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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRETORIANO / Simon Scarrow
PRETORIANO / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

PERSONAGENS

Na Guarda Pretoriana
Tribuno Balbo - Comandante de uma coluna de transporte de moedas de prata
Centurião Gaio Sínio - Um traidor ambicioso
Tribuno Burro - Comandante da Terceira Coorte de Pretorianos
Centurião Lurco - Comandante, embora praticamente a meio-tempo, da Sexta Centúria da Terceira Coorte
Optio Tigelino - O frustrado adjunto de Lurco
Guarda Fúscio - Um recruta ainda verde, que se julga um veterano
Prefeito Geta - Comandante da Guarda Pretoriana

No Palácio Imperial
Imperador Cláudio - Um governante justo, embora nem sempre coerente
Imperatriz Agripina - A sua esposa e sobrinha, e também mãe de
Príncipe Nero - Um rapaz amigável, com ambições artísticas
Príncipe Britânico - Filho de Cláudio, astuto mas distante
Narciso - Secretário imperial e conselheiro próximo de Cláudio
Palias - Outro conselheiro, próximo do Imperador e também da Imperatriz
Sétimo - Um agente a mando de Narciso Em Roma
CÉSTio - Um bandido sem escrúpulos e malévolo, chefe de um bando de meliantes
Vitélio - Ricaço e ocioso filho de um senador, e inimigo de longa data de Macro e Cato
JÚLIA Semprónia - A adorável filha do senador Semprónio

 

 

 

 

 

 

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Havia já dez dias que o pequeno comboio de vagões cobertos percorria a estrada quando finalmente atravessou a fronteira e entrou na Gália Cisalpina. As primeiras
neves já tingiam de branco as altaneiras montanhas a norte, e os picos reluziam, alvos, recortados contra o céu azul. O inverno precoce tinha ainda assim sido clemente
para com os homens que acompanhavam a pé os vagões e, apesar de o ar se manter frio e agreste, nem um pingo de chuva tinha caído desde que tinham deixado as instalações
da cunhagem imperial na Narbonesa. As baixas temperaturas tinham feito gelar toda a humidade, criando uma crosta rija sobre a estrada, a qual facilitava a progressão
das pesadas carroças.
O tribuno pretoriano que comandava o comboio tinha feito adiantar a montada até alcançar o cimo de uma crista na estrada, e aí deteve o avanço do animal. À sua frente
desenhava-se uma longa reta que subia e descia ao sabor da topografia. O tribuno avistava claramente Piceno, uma povoação ainda a alguns quilómetros de distância,
onde devia encontrar-se com a escolta montada enviada de Roma pela Guarda Pretoriana - o corpo militar de elite a quem cabia proteger o Imperador Cláudio e a sua
família. A centúria de tropas auxiliares que tinha escoltado as quatro carroças desde que se tinham posto a caminho regressaria então ao seu aquartelamento junto
às instalações da cunhagem, e deixaria a função de proteger a coluna aos pretorianos que, sob comando do tribuno, a conduziriam em segurança até à capital.
O tribuno Balbo virou-se na sela para observar o comboio enquanto este progredia pela subida até ao ponto onde se encontrava. Os auxiliares eram germanos, recrutados
na tribo dos Queruscos, todos eles homens de grande estatura e aspeto feroz, o qual era amplificado pelas barbas hirsutas que se projetavam do interior dos seus
elmos. Balbo tinha-lhes ordenado que mantivessem os capacetes enquanto avançavam por entre as colinas, como precaução contra qualquer emboscada montada por algum
dos bandos de salteadores que tinham o costume de se aproveitar dos viajantes distraídos. Havia poucas probabilidades de os meliantes se atreverem a atacar aquela
coluna, como o tribuno bem sabia. A verdadeira razão para a ordem
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que emitira tinha sido o desejo de manter escondidas as gadanhas selvagens dos auxiliares, para evitar alarmar qualquer civil com quem se cruzassem. Embora apreciasse
o facto de os auxiliares germanos serem realmente de confiança para um trabalho daquele género, já que deviam a sua lealdade diretamente ao Imperador, Balbo não
conseguia deixar de sentir o típico desprezo romano por aqueles homens, recrutados nas tribos selvagens que viviam para lá do Reno.
- Bárbaros - concluiu para si mesmo, enquanto abanava a cabeça. Estava habituado ao brilho e à perfeita compostura das coortes pretorianas, e não tinha apreciado
particularmente as ordens que recebera para se dirigir à Gália e assumir o comando de mais uma caravana com moedas de prata enviadas da cunhagem imperial. Depois
de tantos anos de serviço na Guarda, Balbo tinha ideias bem firmes sobre qual devia ser a aparência de um soldado, e se fosse o comandante de uma coorte de auxiliares
germanos, a primeira coisa que faria seria ordenar que cortassem aquelas malditas barbas e se apresentassem como verdadeiros soldados.
Além disso, sentia falta de todos os confortos que tinha ao seu dispor em Roma.
O tribuno Balbo era o perfeito exemplo de um membro da sua classe social. Tinha-se juntado aos pretorianos e prestado serviço em Roma, subindo nas fileiras antes
de ser transferido para a Décima Terceira Legião, no Danúbio, passando aí vários anos como centurião antes de solicitar um regresso à Guarda Pretoriana. Mais alguns
anos de serviço sem mácula tinham-no elevado à posição de tribuno e ao comando de uma das nove coortes da guarda pessoal do Imperador. Só tinha de esperar mais uns
tempos até se reformar da tropa levando consigo uma apreciável gratificação, para depois assumir um posto administrativo nalguma cidade de Itália. Até já tinha uma
em vista: Pompeia, onde o seu irmão mais novo possuía um estabelecimento privado de banhos e ginásio. A povoação situava-se na costa, com uma vista privilegiada
sobre a baía de Neapolis, e tinha um número decente de teatros, além de uma bela arena rodeada de tabernas onde era fácil encontrar bom vinho a preço em conta. Não
faltava sequer a forte possibilidade de uma zaragata ocasional com os homens da cidade mais próxima, Nuceria, pensou embevecido.
Atrás das primeiras cinco secções de auxiliares vinham as quatro carroças, veículos pesados, cada um deles puxado por dez mulas. No banco de cada uma sentavam-se
o condutor e um soldado, e atrás deles viam-se peles de cabra bem esticadas e amarradas, a cobrir as arcas aferrolhadas que ocupavam os leitos dos vagões. Em cada
uma das carroças seguiam cinco arcas, e cada uma destas continha cem mil denários acabados de cunhar -
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num total de dois milhões, o suficiente para pagar o salário de uma legião durante um ano inteiro.
Balbo não se impediu um instante de devaneios, a pensar no que poderia fazer com uma fortuna daquelas. Mas rapidamente afastou tais ideias. Era um soldado. Tinha
feito o juramento de proteger e obedecer ao Imperador. O seu dever era garantir que os vagões chegavam em segurança ao tesouro imperial em Roma. Os seus lábios cerraram-se
de irritação quando se lembrou que alguns dos seus camaradas pretorianos tinham um entendimento um tanto ou quanto mais flexível do conceito de dever.
Ainda não tinham passado dez anos desde que alguns membros da Guarda Pretoriana tinham assassinado o anterior Imperador e a sua família. Em boa verdade, Gaio Calígula
não passara de um déspota alucinado, mas um juramento era um compromisso solene que Balbo não conseguia conceber que pudesse ser quebrado. Continuava a desaprovar
a eliminação de Calígula, embora o novo Imperador, escolhido pelos pretorianos, se tivesse revelado um governante muito mais avisado. Recordou a confusão que envolvera
a subida de Cláudio ao trono. Os oficiais responsáveis pela morte do seu antecessor tinham tido a intenção de devolver o poder ao Senado. Porém, quando o resto dos
seus camaradas tinha percebido que a inexistência de um Imperador significava também o fim da Guarda Pretoriana, e de todos os privilégios de que beneficiava quem
lhe pertencia, tinham-se apressado a considerar opções para um sucessor, e alguém tinha lançado o nome de Cláudio. Enfermo, gago, estava longe de corresponder à
figura ideal de um líder do maior Império do mundo conhecido. Mas a verdade é que se revelara, em termos gerais, um governante justo e eficiente, admitiu o tribuno.
O seu olhar prosseguiu até às últimas cinco secções de auxiliares germanos que marchavam atrás dos vagões. Não tinham propriamente um ar marcial, mas Balbo conhecia
o seu valor em combate, e a reputação que tinham adquirido era mais do que suficiente para afastar das mentes dos vulgares salteadores de estrada a ideia de atacar
a coluna. De qualquer forma, o perigo, por pequeno que fosse, já tinha desaparecido, agora que o comboio começava a descer para a vasta planície do Pó.
Deu um estalo com a língua e pressionou o flanco da montada com as botas. O cavalo resfolegou e pôs-se em movimento, a passo, e Balbo conduziu-o de novo para a estrada,
passando pelas fileiras de auxiliares na vanguarda, e pelo seu comandante, o centurião Armínio, até reocupar a posição à cabeça da coluna. Tinham progredido bem.
Ainda não era meio-dia e estavam já a menos de uma hora de Piceno, onde aguardariam pela escolta pretoriana, se esta ainda não tivesse chegado à povoação.
Estavam a cerca de três quilómetros de Piceno quando Balbo ouviu o
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som de cavalos que se aproximavam. A coluna atravessava um pinhal, cujo aroma forte enchia o ar frio. Um afloramento rochoso encobria a vista da continuação da estrada.
Balbo recordou instintivamente os dias que passara no Danúbio, em que o truque favorito do inimigo consistira precisamente em encurralar colunas romanas em locais
confinados como aquele. Refreou o cavalo e ergueu a mão no ar.
- Alto! Remover mochilas!
Enquanto os vagões se detinham com um ruído surdo, os auxiliares germanos apressaram-se a pousar na beira da estrada as cangas que levavam aos ombros, onde seguiam
dependuradas várias peças de equipamento; cerraram imediatamente as fileiras em torno da coluna. Balbo passou as rédeas para a mão esquerda, preparando-se para empunhar
a espada, e perscrutou as sombras que reinavam sob as árvores de ambos os lados da estrada. Nada se movia. O som dos cascos cresceu, ecoando na superfície da estrada
pavimentada e nas rochas. Finalmente surgiu à vista o primeiro cavaleiro a descrever a curva por trás do penedo; envergava o manto vermelho de um oficial. O capacete
com crista vinha pendurado na sela. Por trás dele apareceram cerca de vinte homens, enrolados em enlameadas capas brancas que os assinalavam claramente como membros
da Guarda Pretoriana.
Balbo encheu as bochechas de ar e deixou-o escapar-se com um silvo de alívio.
- À vontade!
Os auxiliares pousaram os escudos e as lanças, e Balbo esperou que a coluna montada se aproximasse. O seu líder refreou o cavalo, passando a um trote que se reduziu
a um passo vagaroso nos últimos cinquenta metros.
- Senhor, é o tribuno Balbo?
Balbo examinou cuidadosamente as feições do outro oficial. Aquela face era-lhe familiar.
- Centurião, qual é a senha correta? - demandou.
- As uvas da Campânia estão maduras e à espera da colheita, senhor
- replicou o outro, em tom formal.
Balbo fez que sim com a cabeça, ao escutar aquilo que esperava.
- Muito bem. Era suposto que nos aguardasses em Piceno, centurião...
- Gaio Sínio, senhor. Centurião da Segunda Centúria, Oitava Coorte.
- Ah, é isso. - Balbo recordava-se vagamente daquele nome. - Então, o que estás aqui a fazer no meio da estrada?
- Chegámos ontem a Piceno, senhor. Parecia uma cidade abandonada. A maior parte da população tinha ido até um santuário próximo para um festival qualquer, uma coisa
local. Por isso, pensei que seria melhor
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avançar e vir ao seu encontro e dos seus rapazes. - Fez um gesto a designar os auxiliares germanos.
- Não são meus - resmungou Balbo.
- Bom, senhor, avistámo-lo a aproximar-se, e pronto, aqui estamos. Prontos para escoltar as carroças até Roma.
Por momentos, Balbo contemplou o centurião em silêncio. Apreciava soldados que se mantinham fiéis às ordens tal e qual tinham sido recebidas, e não estava certo
de aprovar a iniciativa de Sínio para se encontrar com ele em plena estrada, em vez de o aguardar na povoação, como tinha sido combinado. Os planos para a entrega
da prata tinham sido cuidadosamente delineados em Roma havia já mais de dois meses, e todos os intervenientes deviam segui-los à risca. No momento em que alguns
oficiais resolviam infringi-los por sua própria ideia, os planos começavam a desmoronar-se. Decidiu ali mesmo que havia de ter uma palavrinha com o comandante de
Sínio quando regressassem ao quartel dos pretorianos, às portas de Roma.
- Centurião Armínio! - gritou Balbo por cima do ombro. - Venha
cá!
O oficial que comandava os auxiliares germanos apressou-se a responder. Era um indivíduo alto e de ombros largos, cuja armadura mal continha a musculatura do torso.
Olhou para o tribuno, exibindo uma barba que aos raios do Sol quase dava a impressão de estar em chamas.
- Senhor?
Balbo acenou na direção dos cavaleiros.
- A escolta vinda de Roma. Serão eles a proteger as carroças daqui em diante. Tu e os teus homens podem regressar imediatamente para a Narbonesa.
O germano cerrou os lábios e respondeu num latim com forte pronúncia.
- Senhor, foi-nos ordenado que fizéssemos a troca de escoltas em Piceno. Os rapazes esperavam poder divertir-se esta noite na cidade, antes de voltarem para trás.
- Sim, pois, mas isso já não será necessário. Além disso, duvido bastante que os habitantes locais apreciassem essa invasão de uma horda germana. Sei muito bem como
se portam os teus homens assim que emborcam uns copitos a mais.
O centurião Armínio franziu o sobrolho.
- Tratarei de garantir que não provocam estragos, senhor.
- Não o farão de todo. Estou a dar-te uma ordem direta para fazeres meia-volta e regressares à Gália de imediato, estás a perceber?
O outro anuiu lentamente, sem esconder o azedume. Por fim, depois
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de um curto aceno ao superior, virou-se e encaminhou-se para junto do comboio.
- Peguem nas mochilas! Preparem-se para marchar! Vamos voltar para a Gália, rapazes.
Alguns dos homens resmungaram. Um deles soltou mesmo uma imprecação em tom elevado na sua língua nativa, obrigando o centurião a repreendê-lo com rispidez.
Balbo olhou para Sínio e comentou, em surdina:
- Não podemos permitir que estes bárbaros de cu peludo vão atormentar os pacatos cidadãos.
- Pois não, senhor, tem toda a razão - concordou Sínio. - Já é suficientemente mau que a guarda da cunhagem e dos comboios de prata tenha sido confiada aos germanos.
Devia ser trabalho para verdadeiros soldados de Roma, fossem eles legionários ou uma coorte da Guarda.
- Ao que parece, o Imperador não confia muito em nós - atreveu-se Balbo a dizer. - Nos últimos anos houve demasiados oficiais superiores a entrarem em jogos políticos.
E depois nós é que temos de levar com isto. Seja como for, não podemos fazer nada. - Empertigou-se sobre a sela. - Os teus homens que formem em redor das carroças.
Assim que os auxiliares se retirarem, poderemos prosseguir.
- Sim, senhor. - O centurião Sínio fez a saudação e voltou-se, para transmitir as ordens aos seus homens. À medida que os germanos, no meio de resmungos, formavam
numa coluna simples atrás das carroças, os cavaleiros ocupavam as posições em torno do comboio; daí a pouco as duas forças estavam prontas para seguirem os seus
respetivos caminhos. Balbo aproximou-se do centurião Armínio para lhe dar algumas derradeiras instruções.
- Vais regressar à Narbonesa o mais depressa possível. Eu não estarei lá para controlar os teus homens, mas não te atrevas a permitir que causem quaisquer problemas
nas povoações que atravessarem no regresso. Entendido?
O centurião cerrou os lábios com força e anuiu.
- Muito bem, podes seguir então.
Sem esperar por resposta, Balbo fez o cavalo rodopiar e seguiu na direção oposta para se juntar ao centurião Sínio, que o aguardava à cabeça da coluna. Fez um gesto
com o braço, dando ordem para cavaleiros e vagões se colocarem em marcha. Os condutores fizeram estalar as rédeas e os veículos puseram-se em movimento com um profundo
som de trovão, vindo das pesadas rodas com cintas metálicas. O martelar dos cascos das mulas e cavalos ajudava a tornar o ruído quase ensurdecedor. Balbo avançou
sem olhar para trás até alcançar o penedo que marcava a curva na estrada. Aí
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chegado, espreitou sobre o ombro e avistou a retaguarda da coluna de auxiliares já a algumas centenas de metros de distância, marchando de regresso àGália.
- E já vão tarde - murmurou para si mesmo.
As carroças e a sua nova escolta fizeram a curva em redor das rochas e enfrentaram uma nova e longa reta a caminho de Piceno, seguindo ainda uns quatrocentos metros
por entre o pinhal. Depois de se ter visto livre das tropas germanas, Balbo sentia o seu humor a melhorar. Refreou o andamento da montada até se ver ao lado do centurião
Sínio.
- Então, quais são as novas de Roma?
Sínio pensou por momentos e respondeu com um sorriso divertido.
- A nova esposa do Imperador continua a apertar o nó à volta do velhote.
- Oh? - Balbo franziu o sobrolho perante a grosseira referência à Imperatriz.
- Pois. O que se ouve dizer pelo palácio é que a Agripina mandou o Cláudio despachar as amantes para bem longe. Como é natural, ele não se mostra muito entusiasmado
com a ideia. Mas essa é a menor das suas preocupações. Sabe aquele miúdo dela, o Lúcio Domício? Ela anda a espalhar a ideia de que vai ser adotado pelo Cláudio.
- Faz sentido - respondeu Balbo. - Não serve de nada fazer o miúdo sentir-se excluído.
Sínio olhou para ele com ar de algum espanto.
- Não sabe da história a metade, senhor. A Agripina está, de forma muito evidente e pública, a pressionar o Cláudio para que nomeie o jovem Lúcio como seu herdeiro.
Balbo arregalou os olhos. Aquele sim, era um desenvolvimento perigoso: o Imperador já tinha um herdeiro legítimo, Britânico, seu filho da primeira mulher, Messalina.
Com aquela medida, nasceria uma clara rivalidade quanto ao acesso ao trono. Balbo abanou a cabeça.
- Por que raio haveria o Imperador de concordar com isso?
- Talvez já não possua a lucidez de outros tempos - sugeriu Sínio.
- A Agripina anda a espalhar a ideia de que apenas deseja que Britânico tenha alguém que o proteja, e que não há ninguém melhor para isso do que o seu novo irmão
mais velho... Alguém que cuide dos seus interesses depois de o Cláudio esticar. E esse dia já esteve mais longe. O velhote anda magro como um palito e tem um ar
frágil. Portanto, quando ele desaparecer, parece que os pretorianos vão ter um novo chefe, e que ele será o jovem Lúcio Domício. Uma reviravolta e tanto, hã?
- Sim, - Balbo manteve-se em silêncio enquanto sopesava todas as implicações daquela novidade. Em criança, o filho do Imperador, Britânico,
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tinha sido muito popular entre os elementos da Guarda Pretoriana; costumava acompanhar o pai nas visitas ao aquartelamento, envergando uma pequena armadura feita
à sua medida e insistia sempre em participar na instrução e no treino com armas, o que divertia enormemente os homens. Mas a criança tinha-se transformado num jovem
mais dedicado aos estudos. E agora o jovem Britânico ia ter um competidor nas afeições dos pretorianos.
- E há mais, senhor - continuou Sínio em voz melíflua, deitando uma olhadela sobre o ombro, como que para se certificar de que os homens não o ouviam. - Se realmente
lhe interessar ficar a saber.
Balbo olhou intensamente para ele, tentando perceber até que ponto podia confiar no outro oficial. Em anos recentes tinha visto muitos homens condenados à morte
por darem demasiada liberdade à língua, e não tinha qualquer vontade de se juntar a esses números.
- Há algum perigo associado ao ato de ouvir o que tens para dizer?
Sínio encolheu os ombros.
- Isso só depende de si, senhor. Ou, mais precisamente, depende do primeiro objeto da sua lealdade.
- A minha primeira e única lealdade é para com o meu Imperador. Tal como deve ser a tua e a de todos os homens na Guarda Pretoriana.
- A sério? - Sínio encarou-o frontalmente, e sorriu. - E eu a pensar que a primeira lealdade de qualquer romano seria sempre para com Roma, antes de tudo o mais.
- Roma e o Imperador são uma e a mesma coisa - retorquiu Balbo, em tom firme. - O juramento que fazemos compromete-nos perante ambos. É perigoso afirmar algo de
diferente, e aconselho-te a não voltares a tocar nesse assunto.
Sínio contemplou-o por momentos, mas acabou por desviar o olhar.
- Não importa. Tem razão, senhor, claro.
Sínio deixou a montada ficar para trás, até ficar atrás do seu superior. O comboio alcançava o fim do pinhal, e emergia numa zona de terreno aberto. Balbo não se
tinha cruzado com outros viajantes desde a madrugada, e não avistava nenhuns a virem da direção de Piceno. Lembrou-se então do que Sínio dissera a propósito do festival.
Pouco à frente, a estrada descia para uma cova na paisagem, e Balbo remexeu-se na sela ao avistar algum movimento por trás de uns arbustos raquíticos.
- Há ali qualquer coisa - disse a Sínio. Ergueu o braço e apontou.
- Estás a ver? Ali a uns quatrocentos metros, onde a estrada começa a descer.
Sínio olhou na direção indicada e abanou a cabeça.
- Estás cego ou quê? É evidente que há qualquer coisa ou alguém a
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mexer-se ali naquela zona. Sim, já vejo agora. Um grupo de pequenos vagões e mulas no meio dos arbustos.
- Ah, sim, senhor, agora já os distingo. - Sínio observou a área por momentos e prosseguiu. - Pode ser uma caravana de mercadores acampada.
- A esta hora do dia? E já tão perto de Piceno? - Balbo fungou, mostrando desdém pelas sugestões. - Não me parece. Vamos lá ver de perto.
Incitou o cavalo, acelerando pela estrada até perto da mata de arbustos que ocupava a depressão. Sínio acenou à secção mais adiantada de cavaleiros para que o seguissem,
e imitou o seu superior. À medida que se aproximava, Balbo apercebia-se de que o número de carros era maior do que primeiro pensara, e avistou também um grupo de
homens agachado no meio dos arbustos. A ansiedade que tinha sentido antes da troca de escoltas regressou, como se alguém estivesse a espetar-lhe agulhas frias na
nuca. Deteve-se a uns cem passos dos carros e homens mais próximos, à espera que Sínio e os seus homens o alcançassem.
- Isto não me agrada. Aquela cambada está a preparar alguma, aposto. Sínio, diz aos teus homens para estarem a postos.
- Sim, senhor - respondeu Sínio, sem ponta de entusiasmo.
Balbo escutou o som de uma espada a ser desembainhada e agarrou
com força as rédeas enquanto se preparava para liderar o avanço dos guardas montados.
- Desculpe, senhor - pronunciou Sínio em voz calma, enquanto enterrava o gládio nas costas do tribuno, entre as omoplatas. A ponta da arma rasgou a capa e a túnica
e prosseguiu, dilacerando a carne e ossos até atingir a espinha do oficial. A cabeça de Balbo deu um solavanco com o impacto, e ele soltou uma exalação de espanto,
ao mesmo tempo que os dedos, embora crispados, se lhe abriam, soltando as rédeas. Sínio deu uma forte torção à espada antes de a retirar. O tribuno caiu para a frente
sobre a sela, os braços descaídos ao longo dos flancos do cavalo. O animal espantou-se, e esse movimento fez com que Balbo escorregasse da sela. Tombou pesadamente
no solo e rebolou até ficar de costas. Fitou o céu com os olhos muito abertos, enquanto tentava dizer alguma coisa.
Sínio virou-se para os seus homens.
- Tratem dos condutores, e tragam as carroças para aqui. - Olhou para baixo, para o tribuno. - Peço perdão, senhor. Era um bom oficial, e não merecia este fim. Mas
tenho as minhas instruções.
Balbo tentou falar, mas não conseguiu emitir qualquer som. Sentia frio e medo, coisa que não lhe sucedia havia anos. A visão começou a turvar-se-lhe, e percebeu
que a morte se aproximava. Já não seria para ele o tranquilo fim de vida em Pompeia, e sentiu pena por nunca mais voltar a
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ver o irmão. A vida do tribuno esvaiu-se rapidamente, e o seu olhar ficou preso ao céu enquanto o corpo jazia imóvel sobre o solo. Na estrada, por trás dele, ouviram-se
alguns gritos de surpresa e choque que rapidamente foram cortados quando os condutores das carroças foram eliminados sem delongas. A coluna prosseguiu depois até
junto dos carros que esperavam. Sínio virou-se para um homem de físico poderoso que o seguia e indicou-lhe o cadáver do tribuno.
- Céstio, põe-no numa das carroças com os outros. Quero dois homens adiantados na estrada, para não ter surpresas. Outros dois para voltarem àquela curva lá atrás
e se certificarem de que os auxiliares não se armaram em espertos e resolveram vir gozar uma folga privada em Piceno.
Os homens com os carros saíram de entre os arbustos e alinharam os veículos mais pequenos na estrada. Seguindo as instruções de Sínio, os baús foram rapidamente
retirados das carroças e passados para os carros, um por cada. Assim que ficaram bem acondicionados, foram cobertos com fardos de panos baratos, sacas de cereal
e montes de trapos velhos. As equipagens de mulas que tinham puxado as carroças foram desatreladas, e os animais foram distribuídos pelos carros para puxar a pesada
carga. Depois de vazios, os vagões foram levados para o meio da vegetação e as rodas foram-lhes retiradas, de forma a ficarem mais baixos e escondidos, e ser impossível
vislumbrá-los a partir da estrada. Os cadáveres foram levados para longe e lançados a uma fossa escavada em terreno lamacento, e depois cobertos com ramos secos.
Por fim os homens reuniram-se à volta dos carros, enquanto Sínio e mais alguns cortavam vários ramos para disfarçar as aberturas na vegetação, nos locais por onde
os vagões tinham sido empurrados, e para apagar as marcas dos rodados. A fina camada de gelo tinha impedido que se formassem sulcos na terra.
- Está bom assim - decidiu Sínio, atirando fora as ramagens que tinha usado. - Senhores, é altura de trocarmos de roupas!
Tiraram apressadamente as túnicas e capas militares e trocaram-nas por vestes civis e variadas, em todos os estilos e cores. Quando os uniformes foram dobrados e
arrumados em fardos colocados por trás das selas, Sínio contemplou o grupo. Assentiu, satisfeito; davam todo o ar de não passar de um grupo de mercadores e comerciantes
como outros que viajavam com regularidade entre as cidades e povoações da Itália.
- Todos têm as vossas instruções. Vamos sair daqui em grupos separados. Depois de passarem Piceno, sigam os caminhos que vos foram indicados até ao armazém lá em
Roma. Ver-nos-emos de novo quando lá chegarem. Vigiem de perto os carros. Não quero que nenhum larápio de meia-tigela dê de caras com o conteúdo dessas arcas. Sejam
discretos,
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desempenhem os vossos papéis, e ninguém suspeitará de nada. Entendido?
- Olhou em redor. - Ótimo. Vamos lá a pôr os primeiros a caminho!
Ao longo da hora seguinte, os carros foram deixando a depressão na estrada, sozinhos ou em grupos de dois ou três, a intervalos irregulares, e intercalados com os
cavaleiros. Alguns dirigiram-se a Piceno, outros mudaram de direção na encruzilhada à entrada da cidade, rodeando-a por leste ou ocidente e seguindo um caminho indireto
para Roma. Quando o último carro partiu, Sínio passou uma última revista ao local. Viam-se alguns rastos feitos pelos carros à partida, muito mais pesados do que
antes, e pelos cascos de mulas e cavalos, mas duvidava que pudessem atrair alguma atenção da parte dos viajantes que estivessem a chegar ou a deixar Piceno.
Com um breve aceno de satisfação, Sínio dirigiu a sua montada para a estrada e conduziu-a a passo indolente a caminho da povoação. Pagou a portagem aos guardas à
porta da cidade e parou numa taberna para comer uma tigela de guisado e beber uma caneca de vinho quente antes de prosseguir viagem. Deixou a cidade pelo portão
sul e seguiu pela estrada de Roma.
A tarde já ia avançada quando descortinou uma pequena coluna de cavaleiros em mantos brancos, que vinha de sul. Puxou o capuz da sua túnica castanha e gasta para
cima da cabeça, de forma a esconder as feições, e ergueu uma mão à laia de saudação quando se cruzou com os pretorianos que iam ao encontro do comboio vindo da Narbonesa.
O oficial que comandava a coluna ignorou o gesto, e Sínio sorriu para si mesmo quando o imaginou a tentar explicar aos seus superiores em Roma o desaparecimento
das carroças e das arcas de prata que trasportavam.
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Óstia, janeiro de 51 d.C.

O mar estava agitado e mostrava um tom cinzento, exceto onde ténues véus de espuma branca se elevavam no ar, levantados pela forte brisa das cristas das vagas que
cresciam à medida que se aproximavam da margem. Acima, também o céu se apresentava carregado, coberto por uma ininterrupta cortina de nuvens baixas que se estendia
até ao horizonte. A ajudar ao tom deprimente do cenário, caía uma chuva fina e fria, persistente, que depressa tinha ensopado o cabelo escuro do centurião Macro,
colando-lho ao escalpe enquanto ele contemplava o porto. Óstia tinha mudado profundamente desde a última vez que ali estivera, uns anos antes, quando regressara
da campanha na Britânia. Nesse tempo, o porto pouco mais fora do que um cais exposto aos elementos onde se fazia o transbordo de passageiros e carga, que iam ou
vinham de Roma, uns trinta e poucos quilómetros para o interior segundo o curso do Tibre. Uma série de pontões de madeira projetavam-se da margem para haver onde
desembarcar os produtos importados de todo o Império. Um fluxo bastante menor de exportações deixava a Itália para as distantes províncias sob o domínio de Roma.
O porto encontrava-se agora envolto em obras, consequência de um vasto projeto de desenvolvimento ordenado pelo Imperador, parte das suas ambições de fomentar o
comércio. Ao contrário do seu antecessor, Cláudio preferia usar o tesouro público para o bem comum, em vez de o delapidar em luxos absurdos. Dois grandes molhes
estavam em construção, crescendo como braços titânicos que abraçavam as águas do novo porto. O trabalho não se interrompia por causa das inclemências do tempo no
período invernal, e o olhar de Macro repousou por momentos nas infindas filas de pobres escravos acorrentados que empurravam grandes blocos de pedra sobre rolos
de madeira até ao fim dos molhes, onde eram lançados ao mar. Bloco a bloco, construía-se assim uma muralha para proteger as embarcações dos assaltos do mar. Mais
ao largo ainda, tinha sido criado um quebra-mar. O proprietário da estalagem onde ele e o seu amigo Cato estavam alojados dissera-lhe que uma embarcação, das maiores
que alguma vez tinham sido construídas, fora carregada com grandes pedregulhos
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e afundada, para fornecer as fundações do quebra-mar. Depois tinham sido lançados mais blocos sobre o convés até emergirem da água, e agora, a pouco e pouco, erigia-se
ali um farol. Macro mal conseguia distinguir os pequenos vultos nos distantes andaimes, enquanto eles laboravam arduamente para terminar mais um nível do edifício.
- Antes eles do que eu - resmungou para si mesmo, enquanto puxava o manto sobre os ombros, numa tentativa de melhor se proteger da chuva.
Todas as manhãs dos últimos dois meses, tinha dado aquele passeio ao longo da margem, e o seu interesse pela evolução dos trabalhos no porto tinha ido diminuindo
com regularidade ao longo do tempo. O porto, como era normal, tinha um belo conjunto de tabernas e bares bem animados e próximos dos locais de atracagem, para aproveitar
ao máximo a clientela de marinheiros regressados de viagens mais ou menos longas e com dinheiro fresco no bolso. Na maior parte do ano, o veterano não teria tido
falta de gente interessante com quem partilhar bebidas e histórias. Mas nos meses de inverno o tráfego naval era reduzido, pelo que o porto andava tranquilo e os
bares eram frequentados apenas pelos clientes do costume, aqueles para quem o álcool era um bem essencial. A princípio, Cato não se importara de o acompanhar nuns
copos de vinho aquecido, mas o jovem tinha começado a meditar sobre a situação: a mulher com quem planeava casar estava a um dia de marcha, em Roma, mas ele via-se
impedido de a ir visitar ou até mesmo de a informar da sua presença em Óstia pelas estritas ordens que recebera do palácio imperial. Macro sentia pena do amigo,
já que havia quase um ano que Cato não estava com Júlia.
Antes de chegarem ao porto, Macro e Cato tinham estado no Egito, onde Cato se vira obrigado a assumir o comando de uma força francamente impreparada para repelir
uma vaga de invasores núbios. Tinha sido por pouco, refletiu Macro. Tinham regressado à península itálica na expectativa de serem justamente recompensados pelos
seus esforços. Cato mais do que merecia ver a sua promoção a prefeito confirmada, tal como Macro merecia poder escolher a legião em que queria ser colocado. Ao invés,
depois de apresentarem um relatório a Narciso, o secretário imperial, na ilha de Capri, tinham sido mandados para ali, para aguardarem novas ordens. Fora identificada
uma nova conspiração para derrubar o Imperador, e o secretário imperial precisava da ajuda de Macro e Cato para neutralizar a ameaça. As ordens que Narciso lhes
dera eram bem explícitas. Deviam permanecer em Óstia, alojados sob nomes falsos, até lhes chegarem novas instruções. O estalajadeiro era um liberto que tinha servido
no palácio imperial em Roma antes de receber a liberdade e uma pequena gratificação, suficiente para se instalar em Óstia com aquele pequeno negócio. O secretário
imperial
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confiava nele para tratar dos dois hóspedes sem fazer muitas perguntas. Era imperioso que a sua presença fosse mantida em segredo de toda a gente em Roma. Narciso
não mencionara sequer o nome de Júlia Semprónia. Cato compreendera perfeitamente o alcance daquelas palavras e, nos primeiros tempos, tinha contido a sua frustração.
Mas depois o tempo começara a esticar: passou um mês, depois dois, e continuava a não chegar uma nova palavra de Narciso, o que tinha levado ao limite a paciência
do jovem oficial.
A única informação que Narciso lhes facultara referia que a conspiração contra o Imperador envolvia uma obscura organização de conjurados cujo objetivo era devolver
o poder ao Senado. O mesmo Senado que fora diretamente responsável por conduzir a República a décadas de sangrenta guerra civil, depois do assassinato de Júlio César,
considerou Macro com azedume. Não se podia confiar nos senadores, o poder não podia cair-lhes de novo nas mãos. Gostavam demasiado dos seus jogos políticos, e pouco
ligavam às consequências que as suas atividades lúdicas produziam para o povo. Claro que havia honrosas exceções, reconheceu para si mesmo. Homens como o pai de
Júlia, Semprónio, e Vespasiano, que em tempos comandara a Segunda Legião em que Macro e Cato tinham servido durante a campanha na Britânia. Dois homens decentes,
de facto.
Deitou um último olhar aos escravos que trabalhavam no quebra-mar e cobriu-se com o capuz da capa militar. Virou-se e encetou o regresso ao porto, ao longo da estrada
que seguia junto ao mar. Também ali se avistavam as evidências do novo surto de desenvolvimento de Óstia. Vários armazéns de grandes dimensões tinham sido edificados
junto ao novo cais, e outros estavam ainda em construção em áreas que tinham sido arrasadas para arranjar espaço para os novos projetos. Percebia-se que quando o
trabalho estivesse concluído, aquele seria um porto moderno e eficiente. Mais uma prova do poder e da riqueza de Roma.
O caminho que seguia juntou-se à estrada que levava ao porto, e as suas botas militares de solas cardadas denunciaram, pelo ruído, que tinha passado a caminhar por
uma via pavimentada. Atravessou a porta da cidade, com uma ligeira troca de acenos com a sentinela, que já tinha aprendido a evitar cometer a asneira de exigir a
portagem de entrada a um legionário. Um dos benefícios de ser um soldado era estar isento de algumas das normas mais irritantes que governavam a vida dos civis.
O que era pura e simplesmente justo, considerou Macro, uma vez que era o sacrifício dos soldados que tornava possíveis a paz e a prosperidade que se viviam no Império.
Tirando, evidentemente, aqueles ociosos poltrões que passavam os dias em aconchegados postos de guarnição em regiões mais que apaziguadas como a Grécia, ou como
aqueles convencidos imbecis da Guarda Pretoriana. Fez uma careta. Aqueles tipos recebiam vez e
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meia o salário dos legionários, apesar de não terem nada que fazer para lá de se aperaltarem para uma ou outra cerimónia e de vez em quando tratarem de despachar
com eficiência quem se visse condenado como inimigo do Imperador. As hipóteses de enfrentarem alguma ação real eram escassas. Isto dito, tivera ocasião de os ver
em ação numa ocasião, na Britânia, durante a breve viagem que o Imperador empreendera para recolher o crédito pelo sucesso da campanha. Tinham demonstrado um certo
valor em combate, admitiu a custo.
Os blocos de apartamentos que ladeavam a rua por onde seguia, de três e quatro andares de altura, ajudavam a esconder a já diminuta luz matinal, e davam à via que
levava ao coração da cidade uma atmosfera fria e escura. Ao chegar à encruzilhada de onde irradiavam as ruas que levavam aos outros bairros de Óstia, Macro virou
à direita, seguindo pela longa avenida que atravessava o centro, uma área relativamente pequena onde se apinhavam os principais templos, as casas de banhos mais
luxuosas e o fórum, como se competissem pela atenção dos cidadãos. Era dia de mercado, pelo que a rua estava congestionada, com mercadores e funcionários municipais
a tratarem dos seus afazeres. Uma fila de escravos acorrentados pelos tornozelos seguia a caminho dos calabouços do mercado, ocupando a borda da estrada sob a vigilância
atenta de um punhado de brutamontes equipados com pesados cajados. Macro atravessou o fórum, que se estendia dos dois lados da rua, virou para uma via lateral, e
depressa avistou a imponente fachada colunada da Biblioteca de Menelau, onde tinha combinado encontrar-se com Cato. A biblioteca fora oferecida à cidade por um liberto
grego, que tinha feito uma fortuna na importação de azeite. Estava bem apetrechada, com uma mistura de livros arrumados de forma bastante eclética nas estantes.
Macro lançou o capuz para trás quando começou a subir os degraus que levavam à entrada. No interior deu imediatamente de caras com um funcionário sentado a uma secretária,
aquecido por um braseiro próximo. Assim que viu que o novo visitante era um soldado, os olhos do homem semicerraram-se, denunciando alguma desconfiança.
- Senhor, posso ajudá-lo?
Macro limpou a humidade da testa e anuiu.
- Procuro uma pessoa. Um soldado, como eu.
- Sim? - O funcionário arregalou uma sobrancelha. - Senhor, tem a certeza de que veio ao local correto? Isto é uma biblioteca.
Macro encarou-o sem perder a fleuma.
- Sim, já tinha reparado.
- Senhor, se me permite, sugiro que talvez venha a ter mais sucesso na procura do seu camarada se se dirigir a um dos estabelecimentos na proximidade
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do fórum. Creio bem que esse tipo de local é bastante mais popular entre a soldadesca do que esta biblioteca.
- Pois, mas acredita quando te digo que combinei encontrar-me aqui com esse meu amigo.
- Bem, senhor, não é de todo habitual que este local seja escolhido como ponto de encontro para os soldados - insistiu o funcionário, marcando bem as palavras.
- Será verdade, mas este meu amigo também não é propriamente um soldado típico. - Macro sorriu. - Portanto diz-me, viste-o? E limita-te a responder à pergunta, sim?
Não é preciso olhares-me de alto, a não ser que queiras passar uns minutos mais animados.
O outro percebeu que aquele entroncado visitante de ar rude não se ia deixar enxotar. Limpou a garganta e pegou numa tábua encerada e num estilete, tentando dar
a entender que tinha sido interrompido quando se preparava para concluir uma qualquer tarefa burocrática absolutamente vital e de grande complexidade.
- Senhor, entrei de serviço há pouco tempo. Se o seu amigo se encontra nas nossas instalações, deve ter entrado mais cedo, já que eu não o vi, e não tenho qualquer
ideia do seu paradeiro. Sugiro portanto que o procure.
- Estou a perceber - replicou Macro, com toda a calma. Deixou-se estar imóvel por momentos, e depois debruçou-se sobre a secretária, deixando que a bainha da capa
tombasse sobre a tábua em que o funcionário escrevinhava. O homem parou e olhou para cima, ansioso.
- Senhor?
- Um último conselho, à laia de despedida - ameaçou Macro. - Olha, rapaz, se fosse a ti, pensaria seriamente antes de tratar as pessoas com todo esse desdém. Voltas
a usar esse tom comigo, e pode muito bem suceder que eu acabe por confundir a tua bela e arrumada biblioteca com um dos tais animados estabelecimentos de que falavas...
Percebes?
O outro engoliu em seco.
- Sim, senhor. As minhas desculpas. Peço-lhe que se sinta à vontade para procurar o que quiser na biblioteca, as nossas instalações estão à sua inteira disposição.
- Ora aí está! - Macro lançou um sorriso. - Custa tanto ser agradável com as pessoas como ser um completo cretino, não é?
O homem olhou em redor com ar nervoso, para ver se algum dos seus colegas estava por perto, mas tal não era o caso. Olhou de novo para o soldado que o atormentava,
com ar desanimado.
- Sim, senhor. É como diz.
Macro afastou-se por fim, a esfregar as mãos para as aquecer. Tinha um ódio inesgotável por aquela gentinha que ocupava posições menores,
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cujo único propósito neste mundo parecia ser prejudicar os que tinham coisas realmente importantes a fazer.
A biblioteca tinha um vasto átrio, com passagens em todas as paredes. Depois de uma breve hesitação, Macro dirigiu-se à do meio, oposta à entrada; os seus passos
ecoavam nas altas paredes. Entrou num salão comprido, forrado a estantes repletas de rolos de escritos. O teto, uns dez metros acima do chão lajeado, tinha sido
pintado com cenas náuticas, que eram iluminadas pelas estreitas janelas colocadas bem ao cimo das paredes. Ao centro da sala havia uma fila de mesas e bancos, e
uma vez que era ainda cedo naquela manhã fria, estavam apenas três pessoas naquele espaço: dois homens idosos debruçados sobre um pergaminho que discutiam em surdina,
e a inconfundível e magra figura de Cato, embrulhado na sua capa militar. Estava sentado na ponta da sala, onde uma faixa de luz lhe dava alguma iluminação, ainda
que pouco adequada para examinar as largas folhas de papiro que tinha à sua frente.
O barulho claro das botas de Macro no soalho fez com que os dois velhos abandonassem a sua discussão e encarassem com ar carrancudo o recém-chegado, que de forma
tão evidente perturbava o silêncio habitual na biblioteca. Embora Cato não pudesse ter deixado de ouvir o som das botas do amigo, continuou a ler até Macro estar
bem próximo, e só então colocou um dedo sobre o papiro para marcar onde ia e olhou para cima. O rosto parecia ainda mais magro, e ele olhou para Macro sem qualquer
expressão enquanto este se sentava no banco do outro lado da mesa. O jovem oficial tinha sofrido uma grave ferida no rosto quando da sua passagem pelo Egito, e agora
exibia uma cicatriz esbranquiçada que vinha da testa, atravessava o nariz e descia pela face. Apesar do aspeto dramático, não o tinha realmente desfigurado. Na opinião
de Macro, era até uma marca de que o amigo se podia orgulhar. Algo que o distinguia de outros oficiais de ar quase imberbe que serviam o Imperador, e que o denunciava
como o veterano experimentado em que se tinha tornado, desde o longínquo momento em que, havia oito anos, se juntara à Segunda Legião, então apenas mais um recruta
desajeitado.
- Encontraste o que procuravas? - Macro acenou para as folhas à frente de Cato, antes de apontar para as estantes repletas na parede. - Há aqui material mais do
que suficiente para te manter entretido, hã? Deve ajudar a passar o tempo.
- Passar até quando, é o que me pergunto. - Cato ergueu a mão livre e coçou levemente a face, no ponto onde a cicatriz terminava. - Há quase um mês que não sabemos
nada do Narciso.
Cato enviara uma mensagem ao secretário imperial através do estalajadeiro, pedindo para saber porque é que ele e Macro tinham de ficar confinados
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a Óstia. A resposta fora seca, e dissera-lhes apenas para esperarem. O aborrecimento de Cato perante a espera forçada no porto alternava com a fúria que sentia
por ser impedido de ver Júlia. O que não deixava de o atormentar era a possível reação dela à cicatriz. Estaria disposta a aceitá-lo com aquele aspeto, e recebê-lo-ia
nos seus braços de novo? Ou teria alguma reação de repulsa? Pior ainda, Cato temia que ela tivesse pena dele e por isso se lhe oferecesse. Esse pensamento destroçava-o
por dentro. Não podia saber qual a resposta da jovem antes de a voltar a ver, e nem sequer a podia preparar para o encontro, uma vez que Narciso o proibira de a
tentar contactar.
- O que é que estás para aí a ler? - interrompeu-o Macro.
Cato concentrou-se, esquecendo os devaneios.
- Uma cópia da gazeta de Roma. Estive a pôr-me a par dos acontecimentos na cidade nos últimos meses, para ver se há algum indício do que faz com que o Narciso precise
de nós.
-E?
- Nada que salte à vista. Apenas o habitual rol de cerimónias, anúncios de nomeações e nascimentos, casamentos e mortes dos grandes e poderosos. Havia por aqui uma
menção ao senador Semprónio. Foi louvado pelo Imperador por ter sufocado a revolta dos escravos em Creta.
- E nem uma referência ao nosso papel nessa história, aposto - resmungou Macro.
- Por acaso, não.
- Que grande surpresa. Mais alguma coisa digna de nota?
Cato olhou de relance para as folhas à sua frente e abanou a cabeça.
- Nada de importante, a não ser... - Pesquisou por entre as folhas, estudando cada uma brevemente, até que extraiu uma. - Cá está. Um relatório de há duas semanas,
que dá conta de que um dos oficiais da Guarda foi emboscado e morto por salteadores, perto de Piceno. Os assaltantes não foram encontrados... Deixa uma viúva chorosa
e um filho pequeno, etcétera. - Cato levantou de novo o olhar. - É tudo.
- Não parece ter nada a ver com a nossa presença aqui - comentou Macro.
- Pois, suponho que não. - Cato recostou-se e espreguiçou-se, enquanto bocejava longamente. Quanto terminou, apoiou os cotovelos na mesa e olhou para Macro. - E
assim se passa mais um dia na maravilhosa cidade de Óstia. Como é que nos vamos distrair hoje? No teatro, nada. Está demasiado frio para ir à praia e nadar. A maior
parte dos banhos públicos estão fechados até que o negócio anime quando chegar a primavera, e o nosso bom amigo Espúrio, esse maravilhoso anfitrião, recusa-se a
acender a lareira para aquecer a casa antes da chegada do entardecer.
Macro soltou uma gargalhada.
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- Caramba, estás mesmo com um humor miserável! - Pensou por momentos e arqueou as sobrancelhas. - Olha, já te digo. Segundo o Espúrio, há material novo no bordel
que fica ao pé dos Banhos de Mitra. Queres ir até lá ver o que há? Sempre nos mantinha quentes e satisfeitos. Que dizes?
- Tentador. Mas não me apetece.
- Uma porra. Estás é a guardar-te para aquela miúda, não é?
Cato encolheu os ombros. A verdade era que não encarava de bom grado a possibilidade de visitar as prostitutas repletas de doenças que serviam os habitantes locais
e os marinheiros de passagem. Se apanhasse uma maleita com alguma delas, seria o fim de qualquer hipótese de uma união feliz com Júlia.
- Vá o Macro, se lhe apetece mesmo. Por mim, vou voltar à estalagem, ver se como qualquer coisa, e depois vou instalar-me num canto e ler um bocado.
- Ler um bocado - repetiu Macro, descrente. - Miúdo, mas o que tens tu nas veias afinal? Sangue, ou um caldo aguado?
- Seja qual deles for, vou ficar no quarto a ler. Pode fazer o que bem lhe apetecer.
- E vou fazê-lo. Assim que tiver comido qualquer coisa para retemperar as forças.
Os bancos rasparam no chão quando os dois soldados se puseram de pé. Cato juntou as folhas das gazetas e devolveu-as à estante antes de se dirigir para a porta com
Macro, não evitando perturbar de novo os outros dois homens com os seus passos largos.
- Chhhiu! - Um deles levou um dedo aos lábios. - Isto é uma biblioteca, não sei se sabem!
- Biblioteca! - ripostou Macro, com ar enojado. - Um bordel de ideias, isso sim. A única diferença é que uma biblioteca nunca nos há de deixar com um ar satisfeito
e um calorzinho cá dentro, pois não?
- Lamentável! - explodiu o outro idoso. Virou-se para Cato. - Senhor, por favor, peço-lhe que faça o obséquio de levar o seu companheiro para longe desta sala.
- Ele não precisa de incentivo, acredite. Vamos, Macro. - Cato pegou no amigo pelo braço e orientou-o para a saída do edifício.
O cozinheiro de Espúrio, um antigo marinheiro que tinha perdido uma perna num acidente, serviu-lhes um guisado ralo com centeio e nacos de carne que talvez tivessem
em tempos pertencido a uma peça de borrego bem temperada; era difícil de dizer, porque se alguma vez tinham sabido a alguma coisa, fora já há muito tempo, e a textura
que apresentavam era igualzinha à de uma casca de árvore bem ensopada. Mas pelo menos a
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comida estava quente, e sempre lhes acalmava o apetite. Quando Cato pediu pão, o cozinheiro resmungou, afastou-se e regressou com um pão seco e velho que pousou
na mesa com estrondo.
- Espúrio! Vem cá! - gritou Macro, assustando os outros quatro clientes que jantavam na sala. O estalajadeiro estava ao balcão, a colocar as suas canecas de barro
barato nas prateleiras. Voltou-se, irritado, e lá se dirigiu à mesa dos dois oficiais.
- O que se passa? Importa-se de manter a voz mais baixa?
Macro fez um gesto designando a tigela de guisado, que ainda continha cerca de um terço da porção inicial.
- Até é provável que eu esteja com fome suficiente para comer esta porcaria, mas quando me é apresentado um pão que eu não seria capaz de forçar pela goela da porra
de um porco, aí digo que já chega. - Pegou no pão e bateu-o no tampo da mesa. - Foda-se, rijo que nem uma pedra.
- Ora, ensopem-no no guisado. Depressa ficará mole - sugeriu Espúrio, com ar amigável.
- Quero pão decente - retorquiu Macro, com firmeza. - Cozido de fresco. E quero-o agora. Já.
- Desculpe, mas não há nenhum.
Macro puxou o banco para trás. Prosseguiu em tom baixo, para ter a certeza que os outros clientes não o escutavam.
- Olha, disseram-te para tratares de nós, e não tenho dúvidas de que estás a ser bem pago para nos forneceres cama e comida.
- Pois sim; recebo uma ninharia para vos aturar aos dois - protestou Espúrio. - Ou melhor, receberei, quando vocês partirem e o Narciso pagar a conta. Enquanto isso
não sucede, é o meu lucro que sofre.
Macro sorriu.
- Aquela víbora do Narciso nunca dá mais uma moeda do que tem de ser, e é pelo menos tão provável que te venha a enganar como que venha a cumprir a sua palavra,
como nós já tivemos ocasião de comprovar em diversas ocasiões.
- Macro, já chega - recriminou-o Cato. - Não vamos discutir as nossas atividades passadas.
Macro virou-se e deitou um olhar furibundo ao amigo, mas depressa se acalmou, e a sua expressão mudou.
- Seja. Mas não me agrada mesmo nada ser deixado pendurado em Óstia, e forçado a confiar nesta espelunca para me dar abrigo e comida. Cato, isto não está certo.
- Claro que não, mas não há nada que possamos fazer quanto a isso.
- Cato virou-se para o estalajadeiro. - Ora bem, nós percebemos que não te agrade que a nossa presença te tenha sido imposta. Também a nós
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pouco agrada esta situação. Mas para ver se conseguimos aturar-nos uns aos outros sem haver problemas, sugiro que tentes arranjar maneira de nos alimentar um bocadito
melhor. Para começar, proponho que arranjes ao meu amigo aquilo que ele pediu, pão fresco.
Espúrio respirou fundo, e anuiu com um ligeiro movimento da cabeça.
- Vou ver o que consigo arranjar. Desde que me prometam que não vão arranjar problemas com o resto dos clientes.
Cato assentiu.
- Prometemos.
O homem regressou ao balcão e começou a falar em voz baixa com o cozinheiro. Cato lançou um sorriso a Macro.
- Está a ver o que se consegue com um bocadinho de persuasão amigável?
Macro fungou.
- Tem os seus usos. Mas terei de acrescentar que já comprovei que de vez em quando a aplicação da força também pode produzir resultados muito aceitáveis.
- Não no caso em que não se quer atrair a atenção geral sobre a nossa pessoa.
Macro abanou a cabeça.
- Cato, nesta altura até me agradava um bom bocado de atenção. Este lugar está a dar comigo em doido. Já é mau termos de ficar aqui plantados à espera que o Narciso
resolva alguma coisa. Mas o pior é que o sacana não nos deu senão uma mísera parte do salário atrasado que temos acumulado, e nestas condições não podemos sequer
comer decentemente ou procurar acomodações mais confortáveis.
Cato manteve-se em silêncio por momentos.
- Não tenho dúvidas de que isso é propositado, para nos amolecer um bocado.
Antes que Macro pudesse responder, ouviu-se barulho de rodas de vagão na rua, abruptamente interrompido quando o veículo se imobilizou em frente à estalagem. Espúrio
apressou-se a acorrer à porta, abriu uma fresta e saltou rapidamente para o exterior, fechando-a atrás de si. Macro e Cato ouviram uma rápida troca de palavras abafadas,
e então o veículo prosseguiu a marcha, rodeando o edifício até às traseiras, onde existia um pequeno pátio com lugar para os cavalos dos viajantes que escolhiam
passar a noite no estabelecimento.
- Novos clientes para esta espelunca - concluiu Macro. - Não achas que os devemos avisar quanto à qualidade do serviço?
- Deixe lá isso - aconselhou Cato, farto. Fixou o olhar na tigela que tinha à frente, antes de pegar relutantemente na colher e continuar a sorver
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aquele guisado intragável. Pouco depois o cozinheiro reapareceu, um tanto afogueado, e dirigiu-se à mesa coxeando ligeiramente, para lhes apresentar um pão ainda
quente. Macro cheirou e olhou para o amigo com ar de espanto.
- E não é que está acabadinho de cozer?
Pegou no pão, partiu-o ao meio e lançou um pedaço na direção de Cato, antes de se lançar de novo e com evidente deleite ao ataque do caldo ainda fumegante. Das traseiras
da estalagem vinha o som de vozes e de cadeiras a serem arrastadas, e levou algum tempo até que Espúrio voltasse a emergir da porta baixa por trás do balcão. Olhou
em redor para os outros clientes e depois atravessou a sala, dirigindo-se à mesa onde se sentavam os dois amigos.
- O que foi agora? - resmungou Macro. - Aposto que o sacripanta nos vai pedir para mudarmos de quarto, para ceder o nosso ao novo hóspede.
- Não me parece.
Espúrio debruçou-se sobre eles e falou quase em surdina.
- Sigam-me.
Cato e Macro trocaram um rápido olhar, e Cato retorquiu:
- Porquê?
- Porquê? - Espúrio franziu o sobrolho. - Senhor, venha, sim? Depressa saberá porquê. Aqui não posso dizer mais nada. - Acenou muito ligeiramente na direção dos
outros ocupantes da sala. - Se me faço entender.
Macro encolheu os ombros.
- Não, nem por isso.
- Bom - decidiu Cato. - Vamos lá.
Deixaram o que restava da refeição e levantaram-se para seguir o homem até à porta que dava para os fundos da casa. Os outros clientes olhavam-nos com curiosidade
à medida que passavam, facto que não escapou a Cato, que reagiu com um sorriso divertido. Espúrio passou primeiro pela porta, seguido por Macro e depois por Cato,
que teve de se abaixar para passar. Do outro lado havia uma pequena sala, iluminada por uma solitária lamparina. À meia-luz, Cato reparou que as paredes estavam
cobertas por ânforas de vinho e cestas com hortaliças, e que de um gancho pendia um saco de rede repleto de pão fresco, ao lado de duas peças de carne curada. Era
evidente que o estalajadeiro se alimentava perfeitamente, embora os seus clientes não pudessem dizer o mesmo. Na ponta da sala havia outra porta, ligeiramente aberta,
e a passagem estava bem iluminada por uma lareira que ardia na sala contígua. Espúrio entrou, de novo seguido por Macro, que soltou imediatamente uma imprecação.
A nova sala era ampla, e
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no centro via-se uma mesa larga. O fogo onde eram preparadas as refeições ardia bem vivo sob uma grelha de ferro, e lançava uma luz rósea por todo o compartimento.
Sentada à cabeceira da mesa via-se uma figura de pequeno porte embrulhada num manto sem quaisquer ornamentos. Levantou o olhar do pão e queijo que lhe tinham sido
postos à frente e sorriu ao avistar Macro e Cato.
- Bem aparecidos, meus senhores. Muito agradecido por terem vindo juntar-se a mim! - Narciso acenou-lhes para que se sentassem no banco do outro lado da mesa. -
Aliás, sou eu que me junto a vós.
- O que está aqui a fazer? - indagou Macro. - Já tinha começado a temer que estivesse inclinado a deixar-nos pendurados para sempre.
- Centurião, é de facto um prazer voltar a ver-te - retorquiu Narciso, sem lhe dar troco. - A tua espera terminou. O vosso Imperador precisa de vós. E agora mais
do que nunca...
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Cato respondeu à saudação do secretário imperial com um olhar frio. Apesar de ter nascido como escravo do palácio imperial, Narciso trabalhara duramente e fora libertado
por Cláudio, anos antes de este se ter tornado Imperador. Como liberto, o estatuto social de Narciso era inferior ao do mais humilde dos cidadãos de Roma, mas sendo
um dos mais próximos conselheiros do Imperador, detinha mais poder e influência do que qualquer um dos aristocratas que se sentavam no Senado. E era também Narciso
quem controlava a vasta rede de espiões dedicada a identificar qualquer ameaça contra o seu senhor. Fora nessa posição que recorrera aos serviços de Cato e Macro
em ocasiões anteriores, e que agora se preparava para o fazer de novo, refletiu Cato com amargura.
Depois de o estalajadeiro ter trazido um jarro de vinho e três copos, Narciso dispensou a sua presença.
- Por agora é tudo, Espúrio. Trata de garantir que não somos interrompidos nem escutados.
- Sim, senhor. - O homem inclinou a cabeça e virou-se para sair. Ao chegar à porta, parou. - Senhor?
- O que é?
- A minha filha. Há alguma notícia dela?
- Pergila, não era? Sim, ainda estou a tentar convencer o Imperador a conceder-lhe a liberdade. Estas coisas levam o seu tempo. Trata de cumprir a tua parte do acordo,
e eu farei o que puder por ela. - Narciso fez um gesto com a mão. - Agora, deixa-nos.
O homem afastou-se, e Narciso esperou que o som dos seus passos se desvanecesse e a porta do pequeno compartimento adjacente se fechasse.
- Um servidor leal e bastante útil, mas às vezes torna-se exigente. Bom, já chega de falar do Espúrio! - Narciso debruçou-se sobre a mesa e acenou na direção do
jarro. - Macro, podias encher-nos os copos. Devíamos celebrar esta reunião de velhos amigos.
Macro abanou a cabeça.
- Meu amigo é a última coisa que se pode considerar.
Narciso encarou-o por momentos e por fim anuiu.
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- Muito bem então, centurião. Eu mesmo farei as honras. - Inclinou-se, tirou a rolha do recipiente, e encheu os copos com um vinho escuro. Pousou o jarro e ergueu
o seu copo. - Ao menos, junta-te a mim num brinde... Morte aos inimigos do Imperador.
Macro tinha estado a olhar para o vinho com ar de quem revê um velho companheiro, pelo que revelou apenas um leve trejeito de relutância antes de pegar no copo mais
próximo e repetir o brinde. Bebeu um bom trago e fez estalar os lábios.
- Portanto é esta pinga que aquele sacana do Espúrio nos tem escondido.
- Não têm sido bem tratados, então? - quis saber Narciso. - Dei instruções claras ao Espúrio para que ficassem bem instalados.
- Ele fez o seu melhor - respondeu Cato. A acreditar no estalajadeiro, o homem não tinha recebido qualquer compensação pelos dois hóspedes que lhe tinham sido impostos
fazia já dois meses. Além disso, se Narciso estava a usar a filha do homem para o forçar a corresponder às suas exigências, Cato estava pouco disposto a aumentar
os problemas de Espúrio.
- Deu-nos um quarto asseado e as refeições são servidas a tempo e horas. O Espúrio tem-te servido bem.
- Calculo que sim. - Narciso reparou na expressão supresa de Macro, e franziu o sobrolho. - Embora me pareça que o teu amigo não ache que ele próprio tenha sido
particularmente bem servido.
- Somos soldados - ripostou Macro. - Estamos habituados a bem
pior.
- Bem o dizes. E chegou o momento de mais uma vez servirem Roma.
- Narciso sorveu algum líquido, e também ele lambeu os lábios. - Um falerniano. O Espúrio está mesmo a tentar impressionar-me!
- Imagino que tenha alguma pressa em regressar ao palácio - começou Cato. - Será melhor então tratarmos do assunto que aqui o trouxe.
- Jovem Cato, gosto de te ver tão prestável - respondeu Narciso num tom frio. Pousou a taça com um movimento brusco. - Muito bem. Recordam-se do nosso último encontro?
- Em Capri, sim.
- Levantei então a possibilidade de existir uma nova ameaça dos Libertadores. Essa escumalha parece ter decidido não descansar até se livrar do Imperador. Como habitualmente,
proclamam que agem em nome do Senado e do povo de Roma, mas a verdade é que só conseguiriam mergulhar Roma numa nova idade das trevas, como a que sofremos nos tempos
de tiranos como Sula e Mário. O Senado seria de novo palco da luta de fações pelo poder. Em poucos meses teríamos em mãos uma guerra civil.
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- Narciso fez uma breve pausa. - O Senado teve a sua utilidade no tempo anterior ao Império. Agora só uma autoridade suprema pode manter a ordem necessária. O facto
é que não se pode confiar nos senadores para garantir a segurança e o bem-estar de Roma.
Cato soltou uma gargalhada seca.
- Mas calculo que se possa confiar num secretário imperial...
Narciso manteve o silêncio por momentos, as narinas dilatadas, enquanto tentava digerir o desdém que aquelas palavras revelavam. Acabou por assentir.
- Sim, eu, e aqueles que me servem, somos tudo o que se interpõe entre a ordem e o caos sanguinário.
- Até pode ser que seja verdade - admitiu Cato. - Mas na realidade essa ordem que jura defender também é por vezes bastante sanguinária.
- Há um preço a pagar pela ordem. Achas realmente que a paz e a prosperidade podem ser conseguidas e mantidas sem o ocasional derramamento de sangue? Vocês os dois,
soldados, deviam perceber isso melhor do que ninguém. Mas o que não sabem é que as guerras que travam em nome de Roma estão longe de terminar quando as armas se
calam. Existe outro campo de batalha, longe da fronteira, onde a luta nunca amaina, e onde se combate pela ordem. É essa a guerra que eu travo. Os meus inimigos
não são bárbaros ululantes. São criaturas de falas mansas, que se escondem na sombra e que buscam o poder para si mesmos, à custa do bem público. Podem até disfarçar
as suas ambições vis nas vestes dos princípios, mas acreditem quando vos digo que não há artimanha a que não sejam capazes de recorrer para conseguir os seus malvados
fins. É por isso que Roma precisa de mim, e porque precisa de vocês. Homens como nós são a sua única esperança de sobrevivência. - Narciso calou-se e serviu-se de
mais vinho, enquanto humedecia os lábios.
- É engraçado - comentou Cato. - Quando outros homens agem em defesa dos seus próprios interesses, chama-lhe mal. Quando somos nós a fazê-lo, somos patriotas.
- Apenas porque a nossa causa é justa. Ao contrário da deles.
- Uma diferença de perspetiva, nada mais.
- Cato, não te ponhas a dignificar os nossos inimigos com abstrações filosóficas. Limita-te a perguntar a ti mesmo em que Roma preferirias viver. Na nossa, ou na
deles?
Macro deu um estalo com a língua.
- Ora aí está um bom ponto.
- Pronto! - Narciso mostrou-se radiante. - Até o centurião Macro consegue perceber a justeza daquilo que afirmo.
Macro franziu o sobrolho e arqueou uma sobrancelha.
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- Até o centurião Macro... Obrigadinho.
Narciso soltou uma risada e encheu a taça de Macro até cima.
- Não quis ofender. Queria apenas demonstrar que a distinção entre o certo e o errado nesta história é abundantemente clara para um homem de ação como tu.
Enquanto Macro refletia na frase, o secretário imperial prosseguiu, apressado.
- De qualquer forma, Cato, a verdade é que tens muito pouca margem de escolha. Respeito evidentemente o teu direito a emitir uma opinião, por muito pouco ponderada
que seja, mas a verdade é que terão de fazer o que eu vos disser, se tu e o Macro querem ter um futuro nas vossas carreiras; e sobretudo se queres mesmo casar com
a maravilhosa filha do senador Semprónio.
Cato baixou a cabeça e passou lentamente os dedos pelos escuros cabelos encaracolados e desalinhados. Narciso tinha-os precisamente onde os queria. O que ele e Macro
mais desejavam era regressar às legiões. Cato ansiava pela promoção que significaria a sua elevação à classe equestre, já que só assim o seu casamento numa família
senatorial seria tolerado.
- Bem, miúdo. - Macro interrompeu-lhe a sequência de pensamentos. - O que dizes? Tudo é aceitável, desde que sirva para nos tirar daqui. Além disso, não acredito
que seja assim tão mau. Não pode ser mais perigoso do que aquilo por que já passámos.
Narciso cerrou os lábios, sem proferir uma palavra.
Com um suspiro resignado, Cato levantou a cabeça e enfrentou diretamente o olhar do secretário imperial.
- O que quer que nós façamos desta vez?
Narciso sorriu devagar, com o ar de um homem habituado a conseguir tudo o que queria.
- Vou começar por vos dar alguma informação geral sobre a situação atual. - Recostou-se e cruzou os dedos. - Como já sabem, o regime quase soçobrou em consequência
das conspirações engendradas pela Messalina. Aquela mulher era veneno puro. Não havia nenhum ato tão baixo que ela se recusasse a cometer. A única coisa que se podia
comparar à sua falta de moral era a ambição de que dava mostras. Sabia exatamente o que fazer para manter o Cláudio a comer-lhe da mão. E não apenas ele, o mesmo
se aplicava a muitos outros, incluindo o Políbio, um dos outros conselheiros do Imperador.
- Reconheço esse nome - afirmou Cato. - Não se suicidou há tempos?
- Assim lhe foi ordenado. Em nome do Imperador. Não teve sequer tempo de fazer um derradeiro apelo a Cláudio, já que recebeu a visita
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de alguns guardas pretorianos que resolveram pressioná-lo a resolver o assunto.
- Assassinaram-no?
- A linha entre assassínio, execução e suicídio tornou-se bastante ténue nos últimos tempos. A morte, venha como vier, muitas vezes resolve uma dificuldade política,
ou responde a um desejo de vingança, ou chega simplesmente em resultado do capricho de alguém com autoridade suficiente para a exigir. E por essa razão não se podia
permitir a Messalina permanecer numa posição em que podia exercer maior influência sobre o Imperador do que os seus mais próximos e leais conselheiros. Portanto,
quando ela decidiu aproveitar uma ocasião em que o Imperador se ausentou de Roma para se divorciar dele, casar com o amante e apoderar-se do poder, tivemos de agir.
Cláudio estava aqui em Óstia, a inspecionar os progressos nas obras do porto. Foi nessa altura que me chegaram as notícias. Vislumbrei de imediato o perigo iminente
e falei com os mais próximos do Imperador, Calisto e Palias. Tivemos de recorrer a todos os nossos poderes de persuasão até levar o Cláudio a aceitar a verdade sobre
a Messalina. E mesmo assim ele negou a evidência, afirmou que não podia ser. - Narciso tremia visivelmente enquanto recordava os acontecimentos. - Então encorajámo-lo
a beber algum vinho, para amortecer o choque. E nessa altura apresentámos-lhe o decreto para a sua prisão e execução, além de outros destinados a assegurar a prisão
dos seus aliados.
- Espertalhaço! - comentou Macro, sem esconder a aprovação. - E o que fez o Imperador quando recuperou o uso das suas faculdades?
- Mortificou-se ao longo de todo um mês. Enquanto nós os três tratávamos de despachar os outros membros da conspiração. O importante disto é que vocês se apercebam
de como é fácil enganar o Imperador, e de como isso o torna vulnerável - a ele, mas também a Roma.
- E como é essa história com a nova esposa? - quis saber Macro. - A Agripina. Se bem me lembro, ela é sobrinha dele.
- Pois. O que provocou um belo escândalo, quando Cláudio fez o anúncio público da sua escolha para nova esposa. O que eu tive de lutar para conseguir que o Senado
aprovasse uma decisão para remover uma união desse género da lista de casos de incesto. Felizmente, um dos mais notáveis senadores andava mesmo à procura de uma
ocasião para voltar às boas graças do Imperador. Tratou do caso e conseguiu fazer aprovar a nova lei. Mas mesmo assim não foi nada fácil, posso garantir-vos.
Cato tinha estado a refletir durante a conversa.
- Quem é que teve a ideia de sugerir a Agripina?
Deu-se um breve silêncio, até que Narciso respondeu num tom quase venenoso:
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- O Palias. Disse que teríamos mais hipóteses de evitar uma repetição do caso Messalina se escolhêssemos uma noiva dentro da própria família imperial. Além disso,
ele tem alguma influência sobre ela. Calculámos que seríamos capazes de a manter na linha e ao mesmo tempo assegurar que o Cláudio continuaria a ouvir os nossos
conselhos.
- E resultou? A nova Imperatriz tem-se portado da forma que vocês esperavam?
Narciso inclinou ligeiramente a cabeça.
- Não nos tem dado muito trabalho. O único problema foi ela ter chegado a este casamento com alguma bagagem desnecessária.
- Bagagem?
- O filho. Lúcio Domício Ahenobarbo. Pelo menos, era assim que se chamava, antes de a mãe ter convencido o Imperador a adotá-lo. Agora passou a chamar-se Nero Cláudio
Druso Germânico. O filho natural do Cláudio não está propriamente agradado com este arranjinho. O Britânico não reconhece o seu irmão adotivo, e recusa-se a chamar-lhe
Nero. Portanto não há propriamente amor fraternal entre eles. Quando Cláudio partir para o mundo das sombras, ou seja lá para onde forem os imperadores endeusados,
estes dois vão-se atirar ao gasganete um do outro para lhe suceder no trono.
Macro abanou a cabeça.
- Sim, parece-me que quando esse momento chegar, vamos ter uma confusão das antigas.
Cato pensou por momentos antes de voltar a tomar a palavra.
- Mas o Britânico é o herdeiro do Imperador, portanto é o primeiro na linha de sucessão, não é?
- Ah, se as coisas fossem assim tão simples... - retorquiu Narciso. - O Nero tem catorze anos, é quatro anos mais velho do que o meio-irmão. O Britânico também tem
outra desvantagem: a mãe era a Messalina, o que o deixa um tanto mal visto perante o próprio pai. Se ele se tornar Imperador, temo que os inimigos da mãe vão passar
um mau bocado. É o tipo de jovem que atribui uma elevada prioridade à vingança.
Macro sorriu.
- Existe portanto alguma justiça nesta vida. Essa perspetiva deve estar a provocar-lhe umas noites mal dormidas.
A expressão de Narciso endureceu subitamente.
- Centurião, se soubesses nem que fosse a mais ínfima fração do que me pesa na mente, duvido que alguma vez conseguisses fechar os olhos. O Imperador é vulnerável
a ameaças vindas de todos os quadrantes. A sua saúde começa a fraquejar, e tenho de fazer tudo o que posso para o proteger e assegurar que a paz e a ordem perduram.
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- E quando ele morrer? O que fazer então? - inquiriu Macro, curioso.
- Teremos de nos assegurar de que a escolha recaia sobre o melhor sucessor.
- E quem tem em mente? - quis saber Cato.
- Ainda não estou certo. Tanto o Nero como o Britânico são ainda muito jovens, e ambos têm as suas falhas e virtudes. Quando chegar o momento, eu e os outros conselheiros
do Imperador faremos essa escolha e levaremos Cláudio na direção correta, de forma a nomear o sucessor mais adequado.
Cato cerrou os lábios por segundos.
- Não estou a ver o que tem tudo isso a ver comigo e com o Macro. Não há nada que possamos fazer para influenciar a sequência dos acontecimentos.
- Como te disse, achei que era importante mostrar-vos o panorama global, para que percebam a gravidade da situação e compreendam perfeitamente o que vos vou pedir
para fazerem.
Os dois oficiais trocaram um olhar rápido, e Cato acenou a Narciso para prosseguir.
O secretário imperial concentrou-se e começou, em tom quase de surdina.
- Há divisões no palácio, pelo que os Libertadores resolveram passar à ação. A chave para qualquer mudança de poder em Roma é o controlo da Guarda Pretoriana. Foi
o apoio dos pretorianos que permitiu a Cláudio ascender ao trono. Quando o Imperador falecer, serão eles a dirimir a questão de quem tomará o trono. Se os Libertadores
conseguirem tomar o controlo dos pretorianos, essa questão - qual dos dois filhos lhe sucederá - tornar-se-á académica. Serão ambos mortos, bem como o resto da família
imperial, os seus servidores e aliados. - Fez uma pausa, para deixar que as suas palavras penetrassem bem nas mentes dos dois homens que o escutavam. - É por essa
razão que o comando da Guarda é partilhado por dois prefeitos, e que a guarda pessoal do Imperador é composta por mercenários germanos - homens em quem ele pode
confiar. Porém, um dos prefeitos está já há meses doente, o que deixou os pretorianos sob o comando único do outro, Lúcio Geta, um homem que me desperta várias preocupações.
Nos últimos tempos tem incrementado o treino dos homens, levando-os em duras marchas, aumentando a prática com armamento e realizando exercícios de combate. E recentemente
esses exercícios mudaram de caráter. Nas últimas semanas, o treino tem-se centrado em combate urbano e técnicas de cerco.
- A mim parece-me um comandante consciencioso - comentou Macro. - Se estivesse no lugar dele, procederia da mesma forma.
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- Estou seguro que sim. Mas não era esse o costume dos prefeitos que o antecederam. Mais preocupante ainda é que a maior parte dos oficiais parece ser-lhe ferozmente
fiel, já que olham para o Geta com evidente consideração. - Narciso abriu as mãos. - Como devem compreender, tenho todas as razões para desconfiar deste homem.
Macro encolheu os ombros, mas Cato anuiu ligeiramente.
- E há mais. No mês passado, um dos tribunos da Guarda foi morto na estrada.
Cato assentiu.
- O Balbo.
- Precisamente. Como sabes?
- Li isso na gazeta. Não tinha muito mais formas de passar o tempo. Ao que li, o Balbo foi morto por vulgares salteadores de estrada.
- Foi essa a versão que foi posta a circular. O que ela não dizia era que ele estava à frente de uma coluna que transportava moedas de prata vindas da cunhagem na
Narbonesa. O grupo de busca encontrou o corpo desnudado na berma da estrada, numa evidente tentativa de o fazer parecer vítima de um simples assalto. Não lhes custou
muito descobrir depois os restos dos vagões que compunham a coluna. Mas as arcas com o dinheiro tinham desaparecido. No total, foram roubados cerca de dois milhões
de denários.
Macro assobiou.
- Pois. Uma soma impressionante; e o que assusta é que entre servidores do Imperador e pretorianos, não havia mais do que um punhado de homens a saber da existência
desta coluna. Foi uma coisa preparada por gente bem colocada no regime. Não há qualquer dúvida. Todos os que sabiam foram interrogados, alguns torturados, mas os
meus homens não conseguiram sacar-lhes qualquer informação. Ou estavam inocentes ou eram suficientemente duros para aguentarem a pressão.
- Talvez tenha havido alguma fuga de informação - sugeriu Cato. - Alguém pode ter escutado ou visto um indício que revelou o plano.
- É possível. Mas os meus homens são de confiança, e discretos. Sabem muito bem o preço elevado que pagarão se me dececionarem. Restam, portanto, os pretorianos.
Ou a segurança interna não presta, ou existem traidores nas fileiras. Era essa a ideia que tinha, até há poucos dias. Nessa altura ocorreu um golpe de sorte. Um
dos pretorianos embebedou-se e começou à tareia numa espelunca qualquer ao pé do Circo Máximo. Foi confinado ao quartel. Uma investigação mais aprofundada revelou
que o homem tinha passado o dia todo a gastar dinheiro, a oferecer bebidas tanto a camaradas como a desconhecidos. Para mais, também tinha perdido uma pequena fortuna
em prata nas apostas, mas apesar disso não tinha
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recorrido às poupanças que mantinha no quartel. Dei ordens para que fosse libertado, e o centurião pô-lo de faxina por um mês. Há duas noites, indiquei aos meus
agentes que o raptassem e levassem para um local secreto fora da cidade, para um interrogatório mais apertado. Revelou-se um tipo teso, o que tornou infelizmente
necessária a utilização de meios, digamos, mais rigorosos. Antes de morrer, confessou que tinha estado envolvido no ataque ao comboio da prata, e revelou um nome.
O de um centurião que serve na coorte à qual está atribuída a guarda do palácio imperial, um tal Marco Lurco. Segundo o nosso homem, o Lurco é um dos líderes da
conspiração. Portanto, temos agora certo que existe uma fação de traidores na Guarda Pretoriana.
- E esse pretoriano mencionou alguma ligação aos Libertadores? - indagou Cato.
- Sim. - Narciso respirou fundo. - A situação é séria. Só vejo uma razão para andarem atrás de uma fortuna como esta. Estão a angariar fundos para uma guerra. E
quando tiverem dinheiro suficiente, é minha convicção que o vão usar para comprar o apoio da Guarda Pretoriana quando tentarem derrubar o Imperador.
Instalou-se o silêncio. Macro esvaziou o copo e voltou a enchê-lo, enquanto tentava dar a impressão de estar a ponderar seriamente as informações que recebera.
- Bom, isso é tudo muito interessante, mas o que tem a ver connosco?
- É muito simples. Preciso de ter, no seio da Guarda Pretoriana, homens em quem possa confiar inteiramente. Portanto, tu e o Cato vão incorporar-se na Guarda, entrar
na conspiração, identificar os líderes e então, se necessário, eliminá-los. Ah, e vão também localizar e recuperar a prata roubada.
Macro encarou-o assombrado e acabou por soltar uma gargalhada.
- Simples, de facto. Não tem agentes mais habituados a essas tretas de capa-e-espada? Nós somos soldados, e não temos grande jeito para eliminar um homem com uma
facada nas costas. Há com toda a certeza gente mais qualificada que nós para este género de coisa.
- Oh, sim, tenho um pequeno grupo de homens que podia usar. Mas é um grupo mesmo pequeno, e não posso arriscar-me a perder algum deles. Além disso, neste caso preciso
de homens que facilmente passem por soldados. - Narciso fez uma pausa e lançou um sorriso sardónico. - Bom, deixemo-nos de rodeios. Vocês são dispensáveis. Além
disso, sei perfeitamente que vão aceitar a missão. Como poderiam não o fazer?
Macro abanou a cabeça.
- Teríamos de estar doidos para aceitar este trabalho.
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- Não têm escolha, uma vez que o que vocês mais desejam está nas minhas mãos para conceder - ou negar, conforme me pareça adequado.
- O olhar de Narciso virou-se para Cato. - Não é verdade?
Cato anuiu, com evidente relutância.
- Macro, ele tem razão. Se queremos realmente regressar às legiões, e se quero ver confirmada a minha promoção, que escolha temos?
- Precisamente.
- Não - ripostou Macro. - Cato, pensa bem. Somos soldados. Fomos treinados para combater. Não para espiar, não para brincar aos agentes imperiais. Esse tipo de gente
vai perceber à distância o que andamos a tentar. Não quero acabar com a garganta cortada e o corpo atirado para a Cloaca Máxima. Eu não. Não me vou meter nisto.
E tu também não, se ainda tens algum bom senso.
- Não se trata de nenhum esquema mal-amanhado que acabei de conceber enquanto vinha de Roma - disse Narciso, com uma intensidade gélida. - Pensei nisto com muito
cuidado, e tenho a certeza que vocês os dois têm muito mais probabilidades de obter sucesso do que os meus agentes. São soldados experimentados, pelo que se integrarão
entre os pretorianos com facilidade, ao contrário dos meus homens, cuja falta de hábitos militares saltaria à vista. Além disso, são perfeitos desconhecidos em Roma,
enquanto os meus homens são sobejamente conhecidos. Se me vir obrigado a usar outros, terei de os contratar longe da cidade, e não saberei ao certo quais as suas
capacidades nem até que ponto poderei confiar neles. A verdade é que precisamos uns dos outros. Se conseguirem levar isto a bom termo, dou-vos a minha palavra de
honra de que serão ambos generosamente recompensados.
- Não estou muito confiante quanto ao valor da sua palavra - arriscou Macro.
- Como planeia inserir-nos na Guarda Pretoriana? - interveio Cato.
- Se um par de oficiais aparecer de repente a fazer perguntas a torto e a direito, a atenção dos opositores não deixará de ser desperta.
- Claro; é por isso que vocês vão entrar para a Guarda como legionários. Dois veteranos da Segunda Legião, acabadinhos de chegar da Britânia. A vossa nomeação para
a Guarda foi uma recompensa pela bravura no combate contra os bárbaros. É uma história credível, e não se afasta demasiado da vossa experiência, pelo que não terão
muito que inventar. A única diferença será na vossa patente. Não vos deverá ser muito difícil desempenhar um papel desse género.
- Falar é fácil - resmungou Macro. - E se damos de caras com alguém que já tenhamos encontrado antes?
- É pouco provável. Já passaram mais de três anos desde que estiveram
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em Roma pela última vez, e nesse tempo viviam num quarto alugado na Subura, uma vez que estavam a receber apenas meio salário. Ninguém vos conhece na Guarda Pretoriana.
E no palácio ninguém vos reconhecerá, à exceção talvez de alguns dos meus escribas.
- E quanto ao senador Semprónio? - indagou Cato. - E a Júlia? Se os encontrarmos, as nossas identidades serão reveladas.
- Pensei nisso também. - Narciso sorriu. - Tratei de pôr o senador a conduzir um inventário das propriedades do Imperador na Campânia. Indiquei-lhe que devia levar
consigo a filha, para que ela pudesse aproveitar o ambiente social. Um trabalho sem perigos ou inconvenientes, mas que os manterá longe da capital até à primavera.
Por essa altura estou seguro de que vocês já terão identificado os traidores na Guarda Pretoriana, bem como os seus cúmplices na cidade.
- Há outros bem capazes de nos reconhecer. O senador Vespasiano, por exemplo.
Narciso assentiu.
- Sei-o bem. O Vespasiano foi eleito para o consulado este ano, pelo que estará ocupado no Senado a maior parte do tempo.
- O Vespasiano é cônsul? - Macro sorriu. - Excelente notícia.
- Embora partilhe a tua admiração pelas suas capacidades, devo dizer que a sua elevação ao consulado me levanta algumas preocupações. Pode muito bem revelar-se mais
ambicioso do que aquilo que eu pensava.
- Ora, vá lá! - Macro abanou a cabeça. - Não pode desconfiar do Vespasiano. Depois de tudo o que o homem fez pelo Imperador? Caramba, se não fosse ele, arrisco-me
a dizer que a campanha da Britânia teria sido um desastre. E depois ainda houve aquela história com os piratas. Sempre serviu Cláudio com toda a lealdade.
- Eu sei. Mas o meu trabalho é estar sempre atento a sinais de perigo. Qualquer mostra de ambição tem de ser escrutinada em detalhe. Portanto, mantenho o Vespasiano
debaixo de apertada vigilância. - Fez uma pausa antes de continuar. - Seria muito pouco prudente arriscarmo-nos a sermos vistos juntos, portanto apresentar-me-ão
os vossos relatórios através de um dos meus agentes, o Sétimo. Será ele o único a saber da vossa missão, além de mim, claro. Poderão encontrá-lo na Vinha de Dionísio,
no Boário, daqui a dois dias.
- Como é que o reconheceremos? - quis saber Cato.
Narciso tirou um anel do mindinho da sua mão esquerda e entregou-o a Cato.
- Usa este anel. O meu agente terá um igual.
Cato pegou no anel para o examinar de perto, e apercebeu-se de um desenho finamente gravado na pedra vermelha: Roma, sobre uma esfinge.
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- Bonito.
- Evidentemente que o quero de volta, depois de servir o seu propósito. - Narciso contemplou os dois amigos. - Muito bem, têm mais alguma questão?
- Só uma. - Macro inclinou-se sobre a mesa. - O que nos sucederia se recusássemos esta tão generosa oferta de emprego?
Narciso fixou nele um olhar frio.
- Ainda nem tinha pensado nisso. Pela excelente razão de que nem conseguia imaginar que fossem tão idiotas a ponto de recusar o trabalho.
- Então, pense depressa. - Macro recostou-se e cruzou os braços. - Arranje uns meliantes quaisquer para lhe fazerem o trabalho sujo. Eu sou um soldado profissional,
e dos bons. Mais cedo ou mais tarde vai surgir uma vaga para mim nas legiões. Posso esperar.
- Por quanto tempo, pergunto eu. Talvez não muito, se comparado com o tempo que eu estou disposto a deixar-te aqui a apodrecer.
A expressão de Macro toldou-se.
- Vá-se foder. E leve consigo todos os seus malditos esquemas. - As mãos do centurião cerraram-se em punhos, e por momentos Cato temeu que o amigo estivesse mesmo
disposto a desfazer o secretário imperial à pancada. A mesma ideia passou pela cabeça de Narciso, que se encolheu de forma bem notória. Macro olhou-o com desprezo
e depois levantou-se abruptamente. - Cato, vamos mas é beber um copo. Algures longe daqui. Num lugar que não cheire tão mal.
- Não - contrapôs Cato, com firmeza. - Temos de aceitar. Não vou ficar em Óstia nem mais um minuto do que aquilo a que já fui obrigado.
Macro olhou para o amigo por momentos e acabou por abanar a cabeça.
- Cato, estás parvo. Esta serpente vai acabar por fazer com que nos matem. Por que carga de água é que nós vamos conseguir desmascarar os Libertadores, se todos
os agentes do Imperador falharam até agora?
- Ainda assim, estou disposto a tentar. E você acompanhar-me-á.
- Bah! - Macro atirou as mãos para o ar, num gesto de desistência. - E pensava eu que te conhecia. Pensava que eras mais esperto do que isto. Ao que parece, estava
errado. Cato, estás por tua conta. Não me quero meter nesta história.
Dirigiu-se para a porta, escancarou-a e fechou-a com estrondo, depois de sair. Cato escutou os passos do amigo a afastarem-se com um peso crescente no coração. Macro
tinha toda a razão quanto aos perigos envolvidos, e Cato compreendeu de súbito que tinha pouca confiança em ser capaz de levar a missão a bom porto sem o duro e
confiável centurião ao seu lado. Sentiu uma ponta de medo, pela primeira vez em
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muitos meses. A perspetiva de enfrentar sozinho os esquivos inimigos do Imperador era arrepiante.
- Se fosse a ti, não me preocupava muito - animou-o Narciso. - Agora que conseguiu soltar a raiva que acumulou contra mim, há de mudar de ideias em pouco tempo.
- Espero bem que tenha razão.
- Acredita no que te digo, raras vezes me engano na avaliação de homens. E o nosso amigo Macro não representa um grande desafio nesse capítulo. Estou por acaso enganado?
Conhece-lo perfeitamente.
Cato refletiu brevemente.
- O Macro é capaz de algumas ideias surpreendentes, por vezes. Não o deve subestimar. Mas sim, acho que no fim acabará por me acompanhar. Quando arrefecer e perceber
que está nas mãos de alguém que tem a possibilidade de lhe tornar a vida muito difícil. Parto do princípio de que não foi uma ameaça vã.
Os finos lábios de Narciso reviraram-se num sorriso quase trocista, enquanto ele se levantava.
- O que é que achas?
- Seja. Mas tenho um conselho a dar-lhe, se quiser que esta missão decorra sem problemas. - Cato fez uma pausa. - Nunca, mas nunca lhe chame amigo à frente dele.
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À medida que a barcaça se aproximava de Roma, a superfície do Tibre mostrava-se cada vez mais repleta de detritos e espuma suja. Era o fim da tarde, e para vencer
a corrente, a embarcação era rebocada a partir da margem por uma equipagem de mulas; um miúdo, um escravo escanzelado e de pés descalços, conduzia os animais, dando
de vez em quando um estalo com o chicote, para que estes mantivessem o andamento. Sobre a cidade, que já se via à distância, pairava uma espessa camada de fumo.
Era devida aos esforços dos habitantes para se manterem quentes durante os frios meses de inverno, queimando grandes quantidades de lenha e contribuindo assim para
agravar o que resultava das fogueiras comunais e das atividades das fábricas de curtumes, dos ferreiros e das casas de banhos que funcionavam na cidade.
Cato torceu o nariz ao sentir o cheiro atroz que se espalhava sobre o rio, trazido pela brisa de leste.
- Uma pessoa esquece-se do horrível fedor desta cidade - murmurou Macro, desanimado; o veterano estava de pé ao lado do amigo na pequena proa elevada da barcaça.
Eram os únicos passageiros. O resto do espaço disponível a bordo era ocupado por ânforas de azeite vindas da Hispânia. A barcaça estava tão pesadamente carregada
que o bordo estava a pouco mais de trinta centímetros da superfície da água reluzente do Tibre.
- Oh, não é assim tão mau! - Ouviu-se uma voz animada por trás deles, e os dois soldados viraram-se quando notaram o capitão a aproximar-se, serpenteando com toda
a cautela por entre as ânforas. A leve estrutura corporal do homem era evidente até debaixo da túnica e da pesada capa. Na cabeça ostentava um gorro de feltro, do
qual emergiam pedaços hirsutos de cabelo escuro. Sorriu, mostrando uma frente desalinhada de dentes que fez Cato lembrar-se de uma fileira de pedras tumulares manchadas
e esquecidas pelo tempo. - Diz-se que quem vive por aqui depressa se habitua. Claro, não é o meu caso; eu e ali o gaiato fazemos a viagem de Ostia para cá só umas
cinco ou seis vezes por mês. - Fez um gesto a indicar o filho, que manobrava o timão na popa da barcaça; esquálido como o pai
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e certamente com menos de dez anos de idade. - A verdade é que, ao pé disto, Óstia até cheira como um mercado de perfumes, porra.
- Não me digas - ripostou Macro de forma seca.
- Podes crer. - O capitão da barcaça assentiu, confirmando as próprias palavras. - Então, amigos, o que os traz a Roma? Soldados a gozar uma licença, não? Estiveram
nas províncias?
Os olhos de Macro semicerraram-se, mostrando bem a desconfiança que sentia perante o chorrilho de perguntas.
- Quem somos e o que fazemos aqui não é da tua conta... amigo.
O outro levantou as mãos, como que a desculpar-se, mas continuou a sorrir.
- Não quis ofender ninguém! Nem estou a tentar tirar castanhas do lume. Era só uma pergunta amigável, para meter conversa. Assim que embarcaram em Óstia, topei que
eram soldados. Disse-o ao meu filho: olha, tropas. Consegue-se ver pela forma como se portam e se mexem. Orgulhosos, firmes. Guerreiros. E olha para as cicatrizes,
disse-lhe eu. Era óbvio. Portanto, senhores, peço imensa desculpa.
- Não há necessidade. - Cato sorriu. - E tens razão, acabamos de regressar de uma campanha na Britânia.
- Britânia? - O homem coçou o queixo. - Acho que já ouvi falar disso. Onde é que fica?
- Do outro lado do mar, a norte da Gália.
- Ah, pois, já estou a ver! Há uns anos houve uma grande festa quando o Imperador celebrou um triunfo lá para essas bandas.
- Sim.
- Porra, então como é que é isso de a campanha continuar? Disseram-nos que o lugar já estava conquistado.
- Derrotámos as tribos mais importantes. O exército está só a acabar de limpar o território - explicou Cato, calmamente. Tinham já passado cerca de quatro anos desde
que os dois amigos tinham deixado a Britânia, e apesar de apenas terem ouvido aqui e ali retalhos de notícias sobre o progresso da campanha, era evidente que o capitão
sabia ainda menos. Narciso tinha-lhes prometido um relatório detalhado, mais os documentos de nomeação para a Guarda Pretoriana, e cartas de recomendação forjadas,
supostamente do governador da nova província, que lhes seriam entregues quando entrassem em contacto com o seu agente em Roma. - Aliás, eu e aqui o meu camarada
combatemos na batalha decisiva. Estivemos na linha da frente da legião, e capturámos um chefe celta. Essa é a razão desta nossa viagem. O governador recomendou-nos
para a Guarda Pretoriana, como recompensa pelos serviços prestados.
O capitão arregalou os olhos e abanou a cabeça.
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- Ora essa, quem havia de acreditar? Caraças, dois heróis de guerra na minha barcaça. Esperem até eu contar ao gaiato! Sempre quis ser militar quando crescer. Por
mim, sempre achei que devia ser uma boa vida. Bom salário. Casa e comida. E o uniforme! As mulheres não resistem a um uniforme, isso é garantido. E depois, a vida
ao ar livre, a glória e os despojos de guerra, hã? Não é assim?
- Oh, sim, pois. - Macro sorriu. - Uma vida e peras, podes crer. Uma festa permanente, pelo menos era o que eu julgava quando me alistei. Nem me passou pela cabeça
que um dia havia de andar a combater bárbaros de cu peludo numa terra gelada e repleta de pântanos. É curiosa a forma como as coisas acabam por se passar. - Piscou
o olho ao capitão. - A única coisa que me dá insónias é a preocupação: qual será a melhor forma de gastar a fortuna que recebo todos os meses?
- Ignora o meu companheiro - instou Cato. - Esta manhã saiu da cama pelo lado errado. Muito a sério. Ontem à noite emborcou uns litritos a mais e quando acordou,
bateu com a cabeça numa trave.
- Muito engraçado - resmungou Macro. - Tive uma boa razão para me embebedar, não tive? Foda-se, e que razão. Já começo a pensar que devia era ter ficado onde estava.
O capitão da barcaça contemplava a cena, atónito.
- O quê, perder uma oportunidade de entrar para a Guarda Pretoriana?
Macro lançou-lhe um olhar gélido.
- Garanto-te isto: se o pudesse evitar, fá-lo-ia com todo o prazer.
Cato apressou-se a intervir.
- É da ressaca. Daqui a umas horas já lhe passou. Só precisa de descanso e de esquecer as preocupações.
- Isso vejo eu! - soltou o capitão com uma gargalhada, ao contemplar a expressão magoada de Macro. - Ainda assim, se fosse a vocês, habituava-me à bebida. Já vi
os pretorianos a beber nalguns estabelecimentos mais próximos do cais. Não se ficam por meias medidas, e quando estão bem bebidos, são muito capazes de se tornarem
difíceis de aguentar, garanto-vos! - Fez uma pausa e franziu o sobrolho. - E nos últimos tempos andam de mão pesada.
- Ah sim? - Cato olhou-o com ar curioso. - Tem havido problemas?
O capitão anuiu.
- Nos últimos meses, bastantes. O fornecimento de cereais tem andado por baixo, depois daquela confusão do ano passado lá pelo Egito. O preço tem subido sem parar.
Ao povo isso não agrada, e já houve algumas lojas saqueadas, e alguns mercadores que comeram pela medida grande.
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Foi nessa altura que a Guarda Pretoriana começou também a rachar umas cabeças. Bom, mais do que isso. Já limparam o sebo a alguns. - Olhou para os dois soldados
com ansiedade. - Suponho que foi necessário. Quer dizer, sem ordem não se consegue fazer nada, não é?
- Sim - ripostou Macro, sem margem para dúvidas.
- Bom, olha, não te queremos afastar dos teus deveres. - Cato acenou para a popa da barcaça.
- Oh, não se preocupem. O rapaz é bem capaz de tomar conta do recado até à altura de serem lançados os cabos de amarração. - Sorriu com vontade. - Não é preciso
estragar a festa.
- Qual festa? - contrapôs Macro. - Vai lá tratar das coisas.
O capitão mostrou surpresa e pareceu ficar magoado, acabando por se virar e se afastar lentamente, a caminho da ré da embarcação.
Cato suspirou.
- Isso era mesmo necessário?
- O quê? Livrarmo-nos deste tagarela imprestável? Pareceu-me bem que sim, antes que detalhasses os nossos planos. O homem tem uma língua do tamanho do Tibre. Antes
que o dia termine, já metade de Roma saberá da nossa chegada.
- E qual é o problema? - Cato deitou uma olhadela à popa, onde o capitão tinha tirado o leme das mãos do filho e mantinha o olhar preso na proa da barcaça. - O que
poderá ele dizer? Que trouxe dois soldados de Óstia, que se iam juntar à Guarda Pretoriana. Isso não nos vai prejudicar. Pelo contrário. Se alguém se lembrar de
nos investigar, o capitão só ajudará a confirmar a nossa história. E quem quer que o interrogue vai perceber imediatamente que o homem não tem jeito para papaguear
uma história que lhe tenham dito para contar. - Cato fez uma pausa para que Macro percebesse a sua ideia. - Relaxe. Tem de tentar não pensar como um espião, porque
corre o risco de deixar de se portar como um soldado. E se isso acontecer, o inimigo vai topar-nos num instante.
- Inimigo? - Macro inchou as bochechas. - Que lindo trabalho nós arranjámos. Cá estamos nós, a fingir que somos pretorianos, para podermos caçar e liquidar outros
cidadãos de Roma que se limitam a possuir outro conjunto de ideais políticos. Enquanto esses, por sua vez, planeiam a morte do seu Imperador e de todos aqueles que
se interpuserem entre eles e os seus propósitos. Entrementes, a fronteira do Império está repleta de verdadeiros inimigos que apreciariam sobremaneira se nos virássemos
uns contra os outros. Perdoa-me se te pareço ingénuo, Cato, mas não achas que esta merda está toda fodida?
Cato manteve o silêncio por momentos, mas acabou por responder.
- Sim, é uma porra de uma confusão. Mas não nos diz respeito. Estamos
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aqui para desempenhar uma missão. Pense o que quiser, mas isto não é assim tão diferente do que fazemos como soldados. Estamos aqui para procurar o inimigo, nos
infiltrarmos nas suas posições e anularmos a ameaça. Macro, aos soldados não compete pensar no que está por trás das ordens. Não temos de debater os comos nem os
porquês das campanhas em que combatemos por Roma. E a mesma coisa se passa com este trabalho. Certo ou errado, fizemos um juramento ao Imperador, e isso transforma
quem quer que decida ser seu inimigo em nosso inimigo. Além disso, Roma podia estar em bem piores mãos do que nas do Cláudio. Muito piores.
Cato recostou-se no convés e contemplou a extensão de palácios, templos, teatros, mercados, banhos, casas particulares e blocos de apartamentos que cobriam as colinas
de Roma. A expressão amarga de Macro desvaneceu-se, e o veterano sorriu para si mesmo.
- O que há de engraçado, agora?
- Estava só a pensar. Quando nos conhecemos, era eu que me agarrava às certezas do dever de um soldado, e tu quem constantemente olhava para o outro lado das coisas.
Pelos deuses, isso dava comigo em doido.
- As pessoas mudam.
- Não me parece. Ou, pelo menos, não mudam assim tanto. Não, Cato, acho que te percebo muito bem. Isto tem tudo a ver com o desejo de alcançares a promoção que te
permitirá o casamento com a Júlia. É engraçado como um homem tenta usar a razão para fundamentar o que são, no fundo, desejos do seu coração.
Cato olhou para o centurião com raiva, furioso por se mostrar tão transparente. Mas acalmou-se de imediato. O que o chocava realmente era a descoberta de que quase
acreditava em tudo o que dissera a Macro. O único resquício de conforto era que Macro, mais do que outra pessoa qualquer, o conhecia suficientemente bem para ver
através daquele discurso. Esperava apenas conseguir desempenhar o seu papel de forma adequada nos dias que se avizinhavam. Se não, seria com toda a certeza descoberto
e morto.
A barcaça dirigiu-se para os grandes armazéns que delimitavam o sopé do monte Aventino. À frente daqueles ficava o porto fluvial, onde centenas de barcaças e outras
embarcações de pequeno porte ocupavam um molhe que se estendia ao longo da margem do Tibre. À distância, na zona onde o rio fazia uma curva para oeste, Cato avistava
a ponte Sublícia, cujos pilares de madeira obrigavam a corrente a acelerar de tal forma que impediam a passagem para montante das barcaças vindas de Óstia. A tarde
caía rapidamente, e alguns dos detalhes da cidade não passavam já de formas cinzentas e indistintas, ao longe.
A equipagem de mulas chegou ao término da sua viagem, na ponta do cais, e o escravo soltou a canga e passou a corda de sirga para um grupo de
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homens musculosos que aguardavam para puxar a barcaça até um lugar de atracagem. O capitão deixou o timão, e ele e o filho pegaram em varapaus grossos para afastar
a embarcação das outras, já acostadas. Por vezes os barcos eram colocados em paralelo, ligados por pranchas para permitir a carga e descarga dos materiais transportados.
O capitão olhou para a frente e reparou que não havia espaço para atracar a sua barcaça, pelo que procurou uma embarcação ainda por emparelhar ali perto.
- Além! - gritou, apontando o local aos homens que puxavam o barco. O chefe da equipa anuiu, e pouco depois a barcaça estava alinhada com a outra embarcação. Cato
e Macro pegaram nas suas sacolas e cangas de marcha e esperaram que as pranchas estivessem bem colocadas, antes de se prepararem para deixar a barcaça.
- Boa sorte nas vossas novas colocações! - lançou o capitão, enquanto empurrava o filho na direção dos dois. - Este é o meu gaiato. Vem cá conhecer estes heróis
da campanha na Britânia. Vá, rapaz, diz olá.
O rapaz olhou para eles com timidez e soltou uma saudação murmurada, que foi completamente afogada pelos gritos e avisos das equipas de estivadores no cais. Cato
fez-lhe um sorriso e deu-lhe um aperto amigável no ombro.
- O teu pai diz que queres entrar para as legiões. Achas que és suficientemente rijo para isso?
O miúdo abanou a cabeça com convicção.
- Ainda não.
- Tenho a certeza que um dia o serás. Devias ter-me visto quando tinha a tua idade. Era só pele e osso, e mesmo assim safei-me bem.
Macro olhou-o com uma imitação de assombro, mas Cato ignorou-o e prosseguiu.
- Trabalha bem, o teu corpo há de enrijecer, e um dia poderás tornar-te um herói, e o orgulho do teu pai.
Macro não evitou um comentário em surdina.
- Ou podes muito bem acabar como o moço de recados de um liberto cheio de esquemas...
O sorriso do capitão esmoreceu ligeiramente.
- Tenho orgulho no que ele é já hoje.
- Evidentemente - replicou Cato com rapidez. - Macro, vamos.
Depois de pôr ao ombro o varapau em que prendia parte da carga,
Cato seguiu com todo o cuidado pela prancha que se estendia até à embarcação seguinte e por fim até ao cais, sentindo-se imensamente aliviado por ter de novo terra
firme debaixo dos pés, mesmo que o chão estivesse imundo. Macro juntou-se-lhe, e os dois homens olharam em volta por momentos, para se situarem.
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- Onde é que disseste que nos íamos encontrar com o tal tipo de confiança do Narciso? - indagou Macro.
- Num botequim chamado Vinha de Dionísio, no lado norte do Boário. Pelo que o Narciso nos disse, deve ser por ali.
Cato apontou para os edifícios públicos que se erguiam ao fundo da fila de armazéns, e para lá se encaminharam, seguindo ao longo do cais. Depois da relativa quietude
das ruas de Óstia, a capital do Império assaltava-os com uma confusão de ruídos e vistas, e uma mistura entre o cheiro a suor das pessoas e o omnipresente fumo acre.
Colunas de escravos, muitos acorrentados uns aos outros, debatiam-se sob fardos de materiais exóticos, de ânforas de vinho e azeite e de pequenos recipientes selados
e acomodados em caixas forradas de palha, contendo sem dúvida perfumes e aromas vindos do Oriente. Outros transportavam presas de marfim, ou tábuas de madeiras preciosas.
Por entre eles viam-se os capitães de barcaças, os mercadores e os comerciantes de ocasião, e o ar estava repleto de vozes que falavam em diversas línguas: latim,
grego, dialetos celtas, hebraico e outras ainda, que Cato nunca escutara antes. A escuridão crescia no pesado ar invernoso. No meio do crepúsculo nasciam luzes dos
braseiros que lançavam brilhos avermelhados sobre o pavimento do cais, forrado por lama e imundície. Alguns cães e gatos quase selvagens corriam por entre a multidão,
farejando comida. Pedintes aconchegavam-se em arcadas e à frente de portas fechadas, batendo em taças de madeira ou latão para chamar a atenção e pedir uma moeda
aos passantes.
Cato abria caminho pelo meio da turba e Macro seguia-o de perto, mantendo um aperto firme na canga onde seguiam as suas posses. De vez em quando deitava uma espreitadela
à ponta do varapau, para ter a certeza que nenhum larápio o tinha aliviado de alguns pertences. Já tinha ouvido muitas histórias sobre facas bem afiadas usadas para
rasgar os sacos de pele de cabra de forma a que uma mão ágil conseguisse extrair alguma coisa sem que o proprietário desse pela falcatrua.
- Merda, isto é como ficar bloqueado no coração de uma batalha.
- Mas não tão perigoso - ripostou Cato, antes de adicionar um comentário. - E sem sangue, corpos, gritos e aquela mão gelada de terror a apertar-nos a goela. Mas,
à parte isso, tem razão.
- Muito engraçado.
A multidão tornou-se menos densa quando se aproximaram do arco que dava acesso ao mercado do Boário. Tal como os armazéns, tinha sido construído em grande escala,
com uma entrada em colunas, sobre as quais um frontispício ostentava estátuas dos estadistas da era republicana, embora as suas pinturas originais apresentassem
agora uma cobertura de sujidade
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e caca de pássaro. Naquela zona prevalecia um odor a sangue e carne que vinha das bancas dos talhantes próximas. Do outro lado da entrada abria-se uma vasta área,
suficientemente larga para que uma legião aí pudesse acampar, calculou Cato. As bancas temporárias estavam já a ser desmanchadas e arrumadas em carros de mão, onde
depois se empilhavam as mercadorias para venda; os conjuntos eram levados para pequenos armazéns na parte lateral do mercado. As bancas permanentes estavam também
a ser encerradas, já que o dia de negócios estava a chegar ao fim. Em torno do Boário corria uma arcada de dois andares. No andar térreo situavam-se lojas e tabernas,
e por cima ficavam os escritórios dos agentes que cobravam taxas e alugueres aos comerciantes. Muitos dos banqueiros da cidade tinham também escritórios alugados
no piso superior, onde se podiam manter longe da confusão da ralé enquanto contavam os lucros.
A Vinha de Dionísio era fácil de encontrar. Por cima da entrada estava colocado um letreiro pintado de dimensões generosas. Um homem mal desenhado com um grande
sorriso erguia um como cheio de bebida até à borda, sobre um fundo de vinhas a abarrotar de uvas, no meio das quais, e numa fascinante variedade de posições, pares
de amantes se dedicavam com zelo e vigor evidentes à satisfação dos seus instintos. Macro parou à porta com uma expressão de espanto.
- Aquilo ali não é de todo possível.
- É-o com toda a certeza, depois de ter provado os nossos néctares!
- anunciou uma voz cheia de animação. Um tipo atarracado com cabelo fortemente oleado afastou-se dos pilares que enquadravam a entrada e convidou-os a entrar. -
Os produtos da Vinha de Dionísio são conhecidos em toda a Roma. Bem-vindos, amigos! Façam o favor de entrar. Há mesas para todos, uma lareira acolhedora, boa comida,
belos vinhos, e a melhor das companhias. - Piscou o olho. - E tudo isto, senhores, pelo mais módico dos preços.
- Só queremos comida e bebida - indicou Cato. - É tudo.
- Por agora, sim - acrescentou Macro, ainda a escrutinar as ilustrações do painel. - Depois logo se vê que mais...
O homem indicou o caminho aos novos clientes, antes que lhe escapassem, e seguiu-os até ao interior. Este era mais amplo do que Cato esperara, e prolongava-se por
uns vinte metros. A meio de uma das paredes ficava um balcão, que era ladeado por alcovas, duas das quais tinham as cortinas fechadas. Numa das outras sentava-se
uma mulher magra, com maquilhagem pesada e cabelo vermelho eriçado; tinha uma expressão de aborrecimento e apoiava a face na mão enquanto olhava para o salão sem
se focar em nada. O estabelecimento estava repleto graças à primeira vaga de clientes da noite - homens que tinham encerrado as bancas ou concluído
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os negócios do dia no Boário. A maior parte tomava uma bebida rápida antes de voltar para casa para passar a noite. No meio deles viam-se alguns bêbados confirmados,
de olhos vidrados e veias bem evidentes nos narizes e faces, que estavam apenas a dar início a mais uma longa sessão de bebida até se esquecerem do que os tinha
levado ali.
O homem que os convencera a entrar chamou o taberneiro, que acenou e fez duas pequenas marcas com giz na parede por cima das ânforas de vinho, para saber o número
de clientes que o angariador tinha conseguido naquela noite.
- Eis a vossa mesa. - O homem apontou para uma tábua rodeada por quatro bancos, relativamente perto da porta. Cato e Macro agradeceram-lhe com um rápido aceno e
furaram por entre os outros clientes, apoiando as cangas na parede antes de se sentarem.
Macro olhou em redor e cheirou o ar.
- Boa escolha, a do Narciso.
- Sim. O tipo de lugar em que um homem passa facilmente despercebido. Agradável e discreto.
- Eu estava a dizer que era uma boa escolha porque é o tipo de lugar que me agrada. Barato, animado e à espera de uma zaragata a qualquer momento.
- Pois, também há isso - replicou Cato, desatento. Estava a vasculhar a sala com o olhar, à procura de qualquer sinal do contacto. Só havia um punhado de homens
a beberem sozinhos, mas nenhum deles lhe devolveu o olhar com alguma clareza. Entretanto, o taberneiro aproximou-se da mesa que ocupavam.
- Senhores, o que vai ser?
- O que é que há na casa? - indagou Macro.
- Está na parede. - O homem apontou para uma longa lista de vinhos regionais que tinha sido escrevinhada numa tábua, espetada na parede por trás do balcão.
- Hummm! - Macro sorriu enquanto percorria a lista com o olhar.
- Que tal é o etrusco?
- Acabou.
- Oh, azar. O calabrês?
- Não há.
- Falerniano?
O homem abanou a cabeça.
- Bom, então o que há?
- Hoje, ligúrico ou bélgico. E é só.
- Bélgico? - Cato arregalou um olho. - Pensava que esses faziam cerveja.
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- E fazem. - O taberneiro coçou o nariz. - E na minha opinião deviam limitar-se a isso.
- Estou a ver. - Cato encolheu os ombros. - Seja então o ligúrico. Um jarro pequeno e três copos.
- Sim, senhor. Boa escolha. - O outro inclinou a cabeça e virou-se para o balcão.
- Mas este está a tentar fazer-se engraçado, ou quê? - irritou-se Macro. - Bom, ligúrico? Nunca ouvi falar desse.
- Portanto, esta noite vamos aprender qualquer coisa nova.
O homem regressou com o vinho e os copos, e pousou-os na mesa.
- Cinco sestércios.
- Cinco? - Macro abanou a cabeça. - É um roubo.
- É o preço, pá.
- Muito bem - cortou Cato, extraindo as moedas da pequena quantia que Narciso lhes confiara. - Cá estão.
O taberneiro recolheu as moedas e acenou um agradecimento.
Cato pegou no jarro e cheirou o conteúdo. O nariz franziu-se-lhe involuntariamente perante o odor forte e ácido. Encheu os copos com um vinho escuro, quase negro.
Macro ergueu o copo num brinde fingido e provou. Fez de imediato uma careta.
- Pelos deuses, espero bem que haja melhores bares perto do quartel.
Cato bebeu um gole cauteloso e sentiu o líquido amargo e quente a
descer-lhe pela garganta até ao estômago. Pousou o copo e recostou-se contra a parede.
- Esperemos que o nosso contacto se revele, e depressa.
Macro anuiu. Esperaram em silêncio, beberricando, enquanto à sua volta os outros clientes emborcavam quantidades copiosas do único vinho disponível, aparentemente
pouco incomodados com o sabor áspero. A atmosfera era alegre, exceto na mesa onde se sentavam os dois soldados, cuja impaciência aumentava à medida que a noite caía
lá fora. Por fim Macro agitou-se, esvaziou o seu copo de um trago e pôs-se de pé. Fez um gesto vago na direção da mulher que ainda esperava na alcova.
- Vou... Hum, vou ali meter conversa.
- Macro, agora não. Estamos à espera de alguém. Haverá outra oportunidade.
- Bom, o facto é que o tipo não aparece, por isso bem posso divertir-me um bocadito.
- Não queremos atrair as atenções.
- Não vou fazê-lo. - Macro apontou para as cortinas fechadas. - Só vou seguir os costumes locais, mais nada.
Enquanto o veterano falava, a cortina que cerrava uma das alcovas
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abriu-se devagar e um homem alto e magro com cabelo escuro e curto saiu. Já tinha posto a túnica, e segurava na mão um lenço de atar ao pescoço. Por trás dele, uma
mulher vestia a túnica curta que denunciava o tipo de comércio a que se dedicava. O homem virou-se e lançou algumas moedas para cima da cama, antes de se dirigir
para o meio da sala.
- Ora lá está - comentou Macro. - Ninguém lhe liga nenhuma.
Cato viu que o homem olhava em redor e pareceu reparar nos dois
bancos vazios à mesa deles. Aproximou-se.
- Posso?
Cato meneou a cabeça.
- Não. Estamos à espera de um amigo.
- Eu sei. Sou eu. - O homem sorriu e sentou-se à mesa. Ergueu a mão de forma a que pudessem verificar que tinha um anel, e pousou-a ao lado da de Cato, para que
este comprovasse que o desenho era idêntico. Cato contemplou-o com cuidado, notando os olhos escuros, o rosto barbeado, e a pequena tatuagem no pescoço que representava
um crescente com estrela, antes que o homem a escondesse com o lenço que usava ao pescoço. Cato sentiu a desconfiança a apossar-se de si, enquanto o homem baixava
a voz e falava. - Foi o Narciso que me enviou.
- A sério? Então como te chamas, amigo?
- Oscano Ótimo Sétimo - afirmou, num tom tão baixo que Cato mal conseguiu ouvir.- E, se não te importas, quero esse anel de volta. - Abriu a mão.
Cato hesitou um momento antes de tirar o anel e lho entregar.
- Presumo que não seja esse o teu verdadeiro nome.
- Serve muito bem. E daqui para a frente, a quem quer que isso possa interessar, vocês são os guardas Tito Ovídio Capito e Víbio Galo Cálido, percebido? Não seria
prudente revelarem-me as vossas verdadeiras identidades.
Os nomes estavam bem evidentes nos documentos que Cato recebera; ele tomara a identidade de Capito, e Macro tornara-se Cálido, ambos veteranos da Segunda Legião.
- Essa marca no teu pescoço - comentou Macro. - Calculo que serviste na fronteira oriental.
Sétimo semicerrou ligeiramente os olhos.
- Talvez, sim.
- Nas legiões, ou nas coortes auxiliares?
Sétimo manteve-se calado, até que encolheu os ombros.
- Não que isso interesse, mas passei algum tempo numa coorte de cavalaria antes de ser recrutado pelo Narciso. - Fez um gesto para o pescoço. - Era o emblema da
unidade. A maior parte dos que por lá
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passaram tem-no. Um bocado chato, já que neste ramo tenho de o manter tapado.
- Imagino que sim - comentou Macro. Respirou fundo e soltou o ar, impaciente. - Bom, chegaste atrasado. E nós à espera, enquanto te entretinhas com a menina ali
do canto.
Sétimo franziu o sobrolho.
- Aquilo? Pois sim. Era apenas um disfarce.
- Como queiras.
O agente de Narciso ripostou à insinuação do veterano.
- Se eu quisesse uma mulher, não seria uma daquelas. O facto é que a alcova dela foi um sítio perfeito de onde vos avaliar assim que apareceram. Bem como aos outros
clientes. Só para ter a certeza que ninguém vos tinha seguido ou estava a vigiar. Desculpem a espera, mas tinha de estar seguro. Este negócio é demasiado perigoso
para correr riscos desnecessários. Bom, as apresentações estão feitas. Vamos.
- Vamos? - Cato debruçou-se ligeiramente sobre a mesa. - Para onde?
- Para um local seguro. Onde poderemos conversar sem o risco de sermos ouvidos. Também é o sítio onde nos poderemos encontrar e onde poderão deixar mensagens em
segurança. Não deverão ter problemas em entrar e sair do campo pretoriano - os soldados saem e voltam às casernas sem restrições. Será assim que nos comunicaremos
na maior parte das vezes. - Sétimo olhou em redor, cauteloso. - Sigam-me. Mas vamos fingir que a situação é perfeitamente natural. O melhor será acabarmos as bebidas
primeiro.
Encheu um copo e ergueu a voz.
- Um copo para o caminho!
Macro e Cato imitaram-no e acabaram com o vinho que tinham nos copos antes de pegarem nas trouxas e se levantarem. A taberna começava a encher-se de gente, pelo
que tiveram de abrir caminho até à porta. Lá fora, o angariador continuava a tentar atrair clientes ao estabelecimento. Sorriu ao vê-los.
- A deixar-nos tão cedo? A noite ainda mal começou, senhores. Fiquem mais um pouco, bebam à vossa vontade.
Macro parou à frente do homem. Inspirou e falou em tom elevado, de forma a que os passantes o ouvissem bem.
- Quem quer que se atreva a encher a barriga com a zurrapa que vendem neste antro arrisca-se a ficar lá dentro por muito e muito tempo. Um veneno.
O angariador soltou uma gargalhada imediata, como se aquilo não passasse de uma piada combinada, e deu uma palmada no ombro de Macro
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enquanto este se virava para seguir Cato e Sétimo. Quase por instinto, Macro rodou e espetou o punho no estômago do outro. Enquanto o homem se dobrava sobre si
mesmo, a tentar recuperar o fôlego, Macro recuou com um ar satisfeito.
- Ora bem, lá perdeste o ânimo. Pode ser que deixes de enganar os incautos por uns tempos.
Sétimo olhou preocupado para os que tinham parado a ver o desacato.
- Macro - sibilou Cato. - Vamos embora, antes que arranje maneira de passar ainda mais despercebido, sim?
Seguiram a passo despreocupado ao longo do Boário, e viraram para a larga via que passava entre os montes Palatino e Capitolino. À direita, espalhados sobre o primeiro,
ficavam os edifícios do extenso complexo que englobava o palácio imperial; por todo o lado se avistavam tochas e braseiros a alumiar as colunas e estátuas que contemplavam
Roma do alto. À esquerda, dominava a grande massa do Templo de Júpiter, edificado sobre um rochedo de faces abruptas e que só tinha acesso graças a uma rampa que
ziguezagueava até lá acima. Entraram no fórum e passaram em frente ao Senado. Em sentido contrário vinha um grupo de jovens bem vestidos, a discutir em voz alta
as proezas que tencionavam cumprir na noite que se avizinhava. Ao cruzarem-se com os dois soldados e o agente imperial, baixaram ligeiramente as vozes, mas logo
que se viram mais longe, continuaram na brincadeira. Do outro lado do fórum, uma rua seguia ao longo do Templo da Paz e subia em direção à Subura, um dos bairros
mais pobres da cidade, onde o crime dominava e os edifícios eram tão mal construídos que era raro o mês em que não se dava um desabamento ou incêndio num dos prédios
de apartamentos.
- O Narciso não nos vai pôr outra vez na merda da Subura, espero eu
- comentou Macro para Cato. - Fiquei farto daquilo da última vez que estivemos em Roma.
Sétimo deitou-lhes uma olhadela.
- Já estamos perto. Por acaso, a casa fica à saída da Subura. Ser-vos-á fácil chegar lá a partir do quartel. Mas não se preocupem. O apartamento fica num dos melhores
blocos. Pelo menos foi o que me garantiu o senhorio, quando o aluguei.
- E acreditaste nele?
- Pouco me importa. Não tenho de viver lá.
A rua ganhava alguma inclinação, e depressa começaram a passar por entre as altas estruturas de tijolos em que residiam a maior parte dos habitantes da cidade. Os
prédios sufocavam a rua, já que se erguiam de ambos os lados e bloqueavam o fraco brilho do céu noturno, de forma que ao nível da rua a escuridão era quase absoluta.
Nas entradas de alguns
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dos edifícios ardiam lucernas, mas as ruas eram escuras e apertadas. O que até nem era mau, considerou Cato, enquanto um odor fétido lhe enchia as narinas. Nem queria
imaginar as coisas que pisava. Ao redor e por cima ouviam vozes. Gargalhadas, conversas calmas, gritos irados e choro de crianças, e o impacto do conteúdo de baldes
de dejetos atirados para a rua.
- Cá estamos - anunciou Sétimo, subindo os poucos degraus que levavam a uma entrada estreita. Uma lamparina de óleo ardia num nicho e a sua luz revelava um brutamontes
com uma simples túnica sentado num banco a um canto. O homem olhou com atenção para Sétimo e acenou, antes de acender uma vela e a passar para as mãos do agente
imperial. À entrada abria-se um pequeno corredor que levava a uma escadaria estreita. Enquanto subia as escadas, Sétimo mantinha uma mão à frente da chama, para
a proteger. No quarto andar parou junto a uma das portas e abriu-a. Levou-os para dentro, e os dois amigos pousaram as cangas sobre as tábuas do soalho.
- Só um momento, vou acender uma lamparina - avisou Sétimo, e dirigiu-se a uma prateleira. Inclinou a vela até conseguir passar a chama para a lamparina, que começou
a produzir um brilho mais constante, e assoprou para apagar a vela. - Cá está.
Voltou a colocar a lamparina na prateleira e virou-se. À luz bruxuleante, Cato viu que o quarto estava vazio, descontando duas enxergas sobre o solo. Tinha uns três
metros de lado, e uma porta que dava para outro compartimento similar.
- Não se pode dizer que seja o cúmulo do conforto - protestou Macro, testando a dureza de um dos colchões com a ponta da bota.
- É assim que nos interessa - respondeu Sétimo. - Não tem nada para roubar. De qualquer forma, o porteiro vigia a entrada, quando se lembra disso. - Procurou por
uma pequena bolsa no interior da túnica e tirou dela um conjunto de rolos e duas tábuas enceradas, que lhes entregou. - O resto dos vossos documentos, e um relatório
sobre a situação atual na Britânia. Podem passar aqui a noite e dirigirem-se ao campo pretoriano pela manhã. Se precisarem de me deixar alguma mensagem, ponham-na
ali, sob a prateleira. A tábua do soalho está solta, e há um pequeno espaço vazio por baixo. Tratem de vir cá regularmente para verem se há novidades. Se deixarem
uma mensagem, virem a ponta da lamparina para a porta. Se não, virem-na para trás. Se estiver virada para outro lado, saberemos que este esconderijo foi comprometido...
- Comprometido? - Macro riu. - O que é isso? Calão de agente secreto?
- Já percebemos - continuou Cato. - Assumo que poderemos usar
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este sítio se precisarmos de desaparecer de repente. Ou de esconder alguma coisa.
Sétimo assentiu.
- E também se precisarem de se encontrar comigo, por qualquer razão. Vejam é se não são seguidos até aqui. Se o inimigo ficar a saber deste local, poderá vigiá-lo
e perceber a minha ligação ao Narciso. Tenham todo o cuidado, e não arrisquem vir cá se suspeitarem de alguma coisa. - Olhou para Macro. - Percebido?
- Para mim está tudo claro, não te preocupes. É com ele que tens de te preocupar. Com o Cato.
- Não! - Sétimo ergueu a mão.- Daqui para a frente só podem usar os vossos novos nomes. E usem-nos sempre. Quem quer que fossem antes deste dia, esqueçam-se dessas
identidades. Agora vocês são o Capito e o Cálido. - Encarou-os por momentos e dirigiu-se então para a porta. - Tratem de dormir. Amanhã será o vosso primeiro dia
na Guarda Pretoriana.
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5

