Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRESENÇA FATAL / Hjalmar Thesen
PRESENÇA FATAL / Hjalmar Thesen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PRESENÇA FATAL

 

AS águias voavam lentamente em círculos, e de grande altitude viam em toda a extensão do planalto junto à costa, com o seu manto de florestas e gargantas de rios recortadas. Viam a cidade e a sua lagoa, envolvidas no abraço dos outeiros circundantes, que terminavam em dois promontórios maciços, entre os quais o mar avançava e recuava todos os dias, como o bafo de um grande monstro marinho. Os campos verde‑pálido, o casario vermelho e branco e as estradas vermelhas só terminavam na barreira azul das montanhas, e se as águias tivessem querido olhar para um pequeno campo no sopé da montanha, teriam possivelmente visto dois homens, de pé, sobre um arbusto de onde saía uma coisa branca.

A ovelha estava aí, de barriga para cima, no extremo mais afastado do campo, onde a floresta começava a descer em direcção a um íngreme vale de montanha. As suas patas traseiras saíam rigidamente esticadas de um emaranhado de arbustos secos que pareciam ter voltado a florir com botÕes de lã e manchas escuras de sangue. Mesmo por detrás do sítio onde os homens se encontravam, a floresta subia formando uma parede e tornava‑se rapidamente mais sombria entre os troncos dos espinheiros e outras árvores.

Os dois homens começaram por não tocar na carcaça da ovelha. Penetraram na floresta e deambularam de um lado para o outro, como se estivessem a medir e a fazer cálculos. Por fim, o mais alto dos dois encostou a sua espingarda a um ramo e, com um machado de mão, cortou a parte superior de dois rebentos robustos. Depois disso, ataram a espingarda aos dois cepos ainda viçosos e começaram então a construir um pequeno abrigo com paus e galhos a cerca de nove metros em frente aos canos da espingarda de caça.

Após terem feito isto, ajustaram cuidadosamente a posição da espingarda, com um a apontar e o outro deitado de bruços à entrada do pequeno abrigo e olhando para cima, para os dois canos, através de uma pequena abertura que fizera entre as folhas. E resmungava:

‑ Para cima, para baixo, um pouco mais para cima, é demais, sim, assim está bem. Vem até aqui para veres.

Saiu do esconderijo e trocaram de posição. Finalmente satisfeitos, os dois homens voltaram para junto da ovelha e, segurando‑a um de cada lado, arrastaram‑na em direcção à floresta, até ao esconderijo. Empurraram‑na lá para dentro através da estreita abertura. Enquanto o homem mais alto se debatia para colocar a ovelha morta na posição em que devia ficar, o outro começou a desenrolar um novelo de fio de nylon. O homem mais alto agarrou‑lhe e começou a enrolá‑lo de uma forma complicada, que ia dos gatilhos da espingarda para trás, em direcção a uma pequena roldana que pregara a um tronco da árvore, e depois para a frente, em direcção a uma segunda roldana, e por fim para baixo, em direcção ao esconderijo e ainda atravessando a entrada deste a cerca de vinte centímetros do solo. Em seguida os dois homens procederam a alguns ajustamentos na tensão do fio e nos ângulos formados pela complexa teia de nylon.

Satisfeitos com o trabalho, o mais baixo dos dois dirigiu‑se para a entrada do esconderijo e rastejou lá para dentro. Para experimentar, tocou no fio esticado.


‑ Devia funcionar com pressão tanto na horizontal como na vertical.

O seu companheiro olhava com os olhos semicerrados pelos canos da espingarda.

‑ Se ele vier, entra rasteiro ao chão, por baixo daquele ramo de cima, e quando se firmar para puxar a ovelha, empurra o fio. Experimenta com a tua mão. Empurra o fio para cima devagar.

Houve um momento de silêncio tenso de espera, ouvindo‑se depois o repentino som metálico de um percursor.

‑ óptimo ‑ disse o mais forte.

A seguir, depois de terem carregado a arma e feito deslizar para a frente a lingueta de segurança, os homens recuaram para olhar, tentando imaginar como seria quando a noite caísse, e por fim afastaram‑se em silêncio, como se se sentissem um pouco envergonhados pelo que tinham acabado de fazer. Um rebanho de ovelhas afastou‑se deles enquanto regressavam a uma pequena camioneta estacionada no extremo oposto do campo. Atrás deles, o rebanho voltou novamente ao seu pacato e infindável mordiscar da erva.

Não muito distante, no fundo de um desfiladeiro, estava uma mulher sentada em cima de uma rocha quente que modelava o curso do rio. Enquanto secava o cabelo, o sol ia‑lhe queimando a pele nua dos braços. Lá em cima, a brisa abanava a copa das árvores nas duas encostas íngremes do vale, mas não chegava a provocar cá em baixo qualquer ondulação na superfície vítrea e escura do lago que a circundava. Abaixo do local onde se encontrava sentada, corria uma pequena queda‑d'água e, para além disso, não se ouvia nenhum outro barulho, excepto o piar dos pássaros, que atravessava todo o desfiladeiro. Os pés dela, meio submersos na borda‑d'água, tinham a tonalidade ligeiramente dourada, quase idêntica à dos seixos e areia. Estava sentada com os joelhos levantados e o seu cabelo secava ao calor intenso do sol. Com uma toalha azul, esfregou as longas madeixas de cabelo preto que caíam em cascata sobre os ombros. Virou a cara directamente para o sol, a palidez da sua pele constava de modo surpreendente com a farta cabeleira negra. Por isso, deixou‑se ficar sentada, imóvel, deixando o sol fazer o trabalho.

Desde o início que Jean Mannion se adaptara bem e depressa à fazenda, aqui no extremo sul do continente africano. Talvez nem fosse muito surpreendente, uma vez que o seu pai, viúvo, proporcionara uma aprendizagem privilegiada graças à coutada que possuíra no Norte, no coração da região de caça grossa. O irmão, John Avery, quatro anos mais novo e interno num colégio, perdera muito desse ambiente, facto que constantemente lamenta.

Depois, com a morte do pai, tudo tinha acabado. Jean casara um ano mais tarde, e sempre que pensava em Simon Mannion, como agora, ali à beira do lago onde tinham desfrutado tantas coisas em conjunto, sentia o coração apertado, até que ouviu subir de dentro do peito um pequeno soluço e ficou com os olhos inundados de lágrimas. Amara‑o muito e sentia a sua presença em tudo à sua volta.


Limpou as lágrimas quase com raiva, como fizera muitas outras vezes. Simon tinha morrido há seis meses num acidente de automóvel. Não voltaria a vê‑lo; tinha que se mentalizar constantemente desse facto e aceitá‑lo, se possível, sem que isso a fizesse sofrer.

Simon deixara‑lhe Longlands como herança. Pouco tempo depois da sua morte, o irmão tinha acabado o serviço militar e fora viver com ela. Sobrepondo‑se à sua antiga criancice, havia agora uma maturidade, por vezes cómica, que a ajudara a ultrapassar o vazio que sentia e a voltar a interessar‑se gradualmente pela fazenda.

A compra do rebanho tinha sido ideia de John, e o desaparecimento de cinco ovelhas deixara‑o profundamente indignado. Inicialmente, pensara que pudessem ter sido roubadas. Contudo quando encontraram a ovelha meio devorada, fora buscar Japie Kampmuller à herdade vizinha, e tinha sido este quem afirmara que era obra de um leopardo. Fora igualmente dele a ideia da armadilha com a espingarda.

Japie Kampmuller, simpático e bonacheirão, fora um dos homens a quem Jean pedira para levar o caixão de Simon. E agradecido pela honra de ela o ter considerado um amigo especial, transformara‑se no seu prestável conselheiro e protector, ainda que à sua maneira rude. Antes disso, não o conhecia bem. Era para ela apenas mais um membro da comunidade local de fazendeiros, que raramente se via sem ser vestido de roupas cor de caqui e com um chapéu manchado de suor: era um homem forte, de tez escura, que falava e ria muito alto. Segundo pensava, devia andar por volta dos cinquenta anos.

Longlands tinha cerca de seiscentos hectares e já tivera muitos donos. O solo, que era pouco fértil, tornava a agricultura difícil. Contudo a paisagem era magnífica e Jean possuía o suficiente para poder ser fazendeira só de nome.

A fazenda era uma das muitas que existiam espalhadas pelo planalto, que se estendia para leste e oeste, entre a cordilheira de montanhas e o mar. Só havia na fazenda um sítio de onde se podia ver o mar. Mas, quando soprava o vento oeste, o troar da rebentação ribombava continuamente, como se fossem canhÕes a disparar ao longe. A costa era uma zona de veraneio, e a selva por vezes não parecia mais do que um cenário.

Ao princípio, quando os macacos lhe invadiram o pomar, Jean tinha ficado indignada e surpreendida, e quando os javalis e os porcos‑espinhos lhe desenterraram os bolbos, dificilmente conseguira imaginar aquelas criaturas a farejar lá fora ao luar por baixo da janela. Considerava que animais corpulentos e perigosos como eram os leopardos habitavam as savanas lá bem no Norte. De facto, ela não estava totalmente convencida de que as cinco ovelhas que tinham desaparecido tivessem sido mortas por leopardos, e no seu íntimo pensava se os cães teriam ficado soltos naquelas noites. A partir daí, assegurava‑se sempre de que ficavam todas as noites bem fechados no canil.


De repente, olhou para cima. Nas profundidades da ravina, o sol desaparecia e, como que em expectativa, o cantar dos pássaros modificou‑se. Talvez no seu subconsciente despertassem também recordaçÕes antigas dos perigos que trazia a escuridão que se aproximava, levando‑a a pôr‑se em pé de um só movimento gracioso e a virar‑se para trás, olhando tudo à sua volta. Começou a vestir‑se. Do outro lado do lago, a menos de cem metros do local onde se encontrava, o leopardo fêmea, que se tinha imobilizado ao primeiro movimento da figura parada sobre a rocha, mergulhou novamente entre os fetos, olhando fixamente para ela com as orelhas coladas à cabeça e a cauda a abanar ligeiramente de um lado para o outro.

O leopardo ficara confuso com a figura sobre a rocha, porque não emitia qualquer som. Anos de experiência tinham‑no ensinado a identificar os sons que acompanhavam invariavelmente o cheiro humano. Através da supersensível capacidade auditiva, própria da sua espécie, conseguia detectar uma palavra murmurada ou mesmo o riscar de um fósforo e identificar exactamente qual o local de onde provinha, desaparecendo depois furtivamente sem ser visto. Uma outra coisa que o confundira tinha sido o facto de a figura ter ficado quase completamente imóvel. Mas agora o potencial inimigo tinha‑se afirmado pelo movimento. A fêmea ouviu então atrás de si um ligeiro silvo, uma inspiração excitada, e percebeu que a cria de dois anos estava à espreita por cima da sua espádua.

A rapariga acabou de se vestir, ignorando que estava a ser observada pelos animais. Atirou a toalha para cima do ombro, sacudiu para trás as grossas madeixas de cabelo preto húmido e dirigiu‑se para o caminho de terra batida.

A fêmea tinha pouco mais de sete anos e, para além de uma cicatriz que lhe fendia a orelha direita e terminava num pequeno corte por cima do olho direito, era imaculadamente lustrosa e bem musculada. Era também invulgarmente grande, e as manchas bem negras no pêlo amarelado das costas e das pernas contrastavam fortemente com o branco alvo do pêlo da barriga. Naquele momento, em que os últimos raios de luz salpicavam a floresta de sombras escuras e pontinhos dourados de sol, o leopardo era a personificação da camuflagem.

Sem fazerem qualquer barulho, o leopardo e a cria já adulta subiram em fila a encosta da floresta cada vez mais sombria, em direcção ao covil temporário. Parando no sopé do penhasco, a fêmea olhou pela primeira vez para cima com os seus olhos enormes e profundos; reuniu todas as suas forças, deixou de abanar a cauda e subiu a superfície rochosa irregular numa série de saltos sem esforço que a conduziram para debaixo de uma saliência rochosa muito acima das árvores. A cria juntou‑se‑lhe poucos segundos depois e, durante algum tempo, ficaram os dois sentados a observar fixamente a ravina, ouvindo o cair da noite.

A ligação da fêmea à cria era mais uma questão de hábito do que de sentido maternal. A cria tinha nascido nesta toca numa ninhada de quatro, que ela amamentara durante três meses seguidos. Passado esse tempo, ela abandonava‑os no covil enquanto ia caçar, com uma eficiência incansável, vale acima e vale abaixo. Por essa altura, houvera uma grande abundância de porcos‑espinhos, cuja dieta alimentar, muito rica em raízes e bolbos tenros, servia de alimento à ninhada. Os filhotes cresceram rapidamente, e por fim, após uma centena de liçÕes em que os ensinara a caçar gafanhotos e rãs, ratos e pequenos antílopes, terminou a sua já longa tarefa. Primeiro um filhote, depois outro, a seguir à perseguição a um rato, foram descobrindo que a mãe se tinha ido embora. Finalmente, ficou apenas uma única cria, que a seguia com uma determinação canina. Para ela, um filhote não constituía qualquer problema, e em pouco tempo caçavam os dois quase em pé de igualdade.


Quando a fêmea ficou novamente apta a acasalar, a sua atitude em relação ao filho mudou rapidamente. Rugia‑lhe e era violenta, contudo foi só numa tarde, em que numa clareira da floresta um grande macho fixou o olhar nele, que sentiu medo a sério. O macho correu na sua direcção e, passando pela mãe, rugiu‑lhe assustadoramente, até que o filho acabou por fugir. Depois do acasalamento, voltou a encontrar a mãe no abrigo rochoso; ela lambeu‑o em jeito de saudação, e a vida para ele voltou a ser como dantes.

No seu comportamento, o jovem leopardo não era diferente de todos os outros animais da sua espécie, mas havia uma coisa que o distinguia e que fazia com que fosse um animal estranho e invulgar: da cabeça à cauda, era preto quase retinto. A cabeça parecia ainda mais escura, talvez por causa dos olhos, que faiscavam em contraste com o negro retinto que os circundava. Vistos à luz do dia filtrada pelas folhas das árvores da floresta, eram simplesmente verde‑esmeralda, mas à noite, ao reflectirem a luz acesa de alguma fogueira, eles pareciam arder como dois archotes vermelhos e soltos sobre um fundo preto. Com efeito, ele era um exemplo surpreendente de melanismo.

O território que a fêmea e o jovem macho ocupavam não lhes pertencia exclusivamente, mas, devido a um sistema complexo e eficaz para todos, ela e os outros ocupantes, que incluíam dois machos adultos, raramente entravam em conflito. O cheiro de outro leopardo revelava a altura da sua passagem e a direcção que tomara, e nos territórios que se sobrepunham o complicado sistema de cheiros e contra‑cheiros preservava o delicado equilíbrio, pelo menos enquanto houvesse comida em abundância.

Contudo, havia já muitos indícios de que a caça começava a escassear naquela zona da floresta. A maior parte dos javalis já tinha desaparecido dos dois vales; os golungos tinham‑se tornado muito cautelosos, o mesmo sucedendo com os macacos e babuínos. Para sobreviverem, os predadores eram obrigados a ir mais longe, e a perturbação provocada por este raio de acção mais alargado começava a ultrapassar o perímetro disciplinado da civilização. Tal como já acontecera muitas vezes em muitos outros lugares, a civilização começara a exercer retaliaçÕes, avançando ainda mais as suas fronteiras.

Nas suas anteriores rondas, a fêmea nunca havia morto uma ovelha. Dado que as ovelhas pastavam na orla da floresta e eram animais sem rapidez, nem chifres, nem astúcia que os protegessem, ela podia caçar uma sempre que quisesse. Porém, fora o jovem macho que caçara a primeira das cinco ovelhas enquanto aprendia a caçar. E só depois de ele ter arrastado a carcaça para debaixo dos pinheiros, é que ela se lhe reunira para comer. A carne era boa, mas a lã que começaram por arrancar com a boca da zona da barriga era desagradável.


Agora, ali deitada no chão com o macho no penhasco rochoso, ela lambia‑lhe o pêlo e as orelhas numa atitude profundamente maternal, à qual ele se rendia submisso, de olhos fechados e cabeça inclinada, satisfeito como uma cria pequena. Pesando quase setenta quilos e com um comprimento de cerca de dois metros e meio, contando com noventa centímetros de cauda, a cria já pesava tanto e era tão possante como a mãe. Na luz suave do pôr do Sol o covil virado a oeste parecia irradiar uma luz avermelhada que resplandecia ainda mais devido ao magnífico pêlo lustroso da fêmea. Todo o seu dorso, com as manchas negras irregulares, cada uma com um centro amarelo mais vivo que o fundo cor de bronze, parecia atrair a si toda a luz e depois espalhá‑la sobre rochas que a circundavam. Nas pernas esticadas, as manchas eram bem negras e redondas, e em direcção às patas transformavam‑se primeiro em lágrimas, alongando‑se depois em riscas. A fêmea estava deitada com uma das patas da frente por cima dos ombros do filho e apoiando‑lhe com a cabeça a outra.

Do outro lado do vale viram as luzes da fazenda acenderem‑se e ouviram os cães a ladrar ‑ um quadro que já lhes era familiar. De muito longe, chegou‑lhes o lânguido tanger de uma viola e o zumbido de um carro; contudo, estes últimos eram sons sem consequências, excepto talvez pelo facto de poderem fazer parte do reino das criaturas de duas pernas.

Há muito que a noite caíra sobre o vale quando se levantaram e subiram pela estreita passagem em forma de chaminé que constituía a saída das traseiras do seu covil. Estavam com fome e na orla da floresta a próxima refeição esperava‑os.

Seguindo atrás um do outro, os dois leopardos fizeram‑se ao caminho pela noite escura, sem hesitaçÕes, até chegarem à clareira onde os carneiros pastavam. Ignorando o rebanho em debandada, contornaram o campo pela orla da floresta e voltaram a embrenhar‑se no meio das árvores, abaixo de um pequeno dique. As ovelhas que se encontravam no muro da represa fugiram em tropel, formando uma nuvem branca compacta, sem emitirem qualquer som para além do bater dos seus cascos no solo.

Agora, os leopardos deslocavam‑se com rapidez, rente ao chão. Avançavam quase completamente em silêncio: as patas almofadadas tocavam o solo primeiro com a parte de fora, tão ao de leve como uma pluma. A mais leve brisa que lhes agitava os pêlos das orelhas indicava‑lhes todas as mudanças de direcção do vento, de modo que as vítimas, alerta aos cheiros do inimigo, pudessem ser apanhadas de surpresa. Cada pêlo da cabeça constituía um centro nervoso extremamente sensível, permitindo‑lhes avaliar os espaços vazios e detectar quaisquer obstáculos com uma precisão extraordinária.

Ao pararem no local onde estivera a ovelha morta, os leopardos começaram a procurar, farejando desconfiados. Contudo, o cheiro da carcaça atraía‑os e conduziu‑os directamente ao abrigo próximo. Aqui, o cheiro a homem era muito intenso, mas isso não constituía novidade. A fêmea tinha visitado muitos acampamentos durante a sua vida, pisando fogueiras já extintas, pelo que conhecia os cheiros característicos desses lugares: madeira acabada de cortar, tabaco e café.


O jovem macho circundou o cercado de gravetos com a barriga colada ao solo e a cauda a abanar em expectativa, enquanto o animal mais velho se sentava sobre as patas, na escuridão, a observar. O macho, com infinita precaução, aproximava‑se da carcaça, subindo de lado, uma vez que era mais fácil puxar a vítima para baixo, e havia uma pequena árvore ali mesmo à mão para servir de apoio. Ia a meio quando a noite explodiu. Para os olhos desprotegidos da fêmea, a chama muito brilhante que saltou do escuro, iluminando por instantes todas as folhas e galhos à sua volta, foi uma punhalada cega de dor na cabeça. No breve momento antes de os seus instintos a fazerem fugir a correr, ainda viu o macho rodopiar por cima do barranco, para em seguida desaparecer no meio de uma enorme explosão de galhos quebrados. Embrenhou‑se nos espinheiros, enquanto o eco do rebentamento ainda soava vale abaixo. Meia hora depois, encontrava‑se a salvo no covil, preocupada apenas com o facto de continuar com fome.

