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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRIMEIRO AMOR / Ivan Turgueniev
PRIMEIRO AMOR / Ivan Turgueniev

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

HAVIA muito tempo que os convidados se tinham despedido. O relógio acabava de dar meia-noite e meia hora. O nosso anfitrião, Sérgio Nicolaievich e Vladimiro Petrovich encontravam-se ainda, sòzinhos na sala. O nosso amigo tocou e mandou levantar a mesa.
- Creio que estamos todos de acordo, meus senhores
- declarou, recostando-se na poltrona e acendendo um charuto. - Cada um de nós prometeu contar a história do seu primeiro amor. Tem a palavra, Sérgio Nicolaievich.
O interpelado, um homenzinho louro, de cara de lua-cheia, fitou o dono da casa e depois olhou para o tecto.
- Não tive primeiro amor - declarou por fim. - Comecei directamente pelo segundo.
- Como é possível?...
- Muito simplesmente. Devia ter cerca de dezoito anos quando me atrevi pela primeira vez a cortejar uma rapariga, na verdade muito galante, mas comportei-me como se o caso não fosse novidade para mim, exactamente como fiz mais tarde com as outras... Para ser franco, o meu primeiro e último amor remonta à época em que tinha seis anos. O objecto da minha paixão era a aia que cuidava de mim. Como vêem, trata-se de um amor muito antigo e por isso os pormenores das nossas relações apagaram-se-me da memória. Aliás, mesmo que me recordasse deles, que poderiam agora interessar?
- Nesse caso, que vamos fazer? - lamentou-se o nosso anfitrião. - Ô meu primeiro amor também não tem nada de muito apaixonante... Nunca amara antes de conhecer Ana Ivanovna, a minha mulher, e tudo se passou do modo mais natural deste mundo: os nossos pais combinaram casar-nos, não tardámos a experimentar uma inclinação mútua e casámo-nos rapidamente. Toda a minha história se resume em duas palavras. Para dizer a verdade, meus senhores, confesso que contava convosco, rapazes solteiros... A não ser que Vladimiro Petrovich nos queira contar qualquer coisa divertida...
- Na realidade; o meu primeiro amor não foi um amor vulgar - respondeu Vladimiro Petrovich, depois de curta hesitação.
Era um homem de cerca de quarenta anos, de cabelos negros, levemente grisalhos.
- Ah, ah! Tanto melhor!... Vamos a isso! Somos todos ouvidos!
- Pois bem, seja... Ou antes, o melhor é não lhes contar nada, pois sou um péssimo narrador e, em geral, as minhas histórias são insípidas e curtas ou compridas e fictícias... Se não vêem inconveniente, anotarei todas as minhas recordações num caderno e ler-lhas-ei depois.
Primeiro, os outros não concordaram, mas Vladimiro Petrovich acabou por os convencer. Quinze dias mais tarde reuniram-se de novo e a promessa foi cumprida.
Eis o que ele anotara no seu caderno:

 


 


CONTAVA então dezasseis anos. Isto passou-se no Verão de 1833.
Encontrava-me em casa dos meus pais, em Moscovo, que tinham alugado uma vivenda ao pé da Porta de Kaluga, defronte do Jardim de Neskuchny. Preparava-me para entrar na universidade, mas estudava pouco e sem pressa.
Gozava de completa liberdade; podia fazer tudo o que me apetecesse, sobretudo desde que me livrara do meu último preceptor, um francês que nunca conseguira habituar-se à ideia de ter caído na Rússia comme une bombe e que passava os dias estendido na cama com expressão exasperada.
O meu pai tratava-me com terna indiferença e a minha mãe quase me não prestava atenção, apesar de ser o seu único filho, pois absorviam-na cuidados de outro género.
O meu pai, homem novo e bem-parecido, fizera um casamento de conveniência. A minha mãe, dez anos mais velha do que ele, tivera uma existência muito infeliz. Sempre inquieta, ciumenta, taciturna, não se atrevia a desabafar na presença do marido, que muito temia... e ele afectava uma severidade fria e distante... Nunca encontrei homem mais sério, calmo e autoritário do que ele.
Jamais esquecerei as primeiras semanas que passei na vivenda. Estava um tempo soberbo. Tínhamo-nos instalado em 9 de Maio, dia de S. Nicolau, e entretinha-me a passear no nosso parque, no Neskuchny ou do outro lado da Porta de Kaluga. Levava comigo um
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livro qualquer - o de Kaidanov, por exemplo -, mas só raramente o abria; passava a maior parte do tempo a declamar versos, pois sabia muitos de cor. O sangue fervia-me nas veias e o coração devaneava-me com uma alegria melancólica. Esperava qualquer coisa, assustava-me sem saber porquê e andava sempre inquieto e precavido. A imaginação agitava-se-me e turbilhonava em torno das mesmas ideias fixas, como os gaivões, ao romper do dia, em torno do campanário. Tornei-me sonhador, melancólico, e às vezes até chorava. Mas através de tudo isto desabrochava em mim; como a erva na Primavera, uma vida nova e ardente.
Tinha um cavalo que eu próprio selava e no qual ia para muito longe, sozinho, a galope. Tão depressa me julgava um cavaleiro prestes a entrar na liça - e o vento assobiava-me tão alegremente aos ouvidos! como erguia o rosto e deixava a alma bem aberta impregnar-se-me da luz deslumbrante e do azul do céu.
Nenhuma imagem feminina, nenhuma visão amorosa se apresentara ainda nitidamente ao meu espírito; mas em tudo o que pensava, em tudo o que sentia ocultava-se um pressentimento semiconsciente e cheio de reticências, a presciência de qualquer coisa inédita, infinitamente agradável e feminina...
E esta expectatica apoderava-se de todo o meu ser: respirava-a, corria-me nas veias, em cada gota do meu sangue... e em breve trasbordaria.
A nossa vivenda compunha-se de uma construção central, de madeira, com uma colunata flanqueada por duas alas baixas. Na ala esquerda encontrava-se instalada uma fabriqueta de papéis pintados aonde eu ia muitas vezes. Aí, uma dúzia de garotos esqueléticos, de cabelos hirsutos e caras espantosamente pálidas, macilentas, metidos em ensebados calções de trabalho, saltavam em cima das alavancas de madeira que accionavam os blocos dos prelos quadrados e imprimiam assim, com o peso dos seus corpos débeis, os arabescos multicores do papel pintado. A ala direita, desocupada, estava para alugar.
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Um belo dia, cerca de três semanas depois da nossa chegada, as persianas das janelas daquele lado abriram-se ruidosamente e descortinei rostos de mulher. Tínhamos vizinhos. Recordo-me de que nessa mesma noite, durante o jantar, a minha mãe perguntou ao mordomo quem eram os recém-chegados, e de que, ao ouvir o nome da princesa Zassekine, repetiu, primeiro com deferência: "Ah, uma princesa!...", e depois acrescentou: "Alguma pobretana, com certeza..."
- As senhoras vieram em três fiacres - observou o criado, apresentando respeitosamente a travessa. - Não têm carruagem e quanto ao mobiliário não vale mesmo nada.
- Pois sim, mas apesar de tudo prefiro isso - replicou minha mãe.
Meu pai olhou-a friamente e ela calou-se.
Efectivamente, a princesa Zassekine não podia ser pessoa abastada, pois o pavilhão que alugara era tão vetusto, pequeno e miserável que mesmo gente de poucos recursos recusaria alojar-se nele. Pela minha parte, não liguei nenhuma importância a tais comentários, tanto mais que o título de princesa me não podia causar a mais pequena impressão, visto acabar precisamente de ler Os Bandidos, de Schiller.
ADQUIRIRA o hábito de vaguear todas as tardes através das alamedas do nosso parque, com uma espingarda debaixo do braço, à coca dos corvos. Sempre detestei profundamente essas aves vorazes, cautelosas e astutas. Naquela tarde, descera ao jardim, como de costume, e acabava de percorrer em vão todas as alamedas: os corvos tinham-me pressentido e só os ouvia crocitar muito longe. Levado pelo acaso, aproximei-me da paliçada baixa que separava o nosso domínio da estreita faixa ajardinada que se estendia à direita da ala e da qual fazia parte.
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Caminhava de cabeça baixa quando julguei ouvir um ruído de vozes. Deitei uma olhadela por cima da paliçada e parei estupefacto perante o estranho espectáculo que tinha diante dos olhos.
A poucos passos de mim, num relvado que se estendia entre framboeseiras verdes, encontrava-se uma rapariga alta e elegante, de vestido cor-de-rosa às riscas e com a cabeça coberta por um lencinho branco. Rodeavam-na mais quatro raparigas e ela batia-lhes alternadamente na testa com uma dessas flores cinzentas cujo nome me não ocorre agora, mas que as crianças conhecem bem, pois costumam ter uns saquinhos que estalam com ruído quando se bate com eles em qualquer coisa dura. As vítimas ofereciam a testa com tal prontidão e havia tanta beleza, ternura imperiosa e zombeteira, graça e elegância nos movimentos da jovem, que só via de perfil, que estive quase a soltar um grito de surpresa e arrebatamento... Daria tudo na vida para que os seus dedos adoráveis me batessem também.
Deixei cair a espingarda na relva e, esquecido de tudo, devorava com os olhos aquela cintura esbelta, aquele colo encantador, aquelas mãos patrícias, aqueles cabelos louros levemente despenteados debaixo do lenço branco, aqueles olhos inteligentes e semicerrados, aqueles cílios e aquelas faces aveludadas...
- Ouça, meu rapaz, acha que lhe é permitido olhar desse modo meninas que não conhece? - perguntou-me de súbito uma voz, mesmo ao pé de mim.
Estremeci e fiquei confuso... Um homem ainda novo, de cabelos negros cortados muito curtos, media-me dos pés à cabeça, com ar irónico, do outro lado da paliçada. No mesmo instante, a jovem virou-se também para mim... Deparei com uns grandes olhos cinzentos, num rosto expressivo, que um leve frémito agitou de súbito, e o riso, ao princípio contido, expandiu-se, sonoro, descobrindo os dentes brancos e arqueando curiosamente as sobrancelhas da rapariga... Corei até à raiz dos cabelos, apanhei a espingarda e fugi a toda a velocidade, perseguido pelas suas gargalhadas. Quando cheguei ao meu quarto, atirei-me para cima da cama e escondi o
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rosto nas mãos. O coração pulsava-me como louco e sentia-me confuso e feliz, dominado por uma perturbação como até ali nunca experimentara.
Depois de me acalmar, penteei-me, escovei o fato e desci para tomar o chá. A imagem da rapariga adejava-me diante dos olhos; o meu coração recuperara o juízo, mas palpitava-me deliciosamente.
- Que tens? - perguntou-me bruscamente o meu pai. - Mataste algum corvo?
Estive tentado a contar-lhe tudo, mas contive-me e limitei-me a sorrir intimamente. Quando me fui deitar, dei três piruetas num pé, sem saber porquê, e pus brilhantina nos cabelos. Dormi como uma pedra. Pouco antes de nascer o dia, acordei por instantes, soergui a cabeça, olhei à minha volta cheio de felicidade... e voltei a adormecer.
"COMO hei-de arranjar maneira de lhe ser apresentado?", tal foi o meu primeiro pensamento assim que acordei.
Desci ao jardim antes do chá, mas evitei aproximar-me demasiado da paliçada e não vi vivalma.
Depois do chá, passei e repassei diversas vezes diante do seu pavilhão e tentei devassar de longe o segredo das janelas... Em dado momento, julguei adivinhar-lhe o rosto atrás das cortinas e afastei-me precipitadamente.
"Seja como for, tenho de travar relações com ela", dizia para comigo, passeando sem destino na esplanada ensaibrada que se estendia diante do Neskuchny. "Mas como? Aí é que está o busílis..." Evocava os mais insignificantes pormenores do nosso encontro da véspera. De toda a aventura fora o seu riso que mais me impressionara, não sei porquê...
Mas enquanto me exaltava e imaginava toda a espécie de planos, o destino tomara já conta de mim...
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Durante a minha ausência, a minha mãe recebera uma carta da nossa vizinha, escrita em papel pardo muito ordinário e fechada com lacre castanho-escuro, como aquele que se encontra geralmente nas estações de correio ou nas rolhas dos vinhos de qualidade inferior. Na sua carta - em que a negligência da sintaxe nada ficava a dever à letra - a princesa pedia a minha mãe que lhe concedesse auxílio e protecção. A minha mãe, na opinião da nossa vizinha, estava intimamente relacionada com personagens influentes, das quais dependia o destino da princesa e dos filhos, a contas com um processo muito intricado.
"Dirijo-me à senhora", escrevia ela, "como uma mulher nobre a outra mulher nobre, e por outro lado é-me agradável aproveitar o ensejo..." Em resumo, a princesa solicitava autorização para visitar a minha mãe. Esta última mostrou-se muito aborrecida, pois o meu pai estava ausente e não sabia a quem pedir conselho. Evidentemente, isso não era motivo para deixar sem resposta a missiva da "mulher nobre" - uma princesa, ainda por cima! Mas que fazer?... Parecia-lhe despropositado escrever umas linhas em francês, mas a ortografia russa da minha mãe deixava muito a desejar e ela sabia-o e não se queria comprometer...
O meu regresso tirou-a de apuros. A minha mãe pediu-me que fosse incontinente a casa da princesa e que lhe dissesse que se sentiria sempre muito feliz por, na medida do possível, ser prestável a Sua Alteza e encantada por a receber entre o meio-dia e a uma hora. A súbita realização do meu secreto desejo encheu-me de alegria e apreensão. Contudo, disfarcei o melhor que pude e, antes de cumprir a minha missão, subi ao meu quarto, a fim de pôr uma gravata nova e vestir a minha sobrecasaca, pois em casa, a despeito dos meus protestos, ainda me obrigavam a usar casaco curto e colarinho voltado.
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ENTREI no vestíbulo acanhado e pobre sem conseguir dominar uma tremura involuntária e deparei com um velho criado encanecido, de rosto cor de bronze e olhos melancólicos e pequenos, como os dos porcos. Tinha a testa e as têmporas cobertas de rugas profundas, como eu nunca vira, e segurava um prato em que trazia uma espinha de arenque. Quando me viu, empurrou com o pé a porta que dava para a outra divisão e perguntou-me com voz brusca:
- Que deseja?
- A princesa Zassekine está? - indaguei.
- Bonifácio! - gritou do outro lado da porta uma voz de mulher rouca.
O criado virou-me silenciosamente as costas, exibiu a meus olhos uma libré muito puída nas omoplatas e cujo único botão, coberto de ferrugem, tinha gravadas as armas da princesa, pousou o prato no chão e deixou-me só.
- Foste ao comissariado? - perguntou a mesma voz. O criado murmurou qualquer coisa.
Dizes que temos visitas?... O jovem vizinho?... Manda-o entrar!
- Queira fazer o favor de entrar para a sala - convidou-me o criado, reaparecendo diante de mim e voltando a pegar no prato.
Endireitei rapidamente o fato e entrei na sala.
Era uma divisãozinha não muito limpa, pobremente mobilada e à pressa. Junto da janela, encontrava-se sentada numa cadeira de braços partidos uma mulher de cerca de cinquenta anos, em cabelo, metida num velho vestido verde e com um abafo sarapintado, de pêlo de camelo, em torno do pescoço, a qual me devorava literalmente com os olhinhos negros.
Aproximei-me e cumprimentei-a.
- Tenho a honra de falar à princesa Zassekine? ?
- Sim, sou eu. E o senhor é o filho do Sr. V...?
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- Exactamente, princesa. A minha mãe encarregou-me de um recado...
- Sente-se, peço-lhe... Bonifácio! Onde estão as minhas chaves? Não as viste?
Transmiti à minha interlocutora a resposta da minha mãe. Escutou-me a tamborilar no vidro da janela com os dedos grossos e vermelhos e, quando acabei de falar, encarou-me de novo.
- Muito bem, não faltarei - respondeu por fim. Como é jovem! Quantos anos tem, se não sou indiscreta?
- Dezasseis - respondi com uma involuntária hesitação.
A princesa tirou da bolsa alguns papéis ensebados e garatujados, aproximou-os do nariz e pôs-se a decifrá-los.
- Bonita idade - disse de súbito, virando-se para mim e mexendo a cadeira. - Peço-lhe que não esteja com cerimónias. Em minha casa é tudo muito simples...
"Demasiado simples", acrescentei para comigo, deitando uma olhadela de repugnância à sua figura desmazelada.
Naquele preciso instante, abriu-se outra porta e a rapariga da véspera apareceu no limiar. Levantou a mão e iluminou-lhe o rosto um sorriso zombeteiro.
- É a minha filha - disse a princesa, indicando-a com o cotovelo. - Zinochka, este senhor é filho do nosso vizinho, o Sr. V... Como se chama, meu jovem amigo?
- Vladimiro - balbuciei muito confuso, levantando-me precipitadamente.
- E qual é o seu patronímico?
- Petrovich.
- Oh! Conheci um comissário de polícia que também se chamava Vladimiro Petrovich. Bonifácio, não procures mais as chaves; estão na minha bolsa.
A rapariga continuava a observar-me com o mesmo ar trocista, piscando levemente os olhos e com a cabeça um pouco inclinada para um lado.
- Já o tinha visto, Sr. Valdemar... -começou, e o
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som da sua voz causou-me um agradável arrepio. - Não se importa que lhe chame assim, pois não? - De modo nenhum - balbuciei a custo.
- Onde é que o viste? - perguntou a princesa.
Mas a rapariga, em vez de lhe responder, perguntou-me de novo:
- Tem um minuto livre?
- Tenho, sim, menina.
- Quer ajudar-me a dobar uma meada de lã? Venha por aqui, para o meu quarto.
Saiu da sala depois de inclinar a cabeça e eu segui-a.
O mobiliário da divisão em que entrámos era um pouco mais adequado e estava disposto com mais gosto do que o da sala.
Mas, para ser absolutamente franco, mal olhei para ele; caminhava como um sonâmbulo e dominava-me por completo uma espécie de êxtase feliz muito próximo da tolice.
A jovem princesa sentou-se numa cadeira, pegou numa meada de lã vermelha, desatou-a cuidadosamente, indicou-me uma cadeira diante de si e colocou-me a lã nas mãos estendidas.
Havia em todos os seus gestos uma lentidão divertida, e o mesmo sorriso, franco e travesso, errava-lhe ao canto dos lábios entreabertos. Começou a enrolar a lã num bocado de cartão dobrado ao meio e de súbito lançou-me um olhar tão rápido e resplandecente que baixei os olhos sem querer.
Quando os seus olhos, em geral semicerrados, se abriam em toda a sua imensidão, o rosto transfigurava-se-lhe instantaneamente, como se fosse inundado por um raio de sol.
- Que pensou ontem de mim, Sr. Valdemar? - perguntou-me passado algum tempo. - Aposto que me julgou severamente...
- Princesa... juro-lhe que não pensei nada... Como poderia permitir-me... - balbuciei, completamente perturbado.
- Escute-me com atenção - prosseguiu. - O senhor ainda me não conhece, mas sou uma lunática. Tem
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dezasseis anos, não é verdade? Pois eu tenho vinte e um... sou muito mais velha do que o senhor. Por consequência, deve dizer-me sempre a verdade... e obedecer-me - acrescentou. - Vamos, olhe bem para mim... Porque está constantemente com os olhos baixos?
A minha perturbação era cada vez maior; no entanto, levantei a cabeça. Ela ainda sorria, mas de modo diferente; tinha nos lábios um sorriso em que havia aprovação.
- Olhe bem para mim - insistiu, baixando a voz com uma intonação carinhosa. - Isso não me é desagradável... Gosto da sua cara e pressinto que nos vamos tornar grandes amigos... E eu, agrado-lhe? - concluiu, insidiosa.
- Princesa... - comecei.
- Em primeiro lugar, trate-me por Zinaida Alexandrovna... Depois, a que se deve esse hábito que têm as crianças... - Calou-se e emendou: - Quero dizer, os jovens, de ocultar os seus verdadeiros sentimentos? Isso é bom para os adultos. Não é verdade que lhe agrado?
Confesso que gostei da sua franqueza, mas nem por isso fiquei menos melindrado. A fim de lhe fazer ver que não estava a falar com uma criança, tomei - tanto quanto me foi possível - um ar grave e desenvolto.
- Claro que sim! Agrada-me muito, Zinaida Alexandrovna, e não pretendo de modo algum ocultar-lho.
Abanou suavemente a cabeça.
- Tem um preceptor? - perguntou-me à queima-roupa.
- Não. Há muito tempo que não tenho preceptor. Mentia grosseiramente, pois havia apenas um mês
que o francês se fora embora.
- Oh, então não há dúvida de que já é adulto! Deu-me uma palmadinha nos dedos e recomendou-me:
- Mantenha as mãos direitas! - e recomeçou a enrolar a lã com todo o cuidado.
Aproveitei a circunstância de ter baixado os olhos e examinei-a, primeiro às escondidas e depois cada vez mais ousadamente. O seu rosto pareceu-me ainda mais
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encantador do que na véspera; tudo nela era delicado, inteligente e insinuante. Estava de costas para a janela velada por uma cortina branca e um raio de sol filtrava-se através do tecido e inundava-lhe de luz os cabelos vaporosos e dourados, o pescoço delicado, os ombros arredondados e o colo puro e calmo. Quanto mais a contemplava, mais atraído me sentia! Tinha a impressão de a conhecer de longa data e de nada ter sabido nem vivido antes de a conhecer... Trazia um vestido escuro, muito usado, e um avental, e por minha vontade teria acariciado suavemente cada prega do seu vestuário. Estava diante dela e já nos conhecíamos... As pontas dos seus pèzinhos espreitavam maliciosamente por debaixo da saia e apetecia-me adorá-los de joelhos... "Que felicidade, meu Deus!", dizia para comigo. Por pouco não desatei a saltar de alegria, mas consegui conter-me e limitei-me a balouçar as pernas, como uma criança que saboreia a sua sobremesa.
Sentia-me como peixe na água e, se isso apenas dependesse de mim, nunca mais sairia dali.
Levantou as pálpebras delicadamente, os seus olhos claros brilharam com suave fulgor e sorriu-me de novo.
- Como o senhor olha para mim!... -disse lentamente, ameaçando-me com o dedo.
Pus-me escarlate... "Adivinha tudo, vê tudo", disse tragicamente para comigo. "Aliás, seria de esperar outra coisa?"
De súbito, ouviu-se um ruído na divisão contígua e tilintar um sabre.
- Zina! - gritou a princesa. - Belovzorov trouxe-te um gatinho!
- Um gatinho! - exclamou Zinaida. Levantou-se de um pulo, atirou-me a meada para cima
dos joelhos e saiu precipitadamente.
Levantei-me também, pousei a lã no parapeito da janela, entrei na sala e parei, estupefacto, no limiar. No meio da casa, encontrava-se estendido um gatinho tigrado, com as patas afastadas, e Zinaida, de joelhos diante dele, levantava-lhe o focinho com precaução. Ao lado da mãe, entre as duas janelas, via-se de pé um
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jovem hussardo, belo rapaz de cabelos louros e encaracolados, de pele rosada e olhos salientes.
- Que engraçado! - repetia Zinaida. - Mas os olhos não são cinzentos, são verdes... E que grandes orelhas!... Obrigada, Vítor Egorovich... foi muito amável.
O hussardo, no qual reconheci um dos jovens da véspera, sorriu e inclinou-se, fazendo tilintar as esporas e a bainha do sabre.
- Ontem, manifestou o desejo de ter um gatinho tigrado, de orelhas compridas. Os seus desejos são ordens! - declarou, e inclinou-se de novo.
O gatinho miou dèbilmente e pôs-se a explorar o soalho com a ponta do focinho.
- Oh, tem fome! - gritou Zinaida. - Bonifácio!... Sônia!... Depressa, leite!
Uma aia com um velho vestido amarelo e um lenço de seda desbotado em torno do pescoço, entrou na sala com um pires de leite que colocou diante do animalzinho. O gato estremeceu, fechou os olhos e começou a lamber.
- Como tem a língua pequena e vermelha! - observou Zinaida, baixando a cabeça quase ao nível do focinho do bicho.
O gatinho, saciado, ronronou e Zinaida levantou-se e ordenou à aia que o levasse, em tom perfeitamente indiferente.
- A sua mão em troca do gatinho - pediu, sorrindo, o hussardo, inclinando o corpo atlético, apertado num flamante uniforme novo.
- As duas! - respondeu Zinaida.
Enquanto ele lhe beijava as mãos, ela olhou-me por cima dos ombros do rapaz.
Eu estava especado no mesmo sítio, sem saber muito bem se devia rir, dizer qualquer coisa ou continuar calado.
De súbito, distingui, através da porta do vestíbulo, entreaberta, Teodoro, o nosso criado, que me fazia sinais. Saí maquinalmente.
- Que queres? - perguntei-lhe.
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- A sua mãezinha mandou-me procurá-lo... - respondeu-me a meia voz. - Está zangada consigo por ainda não ter voltado com a resposta...
- Mas então há assim tanto tempo que estou aqui?
- Há mais de uma hora...
- Há mais de uma hora - repeti involuntariamente. Só me restava voltar à sala e apresentar as minhas
despedidas.
- Aonde vai? - perguntou-me a jovem princesa, olhando-me novamente por cima do ombro do hussardo.
- Tenho de regressar... Direi a minha mãe que a senhora prometeu visitá-la por volta da uma hora acrescentei, dirigindo-me à mãe de Zinaida.
- Pois sim, meu jovem amigo.
Tirou a caixa de rapé e tomou uma pitada tão ruidosamente que me sobressaltei.
- Pois sim - repetiu, piscando os olhos lacrimosos e suspirando.
Cumprimentei mais uma vez e saí da sala constrangido, como qualquer adolescente que tem a sensação de o seguirem com a vista.
- Venha visitar-nos mais vezes, Sr. Valdemar! gritou Zinaida, desatando novamente a rir.
"Porque estará sempre a rir?", perguntei a mim próprio, enquanto regressava a casa em companhia de Teodoro. O criado caminhava alguns passos atrás de mim e não dizia nada, mas eu pressentia que ele desaprovava o meu procedimento. A minha mãe ralhou-me e mostrou-se surpreendida por me ter demorado tanto em casa da princesa. Não respondi nada e subi ao meu quarto.
E, de repente, assaltou-me uma imensa vaga de tristeza e contive a custo as lágrimas prestes a correrem... Tinha uns ciúmes atrozes do hussardo!...
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A PRINCESA visitou a minha mãe, como prometera, e desagradou-lhe. Não assisti à conversa, mas à mesa a minha mãe declarou ao meu pai que a princesa Zassekine lhe produzira a impressão de ser "uma mulher vulgaríssima", que a aborrecera terrivelmente com os seus pedidos e as suas súplicas de intervenção junto do príncipe Sérgio, que estava metida em processos até ao pescoço - "processos de indecentes questões de dinheiro" - e que devia ser uma grande chicaneira. Contudo, a minha mãe acrescentou que convidara para jantar, no dia seguinte, a princesa e a filha (ao ouvir "e a filha" meti o nariz no prato) e justificou o convite com a circunstância de se tratar de uma vizinha e "alguém da nobreza", apesar de tudo. Meu pai respondeu que conhecera na sua juventude o príncipe Zassekine, um homem muito educado, mas lunático e desmiolado. Os amigos chamavam-lhe o Parisiense, porque vivera muito tempo na capital francesa. Riquíssimo, arruinara-se depois ao jogo e casara - ninguém sabia porquê, mas talvez devido ao dote - com a filha de um magistrado. (Nesta altura, o meu pai acrescentou que teria podido encontrar melhor...) No entanto, depois do casamento metera-se a jogar na Bolsa e arruinara-se definitivamente.
- Oxalá me não venha pedir dinheiro emprestado!. - suspirou a minha mãe.
- Isso não teria nada de surpreendente... -observou o meu pai, imperturbável. - Sabe falar francês?
- Muito mal.
Hum!... Mas também não tem importância... Disseste, se me não engano, que a convidaste a ela e à filha. Afirmaram-me que é uma rapariga amável e muito instruída.
- Oh, espero que se não pareça com a mãe! - retorquiu a minha progenitora.
- Nem com o pai! Apesar de educado, era uma besta.
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A minha mãe voltou a suspirar e ficou pensativa. O meu pai calou-se. Pela minha parte, sentira-me terrivelmente constrangido durante todo o diálogo.
No fim da refeição, desci ao jardim, mas sem espingarda. Jurara a mim mesmo não me aproximar da "paliçada dos Zassekines", mas uma força invisível empurrava-me para lá... e não fui capaz de lhe resistir.
Assim que me aproximei, descobri Zinaida. Estava sozinha, num carreiro, com um livro na mão e pensativa. Não me viu.
Estive quase a seguir o meu caminho, mas desisti no último momento e pigarreei.
Virou-se, mas sem se deter, afastou com a mão a comprida fita azul da capeline, olhou-me, sorriu suavemente e retomou a leitura.
Descobri-me e afastei-me, amargurado, depois de alguns instantes de hesitação.
"Que sou eu para ela?", perguntei a mim próprio, em francês, não sei porquê.
Ouvi passos familiares atrás de mim; era o meu pai que vinha ao meu encontro, no seu andar ligeiro e rápido.
- Aquela não era a jovem princesa? - perguntou-me.
- Era.
- Já a conhecias?
- Já. Vi-a esta manhã em casa da mãe.
O meu pai parou, virou-se bruscamente e voltou para trás. Quando chegou à altura da rapariga, cumprimentou-a cortesmente. Ela retribuiu o cumprimento com uma gentileza algo surpreendida e deixou cair o livro. Notei que seguia o meu pai com a vista.
O meu progenitor andava sempre vestido com muito requinte e distinção, a que não faltava uma perfeita simplicidade, mas nunca me parecera tão esbelto, nem nunca o chapéu cinzento lhe assentara com mais elegância nos cabelos encaracolados, ainda abundantes.
Dirigi-me para os lados de Zinaida, mas ela não me concedeu sequer um olhar; apanhou o livro e afastou-se.
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PASSEI toda a noite e toda a manhã do dia seguinte mergulhado numa espécie de torpor melancólico. Tentei estudar e abri o Kaidanov, mas em vão: as linhas espaçadas e as páginas do célebre manual desfilavam diante de mim sem transporem a barreira dos olhos. Li dez vezes seguidas esta frase: "Júlio César distinguia-se pela sua bravura nas batalhas." Como o significado destas palavras não havia meio de me entrar na cabeça, acabei por desistir. Antes do jantar, voltei a pôr brilhantina nos cabelos, vesti a sobrecasaca e pus a gravata nova.
- Para que é isso? - perguntou-me a minha mãe. Ainda não andas na faculdade e só Deus sabe se algum dia lá andarás... Além disso, acabamos de te mandar fazer um casaco e não o vais pôr de lado ao fim de alguns dias...
- Mas nós esperamos convidados... - balbuciei, com o coração angustiado.
- Oh, para o que valem!...
Tive de me resignar. Substituí a sobrecasaca pelo casaco, mas conservei a gravata.
A princesa e a filha chegaram com uma boa meia hora de antecedência. A mãe pusera um xaile amarelo por cima do vestido verde já meu conhecido e trazia, além disso, uma touca fora de moda, de fitas cor de fogo.
Começou imediatamente a falar das suas letras de câmbio, suspirando, lamentando-se da sua miséria, choramingando a ponto de comover o coração mais empedernido e tomando a sua pitada de rapé tão ruidosamente como em sua casa. Parecia esquecida do seu título de princesa, remexia-se na cadeira, virava-se para todos os lados e causava aos seus anfitriões uma impressão desastrosa.
Zinaida, pelo contrário, muito orgulhosa e quase austera, comportava-se como uma verdadeira princesa. Tinha o rosto frio, imóvel e grave, mas, apesar de a não
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reconhecer - nem o seu olhar, nem o seu sorriso -, parecia-me ainda mais adorável sob o seu novo aspecto.
Trazia um vestido leve, de bombazina, com arabescos de um azul-pálido, e os cabelos desciam-lhe em compridos caracóis e emolduravam-lhe o rosto, à inglesa, de uma forma que se harmonizava maravilhosamente com a expressão fria das suas feições. Meu pai estava sentado a seu lado e falava-lhe com a sua cortesia requintada e calma. De vez em quando, fitava-a e ela encarava-o também, com uma expressão estranha, quase hostil. Exprimiam-se em francês e recordo-me de que fiquei muito impressionado com a pureza impecável da pronúncia da rapariga.
Quanto à velha princesa, comportava-se sempre com a mesma sem-cerimónia, comia por quatro e gabava os pratos que lhe serviam.
A sua presença parecia importunar a minha mãe, que respondia a todas as suas perguntas com uma espécie de desdém consternado; o meu pai franzia às vezes o sobrolho de forma quase imperceptível.
Mas mais do que a velha princesa, Zinaida não teve a sorte de agradar a minha mãe.
- Demasiado orgulhosa - declarou no dia seguinte.
- E não tem verdadeiramente motivo para isso, com a sua cara de costureirinha...
- Provavelmente nunca viste nenhuma costureirinha
- retorquiu-lhe o meu pai.
- Deus me defenda.... Ainda não cheguei a esse extremo!
- Sim, ainda não chegaste a esse extremo, é verdade... Mas então como é possível que suponhas poder julgá-las?
Durante toda a refeição, Zinaida não se dignou prestar a mais pequena atenção à minha pobre pessoa. Pouco depois da sobremesa, a princesa começou a despedir-se.
- Conto com a sua protecção, Maria Nicolaievna, assim como com a sua, Piotr Vassilievich - declarou, dirigindo-se a meus pais com voz arrastada... -Que querem? Acabaram-se os dias felizes!... Uso o título
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de sereníssima - acrescentou com uma gargalhadinha desagradável-, mas que me adianta isso, pergunto-lhes, se tenho o estômago vazio?
Meu pai cumprimentou-a cerimoniosamente e acompanhou-a até à porta da antecâmara. Mantive-me ao lado dele, no meu casaco acanhado e com os olhos pregados no chão, como um condenado à morte. A forma como Zinaida me tratara deixara-me completamente aniquilado. Qual não foi, porém, o meu espanto quando, ao passar diante de mim, me segredou rapidamente, fitando-me com ternura:
- Vá a nossa casa às oito horas, ouviu? Não falte...
Abri os braços, estupefacto, mas ela já partira, depois de pôr um lenço branco na cabeça.
Às OITO horas em ponto, enfarpelado com a minha sobrecasaca e com os cabelos em poupa, apresentei-me no vestíbulo do pavilhão da princesa. O velho mordomo observou-me com ar melancólico e não mostrou pressa nenhuma em se levantar do seu banco. Ouvi vozes alegres na sala, abri a porta e recuei, estupefacto. Zinaida estava empoleirada numa cadeira, no meio da casa, e segurava um chapéu alto. Cinco homens dispostos em círculo à sua volta tentavam meter a mão no chapéu que ela levantava cada vez mais alto, ao mesmo tempo que o sacudia energicamente. Assim que me viu, gritou:
- Esperem, esperem! Acaba de chegar novo visitante!... Temos de lhe dar também um papelinho!
E, saltando da cadeira, aproximou-se de mim e puxou-me pela manga.
- Venha!... Porque fica aí? Meus amigos, apresento-lhes o Sr. Valdemar, o filho do nosso vizinho. Estes senhores são: o conde Malevsky, o Dr. Luchine, o poeta Maidanov, Nirmatzky, um capitão reformado, e Belovzorov,
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o hussardo que já viu ontem. Espero que se entenda bem com eles.
Na minha confusão, não cumprimentara ninguém. O Dr. Luchine era precisamente o homem trigueiro que me infligira dias antes, no jardim, a pungente lição a que já me referi. Quanto aos outros, não os conhecia.
- Conde - prosseguiu Zinaida-, arranje um papelinho para o Sr. Valdemar.
O conde era um rapaz simpático, muito bem vestido, de cabelos negros, olhos castanhos bastante expressivos, nariz fino e bigodinho minúsculo, por cima dos lábios delgados.
- Isso não é justo - objectou. - Este senhor ainda não jogou às prendas connosco.
- Tem razão! - apoiaram em coro Belovzorov e aquele que me fora apresentado como capitão reformado.
Este era um homem dos seus quarenta anos, com o rosto muito picado das bexigas, de cabelos frisados como um árabe, ombros curvados e pernas arqueadas. Vestia uniforme sem dragonas e trazia o dólman desabotoado.
- Arranjem o papel, pois quem manda sou eu - insistiu a rapariga. - Que insubordinação é essa? É a primeira vez que recebemos o Sr. Valdemar na nossa companhia e não se lhe deve aplicar a lei com excessivo rigor. Vamos, não resmunguem. Escrevam. Mando eu!
O conde esboçou um gesto desaprovador, mas baixou docilmente a cabeça, pegou numa pena com a mão branca, de dedos cobertos de anéis, rasgou um bocado de papel e começou a escrever.
- Permita ao menos que expliquemos o jogo ao Sr. Valdemar... - interveio Luchine, sarcástico. Creio que está completamente desorientado... Escute, meu rapaz: estamos a jogar às prendas e a princesa é o prémio. Aquele que tirar o número premiado terá o direito de lhe beijar a mão. Compreendeu?
Deitei-lhe uma vaga vista de olhos, mas fiquei especado, imóvel, perdido num sonho confuso. Zinaida saltou
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de novo para cima da cadeira e pôs-se a agitar o chapéu. Os outros rodearam-na e eu imitei-os.
- Maidanov! - gritou Zinaida a um rapaz alto, de rosto magro e olhinhos de míope, e cabelos negros e exageradamente compridos. - Maidanov, devia ser caridoso e ceder o seu papelinho ao Sr. Valdemar, a fim de ele ter duas oportunidades em vez de uma...
Maidanov abanou a cabeça negativamente e este gesto dispersou-lhe a abundante juba.
Fui o último a meter a mão no chapéu, tirei um papelinho, desdobrei-o e... Oh, meu Deus, um beijo! Não saberia dizer-lhes o que senti ao ler semelhante palavra.
- Um beijo! - exclamei involuntariamente.
- Bravo!... Ganhou! - aplaudiu a princesa. - Estou encantada!
Desceu da cadeira e olhou-me nos olhos com tanta ternura que o coração pulou-me no peito.
- E o senhor, está contente? - perguntou-me.
- Eu... - balbuciei.
- Venda-me o seu bilhete - segredou-me Belovzorov.
- Dou-lhe cem rublos por ele.
Em resposta, deitei-lhe um olhar de tal modo indignado que Zinaida aplaudiu e Luchine gritou:
- Bem feito! Contudo - prosseguiu -, dadas as minhas funções de mestre-de-cerimónias, devo velar pela rigorosa observância de todas as regras. Sr. Valdemar, ajoelhe-se! É do regulamento.
Zinaida parou diante de mim, inclinou a cabeça de lado, como que para me ver melhor, e estendeu-me gravemente a mão. Eu estava deslumbrado... Quis pôr um joelho no chão, mas ajoelhei com os dois e levei desajeitadamente os lábios à mão da rapariga - tão desajeitadamente que uma das suas unhas me arranhou na ponta do nariz.
- Perfeito! - gritou Luchine, ajudando-me a levantar.
Continuámos a jogar às prendas e Zinaida fez-me sentar a seu lado.
Não imaginam os castigos extravagantes que inventava. Uma vez, fez ela própria a estátua e, depois de
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escolher para pedestal o feio Nirmatzky, obrigou-o a deitar-se no chão e a esconder, ainda por cima, o rosto no peito.
Não parávamos de rir às gargalhadas. No entanto, todo aquele barulho, aquela algazarra, aquela alegria trasbordante e quase indecente, aquele convívio inesperado com pessoas que mal conhecia - tudo isso me produzia uma impressão considerável, tanto mais que a educação que recebera fizera de mim um rapaz ajuizado e pacato, algo presumido. Sentia-me ébrio sem ter bebido. Ria e gritava mais alto do que os outros, de tal modo que a velha princesa, que recebia na sala contígua um advogado da Porta Iverskaia, convocado para uma consulta, apareceu à entrada e olhou-me severamente.
Mas sentia-me tão feliz que me não importava nada de ser ridículo ou de ficar mal visto. Zinaida continuava a favorecer-me e a conservar-me junto de si. Um dos castigos que me foram impostos exigiu que me escondesse com ela debaixo de um xaile, a fim de lhe confessar o meu segredo... Por isso, de repente, as nossas caras encontraram-se isoladas do resto do mundo, mergulhadas numa escuridão sufocante, pesada e perfumada. Os seus olhos brilhavam como duas estrelas na penumbra, os seus lábios entreabertos exalavam um hálito tépido, descobriam-lhe os dentes brancos, e os seus cabelos afagavam-me ao de leve, queimavam-me. Não fui capaz de dizer palavra. Ela sorria-me com ar enigmático e trocista e, por fim, segredou-me:
- Então?...
Enervado, só conseguia corar, rir, mexer-me e respirar penosamente.
O jogo das prendas acabou por nos aborrecer e substituímo-lo pelo do fio. Meu Deus, não imaginam como fiquei contente quando me bateu com força nos dedos para me castigar por um momento de distracção!... Depois disso, fingi de propósito estar nas nuvens, mas ela não me tocou mais nas mãos, que eu estendia, e limitou-se a serrazinar-me.
Inventámos mil e uma distracções naquele serão: tocou-se piano, cantou-se, dançou-se e improvisou-se
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uma festa cigana. Mascaramos Nirmatzky de urso e obrigámo-lo a beber água salgada. O conde Malevsky fez de prestidigitador com um baralho de cartas e depois de as baralhar distribuiu-as por nós como se fôssemos jogar uma partida de whist, mas ficou com todos os trunfos. Nessa altura, Luchine declarou que tinha a "honra de o felicitar pela sua destreza". Maidanov declamou-nos extractos do seu último poema, O Assassino (estava-se em pleno romantismo), que tencionava publicar com uma capa negra e o título impresso em caracteres vermelhos-sangue. Roubámos o chapéu ao advogado e obrigámo-lo a tocar uma dança russa, à guisa de resgate. O velho Bonifácio foi obrigado a cobrir-se ridiculamente com uma touca de mulher e Zinaida com um chapéu de homem... Enfim, desisto de lhes enumerar todas as fantasias que nos passaram pela cabeça. Apenas Belovzorov se mantinha carrancudo a um canto e não dissimulava o seu mau humor... De vez em quando, os olhos injectavam-se-lhe de sangue, punha-se escarlate e parecia prestes a lançar-se no meio de nós para correr connosco a pontapé. Bastava, porém, que a nossa anfitriã o fitasse severamente e o ameaçasse com o dedo para que voltasse de novo ao seu isolamento.
Por fim, já estávamos quase sem fôlego e a própria princesa velha, que pouco antes nos declarara ser incansável e que a algazarra mais ensurdecedora a não incomodava, se confessou fatigada.
A ceia foi servida já passava das onze horas. Compunha-se de um naco de queijo duro como pedras e de carnes frias, que achei mais deliciosas do que o melhor manjar do mundo. Havia apenas uma garrafa de vinho, e muito pouco vulgar, valha a verdade; era quase negra, de boca larga e continha um vinho que cheirava a tinta de óleo. Ninguém o provou.
Despedi-me feliz e cansado. Quando me disse adeus, Zinaida apertou-me de novo a mão com força e brindou-me com um sorriso enigmático.
O ar pesado e húmido da noite fustigou-me as faces em fogo. Estava uma atmosfera tempestuosa: nuvens escuras amontoavam-se no céu, deslocavam-se lentamente
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e os seus contornos fugazes modificavam-se com rapidez, ao mesmo tempo que uma brisa ligeira provocava frémitos inquietos nas árvores sombrias. Algures, ao longe, o trovão ribombava, abafado e enfurecido.
Esgueirei-me para o meu quarto pela entrada de serviço. O meu criado dormia no chão e tive de lhe passar por cima. Acordou, viu-me e anunciou-me que a minha mãe estava muito zangada comigo e quisera mandar-me buscar, mas o meu pai não consentira.
Nunca me deitava antes de dar as boas-noites à minha mãe e de lhe pedir a bênção, mas naquela noite era manifestamente muito tarde para isso.
Declarei ao criado que era perfeitamente capaz de me despir e deitar só e apaguei a vela.
Na realidade, sentei-me numa cadeira e fiquei muito tempo imóvel, como que sob o efeito de um sortilégio. O que experimentava era tão novo, tão agradável... Não me mexia, quase não olhava à minha volta e mal respirava. Tão depressa ria baixinho ao evocar uma recordação recente, como estremecia ao pensar que estava apaixonado e que o amor era bem aquilo que sentia. O belo rosto de Zinaida surgia-me diante dos olhos, na escuridão, pairava suavemente e deslocava-se, mas sem desaparecer. Os seus lábios esboçavam o mesmo sorriso enigmático que lhe vira e os seus olhos fitavam-me um pouco furtivamente, interrogadores, pensativos e meigos... como no momento das despedidas. Por fim, levantei-me, encaminhei-me para a cama em bicos de pés, evitando todo e qualquer movimento brusco como se receasse destruir a nitidez da imagem, e reclinei a cabeça no travesseiro sem me despir...
Depois, deitei-me, mas não fechei os olhos, e em breve notei que uma claridade pálida me penetrava no quarto... Soergui-me para deitar uma vista de olhos através dos vidros... A moldura da janela destacava-se nitidamente das vidraças, iluminadas por uma claridade misteriosa e esbranquiçada. "É a tempestade", disse para comigo. Era, de facto, mas tão distante que nem sequer se ouviam os trovões. Apenas grandes relâmpagos lívidos
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ziguezagueavam no céu, silenciosos, e estremeciam como asas de um grande pássaro ferido...
Levantei-me e aproximei-me da janela, onde fiquei até romper o dia... Os relâmpagos acutilavam o firmamento como numa autêntica noite de Walpúrgis... Imóvel e mudo, contemplava a planura arenosa, a massa sombria do Jardim de Neskuchny e as fachadas amareladas das casas, que pareciam estremecer também a cada relâmpago.
Não conseguia despregar a vista daquele quadro; aqueles relâmpagos mudos e discretos harmonizavam-se perfeitamente com os impulsos íntimos da minha alma.
A alvorada começava a despontar, em manchas escarlates. Os relâmpagos empalideciam e diminuíam à aproximação do sol, e os seus clarões tornavam-se cada vez mais espaçados. Por fim desapareceram, vencidos pela luz serena e franca do dia nascente...
E na minha alma a tempestade também amainou... Experimentei uma lassidão infinita e um grande apaziguamento, embora a imagem triunfante de Zinaida ainda me assediasse. Contudo, parecia agora mais calma e liberta de todas as visões desagradáveis, tal como o cisne ergue o pescoço gracioso por cima das ervas do pântano. Quando adormeci, ainda lhe enviei um beijo repleto de confiante admiração...
Sentimentos tímidos, suave melodia, franqueza e bondade de uma alma que se apaixona, alegria lânguida dos primeiros enternecimentos do amor... onde estais?
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No DIA seguinte de manhã, quando desci para o chá, a minha mãe ralhou-me, embora menos do que esperava, e pediu-me que lhe contasse como passara a noite da véspera. Respondi-lhe em poucas palavras e omiti numerosos pormenores, mas esforcei-me por dar ao conjunto
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da narrativa um aspecto tanto quanto possível anódino.
- Está tudo muito bem mas essa gente é pouco distinta... - concluiu a minha mãe. - Farias melhor se te preparasses para os exames em vez de frequentares essa casa.
Como eu sabia que todo o interesse da minha mãe pelos meus estudos se limitava a esta frase, não julguei necessário responder-lhe. Quanto ao meu pai, agarrou-me por um braço assim que acabámos de tomar o chá, levou-me para o jardim e pediu-me que lhe contasse com todos os pormenores o que vira em casa dos Zassekines.