Bem cedo na manhã seguinte já Macro e Cato saíam da cidade pela porta do monte Viminal e se dirigiam ao subúrbio onde, no tempo de Tibério, fora construído o quartel
da Guarda Pretoriana. Caía uma chuva miudinha que formava pequenos charcos no grande terreiro que se estendia entre as muralhas da cidade e a orla do campo militar.
Atravessaram-no, dirigindo-se ao portão principal, e apresentaram-se ao optio de serviço. Era um sujeito baixo e entroncado, com cabelo aparado e que já recuava
da testa. Macro e Cato tinham pousado as cangas e estavam em sentido, enquanto a água da chuva pingava das bainhas das suas capas.
- Ora então, o que temos aqui? - indagou o optio, aparentemente bem -disposto.
Cato procurou na sacola que levava a tiracolo e entregou-lhe os documentos que atestavam a transferência dos dois amigos para a Guarda Pretoriana.
- Uma transferência da Segunda Legião, senhor. Os legionários Tito Ovídio Capito e Víbio Galo Cálido. Fomos colocados na Guarda.
- A sério? Capito e Cálido? Porra, com esses nomes até parecem uma parelha de mimos. - O optio pegou no documento dobrado e abriu-o. Passou o olhar pelo texto e
voltou a erguê-lo. - Diz aqui "Por conduta meritória no campo de batalha". O que é que vocês fizeram, desancaram o exército bárbaro, os dois sozinhos?
Cato sentiu um profundo desejo de pôr aquele optio presunçoso no seu lugar, mas reprimiu o impulso. Tinham de se comportar como meros legionários, uma vez que era
esse o papel que lhes fora atribuído.
- Não. Optio.
- Não? Ora bolas, muito gostava eu de saber o que fizeram vocês, seus heróis, para conseguirem uma transferência para a Guarda Pretoriana. Mas isso terá de esperar.
- Contemplou-os e chamou um dos homens que aguardavam junto ao portão. - Tu, chega cá!
O pretoriano veio a correr e pôs-se em sentido. Cato deitou-lhe uma olhadela discreta. Era jovem, mal saído da adolescência. À semelhança dos pretorianos que tinham
feito uma breve aparição nas fases iniciais da
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campanha na Britânia, usava uma túnica de tom branco sujo, e um manto. Por baixo deste adivinhava-se uma armadura articulada, do género que ainda era preferido por
alguns legionários. O resto do equipamento - gládio, adaga, botas, proteção da virilha e elmo - era o habitual. Só o escudo era diferente, oval em vez do retangular
usado nas legiões. A frente era decorada com o desenho de um escorpião. O símbolo fora escolhido por um prefeito anterior, Sejano, para agradar ao seu senhor, o
Imperador Tibério, que nascera sob esse signo estelar.
O optio dobrou o pergaminho e devolveu-o a Cato.
- Leva estes dois ao quartel-general. Quem trata do recrutamento, do treino e das transferências é o centurião Sínio. Leva-os a ele.
- Sim, senhor.
- Então, rapazes, toca a andar. Oh, e já agora, bem-vindos à Guarda Pretoriana. Vão ver que isto aqui é um bocado diferente da vida nas legiões.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor - agradeceu Cato.
Voltaram a colocar as cangas ao ombro e seguiram o soldado, deixando a casa da guarda e passando por baixo do arco do portão. O homem esperou que eles ajeitassem
as cangas e seguiu pela larga avenida que levava ao centro do aquartelamento pretoriano. De ambos os lados viam-se casernas de dois andares, que tinham pelo menos
uns cem passos de profundidade. O estuque que cobria as paredes estava impecável, e parecia ter sido pintado recentemente. O pavimento do caminho apresentava-se
igualmente limpo, e era óbvio que era varrido com regularidade.
- O quartel tem um ar limpo e arrumado - comentou Macro.
- Oh, isso é graças ao Geta - respondeu o jovem pretoriano. - O homem não deixa passar nada. Mantém-nos em estado de prontidão. Inspeções de surpresa às casernas,
alarmes a meio da noite e vistorias regulares ao equipamento são a norma por cá, pá. Não sei como se passam as coisas nas legiões, mas aqui em Roma será melhor fazerem
como ele disser, senão estão tramados.
Cato olhou para o jovem.
- Presumo então que não vieste aqui parar transferido de uma legião.
- Eu? Não. Muitos dos rapazes foram recrutados no centro de Itália. É uma excelente colocação, por isso não é fácil entrar, mas com uma carta de recomendação de
um magistrado local, a coisa geralmente faz-se. Infelizmente cheguei cá uns anitos atrasado, e já não pude beneficiar da doação que o Imperador fez quando subiu
ao trono. O salário de cinco anos, deu ele a cada homem! Porra, é uma fortuna. Seja como for, o Cláudio não há de ser eterno, e quem lhe suceder ver-se-á obrigado
a imitar-lhe a generosidade, se souber o que lhe convém.
Macro tossicou.
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- A tua lealdade ao Imperador é comovente.
O pretoriano lançou-lhe um olhar dúbio, mas acabou por sorrir quando percebeu que Macro estava a meter-se com ele.
- Sou leal, sim. Sem um Imperador a quem proteger, o que seria da Guarda Pretoriana? Desmantelada, os homens enviados para as legiões, nem mais. Com metade do salário,
enterrados nalguma fronteira esquecida e rodeados por bárbaros sequiosos de nos cortarem a garganta à primeira oportunidade. Uma perspetiva pouco agradável. - Fez
uma pausa e olhou para os dois homens com intensidade. - Sem ofensa, claro.
- Não nos ofendeste - retorquiu Cato, sem dar importância ao desabafo do outro. - Mas diz-me uma coisa, os pretorianos são todos tão cínicos como tu? Sem ofensa,
claro, mas dás-me a ideia de ser um tanto... Bem, um tanto mercenário.
- Mercenário? - O pretoriano pareceu considerar a sugestão. - Sim, suponho que a alguns é capaz de dar essa sensação. Para a maior parte do efetivo, é sobretudo
um bom negócio. Salário generoso, acomodações confortáveis, bons lugares para os jogos, e nem sequer há grandes ocasiões para ter de trabalhar a sério. E, por acaso,
vocês chegaram no bom momento. Daqui a dez dias são os jogos da Ascensão.
- Jogos da Ascensão?
- No aniversário do dia em que Cláudio se tornou Imperador. Organiza-se uma parada de gala aqui no quartel, uns combates de gladiadores, umas cerimónias mais ou
menos interessantes, e no fim há um festim. Ele não se esquece de quem o pôs no poder, e empenha-se em manter boas relações com a Guarda Pretoriana. Portanto, podem
começar logo a gozar as prendas que o Imperador nos dá. Isto dito, aqui não é propriamente um campo de férias. O Geta faz-nos trabalhar a sério, e se formos chamados
a isso, estamos prontos a combater.
- Vimos os pretorianos em combate, uma vez - disse Macro. - Lá na Britânia. Portaram-se bastante bem.
A expressão do pretoriano abriu-se.
- Estiveram lá? Em Camuloduno?
Macro assentiu.
- Os que acompanharam o Imperador nessa altura contaram-me que foi uma batalha muito complicada.
- E foi. Mas não devia ter sido. O inimigo preparou-nos uma bela armadilha. Se o Cláudio não estivesse mortinho por avançar, quase às cegas, para obter a sua grande
vitória, nunca teríamos caído na emboscada. A verdade é que a Segunda Legião salvou o dia, bem como as peles do Imperador e da Guarda Pretoriana.
- Vocês faziam parte da Segunda, não é?
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- Sim. E com todo o orgulho. A Augusta Segunda Legião é a melhor dos exércitos. Devias ter-nos visto, rapaz. Uma batalha e outra, e sempre a malhar nos celtas. E
não são propriamente uns moles, aqueles tipos. São grandes, corajosos, e nada lhes agrada mais na vida do que um bom combate. Não foi uma campanha fácil. Sei que
há quem, em Roma, tenha outra opinião. Mas esses não estiveram lá. Eu estive, sei o que vi, e o que digo é a verdade. Não é assim, Ca...
Cato teve um repentino ataque de tosse, e lançou um olhar furibundo ao amigo. Este corou e pigarreou, antes de prosseguir.
- Olha, pergunta aqui ao Capito, quando lhe tiver passado a tosse.
O pretoriano olhou para Cato, mas depressa voltou a focar-se em Macro.
- Olha, Cálido, dou-te um conselho. Se fosse a ti, teria algum cuidado com o que dizes da tua antiga legião à frente de alguns dos rapazes. Têm uma certa tendência
para pensar que, estando diretamente ao serviço do Imperador, somos nós os melhores soldados de todo o exército.
- E tu, o que pensas?
- Não conheci outra unidade, só a Guarda. Penso que seria um tanto impróprio dar opiniões sobre coisas acerca das quais não tenho qualquer experiência.
Macro sorriu.
- És um rapaz esperto.
Tinham chegado ao coração do campo e pela primeira vez Cato e Macro avistaram o edifício do quartel-general, com uma imponente frontaria colunada. Macro soltou um
assobio baixinho.
- Porra, parece mais um templo do que um edifício militar.
Entraram, contemplando com assombro os relevos no teto do arco da
entrada. Lá dentro abria-se um espaço amplo, de uns trinta metros de lado, calculou Cato, ladeado por mais colunas. Diretamente oposta ao portão havia outra porta
que levava aos gabinetes que ocupavam o lado distante do quadrado. Um grupo de escribas, enrolados nas suas capas, passarinhavam por ali, cumprindo os seus afazeres,
e uma secção de soldados montava guarda no exterior da zona dos gabinetes. O pretoriano explicou ao optio que a comandava as ordens que recebera e largou o escudo,
ao mesmo tempo que desapertava o cinturão com a espada e a adaga, deixando-os com as armas que outros visitantes tinham deixado sobre uma mesa à entrada.
O optio acenou a Cato e Macro.
- Deixem aqui os vossos fardos e sacolas. Trazem alguma arma convosco?
Cato apontou para a mochila com o equipamento.
- Ali dentro.
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- Ali dentro, senhor - irritou-se o optio.
Cato pôs-se em sentido.
- Sim, senhor.
- Não faço ideia como anda a disciplina nas legiões, mas aqui na Guarda não é descurada. Nunca - prosseguiu o optio, enquanto Macro se apressava a imitar o amigo
e se punha também em sentido. O optio arreganhou o lábio enquanto observava os mantos e túnicas gastas que envergavam. - E o mesmo se aplica ao vosso fardamento.
O prefeito Geta gosta de ver os homens bem ataviados. Vocês parecem vagabundos. Não se atrevam a pôr essas carantonhas de fora outra vez sem estarem limpos e bem
vestidos. Percebido?
- Sim, senhor - responderam em coro Macro e Cato.
- Bom, tu, leva-os lá à presença do centurião Sínio. - Sorriu friamente. - Atrevo-me a adivinhar que o centurião também ficará pouco agradado com a vossa aparência.
Vão.
Seguiram o jovem pretoriano para o átrio e depois viraram à direita, entrando num comprido corredor com gabinetes a um dos lados e longas mesas onde se sentavam
escribas, por entre pilhas de tábuas enceradas e cestos repletos de rolos de pergaminhos. Bem alto nas paredes havia fendas estreitas que mal forneciam a iluminação
suficiente para os homens trabalharem, e Cato notou que muitos deles tinham de esforçar a vista para perceberem os pequenos detalhes dos registos que estavam a verificar.
Ainda estava pouco satisfeito com a receção gelada que tinha recebido no campo. Tinha-se acostumado à deferência automática por parte das patentes mais baixas, e
era para ele quase insuportável ver-se de volta aos seus primeiros dias no exército e ser de novo tratado como um legionário comum. Já não era o prefeito Cato, era
apenas o guarda Capito, e tinha de viver e agir como se fosse realmente esse personagem. O mesmo se aplicava a Macro. Ao olhar para o lado quando passavam em frente
ao primeiro gabinete, Cato notou que Macro não parecia perturbado pela reprimenda que acabara de receber. Isso era uma surpresa, considerou. Temera que, pelo contrário,
o veterano se irritasse com tal tratamento e não fosse capaz de o esconder.
- Cá estamos - anunciou o pretoriano. Indicou a porta mais próxima. Ao contrário da maior parte das outras no corredor, esta estava fechada. - O gabinete do centurião
Sínio.
Fez uma breve pausa para dar oportunidade aos dois para se ajeitarem, e depois bateu.
- Um momento! - respondeu do interior uma voz abafada. Deu-se uma breve pausa. - Entrem!
O jovem soldado levantou o ferrolho e abriu a porta para dentro. Avançou até ao limiar, colocou-se em sentido e inclinou a cabeça.
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- Senhor, peço licença para informar que o optio de serviço ao portão principal me deu ordens para escoltar estes dois novos recrutas até ao quartel-general.
Cato, sendo mais alto do que a maioria dos soldados, conseguia ver o interior do gabinete por cima do ombro do pretoriano. O centurião estava a fechar uma tábua
encerada que arrumou num pequeno cofre com documentos, que mantinha ao lado da secretária. Sínio aparentava entre vinte e muitos e trinta e poucos anos de idade;
demasiado novo para ter conseguido alcançar aquela patente pelo lento processo normal de subida nas fileiras. Cato adivinhou que devia ter entrado para a Guarda
logo como centurião. Um membro de uma rica família da classe equestre que resolvera renunciar aos seus privilégios sociais para se juntar à Guarda Pretoriana. Tinha
cabelo claro, o que era pouco usual num romano, com um penteado que tentava esconder os sinais de uma calvície prematura. Era um homem esguio, rijo de corpo e de
face austera. Porém, quando olhou para cima, fê-lo com um sorriso caloroso.
- Muito bem, fá-los entrar.
O jovem soldado afastou-se para dar passagem a Macro e Cato, que marcharam até uma distância respeitosa da secretária do centurião, de ombros recuados e peitos empertigados.
O gabinete tinha uma área generosa, com cerca de cinco metros de lado. Uma janela de portadas cerradas ficava por trás da mesa e a luz só entrava por duas outras
aberturas ao cimo da parede, junto ao beiral. A parede à esquerda estava coberta por estantes onde se arquivavam tábuas, folhas de papiro e rolos de pergaminho.
Num cabide instalado na parede oposta estavam pendurados uma placa peitoral reluzente e um elmo finamente decorado, encimado por uma pluma vermelha.
Sínio olhou brevemente para os dois recrutas e acenou ao pretoriano.
- Podes ir. Fecha a porta ao saíres.
O jovem obedeceu e ouviu-se um pequeno estalo quando a tranca voltou a encaixar-se no seu lugar. Sínio avaliou mais lentamente os recém-chegados. Cato não devolveu
o olhar, mantendo a vista fixa em frente, num pequeno busto do Imperador que se via num pedestal junto à parede do fundo.
- Bom, vamos despachar os preliminares. - Sínio inclinou-se para a frente e esticou a mão. - Os vossos documentos de transferência, por favor.
- Sim, senhor. - Cato pegou no papiro dobrado e na carta de recomendação e passou-os para a mão do centurião. Sínio leu os documentos de imediato, e batucou com
o dedo no selo imperial que certificava o ofício de transferência, como que para se assegurar de que era genuíno.
- Vocês vêm muito bem recomendados. O vosso anterior comandante
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tem palavras muito elogiosas para convosco. Diz que são ambos soldados exemplares. Veremos isso, já que na Guarda Pretoriana os padrões são um tanto mais elevados
do que nas legiões. Seja como for, os papéis estão em ordem, e o palácio imperial aprovou a vossa transferência, portanto eis-vos guardas. - Olhou de novo para os
documentos. - Qual de vocês é o Capito?
- Eu, senhor - disse Cato.
- E Cálido. - O centurião sorriu a Macro. - Sejam bem-vindos. Apesar do que eu disse sobre os padrões, a verdade é que à Guarda dão sempre jeito soldados experientes.
Não somos chamados a combater com grande regularidade, mas quando tal sucede, existe um grande peso de responsabilidade sobre os nossos ombros. E nesse caso, quantos
mais veteranos tivermos nas fileiras, melhor. O outro lado da moeda é que vocês têm de perceber que os vossos novos deveres exigem uma absoluta adesão aos protocolos
estabelecidos. Os vossos papéis especificam que serão colocados na centúria do Lurco, na Quinta Coorte. O centurião Lurco está de folga, portanto vão-se apresentar
ao comandante da coorte. - Fez uma pausa. - Ao que parece, o Imperador ficou tão impressionado com a vossa bravura que solicitou que vocês fossem designados para
a sua proteção, bem como da sua família. Por isso é que vão para a coorte a quem foi atribuída a guarda do palácio.
- Sentimo-nos honrados, senhor - respondeu Cato.
- E é assim mesmo que se devem sentir. Um lugar destes geralmente só é concedido depois de alguns anos de serviço na Guarda. E mesmo nessa altura, os homens têm
de saber precisamente como se devem comportar em cada situação. No palácio imperial existe uma hierarquia muito rígida, e todos os guardas devem conhecê-la e dirigir-se
aos membros da família imperial estritamente de acordo com a sua posição. Sendo eu o oficial responsável pelo recrutamento, treino e pessoal das coortes da Guarda,
farei o meu melhor para vos preparar, embora não esteja neste posto há muito mais do que um mês. Vou tratar de arranjar alguém com experiência para vos explicar
os detalhes. - Sorriu de novo. - Terão de ter paciência comigo, tal como eu terei convosco, sim?
- Sim, senhor - responderam os dois.
- A coorte do palácio é comandada pelo tribuno Burro. - Sínio pegou num estilete e fez uma rápida anotação numa tábua.
- Tribuno Burro, senhor? - admirou-se Macro.
- Foi o que eu disse - ripostou Sínio irritado, mas a sua expressão desanuviou-se imediatamente. - Ah, estou a perceber. Nas legiões, os tribunos são oficiais do
estado-maior, não é? Aqui na Guarda é diferente. As coortes são comandadas por tribunos, que normalmente ocupam o posto
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por um ano, antes da reforma. E não é a única diferença. As coortes da Guarda têm o dobro do efetivo das das legiões. Aliás, há cerca de dez mil pretorianos no ativo.
Alguns estão destacados noutros lugares, mas a maior parte está aqui neste aquartelamento, o que deixa mais de nove mil homens ao dispor do Imperador em caso de
emergência. E faz com que a populaça pense duas vezes antes de arranjar confusão. - Fez uma breve pausa. - Claro que não somos os únicos encarregues de manter a
ordem. Há também as coortes urbanas e os vigilantes, que se encarregam de patrulhar as vias principais da cidade e de dispersar zaragatas de bêbados e coisas do
género. Os pretorianos estão aqui como um último recurso. Portanto, quando avançamos, toda a gente sabe que é a sério.
- E isso acontece com frequência, senhor? - indagou Macro.
- Não. Mas há problemas a fermentar. - O tom de Sínio tornou-se mais sério. - Graças à disrupção do fornecimento de cereal do Egito no ano passado, as reservas dos
celeiros imperiais estão muito baixas. A distribuição aos populares já levou um corte, e começa a surgir alguma fome, isto enquanto os preços sobem todos os dias.
Já ocorreram alguns motins de pequena dimensão. É engraçado - refletiu. - Aqui estamos nós, na maior cidade do mundo. Temos banhos esplendorosos, teatros, arenas,
bens e luxos que chegam de todos os cantos do mundo, as maiores mentes pesquisam nas nossas bibliotecas, e um Imperador a seguir ao outro tem promovido a construção
de magníficos templos e edifícios públicos. E ainda assim nunca estamos a mais do que algumas refeições da desordem e do colapso da estrutura social.
Cato e Macro não fizeram qualquer comentário e continuaram em sentido.
Sínio suspirou.
- À vontade. Já tratámos das formalidades. Agora, só estou curioso sobre as vossas pessoas. Tenho algumas questões.
Os dois homens abandonaram a postura rígida e trocaram um olhar. Cato limpou a garganta e respondeu pelos dois.
- Sim, senhor.
- Em primeiro lugar, vêm da Britânia?
- Sim, senhor.
- Onde continuam as campanhas, apesar de o Cláudio ter celebrado um triunfo que lhe foi concedido pelo Senado devido à conquista da Britânia, já há uns anos.
- Senhor, controlamos o coração da ilha. Forçámos os nossos inimigos a recuar para as montanhas que orlam a nova província. É apenas uma questão de tempo até que
as legiões terminem o trabalho.
- A sério? É que eu tenho um primo na Nona Legião. De tempos a
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tempos escreve-me, e devo dizer que ele não partilha a vossa confiança na progressão das nossas forças. Segundo o que diz, está a ser difícil esmagar os que ainda
nos resistem. O inimigo lança constantes ataques contra as nossas linhas de abastecimento, e assim que dispomos forças importantes no terreno, desaparece sem deixar
rasto.
- É a nova forma de eles lutarem, senhor - interveio Macro. - A que se viram obrigados depois de desistirem de nos enfrentar em campo aberto. É a estratégia dos
derrotados. E tudo o que conseguem é ganhar mais um tempo antes de terem de se submeter a Roma.
- Bem gostaria que o meu primo tivesse a tua natureza tão fleumática, Cálido. Porém, ele não é o único soldado que parece pensar que a campanha não decorre tão bem
como o palácio imperial gostaria de nos fazer acreditar. Talvez exista uma diferença de opiniões entre as fileiras e os oficiais. Afinal de contas, os soldados comuns
como vocês os dois não têm a perspetiva global da situação. Digam-me, o que pensam os homens das legiões? Como é que... se sentem?
Cato considerou cuidadosamente a questão. Já tinham passado alguns anos desde que ele e Macro tinham deixado a Segunda Legião. E já nessa altura a campanha pesava
no espírito de muitos. Porém, isso era de esperar. A questão ali era a de conseguir aproveitar aquela oportunidade para testar o pensamento do centurião que se sentava
à sua frente.
- Há quem não esteja de todo feliz com a sua colocação, senhor - começou Cato, em tom moderado.
- Prossegue.
- Não posso realmente falar por eles.
- Capito, percebo o que queres dizer. Mas tem calma, isto é uma conversa informal. Agora estás na Guarda, e nada o poderá alterar. Estou apenas curioso quanto à
situação na Britânia. Confia em mim.
Cato deitou um olhar rápido a Macro, mas este estava demasiado inseguro sobre o rumo da conversa para se intrometer. Limitou-se a encolher os ombros poderosos.
- Bem, senhor - começou Cato. - Quando nos viemos embora, a opinião nas fileiras era de que a campanha não avançava. É um facto que controlamos o sul e o leste da
ilha, mas fora dessa zona são as tribos quem manda. Atacam as nossas colunas de abastecimento, os nossos postos avançados, e desaparecem. Conhecem o terreno e movem-se
com rapidez, o que não nos dá praticamente qualquer possibilidade de os apanhar. - Fez uma pausa. - Se quer mesmo a minha opinião, a nova província nunca será um
lugar seguro. O melhor que tínhamos a fazer era aceitar as perdas e retirar, senhor. - Sentiu-se tomado pela inspiração e resolveu continuar. - Até ouvi alguns oficiais
da legião a discutirem o assunto numa noite, senhor.
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Estava eu de sentinela. Querem tanto sair dali como nós, e um deles disse mesmo que a única razão para lá estarmos era a necessidade de Cláudio se armar em herói
conquistador. E que assim que ele tinha tido o seu triunfo, se tinha esquecido do exército na Britânia.
- Estou a ver. - Sínio mordeu os lábios. - Ao que parece, o Imperador não está lá muito bem visto no seio das legiões que estão na Britânia.
Cato olhou para ele com ar nervoso.
- Assim parecia quando eu e o Cálido deixámos a Segunda, senhor. A situação pode ter-se alterado entretanto.
- Claro, é sempre possível. Capito, obrigado pela franqueza. E podes estar tranquilo, esta nossa conversa nunca sairá destas paredes.
Cato assentiu.
- Obrigado, senhor.
Sínio fez um gesto com a mão, apagando o assunto.
- Não penses mais nisso. Bom, o nosso encontro está no fim. Vão ter de ir aos armazéns recolher o vosso material antes de se juntarem à coorte em que foram colocados.
Os homens do tribuno Burro estão nas casernas no canto sudoeste do campo. Entreguem esta tábua ao escrivão da coorte quando lá se apresentarem, e serão colocados
na centúria do centurião Lurco.
- Sim, senhor.
- Só me resta portanto dar-vos as boas-vindas à Guarda Pretoriana. Cumpram os vossos deveres e não se metam em assuntos escuros, e verão que se trata de uma excelente
posição. O vosso maior desafio será provavelmente o de afastar todas as mulheres que adoram o uniforme, bem como o salário e o estatuto que o acompanham. E não estou
só a falar das mulheres vulgares, na rua. Há um bom número de esposas de senadores que muito apreciam a companhia dos pretorianos.
Macro não evitou um sorriso perante o cenário que lhe preencheu a mente.
O centurião calou-se por momentos, antes de prosseguir em voz mais baixa.
- Um conselho de amigo. Evitem toda e qualquer tentação de se tornarem próximos de um qualquer membro da família imperial, se é que me estão a entender. Considerem-se
avisados. Podem ir.
Os dois amigos deixaram o gabinete e fecharam a porta ao sair. O centurião Sínio olhou para ela por momentos, perdido em pensamentos, e depois abriu a arca dos documentos
e tirou a tábua que estivera a examinar antes da chegada dos dois novos guardas. Pegou num estilete, tomou mais algumas notas e devolveu-a à arca. Levantou-se da
secretária e saiu do edifício para dar algumas instruções a um dos seus comandados.
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6

Macro pegou na toga branca e abanou a cabeça.
- Isto não é roupa para um soldado. É suposto pôr isto sobre o ombro esquerdo e deixar a ponta cair sobre o braço, não é?
Cato, do outro lado do compartimento, confirmou.
- É um disparate - prosseguiu Macro. - Com esta coisa em cima, como é que alguém consegue manejar decentemente uma espada? O mais certo é enredar-se nela e ferir-se
a si mesmo muito antes de conseguir derrubar o adversário.
Fez uma trouxa da veste e lançou-a para cima da cama, antes de se sentar com uma expressão de desalento e lançar a vista sobre o resto do equipamento que lhe tinha
sido distribuído na messe. A toga era o traje formal de um membro da Guarda quando estava de serviço na cidade. Uma concessão aos habitantes de Roma ainda arreigados
aos valores da velha República, tempos em que a presença de homens armados nas ruas seria tida como uma ameaça à liberdade dos cidadãos. Por razão similar, Cláudio
tinha-se habituado a utilizar uma toga sem adornos em muitas ocasiões de cerimónia, omitindo até a mais fina das faixas púrpura utilizadas por magistrados do mais
baixo escalão. Tal exibição de humildade caía no goto da multidão e no dos membros mais facilmente impressionáveis do Senado. Mas quanto a Macro, a toga era algo
de completamente inútil para soldados que supostamente estavam a guardar o palácio imperial.
- Então e os guarda-costas germanos? - Macro voltou a olhar para Cato. - Também têm de usar isto?
- Não. Mas no fim de contas são apenas bárbaros, acho que da Batávia. Se fossem vistos com togas, isso, sim, seria uma ofensa à sensibilidade da opinião pública.
- Que treta - resmungou Macro. Voltou a contemplar as outras peças de equipamento. Havia uma armadura funcional, uma couraça de latão, um elmo com crista decorada
e guardas de rosto, finas mas sem utilidade prática e sem proteção no pescoço. E depois as túnicas de tom creme e as capas de castanho-claro que facilmente apanhariam
toda a sujidade e pó das ruas de Roma, e que teriam de ser limpas constantemente. Por fim,
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lá estavam a espada curta, o escudo oval e o pesado dardo que, esses ao menos, pareciam verdadeiro equipamento militar. Cato já tinha dobrado a toga, as túnicas
e as capas, e tinha-as depositado muito bem arrumadas na prateleira por cima da cama. Com um suspiro, Macro resolveu finalmente imitar o amigo.
- Que conversa foi aquela sobre a falta de moral dos rapazes na Britânia? - perguntou.
Cato assobiou, irado, levantou-se num repente e atravessou o quarto até à porta. Espreitou para fora. Tinha-lhes sido atribuído um quarto confortável no segundo
andar, com outros dois homens da Sexta Centúria da Terceira Coorte, a unidade a quem estava naquele momento atribuída a proteção do palácio imperial e do séquito
que acompanhava Cláudio sempre que este se dignava sair para visitar o Senado ou para apreciar algum entretenimento num teatro, na arena ou na pista de corridas.
Nas legiões, os soldados eram forçados a amontoar-se, oito por quarto, ou por tenda quando em campanha. Ali, na Guarda, eram quatro homens por quarto, e os compartimentos
eram arejados e bem iluminados por janelas com persianas. Cato avistou alguns vultos no corredor, à distância, debruçados sobre o parapeito do varandim que dava
para a alameda que conduzia ao estabelecimento de banhos do campo. Também este era de uma escala enorme, se comparado com o que era habitual numa instalação das
legiões. Compartimentos alinhavam-se num dos lados de um pátio de exercícios de chão arenoso, rodeado por um muro baixo. Os outros pretorianos ignoraram-no. Algumas
das portas que davam para o corredor estavam abertas, mas as conversas que se desenrolavam no interior eram impossíveis de escutar. Cato regressou à cama e sentou-se
na beira.
- Mantenha a voz baixa quando conversarmos. E lembre-se de que temos de utilizar os nomes falsos em todas as circunstâncias.
- Já sei - resmungou Macro, enquanto acabava de dobrar as roupas. Sentou-se em frente ao amigo. - Desculpa lá aquilo de há bocado. É que não me sinto lá muito confortável
com esta história de fingir que sou outro tipo qualquer.
- Bom, fazia bem em se habituar. Por agora somos espiões, e não podemos fazer nada quanto a isso enquanto não resolvermos o assunto. Se falharmos, o Narciso lança-nos
às feras. Isso, claro, partindo do princípio de que conseguimos sobreviver às atenções, sem dúvida amigáveis, dos Libertadores.
- Sim, sim, pois - ripostou Macro, enfadado. - Vou concentrar-me nesta história, prometo. Mas diz-me lá, Capito... - Não conseguiu evitar um sorriso fugaz ao usar
o nome inventado. - Porque é que deste ao Sínio aquela ideia acerca da situação na Britânia?
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- Tinha de lhe dizer qualquer coisa, para garantir que ele engolia a nossa história. E nessa altura ocorreu-me que, se mencionasse algum descontentamento, isso não
deixaria de ser interessante para o outro lado. Mesmo que o Sínio não tenha nada a ver com a conspiração, é muito provável que ele comente o que nós dissemos com
os outros oficiais. E assim os nossos nomes são falados, e fica a pairar a ideia de que talvez possamos acolher com agrado um contacto da parte daqueles que se opõem
ao Imperador. - Cato encheu de ar as bochechas. - Bom, foi isso que me passou pela cabeça, de qualquer maneira.
Macro assentiu.
- Parece-me bem. Como de costume, meu caro, a tua mente retorcida esteve à altura dos acontecimentos. Não me espanta que o Narciso tanto te aprecie. - Lançou um
olhar intenso sobre o jovem. - Já te imagino a tomares o lugar dele no palácio, um dia destes. Acho que te ias safar muito bem.
Cato encarou-o sem vestígio de humor, e respondeu num tom de voz deliberadamente baixo e áspero.
- Pode ser que venha a fazer isso mesmo.
Por momentos encararam-se em silêncio, até que Macro deu uma palmada no ombro do amigo.
- Eh pá, desta vez quase que me enganaste!
Macro soltou sonoras gargalhadas, às quais Cato se juntou com vontade. Ainda estavam a rir quando ouviram passos que se aproximavam e surgiu um vulto à entrada do
quarto. Cato rodou sobre si mesmo e contemplou um homem magro, de face estreita, que os observava friamente. A pele apresentava numerosas manchas, e o cabelo estava
tisnado de cinzento. Cato supôs que seria alguns anos mais velho que Macro. Levantou-se e ofereceu o braço ao recém-chegado.
- Chamo-me Tito Ovídio Capito. Estava na Segunda Legião antes de ser transferido para a Guarda.
- Capito - assentiu o homem. - Folgo em ver-te tão animado. Por acaso, fazes parte da minha secção. - Apontou o próprio peito com o polegar. - O nome é Lúcio Polino
Tigelino. Optio da centúria, ajudante do centurião Lurco. E ali o teu amigo é o outro tipo novo?
Macro levantou-se.
- O amigo é capaz de falar. Víbio Galo Cálido. Também vindo da Segunda.
Tigelino fungou.
- Tanto quanto me lembro, uma unidade como outra qualquer. Vocês podem ter impressionado os vossos superiores lá na Britânia, mas se querem ser bem vistos por aqui,
vão ter de se esforçar. Nem eu nem o tribuno Burro somos facilmente impressionáveis.
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- Faremos o nosso melhor - aplacou-o Cato.
- Excelente; portanto o melhor será porem imediatamente as vossas túnicas de serviço e irem apresentar-se ao tribuno. - Tigelino apontou para a farda da legião.
- E livrem-se desses trapos. Vendam-nos no mercado, já não terão necessidade deles, e não os quero ver a entulhar as prateleiras. E se fosse a vocês, despachava-me.
O tribuno detesta molengões.
Virou-se e afastou-se pelo corredor. No momento seguinte outra face surgiu à porta e entrou. Era um jovem, talvez da mesma idade que o soldado que os tinha levado
até ao quartel-general, mas aos olhos de Cato este parecia ter um aspeto demasiado imberbe para ser um soldado. O pensamento apanhou-o de surpresa, e percebeu que
ele próprio era pouco mais velho do que o jovem pretoriano que ali estava à sua frente. Porém, eram uns anos de experiência que faziam muita diferença, refletiu.
O pretoriano olhou em redor, para se assegurar de que Tigelino já não estava a uma distância que lhe permitisse ouvir as suas palavras.
- Não se ralem com ele. O Tigelino faz todos os novatos passar um mau bocado. Diz que lhes faz bem, que os mantém atentos. Deviam ter visto como ele me costumava
tratar. - Sorriu. - Chamo-me Fúscio.
Macro sorriu também.
- Eu sou o Cálido, e aqui o magricela é o Capito. Fomos transferidos das legiões.
- Foi o que calculei quando vi a... - As palavras falharam-lhe quando apontou para a cicatriz que cruzava o rosto de Cato. - Como é que arranjaste isso?
- Uma espadeirada - explicou Cato, sem emoção. - No ano passado, na... Britânia. Fui ferido numa emboscada feita pelos durotrígios.
Fúscio contemplou-o por momentos, com evidente assombro, até perceber que estava a fazer figura de parvo, e corar, embaraçado.
- Aposto que vocês devem ter uma boa série de histórias da Britânia.
- Apostas? Quanto, exatamente? - inquiriu Macro, com ar sério. - Meu caro jovem, se queres histórias interessantes, é comigo mesmo que tens de falar.
- Oh? - Fúscio não fazia ideia de como continuar sem correr o risco de ofender um dos homens, pelo que murmurou qualquer coisa enquanto se esgueirava para junto
de uma das camas ao lado da janela. - Bom, seja como for, é bom ter mais alguém no quarto. O Tigelino não é um grande conversador. Bom, falar ele fala, mas sobretudo
para se queixar disto e daquilo.
- Já reparámos - comentou Cato, enquanto tirava a túnica vermelha que ainda trazia e vestia a sua nova túnica de pretoriano. - Vá, Cálido, toca a despachar.
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- Quando acabarem os vossos deveres, ficam já avisados de que eu e alguns dos rapazes vamos sair logo à noite para beber um copo - anunciou Fúscio. - Querem vir
connosco?
- Boa ideia - retorquiu Cato enquanto alisava a túnica sobre o corpo e apertava o grosso cinturão. - Cálido?
- Porque não? Uma bebida decente seria bem-vinda, depois daquela mistela asquerosa que emborcámos à chegada a Roma.
- Ótimo, então vamos lá ter com o tribuno.
O tribuno Burro era um verdadeiro veterano, já avançado nos anos. Pelo número de cicatrizes que ostentava no rosto e nos braços, devia ter passado um bom número
de anos nas legiões antes de ser designado para a Guarda Pretoriana. Era quase careca, com apenas uma coroa de cabelos brancos. Tinha perdido um olho, pelo que usava
uma pala de cabedal sobre a órbita vazia, mantida no lugar por uma tira fina. Era alto e sólido, e Cato imaginou que, na flor da idade, devia ter tido uma figura
de impor respeito. Agora, porém, passava os seus últimos anos de serviço na Guarda até receber a sua gratificação final e deixar o exército. Poderia depois talvez
utilizar o facto de ascender à classe equestre para conseguir uma posição administrativa ali mesmo em Roma ou nalguma outra cidade da península itálica, mas Cato
adivinhava que o homem preferiria a companhia de velhos soldados à de burocratas. Portanto, o tribuno acabaria provavelmente os seus dias numa colónia militar, gozando
o respeito de homens que lhe reconheceriam o valor, mesmo sendo ele já velho e frágil.
- Bom, escusam de ficar a apreciar a porra da porta! - lançou o tribuno.
Quando Cato e Macro se colocaram à sua frente em sentido, o oficial escrutinou-os com toda a atenção antes de continuar.
- Até que enfim, soldados a sério! Porra, que já era altura. Nos últimos tempos tenho recebido demasiados destes rapazinhos da cidade, tão doces e gentis. Sobretudo
depois de todas as baixas que tivemos na Britânia. Mas vocês devem lembrar-se daquela batalha às portas de Camuloduno. Foi a vossa legião que nos safou daquela armadilha.
Foda-se, que aqueles celtas são uns cabrões bem tramados. Lutam bem, e conseguiram forçar os pretorianos a dar o seu melhor, embora para dizer a verdade tenhamos
levado uma tareia - concluiu. - Bom, enfim, é muito agradável receber dois veteranos nesta coorte. Embora me pareça que um de vocês ainda é um bocado a dar para
o jovem, hã? Qual és tu?
- Capito, senhor.
- Idade?
- Vinte e cinco, senhor.
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- Tens portanto uns sete anos de serviço.
- Quase oito, senhor. Alistei-me pouco depois de fazer dezassete.
Burro franziu o sobrolho.
- Isso é contra os regulamentos. Dezoito é a idade mínima.
- O meu pai mandou-me para o exército assim que achou que eu estava pronto para isso - afirmou Cato, tentando apresentar a sua história sem qualquer emoção.
- Deve sentir-se orgulhoso, então. Portaste-te muito bem.
- Obrigado, senhor.
Burro virou a atenção para Macro.
- E tu, o que contas? Pelo teu ar, já andas nisto há muito tempo. Quantos anos tens de serviço, Cálido?
- Vinte e três anos, senhor.
- Pelos deuses, ao fim desse tempo todo, continuas a ser um mero legionário? Já devias ter sido morto, ou então já devias ser centurião, ou pelo menos optio. Que
desculpa é que me vais dar?
Macro engoliu o azedume e respondeu de forma direta.
- Senhor, antes de mais sou um soldado, um homem das fileiras. Nunca vi nenhuma boa razão para tentar ser promovido. Gosto da vida básica do soldado. Luto como ninguém,
e já abati um bom número de inimigos de Roma ao longo dos anos.
- Ser um combatente feroz é uma coisa, mas achas que estarás à altura das exigências de ser um pretoriano? Vais estar constantemente sob o olhar dos senadores e
do povo de Roma. Ser um bom soldado vai muito para além de liquidar inimigos. Se fizeres borrada e desgraçares a Guarda Pretoriana, serás um embaraço para o Imperador
e pior, muito pior, far-me-ás passar uma vergonha. Se isso alguma vez suceder, faço-te desabar em cima tanta merda que nunca mais terás na boca outro sabor, Cálido,
percebeste?
- Sim, senhor.
Deu-se uma pausa enquanto o tribuno esperava que a sua ameaça se entranhasse no espírito dos homens à sua frente; depois tossicou e prosseguiu num tom mais moderado.
- Vou dizer-vos aquilo que digo a todos os recrutas que me têm aparecido nos últimos meses. Juntaram-se a nós em tempos difíceis. O Imperador está a envelhecer,
e não será eterno, mesmo que algum senador idiota lhe garanta um voto elevando-o à divindade. É uma pena, porque, como Imperador, tem sido um dos melhores que tivemos
até hoje. Ainda assim, é feito de carne e osso, portanto acabará por falecer. O nosso trabalho é garantir que isso vai ocorrer por causas naturais e nenhumas outras.
Claro que conheço a velha história: causas naturais na família imperial incluem algumas formas bizarras, tais como envenenamento, uma faca nas costas
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ou uma espada nas entranhas, ser sufocado com uma almofada, e por aí fora. Nada disso sucederá enquanto eu for o comandante da coorte que guarda o palácio. Portanto,
sempre que estiverem de serviço, olhos bem abertos. Não confio naqueles cabrões germanos da guarda pessoal, nem um bocadinho; sei o que lhes fazia se pudesse. A
nossa função é impedir qualquer malfeitor de se aproximar de Cláudio o suficiente para justificar o que recebem os sacanas dos germanos. Para mim, os meus homens
são a primeira e última linha de defesa do Imperador. Se qualquer um de vós se tiver de lançar para a frente da faca de um assassino para salvar a vida do Imperador,
será isso mesmo que fará, e sem qualquer hesitação. Se não estão dispostos a isso, não têm lugar na minha coorte. Fui claro?
- Sim, senhor - responderam Cato e Macro de imediato.
- Ótimo. Como vos disse, a situação está complicada. Há várias fações no palácio
que já estão a traçar os seus planos para a sucessão. Alguns apoiam o Britânico, outros preferem aquele arrivista do Nero. Além disso, há uma pandilha de libertos
que são conselheiros do Imperador, o Palias, o Narciso e o Calisto, uns bons sacripantas, sempre a inventar esquemas. Todos eles manobram para fazer uma aliança
com o seu candidato preferido ao púrpura. Por mim tudo bem, desde que não se atrevam a tentar algum truque para acelerar o processo. Portanto, atenção a perigos
internos, tanto como aos externos. Alguma pergunta? - Olhou para um e depois para o outro. - Não? Bom, então o Tigelino tratará de vos informar sobre os protocolos
básicos, amanhã. Espero que aprendam depressa, porque entrarão de serviço depois de amanhã. É um caso de nadar ou afogarem-se, rapazes. Estão dispensados.
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- Um bando de soldadinhos de merda, a brincar às guerras, é o que
são os pretorianos - comentou Macro enquanto caminhavam pelas ruas que levavam ao estabelecimento que Fúscio mencionara. A escuridão reinava, e os dois homens cobriam-se
com as capas, tentando afastar o frio de uma noite de inverno. De ambos os lados da avenida erguiam-se as escuras massas dos periclitantes blocos de apartamentos
de construção pouco cuidada; só uma ocasional lamparina ou vela a arder no interior de um deles quebrava as trevas. O ar cheirava a suor, esgoto e podridão, numa
mistura fétida. Macro continuou a arengar. - Tudo o que fazem é treinar para desfiles em parada.
- Pensei que apreciava esse aspeto do nosso trabalho - contrariou Cato. - Costumava passar o tempo a lembrar-me que o treino constante era a razão do sucesso do
exército romano.
- Sim, claro, mas também se pode exagerar - concedeu Macro, a contragosto. - O importante é que o treino deve servir para preparar batalhas, não paradas e cerimónias
infindas. É suposto sermos soldados, e não inúteis peças ornamentais.
- Será? Os homens têm um certo estilo, convenhamos, e atrevo-me a suspeitar que se forem forçados a lutar, não desonrarão a reputação da Guarda.
Macro deitou um olhar de soslaio a Cato, e não viu o cadáver de um cão que jazia no chão, acabando por tropeçar nele.
- Oh, merda! Foda-se, pisei as tripas, olha-me bem para isto... - Parou para raspar a sola das botas contra a parede. - Ia eu a dizer que temos tantas hipóteses
de ver os pretorianos em ação como de dar com as vestais numa orgia. Acontece, mas muito raramente.
- Não estamos aqui para nos envolvermos em combates. Não quero fazer parte da Guarda Pretoriana nem mais um momento do que aquilo a que fui obrigado. Temos um objetivo
aqui, e um único.
- Sim, já sei, descobrir e liquidar os traidores.
- Estava mais a pensar em conseguir que aquele verme do Narciso pague tudo o que nos deve.
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Macro riu e deu uma palmada no ombro do amigo.
- Miúdo, tens toda a razão!
Cato sorriu. Por muito que ressentisse o facto de ter de voltar a justificar a sua promoção a prefeito, agradava-lhe voltar a ter a mesma patente que Macro. Tinham
existido momentos de tensão entre eles quando Macro se vira obrigado a respeitar a superior posição hierárquica de Cato, e este lamentara a perda da familiaridade
fácil que tinha caracterizado a relação entre eles nos anos anteriores. Isso voltaria a alterar-se quando terminassem a tarefa que tinham entre mãos, refletiu Cato,
deixando que a tristeza o invadisse. Se Narciso mantivesse a palavra, veria a sua promoção a prefeito confirmada, e obteria o comando de uma coorte auxiliar. O mais
provável era que Macro fosse nomeado para um cargo numa legião, e assim ver-se-iam separados. Mas para que isso acontecesse, era primeiro necessário concluir com
êxito a missão, lembrou-se.
- Deve ser aqui. - Macro apontou para um pequeno largo dominado por uma fonte pública ao centro. Ao entardecer, tinha-se levantado uma brisa forte, que tinha limpo
a maior parte da cortina de fumo que normalmente cobria Roma, e agora as estrelas brilhavam friamente no firmamento, banhando a cidade com um longínquo brilho, que
mal permitia distinguir a linha dos telhados dos edifícios de apartamentos no monte Esquilino. Quando os dois soldados entraram na praça, avistaram à direita uma
porta larga com um painel por cima, onde se podia ler em letras bem desenhadas: "Rio de Vinho". O som de risos e gritos espalhava-se pela praça, e a porta abriu-se
para deixar passar um homem a cambalear, que se debruçou para vomitar na rua, à luz mortiça das lamparinas e tochas que ardiam no interior.
- A foz do rio, sem dúvida - sugeriu Cato.
- Muito engraçado. Vamos mas é à nascente. Estou seco.
Cato segurou no braço do amigo para o deter por um momento.
- Beba, sim. Mas não exagere. Não podemos arriscar-nos a cometer qualquer erro.
- Prometo que me vou manter tão sóbrio como uma vestal.
- Segundo algumas opiniões, esse está longe de ser um bom termo de comparação.
Atravessaram o largo e rodearam cuidadosamente o homem ainda debruçado para a sarjeta, que continuava a vomitar, largando tudo o que tinha nas entranhas. Ao entrar,
Cato notou que a taberna era larga e se prolongava sob o bloco de apartamentos que se apoiava nas grossas colunas que dividiam a sala. Já estava repleta com os clientes
noturnos, e o ar era quente e abafado, devido ao fumo das velas e lamparinas, e ao odor acre do vinho barato. As lajes do soalho estavam cobertas por uma camada
de palha e
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serradura. Cato calculou que havia mais de cem homens e algumas mulheres empilhados naquele espaço, e todas as mesas estavam ocupadas, de tal forma que havia clientes
sentados no chão, com as costas apoiadas nas paredes. Havia grupos de guardas de folga, bem como homens das coortes urbanas. Os outros eram civis.
- Ei! Aqui!
Viraram-se para a voz e avistaram Fúscio, que lhes acenava do canto junto à entrada. Estava sentado a uma mesa longa, com mais alguns guardas. À sua frente já se
viam vários jarros de vinho.
Cato e Macro dirigiram-se para a mesa e Fúscio, já bem bebido, tratou das apresentações.
- Malta! Aqui estão os dois novos rapazes de que vos falei. Bom, rapazes não será o termo mais correto, não é? - Lançou os braços em torno dos ombros dos recém-chegados
e respirou na cara de Cato enquanto lhe sorria com ar atordoado. - Este é o Capito. E aqui está o Calo.
- Quem aqui está é o Cálido - corrigiu-o Macro, sem se chatear. Olhou para os outros homens à volta da mesa e acenou à laia de saudação geral. Eram nove, três com
aspeto de veteranos e os outros com ar jovem e faces rosadas e frescas como Fúscio. Quase todos pareciam já ter bebido pelo menos tanto como este, embora os veteranos
aguentassem melhor a bebida e dessem a sensação de ainda saberem o que estavam a fazer.
- Sentem-se - continuou Fúscio, antes de olhar em volta e perceber que já não havia lugares livres à mesa. Virou-se para a mesa mais próxima, onde se sentavam três
jovens de aspeto esquálido, entretidos com uma prostituta gorda a quem não paravam de oferecer bebidas.
- Levantem-se! - ordenou. - Ei, toca a alçar! Preciso desse banco.
Um dos miúdos olhou para ele e ripostou:
- Vai-te catar! Vai procurar um banco para outras bandas. Este está ocupado.
- Já não está. Quando um pretoriano te diz para saltares, tu saltas. E agora toca a levantar.
- Vais obrigar-nos, é? - O outro sorriu com ar frio enquanto deixava a mão deslizar para o cinto.
Fúscio deu um passo ao lado, revelando a mesa com os seus camaradas sentados.
- Só se nos forçares a isso.
Os pretorianos lançaram olhares ameaçadores aos jovens. Estes perceberam a situação e acabaram por se levantar, obrigando também a mulher a sair do banco, apesar
dos seus protestos. Estava tão ébria que tinha os membros flácidos, e os três companheiros tiveram de se esforçar para a carregar
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para outras paragens. Fúscio puxou o banco para junto da mesa e indicou a Cato e Macro que se sentassem.
- Ora cá está. À cabeça da mesa. Bebam um copo. - Pegou no jarro. Verificou que estava vazio e pegou no seguinte; encheu dois copos até à borda e empurrou-os na
direção de Cato e Macro, entornando uma boa parte do líquido com esse gesto.
Pegaram nos copos e ergueram-nos ao alto, num brinde aos outros homens. Cato simulou que sorvia um trago, mas cuspiu a maior parte de volta ao cálice, antes de discretamente
baixar o recipiente até junto da perna e o vazar para o solo. Macro tinha de facto bebido uma boa porção, e já limpava a boca às costas da mão.
- Ahhh, nada mau!
- Claro. - Fúscio sorriu. - Guardam o melhor material para os pretorianos, porque nós pagamos bem e não se atrevem a servir-nos a zurrapa habitual.
- Já percebi. - Cato cerrou os lábios, e repetiu o gesto de levar a taça à boca, fingindo que voltava a beber.
- Então o que acham da nova colocação, até agora? - quis saber um dos companheiros de Fúscio. - É ou não é o melhor posto do exército?
- Há um mundo de diferenças entre a Guarda Pretoriana e o exército a sério - ripostou Macro. - Sim, é uma boa posição, mas não é verdadeiro trabalho de soldado.
Cato franziu o sobrolho ao notar que as expressões dos outros homens ao redor da mesa se toldavam. Mas um dos mais veteranos escarrou de forma bem audível antes
de soltar uma gargalhada, o que aliviou a tensão. Todos riram.
- É mesmo típico dos sacanas dos legionários! - soltou outro dos veteranos. - Acham que são os donos do exército. Chegam cá com um ar superior, todos inchados. Caralho,
deem-lhes um ano de Guarda e nunca mais se lembram de que em tempos foram legionários.
Macro debruçou-se sobre a mesa e apontou um dedo ao outro.
- Olha lá. Não sabes do que falas. Se mostrares desrespeito pelas legiões à minha frente ou à do Capito, somos bem capazes de levar isso a peito, de tal forma que
é capaz de nos dar vontade de te aplicar uma carga de porrada. Não é verdade, Capito?
- O quê? - Cato lançou um olhar furioso ao amigo.
- Já estou farto destes janotas mariconços. Só sabem falar do equipamento impecável, como se isso tivesse muita importância. - Bebeu mais um trago e prosseguiu.
- Recebem o dobro do salário de um soldado decente e estão para aqui à boa vida, enquanto o mesmo soldado arrisca a vida por Roma...
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- E então? - respondeu o veterano na outra ponta da mesa. - Tiveste os teus anos de campanha, como eu, e esta é a recompensa que sempre prometemos a nós mesmos,
e que finalmente chegou. Vale mais tarde do que nunca. Qual é o teu problema com isso?
Macro encarou-o com animosidade, depois esvaziou o copo, bateu-o na mesa e escarrou para o lado.
- Foda-se, não tenho nem a sombra de um problema! E agora encham-me o copo outra vez.
Os homens à volta da mesa irromperam em gargalhadas, e Fúscio apressou-se a deitar mais vinho no copo de Macro. Olhou para Cato, mas este abanou a cabeça com um
sorriso.
- Digam-me - começou Cato. - A que propósito é aquele treino todo que ouvi dizer que tem havido na Guarda? Eu a pensar que isto era uma colocação tranquila. Pelo
que ouvi dizer, dá a sensação de que o prefeito Geta anda a preparar os pretorianos para a guerra.
- O cabrão do Geta! - soltou um dos mais jovens. - Desde que o Crispim entrou de baixa que o Geta nos tem feito trabalhar como cães. Ele é marchas, treino de espada,
e aqueles alarmes falsos de merda, noite e dia. Estou farto. Parece-me bem que tens razão. Ele quer é convencer o Imperador a mandar-nos para a guerra. - O homem
contemplou o resto de líquido que tinha no copo. - Com a sorte que tenho, os pretorianos ainda acabam por ser enviados para a Britânia para limpar aquela confusão
toda.
- Ah! - Fúscio bateu as palmas. - O mundo é pequeno! Aqui o amigo Capito acaba de regressar lá da Britânia. E o Cálido também.
- Ah sim? - Um dos pretorianos mais velhos fez um esforço para focar a atenção nos recém-chegados. - E o que nos dizem então? Estamos a ganhar?
Cato cerrou os lábios.
- Define ganhar.
- Defino ganhar? - O homem enrugou a face. - Foda-se, que raio de pergunta. Ou estamos a ganhar, ou não estamos. Como é afinal?
- Tens de dar um desconto aqui ao meu amigo - interveio Macro. - Julga-se uma espécie de filósofo. A verdade é que os celtas são uns cabrões mais rijos de roer do
que o Imperador pensava. Numa batalha como deve ser não dão para aquecer, por isso dedicam-se a fazer emboscadas aos nossos, e depois a fugir como lebres. Uns cobardes
de merda, mas a verdade é que nos estão a liquidar, homem a homem. Se querem saber a minha opinião, acho que Roma passa muito bem sem esses bárbaros que adoram chafurdar
na lama. O Imperador devia era trazer as nossas tropas para casa.
- E quanto aos druidas? - indagou um dos pretorianos mais jovens.
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- O que há?
- Se não os esmagarmos na Britânia, acabaremos por ter de os combater na Gália, e depois disso em todos os sítios onde eles conseguirem chegar. Pelo menos foi o
que eu ouvi dizer.
- Então esquece o que ouviste - contrapôs Macro com dureza. - Digo-vos eu, os druidas estão derrotados. Refugiaram-se nas montanhas. Estão acabados. Aquela treta
de que tivemos de invadir a Britânia para salvar o Império da ameaça dos druidas é uma mentira de merda. Há apenas uma razão para as legiões estarem na Britânia,
e é para fazer o Imperador passar por um valente conquistador. Um Imperador semidecente nunca poria as vidas dos seus soldados em risco só para fazer boa figura
junto da populaça.
Cato tinha estado a observar as reações dos soldados ao discurso do amigo, e verificou que quase todos faziam gestos de aprovação com a cabeça. O descontentamento
com a política imperial para a Britânia era evidente. E as implicações da última frase de Macro não tinham passado despercebidas.
- Ele não há de durar para sempre - murmurou uma voz.
- E depois, meu cretino? - ripostou o veterano que falara antes. - Achas mesmo que vamos encontrar um Imperador melhor do que o Cláudio à espera ali à esquina?
- Pior não podia ser. Aquele miúdo, o Nero, tem coração, e gosta dos guardas. Visita muitas vezes o campo. Ele há de tratar bem de nós.
- Já vi essa cena. O jovem Gaio Calígula era igualzinho, e olha como esse acabou.
Nessa altura ouviu-se um forte clamor de gritos, lançados por um grupo de homens de aspeto duro e túnicas imundas que entrou na taberna. Era evidente que já tinham
estado a beber, e que estavam muito bem-dispostos
- até que o líder do grupo, um homem de gigantesca envergadura, avistou os pretorianos e abriu os braços para deter os seus companheiros. Os outros clientes notaram
o gesto, e depressa todas as conversas se interromperam, deixando imperar o silêncio.
- Ora vejam bem, rapazes! - gritou o chefe do bando. - Esta noite foi-nos dada a honra de ter a presença dos soldadinhos de brincar do Imperador! Olhem bem para
eles. A encher as panças de vinho. Tal como fazem todos os dias com o melhor pão e as carnes mais finas.
- Quem é aquele monstro? - indagou Cato.
- Céstio - informou Fúscio. - É o líder do bando do Viminal, um grupo de desordeiros rijos como cornos. De tempos a tempos vêm aqui beber uns copos.
- Só ele parece-me bem rijo.
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- E é. Em tempos praticou luta nas arenas. Partiu o pescoço a dois homens com as mãos nuas.
Céstio cruzou os grossos braços e olhou com raiva para os pretorianos antes de prosseguir.
- Oh sim, eles tratam-se bem, enquanto o resto de Roma passa fome. Nunca em dias de vida vi um bando semelhante de mariconços e mandriões. É tudo brilho e roupinha
bem apertada, sem nada lá dentro. Não há entre eles um único verdadeiro soldado. Já vi homens mais capazes a pedir na sarjeta.
Alguns dos clientes tinham-se entretanto levantado e iam-se aproximando da saída, tentando passar despercebidos. Outros seguiram-lhes o exemplo, enquanto os pretorianos
que estavam espalhados por outras mesas se levantavam e, mais ou menos cambaleantes, começavam a concentrar-se em torno da mesa onde ainda se sentavam Cato, Macro
e os outros.
- Parece-me que a situação se torna delicada - murmurou Cato.
- Talvez - confirmou Macro. - Vamos lá a ver do que são feitos estes rapazes dos pretorianos.
- Com toda a franqueza, preferia que tanto eles como nós saíssemos disto inteiros.
Cato olhou para Céstio, que se aproximava deliberadamente deles, atravessando a taberna que se esvaziava rapidamente. Junto ao balcão, o taberneiro tentava recolher
o máximo de copos e jarros que pudesse antes que rebentasse a tempestade. Pousou uma primeira leva por trás do balcão e correu a recolher mais, enquanto ainda podia.
Céstio e os seus capangas cerravam fileiras contra os pretorianos, e Cato apercebeu-se de que alguns deles eram suficientemente audaciosos para se atreverem a desafiar
a lei e trazerem facas nos cintos. Outros tinham pesados e duros porretes de couro. Cato não trazia quaisquer armas, e um rápido olhar em volta revelou que poucos
dos pretorianos tinham vindo armados, quase todos com pequenas facas que usavam para cortar pão e carne.
- Há uma lei contra o porte de armas no interior das muralhas da cidade - lembrou Cato, da forma mais ousada que encontrou. Deu-se uma breve pausa em que todos os
olhos se voltaram para ele, com expressões divertidas e surpresas.
Céstio estava já a curta distância dos soldados.
- Esta taberna, por acaso, fica no meu território. E aqui sou eu quem dita as leis. Lamento, rapazes, mas vão ter de se pôr a andar - disse, com uma simulada boa
educação. - E é já.
Fúscio olhou para os outros pretorianos, e a mão começou a descair-lhe para pegar na capa, até que Macro lhe deu uma palmada.
- Amigo, estamos apenas a tomar uma bebida com toda a tranquilidade.
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- Macro sorriu ao gigante. - Como podes ver, graças à vossa entrada, há imenso espaço neste estabelecimento, e portanto podemos perfeitamente ficar todos cá dentro.
Os cantos da boca de Céstio curvaram-se num meio-sorriso que também traduzia um profundo desprezo.
- Ah, mas uma bebida tranquila é precisamente aquilo que me apetece, e uma vara de barulhentos suínos pretorianos vai estragar-me a vontade.
- Fez um gesto com o polegar sobre o ombro. - Portanto, andor.
Macro pareceu desapontado.
- Não é preciso ser tão suscetível. - Fez uma pausa e cheirou o ar.
- Além disso, tu e os teus amigos deitam um pivete como se tivessem acabado de rastejar do esgoto para fora. Sem ofensa, é a realidade. Bom, para mantermos a coisa
tranquila, não é preciso armar confusão, pois não? Tu e o teu grupo podem perfeitamente ir beber ali para aquele canto. E até somos nós a oferecer a primeira rodada,
já que, como dizes, a podemos pagar. Vamos a isso! - Pegou no jarro mais próximo e encheu uma caneca. Virou-se para Céstio, avançou um passo e ofereceu-lhe a caneca.
O olhar do gigante foi instintivamente atraído para a bebida. E foi esse o momento que Macro escolheu para lhe esmagar a vasilha contra a face. O recipiente estilhaçou-se
com estrondo, lançando fragmentos de barro e vinho para todo o lado. Céstio cambaleou um passo para trás, com o sangue a escorrer do nariz partido. Macro atirou
a asa do jarro para o chão e lançou um grito com a sua voz de parada.
- VAMOS A ELES!
Pegou num banco e lançou-se contra os membros do bando. Um deles, com maior presença de espírito, saltou para a frente do seu chefe e agachou-se, fazendo com que
o banco que Macro brandia lhe passasse por cima da cabeça. Os pretorianos que ainda estavam em condições de lutar avançaram, lançando murros; outros, já demasiado
bebidos, imitavam-nos sem perceber bem onde estavam os oponentes. O homem que avançara contra Macro levantou o braço para tentar desviar novo golpe, mas acabou por
levar com ele na têmpora, e ouviu-se o som inconfundível de um osso a quebrar, seguido por um grito de agonia. Cato cerrou os punhos e procurou um adversário.
- Estás à espera de quê? - chamou Macro, por cima do ombro. - De um convite? Dá-lhes porrada!
Os dois lados estavam equilibrados em número, e a luta já se espalhava por toda a taberna.
- Nããoooo! - gritou o taberneiro, retirando uma vasilha de cima de uma mesa mesmo antes de esta se quebrar ao sofrer o impacto de dois homens envolvidos num abraço
pouco amigável, cada um tentando apertar as
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goelas do outro. Mais mesas e bancos voaram e viraram-se, acompanhados por canecas e jarros de barro, e havia jatos de vinho escuro a explodir por todo o lado. Cato
avançou de punhos erguidos. À sua frente, um dos pretorianos tropeçou e desviou-se para o lado, deixando à vista um homem baixo mas forte, com cabelo escuro. Tinha
a boca aberta, revelando poucos dentes, e todos tortos. Cato saltou em frente, lançando o punho direito contra o adversário. Atingiu-o no queixo, forçando a mandíbula
a fechar-se repentinamente; o homem caiu de joelhos, e Cato aproveitou a vantagem, aplicando-lhe uma série de murros nos dois lados da cara, até o deixar desacordado
no solo.
Uma rápida olhadela permitiu-lhe verificar que Macro continuava a atacar Céstio, afundando os punhos na cara e no estômago do homem, numa sequência imparável de
golpes poderosos. Porém, o chefe do bando estava a aguentar o assalto e tinha levantado os punhos para se proteger dos murros de Macro. Céstio sacudiu a cabeça,
numa tentativa de clarear a visão, e passou ao contra-ataque com um grunhido poderoso que se sobrepôs a todo o ruído da zaragata, uma mistura de gemidos, gritos
e estrondos. O gigante lançou um poderoso soco de esquerda, um golpe de profissional que apanhou Macro no ombro e o fez recuar um passo. Céstio tentou imediatamente
atingi-lo de lado com a direita, mas o veterano teve tempo suficiente para se esquivar e aplicar por sua vez um gancho ao queixo do adversário. A cabeça de Céstio
estremeceu, mas ele continuou a avançar e voltou a atingir Macro, desta vez em cheio nas costelas, primeiro, e depois por baixo do olho esquerdo, deitando-lhe a
cabeça para trás. Macro recuou, afetado, e chocou com a mesa onde tinha estado sentado pouco antes. As canecas e jarros voaram e tombaram para o solo. Macro estava
zonzo, a piscar os olhos, e o brutamontes aproximou-se. Céstio sorriu cruelmente e começou a castigar o veterano com murros no estômago e na boca, abrindo-lhe o
lábio.
Cato percebeu que, se não reagisse, Macro seria severamente espancado. Empurrou um dos pretorianos para o lado e tentou desesperadamente aproximar-se do amigo. Nem
viu o golpe que se aproximava, mas de repente a cabeça saltou-lhe para o lado e ficou a ver a dobrar. Baixou a cabeça por instinto e ergueu os punhos numa posição
defensiva, e o murro seguinte mal lhe raspou pelo cotovelo. Apercebeu-se de que Fúscio acabava de derrubar um oponente e continuava a sovar o homem com uma perna
de um banco destroçado.
- Fúscio! - gritou-lhe. O jovem guarda levantou o olhar e Cato aproveitou. - Ajuda o Macro!
Fúscio franziu o sobrolho, e Cato sentiu um tremor frio nas entranhas ao aperceber-se do que acabara de dizer. Inspirou de novo e corrigiu.
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- Ajuda o Cálido! - Ergueu o braço e apontou, para ter a certeza que era bem interpretado. Fúscio virou-se e viu o chefe do bando a aplicar outro soco na sua vítima;
agarrou com mais força a perna do banco e aproximou-se dele por trás, levantando o cajado improvisado bem acima da cabeça.
- Chefe, cuidado! - gritou alguém, e Céstio começou a virar-se. Mas não teve tempo para completar o movimento, e a perna do banco atingiu-o no cimo do crânio. O
queixo caiu-lhe, enquanto soltava um gemido, e Fúscio aproveitou para lhe aplicar outras duas doses. O sangue escorria livremente, colando o cabelo do gigante ao
escalpe. Fúscio mudou de tática e aplicou a ponta da perna contra o estômago do adversário, fazendo-o dobrar-se sobre si mesmo.
- É isso mesmo! - apoiou Cato, agachado, enquanto continuava a tentar chegar ao pé de Macro. Trocou alguns murros e pontapés com dois dos membros do bando e viu-se
por fim ao lado do amigo. Entretanto, Fúscio tinha dado uma joelhada no rosto do oponente, e dera-lhe continuação com uma nova série de cacetadas na cabeça, até
que o líder do bando caiu de costas, os braços a rodar, acabando por arrastar na queda outros dois homens a que tentara agarrar-se, numa confusão de membros humanos
pelo ar.
- Cuidado! - gritou uma voz. - Chamaram a coorte urbana! Vamos mas é sair daqui!
Os primeiros elementos do bando separaram-se da confusão e dirigiram-se para a saída. Outros, ainda dobrados e a cambalear, seguiram-nos.
- O chefe! Está no chão. Tu aí, dá-me uma ajuda!
Dois membros do grupo apressaram-se a ajudar o seu atordoado chefe, pegando-lhe por baixo dos braços. Fúscio preparava-se para lhe dar mais umas pancadas, mas deteve-se,
como se duvidasse da ética de golpear um homem indefeso, mesmo que fosse um brutamontes. Quando por fim o desejo de aproveitar a ocasião triunfou, já o chefe do
bando tinha sido levado para perto da porta, e já as suas botas se agitavam, tentando ganhar tração para permitir ao seu dono pôr-se de pé. As duas partes tinham
decidido de comum e espontâneo acordo interromper a escaramuça, e separavam-se com muitos olhares desconfiados, deixando mesas e bancos derrubados e rodeados por
estilhaços de barro e poças e salpicos de vinho. O dono da taberna escondia a face nas mãos e soluçava, desesperado.
Cato ajoelhou-se ao lado do amigo. Macro estava no chão, apoiado a um pilar, os olhos a piscar enquanto o sangue corria dos cortes na sobrancelha, no nariz e nos
lábios.
- Ei, Cálido? - chamou-o Cato em voz alta. - Está a ouvir-me?
- Ueeerggg. - Macro lambeu o lábio rachado e estremeceu, antes de
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cuspir um coágulo de sangue. - Foda-se, o que é que aconteceu? O que é que me atingiu? - Os olhos abriram-se muito e por fim reconheceu Cato.
- Miúdo! Estamos a ser atacados! Às armas!
- Está passado de todo. - Fúscio riu ao ajoelhar-se ao lado de Cato.
- Levou uma cacetada tão grande que perdeu o juízo.
Cato assentiu. Receava bem que Macro, naquele estado, dissesse alguma coisa que os denunciasse.
- Fúscio, arranja-me um jarro de água. Depressa.
- Certo. - O jovem guarda levantou-se e dirigiu-se ao dono para lhe fazer o pedido. Enquanto este suspirava e ia buscar o que lhe fora pedido, Cato debruçou-se sobre
o ouvido de Macro e sussurrou:
- Esteve a lutar e foi derrubado. Mas está tudo bem. Lembre-se da missão. Não diga uma palavra até conseguir falar de forma inteligível. Percebido? Macro! Diga-me
se percebeu?
- Sim... Luta. Manter boca fechada.
- Pois, isso mesmo. - Cato suspirou e deu-lhe uma palmada no ombro. Levantou-se ao ver Fúscio aproximar-se com um jarro de água, que lhe entregou. Cato recuou um
passo, apontou e despejou o conteúdo sobre o rosto de Macro. A enxurrada fez com que Macro se agitasse e cuspisse. Os olhos abriram-se muito e deu a sensação de
que ia atacar a primeira coisa em que pousasse o olhar. Então reconheceu Cato e abriu a boca para falar, fez uma careta ao lembrar-se do aviso e voltou a calar-se.
Respirou fundo por instantes e depois lançou uma pergunta com a voz ainda entaramelada.
- E o outro?
- Está a dormir. Graças aqui ao Fúscio. Se não fosse ele, a esta hora podia bem estar a caminho do Outro Mundo. Fúscio, ajuda-me a pô-lo de pé. Antes que cheguem
as tropas urbanas.
Mas já era tarde de mais. O som de botas a martelar as lajes da rua ecoou por toda a praça
. Os pretorianos ajudavam os seus feridos quando as primeiras tropas entraram na taberna. Um optio com uma longa vareta irrompeu na cena e olhou em volta.
- O que se passa aqui? Que confusão é esta? Disseram-me que havia aqui uma zaragata.
- Não - protestou Cato. - Estávamos aqui tranquilamente a beber um copo quando o bando do Viminal entrou por aqui adentro e começou a desancar toda a gente.
- Está-se mesmo a ver! - desdenhou o optio. - Sacanas de pretorianos, acham que me podem enfiar o barrete?
- É a verdade, caramba! - gritou-lhe Cato. - Saíram agora mesmo. Devem estar a caminho do Viminal. Se os perseguir agora e parar de perder tempo connosco, ainda
os consegue apanhar.
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- Apanhe-os, sim! - gritou o dono da taberna ao optio. - Alguém tem de pagar os estragos!
- E não vamos ser nós - disse Cato com firmeza. - O Imperador dará a sua sentença sobre isto. E não vai tomar partido contra os seus pretorianos. O melhor será ir
atrás do bando.
O optio mordeu o lábio, virou-se e saiu da taberna.
- Vamos, rapazes! - Cato escutou-o a falar aos seus homens, e depressa o som das botas a afastar-se encheu o ar.
Cato colocou Macro de pé e pôs-lhe o braço em torno dos ombros. Fúscio amparou-o do outro lado.
- Pretorianos! - avisou Cato - Vamos embora!
Cambalearam até à saída e seguiram numa coluna desordenada pelas
ruas, a caminho do quartel.
- Obrigado por teres ajudado o Cálido - disse Cato a Fúscio por entre os dentes. - Provavelmente salvaste-lhe a vida.
- Foi, não foi? - A voz do jovem guarda estava inchada com orgulho.
- Achas que ele vai ficar bem?
- Vai. Acredita, já passou por piores.
- Ótimo.
Prosseguiram em silêncio até que Fúscio se lembrou de uma coisa.
- É verdade, quem é o Macro?
Cato sentiu o coração parar por momentos.
- Macro? Devo ter bebido um copo a mais. O Macro era um amigo nosso lá na Britânia. Enganei-me. Foi só isso.
- Ah, bom - respondeu Fúscio, sem dar grande importância ao assunto. - Foi só um engano, então.
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Tinham passado dois dias, e a centúria, em farda de serviço, seguia a caminho do palácio imperial.
- Ora muito bem, uma vez que vocês andam sempre tão aperaltados, vão acabar por atrair as atenções. Se algum membro da família imperial vos interpelar, devem responder
de pronto, e usar a forma de tratamento adequada. - Tigelino suspirou de impaciência enquanto atravessava o fórum.
- Mais uma vez. O Imperador? - Marchava ao lado de Macro e Cato, e desde que tinham saído do aquartelamento que revia o protocolo básico com os seus dois novos subordinados.
- No exterior do palácio, chamamos-lhe simplesmente "senhor", lá dentro é "vossa majestade imperial" - respondeu Cato.
Tigelino assentiu, antes de fazer um comentário quase em surdina.
- E alguns podem chamar-lhe o que bem lhes apetecer, desde que por trás das costas.
Cato virou-se para o contemplar com uma expressão de espanto. Tigelino sorriu levemente.
- Quando tiveres estado por cá um mês ou assim, Capito, já não farás essa cara de espanto. Já terás percebido por ti mesmo a situação como ela é realmente. O Cláudio
é um pau-mandado dos seus libertos e das suas mulheres. A Messalina tinha-o a comer à mão, até que se esticou de mais para ver se chegava ao trono, e lixou-se. A
que a substituiu é mais esperta. - O sorriso de Tigelino abriu-se por momentos. - A Agripina sabe tocar-lhe precisamente nos pontos mais sensíveis. Dele ou de outro
homem qualquer. Portanto, a propósito, quanto à Imperatriz?
- "Majestade imperial", no palácio e em público - ripostou Cato. - Uma vez que ela não tem de se preocupar com a opinião pública.
Tigelino repreendeu-o de imediato.
- Capito, põe-te no teu lugar. És apenas um vulgar tipo das fileiras. Não tens direito a emitir opiniões nestes assuntos. Daqui para a frente, limita-te a empregar
a forma de tratamento correta em todas as situações. Entendido?
- Sim, optio.
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A coluna deteve-se junto aos portões, para render a secção que lá fazia guarda, e depois prosseguiu, subindo a ampla escadaria que levava ao átrio da entrada principal
do palácio imperial. Cato crescera entre aquelas paredes, parecia-lhe que muitos anos antes, e sentiu um peculiar arrepio no escalpe ao recordar tudo o que tinha
presenciado enquanto era uma mera criança que cirandava na orla da corte imperial. Por momentos tentou adivinhar quantos dos escravos com que crescera ainda serviriam
no palácio. Quando deixara aquela morada, era um jovem imberbe e inocente, mas regressava mais velho, com o cabelo cortado segundo a norma militar, e com as cicatrizes
que os seus anos de serviço lhe tinham rendido. Mesmo que encontrasse alguém conhecido do passado, o mais provável era que este ou esta não o reconhecessem.
À cabeça da coluna de quatro centúrias marchava o tribuno Burro, e em cada posto dava ordens para substituir as sentinelas que tinham estado de serviço durante a
noite. Havia três turnos, o primeiro da alvorada ao meio-dia, o segundo do meio-dia ao crepúsculo, e o terceiro - o menos popular - incluía todo o período noturno.
Durante a noite, porém, só estavam de serviço duas centúrias, já que se limitavam a guardar as entradas do palácio e a patrulhar os espaços públicos no seu interior.
Os aposentos privados eram protegidos pela guarda germana.
Por fim chegou a vez da secção de Tigelino, quando a coluna já se tinha embrenhado no palácio e chegara aos jardins da família imperial, num terraço rodeado por
colunas de três lados. O lado livre tinha uma balaustrada de mármore e dava para o fórum. Tigelino e os seus homens tomaram posições no jardim, e Cato e Macro viram-se
colocados à entrada de um pequeno recanto com uma fonte, rodeado por sebes. Junto à fonte, havia uns bancos de mármore forrados com almofadas vermelhas. Dado o nível
elevado a que se situava o jardim, a pressão da água que vinha do aqueduto que abastecia o palácio era reduzida, pelo que da fonte jorrava apenas um fino fio de
água que se precipitava quase em silêncio num pequeno lago.
- Bonito - indicou Macro, enquanto examinava o jardim bem cuidado. - Um recanto bem idílico. E com uma vista que quase justifica o assassínio.
- Nada que não tenha já acontecido - replicou Cato, enquanto ajustava a toga. Era uma peça complicada, e estava sempre a enrolar uma prega ou outra no punho da espada
que levava por baixo.
- O que estás tu a fazer? - Macro olhava-o com espanto. - Até parece que arranjaste uma comichão qualquer com uma rameira de baixo nível.
- É esta toga estúpida.
- Miúdo, tu às vezes deixas-me sem esperança - comentou Macro, enquanto abanava a cabeça. - Deixa ver, vamos lá pôr isso direito antes
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que essa porra se rasgue toda. - Aproximou-se de Cato e puxou a toga para cima, passando-a sobre o ombro e enrolando a ponta no braço esquerdo do amigo. - Pronto.
Estás a ver como é?
- Obrigado... Mas ainda me parece um tanto ridículo.
- Bom, se há alguém capaz de fazer esta farda parecer ridícula, és tu.
- Macro continuou a inspecionar o jardim. Tigelino e os outros tinham já ocupado as suas posições e faziam as suas rondas com ar despreocupado, como se fossem civis
que tivessem vindo apenas apreciar a beleza do jardim. - Portanto, é isto que temos de fazer? Andar a fazer de cisne por aqui durante as próximas cinco horas? Como
é que isso nos vai levar a expor a tal conspiração que o Narciso tanto quer que descubramos?
- Não faço ideia. Temos de manter olhos e ouvidos bem abertos, é tudo.
O Sol subiu no céu, e levantou-se uma ligeira brisa que agitava as copas das árvores e arrastava o fumo das muitas fogueiras que ardiam na cidade. Apesar do dia
agradável e do cenário pacífico, a mente de Cato agitava-se sem cessar. Embora existissem sinais inconfundíveis de que a autoridade do Imperador estava em descrédito,
havia poucos indícios diretos de uma conspiração. O duro regime de treinos imposto pelo prefeito Geta não era mais do que aquilo que havia a esperar de um bom comandante.
E desde que tinham chegado ao aquartelamento dos pretorianos, não tinham encontrado nenhum sinal óbvio de uma riqueza súbita entre os homens. Aquele era o primeiro
dia em que tinham de pôr em prática o que tinham aprendido com Tigelino acerca dos seus deveres. Cato perdeu uns segundos a pensar no optio. Tinha ficado a saber
pelos outros guardas da centúria de Lurco que Tigelino estava na Guarda havia pouco mais de um ano, depois de ter regressado de um exílio, que como em muitos outros
casos tinha resultado de ter caído nas más graças de Messalina. A maior parte dessas vítimas eram amigos ou servidores de Agripina, que a sua antecessora tinha perseguido
com fervor. O que teria Tigelino feito para sofrer tal pena, ninguém parecia saber ao certo.
Os pensamentos de Cato foram interrompidos pelo som de vozes, e ele virou-se para as colunas, onde avistou um homem já idoso, um tanto corcunda e de cabelo prateado,
que conduzia dois jovens para o recanto da fonte. Um dos rapazes parecia um adolescente, de membros compridos e de cabeça nobre, coroada por cabelo escuro e encaracolado.
O outro era alguns anos mais jovem, de constituição sólida e cabelo claro. Seguia atrás dos outros, de olhar fixo no solo e com as mãos atrás das costas, como se
perdido em pensamentos.
O velho deitou uma olhadela por cima do ombro e alertou, com uma voz quase esganiçada:
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- Britânico, não fiques para trás! Não te distraias.
- Ah! - soltou o rapaz mais velho, com um sorriso espontâneo. - Vá, maninho, despacha-te!
Britânico soprou, enfadado, mas ainda assim apressou o passo.
- Atenção - avisou Cato. - Temos companhia.
Puseram-se rapidamente em sentido, do lado de dentro da abertura, um de cada lado, e fixaram o olhar em frente. O som abafado dos passos nas lajes do pavimento deu
lugar ao esmagar da areia quando o homem e os seus dois pupilos entraram para o recanto. Ignoraram os dois guardas e instalaram-se junto ao lago. O ancião sentou-se
sobre as almofadas, e indicou aos jovens que tomassem lugar no rebordo do lago.
- Ora bem. Agora, deixem-me ordenar os pensamentos. - Agitou um dedo encurvado. - Ah, sim! íamos falar de responsabilidades.
- Que chato - disparou o rapaz mais velho. - Porque é que não podemos discutir alguma coisa mais importante?
- Porque o teu pai adotivo quer que comeces a pensar nas tuas obrigações, Nero. É essa a razão.
- Mas eu quero conversar sobre poesia. - A voz do jovem era quase sussurrada e suplicante. Cato arriscou uma olhadela ao tutor e aos seus dois estudantes, uma vez
que eles estavam atentos apenas às suas próprias pessoas. O rapaz, Nero, tinha um ar um tanto efeminado, o queixo era fraco e a expressão era quase teatral. Tinha
olhos escuros e expressivos, e lançava um olhar intenso sobre o tutor. Ao seu lado, estava sentado Britânico, a cabeça apoiada nas mãos enquanto continuava a fitar
o cascalho do solo, aparentemente pouco interessado na conversa. O tutor parecia-lhe vagamente familiar, e de repente Cato lembrou-se dele. Euráleo. Era um dos tutores
do palácio no tempo em que Cato fora criança. Tinha-lhe sido atribuída a missão de educar as crianças da família imperial. Nessa posição, pouco tinha a ver com o
punhado de outros tutores que ensinavam os filhos do pessoal que servia no palácio, bem como alguns jovens reféns, mantidos em condições de confinamento enquanto
os seus pais eram obrigados a respeitar tratados ou a agir de acordo com os interesses de Roma. Ao recordar-se da sua meninice, Cato lembrou-se perfeitamente da
forma altiva como o tutor tratava o resto do pessoal do palácio. Os seus caminhos só se tinham cruzado numa ocasião, quando Cato, ainda criança, andava a correr
para cima e para baixo num corredor à porta dos aposentos do homem, e recebera um corretivo por causa disso.
- Discutiremos poesia noutro momento - disse Euráleo, com firmeza. - O tema que vamos discutir hoje foi decidido pelo Imperador, e nem eu nem tu podemos alterar
essa decisão.
- Porquê? - indagou Nero.
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- Quando te tornares Imperador, poderás levantar essa questão, não agora - retorquiu o tutor, muito sério.
- Se ele se tornar Imperador - comentou Britânico. - O Ahenobarbo não passa de um filho adotivo. O filho natural sou eu. Portanto, devo ser o primeiro na linha de
sucessão.
Nero virou-se para o meio-irmão com o cenho franzido.
- O meu nome é Nero.
Britânico encolheu os ombros.
- É o que dizem. Mas lá no fundo do coração sabes que o teu nome será sempre aquele que primeiro recebeste. E para mim também serás sempre Ahenobarbo.
Nero olhou-o com fúria antes de voltar a falar.
- Sempre pronto a empurrar-me para baixo, não é? Bem, podes ser o filho natural do Imperador, mas a tua mãe não tinha muito de natural. Portanto, meu pequeno Britânico,
se fosse a ti, não teria grande confiança no afeto do Imperador pela tua pessoa.
- A minha mãe está morta. Morreu porque foi parva. Deixou que o poder do palácio imperial lhe subisse à cabeça. - Britânico sorriu levemente. - Quanto tempo achas
que a tua mãe vai demorar a seguir pelo mesmo caminho? E nessa altura, o que será de ti? Eu, pelo menos, tenho o sangue do meu pai nas veias. E tu, tens o quê?
Cato não se coibiu de olhar para o mais jovem dos miúdos, surpreso pela confiança e compreensão da situação que o tom da sua voz revelava.
- Meninos! Meninos! - interrompeu o tutor, agitando a mão. - Já chega. Tem de parar com essa embirração. Não é própria dos herdeiros do Imperador. O que diria ele
se vos visse agora?
- P-p-parem! - imitou Nero, enquanto deixava escorrer alguma saliva para fora da boca ao gaguejar; depois riu com vontade.
O tutor fez-lhe má cara, e voltou a levantar a mão para exigir silêncio.
- Isso é muito pouco digno de ti. Bom, não quero mais conversa que não tenha a ver com a lição de hoje, percebido?
Nero anuiu, embora continuasse com vontade de rir.
- Muito bem. O tema para hoje é a responsabilidade. Sobretudo, a de um Imperador para com o seu povo. Podia fazer-vos uma preleção sobre o tema, mas, sendo grego,
prefiro tratar o assunto através do diálogo.
Cato ouviu um longo suspiro emitido de forma dissimulada, e não precisou de muito para compreender que era a reação de Macro às palavras do tutor.
- Comecemos por ti, Nero, já que estás tão bem-disposto. Para ti, quais são as principais responsabilidades de um Imperador?
Nero cruzou as mãos e pensou por momentos antes de responder.
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- O primeiro dever é, obviamente, a segurança de Roma. Roma deve ser protegida dos seus inimigos, e os seus interesses devem ser perseguidos. Depois, o Imperador
deve cuidar do seu povo. Deve alimentá-lo, mas não apenas com comida. Deve dar-lhe o seu amor, como um pai faz com os seus filhos.
Britânico fungou com ar de desprezo, mas Nero ignorou-o e prosseguiu.
- Deve ensinar-lhe os valores mais importantes: o amor por Roma, o amor pela arte, pela poesia.
- E porquê essas coisas?
- Porque sem elas não passamos de animais que lutam para sobreviver e morrem sem deixar lembrança.
Britânico abanou a cabeça. O movimento foi notado pelo grego.
- Tens alguma coisa a dizer?
- Tenho, sim. - O jovem ergueu o olhar, desafiante. - O Ahenobarbo é demasiado influenciado pelo seu novo professor pessoal, o Séneca. O que representa a poesia
para o cidadão comum? Nada. Eles precisam é de comida, abrigo e distração. E é isso que querem de um Imperador. Que pode fazer o seu melhor para dar a alguns deles
quase tudo o que querem, mas nunca tudo a todos. Qual é então o seu dever? Simples. O seu dever é manter a ordem e combater o caos. Tem de defender Roma dos inimigos
internos, tanto quanto dos bárbaros que vivem para lá das fronteiras.
- Uma linha de pensamento muito cínica, jovem Britânico - comentou o tutor.
- Sou jovem, sim. Mas compreendo bem este mundo.
- Sim, a tua precocidade já foi notada.
- Mas não aprovada. - Britânico sorriu friamente.
- Há uma sabedoria que chega com a idade, e de nenhuma outra forma. Até teres acumulado muitas outras experiências de vida, não te podes considerar sábio, apenas
conhecedor.
Britânico contemplou o tutor com uma expressão quase cansada.
- Talvez se tivesses experimentado a minha vida, pudesses compreender o meu cinismo. Tenho uma família que não o é realmente, e não passa de um antro de assassinos.
Tenho um pai que já não me trata como seu filho. Não tenho mãe, e tenho um... Um irmão que, se alguma vez se tornar Imperador, tratará prontamente de me aniquilar.
- Fez uma pausa. - Experimenta esta vida, Euráleo, e logo verás se não amadureces mais depressa do que devias.
O tutor encarou-o com uma expressão triste, e depois respirou fundo.
- Continuemos. O Nero acha que o homem comum tem lugar para a poesia na sua vida.
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- Sim, tenho essa certeza - confirmou Nero, com fervor.
- Mas terá essa capacidade de forma inata? Ou terá de lhe ser ensinada? - O tutor virou-se para Macro e Cato, como se só naquele momento reparasse neles. - Vejam
estes dois homens. Soldados. Pouco mais sabem para além da arte da destruição, que é precisamente o contrário do conhecimento. São familiares apenas das armas e
dos treinos, e passam os seus tempos livres em estupor, a beber, com rameiras, na arena, sem se interromperem para pensar no que fazem. Não é assim, soldado? Tu
aí! - Apontou para Macro. - Responde-me.
Macro pensou um momento e assentiu.
- Sim, senhor, acho que resumiu perfeitamente o que é a vida de um soldado.
- Veem? Como podem esperar ensinar homens deste género a apreciar os mais refinados sentimentos da poesia? Como querem dar-lhes a conhecer as subtis tonalidades
de expressão que alicerçam a mais bela literatura? Eles são um género à parte. Ora, contemplem-nos bem. Veem os olhos negros? Não satisfeitos com a embrutecida vida
mental que levam, ainda ajudam à própria degradação com um constante envolvimento em cenas de pancadaria. Que esperança pode haver de algum dia virem a descobrir
o caminho para as grandes obras dos melhores pensadores? Duvido até de que saibam ler. Tu aí, o outro soldado. Diz-me, alguma vez leste as obras de Aristóteles?
- Qual delas, senhor? A Poética, A Política, A Ética, A Metafísica, A Ética de Nicómaco ou Da Alma?
O tutor contemplou Cato por momentos, sem acreditar realmente no que ouvira.
Britânico soltou uma risada.
- Euráleo, continua, por favor. A tua argumentação é deveras intrigante.
O tutor pôs-se de pé a custo, e acenou aos pupilos.
- Venham, vamos procurar um lugar mais... Mais privado, para continuarmos a nossa discussão.
Passou hirto por entre Cato e Macro, sem olhar para eles. Nero seguiu-o, fazendo uma pausa apenas para piscar o olho a Cato e lhe dar uma palmada amigável no ombro.
O mais jovem dos rapazes demorou mais algum tempo a levantar-se, e quando chegou junto de Cato, pôs-se à frente dele, olhando-o com atenção.
- Pretoriano, como te chamas?
- Capito, senhor.
- Capito... És um tanto ou quanto diferente dos outros pretorianos, não és?
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- Senhor, não sei se entendo o que quer dizer.
- Oh, entendes perfeitamente. Vou lembrar-me de ti. Nunca esqueço uma cara. Um dia posso vir a precisar de ti. Diz-me, Capito, se pudesses escolher o novo Imperador
quando o Cláudio morrer, quem seria? Eu, ou o Ahenobarbo?
- Senhor, não me cabe fazer essa escolha.
- Mas és um pretoriano, e quando chegar o momento, os pretorianos terão de tomar uma decisão, tal como fizeram quando o meu pai se tornou Imperador. Portanto, quem
escolherias?
Cato ficou mudo. Não se atrevia a dar uma resposta ao rapaz. Além disso, estava espantado pela maturidade que o seu olhar denunciava, e pela forma astuta como falava.
Britânico acabou por encolher os ombros, e deu um pontapé numa pedrinha, atirando-a ao lago; por momentos deu a sensação de não passar de um miúdo normal da sua
idade. Então voltou a falar.
- Quando chegar o momento, terás de fazer uma escolha. Para mim essa possibilidade não existe. Tenho de tentar matar o Ahenobarbo antes que ele me mate a mim. -
Voltou a olhar para Cato, olhando-o nos olhos sem mostrar qualquer sinal de incómodo. - Estou certo de que voltaremos a encontrar-nos, pretoriano. Até esse momento,
adeus.
Cruzou as mãos atrás das costas e afastou-se rapidamente, em passos curtos, à medida das pernas, para acompanhar o tutor e o irmão adotivo. À medida que o som dos
passos se afastava, Macro virou-se para Cato e soltou um longo suspiro.
- Porra, aquele Britânico é esquisito. Um homem feito num corpo de miúdo. Nunca vi nada assim.
Cato anuiu. Havia algo perturbante naquele rapaz. Qualquer coisa que o deixara frio e distante. Pairava sobre ele uma aura de permanente calculismo implacável, e
Cato não tinha qualquer dúvida de que ele fora sincero quanto à sua necessidade de liquidar Nero quando chegasse o momento. E ele devia ter os seus apoiantes - homens
como Narciso, que queriam garantir a manutenção das suas posições de influência quando Cláudio partisse para o mundo das sombras. Era porém evidente para Cato que
o secretário imperial se veria a braços com um jovem Imperador possuidor de uma muito maior inteligência do que o ocupante da posição naquele momento. Britânico
pensaria pela própria cabeça. Mas que tipo de cabeça seria aquela? Não conseguia perceber. Havia alguma verdade no que Euráleo afirmara. A inteligência era uma coisa
importante. Mas desamparada da sabedoria e da empatia, facilmente podia conduzir a uma tirania cruel da razão, tão perniciosa para Roma como fora a loucura de Calígula.
Mesmo naquela tenra idade, Britânico era de facto uma força a ter em conta.
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- O que achas do outro? - inquiriu Macro. - O Nero.
- Pareceu-me inofensivo. A cabeça um bocado perdida nas nuvens, mas um coração bem formado.
- Foi o que pensei. E é popular com a malta da Guarda.
- Sim. - Cato tinha notado a facilidade com que Nero conquistava as pessoas. Na inevitável luta pela sucessão, seria uma vantagem considerável sobre o seu meio-irmão,
claramente mais inteligente mas também muito mais frio. Cato sentiu uma premonição negra a pesar-lhe no coração. Nenhum daqueles rapazes estava em condições de suceder
no trono. Faltavam-lhes anos de experiência antes de poderem governar com alguma sabedoria. E era por isso vital que Cláudio sobrevivesse o tempo suficiente para
assegurar que a ordem e a estabilidade que tinham caracterizado o seu governo se estendessem no tempo. Se Roma caísse nas mãos de qualquer um daqueles miúdos, enfrentaria
um perigo tão grave como a ameaça sempre presente das hordas bárbaras que aguardavam para lá das fronteiras do Império.
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9