Sentou‑se à espera que a cria chegasse. O barulho produzido pelo rolar de uma pequena pedra, lá em baixo no escuro, fez com que regressasse imediatamente ao estado de alerta, mas, pouco depois, percebendo que era o filho que vinha a dirigir‑se ao esconderijo, os seus músculos distenderam‑se novamente. Porém, apercebeu‑se de que algo devia estar errado ‑ pois os sons que chegavam até ela eram estranhos e não correspondiam exactamente aos que tinha registados na memória. Além disso, cheirava‑lhe a sangue e a medo.

Foi com enorme esforço que a cria atingiu a orla do penhasco, depois sentou‑se a lamber‑se, enquanto a mãe a observava do canto da plataforma rochosa. Por fim, quando veio ajudá‑la a lamber a ferida ‑ que ia da espádua direita, percorrendo o dorso, até ao fim das costelas ‑, a cria rendeu‑se cautelosamente e deitou‑se com a cabeça sobre as patas, olhando a escuridão, confusa e enfraquecida pela perda de sangue.

O macho tivera sorte no ângulo de aproximação que escolhera ao subir o barranco. De qualquer outra direcção, os tiros, que tão de repente o atingiram vindos da escuridão, tê‑lo‑iam apanhado no meio das espáduas. Mesmo assim, a ferida era muito profunda e sangrava abundantemente. Muito mais sério era o estado da sua pata traseira. Ao agarrar a carcaça com os dentes, levantara a perna de trás para dar impulso, e a rajada de chumbos arrancara‑lhe três dedos e mais de metade da pata.

Ao despontar da madrugada, a fêmea ficou agitada. Andava de um lado para o outro no abrigo, com movimentos rápidos e nervosos, e emitiu um enorme gemido, singularmente semelhante ao miar de um gato doméstico, mas muito mais ressonante. Depois, após olhar de relance para trás, subiu a abertura, em forma de chaminé, do esconderijo e partiu em direcção às numerosas estrelas que se desvaneciam sobre os cumes das montanhas distantes. Sozinha, deslocava‑se rapidamente. Muito em breve, daria à luz uma nova ninhada, e o instinto estava a conduzi‑la para a segurança e a sobrevivência. A recordação da armadilha e do terrível barulho, o rasto de sangue que levava ao abrigo e os ferimentos do filho, tudo isto conjugado despertara no seu cérebro um circuito que assinalava perigo; e nada era agora mais importante que a segurança da nova vida que trazia dentro de si.

A certa altura, quando o leopardo preto parou de se lamber para poder descansar e escutar, ouviu a mãe, ao longe, no outro lado da encosta. Os seus roncos profundos e intermitentes pareciam ordenar à floresta silenciosa que fizesse um silêncio ainda maior, e a floresta obedeceu.

 

ACORDAR de um sono indolente ao ar livre é um dos prazeres da vida. Estar deitado sobre a erva macia da floresta, envolto pelo marulhar das ondas, sob um dossel de folhas salpicado de sol, é um convite a planar imediatamente abaixo da superfície do consciente, um peixe em águas mornas e pouco profundas, e sorrimos ao futuro.

E foi exactamente isto que Clifford Turner fez. Sorriu e espreguiçou‑se, pernas esticadas e braços varrendo as folhas secas perto da cabeça. Depois, lançou para a frente os braços e os ombros, levantou‑se rapidamente e começou a correr quase negligentemente encosta abaixo, em direcção à praia. Parou a meio para observar o grande oceano que só terminava nos grandes blocos gelados da Antárctida, a muitos milhares de quilómetros de distância. Em seguida, saltando para o último retalho de sol, atravessou rapidamente o túnel de floresta verde e preta que conduzia à entrada do seu acampamento. A caverna onde Clifford Turner agora vivia fora bem escolhida pelos seus anteriores ocupantes. Situada no meio de altos penhascos avermelhados que corriam a todo o comprimento desta zona rochosa da costa meridional, a caverna ficava a pouco mais de trinta metros acima da praia. E pela parte de cima só tinha acesso através do antigo leito de um rio onde se localizava; contudo, se não fosse a morada dos madeireiros sobranceira à costa, cerca de cem metros mais acima, a praia e a caverna separadas das estradas principais por uma faixa de floresta costeira cerrada quase impenetrável teriam permanecido inacessíveis, excepto aos guardas‑florestais mais conhecedores.

A caverna em si era pouco profunda, e como tal tinha bastante claridade mesmo àquela hora adiantada da tarde. De um lado, havia um fio de água que caía, por entre o musgo e os fetos, dentro de uma pequena bacia de pedra e em frente uma fila de árvores que constituía uma barreira eficaz contra o vento. Turner ficava maravilhado ao pegar num pequeno utensílio de osso apanhado do chão da caverna por saber que há muito tempo, talvez mil anos ou mais, outro homem também tinha estado sentado naquele mesmo lugar a escutar o mesmo marulhar das ondas. Mas agora a caverna estava diferente. A um canto, por baixo de uma prateleira na saliência da rocha, estava uma cama de campanha impecavelmente feita com cobertores e uma almofada branca. Em cima dessa saliência da rocha, encontrava‑se uma série de mochilas, candeeiros a petróleo, caixas com mantimentos, tachos e panelas. Numa superfície plana situada perto da entrada da caverna, havia uma clareira rodeada de pedras, uma mesa, três cadeiras desmontáveis e um fogareiro de petróleo. O chão poeirento do centro da caverna tinha sido coberto com pedaços de madeira apanhados na praia para se tornar mais confortável.

Em cima da mesa, havia uma pilha bem arrumada de folhas dactilografadas presas por uma pedra e a seu lado uma brochura intitulada "Notas sobre o Leopardo do Cabo Meridional", de Clifford Turner. Por baixo da mesa, estava uma máquina de escrever portátil com uma pasta ao lado.


Turner, assobiando, pôs a chaleira ao lume. Era um homem alto e anguloso, com ombros largos, que dava a impressão de uma magreza musculosa que era acentuada pela roupa que vestia ‑ calças de ganga coçadas, botas pesadas e uma camisa de caqui verde toda desabotoada. O cabelo castanho e comprido, uma farta cabeleira que lhe cobria o pescoço, a barba de três dias e o tom muito bronzeado do rosto faziam‑no parecer mais velho do que era.

No último ano, Clifford Turner tinha estado por várias vezes na região. Embora solitário por natureza, já era conhecido de grande parte da população, nem que fosse pela sua reputação. Estudioso da moderna zoologia filosófica, interessava‑se pela problemática da situação e responsabilidade do homem como espécie animal no habitat restrito da superfície terrestre. A sua bolsa de investigação concedida pelo Departamento para a Conservação das Espécies, fora generosa, e ele compilara uma notável quantidade de dados de investigação sobre o leopardo desta região sul do Cabo. O seu trabalho suscitava diversas reacçÕes, nem todas favoráveis. O comportamento dos fazendeiros em relação a este trabalho de investigação ia desde o encorajamento, passando pela ridicularização bem‑humorada, até à hostilidade declarada.

Dedicava‑se ao seu trabalho aparentando uma indiferença alegre, mas dava especial atenção aos grandes gatos do Mundo e em particular aos leopardos. Era cada vez mais levado a pensar que naquela faixa costeira de montanhas e floresta, apesar dos parques de campismo, hotéis e aparente docilidade, havia uma reserva de leopardos, um santuário onde estes animais sobreviviam à vontade. Todavia, um mapa zoológico antiquado da distribuição dos leopardos mostrava, de forma bem clara, que nesta região havia poucos leopardos ou mesmo nenhuns. Assim, até certo ponto, ele não era diferente de um mineiro ou de um explorador descobrindo novas riquezas insuspeitadas.

Preferia trabalhar sozinho e sem ninguém a ver o que estava a fazer. Poucas pessoas, mesmo entre os seus colegas que se dedicavam à investigação, avaliavam melhor que Turner as dificuldades encontradas para estudar os mais astutos e discretos caçadores nocturnos. Os seus dois assistentes mestiços, produto da miscigenação de hotentotes indígenas e antepassados brancos, ocupavam uma cabana situada perto da caverna. Com o seu auxilio, Turner estava a aperfeiçoar gradualmente um sistema de identificação fotográfica que lhe vinha permitindo recolher novas informaçÕes. Cada um dos seus cinco dispositivos tinha duas máquinas com flash ligadas por meio de um accionador a dois pequenos aparelhos de feixes luminosos electrónicos a pilhas com quase um ano de duração. Com o auxílio destas máquinas, estava a obter um registo extraordinário da vida nocturna dos leopardos e uma série crescente de "retratos" individualizados destes animais. Até agora, tinha conseguido obter fotografias a cores nítidas de dezanove indivíduos diferentes, pelo que tinha mais do que razão para se sentir satisfeito com a evolução do seu projecto.


Todas as manhãs, a primeira coisa que fazia era verificar os postos de fotografia, retirar os rolos que tinham chegado ao fim e substituí‑los por outros, obedecendo tudo isto a um plano detalhado e previamente elaborado. Nas zonas com desfiladeiros, este trabalho nem sempre era fácil. Algumas vezes, já tinha gasto um dia inteiro para conseguir posicionar uma única câmara. Nesses dias, ele poderia ter que abrir caminho por entre a floresta, carregando o delicado equipamento, preparar iscos de cheiro, ajustar as máquinas e os mecanismos de accionamento, para depois se arrastar de volta ao Land‑Rover. Os resultados que obtivera estavam para além das expectativas mais optimistas de Turner. Demonstravam que ele não estava apenas a fazer experiências de campo acerca de um aspecto de administração da vida selvagem, mas também a fazer um verdadeiro recenseamento. Aumentando a sua satisfação, estava o facto de nenhum dos animais sair lesado.

Quando acabou de tomar o chá, Turner subiu na direcção da estrada florestal, mesmo por cima da gruta, dirigindo‑se depois para a cabana ali perto onde guardava o Land‑Rover, bem como gasolina, ferramentas e material variado. Raro era o dia que não passava pelo departamento da Estação Florestal de Rooikrantz, a cerca de dez quilómetros, e era para aí que se dirigia agora.

Tinha combinado com o guarda‑florestal Machek Prewalski (Mike para os amigos) que a estação funcionaria como remetente à sua correspondência e como local de recebimento de telefonemas de quem avistasse leopardos daquela região. No princípio esta ligação telefónica tinha sido utilizada pelos fazendeiros para se lamentarem, na expectativa de porem rapidamente em campo as autoridades competentes. Pouco tempo depois, quando aqueles descobriram que Turner, na realidade, gostava dos leopardos, essas informaçÕes haviam começado a escassear. Contudo, já tinha feito boas amizades em muitos sítios. Mais do que isso, utilizando diplomaticamente as duas línguas ‑ o inglês e o africânder ‑, ele estava a dar liçÕes básicas sobre ecologia, as quais estavam a começar a produzir os seus frutos até mesmo junto dos fazendeiros mais retrógrados. Mas, apesar de tudo, o leopardo continuava a ser considerado um perigo para o gado e, inclusivamente, um risco potencial para a vida humana ‑ um animal‑problema para os departamentos governamentais da vida selvagem. As únicas informaçÕes que Turner temia eram as que se referiam a um animal ferido, muitas vezes resultante de uma armadilha, pois em tais situaçÕes o leopardo transformava‑se num dos animais mais perigosos existentes à superfície da Terra.

Virou o Land‑Rover para o caminho ladeado de carvalhos que conduzia à estação florestal e parou junto ao pátio exterior do escritório.

Lá dentro, encontrou Polly, a mulher de Mike, que estava a arranjar o cabelo, de pé, em frente a um espelho. Quando entrou, ela virou‑se, sobressaltada, fazendo cair uma pilha de papéis que escorregou de uma mesa.

‑ Assustaste‑me ‑ disse com ar acusador. Era ainda uma mulher atraente, de semblante escuro e olhos de cor quase violeta, em cujo cabelo apareciam já muitas madeixas acinzentadas.

‑ Desculpa, Polly ‑ disse ele. ‑ Não era minha intenção entrar assim, sem pedir licença.

Em silêncio, apanhou os papéis.

‑ John Avery telefonou ‑ disse a mulher. Atravessou a sala até uma pequena mesa onde se encontravam um bico de gás, uma cafeteira azul e umas chávenas. ‑ Ele disse que feriu um leopardo. Pede‑te para lhe telefonares.

Turner virou a cabeça e olhou para ela, para cima, querendo assegurar‑se de que estava a falar a sério.

‑ Diabos o levem ‑ disse ele de rompante ‑, esse jovem maluco. Que raio fez ele agora? Se calhar, preparou alguma armadilha.


‑ Tem calma, Clifford. Anda, vem tomar café.

Turner pegou violentamente no auscultador do telefone e agradeceu à mulher a chávena que esta lhe estendia. Deu à telefonista um número de telefone, desligando depois e ficando à espera enquanto ela fazia a chamada. Sentou‑se a um canto, bebendo o café, de sobrolho carregado.

‑ É pura cretinize da parte de John ‑ disse ele. ‑ Quase aposto que o velho Kampmuller também está metido nisto. Para ele, o leopardo é apenas mais uma peça de caça.

‑ Mas, Clifford, um bicho desses pode ser verdadeiramente perigoso. Que é que poderia acontecer às pessoas que vivem em toda esta zona?

‑ A partir de agora, vai ser perigoso de certeza. ‑ Fez uma pausa. ‑ Claro que também pode estar morto.

Ela pousou a chávena.

‑ De qualquer forma, porque é que és tão doido por leopardos? ‑ perguntou ela. ‑ Para que é que eles servem?

Ele olhou momentaneamente para ela.

‑ Apenas defendo o direito à vida, é só isso. ‑ Depois, lançou‑lhe um sorriso largo. ‑ Talvez tenhas razão. É possível que esteja a ficar meio doido. Posso beber mais um pouco desse café?

Ela encheu‑lhe a chávena. Lá fora, através da porta aberta, o pátio era um rectângulo de luz brilhante. Na sala, reinava o silêncio.

‑ Quando é que Mike volta? ‑ perguntou Turner, passados uns instantes.

‑ Queres mesmo falar com ele ou estás apenas a perguntar por perguntar? Ele é um tonto, é o que ele é. Mike irá estar fora o dia todo e fico muito satisfeita com isso.

Turner sorriu. Assistira já a muitas das suas discussÕes domésticas e depois às inevitáveis reconciliaçÕes para poder sentir‑se agora apenas divertido com esse facto.

O telefone tocou estridentemente e ele foi na sua direcção, sentindo‑se aliviado. Disse:

‑ John? Sim, estou aqui, na estação.

Ficou calado, a escutar, e depois perguntou:

‑ Uma armadilha? Que espécie de armadilha? Com carabina, espingarda de caça? ‑ Impaciente, tamborilava com os dedos na mesa. ‑ De calibre doze. Está bem, vou já para aí.

Em seguida, disse a John Avery para entrar em contacto com Paul Stander, o funcionário do Departamento de Conservação da Natureza. Depois, pousou o auscultador.

‑ Vais ter que ir à procura do leopardo, não é verdade? ‑ perguntou Polly.

Turner suspirou.

‑ Parece que sim.

Levantou‑se, esboçando um sorriso.

‑ Obrigado pelo café ‑ disse ele.

Depois, foi‑se embora no Land‑Rover com uma expressão de profunda tristeza. Olhou para o relógio, tentando calcular o tempo que lhe tomaria ter que ir buscar a sua espingarda e preparar‑se para levar a cabo uma tarefa que era a antítese de todo o seu trabalho e de tudo o que até agora tinha defendido, para além de extremamente perigosa.


Turner e John Avery penetraram na floresta um atrás do outro e o mais silenciosos que podiam. Na orla da floresta, as árvores eram pequenas e dispersas, o solo seco e poeirento. Contudo, à medida que iam avançando, a floresta tornava‑se cada vez mais sombria e húmida. Parecia silenciosa, à excepção do cantar de quando em quando dos pássaros, e Turner, que ia atrás, sentia‑se contente por não haver a mínima brisa a mexer as folhas por cima das suas cabeças e a abafar o suspirar ou o rosnar de um leopardo prestes a saltar.

Quando chegaram ao local da armadilha, os seus olhos já se tinham adaptado àquela semi‑obscuridade. Ali, os três rafeiros que Avery pedira emprestados aos trabalhadores da fazenda começaram a ficar amedrontados, e, pela primeira vez, Turner acreditou que de facto estavam a lidar com um leopardo. Os cães andavam lentamente e hesitantes à volta da armadilha, como se o solo estivesse a queimar as suas patas; as caudas, espetadas, deixaram de abanar, pescoço e nariz esticados, seguindo o cheiro repelente, mas ao mesmo tempo fascinante.

Os galhos e as folhas que constituíam a cobertura do recinto onde a ovelha morta jazia tinham sido partidos pelos chumbos da arma, e era difícil de imaginar como é que um animal com a corpulência de um leopardo podia ter escapado com vida. Espalhados em frente à entrada do recinto, havia pequenos pêlos negros, pedaços de pele ensanguentada e duas garras completas. Os dois homens curvaram‑se para ver em silêncio, pois parecia haver pouco a acrescentar ao triste quadro que se lhes deparava. John Avery tinha na cabeça um boné de caça, e quando se levantou, um pico de um espinheiro espetou‑se‑lhe no chapéu, arrancando‑lho. Turner olhou para cima, mas não sorriu enquanto Avery recuperava o seu absurdo boné. Turner e Avery foram descendo cautelosamente a escarpa, seguindo o rasto que se ia desenhando nos fetos por ali abaixo. No meio de uma pequena moita de lírios, encontraram uma poça de sangue e gotas claramente visíveis contra a verdura. Muito devagar, começaram a seguir o rasto.

Ao fim de uma hora, Turner fez uma pausa e descansou na pega da arma. Os dedos estavam rígidos e crispados com a tensão. Mesmo atrás, John Avery respirava pesadamente e os cães tinham desaparecido; o rasto de sangue ainda ali estava, mas era cada vez mais ténue. Pelos indícios que tinham observado até aí, Turner era levado a acreditar que o animal se encontrava ligeiramente ferido e que estava à espera deles. Manchas de sangue nos ramos e nas raízes um pouco acima do chão pareciam indicar que o leopardo tinha esfregado deliberadamente o ombro ou o flanco naquele local, tentando aliviar a dor provocada por um grande ferimento à flor da pele. Viram igualmente uma pegada nítida envolta em sangue sobre uma folha grande de um lírio. Não restavam dúvidas de que era um ferimento de raspão. Se se pensasse na disposição da entrada do recinto e na pouca distância dos tiros, qualquer coisa mais do que um raspão teria morto o animal. Uma pata inteira arrancada? Não, isso provocaria uma perda de sangue muito maior. Na sua imaginação, Turner seguiu o animal ferido na sua fuga cega e incrédula do choque e da dor e esse pensamento encheu‑o de raiva.

O rosto de John Avery brilhava com o suor enquanto olhava atentamente à sua volta, com os olhos muito abertos com a excitação. No seu íntimo, Turner esperava que o leopardo os evitasse e conseguisse recuperar; mas daria tudo para poder dar uma olhadela naquele animal tão raro.


O rasto de sangue conduziu os dois homens para baixo, lentamente, em direcção ao rio e depois novamente para cima, quase a pique, para os afloramentos rochosos e penedos cobertos de musgo. Ali, as pegadas eram recentes, mas confusas. Notaram dois tipos de marcas; uma, coagulada e seca; a outra, húmida e com pouco mais de uma hora. A pista mais recente subia na direcção dos penhascos que começavam agora a surgir entre as árvores e os dois homens seguiram‑na. Ao saírem debaixo da última árvore, ficaram de pé a olhar para o céu azul e brilhante contra o qual se desenhava o desfiladeiro cinzento. John Avery deu um suspiro de alívio e Turner sentiu o mesmo. Pelo menos, ali, sob o céu aberto, as suas possibilidades eram um pouco melhores. Por uns momentos, puderam descontrair‑se.

‑ Creio que foi para ali que ele foi ‑ murmurou Turner. ‑ Vês aquela fenda ali, por cima daquela saliência da rocha?

John Avery engoliu em seco.

‑ Tudo indica que sim. Que vamos fazer?

‑ Aquele rasto de sangue recente altera um pouco as coisas. Ele permaneceu lá em cima toda a noite, mas desceu e subiu novamente ainda não há muito tempo. Portanto, é provável que não esteja muito ferido, e se subirmos estaremos a pedir problemas. Creio que devíamos dar a volta ao penhasco para darmos uma vista de olhos lá de cima.

