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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRIMEIRO AMOR, ÚLTIMOS RITOS / Ian McEwan
PRIMEIRO AMOR, ÚLTIMOS RITOS / Ian McEwan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PRIMEIRO AMOR, ÚLTIMOS RITOS

 

Revejo a nossa casa de banho diminuta, banhada por uma luz demasiado intensa, e a Connie, com a toalha à volta dos ombros, sentada na borda da banheira a chorar, enquanto eu enchia o lavatório de água quente e assobiava - tal era o meu júbilo- o Teady Bear, do Elvis Presley, recordo, nunca deixei de recordar, a penugem da colcha de felpa a rodopiar à superfície da água, embora só há pouco tivesse percebido que, se isso constituiu o fim de um episódio particular, caso seja possível afirmar que os episódios da vida real têm um fim, pode dizer-se que foi o Raymond a ocupar o princípio e o meio; porém, se nos assuntos humanos não existem episódios, sou obrigado a insistir que esta história é sobre o Raymond, e não sobre a virgindade, o coito, o incesto e o onanismo. Deixem-me, pois, começar por dizer que foi uma ironia do destino, por razões que só muito mais adiante se irão tomar claras - e vocês terão de ser pacientes -, ser precisamente ele a pretender que eu tomasse consciência da minha virgindade. Certo dia, no Finsbury Park, fui abordado pelo Raymond, que, enquanto me conduzia até uns arbustos, dobrava e desdobrava o dedo misteriosamente à frente do meu nariz, ao mesmo tempo que me observava atentamente. Eu olhava para aquilo sem perceber, até que comecei também a dobrar e a desdobrar o dedo e vi que era a coisa certa a fazer, pois o seu rosto iluminou-se num sorriso radioso.

- Estás a perceber? Vejo que estás a perceber! Contagiado pela sua alegria esfuziante, respondi que sim,

à espera de ficar sozinho para poder repetir aquele gesto até conseguir entender a sua desconcertante alegoria digital.

- Então, que é que achas? - perguntou cheio de curiosidade, agarrando-me pelas bandas do casaco com uma energia inusitada.

Tentando ganhar tempo, verguei de novo o dedo e estiquei-o lentamente, frio e seguro, tão frio e tão seguro que o Raymond susteve a respiração e interrompeu o movimento. Olhei para o meu dedo erecto e respondi:

- Depende - perguntando-me se alguma vez iria conseguir descobrir do que estávamos a falar.

Nessa altura, tinha catorze anos e ele quinze e, embora eu me considerasse intelectualmente superior - pelo que me via obrigado a fingir perceber o significado daquele dedo a mexer-, era o Raymond que sabia coisas e que orientava a minha formação. Foi ele a iniciar-me nos segredos da vida adulta, que compreendia intuitivamente, mas nunca na totalidade. O mundo que me mostrava, todo o seu fascinante pormenor, ciência e pecado, o mundo para o qual era uma espécie de mestre-de-cerimónias permanente, nunca lhe era completamente favorável. Conhecia bem o mundo, mas este - se assim se pode dizer- não lhe retribuía. Por isso, quando apareceu com cigarros, fui eu que aprendi a engolir o fumo, a fazer anéis e a pôr as mãos em concha à volta do fósforo como uma estrela de cinema, enquanto ele se engasgava, atrapalhado; e, mais tarde, a primeira vez que arranjou marijuana, de que eu nunca ouvira falar, fui eu a apanhar uma pedrada e a ficar eufórico, enquanto ele confessava - o que eu nunca teria feito- não sentir absolutamente nada. E também, apesar de ser o Raymond, já com a voz grossa e a barba a despontar, a propor que fôssemos ver filmes de terror, ficava sentado durante a sessão com os dedos a tapar os ouvidos e os olhos fechados, o que era surpreendente, atendendo ao facto de num só mês termos visto vinte e dois filmes desses. Quando roubou uma garrafa de whisky num supermercado, a fim de me iniciar no álcool, passei duas

horas com um ataque de hilaridade a vê-lo aos vómitos. O meu primeiro par de calças compridas pertencera ao Raymond, que mas ofereceu quando fiz treze anos. Tal como as outras peças de vestuário, ficavam-lhe dez centímetros acima dos tornozelos, enfunavam nas coxas e pareciam um saco entrepernas; porém, como numa parábola à nossa amizade, caíam-me como se tivessem sido feitas por medida e iam-me tão bem, sentia-me tão confortável com elas, que durante um ano não usei outras. Depois, houve os sobressaltos do gamanço nas lojas. A ideia, como o Raymond me explicou, era muito simples. Ia-se até à Livraria Foyle, atafulhavam-se os bolsos de livros que se levavam a um negociante da Mile End Road que nos fazia o especial favor de os pagar a metade do preço de custo. A primeira vez apareci com o sobretudo do meu pai a varrer o chão esplendorosamente à minha passagem. Encontrámo-nos à porta da loja. Ele estava em mangas de camisa, pois deixara o casaco no Metro, mas, como tinha a certeza de conseguir passar sem ele, entrámos na livraria.

Enquanto metia nos meus diversos bolsos uma selecção de livros fininhos de poesia escolhida, o Raymond escondia na sua pessoa os sete volumes da edição Variorum das obras de Edmund Spenser. Dada a intrepidez do acto, qualquer outra pessoa teria tido hipótese de ser bem sucedida, mas o seu arrojo era de uma natureza precária, mais próxima de uma total inconsciência das realidades da situação. Enquanto sacava os livros da prateleira, já o subgerente estava atrás dele e encontravam-se ambos junto à porta quando os rocei com a minha carga. Esbocei um sorriso cúmplice em direcção ao Raymond, que ainda apertava os livros contra si, e agradeci ao subgerente, que, num gesto automático, abriu a porta à minha passagem. Por sorte, tão desajeitada foi a sua tentativa de gamanço, tão tolas e ingénuas as desculpas que apresentou, que o gerente acabou por deixá-lo partir, provavelmente por, num assomo de benevolência, o imaginar vítima de perturbações mentais.

Finalmente, e o que talvez seja mais importante que tudo o resto, o Raymond familiarizou-me com os prazeres dúbios da masturbação. Nesse tempo, tinha eu doze anos, o alvorecer

do meu dia sexual. Andávamos a vasculhar uma cave num velho edifício bombardeado durante a guerra, à procura de coisas deixadas pelos vagabundos que lá passavam a noite, quando ele, depois de ter descido as calças como se fosse urinar, começou a esfregar a picha com uma energia coruscante, incitando-me a imitá-lo. Assim fiz, e em breve fui inundado por uma onda de prazer morno, indistinto, que se foi tornando mais intenso até se transformar numa sensação flutuante, dissolvente, como se, a qualquer momento, as minhas entranhas se fossem derreter. Entretanto, as nossas mãos continuavam a agitar-se furiosamente para cima e para baixo. Preparava-me para o felicitar pela sua descoberta de uma maneira tão simples, económica e, no entanto, agradável de passar o tempo, perguntando-me se não poderia vir a dedicar toda a minha vida a essa magnífica sensação - o que agora, retrospectivamente, me parece ter-se verificado em muitos aspectos -, ia expressar tudo isto por palavras, quando fui soerguido pela nuca e os meus braços, as minhas pernas, o meu estômago, se alçaram, se contorceram e revolveram, sendo o resultado de tudo isso duas doses de esperma que se foram esparramar no casaco domingueiro do Raymond - era domingo-, escorrendo para dentro do bolso de cima.

- Olha lá! - exclamou ele, interrompendo a sua actividade. - Para que é que fizeste isto?

Ainda a refazer-me daquela experiência avassaladora, não respondi, por não conseguir proferir palavra.

- Mostro-te como é - resmungou, esfregando cuidadosamente a mancha lustrosa no casaco escuro-, e sujas-me todo.

E, dessa maneira, aos catorze anos, com o Raymond por mentor, já eu adquirira uma quantidade de prazeres que, justificadamente, associava ao mundo adulto. Fumava cerca de dez cigarros por dia, bebia whisky quando o havia e tinha uma predilecção de perito pela violência e pela obscenidade; experimentara a resina capitosa da Cannabis sativa e estava consciente da minha precocidade sexual, embora, estranhamente, nunca me ocorresse utilizá-la na prática, dado a minha imaginação ainda não ter sido alimentada por anseios ou secretas fantasias. Todos estes passatempos eram financiados pelo negociante da Mile End Road. No que dizia respeito a estes gostos adquiridos, o Raymond era o meu Mefistófeles, um Virgílio tosco para o meu Dante, indicando-me o caminho até um Paradiso que lhe era inacessível. Não podia fumar porque isso o fazia tossir, o whisky deixava-o mal disposto, os filmes metiam-lhe medo ou aborreciam-no, o haxixe não lhe provocava efeito e, enquanto eu fazia estalactites no tecto da cave do velho edifício bombardeado, ele não fazia nada.

- Talvez - sugeriu com ar lúgubre certa tarde ao sairmos da cave-, talvez eu já esteja velho para estas coisas.

Por isso, com o Raymond diante de mim, muito compenetrado a dobrar e a esticar o dedo, pressenti que me encontrava no limiar de uma nova câmara sumptuosa dessa vasta, soturna e deliciosa mansão, a idade adulta, e que, se tivesse um bocadinho de paciência, ocultando, por orgulho, a minha ignorância, em breve ele se abriria, permitindo-me dar o melhor de mim mesmo.

- Bem, depende.

Atravessávamos o Finsbury Park, onde, outrora, o Raymond, nos seus primeiros tempos de delinquência, dera estilhaços de vidro a comer aos pombos, onde, juntos, numa inocente bem-aventurança digna do "Prelúdio", assáramos vivo o periquito da Sheila Harcourt, enquanto ela caía para o lado no relvado mais próximo, onde, em miúdos, a coberto dos arbustos, apedrejávamos os pares que fornicavam no arvoredo; atravessávamos, pois, o Finsbury Park, quando o Raymond perguntou:

- Quem é que tu conheces?

Quem é que eu conhecia? Continuava sem perceber e aquilo podia ser uma mudança de assunto, pois ele tinha um espírito muito vago, pelo que me limitei a responder:

- Quem é que tu conheces?

- A Lulu Smith - retorquiu, pondo tudo a limpo ou, Pelo menos, o assunto em questão, uma vez que a minha candura era extraordinária.

A Lulu Smith! A Lulu Boazona! E o nome é suficiente para me fazer sentir uma mão gélida à volta dos testículos. A Lulu Lamour, de quem se dizia ser capaz de fazer tudo e ter feito tudo. Havia anedotas de judeus, anedotas de elefantes e anedotas da Lulu, que haviam sido as principais inspiradoras da extravagante lenda. A Lulu Vivaça - e só de pensar nela fico com vertigens-, cuja enormidade física só era igualada pela enormidade dos seus afamados apetites e façanhas sexuais, cuja ordinarice só tinha par na ordinarice que inspirava e cuja lenda só era comparável à realidade. A Lulu Zulu, que

- segundo corria - deixara no Norte de Londres um rasto de idiotas a espumar, uma senda árida de mentes e pichas destroçadas, de Shepherds Bush a Holloway, de Ongar a Islington. A Lulu! As suas curvas bamboleantes e os olhinhos porcinos e risonhos, as coxas esplendorosas e as covinhas nos nós dos dedos, essa massa fremente e escaldante de carne de colegial que, segundo constava, fornicara com uma girafa, com um colibri, com um homem com um pulmão de aço (que morrera logo a seguir), com um iaque, com o Cassius Clay, com um sagui, com um chocolate Mars, com a alavanca de mudanças do Morris Minor do avô (e, subsequentemente, com um polícia de trânsito).

O Finsbury Park estava impregnado do espírito da Lulu Smith e pela primeira vez experimentei anseios indefinidos, associados a simples curiosidade. Tinha uma vaga ideia do que havia a fazer, pois não fora em vão que vira pares amontoados em todos os recantos do parque durante os longos fins de tarde de Verão, que atacara à pedrada ou com bombas de água - do que agora me arrependia supersticiosamente. E, de súbito, no Finsbury Park, enquanto abríamos caminho entre os montinhos petulantes de merda de cão, tomei consciência da minha virgindade e abominei-a; sabia tratar-se da última câmara da mansão, sem dúvida a mais luxuosa, com um recheio mais requintado do que as outras, cheia de atracções mortais, e o facto de nunca ter tido, de nunca ter feito, de nunca ter posto em prática aquilo, era um anátema total, o meu albatroz fedorento. Fitei o Raymond, que continuava com o indicador erguido a revelar o que eu tinha a fazer. E de certeza que ele sabia...

Depois das aulas, costumávamos ir até um café perto do Finsbury Park Odeon. Enquanto outros da nossa idade estavam de nariz enfiado nas colecções de selos ou nos trabalhos de casa, nós passávamos ali muitas horas a discutir as maneiras mais fáceis de fazer dinheiro, enquanto íamos bebendo grandes canecas de chá. Às vezes, conversávamos com os homens que por lá apareciam depois do trabalho. E Millais devia ter estado presente para nos pintar a escutarmos, imóveis como estátuas, fantasias e proezas ininteligíveis acerca de negociatas com condutores de camiões, de chumbo roubado em telhados de igrejas, de combustível subtraído ao departamento de obras da cidade e, ainda, de engates, de borrachos, de saias, de marmelada, de conquistas, de chupanços, de cus e mamas, de fornicadelas, por cima, por baixo, de frente, com, sem, de arranhadelas e rasgões, de lambidelas e porcarias, de conas sumarentas, quentes e infinitas, e de outras frias e áridas, mas que valia a pena experimentar, de pichas velhas e moles ou jovens e efervescentes, de se virem cedo de mais ou tarde de mais, de negas, de quantas vezes por dia, de doenças concomitantes, de pus e tumefacções, de úlceras e arrependimento, de ovários envenenados e testículos vazios. Ouvíamos como e com quem os homens do lixo fornicavam, o que os leiteiros despejavam, quem o montador de estores montava, o que o pedreiro levantava, o que o homem da água inspeccionava, o que o padeiro amassava, o que o homem do gás cheirava, o que o canalizador entubava, a quem o electricista se ligava, o que o enfermeiro injectava, o que o solicitador solicitava, o que o fiscal fiscalizava - e por aí adiante, num conjunto irreal e muito estafado de trocadilhos, alusões, preceitos, frases feitas, crenças e fanfarronadas. Escutava sem compreender, tentando fixar anedotas que um dia iria contar, retendo histórias de perversões e hábitos sexuais no fundo, toda uma moral ligada ao sexo. Por conseguinte, quando comecei a perceber, por experiência própria, do que falavam, já dispunha de uma formação completa, que, acrescida de uma leitura rápida das passagens mais interessantes de Havelock Ellis e de Henry Miller, me granjeou a fama de ser um jovem especialista na matéria, a quem dezenas de homens -e também de mulheres, felizmente- iam pedir conselho. E tudo isto, toda esta reputação que me acompanhou até à universidade, onde abrilhantou a minha carreira, após uma única foda - o tema desta história.

Foi, pois, ali no café, onde eu escutara e recordara sem nada entender, que o Raymond acabou por descontrair o indicador, enfiando-o na asa da chávena, ao mesmo tempo que dizia:

- A Lulu Smith mostra-ta por um xelim. Fiquei satisfeito com aquilo. Satisfeito por não nos estarmos a precipitar, por não ir ficar sozinho com uma Lulu Zulu à espera que eu pusesse em prática o aterradoramente obscuro, por a primeira expedição dessa aventura necessária ir ser de reconhecimento. Além disso, durante toda a minha vida só vira duas mulheres nuas. Os filmes obscenos a que assistíamos naquele tempo estavam longe de o ser o suficiente e só mostravam as pernas, as costas e os rostos extasiados de pares felizes, deixando o resto às nossas imaginações entumescidas, sem clarificarem nada. Quanto às duas mulheres nuas, a minha mãe era enorme e grotesca, cheia de pelancas que a faziam assemelhar-se a um sapo esfolado, e a minha irmã, de dez anos, era um morcego feio, para quem em criança eu mal conseguia olhar - já não falando de quando tínhamos de partilhar a banheira. E, bem feitas as contas, um xelim não era nada, atendendo a que o Raymond e eu éramos nais ricos do que a maioria dos trabalhadores que frequenavam o café. Na realidade, eu era mais rico do que qualquer dos meus tios, ou do que o meu pai, coitado, tão explorado o trabalho, ou do que qualquer outro membro da família, costumava rir-me quando pensava nos turnos de doze horas que o meu pai fazia na moagem e no seu rosto exausto, pálido e mal-humorado quando chegava a casa ao fim do dia, ria-me um pouco mais alto quando pensava nos milhares de homens que todas as manhãs saíam da fila de casas de renda económica iguais à nossa, para labutarem durante a semana inteira, descansarem ao domingo e voltarem, na segunda-feira, às oficinas, às fábricas, às serrações e às docas de Londres, regressando cada noite mais velhos, mais cansados e tão pobres como haviam partido; diante das nossas chávenas de chá, ria-me com o Raymond dessa traição consentida a uma vida inteira, a içar, a cavar, a carregar, a empacotar, a controlar, a suar e a gemer, para proveito alheio, e de como, a fim de se consolarem, faziam de todo esse calvário uma virtude, vangloriando-se de não falharem um só dia a marcar o ponto no Inferno; e ria-me, sobretudo, quando o tio Bob, o tio Ted ou o meu pai me presenteavam com um dos seus xelins tão arduamente ganhos -e, em ocasiões especiais, com uma nota de dez xelins-, ria-me por saber que uma boa tarde de trabalho na livraria nos rendia mais do que eles faziam numa semana. Claro que tinha de rir discretamente, pois não faria sentido deitar fora uma tal dádiva, sobretudo por ser evidente o prazer que isso lhes dava. Revejo-os agora, um dos meus tios ou o meu pai, atravessando em passos compassados a sala de visitas minúscula, com a moeda ou a nota na mão, desdobrando um rol de reminiscências, de historietas, de advertências contra a Vida, suspensos perante aquela extravagância e tão felizes que dava gosto vê-los. Sentiam-se, e durante esses breves instantes eram-no de facto, grandiosos, sábios, ponderados, magnânimos, efusivos e talvez, quem sabe?, um tudo nada sublimes; patrícios a dispensar ao filho ou ao sobrinho, da maneira mais sensata, mais generosa, os frutos da sua sagacidade e da sua riqueza - eram deuses no seu próprio templo, e quem era eu para recusar a dádiva? Ao cabo de cinquenta horas de pontapés no cu na fábrica, precisavam dessas miracle-plays caseiras, dessas confrontações míticas entre o Pai e o Filho, pelo que eu, sensível a todos os matizes da situação e deleitando-me com eles, aceitava o dinheiro, aguentando aquele frete durante algum tempo e reprimindo o gozo até poder dar largas a uma hilaridade que me deixava sem forças e com as lágrimas a correr. Assim, muito antes de o saber, já era um estudioso, um aluno promissor, da ironia.

Por conseguinte, um xelim não era muito a pagar por um vislumbre do incomunicável, do cerne do mistério dos mistérios. do Gral Carnal, da rata da Lulu Boazona, e insisti com o Raymond para que combinasse a exibição o mais depressa possível. Ele já começava a ficar muito compenetrado do seu papel de contra-regra, franzindo o sobrolho com ar importante, numa azáfama de datas, de horas, de lugares, de remunerações, e desenhando cifras ininteligíveis nas costas de um sobrescrito. O Raymond era uma dessas pessoas excepcionais que, a par do enorme prazer que sentem em organizar seja o que for, revelam uma irremediável incapacidade para o fazer. Era muito possível que chegasse no dia errado, à hora errada, que fizesse confusão com o pagamento ou com a duração do espectáculo; mas havia uma coisa que acabava por ser mais certa que tudo o resto, mais certa do que o Sol ir nascer na manhã seguinte: ao fim e ao cabo, ser-nos-ia dado ver aquela requintada pentelheira. Isto porque a vida estava incontestavelmente a favor do Raymond; embora, naquele tempo, eu não conseguisse exprimir os meus sentimentos em tantas palavras, sentia que na ordenação cósmica dos destinos dos indivíduos o dele ocupava um lugar diametralmente oposto ao meu. A sorte pregava-lhe partidas, talvez até lhe atirasse areia para os olhos, mas nunca lhe cuspia na cara nem lhe pisava, deliberadamente, os calos existenciais; e os equívocos, os prejuízos, os logros e os danos de que era vítima acabavam por ser, pelo menos à primeira vista, mais cómicos do que trágicos. Recordo-me de uma ocasião em que pagou dezassete libras por um cubo de sessenta gramas de haxixe, que se viria a revelar qualquer coisa completamente diferente. A fim de recuperar o dinheiro, o Raymond levou a barra a um lugar muito conhecido do Soho e tentou vendê-la a um polícia à paisana, que, por sorte, não o incriminou. Bem vistas as coisas, não existia, pelo menos naquele tempo, nenhuma lei contra o tráfico de estrume de cavalo em pó, ainda que embrulhado em papel de alumínio. Mais tarde houve o corta-mato. O Raymond era um corredor medíocre, mas foi apurado com outros dez concorrentes para representar a escola no encontro distrital, a que eu nunca faltava. Na realidade, não havia outro desporto a que assistisse com tamanho entusiasmo, prazer e júbilo. Adorava ver os rostos torturados e contorcidos dos participantes a saírem do corredor de fitas e a transporem a meta; achava particularmente interessante os que chegavam depois dos cinquenta primeiros, a correr como loucos e a competir diabolicamente- pelo centésimo décimo terceiro lugar no torneio. Observava-os aos tropeções pelo corredor de fitas, a deitarem os bofes pela boca e a agitarem os braços até se abaterem no meio da erva, convencido de ter perante os olhos uma manifestação da futilidade humana. Só os trinta primeiros contavam na prova e, mal o trigésimo chegava, o grupo de espectadores começava a dispersar, deixando os restantes a travar os seus combates pessoais - e era precisamente nessa altura que o meu interesse se aguçava. Muito tempo depois de os juizes e cronometristas se terem ido embora, ainda eu continuava junto à meta, no lusco-fusco de um fim de tarde de Inverno, para ver o último transpor de rastos a linha de chegada. Ajudava a levantar os que caíam, estendia lenços a narizes ensanguentados, massajava cãibras em barrigas da perna ou dedos do pé - uma verdadeira Florence Nightingale, à excepção do regozijo e do fascínio experimentado perante o ânimo triunfante dos vencidos da vida que se haviam esfalfado em nome de nada. E que comoção sentia, como os olhos se me marejavam quando, depois de ter esperado dez, quinze ou mesmo vinte minutos na imensidão do campo já mergulhado em sombra, rodeado de fábricas, de postes de alta tensão, de casas e garagens monótonas, com um vento frio a levantar-se arrastando os primeiros salpicos de uma chuvinha desagradável, avistava de súbito, por entre a escuridão que se ia adensando, no outro extremo do campo, uma mancha branca a correr direita à meta. traçando lentamente, aos tropeções pela erva molhada, o seu microdestino de total e absoluta inutili dade. E sob o vasto céu metropolitano, como que a unificar a complexa globalidade da evolução orgânica e da vontade humana, pondo-a ao alcance da minha mão, a minúscula mancha amebiana a atravessar o campo assumia forma humana e, com uma determinação inabalável, cambaleando resolutamente no seu esforço absurdo para alcançar a meta - a vida pura e simples, a vida anónima, em constante renovação, à vista da qual, no momento em que a silhueta, feita num oito, atingia a linha de chegada, o meu coração batia mais forte e o meu espírito se exaltava no abjecto abandono da mórbida e fatal identificação com o processo da vida cósmica-, o Logos.

- Pouca sorte, Raymond - disse, em tom jovial, estendendo-lhe a camisola. - Para a próxima será melhor.

E, com um sorriso pálido, com a triste e firme sabedoria de Arlecchino, de Feste, com a certeza de que dos dois é o Comediante, e não o Trágico, a ter o Trunfo, o vigésimo segundo Arcano, cuja letra é Than e cujo símbolo é Sol, sorrindo ao abandonarmos o campo agora quase mergulhado na escuridão, ele respondeu:

- Não tem importância. Isto foi só um corta-mato, uma brincadeira.

O Raymond prometeu submeter a nossa proposta à apreciação da Lulu Smith no dia seguinte depois das aulas; e, como eu tinha de tomar conta da minha irmã nessa noite, enquanto os meus pais iam à corrida de galgos em Walthamstow, despedi-me dele no café. Durante todo o caminho até casa fui a pensar em cona. Vi-a no sorriso da condutora do autocarro, ouvi-a no ronco dos motores, senti-lhe o cheiro no fumo da fábrica de graxa, imaginei-a debaixo das saias das donas de casa que passavam, senti-a na ponta dos dedos, inspirei-a no ar, revolvi-a no espírito e, ao jantar, que era folhados de salsicha, devorei, num rito inefável, órgãos genitais de massa e enchidos. Continuava, porém, sem saber o que era uma cona. Fitei a minha irmã sentada do outro lado da mesa. Exagerei um tudo nada ainda agora quando disse que era um morcego feio - e comecei a pensar que, afinal, talvez até nem fosse assim tão horrível. Era inegável que tinha os dentes saídos e a cara chupada, mas não a ponto de se dar por isso às escuras; de resto, quando lavava o cabelo, como acabara de fazer, era quase possível achá-la bonitinha. Portanto, não é de estranhar que, enquanto ia comendo os folhados de salsicha, começasse a pensar que, com um bocadinho de adulação e uma certa dose de paleio, conseguiria convencer a Connie a considerar-se, ainda que apenas durante alguns minutos, algo mais do que uma irmã, uma mulher jovem e bela. uma estrela de cinema, por exemplo, e talvez, Connie, pudéssemos enfiar-nos na cama e experimentar uma coisa emocionante, agora tiras esse pijama maljeitoso, enquanto eu vejo à luz .. E, munido desse conhecimento comodamente adquirido, poderia enfrentar a terrível Lulu com fervor e desapego, e toda a pavorosa provação se tornaria insignificante e talvez, quem sabe?, conseguisse que ela ficasse a meus pés a meio da exibição.

Nunca gostei de ficar a tomar conta da Connie, que era impertinente, refilona, mimada e queria passar o tempo a brincar em vez de ver televisão. Em geral, conseguia metê-la na cama uma hora mais cedo adiantando o relógio. Naquela noite, atrasei-o. Mal os meus pais saíram para a corrida de galgos, perguntei-lhe a que queria brincar e disse-lhe que podia escolher o que quisesse.

- Não quero brincar contigo.

- Porquê?

- Porque passaste o jantar a olhar para mim.

- Claro que passei, Connie. Estava a tentar lembrar-me dos jogos que preferes e isso de olhar para ti não teve importância nenhuma.

Por fim, acedeu em brincar às escondidas, o que eu sugerira com particular insistência, dado a nossa casa ser tão pequena que só havia duas divisões para nos escondermos e serem ambas quartos de dormir. Fui o primeiro a ficar a tapar os olhos. Contei até trinta, atento aos passos no quarto dos meus pais, mesmo por cima de mim, e ouvindo com satisfação o ranger da cama - estava a esconder-se debaixo do edredão, o seu segundo sítio preferido.

- Já pode? - E comecei a subir as escadas.

No andar de baixo julgo que ainda não decidira bem o que ia fazer; talvez apenas uma expedição de reconhecimento, ver em que pé estavam as coisas, urdir um plano mental para referência futura - afinal, era absurdo assustar a minha irmã, que não pensaria duas vezes antes de contar tudo ao meu pai, o que iria provocar uma cena, mentiras penosas a inventar, gritos, lágrimas e outras coisas do género, exactamente na altura em que eu precisava de toda a minha energia para fazer face à obsessão que me dominava. Porém, quando cheguei ao cimo das escadas, todo o meu sangue se escoara do cérebro para o sexo ou, por outras palavras, da razão para os sentidos e. no momento em que recuperava o fôlego e apertava na mão húmida a maçaneta, decidira violá-la. Abri suavemente a porta e cantarolei:

- Connieee, onde estááás?

Em geral, isso fazia-a rir, mas daquela vez não houve nem um som. Sustive a respiração e aproximei-me da cama em bicos de pés:

- Sei ondééé questááás .. - E, avançando para a protuberância reveladora do edredão, murmurei: - Vou apanhar-te .. - ao mesmo tempo que puxava para trás, devagarinho, quase com ternura, a coberta espessa e espreitava para a escuridão acolhedora por debaixo dela.

Com a cabeça à roda de ansiedade, acabei por abrir a cama por completo e dei com os pijamas dos meus pais para ali indefesos e inocentemente esticados; no preciso momento ; em que, surpreendido, dava um salto à retaguarda, apanhei um soco tão violento no fundo das costas como só uma irmã é capaz de nos dar. E lá estava a Connie, radiante, a dançar diante da porta escancarada do guarda-fato:

- Eu vi-te, eu vi-te e tu não me viste.

A fim de aliviar a tensão dei-lhe um pontapé nas canelas e sentei-me na cama a pensar no que iria fazer a seguir, enquanto ela, teatral como era de prever, se sentava no chão num berreiro. Deprimido com tamanha barulheira, resolvi ir ler o jornal para o andar de baixo, certo de que não tardaria a tê-la ao pé de mim. Quando chegou, estava amuada.

- A que queres brincar agora? - perguntei. Sentou-se na beira do sofá, ainda a fazer beicinho e a

fungar cheia de ressentimento. Eu já começava a pôr a hipótese de esquecer todo o plano e de ficar a ver televisão até ir para a cama, quando tive uma ideia de extrema simplicidade, elegância, lucidez e beleza formal, uma ideia a que a certeza do seu próprio êxito assentava como uma luva. Há uma brincadeira que todas as miúdas caseiras e pouco imaginativas como a Connie acham irresistível e na qual, desde que aprendera a balbuciar as palavras necessárias, ela me suplicava que participasse, a ponto de os meus verdes anos de masculinidade terem sido assombrados pelas suas instâncias e exorcizados pelas minhas inevitáveis recusas; trata-se, em suma, de uma coisa pela qual eu preferia ser queimado vivo do que visto pelos meus amigos a fazer. E agora lá íamos nós brincar aos Pais e às Mães.

- Sei uma coisa a que gostavas de brincar, Connie. Claro que não houve resposta, mas deixei aquelas palavras a flutuar como um isco. - Sei uma coisa a que tu gostavas de brincar.

- Que é? - perguntou, erguendo a cabeça.

- É uma coisa a que estás sempre a querer brincar. O rosto dela iluminou-se:

- Aos Pais e às Mães?

Parecia ter sofrido uma metamorfose de tão extasiada. Foi ao quarto buscar carrinhos de bebé, bonecas, fogões, frigoríficos, caminhas, colheres de chá, uma máquina de lavar roupa e uma casota de cão, que dispôs em meu redor num alvoroço de zelo organizativo.

- Agora tu vais para aqui, não, para ali, e isto era a cozinha e isto a porta para entrares, e não passas por aqui porque era uma parede, e eu entrava e via-te e dizia que ia fazer o almoço e tu respondias que ias sair.

Estava mergulhado no microcosmo das insípidas e monótonas banalidades quotidianas, dos horrendos e insignificantes pormenores da vida dos nossos pais e dos amigos deles, da vida que tão ardentemente ansiava imitar. Fui trabalhar e voltei, fui ao pub e voltei, fui meter uma carta no correio e voltei, fui às compras e voltei, li o jornal, belisquei as bochechas de celulóide da minha prole, li outro jornal, belisquei mais umas bochechas, fui trabalhar e voltei. Enquanto isso, a Connie limitava-se a cozinhar, a lavar a loiça e a roupa, a dar de comer às dezasseis bonecas, a metê-las na cama e a acordá-las, e a servir o chá - sempre felicíssima. Era a dona-de-casa-deusa-terrena-intergaláctica, possuía e controlava tudo o que a rodeava, via tudo, sabia tudo, decidia quando eu devia sair e quando devia regressar, em que divisão estava, como e quando devia falar e o que era preciso dizer. Estava de tal modo feliz que nunca vi outro ser humano tão realizado, com um sorriso tão aberto, radioso e inocente - desfrutava o Paraíso na Terra. A dado momento, era tal o seu deslumbramento e fascínio que, a meio de uma frase, as palavras se lhe embrulharam na garganta e sentou-se nos calcanhares, com os olhos a brilhar, emitindo um suspiro prolongado e musical de rara e maravilhosa felicidade. Quase me senti envergonhado por me ter passado pela cabeça violá-la. Ao regressar do trabalho pela vigésima vez nessa meia hora, sugeri:

- Connie, estamos a esquecer-nos de uma das coisas mais importantes que os Pais e as Mães costumam fazer.

Mal podendo acreditar que nos tivéssemos esquecido fosse do que fosse, ficou cheia de curiosidade.

- Eles fodem, Connie, com certeza que sabes isso.

- Fodem? - Na sua boca a palavra soava estranhamente desprovida de significado e, de certo modo, suponho que assim era no que me dizia respeito. E a minha intenção era justamente dar-lhe algum sentido. - Fodem? Que é que isso quer dizer?

- Bem, é o que eles fazem à noite quando vão para a cama antes de adormecerem.

- Mostra-me como é.

Expliquei-lhe que tínhamos de ir até ao andar de cima e de nos metermos na cama.

- Não, não é preciso. Podemos fingir, e isto aqui era a cama - retorquiu, apontando para um quadrado no desenho da alcatifa.

- Não consigo fingir e mostrar-te ao mesmo tempo. De modo que subi novamente as escadas, outra vez com

o sangue num turbilhão e toda a minha virilidade a fremir orgulhosamente. A Connie também estava entusiasmada, ainda delirante de felicidade com o jogo e satisfeita com a nova feição que este ia assumindo.

- A primeira coisa que fazem - expliquei, conduzindo-a até à cama- é tirar a roupa toda.

Fi-la sentar-se e, com os dedos embotados de excitação, desabotoei-lhe o pijama até ficar nua diante de mim, ainda perfumada do banho e a rir divertida com tudo aquilo. Depois também me despi, mas sem tirar as cuecas para não a assustar, e sentei-me a seu lado. Em pequenos tínhamos visto o corpo um do outro o suficiente para acharmos a nudez natural, embora isso tivesse sido algum tempo atrás e agora a sentisse pouco à vontade.

- Tens a certeza de que eles fazem isto?

A minha própria insegurança foi eclipsada pelo desejo.

- Tenho - respondi. - É muito simples. Tu tens um buraco aqui e eu meto lá a minha pilinha.

Tapou a boca com as mãos, abafando uma risadinha de incredulidade.

- Que parvoíce! E para quê?

Senti-me obrigado a confessar a mim mesmo que havia algo de irreal em tudo aquilo.

- Porque é a maneira de dizerem que gostam um do outro.

A Connie começava a pensar que aquela história toda não passava de uma invenção minha e, até certo ponto, julgo que tinha razão.

- Mas que maluquice! Por que é que não dizem só? Eu estava na defensiva, como um cientista excêntrico a

explicar o seu invento louco - o coito - a uma assistência de racionalistas cépticos.

- Sabes - prossegui -, é também para terem uma sensação muito agradável.

- Para terem uma sensação? - insistiu ela, ainda incrédula. - Uma sensação? Que queres dizer com isso de terem uma sensação?

- Eu mostro-te.

Empurrei-a até ficar deitada na cama e pus-me em cima dela, como aprendera nos filmes que tinha visto com o Raymond. Ela fitava-me perplexa, nem sequer dando mostras de estar assustada - na realidade, talvez mais à beira do enfado-, enquanto eu me contorcia, tentando despir as cuecas.

- Continuo a não perceber - lamentava-se a Connie debaixo de mim. - Não estou a ter sensação nenhuma. E tu estás a sentir alguma coisa?

- Espera - resmunguei, enrodilhando as cuecas nos dedos dos pés com os dedos das mãos. - Se esperares um minuto, já vais ver.

Começava a perder a paciência com a minha irmã, comigo próprio, com o Universo, mas, sobretudo, com as cuecas, que continuavam enroladas à volta dos tornozelos. Por fim, consegui desembaraçar-me delas. A minha picha, dura e pegajosa, assentava na barriga da Connie e comecei a introduzir-lha entre as pernas com uma das mãos, enquanto aguentava o peso do corpo com a outra. Procurei a sua fenda minúscula sem a menor ideia do que buscava, mas, mesmo assim, -com a vaga esperança de me transformar, de um momento para o outro, num turbilhão humano de sensações. Julgo que talvez tivesse em mente uma câmara carnuda e acolhedora, mas, enquanto premia e esquadrinhava, furava e insistia, tudo o que encontrava era pele firme e resistente. Entretanto, a Connie limitava-se a permanecer deitada de costas, emitindo um ou outro comentário:

- Ai, nesse sítio sou muito apertadinha! Tenho a certeza de que a mamã e o papá não fazem isto.

O braço em que me apoiava parecia trespassado por alfinetes e agulhas, sentia-me miserável, mas, apesar de tudo, continuava a meter e a fazer força, num desespero crescente. Cada vez que ela dizia "Ainda não sinto nada", lá se iam mais dez gramas da minha virilidade. Por fim, tive de descansar. Sentei-me na beira da cama a reflectir no meu irremediável fracasso, enquanto, atrás de mim, ela se apoiava nos cotovelos. Daí a instantes senti a cama começar a ser abanada por espasmos silenciosos e, ao virar-me, dei com a Connie com as lágrimas a correr pelo rosto crispado, sem conseguir emitir um som e a contorcer-se de riso.

- Que é? - perguntei.

Limitou-se a apontar vagamente na minha direcção, produzindo qualquer som indistinto, e tornou a deitar-se sem conseguir reprimir o riso. Sentei-me a seu lado, não sabendo o que pensar, mas com a certeza de que uma segunda tentativa estava fora de questão. Por fim, conseguiu proferir algumas palavras. Sentou-se e, apontando para o meu sexo ainda em erecção, articulou a custo:

- Tem um ar tão um ar tão .. - Deixou-se cair outra vez para trás, de novo sacudida pelo riso, e o resto da frase saiu-lhe num guincho: - .. tão palerma, tem um ar tão palerma! - E sucederam-se novas risadas agudas e incontroláveis.

