Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRIMEIRA LUZ / Scott Nicholson
PRIMEIRA LUZ / Scott Nicholson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

O sol parecia uma pizza de muçarela assada no forno mais quente do inferno.
O dr. Daniel Chien franziu a testa para o monitor, menos preocupado com o queijo que se ondulava do que com as bolhas de molho vermelho. Cada bolha estourava com uma força equivalente a 100 bilhões de megatoneladas de TNT, jorrando radiação eletromagnética em todo o sistema solar. Chien era intelectualmente consciente de que a pizza era realmente uma estrela maciça em torno da qual a Terra e outros planetas giravam, mas a tecnologia a reduzira a um mero reality show sem comerciais.
Sir Isaac Newton quase se cegou olhando para o sol; eu posso olhar para o sol do conforto do meu cubículo com ar-condicionado.
As imagens gravadas pelo Observatório de Dinâmica Solar eram uma maravilha da tecnologia moderna. Além de o observatório espacial realizar um acompanhamento contínuo em tempo real da atividade solar, ele usava um conjunto de painéis solares como fonte de energia. Os dados, por sua vez, permitiram a Chien e a outros pesquisadores estudar as flutuações eletromagnéticas do sol, do vento solar, da atividade das manchas solares e da radiação de partículas.
A beleza sublime do sistema atraíra Chien, que deixou um cargo no corpo docente na Universidade Johns Hopkins. Desde garoto no Vietnã, ele era fascinado pelo sol como o provedor de vida. A posição precária da Terra na distância orbital correta era considerada um milagre, embora Chien fosse cauteloso e evitasse discussões sobre ciência e fé. Para ele, milagre era milagre e prescindia de outras complicações. Que os cães da glória como Newton entupam as páginas da história científica: Chien e seus colegas de trabalho contribuiriam para o conhecimento pouco a pouco.
O papel de pesquisador, no entanto, não diminuiu o seu apreço pelo mito solar. Afinal de contas, praticamente não havia metáfora mais apropriada para a arrogância humana do que Ícaro, que voou tão perto do sol que suas asas derreteram.
O sol, como Chien gostava de dizer aos amigos, nunca coloca você numa fria.

 

 

 

 


Ele ainda sentia um prazer quase infantil com as imagens do sol em tempo real capturadas em uma variedade de espectros, disponível ao público no site da NASA. O conjunto de instrumentos sofisticados media vários comprimentos de onda e oferecia inúmeras formas de observar e medir fenômenos solares. A imagem principal, naquele momento, era a única que lhe chamava a atenção e, embora estivesse plenamente consciente da petulância do sol, não gostou de ver as pulsações irregulares que apareceram na superfície.
Alguém vai queimar a pizza.
— Katherine? — chamou a outra investigadora de plantão na sede da SDO no Goddard Space Flight Center. A dra. Katherine Swain era a sênior por ali havia alguns anos, uma veterana
de 20 anos da NASA, uma mulher que não tinha nenhuma visão romântica do sol.
— Sim? — respondeu ela em um tom irritado, olhando por cima do laptop. Ela confidenciara a Daniel que estava tendo “problemas familiares”, e Daniel projetara uma polida pretensão
de preocupação, sem exigir-lhe detalhes — ou seja, teria que evitá-la a menos que algo importante acontecesse.
— Parece atividade irregular de plasma.
— Estamos numa fase irregular —, cortou ela sem distrair-se do trabalho. — A lua está passando pelo ciclo.
Como uma mulher, ou como a lua ou qualquer outro objeto natural, o sol passa por ciclos quase previsíveis de comportamento. Os ciclos solares duravam cerca de onze anos e
o estudo de radionuclídeos no gelo do Ártico permitira aos pesquisadores mapear um histórico preciso do sol ao longo das eras geológicas. Embora os ciclos seguissem padrões
identificáveis, o consenso geral fora de que o ciclo atual estava entre os mais ativos no registro.
— Não é apenas regularmente irregular — disse ele. — É uma loucura.
— Ah, será que é o tal, o fatídico? — brincou Katherine. — Acho que eles deviam ter escutado você, hein.
Chien era membro de uma comissão encarregada de avaliar a vulnerabilidade do país a um ataque de pulso eletromagnético e testemunhara diante de um subcomitê das Forças Armadas.
Ele alertara quanto ao impacto de grandes erupções solares, mas as situações cataclísmicas foram preteridas em relação a perigos mais relevantes de mísseis nucleares de voo
baixo. Os militares não podiam lutar contra o sol e nem poderiam arrebanhar milhares de milhões de dólares de impostos só fazendo o governo temer o sol. Além disso, as ameaças
terroristas eram muito mais atraentes do que a modelagem de probabilidade.
No ano anterior, Chien foi coautor de um relatório que pintou um quadro sombrio da insuficiência de infraestrutura no caso de uma tempestade solar gigantesca, a que chamou
de “o maior desastre ambiental da história da humanidade”. Desde então, Katherine e os outros pesquisadores do SDO chamavam Chien ironicamente de “dr. Apocalipse”.
Chien permanecera firme no jeito tranquilo de ser. Além disso, não era mesmo uma questão de “se”: era uma questão de “quando”.
Nem Chien, no entanto, esperava que “quando” fosse agora.
— Olhe o AR1654 — disse Chien.
As teclas de Katherine soaram enquanto ela exibia uma imagem na tela do laptop. — É só um M-1 — disse ela. — Na pior das hipóteses, pode haver alguns apagões de rádio nas
regiões polares. Nada demais.
— Mas o AR1654 está alinhando-se com a Terra. Se acontecer um clarão, vamos ficar no caminho da corrente de plasma.
— E ele vai passar por cima de nós. É por isso que temos uma atmosfera, por isso não estamos expostos à radiação constante. Caso contrário, não seria possível estarmos conversando
agora.
Katherine, aparentemente satisfeita com o prognóstico, voltou a digitar. Chien observou a imagem na tela por mais um minuto, como se o molho tivesse vazado da crosta da pizza
e derramado no espaço em enormes fitas retorcidas.
Talvez eu não seja diferente de Newton, um caçador de fama sensacionalista. Mas ele morreu virgem, só aí eu já ganhei dele.
Chien fazia o habitual registro de dados que ocupava grande parte de seus deveres, mas a mente vagava e pensava em Summer Hanratty, a mulher que ele estava namorando havia
seis meses. Ele não podia fugir da ironia do nome dela, e sua conotação com tempo ensolarado alimentara a conversa inicial na festa de um colega. Talvez o relacionamento estivesse
ficando sério.
As coisas estão ficando quentes, hein? Bem, até o dr. Apocalipse precisa de um pouco de conforto à noite.
A voz entrecortada de Katherine interrompeu seu devaneio. — Você viu isso?
— O quê? — Chien estava de costas para a imagem de satélite vendo as tabelas de temperatura, raios-X e energia magnética.
— Olhe o magnetograma — disse ela, referindo-se à imagem telescópica que mapeava a energia magnética ao longo da superfície do sol.
Chien foi até a própria tela, que mostrava a pizza solar como uma bola de tênis de musgo crivado de um laranja violento e acnes azul-cobalto. A área perto de AR1654 mostrava
uma nuvem brilhante em erupção na superfície.
— Vai fazer um loop — disse Chien, referindo-se ao hábito do sol de flexionar grande parte da energia que escapava de volta às entranhas termonucleares. Apesar de turbulentas
as imagens do sol, a maior parte da atividade acontecia lá dentro, onde o hidrogênio e o hélio queimavam a temperaturas inimagináveis. A luz levava 200 mil anos para emergir
do centro do sol até a superfície e, daí, apenas oito minutos para atingir a Terra.
Chien pensou que compartilharia esse pequeno factoide com Summer quando chegasse ao apartamento dela naquela noite. Era o bon mot romântico que desceria bem com uma taça de
Chablis.
— Mesmo com um loop, provavelmente alguns elétrons vão nos atingir — analisou Katherine.
— Devemos registrar um relatório?
Uma das responsabilidades do centro era alertar sobre a possibilidade de interferências nos satélites e equipamentos de telecomunicações, o que ajudava a justificar os 18
bilhões de dólares de orçamento da NASA. Perto dos banheiros estava afixada uma caricatura de um senador republicano notoriamente pobre, carregando uma advertência escrita
à mão: “Um telefonema por dia pode evitar uma machadada.” Fornecer um benefício público prático era essencial para a sobrevivência do centro em longo prazo.
— O de sempre — respondeu Katherine. — Possível interrupção de transmissão de sinal regular, sem necessidade de medidas extraordinárias.
— Um pouco de estática no celular — complementou Chien. — Um pouco de chuvisco para quem assiste TV via satélite. Nenhum Juízo Final no radar.
— Não fique tão desapontado.
— Estou emocionado. Um apocalipse seria um inconveniente terrível. Tenho um encontro bem romântico hoje à noite.
Katherine conseguiu dar um sorriso triste. — Quem me dera. Se quiser um conselho meu, nunca se case.
Como Chien não queria pisar em ovos, voltou aos assuntos de trabalho. O projétil abaulado da explosão solar se agarrava à superfície do Sol como uma gota d’água na borda de
uma torneira pingando. Normalmente, o alargamento se dobraria e as partículas carregadas de hélio e hidrogênio recuariam devido à intensa gravidade. Aquele, no entanto, continuava
inchando, um sopro de plasma de um dragão saltando para o espaço.
Chien passou pelo conjunto de instrumentos, observando o evento em diferentes comprimentos de onda. — Você está vendo, Katherine?
— Antes deixe-me ver esse comunicado.
— Eu esperaria um pouco. Talvez tenhamos que subi-lo de nível.
— Não tem mais como subir. Já é um M-1.
A boca de Chien secou e o coração bateu forte. O efeito potencial da explosão solar crescia tanto na superfície quanto no volume na heliosfera. — Está parecendo um X.
— Daniel, é sério. Significa redirecionar as aeronaves de alta altitude e danos nos satélites. Se enviarmos um alerta vermelho, é melhor termos certeza.
— O sol não vai ligar pra quem está certo ou errado — disse ele, observando o buraco irregular na superfície do sol aumentar ainda mais e a projeção dar um imenso salto.
As erupções solares de classe X dispersavam radiações que poderiam ameaçar passageiros aéreos expostos a ela se não estivessem devidamente protegidos pela atmosfera da Terra.
Os registros dessas erupções eram raros, mas Chien estava bem consciente de que a medida humana de tais fenômenos não passava de um piscar de olhos em relação à história do
sol. É claro que milhares — talvez milhões — de irrupções maciças já tinham varrido a Terra em outras eras, inundando o planeta de radiação e embaralhando seus campos geomagnéticos.
Chien alternava entre empolgado e assustado com a ideia de que poderia testemunhar uma dessas.
Katherine, porém, estava certa. A emissão de um boletim de classe X dispararia toda uma gama de ações, afetando o setor de telecomunicações, defesa e transporte aéreo. Só
o redirecionamento de voos custaria milhões de dólares, sem falar nos cancelamentos que poderiam atrapalhar as viagens internacionais por semanas. Qualquer paralisação de
telecomunicações e de serviços de satélite também poderia rapidamente custar bilhões de dólares. Era um botão de pânico que, uma vez apertado, não poderia ser facilmente descartado.
— Você sabe o que acontece se a gente der o grito de alerta — lembrou Katherine.
Como diretora do projeto, Katherine seria o bode expiatório de todas as consequências políticas, mas provavelmente Chien também seria expulso. Claro, ele poderia voltar à
vida universitária, onde a notoriedade era somente uma parada excêntrica na rodovia da carreira acadêmica. Ele provavelmente seria banido do campo da pesquisa financiada pelo
governo e havia poucas oportunidades no setor privado.
Mas fatos eram fatos, e os números estavam gritando X por toda parte. — Não podemos fechar os olhos para isso — disse ele.
— Certo, vou dar um aviso de “possível rompimento, monitoramento minucioso” — disse Katherine. — Assim a gente fica bem na fita até ver o que está acontecendo.
Ela emitiu o alerta para a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica, a Administração Federal de Aviação, a Comissão Federal de Comunicações e os departamentos de Defesa
e Segurança Interna. Katherine classificou a ameaça como G3, uma forte tempestade geomagnética medida em uma escala de um a cinco. Ela registrou os dados e o horário e disse
a Chien: — Seu turno acabou. Pode ir lá bancar o Romeu.
— De jeito nenhum — disse ele. — O ciclo solar vai demorar 11 anos pra acontecer de novo e eu não posso perder isso.