O desvio à volta da base do penhasco foi longo e difícil; mas, pelo menos, apesar da dificuldade que tiveram em atravessar aquela zona escarpada e com espinheiros, sentiam‑se relaxados, sem uma sensação de perigo. Turner sabia que sem cães ou um rasto recente as probabilidades que tinham de encontrar a presa eram escassas. Nesta floresta, se o leopardo não estivesse muito ferido, esconder‑se‑ia simplesmente nas sombras e nunca mais lhe poriam a vista em cima.

Por fim, chegaram ao cimo. Aproximaram‑se da borda e olharam cautelosamente para baixo, para o vale; contudo, o compacto talude verde das copas das árvores por baixo deles dificultava saber em que ponto estavam em relação ao esconderijo do leopardo. Deslocaram‑se lentamente ao longo da borda rochosa, e tinham chegado a uma área relativamente aberta quando o leopardo negro veio ao seu encontro.

Turner foi alertado pelo som de areia e cascalho a escorregar, tendo‑se virado a tempo de ver a sombra negra mesmo a seu lado, à beira do penhasco. Enquanto ele preparava a espingarda, já o leopardo estava em movimento. Um rugido gutural, de uma ferocidade intensa, assinalou o salto e então Avery bloqueou a linha de visão de Turner. Avery recuou, a cambalear, e o leopardo, surpreendentemente negro em contraste com a claridade das rochas, mal parecendo tocar no solo, girou o seu longo corpo e golpeou Avery com a pata, atirando com a sua espingarda pelo ar; depois, desapareceu por trás dos arbustos cerrados. Clifford Turner correu até ao seu companheiro, que rangia os dentes e tentava sair de uma fenda entre as rochas. Esticou‑se para agarrar a mão de Turner.

‑ Meu Deus, Clifford, que era aquilo?

‑ Estás bem, John? Fez‑te mal? Como é que estás?

‑ Não, ele passou por cima da minha cabeça; mas era preto.

‑ Sirx, negro ‑ dizia Turner, maravilhado, e num mal contido estado de excitação. ‑ É um leopardo negro, John, um grande, belo, leopardo negro, imagina só!

 

A CIDADE de Knysna, um misto de zona comercial e balnear, acolhia uma vez mais uma multidão de turistas. Tal como acontecia todos os anos, os carros com os tejadilhos carregados de bagagens, puxando atrelados e barcos, chegavam como bandos em época de migração e instalavam‑se num aglomerado multicor tão perto quanto possível das praias. Saídos dos hotéis e parques, os veraneantes espalhavam‑se em todas as direcçÕes, enchendo as praias e os parques de estacionamento e transformando o grande estuário numa espécie de pátio de diversÕes de velas coloridas tremendo ao vento, com esquiadores, pescadores e barcos a motor desenhando um labirinto de espuma na água verde do mar.

Jean Mannion estacionou o Range‑Rover à sombra de um grande carvalho, apressando‑se depois rua abaixo entre pessoas que faziam as suas compras do fim do mês e turistas que olhavam as montras. Apesar de viver na zona há relativamente pouco tempo, muitas pessoas faziam‑na parar para a cumprimentarem. Descer à cidade tinha este atractivo e, para além das listas de compras que tinha a fazer, incluindo pasta de dentes ou cartuchos para a espingarda do irmão, costumava tratar de muitas outras coisas. Desta vez, marcou uma consulta com o veterinário para vacinar os cães, alugou um bulldozer para cavar um novo dique e foi convidada para um almoço no domingo.

Ao fim da tarde, acabara ela de dar as suas voltas, a cidade estava a ser invadida por uma nova enchente de pessoas. As lojas ficaram apinhadas de trabalhadores das fábricas, homens de calças de ganga e com fatos‑macacos, mulheres com crianças pequenas, velhos pensionistas e camiÕes de lenhadores. Eram predominantemente mestiços de pele clara, aparecendo por vezes alguns negros da tribo Xosa, e ela olhava‑os com alguma preocupação. Com efeito, caía uma carga de água súbita e ela desejava que parasse, durante uma ou duas horas pelo menos, para eles poderem chegar a casa enxutos... Parecendo ter ouvido o seu desejo, o aguaceiro parou tão rápido quanto começara.

Subiu para o Range‑Rover e estava a pôr a chave na ignição quando viu Clifford Turner surgir através do pára‑brisas, sobressaltando‑a involuntariamente. Ele saltitou na sua direcção e sorriu quando ela abriu o vidro. Respirava com dificuldade e tinha o cabelo todo molhado.

‑ Olá, Jean, vi‑te a entrares para o carro e pensei que já não te conseguia apanhar. Por isso, vim a correr ‑ disse ele, respirando profundamente. ‑ É um bom exercício. Ia agora ao clube de vela tomar um copo. Anda comigo.

Ela franziu a testa muito ligeiramente.

‑ Não vou ao clube de vela há muito tempo...

Não acabou a frase, mas ele sabia que ela queria dizer desde a morte de Simon, levando‑o a acrescentar rapidamente:

‑ Ou então a qualquer outro sítio tomar café.

Decidida, disse:

‑ Não, vamos ao clube de vela, porque não? Podíamos ir lá para fora, não é? Tenho andado para te perguntar sobre o leopardo que tu e John viram.


Sentaram‑se na pequena varanda coberta do clube, que ficava resguardada do barulho lá fora. O mar estendia‑se à frente deles, podendo ver‑se aqui e ali o movimento dos barcos e dos praticantes de windsurf solitários e leves como penas. Enquanto bebia, deu atenção ao que Clifford dizia.

‑ Toda a gente parece ter ouvido falar de panteras negras. Calculo que atraíram a imaginação das pessoas, há muito tempo, na altura dos pioneiros; contudo, a designação é imprópria. O melanismo, a coloração negra, é raro e tanto aparece nos jaguares como nos leopardos. A vulgarmente chamada pantera negra é simplesmente um jaguar ou um leopardo no qual predomina o gene do melanismo. Regra geral, é recessivo, e quando um leopardo negro se cruza com um malhado, normalmente as crias são malhadas. Mas quando os dois são negros, pode, por exemplo, surgir também um negro em cada ninhada de três.

‑ Então o preto é raro?

‑ É de facto muito raro, especialmente por estas bandas. O leopardo negro africano surge mais nas zonas tropicais; é geralmente um fenómeno que ocorre na áfrica Central. Nesta zona tão meridional, é quase desconhecido. Eu diria que este é um dos primeiros registos de um completamente negro; tanto quanto pude observar, nem sequer tinha ligeiras marcas.

‑ Sendo assim, o facto de John ter montado aquela armadilha ainda é mais grave ‑ disse ela.

Ele não disse nada e bebeu um pouco de vinho. Depois, disse:

‑ Não te preocupes, são animais rijos. Segundo se diz, têm nove vidas. Sabe‑se que já têm conseguido recuperar mesmo dos ferimentos mais terríveis. O problema é poderem continuar a caçar para comerem; contudo, possuem um forte poder de adaptação e conseguem sobreviver apenas comendo escaravelhos, rãs e lagartos durante algum tempo, se não tiverem outra alternativa.

‑ E pessoas?

Ele riu.

‑ Quase nunca. Não sou especialista em devoradores de homens, mas para que isso aconteça terão que estar reunidas determinadas circunstâncias, uma das quais, possivelmente, poderá ser a inaptidão para a caça. Mas, mesmo para isso, terá que haver uma primeira vez por acaso, como, por exemplo, na índia, com uma grande densidade populacional e alguns cadáveres por enterrar, para lhe tomarem o gosto.

Jean ficou calada, olhando para a água, enquanto Turner lhe enchia o copo de vinho branco, deixando ver o seu perfil com a linha de cabelo preto liso curvando‑se no lado do rosto e cobrindo um ombro como um manto sedoso.

‑ Isto aqui é calmo, não achas? ‑ perguntou‑lhe Turner.

Agarrou no cabelo e puxou‑o por detrás da orelha, virando‑se para ele:

‑ Sim, é, mas tenho de ir para casa ‑ disse ela.

‑ Porque é que não ficas? Podíamos jantar por aí os dois.

‑ Gostaria muito, Clifford, a sério, mas hoje não; fica para outro dia.

Tentou encontrar um jeito de a fazer ficar, enquanto ela agarrava no lenço e na mala, mas sabia que seria em vão.

‑ Gostaria mesmo que ficasses.

Ela sorriu, olhando‑o apreciativamente.

‑ Está bem, fico mais um pouco, até acabar o vinho.


Tinha‑se apercebido da tensão súbita, quase tristeza, na cara dele. Contente e aliviado, Turner deitou inadvertidamente o vinho com demasiada força derramando‑o no braço dela e depois levantando‑se e inclinando‑se para ela protectoramente, limpando o vinho com o lenço e segurando‑lhe na mão. Um pequeno grupo de visitantes saiu para o terraço, dando exclamaçÕes ao ver o brilho cor‑de‑rosa‑flamingo à sua volta, à medida que o Sol se punha por trás das colinas.

 

Pela segunda vez na sua vida, o leopardo negro experimentara o que era ter medo, e quando as duas criaturas de duas pernas se tinham aproximado, a sua raiva havia cedido rapidamente o lugar ao instinto de sobrevivência que lhe despoletou um choque de adrenalina, fazendo‑o esquecer até mesmo a dor que tinha na pata ferida. No seu mergulho para a segurança, certamente podia ter ferido aquelas criaturas que o perseguiam, pois eram grandes e faziam‑no sentir‑se desconfiado. Agora, deslocava‑se na frescura da floresta, muito lentamente, sobre três patas e, de tempos a tempos, parava para lamber o coto que sangrava da pata traseira ferida; depois de a lamber, sentava‑se por uns momentos, imóvel, atento a quaisquer ruídos estranhos.

O leopardo estava faminto e com sede e fraco com a perda de sangue. Não pressentia qualquer perigo imediato, para além da dor e da rigidez da espádua ao mover‑se e a dor profunda na pata traseira. No meio da vegetação verde‑escura da floresta, a sua camuflagem era perfeita, mas quando um raio de sol incidia nele ao deslocar‑se, dava ao seu manto negro um brilho prateado no qual havia uma súbita tonalidade avermelhada; o ferimento continuava a sangrar na espádua e no dorso.

Junto a uma sebe de arbustos, havia uma nesga de terra onde um javali tinha escavado a terra com o focinho à procura de alguma coisa, e sobre esta desenhava‑se uma pegada de leopardo adulto. Pelo olfacto, a cria sabia instintivamente que ali estava a sua única possibilidade de sobrevivência. Vagarosamente, começou a seguir o caminho que a mãe tinha tomado, subindo em direcção às montanhas.

Ao fim da tarde, chegou ao planalto de floresta densa e alta. Aí, o caminho era menos acidentado, comparado com a zona de vale escarpado que tinha atravessado. Mas a cria não conseguia coxear a três patas. Durante muito tempo, até os músculos lacerados das costas lhe começaram a doer intoleravelmente naquela postura desequilibrada. Atravessou uma pequena ribeira, bebeu e cheirou as folhas sobranceiras dos fetos impregnadas do odor da sua mãe. Dali, saiu para uma antiga estrada de lenhadores coberta de erva. Aqui, era campo aberto e perigoso, mas era também mais fácil de caminhar.

Ao rondar uma curva, parou momentaneamente em choque, pois ali à sua frente estavam três homens ‑ três guardas‑florestais com dois cães de caça. Os cães corriam e saltavam alegremente à frente quando deram com o leopardo, antes de ele ou eles terem a possibilidade de escolher entre atacar ou fugir. A cadela, que era a primeira, saltando para trás com um ganido de terror, embateu no cão atrás dela, ao qual mordeu selvaticamente. Mas depois manteve‑se firme, com os caninos à mostra, rosnando e ganindo ao mesmo tempo, com o peito colado ao chão. Os cães não tinham alternativas. Sabiam apenas que ali à sua frente, em terreno aberto, estava um inimigo ancestral e que atacar podia significar a morte e fugir despoletaria o ataque.


O leopardo negro estava amedrontado, mas naquele momento em que tudo estava em suspenso, com os cães à sua frente e mais além as altas criaturas de boca aberta e imóveis, o seu medo cedeu rapidamente lugar a um terrível pânico. Sabia que não podia fugir aos cães devido aos seus ferimentos. Um dos homens deu um grito assustado, e nessa altura o instinto do leopardo despoletou a rápida ordem para matar.

As orelhas colaram‑se à cabeça, os olhos semicerraram‑se, com as pupilas dilatadas, a sua longa cauda abanou duas vezes e, antes de o homem da frente ter tido tempo para se virar e fugir, as patas de trás ‑ uma delas um simples coto ensanguentado ‑ rasgaram o solo quando ele se atirou sobre os cães com as garras de fora; matou primeiro a cadela com uma forte patada na cabeça e o outro foi esventrado em pleno ar quando se virava, e o seu corpo dourado voou na direcção dos homens. Estes desataram a correr, e o leopardo, meio cego com a droga assassina nas veias, lançou‑se entre eles, abrindo caminho à patada.

Quando a estrada à sua frente ficou vazia de tudo, à excepção de sons humanos, virou, atirando‑se por entre a familiar vegetação rasteira e só parando ao colidir com uma pequena árvore junto da qual ficou deitado de lado e ofegante. Mesmo assim, continuou à escuta com as orelhas acompanhando os sons atrás dele. Mas os sons humanos foram desaparecendo, não havia ladrar ou ganir de cães e, quando a noite veio, ficou a descansar onde estava, sobre as folhas macias e secas.

Muito antes do nascer da madrugada na floresta, já ele tinha acordado e lambia pacientemente a terra da pata magoada. Durante muito tempo, não se ouviu mais nada a não ser o raspar da sua língua a limpar a pele do sangue coagulado. A seguir, uma rã coaxou e em breve todos os pássaros da floresta acordaram, enchendo o vale com o seu cantar. Então, o leopardo continuou o seu caminho.

Aquelas horas de sono profundo tinham ajudado o leopardo, dando‑lhe força para continuar a subir a última encosta alcantilada da floresta montanhosa, na direcção da superfície molhada e brilhante das rochas, no lado sul do desfiladeiro. Na velha estrada das carroças, podia detectar ainda o rasto de cheiro na areia húmida; mas ao ultrapassar a crista, onde o sol batia quente, o odor desapareceu, perdido no perfume aromático dos arbustos rasteiros. Tinha à sua frente um grande vale vazio ‑ uma depressão de rochas batidas pelo sol, savana verde e serpenteantes riachos prateados de montanha. Descendo devagar até um afloramento rochoso, abrigou‑se do sol debaixo de uma saliência de pedra com uma árvore raquítica e deformada em frente e erva seca por baixo. Deitou‑se aí, ofegante, tendo esgotado todas as suas forças ou a vontade de continuar.

Quando finalmente a noite veio, estava suficientemente recuperado para começar a interessar‑se pelo que havia à sua volta e na eventualidade de conseguir alimento. Esta sua reacção bastante natural em relação a uma nova área confundiu‑se repentinamente com uma dor violenta quando colocou a pata em cima de uma pedra afiada. Então, pela primeira vez desde que tinha caído na armadilha, deu voz à sua miséria; foi um lamento baixo e rouco que se transformou num uivo profundo, acabando por fim num infeliz miado. Era o som da morte a aproximar‑se e encheu todo o vale como se fosse um lamento de que apenas estes locais selvagens fossem testemunha do desaparecimento de algo de grande beleza e de grande força.


Durante todo o crepúsculo, e de quando em quando, a cria chamou. Muito distante daquele lugar, perto do sopé da montanha, onde as rãs caíam em silêncio à sua passagem e a água corria suavemente, a fêmea ouviu aquele chamado e parou para escutar. Aquele som não era um chamado de acasalamento. Seguindo‑o, foi subindo na direcção das montanhas e, passado algum tempo, quando estava mais próxima, começou a chamar em sinal de resposta. Cautelosamente, aproximou‑se do esconderijo da cria, de boca semiaberta, cheirando o ar. Os dois animais tocaram‑se com os focinhos ao de leve com uma espécie de grunhido de contentamento. Depois, quando ele deitou a cabeça sobre as patas, a fêmea começou a lamber a ferida que o filhote tinha no dorso.

De manhã muito cedo, a fêmea desceu à frente, até à garganta do rio, e antes do nascer do Sol os dois leopardos encontravam‑se já na toca dela, sobre um lago escuro profusamente rodeado de vegetação selvagem e protegido na extremidade por uma escarpa íngreme. A cria deitou‑se, exausta. à medida que a luz aumentava de intensidade, não se vislumbrava nada no sombrio esconderijo, a não ser a extremidade pontiaguda e branca de um canino e uma mancha prateada e brilhante onde um raio de sol batia em pêlo negro e molhado. Depois, as manchas do pêlo da fêmea tornaram‑se indistintas quando ela se levantou e começou a descer, escorregando na direcção de um amontoado de arbustos e rochas e desaparecendo de seguida.

Ao cair da noite, ela regressou com o estômago cheio. Provocou um vómito e regurgitou para o chão do abrigo os restos de carne de rhebok fumegante. Meio a rastejar, o filhote avançou na direcção daquele repasto e começou a comer.

Durante uma semana, a fêmea caçou nas encostas das montanhas até que o macho dominante da manada levou as suas últimas corças para lá das cristas, para uma relativa segurança. Entretanto, a cria estava a recuperar rapidamente. Até mesmo o coto da pata traseira, que era diariamente lambido e mantido limpo de qualquer carne em putrefacção estava a sarar; e o ferimento do dorso começava também a fechar‑se numa longa cicatriz cinzento‑avermelhada. Depois de permanecer dois dias naquele lugar, a fêmea dirigiu‑se para um outro covil que tinha construído lá em baixo na ravina e aí deu à luz duas crias, ambas malhadas. Mais tarde, trouxe‑as para o primeiro abrigo, e quando, cegas e famintas, elas começaram a mamar, o macho negro aproximou‑se e juntou‑se‑lhes sem que a mãe se incomodasse com isso.

Formavam um estranho grupo: a fêmea, malhada, deitada prazenteiramente de lado, o filhote negro, tão grande como ela, agachado com as duas outras crias, também malhadas, ao lado dele a mamarem. Contudo, ele estava a beber mais do que a sua conta e a fêmea começou a ficar irrequieta. Quatro dias após o nascimento dos outros, ela levou pela primeira vez o leopardo negro a caçar com ela. Enquanto a seguia, em direcção à zona descampada da encosta soalheira, coxeava ainda, mas o brilho estava a voltar ao seu pêlo e a sua cabeça, alerta e rápida, movia‑se ao mais pequeno som da montanha.


 

CLIFFORD Turner estava a gozar o passeio como passageiro no banco de trás do carro de Jean Mannion. Olhava a barreira formada pelas árvores da floresta que ladeavam ambos os lados da estrada e fumava o seu charuto num estado de felicidade total. A gruta solitária parecia estar a quilómetros de distância. E então, tão subitamente como tinha tomado consciência da sua satisfação, apercebeu‑se de um estado de ansiedade ou de solidão ‑ não tinha bem a certeza de qual ‑ e por momentos considerou a hipótese de abandonar aquele primitivo quartel‑general. Em todo o caso, iria dar uma festa, pensou. Claro, era isso mesmo, estava decidido. Inclinando‑se para a frente, disse:

‑ Que é que acham da ideia de uma festa na praia, perto da gruta? Vocês viriam?

Jean, que ia a conduzir, virou a cabeça:

‑ Obrigada. Nós iremos. Mas que excelente ideia, Clifford.

‑ Tratarás de arranjar uma lua cheia, claro ‑ disse John Avery, sentado ao lado da irmã, à frente.

‑ Claro ‑ disse Turner.

Seguiram em silêncio por mais uns momentos.

‑ Esta coisa onde vamos hoje à noite ‑ disse Avery ‑ tem a ver com os Serviços Florestais ou a conservação da Natureza ou com quê?

‑ As duas coisas. ‑ Turner inclinou‑se novamente para a frente. ‑ Depois do simpósio que houve na quarta‑feira, todos nós concordámos que isto seria boa ideia. Conservação da Natureza e Serviços Florestais do Governo, compreendes? Juntarem‑se socialmente, cooperação e tudo o mais.

‑ E o encontro de quarta‑feira? ‑ disse Jean. ‑ Não tinha a ver essencialmente com leopardos? Isto é, não estavam a apertar contigo?

‑ Não, eu tinha que ler apenas um artigo. ‑ Depois, acrescentou: ‑ Na realidade, esteve mais animado do que aquilo que eu teria gostado, depois de aqueles dois guardas‑florestais terem sido atacados.