Não imaginam como era estranha a influência que ele exercia sobre mim, nem como as nossas relações eram singulares. O meu pai não se ocupava praticamente da minha educação, nunca me ralhava e respeitava a minha liberdade. Era até cortês comigo, se assim se pode dizer, mas conservava-se ostensivamente distante. Eu amava-o e admirava-o, fazia dele o meu ideal, e ter-me-ia ligado apaixonadamente a ele se me não repelisse constantemente. No entanto, quando queria, era capaz de me inspirar uma confiança ilimitada, com uma só palavra, com um só gesto, e então a minha alma abria-se-lhe como a um amigo cheio de bom-senso e a um preceptor indulgente... Mas depois, de súbito, a sua mão repelia-me, sem brusquidão, é verdade, mas enfim, repelia-me...
Acontecia-lhe ter autênticos acessos de alegria. Então, estava pronto a brincar comigo, a divertir-se como um colegial, e até uma vez - uma vez apenas! -, apesar de em geral gostar de todos os exercícios violentos, me acariciou com tanta ternura que estive quase a desfazer-me em lágrimas. Infelizmente, a sua alegria e a sua ternura desvaneciam-se com rapidez e sem deixarem vestígios e o nosso entendimento passageiro não influía mais nas nossas relações futuras do que influiria se não tivesse passado de um sonho...
Às vezes, quando contemplava o seu belo rosto, inteligente e franco, o meu coração estremecia e todo o meu
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ser se sentia atraído para ele; mas recompensava-me com um afago, de fugida, como se duvidasse do que eu sentia, e afastava-se, ocupava-se doutra coisa, afectava uma frieza de que só ele possuía o segredo. E eu, pela minha parte, retraía-me, metia-me na minha concha, insensibilizava-me.
Os seus raros assomos de ternura nunca eram provocados pela minha súplica muda; produziam-se espontaneamente e sempre de modo imprevisto. Reflectindo, mais tarde, a respeito do seu temperamento, cheguei à seguinte conclusão: o meu pai não se interessava mais por mim do que pela vida familiar, de um modo geral; gostava de outra coisa, e essa conseguia fruí-la sem peias.
- Toma o que puderes, mas nunca te deixes tomar. Pertencermos apenas a nós próprios, sermos senhores de nós, aqui tens todo o segredo da vida - disse-me um dia.
Doutra vez, como me tivesse lançado numa discussão acerca da liberdade, como um jovem democrata que era então (isto passou-se num dia em que o meu pai estava de bom humor, numa ocasião em que se lhe podia falar fosse do que fosse), replicou-me vivamente:
- A liberdade? Sabes ao menos o que a pode dar ao homem?
- O quê?
- A sua vontade, a tua vontade. Se te souberes servir dela, ainda te dará mais: o poder. Se souberes querer, serás livre e poderás mandar.
Acima de tudo, meu pai desejava gozar a vida, e gozou-a... Talvez tivesse também o pressentimento de que não viveria muito tempo. Na verdade, morreu aos quarenta e dois anos.
Contei-lhe com todos os pormenores a minha visita a casa dos Zassekines. Escutou-me umas vezes com atenção outras distraído, a desenhar arabescos na areia com a ponta do pingalim. De vez em quando soltava uma gargalhadinha divertida e incitava-me com uma pergunta breve ou com uma observação. Ao princípio, nem sequer me atrevi a pronunciar o nome de Zinaida,
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mas passado algum tempo não me pude conter mais e lancei-me num ditirambo. O meu pai continuava a sorrir. Depois, ficou pensativo, espreguiçou-se e levantou-se.
Antes de se retirar, mandou selar o cavalo. Era um cavaleiro emérito, versado na arte de domar os animais mais impetuosos, muito melhor do que Reri.
- Queres que te acompanhe, pai?
- Não-respondeu-me, e o seu rosto readquiriu a expressão habitual, de indiferente afabilidade. - Vai sozinho, se queres; eu vou dizer ao cocheiro que fico.
Virou-me as costas e afastou-se a passos largos. Segui-o com a vista. Desapareceu atrás da paliçada, ao longo da qual vi deslocar-se o seu chapéu, e entrou em casa dos Zassekines.
Não ficou lá mais de uma hora, mas imediatamente depois da visita partiu para a cidade e só regressou à noite.
Terminado o almoço, fui também a casa dos Zassekines. A velha princesa estava só, na sala. Quando me viu, coçou a cabeça por debaixo da touca, com a agulha de tricotar, e perguntou-me à queima-roupa se lhe podia copiar um memorial.
- com muito prazer - respondi, sentando-me à beira de uma cadeira.
- Mas procure escrever com letra bem legível recomendou-me a princesa, estendendo-me uma folha de papel garatujada. - Pode fazer-mo hoje mesmo?
- Certamente, princesa.
A porta da sala vizinha entreabriu-se um bocadinho e o rosto de Zinaida apareceu na abertura, um rosto pálido, pensativo, com os cabelos puxados com negligência para trás. Olhou-me friamente com os seus grandes olhos cinzentos e tornou a fechar a porta devagarinho.
- Zina... Zina!... - chamou-a a velha princesa. Mas ela não respondeu.
Peguei no memorial e passei todo o serão a copiá-lo.
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A MINHA paixão começou naquele dia. Recordo-me de ter experimentado um sentimento muito semelhante ao que deve sentir um empregado que acaba de obter o seu primeiro contrato; já não era simplesmente um rapazola, mas sim um apaixonado.
A minha paixão começou naquele dia, como disse; poderia acrescentar que também naquele dia começou o meu sofrimento.
Definhava a olhos vistos quando Zinaida não estava presente: sentia a cabeça vazia, tudo me caía das mãos e passava os dias a pensar nela... Definhava longe dela, disse eu... Não julguem por isso que me sentia melhor na sua presença... Devorado de ciúmes, consciente da minha insignificância, qualquer bagatela me ofendia e tomava atitudes estupidamente servis. E, contudo, uma força invencível, impelia-me para o pavilhãozinho, onde, mal-grado meu, estremecia de felicidade assim que transpunha o limiar da sua porta.
Zinaida depressa descobriu que a amava. Aliás, eu também o não escondia. Achou graça e começou a troçar da minha paixão, a dar-me volta à cabeça, a fazer-me passar pelos piores suplícios. Haverá alguma coisa mais agradável do que sentirmo-nos a única origem, a causa arbitrária e irresponsável das venturas e desventuras de outrem?... Era precisamente o que acontecia com ela, e eu não passava de cera mole nos seus dedos cruéis.
Notem, porém, que não era o seu único apaixonado; todos os que se aproximavam de Zinaida ficavam literalmente loucos pela jovem princesa que, fosse como fosse, os prendia, os acorrentava a seus pés. Divertia-se alternadamente a despertar-lhes esperanças e temores e obrigava-os a agirem como títeres, conforme a sua disposição de momento. Chamava a isto "atirar os homens uns contra os outros" e eles nem sequer pensavam em resistir, submetiam-se voluntariamente a todos os seus caprichos!
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A sua beleza e a sua vivacidade constituíam um curioso misto de malícia e indiferença, de artifício e ingenuidade, de calma e agitação. O mais insignificante dos seus gestos ou das suas palavras possuía uma graça encantadora e suave, a que se juntava uma energia singular e graciosa. O seu rosto inconstante deixava transparecer quase simultaneamente a ironia, a gravidade e a paixão. Os sentimentos mais diversos passavam-lhe sem cessar pelos olhos e pelos lábios, tão rápidos e ligeiros como sombras de nuvens num dia de sol e vento.
Zinaida necessitava de todos os seus admiradores. Belovzorov, a quem chamava às vezes "meu grande animal" ou simplesmente "meu grande", não hesitaria em se lançar ao fogo por ela. Embora não confiasse muito na sua própria superioridade intelectual, nem nas suas outras qualidades, oferecia-se espontaneamente para a desposar, insinuando que nenhum dos outros pretendentes aspirava a tanto.
Maidanov correspondia às inclinações poéticas da sua alma. Era um homem um tanto frio, como muitos escritores, mas à força de lhe repetir que a adorava acabara por se convencer a si próprio de que a adorava mesmo... Cantava-a em versos intermináveis que lhe lia numa espécie de êxtase delirante, mas perfeitamente sincero. Zinaida alimentava-lhe as ilusões, mas troçava dele, não o tomava a sério, e, depois de escutar as suas efusões, pedia-lhe invariavelmente que recitasse Puschkine, "para arejar um pouco", dizia ela...
O Dr. Luchine, personagem cáustica e cheia de ironia, conhecia-a melhor e amava-a mais do que qualquer de nós. o que não o impedia de aproveitar todas as oportunidades para a criticar, tanto na sua ausência como na sua presença. Ela estimava-o, mas não lhe perdoava todas as suas piadas e experimentava uma espécie de prazer sádico em lhe fazer sentir que também não passava de um títere cujos cordelinhos manobrava a seu bel-prazer.
- Sou uma leviana, uma mulher sem coração, dotada de um temperamento de comediante - declarou-lhe um
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dia na minha presença. - E o senhor pretende ser um homem franco... Vamos ver isso. Dê-me a sua mão para espetar nela um alfinete... Terá vergonha de se queixar diante deste rapaz e não deixará transparecer que lhe dói... Em vez disso, rirá, não é verdade, Sr. Franqueza?... Pelo menos, é o que lhe ordeno!
Luchine corou e mordeu os lábios, virou-se, mas acabou por lhe estender a mão. Ela espetou o alfinete... e, efectivamente, ele pôs-se a rir... Zinaida ria também e espetava o alfinete cada vez mais profundamente na carne, olhando-o nos olhos... E Luchine evitava fitá-la...
Mas o que mais me surpreendia eram as relações de Zinaida com o conde Malevsky. Era, sem dúvida, um belo rapaz, inteligente e espirituoso; contudo, até eu, apesar dos meus dezasseis anos, notava nele algo falso e perturbante, e admirava-me que a rapariga não desse por nada... Ou daria e não se importaria?... A sua educação descuidada, a sua familiaridade e os seus hábitos estranhos, a pobreza e a desordem da casa, a presença constante da mãe - tudo isto, a começar pela liberdade que gozava e pela consciência da sua superioridade sobre os que a rodeavam -, tudo isto, dizia, a dotara de uma espécie de desenvoltura cheia de desprezo e de falta de discernimento moral. Fosse o que fosse que acontecesse- como, por exemplo, Bonifácio anunciar que já não havia açúcar, espalharem-se boatos malévolos ou verificarem-se desavenças entre os seus convidados -, limitava-se a sacudir os caracóis com indiferença e a exclamar: "Ora, que tolice!"
Eu quase perdia as estribeiras todas as vezes que Malevsky se aproximava dela com o seu ar de raposa matreira, se encostava com graça ao espaldar da cadeira e lhe falava ao ouvido com um sorriso enfatuado. Ela olhava-o fixamente, com os braços cruzados, abanava suavemente a cabeça e retribuía-lhe o sorriso.
- Que prazer encontra em receber esse Sr. Malevsky?
- perguntei-lhe um dia.
- Oh, tem um bigodinho que é um amor! - replicou-me. - E além disso, para falar com franqueza o senhor não percebe nada destas coisas...
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Doutra vez perguntou-me:
- Julga que o amo? Não posso amar uma pessoa que desprezo... Só amaria alguém que fosse capaz de me vergar, de me subjugar... mas se Deus quiser nunca encontrarei esse homem! Não me deixarei prender. Oh, não!
- Então, nunca amará ninguém?
- E o senhor? Porventura o não amo? - redarguiu-me, batendo-me na ponta do nariz com a luva.
Sim; divertia-se muito à minha custa. Não imaginam o que me obrigou a fazer durante as três semanas em que a vi todos os dias! Era raro ir a nossa casa, o que bem vistas as coisas me não desagradava, pois mal entrava tomava os seus ares senhoris, de princesa, e sentia-me terrivelmente intimidado.
Além disso, receava trair-me diante da minha mãe, a qual, como Zinaida lhe era muito antipática, nos espiava com azedume. Temia menos o meu pai, que simulava não me prestar atenção. Quanto a Zinaida, o meu progenitor pouco falava com ela, mas quando lhe dirigia a palavra fazia-o com espírito e seriedade.
Eu já não estudava, já não lia e já nem sequer ia passear nas imediações da vivenda, e esquecera o meu cavalo. Como um besouro preso por uma pata com um fio, andava constantemente à roda do pavilhãozinho, pronto a passar nele toda a minha existência... mas isso não me era possível, quer porque a minha mãe se não cansava de resmungar, quer porque algumas vezes a própria Zinaida me expulsava. Então, fechava-me à chave ou ia para o fundo do parque, onde subia para o telhado de uma estufa arruinada e ficava horas a contemplar a rua, balouçando as pernas e olhando sem ver. Borboletas brancas esvoaçavam preguiçosamente por cima das urtigas poeirentas, muito perto de mim; um pardal brincalhão pousava num tijolo que a queda do reboco deixara à vista, chilreava excitado, saltitava sem sair do mesmo sítio e agitava o rabito; os corvos, ainda desconfiados, crocitavam no alto de uma bétula despida de folhagem; o sol e o vento brincavam em silêncio por entre os ramos espaçados da árvore; melancólico
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e calmo, o carrilhão do Mosteiro de Donskoy ressoava ao longe... e eu deixava-me estar ali, a olhar, a escutar, a encher-me de um sentimento inefável, feito simultaneamente de tristeza e alegria, de desejos e pressentimentos, de vagas apreensões... Não compreendia nada e ser-me-ia impossível dar um nome exacto ao que vibrava em mim; ou antes, sim, poderia dar-lhe um só nome: o de Zinaida...
Quanto à princesa nova, continuava a brincar comigo como o gato com o rato. Tão depressa se mostrava provocante e me sentia mergulhado numa alegria inquieta, como me repelia e não ousava aproximar-me dela nem sequer contemplá-la de longe.
Havia vários dias que se mostrava particularmente fria para comigo, de tal modo que, completamente desanimado, me limitava a curtas e furtivas aparições no pavilhão, e mesmo nessas esforçava-me por fazer companhia à princesa velha, embora esta andasse também de um humor insuportável e praguejasse e gritasse mais do que de costume, pois os seus negócios de letras de câmbio pareciam não caminhar bem e já se vira obrigada a ter duas explicações com o comissário de polícia.
Uma vez, passava junto da paliçada que já conhecem quando avistei Zinaida sentada na relva, apoiada num braço e completamente imóvel. Tentei afastar-me em bicos de pés, mas ela levantou bruscamente a cabeça e fez-me um sinal imperioso. Fiquei como que petrificado e sem compreender, de momento, o que queria de mim. Repetiu o gesto. Saltei por cima da paliçada e aproximei-me dela a correr, muito contente. Deteve-me, porém, com a vista e indicou-me o carreiro, a dois passos de si. Confuso e sem saber que fazer, ajoelhei-me à beira do caminho. Zinaida estava tão pálida, tão triste e tão profundamente cansada que o coração apertou-se-me.
- Que tem? - balbuciei.
Estendeu a mão, arrancou uma hastezinha, mordiscou-a e atirou-a para longe.
- Ama-me muito? - perguntou-me por fim. - Ama?... Não respondi. Que havia de responder?
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- Ama, ama... - repetiu, fitando-me. - Os seus próprios olhos...
Pensativa, escondeu o rosto nas mãos.
- Tudo me aborrece - prosseguiu. - Gostaria de estar muito longe daqui... Não posso suportar isto, não consigo habituar-me... E o futuro... que me reserva o futuro? Ah, sou tão infeliz! Meu Deus, como sou infeliz!...
- Porquê? - perguntei timidamente.
Encolheu os ombros e não respondeu. Eu continuava de joelhos e fitava-a com uma tristeza infinita; cada uma das suas palavras fora como que uma punhalada no meu coração e estava disposto a dar a vida para que ela não sofresse mais... Embora não compreendesse por que motivo era tão infeliz, imaginava-a a levantar-se de um pulo, a fugir para o fundo do jardim e a sucumbir de súbito, esmagada pela dor... À nossa volta, tudo era viço e luminosidade; o vento sussurrava nas folhas das árvores e agitava de vez em quando um comprido caule de framboeseiro por cima da minha companheira. Os pombos arrulhavam algures e as abelhas zumbiam rasando a erva rala. Por cima das nossas cabeças, brilhava um céu límpido e azul... e eu estava tão triste...
- Recite-me versos - pediu-me Zinaida, apoiando-se num cotovelo que fincou na relva. - Gosto de o ouvir. É levemente declamatório, mas não faz mal; até o torna mais novo... Recite-me Nas Colinas da Geórgia... Mas sente-se primeiro.
Obedeci.
- "E de novo o meu coração se abrasa; ama sem poder amar..." - recitou. - É nisto que consiste a verdadeira beleza da poesia: em vez de falar do que existe, canta qualquer coisa infinitamente mais elevada do que a realidade e que, no entanto, se lhe assemelha muito... Sem poder amar... Desejaria, mas não pode...
Calou-se de novo e depois levantou-se de um pulo.
- Venha. Maidanov está com a minha mãe. Trouxe-me o seu poema e eu não lhe prestei atenção... Também deve estar triste, mas que lhe hei-de fazer?...
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Um dia, saberá tudo, Valdemar, e então espero... espero que me não queira mal!
Apertou-me vivamente a mão e correu à minha frente. Entrámos no pavilhão e Maidanov pôs-se acto contínuo a declamar o seu Assassino, que acabava de ser publicado. Não o ouvi. Recitava os seus tetrâmetros jâmbicos com voz cantante e as rimas sucediam-se com uma sonoridade de guizos vazios e estridentes. Olhei Zinaida e tentei decifrar o sentido das suas últimas palavras.
Ou então algum rival secreto
Te terá inesperadamente seduzido?
exclamou, de súbito, Maidanov com a sua voz nasalada, e os meus olhos cruzaram-se com os da rapariga, que baixou os seus e corou levemente. O sangue gelou-se-me nas veias; havia muito tempo que sentia ciúmes, mas naquele instante uma ideia fulgurante traspassou todo o meu ser: "Meu Deus, ela ama!"
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COMEÇOU então o meu verdadeiro suplício. Dava tratos à imaginação, meditava, ruminava e vigiava Zinaida a toda a hora, escondendo-me o melhor que podia. Que mudara muito, sem dúvida nenhuma. Agora, via-a passear sozinha durante longas horas, ou então fechava-se no seu quarto e não queria ver ninguém, coisa que nunca lhe acontecera.
A minha perspicácia aumentava; pelo menos, era o que eu supunha... "Será este?... Será aquele?...", perguntava a mim próprio inquieto, passando em revista todos os seus admiradores. O conde Malevsky parecia-me o mais perigoso de todos, mas envergonhava-me reconhecê-lo por consideração para com Zinaida.
Claro que a minha perspicácia não ia mais longe e, de resto, o meu segredo não era mistério para ninguém; pelo menos, o Dr. Luchine depressa o adivinhou...
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Para dizer a verdade, também ele mudara muito havia algum tempo: emagrecera a olhos vistos e o seu riso , tornara-se mais mordaz, mais breve, mais sacudido, e
um certo nervosismo substituíra a sua ironia superficial e o seu cinismo afectado.
Um dia, encontrávamo-nos a conversar na sala dos Zassekines. Zinaida ainda não regressara do seu passeio e a velha princesa discutia com a aia no andar de cima. De súbito, Luchine perguntou-me:
-Diga-me uma coisa, meu rapaz, porque passa todo o seu tempo a vaguear por aqui? Faria melhor se estudasse, enquanto é novo, e não é isso o que faz neste momento...
- Que sabe o senhor a tal respeito? Quem lhe disse que não estudo em casa? - retorqui com altivez, embora sem poder disfarçar certa perturbação.
-Não me fale de estudos! Vê-se perfeitamente que as suas preocupações são outras... Não insisto, pois isso na sua idade é moeda corrente, mas deixe-me dizer-lhe apenas que perde lamentavelmente o seu tempo...
Ainda não viu que espécie de casa é esta?
-Não percebo...
- Não percebe?... Tanto pior para o senhor! Mas é
meu dever avisá-lo. Nós, velhos solteirões impenitentes, podemos frequentar esta casa sem receio. Que julga . que nos pode acontecer? Somos a velha guarda, os duros de roer, e nada nos assusta. Mas o senhor tem ainda a pele muito delicada... Acredite no que lhe digo: estes ares não lhe fazem bem... Cautela com o contágio!
- Que quer dizer?
- É muito simples. Sente-se bem de saúde neste momento? Encontra-se no seu estado normal? Imagina
que os seus sentimentos actuais possam servir para fazer alguém feliz? - Mas quais são os meus sentimentos presentes? -
argumentei, embora reconhecesse, no meu foro íntimo,
que o doutor tinha toda a razão. -Ah, meu rapaz, meu rapaz!... -suspirou, dando a estas duas palavras uma intenção um pouco ofensiva.
- Vamos, não tente enganar-me; o seu rosto atraiça-o.
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E de resto, para quê discutir? Acredite que, pela minha parte, não frequentaria esta casa se... - Calou-se e apertou os dentes. - se não estivesse tão louco como o senhor. Apenas uma coisa me surpreende: como é possível que não veja o que se passa à sua volta? E, no entanto, o senhor é um rapaz inteligente...
- Mas que se passa, na realidade? - perguntei, arrebitando as orelhas.
O doutor fitou-me com ar de divertida comiseração.
- Quem me manda ser burro?... - murmurou, como se falasse consigo mesmo. - Que adianta dizer-lhe?... Em resumo-concluiu, elevando a voz-, permita-me que lhe repita: a atmosfera desta casa não é boa para o senhor. Agrada-lhe, dir-me-á. E depois?... Também o ar da estufa quente está saturado de perfumes e ninguém pode lá viver... Siga o meu conselho, faça o que lhe digo e volte a pegar no seu Kaidanov.
Quando acabou de proferir estas palavras, a velha princesa reapareceu na sala e começou a queixar-se da sua dor de dentes. Zinaida chegou pouco depois dela.
- O doutor devia ralhar-lhe - disse a matrona. Passa os dias a beber água gelada, o que lhe faz muito mal aos pulmões.
- Porque faz isso? - perguntou Luchine.
- Que me pode acontecer?
- Pode apanhar um resfriamento e morrer.
- Sim?... Impossível!... Enfim, tanto melhor!
- Ah, ah! Ora aí está ao que chegámos! - resmungou o doutor.
A velha retirou-se.
- Sem dúvida - replicou Zinaida. - Julga que a vida é sempre divertida? Olhe um bocadinho à sua volta... Acha que tudo corre bem? Julga que não dou por nada? Gosto de beber água gelada e o senhor vem-me declarar sentenciosamente que não devo arriscar uma vida destas por um instante de prazer... Já nem sequer digo por um instante de felicidade...
- Sim, sim... - redarguiu Luchine. - Capricho e independência são duas palavras que resumem todo o seu carácter.
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Zinaida riu nervosamente.
-O senhor está desactualizado, meu caro doutor, é mau observador... Precisa de óculos... Já não sinto disposição para ter caprichos... Julgo que me diverte abusar da sua paciência e rir de mim própria? E no tocante a independência... Sr. Valdemar- acrescentou, batendo com o pé -, não esteja com esse ar melancólico! Detesto que me lamentem... - e saiu apressada.
- Mau, muito mau... Decididamente, esta atmosfera não lhe é benéfica meu rapaz... -disse ainda Luchine.
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NA mesma tarde, todo o grupo se reuniu em casa dos Zassekines, incluindo eu.
Falou-se do poema de Maidanov, que Zinaida elogiou sinceramente.
- No entanto- observou -, se estivesse no lugar do poeta escolheria outros temas... Talvez seja estúpido o que acabo de dizer, mas às vezes ocorrem-me ideias extravagantes, sobretudo à noite, quando não consigo dormir, e também ao amanhecer, quando o céu se cobre de cor-de-rosa e cinzento... É como, por exemplo... Prometem não rir de mim?
- Prometemos! Prometemos! - respondemos todos em coro.
Cruzou os braços no peito e inclinou levemente a cabeça para um lado.
- Apresentaria um grande rancho de raparigas, à noite, numa barca, num rio calmo... A Lua brilha, as raparigas estão vestidas de branco, têm coroas de flores brancas na cabeça e cantam... qualquer coisa parecida com um hino. Enfim, creio que compreendem o que quero dizer...
- Sim, sim, compreendo- murmurou Maidanov, sonhador.
- E de súbito, barulho, risos, clarões de archotes,
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danças ao toque de tamboril na margem... Bacantes acorrem em tropel, soltando gritos e cantando. Agora, cedo-lhe a palavra, senhor poeta... Desejaria archotes muito rubros, muito fumarentos... Os olhos das bacantes brilham debaixo das coroas... Estas últimas serão de cor escura... Não se esqueça das peles de tigre, dos vasos, do ouro... montes de ouro!
- Onde devo pôr o ouro? - perguntou Maidanov, atirando os cabelos lisos para trás e dilatando as narinas.
- Onde?... Nos ombros, nos braços, nas pernas... por toda a parte. Diz-se que na Antiguidade as mulheres usavam argolas de ouro nos tornozelos... As bacantes chamam as raparigas da barca. Estas interromperam o seu hino, mas não se mexem... A embarcação acosta suavemente, levada pela maré... Uma delas levanta-se devagar... Atenção, esta passagem requer muita ternura, pois é necessário descrever os gestos majestosos da rapariga, ao luar, e o terror das companheiras... Transpõe a amurada da barca, as bacantes rodeiam-na e levam-na na noite, nas trevas... Imagine volutas de fumo e uma confusão geral... Só se ouvem os gritos estridentes das bacantes, só se vê a coroa abandonada na margem...
Zinaida calou-se. "Oh, ela ama!", disse de novo para
comigo.
- Mais nada? - perguntou Maidanov.
- Não, mais nada.
- Isso não chega para fazer um poema - declarou o poeta, em tom presunçoso-, mas vou aproveitar o melhor possível a sua sugestão para escrever uma peça
lírica.
- Em estilo romântico? - perguntou Malevsky.
- Evidentemente, à Byron.
- Pois eu acho que Hugo vale mais do que Byron replicou negligentemente o jovem conde. - É mais interessante...
- Tem razão, Hugo é um escritor de primeira ordem
- concordou Maidanov-, e o meu amigo Coumenu, no seu romance espanhol El Trovador...
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-Aquele em que há pontos de interrogação de perdas para o ar? - interveio Zinaida.
- Esse mesmo. É uso, entre os Espanhóis... Mas dizia eu que Coumenu...
- Oh, lá está o senhor a meter-se outra vez num debate acerca dos clássicos e dos românticos! - interveio de novo a rapariga. - Vamos antes jogar...
- Às prendas? - propôs Luchine.
- Oh, é muito aborrecido! Joguemos antes às comparações.
Era uma invenção de Zinaida. O jogo consistia em escolher um objecto e quem encontrasse a comparação mais apropriada era declarado vencedor.
Aproximou-se da janela. O sol acabava de se pôr e grandes nuvens vermelhas erguiam-se no horizonte.
- com que se parecem aquelas nuvens? - perguntou Zinaida que, sem esperar resposta, respondeu ela própria: - Acho que se parecem com as velas escarlates que Cleópatra mandou colocar nos mastros do seu navio no dia em que foi ao encontro de António. Lembra-se, Maidanov? Falou-me a esse respeito um dia destes.
Seguimos todos o exemplo de Polónio, no Hamlet, e decidimos por unanimidade que as nuvens se pareciam precisamente com tais velas e que era impossível encontrar melhor comparação.
- E que idade tinha António? - perguntou a jovem.
- Oh, era certamente muito novo! - respondeu Malevsky.
- Sim, era novo - confirmou Maidanov, com convicção.
- Peço desculpa, mas tinha mais de quarenta anos declarou Luchine.
- Mais de quarenta anos... - repetiu Zinaida, deitando-lhe uma rápida vista de olhos.
Voltei cedo para casa.
Os meus lábios murmuravam maquinalmente: "Ela ama... Mas quem?..."
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Os DIAS iam passando e Zinaida tornava-se cada vez mais estranha e incompreensível. Uma vez fui encontrá-la em casa, sentada numa cadeira de palhinha e com a cabeça encostada ao rebordo da mesa. Endireitou-se... e vi-lhe o rosto banhado em lágrimas.
- Ah, é o senhor!... -exclamou em tom e com expressão dolorosa. - Venha cá.
Aproximei-me, segurou-me na cabeça com as duas mãos, agarrou-me numa madeixa de cabelo e pôs-se a torcê-la.
- Ai, está a magoar-me! - acabei por gritar.
- Ah! Magoo-o?... E eu? Julga que também não sofro bastante?
Depois, ao ver que acabava de me arrancar um tufo de cabelos, exclamou:
- Oh, o que eu fiz! Pobre Sr. Valdemar!... Alisou-os cuidadosamente e enrolou-os num dedo.
- vou guardar os seus cabelos no meu medalhão e trazê-los sempre comigo - disse-me à guisa de consolação, mas sem que as lágrimas deixassem de continuar a brilhar-lhe nos olhos. - Talvez assim o senhor me não queira tanto mal... E agora, adeus.
Voltei para casa, onde as coisas também não corriam muito bem... A minha mãe acabava de ter uma discussão com o meu pai, censurava-lhe ainda qualquer coisa, e ele não dizia nada, frio e correcto, conforme o seu costume. Aliás, saiu pouco depois. Não percebi o que disse a minha mãe e, além disso, tinha mais em que pensar. Recordo-me apenas de que, no fim da discussão, me convocou para o seu gabinete de trabalho e se referiu muito azedamente às minhas visitas - demasiado frequentes - a casa da velha princesa, une femme capable de tout, segundo disse.
Beijei-lhe a mão (era a minha maneira de pôr termo a uma conversa) e subi ao meu quarto. As lágrimas de Zinaida tinham-me feito perder por completo a cabeça; não sabia que pensar e estava também prestes
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a chorar, pois devo confessar-lhes que, aos dezasseis anos, era ainda uma autêntica criança.
Já não pensava em Malevsky; embora Belovzorov se tornasse de dia para dia mais ameaçador e olhasse o espertalhão do conde como o lobo da fábula devia olhar o cordeiro. Para dizer a verdade, por mim já não pensava em nada nem em ninguém; perdia-me em suposições e procurava os sítios mais isolados.
Tinha especial predilecção pelas ruínas da estufa das laranjas e adquirira o hábito de escalar a sua parede abrupta e ficar sentado lá no alto, escarranchado, de tal modo infeliz, triste e esquecido de tudo que chegava a ter pena de mim mesmo. Suave exaltação do isolamento melancólico!
Num dia em que lá me encontrava, com os olhos perdidos ao longe, a escutar o carrilhão do mosteiro, notei de repente um frufru misterioso. Não era o vento nem um sussurro, mas sim uma espécie de sopro e mais exactamente a sensação de uma presença... Baixei os olhos.
Zinaida caminhava ao longo do carreiro, com passo apressado. Trazia um vestido leve, cinzento, e uma sombrinha da mesma cor, apoiada no ombro. Viu-me, parou, levantou a aba da capeline e fitou-me com os seus olhos aveludados.
- Que faz aí em cima? - perguntou-me com um sorriso estranho. - Então, porque espera?... Em vez de passar o tempo a persuadir-me de que gosta de mim, salte para aqui, se isso é verdade.
Ainda mal acabara de falar e já eu me precipitava para baixo, como se me tivessem empurrado violentamente pelas costas. A parede devia ter cinco metros de altura. Aterrei nos pés, mas o choque foi tão grande que não consegui ficar de pé; caí e perdi os sentidos por alguns instantes. Quando voltei a mim, e sem abrir os olhos, senti que Zinaida ainda estava ali, junto de mim...
- Querido pequeno-dizia, com uma ternura inquieta -, querido pequeno, como pudeste fazer isso, porque me deste ouvidos? Amo-te... Acorda...
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O seu peito arfava encostado à minha cabeça, as suas mãos afagavam-me levemente as faces... e de súbito
- Senhor, que delícia! - os seus lábios aveludados e frescos cobriram-me o rosto de beijos, afloraram os meus... Nesse momento, apesar de evitar cuidadosamente reabrir os olhos, desconfiou decerto que voltara a mim e levantou-se rapidamente.
- Vamos, levante-se, maganão... Que faz aí, deitado na terra?
Obedeci.
- Dê-me a minha sombrinha... veja para onde a atirei... e não olhe assim para mim... Que ideia mais estúpida! Magoou-se? Picou-se nas urtigas? Já lhe disse que me não olhasse assim... Faz-se desentendido, não responde - acrescentou como se falasse consigo mesma.
- Volte para casa, Sr. Valdemar, escove-se e não me siga, senão zango-me e nunca mais...
Não acabou a frase e afastou-se rapidamente. Sentei-me à beira do carreiro, sem me ter nas pernas... As urtigas tinham-me arranhado as mãos, doíam-me as costas e sentia a cabeça andar-me à roda, mas, apesar de tudo isso, experimentava uma sensação de beatitude como nunca mais senti na vida. Essa sensação manifestava-se por meio de um torpor agradável e ao mesmo tempo doloroso que me circulava nas veias, e acabou por se expandir livremente sob a forma de pulos e gritos entusiásticos...
Na verdade, era ainda uma criança!
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COMO lhes hei-de descrever a minha alegria e o meu orgulho durante todo aquele dia? Ainda sentia os beijos de Zinaida na cara. Cheio de arrebatamento, evocava constantemente cada uma das suas palavras e agarrava-me de tal modo à minha nova felicidade que começava a temê-la e já não queria rever a causa da minha exaltação.
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Parecia-me que já não podia esperar mais nada do destino e que chegara a altura de "aspirar um último hausto de ar e morrer"!
No dia seguinte, quando fui a casa dos Zassekines, sentia-me terrivelmente intimidado e procurava em vão disfarçar o meu estado de espírito com a desenvoltura discreta do "cavalheiro que quer dar a entender que é capaz de guardar um segredo".
Mas Zinaida recebeu-me com a maior simplicidade deste mundo e sem a mais pequena emoção e limitou-se a ameaçar-me com o dedo e a perguntar-me se não tinha nódoas negras. Toda a minha desenvoltura, toda a minha discrição e todos os meus ares de conspirador se desvaneceram num abrir e fechar de olhos. Evidentemente, não esperava nada de extraordinário, mas enfim... a calma da rapariga produziu-me precisamente o efeito de um duche frio. Compreendi que não passava de uma criança para ela e fiquei muito ofendido!
Zinaida passeava de um lado para o outro e um sorriso fugaz aflorava-lhe aos lábios todas as vezes que pousava os olhos em mim. No entanto, os seus pensamentos estavam longe e eu via-o perfeitamente...
"Vais-lhe falar do que se passou ontem, perguntar-lhe aonde ia com tanta pressa e saber enfim...?"
Desisti e sentei-me a um canto, isolado.
Entretanto, chegou Belovzorov e o seu aparecimento pareceu-me absolutamente inoportuno.
Não consegui arranjar-lhe um animal dócil... Há de facto um cavalo que o Preitag garante ser manso, mas não me fio nele. Tenho medo - declarou o recém-chegado.
- E de que tem medo, se é permitido fazer-lhe esta pergunta? - quis saber Zinaida.
- De quê?... Mas se a minha amiga nem sequer sabe montar a cavalo! Deus me defenda, mas uma desgraça é tão fácil de acontecer... Que capricho lhe passou pela cabeça?
- Isso é coisa que só a mim diz respeito, senhor selvagem... E se é assim, recorrerei a Piotr Vassilievich...
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Era o nome do meu pai e surpreendeu-me que se lhe referisse com tanta confiança, como se estivesse certa de que lhe não recusaria o favor.
- Estou a perceber... -declarou Belovzorov. É então com esse senhor que vai andar a cavalo?
- Que seja com ele ou com outro, não é da sua conta. Em todo o caso, não é consigo.
- Não é comigo... - repetiu o hussardo. - Seja, vou arranjar-lhe uma montada.
- Mas tome cuidado, que não seja uma mula... Previno-o de que quero andar a galope.
- Pois ande, se lhe apetece... É com Malevsky?
- E porque não com ele, meu valente capitão? Vamos, acalme-se, não faça essa cara. Dir-se-ia que quer fulminar as pessoas... Acompanhar-me-á um dia. Malevsky... como se o senhor não soubesse o que é para mim, agora... Puf! - exclamou, abanando a cabeça.
- Diz isso para me animar... - resmungou Belovzorov.
Zinaida semicerrou os olhos.
- Para o animar?... Oh... oh... oh... meu bravo capitão! - exclamou por fim, como se não conseguisse encontrar outra frase. - E o senhor, meu caro Valdemar, quer vir connosco?
- bom, eu... não gosto de me ver... no meio de muita gente - balbuciei sem levantar os olhos.
- Ah, ah! Prefere os passeios a dois... Tanto pior, mas respeite-se a sua vontade... - suspirou. - Vamos, Belovzorov, ponha-se em campo. Preciso absolutamente de um cavalo para amanhã!
- Pois sim, mas aonde vamos arranjar o dinheiro? interveio a velha princesa.
Zinaida franziu o sobrolho.
- Não lhe pedi nada... Belovzorov confia em mim.
- Confia em ti... confia em ti... - resmungou a mãe. E, de súbito, gritou a plenos pulmões:
- Duniacha!
- Mãezinha, não se esqueça da campainha que lhe comprei... - observou Zinaida.
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- Duniacha! - chamou de novo a princesa. Belovzorov despediu-se e eu saí com ele. Ninguém tentou reter-me...
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No DIA seguinte, levantei-me muito cedo, arranjei um pau e fui para longe da vivenda. Desejava estar só e entregar-me ao meu desgosto. Estava um tempo esplêndido, soalheiro e razoavelmente quente; um vento fresco e brincalhão soprava rente à terra, divertia-se e sussurrava por entre as árvores, mas com comedimento. Caminhei durante muito tempo por montes e vales, profundamente insatisfeito, pois a finalidade do meu passeio fora entregar-me à melancolia e no fim de contas a minha juventude, o esplendor do sol, a frescura do ar, o prazer de uma caminhada rápida e a volúpia de me estender na erva abundante, longe de todos os olhares, acabaram por se sobrepor aos meus desejos e por me fazer esquecer o meu desgosto...
Além disso, a recordação das palavras de Zinaida e dos seus beijos apoderou-se-me novamente da alma e sentia prazer em dizer para comigo que se não podia deixar de ver obrigada a reconhecer a minha força de carácter e o meu heroísmo... "Prefere os outros", dizia para comigo. "Tanto pior!... Eles só são valentes por palavras e eu dei provas... E aceitarei outros sacrifícios muito maiores, se for preciso!"
A minha imaginação corria à rédea solta. Via-me a salvar a rapariga das mãos dos seus inimigos, a arrancá-la de uma prisão, heróico e coberto de sangue, e depois expirando a seus pés...
Lembrei-me de um quadro pendurado na nossa sala de jantar: Malek-Adel Raptando Matilde.
Logo a seguir absorvi-me na contemplação de um picanço-verde que trepava pelo tronco delgado de uma bétula e olhava inquieto para um lado e para outro, como um contrabaixo atrás do seu instrumento.
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Depois, pus-me a cantar Isto Não É a Branca de Neve e a seguir outra romanza muito popular na época: Espero-te Quando o Zéfiro Brincar...
Recitei a invocação de Ermak às estrelas, extraída da tragédia de Khomiakov, tentei compor qualquer coisa muito sentimental e até consegui imaginar a estrofe final, que terminava num ó Zinaida, Zinaida, mas não fui mais longe...
Desci ao vale. Um carreiro sinuoso serpenteava ao fundo e levava à cidade. Meti por ele...
De súbito, ouvi ruído de cascos de cavalo atrás de mim. Virei-me, parei maquinalmente e tirei o barrete... Eram meu pai e Zinaida, que trotavam ao lado um do outro. Meu pai estava inclinado para ela e dizia-lhe qualquer coisa sorrindo, com a mão pousada no pescoço do cavalo... A rapariga escutava-o em silêncio, de olhos baixos e lábios apertados... Ao princípio, só os vi a eles; alguns instantes mais tarde, porém, Belovzorov apareceu numa curva, com o seu dólman vermelho de hussardo... O seu belo cavalo negro estava coberto de espuma e abanava a cabeça, resfolegava e caracolava. O cavaleiro puxava as rédeas, refreava-o e esporeava-o... Escondi-me. O meu pai largou o pescoço do cavalo da rapariga, puxou as rédeas da sua montada, afastou-se de Zinaida e partiram ambos a galope. Belovzorov seguiu-os, fazendo tilintar o sabre...
"Estava vermelho como uma lagosta", disse para comigo, "mas ela... porque estava tão pálida?... Seria por ter andado a cavalo toda a manhã?"
Estuguei o passo e cheguei a casa justamente à hora do almoço. O meu pai já mudara de fato. Estava sentado numa poltrona colocada ao lado da de minha mãe e lia-lhe, em voz monótona e sonora, o folhetim do Jornal dos Debates. Minha mãe escutava-o com ar distraído e assim que me viu perguntou-me onde me metera e acrescentou que lhe desagradava muito ver-me vagabundear só Deus sabia por onde e com quem.
"Mas eu fui passear sozinho!", ia a responder-lhe, quando encontrei o olhar do meu pai e calei-me, não sei porquê.
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DURANTE cinco ou seis dias não vi Zinaida. Dizia-se doente mas isso de modo algum impedia os visitantes habituais de frequentarem a sua casa, de "fazerem o seu quarto de sentinela", como diziam.
Vinham todos, com excepção de Maidanov, que se entregara à melancolia desde que já não tinha motivo para se entusiasmar. Belovzorov conservava-se triste a um canto, hirto no seu uniforme, abotoado até ao queixo e escarlate. Um sorriso malévolo errava nos lábios finos do conde Malevsky, que caíra em desgraça e se esforçava por se tornar útil à velha princesa, com uma solicitude servil. Não chegara ao ponto de a acompanhar, no seu fiacre, a casa do general-governador? Verdade seja dita que a visita fora infrutífera e até desagradável para o conde: tinham-lhe recordado certo caso que tivera uma vez com um oficial de engenharia e vira-se obrigado a dar explicações e a admitir que dera provas de inexperiência.
Luchine tinha o hábito de aparecer duas vezes por dia, mas não se demorava muito. Desde a nossa recente conversa, inspirava-me uma vaga apreensão, ao mesmo tempo que uma simpatia profunda.
Um dia, fomos passear juntos ao Jardim de Neskuchny. Mostrou-se muito amável comigo e enumerou-me os nomes e as propriedades de todas as plantas. De súbito, bateu na testa e exclamou, sem que nada o fizesse prever no decurso da nossa anterior conversa:
- Sempre fui muito imbecil em a julgar namoradeira! ... Devemos admitir que existem mulheres que se sacrificam por bondade!
- Que quer dizer? - perguntei-lhe.
- Nada... Pelo menos, nada que lhe possa interessar
- respondeu-me bruscamente.
Zinaida evitava-me. A minha simples presença lhe era desagradável e eu não podia deixar de dar por isso... Virava-se maquinalmente quando me via, e precisamente porque o gesto era maquinal mergulhava-me
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num grande desespero... Esforçava-me por não lhe aparecer e espreitava-a de longe, mas nem sempre o conseguia.
Acontecera-lhe algo estranho e inexplicável; já não era a mesma, até na expressão fisionómica.
Fiquei especialmente impressionado com o que vi numa noite serena e quente. Encontrava-me sentado num banco, debaixo de um salgueiro, um sítio de que muito gostava por dele se ver a sua janela. Por cima de mim, na folhagem, um passarinho veloz saltitava de ramo em ramo, um gato cinzento que se introduzira no jardim rebolava-se no chão e os besouros zumbiam baixinho no espaço, escuro mas ainda transparente. De olhos postos na janela, eu espiava... Por fim, abriu-se e Zinaida apareceu. Trazia um vestido branco, tão branco como o seu rosto, os seus braços e os seus ombros.
Esteve muito tempo imóvel, de sobrolho franzido. Depois, apertou as mãos com força, levou-as aos lábios e à testa, afastou os dedos, puxou os cabelos para trás das orelhas, abanou energicamente a cabeça e voltou a fechar a janela com brusquidão.
Três dias mais tarde, encontrei-a no jardim.
- Dê-me o braço - disse-me ternamente, como dantes... - Há muito tempo que não conversamos um bocadinho.
Fitei-a; uma luz suave brilhava-lhe no fundo das pupilas e sorria-me como que através de uma leve neblina.
- Ainda está doente? - perguntei-lhe.
- Não, agora já passou - respondeu-me, colhendo uma rosinha vermelha. - Ainda me sinto um bocadinho cansada, mas isso também há-de passar.
- E será outra vez como dantes?
Levantou a flor ao nível das faces e o vermelho das pétalas pareceu reflectir-se nelas.
- Quer dizer que mudei?
- Sim, mudou - repliquei a meia voz.
- Tenho sido fria consigo, bem sei... mas não devia
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ter ligado importância... Não estava mais na minha mão... Mas deixemos isso, sim?
- Não quer que a ame! - exclamei, num impulso involuntário.
- Mas claro que quero que me continue a amar! Apenas de outra maneira...
- Como?
- Quero que sejamos amigos, simplesmente! Deu-me a cheirar o perfume da rosa.
- Ouça, sou muito mais velha do que o senhor... Poderia ser sua tia - não diga que não! - ou pelo menos sua irmã mais velha... E o senhor...
Interrompi-a:
- Não passo de uma criança?
- Exacto. O senhor é uma criança, uma criança querida, boa, gentil, inteligente... Olhe, a partir de hoje, elevo-o à dignidade de pajem... Será o meu pajem e não se esqueça de que, como tal, nunca deve deixar a sua dama... Aqui tem a sua insígnia - acrescentou, colocando-me a rosa na botoeira. - Agora, já tem uma prova da nossa benevolência...
- Ainda há pouco recebi outras... - balbuciei.
- Ah, ah! - exclamou Zinaida, olhando-me de soslaio. - Que memória! Pois bem, seja; aceito!
Inclinou-se levemente e depositou-me na testa um beijo puro e calmo. Quando levantei os olhos, deu meia volta.
- Segui-me, pajem - ordenou-me, e dirigiu-se para o pavilhão.
Obedeci, interrogando-me, atónito:
"Será possível que esta rapariga tímida e sensata seja Zinaida?"
Até o seu modo de caminhar me pareceu mais senhoril, e o seu porte mais esbelto e majestoso.
Meu Deus, com que violência renovada o amor se reacendia no meu coração!
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DEPOIS do jantar, os visitantes habituais reuniram-se de novo na sala e a jovem princesa dignou-se sair do seu quarto. O nosso grupo estava completo, exactamente como no inolvidável serão a que me associara da primeira vez. Nem sequer faltava o velho Nirmatzky, que arrastara a sua perna até ao pavilhão. Maidanov chegara primeiro do que os outros, com um novo poema debaixo do braço.
Jogámos às prendas, como da outra vez, mas sem nada de extravagante, de barulhento; o elemento boémio parecia ter-se perdido. Na minha condição de pajem, sentei-me ao lado de Zinaida. Ela propôs que quem fosse premiado contasse o seu último sonho, mas a ideia falhou por completo. Os sonhos não possuíam a mais pequena parcela de interesse (como o de Belovzorov, que sonhara estar a dar palmadinhas ao cavalo e descobrira que o animal tinha cabeça de pau) ou então soavam falso, por serem inventados em todos os pormenores.
Maidanov propôs-nos uma autêntica fábula, em que nada faltava: necrópoles, anjos com liras, flores que falavam, ruídos longínquos e misteriosos... mas Zinaida nem sequer o deixou terminar.
- Em vez de nos contar uma fábula, é melhor que cada um invente uma história! -concluiu.
De novo a sorte designou Belovzorov.
- Mas eu não posso inventar nada! - protestou o hussardo, visivelmente constrangido.
- Deixe-se de tolices! - replicou Zinaida. - Imagine, por exemplo, que é casado e conte-nos como gostaria de passar o tempo com a sua mulher... Fechá-la-ia à chave?
- Decerto.
- E ficaria junto dela?
- Evidentemente.
- Muito bem. E se ela se fartasse e o enganasse?
