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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRESSÁGIO DE FOGO - P.2 / Marion Zimmer Bradley
PRESSÁGIO DE FOGO - P.2 / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PRESSÁGIO DE FOGO

Segunda Parte

 

Durante os vários dias que se seguiram, Cassandra observou, das alturas do templo, a chegada dos soldados de Aquiles, tinham a alcunha de Mirmídones -formigas -, e daquela altura pareciam de facto tão numerosos e feios como insectos infestando a praia. Até àquele momento, no entanto, não tinham feito qualquer tentativa para atacar a cidade, e marchavam para a frente e para trás sobre a planície, conriam, treinavam-se e faziam exercícios militares. Aquiles era claramente visível entre eles, destacando-se não apenas devido à cor viva da sua capa, mas também pelo seu cabelo dourado-prateado e pela postura correcta do seu corpo.

Alguns dias mais tarde, desceu para visitar a sua mãe; estava preocupada com os sulcos da idade que se tornavam mais profundos no rosto de Hécuba. À medida que se aproximava dos aposentos da rainha, ficou chocada ao ouvir os sons de uma disputa; não conseguia perceber as palavras, apenas ouvia o som de vozes de mulher elevando-se zangadas. Quando entrou na sala principal ao pé do grande tear, ouviu o som de um estalo sonante e um grito abafado, e depois a voz de Hécuba, gritando, «Nunca!».

- Então - disse uma voz jovem - irei sem a tua permissão, senhora, e sem a tua bênção.

As vozes das mulheres silenciaram-se quando reconheceram Cassandra e recuaram para lhe dar passagem. Parecia que todas as mulheres do palácio se tinham juntado ali, rodeando Hécuba - vestida com uma velha túnica, o cabelo caindo em caracóis cinzentos e desgrenhados do carrapito habitual - e uma das suas costureiras, uma rapariga de quem Cassandra não sabia o nome se bem que tivesse admirado muitas vezes a perfeição do seu trabalho.

- Aqui está a princesa! Ela é uma sacerdotisa; saberá o que lhe dizer. Cassandra juntou-se ao círculo das mulheres que tinham ficado subitamente silenciosas tirando um ou outro murmúrio.

- Que se passa, mãe? - perguntou ela. - Que está a acontecer?

A jovem mulher, com a face vermelha da bofetada, falou com dignidade. Era elegante e bonita, com cabelos castanhos e macios - os quais se encontrava a pentear quando fora interrompida e que por isso caíam meio encaracolados até à cintura. Os seus grandes olhos escuros eram sombreados por longas pestanas. " - O Deus falou-me - disse ela - e eu escolhi o meu senhor.

- Esta rapariga idiota - disse Hécuba -, esta criança estúpida, meteu na cabeça... Oh! Quase que tenho vergonha de te dizer! Como pode uma mulher descer tanto, degradar-se tanto; ela não é nenhuma criada ou escrava; é bem­-nascida. É uma das minhas melhores bordadeiras, e eu tenho-a tratado como se fosse minha filha aqui no palácio. Nunca lhe faltou nada...

- Bem, diz-me, que fez ela? - perguntou Cassandra. - Abriu os portões para que os Aqueus invadissem a cidade?

- Não, ainda não chegou aí - admitiu Hécuba.

- É louca - disse Creúsa. - Há alguns dias, na festa, pôs os olhos em Aquiles, e desde aí não tem falado noutra coisa: em como ele é forte, quão hábil com as armas, quão belo (se é que um homem pode ser belo) e agora meteu-se-lhe na cabeça a ideia de ir lá abaixo e oferecer-se...

- Aos Aqueus? - perguntou Cassandra consternada.

- Não - disse a rapariga suavemente, os olhos brilhando -, ao meu senhor Aquiles.

- Nem mesmo o rei Príamo te enviaria a ele como escrava - disse Cassandra.

- Nunca seria escravidão, porque eu amo-o - disse a rapariga. - Desde que o vi pela primeira vez, sei que nunca poderá haver outro homem para mim neste mundo.

- A minha mãe tem razão; perdeste o juízo - disse Cassandra. - Ainda não percebeste que ele é um animal, um bruto? Ele não pensa em mais nada senão na guerra, não tem prazer em mais nada senão em matar; certamente que na sua vida não há lugar para uma mulher nem para o amor de uma mulher. Se ele ama alguém, é o seu camarada de armas Pátroclo.

- Enganas-te - disse a mulher -; ele amar-me-á a mim.

- E se amasse seria ainda pior para ti - disse Cassandra. - Digo-te que o homem é louco, tem espírito doente com a sua ânsia de morte.

- Não, eu vi como ele me olhou - disse a jovem mulher. - Como podes dizer tal coisa? É o mais belo homem que os deuses já fizeram; uma tal beleza terá de ser bondosa, também. Aqueles olhos...

Com um estremecimento, Cassandra recordou a mulher na aldeia dos Centauros, com uma corda atravessada nos tornozelos, defendendo a sua mutila­ção como um acto de amor. Era praticamente inútil falar com qualquer mulher naquele estado.

E, no entanto, tinha de tentar, que mais não fosse por ambas serem mulheres e, portanto, irmãs.

- Tu... como te chamas? - começou.

- Briseide - disse Hécuba. - Ela é trácia.

- Briseide, ouve-me - disse Cassandra. - Não consegues ver ao menos que te estás a iludir`? Isto é apenas um capricho louco metido na tua cabeça por algum demónio, não por um deus. Inventaste o homem dos teus sonhos e chamaste-o pelo nome de Aquiles. Acreditas realmente que se nos deixares e fores lá para baixo para o meio dos Aqueus, significarás mais para ele do que qualquer prostituta ou escrava?

- Não é possível que eu o ame tanto sem inspirar algum amor - disse Briseide.

Creúsa foi até ela e abanou-a.

- Escuta-nos, minha doida! Esse tipo de amor é um disparate de uma fantasia adolescente! Se estás simplesmente sedenta de um homem, eu falo com o meu pai e ele arranja-te casamento; há aqui soldados e comandantes de todo o mundo, e o teu pai é um homem respeitado no seu país. O meu pai encontrar-te-á um marido digno.

- Mas eu não quero um marido digno - disse Briseide. - Eu só quero Aquiles; amo-o. Tu tens ciúmes porque o amor não chegou assim para ti. Se chegasse, saberias que não há nada que eu possa fazer. Para mim não há nada no mundo a não ser Aquiles; não consigo comer ou dormir de tanto pensar nele... nos seus olhos, nas suas mãos... - O próprio som da sua voz quando ela pronunciava o nome, convenceu Cassandra de que era o mesmo que falar para as paredes.

- Deixem-na em paz - disse ela desesperada. - Esta é uma febre como a que Páris teve por Helena, uma maldição da sua Deusa do Amor. Ela recuperará a consciência rapidamente depois de o ter tido, mas então será demasiado tarde ­disse Cassandra.

- Se eu puder tê-lo, não me interessa o que irá acontecer depois - disse Briseide, e Hécuba secou as lágrimas que lhe molhavam os olhos.

- Pobre criança - disse ela -, não te posso impedir. Vai, se queres, e sofre as consequências da tua loucura. Vou chamar Príamo e serás levada para baixo numa liteira com uma mensagem dizendo que és um presente para Aquiles; e se ele se dignar aceitar-te, e não te lançar aos soldados vulgares para mostrar o seu desprezo pelos nossos presentes...

A rapariga ficou pálida por instantes, mas depois disse:

- Quando ele vir como eu o amo, terá de retribuir o meu amor.

«E se ele to retribuir, ficarás pior que antes», pensou Cassandra, mas não pronunciou aquelas palavras.

Observou as mulheres a vestirem e adornarem Briseide; Hécuba até lhe pôs um colar de ouro no pescoço. Quando ficou pronta, Cassandra quase a invejou - ela parecia tão feliz.

«As mulheres sonham com este tipo de amor. E depois vem a corda atravessando os tornozelos, a escravidão, a degradação.

Eu devia estar no lugar dela», pensou Cassandra. «Aquiles pediu-me a mim, e certamente que me receberia de forma adequada à minha condição. E então enquanto ele dormisse, um punhal na garganta e quem sabe um fim para estta guerra... o grande Aquiles, conquistado não por um herói mas por uma mulher pela sua própria paixão, quando todos os guerreiros de Tróia não conseguiram a sua morte.

Irá aquela mulher de encontro à minha sina, ao meu destino? Não; os deuses poderão por vezes dar-nos o que é pertença de outrem, como Páris possui a mulher de Menelau; mas o destino alheio, ninguém pode viver,

Confio que assim seja, acredito nisso; pois se não for verdade, nunca saberei como suportar a minha culpa.

Alguns dias mais tarde Cassandra desceu outra vez ao palácio de Príamo e encontrou Helena no pátio, olhando para o acampamento aqueu. O seu filho Bíon já corria por todo o lado, e Cassandra, contando, apercebeu-se de que Helena já estava com eles havia praticamente dois anos. Era difícil lembrar-se dos alojamentos das mulheres sem a sua presença, ou de que tinha existido um tempo em que não houvera guerra.

« Há três anos atrás eu cavalgava com as Amazonas», pensou, e desejou estar de novo nas planícies, livre dos muros do palácio e da cidade.

«Deixaria eu a casa do Senhor do Sol? Ele esqueceu-me; já não me fala pensou Cassandra; «não sou mais que qualquer outra mulher. Mas é um deus que eu amo, não um homem... Suponho que é melhor amar um deus que um homem como Páris ou Aquiles...»

Pensou em Briseide e procurou a tenda de Aquiles lá no fundo; ao pé dela conseguia ver us enfeites brilhantemente coloridos da liteira em que Hécuba tinha enviado para baixo a rapariga. E agora, de pé junto da entrada da tenda, conseguia distinguir o corpo aprumado e elegante do guerreiro; e junto dele a figura mais arredondada e pequena de uma mulher, vistosamente trajada. Bri­seide? Então pelo menos ele não desprezara o presente, nem a entregara aos soldados cumuns. Cassandra perguntou-se se ela estaria feliz e satisfeita.

- Pelo menos ela tem aquilo que mais queria - disse Helena, encaminhan­do-se para o muro e apontando a rapariga lá em baixo, envolta nos seus véus tingidos de açafrão. - Há portanto pelo menos uma mulher em Tróia que tem aquilo que mais desejava.

- Outra para além de ti, Helena?

- Não sei - disse Helena. - Eu amo Páris... Pelo menos sob a bênção da Senhora do Amor, amei-o; mas quando Ela não está comigo... não sei. «Então também ela só ama por vontade de um deus... Porque será que os

deuses interferem nas nossas vidas? Não terão o suficiente para fazer nos seus reinos divinos, para terem de vir intrometer-se nas vidas dos homens e mulheres mortais?» Mas perguntou apenas:

- Pensas que hoje haverá algum ataque?

- Espero que sim; os homens estão a ficar aborrecidos, encerrados dentro das muralhas - disse Helena. - Se os Aqueus não nos atacarem dentro de um ou dois dias, os nossos homens sairão e atacarão os Aqueus, só para terem alguna coisa com que ocupar o tempo... Que é, Cassandra, que se passa contigo? Empalideceste.

- Ocorreu-me - disse Cassandra, falando com dificuldade - que se esta guerra se prolongar por muito tempo, nenhum filho de Tróia sobreviverá para se tornar um guerreiro.

- Bem, eu preferia que qualquer um dos meus filhos fosse outra coisa que não guerreiro - disse Helena. - Como Odisseu, talvez, para que pudessem viver em paz no seu país natal e serem juízes sensatos para o seu povo... Se tivesses um filho, Cassandra, que desejarias para ele?

Nisso ela nunca tinha pensado.

- Qualquer coisa - disse ela. - O que quer que fizesse dele um homem " feliz. Um guerreiro, um rei, um sacerdote, um lavrador ou pastor... qualquer coisa, excepto escravo dos Aqueus.

Helena virou-se para o seu filho e estendeu-lhe os braços; ele veio a correr ter com ela. Disse como que reflectindo:

- Antes de este ter nascido, ainda estava em meu poder (e pensei nisso muitas vezes) pôr fim a esta guerra. Escapar-me discretamente e ir até ao acampamento ter com Menelau; penso que então ele teria concordado em ir para casa, e quando não restasse mais nada por que lutar (ou pelo menos mais nenhum pretexto para lutar) os Aqueus tinham de dar meia volta e regressar às nossas ilhas. Mas agora - teve um pequeno estremecimento - ele não me receberia de volta; não com o filho de outro homem nos braços.

Cassandra disse calmamente:

- Deixa-o aqui, em Tróia, então; o seu pai cuidará dele, e eu também, se é isso que verdadeiramente queres. - Depois de o ter dito, apercebeu-se de que Helena era praticamente a única pessoa em Tróia com quem ela podia falar presentemente; a sua mãe já não a entendia, nem tão-pouco as suas irmãs. Sentiria a falta de Helena, se ela voltasse para as terras de Esparta.

Helena franziu o sobrolho. Disse:

- Porque hei-de eu desistir do meu próprio filho, só porque Menelau é um idiota? - Depois de alguns instantes acrescentou: - Para dizer a verdade, Cassandra... a não ser que se esteja sob o feitiço de Afrodite, não há muita diferença entre um homem e outro, mas as crianças não se põem de lado com a mesma facilidade. Eu não sou responsável por esta guerra; e penso que Agamém­non teria entrado em guerra mais cedo ou mais tarde, independentemente do que eu fizesse ou não fizesse. - Suspirou e deixou a mão descansar sobre o ombro de Cassandra. - Minha irmã, não sou tão corajosa como me julgo; eu podia reunir coragem para voltar para Menelau, mesmo para deixar Páris; mas não consigo obrigar-me a deixar o meu filho. - Agarrou na criança que estava encostada ao seu joelho e apertou-a contra o coração.

- Deixar a tua criança? E porque havias, afinal, de fazer isso? –perguntou Andrómaca, que se aproximava do muro com Creúsa mesmo a tempo de ouvir as últimas palavras. - Nenhuma mulher conseguiria convencer-se a deixar uma criança por si gerada... ou, se conseguisse, não seria melhor que uma puta.

- Fico satisfeita por te ouvir dizê-lo - disse Helena. - Estava a tentar dizer a mim própria que era meu dever voltar para Menelau...

- Nem penses em tal coisa - disse Andrómaca, abraçando Helena. - Tu agora és nossa, e não te deixaríamos partir nem por todos os aqueus que ali estão em baixo; nem que Páris e Príamo e todos os homens quisessem que tu partisses - e eles não querem. Os deuses enviaram-te a nós e nós ficaremos contigo... não é, Creúsa? - acrescentou ela, falando com a outra mulher que assentiu e soltou uma gargalhada.

- A Deusa abençoou-te, e nós não te deixaremos partir. Helena sorriu levemente.

- Isso é bom de ouvir. Durante toda a minha vida os homens têm sido bons para mim, mas as mulheres nunca; é bom ter amigas entre vós.

- És demasiado bela para que as mulheres gostem muito de ti - disse Andrómaca -; mas já cá estás há dois anos e, ao contrário de muitas mulheres belas, não fizeste qualquer tentativa de seduzir os nossos maridos.

- Porque havia eu de fazer tal coisa? Já tenho um marido a mais do que preciso; que poderia eu querer dos vossos? - perguntou Helena, rindo-se. - Eu não tenho grande amor por Tróia; a verdade é que de boa vontade iria conhecer mais mundo, mas as mulheres não podem viajar.

Sempre que Cassandra ouvia alguém dizer algo como «As mulheres não podem...» sentia-se desejosa de fazer exactamente aquilo que era mencionado. - Mas eu estou prestes a viajar por vontade do meu Deus - disse - e se quisesses vir comigo, Helena, gostaria muito de desfrutar da tua companhia.

- E eu da tua; mas, mais uma vez, não posso deixar uma criança tão pequena - disse Helena. - Onde vais, e porquê?

- Vou a Cálcis; vou procurar a rainha Imandra e indagar sobre a arte das serpentes - disse Cassandra. - Há uma lua, as nossas serpentes morreram ou fugiram de nós; não as quero substituir até ter a certeza de que nada do que eu fiz (ou não fiz e deveria ter feito) foi responsável por isso.

Contou a história e Andrómaca ficou com um ar triste.

- Leva saudações minhas a minha mãe; e diz-lhe que estou bem casada e que tenho um filho de Heitor.

- Porque não vens e não lhe levas tu própria as saudações? O teu filho é suficientemente crescido para ficar com Hécuba e com o pai.

- Quem me dera poder - disse Andrómaca. - Se me tivesses dito isso há um mês... mas estou outra vez grávida. Talvez desta seja uma filha que possa vir a ser uma guerreira de Tróia.

- Uma guerreira?

- Porque não? Tu és uma guerreira, Cassandra, e a tua mãe foi-o an­tes de ti.

- Não ouviste o que Páris disse da última vez que eu quis levar o meu arco para as muralhas? - perguntou-lhe Cassandra, desgostosa. - Eu podia disparar neste momento; e matar Aquiles; e acabar com esta guerra sem mandar Helena para longe de nós. Mas isso não agradaria aos homens; eles não querem acabar com esta guerra.

- Não - disse Andrómaca -, eles querem vencê-la; Heitor reservou Aquiles para si próprio e nunca concordará com outra forma de pôr fim à luta. Poderás dizer-me quando isso irá acontecer e por quanto tempo mais teremos de lutar?

Cassandra sorriu maliciosamente.

- Heitor proibiu-me de profetizar desgraças - disse ela -, e, acredita-me, não tenho mais nada para dizer.

- Talvez até seja bom que tu partas para Cálcis - disse Helena. ­Cassandra, minha amiga, os deuses falaram comigo assim como contigo, e eles não me mencionaram nenhuma desgraça.

- Que possam então os teus deuses dizer a verdade e que seja falso o que os meus deuses dizem - disse Cassandra. - Nada me agradaria mais do que voltar e encontrar Aquiles morto às mãos de Heitor; e que todos eles tivessem partido de novo. «Mas não será, não poderá ser assim...

 

Cassandra acreditara que, uma vez tomada a decisão de partir para Cálcis, o resto seria apenas uma questão de obter a permissão do sacerdote e da sacerdotisa chefes, juntar a roupa que quisesse levar consigo, escolher uma companheira de viagem (ou talvez duas) e pôr-se a caminho.

Mas não foi, nem de longe, tão simples como isso. Foi-lhe recordado que havia um estado de guerra oficial entre os Aqueus e Tróia e que, portanto, teria de se chegar a um acordo (enviando longas mensagens para trás e para a frente, de um para outro templo de Apolo) para que ela viajasse sob a Paz de Apolo, visto ser mulher e sacerdotisa devota, não tendo nada a ver com a guerra quer de um quer de outro lado. Foi-lhe dado a entender que as dificuldades eram maiores por ela ser filha de Príamo e familiar chegada dos principais combatentes dessa guerra. Muito antes de terem obtido os salvo-condutos e permissões oficiais, Cassandra estava já profundamente farta de tudo aquilo e desejando que tal ideia nunca lhe tivesse ocorrido. Por fim, fez um juramento sagrado por todos os deuses de que ouvira falar (e por alguns de que nunca ouvira) em como não entregaria, de nenhuma das partes, mensagens relacionadas com a guerra, e foi declarada mensageira oficial de Apolo, sendo-lhe permitido viajar por onde desejasse.

Crises queria ir com ela e Cassandra sentia alguma compaixão por ele; chorava ainda o destino da sua filha no acampamento aqueu, e saber que Agamémnon escolhera a rapariga para sua amante não ajudava nada. Contudo, e apesar de Crises ter jurado a Cassandra que respeitaria a sua virgindade como se ela fosse a sua própria filha, ela não confiava nem mesmo nos seus votos e recusou-se a levá-lo no grupo. Visto ele ser um sacerdote de Apolo, muitíssimo respeitado, durante algum tempo pareceu a Cassandra que não lhe iria ser permitido partir sem ser escoltada por ele; mas, por fim, ela apelou para Cáris dizendo que preferia ficar dentro das muralhas até ter cabelos brancos do que viajar um só passo na companhia dele; e finalmente a questão foi posta de lado.

Depois Príamo quis enviar mensagens a muitos amigos que poderia encon­trar ao longo do caminho, e ele teve de jurar que se tratava de questões de famí­lia, ou de questões religiosas que nada tinham a ver com a guerra. Compreendia que existiam razões para isso, pois os viajantes sob imunidade religiosa tinham, muitas vezes, aproveitado essa imunidade para espiar para um e outro lado. E, por fim, a sua mãe recusou-se a deixá-la partir sem as damas de companhia adequadas; Cassandra, que teria preferido viajar sozinha ou com uma única acompanhante - de preferência uma cavaleira amazona como Pentesileia ­acabou tendo de aceitar duas das mais velhas e medrosas camareiras de sua mãe e prometer que, durante a viagem, partilharia sempre com elas a sua cama.

«Em que estará ela a pensar?», perguntou a si própria. «Se eu me quisesse entregar à luxúria, não iria certamente viajar até ao fim do mundo e fazê-lo sobre o chão duro, ao fim de um dia inteiro de viagem, quando o poderia fazer, facilmente, na minha própria cama.»

Mas ela sabia que era essa a vontade da sua mãe e que não havia, de facto, nada que pudesse fazer quanto a isso; assim, aceitou as mulheres escolhidas por Hécuba.

- Porque se eu recusar - disse ela a Fílidas, quando parecia que, finalmente, todos os obstáculos estavam eliminados e que partiria no dia seguinte ­ela pensará que eu quero, de alguma forma, escapar à sua vigilância; e não consegue encontrar nenhuma razão para eu querer fazer tal coisa, a não ser que esteja a pensar portar-me mal. O que será que se passa com as mulheres, para serem levadas a suspeitar tais coisas umas das outras, Fílidas?

Fílidas suspirou.

- A experiência, suponho - disse ela. - Não me disseste tu mesma que tinhas Criseide vigiada noite e dia, e que ainda assim não poderias garantir a sua inocência?

Cassandra sabia que isto era verdade; mas sentia-se furiosa. Lembrava-se de Star dizendo que as mulheres da cidade eram tão devassas que tinham de ser encerradas entre paredes.

«As mulheres», pensou Cassandra, «à excepção das Amazonas, passam o tempo sentadas a pensar em quem amam unicamente por não terem mais nada com que ocupar o espírito. Se tivessem um rebanho de ovelhas, ou uma manada de cavalos para cuidar, seria muito melhor para elas.» Mas isso não tinha evitado que Enone se lamentasse quando Páris a abandonara.

Ficou acordada durante grande parte da última noite pensando nessa misteriosa emoção que transformava mulheres, habitualmente sensatas, numas idiotas incapazes de pensar noutra coisa que não os homens que lhes inspiravam amor.

Tinha sido determinado que partiria ao romper do dia; levantou-se assim que a luz começou a aparecer no céu e comeu um pouco de pão com uma caneca de vinho aguado ao pequeno-almoço. Esperara viajar num cavalo veloz; mas as suas companheiras eram demasiado idosas e circunspectas para isso, assim escolhera um velho e tranquilo burro e decidira fazer com que as mulheres idosas fossem transportadas em liteiras. Os homens que carregavam as liteiras e os criados - quase seus guardas - eram todos jovens e fortes servos do Templo de Apolo.

Tinha esperado escapulir-se discretamente, mas quando se aproximou dos portões viu que ali se juntara um pequeno grupo de pessoas: Crises, Fílidas e alguns outros que desejavam dizer-lhe adeus.

Fílidas abraçou-a e beijou-a, desejando-lhe uma boa viagem e um regresso tranquilo; Crises aproximou-se e abraçou-a também, muito contra a vontade de Cassandra.

- Volta para nós depressa e em segurança, minha querida - murmurou ele, os lábios junto ao seu ouvido. - Vou sentir a tua falta mais do que consigo expressar. Diz que também sentirás a minha.

Ela pensou: « Vou sentir tanto a tua falta como a de uma dor de dentes», mas era demasiado bem educada para o dizer. «Que os deuses te guardem em segurança e te tragam Criseide de volta», disse ela, pensando que não lhe desejava mal, mas que gostaria que ele arranjasse uma mulher e parasse de a incomodar. Depois incitou o burro e partiram.

Antes de se afastarem do litoral, tinham de passar os barcos aqueus. Aqui seriam testadas pela primeira vez as tréguas de Apolo.

Uma sentinela no exterior do acampamento aqueu ergueu-se e gritou um aviso; e um dos capitães, completamente couraçado com metal decorado a ouro, aproximou-se deles.

- Quem vem lá? Será o rei de Tróia tentando fugir da cidade e do cerco? ­provocou ele. - Eu sabia que eles eram uns cobardes.

- Não é nada disso - disseram os guardas. - A dama é uma sacerdotisa de Apolo e viaja sob a Sua garantia de paz.

- Ah, sim? - disse o capitão, e olhou para o rosto de Cassandra de uma forma tão directa e grosseira que, pela primeira vez na sua vida, Cassandra percebeu a razão de a tradição ordenar às mulheres aqueias que usassem véus. - Uma sacerdotisa, hã? Da Senhora Afrodite? É suficientemente bela para isso.

- Não; ela é uma das virgens devotas do Senhor do Sol - disse o chefe da escolta de Cassandra - e está proibida a qualquer homem à excepção do Deus. - Uma virgem, hã? Que desperdício - disse o homem, desgostoso -; mas seria necessário um homem mais corajoso que eu para disputar ao Senhor Apolo uma das Suas virgens. E que beldades se escondem dentro das liteiras? - inqui­riu ele, afastando as cortinas.

Cassandra estava farta de se esconder por trás da sua escolta.

- Duas das camareiras de minha mãe - disse ela. - Para que cuidem de mim e assegurem que nenhum homem me faça qualquer ofensa.

- Estás bastante segura em relação a mim e, diria, em relação a qualquer homem - disse o soldado, recuando respeitosamente.

- Lamento que as senhoras que me acompanham não mereçam a tua aprovação - disse Cassandra -, mas elas estão aqui para minha comodidade e não para tua, senhor; e a minha viagem tem a ver com Apolo e não contigo, por isso peço-te que me deixes passar.

- Aonde vais? E quais são os interesses de Apolo fora do seu templo? - Vou para Cálcis - disse ela. - E, de facto, a minha viagem deve-se aos assuntos de Apolo; procuro uma mestra na arte das serpentes para que as suas serpentes sejam devidamente tratadas no seu templo.

- Uma pequena senhora como tu viajando sozinha para tão longe? Se fosses minha filha eu não o permitiria; mas suponho que o Deus sabe que quem Lhe pertence está seguro em toda a parte - disse o soldado. - Passa então, senhora, e que Apolo te guarde. Dá-me a sua bênção, peço-te - acrescentou com um gesto reverente.

Aquela era a última coisa que ela esperava, mas estendeu as mãos num gesto de bênção e disse:

- Que Apolo, Senhor do Sol, te abençoe e te guarde, senhor - e passou por ele.

Conseguia ver até tão longe do alto das muralhas de Tróia, que já se esquecera do tempo que levava a cobrir as distâncias; acamparam naquela noite e em muitas noites depois daquela, à vista da cidade e acordavam vendo o brilho da luz do Sol reflectindo-se na casa do Senhor do Sol. Lembrava-se da sua viagem com as Amazonas; custava-lhe a crer que desde esse tempo até àquele momento vivera por detrás dos limitadores muros da sua cidade. Tróia - o seu lar e a sua prisão. Voltaria ela a vê-la de novo?

Durante o longo intervalo que medeara entre o propor a viagem e, finalmente, ter conseguido partir, tivera muito tempo para preparativos, e mandara fazer duas tendas: uma delas leve, feita de pano de linho ensebado, e uma outra igual às que as Amazonas usavam quando chovia. Durante os primeiros dias o tempo esteve bom, e sob as estrelas a tenda era agradavelmente fresca, apesar de as suas duas damas de companhia, interpretando literalmente as instruções da sua mãe, a fazerem dormir com a sua manta estendida entre as delas. Cassandra, que sempre tivera o sono agitado, ficava por vezes acordada durante horas, sentindo, sob o chão da tenda, cada pedra e depressão do solo enterrando-se nas suas costas, e detestando mudar de posição por temer incomodar uma ou outra das suas companheiras. Apesar disso, podia ouvir o vento e sentir a brisa fresca no exterior da tenda, o que pelo menos era diferente dos ventos imutáveis nas alturas de Tróia.

Dia após dia, a sua pequena caravana arrastava-se penosa e vagarosamente pela vasta planície sem qualquer incidente. Encontraram poucos viajantes no caminho, à excepção de uma grande fila de carroções carregados de ferro destinado a Tróia, e quando lhes foi dito que a cidade estava sob cerco, ficaram sem saber se deviam dar meia volta e dirigir-se para norte, até à Trácia, ou mesmo voltar para Cálcis.

- Pois os Aqueus não negociarão connosco pelo metal - disse o chefe. - Eles preferem o seu próprio tipo de armas e, muito provavelmente, não nos deixarão de todo entrar na cidade; e então teremos de voltar para trás, sem qualquer outra compensação para o nosso trabalho para além da própria viagem, ou então os Aqueus ainda capturam a caravana inteira.

Cassandra pensou que isso era, de facto, muito provável. - Conheces alguns dos aqueus que lá estão?

- Aquiles, filho de Peleu; Agamémnon, rei de Micenas, e Menelau de Esparta; Odisseu...

- Ah, bom, isso é diferente - disse o chefe da caravana. - Podemos negociar com Odisseu como o faríamos com Príamo; ele é um homem honesto. - Levantou a voz para os seus condutores: - Parece que afinal sempre vamos para Tróia, companheiros.

E depois, é claro, quis saber o que fazia ela viajando sem a sua família e, quando ela respondeu, ele deu-lhe a agora já esperada resposta dizendo que se ela fosse sua filha não o permitiria.

- Mas suponho que o teu pai sabe o que faz - concluiu ele em tom de dúvida. E Cassandra não viu razão para lhe explicar que não fora pedida permissão a Príamo, e que não lhe tinha sido dada oportunidade de consentir ou recusar.

- Quererás que leve alguma mensagem tua para Tróia, pequena senhora? - Unicamente para que se saiba na casa do Senhor do Sol que estou viva e de saúde. Eles de lá passarão a mensagem ao meu pai e à minha mãe.

E com expressões de mútua boa vontade e bênçãos separaram-se, movendo­-se lentamente sobre a vasta planície como dois riachos correndo em direcções opostas. Mais algumas noites e, sabia-o, o seu grupo entraria as fronteiras das terras dos Centauros.

- Os Centauros? - disse Adrias, uma das suas damas de companhia. - Oh, os Centauros não! - gritou Car, a outra.

- Claro, ama; eles vivem nestas terras e nós temos de atravessar o seu território. É quase inevitável que encontremos um ou mais dos seus grupos errantes.

Mas as mulheres tinham sido educadas ao som das velhas histórias infantis. - E tu não tens medo dos Centauros, princesa Cassandra? - perguntou Car, e ela respondeu:

- Não, nenhum.

Supunha que aquela era uma resposta pouco feminina; Car ficara com o ar de quem achava que o próprio facto de qualquer mulher poder escapar ao medo daquilo que a ela própria tanto assustava, era motivo de ofensa. Cassandra suspirou e acabou de beber o vinho que tinha na sua caneca.

- Temos de acabar de beber isto - disse ela -, está a começar a azedar e não se vai conservar com o calor. Poderemos arranjar mais algum na próxima aldeia, talvez daqui a um ou dois dias - e o resto da conversa foi sobre coisas triviais.

 

Confirmando o que previra, avistaram os Centauros no começo do dia seguinte. A princípio, movendo-se por entre um mar de erva sem fim, Cassandra não conseguia ver nada; depois, muito ao longe no limite do alcance da sua visão, vislumbrou sombras movendo-se e, por fim, distinguiu uma... não, duas... não, três silhuetas escuras, a cavalo, destacando-se contra o ondular dourado das ervas. Parecia terem visto a pequena caravana e aproximaram-se uns dos outros conferenciando; houve um momento em que pensou que fugiriam todos. Depois deram meia volta e aproximaram-se, cavalgando em direcção aos Troianos.

Cassandra parou o seu burro, mas não fez qualquer outro movimento de recuo; de há muito que sabia que nunca se deveria deixar um centauro pensar que se tinha medo dele ou, implacavelmente, ele tiraria disso vantagem.

Disse baixinho através das cortinas da liteira em que as senhoras viajavam: - Amas, queriam ver um centauro. Aqui está um.

- Eu? - disse Adrias. - Nem pensar - mas apesar disso esticou a cabeça e espreitou por entre as cortinas. Car imitou-a.

- Que homenzinho tão esquisito e feio - murmurou ela; - e desavergonhado; nu como um animal.

- Porque hão-de eles usar roupas se não há ninguém para as ver ou para se importar com isso? Quando vão até às cidades, têm vestes que podem usar se Lhes apetecer - disse Cassandra, e olhou para o grupo que se aproximava. O mais adiantado de entre eles era grisalho e curvado, as suas pernas ainda mais pequenas e ab,. aladas que as dos outros. Usava um colar de presas de leão em torno do pescoço. Cassandra reconheceu-o, apesar de ele estar velho e mir­rado.

- Quíron - disse ela, e ele fez uma vénia por cima do pescoço do cavalo. - Parente de Pentesileia, saudações. Quando nos encontrámos da última vez, tínhamos mel encontrado nos campos. A nossa tribo é pobre, nos dias que correm. Há muitos, muitos viajantes na planície; assustam a caça, espezinham as plantas selvagens. As nossas cabras não dão leite nem para os rapazes mais pequeninos. Passamos muita fome.

- Nós viajamos para Cálcis - disse Cassandra. - Podes indicar-nos o caminho?

- Com prazer, se é esse o teu desejo - disse o velho centauro com o seu sotaque bárbaro. - Mas porque é que vocês viajam para longe de Tróia? O mundo inteiro está a dirigir-se para lá, por causa da guerra, parece. Se não para lutar, então para vender algo aos combatentes, quer de um quer do outro lado.

Isto era de tal forma verdadeiro que ela não viu razão para fazer comentários.

Antes de deixar Tróia, pedira uma boa meia dúzia de pães nas cozinhas, pois sabia que os Centauros não cultivavam nem moíam cereais e que aquele era para eles um luxo muito pouco habitual. Quando foram desembrulhados e oferecidos, os olhos do homenzinho brilharam - Cassandra pensou que de verdadeira fome - e ele disse:

- A filha de Príamo é generosa. O teu marido combate nas grandes batalhas diante de Tróia? Se combate, presenteá-lo-ei com flechas mágicas que nunca deixarão de fazer tombar os inimigos dela, ainda que não os atinjam em nenhum ponto vital.

- Eu não tenho marido - disse ela. - Estou prometida ao Senhor do Sol e não aceitarei mais ninguém senão Ele. E não preciso de nenhuma das tuas flechas envenenadas com peçonha extraída dos sapos.

Por instantes o homenzinho olhuu-a furioso; depois inclinou-se para trás teve um grande ataque de riso; a seguir fez algo (Cassandra não conseguiu ver o quê) que obrigou o seu cavalo a cabriolar e empinar-se, curvando-se depois.

- Huh-huh-huh - casquinou ele. - A filha de Príamo é boa e esperta; nenhum homem do meu povo lhe fará mal enquanto ela percorrer as nossas terras, nem a ela nem a nada que lhe pertença. Nem mesmo às mulheres velhas que espreitam lascivamente os meus homens atrás das suas cortinas! Mas se não tens utilidade para esses sapos velhos, dá-as aos meus homens; não prestam para o bang-bang - acompanhou as sílabas sem sentido com um gesto que tornou o seu significado obscenamente evidente - mas podíamos cozê-las para obter veneno para as flechas, huh-huh-huh !

Cassandra esforçou-se por manter o rosto sério.

- De modo algum; não quero viajar sem as minhas mulheres, elas são boas para mim - disse Cassandra - e eu não viajaria através das tuas terras com mulheres jovens e bonitas.

- Hmm; inteligente - disse ele e, virando o cavalo, afastou-se rapidamente.

Ela ergueu a mão, fazendo sinal de que ainda não terminara o que tinha para lhes dizer, e ele virou-se e recuou um pouco. Perguntou:

- Saberá o sábio chefe do Povo Cavaleiro onde as mulheres de Pentesileia pastam as suas éguas este Verão?

Ele explicou-lho rapidamente, acompanhando com gestos. Visto que não us faria desviarem-se muito do seu caminho, Cassandra decidiu continuar naquela direcção. Mais uma vez se despediu cortesmente de Quíron, que já começara a repartir os pães com os seus homens e já tinha migalhas em volta da boca.

Depois de mais um longo dia, viajando na direcção que o centauro indicara, Cassandra viu, à distância, uma figura montada. A desconhecida trazia um arco cruzado sobre as costas, tal como o usavam as mulheres de Pentesileia. Cassandra acenou-lhe e a mulher aproximou-se.

- Quem viaja no nosso país com uma escolta de homens?

- Sou Cassandra, filha de Príamo de Tróia, e procuro a minha parente Pentesileia, a amazona - disse ela.

A mulher, vestida com a túnica e os calções das mulheres da tribo, com o seu longo e áspero cabelo preto preso ao alto, olhou-a desconfiada; e por fim disse: - Lembro-me de ti em criança, princesa. Não posso deixar as minhas éguas - apontou para a manada esquelética pastando as poucas ervas da planície - e não me compete a mim convocar a rainha. Mas vou enviar um aviso de que lhe querem falar, e, se lhe parecer bem, ela virá.

Desmontou e ateou uma pequena fogueira, lançando algo para as chamas que as fez libertar grandes nuvens de fumo; cobriu o fogo e depois deixou o fumo subir em nuvens triplas e sucessivas. Depois de algum tempo, Cassandra viu uma figura alta a cavalo, abrindo caminho através da planície. Quando se aproximou, reconheceu a sua parente.

O cavalo de Pentesileia aproximou-se e ela viu o espanto espalhar-se no rosto da amazona; depois de alguns instantes Cassandra apercebeu-se de que a sua parente não a reconhecera. Quando Pentesileia a vira pela última vez, ela era uma rapariguinha; agora que estava mais velha, vestida e enfeitada como uma princesa, uma sacerdotisa, não passava de uma mulher desconhecida.

Gritou o seu nome.

- Não me reconheces, tia?

- Cassandra! - O rosto de Pentesileia, tenso e bronzeado pelo sol, relaxou-se, mas continuava com um aspecto duro e envelhecido. Aproximou-se e desmontou, abraçando Cassandra com afeição. - Porque vieste até aqui, filha?

- Vim procurar-te, tia. - Da última vez que vira a sua tia, Pentesileia tinha um aspecto jovem e forte; agora Cassandra perguntava-se que idade teria ela realmente. O seu rosto estava marcado por centenas de pequenas rugas em torno da boca e dos olhos; ela sempre fora magra, mas agora estava positivamente esquelética. Cassandra perguntou=se se as Amazonas, tal como os Centauros, não estariam verdadeiramente a morrer de fome.

- Como vai a guerra em Tróia? - perguntou a mulher mais velha. - Querem ficar no nosso abrigo esta noite e falar-nos sobre isso?

- Com prazer - disse Cassandra -; e poderemos falar à vontade sobre a guerra; apesar de eu estar farta dela.

Deu instruções aos carregadores para que seguissem a amazona, e ela própria acompanhou Pentesileia em direcção a uma gruta na encosta de uma colina. Lá dentro encontrava-se uma escassa meia dúzia de mulheres, na sua maioria idosas, e um pequeno número de rapariguinhas. Quando viajara pela última vez na sua companhia, havia uma boa meia centena. Agora não existiam bebés nem mulheres jovens em idade de ter filhos.

Pentesileia apercebeu-se da direcção do seu olhar e disse:

- Elaria e mais cinco estão na aldeia dos homens. Tive medo, mas sabia que as tinha de deixar ir agora ou nunca mais me atreveria a deixá-las ir outra vez. É verdade... não soubeste o que aconteceu, pois não? Então a nossa desonra ainda não foi contada em Tróia...

- Eu não ouvi nada, tia.

- Vem para aqui e senta-te. Conversaremos enquanto comemos, então. ­Sorriu e fungou apreciativamente. - Não comíamos tão bem havia já muitas luas. Obrigada.

A sua refeição tinha sido melhorada com carne e pão das provisões de Cassandra.

- No entanto - disse Pentesileia -, não estamos tão mal como os Centauros; eles estão a morrer de fome, e em breve não restará nenhum. Chegaste a encontrar algumn deles?

Cassandra contou-lhe o seu encontro com Quínon, e a mulher mais velha assentiu com a cabeça.

- Sim, podemos confiar sempre nele e nos seus homens. Em nome da Deusa, eu desejava... - calou-se. - No ano passado combinámos ir a uma das aldeias dos homens... fizemos uma combinação para negociar panelas de metal, cavalos e também algumas das nossas cabras leiteiras. Bem fomos como de cos­tume, e tudo parecia ir pelo melhor. Passaram-se duas luas; algumas de nós estavam grávidas, e estávamos prontas para partir. Eles suplicaram-nos que ficássemos mais um mês, e nós concordámos. Então, quando estávamos prestes a partir, fizeram-nos uma festa de despedida e trouxeram um vinho novo. Dormi­mos profundamente, e quando acordámos (o vinho estava drogado, é claro) estávamos atadas e amordaçadas e eles disseram-nos que não os podíamos deixar; que tinham decidido que queriam viver como os homens das cidades, com mulheres que tratassem deles durante todo o ano e que partilhassem as suas camas e as suas vidas... - Calou-se, tremendo de indignação e de dor. - Todo o animal tem a sua estação própria para acasalar. Tentámos recordar-lhes esse facto, mas eles não nos deram ouvidos. Então dissemos-lhes que consideraríamos essa possibilidade se eles nos soltassem; eles disseram-nos que tínhamos de lhes cozinhar uma refeição, porque os homens nas cidades tinham mulheres para cozinhar para eles e cuidar das suas necessidades. Até forçaram algumas das mulheres que já estavam grávidas a ir para a cama com eles! Então cozinhámos­-Lhes uma refeição; e podes imaginar o tipo de refeição que era - sorriu com ferocidade. - Mas algumas das mulheres quiseram poupar os pais dos seus filhos... só a Mãe Terra saberá onde terão ido elas buscar tais ideias. Assim, alguns deles tinham sido avisados, e enquanto eles vomitavam e se purgavam, nós preparámo-nos para partir; mas uns quantos deles forçaram-nos a lutar. Bem, não os conseguimos matar a todos; e assim perdemos um grande número das nossas mulheres: as traidoras ficaram e não voltaram para nós.

- Ficaram com os homens que... que vos tinham feito isso?

- Sim; disseram que estavam cansadas de lutar e guardar manadas-disse Pentesileia com desdém. - Irão com homens para a cama em troca do seu pão... não são melhores que as putas das vossas cidades. É uma perversão desses Aqueus; eles dizem até que a nossa Mãe Terra não é mais que a mulher do Senhor do Trovão, Zeus...

- Blasfémia! - concordou Cassandra. - Esm não era a tribo de Quírun" - Não; nesses podemos confiar. Eles mantêm, cumo nós, as velhas tradi­ções - disse Pentesileia. - Mas quando Elaria levou este ano as mulheres à aldeia dos homens, obrigámo-las a fazer um juramento que não se atreverão a quebrar, e fizemo-las deixar connosco todas as crianças desmamadas. Escon­demo-nos aqui nas cavernas porque com as nossas mulheres juvens e fortes ausentes, não temos guerreiras para proteger as nossas manadas...

Cassandra não conseguiu pensar em nada para dizer. Era o fim de um estilu de vida que durara milhares de anos naquelas planícies; mas o que podiam elas fazer?

- Houve muita seca? Quíron disse-me que é muitu difícil encontrar comida.

- Isso também; e algumas tribos foram gananciosas e quiseram possuir muitos cavalos, pondo a pastar mais animais do que aqueles que as planícies podiam alimentar, para os poderem vender em troca de potes de metal e tecidos e sei lá que mais... e assim somos nós, aqueles que sempre trataram bem a terra, que estamos a morrer. A Mãe T'erra não estendeu a Sua mão para os punir. Não sei... talvez não existam deuses que ainda se importem com o que us homens fazem... -O seu rosto tinha um ar fatigado e envelhecido.

- Não percebo - disse Adrias. - Purque é que te preocupa tantu u facto de algumas das tuas mulheres terem escolhido viver como todas as mulheres vivem agora nas cidades? Vocês, mulheres, podiam viver bem, com maridos que olhas­sem pelos vossos cavalos; e podiam ficar com os vossos filhos assim como com as vossas filhas, e não precisavam de passar o tempo todo a lutar para se defende­rem. Muitas, muitas mulheres vivem assim e não vêem nisso nada de errado; queres dizer que elas estão todas erradas? Porque queres viver à parte dos homens? Não são vocês mulheres como todas as outras?

Pentesileia suspirou, mas, em vez do comentário desdenhoso e imediato que Cassandra esperara, ficou pensativa por alguns instantes; Cassandra sentiu que ela queria realmente que aquela mulher idosa da cidade, que tão fortemente a desaprovava, compreendesse.

Por fim disse:

- Tem sido nosso costume vivermos entre as nossas iguais e sermos livres. Eu não gosto de viver entre paredes; e porque teremos nós mulheres de tecer, fiar e cozinhar? Será que os homens não usam roupas, para não precisarem de as fazer? E certamente que os homens comem; porque terão as mulheres de cozinhar toda a comida que se come? Os homens nas suas próprias aldeias cozinham bastante bem, quando não há mulheres à mão que cozinhem para eles. Então porque hão-de as mulheres viver como escravas dos homens?

- A mim não me parece escravidão - protestou a mulher -, unicamente uma troca justa; achas então que os homens são escravizados pelas mulheres quando guardam as cabras e os cavalos?

Pentesileia disse veementemente:

- Mas as mulheres fazem essas coisas como se fosse em troca de partilhar as camas deles e gerar os seus filhos. Como as prostitutas que se vendem nas vossas cidades. Não consegues ver a diferença? Porque terão as mulheres de viver com homens quando elas próprias podem cuidar das suas manadas e alimentar-se dos seus próprios jardins e viver livres?

- Mas se uma mulher desejar ter crianças, precisa de um homem. Mesmo tu, rainha Pentesileia...

Pentesileia disse:

- Poderei perguntar-vos, sem ofensa, senhoras, porque é que não se casaram?

Car falou primeiro, dizendo:

- Ter-me-ia casado com todo o gosto; mas prometi que ficaria com a rainha Hécuba enquantu ela desejasse a minha companhia. Não senti a falta do casamento; vi nascer os seus filhus e partilhei da tarefa de os educar. E, como a princesa Cassandra, não encontrei nenhum homem a quem amasse o suficiente para me separar da minha amada senhora.

- Respeito-te por isso - disse Pentesileia. - E tu, Adrias?

- Pobre de mim, nãu era bela nem rica; por isso nunca apareceu nenhum homem. Assim sirvo a minha rainha e as suas filhas, mesmo que isso signifique seguir a princesa Cassandra até estes sítios selvagens e esquecidos pela Deusa, cheios de centauros e de outras gentes selvagens...

- Então há outras razões para além da simples perversidade, pelas quais uma mulher pode decidir não se casar - disse Pentesileia. - Se está certo vocês não se casarem por lealdade para com a vossa rainha, porque não há-de Cassan­dra manter-se fiel ao seu Deus?

- Não é o facto de ela não se casar - disse Adrias -; é o facto de não desejar casar-se. Como é que se pode sentir compreensão por uma mulher assim? Isto foi demasiado para Cassandra; explodiu dizendo aquilo que recalcava há dias.

- Eu não pedi a vossa compreensão, assim como não pedi a vossa compa­nhia; não vos convidei a virem comigo e o vosso regresso a T'róia será bem-vindo. Aí estarão rodeadas de mulheres decentes, e eu viajarei para Cálcis cum a minha parente sem uma escolta - disse ela zangada. - Não tenho necessidade da vossa protecção.

- Bom, realmente! - disse Adrias com ressentimento. - Conheço-te desde bebé, senhora minha, e o que eu disse não é mais do que diria a tua própria mãe, se falo, é tudo para teu próprio bem...

Pentesileia disse apaziguadoramente:

- Peço-vos que não discutam; têm ainda um longo caminho a percorrer. Cassandra, minha querida filha, ainda que eu pudesse acompanhar-te eu própria até Cálcis, não poderia garantir a tua segurança no caminho. Rezo para que o nome de Príamo e de Apolo o façam. Talvez seja esta guerra; talvez seja o alastrar dos costumes dos Aqueus, agora que ruiu o mundo minóico. Tu ainda nem me disseste por que razão viajas para Cálcis; é simplesmente porque a rainha é uma velha amiga tua, ou será que Príamo decidiu chamar aliados mesmo vindos dessa distância?

Ela contou a Pentesileia do tremor de terra e da deserção das serpentes do templo, e a amazona empalideceu perante tal augúrio.

- Mesmo assim confiarei no Senhor do Sol - disse Cassandra. - Não tenho mais ninguém em quem confiar; e se conseguir chegar a Cálcis sem outra protecção que não a Sua bênção, tomarei isso como sinal da continuação da Sua boa vontade.

- Que Ele te proteja, então, e que te guie - disse Pentesileia -, e que a própria Mãe Serpente te receba e te abençoe em Cálcis... e em toda a parte, minha querida.

Pouco depois foram descansar; mas Cassandra ficou por longo tempo acordada.

Quando adormeceu, os seus sonhos foram irrequietos; procurava qualquer coisa - uma arma perdida, talvez um arco -, mas sempre que pensava tê-lo encontrado, não era aquele que procurava, estava quebrado ou tinha a corda rebentada, ou outra coisa no género.

Que seria que os deuses lhe queriam dizer? Era uma sacerdotisa; tinham-lhe ensinado que todos os sonhos eram mensagens dos deuses, desde que se conse­guisse encontrar-lhes o sentido. O facto de não conseguir interpretar este sonho significava apenas que ela não era, como já há muito suspeitava, digna de receber as graças do Senhor do Sol, que Ele se retirara dela. Por mais que tentasse, tudo o que conseguia deduzir do sonho era apenas um vago mau augúrio, de que, fosse o que fosse que ela procurasse nesta busca, não o encontraria.

De manhã, Pentesileia ofereceu-lhe presentes bem como às suas mulheres ­selas novas e uma manta quente feita de pele de cavalo.

- Precisarás dela, acredita-me, quando atravessares a grande planície ­disse ela. - Os Invernos ultimamente têm sido mais rigorosos, e pode ainda haver neve.

Quando a abraçou despedindo-se, Cassandra sentiu vontade de chorar. - Quando nos encontraremos de novo, parente?

- Quando os deuses o desejarem. Se alguma vez for da vontade da Mãe Terra que eu acabe os meus dias numa cidade, irei acabá-los em Tróia. Não creio que a tua mãe deixasse de acolher a última das suas irmãs, nem que Príamo me fechasse a porta. Talvez eu devesse ir lá com as minhas guerreiras e tentar correr com alguns desses aqueus.

- Quando esse dia chegar, lutarei ao teu lado - prometeu Cassandra; mas Pentesileia limitou-se a abraçá-la com grande ternura e disse:

- Esse não é o teu destino nesta vida, meu amor; não faças promessas que não podes cumprir - e afastou-se a cavalo, sem olhar para trás.

 

O Inverno arrastava-se, de facto, longamente na grande planície, e nos quatro dias seguintes a terem passado a noite com Pentesileia e o que restava das suas amazonas, o céu escureceu e a neve começou a cair tão fortemente que Cassandra se perguntou como conseguiriam os seus acompanhantes seguir o trilho estreito e mal definido. Nevou durante todo aquele dia e o seguinte e, apesar de continuarem a avançar, não encontraram praticamente nenhum sinal de vida humana. Avistaram uma vez, ao longe, através da neve, um centauro de vigia, recortado contra o horizonte; mas quando iam fazer-lhe sinal ele virou-se e afastou-se a galope.

Cassandra não ficou surpreendida; pelo que Pentesileia lhe dissera, sabia que os habitantes da grande planície, nunca muito inclinados a confiar nos estranhos, se sentiam ainda menos inclinados a fazê-lo agora. Era uma sorte ela não precisar de negociar com eles por comida ou quaisquer outros artigos. Dia após dia se arrastaram ao longo da planície, os cascos dos seus animais cortando a pesada lama de onde antes existira erva gelada, a neve nunca suficientemente espessa para constituir um perigo e a chuva fraca nunca suficiente para descon­gelar mais do que umas poucas polegadas de solo gelado. As grandes estepes estavam vazias e estéreis; encontraram a pouca comida suficiente para completar as suas monótonas rações de viagem, e Cassandra começou a sentir-se cansada de viajar por terras vazias, arrastando-se sob um céu sem fim que lhe parecia tão cinzento e hostil como os rostos dos seus companheiros.

A um dia sombrio sucedia-se outro, enquanto a Lua minguava e se esbatia para depois encher de novo; quanto tempo poderia durar este Inverno? Mais tarde, pouco depois de ter tido a visão de uma lua cheia entrecortada por farrapos de nuvens, acordou ouvindo ventos fortes e uma chuva pesada que-, caindo em grossos cordões, parecia arrastar consigo a própria terra.

A manhã seguinte trouxe consigo uma paisagem transformada, com peque­nos riachos correndo por todo o lado à superfície do solo, brilhando sob um sol novo e forte, com ervas despontando por todo o lado sob ventos suaves e quentes. Em breve o tempo aqueceu tanto que Cassandra dobrou e guardou a sua túnica de pele de cavalo e cavalgou só com a sua camisa macia de algodão.

Num desses dias de Primavera chegaram a uma aldeia. Não passava de um ajuntamento de cabanas redondas de pedra, na planície; mas rodeando-a havia campos de verdejante cereal de Inverno descoberto pela neve que, de um momento para o outro, desaparecera. Cassandra lembrou-se da aldeia atacada pela peste, por onde passara com as Amazonas havia já tantos anos, onde tantas crianças eram deformadas. Mas se esta era a mesma aldeia, tinha conseguido de alguma maneira sobreviver à praga, pois todas as crianças que via pareciam ser fortes e saudáveis. Mais tarde, no entanto, viu alguns rapazes e raparigas mais velhos só com dois dedos numa mão. Antes disto não tinham visto sinais de vida humana durante oito ou dez dias, e quando a chefe da aldeia apareceu para os receber, também pareceu satisfeita ao vê-los.

- O Inverno demorou-se longo tempo sobre a terra - disse ela - e não vimos quaisquer humanos durante todo o Inverno à excepção de um pequeno grupo de centauros, tão enfraquecidos pela fome que nem fizeram quaisquer tentativas com as nossas mulheres, implorando-nos apenas comida de qual­quer tipo.

- Acho que isso é triste - disse Cassandra, mas a chefe contorceu o rosto com desdém.

- Tu és uma sacerdotisa; faz parte do teu trabalho sentir compaixão mesmo por gente como eles, suponho. Mas eles aterrorizam-nos com demasiada frequência para que eu sinta outra coisa que não satisfação quando vejo que desceram tão baixo. Com um pouco de sorte morrerão todos de fome, e então não teremos necessidade de os temer mais. Tens metais ou armas para negociar? Ninguém passa por aqui para negociar nestes tempos; todos os metais que têm são destinados à guerra em Tróia, e nós não conseguimos arranjar nenhuns.

- Lamento; só tenho as minhas próprias armas - disse Cassandra. - Mas compraremos alguns dos vossos potes se vocês ainda os fizerem.

Os potes foram trazidos e longamente examinados; a escuridão caiu en­quanto o grupo de Cassandra estava ainda a apreciá-los, e a chefe convidou-os a jantar à sua mesa e a continuar o negócio pela manhã. Colocou uma das cabanas de pedra à disposição deles e convidou-os para jantar na cabana central. A co­mida era bastante pobre - uma carne que parecia ser de alguma espécie de es­quilo das estepes, guisada com bolotas amargas e umas raízes brancas e insípidas; mas pelo menos era acabado de cozinhar. Cassandra, lembrando-se da praga, sentia-se algo relutante em comer fosse o que fosse naquele lugar, mas disse para si própria que não se ia preocupar com isso - pois embora eu ainda esteja, suponho, em idade de ter crianças, não sou casada, nem é provável que venha a ser. E, de qualquer forma, enquanto tiver estas senhoras a dormir uma de cada lado da minha cama, muito dificilmente conseguiria arranjar uma criança. Se esta aldeia não tivesse, de algum modo, conseguido recuperar dessa praga», pensou ela, «teria desaparecido por morte de toda a gente.»

Alguns dias mais tarde avistaram os portões de ferro de Cálcis, altos e magníficos como sempre, e Cassandra vestiu-se, não com as suas roupas de montar em couro, mas com um dos seus mais finos vestidos troianos, tingido de cores brilhantes, e mandou uma das suas camareiras arranjar-lhe o cabelo com o penteado de complicadas tranças que usava no Templo do Senhor do Sol. Pelo menos, a rainha Imandra recebê-la-ia como uma princesa de Tróia e não como uma vagabunda suplicante.

Junto aos portões de ferro da cidade foram recebidos como enviados de Tróia e convidados a instalar-se no palácio. Cassandra, dizendo que tinha primeiro que prestar homenagem ao Templo do Senhor do Sol, foi ao Seu enorme santuário, mesmo no centro da cidade, e sacrificou duas pombas a Apolo do Arco e das Flechas. Depois disso foi levada para o palácio e conduzida a um dos luxuosos aposentos de hóspedes, onde havia criadas à sua disposição para a banharem e vestirem. Durante o longo processo que era tomar banho - ou antes, ser banhada - apercebeu-se de que, enquanto durara a longa viagem, quase esquecera o sabor do luxo. Desfrutou o prazer da água fumegante, os óleos perfumados, o massajar suave dos seus músculos com escovas e mãos delicadas de mulher. Depois, vestiram-na com requintadas roupas de convidada e con­duziram-na à sala de audiências da rainha Imandra.

Esperava encontrar a rainha com um aspecto mais velho; ela própria já não era a rapariguinha que ali estivera, tímida e calada, ao lado de Pentesileia. Mas a mudança tinha sido maior do que ela alguma vez pudera imaginar; se ela tivesse encontrado aquela mulher noutro lugar qualquer que não exactamente naquela sala do trono, nunca a teria reconhecido como a orgulhosa descendente de Medeia.

Imandra estava descomunalmente gorda; era mais imponente do que balofa, toda coberta de ouro; mas deixara de adornar o seu corpo volumoso com os anéis das serpentes vivas. As suas faces e lábios estavam pintados com corante vermelho, e vestia as ricamente decoradas túnicas desse tecido de fios delicados que vinha da terra dos faraós, pelas estradas orientais. O seu cabelo, como sempre, estava coberto de jóias. No meio de todo aquele esplendor, apenas os vivos olhos escuros eram os mesmos, quase perdidos entre as pregas da carne.

Quando Cassandra penetrou no salão e fez uma pausa para fazer a saudação ritual, Imandra levantou-se do trono e caminhou - ou antes, bamboleou-se ­ao seu encontro.

- Não, minha querida, não quero prostrações da minha parente - disse ela, envolvendo Cassandra num caloroso abraço; o perfume era tão familiar como os olhos. - Não sei dizer-te o quanto estou feliz por te ver, filha de Príamo. Que longa viagem fizeste! Sem dúvida trazes recados da minha filha...

- Da tua filha e do teu neto; Andrómaca já é mãe; e em breve será... não, por esta altura, se tudo correu bem, já tem outra criança - disse Cassandra, e Imandra mostrou-se radiante.

- Eu sabia, eu sabia; eu não te disse, querido, que já passou o tempo suficiente para eu ser duas vezes avó, se a minha filha tivesse cumprido o seu dever? - perguntou ela, dirigindo-se a um jovem esbelto trajado com roupas douradas, e com aspecto de atleta ou de vencedor de jogos, ao qual fora concedido um lugar perto dela. - Amanhã, tenho de ir olhar para o charco de tinta e tentar ver a criança e se tudo está bem com ela.

Pegou nas mãos de Cassandra e conduziu-a à mesa de honra, sentando-se ela própria entre Cassandra e o jovem ricamente vestido.

- Agora conta-me tudo o que aconteceu em Tróia nestes últimos anos, desde que tu saíste daqui levando contigo o meu tesouro mais querido. E o que te trouxe até tão longe sem os teus familiares?

- Talvez - disse o jovem - a princesa Cassandra tenha vindo requerer o nosso apoio nesta guerra contra os Aqueus.

- Não, se ela viaja protegida pelas tréguas de Apolo - disse a rainha Imandra. - Percebo alguma coisa disso, meu querido menino. - Voltou-se de novo para Cassandra. - Mesmo assim, não precisas de quebrar a tua promessa, se a fizeste; sem qualquer pedido, enviarei a Príamo todos os soldados que arranjar, homens ou mulheres, e todas as armas e o metal que as carroças possam transportar.

- És mais do que generosa - disse Cassandra, e explicou-lhe a sua missão. Imandra sorriu e beijou-a.

- As minhas próprias sacerdotisas e especialistas em serpentes serão con­sultadas amanhã cedo - disse ela - ou logo que elas me digam qual o dia favorável para esse tipo de coisa. Quase nem preciso de te dizer que toda a sabedoria que possa existir na nossa cidade está às tuas ordens e às ordens do Apolo troiano. Serás livre de falar com elas em qualquer altura; mas tens de me prometer que a visita será longa.

- És muito amável, majestade - disse Cassandra; estava cansada de viajar e, de momento, uma longa estada em Cálcis era o que mais desejava.

- De modo nenhum, parente - replicou Imandra. - Pois não és tu também sacerdotisa, e a parente mais próxima da minha filha? E as minhas adivinhas dizem que a criança que tenho dentro de mim agora vai ser outra iilha; acho que seria um bom presságio tu estares aqui para o nascimento.

Cassandra não tivera a mínima suspeita de que a rainha estivesse grávida; de facto, se tivesse dedicado alguns momentos de reflexão a esse assunto, teria ficado convencida de que Imandra já ultrapassara a idade de ter filhos. Mas agora, olhando com atenção, via que rainha se encontrava, de facto, nos primeiros tempos de gravidez. Quando conseguiu assimilar a notícia, congratulou a rainha pela criança esperada e perguntou:

- Será esta, então, a herdeira de Cálcis, no lugar de Andrómaca?

- Sim. Andrómaca não está nada interessada em ser rainha; por esta altura já deves ter descoberto isso - disse Imandra - e não é difícil uma mulher esquecer as tarefas de rainha quando se sente feliz; mesmo quando essa mulher já é rainha. Não te disse já isto antes, Agon? - perguntou ela. E o rapaz bonito disse:

- De facto já, senhora minha.

O rosto largo de Imandra contorceu-se num risinho que Cassandra só conseguia descrever como «tolo», ao mesmo tempo que os seus olhos se pousa­vam no seu eleito; e Cassandra, compreendendo subitamente a situação, sentiu-se chocada - a independente rainha Imandra, senhora de Cálcis, embeiçada por um rapazinho bonito que não era mais velho do que a sua filha? E estava realmente embeiçada; o próprio tom da sua voz o confirmava. Ele partilhava o seu prato e a sua taça de vinho, e ela escolhia as mais finas iguarias para lhe dar.

Quando acabaram de jantar, Cassandra mandou buscar os baús que trou­xera consigo e tirou os presentes que Andrómaca enviara para a sua mãe: tapeçarias bordadas, peças de tecido ricamente tingido e até mesmo espadas e punhais em bronze requintadamente trabalhado; de entre estas, várias foram as que a rainha, com um gesto de indiferença, entregou imediatamente ao seu consorte.

- Mas não me digas que queres ir combater em Tróia - disse-lhe ela com firmeza. - Preciso de ti a meu lado para me ajudares a criar a nossa filha; e mais ainda se as videntes tiverem errado e for um rapaz.

- Nunca pensaria em deixar-te, senhora minha - disse ele -, e muito menos para ir lutar num país longínquo. Se Agamémnon ou outro qualquer se preparassem para vir aqui tentar conquistar Cálcis, isso já seria outra questão. Imandra voltou-se para Cassandra.

- Fala-me sobre esta guerra e dessa rainha espartana - disse ela. - Apesar de estarmos bem distantes, sei alguma coisa da sua família, claro. Que tipo de pessoa poderá ela ser para ter despoletado uma guerra tão prolongada como esta?

Cassandra disse, lentamente:

- Nunca esperei gostar dela ou respeitá-la. Mas gosto e respeito; acho que os deuses foram rudes para com ela quando a atravessaram no caminho do meu irmão Páris.

- Bom, ela tinha todo o direito de tomar um consorte - disse Imandra, lançando um sorriso discreto ao jovem Agon -; mas o erro dela foi não ter repudiado Menelau; ou não ter levado a cabo o antigo sacrifício! As coisas têm de ser bem feitas. O erro de Helena, lembra-te, não foi ter arranjado um amante ­esse era um pleno direito seu que ninguém podia recusar-lhe. A mãe dela era rainha de Micenas por direito, e pertencia a Helena governar Esparta; o seu crime (e é um verdadeiro crime para uma rainha) foi deixar Esparta nas mãos de Menelau. Foi isso que complicou o assunto. Terão eles entregue a cidade à filha dela, para que esta a sucedesse no trono? Aposto que não; Hermíone é demasiado pequena para ter consciência de que é rainha. Estes Aqueus selvagens que tentam trazer essa história dos «reis» para o nosso mundo civilizado, e esse falatório constante acerca da paternidade... como se algum homem pudesse gerar vida. A Deusa, por si só, dá vida às crianças; porém, alguns destes homens são suficien­temente arrogantes para dizer que a mulher não é mais do que um forno no qual o filho deles - o filho deles, já alguma vez ouviste semelhante disparate? - é cozido. Esse Agamémnon... amaldiçoado seja por todas as deusas e todas as Fúrias! - exclamou Imandra.

- Ele é o comandante dos exércitos aqueus da própria Micenas - disse Cassandra.

- Sim; sabias que ele é casado com a irmã de Helena, que sucedeu à mãe em Micenas? Clitemnestra era a gémea mais velha, e muito bela, mas nada que se comparasse com Helena. Clitemnestra tinha uma filha, Ifigénia, devotada à Mãe Serpente e, claro, zeladora do santuário e importante sacerdotisa desde os tempos de criança. Ora, quando esta guerra começou, Agamémnon, que jurara ajudar o irmão em tudo, tinha portanto que deixar Micenas e receava que Clitemnestra o substituísse como consorte; ela estava furiosa por ele ter ousado fazer tal jura­mento sem a sua autorização e por isso ameaçara-o de que, se ele a deixasse, ela levaria o seu primogénito para o seu leito. Agamémnon ameaçou levar o filho deles, Orestes, para longe; Clitemnestra disse-Lhe para ele fazer o que quisesse do rapaz, mas que se ele pervertesse alguma das suas crianças com os seus deuses malignos, ela expulsaria pai e filho. Por isso fez do rapaz sacerdote de Posídon (julgo que foi Posídon, o Deus Cavalo) e mandou-o adoptar pelos Centauros. Quando os exércitos de Agamémnon estavam reunidos para navegar para Tróia, foram retidos na costa por falta de vento, e ele mandou dizer a Clitemnestra que a sua filha Ifigénia deveria ir dirigir os sacrificios destinados aos ventos. Ela foi, como sacerdotisa, e ele não fez mais nada senão sacrificar a própria Ifigénia, alegando falsos oráculos; isto para que Clitemnestra não pudesse arranjar outro consorte, já que a sua filha mais nova era pequena de mais para ser sua sucessora. E ouvi dizer que esta filha mais nova, Electra, fora convencida a condenar a adoração da Mãe Terra - e quem poderá censurá-la? Se ela se tornasse sacerdo­tisa como a irmã, poderia morrer também. Mas Clitemnestra jurou vingar-se; e Agamémnon, um dia, enfrentará a vingança da Mãe Terra. E não duvides, ele vai morrer. Não se pode zombar assim dos deuses. .

- Então, nesse caso, é tudo uma questão de saber se o território deverá ser governado por reis ou por rainhas?

- Que mais poderá ser? Porque haveriam os homens de governar a casa ou a cidade, onde sempre mandou a mulher desde que, pela primeira vez, a Mãe Terra criou vida? Melhor era a forma antiga, em que o rei era enviado para a guerra todos os anos, para morrer pelo seu povo, e não existia o problema de algum homem querer pôr o filho a sucedê-lo. Durante milhares de anos, até estes selvagens Aqueus virem tentar mudar os nossos costumes, eram estas as leis da vida... Mas depois, quem sabe? Talvez tenha havido uma guerra e um rei que fosse um comandante demasiado hábil para deixar-se matar; ou alguma mulher tonta como eu, que não tenha querido perder o seu jovem amante. - Lançou um olhar afectuoso ao jovem Agon. - Então vieram esses cavaleiros, e os primeiros reis, e impuseram os seus deuses arrogantes - mesmo o Senhor do Sol, que afirma ter aniquilado a Mãe Serpente. - Imandra bocejou. - O mundo está a mudar, é o que te digo; mas a culpa é das mulheres que não mantiveram os seus homens na ordem.

- E tu achas, então, que é essa a causa desta guerra? - perguntou Cassandra.

- Minha querida, tenho a certeza ! - disse a rainha. - Nunca poderia ter acontecido em Cálcis.

 

Alguns dias mais tarde Cassandra, instalada nos aposentos do palácio que antes pertenciam às filhas reais - nesse mesmo quarto onde, uma vez, ela e Andrómaca haviam ficado acordadas na cama, de noite, vendo as estrelas candentes -, foi acordada pela rainha Imandra em pessoa.

- Minha querida, a sacerdotisa suprema do Templo da Mãe Serpente está disposta a receber-te.

Cassandra acordou as suas camareiras e ordenou que a vestissem com uma túnica simples, sem pregas, como era próprio de uma suplicante. Adrias pro­testou:

- És princesa de Tróia e sacerdotisa por direito próprio; devias visitá-la como igual, senhora minha.

- Mas eu vou visitá-la em busca da sabedoria que ela possui e eu não ­respondeu Cassandra. - Creio que é mais apropriado eu ir ter com ela humilde­mente, para pedir a sua ajuda.

A camareira torceu o nariz; mas a rainha Imandra disse:

- Acho que tens razão, Cassandra. Quando ela me mandar chamar, até eu me mostro humilde na sua presença.

Cassandra suspirou de alívio e prendeu as sandálias macias nos pés. Não gostava nada de usar as roupas complicadas da corte e de andar vestida como uma princesa.

Embora o Sol não estivesse ainda muito alto no céu, as neblinas matinais já se tinham dissipado; o calor era enorme sobre a sua cabeça e atravessava os ombros da túnica. Pareceu-lhe longa a caminhada através da cidade, e os seus pés estavam cansados quando finalmente subiram os enormes degraus, construídos por titãs, em direcção ao santuário.

Lá dentro, para alívio de Cassandra, estava escuro e fresco, e ouvia-se ao fundo o agradável ruído de água a cair. Uma mulher calada, vestida de escuro, recebeu-as e conduziu-as a um pátio coberto, com chão de mosaico; no extremo mais distante encontrava-se um trono formal onde estava sentada uma mulher idosa, grande e gorda, de cabelos brancos.

- A sacerdotisa Arícia - murmurou Imandra.

Avançou lentamente ao longo da sala. A princípio, Cassandra pensou ver uma serpente viva enroscada a adornar o penteado da sacerdotisa; depois, aper­cebeu-se de que era apenas uma imitação realista em cerâmica moldada e pintada, ou talvez em madeira esculpida. A sacerdotisa vestia uma túnica sem mangas, de tecido carmim ricamente ornamentado com desenhos semelhantes a escamas de serpente; e enrolada na sua cintura estava, agora de facto, uma serpente viva - a maior que Cassandra alguma vez vira: era tão grossa como os braços da sacerdotisa, que eram gordíssimos. A cobra dava duas voltas à cintura de Arícia, e a mulher segurava-lhe a cabeça com a mão, fazendo-lhe cócegas por baixo do maxilar, preguiçosamente.

Numa voz suave que não deixava de estar repleta de autoridade disse: - Saudações, rainha Imandra; é esta a princesa troiana de que me falaste? - É sim, senhora - disse Imandra - Cassandra, filha da rainha Hécuba de Tróia.

Cassandra sentiu os olhos da velha sacerdotisa pousados nela, escuros e fixos como os olhos da serpente.

- E que desejas tu de mim, Cassandra de Tróia?

Cassandra sentiu-se compelida a ajoelhar-se diante da velha mulher.

- Vim desde Tróia para aprender contigo; ou antes, com a Mãe Serpente ­disse ela.

- Bom, diz-me o que pretendes - disse a velha sacerdotisa. - Pela filha de Hécuba, farei tudo o que estiver ao alcance dos meus poderes.

Assim encorajada, Cassandra contou-lhe da morte das serpentes na casa do Senhor do Sol e da sua relutância em substituí-las antes de conhecer melhor os cuidados a ter com elas. A velha sorriu, coçando ainda a cobra por baixo do queixo - ou no lugar onde deveria ser o queixo, se o tivesse. Por fim, disse:

- Eu devia chamar todas as minhas sacerdotisas, Cassandra, para que elas viessem olhar para ti. Porque em Cálcis inteira não consigo encontrar uma única mulher jovem que deseje aprender esta arte; e tu fizeste todo esse caminho desde Tróia, para a procurar junto de mim. Diz-me, Cassandra, enquanto estiveres no Templo da Mãe Serpente prestar-lhe-ás os devidos respeitos?

- Juro-o, senhora.

Arícia sorriu e estendeu a mão.

- Então seja - disse -, aceito-te. Podes ficar aqui e nada da nossa ancestral sabedoria te será interdito enquanto viveres entre nós. Podes deixá-la connosco, Imandra; e tu podes retirar-te também - disse ela, lançando a Adrias um olhar penetrante. - Ela não precisa de camareiras no Templo da Mãe; toda a assistência que necessitar ser-lhe-á dada por sacerdotisas.

Adrias disse, com firmeza:

- Eu prometi à mãe dela, minha senhora, que não sairia do seu lado por um único dia que fosse, enquanto ela estivesse em terras estrangeiras.

Arícia disse, afavelmente:

- Não posso censurar-te por isso, filha. Mas pensas realmente que ela precisa da tua vigilância quando está nas mãos da Grande Mãe?

- Suponho que não, senhora. Quando colocas as coisas dessa forma, onde poderia ela estar mais segura do que nas mãos da Grande Deusa? Mas não posso quebrar a minha promessa à rainha Hécuba - disse Adrias, relutante.

Imandra abraçou-a, bem como Adrias, e retiraram-se. Quando desapare­ciam, a velha sacerdotisa, que tinha reparado que Cassandra observava a cobra que se mantinha enrolada, imóvel, em volta do seu corpo, perguntou:

Imandra disse:

- Tem mesmo que ficar alojada no templo, senhora Arícia? Ficaria mais feliz se a tivesse no palácio como minha hóspede, e ela poderia estar presente nos serviços do templo sempre que a quisesses.

- Não, isso não pode ser; ela tem de viver entre nós e aprender a viver connosco e com as nossas serpentes - disse Arícia. - Isso desagrada-te, Cassandra?

- De modo algum - disse Cassandra. - Eu respeito a rainha Imandra como parente da minha mãe e minha amiga; mas estou mais do que desejosa de viver na casa da Mãe Serpente, como é próprio de uma sacerdotisa.

Imandra abraçou-a, bem como Ádria, e retiraram-se. Quando desapareciam, a velha sacerdotisa, que tinha reparado que Cassandra observava a cobra que se mantinha enrolada, imóvel, em volta do seu corpo, perguntou:

- Tens medo das serpentes, Cassandra?

- Nenhum, senhora. - E acrescentou, impulsivamente: - Esta é bastante bonita.

- É uma verdadeira matriarca entre as serpentes - concordou Arícia. - Gostarias de lhe pegar?

- Com certeza, se ela quiser passar para mim -disse Cassandra, embora nunca tivesse pegado numa serpente tão grande. - Não é venenosa, suponho? - Não se vê logo, ao olhar para ela? Bem, essa é uma das coisas que terei de te ensinar. Mas claro que não é venenosa. Não me arriscaria a manusear assim uma das cobras venenosas; essas raramente têm este bom feitio. E quase nunca são tão grandes como esta.

Arícia segurou a enorme cauda da cobra afastada do corpo.

- Vê, isto faz com que ela se desenrosque, uma vez que não consegue apertar-se contra o meu corpo quando eu a seguro assim. Estende a tua mão e deixa-a cheirar-te.

Cassandra obedeceu, não pestanejando sequer quando a enorme cabeça se aproximou, a língua bífida mexendo-se velozmente para dentro e para fora, roçando ao de leve a sua mão. Depois a cobra moveu-se e deslizou, suave como seda, pelo braço da velha sacerdotisa até aos ombros de Cassandra; esta segu­rou-a com a mão e começou, delicadamente, a coçá-la por baixo do queixo. Ficou espantada por sentir toda a tensão a abandonar o corpo da serpente, ao mesmo tempo que um peso surpreendente se aquietava à sua volta.

- Óptimo, ela gosta de ti - disse Arícia. - Não me valeria de muito aceitar-te aqui se ela não gostasse. De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, se ela estiver com medo ou se assustar enquanto estiveres a segurá-la, poderá morder-te. Sabes como agir se ela o fizer?

A velha Melianta, na casa do Senhor do Sol, ensinara isso a Cassandra. - Sei; não a assustar mais, ou tentar afastá-la, mas sim procurar outra pessoa para a desenrolar, começando pela cauda -e estendeu a mão, exibindo as pequenas cicatrizes causadas por umas das serpentes do templo que Lhe mordera no tempo em que dava assistência a Melianta. Arícia sorriu.

- Certo; mas então, o que precisas tu de aprender connosco?

- Oh, todo o tipo de coisas - disse Cassandra, ansiosamente. - Desejava saber como encontrar e apanhar cobras nos locais selvagens onde vivem; como fazê-las sair dos ovos e ensiná-las a ir e vir, como já vi fazer; como alimentá-las e cuidar delas para que tenham uma vida longa, e como conquistar a sua confiança e mantê-las satisfeitas para que não fujam.

A velha riu, estendendo a mão para contornar a cabeça da grande cobra. - Está bem; penso que podemos ensinar-te todas essas coisas. É melhor deixares que eu a leve, agora; estou acostumada ao seu peso e não creio que uma criatura magra como tu possa ir muito longe com ela. Tens de comer bem e engordar, como eu ou como Imandra, antes de poderes tornar-te verdadeira­mente uma sacerdotisa da Mãe Serpente. Poderá vir o dia em que terás de sentar-te a mostrá-la ao povo; ela gosta de ser exibida, ou pelo menos assim parece. Mais uma coisa: algumas raparigas são demasiado impressionáveis ou sentimentais em relação aos pequenos animais (pombos, ratos, coelhos) para alimento das serpentes. Isso perturba-te?

- Não, nada. Não fui eu, mas sim os deuses quem determinou que alguns animais devem ser alimentados com outros seres vivos; eu não os criei, e não me compete decidir do que é que eles devem ser alimentados - replicou Cassandra. Tinha ouvido Melianta dizer isto, uma vez, quando uma jovem do templo se mostrara escrupulosa em relação a dar ratos vivos às serpentes para as alimentar.

- Bem - disse Arícia -, temos de arranjar um quarto para ti, e uma sacerdotisa para tua assistente, e apresentar-te ao resto das pessoas que aqui vivem. Tu és uma princesa de Tróia, e espero que isto não seja demasiado pequeno e vulgar para ti.

- Oh, não! - disse Cassandra. - Estou desejosa de ser uma das vossas. Arícia abraçou-a ternamente e conduziu-a para dentro da casa da Mãe Serpente.

 

Começou então para Cassandra um tempo como não teria outro na sua vida. Visto ser já uma sacerdotisa, não teve de passar por experiências penosas ou provas fatigantes apesar de, por ser a mais nova (muitas das sacerdotisas do templò eram idosas e frágeis, pois muito poucas mulheres jovens escolhiam servir a Mãe Serpente), Lhe terem sido atribuídas tarefas como cuidar dos animais criados para alimentar as serpentes, limpar os potes e aceitar e registar as oferendas feitas ao templo. Foi bem recebida por toda a gente e tratada de acordo com a sua condição; a própria rainha Imandra não era tratada com mais deferência, e em breve Arícia passou a amá-la como a uma filha.

Em muitos aspectos, a sua estada no Templo da Mãe Serpente assemelhava­-se aos seus primeiros anos na casa do Senhor do Sol, com uma grande diferença : todas as devotas da Mãe Serpente eram mulheres, e ela não passou por nada de semelhante aos problemas que tivera com Crises. Os únicos homens da casa da Mãe Serpente eram escravos, e nenhum deles se atreveria a fazer quaisquer tentativas em relação a uma sacerdotisa.

Aprendeu tudo quanto as sacerdotisas lhe podiam ensinar sobre os costu­mes das serpentes e das cobras. Em breve sabia como distinguir as venenosas das inofensivas, e como domar e lidar com algumas serpentes não venenosas que tinham aspecto idêntico ao de certas serpentes venenosas, fazendo qualquer observador acreditar que estava a desafiar a morte. Ela própria não tinha medo nem mesmo das cobras maiores, e em breve era uma das manuseadoras preferi­das; frequentemente, quando a enorme matriarca das serpentes era levada nos cortejos, Cassandra era uma das escolhidas para a transportar.

Nada Lhe escapara da arte das serpentes: como encontrar e capturar cobras no mato, como as alimentar e manter, como as banhar e cuidar delas quando mudavam a pele. Chegou mesmo a chocar ela própria uma cobra, mantendo o ovo entre os seios durante mais de um mês e abrigando a cria de cobra contra o seu corpo quando rastejou para fora do ovo. Devido a este facto foi-lhe conce­dido o ambicionado título de honra entre as sacerdotisas: Mãe Cobra.

Raramente pensava em Tróia. Chegavam de longe a longe notícias a Cálcis, talvez deturpadas pela longa viagem, do decorrer da guerra. Idomeneu de Creta e os reis minóicos tornaram-se aliados de Tróia; a maioria das gentes do continente estava do lado dos Aqueus. Os ilhéus, devido a alianças forjadas quando Atlân­tida ainda reinava sobre os mares, mantinham-se do lado de Príamo, das deusas de Tróia e Cálcis.

Por vezes, por alturas de lua cheia, Cassandra ateava um fogo mágico e, à luz deste, consultava a taça-das-visões; assim soube quando Andrómaca deu a Heitor um segundo filho, que morreu antes de o umbigo ter cicatrizado. Desejou poder estar em Tróia naquela noite, para poder confortar a amiga na sua dor.

Soube também quando Helena deu a Páris filhos gémeos, o que não a surpreendeu totalmente. Páris era, afinal, um gémeo - e Helena também tinha uma irmã gémea. Ocorreu-lhe que se ela própria alguma vez viesse a ter filhos, podia ter gémeos, talvez filhas gémeas. Os gémeos de Helena eram crianças fortes e saudáveis, embora não tivessem a beleza quer do seu pai quer da sua mãe, e cresceram tão depressa que em meio ano começaram a andar.

Antes de os filhos mais novos de Helena serem desmamados, Príamo sofreu uma queda durante uma escaramuça na praia e um ataque súbito como um relâmpago, durante a doença que se seguiu, deixou-lhe o lado direito do rosto torcido e flácido, ficando depois disso a coxear da perna direita. Fez de Heitor o oficial comandante dos seus exércitos - não surpreendendo ninguém com isso. Os soldados, apesar de serem leais e vitoriarem Príamo nas raras ocasiões em que aparecia perante os exércitos, adoravam Heitor como se este fosse o próprio Ares.

O tempo em Cálcis passava sem qualquer incidente. Cassandra era sempre bem-vinda no palácio e Imandra mandava-a chamar com frequência - às vezes simplesmente por desejar a sua companhia, ocasionalmente para que consultasse a taça mágica e lhe dissesse como decorria a guerra ou, por vezes, para procurar as Amazonas e se certificar de que as coisas não iam demasiado mal para Pentesileia e o seu grupo. Com os seus dias preenchidos pelos deveres e pelo estudo, Cassandra ficou surpreendida por descobrir que já estava longe de Tróia havia muito mais de um ano. Entre as mulheres, o nascimento era sempre uma festa, e no palácio havia sempre alguém a ter um bebé; as mulheres devotas à Mãe Serpente, contudo, não se casavam, e a sua maioria tinha feito votos formais de castidade, pelo que não havia nascimentos no templo. Ela perguntava-se quando teria a rainha a sua criança. Em breve ouviu dizer na cidade que a rainha se passearia pelas ruas para abençoar os seus súbditos em nome da Mãe Terra. Cassandra lembrava-se vagamente - era praticamente a sua primeira recorda­ção - de Hécuba o ter feito antes do nascimento de Troilo. Em Tróia era simplesmente um velho costume, meio esquecido e informalmente observado: sempre que a rainha aparecia nas ruas, as mulheres acorriam a pedir-lhe a bênção. Em Cálcis, onde os costumes eram mantidos segundo as velhas tradições, Cassan­dra não ficou surpreendida por descobrir que havia um cortejo formal. Mas certa­mente que o tinham deixado para muito tarde; o nascimento devia estar iminente. Imandra não andaria pelas ruas a pé, mas sim transportada numa liteira, e Arícia, a representante terrena da Mãe Serpente, seria transportada com ela, as serpentes da sabedoria adornando-a dos pés à cabeça, para que todas as mulheres da cidade pudessem buscar a bênção não só da rainha grávida como da Mãe Serpente.

- Mas porquê agora? Quererão que a rainha entre em trabalho de parto nas ruas? - perguntou ela.

- Bem, isso já aconteceu antes -disse Arícia. -Não seria esta a primeira criança de uma rainha de Cálcis a nascer nas ruas da cidade; estarão muitas parteiras da corte no cortejo. Mas os adivinhos da rainha escolheram este dia como auspicioso; e, é claro, quanto mais perto Imandra estiver do tempo, maior é a bênção que pode conferir.

- Sim, claro. - Cassandra percebia que assim fosse. Chegara a manhã do cortejo e Cassandra, em conjunto com as outras sacerdotisas, ajudava a vestir e adornar Arícia, enrolando-lhe a serpente matriarca em torno da cintura e duas serpentes mais pequenas em torno dos braços. Seria cansativo para a mulher, pois as serpentes tinham de ser erguidas para que o povo as pudesse ver. Cassandra desejou poder, visto ser mais jovem e mais forte, tomar o lugar da mulher mais velha. Disse-Lhe isso mesmo, mas Arícia respondeu-lhe unicamente:

- Ainda é mais difícil para a rainha, minha querida; ela está tão dilatada como uma pitão depois de engolir uma vaca. Talvez para a próxima, minha querida; Imandra é uma velha amiga, e eu estou feliz por ir no seu cortejo. Ela para ti também tem sido mais que bondosa. Um pouco mais desse tom de carmim na minha face esquerda, por favor, e algum pó de ervas para ser queimado no braseiro; as serpentes adoram-no e causam muito menos problemas quando podem cheirá-lo. Vens comigo, Cassandra? Podes alimentar o braseiro e estar a postos para pegar nas serpentes mais pequenas se elas começarem a ficar inquie­tas. Não é muito provável, mas, é claro, tudo pode acontecer.

Cassandra sabia que este era um privilégio que provocaria a inveja de outras sacerdotisas do templo; mas elas respeitavam-na como princesa de Tróia. Foi imediatamente vestir os seus trajes cerimoniais e enrolou nos braços duas ou três serpentes mais pequenas, cingindo duas em torno da testa de modo a formarem uma coroa. Assim enfeitada (e pensando que talvez as estátuas da lendária Medusa tivessem sido inspiradas por uma coroa de serpentes como aquela), saiu para a rua e vendo Arícia ser içada para a alta liteira, deixou-se içar depois dela.