‑ Como é que eles estão? ‑ perguntou a rapariga.

‑ Barnard está ainda no hospital. As feridas provocadas pelas garras nas costas eram muito profundas. Mas Dick Barker ficou simplesmente com algumas escoriaçÕes no braço. Teve sorte. Aliás ambos tiveram.

‑ Eles sabem da armadilha? ‑ perguntou Jean. ‑ Quero dizer sabem que foi posta por John?

‑ Eles sabem que foi um ferimento provocado por uma armadilha ‑ disse Turner ‑ e sabem do local, mas o assunto não irá mais além. Na realidade, a lei é pouco precisa no que se refere à protecção do gado ou da própria vida humana em relação aos animais selvagens. Mas, a partir de agora, as armadilhas com espingarda não serão bem‑vindas e, também a partir de agora, os leopardos serão animais protegidos, pelo menos nesta região.

‑ Bom, tenho a certeza de que estás contente com isso ‑ disse Jean. ‑ Eu estou.

‑ Sim, estou contente. E fico feliz por também estares. Contudo, esta questão irá provocar algumas dores de cabeça aos funcionários do Departamento de Protecção da Natureza. Eu próprio também irei ter alguns problemas.


‑ Tal como nós, fazendeiros e criadores de gado, iremos ter problemas ‑ disse John Avery de forma petulante. ‑ Nós, Kampmuller e todos os outros.

Clifford Turner suspirou no escuro. Iria ser uma noite longa. Deixou passar algum tempo para dissipar qualquer possível desentendimento. A seguir, disse delicadamente:

‑ O teu gado, provavelmente, não irá ter problemas, John. Esta área não está propriamente submersa em leopardos, sabes. ‑ Esteve quase para dizer que, na sua opinião, os leopardos apenas matam gado desde que não tenham mais nada para comer. Contudo, reconsiderou.

Desejava que o leopardo tivesse ficado escondido nas montanhas ou nos vales daquela zona selvagem e pouco populosa, como poderia facilmente ter sucedido. De um momento para o outro, os leopardos tinham passado a ser uma questão política local. Japie Kampmuller, que era bastante influente tanto a nível político como da igreja dirigia um grupo que se opunha à protecção ao leopardo. O leopardo negro tinha polarizado a opinião pública a um ponto que parecia desproporcionado face ao perigo que realmente se corria.

Estacionaram o carro atrás de uma fila de outros carros e desceram por uma estrada lamacenta em direcção a uma casa de campo que se encontrava situada num promontório coberto de erva sobranceiro a uma longa curva de um vale na floresta. Jean agarrava‑se ao braço do irmão ao saltar as poças de lama, levantando com a mão a saia cor de ferrugem que lhe dava pelo tornozelo. Tinha vestido um casaco cintado de cor verde‑escura e um lenço de seda, também verde, a cobrir‑lhe o longo cabelo negro.

Fora de casa, encontravam‑se reunidas quase cem pessoas. De um modo geral, Jean Mannion atraía as atençÕes por onde quer que passasse, e neste grupo de pessoas ela representava um tipo de sofisticação que parecia agradar a todos.

Turner ficou de pé, num canto, e ia‑a observando por cima do seu copo de vinho. Sempre que sorria, os olhos dela pareciam cintilar e adquiriam uma cor mais escura, e ele achava‑a muito bonita. Fazendo um esforço, desviou o olhar e tentou ligar outras caras aos seus nomes. Um estrado de madeira tinha sido colocado sobre a erva, sobranceiro à própria floresta. Aí em cima, estava a cavaquear um pequeno grupo de funcionários que pareciam gozar acima de tudo da proximidade do ministro. Turner sabia que quatro deles pertenciam aos departamentos de conservação das espécies e das florestas, enquanto um ou dois de entre eles apenas os conhecia de vista.

Quando a noite chegou e as luzes se acenderam, acentuando o completo isolamento da casa, no meio da floresta, a multidão juntou‑se mais, os bancos de madeira encheram‑se e caiu um silêncio de expectativa.

O director do Serviço Regional para os Assuntos Florestais começou a falar, primeiro em africânder e depois em inglês. Seguiu‑se‑lhe o ministro, em africânder, durante um bom quarto de hora. Turner observou, agradecido, que o ministro nem sequer fizera referência aos leopardos. Virou a cabeça e viu Dick Barker lá atrás, debaixo de um toldo, com o braço lesado envolto em ligaduras e preso ao peito com uma braçadeira. Seguiram‑se outros três oradores; contudo, os seus discursos foram, graças a Deus, curtos, e em breve as pessoas puderam voltar a encher os copos e começar a servir‑se do bufete.


Turner caminhou na direcção de Barker, que estava a falar com Japie Kampmuller. Pretendia que Barker o informasse mais detalhadamente sobre o ataque do leopardo e queria igualmente confirmar a previsível reacção de Kampmuller. Apesar de possuírem pontos de vista diametralmente opostos em relação à maior parte dos assuntos, Turner gostava de Japie Kampmuller e achava graça às suas piadas.

‑ Olá, Clifford ‑ gritou Kampmuller, lançando pesadamente o braço por cima dos ombros de Turner. ‑ Estás a ver o que é que o teu gato fez desta vez, hen? ‑ disse, inclinando a cabeça para Barker.

‑ Trabalho mal feito ‑ disse Turner, sorrindo para Barker. ‑ Lá terei que recomeçar o treino do animal. Falhou completamente a jugular.

Kampmuller começou com uma pieira, rindo depois com tanta força que acabou por ter um ataque de tosse. Turner esboçou para Dick Barker um sorriso desmaiado e como que a pedir desculpas, sentindo‑se aliviado quando viu que a expressão ligeiramente chocada tinha desaparecido do semblante do outro.

Kampmuller, recomposto do ataque de tosse, limpou os olhos a um lenço.

‑ Dick diz que o animal negro os atacou. Alguém podia ter morrido quando isso aconteceu.

‑ O leopardo estava gravemente ferido ‑ disse Turner. ‑ E tu sabes como pode ser perigoso um leopardo ferido. Dick e os outros apenas tiveram pouca sorte por se encontrarem no seu caminho. Em qualquer outra situação, ele ter‑se‑ia apercebido das vozes deles e ido embora.

‑ Mas quando tu o viste ‑ persistiu Kampmuller ‑, não é verdade que ele quase apanhou John Avery?

‑ Nós seguíamos um rasto de sangue. Isso é pedir problemas.

‑ Como é que sabes que ele não estava à vossa espera? ‑ perguntou Kampmuller.

Turner riu:

‑ à espera de quê? De nos comer, não?

‑ Pode ser ‑ disse Kampmuller, completamente sério. ‑ Pode ser um devorador de homens.

‑ Um devorador de homens? ‑ repetiu Turner, incrédulo, pois de facto ele nem sequer tinha considerado essa hipótese.

‑ Sabes, já trabalhei na Zâmbia ‑ continuou Kampmuller ‑, e uma vez um leopardo matou catorze pessoas num ano antes de ser abatido.

Turner disse:

‑ Ouve, eu não discuto o facto de que existirão leopardos que atacam o homem, mas porquê aqui de repente? Quero dizer, não há justificação para isso.

‑ Não desapareceram já pessoas na floresta? ‑ disse Kampmuller, levantando os sobrolhos. ‑ E esse bicho negro tem um comportamento estranho. E tu próprio disseste que ele é muito grande.

‑ Ele é enorme ‑ disse Barker com uma veemência surpreendente. ‑ E digo‑lhes que, quando ele se atirou a nós, vinha para matar. Podia‑se ler isso nos seus olhos.

Kampmuller pousou a sua grande mão sobre os ombros de Turner.

‑ Protegido ou não, Clifford ‑ disse ele, abanando lentamente a cabeça ‑, se essa coisa vier até à minha fazenda e eu conseguir alvejá‑la...


Deixou a frase a meio, e um indivíduo alto e magro aproximou‑se deles e cumprimentou Turner. Usava óculos com aros metálicos sobre um nariz anguloso e o cabelo, ligeiramente grisalho, parecia crescer desordenadamente em vários ângulos à volta da cabeça. Turner apresentou‑o como o Doutor Williams, da Cidade do Cabo. Williams cumprimentou Kampmuller, sorrindo depois para Turner.

‑ O seu leopardo negro adquiriu já grande fama ‑ disse Williams, falando lentamente e pronunciando cada palavra de forma clara e pedante. ‑ Uma visão invulgarmente bem documentada, diria eu. ‑ Olhou para Barker. ‑ O seu braço. Você foi um dos do grupo que foi atacado. Então, deve ter visto bem o animal.

Barker manteve‑se em silêncio durante tanto tempo que Turner se sentiu forçado a dar‑lhe uma deixa.

‑ O Doutor Williams é zoólogo, Dick, e os leopardos negros não são vulgares nesta parte do Mundo ‑ Ele sabia que Williams queria encontrar uma testemunha ocular, uma confirmação científica.

Timidamente, Barker esboçou um sorriso largo.

‑ Eu vi o animal realmente muito bem, doutor. Ele quase que passou por cima de mim.

‑ Deve ter apanhado um grande susto ‑ disse o indivíduo alto solicitamente. ‑ Que é que o espantou mais no animal?

‑ Bem, foram os seus olhos, sabe, e os dentes, pois tinha a boca aberta ‑ acrescentou, pouco convincente.

Turner escondeu um tremor de divertimento. O guarda‑florestal tinha ficado tão chocado quando vira o leopardo que a verdadeira cor do animal parecia ser uma coisa de somenos importância.

‑ E a cauda? ‑ disse Barker.

‑ A cauda? ‑ Williams inclinou um pouco a cabeça. ‑ Sim, senhor, a cauda era comprida, sabe, e bateu‑me na cara quando o animal passou. Isso foi o pior, porque eu não senti as garras no meu braço. Foi aquela coisa como uma cobra a bater‑me na cara. Exactamente como uma grande cobra preta.

‑ A cauda era preta, diz você?

‑ Todo ele era negro como o carvão, mas brilhante.

Williams esfregou o queixo.

‑ Muito invulgar aqui, tão a sul. ‑ Olhou para o vale escuro lá em baixo. ‑ Gostava de tê‑lo visto. Ele deve ser magnífico. Clifford, vai tentar fotografá‑lo?

Turner assentiu.

‑ Mudei o meu equipamento para outro sítio, mas as probabilidades são escassas.

‑ Eu sei ‑ disse Williams. ‑ Bem, vou tentar encontrar mais um copo deste excelente vinho.

Clifford Turner andou de grupo em grupo, não encontrando nada que o retivesse. Quando novamente viu Jean, fixou o olhar nela, por um momento surpreendido, como se nunca a tivesse visto. A luz do candeeiro batia‑lhe suavemente no rosto, deixando o pescoço e o queixo numa quase total obscuridade. A mão dele tremeu ao acender um cigarro. Enquanto o fósforo ainda estava aceso, ela olhou para cima e depois directamente para ele. Acenou‑lhe e ele disse‑lhe adeus com a mão aberta, movendo‑a lentamente antes de se virar e afastar‑se.


 

O LEOPARDO negro deixou a mãe e a ninhada apenas quando ela lhe deu a entender que ele estava a comer mais do que aquilo que conseguia caçar, pelo que já não era bem‑vinda a presença dele ali. Desde aí, chovera durante três dias, um aguaceiro constante e sibilante, e ele não tinha comido nada para além de escaravelhos e lagartos. Para matar rhebok ou babuínos nesta zona aberta e acidentada, necessitava daquela ponta de velocidade mal depois de uma perseguição, e a pata traseira deixara‑o ficar mal três vezes seguidas. Agora, o coto começara a sangrar novamente. Um rasto de gotas de sangue seguia‑o ao longo da velha estrada sulcada pelas carroças; gota a gota, ia‑o seguindo, como a sombra da morte atrás dele, mas ainda não tão próxima que lhe tirasse o brilho dos olhos verde‑esmeralda.

No mais escuro da noite, passou pelos cheiros da fazenda de Kampmuller, com todos os seus sentidos atentos ao ladrar dos cães, que arrastavam as correntes, no pequeno lugarejo de casas improvisadas onde viviam os trabalhadores de cor. Os cães estavam a dizer‑lhe que eram seres assustados, e não uma matilha de caça, e ele andou lentamente em círculo, na direcção deles, até que os contornos dos telhados e das chaminés se tornaram claramente visíveis à luz das estrelas. Deslizou, sem fazer qualquer barulho, sobre a terra batida e nua em frente da primeira casa, e o cão preso com uma corrente ao poste do alpendre começou a ladrar muito alto e freneticamente.

Matou o cão com um só movimento rápido, com tanta facilidade como um gato doméstico a matar um rato a um canto. Depois, baixou‑se e agarrou o animal com cuidado nas mandíbulas e virou‑se no escuro. à medida que a sua velocidade aumentava, ouvia‑se o barulho da corrente a arrastar pelo chão até que esticou, arrancando‑lhe o cão da boca com um sacão brusco. Momentaneamente desequilibrado, o leopardo voltou para trás para recuperar a presa, mas um novo barulho vinha agora da casa e com ele uma luz amarela e brilhante e o cheiro das criaturas altas de duas pernas, cujas marcas estavam em todas as coisas perigosas. Momentos depois, foi envolvido numa vaga de cheiro proveniente da porta aberta da casa. A sua cabeça tornou‑se uma máscara de medo e tensão, com os dentes à mostra à medida que a figura ganhava vulto à sua frente. Agindo apenas por instinto, o leopardo ergueu‑se do lago de escuridão em que estava imerso e, com uma respiração sibilante, saltou na direcção da cabeça da criatura.

Duas patas cravaram‑se nos ombros do homem, as enormes garras enterradas até ao fim pelo enorme impulso, e quase simultaneamente as mandíbulas hiantes fecharam‑se na garganta do homem. O pescoço partiu‑se. à volta deles, os cães ladravam ainda. O leopardo soltou lentamente as mandíbulas do pescoço quente e sem pêlos quando sentiu que a presa estava morta. Depois, agarrando o ombro com os dentes, começou a arrastar o seu fardo na direcção do vale situado mais abaixo, na floresta.


à medida que as densas sombras da floresta cerrada se fechavam atrás dele, o leopardo ouviu sons lá atrás, mas aumentando de intensidade, e continuou a andar. Apesar da fome que sentia, parou apenas quando a primeira luz do crepúsculo despontou no céu aberto por entre as copas das árvores. Com as garras e os dentes, arrancou a roupa do corpo do homem, e então comeu. Quando o dia ia a meio, parou, ficando a descansar numa saliência sombria da rocha a alguma distância dali, e quando a noite caiu de novo, voltou ao seu festim. Na manhã seguinte, quando os louries começaram a cantar de novo uns para os outros, sentiu‑se por fim saciado. Desceu a seguir para o rio e bebeu, subindo depois pelos penhascos rochosos do outro lado do vale. Ali, sob a bruma do meio‑dia, em cima da rocha aquecida e com o cheiro das pequenas flores de jasmim à sua volta, adormeceu.

Foi acordado ao fim da tarde por um tilintar de metal na rocha e, quase simultaneamente, as suas pupilas fendidas detectaram movimentos inusitados nos penhascos do outro lado, a quinhentos metros de distância.

Clifford Turner sabia que não havia hipóteses do chamado "grupo de caça" sequer avistar o leopardo, mas aquele era o tipo de atitude que tinha de se tomar imediatamente. Não havia qualquer dúvida de que se tratava de um leopardo, e as marcas do arrastamento e o rasto de sangue tinham sido fáceis de seguir até ao local onde se encontrava o corpo mutilado.

Tudo o que tinha acontecido causara um choque e tivera um impacto desagradável na vida pacata e ordeira daquela região. Do grupo de sete pessoas que se encontravam naquele momento na cordilheira rochosa onde Turner e Avery tinham deparado com o leopardo negro, o único que estava realmente excitado era o repórter do jornal local. Os dois polícias, transpirando sob a torreira do sol, levavam os seus revólveres de serviço nos coldres. Das outras armas que o grupo possuía, Turner tinha mais confiança na pistola Walther de 9 milímetros do sargento Botha, no caso pouco provável de as coisas virem a complicar‑se.

Martin Botha era um homem de feiçÕes muito marcadas e de grande força física que Turner conhecia bem e com quem simpatizava. Tinha o cabelo grisalho, mas as fartas sobrancelhas pretas pareciam acentuar‑lhe a vitalidade e a determinação, que eram há muito o flagelo dos pequenos ladrÕes, vendedores de droga e maridos que batiam nas mulheres daquela região. Botha era respeitado e temido por todos. Fora das horas de serviço, era um homem triste e sensível que se dedicava à plantação de orquídeas; era também um atirador mortífero com a sua pistola.

Kampmuller levava uma carabina .375 e usava um chapéu de aba larga com uma faixa de pele de leopardo. O chapéu aborrecia Turner, pois achava‑o arrogante e agressivo. Kampmuller já ultrapassara a fase inicial da óbvia satisfação ao ver confirmadas as suas mórbidas suspeitas. Agora, estava principalmente transtornado pela morte de Charles Witbooi, que era um empregado muito antigo e um bom condutor de tractores.


John Avery tinha na cabeça o seu boné de caça e levava a dispendiosa espingarda de caça inglesa de Simon Mannion. Afogueado devido ao calor, representava o papel do despreocupado mas experiente caçador de leopardos. Por fim, vinha Hendrik Witbooi, irmão do homem que tinha sido morto. Dez minutos depois de o leopardo ter desaparecido no escuro com a sua presa, Hendrik chegara ao local, confortando a cunhada em histeria, que, ao procurar o marido, encontrara apenas o cão morto e a mancha de sangue no chão. Hendrik Witbooi tinha percorrido o caminho escuro que conduzia à fazenda para alertar Kampmuller, o qual viera na sua camioneta. Só então, à luz branca dos faróis, é que viram o rasto de sangue deixado pelo leopardo.

Agora, era domingo. Turner tinha observado o rasto e aquela pegada que se distinguia das outras por não ter dedos, e concluíra que o leopardo havia perdido de facto quase toda a pata na armadilha.

Depois de se certificar de que o leopardo não se encontrava nas redondezas, o grupo passou o resto da tarde ultimando a desagradável tarefa de recuperar o corpo e de o entregar aos familiares e amigos angustiados que viviam no pequeno lugarejo. Depois, o cadáver foi levado numa ambulância.

Quando o grupo voltou para o local onde o cadáver tinha sido encontrado, Turner olhou para cima, para as árvores, e disse:

‑ Só há uma única coisa a fazer num caso destes, sabes? É esperar esta noite pelo leopardo em cima de uma destas árvores. Vou buscar aquele cão que ele matou e, se ele voltar, o cão mantê‑lo‑á ocupado durante algum tempo.

Botha coçou a cabeça e puxou de uma cachimbada.

‑ Caramba, Clifford ‑ disse ele ‑, isso é um diabo de um trabalho. Não tenho bem a certeza.

Do que ele não tinha bem a certeza era de ficar sentado em cima de uma árvore a noite inteira, com um leopardo devorador de homens nas redondezas.

‑ Não te preocupes, Martin ‑ disse Turner. ‑ Pedirei a Paul Stander para ficar comigo. Creio que cabe ao departamento dele acompanhar‑nos nisto.

Jean Mannion, incumbida de procurar Paul Stander, o encarregado do Departamento de Conservação, tinha conseguido por fim encontrá‑lo, depois de muitas tentativas, em casa de uns amigos onde tinha passado o seu dia de descanso. Turner ficou muito aliviado quando viu Jean aparecer com o funcionário de uniforme. O alívio do sargento Botha foi tão grande como o de Clifford, ainda que por outras razÕes. Botha era um bom polícia e um bom amigo e, embora perseguir um leopardo devorador de homens não fizesse parte das suas funçÕes, não teria facilmente deixado Clifford a fazer esse trabalho sozinho. Agora que Stander estava ali, tudo parecia estar sob controle.

John Avery e Japie Kampmuller ofereceram‑se para fazer companhia a Turner e a Stander durante a noite de vigília em cima de uma árvore, mas Turner foi peremptório e explicou que quatro homens faziam demasiado barulho. De qualquer modo, Avery e Kampmuller contribuíram muito, ajudando Turner e Stander a construírem uma plataforma rudimentar em cima de uma árvore, e Jean voltou à fazenda para ir buscar alguns utensílios, como lanternas, fita adesiva e pilhas novas, para além de um termo com café, algumas sanduíches e um frasco de brandy.

