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PRÍNCIPE DE FOGO
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CAPÍTULO 22

MARTIGUES, FRANÇA

A casa ficava num bairro árabe da classe operária, na extremidade meridional da cidade. Tinha um telhado de telhas vermelhas, o estuque exterior rachado e um pátio dianteiro, cheio de ervas daninhas e entulhado de brinquedos em plástico de cores primárias partidos. Ao empurrar a porta da frente partida, Gabriel esperara encontrar provas da existência de uma família. Em vez disso, encontrou uma residência saqueada, com salas despidas de mobiliário e paredes nuas. Dois homens esperavam-no, ambos árabes, ambos bem alimentados. Um deles segurava um saco de plástico com o nome de uma conhecida cadeia de lojas popular entre a classe baixa francesa. O outro estava a baloiçar um taco de golfe enferrujado, só com uma mão, como se fosse um bastão.

— Despe-te.

A moça tinha-lhe falado em árabe. Gabriel permaneceu imóvel com as mãos pendendo contra a costura da calça, como um soldado em sentido. A moça repetiu a ordem de um modo mais agressivo. Como Gabriel continuasse imóvel, o homem que tinha conduzido o Mercedes esbofeteou-o no rosto.

Despiu o blusão e a camiseta preta. Já lhe tinham sido retirados o rádio e as armas — a moça tinha tirado quando ainda estavam em Marselha. Ela examinou as cicatrizes no peito e nas costas, depois mandou-o despir o resto da roupa.

— Que se passa com a tua modéstia muçulmana?

Recebeu um segundo estalo na face pela sua insolência, tendo esse sido dado com as costas da mão. De cabeça a andar à roda, Gabriel descalçou os sapatos e tirou as meias. Depois desabotoou a calça e tirou-as, fazendo-as deslizar sobre os pés nus. Passado um momento, estava em frente dos quatro árabes apenas de cuecas. A moça estendeu a mão e puxou o elástico.

— Isso também — disse. — Tira-as.

Acharam a sua nudez divertida. Os homens fizeram comentários acerca do seu pênis enquanto a mulher dava voltas em redor dele e lhe avaliava o corpo como se ele fosse uma estátua no pedestal. Ele lembrou-se de que para eles era um mito, uma criatura que surgira a meio da noite e matara jovens guerreiros. Olhem para ele, pareciam eles dizer com os olhos. Ele é baixo, tão vulgar. Como é que conseguiu matar tantos dos nossos irmãos?

A moça resmungou qualquer coisa em árabe que Gabriel não conseguiu compreender. Os três homens começaram a cortar a roupa que ele despira com tesouras e facas, e fizeram-nas em pedaços. Nem uma costura, nem uma bainha, nem um colarinho sobreviveu. Apenas Deus sabia de que andariam eles à procura. Um segundo sinal? Um transmissor de rádio escondido? Um diabólico dispositivo judaico que os matasse a todos e o deixasse escapar na altura e momento da sua escolha? Durante um momento, a moça observou aquela patetice com grande seriedade, tornando depois a olhar para Gabriel. Deu mais duas vezes a volta ao corpo nu dele, com uma pequena mão pensativamente premida contra os lábios. De cada vez que passava à frente dele, Gabriel olhava-lhe diretamente para os olhos. Havia algo de clínico no seu olhar, algo de profissional e analítico. Quase esperava que ela a qualquer momento tirasse de algures um minigravador e começasse a ditar notas de diagnóstico. Cicatrizes rugosas na parte superior do braço esquerdo do quadrante do peito, resultado de uma bala disparada contra si por Tariq al-Hourani, que Alá abençoe o seu glorioso nome. Cicatrizes tipo lixa em grande parte das costas. Fonte das cicatrizes desconhecida.

A revista à sua roupa nada produziu além de uma pilha de algodão e ganga desfeitos. Um dos árabes recolheu os restos e atirou-os para a lareira, depois regou-os

Com querosene e pegou-lhes fogo. Enquanto a roupa de Gabriel se transformava em cinzas, eles juntaram-se mais uma vez à volta dele, a moça de frente para ele, os dois árabes grandes um de cada lado, e aquele que servira de motorista nas costas dele. O árabe à sua direita baloiçava preguiçosamente o taco de golfe.

Havia um ritual para situações como aquela. Ele sabia que o espancamento fazia parte disso. A moça iniciou o ritual batendo-lhe no rosto. Depois afastou-se e deixou que os homens tratassem do trabalho pesado. Um golpe bem alvejado com o taco de golfe fez com que os seus joelhos enfraquecessem e ele caiu ao chão.

Depois começaram as pancadas pesadas, uma barragem de pontapés e socos que pareciam alvejar todos os centímetros do seu corpo. Evitou gritar. Não lhes queria dar essa satisfação, nem queria estragar o plano deles alertando os vizinhos — não que alguém naquela parte da cidade se preocupasse muito com três homens a espancarem um judeu. Terminou tão subitamente como começou. Em retrospectiva não era assim tão mau — na verdade, tinha passado por pior às mãos de Shamron e dos seus rufias da Academia. Tiveram cuidado com o rosto, o que quis dizer que ele precisava de permanecer apresentável.

