o homem saiu novamente. Ele foi de construção em construção, entrando
em uma por uma e depois regressando à casa. Tenille era esperta o bastante para entender exatamente o que estava acontecendo. O sujeito podia estar sozinho e sem
uniforme, mas ela sabia reconhecer uma busca policial. Cruzou os braços sobre o peito, desamparada. Eles sabiam sobre Jane. No fundo, imaginava que uma hora aquilo
ia acabar acontecendo, mas uma parte dela quis acreditar que Jane seria o seu porto seguro.
O pior era que Jane ficara sabendo sobre ela. Bem, conhecera a versão da polícia. Tenille não tinha a menor esperança de que os tiras fossem pegar leve com ela.
Não sabia se tinham alguma prova contra ela, mas, de um modo ou de outro, estava ligada ao apartamento e possivelmente no topo da lista de suspeitos. Eles podiam
fingir que só estavam interessados nela como testemunha, mas ela sabia que era muito mais do que isso. E se puserem as patas em mim estou ferrada. Não podia dedurar
Martelo, de jeito nenhum. Não por medo, e sim porque ele havia provado ser seu pai de uma maneira bastante significativa. Ele a protegera; faria o mesmo por ele
porque em toda a sua vida ninguém jamais a havia protegido.
Exceto Jane, é claro. Mas, por mais que Tenille amasse e respeitasse Jane, sabia que pertenciam a raças diferentes. Não pela cor da pele, mas sim porque a vida que
haviam levado lhes dera um entendimento diferente do mundo. Quando foi ter com Martelo, Jane realmente não fazia idéia de como aquilo podia terminar. Já Tenille
sabia que ia acabar em violência. Extrema violência. E não fizera nada para impedir. De modo que, embora Jane tivesse plantado a semente da destruição de Geno, era
Tenille quem podia ter cortado o mal pela raiz. E ela conhecia bastante a amiga para saber que, mesmo assim, Jane tomaria para si o fardo da culpa.
Estava devendo uma para Jane também. Tinha de protegê-la, assim como ao seu pai. E isso significava não se deixar apanhar pela polícia. Ainda bem que havia esperado
antes de descer para procurar um esconderijo na fazenda para passar a noite.
Após o que lhe pareceu um bom tempo, o sujeito voltou para a casa. Não muito depois, tornou a sair, entrou no carro e partiu em direção a Fellhead. Tenille observou
o brilho dos faróis enquanto ele dobrava à direita no entroncamento, descendo para a estrada principal. Tinha partido de vez.
Jane estava sozinha.
Tenille levou muito mais tempo do que havia imaginado para chegar até a fazenda. Nada em seu histórico havia preparado Tenille para enfrentar aquele terreno ingrato
às escuras. Perdeu o equilíbrio diversas vezes, caindo de bunda no chão em duas ocasiões. Quando finalmente alcançou a lateral da casa, estava com as calças encharcadas
e um rastro de lama negra em
uma das mangas da blusa. Enfiou a cabeça num dos cantos da construção, tentando localizar o sensor para as luzes do pátio. Por fim, conseguiu detectá-lo na lateral
da porta. Aquele era o tipo de coisa com o qual estava familiarizada. Calculou que, se ficasse bem rente à parede, escaparia da área coberta pelo sensor. Só havia
uma maneira de descobrir.
Contornou a lateral da casa devagar, virada para a parede. Avançou com cuidado, passando por duas janelas fechadas e uma porta até o canto de uma janela que, por
estar com as cortinas abertas, lançava uma poça de luz amarelada no chão manchado do pátio. Arriscou uma olhadela. Era a cozinha. Avistou um forno daqueles que sempre
aparecem nas casas sofisticadas dos programas de televisão e o canto de uma mesa. Nada de Jane.
Abaixando-se, foi até o outro canto da janela. Dessa vez, sua espiadela não foi em vão. Lá estava Jane, sentada à mesa de jantar, com uma pilha de papéis à frente
e um copo de vinho na mão. Não havia sinal de mais ninguém na cozinha. Tenille respirou fundo e prostrou-se diante da janela, batendo com força no vidro.
Jane levantou a cabeça e olhou para a janela. Tenille aproximou-se ainda mais do vidro. Boquiaberta e alarmada, Jane levantou-se tão depressa que quase derrubou
a cadeira, desaparecendo pela porta da cozinha. Segundos depois, a porta da casa se abriu e, assim que Jane surgiu no pátio, as luzes se acenderam. Tenille permaneceu
parada no mesmo lugar, constrangida, sem saber como seria recebida.
- Tenille? - perguntou Jane, desconfiada. - É você?
Tenille tirou o boné.
- Ahn-ahn. Tive que cortar o cabelo. - De todos os modos de começar uma conversa que ela passara o dia todo ensaiando, aquele não constava sequer na lista.
- O que está fazendo aqui, menina? A polícia está atrás de você.
Tenille sentiu seu lábio inferior tremer. Estava segurando as pontas há tanto tempo que já não agüentava mais. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.
- Posso entrar? Estou congelando aqui fora - pediu ela, suplicante, o corpo inteiro tremendo.
- Claro, venha. Meu Deus, você está encharcada. - Jane puxou Tenille para si em um abraço e depois a levou depressa para a cozinha. -
Espere aí. Vou buscar uma calça seca para você. - Ela voltou alguns minutos depois com uma calça felpuda de moletom. - Tome. É melhor você ficar ali perto do fogão,
está quentinho.
Tenille estava exausta demais para não obedecer. O calor do fogão era divino. Ela tirou os tênis molhados e mudou a calça. Nesse meio-tempo, Jane havia tirado um
pote de sopa caseira do congelador e estava pondo para esquentar no microondas. Não parava de olhar para Tenille, como se tivesse um milhão de perguntas a fazer,
mas não dizia nada.
- Eu fugi - disse Tenille, assim que seus dentes pararam de bater.
- Foi o que eu imaginei - respondeu Jane, providenciando uma tigela e uma colher. - A polícia local esteve aqui mais cedo.
- Eu sei, estava escondida vendo tudo.
Jane ergueu as sobrancelhas.
- Foram os tiras de Londres que os mandaram para cá. Mas eu soube de Geno pelo noticiário. Venha cá, sente, tome uma sopa. Depois a gente conversa direito.
Meus pais só voltam daqui a uma hora, mais ou menos.
A primeira porção de sopa mal esfriou na tigela. Enquanto Jane lhe servia a segunda, Tenille perguntou:
- Tem pão?
Jane trouxe pãezinhos e manteiga e os assistiu desaparecer em velocidade recorde.
- Você estava mesmo precisando comer - disse ela quando Tenille terminou.
- Não como nada desde ontem à noite. E andei muito hoje. Vim de Grasmere, pelas colinas, e não me perdi uma única vez. E, vou te contar, é impossível caminhar
por aqui sem um mapa. Quase errei o caminho algumas vezes, tentando descobrir em que colina estava. Não sei como Wordsworth e companhia conseguiam andar para cima
e para baixo aqui sem mapas. - Ela enxugou a boca com as costas da mão. - Estava ótimo. Obrigada, Jane.
- De nada. Mas você precisa me contar o que está acontecendo.
Tenille encurvou-se, projetando seus ombros magros, e suspirou fundo.
- Meu pai deu um fim em Geno. Encontrei-o morto no apartamento. Eu não estava raciocinando direito, só queria garantir que ele não fosse pego, então toquei
fogo em tudo. Tentei me esconder no seu apartamento,
mas os tiras apareceram me procurando e eu sabia que seria uma questão de tempo antes que me achassem, então me mandei. - Ela contorceu a boca numa careta. - Eu
não tinha mais ninguém para procurar. Por isso vim para cá. - Ela olhou de soslaio para Jane. - Você não está chateada comigo, está?
- Chateada, não. Estou preocupada. Como eu disse, a polícia esteve aqui mais cedo...
- Você falou para eles irem atrás do meu pai? - interrompeu Tenille.
Jane balançou a cabeça.
- Não. Eu queria esperar até ter a oportunidade de conversar com você primeiro. Mas eles não estão de brincadeira. Revistaram tudo aqui e pediram a chave
do meu apartamento para procurarem lá também. Eu disse que era bobagem, mas eles insistiram mesmo assim. Você vai ter que se entregar, Tenille. Eles não vão esquecer
de uma hora para outra.
Tenille encarou Jane, desafiante.
- Claro que vão esquecer. Foi só mais um vagabundo negro assassinado. Daqui a duas semanas ninguém mais vai sequer lembrar o que aconteceu.
- Pode até ser. Mas você não pode fugir para sempre. Você tem 13 anos, não 23. E, assim que der as caras, eles vão pegar você - disse Jane, irritada.
- Eu sei disso - respondeu Tenille, amuada como uma típica adolescente. - Mas quem sabe eles arrumam outro suspeito. Aí eles me dão uma trégua e eu posso
voltar.
- Isso não vai acontecer enquanto estiverem concentrados em encontrar você. Tenille, você vai ter que contar a verdade. Para falar a verdade, nós duas vamos
ter que contar a verdade. Você vai ter que falar sobre Geno e eu vou ter que dizer que fui procurar seu pai.
- Eles não vão acreditar na gente - disse Tenille, desanimada.
- Por que não? Seu pai é um suspeito muito mais verossímil do que você. Ele deve ter, imagino, uma ficha criminal à altura de sua reputação.
- Pode até ser, mas eu acho que deixei minhas digitais na arma.
Jane olhou para ela, horrorizada.
- Você acha que deixou suas digitais na arma? Puta que pariu, como isso foi acontecer?
- Eu peguei a arma, sacou? - respondeu Tenille, na defensiva. - E não limpei depois. Esqueci. Eu estava desesperada. Pode ser que tenha queimado no incêndio,
mas, se não queimou, ninguém vai acreditar que sou inocente.
- Tenille, as chances de acreditarem que foi seu pai são muito maiores.
Ela sacudiu a cabeça, teimosa.
- Eu não vou entregar meu pai para a polícia. Nem você. - Ela lançou um olhar calculista para Jane. - Então, você vai me esconder ou não vai?
Jane estava atônita.
- Esconder você?
- Isso mesmo, me esconder. Só até a poeira baixar e a gente definir o que dizer.
- Não posso te esconder aqui. Os policiais já revistaram tudo uma vez.
- Mais um motivo pelo qual não vão revistar de novo. Eles procuraram e não me encontraram aqui.
Jane sacudiu a cabeça.
- Não é uma boa idéia, Tenille. Olha, por que você não dorme aqui hoje à noite e amanhã cedo vamos até a polícia e contamos a verdade?
- Averdade não vai adiantar. Temos que bolar algo melhor do que a verdade. Meu pai ficou do meu lado, tenho que ficar do lado dele.
- Ele matou um homem, Tenille.
Tenille desviou o olhar.
- Não. Geno era um monstro, ele fez por merecer. Você acha que eu sou a primeira garota que ele molestou? Acha que ia ser a última? Não. Meu pai fez bem e
não vou mandá-lo para a cadeia por causa disso. - Ela afastou a cadeira da mesa. - Você não vai me ajudar, tudo bem. Vou cair na estrada novamente. Se consegui chegar
até aqui, posso continuar sozinha.
Jane a segurou pelo pulso.
- Espere aí. Não vou deixar você ir embora.
- Eu é que não vou ficar aqui, para você me entregar. - Tenille desvencilhou-se de Jane, visivelmente magoada. - Você diz que é minha amiga, mas não é, não.
É igualzinha a todos os brancos. No fundo, é igualzinha. Eu devia ter ficado com o meu pai. Ele sabe o que fazer com dedos-duros. - Seus olhos ficaram cheios de
lágrimas, mas ela as enxugou, impaciente. - Vá se foder, Jane. Vá se foder.
No dia 22 de junho, regressamos à Baía de Matavai. Lá, dividimos igualmente tudo o que era prático removermos do navio. Dezesseis homens se ofereceram para partir
e oito escolheram permanecer comigo. Foi com o coração pesado que dei adeus a Peter Heywood. Mas ele estava certo em nos deixar. Não tivera participação direta no
motim e acreditava que não seria punido por ter ficado comigo. Protegido pela escuridão da noite, rumei para terra firme para despedir-me dele. Não ousaria fazê-lo
durante o dia, pois estava muito envergonhado com o desenrolar das mentiras que eu contara ao chefe Teina para encará-lo. Caminhamos lado a lado pela praia arenosa,
Peter e eu. Pedi que explicasse ao meu irmão a verdade sobre o que se passara entre Bligh e mim. Até então, eu não havia lhe contado as terríveis acusações feitas
por Bligh, e o seu horror diante dos fatos me convenceu de que eu tivera razão em conduzir o motim em vez de permitir que nossos nomes fossem manchados pelas calúnias
infundadas do capitão.
26
Derwent Water cintilava, sob o sol, prateado e azul. Alguns barcos já estavam cruzando o mar, os ângulos de suas velas indicando a força da brisa que ondulava a
superfície. Mas Jake não estava com cabeça para a paisagem naquela manhã. A Inglaterra e a sua tarefa o haviam deixado esgotado e sem ânimo em questão de dias. Não
apreciava nada à sua frente - nem ansiava por mais encontros com idosos ou um reencontro potencialmente desastroso com Jane.
Pelo menos isso era algo que podia adiar enquanto Dan Seabourne estivesse na área. Jake jamais gostara de Dan e Harry, julgando aquele flerte constante tanto desnecessário
quanto constrangedor. Desconfiava que a antipatia era mútua e não imaginava que a presença de Dan pudesse ajudá-lo em suas tentativas para aproximar-se de Jane.
Mas suas preocupações com a presença de Dan ultrapassavam o estritamente pessoal. Pelo que ficara sabendo ao acessar o e-mail de Jane, Dan não havia tido êxito em
suas buscas no Registro Geral em Londres. O pesquisador de Caroline encontrara um rico material, ao passo que Dan dera com os burros n'água.
Pelo menos era o que ele dizia no e-mail. Se fosse mesmo verdade, sua chegada a Fellhead não fazia muito sentido. Por que teria vindo de Londres se não tinha nada
de novo para contar? Jake sentiu seu corpo todo crispar-se em um calafrio quando a única explicação possível se cristalizou em sua mente. Se Jane tivesse descoberto
que seu e-mail fora invadido, ela podia ter mandado uma mensagem de texto pelo celular ou ligado para Dan pedindo que não mandasse nenhuma notícia por e-mail. Ou
ainda pior: que forjasse uma mentira para despistá-lo. Se havia percebido que alguém
acessara seu e-mail, na certa desconfiara de Jake. E, se o julgara capaz de um gesto tão baixo, obviamente estava disposta a qualquer coisa para evitar que chegasse
perto de sua pesquisa.
Precisava arrumar outro atalho para alcançar seu objetivo. Jake apanhou uma pedrinha e atirou o mais longe que pôde na água. Ela estalou no contato com a superfície
e logo em seguida formou círculos concêntricos, fundindo-se com as pequeninas ondas que o vento produzia, antes de desaparecer quase que imediatamente. Afundar sem
deixar rastro. Preciso fazer o possível para que o mesmo não aconteça comigo.
- Você está péssimo - disse Jane, constatando a palidez mortiça e o rosto suado de Dan. - Os mariscos realmente acabaram com você, hein?
- Jamais gostei de frutos do mar - comentou Judy. - Só de pensar do que eles se alimentam, perco a vontade de colocá-los na boca. Posso lhe oferecer uma xícara de
chá, Dan? Ou alguma coisa para comer? Já tomamos café, espero que não se importe por não termos esperado por você, mas Jane disse que era melhor deixarmos você dormir
até mais tarde.
- Ponto para Jane - disse Dan, com um fiapo de voz. - Acho que não consigo comer nada, mas um chá seria uma oferenda dos deuses. Achei que ia me sentir melhor
pegando um ar; vim andando do chalé. - Ele suspirou, depois apertou os olhos. - Não me lembro da última vez que me senti tão mal. -Judy esticou o braço e afagou
a mão dele, antes de pôr a chaleira no fogo.
- Fui resgatada por um policial ontem à noite. - Jane tentou parecer jovial e blasée. Foi uma tentativa inglória.
Dan arregalou os olhos, surpreso.
- O quê?
- Estava voltando a pé da casa da metida da Barbara quando um motorista bêbado quase me atropelou. Mamãe acha que deve ter sido Billy West, que mora lá para
cima da colina. Um adolescente rebelde motorizado. Eu estava saindo da sebe quando um inspetor da polícia local apareceu do nada. - Jane estava brincando com a franja
da toalha de mesa, evitando olhar diretamente para Dan.
- Do nada mesmo? Ou ele estava atrás do bêbado?
- Foi o que eu pensei no início. Mas não. Foi mera coincidência. Ele estava vindo para cá, ver se eu sabia alguma coisa sobre o paradeiro de Tenille. E então
cismou que precisava revistar o local, já que estava aqui. Assim seus superiores podiam relatar à Scotland Yard que haviam feito o trabalho direito, eu acho.
- Continuo sem entender - disse Judy, vertendo a água fervida no bule de chá. - Para que fugir se ela não tem nada a esconder?
- Acho que porque ela não acredita que a polícia vá pegar leve com ela. Você acha que estariam suspeitando dela se fosse uma menina branca, de classe média,
de família tradicional e respeitável? Não creio. Acho que foi por isso que ela fugiu.
Dan sacudiu a cabeça.
- Coitada. E eles acharam que ela podia estar aqui com você?
Jane deu de ombros.
- Acho que não. No fundo, não. Para mim, o inspetor estava apenas cumprindo um procedimento de praxe. O que ele realmente queria saber era se ela havia entrado
em contato comigo. Por e-mail, mensagem de celular, qualquer coisa.
- E ela mandou alguma notícia, afinal? - perguntou Dan.
Não minta, a não ser que seja estritamente necessário.
- Vou repetir o mesmo que disse a eles: não, não tive nenhuma notícia de Tenille.
- Não consigo me conformar com essa suspeita precipitada sobre Tenille. Ela é negra, mas é tão nerd. Até parece que faz parte de uma gangue ou algo assim.
Ou há mais alguma coisa que você não me contou?
Jane esperou a mãe afastar-se até a despensa e disse baixinho:
- O pai dela é o marginal que dá as cartas em Marshpool. Ele não a reconhece oficialmente como filha, mas todo mundo sabe. Inclusive, ao que parece, a polícia.
- Ah - disse Dan.
- Pois é. Mas, mesmo assim, isso não significa que Tenille é culpada de algo além de ter ficado com medo.
- Que noite, hein? Você está bem? O carro a machucou?
- Um pouco, só no ombro. Foi assustador. Parecia que estava vindo na minha direção de propósito. Minha sorte foi conhecer a estrada melhor do
que o lunático no volante. Eu só tive uma fração de segundo, mas soube para onde me jogar.
- Graças a Deus. Malditos adolescentes, assustando as pessoas por diversão. E aí, como foi lá com a metida da Barbara?
Jane contemplou a papelada sobre a mesa.
- Árvores genealógicas até dizer chega. - Quando Judy voltou com uma perna de cordeiro, Jane disse: - A metida da Barbara saiu melhor do que a encomenda,
mãe.
Obrigada por ter me colocado em contato com ela.
- Que bom, querida. Estamos todos torcendo por você, você sabe.
Enquanto Judy atarefava-se com a carne, Jane passou alguns papéis para Dan.
- Pensei em examinarmos tudo e ordenarmos com base no princípio de primogenitura.
Dan olhou para Jane como se ela tivesse sugerido uma ida até a aldeia capturar uma criança para assar no almoço.
- Não vou conseguir ler sem vomitar. Para falar a verdade, estava pensando em retornar ao chalé para dormir. Se a sua mãe não se incomodar.
- Claro, onde é que eu estava com a cabeça? Você pode ficar lá até voltar para Londres, se quiser.
Jane tentou esconder seu alívio. Não que quisesse se livrar de Dan. Mas, depois do que acontecera na noite anterior, precisava de liberdade para agir
sem ter alguém perguntando onde ela estava indo e o que estava fazendo.
Dan bebeu um longo gole de chá e estremeceu um pouco.
- Acho que vou tentar comer uma torrada - disse ele, hesitante.
Enquanto Judy providenciava as torradas, Jane começou a examinar as
informações que conseguira com Barbara Field. Decidiu organizá-las em pilhas, fazendo anotações à medida que as separava. Era um processo lento e complicado e logo
percebeu que uma pessoa podia trabalhar melhor sozinha do que acompanhada. Ergueu os olhos para Dan, que se esforçava para terminar sua torrada com geléia de morango
sob o olhar ansioso de Judy.
- Ah, e eu pensei que podia tentar entrar em contato com a antropóloga forense que está examinando o corpo encontrado no pântano. Sugerir que ela analise
algumas amostras de DNA dos descendentes diretos de Fletcher Christian, para ver se algum deles bate.
Dan ficou de pé.
- Boa idéia. Vou até o pub buscar o meu carro. Depois, vou voltar direto para a cama.
- Estou indo para a igreja; se você quiser, te dou uma carona - ofereceu Judy.
- Não, obrigado - agradeceu ele. - Acho que um pouco de ar vai me fazer bem. - Ele puxou Jane para si em um abraço apertado. - Amanhã vou estar melhor. Aí
a gente pode começar a fazer as entrevistas.
Ela beijou seu rosto áspero, com a barba por fazer.
- Obrigada. Vou trabalhar com a lista. - Caminhou até o portão da fazenda com ele, acenando até que desaparecesse lentamente colina abaixo. Mas, em vez de
voltar para a mesa da cozinha, Jane atravessou o pátio e cortou caminho entre o celeiro e o galpão de tosa.
Ela surgiu em um pequeno campo com uma construção de pedra, localizada no extremo oposto da casa. Janelas de vidro fosco circundavam todo o prédio, duas fileiras
de pedra abaixo do beiral, formando praticamente uma borda decorativa. A porta de metal fora pintada num tom escuro de verde e cerrada com uma tranca firme. Seu
pai havia feito algumas obras no local fazia mais de dez anos, quando um regulamento da União Européia proibira o abate de suas próprias ovelhas para a venda nos
açougues locais. O antigo abatedouro ficava mais acima na montanha, e Allan o convertera em um chalé de veraneio para aluguel chamado Shepherd's Cott, uma ocasião
de muito júbilo no pub da aldeia. Mas Allan ainda queria um local onde pudesse abater sua própria carne para consumo familiar, de modo que transformara o anexo em
ruínas, incrementando-o com água corrente e luz elétrica. Construíra até mesmo um minúsculo reservado, com direito a um chuveiro, para evitár rastros de sangue e
tripas para dentro da casa.
Jane atravessou o campo, e então parou, aparentemente para apreciar a vista, mas, na verdade, o que queria era verificar se alguém estava de olho. Quando teve certeza
de que a área estava livre, destrancou a porta depressa e entrou correndo, chamando baixinho:
- Sou eu.
Tenille estava sentada em um dos bancos de pedra, protegida do frio pelo saco de dormir que Jane havia apanhado no porão na noite anterior. Um livro fora descuidadamente
arremessado no chão e ela estava com os olhos arregalados de medo. Ao ver que era Jane, removeu os fones de ouvido, e o inconfundível som do hip-hop vazou no ar
parado.
- Tudo bem? - perguntou ela.
- Tudo. E você? Conseguiu dormir direito?
Tenille ergueu um dos ombros.
- Consegui. Demorei um tempo para me ajeitar. Mas, quando peguei no sono, cara, apaguei feio. - Ela abriu um sorriso torto. - Deve ser o tal ar do campo,
né?
- Você tem o que comer?
Tenille apontou para os bolos e os pães recheados com salsicha que Jane havia surrupiado do congelador da mãe.
- Comi todas as maçãs. É meio monótono, sabe? Mas está tudo bem.
- Vou te trazer algumas coisas amanhã de Keswick. Minha mãe sabe cada latinha de tomate que está no seu armário ou no seu congelador. Não quero que ela dê
por falta de algo e comece a investigar o que está acontecendo. Tem alguma coisa específica que você queira?
Novamente, Tenille ergueu um dos ombros.
- Biscoitos de chocolate? Batatas fritas? De repente, uns sanduíches. Desde que não sejam de atum ou de camarão. Não sou muito chegada a peixe. Uma escova
de dentes seria ótimo. E, ah, pilhas para isso aqui - acrescentou ela, apontando para o seu tocador de MP3.
- Vou ver o que posso fazer. - Jane empoleirou-se no banco ao lado de Tenille. - Você pensou direitinho sobre aquela história de ir até a polícia?
Tenille sacudiu a cabeça, teimosa até o fim.
- Não vai rolar, Jane. Vai ser impossível fazer isso e continuar vivendo como se nada tivesse acontecido.
- Mas não vai dar para continuar vivendo aqui também. - Antes que Tenille pudesse interrompê-la, Jane fez um gesto com a mão para que ficasse quieta. - Não
estou falando que vou te expulsar. Só estou dizendo que é uma alternativa bastante limitada. Vou ter que voltar para Londres daqui a mais ou menos uma semana e não
posso deixar você aqui sozinha para se defender. Além do mais, meu pai pode querer abater uma ovelha um dia desses - disse ela, sorrindo.
- Credo. - Tenille fez uma careta de nojo. - Quando consigo esquecer o que acontece aqui, você me faz lembrar tudo de novo. Olha só, tudo bem, eu sei que
não posso ficar aqui para sempre. Só preciso de uns dias para pôr a cabeça no lugar sem me sentir apavorada em tempo integral, está bem?
- Tudo bem. - Jane se levantou.
Tenille estalou os dedos e deu um muxoxo, contrariada.
- Hum, com tudo isso que está acontecendo, esqueci completamente. Tenho que te contar uma coisa.
- O quê? - Jane tentou disfarçar sua apreensão.
- Jake. Ele voltou. E está na sua cola.
Era a última coisa que ela esperava ouvir de Tenille. Chocada, Jane perguntou:
- Como assim? Ele está em Creta.
- Não, não está mais. Ele apareceu no apartamento no dia em que você veio para cá, quando eu ainda estava em Londres.
- Você deixou ele entrar?
- Claro que não. - Tenille fez uma expressão de desdém. - Ele tocou a campainha, eu vi pelo olho mágico. Chamou seu nome pela caixa de correio e depois se
mandou.
Jane sentiu o coração acelerar ao saber que Jake estava de volta. Detestava o fato de ele ainda ter o poder de fazê-la se sentir daquela maneira.
- Duvido que ele esteja na minha cola, Tenille - disse ela, tentando encobrir sua reação emocional.
- Eu sei que você duvida. Mas eu o vi novamente ontem, quando estava tentando chegar aqui. Eu estava na trilha, vindo de Grasmere. E lá estava ele. Na trilha
acima da fazenda, olhando para cá de binóculo. Como se estivesse espionando.
Jane franziu as sobrancelhas, atordoada.
- Ele estava espionando a fazenda? Por que diabos faria isso?
- E eu lá sei? Ele é maluco, Jane. Você merece alguém muito melhor.
- Você não o conhece - desconversou ela. - Mas não consigo entender por que estaria me espionando. Por que não veio direto para a fazenda?
Tenille deu de ombros.
- Vai ver que ele queria se certificar de que não havia mais ninguém na área. Ou então gosta mesmo de controlar você. Como eu disse, maluco.
- Tem certeza de que era ele mesmo? Ele não estava de costas para você?
Tenille deu outro muxoxo.
- Claro que tenho certeza. Cansei de ver Jake chegando ao seu apartamento. Ele está na sua cola, Jane.
Perturbada com a informação que Tenille lhe dera, Jane sacudiu a cabeça.
- Não consigo entender. - Ela afastou o cabelo do rosto, como se isso a fizesse pensar melhor. - Tenho que ir. Estou cheia de trabalho para fazer ainda. Você
vai ficar bem?
- Ahn-ahn. Não se preocupe comigo. Estou tranqüila.
- Você sabe que não vai poder acender as luzes depois que escurecer, né? É que dá para ver as luzes acesas lá de casa.
Tenille assentiu com a cabeça, desanimada.
- Eu sei. Acho que vou ter que me acostumar a dormir cedo, né?
- Pois é. Olhe, vou tentar voltar aqui mais tarde, mas não te prometo nada. Talvez só consiga amanhã mesmo. Mas vou tentar ao máximo. - Jane afagou a mão
de
Tenille, sem perceber que repetia o gesto de sua mãe. - Tente ficar calma.
Suas próprias palavras lhe pareceram inúteis enquanto ela voltava para casa. Tente ficar calma. Está bem; como se fosse fácil. Quanto tempo ela pegaria de cadeia
por abrigar uma fugitiva da polícia?, perguntava-se, preocupada. Matthew ia adorar isso. Sem contar que teria sinal verde para o que ela estava começando a chamar
de "o seu manuscrito".
Essa idéia a fez correr de volta para a mesa da cozinha e para os registros de nascimento, casamento e óbito que ainda não haviam sido examinados. Quando Judy voltou
da igreja, ela estava quase terminando.
- Como você está indo? - perguntou sua mãe depois de dar uma olhada no forno.
- Melhor do que eu imaginava. E a melhor notícia é que, se eu calculei certo, a pessoa mais provável mora um pouco acima na estrada.
- Típico da região. Que mundo pequeno. E quem é?
- Edith Clewlow. - Jane procurou a anotação que havia feito sobre ela.
- Edith Clewlow? - perguntou Judy, visivelmente consternada.
- Escute só, ela mora em Langmere Stile. Costumávamos brincar com o neto caçula dela, o Jimmy. - Jane ergueu os olhos e viu a expressão no rosto da mãe.
- O que houve?
Judy sentou-se pesadamente.
- Ela morreu ontem à noite. Edith Clewlow morreu ontem à noite.
"Deixamos Otaheite pela última vez no dia 23 de setembro. Ainda estavam comigo EdwardYoung, John Adams, John Williams, William McKoy, Isaac Martin, Matthew Quintal,
John Mills e William Brown. Havia também seis homens e 12 mulheres nativos. Meu objetivo era encontrar uma ilha deserta, sem nativos, em que fosse difícil ancorar,
que ficasse fora das rotas de navegação e fornecesse condições de sobrevivência para nós. Viajamos por alguns meses, buscando um local adequado para aportarmos.
Embora houvéssemos conseguido pacificamente trocar o bastante para comida e água em diversas ilhas, não conseguimos encontrar um lugar com os requisitos que eu determinara
para nosso lar. No fim, percebi que devíamos abandonar os arquipélagos onde os nativos se deslocavam livremente de uma ilha para outra e encontrarmos algum ponto
longínquo, sem vizinhos nas proximidades. Após uma longa análise dos gráficos e mapas de Bligh, finalmente decidi que partiríamos para Pitcairn.
27
Matthew contemplava, distraído, os alunos, suas cabeças abaixadas na sala de aula. Estavam em silêncio, resolvendo os problemas de aritmética que ele havia passado.
Sempre gostava de começar a semana com uma tarefa que exigisse concentração, para criar uma nítida divisória entre a anarquia do fim de semana e a disciplina da
escola. Dera-lhes um tempo para solucionar as questões, depois expôs os problemas no quadro-negro, antes de passar para o trabalho de genealogia antes do intervalo
matinal.
Ainda estava magoado com a acusação que Jane fizera durante o almoço, na véspera.
- Quando é que você planejava me contar sobre Dorcas Mason? - perguntou ela, assim que ele pôs os pés na cozinha.
- Hoje - respondeu, ciente de certa superioridade moral. - Quando você mencionou o nome dela noutro dia, eu achei familiar, mas não quis lhe dar falsas esperanças.
Então, voltei para casa e verifiquei os trabalhos dos meus alunos. Era muito tarde para ligar para você e ontem passei o dia inteiro fora.
- Você sempre tem uma resposta na ponta da língua, não é? - disse Jane. - Por que simplesmente não admite, Matthew? Você ia tentar encontrar o manuscrito
sozinho e colher os louros da vitória.
- Eu disse que ele ia te contar - interrompeu Diane. - Mas você sempre pensa o pior sobre Matt.
- Deve ser porque, normalmente, é o pior que corresponde à realidade - retrucou Jane. - Você não manifestou o menor interesse no meu trabalho até eu falar
sobre Dorcas Mason. Até então, a única coisa que fez foi debochar. Então, de repente, você quer saber tudo sobre ela, qual sua ligação
com o manuscrito, o que tinha a ver com a minha pesquisa. E nem um pio, nenhum indício de que talvez soubesse algo que pudesse me ajudar.
- Eu já disse: não queria te dar esperanças só para frustrá-las depois. - Matthew inclinou-se sobre ela e serviu-se de uma taça de vinho.
- Vamos lá, Matthew. Fale a verdade. Você estava planejando roubar a minha pesquisa e me passar a perna de vez.
- Você tem noção do quanto está sendo paranóica?
Allan estalou a palma da mão, produzindo um som semelhante ao de uma pedra desprendendo-se de um penhasco.
- Já chega, vocês dois. Se querem discutir, procurem outro lugar para isso. Já estão grandinhos demais para se comportarem assim.
E esse foi o fim da briga, pelo menos verbalmente falando. Por dentro, os irmãos continuaram fervendo de raiva. Matthew ainda mais do que Jane, ao constatar que
seu raro impulso de generosidade havia sido completamente mal-entendido. O olhar de desdém da irmã o deixava ainda mais irritado, e foi então que decidiu que não
levaria fama sem proveito. Jane podia ter as credenciais acadêmicas, mas ele tinha os contatos. O sujeito local era ele. Era diretor da escola e todos o respeitavam.
Alguns bochichos na sala de aula trouxeram Matthew de volta para o presente. Várias crianças já haviam concluído seus trabalhos; os mesmos de sempre, pensou
Matthew.
- Está bem, vocês já tiveram bastante tempo. Todo mundo largando o lápis. Questão um, quem vai me dar a resposta? - Sam ergueu a mão,
como já era de esperar. - Pois não, Sam?
a esse resultado? - Dois alunos levantaram a mão. - Está bem, Sam, venha até o quadro e nos mostre como solucionou a questão. - Matthew viu todas as questões, uma
a uma, terminando exatamente quando ouviram o sinal para o intervalo. Enquanto as crianças se levantavam e avançavam para a porta, ele perguntou: - Sam, Jonathan?
Vocês podem esperar um minuto?
Aproximaram-se de sua mesa, Sam tentando disfarçar seu interesse e Jonathan, seu nervosismo. Matthew pôs suas árvores genealógicas na frente dos dois meninos.
- Durante o fim de semana, fiquei sabendo de algo muito interessante. Uma ancestral de vocês dois, Dorcas Mason, trabalhou para uma pessoa muito importante
aqui em Cumbria. Vocês imaginam quem é essa pessoa?
Jonathan continuava imóvel como uma estátua. Mas Sam estava disposto a arriscar um chute:
- Beatrix Potter? - perguntou ele.
- Você está avançando muito no tempo, Sam. Isso aconteceu quando Dorcas era bem jovem, antes de se casar com Amold.
Sam enfiou o dedo no ouvido enquanto raciocinava.
- Wordsworth, então? - indagou ele.
- Isso mesmo. Dorcas Mason trabalhou como criada no Dove Cottage durante alguns anos quando era novinha. O que acham disso?
- Legal. Podemos acrescentar isso nas nossas árvores, que ela era empregada de William Wordsworth - disse Sam.
Jonathan jogou o peso do corpo de uma perna para outra.
- Isso quer dizer que ela era famosa? - perguntou baixinho.
Pela primeira vez, Matthew reconheceu algum valor na intervenção de Jonathan.
- Bem, não, famosa não. Mas ela provavelmente conheceu pessoas muito famosas na época. E é por isso que eu estava aqui me perguntando se algum de vocês ouviu
falar sobre uns papéis que ficaram com a família desde a época de Dorcas. Ela pode ter mantido um diário, ou ter escrito cartas comentando seu trabalho no Dove Cottage.
Ela pode até mesmo ter guardado alguns papéis que William Wordsworth jogou fora; esboços de poemas ou anotações que ele não viu necessidade de guardar. Algum de
vocês ouviu falar de algo do gênero?
Jonathan, inexpressivo, negou com a cabeça. Matthew ficou aliviado por haver menos chance de o manuscrito ter ido parar com os Bramley. Eles provavelmente o teriam
usado para fazer listas de compras. Já a família de Sam era muito mais alerta. O menino parecia desapontado.
- Que eu me lembre, ninguém nunca comentou nada sobre isso lá em casa - disse ele.
- Bem, vocês poderiam perguntar a respeito quando voltarem para casa hoje? - sugeriu Matthew, gentil. - Se existe algo, poderíamos colocar
no mural. Seria legal, não seria? Relacionar o nosso trabalho ao filho mais famoso da Cumbria?
Sam assentiu com a cabeça, entusiasmado.
- Ia ser o máximo. Vou perguntar ao meu pai hoje à noite. - Então, seu rosto assumiu uma expressão séria. - Se bem que talvez não seja o melhor momento. -
Seu lábio inferior estremeceu e ele cerrou os lábios bem apertados.
- A bisavó dele morreu no sábado - acudiu Jonathan. - É capaz de o pai dele não querer falar muito sobre a família agora, sabe.
Matthew disfarçou sua pontada de irritação.
- Quem sabe ele não entenderia que, se houvesse alguns papéis de Dorcas junto com as coisas dela, seria uma espécie de homenagem se nós os incluíssemos no
projeto. Você pode perguntar, Sam?
O menino concordou, recuperando a coragem:
- Eu pergunto.
- E você também, Jonathan. Agora podem ir, aproveitem o resto do intervalo. - Matthew observou os dois partindo. Não é fácil perceber algum gene comum nesses
dois, pensou consigo mesmo. Esperava que fosse Sam quem tivesse puxado a Dorcas. Seria triste pensar que o grande épico de Willidsworth terminara servindo para acender
fogueira. Mas, em Cumbria, onde os homens se orgulhavam por serem livres, tudo era possível.
Jane discutira seu plano de ação com a mãe. Judy lhe dissera que Gibson, de Keswick, já havia levado Edith para a funerária, mas que o corpo voltaria para o velório
na casa de sua neta, Alice.
- Você se lembra de Alice? - perguntou Judy.
- Para falar a verdade, não, ela era bem mais velha do que a gente.
- Nunca se casou. Foi para a faculdade estudar biblioteconomia. Trabalhou em Kendal por alguns anos, agora voltou para Keswick. É diretora da biblioteca atualmente.
Mora naquela casa nova, na rua Braithwaite. Ela possui mais cômodos para o velório do que o resto da família.
- Como acha que ela iria reagir se eu sondasse se a avó dela tinha alguns papéis antigos?
Judy olhou para a filha com uma expressão de gracejo.
- Bem, espero que você sonde de forma menos direta.
- Diplomacia é o meu nome, mamãe. Mas você acha que Alice saberia se Edith guardava algum documento da família?
- É possível. Mas você tem que perguntar isso ao Frank. Ele era louco pela avó. Ia lá todo santo dia pela manhã levar leite, jornal, ver se estava passando
bem. Por isso foi Frank quem a encontrou na manhã de domingo; estava indo buscá-la para a igreja. Mas ela já estava morta, na cadeira da sala de estar, tão tranqüila
que parecia estar tirando um cochilo.
- Que pena Jimmy não ser louco pela avó também. Eu sempre consegui embromar Jimmy direitinho. - Jane sorriu, lembrando-se do sorriso largo e do temperamento
fácil de Jimmy. Quase alimentara uma paixonite por ele; sua melhor amiga acabou por dissuadi-la, alegando que ele mais parecia um macaco, sobretudo quando estava
debruçado sobre sua bateria, sacudindo os braços.
Judy franziu os lábios.
- Jimmy Clewlow... Duvido muito que ele vá dar as caras no funeral. Raramente vem para cá desde que largou a faculdade para entrar naquela banda de música
pop.
- Não é uma banda de música pop, mãe, é um quinteto de jazz contemporâneo. E eles são muito elogiados. Já li algumas críticas dos seus CDs.
- Pode até ser, mas não é um trabalho de verdade, é?
- Tanto quanto ao meu. E ele provavelmente ganha muito melhor do que eu. - A conversa se desvirtuou para as lembranças dos tempos de colégio e sobre o que
os amigos de Jane estavam fazendo da vida. Mas Judy não lhe dissera para não ir ao velório, de modo que rumavam para Thistlethwaite Court para um contato imediato
de primeiro grau com os Clewlow.
Jane ficou aliviada ao constatar que Dan havia se recuperado completamente da sua intoxicação alimentar. Quando passou para buscá-lo no chalé, ele já estava normal,
olhos alerta, recém-barbeado.
- Recebi um e-mail de Anthony Catto - disse ela enquanto desciam a estrada principal. - Ele desencavou uma citação interessante de Wordsworth sobre fugitivos
da justiça escondidos em Lake District. Eu respondi contando nosso sucesso com as árvores genealógicas. Com Anthony, nunca se sabe, ele tem muitas fontes. Talvez
descubra alguma coisa.
- Toda ajuda é bem-vinda - disse Dan. - Agora me conte sobre os Clewlow.
Jane estava absorta em suas lembranças de infância enquanto iam em direção a Keswick. Mas, mesmo que tivesse notado o Audi prateado que os seguia no final da estrada
de Fellhead, provavelmente não teria achado nada estranho. Existem tão poucas estradas na região e tão poucas rotas que ser seguido por um carro não era nada suspeito
até segunda ordem.
A casa de Alice ficava no meio de um beco sem saída de casas idênticas que imitavam o estilo tradicional, com estrutura de madeira e estuque sobre meia dúzia de
fileiras de pedra cinzenta. Ficavam menos deslocadas na paisagem do que as residências executivas de tijolo vermelho que haviam surgido alhures. Havia três carros
grudados dentro do estacionamento e vários outros subindo a calçada, dos dois lados. Jane estacionou na frente do mais distante e eles caminharam de volta até a
casa; Jane carregava o bolo caseiro de maçã e canela que a mãe havia insistido que ela levasse.
- Você não pode aparecer com as mãos abanando - insistira ela.
Jane tocou a campainha e aguardou. Ouviu uma voz masculina:
- Pode deixar que eu atendo.
A porta se abriu. Ela mal pôde acreditar na sua sorte. Para do na soleira, exatamente como ela se lembrava dele, estava Jimmy Clewlow, nitidamente surpreso. - Jane
Gresham! - exclamou ele. Ele abriu e fechou a boca diversas vezes enquanto tentava encontrar o registro mais adequado para aquele encontro.
- Fiquei arrasada quando soube da sua avó - disse ela. - Quis vir prestar minhas condolências.
- Claro, imagine. Vamos, entre - gaguejou ele. - Metade da cidade está aqui. Mas, olhe, eu estou... comovido, acho que é essa a palavra. Com você. Aparecendo
aqui e tudo o mais.
Jane assentiu com a cabeça.
- Minha mãe não pôde vir. Ela me pediu para trazer isso. - Ela entregou o bolo para ele. - E este é meu colega, Dan Seaboume. Ele está aqui de passagem.
A atenção de Jimmy passou de Jane para Dan. Sua expressão também se alterou, passando de uma certa confusão para uma aguda curiosidade.
Jimmy cumprimentou Dan com um aperto de mãos. Dan manteve a mão de Jimmy entre as suas e o olhou nos olhos, muito sentido.
- Lamento muito a sua perda.
Jimmy assentiu.
- Obrigado. Venham. Estamos todos na sala de estar. Exceto vovó, é claro, ela está no jardim de inverno, lá nos fundos. Você quer... você sabe, não é? - perguntou
ele a Jane.
Ela parecia constrangida.
- Não, tudo bem... Não sou muito chegada a essas coisas. - Eles o seguiram até o hall e depois até um aposento de teto rebaixado que se estendia pela casa.
Jimmy não estava exagerando. Metade de Fellhead estava lá, e a maioria examinando a ela e Dan com curiosidade.
Alice notou a presença dos recém-chegados e desvencilhou-se educadamente da dona da loja de presentes de Fellhead. Alice mudara surpreendentemente pouco ao longo
dos anos. Seu cabelo castanho repicado estava ficando grisalho na altura das têmporas, mas as poucas rugas que lhe sulcavam o rosto eram mais o legado de risadas
que de dissabores. Usava um conjunto preto simples de calça comprida, e brincos de prata grandes em forma de lua crescente.
- Obrigada por terem vindo - disse automaticamente, abrindo um sorriso largo e franco.
- Meus sentimentos. Eu gostava muito da sua avó - disse Jane, de coração.
Alice franziu a testa, discreta, como se tentasse puxar pela memória.
- Esta é Jane Gresham e o amigo dela, Dan Seabourne - acudiu Jimmy. - Você se lembra de Jane, não? De Fellhead? Eu costumava brincar com ela e o irmão, Matthew,
em Langmere Stile. - Ele ergueu o bolo. - Ela trouxe um bolo.
Alice fez um gesto com a cabeça, reconhecendo-a.
- Obrigada. Claro que eu me lembro de você. Está morando em Londres agora, não é?
- Isso mesmo. Vim passar só algumas semanas aqui, trabalhando numa pesquisa com o Dan. Minha mãe me deu a notícia ontem e eu quis dar uma passada aqui para
dar uma força.
- Que bom que você vem visitar. Tem gente que só nos dá o ar de sua graça quando há uma morte na família - acrescentou ela, incisiva.
Jimmy deu um longo suspiro, como quem já ouviu isso várias vezes, mas prefere não discutir.
Jane sorriu para Alice.
- Para falar a verdade, estávamos planejando uma visita à sua avó esta semana.
Alice pareceu confusa:
- Eu não sabia que você costumava visitá-la. Ela nunca comentou nada.
- Não, eu não costumava. Mas achei que ela talvez pudesse nos ajudar com a nossa pesquisa.