Para ali fiquei sentado, num vazio solitário e detumescente, paralisado por aquela humilhação irreparável, até constatar que não estava a fazer face a uma rapariga a sério, a uma representante genuína do seu sexo; embora não se tratasse de um rapaz, também não era uma rapariga - no fim de contas, era a minha irmã. Baixei os olhos e dei com a minha picha flácida, com um ar tão acabrunhado que fiquei surpreendido. Preparava-me para pegar na roupa, quando a Connie, já calma, me tocou no cotovelo:

- Sei onde é que se mete. - Tornou a deitar-se com as pernas bem abertas, o que não me lembrara de lhe pedir para fazer, e instalou-se confortavelmente no meio das almofadas. - Sei onde é o buraquinho.

Esqueci a minha irmã, e o meu pénis ergueu-se, cheio de curiosidade e de esperança ante o convite que a Connie murmurava. Estava de novo muito senhora do seu papel, a brincar aos Pais e às Mães, em pleno controle da situação. Guiou-me até ao seu sexo apertado e seco de menina e durante algum tempo permanecemos numa imobilidade total. Desejei que o Raymond me pudesse ver, senti-me contente por ele me ter tornado ciente da minha virgindade, e que a Lulu Boazona estivesse presente; em boa verdade, se os meus desejos se tivessem tornado realidade, teria tido todos os meus amigos e conhecidos a desfilar pelo quarto, surpreendendo-me naquela postura gloriosa. Porque, mais do que a tal sensação, mais do que qualquer explosão por trás dos ouvidos, do que lanças a trespassar-me o ventre, do que ardor no sexo ou tortura da alma - mais do que qualquer uma dessas coisas, nenhuma das quais sentia, de resto, mais

É do que a própria ideia delas, sentia orgulho, orgulho de estar a fornicar, embora fosse apenas com a Connie, com a minha irmã de dez anos; e, ainda que se tratasse de uma cabra montês estropiada, ter-me-ia sentido orgulhoso de estar deitado naquela postura viril, antecipadamente orgulhoso por ir poder dizer "Já fodi", por pertencer profunda e irrevogavelmente à metade superior da Humanidade que conhece o coito e que com ele fecunda o Mundo. Também a Connie permanecia imóvel, com os olhos semicerrados, a respirar profundamente adormecera. Já passava da hora de se deitar e a nossa estranha brincadeira deixara-a esgotada. Pela primeira vez, movi-me suavemente para trás e para a frente, e poucas vezes bastaram para me vir de uma forma miserável, exausta, que só com muito boa vontade se poderia qualificar de agradável. E foi isso que acordou uma Connie indignada:

- Molhaste-me toda por dentro - protestou a chorar.

Sem ligar grande importância, levantei-me e comecei a vestir-me. Deve ter-se tratado de uma das mais desoladoras cópulas da humanidade copulante, que implicou mentiras, embustes, humilhações, incesto, a outra parte interessada a dormir a sono solto, a minha miséria de orgasmo e os soluços que agora invadiam o quarto; mas sentia-me feliz com ela, comigo mesmo, com a minha irmã, satisfeito por poder deixar as coisas acalmarem um pouco, por o caso estar arrumado. Levei a Connie para a casa de banho e comecei a encher o lavatório - os meus pais não iam tardar e, quando chegassem, ela tinha de estar na cama a dormir. Finalmente, conseguira entrar no mundo dos adultos, o que me dava prazer; mas, nesse momento, não queria ver nenhuma rapariga nua, nem coisa nenhuma nua, pelo menos nos tempos mais próximos. No dia seguinte diria ao Raymond que não pensasse mais no encontro com a Lulu, a menos que quisesse comparecer sozinho. Mas não me restava a menor dúvida de que isso era a última coisa que lhe apetecia fazer.

 

                                 Geometria no espaço

Em Melton Mowbray, em 1875, num leilão de "curiosidades e objectos de valor", o meu bisavô, em companhia do seu amigo M, arrematou o pénis do Capitão Nicholls, que morrera na prisão de Horsemonger em 1873. O membro foi guardado num frasco de vidro de trinta centímetros de altura e, como o meu bisavô registou no seu diário nessa mesma noite, encontrava-se "num perfeito estado de conservação". Do lote também constavam "as partes pudendas da defunta Lady Barrymore, que couberam a Sam Israels por cinquenta guinéus". O meu bisavô mostrou-se muito interessado em ficar com o par, mas M conseguiu dissuadi-lo, o que ilustra perfeitamente a amizade que os unia. O primeiro, o teórico entusiasta, e este, o homem de acção, que sabia quando se devia cobrir um lanço num leilão. O meu bisavô viveu sessenta e nove anos e, durante quarenta e cinco, no fim de cada dia, sentava-se antes de ir para a cama e lançava os seus pensamentos num diário, do qual existem quarenta e cinco volumes encadernados a carneira, que agora se encontravam na minha mesa de trabalho, tendo à esquerda o Capitão Nicholls dentro do frasco de vidro. O meu bisavô vivia dos rendimentos provenientes da patente de um invento do pai, um fecho prático usado pelos fabricantes de espartilhos até ao deflagrar da Primeira Guerra Mundial. Era um homem que apreciava a cavaqueira, os números e as teorias. Também gostava de tabaco, de vinho do Porto de boa qualidade, de lebre na púcara e, muito esporadicamente, de ópio. Agradava-lhe considerar-se um matemático, embora nunca tivesse tido um emprego nem publicado nenhum livro. Além disso, nunca viajou nem teve o nome no The Times, nem sequer quando morreu. Em 1869 casou com Alice, filha única do Reverendo Toby Shadwell, co-autor de um livro não muito afamado sobre as flores silvestres inglesas. Considero que o meu bisavô foi um excelente escritor no género que cultivou e, quando acabar de preparar a edição dos diários e estes forem publicados, estou certo de que irá ser alvo do reconhecimento que lhe é devido. Depois de ter terminado o meu trabalho vou tirar umas férias prolongadas, viajar até qualquer sítio frio, limpo e sem árvores, até à Islândia ou às estepes da Rússia. Costumava pensar que no final de tudo isso tentaria, caso fosse possível, divorciar-me da Maisie, mas agora já não- é necessário.

Era frequente a Maisie gritar durante o sono e eu tinha de a acordar.

- Põe o braço à minha volta - pedia ela. - Foi um sonho horrível, que já tive uma vez. Ia num avião a sobrevoar um deserto, que não era propriamente um deserto. Fazia descer o avião e via milhares de bebés amontoados, estendendo-se até à linha do horizonte, todos nus e a treparem uns por cima dos outros. Estava a ficar sem combustível e tinha de aterrar. Tentava encontrar um espaço, continuava a voar à procura de um espaço

- Vê se dormes agora - respondia com um bocejo. - Isso foi só um sonho.

- Não! - gritava ela. - Não posso adormecer, ainda não posso!

- Bem, eu tenho de adormecer já. Preciso de me levantar de manhã cedo.

- Por favor - suplicava -, não adormeças ainda, não me deixes aqui.

- Estou na mesma cama. Não te deixo sozinha.

- É o mesmo, não me deixes acordada .. - Mas os meus olhos já se iam fechando.

Recentemente, adquiri o hábito do meu bisavô. Antes de ir para a cama sento-me durante meia hora a fazer um balanço mental do dia. Não tenho veleidades matemáticas nem teorias sexuais para registar. A maior parte das vezes escrevo acerca do que a Maisie me disse e do que eu lhe disse a ela. Por vezes, a fim de conseguir um isolamento total, fecho-me à chave na casa de banho, sento-me no tampo da sanita com o bloco em equilíbrio em cima dos joelhos. Além de mim, por vezes, há uma ou duas aranhas na casa de banho, que trepam pelo esgoto e se instalam no esmalte branco cintilante na mais completa imobilidade. Devem ficar intrigadas com o sítio onde foram desembocar. Ao cabo de algumas horas, dão meia volta e partem pelo caminho por onde vieram, desorientadas e talvez desapontadas por não terem conseguido chegar a nenhuma conclusão. Tanto quanto sei, o meu bisavô só fez uma referência a aranhas. No dia 8 de Maio de 1906 escreveu no seu diário: "O Bismarck é uma aranha.".

À tarde, a Maisie costumava levar-me chá e contar-me os pesadelos. Em geral, estava eu a passar em revista jornais velhos, a compilar temas e a catalogar assuntos, poisando um volume e pegando noutro, quando ela dizia que estava em baixo de forma. Nos últimos tempos, passava o dia sentada pela casa a folhear livros de psicologia e de ocultismo e quase todas as noites tinha pesadelos. Desde a altura em que entrámos em vias de facto, à espera para darmos com o mesmo sapato na cabeça um do outro à porta da casa de banho, sentia-me muito pouco solidário com ela. Grande parte dos seus problemas tinham que ver com ciúmes. Tinha muitos ciúmes .. do diário em quarenta e cinco volumes do meu bisavô e da minha determinação e energia a prepará-lo para ser dado à estampa. Estava eu a pôr de parte um volume e a deitar mão a outro quando a Maisie chegava com o chá.

- Posso contar-te o meu sonho? Ia naquele avião a sobrevoar uma espécie de deserto

- Contas-me mais logo, Maisie. Vou aqui a meio de uma coisa.

Depois de ela sair, fitava a parede em frente da minha secretária e pensava em M, que durante um período de quinze anos, até ao seu súbito e inexplicável desaparecimento certa noite em 1898, aparecia regularmente para jantar e conversar com o meu bisavô. Fosse ele quem fosse, não restavam dúvidas de que se tratava de um teórico, bem como de um homem de acção. Por exemplo, na noite de 9 de Agosto de 1870, temo-los sentados a discutir as posições para fazer amor e M diz ao meu bisavô que a cópula a posteriori é a mais natural devido ao lugar do clitóris e ao facto de outros antropóides manifestarem a sua preferência por este método. O meu bisavô, que durante a vida inteira só teve relações sexuais meia dúzia de vezes, sempre com a esposa e durante o primeiro ano de casados, põe questões acerca da opinião da Igreja sobre o assunto e imediatamente M o informa de que Theodore, um teólogo do século XVII, considerava a cópula a posteriori um pecado ao nível da masturbação e, por conseguinte, merecedor de uma penitência de quarenta padre-nossos e ave-marias. Mais tarde, nessa mesma noite, o meu bisavô apresentou provas matemáticas de que o número máximo de posições não podia exceder o número primo dezassete. M zombou dessa afirmação e afirmou ter visto uma colecção de desenhos de Romano, aluno de Rafael, nos quais estavam representadas vinte e quatro. Além disso, tinha ouvido falar de um tal Mr. F. K. Forberg, que referira noventa. Na altura em que me lembrei do chá que a Maisie poisara junto do meu cotovelo, já este estava frio.

Entrámos na fase decisiva da deterioração do nosso casamento da seguinte maneira: uma noite, estava eu sentado na casa de banho a reproduzir por escrito uma conversa que tivéramos acerca do Tarot, quando, de repente, a ouvi do lado de fora, a bater à porta e a rodar o puxador de um lado para o outro.

- Abre lá - pediu em tom impaciente. - Quero entrar.

- Tens de esperar mais uns minutos. Estou quase a acabar.

- Deixa-me estás a servir-te gritou. - Não

- Deixa-me entrar imediatamente! - gritou. - Não estás a servir-te da retrete.

- Espera - respondi, pondo-me a escrever mais uma ou duas linhas, ao mesmo tempo que ela começava aos pontapés à porta.

- Veio-me o período e preciso de ir buscar uma coisa. Fingi não ouvir os seus berros e acabei o parágrafo, o que me parecia ser extremamente importante, pois, se o deixasse para mais tarde, determinados pormenores ficariam esquecidos. Agora não se ouvia o menor ruído e concluí que estava no quarto. Mas, ao abrir a porta, dei com ela a cortar-me o caminho, de sapato em punho. Deu-me com o salto com toda a força na cabeça e, como só tive tempo para me desviar ligeiramente, fiquei com um lenho profundo na parte de cima da orelha.

- Pronto - disse ela, contornando-me e entrando na casa de banho-, agora estamos os dois a sangrar. E bateu-me com a porta na cara.

Peguei no sapato e fiquei pacientemente à espera à porta da casa de banho, sem fazer barulho e tentando estancar o sangue com um lenço. A Maisie ficou cerca de dez minutos na casa de banho e, quando saiu, apanhei-a em cheio no cocuruto da cabeça, sem lhe dar tempo para fazer um movimento. Ficou na mais completa imobilidade durante uns instantes, olhando-me nos olhos.

- Grande patife! - exclamou em voz sufocada. E foi para a cozinha tratar da ferida longe da minha vista.

Ontem, durante o jantar, a Maisie afirmou que um homem fechado numa cela, só com um baralho de Tarot, teria acesso a todo o conhecimento. Durante a tarde estivera a ler qualquer coisa sobre o assunto e as cartas ainda se encontravam espalhadas pelo chão.

- Achas que conseguia reconstituir o mapa das ruas de Valparaíso?

- Estás a armar-te em parvo.

- E conseguia ficar a saber qual a melhor maneira de arrancar com um negócio de lavandarias, de fazer uma omeleta ou uma máquina de hemodiálise?

- És tão tacanho, tão limitado e tão previsível!

- Achas que conseguia - insisti- dizer-me quem é M, ou porque

- Essas coisas não interessam! - exclamou. - Não são necessárias.

- Mas, mesmo assim, fazem parte do conhecimento. Achas que ele era capaz de as descobrir?

- Era, sim - afirmou após uma breve hesitação. Sorri, sem dar resposta.

- Qual é a graça? - perguntou. Encolhi os ombros e ela começou a ficar furiosa, pois estava à espera de que eu continuasse com o despique. - Por que fazes todas essas perguntas disparatadas?

- Só queria saber se te referias mesmo a tudo respondi com um novo encolher de ombros.

- Raios te partam! - gritou, dando um murro na mesa. Por que é que estás sempre a gozar comigo? Não consegues dizer nada a sério? - E, nesse momento, ambos reconhecemos ter atingido o ponto a que todas as nossas discussões conduziam e mergulhámos num silêncio ressentido.

Não consigo avançar com o trabalho até ter esclarecido o mistério que envolve M. Depois de aparecer esporadicamente durante quinze anos e de abastecer o meu bisavô com uma quantidade de material destinado a apoiar as suas teorias, M desaparece pura e simplesmente das págimas do diário. Na terça-feira, 6 de Dezembro, o meu bisavô convidou M para jantar no sábado seguinte e, embora este tivesse aparecido, nas anotações desse dia o meu bisavô limita-se a escrever "Jantar com M". Em todas as outras ocasiões, a conversa que acompanhou a refeição é registada com grande pormenor. M estivera presente ao jantar de segunda-feira,

5 de Dezembro, em que o tema versado fora a geometria, e as notas referentes aos restantes dias dessa mesma semana são inteiramente dedicadas à mesma matéria. Não há o menor vestígio de antagonismo entre ambos. De resto, o meu bisavô precisava de M, que lhe fornecia o material, que sabia as novidades, que conhecia bem Londres e estivera algumas vezes no continente. Sabia tudo sobre o socialismo e sobre Darwin, tinha uma pessoa das suas relações no movimento a favor do amor livre, um amigo de James Hinton. M tinha com o mundo um contacto profundo que o meu bisavô, que só uma vez na vida saíra de Melton Mowbray, a fim de visitar Nottingham, não possuía. Mesmo na juventude, preferia desenvolver teorias sentado à lareira; e tudo aquilo de que necessitava eram os materiais que M punha ao seu dispor. Por exemplo, uma noite em Julho de 1884, M, que acabara de regressar de Londres, fez um relato de como as ruas da cidade estavam infestadas e empestadas de excrementos de cavalo. Nessa mesma semana, o meu bisavô andara a ler o ensaio do Malthus intitulado Sobre o Princípio da População.

Nessa noite, as notas que assentou no diário, acerca de um panfleto que tencionava escrever e mandar publicar, são entusiastas. O texto ir-se-ia intitular "De stercore equorum". O panfleto nunca foi publicado e, provavelmente, nem sequer foi escrito, mas há observações pormenorizadas nos registos do diário durante as duas semanas que se sucederam àquela noite. Em "De stercore equorum" ("Sobre o esterco de cavalo") parte do pressuposto do crescimento geométrico da população equídea e, trabalhando com base em planos minuciosos das ruas da metrópole, previa que esta estaria intransitável em 1935. Por intransitável entendia uma espessura média de trinta centímetros de excrementos (comprimidos) em cada artéria principal. Descrevia experiências complicadas levadas a cabo no exterior dos estábulos da casa a fim de determinar a compressibilidade do esterco de cavalo, o que conseguiu expressar matematicamente. Claro que tudo isso não passava de teoria pura e as conclusões a que chegava assentavam no pressuposto de que os excrementos não seriam removidos nos próximos cinquenta anos. É muito provável que tenha sido M a dissuadir o meu bisavô do projecto.

Certa manhã, depois de uma noite longa e sinistra devido aos pesadelos da Maisie, estávamos deitados lado a lado na cama e eu perguntei-lhe:

- Que é que tu queres realmente? Por que não voltas para o teu emprego? Esses passeios intermináveis, toda essa análise, aí sentada pela casa, ou a manhã inteira na cama, as cartas do Tarot, os pesadelos. que é que tu queres?

- Quero pôr a cabeça em ordem - foi a resposta, que, de resto, eu já ouvira várias vezes.

- A tua cabeça, a tua mente, não é como a cozinha de um hotel, não podes deitar coisas fora como se fossem latas velhas. É mais parecida com um rio do que com um lugar fixo e está em constante movimento e mutação. E não é possível pôr em ordem o curso de um rio, obrigando-o a correr a direito.

- Não recomeces com isso. Não é um rio que estou a tentar pôr em ordem, é a minha cabeça.

- Tens de fazer qualquer coisa - prossegui. - Não podes ficar de braços cruzados. Por que não recomeças a trabalhar? Nessa altura não tinhas pesadelos. E nunca te sentias tão infeliz.

- Tenho de me manter afastada de tudo isso. Não estou certa do significado dessas coisas todas.

- Moda - retorqui -, isso é tudo moda. Metáforas em moda, leituras em moda, mal-estar em moda. Que é que tu sabes do Jung, por exemplo? Leste doze páginas num mês.

- É melhor parares; já sabes que isto não leva a nada. Mas eu continuei:

- Nunca estiveste em parte nenhuma e nunca fizeste nada. És uma rapariga jeitosa, mas nem sequer tiveste uma infância infeliz que abone em teu favor. O teu budismo sentimental, esse misticismo de pacotilha, a terapia a cheirar a pauzinhos de incenso, a astrologia de revisteca nada disso te pertence, não foste tu a criar nada. Caíste nessas tretas todas, afundaste-te num charco de intuições respeitáveis. Não tens a originalidade nem a paixão que te permitam entender o que quer que seja por ti própria, a não ser a tua infelicidade. Por que estás a encher a cabeça com as banalidades místicas debitadas por outras pessoas e a ter pesadelos por causa disso?

Levantei-me da cama, abri as cortinas e comecei a vestir-me.

- Falas disto como se fosse um seminário de literatura lamentou-se a Maisie. - Por que estás a tentar pôr-me ainda mais em baixo? - A autocomiseração começava a vir à superfície, mas ela reprimiu-a. - Sabes que, quando falas, me sinto como uma folha de papel que estivesses a amarrotar?

- Talvez estejamos mesmo num seminário de literatura respondi mal-humorado.

A Maisie sentou-se na cama cabisbaixa. Repentinamente, mudou de tom, ajeitou a almofada a seu lado e disse com meiguice:

- Anda cá. Vem sentar-te aqui. Quero tocar-te, quero que tu me toques .. - Mas, com um suspiro, já eu ia a caminho da cozinha.

Preparei café e levei-o para o meu gabinete de trabalho. Durante a insónia forçada da noite anterior ocorrera-me que uma pista possível para explicar o desaparecimento de M talvez se encontrasse nas páginas dedicadas à geometria. Até então sempre as saltara, dado a matemática não me interessar. Na segunda-feira, 5 de Dezembro de 1898, M e o meu bisavô discutiram a questão da vescia piseis, que, segundo consta, constitui o tema da primeira proposição de Euclides e que teve uma profunda influência nos fundamentos de vários edifícios religiosos. Fiz uma leitura cuidadosa do relato da conversa, tentando compreender o melhor que me era possível as noções de geometria. Depois, ao virar a página, deparei com uma historieta enfadonha que M contara ao meu bisavô nessa mesma noite, depois de lhes terem servido o café e acendido os charutos. No momento preciso em que dava início à leitura, a Maisie entrou.

- E tu - disse ela, como se não tivesse havido um intervalo de uma hora na nossa troca de palavras -, tudo o que tens são livros. Andas a rastejar pelo passado como uma mosca numa bosta.

Claro que fiquei furioso, mas fiz um sorriso e respondi com ar animado:

- A rastejar? Bem, pelo menos mexo-me.

- Não voltes a falar comigo; utilizas-me como se eu fosse uma máquina de flippers, para marcares pontos.

- Bom dia, Hamlet - repliquei, ao mesmo tempo que me sentava na cadeira, esperando pacientemente a réplica seguinte. Mas, sem dizer palavra, a Maisie foi-se embora, fechando a porta suavemente.

M começava a contar ao meu bisavô:

Em Setembro de 1970 entrei em posse de determinados documentos que não só invalidam tudo o que a ciência da geometria no espaço encerra de fundamental, mas também minam os alicerces das leis da física, obrigando-nos a redefinir o nosso lugar no esquema da Natureza. A importância destes manuscritos ultrapassa a da obra conjunta de Marx e de Darwin. Foram-me confiados por um jovem matemático americano e são da autoria de David Hunter, um escocês, também ele matemático. O americano chamava-se Goodman e durante alguns anos correspondi-me com o pai dele a respeito da sua obra acerca da teoria cíclica da menstruação, que, lamentavelmente, no nosso país ainda não é merecedora do crédito que lhe é devido. Conheci o jovem Goodman em Viena, onde, em companhia de Hunter e de matemáticos de uma dezena de países, participava num seminário internacional de matemática. Ao travarmos conhecimento, estava pálido e extremamente perturbado e manifestou a intenção de regressar à América no dia seguinte, embora o seminário ainda nem fosse a meio. Confiou-me os documentos, dando-me instruções para que os entregasse a David Hunter, caso viesse a descobrir o seu paradeiro. Seguidamente, e só depois de um grande esforço de persuasão e de muita insistência da minha parte, revelou-me o que testemunhara no terceiro dia do seminário. Os participantes reuniam-se diariamente às nove e trinta da manhã, momento em que era apresentada uma comunicação seguida de debate. Às onze horas era servida uma refeição ligeira e vários matemáticos levantavam-se da grande mesa oval, envernizada, em torno da qual se reuniam, e percorriam a sala ampla e elegante, trocando impressões com os colegas. O seminário costumava durar duas semanas e, em conformidade com certas regras há muito em vigor, os matemáticos mais eminentes eram os primeiros a ler as suas comunicações, seguindo-se os ligeiramente menos eminentes, e assim sucessivamente, numa hierarquia descendente que se prolongava por quinze dias, provocando, como é habitual entre homens de inteligência superior, crises de ciúmes que, embora esporádicas, não deixavam de ser acaloradas. Hunter, apesar de ser um matemático notável, era jovem e praticamente desconhecido fora dos círculos de Edimburgo, cuja universidade frequentara. Comparecera a fim de apresentar uma comunicação importantíssima sobre geometria no espaço e, dado a sua presença ser de pouca monta nesse panteão, faria a sua exposição no penúltimo dia, altura em que muitas das figuras mais importantes já teriam regressado aos respectivos países. Por conseguinte, na terceira manhã, no preciso momento em que os criados entravam com as bandejas, Hunter levantou-se repentinamente, dirigindo a palavra aos colegas que já começavam a debandar. Era um homem grande e desgrenhado, que, embora jovem, se impunha pela sua presença, o que reduziu o zunzum das vozes a um silêncio total.

"Meus senhores, queiram perdoar esta intervenção intempestiva, mas tenho algo de extrema importância a comunicar-vos: descobri o plano sem superfície." E, perante sorrisos irónicos e risadinhas de estupefacção, pegou numa grande folha de papel branco que se encontrava em cima da mesa e, com um canivete, abriu-lhe um corte de cerca de sete centímetros e meio de comprimento, ligeiramente descentrado. Em seguida, fez algumas dobras rápidas e complicadas e, erguendo o papel de modo que todos os presentes o pudessem ver, puxou um dos cantos e passou-o pela abertura, o que fez com que desaparecesse.

"E aqui está, meus senhores", concluiu Hunter, estendendo as mãos vazias em direcção à assistência, "o plano sem superfície."

Nesse momento, a Maisie tornou a entrar, já de cara lavada e a cheirar a sabonete. Aproximou-se, postando-se atrás da cadeira com as mãos nos meus ombros.

- Que é que estás a ler? - quis saber.

- São só umas passagens do diário que ainda não tinha lido. Começou a dar-me uma massagem suave na base do pescoço. Teria achado aquilo agradável se ainda estivéssemos no primeiro ano de casados. Mas, como já íamos no sexto, tudo o que senti foi uma espécie de tensão que se propagou ao longo da coluna vertebral. Não havia dúvida de que ela queria qualquer coisa. A fim de a acalmar, tomei na minha mão direita a sua mão esquerda; mas, tomando tal gesto por uma manifestação de afecto, inclinou-se e deu-me um beijo sob a orelha, o que me fez sentir o seu hálito a pasta de dentes e a torradas. Agarrou-se aos meus ombros como uma lapa.

- Vamos para a cama - murmurou. - Não fazemos amor há quase quinze dias.

- Eu sei - retorqui. - Mas estás a ver .. é este trabalho.

Não sentia o menor desejo nem por Maisie nem por nenhuma outra mulher e tudo o que queria era virar a página seguinte do diário do meu bisavô. Largou-me os ombros e ficou de pé a meu lado. Era tal a ferocidade do seu silêncio que dei comigo tenso como um corredor na linha de partida. Estendeu o braço e agarrou no frasco hermeticamente fechado que continha o Capitão Nicholls. Ao erguê-lo, o pénis flutuou tão lentamente como num sonho de um extremo ao outro do recipiente.

- Para ti está sempre TUDO BEM! - guinchou Maisie uma fracção de segundo antes de arremessar o frasco contra a parede em frente da minha mesa de trabalho.

Tapei instintivamente o rosto com as mãos a fim de me proteger dos estilhaços. Ao abrir os olhos, ouvi-me dizer:

- Por que fizeste isto? Era uma coisa que pertenceu ao meu bisavô.

Por entre os vidros partidos e o cheiro fétido do formol, lá dei com o Capitão Nicholls atravessado sobre a capa de couro de um volume do diário, cinzento, mole e ameaçador, transformado, da preciosa curiosidade que fora, numa horrenda obscenidade.

- O que tu fizeste é inadmissível. Por que fizeste isto? insisti.

- Vou dar uma volta - foi a resposta de Maisie, que, desta vez, bateu com a porta ao sair.

Durante muito tempo fiquei imóvel na cadeira. A Maisie destruíra um objecto que para mim tinha grande valor. Tinha estado no escritório do meu bisavô enquanto este fora vivo, depois passara para o meu, estabelecendo um elo entre as nossas vidas. Apanhei algumas lascas de vidro do colo e contemplei o pedaço de outro ser humano, com cento e sessenta anos, agora em cima da minha secretária. Ao fitá-lo, pensei em todos os homúnculos que havia percorrido, em todos os lugares que visitara, a Cidade do Cabo, Boston, Jerusalém, viajando na escuridão e no mau cheiro do interior dos calções de couro do Capitão Nicholls, surgindo só de quando em quando à luz ofuscante do Sol para lhe aliviar a bexiga em qualquer lugar público promíscuo. Pensei também em todas as coisas que teria tocado, em todas as moléculas, nas mãos ávidas do Capitão Nicholls em noites solitárias de desejo não partilhado, passadas no mar, nas paredes húmidas dos sexos de raparigas novas e de prostitutas velhas, cujas moléculas ainda devem existir, transformadas em fina poalha disseminada pelo vento, de Cheapside e Leicestershire. Quem sabe quanto tempo poderia ainda ter durado no seu frasco de vidro? Comecei a pôr em ordem toda aquela barafunda. Fui buscar o caixote do lixo e um esfregão à cozinha, varri e apanhei todos os vidros que encontrei e limpei o formol. Depois, segurando-o por uma extremidade, tentei colocar o Capitão Nicholls em cima de uma folha de papel, mas o prepúcio, a escorregar-me nos dedos, deu-me volta ao estômago. Por fim, com os olhos fechados, consegui enrolá-lo cuidadosamente no jornal e levei-o até ao jardim, onde o enterrei entre os gerânios. Entretanto, ia-me esforçando por impedir que a irritação que sentia para com a Maisie me mvadisse o espírito, pois queria prosseguir a leitura da história de M. Já de novo instalado na cadeira, enxuguei algumas manchas de formol que tinham feito borrões na tinta e continuei a ler:

Seguiu-se um longo minuto de silêncio, que, a cada segundo, se ia tornando mais gélido. O primeiro a falar foi o Prof. Stanley Rose, da Universidade de Cambridge, cuja notoriedade, assente nos seus "Princípios da geometria no espaço", teria muito a perder com o plano sem superfície de Hunter:

"Que ousadia, caro colega! Como se atreve a insultar a dignidade dos presentes com um desprezível truque de prestidigitação!" E, sentindo-se apoiado pelo crescente murmúrio de aprovação que se erguia na sala, acrescentou: "Devia ter vergonha, meu rapaz, devia sentir-se profundamente envergonhado!" Ao ouvir estas palavras, a assistência entrou em ebulição. À excepção do jovem Goodman e dos criados, que continuavam impassíveis com as bandejas de mão, a assistência em peso virou-se contra Hunter, dirigindo-lhe acusações, invectivas e ameaças ininteligíveis no meio da algazarra geral. Alguns, de tão furiosos, davam murros na mesa, enquanto outros agitavam punhos ameaçadores. Um alemão de aspecto frágil e delicado caiu com uma apoplexia, tendo de ser auxiliado para se instalar de novo na cadeira. Só Hunter se mantinha impávido e sereno, firme e aparentando indiferença face a toda aquela agitação, com as pontas dos dedos ligeiramente apoiadas na superfície da grande mesa oval envernizada. O simples facto de um desprezível truque de prestidigitação provocar tamanho alarido constituiu a prova mais manifesta do mal-estar geral, o que, por certo, não deixava de agradar a Hunter. Erguendo a mão, o que, mais uma vez, mergulhou a sala num súbito silêncio, prosseguiu:

"Meus senhores, o interesse suscitado pela minha intervenção é compreensível, pelo que vos passo a apresentar uma nova prova, a prova decisiva." Dito isto, sentou-se e descalçou os sapatos, fazendo em seguida apelo ao auxílio de um voluntário, ao que Goodman respondeu de imediato. Abrindo caminho por entre a multidão, dirigiu-se a um canapé encostado a uma parede, pedindo então ao amigo que, de volta a Inglaterra, levasse os documentos em que baseara a sua exposição e os guardasse até ao seu regresso. Com os matemáticos reunidos à volta do canapé, deitou-se sobre o ventre e entrelaçou firmemente os dedos atrás das costas, numa estranha postura em que os braços formavam uma espécie de anel. Pediu a Goodman que o ajudasse a mantê-los nessa posição e virou-se de lado, dando início a uma série de movimentos bruscos e enérgicos que lhe permitiram passar um pé por entre os braços. Disse então ao amigo que o virasse para o outro lado e, repetindo os mesmos movimentos, passou o outro pé por entre os braços, ao mesmo tempo que inclinava o tronco de tal forma que introduziu a cabeça pela abertura de modo que ficasse no sentido oposto ao dos pés. Sempre auxiliado por Goodman, meteu primeiro uma perna e seguidamente a cabeça por entre os braços. Nesse momento, a distinta assistência emitiu em uníssono um grito de incredulidade. Hunter começava a desaparecer e agora, com a cabeça e as pernas a deslizarem pelo anel com mais facilidade, já quase não se via. Foi então que desapareceu, desapareceu por completo, sem deixar rasto.

A história de M deixou o meu bisavô num estado de intensa agitação. Nessa mesma noite escreveu no diário ter tentado "convencer o meu convidado a mandar alguém buscar os papéis imediatamente", embora já fossem duas da manhã. M, porém, encarava a questão com maior cepticismo, em virtude de, segundo confessou ao meu bisavô, considerar "os Americanos com uma propensão frequente para as histórias fantásticas". Prontificou-se, no entanto, a levar-lhe os documentos no dia seguinte. Acabou por não ficar para jantar, em virtude de outro compromisso, mas apareceu ao fim da tarde com os apontamentos. Antes de partir, disse ao meu bisavô que os lera e relera e que "achava que não tinham pés nem cabeça", sem se aperceber até que ponto subestimava as capacidades do meu bisavô como matemático amador. Enquanto bebiam um cálice de xerez sentados à lareira, combinaram um jantar para o fim da semana, mais precisamente para sábado. Durante os três dias que se seguiram, o meu bisavô mal interrompia a leitura dos teoremas de Hunter para comer ou dormir e no diário não fala de outra coisa. As páginas estão cobertas de rabiscos, de diagramas e de sinalefas. Aparentemente, Hunter teve de conceber um novo conjunto de símbolos, praticamente uma linguagem inteiramente nova, a fim de exprimir as suas ideias. Ao cabo do segundo dia chegou às primeiras conclusões e, no fim de uma página de garatujas matemáticas, escreveu: "A dimensionalidade é função da consciência." Ao virar a página para o dia seguinte, deparei com as seguintes palavras: "Desapareceu-me entre as mãos." Conseguira reconstituir o plano sem superfície. E ali, perante os meus olhos, estendia-se um rol de instruções sobre a maneira de dobrar a folha de papel. Ao virar a página seguinte, compreendi repentinamente o mistério do desaparecimento de M. Sem dúvida que, encorajado pelo meu bisavô, participara nessa noite numa experiência científica, provavelmente cheio de cepticismo, pois neste ponto surgia uma série de esboços daquilo que à primeira vista se poderia tomar por posturas de ioga. Manifestamente, estava ali o segredo do desaparecimento de Hunter.

Com as mãos a tremer, desimpedi uma parte da secretária. Peguei numa folha de papel de máquina em branco e coloquei-a à minha frente. Fui à casa de banho buscar uma lâmina de barbear. Esquadrinhei uma gaveta até encontrar um velho compasso e meti-lhe uma mina, depois de a ter afiado. Passei busca à casa até encontrar uma régua de aço de grande precisão, que usara em tempos para colocar vidros novos nas janelas. Só então considerei ter tudo a postos para começar. Em primeiro lugar, tinha de cortar a folha de modo a ficar com as dimensões convenientes, pois aquela que Hunter utilizara para a sua demonstração, sem dúvida, fora cuidadosamente preparada para o efeito com a devida antecedência.

Como tinha de haver uma relação específica entre o comprimento e a largura, determinei o centro com o compasso e fiz passar por este ponto uma linha paralela a um dos lados, que prolonguei até à margem da folha. Seguidamente, tive de construir um rectângulo com dimensões bem determinadas, de acordo com o comprimento e a largura do papel, e cujo centro se encontrava sobre a recta, de modo a poder cortá-lo pelo seu ponto médio. A partir do lado superior do rectângulo, desenhei arcos de intersecção, cujos raios também obedeciam a proporções específicas. Repeti a mesma operação no lado inferior do rectângulo e, ao unir os dois pontos de intersecção, obtive a linha de corte. Foi então que passei às dobragens. Cada recta parecia exprimir, no seu comprimento, ângulo de inclinação e ponto de intersecção com outras rectas, uma misteriosa e profunda harmonia numérica. Ao intersectar arcos, traçar rectas e proceder a dobragens, senti que, inconscientemente, estava a pôr em prática um sistema da mais elevada e aterradora forma de conhecimento, a matemática do Absoluto. Quando fiz a última dobra, o papel tomou a forma de uma flor geométrica com três anéis concêntricos dispostos à volta do corte no seu centro. O conjunto exprimia tal serenidade e perfeição, algo de tão remoto e premente, que, ao contemplá-lo, me senti entrar num ligeiro transe e me apercebi de que a minha mente se tornara lúcida e inactiva. Abanei a cabeça e desviei o olhar. Era chegado o momento de me concentrar na flor e de a fazer passar pela abertura. Tratava-se de uma operação delicada e as minhas mãos estavam de novo trémulas. Só fixando os olhos no centro da composição consegui recuperar a calma. Com os polegares, comecei a empurrar os bordos da flor de papel para o centro, ao mesmo tempo que uma espécie de torpor me invadia a parte posterior do crânio. Empurrei um POUCO mais, e foi como se o papel se tornasse mais branco, até dar a impressão de desaparecer. Digo "dar a impressão" Por, a princípio, não ter a certeza se ainda o sentia nas mãos sem o ver, se o via sem o sentir, ou se as suas características externas subsistiam, embora os sentidos me dissessem que desaparecera. O torpor alastrara a toda a cabeça e propagara-se aos ombros. As minhas faculdades sensoriais pareciam insuficientes para apreender o que se estava a passar. "A dimensionalidade é função da consciência", pensei. Juntei as mãos e verifiquei que não havia nada entre elas, mas, mesmo quando as tornei a abrir e não vi nada, não fiquei certo de que a flor de papel tivesse desaparecido por completo. Uma vaga impressão subsistia, uma imagem registada não na retina, mas na própria mente. Foi nesse momento que a porta se abriu por trás de mim e que ouvi a Maisie perguntar:

- Que estás a fazer?

Saí como que de um sonho e regressei à sala e ao cheiro quase imperceptível a formol. A destruição do Capitão Nicholls tivera lugar há muito, muito tempo, mas o cheiro reacendeu o meu ressentimento, que alastrou como o torpor que havia pouco me invadira. Com ar fatigado, enfiada num casaco grosso e com um cachecol de lã que só lhe deixavam o nariz de fora, a Maisie estava encostada à ombreira. Parecia muito longe e, ao fitá-la, o meu ressentimento transformou-se no tédio costumeiro que a ideia de estarmos casados me provocava. E dei comigo a perguntar-me por que teria ela partido o frasco? Por que queria fazer amor? Por que queria um pénis? Por que tinha ciúmes do meu trabalho e pretendia destruir a sua ligação à vida do meu bisavô?