‑ Toma cuidado, Clifford ‑ disse ela. ‑ Vem tomar o pequeno‑almoço lá a casa, amanhã de manhã.

Por fim, Turner e Stander ficaram sozinhos. Conforme tinham combinado, trabalharam em silêncio, comunicando por sinais.


Turner colou um pedaço de fita ao cano da sua espingarda e prendeu uma pequena lanterna cilíndrica por baixo. Stander amarrou uma outra lanterna a um ramo superior da árvore. Depois de vários ajustamentos minuciosos, conseguiram que a luz incidisse mesmo sobre o local onde estava o cão morto. Pouco depois, ficaram sem mais nada que fazer, excepto mudar ocasionalmente de posição na plataforma e esperar até conseguirem encontrar uma posição suficientemente cómoda para passar a noite.

As sombras da noite fecharam‑se à sua volta e não corria a mais pequena aragem que fizesse mexer uma única folha. A carabina .308 de Stander estava engatilhada, tal como a espingarda de Clifford Turner, pois mesmo o leve ruído de uma patilha de segurança seria demasiado. Turner começou a respirar pela boca, pois isto parecia silenciar as rápidas batidas do seu coração.

O chamamento repentino de um golungo causou um vácuo de dez segundos de silêncio à sua volta. Depois, um a um, recomeçaram a surgir os pequenos ruídos que lhes fizeram tomar consciência de quanto rastejar e estalidos e pequenos sons havia habitualmente. A respiração dos dois homens acelerou‑se, sendo a de Stander quase imperceptível. Turner sentiu o dedo tremer junto da guarda do gatilho, à medida que os minutos iam passando lentamente no mostrador luminoso do seu relógio. A tensão provocada pela insuportável excitação em que se encontravam não podia ser suportada para além do quarto de hora em que se mantiveram sentados como estátuas em cima da árvore. De facto, isto constituía para ambos uma experiência completamente nova, e ainda lhes era um pouco difícil acreditar que estivessem a lidar com algo mais do que um animal errante que morreria numa explosão de luz e de som ao tocar o isco.

à medida que os seus nervos tensos se relaxavam, Turner voltou a rever em pensamento os factos e as probabilidades. O leopardo tinha provavelmente assassinado o homem como resultado de um reflexo de medo acidental. Tudo parecia indicar que o que tinha acontecido seria um facto isolado. Por outro lado, podia também dar‑se o caso de o leopardo, tendo descoberto um outro tipo de vítima que era fácil de dominar, atacar de novo se tivesse oportunidade.

Turner olhou para cima. Naquela escuridão, mal conseguia distinguir o rosto de Paul Stander. De baixo, não vinha qualquer ruído, mas Turner sentia uma certa apreensão ao pensar na sinuosa criatura negra, com as orelhas para trás, a cabeça como a de uma serpente, deslocando‑se silenciosamente através da noite, pupilas dilatadas e as grandes patas com as garras escondidas. Como cientista, sabia que o leopardo negro se assemelhava em tudo aos animais malhados da sua espécie. Contudo, a ideia de um verdadeiro devorador de homens fazia‑lhe eriçar os pêlos nas costas das mãos ‑ um predador que matava homens e mulheres, preferindo‑os a qualquer outra vítima, tornando‑se consciente dos costumes do homem, consciente da sua incapacidade em se defender e consciente dos seus métodos de retaliação. Não tinha sido o devorador de Panar, no Norte da índia, que matara quatrocentas pessoas? E mais perto, na áfrica Setentrional, o leopardo de Chambeshi, que assassinara trinta e sete pessoas num ano?


Um imperceptível ruído de folhas secas pisadas chegou até eles, vindo de baixo e da esquerda. Os dois homens viraram‑se lentamente um para o outro, como que para confirmar terem‑no ouvido. Poderia ter sido provocado por um de uma multidão de animais mais pequenos e, além disso a noite mal tinha começado. Turner estava a pensar nisto quando Stander lançou um grito rouco e desconcertante, parecendo atirar‑se para trás e agarrando‑se ao mesmo tempo a um ramo, o que provocou um abanão violento na árvore e na plataforma. Da boca da sua carabina saiu uma língua de fogo ensurdecedora, e nesse momento já Turner tinha conseguido voltar‑se no lugar em que estava e dava de caras com o leopardo. Turner via apenas os olhos muito brilhantes e verdes e os dentes esbranquiçados. Sentiu também o hálito quente da respiração do leopardo, que tentava agora subir pela árvore, cravando uma das garras nas costas de Stander e puxando a outra para cima. Turner desferiu uma pancada para baixo com a coronha da espingarda, sentindo o impacto desta na cabeça do animal. Depois, ouviu um ruído de algo a rasgar‑se e Stander tombou para a frente, ao mesmo tempo que o leopardo desaparecia na escuridão com um barulho seco. De novo, reinou o silêncio.

Stander gritou:

‑ Meu Deus! ‑ Os dois homens levantaram‑se na plataforma, ficando de pé encostados ao tronco principal.

A lanterna e os canos da espingarda de Turner vasculharam o chão da floresta, iluminando os túneis de verdura. O leopardo tinha desaparecido e Turner virou‑se para Stander.

‑ Paul, estás bem?

‑ Meu Deus, Clifford, ele vinha atacar‑nos. O bicho é doido.

‑ Vira‑te, Paul, deixa‑me ver.

Stander apalpou as costas com a mão e virou‑se lentamente. A camisola grossa que tinha atada à cintura estava feita em tiras, tal como as costas da camisa; o cinto de cabedal estava cortado ao meio, caindo cada uma das pontas para seu lado, mas, para além disto, não havia qualquer outro vestígio do ataque.

‑ Não ficaste marcado, Paul. Não tens nada. Ele apanhou‑te pelo cinto, mas cuidado que ele pode voltar. ‑ Turner apontou novamente a luz para baixo, para a clareira, e disse: ‑ Não posso crer. Ele levou‑o. Levou o cão.

Em silêncio, olharam para o local. Não havia nada que pudessem fazer senão esperar que a manhã chegasse. Descer e voltar para o povoado estava fora de questão. Durante as três horas que se seguiram, entretiveram‑se a beber o brandy, a fumar e a conversar, esperando que as lanternas aguentassem acesas toda a noite. Já não eram caçadores, mas presas. A madrugada demorou a chegar.

Trocaram de posição na plataforma, ficando depois em silêncio. Durante um curto período em que dormitou um pouco e acordou com um sobressalto, Turner sonhou que Jean Mannion corria à sua frente chamando‑o. Mas ela era um espírito da escuridão, representava tudo o que havia de mais belo e inatingível e vestia apenas a pele do leopardo negro. Sorria com um ar trocista, segundo lhe parecia, e corria ligeira, dando largas passadas com o cabelo negro esvoaçando atrás de si.


 

OS JORNAIS levaram três semanas até se desinteressarem do tema do ataque do leopardo, e dos leopardos negros em geral, e fizeram‑no com uma certa relutância. Tinham conseguido recordar histórias antigas de pessoas que haviam desaparecido naquela zona sem terem deixado qualquer vestígio. Houve igualmente o caso de um telefonema de alguém muito nervoso que dizia ter encontrado um rasto. Turner foi investigá‑lo juntamente com o correspondente local do jornal e descobriu que não passava das pegadas de um grand danois que pertencia ao vizinho do repórter. Turner levou a sua aparelhagem fotográfica para uma zona do vale que ficava mesmo em frente às fazendas de Jean Mannion e de Kampmuller. Durante o tempo que as máquinas estiveram aí, fotografaram dois ginetes, um lince e um texugo. Jean ficou encantada com este mini‑recenseamento à vida animal, e ninguém mais se lembrou dos leopardos, excepto Turner e Stander.

Na noite de lua cheia seguinte, Turner deu a sua festa na gruta. Ele e os dois assistentes levaram toda a tarde a carregar copos, caixotes com comida e bebidas, candeeiros sobresselentes e lenha. Arrumaram a gruta o melhor que puderam, e Turner instalou o gira‑discos a pilhas que tinha pedido emprestado. O céu brilhante do entardecer confirmava que iria estar uma daquelas noites mornas e calmas que muitas vezes provocavam nele uma grande nostalgia por não ter ninguém com quem partilhar toda esta beleza: o brilho da praia e das ondas ao rebentarem, o tom prateado da rebentação em retirada, varrendo a areia macia.

Mesmo depois de todos os convidados terem chegado, havia ainda muito espaço na gruta. A luz das velas e dos candeeiros de petróleo, cuidadosamente escondidos, espalhava um brilho suave sobre as paredes de rocha e o alto tecto abobadado, criando a ilusão de um grande recinto medieval onde ardia uma fogueira bruxuleante. Os copos de vinho cintilavam como pirilampos, reflectindo um brilho avermelhado. A maior parte dos convidados vestia roupa de praia.

Lá em baixo, junto ao mar havia um outro tipo de iluminação, pois cada onda trazia um brilho de fosforescência esverdeada que aumentava e diminuía em explosÕes de luz.

Passado pouco tempo, a festa desceu à praia. A água estava suave e morna. Turner viu que todos os seus convidados se encontravam a tomar banho, excepto Kampmuller e o guarda‑florestal Mike Prewalski, duas silhuetas junto à fogueira na praia. Paul Stander e John Avery saltavam alto nas ondas em competição por uma garrafa de vinho; perto, podia ouvir uma rapariga a rir. Turner, por ele, contentava‑se em passear na orla da praia e pensar em Jean, que andava por ali algures. Seguiu praia abaixo, chapinhando no rodo pio de som e espuma, procurando‑a, como vinha fazendo inconscientemente há muito tempo.


Viu‑a junto das rochas escuras e cobertas de mexilhÕes de uma pequena enseada, com o cabelo molhado e negro como a pele de uma foca. Ao chamá‑la, ela virou‑se e pôs‑se lentamente de pé, num gesto ao mesmo tempo de receio e boas‑vindas. Subitamente, ele viu, contra uma explosão de fosforescência verde, a perfeita simetria do seu corpo. Ele avançou e ela permaneceu em pé, confiante, virada para ele. Turner sentiu‑se envolvido numa onda de alegria extraordinária que parecia ser o eco daquela noite maravilhosa, num crescendo de sons do mar. Os dois ficaram frente a frente, tocando‑se quase em jeito de aceitação. Ela virou o rosto para cima e ele beijou‑a nos lábios, saboreando o sal, morangos e a doce respiração dela; depois, levantou as mãos, encontrando as dela a meio caminho e continuando, como as dela, para tocar em ombros quentes e apertar e acariciar.

Ela foi‑se desprendendo, mas muito devagar, não o querendo ferir.

‑ Um dia ‑ disse ele ‑, promete‑me, se puderes.

‑ Talvez um dia ‑ murmurou ela. ‑ Agora, vou‑me embora. Deixa‑me ir primeiro. ‑ Soltou‑se do abraço e mergulhou na água e no escuro, e a espuma envolveu‑a.

Turner correu para diante, levantando um leque branco de água com os joelhos, e atirou‑se a um remoinho de espuma, de modo que o seu grito de contentamento se desfez em bolhas de ar.


 

QUANDO o leopardo voltou para ir buscar os restos do animal de duas patas que havia caçado, ficou desconfiado ao ver que as coisas não se encontravam como as tinha deixado. A sua refeição parecia que, de algum modo, havia sido transportada para os ramos de uma árvore, sendo substituída pelo cão que estava no chão. Ao subir para a árvore, sem as garras da pata traseira ferida, perdera o equilíbrio quando outra criatura de duas pernas o golpeara na cabeça. A explosão ensurdecedora e os raios de luz através das copas das árvores acima da sua cabeça coadunavam‑se com o barulho de vozes que começara a associar com os animais de duas pernas. Na sua retirada através da clareira, apanhara o cão e alimentara‑se a menos de cem metros de distância daquelas criaturas. No seu subconsciente, concedia‑lhes agora um lugar privilegiado dentro da sua alimentação preferida, suplantando os macacos, mas ao mesmo tempo, instintivamente, registou que não voltaria a atacar senão um de cada vez.

Caminhou para leste, aproveitando as horas que faltavam para o dia nascer, e passou o dia seguinte a dormir debaixo de uma saliência das rochas, no topo de um desfiladeiro que dava para um rio. Passados dois dias e duas noites, o leopardo começou a sentir‑se irrequieto com a fome. Desceu pelo desfiladeiro, caminhando em direcção à planície onde se encontravam as fazendas e plantaçÕes, procurando os caminhos utilizados pelas suas presas.

Com o decorrer do tempo, com o Verão a chegar ao fim e todas as praias e estradas fervilhantes de actividade, o leopardo matou mais duas pessoas. Uma delas, numa zona isolada, passou despercebida. A outra foi um velho pastor que vivia sozinho e que só começou a ser procurado dez dias depois de ter sido arrastado na escuridão. O dono da fazenda deu pela falta do velho a uma sexta‑feira quando não o viu aparecer no armazém para receber o salário e comprar mantimentos. Na segunda‑feira seguinte, à tarde, o fazendeiro subiu para a sua carrinha e foi indagar junto dos seus outros trabalhadores, mas ninguém sabia onde o velhote se encontrava. O fazendeiro gostava do velho pastor e, acreditando que talvez tivesse morrido algures no sopé da montanha ou estivesse caído e sem se poder mexer entre as rochas, fez uma busca naquela área com cinco homens até que por fim o encontrou. Chocado e entristecido ao ver os restos dilacerados, telefonou à Polícia.

Durante quinhentos metros, o leopardo seguiu o pequeno grupo de crianças de cor, parando por vezes para cheirar as pegadas deixadas pelos seus pezinhos descalços e uma vez para se sentar, observando‑as a atirarem pedras a um poste. Aquilo que o impelia a seguir aquele pequeno grupo de criaturas menores que o normal, que cantavam e se divertiam, era mais a curiosidade do que a fome. Foi atrás delas até um espaço aberto e poeirento, retrocedendo apenas quando uma janela reflectiu o sol avermelhado do fim da tarde, batendo‑lhe nos olhos, e um cão começou a ladrar. Nessa noite, permaneceu escondido nas redondezas e de manhã, cedo, voltou para o caminho de terra e ficou aí deitado, com o focinho sobre as patas, debaixo de uma oliveira‑brava. De manhã, foram as crianças as primeiras a passar por aquele caminho, como de costume, pois a escola começava muito cedo.


Desta vez, as crianças caminhavam mais sossegadas, ainda meio a dormir, e a última, um rapazinho, tinha ficado para trás, arrastando os pés descalços na areia. O leopardo havia dado pelos miúdos muito antes de eles se terem aproximado dele e, quando os primeiros cinco passaram em bando, encontrava‑se agachado, com os músculos tensos, a cauda esticada sobre o chão e os olhos muito verdes a brilharem de expectativa. O rapazinho não só não ouviu o barulho das patas abertas sobre a areia, como não sentiu o golpe certeiro que o matou, mas o grupo de crianças virou‑se para trás quando uma menina gritou e viu o enorme animal negro ali no caminho com o menino por baixo. A miúda tinha‑se virado para trás para ralhar com o irmão e dizer‑lhe para se apressar e vira o vulto, uma sombra negra, saltar e golpear com uma pata de garras brancas e depois ficar imóvel, levantando a cabeça e fixando nela aqueles olhos verdes.


 

AS CRIANÇAS correram para o pátio da escola, chorando e falando em altos gritos sobre a Swart ding (uma coisa negra). O professor levantou‑se, zangado com o barulho, e chamou‑os, bem como ao resto da classe, para dentro da sala de aula.

‑ Stilte ‑ gritou o professor em africânder. ‑ Estejam calados. Que é que vocês têm? ‑ Mas logo a seguir compreendeu que algo de muito grave tinha acontecido e começou a fazer perguntas às crianças, que não paravam de chorar e gritar.

O grupo das cinco crianças levou o professor de volta ao caminho de terra, mas não se atreveram a ir até ao local onde o rapazinho tinha sido atacado. Quando o professor se aproximou do sítio, os miúdos começaram a gritar e a gesticular. Não havia qualquer sinal do rapazinho, mas logo a seguir o professor viu a poça de sangue e o rasto. Começou a sentir um nó de apreensão no estômago.

‑ Uma coisa negra? ‑ perguntou às crianças. ‑ Um babuíno, um cão?

‑ Parecia um grande gato preto ‑ foi a resposta.

 

Desde aquela noite em que o leopardo negro tinha morto o homem da fazenda de Kampmuller, Turner interrompera o seu trabalho de investigação. Chegara à conclusão de que era o momento de esquecer a estranha criatura e retirar as máquinas do vale onde se encontravam montadas, próximo da casa de Jean, mas era difícil; ele via Jean bastantes vezes, e apesar de raramente poderem falar a sós, sem o irmão dela, a sua proximidade, o perfume que ela usava e o som da sua voz pareciam representar agora para Turner a única coisa de valor e de que não queria prescindir. Turner sabia que ela não era o tipo de mulher para aceitar uma relação superficial, pois sabia quanto ela tinha amado Simon. As coisas haviam‑se tornado confusas de repente e sem sentido, e até mesmo o seu relatório mensal tinha‑se tornado um sacrifício.

Foi numa quinta‑feira à tarde que recebeu as notícias dos últimos ataques do leopardo. Tinha ido até à Estação Florestal de Rooikrantz para recolher a correspondência, e quando chegou, Mike e Polly Prewalski saíram do escritório ao seu encontro.

‑ O leopardo matou um rapazinho mestiço ‑ disse Polly. ‑ E também um velho, segundo dizem.

‑ Não! ‑ disse Turner, saindo da carrinha. ‑ Quando é que ouviram isso?

‑ Telefonaram da Polícia e Paul Stander também telefonou. O miúdo ia para a escola de Bosnek quando o bicho atacou.

‑ O velho era pastor em Engelsmansplaas ‑ disse Mike. ‑ Deram pela falta dele passada mais de uma semana e quando o encontraram pouco restava dele, segundo dizem.

‑ E sobre o miúdo? Descobriram alguma coisa?

‑ Ainda não descobriram nada. Foi só esta manhã.

Turner esfregou o queixo, enquanto um silêncio súbito se abatia sobre eles e o casal ficava a olhá‑lo. Pensou se a pontada gelada de medo que sentia seria visível nos seus olhos.

‑ Tens que telefonar ao sargento Botha ‑ disse Polly. ‑ E também a Paul Stander. Ele deixou um recado e um número de telefone.


Mike curvou‑se ligeiramente e fez sinal a Turner para entrar no escritório. Pequeno e magro, com uma cara velha e triste, mas em que transparecia uma certa serenidade, Mike, que era polaco, tinha frequentemente acessos destes que o levavam a ser curiosamente formal. Tratava Turner por doutor e dava a entender que em tempos levara uma vida mais grandiosa e nobre. Dava a sensação de que apenas estava à espera de ser chamado para novas emergências que fariam sobressair todas as suas capacidades.

Cerimoniosamente, ofereceu a Turner a sua cadeira do escritório e apontou para o telefone. Turner ligou para Martin Botha, mas o sargento não estava. Depois, telefonou para a Estação Florestal de Bosnek. Paul Stander não se encontrava, mas tinha deixado um recado indicando que Turner o poderia encontrar na Escola Primária para Mestiços de Bosnek.

Turner pousou o auscultador.

‑ Obrigado, Mike. A propósito, este leopardo tem um rasto diferente: a pata traseira direita está gravemente ferida ou talvez até nem tenha pata. Pelo menos, faltam alguns dedos e em terreno lamacento isso deve ser bem visível.

‑ Pode contar comigo. Tenho uma caçadeira e vou montar uma armadilha.

Polly disse repentinamente:

‑ Eh, esse bicho não pode vir para aqui. Vivem aqui muitas pessoas.

Turner sorriu, pois o tom agressivo da voz dela indicava que na sua ideia o leopardo era uma parcela das tolices dele acerca da vida selvagem que se tinha descontrolado e que poderia agora vir a incomodá‑la pessoalmente. Depois, o sorriso desvaneceu‑se‑lhe do rosto quando de repente começou a pensar em Jean e na lagoa da floresta onde ela gostava de nadar. Não se lembrava se a tinha ou não avisado para não voltar àquele sítio. Inquieto, levantou‑se repentinamente e foi‑se embora.

Quando Turner chegou à escola de Bosnek, Paul Stander, o sargento Botha e um polícia de cor estavam reunidos junto ao jipe de Stander. A carrinha da Polícia estava estacionada próximo do edifício da escola, rodeada por adultos e crianças de diversas idades, e no caminho mais abaixo estava um homem junto a um grande tronco de pinheiro. Turner saudou os homens e acendeu um cigarro.