- Matava-a.
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- E se ela fugisse?
- Ia buscá-la e matava-a da mesma maneira.
- bom. Suponhamos que sou sua mulher. Que faria? Belovzorov calou-se.
- Matava-me também - declarou passado um minuto de reflexão.
- Verifico que, pelo menos, o senhor não está com meias medidas! -exclamou a rapariga, desatando a rir.
Coube-lhe a segunda prenda. Levantou os olhos ao tecto e ficou sonhadora.
- Escutem - disse por fim. - Aqui têm o que me ocorreu... Imaginem um salão magnífico, uma bela noite de Verão e um baile soberbo... O baile é oferecido pela jovem rainha. Por toda a parte, ouro, mármore, cristal, seda, luzes, diamantes, flores e plantas perfumadas... Em resumo, tudo o que o luxo pode proporcionar.
- Gosta do luxo? - interveio Luchine.
- É muito bonito e gosto de tudo o que é bonito respondeu ela.
- Mais do que do belo?
- Isso é muito complicado para mim... Não percebo o que quer dizer... Vamos, não me atrapalhe... Dizia, pois, que era um baile magnífico. Numerosos convidados, jovens, belos, valentes e loucamente apaixonados pela rainha.
- Ah, ah! Quer dizer que não há mulheres entre os convidados? - observou Malevsky.
- Não... Espere... há, sim.
- E são todas belas?
- Encantadoras. Contudo, os homens estão apaixonados pela rainha. É alta, esbelta e tem um diademazinho dourado nos cabelos negros.
Olhei Zinaida e pareceu-me muito acima de nós. Irradiava tal inteligência e tanta penetração da sua fronte de alabastro e dos seus olhos imóveis, que, mal-grado meu, disse para comigo:
"Essa rainha és tu!"
- Todos os homens se aglomeram em torno dela -
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prosseguiu a rapariga - e lhe dirigem as palavras mais lisonjeiras.
- Ela gosta que a lisonjeiem? - perguntou Luchine.
- O senhor é insuportável! Não me quer deixar falar?... Claro que gosta! Quem não gosta?
- Só mais uma pergunta - interveio Malevsky. A rainha é casada?
- Nem sequer pensei nisso... Mas não, não é. Porque havia de ser?
- Evidentemente porque havia de ser? - repetiu o conde.
- Silence! - reclamou Maidanov, que aliás falava muito mal o francês.
- Merci - agradeceu Zinaida. - Portanto, a rainha escuta o que lhe dizem, presta atenção à música, mas não distingue nenhum dos seus convidados... Encontram-se abertas seis portas envidraçadas, de alto a baixo, do tecto ao chão, através das quais se vê o céu negro, recamado de grandes estrelas, e o parque sombrio, onde se erguem árvores imensas. A rainha contempla a noite. No jardim, entre as árvores, há uma fonte cujos contornos se divisam na obscuridade, brancos e esguios, muito esguios, como os de um fantasma... No meio da música e do ruído das vozes, a rainha distingue o murmúrio da água. E ela diz para consigo: "Meus nobres senhores, sois belos, inteligentes e dignos, bebeis cada uma das minhas palavras e dizeis-vos prontos a expirar a meus pés. Tenho sobre vós um poder infinito... Mas sabeis porventura que ali, junto daquela fonte onde a água murmura tão harmoniosamente, me espera o meu bem-amado e que também ele possui sobre mim um poder infinito?... Não tem brocados nem pedras preciosas, é um desconhecido, mas espera-me; sabe que irei ter com ele... e não se engana, pois nenhum poder do mundo é capaz de me reter quando desejo ir ao seu encontro, estar na sua companhia e desaparecer com ele ali, no meio do sussurro das árvores e do canto da fonte..."
Calou-se.
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- Isso é, de facto, uma história inventada? - perguntou maliciosamente o conde.
Zinaida nem sequer se dignou honrá-lo com um olhar.
- E que faríamos se pertencêssemos ao número dos convidados e conhecêssemos a existência desse feliz mortal a suspirar junto da fonte?
- Que fariam? Esperem, vou-lhes dizer... - replicou Zinaida. - Belovzorov desafiá-lo-ia para um duelo... Maidanov comporia um epigrama... ou antes, não; como isso não estaria de acordo com o seu estro, comporia jambos intermináveis, à Barbier, e publicaria a
sua obra-prima no Telégrafo... Nirmatzky pedir-lhe-ia
dinheiro emprestado... ou melhor, emprestar-lho-ia a
curto prazo... Quanto ao senhor, doutor... -deteve-se -
na verdade, não sei o que imaginaria...
- Dadas as minhas funções de médico ao serviço de Sua Majestade, recomendar-lhe-ia respeitosamente que
não desse o baile numa altura em que tinha mais em que pensar... - Talvez fizesse mal, doutor... E o senhor, conde?
- Eu?... - redarguiu Malevsky, sorrindo maliciosamente.
-Oferecer-lhe-ia, decerto, uma pílula envenenada...
O rosto do conde contraiu-se por instantes, adquiriu uma expressão de fuinha, e depois Malevsky desatou a rir.
- Pela parte que lhe toca, Sr. Valdemar... Enfim, é melhor mudarmos de jogo...
-O Sr. Valdemar, dadas as suas funções de pajem, pegaria na cauda do vestido de Sua Majestade para a ajudar a fugir... - troçou velhacamente Malevsky.
Eu ia ripostar, mas Zinaida pôs-me a mão no ombro, levantou-se e disse com voz levemente trémula:
-Nunca autorizei Vossa Alteza a ser insolente; por isso, suplico-lhe que se retire - e indicou-lhe a porta.
- Então, princesa... - balbuciou o conde, empalidecendo.
- A princesa tem razão- aprovou Belovzorov, levantando-se também.
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- Na verdade... não julguei... não a queria ofender... Perdoe-me - balbuciou Malevsky.
Zinaida deitou-lhe um olhar glacial e sorriu duramente.
- Seja, fique - condescendeu com um gesto de desprezo. - De facto, não havia motivo para nos zangarmos, o Sr. Valdemar e eu. Se o diverte dar vazão ao seu veneno... pela minha parte, não vejo inconveniente nisso!
- Perdoe-me - desculpou-se mais uma vez o conde. Quanto a mim, evoquei o gesto de Zinaida e disse
para comigo que uma autêntica rainha não expulsaria com mais graça o insolente.
O jogo de prendas não durou muito mais tempo depois deste incidente; todos se sentiam um bocadinho constrangidos, não tanto por causa do incidente em si mesmo, mas sim por via de uma perturbação confusa e inexplicável. Ninguém o confessava, mas todos tinham consciência disso.
Maidanov leu-nos versos e Malevsky gabou-os exageradamente.
- Quer-se mostrar caridoso a todo o custo - segredou-me Luchine.
Depressa nos separámos. Zinaida tornara-se de súbito pensativa e a mãe declarou que lhe doía a cabeça; Nirmatzky começou a queixar-se do reumatismo...
Durante muito tempo não consegui adormecer, perturbado pela história de Zinaida. "Conteria alguma parcela de verdade?", perguntava a mim próprio. "A quem ou a quê se queria referir?... E se realmente havia na história alguma intenção oculta, que decisão devo tomar?... Mas não, não, é impossível", repetia para comigo, virando-me e revirando-me na cama, com as faces em brasa... Depois, recordei-me da expressão do seu rosto enquanto falava... Lembrei-me da exclamação que escapara a Luchine no Jardim de Neskuchny e da brusca mudança de atitude da rapariga para comigo... Perdia-me em suposições... "Quem será?"
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Estas duas palavras dançavam diante de mim, na escuridão... Uma nuvem baixa e lúgubre oprimia-me com todo o seu peso e esperava a todo o instante que se convertesse em tempestade.
Observara algumas coisas em casa dos Zassekines desde que a frequentava e habituara-me a muitas outras: à desordem, aos cotos de vela sebosos, aos garfos sem dentes, às facas com bocas, às expressões carrancudas de Bonifácio, à sujidade da aia, às maneiras da velha princesa... Havia porém uma coisa a que me não podia habituar: à transformação que pressentia confusamente em Zinaida...
A minha mãe chamara-lhe, um dia, aventureira... Uma aventureira, ela, o meu ídolo, a minha divindade?! A palavra queimava-me. Indignado, enterrei a cabeça no travesseiro... Ao mesmo tempo, quanto não daria para estar no lugar daquele feliz mortal, junto da fonte!
O sangue gelou-se-me nas veias... "A fonte... no parque... E se eu lá fosse?" Vesti-me à pressa e esgueirei-me para fora de casa. A noite estava escura e as árvores faziam ouvir um sussurro quase imperceptível; uma brisa ligeira descia do céu e da horta vinha um cheirinho a salsa... Percorri todas as alamedas. O ruído dos meus próprios passos intimidava-me e estimulava-me ao mesmo tempo. Parava, escutava e ouvia as pulsações do meu coração, rápidas e precisas... Por fim, aproximei-me da paliçada e encostei-me a uma estaca... De súbito, uma silhueta feminina passou rapidamente a alguns passos de mim. Talvez fosse uma alucinação, não soube muito bem que pensar... Tentei devassar as trevas com a vista e contive a respiração... Que era aquilo?... Ruído de passos ou a cadência do meu coração?
- Quem anda aí? - balbuciei com voz abafada.
Dir-se-ia um riso sufocado, ou o murmúrio das folhas... ou seria um suspiro mesmo junto do meu ouvido?... Tive medo.
- Quem anda aí? - repeti ainda mais baixo.
Um raio de luz cortou o firmamento: uma estrela cadente.
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"Zinaida!", quis chamar, mas o som morreu-me nos
lábios.
De repente, como acontece muitas vezes em plena noite, reinou um silêncio profundo em torno de mim... As próprias cigarras se calaram nas árvores e ouvi apenas o barulho de uma janela a fechar-se. Escutei mais um momento e regressei ao meu quarto, à minha cama fria.
Dominava-me uma exaltação singular, como se tivesse ido a uma entrevista e tivesse passado, sozinho, diante da felicidade doutrem...
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No DIA seguinte, mal vi Zinaida, que saiu de fiacre com a velha princesa. Em contrapartida, encontrei Luchine, que quase se não dignou cumprimentar-me, e Malevsky. O jovem conde sorriu-me e pôs-se a falar comigo como um bom camarada. De todos os frequentadores do pavilhão, era o único que conseguira introduzir-se em nossa casa e conquistar as boas graças da minha mãe. Quanto ao meu pai, não simpatizava com ele e tratava-o com uma cortesia afectada que raiava a insolência.
- Ah, ah, monsieur lê page! - exclamou Malevsky. Tenho muito prazer em o encontrar. Que é feito da sua encantadora rainha?
A sua cara efeminada de peralvilho era-me tão desagradável - e fitava-me com uma jovialidade tão desdenhosa - que nem sequer lhe respondi.
- Ainda zangado? - prosseguiu. - Não tem razão. Não fui eu que o elevei à dignidade de pajem... Como sabe, devia seguir sempre a rainha e permita-me que lhe observe que se desempenha muito mal da sua missão.
- Que quer dizer?
- Os pajens nunca deixam as rainhas e têm o dever
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de as espiar... de dia e de noite - concluiu baixando a voz.
- Que pretende insinuar com isso?
- Absolutamente nada! Não falo com segunda intenção... Dia e noite... De dia, não é difícil: vê-se bem, há muita gente... É sobretudo à noite que deve abrir os olhos, e bem... No seu lugar, não dormiria e passaria o tempo a observar atentamente... Lembra-se da história da fonte? É aí que se deve postar e pôr-se à coca... Mais tarde me agradecerá o conselho.
Desatou a rir e virou-me as costas, provavelmente sem atribuir muita importância às suas próprias recomendações. O conde tinha fama de ser hábil a mistificar as pessoas com enigmas e nisso ajudava-o muito a hipocrisia quase inconsciente que respirava por todos os poros.
Quisera apenas arreliar-me, mas cada uma das suas palavras espalhou-se-me nas veias como um veneno e o sangue subiu-me à cabeça. "Ah, bom, pelos vistos, não era sem motivo que o parque exercia sobre mim semelhante atracção!..." disse para comigo- .
- Pois bem, isso não acontecerá! - exclamei, batendo no peito.
NO entanto, para dizer a verdade, ignorava por completo o que não aconteceria...
"Que seja Malevsky quem vai à fonte (talvez tenha falado de mais, mas tudo é de esperar da sua insolência)... ou qualquer outro (a paliçada do parque é baixa e fácil de transpor), pouco importa... Quem quer que seja, que se acautele comigo! Não gostaria de estar no seu lugar nem desejo a ninguém o que o espera!... Provarei ao universo inteiro, assim como à infiel (era deste modo que classificava Zinaida), que me sei vingar!"
Subi ao meu quarto, abri a gaveta da secretária, peguei numa navalha inglesa que comprara pouco antes, verifiquei o fio da lâmina, franzi o sobrolho e guardei a arma na algibeira, com um gesto frio e resoluto. Quem me visse julgaria que estava habituado a regularizar assim as minhas contas... O coração pulsava-me
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com ódio, insensibilizava-se-me, tornava-se-me de pedra. Até à noite, evitei descerrar os lábios e desenrugar a testa. Caminhava de um lado para o outro, com a mão crispada na navalha que guardava na algibeira, e afagava-a, ruminando actos espantosos...
Para ser franco, devo confessar que os meus novos sentimentos monopolizavam de tal modo a minha atenção que quase me não permitiam pensar em Zinaida... Evocava a imagem de Aleko, o jovem cigano: "Aonde vais, meu rapaz? Volta para a cama..." E depois: "Estás coberto de sangue... Que fizeste?" "Não fiz nada!..." com que sorriso cruel repeti este não fiz nada!...
O meu pai saíra e a minha mãe - que havia algum tempo andava num estado de irritação quase crónico acabou por notar o meu ar fatal e perguntou-me:
- Que tens? Parece que tiveste algum desgosto...
Limitei-me a sorrir com um ar cheio de condescendência e a dizer para comigo: "Ah, se soubessem!..."
O relógio bateu onze horas; fui para o meu quarto, mas não me despi: fiquei à espera da meia-noite.
Doze badaladas... "Soou a hora!", disse para comigo, em voz baixa, apertando os dentes. Abotoei o casaco até ao queixo, puxei as mangas e desci ao jardim.
Escolhera antecipadamente o sítio onde me devia colocar. Ao fundo do parque erguia-se um abeto solitário, no ponto em que a paliçada que separava o nosso domínio do dos Zassekines confinava com um muro. Oculto pelos ramos baixos da árvore, podia ver facilmente tudo o que se passava à minha volta, pelo menos na medida em que mo permitia a escuridão da noite.
Havia um carreiro que se prolongava até junto do abeto. Aquele caminho misterioso serpenteava e passava por baixo da paliçada, num sítio em que um intruso a transpusera manifestamente diversas vezes, a julgar pelos vestígios, e desaparecia mais longe num pavilhãozinho completamente revestido de acácias. Esgueirei-me até à árvore e pus-me de sentinela, encostado ao tronco.
A noite estava tão calma como na véspera, mas o céu encontrava-se menos encoberto e distinguiam-se mais
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nitidamente os contornos das moitas e de algumas flores altas. Os primeiros minutos de espera pareceram-me penosos e quase aterradores. Pronto para tudo, reflecti na conduta a seguir. Deveria gritar, com voz trovejante: "Aonde vais? Nem mais um passo! Confessa ou morres!" ou ferir em silêncio?... Cada ruído, cada folha agitada pelo vento tomava na minha imaginação um significado extraordinário. Espiava inclinado para diante... Passou-se assim meia hora e depois uma hora. O meu sangue ia-se acalmando e uma ideia insidiosa começava a fazer luz no meu espírito: "E se estava enganado, se me cobria de ridículo, se Malevsky zombara de mim?"
Saí do meu esconderijo e dei uma volta pelo parque. Nem o mais pequeno ruído em parte alguma; tudo repousava. O nosso cão dormia, enroscado como uma bola, diante da porta... Escalei as ruínas da estufa das laranjas, contemplei o campo que se estendia a perder de vista, recordei-me do meu encontro com Zinaida naquele mesmo local e abismei-me nas minhas reflexões...
De súbito, estremeci... Julguei distinguir o leve rangido de uma porta a abrir-se e depois o estalido de um ramo morto... Em dois saltos, cheguei ao chão e imobilizei-me no meu posto... Um passo ligeiro, rápido mas cauteloso, ouvia-se no jardim... Alguém se aproximava... "Até que enfim!"
com um gesto brusco, tirei a navalha da algibeira e abri-a. Chispas vermelhas dançaram-me diante dos olhos e os cabelos arrepiaram-se-me de cólera e pavor... O homem vinha direito a mim... Dobrei-me em dois, pronto para saltar... Meu Deus, era o meu pai!
Apesar de estar completamente envolvido numa capa negra e de ter o chapéu enterrado até aos olhos, reconheci-o acto contínuo. Passou diante de mim em bicos de pés, sem me ver, embora nada me ocultasse ao seu olhar... Mas encontrava-me de tal modo encolhido que devia estar quase rente ao chão... O Otelo ciumento e decidido a assassinar convertera-se num colegial.
A aparição de meu pai causou-me tal medo que fui incapaz de precisar donde tinha saído e em que direcção
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desapareceu. Quando o silêncio se restabeleceu à minha volta, endireitei-me e perguntei a mim próprio, estupefacto: "Por que motivo andará o meu pai a passear à noite no parque?"
No meu pavor, deixara cair a navalha e nem sequer me atrevia a procurá-la, tão embaraçado me sentia... Dominava-me algo mais forte do que eu, estava completamente desorientado...
Contudo, quando regressei a casa aproximei-me do banco que havia debaixo do salgueiro e deitei uma vista de olhos à janela de Zinaida. Os vidrinhos levemente arqueados emitiam um reflexo ténue e azulado à pálida claridade do céu nocturno... De repente, o tom do reflexo modificou-se... Mão cautelosa descia devagarinho, muito devagarinho - via-o nitidamente - um estore branco, que baixou até ao fundo da janela sem o mais leve ruído...
"Que significa o que acabo de ver?", perguntei a mim mesmo quase em voz alta, mal-grado meu, quando cheguei ao meu quarto. "Sonhei?... Seria coincidência ou..."
As minhas suspeitas eram tão estranhas e imprevistas que me não atrevi a deter-me nelas...
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LEVANTEI-ME com uma tremenda dor de cabeça. A agitação da véspera desaparecera e fora substituída por uma penosa sensação de espanto e tristeza como nunca experimentara. Dir-se-ia que qualquer coisa morrera em mim mesmo...
- A que se deve esse ar de coelho a que tivessem tirado metade do cérebro? - perguntou-me Luchine, que encontrei.
Durante todo o almoço lancei olhares furtivos ora a um, ora a outro dos meus pais. O meu pai estava calmo, como de costume; quanto à minha mãe, irritava-se por tudo e por nada.
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Perguntava a mim próprio se o meu pai me dirigiria a palavra amigavelmente, como costumava fazer de vez em quando... Não, não me disse nada; nem sequer obtive a espécie de ternura fria que me dispensava em geral todos os dias...
"Deverei contar tudo a Zinaida?", interroguei-me. "Pouco interessa, visto que doravante tudo acabou entre nós..."
Fui a casa dela, mas não lhe pude dizer nada, nem sequer falar-lhe, como tencionava. O irmão mais novo, um garoto dos seus doze anos, aluno de uma escola de cadetes de Sampetersburgo, acabava de chegar para passar as férias em casa da mãe e ela apresentou-mo imediatamente:
- Aqui tem um camarada, meu caro Volodia... - Era a primeira vez que me tratava assim. - Têm ambos o mesmo nome de baptismo. Sejam amigos, peço-lhes. O meu irmão é ainda um bocadinho selvagem, mas tem bom coração... Mostre-lhe o Neskuchny, passeiem juntos, tome-o sob a sua protecção... Faz-me esse favor, não é verdade? É tão amável...
Pousou ternamente as mãos nos meus ombros e não soube que lhe responder. A chegada do garoto transformava-me a mim próprio em colegial. Olhei o cadete em silêncio e ele, por seu turno, também ficou muito calado. Zinaida desatou a rir e empurrou-nos um para o outro.
- Vamos, abracem-se, meus filhos! Obedecemos, constrangidos.
- Quer que lhe mostre o jardim? - propus ao irmãozinho de Zinaida.
- Se não se importa, senhor... respondeu-me com voz rouca e muito marcial.
Zinaida desatou a rir de novo.
É altura de observar que nunca o seu rosto tivera tão belas cores.
Saímos com o meu novo companheiro. Havia um velho balouço no parque; mandei-o sentar-se nele e preparei-me para o empurrar. Mantinha-se hirto no seu
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uniforme novo, de fazenda grossa, recamado de guarnições douradas, e agarrava-se com força às cordas.
- Desabotoe a gola! - gritei-lhe.
- Não é preciso, senhor; estou habituado - respondeu-me, pigarreando para aclarar a voz.
Parecia-se muito com a irmã, nos olhos, sobretudo, e agradava-me ser-lhe prestável, mas continuava a roer-me o coração a mesma tristeza.
"Agora, não passo, de facto, de uma criança", disse para comigo, "mas ontem..."
Lembrei-me do sítio onde devia ter deixado cair a minha navalha e consegui encontrá-la. O cadete pediu-ma, arrancou uma grossa haste de levístico, fez uma flauta e levou-a aos lábios... Otelo imitou-o imediatamente ...
Mas que lágrimas não verteu, esse mesmo Otelo, à tarde, nos braços de Zinaida, quando esta o descobriu num canto isolado do parque e lhe perguntou o motivo da sua tristeza!...
- Que tem?... Então, que tem, Volodia? - perguntou-me.
Ao ver que me recusava obstinadamente a responder e que não parava de chorar, pousou os lábios no meu rosto molhado. Virei-me e balbuciei por entre soluços:
- Sei tudo... Porque brincou comigo? Que necessidade tinha do meu amor?
- Tem razão em me considerar culpada, Volodia... Oh, sou muito culpada!... -acrescentou, torcendo os braços. - Existem tantas forças obscuras e más em mim, tanto pecado... Agora, já não brinco consigo, amo-o, nem imagina porquê nem quanto... Mas conte-me o que sabe.
Que lhe podia dizer? Estava ali, diante de mim, e olhava-me... Assim que o seu olhar mergulhava no meu, pertencia-lhe de corpo e alma...
Um quarto de hora mais tarde, corria com o irmãozinho de Zinaida e com ela... Já não chorava; ria e lágrimas de alegria caíam-me das pálpebras inchadas... Tinha uma fita dela a servir-me de gravata e soltava
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gritos de alegria todas as vezes que conseguia agarrar a jovem pela cintura...
podia fazer de mim tudo o que quisesse...
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FICARIA muito embaraçado se me pedissem que lhes contasse em pormenor tudo o que experimentei no decurso da semana que se seguiu à minha infrutífera expedição nocturna. Foi para mim um período estranho e febril, uma espécie de caos durante o qual os sentimentos mais contraditórios, os pensamentos, as suspeitas, as alegrias e as tristezas se baralharam no meu espírito. Temia analisar-me a mim mesmo, na medida em que tal me era possível com os meus dezasseis anos. Receava conhecer os meus próprios sentimentos, tinha apenas pressa de chegar ao fim de cada dia. À noite, adormecia... protegido pela despreocupação dos adolescentes. Não queria saber se era amado e nem sequer ousava confessar a mim mesmo o contrário. Evitava o meu pai... mas não podia fugir de Zinaida... Uma espécie de fogueira consumia-me na sua presença... Mas para que me servia verificar que era nela que me queimava?... Entregava-me a todas as minhas impressões, mas não era franco comigo mesmo. Fugia das minhas recordações e fechava os olhos a tudo o que o futuro me levava a pressentir. Semelhante estado de tensão não poderia, evidentemente, durar muito tempo... Uma catástrofe pôs bruscamente termo a tudo isto e orientou-me noutro sentido...
Um dia, ao regressar para jantar depois de um grande passeio, verifiquei com espanto que teria de comer sozinho: o meu pai estava ausente e a minha mãe sentira-se adoentada e fechara-se à chave no seu quarto. A cara dos criados permitiu-me adivinhar que acabava de acontecer algo extraordinário... Não me atrevi a interrogá-los, mas como me entendia bem com Filipe,
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o nosso jovem criado de mesa, grande amador de poesia e adepto da viola, acabei por me dirigir a ele.
Disse-me que acabara de se verificar uma cena terrível entre os meus pais e que se ouvira tudo na copa. Muitas coisas tinham sido ditas em francês, mas Macha, a criada, que vivera mais de cinco anos em Paris ao serviço de uma modista, compreendera tudo. A minha mãe acusara o meu pai de adultério e censurara-lhe os seus frequentíssimos encontros com a nossa jovem vizinha. Ao princípio, ele tentara defender-se, mas depois explodira bruscamente e pronunciara algumas palavras muito duras a respeito "da idade da senhora" e a minha mãe desfizera-se em lágrimas.
Em seguida, voltando à carga, a minha mãe referira-se a uma letra que descontara à velha princesa e permitira-se fazer observações muito descorteses tanto a respeito da mãe como a respeito da filha. Nessa altura, o meu pai ameaçara-a...
- Toda a questão foi originada por uma carta anónima... - acrescentou Filipe. - Ninguém sabe quem a terá escrito, mas sem ela o segredo nunca teria sido descoberto.
- Mas houve, de facto, alguma coisa? - perguntei a custo, sentindo os braços e as pernas sem forças, enquanto o coração se me confrangia.
Filipe piscou o olho com ar entendido.
- Que quer, são coisas que se não podem esconder eternamente... O seu pai pode ter sido muito prudente, mas precisou, por exemplo, de alugar uma carruagem... E como nunca se pode prescindir dos criados...
Mandei embora o criado de mesa e atirei-me para cima da cama...
Não chorei, não me entreguei ao desespero, não perguntei a mim mesmo quando e como aquilo se teria verificado, não me admirei nada de não ter desconfiado mais cedo e nem sequer acusei o meu pai. O que acabava de descobrir era superior às minhas forças. Estava esmagado, aniquilado... Tudo acabara... As minhas belas ilusões jaziam espalhadas à minha volta, espezinhadas e murchas.
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No DIA seguinte, a minha mãe anunciou que regressava à cidade.
O meu pai foi ao seu quarto e esteve muito tempo a conversar com ela. Ninguém ouviu o que disseram, mas a minha mãe não chorou. Pelo contrário ficou visivelmente mais calma e pediu comer mas manteve-se inquebrantável na sua decisão e não saiu do quarto.
Vagueei durante todo o dia. alheado, mas não desci ao jardim e evitei olhar uma só vez na direcção do pavilhão.
À tarde, presenciei um acontecimento extraordinário: o meu pai acompanhou Malevsky até ao vestíbulo, segurando-o por um braço, e disse-lhe com voz glacial, diante dos criados:
- Há dias expulsaram Vossa Excelência de certa casa... Não me interessam explicações, de momento, mas quero preveni-lo de que, se alguma vez puser os pés em minha casa, o farei sair pela janela... Gosto pouco da sua letra...
O conde inclinou-se, apertou os dentes, meteu o rabo entre as pernas e retirou-se de orelha murcha.
Começaram-se a fazer os preparativos para a nossa partida. Possuíamos uma casa em Moscovo, no Bairro de Arbat. Era evidente que o meu pai já não tinha grande vontade de prolongar a nossa estada na vivenda, mas conseguira persuadir a minha mãe a não armar escândalo.
Tudo seguia o seu curso normal. A minha mãe mandara apresentar as suas despedidas à velha princesa e desculpara-se de a não visitar antes da partida devido ao seu estado de saúde.
Eu vagueava como uma alma penada, dominado por um só desejo: o de ver aquilo acabado o mais depressa possível. Contudo, havia uma ideia que me não largava: como fora possível que uma rapariga, e ainda por cima princesa, tivesse dado semelhante passo, sabendo que
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meu pai não era livre e que, por outro lado, Belovzorov desejava desposá-la? com que contara? Como pudera não recear destruir o seu futuro? Devia ser o verdadeiro amor, a autêntica paixão, a dedicação sem limites, dizia para comigo... Lembrei-me de uma frase de Luchine: "Existem mulheres que se sacrificam por bondade..."
Distingui um vulto branco na janela fronteira. Zinaida?... Era de facto ela. Não me contive mais. Não nos podíamos separar sem lhe dizer um último adeus... Esperei uma ocasião favorável e corri ao pavilhão.
A velha princesa recebeu-me na sala suja e desmazelada como de costume.
- Por que motivo os seus pais se vão embora tão cedo? - perguntou-me, atafulhando as narinas de rapé.
Fitei-a e tranquilizei-me imediatamente. A letra a que Filipe se referira não me saía da cabeça... Mas ela não suspeitava de nada, ou pelo menos foi o que julguei...
Zinaida apareceu à entrada da sala vizinha, toda vestida de preto, pálida e com o cabelo em desalinho. Pegou-me na mão e levou-me consigo, sem dizer nada.
- Ouvi a sua voz e vim imediatamente... - começou.
- Então, seu mauzão, é capaz de nos deixar tão facilmente?
- Vim cá para lhe dizer adeus... princesa - murmurei- e provavelmente para sempre... Sem dúvida já lhe anunciaram a nossa partida?...
Olhou-me fixamente.
- Sim, já me disseram. Obrigada por ter vindo. Julgava que o não tornaria a ver. Não guarde má recordação de mim. Tornei-o às vezes infeliz e, contudo, não sou o que pensa.
Virou-me as costas e encostou-se à janela.
- Não, não sou... Sei que pensa mal de mim, mas...
- Eu?
- Sim, sim...
- Eu? - repeti com amargura, e o meu coração fremiu de novo, subjugado pelo seu encanto indefinível, mas tão poderoso. - Eu?... Seja o que for que faça, Zinaida Alexandrovna, e quaisquer que sejam os sofrimentos
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que tenha de suportar por sua causa, bem sabe que a amarei, que a adorarei até ao fim dos meus dias.
Virou-se bruscamente para mim, abriu os braços, agarrou-me na cabeça e beijou-me com ardor. Só Deus sabia a quem era dirigido aquele beijo de despedida; no entanto, saboreei avidamente a sua doçura, pois sabia que nunca mais se repetiria. Adeus... adeus...
Arrancou-se ao meu abraço e afastou-se. Retirei-me também. Não saberia descrever-lhes a sensação que experimentava naquele momento; não gostaria de a experimentar de novo, mas, ao mesmo tempo, considerar-me-ia infeliz se nunca a tivesse conhecido.
Partimos e levei muito tempo a libertar-me do passado, a entregar-me ao trabalho. A ferida cicatrizava, mas lentamente.
Coisa estranha, não experimentei nenhum ressentimento para com o meu pai; pelo contrário, a consideração que me merecia ainda aumentou... Deixo aos psicólogos o cuidado de explicarem este paradoxo... se puderem.
Um belo dia, quando passeava numa alameda, encontrei Luchine e não escondi a minha alegria. Era-me muito simpático, devido ao seu carácter recto e leal. Além disso, evocava tantas recordações queridas ao meu coração! Corri para ele.
- Olá, meu rapaz! - exclamou, franzindo o sobrolho.
- Deixe-me examiná-lo um bocadinho... bom, bom, a cor ainda está um pouco macilenta, mas os olhos já não têm aquele brilho doentio... Já não parece um bonito cãozinho domesticado, mas sim um homem livre... Gosto disso... Que faz? Estuda?
Suspirei. Não queria mentir, mas ao mesmo tempo tinha vergonha de confessar a verdade.
- Pronto, pronto, não se atrapalhe!... Isso não tem grande importância... O essencial é que leve uma vida normal e que se não deixe dominar por paixões. As paixões são más... muito más... Não se deve deixar ir na onda; é preferível refugiar-se numa rocha e tentar, ao menos, aguentar-se... Quanto a mim, tusso, como vê... A propósito, sabe o que aconteceu a Belovzorov?
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- Não, não sei nada.
- Desapareceu... Partiu para o Cáucaso, segundo me disseram. Que lhe sirva de lição, rapaz... E tudo porque não soube arrancar a tempo o mal pela raiz... Quanto a si, parece-me que saiu indemne... No entanto, cuidado! Para a outra vez, não se deixe apanhar... Adeus!
"Nunca mais me deixarei apanhar...", disse para comigo. "Não a tornarei a ver..."
Mas o acaso dispôs as coisas doutro modo e estava-me reservado ver Zinaida mais uma vez.
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O MEU pai saía todos os dias a cavalo. Tinha um belo animal de raça inglesa, pigarço, de pescoço fino e elegante e longos jarretes. Só o meu pai o podia montar. Um dia, entrou no meu quarto e notei imediatamente que estava de excelente humor, o que lhe não acontecia havia muito tempo. Ia sair e já trazia esporas. Pedi-lhe que me levasse consigo.
- É melhor entreteres-te a saltar ao eixo - replicou-me. - Nunca conseguirias seguir-me na tua pileca.
- Mas sim! vou pôr as esporas, como tu.
- Está bem, vem, se isso te diverte. Pusemo-nos a caminho. Eu tinha um cavalinho mur-
zelo, de pêlo basto, jarretes bastante sólidos e muito vivo. Verdade seja dita que era necessário puxar por ele quando o Electric do meu pai metia a galope, mas apesar disso não me atrasava.
Nunca conheci um cavaleiro como o meu pai. Montava com uma elegância tão desenvolta que dir-se-ia que o próprio cavalo a notava e se orgulhava do cavaleiro. Percorremos todas as alamedas, contornámos o Campo Devichie, transpusemos diversas paliçadas (ao princípio, tive medo, mas o meu pai detestava os poltrões e, por isso, dominei-me o melhor que pude) e atravessámos duas vezes o Moscova... Dizia já para comigo que não tardaríamos a regressar, tanto mais
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que meu pai notara a fadiga do meu cavalo, quando, de súbito, se afastou de mim e se lançou a todo o galope na direcção do vau da Crimeia... Alcancei-o pouco depois e, ao chegar às imediações de uma pilha de vigas velhas, desmontou lestamente, ordenou-me que fizesse o mesmo, atirou-me as rédeas do Electric e recomendou-me que o esperasse ali. Depois, meteu por uma travessa e desapareceu. Pus-me a passear de um lado para o outro diante da balaustrada do cais, puxando as duas montadas atrás de mim e ralhando com o Electric, que não parava de sacudir a cabeça, esticar as rédeas, resfolegar e relinchar, ou então, assim que me detinha, de escarvar o chão com as quatro patas, morder o meu cavalinho, soltar relinchos agudos e comportar-se como um autêntico pur sang que era.
O meu pai demorava-se e do rio subia uma humidade desagradável. Principiou a choviscar e as vigas acinzentadas e sujas, que já começava a estar farto de ver, cobriram-se de manchazinhas escuras.
Sentia-me cada vez mais aborrecido e o meu pai não voltava. Um velho guarda finlandês, com uma barretina monumental, em forma de pote, a cobrir-lhe a cabeça e uma alabarda na mão (que andaria a fazer no cais do Moscova?), aproximou-se e encarou-me com o rosto engelhado de velho camponês:
- Que faz aqui com os seus cavalos, senhor? Dê-me as rédeas, se quer, que eu guardo-lhos.
Não respondi. Pediu-me tabaco. Para me ver livre dele, dei alguns passos na direcção da travessa; depois, aventurei-me a entrar nela, virei a esquina e parei... Acabava de ver o meu pai, a uns quarenta passos de distância, encostado ao parapeito da janela aberta de uma casinha de madeira... Dentro da casa, estava sentada uma mulher de vestido escuro, semioculta por um cortinado. A mulher falava com o meu pai e era... Zinaida.
Fiquei de boca aberta. Aquilo era sem dúvida nenhuma a última coisa que esperaria. A minha primeira intenção foi fugir. "O meu pai é capaz de se virar e estou perdido!...", disse para comigo. Mas uma sensação
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estranha, mais forte do que a curiosidade e até do que o ciúme, reteve-me onde estava. Pus-me a observar e apurei o ouvido.
Meu pai parecia insistir em qualquer coisa com a qual Zinaida não concordava. Nunca me esquecerei do seu rosto, tal como o vi então: triste, grave) com um ar de submissão impossível de descrever, e sobretudo de desespero. Sim, de desespero, não encontro outra palavra para o definir. Respondia com monossílabos, de olhos baixos, e limitava-se a sorrir, com ar simultaneamente humilde e teimoso.
Só naquele sorriso reconheci a Zinaida doutrora. O meu pai encolheu os ombros, levou a mão ao chapéu como se o fosse endireitar - num gesto de impaciência muito característico da sua parte... -e em seguida ouvi-o dizer: "Vous devez vous separer de cette..." Zinaida endireitou-se, estendeu o braço... e aconteceu então uma coisa inacreditável: o meu pai levantou bruscamente o pingalim, com o qual fustigava as abas poeirentas do casaco, e chicoteou violentamente o braço da rapariga, descoberto até ao cotovelo. Mal consegui reter um grito. Zinaida estremeceu, fitou o meu pai em silêncio, levou devagar a mão aos lábios e beijou o vergão avermelhado... Meu pai atirou fora o pingalim, subiu a correr os degraus da entrada e saltou para dentro da casa... Zinaida virou-se, estendeu os braços, atirou a cabeça para trás e desapareceu...
Assustado e estupefacto, afastei-me precipitadamente da travessa, quase deixei fugir o Electric e encontrei-me, por fim, de novo no cais.
Sabia muito bem que o meu pai, apesar da sua calma e do seu domínio dos nervos, era sujeito àqueles acessos de cólera; contudo, não conseguia compreender a cena de que fora testemunha. Ao mesmo tempo; compreendi que nunca mais poderia esquecer o gesto, o olhar e o sorriso de Zinaida, e que o seu novo rosto jamais se me apagaria da memória.
Olhava o rio como um autómato e nem sequer notava as lágrimas que me corriam pelas faces. Pensava: "Bateu-lhe..."
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- Pronto, dá-me o meu cavalo! -gritou o meu pai atrás de mim.
Entreguei-lhe maquinalmente as rédeas. Saltou para a sela do Electric. O cavalo, transido de frio, encabritou-se e deu um salto de três metros... O meu pai dominou-o rapidamente, cravou-lhe as esporas nos flancos e bateu-lhe no pescoço com o punho...
- Que pena não ter o pingalim!... -resmungou. Recordei-me do silvo da chicotada que ouvira pouco
antes.
- Que lhe fizeste? - arrisquei-me a perguntar-lhe passado um instante de silêncio.
Não me respondeu; distanciou-se e meteu o cavalo a galope. Quando o alcancei, não fui capaz de o olhar cara a cara.
- Aborreceste-te sem mim? - perguntou-me, apertando os dentes.
- Um pouco. Onde perdeste o pingalim? - insisti. Deitou-me uma rápida vista de olhos.
- Não o perdi... deitei-o fora.
Baixou a cabeça, pensativo, e pela primeira vez notei quanta ternura e dor podiam exprimir as suas feições austeras.
Voltou a partir a galope, não procurei tornar a apanhá-lo e entrei em casa um quarto de hora depois dele.
"É assim o amor...", disse para comigo à noite, sentado à secretária, onde tinham reaparecido os livros e os cadernos. "É assim o verdadeiro amor... Será possível não reagir, não nos revoltarmos, mesmo que adoremos a mão que nos fustiga?... É de crer que sim, quando se ama verdadeiramente... E eu, imbecil, imaginava que..."
O meu espírito amadurecera muito num mês, e o meu pobre amor, com todas as suas inquietações e os seus tormentos, pareceu-me muito pequeno, muito pueril, muito mesquinho, comparado com aquele amor desconhecido que mal entrevira e com aquele rosto estranho e sedutor, mas terrível, que em vão procurara distinguir na penumbra...
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Naquela noite tive um sonho singular, espantoso... Entrava numa divisão baixa e sombria, onde se encontrava o meu pai, de pingalim em punho, a bater o pé... Agachada a um canto, Zinaida tinha um vergão vermelho, não no braço, mas sim na testa... Belovzorov erguia-se atrás dela, todo coberto de sangue, entreabria os lábios descorados e fazia, na direcção do meu pai, um gesto ameaçador...
Dois meses mais tarde, entrei na universidade e passados seis meses meu pai morreu com uma apoplexia, em Sampetersburgo, onde acabávamos de nos instalar todos. Poucos dias antes, recebera uma carta de Moscovo que o impressionara extraordinariamente, a ponto de se ter dirigido, suplicante, à minha mãe e de - coisa inacreditável - ter chorado, conforme me contaram depois.
Na manhã do dia em que morreu, começara a escrever-me uma carta, em francês: "Meu filho, desconfia do amor de uma mulher, desconfia dessa felicidade, desse veneno..." Depois da sua morte, a minha mãe enviou uma importância considerável para Moscovo
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PASSARAM-SE quatro anos... Acabava de terminar os meus estudos na universidade e ainda não pensara bem no que havia de fazer, nem sabia a que porta bater para arranjar uma colocação. Entretanto, não fazia nada. Uma noite, no teatro, encontrei Maidanov. Casara-se e obtivera uma situação. No entanto, não o achei mudado; continuava a ter os mesmos impulsos entusiásticos - embora pouco a propósito - e os mesmos acessos de melancolia sombria e súbita.
- É verdade, sabe que a Srª Dolsky está cá?
- Quem é a Sr.a Dolsky?...
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- Não me diga que já a esqueceu! A ex-princesa Zassekine, aquela por quem estávamos todos apaixonados... Não se lembra da casinha ao pé do Neskuchny?
- Casou com Dolsky?
- Pois casou.
- E estão aqui, no teatro?
- Não, mas encontram-se de passagem em Sampetersburgo. Chegaram há oito dias e ela tenciona passar uma temporada no estrangeiro.
- Que espécie de homem é o marido?
- Um excelente rapaz, um antigo colega de Moscovo... Sabe que depois daquela história... da qual deve estar mais ao corrente do que ninguém... - e ao dizer isto esboçou um sorriso cheio de subentendidos - lhe não era fácil casar-se... Houve consequências... Mas, com a sua inteligência, nada é impossível... Vá vê-la, que lhe dará prazer... Ainda está mais bonita.
Maidanov deu-me o endereço de Zinaida, que estava hospedada no Hotel Demut. Velhas recordações agitaram-me o coração e prometi a mim próprio ir visitar no dia seguinte o meu antigo "amor".
Mas houve um impedimento e passaram-se oito dias, e depois mais oito, e quando por fim me apresentei no Hotel Demut e perguntei pela Sr.a Dolsky, responderam-me que morrera havia quatro dias, ao dar à luz.
Pareceu-me que qualquer coisa se despedaçava em mim. A ideia de que a teria podido ver, mas não a vira e nunca mais a veria, apoderou-se de mim com uma força inaudita, como uma censura amarga.
"Morta!", repeti para comigo, olhando o porteiro com os olhos rasos de lágrimas.
Saí lentamente e caminhei ao acaso, em frente, sem saber aonde ia... Aqui têm o fim que esperava aquela vida jovem, ardente e brilhante!
Pensava em tudo isto e imaginava o seu rosto querido, os seus olhos, os seus caracóis dourados, fechados num caixão acanhado, na escuridão húmida da terra... Morrera muito perto de mim, que vivia ainda, e estava agora a poucos passos do meu pai, que também já morrera...
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Entregava-me a estas reflexões, forçava a minha imaginação, e, contudo, uns versos insidiosos ecoavam-me na alma:
Lábios insensíveis falaram-me da sua morte E soube-a com indiferença...
Nada te pode comover, ó juventude! Pareces possuir todos os tesouros da Terra; a própria tristeza te faz sorrir e a dor embeleza-te. Tens confiança em ti mesma e, na tua temeridade, clamas: "Vejam, só eu vivo!..." Mas os dias escoam-se, incontáveis e sem deixarem rasto, e a matéria de que és feita derrete-se como cera ao sol, como a neve... E - quem sabe? - talvez a tua felicidade não resida na tua omnipotência, mas sim na tua fé. A tua felicidade consistiria em despender energias que não encontram outra forma de se expandir. Cada um de nós se julga muito sinceramente pródigo e pretende ter o direito de dizer: "Ah, o que teria feito se não tivesse desperdiçado o meu tempo!"
Eu próprio... que esperanças não tive? Que não ousei esperar? Que futuro radioso não previ no momento em que saudei com um suspiro melancólico o fantasma do meu primeiro amor, momentaneamente ressuscitado?
Que se realizou de tudo isto? Agora que as sombras do entardecer começam a toldar a minha vida, que me resta de mais fresco e de mais querido do que a recordação dessa tempestade matinal, primaveril e fugaz?
Mas não devo censurar-me a mim próprio. Apesar da insensibilidade da juventude, não fiquei surdo ao apelo dessa voz melancólica, à advertência solene vinda do fundo de uma sepultura... Alguns dias depois de ter conhecimento da morte de Zinaida, quis por força assistir aos últimos momentos de uma pobre velha que morava no nosso prédio. Coberta de andrajos, deitada num catre miserável e com um saco a servir-lhe de almofada, teve uma agonia lenta e penosa. Passara toda a vida a lutar duramente contra as necessidades do dia a dia, não conhecera a alegria, nem jamais levara aos lábios o cálice da felicidade. Não deveria, portanto, regozijar-se
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com a ideia da libertação e do repouso que ia, enfim, gozar? E no entanto todo o seu corpo decrépito se debateu contra a mão gelada que lhe oprimia o peito, até as derradeiras forças a abandonarem por completo. No fim, benzeu-se piedosamente e murmurou: "Senhor, perdoai-me os meus pecados!"
A expressão de pavor e angústia perante a morte só se lhe apagou do olhar com o último alento de vida.
Lembro-me de que foi à cabeceira da pobre velha que receei de súbito pela salvação de Zinaida e quis rezar por ela, por meu pai... e por mim.
1860.
M
A ESTALAGEM DA ESTRADA IMPERIAL
NA estrada de B., pouco mais ou menos a igual distância das duas cidades distritais que atravessa, encontrava-se ainda há pouco tempo uma grande estalagem muito conhecida de todos os cocheiros, camponeses de oboz (1), caixeiros viajantes, bufarinheiros e, de modo geral, dos diversos e numerosos viajantes que em cada época do ano percorrem a região. Poucas pessoas passavam pela estalagem sem se deterem. Apenas alguma pesada carruagem de senhor, puxada por seis éguas criadas em casa, continuava majestosamente o seu caminho, o que não impedia o cocheiro nem o lacaio, empoleirado à retaguarda, de deitarem uma olhadela atenta e pesarosa à escadaria tão sua conhecida, ou então algum pobre diabo numa velha telega, com três copeques na bolsa de couro, o qual assim que chegava à vista da esplêndida estalagem desatava a chicotear o garrano cansado para ir procurar mais longe o seu poiso junto de algum camponês tão pobre como ele, em casa de quem encontraria apenas feno e pão, mas que lhe não levaria a mais nem um copeque.
Além da sua situação vantajosa, a estalagem a que nos referimos possuía outros atractivos para reter os viajantes: excelente água em dois poços profundos, de cujas enormes roldanas pendiam baldes presos por correntes de ferro, um grande pátio rodeado de galerias soberbas apoiadas em grossos pilares, uma boa isba bem
(1) Conjunto de viaturas hipomóveis, em geral telegas ou trenós, em que os senhores feudais russos transportavam os servos que lhes arroteavam as terras. (N. do T.)
aquecida por um imenso fogão russo, como os seus prolongamentos que serviam de camas, e finalmente dois quartinhos bastante limpos, forrados de papel avermelhado e guarnecidos com um grande canapé de madeira e dois vasos de gerânios nas janelas, que nunca se abriam e estavam completamente enegrecidas por sucessivas camadas de pó. Fora isso, o moinho e o ferrador não ficavam longe da estalagem, o botequim encontrava-se apenas a cerca de meia versta e o estalajadeiro vendia um tabaco que, apesar de misturado com cinza, causava sensações muito agradáveis no nariz dos fregueses... Graças a todas estas vantagens, a estalagem tinha muita freguesia, embora, na opinião dos vizinhos, isso se devesse, sobretudo, à circunstância de o estalajadeiro ser um homem de sorte, bem sucedido em tudo o que se metia, apesar de não merecer de modo algum semelhante êxito. Mas, como se costuma dizer entre nós: "Quem tem sorte tem razão..."