- Por que fizeste aquilo? - perguntei em voz alta, involuntariamente.

A única resposta foi um som mal-humorado. Ao abrir a porta, dera comigo sentado à secretária a olhar para as mãos.

- Estiveste aí sentado a tarde inteira a pensar no mesmo? perguntou com uma risadinha. - A propósito, que é que lhe aconteceu? Engoliste-o?

- Enterrei-o entre os gerânios - respondi. Avançou dois ou três passos e disse, já sem sombra de ironia:

- Desculpa o que aconteceu. Fiz aquilo sem pensar.

Perdoas-me?

Por instantes hesitei, mas foi então que o tédio deu lugar

a uma súbita resolução:

- Sim, claro que te perdoo. Aquilo não passava de uma picha em conserva. - E ambos demos uma gargalhada.

A Maisie abeirou-se de mim, beijou-me e eu retribuí o beijo, abrindo-lhe os lábios com a língua.

- Tens fome? - perguntou-me quando acabámos de nos beijar. - Queres que faça qualquer coisa para o jantar?

- Era uma ideia óptima.

Deu-me outro beijo no alto da cabeça e saiu, enquanto eu voltava à minha investigação, decidido a ser tão simpático quanto possível nessa noite.

Mais tarde, sentámo-nos na cozinha a comer a refeição que ela preparara e a beber uma garrafa de vinho, que nos deixou ligeiramente ébrios. Fumámos um charro, coisa que não fazíamos juntos havia muito tempo. A Maisie disse-me que ia arranjar um emprego nos Serviços Florestais e que no Verão seguinte tencionava ir plantar árvores para a Escócia. E eu falei-lhe da conversa que M tivera com o meu bisavô sobre a posição a posteriori e da teoria segundo a qual o número primo dezassete representava o máximo de posições possíveis para copular. Rimo-nos e ela apertou a minha mão nas suas, enquanto a ideia de fazer amor ficava a pairar entre nós, no calor bafiento da cozinha. Depois, vestimos os casacos e saímos para dar um passeio. A Lua estava quase cheia. Seguimos pela estrada principal, que passava junto da nossa casa, e tomámos por uma rua estreita, de casas muito juntas, com jardins minúsculos e impecáveis. Não falámos muito, mas caminhávamos de braço dado e ela confessou-me que estava com uma grande pedrada e que se sentia muito feliz. Chegámos a um parque fechado e ficámos do lado de fora do portão a contemplar a Lua através dos ramos quase despidos de folhas. Quando voltámos para casa, a Maisie tomou um banho quente e demorado, enquanto eu passava em revista as minhas leituras a fim de verificar alguns pormenores. O nosso quarto era quente, acolhedor e, de certo modo, luxuoso. A cama tinha dois metros por dois metros e meio e fui eu mesmo a construí-la no nosso primeiro ano de casados. A Maisie fizera os lençóis, que tingira de um azul forte, de uma tonalidade viva. A única lâmpada era filtrada por um velho quebra-luz de pele de cabra, que um dia ela comprara a um homem que passara lá por casa. Há muito que eu não sentia o mínimo interesse pelo quarto. Deitámo-nos lado a lado na confusão de lençóis e cobertores, a Maisie voluptuosa e sonolenta devido ao banho, completamente descontraída, e eu apoiado no cotovelo.

- Esta tarde andei a passear à beira-rio - disse ela em voz arrastada. - Agora as árvores estão lindas, os carvalhos, os ulmeiros havias de ver duas faias um bocado para lá da ponte .. ai, que bom .. - Eu virara-a de barriga para baixo e acariciava-lhe as costas enquanto ela ia falando. Ao longo do caminho há amoras tão grandes como nunca vi; e bagas de sabugueiro, também. Este Outono vou fazer vinho. - Inclinei-me, beijei-lhe a parte posterior do pescoço e puxei-lhe os braços para trás das costas, ao que ela se submeteu de bom grado, pois gostava que lhe mexesse no corpo. - E o rio está mesmo calmo, com as árvores reflectidas e as folhas a caírem na água. Antes de o Inverno chegar, havemos de ir lá os dois, passear na margem, entre as folhas. Descobri aquele sítio onde não vai ninguém. Mantendo-lhe os braços em posição com uma das mãos, fiz-lhe passar as pernas pelo "anel" com a outra. - Fiquei ali sentada durante meia hora, sem me mexer, como uma árvore. Vi uma ratazana a correr na outra margem e várias espécies de patos a descerem e a levantarem voo do rio. Ouvi o ruído de coisas a cair na água, mas não sei o que era, e vi duas borboletas cor de laranja que quase me poisaram na mão. - Depois de lhe pôr as pernas na posição conveniente, ela comentou: - Posição dezoito - e rimos baixinho. Vamos amanhã até ao rio - pediu a Maisie, ao mesmo tempo que eu lhe puxava a cabeça docemente em direcção aos braços. - Atenção, isso magoa - gritou ela de súbito, tentando debater-se. Mas era tarde de mais e a cabeça e as pernas já estavam na abertura formada pelos braços e eu começava a fazê-los passar, cada um de sua vez. - Que está a acontecer? - gritou Maisie.

Agora a posição dos seus membros exprimia a beleza arrebatadora, a nobreza da forma humana e, tal como acontecera com a flor de papel, da sua simetria emanava um poder fascinante. Fui novamente invadido pela mesma sensação de êxtase e pelo torpor na parte posterior da cabeça. Quando acabei de passar os braços e as pernas, a Maisie pareceu virar-se do avesso como uma peúga.

- Meu Deus, que está a acontecer? - repetiu numa voz que parecia vinda de muito longe.

Depois desapareceu .. e não desapareceu.

- Que está a acontecer? - perguntou de novo num fio de voz. E tudo o que ficou foi o eco da pergunta, a pairar sobre os lençóis de um azul intenso e profundo.

 

                                   O último dia de Verão

Tenho doze anos e estou deitado de bruços, quase nu. a apanhar banhos de sol no relvado das traseiras, quando a oiço rir pela primeira vez. Não sei. não me mexo. apenas fecho os olhos. É um riso de rapariga, de mulher jovem, breve e nervoso, como quem ri de qualquer coisa que não tem graça. Estou com metade do rosto enterrado na relva que cortei uma hora antes e sinto o odor da terra fria por baixo dela. Há uma brisa ligeira que sopra do rio. e o sol do entardecer a morder-me as costas e aquele riso que me fere os ouvidos formam como que um todo. um sabor na minha cabeça. O riso pára e tudo o que oiço é a brisa a virar as folhas do livro de histórias aos quadradinhos, a Alice a chorar, algures no andar de cima. e o peso do Verão a abater-se sobre o jardim. Depois oiço-os a atravessar o relvado direitos a mim. sento-me tão rapidamente que fico tonto e é como se tudo tivesse perdido a cor. É uma mulher ou uma rapariga gorda que se aproxima com o meu irmão. É tão gorda que os braços não lhe caem na vertical e tem o pescoço cheio de pneus. Estão os dois a olhar para mim. a falar a meu respeito e, quando já vêm muito perto, levanto-me, ela dá-me um aperto de mão e, sem me desfitar, solta uma espécie de relincho, como um Cavalo de cortesias. O ruído que ouvi há pouco foi esse riso. Tem a mão quente, húmida e cor-de-rosa como uma esponja. Com covinhas na base de cada dedo. Quando o meu irmão nos apresenta, fico a saber que se chama Jenny. Vai ocupar o quarto do sótão. Tem uma cara muito grande, redonda como uma lua vermelha, e usa uns óculos de lentes grossas que lhe tornam os olhos tão grandes como bolas de golfe. Quando me larga a mão, não me ocorre nada para dizer. Mas o meu irmão Peter não pára de falar, diz-lhe que legumes e que flores semeámos, leva-a até um sítio donde se avista o rio entre as árvores e depois volta com ela para casa. O Peter tem exactamente o dobro da minha idade e muito jeito para fazer conversa.

A Jenny instala-se no sótão. Fui até lá algumas vezes, à procura de coisas nas caixas velhas, ou contemplar o rio pela janela estreita. Não é que haja grande coisa nas caixas, só bocados de tecido e moldes de costura. Talvez alguns deles tivessem pertencido à minha mãe. A um canto há uma pilha de molduras vazias. Uma vez fui até lá porque estava a chover e, no andar de baixo, havia uma discussão entre o Peter e alguns dos outros. Ajudei o José a pôr tudo em ordem e a transformar aquilo num quarto. O José era o namorado da Kate, mas na Primavera passada tirou tudo o que lhe pertencia do quarto dela e mudou-se para o quarto ao lado do meu. Levámos as caixas e as molduras para a garagem, pintámos o soalho de preto e pusemos tapetes. Com a cama que sobrava do meu quarto, uma mesa e uma cadeira, um pequeno roupeiro e o tecto inclinado, mal cabem lá duas pessoas de pé. A bagagem da Jenny resume-se a uma pequena mala de viagem e a um saco de lona. Ofereço-me para os levar até ao sótão e ela segue-me, respirando cada vez com mais dificuldade e parando a meio do terceiro lanço de escadas para descansar. O meu irmão Peter chega atrás de nós e ficamos muito apertados, como se fôssemos os três viver ali e estivéssemos a ver o lugar pela primeira vez. Mostro-lhe a janela donde se avista o rio e ela senta-se com os grandes cotovelos apoiados na mesa. Enquanto vai ouvindo as histórias do Peter, enxuga o suor do rosto vermelho com um grande lenço branco. Sentado na cama, atrás dela, surpreendo-me com o tamanho das suas costas e observo, debaixo da cadeira, as pernas grossas e rosadas, que se vão afunilando até terminarem nuns sapatinhos minúsculos. Toda ela é cor-de-rosa e exala um odor que impregna o quarto, semelhante ao da relva que acabei de cortar. De repente, passa-me pela cabeça que, se respirar fundo, vou ficar gordo como ela. Levantamo-nos para nos irmos embora a fim de a deixarmos arrumar as coisas, ela diz obrigada por tudo e, quando vou a sair, oiço o seu risinho nervoso semelhante a um latido. Involuntariamente, olho para trás e dou com ela a fitar-me com os olhos que as lentes tornam do tamanho de bolas de golfe.

- És de poucas palavras, não és? - pergunta-me ela, o que torna ainda mais difícil lembrar-me de alguma coisa para dizer. Por isso, limito-me a sorrir e a descer a escada.

No andar de baixo, é a minha vez de ajudar a Kate a fazer o jantar. A Kate é alta, esguia e triste, exactamente o contrário da Jenny. Quando tiver namoradas, hão-de ser como a Kate. No entanto, é muito pálida, mesmo nesta altura do Verão. Tem o cabelo de uma cor estranha e uma vez ouvi o Sam dizer que era como um envelope de papel pardo. O Sam é um dos amigos do Peter que também vive cá em casa e que queria mudar-se para o quarto da Kate quando o José saiu. Mas a Kate é para o arrogante e não gosta do Sam por ser muito barulhento. Se o Sam fosse para o quarto dela, havia de estar sempre a acordar a Alice, a filha da Kate. Quando a Kate e o José estão na mesma divisão, passo o tempo a observá-los para ver se olham um para o outro, o que nunca acontece. Em Abril, fui uma tarde ao quarto da Kate pedir qualquer coisa emprestada e ela e o José estavam na cama a dormir. Os pais do José são espanhóis e ele tem a pele muito escura. A Kate estava deitada de costas com um braço estendido, passado por baixo do José, aninhado contra ela. Não tinham pijamas e o lençol cobria-os até à cintura. Pareciam uma fotografia a preto e branco. Fiquei muito tempo aos pés da cama, a observá-los. Era como se tivesse descoberto um segredo. Depois a Kate abriu os olhos, viu-me e mandou-me embora em voz suave. Acho muito esquisito que estivessem assim deitados e que agora nem sequer olhem um para o outro. Isso não me acontecia se estivesse deitado em cima do braço de uma rapariga. A Kate não gosta de cozinhar. Tem de passar uma data de tempo a vigiar a Alice para ela não meter facas na boca ou não puxar as panelas com água a ferver de cima do fogão. Prefere aperaltar-se e sair, ou passar horas a falar ao telefone, que era o que eu fazia se fosse rapariga. Uma vez só voltou muito tarde e teve de ser o meu irmão Peter a deitar a Alice. A Kate tem sempre um ar triste quando fala com a Alice e, quando lhe diz para fazer qualquer coisa, é sempre tão baixinho que parece que nem tem vontade de falar com ela. E é o mesmo quando fala comigo, é como se não estivesse a falar. Quando vê as minhas costas na cozinha, leva-me para a casa de banho e besunta-me com um algodão embebido em loção de calamina. Vejo reflectido no espelho o seu rosto completamente inexpressivo. Produz um som entredentes, meio assobio, meio suspiro, e, quando quer que eu vire outra parte das costas para a luz, empurra-me ou puxa-me pelo braço. Em voz rápida e calma pergunta-me como é a rapariga lá de cima e, quando eu lhe respondo "Muito gorda e tem um riso cómico", não diz mais nada. A Kate pede-me para cortar legumes e para pôr a mesa e, quando acabo, vou até ao rio ver o meu barco. Comprei-o com uns dinheiros que recebi quando os meus pais morreram. Na altura em que chego ao embarcadouro, o Sol já se pôs e o rio está negro, com farrapos vermelhos como os que havia no sótão. Esta noite, o rio corre lento e sopra uma aragem tépida e suave. Não desamarro o barco, pois apanhei tanto sol que me ardem de mais as costas para remar. Em vez disso, subo lá para dentro e fico sentado, embalado pela suave ondulação do rio, a ver os farrapos vermelhos a mergulharem na água escura e a perguntar-me se não teria respirado demasiado o odor da Jenny. Quando regresso, já vão começar a comer. A Jenny está sentada ao lado do Peter e, à minha chegada, não levanta os olhos do prato, nem sequer quando me sento na cadeira vaga a seu lado. É tão grande e está tão curvada para o prato, como se não tivesse a mínima vontade de existir, que sinto pena dela e vontade de lhe falar. Mas não consigo lembrar-me de nada para dizer. De resto, ninguém parece ter nada para dizer e todos se limitam a andar com as facas e os garfos para trás e para a frente por cima dos pratos e só de vez em quando alguém pede, num murmúrio, que lhe passem qualquer coisa. Em geral, não é assim quando estamos a comer, há sempre quem conte qualquer coisa. Mas a Jenny está aqui, mais calada do que os outros, e maior também, sem levantar os olhos do prato. O Sam pigarreia, olha para a Jenny na nossa ponta da mesa, e todos, excepto ela, levantam os olhos à espera de qualquer coisa. O Sam torna a pigarrear e pergunta:

- Onde é que vivias antes, Jenny?

Por entre o silêncio geral a frase soa vazia, como se o Sam estivesse numa repartição a preencher um formulário. E a Jenny, sem desfitar o prato, responde:

- Em Manchester. - Depois olha para o Sam. - Num andar. - E dá uma risadinha que parece um latido, provavelmente porque estamos todos a ouvi-la e a olhar para ela; depois baixa de novo a cabeça para o prato, enquanto o Sam diz qualquer coisa do género "Ah, sim", e vai pensando no que há-de dizer a seguir. No andar de cima, a Alice começa a chorar e a Kate vai buscá-la e senta-a ao colo. Quando o choro pára, aponta para cada um de nós, seguindo a ordem em que nos encontramos à volta da mesa, e grita "EH EH EH EH". É como se nos estivesse a criticar por não nos lembrarmos de nada para dizer. A Kate manda-a estar calada com o ar triste que tem sempre que está com a Alice. Às vezes penso que ela é assim por a Alice não ter pai. A miúda não é nada parecida com a Kate, tem cabelo loiro e orelhas demasiado grandes para o tamanho da cabeça. Há um ou dois anos, quando a Alice era muito pequenina, eu pensava que o José era o pai dela. Mas ele tem cabelo preto e não lhe liga muita importância. Quando toda a gente acaba de comer e eu estou a ajudar a Kate a levantar os pratos, a Jenny oferece-se para pegar na Alice, que continua a gritar e a apontar para várias coisas. Mas, mal a Jenny lhe pega, fica muito calada e quieta, talvez por nunca ter visto um colo tão grande. A Kate e eu trazemos a fruta e o chá e, quando começamos a descascar as laranjas e as bananas, a comer as maçãs da macieira do jardim, a servir o chá e a passar à roda da mesa as chávenas com leite e açúcar, toda a gente se põe a falar e a rir da forma habitual, como se não tivesse havido nada que os impedisse de o fazer. A Alice está divertidíssima ao colo da Jenny, que faz saltar os joelhos como um cavalo, que lhe faz cócegas na barriga imitando um passarinho com a mão, que lhe mostra truques com os dedos, e não pára de gritar que quer mais. É a primeira vez que a oiço rir assim. Depois a Jenny olha de relance para a Kate, que as está a ver brincar com a mesma expressão que teria se estivesse a ver televisão, e devolve a miúda à mãe, como se, de súbito, se sentisse culpada por ter passado tanto tempo naquela brincadeira. Na outra ponta da mesa a Alice grita "Mais, mais, mais", e continua a gritar cinco minutos mais tarde, quando a mãe a leva para a cama.

Como o meu irmão me pede, no dia seguinte de manhã cedo levo o café à Jenny, que ainda está no quarto. Quando entro, ela já está a pé, sentada à mesa, a pôr selos em cartas. Parece mais pequena do que na véspera à noite. Tem a janela aberta de par em par e o quarto está cheio do ar matinal, como se ela já se tivesse levantado há muito tempo. Da janela avisto o rio a correr entre as árvores, límpido e calmo, banhado pelo sol. Apetece-me sair e ir ver o meu barco antes do pequeno-almoço. Mas a Jenny está com vontade de conversar. Diz-me para me sentar na cama e para lhe falar de mim. Não me faz perguntas e, como eu não sei como hei-de começar a falar com alguém a meu respeito, fico ali sentado a vê-la escrever moradas nas cartas enquanto vai bebendo o café. Mas não me importo e sinto-me muito bem no quarto da Jenny. Ela pendurou duas imagens na parede. Uma é fotografia emoldurada, tirada num jardim zoológico, de uma macaca pendurada num ramo, de cabeça para baixo, com o filhinho agarrado à barriga. Percebe-se que é um jardim zoológico porque no canto inferior vê-se metade da cara do guarda com o boné. A outra é uma fotografia colorida, recortada de uma revista, de duas crianças de mãos dadas a correr à beira-mar. Foi tirada ao pôr do Sol e tudo na imagem é de um vermelho intenso, até as crianças. É uma fotografia muito boa. A Jenny acaba as cartas e pergunta-me onde ando a estudar. Falo-lhe da nova escola para onde vou quando as férias acabarem, da grande escola secundária em Reading. Mas, como ainda não fui lá, não tenho grande coisa para lhe dizer. Ela vê-me a olhar de novo para a janela.

- Vais ao rio?

- Vou, tenho de ir ver o meu barco.

- Posso ir contigo? Mostras-me o rio?

Espero por ela à porta e vejo-a enfiar a custo os pés redondos e rosados nuns sapatinhos sem salto e pentear o cabelo muito curto com uma escova que tem um espelho na parte de trás. Atravessámos o relvado até ao portão ao fundo do jardim e seguimos pelo carreiro ladeado de fetos muito altos. A meio do caminho, paro a ouvir um verdelhão-amarelo e ela diz-me que não conhece o canto dos pássaros. A maior parte dos adultos nunca diz que não sabe isto ou aquilo. Por isso, mais adiante, pouco antes de o carreiro alargar, dando lugar ao embarcadouro, paramos debaixo de um velho carvalho para ela poder ouvir um melro. Sei que há um lá no alto, está sempre ali a cantar a esta hora da manhã. No instante em que chegamos cala-se e temos de ficar em silêncio, à espera que recomece. Junto ao velho tronco semimorto oiço outras aves noutras árvores e o rio a marulhar sob o embarcadouro. Mas o nosso pássaro está a descansar. Há qualquer coisa naquela espera em silêncio que põe a Jenny nervosa; por isso aperta o nariz com força, a reprimir um latido de riso. Tenho tanta vontade que ela oiça o melro que lhe ponho a mão no braço, o que faz com que largue o nariz e sorria. E daí a segundos, o melro dá início ao seu canto prolongado e cheio de trinados, como se tivesse estado aquele tempo todo à espera que acalmássemos. Quando chegamos ao embarcadouro, mostro-lhe o meu barco amarrado à margem. É um barco a remos, verde do lado de fora e encarnado por dentro, como um fruto. Não houve um dia deste Verão em que não viesse até aqui, dar umas remadelas, pintá-lo, vazar-lhe a água do fundo e, por vezes, só mirá-lo. Uma vez, remei dez quilómetros, rio acima, e passei o resto do dia a vogar ao sabor da corrente até regressar ao ponto de partida. Sentamo-nos à beira do embarcadouro a contemplar o meu barco, o rio e as árvores na outra margem. Depois a Jenny vira os olhos para jusante e diz:

- Londres é além.

Londres é um segredo terrível que tento ocultar ao rio. Quando passa pela nossa casa, ainda não sabe nada a esse respeito. Por isso, limito-me a anuir com a cabeça, sem dizer palavra. A Jenny pergunta-me se se pode sentar no barco. A princípio, fico preocupado por ela ser tão pesada. Mas claro que não lhe posso dizer tal coisa. Por isso, seguro na amarra para ela poder entrar. É a custo que trepa lá para dentro, fazendo o barco baloiçar violentamente. Mas, uma vez que a linha de água não desceu mais do que o habitual, entro atrás dela e ficamos a observar o rio desta nova perspectiva, donde se vê tão distintamente como é antigo e forte. Ficamos ali sentados durante muito tempo a conversar. Começo por lhe contar como os meus pais morreram num acidente de carro há dois anos e como o meu irmão teve a ideia de transformar a casa numa comunidade. A princípio, pensava meter lá mais de vinte pessoas, mas agora acho que não quer mais de oito. Seguidamente, a Jenny fala-me do tempo em que era professora numa grande escola de Manchester, onde todas as crianças se riam dela por ser gorda. No entanto, parece não se importar de falar do assunto. Recorda algumas histórias divertidas do tempo que lá passou. Quando me conta que uma vez os miúdos a fecharam num armário de livros, rimo-nos tanto que o barco baloiça de um lado para o outro, fazendo com que se formem pequenas ondas no rio. Desta vez, o riso da Jenny é calmo e ritmado, e não duro e semelhante a um latido, como antes. No caminho de volta a casa, reconhece dois melros pelo canto e, quando vamos a atravessar o relvado, chama-me a atenção para outro. Limito-me a anuir com a cabeça. Na realidade, é um tordo, mas estou demasiado esfomeado para lhe explicar a diferença.

Três dias mais tarde, oiço a Jenny a cantar. Estou no quintal das traseiras, a arranjar a bicicleta, que está completamente desmontada, e a voz dela chega-me pela janela aberta da cozinha. Está a fazer o almoço e a tomar conta da Alice, enquanto a Kate foi visitar uns amigos. Não sabe a letra da canção, que é entre o alegre e o triste, e canta-a para a Alice no tom de voz rouco das negras: "New morning man La-la, Ia-la-la, l'la. new morning man la-la-la. la-la, l'la. new morning man take me way from here. Nessa tarde, levo-a a dar um passeio de barco pelo rio e ela canta outra canção com o mesmo tipo de melodia, mas desta vez sem nenhumas palavras: "Ya-la-la. y-laaa. ya-eeeee." Abre os braços de mãos esticadas e faz rolar os grandes olhos ampliados, como se se tratasse de uma serenata que me fosse especialmente dedicada. Uma semana mais tarde, as canções da Jenny enchem a casa. por vezes com um verso ou dois de que ela se lembra, na maior parte dos casos sem letra. Passa muito tempo na cozinha e é sobretudo aí que canta. Consegue tornar essa divisão mais espaçosa. Raspa a tinta da janela que dá para norte, de modo a deixar entrar mais luz. Ninguém se consegue lembrar de quem teve a ideia de a pintar pela primeira vez. Leva para fora de casa uma velha mesa e toda a gente se dá conta de que nos estorvava. Uma tarde, pinta uma parede de branco para fazer a cozinha parecer maior e arruma a loiça de modo que saibamos sempre onde está e que até eu a consiga alcançar. Transforma a cozinha no género de sítio onde nos podemos sentar quando não temos mais nada para fazer. Também faz o pão e bolos, coisa que, em geral, temos de comprar. No terceiro dia que passa connosco encontro a minha cama feita de lavado. Põe para lavar os lençóis que usei todo o Verão e a maior parte da minha roupa. Passa uma tarde inteira a fazer um caril e nessa noite como a melhor refeição dos últimos dois anos. Quando os outros lhe dizem que o jantar está óptimo, fica nervosa e ri num latido. Apercebo-me de que os outros ficam pouco à vontade ao ouvir aquilo e que desviam os olhos, como se fosse qualquer coisa chocante para que fosse indelicado olhar. Mas essa maneira de rir não me incomoda nada, nem sequer a oiço. a não ser quando os outros desviam a vista. Quase todas as tardes vamos juntos até ao rio e tento ensiná-la a remar, oiço as histórias de quando era professora e de quando trabalhava num supermercado e via as pessoas de idade que lá iam todos os dias roubar presunto e manteiga. Ensino-a a reconhecer o canto de outras aves, mas o único de que se consegue recordar é o do primeiro, o do melro. No quarto, mostra-me fotografias dos pais e do irmão e diz-me:

- Sou a única gorda.

Também lhe mostro algumas fotografias dos meus pais. Numa delas, tirada um mês antes de morrerem, estão a descer uns degraus de mãos dadas e a rir de qualquer coisa fora da imagem. Era do meu irmão, que estava a fazer macaquices para que ficassem a rir na fotografia que eu estava a tirar. Tinham-me oferecido a máquina havia pouco, no dia em que fiz dez anos, e aquela foi uma das primeiras fotos que tirei. A Jenny observa-a durante muito tempo e faz qualquer comentário sobre o facto de ela ser uma mulher muito bonita, e de súbito vejo a minha mãe apenas como uma mulher numa fotografia, uma mulher qualquer, e, pela primeira vez, sinto-a muito longe, não dentro da minha cabeça a olhar para fora, mas fora da minha cabeça e eu a olhar para ela. eu, a Jenny ou quem quer que pegue na foto. Ela tira-ma da mão e guarda-a com as outras na caixa de sapatos. Na escada que conduz ao rés-do-chão começa a contar-me uma longa história sobre um amigo que estava a encenar uma peça que acabava de uma forma estranha e discreta. O amigo pedira-lhe que começasse a bater palmas no final, mas ela fizera confusão e começara quinze minutos antes do fim, durante uma parte de pouca acção. De modo que o final não chegara a ser representado e os aplausos foram tanto mais calorosos na medida em que ninguém percebera nada do enredo. Julgo que tudo isto se destina a fazer com que deixe de pensar na minha mãe, o que, de facto, acontece.

A Kate passa cada vez mais tempo com os amigos em Reading. Uma manhã estou na cozinha quando ela entra toda elegante, com um fato de cabedal e botas de couro de cano alto. Senta-se à minha frente, à espera que a Jenny desça para lhe dizer o que há-de dar de comer à Alice durante o dia e a que horas volta. Isso faz-me lembrar outra manhã, quase há dois anos, quando a Kate entrou na cozinha vestida de uma forma semelhante. Sentou-se à mesa, desabotoou a blusa e começou a espremer os mamilos com os dedos, fazendo esguichar leite de um branco azulado para dentro de um biberão. primeiro de um seio, depois do outro, sem parecer dar pela minha presença.

- Para que estás a fazer isso? - perguntei.

- É para a Janet dar à Alice mais logo. Eu tenho de sair. A Janet era uma negra que vivia connosco. Era estranho

ver a Kate ordenhar-se para dentro de um biberão e aquilo fez-me pensar em como nos assemelhávamos a animais cobertos de roupa e a fazerem coisas esquisitas, como macacos à mesa do chá, embora, a maior parte do tempo, nem reparemos nisso. Pergunto-me se a Kate, sentada comigo na cozinha ao princípio da manhã, se estará a recordar desse momento. Pôs um bâton cor de laranja e o cabelo preso atrás ainda a faz parecer mais magra. O bâton é fluorescente, como um painel de sinalização. De minuto a minuto olha para o relógio e o cabedal range. Assemelha-se a uma beldade vinda do espaço. Depois a Jenny chega do andar de cima, com um roupão enorme feito de retalhos, a bocejar porque acabou de sair da cama, e a Kate dá-lhe informações numa voz rápida e calma sobre o que a Alice tem de comer durante o dia. É como se falar daquilo a entristecesse. Vai-se embora a correr e grita "Até logo" por cima do ombro. A Jenny senta-se à mesa a beber chá e é como se fosse a inumana que fica em casa a tomar conta da filha da patroa rica: "Yo' daddy's rich and yo' mama's goodlookin' lah la-la-la-la-la- don' yo' cry." E há qualquer coisa estranha na maneira como os outros a tratam. Como se ela estivesse de fora e não fosse uma pessoa como eles. Habituaram-se aos seus cozinhados e aos bolos que faz e agora já ninguém diz nada a esse respeito. Às vezes, à noite, o Peter, a Kate, o José e o Sam sentam-se em círculo a fumar haxixe por um cachimbo de água feito em casa, que pertence ao Peter, e ouvem música na aparelhagem estereofónica com o som muito alto. Nessas ocasiões a Jenny costuma ir para o quarto, não gosta de estar com eles quando fazem aquilo, e vejo que ficam um bocado ofendidos. E, apesar de ser uma rapariga, não é bonita como a Kate ou a Sharon, a namorada do meu irmão. Também não usa jeans nem túnicas indianas como elas, provavelmente por não encontrar nenhumas que lhe sirvam. Usa vestidos às flores e coisas vulgares, como a minha mãe ou a senhora dos correios. E, quando qualquer coisa a põe nervosa e dá aquelas gargalhadas, pela maneira como desviam os olhos, desconfio que a consideram uma espécie de doente mental. Além disso, continuam a reparar na sua gordura. Às vezes, quando não está presente, o Sam chama-lhe Magrizela, o que provoca sempre o riso geral. Não é que sejam antipáticos com ela, nem nada disso, só que, não sei bem como, a põem de parte. Um dia estamos no rio e ela começa a fazer-me perguntas sobre o haxixe.

- Que é que pensas disso? - E eu digo-lhe que o meu irmão só me deixa experimentar quando tiver quinze anos. Sei que está completamente em desacordo, mas não torna a referir-se ao caso. É nessa mesma tarde que lhe tiro uma fotografia com a Alice ao colo, à porta da cozinha, a entortar um bocadinho os olhos por causa do sol. Ela também me tira uma, no quintal, a andar sem mãos na bicicleta que estava toda desmontada e que eu arranjei.

É difícil dizer o momento exacto em que a Jenny se transforma na mãe da Alice. A princípio só toma conta dela quando a Kate vai visitar os amigos. Depois, as visitas tornam-se mais frequentes, até serem quase diárias. Por isso, nós os três, a Jenny, a Alice e eu, passamos uma quantidade de tempo no rio. Junto ao embarcadouro há um declive coberto de erva que vai descendo até uma praiazinha de areia de cerca de vinte metros de largura. A Jenny senta-se na vertente a brincar com a Alice, enquanto eu me ocupo do barco. Quando metemos a Alice lá dentro, ela começa a guinchar como um porquinho. A água deixa-a insegura. Demora muito tempo até se atrever a ficar na areia e, quando por fim ousa fazê-lo, não tira os olhos da água para ter a certeza de que não lhe vai chegar aos pés. Mas, quando vê a Jenny a acenar-lhe do barco, sã e salva, muda de opinião e damos um passeio até à outra margem. A Alice não se importa com a ausência da Kate porque gosta da Jenny, que lhe canta as canções que sabe e passa o tempo a falar com ela quando estamos sentados na erva à beira-rio. Não percebe uma palavra, mas gosta do som da voz da Jenny. Às vezes aponta para a boca dela e diz "Mais, mais". Durante o tempo que passa com ela, a Kate está sempre tão calada e tão triste que é raro ouvir alguém falar-lhe. Uma noite, a Kate não volta a casa e só regressa na manhã seguinte. A Alice está sentada ao colo da Jenny, a entornar o pequeno-almoço na mesa da cozinha, quando a Kate entra a correr, a ergue nos braços, a abraça e pergunta repetidas vezes, sem dar tempo a que alguém lhe responda:

- Ela esteve bem? Ela esteve bem? Ela esteve bem?

Nessa mesma tarde, a Jenny fica de novo com a Alice porque a Kate tem de tornar a sair. Estou na entrada que dá para a cozinha quando a oiço dizer à Jenny que volta ao fim da tarde e, daí a instantes, vejo-a sair de casa com uma maleta de viagem na mão. Quando volta, dois dias mais tarde, limita-se a espreitar pela porta, a ver se a Alice ainda lá está, e depois vai para o quarto. Nem sempre é agradável ter a Alice connosco o tempo todo. Não nos podemos afastar muito no barco. Daí a vinte minutos fica outra vez desconfiada com a água e quer regressar a terra firme. E, se vamos dar um passeio, temos de levá-la ao colo quase todo o caminho, o que significa que não posso mostrar à Jenny alguns dos meus sítios favoritos do rio. Ao fim do dia, a Alice fica impaciente e começa a rabujar e a chorar por tudo e por nada porque está cansada. Já ando farto de estar tanto tempo com a Alice. A Kate passa quase o dia inteiro fechada no quarto. Uma tarde levo-lhe chá e dou com ela sentada numa cadeira a dormir. Por estarmos tanto tempo com a Alice, a Jenny e eu já não conversamos como costumávamos. Não é por a Alice estar a ouvir, mas porque a Jenny está sempre ocupada com ela. De facto, não pensa em mais nada e é como se não precisasse de falar com mais ninguém. Uma noite, estamos todos sentados na sala da frente depois do jantar. A Kate está ao telefone, na entrada, a ter uma discussão prolongada com alguém. Quando acaba, vem para o pé de nós, senta-se ruidosamente e continua a ler. Mas vejo que está zangada e a fazer que lê. Durante algum tempo ninguém fala e depois a Alice começa a chorar no andar de cima e a gritar pela Jenny. Imediatamente, as duas erguem a cabeça e entreolham-se durante um momento. Então, a Kate levanta-se e sai da sala. Todos fingimos continuar a ler, mas, na realidade, escutamos os passos dela na escada. Ouvimo-la no quarto da filha, que é mesmo por cima da sala, e ouvimos a Alice gritar cada vez mais pela Jenny. A Kate desce as escadas, desta vez muito depressa. Quando entra na sala, a Jenny levanta a cabeça e entreolham-se de novo. Entretanto, a Alice continua a gritar pela Jenny, que se levanta e se esgueira a custo entre a ombreira da porta e a Kate. Não dizem palavra. O Peter, o Sam, o José e eu continuamos a fingir que lemos e escutamos os passos da Jenny no andar de cima. O choro pára e ela fica muito tempo no primeiro andar. Quando volta, a Kate já está de novo sentada na cadeira com a revista. A Jenny também se senta, mas ninguém olha para ela nem diz palavra.

De repente, o Verão chega ao fim. Um dia, de manhãzinha, a Jenny entra no meu quarto, tira-me os lençóis da cama e leva a roupa toda que encontra. Tem tudo de ser lavado antes de as aulas começarem. Manda-me arrumar o quarto, apanhar todas as bandas desenhadas, pratos e chávenas que fui metendo debaixo da cama durante o Verão, limpar o pó e pôr no lugar as latas de tinta que utilizei para pintar o barco. Encontra uma mesinha na garagem e ajudo-a a levá-la para o meu quarto. Vai ser a minha secretária para fazer os trabalhos de casa. Leva-me até à aldeia para me fazer uma surpresa, mas não diz do que se trata. Quando chegamos, descubro que é para me cortarem o cabelo. Preparo-me para me escapulir, quando ela me põe a mão no ombro.

- Não sejas tonto. Com esse aspecto não te aguentavas na escola nem um dia.