Estava frio; um vento forte soprava através das ruas por entre os edifícios altos, e as folhas tinham desaparecido das árvores e dos arbustos. Sentou-se, erguendo bem alto as suas serpentes para que as mulheres nas ruas as pudessem ver distintamente. A liteira de Imandra seguia na sua frente; Cassandra conseguia ver a forma da rainha, agora pesada na sua gravidez , com o cabelo caindo-lhe solto pelas costas. As ruas estavam cheias de mulheres, muitas delas grávidas, correndo para as liteiras, rompendo por entre os guaidas, estendendo os braços para suplicar uma bênção.

O vento gelava-a; sentiu-se satisfeita com o peso confortável da serpente em torno da sua cintura. As cobras estavam atordoadas. «Elas não gostam mais do frio do que eu», pensou ela, ansiando pelo sol quente da sua terra.

Quase que entrou em transe, observando a alta figura de Imandra na sua carruagem, possuída pela magia e o resplendor da Deusa. As mulheres acorriam erguendo as mãos, implorando fertilidade, a boa graça vinda do contacto com a rainha grávida que encarnava a Deusa. Erguendo mecanicamente as suas serpen­tes, ouvia as mulheres chamarem por Imandra e pela Mãe Terra, por Arícia e pela Mãe Serpente, e depois algures no meio da multidão, ouviu até alguém gritar: - Olhem, é a princesa troiana, a amada de Apolo!

Aquele grito devolveu-lhe bruscamente a consciência. Seria aquilo ainda verdade? Ou tê-la-ia Apolo esquecido? Talvez fosse altura, pensou ela, de regres­sar a Tróia, ao seu próprio povo e aos seus próprios deuses; servindo a Deusa, as mulheres aqui eram mais livres, mas de que lhe serviria a liberdade se tivesse de viver para sempre entre estranhos? Depois o seu coração repreendeu-a; era muito amada ali e tinha muitas amigas; suportaria ela abandoná-las e regressar a uma cidade onde se esperava que as mulheres se submetessem aos seus maridos e irmãos?

O sol tornava-se mais quente; puxou o véu para cima da cabeça e mergulhou um lenço numa taça com água para humedecer as cabeças das serpentes.

- Em breve, pequeninas - murmurou -, isto estará terminado e vocês irão para um sítio fresco e escuro. - Uma das serpentes tentava rastejar para a escuridão do interior do seu vestido; as multidões estavam a dispersar e por isso ela não tentou impedi-la de o fazer.

Os carregadores das liteiras abrandaram e depois pararam. Os criados desceram Imandra, cuidadosamente, da sua cadeira - não sem dificuldade. Esta caminhou pesadamente em direcção à liteira onde elas estavam sentadas, rodea­das pelas suas serpentes.

- Cassandra, minha amiga, não quererás vir esta tarde ao palácio e consul­tar para mim a tua taça mágica?

- Com prazer - respondeu Cassandra. - Assim que tiver cuidado das minhas serpentes; e se Arícia mo permitir - acrescentou, olhando de relance para a sacerdotisa mais velha que lhe sorriu e assentiu com a cabeça.

No Templo da Mãe Serpente, ajudou os carregadores a instalar Arícia na sua cama num quarto escurecido, depois ajudou a soltar as cobras e a dar-lhes banho na fonte do pátio interior. Depois de engolir alguns frutos e um pouco de pão, pôs o seu vestido mais simples e saiu de novo para o frio do princípio da tarde. Estava agora ligeiramente mais quente - o pouco calor que havia no sol estava agora no auge da sua força - e sendo o meio-dia, as ruas estavam cheias de gente; mas ninguém reconheceu naquela mulher franzina de cabelos escuros, com a sua túnica simples, a sacerdotisa que tinha sido transportada - envolta e coroada pelas suas serpentes - pelas ruas.

As mulheres da rainha conduziram Cassandra aos aposentos reais. Estavam agradavelmente aquecidos por um fogo aceso na lareira. Imandra estava deitada numa rede, o cabelo solto e o seu enorme corpo erguido de encontro às almofa­das. Tinha perdido o fascínio da Deusa e agora tinha um aspecto cansado; o seu rosto contraído estaria pálido, se ela se tivesse dado ao trabalho de tirar a maqui­Ihagem das faces.

«Ela devia ter mantido Andrómaca aqui em vez de a ter enviado para Tróia; assim não teria de se expor aos riscos de uma gestação tardia», pensou Cassandra, surpreendendo-se a si própria; « agora precisa de uma filha que reine depois dela sobre Cálcis.»

Como se algum sinal do que Cassandra pensava a tivesse alcançado, a rainha abriu os olhos.

- Ah, filha, vieste para me fazer companhia -disse ela. - Estou satisfeita; penso que a pequenina - pousou a mão sobre a barriga - é capaz de nascer hoje; mas pelo menos o cortejo chegou ao fim e eu não tenho de dar à luz a rainha deles nas ruas. Chamarei em breve as mulheres do palácio; ficariam muito zangadas se eu não lho dissesse imediatamente; têm direito à sua festa. Cassan­dra, que idade tens tu, minha querida?

Cassandra tentou calcular a sua idade; em Tróia não mantinham a conta dos anos das mulheres a partir do momento em que chegavam à puberdade.

- Penso que vou fazer dezanove ou vinte este Verão - disse ela. - A mãe disse-me que eu nasci perto do meio do Verão.

- Um ano mais velha que a minha Andrómaca - disse Imandra. - E disseste-me que o filho mais velho de Andrómaca já é suficientemente crescido para ter o seu primeiro elmo de bronze e lições de espada. Penso que não conheço mais nenhuma mulher da tua idade que não seja casada. Às vezes penso que tu devias ter sido minha filha, visto manteres-te fiel aos velhos costumes de Cálcis, enquanto Andrómaca parece ser feliz em Tróia, mesmo como esposa obediente de Heitor. - O seu lábio torceu-se ligeiramente, quase com desprezo. - Mas tu és filha de Príamo, e uma troiana. É teu desejo manteres-te solteira até ao fim dos teus dias, minha querida?

- Nunca pensei noutra coisa - disse Cassandra. - Estou prometida a Apolo, Senhor do Sol.

- Mas estás a perder tudo o que torna a vida digna de ser vivida - disse Imandra, e suspirou.

Franziu as sobrancelhas e manteve-se imóvel durante algum tempo, depois disse:

- Consultarás a taça mágica e permitirás que esta velha mulher veja por uma vez o filho da sua filha?

Cassandra objectou:

- Talvez neste momento - disse ela - devesses pensar primeiro nesta criança. Tens de poupar toda a tua força e energia até que ela esteja a salvo aqui entre nós, parente.

- Falaste como uma sacerdotisa; e as sacerdotisas dizem sempre uma quantidade de disparates - disse Imandra rispidamente. - Não sou nenhuma menina de quinze anos no seu primeiro parto; sou uma mulher adulta e uma rainha, e não menos sacerdotisa que tu própria, Cassandra de Tróia.

- Eu não quis sugerir... - começou Cassandra na defensiva.

- Oh, quiseste sim; não o negues - disse Imandra. - Faz o que te peço, Cassandra; se não o fizeres, outras há que o farão, se bem que não haja muitas que vejam a tão grande distância e tão bem como tu.

Tudo o que Imandra dizia era verdade, e Cassandra sabia-o.

- Oh, muito bem - concordou ela, acrescentando mentalmente, «sua velha criatura teimosa». - Chama as tuas mulheres - disse ela - e deixa que te preparem para o nascimento. Não me consideres responsável se o que eu te disser te causar dor ou pesar; eu sou apenas a mensageira, sou as asas do pássaro portador dessas palavras.

Ajoelhou-se, fazendo preparativos para atear um fogo mágico que lhe per­mitisse exortar a Visão.

As mulheres de Imandra entravam e saíam do quarto, aprontando tudo para o nascimento. Entre elas estavam as duas aias de Cassandra, que vieram saudá-la e perguntar-lhe discretamente, fora do alcance dos ouvidos da rainha:

- Vamos ficar para sempre nesta cidade estrangeira, princesa? Quando voltaremos a Tróia?

- Isso será consoante a rainha Imandra o desejar - dísse Cassandra. ­Não a deixarei enquanto ela precisar de mim aqui.

- Como poderá ela ter mais necessidade de ti do que a tua própria mãe, senhora? Acreditas realmente que a rainha Hécuba não sente a tua falta nem se aflige contigo?

- Têm permissão minha para regressar a Tróia - disse Cassandra com indiferença -; eu fiz uma promessa a Imandra e não a quebrarei.

Ergueu-se e dirigiu-se a passos largos para a cama alta onde as mulheres tinham colocado a rainha para que descansasse até que fosse altura de passar para a cadeira parideira. O quarto enchia-se lentamente com as mulheres do palácio, vindas para testemunhar o acontecimento real.

- Pergunto-me - reflectiu Imandra de mau humor - se às vezes não acontece a Mãe Terra enviar o bebé para o ventre errado... Pelo que conheço dela, Hécuba teria achado Andrómaca uma filha perfeita, e tu sempre estiveste deslo­cada em Tróia... - Agarrou com força a mão de Cassandra. - Não, não me deixes - disse ela -; os deuses deterão a visão até que os nossos olhos estejam prontos para a ver.

- Não sei quais poderão ser os propósitos da Deusa, tendo-me enviado para o ventre de Hécuba de Tróia em vez de para o ventre de Imandra de Cálcis - disse Cassandra, encostando a sua à face da mulher mais velha -, mas quaisquer que possam ter sido, parente, eu amo-te como se fosses minha mãe de verdade.

- Acredito que o faças, filha - disse Imandra, virando a cara para beijar Cassandra. - Se a Deusa me levar hoje, promete-me que ficarás em Cálcis e que educarás a minha filha de acordo com as velhas tradições.

- Oh, vá lá, não deves falar em morrer; viverás muitos, muitos anos e verás a tua filha com as suas próprias filhas e filhos sobre os joelhos -disse Cassandra. Uma das criadas estendeu-lhe uma taça com vinho e uma travessa com bolos de mel; ela beberricou distraidamente o vinho e pôs de lado os bolos.

- Deixa-me observar a taça para ti - disse, e ajoelhou-se de novo sobre as pedras, junto ao fogo mágico, focando a sua mente no dia em que nascera o primeiro filho de Andrómaca; o rosto pálido e excitado de Heitor olhando para a pequena criatura...

Sombras moveram-se na água, deslizando e imobilizando-se no rosto de Heitor... as plumas carmim enlameadas, cobertas de um carmim húmido e mais escuro... Cassandra susteve a respiração e uma dor súbita trespassou-lhe o coração. Heitor! Estaria ele morto, ou teria ela apenas visto o que estava para acontecer? Quando uma cidade estava em guerra, era mais provável do que improvável que o comandante do exército, que estava sempre à frente das suas tropas em batalha, caísse às mãos... às mãos sangrentas de Aquiles!... Aquele rosto escarninho, pálido e belo, belo e perverso... Neve varreu a superfície da água, e Cassandra soube que via o que iria acontecer num ano futuro; mas que ano? Cassandra não tinha forma de o saber.

Imandra, com os olhos fixos no rosto de Cassandra como se tentasse deses­peradamente partilhar da visão, perguntou:

- Que viste?

- A morte de Heitor - murmurou Cassandra. - Mas para um guerreiro não há outro fim, e de há muito que sabemos que isto iria acontecer; mas ainda não aconteceu, talvez não venha a acontecer senão daqui a muitos anos...

- Mas a criança - sussurrou Imandra -, fala-me da criança!

- Quando o vi da última vez, estava saudável e bem desenvolvido, e já tinha uma espada de madeira e um elmo de brincar - disse Cassandra, relutante em olhar outra vez e ver uma desgraça, e por qualquer razão não duvidava de que seria isso o que veria. - Os sinais esta noite não são propícios à visão, Imandra; suplico-te que me dispenses de olhar de novo.

- Como desejares - disse Imandra, mas o seu rosto contorceu-se de desapontamento.

- Morreria satisfeita se ao menos pudesse ver o filho da minha filha, mesmo que através da tua visão e não da minha...

Lampejos de cor correram pela superfície da água; «a luz do fogo fulgia através das portas de Tróia...» e ela recordou-se da voz provocadora de Heitor. «Só sabes uma canção, Cassandra; fogo e desgraça para Tróia; e canta-la noite e dia, como um menestrel que só sabe uma música...

Sim, eu sei que Tróia perecerá, mas não ainda... Imploro-Te, deixa-me ver algo diferente...»

As chamas extinguiram-se; apareceu um raio de luz, a luz brilhante do Sol reflectindo-se nas brancas muralhas de Tróia... fundindo-se com o lúgubre rosto de Crise, distorcido pelos habituais traços de desgosto.

«Apolo, Senhor do Sol: se vejo tudo isto na Tua luz, porque não me mostras Tu nada que eu já não saiba?»

Depois um brilho ofuscante, como se olhasse directamente o rosto do Sol; pareceu-Lhe que Crises crescia, e Cassandra via agora a luz ofuscante do Deus, e soube quem percorria agora as muralhas e as fortificações de Tróia, terrível na Sua ira; o Seu arco brilhante retesado, as flechas douradas atingindo... atingindo ao acaso aqueus e troianos por igual, as terríveis flechas de Apolo golpeando...

Cassandra gritou, cobrindo o rosto com as mãos. A visão nublou-se e correu como água; tinha desaparecido.

- Não sobre nós - lamentou-se. - Não sobre o Teu próprio povo, Senhor do Sol, não a cólera, não as flechas de Apolo...

De repente estava toda a gente à sua volta, abanando-a, tentando erguê-la, chegando-lhe vinho aos lábios.

- Que viste? Tenta contar-nos, Cassandra.

- Não, não - gritou ela, fazendo um grande esforço para evitar que a sua voz se transformasse num guincho. - Temos de partir imediatamente! Temos de regressar a Tróia! - Mas o horror gelou-lhe o coração quando pensou nas intermináveis léguas de viagem que se estendiam entre Cálcis e a sua terra. - Temos de partir imediatamente! Temos de partir ao romper do dia, ou mesmo esta noite - gritou ela, procurando as mãos das suas aias que a amparavam. - Temos de ir... não podemos perder um minuto sequer...

Ergueu-se titubeante e percorreu o espaço que a separava de Imandra, ajoelhando-se a seu lado, suplicando:

- Os deuses chamam-me imediatamente a Tróia; rogo-te, parente, dá-me licença para partir...

- Para partir agora? - Imandra, os seus corpo e espírito completamente concentrados nas dores do parto que varriam o seu corpo, fixou-a sem compreen­der. - Não, proíbo-o. Prometeste ficar comigo...

Desesperada, Cassandra apercebeu-se de que não podia impor as suas próprias necessidades àquela mulher presa nas garras da mais imperativa das solicitações. Teria simplesmente que esperar. Limpou as lágrimas que não tivera consciência de lhe correrem pelas faces, e voltou a sua atenção para a própria Imandra.

- Viste a criança da minha Andrómaca? - implorou Imandra.

- Não - disse Cassandra apaziguadora, afastando do seu espírito a visão do corpo desfeito da criança diante das muralhas de Tróia. «Ela já vira aquilo antes...» - Não, esta noite os deuses não me concederam tal visão. Só vi como as coisas vão mal na minha cidade.

« O mar negro de barcos aqueus, as muralhas de Tróia engolidas pelas turbulentas formigas dos exércitos de Aquiles... as muralhas ruindo, as chamas erguendo-se... Não, ainda não... não aquela destruição final, ainda... mas pior, as terríveis flechas da ira de Apolo voando contra aqueus e troianos indiscri­minadamente.»

Uma das mulheres começou a cantar uma das canções tradicionais dos nascimentos, e depois de um momento de silencioso espanto... « Como poderiam elas cantar e comportar-se como se este fosse um vulgar festival de mulheres? Mas não, elas não tinham visto o sangue ou as chamas ou as flechas do Deus furioso.» Cassandra juntou-se ao cântico, encorajando a alma expectante da criança ao entrar no corpo que para ela estava preparado, para que a Deusa libertasse o corpo da criança do ventre aprisionador da rainha. A uma canção sucedia-se outra, e mais tarde algumas das sacerdotisas dançaram a estranha dança da alma percorrendo o caminho que a levaria para lá dos guardiãos do Aquém-Mundo. A noite foi-se escondendo com lentidãó, e quando o céu empalidecia para o nascer do Sol, a rainha, por fim, com um grito de triunfo, deu à luz. A mais antiga das parteiras do palácio, em cujas mãos a criança nascera, ergueu-a gritando:

- É uma filha! Uma filha saudável e forte! Uma pequena rainha para Cálcis!

As mulheres irromperam num cântico triunfante de boas-vindas à criança, levando-a à janela e erguendo-a para o Sol que nascia, passando o pequeno corpo nu de mão em mão em volta do círculo de mulheres para que cada mulher lhe pudesse pegar e beijar a recém-chegada. A rainha Imandra exigiu por fim:

- Deixem-me pegar-lhe; deixem-me confirmar que é verdadeiramente forte e saudável.

- Só um momento; temos primeiro que a envolver contra o frio - disse a parteira da corte, e embrulhou o bebé num dos xailes da própria rainha. Puseram-na, por fim lavada e embrulhada, nas mãos de Imandra, e a rainha

encostou com ternura o seu rosto contra a face da pequenina.

- Ah, esperei muito tempo para te ter nos braços, pequenina. É como dar à luz a minha própria neta. Não conheço mais nenhuma mulher que tenha tido uma criança com a minha idade e que tenha sobrevivido - disse ela - no entanto, sinto-me tão bem e tão forte como quando me puseram Andrómaca nos braços.

Estava a desembrulhar o bebé da mesma maneira compulsiva de todas as mães, contando-Lhe cada dedo das mãos e dos pés, voltando a contá-los para o caso de se ter esquecido de algum, dando depois a cada um um beijo em separado, como se fosse um tributo especial.

- É linda - disse ela, sorrindo alegremente quando acabou de fazer festinhas e dar beijinhos ao bebé, e, retirando um sumptuoso anel do dedo, ofereceu-o à parteira:

- Isto é um suplemento ao teu pagamento normal que o meu tesoureiro te entregará.

A parteira balbuciou agradecimentos e recuou, espantada com tanta gene­rosidade.

Imandra continuou:

- Dar-lhe-emos o nome no primeiro dia auspiciosó. Até lá será a minha pequena pérola... visto ela ser tão macia e cor-de-rosa como as pérolas que os mergulhadores das ilhas trazem das profundezas do mar: E eu chamar-lhe-ei Pearl *, a minha princesinha de pérola.

Todas as mulheres concordaram que aquele era um lindo nome. Seria usado até que lhe fosse dado um nome formal pelas sacerdotisas, e informalmente durante toda a sua vida.

A rainha Imandra fez sinal a Cassandra para que se aproximasse.

- Os teus olhos estão vermelhos, Cassandra, e não pareces partilhar da nossa alegria. Terás visto algum mau augúrio para a minha filha para que não partilhes da minha alegria?

Cassandra contraiu-se; temera não ser capaz de ocultar o seu sofrimento dos olhos perspicazes de Imandra.

- Não, parente; regozijo-me verdadeiramente com a tua felicidade - disse ela, curvando-se e beijando a princesinha - e não consigo exprimir quão grande é a minha alegria por estares sã e salva. Mas os meus olhos ficam sempre vermelhos quando durmo tão pouco como. esta noite; e - hesitou, a voz tremendo - os deuses enviaram-me maus presságios para Tróia. Sou necessária lá. Suplico-te, parente, concede-me licença para que parta imediatamente para a minha casa.

Imandra pareceu ficar perturbada, mas a dor no rosto de Cassandra apazi­guou a sua ira. Disse:

- Com este tempo? O Inverno aproxima-se, e a viagem será terrível. Tinha esperança que cá ficasses para me ajudar a educar a minha filha. Não tive muita sorte com a educação que dei a Andrómaca para me suceder como rainha. Não tenho muita fé em oráculos e presságios; no entanto, não te consigo negar nada no dia em que a Deusa me enviou esta linda filha. Porém, não é a minha permissão que tu tens de obter, mas sim a da Mãe Serpente. É ela, e não eu, quem tu serves aqui. E tens de esperar pelo menos até que eu consiga juntar os presentes para enviar para Tróia; para Andrómaca e seu filho, para a minha parente Hécuba e, não menos importante, para ti, minha querida filha.

Cassandra soubera que isto lhe seria exigido, e disse para si própria que a catástrofe que previra não podia ser tão iminente que um dia ou mesmo uma semana fizessem assim tanta diferença. Os deveres do parentesco e da cortesia não podiam ser ignorados em relação a alguém que fora tão bom para si como o fora a rainha Imandra. No entanto, o seu coração revoltava-se; tudo o que a mantinha naquele momento afastada de Tróia lhe parecia detestável. Estava certa de que Arícia a censuraria por deslealdade; mas não havía qualquer outra saída honrosa. Elas tinham-lhe oferecido com generosidade o seu saber e a sua amizade; não podia, apesar de tudo, escapulir-se de Cálcis como uma ladra.

* Pearl - pérola. (N. da T.)

Por isso, tomou coragem, e foi obter permissão para partir da sacerdotisa da Serpente.

Durante aquela noite e o longo dia que se lhe seguiu, enquanto estavam a ser preparados carroções, animais, presentes e tudo o que ela iria necessitar na longa viagem, Cassandra teve tempo para recuperar uma certa calma, mesmo que unicamente por não poder suportar aquela febre de medo e horror e continuar a viver. Sabendo que os deuses a tinham chamado a Tróia para encontrar o que quer que fosse que constituía o seu destino, nunca lhe ocorreu que ficar em Cálcis poderia servir para o evitar; a história estava repleta de lendas daqueles que egoisticamente haviam pensado evitar o seu destino ao negligenciar algum dever e que, inevitavelmente, haviam atraído sobre si precisamente a sina que tanto temiam.

A visão poderia não significar catástrofe; poderia até querer dizer que Apolo não toleraria aquela guerra tal como ela estava a decorrer. Talvez Ele lhes impusesse qualquer espécie de tréguas e tudo terminasse em bem.

Assim, por fim, embora lamentasse sinceramente deixar Cálcis e a liberdade e as honras que ali tivera, pôs-se a caminho três dias depois, cheia de coragem, satisfeita - ou pelo menos não se lamentando - pelo facto de se encontrar de novo em viagem.

 

A viagem iniciou-se com a primeira luz do dia, as três mulheres transporta­das num sólido carro puxado por mulas que a rainha Imandra providenciara. Enquanto o carro rodava através da cidade, tudo estava envolto em escuridão, à excepção das faíscas vindas de uma forja onde trabalhava uma robusta mulher ferreira. Adrias e Car estavam manifestamente rejubilantes por voltarem para casa, apesar de falarem com horror das longas milhas de viagem, do perigo de bandidos e centauros, bem como dos caminhos de montanha cobertos de neve, e dos homens e mulheres selvagens e vagabundos que pudessem pensar que elas levavam consigo grandes riquezas - ou mesmo que pudessem achar as suas provisões de comida e agasalhos suficientemente valiosos.

Cassandra seguia em silêncio, sentindo já a falta das suas amigas do Templo da Mãe Serpente, tanto das humanas como das répteis, e lamentando separar-se de Imandra. Era .muito pouco provável que voltassem a encontrar-se neste mundo.

Quando passavam os portões de ferro de Cálcis, caíam alguns flocos de neve, e os céus estavam cinzentos e carregados. A luminosidade aumentava, se bem que o Sol não tivesse aparecido, e Cassandra lançou um último olhar aos altos portões da cidade, de um vermelho que brilhava sob a acinzentada luz da madrugada.

Não devia haver muitas mulheres da sua idade que tivessem feito duas vezes uma viagem daquelas em toda a sua vida; e se fora capaz de percorrer duas vezes aquele caminho, porque não haveria de o percorrer três ou mais? Poderia ainda ter muitas aventuras pela frente; e embora estivesse a regressar a Tróia, não havia necessidade de sentir as muralhas da cidade fecharem-se de novo sobre si até que isso fosse inevitável.

Na primeira noite, quando ela e as suas mulheres se preparavam, como de costume, para dormir, Adrias inquiriu:

- Vais dormir com essa coisa na tua cama, princesa?

Cassandra deixou a mão perder-se entre os anéis da cobra, quentes e macios dentro da sua camisa.

- Claro que sim. Eu sou a mãe dela. Choquei esta cobra com o calor do meu próprio corpo, e ela dormiu no meu peito todas as noites da sua vida. Para além disso, à noite está frio; ela morreria se eu não a mantivesse quente.

- Eu faria muita coisa, e já fiz muita coisa, pela filha da tua mãe - disse Adrias. - Mas não partilharei a minha cama com uma cobra! Ela não pode dormir ao pé da fogueira numa caixa ou num pote?

- Não, não pode - disse Cassandra, intimamente deliciada. - Asseguro­-te que ela não te morderá, e é uma companhia melhor na cama do que um bebé humano, pois não molha nem suja a cama como um bebé normalmente faz. Nunca dormirás com criatura mais limpa. - Afagou a cobra e disse: - Não precisas de te preocupar; ela fica junto de mim. Tenho a certeza de que ela tem mais medo de ti que tu dela.

- Não - disse Adrias suplicante. - Não, por favor, princesa Cassandra, não consigo, não consigo dormir na mesma cama com essa serpente.

- Porquê, como te atreves! Ela é uma criatura da Deusa, tal como tu, Adrias. Tu não vais ser assim tão tola, pois não, Car?

Car disse com teimosia:

- Eu também não vou dormir com nenhuma cobra viscosa. Ela de certeza que iria rastejar por cima de mim quando eu estivesse a dormir.

- Ela nem sequer morde... e não te faria mal se mordesse - disse Cassan­dra, zangada. - ~inda não lhe cresceram os dentes. Que idiota que tu és. ­Deitou-se, acariciando langorosamente a cabeça da cobra que não se projectava mais do que a largura de um dedo para fora da sua camisa. - Se tivessem o mesmo juízo que os deuses deram às galinhas - disse Cassandra -, e simples­mente lhe tocassem, veriam que ela não é nada viscosa - não mais que um pássaro; é muito mais macia e quente. - Estendeu a cobra, enrolada na sua mão, na direcção de Adrias, mas a mulher recuou com um guincho. Cassandra deitou­-se, esticando-se sobre as almofadas. - Bem, eu estou cansada e vou dormir, mesmo que vocês ajam como duas idiotas e durmam no chão frio da carroça. Arranjem para vocês as camas que quiserem, mas apaguem a candeia e deixem­-nos dormir, em nome da Deusa. De qualquer deusa.

Em breve perderam Cálcis de vista, viajando por montes ventosos e através de uma série de pequenas aldeias. Os dias ficavam progressivamente mais frios, e uma neve fina começava a cair, derretendo à medida que ia descendo.

Uma manhã, tendo começado a viajar praticamente antes de o Sol nascer, Cassandra ouviu um estranho choro, queixoso e insistente.

- Oh, é uma criança, e, pelo som, muito pequena; que estará um bebé a fazer sozinho neste deserto, onde é possível que existam lobos ou mesmo ursos? - disse ela, descendo do carro e olhando em volta através da neve que caía, tentando localizar a origem do som. Depois de algum tempo, viu uma trouxa de panos grosseiramente tecidos na encosta da colina: era uma menina pequena mas perfeita, com o umbigo ainda não cicatrizado e uma penugem negra cobrindo-lhe a cabeça.

- Não lhe toques, princesa! - disse Adrias. - É apenas um bebé de uma das aldeias que foi exposto; alguma pega que não pode educar uma criança, ou uma mãe com demasiadas filhas.

Cassandra inclinou-se e levantou o bebé. Este estava gelado apesar dos panos que o envolviam, mas ainda esperneava com força. Quando Cassandra segurou o bebé contra o peito, o calor acalmou-o e os gritos cessaram, e ele começou a contorcer-se procurando mamar.

- Pronto, pronto - disse Cassandra apaziguadora, embrulhando a trouxa. - Eu não tenho aquilo que procuras, pobrezinha. Mas tenho a certeza de que encontraremos qualquer coisa para comeres.

Adrias disse, horrorizada:

- Porque haveríamos de fazer tal coisa? Certamente, princesa, não estás a pensar ficar com ela?

- Ficarias contentíssima por me veres casada - disse Cassandra - e com um bebé, agora já posso ter um sem quebrar os meus votos de castidade, nem ter de suportar as dores de parto. Porque não haveria eu de ficar com esta filha que a Deusa me enviou directamente? - O bebé estava agora mais quente e ador­mecera contra o peito de Cassandra. - Certamente que é um acto virtuoso, salvar a vida de uma criança.

A princípio dissera-o para provocar Adrias; mas agora começava a pensar nos inconvenientes e nos incómodos quando a mulher disse:

- E como irás alimentá-la, princesa? Não tem idade suficiente para comer alimentos sólidos e terás de lhe arranjar algures uma ama de leite e arrastá-la até Tróia.

- Nada disso - disse Cassandra, reflectindo sobre o problema. - Vai até àquela aldeia e traz-me uma boa cabra, com bastante leite. O leite de cabra faz os bebés fortes. - O rosto de Adrias contorceu-se de consternação, e Cassandra disse: - Vai imediatamente; será um óptimo alimento para todas nós. Ou então guarda-me a minha cobra enquanto eu vou...

Assim admoestada, Adrias correu para a aldeia e voltou com uma cabra preta e branca, jovem, robusta e saudável, que imediatamente criou um alvoroço com os seus balidos. Nenhuma das camareiras sabia muito sobre a ordenha das cabras, mas Cassandra mostrou-lhes como se fazia e, quando já tinham tirado uma boa malga de leite, alimentou o bebé deixando o leite pingar da ponta do seu dedo. A criança bebeu com entusiasmo e caiu de novo no sono, mamando ainda no dedo de Cassandra, como uma trouxa quente entre os seus braços. Cassandra pegou num pedaço de tecido e rasgou uma tira para, quando montasse o burro, o bebé poder viajar com ela sobre a sela, preso ao seu pescoço como os bebés das mães amazonas. Decidiu, pelo menos de momento, chamar Honey * ao bebé

* Honey - mel. (N. da T.)

dado que, depois de limpa, agasalhada e bem alimentada, tinha um cheiro doce, como o de um favo de mel.

Pelo menos teria algo em que pensar durante a longa viagem até Tróia. E quando lá chegasse, se não lhe conviesse ter uma criança para educar, dá-la-ia de presente à rainha ou a um dos templos; as raparigas eram sempre úteis em todas as casas para as infindáveis tarefas de fiar e tecer.

De início, Adrias e Car faziam comentários desdenhosos acerca do «teu fedelho de berma de estrada», mas em breve discutiam sobre quem levaria Honey ao colo durante as longas tiradas na carroça, cantando e contando-lhe histórias que ela era demasiado pequena para entender. Honey foi ficando gorducha e bonita; e elas penteavam-lhe o cabelo encaracolado em canudos e faziam-lhe vestidos a partir das suas próprias roupas. Em breve Cassandra deixou de conseguir lembrar-se de como fora a vida sem aquela menina agarrada ao seu pescoço enquanto viajava montada no burro, ou esgueirando-se para o seu colo quando viajava no carro. Parecia ter percebido rapidamente quem era a sua mãe; as mulheres eram bondosas com ela, mas ela deixava-as sempre (mesmo que lhe estivessem a dar doces) para ir para o colo de Cassandra. Dormia aninhada na parte de trás do carro durante os longos trajectos da viagem, com a cobra de Cassandra enrolada a seu lado, e queria frequentemente transportá-la dentro do seu próprio vestido. Quando as mulheres protestaram, Cassandra riu, simples­mente.

- Vêem? Ela tem mais juízo do que vocês; não tem medo de uma das criaturas da Deusa. Nasceu para ser sacerdotisa, e sabe-o.

Os dias transformaram-se em semanas de caminho, enquanto faziam a longa viagem de volta. Quando alcançaram a grande planície, mantiveram-se alerta procurando os grupos de centauros. Cassandra tinha esperanças de os encontrar; tinha um fraco pela gente cavaleira, embora tanto as suas camareiras como a escolta e os condutores esperassem ser poupados a tal encontro. Mas não encontraram nenhum centauro vivo, embora, uma noite, tivessem visto numa vala o cadáver de um cavalo e, agarrado a ele, o corpo magro e contorcido do seu cavaleiro, morto e frio; os ossos, quase furando a pele, disseram-lhes que o pobre homem morrera de fome e frio.

O coração de Cassandra contraiu-se de compaixão, apesar de o condutor e as mulheres dizerem que era bem feito e que esperavam que os seus companheiros tivessem o mesmo fim.

Uma noite, enquanto montavam o acampamento, Cassandra avistou, ao longe, um pequeno grupo de cavaleiros: um velho, esquelético e deformado pelos muitos anos passados sobre a sela, e meia dúzia daquilo que pareciam ser crianças, mas que, provavelmente, seriam adolescentes subnutridos. Cassandra não conseguiu certificar-se, mas pensou que talvez fosse Quíron. Fez-lhes sinais e chamou-os na sua própria língua, mas eles não se aproximaram; continuaram a descrever lentos círculos em volta do acampamento, demasiado distantes para que os pudesse ver claramente ou ouvir o que diziam.

- O melhor é pormos uma sentinela - comentou um dos condutores -, senão, enquanto dormimos, eles são capazes de se aproximar do acampamento e matar-nos a todos. Nunca se pode confiar num centauro.

- Isso não é verdade - disse Cassandra. - Eles não nos farão mal; têm mais medo de nós que nós deles.

- Eles deviam ser todos mortos - disse Car. - Não são homens civilizados.

- Eles têm fome, é tudo - disse Cassandra. - Sabem que nós temos comida e animais; a nossa cabra fornecer-lhes-ia a melhor refeição deste ano. Apesar da desaprovação das suas mulheres e da escolta, ela continuava disposta a dar-lhes presentes e comida, e durante algum tempo tentou atraí-los, mas eles mantiveram-se a uma distância prudente, fazendo círculos com os seus cavalos, e não se aproximaram do acampamento. Por isso, quando se acomo­daram para passar a noite, um ou dois dos homens ficaram de vigia; e Cassandra ficou acordada pensando nos centauros lá fora, no escuro, sobre os seus cavalos. De manhã deixou alguns pães de cevada e uma ou duas medidas de leite num pote rachado que o seu grupo tencionava deitar fora.

Enquanto se afastavam do acampamento, Cassandra viu que os centauros se aproximavam; pelo menos ficariam com a comida - que não Lhes adiaria amorte pela fome por muito tempo. «Para Honey», pensou ela, «eles nunca passarão de uma lenda e toda a gente Lhe dirá como eles eram maus. Mas também possuíam sabedoria, e um estilo de vida que nunca mais veremos. Será que as Amazonas também irão acabar assim?»

Depois do quase encontro com os centauros, o caminho parecia longo e vazio; dia após dia, arrastavam-se através da longa planície avistando poucos ou nenhuns viajantes, os dias distinguindo-se entre si pelo minguar e encher da Lua e pelas mudanças do bom tempo para dias de neve. Ao atravessarem a região onde ela esperava encontrar as tribos das Amazonas, não encontraram quaisquer cavaleiros, homens ou mulheres. Teriam todas as Amazonas morrido ou sido raptadas para servir nas aldeias dos homens? Gostaria de enviar uma mensagem a Pentesileia, mas não fazia a menor ideia de como fazê-la chegar até ela ou mesmo se ela ainda era viva. Tentou vê-la na taça mágica, mas não conseguiu encontrá-la.

A neve espessa cobria as estepes e fazia um frio cortante. Cassandra temia pela vida das suas cobras naquele clima; ela e Honey mantinham-se envoltas em cobertores, com um braseiro para conservá-las aquecidas e partilhando o seu calor com as serpentes. Por vezes, a profundidade da neve era tão grande que o carro não conseguia progredir e ficavam presos dias inteiros, sem luz, pouco aquecimento e impedidos de cozinhar. Tinham de manter a cabra dentro da carroça, pois ela poderia perder-se durante os densos nevoeiros.

À medida que os meses passavam, também em Honey se produziam altera­ções; havia alturas em que parecia a Cassandra que a menina crescia a olhos vistos, da noite para o dia. Parecia que todos os dias aprendia uma nova gracinha ou que, ao crescer, adquiria algo de novo para fascinar a sua mãe adoptiva. Poucos dias depois do aparecimento dos centauros nasceu-lhe o primeiro dente; pouco depois já conseguia beber o seu leite por uma caneca; e pouco depois disso começava a comer pão ensopado em leite ou alimentos esmagados, dados à colher. Bastante mais cedo do que Cassandra esperara apresentava a dentição completa, agarrando e comendo tudo o que conseguia apanhar no prato de toda a gente. Cassandra já não podia sentá-la no chão durante as paragens nocturnas, pois ela gatinhava para longe e rapidamente o desaparecer se tornou para ela um jogo, já que achava graça a que a chamassem e tentassem apanhá-la. Por fim, chegou uma altura (felizmente após terem passado as neves mais fortes) em que tinham de a vigiar constantemente para que ela não gatinhasse para fora do carro, mesmo em andamento; e em pouco tempo corria já por todo o lado durante as paragens. Não era, pensava Cassandra, uma criança especialmente bonita - mas era forte e robusta, nunca adoecia e raramente ficava rabugenta, mesmo quando lhe estavam a nascer os dentes.

Com o passar do tempo e à medida que iam devorando caminho, chegaram a uma região con3 melhores trilhos, onde encontraram mais viajantes. Parecia que o mundo inteiro ia a caminho de Tróia, levando armas e todo o tipo de mercadorias para serem vendidas aos Troianos (ou aos Aqueus; segundo parecia, os Aqueus faziam agora um bloqueio a todas as mercadorias destinadas a Tróia, viessem por terra ou por mar). E por fim, um dia, avistaram os contornos familiares do monte Ida e começaram a viajar ao longo do rio Escamandro, em direcção a Tróia.

Quando avistaram a cidade, Cassandra teve a sensação de que uma outra cidade - uma cidade que se estendia, feita de tendas, barracões e abrigos - tinha brotado no sopé das grandes muralhas, e o mar estava escuro devido aos barcos que se aglomeravam no porto. Havia junto do porto um intenso mau cheiro, como se as próprias marés se tivessem tornado fétidas; as ruas dessa cidade recém-nascida estavam atravancadas de carros e carroças e, logo que a escolta de Cassandra se aproximou com a sua carroça, os soldados aqueus equipados com as armaduras que ela recordava como sendo as usadas pelos homens de Aquiles, vieram imediatamente perguntar o que pretendiam eles dali.

A sua escolta não foi bem sucedida nas explicações e por isso Cassandra, que falava um pouco melhor a língua, desceu da carroça com Honey às cavalitas e explicou que era a filha de Príamo, regressando de uma longa viagem a Cálcis. Esta novidade, que Cassandra supunha não ser particularmente surpreendente, foi passada de boca em boca e, finalmente, ouviu-se um grito generalizado reclamando que o comandante deveria ouvir pessoalmente aquilo.

Supusera tratar-se de Aquiles, mas em vez dele apareceu o jovem moreno ligeiramente mais alto e forte, que ela vira na companhia de Aquiles. Tratavam­-no por Pátroclo, e ele veio até junto dela e dirigiu-se-lhe com um certo grau de cortesia - mais cortesia, sem dúvida, do que a que recordava em Aquiles.

- Dizes então ser a filha do velho rei? Espera um momento; há uma rapariga na tenda do rei Agamémnon que foi educada lá em cima no palácio; ou, pelo menos, é o que ela diz. Ela poderá confirmar-nos se és ou não quem dizes ser. a Espera aqui - ordenou ele, afastando-se.

. Honey estava a tornar-se pesada nos seus braços e Cassandra pediu licença a dm dos soldados-guardas para a pôr no chão.

- Deixa-te estar ao pé de mim - advertiu-a; não acreditava que qualquer dos soldados fosse, conscientemente, fazer mal a uma cria~ça a não ser, talvez, no calor da batalha. Mas não tinha a certeza e não confiava o suficiente nos Aqueus ~ara desejar pôr à prova aquela teoria.

Passado algum tempo, Pátroclo regressou com uma mulher velada; esta afastou o véu e olhou para Cassandra.

- Sim - disse ela -, esta é a fdha de Príamo.

Para sua surpresa e consternação, Cassandra reconheceu a rapariga como sendo Criseide.

Cassandra, apesar de chocada, sentiu alívio por saber que Criseide estava viva e de saúde.

- Criseide, minha querida, tenho-me preocupado contigo, e sei quão ator­mentado o teu pai ficou.

Criseide tornara-se mais alta e cheia de corpo, mas ainda tinha o espantoso cabelo louro que lhe dera o seu nome.

Pátroclo falou com um dos soldados; pareciam discutir se deveriam ficar com ela para pedir um resgate ou para trocar por um dos prisioneiros aqueus. - Não podes fazer isso - disse o chefe da sua escolta. - Ela é uma sacerdotisa de Apolo e viaja sob as Suas tréguas.

- Ah, é? - perguntou Pátroclo. - Talvez então possamos fazer alguma coisa para silenciar o sacerdote de Apolo que não pára de se queixar ao rei Agamémnon ou a quem quer que lhe dê ouvidos. Os nossos próprios sacerdotes não param de exigir que façamos oferendas a Apolo; talvez a devêssemos consultar sobre o sacrificio apropriado.

Virou-se para Cassandra e disse:

- Sacrif"icarias, então, ao Senhor do Sol para nós? Ela disse:

- Recordo-me bem de mais da sorte da última sacerdotisa que Aga­mémnon enviou para fazer sacrifícios por vocês.

Pôde ver nos rostos deles que esta resposta não era de todo do seu agrado. Criseis dirigiu-se-lhe pela primeira vez.

- Não devias falar assim de Agamémnon, Cassandra.

- Ele não é nem meu amigo, nem da minha família - disse Cassandra. - Nem lhe devo qualquer respeito de convidada para anfitrião; falarei dele como me apetecer. Porque mostras tu tanta deferência pelo seu nome?

- Porque ele é meu senhor e é o homem mais poderoso entre os Aqueus­disse Criseide -, e tu farias melhor em não o irritar; aqui estamos todos à sua mercê.

- Queres que eu tente chegar a um acordo para conseguir a tua liberdade, quando voltar à cidade? - perguntou Cassandra num murmúrio.

Criseide sacudiu a cabeça e disse com desprezo:

- Eu não pedi nada disso. O meu pai tem invocado Apolo para conseguir que eu regresse, mas Apolo não tem aqui poder que se compare ao de Agamém­non e eu antes quero pertencer a um homem do que a um deus.

Cassandra recordou então a sua terrível visão. Apercebeu-se de que tremia; olhou depois para Pátroclo.

- Não me fizeste qualquer descortesia. Far-te-ei, por isso, um aviso sincero: vi cair sobre esta cidade as terríveis flechas de Apolo atingindo troianos e aqueus por igual. - Ouviu a sua voz erguer-se num grito e sentiu o calor e brilho fami­liares do Senhor do Sol: - Oh, acautelem-se com a Sua ira; acautelem-se com a cólera de Apolo! Não atraiam as Suas terríveis flechas!

Pátroclo pareceu retrair-se ligeiramente, mas franziu o sobrolho e disse: - Sim, ouvi dizer que és profetisa. Escuta o que te digo, mulher. Não tenho medo do teu Apolo troiano, mas é sempre insensato provocar o deus de outrem. Sinto-me inclinado a deixar-te seguir; os nossos sacerdotes dirão provavelmente o mesmo e eu não tenho nenhuma paixão especial em guerrear por causa de mulheres. Mas é a Aquiles que cabe tomar a decisão fmal.

Falou com um rapazinho que os observava e disse-lhe para ir a correr chamar o comandante.

Tinha-se formado um ajuntamento considerável em torno da carroça, e todos fixavam as camareiras. Pátroclo ergueu os olhos para as mulheres idosas e perguntou a Cassandra:

- Quem são estas mulheres?

- São criadas da minha mãe; são minhas camareiras. - Têm, também, votos como sacerdotisas de Apolo?

- Não, não têm; mas estão sob a minha e a Sua protecção.

Cassandra começou a sentir-se desconfortável devido à forma como a olhavam. Pegou em Honey, que gatinhava em volta dos seus pés, e segurou-a nos braços.

- Não temos, nem de longe, mulheres suficientes no nosso acampamento para fazerem o trabalho feminino. Não lutarei por ti com o Apolo troiano, mas estas mulheres são, legitimamente, minhas prisioneiras.

Dirigiu-se ao carro e agarrou Car por um braço. - Desce, velha senhora. Tu ficas aqui.

Ela afastou-o com uma sacudidela furiosa.

- Tira as mãos de cima de mim, porco animal aqueu.

Deliberadamente, Pátroclo ergueu a mão e bateu-lhe, não com muita força, na boca.

- Não estou muito certo do que disseste, mas esta é a tua primeira lição, velha; entre nós não se fala assim com os homens. Vai ali para dentro. Encontra­rás lá algumas roupas para remendar; se o fizeres bem talvez te demos de comer.

Cassandra exclamou:

- Eu disse-te que estas mulheres estão sob a minha protecção e sob a protecção do Senhor do Sol! Solta-a... ou acautela-te com a Sua ira!

- E eu disse-te - respondeu Pátroclo - que o teu Apolo troiano não me interessa para nada. Honrarei as suas tréguas na medida em que não causarei ofensa à Sua profetisa, mas estas mulheres são minhas prisioneiras e quanto a isso não há nada que possas fazer.

Cassandra reparou que entre a multidão se encontravam umas quantas mulheres, nenhuma das quais parecia surpreendida com as palavras ou as acções de Pátroclo. Car gritou e começou a correr em direcção às portas de Tróia; Pátroclo fez sinal a um dos soldados para que a trouxesse de volta e disse a Criseide:

- Vamos, tu! Tu falas a sua língua; repete-lhe o que eu disse. Ninguém lhe fará mal se ela fizer bem o seu trabalho. E podes repetir também o que eu disse à filha de Priamo; também ela me pareceu não ter percebido muito bem.

Criseide começou a repetir a Car as palavras de Pátroclo, mas Cassandra interrompeu-a.

- Diz ao capitão aqueu que eu percebi perfeitamente o que ele disse; mas estas mulheres são minhas criadas e estão tanto sob protecção de Apolo como eu própria. Ele não mas pode tirar.

- Pensas que me vais impedir, princesa? - inquiriu o homem, e arrastou Adrias para fora da carroça. - Ora, esta está muito velha para a cama, mas aposto que sabe cozinhar; Aquiles tem andado a dizer que quer alguém para servir aquela mulher que ele mantém na tenda dele. Que alguém a mande a Briseide.

Um dos homens que assistia disse:

- Então e o bebé? Parece-me forte e saudável... Queres que a apanh? - Deuses do Hades, não - disse Pátroclo, enquanto a mão de Cassandra se crispava sobre o punhal. - Ela ainda molha as calças; achas que vamos ficar aqui pendurados em Tróia até o fedelho ter idade para a cama? Esquece. - Disse para Cassandra: - Agradece o facto de estares sob protecção de Apolo; sugiro que subas para o carro e te ponhas a caminho. Mas não imediatamente. - Fez sinal aos seus homens e disse: - Revistem o carro; vejam a comida e outras coisas que nos possam ser úteis.

Os homens lançaram-se imediatamente sobre a carroça, arrastando as provi­sões e atirando-as para o chão. Cassandra não tinha nada para dizer; sabia que não lhe dariam ouvidos. Depois de algum tempo, como já sabia que iria aconte­cer, chegaram aos rolos de cobertores e começaram a desenrolá-los no chão; um soldado saltou então para trás, com um guincho, quando uma das serpentes maiores se desenrolou ante os seus olhos. Deitou a mão à sua lança, mas Cas­sandra gritou um aviso na língua dele.

- Não! Ela está consagrada ao Senhor do Sol; não te atrevas a tocá-la! O homem recuou cambaleante, pálido como a morte; Cassandra tinha estado tanto tempo em Cálcis, que já esquecera o terror com que aquelas criaturas eram olhadas nas ilhas. Mergulhou então a mão no vestido e encorajou a serpente que ali se encontrava a rastejar lentamente para fora. Esta enlaçou-lhe a cintura e escorregou pelo seu braço, ao mesmo tempo que os soldados recua­vam, um a um, presos de um terror supersticioso.

- A-aaahhhh! Olhem para ali! O que a magia dela fez aparecer!

- Não sejam idiotas - disse Pátroclo. - No nosso país, as sacerdotisas também são ensinadas a lidar com elas; mas não lhes toquem. Nós não as queremos aqui. Vai - disse para Cassandra - e leva contigo os teus malditos animais de estimação.

Cassandra sabia que não conseguiria mais nada. Car e Adrias estavam de joelhos, chorando; Cassandra foi até junto delas e disse com suavidade:

- Não tenham muito medo; executem o que eles disserem e não os façam zangar. Juro por Apolo, hei~e levar-vos de volta.

Não tinha grande amor por qualquer das camareiras, mas elas estavam sob a sua protecção e eram queridas à sua mãe.

Podia agora ver as razões para a ira de Apolo. Falaria de imediato com os sacerdotes.

 

À medida que o carro rodava, barulhento, ao longo do terreno fronteiro às muralhas de Tróia, Cassandra lembrou-se de que todas as sentinelas das mura­lhas deviam ter visto o que acontecera. O assalto a um carro não devia ser um acontecimento invulgar, caso contrário eles teriam interferido, pelo menos dispa­rado flechas para o acampamento aqueu. Sem dúvida, os viajantes mais bem informados que transportavam mercadorias com destino a Tróia tinham o cuidado de fazer o que ela deveria ter feito, e aproximar-se pelo interior.

Cassandra tinha ainda as serpentes destinadas ao Templo do Senhor do Sol. Ela própria estava ilesa e os aqueus não tinham feito Honey correr sério perigo. As coisas podiam ter corrido pior. Mas ela percebera que nível das hostilidades tinha sofrido uma escalada; deveria ter tido o cuidado de se informar antecipada­mente de como a guerra estava a progredir.

Diante dos portões, um soldado troiano deteve-a e, passado um momento, ela reconheceu Deífobo, filho de Príamo e de uma das suas cortesãs.

Este fez uma vénia.

- A rua principal é demasiado íngreme para o carro, princesa - disse ele a Cassandra. - Terás de ordenar que o levem até ao outro lado, oposto à costa. Mas para ti abriremos a pequena passagem ao lado do portão principal. Este portão, agora, nunca é aberto por receio que os Aqueus se lancem sobre ele; enquanto estiver fechado não poderão rebentá-lo - a menos que algum deus ou semelhante, talvez Posídon, decida quebrá-lo - acrescentou rapidamente, fazendo um gesto de quem afasta a má sorte.

- Que esse dia venha longe - disse Cassandra. - Podes arranjar alguém para levar o carro para o Templo de Apolo? Dentro do carro estão serpentes para a casa do Senhor do Sol, e elas não podem assustar-se nem apanhar dema­siado frio.

- Mandarei imediatamente um mensageiro à casa do Senhor do Sol ­prometeu Deífobo amavelmente. - Vais iá nara o nalácio, irmã?

- Vou; estou desejosa de ver a minha mãe - disse Cassandra. - Ela está , bem, espero?

- A rainha Hécuba? Oh, sim; embora, como todos nós, não esteja a ficar mais nova - disse Deífobo.

- E o nosso pai? Continua bem de saúde? Ouvi dizer que ele tivera uma doença qualquer...

- A notícia chegou a um lugar tão distante como Cálcis? Ele sofreu o ataque do Deus; coxeia e o seu rosto está apanhado de um dos lados - disse o jovem oficial. - E agora o príncipe Heitor comanda os exércitos de Tróia.

- Sim, isso soube - disse Cassandra -, mas no longo caminho desde Cálcis não tive quaisquer notícias, e a viagem também não foi propícia para a Visão; pelo que eu soube, ele podia ter morrido desde então.

- Não. Folgo em dizer que, embora esteja a ficar velho, está suficiente­mente bem para vir todos os dias até à muralha ver o que se passa - disse Deífobo. - Enquanto Príamo continuar a chefiar-nos, Heitor não poderá ser demasiado temerário. Aquiles - fez um gesto desdenhoso na direcção do acam­pamento dos Aqueus - está sempre a tentar atrair Heitor lá para fora, para um combate singular; mas o meu irmão tem bom senso suficiente para não o fazer. Aliás, todos nós sabemos que Agamémnon pregou uma partida suja à própria filha; portanto, não cremos que eles respeitassem as regras do combate singular; o mais provável era que alguns dez ou mais caíssem sobre ele ao mesmo tempo. Não podes confiar num aqueu nem à distância; costuma dizer-se: se um deles te beijar, conta os teus dentes; estupores de ladrões. Mas vejo que te deixaram passar ilesa...

- Ilesa sim, mas travei conhecimento com o seu modo de roubar ­respondeu Cassandra. - O que eles não roubaram deixaram apenas por teme­rem as serpentes de Apolo; e não creio que isso se deva a reverência alguma pelo Deus, mas sim ao medo das serpentes em si. E levaram as duas camareiras da minha mãe, que não eram servidoras de Apolo mas minhas, ou melhor, de Hécuba.

Deífobo aproximou-se e deu-lhe umas leves palmadinhas no ombro.

- Não tenhas medo, irmã. Nós traremos as tuas camareiras de volta. Mas deixa-me mandar buscar homens ao Templo do Senhor do Sol, para descarrega­rem o teu carro, e uma escolta para ti, até ao palácio; não fica bem a uma princesa andar sozinha pela cidade. Melhor ainda, deixa-me mandar buscar uma liteira ao palácio; é o que a princesa Andrómaca costuma fazer quando vem cá abaixo saudar Heitor antes de começarem as batalhas.

Cassandra quis protestar, dizendo que era certamente capaz de caminhar; mas Honey pesava-lhe nos braços e ela concordou em utilizar a cadeira.

Não tardou muito até que aparecessem os criados, com as túnicas caracterís­ticas da casa do Senhor do Sol, e Cassandra deu instruções detalhadas acerca das serpentes, prometendo que ela própria iria orientar o seu tratamento depois de cumprimentar os seus pais. Então, Deífobo conduziu-a através da pequena porta lateral até uma pequena casa de guarda. Enquanto esperava a cadeira que a transportaria até ao palácio, ele foi buscar-lhe um refresco.

Estava desabituada da claridade do sol e do seu calor mesmo naquela estação. Depressa se tornou assustadoramente quente para ela. Além disso, estava preocupada com Car e Adrias.

Honey gatinhava pelo chão da pequena casa de guarda; Cassandra reparou que a túnica dela estava a ficar muito suja e os seus joelhos não estavam melhor, mas sentia-se demasiado cansada para se preocupar.

Deífobo dirigiu a atenção dela para uma pequena escada, talhada na pedra, que conduzia ao interior da muralha.

- Gostarias de dar uma espreitadela do cimo da muralha? De lá consegue ver-se tudo o que acontece no acampamento aqueu. O rei vem agora a caminho para observar também (vem todos os dias a esta hora)-disse Deífobo. -Estou a ouvir os guardas dele. - Lançou um olhar a Honey. - O bebé fica em segurança aqui - disse ele. - Ela já é suficientemente grande para que ninguém a pise. - Pegou numa lança que se encontrava encostada à parede e enfiou-a no cinto. - Pronto, não há mais nada com que ela possa magoar-se. Vem comigo.

Cassandra seguiu-o pelas estreitas escadas acima; no topo, ele voltou-se para trás a fim de a ajudar a subir. Era verdade: dali podia ver toda a extensão do acampamento aqueu. Ele apontou-Lhe a grande tenda ornamentada de Agamém­non, uma outra um pouco mais pequena que pertencia a Aquiles e Pátroclo, e os alojamentos de Odisseu, os quais davam a ideia de que ele tinha trazido a cabina do navio para terra.

- E muitos outros. Há ali uma grande quantidade de navios que pertencem aos Aqueus; havia um bardo que estava a fazer uma canção acerca disso - disse ele. - Quem os ouvir pensa que todos os heróis do continente vieram ajudar Agamémnon e as suas gentes. Também há uma lista considerável de aliados nossos, mas suponho que não estejas interessada nisso.

- Não especialmente - confessou Cassandra. - Ouvi o suficiente acerca de ambos os lados, em Cálcis.

- Cálcis - disse ele pensativo. - Agora que penso nisso, Cálcis não se colocou de nenhum dos lados; porque foi que o rei deles não mandou soldados para Tróia?

- Porque Cálcis não tem rei - informou-o Cassandra. - Cálcis é governada poruma rainha; e neste último ano ela esteve grávida. A sua herdeira (uma filha) nasceu precisamente antes de eu me vir embora.

- Não tem rei e é governada por uma mulher? Parece-me uma maneira muito estranha de gerir uma cidade.

Antes que ela tivesse tempo de dizer mais alguma coisa, o som dos soldados que se aproximavam interrompeu-os e Príamo, acompanhado por vários dos seus soldados - muitos dos quais Cassandra reconheceu como filhos das suas cortesãs - surgiram no alto da muralha.

Felizmente estava prevenida pela Visão, caso contrário talvez só reconhe­cesse o seu pai pelo sumptuoso manto que trazia. Ele sempre fora um homem saudável e robusto, com boas cores, a caminho da meia-idade; agora ela via um homem velho, com a pele acinzentada e cheia de rugas, o rosto torcido para um dos lados, uma pálpebra descaída, o canto da boca flácido. A sua fala estava também lenta e empastada.

Perguntou a Deífobo:

- Que aconteceu no acampamento aqueu esta manhã? Esses aqueus estive­ram de novo a interceptar armas? Se isto continua assim, teremos de derreter as nossas espadas velhas para fazer novas. Precisamos de um ou dois carregamentos de ferro de Cálcis, mas teremos de preparar uma escolta especial ou subornar alguém para os deixar passar...

Calou-se de repente e disse:

- Quantas vezes já te disse que não quero mulheres aqui em cima a menos que a rainha esteja presente para garantir que elas se comportam? Sabes tão bem como eu qual o tipo de mulheres que vem aqui olhar embasbacadas para os soldados...

Cassandra disse:

- Não, pai; Deífobo não tem culpa. Ele quis que eu me protegesse do sol e ofereceu-se para me mostrar a vista da muralha, depois de os Aqueus terem assaltado o meu carro...

Não terminou, mas nem precisava; Príamo reconheceu-a e disse:

- Então voltaste, como um mau presságio, Cassandra! Pensei que tinhas decidido passar o resto da guerra em Cálcis -era menos uma mulher com a qual me preocupar caso a cidade se rendesse. Mas a tua mãe sentiu a tua falta. ­Aproximou-se e, como era seu dever, beijou-a na testa. - Queres dizer que os Aqueus ousaram quebrar as tréguas de Apolo?

Quando era criança, Cassandra achava aterradoras as fúrias de Príamo; agora, ele soava-lhe simplesmente rabujento, como uma criança crescida e mimada. Com suavidade disse:

- Não tem importância, pai; ninguém se magoou e os bens de Apolo (incluindo eu, suponho) estão em segurança. E logo que a minha liteira chegue, irei tranquilizar a minha mãe.

- Tu és forte e saudável; para que precisas de uma cadeira para te levar?­perguntou ele irritado.

- A guerra não está a correr como ele desejaria», traduziu ela interiormente e disse, hesitante:

- Sim, pai, estou certa de que tens razão.

- A tua cadeira espera-te - disse Deffobo, e Cassandra viu-a subir e entrar na muralha. Desceu as escadas e pegou em Honey, desejando conseguir encon­trar uma forma de lhe dar banho e comida, antes de a levar para junto da mãe; mas naquele momento não havia qualquer solução. Ela própria estava descom­posta da longa viagem e do interlúdio no meio da poeira do acampamento aqueu - bem como de segurar na criança suja -, mas também não havia solução para isso. « E porque hei-de eu vestir a minha túnica mais requintada e lavar as mãos e a cara por causa da minha mãe?» - perguntou de si para si. Mas quando foi conduzida à presença de Hécuba e viu o olhar desaprovador da mãe, percebeu.

- Oh, Cassandra! Minha querida, querida filha! - exclamou Hécuba, e aproximou-se para a abraçar, recuando depois com um leve trejeito de cons­ternação.

- Mas o que andaste a fazer, minha querida? O teu vestido está uma desgraça, e o teu cabelo...

- Mãe, depois do meu encontro com os Aqueus, esta manhã, é uma sorte que eles me tenham deixado um vestido para usar na tua presença - disse ela com um sorriso. - Receio bem que os presentes que eu trazia da tua parente Imandra tenham ficado no acampamento aqueu.

Hécuba pareceu ficar profundamente perturbada. - Eles não... te insultaram?

- Ninguém me violou, se é isso que queres dizer - disse Cassandra, rindo. - Como é que és capaz de gracejar com estas coisas? - perguntou a mãe. Cassandra disse, beijando-a:

- Ora, que mais posso eu fazer? São loucos, todos eles; mas, se vamos entrar nesse campo, também há bastantes loucos em Tróia.

Os olhos de Hécuba pousaram-se sobre a criança nos braços de Cassandra. - Oh, que é isto? Uma criança, e tão pequena... o cabelo dela... tem os mesmos caracóis que o teu tinha quando eras desta idade... mas o que... quem... como...?

- Não, mãe - disse Cassandra, prontamente -, ela não é minha; ou melhor, não a dei à luz; foi encontrada. - Hécuba parecia ainda céptica e Cassandra, suspirando (porque estaria a sua mãe sempre pronta a pensar mal dela?), disse: - Achas que seria fácil encontrar um homem que quisesse partilhar a minha cama havendo nela uma serpente - mesmo uma tão pequena como esta? - Procurou dentro do vestido a serpente que sempre aí transportava enquanto estava acordada.

Hécuba soltou um pequeno grito.

- Uma cobra - e mesmo no teu peito!

- Ela é muito mais minha filha do que o bebé - disse Cassandra, rindo -, pois fui eu mesma quem a tirou do ovo; mas qualquer pessoa da minha caravana te pode contar como encontrei Honey numa encosta, durante uma tempestade de neve, abandonada para morrer por alguma mãe que decidiu não criar uma rapariga este ano.

Hécuba aproximou-se e olhou de perto para a criança.

- Agora que vejo melhor, ela não se parece nada contigo. - Eu bem te disse.

- Pois disseste. Desculpa-me; não estava inclinada a acreditar...

«Talvez não estivesses inclinada, mas terias ficado convencida disso», pen­sou Cassandra.

Mas então a sua mãe fez a pergunta que ela estivera a tentar evitar: - E onde estão Car e Adrias?

- Nas tendas de Agamémnon e de Aquiles - disse ela -, mas não porque assim o escolhessem. - Explicou o que lhes acontecera.

- Então temos de arrajar maneira de as resgatar; ou talvez trocar prisionei­ros aqueus por elas - disse a mãe.

- Arranjar a troca delas? Porque haveríamos de negociar com os Aqueus? - perguntou uma voz familiar, e Andrómaca entrou no quarto. - Oh, Cassan­dra! Minha querida irmã! - e Andrómaca correu a abraçá-la, ignorando a sujidade do seu vestido. - Então voltaste! Eu sabia que não eras tão traiçoeira que fosses ficar em Cálcis durante toda a guerra! Que amor de bebé! -exclamou, olhando para Honey. - É tua? Não? Oh, que pena! - Depois viu a cobra e recuou um pouco. - Continuas portanto com a tua mania de brincar com serpentes! Eu deveria lembrar-me.

Honey, ao ver a cobra, começou a chorar e estendeu as mãos para ela. Cassandra, rindo, deixou a menina enrolá-la em volta da cintura. Andrómaca encolheu-se, lançando um olhar repugnado, mas a criança estava inegavelmente deliciada com a cobra.

- Porque não lhe arranjas um gatinho, Cassandra? - sugeriu Hécuba. - Seria sem dúvida um animal de estimação mais apropriado.

Cassandra riu-se.

- Ela fica satisfeita com os animais que eu lhe dou; deviam vê-la com a nossa outra, uma autêntica matriarca das serpentes; é quase da grossura dela. - Não tens medo (as cobras não têm uma visão muito boa) que a cobra se possa enganar e engoli-la acidentalmente? - protestou Andrómaca.

Mas Cassandra disse:

- Elas conhecem a sua gente; Honey alimentou-a com pombos e coelhos. Mas, mãe, isto não é assunto próprio para os teus aposentos.

Hécuba perguntou, a rir: - A cobra... ou o bebé?

- Ambos - respondeu Cassandra, abraçando novamente a mãe. - Dei­xa-me chamar alguém que a leve para tomar banho e vestir roupas limpas. Ficará mais bonita, depois; e, além disso, ela desde manhã cedo que não come nada.

E, lançando a Hécuba um olhar a pedir permissão, chamou um criado para levar a criança e a cobra para a casa do Senhor do Sol.

- Receio bem que também eu tenha de me apresentar lá, dentro de pouco tempo - disse ela -, embora esteja certa de que eles de boa vontade me dariam licença para vir apresentar os meus respeitos à minha mãe e à minha família. E gostaria de ver os filhos de Helena - acrescentou.

- Ah, os filhos de Helena - disse Hécuba secamente. - Correm piadas no exército aqueu dizendo que Helena está a criar um exército para Tróia.

- Coisa que eu não posso fazer por Heitor - disse Andrómaca, e os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Mas essa mulher aqueia tão depressa está a parir como já está prenha outra vez.

- Que modo de falar! - protestou Hécuba. - Tu tiveste azar, mais nada. Deste a Heitor um belo filho, e todos os homens do exército sabem o nome dele e o admiram. Que mais queres?

- Nada - disse Andrómaca -, e aqui só entre nós, mulheres, estou bastante satisfeita por ser poupada à tarefa de dar à luz todos os anos, ou de dois em dois; disse a Heitor que se desejar ter cinquenta filhos como o seu pai, tem de os arranjar da mesma forma que ele. Mas até aqui ele só tem querido partilhar a minha cama e recusou até uma mulher aqueia capturada. Talvez eu não goste tanto de crianças como Helena, mas gostaria de ter uma filha antes de ser velha de mais. E por falar em filhas, Cassandra, sabias que Creúsa deu o nome de Cassandra à sua segunda filha?

- Não, isso não sabia - disse Cassandra, e perguntou-se se aquilo teria sido obra de Creúsa ou de Eneias.

- E agora, antes de te ires embora - disse Andrómaca -, fala-me da minha mãe.

Cassandra contou a Andrómaca do nascimento da herdeira de Cálcis; Andrómaca suspirou.

- Quem me dera poder ir para Cálcis, para que Heitor pudesse aí ser rei; quem sabe, quando esta malvada guerra terminar isso possa arranjar-se.

- Imandra acha que a sua princesinha-pérola tem de ser educada para ser rainha - disse Cassandra. - E Heitor não ficaria muito agradado por se sentar aos pés do trono (como faz o consorte da tua mãe) e de se entreter a caçar e a pescar com os companheiros.

Andrómaca suspirou.

- Talvez não; mas habituar-se-ia, suponho, tal como eu me habituei a ficar dentro de casa e a fiar até ter os dedos doridos - disse ela nervosamente. - Agora que voltaste, Cassandra, talvez possamos conseguir fazer umas excur­sões para fora das muralhas.:.

- Se os Aqueus o permitirem...

- Ou se se cansarem de estar sentados do lado de fora das muralhas e de atirar pedras aos guardas - disse Andrómaca. - Foi isso, mais ou menos, o que eles conseguiram fazer nos últimos meses, embora procurassem por uma ou duas vezes fazer assaltos às muralhas, e tenham até trazido escadas ultralongas. Mas Heitor teve a ideia de lhes esvaziar o granbde panelão da sopa do jantar dos guardas, a ferver, por cima das cabeças e eles desceram por ali abaixo bem mais depressa do que tinham subido, isso te garanto. - Riu-se com vontade. - Agora eles têm sempre uma grande panela com qualquer coisa a ferver, lá em cima, e se não for qualquer coisa pior do que sopa, os assaltantes estarão com sorte. Da última vez era azeite, e desde então não voltaram a tentar. Ai, os gritos que nessa noite ouvimos vindos do acampamento aqueu! Todos os sacerdotes-curandeiros deles saíram, cantando e sacrificando a Apolo até de madrugada. Ensinar-lhes-á a não tentar passar sorrateiramente as muralhas, quando pensam que os guardas estão todos a dormir!

- Tu agora não usas armas... mas não perdeste o gosto pela guerra ­comentou Cassandra.

- Tenho um filho para proteger - replicou Andrómaca; e Cassandra lembrou-se de como ela própria estivera, de facto, pronta a matar quando os soldados haviam ameaçado Honey.

- E eu tenho muitos filhos, mas todos eles têm idade para lutar por si próprios - disse Hécuba. - E agora, Cassandra, diz-me: quando passaste pelas terras das Amazonas, encontraste a nossa parente? E Pentesileia enviou-me alguma mensagem?

- Só a vi na viagem de ida - disse Cassandra, e contou à sua mãe o encontro com as Amazonas, e como muitas das mulheres haviam escolhido instalar-se em aldeias para viver com os homens. Depois, muito perturbada, contou-lhe como vira centauros a morrer de fome na viagem de regresso e não encontrara qualquer sinal de nenhuma das mulheres das tribos.

- Que a Deusa esteja com ela - disse Hécuba com fervor. - Não tenho qualquer sensação de que ela esteja morta; e penso que o saberia. Éramos tão íntimas como se fôssemos gémeas; mas ela é quatro anos mais nova do que eu. Não é totalmente impossível que um dia a possamos ver em Tróia.

- Que esse dia possa estar muito distante - disse Cassandra. - Pois ela disse-me que, se a guerra nos fosse desesperadamente adversa, ela viria acabar em Tróia os seus dias.

E num estranho bruxuleio de luz, como se o Sol se tivesse escondido por trás de uma nuvem, viu Pentesileia cavalgando através das portas de Tróia... triun­fante ou derrotada? Não o sabia dizer; a visão desvaneceu-se e falaram de outras coisas.

Por fim, ergueu-se e espreguiçou-se.

- Estou para aqui sentada entre mulheres como qualquer velha bisbilho­teira - disse ela - e tenho à minha espera as obrigações da casa do Senhor do Sol. Mas foi bom bisbilhotar e estar sem fazer nada - e, pensou, falar de assuntos de mulheres, como a educação das crianças. Tinha pensado em tempos que devia ser muito aborrecido, mas agora que tinha uma criança sua, começava a perceber que esse tipo de conversa feminina podia ser absorvente. « Mas não falar de mais nada durante toda a vida..»

- Não é todos os dias que regressas de uma viagem tão longa como esta ­disse Andrómaca. - A Helena vai querer ver-te e mostrar-te os seus bebés... E Creúsa, a menina a quem pôs o teu nome. Ela é mais parecida com Polixena do que contigo, tem cabelo ruivo e olhos azuis; e tão bonita como se Afrodite tivesse depositado no seu berço o dom da beleza. Casará com um príncipe, se esta guerra deixar alguma de nós vivas para pensar em casamentos.

- Penso que ninguém irá alguma vez chamar bela à minha pequenina ­disse Cassandra -, mas suponho que, para uma mãe, até a mais vulgar das crianças é adorável. De qualquer modo, tenho intenção de, se os deuses forem bondosos, a enviar a Pentesileia para que seja educada para ser guerreira. Ainda hoje desejo que eu própria pudesse tê-lo sido.

- Oh, não podes estar a falar a sério, Cassandra - disse Hécuba, aproxi­mando-se para lhe dar um abraço de despedida.

- Não? Mãe, se alguns dos presentes de Imandra tiverem sobrevivido aos Aqueus, enviar-tos-ei assim que o carro for descarregado - disse, e preparou-se para sair. Andrómaca disse que a acompanharia uma pequena parte do caminho.

- É tão raro eu sair e Heitor fica sempre muito perturbado quando eu saio sozinha; mas ele não pode pôr em causa a protecção da sua própria irmã-disse com desagrado. - Passeio muitas vezes com Helena; mas ela hoje não vem: Páris foi ferido ligeiramente na última escaramuça - nada que possa causar preocupa­ção, mas o suficiente para lhe dar um bom pretexto para ficar em casa a receber mimos. Caso contrário, estou certa de que ela teria vindo dar-te as boas-vindas.

Separaram-se pouco depois, Andrómaca descendo de regresso ao palácio e Cassandra virando para cima, em direcção à alta casa do Senhor do Sol. Tinha começado a atravessar o pátio para ir ver as cobras, quando encon­

trou Crises. Estava com um ar cansado e envelhecido; havia mais rugas naquele rosto que já fora belo, e fios de um prateado baço no seu cabelo claro. Era difícil imaginar que houvera tempos em que, naquele templo, existia quem o conside­rasse quase tão belo como o próprio Senhor do Sol.

Ele reconheceu-a imediatamente e gritou numa calorosa recessão.

- Cassandra! Todos sentimos a tua falta - exclamou; e aproximou-se rapidamente para a abraçar. Ela deveria ter-se esquivado, mas não era desagradá­vel olhar para um rosto familiar e sentir-se bem-vinda; por isso, permitiu o abraço, mas arrependeu-se imediatamente e conseguiu virar a cara de modo que o beijo dele lhe apanhasse apenas o queixo.

Libertando-se rapidamente, colocou-se fora do seu alcance.

- Parece que tudo correu bem para ti enquanto estive ausente - comentou ela. - Estás com bom aspecto e cheio de vida. - Nem em troca deste mundo e do outro ela lhe diria que vira o seu rosto no oráculo que a fizera regressar a Tróia.

- Mas não é verdade - disse ele. - Nunca mais terei saúde ou felicidade até que os deuses decidam devolver-me a minha pobre criança desonrada.

- Crises - disse Cassandra gentilmente -, não há já perto de três anos que Criseide está no acampamento dos Aqueus?

- Não me interessa se foi há uma vida - disse Crises arrebatadamente. - Hei-de lamentar-me e protestar e bradar aos deuses...

- Brada, então - disse Cassandra -, mas não esperes que eles te ouçam. É do teu próprio orgulho que te compadeces e não da tua filha - prosseguiu ela, secamente. - Eu vi-a esta manhã no acampamento aqueu; parecia estar bem, feliz e contente, e quando lhe perguntei se queria que eu tentasse arranjar a troca dela, respondeu-me que me metesse na minha vida. Creio, realmente, que ela está satisfeita por ser a mulher de Agamémnon, mesmo não podendo ser a sua rainha.

O rosto bonito de Crises ensombrou-se de raiva.

- Toma cuidado, Cassandra; dizes isso para me magoar e eu não acredito numa única palavra.

- Porque haveria eu de querer magoar-te? - perguntou ela. - Tu és meu amigo e a tua filha era como se fosse minha. Pensa apenas na felicidade dela, Crises, e deixa-a onde está. Estou a avisar-te: se insistires mais nesta questão, atrairás a ira dos deuses sobre a nossa cidade.

O rosto dele contorceu-se de fúria.

- E esperas que eu acredite que me desejas o bem de todo o coração? Tu não queres saber de mim para nada; eu, que te amo há tanto tempo...

- Oh, Crises - disse ela, estendendo as mãos para ele, num gesto absoluta­mente sincero -, por favor, por favor, não recomeces a falar sobre isso. Porque hás-de pensar que te quero mal pelo facto de não te desejar?

- Que farias, então, se me quisesses mal? Se assim já destruíste toda a ternura que eu tinha no meu coração...

- Se essa ternura está destruída, porque dizes que foi por culpa minha? Será que um homem não consegue levar a sério uma mulher, a menos que esta queira deitar-se com ele? - perguntou ela. - Falo-te com toda a amizade, Crises; não insistas neste assunto.

- Tu queres é ver a minha filha desonrada e Apolo insultado...

- Em nome de todos os deuses, Crises, a questão não está no que tu sentes mas no que a tua filha sente - disse ela exasperada, lembrando-se do ar orgulhoso de Criseide quando Pátroclo lhe pedira ajuda na tradução. Mas ela não desejava que a fúria de Crises causasse mais problemas; havia já azedume suficiente e aquilo iria agravá-lo. Falou com toda a brandura que conseguiu encontrar. - Se não acreditas em mim, porque não vais lá a baixo, ao acampa­mento dos Aqueus (eles respeitarão as tréguas de Apolo pelo Seu sacerdote) e lhe perguntas pessoalmente se ela se sente infeliz. Se ela desejar deixar Agamémnon, juro-te que irei ter com Príamo e tudo será feito para que seja libertada ou trocada. Mas se ela estiver feliz com Agamémnon, e ele com ela... Acredita-me, ela não é nenhuma prisioneira; eles pediram-lhe ajuda como tradutora quando me levaram as camareiras, e elas são mulheres idosas que não desejavam, de facto, ficar no acampamento dos Aqueus. Mas eu prometo-te: se Criseide quiser regres­sar, eu farei tudo o que me for possível junto do rei e da rainha.

- Mas a desonra... a minha filha, concubina de Agamémnon...

- Será que não és capaz de ver que estás a ser irracional? Porque será assim tão desonroso para ela ser a mulher de Agamémnon? E se isso te faz tremer tanto de vergonha, porque estás tão ansioso por convencer-me que não haveria mal algum em eu ser tua? A tua filha será diferente da filha de Príamo? - perguntou ela com rudeza, perdendo finalmente a paciência. Ele estava agora verdadeira­mente zangado e Cassandra sentia-se satisfeita com isso; significava que ela já não precisaria de recear que ele a agarrasse.

- Como te atreves a referir-te à minha filha como se ela fosse igual a ti?­ atacou ele, furioso. - Tu não te importas com o que se passa com a minha filha. o que te interessa é poder continuar com os teus comportamentos anormais e a recusar entregar-te, só para humilhares um homem...

- Humilhar-te? É isso que tu pensas? - disse ela num tom fatigado. -Crises, há centenas de mulheres nesta terra que ficarão felizes por se entregarem a ti. Porque havias tu de escolher uma (talvez a única) que não te quer?

- Eu não escolhi desejar-te - disse ele, olhando-a fixamente -, mas não consigo desejar mais nenhuma. Tu enfeitiçaste-me para satisfazeres o teu vil desejo de me humilhar; eu... - Parou, engoliu em seco e disse: - Pensas, feiticeira, que eu não tentei quebrar este encantamento que lançaste sobre mim? Momentaneamente, Cassandra quase sentiu pena dele e disse:

- Crises, se te lançaram um feitiço, foi qualquer outra pessoa que não eu. Juro pela Mãe Serpente e pela Mãe Terra e pelo próprio Apolo, que ambos veneramos, que não te guardo o mínimo rancor nem te desejo qualquer mal; e rogarei seja a que deus for para que te liberte de tal feitiço. Não quero ter qualquer poder sobre ti e abençoaria a tua virilidade caso encontrasses uma outra mulher com quem a pudesses exercer.

- Continuas, então, sem te compadecer de mim? Mesmo sabendo do estado em que me encontro, continuas a recusar entregar-te a mim?

- Crises - disse ela -, basta! Estão à minha espera lá em cima e tenho de me apresentar a Cáris e às outras sacerdotisas. Desejo-te uma boa noite. Voltou-lhe as costas, mas ele murmurou entredentes:

- Hás-de arrepender-te disto, Cassandra; mesmo que eu tenha de morrer, juro que hás-de lamentar isto.

«Percorri eu todo o caminho de ida e volta até Cálcis para escapar ao rancor deste homem; regresso e nada está diferente do que era antes, excepto a sua raiva, que teve dois anos para crescer.

Meu Senhor Apolo, é desejo teu que eu me entregue a este homem que tanto me desagrada?» E perguntou-se, quase receosa dos seus próprios pensamentos: «Mesmo que Apolo o exigisse, dar-me-ia eu a Crises?»

Mas ele não o exigira. E Crises... ele sempre fora de arranjar complicações; teria ela que tomar parte nas complicações que ele arranjava?

 

Cassandra passou a maior parte da noite acordada na cama, revendo mentalmente a sua discussão com Crises, perguntando-se o que deveria ter dito. Decerto ele teria acabado por ouvir a voz da razão, se ela tivesse conseguido encontrar as palavras adequadas.

Por fim, concluiu que, no estado em que se encontrava, ele seria provavel­mente incapaz de ser razoável. Seria possível algum homem sê-lo, havendo uma mulher envolvida? Sem dúvida Páris não se mostrara muito razoável quando se lhe pusera a questão acerca de Helena... e ele já tinha uma mulher bonita e virtuosa que lhe havia dado um filho e, tanto quanto sabia, isso era o que os homens mais desejavam.

Mas certamente que não eram apenas os homens; as próprias mulheres pareciam perder toda a razão quando se tratava de homens. Até a rainha Imandra, que era forte e independente, e Hécuba, que fora criada como ama­zona, se haviam mostrado pouco razoáveis no que dízia respeito aos seus homens. «Quanto a $riseide, ou Criseide», pensou Cassandra quase com desprezo, «são como cachorrinhas que se viram de patas para o ar mal o dono lhes faz uma festa.

Quem sabe a questão não está no motivo por que elas fazem isso, mas sim no porquê de eu não sentir o mínimo desejo de fazer o mesmo?

Ajeitou o corpo na cama a fim de criar espaço para a serpente, que se enrolou lentamente no seu braço. Era bom estar a dormir numa cama, em vez de no fundo duro da carroça; e o seu último pensamento foi para lembrar a si mesma que deveria inspeccionar a carroça e certificar-se de quais os presentes de Iman­dra que tinham sobrevivido aos soldados aqueus, se acaso sobrevivera algum. O medo das serpentes talvez tivesse evitado que eles explorassem o fundo da carroça.

Acordou ao nascer do Sol. Honey brincava aos pés da cama, deixando a serpente deslizar-lhe em torno da cintura e ao longo dos braços. Cassandra deu banho à criança e arranjou-lhe um pequeno-almoço simples, e em seguida foi para o cimo do templo, onde iriam bater os primeiros raios de sol a alcançar as alturas de Tróia. Pensou que deveria ir, nesse dia, ao Templo da Virgem para saudar as suas amigas que eram aí sacerdotisas e talvez demonstrar gratidão pelo seu regresso, sã e salva, a Tróia. Mas antes que tivesse oportunidade, repa­rou que Crises se encontrava entre os sacerdotes reunidos para saudar o nascer do Sol.

Estava ainda com pior aspecto do que na noite anterior; as suas feições estavam inchadas e os olhos vermelhos, como se não tivesse dormido. «Pobre homem», pensou, «eu não devia censurá-lo ou esperar que se mostre razoável quando ele se encontra tão atormentado. Talvez não faça sentido ele sofrer desta maneira; mas quando foi que eu, alguma vez, evitei o sofrimento de alguém?»

Cáris falava com ele; Cassandra viu Cáris apontar para um e depois para outro dos sacerdotes, dizendo, «Tu, e tu, e tu... não, tu não, tu não podes ser dispensado. »

Quando Cassandra se aproximou deles, Cáris acenou-Lhe.

- Segundo percebi do que Crises disse, tu viste de facto a filha dele no acampamento argivo, quando o atravessaste ontem. Tens a certeza de que era realmente Criseide? Já lá vão alguns anos e ela era uma rapariga em crescimento quando... nos deixou.

- Quando nos foi cruelmente roubada, queres tu dizer - acrescentou Crises ferozmente.

Cassandra disse:

- Sim, claro que tenho a certeza; mesmo que eu não a tivesse reconhecido, ela reconheceu-me; tratou-me pelo meu nome e avisou-me que não irritasse Agamémnon.

- E disseste isso ao pai dela?

- Disse; mas a notícia enfureceu-o -disse Cassandra. - Chegou ao ponto de acusar-me de estar a inventar tudo só para o atormentar.

Crises disse, mal-humorado:

- Sabes bem que ela sempre teve má vontade em relação a mim.

- Se eu quisesse inventar uma história para aborrecer Crises, arranjaria uma muito melhor do que essa -disse Cassandra. - Garanto-te, passou-se tudo exactamente como eu disse.

- Bem, então seria melhor tu ires com eles ao acampamento aqueu - disse Cáris. - Ele está decidido a ir lá abaixo e, em nome de Apolo, exigir aos Aqueus a devolução da filha; eles também têm sacerdotes de Apolo e respeitam as Suas tréguas.

Uma vez que aquilo era exactamente o que ela sugerira que ele fizesse, não ficou surpreendida, excepto por ele não o ter já feito meses ou anos antes. Mas supunha que ele quisera primeiro esgotar todas as outras soluções, fossem elas quais fossem.

Eram bem umas três dúzias deles, exibindo as túnicas e os penteados dos cerimoniais do Senhor do Sol, quando finalmente começaram a descer as longas ruas e chegaram aos enormes portões de Tróia. O guarda não se mostrava disposto a abrir os portões, mas quando Crises Lhe explicou que pretendiam parlamentar com Agamémnon para negociar a entrega de uma prisioneira em nome de Apolo, o guarda enviou um mensageiro para combinar o encontro. Ali ficaram então, sob o sol quente, e durante quase meia hora, até que viram um homem alto e forte, de cabelo farto e escuro e com a barba requintadamente encaracolada, aproximar-se com passadas largas e decididas.

Cassandra já tinha estado anteriormente àquela distância de Agamémnon; como sempre, o horror e a repulsa percorreram o seu corpo. Manteve os olhos fixos no chão e nunca os ergueu, esperando que ele não reparasse nela.

E não reparou. Fixou Crises com beligerância e disse:

- Que queres? Eu não sou sacerdote de Apolo; se queres combinar tréguas para algum festival ou coisa do género, tens de tratar disso com os meus sacerdotes, e não comigo.

Crises deu um passo em frente. Era mais alto do que Agamémnon, a sua cabeça imponente apesar do cabelo louro esbranquiçado, as feições energica­mente esculpidas. A sua voz, profunda e forte, soou imperativa.

- Se és Agamémnon de Micenas, então é de facto contigo que quero falar. Sou Crises, sacerdote de Apolo: e tu manténs a minha filha prisioneira no teu acampamento. Foi capturada há três anos, nas sementeiras da Primavera.

- Oh? - exclamou Agamémnon. - E qual dos meus homens tem essa mulher?

- Agamémnon, senhor, o nome dela é Criseide: e creio seres tu quem a tem. Em nome de Apolo, declaro-me disposto a pagar o resgate conveniente e habi­tual. E se não desejares libertá-la, então exijo que me pagues o seu dote e que a casemos com todas as formalidades adequadas.

- Ah, então exiges? - retorquiu Agamémnon. - Perguntava-me o que quererias, com os trajes cerimoniais. Bem, Crises, sacerdote de Apolo, ouve bem: tenciono ficar eu próprio com ela; e quanto a casar com ela não posso, porque já tenho mulher. - Deu uma grande gargalhada sarcástica. - Sugiro por isso que tu e os teus amigos marchem imediatamente para o interior de Tróia antes que eu decida que posso utilizar mais algumas mulheres no acampamento. - Os seus olhos varreram as filas de sacerdotes e sacerdotisas. - A maioria das vossas mulheres parecem-me demasiado velhas para a cama; parece que sou eu quem tem a única bonita. Mas davam-nos jeito umas quantas cozinheiras e lava­deiras.

- Persistes então deliberadamente neste insulto ao Senhor do Sol? Conti­nuas com este insulto ao Seu sacerdote-chefe? - perguntou Crises. Agamémnon falou com lentidão, como se se dirigisse a uma criança ou a um pobre espírito.

- Escuta bem, sacerdotë - disse ele. - Eu venero o Senhor do Trovão do Céu, Zeus, e Aquele que Faz Tremer a Terra, Posídon, Senhor dos Cavalos. Não interferirei nos assuntos de Apolo; ele não é o meu Deus. Mas, pelas mesmas razões, o teu Apolo faria melhor em não interferir comigo. Essa mulher que está na minha tenda pertence-me, e eu não a vou libertar nem pagar o seu dote; e isto é tudo o que tenho para te dizer. Agora vai-te embora.