Jazia deitado sobre o lado direito, com as mãos sobre os genitais de modo protetor e os joelhos contra o peito. Conseguia sentir sangue nos lábios, e o seu ombro esquerdo sentia-se gelado no seu lugar, o resultado de ter sido pisado diversas vezes numa sucessão rápida pelo maior dos três árabes. A moça atirou-lhe o saco de plástico para a frente do rosto e disse-lhe que se vestisse. Ele fez uma tentativa imediata de movimento, mas não pareceu conseguir rolar para o lado ou sentar-se ou levantar as mãos. Por fim, um dos árabes agarrou-o pelo braço esquerdo e puxou-o para uma posição sentada. O ombro esquerdo ferido ressentiu-se, e pela primeira vez gemeu com dores.

Aquilo, como a sua nudez, foi motivo de gargalhada.

Ajudaram-no a vestir-se. Era óbvio que tinham estado à espera de um homem maior. A T-shirt amarela-fluorescente, com MARSEILLES! escrito no peito, era muito grande. A calça de pregas brancas era larga na cintura e longa nas pernas. As sandálias baratas de couro escorregavam dos pés.

— Consegue levantar? — perguntou a moça.

— Não.

— Se não partirmos agora, vais chegar atrasado ao teu próximo posto de controle. E se chegares demasiado tarde ao teu próximo posto de controle, sabes o que vai acontecer à tua mulher.

Ele rolou pondo-se de gatas e, depois de duas tentativas falhadas, conseguiu levantar-se. A moça empurrou-o entre as espáduas e fez com que ele cambaleasse na direção da porta. Pensou em Leah e perguntou-se onde é que ela estaria. Enfiada num saco para cadáveres? Trancada no porta-bagagem de um carro? Enfiada dentro de uma grade de madeira? Será que ela sabia o que lhe estava a acontecer, ou teria a bênção de acreditar que se tratava apenas de mais outro episódio no seu pesadelo sem fim? Era por Leah que ele se mantinha íntegro e por Leah que continuava a pôr um pé à frente do outro.

Os três homens permaneceram na casa. A moça andou meio passo atrás dele, com uma sacola de couro pendendo-lhe do ombro. Deu-lhe outro empurrão, dessa vez em direção ao Mercedes. Ele tropeçou para a frente, através do pátio empoeirado e repleto de brinquedos. Os carros Matchbox revirados, o carro dos bombeiros enferrujado, a boneca sem braços e o soldado sem cabeça — a Gabriel parecia-lhe uma cena de carnificina causada por uma das bombas engenhosamente montadas de Khaled. Dirigiu-se instintivamente para o lado do passageiro.

— Não — disse a mulher. — Vais conduzir.

— Não estou em condições para isso.

— Mas tens de conduzir — disse ela. — De outro modo, vamos chegar atrasados e a tua mulher vai morrer.

Gabriel sentou-se, relutante, atrás do volante. A mulher sentou-se ao lado dele. Depois de ter fechado a porta, meteu a mão na sacola e tirou uma arma, uma Tanfolgio TA-90, que lhe apontou ao abdômen.

— Sei que me podes tirar isto em qualquer altura que queiras admitiu ela. — Se escolheres esse tipo de ação, não te vai servir de nada. Asseguro-te de que não sei onde está a tua mulher, nem sei qual o nosso destino final. Vamos juntos nesta viagem, tu e eu. Somos parceiros nesta aventura.

— Que nobre da tua parte. Ela bateu-lhe no rosto com a arma.

— Tem cuidado — disse ele — , pode disparar.

— Conheces a França muito bem, não conheces? Trabalhaste aqui. Mataste aqui muitos palestinos.

Acolhida pelo silêncio de Gabriel, atingiu-o uma segunda vez.

— Responde-me! Já trabalhaste aqui, não já?

— Sim.

Já mataste aqui palestinos, verdade?

Ele assentiu.

— Tem vergonha? Diga em voz alta.

— Sim — disse ele — , já matei aqui palestinos. Matei o Sabri aqui. — Então conheces bem as estradas da França. Não precisas de desperdiçar tempo a consultar um mapa. Isso é bom, porque não temos muito tempo.

Entregou-lhe as chaves.

— Vai na direção de Nimes. Tens uma hora.

— Fica pelo menos a cem quilômetros.

— Então sugiro que pares de falar e comeces a conduzir.

Gabriel tomou o caminho de Aries. O Reno, de um azul-prateado e agitado pelos remoinhos, deslizava debaixo deles. Do outro lado do rio Gabriel pressionou o acelerador em direção ao chão e iniciou a parte final em direção a Nimes. O tempo estava perversamente glorioso: o céu sem nuvens e intensamente azul, os campos incendiados com lavanda e girassóis, os montes inundados por uma luz tão pura que Gabriel conseguia distinguir as linhas e fissuras das formações rochosas a 20 quilômetros de distância.