— Você quem sabe. Mas escute o que eu vou lhe dizer: quando você chegar à minha idade, vai preferir ter mais encontros românticos e menos encontros com os computadores.
A erupção solar na tela tinha crescido em proporções épicas, tanto que Chien teve que diminuir a ampliação das imagens só para caber na tela. Mesmo um cientista preparado
tinha dificuldade de equacionar algo que parecia efeito especial de Hollywood com bilhões de toneladas de material solar arremessado em direção à Terra a três milhões de quilômetros
por hora. Mesmo que a erupção se mostrasse mesmo perigosa, o vento solar e as partículas carregadas demorariam um, talvez dois dias, para chegar à Terra.
— Tem alguma coisa me preocupando — disse Chien. — O SDO só atua há quatro anos e nesse tempo nunca tivemos grandes tempestades solares.
— E daí? — Katherine parecia ter engolido a própria minimização da ameaça e aceitado a leve perturbação espacial como fato consumado.
— O SDO é um satélite. Com um vento solar daqueles poderosos, nós perderíamos os links e também a orientação. Na pior das hipóteses, não seremos capazes de monitorar o efeito.
— Bem, então vamos rezar para não ser a pior das hipóteses — disse Katherine, com um sorriso irônico. Referência religiosa era raro no centro espacial.
Chien, taoísta que era, não achou graça nem alento.
CAPÍTULO 2
— É um pássaro — disse a menina Madison.
— Estou vendo — disse Rachel Wheeler. — É bonito. Por que não colocá-lo no céu?
Madison cortara o pássaro disforme de uma folha de papelão preto. Fazia parte de uma colagem, uma série de formas diferentes coladas com grude. A parte de baixo era uma tira
de papel verde e o céu era uma tira de papel azul. Havia um quadrado representando uma casa e um bloco com círculos como a picape do papai. A árvore ramificada marrom estava
coberta de uma moita de verde para representar as folhas e pontos brancos ondulados eram as nuvens. O maior objeto na colagem era oval, laranja e tremulante: um sol, que projetava
brilho e alegria.
No entanto, o principal interesse de Rachel era o interior oculto da casa.
— Aqui? — perguntou Madison, colocando o pássaro na árvore.
Árvore. Talvez simbolize segurança, talvez um ninho.
— Onde você quiser — respondeu Rachel.
— Ali — insistiu Madison.
— Está bem, vamos passar cola atrás do recorte. — O grude não tinha mudado tanto desde a escola primária de Rachel, e ela ajudou Madison a passá-lo com grandes e grossas pinceladas
usando um palito de picolé.
Madison colou a ave no lugar e fez uma careta. — Acho melhor ele voar.
— Por quê?
— Pra não ouvir o que está acontecendo na casa.
— O passarinho vai ficar com medo? — perguntou Rachel, controlando a voz para neutralizar a ansiedade. Ela estava dolorosamente consciente da Síndrome do Benfeitor, que afligia
os que queriam ajudar a qualquer custo.
Madison balançou a cabeça, oscilando o cabelo louro fino sobre os ombros magros. — Não, porque ele pode voar para longe.
— Você tem vontade de voar?
— Tenho, porque o papai não me deixa pegar o ônibus da escola, aí eu ia poder voltar pra escola.
Madison repetiu a segunda série porque faltou 27 dias do ano letivo escolar. Apesar da intervenção do Departamento de Assistência Social de Mecklenburg, o pai de Madison não
se sentia na obrigação de cumprir a lei. A mãe dela estava na prisão cumprindo uma sentença de três anos por produção, venda e tráfico de metanfetamina. Como o município tinha
pouco financiamento para assistência ao menor, Madison continuaria sob custódia do pai, a menos que ele cometesse alguma atrocidade imperdoável, como abuso sexual ou assassinato.
O “bem-estar” era apenas uma das muitas expressões paradoxais que Rachel encontrara como conselheira da escola.
— E se a gente colocar uma janela na casa? — sugeriu Rachel, indo um pouco mais fundo em sua investigação.
— O papai diz que janela é pra gente intrometida. Ele sempre manda fechar a cortina.
— Mas aí a gente não vê a luz do sol. Fica escuro todo o dia.
Madison deu de ombros. — Aí a gente liga a TV.
Essa é difícil de argumentar. Rachel olhou para o relógio. Eram quase duas horas e Madison era o último atendimento do dia. Ela odiava a palavra “atendimento”, mas “aluna”
também não era um termo preciso, pois não era professora. Rachel terminou o mestrado de dois anos e estava realizando um estágio na Greenwood Academy. A escola se localizava
em um armazém reformado no lado leste de Charlotte, um cumprimento politicamente popular cujo motivo profundo era passar os custos da educação dos cofres fiscais para os pais.
A sra. Federov, diretora magra e severa, aprovara o estágio de Rachel com a condição de que os pais não se envolvessem. Rachel podia reunir-se com os alunos individualmente,
mas não tinha permissão para sondar nada além dos assuntos da escola e dos colegas, como se a vida em casa não tivesse nenhuma influência no desempenho acadêmico e na formação
do caráter.
Rachel não tinha a ilusão de que estava ali para salvar o mundo. Ela estava ali para salvar a si mesma, principalmente da culpa que sentia em relação à irmã caçula Chelsea.
Madison não era a única a saber o que era perder alguém.
— Nós não temos TV na escola — observou Rachel.
— Mas tem computador — argumentou Madison.
— Sim, temos computadores. — Rachel não tinha um escritório: atendia em uma sala de depósito. Era útil para recortes de papel, mas não para a tecnologia. O centro de mídia
tinha um conjunto de computadores, mas o do escritório da sra. Federov era o melhor da escola. Claro, era propriedade pessoal da sra. Federov.
E por isso era ainda mais divertido usá-lo — estava fora dos limites.
Rachel conferiu o corredor, fechou a porta da sala do depósito e abriu a porta lateral que dava para o escritório da sra. Federov. A sra. Federov tinha uma escrivaninha de
nogueira polida que devia ter custado uns mil dólares à associação escolar sem fins lucrativos. Nela havia um MacBook, de um branco resplandecente como uma relíquia futurista.
Madison estava atrás dela, pressionando-a para entrar.
— Com uma condição — advertiu Rachel.
— Não pode contar pra ninguém?
Que garota esperta. Mas acho que todas são, até os adultos cortarem as asinhas. — Não quero que você minta. Se um adulto perguntar, sempre diga a verdade.
Madison assentiu com os olhos castanhos solenes. — E qual é a condição?
— Pode me dizer o que tem dentro da casa?
A testa de Madison franziu como se já tivesse esquecido a colagem. — Da casa?
— Isso, da casa sem janela.
— Ah. Agora é aquela hora que eu tenho que dizer a verdade?
— Eu não vou contar a ninguém. Mentira e segredo são coisas diferentes. Esse vai ser nosso segredo. Assim como o computador.
Madison olhou ansiosamente de Rachel para o computador. — Tá bem. O papai fica dormindo no sofá. Bebendo cerveja. Ele tem uma arma.
Uma combinação encantadora. Ela podia imaginá-lo, com a camisa desabotoada, a barriga peluda esbugalhada e um pelotão de garrafas vazias no chão ao redor do sofá. A arma era
um detalhe perturbador dessa cena.
Ótimo. Além de ter que me preocupar se ele vai aparecer na sala da diretora, agora tenho que me preocupar se ele vai matar crianças inocentes.
— E ele diz alguma coisa sobre a arma? — perguntou.
Madison balançou a cabeça. — Ele só diz que o gob… o guv… o guverno não vai tomar a arma dele.
Pelo jeito, o pai dela não era muito diferente dos outros moradores de Charlotte. O Sul era um reduto conservador, apesar das comunidades universitárias liberais na Carolina
do Norte. O conselho escolar de Mecklenburg estava tendo uma discussão séria sobre a possibilidade de os professores poderem portar armas escondidas. Rachel imaginou quanto
tempo faltava para os coletes à prova de bala serem obrigatórios em sala de aula.
— Tudo bem — disse Rachel. — Vamos jogar um pouco de Dora, a Exploradora.
Quando Rachel ligou o MacBook, ele abriu na página inicial da sra. Fedorov. Rachel não tinha interesse nenhum nos hábitos particulares da mulher, mas não pôde deixar de notar
uma bola laranja nas chamadas dos noticiários. A manchete era: “Erupção solar letal em direção à Terra?”
Rachel estava bem ciente de que o Yahoo! e outras agências de notícias usavam manchetes provocativas como isca para cliques. Ela sobrevivera às histerias coletivas de Y2K,
asteroides em curso de colisão e profecia maia, mas não conseguiria resistir depois de anos de paranoia de juízo final que o avô lhe infundira desde tenra idade. Ela clicou
no artigo.
— Que que é isso? — perguntou Madison, apontando para a fotografia com créditos da NASA.
Nunca minta para crianças. — Os cientistas dizem que o sol está emitindo uma quantidade enorme de energia que vai atingir a Terra de hoje para amanhã.
— E a gente vai ficar queimado de sol?
O mês de agosto já estava bem úmido e, por isso, a preocupação era pertinente. — Não, é como um tipo de onda invisível. Tem gente preocupada que isso vai atrapalhar o celular,
o computador e a televisão.
— Então a gente não vai jogar Dora, a Exploradora?
— Vai ficar tudo bem. As pessoas escrevem essas histórias só para chamar a atenção. Se fosse algo sério mesmo, você não acha que eles estariam tentando fazer alguma coisa?
Essa lógica parecia tola até para os próprios ouvidos de Rachel. Poluição, aquecimento global, violência armada, doenças e fome eram ameaças reais e constantes para a sobrevivência
humana, mas pelo jeito ninguém fazia nada a respeito. No entanto, uma ameaça bizarra de filme de ficção científica chama toda a atenção. Ela passou rapidamente os olhos pelo
restante do artigo, mas demorou-se perto do fim para absorver um parágrafo especialmente sensacionalista:
Embora improvável, em casos extremos, a radiação eletromagnética de explosões solares pode danificar transformadores elétricos e interromper a rede de energia do país. Uma
tempestade solar dessa intensidade também destruiria os circuitos dos aparelhos tecnológicos modernos, inclusive ignições eletrônicas e outros sistemas de veículos e máquinas.
A maioria dos cientistas concorda que a atmosfera da Terra protegeria a superfície do planeta de grande parte dos efeitos eletromagnéticos. No entanto, o dr. Daniel Chien,
do Centro de Voo Espacial Goddard, afirmou: “Nós não sabemos os possíveis efeitos de uma tempestade solar maciça sobre nossa infraestrutura moderna, simplesmente porque nunca
aconteceu”. Chien fez uma pausa antes de acrescentar: “Ainda não.”
O artigo concluiu com um assessor do presidente subestimando a ameaça, mas assegurando o público de que a situação deverá ser monitorada mais de perto.
— Será que o sol vai explodir? — perguntou Madison, como se fosse apenas um videogame.
— Não, querida, ele vai aparecer amanhã como sempre.
Ela abriu o jogo Dora, a Exploradora e deixou Madison iniciar os habituais 15 minutos de jogo. Em seguida, foi para a porta do escritório para ficar de olho na sra. Federov.
Se a diretoria da escola aprovasse a exigência de porte oculto de arma, Rachel tinha certeza de que a jararaca velha seria a primeira a conseguir uma licença.
CAPÍTULO 3
Franklin Wheeler estava em uma pequena plataforma de madeira que construíra na bifurcação de um carvalho maciço.
Ele a construíra dois anos antes como um dos primeiros complementos ao complexo que ele erigira nas terras do parque nacional nas montanhas Blue Ridge. Nesses dias, ele dormia
em uma barraca debaixo de uma borda da rocha, sobrevivendo só com o conteúdo de uma mochila que continha uma vara de pesca dobrável, refeições instantâneas militares, algumas
ferramentas básicas da mão, uma lamparina a querosene, um kit de primeiros socorros e um sistema de purificação de água. O saco de dormir aguentava quarenta graus abaixo de
zero, mas as noites de verão estavam quentes o bastante para dormir abertamente sob as estrelas. Essa expedição inicial o levou a escolher o cume isolado como o local perfeito
para o complexo.