Controlando a sua ira, Crises replicou:

- Agamémnon, eu te amaldiçoo! És um homem que violou as leis sagradas, e nenhum filho teu honrará a tua sepultura. E se não temes a minha maldição, então teme a maldição de Apolo, pois é a Sua maldição que eu lanço sobre a tua gente, e tu não lhe escaparás. As Suas flechas tombarão sobre todos vós, assim eu o declaro.

- Declara tudo o que quiseres -disse Agamémnon. - Já ouvi antes o som da ira dos meus inimigos e esse é, de todos os sons, o mais caro ao meu coração. Quanto ao teu Senhor do Sol, desafio a Sua maldição; que faça o Seu pior. Agora sai do meu acampamento, ou digo aos meus arqueiros para vos usarem a todos como alvos para treino.

- Que assim seja, meu senhor e rei - disse Crises -; verás por quanto tempo poderás desdenhar da maldição de Apolo.

Um dos arqueiros gritou:

- Queres que atire ao troiano insolente, meu senhor Agamémnon?

- De modo algum - disse Agamémnon na sua voz forte e profunda. - Ele é um sacerdote, não um guerreiro. Eu não mato mulheres, rapazinhos, eunucos, cabras ou sacerdotes.

As gargalhadas vindas das fileiras dos arqueiros roubou à retirada de Crises muita da sua dignidade, mas ele afastou-se caminhando com firmeza, sem olhar para trás. Cassandra manteve os olhos baixos, mas podia sentir, por alguma razão, os olhos de Agamémnon postos nela. Talvez fosse apenas por ela ser a mais jovem das mulheres de Tróia, pois todas as outras sacerdotisas escolhidas para aquela missão tinham, havia muito, passado os cinquenta; mas talvez fosse algo mais do que isso. Ela sabia apenas que não queria encontrar o olhar de Agamémnon.

« E Criseide foi com este homem... de livre vontade! »

Subiram através da cidade até ao terraço da casa do Senhor do Sol, sobran­ceiro às grandes planícies diante de Tróia. Crises desapareceu por breves instantes de junto deles; quando reapareceu, trazia posta a máscara de ouro do Deus e o arco ritual. Subitamente pareceu que crescia, que ficava mais alto, mais impo­nente; os olhos de todos os Aqueus que se encontravam em baixo foram atraídos para o local onde ele se encontrava.

Crises ergueu o arco e gritou: «Acautelai-vos, vós que ofendestes o Meu sacerdote!» E Cassandra percebeu quem ali estava por detrás da máscara, e a voz, forte e sonante, para lá do humano, retumbou através de Tróia até ao canto mais distante do acampamento aqueu, em baixo.

Esta é a Minha cidade, Aqueus; aviso-vos solenemente.

A Minha maldição e as Minhas flechas punirão todo o homem entre vós,

Se ao Meu sacerdote não for devolvida aquela que tão ilegitimamente foi levada.

Acautelai-vos com a Minha maldição e as Minhas flechas, aviso-vos, a vós, capitães ímpios!

Mesmo Cassandra, que estava familiarizada com a voz do Deus, ficou paralisada de terror. Não teria conseguido mover um músculo ou dizer uma palavra.

Rapidamente a figura que, simultaneamente, era e não era Crises, disparou três setas através do ar. Uma delas caiu directamente sobre o tecto da tenda de Agamémnon; outra caiu à frente da tenda de Aquiles; a terceira mesmo no centro do acampamento. Cassandra olhava, sentindo uma calma angustiante, como se já tivesse presenciado tudo aquilo antes. Era como se estivesse muito distante e uma espessa parede de vidro, ou a massa de um oceano, ondulando na sua frente, eliminasse o que via e ouvia.

«A maldição de Apolo! Desceu sobre nós, oh Senhor do Sol! Será esta uma maldição apenas para os Aqueus?

Mas, no entanto», pensou, «se os Aqueus estão amaldiçoados, acabaremos por sofrer com isso; estamos à sua mercê. Pergunto-me se Príamo terá consciên­cia disso. Se não tiver, estou certa de que Heitor terá.»

Depois, lentamente, retomou consciência do que se passava à sua volta: a luz brilhante do meio do dia, o seu reflexo nas muralhas e nas planícies ao fundo, as gargalhadas de troça dos Aqueus. Pareciam achar que aquilo fora uma charada, uma encenação; nunca lhes ocorreu que o próprio Apolo tivesse amaldiçoado a sua gente e o seu exército.

« pu será que sonhei?»

Qualquer que fosse a verdade, tinha de fazer. Foi até ao templo, onde Lhe foi distribuída a tarefa de aceitar e registar as oferendas. Depois de uma hora passada a contar e a registar frascos de azeite e pães de trigo, sentia-se como se nunca tivesse saído de Tróia.

Trabalhou até ao pôr do Sol. Quando acabou de registar as oferendas, foi tratar das serpentes e ver quais os locais que lhes haviam sido destinados. Depois foi ter com Cáris, a sacerdotisa com mais autoridade, e disse-lhe que, tendo ainda outros deveres, não poderia cuidar de tantas serpentes sozinha; pediu-lhe que designasse alguém que pudesse treinar para a ajudar a cuidar delas, e a quem ensinar a arte das serpentes. Cáris perguntou-lhe se Fílidas a satisfaria.

- Sim; ela sempre foi minha amiga - respondeu Cassandra, e Cáris mandou chamar Fílidas e perguntou-lhe se aceitaria.

- Ensinar-te-ei tudo o que aprendi em Cálcis - prometeu Cassandra, e Fílidas pareceu ficar satisfeita.

- Sim, e se trabalharmos juntas os nossos filhos poderão crescer como irmão e irmã - disse Fílidas. - Fui eu quem deu banho à tua pequenina ontem, e quem lhe deu o jantar. Ela é muito viva e esperta, e um dia serátambém bonita.

Cassandra teve a sensação de que Fílidas dissera aquilo para ser simpática, mas não lhe desagradou. Quando tudo ficou combinado, saíram de novo para observar o acampamento aqueu. O brilho e o calor do dia tinham diminuído e levantara-se um vento fraco; podiam ver o pó levantado no acampamento aqueu, e as silhuetas de muita gente, algumas delas envoltas nas túnicas brancas dos servidores de Apolo.

- Então eles não estavam tão indiferentes como pareciam - disse Fílidas. Ela não tomara parte na missão que se deslocara ao acampamento aqueu, mas tinha ouvido tudo o que se passara, e Cassandra podia ver que nada fora omitido ao ser contado. - Olha - disse ela -, eles estão a celebrar rituais para purificar o acampamento e apaziguar o Senhor do Sol.

- Bem podem fazê-lo, se desprezaram a Sua maldição - disse Cassandra. - Não creio que sejam os soldados a desprezar a Sua maldição - disse Fílidas. - Penso que é apenas o próprio Agamémnon; e nós já sabemos que ele é um homem sem Deus.

- Que estão eles a fazer agora? - perguntou Cassandra.

- Estão a fazer fogueiras para purificar os terrenos -disse Fílidas, e depois retraiu-se perante o imenso grito de dor que se ergueu de entre os Aqueus. Tinham arrastado um corpo para fora de uma das tendas e estavam a lançá-lo às chamas.

Estavam demasiado longe para perceber as palavras dos gritos de desespero, mas já tinham ouvido antes gritos idênticos. Fílidas disse, com a voz entrecor­tada:

- Há peste no acampamento deles! E Cassandra disse, horrorizada:

- É esta, então, a maldição do Senhor do Sol!

Todas as manhãs e todos os fins de tarde, durante dez dias, observaram os corpos das vítimas da peste no acampamento serem queimados; a partir do terceiro dia, os corpos passaram a ser arrastados pela praia até bastante longe, e queimados aí devido ao medo do contágio. Cassandra, que vira a sujidade, a imundície e a desordem no acampamento, não ficou surpreendida por ali haver doenças - apesar de não menosprezar a maldição do Senhor do Sol e saber que os Aqueus acreditavam nela. Ao nascer do Sol, quando este estava no seu auge e de novo quando se punha, Crises percorria as ameias de Tróia, exibindo a máscara de Apolo e transportando o seu arco; e sempre que ele aparecia havia gritos e brados no acampamento aqueu implorando piedade.

Príamo decretou que cada soldado e cidadão troiano deveria apresentar-se todas as manhãs aos sacerdotes de Apolo, e que quem apresentasse sintomas da doença deveria ser confinado na sua própria casa. Esta medida afectou algumas pessoas com grandes constipações e um ou dois homens que tinham sido pro­míscuos aquando das suas incursões no bairro das mulheres. Mandou encerrar dois ou três bordéis e também um mercado imundo, mas não havia até àquele momento sinais de peste no interior das muralhas de Tróia. Decretou um feriado para orações e sacrifícios a Apolo, para implorar que a cidade continuasse a ser poupada à maldição. Contudo, quando Crises pediu uma audiência e requereu a Príamo que exigisse também o regresso de Criseide, este respondeu-lhe brus­camente:

- Chamaste um deus para te ajudar, e se isso não é suficiente, que mais pensas que um mortal, mesmo o rei de Tróia, poderá fazer?

- Queres dizer que não farás nada para me ajudar?

- Porque deveria eu importar-me com o que aconteceu à desgraçada da tua filha? Talvez eu tivesse sentido solidariedade, enquanto pai, se me tivesses pro­curado há três anos, quando ela foi levada; mas não apelaste para mim antes. Não consigo acreditar que estejas muito necessitado da minha ajuda... excepto talvez para te vangloriares de que o rei de Tróia é teu aliado - disse Príamo.

Crises disse, exaltado:

- Se eu atraí a maldição de Apolo para o acampamento Argivo, poderei facilmente amaldiçoar Tróia...

Príamo ergueu a mão para o deter.

- Não! - trovejou. - Nem uma palavra! Ergue um dedo ou pronuncia uma sílaba que seja para amaldiçoar Tróia, e te juro pelo próprio Apolo que te lançarei pessoalmente para o acampamento aqueu da mais alta muralha da cidade!

- Como Sua Majestade desejar - disse Crises; fez uma pronunciada vénia e retirou-se. Príamo ficou de mau humor e muito irritado.

- Aquele homem é demasiado orgulhoso! Ouviram o que ele disse... amea­çou amaldiçoar Tróia! - Olhou em torno da sala do trono para os seus conselheiros. - Se ele pedir uma audiência comigo, tratem de assegurar que eu não tenha tempo para falar com ele!

A Cassandra não desagradou aquela entrevista. Lá bem no fundo do seu espírito existira sempre um velho receio: se Crises, como ameaçara uma vez, fosse ter com Príamo e a pedisse em casamento, o seu pai ficaria muito satisfeito em atirá-la, mesmo contra vontade, para um casamento - qualquer casamento - e não encontraria qualquer razão para recusar um aparentemente respeitável sacerdote de Apolo. Agora que sabia que Príamo sentia quase tanto desagrado por Crises como ela própria, pôde suspirar aliviada.

 

Durante dez dias viram a peste devastar o acampamento aqueu. No décimo dia os soldados sairam com um imponente cavalo branco e sacrificaram-no a Apolo; algum tempo depois um mensageiro ostentando o bastão com a serpente de Apolo subiu até à cidade e pediu tréguas com o objectivo de falar com os seus sacerdotes.

- Uma delegação irá ao acampamento - foi-lhe dito. Crises, evidente­mente, encabeçava-a. Cassandra não perguntou se podia juntar-se ao grupo; escapuliu-se simplesmente, para vestir as roupas cerimoniais, e foi com eles.

Agamémnon, Aquiles e muitos dos outros chefes - entre os quais Cassan­dra reconheceu Odisseu e Pátroclo - estavam dispostos em filas atrás dos sacerdotes de Apolo. O sacerdote-chefe dos Aqueus, um homem magro e robusto que parecia um atleta, dirigiu-se a Crises.

- Parece - disse ele - que afinal o Imortal está zangado connosco. Mas eu pergunto-te, colega, aceitarás algum presente nosso?

Crises disse:

- Quero a minha filha de volta, ou então convenientemente casada com o homem que a levou, a cujas mãos chegou virgem e inocente...

Agamémnon resfolegou, mas não disse nada; tinha, aparentemente, concor­dado em deixar que os sacerdotes falassem por ele.

- Não podes esperar - começou o sacerdote - que o rei de Micenas concorde em desposar uma prisioneira de guerra, tendo ele já uma rainha.

- Muito bem - disse Crises -, se ele não se casar com a minha filha, quero-a de volta com o dote adequado, visto ela já não ser uma virgem e eu não lhe poder arranjar marido sem um dote.

Os sacerdotes conferenciaram durante alguns instantes. Por fim, disseram: - Supõe que te propomos que escolhas uma de entre todas as mulheres das cidades que saqueámos na região, virgem por virgem?

- Tomam-me por um devasso? - perguntou Crises, a voz tremendo de indignação. - Sou um pai enlutado e clamo por Apolo para que corrija a injustiça que me foi feita.

- Bem, Agamémnon - disse o sacerdote argivo -, parece que não existe alternativa; temos de agir com justiça elementar, e devolver a filha ao homem. Agamémnon endireitou-se, erguendo-se em toda a sua estatura e cruzou os braços.

- Nunca! A rapariga é minha.

- Não, não é - disse o sacerdote. - Raptaste-a quando se partia do princípio que havia tréguas, nas sementeiras da Primavera, e por essa heresia a Mãe Terra está zangada.

- Mulher nenhuma, nem mesmo uma deusa, me diz o que eu posso fazer­contrapôs Agamémnon. Cassandra reparou no nítido estremecimento que per­correu as fileiras dos homens; Odisseu, em particular, parecia não estar satisfeito.

- Os Imortais - disse Odisseu - detestam o tipo de orgulho que só a Eles pertence, Agpmémnon. Vamos, devolve a rapariga e paga ao pai dela o dote devido. - Se eu desistir da rapariga... - Agamémnon hesitou pela primeira vez, ao ver o olhar zangado dos seus capitães. - Se eu desistir da rapariga - repetiu -, porque hão-de vocês todos ficar com os troféus que conquistaram e a rir-se de mim? Tu, Aquiles: se eu for forçado a desistir da minha, desistirás da mulher que tens na tenda?

Aquiles rosnou:

- Eu não fui tão estúpido que fosse roubar a minha mulher a um sacerdote de Apolo, fazendo com que ficássemos todos debaixo de uma maldição, Aga­mémnon. A minha mulher veio ter comigo porque gostava mais de mim do que de qualquer dos filhos de Príamo, lá em Tróia. E visto que eu vim para Tróia para te agradar, Agamémnon, quando por direito deveria estar a lutar ao lado dos meus parentes troianos, não vejo por que razão a minha mulher é para aqui chamada. Ela é boa rapariga. Veio ter comigo de sua livre vontade e é perita em todo o tipo de trabalhos de mulher. Pensei em levá-la comigo para casa (se alguma vez regressar desta guerra) e fazer dela minha esposa visto que, ao contrário de ti, não tive de me casar com uma velha megera de uma rainha para conquistar o reinado na sua cidade.

Agamémnon cerrou os dentes; Cassandra podia ver que ele apelava a todas as suas forças para não se descontrolar.

- Quanto à minha rainha - disse ele -, recordo-te: a minha rainha é irmã gémea dessa Helena que é tida por suficientemente bela para que a sua perda desse início a esta guerra. Por ser também, por seu próprio direito, rainha de uma grande cidade, fará isso com que a minha mulher tenha menos valor? Deu-me belos filhos; e já chega de falar dela.

- Sim, chega - disse o sacerdote-chefe. - Agamémnon, fizeste um voto de que farias o que quer que fosse necessário para nos salvar da peste; determinamos por isso que a rapariga, Criseide, deve ser devolvida a seu pai. Contribuiremos todos para o dote que ele pede.

Os punhos de Agamémnon estavam cerrados e os maxilares tão apertados que Cassandra pensou que os seus dentes iriam estilhaçar-se.

- São todos da mesma opinião - perguntou ele -, apesar de tudo o que fiz por vocês? Seria muito bem feito se eu vos dissesse «Arranjem outro para comandar os vossos exércitos». Tu, Menelau... apoiarás esta gente no roubo que me fazem?

O homem franzino de cabelo castanho e uma pequena barba encaracolada mudou o peso do corpo de um pé para o outro, embaraçado.

- Prefiro não sofrer a ira de Apolo por causa da tua heresia (ou da tua pouca sorte ou falta de maneiras) ao raptares uma rapariga que deveria ter sido deixada em paz.

- Como é que eu poderia saber que o pai dessa maldita rapariga era um sacerdote, ou ralar-me com isso se o soubesse? Achas que passámos o tempo a discutir o pai dela? - vociferou Agamémnon.

A sacerdotisa por trás de Cassandra comprimiu os lábios tentando conter uma risadinha e murmurou baixinho: « De certeza que não passaste o tempo a aprender boas maneiras», e foi a vez de Cassandra apertar os lábios para não se rir. A cabeça de Agamémnon virou-se na direcção das mulheres e pareceu ficar mais zangado do que nunca.

- Muito bem - disse. - Visto que estão todos combinados para me roubar, levem a rapariga e que se danem. Mas então serei recompensado com a mulher que está na tenda de Aquiles.

Aquiles saltou do meio das fileiras aqueias e gritou: - Não! Só a levarás por cima do meu cadáver!

- Suponho que poderia tratar disso, se tu insistisses - disse Agamémnon, descuidadamente. - Pátroclo, não consegues controlar este rapaz insubordi­nado? Ele dificilmente tem idade para se meter nos assuntos dos homens. Vamos, Aquiles, para que precisas tu, com a tua idade, de uma mulher? Vou mandar-te a caixa de brinquedos que juntei para o meu filho.

Cassandra semicerrou os olhos. «Agamémnon não devia ter dito aquilo; Aquiles é jovem, mas não tão jovem que possa ser provocado desta maneira sem se vingar.»

O sacerdote-chefe dos troianos disse:

- Crises, tens uma capa para Criseide? Com a peste que aqui lavra, não podemos levar qualquer roupa para a cidade; as que ela usa têm de ser queimadas antes de entrar em Tróia, e o cabelo tem de ser cortado.

Crises estendeu uma túnica comprida e uma capa.

- Queimem as roupas que esta gente lhe tiver dado - disse ele. -Mas o cabelo também?

- Lamento; é a única forma de podermos ter a certeza de que ela não trará a peste - disse o sacerdote. Agamémnon voltou da sua tenda com Criseide, e Crises avançou para abraçar a filha. Mas o sacerdote-chefe deteve-o.

- Deixa que as mulheres a dispam e levem a roupa para ser queimada primeiro - disse ele, e Cáris e Cassandra dirigiram-se a Criseide, fazendo as outras mulheres um círculo para a esconder enquanto lhe tiravam as roupas aqueias e as lançavam ao chão. Com dignidade, Criseide ignorou-as. Mas quando Cáris lhe soltou o cabelo e pegou numa faca para o cortar, ela recuou.

- Não. Suportei tudo o resto, mas não que escarneçam de mim cortando­-me o cabelo; não sinto qualquer necessidade de purificação ou penitência! Cáris disse, suavemente:

- É só por temor à peste; vens de um local infectado para uma cidade que, até agora, está limpa.

- Eu não tenho peste nem estive perto de ninguém que a tivesse - disse Criseide, chorando. - Não me cortem o cabelo!

- Lamento, mas tem de ser - disse Cáris, pegando no longo cabelo e cortando-o junto à nuca. Criseide soluçava, inconsolável.

- Oh, vejam o que fizeram! Que figura ridícula eu vou fazer, com toda a gente a rir e a apupar-me! Tu sempre me odiaste, Cassandra! E agora fizeste-me isto...

- Que criança idiota que tu és - disse Cáris bruscamente. - Fizemos o que os sacerdotes nos ordenaram, nada mais. Não culpes a Cassandra. Passou a túnica que Crises trouxera pelos ombros de Criseide.

- Não tenho alfinete; terás de a segurar sobre os seios.

- Não - disse Criseide amuada. - Se não tens um alfinete pode ficar aberta, a ver se eu me ralo.

Cáris encolheu os ombros.

- Se queres todos os soldados aqueus a olharem embasbacados para os teus seios, o problema é teu -disse ela -, mas isso é capaz de perturbar o teu pai. Por amor dele, segura a tua túnica por forma a que a tua decência seja preservada.

Fez sinal às mulheres para que abrissem uma passagem no círculo, permi­tindo a Criseide aproximar-se do pai. Agamémnon avançou um passo na direc­ção dela, mas Odisseu segurou-o falando-lhe em voz baixa e insistente.

 

No dia seguinte a Criseide ter sido devolvida a Tróia, Cassandra foi cha­mada a jantar com os seus pais no palácio; supôs que Príamo quisesse que lhe contasse como tinham decorrido as negociações. Para além do rei e da rainha, estavam presentes Creúsa e Eneias, Heitor e Andrómaca com o seu filhinho, e Páris com Helena e os filhos dela. Nikos, um rapaz bonito, era um ano mais velho do que o filho de Heitor; os gémeos corriam por todo o lado, mas não causavam especial incómodo, pois cada um deles tinha a sua ama que o mantinha sob um razoável controlo.

Parecia estranho a Cassandra que os anos de guerra tivesem provocado tão poucas alterações no salão de jantar do palácio. As pinturas das paredes estavam um pouco debotadas e estaladas; supunha que os criados do palácio que as deve­riam retocar teriam outros deveres, se é que não se encontravam no exército. Havia muitos tipos de comida, incluindo peixe fresco - embora, de facto, não fosse muito. Andrómaca disse-lhe que os Aqueus tinham sujado o porto e que o melhor peixe se mantinha ao largo, no mar alto; e não se podia dispensar ninguém para sair com os barcos de pesca e atravessar o bloqueio dos soldados aqueus.

- E quando um barco, apesar de tudo, sai - acrescentou -, os Aqueus arrastam-no para terra e ficam com a maior parte do peixe melhor.

Mas havia abundância de frutos, pão de cevada e mel; e vinho extraído das uvas que cresciam, aúundantes como ervas daninhas, por toda a cidade. Príamo insistiu com Cassandra para que ela repetisse cada palavra trocada durante as negociações. Abanou a cabeça, zangado, quando soube da arrogância de Agamémnon.

- Não vi sinal de mais vítimas da peste no acampamento argivo; e que os deuses permitam que não as haja na nossa cidade. Então a rapariga está de novo a salvo entre nós; o que é que o pai vai fazer com ela agora?

- Não sei; não lhe perguntei - disse Cassandra, pensando: «nem tenho quaisquer intenções de o fazer nem quero saber disso.» - Suponho que com o dote que os Aqueus lhe deram Lhe arranjará um marido. Eles pareceram-me ansiosos por aplacar a ira do Senhor do Sol. E, depois da peste, quem Lhes pode levar a mal?

- Suponho que nenhum dos chefes aqueus morreu com peste?

- Nenhum, que eu saiba - disse Eneias. - De certeza que nem Agamém­non nem Aquiles a apanharam; mas quase que se pegaram à luta assim que Criseide deixou o acampamento. E, por fim, Agamémnon foi para a sua tenda e Aquiles para a dele; parece que houve uma disputa...

- Houve - disse Cassandra, e contou-lhes como Agamémnon insistira em que, se a sua mulher lhe fosse tirada, ele teria de ser compensado com Briseide, e qual fora a resposta de Aquiles.

- Isso explica o que eu vi depois, embora, como é evidente, não tivesse percebido as razões - disse Eneias. - Uns quantos soldados de Agamémnon foram à tenda de Aquiles e houve uma escaramuça entre eles e os homens de Aquiles; depois, Odisseu foi lá e conversou com eles todos durante muito tempo. Depois disso, os soldados de Aquiles começaram a rasgar estandartes e enfeites; pareciam estar a fazer as trouxas para ir para casa.

- Que os deuses permitam que assim seja -disse Heitor. - Agamémnon é um inimigo honrado; Aquiles é louco. Prefiro lutar contra homens no seu perfeito juízo.

Cassandra tinha a sua homónima, a filha de Creúsa, ao colo. Disse:

- Não creio que homem algum que lute nesta guerra esteja no seu juízo perfeito.

- Todos nós sabemos o que tu pensas, Cassandra - disse Heitor -, e estamos fartos de te ouvir.

- Heitor, acreditas realmente que podemos vencer esta guerra? Se os deuses estão zangados com Tróia...

- Não vi quaisquer sinais da sua ira - disse Heitor. - Agora, pelo menos, parece que o Senhor do Sol está zangado com os Aqueus; com Aquiles afastado daqui, não tenho medo algum dos restantes. Combatê-los-emos e venceremos honrosamente; depois faremos tréguas e viveremos em paz com eles, se tivermos sorte, para o resto das nossas vidas.

- E o que acontecerá connosco? - perguntou Páris. Estava sentado ao lado de Helena, que, com uma colher de osso, dava a um dos gémeos frutos esmagados; parecia calma e em paz. Adorável, pensou Cassandra, mas sem qualquer traço da beleza sobrenatural que ostentava quando possuída por Afrodite.

- Se a paz chegar para nós - disse Andrómaca - haverá paz também para vocês, e poderão construir a vida que desejarem para vocês e para os vossos filhos.

- Será um mundo enfadonho, sem a guerra - disse Heitor, bocejando. Páris discordou.

- Já tive guerra que chegasse. Deve haver coisas melhores para fazer na vida.

- Pareces a nossa irmã - disse Heitor. - Mas a paz virá, quer queiramos quer não; e se tudo o mais falhar, há a paz da sepultura, um fim para todas as batalhas e discursos de honra.

Cassandra disse ironicamente:

- Parece um paraíso especialmente concebido pelo Deus de Aquiles.

- Não é um paraíso para mim, então - disse Páris. - Já basta lutar aqui. Não tenciono passar a vida do Além a fazê-lo.

- Queres dizer que não escolherias passar a vida do Além a fazê-lo ­comentou Heitor. - Não estou assim tão certo de que nos seja dado a escolher. Ouviu-se naquele momento um grande grito; as crianças tinham estado a

brincar ao fundo do salão, com grande alarido e gritos agudos e infantis; Heitor e Páris viram que o pequeno Astíanax e o filho de Helena, Nikos, estavam dei­tados no chão, lutando e esmurrando-se um ao outro, gritando ambos incom­preensivelmente, os rostos vermelhos e manchados de lágrimas.

Helena e Andrómaca correram ambas a resgatar os seus filhos, e quando voltaram, cada uma com um rapazinho aos gritos debaixo do braço, Heitor fez sinal às mulheres para que sentassem os rapazes.

- Então, então, rapazes, o que se passa? Não haverá guerra suficiente do lado de lá dos portões, para ainda termos que tê-la também ao jantar? Astíanax, Nikos é nosso hóspede em Tróia. Um convidado tem direito à nossa hospitali­dade. Para além disso, ele é mais pequeno. Porque estavas a bater-lhe?

- Porque ele é tão cobarde como o pai - resmungou Astíanax, atingindo-o nos olhos com os punhos. Nikos pontapeou-o nas canelas, e Astíanax balbuciou: - Bem, foste tu quem o disse, pai.

Heitor lutou para se manter sério.

- Não, Astíanax; eu disse que o pai dele, Menelau, era um inimigo honrado; Páris não é pai dele, sabes? E para além disso - ergueu a voz quando os dois rapazes começaram a gritar ao mesmo tempo - não importa quem tenha dito o quê, há sempre tréguas à hora do jantar. Se o próprio Agamémnon estivesse a esta mesa, seria meu dever de homem honrado dar-lhe de comer se ele tivesse fome; o nosso primeiro dever para com os deuses é a hospitalidade. Estás a ouvir-me?

- Sim, senhor - murmurou Astíanax, e Heitor voltou-se para Helena. - Senhora, peço-te que mantenhas o teu filho na ordem ao jantar, por res­peito ao meu pai e à minha mãe, ou então que o mandes embora com a sua ama - ordenou ele.

- Vou tentar - murmurou ela. Páris parecia furioso, mas não se atreveu a contradizer Heitor; ninguém se atrevia, nos tempos que corriam.

Cassandra concentrou-se nos frutos com mel que tinham aparecido no seu prato no fim da refeição; perguntou a príamo:

- Houve algum sinal de que as camareiras da mãe possam ser trocadas ou devolvidas?

- Ainda não - grunhiu Príamo. - Aquela danada da filha do sacerdote (maldita seja, apesar de Apolo ter tomado o seu partido) fez com que parassem todas as outras negociações tão bruscamente que, se estas fossem um carro, esta­ríamos todos de pernas para o ar na estrada! Quando pudermos tentaremos de novo, mas neste momento temo que não haja qualquer esperança.

Creúsa ergueu-se, embalando o bebé nos braços.

- Tenho de levar a pequenina para a cama - anunciou aos presentes em geral. - Helena, vens comigo?

Cassandra levantou-se também.

- Também eu vou dar as boas-noites - disse ela. - Mãe, pai, boa noite e obrigada; de facto, comi melhor à vossa mesa do que no refeitório das sacerdotisas.

- Não sei por que razão isso acontece -disse Príamo guturalmente -; elas recebem a melhor parte de tudo lá em cima.

Eneias disse:

- Com tua permissão, senhor, atravessarei a cidade com a princesa Cassan­dra; é tarde e essa gentalha é capaz de andar por aí, agora que todos os homens decentes e aptos estão lá em baixo com os soldados.

- Agradeço-te, mas na verdade, cunhado, não é necessário.

- Deixa-o ir contigo, Cassandra - ordenou Hécuba com firmeza. - Fica­rei mais descansada; Políxena não está aqui connosco hoje porque o Templo da Virgem não pode dispensar nenhum homem para escoltá-la.

- O quê, onde está Políxena? - perguntou Cassandra. Tinha dado pela ausência da irmã, mas tanto quanto sabia Políxena podia estar casada com algum rei ou guerreiro, no fim do mundo.

- Ela serve a Deusa Virgem; é uma longa história - disse Hécuba num tom que dava a entender que, fosse a história longa ou breve, não fazia tenção de a contar naquele momento. Cassandra beijou a mãe e as crianças e deixou que Eneias, em vez de um criado, a envolvesse na sua capa. Heitor também se levantou, beijando a mulher e o filho, e despediu-se de Cassandra e Eneias às portas do palácio.

- Estás mais bonita do que quando partistes para Cálcis - disse ele amavelmente. - Há uma balada que diz que a tua beleza é digna do desejo de Apolo; se o desejasses, estou certo de que o pai te arranjaria um marido, sem todo aquele disparate que levou Políxena a ir para o Templo da Virgem.

- Não, querido irmão; eu sou feliz na casa do Senhor do Sol - respondeu ela. Mas devolveu-lhe o abraço sincera e calorosamente, por saber que ele queria o seu bem.

A noite não estava especialmente escura, pois a Lua ascendia, redonda e brilhante, à medida que eles subiam as ruas íngremes. A certa altura, Eneias fez uma pausa para olhar a planície onde o exército argivo se encontrava.

- Se Agamémnon e Aquiles não tivessem brigado, esta seria uma noite em que seria pouco sensato que Heitor jantasse em casa com a família - disse Eneias. - Geralmente, nestes últimos três anos, em noites de lua cheia tínhamos um ataque do lado costeiro. Mas olha, tudo está às escuras lá em baixo; excepto na tenda de Aquiles onde, tenho quase a certeza, eles continuam a discutir por sobre taças de vinho.

- Eneias, que história toda é esta acerca de Políxena?

- Oh, Deus - disse ele -, eu não sei a história toda; ninguém sabe. Aquiles... bem, Príamo ofereceu-a a Aquiles, na esperança de criar desavenças no seio das fileiras aqueias. O teu pai... depois disto andou por aí a dizer que ela era tão bela como Helena de Esparta, e que a entregaria ao mais poderoso...

- O quê? Políxena, tão bela como Helena? Será que ele com a idade está a perder a visão?

- Creio que estava a tentar criar problemas aos Aqueus; ofereceu-a ao rei de Creta...

- Idomeneu? Mas eu ouvi dizer que ele se tinha juntado a Agamémnon e posto do lado dos Aqueus. É uma traição, claro; as gentes minóicas foram nossas aliadas e parentes desde os tempos anteriores ao afundamento de Atlântida.

- Bem, seja como for, Príamo tentou oferecê-la em casamento a muita gente das ilhas; mas todos os que queriam aceitar eram apoiantes dos Aqueus. E, no fim, Políxena revoltou-se...

- Revoltou-se? Mas Políxena sempre fez tudo o que Lhe mandavam ­objectou Cassandra.

- E assim foi; mas por fim disse que se sentia como um pote que estivesse a ser apregoado no mercado; e, pelos vistos, um pote quebrado que ninguém queria comprar; e fèz o voto de servidão à Deusa Virgem. Está lá desde então. Príamo estava mais furioso com ela do que quando tu foste servir o Senhor do Sol.

- Era de esperar - disse Cassandra. - Desde muito pequenina que o meu pai pensou em mim como uma rebelde; mas quando Políxena lhe desobedeceu, deve ter sido como se o coelhinho de estimação de uma criança virasse o dente e lhe mordesse.

- Sim, acho que foi exactamente isso. A tua mãe ficou muito perturbada. - Pois é - disse Cassandra -, a mãe educa-nos para que pensemos por nós próprias, mas depois, quando nós o fazemos, fica chocada e aflita. Ainda bem que a minha irmã fez a sua própria escolha.

Moviam-se lentamente pela rua íngreme. Cassandra tropeçou no escuro, e Eneias segurou-a imediatamente.

- Vê onde pões os pés! - ralhou ele. - A queda é grande!

O braço dele envolvia-a. Não trazia armadura mas apenas a túnica e a capa, e ela sentiu o calor e robustez dele de encontro ao seu corpo. Deixou que ele a amparasse ao longo de mais alguns degraus; mas quando ia endireitar-se, ele apertou mais o braço em torno da sua cintura e aproximou o rosto do dela. Antes de ela se libertar, os lábios de ambos tocaram-se no escuro.

- Não - disse ela suplicante, afastando-se. - Não, Eneias. Tu também, não.

Ele não a soltou imediatamente; mas levantou a cabeça e disse baixinho:

- Desde a primeira vez que pus os meus olhos em ti que te desejo. E, não sei porquê, pensei que isso... isso não te desagradaria de todo.

Ela disse, reparando que a sua voz tremia:

- Se as coisas fossem diferentes... mas eu tenho um voto de castidade e tu és o marido da minha irmã.

- Não por escolha própria ou por escolha de Creúsa - disse Eneias suavemente. - Nós casámos por vontade do meu pai e do teu.

- De qualquer forma, é um facto consumado - disse Cassandra. - Eu não sou Helena, para quebrar um compromisso de honra... - mas deixou que a sua cabeça repousasse no seu braço vigoroso. Sentia-se fraca, como se as suas pernas não tivessem já firmeza suficiente para a segurar de pé.

Eneias disse, calmamente:

- Creio que se fala demasiado em honra e dever. Porque haveria Helena de manter-se fiel a Menelau? Ela foi-lhe oferecida sem que se pensasse na sua felicidade. Seremos nós postos neste mundo apenas para cumprir o nosso dever para com a família? Não nos darão os deuses a vida para que possamos criar vidas próprias que tragam algum bem para os nossos corações, os nossos cérebros, as nossas almas?

- Se sentias isso - perguntou Cassandra frontalmente, endireitando-se ligeiramente (sentiu frio longe do braço de Eneias) - porque concordaste em casar com ela em primeiro lugar?

- Oh, nessa altura eu era mais jovem - disse Eneias - e toda a minha vida me foi dito que era meu dever desposar fosse qual fosse a princesa que me arranjassem; e, nesse tempo, eu ainda achava que todas as mulheres eram praticamente iguais umas às outras.

- E não são?

- Não - disse Eneias impetuosamente. - Não, não são. Creúsa é uma boa mulher, mas tu és diferente dela como o vinho da água da nascente. Eu não tenho nada a dizer contra a mãe dos meus filhos; mas naquele tempo eu nunca tinha encontrado uma mulher que representasse algo mais para mim do que todas as outras, uma mulher que eu quisesse realmente, com quem pudesse falar como minha igual, minha camarada. Cassandra, eu juro-te: se antes de me casar com Creúsa eu tivesse tido a oportunidade de falar contigo uma dúzia de vezes, teria dito a Príamo e a meu pai que não casaria com nenhuma outra mulher do Mundo; que te teria a ti, ou iria para o meu túmulo sem casar.

Cassandra sentia-se atordoada.

- Não podes estar a falar a sério; estás a zombar de mim - murmurou. - Porque haveria eu de querer fazer tal coisa? - perguntou ele. - Eu não queria (e não quero) destroçar a minha vida nem perturbar a tua paz, nem ma­goar Creúsa; mas penso que aquela Deusa do Amor que montou essa cruel armadilha a Páris, decidiu lançar também a discórdia sobre mim, e eu achei que deveria, uma vez que fosse, dizer-te o que sentia.

Cassandra estendeu a mão, mal percebendo que o estava a fazer, e tocou na mão dele; ele fechou os seus dedos com força sobre os dela. Docemente disse:

- Quando te vi pela primeira vez, Cassandra, sentada no meio das rapari­gas, com os olhos recatadamente baixos, eu soube imediatamente que era a ti que eu queria, e devia ter-me levantado prontamente e declarado isso mesmo a Príamo e ao meu pai...

A ideia fez sorrir Cassandra. - E o que teria Creúsa dito?

- Não devia ter deixado que isso tivesse importância para mim - disse Eneias. - Era a minha vida que estava em causa. Diz-me, Cassandra, ter-me-ias aceite por marido? Se eu tivesse recusado Creúsa e te tivesse reclamado em vez dela, como preço para combater por Tróia...

O coração de Cassandra batia com tanta violência quanta a agitação das palavras dele.

- Não sei - disse ela por fim. - Fosse o que fosse que eu pudesse ter dito ou feito então, é já demasiado tarde para pensar nisso.

- Não é forçosamente tarde - disse ele, e puxou-a para os seus braços. Ela não se tinha apercebido de que estava a chorar até o dedo de Eneias lhe limpar uma lágrima.

- Não chores, Cassandra; não quero fazer-te infeliz. Mas não suporto pensar, agora que descobri seres tu aquela que eu amo, que não possa existir nada entre nós para além disto.

Envolveu-a num abraço tão forte, tão profundamente arrebatador que tudo o que Lhe era exterior parecia ter deixado de existir; ela afundava-se, sufocada, arrastada para a não existência - incapaz de pensar. Porém, após um período que pareceu demasiado longo - mas muito breve -, ela retomou a posição erecta sobre os dois pés, limpando os olhos com a túnica. «É então esta a sensação.»

Percebeu que a voz lhe tremia ao dizer:

- Tu és marido da minha irmã; és meu irmão.

- Pelos meus antepassados Imortais! Pensas que não tenho remoído nisso até à náusea? - resmungou ele. - Só te imploro que não fiques zangada comigo. - Não - disse ela, e aquilo soou-lhe tão disparatadamente inadequado ao

momento que ambos viviam, que lhe provocou um riso incontrolável -; não, não estou zangada contigo, Eneias.

Ele puxou-a novamente para um abraço que ela não podia nem queria evitar; mas desta vez havia prudência nesse abraço, como se ele estivesse a fazer todos os esforços para não a magoar ou assustar. Disse-lhe, com a boca encos­tada ao ouvido:

- Diz-me que também gostas de mim, Cassandra.

- Oh, deuses! - disse ela, impotente. - Será que precisas de perguntar? A boca dela estava de tal forma comprimida de encontro à de Eneias que a fazia perguntar-se como poderia ele compreender as suas palavras.

- Não - disse ele -, não preciso de perguntar, mas preciso de te ouvir dizê-lo. Acho que não suportarei continuar a viver se não te ouvir dizer essas palavras.

Repentinamente, Cassandra encheu-se do mais incrível sentimento de gene­rosidade. Estava nas suas mãos oferecer-lhe uma coisa que ele tanto desejava. Inclinou-se de novo para a frente, de encontro a ele, e sussurrou:

- Gosto de ti, sim. Creio... creio que te amei desde a primeira vez que te vi. E sentiu-o mover-se suavemente contra ela, como se fosse ali que sempre quisera estar. Tocava-o apenas nos dedos; mas esse contacto era, curiosamente, mais íntimo do que um abraço. Desejava que ele a agarrasse de novo; porém, sabia que se ele o fizesse, seria ela e só ela a responsável pelo que viesse a acontecer.

Docemente disse «Eneias...» e calou-se. - Que foi, Cassandra?

- Acho... - murmurou ela, com uma esmagadora sensação de assombro - acho que queria apenas ouvir-me pronunciar o teu nome.

Ele apertou os braços em volta dela, mas fê-lo com suavidade, como se receasse que o mais leve toque a quebrasse.

- Meu amor. Não sei... não tenho a certeza daquilo que quero, mas não é seduzir-te para te levar para a minha cama; isso eu posso obter de qualquer outra, quando quiser. Eu amo-te, Cassandra. Queria dizer-te, tentar fazer-te compreender...

- Eu compreendo - disse ela, comprimindo a sua mão contra a dele. Lá no alto, a Lua flutuava com tal brilho que ela conseguia ver-lhe o rosto como se fosse à luz do dia.

- Olha - disse ele -, todas as fogueiras do acampamento aqueu estão apagadas. É muito tarde. Deves estar exausta; devia deixar-te ir.

Era tarde. Ela afastou-se ligeiramente dele, sentindo frio longe dos seus braços, e ofereceu-lhe a mão. Eneias curvou-se sobre ela, aproximando-se muito, mas não voltou a beijá-la. Sussurrou:

- Boa noite, meu amor, e que a Deusa te proteja. Eu ficarei aqui até que estejas em segurança dentro das portas da casa do Senhor do Sol.

Ela subiu sozinha os últimos degraus e bateu no portão, o qual foi aberto do lado de dentro.

- Ah, princesa Cassandra - disse um dos criados do templo ao abrir o portão -; regressas do jantar no palácio, com os teus pais? Subiste sozinha até aqui?

- Não; o príncipe Eneias escoltou-me - disse ela, e o rapaz espreitou lá para fora.

- Será que o príncipe Eneias quer um archote aceso para o caminho de regresso?

- Não, obrigado - disse Eneias polidamente. - A Lua está muito clara. - Fez uma vénia a Cassandra. - Boa noite, minha irmã e senhora.

- Boa noite - disse ela. E quando se encontrava fora do alcance de ouvidos estranhos ouviu-se murmurar: - Boa noite, meu amor.

Foi assaltada pela angústia. Tinha jurado - sem saber o que fazia - que nunca serviria a Deusa Afrodite, nem sucumbiria a este tipo de paixão.

E agora, ela era igual a qualquer dos outros servidores dessa deusa dos Aqueus.

 

Os soldados de Aquiles carregavam os seus navios; era evidente que as desavenças no acampamento dos Aqueus não se tinham dissipado. Um dos informadores favoritos de Príamo, uma velha que vendia bolos no acampamento aqueu e voltava ao interior das muralhas todos os dias, por volta do meio-dia, para se abastecer novamente (e ter uma longa conversa com o capitão da vigia), informou que Aquiles não se mexera da sua tenda. Pátroclo tentara dissuadir os soldados de partir, mas sem grande resultado.

Pátroclo, disse ela, era estimado por todos os soldados, mas estes sentiam que tinham deveres de lealdade para com Aquiles e, se este decidira abandonar a luta, eles abandoná-la-iam também.

A meio da manhã, Cassandra desceu até à muralha para ir ver com os seus próprios olhos, juntamente com as mulheres da casa de Príamo: Hécuba, Andrómaca, Helena e Creúsa.

Escutaram o testemunho da velha vendedora de bolos e perguntaram-se o que significaria isso para a causa dos Aqueus.

- Não significa grande coisa - disse Páris, que nessa manhã era o capitão da vigia. - Aquiles é um maníaco da luta, mas Agamémnon e Odisseu são os cérebros da campanha. Aquiles é esplêndido no combate individual, claro, e conduz o seu carro de batalha como um demónio; e esses Mirmídones que traz com ele, segui-lo-iam numa carga para lá do fim do mundo.

- Que pena não haver alguém que os convença a isso -murmurou Creúsa. - Isso resolveria grande parte dos nossos problemas; pelo menos em relação a Aquiles. Alguém conhece um imortal prestável que seja capaz de aparecer sob a forma de Aquiles e mandar os homens dele daqui para fora, numa missão urgente no outro lado do mundo, ou os convença de que são desesperadamente neces­sários na sua terra?

- Mas a questão é - disse Páris, ignorando-a - que isso é tudo o que Aquiles tem a seu favor: é louco por matar. Não sabe nada de nada acerca de estratégia ou táctica de guerra. A perda de Aquiles nesta guerra, o facto de ele ir para casa como um miudinho que diz «Já não brinco mais», não causa grande abalo nos Aqueus. Seria bem pior para eles, e melhor para nós, se perdessem Agamémnon ou Odisseu ou mesmo Menelau.

- Que pena não conseguirmos inventar uma forma inteligente de nos livrarmos de um deles - disse Hécuba.

- Isso quase aconteceu - disse Páris. - Esta briga entre Aquiles e Aga­mémnon significava que eles teriam de perder um ou outro. Perder Aquiles perturbou os soldados (ele é o ídolo deles), mas os comandantes sabiam que não podiam perder Agamémnon, ou toda a campanha cairia por terra. Porque outra razão acham vocês que o deixaram ficar com a rapariga de Aquiles? Eles sabem o quão importante é Agamémnon para toda a campanha. Porque pensam que Aquiles está amuado? Porque lhe foi claramente demonstrado que ele não é, nem de perto (para ninguém) tão importante como Agamémnon.

- Bom, algo se está a passar lá em baixo - disse Helena. - Vejam, ali está Agamémnon, com Menelau à cauda, como de costume, e o seu arauto. Cassandra já tinha visto o arauto: um jovem alto, provavelmente de consti­

tuição demasiado frágil para ter alguma utilidade com uma espada e um escudo, mas que possuía uma esplêndida voz grave que ele conseguia fazer soar através do acampamento inteiro. « Um belo músico que se perde», dissera Crises uma vez; e, de facto, teria dado um fantástico menestrel ou cantor.

Agamémnon estava agora a dar-lhe ordens, e o arauto atravessava a passos largos o acampamento e - sim - dirigia-se à muralha. Páris pegou no seu escudo abaulado, colocou o elmo na cabeça e foi para o cimo da muralha. O arauto gritou:

- Páris, filho de Príamo!

- Sou o próprio - disse Páris, e a sua voz soou fraca e juvenil comparada com o tom trabalhado e ressonante da voz do arauto. - Que desejas de mim? Se Agamémnon tem um recado para me dar, porque não vem ele próprio até junto das muralhas, em vez de, cobardemente, te enviar a ti que eu não posso licita­mente alvejar? - E continuou, rindo: - Quando é que eles se decidem a declarar a abertura de uma época de caça aos arautos? Acho que eles deviam ser todos exterminados, como os Centauros.

- Páris, filho de Príamo, trago uma mensagem de Menelau de Esparta, irmão de Agamémnon, o suserano de Micenas...

- Sei perfeitamente quem é Menelau - interrompeu Páris. - Não pre­cisas de estar a explicar nem de repetir todos os ressentimentos que temos um contra o outro.

- Oh, deixa o pobre homem dar o seu recado, Páris - disse Helena, numa voz que se ouvia claramente. - Estás a enervar a desgraçada da criança. Ele quer, pelo menos, falar como um guerreiro, já que não pode lutar como tal. É capaz de molhar a túnica se continuas com isso; pensa como iria ficar embaraçado na frente de todas estas mulheres.

- Bom, se tens uma mensagem de Menelau, despacha-te a dá-la - disse Páris. O arauto, corando, fez um visível esforço para se compor e endireitou-se.

- Ouve as palavras de Menelau, Senhor de Esparta: « Páris, filho de Príamo, a minha desavença é contigo e não com Príamo ou com a poderosa cidade de Tróia. Proponho-te, neste momento, que resolvamos esta guerra num duelo, perante todos os soldados troianos e aqueus. E que, se me matares ou eu me render, ficarás com Helena e tudo o que quiseres daquilo que me pertence; c os meus homens, incluindo o meu irmão Agamémnon, ficarão comprome­tidos a não lutar mais, nem mesmo para me vingar, e a embarcar nos seus navios deixando Tróia para sempre; e esta guerra chegará ao fim. Mas se eu te matar ou tu te renderes, então Helena ser-me-á devolvida, com os seus bens e adornos, e levá-la-emos para casa sem reclamar qualquer parte do espólio de Tróia. Que dizes? Qual é a tua resposta?»

Páris manteve-se de pé em toda a sua estatura, e disse:

- Diz a Menelau que ouvi a sua proposta; consultarei o rei Príamo e Heitor, o chefe dos exércitos troianos. Parece-me que há muitas outras causas para esta guerra que não Helena; mas se o meu pai e o meu irmão desejarem resolvê-la desta forma, então estarei de acordo.

Rebentaram aplausos vindos de ambos os lados quando Páris desapareceu e regressou ao pequeno recanto da muralha, onde as mulheres se encontravam a assistir. Helena levantou-se sem dizer palavra e beijou-o.

Páris disse:

- Caramba! Para que foi aquilo? Menelau sabe tão bem como eu que há outras coisas por trás desta guerra para além de Helena. Como terá Aga­mémnon conseguido convencê-lo a fazer este acordo? Ou será um estratagema para me tirar de trás das muralhas?

- Acredito que Menelau tenha a malevolência para o levar a cabo - disse Helena -, mas não a inteligência para o imaginar.

- Bom, como acham vocês que Príamo gostaria que eu respondesse? ­perguntou Páris. - E Heitor? Heitor, provavelmente, achará oportuna esta hipótese de me tirar do seu caminho, para poder conduzir a guerra a seu bel-prazer.

- Fazes uma ideia errada do teu irmão, meu rapaz - disse Hécuba. - Que possas sempre pensar dessa forma, mãe - replicou Páris -, e que me seja possível estar sempre por perto para afirmar o contrário.

- O cerne da questão é que tu não podes defrontar Menelau - disse Cassandra.

- Porquê? Pensas que tenho medo dele? - contestou Páris.

- Se não tens és ainda mais louco do que alguma vez pensei - disse Andrómaca.

- Mas Heitor verá com bons olhos a resolução desta guerra através de um combate individual - disse Cassandra - e provavelmente fará Páris aceitar; mas só na condição de ele desafiar antes Agamémnon.

- Bem, ele pode oferecer-se para lutar com Menelau em vez de mim - disse Páris. - Eu empresto-lhe o meu manto e todos os exércitos serão levados a crer que sou eu.

- Seja o que for que Heitor ache, podes perguntar-lhe pessoalmente, porque ele vem aí - disse Andrómaca.

Heitor e os seus guerreiros atravessavam as ruas de Tróia em direcção às portas. Eram cerca de cento e cinquenta soldados de armadura,,e outros a puxar o carro de combate de Heitor pelas íngremes ruas abaixo, para ser atrelado junto dos portões, a fim de Heitor poder saltar para cima dele e sair ao ataque. Ele viu-os, à distância, na muralha e subiu para Lhes falar.

- Que aconteceu? - perguntou Heitor. - Ouvi uns gritos nas ruas... Hécuba contou-lhe do desafio de Menelau, e Heitor franziu o sobrolho. - É, provavelmente, o melhor que temos a fazer, estando Aquiles fora de cena - disse. - Vais bater-te com ele, Páris?

- Preferiria não ir - disse Páris. - Não acredito que ele me defronte num combate individual; acho mais provável que ele esteja a tentar atrair-me lá para fora para ser alvejado por uma dúzia de arqueiros ou para me montar uma emboscada.

Heitor irritou-se.

- Raios, Páris! Nunca percebo quando estás a falar por cobardia ou por puro senso comum.

- Não me parece que haja assim tanta diferença - disse Páris. - Supo­nho que isso significa que queres que eu vá lá para fora e lute com ele.

- Há alguma dúvida acerca disso? - Cassandra podia ver, pela expressão de Heitor, que ele não conseguia perceber como era possível Páris não estar já ansioso e a preparar as suas armas.

- Sim, há - disse Páris. - Se eu o matar, eles ir-se-ão todos embora e tu nunca terás uma oportunidade frente a Agamémnon ou Aquiles. Isso estragar­-te-ia a festa, não é verdade?

- E se ele te matar?

- Estava a tentar não pensar nisso - disse Páris. - Duvido que isso estragasse especialmente a tua festa; mas certamente que eles iriam escarnecer de ti quando levassem Helena e tudo o mais que lhes agradasse em Tróia. E, como digo, poderá não ser o tipo de combate legal que tu considerarias uma questão de honra oferecer a Aquiles, se ele te desafiasse.

- Helena - disse Heitor -, tu conheces Menelau melhor do que nós; ele é homem para manter a sua palavra?

Ela encolheu os ombros.

- Eu diria que sim; duvido que seja capaz de arquitectar uma armadilha. Mas, claro, não faço ideia do que Agamémnon possa ter engendrado; isso é outra questão completamente diferente.

- Bom, Páris, a decisão é tua - disse Heitor. - Não posso obrigar-te a lutar com ele; por outro lado, não quero ser responsável pela recusa do desafio.

Páris olhou para baixo, onde Menelau, com a sua capa carmim, continuava a andar de um lado para o outro, diante da muralha. Disse:

- Helena, que queres que eu faça? Queres que lute com ele por ti?

- Heitor não te deixará em paz, se não o fizeres - disse ela sagazmente -, por isso acho melhor que aceites. Mas temos de arranjar uma forma de te safar; talvez consigamos persuadir algum imortal a intervir.

- Como vais fazer isso? - perguntou ele.

- É melhor que não o saibas - disse ela -; mas não creio que a Deusa do Amor e da Beleza me tenha trazido até aqui para ser arrastada de volta, desonrada, na traseira do carro de Agamémnon. Mas enquanto estiveres a lutar, vai olhando; e, pelo sim pelo não, vamos pôr uma escada de corda pendurada do cimo da muralha. E se a Deusa te proporcionar uma oportunidade para a alcançares... bom, não deixes passar esse momento, a menos que Menelau esteja já morto a teus pés.

Páris encolheu os ombros, dirigiu-se à muralha e gritou a Menelau que iria ter com ele dentro de uma hora, se ele assim quisesse.

Depois vestiu a sua armadura e desceu ao terreno com Heitor. Quando o viram em cima do carro, um grito explodiu entre os Aqueus.

- Que vais fazer? - perguntou Cassandra, aproximando-se de Helena. Esta agarrou as mãos de Cassandra.

- Tu és irmã gémea dele e és sacerdotisa - disse ela. - Junta-te agora aos cânticos e às orações para que a Nascida do Mar nos envie um dos Seus nevoeiros marítimos. Hécuba, peço-te, se amas o teu filho manda buscar uma escada de corda resistente; não podemos pedir à Deusa que nos faça aquilo que qualquer cordoeiro faria a troco de uma moeda de cobre.

Hécuba enviou um mensageiro em busca de uma escada de corda e, quando a trouxeram, Helena foi com Cassandra colocar-se de pé mesmo na extremidade da muralha, olhando Páris e Menelau que se armavam enquanto os arautos trocavam insultos. Menelau e Páris contaram cuidadosamente as passadas, para um lado e para o outro, traçando um círculo onde nenhum outro combatente -de qualquer das facções - poderia entrar enquanto um deles estivesse vivo. Feito isto, curvaram-se diante um do outro, cerimoniosamente. Uma trombeta soou e começaram a lutar.

- Canta! - instigou Helena. - Reza! Implora à Deusa que nos envie o Seu nevoeiro do mar!

As mulheres começaram a cantar. Cassandra estava tão absorvida vendo os dois homens brandir as suas espadas, que mal conseguia articular as palavras da oração, embora fossem bastante simples. A princípio, os dois homens pareciam razoavelmente equilibrados. Páris era mais alto e tinha um maior alcance; mas Menelau, embora parecesse estar mais flácido devido à inactividade, era rápido como um mangusto. Moviam-se em volta um do outro, trocando golpes, ava­liando-se mutuamente com cuidado, mas não estando, ainda, envolvidos numa luta a sério.

Os olhos de Cassandra estavam doridos. Seria poeira o que via, à sua frente, no círculo do combate? Ou seria mesmo um rolo de nevoeiro que se erguia da praia? Não conseguia ter a certeza. Helena deu um passo em direcção à bordada muralha e deixou tombar a escada de corda; tinha-a prendido, por questão de segurança, em torno das saliências das pedras da muralha. Depois ergueu-se, em toda a sua estatura, e chamou bem alto: «Menelau!»

Ele voltou os olhos para o cimo da muralha, por momentos, e deteve o golpe a meio. Helena desapertou lentamente a gola do vestido e deixou-o descair até os seus seios ficarem nus.

Enquanto ela ali estava, imóvel, pareceu a Cassandra que o ar se enchia de ténues cintilações douradas, como se o véu entre os dois mundos se fosse tornando mais fino. Helena, invadida por esse fulgor dourado, parecia crescer em altura e majestade e irradiou uma beleza para além de tudo o que era humano. Não era uma mulher, mas sim a própria Deusa que se encontrava sobre a muralha.

Quanto a Menelau, ficou como se os seus pés tivessem criado raízes por baixo de si.

O mesmo não acontecera com Páris. Mal os seus olhos se pousaram em Helena, erguendo-se sob a forma da Deusa, escapou-se, correndo para a base da muralha. Das fileiras dos Aqueus irrompeu uma enorme exclamação de espanto e de desejo; e de repente Páris estava no alto da muralha, recolhendo a escada. Com todos os olhares postos em Helena - ou antes, na Deusa - era provável, apercebeu-se Cassandra, que ninguém o tivesse visto subir a escada. Ele enro­lou-a e lançou-a para dentro.

Helena permanecia de pé e imóvel, o corpo irradiante de luz. Depois, num abrir e fechar de olhos, a ilusão - se é que fora ilusão - desapareceu, e ficou apenas Helena, o rosto ligeiramente queimado do sol, apertando o vestido. Aproximou-se de Páris e disse:

- Estás ferido.

- Nada de grave, senhora - disse ele, com os olhos ainda abertos de espanto; mas o risco vermelho, que surgia mesmo junto à orla da sua armadura de couro, começava a gotejar.

- Vem comigo; eu tratarei disso - e levou-o dali. Ouviam-se agora gritos vindos dos Aqueus.

- Páris! Para onde foi ele? Cobarde!

Mas por trás, e entre tudo aquilo, ouviam-se gritos dizendo:

- A Deusa! Ela apareceu diante de nós, sobre a muralha! A Bela, a Nascida do Mar!

O carro de Heitor entrou ruidosamente através dos portões e no minuto seguinte ele galgava as escadas que se erguiam para o interior da muralha. Olhou em volta e perguntou:

- Onde está ele, afinal?

Hécuba disse, com a voz a tremer:

- Não viste a Deusa levá-lo?

- É isso que dizem nas fileiras dos Aqueus - disse Heitor -, e quando perguntei ao meu auriga, ele jurou ter visto Afrodite baixar-se do cimo da muralha, lançar o seu manto sobre Páris e levá-lo. No que me diz respeito, não sei dizer o que foi que vi; talvez fosse apenas a luminosidade do Sol nos meus olhos. Onde está Helena?

- Quando a Deusa trouxe Páris de volta, Ela viu que ele estava a sangrar ­disse Andrómaca - e levou-o para os aposentos Dela para lhe ligar o ferimento; por esta altura, provavelmente estão no banho.

- Não duvido nem um pouco - resmungou Heitor -; mas gostaria, se as deusas querem interferir, que esperassem até as coisas estarem adequadamente resolvidas. Se a Deusa veio, Ela própria, para roubar Páris e pô-lo em segurança, gostaria que Ela tivesse roubado Menelau (e Helena também) e os tivesse levado de volta para Esparta. Se Ela foi capaz de fazer uma (e reparem, Imortais, não blasfemo dizendo que Ela não tem poder para tal), é capaz de fazer outra. Cassandra, que foi que tu viste? Vais contar-me histórias fantásticas de que foi a Deusa, de cima da muralha, que o levou?

Por momentos, Cassandra sentiu-se encher de alegria: Heitor apelara para ela como se ela fosse uma testemunha fidedigna.

- Nem pensar nisso - disse ela. - Mas deu-me a sensação de que Menelau teve qualquer tipo de visão; parou de lutar e ficou de olhos fixos na muralha, e Páris correu e pôs-se a salvo.

Heitor suspirou e disse:

- Bem, é demasiado tarde para haver mais combates hoje; mas esperem até que isto comece a saber-se por aí. Mas claro, se a Deusa interveio (mesmo com uma visão para Menelau), ninguém pode culpar Páris.

Mas não parecia nada convencido.

 

A MALDIÇÃO DE POSÍDON ­

Ao entardecer, toda a gente de ambos os exércitos e a maior parte dos civis da cidade tinha ouvido a história que, evidentemente, ia crescendo cada vez que era contada.

Segundo a maior parte das testemunhas oculares, a Deusa aparecera sobre a muralha da cidade e tirara Páris debaixo da espada de Menelau, livrando-o de um golpe mortal e inevitável; numa das versões, Menelau tinha aberto Páris desde o queixo até ao pélvis, num único golpe, e a Deusa tinha-o sarado com um toque; Ela ligara as feridas dele com néctar e ambrósia e transportara-o mesmo até ao quarto de Helena.

Cassandra, quando lhe perguntavam, respondia apenas que não tinha a certeza do que vira; o sol estava a bater-lhe nos olhos.

No seu íntimo estava certa de que a Deusa interviera de alguma forma. Mas já não tinha bem a certeza de como acontecera aquilo, ainda que estivesse perfeitamente segura de que, pelo menos por instantes, Helena assumira a forma da Deusa. Afinal, não seria a primeira vez.

Durante dois dias, na cidade não se falou de outra coisa senão do duelo e da suposta intervenção da Deusa. Heitor e Eneias regressaram dos conselhos dizendo que os Aqueus insistiam em que Menelau havia vencido o duelo porque Páris fugira, ferido.

- Que lhes responderam? - perguntou Príamo, ansiosamente.

- O que é que tu achas? Dissemos que era óbvio que Páris tinha vencido, pois a Deusa interviera para lhe salvar a vida - replicou Heitor.

Cassandra, que estivera nas muralhas durante parte do dia, olhando, recor­dando os seus próprios treinos de armas e pensando que poderia ser tão boa como a maioria dos soldados aqueus ou qualquer dos troianos, perguntou:

- O que era aquela agitação toda; esta tarde? Vi dois soldados que não conhecia preparando-se para um combate, mas antes que tivessem tempo de começar a luta, um deles começou a desarmar-se e acabou por tirar as roupas até

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ficar só com a tanga. Decidiram lutar corpo-a-corpo, em vez de se baterem com espadas?

Eneias riu, divertido.

- Oh, não - disse ele. - Sabes quem é Glauco, o trácio?

- Já falei com ele - disse Helena. - Era o mestre de um dos navios que nos trouxeram para cá.

- Bom, ele saiu e desafiou qualquer aqueu para se bater com ele e Diome­des aceitou. Começaram então a recitar a sua linhagem, para saber se poderiam bater-se honrosamente num combate individual; e antes de chegarem aos bisa­vós, descobriram que eram primos.

- Por isso decidiram não lutar? - perguntou Cassandra. - Não assististe? - perguntou Eneias.

- Não; fui chamada ao templo. Uma das serpentes maiores anda a mudar a pele, e precisa de cuidados especiais; nestas alturas, as serpentes ficam cegas e não podem ser manuseadas por estranhos - disse Cassandra.

- Eles acordaram que deveriam lutar por uma questão de honra; mas decidiram trocar de armaduras. Diomedes disse que a sua armadura vulgar não era suficientemente bonita para constituir uma oferta digna, e mandou buscar ao seu navio uma preciosa armadura completa, em prata com incrustações a ouro; Glauco, é claro, teve de andar por aí com os companheiros, a negociar uma armadura para poder oferecer-Lhe algo do mesmo valor. Pareciam um par de velhos no mercado de quinquilharias a regatear o valor de uma bugiganga qual­quer, e aquilo nunca mais acabava; e, é claro, lutaram envergando as armaduras de combate, velhas e amolgadas, enquanto as duas armaduras de luxo eram penduradas, em exposição...

- Quem venceu? - perguntou Helena.

- Não faço ideia. Creio que eles se derrubaram um ao outro uma ou duas vezes; depois ficou demasiado escuro para conseguirem ver. Portanto, agradece­ram reciprocamente as belas ofertas e foram jantar.

Heitor riu, divertido.

- Não houve qualquer vantagem para nenhum dos lados, mas pelo menos preencheu a tarde. De qualquer modo, não tínhamos nada melhor para fazer hoje; até que os conselheiros de ambos os lados se decidam sobre se foi Páris ou Menelau o vencedor do duelo deles, tudo o resto não passa de diversão. Glauco e Diomedes teriam feito melhor em fazer daquilo um combate corpo-a-corpo ­assim, pelo menos, poderíamos ter feito umas apostas. Tenho andado com tentações de desafiar o grande Ájax para uma luta assim - ele é o maior homem das linhas aqueias. Não sei se ele sabe lutar...

- Sabe - disse o jovem Troilo. - Ele ganhou a grinalda da luta nos Jogos Sacrificiais deles.

- Então não há dúvida de que o vou desafiar - disse Heitor.

- Tem cuidado, para não apanhares com um cotovelo na cara. A especiali­dade dele é partir dentes - disse Troilo.

Ao jantar, Heitor perguntou a Príamo:

- Senhor, o que acontecerá se o Conselho decidir que Menelau venceu o duelo?

Príamo encolheu os ombros.

- Nada - disse. - Os Aqueus recusar-se-ão a aceitar a decisão e a guerra continuará. Eles não querem chegar a acordos; não desistirão enquanto não conseguirem atravessar as muralhas de Tróia e saquear a cidade.

- Eia! Pareces a Cassandra, pai.

- Não - disse Príamo -, eu sei o que Cassandra pensa. - Mas desta vez, quando Cassandra ergueu os olhos - assaltada de novo por aquele terrível pavor e pela visão de Tróia em chamas que se interpunha entre ela e o mundo real -, Príamo sorriu-lhe amigavelmente, como se tentasse afastar-Lhe os receios. - Ou­vi-a dizer bastantes vezes que acha que eles nos vão destruir. Mas isso não é verdade.

- Eles podem derrubar as muralhas de Tróia, pai? perguntou Páris. - Não. A menos que consigam persuadir Posídon a auxiliá-los com um tremor de terra - declarou Príamo.

Cassandra sentia agora aquela sensação a percorrer-lhe o corpo inteiro: as muralhas de Tróia abater-se-iam sob a fúria de Posídon, do Seu tremor de terra. Ela deveria ter sabido sempre que um simples esforço humano não poderia derrubar as muralhas de Tróia; só um deus seria capaz de destruir a enorme e alta cidadela.

- Então devíamos sacrificar a Posídon o mais cedo possível - disse Heitor -, pois Ele é o único Deus que poderá ajudar-nos.

- Sim - disse Cassandra abruptamente -, façamos imediatamente sacri­ficios a Posídon e imploremos-Lhe que ajude a nossa causa! Não é Ele um dos deuses protectores de Tróia? - Não tendo consciência do que ia dizer até sentir as palavras jorrar através da sua mente como um berro de angústia gritou: - Páris! Tu... Oh, cuidado com o tremor de terra! Sacrifica a Posídon! Faz-Lhe promes­sas, pois é a ti que Ele vai destruir - destruir - destruir!

Conteve-se através de um esforço imenso, chegando a ter de comprimir as mãos de encontro aos lábios. Príamo olhou-a com uma expressão de fúria e desagrado.

- Não teremos tido já o suficiente disto, Cassandra? - inquiriu ele. - Até à mesa da tua mãe? Não conseguirás sequer decidir-te sobre qual dos deuses vai destruir a cidade? De facto, acho que deves estar louca.

Ela não conseguia falar; o nó na garganta era tão grande que todas as suas forças se esgotavam no simples acto de respirar. Engoliu em seco e sentiu lágrimas correrem-Lhe pelas faces. Helena aproximou-se e limpou-Lhe o rosto com o véu, e a ternura desse gesto deixou Cassandra de tal modo desarmada que ela só conseguiu ficar de olhos fixos na mulher do seu irmão e murmurar:

- É a ti que Ele vai destruir.

- Minha pobre filha - disse Hécuba -, os deuses continuam a atormen­tar-te com essas visões. Deixa-a em paz, Helena; não há nada que possas fazer por ela. Cassandra, volta para o templo; lá, entre os teus companheiros, tenho a certeza de que os sacerdotes terão remédios para ataques como este.

Príamo disse, com firmeza:

- Não voltes a profetizar aqui, Cassandra. É uma ordem; que seja cum­prida.

Incapaz de controlar o seu pranto, Cassandra levantou-se e saiu a correr do salão, precipitando-se pelas ruas acima. Algum tempo depois apercebeu-se dos passos que a seguiam na subida e redobrou a passada; mas os passos aceleraram atrás dela e, logo a seguir, foi agarrada por mãos suaves que a obrigaram a parar~

- Que se passa, Cassandra? - perguntou uma voz masculina. Ela fez uma expressão de pânico e, a princípio, debateu-se violentamente contra as mãos que a prendiam; depois, apercebendo-se de que era Eneias quem a segurava, descon­traiu-se e ficou parada, em silêncio. - Não podes dizer-me? - perguntou ele. - O que se passa, realmente, de errado?

- Sabes o que dizem: que eu estou louca - disse ela, aborrecida.

- Não acredito nisso nem por um momento - disse Eneias. – Atormentada por um deus, talvez; mas não louca, nem nada que se pareça.

- Não sei qual é a diferença - disse ela. - E não posso ficar calada; quando a Visão vem até mim, tenho de falar... - Ouvia a sua voz tremer de tal forma, que as palavras eram quase indistintas.

- Talvez - disse Eneias docemente, com o braço em volta dela - todos aqueles cuja visão alcança maiores distâncias do que a nossa sejam considerados loucos por aqueles que não conseguem ver mais longe do que o pequeno-almoço do dia seguinte. Quando fugiste, receei por ti; receei que caísses e te magoasses. Não acredito, um minuto que seja, que a tua razão ande à deriva; pareces-me perfeitamente sensata; tal como não vejo porque hão-de considerar uma loucura querer avisar os nossos de que os deuses estão ansiosos por nos destruir. Desde que vim para Tróia que eu tenho a sensação de estarmos ensombrados pela ira de um imortal ou mais, e também eu tenho a impressão de captar em todos os ventos o cheiro do perigo da destruição.

Beijou-a levemente na face.

- Podes agora dizer-me o que vês?

Ela olhou-o nos olhos, subitamente cheia de certeza.

- Vejo que irás sobreviver ao perigo; vi-te deixar Tróia vivo e ileso. Ele deu-lhe umas palmadinhas carinhosas no ombro.

- É bom saber isso, claro. Mas não foi isso que te perguntei. Vem, deixa-me acompanhar-te até à casa do Senhor do Sol. - Subiram em silêncio durante alguns instantes. Depois ele disse: - Sentes realmente que não há quaisquer esperanças para Tróia nesta guerra?

- Soube isso no momento em que Páris trouxe Helena para cá - disse ela -, e, acredita-me, isto não é malevolência: acabei por gostar de Helena como se ela fosse minha irmã. Soube-o quando Páris entrou as muralhas de Tróia a fim de participar nos jogos; Heitor tinha razão em querer mandá-lo embora, mas pelos motivos errados. Heitor receava que Páris tentasse chegar a rei; mas não era esse o perigo...

Eneias afagou-Lhe a face.

- Não possuo a tua Visão, Cassandra, mas confio em ti; tu dizes a verdade. Podes estar enganada, mas não o fazes por maldade ou loucura. E se é isso o que vês, é claro que tens de contar o que os deuses te enviaram para dizer. - Chegaram às portas do templo; ele abraçou-a e disse: - Quando falares, escutar-te-ei sempre. Prometo-te.

- Creio - disse Cassandra - que foi um imortal a começar esta guerra; mas penso que Afrodite teve já a Sua oportunidade para nos ajudar ou nos destruir; e agora, parece-me que não é Ela, mas sim a discórdia entre outros deuses que está a ameaçar-nos. Quando o pai disse que nenhum mortal poderia derrubar as muralhas de Tróia, eu percebi que ele dizia a verdade. Não será às mãos dos Aqueus que iremos sucumbir, mas sim às mãos dos deuses; e não sei por que razão eles hão-de destruir a nossa cidade.

- Quem sabe - disse Eneias - os deuses não necessitem de razões para os seus actos.

Ela murmurou:

- É isso que eu começo a recear.

 

O clima de Tróia era consideravelmente mais quente do que o de Cálcis; as serpentes que Cassandra trouxera da cidade de Imandra andavam agora mais activas e ela passava grande parte do seu tempo a cuidar delas.

Por este motivo, não soube imediatamente quando o Conselho determinou que nem Páris nem Menelau haviam vencido o duelo, e que seria decretada uma trégua enquanto apreciavam mais profundamente o assunto. Cassandra sabia que isso não faria grande diferença - ambos os lados estavam resolvidos a continuar a lutar -, por isso não deu muita importância. Continuava ocupada com as serpentes quando chegou a notícia de que os combates se haviam reatado. Mais tarde, alguém lhe disse que as tréguas tinham sido quebradas quando um dos comandantes argivos - que depois afirmou ter sido a Deusa Virgem a ordenar-lho - disparou uma flecha contra Príamo que lhe perfurou a sua melhor túnica e só por pouco não o matou.

Alguns dias depois, na segurança da muralha, ela e as restantes mulheres do palácio assistiam à reunião das tropas de Heitor, com carros de combate e soldados armados, a pé. Ouviu as mulheres dizerem que Eneias aceitara um desafio de Diomedes, o aqueu que lutara com Glauco.

Creúsa não levou isso muito a sério.

- Nunca me constou que Diomedes fosse um lutador que desse preocupações - disse ela. - Este disparate de andar a trocar ofertas... que mais poderá ser senão um pretexto para falar em vez de lutar?

- Eu não confiaria demasiado nisso - disse Helena. - É certo que nesse dia eles estavam ambos a brincar; mas eu já vi Diomedes quando está disposto a lutar, e creio que é possível que ele seja mais forte que Eneias.

- Estás a tentar meter-me medo, Helena? - perguntou Creúsa. - Estás com ciúmes?

- Minha querida - disse Helena -, eu não estou interessada em marido algum senão no meu, acredita-me.

- Qual deles? - perguntou Creúsa rudemente. - Há dois que te reclamam e ninguém em Tróia fala de outra mulher.

- Não é culpa minha se eles não têm nada para fazer senão meter-se nos assuntos de quem está acima deles - disse Helena. - Diz-me, há alguma mulher em Tróia a afirmar que eu disse ao marido dela uma só palavra que não possa ser repetida diante da minha mãe ou da dele?

- Não digo isso - balbuciou Creúsa. - Mas tu pareces sentir prazer em te mostrar a todos os homens como sendo a Deusa...

- Então a tua desavença é com Ela e não comigo; eu não sou culpada do que Ela faz.

- Calculo que não... - começou Creúsa, mas Cassandra interrompeu-a. - Claro que não; não sejas tonta, Creúsa. Não será já suficientemente mau que os homens estejam lá em baixo na guerra? Se as mulheres começam a brigar também umas com as outras, não restará um mínimo de bom senso em lugar nenhum de Tróia.

- Se os deuses e as deusas estão em conflito, como poderemos manter-nos sem nos envolvermos também? - perguntou Andrórnaca. - Penso que talvez os deuses tenham prazer em ver-nos lutar, tal como têm prazer quando lutam eles próprios. Eu sei que o maior prazer de Heitor é a batalha; se esta guerra acabasse amanhã, ele choraria.

- O que me faz impressão é que ele parece achá-la bem-vinda - disse Heléna. - Poder-se-ia pensar que ele busca ser possuído por Ares. Cassandra, tu és sacerdotisa; é verdade que os homens podem ser possuídos pelos seus deuses?

Ela lembrou-se de Crises e disse:

- É verdade, sim, mas não sei como ou por que razão isso acontece. Não é, creio eu, simplesmente pelo facto de eles o desejarem. Helena, eu vi-te possuída pela Deusa. Como é que isso se consegue?

- O quê, não me digas que desejas encarnar Afrodite? - disse Helena, rindo. - Julguei que eras uma das Suas adversárias.

Cassandra fez um gesto de reverência.

- Que nunca me aconteça ser adversária de qualquer dos Imortais - disse ela. - Eu não A sirvo, porque me parece que a Bela não é uma deusa como a Mãe Terra e a Mãe Serpente, ou mesmo a Virgem, são deusas.

- Quando é que uma deusa pode não ser deusa? -perguntou Helena com um sorriso divertido. - Acho que não estou a perceber-te, Cassandra.

- Quero dizer que as deusas das vossas gentes são diferentes das deusas do nosso povo - disse Cassandra. - A vossa Deusa Virgem, a guerreira Atena, Ela é uma deusa tal como um homem A conceberia, porque dizem que Ela não nasceu de mulher alguma, mas sim que saiu, de armadura completa, da cabeça e da mente de Zeus; e além disso, apesar de todas as Suas armas, Ela é uma jovem cheia de virtudes domésticas, que daria uma boa esposa para qualquer deus. Ela dedica-se à fiação e à tecelagem e é a protectora das vinhas, das azeitonas e das uvas. Não seria esta a virgem guerreira que um homem criaria: valente e virtuosa, mas mantendo-se obediente ao mais poderoso dos deuses? E a vossa Hera: Ela é como a nossa Deusa Terra, mas o vosso povo trata-A apenas como mulher de Zeus omnipotente e diz que Ela Lhe deve obediência em todas as coisas, enquanto para nós a Mãe Terra é, em Si Mesma, todo-poderosa. Ela cria todas as coisas, mas os Seus filhos e Seus amantes vão e vêm, e Ela escolhe quem quer; quando o Deus da Morte roubou a filha Dela, Ela fez a terra inteira imobilizar-se de modo a não crescerem nem nascerem frutos...

- Mas nós temos também uma senhora da Terra - disse Helena -, Deméter. Quando Hades roubou a Sua filha, Ela provocou (segundo dizem) um Inverno de frio e escuridão terríveis; e por fim Zeus disse que a rapariga teria de voltar para a mãe...

- Exactamente - interrompeu Andrómaca. - Eles dizem que mesmo a Mãe Terra deve obediência a esse Zeus poderoso. Mas isso não faz sentido. Porque haveria a Deusa Terra, que existiu antes de tudo o resto e é todo-poderosa, de estar sujeita a qualquer homem ou deus?

- Bem, se vamos discutir em termos de qual dos deuses é mais poderoso - disse Helena -, não serão, nesse caso, as forças do amor que conseguem eliminar tudo o resto da vida dos homens (e das mulheres também) e os tornam cegos para quaisquer outras coisas...

- Que criam desordem e destruição, queres tu dizer - disse Cassandra. - Tu só falas assim porque nunca estiveste sob o domínio de Afrodite, Cassandra - disse Andrómaca -, e se tu A desafiares, Ela far-te-á sofrer por isso.

Aquilo era, sem dúvida, verdade; Cassandra recordou o conflito avassalador que sentira nos braços de Eneias. «Tu não sabes que Ela já está a fazer-me sofrer.» Mas não podia falar sobre isso a nenhuma das mulheres presentes.

- Espero que tal nunca me aconteça - disse Cassandra. - Eu não provoco ninguém, e muito menos um imortal. - Porém, enquanto falava, lembrou-se que Crises chamara a sua rebeldia de rebeldia contra o próprio Apolo. Seria verdade ou seria ele simplesmente - como todos os homens vingativo em relação a uma mulher que se recusasse a submeter-se a ele e à sua lascívia? E ela tinha - ainda que apenas em sonhos - desafiado o poder de Afrodite.

« Até de Apolo, Senhor do Sol - disse ela com um ligeiro calafrio de medo, como se estivesse a lançar um desafio mesmo na face do Senhor do Sol -, se diz que matou a Mãe Serpente e Lhe tirou os poderes. Porém, de entre todos os homens, aquele que mata a mulher da qual saiu é o mais vil; e achas que os Imortais tolerariam num deus o que de mais vil existe para um homem? Se isso fosse verdade, Apolo não seria deus nenhum, mas sim o pior dos demónios coisa que Ele não é, certamente.

- E quanto à Mãe Terra ter enviado um ano em que não nasceram frutos ou flores e em que as sementeiras não cresceram - disse Helena - no ano em que Atlântida se afundou no oceano, segundo dizia o pai do pai da minha mãe, houve grandes tremores de terra e grandes nuvens de cinza encobriram o Sol; pode dizer-se que nesse ano não houve Verão, pois até os próprios alicerces da Terra tinham sido abalados. Mas se isso foi obra de algum deus, quem poderá dizê-lo? Não seria de espantar que os homens pensassem que a Mãe Terra os atraiçoara e procurassem pôr fim ao Seu mau procedimento arranjando-Lhe um suserano que A obrigasse a servir os homens como devia.

- Não me parece - interrompeu Creúsa nervosamente - que seja correcto nós estarmos aqui a questionar os procedimentos dos Imortais. Eles não vêem os homens como seres capazes de fazer uma avaliação dos Seus actos, e se procurarmos questioná-Los, Eles podem tentar castigar-nos por isso.

- Oh, que disparate! - disse Cassandra. - Se Eles fossem assim tão estúpidos e tão ciosos do Seu poder, por que razão haveria alguém de Os servir? - Tu, que fizeste um voto de servir os deuses, não os receias de todo? perguntou Andrómaca.

- Eu temo os deuses - disse Cassandra - e não o que os homens dizem que eles são.

Na casa do Senhor do Sol, as serpentes - segundo lhe disse Fílidas quando Cassandra foi ver as suas protegidas - pareciam invulgarmente perturbadas. Algumas delas tinham-se recolhido e não apareciam para que as manuseassem ou mesmo para que lhes dessem banho; outras estavam sonolentas e apáticas. À medida que ia passando de uma para outra, tentando chegar à conclusão do que as estava a perturbar, Cassandra recordou o tremor de terra que ocorrera aquando da morte de Meliantha. Seria aquilo um prenúncio de outro desses golpes da mão de Posídon?

«Devia mandar um recado ao palácio», pensou; mas da última vez que profetizara ali, tinha sido escarnecida e humilhada, e Príamo proibira-a de voltar a fazê-lo. »Não seria acreditada, se mandasse um aviso», pensou. E no entanto sabia, sem sombra de dúvida, que não podia recusar-se a escutar a voz que lhe enviava o sinal. Não que ela pudesse fazer alguma coisa para deter a mão de qualquer deus que viesse a enviar o tremor de terra, mas podia fazer com que parte do pior da sua fúria fosse evitado. Angustiada, pegou numa capa e gritou a Fílidas que tentasse acalmar as serpentes como pudesse. Fílidas tinha deitado Honey e o seu filho, cada um abraçado a uma serpente inquieta. Quando Cassandra se curvou para fazer uma carícia a cada uma das crianças, a sua mente encheu-se de imagens do tecto a abater; deu imediatamente ordens para que lhes fizessem camas no pátio onde, caso algum dos edifícios caísse, não seriam esmagados por ele. Depois correu para o pátio e gritou:

- Oh meu senhor Apolo! Detém a mão do Teu irmão que estremece a terra! As Tuas serpentes deram-me um sinal; deixa que todos os Teus servos o escutem!

As pessoas acorreram aos seus gritos. Crises perguntou:

- Que está a acontecer? Foste atingida pela mão do Deus?

Cassandra lutou para controlar o insuportável tremor do seu corpo. Esforçou-se por falar racionalmente, pesando as palavras.

- As serpentes da casa do Senhor do Sol deram-me um aviso - gritou, sabendo que soava descontrolada ou ainda pior. - Tal como quando Melianta morreu, estão inquietas e tentando fugir; a terra vai tremer antes do nascer do dia. Tudo o que for valioso deve ser posto em segurança; e ninguém deverá dormir debaixo de um tecto esta noite, ou este abater-se-á sobre si.

- Ela é louca - disse Crises. - Há muitos anos que sabemos que ela delira quando profetiza.

- Mesmo assim - disse um dos sacerdotes mais velhos -, seja o que for que ela possa ou não ter sabido dos deuses, em Cálcis ela aprendeu o culto das serpentes com uma sábia dessa arte. Se as serpentes a avisaram...

Cáris impôs-se:

- O aviso está dado; não podemos ignorá-lo. Façam o que quiserem e sofram as consequências; quanto a mim e aos meus, farei a cama sob céu aberto, que não vai cair sobre nós, pelo menos por enquanto.

O céu estava já escuro; foram trazidos archotes e as sacerdotisas apressaram-se a iniciar a tarefa de retirar para o exterior tudo o que pudesse ser danificado pela queda de uma pedra ou de uma parede. Crises continuava a resmungar; era vantajoso para ele, e ela sabia-o, fazer crer que nada do que ela dizia era verdadeiro.

Cassandra correu para o portão.

- Abram as portas - gritou. - Vou avisar as gentes da cidade e do palácio de Príamo!

- Não! - gritou Crises. - Detenham-na! - Ele avançou na direcção dela e estendeu as mãos para lhe agarrar os braços, a fim de a impedir, pela força, de sair do templo. - Se é necessário que seja dado um aviso, toca o alarme; isso levará as pessoas a sair das suas casas sem dar a impressão de que estamos todos transtornados pelo Deus e a causar agitação sem outros motivos para além dos sonhos de uma rapariga tonta.

- Não te atrevas a tocar-me! Eu vou avisá-los, tal como os deuses mo ordenaram!

O grito dela chocou-o o suficiente para que ele a largasse, e ela atravessou a porta como uma seta antes que Crises pudesse detê-la. Uma vez na rua, gritou a plenos pulmões:

- Prestem atenção! As serpentes do Senhor do Sol deram-me um aviso: a terra vai tremer! Protejam-se como puderem! Não deixem nimguém dormir debaixo dos telhados, para o caso de eles ruírem!

As pessoas, sobressaltadas pelos seus gritos, precipitaram-se através das portas. Movida por uma terrível ansiedade, continuou a correr, gritando sucessivamente o seu aviso. Ouvia atrás de si os choros e os gritos; alguns diziam:

- Escutem o aviso da sacerdotisa de Apolo - e outros resmungavam. - Ela está amaldiçoada pelo Deus; porque havemos de acreditar nela?

Era como se estivesse repleta de fogo: deixava-se conduzir, ardendo no calor provocado pelo aviso que gritava e a devastava por dentro. Voou pelas ruas abaixo, gritando estridentemente o seu aviso uma e outra e outra vez. Quando tomou consciência de onde se encontrava, viu-se no pátio em frente ao palácio, com a garganta dorida e uma dúzia ou mais das pessoas do palácio paradas a olhar para ela. Roucamente, repetiu ofegante a sua história.

- Não deixem ninguém dormir debaixo de telha; o Deus vai agitar a terra e edifícios vão cair; vão cair... Helena, os teus filhos... Páris...

Ela agarrou-o pelos ombros; ele empurrou-a para longe, rudemente.

- Já basta destas coisas! Juro-te, Cassandra, já ouvi demasiadas das tuas profecias malignas! Calar-te-ei com as minhas próprias mãos!

As suas mãos fecharam-se em torno do pescoço dela; a consciência fugia-lhe e, quase com alívio, sentiu a escuridão protectora apossar-se de si com uma enorme explosão de luz, algures dentro da sua cabeça.

A garganta doía-lhe; debilmente levantou a mão para a tocar. Uma voz meiga disse:

- Fica quieta. Toma um pouco disto.