A moça sentava-se calmamente com os tornozelos cruzados e a arma no colo. Gabriel perguntou-se Por que Khaled a escolhera para o escoltar até a morte. Porque a sua juventude e beleza se encontravam em marcado contraste com a enfermidade deformadora de Leah? Ou era alguma espécie de insulto árabe? Quereria ele humilhar Gabriel fazendo-o acatar as ordens de uma bela jovem? Quaisquer que fossem os motivos de Khaled, ela estava indubitavelmente bem treinada. Gabriel sentira-o durante o seu primeiro encontro em Marselha e de novo em casa, em Martigues — e conseguia vê-lo agora nos braços e ombros musculados dela, e no modo como manuseava a arma. Mas eram as mãos dela que mais o intrigavam. Tinha as unhas curtas e sujas de uma ceramista ou de alguém que trabalhava no exterior.

Ela tornou a bater-lhe sem aviso. O carro virou, e Gabriel teve de se debater para conseguir voltar a controlá-lo.

— Porque é que fizeste isso

— Estavas a olhar para a arma?

— Não estava.

— Estava a pensando em tirá-la de mim.

— Não.

— Mentiroso! Judeu mentiroso!

Levantou a arma para atingi-lo de novo, mas dessa vez Gabriel levantou defensivamente a mão e conseguiu evitar o golpe.

— É melhor apressar-se — disse ela — , ou não chegaremos a Nimes a tempo. — Estou a quase a 200 quilômetros por hora. Não posso conduzir mais depressa sem nos matar a ambos. Da próxima vez que Khaled ligar, diz-lhe que vai ter de prorrogar o prazo.

— Quem?

— Khaled — repetiu Gabriel. — O homem para quem estás a trabalhar. O homem que está a dirigir esta operação.

— Nunca ouvi falar de um homem chamado Khaled.

— Erro meu.

Ela estudou-o durante um momento.

— Falas árabe muito bem. Cresceste no vale de Jezreel, não foi? Não muito longe de Afula. Ouvi dizer que há aí muitos árabes. Pessoas que se recusaram a partir ou a serem expulsas.

Gabriel não mordeu o isco.

— Nunca lá foste?

— À Palestina? — Um ligeiro sorriso. — Vi-a à distância — disse ela. Líbano, pensou Gabriel. Ela viu-a do Líbano.

— Se vamos fazer esta viagem juntos, devia chamar-te qualquer coisa. — Não tenho nome. Sou apenas uma palestina. Sem nome, sem rosto, sem terra, sem casa. A minha mala é o meu país.

— Ótimo — disse ele. — Vou chamar-te Palestina.

— Não é um nome adequado a uma mulher.

— Está bem, então chamo-te Palestina. Ela olhou para a estrada e assentiu.

Podes chamar-me Palestina.

A um quilômetro de Nimes, ela orientou-o para o estacionamento de gravilha pertencente a uma loja à beira da estrada que vendia vasos de barro e estátuas para jardins. Durante cinco insuportáveis minutos, aguardaram em silêncio o toque do telefone por satélite dela. Quando este por fim tocou, o ruído eletrônico soou a Gabriel como uma sirena. A moça ouviu sem falar. Pela sua expressão apática, Gabriel não conseguiu perceber se lhe tinham pedido para continuar ou para o matar. Ela desligou a chamada e fez um aceno com a cabeça na direção da estrada. — Continua pela autoestrada.

— Em que direção?

— Para norte.

— Para onde vamos? Uma hesitação, e depois:

— Lyon.

Gabriel obedeceu. Quando se aproximavam da portagem da autoestrada, a moça enfiou a

Tanfolgio na sacola. Depois entregou-lhe alguns trocos para pagar a portagem. Regressados à estrada, ela tornou a tirar a arma. Pousou-a no colo. Tinha o indicador, cuja unha era suja e curta, pousado com indiferença no gatilho. — Como é que ele é?

— Quem?

— O Khaled — disse Gabriel.

— Como te disse antes, não conheço ninguém chamado Khaled.

— Passaste a noite com ele em Marselha.

— Na verdade, passei a noite com um homem chamado monsieur Véran. É melhor conduzires mais depressa.

— Sabes que ele nos vai matar. Vai-nos matar a ambos. Ela nada disse.

— Disseram-te que isto era uma missão suicida? Preparaste-te para morrer?

Rezaste e gravaste o vídeo de despedida para a tua família?

— Por favor, conduz e não voltes a falar.

— Somos shaheeds, tu e eu. Vamos morrer juntos... por motivos diferentes, mas juntos.

— Por favor, cala-te.

E ali estava, pensou ele. A fenda. Khaled mentira-lhe.

— Vamos morrer esta noite — disse ele. — Às sete. Ele não te disse isso?

Outro silêncio. O dedo dela movia-se sobre a superfície do gatilho.

— Calculo que ele se tenha esquecido de to dizer — prosseguiu Gabriel. — Mas, também, sempre foi assim. São os meninos pobres que morrem pela Palestina, os meninos dos campos e das barracas. A elite limita-se a dar as ordens a partir das suas villas em Beirute, Túnis e Ramallah.