A véspera do dia dos jogos da Ascensão foi ocupada com a finalização dos preparativos para as festividades. Havia já vários dias que uma arena temporária estava
a ser instalada na parada exterior ao quartel. Depois de os trabalhadores arrumarem as suas ferramentas e partirem, uma das coortes de pretorianos recebeu a incumbência
de pintar as bancadas e decorar o camarote imperial com ramadas frescas de carvalho. Um grande toldo de cor púrpura foi instalado sobre a zona de assentos do camarote
imperial, para proteger dos elementos o Imperador e a sua família. Na frente do camarote alguns pretorianos com maiores pretensões artísticas pintaram um mural,
mostrando Cláudio a ser aclamado pelos guardas no dia em que se tornara Imperador. Outro mural mostrava o Imperador a distribuir moedas de ouro aos soldados, relembrando
a todos a especial benevolência que demonstrava para com os seus pretorianos, e a lealdade que estes lhe deviam em retorno.
Ao entardecer do vigésimo quinto dia de janeiro, tudo estava finalmente pronto. A arena era suficientemente grande para acolher todos os soldados do campo nas bancadas
por trás de uma baixa barreira de proteção. Oposto ao camarote imperial havia um largo portão por onde entrariam os participantes nos jogos, e duas pequenas portas
laterais para remoção dos feridos e mortos; o solo da parada fora recoberto com uma espessa camada fresca de areia bem limpa. No edifício do comando, todos os salões
e áreas entre as colunas tinham sido preenchidos com mesas e bancos, a postos para o festim que teria lugar na noite seguinte. Carroças repletas de pão, carnes secas,
queijos, fruta e vinho tinham chegado ao campo pretoriano, vindas dos campos em volta, e os seus conteúdos tinham sido levados para os armazéns sob a vigilância
de oficiais, para evitar qualquer tentação de pilhagem.
A noite caía sobre o quartel, e Macro e Cato estavam na sala quente do estabelecimento de banhos. Depois de trocarem algumas palavras com os seus novos camaradas,
tinham-se acomodado num dos bancos a um canto, onde não seriam escutados pelos outros homens espalhados no quente compartimento. Alguns estavam a conversar com amigos,
mas muitos
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limitavam-se a estar sentados com o suor a escorrer-lhes pelos corpos, a apreciar o efeito do calor.
Uma gota escorregou pela sobrancelha de Macro, e fê-lo piscar os olhos. Limpou a testa com as costas do antebraço e olhou para Cato. O amigo estava imerso em pensamentos,
com o olhar fixo nos mosaicos do soalho. Nessa tarde, Cato tinha passado pela casa segura, e tinha encontrado uma mensagem de Sétimo, que pedia um relatório sobre
os progressos que tinham conseguido. Devia ser entregue em pessoa, daí a dois dias.
- Um sestércio pelos teus pensamentos - anunciou Macro sem alarde.
- Hã? - Cato olhou em redor, surpreendido.
- Conheço essa cara. O que é que te preocupa?
- A falta de progressos. Não estou de todo a ver como é que vamos conseguir o que o Narciso nos pediu. Os Libertadores não andam propriamente a pôr anúncios de recrutamento,
e também não descobrimos nada de particularmente sinistro.
- E quanto ao Sínio? - lembrou Macro. - Parece um tipo suspeito.
- É verdade. Mas não temos qualquer prova de que esteja envolvido numa conspiração. - Cato mordeu o lábio. - E isso levanta uma questão: será que o Narciso anda
a assustar-se com a própria sombra? E se os bandidos que atacaram o comboio da prata estivessem mesmo só interessados no dinheiro?
- É possível - admitiu Macro. - Mas há aquele tipo que o Narciso mandou torturar. Confessou que trabalhava para os Libertadores, e deu um nome.
- Aí não vejo nada de surpreendente. Os interrogadores conhecem perfeitamente o seu ofício, e são capazes de fazer vergar qualquer um. Até que ponto é que se pode
confiar em informações obtidas sob tortura? Imagino que ao fim de algum tempo um homem seja capaz de dizer qualquer coisa só para pôr fim ao sofrimento.
Macro pensou por momentos, e assentiu.
- Pode ser, sim. Mas imaginemos que a informação está certa. Devíamos concentrar a nossa atenção no centurião Lurco, assim que ele voltar para o quartel. Segui-lo,
saber com quem é que fala. Se for ele um dos cabecilhas da conspiração, depressa o saberemos.
- Calculo que sim. - Cato suspirou. - De qualquer maneira, é a única pista sólida que temos, por agora.
Deixaram-se ficar mais um bocado até que acharam que era chegado o momento de usar as espátulas de latão para raspar a sujidade que o suor lhes tinha extraído da
pele. Passaram depois para a sala fria e mergulharam na piscina, cuja água gelada quase os fez perder o fôlego. Cato resolveu
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mexer-se e nadou duas piscinas antes de sair e se dirigir ao vestiário, onde se secou com uma das toalhas penduradas no estendal por cima das saídas de ar do hipocausto.
Macro juntou-se a ele e começaram a vestir-se.
Foi o veterano que rompeu o silêncio.
- Sabes, se não houver uma conspiração e afinal andarmos só à procura de um bando de ladrões, isso vai ser muito mais complicado. Uma conspiração precisa de apoiantes
para conseguir os seus fins. Quem estiver envolvido num roubo comum vai manter as coisas muito mais em segredo.
Cato anuiu.
- E nesse caso estamos bem tramados, já que o Narciso não nos vai recompensar se não conseguirmos os resultados que pretende - prosseguiu o veterano. - Por louco
que isto pareça, será melhor que peçamos aos deuses para que exista realmente uma conspiração a deslindar.
Quando chegaram à entrada das casernas, viram Tigelino, que os aguardava. Fez um gesto com o polegar na direção dos aposentos do centurião.
- O Lurco já está de volta. Quer ver-vos. - Tigelino fez uma careta. - Chamou-vos há já mais de uma hora. Uma pena que eu não vos tenha conseguido encontrar antes;
o centurião é um homem pouco disposto a tolerar atrasos. - O optio soltou uma gargalhada seca, e deixou-os, a caminho do quarto que partilhavam. - Boa sorte.
Os lábios de Macro mantiveram-se cerrados com toda a força enquanto ele esperava que Tigelino se afastasse, e depois deixaram finalmente passar a sua fúria.
- Filho da puta. Ele sabia perfeitamente onde é que nós estávamos. Tramou-nos de propósito.
Cato encolheu os ombros.
- Por agora não podemos fazer nada quanto a isso. Vamos.
Dirigiram-se ao pequeno gabinete anexo aos aposentos privados do
centurião, e repararam que a porta estava aberta. Lurco estava de pé junto à janela, lançando a vista sobre o muro do campo e deixando-a espraiar-se sobre a cidade,
iluminada por tochas e lamparinas dispersas. Mantinha-se imóvel enquanto olhava na direção do palácio imperial, as costas mal iluminadas pela pequena lamparina de
óleo que brilhava sobre a secretária. Cato fez um gesto a Macro e colocaram-se à vista, mas ainda fora do compartimento. Depois de respirar fundo, Cato raspou os
nós dos dedos na madeira.
- Senhor, mandou chamar-nos?
Lurco virou-se de repente, e Cato reparou de imediato que o centurião era mais novo do que seria de esperar, e devia andar pelos vinte e tal anos.
O cabelo era escuro e cuidadosamente penteado, em caracóis oleados que
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emolduravam uma face de feições finas, com uma beleza quase feminina. O que não o impediu de franzir o sobrolho.
- Vocês são os novos? Capito e Cálido? - indagou, numa voz aguda e esforçada.
- Sim, senhor.
- Não fiquem aí especados. Entrem.
Obedeceram, e ficaram em sentido à frente da secretária do oficial. Era mais alto do que Cato, e tinha por hábito inclinar ligeiramente a cabeça para trás, o que
fazia aumentar a sensação de que olhava para qualquer outro homem de alto.
- Onde é que andavam? Há séculos que tinha dado ordens para se apresentarem. Porque é que não estavam na caserna?
- Perdão, senhor, estávamos nos banhos - explicou Macro.
- A fugir ao serviço, imagino.
- Não, senhor. Somos veteranos. Temos dispensa de faxinas.
- Veteranos? - desdenhou Lurco. - Acham portanto que o mundo vos deve qualquer coisa, não? Devem pensar que são melhores do que os outros. Só porque têm umas manchas
de lama nas botas e uns arranhões.
- Fez um gesto depreciativo com a mão, indicando o rosto de Cato. - Quero lá saber se são veteranos. Para mim, os homens da minha centúria são todos iguais. E ao
que parece precisam tanto de mim que recebi ordens para abreviar a minha licença e regressar ao quartel a tempo do aborrecido espetáculo de merda que amanhã será
apresentado ao Imperador. Podia muito bem estar na cidade, numa festa qualquer, entretido a foder a filha ou a mulher de algum senador, mas não, cá estou eu encurralado
no quartel. Ora, se eu me vejo obrigado a abandonar os meus amigos e ficar aqui, porra, o mínimo que espero dos meus homens é que tenham a decência de aparecer quando
são chamados.
Cato sentiu uma instintiva antipatia pelo homem, e de repente tornou-se dolorosamente consciente da cicatriz que lhe arruinara a face. Lurco, com a sua vistosa aparência,
era o tipo de jovem oficial que facilmente teria sucesso com as senhoras da sociedade. Muito possivelmente o tipo de homem com quem uma mulher como Júlia se poderia
cruzar e vir a interessar. Um pensamento idiota, afirmou a si próprio, furioso por ter perdido momentaneamente o controlo dos sentimentos que tanto lhe custava a
manter em acalmia.
- Viemos assim que soubemos que nos queria ver, senhor - justificou Macro.
- Bem, isso não foi suficientemente depressa - ripostou Lurco, irritado. Olhou-os, com as narinas a fremir. - Agora já nos conhecemos, e já sabem o que eu exijo.
De futuro, quando der uma ordem, espero ser obedecido
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de imediato. Se não o fizerem, tratarei de fazer revogar o vosso estatuto de veteranos, e enfio-vos em merda até ao pescoço pelo resto do ano, com faxinas às latrinas
permanentes. Fica claro?
- Sim, senhor - responderam Macro e Cato.
Lurco voltou a olhá-los.
- Amanhã seremos os anfitriões do Imperador. A nossa coorte vai estar disposta em redor do camarote imperial. Isso quer dizer que não admito falhas. A minha centúria
será a mais esplendorosa unidade de toda a Guarda Pretoriana, e se assim não for, hei de querer saber porquê. Não se atrevam a dececionar-me. Percebido?
- Sim, senhor.
- Então, deixem-me. Vão. Desapareçam da minha vista.
Fizeram a saudação, viraram-se e saíram, com Macro à frente. Só quando chegaram às escadas é que Macro soltou o ar dos pulmões, lançando um profundo suspiro.
- Que idiota mais chapado, que pedaço de merda. Aposto que este sacana convencido levou uma tampa de uma gaja qualquer. E agora resolveu vingar-se em nós. E aquela
conversa da treta sobre veteranos... Foda-se! Ele devia era ter mais respeito. - Continuou a espumar por momentos. - Isto tudo por causa do Tigelino. Ele sabia muito
bem onde estávamos. Estava no quarto quando saímos para os banhos. Hei de ter uma palavrinha com o nosso optio, palavra de honra.
- É melhor não - lembrou Cato. - A não ser que queiramos ser punidos por insubordinação.
- Estava a pensar numa coisa um bocadinho para lá da insubordinação - retorquiu Macro em tom fúnebre. - Do que ele precisa é de uma boa carga de porrada. Conheço
bem este tipo de gente. Vai aproveitar cada oportunidade de que dispuser para nos lixar. É o tipo de optio que tudo fará para sabotar as possibilidades dos outros,
agora que está ali mesmo à beirinha de chegar ao centurionato.
- Esqueça o assunto - insistiu Cato, com toda a calma. - Não vamos estar por cá o tempo suficiente para ele nos fazer a vida miserável. Portanto, vamos ignorá-lo
e focarmo-nos no que temos a fazer, sim?
Macro resmungou:
- Se por acaso o nosso querido optio estiver envolvido nalguma conspiração, ofereço desde já os meus serviços a quem quiser vê-lo interrogado com doçura.
Ainda era madrugada quando o tribuno Burro deu ordens para que a sua coorte formasse no exterior da caserna. O céu estava carregado e o ar abafado e húmido enquanto
os soldados formavam por centúrias e se mantinham
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à vontade. Macro e Cato foram dos primeiros a tomar as respetivas posições, e ficaram a ver os outros a saírem das casernas ainda cambaleantes, alguns mesmo a acabar
de compor as vestes, apertando cintos sobre as túnicas. O centurião Lurco foi dos últimos a aparecer, de rosto pálido e olhos avermelhados.
Cato inclinou-se ligeiramente para Macro.
- Esteve a beber.
- Pobrezinho, alguém lhe deve ter partido o coração - respondeu Macro sem o mínimo traço de compaixão.
Tigelino, da sua posição dois passos à frente da primeira fileira, virou a cabeça e berrou de imediato um aviso:
- Silêncio! O próximo artista de merda a soltar um pio leva um castigo!
Lurco estremeceu visivelmente perante o berro, enquanto se colocava à frente do optio e do porta-estandarte da centúria. Quando os últimos homens da coorte se colocaram
nas suas posições, deu-se um curto silêncio até que a figura encorpada do tribuno Burro saiu do bloco de casernas da coorte. O centurião mais antigo da coorte, o
tricenário, inspirou profundamente e gritou:
- Comandante na parada!
Os homens colocaram-se em sentido com um estrondo de botas nas lajes do pavimento. Burro caminhou até se colocar à frente da sua unidade, de mãos juntas atrás das
costas enquanto inchava o peito e percorria com o único olho as linhas de homens organizados por centúrias.
- A maior parte de vós já sabe como se passam as coisas. Mas também temos muitos homens que se juntaram a nós depois dos últimos jogos. Portanto, vou explicar como
é, de forma a que todos tenham bem presente aquilo que é esperado de nós. O Imperador, a sua família e alguns convidados selecionados da coorte imperial virão passar
o dia com a Guarda Pretoriana. Sendo a unidade que mais próxima vai estar da comitiva imperial, seremos nós a estabelecer o padrão pelo qual toda a Guarda será avaliada.
Portanto, todos a portarem-se no seu melhor, e podem ter a certeza que se algum se embebeda ou se porta de forma a pôr em causa a honra da Guarda Pretoriana, eu
mesmo lhos corto rentes. - Fez uma pausa e prosseguiu em tom menos ameaçador: - Como sabemos, o Imperador tem os seus trejeitos. Tem uma tendência para a gaguez,
e quando se excita, pode babar-se um bocado. Não é a mais agradável das visões, garanto-vos. Porém, Cláudio é o Imperador, e todos nós jurámos honrá-lo e obedecer-lhe.
Portanto, nada de risadas, nem sequer o mais leve dos sorrisos, se o velhote se for abaixo. Percebido? Prometo-vos que se apanho algum a troçar do Imperador, lhe
dou motivos para nunca
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mais se rir na vida. - Burro virou-se e afastou-se alguns passos, antes de voltar para trás.
- Há mais uma coisa. A nova Imperatriz virá pela primeira vez assistir aos jogos. Tenho a certeza que alguns de vós ainda estão um tanto espantados, talvez mesmo
chocados pelo facto de o Imperador ter decidido desposar a sua própria sobrinha.
Houve algum burburinho entre os homens, e Cato reparou que alguns se remexiam, pouco confortáveis. Burro ergueu uma mão para pedir silêncio.
- Sejam quais forem os vossos sentimentos, o casamento foi sancionado pelo Senado, e portanto é perfeitamente legal. A moralidade da situação não nos diz respeito.
Somos soldados e obedecemos a ordens, certas ou erradas, e a história acaba aí. Assim, se algum de vós tem reservas quanto à nova esposa do Imperador, trate de as
guardar para si mesmo. É uma ordem. Não quero ouvir uma única palavra de insatisfação vinda dos vossos lábios. - Fez nova pausa para deixar que as suas palavras
assentassem. - Uma última coisa. Este dia tem por fito reforçar os laços entre o Imperador e a Guarda Pretoriana. Cláudio paga as diversões e o festim que se lhes
segue. Será portanto adequado que expressemos a nossa gratidão em todas as ocasiões. Vão vitoriá-lo, bem como a toda a família, como se as vossas vidas dependessem
disso. Isso deverá agradar ao velhote. E um Imperador satisfeito é um Imperador generoso. De cada vez que o aplaudirem, lembrem-se de que isso significa mais dinheiro
nos nossos cofres. Ou significará, assim que ele se decidir a fazer um novo donativo à Guarda... A comitiva imperial deverá chegar ao aquartelamento duas horas depois
do nascer do Sol. Todos os homens devem estar nos seus lugares antes disso, completamente fardados. É tudo!
Enquanto o tribuno voltava para o interior da caserna, o centurião mais antigo gritava:
- Coorte, dispersar!
A ordem ecoou nas paredes dos blocos, e os homens começaram a desfazer a formação. Macro continuava a olhar para o tribuno que se afastava.
- Bem, este foi claro e preciso. - Olhou para o céu. - Talvez seja boa ideia irmos buscar as capas antes de procurarmos lugares decentes.
Quando subiram as escadas por trás da arena temporária, já havia centenas de homens instalados nos seus lugares. A Burro e aos seus homens tinham sido designados
os lugares que ladeavam o camarote imperial, erguido na parte norte da arena, de forma a receber o melhor dos escassos raios de Sol de inverno. Ao contrário dos
assentos em escada dos pretorianos, o camarote tinha sido construído sobre uma plataforma ao nível do último degrau das bancadas. Foi para lá que Cato apontou.
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- Ali em cima.
- Mas para termos uma vista decente do espetáculo, devíamos estar lá à frente - protestou Macro.
- Nós queremos ver bem é o Imperador e o grupo que o acompanha. E aquele é o melhor lugar para isso.
Macro resmungou qualquer coisa em surdina, lançou um olhar triste sobre os lugares vazios mesmo ao pé da arena e lá acabou por seguir o amigo enquanto este subia
as escadas íngremes a meio das bancadas. Lá em cima, Cato espreitou para dentro do camarote imperial e depois afastou-se alguns passos, de forma a ter uma melhor
vista do seu interior, graças à curvatura da arena. Satisfeito, sentou-se. Macro observou a forma como as filas à sua frente se enchiam rapidamente, tornando mais
difícil a visão da arena, e suspirou.
- Bela vista, sim senhor - começou.
- Serve perfeitamente os nossos propósitos - retorquiu Cato, ajeitando a capa e puxando o capuz para trás, de forma a ficar com a cabeça descoberta.
Em redor, os pretorianos entravam pelos vários acessos da arena e corriam para ocupar os melhores dos poucos assentos ainda disponíveis. O ar enchia-se de conversas
ociosas enquanto a luz crescia. O céu continuava coberto, mas notava-se entre as nuvens uma mancha luminosa que marcava a posição do Sol à medida que este subia
pelo firmamento, lançando mais calor sobre a cidade e os seus arredores. Os oficiais foram dos últimos a entrar, tomando lugares na fila da frente e obrigando os
soldados já lá instalados a mudarem de lugar. Macro sorriu perante a cena, gozando com o desapontamento dos outros. Diretamente abaixo dos lugares ocupados pelos
dois amigos, sentaram-se o tribuno Burro e os seus centuriões, seguidos pelos optios e porta-estandartes. Cato reparou que Lurco se sentava perto do camarote imperial,
mas a uma distância que lhe permitiria ser visto pelos membros da comitiva que se iam instalar mais longe do Imperador. Usava um vistoso bracelete de ouro no braço
esquerdo, e parecia evidente que queria atrair a atenção de algum patrono que lhe garantisse a progressão na carreira. Tigelino sentava-se atrás e para o lado do
centurião, e Cato notou perfeitamente o desprezo aparente na expressão do optio enquanto contemplava Lurco.
À hora prevista, um ruído de passos desordenados que provinha do portão do Viminal começou a crescer, anunciando a chegada do séquito imperial. À frente vinham alguns
germanos montados, seguidos pelas primeiras liteiras, com convidados do Imperador. Os escravos, com túnicas novas e ainda resplandescentes, esforçavam-se sob o peso
nos varais, enquanto os que seguiam lá dentro conversavam com ar despreocupado. Vinha depois
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uma secção de oito germanos apeados, com as suas barbas hirsutas e estranhas armaduras a oferecer-lhes o habitual aspeto de bárbaros. Surgiu então à vista a liteira
onde se sentavam Agripina e Nero, logo seguida pela que transportava o próprio Imperador, acompanhado por Britânico. A seguir vinham outras liteiras com o resto
do grupo: Narciso, Palias, Séneca - o novo tutor de Nero, que fora recentemente mandado regressar do exílio -, e por fim alguns senadores e suas esposas, a quem
tinha sido dada a honra de um convite para acompanharem o Imperador.
A coluna deteve-se à entrada do camarote imperial, e os convidados de menor estatuto apressaram-se a deixar as liteiras e a tomar os seus lugares, antes que o Imperador
e família se fossem instalar. O prefeito da Guarda Pretoriana, Geta, emergiu do camarote e inclinou-se perante o Imperador, ainda na liteira. Trocaram algumas palavras
e então o prefeito foi instalar-se também no camarote.
Muitos dos guardas nas filas mais altas das bancadas viraram-se para trás para observar os recém-chegados. Cato e Macro viram Narciso a perscrutar brevemente as
faces nas bancadas, mas, se os viu, não deu qualquer sinal de reconhecimento antes de desaparecer da vista deles. Por fim a família imperial ficou a postos para
fazer a sua entrada, e Nero saltou da liteira para ajudar a mãe a descer, estendendo-lhe a mão.
- Um filho dedicado - comentou Macro, irónico. - E vê bem como ele adora o padrasto e o meio-irmão.
Depois de cuidar da mãe, Nero tinha-se voltado para a outra liteira com um olhar gelado. Britânico saiu, e logo inclinou a cabeça respeitosamente enquanto o Imperador
lutava para se libertar do meio das almofadas bordadas a púrpura. A segurar na mão do filho, Cláudio avançou a custo, com a cabeça a tremer, até chegar à entrada
do camarote. Sorriu enquanto acenava a Agripina e Nero para se lhe juntarem, e depois aguardou enquanto dez guardas germanos formavam à frente da família imperial
e começavam a subir as escadas que levavam aos lugares do Imperador. Os pretorianos aguardaram com expectativa. Os guarda-costas formaram aos lados e por trás do
camarote, de forma a não obstruírem a vista dos convidados. Deu-se então uma breve pausa, até que Narciso fez um sinal discreto com a mão, e todos os que já ocupavam
o camarote se puseram de pé.
Os pretorianos imitaram-nos de imediato, e lançaram uma enorme aclamação que foi crescendo à medida que a cabeça do Imperador, coroada a dourado, ia ficando à vista.
Cláudio subiu os últimos degraus e avançou desajeitadamente até à plataforma onde se viam dois cadeirões lado a lado. Agripina juntou-se a ele, enquanto os dois
rapazes se colocavam dos lados. Cláudio manteve uma expressão neutra, lutando para combater o tique que o afetava enquanto virava lentamente a cabeça para receber
a aclamação
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que vinha de todos os lados. Por fim sentou-se, e só depois Agripina e por fim o resto dos convidados o imitaram.
- Muito agradável à vista, de facto - disse Macro ao ouvido de Cato, quase num grito. - Percebe-se bem porque é que o velho bode a escolheu.
- Há muitas mais razões para a escolha, além da beleza - retorquiu Cato. - Ela tem influência, cabeça, e tem um filho saudável que pode vir a tornar-se um herdeiro
de Cláudio, caso o Britânico deixe de ter os favores do pai.
O entusiasmo da multidão começou a amainar, à medida que os soldados se sentavam. Cato e Macro fizeram o mesmo, e daí a pouco começou a levantar-se um burburinho
de excitação, já que o editor dos jogos surgiu a conferenciar com os seus ajudantes, para garantir que tudo estava a postos. Satisfeito, o editor colocou-se à frente
do camarote imperial e acenou a quatro soldados que esperavam sobre a areia, com os seus longos instrumentos de latão. Ergueram-nos e lançaram uma série de notas
em crescendo. Os pretorianos responderam com um imediato e brusco silêncio, e o editor ergueu os dois braços e começou a discursar.
- Sua majestade imperial Tibério Cláudio Druso Nero Germânico dá as boas-vindas aos seus camaradas da Guarda Pretoriana! - O homem tinha uma bela voz, cujas entoações
se espalhavam com facilidade pela arena, e não escapavam aos ouvidos de nenhum dos presentes. - De acordo com o seu desejo de assegurar aos seus bravos soldados
que a lealdade que lhe demonstram é retribuída com grande afeição, sua majestade imperial, em honra do dia em que os graciosos cidadãos de Roma lhe confiaram o seu
bem-estar, aqui anuncia um dia de diversão...
O editor percorreu o programa, conseguindo salvas de palmas ao anunciar cada fase do espetáculo. Enquanto ele falava, a atenção de Cato centrava-se no camarote imperial.
O Imperador mantinha-se tão imóvel quanto o tique lhe permitia, concentrado nas palavras do editor. A cada salva de palmas, acenava, agradecido. Ao seu lado, Agripina
tinha pousado um cotovelo no braço do cadeirão e apoiava a cabeça na palma da mão. Parecia completamente enfastiada pelos atos preliminares e pouco depois começou
a percorrer com o olhar o camarote, até que se deteve no pequeno grupo de assentos ocupados pelos conselheiros do Imperador. Narciso estava entretido a conversar
com um dos seus companheiros. O outro anuía, até se aperceber de que a Imperatriz olhava na sua direção, ao que respondeu com um curto sorriso sobre o ombro de Narciso.
Este reparou no gesto e espreitou para trás no preciso momento em que a Imperatriz desviava o olhar. Depois de uma ínfima pausa, o secretário imperial continuou
a conversa.
Cato olhou então para os outros ocupantes do camarote; avistou Britânico, de pé, hirto, ao lado do pai, o braço esquerdo escondido pelas pregas
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da pequena toga que envergava. O facto de a envergar era significativo. Cláudio queria claramente dar a entender que o seu filho natural receberia em breve títulos
e honras muito superiores aos que a sua idade justificava, tal como sucedera ao seu filho adotivo, Nero. Este, também de toga, tinha pegado na mão da mãe, levara-a
aos lábios e beijava-a, demorando na carícia muito mais do que seria normal, até que ela a retirou do seu alcance.
- Viste aquilo? - escandalizou-se Macro. - Ele pensa que pode brincar com estas coisas? Estará a tentar provocar um escândalo?
Cato olhou em redor, tentando descortinar qualquer reação dos soldados à afronta cometida por Nero, mas nada se passava.
- Talvez todos estejam habituados a cenas do género - sugeriu Cato.
- Vejamos, a família imperial tem jeito para estas coisas. Talvez fosse um gesto inocente. Talvez não. Não seria a primeira vez que algum deles se envolveria em
relações incestuosas.
O lábio de Macro arrepanhou-se de nojo.
- Pervertidos, é o que eles são.
O editor terminou por fim o seu discurso, levantando uma nova aclamação, e Cláudio sorriu e ergueu um braço, numa saudação aos soldados. Não houve mais demoras antes
do primeiro evento: um combate de boxe entre dois gigantes númidas. A pele dos lutadores tinha sido oleada, pelo que rebrilhavam como ébano quando se enfrentaram
e deram início ao duelo. Na audiência, os pretorianos depressa começaram a apostar no resultado, trocando propostas de números aos gritos. A luta durou algum tempo,
e a areia em redor dos dois homens depressa ficou salpicada de sangue devido aos golpes provocados pelas tiras de couro que envolviam os punhos dos combatentes.
Por fim, um deles desferiu um golpe que deixou o outro desacordado, o que foi recebido com uma mistura de protestos e saudações dos espetadores. Seguiu-se uma demonstração
de perícia com o arco, feita por um homem de tez escura e vestes orientais, que soltava as suas flechas com uma precisão assombrosa, inclusive em torno do ajudante,
um jovem que se punha em frente de um alvo de palha, com os braços bem abertos. Após um curto intervalo, depressa o editor anunciou o "Concurso troiano" - uma demonstração
de capacidade equestre feita pelos filhos de aristocratas romanos. Os pretorianos lançaram aplausos tolerantes mas pouco entusiastas.
Uma vintena de cavaleiros entraram na arena com capacetes fechados, que não permitiam distinguir-lhes as faces. Atrás deles surgiram alguns pretorianos com postes
e bonecos de palha que foram colocados em linhas ao longo da arena. Quando os preparativos terminaram, Cláudio ergueu-se para corresponder à saudação do líder do
grupo, que montava uma égua da mais pura alvura.
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- Podem c-co-co-começar! - A cabeça do Imperador tremeu com insistência quando ele se sentou pesadamente.
Os jovens carregaram à vez, percorrendo a linha de postes, desferindo golpes de espada contra os alvos de palha. Foram-lhes então entregues dardos ligeiros e, pela
mesma ordem, cada um galopou ao longo da linha de alvos, escolhendo um contra o qual arremessar o projétil. Tinha-se entretanto levantado uma brisa forte, o que
os obrigava a aplicarem-se para compensar e acertar no alvo. Os que falhavam eram eliminados e deixavam a arena. Daí a pouco só restavam três, e foi aumentada a
distância para os alvos. Depois de mais uma passagem, ficaram apenas dois, um dos quais era o líder. Ambos tinham excelente pontaria, e de imediato se iniciou um
novo turno de apostas furiosas, enquanto os rapazes não se distinguiam e a distância era mais uma vez aumentada. Por fim o rival do líder falhou o seu alvo, e a
audiência respondeu com um clamor quando o vencedor ergueu o punho no ar e virou a sua montada para o camarote imperial, detendo-o no meio de uma nuvem de areia.
- Que cavaleiro extraordinário - comentou Cato. - Gostava de saber quem é ele.
Macro encolheu os ombros.
- Ora, é só mais um miúdo convencido a exibir-se.
O cavaleiro soltou rapidamente as tiras que lhe prendiam o capacete e levantou-o de imediato, revelando o rosto. A multidão reagiu com espanto, a que se seguiu uma
nova aclamação, quando todos reconheceram Nero.
Cato espreitou na direção do Imperador e recordou vagamente que tinha visto o filho adotivo a esgueirar-se para o fundo do camarote, havia pouco. A mãe de Nero estava
de pé, aplaudindo deliciada, enquanto o Imperador também não escondia a satisfação. A aclamação dos pretorianos foi-se sincronizando, e daí a pouco todos entoavam
em coro o mesmo nome.
- Nero! Nero! Nero!
O rapaz deu uma volta à arena, sentando-se altivo na sela enquanto apreciava o aplauso generalizado. Macro deu um piparote em Cato e apontou para o camarote.
- Há ali alguém que não está nada satisfeito.
Na plataforma, ao lado do pai, estava o jovem Britânico. A sua expressão era dura como gelo, e o punho direito tinha-se cerrado com toda a força. Só começou a relaxar
quando o seu rival abandonou por fim a arena e as aclamações dos pretorianos esmoreceram. Já passava do meio-dia, e o editor anunciou um novo intervalo enquanto
os alvos eram removidos e a arena preparada para o momento culminante do dia, dez combates de gladiadores que culminariam com um duelo entre um secutor conhecido
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como "Pombo" - o mais popular gladiador naquele momento - e o "Neptuno de Nucéria", um reciário. Alguns dos ocupantes do camarote imperial apressaram-se a descer
as escadas para aliviarem as bexigas ou se refrescarem na área por baixo do camarote.
- Vou dar uma mija - anunciou Macro, levantando-se.
Cato assentiu e ficou a ver o amigo abrir caminho por entre os outros soldados, descer as escadas e depois dirigir-se à saída da arena. Cato ainda estava preocupado
com a expressão que detetara no rosto de Nero mesmo antes de este deixar a arena. Não havia como disfarçar o brilho da ambição a arder naquele espírito. Tinha calculado
tudo, preparara aquela exibição de valor diante dos pretorianos e, pelo menos por aquele momento, conquistara-os para a sua causa.
Macro sacudiu-se e baixou a túnica. O bloco das latrinas estava repleto de homens que aproveitavam o intervalo para se aliviarem. Saiu, e dirigiu-se ao portão que
dava para a parada. Abriu caminho por entre as liteiras e os escravos que aguardavam sentados por ali em silêncio, à espera, até que se encontrou junto ao recinto
privado que fora instalado por baixo do camarote imperial. Dois guardas germanos vigiavam a pesada cortina vermelha que fechava a passagem. Quando Macro se aproximou,
um deles estendeu o braço e disse algumas palavras na sua estranha e áspera língua.
- Calminha, oh Herman - resmungou Macro. - Só estou de passagem. Não erices os pelos da barba, que ainda se emaranham.
Nesse instante, uma rajada de vento fez dançar a cortina, e Macro avistou com clareza o homem ao lado de quem Narciso se sentara no camarote imperial. Tinha um braço
apertado em torno de uma mulher enquanto lhe beijava o pescoço que ela oferecia com a cabeça atirada para trás. A outra mão enfiava-se por entre as dobras da estola
dela, entre as suas pernas, provocando-lhe um arfar de gozo. Ao escutarem as abas da cortina a voltearem ao vento, olharam em redor, alarmados, e os seus olhares
cruzaram-se com o de Macro pelo que pareceu a este um momento infinito. Depois o vento morreu tão subitamente como surgira, e as cortinas voltaram ao seu lugar.
Macro não se movera, e o germano lançou-lhe outro aviso.
- Já vou, já vou - murmurou, antes de regressar apressadamente ao interior da arena. Um tremor frio percorria-lhe a espinha. A mulher que tinha acabado de ver entregue
ao êxtase era Agripina. A última coisa que Macro queria era ser testemunha de uma infidelidade da Imperatriz. Era um conhecimento extremamente perigoso. Agripina
saberia evitar os erros da sua antecessora, e teria perfeita consciência da necessidade de fazer desaparecer quem quer que a pudesse denunciar ao Imperador.
Macro subiu os degraus até junto de Cato e sentou-se rapidamente,
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encostando-se para trás de forma a garantir que não podia ser visto do camarote imperial.
- O que se passa? - indagou Cato. - Está branco que nem uma toga.
- Estou bem... Está tudo bem.
- O que foi? - Poucas vezes Cato tinha visto o amigo tão preocupado.
Macro abanou a cabeça.
- Não te posso dizer agora. - Indicou os homens sentados em redor.
- Aqui não.
Lá em baixo, na arena, o primeiro par de gladiadores tinha já feito a sua saudação ao Imperador; os dois homens tomavam agora posição, agachando-se e concentrando-se
enquanto aguardavam o sinal para dar início ao combate. O editor deixou que a tensão crescesse mais um pouco, retardando ao máximo o momento em que deu a ordem.
- Avancem!
O mais pequeno e ágil dos dois lutadores carregou de imediato, lançando um ataque feroz ao adversário, e depressa o som dos choques das lâminas e dos embates destas
contra os escudos ecoou por toda a arena. Os dois homens separaram-se por fim e começaram a rodear-se um ao outro, cautelosos. Cato sorriu perante o pequeno teatro
que os dois tinham usado para prender a atenção dos espetadores logo no início do combate. Os pretorianos em redor estavam todos presos à cena, murmurando constantes
comentários sobre o aspeto físico dos dois gladiadores e os seus estilos de luta, enquanto continuavam a dar largas ao apetite pelas apostas. Cato inclinou-se para
Macro e falou no tom mais alto que julgou seguro.
- Pode falar agora. Toda a gente está concentrada no combate.
Macro olhou para lá de Cato, para ver o que se passava no camarote
imperial. A cerca de dez metros dali, a Imperatriz tinha retomado o seu lugar e apreciava os movimentos na arena, de rosto calmo e composto. O homem que tinha estado
a acariciá-la não se via. Macro contou rapidamente ao amigo o que observara.
- Tem a certeza de que o viram bem? - quis saber Cato.
- O suficiente para me reconhecerem se voltarem a ver-me.
- Merda. - Cato franziu o sobrolho. - Isso não nos ajuda nada.
- Bem, peço muita desculpa - rosnou Macro.
Cato coçou o queixo enquanto tentava analisar todas as implicações daquela novidade. Se Agripina já tinha escolhido um amante entre os mais próximos do Imperador,
estava de facto a jogar perigosamente. A não ser que estivesse a usá-lo para outro fim. Mas qual? E teria alguma ligação com a conspiração que Narciso estava a tentar
desvendar e derrotar?
Enquanto Cato se mantinha quieto, contemplando as questões, Macro viu Narciso a aproximar-se do Imperador e a debruçar-se sobre ele, para lhe
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falar ao ouvido. Cláudio ouviu, virou-se no assento e olhou para Narciso com ar preocupado. Conversaram brevemente, até que o Imperador anuiu com a cabeça e acenou
na direção do prefeito Geta. Pouco depois, vários guardas saíam do pavilhão com mensagens para os oficiais espalhados em torno da arena. Os pretorianos mais próximos
do camarote imperial observavam as movimentações, curiosos, até que o tribuno Burro se levantou e levou as mãos em concha à boca.
- Sexta Centúria! Formem lá fora, imediatamente!
Lurco ergueu-se rapidamente do seu lugar, chamou Tigelino e apressou-se para a saída. Os seus homens seguiram-no.
- Do que achas que se trata agora? - indagou Macro. - Terá alguma coisa a ver com o que eu vi?
- Depressa saberemos.
Enquanto desciam as escadas, Cato lançou um último olhar ao camarote imperial. O Imperador e a sua família já se tinham levantado, e Narciso e mais alguns seguiam-nos.
Os outros convidados mantinham-se nos seus lugares, pondo um ar de naturalidade e desinteresse, enquanto o combate prosseguia na arena.
Os homens da Sexta Centúria agruparam-se em torno de Lurco, enquanto ali perto os escravos já estavam de pé, prontos a receberem os passageiros das liteiras assim
que isso lhes fosse ordenado. Enquanto Cato, Macro e outros retardatários deixavam a arena, o centurião avisou em voz alta, de forma a ser escutado acima do clamor
do espetáculo.
- O Imperador vai regressar ao palácio. Foram recebidas informações que dão conta de que rebentou um motim no fórum. As coortes urbanas estão a controlar a situação,
mas o Imperador quer tomar o comando da situação em pessoa. O prefeito Geta resolveu reforçar a guarda pessoal do Imperador com a Sexta Centúria. Isto não é trabalho
de cerimónia. As nossas ordens são para protegermos o Imperador, a sua família e conselheiros, a qualquer preço. Se alguém tentar bloquear-nos o caminho, estamos
autorizados a empregar toda a força necessária para abrir passagem à coluna de liteiras. - Lurco fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Vão imediatamente buscar
armaduras e armas às casernas. E regressem aqui, prontos para marchar. Em corrida, vão!
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Uma espessa coluna de fumo, vinda da direção do fórum, erguia-se no céu vespertino; entretanto, a coluna de liteiras e soldados descia o monte Viminal, dirigindo-se
para o centro da cidade. Novas do motim já se tinham espalhado pelas ruas, mas muitas pessoas ainda andavam a tratar dos seus assuntos, e apressavam-se a sair da
frente do centurião Lurco e das duas secções que lideravam a coluna. Os germanos seguiam num grupo cerrado em torno das liteiras onde eram transportados o Imperador,
a Imperatriz e os dois jovens. O resto da Sexta Centúria preenchia os espaços entre as restantes liteiras e formava a retaguarda.
Cato, Macro e outros catorze homens seguiam sob o comando de Tigelino atrás de uma liteira partilhada por Narciso e outros dois conselheiros, um dos quais era o
homem que Macro vira com Agripina. Marchavam em colunas de quatro homens; Fúscio seguia à direita de Macro, e na coluna mais externa ia um outro jovem espadaúdo.
Depois de uma rápida espreitadela para se certificar de que o optio tinha o olhar fixo no que se passava mais à frente, Macro dirigiu-se a Fúscio em surdina.
- Estás a ver os homens que seguem na liteira?
- Sim.
- Reconheci o Narciso, mas quem são os outros?
- O que está à frente dele, o mais bem-parecido, é o Palias. Um daqueles cabrões libertos de que o Imperador tanto gosta de se rodear. O outro é o Séneca, o tutor
e conselheiro do Nero.
- Estou a ver. - Macro olhou para Cato, à sua esquerda, e arqueou a sobrancelha antes de perceber que o gesto era impercetível sob o capacete.
- Palias, com que então? Qual será a ideia dele?
- Ideia? - Fúscio virou a cabeça para Macro. - O que queres dizer?
- Nada.
Antes que pudessem trocar mais qualquer palavra, Tigelino olhou sobre o ombro.
- Silêncio nas fileiras! Bocas caladas, olhos e ouvidos atentos!
Progrediram em silêncio, notando que à medida que se aproximavam
do fórum, a rua ficava cada vez mais desimpedida. Alguns grupos de cidadãos
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com ar ansioso corriam por aqui e ali, esgueirando-se junto às colunas sem proferir palavra ou mostrar surpresa ao avistarem a liteira imperial com a sua escolta
de bárbaros. O rugir da turba era já audível, e depressa começaram a distinguir gritos de fúria e até alguns berros de puro terror. O fumo tornara-se denso e acre.
Vários penachos remoinhavam pelo ar, e atingiram a coluna assim que esta entrou na praça onde Cato e Macro tinham estado envolvidos na zaragata de algumas noites
atrás. Cato espreitou na direção do estabelecimento e avistou o proprietário, que se apressava a cerrar as portadas de uma janela que dava para a fonte pública,
e depois a meter-se para dentro e a trancar todas as portas. Uma mulher de aspeto lamentável e triste estava sentada no degrau da fonte, a embalar uma criança chorosa,
de olhos salientes e braços esqueléticos. Observou os soldados e as liteiras a passar sem se mexer, até que se pôs tremulamente de pé e se arrastou na direção da
coluna, com a mão estendida.
- Um sestércio para a minha criança? - A voz era fraca e dorida. - Por amor de Júpiter, só uma moeda. Senhor, há dias que não comemos.
- Fez menção de se aproximar de Tigelino, mas o optio soltou um aviso furibundo.
- Desaparece, galdéria! E leva o fedelho contigo. Antes que eu resolva usar isto! - Ameaçou-a com a vareta, e a mulher recuou com um guincho de terror.
Macro rangeu os dentes com desprezo pelo optio, e murmurou:
- É bom ver que o nosso optio é um tipo corajoso, pelo menos quando se trata de enfrentar uma mulher esfomeada.
- Chiu! - avisou-o Cato.
Deixaram a praça e seguiram pela rua acima. Um pouco adiante depararam-se com o primeiro cadáver. Um homem obeso estava esparramado na sarjeta. Tinha sido despojado
de toda a roupa à exceção de uma tanga, e os cotos ensanguentados nas mãos mostravam bem onde tinham estado os anéis que lhe tinham sido roubados, mesmo que para
isso tivesse sido necessário cortar-lhe os dedos. O crânio tinha-lhe sido esmagado por uma chusma de golpes. Mais à frente ficava uma padaria que fora arrombada
e saqueada. A coluna passava naquele momento pela orla da Subura, uma área da cidade bem conhecida pela pobreza e crime que lá reinavam. Os blocos de apartamentos
pareciam debruçar-se sobre a rua e contribuíam assim para escurecer a cena e o odor fétido que imperava irritava a garganta de Cato, enquanto os passos da coluna
ecoavam nas paredes imundas.
Ao chegarem à base da colina, ouviu-se um súbito clamor na frente da coluna, e Cato esticou o pescoço para ver o que se passava: o centurião Lurco confrontava um
punhado de homens que tinham irrompido de uma viela lateral mesmo para a frente do Imperador e do seu séquito.
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- Abram caminho! - gritou Lurco, conseguindo fazer-se ouvir acima do tumulto. - Passagem para o Imperador!
- É o Cláudio! - soltou uma voz. - Aguentem, pessoal. Vamos expor as nossas queixas ao Imperador.
Lurco ergueu o braço.
- Coluna, alto!
Pouca coordenação era possível entre os pretorianos, os germanos e os escravos que carregavam as liteiras, o que fez com que a coluna quase se desagregasse ao interromper
o movimento. Por cima das cabeças dos homens à sua frente, Cato percebeu que muitos dos revoltosos na turba estavam armados com bordões, machados e cacetes. Lurco
adiantou-se com todas as cautelas, tentando intimidar o grupo a que mais e mais gente se juntava, soltando gritos e imprecações, acompanhados de gestos ameaçadores.
- Vão abrir caminho para o Imperador, agora mesmo! Não será feito novo aviso!
- Cláudio! - gritou o cabecilha do grupo. - O teu povo morre à fome! Dá-nos de comer!
- Saiam do caminho! - voltou a bradar Lurco, antes de olhar para trás sobre o ombro. - Empunhar espadas! - ordenou.
Escutou-se um coro de sons metálicos quando os soldados desembainharam as espadas e as colocaram em posição. O cabecilha do bando avançou, e Cato reconheceu-o de
imediato.
- Céstio.
Macro olhou para o amigo.
- É aquele sacana daquele brutamontes da taberna?
- Ele mesmo.
- Merda. Esse tipo significa problemas.
Céstio aproximou-se da cabeça da coluna e lançou um desafio em tom suficientemente alto para todos os seus seguidores o ouvirem.
- O que se passa aqui? Aposto que é um grupo de finórios a caminho de um banquete qualquer. - Voltou a virar-se para a multidão. - Enquanto nós passamos fome, enquanto
as nossas crianças vão definhando a pouco e pouco sem comer, esta malta enche-se de pitéus, e depois vomita, só para poder comer mais!
Alguns homens no meio da turba lançaram gritos de raiva e agitaram os punhos. Céstio virou-se para os soldados.
- Não nos vamos mexer daqui. Queremos apresentar as nossas exigências ao Imperador. Queremos pão e cereais, a um preço que possamos suportar. Tu, centurião, é que
tens de sair da nossa frente. Queremos falar com Cláudio!
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Enquanto a mole humana rugia, apoiando as palavras do seu líder, Lurco recuou para o seio da primeira fileira e empunhou a espada.
- Protejam as liteiras! À minha ordem, avancem a passo lento! Optio, marca o ritmo! Escudos preparados!
O decurião que comandava os germanos formou os seus homens em redor da liteira do Imperador, enquanto os pretorianos cercavam as outras. Colocaram os escudos em
ângulo, de forma a proteger os ocupantes das liteiras, e mantiveram as espadas na posição horizontal, com os cotovelos dobrados e prontos a desferir estocadas rápidas.
Cato sentiu o coração a acelerar e o costumeiro frio no estômago e nos membros que sempre o acometiam antes de um combate. Reparou num movimento que ocorria na periferia
do seu campo de visão e olhou para o lado, detetando figuras escuras a saírem de uma ruela à direita. Olhou rapidamente para o lado oposto da rua e viu mais homens
a surgirem de outra direção, e depois mais ainda na retaguarda, a correrem por um cruzamento para rodearem a coluna e completarem o cerco.
- Olhe para ali! - Apontou-os a Macro com a espada. - É uma armadilha.
Antes que Macro pudesse responder, ouviu-se um grito da frente da coluna.
- Avançar!
- Um! Dois! - começou Tigelino, e as fileiras avançaram, com os escudos sobrepostos. Por trás da primeira secção seguiam os germanos e a liteira imperial, seguidos
por Narciso e os outros conselheiros, e depois Tigelino e os seus homens. Por momentos a turba ficou em silêncio, mas Céstio depressa reagiu com um grito feroz.
- Matem-nos! Matem-nos a todos!
Um tijolo voou pelo espaço aberto entre os soldados e a turba e resvalou contra um escudo até se ir abater sobre o espesso forro da liteira imperial. Do interior
veio um grito de terror. Outros projéteis começaram a encher o ar: tijolos, pedaços das lajes do pavimento e montes de imundície recolhidos nas sarjetas. Outros
ainda vieram das ruas laterais, surpreendendo os flancos da coluna, encurralada na rua estreita. Avançavam passo a passo. A turba que os enfrentava manteve-se firme,
sem ceder um milímetro; por fim, no último instante, começou a recuar, mas os que estavam mais atrás não conseguiam ver a aproximação ameaçadora dos pretorianos,
pelo que não se mexiam e bloqueavam o recuo dos outros. Começaram a dar-se alguns movimentos de pânico, com homens a tentarem fundir-se às paredes dos edifícios
para escapar. Alguns conseguiram escapulir-se pelos becos e ruelas, mas muitos ficaram presos no caminho das tropas.
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- Não parem, seja lá por que for! - avisou Lurco.
Enquanto Tigelino marcava o passo, os pretorianos chegaram à beira da multidão e pressionaram com os escudos, atingindo os homens mais próximos. Uma primeira espada
entrou em ação, rasgando o flanco de uma figura que se debatia. O homem berrou de agonia antes de tombar em plena rua. Por fim, os que estavam na parte de trás da
turba perceberam o perigo e começaram a recuar. Mas para quem ocupava as posições mais adiantadas, já era tarde de mais. Os pretorianos avançavam de forma implacável,
lançando os escudos contra a mole humana e usando as espadas sem restrições. Alguns dos feridos caíam ao chão e eram pisoteados pelos soldados, outros ficavam presos
na massa sufocante de corpos e eram golpeados vezes sem conta enquanto berravam de terror e dor.
Por cima da orla do escudo, Cato avistou a alta figura de Céstio a abrir caminho por entre a turba com alguns dos seus homens, até alcançar um beco lateral e por
ali desaparecer. À frente, a multidão começava finalmente a dispersar, deixando vários mortos e feridos no terreno. Os que já tinham a sua conta fugiam da zona para
procurar refúgio ou encontrar alvos mais fáceis. Mas ainda assim mais de uma centena ficou para trás, mantendo-se fora do alcance dos gládios e continuando a lançar
contra a comitiva tudo a que conseguiam deitar a mão. Os projéteis embatiam com estrondos e baques surdos contra escudos e capacetes, mas os escravos que levavam
as liteiras pouca ou nenhuma proteção tinham, e já haviam sido abatidos quatro deles. Um fora derrubado por um golpe na cabeça, e jazia com o sangue a escorrer abundantemente
do rasgão no escalpe. Outros dois tinham também recebido feridas na cabeça. Tinham largado o varal da liteira e cambaleado até à parede, onde ambos tinham caído.
O último amparava ainda o cotovelo destroçado, e gemia por entre os dentes. Os que restavam debatiam-se agora com mais peso, e o caminho tornara-se mais difícil
devido aos corpos espalhados pela rua. Nesse momento, um dos escravos que transportavam a liteira do secretário imperial foi abatido, e a liteira inclinou-se para
o solo, quase lançando Narciso para a sarjeta. Cato apercebeu-se de que, naquelas condições, os escravos nunca conseguiriam avançar a boa velocidade.
- Saiam da liteira! - disse a Narciso. - Você e os outros. Tem de a deixar. Mantenham as cabeças baixas e sigam atrás dos pretorianos.
Narciso anuiu, e os conselheiros do Imperador saltaram do confortável interior da liteira, as botas dispendiosas a calcarem a rua repleta de imundície.
- Quem deu essa ordem? - indagou Tigelino, do outro lado da liteira.
- Eu, senhor. Capito.
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- Capito, porra, por acaso és o centurião? Tu não dás ordens, obedeces-lhes, e pronto. - Tigelino inclinou-se para espreitar pelo interior da liteira e falar com
os libertos. - O melhor é voltarem cá para dentro. Vou pôr alguns dos meus homens a ocupar o lugar dos escravos.
Narciso abanou a cabeça.
- Teriam a mesma sorte. O teu homem tem razão, temos de deixar a liteira. Eu informarei o Imperador.
Tigelino lançou um olhar furibundo a Cato, antes de anuir.
- Como desejar, senhor.
- Tu, Capito, e aquele tipo baixo - indicou Narciso. - Preciso de proteção. Cubram-me com os vossos escudos. Vamos.
Com Cato e Macro a ladeá-lo e a protegê-lo com os escudos, Narciso emergiu do círculo de pretorianos, e os três homens correram até ao grupo de germanos que protegia
a liteira imperial. Cato estremeceu quando um tijolo lhe atingiu em cheio o escudo. Quando se aproximaram, os germanos abriram passagem. Cato notou que cinco dos
doze escravos que transportavam a liteira finamente decorada já tinham sido atingidos, e que os outros mal conseguiam manter a liteira acima do solo. Virou-se para
Narciso.
- Tem de convencer o Imperador e os outros a sair das liteiras, senão não nos vamos conseguir mexer.
- Já percebi. - Narciso anuiu nervosamente, agachando-se para evitar uma bosta voadora que passou perto. Afastou a cortina, revelando o Imperador que abraçava Britânico,
numa tentativa de o proteger. Ao lado, a Imperatriz afagava a cabeça de Nero, que repousava ao seu colo. Cláudio levantou a vista, ansioso, e a cabeça estremeceu-lhe
com o tique que o afetava.
- Sire, os pretorianos dizem que temos de prosseguir a pé.
- A p-p-pé?
- Sim, sire. Não conseguiremos progredir nas liteiras. Seria demasiado perigoso.
- Mas há loucos à solta por aí! - protestou Agripina. - Fecha a cortina e leva-nos de volta ao palácio. Ordeno-to.
- Lamento informar que não temos escolha na matéria, vossa majestade imperial. Ou nos pomos a andar agora mesmo, ou acabamos por ficar aqui imobilizados e à mercê
desta gente.
- Onde andam as coortes urbanas? - indagou Agripina. - Eles é que deviam tratar desta escumalha. Se ficarmos aqui, eles acabarão por nos encontrar.
Narciso abanou a cabeça.
- O mais provável é que nem sequer saibam o que se está a passar. - Virou-se para o Imperador. - Sire, temos de prosseguir a pé. Agora.
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Cláudio virou-se para a esposa.
- Os soldados sabem o que fazem, minha q-querida. Vá, não vamos mostrar medo a esta g-g-gentalha.
Narciso auxiliou o Imperador a sair e depois ajudou Agripina e os dois rapazes. Cláudio passou o braço em torno da esposa com ar protetor, e encarou Cato e Macro.
- Vocês os dois, guardem as crianças.
- Sim, sire. - Cato inclinou a cabeça e acenou a Nero para que se lhe juntasse. - Cálido, fique com o mais pequeno.
Macro anuiu.
- Pequenote, vem cá.
Britânico franziu o sobrolho.
- Soldado, essa não é a forma correta de te dirigires a mim.
- Neste momento, é pois. - Macro pegou-lhe no ombro e colocou-o por trás do escudo.
O decurião da guarda germana ordenou aos seus homens que formassem um cordão em torno do Imperador, e Narciso levou a mão em concha à boca e avisou as secções mais
adiantadas.
- Centurião! Centurião!
Lurco ouviu o grito, olhou para trás e ordenou aos seus homens para manterem a posição; só depois se dirigiu para o outro grupo, encolhido por trás do escudo.
- Vamos abandonar as liteiras - explicou Narciso. - Reúne os teus homens, vamos atravessar o fórum a caminho do palácio. Já não estamos longe.
Lurco abanou a cabeça com ar desesperado.
- Seria melhor regressarmos ao aquartelamento. Temos de escapar daqui. Antes que seja tarde de mais.
- Senhor, não - interrompeu Cato, e apontou com a espada ao longo da rua. - Veja!
A uns cem passos por trás deles já se tinha juntado outra multidão, à sombra dos blocos de apartamentos, e começava a avançar na direção do grupo do Imperador.
- Merda... Merda - murmurou Lurco, com o lábio a tremelicar.
Cato preparava-se para dizer qualquer coisa, mas Macro antecipou-se.
Avançou para o centurião, embainhou a espada e pegou-lhe no ombro.
- Senhor, recomponha-se - avisou com brusquidão. - A vida do Imperador está nas suas mãos. As vidas de todos nós, aliás. Forme os homens cerrados, escudo sobre escudo,
e ponha-os em movimento, senão estamos fodidos. - Notou o olhar alheado no rosto do oficial e sacudiu-o com força. - Senhor!
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Lurco piscou os olhos, até que o olhar se focou na família imperial e ele engoliu em seco.
- Sim, evidentemente. Claro. - Ergueu a cabeça e chamou Tigelino.
- Optio!
- Senhor?
- Traz o resto da centúria aqui para a frente. Formem ao lado dos germanos.
Enquanto os homens que guardavam os conselheiros imperiais corriam para eles, Lurco virou-se para Macro e Cato.
- Guardem estas crianças com as vossas próprias vidas. Entendido?
- Sim, senhor - assentiu Macro. - Connosco estarão em segurança.
Assim que Palias e Séneca se juntaram a Cláudio e à família imperial,
os soldados fecharam a formação com os escudos, protegendo também os escravos, e Lurco deu ordem para que a formação improvisada se pusesse em movimento. As secções
mais adiantadas aguardaram pela chegada dos outros e prosseguiram como um único corpo. Entretanto, a turba tinha voltado a ganhar coragem e aproximava-se de novo,
lançando insultos que eram seguidos por pedras e pedaços de telhas retirados de uma pilha de entulho que se via a uma esquina. Cato e Macro mantinham os escudos
bem elevados e inclinavam-se, de forma a proteger os rapazes com os seus próprios corpos. Cato tinha embainhado a espada e mantinha a mão direita sobre o ombro de
Nero, de forma a manterem o mesmo passo. Sentia o miúdo a tremer sob as pregas da toga.
- Está tudo bem - disse-lhe Cato, em tom reconfortante. - Depressa estaremos de volta ao palácio.
Nero não respondeu imediatamente, e depois fê-lo em voz baixa.
- Tenho medo.
- Eu e o meu amigo já passámos por situações bem mais complicadas.
Nero olhou-o.
- Mas eu não.
- Então considere esta como uma boa ocasião para mostrar bravura. É bom aprender enquanto somos jovens.
Nero anuiu, embora com ar pouco convencido, e respirou fundo para se acalmar, enquanto iam avançando devagar, À sua volta, os germanos irromperam num cântico de
guerra na sua língua áspera, e começaram a bater com os punhos das espadas no interior dos escudos. Cato endireitou-se por momentos e reparou que já não faltavam
mais de uns cinquenta passos até que a rua desembocasse no espaço aberto em frente ao templo de Minerva, no limiar do fórum.
- Falta pouco para nos safarmos desta, rapazes - gritou Macro, à laia de encorajamento.
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Ouviu-se um grito vindo de cima, e no instante seguinte uma telha veio estilhaçar-se no solo ao lado de Macro. Britânico lançou um grito de surpresa e dor quando
um fragmento projetado lhe feriu a mão. Macro aproximou-se mais do rapaz e gritou um aviso:
- Alguns desses cabrões estão nos telhados. Cubram as cabeças!
Mais telhas choveram sobre a formação, e ao arriscar uma espreitadela, Cato avistou um vulto a debruçar-se numa janela, a apontar e lançar um projétil à cabeça de
um dos germanos. Atingiu-lhe o capacete, fazendo a cabeça dobrar-se para trás, e o homem tombou para o lado. De imediato dois dos seus camaradas embainharam as espadas
e pegaram nele por baixo dos braços, arrastando-o e mantendo-se na formação. Os projéteis vinham agora de todas as direções, e os soldados responderam instintivamente
com um acelerar do passo, o que fez com que os da frente começassem a adiantar-se aos restantes, numa tentativa de escapar ao perigo vindo de cima.
- Mais devagar! - gritou Tigelino. - Mantenham-se juntos, porra!
Abriu caminho até à frente da formação, passando pelo centurião Lurco, e usou a folha da espada para bater nos escudos dos homens que tentavam acelerar o passo.
- Ninguém se adianta! Eu é que marco o passo, e vocês seguem-no!
Quando chegaram ao fim da rua, já mais dois dos escravos que seguiam quase desprotegidos na retaguarda da coluna tinham sido atingidos. Um deles fora morto e jazia
imóvel no meio da rua. O outro vira o pé ser esmagado, mas continuava a avançar, e embora tivesse saído da formação, tentava desesperadamente acompanhá-la. Porém,
a turba depressa o alcançou e não lhe mostrou qualquer piedade, embora o homem fosse apenas um escravo e nenhuma responsabilidade tivesse na situação social. Os
gritos dele cortaram o ar e gelaram o sangue a Cato, até que foram silenciados e a mole humana continuou o seu avanço.
Quando o grupo chegou ao recinto do templo, tornou-se finalmente visível toda a amplitude do motim. Várias das bancas instaladas no fórum, junto ao Senado, ardiam,
e o vento fazia rodopiar as chamas e o fumo, de tal forma que o incêndio parecia um animal acorrentado que se debatia sem conseguir libertar-se. A avenida que levava
ao fórum estava juncada de corpos, alguns ainda vivos, e os seus gritos faziam um coro horrível. Cato reparou que alguns usavam o uniforme das coortes urbanas. Muitas
outras bancas do mercado tinham sido destruídas, e só os restos espalhados em redor indicavam qual o ramo de negócio a que o respetivo proprietário se tinha dedicado.
Um punhado de pedintes e miúdos de rua saqueavam corpos e detritos, tentando encontrar qualquer coisa minimamente valiosa. Quando avistaram os grupos de guerreiros
que rodeavam a comitiva imperial,
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a maior parte dos saqueadores de ocasião retiraram para a segurança das ruelas da Subura.
Assim que se viu em espaço aberto, o optio aumentou o ritmo de marcha da formação, e a turba voltou a dar-lhes espaço, mantendo-se longe das pontas das espadas.
Mais à frente, no coração do fórum, o clamor do motim era muito mais elevado, já que era amplificado e ecoava nas paredes altaneiras dos templos e palácios que ocupavam
muito do espaço. Cato percebeu que Nero continuava horrorizado pelos sons e sinais que o rodeavam, mas ainda tinham de atravessar o fórum e alcançar a entrada do
palácio, e isso desde que a multidão não tivesse já forçado a entrada e saqueado todo o complexo. Com alguma sorte, encontrariam alguns elementos das coortes urbanas
que se poderiam juntar ao grupo que protegia o Imperador e auxiliar a Guarda a conduzi-lo até local seguro com a família e conselheiros.
A avenida estreitava ao passar entre o Mercado de César e o Templo de Jano, seguindo depois ao longo de uma área colunada até ao centro do fórum.
- Falta pouco! - gritou o optio aos outros. - Mantenham-se juntos e de olhos bem abertos.
As paredes aproximaram-se e os últimos dos rebeldes que ainda os atormentavam ficaram para trás, o que fez diminuir a quantidade de projéteis que caíam sobre a coluna.
Depois de todo o estrépito dos impactos em escudos e armaduras, o som das botas dos soldados a rasparem o chão pareceu assumir um tom inusitadamente elevado. Cato
reparou que quase todos os germanos estavam com a respiração pesada, e o Imperador balbuciava qualquer coisa incompreensível enquanto se arrastava ao lado da esposa,
as suas fracas pernas a darem-lhe o aspeto de uma aranha ensopada que tentava afastar-se de um charco.
O ataque surgiu quando alcançaram o fim das colunas.
Um urro coletivo marcou o momento em que um grupo numeroso de homens irrompeu de entre as colunas e se lançou contra os soldados. Ao contrário dos normais revoltosos
de rua, estes estavam armados com uma panóplia de lanças, machados, espadas, cajados e adagas, e bem preparados para o combate. Penetraram o cordão de segurança
pelos dois lados, tentando afastar os escudos e atingir os soldados. Cato puxou Nero para mais perto do escudo.
- Fique junto a mim - disse ao ouvido do rapaz. - Aconteça o que acontecer!
Olhou em redor e reparou que os assaltantes se concentravam na vanguarda e na retaguarda da coluna, nas posições ocupadas pelos pretorianos. Até ao momento, os germanos
ainda não tinham sido atacados, pelo que aguardavam, expectantes, prontos para a luta, de escudos aperrados e longas
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espadas preparadas. Nesse momento Cato avistou uma nova vaga de homens a correr pelas sombras no interior do templo. Estavam equipados com espadas, e à sua frente
vinha a já familiar carantonha de Céstio. Tinha uma expressão determinada de hostilidade enquanto saltava para o nível da estreita avenida e se dirigia diretamente
para a família imperial. Os homens de Céstio formaram uma espécie de cunha e lançaram-se contra os germanos. Cato viu Céstio a esquivar-se facilmente a um desajeitado
golpe, colocar a mão em torno da traqueia do homem e esmagá-la com um movimento aparentemente fácil. Atirou o oponente para o lado, deixando-o aflito e a tentar
respirar, e olhou em redor até avistar os dois rapazes. Macro estava mais perto e preparou-se para enfrentar a ameaça, enquanto tentava proteger Britânico.
Céstio soltou um rugido selvagem e avançou, derrubando outro germano. A espada de Macro refulgiu enquanto subia para lhe interromper o caminho. No último momento
Céstio aparou o golpe com a sua lâmina, fazendo-a retinir, e de imediato aplicou um tremendo golpe no veterano, fazendo-o mesmo cair de costas no chão. Britânico
ficou só e desamparado, mas Céstio mal lhe dedicou um segundo de atenção; afastou-o sem cerimónia e correu na direção de Cato de dentes arreganhados.
Não havia tempo para pensar; Cato pôs um joelho no chão, forçando Nero a agachar-se, e pôs o escudo em ângulo. Na face de Céstio surgiu uma expressão de surpresa,
e o gigante não conseguiu evitar o tropeção que o fez desabar em cima do escudo, quase esmagando os que se protegiam por baixo dele. Cato sentiu o ar quente expelido
dos pulmões do outro. Aplicou toda a sua força no escudo, e Céstio acabou por rolar para o lado, caindo de joelhos, mas com a espada bem a postos. Com a mão livre,
agarrou a orla do escudo de Cato e puxou-a num repente, revelando Nero ainda aturdido e sem fôlego. Os olhos do homem encheram-se da alegria do triunfo enquanto
fazia descer a ponta da espada.
- Não! - gritou Cato, enquanto se atirava para cobrir o corpo do rapaz com o seu. A manga da túnica apanhou a ponta da lâmina e o tecido rasgou-se com toda a facilidade,
expondo o músculo que sofreu o golpe, semelhante a uma queimadura.
- Filho da puta! - rugiu Céstio, puxando o braço de novo atrás. Mas nessa altura apercebeu-se da aproximação de Macro, que no momento seguinte o atingiu em pleno
rosto com a bossa do escudo. Tombou enquanto soltava um grunhido, e deixou cair a espada. Estremeceu por um instante e depois ficou imóvel, com a respiração pesada.
- Miúdo, estás bem? - indagou Macro, ansioso, enquanto se ajoelhava ao lado do amigo. Viu o rasgão da túnica e a mancha vermelha que se espalhava sobre a pele nua
do braço e ombro do jovem.
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- Nero? - Cato revirou-se para procurar o filho adotivo do Imperador que estava a seu cargo, e viu o rapaz a tentar sentar-se, felizmente sem qualquer ferida. O
alívio que sentiu durou apenas um momento, e foi substituído pela agonia dilacerante da ferida que sofrera.
- Apanharam o Céstio! - gritou uma voz ali perto. - O Céstio caiu! Recuem!
Tão depressa como tinham lançado o ataque, os homens retiraram, afastando-se dos soldados e correndo pelas colunas, fazendo o som das botas ecoar nas paredes do
templo. Macro auxiliou Cato a levantar-se. O assalto súbito tinha sido letal. Vários pretorianos e guardas germanos tinham sido mortos, bem como muitos dos atacantes.
O Imperador engolia em seco, aterrado, e os olhos de Agripina ainda estavam arregalados de medo, mas nem eles nem os filhos tinham sido atingidos.
- Peguem nos feridos! - ordenou Tigelino. - Fechem a formação!
- Procurou com os olhos o centurião e avistou Lurco a levantar-se do chão, com uma expressão atarantada no rosto. - Senhor, devíamos prosseguir. E depressa, para
o caso de eles regressarem.
- Sim - anuiu Lurco. - Claro. - O centurião limpou a garganta. - A Sexta Centúria vai levar isto até ao fim!
A coluna voltou a formar a parede de escudos em redor dos feridos recentes, dos escravos sobreviventes e dos civis, e prosseguiu pelo fórum. Macro pegou na espada
de Cato e recolocou-a na bainha, e depois afastou a túnica rasgada para examinar a ferida.
- Estás a sangrar muito, mas parece-me uma ferida superficial. Dolorosa, mas hás de recuperar.
- E quando é que se tornou na porra de um médico? - ripostou Cato com os dentes cerrados enquanto reajustava a pega no escudo e o levantava para continuar a proteger
Nero. Mas lembrou-se de alguma coisa e voltou a virar-se para Macro.
- E o Céstio?
- O que tem?
- Devíamos trazê-lo connosco.
Macro riu.
- Queres tu dizer que devíamos era ter-lhe limpo o sarampo.
- Aquilo foi uma emboscada. - Cato baixou o tom de voz, de modo a que só Macro o pudesse escutar. - Há aqui mais do que as aparências indicam. Temos de o interrogar.
Macro olhou em redor. Vários homens tinham emergido de entre as colunas para recolher os feridos e mortos resultantes da breve escaramuça. Céstio tinha desaparecido.
- Tarde de mais.
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Cato raciocinou rapidamente. Podia tentar convencer o centurião Lurco a voltar atrás para capturar Céstio, antes que o homem fosse escondido pelos seus companheiros,
mas Lurco estava ainda abalado e só queria chegar a um lugar seguro o mais depressa possível. A única forma de o impedir de seguir esse curso seria expor a sua verdadeira
identidade e usar a sua patente superior para desautorizar o outro oficial. Narciso teria de confirmar a sua identidade. E quando isso ficasse finalmente esclarecido,
seria já tarde de mais para enviar homens à caça de Céstio.
- O que é que esse Céstio tem que o torna tão importante? - quis saber Nero
- Nada.
- Nada? - protestou Nero. - Esse homem tentou matar-me.
Cato encarou-o por momentos, mas desviou o olhar, concentrando-se em manter-se a par dos outros soldados. Todo o fórum estava repleto de indícios da severidade do
motim. Dezenas de corpos abandonados pelo chão. Portas de templos forçadas e provas do saque espalhadas pelos degraus das entradas. Carros de mão revirados ou com
a carga roubada. À direita, o fogo no Mercado de César continuava a lavrar, mas havia um grupo de bombeiros no local a tentar combatê-lo, com uma linha de homens
a passar baldes de água desde uma fonte pública. Noutras partes do fórum, os homens das coortes urbanas já quase tinham controlado a situação, evacuando as áreas,
embora ainda decorressem escaramuças, nomeadamente com grupos de arruaceiros que apedrejavam os soldados na zona do Templo de Vénus, a leste. A tensão na comitiva
imperial começou a diminuir lentamente, quando começaram a aperceber-se de que a crise tinha sido ultrapassada e estavam agora a salvo.
Uma centúria de uma das coortes urbanas guardava a entrada do palácio e assim que avistaram o Imperador, deram passagem ao grupo. A coluna entrou para um pequeno
átrio, onde Lurco deu ordem de dispersar aos seus homens. Tanto os pretorianos como os germanos estavam abalados pelos acontecimentos, e os homens descansaram apoiados
nas lanças e escudos enquanto recuperavam o fôlego. Uma vez que estavam a salvo, a hierarquia normal voltava a estabelecer-se. Os escravos sobreviventes foram enviados
para as suas acomodações, e Cláudio recuperou a compostura ao lado da esposa, chamando os dois rapazes para junto de si. Britânico agarrou o braço do pai. Narciso
apressou-se a juntar-se ao Imperador.
- Sire, foi atingido? - indagou, ansioso.
Cláudio abanou a cabeça.
- N-não. Estou bem.
- Júpiter seja louvado! - Narciso alegrou-se, antes de se virar para a Imperatriz. - Majestade?
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- Estou bem. - Agripina sorriu friamente.
Narciso virou-se para Britânico e avaliou-o rapidamente, para se certificar de que o rapaz não tinha sido ferido, para lá do corte na mão. Depois avistou Nero e
aproximou-se com ar angustiado do rapaz, ainda ao lado de Cato.
- Vi um homem a atacar-te. Agradeço aos deuses por teres sido poupado.
Nero acenou na direção de Cato.
- Este homem salvou-me a vida.
Narciso olhou para cima e enfrentou o olhar de Cato sem dar o menor sinal de reconhecimento.
- Muito bem, tratarei de fazer com que ele seja recompensado.
- Faça isso, sim - disse Macro em surdina.
Nero virou-se para Cato e olhou-o nos olhos.
- Soldado, estou em dívida para contigo. Como te chamas?
- Tito Ovídio Capito, senhor.
O olhar de Nero dirigiu-se para o rasgão ensopado em sangue no ombro da túnica de Cato.
- Capito, vai tratar da tua ferida. Não esquecerei este gesto. Nunca me esqueço de uma cara. Um dia, pagar-te-ei o favor. - Baixou o tom de voz, de forma a que só
Cato o pudesse escutar. - Um dia, serei Imperador. Se alguma vez precisares do meu auxílio, tê-lo-ás. Dou-te a mais sagrada das promessas.
Pegou na mão de Cato e apertou-a com firmeza, antes de a libertar e se virar para se juntar à mãe e ao Imperador. Narciso ficou a vê-lo afastar-se antes de se virar
para lançar a Cato um olhar de fúria gelada e depois se aproximar também do Imperador para lhe oferecer mais umas palavras de conforto.
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Tinham passado quatro dias; Cato estava sentado na cama quando Macro e os outros regressaram de uma patrulha pela cidade. Depois do motim, o Imperador ordenara que
os pretorianos se juntassem nas ruas aos soldados das coortes urbanas, deixando o palácio sob a proteção dos mercenários germanos. Havia postos de controlo em todos
os cruzamentos principais, e até os mais insignificantes ajuntamentos de homens num qualquer local público eram rapidamente dispersos. Tinham também sido oferecidas
recompensas pelos cabecilhas do motim, e as suas descrições decoravam as paredes das ruas próximas ao fórum. Até ali apenas tinham sido detidos alguns agitadores,
cujo destino rapidamente fora decidido: as suas cabeças estavam montadas em estacas junto à entrada do palácio imperial. Céstio ainda andava a monte, apesar de estar
de pé a oferta de uma pequena fortuna a quem levasse as autoridades ao local onde se escondia. Mas o homem tinha uma tal reputação que nenhum dos moradores da Subura
se atrevia sequer a admitir que alguma vez ouvira falar dele, sempre que uma patrulha os interrogava a esse respeito.
A ferida de Cato fora limpa e suturada por um dos médicos do hospital do quartel, que lhe tinha dado dispensa de serviço por dez dias, de forma a permitir que a
lesão sarasse de forma adequada. Cato tinha-se aventurado a sair do quartel apenas em duas ocasiões, para ir até à casa segura e deixar uma mensagem para Sétimo,
a solicitar uma reunião para apresentar um relatório, e no dia seguinte para ver se havia resposta. Não havia, pelo que decidira permanecer no campo nos dias seguintes
e só depois voltar a tentar, para evitar que as suas excursões despertassem alguma curiosidade indesejada.
- Que tal vai hoje o buraco no braço? - indagou Macro, enquanto encostava o escudo à parede junto à porta e começava a tirar o cinturão e a armadura.
- Rígido, mas a dor é suportável, obrigado.
- Tal como eu disse, uma ferida superficial. Pouco mais do que um arranhão. - Macro debateu-se enquanto tirava a cota de malha; deixou-a no chão junto ao escudo
antes de se deixar cair sobre a cama. - Mas sempre dá algum jeito para te escapares ao serviço.
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- Sim, serviu o seu propósito. - Cato sorriu, mas depressa a sua expressão voltou a tornar-se séria. - Como vão as coisas pela cidade?
- Calmas. O Imperador deu ordens para reprimir toda e qualquer manifestação. E também solicitou a todas as cidades e povoações num raio de cento e cinquenta quilómetros
que enviassem mantimentos para Roma. Os celeiros da Guarda Pretoriana vão ser usados para complementar o pouco que resta nos armazéns imperiais. O que quer dizer
que, a partir de amanhã, vamos passar a receber meias-rações. Não é a melhor das ideias.
- Macro abanou a cabeça. - Se vamos ter de manter a ordem nas ruas, era bom que tivéssemos força para isso. Por outro lado, se a comida servir para acalmar a população
por mais uns dias, então acabará por cumprir o mesmo propósito. O que me espanta é como é que o Cláudio nos deixou cair neste estado. Devia saber que a situação
no Egito ia perturbar o fornecimento por uns tempos. Portanto, porque é que não se preveniu para tempos complicados?
- Talvez o tenha tentado, mas alguém lhe tenha sabotado os planos.
Macro dobrou o pescoço
- O que é que estás a sugerir?
- Não estou ainda certo. - Cato levou a mão esquerda até à ligadura que envolvia a ferida, sentindo com os dedos os altos correspondentes aos pontos que tinha levado
para fechar o rasgão. - Tem vigiado o centurião Lurco?
- Sim. Um imprestável monte de merda, como nunca vi outro. Francamente, Cato, se aquele tipo está envolvido numa conspiração, atrevo-me a dizer que o Imperador nada
tem a recear.
- Também é essa a minha impressão. - Cato anuiu, pensativo, antes de prosseguir. - Mas não deixa de ser interessante ver como as coisas se conjugam, não acha? O
roubo da prata, a descoberta de uma conspiração pelo Narciso, a revolta, e no mesmo dia uma emboscada.
- Não duvido de que pensas que há uma relação entre todos esses factos - admitiu Macro, com ar cansado.
- Não tenho a certeza, mas é pelo menos muito interessante.
Macro suspirou.
- Para esse teu cérebro, sim. Para nós, isto é, todos os outros, é apenas um sinal de como a merda se vai empilhando. Ou isso, ou os deuses, sabe-se lá porquê, resolveram
dar-nos cabo do juízo. De uma forma ou de outra, parece-me que andas a caçar fantoches.
Cato manteve o silêncio por momentos, mas depois respondeu.
- Se calhar, são mas é os fantoches que nos andam a caçar.
- O que é que isso quer dizer?
Cato tentou explicar os pensamentos que o assombravam.
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- Passa-se qualquer coisa. Sinto-o. Há demasiadas peças em movimento, não pode ser tudo uma coincidência. Há um sentido nisto. Ou haverá, eu é que não consigo ainda
abarcá-lo. Por agora, só posso especular, mas estou certo de que existe realmente uma conspiração.
- Isso pouco nos ajuda. - Macro deixou-se escorregar sobre o colchão e dobrou as pernas.-A verdade é que tudo isto pode não passar da confusão habitual. O palácio
fez asneira quanto ao fornecimento de cereais, e alguns sacanas gananciosos deitaram a unha à prata. Quanto à conspiração de que o Narciso tanto fala, ora, quando
foi que os Libertadores não estiveram ocupados a preparar a eliminação do Imperador e o regresso da República? Cato, meu rapaz, a verdade é que andamos numa caça
aos gambozinos.
Ao escutar o seu verdadeiro nome, Cato soltou um aviso ríspido.
- Cautela com isso!
- Estamos sozinhos. O que importa?
- Importa, porque o disse sem pensar.
- Tal e qual como tu fizeste na estalagem, não foi?
Cato corou, embaraçado.
- Precisamente. Não podemos cometer outro erro desses antes de isto estar resolvido.
- Quem me dera que fosse já hoje - comentou Macro, enfadado.
Foram interrompidos pelo som de passos que se aproximavam, e Tigelino e Fúscio entraram no quarto e começaram a tirar o equipamento.
- Então, Capito, ainda a mandriar? - indagou Tigelino.
- Alguma vez, optio? - Cato obrigou-se a sorrir enquanto se esticava sobre o colchão. - Isto é que é vida. Aqui a descansar, enquanto vocês andam para cima e para
baixo pelas ruas da Subura, enterrados na merda até aos tornozelos.
- É uma maravilha, sim. - Tigelino pôs as mãos atrás das costas e massajou o fundo da espinha. - Não ajuda nada que o centurião esteja feito numa pilha de nervos.
Acha que cada pessoa que passa por nós na rua se prepara para nos atacar. Deteve e interrogou praticamente cada tipo com quem nos cruzámos, e aproveitou para molhar
a sopa em cada ocasião, sempre que recebia uma resposta que pouco lhe agradava. O imbecil anda doido, e vai acabar por provocar ele próprio outra revolta, se não
tem cautela. - Fez uma pausa. - Aquele tipo nunca devia ter sido nomeado para a Guarda. Um caso clássico da estupidez que é fazer de qualquer um centurião, por nomeação
pura e simples. Um centurião tem de ter experiência. E coragem. E isso só se consegue da forma difícil, com muito trabalho e sangue derramado. Não está certo que
aquele tipo seja o nosso centurião. Devia ser outra pessoa.
- Como um certo optio? - sugeriu Cato.
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- E porque não? Já fiz por isso. - O optio deitou um olhar gélido a Cato. - Capito, deixa-me dizer-te que até estás nas minhas boas graças. Não estragues tudo.
- Porque é que estou tão bem visto?
- Pelo que fizeste para salvar o rapaz. Vi-te atirares-te para o caminho daquela espada. Mostraste-te um verdadeiro soldado. É para aquilo precisamente que nós,
pretorianos, aqui estamos. Portanto, quanto a mim, és bom tipo. E ficaste bem visto pela Imperatriz e pelo rapaz. - Sorriu. - Um dia isso poderá ser-te mesmo muito
útil.
-Oh?
- Evidentemente. Pensa bem. O Cláudio não vai viver para sempre. E a mim parece-me que o jovem Nero tem boas possibilidades de ser o sucessor, e está em dívida para
contigo. Joga bem as tuas cartas e vais ver que sais disto muito bem colocado. Entretanto, podes lembrar-me de te pagar um copo um dia destes. Bom, agora tenho de
escrever um relatório para o imprestável do Lurco.
Tigelino deixou o quarto, e os outros ficaram a ouvir o som das botas a afastar-se. Fúscio olhou para Macro e arregalou os olhos.
- Foi a primeira vez que o ouvi a oferecer um copo a alguém. Talvez o velho Tigelino tenha um coração, afinal.
- Nesse caso nunca será um bom centurião - comentou Macro.
- A sério? - Cato esforçou-se por conter um sorriso. - E o que sabe você disso, Cálido?
- Ouve o que te digo: nas legiões vi muitos a chegar e a partir. Os melhores são duros como pedras, e não têm nas suas almas um único grão de piedade. É claro que
depois também há os outros...
- Como o Lurco? - sugeriu Fúscio, sem qualquer entusiasmo.
Macro anuiu.
- Um ou outro. Mas esses não duram. Depressa morrem. Ou isso, ou são chutados para prefeitos, para não se meterem em confusões. Que tu saibas, o Lurco tem alguns
amigos influentes?
O jovem guarda espreitou ansiosamente na direção da porta, como se suspeitasse que o centurião ali estivesse à escuta. Inclinou-se para os seus dois camaradas e
sussurrou:
- Ouvi-o a gabar-se de que a Imperatriz se tinha mostrado interessada...
- E porque não? É um rapaz jeitoso. - Macro lançou um olhar significativo a Cato. - Seja como for, ela tem a fama e o proveito, como quase toda a gente sabe.
- Não desde que se casou com o Cláudio. Não me parece que lhe agrade a ideia de acabar como a Messalina. - Fúscio fez um gesto
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inequívoco, passando com o dedo pela garganta. - Se é infiel, tem de tomar muito cuidado.
Uma imagem da Imperatriz nos braços de Palias passou brevemente pela cabeça de Macro. Agripina arriscava, sim, mas faltava saber de que forma agia para encobrir
os rastos. Quando a tinha escoltado durante a revolta, Macro tinha o elmo a obscurecer-lhe o rosto, e nem ela nem Palias tinham dado o mais pequeno sinal de o terem
reconhecido. Parecia estar a salvo, pelo menos até ali.
Ouviu-se um ligeiro toque na madeira da porta e um dos escribas do quartel-general espreitou para o interior do compartimento.
- O guarda Capito está aqui?
- Sou eu - disse Cato, enquanto levantava a mão.
- O centurião Sínio quer ver-te.
- Agora?
O outro cerrou os lábios.
- Quando um oficial não diz nada, quer geralmente dizer que é imediatamente. Se fosse a ti, punha-me a mexer.
- Obrigado. - Cato levantou-se, calçou as botas à pressa e pôs o cinturão. Tinha começado a chover, pelo que pegou no manto e saiu em corrida ligeira, para alcançar
o escriba.
- O Sínio disse qual era o motivo para esta convocatória?
- Não. E antes que perguntes, eu também não quis saber.
Cato deitou uma olhadela ao homem, um soldado bem nutrido com uma face redonda, que fazia lembrar um pudim.
- Lá no quartel-general são todos tão prestáveis como tu?
- Oh, nem pensar nisso - respondeu o homem com azedume. - Quase todos são uns grandessíssimos sacanas.
- Que sorte a minha por te terem mandado a ti, então.
O outro lá olhou para Cato e encolheu os ombros.
- Desculpa lá, pá. Estou fodido com esta história de nos meterem a meia-ração.
- Isso vejo eu - respondeu Cato, deitando uma olhadela ao ventre rotundo do outro. - Alguém faz asneira, e quem está nas fileiras é que se lixa, não é?
- Tu o dizes, camarada. Nos últimos meses o Imperador parece que anda à nora. Cá para mim, anda a passar demasiado tempo enrolado com aquela sobrinha dele. Não está
certo, não é decente, e só nos vai trazer dissabores. Uma pena que o filho dela ainda seja tão novo. O Nero é um miúdo promissor, na minha opinião. E tem uma certa
predileção pela Guarda Pretoriana. Mais uns aninhos e há de tornar-se um belo Imperador.
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- Partindo do princípio de que não é o Britânico a ficar com o lugar.
O escrivão fungou com desdém.
- O Cláudio estará sepultado muito antes de o Britânico ter idade para tomar conta das coisas.
- Nesse caso, não seria má ideia se alguém acelerasse um bocadinho as coisas, digo eu.
O outro olhou-o com espanto.
- Talvez concorde contigo, camarada, e haverá muitos neste quartel que o fariam também, mas se calhar não é lá grande ideia andar por aí a gritá-lo aos sete ventos...
- Só estava a pensar em voz alta.
- E está muito bem, mas a verdade é que as palavras têm o estranho hábito de provocar reações. - O homem piscou-lhe um olho. - Mudemos de assunto.
Prosseguiram a caminho do edifício do comando em silêncio, e o escriba levou-o até à porta do gabinete do centurião Sínio antes de o deixar e regressar aos seus
afazeres. Cato não fazia ideia da razão para ter sido chamado, e pensou que talvez tivesse a ver com a forma como protegera Nero havia poucos dias. Talvez houvesse
alguma espécie de recompensa. Avançou até à porta, fez uma pausa e bateu.
- Entre!
Cato abriu a porta e entrou. Sínio estava sentado num banco ao lado do pequeno braseiro que aquecia o gabinete. Olhou para Cato e indicou a porta.
- Fecha-a e aproxima-te.
- Sim, senhor.
Cato fez o que lhe fora indicado e atravessou a sala para se colocar em sentido à frente do centurião. Deu-se uma pausa até que aclarou a garganta.
- Mandou-me chamar, senhor.
- Sim, mandei. - Sínio observou-o em silêncio. - Capito, és um tipo interessante. O relatório do centurião Lurco sobre os acontecimentos do outro dia revelou-se
uma leitura curiosa. Além de salvares o enteado do Imperador, ao que parece foste tu quem teve a ideia de deixar as liteiras para trás. Quer dizer, ele dá-te crédito
por isso, o resto reclama-o para sí. Mas já falei com o teu optio, e dei um desconto à bazófia do Lurco. Tu e o Cálido são um par impressionante. Ao que parece,
são capazes de manter o sangue-frio mesmo em situações muito complicadas.
- Senhor, ao longo da nossa carreira nas legiões, já tivemos a nossa dose de escaramuças e batalhas encarniçadas.
- Imagino que sim. As vossas ações livraram o Imperador e o seu
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séquito de uma situação muito perigosa. Revelaram também uma enorme lealdade. Devem gostar muito do Imperador.
- Limitei-me a fazer aquilo para que fui treinado.
- Talvez sim, mas a mim parece-me que vocês os dois têm estofo de oficiais subalternos, portanto fico cada vez mais assombrado pelo facto de os dois não passarem
de legionários comuns antes de serem transferidos para a Guarda Pretoriana. E pergunto-me a que se deverá tal facto. Podes elucidar-me?
Cato sentiu uma ponta de ansiedade; pisava terreno escorregadio.
- Senhor, não faço ideia. Calculo que por algum motivo não éramos bem vistos pelas chefias.
- Explica lá isso.
- Senhor, não posso acrescentar muito ao que já disse quando falámos anteriormente. Eu e o Cálido nunca percebemos o interesse de tentar conquistar a Britânia. Não
escondemos aquilo que pensávamos. Tal como muitos outros o fizeram.
- Sei-o bem. Ouvi dizer que houve um ligeiro motim em Gesoríaco antes de os soldados embarcarem na frota invasora.
- Correto, senhor.
- E tu não tiveste nada a ver com isso, evidentemente.
Cato hesitou antes de responder. Via perfeitamente para onde o centurião queria levar a discussão, e percebeu que era também a ocasião de, por sua vez, testar Sínio.
- Senhor, não discordava dos que tomaram o comando da revolta. Só acho que eles não tomaram as medidas corretas.
- Estou a ver. Não tomaram as medidas corretas. Se tivesses tido oportunidade, portanto, terias seguido outro caminho.
- Senhor, não tive nada a ver com isso. Nem o Cálido. Mas, se me pergunta, sim, se fosse eu a comandar o motim, teria sido impiedoso. Os oficiais superiores tinham
de ter sido eliminados. Foi um erro tê-los deixado em liberdade. Foram eles que organizaram a detenção e execução dos cabecilhas. Tudo terminou como eu sabia que
ia terminar.
- E desde então, os teus superiores têm mostrado alguma relutância em vos promover, a ti e ao Cálido.
- Assim parece, senhor.
- Um tanto injusto, uma vez que não participaram no motim. Homens do vosso calibre merecem melhor sorte. Merecem, antes de mais, melhores líderes, e isso começa
lá no topo.
- Senhor?
Fez-se de novo silêncio, apenas interrompido pelo crepitar das chamas no braseiro. Por fim, o centurião retomou o discurso, em voz baixa.
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- Capito, sabes perfeitamente do que estou a falar, embora sejas suficientemente esperto para não o admitires. Quando um líder falha perante os seus seguidores,
ou melhor, quando uma sucessão de líderes se mostrou incapaz de nos representar condignamente, é tempo para qualquer homem razoável - qualquer patriota - perguntar
se não será necessária uma mudança. Não concordas?
Cato nada disse, mantendo o olhar fixo no oficial. Sínio deixou que o silêncio se prolongasse de novo.
- Muito bem. Serei então eu a fazer todo o discurso. Não te agrada o facto de nunca teres sido promovido. Ressentes ter-te sido ordenado que participasses numa campanha
sem sentido. Condenas os que tiveram a possibilidade de inverter o rumo desta política mas nunca o fizeram, apenas por falta de firmeza. Queres mudanças. Queres
aquilo a que tens direito. Não estou certo?
Cato manteve-se imóvel, limitando-se a um quase impercetível sinal de anuência.
Sínio sorriu.
- Muito bem. Deixa-me então fazer-te uma proposta. Há um grupo de indivíduos que nutre os mesmos sentimentos que tu. Eu sou um deles. A diferença entre nós é que
eu estou em posição de levar a cabo a mudança que todos almejamos. Se eu e os meus associados obtivermos sucesso, haverá recompensas pessoais, para lá da satisfação
de termos prestado um valioso serviço a Roma. E porque haveria de ser de outro modo? O risco é nosso, e por ele devemos ser compensados. Se eu te oferecesse a possibilidade
de te juntares a este grupo, o que dirias?
- Senhor, diria que seria uma atitude digna de um tolo. Porquê confiar em mim? - Cato fez uma pausa antes de adiantar outro comentário.
- Eu até podia ser um espião.
- É bem verdade. E é por isso que te tenho mantido, a ti e ao teu amigo, debaixo de cuidada observação por um dos meus homens, desde que chegaram a este aquartelamento.
Se vocês fossem espiões, eu já o saberia.
Cato sentiu o coração dar um pulo. Tinha ido duas vezes à casa secreta, e Sínio parecia nada saber sobre isso. Tinha tomado precauções para se assegurar de que não
era seguido, mas um homem habituado a esse tipo de trabalho não teria sido facilmente despistado. Voltou a guardar silêncio, para dar a impressão de que estava a
pesar cuidadosamente a oferta do centurião.
- Senhor, como posso eu ter a certeza que não é um agente imperial? Pode muito bem estar apenas a testar a minha lealdade.
- E porque faria eu isso? - Sínio sorriu. - Achas mesmo que o palácio
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imperial tem o tempo ou a vontade para testar a lealdade de cada novo recruta da Guarda Pretoriana, e de passar tanto tempo a fazê-lo?
Cato cerrou os lábios.
- Imagino que não.
- Pois não. Tem as mãos cheias com assuntos bastante mais importantes, calculo eu. Como o da penúria de alimentos. Bem, Capito, qual é então a tua resposta à minha
oferta?
- Bom, em primeiro lugar, foram mencionadas recompensas.
- Sim.
- Quero uma promoção, para mim e para o Cálido.
Os olhos de Sínio franziram-se muito levemente.
- O Cálido é um assunto separado.
- Não, senhor. Ele pensa como eu em quase todos os temas. Confiar-lhe-ia a minha vida sem hesitar. - Era fácil fazer tal afirmação, uma vez que era a verdade nua
e crua, e a sinceridade com que foi proferida teve o efeito pretendido no centurião.
- Muito bem, a minha oferta aplica-se então aos dois.
- Obrigado, senhor. Também quero dinheiro. Ouro. Uma boa quantidade dele.
- Isso não te posso oferecer. Mas posso dar-te prata. Uma verdadeira fortuna, aliás. - Sínio virou-se e apontou para a arca onde arquivava os documentos, ao lado
da sua secretária. - Abre isso. Há um fundo falso, com uma mola deste lado. Lá dentro está uma caixa. Trá-la aqui.
Cato fez o que lhe tinha sido indicado. Na arca havia rolos, algumas folhas soltas de papiros ainda em branco, aparos, frascos de tinta, e várias tábuas enceradas.
Afastou-as para o lado e encontrou a mola, pintada de forma a passar despercebida contra o fundo escuro da madeira. A tampa levantou-se, expondo uma cavidade com
o dobro do tamanho de um prato de messe. Estava quase cheia com a caixa que Sínio descrevera. Cato pegou-lhe e levantou-a com cuidado, algo surpreendido com o peso.
Atravessou de novo a sala e passou-a ao centurião. Sínio colocou-a ao colo, acionou a lingueta e levantou a tampa. O conteúdo estava na sombra, e só ao fim de alguns
segundos é que o brilho alaranjado das chamas no braseiro revelou, através dos seus reflexos, o esplendor da prata em centenas de moedas reluzentes, acabadas de
cunhar.
- Há aqui um milhar de denários, Capito. São teus se te juntares a nós, e há mais no sítio de onde estes vieram.
Cato contemplou as moedas. Eram seguramente parte da fortuna roubada ao comboio, meses antes. Obrigou-se a sorrir, e esticou a mão.
- Posso?
- Claro.
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Cato pegou numa moeda ao acaso e aproximou-a da vista, para a inspecionar.
- São genuínas - afiançou Sínio, e soltou uma risada. - A não ser que o Imperador tenha começado a roubar na prata para desvalorizar a moeda.
Com um aceno de satisfação, Cato repôs a moeda na caixa e deitou ao oficial um olhar inquisitivo.
- Se eu - se nós - concordarmos em nos juntarmos a si e aos seus amigos, esse dinheiro passará a ser meu? Tem de haver aqui qualquer truque.
- Não há truque. Há apenas um teste. Faz o que te vai ser pedido, e a prata é tua.
- Que tipo de teste? - inquiriu Cato, desconfiado.
- O tipo que afasta qualquer sombra de dúvidas acerca da tua lealdade ao nosso grupo, e que ao mesmo tempo contribui para o avanço dos nossos planos. - Sínio fechou
a tampa da caixa e firmou o olhar em Cato. - É muito simples. Quero que liquides o centurião Lurco. Ele tem de desaparecer sem deixar rasto. Nos próximos dez dias.
Faz isso, e serás acolhido de braços abertos pelos meus amigos. Falha, e deixaremos de confiar nas tuas capacidades. Se nem sequer o tentares, seremos obrigados
a considerar-te uma ameaça, e a agir em conformidade.
- Estou a ver. - Cato sorriu, mantendo ainda assim o ar sério. - É matar ou ser morto.
- Precisamente. A crença de todos os soldados, sejam quais forem as circunstâncias. A decisão não te deve custar muito. Portanto, tens até à alvorada para ma comunicares.
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- E agora, o que vamos fazer? - perguntou Macro, assim que fecharam a porta da messe atrás deles. Tinham estado a jogar aos dados com alguns dos outros homens da
centúria, de forma a manter a aparência de que não passavam de vulgares soldados. Cato tinha tido todo o cuidado em perder por pouco e aceitar o facto com uma gargalhada,
numa tentativa de cair nas boas graças dos seus camaradas. Macro, por seu lado, tinha jogado claramente para ganhar, mas tinha acabado por perder bastante mais do
que Cato, o que o tinha deixado um tanto chateado; isso refletia-se na forma como encarava a questão premente que se lhes punha. - O Lurco é um problema, mas não
me vou meter a liquidar um dos nossos. Mesmo sendo um pretoriano.
- Aceitamos o teste do Sínio - retorquiu Cato. - Não temos alternativa.
Macro respondeu com surpresa:
- Não estás a falar a sério. Matar um oficial? Não, nem pensar.
- Evidentemente que não o matamos. Mas temos de arranjar forma de o fazer desaparecer. Isso é que vai dar trabalho.
Tinham-se encaminhado para as muralhas do aquartelamento; subiram as escadas e começaram a percorrer lentamente a secção com vista para a cidade. Havia sentinelas
nas torres situadas em cada um dos cantos e dos portões do campo, e outros grupos de homens passeavam pela muralha, trocando saudações joviais com Macro e Cato quando
se cruzavam. Cato perguntou-se se algum daqueles homens teria tido indicações de Sínio para os espiar. Só quando deixaram para trás o último dos grupos é que se
decidiu a continuar a conversa.
- Pelo menos sabemos que a prata está por aqui. Se não no quartel, está algures em Roma.
- Oh pois, que grande consolo - ripostou Macro, em tom seco. Fez um gesto abarcando a cidade, morada de cerca de um milhão de pessoas.
- Vai ser canja encontrá-la.
- É um começo. Seja como for, temos de prestar contas ao Narciso. Ele
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tem de ser informado sobre a prata, e sobre as outras coisas que entretanto descobrimos.
- Ótimo. E como é que vamos chegar à casa segura se estamos a ser vigiados?
- Tenho andado a pensar nisso. Fui lá duas vezes, e não me parece que o Sínio tenha ficado a saber. A única explicação para isso é que o homem que ele pôs a vigiar-nos
devia estar em patrulha quando me escapuli do campo. As patrulhas têm saído a intervalos irregulares. Claro que pode ter sido uma coincidência, mas a verdade é que
das duas vezes em que saí tinha sido a coorte do Burro a ser enviada para a cidade. Portanto, o mais provável é mesmo que o homem do Sínio seja da nossa coorte.
Macro avaliou a linha de raciocínio de Cato, e anuiu.
- Até é provável que seja da nossa centúria.
- Concordo.
- Merda - soltou Macro num silvo. - Pode ser um qualquer, até mesmo o Tigelino ou o Fúscio. Ou ambos.
- Portanto o melhor será partirmos do princípio de que eles são suspeitos, e agir de acordo com essa ideia. - Cato franziu o sobrolho. - O pior é que temos mesmo
de entrar em contacto com o Narciso, e o mais depressa possível. Estamos aqui por nossa conta, sem saber bem o que fazer. Se nos acontecer alguma coisa, é importante
que ele tome conhecimento de tudo aquilo que já descobrimos. Assim sendo, esta noite vamos tomar um copo. Algures na zona próxima da casa segura.
- No Rio de Vinho?
Cato assentiu.
- É um sítio tão bom como outro qualquer. E já o conhecemos.
Macro coçou o queixo.
- E depois da outra noite eles também já nos conhecem. Duvido que sejamos bem-vindos.
- Não vamos à procura de sarilhos, e podemos estar certos de que o Céstio e os seus amigos não vão mostrar o focinho por lá, se por acaso têm algum bom senso. O
Rio de Vinho servirá perfeitamente aos nossos propósitos. Vamos.
Confirmaram a licença com o escriba do centurião Lurco, saíram do quartel e entraram na cidade. Seguiram pela mesma rua que já tinham percorrido muitas vezes antes,
descendo o Viminal. Falavam em voz baixa enquanto caminhavam. De vez em quando, Cato olhava para trás, mas o espião de Sínio parecia ser conhecedor das artimanhas
daquele género de trabalho, e mantinha-se fora de vista.
- E se pura e simplesmente não estivermos a ser seguidos? - sugeriu
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Macro. - Não gosto desta história de fingir que estamos só a passear. Não me parece natural.
- Ótimo. Se agíssemos naturalmente, isso sim, pareceria suspeito. Acredite, estamos a portar-nos muito bem. E estamos a ser seguidos, sem sombra de dúvida. O tipo
do Sínio deve estar a vigiar-nos como um falcão.
Um pouco à frente a rua fazia uma ligeira curva, prolongando-se depois por mais uns cem passos antes de desembocar no largo em que se situava o estabelecimento.
Cato respirou fundo.
- Esperemos que isto resulte.
Entraram na praça e dirigiram-se à taberna. Ainda não estava cheia, uma vez que os habituais clientes do fim da tarde não tinham ainda chegado, e havia muitas mesas
livres. Assim que entraram, a cara do dono mostrou o desagrado que sentia e ele apressou-se a dirigir-se aos recém-chegados, antes que se sentassem.
- Senhores, peço desculpa, mas não são bem-vindos a esta casa. Saiam, por favor. Agora mesmo, por favor.
Cato ergueu a mão.
- Calma, amigo. Somos só nós os dois. Só queremos uma bebida, e com toda a tranquilidade. Não vamos arranjar nenhuma confusão. Só para te sossegar... - Cato meteu
a mão na bolsa e extraiu cinco sestércios, que colocou sobre a mesa. - Isto fica já por conta. Se não o gastarmos todo em bebida, o troco fica na casa. Que tal?
O homem contemplou as moedas com uma expressão atormentada, mas acabou por anuir.
- Podem ficar, então. Mas vou manter-vos debaixo de olho. Ao primeiro sinal de problemas, mando a mulher buscar a coorte urbana. Bom, por agora, senhores, o que
desejam então beber?
- Ora, venha o melhor vinho da casa - apressou-se Macro a indicar, enquanto se deixava cair sobre um banco. - E por este preço, é bom que seja mesmo bebível.
O homem fez uma careta enquanto recolhia o dinheiro e se afastava apressadamente.
- E agora?
Cato sentou-se do outro lado da mesa e olhou em redor. Um grupo de homens, cerca de uma dezena, com túnicas e capas gastas, estavam junto à parede do fundo. Cato
acenou na sua direção.
- É mesmo disto que preciso.
Macro torceu-se no banco para os apreciar melhor.
- Daqueles? Para quê?
- Para arranjar uma forma de sair daqui e chegar à casa sem que a
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nossa sombra me siga. Espere aqui. Se conseguir que nos ajudem, vou precisar que vá até ao balcão e peça qualquer coisa para comer. E de forma a garantir que alguém
que esteja lá fora o veja bem.
- Miúdo, era melhor que me dissesses de vez o que é que estás a preparar - protestou Macro.
- Depressa o saberá. Se eu sair, espere aqui por mim. Vigie a entrada e veja se aparece alguma cara conhecida. Eu terei cuidado, garanto-lhe.
Ergueu-se antes que o amigo pudesse continuar a protestar e dirigiu-se ao grupo de trabalhadores. Estes olharam para o pretoriano sem esconder a desconfiança.
Cato sorriu.
- Não se preocupem. Não ando à procura de sarilhos. Só vos quero pedir um favor.
- Um favor? - Um tipo atarracado de cabelo curto arregalou os olhos. - Que tipo de favor?
- Um daqueles que se pagam. - Cato pegou na bolsa e fez tilintar as moedas no interior. - Tenho um encontro marcado com uma amiga esta noite, mas acontece que o
marido dela soube do nosso arranjinho. Está lá fora com uns amigos, à minha espera. Seguiram-me do campo pretoriano até aqui. Preciso de sair daqui sem que eles
percebam. Portanto, gostaria de trocar de capa com um de vocês, que depois se juntaria ao meu amigo ali sentado. - Indicou Macro. - Eu saio com o resto do grupo,
e dou-vos vinte sestércios em troca do vosso auxílio.
- Por esse preço, deve ser uma mulher e peras - lançou um dos outros homens.
- Podes crer que sim. - Cato sorriu em resposta.
O homem entroncado cerrou os lábios.
- Ou seja, queres saltar para cima da mulher de outro homem, e queres a nossa ajuda. É um negócio sujo, esse que nos propões, amigo. Porque haveríamos nós de te
ajudar?
- Porque o marido da senhora em questão é um coletor de impostos.
- Porque é que não disseste logo? - O homem sorriu. - Claro que te ajudamos, por trinta sestércios.
A expressão de Cato endureceu.
- Trinta? Vinte e cinco, e nem mais um.
- Ora bem, se regateias o preço, diria que a tua amiga afinal não é assim tão boa...
Trinta sestércios eram mais do que um trabalhador braçal recebia durante um mês. Cato franziu o sobrolho, como se debatesse o preço consigo mesmo, e por fim assentiu.
- Trinta, seja. Quinze agora e o resto quando estiver safo.
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- É justo, soldado.
Contou a metade do dinheiro e o homem encorpado virou-se para um dos seus companheiros, um tipo alto e magro, de uns cinquenta anos de idade.
- Porcino, tens mais ou menos o tamanho dele. Dá-lhe a tua capa.
- Dá-lhe tu a tua - ripostou de imediato o outro.
O primeiro virou-se para ele e apontou-lhe o dedo em riste.
- Se sabes o que te convém, trata de fazeres o que eu digo.
Porcino fez menção de abrir a boca para protestar, mas pensou melhor
e anuiu, derrotado. Soltou o alfinete que lhe prendia a capa junto ao pescoço e passou-a a Cato, recebendo em troca a do jovem. Enquanto punha a capa do homem sobre
os ombros, o nariz de Cato torceu-se perante o forte odor a urina.
- Adivinho que trabalham numa lavandaria.
- Assim é. - O homem mais forte sorriu. - Os melhores limpadores de togas de toda a cidade. Quanto ao facto de o mijo ser o principal ingrediente usado nesse processo,
nada posso fazer. Mas atrevo-me a dizer que a tua mulher é capaz de não concordar com a tua escolha de disfarce para esta noite.
- É um risco que terei de correr. - Com um suspiro resignado, Cato puxou o capuz sobre a cabeça. - Vamos andando, então.
Os homens terminaram as bebidas e puseram-se de pé; alguns puxaram os capuzes para que Cato não fosse o único a apresentar-se assim. O que tinha ficado com a sua
capa de pretoriano envergou-a e foi sentar-se ao pé de Macro, com as costas para a entrada. Macro encheu-lhe uma caneca com o vinho que tinha sido acabado de pôr
na mesa. O grupo de trabalhadores encaminhou-se para a saída, despedindo-se do taberneiro de forma ruidosa. Cato integrou-se no seio do magote e seguiu com eles,
atravessando a praça e metendo por um beco que subia para a Subura. Aquela direção servia perfeitamente o fito de Cato, que completou o disfarce participando na
conversa e soltando umas gargalhadas quando um dos homens lançou uma piada pouco abonatória sobre a mulher do taberneiro. No entanto, não parou de deitar olhares
furtivos às reentrâncias de portas e outros pontos sombrios nas redondezas. Nada se mexia, exceto um cão magro e sarnento que investigava, um após outro, os montículos
de imundície por ali espalhados. Cato manteve-se com o grupo enquanto percorriam alguns metros da ruela confinada pelos blocos de apartamentos do bairro mais pobre
de Roma. Por fim, ao descrever uma curva, deu um toque no ombro do chefe e avisou.
- É aqui que vos abandono. - Passou-lhe para as mãos o resto das moedas. - Agradeço-vos a ajuda que me deram.
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A face do homem era praticamente invisível no beco escuro quando respondeu.
- Dá os meus cumprimentos a essa dama.
- Assim farei.
- E podes devolver-me também a capa do Porcino.
Cato sentiu francas dúvidas de que Porcino voltasse a recuperar a capa se ele a devolvesse naquele momento.
- Ainda preciso dela. Devolver-lha-ei quando regressar à taberna.
- Muito bem então - respondeu o outro, sem levantar problemas. - Vamos, rapazes.
Enquanto o som dos passos do grupo se afastava, chapinhando na humidade e na porcaria que formavam um verdadeiro tapete no solo, Cato recuou para as sombras de uma
porta em arco. Deixou-se estar quieto, mal se atrevendo a respirar, até que o som do grupo se desvaneceu no ruído de fundo da cidade: um grito aqui e ali, berros
de crianças esfomeadas, o fechar de janelas. Continuou à espera, para se certificar de que ninguém o seguira até ali. Por fim lá se resolveu a sair do esconderijo,
e dirigiu-se com toda a precaução para a rua onde se situava a casa segura. Parou a alguma distância do edifício e voltou a esperar, até concluir que não havia ninguém
a vigiar a entrada, pelo menos da rua. Atravessou-a então e esgueirou-se pela estreita porta de entrada.
O fedor a suor e vegetais cozidos enchia as escadas mergulhadas na escuridão. Tentou subir sem fazer qualquer ruído, mas os degraus de madeira não paravam de chiar
quando ele os pisava. Ouviu vozes abafadas por trás de algumas portas, um choro incontrolado do outro lado de uma delas. Estava já quase no quarto andar. Refreou
o passo, com o coração a bater acelerado por causa da subida e da tensão do momento. Um estreito raio de luar entrava por uma abertura na parede, trespassando a
escuridão e iluminando levemente o ambiente. Não parecia haver qualquer movimento no patamar, pelo que Cato se dirigiu à porta e tentou abrir a fechadura. E se imobilizou
num repente.
Era o mais leve dos sons, quase como algodão a raspar em madeira. O som de uma respiração. Cato tentou abrir a porta com uma mão, enquanto a outra descia ao longo
do corpo e desembainhava sorrateiramente a adaga que trazia por baixo da capa. Escutou um restolhar e passos rápidos nas escadas para o andar seguinte. Rodou, afastando
o capuz com a mão livre, enquanto a outra colocava a adaga em riste, pronta a golpear. Avistou um repentino faiscar no raio de luz e compreendeu que o adversário
também estava armado. Este estava de costas para o luar e tinha o rosto na escuridão quando se deteve a pouca distância, mas fora do alcance de Cato.
- Não te aproximes! - ameaçou Cato. - Larga a faca!
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Um silêncio tenso imperou por instantes, até que o outro homem baixou a faca e a devolveu à bainha, com um leve raspar. Desceu os dois últimos degraus e expôs-se
à luz.
- Sétimo... - Cato soltou um longo suspiro e deixou que os ombros descaíssem, aliviado. - Porra, que me pregaste um susto dos antigos.
O agente de Narciso respondeu com uma risada nervosa.
- Também me ias dando um ataque, deixa lá. Vamos mas é entrar.
Depois de acenderem uma lamparina de óleo, os dois homens sentaram-se nas enxergas à volta da trémula luz amarela. Sétimo tinha trazido pão e salsichas, envoltos
num pano e metidos na sacola. Deu algum do alimento a Cato e os dois foram comendo enquanto conversavam.
- Recebi a mensagem em que dizias que tinhas informações a reportar - disse Sétimo, enquanto apontava para o esconderijo sob as tábuas do soalho. - Também ocorreram
alguns desenvolvimentos no palácio que o Narciso acha que devem ficar a conhecer. É por isso que aqui estou. Há quase dois dias que vos aguardo.
- Então porque é que estavas à espera nas escadas?
- Nunca é boa ideia deixarmo-nos ficar num quarto fechado, sem qualquer hipótese de fuga. Bom, o que há então a saber?
Cato fez um relato do encontro que tivera com Sínio, e Sétimo franziu o cenho.
- Ele quer que mates o Lurco? Porquê? É um deles. Um dos cabecilhas, segundo o homem que interrogámos. Não faz sentido nenhum.
- A não ser que o Lurco tenha feito alguma coisa que comprometeu os planos deles.
- Sim, pode ser. Não é má ideia livrarmo-nos dos elos mais fracos de uma cadeia.
Cato não evitou um sorriso perante o eufemismo. Sétimo era bem uma criação do secretário imperial, e tinha tantos escrúpulos como o seu mestre. Afastou o pensamento
e resolveu mostrar as suas dúvidas.
- Tenho tido tempo para estudar o Lurco, e devo dizer que não me parece de todo um tipo capaz de se envolver numa conspiração. Não tem a coragem suficiente para
levar por diante uma coisa dessas.
- Será um traidor acobardado, então - desdenhou Sétimo.
- Os Libertadores parecem-te cobardes? Podem esconder-se nas trevas, sim, mas é precisa alguma coragem para ousar confrontar o Imperador. Arriscam-se a tudo perder
se forem descobertos. Isso exige tomates. Mais do que aqueles que me parece possuir o nosso centurião Lurco.
Sétimo digeriu as palavras de Cato em silêncio.
- O que estás então a sugerir?
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- Que o homem que interrogaram vos deu uma pista falsa. Para vos afastar da verdade. O que não me surpreende. Se estivesse no lugar dele, tentaria fazer algo semelhante.
- O Lurco estará inocente, então?
- Não tenho a certeza. O que estou a dizer é que me parece difícil acreditar que o homem trabalhe para os Libertadores. Vamos partir do princípio de que o tipo que
interrogaram estava a enganar-vos. Tentou esconder o nome de quem lhe dava ordens, e atirou o nome do Lurco para proteger o centurião Sínio.
- Faz algum sentido. - Sétimo fez uma careta. - Mas ainda assim não explica porque é que o Sínio quer que mates o Lurco.
- Ele disse que era um teste.
- Há melhores maneiras de o fazer. Porquê designar um oficial superior? Porque não um tipo qualquer nas fileiras, cuja morte não despertaria tanta atenção?
- Pode ser mesmo essa a ideia - sugeriu Cato. - Aumentar o grau da aposta, garantir que eu e o Macro ficamos totalmente comprometidos, sem hipótese de recuo. Dito
isto, não me livro da sensação de que há outra coisa qualquer por trás da escolha deste alvo. Querem afastar o Lurco por uma razão específica, estou certo disso.
- Porquê?
Cato abanou a cabeça.
- Não tenho resposta clara para essa pergunta. Por enquanto.
Sétimo cruzou os braços e recostou-se contra o estuque rachado da
parede.
- E o que achas que devemos fazer quanto a esse teste que te exigem?
- Não estou a ver forma de lhe fugir - respondeu Cato. - Isto se queremos envolver-nos mais profundamente na organização, de forma a descobrir todos os planos. Teremos
de fazer o que o centurião Sínio nos pede.
Os olhos de Sétimo arregalaram-se.
- Queres dizer que vão mesmo matar o Lurco?
- Não. Claro que não. Mas o Lurco tem de sair de cena. De tal forma que o Sínio julgue que ele foi mesmo assassinado. E há mais uma coisa que tens de dizer ao Narciso.
- Oh?
- O Sínio ofereceu-se para nos pagar, a mim e ao Macro, para tratarmos do caso. Mostrou-me uma arca cheia de denários recém-cunhados, novinhos em folha.
Sétimo inclinou-se para a frente.
- Parte da prata roubada?
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- Penso que sim.
- Portanto, há mesmo ligação entre o roubo e os Libertadores, tal como sempre tememos.
Cato assentiu.
- O Narciso vai ter as mãos cheias de trabalho. Primeiro a conspiração, depois os motins por causa da falta de comida, e aquele atentado contra as vidas da família
imperial.
A surpresa rasgou brevemente a expressão do rosto do outro.
- O que queres dizer com isso?
Foi a vez de Cato se mostrar surpreendido.
- Ele não te disse? Quando o Imperador estava a regressar ao palácio depois dos jogos da Ascensão, foi emboscado perto do fórum. Um grupo de homens armados atacou
a comitiva, e alguns conseguiram mesmo furar por entre os guarda-costas. Um deles tentou matar o Nero, antes de serem rechaçados.
- Ah, sim. Ouvi dizer que tinha occorido um... Um incidente - confirmou Sétimo, com ar pouco seguro. - O Narciso tem homens nas ruas à procura dos participantes
nesse ataque.
- Presumo então que o Céstio ainda não foi encontrado?
- Céstio?
- Foi o homem que liderou o ataque e que quase conseguiu assassinar o Nero. Há fortes possibilidades de existir alguma ligação entre ele e os Libertadores. - Cato
pensou rapidamente. - Fizeram uma tentativa. Podem acontecer outras.
- Tratarei de avisar o Narciso. - Sétimo calou-se por momentos. - Há mais alguma coisa?
Cato abanou a cabeça.
- O que é que o Narciso queria que nós soubéssemos?
Sétimo remexeu-se e esfregou as costas.
- Como sabes, no ano passado o Cláudio concordou em casar a filha Octávia com o Nero. Não queria apressar as coisas para não dar a impressão de que estava a preparar
o terreno para nomear o Nero como seu herdeiro. Mas a Imperatriz tem feito muita pressão sobre ele. E há poucos dias o Imperador confiou aos seus conselheiros que
estava a pensar em conferir a Nero o título de procônsul.
- Procônsul? - Cato não conseguiu esconder o seu assombro. Era um título que era assumido pelos mais elevados membros do Senado, depois de cumprirem um ano como
cônsules. Apesar de o título se ter tornado meramente honorífico desde o fim da República, era ainda assim uma tremenda ousadia concedê-lo a um rapaz de catorze
anos de idade. - Isso vai enxofrar muitos narizes no Senado.
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- Pois vai. O Narciso tentou persuadir o Imperador a abandonar essa ideia, mas o Palias apoiou-a, e o Narciso saiu perdedor da discussão.
- O Palias? - Cato ainda não tinha revelado o que Macro vira por baixo do camarote imperial no dia dos jogos da Ascensão. Não tinha qualquer desejo de se ver envolvido
nas questões pessoais entre o Imperador e a sua esposa, e nisso estava plenamente de acordo com Macro. Ainda assim, era óbvio que Palias estava a planear alguma
coisa. Cato coçou o queixo e prosseguiu. - Sabes se essa ideia do título para o Nero veio do próprio Cláudio?
- Duvido muito. Não me parece o tipo de decisão que ele se sentisse confortável a tomar sozinho.
- Portanto, alguém o levou a isso. A Agripina, muito provavelmente. Tratando de posicionar o filho para a sucessão.
- É o que pensa também o Narciso.
- E o Palias? Qual é o seu envolvimento nisto?
Sétimo pensou por momentos antes de responder.
- O Palias é um confidente da Imperatriz, para lá de ser um dos mais próximos conselheiros do Cláudio.
Cato sorriu.
- Diria que há aí um pequeno conflito de interesses.
- A não ser que também ele ande a tratar de arranjar um lugarzinho quando se der a sucessão.
- É isso que o Narciso acha?
- O secretário imperial considera que essa é uma possibilidade que não pode ser descurada - retorquiu Sétimo, sem querer comprometer o seu mestre. - Enquanto o Palias
não tomar qualquer medida para, hã, acelerar a sucessão, o Narciso nada pode fazer abertamente contra ele.
- Mas então atrevo-me a dizer que ele está preparado para agir contra o Palias de forma dissimulada, se é que não está já a fazê-lo.
- Isso não me cabe a mim dizer, e não está nas tuas competências sequer contemplar a ideia - ripostou Sétimo, em tom frio. - O teu trabalho é recolher informações
e agir apenas como o Narciso indicar. Entendido?
- Claro. De qualquer maneira, o centurião Macro e eu preferimos estar a par da situação. Temos as nossas razões para não confiar totalmente no teu senhor. - Cato
fez uma pausa e debruçou-se para o interlocutor. - O Macro e eu deixaremos Roma quando a nossa tarefa estiver concluída, mas tu ficarás por cá. Se estivesse no teu
lugar, teria algumas reservas em ligar de forma muito estreita a minha fortuna com a de Narciso.
- Cato, falas sem saber. Sou leal ao Narciso. Trata-se de uma qualidade rara nos tempos que correm, sei-o bem - comentou em tom ríspido.
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- Mas pelo menos ainda há alguém que conhece o significado da lealdade, e que é capaz de seguir ordens sem as questionar.
- Seja. - Cato encolheu os ombros. - É o teu funeral.
O outro homem olhou-o com animosidade, as chamas a refletirem-se nos seus olhos como pequenos dardos. Mas por fim Sétimo baixou o olhar e limpou a garganta, falando
num tom menos exaltado.
- O que vão fazer quanto ao Lurco?
- Tive uma ideia. Mas vamos ter de o trazer para aqui. E depois será preciso que o leves para longe de Roma, até que esta história com o Sínio e os seus amigos esteja
terminada. Pode-se arranjar isso?
- Vou tratar disso. O centurião vai ter umas férias tranquilas às custas do Império. Não posso é prometer que as acomodações tenham uma grande qualidade - respondeu
Sétimo, antes de fazer nova pausa. - Bom, será melhor regressar ao palácio e dar as novas ao Narciso. De agora em diante, virei até aqui todas as noites. Tenho a
sensação de que estamos a ficar com pouco tempo para deslindar esta conspiração. - Mexeu-se, e pôs-se de pé com um grunhido. - Eu saio primeiro. Dá-me algum avanço,
só para o caso de a entrada estar a ser vigiada.
Atravessou a sala até à porta, levantou a lingueta da fechadura e saiu sem fazer barulho. Cato ouviu alguns dos degraus a ranger, e depois imperou o silêncio nas
escadas. Puxou a capa emprestada para os ombros, embora o nariz protestasse perante o fedor a urina. Deixou-se estar sentado mais um bocado, a pensar na situação.
Macro tinha razão. Dois soldados não tinham nada que estar envolvidos naquela história. Tinham muito maior utilidade para Roma algures na fronteira, a combater bárbaros.
Mas essa era uma forma simplista de ver as coisas, lembrou-se Cato. O Império enfrentava inimigos em todas as frentes, e o dever de um soldado era confrontar as
ameaças. Além disso, Narciso prometera-lhes as recompensas que lhes eram há muito devidas, se conseguissem cumprir a tarefa que lhes entregara. E, ao contemplar
essa perspetiva, os pensamentos de Cato viraram-se para Júlia.
Andava a tentar não pensar nela, mas era difícil ignorar a lembrança da jovem, que era uma permanente dor a trespassar-lhe o coração. Sempre que dava rédea solta
aos pensamentos, era certo e sabido que as memórias de Júlia o iam assaltar, misturadas com a ansiedade perante a real perspetiva de não poder passar o futuro ao
seu lado. Havia mais de um ano que não se viam. Enquanto Cato estivera envolvido na perseguição a Ajax, o gladiador fugitivo, e na campanha contra os núbios no Egito,
Júlia tinha estado a viver em Roma, em plena sociedade dos ricos e poderosos. Era jovem e bela, e não teria deixado de atrair atenções.
A angústia no seu espírito atingiu novo patamar quando recordou toda
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a beleza dela, e como ela se lhe tinha oferecido, de corpo e alma, nos meses que tinham passado juntos na Síria e em Creta. O facto é que naquele momento a duração
da separação era já superior ao tempo que tinham partilhado, e apesar de os seus sentimentos se terem mantido constantes, alimentados pelo sonho de uma reunião próxima,
não tinha qualquer ideia se ela também ainda sentia o mesmo. Os seus instintos diziam-lhe que sim, mas Cato não podia confiar neles. Podiam não passar de devaneios
ingénuos. A parte racional da sua mente insistia na fria conclusão de que o mais provável era que os sentimentos dela por ele tivessem arrefecido. O que representaria,
para uma jovem aristocrata, a distante memória de um jovem soldado, quando vivia rodeada pelo refinado brilho da sociedade aristocrata de Roma?
Levou a mão à face e percorreu o rosto com os dedos, como ela fizera na primeira ocasião em que tinham feito amor. Fechou os olhos e obrigou-se a recordar todos
os detalhes do cenário, cada aroma e cada som daquele pequeno jardim debaixo do luar sírio. Na sua mente, ela surgiu em cena tão bela como a conseguia imaginar,
muito melhor do que a tosca mão da natureza poderia conseguir. Mas então os seus dedos embateram na rija pele da cicatriz que o desfigurava, e o coração ardeu-lhe
de medo e repulsa. Abriu os olhos. Respirou fundo várias vezes, antes de pegar na lamparina e se pôr de pé. Colocou-a no lugar combinado na prateleira e apagou-a
com um sopro.
Já na rua, olhou cuidadosamente em redor; não havia sinais de movimento, pelo que tomou pela rua principal que descia o monte Viminal. Ao aproximar-se da praça,
parou por momentos e relembrou rapidamente a disposição das ruas, considerando a entrada da taberna onde Macro o esperava. A curta distância desembocavam duas ruelas,
e de qualquer uma delas se podia ter uma esplêndida vista para o interior do Rio de Vinho. Aproximou-se da praça pelo beco mais próximo do estabelecimento. Com uma
mão no punho da adaga, avançou pé ante pé, apalpando a parede rugosa e testando o chão antes de avançar o peso. Havia uma ligeira curva pouco antes de a ruela desembocar
na praça; quando a alcançou, prendeu a respiração e espreitou para o outro lado com toda a cautela. A princípio nada distinguiu, mas depois notou uma ligeiríssima
nuvem de condensação que saía de detrás de uma parte saliente de uma parede mesmo ao fim da rua. O fenómeno repetiu-se, e Cato apercebeu-se de que era alguém que
respirava. De onde estava não conseguia ver ninguém, pelo que se muniu de ainda maior cautela e progrediu lentamente, até conseguir avistar o perfil de um homem
que vigiava a taberna na praça. Cato permaneceu imóvel e esperou. Por fim o homem mudou ligeiramente de posição e permitiu a Cato avistar-lhe as feições, ainda que
de perfil. O jovem sorriu quando reconheceu o sujeito, sem qualquer dúvida.
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Recuou tão lentamente como avançara e percorreu de novo o beco. Puxou o capuz para cobrir a cabeça e prosseguiu até ao cruzamento seguinte. Seguiu por essa via até
à entrada da praça e, aí chegado, pôs-se a imitar o passo de um bêbado; com passos hesitantes e trôpegos, lá chegou à taberna, tomando todo o cuidado para não olhar
na direção do beco onde o espião de Sínio vigiava. Irrompeu pela porta e dirigiu-se de imediato à mesa onde se sentavam Macro e Porcino. Assim que se viu fora do
ângulo de visão do beco, endireitou-se e lançou o capuz para trás.
Macro sorriu, aliviado.
- Demoraste-te. Fizeste tudo o que querias?
- Sim. - Cato soltou o alfinete que prendia a malcheirosa capa e lançou-a na direção de Porcino.
- Já não precisa de mim, senhor? - perguntou o homem. - Posso ir?
- Sim. Será melhor que tentes juntar-te aos teus amigos, antes que eles gastem todo o dinheiro que lhes dei.
- Tem toda a razão, porra. - Porcino trocou rapidamente de capa e acenou uma despedida antes de se pôr a caminho. Cato sentou-se no lugar que o homem ocupara em
frente a Macro.
- Disse ao Sétimo tudo o que sabia. Ele vai falar com o Narciso. Agora temos de decidir o que fazer quanto ao Lurco. E temos de despachar isso depressa.
- Porquê? Qual é a pressa?
Cato pensou um momento.
- Os Libertadores já fizeram uma primeira tentativa de liquidar a família imperial. Falharam, mas devem estar a fazer novos planos. Quanto mais depressa conseguirmos
infiltrar-nos na conspiração, melhor. Ah, e há outra coisa.
- O quê?
- Já sei quem é que o Sínio usa para nos espiar. Está escondido lá fora, num beco do outro lado da praça. É o Tigelino.
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O ar da manhã estava frio e húmido, e a centúria formava na pequena parada situada entre os blocos de casernas. Macro e Cato, como todos os seus camaradas, puxavam
os ombros para trás e inflavam os peitos enquanto o centurião Lurco e o seu optio percorriam a fileira da frente, verificando com toda a atenção a aparência dos
uniformes e do equipamento dos homens. Envergavam as túnicas de tom creme por baixo das armaduras, e empunhavam escudos e dardos, além das espadas e adagas ao cinto.
Um conjunto que a Guarda Pretoriana raramente ostentava, mas os motins ocorridos nos dias anteriores obrigavam a unidade de elite a apresentar-se pronta para a ação
em todas as ocasiões.
Macro e Cato estavam ao fundo da primeira fileira, no flanco direito, com os outros homens da secção de Tigelino. Aguardavam em sentido, as pernas firmes, o escudo
aperrado na mão esquerda, a mão direita a segurar o cabo do dardo, precisamente abaixo da parte mais grossa, onde estava inserido um peso de ferro que dava maior
poder de penetração à arma de arremesso. Tal como os outros homens, mantinham o olhar fixo em frente. O centurião deteve-se a curta distância dos dois e dirigiu-se
a um dos soldados de outra secção.
- Na tua bota há qualquer coisa que parece uma bosta.
- Sim, senhor.
- Ninguém vem para a parada com merda no equipamento.
- Não, senhor. Deve ter sido um desses cães que por aí vagueiam, senhor. Andou a passear pelas casernas.
- Aqui-não-se-arranjam-desculpas-sem-nexo! - berrou Lurco junto ao rosto do homem. - Percebido?
- Sim, senhor.
Lurco virou-se ligeiramente para o optio.
- Tigelino, trata de lhe oferecer dez dias de serviço às latrinas, dado que tem um tão pronunciado gosto pela merda.
- Sim, senhor. - Tigelino fez um rápido rabisco na sua tábua encerada.
O centurião percorreu o homem de alto a baixo com o olhar, em busca
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de outras faltas. Pegou no punho da espada do guarda e puxou-a. Ao sair da bainha, a arma fez um ligeiro ruído de raspar.
- Temos aqui ferrugem. Passa a vinte dias.
- Sim, senhor. - Tigelino corrigiu a nota que tomara.
Os dois oficiais continuaram a seguir a linha e pararam em frente a Macro. Lurco inspecionou-o cuidadosamente. Não encontrou nenhuma razão para reparos, pelo que
acenou satisfeito, virou-se e recuou alguns passos ao longo da fila antes de começar a falar em tom elevado, para que todos o ouvissem.
- Graças aos nossos empenhados esforços do outro dia, o Imperador solicitou que fosse a minha centúria a fazer a guarda pessoal de sua majestade imperial e da sua
família durante todo o próximo mês. Uma honra assinalável, como estou seguro que todos concordarão. E por isso, homens, exijo-vos a todos nada menos do que a perfeição.
Até que a situação volte ao normal em Roma, não voltarão a envergar togas. Surgirão em público sempre com o equipamento que usam neste momento. Dá-se a circunstância
de que o Imperador vai deixar a cidade por uns dias, a fim de inspecionar as obras que decorrem em Óstia, bem como a drenagem dos pântanos em torno do lago Albino,
a sudeste da cidade. Fomos encarregues de o escoltar nestas deslocações. Partimos amanhã. Portanto, vamos estar no nosso melhor, e deixar uma excelente impressão
em quaisquer cidadãos que queiram aclamar o Imperador. Se algum de vós me deixar mal visto, sofrerá as consequências. - Virou-se para Tigelino. - Optio, toma conta
deles.
- Sim, senhor! - Tigelino fechou a tábua com um estalo seco e colocou-a apressadamente na sacola, juntamente com o estilete. Enquanto o centurião se afastava, dirigindo-se
aos seus aposentos no edifício mais próximo, Tigelino deu ordem de dispersar aos homens, e seguiu por sua vez na direção do edifício de comando do aquartelamento.
Cato e Macro abandonaram a rígida postura que todos os homens tinham mantido.