‑ Pensámos que seria melhor esperar por ti, Clifford ‑ disse Paul Stander. ‑ O professor, Senhor Abrahams, que está ali, tem estado a olhar pelo rasto. Mesmo assim, quando aqui cheguei já várias pessoas haviam passado por cima.

Turner encostou‑se à porta do jipe.

‑ Então, Martin, quais são as instruçÕes? Que é que fazemos a seguir?

Consciente ou inconscientemente, Turner estava a pôr‑se no papel de assistente não‑oficial, e Botha, que não estava bem preparado para isso, coçou a nuca e franziu o sobrolho.

‑ Parece certo que foi o leopardo negro, pois todas as crianças o viram.

‑ É ele, sem dúvida, Clifford ‑ disse Stander. ‑ O rasto é claramente visível. Vamos dar uma olhadela?


Puseram‑se à volta da mancha de sangue acastanhada e em silêncio olharam vale abaixo. Dali de cima, o vale parecia um rio de arbustos correndo até à vasta floresta, mais abaixo. Lá muito ao longe, podiam ver a linha rígida do oceano.

‑ Tenho estado a pensar em trazer para aqui a matilha de cães dos Serviços Florestais ‑ disse Stander, algo meditativo. ‑ Esta pista estará fria quando aqui chegarem, mas é melhor do que nada. Dadas as circunstâncias, creio que poderei ficar com eles durante umas semanas.

‑ Preparado para o próximo ataque, queres tu dizer ‑ disse Turner.

‑ Mais ou menos isso.

Durante a semana que se seguiu, Turner transferiu‑se para a Estação Florestal de Bosnek. Tinham‑lhe cedido um escritório com telefone e uma cabana pertencente aos Serviços Florestais, a qual possuía três beliches, uma lareira e uma pequena cozinha e até água quente aquecida a gás. Depois da gruta, aquilo era um verdadeiro luxo.

A sua mudança para ali tinha sido promovida pelos seus superiores na Cidade do Cabo, que achavam que a vida na gruta não se coadunava com a boa imagem que devia ter o Departamento de Florestação. Num dos jornais da cidade, havia aparecido em destaque uma fotografia da gruta; o jornalista que fora enviado fizera um bom trabalho e o artigo tinha resultado numa vaga de interesse público no devorador de homens em particular e nos leopardos em geral. O leopardo negro havia chamado a atenção das pessoas para a questão da preservação da sua espécie num mundo hostil. Kampmuller fora igualmente entrevistado, e o tom das suas declaraçÕes era de indignação pelo facto de haver quem esbanjasse os dinheiros públicos para proteger criaturas tão perigosas. Infelizmente para ele, tinha também deixado subentender que o leopardo negro era perigoso simplesmente por ser negro.

O depoimento científico e equilibrado de Turner, que aparecia na mesma página acompanhado de fotografias da gruta, era, pelo contrário, uma obra‑prima de objectividade diplomática. Turner tinha‑se certificado de que o jornalista entendia todos os aspectos do problema e fornecera‑lhe, de forma clara e simples, uma sucessão de informaçÕes científicas, sempre acentuando o pendor ecológico e do ecossistema.

O primeiro a telefonar para Turner foi o próprio Kampmuller, encantado com o seu novo estatuto de celebridade e elogiando Turner pela mesma razão. A segunda chamada foi de Paul Stander para lhe dizer que os cães tinham chegado ‑ uma matilha de seis beagles cruzados com foxhounds que haviam tido muito sucesso na caça ao chacal e ao lince‑caracal em campo aberto. Céptico, Turner interrogava‑se sobre como é que se comportariam numa floresta, ao que Stander respondeu que também não fazia a menor ideia. A terceira chamada veio do próprio director dos Serviços Florestais, que lhe comunicou ser sua intenção fazer‑lhe uma visita dentro de pouco tempo.

‑ Raios partam esse leopardo ‑ murmurou Turner ao desligar o telefone.

Sentou‑se à secretária e começou a desenhar ao acaso no bloco‑notas. Desenhou um círculo de folhas à volta de um número de telefone que escrevera, transformando os dois zeros em canos de espingarda. Depois, fez um girassol a sair de um dos canos e um raio em ziguezague do outro. Desenhou uma moldura à volta do desenho e esboçou uma cabeça de leopardo quase perfeita, pintada a negro com a sua esferográfica. Por baixo da cabeça escreveu: "Jean, Jean, Jean, Jean, Jean."


Nos seus quase sessenta anos de vida, Mike Prewalski fora um caçador zeloso, mas pouco realizado, em várias partes do Mundo. Agora, como funcionário de uma reserva florestal, sublimava o seu instinto com um conhecimento dos rastos e da vida selvagem, por vezes visíveis em redor da estação florestal.

Tinha chovido muito durante a noite de sexta‑feira, mas parara na manhã seguinte, pouco depois de Mike e Polly terem tomado o pequeno‑almoço e arrancado no seu Volkswagen. Os pais de Polly haviam‑se fixado em Mossel Bay, uma cidade a cem quilómetros de distância ao longo da costa, e era aí que ele a tinha deixado. Ficara para almoçar, regressando depois sozinho a casa durante a tarde luminosa.

De volta à estação florestal quase deserta, seguiu pela avenida de carvalhos, estacionou o cano na garagem do anexo e começou a atravessar o cercado das mulas em direcção a uma fila de colmeias junto às primeiras árvores da floresta verde‑escura. Ao atravessar o bocado de terra negra onde as mulas se rolavam no chão, viu um rasto fresco de golungo. Calculou que fosse do grande macho que vira no início da semana, e estava prestes a continuar quando outro rasto, como se fosse de um cão corpulento, lhe chamou a atenção. As pegadas, apenas quatro, eram quase perfeitas: duas patas dianteiras intactas e duas traseiras, uma intacta, mas a outra com uma gana apenas visível e depois uma impressão indistinta. As pegadas eram bem do tamanho da palma da sua mão e Mike curvou‑se para observar de perto. As três impressÕes completas eram arredondadas, como se fossem de um gato, e tinham pouco mais de seis horas.

Mike virou‑se sobre a última pegada e, enquanto olhava fixamente, um pequeno músculo ao canto da boca começou a tremer. Sorriu e olhou para cima e depois lentamente à sua volta. Os seus olhos, muito azuis, pareceram dilatar‑se, tornando a sua cara mais arrapazada, ansiosa. As pegadas eram quase de certeza as do devorador de homens e ele viu o visitante como uma espécie de prémio ‑ algo que lhe traria crédito, acontecesse o que acontecesse. Ou telefonava a Turner, tornando‑se o portador de uma notícia importante, ou não dizia nada e actuava por conta própria.

Levantou‑se lentamente e roeu uma unha partida. A velha armadilha de gaiola ainda estava guardada no armazém onde tinha sido deixada depois de um projecto de investigação. Desmontada como estava, podiam facilmente transportar‑se as cinco partes que a constituíam e montá‑las onde se quisesse, unindo‑as com correntes. A sua cabeça não parava. Com a ajuda de dois homens, poderia ter a armadilha pronta antes do anoitecer. Pensou no Land‑Rover para transportá‑la; a sua espingarda e alguns cartuchos; um termo com café forte; sanduíches; a sua melhor lanterna e pilhas sobresselentes e um frasco de brandy. Tinha à mão aquilo de que necessitava. Se não fosse bem‑sucedido, daria a notícia do rasto no domingo de manhã cedo e nada de mal teria acontecido. Deu meia volta e caminhou em passo rápido na direcção das cabanas dos trabalhadores.

Aquilo que se propunha fazer era servir ele próprio de isco, um isco vivo, em segurança dentro da jaula, mas com a lanterna e a espingarda a postos para quando o leopardo chegasse.


Ele e os dois ajudantes negros foram até ao local que tinha escolhido: uma clareira próxima de um caminho que já não era utilizado. O local estava mais ou menos alinhado com a direcção do rasto e era a menos de um quilómetro da estação florestal. Aqui, montaram a jaula, unindo com correntes os lados e a parte de cima, reforçando igualmente alguns sítios com arame forte. Foi apenas no momento em que Mike levou as suas coisas para dentro da jaula que os trabalhadores se mostraram apreensivos. Tom Windwaai, o condutor de tractores, estava realmente preocupado e advertiu Mike de que o leopardo poderia apanhá‑lo. Mike sorriu, acenou com o frasco de metal e disse que, se bebesse uma boa quantidade de brandy, talvez até apanhasse dois leopardos. Os homens afastaram‑se, rindo nervosamente. Estavam assombrados com a coragem dele.

Depois de se terem ido embora, Mike percebeu que lhes devia ter pedido para voltarem ali de manhã, mas também não fazia mal, com a manhã viria o dia e a estrada ficaria segura. Meter‑se‑ia a caminho quando o Sol já estivesse bem alto.

Quando as últimas aves cessaram o seu coro do entardecer, Mike montou o seu banco de lona, vestiu um grosso sobretudo da tropa e encheu generosamente uma caneca de plástico com uma primeira dose de brandy. A partir desse momento, o frasco manteve‑o num estado de boa disposição e excitação. Uma coruja pousada por cima dele, na escuridão total, despertou‑o da sua modorra com o seu piar melancólico e uma vez ouviu o bramido sobressaltado de um golungo e o seu salto repentino, fazendo estalar as folhas. Com os nervos em franja, varreu com a lanterna o local à sua volta, atento aos ruídos que iam e vinham.

às quatro da manhã, bebeu o último gole de café e comeu o que sobrara das sanduíches. Depois, dormitou em intervalos, acordando sobressaltado com o latido de alerta de um babuíno. Com o pulso acelerado e a boca seca, ouviu os babuínos em pânico a fugirem, fazendo estalar os ramos, numa confusão de latidos e gritos assustados perdendo‑se na distância.

Mike esforçou os olhos, perscrutando a escuridão da floresta, que clareava lentamente, e respirou profundamente para parar os tremores que o percorriam da cabeça aos pés. Sabia que andava um leopardo por ali e sentiu os cabelos a arrepiarem‑se, ao mesmo tempo que um calafrio lhe percorria as costas. Durante meia hora permaneceu quase imóvel, agarrando firmemente a arma até lhe começarem a doer os braços. Depois, o sol apareceu finalmente entre as copas das árvores e com ele os chamamentos das aves. Mike pousou a arma e deitou‑se a seu lado, bocejando e sorrindo de alívio por se poder deitar pela primeira vez. Pelo que lhe dizia respeito, a vigília chegara ao fim; tinha sido uma boa tentativa. Agora, iria dormir um bocado e depois voltaria para a estação em plena luz do dia para telefonar a Turner.


O leopardo não foi propriamente acordado pelo ressonar do homem, mas nesse momento abriu os olhos. Deu uma volta à jaula pela quarta vez desde que ali tinha chegado, regressando depois para a sua cama de folhas secas. Quando, por fim, a criatura de duas pernas se mexeu, todos os músculos do leopardo se retesaram, os seus olhos transformaram‑se em fendas veladas, registando cada movimento através das pupilas, reduzidas a dois pontos negros. Só quando a criatura de duas pernas começou a afastar‑se da armadilha é que o leopardo se levantou de um movimento lesto e começou a segui‑la. Agachado, com a cabeça e o corpo alinhados rente ao chão, as orelhas baixas e a boca entreaberta, deslizou como uma comprida sombra negra através dos arbustos. Mesmo quando acelerou, a sua corrida manteve‑se silenciosa.

 

Tom Windwaai levantou‑se da cama que partilhava com a mulher e saiu para o exterior da barraca de madeira com telhado de chapa. Ficou satisfeito ao ver que iria estar bom tempo, pois não havia sinal de vento no céu pálido da madrugada nem nuvens a oeste. Espreguiçou‑se e bocejou, a seguir lavou a cara e pôs o pescoço debaixo da torneira do tanque de água da chuva e bochechou com água. Pensou em Prewalski na jaula e por um momento ficou parado, debatendo consigo próprio se deveria ir à estação e levar o Land‑Rover para o ir buscar. Mas isso tomar‑lhe‑ia muito tempo e a maré baixa não podia esperar. O patrão só teria que andar menos de um quilómetro e mais tarde poderiam ir buscar a jaula.

O fogão da cozinha a lenha de ferro forjado estava morno e tinha em cima uma cafeteira com café. Tom Windwaai acendeu um fogareiro a gás e, enquanto esperava que o café aquecesse, vestiu as calças e pegou no saco de apetrechos de pesca que se encontrava pendurado num prego na parede.

Quando o café ficou quente, encheu uma caneca com o líquido negro, forte e adocicado; molhou um dounut nele e mastigou‑o lentamente. Um leve ressonar vinha do quarto ao lado, onde a mulher ainda estava a dormir, e ele sentia‑se feliz e em paz consigo próprio.

Levantou‑se, puxou para o lado a cortina esfarrapada que servia de porta para o quarto de dormir e pegou no chapéu pendurado num dos pés da velha cama de ferro. Depois, com a cana de pesca e o carreto na mão, saiu de casa para a fraca luz do dia e pôs‑se a caminho pelo carreiro que atravessava a floresta, descendo a seguir pelas escarpas até ao mar.

A maré baixa permitiu‑lhe apanhar os pequenos camarÕes de que necessitava para isco, para além também de algumas minhocas e três caranguejos‑vermelhos. Após ter escolhido o local, pousou as coisas e preparou‑se como os pescadores das rochas gostam de fazer, rodeado de peças de roupa, do saco a abarrotar, bóias e canivetes, anzóis de todos os tipos, um grande bicheiro, uma caixa com a merenda e um cesto com o isco. Prendeu cuidadosamente um caranguejo a um anzol, depois fez um lançamento longo na direcção de uma zona de água verde‑clara que significava um fundo de areia. A espera seria grande para conseguir apanhar um robalo, mas era um desafio ao qual Windwaai nunca conseguia resistir.

Eram quatro da tarde e Tom estava a utilizar o seu último caranguejo quando chegou o momento há muito esperado. Sentiu um tremor no fio de nylon, como se fosse uma corrente de energia a passar de uma ponta para outra. A seguir, um puxão decidido, suficiente para fazer tremer a ponta da cana, e logo a seguir toda a cana vergou e o carreto começou a rodar a grande velocidade e a assobiar contra o travão. Tom deu um grito de triunfo e no quarto de hora que se seguiu lutou firmemente em pé, naquele misto de suspense e excitação conhecidos apenas dos pescadores. Lá em baixo, o peixe procurava as zonas escuras das rochas, com o fio de nylon vibrando nos dentes e seguindo‑o inexoravelmente pelos recifes e rochas até finalmente o vencer.


Tom começou a enrolar, o fio no carreto e pouco depois viu a tonalidade azul‑prateada do peixe a brilhar na água esverdeada. A seguir, o robalo foi içado, dançando e sacudindo‑se de encontro às rochas negras de mexilhÕes, e a luta chegou ao fim.

Lá no alto, fora do alcance do mar, Tom estava sentado a ouvir o peixe, com cerca de dez quilos, que batia uma última dança rítmica com a cauda na superfície da rocha aquecida pelo sol. Depois, inconfundível, alto e nítido, chegou até ele outro som ‑ uivos de cães perseguindo a caça ‑, surgindo a seguir seis cães a saltarem ao sol, com as orelhas caídas de fadiga, as línguas rosadas à mostra e os corpos negros, castanhos e brancos a contrastarem com os seixos da praia. Um a um, foram desaparecendo por entre as árvores na borda dos penhascos.

Então, Tom lembrou‑se da noite de Prewalski dentro da jaula. Enquanto pensava no leopardo, olhou para as árvores lá ao fundo, mas não apareceu qualquer caçador. Reuniu as suas coisas e o peixe para se ir embora.

Quando Tom chegou à estação florestal, os carros estacionados fizeram‑no pressentir algo de grave. Oito ou nove carros e carrinhas diferentes no pátio de cascalho a um domingo à tarde já era estranho, mas a presença da ambulância branca encheu Tom Windwaai de angústia.

Queria perguntar o que se passava, mas a lei aqui proibia‑o de misturar‑se com os brancos, portanto retirou‑se para junto do grupo de trabalhadores que estavam debaixo dos carvalhos.

Eles confirmaram aquilo que mais receava.

‑ Foi o velho Prewalski ‑ disseram‑lhe. ‑ Aquele leopardo preto apanhou‑o. Está morto.

O leopardo ouviu o bater das portas da carrinha e os sons de vozes e o barulho das correntes, mas só quando apanhou o longínquo latido de um cão é que começou a afastar‑se. O instinto dizia‑lhe para ir para norte, para a zona mais alta da floresta, mas por aí teria de atravessar os sons perigosos que aumentavam continuamente no seu cérebro.

Caminhava ainda lentamente por um caminho aberto quando o silêncio sinistro que se instalara entretanto explodiu numa confusão de latidos dos cães, e num longo salto ele atirou‑se para o meio da vegetação. Durante cem metros ou mais correu num trote rápido, com as espáduas movendo‑se como êmbolos sob o pêlo negro, as orelhas baixas e a cabeça junto ao solo, adaptando os olhos à escuridão, de modo que a mais pequena abertura entre a folhagem ou os espinheiros se tornava num túnel através do qual passava primeiro a cabeça e depois o resto do corpo.


Numa clareira, lançou‑se numa corrida sinuosa, e qualquer observador fortuito conseguiria ver apenas uma mancha negra a serpentear. Então, a floresta terminou abruptamente. O leopardo abrandou o passo e, quando os cães ladraram de novo mais perto, ficou de repente amedrontado. Procurando uma grande árvore para poder trepar e ficar em segurança e não encontrando nenhuma atirou‑se para baixo, descendo pelas rochas aquecidas pelo sol, mal se apercebendo do mar lá em baixo. Rosnando com o impacto de cada salto nos músculos retesados e ouvindo o barulho feito pelos cães a ladrarem mesmo por cima, saltou para uma praia de areia em pânico. Virando abruptamente para a direita e levantando nuvens de areia com as patas, começou de novo a subir sobre o tojo e as rochas fendidas, até que, num derradeiro salto em corrida, ultrapassou uma fenda a pique de três metros de largura e deitou‑se, aturdido e de língua de fora, sobre uma estreita plataforma rochosa a grande altura acima do mar e dos rochedos cobertos de espuma.

Com cada inspiração, a sua cabeça ia baixando, até que chegou um abençoado momento em que a mandíbula pousou sobre uma das patas bem musculadas e os olhos se fecharam lentamente. O sol que batia ainda naquela plataforma estreita virada a ocidente era intenso. As orelhas erectas eram a única indicação de que não estava a dormir.

Tentava agora ouvir os cães e por fim sentiu‑os ‑ o arranhar de unhas na rocha, o chicotear de caudas em arbustos, o rolar de seixos. Levantou a cabeça, os olhos bem abertos, pois o Sol estava a pôr‑se e a saliência onde se encontrava estava agora à sombra. Mesmo por baixo dele, ouviu um coro de latidos. O leopardo arreganhou os dentes num rugido involuntário, mas os ruídos não se aproximaram mais.

Passado bastante tempo, ouviu um novo som ‑ barulhos de farejar e ganidos, primeiro de um lado e depois do outro, enquanto o cão chefe da matilha tentava subir. A seguir, vinda de cima, houve uma chuva de seixos e pequenas pedras, juntamente com o palrar contínuo de criaturas de duas pernas muito perto. Os olhos do leopardo estavam a adaptar‑se à luz, agora cada vez menos intensa, de modo que o mosaico cinzento e negro à sua volta ‑ declives, fendas, afloramentos ‑ permanecia tão visível para ele como em plena luz do Sol. Completamente restabelecido do esforço despendido, pôs‑se em pé com as patas dianteiras na única fenda a um canto da plataforma da rocha; satisfeito, retrocedeu um pouco, firmando‑se nas duas patas traseiras, e lançou‑se para cima numa série de saltos elásticos.

O grupo formado pelas criaturas de duas pernas não teve tempo para mais nada a não ser uns gritos de alarme, antes de ele saltar para terreno firme passando por eles como uma seta, dirigindo‑se desta vez na direcção de cheiros familiares e impregnados do som de águas correntes.