Ela tornou a apontar a arma ao rosto dele. Dessa vez, ele agarrou-a e arrancou-lhe da mão.

— Quando me bates com isto, dificultas-me a condução. Gabriel estendeu-lhe a arma. Ela pegou-lhe e tornou a colocá-la no colo.

— Somos shaheeds, Palestina. Estamos a avançar em direção à destruição, e é o Khaled quem nos dá instruções. Sete horas, Palestina. Sete horas.

Na estrada entre Valence e Lyon, afastou Leah do pensamento e não pensou em mais nada que não o caso. O seu instinto foi abordado como se se tratasse de um quadro. Tirou-lhe o verniz e dissolveu a tinta, até nada restar além das linhas de carvão fragmentadas do esboço; depois começou a reconstruí-lo, camada a camada, tom e textura. Por um momento, foi incapaz de lhe dar uma autenticação fiável. Seria Khaled o artista, ou teria sido apenas um aprendiz na oficina do Velho Mestre, Yasser Arafat? Ter-lhe-ia Arafat ordenado que vingasse a destruição do seu poder e autoridade, ou ter-se-ia Khaled encarregado do trabalho por vontade própria para vingar a morte do pai e do avô? Tratar-se-ia de outra batalha numa guerra entre duas pessoas ou apenas de uma explosão no feudo que há tanto se alimentava entre duas famílias, os al-Khalifas e os Shamron-Allons? Suspeitava que se trataria de uma combinação de ambas, um cruzamento de necessidades e objetivos. Dois grandes artistas tinham cooperado num único trabalho: Ticiano e Bellini, pensou. O Festim dos Deuses.

No entanto, a data do comissionamento do quadro permanecia, também para ele, vaga. De uma coisa estava ele certo: o trabalho necessitara de diversos anos e muito sangue para ser executado. Tinha sido enganado, e com muita perícia. Sucedera o mesmo com todos. O arquivo encontrado em Milão tinha sido introduzido por Khaled de modo a atrair Gabriel para a sua busca. Khaled deixara atrás de si um rasto de pistas e dera corda ao relógio, de modo que Gabriel não tinha qualquer escolha além de os perseguir desesperadamente. Mahmoud Arwish, David Quinnell, Mimi Ferrere: todos eles tinham feito parte daquilo. Gabriel viu-os então, silenciosos e quietos, como figuras menores nos cantos de um Bellini, figuras essas de natureza alegórica, mas que apoiavam o foco. Mas qual seria o motivo? Gabriel sabia que o quadro estava por terminar. Khaled tinha mais uma cartada na manga, mais um espetáculo de sangue e fogo. Gabriel conseguira de algum modo sobreviver. Ele estava certo de que a pista da sua sobrevivência se encontrava algures ao longo do caminho por onde já viajara. E assim, enquanto acelerava para norte em direção a Lyon, não via a autoestrada, mas sim o quadro: cada minuto, cada cenário, cada encontro, óleo sobre a tela. Haveria de sobreviver, pensou, e um dia iria atrás de Khaled nos seus próprios termos. E a moça, Palestina, seria a sua porta de acesso.

— Desvia para a beira da estrada.

Gabriel obedeceu. Estavam a poucos quilômetros do centro de Lyon. Desta vez, apenas dois minutos se passaram antes de o telefone tocar.

— Volta para a estrada — disse ela. — Vamos para Chalon. É uma...

— Eu sei onde fica Chalon. Fica a sul de Dijon.

Esperou por uma abertura no trânsito, depois voltou a acelerar para entrar na autoestrada.

— Não consigo decidir se és um homem muito corajoso ou um tonto — disse ela.

— Podias ter-te afastado de mim em Marselha. Podias ter-te salvo.

— Ela é minha mulher — respondeu ele. — Será sempre a minha mulher.

— E estás disposto a morrer por ela?

Tu também vais morrer por ela. — Às sete horas?

— Sim.

— Porque é que inventaste essa hora? Porquê sete horas?

— Não sabes nada do homem para quem trabalhas, pois não? Tenho pena de ti, Palestina. És uma moça muito tola. O teu líder traiu-te, és tu quem vai pagar o preço.

Ela levantou a arma para lhe voltar a bater, mas deteve-se. Gabriel manteve os olhos fixos na estrada. A porta estava aberta.

Pararam para meter gasolina a sul de Chalon. Gabriel encheu o tanque e pagou com dinheiro que a moça lhe deu. Quando ele estava de novo sentado atrás do volante, ela mandou-o estacionar junto às casas de banho.

— Já volto.

— Estarei à espera.

Ela esteve ausente apenas durante um momento. Gabriel pôs o carro a funcionar, mas a moça retirou o telefone por satélite da sacola e mandou-o esperar.

Eram 14.55 horas.

— Vamos para Paris — disse ele.

— Ah, sim?

— Vai enviar-nos por um de dois caminhos. A autoestrada bifurca em Beaune. Se formos pelo atalho, podemos dirigir-nos diretamente aos subúrbios a sul. Ou podemos continuar para leste, de Dijon para Troyes, Troyes para Reims, e entrar pelo lado nordeste.