- Que história é aquela do lago Albino? Tens alguma ideia do que se passa?
Cato recordou que o lago era grande, e ficava a meio dia de marcha de Roma, no sopé das colinas. Passara por lá algumas vezes ainda criança, mas não tinha dessas
ocasiões memórias agradáveis. Era rodeado por terrenos baixos e pantanosos, infestados de mosquitos e outros insetos, o que tornava a terra inutilizável para os
camponeses e obrigava os viajantes a custosos desvios para rodear a zona. A sua drenagem era um projeto antigo e muitas vèzes adiado, que finalmente parecia estar
a progredir sob as disposições de Cláudio.
- Mais um dos grandes projetos civis do Imperador - respondeu. -
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Ao que parece, muitas coisas mudaram em Roma desde a última vez que cá estivemos. Um porto novo, agora o lago, além de uma nova esposa e um enteado transformado
em filho adotivo.
- Bem, o Narciso, pelo menos, continua o mesmo de sempre - resmungou Macro, azedo. - A puxar os seus cordelinhos por trás da cortina. Algumas coisas não mudam de
todo.
Seguiram com os outros homens, deixando a parada de regresso ao quarto da sua secção. Fúscio já lá estava, a arrumar cuidadosamente o equipamento, a armadura impecável
e as armas. Acenou um cumprimento enquanto os outros pousavam os escudos e o imitavam.
- Porra, mais uma caminhada para estourar - protestou. - A coisa já andava feia com estas patrulhas todas pela cidade. A merda das botas fazem-me bolhas.
- Ah, rapaz, és muito mole - ripostou Macro. - Espera até teres de fazer de soldado a sério, como eu e o Capito. Aí é que ficavas a saber o que é marchar.
Fúscio encarou-o.
- Olha, Cálido, poupa-me a essa conversa do No-meu-tempo-é-que-era. Ando lixado com esta história dos motins na cidade, e pronto. Agora, conseguiram piorar-me a
vida, e só porque o Imperador quer atrair a atenção da populaça para os grandes trabalhos que executa para bem de Roma. Chiça, é apenas uma fantochada para lhe subir
a popularidade, nada mais. Só ficarei contente quando as coisas voltarem ao normal.
- Se é que isso vai acontecer - comentou Cato.
- Oh, há de acontecer - ripostou Fúscio. - Ouvi uns boatos, parece que o Imperador desviou algum cereal da Sicília. Quando os mantimentos chegarem à cidade, a turba
vai acalmar-se e dar tempo para a cadeia de abastecimento ser reorganizada.
- E onde é que ouviste isso?
Fúscio bateu com o dedo no nariz.
- De uns amigos de amigos meus.
Macro fungou e abanou a cabeça.
- Até parece que tu tens conhecidos em posições elevadas...
Cato cerrou os lábios.
- Bom, espero que tenhas razão. O Imperador bem precisa de algum tempo.
Fúscio pendurou o cinto da espada.
- Há um jogo de dados combinado para a messe. Vêm?
- Claro - respondeu Macro. - Assim que estivermos despachados.
- Afagou a bolsa pendurada do cinto e sorriu. - É mesmo a altura de gastar algum do que nos adiantaram.
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- Ou de o perder todo. - Fúscio riu com vontade. - Se fosse a ti, verificava com cuidado os dados antes de os lançar. Alguns dos rapazes são bem capazes de querer
enganar os novos recrutas.
- Não nasci ontem. - Macro mostrou o punho. - Portanto, eles que tentem, se quiserem brincadeira.
Depois de Fúscio ter saído, Macro virou-se para Cato.
- O que é que vamos fazer então quanto ao Lurco? Disseste que tinhas um plano.
Cato deitou uma olhadela à porta, para se certificar de que ninguém os escutava, antes de replicar.
- O centurião Lurco gosta de festas. É habitual passar a noite fora. É uma questão de o seguir e de o tentar apanhar a sós.
- E nessa altura?
- Nessa altura, pomo-lo a par da situação.
Macro fungou.
- Porreiro. Um oficial vê-se abordado por dois dos seus homens, simples soldados, e achas que se vai dispor a sentar-se num sítio calmo e conversar? Bom, é melhor
supor que ele não se vai dignar escutar-nos. E nós?
- Empregamos a força, levamo-lo para a casa segura e deixamos ao Sétimo a tarefa de o fazer desaparecer até que a conspiração seja esmagada.
- E quando é que o fazemos? Hoje?
- Não. Vamos esperar até regressarmos desta escolta imperial. Se o Lurco desaparecesse esta noite, o mais certo era que fosse designada outra centúria para guardar
o Imperador, e que fosse lançada uma busca geral pelo Lurco. Temos de nos manter próximos do Imperador. O nosso primeiro dever é proteger Cláudio contra qualquer
novo atentado à sua vida.
Juntaram-se ao jogo no salão da messe. Mesas e cadeiras tinham sido afastadas para dar espaço aos homens que queriam participar ou assistir. O porta-estandarte dirigia
o lançamento dos dados e tomava notas das apostas que eram feitas entre jogadas. Cato debruçou-se para Macro e segredou-lhe algumas palavras.
- Tenho de ir deixar uma mensagem. O Tigelino é capaz de ainda estar no quartel-general, se é que não voltou para as casernas. Tente encontrá-lo e vigie-o. Se ele
sair, siga-o. Entendido?
Macro anuiu.
- Tem cuidado.
Cato sorriu, e esperou que se desse um clamor de prazer e frustração perante o resultado do lançamento dos dados, e que se gerasse a confusão habitual quando os
vencedores se dirigiam aos corretores para reclamar os seus ganhos. Aproveitando o caos, Cato esgueirou-se do salão e pegou na
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velha capa militar que trouxera do Egito. Tinha decidido que seria melhor não usar um manto que tornaria fácil reconhecê-lo como pretoriano, uma vez que queria passar
despercebido nas ruas. Quando chegou ao esconderijo, escreveu uma breve nota para Sétimo, onde explicava o que tencionava fazer quanto a Lurco, quando a centúria
regressasse a Roma depois de escoltar o Imperador no seu périplo. Deixou a tábua encerada na cavidade por baixo das tábuas do soalho, virou a lamparina para a porta
como ficara combinado para assinalar a presença de uma mensagem, e saiu. Já na rua, puxou o capuz para cima da cabeça e dirigiu-se para a praça onde se situava o
Rio de Vinho. Apesar de ser ainda manhã, as ruas e vielas tinham muito menos movimento do que o habitual. Os homens da Guarda e das coortes urbanas continuavam a
patrulhar a cidade e a dispersar qualquer ajuntamento, e não se coibiam de deter e interrogar qualquer pessoa que lhes despertasse suspeitas. Cato concluiu que a
maior parte dos moradores da Subura estava ainda demasiado nervosa para se aventurar a sair por outra razão que não fosse encontrar comida e água.
Seguia por um beco escuro quando se apercebeu de um vulto que se aproximava, vindo em sentido contrário. Tal como Cato, tinha o capuz posto e mantinha a cabeça baixa.
Por baixo das dobras da capa avistava-se uma túnica bordada, um artigo de luxo. Havia nele qualquer coisa que fez despertar em Cato um vago sentido de reconhecimento.
Qualquer coisa na forma como se movimentava enquanto percorria o beco, no ritmo típico de um homem habituado a combater. Ao cruzarem-se, o ombro do homem bateu em
Cato, e ele resmungou umas palavras ininteligíveis, que tanto podiam ser uma desculpa como um aviso, e seguiu sem diminuir o passo.
Cato sentiu um arrepio frio a percorrer-lhe a espinha enquanto continuava a andar, sem se atrever a olhar imediatamente para trás. Era Céstio. Estava seguro disso.
Esperou até estar a uma distância segura antes de se deter e olhar por cima do ombro. O líder do bando do Viminal já estava a uns trinta passos de distância, e nesse
momento virou de repente para uma viela que descia para o fórum. Cato voltou para trás, correu até ao cruzamento estreito e espreitou pela esquina. Céstio prosseguia
o seu caminho, de olhos pregados no solo. Passou por uma porta aberta, em cujo degrau se sentava uma mulher de aspeto miserável, com uma criança chorosa agarrada
a um seio seco e descaído. A mulher murmurou qualquer coisa e estendeu a mão, mas Céstio mal olhou para ela. Cato deixou que o outro lhe ganhasse alguma distância
e só então o seguiu, passando também pela mulher. Deitou-lhe uma espreitadela, só o suficiente para reparar no rosto emaciado e nos olhos grandes. Os braços do bebé
eram magros e finos, e o crânio adivinhava-se perfeitamente sob a pele pálida. Por trás dela avistou
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outras crianças no chão de um quarto, sentadas, imóveis; toda a família morria lentamente, de fome.
- Senhor, uma moeda. - Ela fez um gesto como que para tentar agarrar a bainha da capa, e Cato mal teve tempo para se desviar. Acelerou o passo para deixar para trás
aquela cena deprimente, mas logo o refreou, para não se aproximar demasiado de Céstio. O homem prosseguia a caminho do coração da cidade, e deixou o labirinto de
ruelas a curta distância do Templo de Vénus e Roma. Seguiu então a caminho do Tibre, evitando a parte central do fórum e seguindo junto à parede do palácio. Um ar
de normalidade tinha regressado a Roma, pelo menos para alguns dos seus habitantes, e viam-se grupos de funcionários e um punhado de senadores com os seus séquitos,
a atravessar o fórum a caminho ou de regresso do Senado. Algumas das habituais bancas do mercado estavam instaladas nos pórticos da basílica, mas não se via o habitual
ajuntamento ruidoso de mercadores e compradores que enchiam o fórum em dias normais. Havia soldados praticamente em cada canto, atentos a quem passava. Céstio manteve-se
afastado dos militares, e saiu da zona por uma ruela estreita e desguarnecida, que levava ao mercado do Boário e à zona dos armazéns.
Enquanto se mantinha no rasto do seu alvo, a mente de Cato trabalhava a toda a velocidade. Porque é que Céstio se arriscava a percorrer as ruas quando havia uma
valiosa recompensa pela sua pessoa? Onde iria? Tentou tirar conclusões de uma cuidada análise às roupas do outro. A capa e a túnica eram peças dispendiosas, e Céstio
tinha tirado as botas pesadas, calçando em seu lugar um par de cabedal macio que subia até meio das canelas, o tipo de botas a que Macro não teria qualquer dúvida
em chamar efeminado.
Cato continuou a segui-lo, descendo em direção ao Tibre, por entre a massa do monte Capitolino à direita e o palácio à esquerda. O Boário apresentava o mesmo nível
de atividade reduzida que se notara no fórum, e não estavam montadas mais de um terço das bancas habituais. Por ali havia menos soldados, que se concentravam junto
aos escritórios dos coletores de impostos e dos agiotas, cujas instalações tinham sido saqueadas durante o motim. Céstio atravessou o Boário até chegar mesmo à margem
do Tibre, onde a Cloaca Máxima despejava o seu conteúdo no rio, e então virou para a esquerda, na direção dos armazéns.
O fedor a excremento humano enchia o ar, acompanhando a corrente escura de dejetos, urina e outra porcaria que se juntava ao correr do Tibre. Um cadáver humano tinha
ficado preso na proa de uma barcaça atracada, e já havia um par de ratazanas a rasgar as roupagens encharcadas para alcançarem a carne putrefacta que aquelas ainda
cobriam. Alguém pegara num bote e remava na mesma direção, para recuperar o corpo e o adicionar
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à pilha de cadáveres que tinham sido retirados do rio junto à saída do esgoto - a habitual colheita de bêbados descuidados, de vítimas de mortes violentas e de
acidentes. Era uma visão a que Cato estivera habituado na sua juventude, quando vinha até ao cais com o pai. Lembrava-se que, quando já havia cadáveres suficientes
para encher uma carroça, eram levados para uma vala aberta no exterior da cidade e lá despejados sem cerimónia.
Afastou o olhar da cena macabra, no preciso instante em que Céstio trocava algumas palavras com um homem entroncado e careca, que envergava uma túnica verde e um
manto de tom amarelo brilhante. Ao seu lado viam-se dois brutamontes, com cajados bem evidentes, que se mantinham silenciosos enquanto o homem falava com Céstio.
O homem sorriu e deu uma pancada amigável no braço deste, antes de se separarem. Cato escrutinou discretamente o homem ao aproximar-se dele, e reparou no colar de
ouro que usava ao pescoço, bem como nas joias dos anéis que lhe enfeitavam os dedos. Era evidentemente um homem de posses, e que não temia mostrá-las em público,
desde que acompanhado por um par de guarda-costas com aspeto de serem capazes de pulverizar quem quer que pensasse sequer em tentar apossar-se da bolsa do seu amo.
Cato desviou-se, de forma a deixá-los passar ao largo, e continuou a seguir o chefe do bando. Céstio prosseguiu, mas de repente olhou rapidamente em volta. Depois,
aparentemente convencido de que ninguém o seguia, dirigiu-se à entrada de um dos conjuntos de armazéns. Acenou uma saudação ao homem que vigiava o portão, o qual
lhe abriu uma passagem e voltou a cerrá-la assim que Céstio desapareceu no interior. Cato sentiu um acesso de pânico perante a perspetiva de perder a sua presa.
Parou no cais oposto ao armazém, agachou-se e fingiu que estava a apertar os laços das botas, enquanto observava o portão. Ao lado das pesadas portadas de madeira
estava um painel pintado, a anunciar que o responsável pelo aluguer daqueles espaços era Gaio Frontino, e que este convidava todos os interessados a recorrer ao
seu escritório no Boário.
Cato respirou fundo para acalmar os nervos e avançou na direção do portão. O guarda avistou-o e colocou-se de imediato no seu caminho. Era um homem quase atarracado,
com uma cicatriz no rosto, e Cato adivinhou que se devia tratar de um antigo gladiador, um de muitos que seguia aquela linha de trabalho depois de ter conseguido
a liberdade, ou de ter sido dispensado pelos seus treinadores.
- O que é que tu queres? - indagou o guarda, sem qualquer preâmbulo.
- Senhor, o meu amo disse-me para o esperar aqui - respondeu Cato. - Vi-o a entrar ainda há bocadinho.
- Ai sim? Então como é que ele se chama?
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Cato abriu a boca, mas interrompeu-se mesmo a tempo. Se Céstio estava disfarçado, o mais provável era que estivesse também a usar um nome falso. Se Cato tentasse
usar o verdadeiro nome do homem, o guarda não o deixaria entrar. Pior ainda, poderia bem mencionar o incidente a Céstio quando este saísse, o que o alertaria para
o facto de ter sido seguido.
A pausa tornou-se tão longa que o guarda resolveu tomar uma decisão.
- Bem me parecia. Estavas era a tentar entrar. Põe-te a andar. Antes que eu te obrigue. - Afagou o cacete com bicos que lhe pendia do cinto.
Cato percebeu que não valia a pena provocar distúrbios. Recuou alguns passos, virou-se e afastou-se de regresso ao Boário. Lembrou-se então que ainda poderia descobrir
alguma coisa de importância, e desatou a correr. Acelerou, tentando avistar o homem do manto amarelo e os seus dois guarda-costas. Não havia sinal de alguém com
uma indumentária tão espampanante no cais, e Cato prosseguiu, entrando no Boário. Apesar de o mercado não apresentar a habitual massa humana compacta, havia gente
suficiente para obscurecer a vista a Cato. Subiu para a base de uma estátua de Neptuno e segurou-se ao tridente enquanto percorria a extensão do mercado com o olhar.
Avistou finalmente a túnica amarela, do outro lado, perto da área destinada aos mercadores de cereais.
- Ei! Tu aí! Salta daí!
Olhou à sua volta e avistou um soldado de uma das coortes urbanas a dirigir-se para ele. Desceu da estátua e tentou afastar-se, mas o soldado bloqueou-lhe a passagem.
- O que é que pensas que andas a fazer?
- Procuro um amigo, é só isso.
- A tentar arranjar confusão, é o que é. - O soldado rosnou e aplicou um golpe na face lateral do crânio de Cato, fazendo-o estremecer. O jovem piscou os olhos enquanto
vacilava.
- Acer! - Um grito cortou o ar. - Já chega!
Logo a seguir aproximou-se um optio, irritado com o soldado.
- Estamos aqui para manter a ordem, idiota! Não é para começar outro motim, cretino. - Virou-se para Cato. - Tu, desaparece!
Cato assentiu, e afastou-se pelo meio do mercado, dirigindo-se aos salões das guildas de mercadores, do outro lado do Boário. As pessoas que tinham assistido ao
confronto olharam-no com alguma relutância, como se ele levasse alguma marca assustadora. Era apenas um sinal da tensão nervosa que ainda pairava sobre a cidade.
Ninguém se queria ver associado a um tipo que tinha arranjado problemas com os militares. Cato depressa esqueceu o incidente, e refreou o passo enquanto cruzava
o mercado. Já não avistava sinal do manto amarelo junto à sede dos mercadores de cereais, e temeu ter perdido o rasto ao homem. Ao chegar ao pórtico, coroado por
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uma estátua que retratava Ceres com uma grossa espiga de trigo na mão, fez uma pausa e olhou mais uma vez em volta. Não avistou o careca, pelo que entrou.
Ao penetrar na penumbra do interior, precisou de alguns momentos para que a visão se ajustasse. Havia ao centro um vasto espaço preenchido com mesas e bancos corridos.
Ao longo das paredes havia dois andares de gabinetes, onde os mercadores conduziam os seus negócios. Ao fundo do salão havia um pódio para leilões, junto a um grande
quadro onde eram colocadas informações sobre as cargas à venda. Naquele dia, porém, nada se via escrito, e os mercadores pareciam estar todos de mau humor, deprimidos.
Cato avistou o homem que seguira emergir de entre as colunas laterais do salão. Dirigiu-se ao escrivão sentado no degrau do pódio e começou a falar com ele. Cato
puxou o capuz para trás e virou-se para um dos mercadores sentados ali perto. Indicou o homem careca e perguntou como se chamava.
- Aquele? - O mercador semicerrou os olhos. - Ora, é o Aulo Pisco. Porque perguntas?
Cato pensou rapidamente numa resposta.
- O meu tio tem uma padaria na Subura. Mandou-me vir aqui ver se conseguia arranjar alguma farinha.
- Boa sorte! - ripostou o outro, com ar de gozo. - Há dias que não há nem uma migalha. O Pisco catrapiscou o último carregamento.
- Estou a ver. - Cato olhou para o careca. - Calculo que o Pisco seja um dos mais poderosos membros da guilda.
- Assim se tornou, nos últimos meses. Antes disso, não passava de um mercador sem importância.
- Parece-me bem abonado.
- Oh, sim, tem-se safado bem.
- E como foi isso? - indagou Cato.
- Bom, ou herdou alguma fortuna, ou está a servir de testa-de-ferro a alguém que a possui. Seja como for, o sacana sortudo tem-se aproveitado bem. O bastante para
contratar aqueles dois brutamontes que o guardam.
Cato assentiu, enquanto se afastava.
- Obrigado pelas informações. Não te tomarei mais tempo.
- Ora, tempo é algo que posso bem dispensar nos dias que correm. - O homem sorriu sem vontade. - Pouco podemos fazer, eu, o teu tio e os outros, até que o cereal
volte a correr.
Cato anuiu e afastou-se. Atravessou a sala e acercou-se de Pisco e do escriba, escutando o fim do diálogo que travavam.
- Informa-me assim que o primeiro navio com cereais chegar a Óstia, percebes?
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- Sim, senhor. - O outro inclinou a cabeça.
O careca debruçou-se para ele.
- Trata disso, e verás que não sou ingrato. Percebido?
O outro anuiu com ar pouco entusiasta, como se já tivesse ouvido aquela proposta várias vezes naquele dia. Ergueu o olhar ao pressentir a aproximação de Cato, e
o careca virou-se para o recém-chegado com ar ansioso.
- Posso ajudar-te? - perguntou com brusquidão.
- De facto, senhor, é bem possível que sim. - Cato sorriu e inclinou educadamente a cabeça. - Procuro um amigo. Quase me cruzei com ele há pouco no Boário, e depois
avistei-o no cais, a conversar consigo.
- Um amigo? Tu? - Pisco olhou com desdém evidente para Cato, no seu manto gasto. - Não me parece. Porque teria um rico mercador alguma coisa a ver contigo? Desaparece.
- Estalou os dedos, e os dois guarda-costas avançaram com ar de poucos amigos.
Cato voltou a inclinar a cabeça e deu um passo atrás.
- Erro meu, senhor. Talvez não fosse o meu amigo.
Virou-se e saiu da área, seguindo pela faixa pavimentada junto às casas das guildas, enquanto se lançava em profundas conjeturas. O que andava Céstio a fazer? O
chefe do bando da Subura tinha evidentemente outra identidade, ou então havia em Roma outro homem que poderia passar por seu irmão gémeo. Cato afastou de imediato
tal ideia. O homem que seguira parecia, movia-se e falava exatamente como Céstio. Nesse caso, por que razão andava a tentar passar por mercador? E o que andava a
fazer na zona dos armazéns? Havia uma forma de o tentar descobrir. Cato dirigiu-se para a pequena basílica, o endereço do homem que alugava os armazéns. Ao entrar
no edifício, notou que era muito menos impressionante do que a sede da guilda dos mercadores. Junto às paredes ficava uma série de escritórios abertos. Encontrou
o sinal de Gaio Frontino com facilidade. Por baixo do anúncio, o escritório tinha um balcão de pedra sem adornos. Por trás dele sentava-se um escrivão, a trabalhar.
Cato tossicou.
- Perdão.
O escriba pousou o estilete e olhou para cima.
- Sim... Senhor?
- Procuro Gaio Frontino.
- Não está, senhor. Posso ajudá-lo?
- Talvez. Queria saber o que era preciso para alugar um espaço de armazenagem no cais.
O outro avaliou os trapos que Cato envergava.
- Não alugamos espaços. Só armazéns.
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- É isso mesmo que quero.
- Nesse caso, senhor, não posso ajudá-lo. Foram todos alugados há já dois meses. Não temos mais espaços disponíveis.
- Estou a ver. - Cato franziu o sobrolho. - A quem é que os alugaram? Talvez possa falar com o homem e conseguir subalugar um espaço.
- Não posso revelar esses dados, senhor. Aliás, o chefe tratou pessoalmente desse contrato.
- Nesse caso, posso falar com Gaio Frontino? Para discutir um contrato futuro, quando este expirar?
- O chefe não está cá, senhor, como já lhe disse. Deixou Roma há cerca de um mês, para tratar de negócios.
- Disse quando é que regressava?
- Não, senhor. Deixou-me apenas uma carta a indicar-me que devia encarregar-me de tudo na sua ausência. - O homem tossicou, realçando a sua própria importância.
- E agora, senhor, se não se importa, tenho muitos afazeres. Pode tentar outro dos escritórios de aluguer, talvez. Estou certo de que encontrará aquilo que procura
num dos negócios de menor relevo. Passe um bom dia.
Cato anuiu e afastou-se com vagar. Sentia o familiar arrepio frio na nuca. Havia muito mais naquela conspiração do que Narciso supunha. Os Libertadores, ou quem
quer que fosse, estavam a preparar o terreno numa escala muito maior do que o secretário imperial temia. Cato ainda não conseguia ligar todos os elementos do quebra-cabeças,
mas de uma coisa estava certo. O inimigo estava bem organizado, e o seu plano já estava em andamento.
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14

O Sol brilhava por entre as nuvens dispersas enquanto os pretorianos assumiam as suas posições em torno do palco de onde o Imperador se ia dirigir aos seus convidados,
expressamente convocados para a ocasião. A maior parte dos senadores e suas esposas tinham sido trazidos de liteira até às margens do lago Albino. Os elementos dos
estratos mais baixos da sociedade romana tinham feito a curta viagem em carroças, a cavalo, ou mesmo a pé, e tinham-lhes sido destinados lugares em pé, atrás dos
bancos reservados aos senadores. O mês de março estava a acabar, e o solo estava firme, já livre da lama gelatinosa que tinha prejudicado o trabalho dos engenheiros
ao longo do inverno. Tinha-lhes sido atribuída a tarefa de escavar um canal que serviria para escoar a maior parte das águas do lago e dos pântanos adjacentes, levando-as
até um afluente do Tibre.
Os homens do centurião Lurco ainda tinham os pés doridos depois da marcha da véspera, que os trouxera de Óstia, e que se seguira à que os levara de Roma até à cidade
portuária, apenas dois dias antes. Cláudio tinha conduzido uma rápida inspeção ao progresso dos trabalhos no novo porto, e proferira uma série de rápidos discursos
pela cidade, reafirmando o seu amor pelo povo e prometendo-lhe as ricas recompensas que não deixariam de surgir graças ao aumento do fluxo de bens a passar pelo
porto no futuro. O Imperador tinha também oferecido um banquete aos mais destacados políticos e mercadores locais, bem como aos administradores do porto. Tendo assim
aplacado o povo de Óstia, seguiu com toda a corte para as obras de engenharia que decorriam no lago Albino, para tentar reconquistar os afetos dos habitantes de
Roma. Estava previsto um anúncio público do Imperador, e os homens que compunham a escolta tinham passado toda a manhã a especular livremente sobre a sua natureza.
- Só pode ser um espetáculo - afiançava Fúscio. - Ou isso, ou uma distribuição de comida. Talvez ambos.
- Desde que não nos reduza a nós as rações para arranjar comida para a populaça - resmungou Macro. A Guarda Pretoriana estava a meias-rações havia já três dias,
e o estômago do veterano começava a protestar.
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Apesar das ordens imperiais para que outras cidades e povoações enviassem os seus excedentes de mantimentos para a capital, não havia mais do que um punhado de vagões
a chegar a cada dia, e a maior parte dos abastecimentos era arrebatada por quem tinha o poder económico suficiente para pagar os exagerados preços que eram pedidos.
As provisões designadas para os celeiros públicos eram desviadas por agentes corruptos e desfalcadas por aqueles que eram designados para guardar o pouco que restava.
Muitos dos mais pobres e fracos já tinham morrido de fome, e os vagões que se arrastavam com provisões a caminho da cidade cruzavam-se com as carroças que levavam
os mortos para as valas comuns abertas no exterior das muralhas de Roma. Os gritos e urros de lamentação ecoavam pelas estreitas ruelas dos bairros mais pobres,
e Macro não conseguia deixar de se perguntar quanto tempo levaria a dor a transformar-se de novo em cólera. Quando tal sucedesse, só os pretorianos e as coortes
urbanas se poderiam interpor entre o Imperador e a turba furiosa.
Cato tinha estado a assistir à troca de palpites.
- Se não houver pão, o Cláudio terá de recorrer ao entretenimento para manter a populaça contente. Se está a preparar um espetáculo de gladiadores, terá de ser alguma
coisa especial. E, mesmo assim, pode saciar a sede de sangue da população, mas a verdade é que as barrigas continuarão vazias.
Fúscio encolheu os ombros.
- Calculo que sim. Mas talvez se ganhem mais uns dias para encontrar provisões. Espero bem é que não se lembre de nos tirar mais comida a nós. Se o fizer, vai haver
consequências - adiantou o jovem pretoriano, de ar carrancudo.
- Consequências? - Macro cuspiu para o chão, com desdém. - Quais consequências? Porra, o Cláudio é o Imperador. Pode bem fazer o que lhe aprouver.
- Achas mesmo que sim? - Fúscio arregalou um olho. - Ele é o Imperador, enquanto a Guarda Pretoriana disser que é. Fomos nós que o pusemos lá. Se a isso nos forçar,
podemos muito bem pôr outro qualquer no trono.
- Quem é esse "nós" de que falas? Tu e mais uns tantos camaradas insatisfeitos?
Fúscio olhou em volta e baixou o tom de voz.
- Não somos assim tão poucos, a julgar pelo que se ouve nas casernas. Se acontecesse alguma coisa, Cálido, eu trataria de estar do lado certo.
- Talvez sim, mas até que chegue esse momento, eu trataria era de manter a boca fechada. Miúdo, isso que estás para aí a dizer é traição.
Cato sorriu friamente.
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- Sabe o que se diz, a traição é uma questão de oportunidade. O Fúscio tem alguma razão. O melhor é ver como as coisas evoluem antes de escolher um lado.
Macro abanou a cabeça, desgostoso.
- Política... Os verdadeiros soldados nunca se deviam meter nisso.
- Oh, concordo, em absoluto - ripostou Cato. - O problema é que muitas vezes a política se vem meter com os soldados. E nessa altura, o que há de um homem fazer?
Enquanto levantava a questão, Cato observava Fúscio, atento à sua reação. O jovem pretoriano manteve-se em silêncio, e a sua expressão tornou-se repentinamente fixa
e impenetrável, enquanto olhava por cima do ombro de Cato.
- O que é que se passa aqui? - berrou Tigelino. - Na conversa como velhas comadres? Toca a formar, vem aí o Imperador.
Fez um aceno com o polegar na direção das tendas que se avistavam ao longo da margem do lago. Os guardas pessoais germanos já se agitavam, e os escravos apressavam-se
a acorrer com as liteiras imperiais. Os homens da centúria de Lurco pegaram nos escudos e dardos e começaram a formar em redor do palco. Metade dos homens colocou-se
aos lados da álea de acesso às traseiras do estrado, enquanto os outros, incluindo Cato e Macro, se dispunham aos lados e à frente do palco. Entretanto, as últimas
famílias senatoriais já tinham chegado para ocupar os seus lugares.
- Merda... - resmungou Macro, e Cato deitou-lhe um olhar de aviso.
- O que foi?
- À direita, ao pé daquela liteira vermelha, olha para aquele grupo de foliões. Tenta não ser óbvio.
Cato virou a cabeça como que de forma casual para contemplar a audiência que aguardava o Imperador, até que encontrou o grupo que Macro indicara - uns vinte jovens
aristocratas, todos com túnicas caras por baixo das togas de aspeto mais austero. Pareciam organizar-se em torno de um indivíduo em particular. Era um sujeito alto
mas claramente com peso a mais, e a queixada tremia-lhe toda enquanto falava. A princípio Cato não o reconheceu, mas então o homem deu uma palmada na perna e soltou
uma gargalhada tão alta que o som se sobrepôs ao burburinho próprio de uma assistência à espera de algo, o que fez com que vários dos aristocratas se virassem na
direção do ruído com expressões de desaprovação. O homem virou-se e olhou na direção do palco, e foi nesse momento que Cato sentiu um aperto gelado no coração.
- Pelos deuses - sussurrou para si mesmo. - Vitélio... O canalha.
- Quem é aquele? - quis saber Fúscio.
Cato lançou um olhar de aviso a Macro, antes que este respondesse.
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- Era o tribuno-mor da Segunda Legião, há uns anos.
Fúscio sorriu com argúcia.
- Parece-me que não simpatizas lá muito com ele.
- Quase fez com que nos matassem - ripostou Cato sem entoação, enquanto ponderava até onde ir na conversa. Estava fulo consigo mesmo e com Macro pela reação que
tinham deixado transparecer ao avistar Vitélio. O antigo tribuno estivera envolvido num plano para assassinar o Imperador quando Cláudio se deslocara à Britânia.
Apesar de Cato e Macro terem feito gorar o esquema, Vitélio tinha arranjado forma de emergir da situação como herói. - O Vitélio é o género de tipo que se põe a
si mesmo acima de todas as considerações, sejam elas quais forem. Um conselho, Fúscio. Nunca te metas no seu caminho. Serias esmagado, sem mais consideração do que
a que é dada a uma formiga.
- Estou a ver. - Fúscio olhou para o animado grupo de aristocratas por momentos. - Seja como for, parece um tipo popular.
- Tem o seu charme, sim - admitiu Cato, relembrando com pesar a forma como o tribuno tinha seduzido o primeiro amor da sua vida e depois a tinha assassinado sem
hesitar quando ela ameaçara revelar publicamente o plano que o aristocrata urdira para matar o Imperador. - Mas não deixa de ser um filho da puta - insistiu.
- Espero bem que ele não nos veja - disse Macro. - Não nos separámos em termos propriamente amigáveis - explicou, para benefício de Fúscio.
Cato continuou a observar o grupo enquanto Vitélio se virava noutra direção, ainda envolvido numa animada conversa.
- Não deve haver problema. Não há hipótese de ele nos reconhecer com este equipamento.
Soou uma nota metálica, anunciando que o Imperador se aproximava. Os pretorianos colocaram-se rapidamente em sentido, de escudos aperrados e de lanças perpendiculares
ao solo. O público aquietou-se e colocou-se de pé, em sinal de respeito. Por trás de Cato, as liteiras imperiais cumpriram o curto trajeto desde as tendas, e depois
os seus ocupantes aguardaram que os guarda-costas germanos tomassem as suas posições à frente da plataforma. O Imperador e o grupo dos seus mais chegados conselheiros
desceram das liteiras e percorreram a passagem ladeada de pretorianos até chegarem ao palco. Pelo canto do olho, Cato reparou que Cláudio se esforçava com denodo
para disfarçar o coxear e os tiques que o afetavam, tentando apresentar um ar digno perante os seus convidados. Subiu até ao palco e sentou-se no trono dourado.
Deu-se uma pausa enquanto contemplava a audiência com ar majéstico, até que, com um gesto, permitiu que todos regressassem aos seus lugares e se sentassem. Narciso
e Palias permaneceram
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de pé, ligeiramente atrás do trono, como convinha ao seu estatuto. Embora possuíssem um poder muito superior ao de qualquer senador, cônsul ou procônsul, eram libertos,
e portanto, tecnicamente, ocupavam na escala social um lugar ainda inferior ao do do mais pobre cidadão livre de Roma
- o mesmo que, naquele momento, morria lentamente de fome no mais miserável bairro de Roma.
- Sire, lembre-se, seja breve e claro - disse Narciso, num tom que permitiu a Cato escutá-lo.
- Eu se-se-sei - retorquiu Cláudio, falando pelo canto da boca. - Não sou nenhum tolo, sabes muito bem.
Limpou a garganta com um som gutural particularmente irritante, e respirou fundo.
- Meus amigos! Nos últimos meses, Roma sofreu grandes provações. A nossa a-a-a-amada cidade experimentou algumas convulsões na sua ordem social. A interrupção do
fornecimento de cereais preocupa o nosso p-p-povo. Fiz tudo o que está ao meu alcance para conseguir alimentos para a nossa capital. Creio assim que estamos próximos
de resolver a escassez de c-c-ce-cereais.
Cato alçou as orelhas, e notou que Macro, ao seu lado, se remexia, interessado. Encontrar uma fonte de abastecimentos era a solução para pôr fim ao desassossego
na cidade. Se esse assunto fosse resolvido, a população ficaria por certo grata ao Imperador, e os seus inimigos deixariam de poder explorar o descontentamento.
Era bom que Cláudio tivesse razão, pensou Cato. Se estivesse a despertar a esperança para depois a esmagar, só conseguiria inflamar ainda mais a fúria dos cidadãos.
O Imperador preparava-se para continuar quando Narciso se inclinou ligeiramente para ele e murmurou:
- Lembre-se, sire, fazer uma pausa para melhorar o efeito.
Cláudio assentiu, mantendo o silêncio enquanto olhava para a audiência, de tal forma que acabaram por se ouvir alguns tossicares nervosos. Só então se voltou a lançar
no discurso que tinha preparado.
- Até que os estômagos do povo estejam de novo repletos, parece-nos co-co-correto que o Imperador ofereça a Roma o con-conforto de algum entretenimento, de forma
a que todos possam superar esta c-cri-crise. Se as barrigas estão vazias, que os corações se en-encham então! - Lançou o braço ao ar, com um floreado dramático a
sublinhar a retórica.
- Uma pausa para os aplausos - lembrou Narciso, e decorreram alguns momentos até que os membros da audiência que tinham recebido instruções para tal começassem a
bater palmas. Depressa a aclamação cresceu e Narciso sorriu com ar cínico, enquanto o seu amo gozava a adulação da audiência. Narciso permitiu que aquilo continuasse
por algum tempo,
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e depois fez um gesto decidido com a mão, interrompendo os aplausos. As palmas estancaram, de forma demasiado abrupta para o gosto do Imperador, que franziu o sobrolho
antes de prosseguir com um gesto que abarcava os canais e represas que tinham sido construídos para ligar o lago ao afluente do Tibre.
- No fim do mês que vem, os meus engenheiros terão terminado estes importantes trabalhos e quando o lago estiver drenado, teremos, a-a-antes do fim do ano, aumentado
a área arável na vizinhança de R-R-Roma, numa extensão apreciável. Mais terra cultivada significa mais cereais. Roma nunca mais passará f-fo-fome!
Desta vez Narciso não teve necessidade de fazer qualquer sinal. Os aplausos irromperam espontâneos da parte de todos os que esperavam com alívio a perspetiva de
uma acalmia nos humores da populaça.
- Antes que o lago Albino seja dr-dr-dr-drenado, é minha intenção utilizar a arena natural que ele nos fornece para produzir o maior espetáculo de gl-gla-gladiadores
da História.
A corrente de excitação que passou pela multidão era palpável, e levou algum tempo até que o burburinho diminuísse de intensidade e permitisse a Cláudio continuar
a falar.
- Duas frotas, com dez mil combatentes, enfrentar-se-ão no lago, p-pe-perante toda a po-população de Roma! As pessoas recordarão o reinado de Cl-Cl-Cláudio por muitas
gerações, não por causa dos motins e da fome, mas sim devido aos nossos gladiadores e à espetacular N-naunau-máquia que irão proporcionar. Os nossos herdeiros falarão
de nós com inveja. Pe-pe-pensem nisso, e espalhem a palavra por todas as ruelas e becos de Ro-Roma!
Cláudio ergueu os braços, como se quisesse abraçar os milhares que o aclamavam sem cessar. Cato detetou o ar triunfal de Narciso quando este se virou para Palias.
O outro liberto mostrava-se furibundo, mas manteve a compostura e pouco depois obrigou-se a juntar-se à celebração, batendo palmas pouco entusiastas.
- Foda-se. - Macro abanou a cabeça e sussurrou a Cato: - Onde é que ele vai encontrar dez mil gladiadores? Está é doido.
- Não - respondeu Cato em surdina. - Está é desesperado.
Cláudio virou as costas à audiência e lançou uma interrogação aos seus
dois mais próximos conselheiros.
- Então?
- Sire, um excelente discurso! - Narciso bateu as mãos, agradado. - Esta naumáquia é precisamente aquilo de que o povo precisa.
- De facto - concordou Palias. - O vosso discurso foi tão bom que só podemos lamentar a sua brevidade.
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Narciso lançou um olhar dardejante ao outro liberto, e sorriu ao Imperador com toda a alegria
- Ah, sim, é um facto. Todavia, a brevidade é uma arte que poucos, ao longo da História, dominaram tão bem como vós, sire.
- Sim, reconheço-o - anuiu Cláudio, vigorosamente. - E quando as n-notícias destes jogos chegarem aos ouvidos da po-po-populaça, depressa esta esquecerá a f-f-fome.
Por falar nisso, é tempo de regressar ao palácio. Tenho de comer. Apetecem-me uns co-cogumelos.
Com um último floreado dirigido à audiência, Cláudio deixou o palco e arrastou-se a coxear de volta à liteira. Palias seguiu-o rapidamente, tentando antecipar-se
ao seu rival. Narciso deixou-o tomar a dianteira e, ao passar junto a Macro e Cato, pareceu prender a bota numa pedra e tropeçar na toga. Com os braços a abanar,
desabou em cima de Cato. O jovem sentiu a mão do secretário imperial passar-lhe qualquer coisa para a palma da mão com que segurava o escudo.
- Senhor, está bem? - inquiriu Cato, enquanto ajudava Narciso a pôr-se de pé.
- Estou bem - ripostou Narciso. - Larga-me, soldado. - Afastou a mão de Cato e apressou-se a juntar-se a Palias.
- Que tipo tão simpático - comentou Macro.
- É um liberto - desdenhou Fúscio. - Não lhe devia ser permitido tratar um pretoriano daquela maneira. Não está certo.
Enquanto o Imperador subia para a liteira, os que tinham sido convocados para ouvir o breve anúncio começaram também a dirigir-se às suas próprias liteiras e cavalos,
ansiosos por se porem a caminho de Roma antes que a estrada ficasse congestionada. O centurião Lurco levou a mão em concha à boca e gritou uma ordem aos seus homens:
- Sexta Centúria! Formar atrás da liteira imperial!
- Ouviram? - berrou Tigelino. - Toca a mexer!
Os pretorianos começaram a formar por trás dos guarda-costas germanos que rodeavam a liteira. Cato deixou-se ficar para trás e quando teve a certeza de que ninguém
o observava, abriu a mão e viu uma pequena tira de papiro, toda dobrada. Ao desembrulhá-la, avistou algumas palavras escritas em letra pequena. Voltou a amarrotar
o papiro e cerrou o punho antes de tomar o seu lugar ao lado de Macro, perto da frente da coluna. Murmurou umas palavras ao amigo.
- O Narciso quer encontrar-se connosco na casa, assim que voltarmos para Roma.
O secretário imperial levantou a cabeça com ar ansioso enquanto Sétimo abria a porta e dava passagem a Macro e Cato, quando já caía o entardecer.
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As portadas da janela estavam abertas, e vários raios de luz pálida iluminavam a sala. Narciso estava encostado à parede, de braços cruzados. Esperou que a porta
voltasse a fechar-se antes de falar.
- Levaram o vosso tempo.
- Viemos assim que pudemos - contrapôs Cato.
- Tem a certeza que ninguém vos seguiu? - indagou Narciso, preocupado.
Cato assentiu.
- O Tigelino foi chamado ao comando para receber a senha para esta noite. Saímos antes que ele voltasse às camaratas.
- E se os Libertadores tiverem outros homens a vigiar-vos?
- Voltámos para trás e fizemos várias paragens para ter a certeza. Estamos em segurança.
- Em segurança? - Narciso riu sem vontade. - Ninguém está a salvo neste momento. Nem tu, nem eu, nem sequer o Imperador.
Macro inclinou a cabeça para um lado.
- Não sei bem porquê, mas parece-me que a vulnerabilidade é uma preocupação que se torna mais premente à medida que se sobe na cadeia de comando.
Narciso encarou-o.
- Se realmente pensas assim, centurião Macro, és um tolo. O teu futuro está ligado ao meu. Se os nossos inimigos triunfarem, pensas que ficarão satisfeitos com a
remoção do Imperador e a eliminação do seu círculo mais próximo? Lembra-te do que sucedeu quando Sejano foi derrubado. O sangue que corria pelas ruas era o de todos
os que estavam ligados ao homem, por muito remota que fosse essa relação. Portanto, poupa-me ao teu deleite perante o maior risco que os outros correm. - Fez uma
pausa, enquanto um pensamento lhe ocorria. - Devia haver uma palavra para descrever essa qualidade, já que tanta gente parece apreciar o infortúnio de outrem.
Cato tossicou.
- Mandou-nos chamar por alguma razão.
- De facto. O que achaste do anúncio do Imperador?
- Sobre os jogos? Ou sobre o reforço dos cereais disponíveis no futuro?
Narciso sorriu.
- Ambos.
- Não vejo como pode ser organizado um combate naval daquela envergadura. Onde é que se vão arranjar tantos gladiadores? Duvido que haja dez mil, mesmo tendo em
conta toda a Itália.
- Não há. Chamar-lhes gladiadores comporta um certo grau de exagero. Alguns sê-lo-ão, de facto. Mas os outros serão criminosos, e o refugo dos forçados das minas
e das propriedades imperiais. Desde que o povo
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assista a um espetáculo que fique na memória coletiva durante os próximos tempos, ninguém prestará grande atenção à qualidade dos combates individuais que possam
ocorrer. Estarão equipados e armados, e avançarão com o pensamento no prémio: liberdade para os vencedores. Deve chegar para os incentivar a lutar.
- E quanto aos navios? - indagou Macro. - Como é que vão colocar naves de guerra no lago?
- As embarcações usadas pelos engenheiros vão ser disfarçadas para parecerem birremes. Quantas pessoas em Roma achas tu que são capazes de distinguir um tipo de
navio de outro? Tudo é aparência, Macro.
- Nem tudo - contrariou Cato. - Um espetáculo não alimenta a audiência. O que há quanto aos cereais que o Imperador mencionou? De onde é que vêm?
- Isso ainda não sabemos ao certo - admitiu Narciso. - Sétimo, será melhor que lhes digas.
O ajudante do secretário imperial anuiu e fez um momento de silêncio enquanto ordenava as ideias.
- Com os problemas recentes no Egito, que afetaram o fluxo de abastecimento, uma escassez era de esperar. É aí que entra a guilda dos mercadores de cereais. Se uma
fonte começa a secar, cabe-lhes encontrar outra província de onde importar alimento. Tanto quanto sei, tinham decidido compensar esta situação recorrendo a fornecedores
na Gália e na Sicília. Os carregamentos foram desembarcados em Óstia e subiram o Tibre até Roma, onde foram postos à venda na sede da guilda. O problema é que um
pequeno grupo de mercadores comprou quase todos os carregamentos, com licitações muito acima do habitual. Não chegará nova frota do Egito antes da próxima primavera.
E entretanto os cereais vão chegando ao mercado a conta-gotas. Nada que chegue para alimentar Roma, nem de perto.
Narciso interveio.
- Portanto, o ponto mais premente é encontrar os que têm vindo a comprar os cereais e depois descobrir onde é que os têm armazenado. Se existe um plano para estrangular
o mercado, atrevo-me a dizer que o Imperador não vai ficar muito contente quando descobrir quem foram os responsáveis. Talvez não os deixe nas mãos da multidão,
se demonstrarem o espírito cívico suficiente para entregarem os cereais ao Imperador, para que este os distribua à população. Entretanto, aguardamos a chegada de
um comboio vindo da Sicília. No mês passado mandei uma mensagem ao governador da ilha, para que ele enviasse todo o cereal que tivesse disponível nos celeiros. O
primeiro carregamento deve estar mesmo quase a chegar a Óstia. Assim que isso suceder, será colocado sob a proteção de uma coorte da Guarda Pretoriana, que o escoltará
até Roma. Deverá chegar para amainar
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o apetite que a turba tem demonstrado pelo sangue e pela desordem, pelo menos temporariamente. Para já, temos é de descobrir quem é que tem andado a açambarcar
os cereais. - Narciso acenou a Sétimo, para que este prosseguisse.
O indigitado retomou a palavra.
- Devia ter sido relativamente simples, mas a verdade é que quando interroguei os mercadores em cujos nomes as compras foram feitas, descobri que eles estavam a
agir em nome de outrem, e que tinham recebido honorários principescos para servirem de intermediários.
- De quem? - inquiriu Macro.
- Essa é que é a questão. Nunca se encontraram com os compradores ou comprador final. Receberam em prata, e tiveram instruções para entregar os cereais num armazém
perto do Boário. Que foi alugado pelo Gaio Frontino.
Cato sentiu o pulso a acelerar.
- Sei onde é. Já lá estive. Foi aí que perdi de vista o Céstio.
- Céstio? - Narciso pareceu surpreso, e trocou um olhar com Sétimo.
- Conhece-o? - quis saber Cato.
- Só de reputação; é o chefe de um dos maiores bandos de malfeitores da Subura, o grupo do Viminal, se não me engano.
- É isso. Mas agora também o conhece de vista. Foi o homem que liderou o ataque ao Imperador naquele dia em que o escoltámos no regresso ao palácio.
Narciso pensou por momentos.
- O grandalhão? Aquele de quem salvaste o jovem Nero?
- Esse mesmo.
- Então é esse o Céstio - repetiu Narciso. - E o que tem ele a ver com esse armazém?
Cato explicou como o tinha visto e seguido por toda a Roma, e que o homem era conhecido de pelo menos um membro da guilda dos mercadores de cereais.
- É mais que provável que seja o Céstio quem está por trás desta tentativa de controlar o mercado.
Narciso cofiou o queixo.
- Mas ele precisaria de uma verdadeira fortuna para o conseguir. Os bandos de ladrões safam-se bem, é verdade, mas ser-lhes-iam precisos anos de trabalho para conseguirem
reunir uma fortuna que lhes permitisse adquirir todos os carregamentos de cereais. Só há uma fonte possível para esse tipo de dinheiro.
Cato assentiu.
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- A prata roubada.
Sétimo limpou a garganta.
- O que significa que o Céstio está em conluio com os Libertadores.
Narciso lançou-lhe um olhar pouco entusiasmado.
- Evidentemente. O Céstio é mais um inimigo com que teremos de lidar no momento oportuno. Entretanto, vocês os dois têm de se encarregar do centurião Lurco. Já têm
um plano?
- Nada de muito elaborado - começou Macro. - Seguimo-lo, esperamos que esteja a sós e damos-lhe uma palavrinha em privado, se for possível. Se não resultar, uma
cacetada nos cornos, e pronto. Seja como for, trá-lo-emos para aqui e deixá-lo-emos nas mãos do Sétimo. E depois é convosco, mantê-lo fora de circulação até que
o nosso trabalho esteja concluído.
O secretário imperial ficou a olhar para Macro por momentos, até retorquir em tom cortante.
- Devo dizer que é um plano brilhante. É reconfortante saber que o exército continua a empregar estrategas de primeira água.
- Vai funcionar - ripostou Macro, chateado. - É tudo o que interessa.
- Tratem de o garantir. - Narciso soltou um suspiro. - Senhores, temo bem que estejamos a ficar sem tempo. Deve haver uma razão para que os nossos inimigos queiram
ver Lurco afastado. Isto tem de ser mais do que um mero teste de iniciação. Estão prestes a agir, tenho a certeza. E os Libertadores não são o único perigo com que
nos confrontamos. O espetáculo de gladiadores que o Imperador vai oferecer vai distrair a populaça por uns tempos. Mas se não os alimentarmos a tempo, essa gente
acabará por se voltar contra nós como lobos vorazes, e deixará Roma em ruínas.
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A escuridão tomara conta da capital e trouxera com ela uma neblina fina. Depois de deixar o campo pretoriano, o centurião Lurco entrou na cidade. Vestia uma grossa
capa azul, e só as botas de fino cabedal que lhe subiam até meio das canelas denunciavam que se tratava de um homem de posses. Um alto na cintura revelava que estava
armado. Assaltantes isolados, mas também grupos de meliantes, eram um perigo bem real nas passagens mais escuras dos becos e vias de Roma.
Macro e Cato seguiam-no à distância. Depois do encontro com Narciso, tinham regressado ao aquartelamento e tinham mantido uma vigilância atenta aos aposentos do
centurião, aguardando que ele surgisse. Saíra uma vez durante a tarde, envergando a túnica militar, para fazer uma rápida visita ao quartel-general. Depois, quando
a luz começara a desaparecer, saíra envolto no manto, pronto para a diversão noturna. Cato e Macro mantinham-se uns cinquenta passos atrás do oficial. Tal como ele,
iam armados, e Macro levava ainda um porrete, um pequeno saco de cabedal cheio de terra e pequenas pedras.
O centurião Lurco seguia o seu caminho com ar despreocupado, e nem uma única vez se lembrou de olhar para trás enquanto transpunha as ruas escuras. Ainda havia muita
gente na rua, as suficientes para que Cato e Macro não despertassem grande atenção; ao mesmo tempo, não eram em número que os impedisse de ver por onde ia a sua
presa. O centurião fazia um esforço por se manter afastado das vias principais, para evitar algum encontro inconveniente com uma patrulha, ou ter de passar por um
posto de controlo das coortes urbanas.
Enquanto o seguiam pela Subura, Macro encetou a conversa.
- Mal imagino o Lurco a passar tempo neste pardieiro. A não ser que tenha gostos vulgares, e amigos com quem os partilhar.
- Tenho a certeza que existem muitos que apreciam as emoções de se divertirem nestas espeluncas - retorquiu Cato. - Mas pode ser que ele se dirija a outra zona.
Pouco adiante, o centurião meteu subitamente por uma rua à direita.
- Merda - exclamou Macro em surdina. - Topou-nos.
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Correram até ao cruzamento, onde espreitaram cuidadosamente pela esquina nojenta de um bloco de apartamentos. Lurco seguia pouco à frente, caminhando sem qualquer
sinal de preocupação. Deixaram-no afastar-se o suficiente para poderem retomar a perseguição sem levantar suspeitas.
- Porque é que não o apanhamos agora mesmo? - sugeriu Macro. - Até estamos perto da casa segura.
Cato abanou a cabeça.
- Primeiro vamos ver onde nos leva. Pode ser que nos conduza a algum sítio interessante.
- Ou então leva-nos apenas a um bando de cretinos ricaços e delinquentes - contrapôs Macro. - Ou até podemos perder-lhe o rasto.
- Isso não sucederá, se tivermos cuidado. Além disso, não me parece boa ideia criar uma cena num local onde depressa se pode juntar uma multidão. Vamos esperar,
ver com quem é que ele se vai encontrar, e depois, quando estiver outra vez sozinho, trataremos dele. - Cato apercebeu-se de que falara em tom perentório, e deitou
uma olhadela ao amigo, para tentar perceber se ele se mostrava ofendido. Mas Macro limitou-se a acenar em concordância, como se tivesse recebido uma ordem de um
superior. Cato sentiu-se um tanto surpreso pelo pequeno arrepio de prazer que o percorreu ao verificar que o amigo se submetia sem discussão à sua determinação,
e ao à-vontade com que a expressara. Talvez estivessem finalmente os dois a começarem a sentir-se confortáveis com a promoção que o tornara de facto superior hierárquico
do seu antigo mentor. Antigo?, perguntou-se Cato. Não, de todo. Ainda havia muito que podia aprender com Macro.
- Cuidado! - Macro deu um súbito empurrão ao jovem, afastando-o para o lado, mesmo a tempo de evitar que o jovem pisasse um monte fedorento de resíduos apodrecidos
espalhados à porta de um magarefe. - Tens de ter atenção aonde pões os pés, miúdo. Porra, tenho de andar sempre de mão dada contigo, ou quê?
Cato soltou uma risada.
- Qual é a graça?
- Nada. Estava só a pensar.
Macro desdenhou.
- E precisamente por isso, ias-te espalhando naquela porcaria.
Entretanto, o centurião tinha apressado o passo e ganho alguma distância, pelo que tiveram de voltar a apressar-se para se manterem na pista. A escuridão tornava
difícil identificar Lurco, o que os fez arriscar uma maior proximidade. Lurco continuou a descer o Viminal antes de deixar a Subura e começar a subir uma rua que
levava ao monte Quirinal, onde habitavam alguns dos mais ricos cidadãos de Roma, as suas mansões mescladas com habitações mais modestas de cidadãos de menores
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recursos e dos que moravam na área só para poderem dizer que eram vizinhos de aristocratas.
Os últimos fulgores do entardecer tinham dado lugar a uma noite escura, e já havia menos gente na rua. Lurco virou para uma avenida que seguia por entre algumas
das mais imponentes casas. Os muros nus, interrompidos apenas por enormes e pesados portões e por ocasionais fendas estreitas e bem protegidas, eram enganadores.
Por trás dos pesados barrotes que formavam as portas que davam para a via pública, havia residências de desenho requintado e esplendorosas decorações, que se estendiam
para trás, para longe do espaço onde circulava a populaça. As maiores delas possuíam elegantes jardins interiores, muitas vezes ornados por fontes.
Por fim, Lurco parou junto a uma das entradas de aspeto menos ostentatório e fez uma pausa para ajeitar o manto antes de subir os degraus e bater à porta. Cato puxou
Macro para o arco de entrada de uma loja já fechada, de onde conseguiam avistar a casa sem se expor ao olhar de Lurco, caso este se lembrasse de deitar uma vista
de olhos ao que o rodeava. O centurião bateu de novo à porta; por fim, a grelha metálica no centro da porta abriu-se. Deu-se uma rápida troca de palavras, em tom
demasiado baixo para ser percetível aos dois amigos, e a porta lá se abriu. Lurco entrou e a porta voltou a fechar-se com firmeza, sublinhada pelo som claro de uma
tranca metálica a cair na sua posição. A rua ficou deserta, à exceção de um vulto distante, que depressa desapareceu de vista na escuridão crescente.
- Então e agora? - inquiriu Macro. - Esperamos até que ele volte a aparecer?
- Exatamente. E vemos se conseguimos reconhecer alguém entre os que entram e saem.
Macro esfregou as mãos.
- Isso pode levar umas horas.
- É bem provável.
- Ora porra. Vai ser uma noite fria e longa.
Cato assentiu, suprimindo a custo a vontade de dizer a Macro para parar de reafirmar o que já era óbvio. Mantiveram-se em silêncio durante algum tempo, até que Macro
começou a bater com os pés no chão, para tentar mantê-los quentes. Amplificado pela arcada, o som das solas cardadas a baterem na laje da entrada da loja era ensurdecedor.
Cato virou-se para o veterano com uma careta de irritação.
- Já chega! Vai acabar por denunciar a nossa presença.
- A quem? - perguntou Macro, enquanto apontava para a rua deserta sem esconder o enfado.
Cato mordeu os lábios por momentos, e depois respondeu no tom mais calmo que conseguiu:
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- Seria muito importante saber a quem pertence aquela casa. Porque é que não dá uma volta enquanto eu vigio a entrada? Veja se descobre alguém que possa dar-nos
essa informação.
Macro olhou para ele, pouco convencido.
- E se o Lurco aparece enquanto eu andar por aí?
- Não entrou assim há tanto tempo. Acho que ainda vai ficar por lá um bom bocado. Se ele por acaso aparecer, eu sigo-o e tento apanhá-lo sozinho, e depois encontramo-nos
na casa. Mas veja se não se demora, então.
- Muito bem. - Macro afastou-se da parede e espreguiçou-se. Deitou uma espreitadela em ambas as direções, para garantir que não havia ninguém à vista, e atravessou
rapidamente a rua. Dirigiu-se para a entrada da casa, mas não parou ao passar por ela. Um pouco adiante havia um beco estreito que seguia ao longo do muro da propriedade,
e foi por aí que o veterano enveredou, desaparecendo de vista.
Cato soltou um suspiro de alívio. Macro era um excelente soldado, mas operações clandestinas em que havia que fazer um grande apelo à paciência não eram de facto
o seu forte. Agachou-se nas sombras e apoiou as costas na porta do estabelecimento.
A viela mal tinha um metro de largura, e Macro calculou que se devia tratar de uma passagem de serviço partilhada entre a casa para onde Lurco entrara e a vizinha.
As paredes eram altas de ambos os lados, o que só deixava entrever uma fina fatia do céu noturno. Embora o chão estivesse atapetado de porcaria, Macro estava perfeitamente
consciente do barulho que as suas botas faziam, e por isso tentava avançar pelo beco da forma mais furtiva que lhe era possível. Mantinha uma mão apoiada na parede,
deixando os dedos correr sobre o estuque fraturado e as zonas de tijolos expostos. Ao fim de cerca de cinquenta passos, encontrou uma pequena porta e tentou abri-la
suavemente, mas estava trancada. Avançou mais alguns passos e começou a escutar vozes, uma mistura de conversa animada e gargalhadas. Depressa o som de uma flauta
se juntou ao som da festa. Vinha dali perto, e Macro notou que a parede decrescia repentinamente de altura, no que devia ser a fronteira entre o edifício principal
da casa e o jardim.
Continuou, em ritmo mais acelerado, já que os sons que vinham do outro lado do muro encobriam o barulho produzido pelas botas. Um pouco à frente avistou a altiva
estrutura cónica de um choupo, que se erguia bem acima do muro, e foi para lá que se encaminhou. Se conseguisse trepar o muro, a árvore escondê-lo-ia enquanto estivesse
a espreitar para o interior, pensou. Dali conseguiria ver Lurco e perceber com quem é que ele conversava. Contudo, o muro tinha ali à volta de três metros de altura,
e Macro silvou, frustrado. Olhou em redor, mas não avistou nada que
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pudesse usar para se empoleirar. Com um grunhido de resignação, puxou o gládio de debaixo da capa e experimentou a consistência do muro com a ponta. O estuque desfez-se
em grandes bocados, e os tijolos por baixo revelaram-se suficientemente moles para lhe permitir escavar uma espécie de degrau. Trabalhou depressa, criando vários
pontos de apoio até uma altura que calculou ser suficiente para lhe permitir alcançar o cimo.
Devolveu a espada à bainha, e começou a trepar com todo o cuidado, fazendo abundantes caretas enquanto tentava conseguir apoio para os dedos nos buracos escavados
à pressa. Pegou na adaga e alargou-os a pouco e pouco, progredindo devagar para o cimo do muro. Por fim conseguiu esticar-se e pôr uma mão no topo. Com a faca embainhada,
Macro puxou-se para cima, fazendo força com as botas contra a parede, para ajudar a levantar o peso do corpo, até que conseguiu apoiar o torso na face superior do
muro. Fez uma pausa para respirar, já que o coração lhe batia com toda a força no peito, devido ao esforço. As ramagens do choupo escondiam-no dos convivas no jardim;
ao fim de alguns momentos, puxou as pernas para cima e avançou ligeiramente para conseguir uma vista melhor do que se passava no interior do jardim.
Arbustos esculpidos e canteiros bem cuidados rodeavam uma área pavimentada que se estendia em torno de um pequeno lago oval. Aqui e ali viam-se esculturas que culminavam
em baixas colunas de mármore. Apesar de a noite estar fria, os convidados sentavam-se no exterior, aquecidos e iluminados por braseiros dispostos em torno do lago.
Havia ali pelo menos umas cem pessoas, calculou Macro. A maior parte eram homens, ainda jovens como Lurco, que envergavam as suas mais dispendiosas roupagens. Pelo
meio circulavam várias mulheres em túnicas curtas, a habitual vestimenta das prostitutas romanas. Muitas delas usavam uma maquilhagem exagerada, as faces quase brancas
e os olhos sublinhados em tons escuros, e tinham o cabelo cuidadosamente preso em tranças e rabos-de-cavalo. Os escravos circulavam por entre os convivas com jarros
de vinho aquecido, que deixavam no ar pequenas résteas de vapor. Macro lambeu os lábios perante tal cenário, e lembrou-se de que talvez ainda pudessem passar pelo
Rio de Vinho e beber um copo, depois de terem completado o trabalho daquela noite.
Avançou mais um pouco, tentando absorver mais pormenores, enquanto se mantinha agachado no cimo do muro, sob a cobertura de um dos ramos da árvore que se projetava
por cima dele e se prolongava para a ruela adjacente ao jardim. Procurou por Lurco e depressa o avistou, no seu manto azul, em conversa com um grupo de homens da
sua idade, agrupados ao pé de um braseiro enquanto bebiam. O centurião ria, enquanto escutava um elemento do grupo, que estava de costas para Macro. A luz do
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braseiro mais próximo realçava-lhe a silhueta enquanto ele gesticulava e fazia os outros gargalhar com vontade.
Depois de localizar Lurco, Macro perscrutou metodicamente os outros convivas, e estava prestes a concluir que não havia no grupo mais caras conhecidas quando o seu
olhar se prendeu em duas mulheres que estavam um pouco à parte, numa conversa animada do outro lado do braseiro que se encontrava mais perto do muro. Macro esforçou
a vista, para ter a certeza do que estava a lobrigar. Não havia dúvida possível, a mulher à esquerda era mesmo Agripina. Mas o que estaria ela a fazer naquela festa?
Macro contemplou-a por momentos, antes de virar a atenção para a sua companheira, uma mulher alta e magra com cabelo escuro, preso num carrapito por um alfinete
discreto. Havia nela qualquer coisa de familiar, mas Macro não conseguiu lembrar-se de onde a conhecia, e apesar dos seus esforços de memória, acompanhado de um
abundante franzir dos sobrolhos, acabou por desistir. Já tinha visto o suficiente do que se passava no jardim, mas ainda não tinha descoberto a quem pertencia a
casa.
Recuou e lançou cuidadosamente as pernas para o vazio, antes de se deixar pender só pelos braços. Tentou descobrir os apoios que tinha preparado, mas as botas recusaram-se
a encontrá-los na parede, apesar de muito remexer os pés. Com os braços já cansados, Macro respirou fundo e deixou-se cair para o chão do beco. Aterrou desajeitadamente
e tombou para trás, caindo sobre o rabo e aleijando as costas.
- Foda-se!
Pôs-se em pé a custo, enquanto esfregava as costas, e continuou pela ruela até às traseiras da casa, onde sabia que se deviam situar as acomodações dos escravos.
Com a festa em pleno andamento, havia boas possibilidades de que os acompanhantes de alguns dos convivas estivessem à espera na zona dos escravos, sempre nas traseiras
das casas mais opulentas, mantidos a curta distância daqueles a quem serviam. Um pouco adiante, o beco desembocava noutra rua, mas nessa altura já Macro escutava
um conjunto diferente de vozes. Conversas em surdina, sem a vivacidade posta nos diálogos pelo festivo grupo do jardim. Ajustou a capa de forma a esconder a espada
e espreitou pela esquina. O beco dava para uma via mais larga, que passava por entre os fundos das moradias. E havia um portão aberto na traseira da casa, iluminado
por tochas montadas nos suportes que ladeavam a entrada. Na rua estavam estacionadas várias liteiras, e os seus portadores descansavam, sentados contra a parede
e embrulhados nas suas capas, tentando manter-se quentes enquanto esperavam que os seus senhores resolvessem deixar a festa. Ao portão estavam de guarda dois homens
entroncados, armados com cajados.
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Depois de respirar fundo, Macro avançou para o centro da rua e aproximou-se do portão sem hesitar. Os guardas deitaram-lhe uma olhadela pouco atenta. Macro ergueu
a mão e saudou-os.
- Boa-noite! - Forçou um sorriso. - Há alguma festa aí dentro?
Um dos homens avançou e sopesou o cajado, deixando o grosso bastão
apoiar-se sobre a mão livre.
- Quem quer saber?
Macro deteve-se a curta distância do homem e franziu o sobrolho.
- Que tom tão desagradável, pá. Só fiz uma pergunta.
A expressão do outro continuou imperturbável.
- Repito, quem quer saber?
- Seja. - Macro encolheu os ombros e apontou um polegar a si mesmo. - Marco Fábio Félix é o nome. Guarda pessoal de um certo Aufídio Catónio Soberbo, que conseguiu
escapulir-se da casa paterna para se reunir com amigos numa festa no Quirinal. Cá o amigo foi enviado pelo pai embevecido para levar o jovem Aufídio de volta ao
lar. Por isso pergunto se o têm algures por aí?
- Não sei - ripostou o guarda. - E pouco me importa, aliás.
- Bom, amigo, não é preciso usar esse tom comigo. - Macro tentou soar magoado. - Eu é que devia estar chateado, depois de calcorrear estas ruas de merda desde esta
tarde. Só dei com esta festa, portanto faz-me lá um favor e deixa-me levar o puto para casa.
- Nem pensar nisso, amigo - ripostou o outro, com a sombra de um sorriso. - O melhor é que me desampares a loja.
- Desampare? - Macro arregalou os olhos. - Não há necessidade disso. Só estou a fazer o meu trabalho. Porque é que não vais perguntar ao teu senhor, seja ele quem
for, se o meu rapaz está por aí? Podias ao menos fazer-me esse favor, não?
- Não sou teu escravo - resmungou o guarda. - Não estou aqui para te fazer favores. E o senhor não apreciaria que eu o fosse interromper a meio de um festim.
- Suscetível, o homem? - indagou Macro, com simulada simpatia.
Durante um instante, a expressão do guarda deixou transparecer um
toque de ansiedade. Deu um estalo com a língua.
- O Séneca não é mau tipo. O pior é aquela amiga dele - uma cabra. Se alguém lhe interrompe a diversão, manda-o esfolar vivo sem pensar duas vezes. E o Séneca aceita
a sugestão sem pestanejar. Obedece-lhe como se fosse um cachorro.
- É duro - concordou Macro. Inclinou ligeiramente a cabeça para o lado, como se estivesse a pensar. - Bem, seja, vou fazer de conta que não dei com isto. Direi ao
meu senhor que não consegui encontrar a festa.
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- Será bem melhor, para todos nós - confirmou o guarda, com evidente alívio. Mas o rosto voltou a endurecer-se de imediato, enquanto retomava o afagar do cajado.
- Vá, põe-te a andar.
Macro assentiu, dirigindo-se de novo para o centro da rua e afastando-se a passo. Passou por mais duas casas antes de cortar para um beco e fazer o caminho para
se reunir a Cato de novo.
- Soube alguma coisa? - indagou este.
- O bastante. - Macro riu. - A casa pertence ao tutor do jovem Nero.
- Ao Séneca? - Cato exalou ruidosamente, espantado.
- E não é só isso; vi a mulher do Imperador entre os convivas.
- Viu-a? Como?
Macro explicou como tinha trepado o muro antes de tentar a sorte com os guardas na porta de trás da casa.
- Isso parece afastar qualquer possível relação do Lurco com os Libertadores - comentou Cato. - A Agripina e os seus seguidores devem estar tão interessados no regresso
da República como o próprio Cláudio.
- A não ser que o Lurco os esteja a espiar, a mando dos Libertadores
- sugeriu Macro.
- Nesse caso, porque quereria o Sínio que ele fosse morto?
Macro fez uma careta, chateado por não ter antecipado aquela objeção.
- Seja. Então talvez o queiram morto por ser um seguidor da Agripina.
- Ou talvez seja uma coincidência a presença do Lurco. Viu-o a falar com ela? Ou com o Séneca?
- Não.
- Hummm.
Os dois homens mantiveram-se em silêncio, até que Cato não conseguiu evitar um silvo de frustração.
- Não estou a perceber nada disto. Em que raio de história é que o Narciso nos meteu desta vez? Não há dúvida de que existe uma conspiração... Ou, se calhar, mais
do que uma.
Macro grunhiu, exasperado.
- Cato, olha. Isto está a dar-me uma dor de cabeça do caraças. O que é que queres dizer com essa, mais do que uma conspiração?
Cato tentou organizar a informação que tinham recebido de Narciso no início da missão e compô-la com tudo o que já tinham descoberto até ali.
- Há qualquer coisa que não bate certo aqui. Demasiadas contradições, e muitas coisas que não fazem sentido. - Fez uma pausa e olhou para o amigo com um sorriso
contrariado. - Tem toda a razão quando diz que
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este tipo de trabalho não é para nós. Quem me dera a vida descomplicada de uma campanha militar.
Macro aplicou-lhe uma palmada entusiasta nas costas.
- Ah, eu sabia que havia de te conseguir transformar num verdadeiro profissional! Vamos, vamos lá dizer ao Narciso que estamos fartos desta treta e que queremos
é voltar aonde pertencemos. Às legiões. Mesmo que isso signifique não recebermos as promoções a que temos direito. Seria sempre melhor do que isto, a esgueirarmo-nos
por ruelas escuras e sujas numa noite fria. Assim, a espiolhar nem sei bem o quê - concluiu, num tom repleto de frustração, quase atingindo o asco.
- Quem me dera que fosse assim tão simples. O Narciso não nos vai deixar em paz assim tão facilmente. Como bem o sabe - retorquiu Cato, com azedume. - Não temos
escolha. Temos de levar isto até ao fim. - Encolheu-se com frio, mas manteve o olhar fixo na entrada da casa. - Portanto, por agora, vamos continuar à espera que
o Lurco volte a sair.
As horas noturnas arrastaram-se, enquanto os dois amigos se mantinham sentados nas sombras da arcada. Cato era mais sensível ao frio que o seu companheiro, e os
membros tremiam-lhe apesar dos esforços de vontade para os manter imóveis. Sentava-se sobre a pedra fria com várias camadas da capa dobradas sob o traseiro e os
braços apertados em volta dos joelhos. A rua mantinha-se calma e silenciosa, numa paz apenas quebrada por um transeunte ocasional e alguma carroça que se dirigia
vagarosamente para o fórum. De vez em quando escutava-se um coro de riso e conversa animada vinda dos foliões no jardim murado. Por fim, perto já da meia-noite,
a porta abriu-se e um raio de luz mortiça espalhou-se pela rua. Um pequeno grupo de jovens emergiu, barulhento e remexido, e começou a dispersar. Cato contemplou-os
com atenção, mas nenhum envergava o manto azul tão fácil de distinguir.
Macro agitou-se.
- E se o Lurco sai com um grupo? E se forem para outra festa qualquer?
- Nesse caso, seguimo-los e esperamos outra vez. Há de chegar a altura em que ele terá de regressar ao campo.
- Ele e nós.
- Desde que regressemos a tempo da formatura da manhã, não haverá problema.
- Para lá de estarmos gelados e derreados.
Cato virou-se para ele e sorriu timidamente.
- Nada a que não estejamos habituados.
- Huuurrrmm - grunhiu Macro, irritado.
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Mais convidados saíram da casa, e as respetivas liteiras surgiram da viela lateral, transportadas por escravos com tochas para alumiar o caminho. Os dois homens
por baixo do arco escrutinavam com crescente impaciência os foliões que se despediam.
- Aposto que o cabrão do Lurco vai ser o último a sair - resmungou Macro. - É a nossa sorte do costume.
- Chhh! - avisou Cato, inclinando-se para a frente. - Lá está ele.
Dois homens tinham-se detido nos degraus à entrada da casa. Lurco
era fácil de identificar no seu manto, mesmo com o capuz sobre a cabeça a esconder-lhe as feições. O outro envergava uma capa negra sem enfeites, e também ele tinha
o capuz sobre a cabeça, de forma a esconder o rosto. Saíram para a rua e avançaram na direção do fórum, passando pela arcada onde se escondiam Macro e Cato.
Cato encostou-se ainda mais à parede, e Macro agachou-se na sombra junto à porta. Cato sentia o coração aos pulos, e tentou controlar a respiração, para evitar que
a condensação traísse a sua presença. As botas dos homens ecoavam nas paredes dos edifícios dos dois lados da rua. Falavam em voz alta, como homens que tinham bebido
um tanto mais que a sua medida.
- Bela festa - disse Lurco. - Aquele Séneca sabe receber com estilo.
- Estilo? - desdenhou o companheiro do centurião. - O vinho era bom, mas a comida era à fome, e quanto às putas, já vi melhores.
- Ah, pois, sim. Mas eu estava a falar do próprio Séneca. Tem uma lábia invejável.
- Treta. Não passa de mais um janota que se acha superior aos outros só porque é capaz de dizer palavrões em grego. Quanto àquela galdéria da Agripina... Lurco,
deixa-me que te diga, não sou fácil de impressionar, mas a maldita da mulher é insaciável. Para ela tudo serve: desde um escravo jovem até um velho caquético como
o Séneca, marcha tudo.
Fez-se um curto silêncio enquanto os dois homens passavam junto a Cato e Macro, e só então Lurco prosseguiu, mas em voz baixa.
- Se fosse a ti, tinha cuidado com essas afirmações. O que dizes é traição, especialmente se o dizes em frente a um oficial da Guarda Pretoriana.
- Ora sim, vocês não passam de soldados de imitação. Vi homens bem melhores nas mais lamentáveis centúrias da Segunda Legião, e olha que não sou propriamente fã
dessa gentalha...
As vozes foram-se tornando indistintas à medida que os homens desciam a rua. Macro pegou em Cato pelo braço e sussurrou, com alguma urgência na voz:
- Aquela voz. Sabes quem é?
Cato anuiu.
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- O Vitélio.
- E agora, o que fazemos? Não nos podemos arriscar a que aquele filho da puta nos reconheça.
- Vamos. - Cato levantou-se. - Não podemos é perdê-los de vista.
Antes que Macro pudesse protestar, Cato seguiu atrás dos dois homens, mantendo-se nas sombras que ladeavam a rua. Macro soltou uma imprecação surda e seguiu-o. Mantiveram-se
a uma distância suficiente para que os outros dois não lhes escutassem os passos. Quando chegaram a um cruzamento, à saída do Quirinal, Lurco afrouxou o passo e
dirigiu-se à parede de uma casa próxima. Subiu a bainha da capa e remexeu a túnica.
- Vai andando, Vitélio. Já te apanho.
O outro homem deitou-lhe uma olhadela, anuiu e virou a esquina, enquanto Lurco suspirava de alívio ao urinar de encontro à parede.
- Cá está a nossa oportunidade - decidiu Cato. - Vamos apanhá-lo agora, enquanto está sozinho.
Macro concordou e pegou no porrete, enquanto os dois aceleravam, correndo junto à parede do outro lado da rua até se porem a par de Lurco. No último instante atravessaram
a rua; Lurco virou-se vagarosamente ao ouvir o ruído súbito. Cato lançou um ombro contra ele, atirando-o contra a parede. Lurco soltou um grunhido de dor, enquanto
perdia o fôlego. Macro aplicou-lhe um golpe com o porrete na nuca, e o centurião deslizou para o chão, para cima do charco de urina que ele próprio criara.
Cato estava ofegante, e o coração batia-lhe desalmadamente. Tinha sido mais fácil do que esperava. Agora só tinham de entregar Lurco nas mãos de Sétimo, na casa
segura.
- Vamos levantá-lo. Dê-me uma ajuda.
Agacharam-se e pegaram no centurião inconsciente, levantando-o entre os dois, com os braços por cima dos ombros deles.
- Pronto? - indagou Cato em surdina.
- Sim.
- Vamos pôr-nos a andar antes que o Vitélio venha ver o que se passa.
Não tinham andado mais do que uns passos quando escutaram uma
voz nas costas.
- Que raio estão vocês a fazer?
Cato olhou para trás rapidamente e avistou Vitélio na esquina, a não mais de uns dez passos. Apesar de ser noite, o céu estava limpo e o brilho das estrelas era
suficiente para que os dois homens conseguissem perceber as feições um do outro.
Vitélio pareceu confuso por momentos, mas depois o queixo descaiu-lhe levemente, enquanto ele dava voz ao assombro que o assaltava.
- Tu!
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Foi Macro quem primeiro quebrou o feitiço. Largou o braço de Lurco e rodou, enquanto sacava o porrete do interior da capa. Já o tinha na mão antes mesmo de dar o
primeiro passo na direção de Vitélio. O antigo tribuno estava ainda atónito e incapaz de reagir, e o vinho que consumira em grande quantidade não ajudava à sua coordenação
motora. Ainda assim, conseguiu esquivar-se quando Macro tentou atingi-lo, acertando ao invés na parede. O punho do veterano esbarrou nos tijolos, o que o fez soltar
um grito surdo de raiva e dor, enquanto Vitélio recuava aos trambolhões. Cato largou também Lurco e tentou ajudar o amigo, mas este já voltara ao ataque, esmurrando
o peito de Vitélio com a mão livre e fazendo-o cair sobre as lajes do pavimento.
- Socorro! - gritou Vitélio. - Alguém me ajude!
Macro atirou-se sobre ele, fazendo-o perder o fôlego. Ao mesmo tempo, balançou o porrete e lançou-o com toda a força contra a têmpora de Vitélio. Este apercebeu-se
do movimento e tentou virar-se, o que fez com que o golpe o atingisse no ombro.
- Ora porra! - resmungou Macro, enquanto atirava fora o porrete, cerrava o punho e o aplicava com violência no rosto do outro. A cabeça de Vitélio embateu no solo
e ele perdeu os sentidos, com os braços em desalinho por cima do corpo. Macro esboçou um novo murro, mas reparou então que Vitélio já estava desacordado. Levantou-se
a custo, com a respiração pesada. Cato aguardava do outro lado do homem tombado, contemplando a cena.
- Fantástico - resumiu Macro. - E agora, o que é que fazemos?
- Ele viu-nos. Sabe que estamos em Roma. Não podemos permitir que espalhe a notícia.
- Certo. - Macro lançou um sorriso cruel, e empunhou a adaga. - Tanto tempo esperei por este momento...
- Espere, o que é que pensa que está a fazer? - Cato pegou-lhe no braço.
Macro virou-se para o amigo com uma expressão de espanto.
- Temos aqui a oportunidade de nos livrarmos deste tipo duma vez
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por todas. Sabes muito bem o mal que fez, a nós e a outros. Não me lembro de outro homem que mais mereça uma lâmina nas costelas e ser deixado na sarjeta para sangrar
até à morte.
- Não. - Cato abanou a cabeça. - As nossas ordens nada dizem acerca dele.
- Consideremos então isto como um bónus. - Macro soltou a mão do aperto do jovem.
- Não. Macro, pense um bocado. Há testemunhas que o viram sair com o Lurco. O Narciso acabará por saber disso. Se ele aparecer morto, o Narciso depressa perceberá
que a responsabilidade foi nossa.
- E então? Não me parece que este tipo esteja na lista de amigos do Narciso.
- O que não quer dizer que ele não seja capaz de usar essa informação contra nós. Não podemos limpar o sebo ao filho de um dos mais influentes homens de Roma e esperar
que não haja consequências.
Macro manteve-se em silêncio, até por fim responder.
- Bom, podemos fazê-lo desaparecer, muito simplesmente. Deitamo-lo à Cloaca Máxima.
- E se o corpo for encontrado e reconhecido?
Macro brandiu a adaga.
- Há maneiras de o tornar irreconhecível.
- Macro, guarde isso - disse Cato, com firmeza. - Temos de o levar connosco.
- Oh, caralho - protestou Macro. - Não vai ser nada fácil carregá-los aos dois.
- Cá nos arranjaremos. Vigie a rua enquanto eu trato deles. - Cato pegou numa corda grossa e nalgumas tiras de pano que levava numa sacola por baixo da capa. Atou
as mãos dos dois homens e encheu-lhes as bocas com os panos. Não se via ninguém na rua, e tudo o que se ouvia era o habitual ruído de fundo da capital. Ajudou Macro
a colocar Vitélio ao ombro e pegou em Lurco, que era de constituição menos pesada do que o seu companheiro.
- Pronto? - indagou. - Vamos embora.
Estavam a umas largas centenas de metros da casa; seguiram com os seus fardos por ruas estreitas e pouco frequentadas. A certa altura Vitélio começou a agitar-se,
e Macro, com deleite, aproveitou para lhe bater com a cabeça contra uma parede, para o manter quieto e calado.
- Não se habitue a isso - avisou Cato, enquanto subiam a colina que levava ao bairro da Subura. Mesmo antes de chegarem à casa segura, deram de caras com um ruidoso
bando de jovens, e tiveram de inventar uma história sobre a incapacidade dos amigos para aguentarem o vinho. Os dois
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grupos separaram-se com gargalhadas animadas. Por fim chegaram ao edifício para onde se dirigiam, e deixaram Vitélio no vestíbulo enquanto subiam as escadas com
o centurião. Sétimo abriu-lhes a porta e recuou para o interior do quarto, iluminado pela habitual lamparina.
- Bom trabalho - assentiu com ar de aprovação, enquanto se preparava para fechar a porta.
- Espera - soltou Cato num sussurro fatigado. - Há mais um... A caminho.
- Mais um? Do que é que estás a falar?
- Já explico... Macro, venha.
Quando entraram com Vitélio, o agente imperial contemplou-o com surpresa, mas esta depressa se transformou em choque quando reconheceu as feições do prisioneiro.
- Estão doidos? Deuses misericordiosos, sabem de quem se trata? O que está ele aqui a fazer?
- Estava com o Lurco... Quando o apanhámos - explicou Cato, entre inspirações ofegantes. - Não tivemos escolha.
- Não era preciso trazê-lo para aqui. Porque é que não o deixaram na
rua?
- Reconheceu-nos.
- Como?
Cato trocou um olhar desconfiado com Macro antes de responder.
- Calculo que o Narciso não te deu a conhecer todo o nosso passado.
- Só o que era mesmo preciso saber - retorquiu Sétimo, na defensiva.
- Na minha profissão, saber de mais revela-se frequentemente perigoso.
- Nesse caso, basta ficares a saber que estivemos com o Vitélio na Segunda Legião, na Britânia. Digamos que tivemos algumas divergências em vários assuntos.
Macro soltou uma risada.
- Foda-se, aí está um eufemismo.
Cato prosseguiu.
- Seja como for, não podemos permitir que ande por aí livremente. Ele pode ligar-nos ao desaparecimento do Lurco. É forçoso que saia de circulação até terminarmos
a nossa missão. Tem de seguir o mesmo caminho do Lurco.
- Ou então livramo-nos dele - sugeriu Macro, erguendo de seguida as mãos para aplacar a evidente fúria de Cato. - Só estou a lembrar as opções que restam.
Sétimo inspirou ansiosamente.
- O Narciso não vai gostar nada disto. O controlo desta história está a fugir-nos por entre os dedos. Mas sim, temos de tratar do Vitélio.
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Ouviu-se um gemido, e os três homens viraram-se. Vitélio começava a acordar.
- Temos de o vendar - sussurrou Cato a Sétimo. - Já viu de mais. Não queremos que no futuro seja capaz de te identificar.
- Pois não. Trata disso e põe-no no outro quarto enquanto falamos com o Lurco. Temos de descobrir o que ele sabe sobre o plano dos Libertadores.
Macro empunhou a adaga e cortou uma tira do manto de Vitélio; usou-a para lhe tapar os olhos, com duas voltas em torno da cabeça terminadas com um nó bem apertado.
Depois pôs as mãos por baixo dos ombros do antigo tribuno e arrastou-o pelo chão até ao compartimento do lado, onde o despejou no solo. O choque despertou Vitélio
por completo, e ele esforçou-se por vencer a mordaça, enquanto se remexia sobre o soalho. Macro pôs-lhe a bota sobre o ombro e pressionou.
- Não te mexas - avisou. - Talvez te permitamos continuar a viver. Mas se nos deres problemas, juro por todos os deuses que te corto a garganta sem pestanejar. Percebido?
O outro parou de se remexer e ficou quieto, com o peito a subir e a descer em ritmo acelerado. Assinalou que tinha compreendido a ameaça com um breve gesto da cabeça.
- É assim mesmo. Bonito patrício - comentou Macro, sem esconder o desprezo. Virou-se e foi até ao outro quarto, onde Cato e Sétimo tinham encostado Lurco de pé contra
a parede. Sétimo puxou o capuz para a face, de forma a ocultar as feições. Lurco gemia baixinho, e Cato arrancou-lhe a mordaça da boca. O centurião vomitou de imediato,
e um bafo acre atingiu o rosto de Cato. O homem murmurava incoerências e revirava repetidamente os olhos, pelo que Cato lhe deu uma estalada.
- Vá! Toca a acordar!
- Hummm... O quê? - Lurco piscou os olhos e lançou a cabeça para trás, o que a fez embater com estrondo contra a parede. Fez uma careta e soltou um gemido de dor.
- Fantástico - comentou Macro. - Era mesmo disto que precisávamos: o idiota vai acabar por desmaiar outra vez.
- Chhh! - soltou Cato, irritado. Debruçou-se sobre o centurião e abanou-lhe o ombro com toda a força. - Lurco... Centurião Lurco!
O homem gemeu de novo e entreabriu os olhos, que depois piscou, tentando focar a vista. Contemplou os rostos à sua frente, e os olhos esbugalharam-se-lhe de surpresa.
- Eu conheço-vos. Claro que vos conheço. Os guardas Capito e Cálido. Os novos recrutas. - Fez uma careta enquanto tentava descortinar
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a face de Sétimo, mas a sombra do capuz disfarçava-a, pelo que desistiu e voltou a focar-se em Cato e Macro.
- Pelos deuses, hei de ver-vos crucificados! Atacar um oficial superior, raptá-lo. Não haverá piedade para vocês.
- Calado - instou Cato, enquanto lhe mostrava um punho com ar ameaçador. - Quem está metido em sarilhos és tu. A não ser que respondas às nossas questões com a verdade.
Lurco pareceu hesitar e depois deixou transparecer algum receio. Engoliu em seco, ansioso, e lambeu os lábios antes de responder em tom submisso.
- Questões?
- Não te armes em inocente - irrompeu Sétimo. - Sabemos bem que fazes parte da conspiração.
O sobrolho de Lurco enrugou-se.
- O quê? Qual conspiração?
Sétimo aplicou-lhe um repentino pontapé no estômago e, quando Lurco, aflito, tentou sorver algum ar, espetou-lhe um dedo na face.
- Acabaram-se os avisos. Nós perguntamos, tu respondes. Percebido?
- Sim... - murmurou Lurco. - Perfeitamente.
- Ora bem. Um traidor que caiu recentemente em nosso poder mencionou o teu nome. Traiu-te, antes de nós lhe acabarmos com a raça. Disse que eras um dos cabecilhas
do plano para derrubar o Imperador.
- Mentira! - Lurco abanou a cabeça com ar desesperado. - Não sou um traidor. Por Júpiter, fiz um juramento de lealdade!
- Também o outro o tinha feito. O que não o impediu de trair Cláudio. Nem a ti.
- Não. Há aqui um erro.
- Tens toda a razão - retorquiu Sétimo, enquanto acenava a Macro.
- Vê lá se consegues soltar-lhe a língua, ou pelo menos os dentes.
- Com todo o prazer. - Macro sorriu friamente e cerrou os punhos. Aplicou uma direita na maçã do rosto do centurião, fazendo-lhe a cabeça rodar para o lado. Um espasmo
de dor percorreu o braço de Macro, juntando-se à dor surda que tinha ficado desde o soco na parede quando da luta com Vitélio. Lurco soltou um gemido bem audível.
Atordoado, virou-se para enfrentar os que o interrogavam; as sombras dos verdugos, distorcidas e ameaçadoras, dançavam na parede do fundo. Cuspiu sangue e falou,
tentando dar uma impressão de calma e sinceridade.
- Estou inocente, volto a dizer-vos.
- Estou a ver - gozou Sétimo. - Então porque é que alguém apontou o teu nome?
- E-Eu sei lá. Juro que é mentira.
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- Pois sim! Lurco, aqui o mentiroso és tu. E nem sequer tens muito jeito para isso. Quero a verdade. Macro!
Os olhos de Lurco pularam na direção de Macro, lançando uma evidente súplica silenciosa. Desta vez o veterano atingiu-o com o punho esquerdo, apanhando-o por cima
do ouvido, já que Lurco tentou esquivar-se. O centurião estremeceu e as suas pálpebras ameaçaram cerrar-se.
- Por favor... Por favor. Sou inocente - murmurou.
Sétimo contemplou-o em silêncio e depois endireitou-se, quase batendo com a cabeça numa das traves do teto baixo. Olhou para o centurião e depois coçou o nariz.
- Bem, rapazes, o que acham? Pensam que ele está a ser honesto connosco?
- Não me parece - ripostou Cato, entrando no jogo. - Lembras-te de quanto tempo resistiu o outro traidor antes de confessar tudo de enxurrada? É só uma questão de
tempo, e da quantidade de pancada que ele é capaz de aguentar até nos dar a informação que queremos. Vamos a isso.
- Com todo o prazer - repetiu Macro, enquanto avançava de punhos em riste.
- Por piedade! - guinchou Lurco. - Isto está errado. Tudo errado. Sou leal a Cláudio. Sou inocente. Tem de acreditar no que vos digo!
- Nem por isso. - Macro bateu com as mãos uma na outra e fez estalar os nós dos dedos, desejando com toda a força não se ver obrigado a usar outra vez a mão aleijada
para bater no homem.
- Olha para esta situação do nosso ponto de vista - prosseguiu Sétimo, adotando um tom mais conciliador. - Porque é que havemos de acreditar em ti, e não no homem
que nos deu o teu nome?
- Porque estou a dizer a verdade. Perguntem-lhe outra vez. Perguntem-lhe porque é que mente.
- Isso será impossível, infelizmente. Sofreu um lamentável acidente fatal durante o interrogatório.
Lurco ficou ainda mais pálido. Quando voltou a falar, fê-lo num tom suplicante.
- Olhem, houve aqui um engano. Esse tipo que interrogaram deve ter-se enganado no nome.
- Não, não. - Sétimo deu um estalo com a língua. - Ele foi muito claro. Centurião Lurco, Sexta Centúria, Terceira Coorte da Guarda Pretoriana. És tu, não és? Não
há engano nenhum.
- Então... Então estava a mentir.
Sétimo trocou um olhar com Cato.
- O que achas?
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Cato fingiu que ponderava a questão.
- É possível, sim. Mas depois há a outra coisa.
-Oh?
- Sim, o outro facto que descobrimos. Aquela história de o centurião Sínio lhe querer tratar da saúde. Não faz grande sentido. Muito estranho.
- Sim - assentiu Sétimo. - Estranho, de facto.
Lurco olhou de um para o outro com apreensão crescente.
- O Sínio quer ver-me morto? O que se passa aqui afinal?
- Muito simples - indicou Macro. - O Sínio deu-nos ordens claras para te despacharmos.
- Mas em vez disso trouxemos-te para aqui - continuou Cato. - Já sabemos que o Sínio está envolvido na conspiração. O que nos faz espécie é que um dos conspiradores
dê ordens para a eliminação de outro. Queres explicar-nos essa questão?
- E-Eu não sei nada disso. - O cativo ergueu as mãos atadas. - Tem de acreditar em mim. Peço-vos.
Macro estalou os dedos e olhou para Cato como se tivesse acabado de ter uma ideia.
- Talvez os traidores estejam a tentar apagar os seus rastos? Os mortos não contam histórias, e outras ideias do mesmo género.
- Mas eu não sou nenhum traidor! - Lurco chorava. - Não estou envolvido em nenhuma conspiração!
- Pouco barulho! - ameaçou Macro. - Ainda acabas por acordar toda a gente no prédio, porra.
Lurco calou-se.
Cato voltou a falar.
- Se isso for verdade, então porque é que achas que os conspiradores se querem ver livres de ti? Tem de haver uma razão. O que é que tu sabes que te transforma num
perigo para eles?
- Não sei. Juro que não faço ideia. Acreditem em mim, por favor!
Os três homens contemplaram-no em silêncio, e o centurião voltou a
encolher-se, assustado. Sétimo respirou fúndo, encheu as bochechas de ar e deixou-o sair com um assobio.
- Temos de conversar. Ponham-no no outro quarto, ao pé do amigo.
Macro e Cato pegaram no centurião pelos braços e arrastaram-no até
ao outro quarto, deixando-o junto à parede oposta àquela onde se encontrava Vitélio. Fecharam a porta com firmeza e aproximaram-se de Sétimo, de forma a que os prisioneiros
não os pudessem escutar.
- Estamos na mesma - concluiu Sétimo com amargura. - Por que raio quereriam os Libertadores vê-lo morto?
- Talvez estivessem apenas a fazer um favor à guarda imperial -
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sugeriu Macro, com pesada ironia. - Aquele tipo não é propriamente o melhor oficial que já conheci.
- Parece-me que podemos descartar essa ideia - retorquiu Sétimo, que não conhecia Macro o suficiente para perceber se ele estava ou não a ser sarcástico.
Cato passou a mão pelo cabelo.
- Se existe de facto uma razão para eles quererem o Lurco eliminado, tem de ser por causa de qualquer coisa que ele sabe, ou porque estando naquela posição lhes
atrapalha os planos. Pelo pouco que conseguimos arrancar-lhe, dá-me ideia de que ele não tem a mais pequena noção de que existe uma conspiração.
- A não ser que seja um excelente ator - interveio Macro.
- É possível - admitiu Cato. - Mas o medo que mostrou pareceu-me bem real. Se ele de facto sabe alguma coisa que os Libertadores acham que pode prejudicar os seus
planos, é evidente, pelo menos para mim, que o desgraçado do Lurco não faz ideia de que possui esse conhecimento.
Macro fez uma careta.
- Diz lá isso outra vez?
- Não importa - respondeu Cato, enquanto seguia a mesma linha de pensamento. - Se não o querem morto só para o calar, então a razão deve ser que o veem como um obstáculo.
Querem que ele seja substituído.
- Substituído? - Sétimo encarou-o. - Porque quereriam fazer isso?
A mente de Cato lutava para abarcar todas as implicações da sugestão.
Se estivesse certo, havia uma clara e evidente ameaça ao Imperador a crescer.
- Porque é ele quem comanda os guardas que neste momento estão mais próximos do Imperador. Se os Libertadores conseguirem colocar um dos seus no lugar do Lurco,
estarão em posição de atacar diretamente o Imperador. E com isto quero dizer que vão mesmo tentar matá-lo. Faz todo o sentido. Já tentaram uma vez, com aquela emboscada
ao séquito imperial no dia dos jogos da Ascensão. Da próxima vez, calculam eles, não terão de atravessar uma linha de guardas para espetar a lâmina.
Sétimo continuava a encará-lo, pensativo.
- Pode ser que tenhas mesmo razão...
- O Narciso tem de tirar o Lurco e o Vitélio de Roma, e mantê-los escondidos - prosseguiu Cato. - Depois, esperamos para ver quem é que é nomeado como novo centurião
da Sexta Centúria, e vigiamo-lo como falcões. Descobrimos com quem é que conversa, e asseguramo-nos de que nos mantemos bem perto dele, de forma a podermos agir
quando a centúria estiver a escoltar o Imperador.
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- É um risco muito grande - considerou Macro. - Duvido que o Narciso concorde. Porque não agir logo, e prender o substituto do Lurco? E já agora o Sínio?
- Porque serão eles quem nos vai levar aos outros conspiradores - ripostou Sétimo, antes que Cato pudesse dizer alguma coisa. - E esperemos que nos levem também
ao que resta da prata roubada.
- Exatamente - concordou Cato. Fez uma breve pausa. - Mas antes disso temos um assunto mais premente. Garantir que os cereais que o Céstio tem açambarcado ainda
estão no armazém junto ao Boário. Se conseguirmos confirmar, o Narciso pode tratar de os confiscar, e o Imperador pode começar a distribuir comida ao povo. E, quando
isso suceder, a população só pensará em dedicar-lhe loas, em vez de ameaças. E isso esvaziará por completo os planos dos Libertadores.
- Muito bem - concluiu Sétimo. - Amanhã trataremos disso. Encontramo-nos à porta do Boário ao meio-dia. Para já, o melhor é que vocês os dois regressem ao campo
e descansem um bocado. Eu trato dos nossos dois amigos.
- Tratas? - Cato arqueou uma sobrancelha.
- Serão levados para um lugar onde ficarão sob vigilância. Quando esta história terminar, serão libertados. Nada de mal lhes acontecerá.
- Olha que pena - resmungou Macro.
- Como é que os vais tirar da cidade?
- Tenho um vagão coberto num armazém que fica por baixo do aqueduto aqui ao fim da rua.
Cato anuiu e dirigiu-se para a porta com Macro. Parou antes de a transpor.
- Lembrei-me agora. O Sínio há de querer uma prova de que o trabalho foi mesmo feito. Preciso de qualquer coisa do Lurco.
Foi até ao outro quarto e regressou rapidamente com o anel do centurião, que testemunhava a sua pertença à classe equestre.
- Mais um detalhe, e o Sínio ficará convencido.
- Hã? - Macro deitou-lhe um olhar interrogativo. - No que é que estás a pensar?
- Já verá. Vamos.
Saíram do apartamento para o patamar. Antes de fechar a porta, Sétimo sussurrou um aviso:
- No Boário ao meio-dia, então.
Desceram às apalpadelas as escadas escuras e gastas, marcadas pelo constante ranger das tábuas, até se verem na rua em frente ao edifício de apartamentos.
- Bom, regressemos ao campo! - O tom de Macro era de alívio, uma
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vez que tinham completado a missão noturna. - Ainda podemos dormir um par de horas antes da formatura da manhã.
- Há mais uma coisa a fazer antes - lembrou Cato.
- O que é agora? - indagou Macro, já cansado.
- Uma coisa não propriamente agradável, mas necessária. - Cato endureceu a mente, preparando-se para o ato, e fez um gesto ao longo da rua. - Vamos.
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Os homens da Sexta Centúria estavam formados, mas à vontade, à espera que o seu comandante aparecesse à porta das acomodações dos oficiais e tomasse conta da formatura.
O centurião Lurco estava atrasado, e os homens depressa teriam começado a murmurar e a remexer-se, se não fosse terem sobre si o olhar gélido do optio Tigelino,
que andava para trás e para a frente ao longo da parada, com a vareta debaixo do braço.
Cato, em particular, não conseguia evitar a sensação de se sentir observado, já que era devido aos seus esforços e aos de Macro que a centúria ali estava ao frio,
à espera de alguém que não ia aparecer. Àquela hora, o centurião e Vitélio já deviam ter sido levados para fora da cidade, a caminho da remota propriedade onde seriam
mantidos até que Narciso ordenasse a sua libertação.
- Foda-se, onde é que anda aquele estafermo? - murmurou Fúscio, exasperado. - Aposto que o filho da puta ainda está na cama, quentinho, a cozer alguma bebedeira.
- É o mais provável - concordou Macro.
- Pois, mas não me consola nada. Os oficiais deviam saber que não podem deixar-nos assim ao frio, à espera, sem nada para fazer.
- Um oficial da legião estava tramado se fizesse uma destas - reforçou Macro. - Mas também, são homens muito mais rijos.
Fúscio olhou-o com fúria, e resmungou num tom que não escondia o ceticismo.
- Dizes tu.
- Digo, pois - insistiu Macro. - E desafio qualquer homem a contradizer-me.
- Quem é que está para aí a palrar? - rugiu Tigelino, caminhando rapidamente ao longo da linha até junto deles. Macro e Fúscio calaram-se de imediato e fixaram o
olhar em frente. Tigelino passou por eles, os olhos a faiscar, enquanto tentava localizar os culpados. Chegou ao fim da fileira, fez meia-volta e regressou.
- Porra, eu não sonhei. Tenho a certeza que ouvi um ou mais destes cabrões imbecis na conversa, como se fossem rapazotes depois da sua p
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primeira visita a uma casa de putas! Quem foi? Vou dar-vos uma oportunidade para se denunciarem, ou então, foda-se, prometo-vos que vai a centúria toda daqui para
as latrinas, para umas faxinas bem agradáveis!
- Merda... - comentou Macro, por entre os dentes. - Sempre na merda, de uma forma ou doutra.
Respirou fundo e deu um passo à frente.
- Macro! - sussurrou Cato. - Que raio está a fazer? Volte para a linha antes que ele o veja.
Macro ignorou-o e, ao invés, anunciou em voz bem alta:
- Optio! Fui eu quem falou.
Tigelino rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se para Macro, empurrando os soldados da primeira fila e parando mesmo em frente dele, com uma expressão de fúria no
rosto.
- Tu? Guarda Cálido. Esperava bem melhor de um veterano com a tua experiência. Ou será que a tua preciosa Segunda Legião afinal não passava de um bando de senhoras
entretidas com as suas costuras? Hã?
Cato estremeceu involuntariamente. Em circunstâncias normais, um comentário daquele género seria entendido pelo amigo como um verdadeiro convite para a pancadaria.
O facto de ter uma patente realmente muito superior à de Tigelino e se ver obrigado a escondê-la naquela vida de clandestinidade só serviria para alimentar a fúria
de Macro. Mas o veterano manteve a boca firmemente fechada e não respondeu à provocação. Tigelino fez uma breve pausa e arreganhou o lábio antes de continuar.
- Assim se vê o espírito de luta que reina na Segunda. Cálido, ficas de castigo. Dez dias de faxina às latrinas. Talvez assim aprendas a manter a boca calada quando
estiveres na formatura.
- Sim, optio.
- Volta à formação! - urrou Tigelino, e Macro deu um passo atrás, reintegrando a linha.
O optio lançou-lhe mais uma olhadela de desdém, rodou sobre os calcanhares e prosseguiu nas suas idas e vindas preocupadas.
- Por que raio fez isso? - indagou Cato pelo canto da boca.
- Ele ouviu-me. Conheces o tipo, Cato. Nunca deixaria uma coisa destas passar em claro.
- Pois, mas a verdade é que não tem tempo para perder a remexer na merda.
Macro encolheu ligeiramente os ombros.
- Neste preciso momento, sinto-me como se estivesse a chafurdar nela.
Mantiveram-se em silêncio mais algum tempo; os homens de outras centúrias, a quem já tinha sido dada ordem para dispersar depois da
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formatura matinal, paravam ao fundo do bloco das casernas para ver o que se passava.
- Estão a olhar para onde? - gritou-lhes Tigelino, o que fez com que os curiosos se apressassem a seguir o seu caminho.
Um oficial alto e espadaúdo ia a passar ao fundo, na direção do edifício do comando, quando reparou na figura da Sexta Centúria; deteve-se a meio caminho, mudou
de direção e caminhou até junto de Tigelino.
- Optio, o que se passa aqui? - indagou o tribuno Burro. - Porque é que os teus homens ainda estão na parada?
Tigelino endireitou os ombros e pôs-se em sentido.
- Senhor, aguardamos pelo centurião Lurco.
- Aguardam? - Burro franziu o cenho. - Foda-se, a que propósito? Chamem-no. Já enviaste um homem à procura dele?
- Sim, senhor. Mas o centurião não estava nos seus aposentos.
- Não? Então onde anda ele, caraças?
A questão era retórica, e Tigelino manteve o silêncio.
Burro abanou a cabeça.
- Ora muito bem, dispensa os teus homens. Manda alguém à procura do Lurco. No momento em que for encontrado, ele que vá falar comigo.
- Elevou a voz, de forma a que toda a centúria pudesse escutar as suas palavras. - Estou-me nas tintas para as patentes quando um homem sob o meu comando não cumpre
os seus deveres. O centurião Lurco vai levar a ensaboadela da vida dele quando eu o apanhar. Optio, prossegue!
- Sim, senhor. - Tigelino fez a saudação e esperou que o tribuno se afastasse antes de se virar para os homens e respirar fundo. - Sexta Centúria... Dispersar!
Os homens rodaram para o lado e desfizeram a formação, dirigindo-se para as camaratas, trocando comentários em voz baixa acerca da ausência do centurião. Cato e
Macro regressaram ao quarto da secção com Fúscio, e o jovem pretoriano apressou-se a fechar a porta. Virou-se para os dois com uma expressão excitada.
- Esta vai ficar na história, mesmo para o Lurco!
Macro arregalou os olhos.
- Então o centurião já tem outras histórias do género?
- Oh, sim. Já nos apareceu num estado completamente miserável, mas nunca faltou a uma formatura. Onde se terá ele metido?
- O mais provável é que se tenha embebedado de tal forma que não deu por nada - disse Cato. - Parece-me é que, quando aparecer, vai andar em bolandas. O tribuno
Burro não me parece muito do tipo condescendente.
- É bem verdade. - Fúscio riu, enquanto colocava o seu dardo no
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encaixe na parede. O estômago rugiu-lhe quando recuou. Fez uma careta.
- Pelos deuses, estou esfomeado.
- Estamos todos, miúdo - lembrou Macro. - Mesmo assim, estamos melhor do que aqueles desgraçados da Subura. Pelo menos somos alimentados com regularidade. Eles têm
de andar à caça de migalhas. Daqui a pouco vão começar a cair como tordos.
Fúscio anuiu, pensativo.
- A coisa não está boa. O Imperador dececionou-nos. Não falta muito para começarmos a passar fome como a populaça. Nessa altura vai haver chatices.
Cato olhou-o.
- Chatices? Achas que não temos já bastantes entre mãos?
- Os motins? - Fúscio abanou a cabeça. - Isso não foi nada, comparado com o que vai suceder quando houver milhares de pessoas a morrer à fome. Digo-vos já, nessa
altura o sangue há de correr pelas ruas. A Guarda Pretoriana será a única força capaz de impedir que o caos se instale. A única coisa entre o Imperador e a turba.
E nessa altura, ou o Cláudio nos promete uma fortuna suficiente para assegurar a nossa lealdade, ou...
- Ou o quê? - incitou Macro.
Fúscio lançou um olhar nervoso à porta, para garantir que continuava fechada, e prosseguiu, num tom menos exuberante.
- Ou teremos de escolher um novo Imperador. Um que seja capaz de pagar pela nossa lealdade.
Macro trocou um rápido olhar com Cato antes de pigarrear e dizer, em tom grave:
- Isso que dizes é traição.
- Meu amigo, passaste demasiado tempo nas legiões. - Fúscio sorriu. - É assim que as coisas funcionam aqui na Guarda Pretoriana.
- E tu é que hás de saber. Mal passaste aqui tempo suficiente para distinguir uma ponta de um dardo da outra.
- Escuto o que os outros dizem. Falo com as pessoas. - Fúscio acenou. - Sei o que se passa. O Cláudio pode ser o Imperador, mas se não fizer nada para adoçar a boca
à Guarda Pretoriana, há entre nós quem não se incomode nada em arranjar outro a quem servir.
- É mais fácil de dizer do que de fazer - comentou Cato. - O Britânico é demasiado jovem. Como o Nero, aliás.
- O Nero pode ser jovem, mas é popular. Viste como os guardas o aclamaram durante os jogos.
- E então, vamos fazer o Imperador em postas e pôr outro no seu lugar só por uma questão de popularidade?
Fúscio mordeu o lábio rapidamente.
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- É uma razão tão boa como outra qualquer. E podem ter a certeza que um novo Imperador fará tudo o que puder para garantir que a Guarda Pretoriana o apoia desde
o princípio. Isso agrada-me. E a vocês também devia agradar, se fossem suficientemente espertos para o perceber.
Cato não apreciava a volátil interpretação que o jovem fazia dos deveres de um soldado. Tinha reparado na ganância ambiciosa que faiscara nos olhos de Fúscio, e
sentira de imediato um quase irreprimível desejo de se libertar da fossa de répteis venenosos em que consistia a política romana. A ambição desmedida e impiedosa
que preenchia o espírito dos que ocupavam o coração do poder do Império não conhecia travão nem moralidade. Agora que ele e Macro tinham sido sugados para aquele
mundo, nada mais desejava do que regressar à vida regrada dos deveres militares. A necessidade de esconder a sua verdadeira identidade e manter uma constante atenção
ao que se passava em seu redor criavam uma tensão constante e extenuante, e Cato não tinha qualquer vontade de ficar em Roma um minuto a mais do que fosse estritamente
necessário. De repente apercebeu-se de que entrar, pelo casamento, na família de Júlia, podia muito bem enredá-lo definitivamente no perigoso e perverso mundo da
capital. O pai dela era um senador, um jogador no tabuleiro da política, que tantas vezes se revelava letal. Se se tornasse parte desse mundo, compreendeu de súbito,
teria de viver permanentemente em condição de alerta máximo.
Não era vida para um soldado, refletiu, antes de sorrir interiormente ao notar que também ele já se identificava a si mesmo como um profissional das armas. Até havia
pouco, mantivera grandes dúvidas quanto às suas capacidades de combatente, e considerara que estava apenas a desempenhar o papel de um guerreiro, sem verdadeiramente
o ser. Mas essa ideia já não o apoquentava. As duras experiências por que passara ao longo dos anos no exército tinham acabado por imprimir na sua alma a devoção
àquele estilo de vida, tal como as armas dos inimigos tinham em diversas ocasiões deixado marcas no seu corpo, de tal forma que a sua identidade real se tinha tornado
aparente para todos - um soldado de Roma, de uma ponta à outra.
Ao mesmo tempo que se reconfortava com esta certeza, Cato sentia também uma certa ansiedade enquanto tentava perceber se algum dia conseguiria equilibrar essa evidência
com o sonho realizado de se ver marido de Júlia e pai dos filhos que um dia teriam, se fosse essa a vontade dos deuses. Outros homens conseguiam-no, mas Cato não
se sentia seguro de ser capaz de assumir tamanho compromisso. E a questão tinha ainda outro lado: estaria Júlia disposta a tolerar aquela situação? Estaria ela pronta
a ser uma esposa leal e apaixonada enquanto Cato partia para as campanhas ao lado de Macro, para proteger as fronteiras do Império?
Tentou sacudir as dúvidas e concentrar-se numa resposta adequada
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a Fúscio. Era possível que o jovem estivesse apenas a testá-lo. Talvez também ele estivesse de alguma forma envolvido na conspiração. Ou teria escutado algum rumor?
Ainda mais preocupante era a possibilidade de ele representar apenas uma posição comum nas fileiras da Guarda Pretoriana.
- Um novo Imperador - lançou, como se fosse a primeira vez que pensava no assunto. - E achas que será o Nero?
- Quem mais?
- Bom, é ele de facto o mais provável candidato a substituir o Cláudio
- concedeu. - Porém, há outra possibilidade. Para quê preocuparmo-nos com um Imperador? Porque não regressar aos dias da República? Claro, nesse caso, ficávamos
sem trabalho. Para que serviria a Guarda sem ter um Imperador a quem proteger?
Fúscio olhou-o por momentos.
- Seja lá quem for que governe Roma, podes ter a certeza que há de precisar de proteção. O Senado precisará tanto de quem o ampare como um Imperador. E estará preparado
para pagar por isso.
Macro soltou uma gargalhada.
- O que tu sugeres é que a Guarda Pretoriana se dedique ao negócio da proteção.
Fúscio encolheu os ombros.
- Chama-lhe o que quiseres. A verdade é que somos nós o verdadeiro poder por trás do trono imperial, ou de quem escolhermos apoiar.
- Achas mesmo que o exército devia tomar o poder? - indagou Cato.
Um sorriso perpassou pelo rosto do jovem guarda.
- Nem pensar. Pensa antes nisso como um controlo discreto sobre o poder de quem governa em Roma. Serviço pelo qual devemos ser principescamente recompensados.
- Senão... - acrescentou Macro, sarcástico.
A tranca da porta subiu de repente e a porta abriu-se de rompante; os três homens olharam para lá com ar culpado, apenas para ver o optio Tigelino à entrada do quarto.
Olhou para eles com ar curioso.
- O que se passa aqui? Vocês parecem um grupo de panilas apanhados em plena atividade. - Soltou um grunhido divertido antes de fazer um gesto com o polegar sobre
o ombro. - Cálido, Capito, ao comando. O centurião Sínio mandou chamar-vos. Toca a despachar.
- Sim, optio - assentiu Cato. - Alguma ideia do que ele quer?
- Népia. - Tigelino sorriu com ar de gozo. - Isso, meu caro, é contigo.
Cato apalpou discretamente a bolsa que levava à cintura. Tinha estado à espera daquela chamada.
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Tigelino começou a tirar o capacete, enquanto Cato e Macro saíam. Quando iam mesmo a passar pela porta, o optio voltou a falar.
- Não pensem que eu não reparei no vosso gosto pelas escapadelas noturnas. Espero bem que não andem metidos nalguma coisa que me venha a provocar problemas, se me
faço entender.
Cato não retorquiu; limitou-se a assentir, acenar a Macro e sair por fim do quarto, dirigindo-se ao edifício do quartel-general.
- Ouvi dizer que o centurião Lurco desapareceu. - Sínio inclinou a cabeça para o lado, enquanto contemplava os dois guardas em sentido à frente da sua secretária.
- Ninguém o encontra em lado nenhum. O oficial que estava de serviço ao portão principal afirma que ele saiu ontem à noite e não regressou. Posso concluir que não
temos de nos preocupar com o seu eventual reaparecimento?
- Sim, senhor - respondeu Cato.
- O que é que lhe aconteceu?
Cato meteu a mão na bolsa e extraiu um pequeno objeto que lançou sobre a secretária, onde aterrou com um baque surdo. O centurião Sínio não evitou um torcer do nariz
de nojo ao avistar o dedo decepado que ostentava o anel equestre que pertencia a Lurco. Cato observou a reação do outro com toda a atenção. O dedo provinha de um
dos cadáveres mais frescos que tinham apanhado na embocadura da Cloaca Máxima. Não lhes tinha sido difícil cortá-lo e colocar-lhe o anel de Lurco. O embuste devia
ter um efeito convincente, tinha pensado Cato, e seria bastante mais credível do que um simples anúncio de que ele e Macro tinham mesmo liquidado o comandante da
sua centúria. Sínio pegou no dedo para inspecionar de perto o anel, e, depois de um curto silêncio, acenou satisfeito, recolocando-o sobre a mesa. Olhou para Cato.
- Muito bem. Parece que afinal vocês os dois são realmente o tipo de homens em que podemos confiar. Os vossos talentos ser-nos-ão muito úteis nos dias que se avizinham.
Mesmo muito úteis.
- E quanto ao nosso dinheiro, senhor? - quis Macro saber. - O Capito disse que nos seriam dados mais mil denários assim que este trabalho estivesse concluído.
- Há uma recompensa, de facto. Não pensaram que eu não ia honrar o que tínhamos combinado, espero eu?
- A confiança é, neste mundo, um luxo a que poucos se podem permitir - ripostou Macro. - Confio em quem me paga. Se tentar enganar-me, o mais certo é que acabe por
se ir juntar ao Lurco... Senhor.
O centurião olhou-o com cara de poucos amigos e pronunciou-se numa voz calma, quase pérfida.
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- Atreves-te a ameaçar-me? Sabes muito bem qual é o castigo por ameaçar um oficial superior.
- Sim, mas neste momento não vejo aqui nenhum oficial superior. - Macro retorceu o lábio, mostrando algum desdém. - Só um conjurado. Ou, para alguns, um traidor.
A única diferença é que há quem ache que está envolvido em defesa de nobres ideais, enquanto eu e o Capito estamos mais interessados no dinheiro.
Cato observou o amigo com cuidado. Macro estava a desempenhar bem o seu papel, tal como tinham combinado durante o trajeto desde a camarata. Era muito importante
que estabelecessem um motivo credível para se envolverem na conspiração.
Sínio anuiu, lentamente.
- Estou a ver. Digam-me, nenhum de vocês está preparado para agir puramente pelo sentido do dever para com Roma? - O olhar pousou em Cato. - E tu?
Cato mordeu os lábios, como se estivesse a pesar as palavras.
- Senhor, está muito certo que se apele ao patriotismo, mas a verdade é que, do ponto de vista de gente como eu e o Cálido, pouca diferença faz saber quem governa
o Império. Seja o Imperador Cláudio, sejam os seus amigos, para o povo de Roma ou para nós, soldados, é igual ao litro. - Cato fez uma pausa. - Enquanto houver um
Imperador, haverá uma Guarda Pretoriana, e safamo-nos bem com o salário e as gratificações. Se o plano é pôr outro homem no trono, continuaremos a ter trabalho,
e entretanto teremos conseguido um pequeno bónus pelos serviços prestados à vossa causa. Porém, se o plano for acabar com os imperadores e devolver o poder ao Senado,
poderemos vir a perder alguma coisa no fim da história, e portanto convém-nos ser bem pagos nesta altura. Portanto, peço desculpa, mas o que me interessa é a minha
própria pessoa, antes de mais. De qualquer forma, nem por um momento acredito que todos estejam dispostos a abdicar de beneficiar monetariamente de uma mudança de
regime. Na política não há motivos puros, pois não, senhor?
- Ah! Capito, quem és tu afinal? Um soldado, ou um estudioso da política?
Cato puxou os ombros atrás e empertigou-se.
- Sou um soldado. Alguém que serviu o tempo suficiente para saber que a sua lealdade deve ir, em primeiro lugar, para si próprio e para os seus camaradas. O resto
é colírio para os olhos dos tontos.
Instalou-se um silêncio tenso no gabinete, até que o centurião Sínio escolheu sorrir.
- É reconfortante saber que a tua única lealdade vai para ti mesmo. Ao menos, homens como tu não são uma incógnita. Desde que sejas pago,
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podemos confiar em ti. A não ser, claro, que aches outro patrono mais generoso.
- É verdade - assentiu Cato. - E é precisamente por isso que os seus amigos tratarão de nos pagar o suficiente para nos ter do vosso lado. Mas se tentar algum truque
para nos lixar, prometo-lhe que não viverá o tempo suficiente para se arrepender do golpe.
Sínio recostou-se na cadeira com uma expressão de profundo desprezo no rosto.
- Percebemo-nos perfeitamente. Limitem-se a fazer aquilo que vos é ordenado e a receber o pagamento adequado, e quando tudo terminar, nem pio.
- Não precisa de se preocupar - anunciou Macro. - Sabemos muito bem ficar com a boca fechada.
- Então tratem de a manter assim. - Sínio voltou a pegar no dedo cortado, apertando-o entre o polegar e o indicador, e deixou-o cair dentro de um pano velho. Embrulhou
o macabro objeto no pano e colocou-o na pequena arca onde tinha aparos e penas. Ao fechar a tampa, voltou a olhar para os dois homens. - Por agora é tudo.
- Ainda não está tudo - protestou Macro. - O nosso dinheiro.
- Claro. - Sínio levantou-se e atravessou o gabinete até chegar a um cofre. Retirou uma chave duma corrente que tinha ao pescoço e introduziu-a na fechadura. Extraiu
do interior duas bolsas de couro e voltou a fechá-lo. Regressou à secretária e pôs as duas bolsas em cima dela com um tilintar surdo. - Aqui está a vossa prata.
Cato olhou para as bolsas, fazendo uma rápida estimativa do que lá estava dentro. Levantou o olhar com uma careta.
- Quanto é que está aí?
- Duzentos denários em cada uma.
- Mas falou-se em mil. - Cato irritou-se. - Onde está o resto?
- Recebê-lo-ão quando o trabalho estiver terminado; e não antes.
- Está terminado. Já tratámos da saúde ao Lurco.
- O Lurco foi apenas um degrau neste caminho. Os vossos serviços ainda serão necessários por mais algum tempo.
Cato inspirou, fulo, e falou por entre os dentes.
- O que há mais a fazer?
- A seu tempo. - Sínio sorriu. - Basta que saibam que dentro de um mês a coisa estará feita. Nessa altura receberão o resto da vossa recompensa. Tem a minha palavra.
- A sua palavra? - desdenhou Cato, enquanto pegava nas bolsas e dava uma a Macro. - Oiça, amigo. Neste mundo só o dinheiro diz a verdade. Ainda nos deve mais de
trezentos a cada um. Portanto, será
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melhor dizer-nos o que teremos ainda de fazer para o recebermos. Se vou esticar o pescoço por si e pelos seus amigos, quero saber o que é esperado de nós.
- Não. Farão o que vos for ordenado, quando for ordenado. E é tudo. Quanto menos souberem, melhor para todos nós. E agora desandem. Voltem à caserna. Quando estivermos
prontos para agir, receberão novas instruções. - Sínio pigarreou e terminou em voz de comando. - Dispersar!
Cato e Macro colocaram-se em sentido, saudaram, rodaram sobre os calcanhares e marcharam para fora do gabinete. Quando a porta se cerrou sobre eles, Cato soltou
um suspiro de alívio e prosseguiu pelo corredor fora tentando libertar-se da tensão.
- As coisas parecem estar a chegar a um ponto culminante - disse Macro, em surdina. - No próximo mês, disse ele.
Cato anuiu.
- E não avançámos nada para descobrir para quem é que o Sínio trabalha. Daqui em diante teremos de o vigiar com maior atenção. Temos de o seguir e descobrir com
quem é que ele fala. Nalguma altura há de ter de falar com outros Libertadores. E quando isso acontecer, teremos de estar lá.
- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer - ripostou Macro. - Eles hão de tomar as suas precauções. E se eles comunicarem uns com os outros só por mensagens escritas
e codificadas?
Cato pensou por momentos.
- É possível... Mas se estão a planear agir daqui a pouco tempo, o mais provável é que tenham mesmo de falar em pessoa. Vamos começar a seguir o Sínio, assim que
clarificarmos aquela história lá no Boário.
- Está bem - concordou Macro. - Mas antes de nos encontrarmos com o Sétimo, há outro assunto que tem de ser resolvido.
- O que é?
Macro sopesou a bolsa com a prata.
- Não vou deixar isto na caserna, onde um sacaninha qualquer com a mão ligeira a pode levar. Portanto, antes de irmos a outro sítio qualquer, parece-me que uma visita
a um dos banqueiros do fórum se impõe.
Cato refreou o passo e virou-se para o amigo.
- No que é que está a pensar? Não me diga que quer ficar com o dinheiro?
Macro não escondeu a surpresa.
- Evidentemente.
- Sabe muito bem de onde é que veio essa prata. - Cato olhou em redor, para se certificar de que ninguém os escutava. No corredor só se via um punhado de escribas
envolvidos numa conversa a alguma distância. Ainda assim, Cato baixou ainda mais o tom de voz. - Pertence ao Imperador.
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- Já não é esse o caso, ao que parece.
- Acha mesmo que o Narciso é o tipo de homem capaz de aceitar um argumento desses? Ele vai exigi-las de volta, a essas e a todas as moedas que possam ser recuperadas.
- Ou seja, toda e qualquer moeda cujo paradeiro ele conheça. Portanto, vou esquecer-me de referir este montinho. E tu também - concluiu Macro em tom firme. - Além
disso, miúdo, a verdade é que já o merecemos, uma e outra vez. Por agora, vamos colocá-lo no banco, e não se fala mais disso. Se ninguém nos pedir para o devolver,
não vejo qual será o problema de o mantermos na nossa posse. De acordo?
Cato sentiu uma vaga de frustração a percorrer-lhe o ser.
- E se o Sínio desata a cantar quando o Narciso resolver esmagar os planos dele? E se ele lhe diz que nos deu esta prata toda?
Macro encolheu os ombros.
- Quanto a isso, basta certificarmo-nos de que somos os primeiros a apanhar o Sínio nessa altura. - A expressão do veterano endureceu quando ele olhou para o amigo.
- Se o silenciarmos antes de poder ser interrogado, talvez até consigamos deitar a mão àquele cofre que ele tem ali no gabinete.
A ansiedade que sentira momentos antes voltou a apoquentar Cato. Respondeu sem entusiasmo.
- Macro, isso é brincar com o fogo. Nem pense sequer nisso.
- Por que raio não? Estou mais do que farto de fazer o trabalhinho sujo do Narciso e não receber nada por isso. Ou, pelo menos, nada de jeito. Miúdo, esta é uma
ocasião para finalmente ganharmos alguma coisa com estas histórias que quase nos custaram o pelo tantas vezes. Só se fôssemos parvos é que não a aproveitávamos.
Cato avistou um brilho perigoso nos olhos do veterano, e percebeu que seria fútil tentar demovê-lo daquela ideia com ele naquele estado.
- Bom, falamos disto noutra altura, está bem? Preciso de pensar melhor.
Os olhos de Macro semicerraram-se ligeiramente, mas acabou por lançar um sorriso meio forçado.
- Seja, mais tarde então.
207