Sorveu o vinho, tossiu e engasgou-se, mas a mão insistente ficou onde estava até que ela voltou a engolir. Desanuviou-lhe a cabeça; estava deitada sobre as lajes e sentia a cabeça como se tivesse sido fendida por um machado. Eneias curvou-se sobre ela e disse:

- Está tudo bem. Páris tentou estrangular-te, mas eu e Heitor impedimo-lo. Se há alguém que possa ser chamado de louco...

- Mas eu preciso de falar com ele - insistiu ela. - São os filhos dele... de Helena...

- Lamento - disse Eneias -, mas Príamo mandou toda a gente'do palácio para a cama; diz que tu já os incomodaste a todos demasiadas vezes, e proibiu seja quem for de te dar ouvidos. Mas, se isso te servir de algum consolo, eu mandei Creúsa dormir no pátio com o bebé; e creio que Heitor te escutou também, pois ele diz que, saibas tu ou não alguma coisa acerca dos comportamentos dos deuses, conheces o comportamento das serpentes. Agora bebe um pouco mais disto e deixa-me levar-te de volta à casa do Senhor do Sol. Ou, se quiseres, podes ficar e partilhar a cama com Creúsa e o bebé.

Apeteceu-lhe chorar, ao sentir o amor na sua voz; sabia que era isso, e não uma grande fé no seu aviso, que o levava a ser assim amável. Pôs-se de pé, sentindo-se como se cada osso do seu corpo tivesse sido espancado.

- Tenho de regressar - disse ela - e ir ver as pessoas do templo e as serpentes e a minha filha...

- Ah, pois, Creúsa disse-me que tinhas uma menina pequena. Enjeitada, suponho?

- Sim, é isso; mas como soubeste?

- Conheço-te bem de mais para te imaginar a envergonhar a tua família ao ter uma criança fora de um casamento respeitável - disse ele; e ela pensou: « Nem a minha própria mãe teve tanta confiança em mim.»

- Bem, então, acompanhas-me até lá acima?

- De boa vontade - disse ele -, mas tu saíste sem a tua capa. Deixa-me ir buscar-te uma, senão vais ter frio. - Trouxe-lhe um agasalho comprido e grosso que ela já vira Creúsa usar e Cassandra envolveu-se nele. A noite tornara-se fria e, mesmo com a espessa capa, ela tremia - não tanto de frio como devido ao perigo que, subtilmente, pairava ainda no ar. Era como se conseguisse ouvir a própria terra rugindo, nas profundezas do solo; sentia um peso insuportável no coração e no espírito. Mal conseguia reunir as energias e a vontade para colocar um pé à frente do outro, e apoiou-se no braço dele. Depois, quando ele se curvou para a beijar, afastou-se.

- Não, não faças isso - disse ela. - Devias regressar; tens uma mulher e uma criança em perigo para tomar conta, quando chegar o momento...

- Não me recordes isso - disse ele, e puxou-a de novo para o interior da curva do seu braço. Passado um momento disse: - Amo-te, Cassandra. Tocava-a levemente, daquela forma que tanto a perturbava, e ela afastou-se. Eneias disse, suavemente:

- Meu pobre amor. Juro-te, se eu tivesse o direito de o fazer, dava uma sova a Páris por ter-te magoado tanto. Se ele te toca mais alguma vez, juro que farei com que ele ache que essa foi a coisa mais perigosa que já fez. Não lhe compete mandar em ti.

- Ele não compreende isso - disse ela. Tinham alcançado os grandes portões de bronze da casa do Senhor do Sol, mas ela não entrou. Sentando-se num murete disse: - Eu não tenho marido, por isso o meu irmão pensa que tem o direito de me dar ordens. Calculo que, para aqueles que não vêem e ouvem o mesmo que eu, a minha profecia pode parecer loucura. Eles tentam proteger-se contra ela recusando-se a acreditar. Eu sou tão capaz de ignorar o que não quero reconhecer como qualquer outra pessoa.

- Sim, já percebi isso - disse Eneias branda e intencionalmente, e puxou Cassandra para si, sob a sua capa. Ela deixou que ele a beijasse, mas suspirou de desalento e ele soltou-a. - Falaremos sobre isto amanhã, talvez...

- Se existir um amanhã - disse ela num tom de tal modo exausto que ele pestanejou de surpresa.

- Se o amanhã não chegar, lamentarei mesmo para além da morte não ter conhecido o teu amor - disse ele tão apaixonadamente que Cassandra sentiu o coração apertar-se como se um punho estivesse a comprimi-lo.

Disse, num murmúrio:

- Creio que o lamentarei também. Mas estou tão cansada... Ele beijou-a ternamente e disse:

- Então, rezemos para que haja um amanhã, meu amor - e deixou-a ir.

A ideia opressiva do estremecer do mundo dava a Cassandra a sensação de que este iria rebentar e abater-se sobre a sua cabeça confusa, à medida que o via afastar-se.

No interior da casa do Senhor do Sol havia gente a dormir no pátio, envolta em cobertores. Tudo parecia sossegado - excepto o pulsar violento dentro da cabeça de Ca ssandra, que lhe dava a sensação, a cada passo, de caminhar sobre vagas a rebentar. Subiu ao pátio das serpentes; as crianças dormiam ali e Cassandra deitou-se ao lado de Honey, tomando a criança nos braços. Imaginou a terra como uma enorme cobra enrolada em torno da cintura da Mãe Serpente, que ela imaginava como uma mulher grande e imponente como a rainha Imandra. O chão parecia balouçar suavemente por baixo de si e, ao deslizar para o sono, quase acreditou que os anéis a envolviam também.

Mas, em vez disso, teve a sensação de vaguear através de nuvens, campos e campos de nuvens e uma imensa extensão de céu; e, por fim, flutuava invisível na superficie de uma enorme montanha e percebeu que se encontrava sozinha no topo da montanha proibida onde os deuses dos Aqueus se reuniam; quando eles falavam, ouvia o som de trovões distantes. Viu Zeus, Senhor dos Trovões, sob a forma de um homem alto e imponente, em pleno auge da sua vida, com uma barba totalmente grisalha; dava a impressão de que pequenos clarões de luz se moviam em torno do Seu cabelo, como uma grinalda, à medida que Ele falava.

«Agora que este absurdo do duelo entre Páris e Menelau terminou, é óbvio que Menelau venceu; sugiro que ponhamos um fim a esta guerra idiota e retomemos os assuntos que são dignos de Nós.»

«Como podes afirmar que Menelau venceu se ele não matou Páris?», perguntou Hera. Era uma mulher alta e majestosa, bastante decidida, com o cabelo penteado numa coroa em volta da cabeça. «Eu insisto em que Tróia deve ser levada à destruição; os seus governantes e o seu povo não Me servem adequadamente. Além disso, Eu sou a Deusa do Casamento e sua protectora; e Páris ofendeu-Me pessoalmente e fugiu para Tróia, onde Helena foi recebida como esposa de Páris sem que quaisquer ritos ou sacrifícios Me fossem oferecidos.»

«Mesmo assim, eles rendem-Me homenagens e Eu abençoei o seu amor», disse uma outra deusa, vestida com roupas fulgurantes e com os cabelos coroados de rosas. Cassandra percebeu, pelas Suas semelhanças com Helena, que se tratava da loira Afrodite.

Hera fez um ar de desdém e disse: «Os teus ritos não são os do casamento legítimo.»

«Pois não, e orgulho-Me disso», disse Afrodite, «pois são Teus apenas os laços desgastantes da Lei e do Dever. Páris e Helena honram o verdadeiro amor, e Eu estou do seu lado.»

«Tu estarias do seu lado», disse Hera. «De qualquer modo, Eu sou rainha dos Imortais, e é Meu privilégio exigir a destruição de Tróia»

Zeus parecia perturbado pelo tom de Hera, tão incomodado como Cassandra vira Príamo ficar quando as suas mulheres discutiam. Disse « Minha querida Hera, ninguém põe em causa o Teu direito a fazer tal exigência. Mas isso tem de ser feito como deve ser; não podemos, simplesmente, destruir a cidade. Se os Troianos conseguem defender a sua cidade, ela não lhes pode ser assim tirada, simplesmente. Atena...»

Cassandra viu a Virgem das Batalhas, com o Seu elmo e a Sua reluzente lança semelhante às das Amazonas, quando o Deus Lhe fez sinal. Mas foi a majestosa Hera quem falou:

« Vai, Minha filha, e aconselha os Aqueus; eles estão desanimados e prestes a fazer-se ao mar. Ordena-lhes que reatem os combates e diz-lhes que Eu, Hera, não permitirei que sejam derrotados.»

«Isto parece ir contra toda a sensatez», disse delicadamente a alta e solene Atena, «pois os Troianos nada fizeram de errado. E os Aqueus são arrogantes. Se Tu lhes deres a cidade de Tróia, garanto-Te, eles irão cometer actos tão vis, com a sua arrogância e maldade, que ofenderão todos os deuses conhecidos dos mortais. Mas não tenho alternativa senão obedecer à Tua voz, real senhora.» Fez uma vénia a Hera e partiu; Cassandra, olhando a luz flamejante do Seu elmo como um cometa - deu consigo na planície diante da cidade de Tróia onde Atena veio pousar. Diante Dela, um soberbo garanhão branco bloqueava o caminho entre Atena e o acampamento aqueu.

Atena dissé: « Posídon, O que Estremece a Terra, que fazes Tu aqui?», e a figura do cavalo ondulou como uma imagem subaquática e transformou-se: primeiro num centauro - metade homem, metade cavalo - e depois num homem alto e forte com cabelos de algas.

Posídon, irmão de Zeus, parecia falar com a voz trovejante do Seu irmão divino.

«Tu foste enviada para trair a Minha cidade; não Te deixarei entrar nela: > Enquanto falava bateu o pé; seguiu-se o fortíssimo ribombar do trovão, e o solo tremeu...

Cassandra despertou no pátio das serpentes com as duas crianças dormindo a seu lado. Mas o chão agitava-se como água e ela distinguia o som dos trovões ou seria o bater do pé de Posídon? Soltou um grito e Honey acordou, começando a choramingar. Cassandra abrigou a criança nos seus braços e ficou a olhar o grande arco, por cima dos portões, balouçando para trás e para a frente sob a luz cinzenta da madrugada; em seguida desfez-se contra o solo.

Uma candeia que tinha sido colocada a um canto do pátio oscilou e tombou, e uma língua de fogo lambeu o pano sobre o qual se encontrava. Cassandra levantou-se de um salto e extinguiu o fogo. Por todo o templo soavam lamentos e gritos de terror. O chão subia e deformava-se; uma enorme fenda abriu-se no solo, percorreu o pátio e voltou a fechar. Cassandra assistia em silêncio, sentindo a enorme angústia dissolver-se no seu espírito. Acontecera; estava liberta.

Se tivessem sacrificado a Posídon, teria Ele detido a Sua mão? Não sabia, nem fazia ideia. Pousou o cântaro de água com que havia apagado o fogo e desceu a correr atravessando os pátios. Vários dos edifícios tinham realmentf ruído, incluindo o dormitório onde as virgens sacerdotisas costumavam dormir; o mesmo acontecera com a coluna que suportava um dos portões de bronze da casa do Senhor do Sol, que se encontrava agora suspenso e retorcido nas dobradiças. O templo estava num caos. Cassandra olhou para a cidade por entre o espaço aberto dos portões; algumas casas tinham ficado transformadas em entulho e as chamas ateavam-se por todo o lado.

Deveria ela ir lá abaixo, ao palácio? Não; ela tinha ido lá avisá-los, e Príamo proibira que alguém lhe desse ouvidos; não lhe parecia que ele ou Páris ficassem muito satisfeitos se ela lá chegasse dizendo «Eu bem dizia.» Mas era verdade. Porque seriam as pessoas tão avessas a escutar a voz da verdade?

Lentamente, voltou para o interior do Templo de Apolo. Pelo menos a sua gente escutara o seu aviso; aparentemente, todos haviam sobrevivido, e os poucos fogos tinham sido rapidamente extintos. Não podia fazer nada no palácio de Príamo. Voltou para junto das crianças. Deviam ter-se assustado com o tremor de terra e precisavam dela.

 

A reconstrução da casa do Senhor do Sol começou quase imediatamente. Tinham sido tantos os edifícios destruídos, alguns deles de uma tal envergadura, que Cassandra pensou que seria necessária a lendária força dos Titãs para voltar a pôr de pé as paredes. Algumas das enormes pedras não podiam ser recolocadas com a mão-de-obra disponível; um número demasiado grande dos homens aptos da cidade encontrava-se lá em baixo, sob o comando de Heitor, a combater os Aqueus.

Graças aos atempados avisos de Cassandra, não se tinham perdido vidas no Templo de Apolo. Alguns dos sacerdotes haviam ficado feridos - pernas partidas, ombros deslocados, um tornozelo quebrado - ao esbarrar com pedras que já não estavam no lugar, e houve muitos que se queimaram com alguma gravidade ao extinguir os fogos. Uma ou duas das serpentes que tinham fugido no meio da confusão, ou procurado refúgio debaixo das pedras caídas, não tinham ainda sido encontradas. Uma das sacerdotisas mais velhas enlouquecera de terror e não voltara a dizer fosse o que fosse de racional; as outras tratavam-na com poções de ervas e tocavam músicas calmantes, mas os curandeiros mais experientes consideravam improvável que ela viesse a recuperar o seu juízo perfeito.

No entanto, comparativamente, a casa de Apolo havia escapado quase incólume. No Templo da Virgem, dizia-se, algumas sacerdotisas tinham morrido aquando do desabamento do telhado do dormitório. Ninguém sabia quantas e Cassandra sentia-se desvairada por causa da sua irmã Políxena, mas não teve tempo para tentar saber notícias suas. Tentou encontrar algum conforto na ideia de que, se Políxena estivesse morta, ela seria avisada.

Como sempre, os bairros mais pobres da cidade, com as suas frágeis casas de madeira e lareiras inadequadamente protegidas, tinham sido os mais atingidos.

Se o tremor de terra tivesse vindo umas horas antes, a devastação teria sido maior, mas, visto a hora ser tardia, os fogos ateados para cozinhar a refeição da noite já tinham sido na sua maioria extintos.

Mesmo assim, um número horrível de mortos jazia nas ruas, sem contar com aqueles a quem as casas em chamas haviam servido de piras funerárias. Alguns cadáveres continuavam soterrados sob os escombros dos edifícios destruídos, os quais teriam de ser removidos para que os corpos fossem recuperados, já que os fantasmas dos mortos sem sepultura se vingavam enviando pestilências. Os sacerdotes de Apolo trabalhavam dia e noite, mas levariam o seu tempo e toda a gente temia a vingança de tantos cadáveres por sepultar.

O palácio de Príamo também não escapara incólume. Os edificios eram feitos de pedras titânicas que haviam resistido à própria fúria de Posídon, mas um quarto ruíra - o quarto onde dormiam os três filhos de Páris e Helena. A maior parte da família de Príamo, incluindo o próprio Páris e Helena, não tinha sido atingida. O filho de Helena e Menelau, o jovem Nikos, tinha andado a esconder-se das suas amas com o seu companheiro de brincadeiras Astíanax. As duas crianças haviam dormido ao relento num pátio (o que lhes tinha sido proibido) e tinham escapado ilesas - e impunes. Ainda assim o palácio mergulhou no luto pelos filhos de Páris, e a trégua sofreu um breve prolongamento para que tivessem lugar os ritos e o enterro das crianças.

Cassandra desceu ao palácio para se juntar à vigília nos alojamentos das mulheres - dado que nenhum dos rapazes tinha ainda sete anos, os guerreiros não se manifestariam oficialmente, pois as crianças estavam ainda entregues aos cuidados das mulheres. Páris estava lá, tentando confortar Helena. Ela estava pálida e abatida, e Nikos, que fora oficialmente entregue aos cuidados do seu pai havia apenas alguns dias, estava também presente como que para recordar à sua mãe que ainda tinha um filho.

Helena veio imediatamente ter com Cassandra.

- Tentaste avisar-me, irmã, e eu estou-te grata por isso. - Lamento imenso - disse Cassandra. - Eu só queria...

- Eu sei - disse Helena. - Esta dor não me é desconhecida. A minha segunda filha não sobreviveu; era um ano mais nova do que Hermíone e dois anos mais velha do que Nikos. Nunca respirou, e quando Nikos nasceu forte e saudável, ficando eu com uma rainha para Esparta e um filho que Menelau poderia educar para vir a ser um guerreiro, jurei que não teria mais filhos; mas nada aconteceu como eu tinha planeado.

- Raramente acontece, neste mundo dos mortais - disse Cassandra. Páris aproximou-se delas a tempo de ouvir as palavras dela e disse a Cassandra com um olhar zangado:

- Vieste então para te regozijares?

- Não - disse ela, fatigada -, vim apenas para vos dizer como lamento o que aconteceu.

- Nós não precisamos da tua simpatia, ave agoirenta! - disse Páris, irado. - A tua própria presença trar-nos-á mais má sorte!

- Cala-te, Páris! Tem vergonha! - disse Helena. -Já te esqueceste de que ela veio aqui para tentar avisar-nos da ira de Posídon? Ou de como foi recebido esse seu esforço?

Páris limitou-se a amuar; mas Cassandra pensou que ele parecia algo envergonhado. Bem, ela podia viver sem as suas boas graças - preferia ter as de Helena.

As crianças foram convenientemente cremadas e as suas cinzas devidamente sepultadas. As tréguas prolongaram-se por mais dois dias, sendo depois quebradas por um capitão troiano (tal como o aqueu que pusera fim às tréguas anteriores, ele disse ter sido um deus a instigá-lo, embora se recusasse a dizer qual que, atirando uma seta, feriu Menelau com gravidade, mas - infelizmente, segundo Príamo - não fatalmente. Se Menelau tivesse sido morto, disse o rei, os Aqueus teriam tido um bom pretexto para pôr fim à guerra e ir para casa. Cassandra não tinha assim tanta certeza; talvez os deuses estivessem mesmo desejosos de destruir a cidade como ela vira no seu... teria sido apenas um sonho?

Apenas as mulheres ficaram perturbadas com o fim das tréguas; Heitor, pensou Cassandra, estava contente por poder voltar à luta. No seu carro de combate, conduziu os exércitos troianos no dia seguinte, percorrendo para trás e para a frente a longa fila de soldados apeados, encorajando-os, enquanto os Aqueus se agrupavam para a batalha. As mulheres, como de costume, observavam do cimo da muralha.

- Heitor é, de facto, o melhor auriga - disse Andrómaca, e Creúsa riu. - Queres dizer que ele tem o melhor auriga - disse ela -, e eu acho que Eneias está, pelo menos, muito próximo dele. Quem é o auriga de Heitor? Conduz como o vento... ou como um demónio.

- Troilo, o filho mais novo de Príamo - disse Andrómaca. - Ele queria tomar parte nos combates, mas Heitor queria ter o rapaz debaixo dos seus próprios olhos. Ficou preocupado porque ele não tem mais de doze anos e é ainda inexperiente em batalhas.

- Heitor pensa realmente que Troilo ficará mais seguro no seu carro? Parece-me que será aí que a luta vai ser mais renhida e, certamente, Heitor não terá tempo para o proteger - disse Cassandra, mas Andrómaca apenas encolheu os ombros.

- Não me perguntes o que Heitor pensa - disse ela.

«Claro», pensou Cassandra, «Troilo não lhe era nada; era apenas o irmão mais novo do marido. Choraria a sua morte, mas apenas como chorara a dos filhos de Helena - por dever de família, nada mais.»

Helena estava ainda debilitada e abatida pela dor, os olhos vermelhos e febris, o cabelo baço; nem se dera praticamente ao trabalho de tirá-lo dos olhos, e muito menos de perfumá-lo e escová-lo com óleo. Vestia uma túnica velha e manchada; era praticamente impossível recordar a incrível e ofuscante beleza que a habitara como Deusa do Amor. No entanto, Cassandra recordava-a com a ternura que sempre sentia pela sua cunhada. Seria este um sinal da negligência de Páris? Seria que ele se importava tão pouco com os seus filhos? Calculava que Helena se sentisse grata por não ter perdido o seu primogénito no tremor de terra, mas sentia que os filhos de Páris eram mais queridos a Helena do que o filho que dera a Menelau.

Baixou os olhos para o campo de batalha, onde Eneias corria para baixo e para cima ao longo das fileiras no seu esplêndido carro de combate, gritando algo que ela supôs ser um desafio. As batalhas entre exércitos inimigos, já se apercebera, tomavam frequentemente a forma de uma série de duelos entre os campeões. Não eram de todo como as batalhas campais em que combatera quando estava com as Amazonas, batalhas essas em que o combate era confuso e em que se matava o maior número de inimigos possível, de todas as formas possíveis.

- Pronto - disse Creúsa -, já encontrou alguém que aceitou o seu desafio. Quem é aquele?

- Diomedes - disse Helena.

- Aquele que trocou as armaduras.

- Sim, esse mesmo - disse Andrómaca -; mas eu acho que Eneias é um combatente mais forte, especialmente com aquele carro e aqueles cavalos.

- A mãe dele era uma sacerdotisa de Afrodite (segundo alguns, a própria Afrodite) - disse Creúsa - e presenteou-o com aqueles cavalos quando ele veio para Tróia... Olhem, que se passa?

Por baixo delas, Diomedes lançara-se como um louco contra Eneias, e conseguira virar o carro de combate com a sua lança, atirando Eneias ao chão. Creúsa gritou, mas o seu marido ergueu-se de um salto, obviamente ileso, com a espada empunhada e pronta. Mas Diomedes cortara os arreios dos cavalos e segurava-os pelas rédeas; pelos seus gestos, era evidente que reclamava como troféu os cavalos e o carro de combate. Eneias soltou um grito de protesto e raiva, tão alto que as mulheres ouviram a sua voz com nitidez, mas não as palavras. Virou-se para Diomedes, e enquanto olhavam, ele parecia crescer diante dos seus olhos, e a sua cabeça resplandeceu numa aura brilhante; Cassandra pensou subitamente: «Olha, não sabia que o cabelo dele era da cor do de Helena!» Percebeu então que o que tinha na sua frente era a bela Deusa, Ela própria, carregando sobre Diomedes com a fúria de um imortal. Diomedes vacilou visivelmente - não estava preparado para aquilo. Mas não lhe faltou a coragem; lançou-se contra a alta figura de Afrodite e golpeou com a espada, ferindo a Deusa numa mão.

De repente era de novo Eneias que estava no campo, gritando como uma mulher e abanando a mão de onde jorrava sangue. Diomedes não perdeu a vantagem, levantando a espada e o escudo na defensiva. Eneias, contudo, atacou com força e instantes depois Diomedes estava estendido por terra; alguns segundos depois, Agamémnon e quatro dos seus homens cobriam Diomedes, fazendo recuar Eneias com uma saraivada de golpes. Heitor acorreu no seu carro de combate e saltou para o chão, envolvendo-se brevemente num combate de espada e puxou Eneias para cima do carro. Lançaram-se na direcção dos portões de Tróia, enquanto uma mão~heia de soldados de Heitor repelia Agamémnon e os seus homens do pé do carro de Eneias e conseguia recuperar os cavalos.

- Ele está ferido - gritou Creúsa, e correu pelas escadas abaixo. As outras mulheres seguiram-na apressadas, mesmo a tempo de receber o carro de Heitor. Este saltou em terra e fez-Lhes sinal para que se afastassem.

- Recuem para podermos fechar estes portões, a não ser que queiram ter aqui Agamémnon e metade do exército aqueu - disse ele; as mulheres recuaram prontamente e os homens uniram esforços empurrando os portões até os fechar, isolando um infeliz soldado aqueu que ficara encurralado do lado de dentro.

- Lancem-no aos seus amigos por cima da muralha - disse Heitor. - Eles querem-no e nós não.

Creúsa agarrava Eneias com força, chamando os curandeiros para que lhe Ggassem a mão. Ele parecia atordoado; mas quando Cassandra se aproximou e se encarregou do tratamento, ele sorriu-lhe e perguntou:

- Que foi que aconteceu?

- Se tu não sabes - disse Heitor -, como é que nós podemos saber? Estavas a lutar com Diomedes e de repente paraste...

- Não eras tu, mas sim Afrodite - disse Helena. - Era Ela quem, através de ti, lutava.

Eneias deu uma risada.

- Bem, eu não me lembro de nada a não ser de estar furioso com Diomedes por ele tentar reclamar o meu carro e os meus cavalos; a seguir só me lembro de ter a mão a sangrar e de ter ouvido alguém gritar...

- Foste tu - disse Heitor -; ou a Deusa. Eneias deu uma gargalhada.

- A Bela - disse ele -, voltando aos gritos para o Olimpo, suponho que para se sentar ao colo de Zeus dos Trovões e Lhe contar como lutam os homens maus. Espero que o Senhor dos Trovões Lhe ordene em termos inequívocos que daqui em diante Ela se mantenha afastada dos campos de batalha; não é lugar para senhoras... nem mesmo quando são deusas - acrescentou.

Cassandra continuou a ligar-lhe a mão.

Os olhos dele sorriam-lhe. Aos olhos dela ele conservava o esplendor da Deusa, e o seu coração bateu mais depressa. Se ele a procurasse de novo, sabia que não conseguiria resistir-lhe. «Será esta a vingança da Deusa por eu me ter recusado a servi-La? Ter-me-á Afrodite vencido», perguntou-se, «naquilo que Apolo não conseguiu?»

Acabara o tratamento; foi com relutância que lhe largou a mão. Havia ali perto uma banca para onde os soldados levavam pão e vinho ao meio-dia; Heitor foi até lá e trouxe dois copos de vinho, dando um a Eneias, que o afastou com a mão. Creúsa disse:

- Bebe-o; perdeste sangue - e ele abanou a cabeça.

- Já me cortei com mais gravidade e perdi mais sangue a barbear-me disse ele. Mas acabou por beber alguns goles de vinho, e soltou uma gargalhada. - Pergunto-me se contarão as mesmas histórias fantásticas que contaram quando a Deusa apareceu durante o combate de Páris com Menelau.

- Sem dúvida - disse Cassandra. Ele olhava-a directamente no rosto. - Os Aqueus parecem gostar desse tipo de histórias.

- Bem, os deuses farão sempre o que desejam e não aquilo que lhes pedirmos que façam - disse Eneias. - No entanto, pela minha antepassada divina, gostaria que eles se fossem embora e nos deixassem continuar com a guerra. Este não é um problema deles, mas nosso.

- Penso que talvez seja mais deles que nosso - disse Helena - e que nós temos pouco a dizer sobre o assunto.

- Mas porquê? Porque haverão os deuses de importar-se com quem vence uma guerra entre mortais? - perguntou Andrómaca.

Heitor encolheu os ombros. - Porque não?

E, àquilo, nem Cassandra se atreveu a responder.

- Houve uma altura - disse Heitor - em que eu pensei que nós estávamos totalmente à mercê das tropas aqueias. Mas agora que Aquiles os abandonou... - Isso dificilmente continuará assim por muito tempo - disse Helena.

- Não consigo imaginar o grande Aquiles a continuar por muito tempo amuado na sua tenda como um rapazinho...

- Mas isso é exactamente o que Aquiles é-disse Eneias. -Um rapazinho cruel e arrogante. Pode ser que haja algo de grandioso e heróico em competir com um homem louco, mas com uma criança demente, é outra coisa.

Heitor disse, sem que a sua expressão se alterasse: - Não devemos questionar as decisões dos deuses.

- Se os deuses tomam decisões que poderiam ser descritas como decisões de loucos - replicou Eneias -, talvez não devam ser obedecidas cegamente. Talvez - mas baixou a voz e olhou, temeroso, à sua volta enquanto falava -, talvez estejam a testar-nos para ver se temos inteligência suficiente para lhes fazer frente.

- Talvez eles sejam teimosos como Aquiles - disse Helena -, e quando não conseguem que um jogo corra à sua vontade, esmaguem os brinquedos. - Penso que é assim mesmo - disse Heitor -; e nós somos os brinquedos.

 

Nos dias que se seguiram, Cassandra soube as notícias da guerra através da velha mulher dos bolos. Segundo parecia, Aquiles continuava na sua tenda, nunca aparecendo nem mesmo para encorajar os seus companheiros; e a guerra arrastava-se sem grandes alterações. Heitor travou um prolongado duelo com Ájax; combateram até ficar demasiado escuro para que pudessem continuar, sem que nenhum deles estivesse em vantagem. Agamémnon tentou pressionar Aquiles, ameaçando retirar-se também ele da guerra, se ele não combatesse; mas os Aqueus receberam com tal júbilo aquela ameaça, correndo para os navios e começando a empacotar o seu equipamento, que ele teve de passar a maior parte do dia seguinte a convencer os seus homens a voltar, oferecendo-lhes presentes e subornos para que continuassem a combater.

Cassandra passou aquela noite perturbada por sonhos confusos acerca de Olimpo. Hera, alta e orgulhosa, ergueu-Se e pediu ajuda para destruir a cidade de Tróia.

« Zeus proibiu-nos de intervir - disse a alta Atena, melancólica e triste -, apesar de me ter permitido aconselhar os Troianos, se eles quiserem dar ouvidos à minha sabedoria. Porque os odeias de uma forma tão fanática, Hera? Ainda tens ciúmes por Páris não te ter concedido, a ti, a coroa da beleza? Que esperavas? Afrodite é, afinal, a Deusa da Beleza; há já muito que aprendi que não posso competir com ela. E porque haverás tu de te importar com o que pensa um mortal?»

«Então tu, Posídon! -a orgulhosa senhora virou-se para o hirsuto Deus-Mar, robusto, com barba e musculado como um nadador -, concede-me a tua ajuda para destruir as muralhas de Tróia. Zeus ordenou-o, e quando for feito, não ficará zangado.»

« Eu não - disse Posídon. - Não até que tenha chegado a altura estabelecida. Tenho demasiado juízo para andar a conspirar com uma mulher contra a vontade do seu marido.»

Um trovão ribombou quando Hera bateu o pé e gritou:

«Arrepender-te-ás disto!

Mas Posídon tomara a forma de um grande garanhão branco e afastou-se a galope ao longo da praia; o bater dos seus cascos soava como o rebentar das ondas ao longo do molhe que os Aqueus tinham construído.

Cassandra acordou aterrorizada ouvindo o som da fúria de Posídon e perguntando-se se pressagiaria outro tremor de terra; mas tudo estava calmo no templo, e por fim adormeceu de novo.

De manhã descobriu que uns pratos e vasos haviam caído das mesas e das prateleiras, e uma candeia tinha-se entornado, mas consumira-se sobre o chão de pedra sem pegar fogo a nada. Se houvera um tremor de terra, fora muito pequeno, pouco mais que um encolher de ombros do Deus. Os Imortais pareciam ter querelas não resolvidas, tal como os soldados com os seus duelos inconclusivos. Bem, eles - os soldados - não passavam de seres humanos e dificilmente poderiam ser condenados por se comportarem como tolos; mas Cassandra pensara que os deuses tinham mais que fazer.

Resolveu que, naquele dia, se manteria afastada das muralhas da cidade; já vira duelos suficientes e supunha que, com Aquiles ainda metido na tenda, mais uma vez nada de novo aconteceria. Era surpreendente, pensou, a quantidade de tempo que desperdiçara ultimamente em mexericos com as outras mulheres enquanto assistiam do cimo das muralhas.

Os vestidos de Honey estavam a ficar-lhe pequenos. Cassandra passou a manhã a procurar entre as suas roupas algo para Honey e a perguntar às outras sacerdotisas; talvez houvesse entre as oferendas algo adequado para fazer umas roupas para a sua filha. Foi-lhe dado um pedaço de tecido tingido de açafrão (pensou que daria bem com os cabelos e os olhos escuros e vivos da menina) do qual poderia talhar uma túnica e um lenço. Mesmo assim a criança continuava a precisar de sandálias; ela já corria por todo o lado e, depois do grande tremor de terra, os pátios estavam cheios de lixo que lhe poderia ferir os pés. Cassandra ia chamar um criado para que fosse ao mercado buscar cabedal para as sandálias, mas depois decidiu ir pessoalmente e levar a criança.

Honey já estava suficientemente crescida para trotar ao seu lado e para perceber que ia ter umas sandálias como as das raparigas grandes; Cassandra gostava de sentir a pequena mão rechonchuda na sua.

Observou judiciosamente as sandálias dispostas para venda; os preços não eram, segundo parecia, exorbitantes. Pediu para experimentar um par resistente na criança e, achando-as bem feitas e razoavelmente ajustadas aos pequenos pés, deixou que Honey escolhesse o modelo de que mais gostava.

- E para ti, senhora? - perguntou o fabricante de sandálias. Por força do hábito, Cassandra ia para dizer que não queria, mas depois seguiu o olhar do homem até aos seus pés. As suas sandálias estavam muito velhas, gastas na sola e com uma das tiras emendada e remendada. Bom, afinal ela tinha-as usado na viagem de ida e volta para Cálcis.

- De facto, estas sandálias já correram meio mundo; suponho que merecem ser condignamente postas a pastar, como uma égua velha - disse ela, e deixou que ele lhe mostrasse vários pares, todos demasiado grandes. Por fim, ele pediu-lhe o pé e disse:

;; - Princesa, tens um pé tão pequeno! Tenho de fazer um par por medida. - Não fui eu quem fiz o meu pé - disse Cassandra -, mas se me fizeres um par deste modelo - indicou as sandálias que melhor se ajustavam de entre aquelas que ele lhe mostrara - serviriam muito bem. Entretanto, suponho que 'poderás simplesmente remendar uma vez mais a tira destas.

-Não creio que vá aguentar; foi cosida tantas vezes... -protestou ele. Se tu, senhora, estivesses disposta a esperar cerca de meia hora na minha humilde loja, as sandálias ficarão prontas. Posso mandar trazer-te uma taça de vinho? Uma fatia de melão? Qualquer outro refresco? Não? Qualquer coisa para a criança?

- Não, obrigada - disse Cassandra; Honey tinha de aprender também a esperar pacientemente quando era necessário. Ficou a ver o homem a aparar a sola das sandálias, que lhe ficavam apenas ligeiramente grandes, recolocando as tiras e cosendo-as com o seu dedal e uma agulha própria para couro grosso: Tinha uma agulha de ferro que, pensou ela, deveria ser o que permitia um trabalho tão rápido; as agulhas de bronze não conseguiam perfurar o couro tão facilmente. Perguntou-se se ele teria conseguido fazê-la passar clandestinamente através do bloqueio, ou se negociaria com os Aqueus. Provavelmente o melhor seria não saber. Esse comércio era proibido; mas se os capatazes de Príamo fossem a pôr na prisão todos aqueles que negociavam ilegalmente, deixaria de haver qualquer negócio, e o comércio na cidade cessaria por completo.

Havia já muitos alimentos que eram difíceis de arranjar, após o longo cerco; o que tinha salvo a cidade eram os jardins no interior das muralhas, onde existiam videiras e oliveiras, fontes de vinho e azeite, e onde podiam ser cultivados vegetais. Em muitas casas havia pombas ou coelhos em cativeiro, anteriormente guardados para os sacrifícios; agora, eram comidos para afastar a fome mais aguda. O abastecimento de pão era escasso, excepto no refeitório dos soldados e no palácio, embora algumas carroças de cereal tivessem conseguido introduzir-se pelo lado continental - evitando os navios argivos - durante as tréguas.

Agora que as tréguas estavam oficialmente terminadas, iria dar-se uma intensificação do cerco? Ou ficariam os Aqueus fartos de combater sem Aquiles e retirariam de novo? Isso seria o melhor que poderia acontecer.

Mas se eles achassem que tinham os deuses do seu lado - e aqui os pensamentos de Cassandra perderam-se na velha dúvida: porque haveriam os deuses de se meter nos assuntos dos homens? Bem, a resposta de Heitor fora simplesmente «Porque não?». Mesmo assim, ela vinha fazendo essa pergunta desde o início daquela guerra, e não tivera qualquer resposta - excepto em sonhos. « Sonhos! De que valem eles?»

Porém, os seus sonhos tinham-na avisado do forte tremor de terra; devia, portanto, confiar neles. De qualquer maneira, não tinha outra alternativa. Os sonhos estavam lá; ignorando-os punha-se a si mesma em perigo e, tanto quanto sabia, punha em perigo Tróia e o seu mundo.

Encontrava-se perdida em devaneios quando ouviu uma enorme agitação nas ruas; o carro de Heitor atravessava velozmente a cidade em direcção aos portões inferiores: Cassandra, que assistia sentada no seu banco no interior da loja do fabricante de sandálias, teve a sensação de que Tróia despejara metade da sua população nas ruas a fim de assistir. Depois de tanto tempo, pensar-se-ia que as pessoas já não dariam qualquer importância e continuariam os seus afazeres. Mas havia um entusiasmo tão evidente como no primeiro dia em que ele desfilara à frente das suas tropas. Bom, isso era agradável para Heitor, pensou ela, não sem uma ponta de sarcasmo, e preparava-se para voltar costas; mas o artesão trouxe-lhe as suas sandálias novas e ficou a olhar para o carro de Heitor em vez de a ajudar a calçá-las.

- Ele conduz o seu carro como o próprio Deus da Guerra! - comentou. - É teu irmão, princesa?

- Sim; filho tanto do meu pai como da minha mãe - respondeu ela. - Diz-me; como é ele? É realmente o herói que parece ser?

- É sem dúvida um bravo e valoroso lutador - disse ela. « Mas seria bravura ou mera falta de imaginação? Páris conseguia simular bravura, mas apenas porque receava, mais do que qualquer outra coisa, ser considerado cobarde.» Mas, mais do que isso - disse ela -, Heitor é um homem bom, além de ser lutador. Tem outras virtudes para além da coragem.

O homem parecia um pouco confundido, como se não conseguisse imaginar quaisquer outras virtudes.

- Quero dizer que ele seria de admirar mesmo que não existisse guerra. E isso, pensou, dificilmente podia dizer-se de qualquer dos seus outros irmãos; pareciam não ser muito mais do que armas vivas, sem se preocuparem grandemente com aquilo que faziam e porquê. Páris tinha algumas qualidades ainda que raramente as revelasse a uma irmã: era afectuoso para com Helena, gentil e respeitador em relação aos seus velhos pais e fora um pai adorável para os seus filhos, enquanto eles tinham vivido. Era meigo mesmo para com o filho de Helena e Menelau. Eneias tinha também este tipo de carácter -«ou pensarei eu assim só porque o amo?», perguntou a si mesma. O fabricante de sandálias continuava a elogiar os atributos de Heitor, e Cassandra disse:

- Ele vai ficar satisfeito por saber que é tão considerado na cidade -o que era; sem dúvida, verdade; pagou as compras e saiu para a rua. Teve imediatamente que tirar Honey de sob os pés da multidão que bloqueava a passagem e retirava precipitadamente das ruas onde quatro carros, conduzidos por Eneias, Páris, Deífobo e o comandante trácio, Glauco, rolavam como trovões, descendo na peugada de Heitor em direcção ao portão principal.

Teria Príamo decidido enviar os seus melhores campeões contra os Aqueus, ignorando o facto de Aquiles não estar com eles - ou com a esperança de atrair Aquiles? A ideia reavivou a sua curiosidade; Honey procurava já correr atrás da multidão, por isso Cassandra desceu em direcção à muralha e tomou o caminho das escadas até ao ponto de observação favorito das mulheres.

Tal como esperava encontrou ali Helena, Andrómaca e Creúsa, com hécuba. Todas a saudaram afectuosamente. Helena, observou, parecia menos abatida. Pouco depois confessava a Cassandra que julgava estar de novo grávida. Andrómaca disse:

- Não compreendo como pode alguma mulher pensar em pôr uma criança no mundo quando existe esta guerra tremenda. Eu disse isso a Heitor, mas ele respondeu-me apenas que é nestas alturas que as crianças são mais necessárias.

- E as crianças também morrem quando não há guerra - disse Helena. -- Eu perdi o meu segundo filho por negligência da parteira e três dos meus filhos morreram num terramoto. Podiam ter encontrado a morte ao procurar ninhos nas rochas, ou serem espezinhados por um touro fugido durante uns jogos. Não existe segurança para as crianças neste mundo dos mortais; mas se todos decidíssemos não ter filhos por causa disso, onde estaria agora este mundo?

- Ah, tu tens mais coragem do que eu -disse Andrómaca. -Assim como Páris é mais ousado a conduzir o seu carro do que Heitor; olha a velocidade com que ele sai os portões!

Era difícil dizer qual dos homens conduzia mais loucamente; numa explosão, os cinco carros passaram as portas quase ao mesmo tempo, com os soldados de Heitor seguindo-os em torrente. Os Aqueus não haviam ainda formado linhas de combate; Cassandra viu o caos e a desordem no acampamento argivo, enquanto as suas tropas surgiam de entre as tendas, gritando, procurando as armas. A fila de carros rolou em direcção ao acampamento e continuou, atravessando-o. Via agora que cada carro transportava uma braseira de carvão e mais qualquer coisa - breu? resina? - e um arqueiro que preparava velozmente as flechas, mergulhando-as naquela massa ardente e disparando-as contra a linha de navios fundeados no porto, do outro lado do acampamento. Durante alguns minutos, enquanto tentavam aniquilar os carros, os Aqueus não se aperceberam do objectivo do ataque; depois, um imenso grito de raiva ecoou - mas, nessa altura, os carros já se encontravam mesmo na praia e vários navios estavam já em chamas.

Os soldados apeados de Heitor estavam bem organizados, atacando as ainda surpreendidas tropas de Agamémnon.

Os barcos - cada um com uma flecha incendiária nas dobras das suas velas enroladas - foram pegando fogo um após outro e os marinheiros, sem estarem preparados para combater as chamas, saltavam borda fora e aumentavam a confusão. Os homens de Heitor voltavam agora a sua atenção dos barcos para as tendas dos exércitos. Havia gritos e uma imensa barafunda por todo o acampamento enquanto os homens tentavam, sem grande convicção, organizar formas de combater aquele inferno e assistir os feridos. Um dos navios (veio a saber-se mais tarde que continha um carregamento de azeite) já ardia até à linha de água e afundou-se. Um enorme viva saiu de entre os homens de Heitor.

Os carros de combate troianos estavam agora rodeados por soldados aqueus apeados que tentavam derrubar os condutores; mas os arqueiros continuavam a disparar flechas incendiárias para o meio das tendas, até que as mulheres que se encontravam nas muralhas deixaram de conseguir ver o acampamento aqueu através do fumo. Outro navio adornou e afundou-se no porto, as chamasextinguindo-se na água.

As mulheres aplaudiram; então, algo provocou agitação entre os guardas que se encontravam ao longo da muralha, e soldados troianos passaram por elas , a correr em direcção a um ponto estratégico onde se encontravam alguns arqueiros. Ouviram-se fortes berros, uma combinação de aplausos e gritos de escárnio. e um forte estrondo. Quando o comandante dos arqueiros regressou, Andrómaca perguntou-Lhe o que se tinha passado. Saudando-a respeitosamente, ele disse;

- A princípio pensámos que era o próprio Aquiles que tinha escolhido este momento para uma diversão. Mas não era ele; era esse amigo dele... como é que chama... Pátroclo; escalou a muralha oeste, onde há pedras soltas devido ao tremor de terra.

- Apanharam-no?

- Não conseguimos, senhora; no entanto, houve uma boa quantidade de flechas a assobiar-lhe junto da cabeça e ele perdeu o equilíbrio e escorregou por ali abaixo. Depois os arqueiros dele devolveram-nos os disparos e cobriram-no enquanto ele nos mostrava como tinha boas pernas e regressava ao acampamento - respondeu o soldado. - Pena não o termos atingido; se ele tivesse sido atingido com uma seta nas goelas, talvez Aquiles ficasse desanimado e fosse para casa.

- Deixa lá - disse Andrómaca -, fizeste o melhor que podias. E, pelo menos, ele não conseguiu entrar na cidade.

- Peço desculpa, senhora, mas «o melhor que podíamos» não será suficiente para o príncipe Heitor - disse o soldado, pessimista. - Mas reconheço que tens razão: agora não há nada a fazer e não vale a pena preocuparmo-nos com aquilo que não podemos remediar. Talvez ele nos dê outra oportunidade, um dia, e nessa altura havemos de apanhá-lo.

- Que o Deus da Guerra assim o permita - disse Andrómaca. As mulheres olharam de novo para fora da muralha; os carros tinham retirado do acampamento e precipitavam-se agora de volta às portas de Tróia. Cassandra, embora àquela distância não conseguisse distinguir os carros uns dos outros, contou-os e viu que estavam todos. O assalto aos navios fora, portanto, um sucesso absoluto.

Por baixo delas, o vigia gritou «Preparem-se para abrir as portas!» e elas ouviram o ranger das cordas que abriam o imponente portão. Helena e Andrómaca desceram as escadas para saudar os seus maridos; as outras mulheres ficaram para trás.

Hécuba aproximou-se de Cassandra e esta perguntou: - O rei não saiu com os carros de combate?

- Oh, não, Cassandra - disse a mãe -; as mãos dele já não lhe permitem conduzir. Os sacerdotes-curandeiros trataram-no com os seus bálsamos e rezas, mas tem piorado de dia para dia. Mal consegue fazer os nós nas sandálias.

- Lamento saber isso - disse Cassandra -, mas a velhice, mãe, não há rezas que a curem, nem mesmo tratando-se de um rei.

- Nem tão-pouco, suponho, de uma rainha - disse Hécuba, e Cassandra, olhando atentamente para ela, apercebeu-se de como a sua mãe estava frágil, as costas arqueadas e tão magra que os ossos pareciam sair-lhe da pele. A sua pele sempre tivera um ar fresco e radiante; agora mostrava-se acinzentada e doentia, e o cabelo estava cheio de madeixas de um branco sujo e amarelado. Até os olhos pareciam ter perdido a cor.

- Tu não estás bem, mãe.

- Vou andando; estou mais preocupada com o teu pai - disse Hécuba. E com Creúsa: ela está grávida outra vez e tudo indica que vai haver escassez de alimentos ricos na cidade, este Inverno. As sementeiras não foram boas e os Aqueus queimaram o pouco que havia.

- Há bastante comida na casa do Senhor do Sol - disse Cassandra -; as doses que eles nos dão, a mim e a Honey, trazem sempre mais do que aquilo que conseguimos comer; tentarei assegurar que Creúsa tenha comida suficiente.

- És boazinha - disse Hécuba docemente, estendendo a mão para afagar-Lhe o cabelo; desde muito pequenina que Cassandra só raramente recebia carícias da mãe, e sentiu-se consolada.

- Nós temos não só comida, como também ervas medicinais em quantidade; deves procurar-me sempre que alguém no palácio estiver doente ou tiver necessidade delas - disse Cassandra. - Todos partem do princípio que nós partilhamos o que temos com as nossas famílias. Mandarei algumas ervas para o pai e tu terás de mergulhá-las em água quente, embeber um pano e aplicar o pano quente sobre as mãos dele. Pode não o curar, mas aliviar-lhe-á as dores.

Hécuba olhou por cima dela para Honey, que estava sentada na muralha, brincando com uns quantos seixos. Cassandra recordou-se de que brincava a algo semelhante quando era muito pequenina; ela e as irmãs, as outras filhas da casa real, escolhiam pedrinhas bem redondinhas e colocavam-nas nos nichos da parede para cozer, como se fossem bolinhos ou pães, examinando-os de tantos em tantos minutos para ver se já estavam prontos. Essa recordação fê-la sorrir.

Os carros já se encontravam no interior das muralhas e os portões estavam a ser fechados.

- Vens jantar ao palácio? - perguntou Hécuba. - Embora, com certeza, sejas melhor alimentada na casa do Senhor do Sol...

- Acho que hoje não - disse Cassandra -, no entanto, agradeço-te; mandarei as ervas para baixo por um mensageiro. Espero que façam bem ao pai - não podemos passar sem ele neste momento. Nem mesmo Heitor está preparado para governar Tróia, ainda que consiga sobreviver ao pai.

Calou-se bruscamente, mas Hécuba tinha ouvido e olhava para ela, chocada.

Não disse nada. Cassandra sabia o que ela estava a pensar:

« Ela acredita então que Heitor pode morrer antes do pai, estando Príamo velho e doente como está. Que mais terá ela visto?»

Os condutores tinham abandonado os carros; Heitor e Páris, acompanha­dos pelas suas mulheres, subiram as escadas e Eneias foi ter com eles. Cassandra pegou em Honey; já que não tencionava jantar com eles no palácio, estava na hora de se retirar.

Creúsa aproximou-se dela e disse:

- Acompanho-te no caminho até à casa do Senhor do Sol, irmã.

- Teria muito gosto na tua companhia, mas o Sol ainda vai alto no céu. Não preciso que me acompanhem - protestou Cassandra. - Não deves fati­gar-te com esta longa subida.

- Eu vou - insistiu Creúsa. - Gostava de falar contigo.

- Muito bem, então; como disse, tenho muito gosto na tua companhia ­disse Cassandra. Creúsa entregou a sua filhinha a uma criada, dando instruções à mulher para que a levasse para casa e lhe desse de comer no caso de, à hora de jantar, ainda não ter regressado; depois juntou-se a Cassandra, que atava o chapéu de abas largas de Honey por causa do sol.

- Ela está bem desenvolvida para a idade - disse Creúsa. - Que idade tem ela agora? Quando nasceu?

- Decerto a nossa mãe já te disse que eu não tenho a certeza - disse Cassandra -, mas ela não devia ter mais de meia dúzia de dias quando a encontrei, e eu saí de Cálcis sensivelmente a meio do Inverno passado.

- Então tem quase um ano; deve andar próxima da idade da minha filha­disse Creúsa -; no entanto é mais alta e mais forte, e já caminha ao teu lado como uma rapariga crescida. A pequena Cassandra ainda anda de quatro, como um cachorrinho.

- Bem, quem percebe de crianças diz que cada uma tem a sua altura própria para começar a andar e a falar, umas cedo, outras tarde - replicou Cassandra. - A mãe diz que eu fui precoce a andar e a falar, e eu lembro-me de coisas que devem ter acontecido quando eu não tinha mais do que dois Verões.

- Isso é verdade - disse Creúsa. - Astíanax não andou e nem sequer falou até cerca dos dois anos; eu sei que Andrómaca começava a perguntar-se se ele seria completamente normal.

- Deve ter sido deveras preocupante - concordou Cassandra. Sentia-se confundida; Creúsa não iria, decerto, submeter-se ao esforço daquela longa subida para conversar com ela sobre o crescimento e a alimentação das crianci­nhas, quando havia tantas amas no palácio que poderia consultar.

Fosse o que fosse, Creúsa estava com dificuldade em abordar o assunto; mas no momento em que Cassandra começava a perguntar-se se Creúsa teria, de algum modo, descoberto o que ela dissera a Eneias (mas como? Algum criado a espiara? Seria capaz de jurar que não tinham sido escutados) e a sentir-se vagamente comprometida, Creúsa disse:

- Tu és sacerdotisa e dizem que és profetisa; foste tu quem deu o aviso do grande tremor de terra, não foste?

- Pensei que estavas presente quando o dei - disse Cassandra.

- Não; Eneias chegou e disse-me que não dormisse dentro de casa nessa noite, e que levasse as crianças lá para fora - disse a irmã. - O que foi que tu viste?

«Creúsa sabe tão bem como eu que vi morte, e a destruição de Tróia», pensou, mas tinha a certeza de que a sua irmã teria outras razões, fora do normal, para fazer aquela pergunta.

- Tens a certeza de que queres saber? Príamo proibiu toda a gente de escutar as minhas profecias. Talvez seja melhor não o fazer zangar.

- Deixa-me então dizer-te porque faço esta pergunta - disse Creúsa. - Eneias disse-me que tu profetizaste que ele sobreviveria à queda de Tróia. - Sim - disse Cassandra, embaraçada. - Parece que os deuses têm planos para ele noutro lugar qualquer; eu vi-o partir ileso, e Tróia em chamas por trás dele.

Creúsa levou as mãos ao peito num estranho gesto. - Isso é verdade?

- Achas que eu iria mentir acerca de uma coisa destas?

- Não, não, claro que não; mas porque havia ele de ser escolhido e pou­pado quando tantos vão morrer?

- Não sei. Por que razão tu e os teus filhos foram poupados, quando Helena perdeu três filhos no grande terramoto?

- Porque Eneias escutou o teu aviso e Páris não.

- Não era isso que eu queria dizer - disse Cassandra. - Ninguém pode dizer porque é que os deuses decidem que este vai morrer e aquele vai viver; e talvez os que ficam vivos não sejam os mais afortunados.

« Quem me dera ter a certeza de ser apenas a morte o que me espera», pensou ela, mas não o disse a Creúsa.

- Eneias ordenou-me que deixasse a cidade logo que fosse possível e que levasse as crianças - disse Creúsa. - Devo ir, talvez, para Creta, para Cnóssios, ou mesmo para mais longe. Pensei que deveria recusar-me a ir, dizer que o meu lugar era a seu lado, na guerra ou na morte; mas se na verdade há a certeza de que ele vai sobreviver, então compreendo que ele queira que eu vá... para que pos­samos encontrar-nos numa terra mais segura, quando terminar a guerra.

- Tenho a certeza de que ele pensa apenas na tua segurança.

- Ele tem andado estranho, ultimamente; cheguei a pensar se ele não teria arranjado outra mulher e não quereria tirar-me do caminho.

Cassandra disse, sentindo a boca seca:

- E ainda que fosse isso, faria alguma diferença? Uma vez que quase toda a gente desta cidade está destinada a morrer quando ela se render...

- Não, suponho que não; se alguma delas puder fazê-lo feliz por uns tempos - disse Creúsa - e se, de qualquer modo, vão todos morrer, porque me havia de importar? Achas então que devo ir?

- Isso não posso dizer-te; só te posso dizer que são poucos os que vão sobreviver à queda da cidade - disse Cassandra.

- Mas será seguro viajar com uma criança tão pequena?

- Honey não devia ter mais que alguns dias quando a encontrei, e ela sobreviveu e desenvolveu-se bem. As crianças são mais fortes do que pensamos. - Eu pensei que talvez ele quisesse ver-se livre de mim - disse Creúsa.

- Mas tu fizeste-me perceber por que razão é melhor que eu vá. Obrigada, irmã. - Inesperadamente, pôs os braços em volta de Cassandra e abraçou-a com força. - Tu devias abandonar também a cidade antes que seja tarde. Não foste tu quem provocou esta guerra com esses malditos Aqueus, e não existe motivo nenhum para que pereças com a cidade. Pedirei a Eneias que consiga que tu sejas também levada para longe daqui.

- Não - disse Cassandra - parece que o meu destino é este e eu tenho de obedecer-lhe.

- Eneias diz bem de ti, Cassandra - disse Creúsa. - Ele disse-me, uma vez, que tu eras mais inteligente que todos os oficiais de Príamo juntos, e que se estivesses no comando, era possível que ganhássemos esta guerra.

Cassandra riu, pouco à vontade.

- Pensa demasiadamente bem de mim, nesse caso. Mas agora deves ir, Creúsa; reúne as tuas coisas e apronta-te para partir logo que ele te arranje um barco ou qualquer outro meio de te pôr a salvo, a ti e às crianças.

Creúsa abraçou-a de novo.

- Já que vou partir em breve, é possível que não voltemos a encontrar-nos. Mas seja onde for que o destino te conduza, irmã, desejo-te o melhor; e se Tróia for realmente destruída, eu peço aos deuses que te poupem a ti.

- E a ti - disse Cassandra, beijando-a na face; e assim se separaram. Cassandra ficou a ver a irmã desaparecer, com a profunda certeza de que não voltaria a ver Creúsa.

 

Desde a batalha em que cinco navios aqueus tinham ardido até ao nível da água e outros ficado grandemente danificados, os Aqueus haviam apertado de tal modo o bloqueio que - como dizia Heitor - nem um caranguejo conseguiria passar para a cidade. Por essa razão, Eneias não fez qualquer tentativa para que Creúsa saísse por mar; foi enviada numa carroça, que deu a volta pelo interior e seguiu depois várias milhas para lá do bloqueio, ao longo da costa, de onde um navio a levaria, primeiro para o Egipto e depois para Creta. Cassandra assistiu à sua partida e pensou que Príamo, se tivesse algum bom senso, deveria mandar saír da cidade todas as mulheres e crianças. No entanto, não disse nada; já tinha feito todos os possíveis para os avisar.

Mesmo o lado continental da cidade já não era totalmente seguro. Um carregamento de armas de ferro vindo de Cálcis fora interceptado e levado para o acampamento aqueu com grandes manifestações de júbilo. Pouco depois, um pequeno exército de trácios, que vinha por terra para se juntar ao exército de Príamo, fora emboscado pelos comandantes aqueus - havia rumores de que tinham sido os próprios Agamémnon e Odisseu: todos os cavalos haviam sido roubados e os soldados trácios assassinados.

- Isto não é guerra - disse Heitor -, isto é atrocidade. Os Trácios não faziam ainda parte do exército de Tróia, e Agamémnon não tinha nenhuma desavença com eles.

- Nem nunca vai ter, agora - disse Páris cinicamente.

Isto desencadeou um novo ataque dos Aqueus, conduzido por Pátroclo, que de novo escalou a muralha à frente dos seus homens; os Troianos conseguiram repeli-los e foi dada a informação de que Pátroclo fora ferido, ainda que sem gravidade.

Cedendo aos insistentes pedidos de Cassandra, a gente da casa do Senhor do Sol construiu um altar e sacrificou dois dos melhores cavalos de Príamo a Posídon. Um novo tremor de terra poderia derrubar todas as muralhas e portões de Tróia e deixar a cidade exposta ao poder atacante dos Aqueus. Este era agora o único receio de Cassandra; sabia que isso teria de acontecer, mas se os Troianos concentrassem todos os esforços em aplacar da fúria de Posídon, talvez Ele detivesse a Sua mão.

Os exércitos aqueus combatiam sem o seu melhor guerreiro; Aquiles permanecia na sua tenda. Uma vez por outra saía - sem estar vestido para a batalha e passeava pelo acampamento com ar taciturno, sozinho ou na companhia de Pátroclo, mas ninguém fazia ideia do que falavam. Rumores que partiam dos espiões diziam que Agamémnon tinha ido ter com Aquiles e lhe oferecera o direito à escolha, em primeiro lugar, de entre todo o saque de Tróia, para ele e para os seus homens, mas que Aquiles respondera apenas que já não confiava em oferta alguma que Agamémnon pudesse fazer.

- Não o censuro - disse Heitor. - Eu confio tanto em Agamémnon quanto acredito ser capaz de levantá-lo com um só dedo. Tremendamente oportuna, no entanto, esta desavença no acampamento inimigo; enquanto brigam uns com os outros, temos tempo para reparar as muralhas e organizar as nossas defesas. Se eles resolvem aquilo e decidem unir-se, então que o Deus ajude Tróia. - Qual deus? - perguntou Príamo.

- Qualquer deus que eles não tenham ainda subornado para que fique do lado deles - disse Heitor. - Supõe que Eneias e eu nos envolvíamos em qualquer tipo de briga e nos recusávamos a trabalhar em conjunto?

- Espero que nunca cheguemos a isso - disse Eneias -, pois algo me diz que, nesse dia, ter-nos-íamos condenado mais depressa do que qualquer deus poderia condenar-nos.

Príamo, inquieto, afastou o prato no qual se encontrava apenas uma escassa variedade de vegetais e um pouco de pão escuro.

- Talvez pudéssemos organizar uma caçada no lado continental - disse ele. - Saber-me-ia bem um pouco de veado, ou mesmo de coelho.

- Nunca pensei que voltaria a ouvir-te dizer isso, pai. Ficámos tanto tempo fartos de carne, quando as cabras tiveram de ser abatidas por falta de forragem; deixámos apenas algumas para dar leite para as crianças mais pequenas - disse Heitor. - Os porcos podem comer as sobras das mesas, e ainda restam algumas bolotas nas matas; mas agora já há poucas. Talvez possamos caçar...

- Eu acho que os porcos deviam ser mortos também - disse Deífobo. - Este Inverno iremos precisar das bolotas para o pão; devíamos pôr toda a gente nova, que não tem idade suficiente para lutar, a apanhá-las e armazená-las. Vai ser um Inverno de fome, façamos nós o que fizermos.

- O que está a ser feito na casa do Senhor do Sol? - perguntou Eneias. - Tu estás aí sentada tão quieta e séria, Cassandra. O que diz a sabedoria de Apolo?

- O que vocês fizerem não terá qualquer importância. - Cassandra falou sem pensar. - Quando chegar o Inverno, Tróia não necessitará mais de comida. Páris avançou impetuosamente em direcção a ela, vociferando.

- Eu avisei-te, irmã, do que faria se voltasses aqui para vender as tuas profcias ruins!

Eneias apanhou-lhe o braço a meio do balanço.

- Bate em alguém do teu tamanho - rosnou - ou bate-me a mim, pois fui eu quem fez a pergunta que originou a resposta que não querias ouvir! - E acrescentou gentilmente: - É assim tão grave, Cassandra?

- Não sei - disse ela, olhando-os com uma expressão de impotência. - Pode ser até que os Aqueus se vão embora e já não seja necessário armazenar comida...

- Mas tu não crês que assim seja - disse ele.

Ela abanou a cabeça; estavam agora todos a olhar para ela.

- Mas as coisas não vão continuar como estão por muito tempo, disso estou certa. Vão surgir alterações muito em breve.

Estava a fazer-se tarde; Eneias levantou-se.

- Vou dormir no acampamento com os soldados -disse -, uma vez que a minha mulher e a minha filha se foram embora.

Heitor disse:

- Suponho que devia mandar Andrómaca e o rapaz para outro lugar, se existe tanto perigo aqui.

- Agora já estão a ver porque é que eu acho que Cassandra deve ser silenciada a todo o custo - disse Páris -; ela está a espalhar tamanho desespero em Tróia, que antes que nos tenhamos apercebido, todas as mulheres se terão ido embora; e depois que motivos teremos para lutar?

- Não - disse Helena. - Eu não irei; eu vim para Tróia para o melhor e para o pior, e já não existe mais nenhum refúgio para mim. Ficarei com Páris enquanto ambos vivermos.

- E eu! - disse Andrómaca. - Onde Heitor tiver coragem para ficar, eu aí ficarei, a seu lado. E onde eu ficar, o meu filho ficará.

Cassandra, recordando que Andrómaca fora educada como uma guerreira, pensou que talvez Imandra, afinal, viesse a orgulhar-se da sua filha. « Quem me dera ter a coragem dela», pensou, e depois lembrou-se que Andrómaca não sabia o que os esperava. Talvez fosse mais fácil ter coragem quando era possível ir acreditando que aquilo que se receia não chegará a acontecer. Nos seus ouvidos soaram os trovões de Posídon, e ela mal conseguia ver o outro lado da sala devido aos fogos que pareciam ter-se ateado.

Porém, a sala estava silenciosa e fresca, e todos os rostos que a rodeavam eram simpáticos e queridos. Por quanto tempo mais os teria à sua volta? Já tinha perdido Creúsa; quem se seguiria?

Sabia que devia ficar na casa do Senhor do Sol; mas não conseguia manter-se afastada do palácio, e todos os dias ia olhar da muralha com as outras mulheres. Assim, foi ela uma das primeiras a ver que as pessoas se precipitavam para os espaços entre as casas com tal rapidez que ela, por momentos, chegou a perguntar-se se seria outro tremor de terra. Depois os gritos cresceram.

- Aquiles! o carro de Aquiles!

Heitor praguejou violentamente e correu escada acima até ao posto de vigia na muralha.

- Aquiles voltou? São as piores notícias que poderíamos ter; ou serão as melhores? - disse ele rudemente, correndo para o local onde as mulheres se encontravam a assistir. - Sim, de facto aquele é o carro dele - e pôs a mão em pala a proteger os olhos. Depois voltou-se, com uma expressão de desdém, - Pelo Deus das Batalhas! Aquele não é Aquiles, mas outra pessoa vestida com a sua armadura! Os ombros de Aquiles têm o dobro da largura daqueles! Talvez seja esse amigo dele. A armadura nem sequer lhe assenta devidamente. Em nome de Ares, que brincadeira é esta? Será que ele acha realmente que consegue iludir qualquer pessoa que já tenha visto Aquiles lutar?

- Suponho que se trata de um estratagema para encorajar os homens de Aquiles - disse o seu auriga, o jovem Troilo.

- Seja o que for - disse Heitor -, vamos dar cabo dele. Eu poderia hesitar em enfrentar Aquiles, mesmo num dia favorável; mas ainda não nasceu o dia em que eu receei bater-me com Pátroclo. Talvez eu devesse vestir-te a minha armadura, rapaz, e pôr-te em cima do meu carro, e mandar-te lá para fora para o defrontares.

- Fá-lo-ia de boa vontade, se tu mo permitisses - disse o jovem ansiosamente, mas Heitor riu e bateu-lhe no ombro. - Acredito que sim, rapaz; mas não menosprezes Pátroclo tanto assim. Ele não é, de modo nenhum, um mau lutador; não estará ao meu nível ou de Aquiles, é certo, mas tu ainda não tens preparação para ele; nem este ano nem, provavelmente, para o ano que vem.

Chamou o seu armeiro, que veio vestir-lhe a sua melhor armadura; depois os outros ouviram o ranger dos portões ao mesmo tempo que Heitor se lançava para o exterior.

- Isto assusta-me - disse Andrómaca, apressando-se a colocar-se no melhor ponto de observação para assistir. - Mãe Grande, como aquele rapaz endiabrado conduz o carro dele! Será que Heitor não lhe ensinou a ter cuidado nem bom senso? Vão ser ambos atirados dali abaixo num instante!

Os dois carros precipitavam-se um em direcção ao outro como veados no ponto alto da estação do cio. Troilo mantinha-se ocupado com os mirmídones que se lançavam em direcção ao carro. Afastava-os um após outro enquanto Heitor esperava pelo herói. Depois, avançou ao longo do eixo do carro, deixando Troilo a defendê-lo e enfrentou o homem coberto com a brilhante armadura decorada a ouro de Aquiles.

A espada de Heitor subiu ao encontro do aqueu que arremetia contra ele, num vaivém. Um passo rapidíssimo, e Pátroclo estava por terra; mas quando Heitor investia para acabar com ele, o jovem levantou-se de um pulo, como se a pesada armadura fosse apenas um finíssimo manto, e recuou. Os homens trocaram uma série de golpes tão rápida, que Cassandra não conseguia notar a mínima vantagem da parte de qualquer deles. Um curto grito de Andrómaca disse-lhe que o marido dela fora atingido; mas quando olhou, viu que Heitor se tinha recomposto e investia com violência suficiente para fazer Pátroclo retirar em direcção ao seu carro. A espada de Heitor cravou-se com força no ponto onde a armadura se unia à protecção do braço, soltando-se depois com um jacto de sangue. Pátroclo cambaleou para trás; um dos mirmídones segurou-o pela cintura e levantou-o em peso para o interior do carro; ele continuava de pé, mas vacilante e pálido. O seu auriga - ou seria o auriga de Aquiles? - chicoteou os cavalos e regressaram a galope em direcção à praia e às tendas aqueias, com Heitor em acesa perseguição.

Troilo lançou uma flecha que atingiu Pátroclo numa perna, e ele perdeu o equilíbrio e caiu; só a rapidez da mão do auriga a agarrá-lo impediu que fosse projectado do carro para fora. Heitor fez sinal a Troilo para que abandonasse a perseguição; Pátroclo estava morto ou então ferido tão gravemente que a sua morte era apenas uma questão de tempo. O carro de Heitor deu meia volta em direcção a Tróia; Andrómaca fez menção de correr pelas escadas abaixo ao ouvir os estalidos das cordas que abriam a porta principal, mas Cassandra deteve-a e esperaram que Heitor subisse as escadas. O seu escudeiro aproximou-se e começou a ajudá-lo a tirar a armadura, mas Andrómaca substituiu-o.

- Estás ferido?

- Nada de grave, garanto-te, minha querida - disse Heitor. - Já fiz piores ferimentos em brincadeiras no terreiro.

Tinham um longo golpe no antebraço, mas que não atingira o tendão; poderia ser tratado limpando-o com vinho e azeite, e uma ligadura apertada. Andrómaca, sem esperar por um curandeiro, começou a tratá-lo e perguntou:

- Mataste-o?

- Não tenho a certeza de que já esteja morto, mas, garanto-te, ninguém recupera de uma estocada nos pulmões como aquela - disse Heitor, e quase simultaneamente ouviram um barulho vindo do acampamento aqueu: um imenso uivo de raiva e de dor.

- Ele está morto - disse Heitor. - Pelo menos, é um soco no olho de Aquiles.

- Olhem - disse Troilo -, aí está ele, em pessoa.

Era de facto o próprio Aquiles, vestido apenas com uma tanga, com os seus enormes ombros nus e o seu pálido cabelo esvoaçando. Mesmo no limite do alcance das flechas parou e, erguendo o punho fechado, agitou-o para as muralhas. Gritou algo que se perdeu na distância.

- Que terá ele dito, gostava eu de saber? - perguntou Heitor. Páris, que se encontrava desarmado ali perto, disse:

- Calculo que alguma versão de «Heitor, filho de Príamo», com alguns comentários escolhidos acerca dos teus antepassados e progenitores, «vem cá abaixo e deixa-me matar-te dez vezes!».

- Ou, o que é mais provável, dez mil vezes - concordou Heitor. - Não consegui perceber a letra, mas a melodia era bastante clara.

- Então, e agora vamos celebrar? - perguntou Páris.

- Não - disse Heitor ponderadamente -, não me regozijo; ele era um homem corajoso e, segundo creio, honrado. Talvez ele fosse o único a manter a demência de Aquiles dentro dos limites. Estou certo de que a guerra irá piorar pelo facto de Pátroclo não se encontrar entre eles.

- Não consigo perceber-te - disse Páris. - Vimo-nos livres de um óptimo guerreiro e tu não estás deliciado. Se eu o tivesse morto, estaria disposto a declarar um feriado e a fazer uma festa.

- Oh, se tudo o que desejas é uma festa, estou certo de que conseguiremos uma forma de a arranjar -disse Heitor. -Tenho a certeza de que muita gente se regozijará; mas se matarmos todos os adversários decentes e honrados de entre os Aqueus, restar-nos-ão para combater os loucos e os escroques. Eu não temo nenhum homem mentalmente são, mas Aquiles é um caso diferente. Provavelmente, eu lamentarei Pátroclo tanto como qualquer outro homem, salvo o próprio Aquiles.

Eneias avançou e olhou por cima da muralha. - Onde está Aquiles? Desapareceu!

- Provavelmente regressou à sua tenda tentando convencer Agamémnon a interromper os combates para alguns dias de luto.

- Essa seria a altura para lhes dar com força - disse Páris -, antes que Aquiles se recomponha: enquanto eles ainda estão desorganizados.

Heitor sacudiu a cabeça.

- Se eles pedirem tréguas, temos o dever de honra de lhas conceder-disse ele -; eles deram-nos uma trégua de luto pelos teus filhos, Páris.

- Eu não o pedi - rosnou Páris. - Isto não é uma guerra, esta delicada troca de atenções; é uma espécie de dança!

- A guerra é um jogo com regras como qualquer outro - disse Príamo. - Não foste tu, Páris, que reclamaste que Agamémnon e Odisseu tinham quebrado as regras ao roubarem os cavalos dos trácios?

- Se temos de lutar - disse Páris -, que lutemos para vencer; não vejo qualquer lógica em trocar amabilidades com um homem quando estou a tentar matá-lo e ele a fazer os possíveis por me retribuir o favor.

Heitor e Páris começaram a falar ao mesmo tempo. Príamo ordenou: - Um de cada vez! - e Heitor gritou mais alto.

- Estas amabilidades, como tu lhes chamas, são o que faz da guerra uma actividade digna de homens civilizados; se alguma vez deixarmos de ter estas amabilidades para com os nossos inimigos, a guerra, certamente, não passará então de um negócio imundo dirigido por carniceiros e pela pior espécie de canalhas.

- E se não vamos combater - disse Páris -, porque não resolvemos as nossas divergências num concurso de tiro com arco, ou com jogos como o pugilismo e a luta? Neste caso, parece-me que faria mais sentido competir do que combater; estariamos a competir por um prémio.

- Com Helena como prémio? Achas que ela estaria disposta a servir de prémio num concurso de arqueiros? - zombou Deífobo.

- É provável que não - disse Páris -, mas as mulheres são frequentemente usadas como prémio para a ganância de alguém, e não vejo que isso fizesse assim tanta diferença.

Era ainda muito cedo quando, no dia seguinte, vestido com a túnica branca dos arautos, Agamémnon veio em missão de paz ao palácio de Príamo; como oferta de paz, levou as duas camareiras de Hécuba, Car e Adrias, que haviam sido roubadas a Cassandra quando ela pretendia entrar na cidade. Depois, Agamémnon pediu a Príamo, por respeito aos mortos, que concedesse uma trégua de sete dias, pois Aquiles desejava realizar jogos fúnebres em honra do seu amigo.

- Serão entregues prémios - disse ele -, e os homens de Tróia estão convidados a competir e serão avaliados, no que respeita aos prémios, em pé de igualdade com a nossa própria gente. - E acrescentou, passado um momento, que Príamo seria bem-vindo a ajuizar quaisquer competições para as quais se sentisse qualificado - corrida de carros, talvez, ou tiro com arco. Príamo agradeceu-lhe, gravemente, e ofereceu um touro para ser sacrificado a Zeus, Senhor dos Trovões, e um caldeirão de metal para prémio da luta.

Após Agamémnon ter, solenemente, aceite as ofertas e se ter retirado, expressando cortesmente os seus respeitos, Páris perguntou em tom de desagrado:

- Suponho que vais competir nesta farsa, Heitor?

- Porque não? O fantasma de Pátroclo não irá negar-me um caldeirão ou uma taça, ou uma boa barrigada de comida nos seus festejos fúnebres. Ele e eu já não temos nenhuma desavença, agora; e se eu for morto durante o saque final de Tróia (se ele existir) teremos algo sobre que conversar no Além.

 

Um silêncio sepulcral pairou sobre Tróia e o acampamento aqueu durante todo o dia seguinte. A meio da tarde, Cassandra foi até às muralhas da cidade; do alto parapeito do muro da casa do Senhor do Sol, conseguia ver o acampamento e para além dele, até à praia repleta de navios, mas não conseguia ouvir nada ou perceber o que se estava a passar.

Andrómaca estava nas muralhas com Heitor e outros membros da casa de Príamo. Deram as boas-vindas a Cassandra e fizeram espaço para que ela pudesse ver o que se passava.

- Esta seria a altura ideal para os atacar e queimar o resto dos navios sugeriu Andrómaca; mas Heitor lançou-Lhe um olhar feroz e ela retraiu-se. - Estava a brincar, meu amor; eu sei que serias incapaz de violar as tréguas - disse ela.

- Eles fizeram-no - recordou-lhes Páris. - Se eu tivesse sido morto e tivéssemos pedido tréguas para o meu funeral, acham realmente que eles não nos cairiam em cima no momento alto do festival? Provavelmente, Odisseu e Agamémnon estão neste momento a incitá-los a fazer um ataque na altura em que nós menos o esperamos.

- O acampamento parece estar praticamente abandonado - disse Cassandra. - O que estarão eles a fazer?

- Quem sabe? - disse Páris. - E quem se interessa?

- Eu sei - disse Heitor. - Os sacerdotes estão a preparar o corpo de Pátroclo para a cremação e a sepultura; Aquiles está a lamentá-lo e a chorá-lo; Agamémnon e Menelau estão a conspirar para arranjar uma forma de quebrar as tréguas; Odisseu está a tentar evitar que eles discutam tão alto que nós os oiçamos; os Mirmídones estão a preparar-se para os jogos de amanhã... e o resto do exército está a embebedar-se.

- Como sabes, pai? - perguntou Astíanax. Heitor disse, rindo:

- Seria o que nós estaríamos a fazer se estivéssemos no lugar deles. Naquele momento um jovem mensageiro, vestido com o traje dos sacerdotes

noviços de Apolo, chegou ao topo da muralha.

- Perdoem-me, nobres; uma mensagem para a princesa Cassandra disse, e Cassandra franziu o sobrolho. Teria uma das serpentes mordido alguém ou uma das crianças sido atacada por uma febre? Não conseguia pensar noutro motivo para ser chamada; no templo, as suas obrigações do dia tinham sido cumpridas e havia-lhe sido dada permissão para se ausentar.

- Estou aqui - disse ela. - Que me querem?

- Senhora, chegaram hóspedes à casa do Senhor do Sol; vieram pelas montanhas para evitar o bloqueio dos Aqueus e procuram-te. Dizem que o assunto é de grande urgência e não podem esperar.

Espantada, Cassandra fez uma vénia ao pai e retirou-se. Enquanto subia para o templo, perguntava-se de quem poderia tratar-se e por que razão a procurariam. Entrou na sala onde eram recebidas as visitas; ao passar da luz do Sol para a obscuridade da sala, os desconhecidos não eram para ela mais que meia dúzia de formas indistintas.

Uma delas ergueu-se e avançou na sua direcção de braços abertos.

- O meu coração alegra-se de te ver, filha - disse, e Cassandra, cujos olhos se adaptavam já à obscuridade da sala, viu o rosto da amazona Pentesileia. Cassandra deixou-se envolver pelo seu abraço caloroso.

- Oh, como estou contente de vos ver a todas! Quando regressei de Cálcis não vi sinais de vocês e pensei que estivessem todas mortas! - exclamou. - Sim, ouvi dizer que nos tinhas procurado; mas nós tínhamos partido

para as ilhas em busca de ajuda e, quem sabe, de uma nova terra para viver disse Pentesileia. - Não a encontrámos e portanto regressámos, mas eu não tinha maneira de te enviar uma mensagem.

- Mas o que estão aqui a fazer? Quantas de vocês vieram?

- Trouxe comigo todas as que restam de nós e não escolheram ir viver para as cidades, sob o domínio dos homens. Viemos defender Tróia dos seus inimigos - disse Pentesileia. - Príamo disse-me uma vez, há já muitos anos, que para que ele buscasse a ajuda de mulheres na defesa da sua cidade, Tróia teria de estar a passar por tempos muito adversos. Talvez agora eu saiba melhor do que ele quão adversa é a situação em que Tróia se encontra.

- Não sei se o meu pai concordará contigo - disse Cassandra. - O exército está eufórico porque Heitor acabou de matar o segundo mais perigoso combatente do exército aqueu.

- Sim; disseram-me na casa do Senhor do Sol - disse Pentesileia. - Mas não creio que Tróia esteja mais perto de se encontrar a salvo pelo facto de Pátroclo jazer morto.

- Parente - disse Cassandra, com gravidade -, Tróia cairá, mas não às mãos de qualquer homem. Acreditas, então, que nos poderemos opor à acção de um deus?

Pentesileia, com aquele seu velho sorriso, disse:

- Não é a destruição das muralhas que devemos temer, mas a destruição das nossas defesas. Tróia poderá ser derrotada e saqueada, e se é essa a vontade dos poderes das alturas... - interrompeu-se e estendeu os braços a Cassandra, que se lançou neles como a criança que em tempos fora.

- Minha pobre filha, há quanto tempo suportas isto sozinha? Não há ninguém em Tróia, soldado ou rei ou sacerdote, que acredite na tua Visão? perguntou ela, segurando-a como a uma criança de encontro ao seu peito magro e envelhecido. - Nenhum dos teus parentes ou dos teus irmãos? Nem mesmo o teu pai?

- Esses menos que os outros - murmurou Cassandra. - Enfurece-os que eu profetize a desgraça para Tróia. Não querem ouvir. E, visto eu não poder fornecer uma forma de evitar esse destino, mas apenas dizer que ele virá, talvez... talvez eles tenham razão em não querer viver com essa certeza.

- Mas fazerem-te suportar tudo isto sozinha... - começou Pentesileia, mas depois calou-se, suspirando. - Mas agora tenho de me apresentar a Príamo com as minhas guerreiras e saudar a tua mãe, minha irmã.

- Levar-te-ei ao palácio para que ele possa dar-te as boas-vindas - disse Cassandra.

A velha amazona soltou uma risadinha.

- Ele não me dará quaisquer boas-vindas, minha querida, e quanto mais desesperadamente ele necessitar das aptidões guerreiras das minhas mulheres, pior será o acolhimento que irá dispensar-me - disse ela. - O máximq que podemos esperar é que ele não nos recuse; talvez eu tenha esperado o tempo suficiente para ele perceber quão tremenda é a sua necessidade mesmo que apenas de um punhado de boas guerreiras. As minhas são vinte e quatro.

- Sabes tão bem como eu que Tróia não se pode dar ao luxo de desprezar qualquer ajuda, venha ela de onde vier; nem que tivesses trazido um exército de centauros - disse Cassandra.

Pentesileia suspirou e abanou a cabeça.

- Nunca mais voltará a existir um tal exército - disse com tristeza. - Os últimos dos seus guerreiros desapareceram; recolhemos meia dúzia dos seus rapazinhos mais novos, quando os cavalos deles morreram. Agora, os aldeãos esgravatam o solo por uma colheita de cevada ou de nabos e apascentam as suas cabras e porcos nos locais onde, em tempos, os Centauros vagueavam com os seus cavalos; as nossas éguas também pereceram, à excepção destas poucas que estão num estado lastimável. Vi que existem agora poucos cavalos nas planícies em volta de Tróia. As manadas selvagens foram capturadas pelos Aqueus ou pelos próprios Troianos.

- A manada sagrada de Apolo vagueia ainda em liberdade pelas encostas do monte Ida; ninguém se atreveu a tocá-la - recordou-lhe Cassandra. - Nem mesmo as sacerdotisas do Deus-Rio Escamandro se atreveram a tentar colocar-lhes um freio.

Isto fê-la pensar em Enone e perguntou-se como estaria ela. Tinham-se passado anos sobre a última vez que vira a rapariga; agora as mulheres do monte Ida nunca desciam à cidade, nem mesmo para os festivais. Páris nunca falava dela e, pelo que Cassandra conseguia perceber, nunca pensava nela apesar de, agora que os filhos de Helena tinham morrido, o filho de Enone ser o seu único filho vivo.

- Tu e as tuas mulheres devem estar cansadas de viajar; ofereço-vos a hospitalidade da casa do Senhor do Sol. Permitam-me que chame as criadas para vos prepararem um banho, e se quiserem trajes de cerimónia...

- Não, minha querida - disse Pentesileia. - Um banho seria mais do que bem-vindo, mas eu e as minhas mulheres iremos apresentar-nos com as nossas armaduras e roupas de montar; somos o que somos e não fingiremos ser outra coisa.

Cassandra foi tratar de tudo, indo depois preparar-se para o jantar no palácio. Enviou uma mensagem dizendo que levaria convidados, mas só revelou as suas identidades à rainha Hécuba. Estava certa de que, como parentes, seriam bem recebidas; mas sabia que Príamo não tinha a mínima simpatia pelas Amazonas. Apesar disso, as leis da hospitalidade eram sagradas, e sabia que Príamo jamais as violaria.

Como desafio, pensou em vestir as suas velhas roupas de montar em couro e levar as suas armas; Príamo ficaria zangado, mas ela queria identificar-se com as Amazonas. Mas quando tirou as velhas roupas do baú, a macia túnica interior nem lhe entrava pela cabeça; fora feita para a rapariga que ela era quando cavalgava com as Amazonas. Os cabedais estavam velhos e quebrados, e também não lhe serviam; porque os teria guardado todos aqueles anos? A rapariga que ela fora desaparecera para sempre.

Deitado no fundo do baú estava o seu arco de madeira e chifre; aquele, supunha, ainda poderia usar, e conservava ainda a espada e a lança, brilhantes e sem pontos de ferrugem. «Ainda sei montar, e tenho a certeza de que ainda sou capaz de lutar se a isso me vir forçada», pensou, «apesar de já não ter roupas de amazona; talvez, antes da minha cidade cair, eu ainda venha a empunhar armas em sua defesa. Não são as roupas, mas as armas e a perícia que fazem uma amazona.» Imaginou-se e sentiu-se - apesar de não ter movido um único músculo - ajustando uma flecha no grande arco, esticando mais e mais a corda, deixando sair a seta... « mas em direcção a quem?, não conseguia ver o alvo para o qual a flecha se dirigia velozmente...»

Apesar disso, sentiu-se encorajada ao pensar que não assistiria impotente à derradeira defesa de Tróia. Cassandra guardou as suas armas no baú - deitaria fora os cabedais, ou, melhor ainda, guardá-los-ia para que Honey os usasse um dia. Vestiu uma bela túnica de linho, tecida em Cálcis, e pôs os seus melhores brincos de ouro - eram esculpidos em forma de cabeças de serpente - nas orelhas. Pôs ainda uma pulseira de ouro e o colar de contas azuis do Egipto, e desceu ao encontro das suas convidadas.

Um homem alto, de armadura, tinha-se juntado a elas; surpreendida, reconheceu Eneias.

- Vim para te escoltar, Cassandra - disse ele -, mas tenho estado a conversar com as tuas convidadas. Ficaremos gratos por ter as arqueiras amazonas a defender a torre principal; dispô-las-emos nas muralhas...

- Estou à vossa disposição - disse Pentesileia - e tenho um velho rancor contra o pai de Aquiles; pelo menos uma vez, sairei contra o filho.

Cassandra sentiu de novo a escuridão sufocante apertando o seu punho em torno da sua garganta, fazendo com que lhe fosse impossível falar ou gritar. - Não! - murmurou, mas sabia que nenhum deles a podia ouvir. Eneias disse de modo amigável:

- Bem, Heitor é o nosso comandante; caber-lhe-á a ele dizer onde deseja que vocês lutem. Podemos resolver isso dentro de um ou dois dias. Vamos? ofereceu o braço à rainha amazona, e saíram da sala, descendo em direcção ao palácio. Ainda não estava muito escuro, e Pentesileia olhou com desânimo para o entulho que continuava a bloquear as ruas. Uns quantos abrigos haviam sido levantados à pressa, mas a cidade tinha ainda o aspecto de uma caixa de brinquedos que uma criança gigantesca atirara pelos ares, num acesso de mau humor. Eneias disse:

- O meu pai contou-me muitas lendas sobre as guerras entre os Centauros e as Amazonas. Havia um menestrel na nossa corte que costumava cantar uma balada acerca disso... - Trauteou umas quantas frases. - Conheces a canção?

- Conheço, de facto; se os vossos menestréis não a souberem cantar, cantar-te-ei eu própria - disse Pentesileia -, se bem que a minha voz já não seja a mesma de quando eu era rapariga.

Movendo-se através dos pátios, Cassandra estudava o pequeno grupo de amazonas. Pentesileia envelhecera mais do que um ou dois anos desde o seu último encontro a caminho de Cálcis. Ela sempre fora alta e magra; agora estava macilenta, os braços e as pernas tensos, os tendões semelhantes a cordas, sem qualquer vestígio de suavidade. Ainda tinha todos os dentes, fortes e brancos; dificilmente poderia ser descrita como «uma mulher idosa».

Nenhuma das outras tinha a idade de Pentesileia; a mais nova, pensou Cassandra, ainda mal entrara na adolescência; era uma rapariga esguia que parecia tão forte e perigosa como o seu arco.

« Eis o que eu poderia ter sido»; o « que eu deveria ter sido». Cassandra olhou para a jovem guerreira com mal disfarçada inveja. «Pelo menos ela não tem que ficar passivamente sentada enquanto as defesas da sua cidade se desmembram.»

- Mas tu não tens estado inactiva - disse Eneias baixinho, e ela perguntou-se (se bem que nunca tenha sabido ao certo) se ele lera os seus pensamentos ou se ela os dissera num murmúrio. - És uma sacerdotisa, uma curandeira. Não são só os combatentes que servem uma cidade em guerra.