Pertencia à classe dos mechtchanines (1) e chamava-se Naum Ivanov; era baixo e gordo e tinha ombros largos, cabeça grande e redonda, de compridos cabelos ondulados e já grisalhos, embora não contasse mais de quarenta anos, rosto cheio e frio e testa baixa e lisa, e os seus olhinhos azuis-claros olhavam de modo estranho, simultaneamente com humildade e impudência. Andava sempre com a cabeça inclinada e tinha o pescoço demasiado curto; caminhava com rapidez, sem balouçar os braços, mas sacudindo os punhos fechados. Quando sorria, e sorria muitas vezes, mas sem rir e como que às escondidas, os seus lábios vermelhos entreabriam-se desagradàvelmente e mostravam uma fieira de dentes muito brancos e apertados. Falava com voz breve e em tom quezilento. Barbeava-se, mas não se vestia à alemã. O seu vestuário compunha-se de um comprido cafetã puído, de umas calças largas e de sapatos onde metia os pés nus. Ausentava-se com frequência para tratar
(1) Classe social situada entre a dos servos, por ser livre, e a dos comerciantes, por estar sujeita à prestação de serviço militar. (N. do T.)
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dos seus negócios, que eram muito variados- vendia cavalos, arrendava terras e comprava por atacado produtos hortícolas. Mas as suas ausências nunca se prolongavam muito; como o gavião, com o qual se parecia devido ao olhar, regressava rapidamente ao ninho que conservava em boa ordem e onde tudo era feito por suas mãos. Os viajantes não gostavam de conversar com ele, nem ele gostava de perder tempo com conversas inúteis. "Necessito do vosso dinheiro e vós necessitais das minhas provisões", costumava dizer. "Não temos mais nada a tratar juntos. Um viajante comeu e o seu cavalo também; que parta ou, se está cansado, que durma." Tinha criados altos e fortes, mas silenciosos e obedientes, que o temiam muito. Embora ele próprio nunca tomasse uma gota de álcool, dava a cada um, nos dias de grandes festas, dez copeques para beberem. Nos outros dias, os criados não se atreviam a beber mais do que ele. As pessoas desta espécie enriquecem depressa, mas não fora por caminhos direitos que Naum chegara à brilhante situação que ocupava. Calculava-se que devia ter entre quarenta e cinquenta mil rublos a render.
CERCA de vinte anos antes da época em que situamos a nossa narrativa, já existia uma estalagem no mesmo local da estrada. É verdade que não possuía o telhado pintado de vermelho nem o frontãozinho triangular, à grega, pousado no cimo de delgadas colunas torneadas, que davam à estalagem de Naum um falso ar de habitação senhorial. No entanto, encontrava-se ali um quarto quente e bom abrigo para os cavalos e os viajantes frequentavam-na com prazer. Nesse tempo, o proprietário da estalagem era um certo Akim Semenov, servo de uma dama das imediações, a Senhora Kuntze, viúva de um engenheiro alemão naturalizado. Akim era um camponês inteligente e activo que na sua mocidade
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partira para se entregar à profissão de almocreve com dois maus cavalos e regressara um ano depois com três animais muito razoáveis. Desde então, passara a maior parte da vida a percorrer as estradas, visitara Cazã e Odessa, Oremburgo e Varsóvia, e até passara a fronteira para ir à grande feira de Lípsia, donde trouxera duas enormes telegas, cada uma delas puxada por três possantes garanhões. Pagava pontualmente o foro à patroa e juntara algum dinheiro.
Pesava-lhe a vida errante? Desejava constituir novamente família, visto lhe ter morrido a mulher durante uma das suas viagens? Não sabemos; mas o caso é que resolveu deixar o ofício de almocreve e construir uma estalagem. com licença da patroa, comprou cerca de meia deciatina de terra à beira da estrada e estabeleceu-se. O negócio prosperou. A grande experiência de Akim ensinava-lhe o que era necessário fazer para atrair os carreiros e em breve a sua estalagem se tornou conhecida cem verstas em redor. Manda a verdade que se diga que Akim não se esmerava muito no serviço: os quartos eram pouco limpos e dava aveia molhada aos cavalos... Mas também não se fazia rogado para abater alguma coisa nos preços, o que Naum nunca concedia, fiava de boa vontade e às vezes até gostava de conversar com os fregueses. E depois tinha tanto jeito para contar histórias!... Quando se sentava diante de um samovar, era um regalo ouvi-lo falar de Sampetersburgo, das estepes da Rússia ou dos países que ficavam do outro lado do mar. Também gostava de beber, mas em companhia de um homem educado e nunca, como se costuma dizer, até cair. Os comerciantes, sobretudo, tratavam-no com muita consideração e, de modo geral, acontecia o mesmo com todas as pessoas idosas e respeitáveis, dessas que nunca viajam sem cingirem os rins; que nunca entram numa sala sem fazerem o sinal da cruz e que nunca dirigem a palavra a um homem sem lhe desejarem saúde. O exterior de Akim abonava a seu favor. Era alto e um bocadinho magro, mas esbelto, mesmo depois de velho. Possuía rosto comprido, regular e agradável, testa alta e descoberta,
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nariz direito e fino como as figuras das imagens sagradas e boca pequena. O olhar dos seus olhos castanhos, à flor do rosto, era sempre afável e os poucos cabelos que lhe restavam caíam-lhe em anéis sobre o pescoço. Cantara muito bem na sua juventude, mas as muitas e longas viagens que fizera no Inverno tinham-lhe enfraquecido a voz. Todos os seus gestos eram lentos e calmos, embora lhes não faltasse certa firmeza e a cortesia grave própria de um homem que muito viu e aprendeu.
Sim, Akim tinha tudo o que era necessário para ser feliz, ou antes, Akim Ivanich, como lhe chamavam respeitosamente, mesmo na casa senhorial, onde se apresentava todos os domingos depois da missa. Sim, Akim poderia ser feliz se não tivesse um fraco que já perdeu muita gente neste mundo e que acabou por o perder também: a paixão do belo sexo. O seu coração não podia ficar insensível a um olhar feminino; derretia-se ao seu calor como a primeira neve ao mais pequeno raio de sol. E Akim já tivera muitos dissabores por causa da sua excessiva sensibilidade...
Contudo, andara tão atarefado no primeiro ano da sua instalação na estrada imperial que não pudera pensar no amor, e se algum pensamento terno lhe subia à cabeça, expulsava-o imediatamente por meio da leitura dos livros sagrados (aprendera a ler na sua primeira viagem), dos salmos cantados a meia voz ou de qualquer outra piedosa ocupação. Além disso, já fizera quarenta e seis anos, idade em que é muito tarde para pensar em casamento, e o próprio Akim acreditava que tão louca ideia, como dizia, o abandonara para sempre. Mas parece que ninguém pode fugir ao seu destino...
A patroa de Akim, Isabel Prokhorovna Kuntze, era, como o seu defunto marido, natural da cidade de Mitau, na Curlândia, onde ainda residia a sua família, tão numerosa como pobre, mas da qual se ocupava muito pouco, sobretudo desde que um dos irmãos, oficial do Exército, a visitara e logo ao segundo dia tomara certas liberdades, a ponto de lhe chegar a chamar Du lumpenr
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-marrízelle (1), quando ainda na véspera a designava, em péssimo russo, por "prezadíssima irmã e benfeitora". Apesar do sangue estrangeiro que lhe corria nas veias, Isabel Prokhorovna nada ficava a dever a uma dama russa de alta estirpe. Quase nunca saía da sua bonita propriedadezinha - que o senhor seu marido não herdara, mas tivera artes de adquirir em boas condições ?e um bocadinho mais depressa do que seria normal -, que administrava pessoalmente e de modo bastante aceitável, e não tratava muito mal os seus mujiques, embora lhes deixasse ficar apenas o indispensável. Sabia tirar proveito de tudo, e nisso, bem como na arte de pagar por cinco o que valia dez, deixava transparecer a sua origem alemã. Quanto ao mais, comportava-se perfeitamente à russa. Tinha a casa cheia de gente maltrapilha, sobretudo raparigas, mas ninguém comia o seu pão sem o ganhar. Logo que nascia o dia todos dobravam a pobre espinha e não a levantavam mais, constantemente vergada pelo trabalho. Gostava de sair numa grande carruagem, com criados de libré, de bisbilhotar e de estar ao corrente de tudo, no que era perita, assim como de escolher um homem entre os servos, cumulá-lo de favores e, de súbito, fulminá-lo com o seu desagrado. Em suma, Isabel Prokhorovna comportava-se exactamente como convinha a uma grande dama.
Tratava Akim com benevolência, talvez porque ele lhe pagava mais do que o triplo do foro, dirigia-lhe graciosamente a palavra e às vezes, gracejando, convidava-o a visitá-la. Ora foi precisamente em casa da patroa que a desgraça caiu sobre Akim...
Entre as servas de Isabel Prokhorovna havia uma rapariga de dezoito a vinte anos, órfã, chamada Duniacha, bastante bonita e bem feita. Apesar de irregular, o seu rosto era engraçado devido à expressão meio terna, meio zombeteira que o animava e, embora a rapariga não tivesse pai nem mãe, possuía certa elegância
(1) Em alemão, no texto. O mesmo que marafona. (N. do T.)
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altiva herdada de uma geração de criados de primeira categoria. O pai fora intendente durante mais de trinta anos e o avô criado grave do próprio príncipe, grande senhor e sargento das Guardas no reinado da imperatriz Catarina. Duniacha vestia-se o melhor que podia e cuidava sobretudo das mãos, que eram muito bonitas. Mostrava o maior desdém por todos os seus admiradores, aos quais se limitava a responder: "Sim, claro, escutá-lo-ei... noutra altura." Estivera três anos em Moscovo, como aprendiza em casa de uma modista francesa, onde adquirira os arzinhos presumidos característicos de todas as criadas russas que passaram algum tempo numa capital. "É uma rapariga muito ambiciosa", diziam dela os restantes criados. Não cosia mal; contudo, não estava nas boas graças da patroa devido à primeira criada, Kirilovna, mulher astuta que tomara grande ascendente sobre a Senhora Kuntze e tinha artes de afastar todas as rivais.
Ora, foi precisamente por Duniacha que Akim caiu na esparrela de se apaixonar. Encontrara-a diversas vezes na casa senhorial e até passara um serão com ela em casa do intendente, que o convidara para tomar chá com os outros principais servidores. Akim não pertencia a tal classe e usava barba de mujique, mas era um homem civilizado, sabia ler e possuía dinheiro... Além disso, não se vestia como os camponeses; usava um comprido cafetã preto, botas altas e lenço em torno do pescoço.
No tal serão do intendente, Duniacha acabou de subjugar o coração de Akim, muito embora se não tivesse dignado responder a nenhuma das suas frases respeitosas e se tivesse limitado a deitar-lhe, de vez em quando, um olhar de soslaio, como se perguntasse a si própria: "Por que motivo estará este mujique aqui?" Mas os seus modos desdenhosos só tinham contribuído para inflamar ainda mais Akim, o qual, de regresso a casa, se pusera a matutar e acabara por dizer a si mesmo resolutamente: "Hei-de ser seu marido!" Por isso, imagine-se a cólera e a indignação de Duniacha quando, cinco dias mais tarde, Kirilovna, com quem
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Akim se soubera entender, a mandou chamar com muito bons modos ao seu quarto e a informou de que Akim, o mujique barbudo junto do qual a rapariga tivera vergonha de se sentar, a pedia em casamento!
Duniacha empalideceu, depois soltou uma gargalhada forçada e por fim desatou a chorar como uma Madalena. No entanto, Kirilovna conduziu tão bem o ataque, fez-lhe sentir de tal modo a sua posição naquela casa e impôs-lhe tão claramente a vontade da própria patroa que Duniacha saiu do quarto muito pensativa e quando encontrou Akim já não lhe virou as costas e olhou-o fixamente nos olhos, pois Kirilovna também se não esquecera de lhe insinuar algumas palavras a respeito da riqueza e da generosidade de Akim. com efeito, os numerosos presentes que recebeu dele acabaram por dissipar as últimas hesitações da rapariga. Por fim, Isabel Prokhorovna - a quem, na sua euforia, Akim presenteara com um cento de pêssegos numa bandeja de prata - dignou-se consentir no casamento de Duniacha e o casamento efectuou-se. Akim não recuou diante de nenhuma despesa; fez as coisas à grande e a noiva, que ainda na véspera, durante a festa dos esponsais, parecia mais morta do que viva e chorara toda a manhã enquanto Kirilovna a vestia para a boda, depressa se consolou. A patroa emprestara-lhe, para ir à igreja, o seu próprio xaile e Akim presenteou-a no mesmo dia com um xaile absolutamente igual ou talvez ainda mais rico.
ENFIM, Akim casou-se e levou a sua nova esposa para a estalagem. No entanto, em breve se verificou que Duniacha não era boa dona de casa nem ajudava o marido. Não tratava de nada, andava triste e aborrecia-se, excepto quando algum oficial de passagem lhe dirigia galanteios na altura de ela lhe levar o samovar. Sentia-se mais a seu gosto na casa senhorial, aonde ia
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com a maior frequência que lhe era possível. As antigas colegas admiravam-lhe os vestidos e Kirilovna servia-lhe chá, mas também lá passava momentos amargos. Como mulher de estalajadeiro, já não podia usar touca, tinha de trazer lenço na cabeça, "como uma comerciante", dizia-lhe a manhosa Kirilovna, "como uma camponesa", dizia Duniacha a si mesma.
De vez em quando, acudiam à memória de Akim as palavras de um dos seus tios, velho camponês pobre e sem família:
- Então, Akim, meu rapaz - dissera-lhe quando o encontrara na rua, alguns dias antes da boda - vais-te casar?
- vou, e depois?
- Ah, Akim, Akim, tu já não és igual a nós, camponeses, acredita!... Mas ela também não é tua igual.
- Em que não é ela minha igual?
- Quanto mais não seja, nisto - e indicara a barba de Akim, que o sobrinho aparara à tesoura para agradar à noiva, mas sem se atrever a rapá-la completamente.
Akim franzira o sobrolho, baixara a cabeça e o velhote aconchegara-se melhor na sua velha pelica a desfazer-se por todas as costuras e afastara-se a abanar a cabeça.
Sim, era frequente Akim recordar-se destas palavras, mas nem por isso diminuía o amor que dedicava à sua bonita esposa. Orgulhava-se dela, sobretudo quando a comparava, não direi às simples camponesas ou à sua primeira mulher, que o tinham obrigado a desposar quando contava apenas dezasseis anos, mas sim às outras criadas do palácio. "Temos um bonito passarinho na gaiola", dizia para consigo ao olhá-la. Além disso, ela portava-se com muito juízo e ninguém tinha nada a dizer em seu desabono.
Passaram-se assim vários anos e Duniacha acabou por se habituar à sua nova existência. Quanto mais Akim envelhecia, mais se apegava a ela. Enriquecia de dia para dia, tudo lhe corria bem. Deus só lhe recusara uma coisa: filhos. Duniacha acabava de fazer vinte e cinco anos e já toda a gente a tratava apenas
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por Avdotia (1) Arefievna, e na sala principal da estalagem também já fora pendurado, ao lado do de Akim, o seu retrato, pintado a óleo por um artista da região, filho do subdiácono da paróquia, que a reproduzira de vestido branco, com um xaile amarelo e seis grandes voltas de pérolas em torno do pescoço, compridos brincos nas orelhas e anéis em todos os dedos. Estava parecida, embora o pintor a tivesse retratado excessivamente gorda e corada, e, em vez dos seus olhos cinzentos, lhe tivesse posto uns negros, e até um bocadinho estrábicos. O retrato de Akim não lhe saíra tão bem do pincel; pintara-o muito sombrio, à Rembrandt. De resto, Avdotia começava a negligenciar os cuidados com a sua pessoa; entregava-se à preguiça indolente e melancólica a que os Russos são atreitos desde que tenham a existência
assegurada.
No entanto, bem vistas as coisas, a vida de Akim e da sua família corria bem; citavam-nos até como um casal modelo. Mas, tal como o esquilo que esfrega o focinho no momento em que o caçador mete a espingarda à cara, o homem nunca pressente a sua desgraça. A vida é como o gelo, dizem os Russos; quebra-se debaixo dos pés quando o julgamos mais sólido...
NUMA tarde de Outono, parou na estalagem de Akim um vendedor ambulante desses que vendem toda a espécie de fazendas. Dirigia-se de Moscovo para Carcóvia com dois carros bem carregados e era um desses bufarinheiros que os fidalgos, e sobretudo as suas mulheres e filhas, esperam quase sempre com a maior impaciência. O comerciante, homem de idade, era acompanhado por dois caixeiros, um deles baixo, magro e corcunda
(1) Diminutivo de Duniacha. (N. do T.)
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e o outro novo, um belo rapaz dos seus vinte anos. Jantaram, a seguir pediram chá e o comerciante convidou os seus hospedeiros a tomarem uma chávena com ele. Entre os dois velhos - pois Akim acabara de fazer cinquenta anos - em breve se estabeleceu animada conversa. O comerciante desejava informar-se acerca dos fidalgos da vizinhança e ninguém melhor do que Akim o podia elucidar. O caixeiro corcunda saía a cada instante para ir ver os cavalos e não tardou a ir-se deitar. Avdotia teve de entreter o outro caixeiro... Sentada ao pé dele, falava pouco, mas escutava muito, e provavelmente as palavras do forasteiro não lhe desagradavam, pois o seu rosto resplandecia: um rubor súbito colorira-lhe as faces e ria muito e com abandono. O jovem caixeiro conservava-se imóvel, com a cabeça encaracolada inclinada para a mesa. Falava suavemente, sem levantar nem apressar a voz, mas os seus olhinhos azuis-claros e de expressão atrevida não se despregavam de Avdotia. Ao princípio, ela procurara não o fitar, mas depois acabara por o olhar também. O rosto do rapaz era fresco e aveludado como uma maçã; sorria constantemente e passava os dedos brancos pelo queixo, já coberto de uma leve penugem escura. Exprimia-se em tom de lojista, com muita facilidade e uma espécie de confiança desenvolta, e enquanto falava não desviava dela o olhar fixo e atrevido.
De súbito, inclinou-se ainda mais para ela e, sem a mais pequena alteração no rosto, disse-lhe:
- Avdotia Arefievna, nunca vi ninguém no mundo tão encantador e creio que me não importaria de morrer por si...
Avdotia corou e soltou uma grande gargalhada.
- Que foi? - perguntou Akim.
- Oh, é este que me conta coisas muito engraçadas!
- respondeu ela.
O velho comerciante sorriu.
- Sim, sim, o meu Naum é muito brincalhão, mas é melhor não lhe dar ouvidos.
- Porquê? Ora essa, não estamos a fazer nenhum mal! - replicou ela, abanando a cabeça.
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- Decerto, decerto - concordou o velho. - Contudo
- acrescentou com voz arrastada-, permitam-me que me despeça. Gostámos muito de estar na sua companhia, mas são horas de nos deitarmos - e levantou-se.
- Nós é que apreciámos muito a sua - respondeu Akim com a mesma voz; e levantou-se também. - Quer dizer, agradecemos-lhe muito a sua amabilidade e desejamos-lhe uma noite tranquila. Levanta-te, Avdotiuchka. Avdotia obedeceu como que de má vontade, Naum
imitou-a e todos se retiraram.
Os estalajadeiros dirigiram-se para o pequeno cubículo que lhes servia de quarto de dormir, deitaram-se e Akim começou imediatamente a ressonar. Mas Avdotia não conseguiu adormecer tão depressa; ficou muito tempo imóvel, virada para a parede, e depois agitou-se na cama... Quando estava quase a adormecer, ouviu-se uma voz varonil no pátio, a cantar uma canção de notas prolongadas, mas não de expressão triste, cuja letra se não conseguia perceber. Avdotia abriu os olhos, apoiou-se no cotovelo e pôs-se a escutar. A canção continuava a ecoar, sonora e altiva, no ar frio da noite. Akim soergueu também a cabeça.
- Quem está a cantar? - perguntou.
- Não sei - respondeu a mulher.
- Canta bem - acrescentou ele, depois de um curto silêncio. - Que voz poderosa! Noutros tempos, também cantei, vê tu... Mas a voz foi-se-me... Aquela é muito bonita. Deve ser esse rapaz, Naum, como creio que se
chama. Depois, virou-se para o outro lado, suspirou e voltou
a adormecer.
A voz ouviu-se ainda durante muito tempo. Por fim, pareceu quebrar-se de súbito, ergueu-se pela última vez e extinguiu-se gradualmente.
Avdotia fez o sinal da cruz e pousou a cabeça na almofada. Passou meia hora. Avdotia levantou-se suavemente e começou a deslizar para fora da cama.
- Aonde vais, mulher? - perguntou Akim, meio adormecido.
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Ela parou de repente.
- Espevitar a lamparina das imagens sagradas - respondeu. - Não consigo dormir.
- Reza uma oração- murmurou ele, readormecendo. Avdotia aproximou-se da lamparina, tocou no pavio
e apagou-a bruscamente. Depois, como que assustada pelo que acabava de fazer, voltou para a cama e tudo ficou calmo e silencioso.
Na manhã seguinte, ao romper do dia, o comerciante pôs-se a caminho com os seus dois caixeiros. Avdotia ainda dormia. Akim acompanhou-os cerca de meia versta, pois necessitava de falar com o moleiro e o moinho ficava à beira da estrada. Quando regressou a casa, encontrou a mulher já vestida, mas não estava só; o rapaz da véspera, Naum, encontrava-se de pé junto dela, entre a mesa e a janela. Conversavam. Quando viu o marido, Avdotia saiu da sala em silêncio e Naum declarou que viera procurar as luvas do patrão, que este julgava ter deixado num banco do pátio, e retirou-se imediatamente.
É altura de esclarecermos o leitor acerca daquilo de que já desconfia: Avdotia apaixonara-se perdidamente por Naum. É difícil explicar como semelhante paixão se apoderou dela tão depressa, e tanto mais difícil quanto é certo que, até àquele dia, o seu comportamento fora irrepreensível. Mais tarde, quando a sua inclinação por Naum foi descoberta, espalhou-se entre a vizinhança o boato de que, na noite do seu primeiro encontro, Naum lhe deitara um filtro no chá (entre nós ainda se acredita firmemente na eficácia de semelhantes meios), filtro de que se notara imediatamente o efeito em Avdotia, a qual, a partir desse dia, começara a emagrecer, a pôr-se pálida e a andar triste.
Fosse como fosse, a verdade é que desde então se via com frequência Naum na estalagem de Akim. Da primeira vez, voltou com o mesmo negociante; três meses mais tarde, reapareceu sozinho, com mercadorias próprias. Não tardou a saber-se que se estabelecera numa cidade vizinha e desde então não passou uma semana que se não visse na estrada imperial a sua telega,
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puxada por uma vigorosa parelha de cavalos pequenos, que ele próprio conduzia. Entre Akim e o novo bufarinheiro não havia amizade nem inimizade. Akim não prestava grande atenção a Naum, que considerava um rapaz inteligente em vias de triunfar na vida. Não suspeitava de modo algum dos sentimentos que lhe dedicava Avdotia e continuava a depositar nela tanta confiança como anteriormente. E assim se passaram mais dois anos.
ACONTECEU porém que, num dia de Verão, por volta da uma hora da tarde, Isabel Prokhorovna - que durante aqueles dois anos se tornara uma mulher murcha e enrugada, a despeito de todas as loções e de todos os cosméticos imagináveis - resolveu sair com o seu cãozinho de regaço e o seu guarda-sol franjado, a fim de passear no seu jardinzinho traçado e aparado à alemã. No meio do frufru do vestido engomado, caminhava em passinhos miúdos por um caminho ensaibrado, entre dois renques de dálias que pareciam apresentar-lhe armas, quando se lhe juntou a nossa velha conhecida Kirilovna, que a informou respeitosamente de que acabava de chegar um comerciante de B. que desejava falar-lhe acerca de um assunto importantíssimo. Kirilovna continuava a desfrutar os favores da patroa (na realidade, era ela quem administrava os bens da Senhora Kuntze), a ponto de havia algum tempo ter sido autorizada a usar uma touca branca, o que ainda mais acentuava as feições enérgicas do seu rosto trigueiro.
- Um comerciante? - perguntou a dama. - Que me
quer?
- Não sei o que deseja - respondeu Kirilovna com a sua voz aflautada -, mas parece-me que pretende comprar-lhe qualquer coisa...
Isabel Prokhorovna voltou a entrar no salão, sentou-se no seu tronot uma poltrona com uma espécie de
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dossel em torno do qual se enroscava elegantemente uma hera, e mandou entrar o comerciante de B.
Apareceu Naum, que entrou, cumprimentou e se deteve junto da porta.
- Acabo de saber que deseja comprar-me uma coisa -começou a dona da casa, ao mesmo tempo que pensava: "Este comerciante é um belo homem..."
- Sim, minha senhora.
- O quê?
- Não tenciona vender a sua estalagem?
- Qual estalagem?
- A da estrada imperial, perto daqui.
- Mas essa estalagem não me pertence...
- Compreendo. Portanto, não deseja vender a estalagem?
- Como poderia vendê-la se não é minha?
- Compreendo. No entanto, comprar-lha-ia por bom preço...
Isabel Prokhrorovna calou-se durante alguns instantes.
- O que o senhor diz é muito estranho - declarou por fim. - Mas quanto daria por ela? - acrescentou. Não pergunto por mim, mas sim por Akim...
- com todas as suas construções e dependências, e naturalmente com o terreno que lhe pertence, daria de boa vontade dois mil rublos.
- Dois mil rublos é muito pouco - replicou Isabel Prokhorovna.
- É o preço justo.
- Já falou com Akim?
- Por que motivo havia de lhe falar? A estalagem é da senhora e é com a senhora que tenho a honra de falar.
- Mas se acabo de lhe dizer... Na verdade, é espantoso que me não compreenda.
- Porque diz que a não compreendo? Compreendo-a perfeitamente.
Isabel Prokhorovna olhou Naum, que não tirava os olhos de Isabel Prokhorovna.
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- Bem, qual seria... do seu lado... o mínimo preço?
- insistiu Naum.
- Do meu lado? - respondeu a dama, agitando-se no assento. - Em primeiro lugar, já lhe disse que dois mil rublos é muito pouco; e depois...
- Se for preciso, não me importo de dar mais uns cem...
A dama levantou-se para se retirar.
- O que o senhor diz não faz sentido - declarou. Já lhe disse que não posso vender a estalagem, e portanto não a venderei.
- Como queira - respondeu Naum, após um curto silêncio e encolhendo os ombros. - Desculpe-me o incómodo.
Cumprimentou de novo e estendeu a mão para a maçaneta da porta. Isabel Prokhorovna deu meia volta.
- Contudo - disse um pouco hesitante -, não se vá ainda embora...
Tocou e Kirilovna apareceu.
- Manda dar chá ao senhor comerciante. Voltaremos a conversar... - acrescentou, inclinando levemente a cabeça a Naum, que fez uma profunda reverência e saiu com Kirilovna.
Isabel Prokhorovna deu duas ou três voltas ao salão e tocou de novo. Desta vez, entrou um rapazinho vestido de cossaco, pelo qual mandou chamar Kirilovna. Esta veio imediatamente, fazendo ranger com discrição os sapatos de pele de cabra.
- Ouviste o que me veio propor esse comerciante? perguntou a dama, com um riso forçado. - Que homem singular!
- Não, não ouvi. Que foi? - e Kirilovna piscou manhosamente os olhos negros, fendidos como os dos Calmucos.
- Quer-me comprar a estalagem de Akim.
- E depois?
- Depois?... Depois, a estalagem não é minha!
- Oh, minha senhora, não diga isso, em nome do Céu!
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Porventura lhe não pertencemos todos? E tudo o que possamos ter não o devemos ao nosso senhor?
- Achas que sim, Kirilovna? -perguntou a dama, amarrotando o lenço bordado. - Mas Akim construiu a estalagem e comprou o terremo com o seu próprio dinheiro!...
- com o seu próprio dinheiro! Onde o arranjou? Não foi graças à benevolência da senhora que o ganhou? E julga, minha senhora, que se isso acontecesse ele ficaria sem dinheiro? É mais rico do que a senhora, juro-o perante Deus! E depois ele e os outros mujiques não têm os mesmos direitos? Bastou que a senhora lhe permitisse ocupar-se das recovagens para que se tornasse um ricaço em comparação com os outros. Acha isso justo?
- Tens razão, sem dúvida, mas vender...
- E porque não há-de vendeir, se lhe apareceu um comprador? Permite-me que lhe pergunte quanto lhe ofereceu?
- Dois mil rublos... ou talvez mais... - respondeu Isabel Prokhorovna em voz baixa.
- Dará mais, minha senhora, se logo de entrada ofereceu dois mil... E, quanto a Akim, poderá reduzir-lhe o foro; ainda ficará agradecido.
- Sim, claro, será preciso reduzir-lho... Mas não, Kirilovna, não... - e Isabel Profehorovna pôs-se a passear agitadamente na sala. - Não, é impossível... Não me fales mais nisso, se não queres que me zangue...
Mas, apesar da proibição da sua senhora, Kirilovna continuou a falar e, cerca de meia hora mais tarde, foi buscar Naum, que deixara sentando à mesa na copa, ao pé do samovar.
- Que tem para me dizer, minha respeitabilíssima senhora? - perguntou Naum, virando com cuidado a chávena no pires.
- Tenho a dizer-lhe que deve ir falar com a senhora, que o manda chamar.
- Às suas ordens - respondeu Naum, e seguiu Kirilovna ao salão, cuja porta se fechou atrás deles.
Quando a porta se voltou a abrir e Naum saiu às
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arrecuas o negócio estava concluído: a estalagem de Akim pertencia-lhe, comprara-a por dois mil e oitocentos rublos Ficara assente que a escritura seria assinada o mais breve possível e que se guardaria segredo até ao momento oportuno. Isabel Prokhorovna recebeu cem rublos de sinal e Kirilovna duzentos de luvas. "Não foi caro" dizia Naum para consigo, subindo para a telega.
No MESMO instante em que o negócio se concluía na casa senhorial, Akim estava sentado ao pé da janela do seu quarto, sozinho, e passava com ar descontente a mão pela barba. Já dissemos que não suspeitava do entendimento que se estabelecera entre Naum e a mulher, embora, claro, tivesse notado que esta se tornara, havia algum tempo, de humor caprichoso. Dizia, porém, para consigo que o sexo feminino era extravagante e difícil de compreender... Além disso, a sua bonomia natural não diminuíra com os anos, não obstante ter aumentado a sua indiferença. Mas naquele dia estava verdadeiramente de mau humor, pois na véspera ouvira por acaso na rua uma conversa entre a criada e uma mulher da vizinhança.
A mulher perguntava à criada por que motivo não fora a sua casa no dia anterior.
- Estive à tua espera - dizia.
- Eu ia para lá - respondeu a criada -, mas por mal dos meus pecados encontrei a minha patroa, que Deus a proteja...
- Encontraste-a? - prosseguiu a mulher, com voz arrastada, encostando a cara à mão. - Onde a encontraste, pequena?
- Atrás do campo de cânhamo do pope, onde parece que se costuma encontrar com o seu bom amigo Naum... E eu, como não via nada na escuridão, fui esbarrar direitinha com eles.
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- Caíste-lhes em cima, pequena? E que estava ela a fazer?
- Nada. Estava de pé e ele também. Viu-me e disse-me: "Aonde vais a correr dessa maneira? Volta para casa." E eu voltei.
- E tu voltaste?... Está bem, Fenitiuchka, adeus. E a pobre mulher continuara o seu caminho.
As palavras da criada tinham causado uma desagradável impressão a Akim. Desejaria não lhes dar crédito, mas a rapariga dissera a verdade. com efeito; naquela noite Avdotia fora ter com Naum, que a esperava oculto na sombra espessa que projectava na estrada a muralha imóvel do campo de cânhamo. Um orvalho abundante molhara os pés das plantas e um cheiro tão forte que chegava a dificultar a respiração espalhava-se em redor. A Lua acabava de surgir no céu, enorme e de um vermelho-sangue que contrastava com o negrume da bruma. Naum ouviu ao longe os passos rápidos de Avdotia e foi ao seu encontro. A mulher aproximou-se, pálida e anelante, e o luar iluminou-lhe em cheio o rosto.
- Então, trouxeste-o? - perguntou ele.
- Trouxe, sim - respondeu a mulher, com voz hesitante. - Mas devo dizer-te, Naum Ivanich...
- Se o trouxeste, dá-mo - interrompeu-a, estendendo a mão.
A mulher tirou debaixo do lenço uma espécie de rolo e Naum apoderou-se imediatamente dele e meteu-o na algibeira.
- Ah, Naum Ivanich, perco a minha alma por ti! disse a mulher, lentamente, sem deixar de o olhar.
Foi neste momento que a criada se aproximou deles.
Mas dizíamos que Akim estava sentado num banco, com ar triste. Avdotia não fazia senão entrar e sair e ele seguia-a com os olhos. Por fim, quando entrou pela última vez para pegar numa capinha que estava pendurada na parede, o marido não se pôde conter mais e disse em voz alta, como se falasse consigo mesmo:
- A mania que as mulheres têm de andar sempre
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a correr. É escusado pedir-lhes que estejam um instante quietas. Isso não é com elas. Correrem de manhã, e ainda mais à noite, é do que elas gostam...
Avdotia ouviu sem se mexer o que dizia o marido; somente, quando proferiu a palavra noite, fez um movimento involuntário com a cabeça e pareceu um pouco perturbada.
- Toda a gente sabe, Semenovich - declarou com desdém-, que quando armas em eloquente... - e, sem dizer mais nada, saiu e bateu com a porta atrás de si.
De facto, a eloquência de Akim não era do agrado de Avdotia. À noite, enquanto ele contava histórias aos hóspedes, ela bocejava ou saía sem fazer barulho.
- Armar em eloquente! -repetiu Akim, olhando a porta fechada. - Parece-me que não tenho sido bastante eloquente contigo...
Levantou-se e bateu na cabeça com o punho fechado.
Depois disto, passaram-se vários dias de modo deveras singular. Akim não tirava os olhos da mulher, como se desejasse interrogá-la, mas Avdotia desviava a vista e ficavam ambos num silêncio constrangido que o marido acabava por quebrar com algumas observações desconsoladas a respeito das mulheres em geral, a que Avdotia nunca respondia. Semelhante situação não se poderia prolongar por muito mais tempo; a explosão era inevitável. Foi então que se verificou um acontecimento que tornou supérfluas todas as explicações.
UMA manhã, Akim estava a almoçar com a mulher (devido aos trabalhos do Verão não havia ninguém na estalagem) quando, de súbito, se ouviu na estrada o ruído de uma telega que acabava de parar bruscamente diante da escadaria. Akim olhou pela janela e franziu o sobrolho: Naum descia calmamente da telega. Avdotia não deu pela sua presença, mas quando a voz do recém-chegado soou no vestíbulo, a colher tremeu-lhe na mão.
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Naum ordenava ao criado que metesse o cavalo no pátio. Por fim, a porta abriu-se e ele entrou.
- Bons dias - cumprimentou, tirando o boné.
- Bons dias - respondeu Akim, entre dentes.
Donde vens assim?
- Daqui perto - respondeu o outro, sentando-se num banco. - Venho de casa da tua patroa.
- De casa da patroa... - repetiu Akim, que continuava sentado. - Visita de negócios?
- Sim, visita de negócios... Avdotia Arefievna, apresento-lhe os meus respeitos.
- Bons dias, Naum Ivanich - respondeu a mulher, e todos se calaram durante alguns momentos.
- Isso que estão a comer é sopa? - perguntou Naum, de repente.
- Sim, é sopa - respondeu Akim, tornando-se muito pálido. - Mas não serve para ti...
Naum ergueu os olhos, admirado.
- Que dizes? Não serve para mim?...
- Não, não serve para ti.
O olhar de Akim cintilou de repente e o estalajadeiro deu um murro na mesa.
- Na minha casa não há nada que sirva para ti, percebes?
- Demónio, que tens tu, Semenovich?
- Eu? Nada. Tu é que estás de mais aqui; Naum Ivanich. É só isso que tenho.
O velho levantou-se, a tremer de cólera contida, e acrescentou:
- Apareces com demasiada frequência por aqui; é só isso que tenho.
Naum levantou-se também.
- Tens a certeza de que estás no teu perfeito juízo, amigo? - perguntou com um sorriso frio. - Avdotia Arefievna, que lhe aconteceu?
- Eu é que estou a falar contigo! -gritou Akim, com voz entrecortada. - Vai-te embora, deixa Avdotia em paz!... Vai-te embora!
- Que estás para aí a dizer? - perguntou Naum com acentuada intenção.
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- Digo-te que saias imediatamente. Vês aqui a imagem de Deus? Pois a porta é ali. Compreendeste agora?
Naum deu um passo em frente.
- Em nome do Céu, suplico-lhes que não lutem!...
- balbuciou Avdotia, que até ali estivera como que petrificada diante da mesa.
Naum deitou-lhe uma olhadela.
- Não se preocupe, Avdotia. Porque havíamos de lutar?
E, virando-se para Akim, continuou:
- Meu Deus, irmão, não grites! Não te zangues! Alguma vez se viu expulsar alguém assim e ainda por cima da sua própria casa?...
- Como? Da sua própria casa!... - exclamou Akim,
atónito.
- Sim, sim, da sua própria casa - repetiu Naum,
mostrando os dentes, muito brancos. -O quê? Porventura não sou eu o senhor, aqui?...
- Não, claro que não és tu.
- Quem é, então?
- Tens a cabeça dura, meu velho. Sou eu. Akim arregalou os olhos.
- Que estás para aí a dizer? Deves estar bêbedo. Que diabo de proprietário podes tu ser aqui?
- Não adianta conversar contigo - redarguiu Naum com um gesto de impaciência. - Vês isto? - continuou, tirando da algibeira um papel selado. - Vês? É uma escritura de venda, compreendes? Da venda da tua estalagem. Comprei-a, comprei a tua estalagem à tua patroa, a Isabel Prokhorovna. A escritura foi assinada ontem, em B. Portanto, o senhor aqui sou eu e não tu. Dou-te o dia de hoje para fazeres as malas - acrescentou Naum, voltando a guardar o papel na algibeira. Amanhã já te não quero ver aqui, ouviste?
Akim estava imóvel, como se tivesse sido fulminado
por um raio.
- Bandido! - gritou por fim, com voz trémula. Bandido! Eh, Fedka, Mitka, mulher, mulher, agarrem-no, segurem-no, detenham-no!...
Perdera completamente a cabeça.
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- Então, então, nada de tolices, meu velho - atalhou Naum com um gesto autoritário.
- Porque esperas, mulher? Vamos, agarra-o, bate-lhei - gritava Akim, procurando em vão arrancar-se do seu lugar. - Celerado, bandido, não te bastava ela... ainda me queres roubar também a minha casa... Mas não... espera... é impossível... vou eu... vou eu mesmo. Como é possível roubarem-me assim, de súbito?... Espera...
E sem pegar sequer no boné, correu para fora da estalagem.
- Aonde vais com essa pressa toda, Akim Semenovich? Aonde vais assim a correr? - perguntou-lhe a criada Fetínia, com a qual chocou no patamar.
- Deixa-me! vou a casa da patroa, vou procurar justiça! - gritou, desesperado.
E vendo a telega de Naum, que ainda não fora desatrelada, correu para ela, pegou nas rédeas e, chicoteando o cavalo com força, partiu a galope na direcção da casa senhorial.
"Ó minha senhora, ó minha patroa, não me desgraces!" repetiu durante todo o caminho. "Não te servi sempre com zelo?"
E não cessava de incitar o cavalo. Todas as pessoas por quem passava se desviavam para o lado e o seguiam com o olhar espantado.
Chegou num quarto de hora à casa senhorial, deteve bruscamente o cavalo diante da escadaria, saltou da telega e correu impetuosamente para a antecâmara.
- Então, que é isto?... - balbuciou, espantado, um lacaio que dormia num banco.
- A patroa... Preciso de falar com a patroa... - respondeu Akim, com voz imperiosa.
- Aconteceu alguma coisa?
Não aconteceu nada, mas quero falar com a patroa.
- Que modos são esses? - abespinhou-se o lacaio, cada vez mais surpreendido.
Akim caiu em si.
- Tenha a bondade, Piotr Efgrafich - disse, com
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uma profunda vénia -, de informar a patroa que Akim pede licença para lhe falar.
- Está bem, vou-lhe dizer. Mas pareces bêbedo... Enfim, espera aí - murmurou o lacaio, afastando-se.
Akim baixou a cabeça. A coragem do desespero extinguia-se rapidamente na sua alma desde o momento em que transpusera o limiar da casa.
Isabel Prokhorovna ficou sem saber que fazer quando lhe anunciaram a chegada de Akim e mandou chamar imediatamente Kirilovna.
- Não o posso receber - disse, muito agitada, assim que a criada apareceu. - Não posso, de modo nenhum... Que lhe diria? Bem te avisei de que se viria queixar
- acrescentou, irritada. - Bem te avisei...
- Mas porque havia de o receber, minha senhora?
- replicou tranquilamente Kirilovna. - Não é de modo nenhum necessário... Porque havia a senhora de ter esse incómodo?
- Mas então que hei-de fazer?
- Se me permite, recebo-o eu. Isabel Prokhorovna levantou a cabeça.
- Faz-me esse favor, Kirilovna - pediu. - Fala-lhe, dize-lhe que achei necessário... mas que quanto ao resto... Enfim, sabes muito bem o que lhe deves dizer. Suplico-te, Kirilovna.
- Não se preocupe, minha senhora - tranquilizou-a a criada, que saiu imediatamente, fazendo ranger os
sapatos.
Alguns minutos mais tarde, ouviu-se de novo o mesmo ruído discreto e Kirilovna voltou a entrar na sala, com a habitual placidez no rosto e a não menos habitual sagacidade manhosa no olhar.
- Então, que disse Akim? - perguntou a dama.
- Oh, nada! Conformou-se com a vontade de Vossa Graça. Disse que o essencial era a senhora estar de boa saúde e satisfeita, pois ele tem com que viver até ao fim dos seus dias.
- Não se lamentou?
- Absolutamente nada. Porque havia de se lamentar?
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- Mas então, que veio cá fazer? - insistiu a dama, com certa incredulidade.
- Veio pedir se a senhora se não importaria de lhe fazer o favor de o dispensar do pagamento do foro no próximo ano.
- Claro que estou pronta a dispensá-lo! - replicou vivamente Isabel Prokhorovna. - Oh, claro que sim! E dize-lhe que o recompensarei. Agradeço-te muito, Kirilovna. Não há dúvida que é um bom mujique. Espera um bocadinho; dá-lhe isto da minha parte - e tirou da escrivaninha uma nota de três rublos. - Toma, leva-lhe isto.
- Sim, minha senhora - respondeu a criada.
E esgueirando-se sorrateiramente para o seu quartinho, guardou com toda a calma a nota num cofre portátil que tinha à cabeceira da cama. Era ali que aferrolhava todo o seu dinheiro, o qual já atingia montante assaz considerável.
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KIRILOVNA conseguira tranquilizar a patroa, mas na realidade a sua conversa com Akim decorrera de modo absolutamente oposto ao que contara.
Vejamos como.
Mandara-o chamar à sala das criadas. Primeiro, Akim recusara lá ir, dizendo que não era com Kirilovna que desejava falar, mas sim com a patroa. No entanto, acabara por obedecer. Encontrou Kirilovna sozinha. Assim que entrou na sala, parou de repente, encostou-se à parede, junto da porta, abriu a boca e não conseguiu pronunciar palavra. A coragem do desespero, a que já nos referimos, cedia nele lugar a outra forma de desespero, a uma espécie de impassibilidade triste e abatida. Kirilovna olhou-o fixamente.
- Deseja falar com a patroa, Akim Semenich? Limitou-se a acenar que sim com a cabeça.
- Impossível, Akim Semenich. E depois, que adiantaria
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isso? O que está feito não se pode desfazer... Apenas iria desgostá-la. Não o pode receber agora, Akim Semenich.
- Não me pode... - murmurou Akim, e calou-se durante alguns momentos. - Quer dizer - prosseguiu devagar - que a estalagem está perdida para mim?
- Então, Akim Semenich, o senhor foi sempre um homem sensato... Temos de nos conformar com a vontade dos senhores e sabe muito bem que já nada se pode modificar... Discutir agora a tal respeito não adiantaria nada, não acha?
Akim cruzou os braços atrás das costas.
- Não lhe parece que valeria mais pedir à patroa que lhe diminuísse o foro? Além disso, o senhor ainda tem a sua isba na aldeia...
- Portanto, a estalagem está perdida para mim? repetiu Akim, com as mesmas inflexões de voz.
- Já lhe disse, Akim Semenich, que é impossível desfazer o que está feito. Sabe-o melhor do que eu...
- Pois sei... Por quanto vendeu ela a estalagem?
- Não sei, Akim Semenich; não são coisas que me digam respeito. Mas porque está de pé? - acrescentou.
- Sente-se.
- Oh, posso muito bem estar de pé! Sou um mujique... Muito obrigado.
- O senhor um mujique, Akim Semenich? Pelo contrário, o senhor é um dos mais categorizados dvorovies (1)! Não se deve afligir assim... Não quer uma chávena de chá?
- Não, obrigado, não me apetece. Portanto, tenho mesmo de ficar sem a estalagem? - acrescentou, afastando-se da parede. - Muito obrigado! Os meus cumprimentos, minha boa amiga - e, rodando lentamente sobre si mesmo, retirou-se.
Kirilovna esperou que ele saísse, ajeitou o avental e foi ter com a patroa.
"Parece que, de facto, me tornei um dvorovie"; disse
(1) Servos da gleba (mujiques) escolhidos pelo senhor para o seu serviço doméstico. (N. do T.)
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Akim para consigo, parando diante da porta de serviço e fazendo com a mão um desses gestos que significam: "Está tudo dito, voltemos para casa..."
E, sem se lembrar da telega de Naum, em que viera, tomou a pé o caminho da estalagem.
Ainda não tinha andado uma versta quando ouviu junto de si o ruído de uma telega.
- Akim! Akim Semenich! - chamavam-no. Levantou os olhos e viu um dos seus conhecidos,
o subdiácono de uma igreja das imediações, Efraim, que tinha a alcunha de Toupeira, um homenzinho mirrado, de nariz pontiagudo, olhos de fuinha e trança de cabelos negros. Estava sentado num molho de palha que transportava na telega.
- Vais para casa? - perguntou a Akim.
- vou - respondeu o interpelado, parando.
- Queres que te leve?
- com muito prazer.
O subdiácono arranjou-lhe lugar e Akim sentou-se na telega. Efraim, que parecia regressar das vinhas do Senhor, desatou a fustigar com as rédeas o magro cavalicoque, que partiu a trote cansado, a abanar a cabeça sem cabeçada.
Andaram cerca de uma versta sem trocarem palavra.
Akim permanecia imóvel e Efraim cantarolava em voz baixa, sempre a agitar as rédeas.
- Aonde foste assim, sem boné, Semenich? - perguntou de súbito; e, sem esperar resposta, continuou:
- Aposto que o deixaste de penhor no botequim. És um beberrão, bem te conheço, e gosto de ti precisamente por seres um beberrão... Não és zaragateiro, nem ladrão, nem um homem injusto; és um beberrão!... Há muito tempo que te deviam ter reformado, pois é uma grande indecência um homem embebedar-se... Hurra! Hurra! - gritou a plenos pulmões.
- Parem! Parem! - gritou uma voz de mulher..? Parem!