18

- É aqui - indicou Cato em surdina, apontando para o armazém. Macro e Sétimo ladeavam-no enquanto percorriam o cais. O mesmo guarda que, poucos dias antes, tinha
afastado Cato com brusquidão estava sentado num banco junto ao portão. Numa das mãos segurava um naco de pão, e na outra uma espécie qualquer de enchido de aspeto
seco e velho; as mandíbulas trabalhavam num ritmo regular e lento enquanto o homem olhava para as barcas atracadas no molhe paralelo à fila de armazéns, sem verdadeiramente
as ver. A escassez de cereais não impedia que continuassem as importações de azeite, vinho, fruta, bem como das iguarias mais dispendiosas que seguiriam para as
mais ricas casas de Roma. A preços muito para além do alcance da vasta maioria da população da capital, que se limitava a tentar sobreviver no dia-a-dia.
Um pouco adiante, para lá do armazém de Gaio Frontino, um ajuntamento de gente de aspeto miserável assistia ao descarregar de uma barcaça. Já tinham sido trazidas
para o cais várias ânforas de vinho, e naquele momento procedia-se ao desembarque de cestas de tâmaras secas, que era realizado por uma fila de escravos que as iam
passando de mão em mão. O capataz estava rodeado por um punhado de homens armados que controlavam os bens já desembarcados e mantinham a multidão sob apertada vigilância.
- Vamos juntar-nos àqueles - sugeriu Cato. - Assim não nos tornaremos notados.
Avançaram até junto ao silencioso grupo de homens e mulheres, algumas com crianças, e foram-no rodeando até conseguirem ter uma perspetiva clara para o portão do
armazém e para o guarda que ali estava de plantão. Cato não tinha ainda conseguido perceber o que estava o homem a fazer sentado, mas naquele momento apercebeu-se
da demonstração de crueldade e desprezo a que assistia: o guarda comia à vista de toda aquela gente esfaimada.
- O que é que fazemos? - indagou Sétimo. - Não podemos simplesmente chegar lá e entrar.
- Poder, podíamos - contrariou Macro. - Somos três, ele é só um.
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Sétimo abanou a cabeça.
- Se forçarmos a entrada, depressa o Céstio ficará a saber disso, e os Libertadores perceberão de imediato que lhes estamos no encalce. Não podemos permitir-nos
assustá-los e forçá-los a voltarem a esconder-se. É tão importante destruir a conspiração como encontrar os cereais. Mas temos de arranjar forma de entrar ali e
confirmar que os cereais lá estão, e voltar a sair sem provocar qualquer alarme.
Cato coçou o rosto.
- Não vai ser fácil. O armazém tem um pátio no centro; o muro mais baixo é o que dá para o cais. O resto está encostado aos outros armazéns aos lados e por trás.
Não há outra forma de entrar. Ou passamos pelo portão ou trepamos o muro. Mas se tentarmos fazer isso, o guarda vai ver-nos de certeza.
Macro passou os olhos pelo edifício e assentiu.
- Tens razão. Então, como é que fazemos?
Cato apreciou a situação, olhando em volta por momentos até fixar a atenção nos homens que descarregavam a barcaça, rodeados pela pequena multidão.
- Precisamos de uma diversão. Sétimo, isso fica a teu cargo. Eu e o Macro vamos entrar.
Explicou rapidamente o seu plano e, enquanto Sétimo se embrenhava na multidão até chegar à borda do cais, Cato e Macro afastaram-se na direção do Boário. Mantiveram-se
à beira do rio, para não atrair a atenção do guarda. Havia um pequeno risco de ele se lembrar da cara de Cato, embora o seu aspeto abrutalhado e olhar bovino denunciassem
uma mente pouco habituada a guardar informações. Depois de cobrirem uma distância razoável, pararam e olharam na direção das barcaças atracadas na indolente corrente
do Tibre. Cato contemplou a turba e viu Sétimo já próximo da prancha que dava acesso à embarcação. Discretamente ergueu uma mão, dando o sinal combinado.
Sétimo avançou e esperou que um dos escravos, carregado com um cesto de frutas secas, chegasse ao cais, esbaforido. Esgueirou-se entre dois dos guardas e empurrou
o escravo com ambas as mãos. O homem perdeu o equilíbrio, e o cesto voou pelo ar até atingir o solo e fazer saltar tâmaras em todas as direções. A turba avançou
de imediato, as mãos ansiosas a recolher os frutos onde pudessem ser alcançados.
- Para trás! Para trás, cabrões! - gritou o chefe dos guardas, exasperado, enquanto acertava nas pessoas mais próximas com o cajado. Olhou para os seus homens. -
E vocês, estão à espera de quê? Afastem-nos da mercadoria!
Os homens como que acordaram e passaram à ação, distribuindo golpes
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aos populares que rebuscavam o chão em busca do que quer que fosse comestível. No meio da confusão outro cesto foi derrubado, e o conteúdo espalhou-se também. A
turba soltou um grito coletivo de excitação, e continuou a agitar-se para cá e para lá.
Cato olhou rapidamente sobre o ombro e reparou que o guarda junto ao portão do armazém tinha parado de mastigar e se tinha levantado para apreciar melhor a confusão.
Os lábios do homem retorciam-se numa espécie de sorriso divertido perante o espetáculo e ele deu uns passos para longe do seu posto, para observar as cenas de violência
que se desenrolavam entre a multidão e os guardas, agora envoltos numa luta por algum cereal derramado.
- Vamos! - Cato puxou Macro pela manga e correram até ao muro do armazém. O guarda estava de costas para eles. Tinha partido mais um pedaço de pão e continuava a
comer enquanto apreciava a cena. Cato reparou que, depois de desempenhar o seu papel, Sétimo se afastava discretamente da zona da confusão. Chegaram à base do muro
e Macro virou-se e colocou as mãos em posição enquanto se firmava contra a parede de tijolos. Cato colocou a bota direita sobre as mãos de Macro e, quando este começou
a empurrar, esticou-se e tentou alcançar o cimo do muro, com as pontas dos dedos a tentar firmar-se enquanto amarinhava pela parede.
- Suba-me mais um bocadinho.
Macro grunhiu com o esforço enquanto elevava Cato, e soltou um gemido quando o jovem lhe pôs um pé em cima do ombro.
- Já cá estou - avisou Cato em voz baixa, e cerrou os dentes enquanto acabava de trepar e lançava uma das pernas sobre o muro. O coração batia-lhe desalmadamente
por causa do esforço, e ele deitou uma espreitadela ao guarda, aliviado por ver que o homem ainda estava concentrado na confusão que se desenrolava no cais. Cato
saltou para o interior do armazém e apressou-se a desenrolar a corda que levava em torno do peito, escondida por uma dobra da túnica. Lançou uma ponta sobre o muro
e pegou na outra com toda a firmeza, deixando-se inclinar para trás enquanto apoiava um pé na base do muro. No instante seguinte sentiu o peso de Macro a puxar pela
corda. Ouviram-se alguns grunhidos e imprecações, e por fim o veterano surgiu ao cimo do muro. Apressou-se a descer e saltou para o interior do pátio do armazém,
puxando a corda atrás de si.
Por momentos os dois homens ficaram ali parados, a recuperar o fôlego, os ouvidos à escuta para tentar perceber se teriam sido avistados. Cato olhou em torno do
pátio interior. Era uma área pavimentada com uns trinta e tal metros de comprimento por menos de quinze de largura, encurralada entre as altas paredes do grande
edifício que a rodeava por três lados.
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Várias portas davam para o pátio, mas estavam todas fechadas. Não havia qualquer sinal de vida, e depois da confusão que reinava lá fora, aquele pátio parecia estranhamente
silencioso. Contra a parede viam-se alguns carrinhos de mão. Cato respirou fundo e apontou-os.
- Pelo menos para sair vai ser mais fácil.
- Se o dizes - replicou Macro. - Mas isso depende mais de o Sétimo fazer o que é preciso.
- Ele trabalhou bem para entrarmos. Podemos contar com ele. Vamos. - Cato avançou para a porta mais próxima, que estava trancada com uma pesada lingueta de ferro.
Um olhar rápido em redor do pátio confirmou que todas as outras portas também estavam aferrolhadas. Cato testou a fechadura. Com algum esforço, a lingueta começou
a mexer-se, soltando um guincho bem audível. Cato interrompeu de imediato a ação.
- Merda.
- Tem calma, miúdo - sossegou-o Macro. - Aquela barulheira lá fora cobre todo o ruído que nós fizermos. E podemos abrir isto bem devagarinho, de qualquer maneira.
Pegaram firmemente na pesada barra de ferro e começaram a levantá-la. Moveu-se com um ruído mínimo, e pouco depois estava fora do encaixe. Temendo que as dobradiças
fossem tão barulhentas como a tranca, Cato abriu a porta com toda a precaução, e apenas o suficiente para poder passar para o interior. A luz derramou-se sobre um
soalho de pedra completamente nu, e projetou longas sombras à frente dos dois homens, à medida que eles ajustavam os olhos à penumbra que ali reinava. Era uma câmara
ampla, com uns vinte e cinco metros de comprimento por cerca de metade de largura. As traves do teto eram bem altas, e suportavam um entrançado de travessas que
serviam de apoio ao telhado. Havia duas fendas estreitas ao cimo da parede que forneciam alguma luz e ventilação, mas não davam sequer para uma criança se esgueirar
por elas.
Cato dobrou-se e remexeu na poeira e em grãos de cereais soltos, que jaziam no solo.
- Ao que parece, houve mesmo trigo aqui armazenado.
Macro assentiu enquanto olhava em volta.
- Se todas as câmaras do armazém forem deste tamanho, devia haver aqui cereal mais do que suficiente para alimentar Roma durante uns meses. Vamos ver na seguinte.
Foram dando a volta ao pátio, mas todas as câmaras estavam vazias. A única coisa que encontraram foram rolos de corda, alguns apoios para descarregar volumes pesados
de carroças, e uma pilha de sacas vazias, rasgadas e sujas, a um canto do pátio. Em todos os compartimentos havia indícios da presença de trigo, e pelo estado em
que estavam os grãos espalhados pelo
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solo, tal não devia ter acontecido havia muito tempo. Quando fecharam a última das portas, Cato foi até ao centro do pátio e cruzou os braços, enquanto fazia uma
careta.
- Para onde é que foi?
- O Céstio deve ter chegado à conclusão de que este local já não era seguro - refletiu Macro. - Deve ter percebido que o Narciso e os seus agentes acabariam por
descobrir onde é que os cereais estavam escondidos. Levaram-nos para outro local.
- Sem ninguém dar por nada? Não se consegue transportar uma quantidade tão grande sem chamar a atenção.
- A não ser que se leve uma pequena quantidade de cada vez. Assim ninguém suspeitaria de nada.
Cato ponderou rapidamente. Não parecia possível que Céstio tivesse levado todo o cereal que tinha ali acumulado para outro local, mesmo em pequenas quantidades,
dado o curto espaço de tempo de que dispusera. E mesmo que o tivesse conseguido, havia outra questão que lhe levantava algumas dúvidas.
- E onde é que o poria?
- Talvez noutro armazém?
- Alguém haveria de ter visto alguma coisa.
- Em barcaças, se calhar, e depois seguiram para Óstia e lá armazenaram as compras à medida que chegavam.
- É possível. Mas, nesse caso, porque é que há sinais da presença dos cereais em cada um dos compartimentos? A mim dá-me a sensação de que o tiveram todo aqui antes
de o levarem. Nesse caso, porque é que o fizeram...? - Cato mordeu o lábio. - Devem ter tido receio de que fosse descoberto. Estão a jogar pelo seguro. Afinal de
contas, nós demos com isto com relativa facilidade. Seja como for, estou certo de que os cereais ainda estão cá, em Roma.
- Então onde, espertinho?
- Esse é que é o ponto. - Cato olhou em redor, contemplando as paredes vazias e silenciosas do armazém. - Teria de ser um lugar parecido com este.
- Cato, deve haver dezenas de armazéns ao longo do cais, só deste lado do rio. Sem falar dos que existem na outra margem, e dos armazéns por trás do fórum, e os
dos outros mercados da cidade. Não podemos revistá-los a todos.
- Pois não, pelo menos sem provocar alarme nos nossos adversários
- admitiu Cato. - Assim que percebessem que estávamos a par dos seus planos, teriam de agir e avançar sem mais delongas.
- Então, o que é que nós fazemos?
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Cato suspirou.
- Dizemos ao Sétimo que apresente o relatório ao Narciso. Que mais? Agora vamos é pôr-nos daqui para fora.
Regressaram para junto do muro, no ponto onde alguém tinha deixado um carrinho de mão a curta distância do portão. Macro trepou para cima dele e ajudou Cato a chegar
ao cimo do muro. O jovem espreitou cuidadosamente, vendo que o guarda tinha regressado ao seu banco para prosseguir a refeição. Junto à margem, as coisas já se tinham
acalmado, e já ninguém lutava por fruta caída. O chefe e os seus guardas tinham restabelecido o cordão de segurança, e o desembarque das mercadorias prosseguia.
No chão viam-se vários corpos, alguns remexendo-se lentamente, outros imóveis. Os que tinham conseguido recolher algumas tâmaras tinham-se apressado a fugir dali,
e os outros continuavam a observar o descarregamento, à espera que surgisse nova oportunidade para rapinar algo que comer. Cato procurou Sétimo com a vista, até
o encontrar. O agente imperial respondeu com um aceno da mão e começou a dirigir-se ao longo do cais até ao portão. Parou a curta distância do guarda.
- Não me dás um bocadinho disso? - Sétimo apontou para o pão e o enchido pousados no colo do homem.
- Desaparece.
- Vá lá, amigo, estou cheio de fome.
- Problema teu. E não sou teu amigo, portanto desaparece, vá, andor.
Enquanto Sétimo avançava mais um passo e voltava a pedir com maior
veemência, Cato aproveitou para se acomodar no cimo do muro e dar uma ajuda a Macro, enquanto este, por sua vez, trepava. Depois, verificando que o guarda continuava
a dar toda a atenção a Sétimo, desceram pela parede exterior, pendurados precariamente pelas mãos até se soltarem. As botas fizeram um barulho claro quando aterraram
no cascalho e na porcaria acumulada na base do muro. O guarda ouviu e rodopiou rapidamente para a fonte do ruído. Os olhos arregalaram-se-lhe, e de imediato pegou
no cajado e pôs-se de pé, lançando para o solo o que restava da comida.
- Já vos topei! Queriam apanhar-me à traição, era? Um vai pela frente, e os amigalhaços apanham-me por trás, era?
Agachou-se de pronto, de costas contra o portão e baloiçando o cajado. Cato reparou que este tinha pregos na ponta, e facilmente imaginou o estrago que aquelas pontas
metálicas fariam num homem. Ergueu uma mão, apaziguador.
- Pronto, tem calma. Enganámo-nos. Vamos, rapazes, este aqui é duro de roer, É de mais para nós. Raspemo-nos.
Sétimo rodeou o guarda para se juntar aos outros, e os três homens recuaram juntos, até se virarem e começarem a andar depressa pelo cais,
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na direção do Boário. O guarda soltou uma gargalhada cheia de tensão e escarrou na direção dos supostos meliantes.
- Isso, seus paneleirotes, raspem-se! Se volto a ver os vossos focinhos por aqui, garanto-vos que vos dou uns beijos aqui com a minha medusa! - Esticou o braço,
apontando o cajado na direção dos três homens.
- Aquele cabrão merecia bem uma lição de boas maneiras - resmungou Macro, atrasando o passo até que Cato lhe pôs a mão no ombro e o obrigou a acelerar.
- Agora não. Vamos mas é embora, antes que ele se lembre de que já me tinha visto antes.
Sétimo virou-se para Cato.
- Descobriram alguma coisa?
Cato fez um relato rápido do que tinham visto, e a expressão do agente imperial tornou-se mais ansiosa.
- Ora porra, precisamos tanto desses cereais...
- Então e o tal comboio da Sicília? - inquiriu Macro. - Pensava que isso ia salvar a situação e restaurar a imagem do Imperador.
- Fá-lo-á, quando chegar. Mas estes cereais eram importantes para o caso de haver algum atraso na chegada da coluna. Agora está tudo dependente desse momento. Oremos
aos deuses para que tudo corra bem. O espetáculo que o Cláudio está a organizar no lago Albino não conseguirá desviar a atenção da turba por muito mais tempo.
Caminharam em silêncio por momentos, até que Cato soltou uma risada seca.
Sétimo deitou-lhe um olhar alarmado.
- O que foi?
- Estava só a pensar nas ameaças que Roma tem enfrentado ao longo dos anos, e agora ao que parece será a fome a conseguir aquilo que bárbaros, exércitos de escravos,
políticos ambiciosos e tiranos não conseguiram. Se existe um inimigo supremo da civilização, é seguramente a fome. Nenhum império, por grandioso que seja, está a
mais do que um pequeno número de refeições de distância do colapso. - Olhou em volta, para os outros. - Interessante, não vos parece?
Sétimo olhou-o com assombro, e depois virou-se para Macro.
- O teu amigo às vezes não é grande ajuda. Diz-me, é costume a mente dele vaguear assim pelo campo dos pensamentos?
Macro assentiu, com ar fatigado.
- Nem imaginas. Dá-me cada dor de cabeça...
Cato não evitou um sorriso, à laia de desculpa.
- Era só uma observação.
- Bom, centra é os olhos e o pensamento neste trabalho, sim? -
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ralhou Sétimo. - Os Libertadores têm alguma coisa planeada para os próximos tempos. Temos de nos manter atentos e garantir a segurança do Imperador e da sua família.
Daqui a dois dias o inimigo pode ter a ocasião que espera.
- Porquê? - indagou Cato. - O que vai acontecer?
- A última secção dos canais de drenagem do lago vai ser terminada amanhã. Cláudio decidiu realizar um festim de celebração para os engenheiros e um grupo selecionado,
antes de dar a ordem oficial para se abrirem as comportas. Não será um evento público, portanto não haverá muita gente que seja preciso vigiar. Mas há sempre a possibilidade
de haver alguma confusão quando o séquito imperial estiver a sair de Roma, ou no regresso.
- Vamos ter todo o cuidado com o velhote - garantiu Macro. - Depois daquela coisa no fórum, podes ter a certeza.
- Espero bem que sim - replicou Sétimo, quando chegavam à entrada do Boário. - É bem evidente para que querem os Libertadores todo este cereal. É a cenoura que terão
para oferecer ao povo depois de eliminarem o Imperador. A questão é qual será o pau com que contam destruir Cláudio? Já não têm muito tempo para avançar, e continuamos
sem saber quais são os planos deles. Têm de se concentrar no Sínio, descobrir quem são os contactos dele. Se tivermos os nomes dos cabecilhas, poderemos atacar primeiro.
- Faremos tudo o que nos for possível - assegurou Cato. - Mas o Sínio não abre o bico. Usa-nos, mas não confia em nós para nos dar todas as informações. Se descobrirmos
alguma coisa, deixamos uma nota na casa, assim que pudermos.
- Muito bem. - Sétimo inclinou a cabeça num gesto de despedida.
- Bom, vou apresentar o relatório ao Narciso. Ele não vai ficar lá muito contente.
Os três homens separaram-se, e o agente imperial virou de repente, atravessando o Boário na direção do complexo do palácio imperial, que se erguia sobre a cidade
na crista do monte Palatino. Macro e Cato ficaram a vê-lo afastar-se em silêncio, até que Macro lançou uma dúvida.
- Estamos a perder, não é?
- O que é que quer dizer?
- Esta luta... Este trabalho para o Narciso. Não sabemos onde andam os cereais. Não sabemos o que anda o inimigo a planear. Merda, nem sequer sabemos quem é o inimigo,
além do Sínio e do Tigelino. - Macro abanou a cabeça. - Cato, meu caro, não vejo qualquer sinal de que esta história venha a ter um final feliz.
- Oh, eu não diria que não estamos a fazer progressos - ripostou Cato, determinado. - Havemos de lá chegar. Vai ver.
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Ao entrarem na sala da secção que partilhavam com Fúscio e Tigelino, Cato deu com o jovem a admirar-se em frente a uma placa peitoral ornamental, fortemente polida,
que estava pendurada em cabides na parede ao lado do resto do equipamento. O momento de hilaridade foi interrompido quando Cato avistou a comprida vareta com um
punho de latão polido que Fúscio tinha na mão esquerda.
- Será bom que o Tigelino não te apanhe com isso.
- O quê? - Fúscio reagiu instintivamente e olhou para a porta com ar preocupado, antes de se recompor e sorrir. - Isso já não me preocupa. Agora, pelo menos, o Tigelino
já não precisa disto. - Ergueu a vareta e contemplou-a embevecido. - Agora é minha.
Macro soltou uma gargalhada e virou-se para Cato.
- Olha, o miúdo ganhou tomates, afinal. E esta? - Virou-se outra vez para Fúscio. - Agora a sério, se fosse a ti, largava isso antes que alguém te veja a brincar
com ela.
Irritação e um traço de fúria surgiram no rosto do jovem. Fúscio empertigou-se, mostrando a sua estatura, e deu um toque de altivez à posição da cabeça quando se
dirigiu a eles.
- Tem de parar de falar comigo nesses termos.
- Oh? - Os cantos da boca de Macro tremeram, divertidos. - E porquê?
- Porque eu sou o novo optio da Sexta Centúria. Optio interino, pelo menos - acrescentou.
- Tu? - Macro não escondeu a surpresa, nem a reprovação, enquanto o contemplava. - E o Tigelino? Que é feito dele?
- O Tigelino? - Fúscio sorriu. - Até que o centurião Lurco seja encontrado, o Tigelino foi promovido a centurião interino da Sexta Centúria. O tribuno Burro tomou
essa decisão. Disse que não podia permitir que uma das suas unidades estivesse sem comandantes durante a presente crise, e que qualquer homem que se ausentasse sem
licença as pagaria bem caras. Quando o Lurco aparecer, o mais provável é que seja despromovido, e que a nomeação do Tigelino se torne permanente. Tal como a minha.
- Enfunou o peito. - Sou o tipo certo para o lugar, tal como disse o Tigelino quando me escolheu. - O sorriso desvaneceu-se, e ele olhou com dureza para os dois
amigos. - O que quer dizer que vocês os dois, daqui em diante, me chamam optio. Percebido?
- A ti? - Macro abanou a cabeça. - E és tu o melhor homem que o Tigelino podia escolher? O soldado mais prometedor de toda a centúria? Custa-me a acreditar.
- Pois acredita! - instou Fúscio, maldisposto. - E não torno a
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avisar-te, guarda Cálido. Ou mostras o respeito devido à minha patente, ou serás castigado.
- Sim, optio. - Macro conteve o sorriso. - Será feito como ordena.
Fúscio avançou na direção do veterano e contemplou-o com fúria,
como se esperasse que o outro se amedrontasse. Mas Macro aguentou-lhe o olhar sem qualquer hesitação ou receio, até que, depois de soltar uma fungadela de desprezo,
Fúscio saiu porta fora, a vareta indicadora da sua nova posição bem presa nas mãos.
Macro abanou lentamente a cabeça.
- Lá vai mais um rapaz que se acha capaz de assumir o trabalho de um homem... Faz-me lembrar alguém, por sinal. Um tal Cato. Naquele dia em que te juntaste à Segunda
Legião, a pensar que te iam dar logo umas botas de oficial. Lembras-te?
Cato não o escutava; estava perdido nos seus pensamentos. Agitou-se em resposta ao tom inquisitivo das últimas palavras de Macro.
- Desculpe, não o ouvi.
- Não te preocupes. Nada de importante. No que pensas?
- No Tigelino. No centurião interino Tigelino, mais precisamente. - O sobrolho de Cato estava fortemente franzido. - A Sexta Centúria tem a missão de proteger o
Imperador e a sua família, e agora os Libertadores conseguiram colocar o seu homem na vizinhança da família imperial. Conseguiram finalmente romper a cortina protetora
em torno de Cláudio.
Macro cerrou os lábios e franziu o rosto.
- Achas que o Tigelino é o assassino designado?
- Só pode ser. Que outra razão haveria para afastar o Lurco? Queriam pôr o Tigelino bem perto do Imperador. Tem de ser isso. E no momento certo, quando a ocasião
se proporcionar, o Tigelino atacará.
- Nunca se safará - comentou Macro. - Será morto imediatamente. Ou aprisionado e interrogado.
- Pouco importará. Com Cláudio morto, sobrevirá a confusão... O caos. E nessa altura os outros conspiradores avançarão. Usarão a Guarda Pretoriana para tomar o controlo
da cidade e depois anunciarão o novo regime, liderado pelos cabecilhas dos Libertadores. Apostava nisso a minha vida - concluiu Cato, em tom lúgubre.
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19

Como era habitual em abril, durante a noite uma violenta tempestade chegou de ocidente, e nos dois dias e noites seguintes o céu sobre Roma permaneceu fechado por
grandes nuvens escuras. As ruas estavam mergulhadas na penumbra, exceto quando eram brevemente iluminadas pelos ocasionais raios da trovoada. A chuva era incessante,
matraqueando ruidosamente os telhados, as portadas das janelas e as ruas pavimentadas. As artérias e vielas eram percorridas por verdadeiras torrentes que recolhiam
no seu curso toda a espécie de sujidade e se precipitavam pelas sarjetas que iam desaguar na Cloaca Máxima, o esgoto que serpenteava pelas entranhas da cidade até
se precipitar no Tibre.
A população mantinha-se abrigada no interior das casas, e, durante dois dias, as ruas estiveram praticamente vazias, sem os bandos de miseráveis que procuravam encontrar
qualquer migalha de comida. O Imperador e a sua família também não se atreveram a sair. Permaneceram no palácio, e coube aos homens da coorte de Burro fazer os turnos
de guarda, marchando do campo até à habitação imperial debaixo da chuva, embrulhados nas capas. Apesar de a lã ter sido embebida em gordura animal para ficar impermeável,
a água arranjava forma de se infiltrar até às túnicas por baixo da armadura, arrefecendo a pele dos soldados que estavam imóveis de guarda, fazendo-os tiritar até
serem substituídos e regressarem às casernas aquecidas do aquartelamento.
Cato e Macro não tiveram qualquer oportunidade de ver se havia alguma mensagem no esconderijo, já que o novo centurião interino da Sexta Centúria se recusou a permitir
que qualquer um dos seus homens deixasse o campo, mesmo quando de folga. Na primeira formatura matinal depois de assumir o cargo, o novo comandante, Tigelino, tinha
anunciado que a disciplina da centúria tinha relaxado de forma inaceitável sob a orientação do seu antecessor. Dali em diante passaria a existir uma formatura à
tarde, e sessões suplementares de treino, para lá do habitual turno de guarda no palácio. O novo optio ainda gozava a sua promoção, e berrava ordens a imitar Tigelino.
Este mudou-se para os aposentos de Lurco, e deixou Macro e Cato nas mãos de Fúscio, que agora se arrogava o direito de tudo decidir no
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quarto, desde o momento em que a lamparina devia ser apagada, até quais os cabides da parede que lhe estavam reservados em exclusivo.
Macro fez o seu melhor para manter a irritação crescente sob controlo. Cato, por sua vez, continuava a dedicar o seu tempo a ponderar o mistério dos cereais desaparecidos.
Reviu na sua mente todos os detalhes da busca que conduzira com Macro no armazém, bem como toda a informação que tinha obtido da guilda dos mercadores e do funcionário
no escritório de Gaio Frontino. Como é que se podia fazer desaparecer tamanha quantidade de cereais sem deixar rasto? Era um desafio irritante para Cato, que se
sentia derrotado pelas circunstâncias enquanto polia o equipamento e esticava a capa e as túnicas a secar no pequeno estendal montado junto ao braseiro que aquecia
o quarto da secção. Entretanto, todas as noites, Macro dirigia-se às latrinas, situadas na extremidade do bloco das casernas mais próximo à muralha do campo, para
cumprir o castigo que lhe fora atribuído.
Na terceira manhã, por fim, a tempestade foi soprada para longe, deixando no seu lugar um belo céu azul, e o sol depressa começou a aquecer os telhados e ruas de
Roma, fazendo elevar pequenos penachos de vapor que se retorciam langorosamente pelo ar, antes de se desvanecerem. As pessoas começaram a emergir para as ruas, e
recomeçou a recolha dos corpos dos que tinham entretanto sucumbido de fome ou a alguma doença que os apanhara em estado debilitado, que depois eram levados em vagões
para lá dos portões da cidade e lançados às grandes valas comuns escavadas ao lado das estradas, onde já estavam centenas de cadáveres.
Chegaram novas do palácio, indicando que o Imperador e o seu séquito se deslocariam até ao lago Albino, para inspecionarem as obras de engenharia e os preparativos
para o espetáculo. Burro deu ordens para que a Quinta e a Sexta Centúrias formassem, e Tigelino percorreu as casernas berrando aos homens, para que se equipassem
e preparassem para uma marcha. Os membros de cada secção saíam em grupos, alguns ainda a atar correias de capacetes e a apertar armaduras. Quando o último dos homens
se apresentou, Tigelino pô-los em sentido e passou revista às fileiras, reparando em cada pequena infração que era anotada por Fúscio numa tábua encerada, em conjunto
com o respetivo castigo. Terminada a inspeção, Tigelino recuou e enfrentou a sua unidade, de mãos na cintura.
- Deve haver ainda muitos a perguntarem-se o que sucedeu ao Lurco. Para vocês, é como se ele estivesse morto. Para ele, aliás, também, assim que o tribuno Burro
lhe conseguir pôr as mãos em cima. - Tigelino fez uma pausa, enquanto alguns homens sorriam. Depois respirou fundo e prosseguiu. - Agora sou eu o vosso centurião.
Sou eu que digo como são as coisas, e digo que quero comandar a melhor centúria da Guarda Pretoriana. E isso quer dizer que vou andar em cima de vocês. Exijo disciplina.
Exijo
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soldados sempre bem ataviados e, se a ocasião a tanto o obrigar, quero heróis, sim. Todo e qualquer homem que não consiga manter o padrão que exijo deverá estar
preparado para pedir transferência para uma outra unidade qualquer. Se não o fizer, e quiser permanecer na Guarda, poderá ter a certeza que o destruirei. Entendido?
- Sim, senhor! - responderam os homens, sem entusiasmo.
- Porra, não vos ouvi! - urrou Tigelino. - Parecem um bando de maltrapilhos! Repito: entendido?
- Sim, senhor! - responderam desta vez em uníssono, fazendo o grito ecoar na parede do bloco de casernas mais distante.
- Assim está melhor - assentiu Tigelino. - Já provaram ao Imperador que são capazes de se aguentar numa escaramuça. Ele concedeu a esta unidade a honra de nos nomear
para a sua escolta pessoal. Tenciono manter essa honrosa posição nos próximos tempos, senhores. Sempre que o Imperador deixe o palácio, quero que sejam os meus homens
a protegê-lo. Quero que sejamos a primeira e última linha de defesa do Imperador. Seremos o escudo e o gládio ao seu lado. E por isso ele manterá a confiança em
nós, e confiar-nos-á a sua vida, bem como as da sua família. Não preciso com certeza de vos recordar até que ponto os imperadores se podem mostrar generosos para
com aqueles que os servem com eficiência. Façam o vosso dever e todos acabaremos por ganhar com isso. Não me dececionem.
- Passou os olhos pelas fileiras e virou-se para Fúscio. - É tudo. Optio, forma os homens junto ao portão, prontos para marchar.
- Sim, senhor! - Fúscio pôs-se em sentido, e assim permaneceu até que Tigelino abandonou a parada. Então lançou uma ordem. - Sexta Centúria, rodar à esquerda!
As duas alas rodaram e esperaram nova ordem.
- Marche!
Enquanto a coluna se punha em andamento, Macro dirigiu-se em voz baixa a Cato, que marchava à sua frente.
- O que é que pensas disto tudo?
- Sabe bem o que penso - respondeu Cato. - Temos de manter olhos e ouvidos bem abertos e observar tudo como falcões.
Os homens da Quinta e Sexta Centúrias marcharam até onde o tribuno Burro os aguardava, montado num esplendoroso e imaculado cavalo negro. Quando a coluna se mostrou
preparada, fez um gesto com a mão na direção do portão, e a marcha reiniciou-se. Entraram em Roma e marcharam até ao palácio, onde a comitiva imperial se lhes reuniu,
e depois voltaram a deixar a cidade e dirigiram-se para o lago, a mais de quinze quilómetros da capital. Cato reparou que o Imperador trazia um número reduzido de
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conselheiros. Narciso estava no grupo, mas não havia sinal de Palias nem da Imperatriz, nem dos dois miúdos.
A paisagem campestre, recém-lavada pela chuva cheirava a fresco, e o ar quente anunciava a chegada da primavera. Os primeiros rebentos surgiam nos ramos de muitas
das árvores de fruto que ladeavam a estrada. As liteiras com o séquito imperial seguiam entre as duas centúrias de pretorianos; da retaguarda Cato mal as via, e
para isso tinha de torcer o pescoço para espreitar por cima dos capacetes reluzentes e das pontas de lança que se agitavam no ar à sua frente. À medida que a coluna
passava por pequenas aldeias, os habitantes saíam para ver o Imperador a passar e aclamavam-no, enquanto Cláudio respondia com uma mão erguida. Aos dois lados da
sua liteira seguiam os guarda-costas germanos, cuja aparência bárbara assustava os mais timoratos dos aldeãos.
Chegaram ao lago ao início da tarde, e foi permitido aos homens desfazerem a formação e descansarem enquanto o Imperador e os seus conselheiros inspecionavam os
preparativos para a naumáquia. A bancada de honra estava quase pronta; tinha sido edificada sobre uma elevação artificial criada na margem do lago. Ao longo da margem
viam-se equipas de carpinteiros a preparar as barcaças e embarcações fluviais trazidas do Tibre para completarem as duas frotas que iam travar batalha nas águas
do lago. Mastros improvisados erguiam-se, completos com vergas, velas e cordame, mais decorativos do que funcionais. Bancos para remadores eram instalados, e aríetes
poderosos fixos nas proas. À distância, quase que passavam pelas naves de guerra da marinha imperial, embora em escala reduzida. A algumas centenas de metros de
toda aquela atividade na margem do lago, viam-se as instalações prisionais onde seriam mantidos os participantes do espetáculo.
- Inacreditável - comentou Macro, enquanto ele e Cato apreciavam a vista do cimo de um rochedo, junto ao local onde os homens da escolta descansavam sobre a relva
verdejante que ladeava a estrada de Roma.
- Nunca vi nada deste género. Parecem mais os preparativos para uma campanha de envergadura, do que a porra de um espetáculo de gladiadores.
- Não me lembro de ter visto tanto esforço aplicado na invasão da Britânia - concordou Cato, com um sorriso irónico. - Mas nessa altura tudo o que o Cláudio queria
era adicionar uma nova província ao Império. Aqui, o que ele quer é conquistar a admiração da populaça, um objetivo de muito maior importância nos tempos que correm;
partindo do princípio de que ele vai sobreviver até conseguir saciar a fome por espetáculos de gladiadores, sem falar na fome propriamente dita. Diria que o bom
velho Cláudio tem cada vez menos hipóteses.
Voltaram a atenção para o séquito imperial, enquanto o oficial responsável
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pela organização do espetáculo apresentava o seu relatório ao Imperador. Mesmo a mais de cem passos, Cato reparou que Cláudio dava toda a atenção ao que o homem
dizia. De vez em quando a cabeça tremia-lhe violentamente, enquanto passeava ao lado do outro homem.
- Não é uma posição assim tão invejável, pois não? - perguntou Cato, num tom de profunda reflexão. - Rodeado por inimigos, e os mais perigosos são mesmo os mais
próximos.
- Cato, às vezes dizes disparates sem pés nem cabeça - ripostou Macro. - Achas que as nossas vidas correm menos perigo do que a do Cláudio? Não me parece, e tenho
as cicatrizes que o provam, e tu também. E de qualquer forma há um ou dois benefícios que fazem parte do pacote de ser o governante absoluto do maior Império deste
mundo. Acho que por mim era bem capaz de me habituar aos perigos da posição.
- Uma coisa é enfrentar outro homem com uma espada num combate aberto. Outra, muito diferente, é entrar numa sala repleta de gente, sabendo perfeitamente que muitos
deles tão facilmente lhe espetariam uma faca nas costas como lhe ofereceriam uma saudação e lhe prometeriam lealdade eterna. Por falar em trastes, onde anda o Tigelino?
- Cato perscrutou o grupo que rodeava o Imperador, tentando localizar o centurião.
- Está além, com o Burro e os outros. - Macro apontou para o grupo de homens aglomerado em torno do tribuno, ainda montado. Cato avistou o alto vulto do centurião
e deixou escapar um suspiro de alívio. Macro apercebeu-se disso e olhou para o amigo.
- Quando é que achas que o Tigelino vai avançar?
Cato pensou por momentos.
- Pode fazer uma tentativa na primeira ocasião que se lhe deparar, isto se não tiver a própria vida em apreço. Mas pelo que tenho visto, tenho muitas dúvidas de
que ele seja do género de a desperdiçar, se houver a mais pequena hipótese de se salvar. Se fosse a ele, esperava até estar bem próximo do Imperador, e com o mínimo
possível de gente à volta. Nessa altura teria alguma possibilidade de escapar depois de desferir o golpe. Portanto, sempre que a Sexta Centúria estiver colocada
junto ao Imperador, teremos de nos colar ao Tigelino.
O Imperador estava a concluir o circuito de inspeção aos preparativos, e regressava à liteira. Quando o séquito imperial começou a seguir ao longo da margem, dirigindo-se
para a zona do lago mais próxima do Tibre, onde decorriam as últimas obras de engenharia, o optio ordenou aos homens que voltassem a formar. Os guardas apressaram-se
a retomar as suas posições em volta do Imperador e a acertar o passo com o ritmo dos escravos que transportavam a pesada liteira cerimonial. O grupo prosseguiu pela
margem até alcançar a primeira das represas que haviam
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sido construídas num canal que levava a um afluente do Tibre, a uns cinco quilómetros dali.
A coluna imperial estacou. Um pequeno grupo de engenheiros em túnicas despojadas aproximou-se, e os seus membros dobraram-se profundamente em frente à liteira. Cláudio
lançou as pernas para o exterior e arrastou-se até junto do homem de ar jovem que chefiava os engenheiros.
- Meu caro Ap-Apolodoro! - saudou-o Cláudio. - Como vão os trabalhos? Espero bem que quase terminados? Calculo que esta tempestade te tenha atrasado um tanto.
O engenheiro voltou a dobrar o pescoço, tal como os companheiros.
- Não, sire. Os trabalhos foram terminados de acordo com o prazo estabelecido. E preparei uma pequena surpresa para divertir a população quando se iniciar a naumáquia.
- Oh? - Cláudio arregalou os olhos. - E o que será essa surpresa?
- Sire, preferia mantê-la em segredo. Estou seguro de que também o impressionará.
Cláudio franziu ligeiramente o sobrolho, mas a sua expressão amainou-se rapidamente.
- Muito bem, meu caro jovem. Mas estás certo de que o mau tempo não causou qualquer atraso? É importante ser honesto n-neste momento.
- Não permitiria que um bocadinho de chuva e vento me levassem a quebrar a promessa que vos fiz.
- Assim é que é! - Cláudio era todo sorrisos, e apertou o antebraço do outro. - Quem me dera que todos os m-meus funcionários fossem tão efe-ficientes como tu!
O Imperador virou-se para Narciso, que se encontrava a curta distância.
- Tu e o Palias têm muito a aprender com este j-jov-jovem.
O secretário imperial obrigou-se a soltar um sorriso.
- Seria deveras lamentável desviar um tão prometedor talento das suas funções e privar-vos dos bons ofícios de um tão excelente engenheiro, sire. As indesmentíveis
capacidades de Apolodoro são muito mais bem aproveitadas no campo do que no palácio - embora o Palias pudesse sem dúvida beneficiar dos seus conhecimentos.
- O Palias? - O Imperador pensou e assentiu. - Sim, sim. Ele tem-me parecido um t-t-tanto desconcentrado nos últimos tempos. Cansado e distraído. - Cláudio sorriu,
desculpando o conselheiro ausente. - Calculo que ande apaixonado. Costuma ser um processo cansativo.
- De facto, sire. Talvez o Palias devesse ser enviado para Capri, para descansar por uns tempos. Teria todo o prazer em me encarregar do seu pessoal na sua ausência.
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- Estou seguro que sim. - Cláudio sorriu. - Por outro lado, talvez também tu precises de descansar, meu amigo.
- Não, sire, de todo. - Narciso empertigou-se, tentando mostrar-se em plena forma. - O meu lugar é ao vosso lado. Vivo apenas para vos servir.
- Que afortunado sou para ter tais servidores. V-Vamos, Narciso! Vamos lá ver se aprendemos alguma coisa da arte da engenharia aqui com o nosso q-q-querido Apolod-d-doro.
O engenheiro voltou a dobrar o pescoço, e começou então a descrever os planos que tinha elaborado para proceder à drenagem do lago Albino. Cato tentou escutá-lo,
mas não desviou o olhar de Tigelino. O centurião mantinha-se à cabeça da coluna, a não mais de vinte metros do Imperador. A mão descansava no punho da espada, enquanto
os dedos tamborilavam na bainha. Entre ele e Cláudio havia uma linha firme de germanos. Até ali, decidiu Cato, o Imperador estava a salvo.
Apolodoro gesticulava na direção do vale que descia para o rio.
- Como o Imperador pode constatar, ordenei a construção de uma série de represas, cada uma com uma conduta de saída, de forma a podermos controlar o fluxo da água
enquanto drenamos a área em redor do lago. Se nos tivéssemos limitado a escavar um canal entre o lago e o rio, como creio que o vosso conselheiro Palias sugeriu
originalmente, poderíamos causar uma enchente do Tibre e inundar o centro de Roma quando a massa de água chegasse à cidade.
Narciso soltou uma risada.
- Decididamente, não foi um dos melhores momentos do meu caro amigo. Ainda que reconheça que Palias terá por certo os seus talentos.
- Tens toda a razão - anuiu Cláudio. - A minha mulher, a Imperatriz, tem por ele a maior das considerações.
Macro sussurrou.
- Oh, disso tenho eu a certeza.
- Chhhiu! - silvou Cato.
O engenheiro conduziu o grupo por um caminho de terra, esculpido a meio da vertente da ravina. A cada oitocentos metros via-se uma barragem, por trás da qual se
acumulava a água que saía do lago e ia preenchendo a ravina. A tarde já ia adiantada quando a procissão alcançou a última e maior das represas. Na sua base corria
um estreito fio de água, descendo a ravina que curvava e tinha encostas bastante mais abruptas que junto ao lago. O riacho era alimentado por um pequeno canal de
saída numa das extremidades da barragem. Junto a ela via-se um punhado de trabalhadores que empilhavam madeira por usar numa carroça. Inclinaram-se em respeito pelo
Imperador e prosseguiram o trabalho.
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Apolodoro deteve-se junto à base da barragem, onde se viam grandes e grossos toros a amparar as estacas que tinham sido cravadas no solo em posição vertical. Em
torno dos pilares centrais tinham sido colocadas cordas que conduziam aos lados da ravina, onde estavam presas a roldanas fixas com enormes estacas cravadas no solo.
Narciso olhou desconfiado para a barragem que se erguia bem acima do grupo, até quase vinte metros de altura.
- Estamos em segurança aqui?
- Completamente! - Apolodoro sorriu, exibindo toda a sua confiança. Avançou e deu uma palmada num dos pilares. - São precisos pelo menos uns cem homens a puxar pelas
cordas para fazer mexer um destes. E quando chegar o momento, será precisamente isso que sucederá, assim que desmatarmos o caminho que a água vai seguir até ao afluente
do Tibre. Por agora, só um terramoto seria capaz de os desalojar. Depois de drenar a água acumulada neste reservatório, subiremos o vale e vamos drenando cada um
por sua vez até chegarmos ao lago. Assim poderemos manter o controlo sobre o fluxo de água e assegurar que o nível do Tibre não sobe mais do que uns centímetros
durante um curto espaço de tempo. - Recuou e ficou a olhar para a barragem sem disfarçar o orgulho que sentia pelo empreendimento. Então lembrou-se de que estava
na presença do Imperador e virou-se apressadamente na sua direção. - As celebrações para comemorar o termo do projeto estão prontas, sire. Mesmo ali por trás da
curva da ravina, na margem do rio. Se nos fizer a honra de nos acompanhar...
- O quê? Oh, sim. Sim, claro! - Cláudio continuava a sorrir. - O prazer será todo m-m-meu, meu caro jovem. Mostra-nos o caminho!
Narciso apressou-se a avançar.
- Sire, já é tarde. Já se tornou pouco provável que consigamos regressar à capital antes de anoitecer. Seria aconselhável metermos pés ao caminho para voltar a Roma
imediatamente.
- Disparate! - contrariou Cláudio. - Porquê? Por acaso tens medo do escuro? E seja como f-for, este homem fez um t-tra-trabalho espantoso. O menos que podemos fazer
é celebrar com ele este sucesso.
Narciso inclinou a cabeça.
- Como desejar, sire.
O Imperador deu uma palmada nas costas de Apolodoro.
- Vamos lá então, meu rapaz! V-Vamos!
A ravina fazia uma curva gentil para a direita antes de se abrir para um prado extenso. Duzentos passos adiante, o rio brilhava ao sol, correndo lentamente na direção
de Roma. Mesas tinham sido dispostas em fila, e cobertas com toalhas vermelhas. Sobre uma delas via-se um bolo sumptuoso, feito de forma a parecer a barragem que
tinham acabado de apreciar.
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Trinta ou quarenta dos homens de Apolodoro esperavam junto às mesas e inclinaram-se perante a aproximação do Imperador.
Cláudio sorriu deliciado quando se aproximou da mesa e inspecionou o bolo.
- Excelente! Maravilhoso! Calculo que saiba tão bem como agrada aos olhos?
- Assim espero, sire. Os melhores cozinheiros percorreram Roma em busca dos ingredientes para o confecionar.
- Tem um aspeto delicioso. Vou ser o primeiro a prová-lo, se te aprouver.
- Evidentemente, sire. - Apolodoro fez estalar os dedos e um escravo acorreu com uma colher para o Imperador. Cláudio fez uma breve pausa e mergulhou-a na geleia
azul que se espalhava por trás da parte que representava a barragem, virando-se para o séquito.
- Tribuno Burro. Chama um dos teus homens, por favor. - Cláudio virou-se para o engenheiro. - Não q-q-quero ofender-te, mas não posso correr um risco destes.
- Claro, sire, eu compreendo.
Burro virou-se na sela e contemplou os homens da Sexta Centúria. Antes que pudesse indicar alguém, Tigelino apresentou-se.
- Senhor, sou voluntário!
Burro abriu a boca, como se fosse dizer qualquer coisa, mas acabou por encolher os ombros e assentir. Cato sentiu os músculos a ficarem tensos quando o centurião
avançou por entre dois dos guardas germanos. Parou a curta distância do Imperador e houve uma pausa até que Cláudio lhe pôs a colher ao alcance da boca. Tigelino
debruçou-se ligeiramente e encheu a boca. As mandíbulas trabalharam brevemente e engoliu. Deu-se outra pausa até Cláudio levantar as sobrancelhas em modo inquisitivo.
- Então?
- Uma delícia, senhor! - afirmou Tigelino.
- Nenhuns efeitos nocivos?
- Nenhuns, senhor.
- Muito bem. - Cláudio fez um gesto breve para o dispensar e Tigelino recuou para trás do cordão de germanos. Cato deixou escapar o ar que mantivera preso nos pulmões
e sentiu o corpo a relaxar.
- Vamos lá provar este bolo delicioso, e depois então regressaremos a Roma - anunciou o Imperador. - Tribuno, podes dizer aos homens para dispersarem enquanto comemos.
- Guarda Pretoriana! - gritou Burro. - Dispersar!
Os guardas, que havia dias recebiam rações reduzidas, olharam para a cena com evidente inveja, mantendo-se à distância para permitir que Cláudio
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e o seu pequeno séquito debicassem o bolo e conversassem sem preocupações. Cato reparou com um sorriso que Narciso fazia tudo o que podia para se manter entre o
Imperador e o jovem engenheiro, respondendo com a habitual subserviência a qualquer palavra do Imperador e franzindo o sobrolho perante o mais pequeno comentário
de Apolodoro.
Macro não despegava os olhos do bolo, e quase lhe escorria baba pelo queixo.
- Era bem capaz de me encher com aquilo.
- Parece-me demasiado pesado - ripostou Cato, sem lhe dar verdadeira atenção. - Provavelmente dava-lhe alguma indigestão.
- Ora, aguentava-a bem. - Macro lá afastou o olhar e virou-se para o amigo. - Quando o nosso querido Tigelino avançou para servir de provador, senti-me um tanto
preocupado.
- Também eu. Ao que parece, eu tinha razão. Seja qual for o plano dele, não envolve o suicídio.
- A não ser que seja por indigestão. - Macro voltou a procurar o centurião com os olhos, enquanto imitava Cato e se apoiava no escudo. Tigelino tinha-se afastado
e removera o capacete. Limpou a testa e começou a retirar a placa peitoral. Espreitou na direção da ravina com ar preocupado. Deixou cair a armadura para o chão
e espreguiçou-se, lançando os braços ao céu.
Macro virou-se para contemplar o grupo de dignitários aglomerado em redor do bolo, rapando as partes mais apetecíveis. O estômago roncou-lhe de forma audível e Cato
trocou com ele um sorriso. Cato abriu a boca para lançar algum comentário mordaz, mas antes que pudesse falar, ouviu-se um estampido surdo à distância. Toda a gente
se virou na direção de onde provinha o som. Logo a seguir ouviu-se outro estalo que se amplificou numa sequência de estampidos de madeira a quebrar-se e trovões
de pedregulhos a rolar. De súbito veio um troar que preencheu todo o cenário. Uma brisa súbita levantou-se na ravina e cresceu rapidamente de intensidade.
- Foda-se, o que é isto agora? - lançou Macro, enquanto se virava para a origem do tumulto.
Mas Cato adivinhara imediatamente a origem do som, e já tinha as entranhas torcidas de terror. Lançou uma olhadela ao Imperador, que contemplava estarrecido a ravina,
com a colher cheia de doce a meio caminho da boca. Ao voltar-se para a mesma zona, Cato avistou uma massa líquida e escura a reluzir e espumar, percorrendo a curva
da ravina, esmagando e arrancando as árvores mirradas que cresciam nas encostas, arrastando penedos e montes de terra e levando tudo à frente. O enorme volume de
água que estivera retido por trás da última barragem correu para fora da ravina, dirigindo-se diretamente para o séquito imperial e a sua escolta.
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A princípio ninguém reagiu. Todos tinham ficado aterrorizados ao avistar a parede de água tumultuosa que se dirigia para eles. Tigelino foi o primeiro a entrar em
ação. Levou uma mão à boca e gritou:
- Corram! Fujam, se querem salvar-se!
O grito quebrou o encantamento, e a comitiva imperial, os engenheiros e os pretorianos puseram-se em movimento, alguns fugindo na direção oposta à da água, e outros
para os lados, onde o terreno subia ligeiramente. Cato livrou-se do escudo e da lança e começou a desfazer os nós que prendiam o capacete. Macro imitou-o, enquanto
se afastavam do caminho da enxurrada.
- Espere! - Cato chamou o amigo. - Temos de salvar o Imperador!
Macro deteve-se e anuiu; viraram-se para o lado onde estava a mesa
com o bolo. Cláudio coxeava a caminho do rio, tão depressa quanto conseguia, deitando olhares apavorados por cima do ombro à onda que avançava sem cessar. Tigelino
corria atrás dele, e Cato percebeu, com uma súbita pontada de medo, que o centurião era bem capaz de conseguir alcançar o Imperador antes deles. Acelerou, correndo
com toda a força que conseguiu reunir, embora a armadura pesada o atrasasse. Macro seguiu-o. O vento provocado pela massa de água à desfilada atingiu com força a
toga do Imperador, fazendo-a voltear, bem como aos cabelos desgrenhados. O rugido da água em fúria parecia ensurdecedor a Cato, que se aproximava do Imperador pelo
lado. À sua esquerda corria Tigelino, a ganhar terreno, prestes a chegar junto do Imperador. Tinha a adaga na mão, a ponta em riste, enquanto corria na direção do
seu alvo sem ligar ao que se passava em redor.
O ar nas costas de Cato arrefecera repentinamente, e ele arriscou uma última olhadela à onda, notando que já não estava a mais de cinquenta passos, uma massa caótica
de espuma e água castanha que arrastava consigo arbustos e até árvores. Ouviu-se um grito de terror e desespero algures à direita, quando os primeiros pretorianos
foram atingidos, mas a voz foi rapidamente afogada quando o seu dono foi engolido.
Tigelino já não estava a mais de uns três metros do Imperador quando
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tropeçou, ao bater com a ponta do pé contra um calhau. Caiu, e a adaga escapou-se-lhe das mãos. Cato continuou a correr, enquanto gritava:
- Sire!
Cláudio olhou para ele com os olhos arregalados, e depois o assombro pelo que avistava por trás do jovem refletiu-se nos olhos do ancião. Cato agarrou-lhe no braço
com uma mão, e com a outra começou a rasgar-lhe a toga. O Imperador lutou e tentou bater-lhe com a mão livre.
- Acudam! Assassino!
- Não, sire! A toga vai arrastá-lo para o fundo! - gritou Cato, enquanto removia o pesado tecido de lã do ombro do Imperador. Ouviu Macro a gritar ali perto, mas
antes de conseguir voltar-se para ver o que se passava, a onda atingiu-o. Sentiu a água a subir-lhe pelos tornozelos e tentou colocar-se à frente do Imperador para
o proteger com o seu próprio corpo. A massa de água embateu-lhe então nas costas, fazendo-o perder de imediato qualquer hipótese de equilíbrio. Tentou manter a cabeça
à tona, pontapeando o terreno e a água, enquanto era inexoravelmente arrastado. Manteve o Imperador firmemente agarrado, puxando-o para cima. A água rodeava-o, passando
sobre ele e rugindo-lhe aos ouvidos, até que emergiu e conseguiu respirar de novo.
Alguma coisa o atingiu nas costelas, fazendo-o expelir todo o ar que tinha nos pulmões; ao abrir a boca, a água aproveitou imediatamente a oportunidade para lhe
entrar para as vias respiratórias. Voltou a submergir, ainda agarrado ao Imperador, que continuava a debater-se freneticamente. Sentiu qualquer coisa sólida nas
proximidades e arriscou soltar uma mão da roupa do Imperador, para tentar perceber do que se tratava. Compreendeu que era um tronco, um grosso ramo de uma árvore.
Fechou os dedos em torno da casca áspera e puxou-se para ela, arrastando o Imperador no movimento. A cabeça de Cato voltou a rasgar a superfície, e ele aproveitou
para respirar. À sua volta remexia-se uma massa caótica de espuma, água e detritos, onde se avistavam cabeças e membros de homens a agitarem-se por todo o lado.
Julgou avistar Macro ali perto, mas a água voltou a fechar-se em torno da cabeça do homem antes que pudesse certificar-se da sua identidade. Cláudio emergiu também,
tentando respirar, aflito.
- Sire! - gritou-lhe Cato com toda a força. - Agarre-se ao ramo!
Cláudio virou-se para ele.
- Não consigo! Estou a ser arrastado pela força da água! S-S-Salva-te, meu caro jovem. Estou arrumado!
Cato percebeu que a toga ainda lhe rodeava o peito e estava a servir de rede, prendendo toda a espécie de detritos que aumentavam o peso do Imperador e ameaçavam
levá-lo para o fundo. Cato agarrou no tecido e rasgou-o com todas as forças, libertando algum do lixo. Foi um curto alívio,
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mas depressa Cláudio voltou a ser arrastado, e mal teve tempo de soltar um grito desesperado antes de a água se fechar sobre ele. Conseguiu vir à tona de novo, e
Cato aproveitou para lhe dar indicações.
- Dispa-a! Solte-se, ou será a morte!
- Sim... Sim - balbuciou Cláudio. - Libertar-me.
Enquanto dava pontapés e coices para tentar livrar-se do material, Cato usou a mão livre para tentar afastar a toga do corpo do Imperador. A lã comportava-se como
uma criatura viva, a retorcer-se na corrente caótica, as pregas a enrolarem-se na mão e no braço de Cato. Um último puxão afastou-a definitivamente, e os dois homens
subiram à superfície, colocando cabeças e ombros fora de água, agarrados ao tronco. A água em redor parecia estar a acalmar-se, e pela primeira vez Cato apercebeu-se
de que já tinham sido arrastados ao longo de uma grande distância. Em redor flutuavam os destroços das mesas, e Cato avistou Tigelino a uns vinte metros, a tentar
subir para um dos tampos que rodopiavam no meio da veloz corrente.
- Cato!
Virou-se e avistou Macro a tentar nadar para junto do ramo. Nesse momento, a meio caminho, emergiu outro vulto, a ofegar e esbracejar, a tentar desesperadamente
manter-se à tona. Cato reconheceu o tribuno Burro.
- Aqui, senhor! Aqui! - Cato agitou o braço e Burro avistou-o; começou a nadar para junto dele. Alcançou o tronco e rodeou-o com os braços, enquanto tentava recuperar
o fôlego. Cato olhou em redor e percebeu que também Macro estava quase a chegar ao ramo. Porém, nesse instante reparou que pouco à frente se passava algo de estranho.
A orla da onda parecia desaparecer como que por encanto, substituída por uma linha bem nítida que se aproximava rapidamente.
- Oh, merda - murmurou. - O rio...
O tronco, e os homens a ele agarrados, estavam a ser arrastados para o curso do rio e lançados sobre a abrupta margem. Cato colocou o braço em torno do Imperador
e agarrou-se com mais força ainda ao tronco. Reparou que Macro conseguira por fim agarrar-se à ponta de um ramo estreito ali perto. Cato encheu os pulmões de ar
e gritou para se fazer ouvir acima do rugido da água revolta.
- Agarrem-se bem! Vamos cair no rio!
A ponta do tronco saltou abruptamente para cima, parecendo equilibrar-se no ar por um instante. Mas logo mergulhou para o abismo. A água voltou a fechar-se em torno
de Cato, que sentiu as pernas a serem arrastadas contra rochas e destroços enquanto era levado pelo tronco junto ao fundo acidentado do curso do rio. A água rugia-lhe
aos ouvidos, e os pulmões começavam a arder-lhe. O Imperador contorcia-se, mas era impossível perceber se estava a lutar contra quem o segurava ou se estava apenas
a
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ser sacudido pela corrente. O tronco foi apanhado num turbilhão, e o ramo a que estavam agarrados rasgou a superfície de novo. Cato aproveitou para engolir uma boa
golfada de ar.
- Sire, está bem? Sire!
O Imperador deitou fora alguma água e apoiou a cabeça contra o ramo, enquanto todo o corpo entrava em convulsões por causa de um ataque de tosse.
Cato olhou em redor e viu que Burro ainda se mantinha agarrado ao tronco, mas não conseguiu localizar Macro. Virou a cabeça para todos os lados, perscrutando a superfície
das águas. Havia vários homens espalhados pelas redondezas, tentando manter-se à tona ou dirigir-se para a margem. Tigelino continuava esparramado sobre o tampo
de mesa. Agora que o rio tinha absorvido a maior parte da água libertada pelo colapso da barragem, o pior já tinha passado, compreendeu Cato. Mas continuava a não
haver sinal de Macro. Avistou então um volume na água, a poucos metros de distância. A massa começou a rolar, e Cato percebeu que se tratava de um corpo humano;
por fim, com uma pontada de pânico, reconheceu as feições de Macro, quando o rosto emergiu por momentos antes de voltar a mergulhar sob a superfície.
- Tribuno! - chamou Cato. - Tribuno Burro, senhor!
Burro olhou para ele com uma expressão atordoada, a piscar o único olho.
- Cuide do Imperador, senhor! Compreende?
- Sim... - anuiu Burro, fazendo um esforço notório para se concentrar. Cato virou-se para Cláudio. - Sire, agarre-se bem. Havemos de o safar desta.
Soltou então o ramo e lançou-se na direção de outro pedaço de mesa que ainda rodopiava na corrente, ali perto. Puxou-se para cima da madeira, apoiando o peito, e
deu às pernas, dirigindo-se para junto do amigo, que dava poucos sinais de vida. Ao aproximar-se, tentou agarrar-lhe as roupas, cravando os dedos nas dobras da túnica.
Por fim conseguiu pescá-lo e puxá-lo também para cima da mesa. Pela testa de Macro corria um fino fio de sangue, que provinha de um corte profundo.
- Macro! - Abanou-lhe os ombros violentamente. - Macro! Abra os olhos.
A cabeça do amigo rebolou sem ação sobre as tábuas da mesa, e o queixo descaiu-lhe. Cato deu-lhe uma bofetada.
- Foda-se, abra os olhos!
Não houve resposta, e Cato voltou a esbofeteá-lo, ainda com mais força. Desta vez a cabeça de Macro estremeceu, e os olhos entreabriram-se. O queixo firmou-se, desafiador.
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- Quem foi o cabrão que me acertou, hã?
Nesse momento a água que tinha nos pulmões fê-lo agoniar-se e vomitar violentamente, e levou algum tempo a recuperar o suficiente para tomar consciência da presença
de Cato. Sorriu fracamente.
- Caraças, miúdo, o que é que te aconteceu? Estás num estado lastimável.
Cato não conseguiu evitar um largo sorriso de alívio.
- E você devia ver-se a si próprio.
- O que... O que é que aconteceu? - indagou, com uma careta. - Sinto-me como se algum filho de uma cabra me tivesse dado com uma pedra na cabeça.
- Deve ter batido com a cabeça no tronco quando mergulhámos no
rio.
- Rio? - Macro soergueu a cabeça e olhou em redor, confuso. Então deu um pulo quando se recordou dos momentos anteriores ao impacto da torrente. - O Imperador!
- Está a salvo. Ali à frente. - Cato apontou para o tronco, onde Burro tinha mudado de lugar para se colocar ao lado de Cláudio. Estavam já perto da margem, e no
momento seguinte as ramagens ficaram presas nalguma obstrução subaquática e rodaram no sentido da margem lamacenta. Cato soltou um pequeno suspiro de alívio e deu
uma palmada amigável em Macro.
- Vamos. Vamos lá sair também desta sopa.
Cato começou a bater os pés, rodando a mesa até apontar diretamente para a margem. Macro juntou-se-lhe, para saírem do meio da corrente. Demorou algum tempo até
sentirem debaixo das botas o leito lamacento e encostarem a mesa à estreita faixa de juncos que crescia na orla da corrente veloz. Abandonaram a embarcação improvisada
e abriram caminho pelos caniçais até chegarem a solo firme e se deixarem cair sobre o terreno relvado por trás das canas. Macro pôs a cabeça nas mãos e gemeu, enquanto
Cato, ainda de gatas, mantinha a cabeça baixa e respirava fundo, cuspindo a água que ainda tinha nos pulmões e limpando a boca. O coração batia-lhe desalmadamente,
e tremia de forma descontrolada. O ar estava gelado, e fazia com que o corpo ensopado ainda se sentisse mais frio, mas Cato sabia que os tremores eram devidos ao
tremendo esforço que realizara desde o momento em que a onda o atingira. Isso e o choque e o terror que os acontecimentos lhe tinham cravado no espírito.
Levantou-se a custo e perscrutou a paisagem circundante. Ao olhar para montante, avistou ainda o sítio onde a ravina desembocava, a umas centenas de metros. Uma
faixa de lama escura perturbava o verde do pasto que se estendia da saída da ribanceira até à margem do rio. Viam-se árvores
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arrancadas e inúmeros vultos humanos, de pé ou sentados no meio da lama, tentando recobrar plena consciência. Outros já se encontravam na zona que marcava a margem
da passagem da onda. Não havia sinal das liteiras nem das mesas onde o bolo tinha estado colocado. Algumas centenas de passos a montante, avistou Burro a amparar
o Imperador e a regressar para junto dos outros. De Tigelino não havia sinal, nem para cima nem para baixo.
Agachou-se junto a Macro.
- Como se sente?
- Moído. - Macro encheu as bochechas de ar. - Devo ter levado uma boa pancada na cabeça... Estava a agarrar-me àquele ramo; de repente, caímos nem sei bem para onde.
É a última coisa de que me lembro até acordar com um sacana qualquer a dar-me bofetadas. - Olhou para cima.
- Depreendo que fosses tu.
- Ora, para que é que servem os amigos? - Cato ofereceu-lhe a mão e ajudou Macro a pôr-se de pé. - Bem, vamos lá ter com o que resta da centúria.
Começaram a andar na direção dos vultos espalhados pela zona inundada, alguns dos quais já procuravam por sobreviventes presos nos destroços, ou ajudavam os feridos.
- Que raio aconteceu afinal? - perguntou-se Macro.
- Parece-me óbvio. A barragem cedeu.
- Como? Como é possível? Ouviste o engenheiro. Seriam precisos mais de cem homens para provocar o colapso da barragem.
Cato pensou por momentos.
- Evidentemente não foi isso que aconteceu. Ou cedeu por si mesma, ou alguém a ajudou.
- Ora, o que provocou isto é claro: trabalho merdoso dos cabrões dos gregos.
- Acha mesmo? Precisamente quando o Imperador estava no caminho que a água seguiria? Uma coincidência tramada.
- Acontece. Os deuses gostam dos seus jogos.
- E o mesmo acontece com alguns traidores. Viu o Tigelino? Pareceu o único de todos nós que não ficou surpreendido ao ver a onda.
Prosseguiram em silêncio por momentos, até que Macro voltou a quebrar a quietude.
- Muito bem então, se foram os Libertadores os responsáveis por isto, como raio o conseguiram?
- Não faço ideia. Por enquanto. Mas quero dar uma boa vista de olhos ao que resta da barragem.
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Quando por fim se reuniram aos outros sobreviventes, os guardas germanos já tinham formado uma zona de proteção ao Imperador. Os cabelos hirsutos e ensopados, manchados
de lama, as túnicas e armaduras imundas, davam-lhes um ar ainda mais bárbaro do que era costume, e os pretorianos e civis mantinham-se a uma distância segura. Alguém
tinha encontrado um banco em condições, e Cláudio sentava-se nele, com ar abatido, enquanto observava o que se passava à sua volta. Os sobreviventes tinham-se dirigido
quase por instinto para uma zona elevada num dos lados do vale, para o caso de acontecer nova tragédia. Narciso debruçava-se sobre o Imperador, oferecendo-lhe algumas
palavras de conforto, enquanto a curta distância se via um aterrorizado Apolodoro, vigiado por dois germanos.
- Vocês os dois!
Cato virou-se e deu de caras com o tribuno Burro, que se dirigia para eles. Pôs-se em sentido, no que foi imitado por Macro, e saudaram o comandante da coorte. Burro
olhou atentamente para Cato e acenou.
- Foste tu quem me ajudou a salvar o Imperador, não foste?
Cato pensou rapidamente. Era tentador assumir o crédito pelo papel que desempenhara no salvamento de Cláudio, mas seria perigoso chamar a atenção sobre si ou Macro.
Sobretudo se os Libertadores viessem a saber da história - não deixariam de se interrogar sobre os seus verdadeiros propósitos.
- Estava agarrado ao mesmo ramo, sim. Mas foi tudo. Creio, senhor, que a maior parte da responsabilidade nesse feito lhe cabe.
Os olhos de Burro semicerraram-se, como se suspeitasse de algum truque. Mas o oficial anuiu com um lento movimento da cabeça.
- Muito bem. Ainda assim, tratarei de garantir que o teu papel não vai passar sem a devida recompensa.
Cato assentiu em sinal de gratidão.
- O vosso centurião desapareceu. Viram-no? - quis saber o tribuno.
- Estava ao pé de nós no rio. Depois perdi-o de vista.
- Uma pena. Um homem de valor. Foi dos que mais depressa reagiram para tentar salvar o Imperador quando a onda surgiu. Felizmente estava lá eu quando ele falhou,
hã?
- De facto, senhor.
- O optio está agora no comando. - Burro acenou a Fúscio, que de alguma forma tinha conseguido não perder a vareta e se ocupava a procurar homens da Sexta Centúria
entre os ainda abalados sobreviventes. - Portanto, apresentem-se a ele.
- Ainda não, tribuno - disse Narciso, que se tinha aproximado dos três guardas. - Quero dar uma olhadela à barragem. E quero que estes dois homens me acompanhem,
para o caso de haver ainda perigo.
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- Mais perigos? - Burro pareceu genuinamente surpreso perante a sugestão, mas encolheu os ombros. - Muito bem, leva-os.
O secretário imperial acenou na direção do Imperador e baixou a voz.
- Cuida dele. Está muito abalado.
- Claro.
Narciso olhou para Cato e Macro com a expressão ausente de quem estava habituado a considerar a massa humana à sua frente como pertencente a uma classe única, a
de servos.
- Sigam-me!
Seguiram pela relva, evitando a área enlameada entre a ravina e o curso do rio. Quando entraram na ravina, passaram a avançar com maior cautela, já que o piso estava
escorregadio e juncado de restos de árvores e outra vegetação. Assim que ficaram longe da vista dos sobreviventes, Narciso virou-se para os dois amigos.
- Isto não foi nenhum acidente. Tratou-se sim de um claro atentado à vida do Imperador, e à minha.
Macro fungou.
- Sem falar de algumas centenas de guardas e civis. Mas calculo que nós não contamos para grande coisa, claro...
- Não, no esquema global das coisas, nem por isso - ripostou Narciso, friamente. - Por agora, agrada-me que aquele engenheiro grego pense que foi apenas um acidente.
Está em pânico, e talvez nos dê alguma informação útil. Agora ou depois.
- Depois? - Cato deitou-lhe uma olhadela.
- Se por acaso deixar escapar algum facto que me dê poder sobre ele, será um excelente subproduto desta situação.
Macro abanou a cabeça.
- Por todos os deuses, não deixa passar uma oportunidade, pois não?
- Tento não o fazer. É por isso que ainda estou vivo e ao lado do Imperador. Não há muitos dos meus predecessores que se possam gabar de ter sobrevivido tanto tempo
nesta posição como eu.
- E agora o Palias está a tentar afastá-lo - notou Macro, com um estalo de língua. - A coisa está a ficar difícil, não é?
- Ora, já derrotei homens bem mais astutos que o Palias - retorquiu Narciso, sem alarde. - Ele não me vai preocupar por muito mais tempo.
- Oh?
Narciso deitou-lhe um olhar incisivo e rodeou um bloco de grandes dimensões. Olhou em frente e apontou.
- Parece-me que ali encontraremos algumas respostas.
Cato e Macro seguiram a indicação e avistaram as ruínas da barragem. O estreito fundo do vale era atravessado por uma linha de rochas, pelo
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meio das quais ainda jorrava alguma água. Mais rochas e toros estilhaçados estavam espalhados pelo solo à frente das fundações da barragem. Os três homens foram
escolhendo o caminho e detiveram-se junto à brecha.
- Estou a tentar lembrar-me da aparência que isto tinha antes - disse Narciso. - Devia ter prestado mais atenção às explicações daquele chato do Apolodoro. Não havia
aqui uns paus aguçados no meio?
- Paus? - Cato sorriu. - Acho que ele lhes chamou pilares.
Narciso olhou para ele e franziu o sobrolho.
- Pilares, pronto. Lembro-me de ele dizer que seriam precisos muitos homens para os mudar de sítio quando chegasse o momento de drenar a água acumulada.
- Foi isso, sim - confirmou Cato.
- Então, o que é que aconteceu? Donde vieram esses homens todos num repente? Não havia ninguém nas proximidades.
- Não... Havia, sim - relembrou Cato. - Lembram-se daquele grupo que estava ao pé da carroça na base da barragem?
Macro anuiu.
- Sim. Mas não podiam ser mais de dez. Não conseguiriam remover aquelas madeiras. Sozinhos, nem pensar.
- Pois, tem razão - admitiu Cato.
Continuaram a procurar caminho por entre os destroços enlameados. Narciso apontou para a ravina.
- Não é um deles? Um dos tais pilares? Ou o que resta dele, pelo menos.
Cato e Macro viraram-se para olhar para onde era indicado. A uns cem passos, na parte lateral da ravina, estava algo que fazia lembrar um tronco de árvore estilhaçado,
de pé mas inclinado, preso entre dois blocos rochosos. Cato verificou que era demasiado regular e direito para ser de facto o que restava de uma árvore.
- Vale a pena investigar - disse.
- Porquê? - contrapôs Macro, pouco entusiasmado com o emaranhado de vegetação enlameada que se interpunha entre eles e o pilar destroçado.
- Para a barragem entrar em colapso, ambos os suportes principais tinham de ceder, certo?
- E então?
- Então, não está curioso sobre a forma como isso aconteceu?
Macro deitou-lhe um olhar fatigado.
- Podia estar mais.
Cato ignorou-o e começou a abrir caminho pela paisagem arruinada, na direção dos dois penedos. Pouco depois, os outros dois seguiram-no.
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Cato já estava a examinar a grossa peça de madeira quando o alcançaram. Parte do pilar estava enterrado na lama, mas ainda havia mais de um metro e oitenta de madeira
exposto ao ar, e terminava numa zona destroçada. Cato traçava com os dedos o que restava de uma linha direita que parecia situar-se junto à base dessa parte.
- Está a ver isto? - Afastou-se ligeiramente, para que os outros vissem. Macro pôs-se nas pontas dos pés e semicerrou os olhos.
- Parece que foi serrado. - Passou os dedos pela marca. - Até bem fundo na madeira.
Cato assentiu.
- Aposto que encontraríamos o mesmo no outro pilar, se o achássemos; e o mesmo nas outras estruturas de suporte. Se as enfraqueceram assim a todas, já não precisariam
de centenas de homens para pôr pressão nas travessas e as fazer ceder ou a não conseguirem aguentar a pressão, como aconteceu aqui. - Deu uma palmada no pilar. -
Bastava alterar os suportes e esperar que a pressão da água na barragem tratasse do resto.
Narciso anuiu.
- Como eu disse, isto não foi nenhum acidente, e aqui está a prova.
- Há mais uma coisa - disse Cato. - Quando avistámos a onda, reparou que toda a gente ficou pregada ao solo?
- Sim. E então?
- Um homem não ficou. O centurião Tigelino correu para o Imperador antes que mais alguém recuperasse o senso e reagisse. E tinha já removido as peças mais pesadas
do equipamento, para garantir que não seria facilmente arrastado para o fundo.
O sobrolho de Narciso franziu-se ligeiramente enquanto relembrava os acontecimentos.
- Sim, ele foi muito despachado. Podia pensar que ele queria proteger o Imperador, mas há o detalhe de ter sido ele a substituir o Lurco. - Olhou para Cato. - Estás
a dizer-me que o Tigelino sabia da barragem? Que por isso é que se queriam ver livres do Lurco, porque já tinham isto planeado?
- Talvez. - Cato parecia inseguro. - Mas como poderiam saber que o Imperador planeara visitar os trabalhos de drenagem? A decisão de substituir Lurco foi tomada
antes de o Cláudio resolver vir aqui hoje mesmo.
- Foi um grande projeto, que levou anos a concluir - observou Macro. - Era bastante provável que ele quisesse vir acompanhar em pessoa as últimas fases.
- Mais do que provável - interrompeu Narciso. - Não foi o Apolodoro que planeou todas estas festividades por si mesmo. Foi ideia do Palias. Organizou as celebrações
e encomendou o bolo.
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- Então estará o Palias por trás disto tudo? - Macro franziu o sobrolho. - Estará a trabalhar para os Libertadores?
- Não sei - admitiu Narciso. - É possível. Mas duvido. Não tem nada a ganhar com um regresso da República. Aliás, tem tanto a perder como eu. Duvido muito que ele
esteja por trás deste atentado.
- Porquê? - indagou Cato. - Se Cláudio se afogasse, Nero seria o mais provável sucessor.
- É verdade - admitiu Narciso. - Mas havia muita gente no palácio que sabia que o Imperador estaria aqui. E qualquer um deles pode estar a trabalhar para os Libertadores.
Seja como for, souberam da visita do Imperador aos trabalhos e decidiram pôr em marcha o plano para o Tigelino assassinar o Imperador. Sabotaram as fundações da
barragem; o Tigelino sabia o que ia acontecer e preparou-se para atacar no momento de confusão quando a onda se dirigiu para nós.
- Isso é um bocado rebuscado - protestou Macro. - O Tigelino estaria a arriscar a vida. E quanto a isso, aliás, também os homens envolvidos na sabotagem da barragem.
Um passo errado e a coisa ter-lhes-ia caído literalmente em cima.
- O que serve para mostrar a determinação do inimigo que enfrentamos - sublinhou Narciso, com ar severo. - Eles querem ter um assassino próximo do Imperador. Sejam
quais forem os planos que têm para o Tigelino, a verdade é que havia poucas hipóteses de ele escapar depois de cometer um ato deste género. Aliás, esta história
do reservatório era provavelmente a melhor possibilidade que ele alguma vez teria para atacar e conseguir escapar sem ser acusado.
Cato anuiu.
- Acho que tem toda a razão. O problema é que, se isto foi apenas um atentado oportunista, então o plano inicial ainda está em execução, desde que o Tigelino tenha
sobrevivido; ou então têm outro homem pronto a tomar o lugar dele, se estiver morto. Temos de continuar atentos a tudo. Vai dizer alguma coisa ao Imperador?
Narciso hesitou.
- Ainda não. Quero ver isto bem investigado. Antes de falar ao Cláudio, tenho de ter certezas sobre os factos.
- É justo. Mas há outra coisa. O Apolodoro não teve nada a ver com isto. A vaga surpreendeu-o tanto a ele como a nós. Devia sossegar-lhe a mente antes de o pôr a
examinar os indícios.
Narciso pareceu considerar a sugestão.
- Talvez mais tarde, depois de ele ser interrogado. Por agora, ficarei satisfeito em deixar toda a gente pensar que se tratou de um incidente pouco afortunado. É
isso que os Libertadores querem que pensemos, por certo, e
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não os quero assustar para já. Estão a jogar as suas peças. Desta vez falharam. Se acharem que nós não estamos ao corrente da conspiração, hão de tentar outra vez.
Quantos mais riscos tomarem, melhores hipóteses teremos de os identificar e eliminar.
- E mais hipóteses terão eles de conseguir eliminar o Imperador - lembrou Macro.
- Nesse caso, teremos de estar todos mais atentos aos perigos potenciais, não é? - ripostou Narciso, de mau modo. Fez uma pausa e obrigou-se a prosseguir em tom
mais conciliador. - Esta é a melhor oportunidade que tenho para tratar dos Libertadores de uma vez por todas. Devia tê-los esmagado há muitos anos, quando tive essa
hipótese - acrescentou, amargo. Mas logo prosseguiu. - Se os obrigarmos a esconderem-se agora, eles tratarão de aguardar até verem outra oportunidade. E entretanto
o Imperador estará sob constante ameaça, e eu e os meus agentes não teremos recursos para responder a todos os possíveis sinais de perigo. O melhor é despachar isto
agora, não vos parece?
Macro olhou para ele e encolheu os ombros.
- A decisão é sua. Andar a desencantar conspiradores não é propriamente o meu trabalho. É a si que compete proteger o Imperador.
- Não. - Narciso espetou o dedo no peito de Macro. - É a todos nós. A todos cujo dever é proteger o Imperador e Roma. Fizeste um juramento, em tempos.
O punho de Macro subiu rapidamente e fechou-se como um torno em redor da mão do secretário imperial.
- E se alguma vez voltar a espetar-me dessa maneira, farei outro juramento. Percebido?
Os dois homens encararam-se com profundo azedume até que Macro cerrou ainda mais o punho e o olhar de Narciso vacilou quando todo o seu corpo estremeceu. Soltou
a mão e dobrou os dedos doridos.
- Hás de arrepender-te disto.
- Já me arrependi de muitas coisas na minha vida - respondeu Macro, sem lhe dar importância. - Isso nunca me impediu de as fazer.
Cato estava a ficar exasperado com a hostilidade mútua exibida pelos dois companheiros.
- Basta! - interrompeu. - Temos de regressar para junto do Imperador. Narciso, trate de o levar em segurança para o palácio, antes que os Libertadores comecem a
fazer circular notícias que o deem como morto.
O secretário imperial deitou um último olhar de ódio a Macro, antes de assentir.
- Tens razão. Além disso, a escolta está em fraca condição para resistir a qualquer ataque. Temos de nos pôr a caminho antes do cair da noite.
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- Precisamente. - Cato fez um gesto imperioso. - Vamos.
Puseram-se a caminho, agradados por deixarem para trás a desolação silenciosa que por ali reinava. Cato, que liderava o grupo, não conseguia deixar de pensar na
determinação exibida pelo inimigo. Se estavam tão dispostos a arriscar a própria vida para conseguir os seus fins, eram inimigos tão letais como os mais perigosos
que alguma vez tinham enfrentado. Da próxima vez que surgisse um ataque, teriam de se esforçar ainda mais para os neutralizar.
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- Catorze afogados, outros dez feridos, doze ainda desaparecidos, incluindo o centurião - anunciou Fúscio, enquanto se deixava cair sobre a cama no quarto da secção.
Abanou a cabeça. - Os rapazes não tiveram qualquer hipótese quando a água nos atingiu... - O jovem optio cerrou os olhos, e baixou o tom de voz até lhe sair pouco
mais do que um murmúrio. - Quando fui puxado para o fundo, tive a certeza que ia morrer.