Passou o seu braço pelo dela e percorreram enlaçados o resto do caminho. Quando entraram no grande salão de Príamo, o arauto anunciou os seus nomes:

- A princesa Cassandra, filha de Príamo; o príncipe Eneias, filho de Aquiles; Pentesileia, rainha guerreira das tribos Amazonas, e duas dezenas das suas senhoras... hum... - o arauto tossiu para disfarçar a confusão - das suas guerreiras... como deverei anunciá-las, senhora...

- Acalma-te, asno - disse Pentesileia. - Nenhuma de nós tem mais esperteza do que aquela que os deuses nos deram. O teu rei e a tua rainha sabem quem eu sou. - Mas estava sorridente e bem-humorada mesmo enquanto o arauto remexia na túnica tentando enxugar o suor das palmas das mãos.

Hécuba desceu do trono, lançando-se na direcção da sua irmã e tomando-a nos braços.

- Minha querida irmã - disse, e Pentesileia retribuiu-lhe o abraço. Príamo também se levantou e desceu vários degraus do seu trono abraçando Pentesileia exactamente como a sua mulher fizera.

- És muitíssimo bem-vinda, cunhada; toda a mão que possa empunhar uma arma é bem-vinda entre nós neste momento. Poderás escolher a tua parte entre os despojos do acampamento aqueu, tal como os outros guerreiros, prometo-te. E quem o contestar não é meu amigo - disse ele, lançando um olhar cortante e intencional a Heitor.

- Pai, já chegámos a isto?

- Eu acolheria de bom grado os próprios Centauros para lutar contra o exército de Aquiles - disse Príamo. - Diz-me, irmã, que armas trouxeste? - Duas dúzias de guerreiras, e todas armadas com espadas de ferro de

Cálcis - disse Pentesileia. - Cada uma é igualmente perita com o arco; nenhuma das minhas mulheres erraria o olho de um garanhão a galope a cem passos de distância.

- Alguma de vocês vai entrar no concurso de arco nos jogos fúnebres de amanhã? - perguntou Páris. - Aquiles ofereceu o melhor dos carros capturados e, ao melhor arqueiro, o belo arco do próprio Pátroclo.

- Ele não o concederia a uma mulher - disse Heitor. - Nem que ela batesse o Pátroclo em pessoa.

- Ele é obrigado por juramento a conceder os prémios ao vencedor.

- Nada é sagrado para Aquiles - disse Pentesileia. - Estaria disposta a competir nem que fosse só para demonstrar isso mesmo aos seus homens; mas ele pode surpreender-me. Porém, não desejo nem preciso de um carro de combate, e o meu próprio arco é suficiente para as minhas necessidades. - Riu-se. - Eu não estou nesta guerra por causa do ouro ou dos despojos; que faria eu com uma mulher prisioneira?

- Se conseguisses despojos suficientes nesta guerra, poderias restaurar as tuas cidades - disse Andrómaca - ou partir e fundar a tua própria cidade algures, como a gente da minha mãe fez em Cálcis.

- Há ideias muito mais desagradáveis - disse Pentesileia. - Vou pensar nisso. Se eu ganhar então esse belo carro de combate, Príamo, resgatá-lo-ás com ouro?

- Se ele não o fizer - disse Hécuba -, eu própria o farei. Serás bem paga; tu e todas as tuas guerreiras.

As taças do vinho passaram mais uma vez em volta, todos os homens rindo e gracejando, cada um deles dizendo em que concurso competiria e o que faria com o prémio se o ganhasse.

- Devias tentar ganhar uma das mulheres, Eneias - disse Deífobo. - Alguém que te aquecesse a cama enquanto Creúsa está em Creta.

- Não - disse Eneias, erguendo a sua taça. - Se eu ganhar uma das prisioneiras, enviá-la-ei para Creta como criada para servir Creúsa e ajudá-la a cuidar das crianças; ser-lhe-á pago um salário honesto para que um dia possa comprar a sua liberdade. Não gosto desta história de passar mulheres de mão em mão como troféus. Não mais do que Pentesileia eu desejo uma mulher que não venha até mim de livre vontade.

Sobre a borda da taça de ouro, os seus olhos encontraram os de Cassandra; ela sabia o que ele lhe pedia e qual seria a sua resposta.

Cassandra e Eneias subiram lentamente a colina em direcção à casa do Senhor do Sol; não havia luar e as ruas estavam escuras excepto onde, ocasionalmente, a luz do interior de uma casa se projectava. Cassandra tropeçou numa pedra solta e Eneias passou o braço em volta dela para a ajudar a equilibrar-se ou talvez, pensou ela, procurasse um pretexto para a abraçar; ela não estava certa de que o ter tropeçado não fosse um pretexto para se agarrar a ele. Se bem que a noite estivesse quente, ele passou-lhe a capa em volta de ambos; e ela estava incrivelmente consciente do calor do corpo dele.

Não se sentia propriamente assustada; mas estava nervosa e um pouco preocupada. Durante muitos anos a sua vida fora a de uma sacerdotisa, e a virgindade tinha estado no centro dessa vida. Deu por si recordando todos os argumentos que usara com Crise, e perguntava-se se não estaria a agir como uma hipócrita: agora que resolvera render-se, rendia-se ao marido da sua irmã. Mas ela tinha a palavra da própria Creúsa em como isso não importava; não precisava de sentir quaisquer escrúpulos em relação a Creúsa.

E quanto ao Deus? Havia já muito que deixara de acreditar que os seus actos tivessem qualquer importância para o Senhor do Sol. Ele abandonara-a havia muito tempo; mas se Ele tivesse falado para a proibir de dar aquele passo, mesmo naquele momento, ela sabia que não iria desafiá-Lo. Havia no seu interior um pequeno núcleo incandescente de irada desolação: «Ele não quer saber»; nem sequer Lhe interessava que uma das Suas escolhidas estivesse prestes a abandonar os votos que Lhe havia feito.

Mas, na verdade, aquele pensamento estava enterrado lá° bem no fundo; à suprfície da sua consciência não havia lugar para nada à excepção de Eneias.

Aproximavam-se dos grandes portões; um sacerdote encontrava-se ali, vigiando as entradas e saídas, e ela parou voltando-se para que ele não a visse.

- Não podemos entrar por ali - disse ela. - Se eu te levar para dentro e não te trouxer de volta imediatamente...

Ele percebeu instantaneamente.

- Não, realmente - disse ele. - Tens de cuidar da tua reputação; eu não quero pô-la em perigo, Cassandra. Talvez devêssemos ter ficado no palácio esta noite...

- Não - disse ela baixinho. - Eu não queria isso. Não tenho vergonha... não é isso...

- Mas não podes causar um escândalo - disse ele, e encaminhou-se para o ponto onde o muro baixo tomava a direcção das ruas descendentes. Cassandra sentiu-se embaraçada; não pensara nisso até àquele momento. Pentesileia e as suas mulheres tinham deixado o palácio mais cedo, e Cassandra não vira ninguém nas ruas. Tinha feito Aquiles e Odisseu sair do templo envoltos em capas de noviços; mas não podia fazer o mesmo com Eneias, mesmo que encontrasse forma de arranjar uma capa. Franziu o sobrolho, tentando pensar numa maneira de o levar para dentro sem ser visto; deixá-lo sair de manhã não era grande problema. Disse em voz baixa:

- Há um sítio onde a muralha se desmoronou no grande tremor de terra; até as crianças pequenas a conseguem subir. Ainda não foi reparada porque todos os trabalhadores foram empregues nas reparações dos portões da cidade, lá em baixo. Por aqui - disse ela, e conduziu-o ao longo do muro exterior. A altura não era, em todo o seu comprimento, muito grande e existira em tempos uma porta num dos lados; tinha sido tapada havia apenas uma ou duas gerações, e, quando o velho arco ruíra, deixara uma pilha de entulho facilmente escalável que ninguém pensara ser necessário guardar ou vigiar. Mesmo com a sua saia comprida, Cassandra trepou facilmente, se bem que as pedras, rolando sob os seus pés e os de Eneias - que subia atrás dela - fizessem bastante barulho.

Pensou que provavelmente não era a primeira das mulheres do templo a fazer entrar assim um amante; era o tipo de coisa que ela esperaria de Criseide. Não queria pensar em si própria nos mesmos termos em que pensava naquela rapariga vadia, mas, tinha de o reconhecer, não era melhor do que ela. Deu a mão a Eneias para o ajudar a equilibrar-se enquanto descia e sentiu que lhe faltava a respiração; quantas vezes admoestara Criseide em pensamento por este tipo de coisa!

« Se Creúsa não se opõe - e se o Senhor Apolo não fala para o evitar então não existe ninguém, homem ou mulher ou deus, que possa sentir-se ofendido», disse a si própria com firmeza. Conduziu-o ao longo das sombras escuras junto ao muro; e em vez de o levar até à porta do dormitório das sacerdotisas e pelo corredor que dava acesso ao seu quarto, conduziu-o para a janela que se abria para a rua e entrou por aí.

Lá dentro, estava escuro e silencioso, com uma única e fraca lamparina acesa sobre uma bandeja - permitindo-lhes ver apenas a sua cama e o catre onde Honey habitualmente dormia. Quando se aproximou da cama, Cassandra viu a cabeça escura da menina sobre a almofada; ao curvar-se para a levantar, uma longa forma desenrolou-se e ergueu-se, os olhos brilhando como dois seixos achatados. Viu Eneias recuar e disse, baixinho:

- Ela não te fará mal; não é venenosa.

- Eu sei - disse Eneias. - A minha mãe era sacerdotisa de Afrodite e partilhava a cama com coisas mais estranhas do que cobras. O teu animal de estimação não me perturbará.

- Posso pô-la na cama da criança, se quiseres - disse Cassandra, levantando Honey e pondo-a no catre; a menina choramingou e Cassandra sentou-se ao pé dela cantando baixinho para a adormecer de novo.

- Ela não me faz impressão - disse Eneias -, mas eu sou-lhe estranho; talvez tenha uma noite mais descansada na cama da criança.

Cassandra sentiu o calor subir-lhe ao rosto enquanto agarrava na cobra, pousando-a perto de Honey. A serpente deslizou para baixo e enrolou os seus anéis em torno da cintura da menina. Confortada pelo toque familiar, Honey adormeceu, e Cassandra voltou-se, pegando na capa de Eneias e pondo-a para o lado.

- Não sabia que a tua mãe era sacerdotisa de Afrodite - disse ela, e Eneias respondeu:

- Quando eu era pequeno, disseram-me que a minha mãe era a própria Afrodite. Mais tarde, soube quem ela era, realmente, e vim a conhecê-la como minha mãe. Não me surpreende que ela se afigurasse ao meu pai como a própria deusa; era muito bela. Penso que as sacerdotisas de Afrodite são escolhidas pela sua beleza.

- E se servirem a Deusa - disse Cassandra -, ela certamente que lhes emprestará a sua beleza.

- Não pode ser apenas isso - disse Eneias -, ou tu há muito que terias sido escolhida para o Seu serviço.

O comentário provocou-lhe um arrepio. Estaria ela, então, a ser atraída para o serviço daquela Deusa que lançava a desordenada veneração do amor carnal nas vidas dos homens e das mulheres? Seria então a Deusa desprezada quem tentava conquistá-la e afastá-la dos votos que fizera a Apolo?

Já vira como Afrodite destruía as vidas daqueles que a veneravam. Eneias era seu filho; também ele a adoraria?

Não podia fazer-lhe aquelas perguntas. Ele estava sentado na borda da cama estreita, tirando as sandálias. Aproximou-se dele e ele agarrou-a, tirando de um só gesto o alfinete que lhe segurava o cabelo e deixando-o cair livremente escondendo-lhe o rosto e as dúvidas. Já não interessava. Todas as deusas, quaisquer que fossem os seus nomes, eram uma, e ela devia servi-las como todas as mulheres as serviam.

Ouviu o restolhar da serpente ao desenrolar os anéis. Eneias agarrou-a pondo o braço em torno da sua cintura.

- Não é para admirar que tenhas permanecido tanto tempo virgem, com uma tal guardiã da tua castidade - murmurou ele, rindo. - Todas as virgens do Senhor do Sol têm destas damas de companhia a protegê-las?

- Oh, não - disse ela rindo, e recostou-se nos seus braços. Depois levantou-se para apagar a candeia. A escuridão invadiu o quarto e ela ouviu-o rir de novo, baixinho. Para lá do riso sentiu, muito ao longe, o ribombar de um trovão e, depois, o súbito tamborilar da chuva lá fora.

- Esplendorosa Afrodite, se eu tenho de Te servir como todas as mulheres, depois de tantos anos recusando o Teu serviço, envia então sobre mim alguns dos Teus dons - murmurou, e sentiu uma luz cintilante a envolvê-la - ou seria apenas o clarão ocasional de um raio lá fora? - quando Eneias a tocou na escuridão

De madrugada, deslizou silenciosamente para fora da cama e foi sentar-se à janela, recordando e saboreando cada detalhe daquela noite. Em breve os ventos vindos dos cumes dispersariam a bruma esbranquiçada que cobria a cidade por baixo de si.

No topo da colina, em torno da casa do Senhor do Sol, o vento soprava já ruidosamente de encontro às paredes; Eneias estava de pé, ainda sem a armadura. - Não existe razão para me equipar, visto ir competir na luta corpo-a

-corpo e no pugilismo - disse ele. - Enfrentarei qualquer concorrente excepto o próprio Aquiles. A noite passada sonhei ...

Cassandra perguntou:

- O Deus enviou-te um sonho favorável?

- Se era favorável ou desfavorável, não sei - disse Eneias. - A minha fortuna, segundo me parece, já a conquistei. - Curvou-se e beijou-a. - Diz-me: não sentes remorsos, minha amada?

- Nenhuns - disse ela. Já não lhe interessava. Tinha esperado tantos anos para se entregar, recusando mesmo - estava convencida - o próprio Senhor do Sol; e ali, no meio da guerra, nas sombras da morte, encontrara o amor e sabia que ele não poderia durar. Quando Honey, ao fundo do quarto, se agitou e chorou devido a algum pesadelo, ela correu a acalmar a criança. Confortou-a, embalando-a com suavidade e cantando, e viu os olhos de Honey virarem-se para a figura desconhecida, no interior do quarto; sentiu uma satisfação súbita e confusa por a menina ser demasiado pequena para dar voz à sua surpresa ou curiosidade.

Agora que estavam de pé junto um do outro, ela pensava em todas as outras mulheres de Tróia que, durante todos aqueles anos, haviam cingido as armaduras dos seus homens e os tinham enviado para a batalha - ou para a morte -, e pela primeira vez partilhou das preocupações e dos medos dessas mulheres.

Ajudou-o a afivelar a última correia da sua couraça peitoral; o resto da armadura seria posta no campo. A trombeta que soava de madrugada para convocar os homens ainda não se fizera ouvir; e naquela manhã talvez nem chegasse a soar. Só aqueles que competiam nos jogos fúnebres de Pátroclo precisavam de levantar-se ou sair naquele dia, se bem que fosse mantida uma cuidadosa vigilância para o caso de os Aqueus tentarem violar as tréguas.

- Vem cá, dá-me um beijo, amor; tenho de ir - disse ele, apertando-a com força num último abraço; mas ela protestou.

- Ainda não; não queres que te vá buscar algum pão e vinho?

- Tenho de tomar o pequeno-almoço com os soldados na minha messe, meu amor; não te incomodes. - Hesitou e encostou o seu rosto à face dela. -Posso vir ter contigo esta noite?

Ela ficou sem saber o que dizer, e ele interpretou mal o seu silêncio.

- Ah, eu não devia ter... os teus irmãos são meus amigos, o teu pai é meu anfitrião...

- Quanto ao meu pai e aos meus irmãos... não existe qualquer homem em Tróia inteira a quem eu tenha de dar conta dos meus actos - disse Cassandra com rispidez. - E a tua mulher, a minha irmã, disse-me quando nos separámos que não guardaria rancor por nada que te fizesse feliz.

- Creúsa disse isso? Pergunto-me... bem, então fico-lhe grato. Eu podia ter-te dito o mesmo, mas foi melhor que o tivesses escutado da sua boca. -Num impulso, apertou-a de novo contra si. - Deixa que eu venha - implorou. Talvez não tenhamos muito tempo... e quem sabe o que poderá acontecer a qualquer de nós? Mas estes dias de tréguas...

Por toda a Tróia, pensou ela, mulheres recém-saídas da cama dos seus homens estavam a afivelar armaduras, usando esses breves momentos e beijos para os demorar um pouco mais, tentando não pensar na vulnerabilidade do corpo que haviam acariciado.

Eneias passou-lhe a mão no cabelo.

- Nem mesmo com Afrodite eu tenho agora qualquer disputa, pois foi Ela, creio, quem te trouxe até mim. Sacrificar-Lhe-ei uma pomba logo que possa. Havia muitas pombas no santuário de Apolo; mas Cassandra sentia uma

certa relutância em sugerir-lhe que comprasse uma. Eneias tinha, de certa forma, roubado algo que pertencia a Apolo - se bem que ela não compreendesse, nem nunca tivesse compreendido, por que razão isso havia de pertencer a alguém que não a ela própria. Depois, asperamente, disse a si mesma que não fosse idiota; ela não era certamente a primeira das virgens do Senhor do Sol a levar um homem para a cama, e dificilmente seria a última. Pôs-se nos bicos dos pés para o beijar e disse:

- Então até logo à noite, meu amor querido.

Dirigiu-se ao alto parapeito para o ver descer através da cidade. Ainda não clareara totalmente; as nuvens passavam por cima das planícies em frente de Tróia, e apenas alguns vultos se moviam nas ruas: soldados que se reuniam para a refeição da manhã.

Sentia-se cansada; devia voltar para a cama. Mas perguntava-se quantas das mulheres da cidade que acabavam de enviar os amantes ou os maridos para a batalha - ou, naquele dia, para o simulacro de batalha que eram os jogos poderiam ir dormir calmamente. Foi ao seu quarto, encontrando Honey ainda enterrada nos cobertores, e vestiu-se rapidamente. Não queria passar pelos pátios; não sabia bem porquê, mas estava certa de que iria encontrar Crises e sentia que ele teria consciência imediata do que acontecera e que não conseguiria suportar o olhar dele. Ultimamente deixara Fílidas encarregar-se do tratamento das cobras e portanto não havia motivo para ir ao pátio das serpentes.

Surpreendida, apercebeu-se de que o que sentia era solidão; tinha sido sempre tão solitária e estava, em geral, tão acostumada a esse estado que raramente ansiava por companhia. Lembrou-se então de que existia agora uma pessoa na casa do Senhor do Sol a quem ela podia contar tudo o que lhe ia no coração.

A algumas das mulheres de Pentesileia fora destinado um quarto não muito afastado do de Cassandra; a maior parte delas encontrava-se num pátio ali perto, onde dormiam em cobertores dobrados. Uma ou duas delas estavam acordadas e tomavam um pequeno-almoço de pão com o áspero vinho novo que era feito no templo.

Pentesileia, como era adequado a uma rainha, dormia sozinha num pequeno quarto ao fundo do átrio. Cassandra percorreu o mosaico antigo de conchas e espirais nas pontas dos pés e sem fazer barulho para não acordar as guerreiras que dormiam. Bateu levemente à porta; a velha amazona abriu-a e puxou-a para dentro.

- Bom dia, querida filha. Oh, mas que aspecto cansado e insone que tu tens! - Abriu os braços e Cassandra recolheu-se neles, chorando sem saber porquê.

- Não precisas de chorar - disse Pentesileia. - Mas se choras, suponho que deves ter uma boa razão para isso; sei que ontem deixaste o banquete com Eneias. Aquele patife seduziu-te, filha?

- Não, não foi nada assim - disse Cassandra zangada, e perguntou-se porque estaria Pentesileia a sorrir.

- Ah, bom, mas se é um caso de amor, porque choras?

- Eu... não sei. Suponho que é por ser uma idiota, como sempre soube serem idiotas as mulheres que se envolvem nestes jogos com homens, e falam de amor e choram... - «E agora», pensou, «não sou melhor do que qualquer uma delas.»

- O amor consegue fazer de qualquer de nós uma idiota - disse Pentesileia. - Tu descobriste isso mais tarde do que a maioria, é tudo; a altura para se chorar por causa dos romances amorosos é aos treze anos, não aos vinte e três. E como aos treze anos tu não choravas nem fazias grandes alaridos por causa de algum belo e jovem pedaço de homem, eu pensei que serias talvez uma daquelas que procuram amantes entre as mulheres...

- Não, não pensei nisso - disse Cassandra. - Soube o que era desejar mulheres - acrescentou, pensativa -, mas pensei que talvez fosse apenas porque as via através do espírito e dos olhos de Páris. - Recordou Helena e Enone, e quão profundamente lhes fora sensível; uma parte de si, acontecesse o que acontecesse, iria sentir sempre uma forte afeição por Helena. Aquilo era algo de totalmente diferente e nada bem-vindo; enfurecia-a fazer uma figura tão idiota por causa de um homem com o qual nem sequer poderia tentar unir a sua vida.

Estava a chorar de novo - desta vez de raiva. Tentou traduzir aqueles sentimentos em palavras, mas Pentesileia disse:

- É melhor sentir raiva do que dor, Cassandra; haverá muito tempo para a dor, se esta guerra continuar. Vamos, ajuda-me a equipar, Olhos Brilhantes. O velho nome carinhoso fê-la sorrir por entre as lágrimas.

Cassandra pegou na armadura feita de camadas de couro reforçadas com placas de bronze e decorada com anéis e rosetas de ouro. Passou-a pela cabeça da velha amazona, virando-a com suavidade para apertar os cordões.

- Se alguma coisa me acontecer nesta guerra - disse Pentesileia -, promete-me que as minhas mulheres não serão feitas escravas ou forçadas a casar; isso destroçá-las-ia. Garante-me que poderão deixar a tua cidade livres e incólumes, se ela sobreviver.

- Prometo - murmurou Cassandra.

- E se eu morrer, quero que este arco fique para ti; vê, tenho até umas quantas flechas dos Centauros, aqui no fundo da aljava. A maioria das minhas mulheres usa agora flechas de ponta metálica, pois elas conseguem perfurar armaduras como a minha; mas as flechas dos Centauros... conheces o segredo da sua magia, Cassandra?

- Sim... sei que usam veneno...

- Sim. Venenos pouco conhecidos, extraídos da pele dos sapos - disse Pentesileia -; matam mesmo com um ferimento ligeiro. Poucos dos teus inimigos, mesmo sendo aqueus, usarão armaduras dos pés à cabeça. Estas flechas são, digamos, uma forma de contrabalançar a desvantagem que as mulheres têm em termos de tamanho e força.

- Recordar-me-ei disso - disse Cassandra; mas rogo aos deuses para que não herde nem as tuas mulheres nem o teu arco, e para que tu uses as tuas armas até que estas sejam depostas no teu túmulo.

- Mas, no túmulo, o meu arco não servirá de nada para ninguém - disse Pentesileia. - Quando eu tiver partido fica com ele, Cassandra; ou depõe-o no altar da Virgem Caçadora. Promete-mo.

 

Os Aqueus não fizeram qualquer tentativa para quebrar as tréguas durante os sete dias dos jogos fúnebres de Pátroclo, nem durante os três dias seguintes, dedicados ao banquete em que foram distribuídos os prémios. Cassandra não assistiu nem aos jogos nem ao banquete, mas soube o que se passara através de Eneias. Este vencera o lançamento do dardo e ganhara uma taça de ouro. Heitor estava desapontado, pois entrara nas competições de luta e fora batido por um capitão aqueu chamado Grande Ájax, mas sentira-se um pouco mais confortado pelo facto de o seu filho, Astíanax, ter ganho a corrida pedestre para rapazes, apesar de ser o mais pequeno de todos os concorrentes.

- O que foi que ele ganhou? - perguntou Cassandra.

- Uma túnica de seda do Egipto tingida de carmim; fica-lhe demasiado grande e é boa de mais para ser cortada ao seu tamanho, mas poderá usá-la quando for crescido - disse Eneias. - E no fim do banquete, eles agradeceram-nos a nossa companhia durante os jogos e disseram que nos encontraríamos no campo de batalha pela manhã. Por isso vamos dormir, amor, pois a trompa do despertar soará uma hora antes do nascer do dia.

Esticou os braços, puxando-a para si, e ela envolveu-o nos seus, alegremente.

Mas no momento seguinte perguntou: - Aquiles estava lá?

- Sim; a morte de Pátroclo ainda o enfureceu mais do que qualquer dos insultos de Agamémnon - disse Eneias. - Devias tê-lo visto a olhar para Heitor; era como se fosse uma Górgone e pudesse transformar o teu irmão em pedra. Sabes que eu não sou nenhum cobarde, mas ainda bem que não é meu destino ter de defrontar Aquiles.

- Ele é louco - disse Cassandra com um estremecimento; depois impediu a continuação da conversa puxando a cabeça de Eneias para si e beijando-o. Adormeceram nos braços um do outro; mas passado algum tempo, Cassandra teve a sensação de que acordava e se erguia... não, pois ao olhar para trás podia ver-se ainda na cama, enlaçada pelos braços de Eneias.

Leve como um fantasma, flutuou através do templo pairando sobre os quartos das amazonas, onde estas, ainda acordadas, afiavam as suas armas; flutuou até ao palácio e entrou nos quartos habitados por Páris e Helena. Páris estava profundamente adormecido e Helena, com o rosto manchado de lágrimas, vagueava pelo quarto onde tinham morrido os seus filhos. «Ela ainda tem Páris; mas será o suficiente? Se formos derrotados, que lhe acontecerá? Arrastá-la-á Menelau até Esparta só para a matar?» Por instantes pareceu a Cassandra que via os capitães aqueus tirarem à sorte as mulheres conquistadas, arrastando-as para bordo dos barcos negros que enchiam o porto repleto de lixo e horror...

Não, aquilo não passava de um sonho; poderia até nunca vír a acontecer. A morte de Pátroclo e o regresso de Aquiles tinham, de alguma forma, mudado o curso das correntes do que poderia estar para vir - sabia-o; agora até os deuses teriam de fazer novos planos. A noite parecia brilhar com reflexos de luar e ela tinha a sensação, enquanto deslizava como um fantasma na direcção do acampamento aqueu, de que grandes silhuetas flutuavam no escuro. Sabia que nenhum ser mortal a poderia ver no seu presente estado, mas os deuses poderiam avistá-la enquanto espiava aquele mundo de fantasmas...

Não fazia ideia de para onde ia, mas, sem saber porquê, era impelida por uma firme determinação. Demorou-se por alguns momentos na tenda de Agamémnon, onde ele, deitado, dormia. Na realidade, ele não era maior do que o normal - era apenas um homem de constituição estreita e aspecto perverso, com uma expressão preocupada no rosto. Aquele homem era casado com a irmã de Helena, e oferecera a sua própria filha num sacrifício, em troca de um vento favorável... Exigiriam realmente os deuses dos Aqueus actos tão odiosos, ou teriam eles sacerdotes que o afirmavam para servir os seus próprios interesses corruptos? Supunha que um homem perverso era perverso em qualquer lugar, e entre os Aqueus isso devia ser ainda mais fácil. Enquanto pairava, ele virou-se de barriga para cima e abriu os olhos; Cassandra teve a sensação de que ele podia vê-la - e talvez, se ele estivesse a sonhar, isso fosse possível.

Ele disse num murmúrio - apesar de ela pensar que não chegara a falar: - Foste enviada para me tentar, virgem?

Ela respondeu:

- Tu estás apenas a sonhar que eu estou aqui. Sou o espírito da filha que enviaste para a morte; que os deuses te enviem sonhos maus.

Flutuou através da parede da tenda e, atrás de si, ouviu-o berrar num despertar súbito e aterrorizado. Não gostaria de estar no seu lugar naquela noite. Continuou a avançar e deu por si na tenda de Aquiles. O príncipe aqueu

estava acordado, deitado de costas, os olhos bem abertos; e, jazendo sobre uma padiola do outro lado da tenda, estava o corpo de Pátroclo. Cassandra não percebeu; decerto ele deveria ter sido cremado ou sepultado - ou mesmo exposto às grandes aves de rapina, como era costume em algumas tribos das grandes estepes. Porém, o corpo tinha sido embalsamado e Aquiles mantinha-se em vigília ao seu lado. Os seus estranhos olhos claros estavam inchados como se houvesse estado a chorar durante muito tempo, e naquele momento chorava audivelmente.

- Oh, mãe! - gritou ele por entre os soluços, e Cassandra não fazia ideia se ele estaria a invocar a sua mãe terrena ou uma deusa. - Oh, mãe, disseste-me que o Deus dos Trovões me prometera honra e glória, e vê o que me aconteceu: fui escarnecido por Agamémnon... e agora o meu único amigo deixou-me!

Ela pensou: « Devias ser o tipo de pessoa que consegue ter mais do que um amigo na vida.» Ouviu-o gemer de novo, sem articular palavra, e depois gritar para Pátroclo:

- Como pudeste abandonar-me? E que irei eu dizer ao teu pai? Ele disse-te que ficasses em casa e cuidasses dos assuntos do teu próprio reino; mas eu prometi-lhe que nada de mal te aconteceria e que te levaria de volta a casa coberto de honra e de glória! Sim, levar-te-ei para casa - mas já não há para ti honra ou glória, agora. - Os seus soluços tornaram-se incontroláveis.

Por instantes, Cassandra quase sentiu pena do desgosto do príncipe aqueu; mas conhecia demasiado bem a sua louca volúpia nas batalhas. Matava sem piedade, infligindo tanto sofrimento quanto lhe era possível; mas quando chegava a sua vez de sofrer, era escassa a sua bravura. Se ele tivesse avançado e lutado por si próprio, nada daquilo teria acontecido; Pátroclo tinha sido morto por se encontrar onde Aquiles deveria ter estado. Subitamente percebeu o que viera ali fazer.

- Aquiles - chamou ela baixinho, imitando o sotaque que ouvira no acampamento aqueu.

Ele sentou-se, olhando em volta, revirando os olhos de pavor. - Quem me chama?

- Os fantasmas não têm nome - disse ela, engrossando a voz. - Pertenço ao mundo dos mortos.

- És tu, Pátroclo? Porque vieste assombrar-me, meu amigo? Porque permaneces aqui em lugar de buscares o teu repouso?

- Enquanto permanecer insepulto, não poderei repousar; o meu espírito continuará aqui para assombrar aqueles que planearam a minha morte.

- Então vai-te e assombra o troiano Heitor - gritou Aquiles, aterrorizado, os olhos quase a saltar das órbitas. - Foi a espada dele que te tirou a vida, não a minha!

- Pobre de mim - gemeu Cassandra -, permaneço aqui por ter sido morto quando usava a tua armadura e no lugar que, na batalha, deveria ter sido teu - e depois, com súbita inspiração: - Já não me amas por eu ter passado as portas da morte?

Aquiles uivou.

- Os mortos não têm mais lugar entre os vivos; não me censures ou morrerei de desgosto.

- Eu não te censuro - gemeu Cassandra numa voz sepulcral. - Deixo isso à tua consciência; tu sabes que eu morri a morte que deveria ter sido a tua.

- Não! - gritou Aquiles. - Não! Não vou ouvir isto! Socorro! Guardas! «Que demónio!», pensou ela. «Será que ele acredita realmente que os guardas poderão expulsar um fantasma?» Quatro homens armados irromperam pela tenda.

- Chamaste-nos, meu príncipe? - perguntou o primeiro deles, evitando olhar para o local onde jazia o corpo de Pátroclo.

- Revistem o acampamento - ordenou Aquiles. - Houve um intruso qualquer que entrou sem ter sido visto e que me disse coisas horríveis com a voz de Pátroclo. Encontrem-no e arrastem-no para aqui, e eu tirar-lhe-ei os olhos e pô-los-ei a assar espetados num pau! Arrancar-Lhe-ei o estômago e fritá-lo-ei perante os seus olhos! Eu... mas primeiro encontrem-mo! - Ergueu o punho e os homens saíram precipitadamente.

Concluída a sua missão, Cassandra flutuou atrás deles e ouviu um dizer: - Eu sabia. Ele tem estado maluco desde que se fechou na tenda, e isto ainda o afastou mais do juízo, é o que é.

- Achas que há mesmo um espião?

- Eu não me cansaria muito à procura dele, rapaz - disse com cinismo aquele que falara primeiro. - Dentro do seu pobre cérebro doente, era aí que vocês encontrariam o intruso.

Cassandra teria dado uma gargalhada se pudesse. Como um nevoeiro fantasmagórico, moveu-se ao longo da colina até aos cumes ventosos de Tróia, e silenciosamente deslizou para baixo, fundindo-se com o seu corpo, ainda envolvido pelos braços de Eneias.

Dormiu um sono sem sonhos.

Agora que tinha um homem entre os guerreiros, Cassandra sentia mais fortemente do que nunca o impulso que enviava as mulheres para as muralhas para assistir aos combates. Deixava Fílidas a tratar das serpentes e às outras sacerdotisas a tarefa de curar os feridos. Naquela manhã a fila de carros parecia ter uma pintura mais brilhante e mais polida, as armas fulgindo numa ameaça mais terrível que nunca. Heitor seguia à frente, flanqueado por Eneias e Páris, equipados e imponentes como se fossem os deuses da Guerra em pessoa. Atrás da fila de carros de combate vinham as longas fileiras de soldados apeados com as suas armaduras de cabedal polido, os seus dardos e lanças. Ela pensou que se se encontrasse entre os Aqueus, e visse aproximar-se aquela hoste impressionante, era muito bem capaz de fugir.

As tropas argivas - já alinhadas ao longo das trincheiras que haviam construído entre a planície e a praia onde os seus navios estavam acostados não vacilaram, nem mesmo quando Heitor deu ordem para carregar e soou o grito de guerra troiano. Os carros de combate precipitaram-se, em frente e com estrondo, na direcção das fileiras argivas que se mantinham firmes. Os Aqueus soltaram uma chuva de flechas e, num movimento concertado, os escudos troianos ergueram-se; a maior parte das flechas caiu, inofensiva, sobre o tecto assim formado pelos escudos troianos. Uma segunda chuva de flechas seguiu de imediato a primeira; um ou dois soldados caíram entre as fileiras ou camba­learam para fora delas, regressando às muralhas; mas isso não interrompeu a carga dos carros de combate.

Um grande grito soou entre os dois exércitos; no cimo das trincheiras erguia-se um grande carro de combate em bronze, adornado por asas douradas e um sol raiado e, dentro dele, encontrava-se uma figura brilhante: Aquiles entrara na batalha, dominando as fileiras dos aqueus como um galo domina uma capoeira. Toda a gente de ambos os lados da batalha parecia, por contraste, mais pequena e baça.

Gritando, ele ergueu o seu poderoso escudo e lançou-se à desfilada pelas trincheiras abaixo, como uma Fúria, em direcção a Heitor. Saltando do carro de combate, gritou o seu desafio. Heitor estava pronto para o aceitar. Lançou o seu dardo, que foi repelido pelo escudo de Aquiles; depois, com a espada numa mão e o escudo na outra, envolveu-se rapidamente em combate com Aquiles. Mesmo do local onde se encontrava, Cassandra sentiu o choque daquela primeira investida, que fez ambos os homens recuarem, cambaleantes, vários passos.

Sabia que Andrómaca estava a seu lado, apertando com tal força o seu braço que as suas unhas se enterravam na pele de Cassandra. Aquela batalha tornara-se inevitável a partir do momento em que Pátroclo fora morto.

Cassandra soltou um grito de excitação. Atrás dos soldados apeados que avançavam por entre os carros para apanhar os soldados aqueus, vinham os cavalos das Amazonas. As suas flechas e espadas liquidaram muitos dos soldados apeados. Heitor, defrontando-se com Aquiles, parecia agora mais alto e mais poderoso; Cassandra sentiu que aquele não era o seu irmão - quem ali se encontrava era o esplendoroso Deus da Guerra em pessoa. Heitor feriu Aquiles e o aqueu tombou. Os vivas soltados pelas fileiras troianas pareceram reanimá-lo, e ele pôs-se novamente de pé, fazendo Heitor recuar até ao seu carro. O príncipe troiano saltou para o carro e lutava com Aquiles de cima do estribo; depois, fazendo o carro girar sobre si próprio, derrubou Aquiles quando este se lançava sobre ele. Aquiles recuperou e lançou o seu dardo. Este foi repelido pela arma­dura de Heitor, mas seguiu-se uma estocada com a espada que o atingiu no pescoço. Heitor tombou dentro do carro. Troilo agarrou as rédeas e, derrubando Aquiles de novo, lançou-se à desfilada em direcção às muralhas. As Amazonas carregaram então sobre Aquiles com as suas lanças, mas este estava rodeado por, pelo menos, duas dúzias dos seus Mirmídones, que formavam em torno dele uma sólida parede de escudos. As Amazonas viram-se forçadas a recuar, pois embora tivessem abatido dez ou doze dos homens de Aquiles, surgiam sempre mais.

Os Mirmídones alcançaram o carro de combate de Heitor quando este já se encontrava sob as muralhas de Tróia. Depois, atrás deles, acorreu Aquiles, à desfilada no seu próprio carro puxado por um só cavalo - ele soltara o outro.

Lançou deliberadamente o seu carro contra o de Heitor, lançando ao chão ao jovem Troilo. O rapaz aterrou de pé e foi submerso por um enxame de Mirmídones. Andrómaca gritava; Cassandra virou-se para a acalmar e, quando olhou de novo, Aquiles tomara as rédeas do carro de Heitor e precipitava-se de regresso às linhas aqueias com Heitor - ou o seu cadáver - ainda lá dentro.

Troilo lutava defendendo a sua vida. Uma das amazonas acorreu e, matando três dos homens de Aquiles, içou Troilo para a sela. Páris e Eneias haviam-se lançado na perseguição de Aquiles, mas os homens no topo das trincheiras repeliam-nos com aquilo que parecia ser uma parede de dardos, nos quais os seus cavalos ficavam empalados. A carga das Amazonas rompeu a parede de dardos e salvou Páris e Eneias, mas os seus carros virados ficaram nas mãos dos Aqueus. Aquiles, com Heitor e o seu carro, desaparecera de vista. Mesmo a coberto de uma chuva de setas disparadas do cimo das muralhas, foi necessária uma hora de árduo combate para que os Troianos conseguissem abrir caminho até aos portões; Andrómaca foi ter com eles.

- Não conseguiram recuperar o seu corpo? - berrou ela. - Deixaram-no nas mãos deles?

- Fizemos o que pudemos - disse Páris; tinha perdido a maior parte da sua armadura e apoiava-se no seu amigo, sangrando de um grande golpe de espada numa das coxas. - Mas com Aquiles a comandar os seus homens...

- Aquiles! Maldito seja para sempre! Que os seus ossos apodreçam insepultos nas margens do Estige! - Andrómaca soltou um enorme grito selvagem de lamento: - Heitor está morto! Que Tróia pereça, agora, realmente!

Hécuba juntou-se aos lamentos:

- Ele está morto! O maior dos nossos heróis está morto! Morto ou nas mãos dos Aqueus...

- Oh, ele está mesmo morto - disse Eneias, carrancudo.

- Irrita-me ter de o admitir, mas sem a carga das Amazonas estaríamos todos mortos - disse Deífobo, que tirara Troilo da sela da amazona e o levava meio ao colo examinando os seus ferimentos. Hécuba correu para ele e tomou-o nos braços, chamando um sacerdote-curandeiro.

- Ah, os meus filhos! Meu Heitor! O meu primogénito e o meu mais novo, perdi os dois numa só hora! Ah, a mais fatal de todas as batalhas! Já começouu - ivou Hécuba e tombou sem sentidos. Cassandra correu a ajoelhar-se a seu lado aterrorizada, pensando que o choque matara a sua mãe também.

- Não, Troilo está vivo - disse Eneias, erguendo com gentileza a velha mulher. - Tens de ser forte, mãe; ele precisará dos teus bons cuidados se não o quiseres perder também. - Entregou Troilo a um sacerdote-curandeiro que o reanimou com um gole de vinho, examinando depois os seus ferimentos. Mulheres passavam vinho em volta, Eneias pegou numa das taças e bebeu-a de um só trago.

- Acho que amanhã vou fazer cuidadosamente pontaria a Aquiles daqui das muralhas e tentar mandá-lo para fora do campo, antes mesmo de nos aventurarmos a sair.

- Ele não pode ser morto dessa forma - disse Deífobo. - Aquela armadura dele foi forjada por um deus; as flechas ressaltam nela como se fossem de galhos!

- Não foi forjada por um deus - disse Pentesileia -, mas sim forjada em ferro maciço. Fazes alguma ideia do que aquilo deve pesar? Nem as flechas das minhas mulheres, que têm pontas de metal, a conseguem penetrar.

Páris disse com ódio:

- Há uma velha lenda segundo a qual Aquiles está protegido por feitiços para que nenhum ferimento infligido por um mortal o possa tombar.

- Deixa-me só conseguir que uma arma chegue à sua pele -disse Eneias -, garanto-te que o mato. Mas temos de ir lá acima dar a notícia a Príamo; a pior noticia do ano inteiro.

Cassandra disse entredentes:

- Já devíamos estar à espera que isto acontecesse. Heitor matou Pátroclo; ;'Aquiles estava pronto para o atacar no momento em que ele pôs os pés fora da muralha. Isto não foi um acto de guerra, foi assassínio. - E em silêncio pensou se a diferença seria assim tão grande.

- Temos de ir ter com Aquiles imediatamente - disse Eneias -, talvez mesmo antes de irmos dizer ao nosso pai, e pedir uma trégua para sepultar e ~ chorar o nosso irmão.

- Pensas realmente que eles ta concederão? - perguntou Páris, com sarcasmo. - Tens deles uma opinião demasiado boa.

- Têm de conceder - disse Eneias. - Nós demos-lhes uma trégua para os jogos fúnebres de Pátroclo.

- Se for necessário - disse Andrómaca -, eu própria me irei ajoelhar perante Aquiles e implorar-lhe que me devolva o corpo do meu marido.

- Eles devolvê-lo-ão - disse Eneias. - Aquiles está sempre a falar da honra.

- Só da honra dele, segundo me apercebi - disse Cassandra.

- Bem, então a sua própria honra irá forçá-lo a agir honradamente - disse Eneias. - Eles conhecem-me; deixem-me lá ir então, com uma delegação da guarda do próprio Heitor para trazer o seu corpo para casa.

- Temos de dizer ao pai primeiro - disse Troilo, erguendo-se depois de ter recebido os cuidados do curandeiro, muito pálido e com a cabeça envolta em ligaduras. - Se quiserem, eu digo-lhe. Sou eu o culpado; deixei-o cair nas mãos de Aquiles.

Hécuba abraçou-o fervorosamente.

- Não te culpes, meu amor. Regozijo-me por tu não o teres seguido na morte. Mas sim, vai ter com Príamo; nada o poderá confortar da perda do nosso primogénito senão saber que ainda somos abençoados com um filho...

- Eu vou dizer-lhe - disse Páris. - Mas primeiro reúnam todos os meus irmãos; todos aqueles de nós que ainda vivemos, iremos diante dele prontos para o confortar.

- E eu - disse Cassandra -, eu irei ao Templo da Virgem avisar Políxena; ela e Heitor eram quase da mesma idade, e gostavam muito um do outro.

Começavam a preparar-se para ir cumprir as suas diversas tarefas, quando Andrómaca se aproximou da muralha e soltou um grito agudo e descontrolado. - Ah, o demónio, o monstro! Que estará ele a fazer agora?

- Quem? - perguntou Cassandra, mas já sabia a resposta; demónio, monstro, só podia ser uma pessoa. Correu para a muralha.

O sol ia alto. Ainda não era meio-dia; mas a eles parecia-lhes que a grande batalha a que haviam assistido durara metade do dia. Havia uma grande nuvem de poeira na planície diante de Tróia; dissipou-se um pouco e ela pôde ver o carro de Aquiles, com o próprio Aquiles de pé em cima dele, conduzindo a sua parelha de cavalos. E no meio do pó, presa à traseira do carro, uma figura cuja identidade era claramente revelada pela armadura.

- Heitor! Mas o que anda ele a fazer? - perguntou.

Era por demais evidente o que ele estava a fazer: arrastava o cadáver de Heitor na poeira, atrás do seu carro, enquanto descrevia violentos círculos em volta da planície. Os Troianos olhavam-no petrificados de horror.

- Céus - disse Cassandra -, mas ele é louco. Eu pensei... - Ela pensara que lhe chamavam louco retoricamente; mas não havia dúvida de que um homem que aviltava assim o corpo de um inimigo morto - mesmo de um inimigo que tivesse morto o seu amigo mais querido -devia ser realmente louco.

«Deuses, ele não pode ser deixado à solta sem vigilância», pensou, com um arrepio.

Eneias disse:

- Céus, isto ultrapassa os limites da vingança; o homem é desumano. - Enlouquecido pelo desgosto, talvez - disse Cassandra. - Ele amava Pátroclo para lá do que é razoável, e quando o seu amigo morreu, quebrou-se o último dos laços que o prendiam à sanidade.

- Ainda assim, temos de pôr um fim a isto - disse Eneias. - Temos de enviar uma mensagem aos Aqueus (Odisseu, pelo menos, é um homem razoável) e recuperar o corpo de Heitor antes que a notícia chegue aos ouvidos do seu pai.

- Quer dizer - disse Andrómaca, cerrando os punhos - que eu tenho de ficar aqui a assistir a isto sem enlouquecer de dor; mas Príamo, que é homem e é rei, tem de ser poupado até mesmo ao relato, quanto mais à visão... - Lançou a cabeça para trás e gritou: - Irei eu própria lá abaixo, se a isso me vir forçada, e com uma chibata convencerei aquele homem de que não pode fazer isto diante dos olhos de toda a família de Heitor!

- Não - disse Páris, abraçando-a com suavidade. - Não, Andrómaca, ele não te daria ouvidos. Digo-te: ele é louco.

Será? Ou estará ele a fingir ser louco para que nós lhe ofereçamos um maior resgate pelo corpo de Heitor? - perguntou Andrómaca. Cassandra não pensara nisso. Por fim, Troilo, levando consigo mais dois ou três dos filhos de Príamo, foi dizer ao rei que Heitor morrera, enquanto Páris e Eneias se armavam e saíam num carro de combate com o arauto favorito de Príamo. Em vão tentaram fazer com que Aquiles os ouvisse, mas ele limitou-se a continuar chicoteando os cavalos num frenesi e recusou-se a escutar uma única palavra do que o arauto dizia.

Passado algum tempo eles pararam e conferenciaram entre si, dirigindo-se depois ao acampamento aqueu para falar com Agamémnon e os outros capitães. Algum tempo depois, parecendo desanimados, regressaram a Tróia.

Andrómaca correu para eles.

- Que disseram eles? - perguntou, embora fosse óbvio que não haviam sido bem sucedidos. Em baixo, na planície, o carro de Aquiles continuava a arrastar o cadáver em círculos. Parecia ter a intenção de continuar pelo menos até ao pôr do Sol, e talvez durante mais tempo.

Eneias disse:

- Eles não farão nada para deter Aquiles; disseram que ele é o seu chefe e que fará o que lhe apetecer com os seus cativos e prisioneiros. Ele matou Heitor e o corpo pertence-lhe; se vai trocá-lo por um resgate ou não, é uma escolha sua.

- Mas isso é monstruoso - disse Andrómaca. - Vocês não hesitaram em conceder-lhe uma trégua para chorar Pátroclo! Como podem eles fazer isto? - Eles não queriam fazê-lo - disse Páris. - Agamémnon nem conseguia

olhar-me de frente. Ele sabe que estão a violar todas as regras da guerra, regras que eles próprios fizeram e as quais nós concordámos em respeitar. Mas sabem que não têm possibilidades de triunfar sem Aquiles; fizeram-no zangar uma vez e não se arriscarão a que ele se zangue de novo.

O Sol baixara consideravelmente e a planície de Tróia estava agora, em grande parte, coberta pelas longas sombras das muralhas. Páris disse:

- Só há então uma coisa a fazer: ir lá abaixo e lutar pelo seu corpo. - Cha­mou a ordenança e começou a vestir a armadura.

- Chamem as Amazonas; a sua carga e as suas flechas poderão cobrir-nos. Elas são combatentes ferozes, mais ferozes do que qualquer homem - disse Eneias. - Sacrificarei o meu melhor cavalo ao Deus da Guerra se Ele nos conceder a graça de recuperar o corpo de Heitor.

- Eu sacrificar-lhe-ei mais do que isso se Ele me der Aquiles - disse Páris. - Heitor e eu nunca fomos muito chegados, mas ele era o meu irmão mais velho e eu amava-o; e mesmo que não amasse, os deveres de família não me permitiriam que ficasse a ver o seu cadáver ser desonrado. Nem mesmo Aquiles pode ter desavenças com os mortos.

Cassandra disse:

- Recordo-me de Heitor ter dito que ele e Pátroclo teriam muito o que conversar no Além.

- Sim - disse Eneias gravemente. - Se Aquiles parasse para pensar, saberia que Heitor e o amigo dele celebrarão lado a lado, como camaradas, nos salões do Além.

- Estou certo de que não é da vontade de nenhum deus que eu encontre Aquiles e seja camarada dele do outro lado da morte - disse Páris com ferocidade. - Ou juro que, a não ser que eu aprenda lá algo que não me tenha sido dado a conhecer nesta vida, destruirei a paz daquele mundo quando lá encontrar Aquiles

- Oh, sssh - disse Eneias. - Nenhum de nós sabe o que pensará ou fará quando tiver passado essas portas; mas, neste mundo, a todos nós foi convenientemente ensinado que a inimizade termina com a morte, e o que Aquiles está a fazer agora é um ultraje e uma atrocidade, para além de ser, pura e simplesmente, falta de educação. Ele devia demonstrar respeito por um inimigo morto; tu sabe-lo, eu sei-o e os outros aqueus sabem-no. E dou-te a minha palavra, se Aquiles não o sabe, terei todo o prazer em dar-Lhe uma lição, aqui e agora. Os soldados estão armados e prontos?

- Sim - gritou Páris. - Abram os portões.

Príamo caminhou vagarosamente por entre as fileiras e dirigiu-se à muralha onde se encontravam as mulheres. Ele próprio estava pálido como um morto, pensou Cassandra, e estivera a chorar.

- Se recuperares o corpo do meu filho para que seja dignamente sepultado - disse, quando Eneias passou por ele a caminho dos portões -, escusado será dizer que poderás pedir qualquer recompensa.

Eneias ajoelhou-se por instantes diante dele e beijou a mão do velho homem. - Pai, Heitor era meu cunhado e meu irmão de armas; não quero qualquer recompensa por fazer por ele aquilo que, tenho a certeza, ele seria o primeiro a fazer por mim.

- Então, que as bênçãos de todos os deuses que eu possa invocar desçam sobre ti - disse Príamo, e Eneias ergueu-se, dando-lhe um rápido abraço e beijando-o na face. Depois largou-o e desceu com os homens para o portão. Quando Troilo tentou juntar-se-lhes, Hécuba gritou:

- Não! Tu também, não! - e agarrou-o pela túnica; mas Troilo soltou-se e Príamo fez sinal à rainha para que o deixasse ir.

Hécuba deixou-se cair, chorando.

- Velho cruel! Pai desnaturado! Perdemos hoje um filho; queres perder outro?

- Ele não é nenhuma criança - disse Príamo. - Ele quer ir; não o proibirei. Não o forçaria, se ele procurasse um pretexto para ficar; devias ter orgulho nele.

- Orgulho! - rugiu ela, olhando para baixo, enquanto os carros se lançavam para fora dos portões. - Há mais do que um homem louco, aqui!

 

Cassandra já vira as Amazonas lutar muitas vezes; desejou poder estar a cavalgar ao lado delas. Porém, se achara violenta a luta daquela manhã, essa não fora nada em comparação com a ferocidade daquela batalha para recuperar o corpo de Heitor.

A todo o momento, os soldados troianos faziam algo que se assemelhava a uma carga suicida contra o carro de Aquiles, tentando voltá-lo ou despistá-lo e cortar a corda que prendia o corpo; mas, apesar do esforço conjunto dos soldados de Heitor e das Amazonas, não conseguiam chegar perto dele. Parecia que o próprio Deus da Guerra acompanhava Aquiles, e mais de uma dúzia de soldados e sete amazonas morreram naquelas investidas, antes de serem finalmente afastados pela chegada dos aurigas de Agamémnon - comandados por Diomedes - e dos melhores arqueiros espartanos.

Quando a escuridão já quase não permitia ver, os Troianos retiraram por fim; e quando Troilo tombou, atingido por uma flecha disparada por Aquiles, Eneias gritou finalmente a suspender o ataque, levando Troilo para o interior das muralhas.

- Ele não queria viver - chorou Hécuba sobre o seu corpo. - Ele culpava-se a si próprio - eu ouvi-o - pela morte do irmão...

Sob o pôr do Sol ardente, a nuvem de poeira atrás do carro de Aquiles não parecia diminuir.

- Parece que ele faz tenção de continuar com aquilo toda a noite - disse Páris. - Não há mais nada que possamos fazer.

- Eu consigo, provavelmente, ver melhor no escuro do que os cavalos dele - disse Eneias. - Podíamos tentar de novo quando a Lua surgisse...

- Não há razão para isso - disse Pentesileia. - Tens um irmão para sepultar e chorar, agora; amanhã haverá tempo para pensar de novo em Heitor. Hécuba, ajoelhada diante do cadáver de Troilo, ergueu o rosto inchado pelas lágrimas parecendo ter, subitamente, envelhecido vinte anos.

- Se for preciso, eu irei ao encontro de Aquiles para lhe implorar, por amor da sua própria mãe, que me deixe sepultar o meu filho. Certamente que ele tem uma mãe e que a respeita.

- Achas realmente que algo de humano deu à luz aquele monstro? disse Andrómaca, chorando. - Decerto que ele foi tirado de um ovo de serpente!

- Como possuidora de serpentes e em seu nome, acuso esta ofensa-disse Cassandra. - Nunca serpente alguma foi caprichosamente cruel; elas matam . apenas para comer ou defender as crias, e nunca nenhuma serpente fez guerra ; contra outra, fosse qual fosse o deus a quem serviam.

- Deixemos isso por esta noite - disse Andrómaca. - Talvez o novo dia o devolva à razão. - Voltou as costas à muralha, evitando deliberadamente olhar para a imagem do carro de Aquiles e para a nuvem de poeira que ocultava o corpo de Heitor.

Ergueu delicadamente Hécuba pelo braço e, observou Cassandra, tomou sobre si grande parte do peso da mulher mais velha. Juntas, subiram a a rua íngreme em direcção ao palácio.

Cassandra curvou-se sobre o corpo sem vida de Troilo. Recordou-se de quando ele nascera, o bebé de rosto doce e vermelho que ele era, guinchando e golpeando o ar com os seus pequenos punhos. Como a sua mãe implorara outro filho, e como ficara feliz quando ele nascera! Mas, também, ela sempre ficara feliz com qualquer filho nascido no palácio, mesmo os nascidos das concubinas; a rainha era sempre a primeira a tomar qualquer bebé nos braços, por mais humilde que fosse a mãe.

Bem, ela prometera ir falar com Polí~cena; subiu lentamente as ruas íngremes da cidade, em direcção ao Templo da Virgem. Com os ventos que sopravam àquela altitude a açoitar-lhe a capa e o cabelo, alcançou o pátio exterior onde se Tuia a estátua da Virgem.

Vivera já tantos anos como sacerdotisa, que quase deixara de se preocupar com a natureza dos deuses e deusas, fossem eles oriundos de algum lugar extra-humano ou de uma espécie de alma humana colectiva buscando celebrar as mais altas virtudes e aquilo que nela existia de divino. Porém agora, olhando o rosto sereno da Virgem, essas questões surgiam-lhe de novo: seria possível alguém, humano ou divino, vir ao mundo sem ser através de uma mãe, e não seria esse próprio conceito uma blasfémia contra tudo o que existia de divino? Ela não dera à luz nenhuma criança; mas no entanto, dentro de si, uma insatisfeita paixão pela maternidade trouxera Honey para os seus braços, e sabia que a protegeria com a sua própria vida como faria qualquer outra mãe.

Partilhava agora com a sua própria mãe uma dor intensa. Sentia-se culpada por ter subestimado Aquiles; deveria saber que a sua loucura o tornava ainda mais perigoso, da mesma forma que o cão de uma casa se pode tornar feroz e traiçoeiro.

Porém, se tivesse feito o aviso, não teria sido escutada.

Uma das servas do santuário reconheceu-a e veio perguntar-lhe, com toda a deferência, se poderia fazer alguma coisa pela filha de Príamo.

- Desejava falar com a minha irmã Políxena - disse ela, e a mulher foi chamá-la imediatamente.

Não tardou a ouvir passos e Políxena entrou na sala, gritando ao ver a expressão de Cassandra.

- Trazes más notícias, irmã! Foi a nossa mãe, o nosso pai...

- Não; eles ainda estão vivos - disse Cassandra -, embora não saiba o que estas notícias irão provocar-lhes mais tarde.

Políxena, que era agora uma mulher alta, quase a chegar aos trinta anos, continuava a ter um rosto suave de criança. Aproximou-se e abraçou Cassandra, chorando.

- O que queres dizer com isso? Diz-me.

- Heitor... - disse Cassandra, e sentiu-se quase à beira das lágrimas. Pior! - disse. - Não apenas Heitor mas também Troilo. - A sua garganta apertou-se e mal conseguia falar. - Ambos mortos no espaço de uma hora, às mãos de Aquiles; e aquele louco anda a arrastar o cadáver de Heitor atrás do seu carro e recusa-se a ouvir falar em entregar o corpo para ser sepultado...

Políxena rebentou num pranto e as duas irmãs agarraram-se uma à outra, unidas como nunca mais haviam estado desde que eram criancinhas.

- Irei imediatamente - disse Políxena. - A mãe vai precisar de mim; deixa-me só ir buscar a minha capa. - Desapareceu apressadamente e Cassandra pensou, com mágoa, que o que ela dissera era verdade; ela não conseguia consolar a mãe. Até mesmo Andrómaca era mais chegada a Hécuba do que ela. Toda a sua vida assim fora: de todos os filhos, Heitor era quem mais próximo estava do coração dos seus pais, e ela, Cassandra, a menos amada. Seria apenas por ela ter sido sempre tão diferente dos outros?

Sentia um enorme desgosto por não ser capaz de dar apoio à mãe, mesmo naquele terrível momento. Pelo facto de conseguir sempre manter a compostura e não ficar fora de si com o desgosto, nunca ocorrera a ninguém que também ela necessitava de ser consolada. Sabia que a sua insondável tristeza, isenta de lágrimas, se afigurava à sua mãe como frieza e desumanidade, nada próprias do carácter de uma mulher.

Políxena voltou com o manto claro das sacerdotisas, trazendo algo amarrado à cintura com um pano. Os olhos dela estavam vermelhos, mas parara de chorar; porém, Cassandra sabia que ela iria chorar novamente quando visse as lágrimas da mãe.

«Quem me dera ser capaz; Heitor merece todas as lágrimas que possamos verter por ele.» E perguntou-se, desesperada: «Que haverá de errado comigo para, com todo o meu desgosto, não ser capaz de chorar pelo meu irmão mais querido?»

Porém, no seu íntimo, uma vozinha racional dizia: «Heitor era um tolo; sabia que Aquiles era um louco que não respeitava quaisquer regras civilizadas de guerra; e mesmo assim, em nome de algo a que chamava honra, lançou-se para a morte. Essa honra era mais importante para ele do que a vida, ou do que Andrómaca ou do que o seu filho, ou do que a ideia da dor que os seus pais iriam sentir.» E apesar do horror de tudo aquilo, ela não conseguia sentir qualquer angústia ou desgosto adicionais pelo que Aquiles tinha feito ao cadáver. Heitor estava morto, e isso era suficientemente mau. O que poderia torná-lo pior?

« E todos nós vamos morrer, de qualquer forma; e só muito poucos de forma tão rápida e misericordiosa. Porque não havemos de regozijarmo-nos por lhe terem sido poupados maiores sofrimentos?»

Políxena estendeu o pano a Cassandra e ela sentiu algo duro dentro dele. - São as jóias que possuo - disse ela. - O pai pode precisar delas para resgatar o corpo de Heitor. Aquiles é tão ávido de ouro como daquilo a que ele chama glória; talvez isto ajude.

- Ele pode contar com as minhas, também - disse Cassandra -, embora eu tenha poucas: só os meus anéis e as pérolas de Cálcis.

Desceram juntas a encosta, em direcção ao palácio. Estava a fazer-se tarde; o Sol, já baixo, escondia-se atrás de um espesso banco de nuvens e o vento agreste transportava um cheiro de chuva. Na planície não havia sinais do carro de Aquiles; pelo menos por essa noite, desistira da sua medonha vingança.

- Talvez eles façam uma incursão nocturna para o recuperar - disse Políxena. - Ou então, se chover, talvez Aquiles concorde em aceitar um resgate; não vai querer conduzir um carro de combate durante o dia inteiro no meio de uma tempestade.

- Não me parece que isso lhe faça grande diferença - disse Cassandra. - Parece-me que a atitude mais sensata seria aceitar isto e fazer o que ele menos espera: deixá-lo ficar com o cadáver de Heitor; e amanhã, então, reunir todas as nossas forças e lançar tudo quanto temos numa tentativa conjunta para matar Aquiles e Agamémnon e talvez também Menelau.

Políxena olhou para ela, profundamente consternada, enquanto a chuva que começava a cair se confundia com as lágrimas na sua face.

- Peço-te por tudo, irmã, não digas uma coisa dessas à mãe ou ao pai disse ela. - Nunca pensei que pudesses ser desprendida ao ponto de deixar Heitor à chuva, sem sepultura.

- Não é Heitor que ali jaz sem sepultura - disse Cassandra secamente -; é um cadáver como outro qualquer.

- Não sei se tu és muito estúpida, ou simplesmente muito maldosa - disse Políxena -, mas falas como uma bárbara e não como uma mulher civilizada, uma sacerdotisa e princesa de Tróia. - Desviou o olhar e Cassandra percebeu que só tinha piorado as coisas. Voltou a cara a Políxena para esconder as lágrimas que tinha nos olhos, sabendo, no entanto, que Políxena ficaria com melhor impressão sua se as visse. Não voltaram a falar.

Quando chegaram ao palácio, uma criada (Cassandra reparou que os olhos da velha mulher estavam tão inchados e vermelhos como os de sua mãe - todos, mesmo os serventes das cozinhas, gostavam de Heitor, e todas as mulheres do palácio recordavam Troilo como a criancinha a quem davam mimos) recebeu as suas capas encharcadas, secou-lhes o cabelo e os pés com toalhas e conduziu-as à sala de jantar principal.

O seu aspecto era praticamente igual ao dos outros dias - um fogo ruidoso projectando luz por toda a sala, e castiçais de braços espalhando cintilações que faziam as pinturas das paredes ondular como se estivessem a ser vistas debaixo de água. O banco esculpido onde Heitor habitualmente se sentava estava vazio, e Andrómaca encontrava-se sentada entre Príamo e Hécuba, como uma criança no meio dos pais.

Páris e Helena estavam juntos, de mãos dadas. Avançaram para saudar Políxena e esta foi beijar os pais. Cassandra sentou-se no seu lugar habitual junto de Helena; mas quando os criados lhe colocaram a comida no prato, sentiu que não conseguia engolir e não fez mais do que debicar um prato de vegetais cozidos e beber um pouco de vinho com água. Páris mostrava-se triste, mas Cassandra sabia que ele tinha perfeita consciência de que era agora o filho mais velho de~ Príamo e da sua rainha, e que iria comandar os exércitos. « Se quiserem alimentar algumas esperanças para Tróia, alguém vai ter de tirar-lhe essa ideia da cabeça», pensou. «Ele não é o Heitor.» Depois ficou espantada consigo própria; havia muito tempo que sabia não existir qualquer esperança para Tróia. Por que razão aqueles incontroláveis pensamentos de esperança insistiam em surgir constantemente?

Quereria isso dizer que as suas visões de destruição eram simplesmente alucinações ou insanidade mental, como todos diziam? Ou significaria que, de alguma forma, com o desaparecimento de Heitor nascia uma nova esperança para Tróia? Não, isso é que era, certamente, uma loucura; «ele era o melhor de nós todos», pensou, e depois percebeu que alguém - Páris? Príamo? - tinha realmente dito aquelas palavras em voz alta.

- Ele era o melhor de nós todos - disse Páris -, mas já não está aqui e nós teremos de arranjar uma forma de conduzir o resto desta guerra sem ele. Não faço ideia de como o faremos.

- É uma guerra essencialmente tua - disse Andrómaca. - Eu disse a Heitor que ele deveria deixá-la contigo, desde o início.

Alguém soluçou sonoramente; era Helena. Andrómaca voltou-se para ela com súbita raiva.

- Como te atreves? Se não fosses tu, ele estaria vivo e o seu filho não seria órfão de pai!

- Oh, vamos, minha querida - disse Príamo em tom conciliador -, não deves falar assim com a tua irmã; já existe dor suficiente nesta casa, esta noite. - Irmã? Nunca! Esta mulher que pertence aos nossos inimigos, que está

na origem de todos os nossos problemas - vejam-na: senta-se a escarnecer da nossa desgraça porque agora é o seu amante quem irá comandar todos os exércitos de Príamo...

- Os deuses sabem que não é verdade - disse Helena, reprimindo as lágrimas. - Eu choro a morte dos filhos desta casa, que se tornou a minha casa, e o desgosto dos que são, agora, meu pai e minha mãe.

- Como ousas... - recomeçou Andrómaca; mas Príamo agarrou-lhe a mão e segurou-a, sussurrando-lhe algo.

- Como desejam que vos prove a minha mágoa? - Helena pôs-se de pé e aproximou-se do trono de Príamo. O seu longo cabelo dourado estava solto, caindo-lhe sobre os ombros; os seus olhos azuis, profundamente cravados no rosto e marcados pelo pranto, estavam luminosos à luz dos castiçais.

- Pai - disse ela a Príamo -, se essa for a tua vontade, descerei até ao acampamento e oferecer-me-ei aos Aqueus em troca do corpo de Heitor.

- Sim, vai - disse Hécuba prontamente, ainda Helena quase não acabara de falar, e antes que Príamo pudesse responder. - Eles não te farão mal algum. Andrómaca interveio:

- Talvez fosse a única boa acção da tua vida, e uma atenuante para tudo o resto que fizeste a esta casa.

Cassandra estava pregada ao seu lugar, embora o seu primeiro impulso tivesse sido levantar-se e gritar «Não! Não!». No entanto; recordava o que profetizara quando Páris surgira pela primeira vez às portas de Tróia: que ele era o archote que iria gerar o fogo que haveria de consumir totalmente a cidade - profecia que repetira quando ele trouxera Helena para Tróia. Isso acontecera havia muito tempo; ela já não culpava Helena pelo que viesse a acontecer à cidade: era o destino traçado pelos deuses. E o seu pai e irmãos - até mesmo o próprio Heitor - não lhe tinham dado ouvidos, naquela altura; e dissesse ela o que dissesse, eles iriam decerto fazer exactamente o contrário. Era melhor ficar calada. Príamo disse suavemente:

- É uma oferta generosa, Helena; mas nós não podemos, de modo algum, permitir que faças isso. Tu não és a única causa desta guerra. Resgataremos o corpo de Heitor com todo o ouro de Tróia, se necessário. Aquiles não é o único comandante dos Aqueus. Com certeza haverá alguns que irão dar ouvidos à razão.

- Não! - Andrómaca levantou-se e ficou a olhar para Helena com uma expressão sombria; Cassandra apercebeu-se de que seria possível que algumas pessoas a achassem mais bela do que Helena, embora a sua beleza fosse de um tipo diferente: morena, enquanto Helena era loira, direita onde Helena era arredondada. - Não, pai, deixa-a ir, peço-te. Também me deves algo; eu gerei o filho de Heitor. Imploro-te, deixa-a partir, e se ela não quiser, expulsa-a à chicotada. Esta mulher nunca passou de uma maldição para todos nós em Tróia. Páris pôs-se de pé.

- Se expulsarem Helena - declarou -, eu irei com ela.

- Vai, então - gritou Andrómaca ferozmente. - Isso seria também uma bênção para a nossa cidade! Tu não és menor maldição do que ela! O teu pai agiu bem ao procurar mandar-te para longe.

- Ela está a delirar - disse Deífobo rudemente. - Helena não nos deixará enquanto eu viver; a Deusa enviou-nos Helena, e nenhum outro tecto a abrigará enquanto eu e os meus irmãos formos vivos.

Príamo fixou o fundo da sala.

- Que hei-de fazer? - perguntou a meia voz. - A minha rainha e a mulher do meu Heitor disseram...

- Ela tem de ir - gritou Andrómaca. - Se ela aqui ficar, eu vou-me embora de Tróia esta noite; desafio todas as mulheres da casa de Príamo a acompanharem-me; será que vamos ficar debaixo do mesmo tecto com ela, que lançou a nossa cidade por terra?

- No entanto, as muralhas de Tróia mantêm-se firmes - disse Páris. -Nem tudo está perdido. - Levantou-se e aproximou-se de Andrómaca, pegando-lhe gentilmente na mão e levando-a aos lábios. - Não sinto qualquer ressentimento em relação a ti, pobre rapariga - disse. - Estás perturbada pela tua dor e não é de admirar. Garantirei que Helena não te guarde rancor.

Andrómaca afastou-se bruscamente.

- Mulheres de Tróia, faço-vos um apelo: abandonai o tecto amaldiçoado que alberga a falsa Deusa que nos conduzirá à ruína e à escravidão... - a sua voz subira a um tom estridente e histérico; pegou num archote e gritou: - Mulheres de Tróia, segui-me...

Príamo levantou-se do seu lugar e bradou:

- Basta! Já temos problemas suficientes sem isto! Minha filha - disse ele para Andrómaca -, eu compreendo a tua dor; mas, peço-te, senta-te e escuta-nos. Nada se vai resolver com a expulsão de Helena. Os soldados já morriam em combates muito antes de Heitor ter nascido; ou eu. - Estendeu os braços para envolver Andrómaca e, instantes depois, ela cedia completamente de encontro ao seu peito, soluçando. Hécuba avançou para a abraçar.

- Paz! - disse, sombria. - Temos Troilo para chorar e sepultar antes do nascer do Sol; e vocês, mulheres, reúnam as vossas jóias para oferecer como resgate de Heitor.

Cassandra, ao juntar-se às mulheres que se reuniam em volta do corpo de Troilo, deu consigo a pensar se Andrómaca teria razão. De todas as mulheres, apenas Andrómaca não acompanhara Hécuba; ficara aos pés de Príamo, chorando desoladamente.

- Nem sequer tenho um corpo sobre o qual chorar. - Depois levantou a voz e gritou: - Não deixes Helena tocar no corpo de Troilo, mãe! Não conheces a velha crença de que um cadáver sangra quando o seu assassino lhe toca? E ele tem já pouco sangue para perder, pobre criança!

 

Toda a noite Cassandra ouviu a chuva e o vento batendo com violência em redor do alto palácio de Príamo, enquanto as mulheres da casa real choravam Troilo. Lavaram e vestiram o cadáver, ungiram-no com essências preciosas e queimaram incensos para disfarçar o cheiro doentio da morte. Na calmia cinzenta entre a escuridão e o nascer do Sol, interromperam as lamentações que tinham durado a noite inteira para beberem vinho e escutarem uma canção de uma das menestréis presentes na sala. Enaltecia a beleza e a coragem do jovem morto, cantando que ele tombara porque a sua beleza era tal que o Deus da Guerra o desejara e tomara a forma de Aquiles para conseguir possuí-lo.

Quando a canção terminou, Hécuba chamou a autora junto de si e ofereceu-lhe um anel como recordação pela sua nobre elegia, e uma das mulheres persuadiu-a a sentar-se e descansar, e a beber uma taça de vinho aquecido com especiarias. Helena, que aceitara também uma taça, foi sentar-se ao lado de Cassandra.

- Posso ir sentar-me noutro lugar qualquer, se não quiseres ser vista a falar comigo - disse ela -, mas parece-me que já não sou bem-vinda em lugar nenhum entre as mulheres.

O seu rosto estava magro, abatido até, e pálido - perdera peso desde a morte dos filhos e Cassandra reparou que existiam zonas baças no meio do brilho dos seus cabelos.

- Não, fica aqui - disse Cassandra. - Creio que sabes que serei sempre tua amiga.

- Seja como for - disse Helena -, a minha oferta era sincera; voltarei para Menelau. Provavelmente, ele vai matar-me, mas talvez tenha uma oportunidade de rever a única iilha que me resta, antes de morrer. Páris pensa que teremos outros filhos; e, de facto, tive esperanças; mas é tarde de mais para isso. Penso que ele queria que o nosso fiho governasse Tróia depois de nós.

Olhou meio interrogativa para Cassandra, que assentiu com a cabeça, tendo a chocante sensação de que, ao concordar com o que Helena dissesse, era como se desejasse que o destino fosse aquele.

Nos últimos anos tinha-se acostumado àquele sentimento, e sabia que era disparatado; as culpas, se existiam culpas, cabiam aos deuses, ou a quaisquer forças existentes que faziam com que os deuses agissem como agiam. Ergueu a sua taça a Helena e bebeu, sentindo o peso do vinho atingi-la fortemente devido à hora pouco usual e ao pouco que tinha comido no dia anterior. Os seus pensamentos pareceram ecoar em Helena, que disse:

- Pergunto-me se a rainha estará a ser sensata ao servir um vinho tão forte não diluído, quando estamos todos quase a desfalecer de desgosto ou de fome; estas mulheres vão estar todas a delirar de embriaguez dentro de meia hora.

- Não é uma questão de sensatez, mas sim de tradição - disse Cassandra. - Se ela servisse algo que não fosse o melhor que possui, iriam pôr em causa o seu amor e respeito pelo rapaz morto.

- É estranho - disse Helena, pensativamente - o modo como as pessoas pensam, ou se recusam a pensar, sobre a morte. Páris, por exemplo, é como se ele achasse que, uma vez que os nossos filhos morreram, talvez os deuses aceitem o sacrifício das suas vidas e poupem as nossas.

- Se um deus aceitasse os inocentes como expiação das faltas dos culpados, eu não conseguiria respeitá-lo; e, no entanto, há povos que acreditam em deuses que aceitam o sacrifício de sangue inocente - disse Cassandra. E acrescentou, quase num murmúrio: - Talvez seja uma ideia que os deuses (ou os demónios) colocaram na cabeça de todos os homens; Agamémnon não sacrificou a sua própria filha no altar da Virgem, em troca de um vento favorável que trouxesse a sua frota até Tróia?

- É verdade - disse Helena baixinho -, embora Agamémnon não queira que tal seja dito e afirme que o sacrifício foi obra da mulher dele (minha irmã), um sacrificio à sua Deusa. Os Aqueus temem as antigas deusas, pois dizem que elas são impuras. O mais corajoso dos homens foge aterrorizado dos Mistérios da mulher.

Cassandra olhou em torno da sala obscurecida, onde as mulheres bebiam e conversavam em pequenos grupos.

- Quem me dera que pudéssemos arranjar uma forma de incutir neles esse terror - disse ela, e lembrou-se de quando visitara a tenda de Aquiles, em espírito - ou teria sido apenas em sonhos? Essa lembrança fê-la pensar que talvez ainda pudesse conseguir ter acesso à mente do herói aqueu; tentá-lo-ia na primeira oportunidade. Ergueu a taça silenciosamente e bebeu; Helena, olhando-a nos olhos por cima da borda, fez o mesmo.

Uma forte corrente de ar fez-se sentir na sala; a porta abriu-se e surgiu Andrómaca, segurando um archote com longas labaredas que se agitavam devido ao vento forte vindo do corredor. O seu longo cabelo escorria água da chuva, e o seu vestido e a capa estavam ensopados. Atravessou a sala como um fantasma ambulante, cantando baixinho um dos hinos fúnebres.

Curvou-se sobre o corpo enfaixado de Troilo e beijou-lhe a face pálida.

- Adeus, querido irmão - disse ela na sua voz clara e aguda. - Vais adiante do maior dos heróis, para contar aos deuses da sua eterna desonra. Cassandra dirigiu-se rapidamente a ela e disse suavemente, mas em tom audível:

- A desonra feita aos bravos é apenas desonra para quem comete o crime, não para aquele que é vitimado.

Porém, Heitor lutara com Aquiles de livre vontade, fazendo esse jogo em que cada um tenta pontuar sobre o outro. «Ele fez apenas aquilo que toda a sua vida lhe ensinou a fazer.»

Encheu um copo de vinho aromatizado - estava agora bem forte, ainda menos diluído do que aquele que estava no cântaro quando este se encontrava mais cheio. Talvez fosse bom; Andrómaca sairia dali para ir dormir, e isso aliviar-lhe-ia o seu terror, ainda que não a sua mágoa. Colocou a taça na mão da prima, captando-lhe no hálito a presença do vinho - onde quer que tivesse estado, estivera a beber.

- Bebe, minha irmã - disse.

- Ah, sim - disse Andrómaca, com as lágrimas escorrendo-Lhe pelo rosto. - Foi contigo que eu vim para Tróia, quando éramos rapariguinhas, e enquanto viajámos tu contaste-me tantas histórias de como ele era corajoso e atraente... o meu filho nasceu nas tuas mãos. Tu és a minha amiga mais querida, e sê-lo-ás por toda a nossa vida. - Abraçou Cassandra e ficou agarrada a ela, a balançar-se; Cassandra percebeu que ela já estava embriagada. A própria Cassandra não estava completamente intocada pelo vinho que bebera; sentia a inquietação de Andrómaca e as suas carências.

Andrómaca curvou-se novamente para beijar o rosto morto de Troilo e disse para Hécuba:

- Tu és afortunada, minha mãe, por poderes enfeitar o seu cadáver e chorá-lo; o meu Heitor jaz sob a chuva a decompor-se, sem lamentos, sem sepultura.

- Sem lamentos não - disse Cassandra ternamente. - Todos nós o choramos. O seu espírito há-de ouvir as nossas lágrimas e lamentações, quer o seu corpo repouse aqui ou além, junto dos cavalos de Aquiles.

A voz faltou-lhe; veio-lhe à ideia aquele dia, pouco depois de Andrómaca ter vindo para Tróia, em que Heitor a proibira de usar armas e ameaçara bater-lhe. Ela dissera aquilo para tentar consolar Andrómaca, mas de repente perguntou-se se não teria piorado as coisas. Os olhos de Andrómaca estavam frios e sem lágrimas. Cassandra conduziu-a ao seu lugar; mas quando Andrómaca deparou com Helena, afastou-se com os lábios descobrindo os dentes, numa expressão horrível, semelhante a uma máscara que quase lhe transformava o rosto numa caveira.

- Tu, aqui, fingindo que o lamentas?

- Os deuses são testemunhas de que não finjo coisa alguma - disse Helena, calmamente - mas, se preferires, eu retiro-me; tu tens maior direito a estar aqui.

- Oh, Andrómaca - disse Cassandra -, não digas isso. Ambas vocês vieram para esta cidade como estranhas, e aqui encontraram um lar. Tu perdeste o teu marido e Helena os seus filhos por vontade dos deuses; deviam partilhar a vossa mágoa, em vez de se agredirem e se voltarem uma contra a outra. Vocês são ambas minhas irmãs e eu amo-vos. - Com uma mão puxou Helena para si e com a outra abraçou Andrómaca.

- Tens razão - disse Andrómaca -, todas estamos indefesas e nas suas mãos. - Fungou e bebeu o resto do vinho. A sua voz estava descontrolada, e ela disse embriagadamente: - Irmã, somos ambas vítimas desta guerra; que a Deusa impeça que esta loucura dos homens nos separe. - A sua língua encalhava desajeitadamente nas palavras e, abraçando-se, choraram as duas. Hécuba veio envolvê-las às três nos seus braços; chorava também.

- Tantos que se foram! Tantos que se foram! As tuas crianças, Helena! Os meus filhos! Onde está o filho de Heitor, o meu último neto?

- O último não, mãe; já te esqueceste? Creúsa e as crianças dela foram mandadas para um lugar seguro; não correm qualquer risco - lembrou-lhe Cassandra. - Estão fora do alcance da loucura de Aquiles e dos exércitos aqueus.

Andrómaca disse:

- Astíanax já é demasiado crescido para estar nos aposentos das mulheres; não posso sequer confortá-lo, nem confortar-me a mim, vendo o rosto do pai no dele. - A sua voz era mais triste do que quaisquer lágrimas.

- Quando perdi... os pequeninos - disse Helena com voz trémula -, trouxeram-me Nikos para me consolar; eu vou buscar o teu filho e trá-lo-ei para junto de ti, Andrómaca.

- Oh, abençoada sejas - gritou Andrómaca. Cassandra disse:

- Deixa-me levar-te para o teu quarto; não vais querer tê-lo aqui, no meio de todas estas mulheres embriagadas.

- Sim, eu levo-to para lá - disse Helena. - Ainda te resta o teu filho, e essa é a maior de todas as dádivas.

Uma por uma, ou em grupos de duas e de três, as mulheres - exaustas devido à dor e ao vinho forte - iam saindo discretamente para as suas camas. Apenas Hécuba e Políxena, vestidas com as suas túnicas de sacerdotisas, tomaram lugar aos pés e à cabeça de Troilo, para ali permanecerem até que chegassem aqueles que iriam entregar à terra o seu corpo. Cassandra pensou se não deveria ficar também; mas elas não Lhe tinham pedido nem mesmo para desempenhar as funções de sacerdotisa na purificação da câmara fúnebre. Andrómaca e a própria Helena precisavam mais dela; sabia que era uma estranha entre as mulheres de Tróia, tal como o eram aquelas mulheres de Cálcis e de Esparta.

Ficou com elas até que Helena se escapuliu até aos aposentos de Páris e encontrou Nikos e Astíanax. Tinham estado ambos a chorar. A cara de Astíanax estava sujíssimo e marcado de lágrimas; era evidente que alguém Lhe contara da morte do pai e tentara oferecer à criança algum consolo. Helena levou os dois rapazes até ao poço que ficava no centro do pátio e lavou-lhes a cara com a ponta do véu.

Astíanax lançou-se de boa vontade nos braços da mãe e depois disse, confundido:

- Não chores, mãe. Disseram-me que não devia chorar porque o meu pai é um herói. Então, porque é que tu estás a chorar?

Helena disse, ternamente:

- Astíanax, tens de ajudar a enxugar as lágrimas da tua mãe; é obrigação tua tomar conta dela, já que o teu pai não o pode fazer.

Ao contactar com a criança, Andrómaca, sob o efeito da embriaguez, desfez-se novamente em lágrimas; Helena e Cassandra levaram-na para o quarto, puseram-na na cama e aconchegaram a criança a seu lado.

- Nikos fica comigo - disse Helena. - Oh, porque nos serão tirados tão pequenos? - Mas quando envolveu Nikos nos seus braços, ele afastou-se indignado.

- Não sou nenhum bebé, mãe! Voltarei para junto dos homens. Reprimindo os soluços, Helena disse:

- Como preferires, filho; mas primeiro dá-me um abraço.

Nikos acedeu, contra vontade, e saiu a correr; Helena, com as lágrimas a correr-lhe pelo rosto, viu-o afastar-se, sem protestar.

- Páris não foi melhor do que Menelau no que fez dele - observou. - Não gosto do que os homens fazem dos rapazes - tornam-os iguais a eles. Graças aos deuses que Astíanax ainda não começou a ter vergonha de ficar com a mãe disse ela, fixando a chuva cinzenta e intensa que ecoava no exterior do palácio.

- Cassandra! - disse subitamente. A voz dela estava tão impregnada de medo e agarrou-se com tal força à outra mulher, que Cassandra quase deixou cair o archote. - Se cairmos nas mãos dos Aqueus, o que vai acontecer ao meu filho? Quem sabe os Troianos não olhem a meios para garantir que Menelau não o reclame!

- Queres dizer que pensas que o meu pai ou os meus irmãos matariam a criança para evitar que ela fosse levada de regresso a Esparta? - Cassandra mal podia acreditar no que ouvia.

- Oh, não consigo acreditar realmente nisso, mas...

- Se acreditas que é assim, então talvez devas, de facto, voltar para Menelau e pôr a criança a salvo - disse Cassandra. - Certamente que ele te receberia bem, se fosses acompanhada pelo seu filho...

- E eu pensava que Nikos estaria bem melhor em Tróia; que Páris seria um melhor pai para ele do que Menelau - disse Helena tristemente. - E era, Cassandra e era; mas agora... parece odiá-lo por estar vivo, tendo os nossos filhos morrido... - A voz faltou-lhe e, por instantes, agarrada a Cassandra, chorou.

- Então tu vais.

- Não posso - disse Helena resignadamente. - Não consigo convencer-me a deixar Páris; digo a mim própria que é vontade dos deuses que eu fique até que já nada exista entre nós. Ele já não me ama, mas eu prefiro estar em Tróia do que em Esparta...

Deixou a voz esbater-se até ao silêncio; depois disse:

- Cassandra, estás exausta; não posso reter-te por mais tempo fora da cama. Ou vais voltar para velar Troilo?

- Não, não me parece que me queiram lá - disse Cassandra. - Regressarei à casa do Senhor do Sol.

- Com esta chuva? Ouve o temporal que está - disse Helena. - Estás à vontade para dormir aqui, se quiseres. Podes dormir na minha cama. É pouco provável que Páris ainda venha; eles devem ter bebido tanto em honra do espírito de Heitor, que não seriam capazes de encontrar as escadas. Ou então, mando as criadas fazer-te a cama no outro quarto.

- És muito amável, irmã, mas as criadas devem estar todas a dormir; deixa-as descansar - disse Cassandra. - A chuva vai aclarar-me as ideias. Pegou na capa e pôs o capuz por cima da cabeça; em seguida abraçou e beijou Helena, dizendo: - Andrómaca não sente as coisas que te disse.

- Oh, eu sei disso; no lugar dela sentiria o mesmo - disse Helena. Ela está amedrontada; o que vai ser dela agora e de Astíanax? Páris já está decidido a suceder a Príamo e não vai deixar lugar para o filho de Heitor; e se Páris conseguir, de alguma forma, levar esta guerra a bom termo...

- Não existe qualquer hipótese de que isso aconteça - disse Cassandra. - Mas não tens de recear, Helena; Menelau não lutou todos estes anos por vingança.

- Eu sei; falei com ele - disse Helena, surpreendendo-a. - Não sei porquê, mas parece-me que ele me quer de volta.

- Falaste com ele? Quando - ia perguntar como, mas lembrou-se de que a mulher de Páris podia ir onde quisesse, mesmo ao acampamento aqueu. Mas porque haveria ela de ir conferenciar com os capitães inimigos? Pensou, desconfiada, mas logo absolveu mentalmente a sua amiga daquela traição. Era absolutamente lógico que Helena tentasse negociar o seu destino e o do seu filho.

- Se voltares a falar com ele - disse Cassandra -, pergunta-lhe se existe algo que ele possa fazer para convencer Aquiles e fazer com que o corpo de Heitor nos seja devolvido.

- Acredita que já o tentei e tentarei de novo - disse Helena. - Escuta, a chuva está a abrandar um pouco; se saíres agora, talvez chegues a casa antes que ela recomece a cair com força.

Beijou Cassandra novamente e acompanhou-a até à pesada porta principal do palácio. Cassandra saiu para o meio da chuva gelada. Antes de ter subido metade de um lanço das longas escadas, a chuva recomeçou a cair com redobrada fúria, e o vento puxava-lhe pela capa como as garras de um animal feroz.