Akim virou a cabeça. Através do campo, corria para a telega uma mulher de tal modo pálida e desgrenhada que à primeira vista não a reconheceu.
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- Parem! - continuava a gritar, estendendo os braços.
Akim estremeceu involuntariamente: era Avdotia. Puxou as rédeas.
- Porque paramos? - balbuciou Efraim. - Parar por causa de uma mulher... Aí!...
Akim conseguiu deter o cavalo na altura em que Avdotia chegava à estrada e se deixava cair de bruços no chão poeirento.
- Oh, meu amigo Akim Semenich, ele expulsou-me também! - gritou a mulher.
Akim olhou-a e limitou-se a puxar mais as rédeas para si.
- Hurra! - berrou de novo Efraim.
- Ah, ele expulsou-te?... -disse Akim, por fim.
- Expulsou-me, meu bom amigo - repetiu Avdotia, soluçando. - Expulsou-me... "A casa é minha, vai-te embora!", disse-me.
- Isso não é bonito... -observou Efraim.
- Queres dizer que tencionavas lá ficar? - perguntou Akim, com amargura, sem se mexer da telega.
- Como não querias que ficasse?... Mas, meu bom amigo - disse vivamente Avdotia, que se erguera nos joelhos, voltando a deixar-se cair de bruços no chão -, não sabes o que fiz... Mata-me, Akim Semenich, mata-me mesmo aqui!
- Porque havia de te matar, Arefievna? - respondeu tristemente Akim. - Não te castigaste já a ti mesma?
- Mas então ainda não sabes, Akim Semenich? O dinheiro, o teu rico dinheiro... já não existe. Fui eu, maldita, que o tirei debaixo do soalho e o dei todo a esse velhaco, a Naum! Sou uma mulher amaldiçoada! Mas também porque me disseste onde escondias o teu dinheiro, a mim, uma perdida? Foi com o teu rico dinheiro que ele comprou a estalagem, esse bandido!...
Os soluços não a deixaram continuar. Akim apertou a cabeça com as mãos.
- Como? Como? - gritou por fim. - O dinheiro e a casa... todo o meu dinheiro... E foste tu... Ah, foste tu
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que o tiraste debaixo do soalho!... Vou-te matar víbora!
- e saltou da telega.
- Então, então, Semenich, não lhe batas... dizia
Efraim, a quem todos aqueles acontecimentos inesperados desanuviavam a mente dos vapores de vodka.
- Não, meu bom amigo, bate-me, mata-me, não faças caso do que ele diz! Mata esta maldita! -gritava Avdotia, rebolando-se convulsivamente aos pés de Akim.
Este conservou-se imóvel um instante e depois afastou-se alguns passos e agachou-se na erva, ao lado do caminho. Reinou um curto silêncio. Avdotia virou timidamente a cabeça para o marido.
- Semenich, então, Semenich, que adianta isso agora? - disse Efraim, soerguendo-se na telega. - O mal está feito... Sempre acontece cada uma! -continuou, como se falasse consigo mesmo. - Que mulher diabólica!... Anda, vai ter com ele - acrescentou, inclinando-se para Avdotia. - Não vês que está como louco?
Avdotia levantou-se, aproximou-se de Akim e caiu-lhe de novo aos pés.
- Meu amigo, meu bom amigo... -começou, com voz apagada.
Akim ergueu-se e dirigiu-se para a telega. Avdotia agarrou-o pelas abas do cafetã.
- Fora daqui! - gritou-lhe o marido, com ferocidade, repelindo-a.
- Aonde queres ir? - perguntou Efraim, vendo que Akim se voltava a sentar a seu lado.
- Leva-me a casa, num instante. Ou antes, leva-me para tua casa, pois eu já não tenho casa; venderam-ma.
- Está bem, vamos lá então para minha casa... - concordou o outro. - E ela, que fazemos dela?
Akim não respondeu.
- Eu também, eu também! -suplicou Avdotia, chorando. - Serias capaz de me deixar aqui, sozinha? Para onde iria?
- Vai ter com aquele a quem deste o meu dinheiro
- respondeu Akim, sem se voltar. - Vamos, Efraim. A telega partiu e Avdotia ficou no meio da estrada,
lavada em lágrimas e carpindo a sua desgraça.
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EFRAIM morava numa casinha situada a uma versta da estalagem de Akim, num lugarejo de popes que rodeava uma grande igreja isolada, com cinco torrezinhas de campanário terminadas em cúpula, construída graças à liberalidade testamentária de um antigo fornecedor do Exército. Durante todo o trajecto, o subdiácono não disse uma palavra. Akim, por seu turno, olhava constantemente para trás. Quando por fim chegaram, Efraim foi o primeiro a saltar da telega. Uma garota de seis ou sete anos, de camisa comprida, saiu de casa a correr e foi ao seu encontro, gritando:
- Paizinho!
- Onde está a tua mãe? - perguntou Efraim.
- Está a dormir no estábulo.
- Deixa-a dormir... Akim Semenich, que faz aí? Entre para a sala.
Convém notar que o subdiácono só tratava Akim por tu quando estava bêbedo e que pessoas muito mais importantes também só o tratavam por senhor.
Akim entrou na isba.
- Sente-se aqui neste banquinho. Aqui, aqui... - dizia Efraim. - Afastem-se, afastem-se, velhacotes acrescentou, dirigindo-se a outros três fedelhos que, segurando gatos muito magros e sujos de cinza, tinham saído, como ratos, dos buracos da casa. - Aqui, aqui, Akim Semenich - prosseguiu, instalando-o num banco de madeira. - Deseja alguma coisa?
- Desejo, Efraim. Se não te importasses... Não poderias...
- O quê?
- Apetece-me vodka... Efraim arrebitou as orelhas.
- Vodka? É para já! Não a tenho em casa, mas vou buscá-la a casa do padre Fedor, onde nunca falta. Não me demoro nada - prometeu, pegando no boné forrado de pele.
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- Traz bastante! - gritou-lhe Akim; quando o outro ia já a sair. - Eu pago. Ainda tenho dinheiro suficiente para isso...
- É para já! - repetiu Efraim, já fora de casa.
De facto, voltou num instante, com duas garrafas debaixo do braço, uma das quais ainda teve tempo de desarrolhar durante o caminho, e pousou-as em cima da mesa, com dois copinhos, pão e sal.
- Disto é que eu gosto-declarou, sentando-se diante de Akim. - Tristezas não pagam dívidas!
Encheu os dois copos e pôs-se a tagarelar. O procedimento de Avdotia deixara-o muito intrigado.
- Que coisa espantosa! - dizia. - Como pôde ela fazer isso? Oh, com certeza ele deu-lhe um filtro a beber!... É necessário sermos severos com as mulheres, segurá-las com mão de ferro... E, contudo, faria bem se fosse para casa, Akim Semenich. Tem lá todos os seus haveres...
Efraim disse ainda muitas outras coisas, pois não gostava de estar calado enquanto bebia.
Duas horas mais tarde, a situação era a seguinte em casa de Efraim: Akim, que durante toda a refeição não respondera uma só palavra aos comentários do seu linguareiro anfitrião e se limitara a beber copo atrás de copo, dormia ao pé do fogão de aquecimento um sono pesado e inquieto; as crianças observavam-no com ar espantado e silenciosas; quanto a Efraim - pobre homem! -, dormia igualmente, num cubículo acanhado e frio onde a mulher, criatura de constituição atlética, o fechara. Ele próprio a fora acordar ao estábulo e ameaçar, mas as suas palavras eram tão incoerentes que ela descobrira acto contínuo que estava bêbedo e, pegando-lhe pela gola, levara-o para o cubículo, onde, aliás, o marido dormia muito confortàvelmente. O que faz o hábito!
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Já vimos que Kirilovna não transmitiu fielmente à patroa a sua conversa com Akim. Outro tanto se pode dizer a respeito de Avdotia: Naum não a expulsara de casa. Nem tinha esse direito, pois comprometera-se a dar aos antigos donos da estalagem o prazo de três dias para saírem. O que se passara entre eles fora muito diferente. Quando Akim correra para a rua, a gritar que ia a casa da patroa, Avdotia virara-se para Naum, com os olhos muito abertos e a bater as mãos.
- Meu Deus, que significa tudo isto, Naum Ivanich?
- perguntou.
- O quê? - redarguiu ele.
- Comprou a nossa estalagem?
- Comprei.
Avdotia ficou estupefacta e estremeceu de repente.
- Foi para isso que precisou do dinheiro?
- É como acaba de dizer... Eh; eh - acrescentou ao ouvir o ruído da telega -, parece-me que o seu marido se apoderou do meu cavalo!... Que pândego!
- Mas isso é uma ladroeira! - gritou Avdotia. O dinheiro é nosso, é do meu marido, e a estalagem
pertence-nos!
- Não, Avdotia Arefievna, a estalagem não lhes pertencia... Porque diz isso? A estalagem era da patroa. Mas o dinheiro... Ah, o dinheiro era de facto de vocês! Simplesmente... a minha amiga teve... se assim se pode dizer... a bondade de mo oferecer, e eu estou-lhe muito reconhecido por isso. Aliás, restituir-lho-ei oportunamente, se me for possível, pois... espero que se digne tomar isto em consideração... não seria justo que ficasse pobre para lhe pagar...
Naum disse tudo isto muito tranquilamente e com o seu sorriso gelado.
- Oh, meu Deus, meu Deus! - gritou Avdotia. - Depois disto, como poderei aparecer aos olhos do meu marido?... Mas, miserável - acrescentou, olhando com ódio súbito o rosto fresco e jovem de Naum -, perdi a
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minha alma por tua causa, tornei-me uma ladra por tua culpa! Queres que vá mendigar de porta em porta, bandido? Só me resta pôr uma corda ao pescoço, trapaceiro infame que me perdeste!
- Não vale a pena atormentar-se, Avdotia Arefievna. vou dizer-lhe uma coisa: não há camisa que esteja mais perto do corpo de um homem do que a sua, e depois o lúcio está no rio para que a tença não adormeça.
- Para onde iremos? Que será de nós? - balbuciava Avdotia através das lágrimas.
- Ah, quanto a isso, não lhe sei dizer!...
- Eu mato-te, miserável; eu mato-te!
- Não mata nada, Avdotia Arefievna... Porque diz essas coisas? No entanto, acho conveniente afastar-me um bocadinho daqui... Parece-me demasiado perturbada... Tenho, pois, a honra de a cumprimentar e amanhã cá estarei sem falta. Entretanto, permita-me que lhe mande hoje mesmo os meus criados. Oh, ainda bem que vêm aí! - acrescentou, olhando pela janela. - Sem eles, poderia acontecer alguma desgraça, que Deus nos defenda!... Assim, fico mais sossegado. Espero que me faça o obséquio de reunir ainda hoje todas as suas coisas. Se quiser, eles poderão dar-lhe uma ajuda... Até à vista!
Cumprimentou, saiu e chamou os criados. Avdotia deixou-se cair num banco, encostou-se à mesa e torceu as mãos. De súbito, levantou-se e saiu a correr, para ir ao encontro do marido. Já descrevemos o que se passou entre eles.
Quando se viu abandonada, sozinha no meio dos campos, depois da partida de Akim, ficou muito tempo a chorar, sem se mexer. Por fim, resolveu ir à casa senhorial. Custou-lhe muito lá entrar e ainda mais aparecer diante das suas antigas colegas, as criadas, que a rodearam dando mostras de compaixão. As lágrimas saltaram-lhe de novo dos olhos inchados e avermelhados e deixou-se cair sem forças numa cadeira. Kirilovna apareceu também e tratou-a com doçura; mas, tal como fizera com Akim, não a deixou falar com a patroa. Mandou vir o samovar e, embora ao princípio
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Avdotia afirmasse que não tocaria fosse no que fosse, acabou por tomar quatro chávenas de chá. Assim que Kirilovna a viu um pouco mais tranquila, perguntou-lhe onde tencionavam ir-se instalar. Avdotia respondeu que só lhe restava morrer, mas Kirilovna, mulher sensata, interrompeu-a imediatamente dizendo-lhe que o melhor que tinha a fazer era reunir sem demora todos os seus haveres e transportá-los para a isba de Akim, na aldeia, onde morava aquele velho tio que não aprovara o casamento, e que, com licença da patroa, lhe daria homens e cavalos para a ajudar.
- Quanto a si, minha querida - acrescentou Kirilovna, com um sorriso agridoce a franzir-lhe os lábios de gato -, haverá sempre lugar para si nesta casa e teremos muito prazer em lhe dar asilo até arranjar outra casa. O principal é não desesperar. Como sabe, Deus o dá, Deus o tira, mas também pode tornar a dá-lo; está tudo na Sua mão... Isabel Prokhorovna viu-se na necessidade, por diversas razões, de vender a estalagem... A propósito, onde está Akim?
Avdotia respondeu que quando o encontrara a ofendera cruelmente e se fora refugiar em casa do subdiácono Efraim.
- Em casa desse homem! - exclamou Kirilovna. Ah, agora compreendo a sua aflição! Provavelmente, já ninguém o verá hoje... Temos de tomar as nossas providências... Malachka, chame-me Nicanor Ilich.
Nicanor Ilich apareceu imediatamente. Era um homenzinho de fraca aparência, espécie de intendente, que escutou com a mais humilde deferência tudo o que Kirilovna lhe disse, e que assim que ela acabou respondeu, inclinando-se:
- Será tudo pontualmente executado.
Saiu, acompanhado de Avdotia, e pôs à sua disposição os três primeiros mujiques que encontrou, com as suas telegas. Um quarto mujique juntou-se de moto próprio ao grupo, declarando que sabia melhor do que os outros o que era preciso fazer. Avdotia chegou com eles à estalagem, onde encontrou os antigos criados e a sua criada Fetínia completamente às aranhas, pois desde
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manhã os criados de Naum, três robustos figurões, tinham-se instalado na estalagem e tão bem a haviam guardado que os aros de ferro das rodas de uma telega nova já tinham desaparecido.
A pobre Avdotia viu-se e desejou-se para enfardar todas as suas coisas, apesar da ajuda do mujique entendido em mudanças, que tudo quanto fazia era passear de um lado para o outro com um pau na mão. Não pôde deixar a estalagem naquele mesmo dia e teve de lá passar a noite, depois de pedir a Fetínia que a deixasse dormir no seu quarto. No entanto, só ao romper do dia conseguiu adormecer, num sono febril, mas até enquanto dormia as lágrimas lhe escorriam pelas faces.
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ENTRETANTO, o subdiácono acordou mais cedo do que de costume no seu cubículo acanhado e pôs-se a bater na porta para que o deixassem sair. A mulher aproximou-se, mas recusou abrir-lha, dizendo-lhe através de uma fresta que ainda não dormira o suficiente. O marido teve, porém, artes de lhe espicaçar a curiosidade, prometendo contar-lhe a estranha aventura que acontecera a Akim, e então ela decidiu-se a levantar o fecho. Efraim contou-lhe tudo o que vira e inquiriu assim que terminou:
- Ele já está acordado ou ainda não?
- Só Deus sabe - respondeu a mulher. - Vai ver. Pelo menos, ainda não desceu do fogão (1). Vocês ontem estavam bêbedos como cachos... Se visses a tua cara! Nem parece cara, parece mais um esfregão de cozinha. E o feno que tens nos cabelos!...
(1) Não se trata, evidentemente, de fogões vulgares, mas sim de uma espécie de fornos de tijolo ou alvenaria, muito usados na Rússia e em algumas regiões da China, e que tanto serviam para cozinhar, como para aquecer a casa, e até para dormir em cima deles nas frias noites de Inverno. (N. do T.)
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- Deixa lá o feno - redarguiu Efraim, passando a mão pelos cabelos, e entrou na sala.
Akim já não dormia; estava sentado no fogão, com as pernas pendentes, e também tinha mau parecer, sobretudo por não estar habituado a embriagar-se.
- Então, Akim Semenich, como passou a noite? perguntou Efraim.
Akim ergueu para ele um olhar demorado e ausente.
- Escuta, Efraim, meu velho, não se pode arranjar outra vez... o que sabes?... - murmurou.
Efraim sentiu um estremecimento interior semelhante ao experimentado por um caçador à espera da caça quando ouve de súbito ladrar um cão que corre para uma moita donde já não esperava ver sair nenhuma peça.
- O quê, outra vez?... - perguntou por fim.
- Sim, outra vez.
"Se a minha mulher me vê, não me deixa lá ir...", pensou. No entanto, respondeu:
- Sim, sim, pode-se arranjar... Espere um pouco. Saiu e, graças a hábeis manobras, conseguiu voltar
a entrar com uma respeitável garrafa escondida debaixo do cafetã, da qual Akim se apoderou. Quanto a Efraim, com medo da mulher, não se atreveu a beber como na véspera e, depois de informar Akim de que ia ver o que se passava na estalagem, partiu com o seu pobre cavalo, a que se esquecera de dar de comer. Não se esqueceu, porém, de si próprio, a julgar pelo volume inusitado do cafetã...
Pouco depois de o subdiácono partir, Akim dormia de novo a sono solto em cima do fogão, e nem sequer acordou - ou pelo menos fingiu não acordar - quando, algumas horas mais tarde, Efraim, de regresso da sua expedição, se pôs a sacudi-lo e a gritar-lhe aos ouvidos que estava tudo acabado, que as imagens sagradas tinham desaparecido, que procuravam Akim por toda a parte e que ele, Efraim, proibira que o procurassem. Gritou tanto ou tão pouco que a mulher veio repreendê-lo e fechou-o no cubículo. Cheia de indignação contra o marido e contra o importuno visitante por culpa de
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quem o marido se embebedava daquele modo, a mulher acabou por se deitar na própria sala; mas quando, ao acordar ao romper do dia, conforme o seu costume, olhou para cima do fogão, já lá não viu Akim. De facto, ainda o galo não cantara e já Akim transpunha a porta da casa do subdiácono. Estava pálido, olhava atentamente para todos os lados e o seu andar não era o de um homem embriagado. Saiu e dirigiu-se para a sua antiga casa, para a sua estalagem, que estava definitivamente em poder do novo proprietário.
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NAUM também não dormia à hora a que Akim saía furtivamente de casa de Efraim. Não, não dormia. Coberto com a sua capa de pele de carneiro, estava deitado, completamente vestido, em cima de um banco. Não era que a consciência o atormentasse; até assistira, de manhã, com o mais perfeito sangue-frio, à retirada de todos os pertences de Akim, e inclusivamente chegara, por mais de uma vez, a dirigir a palavra a Avdotia, a qual estava de tal modo abatida que deixara de o censurar. A sua consciência estava tranquila, mas ocupada por cálculos e projectos. Ignorava se seria bem sucedido na sua nova profissão, pois nunca tivera nenhuma estalagem, nem casa própria, e estas reflexões impediam-no de dormir.
"O negócio começou bem", pensava. "Mas como correrá daqui em diante?"
Depois de mandar seguir, na véspera à tarde, a última telega carregada com os pertences de Akim, que Avdotia acompanhara a chorar, inspeccionara minuciosamente o pátio, as adegas, os armazéns, as arrecadações e os sótãos, e, depois de recomendar diversas vezes aos criados que tivessem os olhos bem abertos, jantara e, uma vez só, não conseguira descansar. Por acaso, naquele dia nenhum viajante quisera passar a noite na estalagem, o que muito lhe agradara.
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"Amanhã tenho de comprar um cão, um bom cão, bastante feroz...", pensava, virando-se e revirando-se na cama. "Os moleiros têm um. Se os outros me não tivessem levado o seu..."
De súbito, levantou a cabeça: parecera-lhe que alguém deslizava devagar diante da janela. Apurou o ouvido... nada. Ouvia apenas o cricri de um grilo na lareira, um rato que tasquinhava a um canto e a sua própria respiração. Estava tudo calmo no quarto quase vazio, fracamente iluminado pelo clarão de uma lamparina acesa diante de uma imagem sagrada. Voltou a deitar a cabeça. Pouco depois pareceu-lhe ouvir ranger levemente o portão e em seguida estalar o fecho de madeira. Não se pôde conter mais; levantou-se rapidamente, entreabriu a porta do quarto vizinho e chamou em voz baixa:
- Fedor! Fedor!
Ninguém lhe respondeu. Transpôs o limiar e quase caiu ao bater num pé de Fedor, que dormia estendido no chão. Abanou-o rudemente.
- Quem é? Que quer? - perguntou o criado, esfregando os olhos.
- Cala-te, não grites... Patifes, só servem para dormir! Não ouviste nada?
- Não...
- Onde estão os outros deitados?
- Ali.
- Segue-me.
Naum abriu devagarinho a porta que dava do vestíbulo para o pátio. Estava escuro; mal se distinguiam os pilares das galerias do pátio.
- Não seria melhor acender uma lanterna? - murmurou Fedor.
Naum fez um gesto com a mão e conteve a respiração
para escutar.
Ao princípio, ouviu apenas os ruídos nocturnos próprios de qualquer lugar habitado; um cavalo comia aveia e um homem ressonava. Mas em breve lhe chegou aos ouvidos um ruído suspeito, vindo do fundo do pátio. Parecia que alguém; pessoa ou animal, se mexia ali e
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resfolegava ou respirava com força... Naum deitou uma vista de olhos por cima do ombro de Fedor e, descendo a escadaria com cuidado, dirigiu-se para o sítio donde vinha o ruído. De súbito, estremeceu: alguns passos adiante de si, no meio das trevas, surgiu de repente um ponto luminoso. Era uma brasa de carvão que estava a ser ateada por uma boca entreaberta que a soprava de perto. Naum precipitou-se sobre o lume, rapidamente e em silêncio, como um gato cai sobre um rato. Um corpo esguio ergueu-se do chão e atirou-se a ele, quase o derrubou e tentou esgueirar-se-lhe das mãos, mas conseguiu agarrá-lo com todas as suas forças.
- Fedor! André! Petruchka! -desatou Naum a gritar. - Depressa! Depressa, aqui! Apanhei um ladrão! Um incendiário!
O homem que Naum agarrara debatia-se com desespero, mas Naum tinha-o bem seguro nos braços, que pareciam tenazes, e Fedor acabava de acorrer em auxílio do patrão.
- Uma lanterna! Depressa, uma lanterna! Corre a buscá-la e acorda todos os outros! Eu basto para o segurar, sozinho... Depressa! E traz também uma corda para o amarrar.
Fedor afastou-se a correr e o homem que Naum segurava deixou de súbito de resistir.
- Não te chegava roubares-me a mulher, o dinheiro e a estalagem, ainda me queres perder!... - disse uma voz sufocada.
Naum reconheceu Akim.
- Ah, és tu?! Espera aí que eu já te arranjo!...
- Deixa-me. Ainda não tens o bastante?
- Mostrar-te-ei amanhã, perante a justiça, se tenho ou não o bastante... - e Naum apertou com mais força os braços em torno do prisioneiro.
Os criados acorreram com lanternas e cordas.
- Amarrem-no! - ordenou-lhes Naum.
Os criados deitaram a mão a Akim, ergueram-no e amarraram-lhe as mãos atrás das costas. Um deles começou a injuriá-lo, mas calou-se de repente ao reconhecer
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o antigo dono da estalagem e limitou-se a trocar um olhar com os colegas.
- Vejam, vejam-dizia, entretanto, Naum, iluminando o chão com a lanterna. - Aqui está carvão numa panela... Chegava para acender uma braseira... Temos de descobrir onde arranjou tudo isto. E também cortou ramos...
E Naum apagou cuidadosamente o lume com os pés.
- Revista-o, Fedor. Vejamos se não tem mais alguma coisa...
Fedor revistou Akim, que se mantinha imóvel, com a cabeça inclinada para o peito.
- Sim, tem de facto mais qualquer coisa - disse Fedor, tirando da algibeira de Akim uma velha faca de cozinha.
- Ah, ah, meu caro, aí está o que pretendias!... Rapazes, são testemunhas de que me queria assassinar e incendiar-me a casa. Fechem-no até amanhã na adega. De lá não poderá fugir... De resto, eu próprio o guardarei, amanhã, assim que nascer o dia, levá-lo-emos à cidade, ao ispravnik (1). São testemunhas, ouviram?
Empurraram Akim para a adega e fecharam-no à chave. Naum colocou dois dos seus homens de sentinela e ele próprio já não se voltou a deitar.
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ENTRETANTO, a mulher do subdiácono, depois de se convencer de que o hóspede se fora embora, pôs-se a cozinhar, embora ainda mal tivesse nascido o dia. Mas havia festa e o subdiácono devia ir à igreja. Agachou-se diante do fogão para o acender e verificou que tinham desaparecido todas as brasas. Procurou a faca e não a encontrou em parte alguma. Finalmente, das suas quatro panelas, faltava uma. A mulher tinha fama de não
(1) Chefe da Polícia Rural. (N. do T.)
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ser tola, e com razão. Por isso, foi ter com o marido ao cubículo, para lhe contar o que se passava. Não lhe foi, porém, fácil acordá-lo, e ainda menos fácil lhe foi fazer-se entender. A tudo o que lhe dizia, Efraim respondia sempre a mesma coisa: "Foi-se embora? Pois bem, que Deus o proteja! Não tenho nada com isso. Levou a panela e a faca? Pois bem, que Deus o proteja! Não tenho nada com isso..." No entanto, acabou por se levantar e por concordar com a mulher que o caso era sério e que não podiam ficar de braços cruzados.
- Sim, o caso é sério - dizia a mulher do subdiácono.
- Pode fazer alguma asneira, no estado de desespero em que se encontra. Bem vi, ontem, que não dormia, que estava apenas deitado em cima do fogão. Farias bem, Efraim Alexandrich, se te fosses informar.
- Escuta com atenção o que te vou dizer, Uliana Fedorovna: estou pronto a ir pessoalmente à estalagem, agora mesmo; mas tu, minha boa amiga, faz-me o favor de me dares um copo de vodka, para matar o bicho, e de dizeres ao padre Fedor que não espere por mim.
- bom -concordou a mulher, depois de uma pequena hesitação-, vou dar-te a vodka, e avisarei o padre, mas vê lá se não fazes tolices...
- Podes ficar absolutamente descansada, Uliana Fedorovna.
E, depois de se fortificar com um copito, Efraim tomou o caminho da estalagem.
O sol acabava de nascer quando lá chegou, mas diante da escadaria já se encontrava atrelada uma telega e nela um dos criados de Naum, com as rédeas na mão.
- Aonde vais? - perguntou-lhe Efraim.
- À cidade - respondeu o outro, de mau humor.
- Que vais lá fazer?
O criado limitou-se a encolher os ombros, sem responder.
Efraim apeou-se e entrou na casa. Naum veio ao seu encontro, no vestíbulo, vestido para sair e de boné na cabeça.
- Apresentamos ao novo proprietário os nossos parabens
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e damos-lhe as boas-vindas - disse Efraim, que conhecia pessoalmente Naum. - Aonde vai tão cedo?
- Tens razão para me dares os parabéns - redarguiu Naum, bruscamente. - Logo no primeiro dia escapei de morrer queimado.
Efraim estremeceu.
- Como foi isso?
- Como foi isso! Apareceu por aí um homenzinho resolvido a satisfazer o capricho de me queimar juntamente com a minha casa. Por sorte, apanhei-o com a mão na massa e agora vou levá-lo à cidade.
- Não seria... Akim? - perguntou Efraim, hesitante.
- Como adivinhaste? Sim, é Akim. Veio cá esta noite com uma panela cheia de brasas, entrou no meu pátio e já tinha tudo preparado para largar fogo à casa. Os meus criados bem viram. Queres vê-lo também antes de o levar?
- Meu caro, meu bom Naum Ivanich, solte-o, não acabe de desgraçar o pobre velho; não sobrecarregue a sua alma com mais esse pecado. Reflicta: um homem desesperado, de cabeça perdida...
- Não digas tolices! - interrompeu-o Naum. - Soltá-lo! Voltaria no dia seguinte para largar fogo a tudo!...
- Não voltará, Naum Ivanich. Acredite no que lhe digo: terá menos trabalhos assim. De contrário, haverá interrogatórios, a justiça aparecerá por cá... Bem sabe que tenho razão.
- Não tenho motivos para temer a justiça.
- Ó meu bom Naum Ivanich, haverá algum homem que não tenha de recear a justiça?...
- Queres fazer o favor de te calar? Já estás bêbedo, logo de manhã, apesar de hoje ser dia de festa.
Efraim desatou de súbito a chorar.
- Sim, estou bêbedo, mas digo a verdade! Perdoe-lhe, em nome da festa do bom Jesus...
- Acompanha-me, choramingas - e Naum dirigiu-se para o pátio.
- Perdoe-lhe por Avdotia Arefievna... -continuava Efraim, caminhando atrás dele.
Naum aproximou-se da adega e abriu a porta de par
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em par. Efraim, com uma curiosidade receosa, estendeu o pescoço por detrás de Naum e viu Akim a um canto da adega, que não era muito grande. O rico estalajadeiro, o homem considerado e respeitado em toda a região, estava agachado na palha, com as mãos amarradas como um criminoso. O ruído fê-lo levantar a cabeça. Parecia ter emagrecido espantosamente durante os dois últimos dias. Os seus olhos encovados mal se distinguiam debaixo da testa pálida como cera e tinha os lábios secos e negros. Todo o seu rosto se modificara e adquirira uma expressão simultaneamente feroz e espantada.
- Levanta-te e sai - ordenou-lhe Naum.
Akim levantou-se e franqueou penosamente o limiar da adega.
- Akim Semenich, que fizeste? - exclamou Efraim.
- Desgraçaste-te, meu pobre amigo!
Akim olhou-o em silêncio.
- Ah, se soubesse porque me pedias a vodka, não ta teria dado!... Juro perante Deus que não ta teria dado. Em vez disso tê-la-ia bebido eu próprio. Oh, Naum Ivanich - acrescentou, agarrando este pela manga -, perdoe-lhe, solte-o!...
- Não está má a brincadeira, não senhor... - respondeu Naum, retirando o braço.
E virando-se para Akim:
- Então, porque esperas? Avança.
- Naum Ivanov... - murmurou Akim.
- Que é?
- Naum Ivanov, escuta. Sou culpado; quis fazer justiça por minhas mãos e é Deus que nos deve julgar. Tiraste-me tudo, como sabes; tudo... Agora, podes acabar comigo. Mas escuta o que te digo: se me soltares neste momento, resignar-me-ei a que fiques com tudo; consentirei nisso e desejar-te-ei todas as felicidades. Sim; digo-to como se estivesse perante Deus: se me soltares, não te arrependerás. Que Deus te proteja!
Akim fechou os olhos e calou-se.
- Isso era bom que eu te acreditasse!
- Perante Deus, pode-se acreditar no que ele diz -
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interveio Efraim. - Estou pronto a responder por Akim com a minha cabeça; sim, estou pronto.
- Tolices! - exclamou Naum. - Vamos. Akim voltou a abrir os olhos.
- Como queiras, Naum Ivanich, como queiras... - murmurou. - Mas sobrecarregas um pouco mais a tua alma. No entanto, se estás assim tão impaciente, vamos.
Naum olhou fixamente para Akim.
"Na verdade, não será melhor mandá-lo para o Diabo?", pensou. "De contrário, os vizinhos nunca mais se cansarão de me cortar na casaca, Avdotia não me deixará em paz e talvez a justiça resolva meter o nariz onde não é chamada... sem que daí venha nada de bom."
Enquanto Naum reflectia, ninguém disse nada. O cocheiro da telega, que assistia à cena através da porta, não fazia senão abanar a cabeça e bater com as rédeas. Os outros criados conservavam-se na escadaria, também calados, e olhavam uns para os outros disfarçadamente.
- Vejamos, meu velho - disse, por fim, Naum. - Se te soltar e proibir os meus criados de falarem no que se passou... se fizer isto, ficaremos quites? Compreendes bem o que quero dizer: ficaremos quites?
- Já te disse: fica com tudo.
- Não me considerarás teu devedor?
- Nem tu me deverás nada, nem eu te deverei nada. Naum calou-se um instante.
- Juras isso perante Deus?
- Juro pelo santo nome de Deus.
- Tenho a certeza de que me arrependerei... -declarou Naum. - Enfim, seja pela graça de Deus! Dá-me as tuas mãos.
Akim virou-se e Naum começou a desamarrá-lo.
- Lembra-te, velho, de que te perdoei - sublinhou, fazendo deslizar a corda ao longo dos pulsos. - Não te esqueças...
- Ó meu caro, meu bom Naum Ivanich - balbuciou Efraim, muito comovido -, o próprio Deus o abençoará pelo que acaba de fazer.
Akim estendeu as mãos inchadas e enregeladas e
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dirigiu-se para a porta. Naum pareceu arrepender-se de largar a presa e gritou-lhe:
- Juraste perante Deus! Acautela-te...
Akim virou-se e percorreu lentamente com a vista aquela casa e aquele pátio que ele próprio construíra.
- Fica com tudo-disse com tristeza-, irrevogàvelmente e para sempre. Adeus.
E, seguido de Efraim, saiu vagarosamente para a estrada, enquanto Naum mandava desatrelar a telega e reentrava em casa.
- Então, Akim, aonde vais? Não vais para minha casa? - perguntou-lhe Efraim, vendo que Akim tomava outro caminho.
- Não, meu bom Efraim, obrigado. Quero ir ver o que faz a minha mulher.
- Vê-la-ás mais tarde. Agora, para comemorar este acontecimento, deves... Enfim, tu bem sabes...
- Não, obrigado, Efraim, já chega. Adeus. E Akim foi-se embora sem se virar.
- Ora essa, como é que já chega?! - replicou o subdiácono, muito surpreendido. - Então, para que dei a minha cabeça como garantia? Por essa não esperava eu... Irra!
Lembrou-se então de que deixara na estalagem a panela e a faca. Naum mandou entregar-lhas, mas nem por sombras lhe passou pela cabeça oferecer-lhe qualquer bebida, e Efraim teve de regressar a casa muito irritado e desiludido.
- Então, encontraste-o? - perguntou-lhe a mulher.
- Encontrei o quê, estúpida? Sim, encontrei-o. Toma, aqui tens as tuas coisas.
- Foi Akim que as levou? - insistiu Uliana. Efraim limitou-se a acenar com a cabeça.
- Que rico companheiro! Estava prestes a ir apodrecer na prisão, pedi por ele a todos os meus santinhos e nem sequer me pagou um copo! Uliana Fedorovna, mostra um pouco de consideração por mim, dá-me uma pinga...
Mas Uliana não lhe mostrou a mais pequena consideração e correu com ele para a igreja.
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ENTRETANTO, Akim percorria vagarosamente o caminho que ia ter à aldeia. Ainda não estava em si; sentia uma perturbação íntima, como um homem que acabasse de escapar a uma morte certa. Ainda mal podia acreditar na sua libertação e olhava com uma admiração estúpida os campos, o céu e as andorinhas que sulcavam a atmosfera radiosa. Na véspera, não conseguira pregar olho em casa do subdiácono, apesar de se ter deixado estar imóvel em cima do fogão, e esforçara-se inutilmente por adormecer na embriaguez da vodka a dor insuportável da ofensa recebida e as angústias do desespero impotente. Mas a vodka não pudera vingá-lo e o seu coração trasbordara de cólera. Então, traçara mentalmente projectos rancorosos, nos quais, porém, só entrava Naum; a patroa nem sequer lhe acudia à memória. Quanto a Avdotia, repelia-a energicamente da ideia. Para a noite, a sua sede de vingança convertera-se em autêntica raiva e fora então que ele, homem fraco e bom, saíra, com a panela das brasas na mão, para destruir a sua antiga casa. Mas tinham-no apanhado e fechado, quando a noite já ia alta. Que pensamentos o assaltaram durante aquela noite cruel? E, contudo, de manhã, antes da chegada de Efraim e Naum, sentia uma espécie de alívio. "Está tudo perdido, não adianta lutar contra a adversidade", disse para consigo, e, resolutamente, abandonou-se ao seu destino. O acto criminoso que tentara abalara-lhe profundamente a alma, e o insucesso deixara-lhe, em vez de irritação, uma grande fadiga e um profundo desgosto. Arrancou do coração todo o pesar terreno e pôs-se a rezar amargamente, mas com fervor. Primeiro, orou em voz baixa, mas acabou por exclamar: "Ó meu Salvador!", e as lágrimas correram-lhe em fio. Chorou durante muito tempo, até se acalmar. Os seus sentimentos ter-se-iam, decerto, modificado se tivesse sido castigado pela tentativa abor tada, pois chegara precisamente ao limite fatal entre a resignação e o desespero. Mas, de súbito, tinham-no
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posto em liberdade, e ali ia, resolvido a encontrar-se com a mulher, meio morto, mas tranquilo.
A casa senhorial ficava a versta e meia da aldeia. Quando chegou ao cruzamento dos caminhos que levavam a uma e a outra, hesitou um instante e resolveu visitar primeiro o seu velho tio.
A pequena e já velha isba de Akim ficava na extremidade da aldeia. Percorreu toda a rua sem encontrar vivalma; toda a gente estava na igreja. Apenas uma velha aldeã doente entreabriu a janela para o ver passar e uma garota, que ia buscar água ao poço com um balde, o seguiu com a vista. O primeiro homem que encontrou foi precisamente o tio que procurava. O velhote passara toda a manhã sentado num banco debaixo da janela, a aquecer-se ao sol e a tomar algumas pitadas de rapé. Como não se sentia bem, não fora à igreja e acabava de se levantar do banco para ir visitar um ancião seu vizinho, ainda mais doente do que ele, quando encontrou Akim. Parou, deixou-o aproximar-se e; depois de lhe olhar atentamente o rosto pálido, disse-lhe:
- Bons dias, Akimuchka.
- Bons dias - respondeu Akim, que, sem levantar os olhos, o precedeu até ao pátio da sua casa.
Encontrou ali os seus cavalos, a sua vaca, a sua telega, e também as suas galinhas, e entrou na isba sem dizer palavra. O velhote seguiu-o. Akim sentou-se num banco e apoiou nele os punhos fechados. O tio observava-o com mágoa, encostado à porta.
- Onde está a minha mulher? - perguntou, finalmente, Akim.
- Na casa da senhora - apressou-se a responder o velho. - Trouxeram para aqui as tuas coisas, os teus animais e as malas, mas ela ficou em casa da patroa. Queres que a vá buscar?
Akim permaneceu calado durante alguns instantes.
- Vai - disse por fim. - Lembras-te, tio, do que me disseste na véspera do meu casamento? - acrescentou, com um profundo suspiro, enquanto o velho tirava o barrete de um prego.
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- Tudo acontece consoante a vontade de Deus, Akim.
- Lembras-te? Disseste-me então que eu já não era igual a vocês, camponeses. Pois o tempo se encarregou de me deixar sem nada...
- Nem sempre se podem adivinhar as intenções dos malvados - replicou o velho. - Mas se alguém pudesse dar uma boa lição a esse homem sem consciência ou se houvesse lei entre nós... Assim, porém, que tem ele a temer? É um lobo e sabe morder como um lobo - e o velho enterrou o barrete na cabeça para sair.
Avdotia regressava da igreja quando lhe disseram que o tio do marido a procurava. Até ali, raramente vira tal tio, que nunca os visitava. Passava por ser um homem estranho, que só gostava de tomar a sua pitada e de estar calado, e por isso lhe chamavam o Poucas Falas. Avdotia apressou-se a ir ter com ele.
- Que desejas, Petrovich? Aconteceu alguma coisa?
- Nada. O teu marido chama-te.
- Voltou?
- Voltou.
- Onde está?
- Na aldeia, na isba.
Avdotia sentiu um arrepio de medo.
- Dize-me, Petrovich, ele está zangado? - perguntou, olhando-o nos olhos.
- Não notei que estivesse zangado. Avdotia baixou a cabeça.
- Então, vamos.
Cobriu a cabeça com um grande lenço, partiram e caminharam em silêncio até à aldeia. Quando se aproximavam da isba, Avdotia teve um novo acesso de medo, tão forte que as pernas lhe fraquejaram.
- Meu bom Petrovich, entra primeiro e dize-lhe que vim porque mo ordenou - pediu com voz trémula.
Petrovich entrou na isba e encontrou Akim no mesmo sítio e na mesma posição em que o deixara.
- Então, ela não veio? - perguntou, erguendo a cabeça.
- Veio.
- Onde está?
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- Ali, diante da porta. Tem medo.
- Manda-a cá.
O velho saiu, fez a Avdotia um sinal com a mão e voltou a sentar-se no seu banco. Avdotia abriu a porta a tremer, transpôs o limiar e parou.
Akim olhou-a.
- Dize-me, Arefievna, que vamos fazer agora? - perguntou.
- Sou culpada... - murmurou a mulher.
- Ora, Arefievna, todos nós somos pecadores!... Que adianta falar disso?
- Foi ele, esse bandido, que nos perdeu... - começou Avdotia, mas a voz quebrou-se-lhe de repente e as lágrimas correram-lhe pelas faces. - Não consintas que te roube, reclama o teu dinheiro sem te importares comigo. Estou pronta a jurar que lhe emprestei o dinheiro. Isabel Prokhorovna tinha o direito de vender a nossa estalagem; mas ele, porque nos roubou? Reclama o teu dinheiro.
- Não tenho dinheiro nenhum a reclamar - respondeu Akim, com voz sombria. - Estamos quites.
- Quites?... Como?
- Como te digo. Sabes onde passei a noite? - continuou Akim, cujos olhos começaram a incendiar-se. Não sabes, pois não? Na adega de Naum, amarrado de pés e mãos como um carneiro. Aí tens onde passei a noite. Queria incendiar-lhe a casa, mas Naum apanhou-me. É muito esperto... E hoje estava resolvido a levar-me à cidade, mas por fim dignou-se perdoar-me. Bem vês, pois, que não tenho dinheiro nenhum a reclamar-lhe... Aliás, como o reclamaria? Se me perguntasse: "Quando foi que te pedi dinheiro emprestado?", achas que lhe poderia responder: "A minha mulher desenterrou-o debaixo do soalho e deu-to." "A tua mulher mente!", responder-me-ia. Achas, Arefievna, que ainda não andas bastante nas bocas do mundo? É preferível calares-te, digo-to eu... Oh, sim, cala-te!
- Mas eu sou culpada, Semenich! Sou culpada! insistiu Avdotia.
- Não se trata disso agora - redarguiu Akim, depois
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de um curto silêncio-, mas sim do que vamos fazer. Já não temos casa nem dinheiro...
- Procuraremos sair de apuros, Akim Semenich. Pediremos à patroa que nos ajude. Kirilovna prometeu-me interceder por nós.
- Não, Arefievna. Se queres, pede tu à patroa com a tua Kirilovna; são ambas da mesma igualha... Por mim, só te digo isto: fica aqui em paz que eu vou-me embora. Felizmente, não temos filhos. Pode ser que me governe... Um homem só sempre se arranja.
- Que dizes, Semenich? Queres voltar à tua vida de carreteiro? Akim riu amargamente.
- Havia de dar um bom carreteiro, não haja dúvida! Não, isso não é tão fácil como casar, por exemplo... Um velho não serve para semelhante profissão. Apenas não quero ficar aqui; não quero que me apontem a dedo, compreendes? Irei rogar a Deus que me perdoe os meus pecados. É o que tenciono ir fazer, Arefievna.
- Mas quais são os teus pecados, Semenich? - perguntou Avdotia, timidamente.
- Os meus pecados, mulher, só eu os conheço. Como te tornaste minha mulher?
- Mas com quem me deixarás, Semenich? Como poderei viver sem o meu marido?
- com quem te deixarei, Arefievna? Como tu falas! Tens porventura necessidade de um mujique como eu, de um mujique velho e arruinado? Tens passado sem mim até agora, também poderás continuar a passar, e quanto aos bens que ainda nos restam, podes ficar com eles; não me interessam.
- Como quiseres, Semenich - respondeu humildemente Avdotia. - Sabes melhor do que eu o que se deve fazer.
- Tens razão. Só não quero que imagines que te desejo mal por isso, Arefievna. De que me serviria zangar-me agora? Devia tê-lo feito mais cedo... Sou culpado e estou punido - suspirou Akim. - Todas as rosas têm espinhos e o que não tem remédio, remediado está. Começo a ficar velho; é tempo de pensar na minha
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alma. Foi Deus que me iluminou! Só um velho louco como eu era capaz de imaginar que podia passar a vida a seu gosto com uma mulher nova... Não, meu caro, meu amigo: daqui em diante, reza, sofre, jejua, roja-te no chão. E agora deixa-me, minha boa amiga; estou muito cansado e desejo dormir um pouco... -e Akim estendeu-se, suspirando, no banco da isba.
Avdotia mostrou vontade de responder, mas olhou-o um instante, virou-se e saiu. Nunca esperara sair de apuros com tanta facilidade...
- Ele não te bateu? - perguntou-lhe Petrovich, curvado no banco, quando Avdotia passou diante de si.
A mulher afastou-se em silêncio.
- Já viram isto? Não lhe bateu!... - resmungou o velho.
Depois, sorriu, cofiou a barba com a mão e meteu no nariz uma pitada de rapé.
Akim pôs o seu projecto em prática. A patroa mandou dar-lhe um passaporte e isentou-o generosamente do pagamento do foro durante os três anos seguintes. Em seguida, Akim apressou-se a regularizar todas as suas coisas e; poucos dias depois da conversa que reproduzimos, foi, em trajo de viagem, apresentar as suas despedidas à mulher, provisoriamente instalada numa das alas da casa senhorial. As despedidas não foram demoradas e Kirilovna, que assistiu a elas, aconselhou-o a ir despedir-se também da patroa. Akim foi. Isabel Prokhorovna recebeu-o com certo constrangimento, mas acedeu graciosamente a dar-lhe a mão a beijar e perguntou-lhe aonde tencionava ir. Akim respondeu que começaria por ir a Quieve e que em seguida iria aonde Deus o levasse. A patroa elogiou muito semelhante resolução e despediu-o.
Desde então, Akim poucas vezes apareceu na aldeia, mas nessas poucas vezes nunca se esqueceu de levar ao palácio uma hóstia consagrada, depois de pedir ao padre que lhe cortasse um pedacinho e o depositasse no cálice pela saúde da patroa. Assim, em toda a parte aonde afluíam as pessoas devotas da Rússia, se podia
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ver o seu rosto envelhecido e ascético, mas sempre calmo, sempre cheio de bondade, quer junto do túmulo de S. Sérgio, quer no Convento da Trindade, nos arredores de Moscovo, ou no Eremitério de Opta, quer no Convento de Valaam, perdido nos confins do Norte. Num ano, passava confundido com a multidão interminável que seguia em procissão a imagem da Virgem, levada de Kursk a Korenoi, na distância de trinta verstas; noutro ano, encontravam-no sentado, com uma mochilinha às costas, no meio de outros peregrinos, nas lajes da Igreja de S. Nicolau, em Mtsensk, e todas as primaveras ia, de terra em terra, até Moscovo, no seu passo lento e regular, mas que nunca se detinha. Havia inclusivamente quem afirmasse que já fora a Jerusalém. A verdade é que parecia absolutamente feliz e tranquilo, e aqueles que logravam falar com ele gabavam muito a sua sabedoria e humildade.
Entretanto, os negócios de Naum corriam o melhor possível. Dirigia-os com inteligência e decisão e o seu êxito era tão rápido como completo. Todos os vizinhos sabiam por que meios obtivera a estalagem e até se descobriu que fora Avdotia quem lhe dera o dinheiro para a comprar. Ninguém o estimava, devido ao seu carácter frio e agressivo, e até havia quem contasse, com indignação, que respondera a Akim, quando este aparecera um dia na estalagem, como peregrino, e lhe pedira esmola pela janela: "Deus que ta dê", e não lhe dera nada. NO entanto, toda a gente concordava que ninguém tinha mais sorte do que ele. O seu trigo crescia melhor do que o do vizinho, as suas abelhas davam mais mel, as suas galinhas punham com mais frequência, as suas vacas nunca estavam doentes e os seus cavalos nunca coxeavam. Tanta sorte chegava a surpreender o próprio padre Fedor.