Cato estava sentado na cama oposta, e inclinou-se para a frente.
- Acho que todos pensámos o mesmo. Uma coisa daquelas nunca será incluída no programa de treinos, não é?
A tentativa de aliviar a tensão caiu em ouvidos moucos. Fúscio continuou a contemplar o chão entre as botas.
- A Quinta Centúria sofreu ainda mais perdas do que nós... Pensava eu que entrar para a Guarda Pretoriana era a garantia de uma vida tranquila. Primeiro foi a merda
do motim, e agora isto. Até parece que estamos amaldiçoados.
Macro soltou uma gargalhada cruel.
- O quê? Então tu imaginavas que a vida de um soldado era isenta de perigos? Miúdo, devias era ter passado por alguns dos apertos em que eu e o Capito andámos metidos
nestes últimos anos. Muito piores do que isto. E ainda aqui estamos para contar a história. Nada disto tem a ver com maldições. Portanto, trata de erguer uma caneca
aos camaradas que perdeste, honra a sua memória e continua a cumprir os teus deveres. É tudo o que podes e deves fazer. O que não podes é ficar para aí, a chafurdar
na pena com que estás de ti mesmo, a balbuciar histórias de maldições e maus-olhados. Sobretudo sendo tu um optio. Até que o Tigelino apareça ou seja substituído,
estás no comando da centúria. Portanto, trata de te recompores.
Fúscio levantou o olhar e encarou Macro. A princípio, a expressão do optio era neutra, mas depois os olhos começaram a semicerrar-se, e a suspeita tomou conta da
sua atitude.
- Isto tudo começou a acontecer depois de vocês chegarem.
- Nós?
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- Isso mesmo. Antes, tudo corria bem, não havia problemas. Agora, fomos atacados pela populaça, o Lurco desapareceu, e metade da Sexta Centúria foi-se, levada por
uma inundação bizarra. - Fez uma pausa. - A mim parece-me mais do que mera coincidência. O que levanta uma questão. O que fizeram vocês para desagradar aos deuses
de tal forma que a sua fúria se abateu também sobre os vossos camaradas, hã?
- Miúdo, estás a disparatar. Eu e o Capito temo-nos limitado a cumprir os nossos deveres. Nem mais nem menos do que isso. Tal como tu. E como o resto do pessoal.
Os deuses não têm nada a ver com esta história.
- Portanto, a barragem cedeu por si mesma, foi isso? Um acidente imprevisível? Por favor, Cálido. Foi um ato dos deuses, se alguma vez houve algum.
- Ato dos deuses, o caralho! Algum filho da puta...
- Cálido! - interrompeu Cato. - Já chega. O optio tem tido uma vida difícil. Se vai assumir o comando da centúria, precisa de descansar. Portanto, deixe-o em paz.
Macro virou-se para Cato com uma expressão de fúria.
- Ouviste-o bem. O merdoso acha que a culpa disto tudo é nossa.
Cato arqueou as sobrancelhas, num sinal claro.
- Oh... Sim, estou a ver... - Macro engoliu a ira e virou-se de novo para Fúscio. Pigarreou. - Optio, hã... As minhas desculpas. Estava errado.
- Muito bem. - Fúscio assentiu, devagar. - Vamos pôr uma pedra sobre o assunto, sim? Preciso mesmo de descansar. Talvez o Tigelino ainda apareça. Se não, tenho de
estar bem fresco quando chegar a manhã.
- Tem razão, optio - anuiu Cato. - Trataremos de garantir que ninguém lhe perturbará o descanso. Melhor ainda, eu e o Cálido vamos sair um bocado, e deixá-lo dormir
em paz.
Macro deitou um olhar furibundo a Cato, mas o amigo respondeu-lhe na mesma moeda e indicou a porta com um movimento do polegar. Levantaram-se das camas e deixaram
o quarto, enquanto o jovem optio se deitava no colchão pouco confortável e se enrolava sobre si mesmo. Quando Cato fechou a porta depois de sair, Macro explodiu.
- Aquele sacaninha tem de ser posto no seu lugar. Como é que se atreve a falar assim connosco?
- Concentre-se na missão - ripostou Cato, tentando acalmá-lo. - Quase que deitava tudo a perder, há bocadinho. Toda a gente sabe que o colapso da represa foi um
acidente, lembra-se? Pelo menos até que o Narciso anuncie outra coisa.
- Achas mesmo que essa história vai convencer as pessoas durante muito mais tempo?
- Não - retorquiu Cato, fatigado. - Mas pode dar-nos mais algum
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tempo até que o outro lado perceba que tem de ter mais cuidado a esconder os seus rastos. E por agora precisamos de toda a ajuda que conseguirmos arranjar. - Cato
acenou na direção da porta. - Vamos continuar a falar, mas não aqui. Vamos até à messe.
A vasta sala ao fundo do edifício, no andar térreo, estava quase vazia. Além de Cato e Macro, só se via um grupo de homens a um dos cantos, a jogar dados sem grande
entusiasmo. Levantaram as cabeças, acenaram à laia de saudação e continuaram a jogar. Os dois amigos escolheram uma mesa no outro lado da sala e sentaram-se. Macro
lançou um suspiro impaciente.
- Bom, cá estamos. Sobre o que é que queres falar?
Cato não respondeu de imediato. Contemplou absorto a gasta superfície da mesa e depois passou um dedo, devagar, pelos riscos que algum pretoriano enfastiado tinha
feito para inscrever o seu nome na madeira, havia alguns anos.
- Estou a tentar perceber até onde é que conseguimos avançar nesta história.
- Boa sorte, miúdo. Confesso desde já que isto está demasiado confuso para a minha cabeça. Esses cabrões dos Libertadores parecem estar a meter as manápulas por
todo o lado. Tem homens em posições-chave na Guarda Pretoriana. Usaram os seus contactos na guilda dos mercadores para comprar os carregamentos de cereais e agora
até conseguiram sabotar a merda da barragem. Estão por todo o lado, Cato, digo-te. É como se fossem ratos de esgoto.
Cato franziu o sobrolho perante as últimas palavras do amigo, como se na sua mente houvesse algum detalhe meio esquecido a querer encaixar-se na posição correta,
mas acabou por desistir de o identificar, enquanto abanava a cabeça.
- Tem razão, e a mim nada disto me parece claro. Como é possível que os Libertadores tenham tanta gente a trabalhar para a sua causa e ainda assim permaneçam nas
sombras? Não faz sentido. Quanto mais gente estivesse envolvida nos planos deles, mais difícil devia tornar-se manter tudo em segredo. Se alguém tem capacidade para
se infiltrar numa conspiração tão elaborada e destruí-la, esse alguém é o Narciso. Porém, ele parece não saber mais do que nós. E isso é uma completa novidade nas
histórias em que ele nos tem envolvido.
Macro lançou um lamento sincero.
- Há mais uma coisa que não bate certo - prosseguiu Cato. - Porque é que nem a Imperatriz nem o Palias foram hoje ao lago?
- Acho que sabemos perfeitamente a resposta a essa pergunta. - Macro sorriu. - Tinham outras tarefas com que se ocupar.
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- Deixando isso de lado, não lhe parece muito conveniente que não estivessem ao lado de Cláudio no dia em que ele quase era morto?
- Bom, foi sorte - concordou Macro. - Mas o que é que estás a insinuar? Achas que eles tiveram alguma coisa a ver com a pequena aventura que tivemos hoje? Isso não
faz sentido, miúdo. Há bocado dizias que o Tigelino estava envolvido nisto. E sabemos que ele anda metido com os Libertadores. Nesse caso, como é que pode estar
também a trabalhar para o Palias e a Imperatriz? Só se estiverem todos metidos no mesmo plano. Ora isso não podia funcionar. Não me parece que os Libertadores possam
fazer causa comum com a mulher do Imperador. Devem querer vê-la afastada, tanto como querem derrubar Cláudio. Não só ela, como toda a família imperial e os conselheiros
mais próximos, como o Palias e o nosso caro Narciso. - Macro abanou a cabeça. - O facto de o Palias e a Agripina não terem lá estado hoje só pode ser uma coincidência.
- Pode ser que tenha razão - concedeu Cato. - Mas se fizesse parte dos Libertadores, não tentaria ver-se livre de toda a família imperial de uma só vez? Porquê arriscar
o Tigelino e os homens que sabotaram a barragem, se depois se tiver de repetir a história com o resto da família? Com o Imperador morto, a segurança em torno dos
outros ficaria ainda mais apertada; e os Libertadores teriam muito maiores dificuldades para acabar o serviço.
Macro refletiu nas palavras do amigo.
- Talvez estejam a ficar desesperados. Já falharam uma tentativa de assassinar a família imperial. Talvez tenham resolvido aproveitar qualquer oportunidade que se
lhes depare.
- Pode ser - admitiu Cato de novo. - Mas há uma outra possibilidade. E se estivermos a enfrentar mais do que uma única conspiração? E se os Libertadores estão de
facto a planear a eliminação de toda a família imperial, enquanto ao mesmo tempo o Palias e a Agripina estão a tentar ver-se livres do Cláudio, de forma a abrirem
ao Nero o caminho para o trono?
Macro abanou a cabeça.
- Isso não chega para explicar o que se passou. Se foi o Palias o responsável pelos acontecimentos de hoje, como é que metes o Tigelino na coisa?
Cato suspirou, irritado.
- Não sei. Ainda não sei. A não ser que ele seja uma espécie de agente duplo... E talvez seja. - De repente, novas possibilidades se abriram à sua mente, e ele explorou-as.
- Ora bem, isso daria sentido a uma série de coisas. A questão passaria a ser: para que lado é que ele está realmente a trabalhar? E a qual dos lados é que anda
a enganar? - Recordou o que sabia sobre o recém-promovido centurião. - Regressou de um exílio mais ou menos ao mesmo tempo que a Agripina. Talvez trabalhe para ela.
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Podia muito bem fingir que servia os Libertadores, e usá-los para ajudar a Agripina e o Palias... - Um relâmpago de inspiração passou-lhe pelo pensamento. - Sim!
Isso faz sentido com o que se passou esta tarde. A Imperatriz e o Palias tencionam esperar que os Libertadores eliminem o Cláudio, e só então tomar o poder. Quando
conseguir o que quer e o Nero estiver instalado no trono, ela pode usar as informações recolhidas pelo Tigelino e atacar os Libertadores. - Fez uma pausa e sorriu.
- Muito astucioso, de facto.
- Estás com um ar muito satisfeito contigo mesmo - comentou Macro, sem entusiasmo. - Talvez tenhas razão, mas isso não nos ajuda a descobrir como é que os Libertadores
tencionam eliminar o Cláudio.
- Eu sei. - A expressão de Cato retomara o ar fatigado de antes. - Seja como for, tenho de informar o Narciso das minhas suspeitas o mais depressa possível. Se eu
tiver razão, a ameaça ao Cláudio é muito maior do que ele supõe.
- Depois do banho de hoje, o Narciso é bem capaz de já ter chegado a essa conclusão sozinho.
Cato riu. Sentia-se como se um peso lhe tivesse saído da mente. Percebeu que estava realmente fatigado. Para lá da luta extenuante contra a corrente que o tinha
arrastado e levado pelo rio abaixo, tinha o corpo coberto de arranhões e nódoas negras da pancada que tinha levado ao longo do percurso. Estava realmente a precisar
de descanso, e, ao olhar para Macro, era evidente que o amigo não estava em melhores condições do que ele.
- Está a ficar tarde. Devíamos tentar dormir.
Macro assentiu, pelo que se levantaram e deixaram a messe. Trocaram novos acenos com os homens que ainda se dedicavam aos dados, e fecharam a porta ao sair. No exterior,
uma longa arcada conduzia às escadas para o segundo andar. Já tinham passado os aposentos dos centuriões, cada um com um quarto e um gabinete de trabalho contíguo,
e também o quarto da primeira secção, quando avistaram um vulto escuro na base das escadas, a dirigir-se lentamente para eles. As feições do homem estavam escondidas.
Parou a uns dez passos, bloqueando-lhes o caminho. Cato esforçou a vista, mas só conseguiu perceber que o sujeito estava coberto de lama. Envergava túnica e botas,
e a bainha da adaga estava vazia. A espada pendia-lhe contra a perna esquerda, como era costume dos oficiais. Cato lançou uma imprecação silenciosa e pôs-se em sentido.
- Centurião Tigelino. Senhor, pensei que o tínhamos perdido.
- Tigelino? - começou Macro, antes de se pôr também em sentido.
O outro homem respirava pesadamente, e nada disse enquanto os fitava. Por fim, os seus lábios desenharam um sorriso amarelo.
- De volta dos mortos, sim, aqui estou. O cabrão do rio arrastou-me
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ao longo de quilómetros, até que tive a sorte de ir dar a um banco de lama. Quando consegui sair da água e voltar ao lago, já todos se tinham vindo embora, e estava
escuro como breu. Portanto, tive de voltar a pé para o quartel. - Deu um passo e encarou Cato. - Conta-me lá o que se passou.
- Senhor?
- O Imperador, sobreviveu?
- Sim, senhor.
Não havia qualquer expressão no rosto lamacento do centurião, e ele permaneceu em silêncio por momentos. Quando voltou a falar, a voz saiu-lhe calma e ponderada,
de uma forma pouco natural.
- Foste tu quem salvou a vida do Imperador?
- Não, senhor. Foi o tribuno Burro. - Cato baixou a voz e fez uma afirmação deliberadamente provocatória. - Mas podia ter sido você o primeiro a alcançar o Imperador,
se não tivesse tropeçado.
- Sim, tê-lo-ia alcançado por certo - respondeu Tigelino, sem expressão. - O Imperador ficou ferido?
- Não, senhor. Ficou isso sim muito abalado pelo incidente. Os sobreviventes da escolta levaram-no para o palácio antes de regressarem ao campo.
- Estou a ver. - Tigelino voltou a fazer silêncio, sem dar qualquer sinal de emoção. Tossicou. - Quantas baixas entre os nossos rapazes?
- Mais de um terço da centúria, senhor. Embora alguns estejam dados como desaparecidos, como no seu caso.
- Então é o Fúscio que está no comando?
- Sim, senhor.
- Onde está ele?
- A dormir, senhor. Quer que o acordemos e o mandemos ter consigo?
Tigelino pensou um instante e abanou a cabeça.
- Não é preciso. Digam-lhe apenas que regressei, e que estará de volta aos habituais deveres quando o clarim soar a alvorada.
- Sim, senhor.
O centurião olhou para os dois em silêncio, até que Macro tossicou.
- Mais alguma coisa, senhor?
- Não tenho a certeza. Há alguma coisa que vocês os dois me queiram dizer?
- Senhor? - respondeu Macro com ar inocente.
- Pergunto-me se vocês teriam algumas ordens específicas a cumprir hoje?
- Ordens, senhor? - interveio Cato. - Não estou a perceber.
- Capito, não te armes em parvo comigo. Tu, o Cálido e eu conhecemos
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perfeitamente o centurião Sínio e os seus amigos, todos sabemos o que temos a fazer. Portanto não têm de fingir que não estão a entender. Vou perguntar-vos outra
vez. O Sínio deu-vos algumas ordens para hoje?
- Tigelino inclinou-se para a frente, o olhar intenso a saltar de Cato para Macro. - Então?
Cato sentiu o pulso a acelerar, e receou que a excitação que lhe ia na alma pudesse ser lida no rosto. Optou por manter uma expressão tão neutra quanto possível
e responder ao olhar fixo do centurião. Era tentador negar tudo e fingir-se inocente. Mas era evidente que Tigelino já sabia das suas ligações aos Libertadores,
provavelmente através do próprio Sínio, ou talvez graças a algum conspirador em posição ainda mais elevada na hierarquia. E era também evidente que suspeitava que
havia ordens que não lhe estavam a ser comunicadas.
De repente, Cato apercebeu-se de que Tigelino estava tão receoso da situação como ele mesmo. Se os que davam ordens tinham fornecido instruções separadas a Cato
e Macro ou a ambos, era claro que não confiavam nele para partilhar essa informação. Pior ainda, podia dar-se o caso de desconfiarem dele, e terem dado ordens para
uma tentativa separada de atentar contra a vida do Imperador, se ele falhasse. Cato tinha de lhe dar uma resposta rapidamente, antes que o centurião se virasse para
Macro. Tomou uma decisão. Se os Libertadores estavam realmente à beira de desencadear um golpe para derrubar o Imperador, era fundamental perturbar-lhes os planos.
- Sim, senhor - replicou por fim, em tom misterioso. - O Sínio contou-me as ordens que lhe tinha dado, e ordenou-me que tentasse assassinar Cláudio eu mesmo, se
por alguma razão ocorresse um falhanço.
Tigelino respirou profundamente, e deixou escapar o ar por entre os dentes cerrados com força.
- Estou a ver. E não achaste necessário dizer-me isso?
- O centurião Sínio disse-me para o observar e agir se fosse necessário. Não me disse que lhe devia comunicar essas novas ordens. Pensei que já soubesse, ou que
então não era suposto saber da minha participação no atentado.
Tigelino olhou-o por mais um momento, e depois virou-se para Macro.
- E tu? O que sabias tu disto, Cálido?
- Nada, senhor - respondeu Macro, com toda a verdade.
Tigelino virou-se de novo para Cato.
- E porquê isto, pergunto-me?
Cato encolheu os ombros.
- Um segredo partilhado é um risco redobrado, senhor. Talvez fosse por isso que o Sínio me ordenou só a mim que o observasse de perto.
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- Talvez - considerou Tigelino. - Pelo menos assim fiquei a saber que bem me consideram os nossos bons amigos, os Libertadores.
- Senhor, não sei se lhe devia ter dito isto. O Sínio não me disse expressamente que não o devia fazer. Mas talvez fosse melhor ele não ficar a saber que tivemos
esta conversa.
O rosto de Tigelino tomou uma expressão calculista.
- Por agora não lhe direi nada, Capito. Mas no futuro, se o Sínio te disser alguma coisa, dir-me-ás o que foi. Entendido?
- Não sei se esse será o melhor caminho, senhor.
- Ora, eu sei perfeitamente que não é. Mas se eu dissesse ao Sínio que tu confessaste esta história, duvido que ele te considerasse um membro de confiança ou sequer
útil à conspiração. Percebes? No futuro, se ele falar contigo, tu falas comigo. Se não o fizeres, garanto-te que a tua vida se tornará bem mais difícil, se não perigosa.
Entendido?
- Sim, senhor - assentiu Cato. - Como desejar.
- Exato. E agora, saiam-me do caminho. Tenho de me livrar desta trampa de lama que me sujou todo.
Cato e Macro afastaram-se para o lado e um odor pestilento encheu o ar quando Tigelino passou. Viram-no a chegar ao fim das colunas, entrar nos seus aposentos e
fechar a porta com estrondo.
Macro virou-se para Cato com ar preocupado.
- Que raio de história foi aquela? Não me disseste nada sobre essas ordens do Sínio.
- Pois, porque ele nunca mas deu.
- O quê? - Macro franziu o sobrolho, e depois lançou o polegar na direção dos aposentos do centurião. - Então porque é que lhe disseste outra coisa?
Cato olhou para os dois lados, para ter a certeza que ninguém os escutava.
- O que é que eu havia de fazer? Se tivesse negado, o Tigelino podia perceber que eu estava a tentar salvar o Imperador, em vez de o matar. Tinha de dar a impressão
de que estávamos do mesmo lado. - Cato fez uma pausa, para permitir que o amigo compreendesse a sua justificação, antes de prosseguir. - De qualquer maneira, isto
ajuda-nos, porque agora o Tigelino desconfia do Sínio e dos outros Libertadores. Dividir para reinar. Também ajuda que ele pense que tem algum poder sobre nós. Homens
deste tipo têm uma maior tendência a ser indiscretos quando se acham mais seguros.
- E fez-me parecer um tolo cretino - comentou Macro, agastado. - Como se andasse aqui só a fazer número.
- Nem por isso. Os Libertadores estão a fazer um jogo muito perigoso.
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Tem de operar em segredo absoluto. Faz todo o sentido que as informações sejam partilhadas pelo menor número de pessoas possível, e só quanto àquilo que precisam
absolutamente de saber para desempenharem o seu papel. Está a ver?
- Claro que estou a ver! - explodiu Macro. - Só não aprecio ser assim atirado para a fogueira.
- Isso faz parte do nosso trabalho, por agora. Temos de andar em bicos de pés, Macro. - Cato perscrutou a face do amigo, em busca de um sinal de compreensão. - As
coisas estão a precipitar-se. Quando isto estiver acabado, poderemos voltar à nossa velha e boa vida de soldados.
- Partindo do princípio de que o Narciso vai cumprir a sua palavra.
- É bem verdade - admitiu Cato.
- E partindo do princípio de que nós sobrevivemos a este joguinho de agentes secretos.
- Enquanto olharmos um pelo outro e tivermos cuidado com o que dizemos, creio que temos boas hipóteses de nos safarmos.
- Vai uma apostinha?
- Quanto quiser. - Cato sorriu, cuspiu na palma da mão e ofereceu-a. - Se ganhar, para onde quer que eu mande o dinheiro?
- Bah! - resmungou Macro, enquanto dava uma palmada na mão do amigo. - Vai-te lixar. Por hoje, já tive a minha conta dos teus jogos mentais. Vou-me mas é deitar.
Dirigiu-se às escadas e começou a subir. Depois de uma pausa, Cato seguiu-o. No quarto da secção, Fúscio estava deitado de costas e ressonava baixinho. Os dois homens
tiraram as botas e deitaram-se sem mais palavras. Como era habitual, Macro deixou-se dormir em poucos instantes, e adicionou os seus roncos mais profundos aos de
Fúscio. Cato pôs as mãos por baixo da cabeça e fitou o teto, procurando ignorar o barulho. Tentou levar a mente a rever as curvas e contracurvas da conspiração que
ele e Macro tentavam deslindar nos últimos dois meses, sem grande sucesso.
Daí a pouco o pensamento do jovem começou a vaguear, centrando-se primeiro num aspeto da conspiração, depois noutro. Então, de repente, a mente preencheu-se com
a expressão selvagem do rosto de Céstio quando afastara Britânico para o lado e tentara atingir Nero, durante o motim. Cato fez uma careta. Havia ali qualquer coisa
que não encaixava bem com outros aspetos da conspiração. Esforçou a mente para estabelecer uma ligação, mas estava demasiado cansado para se concentrar. Por fim
cerrou os olhos, mas uma vívida memória do momento em que a água o alcançara tomou conta do seu ser. Tinha tido a certeza de que ia morrer. De que todos iam morrer,
arrastados pela água e afogados nos seus turbilhões. Mas os deuses
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tinham sido piedosos. Ainda vivia, tal como Macro, o Imperador e a maior parte dos homens que tinham sido atingidos. Os conspiradores não tinham conseguido matar
Cláudio, tal como tinham falhado no fórum. Mas uma coisa era certa. Voltariam a tentar, e em breve.
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22

No dia seguinte, as duas depauperadas centúrias da coorte de Burro viram os seus efetivos reforçados com homens das outras unidades da Guarda Pretoriana. Ao tribuno
foi atribuída uma coroa de ervas pelo próprio Imperador, por ter salvo a vida de outro cidadão romano. A cerimónia teve lugar num pátio do palácio, com todos os
subordinados do tribuno formados em três das faces de um quadrado, de forma a estarem todos virados para o Imperador enquanto este expressava a sua gratidão. Em
sentido no flanco esquerdo da Sexta Centúria, Cato tinha uma boa linha de visão do séquito que envolvia Cláudio, cujos membros tentavam, com sucesso variável, fingir
que apreciavam a elaborada retórica do Imperador.
A família estava mesmo por trás de Cláudio. Agripina tinha adotado uma pose maternal muito adequada, entre Britânico e Nero, uma mão no ombro de cada qual. Cato
reparou que ela acariciava levemente o seu filho natural, mas que os seus dedos se firmavam muito mais no ombro de Britânico, avançando a pouco e pouco para a pele
exposta do pescoço. A dado ponto ele estremeceu e lançou-lhe um olhar inquisitivo, que foi respondido com evidente hostilidade. Quando por fim a Imperatriz deixou
cair os braços, Britânico aproveitou a ocasião para dar uns passos e se afastar do alcance da madrasta.
Por cima do ombro de Agripina, Cato avistava Palias, a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a saborear cada palavra proferida pelo Imperador. Ao seu
lado estava Narciso, com ar taciturno; a face e os braços do liberto evidenciavam os cortes e nódoas negras que tinham resultado de ter sido arrastado pela onda
proveniente da barragem sabotada. Mantinha o olhar fixo nas fileiras da Guarda Pretoriana, até se virar para lançar a Palias um olhar repleto de mal disfarçado ódio
profundo.
Para lá do grupo dos libertos imperiais e de um punhado de cidadãos romanos também conselheiros, viam-se alguns senadores, correntemente nas boas graças do Imperador,
e ainda o prefeito da Guarda Pretoriana, Geta. Este exibia um soberbo porte militar, de costas bem direitas e peito para fora. A placa peitoral ofuscava a vista
e a faixa púrpura que lhe rodeava a cintura estava precisamente alinhada e atada. As pontas caíam em formas
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decorativas, depois de presas na dobra mais alta. As botas do mais fino cabedal ajeitavam-se às pernas como se fossem uma segunda pele, com franjas ornadas que desciam
do joelho. Cato não conseguiu evitar um breve sorriso. Apesar do seu aspeto glorioso, Cato sabia que Geta seria visto por Macro como um vaidoso inútil, sempre inclinado
a ver as preocupações com a indumentária como supérfluas e pouco másculas.
A expressão divertida apagou-se-lhe do rosto quando refletiu sobre a sinistra realidade que se escondia por trás daquela demonstração pública de ordem e unidade
na hierarquia. Entre aqueles que se mostravam tão calmamente ao lado do Imperador, havia traidores que planeavam a sua morte, enquanto outros concebiam a liquidação
de toda a família imperial. E no meio de tudo isso havia várias acesas rivalidades: entre Nero e Britânico, entre Narciso e Palias e, indubitavelmente, a rivalidade
profissional entre o prefeito dos pretorianos e o recém-condecorado tribuno Burro.
Não conseguia deixar de se sentir cínico e deprimido perante aquela fachada de ordem, dever e lealdade que era mostrada ao povo de Roma. Aquela gente era feita de
carne e osso como os cidadãos comuns, mas as suas vidas eram marcadas por uma incessante luta por influência, poder e riqueza que, quando toda a pompa e dignidade
eram removidas, não era mais do que egoísmo puro e simples. A pesada desesperança que tudo aquilo engendrava começava a dominar Cato, que não conseguia deixar de
pensar que era assim que as coisas eram, tinham sido e seriam, enquanto os poderosos estivessem mais preocupados em aumentar o seu poder e as suas posses do que
em usá-los para melhorar a sorte daqueles que governavam.
Deu por si a perguntar-se se não seria melhor para Roma que os Libertadores conseguissem afastar o Imperador, a sua família e todos os desperdícios da casa imperial.
Nunca soubera como era a vida numa República. Não havia já em Roma mais do que um pequeno punhado de homens e mulheres capazes de recordar esses tempos, e as suas
memórias eram já fracas e pouco confiáveis. As paixões dos que tinham assassinado o tirano César estavam tão distantes que podiam bem ser lendas. O facto de os Libertadores
se proclamarem seus herdeiros era tão vazio como a lealdade jurada por todos aqueles que se encontravam ali ao lado do Imperador. Déspotas, todos eles, concluiu
Cato com amargura. A única diferença entre eles era que alguns lutavam para alcançar o poder, outros para não o perderem. Eram completamente indiferentes ao resto
da humanidade, a menos que fossem forçados a exibir algum sentimento nos seus esforços para tentar manter a posição.
Era Macro quem tinha razão, decidiu. Seria bem melhor estar longe de Roma, da cidade das traições e dos caprichos luxuosos, que amoleciam os homens e os transformavam
em canalhas ou idiotas. Muito melhor seria
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estar nas fileiras de novo, onde o valor de um homem era medido pelos padrões rígidos mas honestos da vida militar. Mas enquanto pensava nisso, Cato perguntou-se
se a sua vontade de voltar a abraçar as certezas da vida militar seria capaz de suplantar a sua ânsia pelo amor de Júlia, por uma vida ao seu lado, que poderia facilmente
implicar residir em Roma. Adivinhou que, no fundo do seu ser, conhecia a resposta, mas apressou-se a afastar todos os pensamentos sobre a escolha que um dia viria,
já que a cerimónia estava a terminar e o tribuno Burro, já condecorado, se virava para os homens e dava ordens para a coorte regressar ao campo.
No dia seguinte, a coorte marchou em direção ao lago Albino, para ajudar nas preparações finais para o aguardado espetáculo. A mudança de estação era bem evidente
nos rebentos que brotavam de árvores, arbustos e ervas nos campos por onde passava a coluna. Os homens tinham recebido cajados para transportar os equipamentos da
messe, as roupas para mudar e as magras rações. Enquanto durasse o espetáculo, a coorte ia acampar ao pé do complexo imperial que estava a acabar de ser erigido,
onde Cláudio e os seus convidados ficariam alojados com todo o luxo.
O tempo tinha mudado e o sol quente banhava os pretorianos enquanto percorriam a estrada. Como era habitual, a chegada do bom tempo, especialmente depois de um inverno
frio e cinzento, elevava os espíritos dos homens, que seguiam a conversar e cantar a plenos pulmões. Os oficiais tinham afrouxado a habitual disciplina da Guarda
Pretoriana, e partilhavam da boa disposição dos seus homens, pelo que a coluna parecia mais um conjunto excursionista do que uma deslocação oficial da formação de
elite do exército romano. Até Macro, um soldado até ao tutano, seguia satisfeito, esquecido do passo cadenciado. Sabia-lhe bem deixar Roma e voltar a escutar o coro
das botas cardadas no cascalho das estradas, o peso da canga sobre os ombros almofadados, a animada camaradagem das fileiras. A estrada percorria uma paisagem de
baixas colinas ondulantes e dela tinham-se vistas agradáveis sobre os terrenos recém-cultivados das quintas da região. Num dos campos avistava-se um rebanho de ovelhas
entre as quais se viam vários cordeiros acabados de nascer, cuja lã resplandecia como togas lavadas de fresco.
- Isto é que é vida, hã? - comentou para Cato, com um sorriso aberto. - Vida de soldado como deve ser.
Cato voltou a ajustar o peso que levava aos ombros. Não partilhava a longa experiência de Macro como legionário comum, pelo que nunca tinha realmente dominado a
arte de transportar a pesada canga com um certo grau de conforto ao longo de grandes distâncias. Já começava mesmo a pôr em causa a sua estranha ideia da véspera,
quando tinha afirmado com tanta
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veemência o desejo de voltar àquilo que o amigo chamava, com evidente enlevo, a verdadeira vida de um soldado. Ajeitou as proteções debaixo da pesada haste de madeira
da melhor forma que conseguiu, antes de replicar.
- Ah pois! Bolhas e músculos doridos. Que mais pode um homem pedir, pergunto-me.
Macro estava bem habituado aos queixumes de Cato, sempre que se tratava de marchar, pelo que soltou uma gargalhada.
- Vá lá, miúdo. Admite que estás tão contente como eu por andares cá fora a passear. Pelo menos durante uns dias não temos de aturar aquele ambiente sombrio de Roma.
E poder passar umas noites sob as estrelas, com a relva por baixo, uma fogueira para nos aquecer e um jarro de vinho para partilhar, que maravilha. Pode não haver
muita comida para meter no estômago, mas graças aos deuses não há falta de vinho. Isso é que seria uma verdadeira tragédia. É verdade que um homem pode viver só
com pão, mas a quem é que isso interessa?
- Não faço ideia - resmungou Cato, ainda insatisfeito com a distribuição de peso nos ombros. - Por mim, dava de bom grado um mês de salário por uma decente perna
de carneiro e um pão acabadinho de cozer, agora mesmo. - Lançou um olhar quase guloso aos ovinos que pastavam tranquilamente.
- Nem penses nisso! - avisou Fúscio, que marchava ao lado da coluna e tinha escutado as palavras de Cato, bem como reparado no seu olhar.
- Aquelas ali estão protegidas, por ordem do Imperador. Todo o gado existente num raio de quinze quilómetros da capital foi requisitado pelo Imperador, aliás.
- Para quê? - indagou Macro.
- Aqui está um homem que nunca olha para a gazeta. - Fúscio riu.
- O Cláudio quer garantir que tem a maior audiência possível para o seu espetáculo. E uma forma de o assegurar é dar comida à multidão, para lá do divertimento.
Eles não vão faltar.
Quando a coorte alcançou o lago, Cato ficou estupefacto perante o trabalho que havia sido feito nos poucos dias que tinham passado desde a sua última visita. Os
recintos construídos para aprisionar os futuros combatentes já continham os primeiros cativos, e quando a coorte passou, avistou uma longa fila de homens agrilhoados
pelos tornozelos que vinham do Sul e eram instalados nas celas. A guarda dos prisioneiros estava a cargo de uma unidade de auxiliares. O pavilhão imperial estava
pronto, e dominava a margem do lago. Embora fosse feito de madeira, tinha sido pintado de branco, de forma que à distância dava ideia de ser um pequeno palácio feito
do mais fino mármore. A bancada para assistir ao espetáculo projetava-se sobre a água, apoiada em grossos pilares cravados no leito do lago. Ao lado
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do pavilhão, havia uma plataforma de onde o Imperador poderia apreciar a parada dos combatentes quando estes entrassem nas pequenas embarcações das duas frotas inimigas.
Os carpinteiros tinham terminado o trabalho nos navios, que estavam acostados de ambos os lados do pavilhão; havia cerca de vinte de cada lado. As barcaças tinham
sofrido alterações de forma a terem um convés elevado sobre as filas de bancos de remadores, instaladas onde antes se situavam os porões. Nas popas tinham sido colocados
enfeites curvos, e nas proas predominavam os motivos de olhos, dos dois lados dos aríetes com pontas de ferro que também tinham sido instalados. Era difícil de acreditar
que aquelas embarcações tinham tido uma pacata vida anterior, como barcaças que se limitavam a subir e descer o Tibre carregando bens de consumo. Ao largo, algumas
das embarcações estavam a treinar, já que um destacamento de tripulantes de navios da marinha imperial fora nomeado para dar umas apressadas luzes de navegação,
nomeadamente quanto ao uso dos remos e à manobra de um navio, às tripulações forçadas que participariam no espetáculo.
Mais adiante na margem, e rodeados por uma paliçada patrulhada, estavam armazenados os mantimentos: pão, carnes e vinho que seriam distribuídos à população. Grande
parte fora retirada dos vastos armazéns existentes sob o palácio imperial, numa tentativa quase desesperada de evitar a fome generalizada da população, pelo menos
pelo tempo suficiente para que o comboio de cereais da Sicília aportasse a Óstia. Do outro lado do lago já se viam alguns pequenos grupos de populares, reunidos
em torno de abrigos improvisados, e avistava-se no ar o fumo de fogueiras, contrastando com os tons verdes das colinas que ficavam por trás.
Um funcionário do palácio guiou a coorte até ao local preparado para o acampamento, a curta distância das instalações dos prisioneiros. Enquanto os centuriões e
optios berravam ordens para pousar as cangas, Macro esticou os músculos e rodou a cabeça de lado a lado para aliviar a tensão no pescoço. Fez uma pausa, cheirou
o ar e torceu o nariz.
- Que pivete é este?
Cato apontou para os recintos onde se amontoavam os prisioneiros.
- Vem dali. Acho que não escavaram latrinas. Portanto, têm de se aliviar dentro das próprias celas.
Os dois homens fizeram uma pausa enquanto contemplavam a paliçada, até que Macro resmungou:
- Não é forma de tratar combatentes.
- Não são propriamente combatentes. Lembre-se do que disse o Narciso: a maior parte são criminosos e outros meliantes, que foram arrebanhados para compor as fileiras
dos dois grupos.
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Macro voltou a comentar.
- Seja como for, entrarão em combate daqui a pouco tempo, não deviam ser tratados como animais.
- Vocês os dois aí! - berrou Fúscio. - Chega de molenguice! Vão às carroças e tragam uma tenda para a secção!
Um grupo de carroças tinha sido estacionado ao fundo da área de acampamento, e os homens da coorte ocupavam-se a descarregar fardos de peles de cabra, postes, estacas
e espias. Enquanto Macro e Cato se dirigiam para lá, por entre as linhas traçadas no solo para marcar as posições das tendas de cada centúria, Macro riu com vontade.
- Ao que parece, o nosso optio voltou a encarnar o seu papel. A berrar connosco como se fosse um veterano. Ou pelo menos a tentar. É engraçado, faz-me lembrar de
ti nos primeiros tempos.
- De mim? - Cato olhou-o com espanto nos olhos arregalados.
- Nem mais. Esganiçado, entusiasta, e um picuinhas do caraças, para disfarçar a inexperiência.
- Eu era assim?
- Andavas lá perto. - Macro sorriu. - Mas acabaste por te fazer um homem. E vais ver que o mesmo vai acontecer ali com o rapaz.
- Talvez. - Cato deitou uma olhadela ao optio e prosseguiu em voz baixa. - Se ele for suficientemente esperto para se manter fora de qualquer conspiraçãozita.
- Achas que ele está envolvido?
- Não sei. - Cato ponderou por momentos. - Foi uma escolha tão estranha como a do Tigelino, portanto parece-me que por agora vou reservar o meu julgamento.
Macro abanou a cabeça.
- Miúdo, andas a ver conspiradores em cada esquina. Parece-me que mais uns tempos e ainda vais começar a desconfiar de mim.
Foi a vez de o jovem sorrir.
- Se esse dia chegar, parece-me que o melhor será esconder-me num canto escuro e abrir as veias. Se há alguma coisa neste mundo a que eu dê verdadeiro valor é à
nossa amizade. Já passámos juntos por...
Macro soltou um sorriso embaraçado e ergueu a mão, pedindo silêncio ao amigo.
- Cato, bico calado, foda-se, ainda me vais pôr a chorar.
Durante a noite, os escravos e funcionários da casa imperial chegaram, para preparar o pavilhão para a família imperial e os seus convidados. Trabalharam à luz de
braseiros e lamparinas para se assegurarem de que tudo, móveis, mesas e assentos, ficava pronto para a chegada do Imperador por
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volta do meio-dia. Uma procissão de tochas que se movimentavam na outra margem do lago revelava também a chegada de escravos que tinham sido enviados pelos seus
abastados amos em Roma, àquela hora ainda a repousar na cama, para encontrar bons locais para apreciar o espetáculo. A outra margem ficava a quase oitocentos metros
de distância, e as fogueiras e tochas que se espalhavam à borda da água destacavam-se contra as colinas escuras que formavam o pano de fundo, e os seus reflexos
dançavam e rebrilhavam na superfície da água. Depois de os outros homens da sua secção se terem retirado para a tenda para dormir, Cato e Macro ficaram ainda a partilhar
um odre de vinho e a apreciar o número crescente de pessoas na outra margem.
- Duvido que alguma vez volte a acontecer um espetáculo desta escala - considerou Macro. - Nunca vi nem ouvi falar duma coisa assim.
- Isso é porque nunca houve tão grande necessidade de oferecer divertimento ao povo - sugeriu Cato. - Tempos de desespero pedem diversões espetaculares. Se alguma
coisa correr mal com este espetáculo ou se a turba não gostar por aí além disto, o Cláudio pode muito bem ter os dias contados. Ou a turba o faz em pedaços ou os
Libertadores lhe espetam uma faca nas costas, ou então alguém mais próximo ainda lhe tratará da saúde.
- Cato ficou silencioso por momentos. Pegou num bocado de madeira para atirar para a fogueira que esmorecia. - Merda...
- O que se passa?
- Não é propriamente uma situação agradável, pois não? Andamos nós a arriscar as nossas vidas, a derramar o nosso sangue, tudo para mantermos os bárbaros do lado
de fora das fronteiras, e estes imbecis põem isso em causa apenas para satisfazer os seus caprichos.
- E então? Achas que podes fazer alguma coisa para mudar isso?
Cato manteve-se em silêncio, até que olhou para o amigo com cautela.
- Nem por isso, admito-o. Mas o que me parece é que neste momento o Cláudio é a melhor esperança de Roma. Por isso, temos de fazer o que pudermos para o manter a
salvo.
- O Cláudio? - Macro abanou a cabeça. - A mim parece-me que bebeste de mais, meu caro.
Cato inclinou-se para a frente.
- Oiça, Macro, não estou bêbado... Estou a falar muito a sério. Já vimos o bastante deste mundo para saber que Roma, com todos os seus defeitos, não é o pior dos
impérios. Onde Roma governa, existe ordem e prosperidade e - sim, eu sei que para si isso pouco conta - cultura. Há bibliotecas, teatros, arte. E há até alguma tolerância
religiosa. Ao contrário daqueles antros de arrogância e intolerância como a Britânia e a Judeia. - Cato estremeceu ao recordar os fanáticos druidas e judeus que
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ele e Macro tinham enfrentado em combate. - Roma é a melhor esperança da humanidade.
- Duvido que essa visão seja partilhada por aqueles que esmagámos nos campos de batalha e transformámos em escravos. - Macro fixou o olhar nas pequenas labaredas
que lambiam as madeiras chamuscadas e as brasas. - Cato, és um idealista. Um romântico. Não há mais nada no mundo do que um permanente teste de forças. Nós conquistamos
porque é isso que Roma faz, e somos bons nisso.
- Há mais do que força bruta envolvida... - começou Cato, mas interrompeu-se. - Bom, seja, há isso. Mas Roma tem mais, muito mais a oferecer para lá da espada. Ou
podia ter, se não fossem certos imperadores. Vi-os de perto, a alguns. Tibério e aquele monstro, o Gaio. Os dois usaram o poder de forma descuidada e cruel. O Cláudio,
apesar das suas falhas, tem tentado fazer melhor. A questão é, qual dos dois possíveis sucessores acha que poderá continuar o bom trabalho que ele tem feito? O jovem
Britânico ou o Nero?
- Nem sequer pensei nisso ainda. - Macro bocejou. - Desde que tenham dinheiro para pagar às legiões e deixem as campanhas nas mãos dos profissionais, por mim estará
tudo bem.
Cato encarou-o.
- Não acredito. Acha que não sei o que lhe vai no coração?
Macro virou-se para lhe enfrentar o olhar.
- Mesmo que eu tivesse sentimentos semelhantes sobre a situação, sou suficientemente velho para perceber que pensar muito nisso tudo é apenas uma gigantesca perda
de tempo. Vais mudar o mundo, tu? Eu? Não. Isso não é connosco. Nunca foi, nunca será. Não é para gente da nossa classe. Achas que em tempos não me senti como tu?
- Fez uma pausa e prosseguiu num tom mais conciliador. - É uma espécie de delírio agradável, e a cura vem pela idade. Bom, estou cansado. Vou dormir. E tu devias
fazer o mesmo.
Macro levantou-se, com o odre ainda meio cheio na mão, acenou a Cato e dirigiu-se à entrada da tenda, onde acabou por desaparecer. Cato juntou os joelhos e apertou
os braços em seu redor, enquanto deixava o olhar perder-se no brilho dançante das labaredas. A visão de Macro sobre a vida, tão pouco refinada, chateava-o e deixava-o
frustrado em igual medida, como era aliás habitual. O coração de Cato era ainda jovem, e dava albergue a muitos sonhos desmedidos e a desejos de construir um futuro
próprio, e quase exigia que os outros partilhassem os seus anseios. Se isso não acontecia, só podia dever-se a falta de visão ou falta de vontade. Ainda assim, enquanto
sentia a chama da ambição a arder-lhe no coração, a mente de Cato considerava friamente o ponto de vista do amigo. Havia uma
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sabedoria nas palavras de Macro, mas, enrolada na capa da maior idade e experiência, custava a engolir.
O ar da noite estava frio e Cato sentiu um arrepio, enquanto tentava manter-se quente, aconchegando-se. Do outro lado da fogueira adivinhava as formas do pavilhão
imperial que, por estar pintado de branco, refletia até a fraca luz das estrelas. Interrogou-se sobre o que passaria pelas mentes de homens como Cláudio e os seus
herdeiros. Homens que não estavam condenados à obscuridade que engolia as massas. Mesmo com todos os seus sonhos e ambições, Cato entendia perfeitamente que dali
a cem, mil anos, ainda se falaria de Cláudio, enquanto os nomes de Macro e Cato, bem como os de inúmeros outros, ficariam enterrados e esquecidos pela poeira do
tempo. Contemplou a silhueta do pavilhão imperial com um ressentimento resignado durante muito tempo, enquanto o calor da fogueira se ia dissipando.
- Bem - resmungou, por fim, consigo mesmo e resolveu pôr-se de pé. - És mesmo um sacana bem-disposto, não és?
Enquanto se dirigia para a tenda, reparou num vulto que se esgueirava do outro lado da linha de tendas. Ao passar junto a um dos braseiros acesos para aquecer as
sentinelas, reconheceu as feições de Tigelino. Trocou uma saudação com um dos homens de serviço. Portanto, considerou Cato, havia outro homem a quem as preocupações
impediam de dormir. Observou durante mais algum tempo, enquanto o centurião desaparecia na noite a caminho do recinto dos prisioneiros, e voltou-se por fim para
entrar na tenda da secção, procurar a sua enxerga e deitar-se finalmente para dormir.
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A procissão de romanos a caminho do lago estendeu-se por toda a manhã ao longo da Via Ápia. A maior parte eram famílias, a pé, mal vestidas e de aspeto famélico,
as crianças levadas pelas mães em trouxas feitas de panos sujos. Pelo meio seguiam vendilhões, que levavam às costas os seus produtos ou empurravam pequenos carros
de mão carregados de almofadas, leques e odres de vinho. Os vendedores de pão e petiscos, porém, eram uma ausência notada. Os animais, cavalos e mulas, que puxavam
as maiores carroças eram poucos e aparentavam estar tão famintos como as pessoas, com as costelas salientes na pele esticada como seda sobre uma armação metálica.
A maior parte dos animais de trabalho de Roma já tinha sido abatida para servir de comida. Até os ossos e peles tinham sido aproveitados para confecionar caldos,
sempre ralos. No meio da corrente de humanidade esfaimada, seguiam os mais abastados, ainda bem alimentados, a conversar animadamente enquanto as suas escoltas de
escravos abriam caminho por entre a turba com a ajuda de cajados e cacetes.
Ao alcançar as margens do lago, a multidão era cuidadosamente encaminhada por entre filas de mesas onde recebiam as suas rações, elaboradas com mantimentos tirados
das reservas do palácio imperial. Pelo meio dos rolos de pão com fatias de carnes curadas, havia iguarias de que a maior parte dos cidadãos comuns nunca tinha ouvido
falar, e muito menos visto. Bolos de mel, tartes de língua de cotovia, pernil de veado fumado, ânforas repletas da mais refinada salmoira de garo, recipientes com
fruta em conserva, colhida numa qualquer distante província e remetida para Roma sem olhar a custos. Alguns dos beneficiários da súbita boa vontade do Imperador
olhavam para aqueles pitéus sem perceberem sequer o que eram, e a custo se atreviam a cheirar e depois a prová-los. A maior parte tentava de imediato trocá-los por
provisões mais reconhecíveis.
Agarrados aos mantimentos, os populares prosseguiam, rodeando o lago até encontrarem um lugar onde se pudessem sentar e apreciar o espetáculo que se aguardava. O
espaço mais próximo da água depressa se encheu, e as encostas foram também ocupadas, de tal modo que a Cato e
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Macro, que observavam junto ao pavilhão imperial, a margem oposta parecia um mar de gente salpicada de cores.
- Pelos deuses - maravilhou-se Macro. - Nunca vi tanta gente junta. Com certeza que está aqui toda a população de Roma.
Cato encolheu os ombros. Era difícil calcular a quantidade de gente que ocupava a margem do lago. Sabia que o Circo Máximo tinha uma capacidade de mais de duzentos
mil espetadores, e se a população de Roma andava à volta de um milhão, como lhe tinham dito, por certo que a maior parte se encontrava ali naquele dia. As ruas da
capital deviam assemelhar-se naquela altura às de uma cidade deserta, com a calma e a quietude quebradas apenas pelo ocasional vulto fugidio ou pela voz de alguém
demasiado doente para poder fazer a viagem até ao lago, ou tão interessado nos bens alheios que não se permitisse deixar passar aquela ocasião para entrar em casas
e lojas vazias. Só os ricos se podiam permitir o luxo de deixar em casa escravos armados para zelar pelas suas posses. Cato virou-se para considerar as reservas
de comida empilhadas ali perto e calcular que, ao ritmo a que diminuíam, estariam esgotadas pelo segundo dia de espetáculo. E depois disso só os navios que vinham
da Sicília separariam o Imperador Cláudio de uma turba esfomeada e raivosa.
Se Cláudio fosse derrubado, os Libertadores avançariam com as vastas reservas de cereais que tinham escondido algures perto de Roma ou mesmo em plena cidade. Depois
de levarem a plebe à violência pela fome, surgiriam a desempenhar o papel de benfeitores do cidadão comum. Tal pensamento fez o sangue ferver-lhe nas veias. Afastou
a ira e forçou-se a concentrar-se. Se estivesse no papel dos Libertadores, onde é que esconderia tamanha quantidade de mantimentos?
- Rapazes, toca a acordar! - gritou Fúscio. - O banquete acabou. Em sentido!
O séquito imperial tinha estado a comer numa grande tenda aberta de um dos lados, e naquele momento morriam as últimas notas de música de um grupo grego de flautas
e harpas, enquanto Cláudio conduzia a família e conselheiros pelo meio dos outros convidados, que se apressavam a levantar-se. Saíram para o sol, e os homens da
coorte de Burro colocaram-se em sentido num movimento sincronizado, com dardos e escudos bem aperrados. Havia três centúrias de cada lado do curto caminho que levava
da tenda onde decorrera o banquete até à entrada do pavilhão, decorada com coroas de flores; dali, uma larga escadaria terminava na plataforma elevada de onde o
espetáculo poderia ser mais bem apreciado. Os guarda-costas germanos já estavam nas suas posições, rodeando o camarote imperial onde Cláudio e a família se iam instalar
em cadeiras acolchoadas.
A Sexta Centúria, que ainda gozava da gratidão pessoal de Cláudio,
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tinha a honra de guardar o exterior do pavilhão, enquanto o resto da coorte ficaria estacionada a curta distância, para o caso de serem necessários para assistir
os auxiliares que guardavam as reservas de comida e os calabouços repletos de prisioneiros.
Depois de o Imperador e a sua comitiva entrarem no pavilhão, Burro levou as outras cinco centúrias para a sua posição, e o centurião Tigelino começou a distribuir
os homens pelo perímetro do pavilhão. Cato e Macro foram colocados num canto à sombra, mesmo por baixo do púlpito de onde o Imperador passaria revista aos combatentes.
- Cá vamos nós - disse Macro, apontando para os calabouços. - O espetáculo vai começar.
Cato virou a cabeça e viu a primeira leva de prisioneiros a ser conduzida por um portão. Foram levados até um dos navios que aguardavam na margem, onde cerca de
metade receberam capacetes, escudos, espadas e armaduras tiradas de uma carroça. A outra metade foi levada de imediato pela rampa de acesso ao convés e enviada para
a coberta, para ocupar posições aos remos.
- Olha para aquele equipamento - notou Macro. - Devem ter esvaziado o templo de Marte para lhes arranjar aquilo. Material celta, grego, númida. Algum daquele material
deve ser mais antigo do que a guerra civil.
Depois de armados, os prisioneiros subiram a bordo e formaram no convés, à espera dos oficiais que lhes tinham sido designados. As duas frotas distinguiam-se pela
cor das flâmulas que exibiam ao cimo dos mastros. O combate fora anunciado como uma recriação da batalha de Salamina, onde os navios gregos tinham enfrentado uma
frota persa muito mais numerosa e ainda assim conseguido o triunfo. Os navios escolhidos para representar os persas mostravam cores azuis-claras, e os gregos tinham
tons de escarlate. Um a um, os navios foram sendo equipados de acordo com o mesmo plano, até que por fim, duas horas depois do meio-dia, os almirantes que comandavam
as duas frotas e os oficiais dos navios foram agrupados em frente ao púlpito. A maior parte destes eram gladiadores profissionais, escolhidos para manter alguma
disciplina e proporcionar a liderança, necessárias para conduzir o largo número de criminosos vulgares e escravos sem treino que tinham sido forçados a participar
no espetáculo. Ao apreciá-los, Cato reparou que todos eles se apresentavam em excelente condição física, e que alguns ostentavam cicatrizes, sem dúvida resultantes
de anteriores combates. Tigelino chamou as quatro secções que tinha mantido de reserva para formarem uma linha a separar os combatentes da bancada.
Os gladiadores e os pretorianos ficaram a entreolhar-se em silêncio até que Narciso surgiu no pódio e se aproximou do parapeito para contemplar
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as faces erguidas dos homens que iam conduzir alguns milhares à morte no lago.
Narciso fez uma pausa dramática antes de começar o seu discurso, num tom austero.
- Daqui a momentos, o Imperador estará à vossa frente, para receber a vossa saudação formal antes do começo da naumáquia. Teria preferido que todos vocês fossem
homens escolhidos, os melhores dos melhores, capazes de honrar o espetáculo em que terão o privilégio de participar. Não sucedeu assim, porém. São apenas os que
puderam ser encontrados no pouco tempo disponível. Pouco melhores do que aquela escumalha que estará sob o vosso comando nos navios. Isto dito, que fique bem claro
que exijo o vosso melhor. Eu e eles. - Apontou para a margem distante. - Deem-lhes um bom espetáculo. Tratem de garantir que vocês e os vossos homens combatem a
sério, e os que sobreviverem poderão vir a ser recompensados.
Enquanto o secretário imperial falava, Cato reparara que alguns dos gladiadores e dos outros combatentes pareciam confusos, e alguns tinham-se mesmo embrenhado em
discussões acesas.
- Silêncio! - gritou Narciso. - Quietos, e respeito ao Imperador!
Virou-se e acenou aos buzineiros que ladeavam a porta que dava acesso àquela parte da bancada. Estes ergueram os instrumentos, encheram os pulmões e soltaram uma
sequência de notas cada vez mais agudas. Quando o som se extinguiu, Cláudio surgiu ao sol. A coroa dourada que usava sobre o desalinhado cabelo branco rebrilhava.
O impacto que a bela toga que usava poderia fazer era um tanto prejudicado pelas nódoas de molho que lhe salpicavam a frente. Numa mão mostrava um cálice de ouro,
e aproximou-se do parapeito de forma cambaleante. Narciso inclinou-se perante o Imperador e afastou-se para o lado.
- Gladiadores! - berrou. - Saúdem o vosso Imperador!
Deu-se uma pausa até que os homens pronunciaram uma saudação, cada um por si, de tal forma que as palavras se tornaram completamente indistintas. Cláudio, animado
pelo vinho que já consumira, não conteve o riso, e quando os sons se desvaneceram, abanou a cabeça.
- Vá lá, homens. C-C-Conseguem com certeza fazer melhor do que isso. - O Imperador ergueu a mão livre. - Aos três! Prontos? Um, d-d-dois, três!
- Ave, César! - responderam os combatentes em uníssono. - Os que vão morrer te saúdam!
Cláudio voltou a abanar a cabeça, já que notara que alguns dos homens não tinham pronunciado as habituais palavras. Ergueu o cálice e soltou um comentário em voz
arrastada.
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- Ou não, se assim quiser o destino. Quanto a isso, d-dou-vos a minha palavra.
Os gladiadores olharam uns para os outros, tentando perceber o que o Imperador acabara de dizer. Cláudio virou-se para Narciso e resmungou:
- Mete-os nos barcos e comecem a ba-batalha, já per-perdemos muito tempo.
- Assim será, sire.
O Imperador virou-se e cambaleou a caminho da entrada do pavilhão, a espalhar vinho a cada passo titubeante que dava. Assim que ele desapareceu, Narciso aproximou-se
do parapeito.
- Aos navios! Preparar para o combate!
Cato tinha estado a observar cuidadosamente os combatentes. Vários deles vociferavam animados, e os outros começavam a agrupar-se, enquanto bradavam o seu apoio
aos primeiros.
- Há problemas.
- O que dizem eles? - indagou Macro. - Não consigo perceber uma palavra.
Cato apanhava uma palavra aqui e ali, mas não era o suficiente para perceber o discurso, e abanou a cabeça. Acima do tumulto ergueu-se a voz de Narciso, furiosa
e estridente.
- Vão para os navios, ou juro-vos que crucifico todos os que sobreviverem à batalha!
Os homens acalmaram ligeiramente, e um dos gladiadores avançou, de polegares enfiados no cinto e a desafiar abertamente as ordens do secretário imperial.
- Nada feito. Todos ouvimos o Imperador. O que ele disse foi bem claro. Fomos perdoados. O combate foi cancelado.
Macro virou-se para Cato com a surpresa estampada no rosto, e Cato abanou a cabeça, sem compreender o que se passava.
- O que é que disseste? - inquiriu Narciso, igualmente assombrado.
- A naumáquia. Cancelada. Foi o que disse o Imperador.
- Endoideceste? Do que é que estás a falar?
O gladiador franziu o cenho.
- Para nós foi bem claro. Disse ele que não teríamos de morrer. Deu a sua palavra. Ouvimo-lo dos seus próprios lábios. A palavra do Imperador é lei. Havia um boato
a correr ontem à noite nas celas que dizia que o espetáculo ia ser cancelado. Parece que afinal estava certo.
- Ele não quis dizer nada disso, idiota! Vão mas é para os navios!
O gladiador virou-se para confirmar que tinha o apoio dos outros, e foram trocadas algumas palavras em surdina antes de ele se voltar de novo para Narciso e cruzar
os braços.
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- Fomos perdoados. Assim disse o Imperador. Exigimos ser libertados imediatamente.
- Exigem? - Narciso quase se engasgou. - Como te atreves, escravo?
O secretário imperial debruçou-se sobre o parapeito e gritou a Tigelino:
- Centurião, abate esse homem, e todos os que se recusarem a obedecer às ordens que receberam.
Fez-se silêncio, e o ar encheu-se de uma tensão quase palpável quando os gladiadores e os outros combatentes fizeram menção de empunhar as espadas. O centurião Tigelino
colocou-se à frente da linha dos seus homens e olhou para Narciso.
- Senhor?
Narciso apontou-lhe um dedo.
- Faz como te disse, ou seguirás o mesmo caminho. Avança!
Tigelino colocou-se em linha, ergueu o escudo e pegou na espada. Respirou fundo, nervoso, e deu uma ordem:
- Sexta Centúria! Avançar com dardos!
Ouviu-se um estrondo quando os guardas avançaram um pé e baixaram as pontas dos dardos, apontando-os aos gladiadores. Cato olhou para os oponentes e calculou que
deviam ser pelo menos uns oitenta, o que daria uma refrega equilibrada no caso de a situação se descontrolar. Ao seu lado, Macro já tinha fixado o olhar no que parecia
ser o líder dos gladiadores, enquanto resmungava.
- Esperava bem nunca mais ter de enfrentar escravos. Muito menos gladiadores.
- Aposto um sestércio contra um denário que este grupo foi treinado na escola em Roma - murmurou Cato.
Macro olhou-o de relance. A Grande Escola era famosa por todo o Império pela qualidade dos gladiadores que formava. Macro respirou fundo.
- Então, para variar, estamos metidos num bom sarilho.
O centurião Tigelino parecia partilhar a ansiedade dos dois amigos, e deu rápidas ordens a um dos homens para correr até junto do tribuno Burro a solicitar reforços.
Enquanto o homem se afastava a correr, Tigelino ergueu o escudo e virou-o contra os gladiadores.
- Sexta Centúria, a passo, avançar!
A linha pretoriana avançou, as armaduras de cerimónia a resplandecer sobre as suas impecáveis túnicas brancas. Já tinha passado bastante tempo desde a última vez
que Cato e Macro se tinham visto englobados numa linha de combate, em vez de a comandarem, e Cato concentrou-se em manter o passo igual aos dos homens que o ladeavam.
À sua frente, o chefe dos gladiadores esticou o braço e apontou para Narciso.
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- Diz aos pretorianos para parar! Ou será o sangue dos teus homens que será derramado. E o Imperador apontar-te-á como responsável, liberto. - A voz quase derramava
desprezo quando proferiu a última palavra.
Cato olhou rapidamente para trás e viu como Narciso encarava a cena com fúria, os lábios cerrados com toda a força.
- Gladiadores! - gritou o chefe. - Empunhem as vossas armas!
O ar encheu-se dos sons metálicos de armas a serem desembainhadas, e Cato subiu o escudo oval de forma a proteger o torso e a parte inferior do rosto. Os gladiadores
estavam a menos de vinte passos de distância. Por trás deles estendia-se uma paliçada que ia da margem do lago até às celas. Um punhado de tropas auxiliares num
torreão por trás da paliçada tinha testemunhado o confronto, e um deles avisava agora os camaradas para se prepararem para o combate. Os gladiadores não conseguiriam
escapar por aquele lado, decidiu Cato. Aliás, não teriam hipótese de fuga em qualquer direção. A única opção era manterem a posição e morrerem, ou entrarem nos navios.
Os que já tinham embarcado amontoavam-se agora nas proas a assistir, e Cato lançou uma prece para que não se sentissem inclinados a juntar-se aos que tinham desafiado
Narciso com tanta fúria. Felizmente estavam longe de mais para poderem ter escutado o comentário descuidado do Imperador e a acesa troca de palavras a que dera origem.
O líder dos gladiadores agachou-se e colocou o escudo em posição, a postos para o lançar contra o rosto do primeiro inimigo que se aproximasse. A espada estava na
outra mão, também pronta para entrar em ação. Os outros depressa lhe seguiram o exemplo, espalhando-se pelo terreno de forma a terem espaço para se movimentarem.
Cato não deixou de admirar as diferenças de estilo de combate entre os gladiadores e os pretorianos. Um dos lados fora treinado para o combate individual, e especializado
nas técnicas necessárias à sobrevivência nos duelos singulares que dominavam as suas vidas. Contra eles avançava a elite dos soldados de Roma, treinados para o combate
em formações densas e disciplinadas, em que cada homem era apenas uma peça da máquina.
Tigelino lançou um brado.
- Salvem-se! Entreguem-nos este homem, e serão poupados.
- Vai-te foder! - respondeu-lhe uma voz.
Os lábios do líder dos gladiadores abriram-se num riso selvagem, e ele bateu na couraça com a folha da espada.
- Venham cá buscar-me!
266