Por isso, sento-me no barbeiro muito quieto e deixo-o ceifar o que me resta do Verão, enquanto a Jenny, sentada atrás de mim, se ri do ar carrancudo com que a olho no espelho. Pede algum dinheiro ao meu irmão Peter e leva-me de autocarro à cidade a fim de me comprar a farda para a escola. Depois de todos os momentos que passámos no rio, é estranho ouvi-la de repente a dizer-me para fazer isto e aquilo. Mas, no fundo, não me importo e não encontro nenhuma razão válida para não fazer o que ela diz. Lêva-me a reboque pelas ruas principais, entramos em sapatarias e lojas de confecções e compra-me um casaco vermelho e um boné, dois pares de sapatos pretos, seis pares de peúgas cinzentas, dois pares de calças cinzentas e cinco camisas cinzentas, ao mesmo tempo que vai perguntando "Que é que achas destes? Gostas daquelas?", e, uma vez que eu não tenho preferência por nenhum tom de cinzento, concordo com tudo que ela acha melhor. Ao fim de uma hora, o assunto está arrumado. Nessa noite, esvazia as gavetas onde meti a minha colecção de coisas sobre rock a fim de arranjar espaço para a roupa nova e manda-me vestir o uniforme completo. No rés-do-chão desatam todos a rir, sobretudo quando ponho o boné vermelho e o Sam diz que pareço um carteiro intergaláctico. Durante três noites sucessivas obriga-me a esfregar os joelhos com uma escova de unhas para fazer desaparecer toda a porcaria acumulada debaixo da pele. No domingo seguinte, na véspera de começar as aulas, vou pela última vez ao barco com a Jenny e a Alice. Ao fim da tarde tenciono pedir ao Peter e ao Sam para me ajudarem a levá-lo pelo carreiro acima e a atravessar o relvado a fim de o meter na garagem, onde há-de passar o Inverno. Também havemos de construir outro embarcadouro mais resistente. É o último passeio de barco do Verão. A Jenny mete a Alice lá dentro e trepa a seguir, enquanto eu mantenho o barco em equilíbrio. Ao mesmo tempo que empurro o embarcadouro com um remo para nos fazermos ao largo, a Jenny começa a cantar uma das suas canções: "Jeeesus won't you come on down, Jeeesus won't you come on down, Jeeesus won't you come on down, lah, la-la-la-lah, Ia-la." A Alice está de pé entre os joelhos dela, a ver-me remar. Acha divertida a maneira como me inclino para a frente e para trás. Julga que é por brincadeira que me aproximo e afasto da cara dela. É estranho este último dia no rio. Quando a Jenny acaba de cantar, ninguém fala durante muito tempo. Só a Alice se ri de mim. O rio está tão calmo que as suas gargalhadas o atravessam em direcção a nada. O Sol é de um amarelo desmaiado, como se o Verão o tivesse feito desbotar, não há vento no arvoredo das margens e não se ouvem pássaros a cantar. Nem sequer os remos fazem ruído na água. Subo o rio, com o sol a bater-me nas costas, mas está demasiado pálido para que o sinta, demasiado pálido para projectar sombras. Avistamos um velho de pé debaixo de um carvalho a pescar. À nossa passagem, ergue a cabeça, fita-nos, no barco, e nós fitamo-lo, na margem. O seu rosto não muda quando olha para nós. O nosso também não, e ninguém diz bom dia. Tem uma erva comprida na boca e, ao ver-nos, tira-a e cospe para o rio, silenciosamente. A Jenny deixa correr a mão pela água densa e observa a margem como se fosse qualquer coisa que só vê em pensamento. Fico a pensar que talvez não lhe apeteça estar ali comigo e que só veio por causa de todas as outras vezes que remámos juntos e por este ser o último dia de Verão. Pensar nisso entristece-me e torna mais difícil puxar pelos remos. Decorrida meia hora, olha-me e sorri e sinto que essa história de não lhe apetecer estar ali não passou de imaginação minha, porque começa a falar do Verão e de todas as coisas que fizemos. Na sua boca tudo parece maravilhoso, muito melhor do que foi na realidade. Recorda os longos passeios que demos, as vezes que andámos a chapinhar à beira do rio com a Alice, como eu tentei ensiná-la a remar e a reconhecer o canto das diferentes aves e as ocasiões em que saíamos de casa enquanto os outros ainda estavam a dormir e íamos remar para o rio antes do pequeno-almoço. Faz com que eu lhe pegue na palavra e comece também a recordar tudo o que fizemos, como daquela vez em que nos pareceu ver um ampélis, e outra ocasião, ao entardecer, em que ficámos escondidos atrás de um arbusto à espera que um texugo saísse da toca. Daí a pouco estamos de tal modo entusiasmados com o magnífico Verão que passámos juntos e com as coisas que tencionamos fazer no ano seguinte que as nossas exclamações e gritos quebram o silêncio. É então que a Jenny diz:

- E amanhã pões o boné encarnado e vais para a escola.

Há qualquer coisa no seu tom, a fingir que fala a sério e que me está a dar uma ordem, a sacudir um dedo esticado, que faz com que aquilo seja a coisa mais cómica do mundo. E a ideia de tudo o que fizemos no Verão, para, no fim, ter de pôr um boné vermelho e ir para a escola, faz-nos rir tanto que me vejo obrigado a poisar os remos. O som das nossas gargalhadas torna-se cada vez mais intenso, porque o ar parado não o leva rio fora, e fica connosco no barco. Cada vez que damos de caras um com o outro, desatamos a rir ainda mais, até que começo a ter dores aos lados da cintura e só me apetece parar. A Alice desata a chorar, pois não percebe o que se passa e isso ainda nos dá mais vontade de rir. A Jenny inclina-se borda fora para eu não a ver. Mas as gargalhadas dela são agora mais tensas e mais secas, como latidos agudos ou lascas de pedra que lhe saltam da garganta. A sua grande cara e os seus grandes braços cor-de-rosa estremecem e agitam-se no esforço que faz para suster a respiração, mas acaba por deixar escapar o ar em lascazinhas de pedra. Quando se volta a endireitar, vejo que, apesar da boca que ri, os olhos secos têm uma expressão assustada. Deixa-se cair de joelhos, agarrando a barriga com as mãos de tanto rir, e faz com que a Alice perca o equilíbrio. O barco vira-se. Vira-se porque a Jenny lhe bate de lado, porque a Jenny é grande e o meu barco é pequeno. Tudo se passa muito rapidamente, como o clik do obturador da minha máquina fotográfica, e, de repente, estou no fundo verde do rio a tocar o lodo frio e mole com as costas da mão e a sentir os juncos roçarem-me no rosto. Oiço gargalhadas semelhantes a lascas de pedra que se afundam junto aos meus ouvidos. Mas, quando regresso à superfície, não há ninguém por perto. Ao chegar à tona, está escuro no rio. Passei muito tempo no fundo. Qualquer coisa me toca na cabeça e apercebo-me de que estou dentro do barco virado. Volto a mergulhar e saio do outro lado. Demoro muito tempo a recuperar o fôlego. Contorno o barco, chamando repetidas vezes pela Jenny e pela Alice. Meto a boca na água e grito por elas. Mas não há resposta, nada surge à superfície. Sou a única pessoa no rio. Por isso, agarro-me ao lado do barco e fico à espera que voltem à tona. Espero durante muito tempo, vogando com o barco arrastado pela corrente, ainda com as gargalhadas nos ouvidos, atento ao rio e às manchas amarelas desenhadas pelo sol-poente. De quando em quando sinto as pernas e as costas percorridas por grandes arrepios, mas, de uma forma geral, estou calmo, agarrado ao casco verde, sem conseguir pensar em nada, só atento ao rio, à espera que qualquer coisa irrompa à superfície desfazendo as manchas amarelas. Passo pelo lugar onde o velho estava à pesca e parece-me que isso foi há muito tempo. Agora já lá não está e só resta um saco de papel no sítio onde se encontrava. Sinto-me tão cansado que fecho os olhos e é como se estivesse em casa, na cama, e fosse Inverno e a minha mãe entrasse no quarto para me dizer boa noite. Apaga a luz, as minhas mãos escorregam do barco e afundo-me. Depois lembro-me de gritar de novo pela Jenny e pela Alice e de vigiar o rio e os meus olhos começam a fechar-se e a minha mãe entra no quarto e diz boa noite e apaga a luz, e torno a afundar-me na água. Decorrido muito tempo, já não penso em chamar pela Jenny e pela Alice, limito-me a flutuar e a deixar-me levar pela corrente. Procuro um sítio na margem que conhecia bem há muito tempo. Há uma faixa de areia e um declive verdejante junto a um embarcadouro. As manchas amarelas afundam-se no rio quando me afasto do barco. Deixo-o vogar em direcção a Londres e nado lentamente, cortando a água negra, em direcção ao embarcadouro.

 

                                         Cocker no teatro

Havia pó no tablado, metade da pintura dos panos de fundo desaparecera e todas as pessoas no palco estavam despidas, com as luzes intensas dos projectores a aquecê-las e a tornar visível a poeira que pairava no ar. Como não havia sítio para se sentarem, arrastavam-se de um lado para o outro, desconsoladas. Não tinham bolsos onde enfiar as mãos e não havia cigarros.

- É a primeira vez que fazes isto?

Era a primeira vez para toda a gente, mas o encenador era o único a sabê-lo. Só os amigos falavam, em voz baixa e sem continuidade. Os outros permaneciam calados. Como começar uma conversa quando se está nu e não se conhece ninguém? Nenhum deles sabia. Os homens profissionais - por motivos profissionais - olhavam de soslaio para o sexo dos outros, enquanto os não profissionais, amigos de amigos do encenador a precisarem de dinheiro, olhavam disfarçadamente para as mulheres. Do fundo do auditório, onde estivera a trocar impressões com o figurinista, Jasmin gritou, numa mistura de, galês e de cockney ostensivamente amaneirada:

- Já se masturbaram todos, rapazes? Muito bem! (Ninguém respondera.) - O primeiro que eu vir de pau feito vai daqui para fora. Isto é um espectáculo respeitável.

Algumas mulheres deram risadinhas, os homens não profissionais evitaram a luz dos projectores, dois assistentes do contra-regra transportaram para o palco uma carpete enrolada, dizendo "Cuidado com as costas", e todos se sentiram ainda mais nus. Um homem de chapéu colonial e camisa branca instalou um gravador na plateia. Tinha um ar zombeteiro ao enrolar a fita. Era a cena da cópula.

- Põe a G. T. C., Jack - disse Jasmin. - deixa-os ouvir primeiro.

Havia quatro grandes altifalantes e nenhuma possibilidade de escapar.

 

             Well, you've heard about the privacy of the sex-uu-aal act,

             Let me tell you people, just for a fact,

             Riiiight acroooss the nay-ay-ation

             It's the in-out one-two-three Grand Time Copulation.

 

Ouviu-se o som de violinos a pairar muito alto e uma banda militar e, depois do coro, uma marcha triunfal a dois tempos, com trombones, tambores e um xilofone. Jasmin avançou pela coxia em direcção ao palco.

- Esta é a música para fornicarem, pequenos. - Desapertou o botão de cima da camisa. Fora ele próprio a escrevê-la.

- Onde está a Dale? Preciso da Dale!

A coreógrafa surgiu da escuridão. Envergava uma gabardina elegante, apertada por um cinto largo. Tinha uma cintura fina, óculos escuros e o cabelo alisado com gele apanhado num carrapito. A andar, parecia uma tesoura. Sem se virar, Jasmin gritou para o homem que ia a sair por uma porta ao fundo do auditório:

- Preciso daquelas cabeleiras, Harry. Preciso daquelas cabeleiras, meu lindo. Sem cabeleiras, acabou-se o Harry.

Sentou-se na primeira fila. Colocou as mãos em pirâmide sob o nariz e cruzou as pernas. Dale subiu para o palco. Postou-se no meio da grande carpete aberta no tablado, com uma mão na anca.

- Quero as raparigas de cócoras, a formarem um V, cinco de cada lado.

Estava no sítio onde iria ser o vértice, a agitar os braços. Todas se sentaram a seus pés, enquanto Dale ia percorrendo o espaço entre elas às tesouradas, deixando um rasto de almíscar à sua passagem. Tornou o V mais estreito, depois mais largo, transformou-o numa ferradura e num crescente e, de novo, num V pouco pronunciado.

- Muito bem, Dale - comentou Jasmin.

O V apontava para o fundo do palco. Dale tirou uma rapariga do meio e substituiu-a por outra da ponta. Sem dizer palavra, pegava-lhes pelo cotovelo e levava-as de um lugar para outro. Não lhe conseguiam ver os olhos por causa dos óculos e nem sempre percebiam o que queria. Conduziu um homem até junto de cada mulher e, fazendo-lhes pressão nos ombros, obrigou-os a sentarem-se à frente delas. Encaixou as pernas de cada par, endireitou-lhes as costas, pôs-lhes as cabeças em boa posição e fez com que agarrassem os braços um do outro. Jasmin acendeu um cigarro. Havia dez pares a formarem o V na carpete, que fora retirada do foyer.

Por fim, Dale disse:

- Vou bater as palmas e vocês baloiçam para trás e para a frente a esse ritmo.

Começaram a baloiçar como crianças a brincar aos barcos. O encenador foi até ao fundo do auditório.

- Acho que se devem juntar mais, querida. Daqui não faz efeito nenhum.

Dale aproximou os pares. Quando recomeçaram a baloiçar, ouvia-se o ruído dos pêlos púbicos a roçarem. Tinham dificuldade em manter o ritmo. Era tudo uma questão de prática. Um par caiu para o lado e a rapariga bateu com a cabeça no chão. Começou a esfregá-la e Dale foi até junto deles, deu-lhe mais umas esfregadelas e voltou a colocá-los em posição. Jasmin precipitou-se pela coxia.

- Vamos experimentar com a música. Jack, por favor. E lembrem-se, pequenos, depois da parte cantada, passam a dois tempos.

Well, you've heard about the privacy of the sex-uu-aal act

Os rapazes e as raparigas começaram a baloiçar, ao mesmo tempo que Dale ia batendo as palmas. Jasmin estava a meio da coxia, de braços cruzados. Descruzou-os e gritou:

- Parem! Basta!

Fez-se um súbito silêncio. Os pares fixaram o olhar na escuridão para além dos projectores, à espera. Jasmin desceu os degraus lentamente e, ao chegar ao palco, falou em voz branda:

- Sei que é difícil, mas têm de dar a impressão de que essa coisa vos dá gozo. -(A voz subiu de tom.)- Há pessoas a quem dá, sabem? Vocês estão a foder, não estão num velório, percebem? - (A voz baixou de tom.) - Vamos recomeçar e desta vez com algum entusiasmo. Jack, por favor.

Dale pôs novamente em linha as unidades que estavam fora do lugar e o encenador tomou a subir as escadas. Estava melhor, sem dúvida que desta vez estava melhor. Dale foi para o lado de Jasmin, a observar. Ele pôs-lhe a mão no ombro e sorriu para os óculos escuros.

- Está óptimo, querida, vai ficar óptimo.

- Os dois ao fundo estão a mexer-se bem - comentou Dale. - Se fossem todos assim, eu ficava sem trabalho.

It's the in-out one-two-three Grand Time Copulation.

Dale batia as palmas a fim de os ajudar a manter o novo ritmo. Jasmin sentou-se na primeira fila e acendeu um cigarro.

- Aqueles lá ao fundo .. - gritou para Dale. Ela levou um dedo à orelha para lhe mostrar que não ouvia nada e desceu a escada ao seu encontro. - Aqueles lá ao fundo vão depressa de mais, não achas?

Ficaram juntos a observá-los. Era verdade, os dois que tinham estado a mexer-se bem pareciam não conseguir acompanhar o ritmo. Jasmin colocou de novo as mãos em pirâmide sob o nariz e Dale avançou para o palco às tesouradas. Estacou junto ao par e bateu as palmas.

- Um dois, um dois - gritou.

O rapaz e a rapariga não davam mostras de ouvir, nem a ela, nem aos trombones, nem aos tambores, nem ao xilofone.

- Um dois, foda-se! - berrou Dale. - E, dirigindo-se a Jasmin: - Espero que tenham um mínimo de sentido de ritmo. Mas Jasmin não a ouvia por estar também aos berros:

- Cortem! Parem! Desliga-me essa coisa, Jack.

Todos os pares se imobilizaram, excepto o do fundo. Toda a gente estava de olhos postos nos dois que agora baloiçavam mais rapidamente, seguindo o seu próprio ritmo sinuoso.

- Meu Deus - exclamou Jasmin -, eles estão a foder! E gritou para os assistentes do contra-regra: - Se querem voltar a trabalhar em Londres, é melhor irem separá-los e pararem com esses sorrisos idiotas. - Depois, dirigindo-se aos pares, ordenou: - Desapareçam e voltem daqui a meia hora. Não, não, fiquem nos vossos lugares. - Virando-se para Dale, disse com voz rouca: - Lamento que isto se tenha passado, querida. Imagino como te deves sentir. É uma coisa nojenta e indecente e a culpa foi minha. Devia tê-los passado em revista antes de começarem. Mas não vai tornar a acontecer.

Enquanto falava, Dale foi dando golpes pela coxia acima até desaparecer. Entretanto, o par continuava a baloiçar, agora sem música. Só se ouvia o ranger do tablado sob a carpete e os gemidos suaves da mulher. Os assistentes do contra-regra permaneciam estáticos, sem saber o que fazer.

- Separem-nos! - gritou Jasmin de novo.

Um deles puxou o homem pelos ombros, que, de tão suados, lhe escorregaram das mãos. Jasmin virou-se de costas, com lágrimas nos olhos. Era inacreditável! Os outros, satisfeitos com o intervalo, tinham-se posto de pé, a olhar. O assistente do contra-regra que tentara puxar o homem apareceu com um balde de água. Jasmin assoou-se.

- Não sejas ridículo! - coaxou. - Já devem estar a acabar.

Ainda não terminara a frase quando o par foi sacudido pelos últimos espasmos. Separaram-se e a rapariga correu para o camarim, deixando o homem sozinho. Jasmin subiu para o palco e interpelou-o em voz trémula e sarcástica:

- Muito bem, Portnoy(1), já fizeste o gosto ao dedo? Sentes-te melhor agora?

 

(1 Referência à personagem principal do romance Tirntov' Camphiiní. de Philip Koth. caracterizada pelos seus insaciáveis apetites sexuais. (N. doT.)

 

O homem estava de pé, com as mãos atrás das costas. A picha, irritada e pegajosa, descia-lhe em pequenas palpitações.

- Sinto, sim, Mr. Cleaver, muito obrigado.

- Como te chamas, meu lindo?

- Cocker(1).

Na plateia ouviu-se uma espécie de resfolgar. Era Jack, naquilo que nele constituía a expressão mais próxima do riso. Os outros apertavam os lábios. Jasmin inspirou profundamente.

- Bem, Cocker, tu mais o boneco guedelhudo que tens aí pendurado podem rastejar para fora deste palco. Espero que encontrem uma valeta à vossa medida.

- Muito obrigado, Mr. Cleaver. Tenho a certeza de que havemos de encontrar.

Jasmin dirigiu-se para o auditório.

- Os outros, preparem-se para recomeçar. Sentou-se. Havia dias em que só lhe apetecia chorar,

chorar a valer. Mas, em vez disso, acendeu um cigarro.

 

(1) Termo derivado de cock (pénis). (N. da T.)

 

                                             Borboletas

Na quinta-feira vi um cadáver pela primeira vez. Mas no domingo seguinte estava calor, tanto calor como eu nunca sentira em Inglaterra. E não havia nada para fazer. Por volta do meio-dia decidi ir dar um passeio. Já fora de casa, parei hesitante, sem saber se havia de ir para a esquerda ou para a direita. O Charlie estava do outro lado da rua, debaixo de um carro. Deve ter-me visto as pernas, pois gritou:

- Então como vai essa vida?

Nunca tenho respostas prontas para perguntas dessas. Depois de passar vários segundos a procurar qualquer coisa para dizer, acabei por responder:

- Como estás, Charlie?

Saiu de rastos debaixo do carro. O Sol estava do lado da rua em que me encontrava e batia-lhe em cheio nos olhos. Protegeu-os com a mão em pala e prosseguiu:

- Para onde vais agora?

Mais uma vez não sabia o que responder. Era domingo, não havia nada para fazer, estava calor de mais

- Por aí .. - respondi. - Dar um passeio Atravessei a rua e pus-me a olhar para o motor do carro,

embora não percebesse nada daquilo. O Charlie é um velho entendido em máquinas. Arranja carros das pessoas que moram na nossa rua e dos amigos. Contornou o automóvel, transportando com ambas as mãos uma caixa de ferramentas.

- Então, ela lá morreu?

Pôs-se a limpar uma chave-de-fendas com um bocado de algodão para fazer qualquer coisa. Claro que já sabia, mas queria ouvir-me contar a história.

- Morreu, sim - respondi.

Ficou à espera que continuasse. Encostei-me ao carro, mas o tejadilho estava a escaldar. O Charlie incitou-me a prosseguir.

- Foste a última pessoa a vê-la

- Eu estava na ponte. Vi-a a correr pela margem do canal.

- Viste-a?....

- Não a vi cair à água.

O Charlie arrumou a chave-de-fendas na caixa. Preparava-se para voltar para debaixo do carro, o que era a sua forma de me dizer que a conversa chegara ao fim. Continuava sem me decidir para que lado havia de seguir. Antes de desaparecer, Charlie ainda disse:

- Uma pena. Foi mesmo uma pena.

Segui para a direita por estar virado nessa direcção. Percorri várias ruas, entre sebes de ligustro e carros estacionados. Em cada rua havia o mesmo cheiro a comida. Ouvia o mesmo programa de rádio através das janelas abertas. Vi gatos e cães, mas muito poucas pessoas, e só à distância. Despi o casaco e pu-lo no braço. Apetecia-me estar perto de árvores e de água. Nesta zona de Londres, os únicos parques que existem são de estacionamento. E há o canal, o canal castanho, que corre entre fábricas e passa por um recinto cheio de sucata, o canal onde a Jane se afogou. Dirigi-me à biblioteca pública. Sabia que estava fechada, mas prefiro ficar nos degraus cá fora. Por isso, sentei-me ali, numa faixa de sombra que se ia tornando mais estreita. Um vento quente varria a rua, fazendo esvoaçar o lixo à minha volta. Vi uma folha de jornal que corria pelo meio da rua, um bocado do Daily Mirror. Quando parou, consegui ler parte de um cabeçalho "HOMEM QUE" Não se via vivalma. Ouvi a campainha de uma carrinha de gelados a virar a esquina e dei-me conta de que estava com sede. Tocava qualquer coisa de uma sonata para piano de Mozart. Parou de repente, a meio de uma nota, como se qualquer coisa tivesse emperrado o mecanismo. Dirigi-me para lá em passos rápidos, mas, quando cheguei à esquina, tinha desaparecido. Daí a instantes ouvi-a de novo, mas parecia estar já muito longe.

No caminho de volta não vi ninguém. O Charlie tinha ido para dentro e o carro também desaparecera. Bebi água da torneira da cozinha. Li em qualquer sítio que um copo de água de uma torneira de Londres já foi bebido cinco vezes antes. Tinha um sabor a metal. Isso fez-me recordar a mesa de aço inoxidável onde puseram a miúda, o cadáver dela. Provavelmente utilizam água da torneira para lavar os tampos das mesas da casa mortuária. Tinha de me ir encontrar com os pais dela às sete. A ideia não foi minha, mas de um dos sargentos da polícia, o que ouviu o meu depoimento. Devia ter-me mantido firme, mas ele não me largava, o que me deixou intimidado. Quando falava, segurava-me pelo cotovelo. É possível que fosse um truque que aprendem na escola da polícia para lhes dar o poder de que precisam. Agarrou-me quando eu ia a sair do edifício e levou-me para um canto. Era impossível libertar-me sem lutar com ele. Falou-me num murmúrio e a sua voz de cana rachada era afável e insistente:

- Foste a última pessoa que viu a miúda antes de morrer .. - Proferiu a última palavra mais lentamente. - .. e é claro que os pais gostavam de se encontrar contigo. Fiquei assustado com as suas insinuações, e senti que, enquanto me agarrava, era ele que tinha o poder. Apertou-me um pouco mais o braço. - Por isso, disse-lhes que aparecias por lá. Moras perto deles, não moras? - Acho que desviei os olhos e fiz que sim com a cabeça. Ele sorriu, dando o caso por encerrado. No entanto, aquele encontro era qualquer coisa, um acontecimento para dar sentido ao dia. Ao fim da tarde decidi tomar um banho e vestir-me convenientemente, o que me ajudaria a matar o tempo. Descobri um frasco de água-de-colónia ainda por encetar e uma camisa lavada. Enquanto a banheira enchia, despi-me e fiquei a ver o meu corpo no espelho. Sei que sou um indivíduo suspeito por não ter queixo. Sabe-se lá porquê, na esquadra já desconfiavam de mim antes de começar a falar. Disse-lhes que estava na ponte e que foi daí que a vi a correr ao longo do canal. O sargento comentou:

- Que grande coincidência, não foi? Digo isto por ela viver na mesma rua que tu.

É impossível dizer onde o meu queixo acaba e o pescoço começa e isso provoca desconfiança. A minha mãe também era assim. Só depois de sair lá de casa a comecei a achar grotesca. Morreu no ano passado. As mulheres não gostam do meu queixo e evitam-me. Com a minha mãe era o mesmo, nunca teve amigos. Andava sempre sozinha, até quando partia de férias. Todos os anos ia para Littlehampton e sentava-se numa cadeira de repouso, longe de toda a gente, virada para o mar. No fim da vida tornou-se manhosa e magra como um galgo.

Até ver o corpo da Jane, na quinta-feira passada, nunca me detivera a pensar na morte. Uma vez vi um cão ser atropelado. Vi a roda passar-lhe por cima do pescoço e os olhos saltarem-lhe das órbitas. Nessa altura, isso não me fez impressão nenhuma. E, quando a minha mãe morreu, nem sequer apareci, por indiferença, sobretudo, e pela aversão que sentia pelos parentes. Também não tinha curiosidade em vê-la morta, magra e cinzenta entre as flores. Imagino que a minha morte há-de ser semelhante à dela. Mas nessa altura ainda não tinha visto um cadáver. Um cadáver leva-nos a comparar os vivos com os mortos. Fizeram-me descer uma escada de pedra e seguir ao longo de um corredor. Pensei que a casa mortuária devia ser um edifício à parte, mas era num prédio de escritórios de sete andares. Estávamos na cave. Ouvi o barulho de máquinas de escrever que chegava até nós do fundo das escadas. O sargento estava à minha espera, com mais uns quantos à paisana, e segurou as portas de vaivém para eu passar. Para dizer a verdade, não esperava que ela estivesse ali. Agora já não me recordo do que estava à espera, talvez de uma fotografia e de alguns papéis para assinar. Não tinha pensado muito no caso. Mas ela estava ali. Havia cinco mesas altas, de aço inoxidável, dispostas em fila. E lâmpadas fluorescentes, com quebra-luzes de metal verde, suspensas do tecto por correntes compridas. Estava na mesa mais próxima da porta, deitada de costas, com as palmas das mãos viradas para cima, as pernas unidas, a boca muito aberta, os olhos muito abertos, muito pálida, muito quieta. Ainda tinha o cabelo um nadinha húmido e o vestido encarnado parecia ter sido acabado de lavar. Cheirava um bocadinho à água do canal. Acho que aquilo não devia ser nada de extraordinário para quem já tivesse visto muitos cadáveres, como o sargento. Tinha uma pequena equimose acima do olho direito. Senti vontade de lhe tocar, mas tive a impressão de que me estavam a observar atentamente. O homem de casaco branco disse com brusquidão, como um vendedor de automóveis em segunda mão:

- Só nove anos.

Ninguém respondeu e todos pusemos os olhos nela. O sargento passou para o meu lado da mesa, com uns papéis na mão:

- Pronto?

Voltámos a percorrer o corredor comprido. Lá em cima assinei os papéis que diziam que eu ia a atravessar a ponte para peões junto à linha de caminho de ferro e que vira uma garota, que identificara na cave, a correr pelo caminho à beira do canal. Desviei o olhar e daí a pouco vi qualquer coisa vermelha a afundar-se na água, até desaparecer. Como não sei nadar, fui chamar um polícia, que espreitou para o canal e que disse que não via nada. Deixei-lhe o meu nome e morada e fui para casa. Daí a hora e meia tiraram-na do fundo com uma corda de arrasto. Assinei três cópias do depoimento. Depois permaneci no edifício durante muito tempo. Num dos corredores encontrei uma cadeira de plástico e sentei-me. À minha frente, através de uma porta aberta, avistei duas raparigas a bater à máquina num gabinete. Viram-me a observá-las e começaram a falar uma com a outra e a rir. Uma delas veio até cá fora a sorrir e perguntou-me se estava ali em exposição. Respondi-lhe que estava apenas sentado, a pensar. A rapariga voltou para o gabinete e inclinou-se sobre a secretária a reproduzir para a amiga o que eu acabara de lhe dizer. Olharam-me disfarçadamente, pouco à vontade. Suspeitavam de mim, como de costume. Na realidade, não estava a pensar na rapariga morta na cave. Nas imagens confusas que me ocorriam ela aparecia ora viva ora morta; mas não me esforcei por torná-las coerentes. Fiquei ali sentado toda a tarde, pois não me apetecia ir para outro sítio. As raparigas fecharam a porta do gabinete. Por fim, acabei por sair, pois toda a gente tinha ido para casa e queriam fechar. Fui a última pessoa a sair do edifício.

Levei muito tempo a vestir-me. Passei a ferro o meu fato preto, por achar essa cor adequada. Escolhi uma gravata azul, para não parecer de luto carregado. Depois, quando já me preparava para sair de casa, mudei de opinião. Voltei ao andar de cima e tirei o fato, a camisa e a gravata. Por que estava tão ansioso por ter a aprovação deles? Tornei a enfiar as calças e a camisola velhas que tinha antes. Arrependi-me de ter tomado banho e limpei a nuca, tentando fazer desaparecer o cheiro a água-de-colónia. Mas havia outro perfume, o do sabonete que usara no banho. Era o mesmo que utilizara na quinta-feira e a primeira coisa que a miúda me disse foi:

- Cheiras a flores.

Partira para dar um passeio e ia a passar pelo jardinzinho em frente da casa dela. Fingi não a ouvir. Evito falar com crianças, pois acho difícil encontrar o tom certo para comunicar com elas. Além disso, os seus modos incisivos incomodam-me e deixam-me constrangido. Já a vira várias vezes a brincar na rua, geralmente sozinha, ou a observar o Charlie.

Saiu do jardim e começou a seguir-me.

- Aonde é que vais? - perguntou.

Continuei a fingir que não ouvia, na esperança de que se desinteressasse. De resto, não tinha uma ideia clara do sítio para onde me dirigia.

- Aonde é que vais? - repetiu.

- Não tens nada com isso - respondi-lhe instantes mais tarde.

Caminhava atrás de mim, de modo que não a pudesse ver. Suspeitei que estava a imitar a minha maneira de andar, mas não me virei para ver.

- Vais à loja de Mr. Watson?

- Sim, vou à loja de Mr. Watson.

- Pergunto-te, porque hoje está fechada -explicou, vindo pôr-se a meu lado-, por ser quarta-feira.

Não encontrei resposta para lhe dar. Ao chegarmos à esquina ao fim da rua, voltou a insistir:

- Afinal, aonde é que vais?

Pela primeira vez fitei-a atentamente. Tinha um rosto comprido e delicado e grandes olhos tristes. O cabelo, castanho e fino, estava apanhado dos lados, atado com fitas vermelhas, a condizerem com o vestido de algodão da mesma cor. Era de uma beleza estranha e quase sinistra, como uma rapariga de um quadro de Modigliani.

- Não sei, vou dar um passeio.

- Quero ir contigo.

Não lhe dei resposta e seguimos juntos em direcção ao centro comercial. Ela também ia calada e seguia um pouco atrás de mim, como se estivesse à espera de que a mandasse embora. Levava um brinquedo que todas as crianças das redondezas têm. São dois bocados de corda com bolas duras na ponta, que fazem bater rapidamente uma na outra com um certo movimento da mão. Produz um ruído seco como uma matraca. Julgo que fazia aquilo para me agradar, o que tornava difícil mandá-la embora. E há vários dias que eu não falava com ninguém.

Quando desci a escada, depois de mudar novamente de roupa, faltava um quarto para as seis. Os pais da Jane moravam a doze casas de distância da minha, do mesmo lado da rua. Uma vez que acabara os preparativos com quarenta e cinco minutos de avanço, decidi ir a pé para matar o tempo. Agora a rua já estava à sombra. Ao sair a porta, parei, hesitante, a pensar qual seria o melhor caminho. O Charlie estava do outro lado da rua a arranjar outro carro. Viu-me e, embora sem sentir uma vontade especial, dirigi-me a ele. Levantou a cabeça sem sorrir.

- Aonde é que vais desta vez? - perguntou, como se eu fosse uma criança.

- Apanhar ar - respondi -, respirar um bocado de ar fresco.

O Charlie gosta de saber o que se passa na rua. Conhece todas as pessoas das imediações, incluindo as crianças. Vi-o muitas vezes ali com a miúda. Da última vez, ela estava a ajudá-lo e segurava numa chave-de-fendas. Por qualquer razão, o Charlie considerava-se responsável pela morte dela. Tivera o domingo inteiro para pensar no assunto. Queria ouvir a minha versão da história, mas não se atrevia a fazer perguntas directas.

- Então vais ver os pais dela? Às sete horas?

- Sim, às sete horas.

Ficou à espera de que eu continuasse. Contornei o carro. Era um grande Ford Zodictc, velho e ferrugento, o género de carro que se vê nesta rua. Pertencia à família de paquistaneses que são donos da lojeca ao fundo da rua. Por qualquer motivo obscuro chamaram à loja "Watson's". Têm dois filhos, que foram espancados por skin-heads das redondezas. Andavam a juntar dinheiro para regressarem a Peshawar. Quando eu ia à loja, o velho costumava falar-me do assunto e dissera-me que se ia embora com a família por causa da violência e do mau tempo de Londres. Do outro lado do carro de Mr. Watson, o Charlie disse-me em tom acusador:

- Ela era filha única.

- Pois era - respondi. - Eu sei. Foi uma pena. Demos mais umas voltas ao carro. Depois o Charlie

prosseguiu:

- Vinha no jornal. Leste? Dizia que a viste afogar-se.

- É verdade.

- E não lhe pudeste deitar a mão?

- Não, não consegui. Foi logo ao fundo. Descrevi um círculo mais largo à volta do carro e afastei-me. Senti que os olhos do Charlie não me desfitavam enquanto seguia pela rua fora, mas não me voltei para verificar.

No fim da rua, fingi erguer a cabeça para ver um avião e olhei de relance por cima do ombro. O Charlie mantinha-se imóvel junto ao carro, com as mãos nas ancas, sem tirar os olhos de mim. Um grande gato branco e preto estava sentado aos seus pés. Vi isto tudo de relance antes de virar a esquina. Eram seis e meia. Decidi ir até à biblioteca passar o tempo que restava, seguindo o mesmo caminho que percorrera dias antes. Agora havia mais pessoas na rua. Avistei um grupo de rapazes antilhanos a jogar futebol. A bola veio a rolar até junto de mim e passei-lhe por cima. Ficaram à espera, enquanto um dos rapazes mais pequenos a foi apanhar. Quando os ia a ultrapassar, calaram-se a olhar-me atentamente. Já me ia a afastar quando um deles me atirou uma pedra rente ao chão. Sem me virar, e quase sem olhar, interceptei-a com o pé. Foi um acaso ter feito aquilo tão bem. Começaram todos a rir e a bater as palmas a aplaudir-me, de modo que, por instantes, fiquei todo contente, a pensar que podia voltar para trás e ir juntar-me a eles. Ao receberem de novo a bola, recomeçaram a jogar. Mas esse instante de júbilo passou, e segui caminho. O coração batia-me com mais força devido à excitação que aquilo me provocara e, quando cheguei à biblioteca e me sentei nos degraus, ainda sentia o pulso a bater nas têmporas. É raro ter oportunidades desse género. Não conheço muita gente e, na realidade, as únicas pessoas com quem falo são o Charlie e Mr. Watson. O Charlie, porque está sempre no mesmo sítio quando saio de casa; é sempre ele a dirigir-me a palavra e não tenho maneira de o evitar quando quero ir à rua. E passo mais tempo a ouvir Mr. Watson do que a falar com ele, e isto porque sou obrigado a ir à mercearia dele fazer compras. E ter alguém a passear comigo na quarta-feira também foi uma boa oportunidade, embora se tratasse apenas de uma miúda que não tinha nada para fazer. Embora nessa altura não o quisesse reconhecer, fiquei satisfeito por se mostrar tão cheia de curiosidade a meu respeito, senti-me atraído por ela e tudo o que queria era que ficasse minha amiga.

Mas a princípio estava pouco à vontade. Ela seguia-me de perto, a brincar com as bolas, e suspeito que a fazer gestos nas minhas costas, como é habitual nas crianças. Depois, quando chegámos à rua principal, veio para o meu lado.

- Por que é que não vais trabalhar? - perguntou. - O meu pai vai trabalhar todos os dias, menos aos domingos.

- Não preciso de trabalhar.

- Então já deves ter montes de dinheiro. - Fiz que sim com a cabeça. - Tens assim tanto?

- Tenho.

- Se quisesses, podias comprar-me uma coisa?

- Se quisesse, podia. - Ela apontava para a montra de uma loja de brinquedos.

- Então, vá lá, compra-me uma daquelas, vá lá, por favor.

Puxava-me pelo braço e fazia uma dançazinha ávida, tentando empurrar-me para a loja. Há muito tempo que ninguém me tocara voluntariamente daquela maneira, desde a minha infância que isso não acontecia. Senti uma espécie de arrepio no estômago e as pernas a vacilarem. Tinha algum dinheiro no bolso e não via razão para não lhe comprar qualquer coisa. Disse-lhe para ficar à espera cá fora, entrei na loja e comprei-lhe o que pedira, uma bonequinha nua, moldada numa única peça de plástico cor-de-rosa. Mal lhe pegou, pareceu perder todo o interesse por ela. Mais adiante, pediu-me que lhe comprasse um sorvete. Ficou à minha espera à porta da loja. Desta vez não me tocou. Claro que hesitei, não tinha a certeza do que se estava a passar. Mas agora sentia curiosidade por ela e pelo efeito que estava a ter em mim. Dei-lhe dinheiro para comprar gelados para os dois e deixei-a ir buscá-los. Era evidente que estava habituada a receber presentes. Um pouco mais longe perguntei-lhe em tom afável:

- Não costumas dizer obrigada quando alguém te dá uma coisa?

Fitou-me com desdém e, com um círculo de gelado em torno dos lábios finos e pálidos, respondeu:

- Não.

Perguntei-lhe como se chamava. Queria que a nossa conversa fosse amigável.

- Jane.

- Que aconteceu à boneca que te comprei, Jane? Deitou uma olhadela para a mão.

- Deixei-a na geladaria.

- Não a querias?

- Esqueci-me dela.

Ia dizer-lhe que voltasse atrás a buscá-la, quando me apercebi de quanto desejava que ficasse comigo e de como estávamos perto do canal.

O canal é a única extensão de água que existe nas redondezas. Há qualquer coisa de especial em passear à beira de água, mesmo quando se trata de água castanha e malcheirosa a correr nas traseiras de fábricas, na maioria com os vidros todos partidos e abandonadas. Em geral, é possível andar dois quilómetros e meio à beira de água sem encontrar vivalma. O caminho passa por um recinto cheio de sucata. Até há dois anos, um velho impassível vigiava o local de uma pequena barraca de lata, junto da qual se via um grande lobo-d'alsácia amarrado a um poste. O animal era demasiado velho para ladrar. Depois, a barraca, o velho e o cão desapareceram e o portão foi fechado a cadeado. A pouco e pouco a vedação foi sendo derrubada pelos miúdos das imediações, de modo que agora só o portão se mantém de pé. O ferro-velho é a única coisa que chama a atenção ao longo destes dois quilómetros e meio, dado o resto do caminho correr ao longo de muros das fábricas. Mas gosto do canal e sinto-me menos confinado ali, junto à água, do que em qualquer outro ponto da cidade. Depois de me acompanhar em silêncio durante algum tempo, a Jane perguntou de novo:

- Aonde é que vais? Aonde é que vais passear?