Na plataforma a oito metros acima da linha do cume, ele conseguia ver quilômetros na distância, os grandes cumes Apalaches que se estendiam como ondas azul-esverdeadas antes
de se nivelarem pelo Tennessee, pela Virgínia e pela Carolina do Norte. Apesar de o céu às vezes ficar encoberto pela névoa das termelétricas a carvão de Ohio, em noites claras
e frescas era possível ver as luzes difusas de Charlotte a 250 quilômetros a sudeste. No momento, porém, ele só via a folhagem de final de verão, crivada aqui e ali de grandes
janelas de granito e os pequenos telhados de casas distantes enterradas nas encostas. Dois quilômetros abaixo passava uma fita de asfalto, conhecida nos mapas como a rodovia
Blue Ridge, uma rota turística nacional, considerada por Franklin a pista da tirania para a invasão por terra.
Franklin olhou a estrada com o binóculo. O fluxo intermitente habitual de tráfego turístico passava abaixo, gente da Flórida e de Nova Iorque em seu estilo próprio de invasão.
No entanto, eles eram inofensivos se comparados às feras adormecidas de Washington, Pequim e Moscou. Mesmo assim, todos os dragões pareciam estar dormindo no calor do dia.
A plataforma não chegava a dar uma vista panorâmica completa, mas, entre o seu ninho de corvo improvisado e outros pontos de vigia no cume, Franklin se certificou de que o
complexo estava seguro por mais um dia.
Ele desceu a série de ripas de madeira pregadas em tronco de carvalho e verificou o portão. Depois de escolher esse cume para seu complexo, ele passou um ano transportando
materiais pelas antigas estradas madeireiras que cruzavam a montanha. Na juventude, ele protestava contra as concessões do Serviço Florestal americano para madeireiras privadas,
mas, no momento, ele agradecia pelo acesso limitado que as estradas abandonadas forneciam. O transporte fora um processo trabalhoso, muitas vezes feito por veículos especializados,
mas ele levou cerca de arame e concreto até a montanha, suficiente para delimitar um perímetro de 190 m².
A cerca não dissuadiria um ataque militar sério e um drone poderia sobrevoar e mandá-lo para o inferno, mas o governo perdera o interesse nele desde que ele dissolvera o Movimento
Freewheeler. Ele passara por alguns grupos marginais nas décadas seguintes e seu primeiro periódico clandestino foram manifestos datilografados em meio a desenhos a caneta
xerocados a três centavos por folha e vendidos por um níquel.
A internet lhe proporcionara uma plataforma mais barata e ampla, e ele publicara extensamente em blogues como Freewheelin’ Franklin, uma referência aos Fabulous Furry Freak
Brothers da fama dos quadrinhos underground. No entanto, enquanto os Freaks falavam sobre sexo, drogas e rock’n’roll e “abaixo o sistema”, Franklin Wheeler via as cepas mais
escuras de ameaças e conspirações. A política era uma luta em que o público — os eleitores — ficavam torcendo enquanto os fortões no ringue — burocratas de gestão intermediários
— se golpeavam entre si enquanto os verdadeiros bandidos — a elite rica — batiam, de camarote, a carteira de todo mundo.
Os ataques de 11 de setembro transformaram em alvo todos os patriotas e libertários, enquanto Washington aproveitou a oportunidade para englobar a CIA, o FBI, a NCS e os militares
em um grande exército permanente chamado Segurança Interna. Franklin, ofendido com essa tomada descarada de poder e com o veio militar que se estendia até os faxineiros escolares
e motoristas de ambulância, era inteligente o bastante para proteger-se das mudanças climáticas. O Movimento Freewheeler nunca foi uma ameaça de alerta vermelho, já que Franklin
considerava idiota uma resistência armada populista. Qual seria o objetivo de lutar pelo direito de portar semiautomáticas enquanto o governo tinha drones, tanques e ogivas
nucleares? Os interesses de Franklin passaram de problemas internos a uma realidade maior de que o mundo provavelmente não duraria tempo o suficiente para o Levante do Hitler
Imaginário.
Os doidões perigosos e fortemente armados se mudaram para Montana, para o Texas e para o Noroeste do Pacífico, atraindo toda a atenção com os chamados de recrutamento de Soldier
of Fortune. O blogue de Franklin, por outro lado, tornou-se um destino na internet para os descontentes, os entediados e os perturbados — um amálgama de fracassados que nunca
comporia uma força social real, muito menos uma milícia. O governo rapidamente colocou seu dossiê na gaveta de baixo com os ufologistas e fanáticos pelo Pé-grande. Franklin
viu na queda de sua visibilidade não uma falha, mas uma oportunidade.
Essa oportunidade era o complexo nas montanhas, que ele chamava de Wheelerville.
População: um; o prefeito também trabalhava de varredor de rua, menestrel e engraxate.
Franklin conferiu os legumes e verduras na horta e pegou uns nabos para alimentar as cabras no cercado adjacente. Às vezes ele deixava as cabras passearem pela natureza, mas,
naquela hora, preferiu deixá-las presas e poupar-se do esforço de recolhê-las. Apesar da queda contínua da civilização e da extinção das espécies, Blue Ridge ainda era povoada
de predadores, como coiotes e linces.
E também outros predadores, como o exército americano.
Anos antes, Franklin ouvira rumores de que ali havia uma instalação secreta. Mesmo se ela existisse, Franklin considerava o fato como um bom sinal para a sua própria segurança.
O exército era corrupto, mas não era burro. O exército era inteligente o bastante para escolher uma área segura para bases secretas.
Como a mais antiga cadeia de montanhas do mundo, o terreno dos Apalaches era estável e pouco suscetível a terremotos. Da mesma forma, um megatsunami causado pelo vulcão das
Ilhas Canárias nunca chegaria tão longe interior adentro. Os furacões e os tornados eram dissipados pelo sopé e o clima era relativamente temperado por uma floresta úmida
decídua. Na verdade, a maior ameaça era uma nevasca prolongada, mas Franklin tinha lenha e alimentos armazenados para resistir por meses, se necessário.
Sua cabine de cômodo único foi construída com um galpão de armazenamento adjacente que tinha no telhado uma série de painéis solares orientados para o sudeste. Ele abriu o
galpão e verificou os conjuntos de baterias que armazenavam a energia convertida. As baterias também eram conectadas a uma microturbina que Franklin ligava nos dias de mais
vento. Também tinha um gerador de reserva com uma roda de pás que usava a água corrente do córrego para gerar energia. Vendo que o conjunto de baterias estava totalmente carregado,
Franklin desconectou os painéis solares e fechou o galpão, forrado de folhas finas de cobre e alumínio. A proteção de metal funcionava como gaiola de Faraday, protegendo as
baterias e equipamentos da radiação eletromagnética causada por uma explosão termonuclear. Se o Al-Qaeda detonasse uma bomba na atmosfera sobre Washington, o pulso afetaria
a infraestrutura de metade do país, mas Franklin ainda conseguiria ligar e operar seus rádios e computadores, que também ficavam armazenados em gaiolas de Faraday quando não
estavam em uso.
Franklin entrou na cabine e abriu as janelas para pegar a brisa da tarde. Sentou-se à mesa, conectou o rádio de ondas curtas e fez uma varredura de canais. Depois de uma explosão
brusca de estática, ele se concentrou em uma voz familiar.
— Charlie One-Niner, pode entrar — disse Franklin no microfone de mesa. — É seu amigo, o Soldado Desconhecido.
— Soldado? — disse a voz masculina rachada e empoeirada pelo alto-falante. — O que é que está acontecendo aí na terra do algodão?
Franklin adotara o rádio para afastar bisbilhoteiros federais e, no ar, ele fingia que estava sediado no Alabama, onde nem suas divagações mais paranoicas pareceriam estranhas.
Como os sinais de rádio de ondas curtas eram praticamente impossíveis de rastrear, Franklin usou a rede de pessoas pelo mundo que pensavam como ele. Ela também era sua única
interação social, sem contar as cabras e galinhas.
— Deve ser a mesma coisa que aí no Canadá — respondeu — só que com um sistema de saúde pior e sem alce pra caçar.
— Estamos numa onda de calor recorde — disse Charlie. — Aposto que tá fazendo uns quarenta e dois graus por aí.
Franklin olhou para o termômetro em sua pequena estação meteorológica. Vinte e seis graus, com a pressão barométrica em ascensão. Bem sazonal para um mês de agosto nas montanhas,
embora houvesse umidade que desse para cortar com uma faca enferrujada. — Por aí — mentiu ele. — Mas eu vou sobreviver.
— E tem idiota que ainda diz que aquecimento global é só uma teoria.
— Se você investigar esses babacas, com certeza vai achar uma tubulação entre a conta bancária deles e as do setor de petróleo e carvão — disse Franklin. Ele gostava desses
amigos sem rosto porque dispensavam a conversa fiada sobre o clima e começavam imediatamente a resolver os problemas do mundo.
Se tivéssemos um público grande como o de Rush Limbaugh e o de Howard Stern, salvaríamos a raça humana de um jeito ou de outro.
— Quando você construir o seu oleoduto no Alasca, talvez os EUA parem de bombear petróleo direto do Oriente Médio.
— É, mas aí nós teríamos que invadir você, camarada. Tenho que alimentar esses empreiteiros da defesa.
— Por mim, tudo bem. É só não me obrigar a beber essa cerveja americana aguada. Budweiser. Pô, prefiro beber mijo de alce.
— Vou registrar essa observação aqui — disse Franklin. — E as calotas de gelo? Ainda estão derretendo?
— Estou bem no norte, em Ottawa, mas aposto que o Alabama vai ficar debaixo d’água em cinco anos — disse Charlie. — Talvez você consiga até uma casinha à beira-mar.
— É uma conspiração liberal para acabar com os Estados Vermelhos — disse Franklin. — Sem o Sul, os democratas vão ficar na Casa Branca o próximo século inteiro.
— Você nunca me disse que partido você apoia.
— Partido da Limonada. Acho que o governo deve ser como uma barraquinha de limonada. Servir na calçada, um refresco docinho por uma moeda o copo.
— É o calor que faz isso com você.
— Pode ser. Não precisa muito pra me deixar com a cabeça fervendo.
— Falando em ferver, você soube da grande tempestade solar?
Franklin adotara a política “A ignorância é uma bênção”, concentrando-se mais em sobreviver e manter o complexo sustentável. Embora ele tivesse um computador tablet com uma
placa de rede que lhe permitisse conectar-se à web via satélite, ele raramente rodava a internet em busca de notícias porque simplesmente não confiava mais em nenhuma fonte.
Nem mesmo Charlie.
— Não — respondeu pelo microfone. — Eu estava ocupado colhendo algodão pra tapar os ouvidos.
— Os cientistas estão dizendo que vai ser uma das maiores da história. Disseram que é pra cortar as comunicações por rádio e TV, umas merdas dessas. O governo está dando alertas
oficiais.
— Ah, e eu vou ficar sem ouvir sua voz angelical enquanto isso?
— Cuidado, Soldado, senão eu vou cantar uma canção de ninar e aí até os gatos vão uivar.
— Bom, pelo que eu sei de tempestades solares, elas podem fazer um inferno na rede elétrica. Não consigo imaginar o que fariam em Nova Iorque se as luzes apagassem por uma
semana.
— Que isso, Soldado. Você sabe que o sistema é frágil. Se queimar todos os transformadores, vai demorar anos até conseguir substituir tudo. Além disso, como é que você vai
arranjar energia pra construir os novos? É tipo um beco sem saída.
— Tá animado, hein, Charlie. Acho que você é um daqueles malucos apocalípticos.
— Pô, essa seria a pior das situações. Mas, se acontecer…
Uma pausa encheu a cabine de Franklin, uma banda alta de ruído branco saiu do alto-falante. Franklin finalmente concluiu o pensamento. — Aí é apagão geral. Sem bombas de gasolina,
sem supermercados, sem ar condicionado, sem aquecimento, colapso econômico.
— Agora é você que tá todo animado. Eu juro, você tá respirando forte igual a adolescente vendo revista de mulher pelada pela primeira vez.
— Ei, não é culpa minha se todo mundo é tão dependente de um governo controlado por banqueiros estrangeiros. Mas eu vou estar pronto quando ela chegar, seja asteroide, mudança
de polo, Terceira Guerra Mundial ou invasão alienígena.
— É, isso se você viver até lá.
— Eu vou estar por aí enquanto for preciso. — Franklin pensou na família. A esposa Bitsy morrera de câncer de mama e a filha Laurel o repudiara depois da notoriedade atraída
pelas suas visões políticas. Ela queria proteger as duas filhas dele e de sua visão distorcida, disse-lhe um dia.
Bem, Chelsea se fora para sempre, sobrando apenas Rachel. E Rachel era a sua esperança. Eles mantiveram correspondência às escondidas de Laurel, mas Franklin sentiu uma necessidade
desesperada de deixar algum tipo de legado. Rachel não era exatamente uma convertida, mas pelo menos ela foi gentil o bastante para levar com humor seus e-mails ocasionais.