- Vovó? - perguntou Alice, incrédula.
- Legal - comentou Jimmy. - O que você está fazendo? Algum projeto sobre história oral? Vovó tinha uma memória prodigiosa, centenas de histórias para contar.
Ela teria sido a pessoa ideal para conversar sobre essas coisas.
- Vocês não se arrastaram de Londres até aqui para ouvir a história de vida da minha avó - disse Alice, grosseira, com uma expressão desafiadora no rosto.
- Na verdade, não. - Todos aguardavam uma explicação e Alice se mostrava cada vez menos amistosa. - Eu não sei se vocês sabem disso ou não, mas, seis gerações
atrás, um membro da família de vocês trabalhou para a família de Wordsworth, no Dove Cottage. Era uma criada, chamada Dorcas Mason. Ela acabou se casando com o seu
sexto avô - disse Jane, contando as gerações nos dedos.
- E vocês acharam que a minha avó podia saber algo sobre essa tal de Dorcas? - perguntou Alice, cética.
- Na verdade, eu esperava que ela pudesse me dizer se havia alguns papéis, passados de geração para geração. Diários, cartas, talvez até mesmo esboços de
poemas descartados por William - explicou Jane, abrindo o que ela torcia para ser um sorriso conciliatório.
Mas Alice virara uma fera:
- Qual é o problema da sua família, hein? Primeiro o seu irmão telefona para ela querendo saber se vovó guardava algum documento antigo da
família, depois você aparece fingindo vir dar os pêsames, quando na verdade quer apenas sondar se minha avó deixou alguma coisa que valha a pena empenhar.
- Meu irmão?
- Não se faça de desentendida. Imagino que você tenha pedido para ele fazer o primeiro contato porque é diretor de colégio, dá aula para o nosso Sam e certamente
ganharia a confiança de vovó. E, quando nada disso adiantou, você decidiu aparecer aqui como um abutre, tentando descobrir se temos algo em que possam botar as mãos.
Jane sacudiu a cabeça, perplexa. Intimidada pelos olhos que haviam se voltado em sua direção, ela gaguejou enquanto se explicava:
- Não tenho a menor intenção de abusar da boa-fé de ninguém. Sou uma acadêmica, uma estudiosa. Não sou nenhuma trambiqueira. Eu só queria olhar. E não fazia
a menor idéia de que meu irmão havia conversado com a sra. Clewlow.
Alice bufou:
- Você deve achar que somos todos uns caipiras idiotas mesmo. Bem, antes que você vá perseguir o resto da família, aqui vai. Minha avó não tinha nada de valor.
Nem documentos antigos, nem jóias, nem ações e títulos. Então, o melhor que você faz é sair daqui imediatamente, porque não temos nada para lhe oferecer. Vá fuçar
sepulturas em Londres e nos deixe em paz.
Àquela altura, o aposento estava completamente silencioso e todos olhavam para eles.
- A senhora entendeu tudo errado - interveio Dan, com um tom de voz pacífico. - Não queremos tirar nada da senhora ou da sua família.
- E eu não acredito em você. Sendo assim, tanto faz se temos algo a ser tirado ou não, não é mesmo? Agora gostaria que vocês dois saíssem da minha casa.
Jimmy estava perplexo, mas esticou o braço e tocou o cotovelo de Jane.
- Vamos - disse em voz baixa, levando-a para fora da sala.
Jane ainda estava sob o impacto profundo da acusação injusta. Mal conseguia falar.
- Nós não estamos querendo passar a perna em ninguém - disse ela, assim que alcançaram a porta.
- Eu sei disso. Alice está muito triste. Ela amava muito a vovó. Vai ficar absolutamente sem graça amanhã.
- Não posso acreditar que ela tenha pensado tão mal de mim.
- É como Jimmy disse, ela está triste. As pessoas se comportam de maneira estranha quando estão de luto - disse Dan.
Jimmy assentiu com a cabeça, enfático.
- Não se preocupe com isso. Escute, vocês vão ficar por aqui mais algum tempo? Eu fico até o enterro, mas vou enlouquecer se tiver que ouvir essa gente toda
até lá. Vocês não topam sair para beber alguma coisa, não?
Jane estava tonta com a constante mudança de direção da sua visita.
- Claro, tudo bem. Ligue para a casa dos meus pais. O número está na lista telefônica.
Dan sorriu para Jimmy.
- Ótima idéia. Olhe, eu sei que não é a hora, nem o lugar... mas eu sou fã do seu quinteto.
Jimmy pareceu surpreso.
- Obrigado. Raramente ouço elogios por aqui.
- Seria um privilégio convidá-lo para um drinque por minha conta - acrescentou Dan.
- Não vejo a hora. - Jimmy abriu a porta e permaneceu parado na soleira enquanto eles caminhavam em direção ao carro de Jane. - Jane - chamou ele quando
ela estava poucos metros. - Não há nenhum documento. Sério mesmo.
Jane olhou para trás, observou seu sorriso ansioso e soube que ele estava falando a verdade.
- Voltamos à estaca zero - murmurou ela.
Dan deu uma última olhadela em Jimmy.
- Ah, eu não diria que nossa vinda foi inteiramente inútil. Ele é um gato.
Jane girou os olhos.
- Ele não é gay. E você tem namorado.
Dan abriu a porta do carro.
- Seja como for, acho que Jimmy pode ser muito útil para nós. Precisamos trazê-lo para o nosso lado e o convencermos a ficar conosco.
Sharon Cole estava sentada toda encolhida no escritório de Donna Blair. Assim que tirara o cartão-postal do bolso e o entregara à inspetora, Donna saíra do recinto,
segurando-o pela ponta e pedindo a Sharon que não fosse a lugar algum até ela voltar. Lá se iam vinte minutos, e Sharon estava começando a ficar arrependida por
ter se dado ao trabalho. Pelo andar da carruagem, ia chegar atrasada ao trabalho, e para quê? Tenille não era burra. Só queria que Sharon soubesse que ela estava
bem. Devia saber que Sharon mostraria o postal para a polícia. Se o enviara de Oxford, era tão certo quanto dois e dois são quatro que planejava se mandar de lá
no próximo ônibus ou trem. Não ia ajudar a polícia em nada em sua busca por Tenille e ainda estava bagunçando bonito o seu dia.
Mais dez minutos se passaram antes de Donna reaparecer.
- Obrigada por ter trazido isso, Sharon - disse ela, como se fossem velhas amigas ou algo do gênero. - Sinto-me mais inclinada a acreditar quando você diz
que não teve nada a ver com isso agora. Você tem certeza de que é a letra de Tenille?
Sharon fez que sim com a cabeça.
- Ela sempre põe esse pingo redondo em cima do "i".
- Vou verificar, você sabe. Ela deve ter feito a sua cota de trabalhos escritos no colégio. - Ela fez uma pausa, esperando alguma reação, mas Sharon permaneceu
impassível. - Você sabe se ela conhece alguém que more em Oxford ou nas redondezas?
Sharon olhou para Donna com uma expressão que parecia perguntar: "Ficou maluca?"
- Como ela poderia conhecer alguém de Oxford? Ela mal saiu de Londres na vida, que dirá para Oxford.
- Talvez uma colega de escola que tenha se mudado para lá, não? - insistiu Donna.
- Não que eu saiba. Eu te disse, ela não tem muitos amigos. E, de qualquer maneira, não ia fugir para a casa de uma colega de escola. Como ela iria esconder
Tenille? Até mesmo as famílias mais desajustadas percebem quando há uma criança desconhecida dentro de casa.
- Tenho que esgotar todas as possibilidades. Então você não acha que Oxford era o objetivo dela?
Sharon bufou:
- Duvido que ela sequer saiba onde fica Oxford.
Donna foi até o canto do escritório e contemplou suas prateleiras abarrotadas. Apanhou algo, quase provocando uma avalanche de papéis. Deitou o mapa rodoviário sobre
a mesa e o abriu.
- Eu sei onde fica Oxford - disse ela. - E sei que está no caminho para outro lugar. - Ela fincou o dedo no mapa.
Sharon franziu a testa.
- Que outro lugar? - perguntou ela, ignorando aqueles nomes de cidades de que jamais ouvira falar na vida.
- Lake District, Sharon. Onde Jane Gresham nasceu.
Por dois meses, bordejamos pelos frios ventos do sudeste e pelos mares hostis do Pacífico, ao sul das águas mais hospitaleiras de Otaheite eToobouai. Estávamos gelados
até os ossos e exaustos pelo trabalho de manejar um navio tão grande com um número tão limitado de homens. O chiado do vento no massame quase nos enlouqueceu com
sua altura e insistência. O Bounty estava em péssimas condições, as balizas do convés encolhidas e com vazamentos, o casco precisando ser vedado, as velas depauperadas
e em mau estado. Quando o novo ano chegou, estávamos desesperados para aportar. Finalmente chegamos ao lugar onde, de acordo com o mapa do Almirantado, Pitcairn
estava localizada. Mas não havia nem sinal de terra à vista. Tudo que podíamos enxergar, nas quatro direções, era a imensidão do mar.
28
Jane voltou de carro até o centro de Keswick, perguntando-se como poderia distrair Dan para fazer as compras que prometera a Tenille.
- Preciso resolver umas coisinhas. E nós temos que conseguir os endereços atuais dos nomes na lista - disse ela.
- Posso fazer isso, se você me deixar na biblioteca - ofereceu Dan. - Geralmente, sou bom nesse tipo de trabalho - acrescentou ele, pesaroso.
- Ajuda bastante saber a grafia correta. Tem certeza de que não se importa?
- Tenho. E você pode me fazer um favor? Se passar por um supermercado, pode comprar pó de café?
- Claro. Tenho mesmo que comprar umas coisas lá para casa. - Combinaram de se encontrar em um café no centro da cidade, e Jane em seguida partiu direto para
o mercado com o intuito de fazer umas com-prinhas para Tenille. Por sorte, era segunda-feira, o dia da semana em que Judy costumava almoçar e passar a tarde na casa
de uma amiga na aldeia. A partir do meio-dia, o sinal estaria verde para ela entregar as compras. Se seu pai estivesse no pátio, poderia deixar as sacolas no carro
até ele voltar para as montanhas.
Em plena manhã, o café estava lotado de mulheres fazendo uma pausa nas compras e de turistas se fortalecendo para encarar a caminhada até as montanhas. Ela conseguiu
encontrar uma mesa no canto direito, nos fundos, perto da porta da cozinha. Pediu um chocolate quente e um pão doce. Açúcar, era disso precisava. Algo que aquietasse
o zumbido em sua cabeça. Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, tanta coisa que não fazia sentido.
No almoço de domingo, quase chegara a acreditar que Matthew estava sendo sincero. Mesmo após uma vida inteira de experiências ruins, havia uma parte dela que ainda
se esforçava para crer que ele era capaz de mudar. Mas, quando Alice Clewlow revelara a ligação de Matthew para Edith, Jane fora obrigada a aceitar que tinha mesmo
razão. Naquela busca, Matthew era seu adversário. Sua alegação hipócrita de estar do lado dela não passava de mais uma de suas mentiras oportunistas, que só serviam
para livrar-lhe a cara e fazê-la passar por mesquinha e paranóica.
Por favor, meu Deus, não permita que ele descubra que estou escondendo Tenille. Ele entregaria as duas para a polícia sem pestanejar. E este, é claro, era seu segundo
problema. O que ia fazer com Tenille? Não conseguia imaginar uma maneira de minar aquela determinação inflexível de proteger Martelo. Não que Tenille não compreendesse
os riscos de sua atual estratégia. Não estava sendo tola, apenas teimosa. Contudo, mais cedo ou mais tarde, teria que ceder. Essa situação não podia ser nada além
de um acerto temporário, até Jane tomar uma decisão que não cabia mais a Tenille. Não podiam continuar daquele jeito. Abrigar uma fugitiva que por acaso era filha
de um homem que, ao que parecia, não media esforços para protegê-la já era ruim, mas mentir para a polícia e seus pais estava lhe tirando o sono, preocupada com
o possível desfecho da situação.
E ainda havia Jake. Que diabos ele estava querendo? Precisava acreditar em Tenille. A menina não tinha nenhum motivo para mentir. Fitava seu chocolate quente como
se pudesse encontrar as respostas que procurava no fundo da xícara.
O barulho da cadeira do outro lado da sua mesa sendo arrastada para trás a trouxe de volta à realidade. Mas o homem com a mão apoiada no espaldar da cadeira não
era alguém que ela imaginava encontrar tão cedo.
- Posso me sentar com você? - perguntou Jake.
- Então você está mesmo na minha cola - disse Jane, com um tom de voz surpreendentemente firme e calmo.
Jake deu um discreto passo para trás, visivelmente consternado.
- Como assim na sua cola?
- Me espionando, me seguindo. Você devia dar graças a Deus por eu não ter chamado a polícia - disse Jane, desfrutando a descarga de adrenalina que viera junto
com a indignação.
Jake ergueu as mãos num gesto de rendição.
- Caramba. Vamos com calma, está bem? Eu vim te ver, Jane. Falar com você. Dizer que cometi um erro. - Ele parecia arrependido. - Por favor, posso me sentar?
As pessoas estão olhando.
Jane percebeu que eles de fato haviam se tornado a atração do café. E já tivera a sua cota de olhares curiosos naquela manhã.
- Não tenho outra opção, tenho? - perguntou ela, cerrando os lábios.
A garçonete se aproximou, solícita.
- Eu vou querer um... - dizia Jake, antes de ser interrompido bruscamente por Jane:
- Ele já está de saída - disse ela, enfática. A garçonete se afastou, olhando de soslaio para eles ao partir. - Que diabos está acontecendo com você?
Jake suspirou fundo e baixou os olhos, fitando a toalha de mesa.
- Só peço para me escutar, por favor. Eu voltei porque senti saudade de você. Percebi que fui um idiota. Queria saber se ainda há uma chance para nós dois.
Para tentarmos mais uma vez. - Ele ergueu os olhos rapidamente.
- E por que não me ligou, então?
- Porque não tenho a menor dúvida de que você ia desligar na minha cara.
Era difícil não ficar tocada com sua expressão de tristeza. Mas Jane estava determinada a manter sua dignidade.
- E aí você decidiu me espionar?
- Eu liguei para a universidade e eles me disseram que você estava aqui. Então resolvi vir atrás e tentar abordar você quando estivesse sozinha. De certa
forma, fiquei na sua cola, sim. Mas eu só queria ficar a sós com você. - Ele estava com uma aparência péssima. - Concordo que não foi lá muito inteligente, mas não
consegui pensar em mais nada. Não quis te assustar.
- Não fiquei assustada, Jake. Fiquei puta da vida. E o que aconteceu em Creta, afinal? Ela te deu um pé na bunda?
Jake parecia magoado.
- Não, Jane. Foi como eu disse. Percebi que fiz merda e quis tentar me acertar com você. Nosso relacionamento era especial. E eu fui tão burro que joguei
tudo isso no lixo.
- Então você está me dizendo que acordou um belo dia em Creta e pensou "Meu Deus, cometi um erro terrível"?
Jake apanhou uma colher e pôs-se a mexer o chá, distraído. Ela recordou o toque daqueles dedos compridos em sua pele e tentou disfarçar a fraqueza que aquele pensamento
lhe inspirara.
- Foi um pouco mais complicado do que isso.
- Sou toda ouvidos.
- Eu... bem, eu vi uma matéria no jornal. Sobre um corpo encontrado no pântano. E me lembrei de como você ia ficar animada expondo a sua teoria sobre Willy
e Fletcher. - Seus olhos se encontraram, sem que nenhum dos dois piscasse ou desviasse o olhar. - E eu me lembrei de que nenhuma diversão em Creta se comparava à
que eu tinha ao seu lado. Então fiz as malas e voltei para casa.
Ela não sabia o que pensar. Ele parecia estar falando a verdade. Ela queria que ele estivesse falando a verdade. Mas ele disfarçava bem. Isso ela aprendera por experiência
própria. Inclinou a cabeça para o lado, pensando.
- Você voltou para casa por mim ou para conferir o manuscrito em primeira mão, se eu conseguisse encontrá-lo?
- O que me levaria a achar que você está atrás do manuscrito? - perguntou ele. - Desde que eu te conheço que você fala nesse manuscrito, mas nunca moveu uma
palha para encontrá-lo. É isso que você veio fazer? Descobriu alguma coisa? Foi por isso que veio para cá?
- Faria alguma diferença se eu dissesse não? Você subitamente perderia o interesse?
Jake fez um gesto negativo com a cabeça.
- Eu voltei por você, Jane. Não por um manuscrito de conto de fadas que provavelmente nunca existiu.
Ela queria acreditar nele. Mas ele a magoara demais para que essa fosse uma opção simples.
- Por que eu lhe daria outra chance? - perguntou ela, triste. - Você me magoou, mentiu para mim, fugiu.
- Eu sei que não mereço outra chance, mas eu te amo, Jane.
- E você ainda está trabalhando para ela?
- Caroline? Estou. Não tenho outra opção, preciso de um emprego. Mas vou procurar outra coisa. - Ele deu de ombros. - Eu fui um imbecil. Jane, por favor,
me dê outra chance.
Foi a vez de ela desviar o olhar, para esconder seu rosto dos olhos perscrutadores dele.
- Não estou preparada para isso, Jake - disse ela, devagar. - Mas podemos nos encontrar de novo se você pretende ficar mais uns dias por aqui. - Ela se esforçou
para dar um meio sorriso. - Desde que você pare de me seguir.
- Está bem. Combinado. Almoçamos hoje?
- Não dá. Tenho um compromisso.
- Amanhã?
Após um pouco de convencimento, Jane concordou em encontrá-lo em seu hotel para o almoço. Quando se levantou para partir, ele se inclinou sobre a mesa e beijou-a
na testa. Jane sentiu um arrepio da cabeça aos pés.
- A gente se vê amanhã - disse ele antes de ir embora, deixando-a pensativa.
Tenille inspecionou o conteúdo da sacola e por fim mostrou satisfação.
- Obrigada - agradeceu ela. - Te pago quando puder.
- Não precisa - respondeu Jane. - Finge que é um presente de aniversário atrasado. E aí, como você está?
Tenille apanhou um dos livros que Jane trouxera do supermercado.
- Basicamente, de saco cheio. Nem te conto como estava desesperada para ler alguma coisa.
- Vou trazer mais alguns lá de casa. Os meus livros estão quase todos em Londres, mas meu pai tem uma bela coleção de romances policiais das antigas, você
gosta?
- Nunca li nenhum. Vou experimentar.
Jane sentou-se no banco ao lado dela.
- Estive pensando. E se eu ligasse para o seu pai e explicasse a situação?
Tenille bufou:
- Não quero que ele pense que você está pedindo para ele se entregar.
- Isso nem passou pela minha cabeça.
- Bem, deveria ter passado. Assim como sou leal a ele, ele é a mim. Não quero que ele se entregue aos tiras por minha causa.
- Só pensei que talvez ele pudesse dar uma idéia de como podemos livrar você dessa situação. Ele já lidou mais com essas coisas do que nós duas, podia ter
algum plano. E, depois, eu quero que ele saiba que não represento nenhuma ameaça a ele.
Tenille estava na dúvida:
- Pode ser. Mas como você faria para entrar em contato com ele? Eu não sei o telefone.
- Vou pensar - disse Jane, sem conseguir ter uma idéia.
- E se a sua vizinha maluca desse o recado a ele?
- A sra. Gallagher? - perguntou Jane, espantada. - Por que ela?
Tenille saiu pela tangente:
- Tenho a impressão de que ela iria ajudar. Sempre foi legal comigo, sabe?
- Vou pensar a respeito.
Jane ficou de pé. - Bem, preciso ir. Dan vai voltar do chalé daqui a pouco e ainda vamos para Grasmere. Ah, você estava certa. Jake está aqui. E ele andou me espionando
mesmo. Disse que estava esperando uma chance de me abordar quando eu estivesse sozinha. Por isso, estava me vigiando.
Tenille fechou a cara.
- Eu disse que boa coisa não era. O que ele quer?
- Quer voltar.
- Não me diga que você vai topar uma coisa dessas. Você é boa demais para ele. E eu vi como você sofreu quando ele te deu um pé na bunda. Se ele realmente
gostasse de você, não teria feito o que fez. Estou lhe dizendo, Jane, você devia mandá-lo de volta para o quinto dos infernos.
Jane não pôde deixar de achar graça na seriedade de Tenille. Às vezes, esquecia completamente que ela só tinha 13 anos de idade.
- Aprecio a sua preocupação. Eu vou tomar cuidado, prometo. - Ela afagou o cabelo curto e espetado de Tenille. - A gente se vê mais tarde.
Tillie Swain seria a próxima da lista. Era cunhada de Edith Clewlow, mas, segundo Judy, Tillie e Edith nunca se deram bem. Tillie achava que o irmão tinha feito
um mau casamento e os dois ramos da família se mantiveram o mais distante possível, considerando que suas casas ficavam a poucos quilômetros uma da outra. Jane não
se lembrava de Jimmy falando sobre seus primos e tinha quase certeza de que não havia nenhum Swain na casa de Alice Clewlow naquela manhã.
Tillie morava em um chalé, ao sul da aldeia, uma das quatro construções que formavam um pequeno encrave, afastado da estrada principal. Ficara viúva na casa dos
cinqüenta anos, quando seu marido, Don, morreu em um acidente de carro no famoso Desfiladeiro de Wrynose. Desde então, uma amargura se apossara dela, junto com uma
artrite debilitante. Quando abriu a porta para Jane, encurvada e apoiando-se em uma bengala, pareceu bastante desconfiada.
- Sra. Swain? - perguntou Jane.
- Quem é você?
- Jane Gresham. Moro em Langmere Fell, logo acima de Fellhead.
- Na Fazenda Gresham? Você é a menina de Judy?
- Isso mesmo. E este é o meu colega Dan Seaboume. Será que poderíamos dar uma palavrinha com a senhora?
- Comigo? Olha, vou logo avisando, vivo de pensão, então nem adianta vir aqui atrás de doações para isso e aquilo.
Jane sacudiu a cabeça.
- Não é nada disso.
Tillie suspirou fundo, apertando os olhos por trás das grandes lentes dos óculos enquanto elucubrava.
- É melhor vocês entrarem, então. O calor vai acabar se dispersando com a porta aberta.
Eles a acompanharam até uma pequena sala de estar exageradamente aquecida que cheirava a talco e biscoitos rançosos. A imensa televisão que dominava o ambiente estava
ligada em uma novela australiana.
- Vão ter que esperar um minuto - avisou Tillie. - Não quero perder o final. Brad engravidou Ellie e agora vai contar ao marido dela que o filho não é dele.
- Vai ser um choque e tanto para Jason - comentou Dan, encarapitando-se no sofá e olhando atentamente para a televisão. - Ele e Brad são amigos há anos.
Os lábios enrijecidos de Tillie afrouxaram em um sorriso.
- Você também acompanha?
- Adoro - respondeu Dan.
Ela concordou com a cabeça.
- É um ótimo programa. Sempre uma emoção nova. Faz lembrar a minha juventude.
Finalmente, os créditos subiram ao som de uma música açucarada. Tillie diminuiu o volume e virou-se para eles.
- Além do mais, é a única companhia que eu tenho, não gosto de perder um capítulo - disse ela. - Então, o que a traz até a minha casa, Jane Gresham?
Jane estava absolutamente preparada para enrolar bastante antes de revelar o motivo de sua visita. Mas tinha certeza de que não adiantaria muito ficar de conversa
fiada com Tillie Swain, a não ser que falasse sobre novelas, assunto que estava longe de dominar. E, se deixasse Dan discorrer sobre esse assunto, tinha medo de
morrer de tédio. A única solução era injetar um pouco de emoção à sua própria busca.
- Estou numa espécie de caça ao tesouro.
Tillie bufou:
- Não vai encontrar nenhum aqui, filha.
Dan abriu um sorriso.
- Ora, sra. Swain. A senhora, que é fã de novelas, deveria saber que os tesouros se encontram nos lugares menos esperados. Acho que devia escutar o que Jane
tem a dizer antes de descartar as possibilidades.
- Sou acadêmica, especialista em Wordsworth - disse Jane. - Tenho motivos para acreditar que um manuscrito secreto foi confiado aos cuidados de um dos criados
da família. Um manuscrito muito importante. Um poema inédito de William Wordsworth. E estamos tentando encontrá-lo.
Finalmente captara a atenção de Tillie.
- Então valeria algum dinheiro?
- Valeria muito dinheiro, sim. E viraria notícia, na tevê e nos jornais. A pessoa que encontrasse o manuscrito e o seu dono ficariam famosos da noite para
o dia.
- Tudo isso é muito bom, mas por que você está me contando sobre um manuscrito secreto?
- A criada a quem o manuscrito foi confiado era a sua trisavó, Dorcas Mason. Gostaria de saber se a senhora sabe algo sobre ela.
Uma torrente de emoções inundou o rosto enrugado de Tillie. Ganância, desejo, frustração.
- Quem me dera - respondeu ela, amarga. - Eu saberia dar um bom uso para qualquer dinheiro que entrasse. - Ela exalou um longo e profundo suspiro. - Você
está perdendo o seu tempo aqui. Nunca ouvi nada sobre essa história. Nadinha mesmo.
Jane viu que ela falava a verdade. Desanimada, pôs-se de pé.
- Sinto muito por ter incomodado a senhora - desculpou-se ela, enquanto Dan também se levantava.
- A vida é engraçada, não é? - comentou Tillie. - Esta manhã, eu nem sabia que podia ser rica. Agora, estou com a sensação de ter sido praticamente roubada.
- Acredite, sra. Swain, estou mais desapontada do que a senhora. Tillie deu um muxoxo, desdenhosa.
- Duvido muito. Na sua idade, você não sabe o que é decepção.
Sei, sim, pensou Jane enquanto caminhavam de volta para o carro. O
pior é que eu sei, sim.
Você sem dúvida há de imaginar que fiquei desolado com esse aparente fracasso em localizar nosso refugio. Mas aconteceu justamente o contrário. Se eu não havia conseguido
localizar Pitcain valendo-me dos melhores mapas do Almirantado e com instrumentos de navegação de altíssima qualidade, isso significava que ninguém mais seria capaz
de localizá-la também. O que não resolvia o meu problema: como a encontraria se os mapas estavam errados, isolada entre milhares de milhas de água e mais água? Bem,
Cartaret descobriu Pitcairn em 1767, quatro anos antes de o inestimável John Harrison receber o Prêmio de Longitude. Sendo assim, deduzi que era bem provável que
Cartaret tivesse errado na longitude. Com isso em mente, defini como nosso curso uma rota em zigueza-gue pela linha da latitude. No dia 15 de janeiro, a ilha finalmente
surgiu no horizonte e nos aproximamos da terra ao entardecer. Mas ainda não era o fim da nossa jornada. Por mais dois dias, padecemos sobre um mar inquieto que impossibilitou
nossa ancoragem. Ao que tudo indicava, havia apenas um único local a se aportar na ilha e, assim que o mar serenou, remamos através da arrebentação espumosa. Quer
gostássemos ou não, havíamos chegado ao nosso novo lar.
29
Desde que voltara de Creta que Jake não se sentia tão satisfeito consigo mesmo. Seu encontro com Jane fora difícil, mas sua expectativa tinha sido pior. Foi um azar
ela ter descoberto que ele a andara espionando, mas achava que havia conseguido se justificar muito bem. Apanhou o telefone e ligou para Caroline, contente por ter
algo mais interessante do que a morte de uma aposentada para lhe contar.
- Olá, querido - disse ela. - Como vão as coisas?
- Finalmente estive com Jane.
- E como foi?
- Acho que estou no caminho certo. Vou almoçar com ela amanhã.
- Ela te disse se descobriu alguma novidade?
- Ainda nem me contou que está procurando algo. Está escondendo o ouro. Mas acho que consigo domesticar a fera.
- Não se esqueça da caixa postal dela - lembrou Caroline. - Você deve vigiar os e-mails. E os velhinhos? Matou mais algum hoje?
- Vou visitar o próximo da lista hoje. Só espero que não bata as botas antes que eu possa desenterrar algum segredo de família.
- Cuidado. Nem pensar de mais algum aparecer morto antes que você possa arrancar alguma informação decente. Talvez fosse melhor convencer Jane a te levar
a tiracolo nas entrevistas que ela está fazendo, agora que você está caindo nas graças dela novamente. Com os contatos locais que ela tem e com o nosso dinheiro,
talvez vocês avançassem mais juntos do que separados.
- Vou me esforçar. - Jake tentou não parecer tão desanimado quanto se sentia. Agora que estava atrás de um manuscrito de verdade, e não de
uma obra de sua imaginação, desconfiava que a abordagem mansa de Jane não adiantaria grande coisa. As pessoas precisavam de um motivo melhor para abrir mão dos seus
segredos de família do que a vontade de agradar uma acadêmica, mesmo uma acadêmica nascida nas redondezas. Sua abordagem tinha muito mais chances de produzir resultados
e não queria Jane por perto para testemunhá-la.
- Conseguiu saber se o corpo no pântano é mesmo o de Fletcher Christian?
- Não ouvi nada a respeito. E, se tivessem alguma novidade, eu com certeza saberia. As notícias voam por aqui.
- Sendo assim, acho melhor você procurar a tal antropóloga forense. Vai ver alguém interessado no mesmo que nós dois já entrou em contato com ela, alguém
esperto o bastante para sacar que a identidade desse corpo pode aumentar ainda mais o valor do que tem em mãos. Assim que tiver alguma novidade, me avise. - A linha
ficou muda do outro lado.
Jake sentiu-se curiosamente seguro após o telefonema. Agora, quando falava com Caroline, não havia nem sombra da excitação que experimentava no início. Era como
se o relacionamento deles houvesse migrado imper-ceptivelmente para o espaço ocupado pelo trabalho, e não pelo prazer. A única coisa desagradável era que se flagrava
perguntando o quanto de fato gostava dela, agora que não havia mais sexo.
Afastando esse pensamento da mente, voltou-se para o seu laptop e acessou a internet como se fosse Jane. Precisava ser cauteloso - não queria que ela tentasse entrar
na rede e não conseguisse por já estar supostamente conectada. Mas, pelo que sabia sobre a família dela, jantavam às 6:00 e, àquela altura, ela devia estar comendo
na mesa da cozinha. Ele foi direto para "mensagens enviadas" e encontrou um e-mail para Anthony Catto. Ao lê-lo, percebeu que se safara ileso de ter espiado o e-mail
que Catto mandara para ela. Logo ficou claro que Jane e Dan haviam superado a confusão sobre a grafia incorreta do sobrenome e tinham conseguido uma lista com os
descendentes de Dorcas. Estava na hora de se aproximar mais de Jane.
Fechou o computador e decidiu descer até o bar para tomar um drinque antes de partir para Grasmere para conversar com Tillie Swain. Empoleirou-se em um banco no
bar quase vazio e pediu uma cerveja. O barman, querendo
puxar assunto, perguntou se ele estava gostando de sua estada. Jake ficou de conversa fiada com ele e então perguntou, casualmente:
- Alguma novidade sobre o corpo encontrado no pântano?
- Não que eu saiba. Mas, por acaso, a pessoa para quem você deveria estar fazendo esta pergunta está aqui agora. - Ele fez um gesto com a cabeça, na direção
de uma mesa de canto onde uma mulher estava sentada absorta, estudando um arquivo, o rosto oculto por trás de uma faixa de cabelo castanho. - Aquela é a dra. Wilde,
é ela quem está examinando o corpo. Como aquela médica da série de televisão. Estão fazendo um programa sobre a história e tudo, sabe?
- De repente eu podia ir até lá e bater um papo com ela, hein?
O barman deu uma piscadela.
- É melhor você não demorar muito. Ela deve estar esperando o tira local.
- Não vá me dizer que a polícia está interessada em um corpo assim tão velho.
- O único corpo no qual o inspetor Rigston está interessado é o dela. Dizem que eles estão saindo juntos.
- Ah, entendi. - Jake ficou de pé. - É só um alô enquanto ela espera.
Ele foi até a mesa de River e pigarreou. Ela ergueu os olhos. Belos olhos cinzentos, pensou ele.
- Dra. Wilde? Eu sou Jake Hartnell. Lamento incomodá-la, mas gostaria de saber se pode me conceder um minuto do seu tempo para conversarmos sobre o corpo
no pântano.
- O senhor é jornalista, sr. Hartnell?
Jake negou com a cabeça.
- Não. Sou especialista em documentos antigos. E tenho um ligeiro interesse no caso.
- Parece intrigante. Por que não se senta? - Enquanto Jake se acomodava diante dela, River perguntou: - Por que um especialista em documentos antigos estaria
interessado no meu cadáver do pântano? Ele não estava com nenhum documento quando foi encontrado.
- É meio complicado - respondeu Jake. - Imagino que já lhe perguntaram se o corpo poderia ser de Fletcher Christian, não?
River deu uma risada.
- Um milhão de vezes. Está ficando chato. E a resposta é: por enquanto, ainda não tenho como saber. Existem várias semelhanças interessantes, mas, até eu
conseguir uma comparação decente de DNA com os descendentes diretos de Ghristian, é impossível afirmar com certeza. Mas continuo sem entender o que isso tem a ver
com alguém que trabalha com documentos.
- Bem, ouvi dizer que talvez exista um manuscrito muito interessante, cuja autenticidade poderia ser comprovada se soubéssemos com certeza que Fletcher Christian
voltou para Lake District - disse Jake.
- Muito misterioso.
- No meu trabalho, discrição é tudo.
River sorriu.
- No meu também. Então quer dizer que tem gente de olho nas memórias do sr. Christian, não é?
Jake riu.
- Você está jogando verde que eu sei.
- Claro que estou. Faz parte do meu trabalho, interpretar as pistas. Formar teorias em vez de esperar para ver se elas dão em alguma coisa. Então, é disso
que você está atrás?
Jake negou com a cabeça.
- Gostaria de poder dizer. Mas ainda está tudo muito no ar.
- Bem, se for mesmo o sr. Christian na minha mesa, você não vai ser o único pulando de alegria.
- Um passaporte para os programas de entrevistas, não é?
River fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não é a minha praia. Prefiro um passaporte para a estabilidade. - Súbito, seu rosto se iluminou, olhando por cima do ombro de Jake. - Oi - cumprimentou
ela, para alguém atrás dele. Jake virou-se e notou um homem alto se avultando sobre ele. Parecia a pessoa errada para se criar um caso e olhava para Jake com uma
expressão nada amigável. - Ewan, este é o sr. Hartnell. Ele está interessado no corpo do pântano.
Rigston sorriu.
- E quem não está? Qual é o seu interesse, sr. Hartnell?
Jake se levantou. Havia algo naquele homem que exigia respostas. Não esperava esse tipo de presença na polícia local de um lugarzinho como aquele.
- Estou curioso para saber se é Fletcher Christian ou não - respondeu ele.
- Você e todos nós. - Rigston voltou-se para River. - Desculpe ter te deixado esperando, tive que resolver um problema de última hora. -Virou-se novamente
para Jake. - Com licença, fizemos reserva em um restaurante para o jantar.
River recolheu seus papéis.
- Prazer, sr. Hartnell. Vamos cruzar os dedos. - Ela lhe deu um leve tapinha no braço ao passar por ele. Jake observou os dois se afastando, intrigado. Jamais
diria que formavam um casal. Ela parecia bem pouco convencional, e exuberante demais para sair com um policial. Perdido em seus devaneios, imaginou como ela devia
ser na cama. Depois, sacudindo a cabeça para organizar as idéias, terminou sua bebida. Tinha coisas mais importantes a fazer do que especulações inúteis sobre a
vida sexual dos outros. Marcara um encontro com Tillie Swain que tinha tudo para mudar o curso da vida de ambos.
A nuvem baixa trouxera consigo um manto de escuridão sobre as montanhas. Allan Gresham entrou na cozinha pouco antes das 6:00, esfregando as mãos geladas para melhor
aquecê-las.
- O que vocês acham de comermos uma pizza e assistirmos a um filminho? - perguntou ele para Judy, Dan e Jane, que estavam agrupados em torno do forno, tomando
um chá.
- Acho ótimo - respondeu Judy. - Só fiz um frango ao curry, que vai ficar melhor ainda amanhã.
- Desculpe-me, Allan, mas estou voltando para Londres - disse Dan. - Preciso cobrir as aulas de Jane amanhã.
- O que eu agradeço muito. O que temos em cartaz, pai? - perguntou Jane.
- Não faço a menor idéia. - Ele vasculhou a caixa de correio e apanhou uma propaganda do Cinema Zeffirelli, em Ambleside, que reunia uma pizzaria e duas salas
de projeção em um só lugar. - Aqui está - disse ele.
Jane deu uma olhada na programação. Um dos filmes ela já havia assistido e o outro ela não tinha a menor vontade.
- Podem ir sem mim - disse ela. - Eu tenho mesmo que trabalhar.
Judy tentou convencê-la a acompanhá-los, mas Jane estava inflexível. Já havia percebido que a saída dos pais poderia significar algumas horas de liberdade para Tenille,
uma vez que Dan estava prestes a partir de volta para Londres.
- Volto amanhã à noite - prometeu ele.
Depois que todos foram embora, decidiu esperar vinte minutos antes de se dirigir para o galpão de abate. Nesse ínterim, poderia tentar encontrar um modo de entrar
em contato com John Hampton. Estava quebrando a cabeça, mas não tivera nenhuma idéia melhor do que a sugerida por Tenille.
Conseguiu o número do telefone de Noreen Gallagher através do auxílio à lista. Ela atendeu após alguns toques.
- Sra. Gallagher? - perguntou Jane, reconhecendo na respiração ofegante nada mais grave do que a respiração normal da irlandesa.
- Quem está falando? - perguntou ela.
- Sou eu, Jane Gresham, sua vizinha de porta.
- Está tudo bem, sabe. Eu nunca ia deixá-los arrombar a sua porta. Eu falei que você era uma moça direita. Não sei que mundo é esse em que vivemos para a
polícia agora querer fazer o trabalho dos ladrões. - Ela se interrompeu, numa tosse encatarrada.
- Muito obrigada. É bom saber que posso contar com os vizinhos.
- Aqui existem pouquíssimos de confiança, para falar a verdade. Mas pode ficar tranqüila, o apartamento está sob controle e acho que sua amiga escapou sem
problemas.
- Minha amiga?
- A escurinha que vive enfiada na sua casa. Eu distraí a polícia para que ela pudesse escapar. Bem, não fiz mal, fiz? Uma escapadinha de nada, ela não vai
sair por aí matando gente, vai?
Jane estava confusa, mas concluiu que tentar buscar uma explicação só haveria de confundi-la ainda mais.
- Tenho certeza de que a senhora fez a coisa certa, sra. Gallagher. Escute, preciso pedir um favor. Se a senhora não puder fazer, não tem problema.
- Diga logo o que é. Pedir não custa nada. Se eu puder, vou ajudar.
- Preciso mandar um recado para uma pessoa aí do prédio... John Hampton.
Fez-se um silêncio, cortado apenas pelo chiado ofegante de Noreen.
- O Martelo? - perguntou ela, finalmente.
- Não tem problema. Eu estive com ele, ele sabe quem sou.
- Isso não ia me deixar dormir à noite, disso eu tenho certeza. Você estaria mais protegida se ele não soubesse.
- Não se preocupe, sra. Gallagher. Eu sei o que estou fazendo.
Ela bufou ruidosamente.
- Acho que você não tem a menor idéia do que está fazendo. Esse homem é perigoso, vai por mim.
- Prometo que não vai criar problemas para a senhora. Só preciso que lhe entregue um bilhete, pedindo para me ligar.
- É só enfiar o bilhete debaixo da porta? Não preciso dar o meu nome nem nada?
- Não precisa. Só um bilhete pedindo para ele ligar para a dra. Gresham.
- Porque a reputação dele é um horror. Eu não quero criar caso com essa gente.
- A sra não vai criar caso com ninguém. Ele vai gostar de ter notícias minhas, eu garanto.
A sra. Gallagher suspirou fundo.
- Você sabe onde ele mora?
- No Bloco D, 87.
- Vamos lá, então, me dê seu telefone. Vou fazer isso hoje mesmo, mais tarde. Antes que meu medo me faça pensar duas vezes.
Jane lhe passou o número de seu celular, repetindo-o em seguida para confirmar que ela havia anotado direito.
- A senhora é um amor, Sra. Gallagher - disse ela. - Não vou me esquecer disso. É realmente importante para mim.
- Agora trate de se cuidar. Se envolver com gente como Martelo não é para uma moça como você.
Jane finalmente conseguiu encurtar a conversa com a promessa de que faria uma visita à sua vizinha assim que voltasse a Londres. Desligou com um suspiro de alívio.
Não fazia a menor idéia do que Tenille e a sra. Gallagher haviam tramado e nem queria saber.
Alguns minutos depois, abriu o abatedouro e iluminou o rosto assustado de Tenille com uma lanterna.
- Que tal algumas horas lá em casa? Dan voltou para Londres e meus pais foram ao cinema em Ambleside. Só vão voltar depois das 10:00. Você pode até tomar
um banho, se quiser.
Tenille desvencilhou-se rapidamente do saco de dormir.
- Que pééééssimo - brincou ela, abrindo um sorriso. - Cara, eu estou enlouquecendo aqui. Quando tem luz, até que vai, mas escurece tão cedo. Eu não me lembrava
que a droga do campo era tão escuro.
Tenille a seguiu até a cozinha, dirigindo-se direto para a quentura do fogão.
- Isso aqui é o máximo - disse ela, contemplando a cozinha à sua volta. - Cara, você é muito sortuda por ter um lugar desses.
- Eu sei - respondeu Jane. - Talvez você possa voltar para uma visita quando tudo isso tiver acabado.
- Seria incrível mesmo - concordou Tenille.
- A propósito, a sra. Gallagher vai levar um bilhete para o seu pai, pedindo que me ligue. Vamos torcer para ele ter alguma idéia genial de como podemos tirar
você dessa.
Tenille bufou:
- Não quero que ele pense que não sou grata pelo que fez.
- Não vamos entrar nesse assunto. Quer tomar um banho de banheira? Ou algo quente para comer?
- Prefiro uma ducha. Não curto muito banheiras, não. Mas uma bebida quentinha ia cair muito bem. Um café rola? - Ela observou Jane enchendo a chaleira e pondo
água para ferver. - Acabou que eu nem perguntei. O que você está fazendo aqui, afinal?
- Tirei uma licença, para fazer umas pesquisas. Coisas que eu só podia resolver aqui mesmo.
- Pesquisas sobre o quê? Vamos lá, Jane, me distraia com alguma coisa. Me fale sobre seu trabalho. Você sabe que eu curto essas coisas.
Jane podia ver o entusiasmo nos olhos de Tenille e sentiu que não podia frustrá-la. Fez café para ambas, depois se sentou à mesa para contar a história toda para
Tenille. Chegou mesmo a apanhar as árvores genealógicas para mostrar como ela havia chegado à ordem das pessoas que deveria entrevistar. Tenille a interrompeu diversas
vezes para fazer perguntas surpreendentemente pertinentes e o tempo voou, acelerado pela magia da narrativa.
- Que máximo - disse ela, quando Jane chegou ao fim da história. - Mas você não vai chegar a lugar nenhum sendo boazinha, você sabe.
- Como assim?
- Se o manuscrito existe, não acredito que ninguém na família ignore a existência de Dorcas e dos documentos. Então, se ele de fato existe mesmo, deve estar
mais do que escondido, como algo sagrado confiado à família. Ou então eles sabem que estão com algo que de fato não lhes pertence e preferem ficar de bico fechado.
De um modo ou de outro, não vão virar para você e falar: "Olha, Jane, estamos há um tempão esperando alguém chegar e nos perguntar a respeito disso." Vai ser mais
algo do tipo: "Que merda, alguém descobriu nosso grande segredo de família, é melhor juntarmos esforços e despistarmos essa mulher." Você pode ser superlegal com
eles que não vai fazer diferença. Eles vão criar todos os empecilhos possíveis.
- Você acha? Acha que eles ainda querem manter segredo depois de todo esse tempo? Pra quê?
Tenille deu de ombros.
- Vai saber. Mas as pessoas são estranhas com essas coisas de família. Você sabe disso.
- Então o que você me sugere? - perguntou Jane, friamente.
- Nada que você fosse aprovar, irmãzinha - respondeu Tenille, seca.
Antes que Jane pudesse dizer mais alguma coisa, o telefone tocou. Ela tomou um susto, consultou o relógio e disse:
- Caramba, olha a hora. - Ela atendeu: - Alô?
- Jane? É o Jimmy. Jimmy Clewlow. Está muito tarde para ligar, não é? Eu sei que fazendeiros dormem com as galinhas.
Distraída pela ligação, Jane não percebeu Tenille enfiar uma folha de papel dentro da jaqueta.
- Não, tudo bem, Jimmy. Só um instante. - Jane tapou o fone com a mão. - Você tem que ir. Meus pais devem estar chegando daqui a pouco.
Tenille assentiu com a cabeça.
- Obrigada pela noitada. Foi ótima. A gente se vê amanhã, está bem? - Ela já estava se dirigindo para a porta.
- Amanhã - confirmou Jane, esboçando um gesto de despedida antes de voltar-se para o telefone. - Desculpe, Jimmy, tive que tirar uma coisa aqui do fogão antes
que fervesse. Lamento muito por hoje de manhã.
- Esqueça isso. Alice, quando está em seu estado normal, já é meio grosseira. E hoje ela estava longe do seu estado normal. Escute, será que você e seu colega
Dan não topam sair para jantar amanhã?