Por momentos pensou, arrependida, que deveria ter aceite a oferta de Helena em relação à cama. Eneias devia estar a festejar e a beber com os homens, e era improvável que fosse ter com ela nessa noite. Mas não havia razão para regressar, agora; foi subindo, lutando contra a tempestade.

Ao virar para a rua da casa do Senhor do Sol ouviu passos ligeiros atrás de si. Depois de tantos anos de guerra, sentia insegurança em relação a estranhos; voltou-se e deparou, à luz pálida das candeias penduradas sobre a entrada, com o rosto e a figura envolta numa capa, de Criseis. Mesmo com a luz das candeias podia ver que o vestido da rapariga estava amarrotado e manchado de vinho, e os cosméticos do seu rosto esborratados. Suspirou, perguntando-se em que cama desconhecida a rapariga teria passado grande parte da noite, e por que razão se teria dado ao trabalho de a deixar, no meio daquela tempestade. « Tem o aspecto de uma gata depois de uma noite de vagabundagem - só que uma gata teria lavado a cara.»

A sentinela do portão da casa do Senhor do Sol saudou-as com estupefacção («Andam por fora até tão tarde com este tempo impiedoso, senhoras?»).Mas jamais alguém demonstrara curiosidade acerca das entradas e saídas de Cassandra; ela poderia, reflectiu, ter tido tantos amantes como Criseis, sem que ninguém soubesse ou se preocupasse. Enquanto subiam o pátio inclinado, em direcção aos seus quartos situados próximo da parte mais alta do templo, ela abrandou o passo para ficar a par com a rapariga.

- Está a fazer-se tão tarde que já é quase manhã - disse. - Queres vir ao meu quarto lavar a cara antes que sejas vista no templo nesse estado?

- Não - disse Criseis -, porque haveria de querer? Não me envergonho de nada do que faço.

- Eu pouparia ao teu pai o ver-te nessa figura - disse Cassandra. - Vais causar-lhe um desgosto.

O riso de Criseis soou cortante como um estilhaço de vidro.

- Oh, vamos! Com certeza que ele não anda a alimentar ilusões de que eu tenha saído virgem do leito de Agamémnon!

- Talvez não - disse Cassandra. - Ele não pode culpar-te pelas vicissitudes da guerra; mas afligi-lo-ia ver-te assim.

- Pensas que eu me importo com isso? Eu achava-me muito satisfeita onde estava, e preferia que ele se tivesse metido na vida dele e me deixasse lá.

- Criseis - disse Cassandra amigavelmente -, fazes alguma ideia do quanto ele sofreu por ti? Quase não pensava em mais nada.

- Mais idiota é, então.

- Criseis... - Cassandra olhou para a rapariga, tentando descobrir o que Lhe ia no coração, se era que, de facto, ela o tinha. Finalmente perguntou, curiosa: - Não sentes mesmo vergonha, quando estás com os homens de Tróia, sabendo que todos eles te conhecem e identificam como tendo sido a concubina de Agamémnon?

- Não - disse Criseide em tom de desafio -, não mais que Andrómaca se envergonha por todos os homens saberem que ela pertence a Heitor, ou Helena por ser do conhecimento geral que ela é propriedade de Páris.

Existia uma diferença e Cassandra sabia-o, mas não conseguia organizar as suas ideias de modo a explicar àquela rapariga confundida qual era.

- Se a cidade for conquistada - disse Criseide -, todas nós seremos entregues nas mãos de algum homem; por isso eu ofereço-me a quem me apetece, enquanto posso. Tu, Cassandra, pretendes conservar a tua virgindade para que te seja tirada à força por um dos conquistadores?

«Neste aspecto não posso criticá-la, de nenhuma maneira.» Cassandra não conseguia falar; voltou-se, simplesmente, e dirigiu-se para o seu quarto.

Aí, uma criada negligente tinha deixado as portadas abertas de par em par; a chuva batida pelo vento entrava pelas janelas. A enxerga de Honey estava ensopada e a criança rolara para fora das cobertas e para o chão de pedra, fugindo à chuva. Mesmo assim estava encharcada.

Cassandra fechou as portadas e levou a criança para a sua própria cama. Honey estava gelada como uma rãzinha e choramingou quando Cassandra a ergueu, mas não chegou a acordar. Cassandra embrulhou-a nos cobertores e embalou-a, segurando-a junto aos seios até sentir que as mãozinhas e os pezinhos gelados começavam a aquecer; ao fim de algum tempo Honey dormia o sono pesado das crianças saudáveis. Pousou a criança e deitou-se junto dela, envolvendo ambas com a sua capa quente. O barülho da tempestade do lado de fora das janelas fechadas era abafado, mas ainda abanava as portadas com a sua força. Fechou os olhos, tentando fazer o seu espírito mover-se para além do local onde estava deitada.

Para sua surpresa, uma vez liberta do seu corpo e ao deslocar a sua percepção para longe da cama, através da janela, não sentia qualquer noção da tempestade, apenas de um profundo silêncio; no nível onde a sua mente agora se movia, não existia bom ou mau tempo.

Veloz como o pensamento, deslizou pela colina abaixo para o centro de um luar claro, sobrevoando a planície entre os portões de Tróia e as trincheiras que protegiam o acampamento aqueu.

Sob aquele luar irreal, as sombras estendiam-se agrestes e negras sobre a planície silenciosa e vazia, onde apenas uma sentinela nocturna dormitava. Páris tinha razão, pensou: eles deviam ter-se lançado com todas as suas forças sobre o acampamento, durante a noite. Depois lembrou-se que, no mundo físico, as trincheiras aqueias estavam melhor guardadas pela chuva torrencial do que por todas as sentinelas do mundo. Conseguia ver a sombra escura de uma estrutura que reconheceu como sendo o carro de combate de Aquiles, e uma sombra informe que devia ser, certamente, o corpo amarrado de Heitor. O seu primeiro pensamento foi de gratidão pelo facto de, naquela analogia do Além - e como teria ela conseguido chegar até ali e mover-se com tanta facilidade nesse mundo dos mortos, quando ainda se encontrava entre os vivos? -, o corpo de Heitor não estar exposto à chuva e aos ventos uivantes. E, ao pensar nele, ele apareceu na sua frente, sorrindo.

- Irmã - disse -, és tu. Eu devia saber que seria possível ver-te aqui. - Heitor... - calou-se. - Como te sentes?

- Oh... - parou e pareceu reflectir. - Melhor do que alguma vez esperei - disse. - A dor desapareceu, portanto suponho que estou morto. Só me lembro de ser ferido e pensar «Isto deve ser o fim»; depois acordei e Pátroclo veio ajudar-me a levantar. Ficou comigo um bocadinho e depois disse-me que tinha de ir ficar com Aquiles, e foi-se embora. Depois disso, esta noite fui ao palácio, mas Andrómaca não conseguia ver-me. Tentei falar com ela e depois com a mãe, para lhes dizer que estava bem, mas nenhuma delas parecia ouvir-me de todo.

- Quando estavas vivo alguma vez ouviste a voz dos mortos? - Bem, não, claro que não; eu nunca aprendi a escutá-los.

- Pois bem: é essa a razão por que elas não te ouviram. Que posso fazer por ti, meu irmão? Desejas sacrifícios ou...

- Não consigo imaginar que vantagem haveria nisso - disse Heitor. - Mas diz a Andrómaca que não chore; é muito estranha a sensação de não poder confortá-la. Diz-lhe que não me lamente; e, se puderes, diz-lhe que eu em breve irei buscar Astíanax para o levar comigo. Gostaria de o deixar a tomar conta dela, mas disseram-me...

- Quem?

- Não sei - disse Heitor -, não consigo lembrar-me; talvez tenha sido Pátroclo; mas sei bem que o meu filho virá ter comigo muito em breve, e o pai e Páris. Mas Andrómaca não: ela vai ficar lá por muito tempo. - Avançou para Cassandra e ela sentiu o imperceptível toque dos lábios dele na sua testa. - Despeço-me de ti também, irmã - disse ele -, mas não tenhas medo: haverá muito para sofrer, mas, garanto-te, tudo correrá bem para ti.

- E Tróia?

- Oh, não! Já está derrotada - disse ele. - Vês? - E com as suas mãos suaves e imateriais fê-la dar meia volta e, diante de si, ela viu um imenso amontoado de escombros e chamas que se elevavam no lugar onde antes se erguera Tróia. Mas, e o som de toda aquela destruição... como era possível não o ter ouvido?

« Aqui não existe tempo - disse ele. - O que é e o que há-de ser são a mesma coisa. Eu não compreendo tudo isto - disse ele -, pois ainda esta noite passei pelas muralhas do palácio do meu pai, onde estavam a festejar, e agora olha: a cidade já caiu há muito tempo. Quem sabe, quando estava na Terra, devesse ter tentado saber mais junto daqueles que conhecem as coisas, mas parecia nunca haver tempo. Agora vejo Apolo e Posídon - olha, Eles disputam a cidade entre Si - disse ele, e apontou para cima das muralhas derrubadas onde, atravessando as nuvens, duas monstruosas figuras pareciam erguer-se em combate, os seus músculos reluzindo como raios.

Cassandra estremeceu ante a visão do rosto amado do Senhor do Sol, coroado de brilhantes caracóis dourados; iria Ele voltar-se e vê-la passeando pelos reinos proibidos? Resolutamente virou-se de novo para a figura sombria de Heitor.

- Que é feito de Troilo? Está tudo bem com ele?

- Ele esteve comigo por instantes; chegou a correr pouco depois de mimdisse. - Mas ficou no palácio com a mãe; estava a tentar dizer-lhe que não estivesse desgostosa. Não quis acreditar que não lhe seria possível fazer com que ela o ouvisse. Talvez ela te escutasse, se tu lho dissesses; ela sabe que tu és sacerdotisa e conhecedora dessas coisas.

- Ah, não sei se ela irá escutar-me a mim, querido irmão - disse Cassandra. - Ela tem as suas próprias opiniões e nelas não há lugar para as minhas. Mas para bem dos nossos pais e da sua paz de espírito... - parou para reflectir. - Eu vim aqui para tentar (e talvez conseguir) assustar Aquiles para que ele entregue o teu corpo a troco de um resgate; talvez nisso tu fosses mais eficaz do que eu.

- Achas que ele terá medo de fantasmas? Já matou tanta gente, que deve viver constantemente rodeado por eles - disse Heitor -, mas eu vou ver o que consigo fazer. Vai, irmã; volta para o teu lado dessa muralha que se ergue agora entre nós, e diz à mãe e ao pai que não devem perder tempo a chorar-me; muito em breve estarão comigo. E não te esqueças de dizer a Andrómaca que não me lamente: ficarei aqui à espera do nosso filho; diz-lhe, a ele, que não tenha medo: estarei pronto a recebê-lo. Ela não quererá que ele viva os dias que se aproximam.

Heitor voltou-lhe as costas e flutuou em direcção à tenda de Aquiles. Passado um momento virou-se outra vez e parecia já, pensou ela, estranho e distante - um..homem que ela não conhecia.

- Não, não me sigas, irmã; os nossos caminhos separam-se aqui. Talvez nos voltemos a encontrar e possamos vir a compreender-nos melhor.

- Não virei juntar-me a ti e a Troilo, e à nossa mãe e ao nosso pai?

- Não sei - disse ele. - Tu serves outros deuses; penso que, se encontrares a morte, será possível que vás para outro lugar. Mas é do meu conhecimento que os nossos caminhos se separam aqui e por muito tempo, senão para sempre. Que tudo te corra sempre pelo melhor, Cassandra. - Abraçou-a e ela ficou surpreendida ao sentir a força do seu abraço. Não era o abraço de um fantasma, mas de alguém tão real como ela própria. Depois ele desapareceu, e mesmo a sua sombra se esfumou na planície.

 

Já próximo da manhã, a chuva parou e foi substituída por ventos fortes. Cassandra adormecia e acordava, e quando adormecia de novo sonhava que tentava seguir o fantasma de Heitor até à tenda de Aquiles, onde o aqueu se erguera e abrira os olhos, balbuciando incoerências aterrorizadas ao ver Heitor entrar e sair através das paredes da tenda, rindo-se dele; ou então sonhava que se encontrava na tenda de Agamémnon. O rei olhou-a com ferocidade e tentou agarrá-la, mas ela flutuou para fora dos seus braços como se fosse feita de bruma, e ele gritou enraivecido e lançou-se atrás dela uivando de frustração.

Quando por fim acordou, um sol fraco entrava pelas portadas, e Honey olhava-a espantada. Pensou se teria gritado ou falado durante o sono. Raramente dormia até tão tarde, mas tinha estado acordada até quase de madrugada. Vestindo-se com rapidez, tentou agarrar-se à memória das mensagens que Heitor Lhe dera para transmitir; sabia quão rapidamente, tal como os sonhos meio esquecidos, aquelas experiências se desvaneciam. Estava precisamente a atar o cinto do vestido, quando Fílidas entrou a correr.

- Cassandra, vem imediatamente; as serpentes...

- Não posso, tenho de entregar uma mensagem - disse Cassandra. Suponho que podes fazer sozinha o que for necessário.

- Mas...

- Bem, então vamos lá depressa... fugiram ou meteram-se nos seus ninhos? - perguntou com um medo súbito que fosse o temido sinal de tremor de terra; certamente que este estaria para breve... só que, os deuses o permitissem, não fosse naquele dia, não naquele dia!

- Bem, não, mas...

- Então não me incomodes; tenho o espírito ocupado com questões mais importantes e não posso ficar aqui a conversar. Leva Honey contigo; veste-a e dá-lhe qualquer coisa para comer; virei tratar dela quando puder -disse e correu para fora do quarto e pela colina abaixo.

A meio da descida, parou por alguns momentos para espreitar por cima da muralha; mais uma vez o carro de Aquiles descrevia círculos na planície, os cavalos fustigados até correrem o mais rapidamente possível. O fardo inerte que era o corpo de Heitor era arrastado atrás; no entanto, a sua Visão entre os dois mundos era agora tão clara que ela conseguiu vê-lo, uma sombra brilhante de pé no extremo do campo, rindo-se da idiotice que o capitão aqueu tentava fazer. Ela percebeu a que é que ele achava graça; e quando se aproximou dos seus pais que estavam na muralha no sítio do costume, por cima dos portões, riu alto.

Os olhos de Hécuba inchados e quase fechados de tanto chorar, viraram-se para ela, zangados.

- Como te podes rir?

- Mas não percebes, querida mãe, quão estúpido isto é? Olha, ali na sombra das trincheiras, Heitor ri-se da estupidez de Aquiles - olha o sol a brilhar-Lhe nos cabelos.

Hécuba olhou para Cassandra com a sua expressão de «Mas é claro, ela é louca e não se pode esperar que sinta o mesmo que uma pessoa normal», mas Cassandra tomou a mãe nos braços.

- Mãe, o que eu te digo é verdade; a noite passada falei com Heitor na Terra para Além da Morte, e digo-te que ele está bem.

- Sonhaste, minha querida - disse Hécuba com gentileza. - Não, mãe querida, vi-o como te vejo a ti, e toquei-o.

- Quem me dera poder acreditar em ti... - Lágrimas formaram-se nos olhos da velha e caíram lentamente.

- Mãe, é verdade, tens de me acreditar! E ele disse-me para te dizer que não devias chorá-lo...

- A noite passada acho que quase te teria acreditado... pareceu-me ouvir a voz de Troilo...

- E ouviste, mãe, asseguro-te que ouviste! - gritou Cassandra excitada, empolgada pela mensagem que tinha para transmitir. - Não vi Troilo nem falei com ele, porque Heitor disse que ele tinha ficado contigo, tentando confortar-te, tentando fazer com que o ouvisses.

Hécuba disse com lentidão:

- Quando eu e Políxena já estávamos demasiado cansadas para continuar a velá-lo (o Sol já estava a nascer) fui ao jardim por alguns instantes e pensei ter sentido Troilo tocar-me nos cabelos como sempre fazia quando cresceu tanto que só me beijava no alto da cabeça. Ele era um rapazinho tão doce, o mais querido de todos os meus queridos rapazes... - Os seus olhos marejaram-se e choraram de novo, e Cassandra abraçou a mãe com força.

- Ele estava mesmo junto de ti - disse ela -; juro-te.

- E Heitor? Dizes que também ele está em paz; mas como poderá o seu espírito estar livre se não temos o seu corpo para sepultar com decência e honrar o seu espírito? - perguntou Hécuba. - E se assim é, porque foram os ritos fúnebres ordenados pelos deuses?

- Eu só sei o que vi, mãe.

- É escusado - disse Hécuba desesperada, depois de pensar naquilo durante algum tempo. - Não consigo pensar no seu espírito livre enquanto vejo o seu pobre corpo... Vê como se ergue o pó, mesmo depois de uma noite inteira de chuva torrencial! - exclamou, e recomeçou a chorar.

Cassandra tentou secar as lágrimas da mãe com o seu véu, admoestando-a: - Destroçaria o coração de Heitor ver-te chorar assim. Aquiles agora já não lhe pode fazer mal, faça ele o que fizer. Mesmo que ele cortasse o corpo de Heitor aos bocados e os desse aos seus cães, isso não afectaria aquela parte de Heitor que nós conhecemos, não o afectaria mesmo nada.

Hécuba encolheu-se e pareceu sentir-se mal.

- Como podes dizer uma coisa dessas, Cassandra?

- Fiz um voto a Apolo de que só diria a verdade; àqueles que não a querem ouvir, só posso dizer que isso não me desobriga de a dizer - replicou Cassandra zangada, pensando por que razão só a sua mãe a conseguia zangar assim mesmo quando - ou especialmente quando - ela tentava não dizer nada que a perturbasse.

- Mas eis que tu dizes que podíamos dar o nosso Heitor aos cães...

- Mãe, eu não disse nada disso! - Cassandra sentia-se agora furiosa, mas fez um esforço e manteve a voz firme e tranquila. - Não percebeste o que eu disse! Eu só disse que, se Aquiles com a sua loucura o fizesse, isso não faria qualquer diferença a Heitor mas apenas a nós.

- Mas tu estavas a dizer, eu ouvi, que não precisávamos de realizar os seus ritos fúnebres - disse Hécuba, e Cassandra suspirou como se arrastasse um peso enorme por uma encosta acima.

- Mãe, eu acho que os ritos fúnebres não têm qualquer importância para Heitor ou para os deuses, eles só são importantes para nós - repetiu, como se estivesse a explicar a Honey por que razão não podia comer uma dúzia de bolos. Hécuba ergueu o queixo.

- E eu acho que essa é apenas mais uma das tuas ideias malucas - disse, e voltou-lhe as costas.

- Sim, muito provavelmente, mãe - disse Cassandra, contendo a fúria. «Está velha; não posso esperar que compreenda nada que seja novo para ela.» - Mas suplico-te que não digas nada disso a Andrómaca; ela já tem de suportar um desgosto demasiado grande mesmo sem essas coisas.

- Sem o quê? - perguntou Andrómaca, que chegava à muralha mesmo a tempo de ouvir as últimas palavras.

- Eu estava a dizer-lhe - começou Cassandra, e Hécuba lançou-lhe um olhar zangado de «Não te atrevas»; Cassandra apercebeu-se de que a discussão com a sua mãe a fizera esquecer as palavras exactas que tencionara dizer. Disse, cansada: - Apenas que, numa visão qúe tive ontem à noite, falei com Heitor e ele pede que te conformes, pois está bem e em paz, façam eles o que fizerem com o seu corpo. - Havia mais; Heitor pedira-lhe que dissesse a Andrómaca o quê? Que ele viria buscar o seu filho... «mas não! Não lhe posso dizer que o seu filho morrerá quando ela já perdeu Heitor... ela... o que era... ela não deveria querer que o seu filho vivesse os tempos que estão para vir...».

Andrómaca olhava-a com a sua expressão céptica erguendo as sobrancelhas.

- Ordenou-me que te dissesse que... que ficaria por perto para olhar pelo seu filho.

- E isso há-de valer de muito a qualquer de nós - disse Andrómaca, abrindo muito os olhos tentando não chorar -, agora que nos deixou.

- Mas ele não quer que o chores e o lamentes - disse Cassandra. - Isso agora já não o pode ajudar.

- Isso é o que nos dizem todos os adivinhos e videntes - disse Andrómaca, e as suas palavras soaram amargas. - Eu esperava algo melhor de ti, Cassandra, se é que de facto consegues ver para além da morte.

- Eu digo o que o Deus me ordena que diga e com as palavras que as pessoas estão dispostas a ouvir - disse Cassandra, e virou costas. Lá fora, no campo, Aquiles continuava a chicotear os seus cavalos, cada vez mais possuído de um maníaco frenesi.

Aquilo continuou o dia todo, enquanto o Sol se erguia e declinava sobre Tróia. Por duas vezes Páris comandou um grupo tentando capturar o carro de Aquiles e o corpo de Heitor e duas vezes foi repelido pelas tropas de Agamémnon; três dos filhos menos importantes de Príamo - filhos das suas mulheres do palácio - foram mortos, e por fim chegaram à conclusão de que Aquiles estava pura e simplesmente demasiado bem protegido.

- Basta - disse Príamo depois do terceiro ataque. - O Sol está a pôr-se; quando estiver escuro, eu próprio irei ter com Aquiles e tentarei negociar com ele um resgate pelo corpo do meu filho.

«Quão disparatado», pensou Cassandra, «e quão inútil; Heitor não se encontra naquele monte de carne em decomposição que está lá fora atrás de Aquiles e do seu maldito carro.» Por que razão veria isto e os seus pais não? Não deveriam eles ser mais sensatos que ela? Assustava-a que não o fossem.

Sentia-se doente e fraca; tinha estado todo o dia com a sua mãe e nem sequer partilhara do pão duro e do azeite repartido pelos soldados ao meio-dia. Foi comer um pouco de pão e empurrou-o para baixo com alguns goles de vinho aguado, depois foi ter com Hécuba, que ajudava os criados pessoais de Príamo a vestir-Lhe os seus trajes mais ricos.

- Se for ter com Aquiles sem ir vestido com as minhas melhores roupasdisse ele -, ele é capaz de pensar que eu não o considero digno de honra. E não considero, é claro, mas não quero que ele o perceba.

- Não estou assim tão certo, pai - disse Páris; estava de pé junto do pai, aparando meticulosamente a barba com a tesoura que Helena usava para as tapeçarias. - Talvez a vaidade daquele louco fosse mais lisonjeada se te dirigisses a ele vestido com simplicidade, de luto, como um suplicante.

- No entanto, mostrar-lhe o ouro de Tróia é capaz de lhe despertar a cobiça, caso não possamos apelar para a sua honra - disse Andrómaca.

- Dificilmente poderemos apelar à sua honra - disse Páris. - Parece-me óbvio que ele não a tem. A questão está em qual a melhor forma de persuadi-lo a dar-nos o corpo de Heitor para o podermos sepultar.

- Irei ter com ele como suplicante -disse Príamo. E já arrancava energicamente as suas vestes. - Tragam-me a roupa mais simples que possuo. E irei ter com ele sozinho.

- Não! - gritou Hécuba, caindo de joelhos na sua frente, numa desesperada agonia. - Nós já vimos que ele não tem qualquer respeito pelos costumes e pela honra, senão Heitor estaria agora no seu túmulo! Se te puseres ao seu alcance, ele irá certamente matar-te ou maltratar-te, e oferecer talvez o mesmo tipo de insulto ao teu cadáver que aquele que ofereceu ao de Heitor. Não podes ir ter com ele sem escolta.

- Se for preciso, irei ter primeiro com o nosso velho amigo Odisseu, que me levará em segurança até Aquiles - disse Príamo -, e nós sabemos como ele preza a opinião favorável de Odisseu; não me fará qualquer insulto na presença dele.

- Isso não é o suficiente - declarou Hécuba, agarrando-se com força aos seus joelhos. - Se te obstinares nessa loucura, não darás um único passo, porque eu não te deixarei ir de todo.

Príamo tentou afastá-la empurrando-a, mas ela não o soltou. Ele franziu o cenho, zangado.

- Vamos, senhora minha - disse por fim -, que queres então que eu faça? Se eu for ter com Aquiles, acompanhado por homens armados, ele pensará que o estou a desafiar para um duelo; é isso o que queres?

- Não! - gritou Hécuba, mas continuava a recusar largá-lo.

- Bem, então, que queres que eu faça? Porque será que uma mulher nunca consegue ser razoável? - inquiriu Príamo.

- Não sei, meu senhor e meu amor; mas não irás ter com aquele louco sozinho!

- Deixem que eu vá - disse Andrómaca, com uma dignidade calma. - Deixem que ele explique à viúva e ao filho de Heitor por que razão não pede um resgate por ele.

- Oh, minha querida... - começou Príamo, mas Hécuba interrompeu-o indignada.

- Se pensas que eu te deixaria levar o meu neto a sequer uma légua de distância daquele demónio...

- Tive uma ideia melhor - disse Helena -; leva um sacerdote, nem que seja apenas como testemunha perante os deuses; Aquiles teme os deuses...

- Melhor ainda - disse Príamo -, levarei duas sacerdotisas, Cassandra e Políxena. Uma serve Apolo e a outra serve a Virgem, assim qualquer que seja o imortal que Aquiles teme, poderá testemunhar a sua impiedade.

Virou-se para Cassandra e disse:

- Não tens medo de ir com o teu velho pai à presença de Aquiles, pois não, rapariga?

- Não, pai - disse ela -, e irei desarmada ou armada, conforme o desejares; esqueceste que fui treinada como guerreira?

- Não - disse Polí~cena na sua voz infantil -, armas não, irmã; iremos descalças com o cabelo solto, implorando a sua piedade. Lisonjeará a sua vaidade ter-nos de joelhos a seus pés. Vai e veste uma túnica branca sem enfeites ou bordados e sem faixa, e solta o teu cabelo; ou melhor ainda - acrescentou, tirando a tesoura de Páris -, corta-o como penhor de luto. - Escortanhou vigorosa­mente os seus longos caracóis ruivos, ignorando os gritos de protesto da sua mãe. Começou depois a cortar o de Cassandra, e quando Cassandra olhou, chocada, os cabelos compridos, que lhe chegavam à cintura, caídos no chão. exclamou: - É de má vontade que sacrificas por Heitor a tua vaidade?

«Não seria, se eu pensasse que isso faria a mínima diferença a Heitor, pensou Cassandra, mas era suficientemente sensata para não o dizer em voz alta. Deixou que Políxena lhe tirasse os seus anéis e o colar de pérolas que usava; a irmã tirou em seguida as suas próprias jóias. Príamo ficou apenas com um belo e enorme anel com uma esmeralda - um presente para Aquiles, disse ele - e tirou as suas sandálias. Cassandra pegou num archote e Políxena noutro e, com o pai, saíram do palácio e começaram a descer. Quando chegaram às portas de Tróia, Príamo ordenou aos seus crïados que regressassem.

- Sei que não querem abandonar-me - disse ele -, mas se não conseguir­mos fazer isto sozinhos é porque, provavelmente, não existe qualquer modo de ser feito. Se Aquiles não der ouvidos a um pai e duas irmãs enlutadas, então não dará ouvidos nem a todo o poder das armas de Tróia. Regressem, meus filhos.

Muitos deles choravam, e gritavam de desgosto e temor pelo que poderia vir a acontecer-lhe; mas por fim, um a um, regressaram e os três suplicantes atraves­saram os portões abertos e começaram a mover-se vagarosamente, alumiados pelos dois archotes, através da planície.

O chão estava ainda lamacento sob os seus pés devido à chuva da noite anterior; e estava muito escuro, pois o céu encontrava-se encoberto por uma espessa camada de nuvens que se abria de longe em longe deixando ver uma Lua mortiça. Cassandra tremia dentro do seu vestido simples, com o frio subindo dos pés enlameados, perguntando-se se o céu se abriria de novo para mais uma chuvada. Uma missão bem inútil, e no entanto, se proporcionava paz ao espírito do seu pai, como poderia recusar-se?

Príamo movia-se com lentidão, reparou ela com um aperto no coração, como se as pernas quase não suportassem o seu peso e avançasse unicamente devido à sua força de vontade. «Será esta, então, a sua morte? Oh, maldito seja Heitor por ter tido a pouca sorte e a insensatez de se ter deixado matar! », pensou, tropeçando atrás de Políxena com os olhos tão cheios de lágrimas que mal via onde punha os pés.

Estaria Heitor ainda ali, naquela planície, ligado de alguma forma àquele monte de carne em decomposição atado ao carro de Aquiles? Porque não viria ele falar-lhes, proibir o seu pai de se humilhar perante Aquiles? Não, Heitor tinha-se despedido dela e dito que não voltariam a encontrar-se. Se ela tivesse dito ao seu pai e à sua mãe que vira a ruína de Tróia, teriam eles acreditado? Ou tê-los-ia isso feito sentir ainda mais ansiosos por ver tudo feito e em ordem enquanto ainda havia tempo suficiente?

Uma sentinela solitária interpelou-os: - Quem vem lá?

A voz de Príamo soou débil e trémula; Cassandra nunca reparara quão velha e fraca estava a sua voz.

- É Príamo, filho de Lamedonte, rei de Tróia; pretendo parlamentar com o príncipe Aquiles.

Houve um murmúrio de vozes, e passado algum tempo uma candeia brilhou.

- Meu senhor de Tróia, és bem-vindo, mas se tens contigo uma guarda armada, tens de deixá-la aqui.

- Não trago qualquer guarda, armada ou desarmada - disse Príamo. - Venho apenas como suplicante à presença de Aquiles; acompanham-me somente as minhas duas jovens filhas.

Isto soava, pensou Cassandra, como se elas fossem duas rapariguinhas, e não mulheres adultas com mais de vinte anos. Como que explicando, Príamo acrescentou:

- Têm ambas votos como sacerdotisas, uma de Apolo e outra da Virgem; não são esposas de guerreiros.

- Porque estão aqui, então?

- Unicamente para amparar o nosso pai se os seus passos vacilassem no caminho - disse Políxena, enquanto o archote lhe incidia sobre o rosto. Cassandra acrescentou:

- Sou conhecida dos capitães dos Aqueus; estive presente nas negociações para a devolução de Criseide, filha de um sacerdote de Apolo. - Depois de ter dito aquilo, ficou a pensar se o deveria ter mencionado; Aquiles não saíra daquele encontro tão airosamente que pudesse desejar que tal lhe fosse recordado.

Mas era evidente que a sentinela não o sabia ou não queria saber disso. Disse:

- Deixem-nas vir, então - e baixou o archote, dizendo: - Sigam-me. Conduziu-os através do terreno sulcado pelas rodas dos carros de combate em direcção à luz que se escoava da tenda de Aquiles. O interior encontrava-se aquecido e tinha até um certo conforto; cadeiras cobertas por peles e couro, tapeçarias penduradas e uma mesa posta com frutos e vinho. Aquiles estava sentádo ao centro da tenda, com o aspecto de quem se arranjara para conceder uma audiência. No canto mais distante da tenda, nas sombras deixadas por uma meia dúzia de candeias, jazia o amortalhado e mumificado corpo de Pátroclo, tal como Cassandra o vira na sua visão. Perto da porta encontrava-se Agamémnon e a seu lado Odisseu, com uma taça de vinho na mão; pareciam ter sido dispostos para um quadro vivo. Aquiles tinha aparentemente acabado de sair do banho; estava com um aspecto muito limpo, a sua pele tão cor-de-rosa como a de uma criancinha; o seu cabelo - que fora cortado curto -, com reflexos prateados sob a luz, estava a ser penteado por uma escrava, que Cassandra reconheceu como sendo a criada de sua mãe, Briseide. Quando o seu olhar caiu sobre Príamo, ele ergueu a mão para que o penteado fosse interrompido, e a mulher recuou.

- Então, meu Senhor de Tróia - disse ele, os seus lábios finos arreganhando-se naquilo que Cassandra pensou ser um esgar de desprezo -, que te traz aqui numa noite como esta?

«Como se ele não soubesse perfeitamente!» Mas era óbvio para todos eles que Aquiles estava disposto a gozar a situação. Príamo avançou para a luz da candeia; Cassandra e Políxena aproximaram-se uma da outra observando-o. Príamo ajoelhou-se desajeitadamente, estendendo as mãos para o homem mais novo num gesto implorativo.

- Oh, meu senhor Aquiles, estou certo de que não será preciso dizer-te por que vim aqui; suplico-te que me concedas o que é costumeiro e próprio, e que me dês o corpo do meu filho Heitor, para que seja dignamente sepultado.

Os músculos faciais de Aquiles mal se moveram e formaram um ligeiro sorriso. Príamo apressou-se a continuar.

- Tu és tão valente, senhor! Há muito que combates, mas em todos estes anos de batalhas, nós devolvemos-te os teus mortos para que os seus corpos pudessem ser entregues ao fogo e os seus espíritos devidamente enviados para o Além.

- Heitor enfureceu-me - disse Aquiles. - Ele nunca deveria ter tido a arrogância de me defrontar, a mim, que os deuses juraram proteger.

Príamo parou e engoliu em seco; não conseguia pensar em nada para responder àquilo. Cassandra cerrou os punhos sob as mangas compridas.

« E atreve-se ele a falar de arrogância?» Príamo disse por fim:

- Meu senhor Aquiles, um guerreiro desafia o melhor adversário que encontra. E ele tombou; tu que és tão poderoso não poderás ser misericordioso para com a mulher de Heitor e também para com o seu filho?

- Não - disse Aquiles -, não posso.

Calou-se, e Cassandra conseguia sentir em todos os presentes a expectativa em relação às palavras seguintes; mas ele ficou por tanto tempo em silêncio, que ela pensou que ele tencionava deixar a questão por ali. Mas depois ele disse: - Jurei que teria a vingança que me foi oferecida.

Príamo inclinou-se para a frente e apoiou as mãos nos joelhos de Aquiles. As suas palavras saíram em torrente.

- Príncipe Aquiles, tu já tiveste um pai; não poderás ser, por amor do teu pai, misericordioso? Heitor era o mais velho dos meus filhos e eu tinha orgulho nele, tal como o teu pai o deve ter sentido por ti. E quando o galante Pátroclo caiu na batalha, Heitor não tentou ficar com o seu corpo; honrou um bravo inimigo tombado! Veio aos jogos fúnebres de Pátroclo porque, disse ele, Pátroclo não se faria rogado a proporcionar-lhe um bom jantar; e disse que esperava ter muito o que conversar com Pátroclo no Além e que ansiava por isso. Ambos eram guerreiros, e quando as batalhas deste mundo terminassem ele esperava que pudessem ser amigos, como camaradas de guerra. Permite que ponhamos Heitor em descanso, da mesma forma que tu sepultarás Pátroclo.

Aquiles olhou na direcção do canto ensombrado da tenda e Cassandra viu que os seus olhos se tinham, subítamente, enchido de lágrimas. Podia ver o suceder das emoções na sua expressão: ódio, desprezo, piedade, dor; mas a dor predominava. Era evidente que o seu pai encontrara a única coisa capaz de penetrar a arrogância e o desdém. Aquiles disse lentamente:

- Tens razão, Senhor de Tróia; Pátroclo terá então um amigo no Além. Guardas! - bradou. - Vão lá fora e tragam-me o corpo do real Heitor!

O soldado curvou-se até ao chão e saiu a correr. Aquiles disse:

- Falaste em resgate? Que resgate ofereces, então? Príamo balbuciou:

- Isso, nobre Aquiles, cabe-te a ti dizer. - Retirou o anel do dedo e colocou-o no dedo de Aquiles. - Para já, ofereço-te isto como presente, com os meus agradecimentos.

Aquiles afagou o anel, pensativo. Disse, com um sorriso cruel:

- Calculo que, para ti, Heitor valha mais do que uns quarenta carros de combate capturados.

« O louco está a tirar partido disto.» Para Cassandra era óbvio que ele estava a pensar em algo de ultrajante. Príamo murmurou:

- Jurei que te pagaria o que quer que tu pedisses sem regatear, príncipe Aquiles.

Aquiles esfregou o queixo tentando, como se tornava evidente, extrair da situação o maior efeito dramático possível.

- Agamémnon... que deverei eu pedir como resgate?

- Pede um grande - disse Agamémnon com indiferença. - O rei de Tróia pode pagar seja o que for que peças; a cidade dele tem metade das riquezas do Mundo no interior das suas muralhas.

Odisseu interrompeu-o e disse deliberadamente:

- A tua nobreza será medida pela tua generosidade, Aquiles; vais permitir que um troiano te supere em generosidade?

Estava de rosto voltado; Cassandra pensou que ele se sentia envergonhado. Desejou que tivesse sido possível negociar apenas com Odisseu.

- É fácil ver quão amigo dos Troianos tu sempre foste, Odisseu - disse Agamémnon. - Não me esqueci de como, por pouco, não conseguíamos persuadir-te a lutar ao nosso lado.

- A metade das riquezas do Mundo - murmurou Aquiles, olhando' gulosamente para o anel. - Mas, apesar de tudo, não quero ser demasiado ganancioso; o que faria eu com metade da riqueza do Mundo? Pedirei apenas, então, o peso do corpo de Heitor em ouro.

- Tê-lo-ás - disse Príamo sem vacilar. - Dou-te a minha palavra. «Mas isto é intolerável», pensou Cassandra; «um tal resgate nunca foi pedido ou pago em toda a história da guerra.» Só Aquiles ousaria fazer algo assim. Odisseu fez um movimento brusco, como se fosse protestar; mas não disse nada. Cassandra sabia porquê: uma palavra errada poderia descontrolar a loucura de Aquiles, e então não haveria qualquer resgate.

- Será pesado na frente dos teus olhos, de madrugada, diante das muralhas de Tróia, até à última onça, príncipe Aquiles - disse Príamo; curvou-se para que Aquiles não pudesse ver o furioso desespero espelhado no seu rosto.

Aquiles sorria; obtivera aquilo que queria, e obtivera-o perante os seus aliados.

- Beberás então, comigo, ao nosso contrato, meu Senhor de Tróia?

- Obrigado - disse Príamo; era demasiado óbvio que preferiria cuspir na cara de Aquiles, mas ergueu a taça que o príncipe lhe pusera na mão e bebeu alguns goles, depois do que passou a taça a Políxena e depois a Cassandra, que a levou aos lábios mas não bebeu; sabia que se o fizesse sufocaria.

- Posso então receber o corpo de Heitor, para que a sua mãe e as suas irmãs o preparem para ser sepultado?

- Ser-te-á devolvido de madrugada, lavado e decentemente amortalhado, ungido com óleo e essências, em frente das muralhas quando o resgate tiver sido pago - disse Aquiles.

- Aquiles, em nome de Zeus dos Trovões! - explodiu Agamémnon. - O rei de Tróia não regateia ninharias! Dá-lhe o que ele veio buscar!

- Não pensei que um pai desejasse ver o corpo no estado em que ele se encontra - disse Aquiles, observando o rosto de Príamo enquanto falava. «Uma criança cruel, arrancando as asas aos passarinhos.»

- Eu pô-lo-ia decente antes de ser visto pela mãe.

- O meu senhor Aquiles tem tanto de generoso quanto o que sempre pensámos ter de nobre - disse Cassandra rapidamente. «Sim, precisamente o que pensávamos.» - que assim seja. De madrugada então, príncipe Aquiles-e puxou pela manga do seu pai. A cabeça de Príamo estava curvada; chorava. Ela amparou-o e Políxena pegou-lhe no outro braço enquanto saíam da tenda, rapidamente, para que Príamo não ouvisse as gargalhadas de Aquiles atrás de si.

 

Mal regressaram a Tróia, Príamo pôs toda a gente da casa em frenética actividade, despindo o palácio dos ornamentos de ouro, pedindo todos os colares, brincos e anéis das mulheres e as taças de mesa, antes mesmo de abrir a sala do tesouro e mandar carregar o ouro para o cimo das muralhas.

Príamo mandou chamar um sacerdote do Templo do Senhor do Sol para que montasse rapidamente um par de balanças. Foi Crises quem veio e, desta vez, estava realmente demasiado ocupado para reparar minimamente em Cassandra, enquanto trabalhava com roldanas e pesos. Ela via-o trabalhar, compreendendo princípios que regiam o que ele estava a fazer, mas sabendo não possuir a habilidade manual nem os conhecimentos para o fazer ela própria. Quando a estranha balança se encontrava já preparada, ele pediu-lhe que se deitasse numa das plataformas para que a pudesse testar.

- Basta fazer de conta que és um peso morto - disse ele.

- Como queiras. - Tomou o seu lugar, olhando as pessoas da casa de Príamo que empilhavam ouro do outro lado da balança. Ficou surpreendida pelo tamanho reduzido do monte de ouro que a equilibrava, levantando-a lentamente no ar. Ele viu a expressão dela e disse:

- O ouro é mais pesado do que muita gente pensa.

Estava certa de que Aquiles sabia, até ao peso dos dedos, quanto ouro receberia. Começou a sentar-se à medida que iam retirando o ouro e o empilhavam.

- O teu peso em ouro, Cassandra - disse Crises - se fosse meu, oferecer-to-ia para te desposar.

Ela suspirou e disse:

- Não recomeces com isso, meu irmão. Ele ficou cabisbaixo.

- Terás tu que destruir todas as esperanças de felicidade que eu possa ter neste mundo?

- Oh, se o que desejas é uma esposa - disse ela com um riso de irritação-, há mulheres de sobra em Tróia.

- Sabes que para mim - disse Crises - não há outra mulher para além de ti.

- Então receio que vás viver e morrer solteiro - disse Cassandra firmemente -, mesmo que todo aquele ouro fosse teu e tu pudesses dotar-me com ele. - Deslizou até ficar de pé, olhando o monte de ouro correspondente ao seu peso...

Nunca ligara grandemente a jóias e não conseguia deixar de ficar espantada ; com o facto de aquele material frio estimular tanto a ganância das pessoas. Não sabia porquê, mas, mesmo conhecendo Aquiles como conhecia, nunca pensara , que ele pudesse ser convencido apenas pelo ouro; pensara que ele talvez tentasse alguma humilhação suplementar à casa real de Tróia.

Por cima deles, iluminando a superfície das pedras, o Sol começava a elevar-se; subiu os degraus até ao topo da muralha e, silenciosamente, abriu os braços na saudação matinal ao Senhor do Sol.

- Canta o hino da manhã, Cassandra - incitou Crises. - A tua voz é doce, mas agora é tão raro ser-nos dado ouvi-la, mesmo em honra de Apolo. Ela abanou teimosamente a cabeça; se cantasse, ele acusá-la-ia mais uma vez de estar a tentar enfeitiçá-lo.

- Prefiro cantar apenas na presença exclusiva do Deus - murmurou, e ficou em silêncio.

Chegando com os seus criados e mais um cesto de ouro - embora o metal precioso mal cobrisse o fundo do cesto, era tão pesado que este tinha de ser transportado entre dois homens -, Príamo disse:

- Então, sacerdote, as balanças estão prontas? - Prontas para te satisfazer, meu senhor.

- Para me satisfazer? Grande idiota, pensas que tiro alguma satisfação deste assunto? - inquiriu Príamo asperamente. Continuava vestido com a túnica branca dos suplicantes, manchada da terra das trincheiras; os seus pés descalços estavam cobertos de uma pasta de lama seca.

Políxena sussurrou-lhe algo e Príamo disse em voz alta:

- Queres tu dizer que por causa desse vilão Aquiles eu deveria tomar banho, pentear o cabelo e vestir roupas bonitas, como se isto fosse um casamento e não um funeral? E não me interessa se este aqui é o chefe dos sacerdotes do Senhor do Sol; não é por isso que deixa de ser um idiota!

Cassandra cobriu a boca com a ponta dos dedos; não seria apropriado sorrir naquele momento. Era certo que havia poucas razões para sorrir, à excepção do embaraço no rosto de Crises; achava que o seu pai falara no tom impertinente da senilidade. Príamo fez sinal aos criados para que pousassem o cesto junto do resto do ouro.

- Agora aguardamos as ordens de Aquiles. Seria bem ao estilo dele exigir um acordo tão degradante como este e fazer-nos esperar o dia inteiro - ou não chegar mesmo a vir.

- Ele fez o acordo diante de testemunhas - lembrou Políxena ao pai. ~-Eles farão com que venha. Estão ansiosos por continuar esta guerra, agora que não têm de enfrentar Heitor.

Fez-se silêncio enquanto a gente da casa de Príamo se reunia lentamente na muralha, com Hécuba e Andrómaca uma de cada lado do rei.

Cassandra não tinha a certeza do que esperava: talvez do carro de Aquiles, galopando à sua habitual velocidade suicida em direcção à muralha. Fixou o Sol até os olhos doerem. Crises encontrava-se a seu lado e enfiou o braço por baixo do dela como que para lhe fornecer apoio; ela sentiu-se exasperada, mas não queria atrair sobre si as atenções ao afastar-se. O sacerdote disse:

- Estão agitados no acampamento argivo; de que estarão à espera?

- Talvez de humilhar ainda mais o meu pai vendo-o desmaiar de exaustão devido ao calor - murmurou ela. - Comparado com Aquiles, Agamémnon é , sem dúvida nobre e gentil, Crises.

- Sei pouco acerca dele - disse Crises -, mas sei o suficiente para não querer ver o futuro de Tróia nas suas mãos; a saúde e a força de Príamo são agora a única esperança que existe para Tróia.

«Esperança bem pequena, essa», pensou ela, mas manteve-se calada. Não tinha a mínima vontade de discutir os receios que sentia em relação ao seu pai, e muito menos com um homem em quem não confiava.

- Vejam - disse Políxena, e apontou quase sem levantar o braço. Ao longe, na planície, viam-se formas em movimento; à medida que se aproximavam, Cassandra distinguiu Aquiles, com o cabelo brilhando sob um ofuscante raio de sol. Caminhava à cabeça de um pequeno cortejo; atrás dele, oito dos seus soldados transportavam um corpo numa padiola - só podia ser o de Heitor - e, a seguir, vinha meia dúzia de chefes aqueus, de armaduras completas mas não transportando quaisquer armas.

«Ao menos por uma vez, Aquiles cumpriu a sua palavra.» Soltou a respiração, só então se apercebendo de que, até ter visto o corpo de Heitor, nem por um momento admitira que ele o fizesse.

Eles estavam agora mais próximos; conseguia distinguir o rosto de cada um e até mesmo ver os pormenores do bordado da mortalha que cobria o corpo de Heitor. Aquiles curvou-se diante de Príamo e disse:

- Tal como prometi, Senhor de Tróia, eis o corpo do teu filho.

- O resgate está à tua espera, príncipe Aquiles - disse Príamo, e dirigiu-se à mortalha, dobrando para trás a pesada cobertura para destapar o rosto. Primeiro deixa-me certificar-me de que é realmente o corpo do meu filho...

Hécuba veio colocar-se ao seu lado quando ele retirou a mortalha, com Pentesileia junto de si, preparada para o caso de ela precisar de apoio. Cassandra estava à espera de ouvir a sua mãe começar a chorar ou a gritar, mas ela apenas assentiu e curvou-se para beijar a testa branca e fria. Príamo disse:

- As balanças foram montadas por um sacerdote de Apolo, Senhor do Sol, que é dotado para estas coisas. Se quiseres verificar pessoalmente os pesos...

- Não, não - disse Aquiles, com invulgar cordialidade -, eu percebo pouco dessas coisas, meu senhor.

Crises disse, conduzindo Aquiles para junto da balança:

- Agiste contra os teus interesses, príncipe Aquiles, ao permitir que o corpo de Heitor ficasse tão estropiado; no seu estado perfeito, dar-te-ia mais ouro. A piada soou grosseira e inapropriada. Cassandra indagou-se olhando as

mãos trémulas de Crises e o brilho excessivo nas pupilas dos seus olhos, se ele teria estado a beber vinho puro àquela hora da manhã ou alguma infusão com vinho e sementes de papoila, que o tivesse feito perder a noção de quem eram aqueles em cuja presença se encontrava.

Príamo empalideceu e disse rispidamente:

- Vamos lá começar com isto. - Fez um sinal e o corpo de Heitor foi erguido de forma a ficar deitado na plataforma. Os escravos de Príamo, com a ajuda de pás, começaram a colocar o ouro na plataforma, poucas peças de cada vez. Aquiles olhava, somindo abertamente, à medida que a plataforma que suportava o corpo começava a estremecer e a elevar-se do solo. Cassandra perguntou-se se os outros espectadores achariam a cena tão grotesca como ela a achava.

A balança estremeceu e, por momentos, oscilou fortemente, fazendo com que o corpo deslizasse para um dos lados, mas sem cair. Nos cumes que se erguiam acima de Tróia, os ventos começavam a levantar-se; mas ali, na base das muralhas, o ar estava angustiantemente parado - parado ao ponto de dificultar a respiração. Ocorreu a Cassandra que não ouvira, em parte alguma da cidade, um único canto de pássaro. Seria isso parte do aviso que lhe fora feito anterior­mente? Estaria Posídon prestes a atacar? Deixá-lo atacar, então, e acabar com aquela obscenidade, com aquela caricatura da decência e da honra. Fixou atentamente os olhos numa das cordas das roldanas e não os desviou dela. Enquanto olhava, a corda tremeu e alguns ornamentos de ouro caíram. «Oh, vamos, Posídon, é isso o máximo que consegues fazer por Heitor?»

Um dos escravos de Príamo apanhou os ornamentos e voltou a colocá-los no lugar. Juntou-lhes uma pesada protecção peitoral em ouro, e a plataforma que suportava o ouro baixou, ultrapassando agora, obviamente, o peso do corpo.

- Demasiado pesado - disse Príamo, e retirou-a, substituindo-a por um colar de ouro de voltas múltiplas.

- Um cabelinho a menos, agora - disse Aquiles, demorando gulosamente os olhos na couraça peitoral. Políxena deu um passo em frente, tirou os seus longos brincos de trama de ouro das orelhas e atirou-os para a plataforma. Os pratos balançaram, imobilizando-se em seguida, perfeitamente equilibrados. - Aí está - disse ela -; é suficiente. Pega no teu ouro e vai-te.

Aquiles deslocou o olhar do ouro para Políxena, com os olhos a luzir. - Em troca do ouro, uma rapariga dourada bastaria - disse ele. - Rei Príamo, perdoar-te-ei metade do resgate em troca desta mulher, mesmo que ela seja uma das tuas escravas ou concubinas.

- Eu sou filha de Príamo - disse Políxena - e sirvo a Virgem, que não é grande amante da lascívia, mesmo de um rei ou de um filho de um rei. Dá-te por satisfeito com o teu ouro e com o acordo que fizeste, príncipe Aquiles, e deixa-nos com o nosso morto.

Aquiles apertou os lábios com força e Cassandra viu uma veia a pulsar-lhe na fronte. Por entre os dentes cerrados disse:

- Ah, é assim? Então, dar-ma-ás (honradamente, em casamento legítimo) em troca de uma trégua de três dias para o enterro do teu filho? Caso contrário, a guerra recomeçará ao meio-dia.

- Não! - a voz de Odisseu explodiu vinda do meio dos chefes aqueus. - Isto é de mais! Aquiles, honra a tua palavra, tal como prometeste, ou será comigo que te encontrarás ao meio-dia. Acordámos com Príamo três dias de - tréguas para o funeral de Heitor, e assim será.

Aquiles olhou-o com ar carrancudo, mas disse:

- Então seja - e levantou a mão para os seus homens. Distribuíram o ouro em cestos e, cada qual carregando um, partiram através da planície pelo mesmo caminho por onde tinham vindo.

Cassandra não ficou para assistir aos planos para os jogos fúnebres, ale­gando obrigações no templo; tinha de ir imediatamente para ver o que as serpentes prognosticavam. Mais ninguém parecia ter notado o toque da mão - ou da ponta dos dedos- de Posídon. Subiu rapidamente o longo e íngreme caminho em direcção à casa do Senhor do Sol. Momentos depois apercebeu-se de que Crises a seguia. Bem, deixá-lo; tinha tanto direito de entrar na casa do Senhor do Sol como ela. Mas ele não a abordou nem lhe falou até terem atravessado os grandes portões.

- Eu sei o que te vai no espírito, princesa - disse ele. - Eu também o senti. Os deuses estão zangados com Tróia. - Tinha um ar pálido e abatido; que teria ele andado a beber tão cedo? Talvez alguma coisa para estimular as visões, ou mesmo os seus sentidos vulgares?

- Não tinha a certeza de o ter sentido - começou ela. - Não estava segura de não ter sonhado ou imaginado isso.

- Se foi assim, então também sonhei - disse ele. - Agora é apenas uma questão de tempo; por quanto tempo mais poderá Apolo, Senhor do Sol, retardar o golpe de Posídon em toda a sua violência? Também eu os vi lutando por Tróia...

Recordando a sua própria visão, Cassandra disse:

- É verdade. Nenhum mortal pode destruir as muralhas de Tróia. Mas se um imortal as fender...

- Está lá fora um exército mais poderoso do que todas as forças de Tróia - disse Crise. - E o nosso melhor combatente aguarda os seus ritos fúnebres, enquanto eles têm, pelo menos, três guerreiros superiores ao nosso melhor.

- Três? Tens razão quanto a Aquiles, mas...

- Agamémnon, que pode vencer Páris e Deífobo ao mesmo tempo, se for necessário; e Odisseu e Ájax são equivalentes a Heitor, embora nenhum deles alguma vez o tivesse superado.

- Bom - disse Cassandra, perguntando-se onde quereria ele chegar com aquilo -, enquanto as nossas muralhas estiverem de pé, isso não tem importância; e se está, à partida, destinado que elas têm de cair... bem, enfrentaremos o destino quando ele chegar.

- Eu não quero ficar e assistir à queda da cidade. Se eu fosse guerreiro, ficaria para lutar; mas eu nunca fui treinado no uso das armas e não serviria de ajuda nem para me defender a mim próprio - e muito menos aqueles que amo. Virás comigo para longe, Cassandra? Eu não quero que morras quando a cidade se render.

- Quem me dera ter apenas a morte para recear!

- Faço tenções de ir para Creta no primeiro navio que consiga arranjar, e ouvi dizer que, para lá da enseada, há um navio fenício que se prepara para fazer-se ao mar - disse Crises. - Vem comigo e não terás nada a recear. - Nada, isto é, excepto tu.

- Não serás jamais capaz de perdoar-me aquele momento de loucura?perguntou Crises. - Eu tenho-te o maior dos respeitos, Cassandra; casarei contigo se quiseres ou, se continuas decidida a não casar, farei todos os juramentos que quiseres em como viajaremos como irmão e irmã, e eu não te tocarei com um dedo sequer.

« Mas eu não confiaria no teu juramento, nem que jurasses pela honra da tua própria mãe», pensou ela, e abanou a cabeça, sem animosidade.

- Não, Crises. Agradeço-te teres pensado nisso, acredita-me. Mas os deuses decretaram que eu tenho algo mais a fazer em Tróia. Não sei o que eles destinaram para mim, mas sem dúvida que mo dirão quando chegar o momento.

- Certamente que a tua lança não terá qualquer utilidade quando a cidade cair - disse Crises. - Ficas para consolar a tua mãe e a tua irmã quando elas forem levadas como cativas pelos capitães argivos? De que lhes valerá isso?

Cassandra olhou-o atentamente. Parecia haver muito tempo que não tocava em comida, mas não tinha apenas um aspecto faminto. O coração de Cassandra sofria por ele; ela não o amava da forma que ele desejaria, mas conhecia-o havia muito tempo e já não lhe queria mal.

« Um toque momentâneo do Deus, neste momento, matá-lo-ia», pensou, e sentiu-se entristecida.

- Se for essa a única tarefa que os Deuses me destinarem - disse firmemente -, então será essa a que eu cumprirei.

- Não vejo que valha muito a pena ir sozinho para Creta ou para Tera disse Crises. - Podias vir comigo tal como foste para Cálcis, estudar a ciência das serpentes; ou para o Egipto, onde as sacerdotisas são sempre bem-vindas. No Egipto há sempre construções em curso, e há sempre trabalho, tal como em Cnosso, para um homem que seja jeitoso em medições e pesagens. Ouvi dizer que iam reconstruir o palácio que ficou reduzido a escombros no último ataque de Posídon, O que Estremece a Terra.

- Então não vás sozinho - disse Cassandra. - Leva Criseide contigo. Ela nunca foi feliz aqui. E tu não queres que ela acabe, novamente, como cativa, na cama de Agamémnon, pois não?

- Não é Criseide que Agamémnon quer - disse Crises -, e tu sabes disso tão bem como eu.

Cassandra sentiu um arrepio ao escutar o ecoar da verdade na voz do sacerdote; mas disse:

- Eu obedeço ao meu destino como tu, meu irmão, obedeces ao teu; vai, então, para Cnosso ou para o Egipto, ou para onde quer que o teu destino te conduza, e que todos os deuses te protejam por lá. - Movimentou a mão num gesto de bênção. - Só te desejo tudo o que há de bom; mas separamo-nos aqui, Crises, e para sempre.

- Beija-me só uma vez - implorou ele, tombando sobre os joelhos diante dela.

Ela curvou-se e pousou levemente os lábios na sua testa enrugada, como uma mãe que beija uma criancinha.

- Que transportes a bênção do Senhor do Sol aonde quer que vás; e lembra-te de mim com ternura - disse ela.

Continuou a subir, ultrapassando-o, deixando-o ainda ajoelhado e aturdido, no meio da rua. «Já não está no seu juízo perfeito», pensou ela, «talvez seja uma bênção. Sofrerá menos quando o seu destino o atingir; já não deve faltar muito. Para nenhum de nós.»

Na Sala das Serpentes encontrou as sacerdotisas correndo de um lado para o outro, meio vestidas, lutando para conseguir recapturar as cobras; nessa manhã, um grande número delas desertara dos seus lugares próprios e fora refugiar-se no jardim. Uma ou duas das mais dóceis, ao serem recolhidas e levadas para os seus lugares, tinham mordido quem as segurava. Cassandra estava desolada. Fílidas tinha, de facto, tentado falar-lhe disso, mas ela não a escutara. O presságio era verdadeiramente mau; mas já passara o tempo dos receios.

- O Senhor do Sol não enviou às Suas gentes um falso aviso - disse ela. - A mão de Posídon, o que Estremece a Terra, atingiu-nos de facto; mas apenas com uma ligeiríssima pancada. Escutem: os pássaros cantam outra vez; o perigo passou, pelo menos por hoje.

Apesar de tudo, algumas pareciam perturbadas.

- A cobra grande, a Mãe das Serpentes, não sai para comer há três dias disse Fílidas. - Já a tentámos com ratos e coelhos recém-nascidos, depois com um pombo jovem e até mesmo com um pratinho de leite fresco de cabra.

Este último era agora em Tróia uma rara íguaria, já que muitas das cabras tinham de ser abatidas por falta de forragem; o pouco leite que restava era guardado apenas para bebés pequenos, ou para as mulheres em princípio de gravidez que não toleravam outros alimentos.

- O que significa este presságio, Cassandra? Será que a Mãe está zangada connosco? E que podemos fazer para afastar a Sua ira?

- Não sei - disse ela. - Não me chegou qualquer mensagem da Deusa dizendo que está zangada connosco. Acho que talvez devêssemos vestir as nossas túnicas dos festivais e cantar para Ela. Isso, pelo menos, não faria mal algum. E depois devemos ir todas para baixo e executar uma dança de adoração nos festejos fúnebres de Heitor.

Aquilo arrancou às mulheres exclamações de prazer; tal como calculara, facilmente se esfumaram os seus receios acerca do presságio. Mas Fílidas, que aprendera com Cassandra grande parte da arte das serpentes de Cálcis, deixou-se ficar para trás por um momento quando as outras foram trocar as suas túnicas.

- Isto está tudo muito certo, minha querida; mas, e se a serpente grande se recusar de novo a comer?

- Suponho que teremos simplesmente que receber isso como o pior dos presságios - disse Cassandra. - Mesmo a Mãe das Serpentes é um bicho, afinal; e nenhum animal passa fome sem motivo. Já alimentei à força serpentes mais pequenas, mas não me sinto apta para a tarefa de fazê-lo com esta; e tu? - Fílidas abanou silenciosamente a cabeça e Cassandra assentiu. - Portanto, o que podemos fazer é oferecer-lhe a comida para tentá-la mais fortemente, e rezar para que ela ache que vale a pena ingeri-la.

- Em suma, é exactamente o que faríamos com um dos Imortais - disse Fílidas, com um sorriso cínico. - Cada vez mais me pergunto: de que servem os deuses?

- Também não sei, Fílidas; mas peço-te que não digas isso às outras raparigas - disse Cassandra. - E suponho que era melhor irmos também vestir as nossas túnicas.

Fílidas afagou-Lhe o rosto e disse:

- Pobre Cassandra; não deves sentir-te com grande disposição para dançar e festejar quando Heitor jaz ali morto.

- Heitor está melhor do que muitos dos que ainda estão vivos, na cidade -disse Cassandra. - Acredita-me, minha querida, eu sinto-me feliz por ele. - Nenhum dos meus parentes está a combater - disse Fílidas -; e já se passou tanto tempo desde a última vez que estive num festejo, que me sentiria contente mesmo se a festa fosse em honra do meu próprio pai. Por isso dancemos para a Mãe Serpente e em memória de Heitor, e esperemos que tanto um como o outro retirem disso todo o prazer possível. - Afastou-se rapidamente e Cassandra curvou-se diante da grande caverna artificial que havia sido escavada na parede para a enorme serpente.

Hesitou, tentando certificar-se de que Apolo não falava a proibir-lhe a entrada, e depois rastejou para o seu interior, com uma candeia acesa na mão, para-investigar. A velha serpente conhecia o seu cheiro e não lhe faria mal; mas ela também não queria aproximar deliberadamente a candeia acesa. Dentro da caverna, na semiobscuridade, Cassandra sentiu o velho cheiro que fazia o medo trespassar os ossos dos seres humanos; mas ela fora ensinada a ignorá-lo.

Continuou a rastejar, evitando o monte de sujidade na caverna. As serpentes, em condições normais, eram mais asseadas do que os gatos; esta não teria sujado a sua habitação, se tudo estivesse bem. Começou a divisar a enorme pilha de anéis escamosos e, murmurando palavras calmantes, foi rastejando. Estendeu a mão hesitante e afagou-a delicadamente; mas em vez das escamas quentes que antecipara, tocou algo que parecia cerâmica fria. Pressionou com maior firmeza. Imóvel sob a sua mão, a Grande Serpente jazia morta.

« Então era por isso que ela não saía para comer. O presságio é pior do que as raparigas pensam», pensou Cassandra, suspirando e estendendo-se por momentos ao lado da criatura morta. Deu consigo a interrogar-se: se fosse para a cinzenta planície da morte, onde Heitor vagueava à espera do seu filho, encontraria aí a Mãe Serpente, e a cobra falaria à sua sacerdotisa com voz humana?

Bem, tanto fazia; se ela tivesse oportunidade de atravessar de novo aquela planície, talvez descobrisse. Havia tantas perguntas não respondidas acerca da morte, que ela não conseguira compreender por que razão haveria alguém de receá-la ou sentir, diante dela, algo que não fosse uma profunda curiosidade.

Recuou a rastejar para fora da caverna e colocou a candeia acesa numa plataforma diante dela, como sinal para que não perturbassem a ocupante. Fílidas regressou e perguntou-lhe:

- Entraste na caverna? Ela está bem?

- Muito bem - disse Cassandra, controladamente. - Esteve a mudar a pele e não pode ser incomodada.

Fílidas mostrou-se aliviada.

- Oh, mas tu não trocaste de túnica... nem calçaste as sandálias de dançar. - Oh, Heitor não liga às minhas túnicas - disse ela - e eu consigo dançar tão bem descalça como com as sandálias.

Logo que as raparigas se juntaram novamente no santuário, ela conduziu-as nos passos da dança, mais antiga do que Tróia. Quando terminou, soltou o uivante grito final, murmurando entredentes uma oração pela velha serpente; depois interrogou-se: será correcto rezar pela alma de um animal que, provavelmente, não possuía alma? Bom, se ela tivesse alma a oração seria bem-vinda; caso contrário, também não lhe faria mal algum.

- E agora vamos para a festa - disse ela, e conduziu as mulheres colina abaixo, em direcção ao palácio.

Príamo não as esperava, mas, de qualquer modo, foram bem recebidas e Hécuba ficou satisfeita por elas terem vindo prestar aquela homenagem a Heitor. Cassandra ficou no centro do bailado, observando a longa espiral de mulheres, com os seus esvoaçantes vestidos brancos, que girava em torno dela; depois, dirigiu o desenrolar dos anéis da velha dança do labirinto. Quando a dança e a canção chegaram ao fim, Cassandra fez sinal às sacerdotisas para que ajudassem a encher as taças dos convidados antes de se sentarem; ela própria encheu uma taça de vinho e levou-a a Pentesileia. Exausta e amargurada, sentiu que não existia mais ninguém naquela sala com quem pudesse falar, à excepção da velha amazona. Nem mesmo com Eneias - apesar de ele lhe sorrir e acenar - se sentia capaz de falar. Pentesileia não a maçou com perguntas; puxou-a simplesmente para que se sentasse a seu lado no cadeirão e partilhasse a sua taça de vinho. Só então perguntou:

- O que há, pequenina? Pareces tão abatida. Não é só desgosto por causa de Heitor, pois não?

Cassandra sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Para todas as outras pessoas de Tróia, ela era a sacerdotisa, aquela que carregava os fardos, a dona das respostas, a pessoa a quem todas as perguntas deveriam ser postas. Nunca ocorria a ninguém que ela pudesse ter os seus próprios receios e interrogações.

- Há alturas em que eu desejaria ter optado por ser também uma guerreira - explodiu ela. - Não vejo que utilidade poderá ter, seja para quem for, o facto de eu ser sacerdotisa.

A voz de Pentesileia soou com dureza.

- As nossas vidas raramente são escolhidas por nós, Cassandra. - Porque é, então, que algumas pessoas podem escolher?

- Penso que, possivelmente, no caso de alguns de nós, essas escolhas são determinadas pelas opções que fizemos até então - senão nesta vida, numa outra - disse Pentesileia.

- Acreditas realmente nisso? - perguntou Cassandra.

- Oh, minha querida, eu não sei em que acredito; sei apenas que, como todos nós, faço o melhor que posso das opções que me são oferecidas em cada momento - disse Pentesileia -, e eu também. Mas não devias estar aqui sentada a discutir os quês e porquês dos caprichos da vida com uma velha; olha, Eneias está farto de tentar captar-te o olhar. Alguns minutos com o teu amante animar-te-ão mais facilmente do que todas as minhas filosofias.

Talvez assim fosse, pensou Cassandra, mas ficou sentida. No entanto, olhou para Eneias e devolveu-lhe o sorriso. Ele levantou-se e veio ter com ela, aceitando outra taça de vinho - embora ela reparasse que estava tão diluído que era mais água do que vinho.

- A dança foi linda; nunca tinha visto nada parecido - disse ele. - É uma das danças antigas de Tróia?

- Sim, é muito antiga - respondeu-lhe ela. - Mas creio que deve ser cretense; é a dança do labirinto: as espirais dos anéis da Serpente da Terra. Jáera dançada na casa do Senhor do Sol antes de Ele ter morto a Grande Serpente, segundo dizem.

«E, uma vez mais, a Grande Serpente jaz morta, e o Senhor do Sol não nos enviou qualquer sinal ou presságio», pensou ela, esmagada pelo medo... O que poderia significar tudo aquilo? Certamente, a morte de Heitor fora apenas o começo de um desfile de infortúnios...

Eneias estava debruçado sobre ela, com uma expressão de ansiedade, perturbado pela sua angústia. Ela não queria assustá-lo também; com ele, talvez ela conseguisse até pôr um fim àquele infinito desespero.

- Deixa-me trazer-te qualquer coisa - disse ele. - Quase não provaste nada da festa; e há cabrito assado e borrego. Príamo não quis que faltasse nada e Heitor não gostaria de ver-te infeliz; onde quer que o nosso irmão morto se encontre, podemos estar certos de que tudo está bem com ele e não é pelas nossas lamentações que ficará melhor.

Aquilo soou tão próximo do que tinha estado a tentar dizer, que ela ficou radiante; «pelo menos Eneias compreende o que eu digo; não tenho de tentar abbrir caminho através de uma montanha de receios e disparates supersticiosos relacionados com a morte!». O rosto dele parecia brilhar sob a luz do archote. Lembrou-se de que o vira sair ileso da catástrofe de Tróia; ele ia viver, e a luz do seu rosto não era mais do que a luz da vida, quando a palidez da morte cobria todos os outros.

- Não quero comer mais - disse ela, embora momentos antes tivesse sentido fome.

- Bem, então saiamos desta sala de lamentos. Todos os deuses podem testemunhar que eu gostava de Heitor, mas não vejo de que forma o seu destino, ou a nossa aceitação dele, possa ser beneficiado pelo facto de as pessoas se sentarem a comer até mal se poderem mexer, ou a encherem-se de bebida até à imbecilidade - disse ele, e fez deslizar o braço em volta dela. Abraçados, saíram para o terraço e olharam a negra extensão do acampamento argivo; havia algumas luzes dispersas, mas tudo o resto estava às escuras.

- O que estarão eles a fazer lá em baixo? - perguntou Eneias.

- Não sei; posso ser profetisa, mas não consigo ver a esta distância - disse ela. - Diria que constroem um altar a Posídon. Mas é tarde de mais para isso e eles deveriam sabê-lo.

- Talvez os videntes deles não sejam tão bons como tu - disse ele, apertando-a com força. - Cassandra, deixa-me ir ao teu quarto...

Ela hesitou, mas por fim disse:

- Vem, então. - No dia seguinte haveria tempo para pensar em serpentes mortas e cidades moribundas.

Enquanto caminhavam, subindo a rua íngreme, uma estrela caiu varrendo o céu com uma velocidade tal que, por instantes, pareceu ter sido a Terra a inclinar-se; Cassandra apertou o braço de Eneias, lembrando-se de quando ela e Andrómaca tinham visto estrelas cadentes, em Cálcis, era ela ainda uma rapariguinha. Desde essa noite, embora ela tivesse vindo a observar regularmente os céus, nunca mais vira outra estrela cadente até àquele momento. Seria alguma espécie de augúrio? Ou não teria qualquer significado?

- O que foi? - perguntou Eneias, inclinando-se para ela e falando com

enorme ternura.

- Foi apenas a estrela.

- Estrela? - perguntou ele. - Não vi nada, meu amor.

«Agora estou a imaginar coisas. Bom, já basta por esta noite», disse firmemente a si própria e arrastou Eneias para o seu quarto, percebendo, num súbito golpe de dor, que seria a última vez.

 

As tréguas, para grande surpresa de Cassandra, não foram quebradas pelos Aqueus. Nenhum deles competiu nos jogos fúnebres de Heitor - excepto um mirmídone anónimo que participou na luta corpo-a-corpo, deitou por terra quatro oponentes seguidos (terminando com o derrube de Deífobo), embolsou a taça de ouro que constituía o prémio e desapareceu sem revelar o nome. Mais tarde, os boatos na cidade afirmavam ser ele um dos Imortais disfarçado, mas não era. Páris disse que o tinha visto nas fileiras e que ele era apenas um vulgar soldado. Troianos e Aqueus assistiram juntos aos diversos acontecimentos, aplaudindo os vencedores com notável desportivismo.

Pentesileia insistiu em competir pelo prémio do tiro ao arco, o que provocou alguns problemas quando ela venceu com facilidade todos os adversários, incluindo Páris, o qual tinha, obviamente, destinado aquele prémio para si. Páris protestou, mas ninguém aceitou as suas objecções; uma vez que Páris tinha já sido frequentemente ouvido a afirmar que nenhum homem ao cimo da Terra o puderia bater no tiro ao arco, vários dos filhos mais novos de Príamo (que não estavam de todo contrariados por ver o seu irmão ser batido uma vez) insistiram em que ele não tinha o direito a reclamar visto ter sido batido por uma mulher.

Na manhã do terceiro dia, Cassandra acordou cedo, escutando com alívio o canto enérgico de muitos pássaros nos jardins da casa do Senhor do Sol; pelo menos nesse dia não iria haver nenhum tremor de terra substancial.

Foi cedo para o palácio - Pentesileia tinha-se mudado dos seus aposentos na casa do Senhor do Sol - e ajudou a amazona a vestir a sua armadura de couro endurecido com placas de metal.

- Todos nós iremos lutar, e hoje vamos (isto é, nós, Amazonas) lançar-nos com todas as nossas forças contra Aquiles - disse ela. - Há muitos anos que lutamos. Um só guerreiro, por muito feroz que ele seja, não poderá derrotar-nos a nós todas.

- Preferia que escolhessem atacar alguém menos temível - disse Cassandra, preocupada. - Há inimigos que cheguem; homens como Idomeneu e Menelau também necessitam de ser mortos. Porque não Agamémnon? Porque hão-de ir logo desafiar o orgulho dos Aqueus?

- Porque se Agamémnon ou Menelau forem mortos, Aquiles continuará ali a animar as tropas; mas se Aquiles morrer, eles ficarão como uma colmeia de abelhas quando a rainha desaparece - disse Pentesileia. - Os Mirmídones, pelo menos, ficarão completamente desmoralizados; lembra-te de quando Aquiles ainda estava amuado - eles quase não lutavam, e muito menos se mostravam como o exército bem organizado que são agora.

- Oh, eu consigo entender porque pensas assim -disse Cassandra -, mas esta guerra nem sequer é vossa. Quem me dera que vocês se fossem embora antes do combate de hoje.

Pentesileia olhou-a de frente.

- Tiveste algum presságio, Olhos Brilhantes?

- Não propriamente - disse Cassandra, e depois percebeu que deveria ter dito que sim; talvez a amazona tivesse acreditado nela. Lançou os braços em volta de Pentesileia e começou a chorar.

- Quem me dera que não fosses - era a única coisa que ela conseguia dizer. Agarrou-se à mulher mais velha, em pranto, e Pentesileia franziu o sobrolho.

- Vamos, então, onde está a guerreira que eu própria treinei? - perguntou. - Estás a comportar-te como uma mulher doméstica e fraca! Ora - isso mesmo: enxuga esses olhos brilhantes, meu amor, e deixa-me ir.

Relutantemente, Cassandra soltou-se dela, tentando reprimir os soluços. - Mas Aquiles é invulnerável; dizem que há um deus que o protege e que nenhum homem o pode matar.

- Bem, Páris também se gabava de que nenhum homem o poderia bater no tiro com arco - disse Pentesileia com um sorriso divertido. -Talvez isso queira dizer que a morte dele está reservada para uma mulher. E se eu não estiver destinada a fazê-lo, talvez uma das minhas mulheres o faça para me vingar. Querida, nenhum homem mortal é invulnerável; e se algum deus proteger tal monstro, então esse deus deveria ter vergonha. Nós atribuímos demasiado poder a Aquiles; ele é um homem como outro qualquer.

«No entanto, ele matou Heitor», pensou Cassandra, mas não havia nada que pudesse dizer, pois Pentesileia tinha razão. Caminharam lado a lado, rodeadas pelas outras amazonas, até ao local onde os cavalos e os carros formavam para o ataque.

Pentesileia pôs o braço em volta da cintura de Cassandra. - Céus, filha, ainda estás a tremer!

- Não consigo deixar de temer por ti - disse Cassandra com a voz sufocada.

Pentesileia franziu as sobrancelhas; depois a sua voz encheu-se de ternura.

- Isso não pode interferir na vida de uma guerreira, Olhos Brilhantes. Não quero que ninguém te veja chorar assim. Vamos, querida, deixa-me ir.

«Não suporto vê-la ir! Ela não voltará nunca...» Mas, embora com relutância, soltou os braços da cintura da sua parente. Pentesileia soltou-a e disse: - Cassandra, aconteça o que acontecer, fica sabendo que foste sempre para mim mais do que uma filha, e mais querida do qualquer dos meus amantes. Foste minha amiga.

Cassandra afastou-se para o lado, vendo, através de uma névoa de lágrimas, a sua tia saltar para cima da sela. As Amazonas cerraram fileiras à sua volta, falando de estratégias de combate em voz baixa; depois, os portões abriram-se e saíram a galope.

Cassandra sabia que deveria ir juntar-se à sua mãe no palácio, ou ir para o templo vigiar as serpentes - estava tudo numa confusão, agora que se soubera da morte da Grande Serpente; mas, em vez disso, foi para o cimo da muralha para assistir ao avanço de Pentesileia e do seu grupo contra os Aqueus. Meia dúzia de carros troianos saíram primeiro, envolvendo-se directamente com a grande massa de inimigos, usando lanças e espadas. Depois, trovejante, a carga das Amazonas lançou-se sobre Aquiles e os seus homens.

Uniram-se num choque de lanças claramente audível para as mulheres que se encontravam na muralha. Quando a poeira se dissipou, duas das amazonas jaziam no solo, os seus cavalos caídos. Uma delas conseguiu pôr-se de pé e derrubar com um golpe de lança o seu atacante; a outra jazia imóvel, com o seu cavalo a debater-se e a arrastar-se, tentando pôr-se de pé. Um soldado aqueu viu os seus esforços e, rapidamente, golpeou-lhe a garganta; depois ajoelhou-se sobre a mulher caída para lhe arrancar a sua belíssima armadura. Cassandra viu que Pentesileia tinha sobrevivido ao primeiro assalto; o seu cavalo fora ferido por uma lança, mas continuava de pé.

A rainha amazona voltou a sua montada e carregou através de um amontoado de soldados de Aquiles, desviando-os com o impacte e ferindo mais do que um com os seus golpes de lança. Cassandra viu o preciso momento em que Aquiles se apercebeu da presença dela: quando ela golpeou um homem que devia pertencer à sua guarda pessoal. Viu o salto que ele deu, encarando a amazona como se a convidasse a apear-se e a lutar com ele cara a cara.

Pentesileia desmontou prontamente para o enfrentar, espada com espada. Era mais alta do que ele e tinha maior alcance com a espada. Embateram um com o outro com um ruído metálico, numa sequência de golpes demasiado rápidos para poderem ser seguidos com o olhar. Aquiles vacilou e, por momentos, caiu sobre os joelhos. Fez um sinal qualquer e os seus soldados acorreram e imediatamente se ocuparam de todas as outras guerreiras. Depois, veloz como o ataque de uma serpente, pôs-se de pé, a sua espada movendo-se a uma velocidade tal que quase não se via. Pentesileia recuou alguns passos até que ficou encostada ao flanco do seu cavalo. Então, a espada implacável de Aquiles pressionou-a até ela tombar. Cassandra ouviu-a expirar num soluço, ao mesmo tempo que Aquiles se lançava para junto da amazona. O que estaria aquele louco a fazer? Arrancou-lhe a roupa num frenesi, inclinou-se sobre ela e, sob os olhares horrorizados delas, violou selvaticamente o cadáver.

«Monstruoso!», pensou ela. «Se ao menos tivesse o meu arco!» Aquiles tinha terminado e lutava com as quatro amazonas que tinham ido atacá-lo. Atingiu duas delas de uma só vez; depois derrubou outra com a lança, ferindo-a de tal modo que, ao afastar-se cambaleante, foi mortalmente golpeada por um dos soldados dele. A mulher que restava precipitou-se desesperadamente na tentativa de recuperar o corpo de Pentesileia; mas com a inferioridade numérica delas era inútil e, poucos minutos depois, não havia uma única guerreira amazona viva. Os soldados reuniram e levaram os cavalos que tinham sobrevivido. Numa única hora de batalha, o que restava de uma tribo, toda a sua cultura e o seu passado, tinha sido apagado, e aquele demoníaco Aquiles havia infligido o supremo insulto à guerreira que ousara enfrentá-lo. Cassandra não acreditava, nem por um momento, que ele tivesse sido dominado por um impulso lascivo; fora um acto cruel de puro desrespeito.

Teria sido o momento apropriado, pensou, para Apolo disparar a sua flecha e atingi-lo, naquele preciso acto de desmedida arrogância e orgulho. O deus que condenava os excessos na vingança e até na guerra, teria sido o vingador perfeito. Aquiles, concluiu Cassandra, não podia já ser considerado como um digno adversário de batalha; era como um cão raivoso.

« Mas os deuses ficam na sombra e nada fazem. Se Aquiles fosse de facto um cão raivoso», reflectiu, «alguém haveria de matá-lo, não para vingar os mortos, mas sim para proteger os vivos e para acabar com o sofrimento do pobre animal enlouquecido.

E se Apolo não age, não terá sido por acaso que eu fiz o juramento de O servir - nem que seja apenas para fazer o que um sacerdote mais ingénuo esperaria que o deus fizesse.» Pela primeira vez desde que, em rapariguinha, se ajoelhara e pedira ao Senhor do Sol para que a aceitasse, soube claramente por que razão tinha ido para a casa do Senhor do Sol. Olhou uma última vez para o corpo de Pentesileia que jazia, despido e exposto, no meio do terreno, e depois afastou-se; chorara tudo nessa manhã, quando implorava a Pentesileia que não fosse, e não tinha mais lágrimas.

Subiu até à casa do Senhor do Sol e foi ao seu quarto; ali, tirou do baú o seu arco - um presente de Pentesileia - elaboradamente decorado e com incrustrações em ma~m como o do próprio Senhor do Sol.

Pô-lo a tiracolo juntamente com uma flecha simples - poderia necessitar dela para testar o alcance - e na sua aljava colocou a última das flechas envenenadas feitas pelo velho centauro Quíron.

Cassandra apercebeu-se de que tremia da cabeça aos pés. Desceu à cozinha e arranjou algum pão duro e um pouco de mel, obrigando-se a comer. As mulheres encontravam-se ali reunidas, cozendo pão fresco para os festejos fúnebres da Grande Serpente, e tentaram convencer Cassandra a esperar pela nova fornada, mas ela recusou tudo à excepção de uma taça de vinho aguado. Elas estavam espantadas por ver a sua sacerdotisa armada, mas abstiveram-se de fazer perguntas; o seu estatuto de sacerdotisa mais velha fazia supor que, por muito misteriosas e obscuras que fossem, as suas acções tinham um bom propósito, e não poderiam, em circunstância alguma, ser postas em causa.

Depois dirigiu-se decididamente para a sala mais secreta do templo, e de uma arca da qual apenas algumas sacerdotisas mais importantes possuíam as chaves, retirou uma túnica especial enfeitada a ouro, e a máscara dourada do Senhor do Sol. Fazendo um esforço para controlar a firmeza das mãos, vestiu-se e atou os cordões.

Não estava absolutamente certa de se aquilo que fizera seria o maior dos sacrilégios - pensou em Crises vestindo aquelas coisas para persuadir uma rapariga inexperiente a submeter-se à lascívia que não podia satisfazer de outra forma - ou se estaria a defender a honra de Apolo fazendo aquilo que o Deus tinha a obrigação de fazer e não fazia.

As sandálias faziam parte da indumentária: sandálias douradas com pequenas asas de ouro presas nos tornozelos. Atou-as, desejando que elas fossem realmente atadas, para poder sobrevoar o acampamento aqueu. Silenciosamente, subiu ao terraço que dava sobre o campo de batalha, recordando-se de como Crises ali chegara, encarnando Apolo, para lançar as flechas da praga para o acampamento aqueu. Fora também com a voz de Apolo que gritara.

Os corpos das Amazonas jaziam no meio de nuvens compactas de moscas. Os cavalos haviam desaparecido; os condutores dos carros troianos e os soldados apeados que tinham avançado nessa manhã haviam retirado para o interior das muralhas de Tróia. Aquiles passeava-se pelo meio dos seus guardas, aparentemente à espera de que alguém aparecesse a desafIá-lo para um combate. Seria possível os seus próprios soldados não verem que aquele homem ultrapassara todos os limites da sanidade mental e da decência? Porém, continuavam a respeitá-lo como seu chefe!

Não gritou como Crises fizera: Apolo não lhe dera nada para dizer, embora Fosse o Deus das Canções. Talvez outra pessoa qualquer fizesse uma canção acerca daquilo, mas não seria com palavras suas. Apenas retesou o arco, fez cuidadosamente pontaria a Aquiles e soltou a corda. A flecha caiu um pouco aquém; mas agora ela já tinha a noção da distância. O herói aqueu não vira a flecha e continuava a pavonear-se entre os carros de combate. Para onde disparar quando a armadura de ferro cobria uma porção tão grande do seu corpo? Olhou-o de cima abaixo até descobrir que, apesar de o elmo lhe cobrir o rosto e o cabelo, nos pés usava umas sandálias que não eram mais do que um par de tiras estreitas em pele. Seja, então; soltou a flecha.

A seta atingiu-lhe o calcanhar desprotegido. Era evidente que ele considerou que aquilo não passava de uma picada de insecto, pois ela viu-o curvar-se para o sacudir; depois retirou a ponta e olhou em volta para ver de onde tinha vindo. Um por um, os soldados troianos levantaram os olhos para o templo para ver o que seria que os Mirmídones de Aquiles estavam a apontar e a olhar fixamente. Cassandra ficou imóvel; estava, provavelmente, fora do alcance de um arco normal, já que o tiro teria de ser disparado na vertical, se era que havia alguém com coragem para disparar uma flecha contra o que parecia ser o Deus. Sentia-se completamente invulnerável; e mesmo que, de entre a luz ofuscante do meio-dia, uma flecha tivesse surgido, ela teria alcançado o que se propusera fazer.

Aquiles continuava de pé, olhando para o ponto de partida da flecha, aparentemente inconsciente da natureza do seu ferimento; mas passado algum tempo, ela viu-o curvar-se e agarrar o pé, fazendo sinal a um dos seus homens para que o ligasse. Oh, deixá-los tentar; ela sabia que agora, nem que lhe cortassem o pé - e isso fora tentado antes em pequenas feridas localizadas como aquela -, o veneno penetrara já no seu sangue e Aquiles era um homem morto.

Durante mais alguns minutos Aquiles passeou-se arrogantemente pelo terreno; depois cambaleou e caiu. Estava agora no chão, em convulsões. A confusão gerou-se no acampamento aqueu - e, subitamente, soou um imenso grito de raiva e desespero não muito diferente do grito provocado pela morte de Pátroclo. Nas muralhas da cidade, de onde as outras mulheres estavam a olhar, ouviram-se gritos de júbilo e, por fim, um enorme grito de agradecimento a Apolo. Mas nessa altura Cassandra já se escapara de cima da muralha e encontrava-se na sala secreta repondo a máscara e a túnica na sua arca fechada. Quando voltou a sair, os habitantes de Tróia apinhavam-se junto da muralha, empurrando-se e comprimindo-se para tentar descobrir o que se tinha passado.

- Um dos comandantes aqueus está morto - disse-lhe alguém. - Pode ser até Aquiles. O próprio Apolo apareceu, dizem, no topo das muralhas, por cima de Tróia, e atingiu-o com uma das suas setas de fogo.

- Ah, sim? - replicou ela, em tom céptico; e quando a história lhe foi repetida, disse apenas: -Bom, já não era sem tempo.

 

Agora que Aquiles estava morto, uma vaga de confiança percorria Tróia; toda a gente ansiava por uma conclusão rápida para a guerra. Não houve um prazo formal para o luto, nem quaisquer jogos fúnebres. Cassandra suspeitava que entre os Aqueus pouco era o desgosto genuíno, se bem que se erguessem alguns lamentos rituais em torno da pira funerária. Recordou Briseis que fora ter com Aquiles de livre vontade, e perguntou-se se a rapariga choraria o amante que idealizara. Quase desejava que assim fosse. Mesmo tratando-se de Aquiles, não era justo que não houvesse ninguém para o chorar.