— Bem, é melhor você pesquisar aí sobre a tempestade solar — disse Charlie. — Eu sei que não dá pra confiar nem na metade do que a mídia diz por aí.
— Eles divulgam a verdade só o bastante pro povo ficar burro. — Franklin ficou subitamente ansioso para desligar o rádio. — Mas eu estou ligado.
Parece que a noite ficou mais quente.
CAPÍTULO 4
O major Arnold Alexander colocou o relatório da NASA em uma pasta de documentos de papel pardo. Ele era um homem meticuloso, com bigode bem cortado, olhos estreitos e um queixo
pesado que lhe dava o aspecto de uma carranca perpétua, o que lhe facilitava disfarçar a careta que, no momento, estava revidando a mordida.
— Na pior das hipóteses — dizia Henry Gutierrez. O major achava que o homem de cabelos encaracolados era muito afeiçoado à palavra “hipóteses”. Gutierrez a empregara pelo
menos cinco vezes desde o começo da reunião.
— Não parece muito uma hipótese — disse Alexander. Ele secretamente se irritou com o poder daquele burocrata. Como chefe do Escritório de Segurança Nacional de Protecção de
Infraestrutura, Gutierrez subira na hierarquia por ação da política departamental, não por experiência nem por mérito. No entanto, na era do terrorismo, oficiais do exército
como Alexander tiveram que se submeter a burocratas como Gutierrez. Os objetivos abstratos e inimigos furtivos da última década de guerra dos Estados Unidos não eram nada
em comparação com a ameaça invisível para a qual o Departamento de Segurança Interna fora criado.
Os homens de Alexander lutaram uma guerra de carne e sangue, mas Gutierrez lutava uma guerra de emoção. Essa emoção era o medo, o lado que sempre vencia no final.
O major Alexander não estava abaixo da patente: estava em desvantagem numérica na diretoria da Segurança Interna. A terceira pessoa na mesa de conferência, Ellen Schlagal,
era da Agência de Segurança Cibernética e de Comunicações. Ela mal tinha falado depois de aceitar uma xícara de café preto e virava o copo à sua frente em pequenos círculos,
olhando para a superfície da bebida. Quando olhou para cima, seus olhos azuis intensos perscrutaram o rosto dos homens como um sinal de emergência.
— Podemos explicar ao público sobre os problemas, mas é claro que isso vai abrir a porta para os oportunistas — disse Gutierrez.
— Ou então, quando os celulares perderem o sinal, eles começarão a culpar os terroristas, e aí temos um pânico generalizado — disse Alexander.
— Se anunciarmos com antecedência que ocorrerão apagões, podemos gerar pânico de qualquer maneira. Queda da bolsa, acúmulo de munição e armazenamento de alimentos.
Alexander, aborrecido, coçou o bigode. — Digamos que um grupo terrorista tenha uma missão planejada, mais ou menos pronto pra agir. Aí eles descobrem que as grandes cidades
vão perder a eletricidade e as comunicações. Isso seria o momento perfeito pra se infiltrar e iniciar um ataque. Além de se beneficiarem do caos, presumindo que eles não tenham
cintos de explosivos suicidas, as chances de serem pegos diminui muito.
— Esse risco é teórico — objetou Gutierrez.
— Mas o seu departamento é especializado nisso — disse Alexander. — Algo que poderia acontecer. Poderia.
Schlagal finalmente falou. — Concordo que os dados da NASA não são convincentes o bastante. As erupções solares podem impedir a recepção via satélite, mas o pior que já passei
foram interrupções de curto prazo, normalmente medidas em minutos e horas, não em dias.
— Mas a rede elétrica é um pouco mais frágil do que os sistemas de comunicação por satélite — observou Guitierrez. — É um sistema interligado de mais de 300 mil quilômetros
de linhas de transmissão. É como uma teia de aranha. Se uma parte dela cai, vai ser difícil reatar os pontos desconectados.
— Mas dá pra ligar em partes e continuar funcionando — disse Alexander. — As lacunas a gente preenche depois.
— Não é tão simples — disse Gutierrez. — A rede precisa de equilíbrio. Não existe um armazenamento de eletricidade. Ela é distribuída e consumida enquanto é gerada. Essas
quedas grandes podem levar a falhas em cascata enquanto a energia é roteada para outras partes do sistema, inclusive de volta para as usinas. É uma série de oscilações que
vai acabando com tudo pelo caminho.
Alexander se perguntou por que ele era o oficial azarado a lidar com aquele problema, tendo que dirigir do Pentágono para o Capitólio no dia de pior tráfego. Ele não via naquilo
nenhum problema de defesa. A Segurança Interna marcara o seu território e tinha influência psicológica e política no Congresso. Nenhum evento em solo americano que não se
tratasse de uma invasão estrangeira envolveria as forças armadas.
— Tudo bem — disse ele. — Digamos que os apagões ocorram. Mesmo que seja um monte. Ainda assim não vejo ameaça iminente.
Schlagal o cortou novamente. — O problema é que realmente não temos um repositório de transformadores. As peças são feitas conforme o necessário. Levaria uns dois anos depois
que…
A energia acabou.
Alexander esperou por cinco segundos. Gutierrez estava usando um relógio com mostrador iluminado. Caso contrário, a sala estaria escura como breu.
— Os geradores de segurança vão ligar daqui a pouco — disse Alexander. — Olhe, tenho que admitir, foi uma jogada de marketing muito boa.
A sala continuava às escuras. Enfim sentiu o cheiro do perfume de Schlagal. Gutierrez respirava como um fumante. O mostrador do relógio dele piscou e moveu-se do outro lado
da mesa, mexendo nos papéis.
— Seu QG tem gerador de emergência, não tem? — disse Alexander, coçando o bigode novamente.
— Sim — disse Gutierrez — mas os geradores de emergência são sempre conectados ao sistema elétrico de um edifício. Qualquer surto de pulso eletromagnético colocaria os geradores
em curto-circuito também.
As luzes piscaram uma vez, apagaram-se por dois segundos e, em seguida, voltaram. — Viram? — disse Alexander. — Essas erupções solares serão somente um transtorno temporário.
— Essas foram as primeiras ondas — explicou Schlagal. — A Nasa disse que os efeitos são imprevisíveis e de duração desconhecida. Poderíamos ter semanas de quedas de energia
ou ficar num apagão sem fim.
Alexander não era um oficial à moda antiga. Ele subira de patente ao lado de mulheres e servira na Guerra do Iraque com oficiais femininas. E Washington também estava mudando,
com mulheres procurando — e, às vezes, obtendo — posições superiores e cadeiras no Congresso. Ele não achava que Schlagal tivesse essa ambição política apesar de sua inclinação
para exagerar aquela ameaça menor.
— Não preciso dizer qual seria o efeito de três dias de queda de energia — disse Gutierrez, esfregando as têmporas como se estivesse com dor de cabeça. — Basta olharmos para
nossa própria rotina. A comida na geladeira estragaria. Você pode ter sorte no supermercado, mas a probabilidade de pânico lá é maior. Além disso, frigoríficos do mercado
também ficarão desligados.
— Um surto afetaria os veículos também — acrescentou Schlagal. Eles estavam partindo para cima dele como dois lutadores de luta livre. — Ignições eletrônicas e computadores
nos carros. Aí você vai ter que ir andando pro mercado. Naturalmente, os caminhões de entrega não conseguiriam aparecer com legumes e leite.
— Minha nossa — disse Alexander. — Não me diga que o TSA vai estar envolvido também. Esses filhos da mãe não precisam de mais nenhum incentivo.
Ele queria estar em casa, assistindo a um jogo na TV e bebendo uma cerveja. A filha Junie estava no último ano da escola e ele a estava ajudando em física. A matéria era muito
mais complicada do que quando ele estivera na escola. Talvez ele pudesse consultar algumas pessoas da NASA para lhe dar algumas aulas.
— Eu não acho que você está levando isso muito a sério — disse Schlagal, estreitando os olhos até o rímel nos cílios quase se fundirem em duas linhas pretas.
— Tudo bem — disse Alexander. — Eu já vi o pânico em pessoas desavisadas. O cidadão médio não estaria preparado nem com avisos antecipados. Lembram-se do furacão Sandy? Talvez
precisemos de tropas de prontidão se a Guarda Nacional e os governos locais não derem conta.
— E não só as mercearias. Hospitais, delegacias de polícia e corpo de bombeiros vão ficar sem energia e sem recursos de comunicação. Sem falar dos aviões. Sabe quantos milhares
de voos estão no ar? E quase todos os aviões funcionam com computadores ou têm componentes eletrônicos. Um grande impulso pode derrubar todos eles.
— O problema é tão grande que é quase inútil fazer planos pra ele — disse Alexander. — Como uma guerra nuclear. Se ela vier, estarão todos perdidos.
— Enterrar a cabeça na areia não vai ajudar.
Gutierrez se calou e apertou as têmporas com as mãos. Elas apertavam o crânio com tanta força que os dedos estavam brancos. O lábio tremia.
— Sr. Gutierrez, o senhor está bem? — Alexander se perguntou por que o governo deixava civis tomar decisões sobre segurança nacional. Eles claramente não conseguiriam lidar
com a pressão sob ataque.
— Como o senhor pode ver, major, estamos quicando pelo Capitol com esse assunto — disse Schlagal. — É uma batata quente que ninguém quer pegar.
— Tenho certeza de que o comandante-em-chefe não quer nada desse assunto nem perto do escritório dele — disse Alexander.
Gutierrez amarrou a cara, com as bochechas enrugando em sua careta. — Não… faça política… com isso.
O major levantou as mãos, mostrando as palmas. — Ei, todos nós sabemos quem recebe o crédito nas raras ocasiões em que as coisas dão certo. E nós estamos aqui quando eles
precisam de um bode expiatório. Como se esse evento solar fosse virar um evento real.
— Não é só um evento isolado — disse Schlagal. — É uma fase e um ciclo. A NASA diz que o pior ainda está por vir.
— Bem, de certa maneira, se tudo piorar, as coisas podem ficar mais simples. Nós podemos impor a lei marcial em nome da segurança nacional. Os milicianos e os liberais vão
resmungar, mas todo mundo vai receber bem a notícia se isso trouxer um sentimento de segurança.
— Não estou tão certa de que podemos abrir a porta para a administração e ganhar mais poder — disse Schlagal. Gutierrez parecia estar tendo dificuldade em respirar. Alexander
se perguntou se o homem sofria de asma.
— Abraham Lincoln usou poderes executivos ao extremo — disse Alexander. — Nacionalização dos bancos, suspensão da Quarta Emenda e mentir como exigência política. A história
fala dele como um conciliador, mas ele, na verdade, era um ditador benevolente. Naturalmente, metade do país teria argumentado sobre a parte “benevolente”.
— Metade do país pode estar às escuras na semana que vem — disse Schlagal.
Como se pontuando essa afirmação, as luzes piscaram novamente. Alexander franziu a testa e olhou para o laptop. Mesmo com a bateria do computador, a tela apagou. — Tudo bem.
Vou acionar a cadeia de comando.
Gutierrez ficou de pé, empurrando a cadeira para trás com tanta força que ele tombou. Ele cerrou os punhos e bateu-os sobre a mesa no tempo de cada palavra que pronunciou.
— Não… existe… cadeia.
O major não gostou da forma como os olhos escuros do rapaz brilharam, como se a fiação por trás deles estivesse em curto-circuito. Talvez ele estivesse sofrendo com a tensão.
Nada surpreendente para um civil, mas preocupante porque outras vidas podem depender de suas ações e decisões. Alexander precisava assumir imediatamente o controle da situação.
— Precisamos de uma atualização da NASA…
Gutierrez interrompeu com um mergulho no outro lado da mesa, chegando a Alexander. Schlagal ganiu de surpresa. Os instintos bem afiados do major afloraram e puseram-no em
postura defensiva. Gutierrez se arrastou ao longo da superfície de bordo liso com os joelhos da calça de nylon lutando contra o atrito.
— Henry? — chamou Schlagal.
— Hipótese! — baliu Gutierrez.
Alexander não gostou do olhar do homem. Em Fort Benning, na Geórgia, uma vez ele foi atacado por um soldado que gritava “Lembre-se de Pork Chop Hill!” sem parar. Precisou
de três homens para arrastar o atacante para longe, mas não antes de Alexander desferir cinco ou seis socos fortes na cabeça do homem. O homem nem sequer pareceu sentir os
golpes. Depois disso, o soldado foi expulso do Exército por porte de narcóticos antes de ser levado à corte marcial por agressão a um oficial.