- Por mim, está ótimo. Mas Dan teve que voltar para Londres. Ele só volta lá pelas 8:00.
- Pego vocês às 8:30 então, pode ser?
- Perfeito. - Conversaram mais alguns minutos, depois se despediram. Jane desligou com um sorriso no rosto. Dois coelhos com uma cajadada só. Um possível
aliado para ter acesso às memórias da família Clewlow e uma desculpa perfeita para recusar o convite para jantar que ela estava certa de que Jake faria no almoço.
As coisas estavam melhorando, sem sombra de dúvida.
À medida que explorávamos nosso novo lar, ficou claro que a ilha já havia sido habitada. Existiam vestígios de trilhas na vegetação rasteira e formatos de jardins
há muito abandonados nos declives a leste. A opulenta terra vermelha parecia fértil e descobrimos reservas suficientes de todas as plantas nativas que assegurariam
nossa sobrevivência em todos os sentidos - amoreiras para tecidos, nogueiras para luz, palmeiras para telhados, frutas e legumes silvestres. Água fresca em abundância.
Em suma, tudo de que precisávamos estava ao alcance de nossas mãos. No início não seria nada fácil, mas eu acreditava que poderíamos criar ali um ambiente extraordinário,
à base de trabalho árduo e liberdade. Nossas explorações também encontraram um novo ancoradouro, a leste da ilha. Levamos o Bounty para lá e nos preparamos para
ocupar nosso novo Éden. Fiquei tão entusiasmado com nossa chegada e nossas perspectivas que esqueci que em todo paraíso deve haver uma serpente.
30
Andar numa bicicleta sem farol no breu noturno de Londres seria fatal. Se bem que em Londres não havia breu. Ao contrário daqui, pensou Tenille, descendo sem frear
a ladeira suave de Fellhead que levava à estrada principal. No campo, por estar nublado e sem estrelas, era como pedalar debaixo da terra. Tenille imaginou-se como
um trem de metrô, avançando veloz e apagado por túneis silenciosos, desertos. Só ela e os ratos, as únicas criaturas vivas da noite. Supunha que houvesse outros
animais, ocupados em seus turnos da noite, perseguindo suas presas, matando e morrendo. Mas seu território era outro, não tinha importância.
Quando chegou à estrada principal, virou à direita em direção a Grasmere. Era bem fácil encontrar o Dove Cottage, pois, além de ficar na estrada principal, tinha
uma sinalização ostensiva. Tenille escorou a bicicleta de Jane na parede. Ela rondou o chalé, imaginando Wordsworth em seu interior, curvado sobre o braço da poltrona,
rabiscando um verso e depois parando para pensar. Era estranho imaginar o que havia sido escrito dentro daquelas paredes. A casa em si não tem nada de especial,
pensou ela. Não era o tipo de lugar em que a pessoa batia os olhos e logo pensava: "Uau! Alguém muito famoso deve ter morado aqui."
Ela voltou até a bicicleta, pensando mais uma vez em como tivera sorte de tê-la visto pela porta entreaberta de um dos anexos quando Jane a conduziu até a casa.
Foi então que tivera a idéia de pegá-la emprestado para um passeio noturno. Qualquer coisa para escapar do abatedouro, que a enlouquecia. Sabia que não adiantaria
nada pedir permissão para Jane, de modo que resolvera ali mesmo que iria esperar passar de meia-noite para escapar
furtiva em seu passeio. Mas, quando Jane contou sobre sua pesquisa, outra idéia lhe ocorreu.
De modo que, 1:00 da manhã, e lá estava ela, a única pessoa em movimento. Tenille saiu da estrada principal e avançou silenciosa para dentro da aldeia. Foi então
que percebeu que seu plano não seria de tão fácil execução. Não fazia a menor idéia de como localizar o chalé de Tillie Swain, mas imaginara que não seria difícil
encontrá-lo em um lugar tão pequeno. Contudo, estava acostumada com Londres, onde as ruas tinham nomes visíveis, e até mesmo nos conjuntos habitacionais como Marshpool
as portas tinham números. Grasmere era praticamente outro país. Lindo, sem dúvida. Mas não fora projetado para facilitar a vida dos turistas. Algumas ruas não contavam
com sinalização e a maioria das casas não tinha número, apenas nomes. E, é claro, não havia ninguém para lhe dar uma informação.
Por fim, avistou um mapa atrás de um vidro, na frente de uma lojinha de suvenires. Era praticamente impossível enxergar alguma coisa, mas Tenille não desistiu até
descobrir onde estava e onde ficava a casa de Tillie Swain. Voltou para a estrada principal e seguiu rumo ao sul. E lá estava o chalé, bem nos confins da aldeia.
Todos os quatro chalés estavam com as luzes apagadas. Tenille deixou a bicicleta na entrada e caminhou até a casa de Tillie, tentando permanecer nas sombras. Com
a leveza de um gato, avançou pela lateral, até os fundos, onde examinou suas opções. Havia portas no pátio, que ela sabia que, supostamente, eram fáceis de deslocar
das roldanas. Mas não tinha um pé-de-cabra e não queria se arriscar, fazendo barulho. Restava apenas a porta dos fundos, que lhe parecia bastante firme com uma fechadura
embutida e não uma externa. Aprendera sobre fechaduras quando pequena, mas isso já fazia tempo e não dispunha das ferramentas adequadas, apenas um par de pinças
e
um arame forte que havia pegado no galpão onde estava a bicicleta. Não era uma missão de todo impossível, mas preferia não arriscar. Sua esperança eram os vasos
de planta que ornavam o pátio. Quem sabe Tillie não havia escondido uma chave debaixo de um deles? Não seria a primeira vez.
Ajoelhada, Tenille pôs-se a levantar os vasos um por um, tateando por baixo em busca de algo similar a uma chave. Teve sorte logo no quarto vaso. Apanhou a chave
e sorriu. Esfregou-a na calça para limpá-la e dirigiu-se à porta dos fundos.
Alguns minutos mais tarde, precisou reconhecer sua derrota. Não era a chave da porta dos fundos. "Merda", resmungou ela. A única alternativa era tentar a porta da
frente, exposta a qualquer aposentado insone que estivesse sentado no escuro, contemplando a rua pela janela. Bem, não tinha outro jeito. Era a porta da frente ou
nada.
Sempre cautelosa, voltou para a frente do chalé e experimentou a chave, que se encaixou na fechadura e girou sem fazer o menor ruído. Em questão de segundos, estava
no vestíbulo, sentindo o cheiro da velha. A casa estava toda escura e silenciosa. Prosseguiu com cuidado pelo corredor e espiou o primeiro cômodo, à sua esquerda.
Era a sala de estar. Um bom lugar para começar sua busca. Entrou, fechando a porta em seguida, imersa na escuridão. Tateou a parede em busca do interruptor, acendeu
a luz. Se alguém visse o cômodo aceso, na certa pensaria que Tillie estava com dificuldade para dormir. Assim esperava.
Vasculhou o quarto, rapidamente. Havia um aparador antigo encostado em uma das paredes; dirigiu-se até ele. As duas gavetas estavam abarrotadas de papéis. Tenille
apanhou a primeira leva e começou a examinar. Recibos de contas, cartões-postais, apólices de seguro, um testamento guardado no envelope de um advogado. Nada relevante.
A segunda gaveta era igualmente inútil. Por que alguém guardava contas de luz da década de 1980 era algo que estava além da compreensão de Tenille.
Respirou fundo. A velha deveria esconder as coisas realmente importantes no quarto. Procurar lá estava fora de questão, mas uma espiada não faria mal.
Tenille apagou a luz e voltou para o corredor. A porta em frente estava fechada e, com o máximo de cautela, ela abriu uma fresta. Era um quarto, sem dúvida. Mas
as cortinas estavam abertas e a cama, vazia. No entanto, era com certeza o quarto de Tillie. Todos os seus pertences estavam na mesa-de-cabeceira - um copo de água,
o estojo dos óculos, alguns livros. Um cardigã estava largado despretensiosamente no espaldar da cadeira. Tenille sentiu um frio na barriga. Onde estava a velha?
Não era possível que tivesse arrumado algo para fazer àquela hora da madrugada.
Esqueça isso, pensou ela. Deve ter ido dormir na casa de algum parente. Não interessa. O que importava é que ela não estava lá e aquela era uma
oportunidade única. Tenille fechou as cortinas e acendeu a luz do quarto e começou a vasculhá-lo.
Vinte minutos depois, teve de admitir que fora tudo em vão. Os únicos papéis que encontrara haviam sido algumas cartas, amarradas por uma fita vermelha desbotada,
junto com a certidão de casamento de Donald Swain e Matilda Clewlow. Olhou as horas em seu relógio. Quase 2:00 da manhã. Hora de zarpar, sobretudo se ainda pretendia
dar uma olhada no chalé de Edith Clewlow também. Só faltava conferir a cozinha e o banheiro, mas não acreditava que alguém fosse arquivar documentos nem em uma nem
no outro.
Apagou a luz, tornou a abrir as cortinas e saiu, tão silenciosamente quanto entrou. Devolveu a chave e dirigiu-se de volta à bicicleta. Pelo jeito, Tillie Swain
havia
dito mesmo a verdade, afinal.
Pedalou pelas vias silenciosas, vendo apenas um caminhão com o logo de um supermercado na direção oposta. Até mesmo naquele fim de mundo as pessoas não abriam mão
de suas marcas favoritas. Voltar para Fellhead subindo a ladeira dava muito mais trabalho, mas Tenille não entregou os pontos. A aldeia estava silenciosa e escura,
uma única luz reluzia, vinda do único poste no parque. Foi lá que Tenille parou para consultar o mapa e a lista dos nomes e endereços que ela surrupiara mais cedo.
A falecida Edith Clewlow morara em Langmere Stile, que, de acordo com o mapa, ficava a quase dois quilômetros montanha acima. Não era longe, mas tampouco era divertido.
Suspirando fundo, Tenille encarapitou-se de volta na bicicleta e começou a subir a ladeira. Ia voltar para Londres mais em forma do que nunca.
Não teve dificuldade para encontrar o Chalé Cotovia. Dessa vez, deslizou a bicicleta para os fundos da casa, que deveria estar vazia. Não queria correr o risco de
algum passante ver a bicicleta do lado de fora. Um morador local ficaria imediatamente desconfiado e ela podia apostar que, em dois tempos, chamaria a polícia.
Dessa vez não teve tanta sorte com a porta dos fundos. Mas a janela da cozinha não estava devidamente trancada e ela conseguiu suspender a vidraça o suficiente para
esgueirar-se para dentro da casa. Aterrissou em uma pia, produzindo um estardalhaço, e, por alguns segundos, ficou paralisada de medo, prendendo a respiração. Mas
logo a casa voltou a ficar silenciosa.
Demorou muito mais para examinar o chalé de Edith Clewlow. Em vida, acumulara tanta coisa que deixaria um esquilo para trás. Tenille gostaria de saber se a velha
algum dia ouvira falar em reciclagem de papel. Havia caixas de fotografias, gavetas entupidas de cartas e cartões-postais, um arquivo sanfonado lotado com todos
os documentos oficiais que Edith e David haviam recebido em vida. O livro de família estava num armário ao lado da cama, em cima de uma pilha de anotações garatujadas
sobre a infância de Edith em Seatoller. Abaixo, havia uma pasta com recortes de jornal sobre as proezas da família, de partidas de futebol locais até concursos de
cães e feiras de produtos agrícolas da região. Mas nada sobre William Wordsworth ou Dorcas Mason.
Quando Tenille finalmente terminou, já passava das 4:00 da manhã. Sabia que precisava se mandar antes que todos na redondeza começassem a despertar. Já aprendera
que estava num lugar onde as pessoas não achavam nada demais acordar no meio da madrugada e dirigir um trator para cima e para baixo. Colocou a pilha restante de
fotografias de volta numa caixa de madeira entalhada e saiu do mesmo jeito que entrou.
Quinze minutos depois, estava de volta ao galpão de abate, após ter guardado cuidadosamente a bicicleta. Enfiou-se no saco de dormir, sentindo que havia feito um
bom trabalho. Não havia encontrado nada; tudo bem. Mas pelo menos agora dois nomes podiam ser devidamente cortados da lista.
Jane estava tomando a segunda xícara de café quando seu pai surgiu na cozinha, trazendo a correspondência matinal, uma expressão taciturna no rosto. Ela sabia que
ele já havia estado nos pastos mais altos para verificar um carneiro com suspeita de barriga d'água, por isso perguntou:
- E então, o que você achou? É preciso chamar o veterinário?
Ele aparentou estar momentaneamente atordoado, depois perguntou:
- O carneiro? Não, acho que ele está bem. O veterinário já ia vir na quinta-feira mesmo, aí eu peço para ele dar uma olhada.
- Que bom. Pela sua cara, achei que ele tivesse piorado.
- Para ser sincero, o que Adam estava contando me fez esquecer completamente do carneiro - disse Allan, indo até a geladeira para se servir de um copo de
leite.
Adam Blankenship era o carteiro de Fellhead desde que Jane se entendia por gente e seu furgão parecia funcionar como uma espécie de ímã para todas as notícias das
redondezas.
- Más notícias? - indagou Jane.
Allan olhou para ela de soslaio.
- Foi Tillie Swain que você foi visitar ontem, não foi? Em Grasmere?
- Foi. Por quê? Ela andou falando mal de mim?
Allan sentou-se diante da filha.
- Ela não vai mais falar mal de ninguém, minha querida. Morreu ontem à noite.
Jane arregalou os olhos, chocada.
- O quê? Ela me pareceu bem quando estive lá. Tirando a artrite, estava bem esperta.
Allan abriu os braços, num gesto de desamparo.
- Estava velha. Acontece.
- Já se sabe o que aconteceu?
Allan fez um gesto negativo com a cabeça.
- Adam não soube me dar muitos detalhes. Pelo que se sabe, a artrite dela piorava pela manhã, então uma enfermeira ia até lá todos os dias para tirá-la da
cama e dar banho nela. Quando a moça chegou hoje cedo, encontrou Tillie estatelada no chão do banheiro, gelada. Pode ter levado um tombo, ou tido um derrame, um
ataque cardíaco, não sei.
- Coitada. Que jeito de morrer, deitada no chão do banheiro, sentindo sua vida se esvair. Não gosto nem de pensar. Morrer sozinho já é ruim; imagina assim,
comprometendo sua dignidade.
Allan deslizou o polegar na lateral do copo.
- Acho que não existe dignidade na morte, seja ela como for. Só nos resta tentar viver com dignidade, não morrer.
Jane não encontrou palavras para retrucar o comentário do pai.
- É meio assustador, não acha? Duas mortes no intervalo de alguns dias. Parece muito para um lugar tão pequeno. Sobretudo por estarem ligadas ao meu trabalho.
Allan deu de ombros.
- É só uma coincidência. Não sei por quê, mas os velhos normalmente parecem morrer em grupo. É sempre assim: um se vai e depois três ou
quatro decidem bater as botas. Não acho nada demais ambas serem da mesma família. Todo mundo aqui é parente de alguém. Você mesma está ligada a metade da aldeia,
de um jeito ou de outro, não se esqueça.
- Tem razão. - Jane terminou o seu café e levantou-se. - Melhor eu ir andando. Vou ver algumas pessoas em Keswick.
- E sua mãe?
- Está colhendo sabugos.
- Já estamos nesta época do ano? O tempo está passando cada vez mais depressa.
Jane beijou o rosto do pai.
- Pare de fingir que é um velho.
Allan lhe retribuiu um sorriso oblíquo.
- Quem disse que estou fingindo?
Uma hora e meia depois, Jane estava se despedindo de um verdadeiro achado. Eddie Fairfield era um frágil senhor de 82 anos, os olhos remelentos, a pele áspera e
o cabelo grisalho com mechas amareladas pela nuvem de nicotina que seu cachimbo exalava à sua volta.
- Larguei quando tinha cinqüenta anos e prometi a mim mesmo que, se chegasse aos oitenta, voltava a fumar. Foi a melhor coisa que eu fiz na vida, é o meu
único prazer atualmente - disse ele após ter educadamente pedido licença para fumar. - Mal consigo andar até o final da rua e não faço a menor idéia do que lanchei
ontem à noite. Nossa empregada me traz um prato de comida quente toda noite, do contrário acho que nem ia me lembrar de comer. Meu filho queria me pôr num asilo,
mas eu disse que, enquanto tiver um sopro de vida em meu corpo, não saio da minha casa. Você já esteve em um desses asilos?
Jane mal teve tempo de responder que sim; ele continuou, sem se deixar interromper:
- Um bando de velhas corocas olhando para o nada. Ou então são todas birutas, achando que têm 18 anos novamente. Nenhum homem está a salvo com essas doidas
caducas por perto, ora. Você pensa que elas perderam o interesse, mas que nada. - Ele sorriu para ela, dando uma piscadela. - Se tivessem sido tão assanhadas assim
quando tinham 18 anos, teriam feito a alegria de muitos rapazes, vou lhe dizer.
Ele insistiu em preparar um café com leite para ela e cambaleou pela cozinha com um pratinho de biscoitos de chocolate.
- Não é todo dia que recebo a visita de uma moça tão bonita - disse ele. - O mínimo que posso fazer é recebê-la como manda o figurino.
Quando ela finalmente conseguiu uma brecha para falar e explicou o propósito da sua visita, ele ficou animado:
- Sim, eu ouvi falar nela quando era criança - contou ele, seu sotaque da região ficando cada vez mais acentuado à medida que mergulhava no passado.
Jane sentiu uma pontada de euforia. Seria esse o começo do fim de sua busca?
- Sério? - perguntou ela. - O que você ouviu?
Ele fechou os olhos.
- Deixe-me lembrar. Foi Beattie, a minha avó, quem me falou sobre ela. Seu nome de solteira era Clewlow. Beatrice Clewlow, nascida em 1880. Era a mais velha.
Seus pais, Arthur e Annie, tiveram mais três filhos: Beattie, Alice, que ficou em casa e nunca se casou, e Edward, que morreu na segunda batalha de Ypres e que,
até onde sabemos, nunca teve filhos. - Ele lhe deu uma piscadela, em tom de conluio. - Se bem que, com todas aquelas francesas por perto, nunca se sabe, não é? E,
por fim, Arthur Júnior. Bem, essa Dorcas que você está procurando era a avó deles. E eu tenho a impressão de que ela gostava de contar histórias, assim como vovó
Beattie. - Ele abriu os olhos. - Ela falava bastante na sua avó Clewlow comigo e com minha irmã gêmea, Annie. Engraçado, há anos que não me recordo disso. - Ele
deu um sorriso triunfal, satisfeito com a façanha de sua memória.
- O que ela contava sobre Dorcas? - perguntou Jane, tentando disfarçar sua ansiedade.
Ele deu uma baforada no cachimbo.
- Falava muito sobre seus últimos anos. Quando já estava viúva, cuidando das crianças. Mas eu me lembro de Beattie contando que sua avó, ou seja, Dorcas,
foi uma criada de confiança da família Wordsworth. Dizia que estava presente quando William Wordsworth deu seu último suspiro e que lhe dissera como fora triste
ver um homem tão nobre, impotente diante da morte. - Ele sacudiu a cabeça. - E isso é tudo de que consigo me lembrar.
Conversaram mais um pouco, mas logo ficou claro para Jane que ela havia exaurido o fluxo de lembranças de Eddie. Ele não recordava de nenhum documento ou segredo
de família relacionado a Dorcas. Tudo de que se lembrava era o seu momento de fama - sua presença no leito de morte de Wordsworth.
Era óbvio que Eddie poderia passar um dia inteiro conversando com ela, mas Jane não se esquecera do seu compromisso com Jake e finalmente conseguiu partir com dez
minutos de antecedência.
Desceu a rua principal sentindo-se mais leve. Fizera algum progresso naquela manhã. Pelo menos tinha certeza de estar pesquisando a família certa. E ainda ia almoçar
com Jake. Apesar de sua decisão de não confiar nele, não podia evitar a comoção que a perspectiva provocava. O que não significava que ia cair no charme dele novamente.
Claro que não.
Nossos primeiros dias em Pitcairn foram bastante duros. O verão estava no ápice e remover do nosso navio esfarrapado tudo que poderia ser salvo foi um trabalho
árduo, sobretudo no calor. Não obstante, todos se mostraram igualmente dispostos a colaborar na retirada dos nossos pertences. Por fim, quando havíamos removido
tudo que podíamos carregar conosco, encalhamos o Bounty sob um penhasco de 213 metros e, no dia 23 de janeiro, o queimamos para garantir que não seríamos descobertos.
O fogo lambeu o revestimento de cobre do casco e finalmente, sacudido pelas ondas, o Bounty afundou trinta metros. Não restava mais nada a fazer a não ser começarmos
nossa colônia em harmonia. Dividimos a terra em nove frações iguais entre os homens brancos e decidimos que os nativos não deviam possuir terra alguma, e sim trabalhar
para nos servir, o que se coadunava melhor com a mentalidade infantil deles. No início, vivíamos em abrigos improvisados com velas e galhos, mas logo demonstramos
nossa intenção de lá permanecer construindo moradas permanentes de madeira. Depois, selando nosso pacto com a ilha, minha mulher, Isabella, deu à luz meu primeiro
filho, Thursday October Christian, nove meses após nossa chegada. Eu me considerava um homem realmente feliz.
31
Jake já estava sentado à mesa quando Jane entrou no restaurante. Parou na entrada por um momento, avaliando sua reação. Era uma cena tão familiar; a mecha de cabelo
negro caída sobre a testa, o arco perfeito das sobrancelhas sobre os olhos azuis e os cílios longos, a marca de nascença castanha no osso malar direito que mais
parecia uma mancha deixada pelo polegar da mãe, o nariz reto e comprido e os lábios finos. Às vezes ela achava que ele se parecia com Sherlock Holmes, caso o famoso
detetive fosse mais interessado na sensualidade que no intelecto. Houve uma época em que ficaria tocada ao flagrá-lo assim, distraído. Mas agora cada reação sua
era regida pela cautela. Tinha um plano. Só precisava segui-lo à risca.
Enquanto ela se aproximava, ele ergueu os olhos do cardápio, avistou-a e ficou de pé. Ele se aproximou para dar-lhe um beijo no rosto enquanto ela se desvencilhava
do casaco, dando um passo para o lado e livrando-se do cumprimento dele.
- Você está incrível - elogiou ele.
Um a zero para mim. Ela não se arrumara de propósito. Sabia que estava bem, mas não incrível.
- Gentileza sua - disse ela, acomodando-se na cadeira e apanhando o cardápio. Pediu uma taça de vinho branco para a garçonete, que a rondava solícita, e sorriu
para Jake. - Então, o que você está fazendo para matar o tempo aqui nesse fim de mundo?
Não era, obviamente, a abordagem que Jake estava esperando. Ficou desconcertado, depois se recompôs e deu de ombros.
- Bem, agora que parei de te perseguir, tive que me contentar com o museu do lápis. Você sabia que eles fizeram um folheto inteiro sobre técnicas para apontar
lápis?
- Aqui nós damos valor aos prazeres mais simples - respondeu Jane, secamente. Deu uma olhada no cardápio e, quando a garçonete trouxe as bebidas, ela disse:
- Vou querer só uma salada Caesar com frango, por favor.
Assim que Jake pediu o seu filé e eles ficaram a sós novamente, Jane perguntou:
- Quer dizer que você realmente voltou de Creta só para se acertar comigo?
Jake caprichou no seu olhar de cachorro sem dono.
- Eu disse a você. Percebi que tinha cometido um baita erro. Não sei se é tarde demais, se o estrago foi muito grande. Mas gostaria de poder tentar novamente.
- Está bem. Por mim, tudo bem. Mas quero ir aos poucos. Não quero me precipitar.
Ele assentiu com a cabeça.
- Você é quem manda. - Ele sorriu e ela sentiu um frio na barriga. - Para mim, já basta estar sentado aqui com você. Me parece um excelente começo. - Ele
ergueu sua taça e a tocou na de Jane. - Aos novos começos.
- Aos novos começos.
- Então, o que você veio fazer aqui afinal? Eles disseram na faculdade que você estava de licença.
Dois a zero. A pergunta viera cedo demais, direta demais. Suas suspeitas acerca das intenções de Jake não paravam de aumentar. Esforçou-se para dar um sorriso e
respondeu:
- Willy e Fletcher. Encontrei um material jamais catalogado em um arquivo na fundação, algo muito intrigante.
- Intrigante em que sentido? - Jake tentava parecer casual, mas ela notou que segurava a haste de sua taça com mais força que de costume.
- Há, sem dúvida, um manuscrito desconhecido que a família não quis que viesse a público. E encontrei nas cartas algumas pistas que apontam para Fletcher
Christian. Tenho conversado com os descendentes da última pessoa que teve a posse do manuscrito e estou confiante de que estou no caminho certo. - Estava mentindo,
mas essa mentira não era nada se comparada às que ele já lhe contara.
- Sério? Você está prestes a encontrar um manuscrito de Wordsworth sobre Fletcher Christian? - Sua empolgação era evidente, o que parecia bastante razoável
naquelas circunstâncias. O próximo passo seria crucial.
- Eu posso ajudar, você sabe.
Três a zero. Dessa vez, não experimentou nenhuma satisfação em estar certa. A certeza de que não se enganara com Jake foi uma punhalada em seu peito. Jane afastou
a cadeira para trás e apanhou o casaco.
- Melhor não. Fiquei com a pulga atrás da orelha quando você apareceu. Não que eu sofra de baixa auto-estima ou algo do gênero, mas não podia acreditar que
um sujeito egocêntrico como você teria feito tamanho esforço para voltar comigo, a não ser que fosse lucrar algo com isso. Bem, agora vejo que tinha razão. Você
não está interessado em mim, está interessado no manuscrito.
Jake estava visivelmente em pânico.
- Você entendeu tudo errado, Jane. Não estou nem aí para o manuscrito, vim por sua causa.
- Não acredito. Acho que você está aqui por um único motivo: para que você e sua querida Caroline possam enriquecer à minha custa. E vou logo avisando, podem
tirar seus cavalinhos da chuva. E faço questão de avisar à família que possui o manuscrito para não confiar em você também. - Ela ficou de pé, ignorando a expressão
consternada naquele rosto que ela tanto amara um dia. Estava arrasada, mas disposta a manter-se firme até o final. - Adeus, Jake.
- Jane - chamou ele enquanto ela partia em direção à porta. Mas não a seguiu, o que deixou Jane aliviada. Isso só reforçava sua certeza de que fizera a coisa certa.
Ele não estava atrás dela. Estava atrás do seu manuscrito.
Admoestando-se mentalmente, Jane entrou no carro da mãe e foi até a região leste da cidade, onde Letty, a prima de Eddie Fairfield, morava em um anexo ligado à casa
de seu filho em Chestnut Hill. Ele lhe dissera que Letty era a neta favorita de Beattie; se ela havia falado sobre Dorcas com mais alguém, só poderia ter sido com
Letty.
Jane parou na saída do estacionamento, esperando uma brecha no tráfego, ainda inconformada com a sua vulnerabilidade, incapaz de se parabenizar por ter se mantido
firme em relação a Jake. Seu monólogo interno foi
interrompido quando, para sua surpresa, viu seu irmão passando de carro. Verificou as horas no relógio. Vinte para as duas. Matthew devia ter saído da escola no
horário do almoço.
Não podia deixar de se perguntar o que ele estaria tramando. O dentista da família era em Ambleside, o médico, em Grasmere. Não conseguia adivinhar o que seria tão
urgente para obrigar Matthew a sair mais cedo do trabalho.
Exceto, é claro, seu desejo de lhe passar a perna.
Chegou a pensar em segui-lo, mas já era tarde demais. Três carros passaram antes que ela pudesse arrumar um espaço livre no trânsito e, àquela altura, ele já estava
longe. Xingando baixinho, Jane engoliu sua raiva e seguiu para a casa de Letty. Pelo menos tinha a certeza absoluta de que Matthew não estava indo para lá, uma vez
que passara na direção oposta.
Não lhe ocorrera então que ele poderia estar voltando da casa de Letty. Mas mal precisou colocar os pés dentro da casa para se dar conta de que tinha outro motivo
para maldizer sua estupidez por ter perdido tempo encontrando Jake no almoço. Letty ficou surpresa com a sua chegada. No início, Jane pensou que era uma mera confusão
típica da idade. Mas logo descobriu a verdade. Enquanto ela conversava com Jake, Matthew estava na casa de Letty.
- Um rapaz tão educado - disse ela. - Fiquei de procurar uns papéis para ele. Não consegui me lembrar de onde estavam na hora, sabe?
Jane assentiu, tentando ficar calma.
- Documentos antigos de família, não é?
- Exatamente, minha querida. Pensei que estivessem guardados numa das caixas na garagem de Gavin. Gavin é o meu filho. Esta casa é dele, ele mandou construir
o anexo para que eu pudesse continuar por perto, mas com a minha independência. Mas, assim que seu irmão saiu, lembrei que guardei algumas caixas com lembranças
da família no armário do quarto de hóspedes e, quando fui lá procurar, achei. Viu só que sorte?
Jane sentiu o coração acelerar. Calma, provavelmente não tem nada a ver com o que você está procurando.
- Com certeza. Será que eu poderia dar uma olhadinha? Eu e Matthew estamos trabalhando juntos nessa pesquisa e, já que estou aqui, ele não precisaria voltar
para verificar.
- Claro, querida. Vamos, coloquei lá dentro, na mesa da cozinha.
Seguiu Letty até a cozinha e, assim que entrou, reconheceu a sua presa.
Uma pilha de papéis, amarelados com o tempo, presos por um barbante.
- Aí está, querida. Pode olhar com calma e ver se encontra o que está procurando. Seu irmão não entrou em muitos detalhes, disse apenas que se tratava de
algo escrito por Wordsworth nas coisas da minha trisavó. Não creio que haja nada disso aí, mas pode examinar à vontade.
Jane sentou-se e tirou o barbante. A primeira folha não prometia muito. Uma carta datada de 1886, endereçada a Arthur Clewlow, parabenizando-o pelo nascimento de
seu segundo filho, também chamado Arthur. Jane passou os olhos por ela rapidamente e logo a pôs de lado. A próxima era uma receita de creme de ruibarbo. As seguintes
eram contas domésticas de 1883. Jane prosseguiu mesmo assim, examinando minuciosamente cada folha de papel em busca de alguma pista. Letty estava sentada ao seu
lado, pontuando a tarefa com uma torrente de comentários absolutamente irrelevantes. Jane precisou resistir ao impulso de expulsar a senhora de sua própria cozinha.
Uma hora depois, Jane teve que admitir sua derrota. Sabia mais sobre as minúcias domésticas do ramo dos Clewlow que descendia do filho mais velho de Dorcas, Arthur,
do que qualquer ser humano em sã consciência poderia desejar. Mas não encontrara nada sobre a própria Dorcas, nem alguma referência a qualquer manuscrito em posse
da família. Jane virou a última folha e sacudiu a cabeça.
- Lamento, mas não encontrei o que esperava.
- Ah, querida, fiz você perder o seu tempo com bobagens da minha família - disse Letty, parecendo realmente chateada.
- Não tem importância. Obrigada por ter se dado ao trabalho de procurar isso para nós. Não tem mais nenhum papel? Nada da própria Dorcas? Talvez as caixas
na garagem...?
Letty negou com a cabeça.
- Sinto muito, querida, isso é tudo o que eu tenho daquela época. A vovó Beattie costumava falar sobre a avó, que ela havia trabalhado para William Wordsworth
e que estivera presente em seu leito de morte, mas não creio que tivesse cartas de Dorcas ou algo do gênero.
- Tudo bem. - Jane experimentou novamente a já familiar onda de decepção. - É a vida. - Ela ficou de pé. - Obrigada pelo seu tempo.
- Que nada. É um prazer ter a companhia dos jovens. Sinto falta disso morando aqui. Quando eu ainda estava na minha casa em Braithwaite, tinha vizinhos maravilhosos.
Eles tinham dois filhos adolescentes que viviam lá em casa. Adoravam ouvir as histórias do meu tempo. Nunca mais estive com eles - disse ela, tristonha. - Ninguém
aparece por aqui.
Jane não encontrou nada adequado para dizer.
- Sinto muito.
- Não envelheça, minha querida - disse Letty, com tristeza, enquanto a levava até a porta. - Como era mesmo aquela música que meu filho Gavin vivia cantando
na década de 60? "Tomara que eu morra antes de ficar velho", é isso. Os cantores devem estar velhos agora, não é?
- Só dois - respondeu Jane. - Os outros dois conseguiram a façanha, mas não creio que tenham ficado muito felizes.
- Tem razão. Bem, boa sorte, minha querida. Espero que você encontre o que está procurando.
Jane despediu-se de Letty, exausta com os acontecimentos do dia. Pelo menos ia jantar com Jimmy e Dan. Algumas horas para tentar esquecer a traição e o fracasso.
Jake terminou seu café, ainda remoendo o modo como Jane o tratara. Meu Deus, qual o problema das mulheres? Ele se rebaixara, oferecera a barriga como um cão reconhecendo
o líder da matilha. E ela, do nada, resolvera ir embora e deixá-lo falando com as paredes. Desgraçada. Se estivesse contando com a lealdade de Jane, estaria ferrado
com Caroline àquela altura.
Porque agora, com o fora que Jane lhe dera, as coisas seriam um pouquinho mais complicadas do que ele imaginara. Cerrou os lábios, com uma expressão tão sinistra
no rosto que até a garçonete se afastou de sua mesa. Desgraçada. Tinha certeza absoluta de que conseguiria enrolá-la. Mas estava cansado de barganhar migalhas das
mulheres em sua vida. Em breve lhes mostraria quem era o manda-chuva. Seguiria seus planos e encontraria o maldito manuscrito sozinho. E então Jane se arrependeria
de lhe ter virado as costas. Faria o possível e o impossível para que ela jamais chegasse perto da obra-prima inédita de William Wordsworth.
Jane estava na dúvida se devia ou não dar um pulo na escola e avisar Matthew para não perder tempo voltando a Keswick para examinar os papéis de Letty. E soltar
os cachorros em cima dele. Acabou desistindo. Já tivera drama o bastante naquele dia para durar por várias semanas. Além do mais, uma viagem à toa era o mínimo que
ele merecia pelo seu comportamento lamentável. Jane pegou o telefone e ligou para Dan.
- Onde você está? - perguntou ela.
- Acabei de pegar a Ml - respondeu ele. - Missy Elliott me pegou de jeito na saída do seminário da tarde. Acho que estava me sondando.
- Pobrezinho. Como foram os seminários?
- Você tem o meu eterno respeito por não ter cometido um ato de violência nesse semestre. - Os dois riram. - Falando sério agora, acho que correu tudo bem.
Ninguém perguntou nada que eu não soubesse responder, o que era minha maior preocupação. E você? Como foi seu dia até agora?
Jane contou as novidades para ele.
- Para falar a verdade, a melhor parte foi dar um chega-pra-lá em Jake.
- Bom trabalho, moça. Temos que comemorar hoje à noite.
- Falando nisso, que horas você acha que chega aqui?
- Umas 7:00, 7:30. Vai depender do trânsito. Por quê?
- Jimmy Clewlow vem nos buscar 8:30 para jantar.
- Não conseguiu resistir, não é mesmo? Viu só o meu magnetismo animal?
Jane fez uma careta.
- Você está se iludindo, você sabe. Que mania de achar que todo mundo é gay.
- Veremos.
- Deixa eu desligar, acabei de chegar em casa. Até mais.
Assim que estacionou no pátio, notou um carro desconhecido e perguntou-se, distraída, qual das amigas da mãe se dera o luxo de comprar uma BMW. Não deveria ser mulher
de fazendeiro, era certo. Os lucros da agricultura estavam cada vez mais escassos. Suspirando fundo, Jane saiu de dentro do carro.
Ao abrir a porta da cozinha, deparou com dois estranhos sentados à mesa e sua mãe com uma expressão tão assustada que mais parecia que os quatro cavaleiros do Apocalipse
haviam apeado seus cavalos no celeiro.
- Até que enfim - disse Judy, com um tom de alívio e irritação na voz.
Jane examinou as visitas, que haviam se levantado sem pressa. Não
conhecia aquele casal e sabia que não eram amigos da mãe. O homem parecia amarrotado e o terno muito justo indicava que a barriga saliente devia ser relativamente
recente. A mulher, ao contrário, parecia passar o dia todo na academia. Mas suas roupas estragavam o efeito. Femininas e delicadas, realmente não combinavam com
aqueles ombros de lançadora de peso soviética.
- Jane Gresham? - perguntou a mulher. Seu sotaque londrino ficou evidente nessas poucas sílabas. - Sou a inspetora Blair. Este é o detetive Chappel. Precisamos
conversar com você.
Jane largou a bolsa sobre a mesa.
- Vocês têm alguma identificação? - perguntou ela. Os dois apresentaram suas carteiras, que ela fez questão de examinar. - Polícia de Londres, hum? Imagino
que seja sobre Tenille - disse ela, sentando-se pesadamente em uma cadeira. - Sentem-se, vocês estão assustando minha mãe, parados feito dois-de-paus na cozinha
dela.
Eles se sentaram novamente.
- Por que você acha que é sobre ela? - perguntou Donna.
- Em primeiro lugar, não cometi nenhum crime recentemente. Em segundo lugar, a minha amiga Tenille está fugindo porque a polícia encasquetou com a idéia bizarra
de que ela matou um homem duas vezes mais velho e maior do que ela em Londres. E, em terceiro lugar - acrescentou, contando os motivos nos dedos -, um policial muito
simpático esteve aqui sábado à noite e vasculhou a fazenda inteira à toa atrás dela.
- Você teve alguma notícia de Tenille desde que ela saiu de Londres?
- Nada, nem um telefonema, um e-mail, uma mensagem de texto ou qualquer outra forma de comunicação de Tenille desde que vim para cá, que foi antes de o crime
ser cometido. Como eu disse ao inspetor Rigston no sábado. E de lá para cá nada mudou - disse Jane, ciente de que parecia arrogante, mas sem realmente se importar.
Donna Blair não tirara os olhos dela nem um segundo.
- A tia de Tenille recebeu um cartão-postal da menina ontem pela manhã, dizendo que estava sã e salva. Você imagina de onde o postal foi enviado?
Jane esforçava-se para permanecer impassível.
- Não. Deixo a imaginação fértil para vocês, parece ser uma especialidade, já que acham de verdade que Tenille foi capaz de cometer assassinato.
- Temos motivos para acreditar que Tenille planejava vir para cá atrás de você. Se você está realmente dizendo a verdade, então acho que algo ruim pode ter
acontecido para impedir que ela chegasse aqui. Isso não a deixa preocupada? - Donna inclinou-se para a frente enquanto falava, apoiando os antebraços na mesa.
- Claro que me deixa. Toda essa história me preocupa. E, se eu tivesse alguma informação, daria para vocês. Sou uma cidadã decente, inspetora. Não acho que
os policiais são monstros. Se lhe pareço hostil é porque tenho certeza de que Tenille seria incapaz de matar alguém. Ela é uma menina de 13 anos que, ao contrário
de muitas outras de sua idade, não é um projeto de marginal. Ela não usa drogas. Até onde sei, nem bebe. E, enquanto vocês estão perdendo tempo e energia tentando
encontrá-la, o verdadeiro assassino está solto por aí, rindo de vocês. - Jane terminou de falar sentindo-se constrangedoramente corada.
- Então você não se incomodaria se déssemos uma olhada pela fazenda? - perguntou Donna, delicada.
- Melhor perguntar para minha mãe. Ela é a dona da casa.
Donna virou-se para Judy.
- Notou se alguma comida andou desaparecendo, sra. Gresham?
Judy ficou surpresa.
- Comida?
- Se ela está aqui, precisa comer - respondeu Donna.
- Não, nada. E eu teria notado, acredite - respondeu Judy, indignada.
- Está bem. A senhora se importa se dermos uma olhada geral?
Judy olhou insegura para Jane, que concordou com a cabeça.
- Tudo bem, mãe. Eu posso acompanhá-los.
Conduziu Donna e o detetive pela casa. Quando chegaram ao seu quarto, Donna avistou o laptop.
- Você se importa de ligar seu computador? - perguntou ela. - Gostaria de verificar sua caixa postal.
Sem dizer nada, Jane fez o que lhe foi pedido, conectando-se à internet para facilitar o trabalho da inspetora. Donna passou dez minutos verificando tudo, incluindo
a pasta de mensagens recentemente apagadas.
- Obrigada - agradeceu ela ao terminar.
Seguiram pelos cômodos remanescentes, depois Donna pediu para ver as dependências da fazenda. Jane divertiu-se ao levá-los pelo caminho mais nojento, certificando-se
de que tivessem que caminhar sobre lama e estrume de cordeiro. Levaram mais de meia hora até se darem por satisfeitos. Nem notaram o galpão de abate, escondido em
um dos cantos remotos do campo, atrás da casa. Mas ela também planejou um caminho que evitasse qualquer possibilidade de que ele fosse visto. Finalmente, Donna admitiu,
ainda que a contragosto, que Tenille não parecia estar na fazenda.
- Não cultive nenhuma idéia idealista tola sobre proteger os inocentes - disse ela quando Jane os levou até o carro. - Se tiver alguma notícia dela,
nos avise. Como você mesma disse, não somos monstros. Se ela é inocente, não tem nada a temer.
- Pode deixar - mentiu Jane. Observou-os partindo, angustiada. Se haviam vindo de Londres só para conversar com ela, estavam levando a coisa a sério. Estariam
levando a sério a ponto de vigiar a fazenda? Um sujeito na colina com um binóculo flagraria suas visitas noturnas ao galpão de abate. Mas era um risco que seria
obrigada a correr. Não poderia abandonar Tenille nesse momento. Precisava continuar protegendo a menina, pelo menos até Martelo entrar em contato com ela.
Nossa pequena comunidade começou a ter o ar de uma colônia estabelecida, com a demarcação de jardins e cercados para animais. Pescamos, cuidamos da terra e as cercas
levantadas delimitavam uma vizinhança harmoniosa. Nossas mulheres deram à luz e exploramos nosso novo lar. Entre as diversas descobertas estranhas estavam cinzéis,
machadinhas e quatro ídolos de pedra, representações grosseiras de homens. Utilizamos essas pedras para a fundação das nossas construções, uma vez que não fazia
sentido deixá-las sem uso. Determinamos um governo peculiar, com as decisões importantes tomadas por uma maioria simples de homens brancos. Cultivei um registro
das atividades diárias, em parte por hábito da vida no mar, em parte para que nossos descendentes pudessem melhor compreender suas origens. Embora avistássemos de
tempos em tempos a silhueta inconfundível de baleeiros no horizonte, nenhum se aproximou o bastante para nos causar preocupação. Em suma, parecíamos no caminho certo
para criar um admirável mundo novo na nossa Ilha da Prosperidade.
32
No fim das contas, Dan ficou preso no trânsito na M6 e Jimmy e Jane foram na frente, combinando encontrá-lo no restaurante. A companhia de Jimmy era o antídoto perfeito
para o dia frustrante de Jane. Seu modo leve de viver, sua aparente recusa a se levar a sério e seu discurso aberto e bem-humorado a fizeram não ter alternativa
a não ser responder à altura.
Ele sugeriu um restaurante italiano em Ambleside cujo dono era fã de jazz ao vivo. Não havia nenhuma banda se apresentando naquela noite, mas, quando entraram, ouvia-se
um melódico sax tenor nas caixas de som.
- Adoro voltar aqui - disse Jimmy. - Meu primeiro trabalho pago foi neste lugar, quando eu estava no sexteto. Cinco libras para cada um e, para ser franco,
era até dinheiro demais para a gente. Se gosta do meu som, seu amigo Dan vai adorar este lugar.
Jane abriu um sorriso.
- Ele tem um gosto bastante eclético.
- Vocês estão namorando?
Jane não conseguiu evitar uma risada.
- Eu e Dan? Nem pensar. Mesmo que fosse o meu tipo, seria uma total perda de tempo. Não são as mulheres que fazem o coração dele bater mais forte.
- Ele é gay?
- Gay até a raiz dos cabelos - disse Jane, apanhando o cardápio e tentando não demonstrar seu contentamento ao notar o interesse de Jimmy pelo seu estado
civil.
Após terem pedido a comida e o vinho, Jimmy sorriu para ela, seus olhos castanhos reluzindo de alegria.
- É tão bom te ver de novo - disse ele. - Nunca me esqueci daqueles longos dias de verão em Langmere Fell quando éramos crianças.
A intuição de Dan para reconhecer os que jogam no seu time não está com nada, pensou Jane, deleitando-se com a atenção de Jimmy.
- Acho que cobrimos cada centímetro quadrado destas bandas brincando de Ilha do Tesouro, esconde-esconde e invasores vikings - disse Jane. - Eu adorava porque
você nunca me obrigava a ser a princesa linda que precisa ser resgatada. Matthew nunca me deixava ser outra coisa. Mas você me deixava ser um pirata ou um viking.
Jimmy deu de ombros.
- Valia tudo para montar grupos com números iguais. Sempre achei uma pena termos nos distanciado na adolescência.
- É a vida. As meninas vão fazer suas coisas de menina e os meninos fingem que nos odeiam. Até que chega a hora em que voltamos a gostar uns dos outros.
- Mas isso não tem nada a ver com a nossa amizade, tem a ver com os ritos de passagem - disse Jimmy. - Espinhas e insegurança sexual é tudo de que eu me lembro
sobre aqueles anos de entressafra no colégio.
E eles mergulharam mais fundo nas lembranças. Havia segundas intenções na conversa. Jane podia senti-las, embora estivesse relutante em reconhecer a existência delas.