No entanto, Agamémnon, que assumira o comando de todas as tropas aqueias e chefiava até mesmo os Mirmídones para que estes continuassem a lutar, parecia não ter dúvidas acerca da conclusão final daquela guerra. Os Aqueus começaram a fazer um enorme talude em terra no lado sul, a partir do qual poderiam assaltar a muralha parcialmente desmoronada durante o último tremor de terra. Passaram-se algumas horas até que os Troianos dessem por o que eles estavam a fazer, e, quando o descobriram, Páris ordenou a todos os arqueiros disponíveis que fossem para a muralha mais alta e abatessem os soldados. Os Aqueus trabalharam durante um tempo considerável sob a protecção de enormes escudos erguidos sobre as suas cabeças, mas como aqueles que seguravam os escudos eram abatidos um após outro, e mais rapidamente do que era possível substituí-los, os Aqueus desistiram por fim daquela tentativa e mandaram retirar os construtores.

Cassandra não vira a pira funerária de Aquiles nem a batalha dos arqueiros, embora as mulheres da casa do Senhor do Sol lhe relatassem todos os pormenores. O templo estava de luto pela Grande Serpente, e assim continuaria durante bastante tempo ainda. Serpentes daquela espécie não podiam ser encontradas nas planícies de Tróia, e teriam de enviar alguém ao interior ou a Cálcis, ou mesmo a Creta, para conseguir outra. Pessoalmente, Cassandra acreditava que a morte da serpente fora um presságio não apenas da morte de Aquiles, que precedera num breve espaço de tempo, mas da queda de Tróia, que não poderia ser adiada agora por muito tempo.

Falou nisso uma noite em que fora ver a sua mãe ao palácio.

Hécuba nunca recuperara por completo da morte de Heitor. Estava agora tremendamente frágil e magra e as suas mãos pareciam um feixe de pauzinhos; não queria comer, dizendo sempre:

- Guardem a minha parte para as crianças pequenas; as pessoas de idade não têm tanta fome como elas. - O que de facto parecia bastante sensato, mas havia alturas em que Cassandra pensava se o espírito da sua mãe não se teria perdido. Falava frequentemente de Heitor, mas parecia não ter consciência de que ele estava morto; referia-se-lhe como se ele estivesse algures na cidade a supervisionar os exércitos.

- Que estão os Aqueus a fazer agora? - perguntou Cassandra a Políxena. - Abateram um grande número de árvores ao longo da costa, e estão a cortá-las em pranchas. Falei com a mulher que vende bolos de mel aos soldados aqueus, e ela disse-me que eles disseram que planeavam construir um altar enorme para Posídon e sacrificar-Lhe muitos cavalos.

«Posídon seria realmente um bom amigo para esses aqueus, se eles o persuadissem a quebrar as nossas muralhas; e os adivinhos deles sabem-no, visto terem persuadido os atacantes a invocar Aquele que Estremece a Terra.»

Ergueu-se do seu lugar ao lado de Políxena e foi falar com Helena. Há muito que aprendera que Páris não lhe daria ouvidos, mas que por vezes era possível abordá-lo através da sua mulher. Helena saudou-a com o seu habitual abraço afectuoso.

- Alegra-te comigo, irmã; a Deusa ouviu o meu desgosto e enviar-nos-á outra criança para o lugar daquelas que perdi sob o golpe de Posídon. - Visto Cassandra não sorrir, ela implorou: - Oh, alegra-te por mim!

- Não é que eu não esteja contente por ti - disse Cassandra com lentidão -, mas nesta altura em particular... será sensato?

O belo sorriso de Helena fazia-lhe covinhas nas faces.

- A Deusa envia-nos crianças não segundo a nossa vontade, mas segundo a Sua vontade - recordou ela a Cassandra -; mas tu não és mãe, por isso talvez ainda não compreendas essas coisas.

- Mãe ou não, penso que tentaria encontrar melhor altura que o fim de um cerco - disse Cassandra -, nem que isso significasse mandar o meu marido dormir entre os soldados quando a Lua estivesse cheia ou o vento soprasse do Sul.

Helena corou e disse:

- Páris tem de ter um filho; não lhe posso pedir que aceite Nikos como seu herdeiro e ponha o filho de Menelau no trono de Tróia.

- Tinha-me esquecido dessa fraqueza - disse Cassandra -, mas eu pensava que era o filho de Andrómaca quem, depois de Heitor, deveria reinar. Páris resolveu, então, usurpar o lugar?

- Astíanax não pode governar Tróia aos oito anos de idade - disse Helena. - É adverso para qualquer terra ter uma criança como rei; Páris teria de governar no seu lugar, pelo menos durante ainda muitos anos.

- Então talvez fosse melhor para Páris não ter nenhum filho - disse Cassandra -, para que não se sentisse tentado a derrubar o herdeiro legítimo. - Helena pareceu ficar indignada, por isso Cassandra acrescentou: - Em qualquer caso, Páris já tem um filho da sacerdotisa do Deus-Rio, Enone, que viveu aqui com ele como sua mulher até tu teres vindo de Esparta. Não está certo Páris recusar-se a reconhecer o seu primogénito.

Helena franziu o sobrolho e disse:

- Páris falou-me dela; ele diz que não existe forma de ter a certeza de ser ele o pai do filho de Enone.

Cassandra viu a expressão nos olhos de Helena e decidiu não continuar com o assunto.

- Não era sobre isso que eu te vinha falar. Terão eles mais cavalos no acampamento aqueu do que os necessários para puxar o carro de Agamémnon e os carros dos outros reis?

- Sei lá, não faço ideia; não percebo nada dessas coisas - disse Helena, e debruçou-se sobre a mesa para tocar na mão de Páris. Repetiu-lhe a pergunta e Páris olhou-a fixamente.

- O quê, não; penso que não - disse ele. - Eles têm tentado capturar os cavalos dos nossos carros de combate, mesmo tendo para isso que deixar para trás ouro ou os próprios carros.

Cassandra disse com veemência:

- Se eles estão a construir um altar para Posídon, não acreditas que os reis Lhe vão sacrificar os cavalos que puxam os seus próprios carros, pois não? Imploro-te que ponhas sentinelas reforçadas junto a todos os cavalos de Tróia, onde quer que sejam os seus estábulos.

- Os nossos cavalos estão bem no interior das muralhas - disse Páris, despreocupadamente - e os Aqueus conseguirão tanto ficar com eles como se se encontrassem nos estábulos do faraó do Egipto.

- Tens a certeza? Odisseu, por exemplo, é engenhoso; é capaz de, através de alguma artimanha, conseguir introduzir-se nas muralhas e levar os cavalos para fora - disse ela, mas Páris limitou-se a rir.

- Não creio que ele conseguisse entrar os nossos portões nem que se disfarçasse de Zeus dos Trovões - disse Páris. - Aqueles portões não se abrirão para ninguém, homem ou imortal; mesmo para o rei Príamo ou para mim, seria difícil convencer alguém a abri-los depois do escurecer. E se ele conseguisse entrar de uma maneira qualquer, como pensas que voltaria a sair? Se Agamémnon quer sacrifícios de cavalos, terá de sacrificar os seus, pois não conseguirá apanhar os dos troianos.

Cassandra pensou que ele estava a eliminar essa possibilidade com demasiada ligeireza, mas não havia forma de insistir; Páris não admitiria a falibilidade das suas defesas, certamente não à sua irmã. Se ele fosse o único a sofrer as consequências daquela atitude despreocupada, ela não teria dito mais nada, mas se ele estivesse enganado toda a Tróia pagaria; por isso insistiu.

- Suplico-te, põe mais guardas em torno dos teus cavalos, pelo menos durante algum tempo - e repetiu o que lhe dissera Políxena.

- Irmã - disse Páris de uma forma não muito áspera -, certamente que há trabalho de mulher suficiente para tu fazeres por forma a não teres de te preocupar com a condução da guerra.

Cassandra cerrou os lábios, sabendo que Páris certamente iria ignorar o que quer que ela dissesse.

Cassandra dificilmente poderia, ela própria, guardar os cavalos; mas falou com os sacerdotes da casa do Senhor do Sol e eles concordaram em montar guarda aos estábulos reais.

Já tarde nessa noite o alarme soou nas muralhas, e os soldados de Príamo assim despertos apanharam meia dúzia de homens, comandados pelo próprio Odisseu, à saída dos estábulos reais. Os guardas, que não haviam reconhecido o general argivo, disseram que ele havia entrado nos estábulos com um selo real dizendo que tinha ordens para levar meia dúzia de cavalos ao palácio. Tinham acreditado que ele era um mensageiro do próprio Príamo e haviam-lhe entregue os cavalos sem protestar. Só quando eles já tinham saído, um dos sacerdotes de Apolo reparou nas sandálias aqueias que usavam, suspeitou de que se tratava de um truque e fez soar o alarme.

Páris ordenou que os guardas enganados fossem enforcados e quando lhe trouxeram Odisseu, disse-lhe:

- Existe alguma razão para que eu não te enforque no local mais alto de Tróia como ladrão de cavalos que és?

Odisseu disse:

- Na minha terra, enforcamos os ladrões de mulheres, troiano. Se não tivesses demonstrado a todos nós quão veloz é a tua corrida, não passarias agora de um monte de ossos descarnados dependurados das grandes muralhas de Esparta, e nenhum de nós teria deixado as nossas casas e combater aqui durante todos estes anos.

Príamo tinha sido acordado apressadamente; olhou com ar infeliz para o seu velho amigo e disse:

- Bem, Odisseu, vejo que continuas a ser um pirata. Mas não vejo razão para te enforcar. Sempre estivemos dispostos a aceitar resgates pelos prisioneiros. - Que resgate queres? - perguntou Odisseu, olhando apenas para Príamo e ignorando Páris.

- Uma dúzia de cavalos - disse Páris. Odisseu fez um gesto com a mão.

- Ali os tens - replicou, e Príamo franziu o sobrolho perante aquela afronta.

Aqueles cavalos já são nossos. Queremos uma dúzia dos teus.

- Não tens piedade, meu amigo? - disse Odisseu. - Aqueles cavalos já foram dedicados a Posídon. Não são meus para que os possa devolver; já pertencem Àquele que Estremece a Terra.

Páris pôs-se em pé de um salto, pronto para o agredir; Odisseu evitou-o com facilidade.

- Príamo, o teu filho não tem qualquer noção das regras da diplomacia; preferia negociar contigo. Podes ficar com os cavalos se quiseres correr o risco de enfurecer Posídon, O que Estremece a Terra, com a tua mesquinhez; mas eu jurei sacrificar-lhe esses cavalos. Pensas realmente que ele agraciará Tróia se lhe roubares o seu sacrifício?

- Se votaste os cavalos a Posídon - disse Príamo -, então são seus. Não serei mais sovina do que tu para com um deus. Estes cavalos serão então para Posídon, e eu quero mais uma dúzia de cavalos dos vossos como teu resgate.

- Que assim seja - concordou Odisseu, e Príamo chamou o seu arauto para que transmitisse a mensagem ao exército aqueu.

Agamémnon, contudo, não ficaria satisfeito, pensou Cassandra. Ela não queria mal a Odisseu; apesar de ele se encontrar entre as hostes inimigas, não conseguia deixar de pensar no velho pirata como num amigo - como ele o fora na sua infância. Ainda tinha, numa das suas arcas, o belo colar de contas azuis que ele lhe oferecera anos atrás.

Quando Odisseu se despediu para ir tratar da troca e da entrega do resgate, Páris disse ao pai:

- Tolo! Vais realmente sacrificar aqueles cavalos? Que valor têm para ti as promessas de Odisseu? Não acreditas que ele fosse sacrificá-los, pois não?

- Era muito bem capaz disso - disse Príamo -; e que temos nós a perder? Nós também precisamos das boas graças de Posídon; e vamos receber mais doze cavalos como resgate de Odisseu, por isso não perdemos nada.

- Acho que eles não farão ao Deus nem metade do jeito que fariam aos nossos exércitos - resmungou ainda Páris; mas quando Príamo tomava uma resolução, não havia nada a fazer.

Na manhã seguinte, os cavalos foram sacrificados a Posídon diante das muralhas de Tróia. Cassandra assistiu, perturbada, à matança. Príamo não parecia ter a força necessária. Ela lembrava-se de ver sacrifícios como aquele na sua infância, quando Príamo era suficientemente forte e vigoroso para decepar a cabeça de um touro de um só golpe. Agora, as suas mãos trémulas mal conseguiam agarrar o machado e ele, depois de ter abençoado a arma, cedeu o lugar a um sacerdote jovem e robusto que entoou preces Àquele que Estremece a Terra.

Quando a primeira metade do sacrifício chegou ao fim e o sexto cavalo tombou no solo, ouviu-se um pequeno som semelhante ao ribombar distante de um trovão, e o chão estremeceu ligeiramente por baixo dos seus pés. Um presságio?, perguntou-se Cassandra. Ou estaria Posídon, simplesmente, a reconhecer o Seu sacrifício?

«Apolo, Senhor do Sol», implorou ela, «não poderás Tu salvar esta cidade que é Tua há tanto tempo, apesar de a teres tirado à Mãe Serpente?»

O brilho do Sol encadeava-a e a voz bem conhecida soou nos seus ouvidos com o som da rebentação distante.

«Nem mesmo eu posso lutar contra o que o Senhor dos Trovões decretou, minha filha. O que tiver de vir, chegará.»

O sacrifício prosseguiu, mas Cassandra já não o acompanhava. De que servia sacrificar a Posídon se ele estava destinado pelo Senhor dos Trovões - «que não é um dos meus deuses, nem um dos deuses de Tróia» - a destruir o povo que Lhe oferecia o sacrificio, enquanto Apolo ficava de parte, impotente, vendo Aquele que Estremece a Terra arrasar a cidade-«a sua própria cidade?~~.

Se tudo aquilo estava já predestinado, para quê sacrificar e rogar aos Imortais? A rebeldia agitava-se dentro de si - e nunca mais voltaria ao silêncio absoluto -, o velho grito ainda sem resposta: «De que servem estes deuses?»

Parecia agora que, lá nas alturas, por cima da cidade - tal como na visão que uma vez tivera -, duas imponentes figuras, feitas de nuvens e tempestade, se defrontavam corpo-a-corpo, como lutadores, debatendo-se e lançando raios e trovões uma contra a outra. O som parecia troar através da sua consciência. Vacilou, os olhos fixos nos Imortais em combate. Depois tropeçou e caiu, mas perdeu os sentidos antes de tocar o solo.

Quando despertou, encontrava-se deitada com a cabeça no colo da sua mãe. - Devias ter-te abrigado deste sol do meio-dia - censurou Hécuba, ternamente. - Não está certo perturbar um sacrifício.

- Oh, não creio que os deuses se tenham importado muito -disse Cassandra, fazendo por levantar-se e combatendo a dor aguda por trás dos olhos. -Tu achas que sim?

Mas ao ver a expressão vagamente atónita no rosto da mãe, teve a certeza de que a rainha não compreendera ao que ela se referia; ela própria não estava muito certa.

- Desculpa; não quis faltar ao respeito aos deuses, claro. Todos nós estamos aqui para lhes prestar homenagem; achas que eles sentirão que é uma questão de honra retribuir a amabilidade? - Mas tudo o que viu nos olhos de Hécuba foi a velha expressão, uma expressão que dizia «Eu não te entendo».

- Em nome de todos os deuses, o que estarão eles a fazer além? perguntou Helena.

- Políxena ouviu dizer que estão a construir um altar a Posídon - respondeu Cassandra.

Lá em baixo, no espaço aberto que há tanto tempo era campo de batalha, parecia que todo o exército aqueu estava ocupado a arrastar madeiras e, sob a protecção de uma verdadeira muralha de escudos de couro amarrados uns aos outros, martelava e serrava freneticamente.

- Os sacerdotes deles desenharam os planos - disse Crises, subindo apressadamente para se juntar às mulheres.

Páris avançou na direcção delas e curvou-se para beijar a mão de sua mãe. - Não se assemelha a nenhum altar que eu tenha visto - disse ele - parece mais uma espécie de engenho de cerco. Vejam, se eles o construírem com esta altura, poderão disparar por sobre as muralhas ou mesmo trepar para o interior da cidade, como na abordagem de um navio.

Hécuba pareceu perturbada pelo tom da sua voz. Perguntou: - Falaste com Heitor acerca disto?

Páris baixou a cabeça e voltou-se de costas, mas não sem que Cassandra tivesse tempo de ver que os seus olhos estavam rasos de lágrimas.

- Como consegues suportar ouvi-la falar assim? - murmurou ele.

- A questão não está em como nós conseguimos suportá-lo, mas sim no facto de ela ter necessidade de o fazer - disse Cassandra, rispidamente. - Tu pelo menos podes ir lá e tentar vingar os males que arrasaram a mente da nossa mãe e estão a arrasar a do nosso pai. Diz-me, irão eles realmente construir aquela coisa com altura suficiente para que possam subir e entrar na cidade?

- É provável; mas não o farão enquanto eu viver - disse Páris. - Tenho de mandar reunir todos os aurigas e arqueiros que restam. - Beijou Helena e desceu as escadas. Pouco depois ouviram o grito de guerra, ao mesmo tempo que Páris e os restantes carros de combate se precipitavam, desenfreados, em direcção à estrutura, disparando enxames de flechas que quase escureciam o céu. O violento assalto atingiu um dos cantos da estrutura, derrubando-o com estrondo, e meia dúzia de homens caíram por terra, gritando.

Os soldados aqueus dispersaram e começaram a correr, com os troianos em acesa perseguição nos seus carros, golpeando-os mortalmente tão depressa quanto lhes era possível. Quando eles se encontravam já em franca retirada e pareciam querer correr até alcançar os navios, Páris deu ordem para terminarem a perseguição, e dirigiu-se de novo à estrutura desprotegida. Encontrando um barril de breu no local, espalhou-o ao acaso a toda a volta e incendiou a construção inteira. Enquanto ardia, os troianos ouviram os gritos de Agamémnon tentando inutilmente agrupar os seus homens, e regressaram ao interior das muralhas antes que Agamémnon conseguisse reunir os aqueus para um contra-ataque.

Os troianos que se encontravam nas muralhas aplaudiram efusivamente. Era a única batalha que tinham vencido claramente desde que haviam incendiado os navios aqueus. Páris subiu e ajoelhou-se diante de Príamo.

- Se eles querem construir um altar a Posídon, não será em solo troiano que o hão-de erguer, senhor.

- Bom trabalho - disse Príamo, abraçando-o, emocionado, e Helena aproximou-se para o ajudar a tirar a armadura.

- Estás ferido - disse ela, vendo-o retrair-se quando lhe tirou a protecção do braço.

Páris encolheu os ombros; o movimento fê-lo crispar-se de novo. - É um ferimento de flecha. Não atingiu nenhum osso - disse ele.

- Cassandra - disse Helena -, vem ver isto. O que achas?

Cassandra aproximou-se, e dobrou para trás a manga da túnica de Páris. Era uma ferida na carne, uma pequena depressão logo acima do cotovelo. Vermelha e tumefacta, com lábios salientes, estava já fechada e uma ou duas gotas de sangue saíam dela.

- Não é, creio eu, muito grave - disse ela -, mas devia ser lavada com vinho e banhada em água bem quente e ervas; se uma perfuração fechar demasiado depressa, pode tornar-se grave. Deve tentar-se por todos os meios mantê-la aberta e fazê-la sangrar livremente, para a limpar.

- Ela tem razão - disse Crises, aproximando-se com uma garrafinha de vinho que começou a verter sobre a ferida; mas Páris agarrou o frasco.

- Isso é desperdiçar bom vinho - disse ele, e optou por despejá-lo para dentro da boca, fazendo uma careta de desagrado. - Oh! Nem para isso serve. Talvez seja bom para eu lavar os pés com ele.

Crises encolheu os ombros.

- Há vinho melhor para beber na casa do Senhor do Sol, príncipe Páris; este é de uma safra má e foi guardado para limpar feridas. Vem beber um pouco da melhor colheita enquanto te tratamos.

- Melhor ainda, vem para os nossos aposentos no palácio e deixa-me tratar-te - disse Helena. - Já tiveste lutas suficientes por hoje, e já não há lá ninguém com quem lutar.

- Não - disse Páris, caminhando para a muralha. - Estou a ouvir Agamémnon; juntou alguns dos seus arqueiros para atacar de novo. Vamos lá abaixo correr com eles. Já se comenta que eu passo demasiado tempo no teu boudoir a receber mimos, minha Helena; estou farto de ter reputação de cobarde. Vamos, ata isto com o teu lenço e deixa-me ir. - Ajustou a armadura sobre o ferimento ligado e partiu escada abaixo. Ouviram-no gritar pelos seus homens.

- Oh, porque haveria ele de ter este maldito acesso de heroísmo logo agora? - disse Helena em tom zangado. - E se era realmente um altar para Posídon, achas que o Deus ficará zangado por ele o ter incendiado?

- Não vejo que outra coisa ele poderia ter feito, fique o Deus zangado ou não - disse Cassandra. - Talvez O que Estremece a Terra se lembre de todos aqueles belos e gordos cavalos que lhe oferecemos, graças a Odisseu, há alguns dias atrás.

- Só rezo para que a ferida não lhe estorve a condução e o manejo do arco - disse ela. - Quando ele voltar (se sobreviver a este assalto) levá-lo-ei para que seja tratado pelo melhor dos curandeiros.

- Enviar-te-ei o nosso melhor sacerdote-curandeiro ao palácio para cuidar dele, senhora - disse Crises e partiu pela colina acima. Cassandra assistiu ao assalto; Páris lutava como um possesso, como se o próprio Deus da Guerra o habitasse, e ela perdeu a conta dos aqueus que ele golpeou e deixou a sangrar no terreno.

- Nunca o tinha visto lutar assim antes - disse Helena.

«Reza para que não tornes a ver», pensou Cassandra.

- Ele conduz como o próprio Heitor - disse Príamo, observando-o da muralha. - Temos sido todos injustos para com o rapaz, ao considerá-lo menos heróico do que o irmão.

Helena fechou os olhos quando uma espada desceu em direcção a Páris; ele deteve o golpe no preciso momento em que parecia que este iria arrancar-lhe a cabeça de cima dos ombros. Foi o último golpe; momentos depois, os homens de Agamémnon cederam e fugiram, correndo como se não tivessem intenções de parar antes de alcançarem os barcos. Páris gritou como se fosse persegui-los até à água, mas passado pouco tempo deu ordem de retirada aos seus homens.

- Se houver algum novilho, manda-o matar para o jantar dos homens, disse ele a Hécuba quando chegou ao cimo das escadas para se juntar às mulheres que o esperavam. - Nunca vi lutar assim.

Helena a.pressou-se a ir abraçá-lo.

- Graças a Afrodite que continuas vivo!

- Sim, Ela continua a olhar por nós; Ela não te trouxe para Tróia para agora, simplesmente, nos abandonar. - Páris olhou para baixo, para as cinzas da estrutura que os Aqueus haviam estado a tentar construir.

- Se isto era dedicado a algum deus, peço-Lhe que me perdoe. E agora, se me arranjasses esse tal curandeiro, Helena, eu ficaria muito satisfeito com os seus bons serviços; o braço dói-me. - Apoiou-se nela enquanto desciam para ir para o palácio e Cassandra ficou a olhá-los apreensiva.

- Seria melhor que fosse também - disse Crises. Ela não ouvira Crises chegar. - És uma curandeira tão boa como qualquer outra da casa do Senhor do Sol.

Cassandra não estava certa disso, mas não sabia como dizê-lo.

- Viste o ferimento mais de perto do que eu; sabes qual a sua gravidade - acrescentou ele. - Não gosto nada desses ferimentos, mesmo quando parecem inofensivos.

Ela dirigiu-se apressadamente aos aposentos de Páris e Helena, sendo-lhe apenas comunicado que os seus serviços não eram necessários.

Essa noite foi tranquila, mas de manhã os andaimes tinham voltado a ser montados e os Aqueus martelavam e serravam como se nunca tivessem sido interrompidos.

- Bom, vamos dar cabo daquilo num instante, como fizemos ontem disse Deífobo, que tinha saído com Príamo nessa manhã. O velho apoiava-se pesadamente no ombro do seu filho. - Onde está a dádiva de Afrodite para o sexo feminino, esta manhã? Continua escondido atrás dos folhos da saia de Helena?

- Cala-te - disse Príamo, bruscamente. - Ele foi ferido ontem; talvez esteja pior ou tenha apanhado frio no ferimento. - Chamou um dos mensageiros mais jovens e disse-lhe: - Vai ter com o príncipe Páris, por favor, e pergunta-lhe por que razão ele não se encontra aqui com o seu exército.

- Um ferimento - disse Deífobo, desdenhoso. - Eu vi esse ferimento: um arranhão, ou melhor ainda, uma dentadinha de amor.

O rapaz partiu apressado e voltou com um ar pálido. Fez uma vénia a Príamo e disse:

- Meu senhor, a senhora Helena pede que a sacerdotisa Cassandra venha observar a ferida do seu irmão; não está ao seu alcance tratá-la.

- Meu pai - disse Deífobo -, dás-me a tua permissão para sair com os carros e correr com estas formigas tal como Páris fez ontem?

- Vai - disse Príamo -, mas quando Páris estiver curado, passas-lhe novamente o comando; nada do que lhe pertence será alguma vez teu.

- Veremos - disse Deífobo. Saudou Príamo e retirou-se.

Cassandra desceu ao palácio, atravessando as salas que nessa manhã pareciam estar frias e húmidas, com farrapos de neblina marítima suspensos no ar. Nos aposentos que haviam sido dados a Páris e Helena, Páris, semivestido e muito pálido, jazia numa enxerga, balbuciando. Helena, a seu lado, tentando banhar a ferida com água quente perfumada com ervas, pôs-se de pé e foi ter com Cassandra.

- Graças a Afrodite que chegaste; talvez ele te escute a ti, já que não me escuta a mim - disse ela. Cassandra aproximou-se e retirou a gaze com que a ferida tinha sido coberta. Toda a porção superior do braço estava muito inchada, a perfuração continuava obstinadamente fechada e a pingar um líquido claro; o braço tinha um aspecto arroxeado, com laivos vermelhos que desciam na direcção do pulso.

Cassandra suspendeu a respiração; nunca vira um ferimento de flecha que se parecesse com aquele.

- Os sacerdotes de Apolo já viram isto? - perguntou.

- Estiveram aqui duas vezes esta noite. Disseram-me que lavasse a ferida com água quente e também que, provavelmente, teria de ser queimada com um ferro em brasa; mas eu não tive coragem de o fazer passar por tal coisa quando eles não garantiam que isso o curasse - disse ela. - Mas de há uma hora para cá ele parece ter piorado; agora não me reconhece. Até há alguns minutos atrás estava a gritar com os criados para que lhe trouxessem a armadura, e ameaçando dar-lhes uma sova se eles não o ajudassem a levantar-se e a vesti-la.

- Isso não é bom sinal - disse Cassandra. - Já vi sarar ferimentos piores mas...

- Deveria ter deixado que eles o queimassem?

- Não; se eu aqui estivesse teria dito que a cobrisses com vinho e óleo doce; e já tenho visto por vezes usar cataplasmas de pão bolorento, ou de teias de aranha para limpar uma ferida profunda - disse ela. - Os curandeiros têm demasiada presa em usar os seus ferros quentes; eu talvez lhe tivesse feito um golpe, ontem à noite, para a fazer sangrar mais livremente; mas nada mais. Agora já é tarde. A infecção alastrou-se, ele tanto pode viver como morrer. Mas não desesperes - acrescentou prontamente. - Ele é jovem e forte e, como te disse, já vi ferimentos piores sararem.

- Não há nada que se possa fazer? - perguntou Helena, desvairada. - Os teus dons mágicos...

- Infelizmente não tenho quaisquer dons mágicos para curar - disse Cassandra. - Mas vou rezar; nada mais posso fazer. - Hesitou e disse: - A sacerdotisa do rio, Enone... ela era perita na magia de curar.

Helena pôs-se de pé num salto, em grande excitação.

- Não podes mandar chamá-la? - implorou. - Roga-lhe que venha curar o meu senhor! Seja o que for que ela peça, será seu. Prometo.

«Mas a única coisa que ela deseja, tu já lha tiraste», pensou Cassandra, e disse:

- Vou mandar-lhe uma mensagem; mas não posso garantir-te que ela venha. - Mas se ela em tempos o amou, poderá ser tão cruel a ponto de recusar-Lhe o seu auxílio se isso significar a sua morte?

- Não sei, Helena. Ela levava muita amargura em relação a ele quando deixou o palácio - disse Cassandra.

- Se for preciso, eu, rainha de Esparta, ajoelhar-me-ei diante dela com cinzas nos cabelos - disse Helena. - Devo então ir ter com Enone?

- Não. Eu conheço-a; irei eu - disse Cassandra. - Reza e faz sacrifícios a Afrodite, que te protege.

Helena abraçou-a e ficou agarrada a ela.

- Cassandra, de certeza que não me queres mal? Tantas destas mulheres de Tróia me odeiam; posso vê-lo nos seus olhos, ouvi-lo nas suas vozes... - A voz de Helena soava como a de uma criança suplicante, e Cassandra tocou-Lhe ternamente na face.

- Só te desejo tudo o que há de bom, Helena; isso te garanto - disse ela. - Mas quando eu cheguei a Tróia, tu amaldiçoaste-me...

- Não - disse Cassandra -, eu fiz uma previsão verdadeira de que tu nos trarias infortúnio. O facto de eu ter previsto a calamidade não significa que a tenha provocado. Foi obra dos Imortais, e não é mais responsabilidade tua do que minha. Ninguém escapa às obras do Destino. Agora vou até à nascente do Escamandro procurar Enone e implorar-lhe que venha tratar de Páris.

Crises saudou-a quando ela saiu do palácio. Cassandra olhou-o surpreendida; nessa manhã tinha-se esquecido do que ele dissera e tomara a sua presença como certa.

- Pensei que, por esta altura, estivesses num navio a caminho de Creta ou do Egipto - disse ela. - Porque não foste?

- Pode ser que exista ainda algo que eu possa fazer pela cidade que me acolheu, ou por Príamo, que tem sido o meu rei -disse Crises -ou, quem sabe?, até por ti.

- Não deves ficar por minha causa - disse Cassandra. - Ficaria contente de te saber a salvo do que está para vir.

- Eu não quero nada - disse ele num tom estranhamente sóbrio - senão que tu saibas, finalmente, antes que o fim chegue para todos nós, que o meu amor por ti é verdadeiro e desinteressado, não desejando nada que não o teu bem. « Mas... isto é verdade», pensou ela, e disse suavemente:

- Acredito em ti, meu amigo; e peço-te que vás para um lugar seguro logo que possas. Alguém tem de lembrar e dizer a verdade sobre Tróia àqueles que vierem depois; preocupa-me que, pelas lendas, os filhos das nossas crianças venham a pensar em Aquiles como num grande herói ou num homem bom.

- Não me parece que nos faça algum mal, nem bem algum a Aquiles, seja o que for que digam ou cantem sobre nós nos tempos que hão-de vir - disse Crises. - Porém, se eu sobreviver, juro que direi a verdade a quem quiser escutar-me.

Cassandra subiu rapidamente até à casa do Senhor do Sol e despiu a sua túnica convencional; vestiu uma velha túnica escura, com a qual poderia entrar e sair sem ser notada, enfiou umas resistentes sandálias de couro e uma capa grossa para a proteger do vento e da chuva. Depois saiu discretamente pelo pequeno portão lateral e apanhou a estrada que subia em direcção ao monte Ida, ao longo do agora baixo caudal do Escamandro. O caminho tinha-se transformado numa estrada; muitos cavalos e homens tinham passado por ali, e as águas que antes haviam corrido fortes e claras, estavam lamacentas e imundas. Da última vez que fizera aquele caminho - há quantos anos já? - a água era clara e o trilho quase virgem.

Mesmo agora, se a sua tarefa não fosse tão urgente e desesperada, a viagem ter-lhe-ia agradado. O Sol estava encoberto pelas nuvens, os cumes das montanhas arborizadas perdiam-se em espessos rolos de névoa e os ventos fracos prometiam chuva - e, provavelmente, trovoada. Subia rapidamente; mas embora fosse uma mulher robusta, a ladeira era tão íngreme que, passado pouco tempo, estava sem fôlego e teve de parar e descansar. À medida que ia subindo, o que antes era o rio corria agora mais estreito e transparente, e nenhum homem ou cavalo poluíra o caminho ou a água. Ajoelhou-se e bebeu, pois, apesar das nuvens e do vento, estava calor.

Finalmente chegou ao local onde a água brotava da rocha, guardado por uma imagem esculpida do Deus Escamandro. Tocou o sino que chamava as ninfas do rio e, quando uma rapariguinha apareceu, perguntou se poderia falar com Enone.

- Creio que ela está aqui - disse a rapariga. - O filho dela está com febres de Verão; ela não foi ao festival da tosquia das ovelhas com as outras. Cassandra não se tinha lembrado de que já estava tão próximo o tempo das tosquias.

A criança foi-se embora e Cassandra sentou-se num banco junto da nascente e gozou o silêncio; talvez Honey, quando fosse mais velha, pudesse ir para ali, para servir com as ninfas do Deus-Rio. Um lugar agradável para uma rapariga crescer - talvez não tão agradável como cavalgar com as Amazonas, mas isso já não era possível. Cassandra começou a aperceber-se de que mal começara ainda a sentir desgosto em relação a Pentesileia. Tinha estado tão ocupada com a vingança e a seguir com as outras mortes, que a sua mágoa tivera de ser posta de lado à espera de tempo livre para o luto.

«Ainda há-de passar muito tempo até que eu possa chorar pelo meu irmão», pensou, e perguntou-se o que quereria dizer com aquilo.

Ouviu passos atrás de si e virou-se; a princípio mal conheceu Enone. A jovem e esbelta rapariga transformara-se numa mulher alta e corpulenta, de seios fartos, com os seus caracóis escuros enrolados junto à base do pescoço. Apenas os olhos encovados eram os mesmos; mas, ainda assim, Cassandra hesitou em pronunciar o seu nome.

- Enone? Quase não te reconheci.

- Pois não - disse Enone -, nenhuma de nós está tão jovem e bonita como antes. És a princesa, não és... Cassandra?

- Sou - disse ela. - Suponho que também mudei.

- Sim, mudaste - disse Enone -, embora continues bela, princesa. Cassandra sorriu discretamente e disse:

- Como está o filho do meu irmão? Ouvi dizer que tem estado seriamente doente.

- Oh, não, nada de grave, apenas um desses pequenos desarranjos que aparecem às crianças no Verão. Dentro de um ou dois dias estará recuperado. Mas em que posso servir-te, senhora?

- Não é a mim - disse Cassandra -, mas ao meu irmão Páris. Ele está de cama, a morrer devido a um ferimento de flecha, e tu és tão hábil em curativos... vens comigo?

Enone ergueu as sobrancelhas. Por fim, disse:

- Princesa Cassandra, o teu irmão morreu para mim no dia em que eu deixei o palácio e ele não proferiu uma única palavra para reconhecer o seu filho. Todos estes anos, para mim, ele esteve morto. Não tenho qualquer desejo de o devolver agora à vida.

Cassandra sabia interiormente que deveria ter previsto aquela resposta e que não tinha o direito de ir ali pedir a Enone fosse o que fosse. Curvou a cabeça e levantou-se.

- Entendo a tua amargura - disse. - E, no entanto... ele está sem dúvida a morrer; será possível que a tua raiva se conserve tão grande? Mesmo diante da morte?

- Morte? Pensas que não foi como uma morte para mim ter sido mandada embora sem uma palavra, como se fosse uma prostituta barata das ruas de Tróia? E ele, durante todos estes anos, não ter dito uma palavra ao filho? Oh, Cassandra, tu perguntas-me se a minha raiva é assim tão grande? Ainda não viste nada da minha raiva, nem me parece que queiras ver. Volta para o teu palácio e chora o teu irmão como eu o chorei todos estes anos. - A voz dela suavizou se. - A minha raiva não é para contigo, princesa; tu foste sempre boa para mim, tal como a tua mãe.

- Se não queres vir pelo bem de Páris, ou pelo meu - implorou Cassandra -, não poderás vir sequer pela minha mãe? Ela tem perdido tantos dos seus filhos... - A voz falhou-lhe e ela mordeu fortemente o lábio, não querendo chorar diante de Enone.

- Se isso adiantasse alguma coisa... - começou Enone. - Mas agora, com a cidade prestes a cair nas mãos de um deus enfurecido... Ah, surpreende-te que eu o saiba? Eu também sou sacerdotisa, senhora. Agora vai para casa e olha pela tua criança - envia-a para lugar seguro, se puderes; já não deve faltar muito. IVem mesmo em relação à rainha espartana eu guardo qualquer ressentimento, mas nada posso fazer por Páris. Quando me abandonou, ele ultrajou o Deus Escamandro - o que é o mesmo que Posídon.

Nunca ocorrera antes a Cassandra que o Deus-Rio Escamandro pudesse ser uma das formas de Posídon, O que Estremece a Terra. Mas Páris abandonara a sacerdotisa do Deus-Rio por causa da filha de Zeus, Senhor dos Trovões - e ousara julgar uma controvérsia entre Imortais, esquecendo os seus próprios deuses para servir a aqueia Afrodite.

- Não carregarei as culpas desta morte - continuou Enone -; o seu destino está com ele tal como o teu e o meu estão connosco. Que os deuses te protejam, princesa Cassandra. - Ergueu a mão num gesto de bênção e Cassandra deu consigo a descer a colina, sentindo-se como uma camponesa mandada retirar da presença real.

A descer, o caminho de regresso demorou menos tempo, e quando voltou ao palácio ouviu o som das lamentações. Páris morrera. Bom, ela já o esperava. Apesar das palavras de encorajamento para Helena, ela tivera a certeza de que, com um ferimento como aquele, ele não sobreviveria por muito tempo.

Dirigindo-se à varanda para olhar a planície onde os Aqueus erguiam a sua construção, pôde ver então, claramente, os contornos grosseiros daquilo que os andaimes rodeavam. Erguia-se enorme, tosca, inconfundível: a imponente figura de um cavalo de madeira.

«É então este o altar deles», pensou ela; «a precisa imagem do próprio Posídon, O que Estremece a Terra. Pensarão eles que este cavalo irá demolir as muralhas de Tróia, ou que atrairá o Deus para que o faça em vez deles? Que infantilidade. »

Então, sem saber porquê, foi percorrida por um violento acesso de tremores que a obrigaram a enrolar a capa em volta do corpo, apesar da intensidade do sol. A imagem do cavalo - ou do Deus - trespassou-a de terror sem que soubesse ao certo qual a razão.

 

Mesmo antes de se terem realizado os ritos fúnebres em honra de Páris, Deífobo foi ter com Príamo e exigiu o comando dos exércitos troianos; quando Príamo protestou, ele disse:

- Que outra alternativa tens, senhor? Existe mais alguém em Tróia, salvo talvez Eneias? E ele não pertence à casa real de Tróia e não é troiano de nascimento.

Príamo, embaraçado, apenas iixava o chão.

- Talvez prefiras entregar o comando dos exércitos à tua filha Cassandra, que já foi amazona? - perguntou Deífobo, escarnecendo.

Pela primeira vez desde a morte de Heitor, Hécuba falou numa voz clara e quase forte.

- A minha filha Cassandra não comandaria os exércitos de Tróia pior do que tu - disse. - Tu eras uma criança cruel e sôfrega e agora és um homem arrogante e ganancioso. Meu senhor e rei, Príamo, peço-te que arranjes outra pessoa para comandar as forças de Tróia ou será pior para todos nós.

Mas todos sabiam que não havia outra pessoa. Nenhum dos outros filhos vivos de Príamo tinha idade suficiente, ou experiência suficiente, para conduzir os exércitos. Quando Deífobo foi chamado e, diante dos exércitos, Príamo lhe entregou formalmente os exércitos, Deífobo disse:

- Só assumirei este comando se a viúva de Páris me for dada como esposa. - Estás louco - disse Príamo. - Helena é a rainha de Esparta por direito, não um troféu para ser passado de homem para homem como se fosse uma concubina.

- Será que não? - perguntou Deífobo. - Não tiveste já experiências suficientes dos problemas que uma mulher pode arranjar quando lhe é permitido escolher com que homem irá partilhar a sua cama? Helena casará comigo e ficará bastante satisfeita com isso, não é verdade, senhora? Ou quererás antes voltar para Menelau? Posso tratar disso, se preferires.

Cassandra viu Helena estremecer; mas ela apenas disse a Príamo, em voz baixa:

- Casarei com Deífobo, se o desejares, senhor. Príamo parecia embaraçado. Disse:

- Se houvesse outra saída, não te pediria tal coisa, filha. Ela lançou-se nos braços do velho e abraçou-o.

- Basta-me que seja isto o que desejas para mim, pai - disse ela. Príamo segurou-a ternamente contra si, com lágrimas nos olhos, e disse: - Tornaste-te uma de nós, criança. Não há mais nada que possa dizer. - Bem, se isso está resolvido - disse Deífobo -, avancemos com a festa do casamento.

Hécuba protestou.

- E esta é altura para festas, quando Páris jaz morto e nem sequer foi posto em descanso?

- Pode não haver tempo para festejar mais tarde - insistiu Deífobo. - Querem que seja eu, de entre todos os filhos de Príamo, o único a casar sem ter festas nem honrarias?

- Pouco existe de honroso em tudo isto - disse Príamo entredentes; apenas Hécuba e algumas das mulheres o ouviram. Apesar disso, chamou os criados e ordenou que as reservas de vinho fossem trazidas e que matassem um cabrito para assar, e que todas as comidas que pudessem ser rapidamente preparadas fossem servidas.

Cassandra foi com as mulheres do palácio, incluindo a mãe de Deífobo, escolher os frutos que estivessem prontos para colher e colocá-los em bandejas. Concordava com Hécuba em que aquela não era altura para festejar, mas se tal casamento tinha de acontecer, havia que fazer com que parecesse ser uma questão de escolha e não de coerção. Se Helena era capaz de pôr boa cara numa situação assim, quem era ela para protestar?

Mas mesmo com toda a comida e todos os menestréis prontamente convocados, o casamento foi bastante triste. O facto de saberem que Páris jazia morto ali por cima, ensombrava o palácio. Muito antes de a noiva e o noivo serem conduzidos juntos para o leito, Cassandra pediu desculpas e retirou-se. Olhando as luzes lá em baixo pensou que, provavelmente, a gente vulgar de Tróia - desfrutando das ofertas de comida e vinho enviadas do palácio de Príamo - acreditava de facto que aquelas celebrações eram genuínas. Se criticavam Helena, era apenas pela sua disposição para ser de novo entregue em casamento quando o seu marido ainda não estava sepultado. Podia não haver muitas mais ocasiões para gozar. E, de facto, os ritos fúnebres de Páris tiveram lugar no dia seguinteHelena velada, grave e pálida, e Nikos, de nove anos, a seu lado, pequeno e sério. Ele insistira em cortar o cabelo em sinal de luto.

- Eu sei que ele não era o meu pai - dissera Nikos -, mas foi o único pai que conheci e era bondoso para comigo.

O seu esforço para não chorar destroçava o coração de Cassandra.

Uma vez completadas as cerimónias, Deífobo disse bruscamente, com uma expressão de alívio:

- Agora que isto acabou, vamos lá abaixo tratar daquele cavalo, tal como Páris fez. Começaremos com um bom barril de alcatrão quente ou resina de pinheiro e umas quantas flechas incendiárias. Acabaremos com aquilo num instante. Que achas disto, esposa minha?

A voz de Helena soou quase inaudível:

- Deves fazer como julgares ser melhor, meu marido.

Tinha um ar submisso e recatado, como qualquer outra mulher de um soldado troiano e poucos vestígios da beleza com que a Deusa a presenteara, facto que todos se haviam habituado a tomar como certo. As palavras eram também submissas, exactamente iguais à que teria dito a Páris; mas ocorreu a Cassandra que, com aquela obediência, Helena zombava dele. Deífobo não parecia achar o mesmo; olhava para ela com satisfação e prazer: possuía agora aquilo que sempre invejara - a mulher de Páris e o comando de Páris. Bem, se aquele casamento conseguisse, pelo menos, trazer felicidade a uma pessoa, já não era mau de todo.

Nada daquilo fora exigido a Andrómaca; a ela fora-lhe concedido um período decente para chorar Heitor. Porque não poderia Helena usufruir do mesmo privilégio?

Porém, Helena agira de modo a demonstrar a todas as mulheres que podiam fazer o que ela fizera; elas deveriam estar-lhe gratas e admirá-la.

Deífobo reuniu os seus aurigas discutindo com eles, sumariamente, as estratégias. Cassandra viu Helena dizer-lhe adeus e pedir-lhe que tivesse cuidado consigo durante a batalha, exactamente como costumava fazer com Páris.

Seria possível que Helena estivesse tão acostumada a submeter-se à vontade de um homem que já lhe fosse indiferente o homem que era? Ou estaria ela simplesmente demasiado estupidificada pelo desgosto para que alguma coisa tivesse importância para ela? « Se eu tivesse amado alguém como ela amou Páris e ele me fosse tirado... vejam Andrómaca! Eu amo muito Eneias; mas quando ele está longe de mim, eu continuo a ser a mesma. Se ele tivesse de morrer, em vez de me deixar para voltar para junto de Creúsa, eu lamentaria desmesuradamente a sua morte; mas isso não me destruiria como a morte de Heitor destruiu Andrómaca.» Estaria então Andrómaca chorando Heitor, ou apenas a perda da sua posição como esposa de Heitor?

Os aurigas lançaram-se ao ataque, numa carga pelo meio dos trabalhadores que retiravam os andaimes em volta do monstruoso cavalo de madeira; estes dispersaram e começaram a fugir, caindo cerca de meia dúzia deles sob as rodas dos carros de combate. No ar pairava um cheiro estranho e amargo que Cassandra não conseguia identificar, e quando os aurigas chegaram junto do cavalo, os seus enxames de flechas incendiárias partiram na direcção dele, mas não conseguiram pegar-lhe fogo.

Os soldados de Agamémnon atacaram, saídos da sombra dos andaimes. Os troianos, nos seus carros, lutavam energicamente; mas foram obrigados a recuar para as muralhas. No momento em que os portões se abriram para que eles se recolhessem no seu interior, gerou-se um combate para evitar que os homens de Agamémnon - e, ao que parecia, uma horda dos mirmídones de Aquiles, agora sem chefe - se juntassem lá dentro e invadissem as ruas. Uns poucos consegui• ram forçar a passagem, mas foram mortos nas ruas estreitas e os homens de Deífobo acabaram por fechar as portas.

- Tudo indica que vamos ter novamente um cerco - declarou Deífobo. - Agora temos, a todo o custo, que mantê-los fora da cidade, o que quer dizer que estas portas não podem ser abertas. A única coisa que aquela monstruosidade que está lá fora faz, é impedir-nos de ter uma boa visão do que se passa no acampamento e no campo de batalha. Nem sequer podemos incendiá-lo; eles ensoparam-no de qualquer coisa para que não ardesse, talvez uma mistura de vinagre e alúmen. Talvez tenha sido um erro incendiar primeiro os andaimes; isso avisou-os de que seria a primeira coisa que tentaríamos fazer.

- Se pretende ser o nosso deus Posídon - disse Hécuba -, não seria um acto sacrílego queimá-lo?

- Creio que o queimaria primeiro e faria as pazes com O que Estremece a Terra depois - disse Deífobo -; mas agora já não arde.

- Mas existe alguma possibilidade de o incendiar? - perguntou Príamo. - Bom, senhor, certamente que farei tudo o que puder - respondeu Deífobo. - Podemos tentar lançar flechas cobertas de breu e ter esperança de que alguma fique lá agarrada. Continuo a perguntar-me se eles terão montado esta coisa aqui para nos dar algo em que pensar e desviar-nos a atenção de outras coisas que eles andem a fazer, como tentar escavar túneis sob as muralhas do lado continental, ou escalar até ao Templo da Virgem e atacar-nos a partir daí.

- Achas que eles podem fazer isso? - perguntou Hécuba, assustada. - Tenho a certeza de que o tentarão, senhora. Está nas nossas mãos anteciparmo-nos a qualquer truque que esse rei dos ardis, Odisseu, possa estar a engendrar enquanto nós estamos com os olhos e a mente presos a essa coisa deplorável que ali está. - Olhou para o cavalo com uma expressão de asco e agitou o punho na sua direcção.

A imagem do cavalo de madeira vagueou, nessa noite, pelos sonhos de Cassandra. Num dos pesadelos ele ganhara vida, empinando-se como um garanhão e batendo os cascos no solo; depois, deu uma patada e o golpe dos seus cascos poderosos derrubou o portão principal de Tróia, ao mesmo tempo que um exército jorrava de dentro do cavalo, devastando e saqueando pelas ruas. A sua cabeça erguia-se, negra, como a de um dragão, por cima das chamas que consumiam a cidade. Quando acordou, o sonho pareceu-lhe tão profundamente real, que Cassandra foi à varanda, em camisa de noite; olhou para a planície e viu o cavalo sólido, de madeira e inerte como sempre, sob o luar pálido. Não era sequer, nem de longe, tão grande como lhe aparecera no sonho. « É apenas uma figura de madeira e alcatrão», pensou ela, «inofensiva como a estátua que está junto do Escamandro.» Alguns archotes ardiam, palidamente, diante dele homenagem a Posídon? Recordou a visão em que Apolo e Posídon, frente a frente, se batiam pela cidade, e entrou no santuário para ajoelhar-se e orar.

- Meu senhor Apolo - implorou -, não poderás Tu salvar o Teu povo? Se não podes, porque Te chamam Deus? E se podes e não o fazes, que espécie de Deus és Tu?

Depois, aterrorizada com a forma da oração, fugiu do santuário. Apercebera-se subitamente de que tinha feito a última pergunta que alguém faria a um deus, e precisamente aquela que nunca seria respondida. Por momentos, receou ter blasfemado; depois pensou: « Se Ele não é um deus, ou se não é bom, contra o que poderei ter blasfemado? Diz-se que Ele ama a Verdade; e se assim não for, então tudo o que me ensinaram é falso.

Mas se Ele não é um deus, quem era aquele que eu vi lutando pela cidade? Quem foi que desceu sobre Crise e Helena?

Se os Imortais são piores do que o pior dos homens, fracos, caprichosos e cruéis, então a Humanidade não deverá venerá-los, sejam eles quais forem.» Sentiu-se ludibriada; uma parte tão grande da sua vida havia sido gasta nessa intensa paixão pelo Senhor do Sol! «Não sou melhor do que Helena. Escolhi amar um deus que não é melhor do que o pior dos homens.»

Voltou para a muralha e ali ficou, entorpecida pelo terror, enquanto o Sol se elevava pela última vez sobre a cidade amaldiçoada.

 

Diante de si, sob a luz da madrugada, estendia-se a planície de Tróia. Na cidade não havia qualquer movimento; do lado de fora, alguns archotes reluziam, mortiços sob a luz do sol-nascente.

O silêncio era absoluto. Até mesmo a distante linha do mar, por trás das trincheiras aqueias, repousava calma e baixa como se a própria maré tivesse cessado de avançar sobre a costa. O tom avermelhado do céu era como chamas longínquas engolindo o último e ténue raio da Lua que se escondia. Era de novo como no seu sonho: o cavalo de madeira, diante das muralhas, parecia empinar-se, golpeando a cidade com os seus cascos monstruosos.

Gritou, sentindo a voz morrer-lhe na garganta sem ter sido escutada, e voltou a gritar forçando o silêncio, até que, por fim, conseguiu ouvir a sua voz soar como se lhe dilacerasse a garganta:

- Oh, cuidado! O Deus está zangado e vai atacar a cidade!

Era como se, por detrás do silêncio, pudesse ouvir enormes vagas de um som perturbador; como se Apolo e Posídon, na disputa da cidade, tivessem quebrado o impasse e Posídon tivesse derrubado o Senhor do Sol.

Os seus gritos não foram ignorados; viam-se já mulheres debandando dos edificios nos mais diversos graus de compostura.

- O que foi? O que se passa?

Cassandra estava vagamente consciente do que diziam.

«É Cassandra, filha de Príamo. Não lhe dêem ouvidos: élouca. Não! Escutem o que ela diz. É uma profetisa; ela vê...»

- Que se passa, Cassandra? - perguntou Fílidas serenamente, falando-lhe num tom tranquilizador. - Não podes dizer-nos calmamente aquilo que viste?

Ela continuava a gritar palavras. Tentou escutar-se a si mesma - estava tão confusa como os que a escutavam e parecia-lhe que a sua cabeça fora aberta com um machado - e pensou: « Se eu estivesse a ouvir-me, também eu pensaria que estava louca.» Porém, apesar da confusão, uma parte da sua mente estava lúcida - com a lucidez gelada do desespero -, e ela tentou concentrar-se nessa parte e ignorar a porção que se encontrava num caos de pânico e de terror. Ouviu-se gritar:

- O Deus está zangado! Apolo não pode derrotar O que Estremece a Terra; as muralhas da cidade serão destruídas! Escutem-me e fujam!

Mas de que serviam os avisos? Ela sabia que ninguém iria escapar, que apenas antevia morte e desgraça... Tomou consciência de que estava a debater-se entre as mãos de Fílidas, que tentava segurá-la; a amiga dizia em voz baixa para uma das outras sacertotisas:

- Dá-me a tua faixa para a amarrar antes que ela se fira. Olha, o rosto dela está a sangrar no sítio onde se arranhou a ela própria.

Passou o pano, cuidadosamente, em torno das mãos de Cassandra. Cassandra disse, desesperada:

- Não precisas de me amarrar; não vou magoar ninguém.

- Mas eu tenho medo que te magoes a ti mesma, minha querida - disse Fílidas. - Vai, Lykoura, traz-me vinho misturado com xarope de sementes de papoila; isso acalmá-la-á.

- Não! - disse Crises, avançando apressadamente em direcção a elas. Afastou Fílidas bruscamente e arrancou a faixa das mãos de Cassandra. - Ela não necessita de drogas; nenhuma poção calmante a pode aquietar neste momento. Teve uma visão. Que visão foi, Cassandra? - Pousou-Lhe as mãos na testa e disse numa voz forte e inflexível, olhando-a insistentemente nos olhos: - Diz o que foi que o Deus te enviou para dizer; juro por Apolo que ninguém te tocará enquanto eu viver.

«Mas tu estás agora tão impotente como o teu Senhor do Sol», pensou ela agitadamente. .

- Então escuta - disse ela, tentando silenciar os batimentos do seu coração pressionando os punhos sobre o peito. - O que Estremece a Terra derrotou o Senhor do Sol, tal como vai derrotar a nossa cidade. Sentiremos a fúria de Posídon mais fortemente do que nunca. Nem uma muralha, nem uma casa, nem uma porta, nem o próprio palácio escaparão desta vez. Avisa as pessoas e diz-lhes que fujam, ainda que para as mãos dos Aqueus! Abafem os fogos nas cozinhas; assegurem-se de que nenhuma lanterna se encontra nas proximidades dos armazéns de resina ou óleo. Não deixem ninguém ficar dentro de casa, para evitar que u seu corpo seja esmagado pela queda das pedras.

Crises disse, firmemente, voltando-se para as mulheres:

- Talvez ainda nos reste algum tempo. Vão depressa libertar as serpentes que não tenham fugido ainda. Depois, duas de vocês vão ao palácio e informem o rei e a rainha de que tivemos maus presságios e digam-lhes que fujam para terreno aberto. Eles podem não dar ouvidos, mas temos de fazer os possíveis.

- Isso não evitará nada - gritou Cassandra, tentando conter-se ao mesmo tempo que falava. - Ninguém pode escapar à fúria de Posídon! Deixa que as mulheres se refugiem no Templo da Virgem; talvez Ela tenha alguma piedade de nós.

- Sim, vão - disse Crises às mulheres. - Levem as crianças para lá e fiquem a céu aberto até que o tremor de terra cesse; talvez se possam aí esconder dos nossos inimigos, se eles irromperem pela cidade. Há muitos despojos para saquear em Tróia e talvez eles não subam tão alto. - Abraçou Cassandra à medida que ela ia recuperando os sentidos; na cabeça dela havia uma dor aguda e uma sensação de torpor, como se olhasse para o mundo imersa em águas profundas. - Tenho de ir, Cassandra, e espalhar a notícia como me for possível. Queres a tal poção calmante? Vais abrigar-te nos pátios do Senhor do Sol ou descer à cidade? Que posso fazer para te ajudar?

Descobriu que a voz de Crises lhe chegava como se atravessasse a planície e as legiões de mortos; mas quando ela falou, a sua voz estava calma.

- Obrigada, venerável irmão, não preciso de nada. Vai fazer o que tens a fazer, e eu irei tratar de garantir que a minha filha fique em segurança. Crises afastou-se e Cassandra foi para o seu quarto. Honey estava a dormir,

ainda enrolada nos cobertores, mas Cassandra reparou que a serpente desaparecera. Mais sensata do que os humanos, procurara refúgio num qualquer lugar secreto, conhecido apenas pelas serpentes. Cassandra curvou-se e abanou suavemente a criança, acordando-a. Honey estendeu os braços para que a levantasse e Cassandra vestiu-a rapidamente. Tinha de arranjar maneira de fazer a criança sair de Tróia em segurança, antes que os invasores atravessassem as muralhas.

- Vem, querida - disse, pegando na mão de Honey. - Temos de ir depressa.

Honey parecia confundida mas, obedientemente, trotou ao lado de Cassandra enquanto cruzavam o recinto. Quando subia apressadamente em direcção ao Templo da Virgem, com a mão de Honey na sua, tropeçou e foi agarrada por umas mãos fortes.

- Cassandra - disse Eneias -, aconteceu! Era este o teu aviso?

- Pensava que tinhas deixado a cidade - disse ela, tentando controlar a voz.

- Decerto que não vais ficar aqui, agora - disse ele. - Vem comigo; arranjarei uma ligação de navio para Creta...

- Não - disse ela. - Vem... depressa. Os deuses abandonaram Tróia. Conduziu-o velozmente para a zona mais interior do santuário do Templo da Virgem; encontrou ali algumas sacertotisas e gritou-lhes:

- Rápido! Extingam todos os archotes; sim, mesmo o fogo sagrado! Os deuses abandonaram-nos!

Ela própria, soltando a mão de Honey, pegou no último archote e extinguiu o fogo que ardia diante da Virgem; enquanto as sacerdotisas se precipitavam para o exterior, Cassandra puxou a cortina.

- Eneias, este é o objecto mais sagrado de Tróia inteira; toma-o. Puxou a estátua antiga, o Paládio, e embrulhou-a no seu véu.

- Leva-a contigo para onde quer que vás, através dos mares. Constrói um altar à Deusa e reacende o fogo sagrado. Conta a verdade acerca de Tróia.

Ele fez menção de afastar o véu e contemplar o objecto sagrado, mas ela deteve-lhe a mão.

- Não. Nenhum homem deve olhá-la - disse ela. - Jura que a levarás para outro templo e que, aí, a entregarás a uma sacertotisa da Mãe. Jura! repetiu, e Eneias olhou-a nos olhos.

- Juro - disse ele. - Cassandra, não podes ter mais motivos para permanecer aqui. Vem comigo. Deveria ser uma sacerdotisa a transportar isto através dos mares.

Curvou-se para a abraçar; ela beijou-o impetuosamente e em seguida afastou-se.

- Não pode ser - disse -; o meu destino está aqui. O teu é deixar Tróia vivo e ileso. Mas parte imediatamente, e que todas as nossas esperanças e os nossos deuses te acompanhem.

- Não podes ficar aqui... - começou ele.

- Prometo-te: deixarei Tróia antes que o Sol volte a nascer - disse ela. -Não é a morte o que me espera; mas não sou livre de ir contigo. Os deuses decidiram de outra maneira.

Ele beijou-a de novo e pegou no objecto embrulhado.

- Juro-te pela minha própria linhagem divina - disse ele - que farei a tua vontade; e a Dela.

Os olhos de Cassandra encheram-se de lágrimas ao vê-lo deixar apressadamente o templo.

Não chegara a atravessar o pátio quando, dentro da sua cabeça, ouviu um enorme rugido. O chão oscilou sob os seus pés; cambaleou e caiu, com Honey nos braços; ficou estendida e imóvel, o seu corpo comprimido de encontro à terra subitamente instável, que se agitava e encrespava por baixo de ambas. A sua única reacção foi a raiva e não o medo: «Mãe Terra, porque deixas os Teus filhos brincar deste modo com aquilo que Tu criaste?»

O movimento parecia ir continuar eternamente, sob os soluços amedrontados da criança que tinha nos braços. Depois acalmou e Cassandra reparou que o Sol exibia ainda apenas uma pequena fracção acima do horizonte; o abalo não podia ter durado mais do que alguns instantes. O choro de Honey acalmou até não ser mais do que um soluçar espaçado.

Cassandra olhou para trás dela e percebeu que o estrondo que ouvira fora o das paredes da casa do Senhor do Sol abatendo para o interior. Praticamente nenhuma das construções circundantes ficara de pé. Do edifício principal - onde habitavam - não restava mais do que um amontoado de pedras. Decerto que não seria possível salvar nada dali. Ouviam-se gritos abafados: alguém fora apanhado lá dentro pela queda das pedras. Cassandra olhou, impotente, para o monte de escombros - não conseguiria, mesmo que usasse todas as suas forças, mover uma só pedra que fosse - e em breve o som cessava.

Algures nos jardins um pássaro começou a cantar. « Quererá dizer que terminou?»

Como que em resposta, o solo pareceu estremecer e balançar de novo, e depois imobilizou-se. Atordoada, Cassandra dirigiu-se ao ponto de observação onde, na noite anterior, fora olhar a planície.

O grande portão e a muralha frontal de Tróia tinham ruído e, no meio do amontoado de destroços dos portões e da muralha, Cassandra avistou o cavalo de madeira jazendo por terra, com uma pata grotescamente erguida como se, de facto, tivesse golpeado a muralha com os seus cascos gigantescos. Os archotes tinham incendiado a estrutura e esta ardia violentamente; mas quando atingiam o cavalo propriamente dito, as línguas de fogo roçavam-no em vão. Chamas erguiam-se da zona mais pobre, onde as casas eram de madeira. Era como a visão que tivera pela primeira vez em criança, a visão em que ninguém acreditara: Tróia ardia.

Através da abertura da muralha caída, vagas de soldados aqueus estavam já precipitando-se para as casas ainda não derrubadas e saindo carregados com tudo o que conseguiam transportar. Onde poderia esconder-se? Mais importante ainda, para onde poderia levar Honey? Um edifício no interior do recinto da casa do Senhor do Sol continuava de pé: o santuário. Talvez houvesse lá alguma comida que tivesse ficado das ofertas do dia anterior. Para seu espanto, apercebeu-se de uma súbita e violenta fome. Entrou e deteve-se: se se desse um novo abalo, o edifício poderia ruir. Viu então que a estátua do Senhor do Sol caíra e que uma figura humana jazia esmagada sob ela. Aproximando-se com uma curiosidade insensível - não havia nada a fazer - viu que era Crises quem ali se encontrava caído.

«Por fim», pensou, «o Deus golpeou-o realmente.» Ajoelhou-se junto do homem caído, fechando-Lhe os olhos esbugalhados; depois levantou-se e seguiu. Na sala por trás da estátua, onde as ofertas eram guardadas, encontrou alguns pãezinhos - estavam bastante duros, mas ela comeu um, dividindo-o com a criança que parecia atordoada e não chorava. Enfiou outro na dobra do vestido - poderia vir a precisar dele - e parou para reflectir. Os Aqueus estavam já a saquear a baixa da cidade. Teria o palácio caído? Teriam sido todos mortos - os seus pais, Andrómaca, Helena? Teriam ficado alguns soldados troianos vivos para impedir o saque? Ou seriam ela e a sua criança as únicas sobreviventes a pressenciar a devastação?

Escutou, tentando captar qualquer som que a levasse a pensar que havia mais alguém com vida na casa do Senhor do Sol, mas tudo estava silencioso. Talvez houvesse alguém vivo no palácio. Teriam ouvido o aviso a tempo de sair para os pátios ou para os jardins?

Embora o sol estivesse já bastante quente, ela tremia. Os seus agasalhos - como todas as suas peças de roupa à excepção das que trazia vestidas estavam sepultados sob as ruínas do Templo do Senhor do Sol.

Deveria descer ao palácio; embora soubesse da presença dos soldados aqueus na cidade, estava desesperadamente ansiosa por saber se a sua mãe continuava viva. Pegou em Honey e começou a correr pela rua abaixo.

O caminho estava bloqueado pelo entulho e os escombros das casas semidestruídas; as pessoas que encontrou eram na sua maioria mulheres aturdidas, descalças e meio vestidas como ela própria, e alguns soldados mal armados que tinham acordado cedo para se juntarem a Deífobo. Quando a viram dirigir-se para o palácio, seguiram-na.

O palácio não abatera. Apenas as portas frontais e algumas esculturas tinham desaparecido, mas as paredes permaneciam de pé e não havia sinais de fogo. Ao aproximar-se, ouviu um sonoro lamento e, reconhecendo a voz da sua mãe, começou a correr. Nas lajes do pátio, agora soltas e desniveladas, viu Príamo estendido - morto ou inconsciente, não sabia dizer. Hécuba debruçava-se sobre ele em pranto; Helena, envolta numa capa, com Nikos a seu lado, e Andrómaca, agarrada a Astíanax, estavam com ela.

Andrómaca ergueu os olhos para Cassandra e disse, agressiva:

- Estás satisfeita, Cassandra, pela maldição que profetizaste nos ter atingido?

- Oh, calma! - disse Helena. - Não fales como uma idiota, Andrómaca. Cassandra tentou avisar-nos, foi só. Tenho a certeza de que ela teria preferido deixar tudo isto em segredo. Folgo por te ver ilesa, irmã. - Abraçou Cassandra e, passado um momento, Andrómaca imitava-a.

- O que aconteceu ao pai? - pergúntou Cassandra. Avançou e curvou-se sobre a mãe, levantando-a delicadamente. - Vem, mãe. Temos de procurar refúgio no Templo da Virgem.

- Não! Não! Ficarei aqui com o meu rei e senhor - protestou Hécuba, o seu choro transformado agora em soluços.

Andrómaca abraçou-a e Astíanax aproximou-se e pôs os braços em volta de Hécuba, dizendo:

- Não chores, avó; se aconteceu alguma coisa má ao avô, o rei, eu olharei por ti.

- Pronto, amor - disse Helena, no momento em que Cassandra se ajoelhou ao lado do pai segurando a fria mão na sua e lhe levantou uma das pálpebras fechadas. Não havia o menor indício de movimento ou de vida; os olhos estavam já baços. Sabia que deveria juntar-se a Hécuba no ritual dos lamentos, mas apenas soltou um suspiro e deixou a mão dele tombar de dentro da sua.

- Lamento, mãe - disse. - Ele está morto.

Os gritos de Hécuba recomeçaram. Cassandra disse, em tom de urgência: - Mãe, não há tempo para isso; os soldados aqueus estão na cidade.

- Mas como é possível? - perguntou Hécuba.

- As muralhas fenderam com o tremor de terra - explicou Cassandra, perguntando-se desesperadamente se teriam todos perdido o juízo ou estariam embrutecidos pelo choque; não teriam ouvido nada? - Já andam a pilhar pelas ruas e não demorarão muito a chegar aqui. Onde está Deífobo?

- Creio que deve estar morto - disse Helena. - Ouvimos a mãe chamar, dizendo que o pai tivera um ataque ou um desmaio. Viemos imediatamente e Deífobo carregou-o do quarto até aqui ao pátio, e depois voltou a entrar a correr para ir buscar a mãe dele. Então deu-se o primeiro abalo, os soalhos cederam e creio que parte do telhado também. Eu tinha agarrado em Nikos e saído com ele, a correr, atrás de Deífobo.

- E assim nós os seis estamos vivos - disse Cassandra -, mas temos de nos esconder em algum sítio, se não quisermos cair nas mãos dos soldados. Não sei quais são os costumes dos Aqueus em relação às mulheres cativas, e não me parece que gostasse de saber.

- Oh, Helena não tem nada que recear da parte deles - disse Andrómaca, olhando fi~camente para a mulher argiva. - O marido dela em breve estará aqui para reclamá-la, tenho a certeza; cobri-la-á com as jóias de Tróia e levá-la-á de volta, triunfante. Que sorte para ti que Deífobo tenha morrido a tempo; não que te importes!

Cassandra estava estupefacta com o desprezo que ela demonstrava.

- Não é altura para brigar, irmã; deveríamos estar satisfeitas por uma de nós não ter que temer a captura. Vamos refugiar-nos na casa da Virgem? Foi para lá que mandámos as mulheres da casa do Senhor do Sol, e estou certa de que continua inteira. - Pôs o braço em volta de Hécuba e disse: - Vem, vamos embora.

- Não! Eu fico com o meu rei e senhor - disse a velha mulher teimosamente, tombando de novo sobre os joelhos junto do corpo de Príamo.

- Mãe, acreditas realmente que o pai quereria que tu ficasses aqui para seres capturada por algum nobre aqueu? - perguntou Cassandra, exasperada. - Ele foi soldado até morrer; não o abandonarei no momento da sua

rendição - insistiu Hécuba. - Tu és uma mulher nova; vai e esconde-te algures onde eles não te possam encontrar, se é que existe um lugar assim em Tróia. Eu fico com o meu senhor; Helena ficará comigo. Nem mesmo os Aqueus irão insultar a rainha de Tróia. Rendemo-nos a um deus, não a eles.

Cassandra desejava sentir-se mais segura disso. Mas já se ouviam os soldados a aproximar-se e ela pegou na mão de Honey. Astíanax estava nos braços de Andrómaca, protestando, tentando descer - mas a mãe não lhe ligava.

- Escondamo-nos numa destas casas humildes aqui ao lado; eles nunca se lembrarão de procurar lá, onde não há nada para saquear - sugeriu Andrómaca, mas Cassandra abanou a cabeça.

- Confiar-me-ei, a mim e à minha filha, à Virgem de Tróia. Se os nossos deuses nos abandonaram, talvez as deusas não o façam.

- Como queiras - murmurou Andrómaca. - Eu já não acredito em deuses nenhuns. Adeus, então. Boa sorte para vocês.

Enfiou-se para dentro da mais pequena e mais suja das casas e Cassandra, com Honey, correu pela colina acima até ao ponto mais alto de Tróia onde o Templo da Virgem se erguia, intacto, com a estátua do pátio frontal ainda de pé.

Cassandra pousou imediatamente Honey no chão e lançou-se aos pés da estátua; certamente que nenhum homem, nem mesmo um bárbaro aqueu, ousaria abusar de qualquer mulher que ali procurasse refúgio.

Ouviu as vozes das outras mulheres numa das salas mais escondidas. Dentro de momentos juntar-se-ia a elas.

- Ah, ei-la! - era um grito de triunfo na língua bárbara dos soldados. Dois homens vestidos com armaduras surgiram à porta! - Perguntava-me onde se teriam metido as mulheres todas. Esta é boa para mim; é a princesa, filha de Príamo. É profetisa e virgem de Apolo; mas se Apolo quisesse proteger as Suas virgens, tê-lo-ia feito. Queres ver dentro da sala se há mais?

- Não - respondeu o outro -, eu fico com a pequenina. Quando as pessoas acham que elas são suficientemente crescidas, já são velhas de mais para o meu gosto. Vem cá, menina, tenho aqui uma coisa bonita para ti.

Cassandra voltou-se, horrorizada, deparando com um soldado gigantesco que acenava a Honey.

- Não! - gritou. - Ela é apenas um bebé! Não, não...

- Eu gosto delas assim - disse o enorme soldado, arreganhando os dentes; e investiu contra a criança, arrancando-lhe o vestido. Cassandra lançou-se contra o homem, com unhas e dentes, tentando arrancar-lhe Honey dos braços; um violento pontapé fé-la voar inconsciente para um canto do recinto. Ouviu Honey gritar, mas não conseguia mexer-se; os seus membros estavam tão pesados que não conseguia mover um único dedo. Sentiu o outro homem agarrá-la e debateu-se furiosamente; uma pancada no rosto desferida pelo braço do homem atirou-a para trás ao mesmo tempo que toda a força se esvaía do seu corpo, como areia num saco rasgado.

Continuou a ouvir os gritos desesperados de Honey até que, para cúmulo do horror, estes cessaram. Estava consciente - embora não conseguisse mover-se ou falar - de que o homem lhe arrancava a túnica e a empurrava para o chão de mármore.

«Deusa! Vais deixar que isto aconteça precisamente no Teu santuário, diante dos Teus olhos?», implorou - e depois, chocada, lembrou-se: ela já não venerava os Imortais; porque haveria a Virgem de protegê-la?

«Mas Honey não fez qualquer mal e é um bebé! Se a Virgem vê isto e não consegue impedi-lo, não é uma deusa. E se pode impedi-lo e não o faz...» Então uma dor aguda dilacerou-a no momento em que o homem a penetrou violentamente, e sentiu a escuridão descer sobre ela.

Sentiu-se abandonar a sua carne destroçada pela dor, consciente das continuadas investidas do homem contra o seu corpo inerte, consciente do corpo de Honey, nu e rasgado, sangrando sobre as pedras, movendo-se ainda ligeiramente enquanto um choro débil lhe saía de entre os lábios escoriados. Elevou-se e saiu, caminhando sobre a planície nua e incaracterística. O sol esbatera-se até ficar do mesmo tom cinzento de tudo quanto existia ali. Desceu e caminhou através da planície que era - e não era - a da cidade de Tróia, onde o cavalo de madeira derrubara com as patas as muralhas e que, apesar de já não estar de pé, se erguia ainda, inteiro e aterrador, sobre a cidade morta.

Viu outras pessoas naquela planície: soldados aqueus, alguns troianos. Pareciam confundidos, olhando em volta à procura de um chefe. Depois viu Deífobo, seminu, carregando ainda a sua mãe nos braços, com o rosto e as mãos chamuscados pelo fogo. Tinham portanto morrido juntos, tal como Helena calculara.

Ele tentou chamá-la, mas ela não tinha a mínima vontade de lhe falar. Voltou-se e seguiu, apressada, na direcção contrária, perguntando-se o que teria acontecido a Andrómaca.

Ali estava Astíanax com a cabeça a sangrar e as roupas rasgadas. Parecia atordoado mas, enquanto ela o olhava, o seu rosto iluminou-se e ele começou a correr através da planície, gritando de alegria. Viu Heitor erguê-lo nos braços e cobri-lo de beijos. Heitor tinha, então, reclamado o seu filho; ela não se surpreendia pelo facto de os soldados aqueus não o terem deixado viver. Andrómaca ia sofrer; ela ignorava que o seu filho se encontrava com o pai, tal como Heitor prometera. Cassandra desejou que a criança não tivesse sentido demasiado pavor antes de encontrar o fim na ponta de uma lança aqueia - ou tê-lo-iam atirado das muralhas?

Depois viu Príamo, alto e imponente tal como ela o recordava dos seus tempos de rapariguinha. Sorriu para ela e disse:

- A cidade desapareceu, não foi? Suponho então que estamos todos mortos.

- Sim, penso que sim - disse ela.

- Onde está a tua mãe, minha querida? Não veio ainda? Bom, esperarei aqui por ela - disse ele, concentrando-se para olhar em volta. - Oh! Lá estão Heitor e o rapaz...

- Sim, pai - disse ela, sentindo um nó na garganta; ele parecia tão feliz. - Acho que vou ter com eles; se a tua mãe chegar, diz-lhe, sim, querida? «Mas não é possível que estar morto seja simplesmente isto», pensou ela. «Tem de existir algo mais...»

Ergueu os olhos e mesmo na sua frente viu Pentesileia - sem ferimentos, sorrindo, o rosto resplandecente - rodeada por meia dúzia das guerreiras amazonas que haviam lutado a seu lado no último dia. Rindo de alegria, Cassandra correu para os braços da amazona. Ficou surpreendida ao sentir que o contacto com a sua parente era tão forte e quente como no dia em que a abraçara quando ela saíra para combater diante de Tróia e morrer às mãos de Aquiles. Cassandra exprimiu a sua surpresa em voz alta.

- Então suponho que Aquiles deve estar também algures por aí.

- Também eu pensaria que sim - disse Pentesileia -, mas parece que ele foi para o lugar dele, seja lá onde for.

Por trás de Pentesileia a planície dos mortos esbateu-se e Cassandra avistou algo que se assemelhava a uma luz ofuscante - duas vezes mais brilhante do que o Senhor do Sol, tal como ela O vira na sua primeira e arrebatadora visão; através da luz distinguiu a forma de um soberbo templo, maior do "que aquele onde servira em Cálcis, e ainda mais belo.

- É para ali que devo ir? - sussurrou, em êxtase.

Vinda de trás da luz, começou a ouvir música: harpas e outros instrumentos, em crescendo, invadindo o ar com harmonias, como uma dúzia... não, uma centena de vozes unidas num cântico: claras, sonantes e cada vez mais próximas. Fora assim que ela sonhara ser a casa do Senhor do Sol. Crises estava de pé na entrada, acenando-lhe; o seu rosto estava liberto da insatisfação e da cobiça que ela Lhe conhecera - ele era, finalmente, aquilo que ela sempre acreditara que ele era. Estendeu-lhe os braços e ela estava prestes a correr ao encontro deles, como Astíanax correra para Heitor.

Mas Pentesileia barrava-lhe o caminho - ou seria a própria Virgem Guerreira, envergando a armadura da amazona? Segurava Honey pela mão e esta ria, ilesa. «Então ela também está morta.»

- Não! - disse Pentesileia. - Não, Cassandra. Ainda não.

Cassandra lutava para articular as palavras. Era aquele o lugar que vira nos seus sonhos, o lugar onde ela sempre soubera pertencer. E não só Crises mas todos os que ela amara estavam lá, à sua espera, aguardando a sua voz para preencher o lugar vazio naquele imenso e harmónico coral.

- Não. - A voz de Pentesileia era pesarosa mas inflexível, e ela deteve Cassandra como se refreasse uma criança. - Não podes ir ainda; há algo mais que tens de fazer no mundo dos vivos. Não pudeste partir com Eneias; não podes vir comigo. Tens de regressar, Cassandra; não chegou a tua hora.

Sob o elmo reluzente, o rosto formosamente esculpido começava a dissolver-se numa profusão de cintilações brilhantes. Cassandra lutou para mantê-lo focado.

- Mas eu quero ir... a luz... a música - disse ela.

A luz morria, e à sua volta estava escuro. Apercebeu-se de um cheiro medonho, semelhante ao da morte, semelhante ao de um vómito; estava deitada no chão sujo de uma espécie de abrigo rudimentar. «Então não estou morta, afinal.» A única emoção que sentiu foi um amargo desapontamento. Lutou para se agarrar à memória da luz, mas esta estava já a desaparecer. Tinha consciência das dores no seu corpo. Estava a sangrar e parte do odor que sentia era o do seu próprio sangue no rosto e na túnica. O homem que a violara jazia meio atravessado sobre o seu corpo. Era o vomitado dele que lhe chegava às narinas e, aos poucos, como que emergindo de um profundíssimo transe, ouviu uma voz familiar e viu o rosto - nariz adunco, barba negra - que habitara os seus pesadelos durante anos.

- Eu disse-te que era a ela que eu queria - disse Agamémnon. - Olha, está a recuperar a respiração. Se a tivesses morto, ter-te-ia mandado esfolar vivo; sabias que ela me coubera no sorteio, mas tinhas de tentar chegar primeiro do que eu. Sempre foste desprezível, Ájax.

Cassandra sentiu uma agonia percorrer-lhe o corpo; agonia misturada com desespero.

«Não estou morta, afinal; a Virgem salvou-me. Para isto!»

 

Estava deitada, imóvel, demasiado infeliz para tentar mover-se.

- Honey? - murmurou com dificuldade através da garganta dorida. Mas não houve qualquer resposta. Lembrou-se de ver o seu pequeno corpo num estado deplorável, rasgado e exangue, atirado para um canto pelo homem que a usara.

«Já deve estar morta. Espero que esteja morta. Sim, está com Pentesileia. Vai andar à minha procura.

Não quero viver. Quero voltar para junto de Pentesileia, e do pai... e da música. »

Mas conseguia sentir a sua própria respiração, o bater sonoro e importunante do seu coração. Viveria. Que dissera Pentesileia? «Existe algo mais que tens de fazer entre os vivos»... « Se fosse cuidar de Honey, teria regressado - não de boa vontade, mas sem protestar. Mas ela já se foi, não posso ajudá-la agora. Porque estou eu aqui se todos aqueles que amo já partiram antes de mim?»

Conseguiu perceber, vagamente, que se encontrava deitada no chão de uma pequena construção, rodeada de pilhas de caixas, trouxas e fardos de objectos e produtos: sedas, mantos sumptuosos, tapeçarias, jarras e peças de cerâmica, sacas de cereais e potes de azeite - todas as riquezas da cidade saqueada. Andrómaca jazia perto dela, de rosto para baixo, coberta com uma manta grosseira. Cassandra distinguiu-lhe as feições sob a luz mortiça. Os seus olhos estavam inchados e vermelhos de chorar. Abriu-os e olhou para Cassandra.

- Oh - disse ela -, estás acordada. Quando te trouxeram para aqui disseram que estavas morta e Agamémnon não queria admiti-lo.

- Tive a certeza de que estava morta - disse Cassandra. - Queria estar morta.

- Também eu - disse Andrómaca. - Levaram Astíanax. - Sim, eu sei; eu vi-o a correr para os braços do pai. Andrómaca reflectiu por instantes e disse:

- Sim, se alguém pudesse ver para além da morte, suponho que serias tu. - Acredita-me: está livre, feliz e com o pai - repetiu Cassandra. A sua voz

tentava, avidamente, capturar a memória. - Estão bem melhor do que nós; quem me dera estar onde eles estão neste momento.

Passados instantes, perguntou:

- Porque estamos aqui fechadas? Que vai acontecer connosco? Onde fica este lugar?

- Não tenho a certeza; creio que é o local onde os comandantes aqueus estão a preparar as coisas para carregar os navios - disse Andrómaca.

- Escuta - disse Cassandra, encolhendo-se -; vem aí alguém! - Conseguia ouvir o som de passos pesados batendo contra o solo. Mas tinha perdido a Visão sobrenatural dos estados de transe, e sentia-se abatida e doente, limitada aos seus vulgares sentidos de mortal. Tinha um sabor repugnante na boca. - Há alguma água aqui?

Andrómaca suspirou e remexeu-se; depois sentou-se direita. Estendeu a mão para um cântaro e entregou-o cuidadosamente a Cassandra, que bebeu até não ter mais sede. Tivera de sentar-se para beber, e sentira-se como se a sua cabeça fosse soltar-se e rolar para longe. Ajudou Andrómaca a repor o cântaro no lugar e voltou a deitar-se, exausta por aquele simples movimento.

Cassandra disse, num murmúrio:

- Honey também está morta. Arrancaram-na das minhas mãos mesmo no santuário da Virgem; e violaram-na, um bebé tão pequeno... - A voz faltou-lhe.

A mão de Andrómaca fechou-se sobre a sua.

- Sei como deves sentir-te, embora ela não fosse verdadeiramente tua filha.

Cassandra disse, sombriamente:

- Era tão minha como qualquer outra criança teria sido.

- Dizes isso porque nunca geraste uma criança - disse Andrómaca. Puxou de novo o cobertor para cima do rosto.

- Tu estás bem? Fizeram-te algum mal? - perguntou Cassandra, tentando penetrar o mortal desespero de Andrómaca.

Andrómaca voltou-se para a olhar de frente.

- Não, não me tocaram. Suponho que me trouxeram porque os enche de orgulho pensar que têm a mulher de Heitor como escrava - disse ela. - Tal como o meu filho; se ele fosse filho de um homem menos valoroso, era possível que o deixassem viver... - Passado um instante, perguntou: - Então e tu? Foste ferida... - Estendeu a mão, detendo-se pouco antes de tocar o golpe aberto na testa de Cassandra. - Foste espancada, para além de...

- Violada? Sim - disse ela. - Pensava... esperava estar morta. Mas, por qualquer razão, fui... mandada de volta.

Recordou penosamente as palavras de Pentesileia: «Há algo ainda que tens de fazer no mundo dos vivos.» Mas o quê? Não iriam mandá-la de volta para consolar Andrómaca e dizer-lhe que o seu filho estava em segurança junto do pai. Mas que mais poderia ser? Poderia ela, de alguma forma, vingar-se de Agamémnon? Ridículo! Os exércitos todos de Tróia não tinham conseguido derrotá-lo e ela não passava de uma mulher sozinha, ferida e violentada.

Uma forma escura tapou a luz que vinha da porta, e uma voz rude disse: - Ora bem. Tu, lá para dentro com as outras - e alguém foi empurrado para o interior, tropeçando e caindo ao lado de Cassandra: uma mulher, pequena e frágil. Gemeu e levantou penosamente a cabeça.

- Cassandra? És tu?

- Mãe! - Cassandra sentou-se e abraçou-a. - Pensei que tivesses morrido...

- E eu ouvi dizer que Agamémnon te levara...

- Reclamou-me para si - disse Cassandra, tentando falar controladamente -, mas eles ainda não camegaram os navios; por isso, pelo menos temos uns momentos para nos despedirmos.

- Eles continuam a brigar por causa dos espólios - disse Andrómaca amargamente, sentando-se para abraçar Hécuba. - Incluindo nós.

- Não sei para onde irei - disse Hécuba - nem de que servirei, velha como estou, como escrava.

- Pelo menos, mãe, tu não tens de recear ser tornada concubina - disse Andrómaca.

Hécuba riu por momentos, e depois disse:

- Nunca pensei voltar a ter algum motivo para rir. Mas vocês as duas são jovens; mesmo sendo escravas, poderão descobrir ainda algo de bom na vida. - Nunca - disse Andrómaca. - Oh, não vamos discutir sobre qual de nós sofreu mais!

Cassandra sentiu-se gelar e murmurou: - Vem aí alguém.

Era Odisseu; o seu corpo amplo parecia preencher a entrada. O guarda da porta perguntou:

- Que desejas, meu senhor?

- Uma das mulheres que aí está dentro pertence-me. Perdi no sorteio, mas talvez nem tudo seja prejuízo; a minha mulher, Penépole, ficaria zangada comigo se eu levasse para casa uma escrava jovem e bonita.

- Oh, que desgraça - sussurrou Hécuba, agarrando a mão de Cassandra. - Tantas vezes foi recebido como convidado, junto ao nosso fogo. Não consigo suportar esta humilhação!

Odisseu entrou e curvou-se sobre as mulheres. A sua voz soou sem rudeza. - Bem, Hécuba, parece que tu vens comigo. Não tenhas medo; não tenho qualquer desavença contigo e a minha mulher ainda menos. - Estendeu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se, o que ela fez com dificuldade. Depois curvou-se sobre Cassandra e sussurrou: - Não receies pela tua mãe. Olharei bem por ela; nunca lhe faltará um lar enquanto eu viver. Teria todo o prazer em levar-te para casa também, Cassandra; mas Agamémnon estava obstinado e decidido a possuir-te, por isso parece que irás ser amante de um rei.

- Quem irá levar Andrómaca? - perguntou Cassandra.

- Ela vai para o país de Aquiles, para o pai dele, como parte dos seus bens. - Podia ser pior - disse Andrómaca num esgar.

Hécuba perguntou: - E Políxena?

Odisseu baixou os olhos e disse:

- Está na companhia do próprio Aquiles.

- Que quer isso dizer? - perguntou Hécuba, mas Odisseu mantinha os olhos baixos, evitando encará-la.