Naquele momento, Gutierrez parecia ter essa mesma raiva irracional fervendo dentro dele. Ele bateu no laptop de Alexander e jogou-o no chão. Alexander era uns dez centímetros
mais alto, mas Gutierrez ainda o atacava, com as mãos abertas como as garras de um caranguejo direto na garganta do major.
Apesar da súbita ferocidade do ataque, Alexander manteve a calma, esquivando-se e batendo em Gutierrez para desequilibrá-lo com uma cotovelada no estilo judô. Helen Schlagal
despertou de seu próprio choque e correu para a porta. Gutierrez rosnou como um cão raivoso e pulou em Alexander novamente, dessa vez mordendo com um som audível dos dentes.
As luzes se apagaram novamente e, na escuridão, o major ouviu a porta se abrir e Schlagal gritar no corredor pedindo ajuda.
Onde estão os geradores de segurança?
Alexander não teve tempo para o próximo pensamento: Gutierrez bateu nele com toda a força de seus cem quilos. Felizmente, a maior parte era a barriga flácida de um civil funcionário
de carreira. Alexander girou e se livrou do impacto e desferiu um soco na direção em que estimou estar o nariz do homem, mas atingiu-o na têmpora. Gutierrez resmungou e desmontou
em um pulo.
Quando as luzes piscaram um minuto depois, Helen Schlagal voltou para a sala com dois guardas e encontrou Alexander curvado sobre a forma inerte de Gutierrez, verificando-lhe
a pulsação pela jugular. Alexander balançou a cabeça. Em seguida, tentaram ressuscitá-lo até a chegada de um médico, mas já era tarde.
Ninguém sabia disso na época, mas Gutierrez foi a primeira vítima do tsunami de radiação solar em todo o mundo.
CAPÍTULO 5
A viagem para casa tinha sido tensa. As seis pistas pareciam estar cheias de furiosos da estrada, até mesmo para os padrões de Charlotte. Rachel apertou os olhos para ver
o céu brilhante acima, mas o sol parecia irritado em sua temporada habitual de fim de verão.
Em casa, finalmente, Rachel fez uma xícara de chá de camomila. Botou uma música no iPod e colocou um dos fones na orelha. Em seguida, jogou-se no sofá com um exemplar de bolso
de um suspense de Stephen King. As paredes do apartamento eram muito finas e ela conseguia ouvir o noticiário adentrando do aparelho de televisão do vizinho.
Rachel estava prestes a colocar o outro fone na orelha em uma tentativa de bloquear aquele linguajar bombástico, mas ela ouviu o termo “explosão solar” e desligou o iPod.
Foi até a parede e inclinou a cabeça, sentindo-se meio intrometida, mas racionalizou a ação como curiosidade científica.
— A atividade solar foi associada não apenas a falhas de energia localizadas, mas também ao aumento no comportamento agressivo. Os líderes republicanos em Washington chamaram
o presidente para resolver a situação, mas até agora a Casa Branca não se pronunciou. Vamos para Landry Wallace, que está no Centro de Controle de Doenças de Atlanta para
uma reportagem especial sobre as mudanças comportamentais. Landry?
Wallace fez um discurso staccato que fazia pouco sentido. Rachel teve dificuldade em acompanhá-lo. Ela era pobre demais para pagar TV a cabo e nunca teria assistido voluntariamente
ao noticiário, mesmo se estivesse conectada ao que seu avô Franklin chamava de “Rede de Idiotas”. No entanto, em um ponto durante a entrevista de Wallace com um funcionário
do Centro, ela o ouviu referir-se aos “sequelados”, o apelido dado aos afetados pelo aumento da atividade solar.
Rachel decidiu navegar na internet para saber mais do acontecido, mas uma batida na porta a interrompeu. Só uma pessoa chegaria sem telefonar para avisar.
— Mira — disse Rachel, acolhendo a amiga para o apartamento.
— Cheiro de camomila. — Mira era uma filipina alta, de cabelos escuros, que ela conhecera na lavanderia do prédio. Elas emprestavam blusas, brincos e cintos uma para a outra
para expandir o guarda-roupa de ambas sem maiores custos, embora Mira ostentasse uma forma muito mais elegante do que Rachel.
— Quer uma xícara? Te cobro baratinho.
Mira fingiu pegar uma nota no bolso de suas calças jeans e saiu com a palma vazia. — Coloca na minha conta.
Indo para o pequeno balcão que delimitava a cozinha, Rachel disse: — Você ouviu essa loucura sobre a tempestade solar?
— Aham. Parece que algumas pessoas estão recebendo uma insolação ou algo assim. Eu vi os policiais derrubarem um esqueitista na rua em frente. Ele estava se debatendo enquanto
cinco deles lutavam com ele no chão.
— O que ele fez de errado?
— Uma senhora no andar de baixo disse que ele quebrou uma janela e atacou um manequim.
— Que estranho. Eles nem têm mais manequins reais, só aqueles estranhos de azul-marinho. A maioria deles nem tem cabeça.
— Sequelados — disse Mira. — É assim que o povo está chamando. Parece um problema psicológico, uma coisa do estresse.
— Legal. Se continuar assim, talvez o país aumente o financiamento dos conselheiros.
— Nada. Mais barato pagar salário de polícia.
Sentaram-se no sofá com o chá. Rachel olhou para o iPod. A tela estava em branco.
Estranho. Eu deixei a música tocando.
Ela pegou e bateu na tela. Nada aconteceu.
— Chegou mensagem? — perguntou Mira. — Algum carinha gostoso?
— Como se houvesse alguém com clima pra isso nesse tempo.
— Quando você tiver um emprego, pode se mudar pra um apartamento com ar-condicionado. — Mira fez sinal para o ventilador empoleirado na janela solitária do quarto, acima da
cama de Rachel. — Ou se casar com um cara do Alasca.
Rachel franziu a testa para o iPod e colocou-o de volta na mesinha de centro. Ela esperava que não estivesse quebrado. A mãe dela lhe dera como presente de formatura. — Não
sou dessas de casar.
— Basta encontrar o homem certo. Ou a mulher certa.
— Você sabe que eu só acredito no casamento bíblico.
— Que casamento é esse? Do rei Davi, que você negocia o prepúcio de 200 filisteus por uma noiva, ou os outros dezessete casamentos?
— Não precisa ser literal.
Mira deu de ombros. — Não sou eu que estou preocupada com minha alma gêmea.
O pai de Mira tinha sido um mordomo de uma linha de cruzeiro e poupou dinheiro para sustentar a família nos Estados Unidos. Sendo americana durante a maior parte de seus 24
anos, ela tinha adotado ansiosamente a frouxa moralidade do país, embora Rachel a educara nas formas mais conservadoras do Cinturão da Bíblia. A tensão lúdica sobre suas respectivas
crenças espirituais se provara ser uma peça central desse relacionamento.
— Bem, o Juízo Final pode ter chegado mais cedo do que se pensa — disse Rachel, embora ela nunca tivesse atribuído muita sensatez ao livro do Apocalipse. Em alguns capítulos,
o sol ficava preto; em outros, ele caía no mar. O avô dela acreditava que a maioria das profecias da Bíblia foi escrita por esquizofrênicos. — Num problema complexo, a resposta
mais simples é geralmente o caminho certo — disse-lhe ele certa vez.
— Você sabe o que dizem desses profetas do fim do mundo — disparou Mira. — Mesmo que eles estejam certos, ainda assim são idiotas.
— Parece o meu avô falando.
— Que deve ser um maluco total, pelo que você me conta.
— A gente só é louca até a maioria adotar o mesmo ponto de vista — disse Rachel. — Talvez a gente deva visitá-lo nas montanhas. Se é que podemos encontrá-lo.
— Aposto que lá vai estar agradável e fresco; enquanto isso estamos assando aqui na cidade.
Rachel só sabia de sua localização pela referência enigmática de “Marco 291” na rodovia Blue Ridge. Na forma típica de Franklin Wheeler, ele a fizera guardar o nome de cabeça
e nunca contar a mais ninguém. Dada a perseguição e assédio que ele enfrentara por divulgar suas crenças libertárias, ela entendia a paranoia dele e seu desejo de escapulir
dos holofotes.
Mira tirou o celular do bolso da blusa. — Droga.
— Que foi?
— Era pro Stevie ter ligado.
— Estão voltando?
— A gente tá só saindo, não estamos namorando.
— E o que isso significa? Sexo sem preocupação?
Mira ignorou a provocação. — Nada de compromisso — disse ela, batendo o telefone.
— Que estranho. Tem torres em todo o lugar. Tem que dirigir um dia inteiro pra encontrar um ponto sem sinal.
— Talvez seja essa coisa do sol. Ainda tem bateria, só está sem sinal.
— Eu li que podia ter um impacto na telefonia — disse Rachel. — Também deve ter estática no rádio e na TV.
— A senhora é destruidora mesmo, hein.
— O pior deve vir amanhã. Tem algo no sol girando longe da terra e as erupções solares passaram da borda do sistema solar.
Mira terminou o chá e levou a xícara para a pequena pia. — Bem, aproveite o pôr do sol. Vou atrás do Stevie.
CAPÍTULO 6
O oficial Harlan McLeod estava na polícia havia só nove semanas.
Como novato, só lhe davam o pior trabalho, como o turno de meia-noite às seis. Não era tão ruim, já que Taylorsville era uma cidade pacata no sopé da Carolina do Norte e os
piores crimes que ele enfrentava eram vandalismo em cemitério e brigas domésticas. Em todos os casos, havia bebida envolvida.
A grande emoção da noite era que dois dos carros da delegacia não davam a partida, então ele e Stefano da Unidade Sete tiveram que usar outros carros. O pessoal de manutenção
da cidade não conseguia descobrir a causa, mas parecia ser um problema em algum equipamento eletrônico. Ele chegou à rua com meia hora de atraso, mas só levaria uma hora até
o tédio estabelecer-se.
Enquanto cruzava os quatro quarteirões da rua principal e a praça do tribunal, ele se perguntou quanto tempo seria capaz de levar a vida daquele jeito até solicitar um posto
na cidade grande. Ele não era nada romântico acerca do trabalho na polícia com sua formação de dois anos porque não queria ir para a faculdade nem entrar no exército. Claro,
era a época de “heróis anônimos”, em que todos com um uniforme impunham respeito com ou sem respeito adquirido. Mas Harlan estava mais interessado em um emprego do que uma
carreira e imaginou que, enquanto se mantivesse longe da política e registrado como independente, ele garantiria muitos contracheques.
A lua estava fraca e difusa e, além dos postes de luz pálida, um brilho esverdeado estranho lambia as nuvens como uma série de veias. O departamento recebera um boletim de
advertência de possível interferência de rádio. Tinha algo a ver com o sol, segundo dissera Maurice, do setor de Comunicações. Harlan não sabia o que fazer. Por que o sol
causaria problemas no meio da noite?
Harlan decidiu testar o rádio. Ele disse no aparelho: — Unidade doze, em tráfego na rua principal. Patrulha de rotina.
Um pouco de estática antes da resposta. — Câmbio.
Rotina.
Harlan pensou em ir para trás do tribunal e tirar um cochilo. Ele já tinha tirado umas sonecas assim em turnos anteriores e dominara a arte do sono leve. Ele até aprendera
a apoiar o laptop no volante para fingir que estava trabalhando. No entanto, estava muito entediado para dormir.
A sorte dele, não. Um vulto corcunda correu por uma rua lateral. O fato de isso ocorrer às 3 da manhã não ajudava em nada e Harlan não resistiria em seguir o cara por um quarteirão
ou dois. Se o cara fugisse ao perceber que estava sendo seguido por um carro da polícia, claro que isso seria uma causa provável.
As luzes do carro de polícia incidiram sobre o vulto, prendendo sua silhueta contra o tijolo caiado de uma loja de móveis. Harlan se perguntou se deveria estabelecer uma perseguição,
percebendo que ele mentalmente elevara a pessoa a “suspeito”. Mas ele não queria ser alvo de chacotas se o suspeito fosse só alguém cujo carro enguiçou depois de ter sido
expulso de casa pela esposa. O chefe não era um chato, mas decididamente acreditava em patentes e hierarquia. Harlan não estava ali por tempo o bastante para fazer suas próprias
interpretações da lei.
Ele acelerou um pouco o motor e ligou o farol. O vulto nem acelerou, nem se virou: deu uma guinada em frente com um andar instável.