Jimmy não era propriamente bonito, mas tinha um quê atraente. Algo a ver com sua notável inteligência, algo franco e generoso. O oposto de Jake, pensou ela. Jake,
o rosto mascarado, jamais sincero, deixando-a sempre desconfiada.
Estava justamente pensando nisso quando Dan chegou, aparentando suprema elegância para alguém que passara horas preso no trânsito. Jimmy levantou-se depressa, abrindo
um largo sorriso que iluminou seu rosto. Para a surpresa de Jane, os dois se cumprimentaram com um abraço. Jimmy não tirou os olhos de Dan enquanto pediam as bebidas.
Em determinado momento, Dan lançou um olhar triunfante para ela. A intuição de Jane é que não estava com nada. O comportamento de Jimmy com ela demonstrava interesse
apenas em uma amizade. Dan estava mesmo com a razão. Era nele que Jimmy estava interessado. Ela ficou chateada, mas logo percebeu o lado cômico da situação. Nem
sequer se ofendeu por ter sido deixada de lado enquanto os dois conversavam sobre música.
Estavam na metade do prato principal quando Jimmy retomou a conversa para o assunto que realmente a interessava:
- Então, que pesquisa é essa em que vocês estão trabalhando? A tal que gostariam de ter conversado com a minha avó?
- Lamento muito o que aconteceu ontem - desculpou-se Jane. - Alice distorceu tudo.
- Ela sempre foi especialista nisso - disse Jimmy, secamente. - Mas eu não interpretei do mesmo modo que ela. Só que ela partiu para o ataque antes que eu
pudesse controlá-la. Eu é que lamento por ela ter te humilhado daquele jeito. Você não merecia isso.
- Eu também não devo ter agido com muito tato. Mas realmente não fazia a menor idéia de que o idiota do meu irmão tinha procurado Edith. - Jane suspirou,
balançando a cabeça.
- Matthew não muda, não é mesmo?
Jane foi visivelmente pega de surpresa.
- Como assim?
- Matthew estava sempre querendo queimar o seu filme. Sobretudo na presença dos adultos. Ele sempre teve problemas com Jane - acrescentou ele, virando-se
para Dan. - Sempre foi óbvio para mim, o que me deixou com um pé atrás em relação a ele. Deduzi que, se ele podia ser tão maldoso com a própria irmã, o melhor a
fazer era arrumar encrenca com ele.
Os olhos de Jane encheram-se de lágrimas, mas ela se esforçou para não chorar. Encontrar alguém que enxergava sua relação com Matthew pelo seu ponto de vista era
novidade para ela.
- Eu nunca imaginei que outra pessoa pudesse ver isso. Acabei me acostumando com as artimanhas dele para me deixar mal. Hoje em dia eu sei me defender, mas
precisei sair daqui para aprender a revidar.
- Mas, então, o que Matthew está tentando estragar dessa vez?
E eles contaram tudo: sobre o corpo no pântano, as cartas, a busca por Dorcas Mason, a traição de Matthew e as intrigas de Jake e Caroline. Jimmy escutou, interrompendo-os
vez por outra para fazer alguma pergunta. Quando terminaram a triste história, ele assobiou.
- Agora entendo por que vocês estavam tão interessados na minha avó. Era o melhor lugar para começar.
- Ela estava no topo da nossa lista de probabilidades - disse Dan. - Cada visita que fazemos agora nos afasta mais e mais da linha direta de primogenitura.
- Eu posso sondar - ofereceu Jimmy, prontamente. - Todo mundo vai estar aqui por causa dos enterros; o nosso lado da família e agora o pessoal de tia Tillie
também.
Dan sacudiu a cabeça.
- Não queremos que você aborreça a sua família com isso.
Jimmy abriu um sorriso.
- Eu diria que existem certas pessoas na minha gigantesca família que eu adoraria aborrecer. Vou só jogar um verde aqui, outro ali e, do modo como as gerações
mais velhas gostam de uma fofoca, o assunto vai circular mais do que a maioria circula atualmente.
- Você sempre foi um dos meus heróis, Jimmy - disse Jane.
Ele deu de ombros, envergonhado.
- Vocês merecem uma ajuda - justificou ele. - Eu entendo porque, se fosse uma faixa inédita de Duke Ellington, eu estaria desesperado para escutar. Vou fazer
de tudo para ajudá-los.
Já passava de meia-noite quando Jane finalmente conseguiu ir até o galpão de abate. A conversa dos três se tornara hilária quando a intenção dos dois ficou clara.
Jane tentou não se importar muito quando percebeu que Jimmy e Dan estavam marcando um encontro no Shepherd's Cott para depois de a deixarem em casa.
Assim que desceu do carro de Jimmy, notou que a cozinha estava acesa. Entrou em casa e deparou com a mãe, fingindo não estar acordada, esperando apenas a cria voltar
para casa.
- Estava vendo televisão e fiquei com vontade de tomar um chocolate quente para relaxar - justificou-se Judy assim que Jane entrou.
Jane sorriu.
- Sei. Não tem nada a ver com o fato de eu ter saído para jantar com um homem que a senhora considera um mendigo melhorado?
- Nunca falei isso sobre Jimmy.
- Dá no mesmo. Ele é muito bem-sucedido no que faz, mãe. Poucos músicos se dão bem na profissão, e ele me parece um dos raros sortudos.
Judy deu um muxoxo.
- E você acha que ele vai dizer que não é?
- Mãe, pode ficar tranqüila. Ele está a fim de Dan, não de mim.
Foi cômico observar Judy fingindo que esse tipo de assunto era corriqueiro em Fellhead.
- Oh - disse ela, finalmente. - Quem diria.
- Vou fazer um café para mim - disse Jane, com dó da mãe.
- A esta hora da noite? Não vai conseguir dormir depois - admoestou Judy, aliviada.
- Mãe, eu tenho 25 anos, não 12. - E foi assim que começaram a velha cantilena de duas mulheres que se amavam, mas não se compreendiam. Judy finalmente foi
se deitar, deixando Jane bebericando seu café e lendo o jornalzinho da paróquia encostada no fogão. Jane esperou uns 15 minutos até sua mãe cair no sono, depois
trocou
seus sapatos finos por galochas e escapou pé ante pé da casa.
Prosseguiu rente à parede, tentando não acionar as luzes do pátio. Colada à sebe, alcançou o campo. Girou a chave da porta e entrou devagar no abatedouro. Notou
imediatamente que o lugar estava vazio.
Em pânico, acendeu a lanterna e a girou pelo galpão, mais preocupada em apurar o que havia acontecido do que em ser descoberta. Mas sua intuição estava correta dessa
vez. Tenille havia ido embora.
Mas não de vez. Os pertences dela ainda estavam ali, espalhados pelo saco de dormir. Não teria partido sem seu tocador de MP3 ou seus livros. Levara a mochila, porém.
Mas a muda de roupa continuava lá. Então, onde havia se metido? Teria saído para um passeio vespertino, supondo que não correria nenhum risco àquela hora da noite?
E o pior: será que conseguiria voltar no escuro?
Jane chegou a pensar em esperar Tenille. Ficaria mais tranqüila sabendo que a menina estava bem, sã e salva de volta ao galpão, mesmo tendo consciência de que estaria
agindo exatamente como a mãe. E desconfiava que a reação de Tenille seria mais ou menos igual à dela - some daqui, me deixa em paz, não é da sua conta. A diferença
é que Tenille não saberia se controlar como Jane sabia. Teria um chilique e a frágil corrente de confiança entre elas se romperia novamente.
E quais seriam as conseqüências? O que aconteceria se Tenille ficasse chateada o suficiente para desaparecer noite adentro de vez? Os policiais a encontrariam mais
cedo ou mais tarde. E, o pior, Jane havia mandado um recado para John Hampton. Como ele reagiria se, ao ligar de volta, ficasse sabendo que ela fizera Tenille dar
no pé? Ou, então, pior ainda. E se ele e Tenille já tivessem se falado? E se ele estivesse a caminho? Jane estremeceu com a torrente de possibilidades que inundava
seu peito.
Não, era melhor deixar como estava. Melhor voltar para a cama. Melhor se acalmar e pensar sobre isso no dia seguinte. Pelo menos assim conseguiria dormir um pouco.
Havia muitas coisas acontecendo na escuridão da noite. Mas não queria saber delas, nem em como haveriam de afetá-la. Era melhor deixar cada um cuidar de si. Tudo
o que ela mais queria era enterrar a lembrança daquele dia nas profundezas de um sono reparador.
Era absurdo como alguns dias longe de Londres haviam mexido com sua cabeça, pensou Tenille ao se aproximar dos arredores de Keswick. Normalmente, aquele era o tipo
de lugar que a deixaria segura. Um lugar com ruas e lojas, em vez de ovelhas e sebes. Mas sentia que era um lugar hostil para ela, um lugar com pessoas e carros.
Pessoas e carros a faziam lembrar da polícia, o que tornava aquelas ruas estranhas e assustadoras.
O pior era não saber para onde estava indo. O mapa era de tanta valia quanto um pedaço de papel em branco. E uma bicicleta sem farol era garantia de problema em
ruas onde carros esparsos circulavam. Quando as casas se tornaram mais agrupadas à sua volta, Tenille estacionou a bicicleta em um beco e prosseguiu a pé para o
centro
da cidade, procurando manter-se escondida pela escuridão, sem um plano sequer. Não podia pedir informações, não com sua atual aparência. Quase sentiu saudades de
Londres, onde poderia ter abordado um taxista ou buscado o endereço pela internet em um cibercafé.
Mas estava com sorte. À medida que se aproximava do centro, constatava calçadas com varandas vitorianas nos dois lados da rua, seus nomes atestando a época em que
haviam sido construídas. Aqueles nomes não diziam nada a Tenille; quando a rua Sebastopol deu lugar à rua Inkerman e à rua Crimea, sentiu-se aliviada. Fora guiada
pela sorte e nada mais.
A casa de Eddie Fairfield ficava na metade da ladeira. Contemplando a fachada estreita, ficou desanimada. Era exposta demais para uma abordagem frontal e ela não
fazia idéia de como chegar até os fundos. Caminhou até o fim da rua, onde notou uma pequena passagem entre a última casa e a loja da esquina. Tenille adentrou o
beco e descobriu que a passagem se ampliava, percorrendo a rua em toda a sua extensão. E, oportunamente, todos os portões dos fundos tinham latas de lixo com rodinhas
a postos. Diversos com o número pintado na lateral, e foi assim que Tenille descobriu qual era a casa de Eddie.
Empurrou o portão do muro de tijolos e ficou gratamente surpresa ao abri-lo, de maneira fácil e silenciosa. Viu-se em um pequeno pátio nos fundos, nada mais do que
uma dúzia de metros quadrados de cimento circundado por muros de tijolo e a casa em si. Avançou sorrateira pelo pátio, quase gritou quando um gato pulou miando no
muro atrás dela. Cara, ia ter nervos de aço quando terminasse de resolver a tal pesquisa de Jane para ela.
Ficou mais surpresa ainda quando notou que a porta dos fundos estava destrancada, abrindo-se assim que ela baixou a maçaneta. Tenille não conhecia ninguém que deixasse
a porta destrancada após a meia-noite. A não ser que quisesse seriamente perder todas as suas posses. Entrou com muito cuidado, fechando a porta atrás de si. Uma
luz fraca vinha do vestíbulo e ela constatou que estava em uma cozinha minúscula. Duas canecas estavam no escorredor de louça e um prato sujo, dentro da pia, garfo
e faca ao lado.
Tenille prosseguiu para o cômodo contíguo à cozinha, onde havia uma mesa de jantar, cadeiras e o tipo de cristaleira que só vira até então em lojas de antiguidades.
Não havia sinal de documentos, apenas ovelhas de porcelana horrorosas e outros bibelôs de quinta categoria. A porta para o corredor estava aberta e, à medida que
se aproximava, um cheiro indistinto se tornava mais forte. Parecia uma caixa de areia para gatos que ninguém limpava fazia muito tempo - o fedor das fezes e da urina
misturado ao de tabaco velho. Não conseguia entender por que as pessoas tinham gatos dentro de casa. Eles deviam ficar do lado de fora, não empestando tudo daquela
maneira.
O fedor ficou ainda mais acentuado quando tomou coragem e avançou na direção da luz acesa no corredor. Passou pela outra porta aberta, tendo
ânsias de vômito por causa do cheiro. Quando espiou dentro do cômodo, quase ofereceu a sua própria contribuição para o mau cheiro.
De perfil para a porta, a boca aberta e os olhos fitando o horizonte, estava um senhor idoso em sua poltrona. A forte luz acima revelava manchas marrons em suas
calças de flanela. Não era a explicação que Tenille estava esperando para o fedor. Durante uns bons minutos, ficou paralisada, contemplando o cadáver à sua frente,
o coração batendo tão forte que mais parecia um tambor.
- Ah, merda - disse ela. Que diabos ia fazer agora?
Mas a mesma serpente que seduziu Adão também nos armou o bote. Desde o início, nosso grupo estava desigual. Eram 15 homens para 12 mulheres. Foi acertado que os
homens brancos deveriam ter uma mulher para sua companhia exclusiva e que, de acordo com seus próprios costumes, os seis homens nativos deveriam compartilhar as
três mulheres remanescentes. Mas, logo após termos escolhido Pitcairn como nosso lar, a mulher de Williams faleceu, e ele exigiu o direito de ter uma mulher para
seu uso exclusivo. Embora eu tenha discordado, fui obrigado a me sujeitar à maioria, e a decisão tomada definiu que os nativos deveriam abrir mão de uma de suas
mulheres. Não admira que os nativos tenham tomado isso como uma humilhação. Mas eu não esperava que eles fossem aproveitar a ocasião para tramar contra seus superiores.
Dois nativos se mostraram líderes nessa sórdida conivência e fomos obrigados a tomar uma atitude a fim de nos proteger e as nossas famílias. À força de persuasão,
arranjei para que fossem assassinados pelos próprios colegas nativos. Assim, a paz e a harmonia foram restauradas em nosso pequeno universo. Ou, pelo menos, assim
eu imaginava; não tardou para que descobrisse o quanto estava enganado.
33
Jane virou-se e verificou o relógio. Duas e dez. Nove minutos desde a última vez que olhara as horas. O sono parecia tão esquivo quanto o manuscrito de Wordsworth.
Quase cochilara diversas vezes, mas então os acontecimentos do dia se mesclavam em um indigesto caleidoscópio que a despertava instantaneamente. Estava com aquela
sensação desagradável de ter esquecido alguma coisa importante, algo relacionado à visita de Donna Blair. Mas continuava sem descobrir o que era.
Finalmente, o cochilo se transformou em sono de verdade. Quando ela acordou, mal pôde acreditar que havia dormido até 12:45. Precisavam trabalhar. Por que Dan não
havia ligado? Até mesmo em seu estado sonolento, Jane sabia a resposta para essa pergunta. Atirou longe as cobertas, apanhou seu quimono e desceu correndo as escadas.
- Por que vocês não me acordaram? - perguntou ela, chegando à cozinha. Estava vazia. Havia um bilhete apoiado em um vaso de rosas: Seu pai e eu fomos para
Dalegarth ver uma ninhada de cãezinhos. Tem salsicha empanada na geladeira, é só esquentar, coloque no forno de cima enquanto toma banho. Voltamos na hora do chá.
Até mais. Beijos, mamãe.
Impaciente e xingando Dan por dentro, Jane obedeceu às instruções da mãe. Vinte minutos depois, voltou à cozinha, limpa e vestida, os cachos molhados descendo em
espiral pelos ombros. Apanhou o prato quente do forno e dividiu a comida em duas tigelas. Cobriu-as com um pano de prato e partiu em direção ao abatedouro, preocupada
com o que poderia encontrar lá.
Dessa vez, ao abrir a porta, pôde ver Tenille esparramada dentro do saco de dormir, um braço apoiado na testa. Pareceu-lhe absurdamente jovem para estar se virando
sozinha.
- Bom-dia - anunciou Jane, fechando a porta com o quadril e levando a comida para Tenille.
A menina acordou esfregando os olhos e bocejando. Disse algo que parecera "qu'onceu" e que Jane traduziu como "O que aconteceu?".
- "Qu'onceu" com você? - brincou Jane. - Ontem à noite. Onde se meteu?
- Cara, isso é comida quentinha? - Tenille arregalou os olhos e as narinas. - Que cheiro bom.
- É o nosso brunch improvisado. Já que nós duas ficamos acordadas até tarde ontem, ao que parece - disse Jane, em um tom severo.
- Você veio aqui? - perguntou Tenille, surpresa. - Pensei que não tivesse conseguido sair e tivesse ido deitar. - Ela se espreguiçou como uma diva de cinema.
- Vamos dividir ou você vai apenas me torturar?
- Não sei se você está merecendo. O que te deu na cabeça para sair desse jeito? Alguém poderia ter visto você.
Tenille sacudiu a cabeça, esticando-se para apanhar a tigela, que Jane prontamente recolheu.
- Não tem ninguém aí fora a essa hora da noite - disse Tenille, fazendo pouco-caso. - Estão todos na cama. Acho que desligam a eletricidade à meia-noite.
E, mesmo que alguém me visse, o que tem de mais alguém andar de bicicleta? Vão me encher de porrada só porque sou negra?
- De bicicleta? - perguntou Jane, num fiapo de voz.
- Peguei sua bicicleta emprestada. Não achei que você fosse ligar. Vem cá, você vai me dar essa comida ou não?
Jane passou a tigela. Tenille lançou um olhar desconfiado para a comida.
- Que merda é essa?
- Salsicha empanada.
- Eu tinha razão, merda empanada - disse Tenille. - Nunca vi uma salsicha enroscada em formato de cocô de cachorro antes.
- É salsicha de Cumberland. Uma iguaria da região. Se você não for comer, passa para cá. Não acredito que você pegou a minha bicicleta no meio da noite. E
se um policial te pára?
- E por que me parariam? Não é nenhum crime andar de bicicleta por aí, mesmo no meio da noite.
- É, sim, se ela estiver sem farol. E eu sei muito bem que o farol da minha bicicleta está na estante do corredor lá em casa. - Jane a encarou severa.
Tenille deu de ombros, a boca cheia de salsicha e massa fina.
- Estou pagando para ver - murmurou ela depois de engolir a comida. - Hum, isso é bom mesmo.
- Por sorte minha mãe acha que eu tenho o apetite de um batalhão inteiro - disse Jane. - Mas por que você estava zanzando de bicicleta no meio da noite?
Tenille parecia ter aprontado alguma.
- Eu precisava sair. Cara, estava ficando maluca. Experimente ficar enfurnada aqui dentro o tempo todo. Vamos ver quanto tempo você agüenta.
- Tem coisa aí - insistiu Jane. - Eu sei muito bem. Você está me escondendo alguma coisa.
Tenille estava visivelmente constrangida com o interrogatório de Jane.
- Se você insistir, vou ser obrigada a contar uma mentira.
- Eu quero a verdade, Tenille. Pára de fugir do assunto, droga. Estou me arriscando para esconder você da polícia. O mínimo que pode fazer é ser honesta comigo.
- Não era nenhum fingimento, Jane estava irritada de verdade.
Tenille desviou o olhar.
- Eu só estava tentando ajudar - disse ela.
- Ajudar como? Como é que você me ajuda pedalando por aí de madrugada?
Tenille remexeu-se dentro do saco de dormir.
- Eu estava visitando os coroas - confessou ela.
- O quê? Que coroas?
- Os tais com quem você tem falado sobre o manuscrito. Você é muito boazinha, Jane. Eles podiam estar mentindo e você nem ter percebido por confiar demais
neles. Achei que essa história de nenhum deles ter os documentos só podia ser balela.
Jane estava horrorizada:
- Você está arrombando as casas?
- Não arrombei nada - protestou Tenille. - Só encontrei um jeito de entrar. Depois, examinei tudo.
Uma suspeita terrível surgiu na cabeça de Jane, apesar de conhecer bem Tenille.
- Você não quis dar um susto neles, né?
Tenille fez cara de desdém.
- Lógico que não. Quando eu fui à casa da tal Edith, ela já estava morta e enterrada. A casa estava vazia. E a de Grasmere também. Eu é que vivo tomando susto.
Cara, quase caguei nas calças ontem. Fui à casa do Edward Fairfield, em Keswick. Assim que eu entrei, sabia que vinha merda pela frente. Aliás, era bem o cheiro
dela mesmo. Enfim, entrei na sala de estar e lá estava ele, sentado na poltrona, mortinho da silva. - Ela sacudiu a cabeça. - Vou te contar, acho que já vi toda
a minha cota de gente morta ultimamente.
Jane finalmente recuperou a voz:
- Ele estava morto? - perguntou ela, erguendo o tom. - Eddie Fairfield estava morto?
Tenille assentiu com a cabeça.
- Encostei na mão dele, só para ter certeza. Estava gelada, Jane. Não foi nada legal. Ele estava com a boca aberta e eu pude ver os dentes falsos e tudo.
E ele tinha se cagado todo. Por isso a casa estava fedendo.
- E o que você fez?
Tenille enfiou mais comida na boca.
- Não tinha nada que eu pudesse fazer, não é? Ele já estava morto Então, fiz o que tinha que fazer: vasculhei a casa. - Ela ergueu os olhos para Jane. - Não
me olhe assim. Caralho, o que você queria que eu fizesse? Ele já estava gelado, Jane. Gente velha morre, acontece. Fui lá com uma missão específica e a cumpri. Não
perturbei ninguém, nem encontrei nada, então é como se nem tivesse estado lá.
Jane enterrou a cabeça nas mãos.
- Não posso acreditar.
- Eu estava tentando ajudar - choramingou Tenille.
- Não, não acredito que outro coroa morreu. Agora já são três, todos da linhagem de Dorcas. Três em quatro dias! Isso não é natural. - Sua voz estava abafada
pelas mãos, mas Tenille a ouviu perfeitamente.
- Acontece, Jane. Eles chegam a um ponto em que não têm mais nenhum estímulo para viver, alguém próximo empacota e é como se isso só
reforçasse a vontade de partir dessa para melhor. Aconteceu com a prima da minha avó. Quando vovó morreu, a prima dela morreu dois dias depois. E elas nem eram assim
tão chegadas, só da mesma família, saca?
Jane sacudiu a cabeça, como um nadador emergindo da água.
- É que é esquisito demais, só isso. - Ela afastou sua tigela, subitamente sem apetite.
- Você não quer mais? Posso comer?
- À vontade. - Jane esperou até Tenille terminar, depois recolheu a tigela. - Prometa que vai ficar aqui quieta. Senão vou ter que levar a chave comigo.
Tenille abriu um sorriso.
- Vai ter que encontrá-la primeiro. - Ela ergueu as mãos, com as palmas viradas para fora. - Está bem, eu me rendo. Vou ficar em casa. Mas você tem que dar
um jeito, porque vou morrer se ficar aqui muito mais tempo.
- Duvido muito - disse Jane, secamente. - A gente se vê mais tarde.
Voltou para a cozinha, chocada e confusa. Não conseguia acreditar.
Eddie Fairfield estava debilitado pela idade, mas continuava animado. Jane não podia crer que tivesse morrido assim tão de repente. Apanhou o celular, na dúvida
se deveria avisar alguém que Eddie estava morto, quando reparou que havia recebido uma mensagem de voz. Acessou a caixa postal e ouviu a voz de Dan. Seu alívio se
transformou rapidamente em consternação ao ouvir o recado:
"Oi, Jane, sou eu, Dan. Jimmy acabou de me ligar." Ele pigarreou. "Tenho más notícias. Eddie Fairfield, o senhor que você foi visitar ontem, bem, Jimmy estava planejando
ir até lá perguntar sobre o manuscrito. Ele imaginou que, se os papéis tivessem ido parar com alguém daquele lado da família, Eddie certamente saberia. Bem, nos
ferramos mais uma vez. Só queria te avisar, me liga quando puder."
Jane desligou e afundou a cabeça entre as mãos. Podia até ter se livrado da tarefa ingrata de ter de comunicar o trágico fim de Eddie. Mas estava começando a se
sentir uma Mensageira da Morte e isso era assustador. Ainda perturbada, ligou para Dan. Ele atendeu de primeira.
- Recebeu meu recado? - perguntou ele sem demora.
- Recebi. Não consigo acreditar. É a terceira pessoa da nossa lista que morre. É coincidência demais, Dan.
- Por quê? Pessoas idosas são frágeis, elas morrem, acontece. O atestado de óbito geralmente é assinado pelo próprio médico do morto, não é? Então, se houvesse
algo suspeito, o médico teria percebido de cara e pedido uma autópsia. Se os três não tivessem morrido de causas naturais, você teria ficado sabendo. Para começar,
não teriam permitido os preparativos para os enterros.
- Você acha?
- Acho.
- Fiquei com uma sensação esquisita, sabe? Eles estavam na minha lista e morreram na mesma ordem. - Ela deixou escapar um suspiro, tirando o cabelo de seu
rosto anuviado. - E aí, foi tudo bem com Jimmy?
- Foi tudo ótimo - gabou-se Dan. - Digamos que já era outro dia quando ele voltou para a casa de Alice.
- Bem, fico feliz por um de nós dois estar se divertindo - disse ela, com sarcasmo.
- Qual o plano para hoje? - perguntou Dan.
- Não sei. Estou muito abalada com tudo isso. Te ligo mais tarde, quando conseguir organizar minhas idéias. Mas você pode ligar para Jimmy e ver se ele te
ajuda a passar o tempo.
- Taí uma boa. A gente se vê mais tarde.
Jane estava tentando se convencer de que Tenille e Dan provavelmente tinham razão. Edith, Tillie e Eddie estavam todos na casa dos oitenta. Pessoas idosas realmente
morriam e às vezes jogavam a toalha quando as dores, as mágoas e as fragilidades se tornavam demais para elas. Mas Jane queria despedir-se deles de alguma forma.
Sua experiência com Alice Clewlow deixara claro que era melhor ficar longe de velórios e enterros, a não ser que quisesse ser novamente tachada de violadora de sepulturas.
Mas, ainda assim, podia prestar condolências. As famílias costumavam usar os serviços da mesma funerária. Podia apostar que Tillie Swain e Eddie Fairfield estavam
na do Gibson, em Keswick.
Um pouco mais tarde, Jane adentrou o enorme edifício vitoriano que abrigava uma funerária desde que os habitantes se entendiam por gente. Um jovem inconvenientemente
solícito de terno preto a recebeu no vestíbulo. Não pôde deixar de pensar em tribos góticas enquanto explicava o motivo de sua visita.
- A sra. Swain está em Derwent, no fim do corredor - disse ele. - Mas, lamento, ainda estamos preparando o sr. Fairfield. Você vai ter que voltar amanhã para
vê-lo. Acompanhe-me, por favor.
Jane deixou que ele a conduzisse pelo corredor revestido de madeira até uma porta onde se lia "Derwent" em tipografia gótica. Lá dentro havia meia dúzia de cadeiras
estofadas de veludo vermelho e, encaixado em um suporte de carvalho polido, um caixão simples de pinho. Tinha pouca experiência com mortos e ficou impressionada
ao notar como o corpo de Tillie Swain parecia mundano. Decerto havia sido maquiada por um profissional, mas era impossível esconder sua palidez. Usava um vestido
com gola chinesa de seda azul, com colar e brincos combinando. Parecia um manequim um tanto indigesto.
Jane tentou esvaziar a mente e encontrar algo significativo para se concentrar. Mas esta se recusava a lhe oferecer algo que não fosse clichê e, após alguns minutos,
um tanto desapontada consigo mesma, ela decidiu ir embora. Quando se dirigia para a saída, uma jovem muito mignon entrou porta adentro com uma vivacidade nada apropriada
para uma funerária. Seu cabelo negro e comprido descia-lhe pelos ombros e ela abriu um sorriso para o jovem atendente ao passar por ele.
- Olá, Chris - cumprimentou, jovial.
- Boa-tarde, dra. Wilde - respondeu ele em um tom grave que reprovava a sua energia.
Surpresa, Jane estacou. Quando a mulher passou por ela, decidiu abordá-la:
- Com licença. Você é a dra. Wilde, a antropóloga forense?
River parou.
- Sim, sou eu.
- Você está examinando o cadáver encontrado no pântano?
River fez um gesto em direção às escadas.
- Ele está aqui embaixo.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro - respondeu River, sorrindo. Gostava de compartilhar seus conhecimentos.
- As tatuagens. Por acaso são típicas das ilhas dos Mares do Sul? Do Taiti, em particular?
- Para falar a verdade, são sim. Por que está perguntando?
- Tenho uma teoria de que o seu cadáver é Fletcher Christian. - Vendo que River franzia a testa, curiosa, Jane prosseguiu: - Do motim no Bounty, sabe? O sr.
Christian...
- Lá vamos nós de novo - disse River, impaciente. - Eu sei quem é Fletcher Christian. Você não é a primeira pessoa que menciona exatamente a mesma possibilidade
para mim. Estou começando a me perguntar se existe algo na água da cidade, estão todos me perguntando se meu Pirata do Pântano é Fletcher Christian.
- Pirata do Pântano?
- É o apelido que inventei para ele. Estamos fazendo um programa de televisão, eles gostam dessas coisas. E por que você está interessada no assunto?
- Sou especialista em Wordsworth. Estou avaliando a possibilidade de Fletcher ter voltado para sua terra natal e ter contado sua história para William.
- Me parece vago demais. - River consultou seu relógio. - Olha...
- Tenho vários indícios circunstanciais. E algumas cartas para respaldá-los. Não creio que exista alguém aqui que saiba mais sobre Fletcher Christian do que
eu. Se você quiser detalhes históricos precisos para seu programa de tevê, posso ajudá-la.
River abriu um sorriso.
- Mas o que você quer mesmo é saber se ele é quem você pensa, é isso?
Jane assentiu com a cabeça.
- É, mas a oferta está de pé. Existe alguma chance de ser mesmo ele?
River tomou uma decisão.
- Venha comigo aqui embaixo e eu lhe mostro o que apurei até agora - disse ela, avançando em direção à escada. - Qual o seu nome, por sinal?
- Jane Gresham.
River virou-se e elas trocaram um desajeitado aperto de mãos na escada.
- Você veio aqui me procurar?
- Não, vim ver alguém que eu entrevistei alguns dias atrás. Não era ninguém próximo, mas eu só quis... ah, eu nem sei. Parece que todo mundo está morrendo
ao mesmo tempo.
- Todo mundo?
- Bem, pelo menos os que eu estou entrevistando para a minha pesquisa.
- Qual? A tal sobre Wordsworth? - River virou-se ao pé da escada para encarar Jane, com uma expressão vagamente incrédula.
Jane estacou, exalando um longo suspiro.
- É, a tal sobre Wordsworth. Fiz uma lista de quem deveria entrevistar, descendentes da última pessoa que guardou o manuscrito. E todos esses velhinhos da
lista parecem estar morrendo. É meio assustador, só isso.
- Uma seqüência inexplicável de mortes de idosos acontece de vez em quando. Há sempre um motivo - coração, o que for -, mas raramente alguma coisa específica
que justifique a proximidade das mortes. - Ela encostou a mão no braço de Jane. - Não fique impressionada com isso. Vamos, vou te apresentar ao Pirata do Pântano.
Terminamos a gravação de hoje e os alunos não vão voltar tão cedo, podemos ficar a sós com ele.
Jane acompanhou River até um aposento que mais parecia uma sala de operações vitoriana, típica das que se vêem no cinema. No centro, sobre uma mesa, estava um montinho
surpreendentemente pequeno. Sem músculos e carne, o Pirata do Pântano parecia uma bolsa de couro em formato de homem, cheia de ossos. As tatuagens eram visíveis
em torno da cintura. Jane procurou a outra tatuagem que Fletcher Christian tinha, uma estrela da Ordem da Jarreteira no lado esquerdo do peito. Mas aquela área não
mais existia; em seu lugar, marcas irregulares em torno de um rombo de mais ou menos vinte centímetros de diâmetro.
- O que houve aqui? - perguntou ela, apontando.
- Provavelmente foi comido por animais em algum momento - respondeu River.
- Poderia ter sido arrancado de propósito? Pelo assassino?
River franziu o cenho e examinou melhor a marca.
- Não creio, parece mais ter sido arrancado por dentes. O que a leva a pensar que foi de propósito?
- Porque Fletcher Christian tinha uma tatuagem bem aqui.
River ergueu as sobrancelhas.
- Você é mesmo boa nisso, Jane. Cheia de informações interessantes. Vamos fazer o seguinte: deixe eu dar mais uma olhada no microscópio, ver
se descubro alguma coisa... - Ela parou, como se tivesse tido uma idéia. - Esse manuscrito que você mencionou... É algo que interessaria um negociante?
- Pode apostar - respondeu Jane. - Se houver mesmo um poema em um manuscrito holográfico, certamente arrecadaria mais de um milhão em leilão. O que representaria
uma bela comissão para o negociante. Por quê?
- Um sujeito me abordou noutro dia, no bar do hotel. Disse que negociava documentos e que estava seguindo as pistas sobre um possível manuscrito relacionado
a Fletcher Christian. E ele estava interessado em saber se eu achava que poderia ser ele. - Ela apontou para o cadáver na mesa.
Jane sentiu um aperto no peito.
- O nome dele, por acaso, era Jake Hartnell?
- Você o conhece?
- Mais do que gostaria - disse ela, arrasada. Se precisava de alguma confirmação de que Jake estava mais interessado no manuscrito do que nela, essa era a
prova definitiva. - Digamos que não concordamos em vários pontos.
River ergueu uma sobrancelha.
- Não posso dizer que tenha simpatizado de verdade com ele.
Jane abriu um sorriso oblíquo.
- O que prova que você não só sabe avaliar os mortos como os vivos. - Deu uma olhadela no relógio. - Tenho que ir. Obrigada por ter me mostrado o corpo.
- Foi um prazer. E vou te manter informada. Se realmente for Fletcher Christian, você vai saber em primeira mão.
Ewan Rigston estava instruindo sua equipe a respeito de um assalto à mão armada em um posto de gasolina quando foi avisado que Alice Clewlow estava à sua espera.
Ele terminou o que estava fazendo e pediu que a mandassem entrar. Lembrava-se de Alice. Ela era alguns anos mais nova e ele certa vez a convidara para uma festa
do clube de rúgbi. Ela dera uma risada, sem ser descortês, e lhe avisara que estava perdendo o seu tempo. Na época, ele ficara ofendido, mas, com o passar dos anos,
foi percebendo que a recusa havia sido mais genérica do que específica. Não que ela espalhasse
o fato aos quatro ventos. Numa cidade pequena como aquela, a palavra-chave sempre fora discrição.
Há alguns anos a vira de longe e ficou agradavelmente surpreso ao notar o quão pouco ela mudara. Algumas rugas, alguns fios grisalhos. Mas continuava a mesma Alice
de sempre. Conservava o ar de confiança e competência do qual se lembrava, tão inusitado para uma adolescente. Assim que ela se sentou, percebeu uma tensão ao redor
dos olhos que não havia notado à primeira vista.
- Olá, Alice - cumprimentou ele, esperando que ela se acomodasse e fazendo o mesmo em seguida.
- Obrigada por me receber, Ewan. Ou devo chamá-lo de inspetor Rigston agora? - Havia uma dúvida real por trás do tom leve.
- Ewan está ótimo - respondeu ele. - Sinto muito pela sua avó - acrescentou ele, lembrando-se da menção à morte de Edith Clewlow no boletim semanal.
- É por isso que estou aqui - disse Alice.
Rigston franziu a testa.
- Você acha que houve algo suspeito na morte da sra. Clewlow? - perguntou ele, aflito. Não havia nada mais maçante do que parentes com uma pulga atrás da
orelha em relação a mortes perfeitamente naturais em suas famílias.
- Na ocasião, não - disse Alice. - Mas, de lá para cá, dois outros parentes morreram. Os dois eram idosos, é bem verdade. Mas uma era a cunhada da minha avó,
Tillie Swain. Em Grasmere. E o outro era um primo de segundo grau de Tillie, Eddie Fairfield. Ele morava em Keswick. Ambos morreram durante a noite e as mortes foram
consideradas naturais. - Ela se calou, cautelosa. - Você acha que estou sendo boba, não é?
- Não, Alice, nunca pensaria isso de você. Mas estou me esforçando para entender por que acha que isso é um assunto policial. Eu sei que é difícil aceitar,
mas pessoas idosas habitualmente morrem sem que haja alguma implicação sinistra por trás.
- Eu sei disso, Ewan. Mas você continuaria pensando assim se eu lhe dissesse que os três tinham algo em comum?
- O que em comum, exatamente? - perguntou ele, inclinando-se em sua direção, visivelmente interessado.
- Tem uma moça chamada Jane Gresham...
- De Fellhead? - interrompeu Rigston. - Da Fazenda Gresham?
- Isso mesmo. Você a conhece?
- Digamos que nossos caminhos se cruzaram, profissionalmente falando. Qual a ligação de Jane Gresham com sua avó?
- Ela está procurando um manuscrito que acha que um dos nossos ancestrais pode ter recebido de Wordsworth. Apareceu lá em casa com um sujeito que trabalha
com ela. Vovó nem tinha sido enterrada ainda e lá estava ela, fingindo oferecer condolências, quando na verdade queria mesmo era sondar se minha avó estava com os
tais papéis. O irmão dela, que é diretor da escola primária em Fellhead, havia ligado para vovó no dia em que ela morreu. Deve estar ajudando a irmã, imagino.
- Ainda não estou entendendo aonde quer chegar - disse Rigston, perdendo o interesse.
- Lembra-se do meu irmão caçula, Jimmy? O baterista? - Rigston assentiu com a cabeça, e Alice prosseguiu: - Ele era amigo de Jane quando eram crianças. Retomaram
o contato no velório e saíram para jantar ontem à noite. Jimmy só voltou para casa hoje cedo e, quando eu lhe contei que Eddie falecera pela manhã, ele ficou nitidamente
chocado. Disse que Jane Gresham tinha uma lista das pessoas que poderiam ter o manuscrito. O nome da minha avó era o primeiro. O segundo era o de Tillie Swain, e
o terceiro, o de Eddie Fairfield. - Alice ficou em silêncio, olhando fixamente para Rigston. - Agora você não acha um pouco suspeito?
- É estranho, eu admito. Mas você está de fato sugerindo que Jane Gresham está saindo por aí matando pessoas idosas para pôr as mãos em um manuscrito velho?
Alice deu de ombros.
- Não sei o que pensar, Ewan. Só sei que membros da minha família estão morrendo, um atrás do outro. E acho que você deveria investigar o porquê.
Enquanto permanecemos no barco, não tive problemas para exercer minha autoridade de capitão. Mas, assim que nos estabelecemos em terra firme, meus companheiros de
bordo aderiram à convicção de que não deveriam se submeter a nenhum homem novamente. Julgavam-se a elite latifundiária de Pitcairn e alguns descobriram em si mesmos
uma necessidade de oprimir outros para saborear totalmente seu poder. Quintal e McCoy foram os primeiros a adotar esse comportamento e amiúde açoitavam seus nativos
por qualquer pretexto. O destino de Bligh não lhes ensinara nada; não conseguiam compreender que esse tratamento cruel e arbitrário poderia, não sem razão, acabar
se voltando contra eles. Não importava o quanto eu argumentasse que tal comportamento era tanto desnecessário quanto provocador, eles não estavam dispostos a mudá-lo.
Comecei a temer por todos nós e decidi tomar as medidas necessárias.
34
O telefone de Jane começou a tocar na porta da funerária, assustando-a e fazendo com que se sentisse culpada. Ainda bem que não havia tocado enquanto prestava sua
última homenagem a Tillie Swain. Tirou o celular da mochila e conferiu o visor. Era um número desconhecido. Só havia uma maneira de descobrir quem estava ligando.
Apertou uma tecla e levou-o até a orelha.
- Alô?
A voz do outro lado era grave e formal:
- Dra. Gresham? A senhorita gostaria de falar comigo? Lembrando que celular para celular não é exatamente o modo mais seguro...
Martelo, percebeu ela, olhando ao seu redor instintivamente para certificar-se de que não estava sendo vigiada. Obrigada, louca sra. Gallagher.
- Obrigada por me ligar. Preciso conversar com você sobre aquele assunto que discutimos na semana passada.
- De novo? - perguntou ele num tom bem-humorado, o que a assustou mais do que uma ameaça propriamente dita.
- A solução que você arrumou da última vez parece ter criado novos problemas - disse Jane, escolhendo com cuidado as palavras.
- Ouvi dizer.
- Nossa amiga se recusa a resolver os problemas dela da maneira mais óbvia porque acha que tem uma dívida de lealdade. E ela está convicta de que você também
deve evitar essa solução.
- Acho que estou entendendo. Nenhum de nós dois quer conversar com o pessoal de Holmes.
Jane ficou sem entender. Que pessoal de Holmes era esse que Martelo estava inserindo na conversa? Levou um tempinho para processar: Holmes, Sherlock Holmes, Scotland
Yard, polícia.
- Exatamente - respondeu, temerosa.
- Nossa amiga agora virou sua vizinha, não é?
Jane não sabia como os espiões conseguiam se fazer entender com essa conversa cifrada. Sentia-se um peixe fora d'água em uma praia cheia de gatos.
- Virou, mas eu não sei quanto tempo ela vai poder morar no bairro - disse, torcendo para que ele entendesse.
- Se ela ficar no bairro até o fim de semana, eu resolvo a história do aluguel. - Martelo parecia calmo e confiante.
- E vocês vão conseguir pagar as contas sem problemas?
- Sim, com toda certeza, dra. Gresham - disse ele, desligando em seguida.
Jane ficou paralisada, fitando o telefone como uma idiota. Precisava beber alguma coisa. Não costumava resolver assim seus problemas, mas não era todo dia que batia
papo com um assassino no telefone. Deixou o carro onde estava e caminhou colina abaixo até o centro da cidade, entrou no primeiro pub que apareceu.
Comprou um licor Southern Comfort e uma Coca e encontrou um canto silencioso onde poderia ficar de costas para o salão e se recompor. Foi por isso que não pôde se
resguardar da aproximação sorrateira de Jake. Num minuto estava sozinha, refletindo sobre o universo sórdido de Martelo e desejando fervorosamente não ter jamais
que fazer parte dele outra vez. No seguinte, Jake estava ao seu lado, uma das mãos no espaldar de sua cadeira, a outra, tocando o canto da mesa.
- Jane, que surpresa - disse ele.
Ela se virou tão depressa que um dos cachos entrou em seu olho, pinicando e deixando-o lacrimejante. Esfregando o olho vigorosamente, ela perguntou:
- Me perseguindo de novo? Será que não fui bem clara? Não... vai... rolar...
Jake pareceu desconcertado, olhando para trás para verificar se alguém no pub praticamente vazio estava acompanhando seu drama pessoal. Por sorte, estavam todos
entretidos em suas conversas ou imersos em Sudoku.
- Não estava seguindo você - disse ele. - Saí para dar uma volta e começou a chover. Entrei aqui para fugir da chuva. - Ele esticou o braço e mostrou as marcas
escuras dos pingos em sua jaqueta. - Olhe aqui. - Abriu um sorriso que antigamente faria seu coração acelerar. Agora, lhe causava ânsia de vômito.
- Está bem. Mas o recado continua o mesmo. - Jane desviou o olhar, contemplando sua bebida sobre a mesa e tentando não olhar para a mão dele. Ele recolheu
a mão e, por um instante, ela pensou que ele fosse levá-la a sério e desaparecer. Mas não. Em vez disso, sentou ao seu lado. Ela arrastou a cadeira para trás, pronta
para levantar e ir embora. Ele segurou seu pulso, usando os dedos como uma algema. - Me solte - sussurrou ela, sujeitando-se à convenção inglesa de jamais fazer
escândalo em lugares públicos.
- Eu vou acatar sua decisão - disse ele, depressa. - Sobre nós dois. Não é o que eu gostaria, mas vou aceitar. Quero discutir outro assunto com você.
- Quer discutir a melhor maneira de enriquecer depressa à minha custa - disse Jane com desdém. - Agora, me solte.
Jake soltou o seu pulso e ela o esfregou com a outra mão.
- Não é nada disso - disse ele.
- Ah, não? Então por que você foi perguntar à dra. Wilde se o corpo encontrado no pântano é de Fletcher Christian? E por que ainda está aqui? Está tentando
se dar bem graças ao meu trabalho duro.
- Não estou tentando passar a perna em você - protestou Jake. - Sim, há bastante dinheiro na jogada. Mas, por favor, não finja que você não está interessada
no dinheiro. Eu sei o quanto você detesta ter que se desdobrar em dois empregos para poder pagar as contas. Como adoraria não precisar fazer nada além do seu
próprio trabalho. Bem, se juntarmos nossas forças, tudo isso estaria ao seu alcance. Eu recebo a comissão pela venda e você descobre um poema inédito.
- Pare, Jake - disse Jane. - Não estou interessada nos seus esquemas. Você senta aqui e fala sobre comissão, mas na verdade quer é enrolar as pessoas. Eu
te conheço. Se encontrar esse manuscrito, você vai fazer uma oferta que a pessoa não vai poder recusar. Eles não são especuladores espertos de Londres, são pessoas
honestas de Lakeland, vão ficar atônitos com a
quantidade de zeros. Não perceberão que você está oferecendo uma fração do valor real.
- Isso é besteira - objetou Jake. - Não estou aqui para dar o golpe em ninguém. Quero jogar limpo.
- Você até pode querer, mas aposto que a sua querida Caroline não quer. Jake, preste atenção. Eu realmente não ligo para o dinheiro.