— Pareces saber tudo. Diz-me para que lado é que ele nos vai mandar.

Gabriel consultou o relógio de forma ostensiva.

— Vai querer que continuemos em movimento, e não vai querer que cheguemos ao alvo demasiado cedo. Aposto no caminho ocidental. Digo que ele nos vai mandar ir por Troyes e que nos vai dizer para esperarmos por instruções. Terá opções se nos mandar por Troyes.

Naquele momento, o telefone tocou. Ela escutou em silêncio, depois desligou.

— Regressa à autoestrada — disse ela.

— Para onde vamos?

Limita-te a conduzir — disse ela.

Gabriel pediu autorização para ligar o rádio.

— Claro — disse ela afavelmente.

Ele premiu o botão, mas nada aconteceu. Um meio sorriso surgiu no rosto dela. — Bem orquestrado — observou Gabriel.

— Obrigada.

— Porque estás a fazer isto? — Deves estar a gozar.

— Na verdade, estou a falar a sério.

— Eu sou a Palestina — disse ela. — Não tenho qualquer opção.

— Estás errada. Tens uma opção.

— Sei o que estás a fazer — disse ela. — Estás a tentar desgastar-me com as tuas sugestões de morte e suicídio. Achas que me vais conseguir fazer mudar de ideias, que vais ser capaz de me fazer perder a calma.

— Na verdade, nem sonharia com semelhante coisa. Há muito que lutamos um contra o outro. Sei que és dotada de uma coragem veemente e que raramente perdes a calma. Só quero saber porquê: Por que estás aqui? Por que não casares e teres filhos? Por que não viveres a tua vida?

Outro sorriso, esse trocista.

— Judeus — disse ela. — Vocês pensam que possuem a patente da dor. Pensam que monopolizam o mercado do sofrimento humano. O meu Holocausto é tão real como o seu, e, no entanto, negas o meu sofrimento e ilibas-te de culpa. Afirmas que as minhas feridas são auto-infligidas.

— Então, conta-me a tua história.

— A minha história é a do Paraíso perdido. A minha história é a de um povo simples forçado pelo mundo civilizado a desistir da sua terra de modo a que a cristandade pudesse aliviar a sua culpa relativamente ao Holocausto.

— Não, não — disse Gabriel. — Não quero um sermão propagandístico. Quero ouvir a tua história. De onde és?

De um campo — disse ela, acrescentando depois: — Um campo no Líbano.

Gabriel sacudiu a cabeça.

— Não te estou a perguntar onde nasceste, nem onde cresceste. Estou a perguntar-te de onde és. — Sou da Palestina.

— Mas é claro. De que região?

— Do Norte.

— Isso explica o Líbano. De que parte do Norte?

— Da Galileia.

— Ocidental? Superior? — Da Galileia Ocidental.

— De que aldeia?

— Já não existe.

— Como é que se chamava?

— Não me é permitido...

— Tinha um nome?

— Claro que tinha um nome.

— Era Bassa?

— Não.

— Era Zib?

— Não.

— Talvez fosse Sumayriyya?

Ela não respondeu.

— Então era Sumayriyya.

— Sim — disse ela. — A minha família era da Sumayriyya.

— Fica muito distante de Paris, palestina. Conta tua história.

CAPÍTULO 23

JERUSALÉM

 

 

Quando o Varash se tomou a reunir, fizeram-no em pessoa no Escritório do primeiro-ministro. As atualizações de Lev demoraram apenas um momento, já que pouco se alterara desde a última vez em que se tinham encontrado por videoconferência. Apenas o relógio tinha avançado. Eram agora 17 horas em

Tel Aviv, elo em Paris. Lev queria fazer soar o alarme.

— Temos de deduzir que dentro de três horas vai haver um enorme atentado terrorista na França, provavelmente em Paris, e que um dos nossos agentes vai estar no meio dele. Dada a situação, receio que não tenhamos qualquer opção além de o contar aos Franceses.

— E quanto ao Gabriel e à sua mulher? — perguntou Moshe Yariz, do Shabak. — Se os Franceses emitirem um alerta nacional, o Khaled pode muito bem considerá-lo uma desculpa para os matar.

— Ele não precisa de uma desculpa — disse Shamron. — É precisamente isso que ele tenciona fazer. O Lev tem razão. Temos de o dizer aos Franceses. Moral e politicamente, não temos alternativa.

O primeiro-ministro moveu desconfortavelmente o seu amplo corpo na cadeira. — Mas não lhes posso dizer que enviamos uma equipe de agentes a Marselha para matar um terrorista palestino.

— Isso não será necessário — disse Shamron. — Mas seja como for que joguemos a nossa cartada, o resultado vai ser mau. Temos um acordo com os Franceses para não atuarmos no seu território sem os avisarmos primeiro. É um acordo que estamos sempre a violar, com o entendimento tácito dos nossos irmãos nos serviços franceses. Mas um entendimento tácito é uma coisa, e ser-se apanhado em flagrante é outra.

— Então o que lhes digo?