No mínimo, parece embriaguez pública. Será que é porte de drogas? Apreensão de drogas ia me deixar bem com o chefe.
Naturalmente, o suspeito também poderia estar levando uma arma escondida. Afinal, estavam nos Estados Unidos.
Harlan pisou no acelerador e andou cinquenta metros em segundos, com o rugido do motor reverberando no concreto, no vidro e no asfalto do centro da cidade. Isso não afetou
em nada o homem cambaleante, e Harlan cantou os pneus em uma freada e colocou a marcha automática em PARK. Saiu e deixou o carro ligado.
O homem manteve seu ritmo instável. Ele usava um capuz vermelho, com mangas cortadas de forma desigual logo abaixo do bíceps. As calças jeans estavam na metade da bunda e
a cueca de elástico preto ficava aparecendo. Algo brilhou ao lado do homem e Harlan percebeu que era um relógio. O suspeito era branco — como todos em Taylorsville.
— Polícia — disse Harlan com foz firme de comando que aprendera no Básico.
O suspeito pode ter levantado a orelha — talvez —, mas continuou andando pelo quarteirão. Logo ele chegou às sombras na parte de trás da loja de móveis. Harlan pensou se deveria
voltar ao carro para persegui-lo, mas o lance estava ficando pessoal.
— Pare! — ordenou Harlan com a voz um pouco embargada, imprópria para a profissão. Esse cara ia dar muito trabalho.
Porra, eu sou a autoridade aqui. Eu estou no controle.
Ele desabotoou o coldre do quadril, mas sem tocar na coronha do 38. No Básico, uma regra foi gravada a fogo na cabeça de corte escovinha: Não saque a arma a menos que tenha
a intenção de usá-la.
Ele não tinha certeza se ainda era para tanto. Ele estava irritado, nervoso e frustrado. Não era uma boa posição para tomar decisões rápidas.
Ele deveria chamá-lo agora. Stefano, um bom e velho descendente de italianos de Nova Jérsei, estava lotado na Unidade Sete em algum lugar do parque industrial. O chefe incentivava
os pedidos de reforço para a maioria das funções mais rotineiras. — É melhor chamar ajuda enquanto pode falar — costumava dizer o chefe.
Uma das pernas do suspeito se dobrou e ele quase caiu. Com certeza ele estava doidão. Devia ser uma bebida bem batizada. Harlan aproveitou o tropeço para se aproximar do suspeito,
sentindo-se mais corajoso com os faróis preparando o grande palco brilhante da rua. Ele estava perto o suficiente para sentir o cheiro de suor e mijo do homem — um cheiro
estranho e metálico como o ozônio durante uma tempestade.
— Pare aí onde está — ordenou Harlan.
O homem finalmente se virou. Era branco, tudo bem, com um bigode bem anos 1970 com um palito entre os dentes. O palito se mexeu e Harlan percebeu que a lasca de madeira não
estava entre os lábios do homem: despontava de um ferimento no lábio inferior com uma roda de sangue gorduroso marcando o ponto de penetração.
— Fique com as mãos onde eu possa ver — ordenou Harlan, embora o homem parecesse não ouvir. O suspeito enfiou o dedinho sob o capuz do moletom para alcançar a orelha e enfiou
o outro no bolso das calças jeans. Não havia como ele ter uma arma lá dentro, isso Harlan podia ver, mas ele não gostava de ser ignorado.
Ele sacou o 38. — Não se mexa.
Dizer “Não se mexa” era estranho. Pela primeira vez, ele se sentia como um policial de programa de TV. Se continuar assim, daqui a pouco eu estou comendo rosquinhas.
Mas o do capuz pareceu não se importar com o jogo pesado de Harlan. Ele olhou para o oficial — e havia algo de anormal naqueles olhos: estavam úmidos como os de um bêbado,
com aquele inchaço ao redor das pálpebras, mas, em vez de pontos vermelhos em meio ao branco dos olhos, havia veias de um verde familiar riscado neles.
Como o céu. Os olhos dele são como aquele negócio estranho no céu.
Era tudo muito psicodélico hipponga. Harlan precisava resolver rápido aquela situação, antes que ficasse mais estranha ou, pior, antes que algum cidadão útil benfeitor aparecesse
e testemunhasse o que poderia acontecer a seguir.
O que aconteceu em seguida foi a última coisa que aconteceu para o policial Harlan McLeod.
O encapuzado estalou a língua, como um cacarejo, um ruído estalado, e partiu para cima de Harlan. O ataque foi tão repentino que Harlan imediatamente levou a mão ao coldre.
Ele se esquecera de que já estava segurando o revólver e a confusão lhe custou uma preciosa fração de segundo. Antes que ele conseguisse levantar a arma novamente, o encapuzado
estava sobre ele, arranhando e rosnando, com os dentes mordendo perto do rosto de Harlan.
E olha que foi muito treinamento. O chefe vai ficar uma fera.
Harlan recuou, mas perdeu o equilíbrio, o que estimulou o impulso do encapuzado. Eles caíram no asfalto, com o guarda suportando a maior parte do peso. Algo estalou na lombar
e as pernas de Harlan ficaram dormentes. Ele tentou levantar o 38, mas a arma parecia pesar uns quinze quilos. Em seguida, os dentes do encapuzado alcançaram a bochecha dele
e cravaram nela, tirando uma faixa molhada de carne do crânio.
Harlan emitiu um guincho pouco profissional enquanto o encapuzado golpeava e arranhava-lhe o corpo. A dor era horrível, mas pior ainda eram aqueles olhos — como um raio rarefeito
brilhando com um fogo profano.
De costas, ele levantou o olhar em direção aos faróis duplos do carro de polícia. Aros fantasmagóricos de neblina circularam os globos oculares como gotas de sereno no fim
do verão. De alguma forma, era uma calma presença em meio a um quadro horrendo. Foi quase uma performance.
Em seguida, depois do impacto ao mesmo tempo contundente e perfurante, a luz tomou conta de Harlan e aspirou-o para seu brilho branco e infinito.
CAPÍTULO 7
Cagalhão e Risadinha.
Era assim que Franklin chamava os idiotas daquele programa de entrevistas da rádio AM. Eles eram o que os tagarelas chamavam de “estrelas em ascensão”, falastrões que aspiravam
ao título de mais provocativos que Rush Limbaugh, Bill O'Reilly e Alex Jones, com sua rede circense Infowars.
O Cagalhão era um republicano reacionário do Centro-Oeste que lutava pela oligarquia, pela Bíblia Sagrada e pela sua interpretação pessoal da Constituição que permitiu roubar
os Estados Unidos dos nativos e deixar de herança para os brancos ricos. O Risadinha era daqueles que consideravam John Locke um liberal e que qualquer serviço público, inclusive
os auxílios federais a desastres e orfanatos, eram sinal de totalitarismo disfarçado de socialismo.
Em geral, Franklin poderia ligar-se a qualquer debate iniciado na margem direita do espectro e, daí, pular do penhasco. Naquele dia, no entanto, ele estava especialmente intrigado
— a ponto de negligenciar a própria horta — porque Cagalhão e Risadinha estavam falando das erupções solares e seus possíveis impactos. Era difícil dizer se eles estavam loucamente
mal informados ou apenas transmitindo alguma propaganda que o Sistema quisesse disseminar. Para toda a provocação do Sistema, esses megafones vivos sempre entenderam que os
anunciantes ainda eram seus senhores corporativos.
— Não vai doer nada — disse o Cagalhão. — Toda esta especulação foi projetada para instaurar o medo em Wall Street pra fazer as ações despencarem.
— E isso é uma coisa boa para a elite rica que é dona do país — respondeu Risadinha logo ao final dessa declaração, como se as falas fossem ensaiadas. — Eles ficaram de bolsos
vazios na última bolha subsidiada pelo governo e estão à espera de outra quebra pra comprar na baixa.
Franklin zombava das pessoas que simplificavam a embromação por causa de uma merreca. Assim como o ruído político, os mercados financeiros eram uma tática de distração para
ocultar a verdadeira consolidação do poder. A Nova Ordem Mundial estava só esperando a oportunidade certa, e um desastre natural mundial cairia muito bem.
— A infraestrutura, por exemplo — disse Cagalhão. — Os Estados Unidos realizaram testes dizendo que as comunicações via satélite são o elo mais fraco e mais vulneráveis à
radiação solar.
— E daí ficar sem sinal de celular por uma hora? O problema vai ser quando as pessoas não conseguirem dar a partida no carro.
O Cagalhão era daqueles que saltam de um assunto para outro com uma alegria incontida. O assunto, claro, não importa: ele é especialista em todos. — Só os carros mais recentes
vão ser afetados. Os testes do governo…
— Você viu esse teste? Eles pegaram carros emprestados e tinham que trazê-los intactos, por isso limitaram a exposição ao pulso eletromagnético. Nem preciso dizer nada sobre
conclusões antecipadas. Detalhe: os carros russos, em 1962, desligaram totalmente durante os testes, e isso foi antes de toda a nossa tecnologia moderna.
— Esses malucos desses russos não estão de bobeira. Com certeza os bonecos de teste andavam e falavam também.
— Tem gente que diz que os veículos mais velhos ainda funcionam, mas e se ficarem sem combustível? E se as bombas não funcionarem e as refinarias pararem? Sem falar na paralisação
completa das rodovias.
Franklin já lera todo tipo de pesquisa sobre o efeito do pulso eletromagnético, e alguns cientistas sugeriam que um carro em uma garagem de concreto não seria afetado. Porém,
se o veículo não estivesse em uma enorme gaiola de Faraday, isolado de toda condutividade, ele estaria perdido. Ele suspeitava que só os militares se planejariam para algo
tão extremo.
Mas tente dizer isso a um cientista. Eles olhavam os fatos em vez da verdade.
O Risadinha estava com sorte. — Esses boletins que estão saindo na mídia de gente louca que sai por aí atacando todo mundo, acho que é tudo parte do programa. Primeiro eles
tentam assustar a população, aí é fácil fazer todo mundo abrir mão dos seus direitos. Aí, quando a maioria das pessoas desiste de tudo, é fácil tirar o resto.
— Perdemos um policial na Carolina do Norte, dois marinheiros de licença em Norfolk, uma enfermeira pediátrica no Texas e há rumores de outras mortes não confirmadas. Que
Deus os tenha.
— Raiva descontrolada. Comportamento antissocial. Caos absoluto. A gente tá falando dos sequelados ou dos congressistas? — O Risadinha teve que rir dessa piada fraca.
— O Executivo é totalmente omisso. É o que acontece com os liberais nos ministérios. E justo agora que precisamos de uma liderança forte…
— Agora é a hora do cada um por si e não esperar governo nenhum solucionar os problemas — interrompeu o Risadinha.
É, eu concordo. Franklin pegou o rádio de pilha, mas o sinal caiu antes que ele tocasse no sintonizador. Ele pensou que as pilhas tinham acabado, mas o alto-falante reproduzia
a ausência de sinal na faixa de onda.
Talvez a Profecia segundo Cagalhão e Risadinha estivesse correta e o fim dos tempos finalmente tivesse chegado. Franklin se levantou da cadeira, atravessou o interior escuro
da cabana e, pela porta, olhou para o pequeno complexo. O crepúsculo era uma cicatriz roxa ao longo da coroa das montanhas, e Franklin se perguntou se o sol estaria ocupado
em sua destruição silenciosa enquanto outra parte do mundo enfrentava o calor.
— Rachel, se você estiver por aí, lembre-se do que eu lhe disse — sussurrou para a floresta. — Você é a única com o bom senso de ouvir.
Ele desceu os degraus de madeira bruta até o complexo e dirigiu-se para o galinheiro. Os predadores sempre andavam por ali vindos da floresta e Franklin mantinha sempre uma
postura defensiva.
Talvez sobrevivamos à noite, mas e quando chegar um novo dia?
CAPÍTULO 8
Daniel Chien chegou cedo para trabalhar.
Tão cedo que poderiam pensar que estava, na verdade, trabalhando até muito tarde.
A tentação era dormir no sofá do saguão do Centro Espacial, já que ele deixara o observatório havia apenas três horas e mal dormira. Como Summer Hanratty o achara obcecado
demais e não desfrutaria de companhia nenhuma, especialmente o tipo de companhia que ela queria, disse a ele que ligasse quando voltasse ao planeta Terra.
Quando os problemas começaram a brotar, a Administração lhe pedira relatórios imediatos e Kathering Swain dominara o console sempre que Chien dava uma trégua. Katherine tinha
olheiras tão profundas quanto as de Chien porque ambos sabiam que aquele nível de atividade solar nunca havia sido registrado.