Isso foi a gota d'água para Jake. Ele se levantou e aproximou seu rosto do de Jane.
- Talvez não ligue mesmo, Jane. Mas outras pessoas ligam. E vão fazer o que for necessário para tirar você da jogada.
Ele girou nos calcanhares e marchou em direção à chuva. Jane ficou observando-o partir, pasma. Pela primeira vez, desde que ouvira falar sobre o corpo no pântano,
percebeu que podia estar correndo perigo de verdade. Ao que parecia, havia pessoas ruins em seu caminho que eram bem menos óbvias do que John Hampton.
Rigston observou a chuva descendo pela sua janela até os telhados pardacentos abaixo. Maldita tarde infeliz, pensou ele. Coisas melhores a fazer do que ficar sentado
com um telefone na mão esperando alguém o conectar com algum médico idiota que claramente ainda cultivava a noção de que as únicas pessoas cujo tempo tinha algum
valor eram os de sua classe. Não que ele esperasse algo surpreendente da conversa. As duas conversas anteriores não lhe criaram nenhuma expectativa.
- Pois não? Inspetor Rigston? - perguntou a voz do outro lado, que parecia irritada e infantilóide.
- Ele.
- Aqui é Jerry Hamilton. Dr. Jerry Hamilton. A minha recepcionista disse que o senhor queria falar comigo sobre uma paciente. O senhor deve saber que não
posso falar sobre as fichas dos pacientes...
- Dos mortos, pode - interrompeu Rigston, impaciente. - Sobretudo quando o atestado de óbito foi assinado pelo senhor.
- Ah, sim, bem, aí são outros quinhentos - disse Hamilton, num tom mais brando. - E a morte em questão é a de...?
- Edward Fairfield. Suponho que o tenha examinado hoje de manhã.
- Ah, sim, o sr. Fairfield. Morte natural. Parada cardíaca.
- O sr. Fairfield sofria do coração? - perguntou Rigston, garatujando corações em uma das linhas do seu bloco.
- Ele teve um ataque cardíaco menos grave dois anos atrás. Desde então, estava razoavelmente bem. Mas isso é comum em pacientes idosos. O coração pára de
bater de uma hora para outra.
- Então o senhor diria que não foi uma morte inesperada? - indagou Rigston, acrescentando flechas nos corações.
- Pelo contrário, inspetor. Eu diria que foi inesperado, mas não surpreendente, devido à idade e ao estado geral do paciente. Isso esclarece suas dúvidas?
- O tom irritadiço estava de volta.
- E não houve circunstâncias suspeitas?
- Não sei o que o senhor chamaria de suspeita.
- Sinais de luta? Hemorragia com petéquias, típica de sufocamento? Indícios de injeção letal? - perguntou ele, tentando disfarçar sua irritação. Malditos
médicos.
- Nada disso. Nada que não fosse compatível com uma morte natural. Por que está me perguntando isso, inspetor?
- Estou seguindo uma linha de investigação. O senhor me ajudou bastante. Obrigado - agradeceu ele, mecanicamente, terminando a ligação. Rigston encostou-se
em sua cadeira. Três idosos mortos. Três médicos diferentes. Três diagnósticos inequívocos de morte natural. Ele deveria estar satisfeito.
Mas não estava.
Dan encostou-se no sofá e sacudiu a cabeça.
- Não sei o que dizer. Por um lado, você imagina que alguém iria notar um maníaco eliminando velhinhos por aí. Por outro, Harold Shipman estava matando pacientes
idosos há anos e ninguém desconfiou de nada.
- Por não morarem no mesmo lugar, é natural que Edith, Tillie e Eddie tivessem médicos diferentes - disse Jane. - Então, não se trata de um médico maluco
executando sua própria modalidade de eutanásia.
- Então, voltamos às causas naturais.
- Talvez tenham morrido de medo - disse Jane, apoiando os pés na parede para dar impulso à cadeira de balanço que ficava no canto da sala de estar do chalé.
Dan fez uma careta.
- Não creio que seja fácil matar alguém de medo. E não há garantia de que vá sempre funcionar. Acho que a dra. Wilde tem razão, eles morrem quando desistem
de viver. Quando alguém da família morre, é como se a mente deles ficasse focada no assunto. Mas quem sou eu para dar palpite. Sou apenas um simples estudante de
letras.
- Você acha que devíamos falar com Jimmy para prevenir Letty? Porque, se há algo estranho acontecendo, ela é a próxima da lista.
- Ah, é, aí quem vai matar a velha de susto somos nós. "A propósito, Letty, tem um maluco atrás de você." Vai ser muito útil. Jane, se não há assassinatos,
não há assassino. E nenhum risco para Letty.
Jane franziu a testa.
- Não faria nenhum mal pedir que ela tomasse cuidado. E Jimmy é da família.
Dan abriu um sorriso malicioso.
- Podes crer.
- Não quero saber - disse Jane, severa. - Harry também é meu amigo, esqueceu? - Ela ficou de pé e se espreguiçou. - Vou sair para tomar um ar fresco. Desde
que Jake me abordou, estou com a sensação de que devo ficar com os dois olhos bem abertos. Como se alguém estivesse me vigiando. - Ela contemplou o vale pela janela
e estremeceu. - Não é uma sensação agradável. Queria poder me livrar dela. - Virou-se para encará-lo. - O tempo já está bem melhor agora. Acho que vou subir a montanha
de carro e dar uma caminhada. Arejar as idéias.
- Está bem. Quais os nossos planos para mais tarde?
Jane sacudiu a cabeça.
- Não vamos fazer nada até amanhã.
Enquanto descia a colina na luz mortiça da tarde, Jane avistou Matthew arrastando o carrinho de bebê pela rua, saindo dos Correios. Ela diminuiu a marcha e abaixou
a janela do carro.
- Não aposte suas fichas em Letty Brownrigg - disse ela. - Eu examinei os papéis e ela não tem nada de Dorcas.
Matthew apertou os olhos e franziu a testa.
- Você é patética - disse ele, ríspido, virando na entrada de sua casa e desaparecendo por trás da sebe.
Era uma satisfação insignificante, ela sabia, mas, mesmo assim, uma satisfação. Jane pisou fundo no acelerador e continuou subindo para além de Langmere Stile. Sentiu
um aperto no peito ao ver o chalé de Edith Clewlow. Não tive nada a ver com isso, pensou ela, sem muita convicção.
Cerca de dois quilômetros depois, ela dobrou à esquerda no estacionamento da Fundação Nacional Langmere Force. Não havia nenhum outro carro além do dela naquela
hora da tarde e Jane sentiu uma calma inundá-la levemente assim que galgou os degraus e adentrou o bosque, pegando a trilha que dava na cachoeira de doze metros
que desaguava do topo da montanha até o Lago Negro lá embaixo.
Após uma subida curta, mas desgastante, a trilha desembocou do bosque para um pequeno pavimento de calcário que, com suas rachaduras e fissuras irregulares, se assemelhava
a um gigantesco pavimento tortuoso. Como sempre, Jane foi direto até a beira da cachoeira, sentando-se com cuidado, as pernas penduradas na borda da saliência do
rochedo, como costumava fazer desde a primeira vez que Matthew a desafiara quando eram pequenos. A rocha formava um U raso ém torno da cachoeira, que rugia, num
tom
âmbar e ébano à sua esquerda, e seu ponto de observação oferecia uma vista de tirar o fôlego da cascata e do pequeno lago abaixo. Não conseguia se lembrar de uma
única vez em que não tivesse ficado hipnotizada por Langmere Force, que a fazia esquecer as preocupações e se sentir curada. Naquela tarde não foi diferente. Tudo
começou a voltar ao normal aos poucos e ela se sentiu muito mais leve.
A maior vantagem de uma área com poucas estradas é poder seguir alguém de carro sem levantar suspeitas. Dava para manter uma boa distância sabendo que não havia
nenhum desvio, depois chegar perto de verdade, quando os raros entroncamentos se aproximavam. Mas ele nem precisou de tamanha sutileza ao seguir Jane naquela tarde.
Ela subira a colina em direção a Langmere Stile, facilitando sua tarefa. E, ao subir atrás dela, avistara seu carro no estacionamento do Langmere Force. Na verdade,
seria impossível não notá-lo, absolutamente isolado, próximo à entrada da trilha.
Ela não estava mais por perto quando ele entrou no estacionamento. Mesmo assim, teve o cuidado de parar seu carro bem longe, mais ou menos escondido, para não ser
visto da rua. Respirou fundo, enxugando as mãos na calça. Matar velhos anônimos era uma coisa. O que estava planejando agora era algo bem diferente - se é que podia
chamar aquela atitude peculiar de plano. Ainda assim, fora bem-sucedido em todas as suas investidas até ali. Nenhuma testemunha viva. Precisava garantir que continuasse
assim. Eliminaria Jane, ficando cada vez mais próximo do manuscrito.
Saiu do carro, estremecendo assim que um golpe de ar gelado o atingiu. Consultou a placa de informações no início da trilha, compreendendo que a cachoeira poderia
lhe oferecer a oportunidade perfeita. Se a encontrasse lá, o barulho da água abafaria o som da sua chegada. E seria o lugar ideal para se livrar do corpo depois.
Mas precisava de uma arma primeiro. Enquanto caminhava entre as árvores, vasculhava o chão da subida íngreme em busca de algo apropriado. Por fim, encontrou o que
precisava. Um galho caído havia sido cortado em pedaços, provavelmente por um dos guardas florestais, e empilhados na beira da trilha. Ele escolheu o pedaço que
devia ter uns noventa centímetros de comprimento e entre 15 e 17 de diâmetro. Apoiou-o no chão e jogou seu peso sobre ele, testando sua força. Não podia matar alguém
com uma tora podre de madeira.
Continuou subindo, sentindo um aperto no peito que não era causado apenas pelo esforço físico, e sim pela ansiedade crescente que o dominava. Não queria ter que
fazer isso, mas era preciso. Quando as árvores começaram a rarear, diminuiu sua marcha para não dar de cara com Jane sem estar prevenido. Estava certo a respeito
da água; sua ruidosa torrente cobria o som de seus passos sobre as folhas e gravetos. Quando avistou Jane, sentiu o coração acelerar. Os deuses estavam do seu lado.
Ela estava empoleirada na beira do pavimento de calcário, concentrada no rio abaixo.
Avançou sorrateiro, segurando o pedaço de madeira como um bastão de beisebol canhestro. Suas passadas suaves eram tragadas pela queda-d'água. Uma bruma diáfana atingiu
seu cabelo e seu rosto, fazendo-o piscar. Agarrou firme a sua arma improvisada, deixando de lado qualquer escrúpulo sobre o que estava prestes a fazer. Era preciso.
Respirou fundo, erguendo a madeira e avançando na direção de Jane.
Quando a atingiu na cabeça, o golpe era totalmente inesperado. Tão inesperado que ela sequer teve a chance de se agarrar em algo para impedir a queda; fora pega
de surpresa. Antes mesmo que pudesse processar o que havia acontecido, já estava em queda livre, chocando-se contra a água, ensopada, surda, tonta. Foi tragada pela
cascata, rochas traiçoeiras por todo lado, e estava atônita demais para se defender.
A queda no lago a deixara sem ar. Borbulhas escapavam do seu nariz e de sua boca enquanto afundava, subjugada pela força da cachoeira. O sangue pulsava em suas orelhas,
um filtro vermelho obscurecia sua vista. Um lampejo de consciência lhe dizia para buscar a superfície, mas o recado não chegou aos seus membros.
A distância entre a vida e a morte diminuía a cada segundo.
Tenille estava quase começando a se divertir, embora preferisse morrer a confessar isso para alguém. Certo, era frustrante não poder sair à luz do dia, mas havia
livros para ler, música para ouvir, comida e era quentinho dentro do saco de dormir. Jamais tivera problema em ficar sozinha, e Jane aparecia regularmente, o que
a impedia de se sentir de todo abandonada.
Jane lhe dera boas notícias naquele dia pela manhã. Ela lhe parecera um tanto quanto distante, como se estivesse refém da própria mente e fosse muito trabalhoso
escapar. Mas fora bastante clara em relação à sua conversa com Martelo. Agora ele sabia que Tenille não ia entregá-lo à polícia. E Jane dissera a ele que Tenille
também não queria que ele bancasse o mártir, assumindo a culpa para livrá-la do problema. Tenille não fazia a menor idéia do que o pai tinha em mente, mas confiava
nele. Embora tivesse se mantido afastado durante 13 anos, provara a sua dedicação na hora em que fora preciso. Não tinha dúvida de que ficaria do lado dela agora.
Bolaria algum plano para livrar os dois da enrascada. Em questão de dias ela poderia sair do esconderijo e retomar sua vida.
Imaginava onde Sharon estaria morando, já que o apartamento fora destruído pelo incêndio. Teria a administração a acomodado em um dos apartamentos vazios em Marshpool?
Ou estaria com uma de suas colegas,
afogando as mágoas em bebida e maconha? Tenille não se importava com a idéia de ter que voltar a viver com Sharon. A tia costumava deixá-la bem à vontade. Haviam
desenvolvido uma rotina mais ou menos satisfatória para ambas. Mas talvez seu pai entrasse na jogada agora. Não imaginava que a quisesse morando com ele - sabia
muito bem que tipo de vida ele levava para ter certeza de que não ia querer sua filha no olho do furacão. Talvez ficasse apenas de olho nela, para garantir que Sharon
não trouxesse mais nenhum pervertido como Geno para dentro de casa.
Quem sabe, com seu pai na jogada, ela pudesse acalentar os sonhos que sempre deixara em segundo plano porque eram mais do que impossíveis. Sonhos de estudo, faculdade,
e talvez até de escrever seus próprios poemas um dia. Se soubesse que tinha reais condições de fazer isso, podia se comprometer a ir à escola todos os dias, andar
na linha e seguir o caminho que Jane lhe havia mostrado. Podia provar ao pai que alguns trocados bem investidos não seriam um desperdício total de dinheiro. Poderia
deixá-lo orgulhoso.
Mas isso era para o futuro. Nesse exato momento, estava concentrada em pagar sua dívida de gratidão com Jane, por ter se arriscado tanto por ela. Ter feito uma promessa
era o de menos; no mundo em que vivia, as promessas eram flexíveis. Eram mantidas quando faziam sentido e quebradas quando não faziam. Jane era boazinha demais para
compreender que não podia acreditar na palavra dos outros. Era por isso que não estava chegando a lugar algum com os coroas. Ninguém revelava nada, informação ou
pertences, a não ser que fossem lucrar algo com isso.
Tenille esperou dar meia-noite e partiu. Pretendera ir até a casa de Letitia Brownrigg na noite anterior, mas ter encontrado Eddie Fairfield morto em sua poltrona
a havia deixado mais abalada do que admitira. Não tivera estômago para vasculhar a casa da sra. Brownrigg depois de tudo o que havia acontecido.
Encontrou o endereço em Chestnut Hill com facilidade, embora tenha levado alguns segundos para perceber que o 12A era o anexo mais baixo que saía do lado esquerdo
da grande casa de pedra com o número 12. Escondeu a bicicleta atrás de uns arbustos na entrada para veículos e caminhou devagar pelo gramado. Duas janelas na casa
principal deixavam vazar
uma nesga de luz, mas todo o resto estava imerso na escuridão. Tenille supôs ver uma luz entre um lance de escada e outro, acesa para as crianças, que poderiam acordar
de madrugada com vontade de ir ao banheiro. Imaginava como seria morar num lugar tão grande a ponto de se perder a caminho do banheiro. A idéia não era de todo má
e ela se perguntou se algum dia moraria em uma casa grande daquele jeito.
A porta ficava na lateral da casa, uma construção rústica de placas sólidas de madeira com cabeças de prego de aço. Mas a maçaneta e a fechadura eram modernas. Tenille
empurrou para baixo a maçaneta com cuidado e fez pressão, para verificar se havia alguma tranca interna além da fechadura. Para sua surpresa, a porta se abriu e
ela quase tropeçou para dentro da casa. Então era mesmo verdade que, no campo, as pessoas ainda deixavam suas portas destrancadas. Que loucura. Com o coração aos
sobressaltos, entrou, deixando a porta entreaberta ao passar.
Ela avançou furtiva pelo corredor, em direção à primeira porta fechada. Novamente, esforçou-se ao máximo para não fazer barulho ao abrir a porta. Mas o que viu a
fez exclamar um palavrão em voz alta. Um homem estava parado diante de uma escrivaninha, examinando uns papéis com a luz precária da lanterna presa entre os dentes.
Ao ouvir o "Merda!" de Tenille, tomou um susto e se virou para trás, iluminando-a por um segundo com a lanterna. Tenille saiu do quarto e atravessou o corredor depressa,
abrindo a porta e a batendo com força para ganhar alguns segundos.
Correu pelo jardim, arrastando a bicicleta dos arbustos para a rua.
Passando a perna por cima do selim, encarapítou-se e desceu a colina pedalando o mais depressa que podia. O vento cortante zumbia em seus ouvidos e ela tentava escutar,
em pânico, o som de um carro a perseguindo. Se ele estivesse de carro, teria que abandonar a bicicleta e escapar a pé pelos jardins que flanqueavam a rua. Mas estava
com sorte. Nenhum veículo a perseguia, embora só tenha parado de pedalar quando chegou a Fellhead, ensopada de suor e exausta. Guardou a bicicleta de volta e correu
para o galpão de abate, certificando-se de trancar a porta.
Ofegante, encostou-se na porta e tentou se acalmar. Era impossível que ele a tivesse visto direito, não com o boné de beisebol enterrado na cabeça e a jaqueta fechada
até a gola para cobrir metade do rosto. E, mesmo que
tivesse visto, não teria como saber sua identidade ou onde estava escondida. E, depois, ele obviamente não tinha mais direito do que ela de estar ali dentro. Então,
não poderia ir até a polícia e contar que havia visto um jovem ladrão negro. Melhor assim. Se a polícia local fosse esperta, logo estariam juntando dois mais dois
e chegando a Tenille Cole e à Fazenda Gresham. Estava a salvo. Estava realmente a salvo.
Mas não podia dizer o mesmo sobre Letitia Brownrigg. Se alguém estava atrás do manuscrito de Jane, então talvez houvesse mesmo algo estranho em todas aquelas mortes.
Tenille sentiu um aperto no peito. E se tivesse ficado cara a cara com um assassino? Se ele sabia sobre o manuscrito, provavelmente conhecia Jane. E, se conhecia
Jane, talvez conhecesse Tenille. E se conhecia Tenille, poderia descobrir onde ela estava escondida. Será que pretendia mesmo deixá-la viva para contar a história?
Talvez não estivesse tão a salvo quanto imaginava.
Quando afundamos o Bounty, fizemos questão de manter a lancha e o escaler. Com seis e cinco metros de comprimento, respectivamente, eram embarcações ideais para
nossas pescarias. Nós os mantínhamos a postos, disponíveis para qualquer um que quisesse usá-los para pescar. Conforme o meu medo de uma violenta rebelião crescia,
passei a tomar precauções secretas para assegurar minha própria sobrevivência e de minha família. Construí um esconderijo próximo aos barcos e comecei a reunir provisões
lá. Peixe e carne secos, cocos, frutas secas, galões de água fresca, lona para montar a vela, a bússola que carregava comigo; tudo isso eu escondi, junto com uma
porção substancial do ouro que havíamos removido do Bounty. Era uma ironia que o único metal que não possuía valor em Pitcairn poderia acabar comprando a minha liberdade.
Não deixei ninguém perceber meus preparativos, nem mesmo minha querida mulher, Isabella. Embora não duvidasse do seu amor por mim, sabia que as mulheres adoravam
tagarelar sobre os homens enquanto executavam suas tarefas diárias. Não podia deixar que meus preparativos fossem descobertos, de modo que fui obrigado a deixá-la
na ignorância acerca dos meus planos.
35
O clima daquela quinta-feira era exatamente o que Jane ansiava quando estava em Londres: céu azul com nuvens esparsas; folhas verdes, douradas, avermelhadas, marrons
e vermelho-escuras; a paisagem recortada sobre o horizonte, nítida e irregular; os pássaros cantando e o cheiro do outono no ar. Mal podia acreditar que sobrevivera
para ver tudo isso. Estava machucada e dolorida, um corte em um dos braços e um calombo na nuca. Mas, à exceção disso, parecia ter superado sua provação sem maiores
danos físicos.
As feridas mais graves eram as internas, desconfiava ela. Jamais fora vítima de qualquer ato de violência, até então desconhecia o medo visceral que surge com a
certeza de que há alguém disposto a nos fazer mal. E não ter a menor idéia de quem a atacara só agravava seu temor.
Devia a sua vida a um pastor e seu cão, um homem que, como seu pai, conhecia as trilhas da montanha tão bem quanto a palma de sua mão. Ele estava voltando para o
seu Land Rover com o cachorro quando viu Jane despencar dentro do rio. O homem e o cão correram em sua direção e ele instruíra o animal a mergulhar dentro d'água.
Ela não se lembrava do cachorro abocanhando a gola de sua camisa com os dentes. Lembrava-se de ter alcançado a superfície em pânico, convicta de que o cão a atacara
e lutando para se libertar do seu jugo. Só quando o pastor interferiu, ela parou de se debater e deixou que a retirassem da água. Estava grogue, mas consciente o
bastante para caminhar até o Land Rover, dependurada em um homem de quem se lembrava vagamente de comércio de ovelhas e churrascos de verão.
A mãe enfrentara a crise com a costumeira serenidade. A preocupação de Judy era sempre abstrata; diante de problemas concretos, ela simplesmente
fazia o que devia ser feito. Jane foi despida, levada para um banho de banheira bem quente e alimentada com chá e leite com açúcar. Suas feridas foram desinfetadas
e a envolveram em uma toalha aquecida antes de a deitarem na cama com um pijama de flanela novinho em folha. Só então a mãe resolveu perguntar o que havia acontecido.
- Não sei - mentiu Jane. - Acho que escorreguei. - Agora que já estava medicada, não queria contar a verdade à mãe. Judy ficaria apavorada, e ela mais ainda,
ao ter que reviver o que se passou depois que recebeu a pancada na cabeça e despencou, atônita, ficando imersa no lago com a boca e o nariz cheios d'água, sem conseguir
alcançar a superfície, subjugada pela pressão da torrente. Mas quando Dan apareceu, após ela ter ligado para ele, contou a história toda assim que ficaram a sós.
- Você faz alguma idéia de quem te atacou? - perguntou ele, cerrando os punhos.
- Nem imagino. Disse a você que tive a impressão de estar sendo seguida, mas não faço idéia de quem poderia fazer uma coisa dessas. Não pode ter sido Jake,
nem Matthew.
- Seja quem for, isso é grave - disse Dan. - Você deveria contar à polícia.
- Mas por que alguém ia querer me matar? Eu nem tenho o manuscrito.
Dan segurou a mão dela.
- Talvez queiram eliminar a concorrência.
- Nesse caso, podem estar atrás de você também.
Ele arregalou os olhos, assustado.
- Meu Deus, não tinha pensado nisso antes. - Ele soltou o ar pelas narinas ruidosamente. - Bem, de agora em diante, nada de entrevistas sozinha. Nada de passeios
independentes. Vamos ficar juntos, está bem?
Jane assentiu com a cabeça, cansada de raciocinar.
- Talvez você tenha razão. Talvez eu devesse mesmo procurar Rigston.
- Pense com calma - aconselhou ele. - Amanhã de manhã conversamos.
Pois bem, já era outro dia e ela ainda estava com a cabeça lotada de preocupações. Tinha a impressão de que todas as áreas de sua vida estavam do avesso. Judy tentara
animá-la no café-da-manhã, mas Jane estava sobrecarregada de segredos. A chegada de Dan havia sido redentora.
Judy tentou convencer Jane a ficar em casa descansando, mas ela estava inflexível. Ela e Dan precisavam ir até Coniston, visitar Jenny Wright, a irmã mais nova de
Letty Brownrigg, nascida em Fairfield. Era um alívio sair um pouco de casa, para longe do olhar carregado de preocupação de sua mãe.
- Como você está? - perguntou Dan, manobrando o carro para fora do pátio. - De verdade.
- Um caco - respondeu Jane. - O corpo todo dói. Mas não pretendo desistir.
- E quanto a ir conversar com Rigston? Pensou melhor a respeito?
- Não sei... e se ele não acreditar em mim? - Ou, pior, e se ele acreditar em mim e decidir vigiar a fazenda para garantir a minha segurança? Tenille não
teria onde se esconder.
- E por que não acreditaria?
Jane suspirou:
- Se há algo estranho nessas mortes, ele deve estar achando que sou uma possível suspeita. Pode achar que eu forjei o ataque para desviar a suspeita de mim.
Dan a olhou de esguelha.
- Que mente maliciosa você tem - disse ele.
- Eu e a polícia - concluiu ela, secamente.
Prosseguiram em silêncio, contornando Ambleside e passando por Clappergate e Skelwith Bridge. A gigantesca silhueta do Old Man of Coniston avolumou-se diante deles.
Jane sempre gostara de Coniston. Havia algo simples e despretensioso no vilarejo pós-industrial, que não pretendia ser nada além do que realmente era. Havia surgido
graças ao minério de carvão na montanha e a maioria das suas casas cinzentas de pedra era pequena e modesta. De algum modo, Coniston havia resistido ao embelezamento
voltado para o turismo melhor do que a maioria dos vilarejos daquela área; ainda parecia somente um lugar onde os moradores locais viviam e trabalhavam.
Jane instruiu Dan a sair da estrada principal em direção a uma trilha estreita que conduzia ao Coppermines Valley. Quase desejou ter vindo no Land Rover de seu pai,
pois o Golf de Dan chacoalhou e roncou na subida do vale e ao atravessar a Miner's Bridge. Mais adiante havia uma fileira de pequenos chalés, originalmente construídos
para abrigar os mineiros e suas
famílias. O Irish Row havia sido abandonado e deixado em péssimas condições quando a exploração das minas chegou ao fim, mas as estradas modernas e o aumento na
renda tornaram Lake District acessível para fins de semana e férias. As propriedades naquela área ficaram valorizadas e a fileira de casas de pedra havia sido transformada
em chalés muito procurados que nenhum operário local sonhava poder comprar. Jane lembrava-se de ter ido ali quando criança para passar o dia, explorando a velha
mina abandonada sob o olhar atento do pai. Não se lembrava de Irish Row, e sim de um chalé a uns dez quilômetros, onde Jenny Wright morava.
A memória não sobrevivera por motivos estéticos. Copperhead Cottage era uma construção alta e estreita, sua pedra natural coberta por um revestimento cinza de couro.
Mais parecia um sapo em plena paisagem, de tão sinistro, as vidraças quadradas de suas janelas escuras cobertas por cortinas feitas de rede. A primeira vez que haviam
estado lá, ela e Matthew afastaram-se dos pais correndo. Assim que dobraram a curva, seu irmão agarrara seu braço e a fizera parar.
- É ali que mora a bruxa - sussurrara ele. - Ela gosta de comer menininhas. Se você sair por aí sozinha, ela vai aparecer disfarçada de ovelha e engolir
você viva.
Pelo que se lembrava, Jane devia ter uns cinco anos e as palavras de Matthew haviam sido bastante convincentes. De modo que seu prazer de passear era sempre ameaçado
quando as saídas da família terminavam em Coniston. E, apesar do tempo maravilhoso e de sua condição de mulher adulta, Jane ainda experimentou certo temor ao caminhar
na frente de Dan em direção à porta do chalé.
Quando a porta finalmente se abriu, Jane sentiu o antigo tremor do medo. A mulher parada na soleira guardava uma apavorante semelhança com a imagem infantil das
bruxas. Seu cabelo grisalho era um ninho desalinhado, seus olhos, negros e fundos, e o nariz, pontiagudo e encurvado na direção do queixo proeminente. Um ombro era
mais alto do que o outro e ela estava apoiada em uma bengala bamboleante. Como se para completar a cena, um gato cinzento rondava seus tornozelos.
- Esta é uma casa de família - anunciou ela. - Não é pensão, hotel, nada disso. E não permito que usem o meu banheiro.
- Sra. Wright? - perguntou Jane, imediatamente desanimada.
A mulher a examinou através de seus pequeninos óculos redondos.
- Quem é você?
- Meu nome é Jane Gresham. Sou amiga de Jimmy Clewlow, o neto de David e Edith - disse Jane, apelando instintivamente para a relação familiar. Uma pessoa
que recebia estranhos com tamanha desconfiança não ia se impressionar com as suas credenciais. - E este é o meu amigo Dan Seaboume.
- Também sou amigo de Jimmy, minha senhora - disse Dan, com um sorriso simpático a postos.
- Se vieram me buscar para o enterro, chegaram um dia antes - disse ela, mal-humorada.
- Não foi por isso que viemos. Jimmy acha que a senhora talvez possa nos ajudar com uma pesquisa. Jane e eu trabalhamos juntos em uma universidade em Londres
- explicou Dan, exibindo seu charme.
Jenny Wright franziu o cenho.
- Que tipo de pesquisa os traz até aqui?
- Eu sou daqui. Cresci em Fellhead - disse Jane, apresentando o resto de suas credenciais.
- Burrice sua ter saído daqui. Então, que pesquisa é essa que Jimmy Clewlow acha que posso ajudar?
- Talvez pudéssemos entrar e explicar direitinho, em vez de fazermos a senhora ficar parada aqui na porta, exposta à friagem - sugeriu Dan.
A velha recusou com a cabeça.
- Um nome conhecido aqui e outro ali não lhes dará acesso à minha casa. Como vou saber que vocês são mesmo quem dizem ser? Como vou saber se não estão aqui
para roubar uma velha?
Dan conseguiu disfarçar a sua irritação.
- A senhora pode ligar para Jimmy e perguntar a ele.
Jenny bufou:
- Não tenho o número dele.
- Eu tenho.
- E como vou saber que é ele mesmo? Não, podem falar daqui mesmo.
- Como a senhora preferir - concordou Jane, educada. - Sou especialista na obra de William Wordsworth. Descobri que um dos ancestrais da
senhora, Dorcas Mason, trabalhou para a família de Wordsworth no Dove Cottage. E que ela ficou com alguns papéis dele.
- Você está dizendo que ela os roubou? - A mulher parecia ainda mais hostil.
- Em absoluto. Achamos que ela os recebeu para guardá-los.
- Bem, se recebeu, guardou e pronto. Nossa família tem um profundo senso de dever. - Ela cerrou os lábios e sacudiu a cabeça, orgulhosa.
- Esperamos que sim. Estamos tentando descobrir se os papéis sobreviveram e, se possível, dar uma olhada neles.
- E por que o interesse?
Jane sorriu.
- Se não me engano, trata-se de um poema inédito de Wordsworth. Um longo poema. Gostaria de ser a primeira pessoa a lê-lo. E de ter a oportunidade de estudá-lo.
Escrever a respeito. - Tentou valer-se de um tom ainda mais conciliatório: - É um manuscrito valiosíssimo. Quem quer que o possua, vai ficar rico.
- Viu? Eu sabia que vocês estavam aqui para me roubar. Bem, não tenho nada que valha a pena levar, minha jovem. Nenhum manuscrito. Nenhuma jóia. Nem dinheiro
eu tenho. Você e seu namorado estão perdendo tempo aqui. Não tenho nada para vocês. - Ela começou a fechar a porta, depois a abriu novamente. - E digam a Jimmy Clewlow
para não deixar de mandar alguém me buscar amanhã. Não quero perder o enterro de Edith só porque alguém se esqueceu da minha existência. - Dessa vez, a porta se
fechou por completo, deixando-os prostrados diante de um exagero de tinta preta.
- E um bom dia para a senhora também - murmurou Jane, girando nos calcanhares. Teve a impressão de que as janelas da casa a vigiavam enquanto partia. Outra
viagem à toa. Se continuasse assim, ia voltar para Londres sem nada para apresentar após duas semanas de licença. Nada além de um calombo na cabeça, arranhões generalizados
e nervos em frangalhos.
Depois que Dan a deixou de volta na fazenda, Jane aproveitou a oportunidade para ir ver Tenille. Encontrou-a enrodilhada em um canto, os olhos arregalados e encolhida.
- O que houve? - perguntou ela, sentando-se ao lado da menina e abraçando-a.
- Sujou - murmurou Tenille.
- Você não agüenta mais ficar enfurnada aqui, é isso?
Tenille encostou-se nela.
- Lembra que você me fez prometer que eu não ia mais sair?
Jane mal podia conceber a idéia de mais problemas. O ataque a havia deixado muito vulnerável.
- O que aconteceu?
Tenille encolheu-se sob o braço protetor de Jane.
- Fui até a casa da tal Letitia Brownrigg ontem à noite. Cheguei lá por volta de 1:00 da manhã. A porta estava destrancada, então fui entrando. Só que havia
um cara na sala de estar.
- Droga, Tenille. E se ele chamou a polícia?
- Não, você não está entendendo. Era um ladrão. Estava com uma lanterna na boca, revirando tudo numa escrivaninha. Mexendo nuns papéis. Tipo o que eu faria
se tivesse chegado lá antes.
As palavras de Jake lhe ocorreram imediatamente. Alguém muito mais inescrupuloso do que ela estava atrás do manuscrito. E Tenille o flagrara. Estava com o coração
na boca; seria o mesmo sujeito que tentara afogá-la?
- Ele viu você?
- Bem, ele viu uma pessoa. Não acho que tenha conseguido me ver direito, não o bastante para me reconhecer, se é que me entende.
- E você o reconheceu?
Tenille fez uma careta.
- Não vi o rosto. Tive só uma noção geral, sabe como? Tipo, ele era alto, nem gordo nem magro. Acho que estava usando um gorro. Tipo um velho. Podia ser qualquer
um.
- Jake? - Jane precisava perguntar, mas não queria ouvir a resposta.
- Não acho, não, mas não posso afirmar com certeza. Como eu disse, podia ser qualquer um.
- E o que você fez?
- Dei no pé. Só parei de pedalar quando cheguei aqui. Cara, eu estava apavorada. Pensei: e se ele sacou que eu sou negra? Porque não tem muitos negros por
aqui, não é? E, se ele estava buscando a mesma coisa que você, provavelmente a conhece. E, se a conhece, deve saber quem eu sou. Porque você deve falar sobre mim,
não é? - Tenille elevou a voz, nitidamente assustada.
- Eu realmente falo sobre você; tem razão. Mas mesmo que esta pessoa tenha te reconhecido, não teria como saber onde você está.
Tenille bufou:
- Claro que sim. Basta procurar na sua casa.
Era difícil argumentar com a sua lógica.
- Mais um motivo para você não sair daqui, então - disse Jane, tentando disfarçar seu próprio medo. - Não há nada que possamos fazer a respeito. Só precisamos
tomar cuidado. Vou tentar falar com Jimmy, sondar se ele ficou sabendo algo sobre uma invasão à casa de Letty. - Deu um último abraço em Tenille e se levantou. -
Que sirva de lição para você. Não saia daqui, estou falando sério desta vez.
- Tá, tá, já entendi. - Ela bocejou. - Estou cansada demais para outra aventura. Cara, parece que eu corri uma maratona ontem.
Jane voltou pelo pátio, a cabeça tumultuada. Quem seria esse homem misterioso? Devia estar relacionado à sua busca. Do contrário, seria muita coincidência. Mas,
por mais que eles quisessem lhe passar a perna encontrando o manuscrito primeiro, não podia conceber que Matthew ou Jake tivesse a coragem ou a índole para cometer
um roubo, que dirá um assassinato. Ou seria alguém que ela nem sequer conhecia, como sugerira Jake? Antes que pudesse ficar completamente perdida em seus pensamentos,
foi forçada a voltar para o presente pela campainha do seu celular.
- Alô? - disse ela.
- Jane Gresham? - perguntou uma voz.
- Sim. Quem está falando?
- Inspetor-chefe Ewan Rigston. A gente se conheceu na fazenda de seus pais, sábado à noite.
- Inspetor Rigston. Em que posso ajudá-lo? Encontraram Tenille?
- Não, não tem nada a ver com Tenille. Preciso conversar com você sobre uma morte súbita.
Mesmo assim, a despeito dos meus melhores preparativos, no fim eu estava tão despreparado quanto os outros. Em um dia negro de setembro em 1793, um criado nativo
apanhou uma arma emprestada, alegando querer matar um porco, a fim de preparar o jantar para os homens brancos. Não havia nisso nada de extraordinário. Costumávamos
emprestar-lhes armas de fogo para tais propósitos sem que nada de ruim tivesse acontecido. As mulheres deixaram a aldeia, como sempre faziam, para buscar ovos de
aves marítimas. Os homens brancos foram trabalhar em suas plantações, enquanto eu permaneci perto de casa. Minha mulher estava muito pesada, grávida de nosso terceiro
filho, e eu queria ficar por perto. Quando preparava batata-doce, ouvi um disparo e, tolo, fiquei contente por achar que ele anunciava carne para nosso jantar. No
entanto, minha alegria durou pouco. Algum tempo depois, os nativos rebeldes aproximaram-se pelas minhas costas e atiraram, a bala atravessou o meu ombro. Tombei
no chão com um grito. Depois, senti um golpe na cabeça e mergulhei na mais profunda escuridão.
36
Sentindo um aperto no peito e lutando contra o pânico, Jane rezou em silêncio.
- Uma morte súbita? - perguntou ela, tentando agir como se isso fosse a coisa mais improvável que um policial poderia lhe comunicar. - Quem morreu?
- Uma senhora idosa chamada Letty Brownrigg. Ela morava em Chestnut Hill, nos arredores de Keswick. Acontece que o seu nome e o seu número estavam anotados
em um bloco, ao lado do telefone, na sala de estar dela. - Ele se calou, aguardando a reação de Jane.
Era como se alguém lhe acertasse um soco no estômago. Esforçou-se para parecer calma.
- Sei. Ela anotou na terça-feira, quando estive lá. Mas não estou entendendo por que você está me ligando. Há algo de errado? Algo suspeito? - Jane buscava
desesperadamente as palavras que uma pessoa inocente empregaria. Soube na hora que não podia revelar a presença de Tenille na cena do crime. Era melhor omitir indícios
do que expor a menina a ser considerada suspeita em uma segunda morte.
- E por que haveria?
Jane suspirou, irritada.
- Porque, se ela tivesse morrido dormindo, um inspetor não estaria envolvido no caso, muito menos me ligando para me fazer perguntas descabidas.
- Está bem. Acontece que a sra. Brownrigg não ia ao médico havia algum tempo, então temos que investigar para descobrir se não houve nada suspeito. Você disse
que esteve com ela na terça?
- Estive. Ela parecia bem. Bastante animada, para falar a verdade.
- Pois é. Ela sofria do coração, mas estava bem ultimamente. Seja como for, você não foi a última pessoa a vê-la com vida. A nora a levou para almoçar ontem,
de modo que temos um relato mais recente do que o seu. É que me pareceu estranho, só isso.
- Como assim? - Jane sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo. Havia algo no tom casual de Rigston que a enervava.
- É que essa já é a quarta morte esta semana que está relacionada a você - disse ele, sem rodeios.
Jane ficou em silêncio. Não conseguiu pensar em nada que não parecesse dissimulado.
- Edith Clewlow, Tillie Swain, Eddie Fairfield e agora Letty Brownrigg. Creio que esses nomes estão em uma lista de sua autoria.
- Porque todos aparecem na mesma árvore genealógica. Dos quatro, a única que eu já conhecia era Edith Clewlow. E ela morreu antes de eu ter tido oportunidade
de procurá-la. Se há algo estranho acontecendo, você não acha que deveria investigar na própria família? - Jane percebeu o tom defensivo em sua voz, mas sabia ter
um bom argumento.
- Isso faria sentido se as mortes não tivessem começado depois de você ter aparecido perguntando sobre um manuscrito perdido.
- Mais uma razão para investigar a família. Se o manuscrito existe, vale muito dinheiro. Estamos falando em sete dígitos, inspetor. Se eu fosse uma criminosa,
poderia achar que o dinheiro compensaria o esforço.
- Pode ser.
- E, pelo que fiquei sabendo, as três primeiras mortes foram consideradas naturais. Então, não sei por que você está me perguntando essas coisas.
Rigston pigarreou.
- Enquanto eram três, podia ser coincidência. Mas agora são quatro e minha intuição diz que algo aqui vai além da coincidência. E, seja lá o que for, tem
a ver com você, dra. Gresham. Tornarei a entrar em contato.
- E as minhas respostas vão continuar sendo as mesmas.
- Alguma notícia de Tenille? - perguntou ele, deixando-a tensa novamente.
- Não - respondeu Jane com firmeza. - Até mais, inspetor Rigston.
- O coração de Jane parecia que ia saltar pela boca. Edith, Tillie, Eddie e,
agora, Letty. Todos mortos. Os quatro primeiros nomes da lista, todos mortos. As palavras de Jake ecoavam em sua mente: e vão fazer o que for necessário. Que tipo
de gente era aquela? E, na certa, não iam cometer quatro assassinatos na pista do que poderia não passar de uma invenção da cabeça de Jane. Que diabos, um crime
já seria demais por um poema. Quatro era algo impensável.
Mas o ataque de que fora vítima só servia para respaldar esses indícios. Ataque que não podia revelar a Rigston agora, tinha certeza. Ele já a estava tratando como
suspeita. Não tinha esperança de que acreditasse em seu agressor misterioso.
Entrou cambaleante na cozinha e deixou-se cair pesadamente em uma cadeira. Precisava falar com Dan. Discou o número dele, que atendeu no terceiro toque.
- Não posso falar agora - disse ele. - Você pode me encontrar em Keswick daqui a uma hora?
- Posso - disse Jane, cansada. - Onde?
Ouviu o som de uma conversa abafada. Julgou ter reconhecido a voz de jimmy.
- Perto do lago. No estacionamento a caminho de Friar Cragg. Combinado?
- Vejo você lá daqui a uma hora. - Jane fitou o telefone, como se esperasse que ele lhe desse uma direção irrefutável. Suas suspeitas a sobrecarregavam e
não
sabia com quem compartilhá-las. Certamente não com Rigston. Estava certa de que ele era um homem esperto demais para ser iludido com as meias-verdades que ela poderia
oferecer. Mas não podia continuar em silêncio. Se alguém havia assassinado aquelas pessoas, precisava tomar precauções para que os crimes não continuassem impunes.
Foi então que se lembrou de alguém. A única pessoa que estaria mais interessada nas mortes que nos segredos que Jane porventura estivesse escondendo.
Meia hora depois, Jane estava no porão da funerária, fazendo companhia a um cadáver de duzentos anos e a uma antropóloga forense. Se eles pudessem
me ver agora, pensou ela. Acabara de encontrar River, que tinha ido buscar um sanduíche.
- O que eu tenho para dizer vai parecer bem estranho - preveniu Jane.
- Ótimo, adoro coisas estranhas - disse River, empoleirando-se em um dos bancos do laboratório.
- Calma. Eu sei que já lhe contei uma parte da história antes, mas preciso organizar minhas idéias. Tem a ver com o manuscrito que estou procurando. A última
pessoa de que se tem notícia de tê-lo em mãos foi uma criada chamada Dorcas Mason. Imaginei que ela possa ter decidido guardá-lo, em vez de destruí-lo. Então, se
o manuscrito ainda existe, provavelmente foi confiado a um dos seus descendentes.
- Faz sentido - comentou River.
- Eu levantei uma árvore genealógica e fiz uma lista com os descendentes vivos em ordem de probabilidade, com base no princípio de primogeni-tura.
River fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- O mais adequado, sobretudo naquela época.
- A primeira pessoa da minha lista morreu uma noite antes que eu fosse procurá-la. A segunda, morreu uma noite depois de eu ter estado com ela. A terceira,
uma noite depois de eu ter estado com ele. E acabo de receber uma ligação do inspetor Rigston me dizendo que a quarta pessoa da minha lista morreu ontem à noite.
Duas noites depois de eu ter estado com ela. - Ela mostrou o esboço da árvore genealógica, ilustrando seu ponto de vista.
River examinou-a com interesse.
- Realmente, é bem esquisito. Mas, como eu disse antes, pessoas idosas morrem.
- Eu sei. E nenhuma dessas mortes foi tratada como suspeita. Mas estão todas relacionadas. OK, um pouco distantes, mas mesmo assim são todos da mesma família.
A mesma família que pode possuir um bem muito valioso e portátil. E, como pessoas idosas não costumam sair muito de casa, se você quer procurar algo assim, matá-las
é a melhor maneira de garantir que não perturbem.
- Parece mesmo suspeito - admitiu River, pensativa. - Mortes em seqüência numa família não são incomuns, mas, nessas circunstâncias, bastante intrigantes.
- Ela mexeu em seu rabo-de-cavalo. - Você disse que Ewan Rigston ligou por causa de uma senhora que morreu. O que você tem a ver com isso?
- Ele disse que queria saber se eu tinha sido a última pessoa a vê-la com vida. Falou em uma morte súbita, parece que ela não ia ao médico havia algum tempo.
Mas, do jeito como falou, parecia que eu era suspeita por homicídio ou algo assim.
River ergueu as sobrancelhas.
- Sério? Bem, se ela não ia ao médico há algum tempo, vão ter que fazer uma autópsia. Vou fazer o seguinte: vou trocar uma palavra com meu colega em Carlisle.
Normalmente, é ele quem faz as autópsias. Mas já que estou aqui, sou uma legista qualificada e ainda posso ganhar pontos com o meu chefe quebrando esse galho. E
assim vou poder dar uma boa olhada na velhinha e ver se encontro algo suspeito. Que tal?
Jane abriu um sorriso.