Cassandra, porém, vira nos olhos dele o que tinha acontecido e explodiu: - Foi morta, sacrificada, a garganta aberta e o corpo dela lançado sobre a pira de Aquiles, como se fosse um animal...

Odisseu ficou perplexo. Hécuba perguntou: - É verdade?

- Ter-te-ia poupado a tal notícia - disse Odisseu. - Aquiles havia-se oferecido para a desposar; por isso eles enviaram-na a juntar-se-lhe no Além. Cassandra disse, docemente, no meio dos soluços de Hécuba:

- Não chores, mãe; ela está bem melhor do que a maioria de nós, e tu em breve estarás com ela.

Hécuba enxugou os olhos com o vestido.

- Sim, melhor do que qualquer de nós - disse. - O Além só pode ser melhor do que isto, e em breve me juntarei ao meu senhor e rei, pai dos meus filhos. Bem, leva-me, Odisseu. - Curvou-se rapidamente para abraçar Cassandra. - Adeus, minha filha. Que seja em breve que voltemos a encontrar-nos.

- Nunca será cedo de mais para mim - disse Cassandra quando se separavam. Deitou-se, tentando repousar a cabeça dorida sobre uma trouxa de lona. Sabia que não voltaria a ver a mãe deste lado da morte e que, aí, Hécuba não estaria só.

A luz movia-se lentamente sobre o pavimento; devia passar do meio-dia. Tinha sido apenas nessa manhã que a cidade se rendera? Pareciam semanas... não, anos.

A luz estava a enfraquecer quando ouviu a voz de um aqueu dizendo em tom de desculpa:

- Não tens de esperar aí dentro com elas, senhora - e o protesto suave e cortês de uma voz familiar.

Depois, uma figura esbelta entrou no abrigo, perguntando docemente: - Quem está aí?

- Helena? - Cassandra sentou-se. - Que fazes aqui?

- Prefiro estar aqui do que enfiada a bordo do navio de Menelau com todos os marinheiros embasbacados a olhar para mim - disse Helena. - Ele virá buscar-me quando o navio estiver pronto para partir.

Cassandra deitou-se novamente. Sabia que deveria sentir algum ressentimento em relação àquela mulher; mas Helena tinha apenas seguido o destino dela tal como ela, Cassandra, seguira o seu. Helena fixou, chocada, a cabeça de Cassandra ainda a sangrar.

- Oh, que horror!

- Está tudo bem, não estou gravemente ferida - disse Cassandra.

- E tu, que merecias o pior de tudo, nem foste tocada - disse Andrómaca com azedume. - Oh, até estás adequadamente vestida. - Olhou com indignação para a túnica limpa, cor de ferrugem, e o manto impecavelmente cingido com um cinto e fivela de ouro.

O sorriso de Helena foi ténue.

- Menelau insistiu. E mandou Nikos embora com os soldados, dizendo que eu não estava apta a ter uma criança ao meu cuidado.

- Pelo menos o teu filho continua vivo - resmungou Andrómaca.

- Mas perdido para mim - disse Helena. - E Menelau jurou que, se este viver - e Cassandra recordou-se de Helena lhe confidenciar estar convencida de que estava grávida - ele o expõe. Acredita-me, Andrómaca, preferia ir parar às mãos de um estranho, mesmo que jogada aos dados pelos homens. Não tenho qualquer dúvida de que Menelau irá fazer-me sentir a sua fúria o resto da minha vida; preferia ser sepultada aqui, tranquilamente, ao lado de Páris, que eu amei.

- Não acredito nisso - disse Andrómaca, ferozmente. - Tenho a certeza de que preferirias ter um novo homem a quem cativar com a tua beleza. Voltou as costas a Helena e não tornou a falar.

Cassandra estendeu a mão a Helena e a outra mulher apertou-a, dizendo: - Pergunto-me, será que todas as mulheres de Tróia me responsabilizam...? - Eu não - disse Cassandra.

- Não. E encontrei amigos em Tróia - disse Helena, curvando-se para beijar Cassandra. - Desejava nunca ter vindo aqui para vos destruir...

- Foi Posídon que o fez - disse Cassandra, e ficaram em silêncio, de mãos dadas como rapariguinhas. Não tardou muito até soarem passos no exterior e Menelau, curvando-se, entrar pela porta baixa.

- Helena? - disse ele.

- Estou aqui - disse ela submissa, e Cassandra ergueu o olhar para o clarão de luz que pareceu encher a pequena cabana. O cabelo de Helena brilhava como ouro e tinha à sua volta a auréola que exibira quando estivera de pé sobre as muralhas de Tróia: a verdadeira aura da Deusa.

Menelau pestanejou como se os seus olhos estivessem encandeados. Então, involuntariamente, curvou-se e murmurou: «Minha senhora e rainha.» Como se receasse aproximar-se dela, ofereceu-lhe o braço e ela avançou lentamente em direcção a ele.

Deixaram o abrigo - Menelau seguindo Helena, meio passo atrás. Escurecia lá fora quando, finalmente, Cassandra viu a familiar figura de Agamémnon introduzindo a cabeça no interior do abrigo.

- Filha de Príamo - disse ele -, tu vens comigo; o navio estápronto para partir.

«Que hei-de fazer agora? Submeter-me? Lutar? Não há nada a fazer. É o Destino. »

Levantou-se e ele tomou-lhe o braço, sem rudeza, mas com um certo orgulho de proprietário. Disse, sorrindo, a experimentá-la:

- Foste a única coisa que pedi de entre todos os despojos de Tróia; acredita-me, não vou maltratar-te, Cassandra. Não é uma coisa sem importância, ser a bem-amada do rei de Micenas.

« Oh, isso acredito», pensou ela. Ocorreu-lhe que Príamo, se Agamémnon não fosse já casado com a irmã de Helena, poderia muito bem ter querido oferecê-la em casamento àquele homem. O que a esperava agora - à excepção de umas quantas formalidades rituais e da bênção da sua família - não seria muito diferente. A mulher de um aqueu não era menos escrava do que qualquer escrava de Tróia. Estremeceu e ele voltou-se para ela, solícito.

- Estás com frio? - perguntou. Curvou-se e tirou uma capa do meio de uma pilha de vestimentas roubadas que estava guardada no abrigo - uma capa azul que ela nunca vira antes.

- Veste isto - disse ele magnanimamente, colocando-lha sobre os ombros. Conduziu-a pelo solo irregular, descendo até à borda de água, e segurou-lhe a mão enquanto ela subia para dentro do navio.

O convés oscilava e ele guiou-a ao longo dele; era maior do que parecia visto das muralhas de Tróia. Os remadores, junto aos seus remos, olhavam para cima com curiosidade enquanto ela tentava caminhar sem tropeçar na capa. Sobre o convés estava uma pequena tenda, algo parecida com as tendas em que os Aqueus tinham acampado durante a guerra. Ele levantou a cobertura para a deixar entrar. Lá dentro havia tapetes macios e uma candeia acesa.

- Aqui terás privacidade - disse ele cerimoniosamente. - Partiremos com a maré, duas horas antes da alvorada. - Ele saiu e Cassandra deixou-se tombar sobre os tapetes, sentindo o suave sobe-e-desce do convés. Perguntou-se se não conseguiria escapar-se até ao outro lado do navio, deslizar para a água e afogar-se. Mas não; certamente que estava vigiada e eles apanhá-la-iam antes que conseguisse alcançar a água. Além disso, fora-lhe dito que ela não estava destinada a morrer e portanto seria mandada de volta.

Deitou-se para trás, tentando resignar-se à ideia do momento em que Agamémnon iria procurá-la.

Não podia ser pior do que Ájax. E ela sobrevivera a isso. Sobreviveria a isto também.

 

Pelo menos já não sentia vómitos. Cassandra arrastou-se para fora da tenda do convés e mergulhou no ar fresco da noite. Continuava a não suportar pensar em comida; mas conseguia manter-se direita sobre os joelhos - o movimento do navio tornava impensável estar de pé sem uma queda pouco indigna - e olhou com curiosidade para a linha da costa e para as pequenas ilhas rochosas por onde passavam.

Parecia-lhe que estavam no mar havia uma eternidade; na noite anterior vira a nova Lua, fina e pálida e bem-vinda, pois sabia que ela aparecia a sudoeste e isso fornecia-lhe alguma orientação - agora que já conseguia ter alguma noção de direcção - nesse mar sem trilhos nem direcções. Pensou que a sua confusão tinha contribuído para o enjoo; não existia mais nada senão um corpo nauseado e cheio de tonturas, no centro de um vórtice de oceano ondulante, num convés instável. A princípio estivera tão doente que nada parecera ter importância - nem os cheiros do mar ou os sons dos remadores, nem o uso feito por Agamémnon do seu corpo indiferente, nem a comida que geralmente recusava. Primeiro pensara que era, em grande parte, a sequela da pancada que recebera de Ájax - os ferimentos na cabeça causavam frequentemente náuseas e confusão - e quando vira que não passavam, após um razoável período de tempo, pensou ser do movimento do navio.

Agora - contando o tempo em relação às luas - começava a perguntar' -se, com receio e repulsa, se não estaria grávida. Quando levara Eneias para a sua cama pela primeira vez, não se preocupara muito com isso. Às sacerdotisas eram ensinados processos de evitar essas coisas, se assim o quisessem; mas essas artes falhavam frequentemente, e a bordo do navio estivera demasiado doente para se preocupar com isso. Tinha-se resignado ao facto de que, mais cedo ou mais tarde, se encontraria grávida de um filho de Eneias. Mas as possibilidades de aquela criança ser de Eneias eram, realmente, muito pequenas; desde aquela pancada na cabeça ela sentia uma certa dificuldade em lembrar-se exactamente de quando fora a última vez que ele estivera consigo, ou de quando xivera a última prova de que não estava grávida. Portanto, era provável que aquele fosse o filho de Agamémnon - ou pior, de Ájax, que a possuíra primeiro. Cassandra raramente costumava dar ouvidos às tagarelices das raparigas, mas ouvira-as dizer várias vezes que não era provável que se ficasse grávida de qualquer homem na primeira vez. Mas ela tinha visto casos que provavam, fossem quais fossem as suas crenças ou desejos, que uma vez era suficiente. Se pudesse escolher, preferiria que fosse o filho de Agamémnon: ela detestava-o, mas não fora ele que a possuíra à força por cima do corpo da sua f~lha morta. O facto de ser considerada como propriedade dele e como troféu de guerra não lhe era agradável. «Toda a minha vida o receei», pensou, recordando a sua primeira visão quando era criança; mas pelo menos ele não se comportara pior do que os costumes permitiam em situações daquelas.

Era sem dúvida um vil costume, mas não fora ele a inventá-lo, e não seria muito razoável culpá-lo por seguir a sua tradição. Se ela tivesse sido oferecida em casamento àquele homem pelos seus pais, ele não teria, provavelmente, feito nem melhor nem pior uso dela.

Ele não era, supunha, mais repreensível do que qualquer outro aqueu; segundo os padrões deles, calculava que ele fosse considerado um bom homem. Lembrou-se até que ele ficara realmente assustado com o seu enjoo constante; a princípio tentara tranquilizá-la, assegurando-lhe que era sempre assim no início da viagem e que ela em breve se habituaria, encorajando-a a ir apanhar ar fresco. Ao ver que não melhorava, deixara-a sozinha bastantes vezes, pelo que ela lhe estava vagamente grata.

Pensava por vezes que talvez estivesse a tentar mostrar-se amável para com ela. Uma vez, quando ela vomitara para cima dele (sem se desculpar: ela nunca lhe pedira, nem lhe dera permissão para a levar naquela viagem) ele não lhe batera - coisa que ela estava meio à espera (tinha-o visto bater a um dos seus escravos por ter entornado a água limpa de fazer a barba) - e pedira água fresca para limpar-lhe a boca e segurara-a nos braços, cobrindo-a com um manto limpo e tentando aquietá-la para que voltasse a adormecer.

Isso fora no princípio da viagem, enquanto ela se encontrava ainda enlouquecida pela confusão e pela fúria do ódio; não olhava para ele nem falava, e ele em pouco tempo deixara de tentar envolvê-la nas conversas acerca das terras por onde passavam. Agora, desejava tê-lo encorajado a falar -poderia ser-lhe útil se alguma vez conseguisse fugir. Não podia regressar a Tróia - já não existia nada para onde regressar -, mas poderia ir para Cálcis, onde a rainha Imandra ou qualquer das sacerdotisas da casa da Mãe Serpente a acolheriam; ou para Creta - e nas ilhas existiam muitos templos onde uma sacerdotisa conhecedora das artes curativas e dos segredos das serpentes poderia encontrar abrigo.

Não estava sob vigilância muito apertada, talvez porque no início se tornara óbvio que, quer devido à ferida na cabeça quer devido ao enjoo, ela era incapaz de andar, de forma a tentar sozinha qualquer tipo de rebelião ou fuga.

Agora, deitada no convés inundado de sol, no exterior da tenda que partilhava com Agamémnon, escutava o bater do tambor que marcava o ritmo dos remadores, pensando: «É mais do que isso. Nunca lhe ocorreria que uma mulher pudesse pensar em fugir.» Uma semana atrás, quando eles tinham ido a terra, numa pequena ilha, a fim de procurar água fresca para beber, haviam-na deixado sem vigilância. Ela não tentara fugir nessa altura - era óbvio que a ilha era tão pequena que não lhe seria possível esconder-se ou encontrar abrigo em lugar algum. Se ali vivesse alguém, pedir guarida teria significado lançar a fúria de Agamémnon sobre o desgraçado do camponês que pudesse compadecer-se dela. Somente se ali existisse um santuário da Virgem - ou do Senhor do Sol - ela se atreveria a reclamar o direito de asilo.

Poderia ainda vir a fazê-lo, se conseguisse encontrar um desses santuários, embora calculasse que Agamémnon poderia reclamá-la legitimamente como um merecido troféu de guerra. Era escassa a compreensão manifestada para com os escravos fugitivos e ela já não podia afirmar-se como princesa, uma vez que Tróia tinha caído. Toda a gente que falava a seu respeito (ela ouvira, por acaso, os soldados e os servos de Agamémnon) parecia achar que não existia qualquer razão para que ela não estivesse satisfeita por ficar com ele para o resto da sua vida.

Apercebeu-se de que estava a deixar a sua mente divagar para não ter de pensar seriamente no facto de, provavelmente, carregar dentro de si o filho de Agamémnon. Deveria dizer-lhe? Não por enquanto; isso dar-lhe-ia demasaido prazer e ele poderia pensar que ela estava a fazer qualquer espécie de apelo à sua simpatia ou gentileza.

Agamémnon estava de pé à popa do navio, ao lado do homem que segurava a barra do leme. Estava vestido, como todos os seus homens, com uma simples tanga de linho grosso branqueado; mas a torcida de ouro em volta do pescoço e os ornamentos que exibia tornavam claro quem era o rei e quem eram os súbditos.

Viu-a sentada à sombra da vela e atravessou o convés em passos largos. - Então, Cassandra, folgo em ver-te desperta - disse ele. - O mar está calmo e o sol vai fazer-te bem. Quando fomos a terra esta manhã para buscar água para beber - ela tinha estado a dormir e apercebera-se apenas vagamente da cessação do andamento -os meus homens apanharam uvas frescas; será que te apetecem algumas? - Sem esperar a resposta dela, gritou para as quatro criadas que passavam a maior parte do tempo agrupadas à proa, em mexericos. - Vocês aí - Cassandra não fazia ideia de quais os nomes das mulheres, pois Agamémnon nunca as tratava por outro nome que não fosse «rapariga» ou «tu» - tragam-nos umas dessas uvas! Vocês não as comeram todas, pois não, suas bestinhas sôfregas?

- Oh, não, meu senhor - murmurou a mais alta das mulheres, levantando-se. De um enorme cesto retirou quatro ou cinco cachos de pequenas uvas brancas, colocou-as numa bandeja de prata (Cassandra vira-a no palácio; Hécuba usava-a também para pôr uvas, por ter um rebordo decorado com parras) e atravessou o convês para as trazer.

A rapariga ajoelhou-se diante de Agamémnon; ele fez-lhe sinal para que as oferecesse a Cassandra em primeiro lugar. Ela era-lhe familiar; tê-la-ia visto algures nas ruas de Tróia, quando a sua vida era diferente?

- Princesa... - sussurrou, os olhos humildemente baixos. Isso fez Cassandra perguntar-se o que teria acontecido a Criseis aquando da queda da cidade. Estendeu a mão e arrancou algumas uvas de um dos cachos, mordendo uma delas. A acidez sumarenta era agradável, e ela engoliu, hesitante, como que à espera de ser novamente assaltada pela náusea. Agamémnon retirara um cacho e estava a comê-lo, deleitado. Os seus dentes eram grandes, brancos e fortes «tal e qual os de um cavalo», pensou Cassandra com fascinada repulsa. Teve de virar-se para evitar um espasmo convulsivo, mas conseguiu engolir algumas uvas e não se sentiu imediatamente obrigada a vomitar.

- Folgo em ver-te comer outra vez - comentou Agamémnon. - O enjoo do mar raramente dura assim tanto tempo, e quando estiveres bem de saúde, ficarás tão bela como quando te vi e desejei pela primeira vez.

Cassandra percebeu que ele pensava que aquilo lhe agradaria; estava a tentar mostrar-se amável. Bem, ela parecia estar condenada à sua companhia, pelo menos por uns tempos; se estivesse grávida, teria certamente que pôr de lado as ideias de fuga até que a criança nascesse. E seria insensato obrigá-lo a considerá-la uma inimiga e talvez mantê-la sob vigilância mais apertada, coisa que ele faria certamente se pensasse que ela estava a considerar a hipótese da fuga.

«Mas acreditará ele realmente que eu irei amá-lo e obedecer-lhe como marido, quando foi ele quem assassinou os meus irmãos e os meus pais e destruiu a minha cidade?» Parecia ser exactamente isso o que ele achava.

- Queres mais uvas? - perguntou ele, e escolheu um cacho da bandeja. Ela assentiu e comeu mais algumas. Passado momentos, começou a falar; mas não dissera uma única palavra desde que entrara a bordo e agora a voz faltava-lhe. Teve de aclarar a garganta por duas vezes antes de falar.

- Por quanto tempo mais ficaremos a bordo deste navio?

Ele fez um ar de espanto, como se já se tivesse habituado a que ela se recusasse a falar, que estivesse meio convencido de que ela não podia falar. Mas disse, bastante afavelmente:

- Acredito que estejas saturada de viajar. Nunca é possível dizer quanto tempo levará a viagem; se apanharmos ventos e tempo favoráveis, é possível que cheguemos antes que a Lua encha mais duas vezes. Se tivermos mau tempo e os ventos estiveram contra nós, talvez não cheguemos antes do pino do Inverno.

Ela desejou não ter perguntado; a ideia de mais dois meses embarcada horrorizou-a. E o que iria acontecer-lhe quando chegasse a Micenas?

Esse pensamento deve ter transparecido no seu rosto porque ele disse, em tom animador:

- Não deves recear. A minha mulher, Clitemnestra, é uma mulher benevolente e nunca trataria mal aquela que foi princesa de Tróia. Ela não acha que tem de provar a sua própria realeza tratando os outros como seus inferiores. Todos os da casa, criados ou escravos, são tratados como manda a tradição, nem melhor nem pior.

Não passara pela cabeça de Cassandra sentir medo de Clitemnestra. Ela era gémea de Helena, e Cassandra gostara de Helena e encontrara nela uma amiga. Agora ocorria-lhe que era o próprio Agamémnon quem tinha medo da mulher e era isso que o fazia pensar que ela pudesse ter também.

Estaria ele receoso por ela ser a rainha dessa terra e ele se ter tornado rei apenas por ser seu consorte? Ela podia alimentar ainda a sua fúria em relação a ele, devido ao pé~do ardil que montara para sacrificar a sua filha Ifigénia ao Deus dos Ventos; afinal, Ifigénia era a sua filha mais velha, e Clitemnestra pensava nela como sua herdeira.

Cassandra recordava-se das velhas piadas grosseiras acerca do mau génio das camponesas de certas terras, que recebiam os maridos inf"iéis ou embriagados dando-lhes pancadas na cabeça com as pás de revolver os cereais ou com o rolo de amassar; recearia Agamémnon uma recepção desse tipo?

„ Olhou para ele e viu que o seu medo era mais profundo e negro do que isso. Por instantes pareceu-lhe que havia, no rosto dele, manchas de sangue que jamais poderiam ser removidas; disse para consigo que era apenas a luz do sol-poente. E se vira realmente sangue, qual era o espanto? Ele era um homem sanguinário, um guerreiro que matara centenas de pessoas na sua longa carreira.

Pôs as uvas de lado e mudou de posição; a náusea incómoda, que acalmara por alguns momentos, voltava. Suspirou e arrastou-se de novo até à tenda do convés, contente por regressar ao repouso. Não, agora já não havia forma de se esquivar às evidências. Tinha dentro de si uma criança, fosse de Agamémnon ou de outro, e mais cedo ou mais tarde ele teria de saber.

Nessa noite o tempo agravou-se: o vento norte levantou, batendo o navio com tal força que, mesmo depois de recolhida a vela, ondas altíssimas encharcavam a tenda do convés e Agamémnon deu ordem para que todas as coisas fossem amarradas. Cassandra estava demasiado agoniada com os balanços e sacões do navio para se sentir aterrorizada; estava deitada, agarrada à corda de segurança que Agamémnon mandara passar em volta dela, vomitando e desejando, nos intervalos, que o navio fosse lançado contra as rochas ou a tenda var~rida borda fora pelas ondas, para que ela pudesse afogar-se e encontrar a paz.

A tempestade continuou por muitos dias, e mesmo quando amainou ela desejou apenas ficar estendida no convés e fingir que estava morta. A sua única esperança era que toda a violência daquele sofrimento a fizesse abortar. Isso não aconteceu: A raiva alternava com o desespero; o que iria fazer no cativeiro com uma criança - criá-la para ser mais um escravo de Agamémnon?

Chegou finalmente o dia em que, como ela sabia que teria de acontecer, Agamémnon olhou para ela e disse:

- Estás grávida!

Ela assentiu contrariada, sem olhar para ele, mas Agamémnon sorriu e afagou-lhe o cabelo, dizendo:

- Minha linda, esqueces-te de que te prometi que não serias minha escrava, mas sim minha legítima consorte? - De facto, ele dissera algo parecido, mas ela prestara-lhe tanta atenção como havia prestado a tudo o resto que ele dissera enquanto ela vomitava de hora a hora ou quase. - Não deves temer pelo nosso filho; dou-te a minha palavra em como ele não será um escravo, mas sim reconhecido e criado como meu filho. Não confio nos filhos de Clitemnestra. Mostrarei ao nosso filho o quanto prezo a sua mãe, que foi uma princesa de Tróia.

Cassandra tinha a vaga noção de que ele estava a tentar agradar-lhe; que se considerava muito generoso e indulgente. Pensaria ele, de facto, que ela poderia ser levada a agradecer-lhe por ele a tratar como um ser humano?

Supunha que algumas mulheres ficariam gratas por não terem sido tratadas de pior forma, dado que os poderes dele eram ilimitados. Ergueu os olhos e disse, sem sorrir:

- É gentil da tua parte, meu senhor. - Pela primeira vez, temendo o que ele pudesse fazer, proferiu as palavras que prometera a si mesma nunca dizer. Tal como esperava, essas palavras agradaram-lhe; os homens eram tão

facilmente iludidos e lisonjeados! Ele sorriu e beijou-a. Dirigindo-se a uma das muitas e enormes arcas onde guardava os despojos de Tróia, retirou um colar de ouro com quatro cordões, cada um deles formado por pequenos elos e placas gravadas.

Curvou-se e colocou-o em volta do pescoço dela.

- Condiz com a tua beleza - disse ele. - E se a nossa criança for um rapaz, receberás outro semelhante.

A vontade dela foi atirar-lho à cara. Que arrogância, oferecer-lhe como presente uma pequena parte do que roubara à sua família! Depois pensou: «Se eu conseguir escapar-lhe, este colar, com os elos separados e vendidos um a um, levar-me-á até Cálcis, ou mesmo até Creta. Creúsa está lá e, quem sabe, Eneias também; ela tem apenas filhas e talvez fique satisfeita com um filho, mesmo que o pai seja Agamémnon.»

« Como se sentiria ele se, em vez do filho que ele quer, nascesse apenas uma rapariga?» Seria quase um prazer para ela, pensou, dar-lhe algo que ele não queria; mas depois perguntou a si mesma: « Quem escolheria pôr neste mundo uma filha mulher, para vir a sofrer o que todas as mulheres sofrem às mãos dos homens?»

Depois, perante a ideia de uma criancinha como Honey, mesmo filha de Agamémnon, o seu coração enterneceu-se. Se aquela criança fosse uma rapariga, levá-la-ia para Cálcis, para que pudesse crescer num lugar onde nunca seria escrava.

Os dias foram passando e ela, tal como vira acontecer com outras mulheres que se encontravam nas mãos das Forças da Vida, foi ficando indolente e com um andar pesado, sem vontade de se levantar - embora Agamémnon, agora que sabia da sua gravidez, fosse mais gentil para com ela. Todos os dias, quando o tempo o permitia, ele acompanhava-a num passeio pelo convés, insistindo em que ela deveria apanhar ar e fazer exercício. Uma vez, ele exprimiu a sua esperança em alcançar Micenas antes de ela ter a criança.

- Temos lá excelentes parteiras, e estarias segura nas suas mãos - disse-lhe ele. - Não sei se alguma das mulheres que estão no navio sabe algo destes assuntos.

Uma delas fora camareira de sua mãe e chefe das parteiras do palácio; mas ela não falou nisso a Agamémnon. Contudo, conseguiu arquitectar secretamente um modo de falar com a mulher e contar-Lhe o que acontecera.

- Ah, bom, princesa - disse a mulher -, se lhe deres um filho, ele acarinhar-te-á ainda mais; estarás a salvo em Micenas, como mãe do filho do rei. Intimamente, Cassandra tivera esperanças de que a mulher partilhasse o seu sentimento de ultraje, e tencionara perguntar à velha mulher se ela não poderia preparar-lhe uma poção de ervas que a levasse a abortar. Aquilo veio confirmar a sua convicção de que, por todo o lado, as mulheres conspiravam com os seus próprios opressores.

Uma vez, quando Agamémnon se encontrava sentado junto dela falando do filho de ambos, Cassandra perguntou-lhe:

- Mas tu não tens já um filho de Clitemnestra? E, sendo o mais velho, não seria ele a ter prioridade?

- Oh, sim - disse Agamémnon com um sorriso maldoso -, mas a minha rainha apenas dá valor às suas filhas; ela tinha a pretensão de acreditar que uma delas a sucederia como rainha. Chegou mesmo a mandar o nosso filho para longe do palácio, fazendo-o adoptar, de modo a eu não poder instruí-lo na arte de reinar.

Aquela, pensou Cassandra, era a melhor coisa que ouvira acerca de Clitemnestra. Havia-se interrogado sobre como seria possível a irmã de Helena ter alguma vez acedido a casar com um homem como Agamémnon, ainda que por razões de conveniência política. Mas talvez a sua gente não lhe tivesse concedido outra alternativa, ou desejasse um rei que tivesse uma autoridade férrea para gerir os assuntos da guerra.

- O nosso filho, Cassandra, poderá reinar na cidade de Micenas, depois de mim - disse-lhe ele. - Isso não te agrada?

« Agradar-me?»

Mas não fez mais do que sorrir para ele; aprendera que, se sorrisse, ele tomaria isso como assentimento e ficaria mais satisfeito do que se ela falasse. Naquela estação do ano não havia bom tempo no mar, mas sim vento e

chuvas intermináveis; e cada vez que avançavam um pouco na direcção para onde queriam ir, os ventos levantavam-se e atiravam-nos de volta, de tal modo que corriam sempre o perigo de serem empurrados para as rochas.

Agamémnon era frequentemente obrigado a rumar para o largo a fim de evitar ser lançado para a costa, o que destruiria o navio; parecia que, após dias e meses de navegação, não se encontravam mais próximos do seu destino. Um dia, após um tremendo vendaval os ter atirado de um lado para o outro durante vários dias sem avistarem terra, uma calmaria matinal deixou-os a flutuar à deriva. Um marinheiro foi ter com Agamémnon dizendo que tinham avistado uma corrente de água verde, como se fosse um curso independente no meio do mar. Agamémnon saiu para o convés praguejando, e ela ouviu-o gritar com os seus homens; quando voltou vinha furioso, o rosto marcado e sombrio de raiva.

- Que se passa? - perguntou ela. Estava deitada no convés, tentando desesperadamente reter a pequena quantidade de pão e fruta que comera ao pequeno-almoço.

Ele franziu o sobrolho e disse:

- Avistámos as efusões do Nilo, o grande rio do país dos faraós. Posídon, que domina os mares tal como os tremores de terra, conduziu-nos para longe de casa, para as costas do Egipto.

- Isso não me parece nenhuma catástrofe - disse ela. - Tu estavas a dizer que estávamos seriamente necessitados de comida fresca e água para beber. Não será possível obtê-las aqui?

- Oh, sim; mas neste momento a notícia da queda de Tróia já se espalhou por todo o mundo, e muito ouro será pedido em troca dos mantimentos resmungou ele. - E toda a gente contou uma história diferente sobre o que aconteceu...

- As pessoas não sabem que Tróia sucumbiu, não ao poder das armas e dos exércitos, mas sim ao tremor de terra - disse Cassandra. - Podes contar-lhes a história que quiseres, e eles não irão ser grosseiros a ponto de duvidar dela.

Ele olhou-a, carrancudo; mas nesse momento, um grito soou vindo do vigia da proa, anunciando terra à vista. Agamémnon dirigiu-se para a frente e em breve regressava para dizer que tinham, de facto, alcançado o Egipto.

Uns quantos homens foram enviados a terra, regressando depois com um convite do faraó para um jantar no palácio. Cassandra esperara poder ficar sozinha, deitada no convés, desfrutando simplesmente da pausa nos movimentos do mar; mas tal não iria acontecer. Agamémnon retirou das suas arcas uma colecção de vestidos de seda.

- Veste qualquer um destes que te agrade, minha querida; eu enviarei uma das mulheres para te vestir e entrançar o teu cabelo com jóias; tens de estar bela (sim, tão bela como a própria Helena) para que me faças honras na corte do faraó.

Pela primeira vez Cassandra apelou para ele.

- Oh, não, imploro-te: estou doente... não me peças isso. Nunca te pedi nada, mas, para bem da criança que te hei-de dar, poupa-me a isto. Será fácil dizer-lhes que estou doente; não me exibas como escrava diante deste monarca estrangeiro.

- Já te disse vezes sem conta - disse ele, mais pesaroso do que zangado que tu não és minha escrava mas sim minha consorte. Clitemnestra nunca me satisfez e tu, quando deres à luz o meu filho, serás minha rainha.

Ela chorou de desespero; ele discutiu, tentou persuadi-la com lisonjas e por fim saiu desenfreado do recinto, dizendo em tom autoritário:

- Não discutirei mais contigo; veste-te imediatamente. Eu vou mandar-te uma mulher.

Ela ficou deitada, chorando inconsolavelmente, e só se levantou quando a mulher que fora parteira de Hécuba entrou na tenda.

- Ora, vamos, princesa; não deves continuar a chorar assim. Vais fazer mal ao bebé. Trouxe isto para ti. - Estendeu-lhe uma taça de barro com uma poção fumegante e aromática. - Bebe. Acalmar-te-á o estômago e ficarás bonita para o jantar no palácio.

- És uma mulher malvada - admoestou Cassandra. - Porque há-de Agamémnon conseguir sempre o que quer? Como foi que acabaste por tornar-te na sua mais leal servidora? Não podes arranjar qualquer coisa que me ponha tão doente que até ele perceba que eu não posso ir?

A mulher pareceu chocada.

- Oh, não! Não podia fazer isso; o rei ficaria muito zangado - disse ela. - Não devemos fazer zangar o rei, senhora.

Furiosa, mas sabendo que não havia solução, Cassandra permitiu que a mulher a vestisse; recusou-se a escolher uma túnica e deixou a criada enfiar-lhe um vestido de riscas carmim e douradas que ela vira a sua mãe usar nos banquetes do palácio. Bebeu a• poção e esta fè-la sentir-se melhor - ou talvez fosse simplesmente a sua própria raiva. Agamémnon poderia exibir a sua princesa cativa; que importava isso? Se o faraó - o qual, segundo ouvira, tinha bem mais de cem esposas - tivesse ouvido alguma coisa sobre a queda de Tróia, saberia que ela não estava ali de sua livre vontade; se não tivesse, não teria importância.

 

- Não se pode confiar nos ventos nesta estação do ano -disse o homem careca que se autodenominava faraó e que era tido como a encarnação de um deus pela sua corte. - Dar-nos-iam muito prazer se ficassem como nossos hóspedes até que a estação mude e possam contar com os ventos para vos levar até Micenas, ou onde quer que pretendam ir.

- O Senhor das Duas Terras é generoso -disse Agamémnon, objectando em seguida: - Mas eu esperava seguir para a minha terra antes disso.

- O faraó deu este conselho ao nobre Odisseu, quando ele nos visitou, e Odisseu ignorou-o - disse um dos cortesãos. - Agora chegou-nos a notícia de que pedaços do barco de Odisseu foram atirados para as rochas de Aeaea; nãc~ voltaremos a ouvir falar dele.

- Bem, bem, suponho que é melhor chegar tarde a casa, do que chegar cedo às praias de lugar nenhum - disse Agamémnon -, e eu aceito o generoso convite que fazes a mim e aos meus homens. - Cassandra percebeu que ele estava contrariado; aquilo significava que ele teria de roubar às suas arcas ofertas de convidado dignas do faraó, e, se ficasse muito tempo, não levaria para casa nada do seu saque. Eles não eram os primeiros, vindos de Tróia, a ser lançados para aquelas praias; o salão do faraó exibia já despojos identificáveis como provenientes da cidade, incluindo a estátua do santuário do Senhor do Sol.

Logo no dia seguinte, Cassandra descobriu que alguns sacerdotes e sacerdotisas do Templo de Apolo se tinham refugiado ali, embora nenhum deles se contasse entre os seus amigos mais próximos, para quem pudesse apelar. Teria ticado felicíssima por saber que Fílidas - ou mesmo Criseide - estava viva.

O Egipto era quente e seco, cheio dos ventos implacáveis do deserto que podiam apagar todos os sinais de vida se as pessoas não se abrigassem imediatamente; mesmo no grande palácio de pedra do faraó, os estragos eram visíveis.

Apesar disso, pelo menos era terra firme e era preferível a estar diariamente exposta ao vento e ao mar.

Cassandra estava satisfeita com aquela pausa. Entre os Egípcios, Agamémnon era comentado, e uma das camareiras disse em segredo a Cassandra que toda a gente no Egipto sabia que, depois da morte de Ifigénia, Clitemnestra jurara vingança e tomara publicamente um amante - um primo dela chamado Egisto - e estava a viver com ele no palácio, em Micenas.

A reacção de Cassandra foi simplesmente:

- Então e porque não? Agamémnon longe, em Tróia, não lhe servia para nada como marido.

Mas aqueles egípcios eram também adoradores de deuses masculinos, e achavam que a esposa de um homem tinha de fazer o que ele lhe ordenava e que a pior coisa que podia acontecer era uma mulher deitar-se com alguém que não o seu marido. Se fosse a mulher de um rei, o comportamento da rainha traria a desgraça a todo o país. Cassandra podia apenas ter esperança de que Agamémnon não ouvisse aquela história e ganhasse outro motivo de ressentimento. Ele falava frequentemente em afastar Clitemnestra e fazer de Cassandra sua rainha legítima, e isso era a última coisa que Cassandra desejava.

Ouviu dizer até que Clitemnestra, sentindo-se rejuvenescida ao levar Egisto para o seu leito, tinha, para todos os efeitos, deserdado a filha que lhe restava, Electra, casando-a com um homem humilde que fora guardador de porcos do palácio, ou algo do género. Os povos que veneram rainhas acham geralmente que uma rainha que ultrapasse a idade de gerar filhos deve abdicar em favor da sua filha - deste modo, o povo de Micenas achava que Clitemnestra deveria ter casado Electra com Egisto e permitir que Electra tomasse o seu lugar como rainha. Era da opinião geral que Electra desposara um homem que ninguém poderia aceitar como rei.

Agamémnon acabou por ouvir a história - não a do amante de Clitemnestra; todos tiveram o cuidado de não deixar chegar aos seus ouvidos qualquer rumor acerca disso - do casamento de Electra. E ficou zangado por causa disso.

- Clitemnestra não tinha o direito de fazer isso; foi como se tomasse como certa a minha morte. O casamento de Electra era para ser feito por mim: um casamento dinástico que iria trazer-me aliados. Odisseu falara em casá-la com o filho dele, Telémaco, e agora que o navio de Odisseu se perdeu, Telémaco vai necessitar de aliados poderosos se quiser preser~ar Ítaca contra aqueles que gostariam de a conquistar - disse ele. - Ou poderia tê-la casado com o filho de Aquiles; ele nunca chegou a casar formalmente com a sua prima Deidamia, mas ouvi dizer que ele seduziu a rapariga e ela lhe deu um filho depois de ele ter partido para combater em Tróia. Bom, quando eu voltar a casa, Clitemnestra vai saber que eu tenciono pôr a minha casa em ordem e que o reinado dela está no fim - disse ele. - Electra como viúva será igualmente valiosa como oferta de casamento; a rapaxiga não deve ter mais de quinze anos ou coisa parecida. E é o teu filho e não o filho de Clitemnestra, Orestes, que irá sentar-se no Trono do Leão quando eu desaparecer.

Cassandra reparara que os Aqueus pensavam muito em pôr os seus filhos a suceder-Lhes; parecia ser a forma como eles enfrentavam a ideia da morte, pois pareciam não ter qualquer noção de vida além-morte. Não admirava que não possuíssem quaisquer normas de decência; pareciam não acreditar que os seus deuses lhes atribuiriam responsabilidades na outra vida por tudo o que haviam sido nesta.

Nas tranquilas terras egípcias, os dias eram tão semelhantes que Cassandra mal se apercebia do passar do tempo; apenas o crescimento da criança dentro de si lhe dava alguma noção dos dias que iam correndo velozmente. Por fim, a estação já ia suficientemente avançada, e o faraó disse que eles podiam fazer-se ao mar; mas nessa mesma noite Cassandra entrou em trabalho de parto e, na manhã seguinte, ao nascer do Sol, deu à luz um pequeno rapaz.

- Meu filho - disse Agamémnon, pegando no bebé e observando-o cuidadosamente. - É muito pequeno.

- Mas é saudável e forte - disse a parteira, animadamente. - É verdade, rei Agamémnon, que as crianças assim pequenas muitas vezes se tornam tão grandes como aquelas que são maiores à nascença. E a princesa é uma mulher estreita; teria sido difícil para ela dar à luz um filho com o tamanho digno de um filho teu.

Agamémnon sorriu e beijou o bebé.

- Meu filho - disse ele, olhando Cassandra; mas ela desviou o olhar e disse:

- Ou de Ájax.

Ele franziu o sobrolho, não gostando que Lhe fosse lembrada essa possibilidade, e disse:

- Não. Acho que ele tem parecenças comigo.

«Bem, espero que gostes dessa ideia», pensou ela, «não é isso que fará a pobre criança mais bonita.»

- Damos-Lhe o nome de Príamo, em honra do teu pai, hem? Um Príamo no Trono do Leão?

- A decisão é tua - disse ela.

- Bem, pensarei nisso - disse Agamémnon. - Tu és profetisa; talvez possamos pensar num nome carregado de bons presságios. - Curvou-se e pousou o bebé de novo no peito dela.

«Mas não existe qualquer bom presságio para um filho de Agamémnon», pensou ela, recordando-se de que Clitemnestra e o seu rei esperavam Agamémnon em casa. Este filho, tal como o filho de Clitemnestra, Orestes, nunca se sentaria no Trono do Leão de Micenas.

Sentiu dentro da cabeça um zumbido distante e familiar e o sol ofuscou-Lhe os olhos. A criança parecia menos pesada nos seus braços - ou seria que os seus braços o haviam largado? Tinha pensado que a Visão a abandonara para sempre; não conseguira salvar o seu povo nem aqueles que amava com as suas profecias e julgara estar, por fim, livre disso.

Agora via o grande machado de dois gumes que decepava as cabeças dos grandes touros de Creta, e Agamémnon cambaleando, com os olhos cheios de ,angue.

Comprimiu as mãos sobre os olhos para apagar a visão.

- Sangue - sussurrou -, como um dos touros de Creta. Não vás ao sacrifício...

Ele inclinou-se para lhe acariciar o cabelo.

- Que disseste? Um touro? Bom, em troca de tão soberba dádiva, sem dúvida deveria oferecer um touro ao 7xus dos Trovões. Mas não aqui no ~gipto; esperaremos até à chegada ao meu país, onde eu tenho touros em quantidade e não preciso de pagar as escandalosas quantidades de ouro que os sacerdotes de cá pedem pelos animais para sacrifícios; mas quando conseguires levantar-te poderás levar um par de pombas à Mãe Terra como agradecimento por este belo filho.

« Talvez o que eu vi fosse apenas isso», pensou ela, «um sacrifício em que algo saiu errado» - mas imediatamente a sua malícia desapareceu; ela tinha-o odiado e desprezado, mas agora que o via entre os mortos, perguntava-se se ele iria ter de enfrentar todos os homens que exterminara em combate. Heitor dissera-lhe que, quando atravessara as portas da morte, o primeiro a acolhê-lo fora Pátroclo. Mas iria ser diferente para Agamémnon, tal como fora algo diferente - sabia-o - para Aquiles.

Prolongou a sua estada na cama, sabendo que, logo que conseguisse andar, Agamémnon rumaria ao porto de Micenas. E ela enjoara tanto todos os dias da viagem que os trouxera até ali, que agora tinha pavor do mar.

Decidiu finalmente chamar ao seu filho Agatão. Antes do seu nascimento não conseguia imaginar-se a amar uma criança concebida como aquela o fora, e chegara a suspeitar que uma boa ~rte do seu mal-estar durante a gravidez era apenas repulsa pela simples ideia de que aquele parasita, fruto de uma violação, se agarrava a ela por dentro e não era possível expulsá-lo. Se ele tivesse nascido envenenado pelo seu asco, com duas cabeças ou o rosto desfigurado, ela teria achado isso natural.

E, no entanto, ele repousava no seu peito, pequeno e inocente, e ela não conseguia ver nada nele que se assemelhasse a Agamémnon. Era igualzinho a qualquer outro recém-nascido, muitíssimo pequeno, mas tudo nele estava perfeitamente formado, mesmo as mãos com as suas unhas pequenas e delicadas, e as minúsculas unhas de cada dedo do pé.

Que estranho era pensar que aquele ser pequeno e doce, que poderia deitar-se no meio do enorme escudo do seu pai e deixar ainda espaço para um cão de consideráveis dimensões, poderia crescer para destruir uma poderosa cidade. Mas de momento todo ele era suavidade, e aroma de leite, e quando ele se aninhou no seu peito, ela não conseguiu deixar de pensar em Honey, indefesa nos seus braços. Porque haveria aquela criaturinha perfeita de pagar pelo que o seu pai tinha feito?

Mas ela sabia que, tal como Clitemnestra fizera, teria de assegurar o envio do seu filho para longe, de modo que Agamémnon não o pudesse instruir na arte de reinar. Não sentia qualquer prazer em pensar que o seu filho poderia vir a sentar-se um dia no Trono do Leão. Não queria o seu filho educado da forma como os Aqueus educavam os filhos deles.

Calculava que Helena tivesse já dado à luz o último filho de Páris, e perguntava-se se Menelau teria cumprido a sua ameaça de expor a criança. Era o tipo de coisa de que ele era capaz; aqueles Aqueus pareciam dar valor somente aos seus filhos, como se uma criança pudesse ser de alguém a não ser da mãe que o gerara.

Nem Agamémnon tinha a certeza se aquele filho era dele ou de Ájax - ou, naquela situação, de Eneias. Ela teria o cuidado de não voltar a lembrar-lhe isso. Aquele era o seu filho e não o filho de homem algum. Mas iria manter-se calada e deixar que Agamémnon pensasse que era dele, para sua segurança.

Pegou no bebé vestido com os cueiros que tinham sido providenciados no palácio do faraó, e percorreu as ruas da cidade com uma das mulheres da casa real que dera à luz uma criança no dia anterior. No Templo da Deusa - uma repugnante estátua de mulher com seios enormes e cabeça de crocodilo - sacrificou um par de pombas jovens e, ajoelhando-se diante da estátua, tentou orar.

Era uma estranha naquela terra e uma estranha para aquela deusa. Calculava que não haveria uma grande diferença entre a deusa dos crocodilos e a deusa das serpentes; mas não lhe ocorria qualquer oração, nem conseguia olhar sequer um pouco para o futuro e ver se tudo iria correr bem para o seu filho.

Devia procurar a casa do Senhor do Sol; ali, no Egipto, o Senhor do Sol era o deus mais poderoso, chamado pelo nome de Rá. Mas ela desconfiava do deus que não fora capaz - ou não quisera - de salvar a sua cidade, e não iria ter com ele.

« Se ele não conseguiu salvar-nos, não é um deus; se podia fazê-lo e não o fez, que espécie de deus é ele?»

No dia seguinte, as mercadorias de Agamémnon estavam preparadas e varregadas; ele ofereceu os últimos presentes de hóspede ao faraó e partiram. Cassandra andara apavorada pelo regresso aos enjoos; mas desta vez sentiu

apenas uma ligeira indisposição na primeira noite em que a tripulação levantou âncora. Na manhã seguinte sentia-se perfeitamente bem. Comeu fruta e o pão duro de bordo com apetite, e sentou-se no convés com o bebé ao peito. A sua doença tinha, portanto, sido devida aos efeitos secundários do ferimento na cabeça, e depois à sua gravidez.

Não percebia nada de navios nem de navegação, mas Agamémnon parecia satisfeito com os fortes ventos que, dia após dia, os conduziam através das águas límpidas e azuis. O bebé provava ser tão bom marinheiro como o pai. Mamava energicamente e ela tinha a sensação de o ver crescer todos os dias: as suas pequenas mãos tornando-se mais definidas, o nariz e o queixo deixando de ser meras saliências para ganharem formas mais precisas. Ela pensou que, afinal, considerando o formato do queixo, talvez ele fosse filho de Agamémnon. O pai gostava de Lhe pegar e sacudi-lo nos braços, tentando fazê-lo rir. Essa era a última coisa que ela esperava ver. Bem, Heitor e mesmo Páris gostavam de brincar com os filhos deles. Por muito doloroso que fosse admiti-lo, os Aqueus não eram muito diferentes dos outros homens.

Uma manhã, quando começava a clarear, ela saiu para o convés para enxaguar os cueiros da criança num balde de água do mar e estendê-los a enxugar. O navio estava silencioso, com excepção para um único timoneiro à popa, já que os ventos eram suficientemente fortes para que os remadores não fossem necessários, excepto para manobrar nos pontos mais próximos de terra.

Olhou, de horizonte a horizonte; o mar estava tranquilo e passavam entre duas costas. Uma delas era uma montanha alta que se erguia abruptamente acima deles, a sua sombra quase atingindo o próprio navio. Do outro lado via-se um longo promontório, baixo e despido de árvores. Subitamente, do lado da montanha, um traço de fogo brilhou subindo em direcção ao céu, como uma rosa de chamas que aí se abrisse. O timoneiro deixou escapar um grito exultante e berrou para um dos companheiros para que fosse olhar pelo leme.

Agamémnon apareceu no convés e gritou para a tripulação:

- Ei-lo, meus valentes! O fogo de sinalização do nosso próprio cabo! Depois de todos estes anos, chegámos fmalmente a casa! Um touro para Zeus dos Trovões!

O sol fulgurava nos olhos dele, «vermelho como sangue», pensou Cassandra. Sentia os seus próprios olhos fatigados e secos, e ocorreu-lhe subitamente que dificilmente seria caso para ele estar tão eufórico por chegar a casa: quem poderia saber o que iria encontrar?

Aproximou-se da amurada, com a criança nos braços, e ficou de pé ao lado dele.

- O que é isso?

- Quando deixei a minha terra - disse ele - dei ordens para que uma grande pilha de madeira fosse colocada no cabo, e um vigia se mantivesse ali a tempo inteiro. Quando me fiz ao mar, mandei uma mensagem por um estafeta veloz para que fosse mantida vigilância em relação ao meu navio. Agora fomos avistados e a notícia será enviada ao palácio; uma festa e uma boa recepção serão preparadas para nós. Vai ser bom estar de novo em casa. Estou ansioso por mostrar-te o meu país e o palácio onde irás ser rainha, Cassandra. - Tirou-lhe a criança, curvando-se sobre o pequeno rosto, e dizendo: - O teu país, meu filho; o trono do teu pai. Estás muito calada, Cassandra.

- Não é o meu país - disse ela - e com certeza que Clitemnestra não irá receber-me com toda a alegria, ansiosa por rever-te como deve estar. E eu temo pelo meu filho; Clitemnestra...

- Não precisas de temer nada disso - disse ele arrogantemente. - Entre os Aqueus, as mulheres são esposas obedientes. Ela não se atreverá a dizer uma única palavra de protesto. Tem reinado livremente enquanto eu estive longe; em breve saberá o que espero dela, e fará o que lhe mandarem ou sofrerá as consequências, acredita-me.

- Está frio - disse ela. - Tenho de ir buscar a minha capa.

- Para mim está quente e agradável - disse ele -, mas talvez seja por se tratar do porto da minha cidade natal. Olha, podes agora ver o palácio sobre a colina, e as muralhas, construídas por titãs séculos atrás. O porto daqui chama-se Náuplia.

Cassandra foi buscar a capa e voltou para o lado de Agamémnon, à proa, deixando que a mulher que havia sido parteira da sua mãe segurasse a criança. A enorme vela foi recolhida e os remadores tinham tomado os seus lugares para manobrarem o navio dentro do porto; este deslizava suavemente pelo meio das águas abrigadas protegidas pelo cabo.

Podia ver agora uma quantidade de pessoas que sé juntavam ao longo do cais. Quando o navio se aproximou, um homem lançou uma viva e os soldados de Agamémnon, apinhados ao longo da borda do navio, começaram a acenar e a gritar às pessoas que iam reconhecendo na margem. Mas a maior parte dos espectadores ficaram em silêncio enquanto o navio encostava ao cais. Aquele silêncio pareceu sinistro a Cassandra. Sentiu um arrepio, embora a requintada capa que vestia fosse quente, e tirou novamente o bebé dos braços da criada, para poder apertá-lo de encontro ao seu corpo.

A proa do navio embateu suavemente contra terra. Agamémnon foi o primeiro a desembarcar; imediatamente se abateu sobre o solo e beijou solenemente as pedras do cais, gritando em voz alta:

- Dou graças ao Senhor dos Trovões, que me devolveu ileso ao meu país! Um homem alto e ruivo com uma torcida de ouro em volta da garganta avançou para ele e disse, com uma vénia:

- Meu senhor Agamémnon, sou Egisto, parente da tua rainha; ela enviou-me com estes homens para te escoltar com todas as honras até ao palácio. Os homens rodearam Agamémnon e partiram marchando. Cassandra

achou que ele parecia mais um prisioneiro vigiado do que um rei recebendo uma escolta de honra. Agamémnon estava carrancudo - ela bem via que ele gostava pouco daquelas coisas. Apesar disso, acompanhou-os sem protestar.

Um dos homens que estavam no porto subiu a bordo e dirigiu-se a Cassandra:

- És tu a filha de Príamo de Tróia? A rainha mandou dizer que tu virias e que deverias merecer todos os respeitos - disse ele. - Temos um carro para ti e para a criança, e para a tua criada.

Deu-lhe a mão e ajudou-a a descer para terra, instalando-a no carro com a criança nos joelhos e a criada acocorada aos seus pés.

Apesa,r daquele luxo - e a estrada que conduzia ao palácio era tão íngreme que ela odiaria subi-la a pé -, Cassandra sentia-se inquieta. As muralhas de pedra do majestoso palácio, quase tão sólidas como as malogradas muralhas de Tróia, pareciam erguer-se, ameaçadoras, por cima de si, mergulhadas na sombra. Passaram sob um enorme portal ao qual duas leoas, pintadas de cores brilhantes, montavam guarda face a face. Enquanto o carro rolava através da Porta do Leão, Cassandra interrogou-se sobre se elas representariam os antigos deuses do palácio ou se seriam a insígnia pessoal de Agamémnon. Mas eram leoas e não leões e, por outro lado, Agamémnon fora para ali como consorte da rainha, de acordo com a velha tradição. Seriam, então, insígnias de Clitemnestra?

Adiante do carro seguiam Agamémnon e a sua guarda de honra, com Egisto. No interior da Porta do Leão encontrava-se a cidade, construída na encosta da colina segundo o mesmo modelo de Tróia: palácio, templos, jardins, uns acima dos outros, as muralhas erguendo-se em vários patamares e terraços. Era bonita; porém parecia escura e sombria, e as sombras mais profundas desciam sobre Agamémnon enquanto ele caminhava no meio dos soldados.

Nos degraus do palácio surgiu uma mulher, alta e autoritária, com os cabelos - elaboradamente penteados em pequenos anéis acabados de fazer com um ferro de frisar - resplandecendo, dourados, ao sol da manhã. Estava ricamente vestida ao estilo cretense, com um corpete cingido por baixo dos seios e uma saia de folhos tingida de variadas cores, uma para cada folho.

Cassandra viu imediatamente a nítida semelhança com Helena. Aquela tinha de ser a sua irmã Clitemnestra. A rainha passou por entre a escolta e fez uma profunda vénia a Agamémnon; a voz dela era doce e clara.

- Meu senhor, é uma grande alegria dar-te as boas-vindas a estas terras e ao palácio onde uma vez reinaste a meu lado - disse ela. - Há muito que esperamos este dia.

Estendeu as duas mãos para ele; Agamémnon segurou-as cerimoniosamente e beijou-as.

- É um prazer voltar a casa, senhora.

- Preparámos uma comemoração e um importante sacrifício, adequado à ocasião - disse ela. «Mal posso esperar pelo momento de te matar.»

«Não», pensou Cassandra, chocada, «não pode ter sido isso o que ela disse; mas foi o que eu ouvi.»

O que Clitemnestra dissera realmente fora: «Mal posso esperar para ver-te ocupar o lugar que preparámos para ti.»

- Tudo está preparado para o teu banho e para a festa - disse Clitemnestra. - Estamos inteiramente prontos para «te ver estendido, morto, entre os sacrificados.»

Mais uma vez Cassandra escutara os pensamentos de Clitemnestra, e não o que os seus lábios realmente proferiam. A indesejada vidência uma vez mais se apossava dela.

Clitemnestra indicou convidativamente a Agamémnon os degraus do palácio.

- Tudo está preparado, meu senhor; entra e preside ao sacrifício.

Ele curvou-se e começou a subir os degraus. Clitemnestra viu-o afastar-se com um sorriso que fez Cassandra estremecer. No momento em que ele alcançou as grandes portas de bronze ao cimo das escadas, Egisto, empunhando o grande machado dos sacrifícios, abriu-as de par em par e impeliu-o para o interior. As portas fecharam-se atrás dele.

Clitemnestra desceu as escadas em direcção ao carro e disse:

- Tu és a princesa troiana, filha de Príamo? A minha irmã mandou dizer-me que tu eras a única amiga que ela encontrara em Tróia.

Cassandra curvou-se; não estava muito certa de que o movimento seguinte de Clitemnestra não fosse cravar-lhe uma faca no coração.

- Sou Cassandra de Tróia, e em Cálcis fui feita sacerdotisa da Mãe Serpente - disse ela.

Clitemnestra olhou para o bebé ao seu colo. Perguntou: - Esse é o filho de Agamémnon?

- Não - disse Cassandra, sem saber de onde lhe viera a coragem que a fazia falar com tal ousadia -, é o meu filho.

- Ainda bem - disse Clitemnestra -, não queremos filhos de reis nesta terra. Poderá viver, então.

Nesse momento, um enorme grito ecoou vindo de dentro das portas de bronze; alguém as abriu violentamente do interior e Agamémnon surgiu, projectado, ao cimo das escadas, com Egisto atrás dele empunhando o grande machado sacr~cial de dois gumes. Volteou-o bem alto e abateu-o sobre o crânio do rei em fuga. Agamémnon cambaleou e tropeçou na borda das escadas, caindo a rebolar pelos degraus abaixo até quase aos pés de Clitemnestra. Ela gritou:

- Testemunhai, gente da cidade: assim a vossa Senhora vinga Ifigénia! Ergueu-se uma tremenda ovação e um grito de triunfo; Egisto desceu com o machado ensanguentado e entregou-lho. Alguns soldados de Agamémnon esboçaram um grito de repúdio, mas a guarda de Egisto aniquilou-os rapidamente.

Clitemnestra, ameaçadora, disse para Cassandra:

- Tens alguma coisa a dizer, princesa de Tróia, que talvez pensasse em ser rainha aqui?

- Só que desejava ter sido eu a empunhar o machado - retorquiu Cassandra, com uma expressão de louca felicidade. Curvou-se diante de Clitemnestra e disse: - Em nome da Deusa, tu vingaste as ofensas que Lhe foram feitas. Quando uma mulher é ultrajada, Ela é ultrajada também.

Clitemnestra fez-lhe uma vénia e pegou-lhe nas mãos, dizendo:

- Tu és sacerdotisa, e eu sabia que tu entenderias estas coisas. - Olhou o rosto da criança adormecida. - Não te guardo qualquer rancor - disse ela. - Faremos com que a velha tradição reviva aqui. Helena não tem coragem para fazer o mesmo em Esparta, mas eu tenho. Quererás então ficar aqui e ser sacerdotisa da Senhora? Poderás entrar no templo Dela se quiseres.

Cassandra respirava ainda com dificuldade, com o coração acelerado pela súbita libertação. Nas feições de Clitemnestra continuava a identificar uma fome de destruição; aquela mulher vingara as desonras feitas à Deusa, mas Cassandra continuava a receá-la. A Deusa assumia muitas formas, mas, sob aquela forma, Cassandra não gostava Dela. Nunca encontrara antes uma mulher tão forte como aquela, quer como princesa quer como sacerdotisa. Desta vez encontrara uma mente muito mais poderosa do que a sua.

Ou teria ela simplesmente visto em Clitemnestra o poder ancestral da Deusa, tal como Ela existira antes dos deuses e reis masculinos invadirem aquelas terras? Ela não podia servir aquela deusa.

- Não posso - disse ela, tão calmamente quanto lhe foi possível. - Eu... este não é o meu país, ó rainha.

- Vais regressar, então, ao teu país?

- Não posso regressar a Tróia - disse Cassandra. - Se me deres permissão para partir, senhora, irei procurar a minha parente em Cálcis.

- Uma viagem dessas, com um bebé ainda de peito? - perguntou Clitemnestra, atónita.

Então, uma curiosa alteração cruzou o rosto de Clitemnestra. Uma paz sobrenatural suavízou as duras feições e ela pareceu emanar luz. Uma voz que Cassandra conhecia bem, disse: «Sim, chamo-te para casa. Parte imediatamente deste lugar, minha filha.» Cassandra curvou-se até ao solo; o sinal chegara. Mesmo assim, continuava sem fazer ideia de como iria viajar ou do que iria ser dela; mas estava de novo sob a protecção da voz que a havia chamado pela primeira vez, quando ela não passava de uma criança.

Com razão a sacerdotisa de Cálcis dissera: «Os Imortais compreendem-se uns aos outros.»

- Peço permissão para partir imediatamente - disse. E Clitemnestra retorquiu:

- Não devemos reter aqueles a quem um deus chamou. Mas não queres repousar, mudar de roupa, alimentar-te a ti e ao bebé?

Cassandra abanou a cabeça.

- Não necessito de nada - respondeu, sabendo que com o ouro que Agamémnon lhe dera estava bem prevenida. Não queria aceitar nada de Clitemnestra ou da deusa daquele lugar.

Partiu naquela mesma hora.

Com a criança dentro do xaile amarrado, foi para o porto onde iria procurar um navio para a levar com a criança naquela primeira etapa da árdua viagem até meio caminho do fim do mundo, que a conduziria finalmente à sua parente Imandra e às portas de ferro de Cálcis. E, acima de tudo, já não estava cega, privada da Visão; voltara a ser ela própria e, depois de todas as provações que tinha conhecido, a Deusa não a abandonara.

No cais, foi abordada por uma mulher vestida com uma andrajosa túnica cor de terra, o rosto coberto por um xaile esfarrapado.

- És tu a princesa troiana? - perguntou. - Eu estou prestes a partir para Cálcis e ouvi dizer que vais para lá.

- Sim, vou, mas porque...

- Também eu quero alcançar Cálcis - disse a mulher. - Um deus chamou-me para lá; posso fazer-te companhia?

- Quem és tu?

- Chamo-me Zacintia - disse a mulher.

Cassandra fixou-a, mas não conseguiu ver nada. Talvez a mulher estivesse ligada a ela pelo Destino; fosse como fosse, nenhum deus o proibia. E até Clitemnestra duvidara da sua capacidade para fazer aquela longa viagem sozinha com uma criança por desmamar. Com um suspiro de alívio, retirou do ombro o xaile com que prendera o filho e entregou-lho.

- Toma - disse ela. - Podes transportar o bebé até que eu tenha de voltar a dar-lhe de comer.

 

A mulher era afável e obediente, submissa até; cuidava do bebé, embalando-o e mantendo-o calmo. Cassandra, novamente assaltada pelo enjoo, não tinha muitas oportunidades de prestar grande atenção quer ao seu filho quer à mulher, apesar de a ter vigiado sem que ela desse por isso durante vários dias, assegurando-se de que a criada - de quem, afinal de contas, nada sabia merecia a sua confiança não tratando mal nem negligenciando a criança quando ninguém estava a ver. Mas ela parecia ser conscienciosa e atenciosa para com o bebé, cantando-lhe e brincando com ele como se gostasse realmente de crianças. Passados alguns dias, Cassandra concluiu que tivera sorte ao encontrar uma boa criada para cuidar do seu filho, e abrandou um pouco a vigilância.

E, no entanto, Cassandra começava a suspeitar que a sua companheira não era quem afirmava ser. Por baixo das roupas esfarrapadas, a mulher parecia forte e saudável; Cassandra podia apenas calcular a sua idade - trinta anos, talvez mesmo mais. Quando Cassandra estava por perto, era modesta nas suas atitudes, mas a sua voz era áspera e grave e o seu comportamento em relação aos marinheiros e à tripulação era tão descontraído como o de uma amazona. Foi então que um dia, no convés, Cassandra viu uma rajada de vento fustigar as roupas de Zacintia colando-lhas ao peito, e pareceu-lhe que este era demasiado plano para ser feminino. As suas pernas, observou Cassandra, eram peludas e musculosas; e o seu rosto parecia nunca ter conhecido cosméticos ou óleos amaciadores. Ocorreu a Cassandra que talvez fosse possível que Zacintia não fosse uma mulher mas sim um homem.

Por que razão haveria um homem - perguntou-se - de a procurar disfarçado de mulher? Porém, se fosse realmente um homem, pensou, era capaz de tentar aproveitar-se dela - apesar de, ao vislumbrar o seu reflexo numa bacia cheia de água, ela não conseguir sequer imaginar que algum homem a desejasse no estado em que se encontrava: pálida devido ao enjoo, vestida com farrapos, o corpo ainda disforme depois do parto. Ainda assim, habituou-se a dormir com Agatão nos braços; se um bebé mamando no seu seio não detivesse um violador, provavelmente nada o deteria, a não ser a sua faca.

Numa noite de tempestade, enquanto o navio era lançado de um lado para o outro pelas enormes vagas como se fosse um pedaço de cortiça, Zacintia estendeu o seu cobertor junto do de Cassandra e ofereceu-se para ficar com o bebé na sua cama. As ondas atiravam os seus cobertores um contra o outro, empurrando-os para cima e para baixo na pequena e atravancada cabina; até que por fim Zacintia, que era maior e mais pesada, tomou Cassandra nos braços.

Cassandra, enjoada e exausta, não sentiu mais nada que não fosse alívio pela protecção que o corpo da sua companheira lhe oferecia contra os solavancos constantes.

Depois daquele incidente, parte do seu medo desapareceu; certamente que nenhum homem vulgar teria ignorado uma tal oportunidade. Começou a considerar outras possibilidades. Talvez ele fosse um eunuco, ou um sacerdote-curandeiro com voto de castidade. Mas por que razão, nesse caso, vestiria roupas femininas e diria ser uma mulher? Por fim, decidiu que isso não tinha importância, e depois de algum tempo ocorreu-lhe que já não lhe interessava se a sua companhia era um homem ou uma mulher; ele ou ela era apenas uma pessoa amiga na qual confíava e a quem começava a amar. O bebé também gostava da sua companheira e estava sempre pronto a deixar os braços da mãe para ser embalado no colo de Zacintia.

Quando finalmente o navio chegou a terra e desembarcaram, Cassandra percorreu o mercado à procura de cavalos.

- Mas, senhora - disse o mercador -, certamente que não irás viajar por terra, com um bebé e uma única criada, no meio do país dos Centauros.

- Não sabia que ainda existiam alguns sobreviventes - disse Cassandra. - E eu não tenho medo deles. - Tinha esperanças de que, na sua viagem, encontrassem alguém dessa raça desaparecida. Em troca de um único elo de ouro conseguiu cavalos e mantimentos para a viagem; negociou também uma capa para si, que poderia servir de manta para dormir ou de tenda.

- Devíamos arranjar-te outra túnica, Zacintia - disse ela, rodando na mão um resto de tecido de lã que poderia servir para fazer uma capa para a criança. - Estás tão andrajosa que pareces uma varredora de ruas. Quanto a mim, tenho estado a pensar que, antes de partirmos, talvez devesse cortar o cabelo e arranjar roupas de homem. O bebé poderá ser desmamado em breve, e tenho a certeza de que criam cabras aqui nas redondezas. Era capaz de ser mais seguro para viajar nestas terras selvagens. O que achas? És mais forte e mais alta do que eu; serias talvez mais convincente como homem.

A sua companheira ficou completamente imóvel, mas ela ouviu-a suspender a respiração, consternada, antes de dizer calmamente:

- Deves fazer como achares melhor, senhora; mas eu não posso vestir roupas de homem, ou viajar como tal.

- Porquê?

Zacintia desviou os olhos.

- É um voto. Não posso dizer mais nada. Cassandra encolheu os ombros.

- Então viajaremos como mulheres.

Cassandra levantou os olhos em direcção aos portões de Cálcis, e recordou a primeira vez que os vira, quando era ainda uma adolescente entre o grupo de amazonas de Pentesileia. Ela mudara e o mundo mudara; mas os grandes portões conservaram-se exactamente iguais.

- Cálcis! - disse ela baixinho à sua companheira. - Por fim os deuses trouxeram-nos até ela.

Pôs Agatão em pé no chão; estava finalmente a começar a andar. Se a viagem não tivesse sido tão longa, era possível que, por aquela altura, ele já andasse bem. Mas ela era forçada a transportá-lo ao colo a maior parte do tempo, em vez de o deixar gatinhar e andar à vontade. Ele tinha já quase dois anos e ela podia ver, pela forma enérgica como o seu pequeno queixo se desenvolvia, pelos seus olhos escuros e o seu cabelo negro e encaracolado, que era filho de Agamémnon.

Bem, pelo menos não seria educado segundo a noção de virilidade de Agamémnon.

Fora uma longa viagem; mas não, sabia-o agora, uma viagem sem fim como antes lhe parecera. Tinham viajado por terra, sobretudo durante a noite, escondendo-se em bosques e valas durante o dia. Tinha gasto vários pares de calçado e a roupa que vestia estava no fio; nãu tivera oportunidade de a substituir.

Tinham tido encontros com soldados no caminho - veteranos do saque de Tróia -, mas não vira nem ouvira nada acerca dos Centauros; a maioria das pessoas a quem falou deles achavam que estes não passavam de uma lenda, ou então acusavam-na directamente de inventar histórias, ou sorriam discretamente com desdém, quando ela dizia que os vira na sua juventude.

Haviam-se escondido de grupos errantes de homens, comprado a sua liberdade, usado a inteligência e por vezes as suas facas para se livrarem do perigo. Tinham passado fome e frio - por vezes, não havia comida disponível nem mesmo em troca de ouro - e parado uma ou duas vezes durante uma estação inteira para procurar trabalho como fiandeiras ou tratadoras de animais.

Durante algum tempo, haviam acompanhado um homem que exibia serpentes «bailarinas.» Tinham-se juntado uma ou duas vezes a outros viajantes solitários e andaram perdidas, vagueando por grandes distâncias.

E depuis de tantas aventuras - que Cassandra sabia que nunca se atreveria a contar - haviam chegado sãs e salvas a Cálcis.

Pegou de novo na criança quando entravam os portões. Sabia que tinha o aspecto de uma mendiga. A sua capa era ainda a mesma com que Agamémnon a cobrira a bordo do seu navio - em tempos fora carmim, mas agora estava debotada, com uma cor acinzentada e indefinida. O seu vestido era uma túnica disforme de lã crua e o cabelo estava frouxamente amarrado com uma tira de cabedal que em tempos servira para atar uma sandália. O aspecto de Zacintia era ainda pior - se tal era possível. Parecia menos uma pedinte e mais uma espécie de malfeitora. As suas sandálias estavam quase rotas e ela tinha de arranjar outro par em Cálcis caso não fosse essa cidade o seu destino.

Mas haviam conseguido manter a criança agasalhada e bem vestida. A sua túnica - embora estivesse a ficar-lhe pequena - fora feita com uma boa peça de lã, comprada duas cidades atrás, e era presa por um alfinete feito com um dos últimos pedaços de ouro, e as suas sandálias eram sólidas e fortes. Por vezes, Cassandra pensava que ele se parecia mais com o seu irmão Páris do que com Agamémnon.

- Chegámos ao fim da nossa jornada - disse ela à sua companheira. Perguntou a uma mulher que passava qual era o caminho para o palácio, e se a rainha Imandra ainda reinava ali.

- Sim, apesar de estar a ficar velha - disse a mulher -; há rumores vindos do palácio que dizem que ela está mortalmente doente, mas eu não acredito. - Olhou fixamente para Cassandra e para a sua capa esfarrapada perguntando: - E o que poderá gente como vocês querer da nossa rainha?

Cassandra limitou-se a agradecer à mulher a sua ajuda e não respondeu. Dirigiu-se ao palácio. Zacintia pegou na criança e levou-a ao colo.

Ao subir as escadas do palácio, Cassandra alisou nervosamente o cabelo com os dedos. Talvez devesse ter passado pelo mercado para arranjar roupa decente para visitar a rainha.

Disse à guarda de serviço - uma mulher idosa que Cassandra reconheceu de quando estava em Cálcis muito tempo atrás.

- Gostaria de ter uma audiência com a rainha Imandra.

- Não tenho dúvidas disso - disse a mulher com sarcasmo -; mas ela não recebe qualquer zé-ninguém que a procure.

Cassandra dirigiu-se à mulher pelo nome.

- Não me conheces? A tua irmã era uma das minhas noviças na casa da Mãe Serpente.

- Princesa Cassandra! - exclamou a mulher. - Mas... nós ouvimos dizer que estavas morta... que pereceras em Micenas; que quando Agamémnon morreu, Clitemnestra te assassinara também.

Cassandra riu-se.

- Como vês, estou aqui sã e salva. Mas suplico-te que me leves à presença da rainha.

- Certamente. Ela regozijar-se-á por saber que sobreviveste à queda de Tróia - disse a mulher. - Chorou por ti como pela sua própria filha.

A mulher queria levá-la até um dos quartos de hóspedes a fim de prepará-la para a audiência, mas Cassandra recusou. Pediu a Zacintia que esperasse por ela, mas a sua companheira abanou a cabeça.

- Também eu fui conduzida até aqui pela mão da Deusa - disse ela. E só a Imandra posso revelar o que aqui me trouxe.

Desejosa de saber a história da sua companheira de viagem, Cassandra concordou. Momentos depois estava nos braços da sua parente.

- Pensei que tivesses morrido em Tróia - disse Imandra. - Tal como Hécuba e os restantes.

- Julguei que Hécuba tivesse ido com Odisseu - disse Cassandra.

- Não. Uma das mulheres conseguiu chegar até aqui e disse que Hécuba tinha morrido - de desgosto, segundo ela - enquanto os navios estavam a ser carregados. Vai dar ao mesmo; Odisseu naufragou e ninguém mais ouviu falar dele desde então; e já lá vão quase três anos. Andrómaca foi levada para um dos reis aqueus; não consigo lembrar-me do seu nome bárbaro, mas ouvi dizer que está viva. E esta criança, é tua? - Imandra pegou no rapazinho e beijou-o. - Houve então algo de bom no meio de todo o teu desgosto?

- Bem, eu sobrevivi e consegui aqui chegar - disse Cassandra, e começaram a falar de outros sobreviventes de Tróia. Helena e Menelau, segundo constava, continuavam a reinar em Esparta e a filha de Helena, Hermíone, estava prometida ao filho de Odisseu. Clitemnestra morrera de parto havia um ano e o filho dela, Orestes, matara Egisto e recuperara o Trono do Leão de Agamémnon.

- E ouviste dizer alguma coisa de Eneias? - perguntou Cassandra, recordando com terna amargura as noites estreladas do último e amaldiçoado Verão de Tróia.

- Sim, as aventuras dele são entusiasticamente contadas; visitou Cartago e teve um caso amoroso com a rainha. Dizem que, quando os deuses o chamaram para longe dali, ela se matou de desespero; mas eu não acredito. Se alguma rainha for suficientemente idiota para se matar por causa de um homem, pior para ela; não deve ter muito de mulher, e ainda menos de rainha. Depois os deuses chamaram-no para o Norte, para onde, segundo dizem, ele levou o Paládio do Templo Troiano da Virgem, e fundou uma cidade.

- Folgo em saber que ele se salvou - disse Cassandra. Talvez devesse ter ido com Eneias para o seu mundo novo; mas nenhum deus a chamara. Eneias tinha o seu próprio destino, e não era igual ao dela. - E Creúsa?

- Receio não saber qual o seu destino - disse Imandra. - Ela chegou a fugir de Tróia?

Cassandra começava a interrogar-se. Lembrava-se de se despedir de Creúsa, mas tinha passado tanto tempo que ela se perguntava se não teria sonhado. Tudo o que se relacionava com a queda da cidade era agora, para ela, como um sonho.

- E lembras-te da minha filha Pearl? - disse Imandra. - Vem cá, menina,

e cumprimenta a tua parente.

A criança avançou e cumprimentou Cassandra com um porte tal, que Cassandra não a beijou como teria feito com qualquer outra criança da idade dela.

- Que idade tem ela agora? - perguntou.

- Quase sete - disse Imandra. - E irá governar Cálcis depois de mim; conservamos a velha tradição, aqui. Se a sorte nos favorecer, nunca mudará. - Não é muita a sorte que resta neste mundo - disse Cassandra. - Mas não será amanhã nem depois que isso irá mudar.

- Continuas, então, a ter o dom da Visão?

- Nem sempre, e não em relação a tudo - disse Cassandra.

- Que desejas então de mim, Cassandra? Posso dar-te ouro, roupas, abrigo; és minha parente e és bem-vinda a ficar em minha casa como uma filha. Isso seria um enorme prazer para mim. Sei que o Templo da Mãe Serpente te acolheria como chefe das sacerdotisas.

Também Clitemnestra lhe fizera uma oferta semelhante; mas ela sabia que já era tarde de mais para passar o resto da vida entre quatro paredes.

- Ou, se o desejares - disse Imandra -, farei o que o teu pai deveria ter feito há muito tempo, e arranjar-te-ei um marido.

Cassandra disse com veemência:

- Sinto-me tão pouco inclinada a tornar-me propriedade de um homem qualquer como antes. Em menos de um ano com Agamémnom, o que tive disso valeu por uma vida inteira.

Zacintia interrompeu-as subitamente; avançou e prostrou-se diante de Imandra.

- Ó rainha - suplicou na sua voz rouca -, foi-me destinado pela Deusa que viesse a esta cidade procurar o teu auxílio. Os deuses chamaram-me para que fundasse uma cidade, e não posso fazê-lo sozinha. A princípio pensei que a Deusa me mandara aqui para saber se alguma das amazonas havia sobrevivido, pois enviou-me uma visão de que apenas uma mulher assim poderia apoiar-me em tal tarefa.

- Quem és tu?

- O meu nome é Zacinto - disse a pessoa que Cassandra conhecera como Zacintia. - Não restou nenhuma das mulheres Amazonas, que possa ajudar-me a °andar uma cidade sem deuses ou reis, onde a Deusa seja servida? Eu não queria uma esposa vulgar, ao jeito das dos Aqueus, mas sim uma que possa servir como sacerdotisa na cidade. Porém, ouvi dizer que tais mulheres já não existem.

- Não - disse Cassandra -, nenhuma amazona sobreviveu àquela última batalha em que Pentesileia morreu.

- Não posso aceitar isso - disse Zacinto, puxando para trás o véu que usara como mulher. - Agora estou livre do meu voto e procurarei pelo mundo inteiro, se preciso for.

- Que voto era o teu? - perguntou Imandra.

- Viver como mulher até chegar aqui a Cálcis, para que pudesse conhecer a vida que uma mulher é obrigada a levar - disse ele. - Ainda não tinham passado três dias desde que vestira roupas de mulher e eu já percebera por que razão as mulheres vivem com medo, e portanto procurei a protecção da princesa troiana; e na companhia dela, enquanto viajávamos, descobri a razão pela qual as mulheres procuram libertar-se dos homens. Ela não necessitava da protecção ou da ajuda de homem algum.

- No entanto - disse Cassandra, calorosamente -, tu protegeste-me, acompanhando-me na minha viagem e partilhando das minhas responsabilidades...

- Mas não foi por ser um homem - disse Zacinto -, e jurei vezes sem conta que correria o mundo inteiro, se fosse necessário, para encontrar uma mulher na qual o espírito das Amazonas ainda vivesse.

- E então - disse Imandra -, não encontraste uma?

- Encontrei - disse ele, e voltou-se para Cassandra -, e acabei por conhecê-la bem.

Cassandra riu e disse:

- Há muito tempo que deixei de sentir qualquer desejo em relação a armas, Zacinto. Mas... como irás fundar a tua cidade?

- Navegarei pelo mar imenso para bem longe, para oeste, e aí procurarei o lugar onde possa ser construída uma cidade - começou ele. - Fora dessas ilhas amaldiçoadas onde os homens adoram deuses implacáveis e opressores...

Ao escutá-lo, Cassandra não pôde deixar de lembrar-se de Eneias; aquilo fora também o que ele desejara. Ela tê~lo-ia, de boa vontade, ajudado a realizar esse desejo, e Zacinto parecia ter sido movido pelo mesmo espírito.

- Anseio por um mundo onde a Mãe Terra será venerada como antigamente - disse ele com entusiasmo. - Foi Ela que me enviou esta visão, este sonho de uma cidade onde as mulheres não sejam escravas e onde os homens não precisem de passar a vida inteira em guerras e lutas. Tem de existir, para homens e mulheres, um modo de vida melhor do que esta imensa guerra que consumiu toda a minha infância e tirou a vida ao meu pai e aos meus irmãos...

- E aos meus - disse Cassandra. - E aos teus.

Zacinto voltou-se e ajoelhou-se de novo diante de Imandra.

- Eu te suplico, como parente que és desta mulher: dá-me a tua permissão para que a despose.

Imandra disse:

- Mas o casamento é um dos muitos males que nos chegaram com os novos costumes! Quem sou eu para ta oferecer, como se fosse uma escrava?

Zacinto disse, com um suspiro:

- Tens razão. Cassandra, viajámos grandes distâncias juntos, conheces-me bem. Continuarás a viagem comigo... para construir um mundo melhor do que Tróia?

Cassandra, pensando na longa viagem que tinham feito juntos, disse lentamente:

- Mas, tal como os outros homens, tu vais querer um filho...

- Carreguei o teu filho nos meus braços durante pelo menos metade desta enorme viagem - disse ele. - Se fui capaz de ser uma mãe para o teu filho, duvidas que possa ser um pai para ele, também? Pois eu penso que, ainda que procurasse no mundo inteiro, não conseguiria encontrar uma mulher mais adequada aos meus objectivos. E penso que talvez fosse adequado aos teus objectivos também - acrescentou, sorrindo. - Quererás ficar sentada aqui, na corte de Imandra, a fiar?

- Não te perturba que eu tenha sido obrigada a ser concubina de Agamémnom e tenha tido um filho dele? Todos os homens irão saber-disse ela. Ele sorriu com toda a meiguice, e ela pensou de novo em Eneias.

- Não mais do que te perturba a ti - disse ele. - E quanto ao rapaz, ele é teu frlho, e tu viste bem o amor que eu Lhe tenho. Um dia poderemos ter outros para os quais eu possa ser igualmente pai e mãe... - A sua voz soou cheia de ternura ao acrescentar: - Gostaria de ter uma filha como tu.

Ela passara demasiado tempo da sua vida ligada à ideia de que nunca poderia casar; porém, aquela guerra levara toda a sua família e ela não tinha um lugar que fosse seu. E as Amazonas tinham também desaparecido, como Tróia desaparecera.

Aquela nova cidade poderia ser um lugar onde os homens e as mulheres não precisariam de ser inimigos, onde os deuses não seriam os implacáveis inimigos das deusas...

Se Tróia não conseguira ser eterna, não existia qualquer garantia de que a nova cidade o fosse. Mas se, em troca do trabalho de uma vida, ela pudesse contribuir para a construção de uma cidade onde os homens não transformassem os seus iilhos em guerreiros - para que eles não tivessem de seguir os deuses cruéis nas batalhas - nem as suas filhas em brinquedos para os homens, então a sua vida não teria sido desperdiçada.

Recordou a rapariguinha que fora, sentada na casa do Senhor do Sol, distribuindo sabedoria pelos peticionários. O que costumava dizer, nesse tempo? « Eu dou as mesmas resposta que eles seriam capazes de dar, se se dessem ao trabalho de utilizar a inteligência que os deuses lhes deram», recordou. Mas acrescentara: «Antes de falar, eu faço sempre uma pausa e espero, para o caso de o Deus ter outra resposta para ser dada.»

Escutou o seu coração, mas só captou silêncio, e a recordação do sorriso ardente do Deus. Seria possível que chegasse o dia em que ela, como qualquer esposa submissa, veria o rosto do Deus no seu marido? Olhou para Zacinto. Não era nenhum Apolo, mas o seu rosto era sincero e meigo. Era-Lhe difícil imaginar um deus falando através dele, mas, pelo menos, o que ele dissesse não seria cruel ou arbitrário. Agamémnon não fora pior que Posídon; Páris pusera Tróia em chamas por vontade de uma deusa mais cruel e voluntariosa do que qualquer homem. Em toda a sua vida, o mais vil dos homens não fora pior do que o melhor dos deuses. E todo o mal que haviam feito tinha sido por vontade de deuses construídos à sua própria imagem.

Escutou, mas nenhuma voz divina falou para a deter; nesse momento, soube qual iria ser a sua resposta. E imediatamente o seu coração se lançou na corrida através do mar imenso em direcção a um novo mundo que, se não fosse melhor do que o antigo, seria pelo menos tão bom quanto os homens e as mulheres conseguissem fazê-lo.

- Partamos, Zacinto, partamos em busca da nossa cidade. Talvez um dia aqueles que vierem depois de nós possam conhecer a verdade acerca de Tróia e da sua queda - disse ela, e tomou a mão dele na sua.

Algures, uma deusa sorria. Não lhe pareceu que fosse Afrodite.

 

A Ilíada nada refere acerca do destino de Cassandra de Tróia. Ésquilo, na sua obra Agamémnon, apresenta-a como sua companheira na morte às mãos de Clitemnestra; era considerado perfeitamente admissível apresentar personagens da Ilíada cujo destino não fizesse parte desse poema. Eurípides apresenta-nos Cassandra como uma das troianas cativas; curiosamente, ela é a única mulher que sugere a vingança sobre os seus captores, mas é também claramente demonstrado que ela é louca. Ainda uma outra apresentação dramática mostra-nos Cassandra conduzindo as mulheres de Tróia para um heróico suicídio colectivo.

Contudo, na placa número 803 do Museu Arqueológico de Atenas pode ler-se o seguinte:

ZEUS DE DODONA, RECEBE ESTA OFERTA QUE EU E A MINHA FAMÍLIA TE ENVIAMOS

AGATÃO FILHO DE EKHEPHYLOS, A FAMÍLIA ZAKYNTHIA, CÔNSULES DOS MOLOSSIANS E SEUS ALIADOS, QUE DESCENDEM DESDE HÁ 30 GERAÇÕES DE CASSANDRA DE TRÓIA - AGRADECIMENTOS

Quero agradecer especialmente a ajuda do meu marido, Walter Breen, que contribuiu materialmente nas pesquisas para este livro, e cujo conhecimento da Grécia Clássica - língua e história - foi uma ajuda incalculavelmente valiosa na criação desta história, nomeadamente pela inclusão da citação existente no Museu de Atenas e com a qual este livro termina, fornecendo um fundamento histórico para o destino - e a própria existência histórica - de Cassandra de Tróia, de cuja perspectiva esta história é contada.

É provável que os leitores vão levantar objecções: «Não foi assim que aconteceu na Ilíada. » Claro que não. Se a narração feita pela Ilíada me satisfizesse, não teria existido qualquer razão para escrever um romance. Aliás, a Ilíada pára precisamente no momento mais interessante, deixando ao escritor as conjecturas acerca do fim, a partir das diversas lendas e tradições. Se os escritores do drama grego se sentiram livres de improvisar, não me será necessário pedir desculpas por ter seguido o seu excelente exemplo.

Uma explicação mais: os conhecimentos de Walter no que respeita à língua persuadiram-me, em nome da «exactidão» linguística e um tanto contra a minha vontade, a usar a transliteração clássica em substituição das formas latinizadas mais comuns; assim, Akhaians toma o lugar de Achaeans * (o termo «Gregos» não era ainda conhecido), Akhilles o de Achilles e, pior do que tudo, Kassandra o de Cassandra. Para mim, a diferença é tremenda e altera todo o significado do nome e da personagem. Um cão ou um corvo não seriam, afinal, as mesmas

* Devido à decisão de traduzir todos os nomes relativos a povos e elementos topográficos, os exemplos citados carecem de significado na língua portuguesa. Porém, por uma questão de fidelidade ao texto de agradecimento da autora, mantivemos a grafia original nesta parte do texto. (N. da T. )

criaturas se lhes chamássemos kão ou korvo *. Para aqueles cuja sensibilidade estética é tão apurada como a minha, e para quem o aspecto de um nome sobre uma folha altera a sua verdadeira essência, não posso fazer mais do que apresentar as minhas desculpas. A linguística e a estética são, afmal, filosofias muito diferentes, e as discordâncias entre elas nunca serão resolvidas - pelo menos por mim.

Agradeço também a Elisabeth Waters, que, nas muitas ocasiões em que eu fiquei «encalhada» com as angústias de «o que vai acontecer a seguir?», nunca deixou de me ajudar a procurar a solução mais construtiva; e aos outros elementos da minha casa, que sofreram comigo toda a queda e pilhagem de Tróia.

* No texto original, a autora utiliza como exemplo cow (vaca). A sua tradução tornaria o exemplo impossível, razão que levou à sua substituição. (N. da T. )

 

                                                                                 Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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