— Recomendo que te mantenhas o mais próximo possível da verdade. Dizemos-lhes que um dos nossos agentes foi raptado por uma célula terrorista palestina, que opera no exterior de Marselha. Dizemos-lhes que o agente estava em Marselha a investigar o bombardeamento da nossa embaixada em Roma. Dizemos-lhe que temos provas credíveis sugerindo que Paris vai ser alvo de um ataque esta tarde às sete. Quem sabe? Se os Franceses fizerem soar o alarme bem alto, isso poderá forçar o Khaled a adiar ou a cancelar o seu atentado.

O primeiro-ministro olhou para Lev.

— Qual é o estado do resto da equipe?

— O Fidelity encontra-se em águas territoriais francesas, e o resto dos membros da equipe atravessaram todos fronteiras internacionais. O único ainda em território francês é o Gabriel.

O primeiro-ministro premiu um botão na consola do telefone.

— Apanha o presidente francês na linha. E arranja também um tradutor. Não quero que haja mais confusões.

O presidente da República Francesa estava numa reunião com o chanceler alemão no ornamentado Salão dos Retratos do Palácio Eliseu. Entrou silenciosamente no salão um ajudante-de-campo, que lhe murmurou algumas palavras ao ouvido. O líder francês não conseguia esconder a sua irritação ao ser interrompido por um homem que ele desprezava.

— Tem de ser agora?

— Ele diz que é uma questão de segurança de primeira prioridade. O presidente levantou-se e olhou para o convidado.

— Dá-me licença, chanceler?

Alto e elegante no seu terno escuro, o francês seguiu o ajudante para uma antecâmara privada. Passado um momento, a chamada foi-lhe passada. — Boa tarde, senhor primeiro-ministro. Calculo que não se trate de uma chamada social?

— Não, senhor presidente, com efeito. Receio ter tido conhecimento de uma grave ameaça contra o seu país.

— Imagino que seja uma ameaça de natureza terrorista?

— Na verdade, é.

— Está iminente para quando? Semanas? Dias?

— Horas, senhor presidente.

— Horas? Por que me está informar só agora? — Também só fomos agora informados da ameaça.

— Conhece algum pormenor operacional?

— Apenas a hora. Acreditamos que a célula terrorista palestina tenciona atacar às 19 horas. Paris é o alvo mais provável, mas não o podemos dizer com toda a certeza.

— Por favor, senhor primeiro-ministro. Diga-me tudo que sabe. O primeiro-ministro falou durante dois minutos. Quando terminou, o presidente francês disse:

— Por que tenho a sensação de que me está a contar apenas parte da história?

— Receio que saibamos apenas parte da história.

— Por que não nos disse que estava a perseguir um suspeito em território francês?

— Não havia tempo para uma consulta formal, senhor presidente. Caiu na categoria de uma perseguição em grande.

— E quanto aos Italianos? Informou-os de que têm um suspeito de um atentado que ocorreu em solo italiano?

— Não, senhor presidente, não informamos.

— Que surpresa — disse o francês. — Têm fotos que possam ajudar a identificar homens-bomba potenciais?

— Infelizmente, não.

— Espero que não se importe de enviar uma foto de seu agente desaparecido.

— Nestas circunstâncias...

— Pensei que fosse essa a sua resposta — disse o francês. — Vou enviar o meu embaixador ao seu Escritório. Estou confiante de que ele receberá um relatório completo e honesto de toda esta situação. — Dou-lhe a minha palavra, senhor.

— Algo me diz que este caso ainda há-de dar que falar, mas vamos primeiro ao que interessa. Manter-me-ei em contato.

— Boa sorte, senhor presidente.

O líder francês desligou o telefone com força e olhou para o seu ajudante.

— Reúne imediatamente o Grupo Napoleão — disse. — Eu trato do chanceler. : Vinte minutos depois de ter desligado, o presidente da França sentava-se no seu lugar habitual à mesa do Escritório no Salão Murat. Reunidos à volta dele estavam os membros do Grupo Napoleão, uma eficiente equipe de elementos superiores do serviço secreto, oficiais de segurança e ministros, destinada a lidar com ameaças iminentes em território francês. Mesmo em frente da dispendiosa mesa encontrava-se sentado o primeiro-ministro. Entre os dois homens havia um relógio de bronze de face dupla. Marcava 16.35 horas. O presidente abriu a reunião com uma recontagem concisa daquilo que ficara a saber. Seguiram-se alguns minutos de uma discussão um pouco acalorada, pois a fonte da informação, o primeiro-ministro israelense, era um homem verdadeiramente impopular em Paris. No entanto, ao final, cada membro do grupo concluiu que a ameaça era demasiado credível para ser ignorada.

— É óbvio, cavalheiros, que precisamos aumentar o nível de ameaça e de tomar precauções — disse o presidente. — Até onde vamos?