- Você não faz idéia do peso que está me tirando das costas.
- Não crie muita expectativa - disse River. - É bem provável que eu não encontre nada.
- Vou ficar feliz se não encontrar. Isso tudo começou porque cismei de achar um manuscrito que pode nem existir. A última coisa que eu quero são quatro mortes
na minha consciência por causa disso.
Os dois já estavam lá, sentados em um banco, contemplando a superfície cintilante da água. Dan olhou para trás quando ela se aproximou, exibindo um sorriso radiante.
- Desculpe por não ter falado com você mais cedo - disse ele, afastando-se do carro e puxando-a num abraço. Cumprimentou-a com um leve beijo nos lábios. -
Sabe como é. E então, como você está?
- Ainda estou dolorida. E tenho que te falar uma coisa. Acho que é melhor dizer logo, sem rodeios. Letty Brownrigg morreu ontem à noite.
O choque era visível no rosto de Jimmy.
- Letty, a prima do meu avô? Que mora em Chestnut Hill? Ela estava na casa de Alice segunda-feira! Parecia ótima. O que aconteceu?
- Eles acham que foi morte natural, mas vão ter que fazer uma autópsia. - Falar sobre o assunto parecia aumentar o fardo que carregava pela morte de Letty,
não diminuí-lo. Jane se deixara cativar pela senhora e agora ela estava morta. Talvez por sua culpa.
Jimmy levou as mãos ao rosto por um instante. Deslizou os dedos pelas sobrancelhas, deixou as mãos caírem no colo e exalou um suspiro. Dan passou o braço pelos seus
ombros.
- Pobre Letty. Meu Deus, parece que todos os velhos decidiram se deitar e morrer ao mesmo tempo. - Fitou o lago com o olhar vidrado por alguns segundos, em
silêncio. Depois se virou para Jane com uma expressão intrigada. - E como é que você soube de tudo isso?
- A polícia ligou para perguntar por que meu nome e meu telefone estavam no bloco de anotações dela. Estive lá na terça, lembra? Eles queriam checar se fui
a última pessoa a vê-la com vida. - Jane não pôde mais controlar seus sentimentos e eles vieram à tona, sem reservas: - Parece que todo mundo com quem eu converso
sobre o manuscrito acaba morrendo. Primeiro a sua avó, depois Tillie, Eddie. E agora Letty. Estou ficando apavorada.
Dan estendeu seu braço livre pelos ombros de Jane.
- É compreensível.
- E agora Ewan Rigston está me tratando como se eu fosse suspeita. Só porque os nomes estavam na minha lista.
- Bem, é um pouco demais para ser só uma coincidência - disse Jimmy. - E acho que você é a conexão mais óbvia entre eles. Ou você consegue pensar em outra
hipótese? - Não havia nada hostil em sua pergunta; era mais uma súplica.
- Alguém que acredita que o manuscrito de Wordsworth existe e quer muito pôr as mãos nele. E você sabe como são os idosos, eles não saem muito de casa. Eles
mais recebem visitas do que visitam. A família cuida deles. Estão sempre em casa e têm um sono notoriamente leve. Ou seja, não é fácil roubá-los. Se você quer vasculhar
a casa direito, precisa eliminá-los de vez. E esse sujeito faz o serviço direitinho.
Dan estremeceu.
- Cruzes, Jane, que frieza.
- Eu sei. Mas é a única explicação que me ocorreu até agora.
- Mas, se todos tivessem sido assassinados, alguém já teria percebido a essa altura - argumentou Jimmy, contestando a lógica do argumento de Jane porque era
monstruoso demais para ser aceito.
- Não se não houve sinais óbvios de luta ou ferimentos. Eram todos velhos. Todos bastante frágeis. Não deve ter sido muito difícil aterrorizá-los. Vai ver
que foi assim que morreram.
Jimmy balançou a cabeça, como se tentando afugentar essa idéia.
- E o que a polícia pretende fazer a respeito? Além de agir como se você fosse suspeita?
- Não sei. Mas Ewan Rigston parece estar levando o caso a sério.
- Acho bom mesmo. - Jimmy virou-se para ela, num olhar irado. - São pessoas que eu conheço desde que me entendo por gente, pessoas que amo. Minha família.
Não há nada que possamos fazer?
- Estou tentando descobrir. Falei com a dra. Wilde, a patologista que está examinando o corpo encontrado no pântano. Ela vai fazer a autópsia de Letty. Se
encontrar alguma coisa, qualquer coisa suspeita, ela vai averiguar.
Jimmy desanuviou o rosto.
- Pelo menos é um começo.
- E tem outra coisa. Dan e eu fomos falar com Jenny Wright em Coniston hoje pela manhã. Ela era a próxima da minha lista. Não acho que ela deva ficar lá sozinha
até que a gente descubra o que está acontecendo.
Jimmy fez uma careta.
- Meu Deus, aquela bruxa velha.
- Ela insistiu que você vá buscá-la para o enterro amanhã. E se você fosse lá hoje e a trouxesse logo?
- Não é má idéia - resmungou Jimmy. - Mas ela é um saco.
- Mesmo assim, você não quer que ela acabe morta, quer?
- Acho que não. Não podemos pedir à polícia?
- Eles não vão se preocupar com ela como alguém da família - ponderou Dan.
- Está bem, eu vou agora então. - Jimmy parecia deprimido com a idéia.
- Posso ir com você - ofereceu Dan. - Para aliviar o seu fardo.
Jimmy balançou a cabeça.
- Obrigado, mas prefiro viver sem a Inquisição espanhola que isso iria provocar. - Ele se levantou, afagando o ombro de Dan. - Te ligo mais tarde - disse
ele, inclinando-se para beijar o topo de sua careca.
Observaram-no partir, em silêncio.
- Ele é um bom rapaz - disse Dan.
- Eu sei.
Dan espremeu os olhos, protegendo-os do brilho cintilante da água.
- Confesso que no início só pensei que ele podia ser uma fonte útil para nós. - Ele suspirou fundo. - Mas estou me apaixonando por ele de verdade.
Dessa vez, o egocentrismo de Dan realmente a irritou. Jane levantou e pôs-se a caminhar de volta para o carro. No meio do caminho, virou-se para ele e disse:
- Quer saber de uma coisa, Dan? Quatro pessoas morreram. Alguém tentou me matar ontem à noite. No que diz respeito à sua vida amorosa, acho que você deve
estar me confundindo com alguém muito interessado no assunto.
Quando recobrei os sentidos, rapidamente compreendi que eles me haviam deixado entregue à própria sorte. Soube que, se permanecesse onde estava, eles voltariam e
terminariam o que haviam começado de modo tão covarde. Eu sentia uma dor tenebrosa latejando em minha cabeça e o meu ombro sangrava sem cessar. Mas sabia que, se
não buscasse outro lugar, certamente morreria. Esforcei-me para ficar de joelhos e quase desmaiei de dor. Foi então que avistei o que, no início, julguei ser uma
aparição. Ela tomou a forma da minha mulher Isabella e considerei-me ainda mais perto da morte do que imaginara. Mas, quando a aparição se dirigiu a mim, compreendi
que era mesmo Isabella em carne e osso. Marido, vim lhe ajudar, disse ela. Eles me disseram que estava morto, mas eu não acreditei. Estão matando todos os homens
brancos. Com sua ajuda, consegui ficar de pé e juntos nos arrastamos com dificuldade até as figueiras mais próximas. Eu estava a salvo, mas não por muito tempo.
37
River aprendera a conseguir tudo o que queria. Tinha a ver com determinação, porém, mais do que isso, tinha a ver com um profundo entendimento de como agradar os
outros. Elogios criteriosos, civilidade profissional e a disposição para conceder favores, não raro antes mesmo de lhe serem pedidos - tudo isso a ajudava a chegar
aonde queria. Quando desligou o telefone, o patologista, do outro lado da linha, se convencera de que ela estava lhe fazendo um favor ao realizar a autópsia de Letty
Brownrigg.
Como o corpo de Letty já havia sido transferido para a câmara mortuária do hospital, os preparativos foram bastante rápidos. Quando Jimmy partiu para Coniston, River
já se preparava para examinar o corpo. Seu assistente e o policial uniformizado que Ewan Rigston pedira para estar presente durante o procedimento estavam discutindo
futebol com um desdém casual pelo que estava prestes a acontecer. River fitou o policial impassível e perguntou:
- Já presenciou uma autópsia antes?
- Já - respondeu o jovem, imperturbável. - Mais do que a maioria. Eles sempre me mandam. Meu pai era açougueiro. Não me impressiono com cadáveres.
- Fico feliz em saber - disse River. - Detesto ter que ficar esperando enquanto as testemunhas saem correndo para botar para fora suas refeições.
- Sem chance de isso acontecer comigo. É tudo carne, não é? Quero dizer, seja lá o que nos torna humanos, já se foi há muito tempo - disse ele, indiferente.
- Não passamos de sacos de sangue e tripas depois que morremos. Jamais entendi por que as pessoas criam tanta encrenca quando seus entes queridos têm de ser submetidos
à autópsia.
- Algumas pessoas realmente têm objeções religiosas - salientou River enquanto se punha a examinar o crânio da mulher com os dedos, buscando sinais de contusão
ou abrasão.
- E isso faz menos sentido ainda, se você parar para pensar - retrucou o policial. - Tudo bem, aceito que tenha gente que acredite na ressurreição do corpo
físico. Mas, se existe este Deus Todo-poderoso, na certa Ele deve ser capaz de juntar os pedaços como eram antes, não? Os religiosos deveriam ligar menos ainda,
porque supostamente deviam crer que seu Deus seja capaz de tudo. Esse é o problema da religião. Quando Deus entra pela porta, a lógica sai correndo pela janela.
River sorriu.
- Como é que você continua sendo policial? Não estou acostumada a discutir filosofia com os tiras.
- Gosto de ser soldado raso - disse ele. - Assim, passo mais tempo com as pessoas e menos tempo com os papéis. Não preciso me preocupar com politicagem ou
em bajular os chefões. Quando volto para casa à noite, não sou esmagado pelo peso da liderança. Não é uma vida ruim.
- Alguns poderiam chamar isso de falta de ambição - disse River. De repente, algo chamou sua atenção e ela não ouviu mais nada. Inclinou-se para examinar
mais de perto, apanhando uma lente de aumento. - Interessante - murmurou ela.
- O quê? - perguntou o policial.
- Um levíssimo ferimento bem em cima do seio carotídeo - disse ela, mostrando a ele.
- Lugar curioso para se ter um ferimento - disse ele. - Não dá para se machucar sozinho nessa região. O que a senhora acha que o provocou? Alguém tentou estrangulá-la?
River sacudiu a cabeça.
- Não creio. Não encontrei mais nenhuma marca que indique estrangulamento. Bem, vamos ter uma idéia melhor depois de abri-la.
Mas o prognóstico confiante de River não foi completamente confirmado. Enquanto seu assistente fechava a incisão em Y, ela compartilhava suas conclusões com o policial:
- Parada cardíaca, pura e simples. O coração mostrou sinais de cardiomiopatia, as artérias estavam bem entupidas. O coração parou de bater.
- Não é o que acaba acontecendo com todos nós? - perguntou o policial filosófico.
- É, mas por inúmeros motivos. Na ausência de qualquer outra causa mortis evidente, como ferimentos provocados por uma espingarda, sinais de envenenamento
ou asfixia, o que sobra aqui é parada cardíaca e nada mais.
- Está bem. Então o atestado de óbito deve sair logo, não?
- Vou providenciar. - River removeu as luvas de látex. Tudo indicava que não havia nada suspeito na morte de Letty Brownrigg, mas uma ponta da de desconfiança
a perturbava. Os temores de Jane Gresham não haviam desaparecido como ela imaginara. O que estava planejando era absolutamente fora da sua alçada e contra o protocolo
profissional, mas era a única maneira de sossegar.
Assim que o policial partiu, ela trocou de roupa e voltou para a funerária. Cumprimentou o rapaz na entrada com um gesto de cabeça e seguiu direto para os salões
de velório. Procurou o de Tillie Swain, mas lá havia uma senhora de meia-idade sentada em uma cadeira, de cabeça baixa. River deu um passo para trás e dirigiu-se
ao de Eddie Fairfield.
O caixão estava absolutamente isolado; um raio de sol banhava o corpo de luz. River apressou-se até ele. Uma gola rolê branca ocultava o pescoço de Eddie, mas ela
a afastou rapidamente para examiná-lo. Puxou sua lente de aumento para avaliar melhor. Muito apagado, mas estava lá. Um leve ferimento no seio carotídeo, do tamanho
e formato de dois dedos.
- Oh, merda - murmurou. Apanhou sua máquina digital e tirou uma variedade de fotos, desde closes do ferimento até tomadas inteiras, para provar que se tratava
indiscutivelmente do corpo de Eddie Fairfield. - Merda, merda - repetiu ela, ajeitando a gola de novo em seu lugar.
De volta ao corredor, ela deteve o rapaz.
- Onde está Edith Clewlow? - perguntou ela.
- O caixão já foi lacrado para o enterro amanhã de manhã - respondeu ele, lacônico.
River sorriu, sedutora.
- Alguma chance de abri-lo para mim?
Ele recuou, discreto, como se ela lhe houvesse sugerido um ato sexual impróprio.
- Para quê? Pensei que você estivesse examinando apenas o cadáver do pântano.
- Pode chamar de curiosidade profissional - disse ela. - Tenho uma teoria e queria verificar uma coisa. Só cinco minutinhos, prometo.
Ele parecia hesitante:
- Eu não deveria...
Ela apoiou a mão sobre a dele.
- Eu sei disso. Mas preciso que confie em mim. Se eu estiver errada, ninguém precisa saber. Mas, se estiver certa, vamos poupar a família de uma grande dor
de cabeça. Ninguém gosta de ter que pedir uma exumação...
- Exumação? - indagou ele, espantado.
- Psiu - fez River, cautelosa. - Não é uma palavra que as pessoas gostem de ouvir em uma funerária.
Ele lançou olhares furtivos para os dois lados do corredor.
- Promete que não vai comentar com ninguém?
- Prometo. - Ela o acompanhou até um aposento menor, ao fim do corredor, onde o caixão de pinho de Edith estava apoiado sobre uma base. Ele apanhou uma chave
de fenda de catraca no armário. Em questão de minutos já desparafusara todo o caixão e removera seu tampo. River examinou o pescoço de Edith com a lente de aumento
e fez um gesto afirmativo com a cabeça. - Droga - murmurou ela. Novamente, apanhou sua máquina e tirou uma série de fotografias.
O rapaz estava aflito.
- Já terminou? - perguntava ele após cada foto.
River afastou-se do caixão e guardou a máquina.
- Agora, sim. Vamos fechar tudo de novo.
Dez minutos depois, já estavam de volta ao corredor, a tempo de verem a senhora deixar o aposento onde repousava Tillie Swain.
- Já volto - disse River ao rapaz, enquanto ele se apressava para acompanhar a senhora até a porta e ela se aproximava do caixão de Tillie.
Não teve o mesmo êxito, porém. Devido à posição em que ficara após a morte, o sangue coagulara sob a pele, provocando uma rigidez post mortem exatamente na área
em que River estava interessada. Não era possível dizer se havia ou não um ferimento.
- Três em quatro, mesmo assim - concluiu ela em voz baixa. Jane Gresham tinha razão. Havia algo de estranho acontecendo.
Duas horas depois, River entrou na sala de Ewan Rigston. O rosto dele se iluminou quando a viu, mas quase imediatamente o decoro substituiu sua euforia:
- Não esperava vê-la por aqui - disse ele num tom contente que removia toda a negatividade da frase.
- Nem eu esperava vir aqui. - Ela sentou-se pesadamente. - Você soube que eu fiz a autópsia da sra. Brownrigg, não soube?
- Sim. Fiquei meio surpreso até, pensei que o professor fosse se encarregar dela, como de costume.
- Bem, eu sou qualificada, e ele achou que não haveria nada demais.
Ewan remexeu alguns papéis sobre a mesa. Apanhou um escrito à mão com uma bela caligrafia.
- E, aparentemente, não teve. Parada cardíaca, você escreveu aqui. - Ele lhe lançou um olhar perspicaz, - Mas não é bem assim, não é? Ou você não estaria
aqui.
- Não foi à toa que eu quis fazer a autópsia . Hoje cedo, recebi uma visita de Jane Gresham.
- A coisa começa a ficar interessante.
- Ela contou que você entrou em contato com ela. E me pareceu mais do que apavorada. Ela teme que alguém tenha matado essas pessoas para colocar as mãos no
tal manuscrito.
Fez-se uma longa pausa.
- Ela não é a única. E você encontrou algo para embasar esta teoria?
River assentiu, pesarosa.
- Um pequeno ferimento muito esquisito no pescoço da sra. Brownrigg. Nada ostensivamente suspeito, mas foi o bastante para me deixar com a pulga atrás da
orelha. Então, voltei para a funerária e dei uma olhada nos outros três cadáveres. E encontrei um ferimento semelhante em dois deles. Não pude ter certeza no quarto
por causa da rigidez post mortem. - Ela retirou alguns papéis da bolsa. - Tirei umas fotos. - Mostrou-as para Rigston.
- Letty. Eddie Fairfield. Edith Clewlow.
- O que significa este ferimento? É um local de injeção ou o quê?
River fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não há sinal de marca de agulha em nenhum deles. Mas parece ser acima do seio carotídeo.
- E o que é isso, exatamente?
- Nossa artéria carótida comum passa pela lateral do pescoço, aqui - River afastou a gola da camisa para demonstrar. - E logo aqui embaixo, mais ou menos
na direção da orelha, ela se divide em duas. A carótida externa permanece na superfície, a interna passa por dentro do crânio. Agora, se você aplicar uma pressão
na artéria carótida no seio... - Ela fez uma pausa para indicar o local. - Pode causar bradicardia. É uma desaceleração do batimento cardíaco, em termos leigos.
Mas há uma escola de pensamento que sustenta que, em pessoas idosas ou com cardiopatias subjacentes, a pressão na artéria carótida pode provocar uma arritmia cardíaca
fatal.
- Uma escola de pensamento? - indagou Rigston, num fiapo de voz.
- É o que chamamos de mecanismo postulado, porque obviamente não podemos realizar experimentos para ver se isso realmente mata ou não as pessoas. Então, ninguém
sabe ao certo como funciona. Existem casos documentados de pessoas que o utilizaram para obter maior prazer sexual, sem resultados fatais. Por outro lado, como se
tende a não querer que o parceiro sexual acabe morto, normalmente a pressão é interrompida ao primeiro sinal de perda de consciência. Se isto realmente funciona
como foi postulado, é uma maneira bastante eficaz de matar alguém idoso ou que sofre do coração. Não deixa vestígios, sabe? Nada de hemorragias com petéquias, como
nos casos de asfixia, ou ossos hióides quebrados como num estrangulamento. Simplesmente parece ser um ataque cardíaco.
- A pessoa precisa ser forte para matar alguém assim?
- Não, não acho que seja necessário muita pressão. E não deve ser difícil subjugar as vítimas. Segurá-las deve bastar.
- Então uma mulher poderia fazê-lo?
- Se estivesse razoavelmente em forma e fosse forte, sim.
Rigston esfregou o queixo.
- E você acha que mataram os velhinhos assim?
- Eu diria que é uma possibilidade. É muita coincidência ter encontrado a mesma marca em três dos quatro.
A fisionomia de Rigston enrijeceu.
- Eu estava mesmo com uma intuição. Não é coincidência. É muito suspeito.
- Concordo. Por si só, as marcas seriam relativamente insignificantes, mas se eu for avaliá-las à luz do que Jane me contou... bem, aí você sente que tem
mesmo que levar a sério.
Rigston deu um sorriso sombrio.
- Eu estou levando. Obrigado por ter me falado em primeira mão sobre isso. Lamento dizer, mas a coisa não está nada boa para a dra. Gresham.
- Não acredito que você esteja realmente achando que ela tem algo a ver com isso.
- Ela estava ligada às nossas quatro supostas vítimas. Você sabe disso tanto quanto eu.
River sacudiu a cabeça, pasma.
- Mas isso não a torna suspeita de homicídio. Ewan, nem sequer teríamos indício de que havia algo de errado acontecendo se Jane Gresham não tivesse me procurado.
Foi ela quem começou tudo isso. Por que diabos ela chamaria atenção para o fato de que estava escapando de ser presa?
Rigston se remexeu na cadeira.
- Com esta quarta morte, era uma questão de tempo. Deste modo, ela deu um jeito de se sair bem por ter sido a responsável pela pista. Pelo que você me contou,
ela agiu de modo bem diferente de quando nos falamos mais cedo.
- Porque você é um policial assustador e eu não. - River suspirou, irritada. - Ewan, eu sei que não descartar nenhuma possibilidade faz parte do seu trabalho,
mas tenho certeza absoluta de que a única coisa em que Jane está interessada é descobrir seu precioso manuscrito. Ela me mostrou a árvore genealógica com as pessoas
que visitou listadas em ordem de prioridade. Eu sei quem é a próxima pessoa da lista. Por que ela me mostraria isso se fosse a assassina?
- Você se lembra do nome?
River lhe passou um pedaço de papel.
- Aqui está. Ewan, você precisa perguntar a ela quem mais pode estar atrás deste maldito poema, alguém que o queira tanto a ponto de sair matando as pessoas
para consegui-lo.
Rigston franziu a testa.
- E isso é outra coisa que eu não entendo. De que modo matar as pessoas faz com que o assassino chegue mais perto do manuscrito?
- Jane tem uma teoria a respeito. Ela salientou que pessoas idosas não costumam sair muito de casa. Se alguém quisesse revistar suas casas em busca de um
tesouro escondido, teria que incapacitá-las primeiro.
- Viu? Ela já pensou em tudo. Estou dizendo a você, River, Jane Gresham está escondendo alguma coisa.
- Ela é teimosa como uma mula - disse Jimmy, andando em círculos do lado de fora do Copperhead Cottage. - Não tem jeito. Ela não quer deixar os gatos, diz
que não consegue dormir se não for em sua cama, que não gosta de ficar na casa dos outros, enfim. Eu não quero convencê-la no susto, mas não sei mais o que fazer.
Jane contemplava a vista da janela do seu quarto, com o celular grudado na orelha.
- Por que você não se oferece para passar a noite aí? Assim ela estaria segura sem ter que sair de casa.
Jimmy choramingou.
- Pensei que você gostasse de mim. Jane, a mulher é um pesadelo.
- Eu sei. Estive com ela, esqueceu? - Súbito, um pensamento terrível lhe ocorreu. Alguém com sangue-frio para matar quatro pessoas talvez não se intimidasse
com a presença de Jimmy. A última coisa que ela queria era colocá-lo em risco também. Precisava encontrar uma maneira de voltar atrás sem ofender a masculinidade
dele. - Pensando bem - disse ela, devagar. - Acho que você ficar aí não é nenhuma garantia de que ela estará protegida. A não ser que passe a noite de mãos dadas
com ela.
- Nem por um milhão.
- Neste caso, não há mais nada a fazer. Você vai ter que explicar que não é seguro ficar aí. Pelo menos até tudo isso se resolver.
Jimmy suspirou.
- Já estava imaginando que você fosse dizer isso. Eu não queria apavorá-la, sabe? Por trás de toda essa fachada, ela é apenas uma velha solitária que gosta
da sua casa. Não queria ter que transformar o seu refúgio em um lugar no qual ela não se sinta mais segura.
- Eu sei. Mas é melhor ficar assustada e com vida do que tranqüila e morta.
- Torça por mim - disse ele, desanimado. - Se eu não der notícias até mais tarde, é porque ela me engoliu vivo.
Quando alcançamos as árvores, instruí Isabella a remover minha camisa e rasgá-la em tiras. Seguindo minhas instruções, ela confeccionou uma bandagem para meu ferimento,
estancando o sangue. Isso feito, insisti para que nos embrenhássemos mais no arvoredo. Enquanto descansávamos, contei a Isabella que havia chegado a hora de deixarmos
Pitcairn. Não teríamos mais segurança ali, não agora que os nativos haviam experimentado o poder. Mas ela deitou minha mão sobre sua barriga e lembrou-me de seu
estado. Vòcê deve ir, marido. Mas eu não posso. A força de seu argumento era inegável e eu sabia que ela, ao contrário de mim, ficaria protegida. Os meus filhos
também não sofreriam nenhuma represália; os nativos tinham as crianças em alta conta e, quanto mais branca sua pele, mais eram respeitadas. Então me ajude a chegar
até a base do penhasco, eu lhe pedi. Ela o fez e, quando ainda estávamos um pouco distante do meu esconderijo, nos despedimos com muita tristeza. (Não quis que ela
soubesse onde eu poderia ser encontrado. Aprendemos a duras penas que não podíamos confiar nos nativos, nem mesmo os que faziam parte de nossas famílias, e eu não
queria que ela caísse em tentação.)
38
Ewan Rigston jamais fora escoteiro; não obstante, gostava de estar sempre preparado. Apesar de tudo o que River dissera, ainda tinha as suas dúvidas sobre Jane Gresham.
Mas queria estar precavido antes de confrontá-la a respeito da lista. E também precisava tomar algumas precauções.
Ia ter de voltar às casas dos mortos e tratá-las como cenários de crimes, embora qualquer indício já tenha sido comprometido pelo atendimento de emergência e os
familiares que zanzavam pelo local. Mesmo assim, a equipe de papiloscopia podia encontrar alguma impressão digital que não deveria estar lá. Também ia ter de conversar
com as famílias. Ou, melhor, a família, já que os mortos pertenciam ao mesmo clã. Ele conhecia os Clewlow e os Fairfield, os Swain e os Brownrigg. Gente honesta,
com raízes locais, em sua maioria voltada para a comunidade. Jamais prendera qualquer um deles, nem mesmo um adolescente embriagado fazendo arruaça.
Levara River até o estacionamento e prometera ligar para ela mais tarde. Tinham planos para a noite - iam sair para jantar e dançar em Carlisle -, mas acharam melhor
cancelar. Concordaram que era preciso fazer uma autópsia nas três outras vítimas e River insistira que ia cuidar delas imediatamente. Um breve telefonema para o
legista resolvera a questão. Rigston sabia que essa era uma das vantagens de se trabalhar em uma cidade pequena. Ali era mais fácil mover a engrenagem policial do
que nas grandes metrópoles. Mesmo assim, não acreditavam que pudessem terminar seus respectivos trabalhos antes da meia-noite.
Depois, ele voltara à sua sala e delegara tarefas ao punhado de assistentes que tinha à sua disposição àquela hora da noite. Não queria perder tempo, mas também
precisava ter cautela para autorizar hora extra antes de
uma investigação formal de homicídio. Maldita burocracia. Depois as pessoas perguntavam por que a polícia não conseguia reduzir a criminalidade. Elas deviam passar
uma semana em seu lugar, revirando papéis e equilibrando orçamentos; então saberiam exatamente o motivo.
Bastaram alguns telefonemas para seus contatos locais e ele descobrira que todo o clã estava reunido na casa de Alice Clewlow. Chegou sozinho e sem avisar. Alice
atendeu a porta, sua expressão mudou para uma de satisfação ao ver quem era.
- Visita profissional - disse ela, secamente. - Olá, Ewan. Então decidiu finalmente me levar a sério. Só lamento que tenha sido preciso outra morte na família
para você se mexer.
- Ora, Alice, está sendo injusta. Eu estava investigando.
- Uma prisão teria sido melhor.
- Preciso falar com você.
Ela olhou para trás por cima do ombro.
- Está lotado aqui. Vamos ali fora, tem um banco no jardim.
Ele a seguiu, passaram por um portão de madeira até um jardim espaçoso e bem cuidado. Alguns botões desabrochados recentemente pendiam de uma treliça, próxima de
um banco de ferro fundido. Sentaram-se e ficaram em silêncio por um instante.
- Pode desembuchar, Ewan.
- Só queria mantê-la informada. Embora ainda não tenhamos estabelecido uma causa mortis suspeita em nenhum dos quatro casos, estamos investigando as circunstâncias
- disse ele, com cautela.
Alice sacudiu a cabeça, desolada.
- Eram apenas idosos comuns, inofensivos.
- Eu sei. E, se descobrirmos que foi assassinato, não vou permitir que uma maldade dessas fique impune. Estamos achando que alguém pensa que um membro da
sua família possui algo muito valioso e...
- Eu disse a você. A maldita Jane Gresham - interrompeu Alice, irritada. - É isso, não é?
- Pode ser. Mas a dra. Gresham provavelmente não é a única pessoa a par da história. De modo que preciso fazer algumas perguntas sobre seus parentes. Quem
foi a última pessoa a vê-los com vida, se comentaram algo
sobre Jane Gresham ou outra pessoa perguntando sobre o manuscrito. Eu sei que vocês estão de luto e que o velório de Edith é amanhã, mas gostaria de conversar com
eles hoje.
- Mas o velório... Na certa você vai precisar fazer uma autópsia ou algo assim, não? Se ela foi... - Alice engoliu a palavra. Rigston entendeu, já vira o
mesmo tipo de reação antes.
- Já estamos providenciando - disse ele. - O velório não vai precisar ser adiado. Mas lamento dizer que vocês não poderão enterrar sua avó.
- Como assim não vamos poder enterrar a vovó?
Rigston abriu os braços, num gesto de impotência.
- Sinto muito, Alice. A lei diz que o corpo precisa estar disponível para a defesa caso eles queiram conduzir sua própria autópsia.
- Mas e se vocês não prenderem ninguém? Quanto tempo quer que a gente espere para enterrar minha avó? - A voz de Alice estava cada vez mais estridente.
- Se não tivermos prendido ninguém em um mês, marcamos uma segunda autópsia, independente, e depois liberamos o corpo para a família.
Alice afundou a cabeça entre as mãos.
- Isso é horrível, Ewan.
- Eu sei, Alice. E eu sinto muito. Mas queria muito que você me ajudasse agora. A melhor maneira de você fazer algo por Edith e pelos outros é nos ajudando.
Falar pelos mortos é o nosso trabalho. Mas precisamos da sua ajuda.
Ela levantou a cabeça, os olhos marejados de lágrimas.
- O que você precisar. Só me dê cinco minutos para conversar com eles primeiro. Já venho buscá-lo.
Rigston a observou voltando para a casa, de cabeça baixa e ombros caídos. Tinha pena de Alice. Aquela caminhada de volta ao seio da família Clewlow também era algo
que ele gostaria de poder evitar.
Jimmy Clewlow estava na pior. Já havia demorado bastante para convencer Jenny Wright de que ela corria perigo de vida se continuasse sozinha no Copperhead Cottage.
Uma vez convencida, a partida demorara horas. Era
preciso deixar comida e água para os gatos. Decidir o que levar, aparentemente, era um problema que fazia Jenny revirar todo o seu guarda-roupa, incluindo um baú
que não parecia ter sido aberto desde as guerras napoleô-nicas. Todos os aparelhos elétricos precisavam ser desligados, até mesmo um velho freezer que teve todo
o seu conteúdo transferido para embalagens plásticas, para ser transportado para Keswick. Jimmy era um homem paciente, mas até mesmo sua paciência tinha limites,
e Jenny os ultrapassara bem antes de finalmente estar pronta para sair.
Para completar, foi a pior passageira que já conduzira em sua vida. Sempre que ele ultrapassava quarenta quilômetros por hora, ela ficava atônita, perguntando se
ele estava tentando matá-los. Se ele se aproximava a um metro da beirada da estrada ao lado do carona, ela gritava que iam bater. Quando dobrou na rua de Alice,
Jimmy já estava começando a se perguntar se não teria sido melhor tê-la deixado em casa.
Para sua surpresa, assim que entraram na sala de estar, deparou com Ewan Rigston sentado em uma poltrona, segurando uma xícara de chá. Não via Rigston fazia anos,
mas o reconhecera imediatamente. Alice se levantou e o conduziu e a Jenny até a cozinha.
- O que ele está fazendo aqui? - perguntou Jimmy.
- Eu sei que isso vai ser um choque, Jimmy, mas a polícia está achando que Edith e os outros podem ter sido assassinados - disse Alice, lançando um olhar
preocupado para Jenny.
- É por isso que Jenny está aqui - respondeu Jimmy. - Jane Gresham acha que ela pode ser a próxima.
Alice estava à beira das lágrimas.
- Meu Deus, Jimmy, o que está acontecendo?
- É uma longa história - disse ele. - E Jenny está cansada. Ela vai ter que ficar uns dias por aqui.
- Não precisa falar a meu respeito como se eu não estivesse aqui, rapaz - interrompeu Jenny. - Sei me comunicar sozinha. Alice, preciso de um lugar para ficar.
Você tem espaço para mim?
- Claro - respondeu Alice, distraída. - Vou lhe mostrar o quarto de hóspedes.
- Uma coisa de cada vez - respondeu Jenny. - Jimmy, seja um bom menino e me traga um conhaque.
Jimmy girou os olhos e voltou para a sala de estar, onde Alice havia servido as bebidas. Dessa vez, deu de cara com Ewan Rigston no meio do que chamava de Conselho
dos Idosos.
- Jimmy - cumprimentou Rigston.
Jimmy fez um gesto com a cabeça.
- Você não deveria estar por aí tentando apanhar a pessoa que está matando minha família? - perguntou ele, num tom bem-educado, apanhando o conhaque.
- Estou tentando fazer exatamente isso.
- Não vai encontrar o assassino aqui. - Jimmy despejou uma dose generosa no cálice.
- Sua família está me passando algumas informações adicionais. Estou tentando entender o que aconteceu antes das mortes. O mais curioso é que o nome da sua
amiga Jane Gresham não pára de surgir.
Se Rigston pretendia espezinhar Jimmy, acertara em cheio.
- É. E o mais curioso é que ela e Dan são vítimas também - disse ele, desafiante.
- Quem é Dan?
- O colega dela, Dan Seaboume. -Jimmy sentiu que ruborizava e torceu intimamente para que Rigston interpretasse o rubor como conseqüência de sua raiva.
- E por que os considera vítimas? - indagou Rigston.
- Alguém está sabotando o trabalho deles. E estão fazendo Jane passar por vilã. Você deveria estar pedindo a ela para lhe ajudar e não insinuando que ela
tem culpa no cartório.
- Jimmy - admoestou a sua mãe, num tom de repreensão. - Ewan está apenas fazendo o trabalho dele.
- Será? Então por que eu tive que tomar conta de Jenny? Se ele tivesse um mínimo de bom senso, teria pegado a lista de Jane e tomado providências para que
ninguém mais morra.
- Não me diga como devo fazer o meu trabalho, Jimmy.
- Alguém tem que dizer - retrucou Jimmy, cheio de desdém. - Se não fosse por Jane, Jenny estaria até agora em seu chalé, esperando o assassino aparecer. Agora,
se me dão licença, vou levar uma bebida para ela. - Ele se virou e deu de cara com Jenny, parada sob a porta e sorrindo para ele pela primeira vez naquele dia.
- Muito bem, rapaz. Eu esperava mais de você, Ewan Rigston. Se não fosse pelo Jimmy aqui, eu poderia estar morta na minha cama. Está na hora de você pôr um
ponto final nesta loucura. Agora, Jimmy, que tal me mostrar aquele quarto de hóspedes?
Tenille travava uma batalha consigo mesma. Levara dois tremendos sustos em suas últimas expedições e não queria um terceiro. Mas ainda sentia que devia algo a Jane
por ela ter lhe ajudado. Além do mais, não suportava ficar muito tempo enfurnada. Então, já que ia mesmo sair, não fazia sentido fazer algo útil? E quais eram as
chances de dar de cara com um ladrão novamente?
As circunstâncias acabaram definindo seu destino. Acostumara-se a dormir em outros horários além da noite, e agora não conseguia dormir só porque havia anoitecido.
Desistiu de revirar-se na cama um pouco antes da meia-noite e partiu para Coniston. Demorou um pouco para localizar o Copperhead Cottage, mas ficou aliviada ao constatar
que não havia nenhum vizinho por perto, sobretudo quando percebeu que entrar na casa não seria nada fácil. Após demoradas tentativas de abrir as fechaduras das portas
da frente e dos fundos, ela finalmente desistiu. Todas as janelas estavam trancadas. Voltou a contornar a casa, buscando, desesperada, uma maneira de entrar antes
de desistir de vez.
Foi um gato que lhe mostrou o caminho. Um gato branco e peludo saiu correndo de dentro dos arbustos, pulou em um banco no jardim e, de lá, no telhado de um alpendre
que se apoiava em uma empena. O gato escalou o telhado até o parapeito de uma janela. Como ele desapareceu, Tenille deduziu que a janela devia estar pelo menos com
uma fresta aberta. Trepou no encosto do banco e agarrou-se na canaleta, que balançou, mas agüentou seu peso. Conseguiu subir até o telhado na terceira tentativa,
depois engatinhou cuidadosamente pela superfície escorregadia, xingando baixinho.
Quando alcançou a janela, agarrou-se no peitoril como se fosse um salva-vidas em um mar turbulento. Espiou, não queria abrir a janela sem antes conferir se aquele
era o quarto de alguma velhinha. Não conseguiu enxergar direito, mas foi o bastante para ver que o cômodo estava vazio -
a única indicação de que alguém dormira ali era um colchão sem lençol sobre uma armação de ferro.
Apoiando-se no telhado, ela puxou o caixilho da janela para cima. Ele rangeu, mas não o bastante para deixá-la nervosa. Tenille deslizou sobre o parapeito e aterrissou
suavemente no chão acarpetado. Com muita cautela, atravessou o quarto, quase tropeçando no gato branco que rondava seus tornozelos, miando.
No patamar havia mais gatos, seus olhos amarelos brilhando.
Havia um discreto odor de urina felina e Cíirnc estragano ar. Pâia aud
surpresa, as portas estavam abertas e ela pôde ver que todas as cortinas estavam fechadas. Um rápido passeio pelos dois andares revelou que a casa estava vazia.
Suspirou, aliviada. Pelo menos daquela vez ia ser fácil.
Começou pelo único quarto que mostrava sinais de ter sido ocupado. Uma busca minuciosa não revelara nada de interesse. A mesma coisa no segundo quarto. No terceiro,
porém, Tenille encontrou um velho baú de bronze. À primeira vista, não parecia guardar nada além de velhas fotografias. Mas quando ela as suspendeu, notou que o
baú parecia mais raso por dentro do que deveria ser. Assumindo o risco, ela achou que valia a pena levá-lo até o patamar entre os dois lances de escada e fechar
todos os cômodos para poder acender a luz. Ao olhar mais de perto, viu uma fina alça de couro no fundo, em um dos cantos. Quando a puxou, o fundo inteiro se desprendeu,
revelando um esconderijo de uns três centímetros de profundidade.
Tenille ergueu um fino maço de papéis. O papel era grosso e áspero, as bordas, amareladas. Tinha cheiro de poeira e tinturaria. Estava coberto por uma caligrafia
antiquada, cheia de voltas e curvas. Ela mal pôde compreendê-la no início. Mas logo as primeiras palavras lhe saltaram aos olhos: Lembrei-me esta noite do período
que passamos em Alfoxden, e da suspeita que recaiu sobre mim e Coleridge, de que éramos agentes do inimigo, reunindo informações como espiões a serviço de Bonaparte.
Lembro-me de Coleridge afirmando que dar crédito à idéia de que poetas se prestavam a tal tarefa ultrapassava os limites do bom senso, já que vemos tudo à nossa
volta como matéria para versos e não teríamos o menor talento para guardar segredos que poderiam servir à nossa vocação.
Devia haver trombetas, tambores ou algo assim, pensou ela, abobada. Trombetas, tambores ou um cântico de aleluia. Ali estava o verdadeiro
tesouro. O que segurava em suas mãos havia sido escrito por um dos maiores poetas do mundo. Poucas pessoas haviam deitado os olhos naquele manuscrito. E ela o tocava,
cheirava, lia. Preferia morrer a admitir, mas sentia-se alegre, exultante. Sentou-se, admirando avidamente os papéis.
Não saberia dizer quanto tempo ficou agachada, em êxtase. Sentia-se ébria de alegria. Mas finalmente voltou a si e percebeu que precisava retornar e contar a novidade
para Jane. Ficou tentada a ir embora levando o manuscrito inteiro, mas soube instintivamente que seria a maneira errada de agir. Vasculhou os papéis, verificando
se não havia nenhum poema entre as anotações em prosa. Nada. E se apanhasse uma das páginas, mais para o meio? Então Jane saberia que ela estava falando a verdade.
E todo o trabalho valeria a pena só para ver a cara dela quando percebesse o que tinha em mãos.
Tenille escolheu uma página a esmo e a acomodou cuidadosamente entre sua camiseta e o casaco de moletom. Depois, guardou tudo como havia encontrado, colocando o
baú exatamente onde estava para não espalhar a poeira à sua volta. Enquanto caminhava até a janela do gato, sentiu-se tonta de empolgação.
O ar gélido da noite e a idéia de ter de descer do telhado a trouxeram de volta à realidade. Desceu a janela e, com os braços e as pernas bem abertos, equilibrou-se
sobre as telhas, avançando com muito cuidado. Quando alcançou a beirada, percebeu que ia ter que pular; o banco estava muito afastado da parede para que ela se jogasse
sobre ele.
Tenille não se importou. Sentia-se invencível. Pendurou-se na calha e deixou-se cair. Eram apenas alguns metros e ela aterrissou na grama fofa. Levantava-se desajeitada,
quando sentiu mãos pesadas descendo sobre ela dos dois lados. Rosnando, tentou libertar-se, em vão. Os agressores eram maiores, mais fortes e mais pesados do que
ela. Em questão de segundos, estava com o rosto mergulhado na terra e os braços imobilizados nas costas.
Sentiu um toque gelado na pele e uma voz anunciou:
- Você está presa por suspeita de assalto.
Tenille crispou o rosto, frustrada.
- Ô merda.
Meu esconderijo me concedeu uma sensação de segurança, muito bem-vinda, uma vez que eu não estava em condições de preparar uma embarcação e partir pelas águas
traiçoeiras que cercavam Pitcairn. Por alguns dias, não tive escolha senão continuar escondido, febril e enfraquecido. Minha cabeça latejava e o ombro queimava.
Protegido pelo manto da noite, arrastei-me até a beira da água para limpar meu ferimento, e esta foi a única vez que me arrisquei fora do esconderijo. Eu sabia que
só poderia sobreviver se desaparecesse completamente de vista. Os nativos eram ingênuos demais para conceber que eu pudesse ter escapado depois de me terem dado
como morto. Quanto ao desaparecimento do meu corpo, confiava em Isabella para inventar alguma história, e ela na certa o fez, pois nunca vi ou ouvi sinais de perseguição.
39
Rigston encarava a adolescente rebelde à sua frente com raiva. Precisava da companhia de um adulto para interrogá-la e o assistente social de plantão estava demorando
para chegar à delegacia. A menina tivera três horas na cela para refletir sobre sua situação. Ele esperava que isso a tivesse amolecido.
Cumprira as formalidades no gravador, mas Tenille se recusava a confirmar sua identidade. "Não vou abrir o bico, cara" limitou-se a dizer.
- Você só está piorando as coisas - disse Rigston. - Eu sei que você é Tenille Cole. Sei que é procurada pela polícia de Londres por homicídio e incêndio
criminoso. Colhemos suas digitais e elas batem com as que eles nos enviaram. É uma questão de tempo até eles virem buscar você. A não ser, é claro, que você explique
sua relação com quatro mortes suspeitas aqui. Em todo caso, sou todo ouvidos.
Ela o encarou fixamente por trás de suas sobrancelhas franzidas. Ele não conseguia entendê-la. A maioria dos adolescentes de 13 anos com que lidava ficava bastante
intimidada pelo local e por sua presença e desabava como um castelo de cartas. Mas ela era durona, sem dúvida. Não muito mais velha do que sua própria filha, mas
parecia vir de outro planeta.
- Passamos a noite toda investigando as cenas dos crimes, Tenille - disse ele, num tom mais gentil. - Encontramos suas digitais em toda parte nas casas de
Edith Clewlow, Tillie Swain, Eddie Fairfield e Letty Brownrigg. Você esteve nestes lugares. Mas, ao que parece, nada foi levado, então você não estava interessada
em simplesmente roubá-los. E agora a flagramos fugindo do chalé de Jenny Wright com um pedaço de papel que me parece bastante velho. Você quer me dizer algo a respeito?
Tenille fez um gesto negativo com a cabeça.
- Que fique registrado que Tenille Cole balançou a cabeça, negando.
Rigston enrolou as mangas da camisa e apoiou seus braços carnudos na mesa. Baixou a voz, em tom de conluio:
- Eis o que eu acho que aconteceu. Jane Gresham tem escondido você. Do contrário, por que uma cria de Londres como você ia parar aqui? E Jane Gresham está
buscando algo e acabou envolvendo você nesta busca. Ela acha que alguém aqui tem algo que ela tanto quer. E, como ela não conseguiu encontrá-lo da maneira convencional,
mandou você procurar. Certo ou errado?
Tenille deu um muxoxo de desdém e remexeu-se na cadeira, evitando olhá-lo nos olhos.
- Só que as coisas saíram do controle. Em todas as casas em que Jane mandou você procurar, alguém morreu. Você está encrencada, Tenille. Mas talvez possamos
descobrir um modo de facilitar as coisas para o seu lado. Eu acho que foi Jane Gresham quem botou você nessa fria. Ela lhe disse o que fazer e como fazer, para que
ninguém desconfiasse que foi assassinato. E isso melhora um pouco a sua situação. Você é só uma criança. Fez o que Jane Gresham mandou porque achou que, se desobedecesse,
ela ia entregar você para a polícia pelo assassinato de Geno Marley. Isso se chama coerção e facilitaria bastante as coisas para você.