Sequer tinha sido teorizado.
O negócio estava esquentando. As linhas do campo magnético a partir das erupções solares se comportaram de forma inesperada, dividindo-se e reunindo-se em padrões aleatórios
enquanto a intensidade das ejeções de massa coronal aumentava. O centro perdera o contato com o SDO, como Chien previra, e eles estavam trabalhando basicamente no escuro,
medindo a atividade solar em terra e não diretamente do espaço. Apesar da rede de emergência de radiotelescópios ao redor do mundo, os dados se tornaram irregulares. Havia
falhas de comunicação e outros países também estavam passando por quedas de energia generalizadas.
A imprensa popular começara a entrar nessa história e dela surgiu o conceito de “sequelado”. Chien não tinha certeza se a radiação solar e os raios gama afetariam os impulsos
eletromagnéticos do cérebro humano, mas a tempestade entrara em território inexplorado já havia algum tempo. Se a fiação se derretesse ou se os sinais se cruzassem, nenhum
cientista na terra conseguiria prever os efeitos. Os profetas tinham maior legitimidade nesses assuntos.
Com relutância, Katherine elevara o nível de ameaça para a Classe X. A Administração enviou alguns funcionários da FEMA e da Segurança Interna lá para baixo e Chien pressentiu
que a ciência rapidamente viraria escrava da política, como acontecera durante toda a história humana.
Assim que Chien digitou o código de acesso no teclado de segurança, olhou ao redor do estacionamento escuro. Havia uma meia dúzia de veículos no estacionamento às 5 da madrugada,
o dobro do habitual. Ainda assim, os arredores de agosto pareciam os mesmos: os bordos de folhagem verde brilhante sob as luzes de segurança e sapos e grilos manifestando-se
ao redor do lago decorativo na entrada paisagística. Chien, no entanto, sentia algo no ar, uma atmosfera carregada, como se estivesse prestes a cair um toró.
Então o dr. Apocalipse estava certo, hein, Katherine?
Ele entrou no saguão, de luz muito mais fraca do que a habitual, e Chien percebeu que a luz de emergência estava ligada. Não era bom sinal.
Um sinal ainda pior estava caído na mesa da recepção. Mesmo sob a luz fraca, Chien reconheceu Tamberlyn, o guarda noturno. O quepe estava caído no chão e uma das mãos se dependurava
flacidamente para fora da mesa. Chien o chamou e, como não obteve resposta, disparou até ele com passos altos demais ressoando pelo saguão de vidro fechado. O rosto de Tamberlyn
estava sobre uma revista e as páginas ficaram manchadas de baba. Chien tentou sentir a pulsação do homem, mas a pele já estava fria.
Chien pegou o telefone de mesa, mas ele estava sem sinal. Olhou o corpo de Tamberlyn, mas não havia sinal de luta. Era pouco provável que alguém tivesse roubado o laboratório
do SDO porque o equipamento era tão especializado que seria difícil de penhorar e astronomia não é lá um negócio que movimente assim tanto dinheiro. Nem os dados tinham tanto
valor comercial, pois a maior parte deles era acessível ao público.
Katherine!
Chien se apressou pelo corredor, ignorando os elevadores. Chegou à escada, que estava escura como breu, exceto pelo brilho ambiente de poucas luzes de emergência. Ele tropeçou
ao subir, xingando por ter batido a rótula no concreto. Logo ele chegou ao segundo andar e aproximou-se do laboratório do SDO.
A porta estava aberta. O laboratório geralmente era bem iluminado, com diversos monitores, luzes piscando, vários medidores digitais e computadores. No entanto, viam-se poucos
pontos de luz, como vaga-lumes na floresta à meia-noite.
— Katherine? — sussurrou.
Algo se mexeu à esquerda, seguido do som das rodinhas da cadeira. Ele se virou e um vulto subitamente o atingiu no peito, fazendo o ar sair dos pulmões e os óculos voarem
do nariz. Sentiu o perfume de Katherine — uma marca menos cara cujo nome francês ele não conseguiu se lembrar — e, menos intenso que ele, um cheiro de suor, elétrico, como
o produzido por um inseto morto no mata-moscas de luz ultravioleta.
Ele gritou o nome dela, em seguida a chamou de “dra. Swain” na esperança de induzir algum lampejo de memória profissional. Ele a empurrou e em seguida começaram os golpes
enquanto as mãos dela correram em garras sobre o rosto dele. As unhas dela rasgaram-lhe a testa em uma fina linha de agonia.
Ela quer me acertar nos olhos!
Ele conseguiu dar um soco no lado do corpo dela, inconvenientemente ciente do volume dos seios dela contra ele enquanto ela o forçava para cair no chão. Katherine Swain não
era uma mulher grande, mas, de alguma forma, ela parecia ter encarnado todo o poder da gravidade. Uma gargalhada reprimida vibrou por dentro das costelas dela como uma espécie
de brinquedo de corda. Ela recuou um pouco, o que lhe deu a chance de afastá-la, mas o rosto dela o congelou.
O brilho de pirilampos que ele vira não eram resquícios do mundo mecânico que ele tanto amava: era orgânico, uma inflexão obscena nos olhos dela. Ele só conseguia olhar e
exalar enquanto ela juntou as mãos e golpeou-lhe a garganta.
Cuspiu um irc e a laringe ficou esmagada.
Lutando para respirar, ele olhou descontroladamente a sala à procura de uma saída. Mas, desta vez, a ciência não seria sua salvação.
O dr. Apocalipse estava certo.
CAPÍTULO 9
Campbell Grimes manuseou os controles para recarregar a arma, descendo uma escada rolante paralisada na plataforma do metrô.
Um zumbi pulou detrás de um pilar, vestido de macacão cinza como um trabalhador de manutenção. Campbell mal tivera tempo para explodir a cabeça do monstro antes de mais dois
saltarem das sombras.
Ele atirou — ca-blam-blam — provocando dois jorros explosivos de sangue animado, seguido de um grito e um profundo uivo inumano na caverna subterrânea sob a cidade. Left 4
Dead era um dos jogos mais populares e, apesar de jogá-lo religiosamente nos últimos três anos, Campbell não estava nem perto de se cansar dele. Ele gostava mais dos protagonistas
cooperativos do jogo do que da maioria dos amigos no mundo real — pelo menos eles eram mais confiáveis para protegê-lo quando precisava. Campbell tinha poucas dúvidas de que,
um dia, chegaria ao asilo de idosos lutando contra as mesmas hordas de zumbis que magicamente nunca pareciam envelhecer nem diminuir.
A velhice, no entanto, ainda não estava nem perto. Com 25 anos, ele ainda não estava nem perto de crescer, que dirá de envelhecer.
— Anda, anda — gritou para a tela. Ele manejou os controles para que o personagem entrasse no metrô, correndo entre os bancos vazios com a espingarda nivelada diante de si.
Sentindo uma calmaria no ataque, ele armou a espingarda com outro cartucho.
Um uivo demoníaco surgiu do vagão da frente. Ele levantou o cano, preparou-se para mais carnificina… e a tela ficou preta.
— Que isso?! — Clicou os botões do jogo por mais dez segundos e percebeu por fim que o console estava sem energia, assim como o monitor.
Olhou ao redor da sala de estar bagunçada de seu apartamento em Chapel Hill e pensou se Roy se esquecera novamente de pagar a conta de luz. Roy era daqueles companheiros de
quarto que sempre tinham um dinheirinho para comprar uma caixa de cerveja, mas, para outras coisas, sempre diziam estar sem grana. A ideia de ficar sem cerveja por alguns
dias para pagar a conta de luz nunca passara pela cabeça de Roy.
Campbell não era lá tão responsável, mas tinha, pelo menos, um pouco de orgulho. Trabalhava de entregador no Papa John Pizza para pagar as despesas, enganando-se ao pensar
que algum dia teria uma carreira de verdade. Mas para que honestidade? Alguma vez isso adiantou alguma coisa?
Não foi somente a TV e o console que ficaram sem energia: as luzinhas alaranjadas dos aparelhos de cozinha também se apagaram. A claridade matinal que entrava pelas cortinas
era suficiente para brilhar nas latas de cerveja amassadas na mesinha de centro.
— Roy? — gritou.
Cada um tinha seu quarto na velha casa dividida em apartamentos por algum aspirante a dono de cortiço. O lugar ficava a vinte quarteirões do campus da Universidade da Carolina
do Norte, onde o aluguel passava de “entrar com areia e tudo” para “com um pouquinho de vaselina”, o que era bom para Campbell, que se formara dois anos antes e não precisava
ficar perto da faculdade. Roy, por outro lado, estava no sétimo ano do Bacharelado em Comunicação. O problema era que as habilidades de comunicação de Roy eram ainda piores
do que as de Campbell, que falava mais com amigos virtuais do que com gente de verdade.
Ele chamou Roy mais uma vez e, em seguida, levantou-se e bateu a canela na mesinha de centro. Ele andou mancando pelo tapete, deslizando sobre as meias para não esbarrar em
mais obstáculos. A eletricidade estática causava pequenas faíscas azuis que dançavam ao redor dos dedos dos pés. Se Roy estivesse ali chapado, teria dito: “Que isso, véi,
relaxa”, uma observação genérica que servia para tudo que não fosse “Vacilo, cara”. Com certeza esse grau de comunicação lhe serviria para tudo na vida.
— Roy, tem alguém aí contigo? — perguntou sem abrir a porta. Às vezes, ele dormia com Marta, a menina mexicana cuja idade poderia ser usada para colocar Roy na cadeia por
estupro, mas ela só aparecia ali uma vez por semana. Campbell não se metia nisso, a menos que Marta tivesse uma “amiga” que “chegaria para a festa”. Com sorte, isso acontecia
com ele a cada três meses. Não que ele se importasse muito com isso. Mulher, para ele, era complicado; Left 4 Dead fazia muito mais sentido.
— Roy! Você pagou a conta de luz?
Depois de bater com força três vezes e não obter resposta, Campbell tentou abrir a porta. Se Roy não estivesse em casa, trancaria a porta por causa da maconha que ele tinha
ali. Não que Roy não confiasse em Campbell. Paranoia faz parte.
A maçaneta abriu por dentro, indicando que Roy estava dormindo e acordou de ressaca. Pete enfiou a cabeça e empurrou a porta, que afastou uma pilha de roupas sujas. O quarto
cheirava a meias velhas, loção pós-barba barata, ferrugem — dos halteres de Roy — e um cheiro permanente de bebida e maconha que se misturavam em uma forte poluição alcatroada.
Campbell foi tateando pela parede — TV tela plana, banco para levantamento de peso, cômoda com garrafas empilhadas — até chegar à janela. Abriu as cortinas até o fim e fez
o sol iluminar a cama de Roy.
Pronto, idiota, tomara que a luz entre pelo seu globo ocular como um monte de anzóis até puxar os dois olhos pra fora.
Roy não se mexeu. O rosto dele estava virado para Campbell, de boca aberta, com a língua pendurada como um presunto cor-de-rosa. Campbell chutou a cama. — Acordaê.
Roy se mexeu, mas não acordou. Dessa vez, Campbell apoiou um pé descalço na coxa do colega e empurrou-o. Roy rolou parcialmente, mas nem murmurou de aborrecimento. Campbell
se inclinou e analisou o rosto pálido de Roy.
Ele não tá tão quente. Deve ter sido heroína, sei lá.
Campbell se inclinou ainda mais. A boca de Roy exalava um fedor diferente, mas não era mau hálito porque Roy não estava respirando.
Droga, droga, droga.
Pressionou um dedo no pescoço de Roy como se fazia nos filmes. Ele não sabia como seria a sensação de ter ou não pulso, mas isso não importava, pois não sentia nada. A pele
estava à temperatura ambiente.
Merda merda merda. Ele tá morto.
Campbell voltou para a sala de estar até os olhos se ajustarem à escuridão. Enfiou a mão no bolso para pegar o celular. Será que ele devia ligar para a emergência? Mas e as
drogas? Será que Campbell se meteria em encrenca? Claro, ele poderia botar a culpa toda em Roy, mas uma busca policial por ali seria um grande aborrecimento.
Por fim, ele decidiu ligar. O celular, no entanto, não funcionava. Ele acabara de carregá-lo uma hora antes, quando o gerente ligou para avisá-lo do começo do turno.
Sem energia, sem telefone. Que diabos está acontecendo?