Durante muito tempo, Avdotia, que se tornara mestra de costura no palácio, não pudera ouvir pronunciar o nome de Naum; mas, pouco a pouco, o seu rancor diminuíra e até se dizia que a necessidade a obrigara a recorrer a ele, que lhe dera cem rublos. Não a julguemos com excessiva severidade, pois a pobreza tem
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vergado muitas outras pessoas mais firmes do que Avdotia. A ruína súbita da sua vida, abatera-a e humilhara-a profundamente e ninguém saberia dizer com que rapidez envelheceu e se tornou feia.
"Como acabará tudo isto?", perguntará o leitor. Desta maneira:
Depois de ter, durante quinze anos, governado com mão firme a sua barca, Naum vendeu a estalagem a outro burguês, e por bom dinheiro. Mas não a teria deixado se não se verificasse uma circunstância aparentemente insignificante. Duas manhãs seguidas, o seu cão, sentado diante das janelas, pôs-se a soltar uivos plangentes. À segunda vez, Naum saiu de casa, colocou-se diante do cão, abanou a cabeça e dirigiu-se acto contínuo para a cidade, onde tratou da venda da estalagem com um burguês que a cobiçava havia muito tempo. Uma semana mais tarde, partiu para local afastado, fora da província, e o novo proprietário ocupou o seu lugar. Contudo, nessa mesma noite, a estalagem ardeu de alto a baixo, desapareceu sem deixar rasto, e o sucessor de Naum ficou completamente arruinado.
O leitor compreenderá facilmente a razão dos boatos que correram na vizinhança a respeito do incêndio. "Levou a sorte com ele", dizia-se. Agora, conta-se que Naum assinou contratos com o Estado para fornecer trigo e que se tornou imensamente rico. Resta saber se por muito tempo, pois em tal negócio muitos outros se têm arruinado...
Quanto a Isabel Prokhorovna, pouco há a dizer a seu respeito. Ainda é viva e, como acontece muitas vezes às pessoas da sua têmpera, não mudou e quase não envelheceu. Apenas se tornou ainda mais magra e a sua avareza cresceu desmedidamente. No entanto, é difícil compreender para que quer o dinheiro que junta, visto não ter filhos e não gostar de ninguém. Nas suas conversas, menciona com frequência o nome de Akim e nunca se esquece de afirmar que, desde que teve ensejo de apreciar as grandes qualidades do camponês russo, o respeita infinitamente pela sua dedicação e pela sua obediência. Kirilovna comprou a sua liberdade
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à patroa mediante avultada importância e casou-se por amor com um jovem louro, criado assalariado, que a faz passar pelas piores mortificações. Avdotia continua a habitar a ala das criadas, mas desceu alguns graus na escala da criadagem. Veste-se pobremente e das maneiras elegantes de uma menina educada na capital e dos hábitos de rica estalajadeira, não restam nem sombras. Ninguém repara nela e sente-se feliz por isso mesmo. O velho Petrovich morreu e Akim continua a levar a sua vida errante. Só Deus sabe quando chegará para o pobre mujique o repouso e um asilo!
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UM RECANTO TRANQUILO
NUM quarto recentemente caiado da casinha senhorial da aldeia de Sassovo, no governo de Tuia, encontrava-se um jovem sentado numa cadeira de braços, diante de uma velha mesa cambada, a examinar um livro de contas. Vestia casaco de viagem e diante dele, em castiçais de prata, ardiam duas velas. A um canto via-se uma mala aberta e noutro um criado armava uma cama de ferro. De armiak novo e com os rins apertados por uma cinta vermelha, um mujique de grande barba e expressão inteligente conservava-se de pé junto da porta. Era o estarosta da aldeia e olhava com muita atenção o jovem que se encontrava sentado. Ao pé da janela, via-se uma espineta antiga, ao lado de uma cómoda da mesma idade, e na parede, a par de um velho espelho rococó, estava pendurado o retrato deteriorado de uma mulher de cabeleira empoada e vestido de folhos. A julgar pelo rebaixamento do tecto e pelas largas fendas do soalho, a casinha em que acabamos de introduzir o leitor fora construída havia muito tempo. Habitualmente desabitada, servia apenas de pousada na altura da vinda do senhor, e o jovem de quem acabamos de falar era precisamente o proprietário da aldeia de Sassovo, chegado na véspera do seu solar, que ficava a cerca de cem verstas de distância, e ao qual tencionava regressar no dia seguinte, depois de visitar o seu domínio, escutar as petições dos seus mujiques e examinar as contas.
- Basta - disse bruscamente, levantando a cabeça. Estou cansado. Podes ir-te embora - ordenou ao estarosta. - Volta amanhã de manhã e comunica aos
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mujiques que os quero ver cá cedo, todos juntos. Ouviste?
- Perfeitamente - respondeu o outro.
- Fizeste bem mandar caiar estas velhas paredes continuou o senhor, olhando à sua volta. - Estão mais limpas assim.
O estarosta seguiu o olhar do senhor em torno do quarto, mas não disse nada.
- Podes ir-te embora.
O estarosta inclinou-se profundamente e saiu.
- Serve-me o chá - ordenou o senhor, espreguiçando-se. - São horas de dormir.
O criado dirigiu-se para um compartimento onde se ouvia ferver um samovar e regressou pouco depois com um copo de chá, um pacote de biscoitos comprado na véspera e um boião de nata. Ainda o senhor mal aproximara o copo dos lábios, ouviu-se um ruído na divisão contígua e uma vozinha esganiçada perguntar:
- Vladimiro Sergeich Astakov está? Podemos vê-lo? Astakov deitou ao criado um olhar surpreendido e
disse-lhe precipitadamente, em voz baixa:
- Vai ver quem é.
O criado saiu e puxou a porta, que teimava em ficar aberta.
-Anuncia a Vladimiro Sergeich que o seu vizinho Ipatov o deseja ver, se o não incomoda, e que outro vizinho vindo comigo, Bodriakov, lhe deseja igualmente apresentar os seus maiores respeitos - disse a mesma voz.
Astakov fez um gesto de impaciência. No entanto, quando o criado voltou a entrar no quarto, disse-lhe que introduzisse os visitantes e levantou-se para ir ao encontro deles.
A porta abriu-se e os dois vizinhos apareceram. Um era um velhinho atarracado, de cabeça redonda e olhos brilhantes, e foi o primeiro a entrar; o segundo era um homem dos seus trinta anos, alto e magro, trigueiro, de cabelos negros e despenteados, e seguia o outro com os braços oscilantes. O velhote trazia uma sobrecasaca cinzenta, muito limpa, com botões de madrepérola, calças
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de tecido escocês e polainas por cima dos sapatos. Rodeava-lhe o pescoço um lenço cor-de-rosa, semicoberto pelo colarinho branco da camisa, e toda a sua pessoa transmitia uma impressão fresca e agradável. O companheiro, pelo contrário, não tinha aspecto tão fascinante. Envergava uma velha casaca preta, abotoada até ao queixo, e grossas calças de Inverno, da mesma cor, e não se lhe viam nem o colarinho, nem os punhos da camisa. O velhinho foi o primeiro a aproximar-se de Astakov, cumprimentou-o com ar afável e disse-lhe com a mesma vozinha esganiçada:
- Tenho a honra de me apresentar. Sou Miguel Nicolaich Ipatov, o seu mais próximo vizinho e ainda seu parente afastado. Há muito tempo que desejava ter o prazer de o conhecer e espero que a minha visita o não incomode.
Astakov respondeu que o prazer era todo seu, que o não incomodavam absolutamente nada e pediu-lhes que se sentassem para tomarem o chá.
- Este cavalheiro - continuou o velhote, depois de escutar com um sorriso benevolente as palavras cerimoniosas de Astakov e designando com a mão o indivíduo da casaca preta - é também um dos seus vizinhos e um dos meus bons amigos. Ivan Ilich Bodriakov tinha igualmente o mais vivo desejo de o conhecer.
O cavalheiro da casaca, pelo rosto do qual ninguém suporia que desejasse vivamente fosse o que fosse na vida, de tal modo a sua expressão era ausente e sonolenta, cumprimentou desajeitadamente. Astakov retribuiu o cumprimento e pediu pela segunda vez aos visitantes que se sentassem, o que eles fizeram.
- Sinto-me feliz, muito feliz, por ter enfim ensejo de o conhecer pessoalmente - prosseguiu o velho, abrindo os braços, enquanto o outro olhava para o tecto, de boca aberta. - Embora o senhor prefira residir num distrito muito afastado destas terras sossegadas, consideramo-lo um dos nossos principais proprietários rurais.
- O que é para mim muito lisonjeiro - respondeu Astakov.
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- Lisonjeiro ou não, é assim mesmo. Deve desculpar-nos, Vladimiro Sergeich, mas aqui somos pessoas francas. Vivemos com simplicidade e dizemos sem rodeios o que pensamos. E garanto-lhe que mesmo nos dias festivos nos visitamos de sobrecasaca; é hábito entre nós. Nos distritos vizinhos até nos chamam, por isso, asas de grilo, e censuram-nos o nosso mau gosto. Mas nós não lhes ligamos a mais pequena importância. Avalie por si mesmo, por favor: viver no campo e estar com cerimónias!
- Tem razão, que pode haver melhor no campo do que essas maneiras naturais? - observou Astakov.
- E contudo - prosseguiu o velho - no nosso distrito vivem homens inteligentíssimos, pessoas de civilização europeia, apesar de não usarem fraque. Por exemplo, o nosso historiador Stepan Stepanich Efzukov, que se ocupa da história de todas as Rússias desde os tempos mais remotos, conhecido até em Sampetersburgo, um homem de grande erudição. Como sabe, encontrou-se na praça principal da nossa cidade um pelouro sueco; pois foi ele quem descobriu que o pelouro era sueco! E Anton Carlich Zenteller, que se ocupa especialmente da história natural, uma ciência em que, segundo se diz, os Alemães são mestres. Quando há dez anos cá mataram uma hiena que vagueava por aí, foi ele, Zenteller, quem reconheceu que era efectivamente uma hiena, graças à constituição especial da cauda do bicho. Temos ainda Kaburdine, um fidalgo, que se dedica sobretudo à literatura e publica artigos muito bem escritos na Galateia. E Bodriakov... não, esse despreza as Musas... Mas outro, Sérgio... qual é o seu patronímico?
- Sergeich - informou, arrastando as sílabas, o Bodriakov presente.
- Sim, sim, Sergeich! Esse escreve versos. Não é um Puschkine, mas às vezes mete um homem a ridículo com uma facilidade que causaria inveja na capital. Conhece o seu epigrama contra Ageu Fomich?
- Não. Quem é esse senhor? - perguntou Astakov.
- Ah, perdão! Esquecia-me que o senhor não reside
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cá habitualmente... É o nosso chefe de polícia. O epigrama é de uma originalidade!... Ivan Ilich, parece-me que o sabes de cor...
- Ei-lo - respondeu Bodriakov:
Por algum motivo Ageu Fomich
Tem sido distinguido com a confiança da nobreza...
- Devo dizer-lhe - interrompeu Ipatov - que nas eleições só recebeu bolas brancas, pois é um homem absolutamente respeitável. Prontoi continua:
Por algum motivo Ageu Fomich
Tem sido distinguido com a confiança da nobreza.
Pois se come e bebe como um senhor,
Como não havia de ser senhor da Polícia?
O velho soltou uma gargalhada.
- Não está mal, hem? Note: como um senhor e senhor da Polícia... Desde então, nenhum de nós se esquece, depois de dar os bons-dias a Ageu Fomich, de acrescentar o último verso:
Como não havia de ser senhor da Polícia?
E julga que Ageu Fomich se zanga? Nem por sombras!
Isso nunca acontece entre nós. Pergunte a Bodriakov...
Este, como única resposta, ergueu os olhos ao tecto.
- Zangar-se por causa de uma brincadeira?... Impossível! O próprio Bodriakov foi alcunhado por nós de Pau-Mandado, porque está sempre de acordo com todos e toda a gente faz dele o que quer. Pois julga que se zanga por isso? Nunca.
Bodriakov pousou lentamente a vista, primeiro no velho e depois em Astakov.
A alcunha de Pau-Mandado assentava, de facto, como uma luva a Bodriakov, um homem que não possuía sombra de vontade nem de energia. Bastava que qualquer pessoa lhe dissesse: "Vamos", para pegar imediatamente no gorro; mas se aparecesse alguém que contrapusesse: "É melhor ficarmos", tornava a pousar o
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gorro. Era de natureza calma e amável, mas melancólica, e ainda estava solteiro. Embora não se interessasse por jogos de cartas, gostava de estar ao pé dos jogadores, para ver a cara que faziam, e não podia passar sem companhia, pois não suportava a solidão. Sozinho, caía na mais negra melancolia, mas isso acontecia-lhe raramente. Tinha ainda outra mania: todas as manhãs, mal saía da cama, cantarolava o estribilho de uma velha romanza francesa: Vous chassez monsieur et je pêche (1). Esta mania valera-lhe outra alcunha, a de Pintassilgo-Verde, pois como se sabe esta avezinha só canta uma vez por dia, ao nascer do Sol. Tal era, em resumo, Ivan Ilich Bodriakov.
A conversa continuou durante mais algum tempo ainda, entre Ipatov e Astakov, mas em breve saiu, das generalidades. O velho interrogou o jovem a respeito do estado das suas matas e dos melhoramentos que tencionava introduzir na sua exploração e submeteu-lhe algumas das suas próprias observações. No entanto, quando reparou que os olhos do seu anfitrião se começavam a fechar e que ele lhe respondia mais devagar, o velho levantou-se e declarou que o não desejava incomodar mais, mas que o esperava receber ao jantar no dia seguinte.
- E quanto à minha aldeia - acrescentou -, a primeira galinha ou a primeira mulher que encontrar, para não dizer a primeira criança de mama, indicar-lhe-á o caminho. Basta perguntar por Ipatovka; os cavalos irão lá ter por si sós.
- Se nada se opuser... - respondeu Astakov, com a sua hesitação habitual.
- Deixe-se de sés - atalhou Ipatov. - Contamos consigo.
E depois de lhe apertar suavemente a mão, saiu dizendo:
- Nada de cerimónias.
O Pau-Manãado, Bodriakov, cumprimentou em silêncio e desapareceu com o companheiro, depois de escorregar
(1) O senhor caça e eu pesco. (N. do T.)
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no chão. Assim que se viu livre dos inesperados
visitantes, Astakov deitou-se e adormeceu.
Vladimiro Sergeich Astakov era um daqueles homens que depois de experimentarem prudentemente as suas forças em duas ou três carreiras diversas, acabam por se decidir, como dizem, a considerar a vida do ponto de vista prático e por consagrar os seus lazeres a aumentar os seus rendimentos. Não lhe faltava inteligência para isso, além de ser bastante avaro e muito ponderado. Gostava de ler, de conviver e de música, mas moderadamente. A sua principal preocupação consistia em passar por um homem em toda a acepção da palavra, tal como acontecia então na Rússia, havia pouco tempo, com muitos outros jovens nas mesmas condições. Astakov contava apenas vinte e sete anos e era de estatura média e elegante. Possuía feições agradáveis, mas inexpressivas, e o seu olhar perspicaz e severo nunca se alterava; apenas, de vez em quando, deixava transparecer um pouco de aborrecimento. Tinha sempre nos lábios um sorriso delicado e usava os cabelos louros e sedosos cuidadosamente frisados. Era senhor de seiscentas almas e começava a pensar no casamento. Ambicionava, porém, encontrar uma mulher bem relacionada nas altas esferas, onde dispunha de poucos conhecimentos. Numa palavra, merecia o qualificativo de gentlemani então muito em moda na Rússia.
No dia seguinte, muito cedo, o nosso gentleman entregou-se aos seus negócios, que dirigia - deve-se-lhe prestar essa justiça - com mais bom-senso do que a maior parte dos nossos jovens de vistas práticas. Escutou pacientemente as lamentações embaraçadas dos mujiques - o que consolou um pouco aqueles a quem não fez justiça - e apaziguou discórdias nascentes entre irmãos órfãos, ameaçando uns e exortando outros. Descobriu algumas gatunices cometidas para com os seus administrados pelo estarosta, mas, apesar disso, teve o cuidado de o não demitir... Em resumo, conduziu-se de tal modo que ficou muito satisfeito consigo próprio e os mujiques, embora os não tivesse beneficiado fosse
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no que fosse, não puderam deixar de lhe dirigir alguns louvores à saída da reunião.
A despeito da sua promessa da véspera, Astakov estava decidido a jantar em casa e até já encomendara ao seu cozinheiro na aldeia um dos seus pratos predilectos, quando, provavelmente sob a influência da satisfação íntima que sentia, gritou de súbito:
- E se fosse a casa do velho tagarela?...
Meu dito, meu feito; cerca de meia hora mais tarde, o seu elegante tarantasse, puxado por quatro bons cavalos rústicos, tomava o caminho de Ipatovka, aldeia situada apenas a doze verstas de distância, por uma boa estrada.
A residência de Ipatov compunha-se de duas casinhas senhoriais erguidas uma defronte da outra, de ambos os lados de uma enorme lagoa de água corrente. Um comprido dique, plantado de choupos de folhas prateadas, formava a barragem da lagoa, ao fundo da qual se distinguia o telhado pontiagudo de um moinho. Construídas do mesmo modo e pintadas da mesma cor lilás, as duas casas pareciam observar-se mutuamente, por cima da lagoa, com os seus vidrinhos brilhantes. Diante de cada casa estendia-se um terraço arredondado, encimado por um frontão grego apoiado em quatro delgadas colunas de madeira. A lagoa estava completamente rodeada por um jardim antigo, cujas longas alamedas eram ladeadas de velhas tílias, e altos abetos, frondosos carvalhos e elegantes bordos erguiam as suas copas a intervalos regulares. Rodeavam as duas casas espessos renques de lilases e acácias que só lhes deixavam ver as fachadas, das quais partiam, do lado da lagoa, carreirinhos cobertos de pó de tijolo. Patos de todas as cores, bem como gansos brancos e cinzentos, nadavam em grupinhos nas águas límpidas da lagoa, onde nunca se via o mais pequeno tufo de musgo esverdeado, graças às numerosas nascentes que brotavam do fundo de um córrego pedregoso e alimentavam a lagoa. A residência estava situada num ponto agradável e paradisíaco, mas isolado.
Numa das casinhas vivia o próprio Ipatov e na outra
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a sua velha mãe, uma pobre mulher caduca, de mais de setenta anos. Quando chegou ao dique, Astakov ficou sem saber para qual das casas se havia de dirigir. Um rapazinho pescava à linha, sentado, descalço, num tronco de árvore apodrecido. Astakov perguntou-lhe que caminho devia seguir.
- A casa de quem deseja ir? À da senhora velha ou à do senhor novo? - inquiriu por seu turno o rapaz, sem perder o anzol de vista.
- A que senhora velha te referes? Quero ir a casa de Miguel Nicolaich.
- Ah, a casa do senhor novo!... Então, siga pela direita.
E o rapaz deu um puxão à linha e tirou da água um cadozinho prateado, enquanto Astakov virava à direita.
Ipatov jogava às damas com o Paiu-Manãado quando lhe anunciaram a chegada de Astakov. Levantou-se precipitadamente, correu para a antecâmara e deu três beijos nas faces do visitante.
- Estou com o meu fiel amigo Ivan Ilich - informou -, o qual, diga-se de passagem, está muito satisfeito com a sua amabilidade.
Ao ouvir isto, Bodriakov olhou para um canto da sala, como era seu hábito sempre que falavam de si, e Ipatov continuou:
- Teve a bondade de ficar comigo, enquanto as meninas passeiam no jardim... Vanka, corre a buscadas, dize-lhes que a visita já chegou. Que lhe parece a nossa terra e a nossa paisagem? Kaburdine compôs versos em honra destes sítios; começam assim:
Ipatovka amável refúgio...
O resto afina pelo mesmo diapasão, mas já me esqueceu.
O jardim é grande, demasiado para os meus meios, e estas duas casas, tão maravilhosamente idênticas, foram construídas por dois irmãos, o meu pai, Nicolau, e o meu tio Sérgio. Eram dois amigos inseparáveis, como Dámon e... Como se chamava o outro?
- Pítio - murmurou Bodriakov.
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- Tens a certeza de que era esse o nome? - perguntou o velho. - Enfim, tanto faz. Devo dizer-lhe que sou viúvo; perdi a minha querida mulher. Os meus filhos mais velhos estão a ser educados em estabelecimentos da Coroa; tenho comigo as minhas duas filhas mais novas e a irmã da minha mulher. Já as vai ver... Mas, meu Deus, Ivan Ilich, porque me não lembraste que ainda não ofereci nada ao meu visitante? Que vodka prefere?
- Nunca bebo antes das refeições - respondeu Astakov.
- Como é possível?... Enfim, como lhe aprouver. "Deixa o teu visitante à vontade, pois assim serás digno dele." Aliás, como sabe, vivemos aqui com simplicidade. Isto não é um deserto, mas é um refúgio, um retiro isolado. Não se quer sentar?
Astakov sentou-se e conservou o chapéu nas mãos.
- Permita-me que lho leve - pediu Ipatov, tirando-lhe o chapéu, que foi colocar cuidadosamente numa cadeira.
Depois, voltou a sentar-se diante do visitante e, procurando ser amável, perguntou-lhe, esfregando as mãos: - Gosta de jogar às damas?
- Por princípio, não jogo nenhum jogo.
- Oh, isso é muito sensato da sua parte!... Mas as damas não são um jogo; são mais um divertimento, uma maneira agradável de matar o tempo. Não é verdade, Ivan Ilich?
- Sim... as damas... são inofensivas.
- O xadrez é outra coisa - continuou Ipatov. - Mas aí vêm as meninas - atalhou, olhando para a porta envidraçada.
Astakov virou-se e viu duas meninas dos seus dez anos, de vestidos cor-de-rosa e grandes chapéus de palha, as quais subiam rapidamente os degraus. Seguia-as a certa distância uma jovem que contaria mais ou menos vinte anos, alta e bem feita. Entraram as três na sala e as duas meninas fizeram uma reverência.
- Apresento-lhe as minhas duas filhas, Katia e Nasti - disse Ipatov. - Esta é a minha cunhada Maria Pavlona, de quem tive a honra de lhe falar.
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Astakov inclinou-se profundamente diante de Maria, a qual lhe correspondeu com um brusco movimento de cabeça. Tinha na mão uma pódoa de jardineiro, os seus abundantes cabelos castanhos escapavam-se um pouco em desordem de uma travessa que mal os conseguia segurar e uma folha prendera-se-lhe neles. O seu rosto queimado pelo sol adquirira bonitas cores em contacto com o ar puro, respirava agitadamente pelos lábios entreabertos, os olhos brilhavam-lhe e notava-se que acabara de correr. Além disso, algumas manchas no vestido escuro indicavam que estivera a trabalhar no jardim. Saiu imediatamente da sala e as duas meninas seguiram-na a correr.
- Mesmo na aldeia, as raparigas têm de cuidar um bocadinho do seu aspecto... -declarou o velho.
Astakov limitou-se a sorrir. Impressionara-o a figura de Maria; nunca vira beleza mais russa, mais característica da estepe. A jovem regressou pouco depois, sentou-se num sofá e ficou imóvel. Alteara e penteara rapidamente os cabelos, mas não mudara de vestido e nem sequer substituíra os punhos.
A sua expressão era mais arisca do que orgulhosa; tinha a testa larga e baixa e o nariz direito e curto; um sorriso vago e tímido mal lhe aflorava os belos lábios, um bocadinho carnudos e muito vermelhos. Na forma como franzia o sobrolho, em linha recta, notava-se certo desdém. Conservava os grandes olhos negros quase sempre baixos, como se dissesse: "Sei muito bem que estão todos a olhar para mim; isso aborrece-me, mas enfim, olhem-me à vontade." Quando erguia os olhos, havia no seu olhar uma expressão bravia, majestosa e assustada que o assemelhava ao olhar de uma corça. Era alta, elegante e possuía contornos impecáveis. Um poeta clássico compará-la-ia a Ceres ou a Juno.
- Que faziam no jardim? - perguntou-lhe Ipatov, que procurava fazê-la falar.
- Podávamos ramos mortos e sachávamos os canteiros - respondeu com voz de timbre um pouco baixo, mas suave e agradável ao ouvido.
- Ficaram muito cansadas?
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- As pequenas ficaram, eu não.
- Acredito; és uma autêntica Bobelina (1). Foram ver a avó?
- Fomos. Estava a dormir.
- Gosta de flores? - perguntou Astakov, metendo-se na conversa.
- Gosto.
- Por que motivo nunca levas chapéu quando sais?
- prosseguiu Ipatov. - Repara como estás afogueada e queimada.
A jovem passou silenciosamente uma das mãos pelo rosto, mãos pequenas, mas fortes e avermelhadas, pois nunca calçava luvas.
- Ocupa-se pessoalmente da jardinagem? - perguntou de novo Astakov.
- Ocupo.
Astakov aproveitou o ensejo para contar que um dos seus vizinhos e amigos, o príncipe N...; possuía um jardim magnífico.
- O chefe dos jardineiros, um alemão - acrescentou
- ganha dois mil rublos de prata.
Astakov não costumava mentir; contudo, aumentou quinhentos rublos ao salário do jardineiro...
- Como se chama esse jardineiro? - perguntou de súbito o Pau-Mandado, levantando-se.
- Não sei bem... Mayer ou Miller. Porque pergunta?
- É sempre útil saber um nome de família - respondeu o outro, sentando-se.
Astakov continuou a falar do príncipe N... As duas meninas entraram à sorrelfa, sentaram-se ao lado uma da outra e puseram-se a devorá-lo com os olhos, acotovelando-se de vez em quando.
- Igor Kapitonich acaba de chegar - anunciou um criado do limiar da porta.
- Manda-o entrar, manda-o entrar! - gritou Ipanov. Entrou acto contínuo um velhinho gordo e baixo,
de cara bochechuda e enrugada como uma maçã assada.
(1) Heroína de uma Insurreição dos Gresos contra os Turcos muito popular na Rússia. (N. do T.)
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Trazia labita de fazenda cinzenta com alamares pretos e gola rígida, e amplas calças de veludo que lhe ficavam muito acima dos tornozelos.
- Boas tardes, meu caríssimo amigo! - exclamou Ipatov, indo ao encontro do recém-chegado. - Há muito tempo que nos não víamos...
- É verdade - respondeu o outro, com voz queixosa e gutural, depois de cumprimentar cada um dos presentes -, mas como sabe, Miguel Nicolaich, não sou um homem livre.
- Porque diz que não é um homem livre?
- Por causa de Matrona Markovna!
- Por causa de... Matrona Markovna? - repetiu Ipatov, fazendo disfarçadamente sinal a Astakov para lhe chamar a atenção.
- Claro; toda a gente sabe isso - redarguiu Igor Kapitonich, sentando-se. - E o meu amigo também. Nunca está contente comigo. Seja o que for que eu diga, não é delicado, nem próprio, nem decente. Mas não é decente porquê? Só Deus sabe. E as meninas... as minhas filhas, quero eu dizer, seguem o exemplo da mãe. Não digo que Matrona Markovna não seja uma excelente mulher, a melhor das mulheres... Mas a respeito de maneiras é de uma severidade exagerada.
- Por favor, que têm de censurável as suas maneiras, Igor Kapitonich?
-É o que pergunto a mim mesmo. Mas enfim, ela é difícil de contentar. Ontem, por exemplo, disse à mesa: "Matrona Markovna (e Igor Kapitonich deu à voz a sua mais terna entonação); se me permites... parece-me que o nosso cocheiro não trata dos cavalos não sabe do seu ofício. O garanhão preto está hoje completamente exausto..." Assim que ouviu isto, Matrona Markovna ficou pior do que pólvora e começou a ralhar-me. "Não sabes falar decentemente na presença de senhoras?", perguntou-me. As meninas levantaram-se imedíatamente da mesa e hoje as outras meninas, as Biruleves, as sobrinhas da minha mulher, já sabiam tudo. Que disse eu de mal, é capaz de me dizer? É verdade que, às vezes, me exprimo um pouco cruamente; mas a quem
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não acontece isso sobretudo em sua casa? Pois bem, no dia seguinte as meninas Biruleves sabem tudo. Confesso que já não sei que fazer. Às vezes, estou sentado e ponho-me a pensar a meu modo. Como sabe, quando se pensa a respiração torna-se mais forte. Então, Matrona Markovna começa a ralhar comigo: "Não ressones", diz-me ela. "Quem é que ressona hoje em dia?" "Porque estás sempre a ralhar comigo, Matrona Markovna?", digo eu. "Devias ter compaixão das minhas enfermidades e em vez disso ralhas-me..." Agora, já não penso em casa; sento-me e deixo-me estar de olhos pregados no chão, como um garoto castigado. Garanto-lhe que tudo o que lhe digo é verdade. Mais um exemplo: uma noite destas, ao deitar-me, disse a Matrona Markovna: "Minha querida amiga, estragas completamente com mimos o teu lacaiozinho cossaco. Se esse porcalhão lavasse a cara pelo menos aos domingos..." Parece-me que me exprimi com ternura e subtileza. Pois não fui mais feliz; Matrona Markovna desatou a ralhar comigo e disse-me: "Não sabes comportar-te na presença de senhoras." E no dia seguinte as meninas Biruleves sabiam tudo. Depois disto, como quer que me apeteça fazer visitas, Miguel Nicolaich?
- Admira-me muito o que diz - redarguiu Ipatov. Matrona Markovna parecia-me...
- Oh, é uma excelente mulher! - interrompeu-o Igor Kapitonich. - Uma mãe, uma esposa exemplar; mas é demasiado severa no tocante a maneiras... Está sempre a dizer-me que em tudo é preciso de l'ensemble, e que eu não o tenho. Como sabe, não falo francês e compreendo-o muito mal; mas que ensemble é esse que não tenho? (1)
Ipatov, que não sabia mais francês do que o vizinho, limitou-se a encolher os ombros.
- E que fazem os seus filhos? - perguntou.
- Oh; dos meus filhos não tenho razão de queixa! Não são como as pequenas... Lolo é um rapaz inteligente;
(1) Nesta frase, a expressão francesa de l'ensemble está empregada no sentido de "ter maneiras distintas". (N. do T.)
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os seus superiores estão satisfeitos com ele. Quanto ao segundo, infelizmente é filantropo (1).
- Que quer dizer com isso?
- Que não quer ver ninguém que é um selvagem. A mãe está sempre a dizer-lhe: "Respeita o teu pai, mas não o imites em nada."
Neste momento entrou uma velha de lenço na cabeça e anunciou que o jantar estava pronto. Pouco depois, estavam todos sentados à mesa.
O jantar durou muito tempo e Ipatov fez as despesas da conversa. Maria, junto da qual tinham colocado Astakov, continuava a guardar silêncio, a despeito das amabilidades que ele lhe prodigalizava. Apenas de vez em quando sorria às duas garotas, que lhe vinham cochichar ao ouvido e das quais parecia gostar muito. O PaurMandado comia com a mesma preguiça com que fazia todas as coisas. Depois do jantar, foram tomar o café para o terraço. O tempo estava soberbo e o ar impregnado do perfume das tílias em flor. Uma brisa suave, vinda da lagoa e das grandes árvores temperava o calor de um dia de Verão. De súbito, ouviu-se no dique o galope de um cavalo e apareceu uma amazona de grande chapéu, cinzento, a qual se dirigiu para a casa. Seguia-a um cossacozinho montado num cavalo proporcionado ao seu tamanho.
- Aí vem Nadejda Alexeievna! - exclamou Ipatov. - Que agradável surpresa!
- Sozinha? - perguntou bruscamente Maria, levantando a cabeça
- Sozinha. Provavelmente, alguma coisa reteve Piotr Alexeich.
Um vivo rubor coloriu o rosto de Maria, que se virou para o ocultar. Entretanto, a amazona, que entrara no jardim por uma portinha, aproximou-se do terraço a todo o galope e saltou ligeiramente para o chão sem esperar pelo seu cossaco nem por Ipatov, que se apressara
(1) Evidentemente, a personagem queria dizer misantropo, como se infere da resposta que dá a seguir, e só por ignorância trocou as palavras. (N, do T.)
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a ir ao seu encontro. Apanhando com desembaraço a cauda da saia, a recém-chegada subiu a correr os degraus do terraço e gritou alegremente:
- Cá estou!
- Seja bem-vinda - respondeu Ipatov. - A sua visita tem tanto de amável como de encantadora e inesperada. Permita-me que lhe beije a mão.
- À vontade. Mas tem de me descalçar a luva... Macha, imagina que o meu irmão não vem hoje.
- Bem vejo que não veio - respondeu Maria a meia voz.
- Tinha que fazer; não te zangues... Boas tardes, Igor Kapitonich; boas tardes, meninas; boas tardes a todos... Vassa - disse, virando-se para o cossacozinho -, vai passear Krasavchick. Macha, dá-me um alfinete para prender a cauda do vestido... Ai! Piquei-me... Miguel Nicolaich, venha cá.
Ipatov aproximou-se dela.
- Quem é aquela nova personagem, tão grave? perguntou em voz bastante alta.
- É o nosso vizinho Astakov, como sabe, o proprietário de Sassovo. Quer que lho apresente?
- Mais tarde... Ah, que belo tempo! Igor Kapitonich, será possível que Matrona Markovna lhe ralhe mesmo com um tempo tão bonito?
- Matrona Markovna nunca me ralha; apenas...
- E as meninas Biruleves? Sabem tudo no dia seguinte, não é verdade?
E soltou uma grande gargalhada.
- Está sempre a rir - observou Igor. - Aliás, quando é que se havia de rir, se não se risse na sua idade?
- Igor, meu querido amigo, não se zangue que eu dou-lhe um beijo... Ah, estou cansada! Permitam-me que me sente.
Atirou-se para cima de uma cadeira de braços e enterrou, com um gesto brusco, o chapéu até aos olhos.
- Permita-me, Nadejda Alexeievna, que tenha a honra de lhe apresentar o nosso vizinho Astakov, de quem certamente já ouviu falar.
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Astakov cumprimentou com ar afectado e Nadejda olhou-o por baixo da aba do chapéu.
- Nadejda Alexeievna Veretiev - continuou Ipatov, virando-se para o seu hóspede - vive aqui com o irmão, Piotr Alexeich, tenente das Guardas reformado. É uma grande amiga da minha cunhada e muito estimada por todos nós.
Um autêntico atestado de bons serviços - observou a dama, continuando a deitar por baixo do chapéu olhares maliciosos a Astakov.
Este mantinha-se muito direito e entretanto dizia para consigo: "Esta também é muito bonita."
De facto, Nadejda era uma mulher encantadora. Esbelta e delgada, parecia mais nova do que era na realidade, pois já fizera vinte e seis anos. Possuía cara redonda, cabeça pequena, cabelos compridos, finos e leves, um narizinho maliciosamente arrebitado e olhos em que a malícia e a vivacidade pareciam faiscar. Todas as feições do seu rosto eram singularmente instáveis e adquiriam muitas vezes uma expressão cómica que alternava com um ar reflectido, bondoso, que perpassava com a rapidez do relâmpago. Notava-se que fora muito mimada na infância, pois as crianças mimadas conservam toda a vida sinais disso. Descobria com facilidade o lado ridículo das pessoas e era até excelente caricaturista. O irmão dedicava-lhe uma grande ternura, embora costumasse afirmar que ela picava, não como as abelhas, mas sim como as vespas, porque a abelha morre da ferroada e a vespa não sofre qualquer dano
- comparação que sempre a fazia zangar.
- Demora-se por cá muito tempo? - perguntou bruscamente a Astakov, baixando os olhos e rodando o pingalim entre os dedos.
- Não, tenciono partir amanhã.
- Pará ir?...
- Para casa.
Fazer o quê?
- Fazer o quê?... Tratar de negócios inadiáveis.
- É assim um homem tão meticuloso?
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- Esforço-me por o ser. Nestes tempos positivos, todo o homem que se preze deve ser positivo e meticuloso,
Nadejda levantou a aba do chapéu e Ipanov exclamou:
- Meu Deus, como ele fala com convicção! Não é
verdade, Bodriakov?
O Pau-Mandado assentiu com um olhar e Igor acrescentou:
- É precisamente a opinião de Matrona Markovna.
- Lamento que essa verdade seja tão bem reconhecida- prosseguiu Nade a-, mas, francamente, faria melhor se ficasse aqui. Falta-nos quem desempenhe os papéis de galã. Já representou comédias?
- Confesso que esse género de ocupação nunca me
interessou.
- Estou certa de que daria um bom actor. Tem um ar tão... imponente! É do que precisam agora os galãs. O meu irmão e eu tencionamos instalar aqui um teatro, mas não para representar apenas comédias. Representaremos tudo: dramas, bailados e até tragédias. Que falta a Macha para desempenhar o papel de Cleópatra ou de Fedra? Observe-a.
Astakov virou-se para observar a jovem. com a cabeça encostada à ombreira da porta e os braços cruzados no peito, Maria olhava para longe, com ar pensativo, e as suas feições, regulares e harmoniosas, lembravam, com efeito, naquele momento, o perfil das figuras antigas. Não ouvira as últimas palavras de Nadejda, mas notando que de súbito todos a observavam adivinhou com que intenção, corou e procurou afastar-se. Nadejda pegou-lhe na mão e, com a meiguice provocante de um gatinho, puxou-a para si e depositou um beijo naquela mão quase masculina. Maria corou ainda mais.
- Estás sempre a fazer loucuras, Nadia.
- Não disse a verdade? Peço a opinião de todos. Vamos, acalma-te, não insistirei mais... Mas repito continuou, virando-se para Astakov - que é pena o senhor ir-se embora. Temos um galã que se ofereceu pessoalmente, mas é muito mau...
- Quem é?
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- Bodriakov, o poeta. Como quer que um poeta seja um bom galã? Primeiro, veste-se de uma forma pavorosa, e depois dizem que escreve epigramas e, contudo, tem medo das mulheres. Até de mim, imagine... Gagueja e conserva sempre uma das mãos mais alta do que a cabeça. Enfim... diga-me, Senhor Astakov, todos os poetas são assim?
- Nunca conheci pessoalmente nenhum - respondeu Astakov, empertigando-se - e confesso que também nunca procurei conhecê-los.
- Sim, é verdade, o senhor é um homem positivo... Que fazer? Temos de aceitar Bodriakov. Os outros galãs são ainda piores... Esse ao menos decorará o papel; tem boa memória, pois é graças a ela que faz versos... Macha, além dos papéis trágicos, fará também o papel de prima donna. Ainda a não ouviu cantar?
- Não - respondeu Astakov, com ar interessado e surpreendido. - Não sabia que...
- Que tens tu hoje, Nadia? - atalhou Maria, aborrecida.
Nadejda levantou-se bruscamente e atirou o chapéu para cima de uma cadeira.
- Em nome do Céu, Macha, canta-nos qualquer coisa, por favor. Não te deixarei em paz enquanto não te ouvirmos. Vamos, Macha, minha querida, eu própria cantaria para divertir este senhor, que se aborrece visivelmente, mas bem sabes como a minha voz é desagradável. Em contrapartida, estou pronta a acompanhar-te...
- Têm de se te fazer todas as vontades - redarguiu Maria, depois de um momento de silêncio. -És uma menina mimada, habituada a que te satisfaçam todos os caprichos. Pronto, vou cantar.
- Bravo, bravo! - gritou Nadejda. batendo as mãos.
- Meus senhores, para o salão! Quanto aos meus caprichos - acrescentou, ameaçando-a com o dedo -, pagar-mas-ás para a outra vez... Achas bem desvendar assim as fraquezas das pessoas diante de desconhecidos? Igor Kapitonich, é assim que Matrona Markovna o faz corar diante de estranhos?
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- Matrona Markovna é uma mulher respeitabilíssima
- murmurou Igor. - Apenas...
- Está bem, está bem - atalhou Nadejda, e dirigiu-se a saltitar para o salão.
Todos a seguiram. Sentou-se ao piano, Maria deteve-se a poucos passos dela, com as mãos atrás das costas, e encostou-se à parede.
- Macha - disse Nadejda, depois de um momento de reflexão -, canta-nos O Camponês Semeia Trigo.
Maria cantou. Possuía uma voz sonora e pura e cantava com simplicidade, mas com expressão. Todos a escutaram com prazer e Astakov não pôde ocultar a sua surpresa. Assim que a jovem terminou, aproximou-se dela para lhe dizer que depois de ouvir todos os artistas da capital nunca acreditaria...
- Espere, vai ver coisas ainda mais extraordinárias interrompeu-o Nadejda. - Macha, vou satisfazer a tua alma de pequena russiana; canta-nos Ergue-se um Prolongado Ruído na Floresta.
- É dessa região, da Pequena Rússia? - perguntou
Astakov.
- É a minha pátria - respondeu Maria, e começou
imediatamente a cantar.
Cantou os primeiros versos com voz suficientemente calma, mas em breve aquela melodia melancólica e pungente, que lhe recordava a terra natal, a mergulhou numa profunda comoção. Os seus olhos brilharam, adquiriram uma expressão orgulhosa, e a sua voz vibrou fortemente.
- Meu Deus, cantaste tão bem que o meu irmão lamentará não ter vindo! - exclamou Nadejda.
Maria baixou imediatamente a cabeça, que levantara, e sorriu com o sorriso amargo que lhe era habitual.
- Canta mais qualquer coisa - pediu Ipatov.
- Oh, sim, por favor! - acrescentou Astakov.
- Desculpem-me; mas não canto mais hoje - respondeu Maria, e saiu bruscamente da sala.
Nadejda seguiu-a com a vista, pareceu reflectir um momento, sorriu e pôs-se a tocar com um só dedo a canção O Camponês Semeia Trigo, Depois, de repente,
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começou a tocar uma polca movimentada e, sem a acabar, fechou o piano e levantou-se.
- Que pena não podermos dançar neste momento! Porque suponho que o senhor não dança... - insinuou, dirigindo-se a Astakov.
- Maria Pavlovna tem uma belíssima voz - respondeu ele, em tom sentencioso.
- Quer dizer que gosta de música? - perguntou Nade jda.
- Certamente.
- Um homem tão sisudo e gosta de música!... -Quem lhe disse que sou...?
-Oh, perdão, queria dizer um homem tão positivo!... Mas que é feito de Macha? Espere, vou buscá-la.
E Nadejda saiu a correr.
- Uma estouvada, uma louca, como vê - disse Ipatov. - Mas tem excelente coração e recebeu uma educação esmerada. Não imagina o que ela sabe. Fala todas as línguas! Aliás, isso compreende-se, pois são pessoas ricas.
- É muito amável, sem dúvida - respondeu Astakov, com ar distraído. - Mas, perdão... a sua mulher era da Pequena Rússia?
- Sim, a minha defunta era pequena russiana e até nem falava o russo correctamente. Quanto a Maria, o caso é diferente; veio muito nova para a Rússia. Mas o sangue revela-se sempre... Viu como ela cantou? Ah, não se pode dizer mal da sua terra na sua presença!
- É uma terra que nos pertence - declarou gravemente Astakov. - Dizer mal dela seria impolítico.
- Tem razão. Mas onde se terão metido? São horas de tomar o chá.
As duas amigas estiveram muito tempo ausentes e Ipatov viu-se obrigado a mandá-las chamar diversas vezes. Por fim, regressaram, Maria serviu o chá e Nadejda aproximou-se do terraço e pôs-se a olhar para o jardim.
Ao calor de um dia de Verão sucedia-se uma noite calma e agradável. O crepúsculo abrasava o céu; na lagoa, semipurpureada pelos clarões do poente e semi-sombreada
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pela noite que caía, as árvores e as casas reflectiam-se, imóveis e invertidas. Tudo se acalmava, tudo se calava em redor.
- Repare - disse Nadejda a Astakov, que se aproximara. - Veja como é bonito! Ali, na lagoa, reflecte-se uma estrela mesmo ao pé de uma luz acesa na casa. Uma é dourada e a outra vermelha... Olhe, aí vem a avó! - acrescentou em voz alta.
Apareceu uma calecinha de criança detrás de um tufo de lilases, puxada por dois homens. Dentro dela vinha uma velhinha muito agasalhada, com o rosto amarelecido e engelhado quase completamente oculto pelas rendas da touca. A caleça parou diante do terraço e a dama anunciou-se por meio de uma tossezinha seca. Ipatov saiu imediatamente ao seu encontro, seguido pelas duas filhas, que durante toda a tarde não tinham cessado de entrar e sair.
- Boas noites, minha mãe - cumprimentou Ipatov, erguendo a voz o mais possível. - Como está?
- Vim ver o que estavam a fazer - respondeu a anciã, com esforço e com voz abafada. - O tempo está tão bonito! Dormi todo o dia e as minhas pernas acabam de me acordar. Oh, estas pernas!... Só servem para me
fazer sofrer.
- Permita-me, minha mãe, que lhe apresente o nosso
vizinho, o Senhor Astakov.
- Muito prazer - disse a velha, pousando no visitante os olhos grandes e negros, já mortiços. - Peço-lhe que seja amigo do meu querido filho. É um excelente rapaz. Dei-lhe a educação que pude, a que está ao alcance de uma mulher. É ainda muito cabeça no ar, mas temos de esperar que, com a ajuda de Deus, a idade o torne mais sensato. Desejo-o muito, pois é tempo de eu entregar a outrem a administração da casa... És tu,
Nadia?
- Sou, sim, avó.
- Que é feito da Macha?
- Está a servir o chá.
- Hum!... Ela sabe fazer isso? Quem mais está aí?
- Ivan Ilich e Igor Kapitonich.
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- O marido de Matrona Markovna?..?
- Esse mesmo, avó.
A velha murmurou ainda mais algumas palavras ininteligíveis.
- Está bem - disse por fim. - Escuta, Micha, estou farta de mandar chamar o estarosta e ele não aparece. Dize-lhe que se apresente amanhã muito cedo; tenho uma quantidade de ordens para lhe dar. Se não fosse eu, andava para aí tudo ao deus-dará. E agora basta; estou cansada. Eh, vocês, levem-me daqui! Adeus, adeus, meu caro - acrescentou, virando-se para Astakov. Esqueci-me do seu nome; desculpe uma pobre velha. E vocês, pequenas, não me acompanhem; não vale a pena. Só pensam em correr... Deixem-se estar sentadas e aprendam as suas lições, ouviram? Macha estraga-as com mimo... Vamos, sigam.
A cabeça da pobre senhora, que levantara com esforço, voltou a cair-lhe para o peito e a caleça afastou-se.
- Que idade tem a sua mãe? - perguntou Astakov.
- Tem apenas setenta e quatro anos, mas há vinte e seis que está completamente entrevada. Adoeceu pouco depois da morte do meu pai. Era muito bela.
Todos se calaram por instantes.
- Que horror! - exclamou Nadejda. - Acaba de passar um morcego.
E entrando precipitadamente no salão acrescentou:
- São horas de me ir embora. Miguel Nicolaich, mande selar o meu cavalo.
- Também me vou embora - disse Astakov.
- Como, como? - interveio Ipatov. - De modo nenhum, o senhor passa cá a noite! São doze verstas bem puxadas... E a si, Nadejda Alexeievna, que a apressa? Espere ao menos que nasça a lua.
- Boa ideia! - respondeu a jovem. - Há muito tempo que não monto a cavalo ao luar.
- Então, está dito. E quanto ao senhor, Vladimiro Sergeich, vou mandar arranjar-lhe um quarto.
Trouxeram luzes. Ipatov e Igor puseram-se a jogar às cartas e o Pau-Mandado instalou-se silenciosamente junto deles.
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- Sim, é fascinante montar a cavalo ao luar, sobretudo quando se atravessam bosques de aveleiras prosseguiu Nadejda. - O medo que se sente ainda torna a experiência mais excitante... Que estranho jogo de luzes e sombras! Imagina-se sempre que alguém nos precede, ou nos segue, ou se insinua junto de nós.