24

- Seja, se é isso que querem - ripostou Tigelino, com uma calma gélida. - Sexta Centúria, alto! Preparar para lançar dardos!
Cato e Macro estacaram com o resto dos homens, e empunharam os dardos, ajustando a pega e o equilíbrio, puxando-os atrás e preparando os músculos para atirar os
projéteis assim que o centurião desse a ordem. Cato tinha passado por momentos semelhantes em inúmeras batalhas, e esperava que, como habitualmente, o inimigo se
encolhesse e hesitasse no ataque. Mas os gladiadores mantiveram-se firmes, sem recuar um passo, os olhos fixos nos pretorianos, e preparados para se esquivarem aos
arremessos dos soldados.
- Apontem ao líder - indicou Macro. - Se ele tombar, pode ser que os outros desistam.
Cato assentiu.
- Lançar! - berrou Tigelino.
Cato lançou o braço para a frente, pondo todo o peso no movimento e soltando o projétil no último instante. A haste negra arqueou pelo ar, em conjunto com os outros
dardos lançados pela centúria. Subiram no espaço aberto entre os dois grupos de homens e deram a sensação de pararem no ar, antes de se precipitarem na descida.
Os gladiadores tinham desenvolvido reflexos apurados durante o treino e esquivaram-se enquanto os dardos começavam a atingir o solo. Só um punhado de homens foi
atingido, um deles trespassado no cimo do crânio, com a ponta a descer pelo pescoço e a enterrar-se-lhe profundamente no corpo. Cato viu o homem vacilar ao sofrer
o impacto, e ficar imóvel antes de mergulhar para o solo e desaparecer de vista. Outros dois foram mortalmente feridos quando as pontas metálicas dos dardos lhes
rasgaram os torsos. O último estava diretamente em frente de Cato. Urrou de dor quando um dardo se lhe cravou na bota, prendendo-lhe o pé ao solo. Todos os outros,
por incrível que parecesse, tinham escapado incólumes.
- Porra - comentou Macro. - Estes tipos são bons. Nunca vi homens a mexerem-se com tanta rapidez.
- Desembainhar espadas! - gritou Tigelino.
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Cato pegou no punho da espada, tomando todo o cuidado em fechar os dedos em torno do cabedal, sabendo perfeitamente que deixar a espada escorregar-lhe da mão em
plena batalha seria fatal. Puxou-a da bainha e segurou-a na horizontal, o lado da lâmina apoiado no bordo do escudo, e não mais de quinze centímetros expostos. De
ambos os lados, os outros pretorianos avançavam contra os gladiadores, com as pontas dos gládios a rebrilhar ao sol.
O líder dos adversários, que escapara sem ferimentos aos dardos, recolheu rapidamente a sua espada, preferindo arrancar do solo uma das hastes que ali se tinham
cravado. Gritou aos seus seguidores:
- Vamos, rapazes, vamos dar-lhes um pouco do seu próprio remédio!
Lançou um dardo e depois outro contra os guardas, já a menos de vinte
passos dele. Dificilmente podia falhar a muralha de escudos e capacetes ofuscantes que se aproximava dele. O dardo penetrou pelo escudo do homem que seguia ao lado
de Macro, trespassando-lhe o braço com que segurava a defesa e embatendo com força no peito protegido pela cota de malha; o peso da haste fez com que o braço descaísse
e levasse atrás o escudo. Soltou um urro de dor, com a face a empalidecer, e abandonou a formação, enquanto embainhava a espada e arrancava o dardo do braço, criando
uma verdadeira fonte de sangue.
- Fechem! - gritou Macro, instintivamente. - Fechem a linha!
Vários dos gladiadores seguiram o exemplo do seu líder, e quatro guardas foram derrubados antes que Tigelino reagisse ao perigo e impedisse a perda de mais homens.
- Carregar! - gritou, com uma nota de desespero. - A eles!
A boca de Macro abriu-se, quase o desfigurando quando lançou um grito de guerra em que soltou toda a furia, antes de baixar a cabeça e correr para a frente. Cato
cerrou os dentes e manteve-se junto de Macro. Entretanto, os gladiadores preparavam-se para receber o impacto. Os que ainda tinham dardos empunhavam-nos de forma
ágil, para os usar como lanças. À medida que a vaga dos pretorianos embatia contra a parede adversária, sucediam-se os grunhidos e imprecações, logo seguidos pelo
choque das armas, criando uma tremenda cacofonia.
Macro encaminhou-se diretamente contra um germano de peito largo, com o cabelo apanhado por trás da cabeça. O homem ergueu o escudo redondo e exibiu uma falcata,
mantendo-a em posição de ataque. Mostrou os dentes num rugido e saltou em frente. Os escudos chocaram com estrondo, mas era Macro quem levava maior ímpeto. Lançou
o seu peso por trás do escudo, obrigando o germano a recuar alguns passos. Contudo, o homem estava treinado para recuperar rapidamente, e aparou sem dificuldade
o golpe de Macro, forçando a ponta da espada deste a passar ao largo. Apesar
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da sua velocidade e técnica de combate, foi traído pelo seu treino específico para os duelos individuais. Tinha a atenção fixa em Macro, e só no último instante
reconheceu a ameaça que Cato, vindo do outro lado, representava. Cato lançou o escudo contra ele, atingindo-o com toda a força no ombro e desequilibrando-o. Caiu,
apoiado num joelho, desguarnecendo as costas. Cato atacou sem hesitar, enterrando a lâmina por entre as omoplatas do homem, rasgando-lhe músculos e esmagando-lhe
as costelas e a espinha. Libertou a arma, fazendo saltar um esguicho de sangue quente, e virou-se imediatamente para prevenir qualquer ataque inesperado.
- Bem feito, miúdo - reconheceu Macro.
A escaramuça prosseguia em redor, e os gladiadores não estavam a perder terreno, já que conseguiam aparar os golpes dos pretorianos com os escudos ou com rápidas
torções dos pulsos no manejo das lanças. Cato observou o que se passava à sua volta, e viu o líder dos gladiadores assentar uma pesada pancada com o escudo no capacete
de um guarda, fazendo-o torcer o pescoço. O gladiador avançou com um poderoso golpe à garganta exposta, retirando de imediato a lâmina enquanto dava um passo atrás
e se colocava em posição agachada, em busca de novo oponente. No chão viam-se vários pretorianos, mas só dois gladiadores, notou Cato. Só a armadura e os grandes
escudos dos pretorianos os estavam a salvar de sofrer baixas ainda mais pesadas naquele combate desigual.
- Estamos a levar uma sova, porra - observou Macro. - Temos de fazer alguma coisa. Temos de tomar o comando disto.
Cato anuiu, mantendo os olhos no combate. Uma ação daquelas ia atrair as atenções sobre eles, e haveria por certo quem se interrogasse sobre a facilidade com que
assumiam o controlo de situações difíceis - mas primeiro era preciso sobreviver àquela luta.
Macro respirou fundo e gritou:
- Pretorianos! Comigo! Comigo!
Cato repetiu o apelo. Os mais próximos dos seus camaradas começaram a reunir-se a eles, e depressa formaram um pequeno círculo, escudo sobre escudo, que permitia
aos homens beneficiar de uma melhor proteção.
- Mantenham a posição! - indicou Macro. - Vamos ter ajuda daqui a pouco! Aguentem!
Tigelino tinha-os imitado, e já havia um outro círculo de pretorianos a curta distância. Os restantes lutavam costas com costas, ou viam-se envolvidos em combates
singulares dispersos pela área aberta onde se desenrolava a contenda. Cato mantinha o escudo bem elevado, ao lado de Macro. Ao olhar para o outro lado da formação,
avistou Fúscio a ofegar. Os olhos do optio estavam arregalados, e tinha os dentes à mostra, num esgar. Apesar
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do aspeto feroz, os braços tremiam-lhe, e a ponta da espada, embora ainda apontada ao inimigo, vacilava.
- Estamos a salvo - disse-lhe Cato. - Desde que nos mantenhamos juntos e aguentemos a formação.
Fúscio olhou-o de relance e voltou a concentrar-se no combate, acenando com vigor.
Os gladiadores cercaram a formação, mas não fizeram qualquer tentativa coordenada para a romper. Ao que parecia, cada um deles escolhia um soldado em particular
como oponente, e ficava a avaliá-lo sem se mexer ou atacava sem pensar, tentando ultrapassar o escudo. Alguns faziam fintas e tentavam golpear de imediato. Mas em
todos os casos, o facto de o alvo estar rodeado por outros soldados frustrava as suas intenções. Não era aquele o estilo de combate para que tinham sido treinados,
e a frustração dos homens crescia de forma evidente. Os ataques perderam ímpeto. Cato sentiu que era a altura de lhes fazer um novo apelo, para tentar acabar com
o combate.
- Vocês não têm hipótese! - avisou. - A qualquer momento vão chegar mais soldados. Se resistirem, serão trucidados. Baixem as espadas agora!
- Irmãos, seja como for, é a morte que nos espera! - bradou o líder.
- Ali no lago, a lutar para entreter os romanos, ou aqui e agora, a combatê-los! Não parem!
Com um rugido de raiva, o gladiador carregou sobre o homem ao lado de Fúscio, atacando-o com o escudo e forçando-o a levantar o seu para enfrentar o golpe. Ao mesmo
tempo, o gladiador puxou o braço atrás e lançou-o num arco por baixo e em torno do escudo do guarda, rodando depois o pulso para cima, numa estocada às virilhas
do pretoriano. O golpe foi tão forte que fez o homem deitar os bofes pela boca, e quase o levantou do solo quando a lâmina penetrou nos seus órgãos vitais. Lançando
um selvagem grito de triunfo, o gladiador puxou a espada e saltou para trás, enquanto elevava ao ar a lâmina sanguinolenta.
- Matem-nos! Deem cabo deles, meus irmãos!
Seguiu-se um coro de gritos e aclamações dos seus companheiros, que apertaram o cerco aos dois círculos de pretorianos, atacando sem pausa os escudos e capacetes.
- Temos mesmo de liquidar este tipo - resmungou Macro, enquanto aparava mais estocadas. - Se ele for abatido, talvez os outros se acalmem.
Cato arriscou uma espreitadela para trás, para lá do pavilhão, e avistou uma outra centúria de pretorianos a formar apressadamente. Uma trombeta soltou um alarme
algures por trás da paliçada, anunciando que também os auxiliares se preparavam para intervir. Ainda havia contudo tempo sufi-
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ciente para os gladiadores destroçarem Tigelino e os seus homens. Na bancada tinha voltado a emergir o Imperador, ainda de cálice na mão. Olhou para a cena com ar
furibundo.
- O que é isto? Quem deu ordens para que a luta começasse?
Cato limpou a garganta e respondeu a Macro:
- Vamos a isso.
Macro anuiu e agachou-se, firmando-se sobre o solo, colocando o peso nas almofadas dos pés.
- Pronto, miúdo?
- Pronto.
- Agora! Recuar. - Deu um passo atrás, seguido de perto por Cato. De imediato o veterano lançou outra ordem: - Fechem!
Fúscio e o homem à direita de Macro aproximaram-se um do outro, enquanto Cato e Macro se movimentavam rapidamente no interior da formação, até se alinharem com o
líder dos gladiadores. Cato avançou, abrindo caminho por entre dois dos seus camaradas.
- Abram caminho! Deixem passar.
Os guardas separaram-se para lhes dar passagem, e Macro focou a atenção no homem que não estava a mais de oito passos de distância.
- Atacamo-lo depois de ele lançar a próxima estocada. À minha ordem.
Cato fincou os dedos no punho da espada e sentiu o sangue a acelerar nas veias, fazendo os músculos formigar com a familiar tensão da batalha. O gladiador fixou
o olhar em Macro, que lhe sorriu e fez um gesto com a mão que empunhava a espada.
- Vá! Ataca-me, se te atreves! - Afastou o escudo, expondo o peito, tentando o adversário.
O gladiador franziu o cenho e rosnou.
- Morre então, filho da puta!
Saltou em frente, com a espada apontada à garganta de Macro. Este manteve o escudo em posição baixa e usou a espada para aparar o golpe. No último instante o gladiador
mudou a direção da estocada, atacando a junção do ombro com o capacete. No mesmo momento, Cato avançou, atirando o escudo contra o dorso do homem e golpeando-lhe
o braço esticado. O gume penetrou nos músculos e só se deteve quando atingiu o osso. O braço entrou em espasmos, e os dedos largaram o punho da espada, que tombou
com um estrondo inofensivo sobre a dupla camada de cota de malha que protegia o ombro do centurião. O gladiador cambaleou para trás, o sangue a jorrar da ferida
enquanto ele soltava um rugido animal de fúria e sofrimento. Os que o seguiam recuaram e afastaram-se dos romanos, enquanto contemplavam incrédulos o que sucedera
ao seu líder. O braço que
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antes segurava a espada pendia-lhe inútil ao lado do corpo. Atirou o escudo para o chão e colocou a mão sobre o rasgão, apertando com força numa tentativa de estancar
o sangue.
- Vamos - disse Macro a Cato. - Vamos acabar com isto.
Voltaram a avançar com precaução, atentos a qualquer novo perigo,
mas os gladiadores mantiveram-se à distância. O chefe estava agora de joelhos, os olhos cerrados enquanto tentava combater a agonia que lhe provocava a ferida recebida.
Macro aproximou-se dele enquanto Cato vigiava os outros, de escudo aperrado, pronto a enfrentar qualquer homem que avançasse para tentar ajudar o gladiador caído.
- O vosso líder foi abatido! - anunciou Macro. - Está acabado! Guardem as espadas, a não ser que queiram morrer com ele, aqui mesmo!
Deu-se um momento de silêncio enquanto os homens esperavam por uma resposta do líder. Macro rangeu os dentes, furibundo, antes de voltar a avisar.
- Agora! Façam o que eu digo, ou não vos será dado quartel!
Depois de uma longa hesitação, um primeiro gladiador recolocou a espada na bainha. Um outro imitou-o, e depois outros se seguiram, à medida que se afastavam dos
pretorianos e seguiam as ordens de Macro. O chefe, ferido e de joelhos, lançava olhares ferozes em redor.
- Lutem, porra! Não desistam. O Imperador prometeu-vos a liberdade. Lutem por ela, ou vejam-na ser-vos de novo retirada!
- O homem é um m-m-mentiroso maldito! - soltou Cláudio, com a voz entaramelada pelo álcool. - Não disse nada disso! Que descaramento! Matem-no. M-Ma-Matem todos
os que não pousarem imediatamente as armas. E depressa. - Apontou para o outro lado do lago, de onde vinha o som de lentas palmas ritmadas, em claro sinal de protesto
e gozo. - Não lhes esgotem a paciência.
O chefe dos gladiadores percebeu por fim que a causa estava perdida. Olhou para Macro e fez um pedido numa voz quase tranquila.
- Despacha isso.
Macro anuiu. O gladiador rodeou o joelho de Macro com o braço ainda são, ao mesmo tempo que deitava a cabeça para trás e expunha o pescoço e a clavícula. Macro sabia
perfeitamente que os guerreiros da arena eram treinados para enfrentar a morte sem mostrar qualquer receio, e só o tremor na mão do homem, agarrada ao seu joelho,
lhe traía os verdadeiros sentimentos. Apoiou o escudo no corpo e ergueu a espada, procurando a cova na clavícula do homem, junto ao pescoço. Pressionou a ponta da
lâmina contra a pele, mas sem a rasgar.
- Pronto?
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O gladiador anuiu e fechou os olhos.
- Aos três - avisou Macro calmamente. - Um...
E empurrou a espada com toda a força, fazendo a lâmina romper por entre os órgãos vitais do homem até chegar ao coração. O golpe fez o homem soltar um suspiro de
surpresa; a mandíbula descaiu-lhe enquanto os olhos se esbugalhavam. Macro retorceu a lâmina e puxou-a, fazendo o sangue jorrar em torrente da ferida aberta. O gladiador
estremeceu por momentos e por fim tombou de costas, encarando o céu azul enquanto tentava respirar uma última vez e morria. Havia uma calma estranha a rodear a cena,
finalmente interrompida quando Cato ouviu as ordens gritadas e o som das botas do resto da coorte que o tribuno Burro conduzia para junto deles. O barulho despertou
do estertor alguns dos outros combatentes, que recuaram para junto da paliçada. Muitos se lhe juntaram, até que apenas um punhado de homens se mantinha de armas
aperradas, dispostos a enfrentar os pretorianos.
- Sexta Centúria! - gritou Tigelino. - Formar em linha!
Os homens apressaram-se a tomar o seu lugar. Macro usou a bainha da túnica do gladiador para limpar o sangue da espada e regressou com Cato para junto dos outros.
Havia corpos espalhados pelo chão, a maior parte pretorianos, e os feridos gemiam de dor.
- Última oportunidade - lançou Tigelino aos homens que ainda desafiavam a ordem para depor as armas. - Embainhem as espadas, ou morrerão.
- Que assim seja! À morte! - desafiou um dos homens, um oriental alto e musculado. Arreganhou os lábios negros e carregou sobre os pretorianos. Lançou uma chusma
de golpes sobre um dos soldados, obrigando-o a recuar. De imediato, porém, os camaradas do guarda viraram-se contra o atacante. Este conseguiu evitar os primeiros
golpes, mas logo foi atingido no flanco. Libertou-se da lâmina com um grunhido, mas foi ferido no outro lado, e depois no peito. Mais algumas cutiladas selvagens
e ele tombou, com o peito a arfar, enquanto sangrava até à morte.
O fim brutal daquele desafio desfez os nervos dos homens que ainda tinham as espadas nas mãos, e depressa as recolheram às bainhas e recuaram. Atrás deles, os auxiliares
estavam a colocar-se no passadiço interno da paliçada, com dardos prontos a serem arremessados.
- Como sempre, chegaram quando já não eram precisos - comentou Macro, azedo.
No momento seguinte, o tribuno Burro irrompeu no cenário, dispondo os seus homens em torno da Sexta Centúria, e rodeando os gladiadores. Avançou até à plataforma
e saudou o Imperador.
- Sire, as vossas ordens?
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A expressão de Cláudio era fria e impiedosa, e os dedos de uma mão tamborilavam no parapeito, enquanto a outra mão se fechava sobre o cálice.
- Só pode haver um d-destino para os que se atrevem a desafiar o Imperador. Devia ordenar que fossem todos executados aqui e agora mesmo... Se não fosse aquela turba
além. - Cláudio acenou na direção da populaça que se espalhava pelas colinas do outro lado do lago. As palmas de protesto tinham atingido um nível perfeitamente
audível. - Assim sendo... - prosseguiu. - Morrerão ali, na água, se justiça há neste mundo. B-B-Burro!
- Sire?
- Mete essa escumalha nos navios respetivos, imediatamente.
- Sim, sire.
Lançando um último olhar de despeito, Cláudio virou-se e afastou-se do peitoril, dirigindo-se de novo para o pavilhão. Burro passou por entre as fileiras dos seus
homens e enfrentou os gladiadores. Colocou as mãos na cintura e contemplou-os.
- Ouviram o Imperador. Se fosse a vocês, quando embarcasse, trataria de combater com entusiasmo. Se derem um espetáculo suficientemente bom para impressionar a turba,
alguns de vocês poderão escapar disto com vida. Toca a andar.
Os gladiadores começaram a encaminhar-se lentamente para os navios.
- TOCA A MEXER! - urrou Burro. - Já mandriaram demasiado tempo! Toca a correr, sacanas, a não ser que queiram que os meus homens vos metam os dardos pelo cu acima.
Os homens aceleraram o passo e aproximaram-se da margem. Um deles, porém, parou e aproximou-se a medo do tribuno.
- O que é agora? - indagou Burro num berro.
- Senhor, o comandante da nossa frota está morto. - O gladiador indicou o homem que Macro executara. - Não temos quem nos lidere.
- Tu serves. - Burro espetou-lhe o dedo no peito. - Ficas no comando. Desaparece-me da vista.
O gladiador inclinou-se, nervoso, e correu para o maior dos navios que ostentavam flâmulas vermelhas nos mastros. Quando, por fim, o último dos homens embarcou,
as pranchas foram recolhidas, e os combatentes a bordo concentraram-se nas popas de forma a que as proas se elevassem e os remadores conseguissem afastar as embarcações
da margem. A Macro e Cato, que tinham servido na marinha durante a campanha contra os piratas, as manobras daquelas supostas frotas de persas e gregos pareciam,
na melhor das hipóteses, desajeitadas. Mesmo assim, ao notarem que as embarcações se dirigiam finalmente para as posições designadas para o início
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do combate, a multidão na outra margem do lago ergueu-se e deixou de bater as palmas compassadas que a espera motivara.
Uma vez que os gladiadores já não representavam qualquer ameaça ao Imperador, o tribuno Burro fez recolher a sua coorte, e a Sexta Centúria voltou a assumir as posições
em torno do pavilhão. Os cadáveres foram recolhidos pelos auxiliares, enquanto os feridos eram tratados à pressa pelo médico imperial, que não queria de forma alguma
perder o espetáculo que se ia desenrolar no lago.
À medida que as duas linhas de combate se formavam, separadas por uma meia milha de água e ocupando uma boa parte da largura do lago, Tigelino fazia a ronda dos
seus homens. Cato e Macro colocaram-se em sentido quando ele se aproximou. Tigelino perscrutou-os de alto a baixo antes de falar.
- Isso é que foi pensar depressa, há bocado - comentou em tom calmo. - Quando deste ordens para os homens formarem.
- Pareceu-me ser a melhor opção naquela situação, senhor - ripostou Macro.
- Estou a ver. Até parecia que estavas habituado a dar ordens. Alguém que não te conhecesse podia até pensar que em tempos talvez tenhas sido um oficial. Talvez
um optio, ou até centurião.
O olhar de Macro não traiu qualquer emoção quando respondeu.
- Obrigado, senhor.
- Cálido, não te estou a fazer nenhum elogio. Foi uma mera observação. Diz-me cá, como é que dois tipos comuns, das fileiras, conseguem portar-se de forma tão similar
a homens habituados a comandar?
A suspeita no rosto e modos do centurião era perfeitamente evidente.
Macro cerrou os lábios, e explicou com toda a calma.
- Senhor, não há muito a dizer. Quando já se serviu em tantas campanhas como eu, aprende-se a fazer o que as circunstâncias exigem. Em muito mais do que uma ocasião,
o meú centurião e optio foram abatidos em batalha. Nessas alturas alguém tem de avançar e assumir o controlo da situação. Já o fiz algumas vezes, e o mesmo sucedeu
com o Capito. E com qualquer veterano que não tenha andado escondido, senhor.
Tigelino ponderou a resposta, e assentiu.
- Muito bem. Assim sendo, ainda bem que estão do meu lado. Quando chegar o momento, um punhado de homens de valor pode muito bem alterar o destino de Roma. - O centurião
aproximou-se e olhou-os em rápida sucessão. - Vocês escondem muito mais do que eu pensava a princípio. Esperemos que isso seja bom.
Cato franziu o sobrolho.
- Senhor?
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- Vou fazer umas perguntas por aí. Se vocês se revelarem mais do que aquilo que proclamam, ir-se-ão juntar ao Lurco assim que for possível.
Não esperou por resposta; rodou sobre os calcanhares e afastou-se a passos largos. Cato soltou um longo suspiro.
- Meu amigo, agora é que estamos metidos na merda até ao pescoço.
- O caralho é que estamos - ripostou Macro. - A nossa história está bem montada. Até ele conseguir descobrir alguma coisa, já o trabalho está feito e nós bem longe
de Roma. Pelo menos se o Narciso cumprir a sua promessa.
- Ou seja, como eu disse, estamos na merda. - Cato contemplou Tigelino enquanto o centurião se afastava, e acrescentou: - Espero bem que tenha razão sobre ele.
Foram interrompidos pelo soar de trombetas do outro lado do pavilhão, e viraram-se para ver o que se passava no lago. Duas barcaças estavam ancoradas entre as duas
frotas, e sobre elas estava suspenso um grande cesto repleto de pedras. Assim que o sinal foi dado, os homens nas barcaças soltaram o cesto, fazendo-o mergulhar
na água com um grande repuxo. Macro franziu o sobrolho.
- A que propósito é aquilo?
Enquanto continuavam a olhar, avistaram uma perturbação na superfície da água, a curta distância das duas barcaças. Três espinhos reluzentes emergiram, seguidos
por um cabo, uma mão e um braço. Enquanto a água escorregava em cascata do objeto que emergia, Macro abanou a cabeça, admirado.
- Que raio é aquilo?
Cato sorriu.
- Parece-me que é a abertura pensada pelo Apolodoro para agradar à multidão.
Era já claro a que correspondia o objeto - uma representação de Neptuno, dourada, e à medida que o contrapeso descia para o fundo do lago, o impressionante mecanismo
que o engenheiro prometera a Cláudio erguia-se uns bons seis metros no ar, com a água a lamber-lhe a base como se a estrutura pairasse sobre a superfície. Uma enorme
aclamação subiu da margem distante, e uma onda colorida percorreu as colinas quando as pessoas agitaram panos de todas as cores para mostrar a sua aprovação.
- Oh, aquilo está muito bem feito! - comentou Macro, com um sorriso de prazer. - Muito giro.
Entretanto, as tripulações das duas barcaças remavam freneticamente para a margem, ansiosas por não ficarem presas entre as duas frotas que depressa se envolveriam
em combate. Um novo sinal sonoro deu ordem para o começo da naumáquia. Ouviram-se breves gritos de desafio vindos das
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frotas agora inimigas, cada uma composta por vinte navios; foram seguidos pelo constante som de tambores a marcar o ritmo em cada embarcação. Os remos mergulharam
na água de forma um tanto atabalhoada, mas depressa as pequenas naves de guerra ganharam velocidade. Algumas eram mais céleres, pelo que as linhas de batalha depressa
se desfizeram, e a confusão aumentou rapidamente, dada a dificuldade evidente de algumas tripulações para manterem um rumo fixo.
- Não é propriamente o melhor exemplo de destreza náutica a que já assisti - comentou Cato. - Até a mais inexperiente das tripulações da marinha era capaz de fazer
círculos em volta daquela malta.
- Sim, sim - ripostou Macro, irritado. - Porque é que não deixas de te armar em veterano calejado comigo, e te limitas a apreciar o espetáculo, hã?
Cato deitou um olhar divertido ao amigo.
- Ah, a bela reserva dos soldados temperados pela batalha...
- Chhhh!
Os navios mais adiantados já estavam ao alcance dos projéteis uns dos outros, e Cato reparou nas pequenas colunas de fumo que se viam a bordo. Depressa a primeira
flecha subiu de um dos navios de flâmula azul e traçou um arco de fogo sobre a água, deixando um traço de fumo a marcar a passagem. A flecha mergulhou na água a
uns bons quinze metros da proa do navio inimigo mais próximo.
- Ora, lá se foi a fama dos arqueiros orientais. - Macro riu. - Aquela ficou muito longe do alvo.
O falhanço do primeiro disparo não impediu os arqueiros inexperientes de ambos os lados de soltar mais salvas, e a superfície do lago pareceu ferver por momentos
quando as flechas mergulharam no espaço entre os dois navios, que continuavam a aproximar-se. Não havia qualquer tentativa de manobrar para conseguir uma melhor
posição para usar o aríete de proa, e as embarcações acabaram mesmo por chocar quase de frente, escorregando uma pela outra. O mastro improvisado do navio grego
partiu-se quase pela base e caiu para a frente, arrastando o cordame e soterrando os combatentes apinhados na parte mais avançada do convés. A multidão na margem
respondeu com uma ovação entusiasta. Enquanto os homens tentavam libertar-se do emaranhado de cabos, os adversários lançaram ganchos de abordagem e forçaram a aproximação
dos costados, até que os primeiros homens começaram a saltar pelo espaço aberto. Visto da margem, o refulgir de espadas e armaduras poucas indicações dava sobre
quem estava a levar a melhor.
Mais navios se foram juntar à refrega, e os que tinham sido mais lentos no arranque tinham agora a vantagem de poder escolher um alvo que
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pudessem abalroar a meia-nau. O primeiro ataque do género foi muito mal executado, e a velocidade de embate não foi suficiente para o aríete rasgar o casco do outro
navio. A tripulação recuou alguma distância para voltar a tentar, mas nesse momento foi a sua vez de ser atingida com toda a força por um navio inimigo. Pedaços
de madeira dos remos estilhaçados saltaram pelo ar, e a pequena embarcação estremeceu devido ao impacto, atirando homens para a água. Alguns envergavam pesadas armaduras
e mal se conseguiram manter à superfície por momentos, até que o peso os arrastou para as profundezas. Todavia, o navio que tinha conseguido atingir o adversário
também se viu rapidamente em apuros, já que o braseiro que era usado para dar fogo às flechas tombou, espalhando brasas pelo convés, ateando rapidamente um incêndio
favorecido pelo cordame empapado em óleo. Depressa o navio se viu envolto em chamas que, sopradas pela brisa que percorria o lago, se propagaram à embarcação abalroada.
O combate interrompeu-se quando os homens dos dois lados tentaram salvar-se, libertando-se das armaduras e pegando em qualquer coisa que lhes permitisse boiar antes
de saltar pela borda fora.
- Pobres tipos - murmurou Cato, enquanto a vasta audiência soltava gritos de deleite.
Duas horas depois do sinal para o início das hostilidades, a superfície do lago já estava juncada de destroços. Um navio tinha sido afundado, e outros três estavam
em chamas. Os outros estavam embrenhados em vários duelos e colisões múltiplas, incitados pelos gritos da multidão que se entretinha também com a comida que lhe
fora distribuída pelos funcionários imperiais pela manhã. Ao observá-los, e ao escutar um ocasional comentário vindo do pavilhão, Cato admitiu que o espetáculo estava
a cumprir admiravelmente o papel de fazer esquecer as dificuldades que assaltavam a capital. Se a diversão e o abastecimento alimentar pudessem ser mantidos mais
um dia ou dois, então a naumáquia teria cumprido o seu propósito.
O som de cascos atraiu-lhe a atenção para longe do lago; virou-se a tempo de ver um correio imperial a galope ao longo da margem, vindo da estrada que levava à capital.
O cavaleiro vinha dobrado sobre o pescoço da montada, incitando-a a galopar, enquanto a espuma se soltava de ambos os lados do freio na boca do animal. Deteve o
cavalo abruptamente à frente do pavilhão e saltou da sela com rapidez, dirigindo-se a correr para as escadas que levavam ao camarote imperial.
- Caramba, que aquele vem com pressa - comentou Macro, enquanto esfregava o rosto. - Serão más notícias?
- Quando foi a última vez que as boas notícias chegaram a galope? - replicou Cato.
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Voltaram-se de novo para a batalha, mas Cato não conseguia deixar de pensar que novidades traria o correio com tanta pressa. A luz começava a esmorecer, já que o
Sol se escondera por trás do horizonte. As trombetas voltaram a soar, e em resposta às estritas instruções que tinham recebido, as tripulações dos navios sobreviventes
interromperam os combates e afastaram-se, dirigindo-se à margem onde se situava o pavilhão. As embarcações atracaram dos dois lados, de acordo com a sua cor, e tornou-se
possível verificar que tinham sido os persas a ganhar vantagem no primeiro dia do combate. Uma a uma, as embarcações encalharam, e as tripulações de remadores e
combatentes, extenuadas, desceram as pranchas, foram rapidamente desarmadas e recolheram às celas, escoltadas pelas tropas auxiliares.
Macro deu um toque em Cato e apontou rapidamente.
- Olha para ali, não é o Sétimo?
Cato olhou na direção indicada e avistou quatro homens que carregavam odres de vinho e obedeciam a um tipo que envergava a túnica púrpura sem enfeites que o identificava
como um dos servidores do palácio. Uma olhadela rápida chegou para confirmar a identidade do homem.
- É ele, sim.
- Então o que estará aqui a fazer?
- Alguma coisa relacionada com o Narciso.
Macro deitou um olhar enfadado ao amigo.
- A essa cheguei eu sozinho, muito obrigado.
Observaram enquanto os homens passavam por entre os grupos de pretorianos, aproximando-se cada vez mais deles. Quando os alcançou, Sétimo indicou os odres, e anunciou:
- Em nome da gratidão de sua majestade imperial para com os seus leais soldados!
Sétimo estalou os dedos, e um dos homens começou a soltar um odre. Sétimo aproximou-se dos dois soldados e continuou a sorrir enquanto falava em tom urgente.
- O Narciso enviou-me assim que recebeu a mensagem do correio. Era a única forma de vos poder passar a informação sem atrair atenções. Não digam nada. Peguem no
vinho e oiçam. - Olhou em redor para se certificar de que não havia ninguém suficientemente perto para o escutar, e prosseguiu quase num sussurro. - Chegaram novidades
de Óstia. A frota da Sicília que trazia cereais foi perdida numa tempestade. Só dois navios sobreviveram, e para isso viram-se forçados a atirar a maior parte da
carga pela borda fora.
Macro lançou um assobio baixinho.
- Que grande porra.
- Nem imaginas - confirmou Sétimo. - O Imperador contava
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com esse cereal para manter a ordem em Roma depois da naumáquia. E agora...
Deixou a frase por acabar, e Cato imaginou rapidamente o caos que tomaria conta das ruas da capital quando a população descobrisse que nada a poderia salvar da fome.
Pegou no odre que um dos escravos lhe estendia. Fez uma pergunta a Sétimo, em voz baixa.
- O que é que o Narciso tenciona fazer?
- Não há muito que ele possa fazer. Será a Guarda Pretoriana quem terá de manter a ordem na cidade a todo o custo. O prefeito Geta sugeriu que poderia regressar
a Roma e convocar o resto da Guarda para começar a preparar a defesa do palácio imperial, do Senado e dos templos. O Cláudio ficará aqui esta noite e assistirá aos
jogos pela manhã, e depois ele e a família imperial sairão sem alarde.
- O que quer o Narciso que façamos? - indagou Macro.
- Por agora, nada. Quer apenas que estejam preparados para agir quando ele mandar.
- Há uma coisa que podemos fazer - contrapôs Cato. - Aliás, que agora temos mesmo de fazer.
- Oh?
- Encontrar os cereais que desapareceram do armazém. - Cato fixou Sétimo nos olhos. - Diz ao Narciso que é mesmo preciso encontrá-los. A Guarda Pretoriana não conseguirá
controlar a populaça muito tempo. Agora, só essa comida pode salvar o Imperador.
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No dia seguinte, assim que a atenção dos espetadores se voltou a prender nos combates entretanto renovados no lago, o Imperador partiu discretamente, acompanhado
apenas pela Imperatriz, Nero e Britânico. A maior parte do séquito permaneceu no pavilhão, disfarçando a ausência. O tribuno Burro deixou a Primeira Centúria da
sua coorte de guarda ao pavilhão, para ajudar ao embuste. O resto dos homens formou uma coluna nas traseiras dos calabouços agora vazios e seguiu por um caminho
pouco usado por entre as colinas até ir dar à estrada principal para Roma. Chegaram às portas da cidade ao início da tarde, e de imediato se aperceberam das medidas
que o prefeito Geta estava a pôr em prática. Os homens das coortes urbanas, que normalmente vigiavam os portões da cidade e recebiam as portagens, estavam agora
encarregues de patrulhar as ruas, e os seus lugares tinham sido ocupados por pretorianos.
No interior da cidade, as ruas estavam calmas e silenciosas, e quase desertas, já que a maior parte da população estava a assistir ao espetáculo no lago Albino.
Os principais cruzamentos eram controlados por homens das coortes urbanas. À medida que a coluna atravessava o fórum e se dirigia para o palácio imperial, Cato reparou
que as portas dos templos estavam fechadas e protegidas por barricadas de madeira, de onde sobressaíam estacas bem aguçadas. Por trás das barricadas viam-se mais
pretorianos. Os portões do palácio imperial estavam protegidos por defesas semelhantes. Assim que a família imperial e a escolta recolheram ao interior, os portões
foram encerrados e as pesadas trancas colocadas nos seus encaixes.
- Porra, isto parece uma fortaleza - comentou Macro, enquanto contemplava os preparativos que decorriam para a defesa do complexo do palácio. Tinham sido colocadas
carroças junto à parede dos dois lados da entrada, cobertas de tábuas de forma a providenciar uma plataforma de onde combater ameaças exteriores. Por baixo delas
viam-se feixes de dardos prontos a usar.
Cato encolheu os ombros.
- Talvez seja, mas os pretorianos nunca conseguirão cobrir todas as entradas. E há uma data de sítios onde é muito fácil trepar os muros. Isto
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tudo é apenas uma demonstração de força. O prefeito acha que assim vai conseguir intimidar as pessoas quando regressarem do lago.
- Quando virem os soldados por todo o lado, vão comportar-se - retorquiu Macro, em tom confiante.
- Acha mesmo?
- Claro. Seria preciso estarem loucos para tentarem enfrentar os pretorianos e as coortes urbanas. Seriam chacinados.
- O problema é que eles estarão mesmo enlouquecidos. A fome a isso os levará, e não terão nada a perder. E a verdade é que os próprios pretorianos também depressa
verão os mantimentos esgotar-se. Ficarão enfraquecidos, e talvez mesmo tentados a juntarem-se à turba. - Cato baixou a voz.
- Quando isso suceder, o verdadeiro poder em Roma estará nas mãos de quem controlar os cereais.
Contemplou os preparativos que decorriam em redor e avistou mais soldados ao longo da encosta do Palatino, dispostos pelas varandas e pelos terraços ajardinados.
O panorama provocou-lhe um pensamento perturbador.
- Isto até pode parecer uma fortaleza, mas também pode ser facilmente usado como uma prisão, ou uma armadilha.
Macro virou-se para ele.
- O que é que queres dizer?
- A família imperial fica cercada pelas tropas do prefeito Geta. O Senado foi selado, e aposto que vai ser imposto um recolher obrigatório até que a crise seja ultrapassada,
de uma forma ou de outra. Pode acontecer qualquer coisa ao Imperador e à sua família, e o Geta pode perfeitamente contar a história que lhe apetecer ao mundo exterior.
E assim que os cereais escondidos começarem a ser distribuídos, as pessoas ficarão tão reconhecidas que aceitarão quem quer que seja que os salve da fome. Quando
o Geta levantar o recolher obrigatório, Roma pode muito bem ter um novo Imperador, ou até nenhum, se calhar.
Macro pensou por momentos antes de responder.
- Miúdo, lá estás tu outra vez assustado com a própria sombra. Isto só se deve à perda do comboio da Sicília naquela tempestade. Os Libertadores decerto que não
previram isso.
- Não, mas estão prontos a aproveitar a oportunidade, se ela se lhes deparar. Acredite, Macro, se eles têm realmente a intenção de agir, vão fazê-lo em breve. Muito
em breve.
Cato olhou para onde o tribuno Burro conferenciava com os seus oficiais. Por trás deles surgiu o prefeito Geta, vindo de uma pequena passagem que desembocava sob
a larga escadaria que levava ao imponente pórtico na entrada principal do palácio. Burro e os outros oficiais puseram-se em
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sentido quando deram pela aproximação do comandante. Geta soltou uma rápida série de ordens e regressou ao interior do palácio, enquanto o grupo se desfazia. Tigelino
atravessou o terreiro até chegar junto da sua centúria e os chamar à atenção.
- Homens, o prefeito acha que vai haver problemas nas ruas da capital nos próximos dias. O motim a que assistimos há dias foi apenas uma pálida amostra do que pode
estar para acontecer agora. As reservas de comida na cidade estão praticamente esgotadas. Aqui no palácio, o que existe mal chegará para nos alimentar a meias-rações
durante dois dias. Portanto, a partir desta noite, as rações vão ser reduzidas a um terço do normal.
Ouviu-se um gemido da parte de alguns homens, e alguns murmúrios zangados, até que Tigelino respirou fundo e lançou uma reprimenda.
- Silêncio na porra das fileiras! Gosto tanto de ver a minha ração cortada como vocês, mas temos ordens a cumprir, e o nosso dever é proteger o Imperador! A Sexta
Centúria vai ocupar posições na zona dos aposentos imperiais. Seremos a última linha de defesa, para lá daqueles nojentos bárbaros germanos da guarda pessoal. -
Fez uma pausa para que o significado daquelas palavras se entranhasse na mente dos homens. - Todos estarão vigilantes. Todos cumprirão as suas ordens sem as questionar.
Sem as questionar, senhores. Este é um tempo perigoso, cheio de incertezas. E quando chegar ao fim, a única coisa que terá verdadeiramente importância será o facto
de termos cumprido o nosso dever. O optio Fúscio conduzir-vos-á aos vossos postos. A coorte será substituída ao alvorecer. É tudo.
Tigelino entregou ao optio uma pilha de tábuas enceradas e afastou-se, "enquanto Fúscio dava um passo à frente e inchava o peito para dar a ordem.
- Sexta Centúria, sigam-me!
À medida que os guardas marchavam para os seus postos, passando junto ao centurião, Tigelino colocou-se por momentos ao lado de Cato e Macro.
- Estejam prontos a agir quando eu der a ordem. Seja ela qual for. Entendido?
- Sim, senhor - afirmou Cato, e Tigelino voltou a afastar-se da coluna e ficou a ver o resto dos homens a passar.
O optio levou os homens pela ampla escadaria acima e pela entrada principal para o palácio. Os preparativos ordenados pelo prefeito eram evidentes por todo o lado:
postos de controlo à entrada de cada sala de audiências ou de banquetes, e às portas que davam para as acomodações de servos e escravos. Algumas portas tinham mesmo
sido trancadas e barricadas com pesadas mobílias. Os aposentos imperiais ficavam na parte mais elevada do Palatino, com vista para o fórum. Englobavam uma série
de quartos, estúdios de trabalho e terraços ajardinados. Havia uma única entrada para
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o conjunto no interior do palácio, mas um homem determinado podia facilmente escalar os muros exteriores, e Fúscio dispôs alguns homens para contrariar essa possível
ameaça. O optio consultou as tábuas que Tigelino lhe entregara e apontou para Macro.
- Cálido! Tu e o Capito ficam aqui, no varandim do estúdio do Imperador.
Macro assentiu e subiu ao lado de Cato os degraus que levavam à varanda rodeada por colunas. Fúscio acenou aos outros homens, conduzindo-os para o maior dos terraços
ajardinados do palácio. Enquanto se afastavam, Macro virou-se para Cato.
- A que propósito veio aquela conversa do Tigelino? Claro que obedecemos às ordens, é isso que importa. - Macro encheu as bochechas de ar. - Parece que afinal és
mesmo capaz de ter razão. O Imperador está em perigo.
Nesse instante escutaram-se passos no estúdio, e os dois colocaram-se rapidamente em sentido, de costas apoiadas aos pilares que ladeavam a porta que dava acesso
ao interior. Pelo canto do olho, Cato avistou Cláudio a coxear até à secretária, onde se sentou num banco acolchoado. Dois dos guardas pessoais, germanos, colocaram-se
silenciosamente nas suas posições, de cada lado e pouco atrás do seu senhor. À frente da secretária estavam o prefeito Geta, Narciso e Palias, e ainda Agripina.
Narciso deitou uma olhadela aos homens que guardavam a porta para a varanda, e por um momento a surpresa estampou-se-lhe nas feições esguias, até que obrigou o rosto
a assumir a habitual expressão neutra.
Cláudio designou Geta com um gesto do dedo.
- Prefeito, apresenta o teu r-relatório.
- Sire, coloquei seis coortes no recinto do palácio. Três estão de serviço até amanhã de manhã, as outras três entrarão ao serviço nessa altura. As outras coortes
assumiram o controlo dos portões da cidade, do fórum e do Senado. Ordenei que os trabalhos do Senado fossem interrompidos até que esta crise seja ultrapassada.
- Oh? - Cláudio olhou-o com ar de suspeita. - E em nome de quem é que deste essas ordens?
- No vosso, sire. Nessa altura ainda não tinha regressado à cidade. Pareceu-me melhor agir sem demora, em vez de arriscar algum atraso. Para segurança dos senadores.
Cláudio considerou a justificação e assentiu.
- Muito bem, mas não quero que os meus oficiais voltem a tomar d-d-decisões desse género em meu nome. Entendido?
- Sim, sire. As minhas desculpas.
Deu-se uma pausa incómoda, até que Cláudio voltou a falar.
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- Bem, senhores, o que vamos nós fazer? Há um m-milhão de pessoas em Roma, e quase nada com que as a-a-alimentar. Espero que tenham sido enviadas ordens a todas
as povoações em cento e cinquenta qui-quilómetros em redor para que nos enviem toda a comida que possam dispensar?
Narciso anuiu.
- Sim, sire. Enviei os mensageiros assim que soube da perda do comboio naval. Todos levavam ordens claras para requisitarem os mantimentos e formas de os transportar
para Roma.
- Atrevo-me a dizer que também o fizeste em meu nome.
- Claro, sire - retorquiu Narciso. - Como disse o prefeito, não havia tempo a perder.
- Estou a ver. - Cláudio fungou. - Ao que parece, o governo de R-R-Roma pode funcionar perfeitamente sem a minha presença.
Deu-se outro silêncio constrangido, que só o Imperador se atreveu a quebrar.
- Seja como for, mesmo com a comida requisitada, nunca chegará em quantidade suficiente para salvar a p-populaça da fome. Não é assim?
- Infelizmente, sire, é - reconheceu Narciso. - E é por isso que deve abandonar Roma com toda a família imperial, até que esta crise seja ultrapassada.
- Deixar Roma?
- Sim, sire. Assim que for possível. Antes que a turba regresse da naumáquia e saiba o que sucedeu à frota que trazia os cereais. Quando a notícia se espalhar, haverá
pânico, e tornar-se-á difícil manter a ordem. A família imperial ficará em perigo.
- Disparate - interrompeu Geta. - Os meus homens tratarão de garantir a proteção adequada ao Imperador e a toda a sua família.
- Comandas nove mil homens - lembrou Narciso. - A desproporção numérica é de cem para um. Nem a Guarda Pretoriana pode lidar com tamanha desvantagem.
- Podemos tentar. Deixa-os ensaiar a entrada no palácio, e veremos o que sucede.
- Se conseguirem trepar as muralhas, é francamente óbvio o que sucederá. Massacrarão todos os que encontrarem. Sem olhar ao seu estatuto social. E é por isso que
a família imperial deve ser levada para um lugar seguro. Fora da cidade.
Palias abanou a cabeça.
- Isso está fora de questão. O Imperador tem de ficar na cidade, para dar um exemplo ao povo. Para, em termos figurados, partilhar as suas dificuldades durante esta
crise. Sire, se deixar Roma, dirão que o povo foi abandonado à sua sorte. Perderá o seu respeito, o seu amor e a sua lealdade.
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Perdas que poderão levar anos a recuperar, se isso se revelar de todo possível. Na qualidade de um dos mais próximos dos vossos conselheiros, sire, insisto em que
fique no palácio, sob a proteção do prefeito Geta e dos seus garbosos soldados. Com eles por perto, não posso crer que exista realmente perigo para vós, nem para
a vossa família.
Narciso deu meio passo em frente.
- Sire, vejo-me obrigado a protestar.
- Basta! - Cláudio ergueu a mão. - N-Narciso, cala-te um bocadinho. Tenho de pensar. - Coçou o cabelo grisalho e desalinhado. Manteve-se em silêncio por momentos
e olhou para a esposa. - E tu, minha q-querida, o que pensas? O que devo fazer?
Agripina rodeou a secretária com passos ligeiros e ajoelhou-se aos pés do Imperador, pegando-lhe nas mãos.
- Meu adorado esposo, Palias tem razão. O povo olha para ti. Não podes fugir quando eles mais precisam de ti.
- O Imperador não foge - interrompeu Narciso. - Limita-se a exercer alguma prudência, para o bem de Roma. O que lucraria o Império se o Imperador colocasse a sua
vida, e a da sua família, em perigo?
Agripina virou-se e enfrentou Narciso com gritante desdém.
- É a vida do Imperador que tentas proteger, ou a tua?
Cato reparou na forma como Narciso engolia a fúria e ripostava friamente à Imperatriz.
- Senhora, devotei a minha vida ao serviço do Imperador. A sua segurança tem sido a minha constante preocupação. Os meus motivos são altruístas. - Fez uma pausa
e acenou na direção de Palias. - Não consigo imaginar qual a razão para que o meu distinto colega insista em colocar em perigo o Imperador. Palias, meu amigo, porque
queres de forma tão determinada minar tudo o que me tenho esforçado para conseguir, para manter o nosso amo a salvo dos seus muitos inimigos?
O outro liberto lançou um olhar gelado a Narciso antes de responder em tom neutro.
- Somos meros conselheiros de sua majestade imperial. Não concebo emitir uma opinião de forma tão veemente como o fazes. A decisão será tomada pelo Imperador e por
mais ninguém.
- Muito bem dito! - Agripina sorriu. Virou-se para o marido e olhou-o com uma expressão de adulação. - Meu adorado, é a ti que cabe a última palavra. Deveremos ficar
e enfrentar o mesmo perigo que ameaça todo o nosso povo, ou deveremos fazer o mais sensato, como sugere o prudente Narciso, e fugir da cidade até que a ameaça seja
afastada?
Cláudio olhou-a com afeição e acariciou-lhe o rosto com a mão. Agripina virou-se ligeiramente para a beijar, e cerrou os lábios sobre um dedo
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do Imperador. Os olhos deste quase reviraram de prazer, antes de recolher a mão.
- Já decidi. Fi-Fi-Ficaremos em Roma. É o que deve ser feito. Pelo menos por esta noite.
Cato reparou que os ombros de Narciso se abatiam ligeiramente ao escutar aquelas palavras. Palias esforçou-se por não celebrar, e Geta cruzou as mãos atrás das costas,
um dos polegares a esfregar furiosamente a palma da outra mão.
- Belas palavras, meu esposo - elogiou Agripina, enquanto se levantava. - Corajosas. Mas apenas a bravura nunca sustentou um homem. Não comeste nada durante todo
o dia. Vem, vais precisar de todas as tuas forças. Vamos jantar juntos na minha câmara. Vou mandar que tragam alguma comida. Talvez o teu prato favorito?
- Cogumelos! - Cláudio sorriu. - Agripina, és tão boa para mim.
Levantou-se e endireitou as costas enquanto enfrentava os outros homens presentes na sala.
- Já d-decidi. Que se saiba que o Imperador fica em Roma.
Geta, Palias e Narciso inclinaram as cabeças e afastaram-se para deixar passar o casal imperial que, de mãos dadas, saía do compartimento. Geta fez menção de os
seguir. Os dois libertos seriam os últimos a sair, tal como determinava o protocolo. Enquanto o prefeito da Guarda Pretoriana saía, Palias virou-se para Narciso
com um ar divertido mas frio.
- Se fosse a ti, seguia o teu próprio conselho, e saía de Roma enquanto podia.
- O quê, e deixava a vida do Imperador nas tuas mãos, e nas dos teus amigos? - Narciso pronunciou as palavras em tom suficientemente alto para que Cato e Macro o
escutassem.
Libertadores. É para eles que trabalhas. Tu e o Geta. Que recompensa te prometeram eles?
Palias abanou a cabeça com ar de gozo.
- Estás a ladrar à árvore errada, meu amigo. Não tenho nada a ver com os Libertadores. Sei que não significa muito para ti, mas juro-o pela minha própria vida.
- Mentiroso.
- Não. - Palias aproximou-se de Narciso e espetou-lhe um dedo no peito. - Viverás para comprovar a verdade do que te digo; mas não contes em sobreviver muito depois
disso. - Fez uma pausa e passeou o olhar pela figura do secretário imperial. - Foi um prazer trabalhar ao teu lado durante todos estes anos, Narciso. Ou, pelo menos,
durante a maior parte deles. Servimos bem Cláudio, mas nenhum Imperador é eterno. A única
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questão é portanto quem lhe sucederá. Fizeste a tua escolha sobre quem servir depois, e eu fiz a minha. Adeus, Narciso. - Estendeu-lhe a mão, mas o secretário imperial
ignorou-lhe o gesto. Palias abanou a cabeça com tristeza. - Preferia que nos separássemos como amigos. É uma pena que assim não possa ser. Adeus.
Palias virou-se e saiu do estúdio. Narciso ficou a vê-lo afastar-se com indisfarçável ódio. Quando o som dos passos do rival se desvaneceu, virou-se para a varanda
e aproximou-se de Cato e Macro.
- Ouviram?
Cato assentiu.
- Todas as palavras.
- Tencionam assassinar Cláudio, tenho a certeza. E o louco acaba de se entregar nas mãos dos seus esbirros - comentou Narciso com azedume. - Aquela putéfia tem-no
completamente embeiçado. A ele e àquele cabrão do Palias. Temos de agir, e depressa. - Interrompeu-se e olhou para eles com espanto renovado. - Como é que vocês
os dois acabaram aqui colocados?
- O Fúscio tinha uma lista - explicou Macro. - Foi o Tigelino quem lha deu.
- O Tigelino? - O secretário imperial olhou-o com alarme. - Está a colocar os seus homens o mais próximo possível do Imperador. Ele deu-vos alguma instrução especial?
- Disse-nos que devíamos estar a postos para agir.
- Mais nada?
Cato confirmou.
Narciso esfregou o queixo, perturbado.
- Os Libertadores têm homens em posição, em redor do Imperador. O prefeito e alguns dos seus oficiais estão envolvidos na conspiração, e tomaram o controlo do palácio.
Atrevo-me a dizer que vão agir em breve. Talvez esta noite mesmo. Decerto que não depois do meio-dia de amanhã.
- Porquê esse limite? - indagou Macro.
- Porque o espetáculo já terminou. A maior parte da populaça vai passar a noite ainda nas margens do lago. Amanhã pela alvorada pôr-se-ão a caminho, e chegarão a
Roma por volta do meio-dia. Se não houver aqui comida à espera deles, nada os impedirá de dar largas à sua fúria. Penso que os Libertadores esperam já ter o poder
nessa altura. O Imperador estará morto, e então farão surgir todo o cereal que têm açambarcado em segredo. A turba ficará grata a quem quer que lhes dê comida. -
Narciso olhou para eles com um sorriso cínico. - E com a população ganha para a sua causa, os Libertadores começarão a afastar todos os que foram leais ao anterior
regime. E nesse caso, é como se eu já estivesse morto. Eu e o Britânico.
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- E porque não os outros? - inquiriu Cato. - Não terão vontade de se livrar também da Agripina e do Nero?
- Porquê? - respondeu Narciso, amargurado. - O que eu acho é que eles estão envolvidos neste plano. Senão, porque é que a Agripina convenceu o Imperador a ficar
no palácio? Agora têm o Cláudio mesmo onde o querem.
Cato estava a pensar.
- Isso não faz sentido. A Agripina não pode estar envolvida na conspiração dos Libertadores.
- Porque não?
- Ela estava presente quando os Libertadores atacaram a comitiva imperial no fórum. Eles tentaram e quase conseguiram matar-lhe o filho.
- Cato relembrou o incidente, e mais uma vez reparou em vários detalhes difíceis de explicar, mas prosseguiu com a mesma linha de pensamento. - E a seguir o Nero
falou comigo. Disse que, quando se tornasse Imperador, me haveria de recompensar. Pareceu-me bastante certo desse facto.
- E então?
- Se ele acredita que se vai tornar Imperador, só pode ter sido a Agripina a meter-lhe a ideia na cabeça. Disse-o você mesmo, ela está a usá-lo para realizar as
suas próprias ambições. E, nesse caso, por que raio haveria de conspirar com os Libertadores?
- Ele tem uma certa razão - comentou Macro.
Narciso silvou, frustrado.
- Muito bem. Mas se ela não faz parte da conspiração dos Libertadores, porque estará tão empenhada em manter Cláudio em Roma, onde o perigo é maior? Só pode haver
uma razão para isso. Ela elaborou a sua própria conspiração. Trabalha com Palias para afastar o Imperador e colocar no trono o seu próprio filho. Não é segredo nenhum
que tem feito tudo o que pode para vergar Cláudio à sua vontade. Primeiro seduziu-o, convenceu-o a casar com ela, a adotar o seu filho e por fim a fazer de Nero
o herdeiro do trono.
- Isso faz mais sentido - assentiu Macro. - O que quer dizer que enfrentamos não uma, mas duas conspirações. Os Libertadores querem eliminar toda a família imperial,
enquanto a Agripina quer apenas substituir o Imperador pelo filho. Assim já começo a perceber.
Fazia sentido, considerou Cato, à exceção de um pequeno detalhe irritante.
- Tem razão. Ela e o Palias têm um motivo, e os meios, se conseguirem dar o seu golpe antes dos Libertadores, e assim desarmá-los. Mas há algo que continua a não
se encaixar na história. Uma coisa que ainda não consegui explicar de todo.
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- Desembucha então de uma vez por todas, homem - incitou Narciso, irritado. - Não temos muito tempo. Temos de agir. Qual é o problema?
- É sobre aquele dia no fórum, quando os Libertadores atacaram a comitiva imperial. O líder dos atacantes, o Céstio, afastou o Britânico para o lado e resolveu atacar
o Nero.
- E então?
- Porque é que os Libertadores deixariam passar a oportunidade de liquidar um dos filhos do Imperador? Teria sido obra de um momento, assassinar o Britânico antes
de atacar o Nero. Porque é que o Céstio terá poupado o Britânico?
- Não faço ideia - ripostou Narciso, irritado. - Talvez não o tenha reconhecido. Cato, agora não temos tempo para isso. Mais tarde poderemos discutir todas as hipóteses.
Agora, temos é de salvar o Imperador. Temos de arranjar forma de o proteger. Não sei até que ponto é que a conspiração está disseminada nas fileiras dos pretorianos.
Sabemos do Geta, do Sínio, do Tigelino, e tenho mais alguns nomes de suspeitos, mas é tudo. Pode haver muitos mais. As únicas tropas em que podemos realmente confiar
são os guarda-costas germanos. Vou convocá-los a todos, e colocá-los em torno do Imperador, de forma a impedir qualquer assassino de se aproximar.
- Isso não chegará para o salvar. Os Libertadores, e o Palias - partindo do princípio de que tem razão quanto ao que ele e a Imperatriz congeminam - não são as únicas
ameaças. Temos também de conseguir controlar a populaça, ou ela acabará por ter sucesso onde todos os conspiradores falharem.
- Mas para isso temos de lhes dar comida - ripostou Narciso, tenso.
- Não posso fazê-la surgir a partir do nada.
- Pois não - admitiu Cato.
Macro fungou.
- Seja como for, estamos profundamente enterrados na merda. Como eu sempre disse. A situação cheira mal à distância.
Cato olhou para o amigo.
- É mesmo isso - murmurou. - Só pode ser isso.
- Do que é que estás para aí agora a falar, miúdo?
- O Céstio. Lembra-se quando demos de caras com ele e os seus homens daquela primeira vez? Na taberna?
- Sim, claro. E então?
- Lembra-se do cheiro deles?
Macro anuiu.
- Cheiravam a merda.
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- Precisamente. Cheiravam a merda - confirmou Cato, com um brilho de excitação no olhar. - E onde teriam eles ido arranjar tal perfume? Ao esgoto, claro. Para ser
mais preciso, à Cloaca Máxima, que passa mesmo por baixo do coração da cidade antes de desembocar no Tibre.
- Muito interessante. E então, se o Céstio e os amigos gostam de andar a passear no meio dos cagalhões? Em que é que isso nos ajuda?
- Macro, pense bem. Onde é que a Cloaca Máxima desagua no Tibre?
- Perto do Boário. Aliás, não muito longe daquele armazém do Gaio Frontino.
- Mesmo ali ao lado, de facto. - Cato não pôde deixar de sorrir perante a astúcia dos conspiradores. - Já deve estar a ver a marosca.
Macro olhou para ele, e depois para Narciso.
- Do que é que ele está a falar?
Narciso afagou o queixo.
- Parece-me que estou a perceber.
- Não há outra possibilidade - confirmou Cato. - Sabemos que os cereais foram levados para aquele armazém. Nalgum momento entre a compra e a altura em que o vasculhámos,
foram levados para outro local. Tenho andado a dar voltas à cabeça, a pensar como é que isso terá sido possível sem dar nas vistas. Agora já sei. Deve haver no recinto
um acesso aos esgotos. E foi por lá que levaram os cereais sem que ninguém os visse. Provavelmente por isso é que o Céstio e os seus homens foram até à taberna naquela
noite: para festejar o fim do trabalho. - Virou-se para Narciso, com os olhos brilhantes. - Temos de voltar ao armazém. Preciso de alguns homens de confiança. Não
podem ser pretorianos. Terão de ser alguns germanos. Dê-me cinquenta homens e algumas tochas, e havemos de encontrar os cereais.
- Não sei se os possso dispensar. São precisos aqui.
- Se não nos apoderarmos daquele cereal todo, pouca importância terá o sítio onde estiverem.
O secretário imperial debateu-se com a decisão. Acabou por assentir.
- Muito bem; mas não podes levar mais de vinte homens. Nem mais um. E vais precisar de um oficial. - Pensou rapidamente. - O centurião Plauto é de confiança. - Narciso
olhou para o aspeto do céu sobre a cidade. A luz desaparecia rapidamente, e no horizonte crescia uma mortiça neblina avermelhada. - Será melhor despacharem-se. E
levem o Sétimo convosco. Deixem aqui o equipamento. - Abanou um dedo na direção dos dois amigos. - Espero bem que tenhas razão quanto a isto. Se acontecer alguma
coisa ao Imperador por não haver homens suficientes para o guardar como deve ser, serás tu o responsável, Cato.
- Obrigado pelas palavras de encorajamento - replicou este, pouco
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satisfeito. - Há mais uma coisa. Como é que vamos sair do palácio sem que alguém dê o alarme?
Narciso não escondeu um ligeiro sorriso.
- Há uma forma de o conseguir. Não vos passou pela cabeça que os imperadores tivessem construído um palácio destes sem o dotarem de uma saída secreta, pois não?
Vai dar ao pé do Circo Máximo. O Calígula usava-a de vez em quando, quando queria ir às corridas incógnito. Nunca foi revelada aos pretorianos, para evitar que eles
o mantivessem debaixo de olho quando queria dar uma escapadela.
Macro soltou uma risada.
- Então não lhe serviu de muito, o segredo.
- Será melhor mostrar-nos essa passagem, então - disse Cato. - E os germanos que se encontrem connosco lá, armados e prontos. - Acenou na direção do pôr-do-sol.
- Parece-me que nos aguarda uma longa e sangrenta noite. Só os deuses sabem o que nos trará a alvorada.
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- Para a próxima, não afies tanto a língua quando alguém te interpelar. - Cato sorriu, agradado, enquanto dava a provar ao guarda do armazém um pouco de pressão
com a ponta da espada no queixo.
O homem parecia confuso, além de assustado.
- Senhor, desculpe. N-Não percebo.
- Não te lembras de mim, não é? - Cato fez uma careta ao perceber que o seu breve momento de prazer não tinha razão de existir. Não tinha nada a ganhar ao exercer
uma vingança mesquinha sobre um homem que tinha completamente olvidado a ofensa que cometera. - Não interessa. Diz-me antes se alguém entrou ou saiu deste armazém
desde que estás de guarda.
O outro olhou em redor, contemplando o grupo de matulões que se tinham aproximado dele em botas de sola macia enquanto ele dormitava e o tinham imobilizado e espetado
contra a parede do armazém de Gaio Frontino. Engoliu em seco, nervoso, e deixou que os olhos se virassem para Cato.
- Será melhor seres honesto, se queres viver - avisou este, ameaçando rasgar-lhe a pele com a ponta da lâmina.
- Senhor, só entrou um ho-homem.
- Aposto que foi o Céstio - disse Macro, ladeando Cato. - Que aspeto tinha? Um tipo grande? Ou um pequenote?
O guarda contemplou Cato de alto a baixo.
- Senhor, era mais ou menos da sua altura.
- Então não era o Céstio. - Cato afastou ligeiramente o gládio do pescoço do homem. - Há quanto tempo foi isso?
- Há não mais de uma hora, diria eu.
- E mais ninguém?
- Não, senhor. Estou certo disso.
- Muito bem, então vens connosco. Macro, abra o portão.
Macro assentiu e dirigiu-se para ao pé da pesada lingueta de ferro, levantando-a com o mínimo de ruído possível. Graças ao recolher obrigatório em vigor, não havia
mais ninguém no cais, mas Cato não queria
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correr o risco de alertar alguém no interior do armazém. Macro entreabriu o portão, só o suficiente para entrarem em fila indiana. Cato deixou passar Sétimo, o centurião
e cinco dos germanos antes de empurrar o guarda para a passagem.
- Nada de fazer barulho ou de tentar escapar, percebido?
O homem anuiu com rapidez e Cato empurrou-o para dentro. O pátio parecia tão vazio como havia alguns dias. O crescente lunar iluminava fracamente a cena, e o centurião
e os seus homens revistaram rapidamente cada um dos compartimentos. Estavam limpos, como anteriormente. Não havia sinais de vida.
- Procurem algum alçapão ou alguma tampa de esgoto - ordenou Cato. - Tem de estar aqui algures.
O centurião e o seu grupo procuraram de novo, até que o oficial regressou para junto de Cato.
- Nada.
- Maldição. - Cato soltou o guarda. - Diz a um dos teus homens para o vigiar. Ele que não solte um pio. Se ele tentar dar o alarme, ou fugir, o teu homem que lhe
corte as goelas.
O centurião anuiu e chamou um dos guardas, dando-lhe ordens numa mistura de latim aldrabado e da sua áspera língua gutural. Cato virou-se para Macro e Sétimo.
- Tem de existir por aqui alguma maneira de ter acesso aos esgotos. Temos de a procurar até a encontrar.
- Ou não - comentou Macro. - Ou até ficarmos sem tempo. Cato, enfrenta a situação, é quase impossível.
- Não, não é - ripostou o jovem, determinado. - Tem de estar aqui. Vamos procurar.
Afastou-se dos outros e começou um circuito do pátio, examinando com todo o cuidado o chão por baixo dos carros de mão. Sétimo aproximou-se e falou-lhe em surdina.
- E se existir uma parede falsa?
- O que é que queres dizer?
- Imagina que o Céstio e os seus homens abriram passagem através das paredes até ao armazém do lado e depois fizeram uma parede falsa para disfarçar a parte arruinada?
- Não, isso não resultaria. Se tivessem feito isso, tinham de ter alugado outro armazém contíguo a este, e teríamos sabido disso. E além disso, isso não explica
o cheirete que se soltava do Céstio e do seu bando.
- Estás a partir do princípio de que isso só podia vir dos esgotos. Mas pode haver outras explicações.
Cato deteve-se para encarar o agente de Narciso.
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- Como por exemplo?
Sétimo tentou pensar por momentos, mas acabou por encolher os ombros.
Cato anuiu.
- Pois, era o que eu pensava. Agora, se já terminaste, vamos é prosseguir com a busca.
Sétimo dirigiu-se na direção oposta, e Cato continuou a percorrer o perímetro do pátio. Não havia qualquer indício da existência de uma passagem dissimulada na parede,
e começava a percorrer a parede interna quando o olhar se viu atraído para a pilha de sacas velhas que ocupava o canto mais distante. Um raio de esperança encheu-lhe
o espírito, e avançou para lá. Ajoelhou-se e começou a afastar as sacas. Macro foi juntar-se a ele.
- Estás a divertir-te?
- Dê-me aqui uma ajuda.
Trabalharam metodicamente, afastando as sacas até que, mesmo antes de chegarem ao ângulo da parede, Macro se deteve, olhou para baixo e afastou apressadamente mais
alguns sacos.
- Aqui. Encontrei-a.
Cato largou a saca que tinha na mão e foi agachar-se ao pé do amigo. No meio das lajes aos pés de Macro via-se uma pequena pega de madeira. Macro tentou afastar
mais algumas sacas, mas estas não se moveram. Com um grunhido, pegou numa ponta ligeiramente levantada e puxou com toda a força. Ouviu-se um ruído como se algo se
estivesse a rasgar, o material cedeu, e Macro quase caiu para trás, enquanto praguejava livremente.
Cato ajoelhou-se para inspecionar o achado mais de perto.
- Muito inteligente. Colaram as sacas ao alçapão para ajudar a esconder a entrada.
Agarrou na pega e deu um puxão experimental. A tampa era pesada, e Cato viu-se obrigado a empregar as duas mãos. Começou a surgir uma abertura com um metro de lado.
Cato virou-se para Macro.
- Ajude-me aqui.
Com Macro a fazer força num dos cantos, abriram completamente a tampa e colocaram-na contra a parede do pátio. Uma escada fixa a um dos lados conduzia à escuridão
absoluta. Não havia sinal de movimento, mas ouvia-se um som fraco de água a correr, e o ar fétido atacava-lhes as narinas.
Cato virou-se e chamou, em voz baixa:
- Sétimo, aqui. Plauto, traz os teus homens.
Os outros encaminharam-se para a abertura e olharam para ela, admirados. Cato deu ordens para que se acendessem tochas. Plauto tirou a pederneira da sacola e começou
a produzir faíscas para atear uma acendalha. Assim que surgiu a primeira labareda, alimentou-a com musgo seco até que
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a chama se tornou mais forte. Fez sinal a um dos homens, que carregava as tochas.
- Passa-me uma.
Aproximou com todo o cuidado o pano embebido em betume que rodeava a ponta da haste de madeira, e manteve-o ali até que o fogo se lhe propagou e a tocha se alumiou
com uma língua de fogo amarela. Pôs-se de pé.
- Vamos acender as outras.
Uma a uma, as tochas ganharam vida, e Cato empunhou uma delas. Disse a Plauto para deixar o guarda do armazém amordaçado e atado, e começou a descer cuidadosamente
para o primeiro degrau da escada. Desceu mais alguns, e à luz da tocha apercebeu-se de que as paredes do poço estavam escoradas por grossas travessas de madeira,
obra sem dúvida de Céstio e do seu bando. Três metros abaixo do solo, o poço alargava-se, e Cato brandiu a tocha para examinar o espaço em redor. As paredes curvas
eram ali de tijoleira que mostrava bem os sinais de idade, e em baixo notava-se o brilho oleoso de um fio de água a correr. A escada desceu mais um metro e oitenta,
e por fim atingiu o fundo. Estava num estreito passadiço que percorria um pequeno túnel. Mal conseguia ficar de pé sob o teto abaulado. Ao lado, um fluxo de esgoto
corria sem cessar, a caminho da Cloaca Máxima. O ar era pesado com o cheiro de excrementos humanos, e Cato retorceu o nariz com nojo.
- O que é que vês? - perguntou Macro lá de cima.
- Há um túnel. Numa direção vai dar ao esgoto. Na outra parece vir do Aventino. Traga o resto dos homens para baixo. Acho que encontrámos o que procurávamos.
Enquanto os outros homens desciam a escada, Cato avançou um pouco no túnel, examinando as paredes e o passadiço. A maior parte dos tijolos estavam cobertos por uma
camada de sujidade, mas havia grandes zonas que pareciam ter sido raspadas, e o mesmo sucedia com o passadiço, que dava o ar de ter sido intensamente usado havia
pouco tempo, de tal forma que se apresentava seco ao toque, sem evidência de lixo acumulado. Atrás dele já escutava os protestos dos germanos pelo ambiente com que
se defrontavam.
- Bonito lugar que descobriste - protestou Macro quando se juntou a ele, com Sétimo. - Adorável fragrância.
Cato fez por ignorar o comentário mordaz e olhou ao longo do túnel. Não havia movimento na zona iluminada pela tocha que segurava, para lá da corrente de esgoto
e da correria de duas ratazanas a fugir dos homens que tinham invadido os seus domínios. Uma delas mergulhou com aparato, e a outra esgueirou-se por um buraco na
base da parede.
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- Achas que algum deles ainda estará por aqui? - perguntou Séitmo, nervoso, enquanto fitava as trevas.
- Um pelo menos. - Cato pôs-se de pé. Virou-se para o centurião Plauto. - Diz aos teus homens que daqui para a frente seguimos em silêncio. Nem um pio, entendido?
- Sim, senhor.
Cato não reprimiu o sorriso que lhe surgiu espontaneamente ao voltar a ser tratado com o respeito devido a um oficial superior. Narciso dissera ao centurião que
lhe devia obedecer, bem como a Macro, quando lhe apresentara os dois pretorianos em simples túnicas brancas e sem qualquer sinal da sua verdadeira patente. Mas ao
que parecia, Plauto reconhecia a sua autoridade e aceitava-a sem questionar, mesmo sem ser informado da verdadeira identidade e posto do jovem. Olhou para trás e
confirmou que os homens estavam prontos para o seguir. O brilho instável das tochas iluminava as paredes húmidas do túnel e a torrente nojenta que transportava bostas
e outras porcarias. Cato levantou a tocha ao alto e fez um gesto com a outra mão.
- Vamos - ordenou quase em surdina.
Avançou lentamente, levemente inclinado quando o teto do túnel se começou a tornar mais baixo e a chama da tocha começou a lamber os tijolos. O esgoto corria a direito
uns cinquenta passos antes de virar para a direita. Cato calculou que deviam estar no limite da área dos armazéns, e que se dirigiam para o bairro do Aventino, um
dos mais pobres da cidade. Cem passos depois, chegaram a uma encruzilhada de onde partia um túnel mais pequeno, com pouco mais de um metro de altura, para a esquerda.
Cato ergueu a mão para deter os homens que o seguiam e examinou o túnel. Não tinha passadiço, e também não havia sinais de qualquer perturbação na sujidade acumulada
nos lados do túnel. Fez um aceno, e a coluna voltou a avançar.
Passaram por outros cruzamentos. Mas em nenhum deles havia sinais de que Céstio e os seus homens tivessem abandonado a galeria principal. Ao fim de uns quatrocentos
metros de penoso avanço, o túnel abria-se numa câmara quadrada. Em cada face lateral desembocava um túnel largo, e na face oposta via-se uma pequena catarata. Na
superfície do líquido tinha-se formado uma espuma asquerosa, e a porcaria revolvida fazia com que o cheiro fosse ali ainda mais pestilento. Um dos germanos tossiu
violentamente, antes de se dobrar sobre si mesmo e vomitar.
- Isso é que nos vai ajudar - comentou Macro, irritado. Olhou em redor. - E agora? Para que lado? Direita ou esquerda?
Cato olhou para ambos os lados por momentos, antes de consultar Sétimo. - Calculo que estejamos perto do Aventino.
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O agente imperial pensou por momentos e anuiu.
- Acho que tens razão.
- Nesse caso, o túnel da esquerda levar-nos-ia para o Palatino, e o outro para o coração do Aventino. Onde será mais provável que o Céstio tenha o esconderijo dos
cereais?
- Duvido que o quisesse esconder nas proximidades do palácio. Como sabes, há nessa área muitos túneis secretos. Não devia querer correr o risco de ir dar a um deles.
O outro túnel parece-me uma aposta mais segura.
- Concordo. Vamos lá espreitar. Macro, venha também. - Cato virou-se para o centurião. - Fiquem aqui enquanto nós reconhecemos o caminho. Se parecer que estamos
na pista certa, mando o Sétimo vir buscar-vos.
- Sim, senhor. Mas não se demore muito, sim? - Plauto fungou. - O ar aqui é mesmo horrível, foda-se.
Cato sorriu e deu uma palmada no ombro do homem, antes de entrar no túnel da direita, seguido por Macro e Sétimo. Felizmente havia ali outro passadiço lateral, o
que os livrou de terem de patinhar pela corrente de esgoto. Cato mantinha a tocha bem levantada e parava de vez em quando para examinar as paredes do túnel, bem
como as lajes do pavimento. Não tinham avançado mais de uns quinze metros quando parou e se virou para os dois homens que o acompanhavam.
- Não, este não é o caminho certo.
- Como é que sabes? - quis saber Macro.
- Não há sinais de alguém ter vindo por este caminho nos últimos tempos. Olhe para as paredes. Intocadas. E o mesmo com o passadiço. - Usou a ponta da bota para
raspar alguma da sujidade acumulada nas pedras. - Deixámos escapar qualquer coisa. Venham, temos de voltar para trás.
De volta à câmara, Cato voltou a olhar em redor, até que a sua curiosidade se deixou prender pela catarata. Rodeou a câmara até se aproximar e a examinar de perto.
O canal que ali precipitava a sua corrente tinha cerca de um metro e oitenta de altura, e o fluxo caía ao longo de uns dois metros e meio para o charco em baixo.
Havia pedaços de imundície dependurados no meio da corrente que se precipitava no vazio. Cato ergueu a tocha até ao nível da corrente, e fez uma careta quando alguns
salpicos o atingiram. Era impossível ver o que havia do outro lado. Mordeu o lábio. Só havia uma forma de comprovar se aquilo de que suspeitava era verdade.
Puxou a tocha para trás e segurou-a em baixo, inclinando o corpo sobre a chama de forma a protegê-la da corrente, embora o calor o queimasse e obrigasse a fechar
os olhos. Respirou fundo e avançou pelo passadiço, que se prolongava para trás da catarata. De imediato a cabeça e os ombros
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sofreram o impacto da água suja e de fragmentos sólidos cuja natureza era melhor nem tentar perceber. Desapareceu da vista dos seus camaradas.
A boca de Macro abriu-se em alarme.
- Foda-se, mas o que está ele a fazer?
Sétimo e os germanos fitavam a catarata em silêncio, à espera de um sinal de Cato. Durante alguns momentos ninguém se mexeu, e o único som que se ouvia era o da
água a precipitar-se, amplificado pelas paredes de tijolo da câmara. Macro não aguentou esperar mais para saber o que se passava com o amigo, pelo que foi rodeando
o compartimento. Fez uma breve pausa à beira da catarata, mas antes que conseguisse resolver-se a meter-se por baixo da chuva de porcaria, qualquer coisa se mexeu
por baixo da cortina imunda, e Cato reapareceu sem a tocha e com os olhos e boca firmemente cerrados, e com uma mão a tapar o nariz para evitar a entrada de água.
Assim que se viu livre da torrente, endireitou-se, cuspiu e abriu os olhos enquanto sorria.
- Encontrei.
Macro olhou-o de cima a baixo.
- Pareces um... Bom, deves saber aquilo que pareces agora. O que há do outro lado? - Fez um gesto com o polegar na direção da catarata. - Para lá do óbvio.
- O melhor será ver por si mesmo. - Cato esticou-se em torno do corpo do amigo, e chamou Sétimo e Plauto. - Venham por aqui!
- Ver por mim mesmo? - Macro abanou a cabeça. - Estás a brincar.
- Não é nada em que não tenhamos estado enterrados antes - brincou Cato. - Pelo menos desta vez não é muito profunda. Vá, venha comigo. Tenha é cuidado com os pés,
porque se escorregar, vai parar ali ao charco. E proteja a tocha. Os outros esperem aqui só mais um bocadinho.
Cato mostrou o caminho e, com um suspiro resignado, Macro seguiu-o de dentes cerrados. A cortina de esgoto líquido fechou-se sobre ele rapidamente, mas logo saiu
do outro lado e viu-se num novo túnel de tijolo que se prolongava por trás da catarata. Cato baixou-se para recuperar a tocha que tinha deixado no solo. Macro tentou
limpar o rosto e avançou uns passos, espreitando para a continuação do túnel. O chão era lajeado, e havia um canal seco no meio, ladeado por dois passadiços.
- Que raio de lugar é este? - interrogou-se Macro. - Se foram o Céstio e os seus rapazes a construí-lo, são muito mais organizados do que eu pensava.
- Duvido que tenham tido alguma coisa a ver com a construção - respondeu Cato. - Já fui dar uma espreitadela ali mais à frente. Há um túnel de acesso à direita e
pouco depois este túnel acaba contra uma parede
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rochosa. O que eu acho é que esta secção de esgoto foi abandonada. Pelo menos até à altura em que o Céstio e o seu bando começaram a usá-la.
- O que te faz pensar que a usam?
- Isto. - Cato mostrou a outra mão e abriu-a, revelando alguns grãos de trigo. - Encontrei-os à entrada do túnel que vem dar a este. Tenho a certeza que foi por
aqui que trouxeram o cereal.
- Então é uma pena. Com certeza que depois de passar por aquele rio de merda está estragado.
- Não. Não foi assim que fizeram. - Os olhos de Cato rebrilhavam.
- Venha aqui e veja.
Conduziu Macro de volta à queda de água, e apontou para o teto. Pela primeira vez Macro reparou numa grande placa de madeira presa aos tijolos por um pesado cravo
aplicado num dos cantos mais próximos à catarata. Na outra ponta tinha uma corrente presa a um gancho no teto. Cato passou a tocha a Macro e desprendeu a corrente,
para depois rodar a placa na direção da catarata. Ao fazê-lo, um barrote bem comprido e sólido precipitou-se no solo, quase lhe acertando nas botas.
- Aha! Bem me parecia que devia haver aqui uma peça deste género.
- Cato assentiu para si mesmo. - Ora bem, esta parte deve ser fácil de perceber. Veja.
Firmou as botas e empurrou a placa para o fluxo, fazendo um esforço para a manter alinhada. A torrente de esgoto líquido começou a passar por cima da madeira, abrindo
um espaço por onde os dois amigos puderam ver as expressões de assombro nos rostos dos homens do outro lado da catarata.
- Pegue no barrote! - disse Cato. - Encaixe-o por baixo da placa. Depressa. Não sei por quanto tempo é que consigo aguentar isto nesta posição.
Macro pegou na trave e manteve-se ao lado de Cato enquanto este encostava uma das pontas à placa e depois encaixava a outra num pequeno entalhe no chão, que parecia
ter sido aberto por alguma razão muito específica.
- Aí está.
Recuaram e ficaram a ver a água a cair pela borda da placa, longe do limite anterior da catarata. Sétimo surgiu na borda do túnel, seguido por Plauto e pelo primeiro
dos germanos.
- Nem te sei dizer como te agradeço teres-te lembrado disso. - Sétimo acenou na direção da placa. - Senão... - Apontou os dois amigos com uma careta.
- Não fui eu que inventei isto - reconheceu Cato. - Foi uma ideia do Céstio e dos seus amigos, para conseguirem levar o cereal por aqui sem
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o molharem naquela água imunda. Simples, mas muito eficaz. - Virou-se para Plauto. - Acho que já estamos muito perto do esconderijo deles. Diz aos teus homens para
empunharem as espadas. Também devemos apagar algumas das tochas. O Cálido, eu e o Sétimo avançamos à frente. Venham atrás de nós, mas devagar. Não podemos denunciar
a nossa presença até termos a certeza do que vamos enfrentar.
Plauto anuiu.
- Estaremos prontos a avançar em força assim que nos der ordem, senhor.
- Ótimo. - Cato pôs a tocha debaixo de água para a apagar e passou-a a um dos germanos, antes de se virar e seguir pelo túnel. Respirou fundo para se acalmar e avançou
com os dois companheiros; o som do patinhar das botas de sola mole era abafado pelo som da catarata, pelo menos até se terem afastado uns trinta metros da câmara.
A luz das tochas desvanecia-se à distância. Cato pôs os dedos contra a parede lateral do túnel e prosseguiu até encontrar uma abertura. Estacou. - Aqui. Para a direita.
- Porra, não vejo nada - resmungou Macro em plena escuridão. - Que ideia parva não trazer nem uma das tochas.
- Seria demasiado arriscado - contrapôs Cato. Não fazemos ideia do que nos espera. É melhor não corrermos o risco de alertar o Céstio.
- Somos de certeza mais numerosos. E aqueles germanos podem não ser os tipos mais brilhantes das redondezas, mas são tesos. Não temos nada a temer do Céstio. A não
ser que ele tenha um pequeno exército escondido por aqui.
- Até pode ter, sabemos lá. Mas estou mais preocupado com a possibilidade de ele fugir. Quero falar com ele, se for possível.
- Porquê? - indagou Sétimo.
- Quero algumas respostas - ripostou Cato, em tom definitivo. - Estamos a perder tempo. Vamos em frente.
Seguiram pelo túnel lateral, apalpando o caminho com uma mão na parede, enquanto testavam o chão com a ponta das botas. O túnel estava seco, e os únicos sons que
se escutavam eram o raspar dos seus pés, o som da respiração, e o passarinhar das ratazanas. Por duas vezes Cato pensou que estava a ouvir alguma coisa mais à frente,
mas de ambas as vezes, quando parou e pediu silêncio aos companheiros, o som também desapareceu. Avançavam lentamente, e Cato temeu que os germanos se precipitassem
e os seguissem de demasiado perto devido à pressa de acabarem com aquela história e saírem dos túneis, de regresso ao ar livre. Olhava para trás com frequência,
e ficou satisfeito por só uma vez ter adivinhado o brilho mais que enfraquecido de uma tocha distante. O centurião Plauto controlava bem os seus homens.
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O que era mais do que Cato podia dizer a respeito da sua imaginação. Cada som que escutava parecia imensamente amplificado, e isso deixava-o dilacerado entre a ansiedade
pelo barulho exagerado que ele e os outros dois homens estavam a fazer e o receio de que os sons pudessem ajudar a ocultar qualquer ameaça escondida na escuridão
que os envolvia.
- Isto não me agrada - murmurou Sétimo. - E se não houver aqui nada?
- Nesse caso, adeus aos cereais para alimentar a população. A turba torna-se violenta, mata o Imperador, e tu e o Narciso ficam sem emprego, amigo - ripostou Macro
num rosnar ácido. - Lembra-te disso, e mantém a boca fechada, sim?
Cato deteve-se de repente. Macro chocou com as costas do amigo antes de perceber o que se passava, e depois foram as botas de Sétimo que escorregaram no solo, até
que por fim chegou o silêncio.
- Oiçam.
A princípio Macro não conseguiu identificar qualquer som significativo. Mas depois reparou no inimitável som de gargalhadas, seguido de um breve espirro, e depois
nada.
Cato virou-se para os companheiros, invisíveis na escuridão de breu que reinava no túnel.
- Sétimo, fica aqui.
- O quê? Sozinho? - O medo na voz do homem era evidente. - Porquê?
- Eu e o Cálido vamos avançar. Quando o Plauto e os seus germanos chegarem aqui, não quero que avancem mais, a não ser que eu dê sinal para isso. Diz-lhe para esperar.
Deu-se uma pausa até Sétimo reagir, com voz trémula.
- Muito bem. Mas não se demorem.
Cato puxou Macro pela túnica e começaram a avançar ainda mais devagar do que tinham feito até ali. Um pouco adiante começaram a ouvir vozes, gargalhadas e um grito
agudo de mulher. Avistaram então uma ligeira centelha de luz, que começou a revelar os contornos do túnel, à medida que descreviam uma curva para a esquerda. Os
dois homens prosseguiram, e depressa tinham luz suficiente para ver por onde iam sem precisar de manter uma mão na parede. Cato levou a mão ao punho da espada e
desembainhou-a com cuidado. Ouviu um leve raspar metálico quando Macro o imitou. Cato agachou-se. Tinha o pulso acelerado e a boca seca. Travou o andamento e parou
ao chegar à esquina do túnel. O som de muitas vozes enchia agora o túnel, e Cato virou-se para fazer sinal a Macro para parar, agora que já se tornara de novo visível.
Avançou um passo e espreitou para o outro lado da esquina.
302

O túnel abria-se para o que parecia um enorme armazém, iluminado pelas chamas de vários braseiros e tochas presas a argolas na parede rochosa. À saída do túnel o
chão estava juncado de pedras soltas. A princípio Cato julgou estar numa câmara construída por mão humana, mas então apercebeu-se de que era de facto uma caverna
alargada pelos homens. As paredes pareciam ter sido esculpidas para aumentar a largura do espaço. As tochas abundantes permitiam perceber todos os detalhes. Ao fundo
da câmara estavam empilhadas inúmeras sacas de cereais, que ocupavam bem mais de metade do espaço, que devia ter uns cem passos de comprimento por quarenta de largo.
De um dos lados havia uma escada que dava acesso a um varandim, que por sua vez conduzia a uma passagem em túnel, forrada a tijolo, que subia e desaparecia nas trevas.
Na entrada mais próxima da gruta viam-se várias mesas e bancos, nos quais se sentavam uns trinta a quarenta homens. Havia também um punhado de mulheres, com túnicas
curtas que mal lhes cobriam os traseiros. As faces estavam polvilhadas de branco, e em redor dos olhos tinham manchas escuras. A um dos lados via-se uma mesa de
maiores dimensões. À cabeceira desta estava Céstio, com uma jovem ruiva de formas generosas sentada ao colo, e a brincar com os caracóis do cabelo do homem enquanto
ele lhe acariciava o seio que se tinha escapado do interior da túnica. Os membros do grupo com aspeto mais duro sentavam-se à volta do chefe, a beber e a trocar
piadas.
Cato fez um gesto a chamar Macro.
- O que é que eles estão a celebrar? - sussurrou Macro, quando admirou a cena que se desenrolava na caverna.
- O que é que acha? Estão sentados sobre uma montanha de cereal, numa cidade à beira da fome. Vão fazer uma fortuna. Ou melhor, alguém a vai fazer, mas eles vão
receber um bom quinhão.
Continuaram a observar em silêncio, até que Macro voltou a falar.
- Parece-me que chegamos para eles. A maior parte só tem adagas. Há algumas espadas, cajados e machados espalhados por ali. Tem um aspeto duro, mas topa-se que estiveram
a beber, e isso vai diminuir-lhes a capacidade de luta.
Cato avaliou atentamente os homens na gruta. Concordava com a avaliação do amigo, mas ainda assim a superioridade numérica estaria claramente do lado de Céstio e
do seu bando. Seria prudente que Narciso fosse informado da existência da gruta e do cereal nela escondido, para o caso de o combate não correr de feição para o
seu lado.
- Muito bem, vamos a isso. Mas temos de enviar alguém para trás com uma mensagem para o Narciso. Por segurança.
Macro encolheu os ombros.
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- Se achas mesmo necessário. Graças àqueles cabrões, vi-me obrigado a passar a noite toda a patinhar na merda. Não me apetece nada ser misericordioso.
- Ainda assim, é melhor mandarmos um mensageiro.
Recuaram da curva do túnel e Cato apontou para onde um ténue brilho indicava a posição de Sétimo e dos germanos.
- Traga-os para aqui, mas veja se vêm em silêncio, e tratem de apagar as tochas. Somos menos, precisamos de usar toda a vantagem da surpresa.
Macro anuiu e virou-se para recuar pelo túnel. Cato ficou a vê-lo por instantes e depois regressou à esquina. Fixou o olhar em Céstio, determinado a capturá-lo com
vida. Não ia ser fácil, refletiu. O homem era um poderoso assassino, que decerto lutaria até à morte se tal lhe fosse permitido. Mas a verdade é que só Céstio poderia
responder à questão que lhe assolava o espírito desde que se tinham cruzado pela segunda vez, quando da emboscada no fórum.
O regresso de Macro, acompanhado pelos germanos, foi anunciado por um restolhar de pés, e Cato virou-se no preciso momento em que se extinguia o último fulgor alaranjado
no túnel, quando a derradeira tocha foi apagada. Os homens emergiram da escuridão e Macro indicou-lhes que formassem uma linha. Os germanos avançaram silenciosamente,
escondendo-se por trás das rochas. Sem fazer barulho, empunharam as espadas e esperaram agachados pela ordem de ataque. Cato recuou uns metros até à entrada do túnel
e elaborou rapidamente um relatório oral para Narciso. O germano designado para a tarefa assentiu enquanto Plauto traduzia e lhe passava uma caixa de pederneira
e uma tocha. O homem virou-se e embrenhou-se de novo na escuridão. Pouco depois avistou-se ao longe uma breve luz quando ele provocou faíscas uma e outra vez, até
que um brilho começou a crescer nas trevas. Este afastou-se rapidamente, à medida que o homem progredia pelos túneis, regressando ao armazém no Boário.
Cato avançou de novo para se juntar a Macro, agachado por trás de um penedo a meio da linha de ataque. Respirou fundo para acalmar os nervos e agarrou com força
o punho da espada.
- Prontos?
- Como nunca. Vamos a eles.
Cato fletiu os membros, olhou para a esquerda e para a direita, para verificar se os homens estavam atentos. Respirou fundo mais uma vez, e lançou um brado:
- Sigam-me!
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27

Antes que o eco do seu grito se esvaísse por entre as paredes da caverna, Cato saltou sobre as pedras à sua frente e correu na direção dos homens e mulheres que
ocupavam as mesas. Macro soltou um urro ensurdecedor que ainda assim foi imediatamente apagado pelo coro de gritos selvagens dos germanos quando estes carregaram
por sua vez. As gargalhadas e conversa entretida pelo vinho de Céstio e dos seus homens interromperam-se abruptamente quando depararam com os invasores barbudos
a correr na sua direção, de espadas em riste e a soltar gritos de guerra bárbaros. Por momentos ficaram demasiado espantados para conseguirem reagir. Mas o feitiço
acabou por se quebrar, e Céstio empurrou a mulher que tinha ao colo para longe e pôs-se em pé, enquanto desembainhava a sua espada curta.
- Foda-se, não fiquem aí especados! Peguem nas vossas armas e defendam-se! - gritou.
Cato corria diretamente contra Céstio, que era bem visível acima das cabeças dos seus homens, quando um homem atarracado, de feições escuras e braços peludos, se
interpôs no seu caminho, baloiçando um pesado cacete com pregos cravados na ponta. A ranger os dentes, o homem lançou-o num arco selvático dirigido à cabeça de Cato.
A ponta do cajado, com os seus letais espinhos, assobiou pelo ar e Cato viu-se obrigado a encolher-se, deixando passar a arma a poucos centímetros do seu escalpe,
o que o fez sentir uma ligeira corrente de ar. O homem grunhiu quando a outra ponta do cajado lhe bateu com força no ombro. Cato aproveitou para lançar a espada
em ângulo para cima, e a ponta irrompeu pela túnica do homem e rasgou-lhe os músculos que envolviam as costelas. Mas em vez de recuar com a surpresa e a dor, como
Cato esperava, o homem limitou-se a reagir com um urro de fúria, uma consequência de estar meio anestesiado pelo vinho. Voltou a fazer rodar o cacete num contragolpe
malévolo. Desta vez Cato deu um passo atrás, saindo do alcance da arma e deixando-a passar em frente ao rosto, até acabar por atingir a cabeça de um dos companheiros
do homem que se tinha aproximado a cambalear de bêbado, para se juntar à refrega. Todo o peso do cajado se concentrou no ponto de impacto, e com um som como o de
um ovo lançado contra uma parede, as pontas
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metálicas rasgaram pele e osso e cravaram-se profundamente no crânio do homem. A cabeça foi projetada para o lado e ele tombou, arrastando consigo o próprio cacete.
Lançando uma imprecação furiosa, o outro sacudiu violentamente a pega do cajado, tentando libertá-lo, mas não conseguiu mais do que sacudir a cabeça do camarada,
de forma quase obscena. A mandíbula do homem trabalhava em vão e os olhos arregalavam-se, enquanto sangue e massa cerebral se espalhavam a partir das feridas. Cato
saltou e cravou a lâmina profundamente nas entranhas do outro. Libertou a espada, atirou o corpo para o lado e prosseguiu, tentando voltar a localizar Céstio no
meio da confusão da escaramuça. As chamas dos braseiros faziam dançar nas paredes as sombras dos homens envolvidos em combate e o ar estava preenchido com choques
metálicos e grunhidos. Era difícil reconhecer as feições de qualquer homem naquelas condições, e só as barbas e a envergadura dos germanos permitiam distinguir um
lado do outro. Algures à esquerda, mas perto, ouvia Macro a praguejar contra os inimigos enquanto manejava a espada.
Cato pressentiu um reflexo metálico à sua direita e rodou para se deparar com um homem que corria na sua direção, a adaga pronta a golpear. A face estava distorcida
por um grito de guerra selvático, e a barba desgrenhada parecia eriçada. Cato fez girar a espada de forma a bloquear o golpe.
- Imbecil! - gritou ao homem. - Estou do teu lado!
O homem que Cato pensara ser um dos germanos lançou uma desculpa atabalhoada em latim, e nessa altura os olhos dele arregalaram-se, ao mesmo tempo que Cato se apercebia
do erro que cometera. O vinho afetava as reações do homem, pelo que Cato conseguiu ser o primeiro a agir, lançando o punho da espada contra o nariz do adversário,
partindo-lho com estrondo. Com o sangue a correr-lhe pelo rosto, o outro cambaleou para trás, tropeçou num banco e caiu, ficando inanimado quando bateu com o crânio
no canto de uma das mesas. Cato prosseguiu, abrindo caminho entre homens engalfinhados em duelos particulares, procurando por Céstio. De repente foi abalroado por
alguém a guinchar e embrulhado nuns trapos coloridos e desordenados. Cato recebeu o impacto no peito e tentou identificar o seu novo adversário: era uma mulher baixa
e anafada, com cabelo escuro desgrenhado, que lhe batia incessantemente no peito com os punhos cerrados. No momento em que se apercebeu de que o pretoriano a encarava,
lançou-lhe as unhas à cara. Cato sentiu uma sensação de queimadura devido aos arranhões e reagiu por instinto, levantando o joelho para a atingir no peito, antes
de continuar o movimento e lhe aplicar um forte pontapé. A mulher voou literalmente e foi embater num dos membros do bando com um grunhido profundo, antes de ficar
imóvel devido à
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espada que lhe penetrara pelas costas e irrompera pelo ventre, desfazendo a túnica castanha absolutamente imunda que usava. O homem limitou-se a empurrar o corpo
para a frente com a mão esquerda para libertar a lâmina, que usou de imediato para tentar atingir Cato. Não parecia ser detentor de grande técnica, mas compensava
o facto com a força bruta, pelo que a tentativa de Cato para aparar o golpe só conseguiu desviá-lo do rosto, e o gume atingiu-o de raspão no cimo da orelha, cortando-lha.
- Filho da puta! - gritou Cato, enfurecido. Rangeu os dentes e lançou-se para a frente enquanto cerrava a mão esquerda num punho. Acertou no queixo do adversário
com toda a força, o que teria sido suficiente para atordoar um homem normal. Mas os seguidores de Céstio eram escolhidos pela força e resistência que exibiam. Eram
homens vindos do mais baixo nível da sociedade romana, onde tinham enfrentado e vencido o mais básico dos desafios: tinham aprendido a falar com os punhos de forma
a evitar serem sovados e deixados na valeta. A cabeça do homem saltou para trás, mas ele recuperou rapidamente e soltou uma gargalhada. A expressão transformou-se
de súbito em surpresa quando olhou para baixo e constatou que a espada de Cato o tinha atingido no flanco, por baixo das costelas. Cato torceu o gládio primeiro
para um lado e depois para o outro, atingindo órgãos vitais. Cada torção provocava um profundo grunhido de dor nos lábios do homem. Por fim, Cato extraiu a lâmina
com um puxão, dando origem a um jato de sangue escuro.
A agonia pela ferida mortal que sofrera pareceu servir apenas para enfurecer ainda mais o homem, e ele atirou-se a Cato, fazendo com que os dois tombassem sobre
uma mesa com toda a força, e as espadas lhes saltassem das mãos. A face do adversário estava a poucos centímetros da de Cato; o hálito do oponente era râncido, com
sinais de vinho barato e carne assada. Uma das mãos do homem subia pelo peito de Cato, que percebeu que o outro lhe queria apertar o pescoço. Pegou na mão e tentou
afastá-la, mas o outro era demasiado forte, e Cato sentiu os dedos começarem a apertar-se maldosamente em torno da sua traqueia. Mal dava conta da humidade quente
que se espalhava pelo seu estômago e peito, resultado do sangue que corria abundantemente da ferida do outro. Cato fez mais um esforço para desviar a mão assassina,
mas o outro reagiu com renovado vigor, e Cato sentiu que os olhos se lhe esbugalhavam, ao mesmo tempo que uma cortina avermelhada lhe começava a toldar a visão.
A alguns metros de distância, Macro estava envolvido num combate com outro dos homens de Céstio, cada um deles a agarrar no pulso do braço com que o outro segurava
a espada, num teste de força letal. Os olhares entrecruzavam-se e o meliante lançou uma gargalhada simultânea com um
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urro, enquanto forçava os músculos e sentia que os braços de Macro começavam a ceder.
- Não dás mais? - gozou.
- Não, ainda falta alguma coisa - ripostou Macro. - Toma lá esta!
Puxou a cabeça atrás e num movimento selvagem lançou uma cabeçada contra o rosto do outro homem. Era uma tática que tinha usado muitas vezes em batalhas e escaramuças,
mas raramente quando não usava capacete. Quando os dois crânios se encontraram com um estalo bem audível, a mandíbula do outro fechou-se com toda a força e os dentes
cravaram-se na sua própria língua. Macro sentiu uma dor trespassar-lhe a testa. A cabeça retinia, e sentia-se tonto.
- Foda-se, que esta merda dói... - resmungou. Então apercebeu-se de que a pressão feita pelo adversário tinha afrouxado ligeiramente. Macro empurrou-o, libertou
a mão com a espada e golpeou o outro na garganta. O meliante caiu de joelhos, o sangue a jorrar da ferida. Macro aplicou-lhe um pontapé que o deixou no chão. Olhou
em redor. O combate tinha-se espalhado por toda a caverna, e já se viam vários corpos no chão ou em cima de mesas e bancos. Céstio trocava golpes violentos com um
dos germanos, enquanto Sétimo despachava um tipo alto com uma estocada ao coração. Macro sentiu uma ponta de ansiedade quando verificou que não conseguia localizar
Cato. Nesse momento apercebeu-se de dois homens que lutavam corpo a corpo em cima de uma mesa, ali perto. O tipo que estava por cima era um dos membros do bando
de Céstio. Mal se percebia que quem estava a perder era um indivíduo alto e magro, cujas pernas finas pontapeavam desesperadamente o ar enquanto ele se tentava libertar
da má posição em que se encontrava.
- Oh, outra vez não - resmungou Macro para si mesmo enquanto corria para salvar o amigo. Enquanto passava por trás de um dos homens de Plauto, viu como Céstio acabava
o seu combate, desferindo uma poderosa cutilada no crânio do germano que rasgou ossos e cérebro. O colosso libertou a espada com um puxão selvático e recuou um passo
para ter uma vista do conjunto da refrega. Fez uma careta amarga e virou-se, correndo para a base da escada que conduzia ao túnel superior.
- Merda. - Macro rangeu os dentes, frustrado. Ainda estava a uns três metros de Cato, e tinha o caminho bloqueado por uma série de pares envolvidos nos seus combates
particulares. Era preciso salvar Cato, mas ao mesmo tempo não podia permitir que Céstio escapasse. Então viu o centurião Plauto derrubar o seu adversário, do outro
lado da mesa onde Cato estava em dificuldades.
- Plauto! - gritou.
O centurião virou a cabeça, e Macro indicou Cato com um gesto.
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- Ajuda aí!
Plauto olhou para a cena e anuiu, e de imediato Macro abriu caminho pelo meio da confusão e correu atrás de Céstio. O chefe do bando já tinha saído da zona onde
estavam as mesas e os bancos, e corria pela área menos atravancada da caverna. Chegou à escada, embainhou a espada e saltou para o segundo degrau. As mãos fecharam-se
em torno de um dos apoios mais acima, e ele subiu com agilidade, e já estava fora do alcance de Macro quando este chegou à base das escadas. Quando o centurião se
lançou na subida, já as botas de Céstio assentavam na plataforma superior. Macro tinha subido quase dois metros quando sentiu a escada a oscilar. Agarrou-se com
toda a força e olhou para cima. Céstio debruçava-se sobre ele. Estava a empurrar a escada para o vazio. Por momentos Macro admitiu que o ângulo em que a escada estava
apoiada não ia permitir que Céstio a empurrasse para longe, mas nesse instante o homem aplicou o pé com toda a força. A escada empinou-se e pareceu equilibrar-se
na vertical por um instante, antes de se precipitar para o solo da caverna, com Macro ainda agarrado a ela.
O nevoeiro vermelho já quase se cerrara sobre a visão de Cato, obscurecendo a cara do homem que o estava a matar. Uma espuma sanguinolenta tinha-se formado nos seus
lábios e pingava sobre o queixo de Cato. A pressão que sentia na garganta era insuportável, e Cato recorreu às suas últimas reservas; usou o joelho e as botas, e
atingiu o rosto do homem com a mão esquerda uma e outra vez, com toda a força de que dispunha. Enquanto lutava, uma pequena parte da sua mente parecia ter-se destacado
e observava a cena à distância, lamentando profundamente a ignomínia de morrer numa gruta, morto por um qualquer meliante de rua e ainda por cima a cheirar a merda.
Dificilmente se podia considerar tal fim como digno de um soldado condecorado que aspirava ao casamento com a filha de um senador. Perante tal pensamento, o coração
encheu-se-lhe de uma forte vontade de rever Júlia, e uma determinação de não morrer ali naquele buraco no subsolo de Roma. Fletiu os músculos do pescoço e tentou
prender a mão do outro com o queixo, enquanto deixava de lhe tentar afastar a mão e lhe espetava os dedos nos olhos com toda a fúria.
O adversário urrou de dor e fúria, salpicando de sangue a face de Cato, mas não afrouxou a pressão. Esta ameaçava fazer explodir o crânio de Cato, e aumentou ainda
mais por um breve momento, o que o forçou a cerrar os olhos. No instante seguinte, desapareceu, e o peso que lhe abafava o peito diminuiu. Piscou os olhos e viu
que o seu adversário tinha sido colhido num amplexo por Plauto. O oficial usou os braços peludos e musculados para executar uma rápida torção no pescoço do outro,
partindo-lho com um estalo, antes de atirar o cadáver para longe com um grito de triunfo;
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depois, levantou Cato da mesa e pô-lo de pé, amparando-o enquanto recuperava.
Cato acenou um agradecimento e estremeceu. Levou os dedos à garganta e tocou-a com cautela. Precisou de um bom momento até que a cortina vermelha começasse a levantar-se
da visão e para a náusea e tonturas se dissiparem. Assim que Plauto viu que Cato já estava em condições de se aguentar sozinho, virou-se e correu para se juntar
de novo ao combate.
Um rápido olhar pela caverna chegou para Cato perceber que os homens de Céstio estavam a levar a pior. Muitos já estavam pelo solo, embora vários germanos lhes tivessem
seguido o destino, assim como duas mulheres. Três delas tinham recuado até um recanto e agarravam-se umas às outras enquanto viam aterrorizadas a evolução da refrega.
Uma delas, mais forte e corajosa que as suas companheiras, de peito nu, espada numa mão e adaga na outra, desafiava com gritos agudos os dois germanos que se aproximavam
com sorrisos maliciosos. Cato reconheceu-a: era a mulher que tinha estado sentada ao colo de Céstio havia poucos momentos. Um dos germanos, com evidente desprezo,
baixou a espada e desnudou o peito enquanto se aproximava. Ela parou de gritar e saltou ao seu encontro, com os seios a baloiçar, tentando atingi-lo com uma das
lâminas. O homem esquivou-se facilmente com uma gargalhada, e fez menção de lhe dar uma palmada no rabo quando ela passasse, levada pelo ímpeto do ataque. Mas a
mulher virou-se com agilidade e cravou a espada no flanco do germano, enquanto girava a outra mão e lhe rasgava a garganta com a adaga. A gargalhada do homem morreu-lhe
nos lábios e transformou-se num gorgolejar horrível, enquanto ele tentava infrutiferamente estancar o sangue que lhe escorria pelo pescoço.
- Escumalha bárbara! - gritou ela. - Morre, porco!
Foram as suas últimas palavras, já que o outro germano lhe aplicou uma vigorosa estocada que a trespassou e levantou do solo antes de voltar a cair quando a lâmina
foi puxada para trás.
Cato afastou o olhar da cena e procurou Céstio. O chefe do bando não estava entre os que ainda combatiam. Avistou então Macro a levantar-se do chão a um dos lados
da caverna, enquanto tentava libertar-se da escada que lhe caíra em cima. Apercebeu-se de um movimento no varandim, e avistou a inconfundível figura de Céstio recortada
contra o brilho de uma tocha que luzia à entrada do túnel que dali partia. O colosso virou-se, pegou na tocha e penetrou no túnel. Cato deu ordens rápidas a Plauto,
para que se mantivesse na caverna e guardasse todas as entradas até que pudessem ser enviados mais homens para garantir a segurança dos cereais.
Quando por fim se juntou ao amigo, já este estava de pé, e a tentar recolocar a escada em posição. Macro olhou para o lado quando se apercebeu
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da chegada de Cato e reparou nos arranhões no rosto e nas marcas de dedos na garganta do jovem.
- Miúdo, ainda estás em condições de combater?
- Sim. - Cato estava rouco, e tudo lhe doía. Apontou para a escada.
- Pois - assentiu Macro. - Vamos lá atrás daquele cabrão.
Macro assumiu a liderança, e subiram a escada até ao varandim. No túnel ainda se via um tímido brilho alaranjado que vinha da tocha de Céstio, e os dois correram,
os passos a ecoar nas paredes estreitas. Depois de poucos passos, o caminho começou a subir em linha reta, pelo que conseguiam avistar Céstio ao longe, recortado
na luz emitida pela tocha que o homem mantinha levantada à sua frente. O túnel começou então a fazer uma curva para a direita e a tornar-se plano, e por momentos
perderam a sua presa de vista, correndo às cegas. Felizmente a passagem era usada frequentemente, pelo que o chão era liso e livre de entulho. Ao fazerem a curva,
voltaram a avistar Céstio, quando este já se aproximava de uma portinhola ao fundo do túnel. O chefe do bando deteve-se e olhou para trás. Assim que escutou os passos,
meteu pela portinhola e logo se escutou o som da porta a ser fechada.
- Merda! - soltou Macro, enquanto tentava acelerar e Cato ofegava a curta distância. As velhas e ferrugentas dobradiças da porta protestavam com um ranger agudo,
enquanto a base das tábuas raspava no cascalho fino que se tinha acumulado sobre a pedra ao longo dos muitos anos que a porta passara aberta de par em par. À luz
da tocha, a face de Céstio era bem visível, num esforço desesperado enquanto usava os poderosos ombros para empurrar a porta. Já tinha conseguido fechá-la até meio
e parecia começar a mexê-la com maior facilidade, enquanto Macro e Cato corriam pelo túnel a toda a velocidade. Quando Macro se atirou contra ela, a abertura já
não tinha mais de quinze centímetros, e o impacto súbito fê-la recuar ligeiramente. Cato lançou também o seu peso contra as velhas tábuas, e os dois tentaram firmar
as botas no solo para fazerem mais força. O túnel encheu-se dos grunhidos dos três homens que se esforçavam em lados opostos, e por momentos Céstio pareceu estar
prestes a ceder. Mas então soltou uma longa expiração, recobrou as forças, e empurrou com toda a sua imensa força, levando a porta a retomar o avanço.
Macro pegou na adaga e sacou-a da bainha. A abertura era pequena, mas ele meteu o braço, virou-o, e golpeou onde calculava que Céstio devia estar. A lâmina prendeu-se
numa prega de tecido e Macro empurrou com força, rasgando a carne por baixo da roupa. Ouviu-se um grito de dor do outro lado da porta, e a pressão afrouxou.
- Empurra! Vamos apanhar este cabrão! - gritou Macro, e voltou a
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tentar golpear com a adaga; falhou, e retirou a mão para voltar a empurrar a porta, que parecia estar a ceder pouco a pouco. - Já o temos!
De repente a porta recuou por completo, e Macro caiu para a frente, de joelhos. Instintivamente, colocou o peso de lado, de forma a rolar para a parte lateral do
túnel, enquanto aguardava por um ataque de Céstio. Mas o chefe do bando já tinha fugido outra vez, e corria velozmente pela câmara baixa que se abria do outro lado
da porta.
O ar ali era húmido e bafiento, e, à luz da tocha que o outro levava, Cato reparou que as paredes de pedra estavam cobertas por sujidade húmida. Macro tinha-se posto
de pé enquanto Cato o ultrapassava e retomaram a perseguição, passando por um arco do outro lado da câmara que dava para outro espaço. Era um armazém comprido e
baixo, onde se acumulavam pilhas de madeira, ganchos de ferro, fardos de velhos pedaços de couro bolorento, e o que pareciam rodas de carroça partidas. Céstio ziguezagueava
por entre as pilhas de entulho, dirigindo-se a uma porta quadrada na extremidade do compartimento. Macro teve de se esforçar para passar pelo arco e se pôr de pé
ao lado de Cato. Deitou uma olhadela rápida e curiosa ao que os rodeava enquanto se lançavam de novo em corrida. Havia uma espécie de caminho por entre todo aquele
lixo, e Cato reparou com satisfação que pareciam estar a ganhar terreno à sua presa. Céstio não tinha mais de doze metros de avanço quando passou pela porta ao fundo
e começou a subir umas escadas estreitas e íngremes. Cato e Macro arfavam quando chegaram à base dos degraus e os começaram a subir, dois de cada vez.
Ao cimo emergiram numa câmara abobadada de grandes dimensões, cuja base era circular. Tinha quase trinta metros de diâmetro e a parede ao fundo era rasgada por arcos
largos que tinham uns seis metros de altura. O solo estava coberto de areia, que se prolongava para lá dos arcos, num espaço amplo que se estendia para a escuridão.
Céstio correu pelo arco mais próximo, lançando salpicos de areia na sua esteira.
- Vamos! - incitou Cato.
Correram, com os corações aos pulos e os músculos a arder do esforço prolongado. Passaram por um dos arcos e viram-se sob a luz das estrelas.
- Porra! - exclamou Macro. - Estamos no Circo Máximo.
De ambos os lados, estendia-se o areal, até à massa escura das bancadas que os rodeavam. À sua frente estava a ilha central, com as suas estátuas sortidas e as plataformas
para os oficiais das corridas. Quando havia competições de quadrigas, aquele espaço enchia-se com as vozes ensurdecedoras de duzentas mil pessoas, a incentivar as
suas equipagens preferidas. Mas naquele momento reinava ali um silêncio imenso e bizarro, e Cato sentiu um arrepio enquanto continuava a perseguir Céstio pela bem
cuidada areia da pista.
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- Temos de o apanhar antes que ele chegue à outra ponta - lembrou-lhe Macro. - Se ele conseguir chegar à entrada do público e sair para as ruas, nunca mais damos
com ele.
Cato assentiu e forçou-se a continuar a correr. Nesse momento, quando Céstio passava em frente à plataforma elevada onde se situava o camarote imperial, tropeçou
e caiu com estrondo. A tocha saltou-lhe da mão e rolou no chão, soltando fagulhas para todo o lado. O criminoso levantou-se de imediato e voltou a pegar nela, mas
fora o suficiente para Cato e Macro o alcançarem, já de espadas desembainhadas. Cato desviou-se para um lado e Macro para o outro, os dois agachados e prontos a
atacar enquanto ofegavam no ar frio da noite. Céstio percebeu que o caminho para a entrada do Circo estava bloqueado e recuou na direção da base do camarote imperial,
de espada aperrada.
- Desiste - avisou Cato. - Não tens fuga possível.
- Ah, não? - Céstio lambeu os lábios secos. - Vamos ver se vocês os dois chegam para mim, hã?
- Pelos deuses, és mesmo convencido - ameaçou Macro. - Mete um tubo pelo cu acima e levar-te-ão para o túmulo como se fosses uma estátua, porra. - Afagou a espada
contra a palma da mão esquerda. - Vem cá então, merdoso arrogante.
- Pare. - Cato ergueu a mão. - Quero-o vivo. Céstio, larga a espada.
- Nem pensar! - rosnou o outro, e avançou rapidamente, fazendo a tocha descrever um arco de forma a lançar uma chama altaneira enquanto passava perto de Macro e
Cato, obrigando-os a recuar. De repente, o gigante franziu o sobrolho. - Eu conheço-vos... Os pretorianos na taberna. E...
- A lembrança foi interrompida por gritos distantes que provinham dos portões de saída das quadrigas, onde tinham chegado ao Circo, vindos dos armazéns subterrâneos.
Alguns vultos corriam pela areia na direção do grupo. Funcionários do Circo e oficiais das corridas, que vinham investigar o tumulto em plena pista, concluiu Cato.
Apontou para eles com a mão livre.
- Não podes fugir. Se nos enfrentares, morrerás. Se te renderes, poderás ser poupado.
- Pretoriano, deves pensar que sou parvo. Sei bem qual é o destino que me espera. - Céstio permanecia agachado, de espada numa mão e tocha na outra, pronto para
lutar. - Não me vou entregar como um carneiro. Se me querem mesmo, vão ter de me matar... Antes que eu vos trate da saúde a vocês!
Saltou para a frente, lançando a tocha contra Macro, antes de se virar rapidamente para Cato e o ameaçar com a espada. Enquanto Macro recuava para fugir ao arco
de fogo, Cato manteve-se firme e aparou o golpe, respondendo de imediato com uma finta que obrigou Céstio a recolher a
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lâmina e a preparar-se para parar o ataque do jovem. Mas Cato limitou-se a manter a espada em riste e a encarar o oponente, reparando na mancha escura de sangue
no ombro direito da túnica deste, no ponto onde Macro o tinha apunhalado quando tinham lutado pelo controlo da porta ao fim do túnel. A ponta da espada do gigante
oscilava, já que a ferida lhe fazia tremer o braço. Cato avançou e simulou um novo ataque pela direita, antes de optar por uma estocada baixa à esquerda. Era um
movimento simples, cuja intenção era apenas testar a resposta do adversário, e não atingi-lo. Céstio respondeu com um movimento desesperado para afastar a espada
e recuou, aproximando-se ainda mais da base do camarote imperial, já a poucos metros das suas costas. Cato fingiu um novo ataque, e desta vez Macro atacou em simultâneo
pelo outro lado. Céstio defendeu-se com um agitar conjunto da tocha e da espada, e então os calcanhares bateram-lhe contra a parede sólida nas suas costas. Já não
tinha espaço de manobra, e Cato sentiu que a sua reação seria a única que ainda podia ter, um ataque desesperado e selvático.
- Cuidado, Macro.
- Não te preocupes, conheço este tipo de gente - respondeu Macro, sem tirar os olhos de Céstio.
O pessoal do Circo tinha-se entretanto aproximado, e um deles lançou um aviso.
- Ei! O que é que vocês os três palhaços acham que estão a fazer? Não podem estar aqui. Vão armar zaragata para outras bandas.
- Bico calado! - gritou Macro. - Somos pretorianos. - Fez um gesto com a espada. - Este tipo é um criminoso e um traidor, e há muito que o perseguimos. Portanto,
ou nos ajudam a capturá-lo, ou terão de responder perante o Imperador.
- Ele mente! - bradou Céstio. - São ladrões. Tentaram assaltar-me, e obrigaram-me a fugir para aqui. Ajudem-me, e serão recompensados.
Os outros estacaram à beira do impasse, inseguros quanto em quem acreditar. Cato percebeu que, no estado em que estavam, malcheirosos e com umas túnicas imundas,
era sobre eles que recairia a maior suspeita. Não podiam arriscar-se a mais demoras. Respirou fundo e gritou:
- Macro, agora! Liquide-o!
Macro soltou um urro e correu, de espada em riste e pronta para golpear, enquanto Cato atacava pelo flanco. Céstio tentou bloquear a espada de Macro com a tocha,
mas esta foi atirada para o lado e caiu para a areia. Macro não desarmou, empurrando o adversário com o ombro e lançando-o com estrondo contra a parede. Logo a seguir,
Cato golpeou-lhe o braço, rasgando pele e carne até ao osso, e cortando os tendões, o que fez com que os dedos do gigante não conseguissem manter-se apertados a
segurar a
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espada. O ímpeto com que Cato atacara fê-lo prosseguir e atingir também Céstio de lado, fazendo a lâmina enterrar-se nas entranhas do homem com um som húmido. Céstio
expeliu o ar dos pulmões, e o corpo empertigou-se por momentos, antes de as pernas lhe fraquejarem e ele tombar sobre a areia. Macro e Cato recuaram alguns passos
e olharam-no com precaução, mas, à luz da tocha que ainda ardia, Cato pôde ver que a ferida que o colosso recebera era mortal. Dobrou-se para pegar na espada do
homem e a lançar para o lado, para longe do alcance do chefe do bando, antes de embainhar a sua própria espada. Macro preferiu manter a sua na mão, e rodeou o corpo
para confrontar os outros homens que assistiam à cena em silêncio.
- Vocês aí, mantenham-se à distância!
Não precisavam de ser avisados, mas Cato deixou que Macro se encarregasse de os vigiar enquanto se concentrava em Céstio. O homem estava sentado, apoiado na parede,
as pernas esticadas e as mãos a apertarem a ferida no ventre. Tinha os olhos cerrados com força, mas depressa os abriu e lançou um sorriso amargo a Cato.
- Disse-te que teriam de me matar - afirmou, em voz sumida. Voltou a fechar os olhos.
- Céstio. - Cato debruçou-se sobre o homem e sacudiu-lhe os ombros. - Céstio!
Os olhos do gigante voltaram a abrir-se.
- Não és capaz de deixar um homem morrer em paz?
- Não - ripostou Cato, de forma agreste. - Não enquanto não responderes a algumas perguntas.
- Vai-te foder.
Cato empunhou a adaga e ergueu-a à altura dos olhos do outro, para que a visse bem.
- Se te recusares a falar, posso dar-te uma morte dolorosa; por outro lado, se cooperares, garanto-te que partirás rapidamente e sem sofrer.
- Estou a morrer. Que diferença me faz?
Cato sorriu friamente.
- Queres mesmo descobrir?
Deu-se um breve silêncio entre os dois homens, até que Céstio abanou a cabeça, derrotado.
- Ora muito bem. - Cato baixou a adaga. - Primeiro, quem é que te pagou para esconder o cereal?
- Um centurião dos pretorianos. Sínio.
Cato assentiu.
- Como é que combinaram?
- Ele pagou-me em prata. O meu grupo tratou de se livrar dela, e o dinheiro resultante serviu para comprar os cereais. Usei alguns mercadores
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como testas-de-ferro. Os carregamentos eram armazenados, e depois os meus rapazes levavam-no para a gruta. - Céstio sorriu sem vontade. - Como já sabes, aliás. Quando
o Sínio desse ordem para começar a vender o cereal, ficaríamos com uma boa percentagem. Era isso o combinado.
Cato assentiu de novo.
- O Sínio alguma vez vos disse para quem é que estavam a trabalhar?
- No meu negócio, nunca pergunto os motivos. Sobretudo nestes dias. Levanta demasiados problemas. O que aliás não impediu o Sínio de se pôr a palrar que era por
uma causa nobre. Tudo pelo bem de Roma. - Céstio fungou com desprezo, mas a face contorceu-se com dor e ele deixou escapar um longo e profundo gemido. Cato agachou-se
junto a ele, temendo que o homem morresse antes de lhe passar toda a informação que desejava. Por fim, a expressão de dor de Céstio amainou, e ele lambeu os lábios
e voltou a fixar o olhar em Cato.
- Alguma vez te encontraste com algum outro dos conspiradores?
Céstio pareceu pensar por momentos.
- Ninguém dos Libertadores.
Cato inclinou-se para a frente.
- Então quem foi?
Céstio ignorou a pergunta e resolveu lançar ele mesmo uma.
- Pretoriano, para quem trabalhas tu? Não é para os Libertadores. Disso estou certo. Parece-me que o teu senhor se encontra algures no palácio.
Cato não respondeu.
- O que quer dizer que é o Palias... Ou o Narciso.
- Tenho uma última pergunta - avisou Cato. - Sobre o dia em que o teu bando atacou o séquito do Imperador no fórum. Como é que soubeste que íamos passar por ali?
- Estava tudo planeado. Pagaram-me para que os meus homens começassem o tumulto... - A respiração de Céstio tornou-se entrecortada.
- Assim que a coisa ganhasse ímpeto, tínhamos ordens para nos prepararmos para emboscar o Imperador e a sua escolta... E teríamos liquidado todos os nossos alvos,
se tu e aí o teu amigo não se tivessem metido ao barulho.
Cato sentiu o coração a acelerar.
- Alvos? O Imperador e a família?
Céstio abanou a cabeça.
- A Imperatriz e o filho.
- Só esses dois? - Cato sentiu um arrepio de frio na base da nuca.
- Sim.
- Mais ninguém? Tens a certeza?
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- Ele foi muito claro nesse ponto... Só a Agripina e o Nero deviam morrer.
- Quem? Quem é que te deu a ordem?
Céstio estremeceu e tentou respirar fundo, mas mal conseguiu engolir o ar. Cato avançou e sacudiu-o pelos ombros, sem qualquer delicadeza.
- Quem é que te pagou para fazeres esse serviço? Diz-me!
Céstio voltou a lamber os lábios; desta vez havia sangue na saliva. Quando respondeu, já havia um fio de sangue a descer-lhe pelo queixo.
- Um tipo do palácio. Já tinha feito outros trabalhos para ele. Fazer desaparecer pessoas. Assustar outras. O tipo de coisas em que me safava bem. - Sorriu com orgulho.
- Inimigos do Imperador?
- Nem sempre.
- Como se chamava esse tipo? - indagou Cato.
- Não faço ideia. Saber isso não fazia parte do arranjo. Ele pagava-me para fazer aquilo que o seu amo queria ver feito, e não para fazer perguntas pessoais.
Cato silvou de frustração.
- Porra, que aspeto tinha? Esse tipo que te deu as instruções?
Céstio encolheu os ombros.
- Era um tipo vulgar. Com a tua envergadura. Uns anos mais velho...
- Que mais? - exigiu Cato. - Cicatrizes, qualquer coisa que o distinguisse?
- Sim... Uma marca, uma tatuagem, aqui. - Céstio levou a mão ao pescoço, mesmo por baixo da orelha.
Cato sentiu o sangue a gelar, e ouviu Macro a soltar uma imprecação em voz baixa.
- Que tipo de tatuagem?
Céstio pensou por momentos.
- Só a vi distintamente uma vez. Uma vez que nos encontrámos nos banhos. Um crescente e uma estrela...
Cato lembrou-se instantaneamente de onde é que tinha já visto aquela marca, no preciso dia em que chegara a Roma.
- É o Sétimo, só pode ser ele - indicou Macro. - Mas, o Sétimo? Que raio se passa aqui?
A mente de Cato passava em rápida revista uma série de imagens e de pensamentos que lhe tinham parecido confusos ou que levavam a becos sem saída. E agora todos
eles caíam no seu lugar, um a um. Havia uma conspiração nas sombras, mais profunda ainda do que a que os Libertadores conduziam. Um esquema monstruoso que deixou
Cato assombrado perante a brilhante engenhosidade que revelava, ao mesmo tempo que o
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enojava e lhe revelava pela primeira vez a verdadeira escala do embuste em que ele e Macro, entre muitos outros, se tinham visto envolvidos ao longo dos anos. Pôs-se
rapidamente de pé e virou-se para o amigo.
- Temos de voltar de imediato ao palácio. E procurar o Narciso.
- O Narciso?
À luz moribunda da tocha caída na areia, Cato encarou o amigo com ar sério.
- Fomos enganados. Há mais do que um plano contra o Imperador. Já o suspeitava. Mas ainda há aqui outra coisa. Temos de ir, Macro. Agora mesmo.
Céstio soltou uma risada.
- O que é que achas tão engraçado, caraças? - indagou Macro.
- Só estou a concordar aí com o teu amigo. Parece-me que é o momento certo para agir.
Cato voltou-se para ele.
- Porquê?
- As últimas ordens que recebi do Sínio eram que devia estar pronto para levar o cereal de volta ao armazém, amanhã logo pela manhã.
- Amanhã? - A testa de Cato franziu-se profundamente. - Então, seja qual for o plano dos Libertadores, vai desenrolar-se esta noite... - Sentiu um nó frio no estômago.
- Merda, vão tentar matar o Imperador, e é esta noite mesmo. Temos de ir, agora!
Enquanto Cato se virava para a entrada pública, ouviu-se um gemido de protesto de Céstio, que se agitou e ergueu a mão ensanguentada.
- Espera! Pretoriano, prometeste-me uma morte rápida.
- Prometi, de facto. - Cato virou-se e contemplou o moribundo chefe do bando por momentos, até que lançou uma adaga para a areia junto a ele. - Aí tens. Já a usaste
em muitos homens, normalmente a partir das sombras. Usa-a agora em ti mesmo, se tiveres coragem para isso.
Cato começou a correr para a entrada pública e Macro imitou-o, percorrendo a arena.
- Ei! Ei, vocês! - Era um dos empregados do Circo a chamá-los. - Não o podem deixar ali! Ei! Estou a falar convosco!
O homem correu alguns passos atrás dos dois vultos que se esgueiravam pela escuridão, mas acabou por parar. Ouviu um gemido curto, vindo da direção do camarote imperial,
seguido por um longo suspiro. Quando se virou para ver o que se estava a passar, o gigante mortalmente ferido tinha tombado de lado e estava imóvel, com o punho
de uma adaga a sobressair-lhe do peito.
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À luz trémula da mesma lamparina a óleo que tinham usado para encontrar o caminho ao saírem do palácio imperial, Cato e Macro emergiram do túnel secreto que conduzia
ao Circo Máximo. Macro abanou a cabeça enquanto tentava abarcar a situação.
- Não percebo. Por que raio havia o Narciso de querer ver o Nero e a Agripina mortos?
Cato tentou cuidadosamente abrir a porta a que Narciso os tinha levado duas horas antes. Ainda estava destrancada, pelo que a empurrou e espreitou para o compartimento
onde se amontoava o combustível para o balneário principal do palácio. A madeira forrava as paredes, em montes cuidadosamente empilhados. Cato aguardou um momento,
mas não se apercebeu de qualquer som ou sinal de movimento, portanto fez sinal a Macro para que o seguisse.
- Macro, pense. No fim de contas, até sabe a resposta.
- Não te armes em esperto - resmungou Macro. - Diz-me lá.
- Foi você que viu a Agripina com o Palias, lembra-se?
- Como é que me podia esquecer? A esposa do nosso Imperador nas patas de um viscoso liberto grego de merda não é propriamente uma visão edificante.
- De facto. - Cato sorriu. - Seja como for, não há como evitar a verdade. A Agripina aceitou Palias como amante. Portanto, o destino dele está ligado ao dela e ao
do seu filho. O Palias está a posicionar-se para o dia em que o Cláudio se candidatar a assumir um caráter divino imaterial. Se o Nero se tornar o novo Imperador,
como parece bastante provável, o Palias, sendo amante da Agripina, ficará numa posição muito desejável.
- Obviamente. - Macro suspirou.
- Portanto, onde é que acha que isso deixa o Narciso?
Macro interrompeu o passo.
- Espera aí, estás mesmo a sugerir que ele se atreveria a preparar um atentado contra o filho da Imperatriz?
- E porque não? Seria o gesto de maior sensatez. Se se limitasse a eliminar o Palias, a Agripina depressa arranjaria um novo amante, e o Narciso
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ver-se-ia de volta à casa de partida. Se liquidasse o Nero, o Britânico deixaria de ter rival quanto ao trono, e a influência da Agripina diminuiria, fazendo com
que a boa estrela do Palias empalidecesse. Como é óbvio, o difícil seria eliminar o Nero de tal forma que não despertasse suspeitas de que o Narciso pudesse estar
por trás do assassinato. Portanto, recorreu ao Céstio e ao seu bando. Por isso é que o Céstio poupou o Britânico. Tinha ordens para matar apenas o Nero, e talvez
a mãe também. O Narciso estava lá connosco, portanto daria a sensação de que estava a correr precisamente os mesmos riscos que os outros.
Macro manteve-se em silêncio por momentos, enquanto percorriam com toda a cautela o compartimento, aproximando-se da estreita porta que dava passagem para o corredor
de serviço.
- Pelos deuses, o Narciso e os amigos praticam uns com os outros uns jogos verdadeiramente letais.
Cato encolheu os ombros.
- Bem-vindo à vida no palácio imperial. Conspiração, traição e assassínio são a ocupação principal dos ocupantes desta casa. - Virou-se para Macro com um sorriso
pensativo. - Agora percebe a sorte que eu tive quando fui mandado para as legiões. Duvido que, se tivesse ficado no serviço imperial como o meu pai, tivesse sobrevivido
muito tempo. Pelo menos no exército sabemos quem são os nossos inimigos... A maior parte do tempo, pelo menos.
Macro fungou.
- Pois, mas não na Guarda Pretoriana. Bando de bonecos empertigados que brincam aos soldados e ao mesmo tempo jogam à política.
Cato assentiu.
- E é isso que os torna tão perigosos para os imperadores. O Tibério quase perdia a coroa graças aos pretorianos, e o Calígula perdeu a vida. O mais provável é que
o Cláudio e muitos dos seus sucessores venham a ter a mesma sorte.
- A não ser que os Libertadores consigam ter sucesso.
Cato lançou um olhar rápido ao amigo.
- Pois, imagino que sim. Bom, será melhor mantermo-nos em silêncio daqui para a frente. - Soltou o trinco da porta e abriu-a. O corredor estava vazio, e era iluminado
por uma única tocha que estrebuchava na base das escadas que conduziam ao coração do palácio. Cato soprou a chama da lamparina e deixou-a junto à porta, antes de
se aventurar no corredor com Macro, passando pelas portas que davam para outros compartimentos. A escadaria levava a uma das cozinhas do palácio, cujas prateleiras,
geralmente repletas de vitualhas, se apresentavam agora praticamente despidas de conteúdo.
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- Está tudo calmo - comentou Macro. - Não dei por ninguém, nem ouvi um pio.
Saíram das cozinhas, entrando num dos corredores principais, a caminho dos aposentos privados da família imperial.
- Isto não me agrada - comentou Cato num sussurro. - Já devíamos ter encontrado alguém. Alguns pretorianos, ou pelo menos alguns dos escravos.
Por fim, quando se aproximavam das portas dos quartos privados do Imperador e da sua família, avistaram alguns guardas. À luz de um braseiro, oito pretorianos estavam
de vigia. Quando Cato e Macro emergiram da escuridão, um dos vultos avançou; era Fúscio.
- Alto aí! - interpelou o optio. - Identifiquem-se.
Cato murmurou para o amigo.
- Parece-me que chegou o momento de abandonar o disfarce.
- Porra, já não era sem tempo - concordou Macro, sem esconder o prazer que lhe causava a notícia.
Ao entrarem na área iluminada pelo braseiro, Fúscio reconheceu-os.
- Cálido e Capito! Onde é que vocês andaram? Estão cobertos de porcaria. - Os olhos do jovem optio arregalaram-se quando um pensamento mais premente lhe passou pela
mente. - É suposto estarem de guarda! Desertaram do vosso posto.
- Calado! - disparou Cato. - Optio, o que se passa aqui? Onde estão os outros pretorianos?
Fúscio abriu a boca de espanto ao ver-se interpelado daquela forma ríspida por um subordinado. Inchou o peito, inspirando profundamente enquanto se preparava para
pôr os dois homens no seu lugar.
- Não temos tempo para grandes explicações - continuou Cato. - Tudo o que precisas de saber é que o meu nome não é Capito. Sou o prefeito Cato, e este é o centurião
Macro. Porque é que há tão poucos homens no palácio?
- Espera aí. - Fúscio olhava para eles, desconfiado. - O que é que está a acontecer?
- Descobrimos um plano para assassinar o Imperador. Temos estado a investigar uma conspiração em que estavam envolvidos alguns oficiais da Guarda Pretoriana.
- O caralho. Não engulo essa. Vocês estão é com uma bela participação em cima.
- Fecha o bico - avisou Macro com firmeza. - Ou tu é que levas com uma, queridinho, e isso será o menos, se alguma coisa acontecer ao Imperador. Agora trata de informar
o prefeito sobre a situação. Onde é que estão os outros pretorianos?
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Fúscio engoliu em seco, desamparado, antes de responder.
- Muito bem, então... Foi-lhes ordenado que saíssem do palácio e montassem guarda a todo o perímetro do complexo. Cá dentro só ficaram o tribuno Burro e duas centúrias.
- Quem deu essa ordem? - inquiriu Cato.
- O prefeito Geta. Diria que há menos de meia hora. Ao mesmo tempo que deu ordens para que os guardas germanos fossem confinados às suas acomodações.
Cato sentiu o sangue a gelar.
- Onde está o Tigelino?
Fúscio olhou para um e para outro, a boca a abrir e fechar, sem emitir qualquer som. Abanou a cabeça.
- O centurião não está aqui.
- Então onde anda? - quis Cato saber.
- Saiu com o prefeito Geta e outro oficial, o centurião Sínio, e um grupo de homens.
Cato espetou o indicador na armadura do optio.
- Onde foram eles?
- Não faço ideia. Dirigiram-se para os jardins. Se bem me parece, o prefeito disse que iam fazer uma ronda das sentinelas.
Cato trocou um olhar ansioso com Macro antes de voltar a dirigir-se a Fúscio.
- E o tribuno, onde está?
- Instalou um posto de comando no átrio da entrada, senhor.
- Então vai imediatamente falar com ele. Diz-lhe para trazer todos os homens disponíveis para os aposentos do Imperador, imediatamente.
Diz ao Burro que a vida do Imperador depende disso. Nós levamos estes homens. - Cato percebeu que o optio estava outra vez com fortes dúvidas sobre o caminho a seguir,
e avançou para ele, agarrando-o pelos ombros. -
Fúscio, acorda! Tens as tuas ordens, cumpre-as! - Deu-lhe um forte empurrão para o pôr a caminho, e o optio lá se afastou em passo rápido, a caminho da entrada do
palácio, as botas a ecoar nas paredes altas do corredor.
Cato virou-se e enfrentou os pretorianos que ali estavam. As suas expressões mostravam tanto choque e surpresa como a do optio. Era preciso que eles aceitassem a
sua autoridade e que obedecessem às suas ordens sem as questionar. Respirou fundo e olhou-os.
- Não estava a brincar quando falei numa ameaça concreta à vida do Imperador. Há traidores nas nossas fileiras. Homens capazes de quebrar
os seus juramentos sagrados. A única esperança para os impedir de ter sucesso é que vocês aceitem as minhas ordens, e as do centurião Macro, sem questões. Entendido?
- Olhou para cada um dos homens, quase os desafiando
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a porem a sua autoridade à prova. Mas ninguém o arriscou, e Cato acenou, satisfeito.
- Muito bem. Peguem nas espadas e sigam-nos. - Acenou a Macro e desembainhou também a sua espada antes de correr para a entrada dos aposentos imperiais, com o centurião
ao lado. Os guardas imitaram-nos com um coro de raspares metálicos, e seguiram os dois oficiais.
Ao correr pelo longo corredor que ligava a parte principal do palácio aos aposentos mais privados e confortáveis que eram ocupados por Cláudio e a sua família, Cato
reviu rapidamente na sua mente a disposição dos quartos naquela área do palácio. Devia haver ainda alguns homens da Sexta Centúria nos seus postos, e talvez um punhado
de guardas germanos que deviam estar com o Imperador quando os seus camaradas tinham sido retirados de cena. Portanto, o caminho mais lógico para os assassinos tomarem
seria através dos jardins nos terraços, seguido de um assalto final pelos claustros que os ladeavam. Levar-lhes-ia mais tempo do que um caminho direto, mas evitariam
ter de perder tempo a enganar ou combater em cada ponto de controlo. Ainda havia assim uma possibilidade de chegarem a tempo junto do Imperador.
Dois lances de escadas levaram-nos ao nível mais elevado do palácio, onde ficavam os quartos e os jardins que davam para o coração da cidade. Enquanto subia os últimos
degraus, já ofegante, Cato ouviu um grito de alarme, seguido por berros e o inimitável entrechocar de lâminas.
- Comigo! - gritou, saltando os últimos três degraus de uma só vez. O corredor era iluminado por lamparinas abundantes, e tinha mais de três metros de largura, com
portas de ambos os lados. Acompanhava toda a extensão do último andar do palácio, e o quarto do Imperador, bem como o seu estúdio privado, ficavam a meio e à esquerda.
O som de vozes e de choques de armas já era mais distinto. Enquanto Cato, Macro e os pretorianos corriam pelo chão de mármore, uma porta abriu-se à sua frente, e
Britânico saiu, com olhos de sono. A mente entorpecida do jovem reagiu com prontidão quando viu os soldados armados a correr na sua direção.
- Volte para dentro! - gritou Cato enquanto refreava o passo, escorregando. Virou-se para o pretoriano que o seguia de mais perto. - Tu! Fica com o filho do Imperador.
Tranca a porta e guarda-o com a tua própria vida.
Sem esperar pela resposta do homem, Cato voltou a correr. Os sons de combate ecoavam nas paredes do corredor, e quando já estavam a não mais de uns seis metros do
estúdio do Imperador, a porta deste abriu-se de rompante para deixar passar um germano ferido, que rodopiou e caiu no solo. Um pretoriano saltou em sua perseguição,
cravando-lhe a espada e pondo no movimento todo o seu peso. A lâmina rasgou o ventre do germano, e
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a ponta irrompeu pelas costas do homem, atingindo o mármore com estrondo. O bárbaro berrou de agonia e a face contorceu-se-lhe num rosnar, enquanto agarrava a cabeça
do outro com as duas mãos e lhe arrancava o nariz com uma dentada.
Cato enterrou a espada na espinha do soldado ao passar por ele, e o homem soltou uma exalação enquanto largava a espada e tombava sobre o corpo do germano. Ao correr
para o interior, Cato percebeu que tinha acertado em cheio. As portadas que cerravam as passagens de acesso ao pórtico e aos jardins tinham sido partidas, e só os
estilhaços restavam, pendurados dos suportes. A grande lucerna que tinha estado sobre a secretária do Imperador tinha sido derrubada no combate, e a única iluminação
ainda existente no compartimento vinha de uma outra pequena lamparina, que lançava um brilho fraco de uma mesa a um canto.
O quarto parecia cheio de sombras que saltavam de lugar para lugar, refletindo o combate encarniçado que ali se travava. Cato manteve a espada em riste e olhou em
redor; viu o Imperador acossado junto à parede por trás da secretária. À sua frente via-se Narciso, de adaga em punho, enquanto protegia o Imperador com o seu próprio
corpo. Um enorme germano estava ao seu lado, varrendo o ar com a longa espada e soltando um tremendo grito de guerra. Havia outros dois germanos a lutar, e ainda
um escravo do palácio. Contra eles empenhavam-se oito pretorianos, dois dos quais com as placas peitorais que identificavam os oficiais. Um germano, dois escravos
e dois pretorianos jaziam já sobre o solo, a retorcerem-se, feridos.
Foi Macro o primeiro a reagir à confusão que se lhes deparava.
- Rapazes, formem em torno do Imperador!
Deu o exemplo, correndo junto às paredes para se juntar a Cláudio e Narciso, apertados contra a parede por trás do germano que os protegia. Cato percebeu que a ordem
de Macro fazia todo o sentido, e juntou-se aos outros homens.
- Detenham-nos! - gritou uma voz. - Matem o Imperador! Matem o tirano!
Cato reconheceu aquela voz - era Sínio.
Os traidores mudaram de disposição, deixando dois envolvidos no combate com os guarda-costas no meio da sala enquanto o resto avançava para o Imperador rodeando
a secretária; um deles até pulou por cima dela. O germano conseguiu ainda fazer a sua espada descrever mais um arco, derrubando um dos atacantes, mas os outros envolveram-no,
golpeando e estocando sem cessar com as suas espadas curtas. O homem cambaleou sob o intenso ataque, e caiu de joelhos, de braços abertos enquanto tentava, mesmo
moribundo, proteger quem lhe pagava. O sacrifício do homem atrasou os assassinos apenas um segundo, mas foi o suficiente para
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permitir a Macro alcançar a parede. Lançando um urro, o veterano atirou-se aos homens que tinham matado o germano, enviando o punho da espada contra o rosto do primeiro
traidor no seu caminho. O crânio do oponente quebrou-se com um estalo, e Macro avançou contra os dois adversários que se seguiam, atirando-os para trás; um deles
caiu aos pés de Narciso, que aproveitou imediatamente a ocasião para o golpear nas costas, e o outro tombou sobre os seus companheiros.
Cato seguia de perto o amigo, e deu um passo ao lado para se colocar entre os traidores e o Imperador, quando um dos oficiais saltou por cima da confusão de corpos
provocada pela carga de Macro. Na penumbra reinante, Cato mal conseguiu vislumbrar as feições determinadas do prefeito Geta enquanto o homem erguia a espada e tentava
atingir Cláudio. Cato lançou um contragolpe para o deter, e o choque das lâminas de bom metal fez saltar fagulhas. Cato sentiu o impacto do tremendo golpe a subir
pelo braço, e ficou com os dedos dormentes por momentos. A espada do prefeito cortou o ar ao lado do Imperador e acertou na parede, arrancando um bom pedaço do estuque
ricamente decorado. Cláudio encolheu-se quando um estilhaço o atingiu na face, provocando um pequeno corte. Antes que Geta recuperasse a espada e voltasse a atacar,
Cato atirou-se contra ele, atingindo-o no peito com o antebraço e fazendo-o perder o equilíbrio. Os pretorianos que seguiam Macro e Cato forçaram a passagem, colocando-se
entre o Imperador e os traidores, e o quarto encheu-se de gritos e grunhidos desesperados dos dois lados, entrecortados pelo retinir das espadas num renhido combate
corpo a corpo.
- Aguentem-nos! - gritou Macro, colocando-se ao lado de Cato.
Durante alguns momentos, o combate continuou equilibrado, até que
o primeiro dos traidores foi obrigado a recuar, segurando com a mão livre uma ferida recebida no braço com que empunhava a espada. Sem conseguirem alcançar o Imperador,
os outros foram recuando um a um. Geta virou-se para eles, furioso.
- Idiotas! Se não o matamos aqui e agora, estamos todos mortos. É demasiado tarde para recuar. Ataquem! Vibrem um golpe pela liberdade enquanto ainda podem!
Geta lançou uma série de ataques decididos com a espada, obrigando Cato a empenhar-se a fundo para os desviar, até que Macro se lançou contra o prefeito, cruzando
as espadas e obrigando-o a recuar.
Um dos pretorianos tentou avançar para ajudar Macro, mas Cato deteve-o, puxando-o pelo ombro.
- Fica onde estás! Todos vocês, mantenham as vossas posições. Protejam o Imperador até que cheguem reforços.
As duas fações separaram-se, e o clamor do combate foi substituído
325