Campbell abriu a porta do apartamento. Um homem estava deitado na calçada em frente, encolhido como um monte de roupa no chão. Um jipe vermelho que rodava descontroladamente
pelo estacionamento do complexo arrancou o para-choque de três veículos antes de se chocar contra uma caminhonete Ford. O motorista do jipe caiu de cabeça no para-brisa, pendurado
como uma cabeça de veado empalhada em um troféu sobre uma placa vermelha. Ouviam-se gritos nas ruas vizinhas.
A balbúrdia estava à solta, e Campbell fez a única coisa que conseguia pensar naquelas circunstâncias.
Ele voltou atrás, bateu a porta do apartamento e trancou-a.
Lá dentro ele se perguntou quanto tempo levaria para a energia voltar e quanto demoraria para Roy começar a feder de verdade.
CAPÍTULO 10
Rachel ouviu os gritos enquanto se debatia em meio a um pesadelo.
Como de costume, ela estava debaixo d’água em seus sonhos inquietos, sondando as profundezas escuras por algo que ela não poderia nunca encontrar.
Algo bateu na parede do apartamento e ela pensou que os vizinhos deviam estar em uma de suas calorosas brigas domésticas. Os gritos, porém, eram abafados e distantes, vindos
de algum lugar fora do complexo de apartamentos.
E eram vários, um coro de uivos, gritos e berros. Um ruído metálico de esmagamento com vidro quebrado a despertaram completamente. Em algum lugar na rua, uma buzina de carro
tocava incessantemente, que, em seguida, deu lugar a um silêncio abrupto, profundo demais para uma madrugada de semana em Charlotte.
Rachel se enrolou em um roupão e abriu a janela, achando que se tratava de um acidente de carro. Ela teve que tirar o ventilador da janela para dar uma boa olhada. Na rua,
um tumulto. Os carros estavam misturados em uma matriz caótica, com o tráfego completamente parado. Um ônibus urbano tinha tombado em uma parada do cruzamento. Dois furgões
de serviço tinham derramado pacotes de toalhas azuis do compartimento de carga. Havia um vapor subindo de dentro do capô de um sedã Toyota, e o braço do motorista pendia da
janela. A mão estava morta e parada.
Foi quando Rachel percebeu o único movimento na rua: uma mulher de tailleur corria desajeitadamente entre os veículos parados sem um dos sapatos de salto alto, de cabelo longo
emaranhado.
Não: havia outros.
Estavam perseguindo a mulher.
O mais próximo era um homem de camisa de uniforme cáqui com uma insígnia de pano no ombro — parecia um motorista de entrega. Ele bateu na lateral do ônibus como se não a tivesse
visto e cambaleou por um momento antes de continuar atrás da mulher que, enquanto isso, gritava. Como se atraído pelos gritos, um homem de jaqueta de couro surrada esquivou
entre os veículos em direção a ela. A perseguição foi bloqueada por dois carros que colidiram de frente e ele passou por cima do capô de um sedã Audi que se espalhava em cacos
pela rua. Os dois estavam alcançando a mulher, que, no frenesi, lutava para remover o sapato de salto restante. Ela foi mancando em direção à vitrine de uma loja de conserto
de eletrônicos, onde uma idosa estava caída contra a porta.
Em seguida, Rachel percebeu os outros corpos… pelo menos quatro que ela pudesse ver de relance. Ela reconheceu um suéter rosa que tinha emprestado a Mira e depois reconheceu
o cabelo escuro longo espalhado em volta da cabeça onde ela jazia na calçada, perto de um ponto de ônibus.
Ligue pra emergência.
Rachel pegou o celular na mesa de cabeceira, embora certamente a polícia já soubesse de um incidente daquele tamanho. O celular não funcionava.
O avô tentara ensinar-lhe a manejar armas de fogo, mas ela resistiu e recusou-se o contato com a violência do mundo. Naquele momento ela quis ter uma arma. Mesmo se tivesse,
não saberia em quem atirar. Nem por quê.
Rachel empurrou a tela para fora da janela e gritou para a mulher em pânico, na esperança de chamar a atenção dos seus atacantes. Porém, enquanto a mulher se virou e olhou
para cima, os dois homens investiram e aproximaram-se. Eles chegaram até ela em um instante e começaram a rasgar roupas e cabelos.
Estupro, em plena luz do dia?
Mas isso não se encaixava na carnificina que acontecia na rua, com aqueles cadáveres. Era algo muito amplo. Muito.
Foi quando se lembrou das histórias das erupções solares. Ela olhou de soslaio para o aro laranja que ardia como uma promessa sobre o panorama da cidade. Ela ainda não sabia,
mas era o alvorecer de uma nova era.
Era a primeira luz do Depois.
Alguém bateu à porta.
Seu primeiro instinto foi abri-la, mas os amigos nunca batiam. Eram todos educados e atenciosos e nunca incomodariam tão cedo. Nem a indisciplinada Mira.
Mira. Lá fora.
Ela não suportava a ideia de ver a amiga ferida, caída em meio ao que parecia ser um motim. As batidas continuaram.
Rachel encostou o ouvido perto da porta. — Quem é?
— JD, moro aqui do lado.
Ela não o conhecia muito bem. JD a convidou algumas vezes quando dava festas de arromba, na maioria das vezes para avisá-la e evitar reclamações. Ele parecia bastante inofensivo,
com a obsessão habitual por esportes e cerveja da maioria dos caras do condomínio. Mas, dado o caos furioso lá fora, ela não podia arriscar-se pela segurança enquanto Mira
podia estar lá, inconsciente e vulnerável na rua.
— O que está acontecendo? — gritou ela pela porta.
— Está um inferno generalizado.
— O que você quer?
— Tá sozinha? — perguntou assustado.
Ela não sabia se podia confiar nele. E se ele fosse parte de tudo o que estava acontecendo e quisesse atraí-la para fora? — Eu tenho… tenho uma arma.
— Que bom. Deixa eu entrar.
— Minha amiga tá lá fora.
— Eu sei. Eu a vi.
Ela se lembrou de que Mira tinha namorado JD por algumas semanas, até que ele se mostrou ser um babaca.
Hesitou um pouco e, depois de alguns cliques na porta, JD bateu bem forte do lado de fora. — Me deixa entrar! Me deixa entrar! Eles estão aqui.
Algo bateu fortemente como um saco de cimento caindo e, em seguida, veio um grito estridente de menina.
Ah, Deus, o que eu faço?
Ela sabia que o certo era abrir a porta e ajudar. Era o que todo cristão faria, a decisão moralmente correta. E essa, também, era a mais assustadora.
JD gritou novamente e o instinto dela aflorou. Ela pegou o objeto mais próximo que encontrou para usar como arma — guarda-chuva azul-celeste — e abriu a porta.
JD chutava e se debatia sob três pessoas que pareciam estar rasgando os membros do corpo dele. Do grupo, uma apareceu com a manga da camiseta de JD, que lhe deu um tapa na
cabeça. Era uma jovem de vestido de verão, com antebraços cheios de estrias de sangue.
Os outros dois atacantes eram homens, e…
Michael? O cara do fundo do corredor?
Em seguida, o rapaz olhou para ela. Sim, era Michael, mas também não era. Pelo menos era parte dele. Os olhos dele brilhavam com estranhas faíscas douradas e os dentes estavam
à mostra em fúria.
Rachel segurou a ponta do guarda-chuva à frente como um florete de esgrima, com o braço tremendo de medo e de choque. Mas Michael voltou sua atenção para JD, arranhando o
rosto do cara enquanto os outros lhe batiam com os punhos.
— JD! — gritou, mas ele já estava inconsciente.
Ou morto.
Não era um motim: era o inferno na Terra. Embora Rachel fosse religiosa mesmo, ela nunca vira alguém com loucura terminal. Parecia-lhe muito improvável. Além disso, as revelações
bíblicas profetizavam uma série de calamidades, e não uma inclinação repentina de julgamento severo, como se Deus tivesse de repente girado a manivela “Punição” até o dez.
Mas ela não tinha tempo para debates teológicos porque JD estava morrendo. Ela pulou e acertou o guarda-chuva no pescoço de Michael com uma paulada gratificante.
Michael sequer desviou o olhar judiado do rosto de JD. Rachel atacou novamente.
Isso chamou a atenção de Michael. Ele se virou para olhá-la e, em seguida, levantou-se, com aqueles olhos assustadores e flamejantes.
Ele era quinze centímetros mais alto que ela e uns quarenta quilos mais pesado. O guarda-chuva se tornou um bastão vacilante na mão dela. Ele ergueu as mãos ensanguentadas,
e ela não tinha certeza se ele sorria ou se simplesmente projetava prazer em seu desdém rígido de raiva.
Enquanto ele atacava e a poça de sangue escorria em torno de JD, Rachel olhou para seu apartamento. Ela nunca fecharia a porta a tempo.
Ela correu pelo corredor, sem parar de bater em todas as portas. Ela não tinha tempo de explicar e, provavelmente, ninguém seria tão idiota quanto ela. Seria melhor ter ficado
trancada, presumindo que nenhum de seus vizinhos estivesse vivo.
Rachel desceu as escadas para fugir. O guarda-chuva, que ficou dobrado com os golpes, se abriu, quase fazendo-a cair de cabeça para baixo pelos degraus de concreto. Ela jogou
o troço longe e apressou-se. Ouviu vozes de vários andares acima, mas é claro que ela nunca subiria.
No térreo, ela irrompeu pela saída de emergência, piscando contra o sol.
O caos piorara: vidros quebrados, gente gritando e batendo os pés no asfalto, um tiro à distância. A cena era tão estranha que parecia fantasia — sem sirenes de emergência,
buzinas nem motores de automóveis.
Rachel se esquivou entre os carros para chegar onde Mira tinha caído. Um indivíduo de roupa esportiva passou por ela, que não conseguiu ver os olhos dele antes de arriscar
chamar-lhe a atenção. Muito rapidamente, ela supôs que aqueles pontos dourados significavam “Atenção: assassino”.
Ela se agachou ao lado de um Honda para evitar ser vista da rua. Quando levantou a cabeça lentamente, quase deu um grito involuntário. Uma família de cadáveres estava sentada
no interior: papai ao volante, mamãe caída contra o painel de instrumentos e o bebê quase azul amarrado na cadeirinha presa no banco de trás. O bebê tinha um chocalho coberto
de baba.
Não olhe, não pense. Tenho que chegar até Mira.
Rachel se arrastou, contornando o veículo e viu pernas nuas passando pela calçada, terminando em Chacos com tiras azuis. Mira.
Rachel rezou rapidamente e correu para chegar à amiga, vagamente consciente dos corpos em movimento para cima e para baixo da rua. Ela sequer teve que verificar-lhe o pulso.
Olhos de Mira estavam esbugalhados e a laringe estava esmagada como uma melancia.
Rachel não poderia retornar para o apartamento, não com o cadáver de JD e tudo mais lá em cima. Ela poderia tentar encontrar alguns amigos, mas, depois da experiência com
Michael, ela ficou com medo de que eles, também, tivessem se transformado em assassinos violentos.
O que Franklin faria?
Por um lado, ele já estaria escondido, esperando o pior.
E Rachel sempre esperava o melhor. Acontece que ele estava certo e ela estava errada.
Ela podia ouvir as palavras dele quase como se tivesse acabado de sussurrá-las no ouvido dela: Você sabe onde me encontrar quando a merda bater no ventilador.
Sim, ela sabia. Marco 291 na rodovia Blue Ridge, nas montanhas a 300 quilômetros a noroeste.
Ele também poderia estar em um submarino sob as ondas do Atlântico, por todo o bem que ele lhe fizera.
Ainda assim, o que ela conseguiria por ali? Ela não via nenhum policial e a Guarda Nacional não fora mobilizada, e até mesmo as poucas pessoas armadas estavam em menor número.
Não havia nenhuma organização, nenhuma ordem — algo que ela achava ser impensável no séc. XXI — e ninguém lhe diria o que fazer.
Está bem. As montanhas.
Descobrir o que aconteceu, ficar imperceptível e pegar os suprimentos necessários.
Ela olhou para os pés descalços, que estavam ralados e sangrando.
Era preciso organizar as ações.
Olhou em volta, certificou-se de que ninguém estivesse vindo matá-la e fechou as pálpebras de Mira, encolhendo-se ao sentir a carne mole.
Descanse em paz, irmã. Que Deus tenha piedade de sua alma.
Tirou as sandálias de Mira, limpou o excesso de sangue e calçou-as.
Em seguida, correu loucamente.

 

 

                                                   Scott Nicholson         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

                                                  

O melhor da literatura para todos os gostos e idades