Astakov encorajou-a com um sorriso protector.
- Mais - prosseguiu ela -, nunca lhe aconteceu estar sentado, numa noite muito quente e escura, na orla de um bosque? A mim parece-me que duas pessoas discutem e cochicham junto do meu ouvido.
- É o sangue - disse Ipatov, jogando uma carta.
- As suas descrições são muito poéticas - observou Astakov, por seu turno.
- Acha? Nesse caso, não devem agradar a Macha.
- Porquê? Maria Pavlovna não gosta de poesia?
- Não. Acha que tudo isso é composto, falso, e tem horror a tudo o que não é verdadeiro.
- Que singular opinião! Composto... Como queria que procedessem aqueles que compõem versos?
- Mas o senhor também não deve gostar de poesia...
- Pelo contrário, gosto de versos quando, por um lado, são harmoniosos e, por outro, exprimem um pensamento... o que em França se chama une idée... uma ideia, compreende o que quero dizer?
Maria levantou-se.
- Aonde vais? - perguntou Nadejda.
- Deitar as crianças. São quase nove horas.
- Podem-se deitar muito bem sem ti. Ora essa, quando este senhor se torna eloquente é que te queres ir embora?
Maria tomou as duas garotas pela mão e afastou-se.
- Hoje não está de bom humor e eu sei porquê observou Nadejda. - Mas aquilo passa-lhe...
- Dá-me licença que lhe pergunte se tenciona passar o Inverno em Sampetersburgo? - indagou Astakov.
- Não sei, tenho medo de me aborrecer...
- Aborrecer-se em Sampetersburgo! Como seria isso possível?
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E Astakov pôs-se a descrever-lhe os encantos da vida na capital. Nadejda escutava-o com atenção, sem desviar os olhos dele. Parecia estudar-lhe a fisionomia e sorria intimamente.
- Não se arrependeria-disse Astakov, terminando a sua descrição.
- Nunca me arrependo. Quando fazemos uma tolice, devemos esforçar-nos por a esquecer o mais depressa possível, e pronto.
- Permite-me que lhe pergunte ainda - prosseguiu Astakov, desta vez em francês - se conhece há muito tempo Maria Pavlovna? Como é a sua família? São pessoas ricas, distintas?
- Permite-me que lhe pergunte por meu turno por que motivo me pergunta isso em francês? - volveu-lhe Nadejda.
- Não sei se...
- Ah, mas sei eu! Maria é uma rapariga encantadora... que fala mal o francês - acrescentou ela, depois de uma pausa.
- É com certeza muito original... - murmurou Astakov.
- Original!... Devo considerar isso um elogio na sua boca, na boca de um homem positivo? E eu? Também lhe pareço talvez uma original... Ah, creio que a lua já nasceu! Vê-se o seu reflexo por cima dos choupos. Tenho de me ir embora. vou mandar selar Krasavchick.
- Já está selado - disse o cossacozinho de Nadejda, aparecendo na faixa de luz que se projectava do salão no jardim.
- Óptimo! Macha, onde estás? Vem dizer-me adeus. Maria saiu da sala vizinha e os homens levantaram-se
da mesa de jogo.
- Já se vai embora? - perguntou Ipatov.
- vou, são horas.
E dirigindo-se para a porta envidraçada, exclamou:
- Oh, que noite! Venham cá todos, deitem a cabeça de fora. Não notam como a noite respira? Que perfume! Enquanto as flores acordam, nós vamos dormir... A propósito,
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Macha, disse ao Senhor Astakov que não podes suportar a poesia. Cá está o meu cavalo. Adeus a todos. Desceu a correr os degraus, saltou agilmente para a sela e despediu-se:
- Até amanhã!
E, batendo com o pingalim no pescoço do cavalo, partiu a galope pelo dique, enquanto todos a seguiam com a vista.
- Até amanhã! - repetiu, já detrás dos choupos. Ouviu-se ainda durante muito tempo o ruído dos
cascos do cavalo, que pouco a pouco se perdeu no silêncio da noite. Ipatov sugeriu que voltassem a entrar em casa.
- É muito agradável estar cá fora - disse -, mas é melhor recomeçarmos a nossa partida.
Entraram e Astakov interrogou de novo Maria.
- Porque não gosta de poesia? - perguntou-lhe.
- Não aprecio versos - respondeu a jovem.
- Talvez porque tem lido poucos...
- Nunca li nenhuns. Os que conheço têm-me sido lidos.
- Nem sequer lhe agradam os de Puschkine?
- Nem mesmo esses.
- Porquê?
Maria não respondeu, mas Ipatov inclinou-se por cima do espaldar da cadeira e observou, com um sorriso benevolente que não era só de versos que Maria não gostava; também não gostava de açúcar e, em geral, de nada doce.
- Mas há versos que não são doces! - exclamou Astakov.
- Quais, por exemplo? - perguntou Maria. Astakov coçou a orelha. Ele próprio sabia poucos
versos de cor e perguntar se havia um exemplar de Puschkine em casa de Ipatov seria loucura.
- Aqui tem uns - disse por fim. - Conhece O Anichar a Árvore da Morte? Não se pode dizer que essa poesia seja doce...
- Recite-a - pediu Maria, baixando a cabeça.
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Astakov ergueu os olhos ao tecto, franziu o sobrolho, tomou uma atitude grave e obedeceu (1).
Depois da primeira estrofe, Maria levantou vagarosamente os olhos e cravou-os em Astakov. Quando ele terminou, pediu:
- Por favor, repita-a.
Astakov recitou de novo O Anichar e, quando acabou, Maria foi à outra sala, voltou pouco depois com uma pena e papel, e disse-lhe:
- Por favor, escreva-me essa poesia.
- com muito prazer. Mas admira-me, confesso, que estes versos lhe tenham agradado. Citei-os apenas para lhe provar que nem todos os versos são doces. Aqui os tem - acrescentou, colocando um grande ponto de exclamação no fim do último.
Maria agradeceu-lhe e guardou a folha.
Cerca de meia hora mais tarde, servida a ceia, cada um recolheu ao seu quarto. Durante a refeição, Astakov esforçou-se inutilmente por fazer Maria falar; era difícil entabular conversa com ela e as anedotas que lhe contava só mediocremente interessavam à sua vizinha, apesar de as rodear das expressões mais escolhidas.
(1) Eis os versos, que o autor não incluiu no original talvez por estarem proibidos pela censura:
No meio de um deserto avaro e magro, num solo calcinado pelo calor ardente, ergue-se o antchar, como uma sentinela terrível, única em todo o universo.
A Natureza, mãe das estepes eternamente agitadas, criou-o num dia de cólera e impregnou de veneno subtil a verdura morta dos seus ramos, e até as suas raízes.
O veneno ressuma através da casca, derretido pelo calor do meio-dia, e à tardinha condensa-se em grossas lágrimas transparentes.
Nenhuma ave voa à sua volta, nenhum animal se aproxima dele: apenas o negro turbilhão choca com a árvore da morte e foge, já empestado.
Se uma nuvem errante humedece a sua folhagem antiga, a chuva escorre, já empeçonhada, dos seus ramos para a areia escaldante.
Mas um homem, com um olhar imperioso, envia ao anichar um outro homem, e este, docilmente, põe-se a caminho e volta, no dia seguinte, com o veneno.
Traz o látice mortal e um ramo de folhas secas, e o suor escorre-lhe em regatozinhos gelados da testa pálida.
Trá-lo submisso e deita-se na esteira da cabana, e o pobre escravo morre aos pés do senhor invencível.
E o príncipe manda embeber no veneno a ponta das suas leais flechas e com elas envia a morte aos reinos vizinhos. (N. do T.)
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Quando se deitou, Astakov não pôde deixar de pensar em Maria e Nadejda; no entanto, depressa teria adormecido se o seu vizinho Igor Kapitonich o não impedisse. com efeito, ao marido de Matrona Markovna, já despido e metido na cama, deu-lhe para ter uma longa conversa com o criado e para lhe pregar moral. Ora, como os dois quartos estavam separados por uma parede delgada, todas as suas palavras chegavam distintamente aos ouvidos de Astakov.
- Segura a vela diante do peito - dizia Igor Kapitonich, com voz lacrimosa. - Segura-a de modo que te veja a cara. Fazes-me velho, homem sem consciência, fazes-me envelhecer por completo.
- Por favor, Igor Kapitonich, diga-me por que motivo o faço envelhecer - respondia a voz rouca e ensonada do criado.
- Porquê? Já te digo porquê... Quantas vezes te tenho dito: "Mitka, quando vens comigo a qualquer parte, de visita, traz-me sempre duas mudas de roupa, sobretudo... (segura a vela diante do peito) sobretudo de roupa branca." E que fizeste hoje?
- Que foi?
- Que foi? Que visto eu amanha?
- O que vestiu hoje...
- Fazes-me velho, patife, fazes-me velho. Hoje já eu me vi aflito, por causa do calor!... Segura na vela e não durmas quando o teu senhor te dá a honra de conversar contigo.
- Mas Matrona Markovna disse-me que era suficiente. "Porque levam tantas coisas?", perguntou-me. "Só serve para as estragar."
- Matrona Markovna! Achas próprio das senhoras meterem o nariz nessas coisas, grosseirão? Todos, todos vocês me fazem velho.
- Mas Yakhim disse a mesma coisa... Que estás para aí a alanzoar?
- Digo o que Yakhim disse...
- Yakhim, Yakhim! - repetiu Igor, em tom de censura. - Que sabe essa gente sem fé nem lei, que nem sequer sabe falar russo? Yakhim! Quem é Yakhim?
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Bem vistas as coisas, deve-se dizer Yephim, porque, o nome desse santo é Ephymus, em grego, ouviste? Quando se está com pressa, compreende-se que se diga Yephim, mas nunca Yakhim. Yakhim!... Todos vocês me fazem velho, patifes. Segura na vela!
Igor Kapitonich continuou ainda durante muito tempo a repreender o criado, apesar dos suspiros e da tossezinha de impaciência que Astakov fazia ouvir. Por fim, o vizinho mandou embora o infeliz Mitka e adormeceu. Mas nem por isso Astakov ficou mais descansado. Igor tinha o hábito de ressonar com tanta força e tão alto, com tais passagens de graves para agudos, que a própria parede divisória parecia queixar-se. Além disso, o ar do quartinho onde dormia Astakov era pesado e bafiento e a cama tinha como cobertura um edredão. Incapaz de dormir, levantou-se, abriu a janela e respirou com prazer o ar fresco da noite.
A janela dava para o jardim. O céu estava límpido e o disco da Lua-cheia tão depressa se reflectia, muito redondo, na lagoa, como se prolongava num comprido feixe de palhetas douradas que se agitava suavemente. Num dos carreirinhos do jardim, Astakov distinguiu uma figura de mulher. Observou-a atentamente e reconheceu Maria. Estava imóvel e tinha o rosto pálido iluminado pelo luar. De súbito, a jovem começou a falar, Astakov estendeu a cabeça com precaução e ouviu estas palavras: "Um homem com um olhar imperioso, envia ao antchar um outro homem..."
"Parece que os meus versos produziram efeito...", disse para consigo.
Observando melhor Maria, era-lhe possível distinguir os seus grandes olhos negros e as suas sobrancelhas severas. Naquele momento, a jovem estremeceu, virou a cabeça como se alguém a tivesse chamado e penetrou rapidamente na sombra densa de uma alameda de acácias. Astakov ficou ainda mais algum tempo à janela e depois acabou por se voltar a deitar.
"Que rapariga estranha!", pensava, virando-se na cama. "E ainda há quem diga que não acontece nada
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interessante na província! Que rapariga estranha! Hei-de perguntar-lhe amanhã que fazia no jardim, esta
noite..." Entretanto, Igor Kapitonich continuava a ressonar.
No DIA seguinte, Astakov acordou muito tarde e, depois do chá tomado em comum na sala de jantar, regressou a casa para acabar as contas, apesar de todas as instâncias do seu anfitrião. Maria assistiu ao pequeno almoço, mas Astakov achou que a não devia interrogar a respeito do seu passeio nocturno. Era um desses homens que têm dificuldade em se entregar dois dias seguidos a pensamentos estranhos à sua vida habitual, e como teria de falar de poesia achava que fora bastante abandonar-se uma vez a tais devaneios. Passou todo o dia no campo, almoçou com excelente apetite, dormiu a sesta e quando acordou pediu as contas. Mas depois de verificar algumas somas, mandou atrelar o tarantasse e partiu para Ipatovka. Por muito que se seja um homem positivo, nem por isso se é obrigado a ter um coração de pedra no peito e ninguém gosta de se aborrecer mais do que os seus semelhantes.
Astakov estava ainda no dique quando ouviu ruído de vozes e instrumentos. Em casa de Ipatov cantavam-se canções russas em coro e foi lá encontrar toda a gente que deixara de manhã, aumentada de Nadejda. Estavam todos sentados à roda no chão, em torno de um homem dos seus trinta anos, moreno, de olhos e cabelos negros, casaco de veludo, lenço vermelho atado negligentemente ao pescoço e viola na mão. Era Piotr Alexeich Veretiev, o irmão de Nadejda. Assim que viu Astakov, Ipatov soltou uma exclamação de alegria e apresentou-o ao novo músico. Astakov cumprimentou-o com a maior cortesia e depois inclinou-se profundamente diante da irmã.
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- Estamos a cantar canções em coro à moda dos mujiques - disse Ipatov - e é ele que nos dá o tom. Não imagina como tem jeito! Mas vai ouvi-lo...
- Quer entrar no nosso coro? - perguntou-lhe Nadejda.
- Entraria com prazer, mas não tenho voz...
- Não faz mal. Igor Kapitonich canta bem e eu não lhe fico atrás. Basta que acompanhe os outros... Sente-se. E tu, irmão, começa.
- Um momento. Que canção vamos cantar? - perguntou Veretiev, dedilhando harpejos na viola; e deitando um olhar a Maria, que estava sentada perto dele, acrescentou: - Creio que é a sua vez de começar.
- Não, cante o senhor - replicou a rapariga.
- Há uma canção chamada Descendo a Nossa Mãe Volga (1) - sugeriu Astakov -, mas não sei se a conhecem...
- Creio que sim - respondeu Veretiev -, mas é melhor guardá-la para o fim.
E, percutindo as cordas, entoou com voz sonora outra canção popular: O Sol Declina.
Cantava muito bem, com estilo e vivacidade. Enquanto o seu rosto másculo e expressivo se animava pouco a pouco, sacudia os ombros bruscamente e dedicava toda a atenção às cordas da viola; depois, levantava-a de súbito, agitava os cabelos anelados e, passeando um olhar autoritário à sua volta, dava entrada ao coro. Tivera ensejo de ouvir muitas vezes, em Moscovo, o célebre Ilia e imitava-o perfeitamente. A voz de Maria sobressaía no meio das outras como uma onda sonora e todas as restantes pareciam seguir a sua; no entanto, a rapariga obstinava-se em não querer cantar sozinha e, por isso, Veretiev desempenhou até ao fim o papel de corifeu, pois cantaram-se muitas mais canções. A tarde ia adiantada e aproximava-se uma tempestade. Desde o meio-dia que se ouvia trovejar ao longe. De súbito, uma grande nuvem que até ali permanecera quieta no horizonte como uma barreira de chumbo,
(1) Em russo, Volga é do género feminino. (N. do T.)
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começou a estender-se a alongar-se por cima da copa das árvores. O ar principiou a fremir, sacudido pelos trovões que se aproximavam, o vento soprou e agitou violentamente as folhas, acalmou-se um momento e voltou a soprar com mais força, imitindo silvos agudos. Trevas lúgubres estenderam-se rapidamente sobre a terra e extinguiram os derradeiros clarões do crepúsculo; nuvens baixas e compridas correram à rédea solta no céu, como se tivessem quebrado de súbito as suas cadeias; a chuva caiu em grandes pingos, um relâmpago rubro rasgou as trevas e o trovão, em linha vertical, ribombou com estrépito.
- Vamo-nos embora depressa se não nos queremos molhar - disse Ipatov.
Todos se levantaram.
- Esperem! - exclamou Veretiev. - Só mais uma canção... Minha casa, minha casinha, minha casa nova
- começou a cantar a plenos pulmões, percutindo as cordas com os cinco dedos e olhando, de cabeça levantada, a tempestade ameaçadora.
- Minha casa, minha casinha, minha casa nova repetiu o coro, arrastado involuntariamente por Veretiev.
Começou a chover torrencialmente, mas Veretiev cantou a Minha Casinha até ao fim. Abafada de vez em quando pelos trovões, a alegre cançoneta parecia ainda mais intrépida cantada ao som da chuva e das rajadas de vento. Por fim, ouviu-se a derradeira exclamação do coro e todos, correndo e rindo, entraram no salão. Quem mais ria eram as duas garotas, enquanto sacudiam os vestidos molhados. No entanto, Ipatov mandou fechar todas as janelas e Igor Kapitonich aprovou muito semelhante precaução, dizendo que, na opinião de Matrona Markovna, a electricidade se propagava melhor no vácuo. O Pau-Mandado olhou-o com ar espantado, deu um passo atrás e derrubou uma cadeira. Pequenos contratempos deste género aconteciam-lhe a cada instante...
A tempestade passou depressa. Voltaram a abrir-se portas e janelas e a casa encheu-se de um perfume
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húmido. Depois de servido o chá, as pessoas idosas entretiveram-se a jogar às cartas, observadas pelo inevitável Bodriakov, que não jogava mas gostava de ver jogar.
Astakov ia a aproximar-se de Maria, que estava sentada ao lado de Veretiev, mas Nadejda chamou-o para junto de si e embrenhou-se imediatamente numa animada conversa acerca de Sampetersburgo e da vida que lá se levava. Como a jovem atacasse os hábitos da capital, Astakov julgou-se no dever de os defender.
- A respeito de que estão a discutir? - perguntou Veretiev, levantando-se e dirigindo-se para junto deles.
Caminhava com indolência e notava-se em todos os seus movimentos, quando o não animava a vivacidade de que dera provas pouco antes, uma espécie de preguiça que tanto podia ser de indiferença como de fadiga.
- De Sampetersburgo - respondeu Nadejda. - O Senhor Astakov não se cansa de a louvar.
- É uma bela cidade - concordou Veretiev. - Aliás, na minha opinião, em qualquer parte se está bem; desde que haja mulheres e, desculpem-me a franqueza, vinho, um homem não precisa de mais nada para se sentir satisfeito.
- O senhor espanta-me - redarguiu Astakov. - Será possível que seja de opinião que um homem civilizado não precisa...?
- Absolutamente - interrompeu-o Veretiev, que, a despeito da sua delicadeza, tinha o hábito de não deixar acabar as frases começadas. - No entanto, confesso que o assunto não é da minha competência; não sou filósofo...
- Também não sou filósofo - replicou o outro - nem tenho a mais pequena intenção de o vir a ser, mas apesar disso...
Veretiev deitou um olhar distraído à irmã, que lhe disse em voz baixa, sorrindo levemente:
- Petrucha, se não te importas imita Igor Kapitonich. Dá-nos esse prazer...
O rosto de Veretiev modificou-se de súbito e, sem se saber por que milagre, tornou-se muito parecido com
o de Igor, embora não houvesse nada de comum entre ambos e Veretiev se tivesse limitado a franzir um pouco o nariz e a descer as comissuras dos lábios.
- Evidentemente - murmurou, imitando a voz de Igor-, Matrona Markovna é uma dama muito severa no tocante a maneiras, mas é também uma esposa exemplar. Claro que, seja o que for que eu diga...
- As meninas Biruleves sabem tudo - interrompeu-o Nadejda, contendo a custo uma gargalhada.
- Sim, sabem tudo, logo no dia seguinte - continuou Veretiev, com expressão tão cómica e um olhar tão consternado e suplicante que Astakov não pôde deixar de sorrir.
- O senhor é um imitador consumado- declarou. Veretiev passou a mão pela cara e as suas feições
readquiriram imediatamente a sua forma habitual.
- É capaz de imitar toda a gente! - exclamou Nadejda. - Não há quem lhe leve a palma a fazer imitações.
- Acha que seria capaz de me imitar? - perguntou Astakov.
- Decerto - respondeu Nadejda.
- Nesse caso... imite-me, por favor, sem cerimónia. Estamos no campo...
- Acredita no que ela diz? - redarguiu Veretiev, dando à voz a inflexão da de Astakov, mas tão discretamente que só Nadejda o notou e conteve-se a tempo.
- Não lhe dê ouvidos; é uma linguareira quando começa a falar de mim...
- Se soubesse que actor ele é! - prosseguiu Nadejda.
- É capaz de desempenhar todos os papéis. É o nosso contra-regra, o nosso ponto... faz o que quer. Oh, que pena o senhor partir tão depressa!...
- Minha irmã, a tua amizade cega-te - observou Veretiev, com ar grave, mas conservando sempre a inflexão de voz de Astakov. - Que irá pensar de ti este senhor? Considerar-te-á uma provinciana...
Astakov protestou.
- Mostra-nos, Petrucha - insistiu Nadejda -, como um homem ébrio não consegue tirar o lenço da algibeira,
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ou então como tenta apanhar uma grande mosca num vidro e ela lhe foge dos dedos a zumbir...
- És uma autêntica criança - respondeu Veretiev. No entanto, aproximou-se da janela junto da qual se encontrava Maria e pôs-se a passear os dedos pelo vidro, imitando o zumbido da mosca, com tanta perfeição que qualquer pessoa julgaria que uma autêntica mosca se lhe debatia debaixo da mão.
Nadejda soltou uma gargalhada e todos a imitaram na sala. Somente Maria não mudou de expressão e até apertou os lábios com mais severidade. Em seguida, levantou os olhos do chão, deitou a Veretiev um olhar grave e comentou:
- Um homem digno não faz de bobo.
Veretiev retirou imediatamente a mão do vidro, deu meia volta e, depois de dar dois ou três passos na sala, saiu para o terraço e de lá para o jardim, que estava completamente às escuras.
- Não há homem mais engraçado do que Piotr Alexeich! - exclamou Igor Kapitonich, sem largar as cartas. - Tenho de contar isto a Matrona Markovna.
Nadejda levantou-se, aproximou-se de Maria e perguntou-lhe:
- Que disseste ao meu irmão?
- Nada - respondeu Maria.
- Nada?... É impossível. Vem comigo! -e passando o braço por baixo do da amiga, obrigou-a a levantar-se e arrastou-a para o jardim.
Astakov seguiu-as com a vista, surpreendido, e até deixou escapar um hum! desaprovador. Mas como ninguém prestou atenção ao seu mau humor, aproximou-se da mesa e pôs-se a observar o jogo com ar ainda mais
grave e digno do que de costume.
As duas amigas só regressaram cerca de meia hora mais tarde, e Veretiev seguia-as com ar embaraçado.
- Que bela noite! - exclamou Nadejda quando entrou. - Está-se bem no jardim!...
- A propósito - disse Astakov, aproximando-se de Maria, com o polegar na cava do colete-, não a vi ontem à noite no jardim?
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Maria olhou-o fixamente e Veretiev franziu o sobrolho e pareceu interrogar com a vista Maria e Astakov.
- Creio tê-la ouvido declamar O Anichar...
- Era de facto eu - respondeu Maria. - Simplesmente, não declamei porque nunca declamo.
- No entanto...
- Enganou-se - atalhou a rapariga, com fria brusquidão.
-Que poesia é essa? - interpôs-se Nadejda, que parecia perturbada. - O anichar não é uma árvore venenosa?
- É - respondeu Astakov.
- Oh, como as daturas!... Lembras-te, Macha, como as daturas eram belas por cima da nossa varanda, ao luar, com as suas longas flores brancas? E que aroma espalhavam, suave, penetrante e pérfido!...
- Um aroma pérfido?... - observou Astakov.
- Sim, pérfido. De que se admira? Dizem que é perigoso e, contudo, atrai-nos. Por que motivo o que é mau é sedutor? Porque há-de existir beleza no mal?
- Oh, oh, estamos a cair nas abstracções filosóficas! exclamou Veretiev.
- Tem razão - concordou Astakov. - A sua irmã desviou-me do assunto... Queria dizer que recitei ontem a Maria Pavlovna uns versos que lhe causaram um efeito... um efeito... apesar do que me tinha dito...
- Nesse caso - disse Nadejda, para pôr termo à conversa -, peço-lhe que no-los recite.
Astakov tomou a atitude que julgou adequada à circunstância e recitou os versos de Puschkine.
- Demasiado enfático - comentou Veretiev, como que involuntariamente.
- Acha este trecho demasiado enfático? - perguntou Astakov.
- Não me referia ao trecho. Desculpe, mas parece-me que o senhor não recita com a devida simplicidade. Os versos dizem o suficiente por si mesmos, mas posso estar enganado...
- Não, tu nunca te enganas - atalhou Nadejda.
- Oh, já cá tardava! - exclamou Veretiev. - A teus
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olhos, sou um génio, um homem cumulado de dons naturais, que sabe tudo e que tudo pode fazer. Infelizmente, a preguiça não me ajuda, não achas?
- Por mim, sei o que sei - redarguiu Nadejda, abanando a cabeça.
- E eu não os contradigo- declarou Astakov, com ar levemente contrariado. - Devem-se conhecer melhor do que eu e dizer versos não é a minha especialidade.
- Peço-lhe que me desculpe - disse Veretiev, com um gesto de impaciência que reprimiu imediatamente.
Naquele momento, o jogo terminava.
- A propósito, Vladimiro Sergeich - disse Ipatov, levantando-se-, um dos nossos vizinhos, um digno e excelente homem, o Senhor Akiline, encarregou-me de lhe pedir que se digne assistir ao seu baile. Digo baile para me servir de uma expressão mais aprimorada, pois trata-se de uma festa sem cerimónia. Viria convidá-lo pessoalmente, mas com receio de o incomodar...
- Desculpe, mas tenho de voltar para casa - respondeu Astakov.
- Que diz?! - exclamou Ipatov. - Mas se é amanhã que ele dá o baile, para comemorar o seu aniversário!... Não o prive desse prazer, tanto mais que mora apenas a dez verstas daqui... Se quiser, nós levamo-lo.
- E poderá convidar-me desde já para a quinta contradança - interveio Nadejda. - As outras já estão reservadas.
- É muito amável. E para a mazurca, também já está convidada?
- Estou... Não, não, ainda estou livre.
- Nesse caso, terei a honra...
- Quer dizer que vai ao baile? Muito bem, com todo o prazer.
- Bravo! - exclamou Ipatov. - Akiline vai ficar encantado. Bravo! Grite também bravo, Bodriakov.
O Pau-Mandado desejava, como de costume, responder com o silêncio, mas julgou conveniente soltar um bravo surdo e fleumático.
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Uma hora mais tarde, Veretiev perguntava à irmã, sentado ao lado dela numa carruagem ligeira, de duas rodas, que ele próprio conduzia:
- Que ideia foi essa de te atirares à cara desse pretensioso com a tua mazurca?
- Tenho os meus planos...
- É permitido conhecê-los?
- Por ora, são segredo...
- Oh, oh!...
E bateu com o chicote no cavalo, que arrebitava as orelhas diante da sombra que uma grande moita projectava na estrada, fracamente iluminada pelo luar.
- E tu, danças com Macha? - perguntou Nadejda, por seu turno.
- Danço - respondeu o irmão, com indiferença.
- Danço, danço!... - repetiu Nadejda, em tom de censura. - Decididamente vocês, homens, não merecem o amor de uma rapariga honesta.
- Achas? E esse cavalheiro de Sampetersburgo merece o teu?
- Mais do que tu.
- Ora toma! - exclamou Veretiev, que acrescentou, suspirando, estes versos de uma comédia: "Que fardo, meu Deus, ser irmão de uma rapariga casadoira!"
- És capaz de me dizer que te dou muito trabalho? Pelo contrário, tu é que mo dás!
- Nunca duvidei disso.
- Não me refiro a Macha.
- A que te referes então?
O rosto de Nadejda adquiriu uma expressão triste.
- Sabes tão bem como eu - disse, baixando a voz.
- Ah, já compreendo! Sim, gosto de beber com os meus amigos, Nadejda Alexeievna. Faço mea culpa por isso, mas gosto muito.
- Acabemos, irmão, suplico-te. Não são coisas com que se brinque...
- Tam, tam, pum, pum! - murmurou Veretiev, entre dentes.
- É a tua perda, a tua ruína, e tu brincas!
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- "O camponês semeia trigo e a mulher diz que são dormideiras" - cantarolou Veretiev a plenos pulmões, e bateu com as rédeas na garupa do cavalo, que partiu a galope.
3
DE regresso a casa, Veretiev não se despiu, e duas horas mais tarde, quando a aurora começava a despontar, saiu furtivamente.
A meio caminho entre a sua propriedade e Ipatovka, à beira de um barranco profundo e escarpado, havia um bosquezinho de bétulas, formado por árvores novas que cresciam muito cerradas, pois nenhum machado tocara ainda nos seus troncos elegantes. As folhas das bétulas projectavam uma sombra, senão espessa pelo menos contínua, na erva fina e macia que cobria o solo, toda esmaltada de taças de ouro, de campainhas de prata e dos botões vermelhos dos cravos-bravos. O sol, que acabava de nascer, inundava o bosque de uma claridade forte e discreta; as grandes gotas de orvalho cintilavam aqui e ali, intermitentemente; tudo se encontrava impregnado de frescura, de vida e da inocente solenidade dos primeiros instantes da manhã, quando tudo se apresenta já tão radioso e ainda tão tranquilo. Apenas se ouviam os trinados das cotovias que planavam sobre os campos distantes e, no próprio bosque, dois ou três passarinhos ensaiarem curtas modulações e calarem-se em seguida, como se se quisessem certificar do êxito do ensaio. Um cheiro forte e sadio evolava-se da terra húmida e uma brisa fresca agitava a atmosfera pura e leve. Estava uma esplêndida manhã de Verão e o sorriso da natureza assemelhava-se ao de uma criança quando desperta.
Não longe do barranco, numa clareira do bosque, Veretiev estava sentado no chão, em cima de uma capa. Maria encontrava-se de pé junto dele, encostada a uma bétula, com as mãos atrás das costas, na sua posição favorita.
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Estavam ambos calados. Maria olhava para longe. Uma charpa branca escorregara-lhe da cabeça para os ombros e uma leve aragem agitava-lhe os cabelos penteados à pressa. Veretiev estava de cabeça baixa e batia na erva com um ramo que tinha na mão.
- Está zangada comigo? - acabou por perguntar. Maria não respondeu.
- Está zangada, Macha? - insistiu, levantando os olhos para ela.
Maria deitou-lhe um olhar rápido e, quando os seus olhos se encontraram, virou-se bruscamente.
- Estou - respondeu.
- Porquê? - perguntou Veretiev, atirando o ramo para longe de si.
Maria calou-se de novo.
- Claro que tem, sem dúvida, o direito de estar zangada comigo - acrescentou Veretiev, depois de um curto silêncio. - Deve considerar-me não só um homem detestável, mas também...
- Não me compreende - interrompeu-o Maria. - Se estou zangada consigo, não é por mim.
- Por quem é, então?
- Por si.
Veretiev sorriu e encolheu os ombros.
- Sempre a mesma ideia fixa! - exclamou. - Porque não faço nada nem tento fazer? É admirável, Macha; preocupa-se tanto com os outros e tão pouco consigo!... Não possui a menor parcela de egoísmo. Palavra de honra, não existe no mundo inteiro outra rapariga como você. O pior é que, sem dúvida nenhuma, não mereço a sua afeição. Digo-o sinceramente.
- Não, o pior é conhecer-se e não fazer nada. Veretiev sorriu de novo.
- Macha, estenda uma das suas mãos e dê-ma - pediu com voz carinhosa.
Maria franziu o sobrolho.
- Dê-me a sua bonita, pura e digna mão, para nela depositar um beijo respeitoso e terno, como um escolar estouvado beija a mão do seu mestre indulgente.
E Veretiev levantou-se e estendeu os braços a Maria.
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- Cale-se! Não faz senão rir e gracejar e assim passará a vida inteira.
- Aí está uma expressão nova na sua boca! Acha então que passarei a vida a gracejar? Pois bem, você faz ainda pior: desperdiça a vida a seriozar, se me permite também a expressão. Você, Macha, lembra-me uma cena do Don Juan, de Puschkine. Leu o Don Juan, de Puschkine?
- Não.
- Ah, esquecia-me de que não lê nada! Há uma cena... Uns jovens sevilhanos estão de visita a certa Laura que despede todos e fica só com um deles, chamado Carlos. Saem juntos para a varanda. A noite está bonita e Laura admira-a. De súbito, Carlos procura demonstrar-lhe que um dia será velha e todos a abandonarão. "Que importa"?", responde Laura. "Talvez neste instante faça frio em Paris e chova, enquanto aqui:
A noite cheira a limão e a louro.
Porque havemos de nos preocupar com o futuro?" Olhe à sua volta, Macha; porventura aqui não é tudo tão belo como em Sevilha? Veja como tudo parece feliz por viver, como tudo é jovem e risonho. E nós, não somos também jovens?
Veretiev avançou para Maria, que não recuou à sua aproximação, mas que também se não virou para ele. -Sorria, Macha - prosseguiu Veretiev. - Mas com o seu melhor sorriso e não com esse sorriso amargo que lhe é habitual. Vamos, levante os seus olhos, tão orgulhosos e severos... Oh, não se afaste! Estenda-me ao menos a sua mão...
- Bem sabe que não tenho o dom da palavra, Veretiev. No entanto, sempre lhe digo que essa Laura era uma mulher e que é desculpável numa mulher não pensar no futuro.
- Quando fala, Macha, cora constantemente de orgulho e pudor. O sangue sobe-lhe às faces em ondas cor-de-rosa. Gosto muito de a ver assim...
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- Adeus despediu-se a rapariga-, voltando a
colocar a charpa na cabeça.
Espere! ? gritou Veretiev, detendo-a. - Que pretende? Vamos, diga. Quer que regresse ao serviço militar? Que me faça agrónomo? Gostaria que publicasse romanzas com acompanhamento à viola? Que imprimisse uma colectânea de poesias? Que me dedicasse à pintura à escultura ou ao funambulismo? Farei tudo, tudo o que me ordenar, contanto que esteja contente comigo Juro-lhe, Maria, que farei tudo.
Maria olhou-o fixamente e, por fim, murmurou:
Palavras... E os actos? Diz que está disposto a
obedecer-me...
- Certamente.
E contudo, quantas vezes já lhe pedi...
- o quê?
- Que deixasse de beber - concluiu a jovem, baixando a voz.
Veretiev soltou uma gargalhada.
Também você, Macha! Está como a minha irmã,
que anda sempre a matar-me o bichinho do ouvido com isso Ora em primeiro lugar não sou um bêbedo, e depois sabe porque gosto de beber? Observe um instante àquela andorinha; vê como dispõe ousadamente do seu corpo delicado e frágil? Como o arremessa para onde lhe agrada? Veja: sobe, desce... solta pios de alegria Pois bem Macha, se bebo é para experimentar as sensações que ela experimenta, para ir ao encontro do que desejo para correr aonde a vontade me chama.
para que serve isso? - perguntou Maria.
para que serve?... Então, para que serve viver?
Não se pode viver sem vinho?
- Não Toda a nossa geração está depauperada, gasta. Só há uma coisa que produz o mesmo efeito que o vinho- o amor; e é por isso que a amo, Macha.
- Como o vinho? Muito obrigada.
Não, não Macha; como o vinho, não. Provar-lho-ei
um dia quando estivermos casados e formos viajar juntos Antevejo neste momento como a levarei diante de uma Vénus antiga. Então, será caso para dizer: "Ela
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pára, com o seu olhar grave, diante da Vénus de Milo? São duas vénus e o mármore, na sua presença, parece sentir-se insultado." (1) Que tenho hoje que só falo em versos? É a manhã que me influencia, com certeza. Que ar! Embriaga. Quando o respiramos parece vinho...
- Outra vez o vinho! -murmurou ela.
- Sim, estou ébrio. Como o não estaria numa manhã assim e sozinho consigo? Um olhar grave... Sim, é isso mesmo. E contudo recordo-me... Tenho visto raramente, mas enfim, tenho visto, esses belos olhos negros inundados de ternura... Como são belos então! Não desvie a cabeça, Macha; ria, ao menos. Mostre-me os seus olhos alegres se não quer mostrar-mos ternos.
- Então, Veretiev, deixe-me; são horas, tenho de voltar para casa.
- Hei-de fazê-la rir; garanto-lhe que a farei rir... Olhe, uma lebre a correr!
- Onde? - perguntou Maria.
- Ali, no aveal, do outro lado do barranco. Alguém a acordou, pois as lebres não costumam passear tão cedo. Quer que a detenha?
Veretiev soltou um assobio prolongado. A lebre sentou-se imediatamente, cruzou as patas dianteiras no peito, arrebitou as orelhas e farejou o ar, mexendo os beiços como se estivesse a comer. Veretiev agachou-se de súbito como a lebre, franziu o nariz, mexeu os lábios e farejou o ar como o animal. A lebre esfregou o focinho, sacudiu as patas, baixou as orelhas e partiu. Veretiev esfregou também as faces e sacudiu-se, exactamente como o animal. Maria não conseguiu manter-se
séria e desatou a rir.
- Bravo! - exclamou Veretiev, saltando. - Bravo!
Bem se vê que não é vaidosa. Se alguma dama da alta sociedade tivesse uns dentes como os seus, não faria outra coisa senão rir de manhã à noite. É precisamente por isso que a amo, Macha, por não ser uma dama da alta sociedade, por não rir sem motivo, por não usar
(1) Versos de Puschkine. (N. do T.)
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luvas nessas mãos que gosto de beijar precisamente porque estão queimadas pelo sol e se sente nelas força e vida. Amo-a porque não arma em sabichona, porque é orgulhosa e calada, não lê livros nem gosta de versos.
- Quer que lhe recite versos? - perguntou Maria, com uma expressão intencional.
- Versos! - exclamou Veretiev.
- Aqueles que recitou ontem o cavalheiro de Sampetersburgo.
- Outra vez O Anichar! É verdade que o declamou à noite no jardim? Essa poesia deve estar de acordo com a sua maneira de ser... Gosta assim tanto dela? Vamos, recite-a.
Maria hesitou.
- Recite-a, por favor - insistiu Veretiev, colocando-se diante dela e cruzando os braços.
Maria começou. Logo ao primeiro verso ergueu os olhos ao céu, com medo de encontrar os de Veretiev. Pronunciava as palavras com a sua voz suave e uniforme, que lembrava o som do violoncelo, mas quando chegou ao verso:
E o pobre escravo morre aos pés do senhor invencível,
a voz tremeu-lhe, as sobrancelhas altivas e imóveis ergueram-se-lhe ingenuamente como as de uma criança e os olhos pousaram-lhe em Veretiev com expressão de infinita ternura.
Ele lançou-se-lhe de súbito aos pés e abraçou-lhe os joelhos.
- Eu é que sou teu escravo, eu é que estou aos pés do meu senhor! Tu és o meu senhor, a minha deusa; és a minha Juno de olhos ternos, a minha Medeia feiticeira...
Maria quis repeli-lo, mas as mãos detiveram-se-lhe nos cabelos sedosos de Veretiev. Um sorriso inefável entreabriu-lhe os lábios e a cabeça pendeu-lhe para o peito... De súbito, endireitou-se, afastou com força viril as mãos de Veretiev que a abraçavam e, puxando a charpa para a cabeça, afastou-se a correr.
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- Macha! Macha! - chamou Veretiev. Ela já ia longe.
"Corre como uma lebre...", pensou. E atirando com impaciência o gorro à erva pisada, exclamou:
- Excelente rapariga, como é forte!
GAVRILA STEPANICH AKILINE, o proprietário que dava o baile, era um desses senhores russos que provocam a admiração dos vizinhos devido ao talento que possuem para viver à grande com recursos aparentemente muito parcos. Embora só fosse senhor de quatrocentas almas, recebia toda a nobreza do governo (1) numa vasta casa de tijolo que ele próprio construíra e que dispunha de colunas, de uma torre e até de um estandarte que se içava na torre para anunciar a presença do senhor. Coisa deveras estranha era o facto de ter herdado o domínio do pai em estado muitíssimo miserável. O que explicava tão radical mudança de aspecto era a circunstância de Akiline ter servido muito tempo, demasiado tempo, em Sampetersburgo, e em lugares bem remunerados. Enfim, um belo dia voltou e fixou-se na sua terra natal, com mulher e três filhas, senhor de um cargo administrativo modestíssimo, mas igualmente de uma fortuna muito razoável, como em breve demonstrou com os melhoramentos que introduziu, com a orquestra que organizou em casa e com os jantares que ofereceu. Nos primeiros tempos, todos os vizinhos predisseram a sua próxima ruína e até se chegou a dizer que o domínio ia ser vendido em leilão. Mas os anos passaram, os bailes e os jantares continuaram e o domínio nunca foi vendido. Pelo contrário, brotaram novas construções por todos os lados, como cogumelos, e o próprio Akiline não fazia senão engordar. Então, o falatório dos vizinhos tomou outra direcção. "Se ao menos fosse
(1) Antiga divisão territorial russa correspondente a província governada autonomamente. (N. do T.)
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bom agrónomo...", diziam. "Mas não; encontrou decerto um tesouro." Um tesouro! Todavia, a explicação da sua fortuna era muito mais simples. Mas explicações simples nunca nos ocorrem ao espírito na Rússia...
Fosse como fosse, toda a gente frequentava com prazer a casa de Akiline. Recebia as visitas com muita afabilidade e era perito em todos os jogos de cartas. Tratava-se de um homenzinho grisalho, de cabeça pontiaguda, rosto deslavado e olhinhos também deslavados. Andava sempre barbeado de fresco e perfumado com água-de-colónia. Quer nos dias comuns, quer nos dias de festa, usava sobrecasaca azul, muito limpa, abotoada até acima, camisa branca e uma grande gravata em que gostava de esconder o queixo. Tomava rapé com delicadeza, sorria a tudo o que lhe diziam e falava com voz melíflua e humildemente respeitosa. Além disso, não brilhava por ter a resposta pronta nem tinha ar de homem inteligente, embora de vez em quando a astúcia lhe transparecesse involuntariamente no olhar. Numa palavra, possuía o que se chama físico de manga-de-alpaca. As duas filhas mais velhas estavam bem casadas e a mais nova ainda estava solteira. Era, como a mãe, uma rapariga tímida que nunca se atrevia a abrir a boca.
Astakov chegou a casa de Ipatov às sete horas da tarde, de casaca e luvas brancas, e encontrou toda a gente pronta para partir. As duas garotas conservavam-se imóveis, com receio de amarrotarem os vestidos brancos engomados. Maria envergava um vestido cor-de-rosa-escuro que se lhe harmonizava bem com o rosto. Ao ver a casaca de Astakov, Ipatov dirigiu-lhe uma censura amigável e mostrou-lhe a sua própria sobrecasaca. Astakov aproximou-se de Maria e gabou-lhe o vestido. A beleza da rapariga atraía-o, apesar de se mostrar ainda mais arisca com ele do que com qualquer outro. Na realidade, preferiria Nadejda se a desenvoltura das suas maneiras lhe não tivesse desagradado um bocadinho... Mas nas palavras, nos olhares e até nos sorrisos da irmã de Veretiev notava-se certa zombaria que perturbava o seu espírito de fidalgo
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petersburguês. Não se privava de zombar dos outros, sobretudo se o podia fazer sem perigo, mas desagradava-lhe pensar que pudesse ser alvo das zombarias de alguém.
O baile já começara e a orquestra rústica atroava os ares do alto da galeria do salão quando a família e os amigos de Ipatov entraram. O anfitrião recebeu-os à entrada e, depois de agradecer a Astakov "ter-lhe proporcionado o extraordinário prazer de uma agradável surpresa", acompanhou Ipatov às mesas de jogo. Akiline não recebera educação muito esmerada. Tudo em sua casa - a orquestra, os móveis, as iguarias e os vinhos - era de segunda qualidade, mas abundante. De resto, o dono da casa não mostrava ter pretensões e isso era tudo o que lhe pediam os numerosos cavalheiros que o honravam com a sua presença. À ceia, servia-se mau caviar cortado em filetes, mas ninguém se importava que o comessem com os dedos. Os assentos eram duros, mas abundavam as almofadas bordadas à mão pela dona da casa, que nisso encontrava ocupação permanente. Enfim, estava-se bem e sem cerimónia. E se Akiline ainda não fora nomeado por unanimidade marechal da nobreza, tal facto devia-se apenas à sua modéstia, que lhe não permitia apresentar-se à eleição.
Dançava-se uma contradança a dez pares. Os cavalheiros eram oficiais do regimento da guarnição ou funcionários da cidade vizinha. Tudo corria como de costume no baile. O marechal da nobreza em exercício, um respeitabilíssimo major reformado que só tinha o defeito de ficar melancólico depois de jantar, jogava na mesa de honra com um conselheiro de Estado efectivo e com um gordo senhor de três mil almas. O conselheiro de Estado efectivo trazia um grande diamante no dedo, ao pescoço uma condecoração novinha em folha da ordem de S. Estanislau e um magnífico colete de veludo com a casaca. No entanto, mantinha-se imóvel e falava discretamente, o que o não impedia de ter fama de ser o mais forte jogador da província, ao passo que o rico senhor não parava de rir a propósito e a despropósito de tudo e de nada e de deitar à sua volta
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olhares protectores. O poeta Bodriakov, homem de maneiras desajeitadas e aspecto estranho, conversava a um canto com o erudito historiador Evsiukov, cada um deles agarrado a um botão da casaca do outro. A seu lado, um cavalheiro metido numa casaca que lhe estalava pelas costuras emitia opiniões audaciosamente liberais, que outro cavalheiro escutava com terror e de boca aberta. Naquele ambiente, os jovens tinham um ar embaraçado e os velhos um ar idiota. Gordas mamãs de toucas variegadas faziam ofício de corpo presente ao longo das paredes. Enfim, repito, o baile decorria como todos os bailes provincianos.
Nadejda chegara antes da família de Ipatov. Astakov viu-a a dançar com um rapaz de aspecto agradável, olhos expressivos e bigodinho negro. O rapaz estava elegantemente vestido e pendia-lhe do colete uma pesada corrente de ouro. Nadejda envergava um vestido azul-celeste adornado de margaridas e cingia-lhe os cabelos anelados uma coroa das mesmas flores. Brincava com o leque, sorria e sentia-se a rainha do baile. Astakov aproximou-se dela e, depois de a cumprimentar delicadamente, perguntou-lhe se se não esquecera a sua promessa da véspera.
- Qual promessa? - inquiriu a jovem.
- Dançará a mazurca comigo?
- Decerto.
O rapaz que a acompanhava corou de repente.
- Creio que se esqueceu de que me prometeu primeiro dançar comigo... - observou.
- Oh, meu Deus! - exclamou Nadejda, perturbada.
- Que fazer? Desculpe-me. Senhor Stelchinski, sou tão
distraída...
Stelchinski baixou os olhos com dignidade e Astakov
empertigou-se.
- Tenha paciência, Senhor Stelchinski; conhecemo-nos há muito tempo e este cavalheiro está de passagem. Permita-me que dance com ele...
- Como lhe aprouver - respondeu o rapaz.
- Obrigada - agradeceu Nadejda, indo ao encontro do seu par.
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A contradança terminou pouco depois. Astakov passeou durante algum tempo na sala de baile, em seguida dirigiu-se para o salão e parou junto de uma mesa de jogo. De súbito, sentiu que alguém lhe pousava a mão no ombro e virou-se. Era Stelchinski.
- Ficar-lhe-ia grato se fizesse o favor de me acompanhar à sala vizinha para trocarmos duas palavras disse Stelchinski em francês e com uma pronúncia que não era a dos Russos.
Astakov seguiu-o até ao vão de uma janela.