- À beira do canal. Reflectiu durante um minuto.

- Não me deixam ir para o pé do canal.

- Porquê?

- Porque não.

Agora seguia ligeiramente à minha frente. O círculo branco em torno dos lábios já secara. Sentia as pernas fracas e o calor do Sol que se desprendia do pavimento sufocava-me. Tornara-se imperioso convencê-la a acompanhar-me ao longo do canal, embora essa ideia me provocasse náuseas. Atirei fora o resto do gelado e disse:

- Venho passear para aqui quase todos os dias.

- Porquê?

- É muito sossegado .. e há imensas coisas para ver.

- Que coisas?

- Borboletas. - Deixei escapar a palavra antes de pensar no que dizia. Ela descreveu um círculo à minha volta, subitamente interessada. As borboletas nunca poderiam sobreviver perto do canal, pois o mau cheiro daria cabo delas. E a Jane não iria tardar a descobri-lo.

- Borboletas de que cor?

- Encarnadas amarelas.

- E que é que há mais?

- Um ferro-velho - respondi após um segundo de hesitação.

Franziu o nariz e prossegui rapidamente: - E barcos, também há barcos no canal. - Barcos a sério?

- Claro, barcos a sério. Mais uma vez, não era isto que pretendia dizer. Ela estacou e eu fiz o mesmo.

- Se eu for contigo, não vais fazer queixa, pois não?

- Não, não digo a ninguém, mas à beira do canal tens de vir a meu lado, percebes? - Ela anuiu com a cabeça. E limpa o gelado da boca. - Num gesto vago, passou as costas da mão pelo rosto. - Anda cá, eu limpo.

Puxei-a para mim e com a mão esquerda segurei-a pela nuca. Humedeci o indicador da outra mão e passei-lho à volta da boca, como vira alguns pais fazer. Nunca tocara os lábios de outra pessoa e nunca experimentara esse tipo de prazer, que me subiu dolorosamente do baixo-ventre até ao peito, alojando-se aí, como um punho fechado a empurrar-me as costelas. Tornei a levar o dedo à boca e senti o gosto adocicado e pegajoso. Tornei a esfregar-lhe os lábios, mas desta vez repeliu-me.

- Estás a magoar-me. - Fazes força de mais. Seguimos caminho, agora com ela a meu lado.

Para descermos até ao caminho à beira de água tínhamos primeiro de atravessar o canal, por uma ponte negra e estreita, ladeada de paredes altas. A meio da passagem, a Jane pôs-se em bicos de pés, tentando ver alguma coisa por cima do muro.

- Pega-me ao colo - pediu. - Quero ver os barcos.

- Não os consegues ver daqui.

Mas pus-lhe as mãos à volta da cintura e ergui-a. O vestido vermelho muito curto esvoaçou pelas costas acima etornei a sentir o punho cerrado no peito.

- O rio está muito sujo - comentou, virando um pouco a cabeça.

- Está sempre sujo porque é um canal.

Ao descermos os degraus de pedra que conduziam à beira de água, Jane chegou-se para mim. Suspeitei que retinha a respiração. Em geral, o canal corre para norte, mas nesse dia a água estava completamente parada. À superfície havia manchas de espuma amarela, que também não se moviam por não haver vento. De quando em quando, um carro passava na ponte por cima de nós e, quando esse ruído cessava, ouvia-se o som do trânsito de Londres à distância. À parte isso, o silêncio era quase total. Devido ao calor, o mau cheiro era mais intenso do que o habitual e a espuma exalava um odor mais animal do que químico.

- Onde estão as borboletas? - perguntou Jane num murmúrio.

- Já ali adiante. Mas primeiro temos de passar por baixo de duas pontes.

- Quero voltar para trás. Quero voltar para trás.

Já estávamos a mais de cem metros da escada de pedra. Ela queria parar, mas instei-a a prosseguir. Estava demasiado assustada para sair de ao pé de mim e correr sozinha até aos degraus.

- Não tarda que vejamos as borboletas. São encarnadas, amarelas, às vezes verdes.

Mentia descaradamente, já sem me preocupar com o que dizia. Ela deu-me a mão.

- E os barcos?

- Já vais vê-los ali mais à frente.

Continuámos a andar e eu só pensava em fazer com que ela não se fosse embora. Em determinados pontos à beira do canal há túneis que passam por baixo de fábricas, de estradas, de linhas de caminho de ferro. O primeiro a que chegámos era formado por um edifício de três andares que liga as fábricas das duas margens. Estava deserto, como as restantes construções, e todas as janelas tinham os vidros partidos. À entrada, Jane tentou puxar-me para trás.

- Que barulho é este? Não vamos por aí.

O que se ouvia era a água a correr do tecto do túnel e a cair no canal, produzindo uma estranha ressonância, que ficava a ecoar com um som cavo.

- É água - expliquei. - Olha, se espreitares, vês o outro lado.

Como o caminho era muito estreito, fi-la seguir à minha frente. Ao poisar-lhe a mão no ombro, senti que tremia. Já no fim do túnel, estacou de súbito e apontou para qualquer coisa. Num sítio onde a luz do Sol incidia, uma flor desabrochava entre os tijolos. Parecia uma espécie de dente-de-leão a despontar no meio de um tufozinho de erva.

- É uma unha-de-cavalo - disse ela, colhendo-a e pondo-a no cabelo, atrás da orelha.

- Nunca vi flores por aqui.

- Tem de haver flores para as borboletas.

Durante o quarto de hora que se seguiu caminhámos calados. Jane só quebrou uma vez o silêncio, perguntando-me de novo pelas borboletas. Parecia menos amedrontada e largou-me a mão. Sentia desejo de lhe tocar, mas não sabia como fazê-lo sem a assustar. Tentei pensar em qualquer assunto para conversarmos, mas não me ocorria nada. À nossa direita, o caminho começava a alargar-se. No sítio em que o canal descrevia a curva seguinte, num espaço imenso entre uma fábrica e um armazém, situava-se o ferro-velho. À nossa frente, uma nuvem de fumo negro erguia-se no céu e, ao darmos a curva, vi que era daí que subia. Avistei um grupo de rapazes de pé em redor de uma fogueira que haviam ateado. Era uma espécie de bando e todos tinham blusões azuis iguais e o cabelo em pé, cortado rente. Segundo me pareceu, preparavam-se para assar um gato vivo. O fumo pairava por cima das suas cabeças no ar parado, e atrás deles erguia-se uma montanha de sucata. Tinham atado o gato pelo pescoço a um poste, o mesmo a que o lobo-d'alsácia costumava estar preso. Também tinham amarrado as patas traseiras e dianteiras do animal. Estavam a armar uma gaiola com bocados de arame por cima do fogo e, quando passámos, arrastavam o gato nessa direcção, puxando-o pela corda que tinha ao pescoço. Dei a mão à Jane e apressámos o passo. Os rapazes actuavam em silêncio, muito concentrados e mal se detiveram a olhar-nos. A miúda não ergueu os olhos do chão. Através da sua mão, apercebi-me de que tremia da cabeça aos pés.

- Que estavam a fazer ao gato?

- Não sei.

Olhei para trás por cima do ombro. Agora era fácil ver o que estavam a fazer devido ao fumo negro. Já tinham ficado muito para trás e o caminho por onde seguíamos corria de novo ao longo das paredes das fábricas. A Jane estava quase a chorar e só não me largava a mão porque eu a segurava com força, o que acabava por ser inútil, pois não se atreveria a fugir sozinha, a voltar para trás, passando pelo ferro-velho, nem direita ao túnel de que nos aproximávamos. Ao chegarmos ao fim do caminho, não tinha a menor ideia do que se iria passar. Ela queria voltar para casa e tudo o que eu sabia era que não a podia deixar ir. Resolvi não pensar mais no assunto. À entrada do segundo túnel parou.

- Não há borboletas nenhumas, pois não?

No fim da frase, o tom da sua voz elevou-se, pois estava quase a chorar. Comecei a explicar-lhe que talvez estivesse calor de mais para as borboletas. Mas, sem me dar ouvidos, começou a lamuriar-se:

- Isso é mentira, não há borboletas nenhumas, é tudo mentira.

Desatou a choramingar com pouca convicção, tentando libertar a mão. Fiz o possível por acalmá-la, mas recusava-se a ouvir-me. Apertei-lhe a mão com mais força e arrastei-a para o túnel. Começou a gritar, produzindo um som agudo e contínuo que fazia eco nas paredes do túnel, impedindo-me de pensar. Levei-a à força até meio do túnel. De súbito, os seus gritos foram abafados pelo estrépito de um comboio mesmo por cima das nossas cabeças, fazendo estremecer o chão e o ar. Demorou muito tempo a passar. Segurei-a, imobilizando-lhe os braços junto ao corpo, mas já não se debatia, dominada pelo barulho ensurdecedor. Quando os últimos ecos morreram ao longe, disse em voz sumida:

- Quero ir para a minha mãe.

Abri o fecho das calças. Não sabia se conseguia ver. na escuridão, o que se estendia para ela.

- Toca-me aqui - pedi, abanando-a ligeiramente pelo ombro.

Como não se mexeu,tornei a abaná-la.

- Toca-me aqui, vá lá. Sabes o que quero dizer, não sabes?

No fundo, o que lhe pedia era uma coisa muito simples. Agarrei-a com ambas as mãos e, sacudindo-a violentamente, gritei:

- Toca-me aqui, anda!

Estendeu a mão e os seus dedos roçaram-me ao de leve. Mas foi o suficiente. Com o corpo dobrado em dois, vim-me nas mãos em concha. Tal como o comboio, também eu demorei muito tempo a deitar tudo cá para fora, a despejar nas mãos todo o tempo que passara sozinho, todas as horas gastas em caminhadas solitárias, todos os pensamentos que tivera. Quando tudo terminou, permaneci vários minutos na mesma posição, com o corpo dobrado e as mãos em concha à minha frente. Sentia o espírito desanuviado, o corpo descontraído, e não pensava em nada. Deitei-me de bruços, estendi os braços e lavei as mãos no canal. Era difícil tirar com água fria aquela coisa que se me agarrava aos dedos como espuma, por isso arranquei-a aos bocados. Lembrei-me então da miúda, que já não estava ao pé de mim. Depois do que se passara, não a podia deixar fugir para casa. Tinha de ir atrás dela. Pus-me de pé e vi a sua silhueta recortada contra a luz ao fundo do túnel. Seguia lentamente à beira do canal, em passos incertos. Eu não conseguia correr tão depressa quanto desejava por não ver o chão que pisava. Quanto mais me aproximava da luz, menos via. Ela já estava quase a sair do túnel. Ao ouvir os meus passos no seu encalço, virou-se e soltou uma espécie de uivo. No preciso momento em que deitou a correr, desequilibrou-se. Do sítio onde me encontrava era difícil ver o que lhe acontecera, pois a sua silhueta recortada contra o céu desapareceu de repente na escuridão. Quando a alcancei, estava deitada de borco, com a perna esquerda atravessada no caminho quase metida na água. Ao cair, batera com a cabeça no chão e tinha uma protuberância por cima do olho direito. O braço direito, estendido à sua frente, quase atingia a zona de luz fora do túnel. Curvei-me em direcção ao seu rosto a escutar-lhe a respiração. Era profunda e regular. Estava de olhos fechados e ainda tinha as pestanas molhadas de lágrimas. Já não sentia desejo de lhe tocar, sentia-me vazio, despejara tudo o que tinha a despejar no canal. Limpei-lhe uma ou outra mancha de sujidade da cara e do vestido vermelho.

- Grande tonta! Não vês que não há borboletas?

Em seguida, ergui-a devagarinho, de modo a não a acordar, e deitei-a docemente à água.

Em geral, prefiro sentar-me nos degraus da biblioteca, a ir lá para dentro ler livros. Cá fora aprendem-se mais coisas. Estava, pois, ali sentado, nesse fim de tarde de domingo, a ouvir o meu pulso abrandar até voltar ao ritmo habitual. Pensei e repensei no que acontecera e no que devia ter feito. Vi a pedra a correr rente ao chão e eu a interceptá-la com o pé, quase sem me virar. A seguir devia ter-me voltado devagar, recebendo os aplausos com um sorriso irónico. Depois devia ter-lhes devolvido a pedra com um pontapé, ou melhor, transpô-la com indiferença, aproximar-me e, daí a instantes, quando a bola voltasse, já eu estaria no meio deles, integrado na equipa. E quase todos os dias, ao entardecer, poderia jogar à bola, depois de lhes ter perguntado como se chamavam e de ter dito o meu nome. Quando me vissem na cidade, gritariam por mim do outro lado da rua e, depois de atravessarem, ficaríamos a conversar. No fim do jogo, um deles vem direito a mim e agarra-me pelo braço.

- Então, até amanhã

- Até amanhã.

E, quando fossem mais velhos, iríamos beber um copo e eu havia de aprender a gostar de cerveja. Pus-me de pé e comecei a andar lentamente, percorrendo de volta o caminho por onde viera. Sabia que não ia participar em nenhuns jogos de futebol. As oportunidades são tão raras como as borboletas. Estende-se a mão, e já desapareceram. Passei pela rua onde os vira a jogar. Agora estava deserta e a pedra que interceptara ainda se encontrava no meio do caminho. Apanhei-a, meti-a no bolso e segui caminho, para não chegar tarde ao encontro marcado.

 

                              O homem no roupeiro

Quer saber o que fiz quando vi a rapariga. Bom, vou dizer-lhe. Está a ver ali aquele roupeiro que ocupa o quarto quase todo. Vim a correr até aqui, trepei lá para dentro e masturbei-me. E não imagine que foi a pensar na rapariga. Não. não podia suportar isso. Recuei em pensamento até ao tempo em que tinha um metro de altura. Isso fez com que eu me viesse mais depressa. Calculo que me está a achar indecente e vicioso. Bem, a seguir lavei as mãos, o que nem toda a gente faz. E senti-me melhor, mais descontraído. E com um quarto destes, que é que havia de fazer? Para si não há problemas. Até aposto que mora numa casa limpa, que a sua mulher lhe lava as camisas e que o governo lhe paga para descobrir coisas acerca das pessoas. Está bem, sei que é .. como é que se diz? um assistente social e que está a tentar dar uma ajuda, mas tudo o que pode fazer por mim é ouvir-me. Sou como sou há muito tempo e não é agora que vou mudar. Mas é bom conversar, por isso vou falar-lhe de mim.

Nunca vi o meu pai, porque morreu antes de eu nascer. Penso que foi aí que os problemas começaram - fui criado pela minha mãe, e por mais ninguém. Vivíamos num casarão perto de Staines. Não regulava bem e eu saio a ela. Tudo o que queria era ter filhos, mas nem lhe passava pela cabeça tornar a casar, por isso fui o único; e tive de ser todos os filhos que ela queria ter. Tentou impedir-me de crescer e durante muito tempo conseguiu. Sabe que só comecei a falar como deve ser aos dezoito anos? Nunca andei na escola porque ela dizia que morávamos numa zona perigosa e não me deixava sair de casa. Passava dia e noite abraçada a mim. Não ficou nada satisfeita quando deixei de caber no berço e foi então que me comprou uma cama de grades num leilão de hospital. Só ela se podia ter lembrado de uma coisa dessas. Até sair lá de casa dormi sempre naquela geringonça. Não conseguia deitar-me numa cama normal, tinha medo de cair e não era capaz de adormecer. Já tinha mais cinco centímetros do que ela e ainda tentava pôr-me um babadoiro ao pescoço. Era doida varrida. Tinha eu catorze anos quando um dia apareceu com um martelo, pregos e tábuas; pôs-se a fazer uma espécie de cadeirinha alta para mim. Como era de prever, ficou feita em pedaços quando me sentei. E as papas que me dava, santo deus! É por isso que tenho estes problemas de estômago. Não me deixava fazer nada sozinho e chegou ao ponto de me impedir de aprender a ser asseado. Não podia dar um passo sem ela e a grande sacana adorava isso.

Por que não fugi quando era mais velho? Talvez pense que não havia nada que me impedisse. A verdade é que nunca me passou pela cabeça. Não conhecia outra vida e não me achava diferente das outras pessoas. De qualquer modo, como podia escapar-me se ficava cheio de cagaço mal me afastava cinquenta metros? E para onde podia ir? Mal sabia dar o laço nos atacadores dos sapatos, quanto mais arranjar trabalho? Julga que estou a exagerar? Vou dizer-lhe uma coisa com piada. Se quer saber, não era infeliz. Ela era porreira. Lia-me histórias e coisas assim e fazia-me objectos de papelão. Tínhamos uma espécie de teatro que construímos com uma caixa de fruta e as pessoas eram de papel e cartolina. Não, não me sentia infeliz até descobrir o que os outros pensavam a meu respeito. Acho que podia ter passado a vida inteira a viver e a reviver o tempo desde que nasci até ter dois anos, sem me considerar infeliz. Era mesmo uma mulher porreira, a minha mãe. Chanfrada, mas porreira.

Como é que metornei adulto? Para lhe dizer a verdade, nunca aprendi. Tenho de fingir. Tenho de fazer conscientemente todas as coisas que se consideram normais. Passo o tempo a pensar nisso, como se estivesse num palco. É verdade que estou sentado nesta cadeira de braços cruzados, mas preferia estar deitado no chão a fazer glu-glu do que a falar consigo. Se calhar julga que estou a brincar. Ainda levo uma data de tempo a vestir-me de manhã e ultimamente nem me tenho ralado com isso. E há bocadinho viu como sou desajeitado a comer de garfo e faca. Quem me dera ter alguém que me desse de comer com uma colher e que me batesse nas costas para me fazer arrotar. Não me diga que não acredita! Ou acha que é uma lástima? Bem, cá por mim, acho. É a coisa mais deprimente que já vi. É por isso que cago na memória da minha mãe, por ser assim por causa dela.

Vou contar-lhe como aprendi a fingir que sou adulto. Quando tinha dezassete anos, a minha mãe só tinha trinta e oito. Ainda era uma mulher interessante e parecia muito mais nova. Se não fosse aquela obsessão por mim, podia ter casado com a maior das facilidades. Mas estava demasiado ocupada a tentar empurrar-me outra vez para dentro do útero para pensar nisso. Até que encontrou aquele gajo e foi então que tudo mudou de repente. De um dia para o outro, as obsessões tornaram-se outras e só pensava em recuperar todo o tempo de sexualidade perdido. Como se ainda não fosse suficientemente maluca, ficou doida por aquele tipo. Queria levá-lo lá a casa, mas não se atrevia com medo que ele me visse, um bebé de dezassete anos. Foi por isso que em dois meses tive de fazer um crescimento à pressão. Começou a bater-me quando entornava comida ou pronunciava mal as palavras, ou até quando ficava especado a vê-la fazer qualquer coisa. Depois começou a sair à noite e a deixar-me sozinho em casa. Esse treino intensivo deitou-me mesmo abaixo. Imagine o que é ter alguém em cima de mim durante dezassete anos para depois ser atirado aos bichos. Comecei a ter estas dores de cabeça. E mais tarde os ataques, sobretudo quando ela estava quase pronta para sair à noite. Perdia o controle dos braços e das pernas, a minha língua fazia coisas sem eu querer, como se pertencesse a outra pessoa. Era um pesadelo. A seguir, ficava tudo preto como breu. Quando recuperava a consciência, já a minha mãe tinha saído como se nada fosse e eu para ali ficava, a espojar-me na minha própria merda, na casa às escuras. Foram tempos difíceis.

Acho que os ataques se tornaram menos frequentes quando levou o homem lá para casa. Nessa altura já eu me tornara apresentável. A minha mãe fazia-me passar por atrasado mental, o que julgo que não andava muito longe da verdade. Não me recordo lá muito bem do gajo. só me lembro de que era enorme e tinha o cabelo comprido penteado para trás e cheio de brilhantina. Usava sempre fatos azuis. Era dono de uma garagem em Clapham e, como era grande e bem sucedido na vida, detestou-me à primeira vista. Não é difícil imaginar o meu aspecto naquela época. Dado praticamente nunca ter saído de casa na vida, era magro e pálido, ainda mais magro e mais débil do que agora. Também o odiei por me ter roubado a minha mãe. Quando ela nos apresentou, limitou-se a fazer um aceno de cabeça, sem me dirigir palavra. Nem sequer pareceu reparar em mim. Era tão grande, tão forte e tão convencido que imagino que não conseguia suportar a ideia de existirem pessoas como eu.

Começou a aparecer regularmente, em geral para levar a minha mãe a qualquer lado à noite. Eu ficava a ver televisão e sentia-me muito só. Quando, lá para as tantas, os programas acabavam, sentava-me na cozinha à espera da minha mãe e, embora tivesse dezassete anos, fartava-me de chorar. Uma manhã desci ao rés-do-chão e dei com o namorado dela a tomar o pequeno-almoço de roupão. Nem sequer ergueu os olhos quando entrei na cozinha. Olhei para a minha mãe, que fingiu estar muito ocupada a fazer qualquer coisa no lava-loiça. Depois, as estadas foram-se tornando cada vez mais frequentes, até dormir lá em casa todas as noites. Uma tarde, apinocaram-se todos e saíram. Quando voltaram, não paravam de rir e de correr a casa toda aos tropeções. Deviam ter bebido como esponjas. Nessa noite, a minha mãe informou-me de que casara e eu tinha de lhe chamar Pai. Isso foi o fim. Tive o pior ataque da minha vida. Não lhe consigo explicar como foi horrível, mas foi como se durasse dias, embora só tivesse demorado uma hora, mais coisa menos coisa. Quando acabou, abri os olhos e vi a expressão da minha mãe: a mais total e completa aversão. Não pode fazer ideia do que uma pessoa é capaz de mudar em tão pouco tempo. Quando vi a expressão dela, apercebi-me de que, para mim, se tornara uma estranha como o meu pai. Fiquei com eles três meses, até encontrarem um hospício para me internarem. Estavam demasiado ocupados um com o outro para se preocuparem comigo. Mal me dirigiam a palavra e nunca falavam um com o outro na minha presença. Sabe que me senti muito feliz por me ir embora, apesar de aquela ser a minha casa e de ter chorado um bocadinho à partida? Mas estava satisfeito por ir para longe deles. E imagino que com eles se passava o mesmo, por se verem livres de mim. O hospício para onde me levaram não era mau de todo. Para dizer a verdade, tanto me fazia um sítio como outro. Mas ensinaram-me a cuidar melhor de mim e até comecei a aprender a ler e a escrever, embora já esteja esquecido de quase tudo. Lembra-se que não consegui ler o impresso que me mandou? Aquilo era tudo uma estupidez, mas não se vivia lá muito mal. Havia uma quantidade de gente esquisita e isso fazia com que me sentisse mais seguro de mim. Três vezes por semana levavam-me de autocarro, com mais uns quantos, até uma oficina onde aprendíamos a consertar toda a espécie de relógios. Pensavam que assim, quando me fosse embora, podia ser independente e ganhar a vida. Vai-se à procura de emprego e perguntam-nos onde é que aprendemos o ofício. Quando lhes dizemos, não querem ouvir mais nada. Uma das coisas melhores do hospício foi ter conhecido Mr. Smith. Sei que como nome não é grande coisa e ele tinha um aspecto vulgar, de modo que não era de esperar que fosse alguém especial. Mas era. Tinha a seu cargo o hospício e foi ele que tentou ensinar-me a ler. Não me saía nada mal. Quando me fui embora, tinha acabado de ler The Hobbit e gostei. Mas, uma vez cá fora, não tinha tempo para esse género de coisas. No entanto, o velho Smith fez o que pôde para me ensinar. E também me ensinou muitas outras coisas. Quando lá cheguei, ainda pronunciava mal as palavras e ele passava o tempo a corrigir-me e fazia-me repetir. Além disso, dizia que eu tinha de ter mais graciosidade. Graciosidade, sim senhor! Tinha um gira-discos enorme no gabinete, punha-o a funcionar e dizia-me para dançar. A princípio, sentia-me completamente estúpido. Aconselhava-me a não pensar onde estava, a descontrair-me e a deixar-me levar pela música. Então, eu começava às cabriolas pela sala, a agitar os braços e a atirar uma perna para cada lado, na esperança de que ninguém me visse pela janela. Depois, comecei a gostar daquilo. Era quase como ter um ataque, só com a diferença de que era agradável. Perdia a consciência, não sei se está a ver o que quero dizer. Por fim, o disco parava e eu ficava a suar e a recuperar o fôlego, sentindo-me um bocado zaranza. Dançava duas vezes por semana, às segundas e às sextas. Havia dias em que ele tocava piano em vez de pôr discos. Não me agradava tanto, mas nunca disse nada porque via, pela cara dele, que isso lhe dava prazer.

Também começou a ensinar-me a pintar. Não era pintura vulgar, repare. Por exemplo, se uma pessoa quer pintar uma árvore, provavelmente faz uma parte castanha em baixo e uma mancha verde em cima. Ele dizia que isso era um disparate. Havia lá um jardim enorme e uma manhã levou-me até umas árvores velhas. Parámos debaixo de uma delas, que era imponente. Disse-me que queria que eu .. como é que era? que eu tinha de sentir a árvore e de a recriar. Demorei muito tempo a perceber onde ele queria chegar e continuei a pintar à minha maneira. Depois mostrou-me o que queria dizer com aquilo. Imagina que eu queria pintar aquela árvore, disse ele. Em que é que ela me faz pensar? Grandeza, solidez, escuridão. Então pintou uns traços pretos e grossos no papel. Apanhei a ideia e comecei a pintar coisas como as sentia. Disse-me para fazer o meu retrato e eu pintei aquelas formas esquisitas amarelas e brancas. A seguir foi a minha mãe, e cobri o papel de grandes bocas vermelhas - era o bâton dela- e pintei-as por dentro de preto. Isso foi porque a odiava. Quero dizer, odiava-a e não a odiava. Depois de sair de lá nunca mais- pintei; cá fora não há espaço para coisas desse género.

Se o estiver a chatear é só dizer, sei que tem de visitar uma data de pessoas e que não é obrigado a estar aqui sentado a ouvir-me. Pronto, então está bem. Segundo o regulamento do hospício, tínhamos de nos ir embora quando chegávamos aos vinte e um anos. Recordo-me de que me fizeram um bolo para me consolar, só que não gosto de bolos e, por isso, distribuí-o pelos outros miúdos. Deram-me cartas de apresentação e os nomes e moradas de pessoas para ir procurar. Mas não os utilizei, pois queria ser independente. Isso tem muito peso quando se passa a vida com pessoas a olhar por nós, mesmo que sejam bondosas. Então vim para Londres. A princípio, lá me fui arranjando, sentia-me forte de espírito, capaz de enfrentar a cidade. Como nunca cá tinha estado, achava tudo surpreendente e deslumbrante. Arranjei um quarto em Muswell Hill e comecei à procura de emprego. O único tipo de trabalho que podia tentar arranjar era a levantar e carregar coisas pesadas ou a abrir buracos. Mas, mal olhavam para mim, diziam-me que tirasse daí o sentido. Por fim, comecei a trabalhar num hotel, a lavar a loiça. Era um sítio todo finaço - a parte dos hóspedes, quero eu dizer. Alcatifas vermelhas onde os pés se enterravam, lustres e uma orquestrazinha a tocar a um canto do salão. No primeiro dia, por engano, entrei pela frente. Mas a cozinha não era assim tão agradável. Santo Deus, que sujeira! Deviam ter falta de pessoal, pois eu era o único a lavar a loiça. Ou talvez me tivessem topado mal cheguei. Fosse como fosse, tinha de fazer tudo sozinho, doze horas por dia com três quartos de hora para almoço.

Não me ralava com as horas de trabalho e estava contente por ganhar a vida pela primeira vez. O único problema era o chefe dos cozinheiros. Era ele que pagava os salários e estava sempre a fazer-me cortes no ordenado. É claro que o dinheiro ia directamente para o bolso dele. Além disso, era horroroso. Cheio de manchas na cara, na testa, por baixo do queixo, nas orelhas e à volta delas. Grandes manchas empoladas e crostas, encarnadas e amarelas. Nem sei como o deixavam chegar-se à comida. Mas naquela cozinha não se importavam muito com esse género de coisas. Até as baratas teriam metido na panela, se as conseguissem apanhar. O chefe dos cozinheiros não me podia ver. Chamava-me Espantalho e toda a gente se ria. "Ó Espantalho, então já assustaste muitos pássaros?" Era um fala-barato. Não havia mulher que se chegasse àquele monte de pus. E a cabeça dele também era uma infecção, porque o sacana só tinha merda lá dentro. Sempre com o nariz metido nas revistas, todo a babar-se! Andava sempre atrás das mulheres que deviam limpar a cozinha. Eram uns coirões, nenhuma com menos de sessenta anos e quase todas pretas e feias. Ainda parece que o estou a ver às risadinhas e a deitar perdigotos, a meter-lhes as mãos pelas saias acima. Não se atreviam a protestar, porque ele podia despedi-las. Pode dizer-me que, pelo menos, era normal. Mas eu prefiro ser como sou do que parecer-me com ele.

Uma vez que não me ria das suas piadas como os outros faziam, o Cara-de-Pus começou a ser mesmo malvado. Fazia os possíveis e impossíveis por inventar coisas para eu fazer e dava-me todos os trabalhos sujos. Já andava farto de o ouvir chamar-me Espantalho e, por isso, um dia depois de me ter obrigado a arear todas as panelas três vezes, disse-lhe: "Vai-te foder, Cara-de-Pus." Ficou pior que uma barata. Nunca ninguém lhe chamara uma coisa daquelas cara a cara. Nesse dia não me chateou mais. Mas, na manhã seguinte, a primeira coisa que fez foi ir direito a mim e dizer-me: "Vai limpar o fogão maior." Era um fogão enorme, de ferro fundido, e acho que só era limpo uma vez por ano. Tinha as paredes revestidas de uma camada de porcaria preta e para a limpar tinha de se ir lá para dentro com um alguidar de água e um limpa-fornos. O interior cheirava a gatos podres. Fui buscar o alguidar e uns esfregões e trepei para o interior. Só se podia respirar pelo nariz para não vomitar. Estava lá há dez minutos, quando a porta se fechou. Tinha sido o Cara-de-Pus e através das paredes de ferro ouvia as gargalhadas dele. Estive ali fechado cinco horas, até depois do intervalo para o almoço. Cinco horas fechado naquele forno negro e fedorento e depois ainda me obrigou a lavar a loiça. Deve imaginar como fiquei furioso. E não podia dizer nada, pois não queria perder o emprego.

Logo na manhã seguinte, o Cara-de-Pus foi ter comigo, estava eu a começar a lavar a loiça do pequeno-almoço, e disse-me: "Então não te mandei limpar o fogão, Espantalho?" Lá peguei outra vez nas coisas e, mal entrei no forno, a porta fechou-se. Fiquei tão danado que lhe chamei todos os nomes que sabia e dei tantos murros nas paredes que as minhas mãos ficaram em carne viva. Mas, como não ouvia nada, daí a pouco acalmei e tentei instalar-me o melhor possível. Não podia parar de mexer as pernas para não ficar com cãibras. Quando me pareceu terem passado aí umas seis horas, ouvi o Cara-de-Pus a rir do lado de fora. Depois comecei a sentir calor. A princípio nem queria acreditar e pensei que era imaginação minha. Mas ele tinha ligado o forno no mínimo. Quando ficou quente de mais para aguentar estar sentado, pus-me de cócoras. Sentia o calor atravessar a sola dos sapatos e tinha a cara e as narinas a escaldar. Suava em bica e cada vez que respirava era como se tivesse a garganta em brasa. Não podia bater nas paredes, pois estavam tão quentes que nem lhes conseguia tocar. Queria gritar, mas faltava-me o fôlego. Pensei que ia morrer, pois sabia que o Cara-de-Pus era capaz de me assar vivo. Mas ao fim da tarde deixou-me sair. Apesar de estar quase inconsciente, ouvi-o dizer: "Então, Espantalho, onde é que tens andado todo o dia? Queria que limpasses o forno." Depois desatou às gargalhadas e os outros fizeram coro, só porque tinham medo dele. Apanhei um táxi para casa e meti-me na cama. Estava numa miséria e no dia seguinte ainda foi pior. Tinha os pés empolados e as costas todas queimadas no sítio que devia ter estado encostado às paredes do forno. E não parava de vomitar. Havia uma ideia que não me saía da cabeça: nem que morresse, tinha de ajustar contas com o Cara-de-Pus. Como andar era uma tortura, apanhei outro táxi. Nem sei bem como, mas consegui aguentar a primeira parte da manhã e o Cara-de-Pus não se meteu comigo. Durante o intervalo ficou sentado longe dos outros a ler uma revista porca. Antes de recomeçarmos a trabalhar, acendi o gás por baixo de uma das frigideiras das batatas fritas. Tinha cerca de dois litros de óleo e, quando começou a ferver, levei-a até junto dele. A planta dos pés doía-me tanto que tive de fazer um esforço para não desatar a chorar. Tinha o coração aos saltos, pois sabia que ia dar cabo dele. Quando cheguei ao pé da cadeira, levantou os olhos e, pela minha expressão, percebeu logo o que lhe ia acontecer. Mas nem teve tempo para fazer um movimento. Entornei-lhe o óleo direitinho no colo, fingindo escorregar, não fosse alguém estar a ver-me. Começou aos uivos, como um animal selvagem, e nunca ouvi um homem fazer tal alarido. A roupa que vestia pareceu dissolver-se e vilhe os tomates ficarem vermelhos, incharem e depois tornarem-se brancos. Escorreu-lhe tudo pelas pernas abaixo. Passou vinte e cinco minutos aos berros até o médico chegar e lhe dar morfina. Soube mais tarde que o Cara-de-Pus passou nove meses no hospital até tirarem todos os bocadinhos de tecido que tinha metidos na carne. Foi assim que me vinguei dele.

Depois, fiquei tão mal que não pude continuar a trabalhar. Pagara a renda adiantada e tinha algum dinheiro de lado. Passei as duas semanas que se seguiram a mancar entre o quarto e o posto médico. Quando as bolhas desapareceram, comecei à procura de outro emprego. Mas dessa vez já não me sentia tão forte e tinha dificuldade em aguentar Londres. Era a custo que me levantava de manhã. Sabia-me melhor ficar no quente e sentia-me mais seguro na cama. Deprimia-me pensar em ter de enfrentar milhares de pessoas, a confusão do trânsito, as bichas e coisas do género. Dei comigo a recordar os velhos tempos passados com a minha mãe e comecei a sentir saudades dessa época, da antiga vida de algodão-em-rama, só sopas e descanso, em que não precisava de fazer nenhum. Sei que isto lhe vai parecer estúpido, mas comecei a pensar que talvez a minha mãe se tivesse fartado daquele homem com quem casara e que, se eu voltasse, talvez pude'ssemos recomeçar a viver como dantes. Bem, andei dias e dias a remoer essa ideia, que acabou por se tornar uma obsessão. Não pensava em mais nada. Convenci-me de que ela estava à minha espera e de que talvez tivesse posto a polícia à minha procura. Tinha de voltar para casa; e então ela ia abraçar-me, dar-me de comer com uma colher e poderíamos fazer outro teatro de papelão. Uma noite, estava a pensar nisso e decidi ir ter com ela. Do que estava à espera? Saí de casa e corri rua fora, quase a cantar de alegria. Apanhei o comboio para Staines e fui a correr da estação até nossa casa. Os problemas iam acabar. Abrandei o passo ao virar da esquina. As luzes do rés-do-chão estavam todas acesas. Toquei à campainha. As minhas pernas tremiam tanto que tive de me encostar à parede A pessoa que abriu não era a minha mãe. Era uma rapariga, uma rapariga bonita, dos seus dezoito anos. Não consegui pensar em nada para lhe dizer. Enquanto tentava lembrar-me de qualquer coisa, ficámos num silêncio estúpido. Depois, perguntou-me quem eu era. Disse-lhe que morara naquela casa e que andava à procura da minha mãe. Ela respondeu que vivia ali há dois anos com os pais. Enquanto foi lá dentro saber se tinham deixado alguma morada, aproveitei para espreitar a entrada. Estava tudo mudado. Havia grandes estantes, papel de parede novo e um telefone que não existia antes. Fiquei mesmo triste com aquelas modificações, senti-me desiludido. A rapariga voltou para dizer que não tinham deixado nada. Despedi-me e regressei pelo mesmo caminho, sentindo-me só e abandonado. No fundo, aquela casa era minha, e tudo o que desejava era que a rapariga me convidasse para entrar naquele lar acolhedor. Se ao menos me pusesse os braços à volta do pescoço e dissesse " Vem vi ver connosco!"Talvez isto lhe pareça estúpido, mas era nisso que pensava pelo caminho de volta à estação. Então lá tive de recomeçar à procura de trabalho. Acho que foi tudo por causa daquele forno. Quero d.zer foi o forno que me levou a pensar que podia voltar para Staines como se nada se tivesse passado. Aquele forno não me saia do pensamento. Sonhava acordado que me obrigavam a ficar fechado dentro de um fogão. Isto deve parecer-lhe incrível, sobretudo depois do que fiz ao Cara-de-Pus. Mas era o que sentia e nada podia fazer contra isso. Quanto mais pensava no caso, mais me dava conta de que, quando fui limpar o forno pela segunda vez, desejava secretamente que me fechassem lá dentro. Era como se, sem o saber, estivesse à espera que isso acontecesse, está a perceber? Queria sentir-me frustrado. Ansiava ficar num sítio donde não conseguisse sair. Tinha essa ideia no fundo da cabeça. Quando o Cara-de-Pus me fechou, fiquei demasiado preocupado em sair e demasiado furioso Com ele para gozar a situação. Mas, no fundo, era uma coisa que me estava na cabeça, pronto.