Descendo a meio caminho na encosta alcantilada e coberta de árvores do desfiladeiro, ouvia ainda o latido ocasional de um cão. Mas o som permanecia estático; ele não estava a ser perseguido. Começou a andar mais lentamente, seguindo as margens do rio e depois para cima, em direcção às montanhas. Mas muito antes da meia‑noite, a sua memória já não registava o terror que sentira ao ver os cães e começou a andar para oeste através dos corredores indistintos da floresta iluminados pelas estrelas, dirigindo‑se para as ravinas gémeas que constituíam a extremidade ocidental do seu território.

Dentro da estação florestal, Clifford Turner deu os pêsames a Polly Prewalski, que estava a chorar a um canto junto com os pais, que tentavam consolá‑la. Ao afastar‑se, pensou em Mike, tentando imaginar como é que ele tinha passado aquela longa noite. No seu íntimo, tinha a certeza de que Mike havia encontrado provas recentes da presença do leopardo. Tom Windwaai assegurara que Mike não tinha falado de qualquer rasto fresco, nem tão‑pouco de ter avistado o animal. No entanto, Turner dificilmente podia acreditar que Mike se tivesse dado a tanto trabalho sem ter quaisquer indícios de que o leopardo se encontrava nas redondezas.


Ainda mal tinha havido tempo para a realidade da morte de Mike afectar Turner pessoalmente como amigo, mas isso estava agora a começar. Veio‑lhe à memória a erva pisada dentro da jaula e a quantidade de utensílios espalhados pelo chão apenas a trinta metros, onde o animal o tinha atacado: o sobretudo de caqui, a mochila de lona e a arma ainda carregada. Não lhe fora difícil concluir que o leopardo havia esperado que Mike saísse para o atacar inesperadamente por trás, alimentando‑se a seguir do cadáver.

Turner sentiu um calafrio. Conhecia bem demais aquelas horas vazias e mortas que antecediam o nascer do dia e o terrível estado de pânico que deixava qualquer um incapaz de pensar. Mas Turner não acreditava que Mike tivesse fugido para fora da protecção da jaula. Ele lembrava‑se de Mike como um homem corajoso, embora talvez temerário. Mike tinha por certo subestimado a sua presa, mas ao menos provara‑lhes que estavam perante uma situação muito para além de qualquer controle. "Devorador de homens" era uma expressão que soava tão distante da realidade normal que se tornava difícil entendê‑la numa época de supertecnologia. No entanto, era um facto que nenhuma forma de vida estava agora em segurança naquela área de plantaçÕes e florestas e que não havia nada que alguém pudesse fazer para impedir a fera de atacar onde e quando quisesse.


 

O DESPERTADOR de Turner acordou‑o às cinco da manhã. Uma chuva forte caía sobre o telhado de chapa ondulada da cabana dos Serviços Florestais. Depois de ter desligado a campainha com a palma da mão, sentou‑se e gemeu. Não havia vento e a chuva caía numa cortina compacta de água que encharcava tudo e apagaria quaisquer vestígios ou cheiros que pudessem ter ficado para os cães seguirem.

Ligou a cafeteira eléctrica e sentou‑se à beira da cama, esfregando a testa. Gostaria de ter mais fé nos cães. De qualquer modo, não podiam ficar indefinidamente no distrito à espera daquela oportunidade única de que necessitavam.

Martin Botha comunicara‑lhe que uma grande quantidade de pessoas e famílias das redondezas tinham entrado em pânico, telefonando‑lhe para comunicarem o desaparecimento de parentes e amigos. Era completamente impossível adivinhar quantos tinham morrido ou apenas desaparecido, contudo Turner não tinha agora qualquer dúvida de que o leopardo representava na realidade uma presença fatal e muito mais perigosa do que inicialmente pensara. As suas emoçÕes em relação ao leopardo eram difíceis de analisar. Em defesa da sua própria vida ou da de outrem, obviamente que não hesitaria um segundo sequer em atirar para matar. Bem, talvez se sentisse tentado a esperar só mais um segundo para ter tempo de observar o animal. Sem a presença desta raridade, a floresta seria de certo modo um lugar mais pobre. Será que sentia alguma compreensão pelo animal? Sim, inequivocamente. Sabia que não era a natureza maligna do animal que o levava a matar; era a civilização, que invadira o seu território; era o impulso humano de proteger as suas riquezas que o estropiara.

Preparou uma xícara de café fumegante, sentando‑se depois novamente na beira da cama, bebendo pequenos goles, deixando o impacto da horrível morte de Mike Prewalski invadi‑lo. Afinal, não era um sonho mau e tinha de ser enfrentado mais cedo ou mais tarde. Lamentar a morte do homem por uns momentos e recordar todo o entusiasmo dele desde o primeiro dia do acampamento da gruta era o mínimo que podia fazer. Os pensamentos de Turner foram da caverna para a praia, onde estivera naquela noite nas ondas fosforescentes com Jean nos seus braços. Mas essa lembrança trouxe‑lhe apenas uma sensação de frustração, pois essa noite tinha sido tão prometedora, acabando depois numa firme, embora compreensiva, rejeição.

Sem vontade de voltar para a cama e dormir, Turner vestiu‑se e, à medida que aclarava os pensamentos, começou a concentrar a sua atenção na jaula que Mike Prewalski havia utilizado. A ideia fora boa, estragada apenas pelo erro fatal de Mike, e esse erro não precisava de repetir‑se. Para além disso, com o esquema que começava a arquitectar, talvez até se pudesse capturar o animal vivo.

Preparou o pequeno‑almoço e telefonou a Paul Stander. Lá fora, a chuva diminuía de intensidade, até que parou completamente, deixando uma névoa fina.


Antes do meio‑dia, auxiliado por um grupo de trabalhadores da estação florestal, Paul Stander tinha desmontado e enviado a jaula para uma metalúrgica em Knysna, e ao fim da tarde as alteraçÕes estavam concluídas. A armadilha estava agora maior, pois tinham‑lhe acrescentado um outro espaço revestido a arame onde cabia um homem sentado. Turner e Stander haviam discutido se este espaço deveria ou não ter uma porta de correr que abriria para dentro da jaula e que fecharia ao mesmo tempo que a porta principal. Desse modo, o isco humano seria irresistível. Mas no momento crítico, quando o animal entrasse, não haveria nada a separar a presa humana do leopardo. Tinham abandonado esta ideia devido ao perigo de um mau funcionamento do dispositivo mecânico.

‑ E se adormeceres? ‑ perguntara Paul Stander.

‑ Não vou adormecer.

‑ Poderás desmaiar, sabes, ou ficar paralisado com o choque.

‑ Com o medo, queres tu dizer ‑ retorquira Turner com um ligeiro sorriso. ‑ Está bem, fazemos um espaço separado. Mas o gatilho da porta principal deverá ser accionado manualmente; não podemos correr o risco de perdê‑lo por ele tocar ou pressentir alguma coisa.

‑ Vai ser difícil saberes qual o momento certo em que deves puxar a alavanca ‑ dissera Stander, algo pensativo. ‑ Se a porta descer quando ele estiver a meio ou até mesmo apenas com as patas traseiras de fora, ele sairá disparado que nem uma flecha.

Na floresta, quando cessou a avalancha ensurdecedora da chuva e as árvores perderam a sua última cortina de gotas pesadas numa súbita refrega de vento, o leopardo saiu do seu abrigo quente de folhas secas e espreguiçou‑se. Caminhou lentamente por uma velha estrada coberta de capim numa floresta que despertava sob os raios de sol inclinados, dourados e suaves. Numa garganta, mesmo abaixo de um afloramento rochoso, viam‑se partes do rio principal dos vales gémeos, como uma faixa negra serpenteante transformando‑se numa série de lagoas negras ou cor de âmbar nas zonas a montante. Mais além, as vertentes arborizadas de ambos os lados encobriam por completo o rio, que se perdia de vista numa curva. Enquanto o Sol subia no horizonte, ele começou a descer lentamente, abandonando esta zona mais quente e elevada do planalto. à medida que se aproximava do rio, apareceram as primeiras árvores e depois os fetos e um cheiro a humidade, por fim, surgiu o próprio rio.

à sombra de um ramo de árvore, bebeu e depois pôs‑se a caminho rio acima, meio a correr, e só parou quando chegou à lagoa, há muito abandonada, de Jean Mannion, quase a oito quilómetros do local onde descera. A familiar plataforma rochosa onde se abrigara com a mãe encontrava‑se apenas a umas centenas de metros mais acima, no penhasco; a casa dos Mannions ficava a pouco mais dessa distância a seguir à curva da encosta.

Por três ou quatro vezes, o leopardo lambeu aquela água escura, mas languidamente, como se a estivesse apenas a provar. A sua cabeça virava‑se em movimentos bruscos à medida que ia cheirando a vegetação rasteira e verde com odor a hortelã‑pimenta que se estendia à sua volta. Lentamente, começou a subir, entrando na floresta.


Aqui, com o Sol já a pique, ouvia‑se apenas um chilrear intermitente das aves, e o leopardo continuou a subir, sem voltar a parar. Atravessou uma superfície de pedras caídas por baixo do penhasco, olhando para cima apenas quando se encontrava directamente sob a fenda recortada que levava lá para o alto, através de árvores estropiadas, ao velho esconderijo. Tomou impulso com a cauda levantada e saltou para o rebordo da rocha. A seguir, inspeccionou a zona até ter a certeza de que não havia perigo ‑ como o som sibilino de uma víbora ou a cauda revirada de um escorpião ‑ e deitou‑se de lado com um grunhido de satisfação.

Descansou e dormiu intervaladamente durante toda a tarde. Depois, à luz fraca do quarto minguante, o leopardo subiu pela chaminé de rocha situada ao fundo do abrigo e, contornando as terras de pastagem, seguiu na direcção das casas dos trabalhadores das terras de Kampmuller. Ignorou o ladrar dos cães e manteve‑se oculto nas sombras, inspeccionando cada cão e cada casa com grandes olhos. Havia luz nas janelas de uma dessas casas e ele foi atraído para ela em parte porque associava a luz às criaturas de duas pernas e em parte pelo barulho que dali saía. O som era o da sua vítima, em conjunto com o tocar de guitarras ao desafio, gaitas‑de‑beiços e pequenos tambores. Deu a volta à casa, com todos os sentidos bem alerta, agachando‑se sobre a terra dura, e foi cheirando uma porta de cada vez. Fez isso três vezes e por fim, frustrado, esgaravatou com as ganas uma frincha de luz projectada no solo por uma das janelas. Não havia alteraçÕes no volume de som e, depois de uma ronda final, que incluiu um galinheiro e um pequeno anexo, o leopardo foi‑se embora.

A curva moldada da encosta descampada, coberta de erva, estava tinta de manchas amareladas e no ar pairava o cheiro a ovelhas. Passou por baixo de uma cerca, mal tocando no arame inferior e apercebendo‑se de imediato do forte cheiro a cão misturado com o perfume aromático de um pomar. Ali, a terra era macia e silenciosa. Mesmo à sua frente, a casa de Jean Mannion surgia sombria no topo da colina como um afloramento rochoso, majestosa e silenciosa, contra o céu escuro. Atravessou uma nesga de relva que lhe era familiar, depois cheirou o ar húmido proveniente de uma piscina e lambeu a água para a experimentar. A seguir, cheirou durante muito tempo uma toalha estendida sobre as costas de uma cadeira, bem como um par de sandálias na relva, a pouca distância. Depois, andou lentamente à volta da casa, mirando as janelas e as portas à medida que passava.


 

MANNION estava na varanda superior do edifício do aeroporto da cidade de George, a cerca de sessenta quilómetros de Knysna. Ficou só o tempo suficiente para ver o avião rolar pela pista até levantar voo graciosamente. Nele seguia o irmão, John, que ia à Cidade do Cabo. Ficaria fora de casa durante quatro dias, passando os dois últimos em Stellenbosch, na fazenda de uma prima. Agora, ela ficaria quatro dias sozinha, e ao pensar nisso sentiu o pulso acelerar‑se.

Nos últimos dias, não tinha visto Clifford Turner muitas vezes, embora ele lhe tivesse telefonado pelo menos quatro vezes ‑ duas delas para falar com John e as outras duas com ela, porque John não estava em casa; contudo, sabia perfeitamente que era com ela que ele queria falar. Por causa disso e das suas conversas longas e variadas, cuidadosamente impessoais devido ao que tinham combinado na festa, ela sabia que a sua relação era uma semente forte à espera de florir e que só dependia dela. No entanto, sentia uma pontada de culpa. Porque agora, ao guiar de volta à casa na estrada costeira, pensou em Simon e descobriu que, pela primeira vez, conseguia recordá‑lo sem sofrer. Não acreditava que ele tivesse querido que ela ficasse para sempre sozinha em honra da sua memória e sabia que não havia qualquer razão para ter aquela sensação de culpa. Porém, ela estava lá.

Guiava lentamente, observando a costa como se a visse pela primeira vez e verificando que não era exagero dizer‑se que era de grande beleza. Era uma zona para luas‑de‑mel e férias. Avistou a primeira grande praia, de areia muito dourada, por detrás de paredes rochosas quando a estrada começou a descer até ao nível do mar. Serpenteava por entre casas de praia que se estavam a esvaziar à medida que a estação balnear chegava rapidamente ao fim; passava sobre dunas e ao lado de lagos onde se podiam ver os longos mastros dos iates ancorados; passava por bandos de patos negros e nuvens rosadas de flamingos em migração. Passou perto de um rio escuro que corria vindo da floresta e das montanhas e depois avistou o grande estuário aberto de Knysna. Dentro de vinte minutos estaria em casa.

Ao passar pelos portÕes da fazenda, falou com Henry, o capataz, assegurando‑se de que estava tudo bem. Depois, continuou lentamente pelo caminho de saibro vermelho que serpenteava através das terras de pastagens em direcção à casa e parou o carro junto a um campo onde estava uma manada de bovinos. Saiu do carro e pousou as mãos no arame superior da cerca, observando atentamente o gado.


Estavam gordos e luzidios e sentiu‑se satisfeita por ter seguido à risca o plano de Simon. Contudo, receava pelo futuro e pela sua capacidade de ser o tipo de fazendeira que queria ser. Sabia o suficiente para reconhecer que a savana, resistente e árida, que fora momentaneamente vencida pelo exótico manto verde, continuaria infalivelmente a actuar para se expandir e que lagartas e carrapatos continuariam a travar a sua batalha incansável com o gado. Depois dos dois anos de tropa, John em breve teria de ir para a universidade. Em memória ao pai, ela desejava‑o e faria tudo para que isso acontecesse. Contudo, não tinha a certeza se seria capaz de viver para sempre só em Longlands e continuar a cuidar da fazenda tal como Simon o teria feito.

Uma fila de pássaros de tonalidades indefinidas voava contra o céu avermelhado, batendo lenta e silenciosamente as asas naquela média luz do crepúsculo. Os gansos viam‑se claramente ao longo da parede da represa, manchas brancas reflectindo os derradeiros raios de luz, e ela compreendeu, ali, que estava a dar o derradeiro adeus a Simon.

à volta da casa tudo estava escuro e em silêncio, e ela ficou a ouvir o recomeçar do coro das rãs e dos grilos. De repente, sentiu‑se só, entrou dentro de casa e apagou as luzes de fora, trancando também a porta. Parou em frente ao telefone por uns momentos, depois virou‑se deliberadamente e foi para a cozinha, onde preparou uma omeleta e encheu um copo de vinho.

Com o seu gato siamês nos braços, viu um programa de televisão e então, depois de um longo duche quente, foi para a cama, deixando um romance policial a meio sobre a mesa‑de‑cabeceira, querendo continuar, mas um pouco receosa. Era uma história de suspense demasiado semelhante à realidade, quanto mais não fosse por ter à cabeceira o Colt .38 automático de Simon. A pistola era antiga, mas funcionava e ela sabia usá‑la.

Já passava muito das onze da noite quando desligou a luz, ficando por uns momentos acordada no escuro. Depois, obrigou‑se a acender a luz e a levantar‑se para trancar a porta do quarto. Fechou também e trancou as janelas duplas que davam para a relva que se estendia à frente da casa e para o grande abismo dos dois vales, negro e silencioso lá em baixo. Deixou ligeiramente aberta a janela perto da cama. O ar da noite entrava por aí e não havia qualquer som para além das notas longínquas e decrescentes das tarambolas em sobressalto.


 

UMA corrente de ar frio descia lentamente a encosta sobre a erva mordiscada pelas ovelhas, trazendo consigo um cheiro forte e pesado. Era o odor a cogumelos do princípio do Outono, o cheiro forte a laranjas maduras e o dos cães junto à casa no cimo da encosta. Mas havia um que dominava todos os outros; o cheiro quente das criaturas de duas pernas, que levou o leopardo a abrir ligeiramente a boca para saboreá‑lo com a língua e a piscar os olhos em expectativa.

Deslizou como uma sombra negra na escuridão da madrugada, mudando de forma consoante passava pela cerca de arame ou ao longo do terreno acidentado, e atravessou o relvado aparado do pátio da entrada. Aí, como o cheiro a cão era mais intenso, parou e mudou de direcção, levando consigo o seu próprio cheiro, circundando a casa para fora do alcance do canil silencioso. Parou junto a uma janela e pôs as patas em cima do parapeito, revirando as orelhas, atento aos ruídos da casa: o tiquetaque de um relógio, o trepidar de um frigorífico e o ligeiro, suavíssimo, respirar da sua presa adormecida.

A porta da cozinha estava entreaberta, deixando passar uma corrente de calor, e ele entrou, mais cuidadosamente agora, com os bigodes encrespados e as espáduas encurvadas, experimentando cada passada no chão frio de tijoleira a que não estava habituado. Com as pupilas muito brilhantes, ia seguindo o sabor e registando a mudança de temperatura da tijoleira para o soalho de madeira, sentindo a suavidade dos tapetes, e por fim ficando consciente, através de um qualquer sexto sentido, de que a sua presa se encontrava ali muito perto, do outro lado de uma porta fechada.

Costumando dormir profundamente, Jean ficou um pouco surpreendida ao acordar com a fraca claridade da madrugada entrando no quarto. O mostrador luminoso do relógio indicava que passava pouco das quatro e trinta, mas o seu coração batia mais forte do que era habitual. Tinha consciência de que algo de concreto a havia acordado e, pensando que talvez fosse um ladrão, manteve‑se muito quieta no escuro, com os olhos muito abertos. O som, quando o ouviu novamente, era mais uma sensação de algo a mover‑se do que um barulho propriamente dito ‑ um sussurrar sibilante e furtivo. Depois, veio uma pancada distinta, como o barulho que o gato costumava fazer quando se esticava debaixo de uma cadeira e ia chicoteando com a cauda as pernas de mogno. Mas o gato estava a dormir profundamente aos pés da cama. Tentou recordar‑se se fechara a porta da cozinha, dado que o ruído podia ser o de um ladrão descalço. Estava agora a raciocinar claramente e, às escuras, estendeu o braço até à mesa‑de‑cabeceira, apalpando com os dedos o relógio de pulso e o despertador, até que por fim agarrou na coronha da pistola. Puxou‑a para si devagar e sentou‑se encostada à cabeceira da cama com a pistola sobre os joelhos.


De repente, um miado rouco e baixo mesmo a seu lado causou‑lhe um sobressalto de susto e a arma na sua mão tremeu. O siamês tinha saltado da cama e estava debaixo dela, fazendo um som estranho e pungente. Ela respirou fundo e o pulsar do seu coração pareceu expulsar‑lhe o ar do peito numa série de expiraçÕes pequenas e audíveis. Quando o gato deixou de gemer, ficou atenta, tentando concentrar o ouvido no que se estava a passar dentro de casa, mas não conseguiu ouvir mais nada e, passado um bom bocado, começou a respirar mais normalmente.

A coronha da pistola estava quente quando ela abriu os dedos da mão direita e começou a flecti‑los. Ouviu novamente o barulho distante das tarambolas e o tiquetaque do despertador e depois, repentinamente, estes sons reconfortantes foram totalmente eliminados pela presença ameaçadora que parecia sussurrar e arfar, partilhando a escuridão com ela. Era como se um qualquer sentido, há muito adormecido, tivesse acordado nela, abrindo uma porta no seu cérebro para lhe revelar fantasmas medonhos de um tempo desaparecido: os ventos gelados de uma idade glacial, o rosnar de um urso das cavernas à entrada da gruta, a própria respiração de um grande felino à caça.