- Na presença de uma senhora - prosseguiu o outro na mesma língua - só pude responder como respondi. No entanto, espero que não imagine que tenciono ceder-lhe o meu direito de dançar a mazurca com Mademoiselle Veretiev.
- Como devo interpretar as suas palavras? - perguntou Astakov, surpreendido.
- Como tive a honra de lhas dizer - redarguiu o outro com uma calma afectada, metendo a mão no colete. - Não tenho essa intenção; mais nada.
Astakov meteu também a mão no colete. - Permita-me que lhe observe, senhor, que com a sua atitude pode expor Mademoiselle Veretiev a uma situação desagradável. Suponho...
- Que eu próprio seria o primeiro a lamentar - atalhou Stelchinski. - Para evitar isso, bastará que o senhor diga que está indisposto, que se retire, enfim...
- Não farei tal coisa. Por quem me toma o senhor?
- Nesse caso, vejo-me obrigado a pedir-lhe uma satisfação.
- Em que sentido emprega o senhor a palavra satisfação?
- No sentido corrente.
- Desafia-me para um duelo?
- Evidentemente, se não desistir de dançar a mazurca.
Stelchinski cofiou o bigode com ar decidido e Astakov sentiu o coração pular-lhe no peito.
"Meu Deus, que tolice!", disse para consigo, fitando o seu adversário improvisado.
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- Não está a gracejar? - perguntou.
- A vida é uma coisa preciosíssima, senhor - redarguiu o outro, e não tenho o hábito de gracejar, sobretudo com pessoas que não conheço. Persiste em dançar essa mazurca?
- Persisto - respondeu Astakov.
- Muito bem; bater-nos-emos amanhã. A minha testemunha terá a honra de se apresentar em sua casa ao romper do dia.
E, depois de cumprimentar cortesmente, Stelchinski afastou-se, muito satisfeito consigo próprio.
- Valha-me Deus! - exclamou Astakov, especado junto da janela. - Vale bem a pena adquirir novas relações!...
Contudo, fez um esforço sobre si mesmo e regressou
à sala de baile.
Já se dançava a polca. Maria passou rapidamente diante dele pelo braço de Veretiev. Parecia sonhadora, quase triste. Depois apareceu Nadejda, alegre e resplandecente, pelo braço de um oficialzinho de artilharia, muito eufórico. Regressou na segunda volta com Stelchinski, que sacudia furiosamente a cabeleira...
- Então, meu caro, só olha, não dança? - perguntou Ipatov atrás de Astakov. - Concorde que, apesar de estarmos no fim do mundo, não se passa nada mal o tempo entre nós...
"Vai para o Diabo mais o teu fim do mundo!", pensou Astakov. E, depois de murmurar uma resposta ininteligível, foi-se postar na outra extremidade da sala.
"Preciso de arranjar uma testemunha", continuou a reflectir. "Mas onde? Não posso pedir a Veretiev e não conheço mais ninguém. Só o Diabo sabe em que estúpida situação me meti."
Quando se zangava, Astakov invocava instintivamente o nome do Diabo. Foi então que os seus olhos pousaram no Pau-Mandado que se encontrava muito sossegado e inactivo ao pé de uma janela.
"E porque não ele?", pensou. "Na verdade, não tenho muito por onde escolher..." E dirigiu-se para Bodriakov.
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- Acaba de me acontecer uma aventura singular disse o nosso herói, com um sorriso forçado. - Imagine que determinado jovem desconhecido me desafiou para um duelo. Não posso recusar e preciso de uma testemunha... Quer fazer-me esse favor? Embora Bodriakov se distinguisse, como sabemos, por uma fleuma a toda a prova, ao ouvir um convite tão inesperado abriu muito a boca e ficou como que petrificado.
- Ficar-lhe-ia muito reconhecido - acrescentou Astakov. - Não conheço ninguém aqui, além do senhor...
- Não, não! - exclamou Bodriakov, como se o tivessem acordado bruscamente. - Não, não! Não posso... - Porquê? Se receia falatórios, contrariedades, digo-lhe que tenho esperança de que tudo fique em segredo...
- Não, não! Não posso - repetiu Bodriakov, o qual, sempre a recuar, acabou por derrubar uma cadeira. Era a primeira vez na sua vida que respondia com uma recusa a um convite; mas também aquele sempre era um destes convites!...
- Ao menos - continuou Astakov, segurando-o pela mão -, faça-me o favor de não contar a ninguém o que lhe disse...
-Não, não... isto é, sim, sim - respondeu Bodriakov. - Desculpe-me, já não sei o que digo. E desapareceu no meio da multidão. "Direi amanhã a esse cavalheiro que não consegui arranjar testemunha", pensou Astakov. "Não sou de cá, que resolva o caso como puder e que vão todos para o Diabo!"
Entretanto, o baile continuava. Astakov desejaria ir-se embora imediatamente, mas não se podia retirar antes da mazurca, pois não estava disposto a consentir que o seu adversário triunfasse. Infelizmente para Astakov, as danças eram dirigidas por um rapaz de cabeleira tão abundante como fraco de peito, sobre o qual se lhe espraiava em cascata uma enorme gravata de seda preta, atravessada por um grande alfinete de ouro. Esse rapaz gozava em toda a
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província da fama de ser um cavalheiro que devassara até ao âmago os usos e costumes da alta sociedade, apesar de só ter estado seis meses em Sampetersburgo e de só ter sido recebido em casa de dois modestos assessores de colégio, gregos de origem e enriquecidos no comércio de cereais. Era ele quem dirigia as danças em todos os bailes do governo de Tuia, que dava sinal aos músicos batendo as palmas, que, no meio do estrépito da trombeta e da chiadeira do violino, gritava em voz de falsete: "Dois em frente!" ou: "Grande roda!" ou ainda: "É a sua vez, menina!", e que cirandava incessantemente através da sala, pálido e inundado de suor. Nunca começava a mazurca antes da meia-noite, e mesmo assim por favor. "Em Sampetersburgo", dizia, "teriam de esperar a pé firme até às duas horas da madrugada." Por isso, o baile pareceu interminável a Astakov, que vagueava como uma alma penada do salão para a sala de baile, trocando de vez em quando olhares frios com o seu adversário, que não deixava passar nenhuma dança em claro, e respondendo por meias palavras ao seu solícito anfitrião, que parecia pesaroso por via do aborrecimento que lia no rosto do seu convidado. Até que chegou finalmente a vez da tão desejada mazurca e Astakov foi buscar a sua dama, puxou duas cadeiras e colocou-se com ela entre os últimos pares, quase defronte de Stelchinski.
- Parece aborrecer-se, Senhor Astakov - disse Nadejda, virando-se para o seu par, enquanto o jovem mestre-sala abria a mazurca puxando a sua dama para si e batendo com pé como um potro à solta.
- Eu? - redarguiu Astakov. - De modo nenhum. Porque pensa isso?
- Porque tenho observado a expressão do seu rosto. Desde que chegou, ainda não sorriu uma só vez. Os senhores, homens positivos, não deviam tomar ares à Byron. Deixe isso para os escritores.
- Verifico, Nadejda Alexeievna, que me chama com frequência homem positivo em tom de zombaria e que me tem na conta de indivíduo frio e cerebral, incapaz de qualquer impulso. No entanto, posso assegurar-lhe
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que os homens positivos guardam muitas vezes no coração mistérios insondáveis que evitam deixar transparecer diante dos indiferentes e que preferem manter o silêncio da dignidade.
- Que quer dizer com isso?
- Nada; talvez o saiba mais tarde.
Neste momento, a filha do dono da casa aproximou-se de Nadejda, trazendo pela mão Stelchinski e outro cavalheiro que usava óculos fumados.
- A vida ou a morte? - perguntou em francês.
- A vida! -gritou Nadejda. - Não quero nada com a morte.
Stelchinski inclinou-se. Fora ele quem escolhera os dois nomes e reservara para si o da vida. Nadejda foi dar com ele uma volta de mazurca, enquanto a Morte, de óculos fumados, os seguia saltitando com a filha de Akiline.
- Diga-me, por favor: quem é esse Senhor Stelchinski? - perguntou Astakov a Nadejda, quando a jovem se voltou a sentar a seu lado.
- Um adjunto do governador. É um rapaz encantador, embora não seja russo, como deve ter notado, e um pouco presumido. Coisas que estão na massa do sangue das pessoas... Espero que não tenha nenhuma altercação com ele por causa desta mazurca...
- Oh, não! - respondeu Astakov, após um momento de hesitação.
- Sou tão esquecida!...
- Não tenho motivo para me queixar da sua falta de memória, pois de contrário não teria o prazer de dançar consigo...
- É verdade que tem prazer em dançar comigo? Astakov respondeu-lhe com um cumprimento e, pouco
a pouco, tornou-se mais audacioso. A ideia do duelo que devia ter no dia seguinte enervava-o, dava certa eloquência às suas palavras e impelia-o a exageros sentimentais que nunca se permitiria a sangue-frio. Além disso, Nadejda estava tão bonita, com os seus olhares furtivos e os seus sorrisos equívocos de que não era possível descortinar o sentido exacto!... Os olhos de
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Astakov adquiriram uma expressão velada e melancólica, as suas palavras impregnaram-se de alusões cheias de uma tristeza elegante e acabou por se expandir a respeito das mulheres, do amor, do seu futuro e da sua maneira de entender a felicidade... Na véspera de uma morte possível, Astakov entregava-se a uma galantaria alegórica com Nadejda, que o escutava atentamente, abanando a cabeça, simulando surpresa, insinuando algumas observações tímidas. Interrompida com frequência pelo regresso dos dançarinos, a conversa começava a tomar feição muito íntima. Astakov interrogava Nadejda a respeito dos seus próprios sentimentos e das suas simpatias e ela respondia-lhe gracejando quando de súbito, com grande surpresa de Astakov e no meio de um olhar lânguido que ele lhe dirigia, a jovem lhe perguntou bruscamente:
- Quando parte?
- Como? - respondeu atordoado.
- Pergunto-lhe quando regressa a casa.
- A Sassovo?
- Não, não, a sua casa, a essa outra propriedade onde reside, a cem verstas daqui.
- Desejaria regressar o mais cedo possível - respondeu, retomando o seu ar impassível. - Tenciono partir amanhã... se ainda for vivo. Tenho que fazer! Mas porque se lembrou de me perguntar agora isso?
- Não sei.
- No entanto...
- Admira-me a curiosidade de um homem que parte amanhã e me interroga hoje acerca do meu carácter.
- Permita-me...
- Leia isto - atalhou Nadejda, rindo, e estendeu-lhe o provérbio de um bombom que acabava de tirar de uma mesa vizinha.
Depois, levantou-se para ir ao encontro de Maria, que a vinha buscar com outra dama para tomarem parte na dança. Astakov deitou uma vista de olhos ao papel, no qual se lia em maus caracteres latinos: Quem me despreza perde-me.
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Quando levantou a cabeça, encontrou o olhar de Stelchinski fixo nele com cólera concentrada. Astakov recostou-se na sua cadeira de braços e afectou sorrir. O ofitialzinho de artilharia acompanhou Nadejda até junto da sua cadeira, virou-se, fez soar as esporas e retirou-se. Nadejda sentou-se e Astakov dirigiu-lhe a palavra:
- Permite-me que lhe pergunte como devo interpretar isto.
- Ah! Essa sentença? - redarguiu Nadejda, com indiferença. - Quem me despreza perde-me... bom, é uma excelente máxima, que pode ser muito útil. Nunca devemos desprezar nada na vida, é necessário desejar muito para obter um bocadinho... Mas é uma loucura da minha parte pretender dar conselhos a um homem tão prático como o senhor!...
Nadejda soltou uma gargalhada e foi em vão que, até ao fim da mazurca, Astakov tentou reatar a conversa. Se falava em alhos, ela respondia-lhe em bugalhos. No momento de o deixar, a jovem tornou a perguntar-lhe ironicamente:
- Sempre parte amanhã? Então, desejo-lhe feliz viagem.
Em seguida, correu para o irmão e disse-lhe:
- Espero que me estejas agradecido; se não fosse eu, teria convidado Maria para a mazurca.
Veretiev encolheu os ombros.
- Escusavas de te incomodar - redarguiu. - Não seria bem sucedido.
Entretanto, Astakov esgueirara-se rapidamente para a antecâmara e já estava a vestir o sobretudo quando um lacaio lhe veio dizer que o cocheiro se embriagara de tal modo que ninguém o conseguia acordar e que lhe seria impossível deixar a casa. Depois de exprimir energicamente o seu desagrado, Astakov voltou a entrar e pediu ao intendente que o acompanhasse ao quarto que lhe fora destinado, sem esperar pela ceia. Cerca de meia hora mais tarde encontrava-se mais ou menos confortàvelmente deitado numa cama estreita e procurava adormecer.
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Mas o sono não vinha e Stelchinski erguia-se constantemente diante dele. "Apontou e Astakov morreu", dizia uma voz. "Bateu-se com intenções pacíficas, a pensar num casamento vantajoso..." Voltava a fechar os olhos com impaciência, pois eles teimavam em conservar-se-lhe muito abertos, e enterrava a cabeça nas almofadas, mas o sono não vinha de modo nenhum e no céu já rompia a aurora... Arrasado pela insónia febril, Astakov acabava de cair numa espécie de sonolência quando sentiu de súbito um peso nos pés. Abriu os olhos e encontrou Veretiev sentado na cama, num estado que o deixou atónito: sem casaca, com o peito a ver-se-lhe através da camisa em desalinho, os cabelos em desordem, caídos para os olhos, e expressão indefinível no rosto.
- Posso perguntar-lhe... -começou Astakov, soerguendo-se na cama.
- Porque estou aqui vestido de modo tão pouco correcto? - concluiu Veretiev, com voz rouca. - Estivemos a beber lá em baixo e quis vir tranquilizá-lo. Disse para comigo: "Está lá em cima um cavalheiro que não consegue dormir sossegado..." Pois bem, já pode dormir, visto que se não baterá amanhã.
- Que diz? - murmurou Astakov, cada vez mais estupefacto.
- Que está tudo arrumado. O cavalheiro das margens do Vístula pede desculpa. O senhor receberá amanhã uma carta. Está tudo acabado, pode dormir a sono solto.
Veretiev levantou-se e dirigiu-se em passo incerto para a porta.
- Um momento, por favor! - exclamou Astakov. Como sabe... como posso acreditar no que me diz?
- Ah, duvida porque estou... bêbedo!... Pois garanto-lhe que lhe enviará amanhã uma carta. O senhor não me inspira muita simpatia, mas estou com queda para a generosidade... Confesse, no entanto, que estava com um bocadinho de medo...
- Mas, senhor... - balbuciou Astakov, que começava a irritar-se.
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- Pronto, pronto, não se zangue!... - interrompeu-o Veretiev. - Entre nós, na província, não há baile que não meta um duelo. Contudo, as consequências nunca são desagradáveis; dão-nos apenas ensejo de vexar um recém-chegado... In vino ventas. Mas o senhor não sabe latim e eu também não. Leio na sua cara que deseja dormir; desejo-lhe boas noites, senhor homem positivo, mortal bem intencionado. Aceite o último desejo de um homem que, diga-se com toda a sinceridade, não vale um chavo, sobretudo hoje.
Dito isto, Veretiev afastou-se a cambalear.
- Diabos me levem se percebo alguma coisa! - exclamou Astakov, batendo com o punho nas almofadas. É imperdoável. Mas eu esclarecerei tudo isto!...
Todavia, passados cinco minutos dormia profundamente, pois não há melhor tranquilizante do que a sensação de um perigo passado.
Vejamos o que deu origem à conversa nocturna entre Astakov e Veretiev:
Um dos sobrinhos de Akiline ocupava em casa deste um quartito de rapaz. Durante os bailes, os jovens aproveitavam o intervalo entre as danças para irem até lá fumar apressadamente uma cachimbada, e era ainda lá que se reuniam depois da ceia para despejarem algumas garrafas. Naquela noite, o quarto estava cheio e Stelchinski e Veretiev encontravam-se entre os convivas. Também lá estava o Pau-Mandado, levado na onda pelos outros. Bodriakov prometera a Astakov não contar a ninguém a conversa que tinham tido, e teria provavelmente cumprido a sua palavra se Veretiev se não lembrasse de lhe perguntar de que estivera a falar com o enfatuado (era assim que chamava ao gentleman de Sampetersburgo). Claro que Bodriakov lhe contara tudo. Veretiev desatara a rir, mas depois ficara pensativo.
- Não sabes com quem se bate? - perguntou.
- Não - respondeu o outro. - Não me disse,
- Sabes ao menos com quem falou?
- Só o vi falar com Igor Kapitonich. Veretiev rodopiou nos calcanhares.
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Fizeram uma jonka (1) e começaram a beber. Veretiev foi aclamado presidente. Alegre, espirituoso, autêntico boémio, pertencia-lhe por direito próprio o lugar de honra em todas as reuniões de rapazes. Despiu a casaca, arranjou assento com uma pilha de Leis do Impérioi pegou numa viola e pôs-se a cantar. As cabeças esquentaram-se ao som da sua voz atrevida e animaram-se ainda mais depois de tomados os primeiros copos. Fizeram-se brindes. E que brindes! Por algum motivo existe um provérbio russo que diz: "Ao homem bêbedo nem o próprio mar sobe acima do joelho." Stelchinski, rubro como uma papoila, saltou para cima da mesa e, erguendo o copo acima da cabeça; gritou:
- À saúde... Não digo à saúde de quem.
Depois, despejou o copo, partiu-o contra o chão e acrescentou:
- Que amanhã o meu adversário se parta em bocadinhos tão pequenos como este cristal!
Veretiev, a quem, como bom russo que era, os vapores do vinho não diminuíam as faculdades de observação, e que havia algum tempo não perdia Stelchinski de vista, levantou a cabeça.
- Stelchinski - disse, depois de descer da mesa-, o teu procedimento é indecente, inqualificável. Aproxima-te que te quero dizer uma coisa... Ouve, meu caro, sei que te deves bater amanhã com o gentleman da capital...
- O quê?! Quem te disse?
- Adivinhei-o e sei muito bem por quem te bates.
- Aí está uma coisa... que gostaria muito de saber.
- Ah, Talleyrand! Vejam o Talleyrand! É pela minha irmã. Vamos, não esboces esse sorriso de admiração que te dá um ar de parvo. Sei há muito tempo que a cortejas.
- Nada disso prova que...
- Cála-te, peço-te, e escuta o que te vou dizer. Não permitirei esse duelo, custe o que custar; toda essa
(1) Mistura de rum quente, açúcar, sumo de fruta e champanhe. (N. do T.)
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estupidez recairia sobre a minha irmã. Seja qual for o tempo que me reste de vida, não o permitirei. Tu e eu... em breve teremos a nossa conta, como é justo; mas ela, quero que viva muito tempo e feliz. Sim acrescentou com súbita exaltação-, trairei, abandonarei todos os outros, mesmo aqueles que se têm sacrificado por um patife como eu, mas não permitirei que toquem num só cabelo da cabeça da minha irmã. Stelchinski soltou uma gargalhada forçada.
- Estás bêbedo, meu caro, e só dizes tolices.
- Bêbedo ou não, pouco importa. Mantenho o que disse: não te baterás com esse senhor. Por que diabo o provocaste? Por ciúmes, talvez. É bem certo o que se diz, que todos os apaixonados são estúpidos. Contudo, ela dançou com ele para o impedir de convidar... não interessa quem. Repito, esse duelo não se efectuará.
- Hum... gostaria muito de saber como o conseguirás impedir!
- Aqui tens como: se me não deres imediatamente a tua palavra de que não te baterás, será comigo que terás de te bater.
- Sim?...
- Meu caro magnate (1), nem por um instante duvides disso. Insultar-te-ei diante de toda a gente, do modo mais incrível, e depois bater-nos-emos à distância do comprimento de um lenço. Estou certo de que não gostarás da graça, por muitas razões...
Stelchinski exaltou-se, protestou que era uma intimidação, que não permitia a ninguém que se metesse na sua vida... e acabou por se submeter, por se resignar a não atentar contra a vida do gentleman de Sampetersburgo. Veretiev abraçou-o com ar trocista e, cerca de meia hora mais tarde, bebiam juntos, pela décima vez, a Brúderschaft (2), acompanhados pelo jovem mestre-sala, que se aguentou nas pernas durante algum tempo, mas
(1) Título atribuído a alguns altos dignitários polacos e igualmente dado na Hungria aos membros da Câmara Alta, designada por Câmara aos Magnates. (N. do T.)
(2) Forma de confraternizar dos estudantes alemães. (N. do T.)
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acabou por adormecer de papo para o ar, do modo mais inocente que se possa imaginar.
No dia seguinte, Astakov regressou muito cedo a Sassovo e passou toda a manhã numa grande agitação. Por pouco não tomou um negociante que vinha comprar trigo pela testemunha do seu adversário, e só respirou livremente depois de receber a carta por que tanto ansiava.
"A noite é boa conselheira, senhor", começava Stelchinski; e terminava declarando que estava à disposição de Astakov, mas que pessoalmente não pedia nenhuma reparação.
Depois de escrever acto contínuo uma resposta em que procurava salvaguardar a dignidade com um tom jocoso, Astakov sentou-se à mesa a esfregar as mãos de contente, almoçou com apetite e partiu logo em seguida para casa. O caminho que devia seguir passava a curta distância de Ipatovka.
- Adeus, aprazível retiro! - exclamou à passagem, com um sorriso trocista.
As imagens de Maria e Nadjda acudiram-lhe por instantes à memória, mas expulsou-as com um gesto de mão e substituiu-as por outras.
TINHAM passado três meses. Chegara o Outono. Os bosques desfolhavam-se, os melharucos começavam a instalar-se e, sintoma mais certo da aproximação do Inverno, o vento fazia ouvir os seus gemidos prolongados. Mas ainda não tinham caído as grandes chuvadas e a lama também não tornara ainda as estradas intransitáveis. Aproveitando esta circunstância, Astakov partiu para a capital do governo, onde o chamavam alguns assuntos. Passou a manhã a fazer visitas e à tardinha dirigiu-se para o Clube da Nobreza. No imenso e sombrio salão do clube encontrou, entre outras pessoas, um certo Flich, antigo capitão reformado, homem de negócios,
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bom pândego, jogador e, como dizem os Franceses, insuperável faiseur de cancans (1).
- A propósito - disse no meio da conversa -, passou há pouco pela cidade uma dama sua conhecida que me encarregou de o cumprimentar.
- Quem?
- A Senhora Stelchinski.
- Não conheço ninguém com esse nome.
- Conheceu-a em solteira, chamava-se então Nadejda Alexeievna Veretiev. O marido era adjunto do governador. Também o deve ter conhecido: um peralvilho de bigode. Apanhou uma bela mulher e um excelente dote...
- Ah! com que então casaram?... Aonde ia ela?
- A Sampetersburgo. Até me recomendou que lhe lembrasse determinada máxima de bombom... Que queria dizer?
- Oh, estava a brincar!... E o irmão, como vai?
- Piotr? Mal, mal... - e Flich ergueu ao céu os seus olhinhos de raposa e suspirou. - É um homem perdido, voltou a cair nas suas loucuras. O mais provável é que tenha ido atrás de alguma cigana... Do que não há dúvida é que não se encontra no governo.
- E o velho Ipatov? Continua a residir na sua casa de campo?
- Esse velho original? Claro. A propósito, porque não casa o meu amigo com a cunhada dele? Para dizer a verdade, aquilo não é uma mulher, é um monumento. Chegou-se a dizer que o senhor e ela...
Neste momento, vieram convidar Flich para uma partida de cartas e a conversa ficou por aqui.
Astakov preparava-se para regressar a casa quando um emissário enviado pelo estarosta de Sassovo lhe trouxe a notícia de que seis casas da aldeia tinham sido destruídas por um incêndio. Decidiu ir lá sem demora, tanto mais que da cidade àquele domínio não eram mais de sessenta verstas. Astakov chegou no dia seguinte
(1) Indivíduo dado a mexericos, intriguista. (N. do T.)
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à tarde à casinha senhorial já conhecida do leitor e dirigiu-se imediatamente para o local do incêndio, ateado por uma velha ao passar uma vela por baixo da barriga de uma vaca para a preservar do mau-olhado...
Depois de descarregar a sua cólera sobre os culpados, Astakov providenciou para que fossem reparados os estragos do sinistro, o que o ocupou até ao jantar do dia seguinte. Então, decidiu-se, depois de algumas hesitações, a ir a Ipatovka, aonde não iria se Flich o não tivesse informado da partida de Nadejda. Receava encontrá-la, mas não lhe desagradava tornar a ver Maria.
Como na primeira visita, Astakov encontrou Ipatov a jogar às damas com o Paitr-Mandado. O velhote testemunhou-lhe a mesma alegria pela visita, mas tinha um ar preocupado e já se não exprimia com a mesma abundância de palavras nem com a mesma facilidade de elocução...
- Todos os seus estão bem? - perguntou Astakov,
sentando-se.
- Bem, graças a Deus, muito obrigado. Só Maria não está grande coisa... Quase nunca sai do quarto.
- Terá apanhado algum resfriamento?
- Não, antes pelo contrário... Mas ela vai descer para o chá.
- E que é feito de Igor Kapitonich?
- Oh, Igor Kapitonich é um homem acabado! Morreu-lhe a mulher...
- Matrona Markovna?!
- Morreu num dia, de cólera. Não a reconheceria... Estava tão mudada, tão magra! "Sem Matrona Markovna, a vida é um fardo para mim", lamenta-se Igor. "vou morrer e agradeço a Deus que me leve, pois já não desejo viver..." Sim, o pobre homem está acabado.
- Pobre Igor Kapitonich! - suspirou Astakov.
- Todos nós somos dignos de lástima - acrescentou o PaurMandado, e ninguém o contradisse.
- Ouvi dizer que a sua vizinha se casou - prosseguiu Astakov, corando levemente.
- Sim, casou-se e já partiu.
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- Para Sampetersburgo?
- Para a capital de Sampetersburgo.
- Maria Pavlovna deve ter muitas saudades dela. Pareciam ser grandes amigas...
- Claro que tem saudades; mas a propósito da sua amizade, permita-me que lhe diga, senhor, que a amizade das raparigas é ainda menos sólida do que a dos homens. Estimam-se muito enquanto se vêem; depois... longe da vista longe do coração.
- Sim?
- É como tenho a honra de lhe dizer. Nadejda Alexeievna, por exemplo, não nos escreveu sequer uma linha desde que partiu. E no entanto, quantas vezes jurou perante Deus não nos esquecer?
- Partiu há muito tempo?
- Há mais de seis semanas. Logo no dia seguinte ao do casamento, partiu a galope, de modo estranho.
- Também ouvi dizer que o irmão já cá não estava...
- Sim, já cá não está. Eram pessoas da capital, porque haviam de ficar muito tempo no campo?
- E o senhor ignora completamente para onde foi?
- Não faço a mais pequena ideia.
- Os ingratos procedem sempre assim: logo que se apanham servidos, viram costas - observou Bodriakov.
- Justamente, logo que se apanham servidos, viram costas - concordou Ipatov. - E o senhor, Vladimiro Sergeich, que tem feito durante todo este tempo? acrescentou o velhote, esforçando-se por sorrir.
Astakov contou alguns pormenores da sua vida; mas Ipatov, cuja compostura deixava transparecer uma inquietação desusada, interrompeu-o de súbito:
- Meu Deus, por que motivo não aparece Macha? Ivan Ilich, vai buscá-la. Dize-lhe... tu sabes...
Bodriakov saiu da sala e voltou pouco depois, anunciando que Maria Pavlovna o seguia.
- Continua com dores de cabeça? - perguntou o velho, em voz baixa.
- Continua.
A porta abriu-se e Maria apareceu. Astakov levantou-se para a cumprimentar e ficou imóvel de espanto,
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de tal modo a rapariga mudara desde que a vira pela última vez. A cor desaparecera-lhe das faces emagrecidas, um grande círculo negro rodeava-lhe os olhos e os lábios apertavam-se-lhe num ricto amargo. Todo o seu rosto, abatido e sombrio, parecia petrificado. Ergueu os olhos para Astakov; já não havia neles brilho nem expressão.
- Como te sentes? - perguntou-lhe Ipatov.
- Sinto-me bem - respondeu a jovem, sentando-se à mesa do samovar.
O serão pareceu a Astakov muito longo e pouco alegre. Ninguém estava bem disposto e a conversa tomava constantemente uma feição melancólica.
- Ouvem? - perguntou Ipatov, escutando os gemidos do vento. - Ouvem que nota ele nos canta? Ah, o Verão já lá vai, o Outono também e o Inverno está à porta! Em breve estaremos enterrados na neve. E Deus queira que seja bem depressa! Agora, quando saímos para o jardim, ficamos angustiados; só se vêem ruínas, ramos de árvores que se entrechocam como esqueletos... Ah, os dias bonitos já lá vão!
- Já lá vão... - murmurou Bodriakov.
Maria cruzou as mãos em silêncio e olhou pela janela.
- Mas Deus é bom - prosseguiu Ipatov - e eles voltarão.
Ninguém disse nada.
- Lembram-se das canções que se cantavam aqui? perguntou Astakov.
- Lembram-se, lembram-se... - resmungou Ipatov.
- Não, é melhor não nos lembrarmos.
- Porque não canta? - continuou Astakov, dirigindo-se a Maria. - Tem uma voz tão bonita!...
Ela não respondeu.
- Como está a senhora sua mãe? - perguntou Astakov a Ipatov, sem saber já como manter a conversa.
- Menos mal, graças a Deus, apesar de todos os seus achaques. Ainda hoje passeou na sua calecinha. É, a bem dizer, como uma árvore meio esgalhada, que se lamenta ao mais pequeno sopro de vento. No entanto, veja o senhor: outra árvore, jovem e forte, está aí por
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terra, ao passo que a árvore esgalhada continua sempre de pé. A vida é assim... Contudo, a vida da minha mãe não tem nada de invejável. Lá diz o provérbio, e com razão: "Velhice não é felicidade."
- E a juventude não dá a felicidade - acrescentou Maria, a meia voz.
Astakov tencionava ir dormir a sua casa, mas a noite estava tão escura que não ousou arriscar-se em semelhantes trevas por tão más estradas. Destinaram-lhe o mesmo quarto em que, três meses antes, passara uma noite péssima, graças à vizinhança de Igor Kapitonich. "Estará a ressonar neste momento?", perguntou Astakov a si mesmo, e recordou-se dos ralhos ao criado e depois da aparição de Maria no jardim.
Aproximou-se da janela e encostou a testa ao vidro frio. A sua própria cara parecia fitá-lo do lado de fora, os olhos perdiam-se-lhe num véu negro e só passados alguns instantes conseguiu distinguir debaixo de um céu sem estrelas os ramos das árvores que se agitavam no vácuo, fustigados sem descanso pelo vento. De súbito, Astakov julgou ver, como da outra vez, deslizar no solo uma figura branca. Redobrou de atenção, mas como não viu mais nada, encolheu os ombros. "O que é a imaginação!", disse para consigo, e deitou-se.
Depressa adormeceu; mas mais uma vez estava escrito que não passaria uma noite tranquila. Acordou-o um ruído confuso na casa. Levantou a cabeça e escutou: eram vozes inarticuladas, exclamações, passos precipitados, portas que se fechavam com violência... Ouviu um soluço de mulher e gritos no jardim, aos quais responderam outros mais afastados. Em casa, a agitação aumentava e tornava-se mais barulhenta. "Há fogo!", foi o pensamento que cruzou o espírito de Astakov. Cheio de medo, saltou da cama e correu para a janela. Não se via nenhum clarão de chamas, mas no jardim ao longo das alamedas e debaixo das árvores moviam-se pequenas manchas rubras. Eram pessoas que corriam com lanternas.
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Astakov dirigiu-se para a porta, que abriu rapidamente, e deu de cara com Bodriakov, o qual, pálido, desgrenhado e meio vestido, corria como um insensato.
- Que é? Que aconteceu? - gritou Astakov, agarrando-o por um braço.
-Está perdida, está morta, atirou-se à água... - respondeu Bodriakov, com voz anelante.
- Quem é que está perdido? Quem foi que se atirou à água?
- Maria Pavlovna. Quem havia de ser? Ele perdeu-a, pobre criança, o miserável! Socorro! Meu bom amigo, corramos depressa, corramos... - e precipitou-se para a escada.
Astakov voltou atrás para se calçar; pôs uma capa pelos ombros e correu atrás dele.
Já não encontrou ninguém em casa; todos tinham saído. Sozinhas, semimortas de medo, as duas filhinhas de Ipatov estavam no corredo perto do vestíbulo, envoltas nos seus camisões brancos, de mãos postas, descalças, agachadas junto de uma vela posta no chão. Astakov atravessou o salão por entre mesas derrubadas e saiu a correr para o terraço. Através da vegetação, na direcção do dique, viam-se mover sombras e lumes.
- Tragam croques, tragam croques! -dizia a voz de Ipatov.
- Uma rede! Um barco! - gritavam outras vozes. Astakov correu na direcção dos gritos e encontrou
Ipatov à beira da lagoa. Uma lanterna pendurada num ramo de salgueiro iluminava vivamente a cabeça grisalha do velho, que torcia as mãos e cambaleava como um ébrio. Junto dele, uma mulher deitada na erva, com o rosto encostado ao chão, soluçava convulsivamente. Bodriakov estava metido na água até à cintura e tacteava o fundo com um pau; um cocheiro despia a libré, a tremer como varas verdes; dois homens arrastavam uma velha barca ao longo da margem; ouvia-se um cavalo lançado a todo o galope na rua da aldeia, e o vento assobiava sinistramente, como se quisesse apagar as lanternas, enquanto as vagas da lagoa marulhavam nas trevas.
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- Será possível que tenha acontecido o que ouvi dizer? - perguntou Astakov, aproximando-se do seu anfitrião.
- Croques, croques! - insistia o velho, sem lhe prestar atenção.
- Não, não, estão enganados, com certeza! - acrescentou Astakov.
- Ah, oxalá estivéssemos! - exclamou, soluçando, a mulher deitada no chão e que era a criada de Maria. - Eu própria, pobre de mim, ouvi deitar-se à água a minha querida menina! Ouvi-a debater-se na água e gritar: "Salvem-me!..." E a seguir, já sem forças, dizer ainda: "Salvem..."
- Então porque a não impediste de se atirar, miserável? - perguntou Astakov.
- E como havia de a impedir, meu bom senhor? Quando perguntei a mim mesma: "Onde está ela?", já não estava no quarto. Mas o meu coração adivinhava... Andava tão triste, sem dizer palavra!... Mas eu sabia tudo, tudo... Corri direita ao jardim, como se tivesse um pressentimento, e de súbito qualquer coisa caiu à água e ouvi: "Salvem-me, salvem..." Oh, meus senhores, meus pobres senhores!
"Aí está o que me pareceu branco na escuridão...", pensou Astakov.
Entretanto, tinham acorrido homens com croques e outros haviam trazido uma rede e estendiam-na na erva. A multidão rodeava-os, compacta e inquieta. O cocheiro e o estarosta pegaram cada um no seu croque, saltaram para a barca, impeliram-na para o largo e começaram a sondar a água. Da margem iluminavam-nos. Os seus movimentos e os movimentos das suas sombras pareciam estranhos à superfície da lagoa agitada e ao clarão incerto e avermelhado das lanternas.
- Apanhei qualquer coisa! - gritou de súbito o cocheiro.
Todos ficaram petrificados.
O cocheiro curvou-se e puxou a vara. Apareceu um objecto enegrecido e anguloso.
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- Uma raiz! - exclamou o cocheiro, arrancando o
croque.
- Voltem, voltem! - chamaram-nos da margem. Não podem fazer nada com os croques. É necessário deitar uma rede...
- Sim, uma rede, uma rede! - gritaram os outros.
- Esperem, esperem! -interrompeu-os o estarosta. - Também apanhei qualquer coisa... e qualquer coisa mole - acrescentou passado um instante.
Uma mancha branca apareceu junto do barco.
- A menina! - gritou o estarosta. - É ela!
Não se enganava; o gancho apanhara Maria pela manga do vestido. O cocheiro agarrou-a imediatamente, tirou-a da água e em dois impulsos empurrou a barca para a margem. Ipatov, Bodriakov, todos correram ao seu encontro, pegaram em Maria e levaram-na sem demora para casa. Deitaram-na e despiram-na assim que chegaram, abanaram-na em todos os sentidos e tentaram aquecê-la; mas tudo foi inútil; Maria não voltou a si, a vida já a abandonara.
Astakov partiu de Ipatovka no dia seguinte muito cedo. No entanto, antes de partir, foi, conforme o uso, dizer o derradeiro adeus ao corpo da defunta. Estava deitada em cima da mesa do salão, de vestido branco. A sua abundante cabeleira ainda se encontrava húmida, e o seu rosto pálido, que a morte não desfigurara, exprimia uma espécie de tristeza estupefacta. Os lábios entreabertos pareciam querer falar e pedir qualquer coisa e tinha os braços cruzados no peito. Todavia, fossem quais fossem os motivos por que morrera a pobre rapariga, a morte marcara-a já com o selo do seu eterno silêncio e da sua melancólica resignação. Quem pode compreender o que exprime o rosto de um morto nos curtos momentos em que recebe ainda os olhares dos vivos, antes de se ir dissolver na terra e desaparecer para sempre?
Astakov conservou-se uns minutos recolhido diante do corpo de Maria, com o ar melancólico exigido pelas circunstâncias, fez três vezes o sinal da cruz e retirou-se
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sem ter reparado em Bodriakov, que, ajoelhado a um canto e com as mãos nos olhos, soluçava como uma criança.
E não era o único que chorava naquele dia; todos os criados da casa choravam também. Maria tratara-os sempre com bondade e doçura, deixava atrás de si uma boa recordação.
Alguns dias mais tarde, o velho Ipatov respondia nestes termos a uma carta enfim recebida de Nadejda:
Faz hoje uma semana minha queridíssima amiga Nadejda Alexeievna, que a minha infeliz cunhada e sua amiga Maria Pavlovna pós voluntariamente termo à existência atirando-se de noite à lagoa, e que confiámos os seus restos mortais à terra. Tomou tão triste e terrível resolução sem me dizer adeus, sem sequer deixar uma carta ou um bilhete com as suas últimas vontades. No entanto, a senhora, Nadejda Alexeievna, sabe decerto melhor que ninguém sobre que alma deve cair tão grande e mortal pecado. Que Deus Nosso Senhor julgue o seu irmão, minha amiga! A minha cunhada não podia deixar de o amar nem suportar o seu abandono.
Nadejda só recebeu esta carta em Itália, aonde fora com o marido, o conde de Stelchinski, como o tratavam em todos os hotéis. Aliás, não frequentava apenas os hotéis da Itália; também o viam com muita frequência nas águas e nos salões de convívio. Ao princípio, perdera muito dinheiro ao jogo; depois, de súbito, deixara de perder e o seu rosto adquirira a expressão meio desconfiada, meio impudente característica dos homens que se entregam a aventuras pouco recomendáveis. Via raramente a mulher, que suportava com facilidade a sua ausência. Apoderara-se dela uma paixão súbita pelas artes e gostava de discutir a respeito do belo com os jovens artistas. A carta de Ipatov afligiu-a profundamente, mas não a impediu de ir nesse mesmo dia visitar a Gruta dos Cães, perto de Nápoles, para ver como os pobres animais se debatiam nos vapores de
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enxofre, nem de se fazer acompanhar na visita por um francês chamado Popelin, pintor falhado que cantava com uma vozinha de tenor, arrastando os rr, usava casacos pintalgados e contava sem muito recato anedotas da crónica escandalosa.
6
ESTAVA-SE num dia de Janeiro, claro e frio, e havia muita gente na Avenida do Neva, em Sampetersburgo. O relógio da torre da Duma acabava de dar três horas. Pelas grandes lajes ensaibradas caminhava, no meio de outros passeantes, o nosso velho conhecido Senhor Astakov. Desde que nos separámos dele, engorda mas não envelhecera, e emolduravam-lhe o rosto espessas suíças. Caminhava por entre a multidão com vagar e gravidade e olhava de vez em quando para a rua. Esperava a mulher, que devia chegar de carruagem com a sogra. Havia já cinco anos que o Senhor Astakov casara e, como sempre desejara, a mulher era rica e estava altamente relacionada. Tirando com amabilidade às numerosas pessoas conhecidas que encontrava o chapéu cuidadosamente escovado, o Senhor Astakov continuava o seu passeio com o passo calino e firme que denota o homem contente consigo próprio. De súbito, junto da passagem de Stenbok, quase chocou com ele um cavalheiro envolto numa capa à Almaviva e coberto com um boné de veludo, homem de rosto algo avelhentado, bigode pintado e olhos inchados e mortiços. Astakov recuou com dignidade e então o cavalheiro de boné reparou nele e exclamou:
- Ah!... Bons dias, Senhor Astakov.
Este não respondeu e parou estupefacto, pois não podia compreender que um homem que andava de boné na Avenida do Neva soubesse o seu nome.
- Não me reconhece? - continuou o outro. -Encontrámo-nos há oito anos no governo de Tuia, em casa dos Ipatoves. Chamo-me Veretiev.
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- Meu Deus, desculpe-me! - exclamou Astakov. Como o senhor mudou desde então!...
- Sim, envelheci - redarguiu Veretiev, passando pelo rosto a mão desenluvada. - O senhor é que não mudou nada...
Na realidade, Veretiev não envelhecera muito; as suas feições é que se tinham deformado. Sulcavam-lhe o rosto inúmeras rugazinhas e quando falava as faces e os lábios crispavam-se-lhe levemente. Tudo nele indicava que esbanjara a vida de modo bastante desregrado.
- Onde se meteu durante tanto tempo que ninguém lhe pôs a vista em cima? - perguntou Astakov.
- Vagueei por aqui e por ali. E o senhor, permaneceu sempre na capital?
- A maior parte do tempo; presto cá serviço.
- Casou-se?
- Sim, casei-me e...
Astakov interrompeu-se e tomou uma expressão severa, como se quisesse dizer a Veretiev: "Oh! não te lembres de me pedir que te apresente a minha mulher!..."
Veretiev pareceu compreendê-lo e aflorou-lhe aos lábios um sorriso indiferente. Astakov deu um passo para se afastar, mas mudou de ideias e perguntou:
- Que é feito da sua irmã?
- Não lhe posso dizer com certeza, mas provavelmente está em Moscovo. Há muito tempo que não recebo notícias dela.
- O marido ainda é vivo?
- Provavelmente...
- E o Senhor Ipatov?
- Não sei. Talvez esteja vivo ou talvez esteja morto...
- E aquele cavalheiro muito engraçado, aquele provinciano chamado Bodriakov?
- Ah! Aquele a quem o senhor pediu que fosse sua testemunha quando estava cheio de medo?... Só o Diabo sabe que foi feito dele.
Astakov julgou dever tomar um ar ainda mais majestoso.
- Lembro-me sempre com prazer dos serões em que
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tive... - ia a dizer a honra, mas conteve-se- ensejo de o conhecer e à sua irmã. Era uma jovem muito simpática. E o senhor, continua a cantar tão bem como nesse tempo?
- Não, perdi a voz. Ah, foram bons tempos, esses!...
- Visitei Ipatovka mais uma vez - acrescentou Astakov, erguendo as sobrancelhas com ar melancólico -, no próprio dia em que se verificou um terrível acontecimento...
- Sim, foi espantoso, foi horrível - interrompeu-o Veretiev, precipitadamente. - Vejo que ainda se recorda...
- bom, tudo isso foi há tanto tempo que me parece um sonho.
- Um sonho... - repetiu Veretiev, cujas faces pálidas coraram. - Não, para mim não foi um sonho. Foram tempos de juventude, de alegria, de felicidade; tempos de esperanças infinitas e de forças indomáveis. Se isso foi um sonho, foi um belo sonho. Que ambos nos tenhamos tornado velhos, tristes e tolos; que pintemos o bigode; que percamos tempo a vaguear nos passeios da Avenida do Neva; que já não prestemos para nada, como os cavalos aguados; que estejamos gastos, carecas e trôpegos; que entre nós uns tomem ares ridiculamente importantes e outros se atasquem na vadiagem e afoguem os desgostos em álcool - isso sim, é que é um sonho, um sonho hediondo, abominável! A vida passou sem deixar vestígios, insípida, estupidamente. Isso é que é amargo, isso é que deveríamos repelir como um sonho. E depois, acima de tudo, no meio de tudo, uma aparição terrível, constante... Adeus.
Veretiev afastou-se rapidamente, mas quando passou diante da porta de um dos principais cafés da avenida, parou e girou a maçaneta. Depois de beber ao balcão um copo de vodka com limão, atravessou a sala de bilhar cheia de fumo e entrou num gabinete onde o esperavam diversos dos seus companheiros habituais: o príncipe S., dois oficiais de cavalaria e dois outros indivíduos apenas designados pelos seus nomes de baptismo ou diminutivos. Eram todos homens já de
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certa idade, embora procurassem passar por rapazes. Uns tinham os cabelos grisalhos, outros eram calvos, e todos possuíam papada; no entanto, continuavam a passar a vida nos cafés e obstinavam-se em considerar Veretiev um homem extraordinário, destinado a espantar o mundo. Ele, porém, mais inteligente do que os companheiros, tinha perfeita noção da sua completa e irremediável inutilidade. Devemos, no entanto, dizer que, mesmo fora do seu círculo de amigos, muitas pessoas acreditavam que se não tivesse arruinado pessoalmente a sua vida, ninguém seria capaz de prever até onde chegaria. Mas essas pessoas enganavam-se: os Veretieves nunca conseguem ser nada.
Os amigos receberam-no com o entusiasmo habitual. Ao princípio, impressionou-os o seu ar carrancudo e as suas palavras cheias de fel; mas logo que apareceram novas garrafas em cima da mesa tudo retomou o curso do costume.
Quanto a Astakov, assim que Veretiev o deixou empertigou-se e franziu o sobrolho. Aquele encontro inopinado ferira-o na sua dignidade de gentleman e funcionário superior. "Tornámo-nos tolos, bebemos vinho e pintamos o bigode! Parlez pour vous, mon cher (1)", disse por fim para consigo, quase em voz alta. E depois de descarregar assim a sua trasbordante indignação, ia continuar o passeio quando, de súbito, uma voz forte e firme perguntou atrás dele:
- com quem estava a falar?
Astakov virou-se e reconheceu um dos seus ilustres conhecimentos, o Senhor Pomponski, um homem alto e corpulento, que ocupava um cargo importantíssimo e que desde a sua mais tenra juventude nunca duvidara de si mesmo.
- Era um original que conheci superficialmente noutros tempos - murmurou Astakov, segurando no braço de Pomponski,
(1) Em francês, no original: Fale por si, meu caro. (N. do T.)
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- Permita-me, no entanto, que lhe pergunte uma coisa, Vladimiro Sergeich: acha que um homem que se respeita pode conversar em plena rua com um indivíduo que usa boné? É indecente e confesso que me deixou estupefacto. Onde conheceu semelhante homem?
- No campo.
- No campo! Na cidade ninguém cumprimenta os seus vizinhos de campo. Não é próprio. Um gentleman -quantas vezes lho tenho dito? - deve comportar-se sempre como um gentleman, se não quer que...
- Ali está a minha mulher - apressou-se Astakov a interrompê-lo. - Vamos ter com ela.
E os dois gentlemen dirigiram-se para uma carruagenzinha baixa, muito elegante, à portinhola da qual aparecia o rosto pálido, cheio de arrogância e irritação, de uma mulher ainda nova, mas já envelhecida. Atrás dela via-se outra dama, que parecia também constantemente irritada. Astakov abriu a portinhola, ofereceu o braço à mulher, Pomponski estendeu o dele à sogra do amigo e os dois pares iniciaram o seu passeio na Avenida do Neva, seguidos por um lacaio enfezado, de libré à inglesa, polainas altas e chapéu adornado com um enorme penacho.

 

 

                                                                  Ivan Turgueniev

 

 

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