Não tive a sorte de arranjar trabalho e, como o dinheiro estava a acabar, comecei a roubar em lojas. Talvez considere isso uma idiotice, mas era facílimo. E era a única solução, pois tinha de comer. Tirava só umas coisinhas de cada loja, em geral de supermercados. Usava um sobretudo comprido com grandes bolsos. Roubava coisas do género de carne congelada e enlatados. Também tinha de pagar a renda, portanto comecei a roubar objectos mais valiosos e a vendê-los em lojas de segunda mão. Isso funcionou lindamente durante Um mês. Tinha tudo o que queria e, se queria alguma coisa diferente, bastava-me metê-la no bolso. Mas depois devo ter começado a perder o cuidado, porque um detective de um armazém topou-me a roubar um relógio de um balcão. Em vez de me impedir, deixou-me roubá-lo e seguiu-me até à rua. Estava eu na paragem do autocarro quando me pegou pelo braç-o e me disse para o acompanhar até à loja. Chamaram a polícia e tive de ir a tribunal. Afinal, andavam já há tempo a vigiar-me e, por isso, fui acusado de umas quantas coisas. Como n'unca fizera nada de mal, deixaram-me ficar em liberdade vigiada e tinha de me apresentar na esquadra duas vezes por semana. Foi uma sorte. Podia ter apanhado seis meses. Pelo menos, foi isso que disse o sargento da polícia.

A lib"erdade vigiada não me pagava a comida nem a renda. O funcionário que me recebia não era mau tipo, acho eu, fazia o que podia. Mas tinha tanta gente nos livros que entre segunda e quinta se esquecia do meu nome. Em todos os empregos que tentou arranjar-me queriam alguém que soubesse ler e escrever, e para os outros tipos de trabalho era preciso ter força para levantar pesos. Mas, no fundo, eu não queria arranjar outro emprego. Não queria conhecer mais pessoas, nem que me tornassem a chamar Espantalho. Nesse caso, que poderia fazer? Comecei novamente a roubar. Desta vez com mais cuidado, e nunca duas vezes no mesmo sítio. Mas veja lá que fui apanhado quase imediatamente, ao fim de uma semana. Tirei uma faca trabalhada de uns grandes armazéns e tinha transportado tantas coisas nos bolsos do casaco que estavam muito gastos. No momento exacto em que ia a sair a porta, a faca furou o tecido e caiu ao chão. Antes de ter tempo para me virar já havia três tipos em cima de mim. Voltei a tribunal e dessa vez apanhei três meses.

A prisão é um sítio divertido. Não é que nos faça rir, mas pensava que só lá ia encontrar gangsters violentos e homens duros. No entanto, havia poucos desse género. Os outros só regulavam mal da cabeça, como os do hospício onde tinha estado. Aquilo não era mau de todo, nem por sombras tão mau como eu imaginara. A minha cela não era muito diferente do quarto em Muswell Hill. Para dizer a verdade, a vista era muito melhor, porque ficava num andar mais alto. Tinha uma cama, uma mesa, uma estante pequena e um lavatório. Podia-se recortar gravuras de revistas e colá-las na parede, o que era proibido em Muswell Hill. E só me obrigavam a estar fechado umas quantas horas por dia. Podíamos circular e visitar outras celas, embora só as que ficavam no mesmo andar que a nossa. Havia um portão de ferro que nos impedia de subir ou de descer as escadas fora de horas.

Naquela prisão havia uns tipos estranhos. Havia um gajo que à hora das refeições subia para a cadeira e se punha em exposição. A primeira vez que isso aconteceu fiquei um bocado chocado, mas, como toda a gente continuou a conversar e a comer, fiz o mesmo. Daí a algum tempo já não me incomodava nada, embora fosse habitual. É espantoso aquilo a que nos podemos acostumar com o tempo. Havia também o Jacko. Na segunda manhã entrou na minha cela e apresentou-se. Disse que tinha ido dentro por fraude e contou-me que o pai era treinador de cavalos e que estavam a atravessar um período de azar. E foi-me dizendo mais uma carrada de coisas de que me esqueci. Depois foi-se embora. Na vez seguinte entrou e voltou a apresentar-se, como se nunca me tivesse visto na vida. Nessa altura disse que estava preso por violação múltipla e que nunca fora capaz de satisfazer o seu apetite sexual. Pensei que estava a gozar comigo, pois ainda acreditava na primeira história. No entanto, falava com o ar mais sério do mundo. Cada vez que aparecia vinha com uma história diferente. Nunca se recordava da nossa última conversa nem do que contara a seu respeito. Julgo que não sabia quem era e que não tinha noção da sua identidade. Um dos outros disse-me que Jacko apanhara uma pancada na cabeça durante um assalto à mão armada. Não sei se era verdade ou não. Nunca se sabe em que se há-de acreditar.

Não interprete mal as minhas palavras. Não eram todos assim. Havia alguns tipos porreiros e um deles era o Mouco. Ninguém sabia qual era o seu nome verdadeiro, e o Mouco também não lhes podia dizer, pois era surdo-mudo. Acho que tinha passado quase a vida inteira na prisão. Tinha a cela mais confortável de todas e era o único que tinha autorização para fazer chá. Muitas vezes ia até ao quarto dele. É claro que não conversávamos. Limitávamo-nos a ficar sentados, por vezes trocávamos um sorriso, e mais nada. E nunca bebi um chá tão bom como o que ele fazia. De vez em quando, à tarde, dormia uma sesta no seu cadeirão, enquanto ele lia uma banda desenhada de guerra que tirava de uma pilha a um canto. Quando andava preocupado com qualquer coisa, costumava falar-lhe do assunto. Não entendia uma palavra, mas anuía com a cabeça e sorria ou fazia um ar triste, conforme a expressão que julgava ver no meu rosto. Creio que gostava de sentir que estava a participar em qualquer coisa. A maior parte dos outros presos não lhe ligava nenhuma. Mas os guardas gostavam dele e levavam-lhe tudo o que queria. Às vezes tínhamos bolo de chocolate para comer com o chá. Sabia ler e escrever, por isso a situação dele não era muito pior que a minha.

Esses três meses foram os melhores depois de ter saído de casa.tornei a minha cela o mais confortável possível e caí numa rotina rígida. Não falava com muita gente para além do Mouco. Nem tinha vontade de o fazer, pois queria uma vida sem complicações. Talvez o que eu disse o leve a pensar que estar fechado num forno é o mesmo que estar fechado numa cela. Não, aquilo não era a dor-prazer de me sentir frustrado. Era o prazer mais profundo de me sentir em segurança. Na realidade, recordo-me de por vezes desejar ter menos liberdade. Gostava da parte do dia em que tínhamos de ficar nas celas. Julgo que, se nos obrigassem a passar lá o dia inteiro, não me teria queixado, à parte o facto de não poder ver o Mouco. Nunca tinha de fazer planos para nada. Cada dia era igual ao anterior. Não tinha de me preocupar com a comida nem com a renda da casa. Era como se o tempo estivesse parado, como se eu flutuasse num lago. Comecei a preocupar-me com a ideia de ter de sair dali. Fui falar com o subdirector e perguntei-lhe se podia ficar. Mas ele respondeu-me

que cada preso custava dezasseis libras por semana, que avia uma quantidade de outros à espera de vaga para entrarem e que o espaço não era suficiente para todos. Foi assim que tive de me ir embora. Arranjaram-me trabalho numa fábrica. Mudei-me para este sótão, onde vivo desde então. Na fábrica tinha de tirar latas de framboesas da correia transportadora. Não me importava, dado o barulho ser tanto que não tinha de falar com ninguém. Agora sinto-me esquisito. Não em relação a mim mesmo, pois sabia que o resultado ia ser este. Desde a história do forno apetece-me estar fechado. Tudo o que quero é ser pequeno. Não gosto do barulho, nem das pessoas à minha volta. Quero estar longe disso tudo, no escuro. Está a ver ali aquele roupeiro que ocupa o quarto quase todo? Se olhar lá para dentro, há-de ver que não tem roupa pendurada. Está cheio de almofadas e de cobertores. Meto-me lá, fecho a porta à chave e fico horas sentado na escuridão. Deve achar que é uma estupidez, mas sinto-me muito bem. Ali sentado, não me aborreço, nem nada. Às vezes apetecia-me que o roupeiro se erguesse e andasse por aí, sem se lembrar de que estou lá dentro. A princípio era raro fazer isso, mas depois foi-se tornando cada vez mais frequente, até que comecei a passar lá noites inteiras. Como de manhã também não me apetecia sair, chegava tarde ao trabalho, até que, pura e simplesmente, deixei de ir trabalhar. Já lá vão três meses. Detesto estar cá fora e prefiro o meu roupeiro.

Não quero ser livre. É por isso que tenho inveja dos bebés que vejo na rua, todos embrulhados ao colo das mães. Queria ser assim. Por que não hei-de estar no lugar deles? Por que hei-de ter de andar de um lado para o outro, de ir trabalhar, de cozinhar e de fazer as centenas de coisas que se têm de fazer todos os dias para sobreviver? O que eu queria era andar num carrinho de bebé. É estúpido, tenho um metro e oitenta. Mas isso não tem qualquer influência na maneira como me sinto. No outro dia, roubei uma manta de um carrinho. Não sei porquê, mas acho que por ter necessidade de entrar em contacto com o mundo deles, para não ficar completamente à parte. Sinto-me excluído. Não preciso de ter relações sexuais, nem de nenhuma dessas coisas. Se vejo uma rapariga bonita como aquela de que lhe falei, fico feito num nó por dentro, volto para aqui e masturbo-me, como lhe contei. Não deve haver muitas pessoas como eu. Arrumei o cobertor que roubei no roupeiro e quero enchê-lo com dúzias de outros iguais.

Agora é raro sair. Já há duas semanas que não ponho os pés fora deste sótão. Da última vez comprei umas latas de comida, embora nunca tenha muita fome. Estou quase sempre sentado no roupeiro, a pensar nos bons tempos de Staines e a suspirar por esse período da minha vida. Penso na rapariga que agora vive na nossa casa e fico a ouvir o vento e o ruído do trânsito. Queria ter outra vez um ano. Mas sei que isso nunca mais vai voltar a acontecer.

 

                                     Primeiro amor, últimos ritos

Desde o princípio do Verão até começar a parecer absurdo, púnhamos o colchão fino em cima da mesa de carvalho pesada e fazíamos amor em frente da grande janela aberta. Havia sempre uma brisa ligeira a soprar no quarto e os odores das docas quatro andares mais abaixo. Era assaltado por fantasias contra minha vontade, fantasias acerca do pequeno ser, e depois, quando ficávamos deitados de costas na mesa enorme, nos silêncios profundos, ouvia-o correr e arranhar de uma forma quase imperceptível. Tudo aquilo era novidade para mim, sentia-me inquieto e tentava conversar com a Sissel para me tranquilizar. Mas ela não tinha nada a dizer, nunca fazia abstracções nem discutia situações, pois vivia dentro delas. Ficávamos a contemplar o rodopio das gaivotas no nosso quadrado de céu e perguntávamo-nos se elas também nos estariam a ver; era desse género de coisas que falávamos, hipóteses ligeiramente divertidas sobre o momento presente. A Sissel fazia as coisas que lhe iam ocorrendo, mexia o café, fazia amor, ouvia discos, olhava pela janela. Não dizia coisas como sinto-me feliz, estou baralhada, quero fazer amor, ou não quero, estou cansada dos conflitos da minha família, não tinha linguagem que a dividisse; por isso, enquanto fornicávamos, suportava sozinho o que me pareciam crimes na minha cabeça, e depois ficava sozinho a ouvi-lo raspar no silêncio. Foi então que uma tarde, ao acordar da sesta, a Sissel ergueu a cabeça do colchão e perguntou "Que é que está a arranhar atrás da parede?".

Os meus amigos estavam muito longe, em Londres, e enviavam-me cartas angustiadas e cheias de reflexões profundas. O que haviam de fazer? Quem eram e qual o sentido de tudo? Tinham a minha idade, dezassete, dezoito anos, mas eu fingia não os compreender. Respondia-lhes com postais, arranjem uma mesa grande e uma janela aberta, aconselhava-os. Sentia-me feliz e tudo parecia fácil, andava a fazer armadilhas para apanhar enguias, era tão fácil ter um objectivo. O Verão foi avançando e deixei de ter notícias. Só o Adrian passara a visitar-nos. Tinha dez anos, era irmão da Sissel e aparecia para escapar à tristeza de um lar a esboroar-se, às bruscas mudanças de humor da mãe, à interminável competição das irmãs ao piano, às visitas esporádicas e amargas do pai. Os pais do Adrian e da Sissel, após vinte e sete anos de casamento e seis filhos, odiavam-se com uma resignação rancorosa e já não suportavam viver juntos. O pai mudara-se para uma pensão a uns quarteirões de casa, para ficar perto dos filhos. Era um homem de negócios que ficara sem trabalho, parecia-se com o Gregory Peck, era optimista e sabia uma centena de esquemas para ganhar dinheiro de uma maneira interessante. Costumava encontrá-lo no pub. Nunca se referia ao facto de estar desempregado nem ao casamento e não se importava que eu vivesse com a filha num quarto que dava para as docas. Em contrapartida, falava-me do tempo que passara na guerra da Coreia, da época em que era caixeiro-viajante internacional, das vigarices legais dos amigos, agora transformados em cavalheiros respeitáveis, e, certo dia, das enguias do rio Ouse, de como o leito do rio estava pejado delas, e do dinheiro que se podia ganhar a apanhá-las e a levá-las vivas para Londres. Disse-lhe que tinha oitenta libras no banco e na manhã seguinte fomos comprar rede, fio de pesca, aros de arame e um velho reservatório de cisterna para meter as enguias. Passei os dois meses que se seguiram a construir armadilhas.

Quando fazia bom tempo, saía de casa com a rede, os aros e o fio de pesca e ia trabalhar para a doca, sentado num pegão. Uma armadilha para enguias é um cilindro fechado numa das extremidades e com uma entrada em forma de funil na outra. Põe-se no fundo do rio, as enguias entram para comer o isco e, desorientadas, não dão com a saída. Os pescadores eram simpáticos e divertiam-se com as nossas tentativas. Há enguias acolá, diziam eles, e vocês vão apanhar algumas, mas não vão ganhar dinheiro nenhum com isso. A maré vai levar-vos as redes mais depressa do que vocês as fazem. Nós usamos pesos de ferro, respondi eu, e eles encolhiam os ombros com ar divertido e mostravam-me uma maneira melhor de prender a rede aos aros, achando que eu tinha o direito de levar a cabo as experiências que quisesse. Quando os pescadores saíam nos barcos e não me apetecia trabalhar, sentava-me a ver a água da maré deslizar pelo lodo, sem sentir pressa de acabar as armadilhas, mas sem a menor dúvida de que havíamos de ficar ricos.

Tentei despertar o interesse da Sissel pelos nossos projectos e falei-lhe do barco a remos que alguém nos ia emprestar durante o Verão, mas ela não deu resposta. Por isso, limitámo-nos a pôr o colchão em cima da mesa e a deitarmo-nos vestidos. Depois começou a falar. Unimos as palmas das mãos, ela procedeu a um exame minucioso do seu tamanho e forma e emitiu um comentário a esse respeito. Exactamente do mesmo tamanho, os teus dedos são mais grossos, tens este bocadinho a mais aqui. Com a ponta do polegar mediu as minhas sobrancelhas e disse que gostaria que as dela fossem tão compridas e que em pequena tinha tido um cão com umas pestanas brancas muito compridas. Olhou para o meu nariz queimado pelo sol e continou a falar, dos irmãos e irmãs que ficavam vermelhos com o sol, dos que ficavam morenos e do que a irmã mais nova dissera uma vez. Despimo-nos lentamente. Com um pontapé atirou os ténis para longe e referiu-se ao facto de ter pé-de-atleta. Eu escutava de olhos fechados, sentindo o cheiro a lodo, a algas e a poeira que entrava pela janela aberta. Crescer em sabedoria, chamava a Sissel a esse tipo de conversa. Depois, uma vez dentro dela, caía em plena fantasia e as minhas sensações fervilhantes fundiam-se com a certeza de que podíamos dar vida a um ser no seu ventre. Não sentia desejo de ser pai, não era isso que estava em causa. Eram ovos, sémen, cromossomas, penas, guelras, garras, a poucos centímetros da ponta da minha picha, a química irrefreável de um ser a despontar de um lodo vermelho-escuro; na minha fantasia, via-me insignificante perante a antiguidade e a força de tal processo, e essa ideia bastava para me vir antes de tempo. Quando falei do assunto à Sissel, ela riu-se. Meu Deus!, foi a sua única resposta. Para mim, a Sissel estava em pleno centro desse processo, era o próprio processo, e o fascínio que este exercia sobre mim aumentava. Ela devia tomar regularmente a pílula, e todos os meses se esquecia pelo menos duas ou três vezes. Sem grandes conversas, combinámos que eu me viria fora dela, mas isso raramente funcionava. Quando rolávamos pelas longas vertentes que nos conduziam ao orgasmo, nos últimos segundos desesperados tentava escapar-me de dentro dela, mas, como uma enguia, era apanhado nas malhas da fantasia de que, na escuridão, um ser esfomeado esperava que o saciasse com uma papa branca e gelatinosa. Nessas fracções de segundo de esquecimento, abdicava de mim mesmo para alimentar sabe-se lá que ser, dentro ou fora dela, para foder a Sissel, para alimentar mais seres, entregando-me de corpo e alma a tudo isto num abandono momentâneo. Estava atento aos períodos da Sissel, tudo acerca das mulheres era novidade para mim e nada me parecia natural. Fazíamos amor durante as suas menstruações abundantes e fáceis, sentíamo-nos bem, castanhos e viscosos com o sangue, e eu ficava a pensar que agora éramos nós os seres no lodo, alimentados por farrapos de nuvens que entravam pela janela, por gases que o sol fazia subir das poças de lama. Inquietava-me com as minhas fantasias, sabendo que não me conseguia ver sem elas. Perguntei à Sissel o que pensava daquilo e ela riu. Nem penas, nem barbatanas, pelo menos. Mas então que é que achas? Sei lá, não sei mesmo. Insistia nas perguntas e ela refugiava-se no silêncio.

Sabia que o ser que ouvia a raspar fora criado por mim e, quando, uma tarde, a Sissel, inquieta, se pôs à escuta, dei-me conta de que as suas fantasias se haviam confundido com as minhas e que o som era provocado por fazermos amor. Ouvíamo-lo a seguir, quando, alegres e robustos, ficávamos deitados de costas muito quietos, vazios e calmos, numa imobilidade total. Tínhamos a sensação de que eram pequenas garras a arranharem às cegas uma parede, um som tão distante que eram necessárias duas pessoas para o ouvir. Pensámos que vinha de um dado ponto da parede. Quandonos ajoelhámos e encostei o ouvido ao rodapé, parou e apercebi-me de que estava do outro lado da parede, estático, à espera no escuro. À medida que as sendas iam passando ouvíamo-lo noutras alturas do dia e, de vez em quando, a noite. Tinha vontade de perguntar ao Adrian o que pensava que seria. Escuta, Adrian, lá está, cala-te um bocadinho. O que achas que é esse barulho, Adrian? Impaciente, ele esforçava-se por ouvir o que nós ouvíamos, mas não conseguia ficar quieto o tempo suficiente. Não é nada, gritava.

Nada, nada, nada! Ficava muito agitado, saltava para as costas da irmã, aos berros e a cantar àtirolesa. Não queria que ficássemos à escuta, não lhe agradava sentir-se excluído.

Puxava-o de cima da Sissel e rebolávamos na cama. Escuta outra vez, dizia eu imobilizando-o. Láestá ele outra vez.

Debatia-se até conseguir libertar-se e corria para fora do quarto a imitar uma sirene de carro da policia. Ficávamos a ouvir o som da sua voz desvanecer-se escada abaixo.

quando deixava de o ouvir, dizia talvez o Adrian tenha medo de ratos. De ratazanas, queres tu dizer retorquia a irmã, pondo as mãos entre as minhas pernas ...

Em meados de Julho já não nos sentíamos tão felizes no quarto, a desordem e o mal-estar iam aumentando, era impossível falar disso com a Sissel. O Adrian ia visitar-nos todos os dias porque eram as férias grandes e não suportava estar em casa. Ouvíamo-lo quatro andares mais abaixo, a subir a escada aos gritos e a bater com os pés. Entrava a fazer muito barulho, aos pinos e tentando chamar a nossa atenção. Muitas vezes saltava para as costas da Sissel a fim de me impressionar, mostrava-se ansioso e com receio de que a sua companhia não nos agradasse e de que o mandássemos para casa. Também se preocupava por ter deixado de compreender a irmã. Dantes ela estava sempre pronta para uma briga e eu ouvira-o contar cheio de orgulho aos amigos que ela era boa a lutar. Agora estava mudada, afastava-o com ar enfadado, queria que a deixasse em paz para não fazer nada, queria ouvir discos. Zangava-se quando ele lhe punha os pés em cima da saia e tinha seios como a mãe, falava-lhe como a mãe. Sai daí, Adrian. Por favor, Adrian, agora não, mais logo. Nem podia acreditar no que ouvia, devia ser um estado de espírito passageiro, uma fase que ela andava a atravessar, e continuava a provocá-la e a atacá-la, cheio de esperança, desejando ardentemente que as coisas voltassem a ser como antes de o pai sair de casa. Quando lhe punha os braços à roda do pescoço e a empurrava para cima da cama, olhava-me como que a pedir apoio, pensando que a ligação forte era entre mim e ele, entre os dois homens contra a rapariga. Desejava tanto esse apoio que nem se dava conta de que não existia. A Sissel nunca o mandava embora, compreendia por que motivo estava ali, mas aquilo era duro para ela. Numa longa tarde de tortura saiu do quarto quase a chorar de desespero. O Adrian virou-se para mim, de sobrolhos erguidos, a fingir-se aterrorizado. Tentei conversar com ele, mas já estava a cantar à tirolesa e em posição de ataque para lutar comigo. A Sissel também não tinha nada para me dizer acerca do irmão, nunca fazia comentários sobre as pessoas, porque nunca fazia comentários sobre nada. Por vezes, quando o ouvíamos a subir as escadas, olhava-me de relance, e só um ligeiro trejeito de amuo nos seus belos lábios a traía.

Só havia uma maneira de convencer o Adrian a deixar-nos em paz. Não suportava ver-nos tocar um no outro, isso fazia-o sofrer e causava-lhe uma viva repulsa. Quando via um de nós atravessar o quarto ao encontro do outro, fazia uma espécie de súplica muda, corria a meter-se entre nós, com uma alegria simulada, esforçando-se por nos atrair para qualquer brincadeira. Imitava-nos freneticamente, na tentativa desesperada de nos mostrar como parecíamos estúpidos. Depois, sem aguentar mais, saía do quarto de rompante e corria escada abaixo a metralhar soldados alemães e jovens amantes.

Mas nessa altura já a Sissel e eu nos acariciávamos cada vez menos, impedidos pela calma em que vivíamos. Não é que tivéssemos perdido o vigor, nem que tivéssemos menos prazer juntos, mas as oportunidades haviam-se desvanecido. E era também o quarto. Deixara de ser isolado lá no alto, a brisa já não entrava pela janela, o calor pegajoso que subia das docas trazia até nós o cheiro a alforrecas mortas, e nuvens de moscas, moscas cinzentas e ávidas, que nos mordiam ferozmente as axilas, enxames de moscas pequenas a pairar sobre a comida. Tínhamos o cabelo demasiado comprido e pegajoso a tapar-nos os olhos. Os alimentos que comprávamos derretiam e ficavam a saber a rio. Deixáramos de pôr o colchão em cima da mesa e o sítio mais fresco passara a ser o chão, agora coberto de areia oleosa que nada fazia desaparecer. A Sissel fartara-se dos discos e a micose de que sofria alastrava a ambos os pés, aumentando o mau cheiro. O quarto tresandava. Não falávamos em mudar de casa, pois não falávamos em nada. Todas as noites éramos acordados pelas arranhadelas atrás da parede, agora mais fortes e mais insistentes. Quando fazíamos amor, o que se tornara menos frequente, ele punha-se à escuta. O lixo amontoava-se à nossa volta, garrafas de leite que não éramos capazes de deitar fora, queijo cinzento e malcheiroso, papéis de manteiga, embalagens de iogurte, salame ressequido. E, no meio de tudo isso, o Adrian a fazer a roda, a cantar à tirolesa, a imitar uma metralhadora e a atacar a Sissel. Tentava escrever poemas sobre as minhas fantasias, sobre o ser, mas não conseguia pôr nada no papel, nem sequer a primeira linha. Em contrapartida, dava grandes passeios ao longo do canal do rio, até à monotonia dos campos de beterrabas, dos postes telegráficos e do céu de um cinzento uniforme do interior do Norfolk. Tinha de fazer mais duas redes para enguias e todos os dias me esforçava por me sentar a trabalhar. Mas, no mais fundo de mim mesmo, estava farto daquilo, não acreditava que as enguias se metessem ali e perguntava-me se desejava que tal acontecesse, se não seria melhor continuarem a viver tranquilamente na frescura do lodo do fundo do rio. Mas prosseguia, porque o pai da Sissel estava pronto para começar, porque tinha de compensar todo o dinheiro e todas as horas que gastara, porque a ideia acabara por adquirir um impulso débil, frágil, que me sentia tão incapaz de deter como de tirar as garrafas de leite do quarto.

Foi então que a Sissel arranjou um emprego, o que me fez perceber que não éramos diferentes das outras pessoas, que também tinham quartos, casas, empregos, carreiras, que faziam todas o mesmo, que tinham casas mais limpas, empregos melhores, e que não passávamos de um obscuro casal a lutar pela vida. Era numa das fábricas sem vidros do outro lado do rio, onde enlatavam legumes e fruta. Durante dez horas por dia tinha de ficar sentada junto a uma correia transportadora, no meio do barulho infernal das máquinas, sem falar com ninguém, a retirar as cenouras podres antes que fossem metidas em latas. No final do primeiro dia, a Sissel chegou a casa com um impermeável de nylon cor-de-rosa e branco e uma boina cor-de-rosa. Por que não tiras isso?, perguntei. Encolheu os ombros. Tanto lhe fazia, estar sentada em casa, estar sentada na fábrica, onde se ouvia um programa de rádio transmitido por altifalantes suspensos das vigas de aço, que quatrocentas mulheres entreouviam meio a sonhar, com as mãos numa dobadoira, para a frente e para trás. No segundo dia apanhei o ferry para a outra margem e fiquei à espera dela junto aos portões da fábrica. Umas quantas mulheres saíram pela pequena porta de chapa ondulada, metida numa grande parede sem janelas, e ouviu-se um lamento de sirene que ressoou por todo o edifício. Abriram-se outras portas e uma multidão precipitou-se para os portões, dezenas e dezenas de mulheres de impermeáveis cor-de-rosa e brancos e boinas cor-de-rosa. Subi para um muro baixo e tentei avistar a Sissel, o que de repente se tornara imperioso. Pensei que, se não a conseguisse tirar daquela enxurrada de nylon cor-de-rosa, estaria perdida, estaríamos ambos perdidos, e que a nossa vida ficaria sem significado. Quando me aproximei dos portões, o grupo maior avançava rapidamente. Algumas iam quase a correr, vergadas e cabisbaixas, como as mulheres são ensinadas a correr, e as outras caminhavam num passo tão rápido quanto possível. As do turno seguinte que chegavam atrasadas tentavam abrir caminho em sentido contrário. Não vi a Sissel e senti-me à beira do pânico, chamei-a aos gritos, mas o som da minha voz foi abafado pelo tropel de centenas de pés. Duas mulheres idosas que tinham parado ao pé do muro a acender cigarros fitaram-me com um sorriso de desprezo. Chiça pra ti(1). Voltei a casa pelo caminho mais longo, atravessando a ponte, e resolvi não dizer à Sissel que a tinha ido esperar, pois teria de lhe explicar o pânico que sentira e não sabia como. Quando entrei, dei com ela sentada na cama, ainda com o impermeável de nylon. A boina estava no chão. Por que não despes isso? Eras tu que estavas à porta da fábrica?, foi a resposta. Fiz que sim com a cabeça. Se me viste, por que não foste ter comigo? Ela virou-se e ficou deitada com o rosto enterrado na cama. Tinha o casaco cheio de nódoas e a cheirar a óleo de máquinas e a terra. Não sei, respondeu sem levantar a cara da almofada, não pensei. Não consigo pensar em nada depois do turno. Havia qualquer coisa de tão definitivo nas suas palavras que percorri o quarto com os olhos e não disse mais nada.

Decorridos dois dias, no sábado à tarde, comprei dois quilos de pulmões de vaca empapados em sangue e com a consistência de borracha (bofe, como lhe chamam), para servir de isco. Nessa mesma tarde enchemos as armadilhas, metemo-nos no barco a remos e seguimos até meio do canal, na maré baixa, para as depositar no fundo do rio. Cada uma das sete armadilhas estava atada a uma bóia. Às quatro da manhã de domingo, o pai da Sissel passou a buscar-me e fomos na carrinha dele até ao sítio onde havíamos deixado o barco emprestado. Agora remávamos para encontrar as bóias e puxar as armadilhas, íamos tirar a prova dos noves, ver se havia enguias nas redes, se valia a pena fazermos mais, apanhar mais enguias, levá-las uma vez por semana ao mercado de Billingsgate e enriquecer com aquilo. Estava um dia ventoso e nublado, sentia-me calmo, embora fatigado e

 

(1) Jogo de palavras com o nome próprio Sissle e sicile. exclamação de dor ou de cólera. (N. do T.)

 

com uma erecção contínua. Dormitei no calor do aquecimento da carrinha. Passara muitas horas da noite acordado, a ouvir arranhar por trás da parede. Chegara mesmo a levantar-me e a bater no rodapé com uma colher. Fez-se silêncio, mas depois o ruído recomeçou. Agora parecia certo de que ele estava a escavar a parede para entrar no quarto. Enquanto o pai de Sissel remava, eu olhava para a água à procura das bóias. Encontrá-las não era tão fácil como imaginara, não eram formas brancas a destacar-se na água, mas sombras escuras e semi-submersas. Levámos vinte minutos a encontrar a primeira. Quando a puxámos, fiquei surpreendido com a rapidez com que a corda branca e limpa que comprara no droguista se tornara igual a todas as outras cordas da beira-rio, castanha e cheia de filamentos de algas verdes. Também a rede parecia ter envelhecido, e mal podia acreditar que tivesse sido um de nós a fazê-la. Lá dentro, havia dois caranguejos e uma enguia grande. Abri o lado fechado da armadilha, deixei os dois caranguejos cair à água e meti a enguia no balde de plástico que tínhamos levado. Enfiámos bocados de bofe na rede e deixámo-la cair à água de lado. Demorámos mais quinze minutos a encontrar a armadilha seguinte, que estava vazia. Remámos canal acima, canal abaixo, durante meia hora, sem encontrarmos nada e, nessa altura, já a maré estava a subir e a cobrir as bóias. Então peguei nos remos e seguimos para a margem.

Fomos até à pensão onde o pai da Sissel estava hospedado e preparámos o pequeno-almoço. Não nos apetecia falar das últimas armadilhas e fingíamos perante nós mesmos e um perante o outro que as conseguiríamos encontrar na vazante seguinte. Mas sabíamos que se tinham perdido, arrastadas para montante ou para jusante pelas correntes fortes, e dei-me conta de que nunca mais na vida conseguiria fazer outra armadilha. Também sabia que o meu sócio ia passar uns dias fora com o Adrian e que partiam nessa tarde. Iam visitar bases aéreas e tencionavam fechar as férias com uma ida ao Imperial War Museum. Comemos ovos, presunto e cogumelos e bebemos café. O pai da Sissel falou-me de uma ideia que tivera, uma ideia simples, mas que daria dinheiro.

Os camarões ali nas docas eram muito baratos e em Bruxelas muito caros. Podíamos ir até lá duas vezes por semana com a carrinha carregada, dizia ele cheio de optimismo, com o seu ar descontraído e simpático, e, por instantes, tive a certeza de que o esquema poderia funcionar. Bebi o resto do café. Bem, respondi, acho que temos de pensar melhor no assunto. Peguei no balde com a enguia, que a Sissel e eu podíamos comer. Ao despedirmo-nos com um aperto de mão, o meu sócio disse-me que a melhor maneira de matar uma enguia era cobri-la de sal. Desejei-lhe boas férias e separámo-nos, continuando a fingir mudamente que na maré baixa seguinte um de nós iria no barco à procura das armadilhas.

Ao fim de uma semana na fábrica, não esperava que a Sissel estivesse acordada quando cheguei a casa. Mas encontrei-a sentada na cama, pálida, a apertar os joelhos contra o corpo. Tinha o olhar fixo num canto do quarto. Está ali, disse ela. Atrás daqueles livros no chão. Sentei-me na cama e descalcei os sapatos e as peúgas molhadas. O rato? Queres dizer que ouviste o rato? É uma ratazana, disse a Sissel em voz baixa. Vi-a a correr pelo quarto e é uma ratazana. |Dirigi-me aos livros e dei-lhes um pontapé, o que a pôs imediatamente em fuga. Ouvi as unhas nas tábuas do soalho e depois vi-a correr ao longo de uma parede. Era do tamanho de um cão pequeno, pareceu-me, um animal atarracado, uma enorme ratazana cinzenta a arrastar a barriga pelo chão. Correu até ao fim da parede e meteu-se atrás de uma cómoda. Temos de a tirar dali, choramingou a Sissel numa voz que me era desconhecida. Anuí com a cabeça, mas, por instantes, não consegui esboçar um movimento nem dizer uma palavra, de tal modo era enorme. Passara o Verão inteiro connosco, a raspar a parede no silêncio profundo e límpido que se sucedia a fazermos amor, enquanto dormíamos, já nos era familiar. Sentia-me aterrorizado, mais assustado do que a Sissel, tinha a certeza de que a ratazana nos conhecia tão bem como nós a ela, que estava tão consciente da nossa presença na sala como nós da dela atrás da cómoda. A Sissel ia dizer qualquer coisa quando ouvimos barulho na escada, o bater de pés e o disparar de metralhadora que tão bem conhecíamos. Senti-me aliviado. O Adrian entrou da maneira habitual, deu um pontapé na porta e irrompeu pela casa de um salto, agachando-se de seguida, com uma arma pronta a disparar encostada à anca. Metralhou-nos com sons agrestes produzidos no fundo da garganta e levámos os dedos aos lábios, fazendo-lhe sinal para se calar. Vocês os dois estão mortos, disse ele, preparando-se para atravessar a sala a fazer rodas. A Sissel tornou a mandá-lo calar e fez-lhe sinal para se aproximar da cama. Chiu, porquê? Que é que vos deu? Apontámos para a cómoda. É uma ratazana, explicámos. Ajoelhou-se imediatamente à espreita. Uma ratazana?, sobressaltou-se. Bestial, é enorme, olhem para ela. Bestial. Que vão fazer? Vamos apanhá-la. Atravessei a sala rapidamente e tirei um atiçador da lareira. A agitação do Adrian anulava o meu temor, conseguia fingir que aquilo não passava de uma ratazana gorda na nossa sala e que caçá-la seria uma aventura. A Sissel, em cima da cama, lamuriou-se de novo. Que vão fazer com isso? Por instantes afrouxei a pressão com que empunhava o atiçador, não era apenas uma ratazana, não era uma aventura, e ambos o sabíamos. Entretanto, o Adrian dançava de um lado para o outro. Sim, isso, dá-lhe com isso. Ajudou-me a transportar os livros para o outro lado do quarto e construímos uma muralha à volta da cómoda com uma única abertura por onde a ratazana poderia escapar. A Sissel continuava a perguntar que vão fazer, que vão fazer com isso?, sem se atrever a sair de cima da cama. A muralha estava pronta e eu ia dar ao Adrian um cabide de arame para fazer o bicho sair, quando a Sissel atravessou o quarto de um salto e tentou arrancar-me o atiçador das mãos. Dá-me isso, gritou, puxando-me pelo braço. Nesse momento, a ratazana escapuliu-se pela abertura entre os livros, correu direita a nós e pareceu-me ver os seus dentes arreganhados, prontos a atacar. Fugimos cada um para seu lado, o Adrian saltou para cima da mesa, a Sissel e eu para cima da cama. Foi então que vimos o animal parar a meio da sala, depois retomar a corrida, tivemos tempo para ver como era forte, gordo e veloz, como o seu corpo fremia, como a cauda deslizava no seu rasto, semelhante a um parasita que não o largasse. Ela conhece-nos, pensei, quer dar cabo de nós. Não me sentia capaz de enfrentar a Sissel. Quando me pus de pé em cima da cama e ergui o atiçador preparando-me para atacar, ela soltou um grito. Desferi o golpe com toda a minha força, mas a ponta acertou no chão, a alguns milímetros da cabeça estreita do bicho, que, imediatamente, deu meia volta e correu a refugiar-se nos livros. Ouvimos as unhas raspar no chão enquanto se instalava atrás da cómoda, à espera.

Desdobrei o cabide de arame, estiquei-o, voltei a dobrá-lo ao meio e passei-o ao Adrian, agora mais calmo e um tudo-nada amedrontado. A irmã sentou-se na cama, de novo com os joelhos apertados contra o corpo. Postei-me a alguns "centímetros da abertura dos livros, empunhando firmemente o atiçador com ambas as mãos. Ao baixar os olhos, deparei com os meus pés nus e pálidos e vi um rato fantasma de dentes arreganhados a arrancar-me as unhas da carne. Espera, gritei, quero calçar os sapatos. Mas era tarde de mais, o Adrian já introduzira o arame por trás da cómoda e eu não me atrevia a fazer um movimento. Agachei-me um pouco mais, empunhando o atiçador, como um jogador de basebol ;( pronto a bater na bola. O Adrian trepou para cima da cómoda e atirou o arame em direcção ao canto. Gritava-me qualquer coisa, mas eu não conseguia ouvir o quê. A ratazana, enfurecida, saiu a correr, da abertura, direita aos meus pés, para se vingar. Tal como o rato fantasmagórico, tinha os dentes arreganhados. Peguei no atiçador com ambas as mãos e atingi-a em cheio na barriga, fazendo-a erguer-se do chão, voar pelo quarto e ir esmagar-se contra a parede, enquanto a Sissel tapava a boca, tentando abafar um grito prolongado. Devo ter-lhe partido a espinha, pensei de súbito. Caiu ao chão, de patas para o ar, com o corpo fendido de uma ponta à outra como um fruto maduro. A Sissel não tirava a mão da boca, o Adrian não se mexia de cima da cómoda, eu não me afastava do sítio onde desferira o golpe e nenhum de nós respirava. O quarto foi perpassado por um odor ténue, um cheiro bafiento e íntimo, como o sangue que a Sissel perdia todos os meses. Depois, o Adrian deu um traque e riu de medo contido, e o mau cheiro foi misturar-se ao da ratazana esventrada. Aproximei-me do animal e virei-o de lado com o atiçador. Do golpe profundo que lhe abrira na barriga deslizou um saco translúcido, cor de púrpura, dentro do qual se distinguiam cinco formas lívidas, com o queixo apertado entre os joelhos. Quando o saco tocou no chão, apercebi-me de um movimento, a perna de um dos fetos a estremecer como que num frémito de esperança; mas a mãe estava irremediavelmente morta e nada havia a fazer.