Tenille virou-se para ele, com uma expressão desafiante no rosto.
- Isso se chama papo-furado - disse ela. - E é tudo o que tenho a dizer. - Virando-se para o assistente social. - É melhor me arrumar um advogado. Não preciso
de você, cara. - Ela cruzou os braços e recostou-se na cadeira, examinando o teto.
- Você vai se prejudicar só para livrar a cara de Jane Gresham? - perguntou Rigston. - Que lealdade. Será que ela faria o mesmo por você? Aposto que você
vai acabar levando a culpa por tudo, Tenille. Você é um alvo fácil. Menina negra que não comparece às aulas, filha bastarda de um marginal conhecido. Vai se prejudicar
por uma professora de faculdade de classe média. Enquanto você vai passar anos e anos na cadeia, ela vai ficar rica e famosa com o manuscrito que você encontrou.
Ela dardejou um olhar de desprezo para ele.
Rigston riu.
- Você acha que não vai ser exatamente isso o que vai acontecer? Pensei que fosse mais esperta. Jane Gresham vai se safar, e você não. Fim de papo.
- Acho que você está aborrecendo a menina - interveio o assistente social. - Se tem alguma prova, mostre-nos.
- Tenho provas do furto - disse Rigston. - Os meus homens estavam vigiando o chalé de Jenny Wright. Estavam esperando o assassino e, pelo visto, apanharam
mesmo uma. Mas, até esclarecermos essa parte do caso, ainda podemos detê-la pelo furto. E vamos começar agora mesmo. - Ele arrastou a cadeira para trás e ficou de
pé. - Interrogatório terminado às 3:53 da manhã. Inspetor Rigston e policial Whitrow deixam a sala. - Juntando ação às palavras, ele saiu pelo corredor.
- Você não conseguiu nada lá dentro, chefe - comentou Whitrow.
Rigston passou a mão no rosto, esfregando seus olhos cansados.
- E eu não sei? Você acredita que essa menina só tem 13 anos? Durona como eu nunca vi. Não precisou nem de um advogado para aprender a ficar calada. - Ele
prosseguiu pelo corredor. - Vamos sacudir a árvore um pouco e ver se cai alguma fruta. Mande alguns homens para Fellhead e me traga Jane Gresham.
- Você quer que eles prendam a moça ou apenas a tragam aqui para um interrogatório?
- Mande prender. Vamos deixá-la com o pé atrás. Conspiração para furto vai servir. Ela não tem tutano para nos enfrentar como Tenille Cole. Vamos dar um susto
nela. Estou com quatro óbitos na minha área e quero resolver este caso. - Rigston entrou em sua sala e fechou a porta.
Assustada com a campainha e as batidas na porta, Jane estremeceu na cama, tensa e desorientada. O relógio na cabeceira marcava 4:23 da manhã. Que diabos estava acontecendo?
Levantou-se com esforço, gemendo de dor no corpo. Apanhando seu quimono, abriu a porta do quarto. Sua mãe estava no topo da escada, com cara de sono, visivelmente
confusa. Pôde ouvir os passos do pai descendo as escadas.
- Já vai - gritou ele. Ouviu então o barulho da porta se abrindo e o pai perguntando o que estava acontecendo, enquanto um tropel de botas rugia no assoalho
do vestíbulo.
- Estamos procurando Jane Gresham - disse uma voz masculina.
- Ela está no local? - perguntou uma voz feminina.
Judy virou-se atônita para a filha.
- É a polícia.
Jane passou por ela e desceu alguns degraus na escada. O pai estava encostado na parede. Continuava a se perguntar o que estava acontecendo. Dois policiais uniformizados
ocupavam o resto do espaço que, por ser limitado, lhes imprimia uma aparência ainda mais assustadora com seus uniformes e parrudos cintos de utilidades.
- Eu sou Jane Gresham - disse ela, calmamente. - Que confusão toda é essa?
A policial deu um passo à frente.
- Jane Gresham, você está presa por suspeita de conspiração para furto. Você não precisa dizer nada, mas qualquer omissão pode prejudicar a sua defesa no
tribunal. Tudo o que disser poderá ser usado como prova.
Jane estava parada, boquiaberta, surpresa demais para sentir algo além de choque.
- O quê? - perguntou Allan. - Vocês perderam a cabeça?
Judy seguiu Jane e apertou a mão da filha.
- Deve haver algum engano.
A mulher passou por Allan e começou a subir a escada.
- Com licença, sra. Gresham. - Quando chegou perto das duas, disse:
- Se você quiser trocar de roupa, dra. Gresham, vou ter de acompanhá-la.
- Isso é um absurdo - protestou Judy. - Como ousam invadir minha casa e prender minha filha?
- Por favor, sra. Gresham. Estamos fazendo nosso trabalho. Aconselho a senhora a não dificultá-lo. - A mulher avançou, obrigando Judy a recuar e dar um passo
para o lado sem encostar a mão nela. Segurou o braço de Jane, não sem delicadeza, e a conduziu até o segundo andar. - Qual é o seu quarto?
Jane recobrou a voz e respondeu:
- Este. - Desvencilhando-se do braço da policial, ela entrou, deixando a porta aberta para que a mulher pudesse segui-la. Cobrindo-se com o quimono, tirou
o pijama e vestiu um jeans e uma camiseta. - Vocês estão cometendo um erro terrível - comentou ela, descendo a escada, seguida pela policial. A mãe estava encolhida
nos braços de seu pai, com lágrimas
rolando pelo rosto. - Tudo vai se esclarecer - prometeu Jane, sentindo-se impotente. - É só um engano, nada mais - acrescentou ela.
- O que podemos fazer? - perguntou seu pai, ansioso.
- Tentem não se preocupar. Já, já voltarei para casa. - Quando Jane passou pela mãe, Judy afagou sua mão levemente.
- Espero que agora vocês estejam satisfeitos - disse Jane amargamente enquanto era escoltada da porta da frente até a viatura. - Conseguiram o que queriam?
Uma das vantagens do trabalho é aterrorizar pessoas inocentes em suas próprias casas?
- Fique calada - disse o policial, empurrando a cabeça dela com a mão para evitar que ela a batesse na porta do carro. - Vai poder falar tudo o que quiser
quando chegarmos a Keswick.
A viagem foi longa o bastante para que sua raiva desse lugar ao medo. O que significava conspiração para furto? Devia ter algo a ver com Tenille, mas o quê, exatamente?
Jane puniu-se por não ter contado a Tenille que havia sido atacada. Julgara a estar protegendo, mas talvez isso tivesse o efeito salutar de fazer com que desistisse
de sair à noite sozinha. O que ela havia aprontado desta vez? E por que estava ligado a Jane? Não conseguia conceber que Tenille tivesse contado a um policial que
Jane sabia o que ela andara aprontando. Devia ser um blefe.
Quando finalmente foi conduzida à sala de interrogatório, Jane neutralizava o seu medo com a convicção de que estava coberta de razão. Assim que Rigston entrou na
sala, antes mesmo que tivesse a oportunidade de cumprimentá-la, Jane partiu para o ataque.
- Como ousa mandar sua cavalaria dos infernos de madrugada para a casa dos meus pais? - perguntou ela. - Não posso acreditar que, seja lá o que quer conversar
comigo, não pudesse ter esperado por uma hora mais razoável.
- Você está presa, dra. Gresham - disse Rigston, sarcástico. - Não prendemos as pessoas no horário que melhor lhes convêm, e sim quando queremos. Agora, guarde
o que tem a dizer para o gravador. - Ele ligou o aparelho e sentou-se diante dela.
- Quero fazer uma ligação. Tenho direito a dar um telefonema - disse ela.
- Por que não conversamos um pouco antes?
- Não tenho nada a lhe dizer.
- Não? Estamos com a sua amiga Tenille aqui no fim do corredor. Foi presa em flagrante em pleno furto. Estava saindo do chalé de Jenny Wright. Que era o próximo
nome na sua lista, se não me engano.
Jane arregalou os olhos. Como ele sabia disso? Foi então que se lembrou de ter mostrado a árvore genealógica e a lista para River. Ela abriu a boca, mas tornou a
fechá-la, sem dizer uma só palavra.
- Nada para me dizer? Está bem. Vamos lá. Fizemos a autópsia dos quatro cadáveres da família de Edith Clewlow e temos motivos para acreditar que as mortes
se deram em circunstâncias suspeitas.
Jane lhe dardejou um olhar feroz, mas não disse nada.
- Também examinamos os locais onde foram encontrados mortos. Adivinha quem deixou impressões digitais em todos eles? Sua amiguinha Tenille. A mesma que já
é procurada pela polícia para responder por outro assassinato. Está começando a ver um padrão aqui? E, veja você, a única ligação entre uma adolescente negra de
Londres e quatro idosos mortos em Cumbria é a senhora, dra. Gresham. Só me resta supor que foi você quem instruiu Tenille em seus passeios noturnos. Passeios que
resultaram em quatro pessoas mortas.
Jane fechou os olhos. Estava vivendo um pesadelo e queria acordar. Fincou as unhas na palma da mão, mas nada aconteceu além da dor.
- Quero dar um telefonema - repetiu ela.
- Uma coisa de cada vez. E sabe qual é a ironia? Justamente na noite em que foi pega, Tenille encontrou o que você estava procurando.
Jane abriu os olhos na hora.
- O quê?
Rigston abriu a pasta que trouxera consigo. Apanhou um plástico transparente com uma pequena folha de papel e a deslizou na mesa até Jane. Ela ficou paralisada ao
reconhecer a caligrafia familiar. Naquela noite, fiquei acordado refletindo sobre o sentido das palavras de Bligh. Estava claro para mim que, se eu não suportasse
seu tratamento injusto e inexplicável, seria forçado a tolerar uma modalidade diferente de tortura...
Desde que encontrara a primeira pista, recusara-se a se permitir acreditar de verdade em sua existência. Tentara ver tudo isso como uma pesquisa, não uma missão
pessoal. Agora, por fim, podia parar de se proteger e deixar-se inundar pelos sentimentos. A intensidade de suas emoções a surpreendera. Estava comovida, quase à
beira das lágrimas, por aquele simples
pedaço de papel. Correu o dedo pelas letras, revivendo o traçado de Wordsworth. E um pensamento vil lhe ocorreu: compreendia alguém estar disposto a matar somente
para possuir aquele manuscrito.
E, com este pensamento, sentiu culpa e remorso. Sua busca tivera conseqüências inimagináveis e, agora, quatro pessoas estavam mortas.
Rigston aguardou paciente, sem tirar os olhos de Jane. Quando ela finalmente o encarou, foi com lágrimas nos olhos.
- Quero dar um telefonema - pediu ela com a voz embargada.
- Se não foi você, nem Tenille, Jane, quem mais se importa tanto com esse pedaço de papel para ser capaz de matar por ele? Quem mais sabe o ponto de partida
da sua busca? - A voz de Rigston estava mais branda, sua linguagem corporal menos ameaçadora.
Até mesmo em seu transe, Jane percebeu que ele a tratara pelo primeiro nome. Estava tentando amolecê-la. E era algo que não podia permitir, não só por ela, mas por
Tenille também.
- Quase todos da família de Edith - respondeu ela. - A casa estava cheia quando conversei com Alice.
Rigston balançou a cabeça.
- Boa tentativa, mas isso foi depois da morte de Edith. Precisamos saber quem estava a par disso antes de ela ter sido assassinada.
- Meu irmão ligou para Edith na manhã de sábado, perguntando se ela guardava algum documento de família. Tenho certeza de que ela deve ter comentado com os
outros, eles eram muito chegados. E aposto que não vai admitir isso agora.
Rigston agarrou-se ao fato concreto:
- Matthew sabia?
Jane suspirou.
- Sim. Assim como o meu colega Dan Seaboume, Anthony Catto, do Centro Wordsworth, e um negociante de documentos chamado Jake Hartnell. Não sei ao certo o
quanto ele sabe ou quando ficou sabendo, mas sabe de alguma coisa sim. E esta é a lista menos provável de assassinos que eu posso imaginar. Deve haver mais alguém,
alguém muito mais inescrupuloso.
- Alguém como Tenille? - indagou ele.
Jane contemplou a folha do manuscrito. Sonhara em tê-lo nas mãos. Só não imaginara que seria numa sala de interrogatório na polícia. O que acontecera, afinal? Fitou
Rigston.
- Alguém tentou me matar ontem e obviamente não foi Tenille - disse ela.
Rigston parecia cético.
- Que conveniente. Outro bêbado tentando te atropelar?
Jane tapou a boca com a mão.
- Meu Deus do céu, não tinha pensado nisso! Deve ter sido a primeira tentativa!
- Você realmente está tentando se agarrar a qualquer coisa, hein? - disse ele, sarcástico.
- É sério - insistiu ela. - Fui dar uma caminhada em Langmere Force. Estava sentada na beira de uma saliência na rocha, como faço há anos. Alguém se aproximou
pelas minhas costas e me deu uma paulada na cabeça. Eu despenquei na cachoeira. Por sorte, Derek Thwaite viu a queda. Ele e seu cachorro me salvaram. Teria morrido
afogada se não fosse por eles.
- Você pode ter esperado alguém passar e ter se jogado de propósito - disse Rigston, como ela havia previsto.
Jane debruçou-se sobre a mesa, afastando o cabelo para mostrar o calombo na cabeça.
- Eu não poderia ter feito isso comigo mesma, poderia?
- Não é impossível - disse Rigston. - Você pode ter batido a cabeça numa árvore ou algo assim.
Jane deu um soco na mesa.
- Por que você não acredita em mim?
- Porque você não é digna de confiança; nem você, nem Tenille.
- Está bem. Não digo mais uma palavra até dar o meu telefonema.
- Tem certeza? - perguntou Rigston. - Porque agora é a sua chance de livrar a cara de Tenille de quatro acusações de homicídio. Você continua teimando e a
coisa vai ficar feia para o lado dela. Com o histórico da menina, ela é carta marcada. A não ser que você reconheça que ela estava cumprindo ordens suas, vai ser
difícil ela se safar dessa. Alguém vai ter que pagar o pato.
Por um instante, Jane quase se deixou levar. A culpa e a responsabilidade quase soterraram o seu bom senso. Mas, no último minuto, ela se deteve.
- Quero dar um telefonema - repetiu.
Rigston ficou de pé.
- Faça o que achar melhor. Alguém vai lhe escoltar até a sala de detenção. Você pode ligar de lá.
Finalmente me senti recuperado o bastante para partir de vez. Esperei a primeira noite com pouco vento, mar sereno, e coloquei minhas provisões no escaler. Ainda
não conseguia mexer meu braço esquerdo muito bem, e empurrar o barco até a beira da água não foi uma tarefa fácil. Uma vez lá dentro, penei para manobrar os remos.
Por sorte, os nativos haviam confeccionado remos mais compridos para os barcos, já que desconheciam nossos métodos. Tive mais facilidade com eles e, embora meu progresso
fosse dolorosamente lento, quando os primeiros raios da aurora despontaram no horizonte eu já estava bem longe e pude erguer minha vela temporária. Contemplei meu
paraíso perdido pela última vez, antes de virar-lhe as costas e mirar o Oceano Pacífico com o coração repleto de uma mescla de alívio e terror.
40
Era como estar numa casa onde alguém morreu recentemente, pensou Dan. Os moradores tão perplexos que mal conseguiam se comunicar, desesperados para fazer algo, mas
sem saber exatamente o quê, uma ausência que podia ser sentida. Judy e Allan Gresham estavam sentados à mesa da cozinha com as mãos entrelaçadas, as xícaras de chá
intactas, esfriando à sua frente. Matthew caminhava incansavelmente de um lado para outro, incapaz de se acalmar.
- Não entendo por que ela ligou para você - dissera Matthew quando Dan explicou que viera por causa de um telefonema de Jane.
- Porque achou que seus pais estariam abalados demais para pensar direito. E ela não sabia se você estava aqui ou não.
- Claro que estou aqui. Para quem mais meus pais iam ligar? E então, o que ela disse?
Dan apanhou uma cadeira e sentou-se diante de Judy e Allan, que o fitavam com um medo silencioso.
- Ela estava dando guarida a Tenille, a amiga dela de Londres.
Judy estava perplexa:
- Por que ela faria uma coisa dessas? E onde?
- Porque ela acredita que Tenille é inocente. Não sei ao certo onde ela estava escondendo a menina. Em uma das dependências aqui da fazenda, eu acho.
- Maluquice - resmungou Matthew, deixando-se cair em uma cadeira. - Mas continuo sem entender o que aconteceu ontem à noite.
- A polícia pegou Tenille em flagrante em um furto. E, ao que parece, Tenille finalmente encontrou o que estávamos procurando.
- O quê? Onde? - interrompeu Matthew.
- Isso importa? - perguntou Dan, sem conseguir disfarçar sua irritação. - Jane não teve tempo de me dar os detalhes. O que importa é que a polícia tirou as
conclusões erradas. Jane estava procurando o manuscrito, Tenille entrou no chalé e furtou uma página, Jane conhece Tenille, logo Jane deve ter instruído a garota.
Judy sacudiu a cabeça.
- Não pode ser. Jane não faria uma coisa dessas. Jamais.
- Estamos cansados de saber disso - disse Matthew, impaciente. - Precisamos arrumar um advogado para ela. Temos que tirá-la de lá.
- Foi o que ela me pediu - disse Dan.
- Por que a você? Você não conhece nenhum advogado aqui - disse Matthew.
- Ela me pediu para conversar com você e com seus pais - respondeu Dan, com calma. - Matthew, ela só me ligou porque não queria dar mais trabalho para vocês.
E então, para quem podemos ligar?
Matthew suspendeu as mãos.
- Não sei. Não conheço nenhum advogado criminal. Sou um professor, porra.
- Não consigo imaginá-la numa cela - sussurrou Judy. - Não posso suportar.
Allan soltou a mão da mulher, afagando-a, e empurrou sua cadeira para trás.
- Vou ligar para Peter Muckle.
- Ele trabalha com terras e contratos, pai. Não entende dessas coisas - ponderou Matthew.
- Mas deve conhecer alguém que entenda - retrucou Allan, obstinado.
- Ainda não são nem seis horas da manhã - disse Judy, num fiapo de voz. - Ele não vai ficar satisfeito.
- Estudei com Peter no colégio, ele vai entender.
Dan observou-o arrastar-se para fora da cozinha, fragilizado pelo medo e a incerteza. Inclinando-se sobre a mesa, apoiou a mão sobre a de Judy.
- Vai dar tudo certo, sra. Gresham - disse ele.
Judy lhe lançou um olhar perplexo.
- Você não entende nada, não é, meu filho? Nada mesmo.
Embora já passasse das 8:00 da manhã quando Rigston ligou para Anthony Catto, ele ainda estava com voz sonolenta. Quando Rigston se identificou, fez-se um breve
silêncio. Depois, Anthony pigarreou.
- Desculpe, fui dormir muito tarde. Não entendi direito. O senhor é da polícia de Keswick?
- Exato. Gostaria de saber se o senhor pode me ajudar.
- Isso me parece um tanto sinistro, inspetor. Ajudar a polícia em uma investigação. - Anthony parecia cauteloso.
- Nada disso, senhor. Encontramos o trecho de um manuscrito e eu gostaria de saber se o senhor poderia examiná-lo para confirmar sua autenticidade. - Rigston
girou os olhos, irritado consigo mesmo. Era sempre exageradamente formal quando lidava com pessoas que julgava com nível cultural superior. Era um milagre que isso
não tivesse estragado seu relacionamento com River.
- Estou longe de ser especialista nisso - disse Anthony, prontamente. - Minha área de estudo é bem específica.
- Sei disso, mas se o manuscrito for o que pensamos que é, trata-se da sua área.
- Agora fiquei intrigado, inspetor. - A voz dele estava mais amistosa, o tom, mais interessado. - Quando quer que eu passe aí para examiná-lo?
- O quanto antes, senhor. Posso mandar um carro ir buscá-lo.
Uma breve pausa.
- Não, não precisa. Vai ser mais rápido se eu mesmo for dirigindo. Devo chegar aí em mais ou menos quarenta minutos.
- Ótimo. - Rigston desligou. Menos uma coisa. Antes que pudesse fazer outra ligação, o telefone tocou.
- Detenção - disse a voz do outro lado da linha. - Neil Terras está aqui. Disse que representa Jane Gresham.
A família não está perdendo tempo, pensou Rigston, tentando não ficar irritado com algo que era um direito de Jane Gresham. Agora mesmo que não ia conseguir arrancar
mais nada dela. Terras era o advogado crimi-nalista mais astuto das redondezas. Ficou surpreso ao constatar que os Gresham o conheciam.
- É melhor deixar que ele vá falar com ela então - disse ele.
- Ele quer saber a acusação - disse o sargento.
- Estou descendo.
Meia hora depois, Rigston sentia-se estripado, fatiado e costurado como uma truta. O interrogatório forense de Terras o deixara completamente sem chão.
- Não há nada de concreto, só suspeitas - concluíra Terras. - Não empregarei sequer o termo "circunstancial". Você não tem nada contra minha cliente. Vou
conversar com ela agora e, quando eu voltar, espero que esteja preparado para soltá-la.
Rigston sabia não ter provas contra Jane Gresham, mas esperara que sua falta de familiaridade com os procedimentos legais pudesse provocar uma confissão. Agora,
não havia mais a menor chance de isso acontecer. Se fosse se dar ao trabalho de interrogá-la novamente, tinha certeza de que ela não abriria a boca até que o tempo
estipulado pelo regulamento se esgotasse. Melhor adiar o interrogatório até ter mais embasamento. Era o fim do jogo.
Observou Terras afastando-se para ir ter com sua cliente e depois se virou para o sargento da detenção.
- Quando ele terminar, solte-a sob fiança, até segunda ordem.
Voltou para sua sala, sentindo cada minuto daquela longa noite em seus ossos. Estava ficando velho para aquele tipo de coisa. Trabalhar até tarde era para os jovens.
Anthony Catto estava à sua espera no Departamento de Investigação Criminal. Parecia mais um hippie ultrapassado com ressaca do que um especialista internacional
em Wordsworth, pensou Rigston, amargo, enquanto o conduzia até sua sala.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu ele, fazendo um gesto para que se sentasse.
- Como poderia resistir? - perguntou Anthony, cruzando suas pernas compridas.
- Está mais animado, hein? O senhor me pareceu meio mal quando nos falamos ao telefone.
- Como eu disse, fui dormir tarde. Fui para Newcastle dar uma palestra, depois saímos para jantar. Voltei depois das duas da manhã - explicou ele. - Mas a
idéia do que você tem para me mostrar me reanimou. - Ele olhou ansioso para Rigston.
Rigston lhe passou a folha do manuscrito dentro de um plástico. Anthony a segurou com cuidado pelas pontas e a examinou. Após alguns minutos, ergueu os olhos.
- Posso perguntar de onde veio isso?
- Prefiro não dizer ainda. Faz parte de uma investigação em andamento. Faz diferença?
- Para ser sincero, faz. É uma questão de procedência. Sabe, inspetor, isto aqui parece ser um fragmento de algo cuja existência, até agora, não passava de
rumor e teoria. Mas foi um assunto, digamos, de interesse ultimamente.
- Quem estava interessado? - Estavam enrolando, mas Rigston não se importava. As informações eram sempre potencialmente úteis.
- Há uma jovem chamada Jane Gresham, nascida em Fellhead. Ela é uma acadêmica que mora em Londres, muito minha amiga. Recentemente, ela descobriu um material
que sugeria a existência de um manuscrito inédito de Wordsworth. E ela está procurando o manuscrito. - Ele bateu o dedo no papel. - Isto aqui parece ser exatamente
o que ela está procurando. Se for autêntico.
- O senhor ainda não disse o que acha - comentou Rigston.
- A caligrafia ou é de William Wordsworth ou de um excelente falsificador. Seria preciso testar o papel e a tinta para ter certeza de que é autêntico. E também
saber a procedência, para avaliar as chances. O assunto parece ser um relato em primeira pessoa de assuntos relacionados ao motim do Bounty.
- E o senhor estava ciente de que era isso o que Jane Gresham estava buscando?
- Ah, sim, eu sabia tudo a respeito. O novo material que ela descobriu estava no nosso arquivo. Eu a ajudei desde o início.
- Que tipo de ajuda?
Anthony encarou Rigston.
- Por que está tão interessado nisso, inspetor?
- Gosto de charadas.
Anthony deu de ombros.
- Nada demais, para falar a verdade. Ela encontrou uma referência a alguns papéis terem sido confiados a uma criada. Jane só sabia o primeiro
nome dela. Eu lhe dei o sobrenome, o que a fez concentrar sua busca em determinado sentido.
- Então o senhor sabia que ela estava procurando na família Clewlow? - perguntou Rigston.
- É esse o nome do marido de Dorcas? Não sabia - comentou Anthony distraído, analisando o papel novamente.
- O senhor não quis fazer sua própria busca? Já que se tratava de sua área?
Anthony pareceu surpreso.
- Por Deus, não. A descoberta foi de Jane. Ela é uma pesquisadora muito competente e tem uma tremenda paixão por esse projeto em particular. E, mesmo que
eu quisesse, tenho trabalho demais no novo Jerwood Centre para perder tempo procurando algo que parecia tão improvável. Prontifiquei-me a lhe dar toda ajuda que
pudesse, mas isso aqui pertence a ela.
Ou ele era um excelente mentiroso ou estava falando a verdade, pensou Rigston. Não conseguia imaginar Anthony Catto recorrendo a furtos e assassinatos para conseguir
um pedaço de papel. O sujeito vivia em um mundo à parte.
- De fato, isto aqui é muito empolgante - disse Anthony, reforçando ainda mais a opinião de Rigston. - Descobertas importantes assim são raríssimas na minha
área. E, se isto é apenas um fragmento do que penso ser, talvez seja a descoberta mais relevante nos estudos da literatura inglesa dos últimos tempos. Adoraria ver
o resto. - Ele deu um sorriso maroto.
- Tem certeza de que não pode me adiantar de onde veio isso?
- Talvez o senhor deva perguntar a Jane Gresham - disse Rigston, sem conseguir disfarçar uma pontada de rancor em sua voz. - Vamos deixá-la sair da cela daqui
a pouco.
Jane següiu, atordoada, seu advogado até o estacionamento. - Nem sei como agradecer ao senhor - disse ela. - Rigston me deixou apavorada.
- Estava testando seus limites. Ele não tem nada contra você. E não vai conseguir nada, a não ser que Tenille Cole passe a pôr a culpa em você. E, mesmo assim,
vai ser a sua palavra contra a dela, e a sua vai ter mais peso - disse Terras, consultando as horas em seu relógio.
- Ela não vai dizer nada, é leal toda vida - respondeu Jane. - Posso fazer alguma coisa para ajudá-la?
- Ela já tem um advogado. - Ele abriu um sorriso. - Não tão bom quanto eu, mas nada mal para um defensor público. Ela pode querer falar com você. Se quiser,
preciso estar presente. - Ele olhou novamente para o relógio. - Eu levaria você em casa, mas estou atrasado para uma audiência. Tudo bem?
- Pode deixar comigo - interveio uma voz familiar.
Jane virou-se para trás.
- Anthony? O que está fazendo aqui?
- Estou esperando para lhe dar carona. Estava ajudando a polícia com uma investigação - explicou ele.
- Estou indo, então - disse Terras. - Mantenha contato.
Jane assentiu com a cabeça, distraída pela presença de Anthony.
- Eles não estão achando que você tem algo a ver com os assassinatos, estão?
- Assassinatos? - Anthony pareceu surpreso. - Ninguém falou nada de assassinato. Para falar a verdade, parando para pensar agora, não me lembro de crime algum
ter surgido na conversa. - Ele foi caminhando até seu carro, Jane atrás. - O que me preocupa é o fato de terem prendido você.
- Já lhe explico - disse Jane, impaciente para ouvir a história dele. - Você primeiro. Me diga o que os tiras queriam com você.
Enquanto saíam de Keswick, Anthony lhe contou sua conversa com Rigston.
- Não posso lhe dizer como foi incrível ter segurado aquele pedaço de papel nas mãos - disse ele. - Tenho certeza de que é autêntico.
- Também acho.
- Então foi você quem encontrou? - Ele desviou o olhar da estrada, eufórico. - Mas por que está com a polícia? E que história é essa de assassinato?
Jane gemeu.
- Quatro assassinatos e um furto. E, pelo que você me contou, Rigston estava sondando para saber se você é um suspeito em potencial.
Anthony ficou de queixo caído e o carro derrapou perigosamente.
- Quatro assassinatos?
- Não se esqueça do furto. Que é onde entra a página do manuscrito.
- Não estou entendendo nada. Dá para começar do começo?
Jane suspirou.
- Tudo começou com uma menina chamada Tenille - disse ela. Quando terminou seu relato, Anthony já estava exausto de tantas exclamações e limitara-se a um
silêncio pasmo. - E foi isso o que aconteceu - concluiu Jane.
- Mas você precisa encontrar o resto do manuscrito - disse Anthony. - Sabe onde está?
- Só sei que estava na casa de Jenny Wright. Foi onde os policiais flagraram Tenille.
- Você precisa falar com essa Jenny, pedir para ela lhe mostrar o resto - disse Anthony, embicando o carro no pátio da fazenda.
- Estou muito cansada para pensar nisso agora - disse Jane, saindo do carro. Anthony a seguiu para dentro da casa, ainda tentando convencê-la. Mal pisara
na cozinha e sua mãe já corria em sua direção, envolvendo-a em um caloroso abraço, as lágrimas descendo pelo rosto. Seu pai, Matthew e Dan a imitaram em uma espécie
de abraço coletivo e Jane precisou de alguns segundos para conseguir se desvencilhar deles.
Foi assaltada por uma torrente de perguntas; todos queriam saber o que havia acontecido. Jane cobriu as orelhas e gritou:
- Um de cada vez! Eu sei que vocês estão contentes em me ver, mas calma.
Precisaram de um tempo para se acalmar, mas logo estavam sentados à mesa tomando chá e Jane foi obrigada a contar a história inteira novamente, sendo interrompida
pela incredulidade, reprovação e revolta dos interlocutores.
- E Tenille matou mesmo os velhinhos, afinal? - perguntou Matthew.
- Claro que não - respondeu Jane. - Você acha que eu sou o quê? Acha que eu ia esconder uma pessoa capaz de fazer uma coisa dessas?
- Não estou questionando seu julgamento - disse Matthew, num raro tom apaziguador. - Só estou tentando entender o que está acontecendo.
- Além de não ser uma assassina, Tenille não sabia de nada disso até bem depois da morte de Edith Clewlow - explicou Jane. - Então, está fora de questão.
- Francamente, não vejo sentido em ficarmos brincando de Agatha Christie aqui - disse Anthony, interrompendo a discussão. - Solucionar o crime é tarefa para
a polícia. Sua verdadeira responsabilidade, Jane, é com o manuscrito. Você precisa convencer essa Jenny Wright a te mostrar o resto.
Jane sufocou um bocejo.
- É, mas acho isso muito difícil. Não se esqueça de que sou a suspeita número um de ter assassinado quatro dos seus parentes. Não creio que ela vá me dar
o manuscrito de bandeja tão cedo.
- Talvez não - disse Dan. - Mas Jimmy é o sobrinho favorito dela agora. Posso falar com ele, ver se ele a convence a me deixar dar uma olhada.
Jane tentou disfarçar sua decepção:
- Se você acha que pode funcionar... - disse ela, desanimada, sentindo seu sonho escapar-lhe entre os dedos.
- Eu sei que é algo seu - reconheceu Dan. - E não estou tentando roubar sua glória. Talvez eu consiga convencê-la a me dar uma cópia, quem sabe? Aí você poderia
começar a trabalhar no manuscrito.
- Não é uma má idéia, Jane - disse Anthony.
- E só assim você pára em casa, onde posso ficar de olho em você e me certificar de que não vai mais arrumar nenhuma encrenca - acrescentou a mãe, num tom
ameaçador.
Jane suspirou:
- Está bem. Vá falar com Jimmy. - Ela ficou de pé. - Vou para a cama. Estou exausta. - Antes que ela pudesse sair da cozinha, o telefone tocou. Ela aguardou
enquanto o pai o atendia.
- Só um momento - disse ele. - É para você - prosseguiu ele, passando o telefone para Jane.
- Alô - disse ela, impaciente.
- Dra. Gresham? Aqui quem fala é a inspetora Blair, da polícia de Londres.
Jane estremeceu. Mais problemas com Tenille.
- Em que posso ajudá-la? - perguntou ela, exausta.
- Gostaria de lhe informar que não estamos mais procurando Tenille Cole para depor em relação ao homicídio de Geno Marley - disse Donna, direto ao ponto.
Jane mal podia acreditar no que estava escutando.
- O quê? - perguntou ela. - Por quê? Prenderam alguém?
- Um rapaz morreu hoje cedo durante uma perseguição policial de um carro roubado. Entre seus pertences, estava a carteira de Geno Marley. O passageiro do
carro confessou que o motorista havia se gabado de ter dado cabo de Geno. Então, ao que parece, o caso está encerrado.
- Mas que ótima notícia. Quer dizer, não a morte do sujeito, é claro, e sim que Tenille está livre.
- Livre em termos. Ainda há a questão do incêndio criminoso.
A alegria de Jane durou pouco.
- Mas...
Antes que ela pudesse continuar, Donna a interrompeu:
- Dra. Gresham, posso lhe falar com toda a sinceridade?
- É claro - respondeu Jane.
- Acho que Tenille é uma dessas crianças raras que podem ser salvas. Tudo que ouvi a seu respeito indica que ela pode ter um futuro. Incriminá-la destruiria
qualquer chance que ela possa ter. Não creio que ela vá ser reincidente. A não ser, é claro, que a coloquemos cara a cara com o sistema, deixando-a sem alternativa.
Mas ela vai precisar de alguém na sua cola para que eu possa confiar que vai andar na linha. Para ser franca, a senhora se responsabiliza por ela?
Jane não precisou nem parar para pensar:
- Ela é como uma irmã caçula para mim. Não vou lhe dar as costas. Eu prometo, inspetora Blair, se a senhora lhe der essa chance, não vou permitir que ela
a desperdice. E falo pelo seu pai também.
- Bem, o quanto menos falarmos sobre ele, melhor. Avise-a que pode voltar para casa sem problemas, está bem?
- Hum, não é assim tão simples - disse Jane. - A senhora vai precisar conversar com o inspetor-chefe Rigston.
- Em Keswick? Algum problema?
- Prefiro que a senhora saiba por ele. E gostaria de lhe pedir para repetir o que me disse sobre Tenille.
- Já vi que tem coisa aí - disse Donna, obviamente questionando seu próprio julgamento.
- Ela é uma boa menina, inspetora Blair. Pode se redimir.
- Vou conversar com o inspetor-chefe Rigston. Espero que nossos caminhos não se cruzem novamente, dra. Gresham.
- Eu também, no bom sentido. Muito obrigada, inspetora. Vou fazer o possível para que a sua tolerância não seja desperdiçada.
- Boa sorte. - Donna desligou.
Jane olhou à sua volta, com uma expressão alegre no rosto pela primeira vez em vários dias.
- Era a polícia de Londres. Tenille não está mais sendo procurada pelo homicídio e o incêndio.
- Que excelente notícia! - exclamou Dan.
- Talvez agora Rigston pare de pegar no seu pé e no da menina e resolva procurar o verdadeiro assassino - acrescentou Matthew.
- Vamos torcer. Agora eu realmente preciso me deitar, gente - disse Jane. - Espero que, quando eu acordar, as coisas já tenham se resolvido.
Dan abriu um sorriso.
- Eu não contaria com isso, se fosse você.
Eu percebia claramente a ironia da minha situação. Fui responsável por deixar um capitão à deriva em úma canoa. E ali estava eu, quatro anos depois, exatamente na
mesma situação. Era de fato uma justiça poética. Estava prestes a descobrir se havia mesmo aprendido as lições de Bligh sobre navegação. Defini a minha rota para
a costa oeste da América do Sul e rezei para que o tempo permanecesse ameno. Minhas preces foram atendidas e eu fui abençoado com um clima estável. A chuva que peguei
foi uma bênção, pois permitiu que eu abastecesse minhas provisões de água fresca. Naveguei durante 12 dias e 12 noites e não vi nem embarcações nem faixas de terra
no horizonte. No décimo terceiro dia, um baleeiro da Newfoundland surgiu à vista e eu rumei em sua direção. Meu ouro foi suficiente para que fosse aceito sem questionamentos
e meus conhecimentos náuticos permitiram que eu integrasse a tripulação. Senti-me novamente como um homem livre e resolvi regressar à Inglaterra para limpar o meu
nome.
41
Jimmy sentou-se no banco do carona do carro de Dan, estacionado no fim da rua de Alice.
- Que telefonema misterioso - disse ele, inclinando-se para beijá-lo. - Estou me sentindo um espião.
- Eu não queria entrar na casa sem falar com você antes, ainda mais com os preparativos para o enterro e tudo o mais. A polícia entrou em contato com Jenny?
- perguntou Dan.
Jimmy retorceu o rosto em uma careta.
- Não, por quê?
- O chalé foi invadido ontem à noite.
- Mentira... Cara, ainda bem que a tiramos de lá. Pode ter sido o assassino, Dan. Ela podia ter amanhecido morta hoje. - Ele sacudiu a cabeça.
- Não achamos que o ladrão seja o assassino, Jimmy. - Dan resumiu rapidamente os acontecimentos da noite anterior. - Não creio que tenha sido Tenille. Isso
quer dizer que o assassino continua solto. Para ser sincero, acho que o melhor que Jenny pode fazer agora é nos entregar o manuscrito. Se ele cair em domínio público,
o assassino perde sua motivação. Se Jenny quer continuar viva, ela precisa sair da mira dele.
Jimmy concordou com a cabeça, percebendo a força do argumento de Dan.
- Vamos lá falar com ela - disse ele. - Alice está na funerária, a barra está limpa.
Encontraram Jenny tomando chá na estufa, observando os pássaros no viveiro de Alice. Ela olhou para Dan com desconfiança.
- Você era o rapaz que estava com Jane Gresham naquele dia - constatou, sem um pingo de cordialidade na voz.
- Dan é meu amigo - disse Jimmy.
Jenny ergueu as sobrancelhas.
- Ah, é? Você devia deixar o cérebro guiar melhor seu coração, Jimmy. Homem bonito é tudo igual e este aí não presta.
- Tia Jenny! - protestou Jimmy. - Isso não é justo. Se não fosse por Dan e Jane, a senhora estaria morta a essa altura. Invadiram o seu chalé ontem à noite.
Jenny levou a mão ao peito.
- Oh, meu Deus. E o que eles levaram? Eles vandalizaram minha casa?
- O ladrão só levou uma coisa - respondeu Dan. - Uma folha de papel. Só uma. Uma amostra, pode-se dizer.
- O que você quer dizer com isso? - Jenny parecia nervosa e confusa, mas Dan sabia que ela estava se fazendo de boba.
- Você tem o manuscrito, Jenny. Nós já sabemos. - Ele se agachou para ficar na mesma altura que ela. - Eu realmente não quero assustá-la, mas quatro pessoas
já morreram por causa desse manuscrito. Se continuar a escondê-lo, será a próxima da lista. Mas, se decidir levá-lo a público, entregá-lo a Jane ou a Anthony Catto,
da Fundação Wordsworth, vai ficar protegida. Não quero que perca a sua vida por causa de um punhado de papel. Ninguém quer. Desista, Jenny.
A senhora enrijeceu o lábio inferior, numa expressão desafiadora.
- Não sei do que você está falando - disse ela.
- A folha de papel veio da sua casa. A polícia estava vigiando o chalé e prendeu a ladra em flagrante, quando fugia. Ela estava levando o papel.
Jenny ergueu o rosto, ainda tomado pela mesma expressão obstinada.
- E quem pode dizer que ela já não estava com ele quando entrou na minha casa? E se tudo isso não passar de um blefe? Você e seus amigos acadêmicos, todos
muito metidos a inteligentes, é bem o tipo da coisa que iam inventar. Estou te falando, não sei do que se trata e agradeço se me deixarem tomar o resto do meu chá
em paz. - Ela se virou, fitando os pássaros com renovado interesse.
- Tia Jenny - suplicou Jimmy. - É para seu próprio bem.
- Seria, se eu tivesse os tais papéis de que ele está falando. Mas não tenho e pronto. Agora, trate de ser bonzinho e tire seu amigo daqui antes que Alice
volte e tenha um chilique ao dar de cara com ele na casa dela.
Jimmy seguiu Dan até a rua.
- O que posso dizer? Ela é teimosa feito uma mula velha.
Dan deu de ombros.
- Nós tentamos. Tente fazer com que mude de idéia, Jimmy. Para o seu próprio bem.
Matthew lançou um olhar raivoso para Ewan Rigston.
- Não posso acreditar que a minha irmã tenha tentado convencer a polícia de que sou um maníaco que sai por aí caçando velhinhas inocentes. Nem sempre concordamos,
mas ela me conhece muito bem para pensar uma coisa dessas.
- Quando as pessoas estão acuadas, acabam falando a verdade - disse Rigston.
- Então por que você está me contando mentiras e fingindo que Jane desconfia de mim?
- Eu não disse que ela desconfia de você. Eu disse que ela nos contou que você estava entre as pessoas que sabiam de seu interesse pela família Clewlow. E
que você sabia o que ela estava procurando. Conversar com tais pessoas faz parte do meu trabalho, sr. Gresham. Quatro pessoas morreram.
- Bem, não tenho nada a ver com isso. Só estava tentando ajudar Jane.
- Ele ficou amuado como uma criança. - E olha o que ganhei com isso.
- A pessoa que pegamos saindo do chalé ontem à noite só estava tentando ajudar Jane também. Ao que parece, tem muita gente querendo dar uma mãozinha a sua
irmã.
- Pare de me tratar como um idiota, Rigston. Você não vai conseguir uma confissão forçada de mim, porque não há nada para confessar. Como eu disse, só estava
tentando ajudar. E essa é minha recompensa. Acordado a madrugada toda, tentando tirar minha irmã da cadeia. A polícia aparecendo na escola, me fazendo passar por
criminoso. - Matthew remexeu-se desconfortável na cadeira. - Já terminou? Este devia ser meu horário de almoço, e até agora não comi nada.
- Por ora, terminei sim. Mas vou ter que confirmar o que você disse e talvez tenha outras perguntas a fazer depois.
- Está bem, acabe com a minha reputação. Olhe, eu não sou nenhum assassino. Sou apenas um diretor de colégio, chato e comum. Pessoas como eu não saem por
aí executando gente inocente.
- Tenho certeza de que falaram a mesma coisa de Harold Shipman - disse Rigston, secamente, antes de sair. Não gostava de Matthew Gresham. Achava-o um idiota,
vaidoso e metido. Mas isso não o tornava um assassino em potencial. Nem o fato de ter conversado com algumas vítimas. Não tinha perfil de homicida. Mas, até segunda
ordem, Rigston também não o julgava acima de qualquer suspeita.
Jane só reapareceu no meio da tarde. Dan e Judy estavam na cozinha, dividindo mais um bule de chá.
- Alguma novidade? - Jane perguntou a Dan enquanto se servia uma xícara.
- A bruxa velha e teimosa não quer dar o braço a torcer - disse Dan.
- Nem sequer admitiu saber do que se trata. Jimmy vai tentar convencê-la, mas não espere grande coisa.
- Queria saber como está Tenille - comentou Jane. - Perguntei se podia vê-la, mas eles não querem deixar. - Ficou pensativa por um momento, depois se virou
para a mãe, como se tivesse tido uma idéia. - Você podia ir - disse ela. - Levar um lanche, alguma coisa para ler. Para ela não achar que foi abandonada.
- Eu? Você quer que eu vá visitar a menina? Depois de todo problema que ela causou?
Jane deu um longo suspiro.
- Ela é uma boa menina. Por favor, mãe. Você estaria me tirando um peso da consciência.
Judy parecia hesitante.
- E o que eu ia conversar com ela?
Jane girou os olhos.
- Isso não é o mais importante. Só a sua presença já vai ser suficiente. Por favor? Por mim?
Judy cerrou os lábios.
- Não sei por que deixo você me convencer dessas coisas, realmente não sei. Está bem, vou ligar para a polícia e ver se eles me deixam falar com ela.
Assim que Judy saiu da cozinha, o celular de Jane tocou.
- Alô, aqui quem fala é Jane Gresham.
A voz mal-humorada do outro lado da linha lhe pareceu vagamente familiar, mas não conseguiu reconhecê-la de imediato.
- Quero falar uma coisa muito importante com você, mas tem de me prometer que não vai contar para ninguém - disse ela.
- Sinto muito, não sei quem...
- É Jenny Wright - disse a mulher, impaciente. - Prometa que não vai contar para ninguém.
Jane olhou de soslaio para Dan. Ele apanhara o jornal e, ao que parecia, estava lendo. Virou-se discretamente de lado.
- Combinado - respondeu ela.
- Eu mesma iria, mas estou no enterro de Eddie e não tenho como sair daqui agora. E acho que é urgente. O seu amigo, o namorado de Jimmy, disse que corro
risco de vida enquanto os papéis permanecerem escondidos. Ele disse que sou a próxima da lista. Não quero morrer, mocinha. Minha vida pode não parecer grande coisa
para você, mas gosto dela assim.
- Estou entendendo, também acho - disse Jane, muito meiga. Estava afoita para que Jenny entrasse logo no assunto, mas sabia que não adiantava apressá-la.