Na sequência dos atentados da al-Qaeda ao World Trade Center e ao Pentágono, o Governo francês concebera um sistema de quatro camadas com um código de cores semelhante aos dos Estados Unidos. Nessa tarde, o nível encontrava-se no Laranja, o segundo nível, estando apenas o Amarelo abaixo. O terceiro nível, o Vermelho, fechava automaticamente vastas extensões do espaço aéreo francês e colocava no seu lugar precauções de segurança nos sistemas de trânsito e nos monumentos históricos franceses como o Louvre e a Torre Eiffel. O nível mais elevado, o Escarlate, fecharia virtualmente o país. Incluindo o fornecimento de água e eletricidade. Nenhum membro do Grupo Napoleão estava preparado para o fazer com base num aviso dos Israelenses.

— E provável que o alvo do ataque seja judeu ou israelense — disse o ministro do Interior. — Mesmo que seja à mesma escala de Roma, não justifica aumentar o nível para Escarlate.

Concordo — disse o presidente. — Vamos aumentá-lo para Vermelho.

Passados cinco minutos, e terminada a reunião do Grupo Napoleão, o ministro do Interior francês saiu do Salão Murat para enfrentar as câmeras e os microfones.

— Senhoras e senhores — Começou ele, com uma expressão grave — , o Governo francês recebeu aquilo que acredita serem provas credíveis de um iminente atentado terrorista contra Paris esta noite...

O apartamento situava-se na Rue de Saules, na calma extremidade norte de Montmartre, várias ruas afastado do atoleiro de turistas à volta do Sacré-Coeur. O apartamento era pequeno mas confortável, o lugar perfeito para aquelas ocasiões em que o trabalho ou as conquistas amorosas levavam Paul Martineau da Provença à capital. Chegado a Paris, tinha ido ao bairro do Luxemburgo para almoçar com um colega da Sorbonne. Tinha depois seguido até St-Germain para um encontro com um potencial editor para o seu livro acerca da história pré-romana da antiga Provença. Às 16.45, atravessava o pado silencioso do edifício e entrava no vestíbulo do prédio. Madame Touzet, a porteira, enfiou a cabeça pela porta quando Martineau entrou.

— Bonjour, professor Martineau.

Martineau beijou-lhe as faces cobertas de pó de arroz e ofereceu-lhe um ramo de lírios que lhe comprara numa banca na Rue Caulaincourt. Martineau nunca ia ao seu apartamento francês sem levar um pequeno presente a Madame Touzet.

— Para mim? — perguntou ela de forma elaborada. — Não o devia ter feito, professor.

— Não o consegui evitar.

— Quanto tempo vai ficar em Paris?

— Apenas uma noite.

— Uma tragédia! vou buscar-lhe o correio.

Regressou passado um instante com um maço de postais e cartas, impecavelmente atado com um laço rosa perfumado. Martineau subiu as escada para o seu apartamento. Acendeu a televisão, mudou para o Channel 2 e foi até a cozinha para fazer café. Ao som da água corrente, ouviu a voz familiar do ministro do Interior francês. Fechou a torneira e dirigiu-se calmamente à sala de estar. Ali ficou, petrificado perante a tela da televisão, durante os dez minutos que se seguiram.

Os Israelenses tinham decidido alertar os Franceses. Martineau tivera essa possibilidade em conta. Sabia que o aumento no nível de ameaça significaria uma alteração das tácticas de segurança e dos procedimentos em locais críticos por toda a Paris, um desenvolvimento que requeria um ajustamento menor nos seus planos. Pegou no telefone e marcou um número.

— Gostaria de mudar uma reserva, por favor.

— O seu nome?

— Dr. Paul Martineau.

— Número do bilhete? Martineau deu-o.

— De momento, está previsto regressar a Aix-en-Provence vindo de Paris amanha de manhã.

— É isso, mas infelizmente surgiu um imprevisto e preciso de regressar mais cedo do que esperava. Ainda posso apanhar um trem ao princípio da noite de hoje?

— Há lugares disponíveis no das sete e um quarto.

— Primeira classe?

— Sempre.

— Então fico com um, por favor.

— Está sabendo do alerta governamental contra um atentado terrorista?

— Nunca dou muita importância a esse tipo de coisas — disse Martineau. — Além disso, se pararmos de viver, os terroristas vencem, não é verdade?

— É bem verdade.

Martineau ouvia o tamborilar de dedos no teclado do computador.

— Tudo bem, Dr. Martineau. A sua reserva foi alterada. O seu trem parte às sete e um quarto da Gare de Lyon.

Martineau desligou a chamada.

CAPÍTULO 24

TROVES, FRANÇA

 

 

— Sumayriyya? Queres saber de Sumayriyya? Era o paraíso na Terra. O Éden.

Pomares e olivais. Melões e bananas, pepinos e trigo. Sumayriyya era simples. Pura. A nossa vida seguia os ritmos das plantações e das colheitas. As chuvas e as secas. Éramos 800 em Sumayriyya. Tínhamos uma mesquita. Tínhamos uma escola. Éramos pobres, mas Alá abençoou-nos com tudo de que precisávamos.

Ouçam-na, pensou Gabriel enquanto dirigia. Nós... Nosso... Ela tinha nascido 25 anos depois de Sumayriyya ter sido varrida da face da Terra, mas falava da aldeia como se tivesse vivido ali durante toda a vida.