pelo arfar das respirações, enquanto pretorianos e traidores se entreolhavam desconfiados. Geta contemplava com ódio o Imperador, e engoliu em seco, nervoso, antes
de voltar a dar um passo na direção de Cláudio e dos homens que o protegiam. Antes que pudesse acirrar os seus homens para mais uma tentativa, o som de gritos e
correria ecoou no corredor que levava ao estúdio.
- É o tribuno Burro - avisou Cato. - Larguem as armas e rendam-se.
- Se nos rendermos, seremos todos executados! - ripostou Geta num grito claro. - Se falharmos agora, não podemos esperar qualquer piedade.
Os seus seguidores hesitaram por instantes, até que um deles se virou e fugiu por entre os restos das portadas. Outro seguiu-o, e depressa os outros os imitaram,
deixando Geta e Sínio sozinhos. Por trás deles Cato notou a presença de um terceiro oficial, que se mantinha nas sombras junto à saída para o jardim.
- Cobardes! - soltou Geta, desanimado. - Todos uns cobardes!
Sínio pegou-lhe no braço e puxou-o para trás.
- Senhor, já nada podemos alcançar aqui! Temos de ir.
- Ir para onde? - indagou Geta.
- Haverá uma nova oportunidade, senhor. Venha! - Sínio puxou pelo prefeito dos pretorianos e empurrou-o para fora do quarto, a caminho dos jardins. Cato baixou a
espada e olhou em volta. Os feridos gemiam sobre o solo. Dois dos homens não se mexiam. Os que o rodeavam respiravam ofegantes, devido à corrida desenfreada pelo
palácio e à escaramuça que se lhe seguira. O Imperador não estava ferido, mas não havia forma de iludir o terror que sentia.
- Vocês, fiquem aqui - ordenou Cato aos pretorianos. - Macro, venha comigo!
Agarrou na espada com toda a força e seguiu com o amigo, atravessando o quarto e saindo para o varandim. Avançaram com todo o cuidado, não fosse algum dos traidores
estar escondido à espera deles por entre as colunas no exterior. A luz do crescente lunar banhava o jardim em tons de cinzento-escuro, e os vultos dos traidores
eram facilmente identificáveis enquanto corriam pelos caminhos de cascalho que serpenteavam por entre arbustos e canteiros de flores. Macro fez menção de perseguir
o mais próximo deles, mas Cato refreou-o.
- Não. Deixe-o. Aqueles é que são os que nós queremos. - Apontou com a espada para três figuras; eram os oficiais que corriam para as escadas que levavam ao terraço
mais baixo, onde havia uma entrada para as acomodações dos servidores do palácio, por baixo das da família imperial. Se
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Geta e os outros alcançassem aquelas passagens, poderiam ser capazes de despistar os perseguidores no labirinto de corredores e despensas, e depois conseguir mesmo
chegar às ruas. Cato e Macro lançaram-se atrás deles, correndo das colunas para a escadaria. Por momentos perderam de vista as suas presas por entre duas linhas
de sebes bem aparadas mas voltaram a avistá-las a curta distância. Geta e os seus companheiros saltaram pelas escadas abaixo e percorriam já uma área aberta e lajeada,
a caminho da entrada escura para as acomodações do pessoal. Nesse momento avistou-se uma luz trémula que realçou o arco de pedra da entrada; surgiu à vista uma tocha
e escutou-se o som de vozes.
Os três homens detiveram-se, ao compreenderem que não havia fuga possível naquela direção. Viraram-se e correram para longe, ao longo da varanda que dava para o
fórum. Na extremidade desta havia um pequeno roseiral rodeado por sebes altas. Cato e Macro seguiram-nos, enquanto começavam a emergir soldados da entrada do pessoal.
Mais acima escutavam-se gritos, já que havia mais homens a vasculharem o terraço superior, procurando os traidores. A voz do tribuno Burro sobressaía a lançar as
suas ordens através do ar noturno. Os três oficiais em fuga dobraram a esquina do roseiral e desapareceram da vista. Cato parou e colocou a mão junto à boca.
- Aqui. Eles estão aqui! Depressa!
Prosseguiu a perseguição com Macro; entraram no roseiral e rodearam os arbustos bem aparados, apenas para se depararem com um trilho vazio, ladeado por pinheiros,
os quais enchiam o ar com o seu rico aroma. Cato ergueu a mão para deter o amigo e ali ficaram, os corações aos pulos, e a esforçar os olhos para ver na escuridão
crescente.
- Onde é que eles se meteram? - interrogou-se Macro. - Não podem estar muito longe. Miúdo, é melhor termos cuidado.
Avançaram lentamente, de sentidos alerta para detetar qualquer sinal de movimento ou som no meio das árvores que ladeavam o caminho. As vozes dos homens de Burro
espalhavam-se por todo o jardim, e então Cato avistou um grupo de soldados que surgiu ao fundo do caminho. Respirou fundo e lançou um apelo.
- Geta! Está encurralado. Não há para onde fugir. Entregue-se!
Não houve resposta, mas os soldados ao fundo do caminho começaram a correr na direção de Cato. De repente, a poucos metros de distância, ouviu-se um profúndo gemido
e um corpo abateu-se no caminho, vindo das sombras, enquanto uma espada saltava sobre as pedras ao lado do homem.
- O que estás tu a fazer? - A voz de Geta ouviu-se, alarmada, mas foi abruptamente cortada. Notou-se um restolhar por entre as árvores junto ao cadáver, e depois
escutou-se um grito abafado.
327

- Merda. - Macro avançou. - Os cabrões estão a suicidar-se.
Cato correu atrás do amigo. Antes de alcançarem o corpo, uma figura
emergiu para o caminho, de espada na mão, e enfrentou Macro e Cato. Quando se afastou da árvore, Cato reconheceu-o.
- Tigelino.
Detiveram-se a uma distância segura da lâmina que o homem brandia, e ergueram as suas espadas, prontos a lutar se o centurião pretendesse resistir. Por trás dele,
os soldados aproximavam-se em corrida.
- Vocês os três! - gritou uma voz. - Larguem as espadas!
Tigelino deitou um olhar rápido sobre o ombro e atirou a espada para
o solo. Os pretorianos pararam, e o seu líder dobrou-se desconfiado para recolher a arma de Tigelino antes de fazer um gesto a Macro e Cato.
- Vocês também!
- O quê? - protestou Macro. - Estamos do mesmo lado, cretino! Fomos nós quem mandou chamar o Burro.
- Depressa o saberemos - replicou o soldado. - Mas por agora larguem as espadas, antes que eu e os rapazes os obriguemos a isso.
Macro deu um passo contra eles.
- Faça o que ele diz - interveio Cato, lançando a sua espada aos pés dos guardas.
Macro ainda hesitou mais um momento, mas acabou por encolher os ombros e imitá-lo.
Depois de recolherem as armas e de cercarem Cato, Macro e Tigelino, o líder da secção de guardas experimentou o cadáver que jazia no caminho com a ponta da bota
e só então se agachou nas sombras, onde descobriu outro cadáver.
- Afinal, o que é que se passa aqui?
Tigelino aproveitou a ocasião.
- Quando falares comigo, vê se usas o respeito que me é devido. Sou o centurião Tigelino, comandante da Sexta Centúria, Terceira Coorte.
- O caralho. - Macro cuspiu para o solo. - Não passas de um maldito traidor, como os teus dois amigos que para aí estão.
- Amigos? - Tigelino respondeu com um tom de espanto na voz.
- Parece-me que estás enganado. Vi estes dois homens a fugirem do estúdio do Imperador. Corri atrás deles e alcancei-os aqui. Lutámos, e consegui abatê-los sozinho.
Macro estava abismado, e mal conseguiu encontrar a voz para ripostar.
- Foda-se, que refinada mentira! Eu e o Cato é que estávamos a persegui-los, a eles e a ti, traidor de merda!
- Não faço a mais pequena ideia do que estás para aí a dizer - comentou Tigelino, num tom compreensivo.
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- Pronto, já chega! - irritou-se o líder dos pretorianos. - Calem o bico os três. O tribuno Burro depressa vos arrancará a verdade, podem ter a certeza. - Designou
quatro dos seus homens para carregarem os cadáveres, antes de se voltar de novo para os prisioneiros. - Vamos!
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29

O Imperador Cláudio deixou-se cair sobre o trono almofadado na pequena sala de audiências que usava no dia-a-dia. Através das janelas em arco que ocupavam uma das
paredes, entravam os primeiros alvores do novo dia, delineando a paisagem da cidade e trazendo os trinados dos pássaros até ao interior do palácio. Mas nem os tons
róseos do céu nem o chilrear dos pardais tocavam as mentes ou os corações dos homens ali reunidos.
Em torno das paredes alinhavam-se guardas germanos, convocados à pressa das acomodações a que o prefeito Geta os tinha confinado havia poucas horas. No centro do
salão jaziam os corpos do prefeito e do centurião Sínio. Este tinha um golpe na garganta, enquanto Geta fora apunhalado no coração. Os membros sobreviventes do seu
bando estavam junto aos cadáveres, de mãos atadas, e expressões receosas. A curta distância via-se o centurião Tigelino, ladeado por dois dos germanos. Cato e Macro,
ainda com as túnicas imundas, também estavam sob apertada vigilância. A Imperatriz, Nero e Britânico estavam sentados em bancos a um dos lados do trono; do outro
estavam os mais próximos conselheiros do Imperador, Narciso e Palias, bem como o tribuno Burro.
O olhar de Cláudio passeou lentamente pelos ocupantes do salão, e Cato percebeu que ele ainda estava bastante abalado pelo atentado que acabara de sofrer. Um pequeno
arranhão no rosto tinha sangrado até secar, e um rasto de sangue seco percorria-lhe o rosto até ao queixo; tinha mesmo manchado o cimo da túnica imaculada que envergava.
Inclinou-se para a frente, pousando o cotovelo no joelho e tamborilando o queixo com os dedos. Por fim recostou-se e limpou a garganta.
- Pelos deuses, alguém vai p-pagar por isto. - Apontou os dois cadáveres. - Este será o d-d-destino de todos os que estão ligados a esta conspiração. Quero as cabeças
deles montadas em estacas e expostas no fórum, para que todos as possam ver. Quero as f-famílias exiladas. Os seus simpatizantes terão de se haver com os leões na
ar-arena. - Engoliu em seco e engasgou-se, quase se esquecendo de respirar enquanto dava largas à fúria. Tossiu por momentos, a cabeça a sacudir-se enquanto tentava
recuperar
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o comando dos seus movimentos. Por fim o acesso de tosse passou e ele contemplou os corpos num silêncio furibundo, até que este se tornou insuportável. Narciso mordeu
o lábio e deu um passo em frente para atrair a atenção do Imperador.
- Sire? Talvez o melhor seja começar por ouvir o relatório do tribuno Burro - sugeriu.
Cláudio ponderou por momentos e anuiu.
- Sim... Sim. Bom. Bem, tribuno? Explica-te. Trata de ser con-conciso.
Todos os olhos se viraram para Burro à medida que ele avançava e se
colocava diretamente à frente do Imperador. Como era costume, estava impecavelmente fardado, e o elmo com a crista estava debaixo do braço. Inclinou ligeiramente
a cabeça antes de começar.
- Assim que o optio Fúscio me informou dos acontecimentos, alertei os homens, sire. Peguei na primeira secção disponível e fomos arrebanhando mais homens à medida
que nos dirigíamos para os vossos aposentos. Quando chegámos ao estúdio, porém, os traidores já estavam em fuga, portanto mandei os homens passarem busca aos jardins.
Foi lá que foram encontrados os corpos, e estes três homens. - Indicou Tigelino, Cato e Macro. - Todos eles protestavam quanto à sua participação nos eventos, pelo
que ordenei que fossem mantidos sob vigilância enquanto garantia que a família imperial estava a salvo e que não havia traços de outros traidores escondidos nos
jardins ou nos aposentos imperiais. Assim que descobri o papel que o prefeito Geta tinha tido na conspiração, dei instruções para que as suas ordens fossem revogadas.
Os germanos foram convocados e o resto dos pretorianos, que tinham sido colocados de guarda ao palácio, foram chamados para o interior e reposicionados para assegurar
a proteção do palácio e impedir qualquer entrada ou saída não autorizada, sire. Foi nessa altura que recebi a convocatória para me apresentar, sire - concluiu Burro,
com um breve aceno da cabeça.
Cláudio assentiu e cerrou os lábios. Apontou para Cato e Macro.
- E vocês os dois? Qual é a vossa his-história? Dá-me a impressão que vos reconheço. Já nos encontrámos antes?
- Sim, sire - respondeu Cato. - Durante a campanha na Britânia, e aqui mesmo no palácio, há alguns anos. E também estávamos ao seu lado quando o séquito imperial
foi atacado no fórum. E quando a barragem do lago Albino cedeu.
- Oh? - Cláudio semicerrou os olhos. - Vejo que envergam as túnicas dos pretorianos, mas parecem mais pedintes daqueles que conspurcam o f-f-f-fórum. Que papel é
que desempenharam nos eventos desta noite, hã? Estavam envolvidos na conspiração?
331

- Não, sire. O centurião Macro e eu mesmo estávamos no comando do grupo que vos salvou a vida no estúdio.
- Ah sim? Centurião Macro, dizes tu? E tu quem és então, jovem?
- Sou o prefeito Cato, senhor. Antes disso, fui centurião na Segunda Legião.
- Mas estás com a túnica dos pretorianos, tal e qual aqueles t-traidores ali pelo chão. Burro, estes dois homens são dos teus?
- Sim, sire. - Burro franziu o sobrolho. - Juntaram-se à Guarda há algumas semanas. Promovidos das legiões. Ou pelo menos era essa a história que contavam. Disseram
que se chamavam Capito e Cálido. Agora dizem que são o prefeito Cato e o centurião Macro.
- Ora bem. - Cláudio voltou a concentrar-se em Cato e Macro. - O que estavam dois oficiais das legiões a fazer na Guarda P-P-Pretoriana, com nomes falsos? Tudo aponta
para que estivessem envolvidos na conspiração contra mim.
Narciso deu um passo em frente, ao mesmo tempo que tossicava.
- Sire, responsabilizo-me por estes homens. São de facto oficiais das legiões. Fui eu quem os trouxe para Roma, para desempenharem uma missão ao vosso serviço, sire.
- Missão? Qual missão?
- Recorda-se do roubo da prata que ocorreu há tempos, sire?
- Evidentemente. Sou velho, não sou es-estúpido.
- Claro, sire. - Narciso inclinou a cabeça. - Recordar-se-á portanto que anunciei nessa altura que tinha descoberto uma ligação entre o roubo da prata e alguns membros
da Guarda Pretoriana. Homens que suspeitei estarem ligados aos Libertadores.
Cláudio anuiu.
- Continua.
- De forma a prosseguir as minhas investigações, precisava de ter homens no seio da Guarda, sire. Cato e Macro já vos prestaram valiosos serviços anteriormente,
e tamanha é a sua lealdade para convosco que aceitaram sem reservas colocar em risco as próprias vidas e infiltrarem-se incógnitos na Guarda para procurar desvendar
esta conspiração.
- Aceitámos? - sussurrou Macro. - Essa é muito boa.
- A missão era perigosa - prosseguiu Narciso. - Mas entre os seus esforços e os dos meus melhores agentes, conseguimos identificar os cabecilhas e pôr a descoberto
toda a extensão do plano, sire. Descobrimos que eram os traidores quem estava por trás da penúria de cereais. Tencionavam provocar a agitação social através da fome.
Felizmente, o depósito escondido dos Libertadores já foi localizado e está agora sob a proteção de uma das coortes urbanas, sire. - Narciso fez uma pausa e
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tossicou. - Dei essa ordem em vosso nome, pelo que solicito o vosso perdão.
Os olhos do Imperador rebrilharam, e ele inclinou-se na cadeira.
- O cereal está a salvo, dizes tu? Nesse caso, é preciso começar a distribuí-lo à p-p-populaça assim que p-possível.
- Já dei ordens para que os mantimentos fossem trazidos para o palácio, sire, para que o crédito do recomeço da distribuição recaia sobre o Imperador.
- Muito bem feito! - Cláudio sorria, aliviado. Fez um sinal com a mão. - Prossegue.
Narciso fez uma pausa, enquanto lançava um olhar significativo ao centurião Tigelino.
- Embora dois dos oficiais que lideraram a conspiração estejam já mortos, e os outros participantes no atentado tenham sido abatidos ou capturados, há outras pessoas
envolvidas nesta conspiração. Ou, mais precisamente, nas duas conspirações.
Cláudio franziu o sobrolho.
- Duas? Explica-te.
Narciso fez um gesto designando Cato e Macro.
- Sire, os meus agentes descobriram a existência de um plano paralelo. Os Libertadores não eram os únicos traidores que trabalhavam para a vossa queda. O colapso
da barragem, a tentativa de perturbar a naumáquia, foram obra de outros conspiradores. De gente que esperava aproveitar os esforços dos Libertadores para os seus
próprios fins... - Narciso virou-se para Tigelino e rodeou-o com passos lentos, de forma a poder olhar para Palias antes de prosseguir. - Só esta noite, com este
atentado à vossa vida, é que comecei a aperceber-me de todo o alcance dos planos desta gente. Era sua intenção fazer tudo o que pudessem para auxiliar os Libertadores
a pôr fim à vossa vida, sire. E então aproveitar o caos para colocar no trono quem bem entendessem.
Cato notou que o sangue fugira da face de Palias enquanto o secretário imperial revelava os seus pensamentos. O conselheiro lançou um rápido olhar a Agripina, até
que conseguiu recuperar o controlo de si mesmo e enfrentar sem vacilar o olhar do seu rival, Narciso.
- Quem são esses outros traidores então? - exigiu saber o Imperador. - E por quem é que tencionavam s-substituir-me?
Narciso virou-se e inclinou a cabeça na direção de Nero.
- Pelo vosso filho adotivo.
Cláudio sugou o ar, abismado, e virou-se também para o jovem.
- Isto é verdade?
O queixo do rapaz descaíra, e ele só conseguiu abanar a cabeça. Antes
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que recuperasse o uso da fala, já Agripina tinha saltado com uma expressão furiosa e espetara o dedo na direção de Narciso.
- Ele mente! Ele e todos esses libertos gregos de que tanto gostas de te rodear.
Palias estremeceu visivelmente.
- Como te atreves a acusar o meu filho? - continuou Agripina, furibunda. - Como é que te atreves?
- Não o acusei de tomar parte na conspiração - respondeu Narciso em tom suficientemente alto para se fazer ouvir acima dos protestos da Imperatriz. - O que eu disse
foi que havia outros que queriam colocar Nero no lugar do Imperador. Presumivelmente, de forma a poderem manipulá-lo para atingir os seus próprios fins.
- Quem são esses traidores? - repetiu Cláudio, tão concentrado no assunto que esqueceu o gaguejar. - Nomeia-os.
- Não posso, sire. Ainda não posso. Estou lá perto - desculpou-se Narciso, enquanto não se coibia de olhar significativamente para Palias e Agripina. - Mas conheço
a identidade de um homem próximo do núcleo desta segunda conspiração. Nomeadamente, este oficial. - Apontou para o centurião Tigelino. - Os meus agentes, Cato e
Macro, apanharam-no junto aos corpos dos dois oficiais que comandaram o atentado à vossa vida, o prefeito Geta e o centurião Sínio. Nessa altura estava ao lado deles,
e acompanhou-os na fúga, e é evidente que os liquidou para esconder a sua participação no plano. Naturalmente protestou a sua inocência, e proclamou que só os perseguira
e combatera, acabando por matar os dois.
- E é essa a verdade, sire - afiançou Tigelino com toda a calma.
- Não, não passa de uma mentira - ripostou Narciso. - Como ficará provado quando fores entregue aos meus interrogadores, que depressa descobrirão ao certo quem são
os teus cúmplices. Têm um certo jeito para extrair respostas a traidores.
Tigelino olhou para Agripina, e esta deitou uma olhadela a Palias, enquanto fazia um gesto discreto a pedir-lhe que interviesse. O liberto lambeu os lábios, ansioso,
e avançou um passo.
- Sire, este homem, o centurião Tigelino, está inocente. Juro-o.
- Oh? - Narciso não evitou um sorriso sardónico. - E como podes ter tu tanta certeza disso?
- Ele está ao meu serviço - retorquiu Palias. - Desde o princípio desta história que o faz.
Cláudio parecia desconcertado.
- Dizes que este traidor é teu agente?
- Sire, não se trata de nenhum traidor. Também eu tinha descoberto que os Libertadores planeavam um golpe para vos derrubar. E, tal como
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Narciso, resolvi infiltrar um homem da minha confiança na conspiração, de modo a descobrir quem estava por trás dela. Não é verdade, centurião?
- Isso mesmo - concordou Tigelino, anuindo com veemência. - Era esse o plano.
- Apesar de termos dado o nosso melhor para nos infiltrarmos na conspiração, devo reconhecer que não tivemos tanto sucesso como o meu estimado colega Narciso e a
sua equipa. - Palias inclinou a cabeça respeitosamente na direção de Narciso, que respondeu às palavras elogiosas com um olhar gelado e repleto de ódio. - O Tigelino
ainda estava a recolher informações quando os vossos inimigos atacaram, sire. Ainda assim, conseguiu avisar a Imperatriz e o príncipe Nero antes que eles fossem
também atacados.
Cláudio ergueu uma mão a impor silêncio, e virou-se para a esposa.
- Isto é verdade?
Agripina anuiu.
- Ele veio até aos meus aposentos para nos dizer para nos escondermos, eu e o Nero. Disse que ia tentar salvar-te.
Cláudio olhou-a admirado.
- O Nero estava no teu quarto? Na tua cama?
- Não conseguia dormir - desculpou-se Agripina, sem vacilar. - O pobrezinho estava com uma dor de cabeça, e eu estava a cuidar dele.
- Estou a ver. - Cláudio virou-se de novo para Palias. - E como é que tudo isto chegou ao teu conhecimento?
- Sire?
- Que o Tigelino conseguiu avisar a minha esposa?
- Foi ela quem mo disse, há pouco, enquanto vos aguardávamos.
- Muito bem. - O Imperador coçou o queixo. - Parece-me melhor ouvir o resto dos lábios do próprio centurião. Tigelino, fala. O que aconteceu a seguir?
- Sire, deixei a Imperatriz e corri para apanhar os traidores, mas eles já tinham entrado no vosso estúdio para vos atacar. Ouvi sons de luta, e depois vi os dois
traidores a fugir. Reconheci o Geta e o Sínio, e persegui-os. Encurralei-os ao fundo do jardim. Viram-se forçados a dar-me luta mas, pela graça de Júpiter, eu prevaleci.
Foi nessa altura que o Capito - peço-vos perdão, sire - que os agentes do Narciso apareceram, com alguns pretorianos. Demasiado tarde para me auxiliarem, infelizmente
- acrescentou, em tom de lamentação.
- Isso dizes tu - interrompeu Narciso. - Mas a verdade é que assassinaste os dois oficiais para impedir que eles te implicassem. Estavas muito longe de tentar investigar
a conspiração dos Libertadores, já que estavas a fazer tudo o que te era possível para a auxiliar, de forma a que os teus patronos
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pudessem apossar-se do poder em nome do príncipe Nero, depois de o Imperador ter sido assassinado. É evidente que avisaste a Imperatriz e o seu filho de forma a
preservá-los, e que não tinhas intenção de fazer o que quer que fosse para socorrer o Imperador.
Tigelino encolheu os ombros.
- É uma bela história, liberto. Mas não passa disso.
- Oh, é muito mais do que isso - ripostou Narciso, com ênfase. - Não se tratou de uma coincidência que a Imperatriz, o príncipe... E também Palias, não tivessem
acompanhado o Imperador no dia em que a barragem foi sabotada.
- Ah, foi sabotada? Não fazia a mínima ideia.
- Então porque tentaste assassinar Cláudio quando a água se precipitou sobre nós?
Tigelino franziu o sobrolho.
- Não fiz nada disso.
- Fizeste, sim. - Narciso virou-se para Cato. - Não é verdade, prefeito Cato? Se não tivesse aparecido e chegado primeiro junto do Imperador, ele teria sido morto.
Não foi assim?
Cato estava perfeitamente consciente de que todos os olhares convergiam sobre ele naquele momento, e o coração acelerou-lhe com a ansiedade própria à situação. Era
verdade que Tigelino, Palias e Agripina tinham planeado de facto a morte do Imperador, mas já tinha percebido que eles estavam a fazer um magnífico trabalho para
apagar os seus rastos. Até àquele momento, Narciso tinha tido o cuidado de não apontar diretamente Palias nem a Imperatriz, e tinha centrado as suas acusações em
Tigelino. Sob tortura, o centurião não deixaria de confessar o envolvimento dos outros, e o caso que Narciso construíra contra eles ficaria completo. Mas, e se o
secretário imperial não conseguisse derrotá-los? Cato estava certo de que, nesse caso, ele e Macro se juntariam sem demora à lista de inimigos daquela dupla - um
perigo que não podia ser ignorado. Limpou a garganta antes de começar.
- Foi de facto estranho que só o centurião não tenha sido surpreendido pelo rebentar da barragem. Já tinha tirado a armadura, e foi o primeiro a reagir. Foi por
isso que me interpus entre ele e o Imperador.
- Fiquei tão espantado como os outros - contrariou Tigelino. - Devo ser castigado por ter reagido ao perigo mais depressa do que outros? Já imaginou que o facto
de me ter impedido de auxiliar o Imperador pode ter aumentado o perigo que a sua vida correu?
- Fui incumbido de proteger o Imperador - afirmou Cato. - As tuas ações foram suspeitas, no mínimo. E, tal como o secretário imperial fez notar, foi muito conveniente
que todos os que mais tinham a ganhar com a morte do Imperador não estivessem na cena.
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- Não sou responsável pelo paradeiro de membros da família imperial - ripostou Tigelino, tentando anular o efeito das palavras de Cato. - Pelo contrário, sou responsável
pela segurança do Imperador, e por isso tentei ajudá-lo assim que me apercebi do risco que corria.
- Basta de mentiras! - interrompeu Narciso. - Vamos deixar esta questão nas mãos dos meus interrogadores. Depressa chegarão ao fundo da questão. Sire, posso dar
as ordens necessárias?
Antes que Cláudio considerasse a pergunta, Agripina correu para o seu lado e ajoelhou-se à sua frente.
- Meu querido Cláudio, não podemos permitir que este bom homem sofra só porque um dos teus servidores suspeita de um hipotético seu envolvimento neste pérfido plano
dos Libertadores. - A voz dela era baixa e doce, e lançou um olhar piedoso a Tigelino. - Seria uma fraca recompensa por me ter salvo a vida, bem como a do meu filho.
Além disso, o Palias jurou que ele te é leal.
Cláudio sorriu à esposa.
- Sim, mas o Narciso não o fez, e aprendi a confiar no seu julgamento ao longo dos anos.
Agripina pegou-lhe na mão e pressionou-a contra o fino tecido que lhe cobria os seios. O sorriso de Cláudio ganhou evidentes contornos de lascívia. Ela voltou a
falar, em voz ainda mais baixa e melíflua, quase como se miasse.
- O Narciso tem trabalhado sem descanso para te proteger. Sei-o bem. Mas os homens esgotados cometem erros, meu amor. É de esperar. O pobre homem está assoberbado
de trabalho, e tão acostumado a ver conspirações que por vezes a verdade pura e simples lhe escapa. Ouviste as acusações que lança, e ouviste também as explicações
do Tigelino quanto à sua conduta. Quanto a mim, acredito no centurião.
Cláudio rodou no assento para lhe afagar a maçã do rosto com a mão livre, enquanto mantinha a outra sobre o seio da mulher.
- Minha querida, és d-d-demasiado boa. Demasiado inocente das maquinações dos homens.
Cato notou o pânico que começava a instalar-se nas feições de Narciso. O secretário deu um passo na direção do Imperador.
- Sire, sugiro que deixemos os meus interrogadores resolver esta questão. Se o Tigelino estiver inocente, depressa o saberemos. Será melhor admitir que ele pode
sofrer um bocado do que permitir a um traidor escapar à punição.
- Por favor, Cláudio, já houve suficiente derramamento de sangue esta noite - disse Agripina, antes de baixar a cabeça de forma a conseguir beijar a palma da mão
do Imperador. Cato reparou que a sua língua
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dardejava rapidamente, acariciando a pele do Imperador, e Cláudio respondia com um tremor de prazer.
- Tens toda a razão, meu amor. - O Imperador sorriu, antes de olhar para os presentes na câmara de audiências. - A conspiração contra mim foi esmagada. Os cabecilhas
estão mortos. Tudo o que i-i-importa agora é voltar a alimentar o povo de Roma. Palias, encarregar-te-ás disso.
- Com todo o prazer, sire. - Palias dobrou-se respeitosamente.
Cláudio virou-se para Narciso.
- Meu amigo, agiste bem. Mais uma vez derrotaste os meus inimigos, e a minha dívida para contigo cresceu. Mas a Imperatriz tem razão. Não podemos dar azo a um pânico
cego. O centurião obedecia às instruções de Palias. Sou verdadeiramente afortunado por ter dois servidores que exibem tamanha devoção... - Fez uma pausa e olhou
para Cato e Macro. - E devo-vos também agradecimentos... - O sobrolho vincou-se.
- Cato, senhor - indicou Cato. - Prefeito Cato e centurião Macro.
- Cato e Macro. Excelente trabalho. Serão recompensados. É graças a vocês que R-Roma pode voltar a ser alimentada. - Ergueu-se do trono e aproximou-se deles com
um sorriso de agradecimento estampado no rosto. Parou à distância de um braço, cheirou o ar e fez uma careta. - Bem, pois. Bom t-trabalho. O melhor será que vão
tomar um banho e vestir umas t-túnicas lavadas.
- Sim, sire - responderam Cato e Macro, inclinando as cabeças.
Cláudio obrigou-se a sorrir de novo antes de fugir do alcance do pestilento odor que se libertava das duas túnicas imundas. Voltou a pegar na mão de Agripina e lançou-lhe
um olhar elucidativo.
- Vamos, meu amor. A noite tem sido agitada. F-F-Fazia-nos bem descansar um pouco, não achas?
A Imperatriz fez arquear as sobrancelhas, respondendo no mesmo tom cúmplice. Cláudio conduziu-a à porta nas traseiras do salão de audiências. Deteve-se junto a ela
e mirou os prisioneiros, que tinham estado em silêncio, esperando contra toda a esperança que todos se esquecessem deles.
- Ah, já agora, esses homens que sejam executados. As cabeças deles que sejam montadas e expostas junto às das dos seus líderes. Palias, trata também disso.
- Sim, sire.
Cláudio voltou-se para a esposa e prosseguiu para a porta com o seu andar oscilante. Britânico e Nero seguiram-no de perto. Os restantes homens na sala esperaram
em silêncio até que o Imperador e a família os deixassem. Só então começaram a falar, em tons de murmúrio. Alguns dos germanos pegaram nos prisioneiros e conduziram-nos
ao cadafalso,
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enquanto outros pegavam nos corpos de Geta e Sínio. Tigelino virou-se para Cato e Macro com um esgar de ameaça.
- Para vosso bem, espero que os nossos caminhos não voltem a cruzar-se.
- Não te preocupes - ripostou Macro. - Vamos deixar os pretorianos o mais depressa possível. O que nós queremos é voltar para junto de verdadeiros soldados.
- Sortudos. Salário mais baixo, poucas perspetivas de carreira, as miseráveis condições da fronteira. Estou positivamente a roer-me de inveja.
Macro agarrou na túnica do centurião e puxou-o para si.
- Sei bem quem tu és - disse numa voz baixa, repleta de ameaça. - Podes ter enganado o Imperador, mas eu e o Cato sabemos qual é a verdade. Se realmente os nossos
caminhos se voltarem a cruzar, juro que te trato da saúde primeiro, e faço perguntas depois.
- Isso pouco interesse teria - observou Tigelino, enquanto soltava a túnica das mãos de Macro. - E agora, se mo permitem, devo dizer que o vosso fedor é francamente
ofensivo. - Recuou até uma distância segura e foi colocar-se ao lado de Palias. O liberto não evitava um ar de triunfo enquanto enfrentava Narciso.
- Isto ainda não acabou - avisou o secretário imperial com ar firme.
- Ganhaste esta batalha, mas não conseguirás iludir o Imperador muito mais tempo.
- Nem preciso. Quanto tempo mais achas que o Cláudio vai aguentar? Cinco anos? Três? Um? - Palias torceu a bainha da túnica. - O meu rapaz está bem alinhado para
chegar ao púrpura. O Britânico é um caso perdido. Aceita o facto de que apostaste no cavalo errado, Narciso. O Nero é meu. A mãe dele também, e o Imperador acaba
de me confiar a tarefa de distribuir o cereal à população. A mim dá-me a ideia de que me vou transformar em alguém extremamente popular numa cidade esfomeada, não
achas? Entretanto, o que tens tu? A gratidão do Imperador... E é tudo. O que é que achas que isso te vai valer quando a Agripina lhe espetar as garras como ele gosta?
Por muitos talentos que tenhas, duvido que seduzir um jarreta lúbrico esteja entre eles. - Palias deu-lhe uma palmada no ombro. - Aproveita este momento, meu velho
amigo. Não terás muitas mais oportunidades semelhantes. Dou-te a minha palavra. Vem, Tigelino. - Acenou ao centurião e dirigiu-se à porta da sala. - Temos de conversar
sobre o teu futuro.
Só Narciso, Cato e Macro tinham ficado no salão. O secretário imperial pôs-se de pé e contemplou o trono imperial com uma expressão cansada e amarga. Macro puxou
pelo braço de Cato e falou em voz baixa.
- Vamos, está tudo acabado. Já não temos nada a ver com isto.
- Acabado? - Cato abanou a cabeça. - Como pode dizer isso?
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- O povo vai receber o seu cereal. O Imperador sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Nós ainda estamos vivos. - Macro encolheu os ombros. - Quanto a mim, o
resultado é o melhor que podíamos esperar. E agora davam-me jeito um banho, uma bebida e algum sono. E a ti também. Vamos, miúdo.
- Ir? Para onde? De volta ao quartel? Não lhe parece que isso vai ser difícil, agora que a nossa história foi exposta?
- Onde mais é que podemos ir? Cato, não temos onde ficar fora das casernas.
Cato pensou por momentos, e anuiu. Agora que a conspiração tinha sido desmantelada, não correriam qualquer perigo no campo, mesmo usando os seus verdadeiros nomes.
Pelo menos durante uns dias, enquanto não pudessem arranjar outras acomodações. Cato deitou um último olhar ao secretário imperial, com o seu ar destroçado. Havia
ainda um assunto a resolver.
- Narciso... Ainda temos de conversar.
- Pois - retorquiu o visado, ausente. Então virou-se para olhar para Cato, com o habitual ar calculista. - Conversar sobre o quê?
- Os Libertadores - retorquiu Cato, deliberadamente. - Isso, e a sua promessa de nos arranjar colocações no exército, bem como a de confirmar a minha promoção.
- Estou a ver. Sim. - Narciso anuiu devagar. - Falaremos mais tarde, então.
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Lurco e o Vitélio não ficaram particularmente agradados quando
dei ordens para que fossem libertados - lançou Narciso, com um sorriso pouco convicto. - Ao que parece, o Vitélio jurou mesmo vingar-se de vocês os dois em particular.
- Talvez tivesse sido melhor então esquecê-lo - ripostou Macro, sem traço de humor. - Teria sido muito melhor se ele tivesse sido lançado para um poço bem fundo,
e ficado por lá. Não me parece que houvesse muita gente a sentir a sua falta. Aliás, por falar nisso, se quiser o trabalhinho feito, é só pedir.
- Lembrar-me-ei disso - retorquiu Narciso. - Não fosse o facto de o Vitélio odiar o Palias ainda mais do que eu, e estaria tentado a aceitar a tua oferta. Mas a
verdade é que ele ainda me pode vir a ser útil. E com toda a franqueza, nesta altura preciso de todos os aliados que consiga reunir.
Cato perguntou-se se o secretário imperial estaria a tentar despertar-lhes a simpatia. Tinham passado cinco dias desde o atentado contra o Imperador. Cláudio tinha
passado a maior parte desse tempo na companhia da sua jovem esposa, e tinha deixado todos os assuntos prementes nas mãos dos subordinados. Palias encarregara-se
da distribuição de cereais, e o tribuno Burro fora nomeado prefeito da Guarda Pretoriana. O outro prefeito fora aliciado a uma reforma precoce com uma boa pensão,
e não havia planos para o substituir. Dali em diante, a Guarda teria apenas um comandante, com todos os riscos que essa situação implicava. A Imperatriz tratara
de garantir que o centurião Tigelino fosse promovido para a posição anterior de Burro. Para Cato era evidente que o equilíbrio do poder se alterara, e agora eram
Palias e os seus associados que estavam na mó de cima.
Narciso mantivera-se em silêncio por momentos, como se aguardasse algumas palavras de conforto quanto à posição delicada que passara a ocupar. Quando nenhuma surgiu,
fez uma breve careta e debruçou-se para a frente, apoiando os cotovelos na secretária; entrelaçou os dedos das mãos enquanto contemplava os dois oficiais sentados
à sua frente.
- Como se recordarão, o Imperador prometeu-vos uma recompensa pela vossa contribuição para a descoberta dos planos dos Libertadores.
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Dado que a Agripina está ocupada a entreter e enredar o seu esposo, parece-me aconselhável que recolham agora mesmo a vossa recompensa, antes que ela o leve a mudar
de ideias. O mais provável é que, no futuro próximo, Roma se torne um local tão perigoso para vocês os dois como é para mim.
- Duvido um bocado - comentou Macro. - Nós não temos nada a ver com os jogos que disputa com o Palias.
- Oh, isso é que têm. E não é pouco. Tu e o Cato estiveram bem perto de expor os planos da Agripina e do Palias. O Tigelino teve muita sorte por conseguir escapar
com vida. Tenho fortes dúvidas de que se mostrem muito inclinados a perdoar as vossas ações. Portanto, parece-me aconselhável afastar-vos de Roma e arranjar-vos
uma ocupação mais segura. A estrela do Palias cresce, e nesta altura acho difícil de acreditar que não seja o Nero a suceder ao Cláudio. E nesse caso, o Britânico
é um caso perdido. Já não há muito que possa fazer para o salvar. Aliás, se calhar, não há muito que possa fazer para me salvar a mim mesmo, mas farei por vocês
os dois o que puder. É o mínimo que merecem depois de tudo o que passaram ao serviço do vosso Imperador.
Cato abanou a cabeça.
- Narciso, bem nos pode poupar a essa comiseração e exibição de autossacrifício. Se tem intenções de nos manter a salvo, só pode ser porque pensa que poderá vir
a ter necessidade de nos usar outra vez no futuro. E nesse caso, sim, claro que aceitamos a nossa recompensa, mas nos nossos termos.
- Nos vossos termos? - As sobrancelhas de Narciso arquearam-se de assombro. - E que termos vêm a ser esses?
- Tratará de assegurar que a minha promoção a prefeito seja confirmada, e assegurar-nos-á posições de comando de acordo com as nossas patentes. Já o justificámos
uma e outra vez, e chegou a hora de recebermos aquilo que merecemos - concluiu Cato com firmeza.
O secretário imperial considerou Cato com o olhar.
- Tens uma alta opinião de ti e do teu amigo. O que é que te leva a pensar que vou aceitar as tuas exigências?
- O interesse é mútuo - respondeu Cato. - Enquanto tiver alguma influência sobre o Imperador, é justo que eu e o Macro beneficiemos dela.
- E o que ganho eu com isso?
Cato contemplou o homem com toda a frieza, antes de responder.
- Se conseguirmos o que queremos, eu e o Macro não acharemos necessário mencionar a sua tentativa de fazer com que o Nero fosse assassinado.
Macro agitou-se e olhou para o amigo, surpreso, mas manteve-se calado enquanto esperava que Cato explicasse a ameaça.
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- Não sei do que estás a falar - contrapôs Narciso, sem dar mostras de emoção. - E sugiro que retires imediatamente essa ridícula acusação.
- Ridícula? - Cato soltou uma meia gargalhada. - Não me parece, de todo. Ouvi-a da boca do Céstio antes de ele morrer. Confessou que foi pago para matar o Nero.
- Não por mim, com toda a certeza.
- Ele afirmou que recebeu as ordens do Sétimo, que só a si responde. Portanto, é fácil perceber a verdadeira origem desse atentado.
- Não me parece. O Céstio está morto. Não tens qualquer prova.
- A não ser que o Sétimo seja persuadido a confirmar a informação do Céstio. Não apenas quanto à tentativa de eliminar o Nero, mas também acerca de outras tarefas
que executou a seu pedido.
- Tais como...?
Cato encarou o secretário imperial bem nos olhos.
- Todas as relacionadas com a ameaça dos Libertadores nestes últimos anos.
Narciso enfrentou o olhar de Cato sem deixar transparecer de que forma fosse os seus pensamentos.
- Continua.
- Muito bem. - Cato anuiu, enquanto organizava as suas suspeitas e as conclusões a que elas conduziam. - Vamos lá falar dos Libertadores. Têm sido um verdadeiro
espinho cravado na carne do Imperador desde que ele chegou ao trono. Ou mais precisamente, desde que um certo liberto começou a manejar os cordelinhos e a exercer
o poder por trás do pano.
- Muito interessante. E então?
- Sempre existiram conspirações contra imperadores. Mas nunca uma tão persistente e obscura como a dos Libertadores. O que não deixa de ser estranho, dado que até
há bem pouco tempo não tinham conseguido nada de especial. - Cato fez uma pausa. - Nestes últimos dias, tenho pensado muito nisto. Ocorreu-me uma ideia: se os Libertadores
não existissem, poderia ser uma excelente ideia inventá-los.
Macro franziu o sobrolho.
- O que é que estás para aí a dizer? Como é que isso podia ser uma boa ideia?
Cato virou-se para o amigo.
- Pense nisto. Há imensa gente que não se importaria nada de se ver livre dos imperadores. Alguns até podem chegar ao ponto de traçar planos contra o Cláudio. Mas,
e se existisse uma organização secreta dedicada a derrubá-lo? Não tão secreta que a sua existência não fosse conhecida, claro. Não atrairia a atenção da maior parte
dos presumíveis assassinos? Seria
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muito melhor juntar-se a gente com as mesmas ideias do que tentar eliminar um suposto tirano numa missão individual.
Macro cerrou os lábios.
- Sim, acho que sim.
- Assim sendo, não seria lógico usar os Libertadores como uma frente para fazer saltar todos os que têm alguma queixa contra o Cláudio? É precisamente o tipo de
esquema que podia nascer da cabeça de um homem encarregado de gerir a rede de espiões do Imperador, não lhe parece?
Macro abanou a cabeça.
- É um passo muito grande. Até para o Narciso. Seria um pouco como brincar com o fogo.
- Sim, seria arriscado, mas enquanto funcionasse, seria uma forma inequívoca de identificar possíveis traidores, e tratar de os despachar discretamente, ou então
de os recrutar para atuarem como agentes duplos.
Narciso recostou-se na cadeira.
- Tudo isso é muito interessante, mas a verdade é que não tens a mais pequena prova de que um esquema desse género alguma vez tenha existido.
- Claro que não. Só assim, aliás, é que poderia ter funcionado. Os Libertadores teriam de beneficiar de uma larga autonomia, se se queria que eles acreditassem que
a sua conspiração era de facto real. Só que se deu um facto que não conseguiu prever. - Cato abanou ligeiramente a cabeça. - Nunca imaginou que a organização acabasse
por assumir uma vida própria. Perdeu o controlo sobre eles, não foi?
Narciso não respondeu, e instalou-se um tenso silêncio, que só foi quebrado quando o secretário imperial pigarreou de forma bem audível.
- Como já disse, não tens qualquer prova para suportar essas especulações desvairadas.
- Tê-las-ei, assim que o Sétimo for interrogado. Era o seu braço-direito. Sabia tudo sobre os Libertadores. Mais do que um ajudante, ele é realmente o seu braço-direito.
Narciso sorriu.
- Por acaso, Cato, é até bastante mais do que isso. O Sétimo é meu filho. Achas mesmo que ele seria capaz de me trair? Foi por isso que o pus naquela posição. Pelo
menos nele posso confiar.
- Seu filho? - Cato ficou atónito. Mas depressa se recompôs. - Faz sentido, sim. Mas até um filho é bem capaz de denunciar um pai, com o grau suficiente de... Persuasão.
Não contaria muito com a capacidade do Sétimo em manter a boca fechada.
- Nesse caso, também não deverás contar muito com a possibilidade de o capturar vivo. Ou ele se suicidaria, ou alguém trataria disso por ele.
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Cato sentiu o estômago dar uma volta com o asco que sentia pela figura na sua frente.
- Não seria capaz disso.
- Seria, sim. Achas mesmo que um homem como eu, com o meu passado, era capaz de conseguir tudo isto, sem abandonar pelo caminho todo e qualquer princípio, exceto
o do interesse próprio? Então?
Por momentos, a máscara de impassibilidade que Cato mantinha desde o início da conversa desapareceu, e ele murmurou:
- Pelos deuses, é verdadeiramente um monstro...
Narciso abanou a cabeça.
- Sou apenas um servidor do Imperador, encarregado de o manter no poder a todo o custo. Nada mais.
Deu-se um novo momento de silêncio, até que o secretário imperial continuou.
- Sei perfeitamente que me vão desprezar pelo que vos vou dizer a seguir.
- Não - interrompeu Macro. - Já o desprezamos antes de o saber.
Narciso lançou-lhe um olhar gélido.
- Seja como for, têm de compreender o que está em jogo, antes de me condenarem. Sou eu quem se interpõe entre a ordem do Império e o caos. É essa a natureza do meu
mundo. Não tenho lugar para todos esses valores impolutos que vos parecem tão importantes a vocês, como soldados. - Os lábios arrepanharam-se num esgar de desprezo.
- Acho que o melhor é mesmo que vocês regressem ao exército. O vosso sentido de moralidade coloca-vos em demasiado perigo aqui em Roma. E ameaça tudo o que eu defendo...
Cato cerrou os olhos e lutou para impedir a bílis de lhe chegar à boca. Quando os reabriu, recusou-se a contemplar Narciso, e preferiu olhar para o amigo.
- Acho que me sentia menos conspurcado quando estava metido na merda até ao pescoço, na Cloaca Máxima. Ele tem razão, Macro. Devíamos pôr-nos daqui para fora. Deixar
Roma. Voltar ao exército.
O amigo assentiu, enquanto se punha de pé.
- Como eu sempre disse. Vamos.
Cato levantou-se também, e então olhou para Narciso uma última vez.
- Tratará de nos colocar em comandos adequados. Uma vez isso feito, nunca falaremos de nada disto. A ninguém.
- É esse o acordo - confirmou Narciso. - E uma vez que o desejam com tanto ardor, será com todo o prazer que tratarei de vos enviar de novo para... a Britânia. Estou
seguro de que os nativos ficarão deliciados com a notícia do vosso regresso.
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- Para mim, perfeito - ripostou Cato, antes de deitar uma olhadela a Macro, se virar e sair pela porta fora, sentindo-se verdadeiramente enjoado. Os dois homens
mantiveram-se em silêncio até saírem do palácio e se verem metidos no denso tráfego da Via Sacra, a artéria que atravessava o coração da capital.
- Achas que ele vai cumprir a sua parte do acordo? - indagou Macro.
- Vai, sim. Serve os seus propósitos afastar-nos daqui, e depressa. E depois disso não terá tempo para se lembrar sequer de que nós existimos. Estará demasiado ocupado
a combater o Palias. - Cato pensou alguns momentos. - Duvido que consiga sobreviver muito tempo. Parece-me que desta vez encontrou um adversário à altura.
- Boa viagem, já vai é tarde.
Cato olhou para o amigo e soltou uma gargalhada sem vontade.
- Cai o Narciso, o Palias ascende à sua posição, e tudo fica na mesma. Assim se passarão as coisas.
- E então? Por essa altura já nós estaremos bem longe. De volta ao sítio a que pertencemos.
- À Britânia?
- E porque não? É por lá que há combates a sério, nesta altura. - Macro bateu palmas, satisfeito com as perspetivas de futuro. - Pensa bem, miúdo. Batalhas a vencer,
saques para recolher, e tudo isto bem longe daquele réptil viscoso. E ainda temos aquela pequena fortuna que o Sínio nos deu. Como é que as coisas podiam ser melhores?
Cato estacou e encarou o amigo.
- Faz mesmo tenção de ficar com o dinheiro?
- E porque não? Não me vais dizer que não o merecemos. Tu e eu.
Cato ponderou a questão.
- Se alguém viesse a descobrir que ficámos com a prata, estaríamos metidos num valente sarilho.
- Quem é que sobrou vivo para contar a história? - Macro sorriu. - O Sínio está morto, e o Geta também.
- Então e o Tigelino?
- Sim, talvez saiba alguma coisa. Mas se disser alguma coisa, será apenas a prova de que sabia mais sobre os Libertadores do que admitiu. Não, esse manterá a boca
calada. - Macro lançou um olhar suplicante ao amigo.
- Vá lá, miúdo. Depois de tudo o que já passámos, é bem justo. E o Cláudio não vai sentir a falta de um punhado de moedas.
- Punhado? - Cato lutou com a ideia alguns momentos, até que o espectro de Narciso e das suas maquinações perversas lhe surgiu na mente. Assentiu. - Ora, porque
não?
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- É assim mesmo! - Macro sorriu, aliviado, e deu-lhe uma palmada no ombro. - Eu sabia que havias de ter bom senso.
- O bom senso não tem nada a ver com isto - retorquiu Cato, sem emoção.
Chegaram à estrada que levava ao quartel pretoriano, e pararam. Depois de as suas verdadeiras identidades terem sido reveladas, tinham-lhes sido dados alojamentos
no quartel-general, mas os outros oficiais falavam com eles usando uma formalidade fria.
- Vá andando - disse Cato. - Tenho de fazer uma coisa.
Macro soltou um sorriso, meio terno, meio nervoso pelo amigo.
- Isso quer dizer que ela está de regresso a Roma.
- Soube-o esta manhã. - Cato sentia a apreensão a crescer-lhe no peito, perante a perspetiva de voltar a ver Júlia. Já tinha passado mais de um ano desde que se
tinham visto pela última vez. E durante todo esse tempo, tinham-se limitado a trocar algumas cartas. As palavras dela tinham sido sempre meigas e reconfortantes,
mas Cato não conseguia sentir-se certo de que o coração da jovem ainda lhe pertencia. - Prometi a mim mesmo que a veria assim que despachássemos a reunião com o
Narciso.
- Bom, vai lá, então. Do que é que estás à espera?
O sobrolho de Cato franziu-se, mas o jovem não se mexeu, como se de repente tivesse criado raízes naquele local.
- Não sei... Não sei mesmo.
- O que é que há para saber, para lá de descobrires em que pé estão as coisas entre vocês? - Macro empurrou-lhe o ombro. - E só o poderás saber se a fores ver.
- Sim. Tem razão. Eu vou. Agora mesmo.
- Queres que te leve pela mão?
Cato olhou para o amigo, irritado.
- Ora, vá-se foder, muito obrigado.
Macro soltou uma gargalhada com vontade e piscou o olho ao amigo antes de se virar e seguir pela estrada que levava ao campo militar, com ar feliz, como se não tivesse
qualquer preocupação. Cato observou-o, cheio de inveja, e depois seguiu o seu caminho, passando pelo meio da multidão enquanto se dirigia à casa do senador Semprónio,
na encosta do monte Quirinal.
A manhã estava a chegar ao fim quando subiu os degraus que levavam à entrada da casa. As pesadas portas de madeira estavam abertas de par em par, e os últimos dos
visitantes do senador aguardavam em bancos no átrio, à espera de vez para apresentarem as suas petições ao patrono. Um escravo aproximou-se de Cato, para saber ao
que ia.
- Estou aqui para falar com Júlia Semprónia.
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- Sim, senhor. Quem devo anunciar?
Cato respirou fundo, tentando acalmar os nervos.
- O prefeito Quinto Licínio Cato.
O escravo assentiu e afastou-se, para levar o pedido à sua senhora. Durante um longo momento de agonia, Cato sentiu-se tentado a chamá-lo e a dizer-lhe para cancelar
o pedido. Mas o escravo já estava na outra ponta do átrio, e Cato sentiu que não devia desatar aos gritos para o alertar. Era demasiado tarde. Aguardou em pé, de
mão direita a batucar na perna, em pulgas. Olhou em redor, sem ver realmente os pormenores da casa.
E então imobilizou-se, gelado.
O céu estava limpo, e as cotovias volteavam pelo ar límpido, mas Cato não tinha olhos para as ver nem ouvidos para escutar as suas canções estridentes. Ao invés,
tinha os olhos presos no outro lado do átrio, onde surgira uma jovem e esbelta mulher, numa túnica longa, azul-clara, sem adornos. Estava junto a uma porta, e tinha
o cabelo escuro apanhado num rabo-de-cavalo funcional, sem artifícios. Olhava para ele. E então começou a avançar a passo firme pelas lajes do chão, rodeando o lago
que ocupava o centro do átrio, diminuindo a velocidade à medida que se aproximava. Cato tentou desesperadamente ler a expressão que ela mostrava, para antever a
angústia ou a alegria que se aproximavam a cada segundo.
- Júlia Semprónia. - Inclinou formalmente a cabeça, sem saber bem porque o fazia e sentindo-se um tanto ridículo.
- Cato - retorquiu ela, em voz sumida. - Cato... Meu Cato.
Então acelerou subitamente o passo, lançou-se para os braços do jovem e apertou-o, e Cato sentiu uma tremenda onda de calor e alívio percorrerem-lhe o peito. Apertou
o rosto contra o cabelo de Júlia e fechou os olhos, enquanto o doce aroma dela, que quase esquecera, o atingia com uma vaga de memória e emoções.
Júlia afastou-se ligeiramente e ele abriu os olhos para a ver a contemplar-lhe o rosto. Ela levou a mão aos lábios dele e depois percorreu a linha da cicatriz com
dedos leves e incertos. Cato notou então uma lágrima a rebrilhar-lhe ao canto do olho, crescendo como uma pérola translúcida até se precipitar pela face da rapariga.
Cato sentiu o coração dilacerado enquanto a contemplava. Por muito que a amasse e desejasse, queria deixar Roma na primeira oportunidade, e afastar-se para longe
das letais correntes de traição e inveja que a percorriam. Ele e Macro deixariam a cidade daí a poucos dias para se reunirem ao exército em campanha na Britânia.
Nada o afastaria desse rumo. E seriam esses os termos que Júlia teria de aceitar, se ainda o quisesse realmente.
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- Meu amor, o que se passa? - As sobrancelhas da jovem franziram-se com a preocupação.
Cato pegou-lhe nas mãos.
- Temos de conversar.
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NOTA DO AUTOR

Pretoriano é um tanto fora do usual na linha das aventuras de Cato e Macro, geralmente passadas entre campos de batalha algures nas províncias. A ação deste livro
decorre sobretudo em Roma. A última vez que os dois amigos tinham estado na cidade fora quando aguardavam o resultado de uma investigação à morte de um oficial superior.
Nessa altura viviam dos restos das suas economias, e tinham-se visto forçados a alojar-se num bairro popular, num dos blocos de apartamentos semiarruinados. Mas
isso ocorreu durante um breve período apenas, e depressa foram enviados para se reunirem a uma campanha naval contra um grupo de piratas. Na altura fiquei com vontade
de usar Roma como o cenário de uma história, e gostaria que Cato e Macro pudessem ter passado mais tempo na capital. É um local extraordinário que permite criar
histórias fascinantes. Com uma população de cerca de um milhão, Roma era uma cidade grande, mesmo pelos padrões modernos. Merece ser realçado o facto de que durante
o início da Renascença, a população de Roma não ultrapassava as quinze mil almas - que viviam por entre as ruínas de uma civilização que em muito ultrapassava a
sua. Só no século dezanove a população de Roma voltou aos níveis que atingira no tempo dos Césares. Eis uma eloquente prova de que a história humana não é realmente
uma narrativa de progresso constante para níveis superiores de conhecimento e realizações.
De qualquer forma, a vida quotidiana em Roma não era nenhum passeio. As ruas estavam repletas de detritos e excrementos, e o odor seria perfeitamente insuportável
para um nariz moderno. O lamentável estado sanitário era apenas um dos perigos. Não havia uma força policial a fazer patrulhas regulares, pelo que o crime pululava
nas vias públicas. Carteiristas e grupos de meliantes infestavam as estreitas ruas que partiam das avenidas mais arejadas. Mesmo que se conseguisse evitar essa ameaça,
havia ainda o perigo resultante da completa ausência de regulamentos quanto à construção. Uma população tão numerosa enfiada num espaço relativamente pequeno fazia
com que o preço dos terrenos para edificação fosse escandaloso. Por isso, nas colinas de Roma e nos vales que as separavam tinham surgido como cogumelos blocos de
apartamentos construídos da
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forma mais barata possível. Muitos chegavam aos seis andares, mas todos apresentavam elevados riscos de incêndio e derrocada, o que faria com que os infelizes habitantes
e os desafortunados passantes ficassem soterrados nos escombros, sem qualquer possibilidade de socorro.
A larguíssima maioria da população vivia na miséria, nesses bairros ultrapovoados, enxameados de crime e imundície. Talvez metade das crianças que nasciam nessas
pocilgas conseguissem chegar aos cinco anos de idade, e se tivessem muita sorte, talvez conseguissem chegar à vetusta idade dos cinquenta. Como sucede em todas as
cidades grandes, a comida tinha de vir dos campos em redor, encarecendo no processo, até níveis que a punham fora do alcance da maioria. Há muito que fora compreendido
que uma multidão esfomeada não podia proporcionar estabilidade social, pelo que, primeiro o Senado e mais tarde os imperadores, tinham colocado em prática um sistema
de subsídios e entrega de géneros alimentícios. E depois de tratar dos estômagos da turba, os governantes de Roma trataram então de lhes ocupar as mentes com diversões.
Cerca de um terço dos dias do ano eram dedicados a corridas de quadrigas, combates de gladiadores e festivais públicos. Era por meio dessas distrações que os imperadores
controlavam a multidão. Porém, este não deixava de ser um mecanismo falível, e o controlo social era vulnerável às flutuações da disponibilidade em cereais, tal
como é descrito em Pretoriano.
Para os ricos, evidentemente, a história era outra. Os que tinham meios para tal adquiriam casas nas colinas, onde a brisa tornava o cheiro mais tolerável e afastava
a neblina castanha que muitas vezes sufocava a cidade. Com os seus escravos para zelarem por eles, deleitavam-se com as melhores e mais exóticas mercadorias que
chegavam à cidade. Tinham também os melhores lugares no Circo Máximo e nos teatros, bem como acesso a todos e quaisquer prazeres da carne.
Era assim a Roma a que Cato e Macro chegaram para desempenhar a missão secreta que Narciso lhes confiara. Embora tivessem combatido nas fronteiras do Império, no
fundo da ideia tinham sempre tido Roma presente, já que a cidade representava todos os valores pelos quais lutavam. A capital era de facto o centro do mundo romano.
Era não apenas a sede do governo, mas também o local onde se situavam os templos dos deuses do Império, e o âmago de uma vasta economia que cobria todo o mundo conhecido.
Para uma raça tão ligada às tradições como eram os romanos, a fonte dessas tradições tinha um caráter sagrado inquestionável, e os seus soldados não hesitavam em
enfrentar qualquer perigo para defenderem a honra de Roma e tudo o que ela representava.
O que fornece um interessante contraste entre a realidade da vida na cidade e os princípios abstratos pelos quais homens como Cato e Macro
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lutavam e davam a vida. Os ideais sobre os quais Roma tinha sido edificada tinham, a bem dizer, perecido com a República, e a meio do primeiro século a autoridade
dos imperadores era absoluta. Claro que havia ainda quem lamentasse o desaparecimento dos velhos costumes, mas geralmente tinham a sensatez de manter as suas opiniões
políticas para si mesmos. O Senado, em tempos cenário de debates e gestos que moldaram o mundo, estava reduzido a pouco mais do que um clube exclusivo, cujos membros
se limitavam a pôr um carimbo nos éditos imperiais. O poder que tinham em tempos detido fora transferido para o séquito de conselheiros que rodeavam o Imperador.
Para esfregar sal nessa ferida, dava-se o caso de muitas vezes esses conselheiros serem homens de classes sociais inferiores. No palácio, por seu lado, eram frequentes
as profundas divisões entre os subordinados, que lutavam por lugares de influência junto do Imperador. A influência levava ao poder e à oportunidade de reunir vastas
fortunas, como Narciso e Palias e os da sua laia fizeram. Mas se as apostas eram altas para os conselheiros, eram-no ainda mais para os membros da família imperial.
O número de baixas entre os mais próximos de um Imperador era tal que quase fazia parecer insignificante o risco corrido pelos soldados nas fronteiras. A quem quiser
ter um retrato vivo e brilhante da letal natureza da vida no palácio imperial, recomendo vivamente a leitura de Eu, Cláudio, de Robert Graves, ou a ver a excelente
série que a BBC produziu com base no livro.
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Nas páginas seguintes, leia um excerto do livro
REBELDE
As Crónicas de Nathaniel Starbuck Bernard Cornwell
AMERICANO CONTRA AMERICANO. IRMÃO CONTRA IRMÃO.
NUMA GUERRA CIVIL TÃO CRUEL COMO A AMERICANA, HÁ HERÓIS, VILÕES E... UM REBELDE.
No verão de 1861, os exércitos do Norte e do Sul estão à beira de iniciar a Guerra Civil Americana, precipitando também a epopeia de um rapaz do Norte, chamado Nathaniel
Starbuck, e de como acabou por lutar a favor dos Sulistas. Rejeitado pela rapariga que ama e incompreendido pela sua família, Starbuck chega a Richmond, Virgínia,
capital da Confederação Sulista. É salvo por Washington Faulconer, um milionário excêntrico que está a criar o seu próprio regime de elite para lutar contra os Yankees.
Starbuck alista-se na Legião Faulconer, mesmo sabendo que isso poderá implicar lutar contra o seu próprio povo. Mas não é apenas Starbuck que enfrenta semelhantes
dilemas e cedo toda a América terá de se render ao caos e à dramática violência que fratura o país em dois.
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O jovem ficou encurralado no extremo de Shockoe Slip, onde uma multidão se juntara em Cary Street. O rapaz pressentira sarilhos e tentara evitá-los entrando para
um beco por trás do Armazém de Tabaco Kerr, mas um cão de guarda acorrentado atirara-se a ele, fazendo-o regressar à íngreme ladeira empedrada onde a turba o rodeara.
- O senhor vai a algum lado? - abordou-o um homem.
O jovem assentiu, mas não disse nada. Era novo, alto e magro, com cabelo preto comprido e um interessante rosto escanhoado de ângulos bem vincados, mesmo que naquele
momento os traços atraentes estivessem maculados pelas noites em claro. Tinha uma tez pálida, o que lhe acentuava a cor dos olhos, do mesmo tom de cinzento do mar
engolido pelo nevoeiro que rodeava Nantucket, de onde provinham os seus antepassados. Numa das mãos trazia uma pilha de livros amarrados com corda de cânhamo, enquanto
a outra segurava um saco de viagem de lona com a pega partida. Envergava roupas de boa qualidade, embora rotas e sujas, como as de um homem que chegou às ruas da
amargura. A expressão não deixava transparecer qualquer apreensão quanto ao ajuntamento, parecendo, isso sim, resignado à hostilidade deles, qual novo fardo que
teria de carregar.
- O senhor sabe das novidades? - O porta-voz da multidão era um careca de avental imundo que tresandava a curtume.
O jovem voltou a anuir. Não precisava de indagar sobre a tal notícia, pois apenas um acontecimento poderia ter dado azo a tal excitação pelas ruas de Richmond. O
Forte Sumter caíra e os Estados americanos estavam
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a ser percorridos pela informação, pela esperança e pelo receio de uma guerra civil.
- Então e de onde é que vem? - exigiu saber o careca, agarrando na manga do jovem, como que para o obrigar a responder.
- Não me ponha as mãos em cima! - O jovem alto tinha mau feitio.
- Perguntei-lhe com bons modos - ofereceu o careca, embora tivesse largado a manga do jovem.
O rapaz tentou sair dali, mas a multidão cercava-o em números excessivos e ele foi obrigado a recuar para o outro lado da rua, em direção ao Hotel Columbian, onde
um homem mais velho, de vestes respeitáveis, embora desalinhadas, fora amarrado às grades que protegiam as janelas do piso inferior do hotel. O jovem ainda não era
prisioneiro da turba, mas também não ficaria livre, a menos que fosse capaz de lhes saciar a curiosidade.
- Tens documentos? - gritou-lhe outro homem ao ouvido.
- Perdeste a voz, filho? - O hálito dos interrogadores era uma mistura fétida de uísque e tabaco. O jovem tentou mais uma vez abrir caminho por entre os perseguidores,
mas estes eram demasiados e não conseguiu impedir que o encurralassem contra um poste para amarrar cavalos no passeio do hotel. Estava-se a meio da manhã de um dia
ameno de primavera. Não havia nuvens no céu, embora o fumo negro da Siderurgia Tredegar, da Fiação Gallegoe, da Fábrica de Salamandras Asa Snyder, das fábricas de
tabaco, da Fundição Talbott e da Refinaria City Gas se unisse para criar um véu fétido que enevoava o sol. Um negro que conduzia uma carroça vazia vinda do desembarcadouro
da Fundição Samson e Pae observava, impassível, do cimo da boleia do carro. A turba impedira que o carreteiro desse meia-volta aos cavalos para sair de Shockoe Slip,
mas o homem teve o discernimento de não protestar.
- De onde é que tu vens, rapaz? - O curtidor calvo aproximou mais o seu rosto do do jovem. - Como te chamas?
- Não lhe diz respeito. - O tom era de desafio.
- Então vamos descobrir! - O careca agarrou no maço de livros e tentou arrebatá-lo. Seguiu-se uma luta breve e infrutífera, após o que a corda puída que segurava
os livros se partiu e os volumes espalharam-se pelo empedrado. O careca riu-se do acidente e o jovem esmurrou-o. Foi um golpe certeiro que apanhou o homem desprevenido,
o que o desequilibrou e fez recuar, quase caindo.
Houve quem aplaudisse o rapaz, admirado com o espírito combativo. A multidão era composta por cerca de duas centenas de pessoas, com talvez outros cinquenta mirones
que se mantinham algo afastados da cena e que as encorajavam à cautela. A turba em si parecia mais travessa do que maldosa, como crianças com uma folga inesperada
da escola. A maioria
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envergava a roupa de trabalho, o que revelava que se tinham aproveitado da notícia da queda do Forte Sumter como desculpa para se ausentarem das bancadas, dos tornos
e das prensas. Queriam um pouco de excitação e os nortistas errantes encurralados nas ruas da cidade seriam o centro da agitação do dia.
O careca esfregou o rosto. Fora privado da sua dignidade à frente dos amigos e queria vingança.
- Fiz-te uma pergunta, rapazelho.
- E eu disse que não era da sua conta. - O jovem estava a tentar apanhar os livros, embora dois ou três já tivessem sido levados. O prisioneiro já amarrado às grades
da janela do hotel observava em silêncio.
- Então e de onde vens, meu rapaz? - perguntou um indivíduo alto, mas desta vez com um tom conciliatório, como se apresentasse ao jovem a oportunidade de escapar
com dignidade.
- Faulconer Court House. - O jovem percebera e aceitara o tom de conciliação. Imaginou que outros forasteiros tivessem já sido abordados por aquela multidão, depois
interrogados e libertados. Se mantivesse o sangue-frio, talvez ele pudesse também ser poupado ao destino que aguardava o homem de meia-idade cingido às grades.
- Faulconer Court House? - repetiu o homem alto.
- Sim.
- E o teu nome?
- Baskerville. - Acabara de o ler na tabuleta de uma loja do outro lado da rua. "Bacon e Baskerville," dizia a placa e o jovem apoderou-se do nome. - Nathaniel Baskerville.
- Usou o verdadeiro nome de batismo para dar alguma cor à mentira.
- Não pareces virginiano, Baskerville - comentou o homem alto.
- Só por adoção. - A par dos livros que trouxera na mão, o vocabulário traía a formação do jovem.
- E o que fazes tu em Faulconer County, miúdo? - quis saber outro homem.
- Trabalho para Washington Faulconer. - O jovem voltava a falar com um tom de desafio, esperando que o nome servisse de talismã para o proteger.
- É melhor deixá-lo ir, Don! - exclamou alguém.
- Deixem-no estar! - interveio uma mulher. A dama não se interessava pelo facto de o jovem estar a reivindicar a proteção de um dos latifundiários mais abastados
da Virgínia. Ficara, isso sim, comovida com o desalento nos olhos dele, bem como com o facto mais do que evidente de que o cativo daquela multidão era extremamente
bem-apessoado. As mulheres desde sempre reparavam depressa em Nathaniel, mesmo
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sendo ele ainda demasiado inexperiente para se aperceber do interesse feminino.
- És um ianque, não és, rapaz? - confrontou-o o indivíduo mais alto.
- Já não sou.
- Então e há quanto tempo estás em Faulconer County? - Mais uma vez o curtidor.
- Há tempo suficiente. - A mentira começava já a perder a coesão. Nathaniel nunca estivera em Faulconer County, embora já se tivesse encontrado com o habitante mais
rico da região, Washington Faulconer, cujo filho era o seu amigo mais chegado.
- Diz-me lá, qual é a povoação que fica a caminho de Faulconer Court House? - interrogou-o o curtidor, ainda sedento de vingança.
- Responde-lhe! - insistiu o alto.
Nathaniel deixou-se ficar em silêncio, traindo a sua ignorância.
- É um espião! - bradou uma mulher.
- Sacana! - O curtidor moveu-se rapidamente, numa tentativa de pontapear Nathaniel, mas o jovem apercebeu-se da intenção e chegou-se para o lado. Desferiu o punho
contra o careca, raspando-lhe numa orelha, e depois acertou com a outra mão nas costelas do homem. Foi como bater numa carcaça de porco, pois não serviu de nada.
Depois, uma dúzia de mãos começaram a maltratar e a espancar Nathaniel. Um punho acertou-lhe no olho e outro deixou-lhe o nariz ensanguentado, atirando-o contra
a parede do hotel. O saco foi roubado, os livros acabaram por desaparecer e um homem abriu-lhe o casaco e arrancou-lhe a carteira. Nathaniel tentou impedir esse
assalto, mas estava sobrepujado e indefeso. O sangue escorria-lhe do nariz e o olho inchava-lhe. O carroceiro negro observava, impávido, e não esboçou qualquer reação
quando uma dúzia de homens agarraram a carroça e lhe exigiram que descesse da boleia. Os homens subiram para o veículo e bradaram que iam para Franklin Street, onde
um grupo reparava a estrada. A multidão abriu alas para deixar que a carroça desse meia-volta, enquanto o negro, ignorado, chegou ao extremo do bando, altura em
que fugiu.
Nathaniel fora empurrado contra as grades da janela e as mãos atadas com força aos ferros de pontas aguçadas. Viu um dos livros ir parar à sarjeta com um pontapé,
a lombada rasgada e as folhas a voar. A multidão rasgou-lhe o saco, mas não encontrou nada de valor, além de uma navalha de barba e outros dois livros.
- De onde vem? - O homem de meia-idade que era camarada de cativeiro de Nathaniel deveria ter sido uma figura bastante digna antes de os arruaceiros o terem arrastado
até às grades. Era um indivíduo robusto e calvo, que envergava um casaco de grande qualidade.
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- Sou de Boston. - Nathaniel tentou ignorar uma mulher embriagada que dançava de forma zombeteira à frente dele, enquanto brandia a garrafa. - E o senhor?
- Filadélfia. Não tencionava ficar aqui mais do que algumas horas. Deixei a minha bagagem na estação de caminho-de-ferro e pensei em dar uma volta pela cidade. Interesso-me
por arquitetura eclesiástica, bem vê, e queria conhecer a igreja episcopal de S. Paulo. - O homem abanou a cabeça, pesaroso, e depois arrepiou-se, quando voltou
a olhar para Nathaniel.
- Ficou com o nariz partido?
- Não me parece. - O sangue das narinas era salgado nos lábios de Nathaniel.
- Vai ter um belo olho negro, filho. Mas gostei de o ver a lutar. Posso saber a sua profissão?
- Sou estudante, cavalheiro. Na Universidade de Yale. Ou pelo menos
era.
- Sou o doutor Morley Burroughs, dentista.
- Starbuck, Nathaniel Starbuck. - Nathaniel Starbuck não via necessidade de ocultar o nome do companheiro de prisão.
- Starbuck! - O dentista repetiu o nome com um tom que dava a entender reconhecimento. - Tem alguma coisa a ver?
- Sim.
- Nesse caso, só espero que eles não o descubram - comentou o dentista sombriamente.
- O que nos vão fazer? - Starbuck não acreditava que corresse perigo. Estava no centro de uma cidade americana, em plena luz do dia! Havia agentes da autoridade
nas redondezas, magistrados, igrejas, escolas! Aquilo era a América, não estava no México, nem em Cataio.
O dentista forçou as cordas que o prendiam, descontraiu-se, voltou a puxar.
- Se tivermos em conta os comentários sobre os trabalhadores na estrada, filho, imagino que nos espere alcatrão e penas. Agora, se descobrirem que é um Starbuck?
- O dentista soava quase esperançoso, como se a animosidade da multidão pudesse dirigir-se totalmente a Starbuck, deixando-o assim ileso.
A garrafa da mulher ébria partiu-se na estrada. Duas outras mulheres dividiam entre si as camisas imundas de Starbuck, enquanto um homenzinho de óculos folheava
os papéis na carteira do jovem. Pouco dinheiro lá tinha, apenas quatro dólares, mas Starbuck não receava tal perda. Temia, isso sim, que lhe descobrissem o nome,
escrito na dúzia de cartas que tinha na carteira. O homem encontrara uma das missivas, a qual abriu, leu, virou e voltou a ler. A epístola nada tinha de privado,
limitando-se a confirmar
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o horário de um comboio na Penn Central Road, mas o nome de Starbuck estava escrito em maiúsculas no cabeçalho e o indivíduo baixo tinha-o visto. Olhou para Starbuck,
depois para a carta e, finalmente, mais uma vez para o jovem.
- Chamas-te Starbuck? - perguntou em voz alta.
Starbuck manteve o silêncio.
A multidão sentiu o cheiro da excitação e voltou-se para os prisioneiros. Um homem barbado, de faces avermelhadas, corpulento e ainda mais alto do que Starbuck,
tomou as rédeas do interrogatório.
- O teu nome é Starbuck?
Starbuck olhou em seu redor, mas não havia sinais de auxílio. Os agentes da autoridade deixavam a multidão em paz e embora algumas pessoas de aspeto respeitável
estivessem a observar pelas janelas das casas no extremo de Cary Street, ninguém fazia nada para impedir a perseguição. Algumas mulheres lançaram olhares compassivos
a Starbuck, mas nada podiam fazer para o ajudar. Um ministro de sobrecasaca e cabeção cirandava à volta da turba, mas a rua estava demasiado inflamada com uísque
e paixões políticas para que um homem de Deus conseguisse fazer fosse o que fosse, pelo que o sacerdote se contentava em soltar débeis gritos de protesto que eram
facilmente abafados pelos agitadores.
- Fizeram-te uma pergunta, rapaz! - O homem de faces vermelhas tinha agarrado a gravata de Starbuck, torcendo-a de tal maneira que o laço duplo em torno do pescoço
do jovem começou a apertar-se de forma horrível. - Chamas-te Starbuck? - O homem gritou-lhe a pergunta, salpicando o rosto do rapaz com saliva misturada com bebida
e tabaco.
- Sim. - De nada valia negar. A carta era-lhe dirigida e muitos outros papéis na bagagem dele ostentavam o nome, tal como as camisas, com o epíteto fatal cosido
nos colarinhos.
- E têm alguma coisa a ver um com o outro? - As faces do homem estavam vermelhas com as veias dilatadas. Tinha olhos leitosos e faltavam-lhe os dentes da frente.
Um fio de suco de tabaco escorria-lhe pelo queixo e chegava-lhe à barba castanha. Forçou o aperto no pescoço de Starbuck. - Tem alguma coisa a ver, rapaz?
Mais uma vez, não havia como negar. Na carteira estava uma carta do pai de Starbuck, missiva essa que deveria ser encontrada em breve, pelo que o jovem não esperou
que ela fosse revelada, limitando-se a assentir.
- Sou filho dele.
O homem largou a gravata de Starbuck e gritou como um pele-vermelha em palco.
- É o filho do Starbuck! - Bradou a vitória para a multidão. - Apanhámos o filho do Starbuck!
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- Santo Jesus Cristo - resmungou o dentista -, que grande carga de trabalhos em que se meteu.
Starbuck estava, deveras, em apuros, pois haveria poucos nomes que fossem capazes de inflamar de tal maneira uma multidão sulista. A menção a Abraham Lincoln seria
suficiente, e o nome de John Brown e de Harriet Beecher Stowe era quanto bastasse para enfurecer uma horda, mas à falta dessas luminárias, o nome do reverendo Elial
Joseph Starbuck serviria para incandescer a fúria sulista.
Isso porque o reverendo Elial Starbuck era um famoso inimigo das ambições sulistas. Dedicara a vida à eliminação da escravatura e os seus sermões, tal como os editoriais,
fustigavam sem perdão a escravocracia do Sul: zombando das suas pretensões, denegrindo a sua moral e desprezando os seus argumentos. A eloquência do reverendo Elial
em defesa da causa da liberdade dos negros tornara-lhe o nome famoso, não só na América, mas onde quer que um cristão lesse jornais e rezasse a Deus. Naquele dia
em que a notícia da captura do Forte Sumter tanto inspirara o Sul, uma turba em Richmond, na Virgínia, capturara um dos filhos do reverendo Elial Starbuck.
A bem da verdade, Nathaniel Starbuck detestava o pai. Queria poder não ter nada mais a ver com o progenitor, mas a multidão não tinha como sabê-lo, nem acreditariam
em Starbuck, caso este lhes dissesse. O espírito da turba enegrecera com a necessidade de vingança contra o reverendo Elial Starbuck. Bradavam por essa vingança,
ululavam por ela. A multidão ia igualmente crescendo, à medida que os habitantes da cidade ficavam a saber da notícia sobre a queda do Forte Sumter e se juntavam
à agitação que celebrava a liberdade e o triunfo do Sul.
- Enforquem-no! - gritou um homem.
- É um espião!
- Amante de pretos! - Um pedaço de bosta de cavalo voou na direção dos prisioneiros, falhando Starbuck, mas acertando no ombro do dentista.
- Porque é que não ficou em Boston? - queixou-se o dentista.
A multidão avançou na direção dos prisioneiros, após o que se deteve, sem saber ao certo o que queriam dos cativos. Um punhado de cabecilhas emergira do anonimato
da turba, gritando que a multidão deveria ser paciente. Garantiram que a carroça requisitada fora enviada a buscar alcatrão dos trabalhadores que reparavam a estrada
e, entretanto, chegara uma saca de penas, vinda de uma fábrica de colchões situada em Virginia Street, ali perto.
- Vamos dar uma lição a estes senhores! - vociferou o matulão barbado para os dois prisioneiros. - Julgam que são melhores do que os
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Sulistas, não julgam, seus ianques? - Pegou numa mancheia de penas que fez voar junto ao rosto do dentista. - Pensam que são os melhores, não é?
- Cavalheiro, não passo de um mero dentista que pratica o ofício em Petersburg. - Burroughs tentava suplicar pela sua segurança com alguma dignidade.
- Ele é dentista! - bradou o indivíduo corpulento, deliciado.
- Arranquem-lhe os dentes!
Outra aclamação marcou o regresso da carroça, que trazia na caixa um grande barril negro de alcatrão fumegante. O carro parou com estrépito junto ao dois prisioneiros
e o fedor do alcatrão sobrepôs-se ao cheiro a tabaco que cobria a cidade.
- Primeiro a cria do Starbuck! - gritou alguém. Todavia, as cerimónias pareciam estar destinadas a seguir a ordem de captura, ou então os líderes pretendiam guardar
o melhor para o fim, já que Morley Burroughs, o dentista de Filadélfia, foi o primeiro a ser libertado das grades e arrastado na direção da carroça. Burroughs debateu-se,
mas não estava à altura dos homens entroncados que o levaram para a caixa do carro que serviria de palco improvisado.
- A seguir és tu, ianque. - O homenzinho de óculos que descobrira a identidade de Starbuck colocara-se ao lado do nativo de Boston. - E o que estás tu aqui a fazer?
O tom do homem quase parecia amigável, pelo que Starbuck, julgando poder ter encontrado um aliado, respondeu-lhe com sinceridade.
- Vim acompanhar uma senhora à cidade.
- Uma senhora, dizes tu? Então e que tipo de senhora? - indagou o homem baixo. Uma rameira, pensou Starbuck, com amargura, uma vigarista mentirosa e uma cabra, mas
por Deus, como se apaixonara por ela, como a venerara e como permitira que ela o manipulasse e lhe arruinasse a vida, deixando-o empobrecido e desalojado em Richmond.
- Fiz-te uma pergunta - insistiu o homem.
- Uma senhora do Luisiana - respondeu calmamente Starbuck -, que queria ser acompanhada desde o Norte.
- É melhor rezares para ela te vir salvar rapidamente! - O homenzinho dos óculos riu-se. - Antes que o Sam Pearce te ponha as mãos em cima.
Era óbvio que Sam Pearce se tratava do homem barbado de faces coradas que se tornara mestre de cerimónias e que agora orientava o despojamento do dentista do seu
casaco, colete, calças, sapatos, camisa e camisola interior, deixando Morley Burroughs humilhado ao sol, apenas de meias e um par de calções compridos, que lhe tinham
sido deixados, em deferência
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para com as senhoras presentes na assistência. Sam Pearce mergulhou uma concha de pega comprida no barril e retirou-a a escorrer alcatrão quente e espesso. A multidão
aplaudiu.
- Dá-lhe, Sam!
- Dá-lhe com força!
- Esse ianque que aprenda uma lição, Sam!
Pearce voltou a mergulhar a concha no barril e mexeu lentamente o alcatrão, antes de retirar a concha cheia com a pegajosa substância preta e quente. O dentista
tentou afastar-se, mas dois homens arrastaram-no para o barril e vergaram-no sobre a abertura fumegante, deixando-lhe as costas rosadas expostas a Pearce, de sorriso
rasgado, que ergueu a brilhante massa fervente de alcatrão acima da vítima.
A multidão expectante silenciou-se. O alcatrão hesitou e depois escorreu da concha e bateu na nuca do dentista calvo. Burroughs gritou quando o alcatrão quente e
espesso o queimou. Conseguiu desviar-se com um puxão, mas foi mais uma vez colocado em posição. Com a tensão quebrada pelo grito, a turba aplaudiu.
Starbuck observava, cheirando o fedor acre do alcatrão viscoso que escorria pelas orelhas do dentista até aos ombros pálidos e anafados. A substância fumegava no
ar primaveril ameno. O dentista chorava; se pela ignomínia, se pela dor, era impossível dizer, mas a multidão não se importava. Sabiam apenas que um nortista estava
em sofrimento e isso dava-lhes prazer.
Pearce retirou outra concha de alcatrão do barril. A horda gritou para que fosse despejado, os joelhos do dentista cederam e Starbuck arrepiou-se.
- A seguir és tu, rapaz. - O curtidor colocara-se ao lado de Starbuck.
- És o próximo. - De repente esmurrou a barriga de Starbuck, arrancando-lhe explosivamente o ar dos pulmões e fazendo com que o jovem se torcesse para a frente contra
as amarras que o prendiam. O curtidor riu-se.
- Vais sofrer, fedelho, ah pois vais.
O dentista voltou a gritar. Um segundo homem saltara para cima da carroça, para ajudar Pearce a aplicar o alcatrão. O novo indivíduo serviu-se de uma pá de cabo
curto para retirar do barril um pedaço de alcatrão negro.
- Guarda um bocado para o Starbuck! - alertou o curtidor.
- Ainda há aqui muito, pessoal! - O torturador mais recente espalhou a pazada de alcatrão sobre as costas do dentista. Burroughs contorceu-se e uivou. Depois puseram-no
de pé e despejaram-lhe mais alcatrão contra o peito. A massa escorreu-lhe pela barriga até aos calções brancos imaculados. Gotas grossas da substância viscosa pingavam-lhe
pelos lados da cabeça e corriam-lhe pelo rosto, pelas costas e coxas. Tinha a boca aberta
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e contorcida, como se gritasse, mas já não havia som que de lá saísse. A multidão gargalhava com a cena. Uma mulher dobrava-se com o riso.
- Onde estão as penas? - indagou outra mulher.
- Faz dele uma galinha, Sam.
Foi despejado mais alcatrão, até que a parte superior do corpo do dentista ficou coberta pela substância negra cintilante. Os captores tinham-no largado, mas Burroughs
estava demasiado abalado para tentar fugir. Além disso, os pés ainda de meias estavam presos em poças de alcatrão, nada mais podendo o dentista fazer do que tentar
retirar a imundície dos olhos e da boca enquanto os torturadores acabavam o serviço. Uma mulher encheu o avental de penas e subiu para a caixa da carroça, onde,
sob uma grande ovação, polvilhou com elas o dentista humilhado. Burroughs ali ficou, envolto na substância preta e nas penas, a fumegar, de boca aberta, com um ar
patético. Em seu redor, a multidão ululava, ria-se e troçava. Alguns negros no passeio oposto riam-se à gargalhada e até o ministro que tão debilmente protestara
contra a cena tinha dificuldade em reprimir um sorriso perante aquele espetáculo ridículo. Sam Pearce, o principal incitador, largou uma derradeira mancheia de penas
que se colaram ao alcatrão que ia solidificando, depois recuou e fez um floreado orgulhoso na direção do dentista. A multidão voltou a aplaudir.
- Ele que cacareje, Sam! Fá-lo cacarejar como uma galinha!
Deram toques ao dentista com a pá até que ele produziu a imitação
patética do cacarejar de uma galinha.
- Mais alto! Mais alto!
O doutor Burroughs voltou a ser incitado e desta vez conseguiu fazer com que o som miserável fosse sonoro quanto bastasse para grande satisfação da turba. As gargalhadas
ecoaram nas casas e ouviram-se na perfeição até ao rio, onde as barcas se atarefavam nos desembarcadouros.
- Traz o espião, Sam!
- Dá-lhe com força!
- Mostra-nos o bastardo do Starbuck!
Homens agarraram em Starbuck, soltaram-lhe as amarras e levaram-no na direção da carroça. O curtidor ajudou-os, sempre a esmurrar e a pontapear o indefeso Starbuck,
cuspindo-lhe o ódio que sentia e provocando-o, antecipando a humilhação do rebento de Elial Starbuck. Pearce enfiara a cartola do dentista na grotesca cabeça do
dono, ampliada pelo alcatrão e pelas penas. O dentista tremia e soluçava em silêncio.
Starbuck foi empurrado com violência contra a roda da carroça. Lá de cima estenderam-se mãos que lhe agarraram no colarinho e o puxaram. Alguns homens empurraram-no,
o joelho embateu com força na carroça e, quando deu por si, estava caído na caixa, a mão suja por um pedaço de
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alcatrão quente derramado. Sam Pearce puxou Starbuck para o pôr de pé e exibiu o rosto ensanguentado à multidão.
- Aqui está ele! O bastardo do Starbuck!
- Pinta-o, Sam!
- Empurra-o lá para dentro, Sam!
Pearce empurrou a cabeça de Starbuck para que ficasse por cima do barril, segurando-lhe o rosto a poucos centímetros do líquido malcheiroso. O tonel fora retirado
das brasas, mas era grande e profundo o suficiente para manter quase todo o calor. Starbuck tentou afastar-se quando uma bolha se formou lentamente mesmo por baixo
do nariz que lhe sangrava. O alcatrão rebentou e recuou vagarosamente, e Pearce voltou a endireitar Starbuck.
- Vamos lá a tirar a roupa, fedelho.
Mãos puxaram o casaco de Starbuck, rasgando-lhe as mangas e arrancando-o das costas do jovem.
- Deixa-o em pelota, Sam! - gritou excitadamente uma mulher.
- Dá ao pai dele um motivo para pregar! - Um homem saltitava ao lado da carroça. Junto a ele estava uma criança, de mão na boca, a fitar o que se passava com os
olhos brilhantes. O dentista, agora ignorado, sentara-se na caixa da carroça, onde tentava, patética e inutilmente, arrancar o alcatrão quente da pele chamuscada.
Sam Pearce mexeu o conteúdo da tina. O curtidor ia cuspindo contra Starbuck, enquanto um homem de cabelo grisalho remexia na cintura de Starbuck, desabotoando-lhe
as calças.
- Não te atrevas a mijar-me em cima, rapaz, ou ficas sem nada com que mijar. - Puxou as calças até aos joelhos de Starbuck, arrancando um grito agudo de satisfação
por parte da turba.
Ao mesmo tempo ouviu-se um disparo.
O tiro quebrou o ar imóvel do cruzamento e fez esvoaçar um bando de pássaros dos telhados dos armazéns que ladeavam Shockoe Slip. A multidão virou-se. Pearce fez
menção de puxar a camisa de Starbuck, mas um segundo disparo ecoou sonoramente nas casas distantes e fez com que a turba se silenciasse.
- Voltas a tocar no miúdo - alertou uma voz confiante e arrastada -, e és um homem morto.
- Ele é um espião! - Pearce tentou manter o controlo da situação.
- É meu convidado. - O orador montava um cavalo preto alto e usava um chapéu de abas largas, um casaco cinzento comprido e botas altas. Empunhava um revólver de
cano comprido, que enfiou no coldre da sela. Fora um gesto de uma indiferença maravilhosa, que sugeria nada recear da turba. O rosto do homem estava oculto pelas
sombras da aba do chapéu,
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mas era óbvio que fora reconhecido, e quando fez avançar a montada, a multidão dividiu-se em silêncio para lhe abrir caminho. Foi seguido por um segundo cavaleiro,
que guiava um cavalo sem ocupante.
O primeiro cavaleiro parou ao lado da carroça. Ergueu um pouco o chapéu com a ponta de um pingalim e depois fitou Starbuck, incrédulo.
- És o Nate Starbuck, não é verdade?
- Sou sim, senhor. - Starbuck tremia.
- Lembras-te de mim, Nate? Conhecemo-nos em New Haven, no ano passado.
- É claro que me lembro de si. - Starbuck tremia agora de alívio e não de receio. O seu salvador era Washington Faulconer, pai do melhor amigo de Starbuck e o homem
cujo nome invocara havia pouco para se salvar da fúria da horda.
- Quer-me parecer que estás a ficar com uma imagem errada da hospitalidade virginiana - comentou tranquilamente Washington Faulconer.
- Que vergonha! - Estas palavras foram dirigidas à multidão. - Não estamos em guerra com os forasteiros presentes na nossa cidade! Mas vocês são o quê, selvagens?
- Ele é um espião! - O curtidor tentava restaurar a supremacia sobre o bando.
Washington Faulconer falou com desprezo para o homem.
- E você é um idiota! Estão todos a comportar-se como Ianques! Os Nortistas talvez queiram uma oclocracia como governo, mas nós não! Quem é este homem? - Apontou
com o pingalim para o dentista.
Burroughs não era capaz de falar, pelo que Starbuck, agora livre dos inimigos e com as calças de volta à segurança da cintura, respondeu pelo companheiro de infortúnio.
- O nome dele é Burroughs. É um dentista de passagem pela cidade.
Washington Faulconer olhou em seu redor até que viu dois homens
que reconheceu.
- Levem o senhor Burroughs a minha casa. Faremos o possível por compensá-lo. - Feita a admoestação à horda embaraçada, voltou a olhar para Starbuck e apresentou
o companheiro, um homem de cabelo escuro alguns anos mais velho do que Starbuck. - Este é o Ethan Ridley. - Ridley conduzia a montada sem cavaleiro, que era agora
guiada paralela à caixa da carroça. - Toca a montar, Nate! - incitou Washington Faulconer.
- Sim, senhor. - Starbuck baixou-se para recuperar o casaco, apercebeu-se de que a peça de roupa não tinha salvação e voltou a endireitar-se, de mãos a abanar. Olhou
para Sam Pearce, que encolheu os ombros ao de leve, como se sugerisse que não havia ressentimentos. No entanto é claro que havia e Starbuck, que nunca soubera como
controlar o temperamento,
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dirigiu-se rapidamente ao indivíduo corpulento e esmurrou-o. Sam Pearce tentou desviar-se, mas não foi a tempo e o golpe de Starbuck acertou-lhe na orelha. Pearce
cambaleou, estendeu a mão para se salvar, mas só conseguiu mergulhá-la profundamente no barril de alcatrão. O homem gritou e libertou-se, mas tinha perdido o equilíbrio
e agitou inutilmente os braços ao tropeçar no extremo da caixa da carroça e cair de cabeça na estrada. A mão de Starbuck doía-lhe, magoada pelo golpe atrapalhado,
mas a multidão, agitada pela imprevisibilidade de uma horda movida pela paixão, começou de súbito a rir-se e a aplaudi-lo.
- Vamos embora, Nate! - Washington Faulconer exibia um sorriso rasgado perante a queda de Pearce.
Starbuck saiu da caixa do carro diretamente para o cavalo. Debateu-se para enfiar os pés nos estribos, agarrou nas rédeas e incitou a montada com os sapatos manchados
de alcatrão. Imaginou que tivesse ficado sem os livros e as roupas, mas a perda não era de todo relevante. Os livros eram textos exegéticos dos seus estudos no Seminário
Teológico de Yale e na melhor das hipóteses teria conseguido um dólar e meio por eles. As roupas valiam ainda menos, pelo que abandonou os pertences, seguindo, em
vez disso, os seus salvadores para longe da multidão, Pearl Street acima. Starbuck continuava a tremer e ainda não acreditava que tivesse escapado à tortura da horda...

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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