Mas o farejar na porta era bem real, tal como o ligeiro arranhar de uma pata almofadada. A porta rangeu e depois, durante um bocado, na infinita escuridão que começava a clarear, não se ouviu mais nada. Estava a ficar mais descontraída quando a maçaneta da porta abanou violentamente, com uma força que parecia capaz de arrancá‑la das dobradiças. A porta abanou e estremeceu e toda a casa pareceu ecoar com o medo. Uma agonia cinzenta e oca abateu‑se sobre ela no silêncio absoluto que se seguiu.

Lembrou‑se da pistola e puxou o cão. O clique foi nítido, e os cães, como que despertados por ela, começaram a ladrar freneticamente no canil, a trinta metros de distância. Sentia o gatilho, frio e duro, de encontro ao dedo, mas passou a mão esquerda sobre a arma para se certificar de que estava engatilhada. No entanto, ao mesmo tempo, pressentiu que o perigo já não vinha da porta à sua esquerda. Era como se a aura tivesse desaparecido, afastando‑se dali e levando consigo os seus olhos e os ouvidos através da porta da cozinha e depois lentamente à volta da casa até à janela entreaberta, um rectângulo cinzento‑claro no quarto sombrio. Mesmo quando olhou, a janela estremeceu, aparecendo uma pata anterior fortemente musculada que ficou pendurada, tacteando a escuridão com garras brancas reluzentes na semi‑obscuridade. Depois, Jean viu a cabeça ‑ a silhueta curva quebrada pelas orelhas baixas ‑ e premiu o gatilho.

A pistola deu um coice na sua mão com um estrondo ensurdecedor no quarto silencioso. Sem consciência dos seus próprios gemidos soluçantes, disparou de novo, agarrando tenazmente a pistola com as duas mãos, alvejando e disparando até a janela ficar vazia, apenas com o céu claro por trás. Os cães continuaram a ladrar freneticamente, mas deixaram de uivar. Depois, docemente, fiel à madrugada, um pintarroxo cantou e Jean começou a chorar com grandes soluços arquejantes.

A luz do dia foi aumentando até que um raio de sol tocou o canto do armário, e finalmente ela desviou os olhos da janela o tempo suficiente para ver que já passava das seis da manhã. O telefone estava na sala e ela sabia que tinha de contactar Clifford ou Paul Stander o mais depressa possível. Sabia agora que eles não tinham exagerado ao falarem do perigo que o leopardo representava e lembrou‑se de como estivera prestes a ignorar o aviso de Clifford acerca da lagoa da floresta.


Ocorreu‑lhe que talvez tivesse ferido o leopardo com um dos tiros. Talvez estivesse morto lá fora, do outro lado da janela, com uma bala na cabeça. Curiosa e até um pouco excitada, levantou‑se e aproximou‑se lentamente da janela, segurando na sua frente, com ambas as mãos, a pistola pronta a disparar. Mas quando olhou através do vidro, não havia ali nada. Abriu a janela e debruçou‑se, procurando no pátio e no relvado alguma sombra ou movimento invulgar. Sabia que o seu próximo gesto deveria ser o de destrancar a porta do quarto e correr até ao telefone. Mas, e se o leopardo estivesse algures escondido dentro de casa à espera?

Vestiu‑se rapidamente ‑ calças, camisa e sandálias ‑ e depois lembrou‑se dos cães que ainda estavam irrequietos e a ganir e decidiu que eles talvez a pudessem ajudar. Pelo menos a ideia do terreno aberto e brilhante lá fora era menos aterradora do que a da sua própria sala de estar. Com o coração em sobressalto e a pistola estorvando‑lhe os movimentos, saltou pela janela e foi a correr soltar os cães. Saíram todos em matilha, ladrando e farejando. Correram à volta do pátio, depois dentro e à volta da casa. Quando voltaram, deixou‑os correr por ali mais um bocado e depois chamou‑os e fechou‑os uma vez mais no canil. Dirigiu‑se lentamente para a cozinha, depois para as sombras da sala, pousou a pistola sobre a mesa do telefone e ligou para Clifford. Ouviu a voz dele com uma sensação de profundo alívio, lembrando‑se, só depois de desligar, que ele lhe tinha dito:

‑ Fica aí onde estás. Fecha tudo; tranca‑te dentro de casa. Vou já para aí.


 

TURNER e Paul Stander, vestidos com roupa cor de caqui e botas, pareciam deslocados no quarto de Jean no meio da mobília e dos tapetes. Estavam a observar um orifício de bala no vidro da janela.

Turner disse:

‑ Por pouco que não acertavas. ‑ Apontou para outro orifício no caixilho estilhaçado. ‑ Este também esteve perto. ‑ Depois, olhou para cima, para o tecto, e sorriu. ‑ Daquele é melhor não falarmos.

Ela fez uma careta como se estivesse zangada e bateu‑lhe ao de leve no braço. Depois, reparou na carrinha lá fora, no caminho de acesso, com uma panóplia de grades, redes e três ajudantes.

‑ Aquilo é uma armadilha ou quê?

‑ Sim, é uma armadilha ‑ disse Stander. ‑ Pensamos que irá ser desta. Vamos lá a ver.

‑ Isto foi um golpe de sorte ‑ disse Turner, colocando a mão no ombro de Jean. ‑ Foi duro para ti, eu sei. Foste muito corajosa.

‑ Corajosa! ‑ disse ela laconicamente. ‑ Devias ter‑me visto. Estive quase a morrer de medo.

Durante o café, explicaram‑lhe como iria ser o isco e o mecanismo da porta, fazendo com que tudo parecesse muito simples e sem qualquer perigo.

Ela ficou horrorizada.

‑ Clifford, não podes fazer isso, não podes de maneira nenhuma.

‑ O leopardo não consegue entrar, é impossível. Garanto‑te que não estou a armar‑me em herói. Mas não digas a ninguém, Jean. Paul e eu estamos a agir por conta própria, e se não resultar, levamos na cabeça por não termos chamado logo os cães. De qualquer modo, a ideia é Paul ficar contigo esta noite. Eu ficarei dentro da jaula. Estaremos em contacto através de rádio e talvez nos possas convidar de manhã para tomar café.

Montaram a armadilha numa zona plana perto do local onde John Avery e Kampmuller haviam montado a armadilha deles. Ao princípio da tarde, estava tudo pronto.

às cinco e meia, quando Stander foi levar os três trabalhadores de volta a Knysna, Clifford e Jean tiveram meia hora juntos a sós. Olharam a carrinha até desaparecer de vista, depois dirigiram‑se para dentro de casa sem uma palavra. Na fresca intimidade da sala, Jean foi até à janela e Clifford seguiu‑a. Colocou o braço à volta dos ombros dela e disse baixinho:

‑ Passaste um mau bocado. Lamento.

Ela virou‑se para ele e as suas bocas tocaram‑se, tentativamente no início, depois com mais força, mais urgência, até desaparecerem quaisquer reticências entre eles.


As aves das florestas costeiras têm padrÕes de canto que são como relógios medindo o aumento e a diminuição da luz do dia. De manhã, os turacos são os primeiros a acordar, como crianças traquinas, despertando a floresta do seu sono. A seguir, são os pintarroxos que irrompem, logo seguidos dos tordos do Cabo. Finalmente, é a vez dos cucos, dos pica‑paus e das tarambolas, esperando todos pela sua vez. O entardecer é mais solene, muito diferente daquela algazarra excitada do nascer do dia, pois há sempre o perigo à espreita na noite que se aproxima. Os primeiros são os cucos, depois os pica‑paus, seguidos do doce cantar dos pintarroxos, com o seu curto repertório, que acaba repentinamente, deixando um silêncio que virá a ser preenchido pelos mochos.

Turner, na sua gaiola apertada, ouviu‑os todos e agora ouvia também o chamamento pungente dos mochos. De cada vez que pensava em Mike Prewalski, tentava arrancar essa imagem do seu pensamento. A pistola de Simon Mannion estava ao lado da tampa branca de um termo, carregada e engatilhada. Naquele espaço reduzido, a pistola era mais útil que uma espingarda ou uma carabina, mas seria apenas utilizada em último recurso. Só a utilizaria no caso de algo correr perigosamente mal com o plano. A ideia de se manterem em contacto pelo rádio tinha sido de Stander e funcionava bem. Turner considerava que os ruídos não seriam um obstáculo, talvez até fossem um chamariz.

‑ Continuas a ouvir‑me bem?‑ perguntou ele a Stander, passado um bocado.

‑ Tão bem como se estivesses aqui, Clifford. Escuto.

Turner disse:

‑ Isto aqui parece uma orquestra. Milhares de rãs acabaram agora de acordar. Talvez as ouçam aí. Confirma‑me se me estás a ouvir neste tom de voz. Escuto.

‑ Estamos a ouvir‑te bem. Também ouvimos as rãs. Jean está aqui.

Jean debruçou‑se para o aparelho e disse:

‑ Olá, temos saudades tuas. Paul está a cuidar muito bem de mim. Todas as portas e janelas estão fechadas. Espero que também te tenhas lembrado de fechar a tua. Escuto.

‑ Foi muito agradável ouvir‑te ‑ disse Turner. Seguiu‑se uma pausa e depois acrescentou: ‑ Está alguma coisa a mexer‑se aqui à volta. Uns porcos‑espinhos acabaram de se pôr a fugir cheios de pressa.

Jean e Stander olharam um para o outro em expectativa. Seguiu‑se um longo silêncio, depois ouviu‑se de novo a voz de Turner.

‑ Pressinto que alguma coisa anda por aqui. Não quero utilizar a lanterna. De meia em meia hora entrarei em contacto convosco, a não ser que aconteça alguma coisa. Terminado.

Paul suspirou e olhou para o relógio.

‑ Pode vir a ser uma noite muito longa ‑ disse ele para Jean. ‑ Podes ir dormir um pouco, se quiseres. Depois acordo‑te.

Jean espreguiçou‑se. Foi até à janela e ficou a olhar para a escuridão. Não se vislumbravam quaisquer luzes em toda a extensão do vale. Imaginou‑se dentro da jaula com o leopardo negro lá fora, sentindo um arrepio que lhe fez estremecer os ombros.

‑ Prefiro ficar aqui contigo, Paul, mas talvez me enrole ali com um livro no sofá.

às quatro e meia da madrugada, a voz de Turner soou, cansada.

‑ Estou preocupado com o flash, Paul. Se ele disparar num momento em que eu esteja a piscar os olhos, posso até nem o ver.

Tinham montado um dos aparelhos de células fotoeléctricas dentro da jaula, a três quartos de distância da porta ao longo dos lados, ligado a uma das máquinas de Turner. Se o leopardo accionasse a máquina, era sinal de que estava bem dentro da jaula e isso seria a altura em que Turner devia accionar o mecanismo para fechar a porta.


‑ Fui burro em não trazer uma carabina ‑ continuou Turner. ‑ Pode ser que ele esteja aqui algures ao lado à espera que eu saia. De qualquer modo, não me venhas buscar enquanto eu não pedir e nessa altura não saias da carrinha. Traz também a tua carabina, e não uma caçadeira. O alvo poderá estar muito afastado. Como está Jean? Escuto.

‑ Está bem, está a dormir. Na verdade, até está a ressonar, mas muito delicadamente. Não te preocupes com o flash. Darás por ele através das pálpebras.

A voz de Turner mudou para um murmúrio sibilante que mal se percebia.

‑ Ele está aqui; tenho a certeza de que é ele. Anda por aqui às voltas. Vou deixar isto ligado.

‑ Jean ‑ murmurou Paul com urgência na voz. Ela pôs‑se em pé, bem desperta, e foi logo para junto dele. ‑ Ele deixou o aparelho ligado. Disse que o leopardo está ali perto. Não tenho a certeza de como é que ele sabe; pode ser só imaginação, mas achei melhor acordar‑te.

De repente, o receptor emitiu um ruído ensurdecedor e depois a voz de Turner, um urro incompreensível, e, sobrepondo‑se a tudo, o terrível rugido de uma grande fera misturado com barulhos de encontrÕes e de metal.

‑ Apanhámo‑lo, apanhámo‑lo. ‑ Era a voz de Turner, estupefacta e entrecortada. ‑ Palavra de honra, mas que animal. Mas que beleza, que maravilha de animal.

A sua voz foi abafada por um rugido que pareceu abanar o rádio e a seguir outro estrondoso som de metal.

‑ Está tudo bem, está tudo a aguentar ‑ gritou Turner. ‑ Podes vir agora, mas tem cuidado, aponta‑lhe com os faróis.

Paul e Jean estavam a olhar um para o outro com os olhos muito abertos.

Ouviu‑se um rugido menos intenso e depois Turner disse:

‑ Pobre animal. ‑ Perceberam nitidamente a tristeza na voz dele.

Abraçaram‑se, e Jean limpava as lágrimas com as mãos enquanto corriam para a carrinha. Conduziram em silêncio, tensos com a expectativa. Os faróis do carro saltavam para cima e para baixo no terreno acidentado; passaram pela cerca, que estava aberta, e continuaram pela zona de pastagem. Na luz fraca da madrugada, via‑se claramente a jaula numa das extremidades do campo e, mais cedo do que esperavam, viram os focos verdes e luminosos dos olhos do leopardo a abrirem e a fecharem enquanto o animal se movia.

Depois de Stander ter parado o motor, ficaram sentados, muito quietos.

O leopardo também estava silencioso, andando para cá e para lá, com a cabeça baixa, as orelhas para trás, vendo‑se os seus grandes músculos movendo‑se sob a pele atrás das grades e da rede.

‑ Ele tinha razão ‑ disse Stander baixinho. ‑ É o mais belo animal que jamais vi.

Saiu lentamente da carrinha e passou por trás dela, dirigindo‑se para o local onde Clifford Turner acabava de sair de gatas, nas traseiras da jaula. O leopardo virou‑se com um rugido e atirou‑se de encontro à rede, deitando‑se depois a arfar.


Os dois homens foram para junto da janela da carrinha onde Jean se encontrava sentada. Não havia nada a dizer. Ela olhou para Clifford Turner, para o rosto anguloso e cansado; àquela luz sombria, parecia distante, um estranho, quase belo ‑ a linha do queixo e o nariz direito, proeminentes.

‑ E agora, Paul? ‑ disse Turner por fim. ‑ Que vamos fazer com ele? Que vai ser dele?

Stander esfregou o queixo e depois muito lentamente, quase em surdina, como se fosse forçado a dar as más notícias, disse:

‑ Bom, não podemos soltá‑lo de novo, não é? ‑ Depois, acrescentou: ‑ Devem querer matá‑lo, suponho.

Passado alguns momentos, Turner disse:

‑ Deve haver outra alternativa. Eu não consigo pensar agora. ‑ Fez de novo uma pausa. ‑ Com esta luz não podes ver, mas perdeu quase toda a pata.

‑ Não tens que te desculpar comigo, Clifford, e isso de qualquer modo não irá modificar, nada. Ninguém se arriscaria a mandá‑lo para uma reserva de caça. Seria demasiado perigoso.

‑ E se fosse para um jardim zoológico? ‑ interpôs Jean.

Stander acrescentou:

‑ Talvez. Aí não haveria problemas.

Olharam para Turner, e Stander disse:

‑ Vamos, homem, alegra‑te. Devíamos estar a comemorar. Foi um trabalho fantástico. Olha, mexe uns cordelinhos. Quem era aquele professor de Zoologia, o tal Williams? Certamente que quererá observá‑lo. Isso, pelo menos, dar‑lhe‑á mais algum tempo.

Turner disse de repente:

‑ Tens razão, podemos tentar. Entretanto, temos de tomar conta dele. Daqui a pouco, vai estar aqui meio mundo, e estou mesmo a ver o velho Japie exigindo um linchamento.

às sete da manhã, Turner telefonou para casa do director dos Serviços Florestais, na Cidade do Cabo, e ficou ligeiramente surpreendido por ele ter ficado tão aliviado e contente ao saber aquela notícia. Passou o telefone a Stander para este poder receber o seu quinhão de elogios. A seguir, Turner entrou em contacto com o Doutor Williams e sentiu‑se mais descansado quando viu que a ideia do jardim zoológico fora bem aceite. Tanto o director como Williams prometeram‑lhe fazer as diligências necessárias. Por fim, Turner transmitiu a notícia ao departamento local dos Serviços Florestais e à Polícia.

Depois disso, começaram a chegar os primeiros carros e continuaram a vir durante toda a manhã funcionários dos Serviços Florestais, polícias, o major de Knysna, Kampmuller e outros fazendeiros locais, dois jornalistas e numerosas famílias de cor locais.

Era importante que eles pudessem ver o animal perigoso, mas Turner e Stander ficaram aliviados quando viram chegar três indivíduos com a farda do Serviço de Parques conduzindo uma grande camioneta especialmente equipada. De Villiers, o chefe do grupo, ficou visivelmente espantado com o grande felino negro. Baixou‑se junto à sua mala, depois de tudo preparado, caminhou na direcção da jaula e ajoelhou‑se rapidamente, esguichando o conteúdo de uma seringa directamente para dentro das mandíbulas abertas que rosnavam. O impacto de todo o peso do leopardo de encontro à rede fez dançar a jaula e De Villiers recuou, sobressaltado, mas a dose tinha encontrado o seu alvo. Ficaram todos à espera de vê‑la actuar.


Durante uns momentos, a droga não teve qualquer efeito nos movimentos bem vivos do leopardo. Mas depois ele começou lentamente a cambalear e a vacilar, com a cabeça pendente, os olhos fixos, inquiridores. Quando por fim o grande felino escorregou para baixo, rente a um dos lados da jaula, os homens estavam a postos. A ponta da cauda caída atravessou por uns momentos as malhas da rede e os homens agarraram‑na, puxando o animal enfraquecido. Seguraram com força na longa cauda preta o tempo suficiente para De Villiers injectar a agulha profundamente e accionar o êmbolo, administrando uma dose mais forte que havia de manter o grande felino a dormir durante horas.

Depois, os homens levantaram a porta da jaula, provocando um grito de alarme nos espectadores, que recuaram, atropelando‑se e empurrando‑se uns aos outros. Quando os funcionários saíram da jaula com o seu pesado fardo, as patas dianteiras do animal agitavam‑se ainda, bracejando no ar. Puseram‑no no chão, por cima de um lençol de plástico, e cobriram os seus grandes olhos verdes, muito abertos, para não sofrerem com o sol. A seguir, mediram, apalparam e examinaram rapidamente o bicho, colocando‑o depois na camioneta e desaparecendo numa nuvem de poeira. Só depois disso é que a multidão começou a dispersar‑se, e Clifford Turner e Jean Mannion, aliviados, foram levados de volta a casa por Paul Stander.

 

CLIFFORD, completamente vestido, mas sem botas, estava a dormir na cama de Jean, acordando estremunhado e desorientado com o som do despertador. Desligou‑o e, ao fazê‑lo, reparou na xícara de chá e na nota com a letra de Jean encostada ao relógio: "Fui até à lagoa da floresta, se quiseres vem ter comigo" e, ao fundo da folha de papel azul, "Um beijo".

Bebeu o chá morno, depois calçou as botas e começou a descer a encosta. Estava calor e húmido, com indícios de trovoada nas nuvens negras que se avolumavam sobre as montanhas. Mas Clifford caminhava alegremente, sentindo‑se descansado depois de ter dormido sem sobressaltos pela primeira vez desde há semanas. A cada passo que dava sentia‑se revigorar, como se se tivesse libertado de um grande fardo físico e psíquico.

Jean estava deitada ao sol em cima de uma rocha coberta de musgo no meio da lagoa, uma ilha de luz branca num fundo de água escura. Clifford despiu‑se, ficando em calçÕes, entrou na água e nadou silenciosamente em direcção a ela. Durante uns momentos, ela permaneceu deitada com o queixo apoiado nas costas das mãos, enquanto observava, a sorrir. Depois, desceu com as pernas compridas e graciosas e deslizou para dentro de água para ir ter com ele.

Aos olhos do par de águias‑negras que voavam numa corrente de ar a grande altura o lago era apenas uma pequena janela sombria que se desenhava na floresta de tonalidades verdes. Mas os movimentos dos nadadores atraíram a sua atenção, levando‑as a inclinarem as suas grandes asas para planarem numa larga curva descendente, perturbando por momentos o majestoso silêncio à sua volta com um trepidar de penas. Os seus olhos focaram as cabeças que se aproximavam uma da outra, lá em baixo, e as águias deram meia volta, acompanhadas pelas suas próprias sombras a correrem invisíveis por sobre todos os segredos inalteráveis da selva.

 

                                                                                Hjalmar Thesen  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"