A Sissel ajoelhou-se junto da ratazana, o Adrian e eu postámo-nos de guarda atrás dela, como se, ali ajoelhada, com a saia comprida vermelha aberta em seu redor, tivesse qualquer direito especial. Com o polegar e o indicador abriu, o corte na barriga da mãe, voltou a colocar o saco no sítio e fechou sobre ele a pelagem ensanguentada. Permaneceu de joelhos durante algum tempo, enquanto nós continuávamos de pé atrás dela. Seguidamente, tirou alguns pratos do lava-loiça e lavou as mãos. Nesse momento, todos sentimos vontade de sair, por isso a Sissel embrulhou a ratazana em papel de jornal e levámo-la para baixo. Ela levantou a tampa da lixeira e eu meti-a lá dentro com todo o cuidado. Foi então que me lembrei de qualquer coisa e disse aos outros que esperassem por mim, enquanto corria escada acima. Fui buscar a enguia, que continuava imóvel nos seus escassos centímetros de água. Por instantes pensei que também estivesse morta, mas vi que mexia quando peguei no balde. O vento amainara e o Sol começara a romper por entre as nuvens. Encaminhámo-nos para as docas numa alternância de luz e sombra. A maré subia a toda a velocidade. Descemos os degraus de pedra que conduziam à beira-rio e atirei a enguia à água. Ficámos a vê-la serpentear até a perdermos de vista, uma forma branca e cintilante na água castanha. O Adrian despediu-se e pensei que ia abraçar a irmã. Hesitou um instante e depois desatou a correr, gritando qualquer coisa por cima do ombro. Também nós gritámos, desejando-lhe boas férias. No caminho de regresso, a Sissel e eu parámos a olhar as fábricas na outra margem e ela disse-me que ia deixar de trabalhar ali.

Pusemos o colchão em cima da mesa e deitámo-nos em frente da janela aberta, virado" frente a frente, como costumávamos fazer no princípio do Verão. Até nós chegava uma ligeira brisa, um odor distante a queimadas de Outono, e senti-me calmo e desanuviado. Esta tarde vamos limpar o quarto e dar um grande passeio, um passeio à beira do canal, disse a Sissel. Sim, respondi, assentando a palma da mão no calor do seu ventre.

 

                                           Máscaras

Mina, aquela Mina. Agora terna e ofegante, de óculos escuros também, recorda a última vez que apareceu no palco. A azeda Goneril, no Old Vic, não era para brincadeiras, embora já nessa altura alguns amigos dissessem que Mina começava a ter deslizes. Ajudada pelo ponto, afirmam, no primeiro acto, a gritar com o assistente do contra-regra, muito embaraçado, no intervalo e a arranhá-lo com a unha comprida e escarlate, por baixo do olho e para a direita, um corte na maçã do rosto. O Rei Lear tentou separá-los, condecorado uma semana antes, uma celebridade nacional entre não frequentadores de teatro, e o encenador meteu-se de permeio, esbofeteando Mina com o programa. "Tu, rei dos lambe-botas", para um, "Tu, chulo de bastidores", para o outro, toda assanhada, e só representou mais uma noite. E isso para arranjarem quem a substituísse. A última noite de Mina no palco, uma grande dama, arrebatadora, pegando nas deixas ou improvisando, um comboio num túnel de verso branco, o colo majestoso, sem postiços, erguido durante a briga, e corajosa. Quase no início, a lançar com indiferença uma rosa de plástico para a primeira fila e, durante a primeira fala de Lear, a sua mímica caprichada com o leque, de quando em quando o público nem conseguia conter o riso. A assistência, sensível e sofisticada, vibrava com ela e com o melodrama de desespero, pois conhecia Mina, e aplaudiu-a entusiasticamente na chamada ao palco, o que a fez regressar ao camarim banhada em lágrimas, comprimindo a fronte com as costas da mão.

Dois dias mais tarde, Brianie, irmã dela, mãe do Henry, morreu. Por isso. Mina, numa confusão de datas, convenceu Mina, no chá que se seguiu ao funeral, contou ela aos amigos, a deixar o teatro para se ocupar do filho da irmã, nesse tempo com dez anos, a precisar, explicou ela aos amigos, de uma mãe a sério, de uma Mãe Real. E Mina era uma mãe surreal.

Na salinha de estar da sua casa de Islington puxou o sobrinho para si, encostou-lhe o rosto borbulhento ao seio, agora almofadado e fragrante, o mesmo no dia seguinte no táxi para Oxford Street, onde lhe comprou um frasco de água-de-colónia e um fato à Lord Fautleroy, guarnecido de renda. No espaço de meses, deixou-lhe crescer o cabelo até tapar colarinho e orelhas, uma ousadia para o início dos anos sessenta, e encorajou-o a vestir-se para o jantar, tema desta história, ensinou-o a preparar-lhe a bebida que tomava ao fim da tarde, arranjou um professor de violino, outro de dança, desencantou um camiseiro para o aniversário dele, depois um fotógrafo com uma voz de timbre polidamente agudo, que tirou instantâneos desbotados, de cor sépia, de Henry e de Mina a posarem em trajes de fantasia diante da lareira, e tudo aquilo, disse Mina a Henry, tudo aquilo era uma boa preparação.

Preparação para quê? Henry não fez esta pergunta nem a ela, nem a si mesmo, não era um sensitivo dado à introspecção, mas daqueles que aceitam uma nova vida, e com esse narcisismo sem opiniões marcadas num sentido determinado, com tudo a fazer parte de uma realidade. E a realidade era a morte da mãe, cuja imagem, ao fim de seis meses, se tornara indistinta como a de uma estrela de brilho incerto. Havia, porém, pormenores e sobre esses fazia ele perguntas. Quando o fotógrafo, aos salamaleques pela sala, arrumava o tripé e saía, Henry perguntava a Mina, que regressava da porta da rua, "Por que é que esse homem tem uma voz tão esquisita?" E satisfazia-se com a resposta que não compreendia. "Porque é um excêntrico(1), querido, acho eu." As fotografias chegaram daí a pouco tempo em embrulhos pesados, e Mina a correr pela cozinha, pela casa, à procura dos óculos, aos gritinhos, às risadinhas, a arrancar bocados do papel castanho e duro com os dedos. Vinham em molduras ovais e Mina passou-as a Henry do outro lado da mesa. Nas margens o castanho desvanecia-se, como fumo, requintado e irreal, e Henry, lânguido, impassível, de costas muito direitas, a mão ligeiramente apoiada no ombro de Mina. Ela estava sentada no banquinho do piano, as saias em cascata em seu redor, a cabeça um pouco inclinada para trás, a boca num trejeito de desdém de grande dama e o cabelo negro apanhado na base do pescoço. Mina riu, entusiasmada, foi buscar os outros óculos para ver as fotografias de braço esticado e, ao virar-se, entornou o jarro do leite, riu ainda mais e deu um salto para trás na cadeira, tentando escapar aos riachos brancos que corriam para o chão entre as suas pernas. E entre as gargalhadas, "Que é que achas, querido, não são espantosas?" "Acho que estão boas", respondeu Henry.

Boa preparação? Mina também não perguntou a si mesma o que queria dizer com aquilo, mas, se o tivesse feito, a resposta seria que isso tinha a ver com o palco, tudo o que Mina fazia tinha a ver com o teatro. Sempre em cena, mesmo quando sozinha, um público observava-a e as suas atitudes destinavam-se a ele, uma espécie de superego, não se atrevia a desagradar à assistência nem a si mesma, por isso, depois de qualquer esforço, ao abater-se na cama com um gemido, este tinha forma e significado. E de manhã, sentada a maquilhar-se ao espelho do quarto, rodeado por uma pequena ferradura de lâmpadas sem quebra-luz, sentia mil olhos poisados nas costas e, muito aprumada, fazia cada movimento atenta à sua singularidade. Henry não era daqueles que vêem o invisível, equivocava-se acerca de Mina. Mina a cantar, a adejar os braços, às piruetas pela sala, a comprar sombrinhas e trajes de fantasia, a imitar para o leiteiro o sotaque do

 

(1) Queer. no original - estranho, fora do vulgar, mas também homossexual. (N. da T.)

 

leiteiro, ou apenas Mina a trazer um prato da cozinha para a sala de jantar, com os braços erguidos bem alto à sua frente, a assobiar entre dentes uma marcha militar e a marcar o ritmo com estranhos sapatinhos de hallet que usava sempre, Henry imaginava que tudo aquilo se destinava a ele. Sentia-se constrangido, um tudo-nada infeliz - deveria aplaudir, teria de fazer qualquer coisa, imitá-la, para ela não pensar que se aborrecia? Em certas ocasiões, contagiado pelo entusiasmo de Mina, participava, hesitante, em qualquer cerimonial frenético. Alguma coisa então no olhar dela o detinha, lhe dizia só haver lugar para um actor, pelo que os seus passos esmoreciam em direcção à cadeira mais próxima.

Claro que ela o fazia ficar ansioso, mas, à parte isso, era gentil: à tarde, quando chegava da escola, o chá estava pronto, guloseimas excelentes, algumas das suas preferidas, bolos de leite-creme ou folares de passas, e a seguir a conversa. Mina fazia um resumo das impressões do dia e confidências, mais de esposa que de tia, a falar muito depressa e cuspindo migalhas, com um crescente de gordura por cima do lábio superior.

"Vi a Julie Frank à hora do almoço, lá estava ela no Three Tuns a emborcá-las, ainda vive com aquele jóquei, ou criador de cavalos ou lá o que é, e não pensa casar, mas tem uma língua viperina. Henry. Julie. disse-lhe eu. que histórias são essas que andas a espalhar sobre o aborto da Maxine?" contei-te, não contei? - Aborto?, respondeu-me ela. Ah. isso. Foi só uma graça, Mina, mais nada. Uma graça?, disse-lhe eu. Fiz figura de parva quando passei por lá. Não me digas, disse-me ela."

Henry comia os éclairs, anuindo em silêncio com a cabeça, no prazer de estar sentado depois do dia inteiro na escola a ouvir uma história, e Mina contava-as tão bem. Depois, já iam na segunda chávena de chá, foi a vez de Henry falar do seu dia, de uma maneira mais lenta e mais linear, assim: "Primeiro tivemos História, depois Canto Coral, depois Mr. Cárter levou-nos a dar um passeio até Hampstead Hill porque disse que estávamos todos quase a dormir, depois foi o intervalo, depois tivemos Francês e depois fizemos uma redacção." Mas levou mais tempo com Mina a interromper, "Lembro-me de que a História era a minha disciplina preferida .." e "Hampstead Hill é a parte mais alta de Londres, tem de se ter cuidado para não cair, querido", e a redacção, a história que escrevera, tinha-a trazido? e se a lesse para ela ouvir? espera, primeiro tinha de se instalar confortavelmente, agora podes começar. Com desculpas mentais e grande relutância, Henry tirou o caderno da pasta, alisou as páginas, começou a ler, na voz monótona de um robot embaraçado, "Nunca ninguém da aldeia ia ao castelo de Grey Crag devido aos gritos terríveis que se ouviam à meia-noite ". No final, Mina batia com os pés no chão, aplaudia, gritava como um espectador no fundo da plateia, erguia bem alto a chávena de chá, "Temos de te arranjar um agente, querido". Agora era a vez dela, pegou na redacção e recomeçou a lê-la fazendo as pausas correctas, imitando sons ululantes, batendo com colheres para produzir certos efeitos, convencendo-o de que a história era boa, arrepiante.

O chá e as confissões podiam demorar duas horas; quando terminavam, iam para os respectivos quartos vestir-se para o jantar. A partir de Setembro, Henry já encontrava o clarão ondulante da lareira acesa, a sombra dos móveis a contorcer-se nas paredes, o seu fato ou o traje de fantasia estendido em cima da cama, o que quer que Mina tivesse escolhido para ele vestir naquela noite. Vestirem-se para o jantar. Mais ou menos duas horas para Mrs. Simpson entrar, abrindo a porta com a sua chave, preparar o que iriam comer e sair, para Mina tomar banho e, de óculos escuros, tomar um banho de sol artificial, para o Henry fazer os trabalhos de casa, ler os seus livros muito usados e brincar com velharias. Mina e ele desencantavam livros e mapas antigos em livrarias húmidas perto do British Museum, coleccionavam trastes que compravam em Portobello Road e em Camden, nas lojas de compramos-e-vendemos-tudo da Kentish Town. Uma fila de elefantes de olhos amarelos, que iam diminuindo, talhados em madeira, um comboio mecânico de lata pintada que ainda funcionava, fantoches sem fios, um escorpião conservado num frasco. E um teatro vitoriano para crianças, com instruções num folheto em linguagem antiquada para duas pessoas porem em cena passagens das Mil e Uma Noites. Durante dois meses dispuseram as figuras de cartão muito desmaiadas diante dos vários panos de fundo, mudam-se com um ligeiro movimento do pulso, a bater facas em colheres de chá a fazer de espadeiradas, Mina muito tensa, sentada nos joelhos, por vezes zangada quando ele perdia uma deixa - o que era frequente-, mas, se isso acontecia com ela, riam-se. Mina sabia imitar vozes, vozes de vilão, de amo, de príncipe, de heroína, de vítima, tentava ensiná-lo como se fazia, e riam de novo, pois Henry só sabia fazer duas, uma alta e outra baixa. Mina, farta do teatro de cartão, agora só Henry o levava para diante da lareira e, timidamente, fazia as figuras falarem em pensamento. Vinte minutos antes do jantar despia a roupa da escola, lavava-se, envergava o disfarce que Mina escolhera e ia ter com ela à sala de jantar, onde já o esperava, envergando o seu traje de fantasia.

Mina coleccionava-os, trajes de fantasia, disfarces, adereços, roupa antiga, comprava todos os que via e modificava-os, enchiam três guarda-fatos. E agora também para Henry. Alguns fatos da Oxford Street, mas o resto coisas que já ninguém queria, de grupos de teatro amadores arruinados, de companhias de pantomima esquecidas, artigos de segunda ordem dos melhores criadores de guarda-roupas, era o passatempo dela. Ao jantar, Henry envergava um uniforme de soldado, de ascensorista de um hotel americano de antes da guerra, agora já deve ser velho, uma espécie de hábito de monge e uma túnica de pastor das Éclogas de Virgílio, em tempos representadas por um grupo de ginástica rítmica de alunas de liceu, escritas ou adaptadas pela chefe de turma, que tinha sido Mina. Henry obedecia sem manifestar curiosidade, cada noite vestia o que encontrava aos pés da cama, e ia ao encontro de Mina no andar de baixo, com saia de anquinhas ou com armação de barbas de baleia, com fato de gato adornado com cequins ou transformada em enfermeira da guerra da Crimeia. Mas não se mostrava diferente nem representava um papel conforme ao seu disfarce, não fazia nenhum comentário sobre o aspecto de ambos, parecendo, na realidade, querer esquecer o assunto, e comia, descontraía-se, bebia do copo que o sobrinho lhe passava, como fora ensinado a fazer. Henry aceitava aquela rotina, apreciava o ritual da longa hora do chá e da intimidade estruturada e, pelo caminho da escola para casa, já começava a perguntar-se o que estaria preparado para vestir, na esperança de encontrar qualquer coisa nova na cama. Mas Mina era misteriosa, não lhe dava nenhum indício, deixava que fosse ele a descobrir, sorrindo de si para consigo enquanto Henry lhe preparava a bebida e se servia de limonada, ali de pé, envergando uma toga que ela encontrara, ou a fazerem um brinde, tocando os copos sobre a grande mesa, em silêncio. Fazia-o girar, anotando mentalmente qualquer alteração, após o que dava início à refeição, acompanhada da tagarelice habitual e das histórias sobre o seu tempo no teatro ou acerca de outras pessoasTudo tão estranho, porém tão familiar a Henry, acolhedor no Inverno.

Certa tarde, ao abrir a porta do quarto depois do chá' Henry deparou com uma menina deitada de bruços na sua cama; ao aproximar-se, viu que não se tratava de uma rapariga, mas de um vestido de festa e de uma cabeleira de longos cabelos louros, collants brancos, sapatinhos de cabedal negros. Sustendo a respiração, tocou no vestido, um sussurro frio, sinistramente acetinado, todo às pregas e folhos, camadas sobrepostas de cetim branco e de renda debruado a cor-de-rosa, um laço airoso a cair nas costas. Voltou a poisá-lo na cama, a coisa mais feminina que jamais vira, limpou a mão às calças, sem se atrever a tocar na cabeleira, que parecia viva. Isso não, para ele não, Mina quereria mesmo que vestisse aquilo? Fitou a cama, desconsolado, e pegou nos collants brancos, isso não, nem pensar. Ser um soldado, um romano, um pajem, uma coisa desse género, muito bem, mas uma rapariga não, não estava certo ser uma rapariga. Como a nata dos seus colegas de escola, Henry nãoqueria saber de raparigas, evitava os seus segredinhos e intrigas, os cochichos e as risadinhas, as mãos dadas e a passar bilhetinhos e os amo-te amo-te buliam-lhe com os nervos. Desanimado, atravessou o quarto, foi sentar-se a secretária a decorar palavras francesas, armoire armário, armoire armário, armoire armário, armoire , e de minuto a minuto olhava de relance para a cama para ver se aquilo continuava no mesmo sítio, e lá estava. Faltavam vinte minutos para o jantar, não era possível, não podia despir-se e pôr aquilo, era uma coisa terrível a perturbar o ritual de se vestir para jantar, foi então que ouviu Mina a sair da casa de banho a cantar, a arranjar a cara no quarto ao lado. Poder-lhe-ia pedir para usar outra coisa qualquer quando ela tinha saído nesse mesmo dia para lhe comprar aquela roupa, quando na véspera lhe tinha dito como as cabeleiras eram caras e difíceis de encontrar? Sentado no outro extremo da cama, com vontade de chorar, pela primeira vez em vários meses com saudades da mãe, sólida e sempre a mesma, a bater à máquina no Ministério dos Transportes. Ouviu Mina a passar pela porta, a caminho do andar de baixo, começou a desapertar o sapato, depois parou, não queria vestir aquilo. Mina chamou-o no tom de voz habitual, "Henry, querido, desces já?", e ele respondeu "É só um instante". Mas não conseguia fazer um gesto, não era capaz de tocar naquelas coisas, não queria, nem que fosse só a fingir, vestir-se de rapariga. Ouviu então os passos dela na escada, a aproximar-se, descalçou um sapato num gesto simbólico, não havia nada a fazer.

Ela entrou no quarto, envergando um disfarce que nunca lhe vira, um uniforme de oficial, cintilante, austero, com dragonas estreitas, uma lista vermelha nas calças, o cabelo penteado para trás, talvez com brilhantina, sapatos pretos reluzentes e o rosto com traços pesados de homem e uma sugestão de bigode. Atravessou o quarto a marchar, "Mas, querido, ainda nem começaste a arranjar-te, deixa-me ajudar-te, de qualquer maneira vais precisar que te dê o laço nas costas", e começou a tirar-lhe a gravata. Como que paralisado, Henry não conseguia opor resistência aos seus gestos seguros a tirar-lhe a camisa, as calças, o outro sapato, as peúgas e depois, estranhamente, as cuecas. Já se tinha lavado? Pegou-lhe pelo pulso e conduziu-o até ao lavatório, encheu-o de água morna, lavou-lhe a cara, enxugou-a, empurrando-o de um lado para o outro com o frenesi que lhe era característico, com um ímpeto especial. Ficou nu no centro do quarto, mergulhado num pesadelo, enquanto Mina remexia a roupa em cima da cama até encontrar o que queria, estendeu-lhe um par de calcinhas brancas, à vista das quais ele disse "não" de si para consigo. Ajoelhada a seus pés, "Levanta uma perna", disse em tom jovial, batendo-lhe no pé com as costas da mão, e ele imóvel, assustado pela ligeira impaciência da sua voz, "Vá lá, Henry, o jantar perde a graça". Mexeu a língua antes de falar, "Não, não quero vestir isso". Por instantes, as costas dela mantiveram-se curvadas a seus pés, depois endireitou-se, agarrou-o pelo braço e beliscou-o maldosamente, ao mesmo tempo que o olhava fixamente, parecendo querer engoli-lo. Viu a máscara espessa de maquilhagem, um velho, as linhas de cicatrizes frívolas, o lábio inferior esticado de cólera, deixando-lhe os dentes a descoberto, e começou a tremer, primeiro as pernas, depois o corpo todo. Ela abanou-o pelo braço, sibilou, "Levanta uma perna", ficou à espera enquanto esboçava o movimento, o movimento que o fez perder o controle e urinar pelas pernas abaixo. Ela voltou a empurrá-lo para o lavatório, esfregou-o novamente com a toalha, dizendo "Só faltava isto", de modo que, demasiado assustado, demasiado humilhado para recusar, Henry ergueu uma perna, depois a outra, submeteu-se às camadas frias de tecido contra a sua pele, que lhe foram enfiadas pela cabeça, apertadas nas costas, a seguir os collants, os sapatinhos de cabedal e por fim a cabeleira muito justa, o cabelo louro que lhe cobria os olhos e lhe caía solto até aos ombros.

 

No espelho viu-a, uma menina bonita e repugnante, desviou os olhos e, desconsolado, seguiu Mina até ao andar de baixo, num ruge-ruge contrariado, ainda com as pernas trémulas. Agora Mina estava bem disposta, dizia graças conciliadoras sobre a sua relutância dessa noite, falava de um passeio qualquer, talvez ao parque de diversões de Battersea. e, apesar da sua perturbação, Henry apercebeu-se de que ela estava excitada pela sua presença, pelo seu aspecto, pois duas vezes durante o jantar se levantou para o ir abraçar e beijar, correr-lhe os dedos pelo tecido, "Já passou tudo, já passou tudo". Mais tarde, Mina bebeu três cálices de vinho do Porto e estiraçou-se na cadeira de braços, um soldado embriagado a chamar pela sua miúda, querendo que ela se fosse sentar ao seu colo. Henry mantinha-se à distância, pequenos apertos de pânico no estômago cada vez que pensava que Mina seria ela muito má ou completamente louca?, não conseguia decidir, mas isto faz perder a graça toda à brincadeira dos disfarces, sentia que para Mina aquilo tinha qualquer coisa de compulsivo, não se atrevia a contrariá-la, havia qualquer coisa de pouco claro .. a maneira como ela o empurrava, a maneira como sibilava, qualquer coisa que não compreendia e que afastou da ideia. Por isso, lá para o fim do serão, escapando das mãos de Mina, que tentava puxá-lo para o colo, vendo-se de relance nos vários espelhos da sala, reflexos da linda menina loura com o seu vestido de festa, de si para si, "Isto tem a ver com ela, não tem a ver com mais nada, tem a ver com ela, não é nada comigo".

Assustado com o que em Mina não compreendia, Henry, de uma maneira geral, gostava dela, era sua amiga, queria fazê-lo rir, e não dizer-lhe que fizesse isto ou aquilo. Fazia-o rir com todas as suas vozes divertidas e, se lhe contava uma história, entusiasmada, o que era frequente, representava-a perante ele, debitando o seu papel de um lado para o outro, a todo o comprimento da sala. "No dia em que a Deborah deixou o marido, foi direita à paragem do autocarro ", e aqui Mina fazia uns passinhos de dança até ao meio da sala "mas foi então que se lembrou de que à hora do almoço não havia autocarros da aldeia ", pondo a mão em pala sobre os olhos, esquadrinhava a sala à procura de um autocarro, seguidamente levava a outra mão à boca, com os olhos muito abertos, a boca escancarada, a expressão de quem subitamente se recorda de qualquer coisa, como o sol a romper as nuvens "por isso voltou para casa, para almoçar ", outra vez o passeiozinho .. "e foi dar com o marido sentado à frente de dois pratos vazios, a arrotar e a dizer Bem, como não esperava que voltasses, comi o teu" mãos nas ancas. Mina de olhos arregalados para Henry, que era agora o marido sentado à mesa, sem saber se devia participar, refastelar-se na cadeira e arrotar. Mas, em vez disso, riu-se, pois Mina agora também ria, como fazia sempre que chegava ao fim de uma história. De vez em quando ela aparecia na televisão, admirava-a por isso, embora fosse só na publicidade, em geral era a dona de casa que usava o detergente certo, cheia de rolos no cabelo, lenço atado à cabeça, a pairar por cima da cancela do jardim, uma vizinha debruçada da janela a fazer-lhe perguntas sobre os lençóis, qual era o segredo dela, e Mina a explicar-lhe no seu sotaque de Souf Lunnun(1). Alugou o aparelho só para ver os anúncios, ficavam ali sentados com a folha do programa à espera de a ver aparecer e, quando surgia no ecrã, riam a bom rir. Quando acabava, ela desligava a televisão, só às vezes viam um filme, e logo ficava furiosa com os actores, "Meu Deus! é o Paul Cook, conheci-o quando ele varria o chão do teatro de Ipswich", saltava da cadeira, arrancava a ficha da tomada a caminho da cozinha, Henry ficava sentado na cadeira a ver o pontinho branco desaparecer do ecrã.

Uma tarde, perto do Natal, ao chegar da escola cheio de frio e atrasado, em cima da mesa do chá, junto ao seu prato, tudo preparado por Mina para ele descobrir, estava uma pilha de cartões brancos e lisos, com letras gravadas a cobre, uma caligrafia fina e elegante, Mina e Henry convidam-no para uma festa. Venha disfarçado. RSVP. Henry leu vários, o seu próprio nome impresso parecia-lhe estranho e ergueu os olhos para Mina, que o observava, uma espécie de sorriso contido pairava no espaço entre ambos, pronto a irromper ao primeiro sinal. Entusiasmado, mas incapaz de o mostrar por ser precisamente isso que ela esperava que fizesse, disse, em tom pouco convincente, "Que giro!", e isso soou a falso, não era de modo nenhum o que sentia, nunca fora a uma festa nem tivera o nome em convites. Porém, qualquer coisa em Mina lhe tornava difícil dizer o que queria, era preciso dizer

 

(1) Deturpação da pronuncia de Soitrh (Londres Sul), correspondente ao sotaque dessa zona. (N. da T.)

 

mais. "Disfarces? Que género de disfarces?". Mas tarde de mais porque Mina já estava às gargalhadas, a pôr-se de pé ainda ele não acabara de falar, muito empertigada a atravessar a sala em passinhos de dança e a cantarolar ao mesmo ritmo, "Que giro! Gi-iro? Gi-iro? Gi-iro?", dando assim a volta à sala até chegar de novo à mesa e à cadeira onde ele estava sentado a observá-la, muito inseguro. De pé por trás dele, despenteando-o num gesto de pretensa afeição, mas a puxar-lhe os cabelos e a meter-lhe os dedos pelos olhos, "Henry, meu amor, vai ser formidável, fantástico, medonho, mas giro não, nunca havemos de fazer nada giro", e, ao dizer isto, passava-lhe as mãos pelo cabelo, enrolando-o nos dedos. Ele virou-se, a fim de olhar para cima e de se esquivar, e ela não conseguiu escapar à expressão selvagem dos seus olhos, virados para cima, quase só branco, enterneceu-se e apertou-o com verdadeira afeição, "Vai ser o grande dia das nossas vidas, não estás entusiasmado? E o que achas dos cartões?". Henry pegou-lhes mais uma vez e disse, muito sério, "Ninguém se vai atrever a não vir". Já sem maldade na voz, ela afirmou, enquanto servia o chá, que os disfarces deviam ser impenetráveis e contou piadas e historietas acerca dos amigos que ia convidar.

Depois do jantar, sentaram-se junto ao aquecedor a carvão, Mina envergando um New Look da época do racionamento, Henry o seu fato à Lord Fauntleroy, e, após um silêncio prolongado, ela perguntou, de repente, "E tu? Quem vais convidar?". Durante vários minutos não respondeu, pensando nos amigos da escola. Aí ele era diferente, tudo era diferente, brincava à apanhada, jogava à bola e, na aula, empregava palavras e contava histórias que ouvira a Mina, reproduzindo-as como se fossem suas, pelo que os professores o consideravam um tudo-nada precoce. Tinha muitos amigos, mas não se fixava em nenhum, e não tinha um amigo predilecto como alguns dos colegas. E depois, em casa, sentado muito quieto entre as cenas de teatro e as repentinas mudanças de humor de Mina, muito atento para não perder uma deixa, nunca pensava nas duas coisas juntas, uma vasta e aberta com grandes janelas, soalho revestido de linóleo, longas filas de cabides para pendurar o casaco, a outra densa, as coisas no seu quarto, duas chávenas de chá e os jogos da Mina. Contar o seu dia a Mina era como contar um sonho ao pequeno-almoço, verdade e não verdade, por fim disse "Não sei, não me lembro de ninguém". Os que jogavam à bola poderiam partilhar uma sala com Mina? "Não fizeste amigos na escola dignos de virem cá a casa?". Henry não respondeu. Como poderiam eles mascarar-se, disfarces e coisas do género, tinha a certeza de que era impossível.

No dia seguinte, ela não repetiu a pergunta, mas fez o rol dos pormenores, ideias que lhe ocorriam em catadupa, sem pensar em mais nada o dia inteiro. Para acentuar o efeito dos disfarces, a iluminação das salas tem de ser suave. "Nem os melhores amigos se conseguirão reconhecer uns aos outros" e os disfarces têm de ser segredo, ninguém vai saber quem é Mina, ela pode andar de um lado para o outro, a divertir-se, deixando que sejam eles a servir-se das bebidas, a fazer as apresentações -nomes falsos, claro-, é tudo gente do teatro, mestres na arte do disfarce, em criar uma personagem, pois Mina considera que é nisso que consiste a arte de representar, criar um eu, um disfarce, por outras palavras. E, já ofegante de tanto repetir os pormenores, foi no banho que lhe ocorreu, lâmpadas vermelhas, evidentemente, uma receita especial de ponche, a música a vir de algures, ao longe, e talvez se queimem uns pauzinhos de incenso. Depois os convites foram enviados, feitos todos os preparativos que podiam ser feitos, e ainda faltavam duas semanas, pelo que Mina e, consequentemente, Henry não falaram mais no assunto. Uma vez que ela conhecia os disfarces dele, pois fora ela a escolhê-los a todos, e não o queria reconhecer no dia da festa, deu-lhe dinheiro para comprar outro, tinha de ser ele a ocupar-se disso e a prometer guardar segredo. Depois de palmilhar a cidade durante um sábado inteiro, acabou por descobri-lo numa loja de velharias perto da estação de metro de Highbury and Islington, entre máquinas fotográficas, máquinas de barbear avariadas e livros amarelados, uma espécie de máscara de monstro à Boris Karloff, feita de tecido, com buracos no sítio dos olhos e da boca e com a forma de um capuz de enfiar pela cabeça. Tinha cabelo hirsuto, espetado em todos os sentidos, uma expressão divertida e espantada, nada assustadora, custava trinta xelins, disse o homem. Dado não ter o dinheiro consigo, combinou que passaria a buscá-la na segunda-feira, à saída da escola.

Mas nesse dia não foi lá, nesse dia conheceu Linda, foi a disposição das carteiras, aos pares, quatro a quatro, e um espaço para passarem. Henry fora o último a chegar nesse ano, orgulhoso por ter uma carteira só para si, acabou por ser assim, enquanto os outros tinham de as partilhar. Os mapas, os livros e dois fantoches ocupavam os lados, era bom ficar sentado lá atrás com todo aquele espaço. O professor, a explicar vinte e cinco pés, dizia que era mais ou menos a distância até ao lugar do Henry e eles voltavam-se, olhando para todos os colegas, claro que era a carteira dele. Na segunda-feira havia uma rapariga, uma aluna nova, sentada na carteira dele, a dispor sobre o tampo os lápis de cor, como se aquilo lhe pertencesse. Ao sentir-se observada, baixou os olhos e disse em voz baixa, mas sem sombra de submissão, "O professor mandou-me sentar aqui". Henry instalou-se no seu lugar, carrancudo, ter o seu espaço violado já era mau, e ainda por cima uma rapariga. Durante as três primeiras aulas, ela permaneceu ali, uma não presença, ao lado dele, e Henry olhava em frente, pois olhar em redor seria admitir que ela estava ali, uma dessas rapariguinhas ávidas que nos fitam. No intervalo levantou-se antes dos outros, ficou entre as carteiras a beber leite, evitando os amigos, e esperou até a sala estar vazia para voltar ao lugar, desimpedir metade da carteira para ela, amuado, a arrumar as coisas, o tênder do comboio mecânico, velharias, em duas sacolas, sentindo-se obscuramente mártir, colocou tudo atrás da cadeira, querendo que ela se apercebesse do incómodo que causara. Ao voltar ao lugar, a garota esboçou um sorrisinho nervoso, mas ele mostrou-se rígido, um simulador, ignorando-a, a olhar para o outro lado e a esfregar as mãos.

Mas o mau humor passa depressa e ficou cheio de curiosidade, lançou-lhe uns olhares furtivos e depois mais uns quantos, as coisas surpreendentes que havia nela tocaram qualquer corda sensível, o fino cabelo comprido cor de trigo a cobrir-lhe os ombros, caído sobre a lã macia das costas, a pele exangue como aquele papel, mas quase transparente, e depois o nariz, aquilino, fino e tenso, fremente como o de um cavalo, os grandes olhos cinzentos assustados. Sentindo-se de novo observada, esboçou um sorriso com o canto dos lábios, o que fez com que Henry sentisse um ligeiro calafrio na boca do estômago, pelo que fixou o olhar em frente, compreendendo vagamente o que queriam dizer as pessoas quando afirmavam que esta ou aquela rapariga eram bonitas, quando até então isso lhe parecia um exagero como os da Mina.

Henry sabia que, quando um rapaz cresce, se apaixona por qualquer rapariga que conhece e é então que casa, mas só se encontra uma rapariga de quem se gosta, e que havia ele de fazer se a maior parte das raparigas era um enigma? Aquela, porém, via-lhe o cotovelo quase a tocar a parte da carteira que lhe pertencia, aquela era frágil e diferente, sentia vontade de lhe tocar no pescoço e de pôr um pé junto ao dela, ou sentir-se-ia Henry culpado devido a tanta coisa nova, a sentimentos tão confusos? Uma lição de História, e todos a desenharem um mapa da Noruega e a colorirem barcos viquingues com as proas apontadas para sul. Tocou no cotovelo dela, "Emprestas-me um lápis azul?". "Azul para o mar ou azul para o céu?" "Azul para o mar." Descobriu o lápis que ele queria, disse-lhe que se chamava Linda e, segurando-o ainda quente da mão dela, curvou-se sobre o mapa com extremo cuidado, cobrindo com riscos azuis a costa, o lápis para cima e para baixo, a cinco centímetros dos olhos a fazer o som linda linda. Foi então que se lembrou, "Eu chamo-me Henry", murmurou, os olhos cinzentos abriram-se ainda mais, "Henry?", "Sim". Assustado consigo próprio, passou-lhe ao largo à hora do almoço, procurou outra mesa e, ruidosamente, foi ao encontro dos amigos no recreio, que já troçavam, "Estamos a ver que já arranjaste uma miúda", perante o que simulou um tremor de profunda repulsa a fim de os fazer rir e aceitarem-no. Jogaram à bola contra o muro do pátio e era Henry quem gritava mais alto, numa agitação de punhos e cotovelos, mas, quando a bola passou para o outro lado e ficaram à espera, o seu pensamento voou para a sala de aula e anteviu-se sentado ao lado de uma rapariga. E, ao regressar, foi dar com ela já no lugar e, com um ligeiríssimo aceno de cabeça, deu-lhe a perceber que vira o seu sorriso. A tarde arrastou-se lenta e monótona e Henry remexia-se no lugar, não querendo que chegasse ao fim nem que continuasse, devido à proximidade de Linda.

No fim das aulas ajoelhou-se atrás da cadeira dela, a fingir que procurava qualquer coisa nas sacolas, certo de não a ir ver até à manhã seguinte. Ela ainda estava sentada na carteira, a acabar qualquer coisa sem dar pela sua presença, por isso Henry remexeu um pouco mais nos sacos, pôs-se de pé e pigarreou, dizendo, com brusquidão, "Então até amanhã", e a sua voz ecoou na sala vazia. Ela levantou-se a fechar o livro, "Posso ajudar-te". Tirou-lhe um dos sacos da mão, saiu da sala à frente dele e atravessaram o recreio agora silencioso. Junto ao portão estava uma mulher com um casaco de cabedal, nova e velha ao mesmo tempo, que se inclinou para Linda e lhe deu um beijo na boca. "Já arranjaste um amigo?", perguntou, fitando Henry a alguns passos de distância. "Chama-se Henry", disse Linda com simplicidade e, dirigindo-se a ele, "Esta é a minha mãe", e a mãe dela estendeu a mão a Henry, que se aproximou para a apertar, todo adulto. "Olá, Henry, queres que te levemos a casa com os sacos?", indicou com um vago movimento do pulso o grande carro negro estacionado atrás dela. Pôs os sacos no banco de trás, sugeriu que se sentassem os três à frente, e Linda encostou-se bem a ele para a mãe poder meter as mudanças. Podia chegar mais tarde por causa da máscara, dissera a Mina que nesse dia chegava atrasado, aceitou, pois, o convite para tomar chá e sentou-se comprimido contra a porta do carro, a ouvir Linda contar à mãe o primeiro dia na escola nova. Ao fim de uma estrada de saibro vermelho toda às curvas, pararam junto a uma grande casa de tijolo vermelho, rodeada de árvores e, através das árvores, o Heath a estender-se em declive em direcção a um lago, para o qual Linda lhe chamou a atenção quando contornavam a casa. "Aquela mansão além, que mal se vê por entre as árvores, é Kenwood House. tem uma quantidade de quadros antigos e a entrada é livre. Está lá o Amo-Retrato do Rembrandt, o quadro mais famoso do Mundo." E então a Mona Lisa?, ficou Henry a pensar, mas aquilo deixou-o impressionado.