- Eu sei que ele é seu amigo e tudo o mais, mas não confio em homossexuais - disse ela, aparentemente saindo pela tangente. - Não sei como o nosso Jimmy ficou
assim, mas ele é da família e sabe que a família vem primeiro. Mas não confio em mais nenhum. Então, mesmo que ele esteja com a razão, não quero que ele chegue nem
perto.
- É justo - disse Jane. - Fica a seu critério. - Seu coração estava palpitando loucamente e a ansiedade a deixava tonta.
- Quero que você vá buscá-lo. Há um banheiro nos fundos do jardim, com algumas latas de tinta na prateleira. A chave sobressalente da porta dos fundos está
debaixo de uma lata de tinta branca acetinada. Suba até o
quarto de hóspedes e você verá um velho baú com acabamento em bronze. Está cheio de lixo, mas tem um fundo falso. Suspenda-o e vai encontrar os papéis. Pegue-os
e leve para a Fundação Wordsworth. Eles vão saber o que fazer com os papéis e assim o assassino me deixará em paz. Entendeu direito?
- Tudinho. Obrigada. Muitíssimo obrigada, ouviu? - Tentou não parecer muito entusiasmada para não chamar a atenção de Dan para a relevância do telefonema.
Não gostava da idéia de ter que mentir para ele, mas promessa era dívida.
- E não comente isso com ninguém. Assim você também se protege.
- Não se preocupe. Dou notícias mais tarde, está bem? - Ouviu Jenny desligar o telefone, mas continuou com o celular na orelha, fingindo que a conversa ainda
não havia terminado. - Está bem, Neil. Minha mãe vai tentar vê-la agora de tarde, mas pode deixar que eu falo com ela para não tocar no assunto. Obrigada por ter
ligado. - Ela desligou.
Dan suspendeu a cabeça, intrigado.
- Era o meu advogado - mentiu Jane. - Ele andou conversando com o advogado de Tenille. Ele acha que eu devia depor, dizendo que Tenille só ficou sabendo do
manuscrito após a morte de Edith. Não vai me prejudicar e pode ajudar Tenille a sair dessa.
- Também acho - disse ele, espreguiçando-se. - Acho que vou voltar para o chalé e tirar um cochilo. Você vai ficar bem aqui sozinha?
- Vou, acho que também vou voltar para a cama, estou morta.
Assim que Dan se levantou, Judy reapareceu.
- Tudo resolvido. Posso vê-la daqui a uma hora. Jane, preciso que você me ajude a preparar o que vou levar para ela.
- Com licença, minhas senhoras - disse Dan, dirigindo-se para a porta.
Jane levou vinte minutos para despachar a mãe. Estava numa impaciência febril. Como sua mãe saíra, ela estava sem carro. E Tenille deixara sua bicicleta do lado
de fora do chalé de Jenny.
- Merda - resmungou Jane. Verificou sua carteira e viu que tinha dinheiro para ir até Coniston, mas não para voltar. - Que se dane - disse ela, apanhando
o caderno de telefone. Podia ligar para Anthony do celular
assim que estivesse com o manuscrito em mãos. Certamente ele não se importaria de ir buscá-la com sua carga preciosa.
Jake estava sentado no bar do hotel, bebericando uma cerveja e refletindo sobre o que estava fazendo naquele fim de mundo. Estava cansado de dar com os burros n'água
e desistira de vez quando sua chegada à casa de Eddie Fairfield coincidira, pela terceira vez, com a da polícia. Não parara sequer o carro, passara direto, voltando
para o hotel. Tentou explicar a Caroline que era perda de tempo, mas ela insistiu que ele continuasse onde estava.
- Nunca se sabe o que pode acontecer - disse ela, misteriosa, recusando-se a dar mais detalhes.
Se trabalhar no setor privado era assim, não podia deixar de achar que havia cometido um erro. Esperava mais ação, mais contato com os manuscritos antigos que sempre
o fascinaram. Não aquela eterna espera em quartos de hotel, aguardando instruções como um garoto de recados.
Como se para confirmar seus pensamentos, o celular tocou.
- Alô - atendeu ele, tentando disfarçar seu enfado.
- Vamos agitar um pouco as coisas, Jake - disse Caroline. - Está na hora do show.
- O quê? - perguntou ele, empertigando-se em seu assento.
- Sei onde você pode encontrar o manuscrito inédito de Wordsworth - disse Caroline.
- Como é que...
- Jake, você não é meu único par de olhos e ouvidos - disse ela. - Mas é meu único par de mãos. Eu sei onde está, mas preciso que vá buscá-lo. Volto para
a Inglaterra amanhã. Vamos aproveitar os lucros juntos.
Estava tudo acontecendo rápido demais para ele.
- Está bem, está bem, estou de saída.
- Não me decepcione, Jake. Agora, escute o que tem que fazer...
Naveguei no baleeiro até o porto de Valparaíso. Fiquei contente por me achar em terra firme, mas a minha jornada mal havia começado. Ofereci meus préstimos a um
navio comercial que estava se dirigindo para Savannah, na Geórgia. Lá, esperava poder seguir para a Inglaterra em um navio de comércio de algodão. Mas, embora minhas
ações no Bounty pudessem dar a impressão errada, eu não era homem de me precipitar. Chegando a Savannah, hospedei-me na cidade, avisei ao meu irmão onde estava e
sondei se era possível regressar em segurança, para tornar público o motivo que me levou a agir de tal maneira com Bligh. Pode imaginar com que aflição aguardei
sua resposta, e o meu pânico diante do seu relato da viagem de Bligh, do seu heróico regresso para a Inglaterra e da corte marcial enfrentada pelos amotinados conhecidos.
Eu não poderia ter concebido um pior desfecho para mim. Em vez de voltar para casa, não podia vislumbrar nada além de um exílio cruel e perpétuo de minhas duas famílias,
a da Inglaterra e a de Pitcairn. As notícias me foram quase insuportáveis.
42
Os últimos raios de sol do entardecer morriam por trás de Langmere Fell quando o táxi surgiu. Quando chegaram a Coniston, a única luz vinha das janelas cujas cortinas
ainda não haviam sido cerradas. Algumas pessoas iam e voltavam do pub e Jane pediu ao motorista que a deixasse no caminho. Não queria chamar atenção para si ficando
em frente ao chalé Copperhead.
Foi uma caminhada enérgica de 15 minutos até o chalé e Jane apreciou o ar fresco. As horas que passara na cela foram poucas, mas serviram para reforçar sua vontade
de estar em liberdade. Havia um aroma outonal no ar, uma mistura de cheiro de terra e fumaça de carvão. Era algo que lhe dava nostalgia, lembrava os outonos de sua
infância - fantasias de Halloween, fogueiras e fogos de artifício, tardes aconchegantes na cozinha fazendo o dever de casa enquanto ouvia a mãe preparar bolos e
compotas.
Estava tão absorta em suas lembranças que alcançou o chalé antes mesmo de perceber. Contente por ter se lembrado de levar uma lanterna, atravessou o jardim onde
talos e plantas frágeis protegidas por plásticos constituíam um triste lembrete do que deveria ter sido glorioso no verão. O banheiro externo não foi difícil de
encontrar e a chave estava exatamente onde Jenny disse que estaria.
Jane entrou e tateou a parede em busca do interruptor. Apertou-o, mas nada aconteceu. Xingando, lembrou-se da história que Jimmy contara sobre os elaborados preparativos
de Jenny para sair de casa. Ela deve ter desligado a eletricidade na chave geral. Jane estava impaciente demais para procurar a caixa de fusíveis pela casa mergulhada
na penumbra, então subiu as escadas usando apenas a lanterna.
O quarto do baú era o terceiro no corredor. Enquanto vasculhava o cômodo com a lanterna, Jane reparou num lampião antigo sobre uma cômoda e uma caixa de fósforos
ao lado. Isso facilitaria as coisas, pensou ela, levantando o vidro e erguendo o pavio para acendê-lo. Não era tão bom quanto luz elétrica, mas era mais fácil do
que ter de segurar a lanterna e vasculhar o baú ao mesmo tempo.
Agachando-se, Jane abriu o tampo. Suas mãos ávidas reviraram a bagunça, jogando todo o conteúdo do baú no chão. Com auxílio do lampião, enxergou a pequena alça de
couro. Prendendo a respiração, ela a puxou e removeu o fundo falso.
- Ah, meu Deus - murmurou ela, esticando as mãos e sentindo na ponta dos dedos as páginas quebradiças e amareladas. Era real. Ela apanhou o manuscrito e o
fitou por um instante. William Wordsworth escreveu isso. Dorcas Mason protegeu. - Obrigada, Dorcas - disse ela, levantando-se, os olhos ainda grudados na caligrafia
familiar.
- Pode passar para mim agora. - A voz a assustou tanto quanto a água gelada da cachoeira em Langmere.
Jane virou-se depressa, apertando os papéis contra o peito.
- Tudo bem - acudiu ela. - Estão aqui comigo, tudo bem.
Dan sacudiu a cabeça, retorcendo os lábios em um sorriso compadecido.
- Me dê isso logo, Jane.
- Por quê? O que você está fazendo aqui?
- Você achou de fato que eu ia cair naquela de ligação do advogado? Você é absolutamente transparente em suas emoções. Não há um advogado no mundo capaz de
deixar você naquela euforia. Agora, me dê a droga do manuscrito.
- Mas por quê?
- Porque eu quero. Porque estou de saco cheio da minha vidinha de merda. Porque estou cansado de ser um zé-ninguém sem futuro. Porque mereço algo melhor e
este manuscrito é o meu passaporte para uma nova vida. - Ele fez um gesto impaciente com a mão que não estava segurando a pesada lanterna de borracha. - Porque eu
posso. Me dê os malditos papéis. - Ele deu um passo à frente e Jane recuou, quase tropeçando no baú.
- Isso é loucura, Dan. Podemos trabalhar nele juntos, há o suficiente para garantir uma carreira brilhante para nós dois.
Ele bufou:
- Você acha que eu quero ser um acadêmico de merda pelo resto da minha vida? Você realmente acha que este é o meu sonho dourado? Que ambição minúscula, patética.
Eu quero coisas que você nem sequer consegue imaginar.
Jane estava paralisada de medo. Jamais suspeitara que pudesse haver tanta maldade em um homem que considerava seu amigo.
- Coisas pelas quais seria capaz de matar?
- Foi um acidente, da primeira vez. Eu só queria dar um susto nela. Mas - ele estalou os dedos - ela apagou feito uma vela e facilitou bastante as coisas.
Não tem nada demais, Jane. Eles já estavam velhos. Já vi a morte tomando conta das pessoas e não é nada bonito. Pode-se até dizer que fiz um favor a eles. Os salvei
de uma lenta e solitária decadência.
- Não cabe a você tomar essa decisão. Eles valorizavam suas vidas; como você ousou bancar Deus? - Não fazia a menor idéia de como iria escapar dele, mas sabia
que precisava fazer com que continuasse falando.
- E eu? Não sou velha e você tentou me matar.
- Não vou entrar nesse assunto, Jane. Pare de querer ganhar tempo. Me dê os papéis. - Ele avançou em direção ao manuscrito, mas ela o deteve com a mão livre.
Uma raiva súbita tomou conta de seu rosto, transformando-o em uma caricatura medonha.
- Me dê essa merda! - gritou ele, batendo com a lanterna na cabeça de Jane.
Uma luz brilhante explodiu no fundo de seus olhos e ela não enxergou mais nada.
Foi um cheiro acre de queimado que atuou em Jane como sais aromáticos, ajudando-a a recobrar a consciência. Lacrimejante e grogue, ela levantou apoiando-se em um
cotovelo, sem saber ao certo onde estava e como fora parar ali.
As chamas afiaram a sua consciência, deixando-a menos desorientada. Jane conseguiu erguer-se, ficando de cócoras. Uma linha de fogo se estendia pelo piso por aproximadamente
dois metros a partir do lampião tombado. O tapete estava em chamas e a tinta em volta do batente da porta começava a derreter. O ar estava carregado de fumaça, e
faíscas explodiam como pequenos fogos de artifício. Através da névoa cintilante sobre as chamas, Jane pôde distinguir Dan, o rosto atento, assistindo ao incêndio
se espalhar, certificando-se de que as chamas na entrada a mantivessem distante.
- Você deveria ter entregado para mim - gritou ele, enquanto o fogo crepitava e rugia. - Eu teria facilitado as coisas para você. Morrer queimado é muito
ruim, Jane. Muito ruim mesmo.
Ainda agachada, Jane virou-se para a janela para verificar se havia alguma chance de escapar por ali. Mas estava trancada por grossos postigos de madeira. Não conseguiria
alcançar a tranca superior. A única mobília no quarto era pesada demais para ser arrastada por uma única pessoa. Voltou-se novamente para Dan.
- Desgraçado - gritou ela. - Filho-da-puta!
Ele abriu um sorriso, a mesma expressão alegre e despretensiosa que ela conhecia tão bem. Isso a atingiu como um golpe.
- Sempre admirei a sua coragem, Jane. Mas detesto a sua ambição. - O fogo estava cada vez mais alto e ela mal podia vê-lo. - Estou indo embora, está ficando
quente demais para o meu gosto aqui dentro - disse ele, antes de partir.
- Merda! - gritou Jane, tossindo ao sentir a fumaça no fundo da garganta. Não ia deixar que aquilo acontecesse. Era agora ou nunca. Ainda de cócoras, aproximou-se
o máximo que pôde das chamas. Com olhos lacrimejantes, pôs o casaco na cabeça e arremessou-se contra o fogo em um mergulho seguido de um rolamento.
Ficou em pé com dificuldade, livrando-se do seu casaco chamuscado. Dan mal havia alcançado o topo da escada; avançou sobre ele com um grito de pura ira. Ele estacou,
virando-se para trás, e ela o acertou em cheio nas costelas. Grunhindo de raiva, ele revidou o golpe acertando um soco na sua orelha, que a deixou tonta. Ela partiu
para cima dele novamente, atingindo
as costelas. Dessa vez ele gritou e ela experimentou uma satisfação macabra e fugaz.
Mas ele não desistira de acertá-la. Enterrou um soco em seu estômago, forçando o ar para fora de seus pulmões. Jane cambaleou e ele a agarrou pelo pulso, torcendo-o,
ameaçando quebrá-lo. Ele a empurrou e ela sentiu a iminência da queda. Mas, dessa vez, agarrou a jaqueta dele, fazendo com que perdessem o equilíbrio. Despencaram
juntos no chão, ficando perigosamente perto da escada. Jane afastou-se dele como pôde, tentando ficar de pé, mas ele foi mais rápido e avançou, agarrando sua perna.
Ela lhe deu um chute no rosto com a perna livre e ele uivou de dor, soltando-a.
Dessa vez, conseguiu se levantar. Mais três passos e estaria no topo da escada. Arriscou olhar para trás e foi assim que viu que ele avançava com tudo em sua direção.
Agindo por instinto, deu um passo para o lado.
Ele foi de encontro ao balaústre do corrimão da escada e depois rodopiou. Por um longo momento, pareceu quedar-se imóvel, com um pé no degrau superior e o outro
no ar. Então, perdeu o equilíbrio e cambaleou, desorientado. Um pé deslizou num degrau, lançando o corpo inteiro escada abaixo em uma queda mortal. Ele aterrissou
de cabeça ao pé da escada com um som repugnante de ossos esmigalhados.
Jane ficou paralisada de terror. Não conseguia mover um músculo. Então começou a tremer, o corpo inteiro sacudindo dos pés à cabeça. Agarrou o corrimão para se apoiar,
olhando a sombra imóvel lá embaixo. Foram os ruídos crepitantes do fogo que a fizeram despertar de seu transe. Desceu cuidadosamente as escadas, degrau por degrau.
Até mesmo na penumbra do vestíbulo pôde constatar que ele estava morto. Ninguém poderia estar vivo com a cabeça formando aquele ângulo com o corpo.
Sufocou um soluço. Não importava que tivesse sido Dan o responsável por tornar tudo aquilo uma questão de vida ou morte. O que sua cabeça sabia ainda não maculara
o afeto em seu coração. Naquele momento, contemplava um amigo sem vida.
Um ruidoso crepitar lá em cima fez com que se apressasse. Inclinando-se sobre o corpo dele, tentou descobrir onde estava o manuscrito. Não encontrou nada; ia precisar
virá-lo. Grunhindo com o esforço, conseguiu colocá-lo de lado. Sua jaqueta se abriu, revelando uma pasta de plástico enrolada no bolso
interno. Ela a apanhou depressa, verificando se era mesmo o que procurava. Ergueu os olhos a tempo de ver o balaústre cedendo ao fogo e despencando no vestíbulo
a
poucos metros de onde estava. Precisava sair dali.
Jane correu para a porta dos fundos, que permanecia destrancada, como ela a deixara. Lançou-se para fora, sentindo o ar gelado, o coração na boca, a cabeça latejando.
Sabia que precisava se afastar da casa, que não era seguro ficar tão perto. Cambaleando, contornou a casa e avançou em direção à pista. Corpo de bombeiros, polícia.
Inutilmente, tateou os bolsos. Meu casaco. Era onde estava o celular, no casaco que descartara lá em cima.
Com a cabeça tonta e as pernas bambas, Jane avançou pela pista até o Irish Row.
Jake estava sentado em seu carro, no final do Irish Row, há uns bons vinte minutos, quando percebeu que não podia mais segurar a vontade de urinar. Desceu do carro
e virou-se para contorná-lo quando avistou um brilho adamascado no horizonte. No início, pensou que fosse uma fogueira, mas, à medida que ficou mais intenso e maior,
percebeu que se tratava de algo bem mais sério.
Fechou o zíper da calça e prosseguiu em direção à pista, quase tropeçando em uma bicicleta escondida atrás de um arbusto. Equilibrando-se antes de cair, continuou
pela pista, avançando até o local do incêndio.
Assim que dobrou a curva, viu o fogo lambendo as janelas superiores de um chalé abandonado.
- Meu Deus do céu! - exclamou ele, apanhando seu celular. Quando o serviço de emergência atendeu, explicou que precisava entrar em contato com o corpo de
bombeiros. - Tem um chalé pegando fogo. Em Coniston. Depois do Irish Row, uns quatrocentos metros depois. As chamas não param de crescer - disse ele, levantando
a voz enquanto outra janela explodia como uma bomba, espalhando no ar uma infinidade de cacos de vidro que cintilavam nas chamas escarlates do fogo.
Em circunstâncias normais, um instinto de autopreservação teria afastado Jake da cena, com medo de o incêndio estar relacionado à captura do manuscrito. Mas uma
atávica fascinação pelo fogo o deteve, estático.
Fascinado, observava as chamas lancetando o céu como lâminas, os dejetos de carvão desaparecendo ao entrar em contato com o solo, a fumaça encorpada riscando o céu
como nuvens velozes. A silhueta vacilante que vinha da casa estava quase à sua frente quando ele finalmente despertou do transe.
No início, percebeu apenas que a sobrevivente estava descabelada e imunda, sangrando e trôpega, tossindo ofegante. Viu seus olhos brilharem num rosto negro de fuligem
e logo uma voz que conhecia bem, estridente:
- Você também? Você também estava nessa?
- Jane? - Foi tudo o que teve tempo de perguntar antes de ser atacado. Ela desferia socos em seu peito, soluçando e gritando ameaças incompreensíveis. Ele
tentou detê-la sem machucá-la, mas ela parecia estar possuída. Batia nele sem parar.
Foi então que sentiu que mãos fortes imobilizaram seus braços e ombros. Jake tentou se desvencilhar, sem sucesso. Percebeu que eram dois homens, um de cada lado,
determinados a não deixá-lo escapar. Um terceiro homem envolveu Jane nos braços com força, tentando consolá-la, em vão.
- Que diabos está acontecendo aqui? - perguntou um deles.
- Não faço a menor idéia - disse Jake, desesperado. - Eu vi o incêndio e liguei para o corpo de bombeiros. Depois Jane saiu cambaleando de dentro do fogo
com a idéia maluca de que eu estava envolvido e começou a me bater. - Enquanto falava, percebeu que sua versão dos fatos parecia pouco provável.
- Isso me parece uma história muito mal contada - disse o outro sujeito. - Melhor esperarmos a polícia chegar para saber o que está se passando.
- Tudo certo, meu bem? - perguntou o homem que estava segurando Jane, afrouxando seu abraço e virando-a para que o olhasse de frente.
Jane explodiu em uma renovada crise de soluços e afundou o rosto em seu peito.
- Está tudo bem, moça, tudo bem - consolou ele, olhando para seus colegas, atônito. Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, faróis azulados e sirenes
romperam a noite.
Agora é que eu estou fodido mesmo, pensou Jake.
Morei em Savannah por cinco anos, trabalhando em navios mercantes para viagens curtas quando precisava de dinheiro. Mas meu coração ansiava por casa e finalmente
decidi me arriscar. Achei que meu regresso passaria despercebido, já que o país estava em guerra contra Bonaparte. Comuniquei ao meu querido irmão Edward a minha
decisão e pus-me inteiramente em suas mãos. Quando aportamos em Bristol, ele mandou um recado, pedindo que o encontrasse em uma estalagem próxima de Bath. Quando
nos abraçamos pela primeira vez em mais de dez anos, o meu coração parecia rebentar no peito e eu mal podia respirar. Combinamos que eu seguiria viagem para a Ilha
de Man, onde nossos amigos e familiares haviam alegremente concordado em ocultar minha identidade de estranhos. Meu irmão conseguira documentos para mim com o nome
de John Wilson e regressei são e salvo para um lugar que me era tão caro quanto meu próprio lar. Mas devo confessar que essa vida pacata acabou por me entediar.
Não fui feito para o ócio. Além do mais, o mar me chamava como um canto de sereia. Eu não ousava ingressar em navios ingleses, com medo de ser reconhecido mesmo
após tantos anos. Resumindo, só me restava uma possibilidade e, nos últimos dois anos, ganhei uma quantia razoável de dinheiro como contrabandista. Tornei-me íntimo
dos baixios do Solway Firth, trazendo conhaque e vinho tinto para os gentios e plebeus, sem a intermediação dos coletores de impostos. Não quero dar a entender que
esse seja um trabalho nobre. Mas coaduna-se com o meu temperamento e me oferece a oportunidade de exercitar minha perícia nos mares. No entanto, minha vida não é
de todo desprovida de risco, rivalidade, e receio não viver até a velhice. Por esse motivo, vim lhe procurar para que você conte a verdadeira história de Fletcher
Christian, amotinado do Bounty, para que os homens conheçam meu verdadeiro destino.
43
Jane percebeu que gostava do seu quarto de hospital. Era branco, tranqüilo e ela não estava doente a ponto de sentir-se amedrontada por estar ali. Segundo o médico,
ela sofrera uma leve inalação de fumaça, um doloroso mas não grave golpe na cabeça, além de diversos cortes e arranhões. Estava internada apenas para observação,
porque acharam que a sua confusão mental ao chegar no hospital podia ser decorrente de uma concussão. Mas a verdade é que os médicos não eram treinados para diagnosticar
mágoas.
Havia um policial do lado de fora do seu quarto e ela sabia disso. O primeiro a chegar ao local fora bastante solícito, ligando para Rigston e avisando que ela estava
pronta para prestar depoimento. Jane sabia que não seria capaz de reprimir suas emoções por muito tempo e queria pôr os acontecimentos daquela noite para fora antes
que se confundissem com as reações que lhe provocaram. O inspetor ficara vinte minutos com ela e, apesar das tentativas dos enfermeiros de dissuadir Jane de falar
a respeito, ele colhera seu depoimento. Não pegara leve com ela, chegando a ameaçar que a acusaria por obstrução de justiça, mesmo que fosse apenas garantir que
ela ia ficar no mesmo lugar, evitando futuras catástrofes, até que a investigação estivesse encerrada. Mas, ao término de sua conversa, sentiu que ele aceitava,
ainda que a contragosto, a sua versão dos fatos.
- Preciso que você fique aqui até que eu tenha examinado os indícios e chegado à conclusão de que você está mesmo falando a verdade - dissera ele quando chegaram
ao fim. - Vou deixar um policial de plantão na sua porta. Ele tem ordens para prendê-la se tentar fugir.
- Prometo ficar quietinha se você me responder duas perguntas - disse Jane.
- Quem faz as perguntas aqui sou eu.
Jane fez uma careta.
- Poupe-me do teatro de tira durão. A primeira coisa que quero saber é o que aconteceu com os documentos que estavam enfiados na minha calça ontem à noite.
- O seu precioso manuscrito foi devolvido à sua dona - disse Rigston.
- Agora cabe à sra. Wright decidir o que fazer com ele. E não quero que ela sofra nenhum tipo de pressão. É uma senhora idosa e acabou de perder sua casa
em circunstâncias traumáticas. Fui claro?
Jane fechou os olhos e suspirou.
- Não estou em condições de aterrorizar velhinhas. Pode ficar tranqüilo.
- E qual é a outra pergunta? - indagou Rigston.
- Você pode, por favor, prestar atenção no que a inspetora Blair tem a lhe dizer sobre Tenille? Ela precisa de um tempo. Eu sei que desrespeitou a lei, mas
veja da seguinte maneira: foram seus atos que levaram aos acontecimentos de ontem à noite. Sem a intervenção dela, você talvez nunca tivesse solucionado esses crimes.
Rigston sacudiu a cabeça, impaciente.
- Não vou prometer nada. Deixar criminosos escaparem ilesos de seus crimes não faz parte do meu trabalho.
Ela quis pressioná-lo, mas ele não iria revelar mais nada de concreto. E Jane estava cansada demais para insistir. Percebendo isso, ele partiu, deixando-a entregue
ao silêncio, às paredes brancas e ao aborrecimento insistente da mágoa.
Mas seu isolamento não durou muito. A enfermeira permitiu uma visita de vinte minutos de seus pais. Judy passara 18 minutos chorando enquanto seu pai ficara sentado,
segurando sua mão como se não fosse nunca mais largar. Matthew, Diane e Gabriel tiveram dez minutos. Todos os assuntos giraram em torno de Gabriel, mas puderam sentir
no ar o começo de algo diferente entre eles.
Mas nada disso serviu para apaziguar a terrível dor em seu peito. A desfaçatez de Dan fora horrível, mas sua convicção de que Jake agira como seu
cúmplice só servia para acentuar o gosto amargo da traição. E, no meio de tudo aquilo, Tenille ficara abandonada. Fizera promessas que não cumprira e isso a magoava
quase tanto quanto o que Dan e Jake lhe armaram. E quem, imaginava ela, teria dado a Harry a notícia de que o namorado fora assassinado por uma de suas melhores
amigas? Os motivos de sofrimento não paravam de surgir ao seu redor.
Rigston reapareceu naquele mesmo dia, à tarde, trazendo consigo um ar de satisfação.
- Acho que estamos chegando lá - disse ele. - Encontramos as digitais de Dan Seaboume na casa de Edith Clewlow, onde não deveriam estar, já que você nunca
esteve lá com ele. Não achamos nada na casa dos outros, mas, se você está dizendo a verdade, as mortes seguintes foram premeditadas e ele provavelmente teve o bom
senso de usar luvas. Confirmamos com Jimmy Clewlow e, embora ele tenha um álibi parcial para Seaboume em algumas noites, ele teria tido tempo suficiente para cometer
os crimes mesmo assim. Também verificamos o computador dele. Além do e-mail que você estava usando para se comunicar com ele, havia uma outra conta secreta. E descobrimos
uma troca de mensagens com Caroline Kerr, a chefe do seu amigo Jake Hartnell. Eles estavam negociando para que ela cuidasse da venda do manuscrito. Era isso o que
Jake estava fazendo, parado de carro no Irish Row. Ele fora lá se encontrar com o vendedor, embora nem ele nem a srta. Kerr confessem ter estado a par da identidade
do sujeito. Nem que o que estavam prestes a negociar se tratava do produto de roubo.
- Jake, Jake, burro e ganancioso - disse Jane. Mas pelo menos burrice e ganânciá eram melhores do que conspiração para homicídio. Era um alívio ínfimo, mas
era melhor do que nada.
- Eles costumam ser. Infelizmente, não consegui encontrar nada contra ele. - Ele suspirou, contemplando a vista pela janela com uma expressão frustrada no
rosto. - Também não encontrei nada para acusar você. Droga. Esse trabalho às vezes é um verdadeiro pé no saco.
- E quanto a Tenille? - perguntou Jane, temerosa.
- A tia está vindo buscá-la amanhã. - Ele balançou a cabeça. - Eu às vezes sou um bobo sentimental. Estou contando com você para mantê-la na linha.
- Obrigada - agradeceu Jane. - Não vou decepcioná-lo.
- Acho bom mesmo. - Ele ficou de pé. - Ah, e a dra. Wilde pediu para dizer que, assim que tiver algo concreto para relatar, entra em contato com você. - Ele
se deteve a caminho da saída e virou-se para trás. - Procure um bom analista - aconselhou ele, rispidamente. - Cinco mortes é peso demais na consciência. Sobretudo
quando se é inocente.
Depois que Rigston se foi, um médico veio examiná-la e decidiu que ela já estava bem para ir para casa e deixar seu leito no hospital. Para sua surpresa, quando
deixou o quarto, vestindo as roupas limpas que a mãe trouxera, deparou com seu pai sentado em uma cadeira no fim do corredor, girando o boné na mão. Ergueu-se depressa
ao vê-la caminhando ainda um pouco trôpega em sua direção.
- Mandei sua mãe para casa com Diane e Matthew - disse ele. - Ela estava deixando todo mundo doido.
Jane ficou com os olhos rasos d'água.
- Amo você, pai - disse ela, dando-lhe o braço. Quando chegaram à fazenda, Jane estava tão cansada que mal conseguiu descer do Land Rover e entrar em casa
sozinha. Os degraus pareciam montanhas, mas ela se arrastou pela escada até seu quarto. Quando alcançou o topo, olhou para o rosto aflito do pai lá embaixo. - Preciso
dormir por uma semana - anunciou ela. - Peça à mamãe para me deixar dormir.
Jane desceu um degrau de cada vez, preparando-se para um ataque de carinho da mãe. Ao abrir a porta da cozinha, ficou atônita ao ver Alice Clewlow sentada à mesa
com uma inevitável xícara de chá nas mãos. Sua mãe não estava por perto.
- Judy foi fazer umas compras - explicou Alice, como se sua presença naquela casa fosse tão rotineira quanto a paisagem da janela.
- Não esperava encontrá-la aqui - disse Jane com uma voz fraca, deixando-se cair na cadeira mais próxima.
- Alguém precisava falar com você e Jimmy está absorto demais em seu próprio drama para ser útil a alguém. Achei melhor tomar as rédeas da situação. - Alice
a examinou com o olhar. - Você está um lixo.
- Me sinto um lixo também. Olhe, queria pedir desculpas pela casa de Jenny e...
- Não vim aqui para ouvir suas desculpas. Vim oferecer as minhas. Lamento por ter sido tão ridiculamente estúpida com você no enterro de Edith. Eu deveria
saber que uma Gresham de Fellhead não trairia a minha família. Se tivesse escutado o que você tinha a dizer, talvez pudéssemos ter salvado algumas vidas a tempo.
Jane sacudiu a cabeça.
- Já pensei nisso várias vezes. Dan estava decidido demais. Não creio que algo pudesse detê-lo até que pusesse as mãos no manuscrito. Não adianta ficarmos
nos martirizando por causa disso.
- Mas é inevitável - disse Alice, secamente. - Seja como for, lamento o que disse naquele dia.
- Tudo bem, Alice. - Jane esforçou-se para dar um sorriso. - Eu também lhe devo desculpas por ter apresentado Dan para Jimmy.
Alice bufou:
- Ele sempre teve um péssimo gosto para homens. - Ela bebericou o seu chá.
- Posso lhe perguntar uma coisa, Alice?
Alice pareceu um pouco desconfiada.
- Claro.
- Como foi que o manuscrito foi parar com Jenny?
Alice ficou visivelmente aliviada.
- Isso é fácil. Dorcas o confiou a seu filho mais velho, Arthur, e ele, por sua vez, à sua filha mais velha, Beattie. E Jenny era a favorita de Beattie. Então,
ela recebeu a herança da família com ordens expressas de não revelar o segredo dos Wordsworth. Só quando percebeu que as pessoas estavam morrendo por causa do manuscrito
foi que compreendeu que precisava abrir mão dele.
- Faz sentido - disse Jane.
Alice mexeu na asa da xícara.
- Jane, não vim aqui apenas para me desculpar. Vim porque tenho uma notícia boa e uma ruim para lhe dar.
- Ah, meu Deus - disse Jane. - Não sei se agüento mais notícias ruins. Esta foi a pior semana da minha vida. - Ela afastou o cabelo do rosto. - Melhor começar
pela ruim, assim pelo menos tenho uma compensação depois.
- Jenny não foi totalmente sincera com você - disse Alice, vacilante e um pouco constrangida. - Ela é desconfiada por natureza. Por isso deixou você ter acesso
às anotações, para ver como iria se comportar. Ela não sabia muito bem se você seria capaz de guardar um segredo, entende? Ou se ia tentar convencê-la a vender o
manuscrito. Ela não sabia se você o trataria com respeito ou se estava apenas interessada em usá-lo para ficar famosa à sua custa. Foi uma espécie de teste...
Jane sentiu um calafrio.
- Ah, meu Deus, Alice, não me diga que...
- Pois é. Jenny tinha o poema também, Jane. Sessenta páginas, protegidas por uma capa de couro. Escritas à mão. Ela o mantinha em locais separados, com medo
de ser assaltada. Porque, se perdesse um, teria o outro como uma espécie de apólice de seguro. O poema ficava dentro de um travesseiro no quarto dela. - Ela respirou
fundo. - Então, sim, havia um poema. Mas agora ele não existe mais.
As lágrimas rolavam pelo rosto de Jane.
- Meu Deus, não - lamentou ela, chorosa. - Isso é uma verdadeira desgraça.
- Acontece que - prosseguiu Alice - é uma desgraça que ninguém vai ficar sabendo. Ninguém culpa você. A família conversou sobre o assunto e chegou a um consenso.
Jamais falaremos sobre o que foi perdido. Não vamos arruinar a sua reputação.
- Que se dane a minha reputação - gaguejou Jane. - Perdemos o poema para sempre. E a culpa é minha. Se eu não tivesse ficado tão obcecada, ele ainda estaria
protegido. Seus parentes não teriam morrido, nem mesmo o imbecil do Dan. - Ela fungou. - Como é que eu vou conseguir viver com esse peso na consciência?
Alice se levantou e passou o braço em volta dos ombros de Jane, que chorava sem parar.
- Pare com isso, vamos - disse ela, com uma voz suave e confortante.
- Não adianta lamentar o que passou. O que está feito, está feito. Você não tinha como imaginar que essas coisas iam acontecer. Ninguém a está culpando na
família, de verdade. E somos os únicos a ter o direito de culpar alguém pelo que aconteceu. Você não quer ouvir a boa notícia? Jenny quer
que você se responsabilize pelo manuscrito. Você ainda pode transformar toda esta confusão em algo maravilhoso. Por favor, não fique consumida pela culpa.
- Não consigo evitar - lamentou Jane. - Estou me sentindo péssima com tudo isso.
Alice puxou uma cadeira para poder sentar-se ao lado de Jane e ampará-la melhor em seu ombro.
- Tem mais uma coisa que eu quero contar e que talvez possa ajudá-la a ver o lado bom da situação. Levei Jenny até o chalé ontem de tarde. E uma meia dúzia
de gatos surgiu de uma moita, como num passe de mágica, enrodilhando suas pernas. E você sabe o que ela disse? "Sempre detestei esta casa, Alice. Lugarzinho desgraçado.
Mas, como pertencia à família havia várias gerações, eu não tinha o direito de abandoná-la. Agora finalmente vou poder ter o meu pequeno chalé, com janelas amplas
para a paisagem. Experimentar algum conforto até o fim dos meus dias." Então, como você pode ver, nem tudo é tão ruim que não possa melhorar.
O tema da narrativa do meu amigo contém todos os elementos necessários à composição de uma história excitante e com moral sobre a vaidade e a falibilidade humanas.
Creio ser o tema ideal para um Poeta como eu e já ouço os versos cantando em minhas veias. A tragédia é que não poderei colher seus louros nesta vida, pois publicá-los
seria expor a mim e a minha família à calúnia. Não obstante, após a minha morte, o mundo talvez goste de saber a verdade sobre um assunto tão comentado pela imprensa
na ocasião do retorno de Bligh. Garanto que qualquer pessoa, ao ler minhas palavras, ficará comovida com a triste história do sr. Fletcher Christian, um homem mais
atormentado pelos pecados alheios do que pecador.
Póst-scriptum: Após este último dia no jardim do Dove Cottage, jamais revi meu amigo. Seu irmão me diz que ele desapareceu completamente das vistas da família. Se
está vivo ou morto ninguém pode dizer. Assim, Fletcher Christian nos deixa mais um mistério difícil de ser solucionado.
44
Janeiro, 2006
O Viking estava no seu costumeiro estado de sonolência, distante da correria da hora do almoço. Em vez de atender atrás do bar, Jane agora estava sentada a uma mesa
no canto. Largara o pub para se dedicar mais ao trabalho no manuscrito de Wordsworth. Agora que era a responsável pela narrativa do Bounty, a professora Elliott
havia milagrosamente descoberto mais dinheiro em seu orçamento para custeá-la em tempo integral.
Jane olhou as horas em seu relógio. Chegara com dez minutos de antecedência, não precisava ficar ansiosa. Hany lhe trouxe um copo de vinho branco e sentou-se à sua
frente.
- Não é mais a mesma coisa sem você aqui - disse ele. - Estou pensando em procurar trabalho em outro lugar.
Para surpresa de Jane, desde a morte de Dan e da revelação do âmbito total de seus crimes, Harry parecia ainda mais desejoso de sua companhia. Esperava que ele fosse
culpá-la, responsabilizá-la por ter tirado o parceiro do bom caminho e, por fim, o levado à morte. Mas acontecera justamente o contrário. Harry agarrava-se a ela
porque era a única pessoa, além dele, que realmente compreendera Dan em toda a sua complexidade. Ela o amara a ponto de virar sua amiga, mas ninguém conhecera como
era o seu lado pérfido.
- Pense bem - aconselhou Jane. - Em qualquer outro lugar, você vai ter que realmente trabalhar pelas horas que lhe pagam. Não vai mais ter isso de ficar encostado
no balcão lendo o jornal enquanto espera os clientes.
- Você tem razão. E aí, alguma novidade? - perguntou ele.
- O novo chalé de Jenny está quase pronto. Ela está ansiosa para se mudar logo. Está decorando o lugar como um palácio, equipado com tudo a
que tem direito. Está até mesmo construindo uma casa só para os gatos. "Que se danem os netos", disse ela. O que ela quer mesmo é gastar. E eu falei com Anthony
ontem. Ele acha que vai conseguir dinheiro suficiente para pagar o preço do leilão e manter o manuscrito no país.
- Que bom, detestaria saber que ele terminou na coleção de um milionário americano, já pensou?
- Ah, e Anthony me contou uma fofoca ótima. Parece que Caroline deu um pé na bunda de Jake. Em termos profissionais e pessoais.
- É o que ele merece - disse Harry, animando-se pela primeira vez naquele dia. - E como está Tenille?
Jane abriu um sorriso.
- Estamos indo bem. Está meio apertado, mas eu não estou ligando tanto de abrir mão do quarto agora que tenho um escritório de verdade no trabalho. E toda
semana ela passa algumas noites com o pai, então eu ganho uma folga por bom comportamento. A melhor notícia é que ela está indo para a escola. O pai está querendo
transferi-la para uma escola particular e tudo, e eu acho que talvez seja a melhor solução. Pelo menos lá não iam ficar debochando da menina cada vez que ela entrega
o seu dever de casa.
- E ela mostrou que é durona, agüenta a pressão desses metidos.
Enquanto ele falava, River Wilde chegou largando a bolsa no chão, colocou seu copo de vinho na mesa e sentou-se.
- É bom ver você de novo, Jane.
- Você também. Este é o meu amigo Harry - disse Jane, um pouco tensa, sem saber se River estava a par da ligação de Harry com os acontecimentos dos últimos
meses.
- Muito prazer, dra. Wilde - disse Harry, educado, estendendo a mão.
- Agora, se me dão licença, preciso voltar ao trabalho.
- Era ele que...? - perguntou River, assim que Harry se afastou.
- É - respondeu Jane.
- Certo. Só para eu saber. - Ela se inclinou e tirou uma pasta de dentro da bolsa. - Pirata do Pântano. O homem misterioso. - Ela abriu a pasta e removeu
um punhado de papéis.
- A pergunta é: o corpo encontrado no pântano é de Fletcher Christian, o amotinado do Bount? - Ela relanceou o olhar para Jane.
- Isso foi realmente fascinante - disse ela. - Obrigada por ter me dado essa oportunidade. Agora, a primeira coisa que precisei fazer foi recolher o
máximo de informações possível sobre Fletcher e depois compará-las com o que estava na minha mesa. Você recebeu a fita que eu lhe mandei? - perguntou ela, referindo-se
a uma sessão gravada na qual River delineara os primeiros tópicos da comparação para a câmera.
- Recebi, foi empolgante assistir. Estou louca para ver a versão final.
River fez uma careta.
- Eu pareço uma idiota - disse ela. - Não tinha a menor noção do tempo que passo com a boca aberta quando estou trabalhando. Enfim, você deve lembrar que
desde aqueles primeiros testes não havia nada que contradissesse a possibilidade de ser Fletcher; pelo contrário, encontramos até alguns indícios nesse sentido.
O que tenho aqui comigo são os resultados dos chefões. - Ela apanhou uma única folha. - Os dentes. Pelo desgaste do cimento, o nosso pirata tem a mesma faixa etária
de Fletcher. E a análise do isótopo estável dos dentes revelou que ele morava em Cumbria na época de sua formação dentária. Então, assim como Fletcher, morava aqui
quando tinha uns seis, sete anos de idade.
- Dá para saber isso pelos dentes?
- Sim, e se chama ciência - disse River, sorrindo. - E então - prosseguiu ela, pescando outra folha de papel -, mais uma análise de isótopo estável, dessa
vez do fêmur. E eu posso lhe dizer que, em seus últimos 15 anos de vida, ele morou no Pacífico Sul. - Ela sorriu novamente. - O máximo, não é?
- Impressionante. E o DNA?
- Calma, calma. Estou chegando lá. Agora, ele tinha cabelo comprido, o que é bastante útil para nos revelar sua dieta. E pelo cabelo deu para descobrir que
durante alguns períodos ele estava fazendo uma dieta boa e bem balanceada, rica em vitaminas e minerais, e em outros, uma dieta bem menos saudável. Então, talvez
seja um marinheiro, que comia bem quando estava em terra firme, mas carecia de frutas e legumes durante longas viagens em mar aberto. Novamente, tudo muito sugestivo.
Há também o ferimento no peito, onde deveria estar a tatuagem de estrela, caso fosse Fletcher. Lembra que eu lhe contei que, quando fiz o primeiro exame superficial,
pensei que a carne e a pele tivessem sido rasgadas por um animal? Bem, examinei direito e percebi que estava enganada. A pele foi removida por uma faca denteada.
Então, sim, podemos estar diante de uma versão primitiva de remoção permanente de tatuagem.
Ela pôs os papéis de lado e juntou as mãos, tocando as pontas dos dedos.
- Não há um único indício que contrarie a teoria de que o homem assassinado em Carts Moss seja Fletcher Christian. Lei das probabilidades? Bem, havia muitos
marinheiros naquela época. A Inglaterra saía de uma guerra e surgiram inúmeras rotas de comércio no século XVIII. Mas, se eu tivesse que apostar dinheiro, apostaria
que o Pirata do Pântano e o Fletcher Christian são a mesma pessoa. A não ser pelo pequeno detalhe inconveniente de ele ter sido assassinado em Pitcaim.
- O que, de acordo com o manuscrito do Bounty, não aconteceu, em absoluto - disse Jane.
- Exato. O que nos leva ao DNA. - River parou para tomar um gole do vinho. - Eu realmente estava esperando muito do teste. Tanto que arranjei desde o início
para que algumas amostras comparativas dos descendentes diretos de Fletcher fossem enviadas de Pitcaim e da Nova Zelândia. Agora, corpos encontrados em pântanos
têm um problema sério. O DNA, nesse caso, fica gravemente comprometido por causa do ambiente. O pântano é acidífero, é por isso que os ossos tendem a "derreter"
e a pele fica manchada. O ácido desnatura a hélice dupla da cadeia de DNA e consegue remover os pares de base. Então os kits de detecção de DNA conseguem ver que
ele está lá pela espinha dorsal do fosfato, mas não é mais possível replicá-lo sem os pares de base. E é a réplica do DNA através da RCP
- reação em cadeia de polimerase - que permite que uma quantidade suficiente seja replicada para análise de digitais e, conseqüentemente, para a comparação.
Então, mesmo que você dê muita sorte e consiga fragmentos do DNA, normalmente eles não são suficientes para criar uma seqüência. O que torna á comparação impossível.
Eu estava esperançosa com esse corpo, estava mesmo. Usamos todas as técnicas disponíveis. Até mexi meus pauzinhos num laboratório na Suíça que faz um trabalho visionário
com DNA. - River sacudiu a cabeça. - Sinto muito, Jane. Não deu. Não consegui colher DNA suficiente para uma comparação.
- Então nunca vamos saber de verdade? - perguntou Jane, atônita.
River assentiu com a cabeça.
- Nunca vamos saber.
Val McDermid
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