A mãe foi preparar o chá. Linda foi mostrar-lhe o quarto, seguiram ao longo de um corredor revestido de carpetes espessas que lhes abafavam os passos, desembocaram no átrio, aos pés de uma escadaria ampla, bifurcada, mas que, de ambos os lados, ia dar ao vasto patamar, uma área enorme em forma de ferradura com um relógio de pêndulo numa das extremidades e, na outra, um pesado baú coberto de latão com figuras gravadas. Era uma arca de enxoval, explicou-lhe Linda, onde punham presentes para a noiva, tinha quatrocentos anos. Subiram outra escada, a casa inteira pertencia-lhes? "Era do Papá. mas ele foi-se embora e agora é da Mamã." "Para onde é que ele foi?" "Queria casar com outra pessoa em vez da Mamã, por isso divorciaram-se." "E então ele deu esta casa à tua mãe para ela o perdoar." Não conseguiu dizer "mamã". Era um monte de tralha com uma cama, o quarto de Linda, o chão não se via e a porta estava tapada, carrinhos de brinquedo, bonecas, a respectiva roupa, jogos e peças de jogos, um grande quadro preto na parede e a cama por fazer, os lençóis estendidos até meio do quarto, mais além as almofadas, frascos e escovas diante do espelho do toucador e todas as paredes cor-de-rosa, estranhamente femininas, o que o deixava ansioso. "Não te obrigam a arrumá-lo?" "Esta manhã tivemos uma luta de almofadas. Gosto dele desarrumado, tu não?" Henry seguiu Linda escada abaixo, é sempre muito melhor fazer o que nos apetece se temos sítio para isso.

Durante o chá, ela disse, a mãe de Linda, que lhe chamasse Claire e, daí a pouco, quando lhe perguntou se queria mais; ele respondeu "Não, Claire, obrigado", o que fez com que Linda se engasgasse e Henry e Claire lhe tivessem de bater nas costas, e a seguir começassem a rir por nada, até Linda se ter de agarrar a Henry para não cair. Um homem alto no meio de tudo isto, meteu a cabeça pela porta da cozinha, tinha sobrancelhas grossas e pretas, sorriu, "Estão muito divertidos", e desapareceu. Quando Henry estava a vestir o casaco para se ir embora, perguntou a Linda quem era aquele homem e ela respondeu que era o Theo, que às vezes passava uns dias com elas, e murmurou "Ele dorme na cama da Mamã". Mal prosseguiu, desejou poder engolir as palavras de novo, mas perguntou "Para quê?", o que fez com que Linda tivesse de abafar o riso na muralha de casacos. Sentaram-se de novo os três no banco da frente, espremidos uns contra os outros e, daí a pouco, Linda propôs que cantassem o Frère Jacques e foram até Islington a cantar tão alto que as pessoas os ouviam dos outros carros quando paravam nos semáforos e lhes sorriam pela janela. Pararam de cantar quando Claire estacionou à porta de Henry e de súbito fez-se silêncio. Tirou as sacolas do banco de trás, numa embrulhada de muito obrigado por ter .. mas Claire interrompeu-o, queria passar lá por casa no domingo?, e Linda gritou que tinha de ser o dia todo, até estarem todos a falar ao mesmo tempo, Claire, se ele quisesse, podia passar a buscá-lo de carro, Linda a prometer levá-lo a ver as pinturas a Kenwood House, Henry a dizer que primeiro tinha de pedir a Mina, mas tinha a certeza de que ela não se oporia. Linda a apertar-lhe a mão com força, "Até amanhã, na escola", aos gritos, a acenar, a abertura de outro coro perdido no ronco de um camião a passar, deixaram-no ali no passeio com os sacos, algum tempo à espera antes de entrar.

Mina estava sentada à mesa, com a cabeça apoiada nas mãos, rodeada pelas coisas do chá. Não ergueu a cabeça quando ele disse boa tarde, demorando-se, pouco à vontade, à porta, a tirar o casaco, a remexer nas sacolas. "Onde estiveste?", perguntou-lhe em voz calma. Ele olhou para o relógio, eram dez para as seis, estava hora e meia atrasado. -Disse-te que ia chegar uma hora mais tarde." "Uma hora?", insistiu ela em voz arrastada, "Já passam quase duas horas". Havia qualquer coisa de familiar na atitude de Mina e ele sentiu as pernas começarem a tremer. À mesa, pôs-se a brincar com uma colher de chá, fazendo-a passar por um túnel formado pelos dedos, até que ela expeliu ar pelo nariz com brusquidão. "Poisa isso", ordenou secamente, "perguntei-te onde estiveste." Com voz trémula, explicou-lhe, a mãe de uma pessoa amiga da escola convidara-o para tomar chá e .. "Pensei que tinhas ido buscar o teu disfarce", interrompeu ela em tom calmo. "Bem, estava para ir lá, mas .." Henry baixou os olhos para os dedos abertos em cima da mesa. "E por que não me disseste que ias a casa de alguém?" Agora ela berrava a plenos pulmões, "E não há o raio de um telefone cá em casa?". Nenhum deles proferia palavra, o eco da voz de Mina ficou dez minutos a pairar na sala, a ressoar-lhe na cabeça, e depois ela disse baixinho "Estás-te mas é nas tintas. Vai ao teu quarto mudar de roupa". Sabia que podia dizer coisas que iriam desanuviar o ambiente, mas não lhe ocorriam as palavras necessárias, só existiam as coisas que via, os nós dos dedos, o desenho do tecido por baixo deles atraía-lhe por completo a atenção, nada para dizer. Ao passar por trás da cadeira de Mina em direcção à porta, ela virou-se e agarrou-o pelo cotovelo, "E desta vez nada de histórias", repelindo-o em seguida. No cimo das escadas pensou no que ela dissera, nada de histórias, algum traje novo para o humilhar, para que se atrasasse e estragasse o ritual da tarde. Aproximou-se da rapariga cuidadosamente deitada na cama, a mesma rapariga de tempos atrás. Sem pensar, despiu-se, não conseguia entender o frenesi de Mina, esse vício de se transformar num desconhecido, sentiu medo dela, estremeceu, assustado, ao enfiar o tecido frio que lhe aderiu à pele, os collants brancos, apressando-se, não fosse ela pensar que estava hesitante. Com mãos febris, apertou desajeitadamente os atacadores de cabedal, pegou na cabeleira, de pé em frente do espelho para a colocar, de novo o aperto na boca do estômago, pois lá estava ela no quarto, o cabelo solto a cair pelas costas, a pele pálida e tensa, o nariz. Pegou no espelho de mão do lavatório, observou o rosto de todos os ângulos, os olhos não eram da mesma cor, os dele eram mais azuis, e tinha o nariz um pouquinho maior. Mas era a imagem da primeira vez, ainda sentia o choque que essa visão lhe causara. Tirou a cabeleira, o seu cabelo preto cortado curto, juntamente com o vestido de festa, dava-lhe um ar ridículo e sentiu vontade de rir. Voltou a pôr a cabeleira, fez uns passinhos de dança pelo quarto, Henry e Linda ao mesmo tempo, mais juntos do que no carro, agora ele dentro dela, ela dentro dele. Já não era uma opressão, sentia-se liberto da cólera de Mina, invisível dentro da rapariga. Começou a escovar a cabeleira, como vira Linda fazer ao chegar da escola, a partir da extremidade e para baixo, a fim de não partir as pontas, dissera-lhe ela. Ainda estava em frente do espelho quando Mina entrou no quarto de rompante, o mesmo uniforme de oficial, o rosto ainda mais duro do que da última vez, pegou-lhe pelos ombros obrigando-o a voltar-se de costas, atou-lhe o vestido atrás, a entoar docemente uma melodia sem palavras. Também ela penteou a cabeleira, passou-lhe a mão pela parte de dentro da perna, a fim de sentir a roupa interior, e, satisfeita, fê-lo girar de modo a ficarem face a face, por isso sentiu o mesmo medo estático ao ver tão próximo os traços negros e pesados do seu rosto maquilhado, as linhas rectas do cabelo empastado de brilhantina. Inclinou-se, atraiu-o para si e beijou-o na testa, "Estás bem assim", desceu a escada em silêncio conduzindo-o pela mão e dessa vez foi ela a servir as bebidas, dois copos cheios de vinho tinto. Com uma vénia, entregou-lhe o copo, batendo os calcanhares e dizendo, em voz rude e zombeteira, "Aqui tens, meu amor". Ele pegou no copo excepcional, cujo longo pé irisado era demasiado curto para o seu punho, segurando-o com ambas as mãos. Em ocasiões especiais. Mina preparava-lhe um shandy, e das outras vezes era sempre limonada. Agora ele estava de pé, de costas para a lareira, os ombros bem puxados para trás, o copo à frente do peito achatado, "Tchim-tchim", sorveu dois grandes golos, "Bebe". Molhou a ponta da língua, conteve um arrepio devido ao gosto agridoce, depois, fechando os olhos, bebeu um trago, empurrando rapidamente o líquido para o fundo da garganta com a língua, evitando assim todo o sabor, excepto a saburra que lhe ficou na boca. Mina esvaziou o copo. agora estava à espera que acabasse o dele, tirou-lhe o copo vazio das mãos para o encher de novo, pôs o vinho na mesa e foi buscar os pratos. Estonteado e com uma sensação de irrealidade, pôs-se a ajudá-la, foi buscar um prato à chapa aquecedora, surpreendido com o silêncio de Mina. Sentaram-se, Linda e Henry, Henry e Linda. Durante a refeição, Mina erguia o copo dizendo "Tchim-tchim", à espera de que ele fizesse o mesmo antes de beber, e uma vez levantou-se para servir mais vinho. Agora tudo deslizava, todas as coisas que fitava se afastavam umas das outras, permanecendo, porém, no mesmo sítio, o espaço entre os objectos ondulava, o rosto estilhaçado de Mina deslocava-se e fundia-se com as suas imagens, pelo que agarrou a beira da mesa a fim de imobilizar a sala, e viu Mina a vê-lo fazer isso, viu o seu sorriso denteado que pretendia ser encorajador, viu-a desviar-se pesadamente para pegar no bule do café, tendo por fundo o movimento da sala a girar em torno dos seus três eixos e, se fechasse os olhos, se fechares os olhos, podes cair da beira do mundo, que se está a empinar em qualquer sítio perto dos teus pés. E através de tudo isto Mina a dizer, Mina a querer saber qualquer coisa, como tinha sido a tarde dele, o que tinha feito na outra casa e, para lhe responder, teve de ir buscar a língua sabe-se lá onde, ouviu a sua própria voz chegar-lhe muito débil da sala ao lado, a grude no céu da boca, "Nós e .. nós levámos .. ela levou-nos", até que desistiu, subjugado pelos zurros, latidos e gargalhadas de Mina, "Oh, a minha menina está com um grãozinho na asa", e ao dizer isto cambaleava direita a ele, soergueu-o pelas axilas, meio a pegar-lhe, meio a arrastá-lo até ao cadeirão, puxando-o para o colo e virando-lhe o corpo de modo que ficasse com as pernas pendentes do lado da cadeira, fazendo um ninho com os braços para ele repousar a cabeça, a apertá-lo com força, quente e em cima dele como um lutador, impedindo-o de mexer braços e pernas para se libertar, a segurá-lo com força, a comprimir-lhe o rosto contra a fenda do dólman desabotoado e, a rodopiar-lhe nos braços, percebeu que mover-se subitamente seria ficar subitamente enjoado. Ela parecia desejar aquela rapariga e apertava-lhe o rosto contra o peito, pois nada havia por baixo do dólman, nada a não ser o rosto de Henry contra a pele rugosa, ligeiramente perfumada, das suas velhas tetas flácidas, com a mão em concha segurava-lhe a parte superior do pescoço, não se conseguia afastar do tecido castanho, não ousava fazer um movimento brusco, sabia o que lhe ia no estômago, nem foi capaz de esboçar um movimento quando ela começou a cantar e quando a outra mão se esgueirou pelas camadas de tecido, pela perna acima, à volta da coxa, ela meio a dizer, meio a cantar, "A soldier needs a girl, a soldier needs a girl", numa voz cada vez mais baixa, que se ia confundindo com o ritmo da respiração, cada vez mais fogosa, mais profunda, fazendo Henry subir e descer, sentiu-se apertado com mais força, abriu os olhos na palidez acinzentada dos seios de Mina, cinzento e azul como imaginava a cara de um morto. "Estou agoniado", murmurou para dentro do corpo dela, e da sua boca, sem ruído, deslizou uma mistela acastanhada de comida e vinho, cor para a lividez da morte sob o dólman. Escorregou para fora do regaço, já não tendo quem o agarrasse, caiu ao chão, a cabeleira saltou-lhe da cabeça, manchas vermelhas e castanhas maculavam a brancura imaculada, o cor-de-rosa vivo agora apenas espalhafatoso, desembaraçou-se por completo da peruca, "Sou o Henry", disse em voz pastosa. Durante algum tempo Mina não fez um movimento, sentada de olhar fixo na cabeleira caída no chão, seguidamente ergueu-se e passou por cima dele a rodopiar, dirigiu-se ao andar de cima e, da sala, Henry ouviu o banho a correr, sentado exactamente onde fora parar, a observar os desenhos da carpete a moverem-se por entre os dedos, sentindo-se melhor por estar agoniado, sem conseguir fazer um gesto.

Mina voltou do banho com um vestido vulgar, a mesma de sempre, ajudou-o a erguer-se, levou-o até junto da lareira, onde lhe desapertou o vestido, que mergulhou num balde de água na cozinha. Apanhou a cabeleira, deu-lhe a mão, ensinou-o a subir as escadas, a cantarolar como que para uma criança, "Um e dois e três e...". No quarto cambaleou, apoiou-se ao ombro de Mina enquanto ela lhe despia o resto da roupa, lhe procurava o pijama sem parar de falar, de quando ela se embebedara pela primeira... bem, no dia seguinte não se lembrava de nada, e Henry, sem entender bem o que ela lhe contava, mas a gostar do tom da sua voz, a reconhecê-lo, tal como ao vestido que ela tinha posto, deitado de costas na cama, com a mão de Mina na testa para o quarto parar de girar, enquanto ela cantava e dizia a canção do andar de baixo, "A soldier needs a girl like a lion needs a mane, to murmur in his ear and kiss away the pain". Passava-lhe os dedos pelo cabelo e, ao acordar no dia seguinte, a peruca estava a seu lado na almofada, devia ter caído durante a noite.

Ao abrir os olhos, pensou em Linda, na dor por trás dos olhos e em qualquer coisa no quarto a dizer-lhe que já não era manhã. No andar de baixo, a voz de Mina a perguntar "Queres almoçar? Deixei-te dormir", mas já estava pronto para a escola, a tirar a sacola do cabide, a sair porta fora, do outro lado da rua, com Mina a gritar-lhe que voltasse, o vento húmido a despenteá-lo, a noite da véspera uma confusão, mas, tinha a certeza, a fazer com que Mina tivesse perdido o direito a qualquer coisa e que agora fosse fácil fugir da sua voz cada vez mais distante. Ao encontro de Linda. Na escola justificou-se, uma indisposição, o que não era mentira, ainda estava suficientemente pálido para acreditarem, apesar de já passar do meio-dia. Direito à carteira para o início das aulas da tarde, onde ela o esperava a sorrir, vendo-o aproximar-se, pronta a meter-lhe um bilhetinho na mão, uma garatuja, "Sempre vais lá no domingo?". Virou-o e escreveu sim com a mesma decisão com que fugira nessa manhã, passou-lho por baixo da mesa, os dedos de ambos a tocarem-se por instantes, a mão dela a apertar a sua, a afastar-se. O estômago feito um poço, no baixo-ventre um pouquinho de sangue a pulsar numa pele impúbere, a despontar como flores prima veris, sob as pregas da roupa, e o bilhete a cair ao chão sem que dessem por isso.

Poder-lhe-ia contar o que vira no espelho, Henry e Linda confundidos, de súbito uma única pessoa, e ele a sentir-se liberto, a dançar, antes de Mina aparecer, queria dizer-lhe, mas também explicar-lhe tudo o resto, falar-lhe de Mina; por onde começar, como explicar jogos que não são verdadeiramente jogos? Em vez disso, falou-lhe da máscara que ia comprar nessa mesma tarde, uma espécie de monstro, "Mas mais para fazer rir do que para assustar", e isso implicou falar-lhe da festa, o nome dele no convite juntamente com o de Mina, todos mascarados, sem saberem quem eram os outros, cada um pode fazer o que quiser, não tem importância. Estavam no recreio, agora deserto depois de todos terem partido, a inventar histórias acerca das coisas que se podem fazer quando ninguém nos reconhece. E ela, queria ir? Queria, queria muito. A mãe atravessava o pátio ao seu encontro, deu um beijo a Linda, pôs a mão no ombro de Henry e dirigiram-se para o carro. Linda falou à mãe da máscara de Henry, da festa de Henry, Claire deu-lhe autorização para ir, devia ser divertido. Despediram-se.

Entrou na loja ofegante, não queria chegar outra vez atrasado. O homem atrás do balcão tinha uma maneira peculiar de falar com garotos, uns modos joviais, mas sem graça, "Onde é o fogo?", perguntou quando entrou na loja e, tentando transmitir-lhe a sua impaciência, Henry respondeu, muito depressa, "Vim por causa da máscara". O dono da loja inclinou-se lentamente sobre o balcão, com a graçola na ponta da língua, mal podendo esperar para a dizer. "Tem piada, pensei que já a tinhas posta", e ficou a observar a cara de Henry, esperando que o riso dele fizesse coro com o seu, "Disse que ma guardava", "Vamos lá ver", seguindo ostensivamente com o dedo os números do calendário, "se não estou em erro", conteve a respiração e prosseguiu em voz arrastada, "se não estou em eeerro, hoje é terça-feira". Fez um sorriso radioso para o cliente Henry, ergueu as sobrancelhas, observando a sua inquietação, "Ainda a tem?", e sem baixar as sobrancelhas, com um dedo no ar, um palhaço que não divertia ninguém, "É esse o problema, vamos lá ver se ainda a tenho". Enquanto Henry começava a compreender como era feita a violência, meteu a mão por baixo do balcão, "Vamos lá ver o que temos aqui", donde tirou a máscara, a máscara de Henry. "Não se importa de a embrulhar? Sabe, tem de ser segredo." Henry reparou pela primeira vez que o outro era velho e sentiu uma certa pena dele. O homem embrulhou cuidadosamente a máscara em duas folhas de papel pardo e deu-lhe um saco de rede para a levar. Agora estava calado. Henry teria preferido que continuasse a dizer piadas sem graça, que pelo menos conseguia perceber. As únicas palavras que proferiu foram "Aqui tens", estendendo-lhe o saco. Ao sair da loja, Henry despediu-se, mas o homem já desaparecera na sala dos fundos, sem o ouvir.

Mina não se referiu à noite da véspera, cortou-lhe fatias de bolo. a falar muito e muito depressa, fazendo uma breve referência bem-humorada à forma como saíra de casa, voltara a ser igual a si mesma. Na cozinha, Henry viu o vestido num balde com água, como um peixe morto de uma espécie rara. "A família de uma pessoa minha amiga lá da escola", disse, hesitante, "convidou-me para passar o domingo com eles", e Mina. distante, "Ah. sim? E eu conheço essa pessoa? Podias dizer-lhe para vir à festa-. "Já disse, e eles querem que vá lá no domingo", porque seria tão importante não dizer que se tratava de uma rapariga? E Mina, em tom vago, "Vamos ver", mas ele já a seguia, em direcção à cozinha, "Sabes, tenho de lhes dar a resposta amanhã", e, na mudança da sua voz. uma exigência de resposta ao silêncio que se seguiu. Ela sorriu, afastou o cabelo dos olhos, afável e resignada, e respondeu "Acho que não pode ser, querido. E os trabalhos de casa que não fizeste ontem à noite?", impelindo-o docemente em direcção às escadas, ele a esquivar-se, "Mas eles convidaram-me, quero ir". "Acho que não pode ser, meu amor", recusou Mina, jovial. "Mas eu quero ir." Ela largou-lhe o ombro, sentou-se no primeiro degrau, com o queixo apoiado nas mãos, a reflectir durante muito tempo. "E que vou eu fazer no domingo enquanto estiveres com esses amigos?" Esta súbita mudança, o pedinte transformado em dador, ela sentada a seus pés, ele a dominá-la, nada havia a responder, ficou calado. Daí a pouco, Mina insistiu, "Então?", e ele aproximou-se um poucochinho, até ela lhe alcançar as mãos com as suas mãos estendidas, Mina a fitá-lo por cima dos óculos, Henry a ver-lhe as pálpebras molhadas. Não estava certo, era terrível, sentiu um peso tremendo sobre os seus ombros, uma pessoa seria assim tão importante? Ela apertou-lhe as mãos com mais força. "Está bem", condescendeu, "eu fico."

Pegando-lhe nos braços, tentou atraí-lo para si, mas ele libertou-se e correu até ao andar de cima. Tirou o fato castanho de cima da cama e pendurou-o na cadeira, deitou-se de costas, afastou a imagem de Linda, sentindo-se culpado. Mina entrou, sentou-se junto ao seu ombro a fitá-lo, enquanto ele tentava evitar que os olhares de ambos se cruzassem, não queria tornar a ver-lhe os olhos, ela permaneceu sentada a brincar com o canto do lençol, a torcê-lo entre o polegar e o indicador. Mina alisou-lhe o cabelo com os dedos, ficou tenso à espera que parasse, não lhe agradava a proximidade daquelas mãos junto do rosto. "Estás zangado comigo, meu amor?" Abanou a cabeça, sem a fitar. "Sinto que estás zangado comigo." Pôs-se de pé e pegou num pedaço de madeira de cima da mesa, Henry andava a talhá-lo havia meses, queria fazer um peixe-espada, mas não lhe conseguia imprimir vigor, sinuosidade, não passava de um bocado de madeira, uma representação infantil do peixe. Mina virava-o e ré virava-o, olhando-o sem o ver. No tecto havia uma grande escadaria bifurcada a meio e Linda e Claire a lutarem com almofadas no quarto, provavelmente Claire queria pôr Linda bem disposta por ser o seu primeiro dia de escola, e o homem alto, de sobrancelhas grossas, que dormia no quarto de Claire. "Tens mesmo vontade de ir, não tens?", perguntou Mina. "Não interessa, não é importante." Mina continuava às voltas com o pedaço de madeira, "Se queres ir, vai". Henry sentou-se, ainda não tinha idade para saber os jogos em que as pessoas se comprazem, era demasiado novo, por isso concluiu, "Está bem, então vou". Mina saiu do quarto, empunhando o vigoroso peixe-espada.

Henry ergueu a aldraba pesada e deixou-a cair contra a porta branca. Claire conduziu-o pelo corredor escuro até à cozinha. "Ao domingo, a Linda passa quase sempre a manhã na cama", emergiram na luminosidade da cozinha, "Vai até lá acima brincar com ela, mas antes podes conversar comigo e beber qualquer coisa quente". Deixou-a despir-lhe o casaco, virou-se para ela admirar o seu fato novo, "Temos de arranjar outra roupa para brincares". Preparou-lhe um chocolate quente, a sua conversa ligeira distraiu-o, sem fazer com que ficasse alerta contra surpresas inesperadas. Estava satisfeita por ele ser amigo da Linda, dizia, e contou-lhe como a filha passava o tempo a falar dele, "Ela fez uma pintura e um desenho para ti, mas tenho a certeza de que não tos vai mostrar". Queria saber coisas a seu respeito, por isso falou-lhe dos objectos comprados nas lojas de velharias, do teatro de cartão e dos livros antigos, e depois de Mina, como sabia contar histórias por ter sido actriz, nunca falara tanto de uma só vez, ia contar-lhe tudo, os disfarces ao jantar e a bebedeira, mas conteve-se, não sabia como falar disso, queria agradar-lhe e talvez ela não gostasse de saber que se embriagara e vomitara por cima de Mina. Claire deu-lhe roupa para poder brincar à vontade, uma camisola azul-clara e uns jeans desbotados que eram de Linda, importava-se de vestir aquilo?, quis saber, e ele respondeu que não a sorrir. Saiu da cozinha para atender o telefone, gritando-lhe que podia procurar o caminho até ao quarto de Linda, atravessou mais uma vez o corredor escuro que conduzia à escada, sem perceber por que só era iluminado nas extremidades. Parou no patamar, junto à arca maciça, percorreu com a ponta dos dedos as figuras gravadas no latão, um cortejo com gente rica em primeiro plano, talvez parentes dos noivos, a encherem a rua e os passeios, os trajes a ondearem na sua esteira, todos erectos e altivos, atrás deles os aldeões, a gentalha, cada um com uma taça de vinho na mão, a cambalearem agarrados ao vizinho, bêbados e a rir dos que seguiam à frente. Viu uma porta aberta e espreitou para o interior, um quarto, o maior que já vira, uma grande cama de casal ao meio, sem estar encostada à parede. Avançou alguns passos, a cama estava por fazer, havia qualquer coisa volumosa no centro, era um homem a dormir com o rosto virado para baixo, ficou paralisado de medo, recuou rapidamente até ao patamar e fechou a porta sem ruído atrás de si. Lembrou-se da roupa de Linda que deixara em cima da arca, voltou a buscá-la e subiu a correr o segundo lanço de escadas, até ao quarto da amiga.

Linda estava sentada na cama a fazer um desenho a lápis preto numa cartolina branca e, mal o viu, começou logo a falar, "Por que é que estás assim? Mal consegues respirar". Henry sentou-se na cama, "Subi a escada a correr, vi um homem a dormir num dos quartos, parecia morto". Linda largou o desenho, que caiu ao chão, e riu, "É o Theo, não te falei dele?". Puxou o lençol até ao queixo, "Aos domingos acordo cedo, mas só me levanto à hora do almoço". Ele mostrou-lhe a roupa, "A tua mãe deu-me isto, onde é que posso vestir-me?". "Aqui, claro, tens um cabide ao pé de ti e podes pôr o fato no roupeiro." Puxou o lençol mais para cima até só se lhe verem os olhos, a observá-lo enquanto pendurava o fato e atravessava o quarto para se ir sentar de novo junto dela, sem as calças nem o casaco, a sentir através dos cobertores grossos o calor do seu corpo contra as pernas nuas, todo o peso apoiado nos pés de Linda, a contemplar o cabelo louro espalhado na almofada como um leque aberto. De súbito, começaram a rir de coisa nenhuma, Linda tirou a mão debaixo da roupa, puxou-o pelo cotovelo, "Por que não te metes aqui comigo?". Henry levantou-se, "Está bem". Ela aninhou-se sob as mantas com uma risadinha, dizendo, em voz abafada, "Mas primeiro tens de tirar a roupa toda". Assim fez, e enfiou-se na cama a seu lado, com o corpo mais frio do que o dela, o que a fez tiritar quando se deitou com o peito encostado às suas costas. Virou-se de frente para ele, na obscuridade rosada exalava um cheiro animal, a leite, mais tarde, ao recordar, foi esse o princípio e o fim do seu domingo, escutando o coração a bater na almofada, soerguendo a cabeça uma vez para ela libertar o cabelo, e a falar, sobretudo da escola, da primeira semana que ela lá passara, dos amigos e dos professores, não parecia possível ter havido outras coisas naquele dia, ter vestido os jeans e a camisola de Linda e de ter acompanhado os milhares de pessoas que vagueavam por Hampstead Heath, com Linda a mostrar-lhe os quadros da Kenwood House, damas frias e altivas, os seus filhos tão diferentes, de ter ficado muito tempo em frente do Rembrandt, concordando tratar-se do melhor de todos e talvez do melhor do Mundo, embora Linda não gostasse da escuridão que rodeava a figura, apetecia-lhe ver a sala, de a seguir se sentarem na casa de Verão de Samuel Johnson, claro que era um escritor famoso, mas de quê e de quando?, e de tornarem a atravessar o Heath com centenas de pessoas nesse dia de Inverno sombrio, saiu debaixo dos lençóis para respirar e ela apoiou o rosto no seu peito, depois também pôs a cabeça de fora e assim permaneceram a dormitar durante meia hora, teria aquilo acontecido durante a meia hora que dormiu, ou teria sido tudo uma espécie de sonho? Nessa noite, já na sua cama, em casa, pareceu-lhe que o que houvera de real fora estar deitado durante meia hora ou mais. Nada como imaginara, as coisas nunca são exactamente como pensamos que vão ser, pois, chegado o dia, ela esquecera-se das lâmpadas vermelhas e já era tarde de mais porque as lojas estavam fechadas, a receita do ponche metida num envelope, agora não havia tempo para a procurar, então Mina comprou uma grade de garrafas, sobretudo vinho, explicou, pois quase toda a gente gosta de vinho, e dois garrafões de cidra para os outros. Henry nunca vira nada assim, não era um gravador, mas o velho gira-discos que o filho de Mrs. Simp son emprestara e os discos antigos da mãe. Durante os dias que antecederam a festa, antevendo-a em pensamento, a casa era maior, as salas eram salões, os convidados pareciam pigmeus em comparação com a altura dos tectos, a música ressoava de todos os lados, havia disfarces exóticos, príncipes de países distantes, vampiros, lobos do mar e coisas semelhantes, e ele com a máscara. Mas agora, que os primeiros convidados estavam quase a chegar, as salas tinham as dimensões do costume, o que era muito natural, a música vinha de um canto, arranhada e monótona, e lá estavam os primeiros convidados, Henry a abrir-lhes a porta com a sua cara de trinta xelins de olhos arregalados, lá estavam os convidados mascarados de pessoas vulgares, seriam aquilo disfarces?, teriam lido bem os convites? Abriu-lhes a porta, em silêncio, e ficou a vê-los passar, com um aceno de cabeça, não dando mostras de acharem a máscara nada de especial, apenas um miúdo qualquer a abrir-lhes a porta, entravam em grupos de dois ou três. a rir e a falar discretamente, serviam-se de bebidas e começavam a rir e a falar mais à vontade, homens de fatos cinzentos e de fatos pretos com as mãos bem enfiadas nos bolsos, a oscilarem para trás e para a frente, aproximando-se e, afastando-se da pessoa com quem conversavam, as mulheres de cabelo grisalho amontoado no alto da cabeça, segurando os copos com os dedos, todos parecidos. Mina estava no andar de cima, a preparar-se para deslizar até ao rés-do-chão e para se misturar com os convidados, disfarçada de modo a passar desapercebida. Olhou em redor, era possível que já ali estivesse, não havia nenhuma mulher, nenhum homem que parecesse ser ela. Vagueou entre os grupos de pessoas que conversavam, havia qualquer coisa nos homens, nas mulheres, as ancas de um, os ombros de outros, um homem baixo, calvo e perfumado, com o pescoço demasiado magro para a camisa, o nó da gravata do tamanho de um punho fechado, inclinou-se para Henry que ia a passar à procura de Mina, "De certeza que és o Henry", numa voz de cana rachada, "de certeza, vê-se pela tua cara". Endireitou-se e deu uma gargalhada, olhando em redor para ver se algum dos outros ouvira a piada, Henry ficou à espera, já se passara o mesmo na loja, à espera das graçolas do vendedor. O homem calvo voltou a dirigir-lhe a palavra, como se quisesse reconquistar-lhe as boas graças, "Claro que soube que eras tu por causa da altura, meu querido. Sabes quem eu sou?". Henry disse que não com a cabeça, vendo o homem levar a mão à careca, levantar a pele entre o polegar e o indicador para lhe mostrar, nem miolos nem ossos, mas cabelo negro frisado, penteado às ondas, que tornou a cobrir com a pele sem cabelos, "Já consegues adivinhar? Não?". Estava satisfeito, manifestamente satisfeito, curvou-se mais para lhe segredar, "Sou a tia Lucy", e depois afastou-se. Lucy, uma dessas tias que não era tia, uma amiga da Mina que costumava passar lá por casa de manhã para tomar café e queria que Henry fosse para o seu grupozinho de teatro, estava sempre a dizer que gostava de o ter lá, sem se deixar desarmar pelas suas recusas, mas não havia perigo, pois Mina, talvez por ciúmes, não queria. Mas qual desses homens de ancas largas, qual dessas mulheres entroncadas, seria a Mina? Ou ainda estaria à espera de que os outros bebessem mais vinho? Sorveu um golo através da máscara, recordando a primeira última vez, a seguir o vestido de molho num balde, que seria feito dele agora? Engoliu o vinho rapidamente, evitando-lhe o gosto, o saburro nos dentes que não conseguia remover com a língua, à procura de Mina, à espera de Linda, que devia estar a chegar, sem disfarce, dissera-lhe que não era preciso, pois ninguém a conhecia, era uma desconhecida e todos os desconhecidos estão mascarados. Mas seria aquilo uma festa, todas as pessoas de pé, em círculo, a conversar, a dizer piadas, a passar de um grupo para outro, o gira-discos a tocar sem ninguém dar atenção à música, de resto impossível de ouvir com o ruído das vozes, ninguém para mudar o disco, então as festas eram assim? Foi ele mudá-lo, estava a pegar na capa, restos descamados de cartão em frangalhos, quando uma mão lhe imobilizou o pulso, uma mão muito gasta, ao erguer os olhos deparou com um velho muito velho, topou um ombro, vislumbrou uma corcova a sobressair ligeiramente por baixo do casaco e uma barba rala, pêlo aqui. pêlo ali. por cima dos lábios uma zona oleosa onde nem uma penugem crescia, o homem pegava-lhe no pulso, agarrando-o com força, depois deixou-lhe cair a mão, "Não te dês a esse trabalho, de qualquer modo não se ouve nada". Henry fitou-o, como que a defender-se pegou no copo de vinho, "Estás disfarçado? Está aqui alguém mascarado?". O homem apontou para as costas sem parecer ofendido, "Como é possível disfarçar isto?". "Podia fazer parte do disfarce, quero dizer, ser um postiço ou qualquer coisa .." O resto da frase perdeu-se no meio do barulho, o homem virou-lhe as costas e gritou "Põe aqui a tua mão, vá lá, põe aqui a mão e diz-me se é postiço".Tal como o vinho, que se pode engolir de um trago, é possível fazer outras coisas muito depressa, estendeu a mão e tocou nas costas do homem e, quando este disse que isso não bastava para saber se era postiço ou não, beliscou a marreca, Henry com a máscara horrenda e sorridente, o cabelo desgrenhado, os lábios coloridos manchados de vinho, um monstrozinho risonho a apertar com força a corcova do velho, a um tempo decidido e submisso, até o outro ficar satisfeito e se voltar, "Não é possível esconder uma coisa destas", dirigindo-se ao outro lado da sala, onde ficou sozinho, a sorrir para os outros convidados e a beber. Henry encheu o copo e começou

também a beber, vagueando por entre os círculos de pessoas a conversar, cujas vozes chegavam até ele num crescendo para descerem a seguir, sons plangentes de órgão que o entonteciam, teve de se apoiar na mesa, à espera, onde estaria Mina, onde estaria Linda? Esta gente que conversava e bebia não se deixava iludir pelas aparências, embora disfarçados, sabiam quem eram, era-lhes fácil conversar, impossível fazer o que se quer, mesmo não sendo nós próprios, continuamos a ser alguém, e alguém tem de ter a culpa, a culpa, a culpa de quê? Henry agarrou-se mais firmemente à beira da mesa, com ambas as mãos, que culpa?, em que estava a pensar ainda agora? Mais vinho, mais vinho, um impulso nervoso fazia-o levar o copo aos lábios de dez em dez segundos, por não darem por ele, por não ser ninguém numa festa de gente crescida, um miúdo qualquer que lhes abria a porta à chegada, por não haver a animação que imaginara, por tudo isto bebeu quatro copos de vinho. No outro extremo da sala, um homem destacou-se de um grupo, recuou a cambalear com o copo na mão até se abater na grande cadeira atrás dele, onde ficou estirado a rir para os amigos, que riam ainda mais alto. As palavras de Henry rodopiavam-lhe na cabeça como números descomunais num quadro negro, ocorrendo-lhe lentamente, se largasse a mesa, caía. Quem ia estatelar-se, o monstro ou Henry, de

quem era a culpa?, lembrava-se agora, vestido como outra pessoa qualquer e a fingir ser eles e a apanhar com as culpas do que eles fizeram, ou do que se faz quando se está na pele deles, do que se faz .. do que se fez?, Os grandes números eram tão lentos, havia qualquer coisa estranha em tudo aquilo, quando Mina se vestia para o jantar, quem pensaria ela que era quando fazia o que fazia? O vestido no balde, como um animal marinho de uma espécie rara, estavam no

recreio deserto a dizer uma graça sobre o que uma pessoa pode fazer disfarçada e a Claire a aproximar-se, velha e nova, e o militar a limpar a perna com uma toalha, o homem na cama, a escuridão por trás da cabeça de Rembrandt, Linda ali perto a dizer que preferia, Linda ali perto, Linda do outro lado da sala, de costas para ele, os cabelos em cascata como a Alice no País das Maravilhas, o ruído das vozes não a deixava ouvi-lo, não podia largar a mesa. E ela a conversar com o homem que caíra na cadeira, o homem na cadeira, os números enormes, o homem na cadeira a puxar Linda para o colo, Linda e Henry, ele de pé em frente do espelho do quarto a sentir-se livre, a dançar como Henry e como Linda, a puxar Linda para o colo segurando-a com força por trás da cabeça, ela demasiado assustada para fazer um movimento, aterrada, sem conseguir mexer a língua, e quem a iria ouvir no meio de toda aquela vozearia?, desabotoava a camisa com uma das mãos, o homem na cadeira, o coro dissonante das vozes num crescendo, ninguém via, o homem na cadeira apertava o rosto dela contra si, não a largava, de quem era a culpa?, pensou Henry. Largou a mesa e, em passos lentos e incertos, com o vinho a subir-lhe do estômago, começou a atravessar a sala cheia de gente, ao encontro deles.

 

                                                                                Ian McEwan  

 

                      

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