— O meu avô era um homem importante. Não um muktar, repare, mas um homem influente entre os anciãos da aldeia. Tinha 40 dunams* de terra e um enorme rebanho de cabras. Era considerado rico.

*Medida usada em muitos países que outrora fizeram parte do império otomano. Um dunam - 1000m2

— Um sorriso sarcástico. — Ser rico em Sumayriyya significava que se era apenas um pouco pobre.

Os olhos dela escureceram. Olhou para a arma, depois para os terrenos agrícolas franceses que passavam velozmente pela janela.

O ano de 1947 marcou o início do fim da minha aldeia. Em Novembro, as Nações Unida votaram a favor da divisão da minha terra para se dar metade aos Judeus. Sumayriyya, como o resto da Galileia Ocidental, estava destinada a fazer parte do Estado Árabe da Palestina. Mas claro que não foi esse o caso. A guerra começou no dia seguinte à votação, e no que dizia respeito aos Judeus, toda a Palestina era agora deles para a tomarem.

Tinham sido os árabes a iniciar a guerra, quis Gabriel dizer: fora o xeque Asad al-Khalifa, senhor da guerra de Beit Sayeed, quem abrira os portões do sangue com o seu atentado terrorista no ônibus de Netanya para Jerusalém. Mas agora não era o momento para referir os fatos históricos. A descrição de Sumayriyya enfeitiçara-a, e Gabriel não queria quebrar o feitiço.

Ela olhou para ele.

— Estás a pensar nalguma coisa.

— Estou a ouvir a tua história.

— Com uma parte do cérebro — disse ela — , mas com a outra estás a pensar noutra coisa. Estás a pensar em tirar-me a arma? Estás a planejar fugir?

— Não há fuga, Palestina... para nenhum de nós. Conta-me a tua história.

Ela olhou pela janela.

— Na noite de 13 de Maio de 1948, uma coluna de veículos blindados do Haganah dirigiu-se pela estrada costeira de Acre. A sua intervenção tinha o nome de código Operação Ben-Ami. Fazia parte do Tochnit Dalet. — Ela olhou para ele. — Conheces este termo, Tochnit Dalet? Plano D?

Gabriel assentiu e pensou em Dina, de pé entre as ruínas de Beit Sayeed. Há quanto tempo é que aquilo tinha acontecido? Havia apenas um mês, mas que parecia uma vida.

— O objetivo declarado da Operação Ben-Ami era o reforço de diversos assentamentos judeus isolados na Galileia Ocidental. No entanto, o verdadeiro objetivo era a conquista e a anexação. De fato, as ordens referiam especificamente a destruição de três aldeias árabes: Bassa, Zib e Sumayriyya.

Deteve-se, e olhou-o para ver se os seus comentários tinham provocado alguma reação, e continuou a contar. Sumayriyya foi a primeira das três aldeias a morrer. O Haganah cercou-a antes do nascer do dia e iluminou a aldeia com os faróis dos seus veículos blindados. Alguns dos homens do Haganah usavam kaffiyehs aos quadrados vermelhos. Um vigilante da aldeia viu os kaffijehs e deduziu que os judeus atacantes seriam na verdade reforços árabes. Disparou para o ar em jeito de celebração e foi imediatamente abatido pelo fogo do Haganah. As notícias de que os judeus estavam disfarçados de árabes espalhou o pânico entre a aldeia. Os defensores de Sumayriyya lutaram corajosamente, mas não eram se comparavam aos Haganah, que estavam muito bem armados. Passados alguns minutos, tivera início o êxodo.

— Os judeus queriam que partíssemos — disse ela. — Deixaram imediatamente o lado ocidental da aldeia sem proteção para nos dar uma rota de fuga. Não tivemos tempo de pegar roupas nem alguma coisa para comer. Apenas corremos. Mas nem assim os judeus ficaram satisfeitos. Dispararam contra nós enquanto fugíamos pelos campos que cultivávamos há séculos. Morreram cinco aldeões nesses campos. Os sapadores do Haganah entraram de imediato. Ouvíamos as explosões enquanto fugíamos. Os Judeus estavam a transformar o nosso paraíso numa pilha de destroços inabitáveis. Os aldeões de Sumayriyya tomaram a estrada e dirigiram-se para norte, na direção do Líbano. Não tardaram a juntar-se-lhes os habitantes de Bassa e de Zib, e diversas aldeias mais pequenas para leste.

— Os Judeus mandaram-nos para o Líbano — disse ela. — Disseram-nos para esperarmos ali algumas semanas até a luta ter terminado, e que depois poderíamos regressar. Regressar? E regressávamos para onde? As nossas casas tinham sido demolidas. Por isso continuamos a andar. Atravessamos a fronteira, em direção ao exílio. Ao esquecimento. E atrás de nós, os portões da Palestina foram para sempre barrados contra o nosso regresso.

 

 

Reims: 17 horas

 

 

— Encosta — disse ela. Gabriel levou o Mercedes para a beira da autoestrada. Permaneceram sentados em silêncio, o carro estremecendo na turbulência do tráfego que passava. Depois o telefone. Ela escutou, durante mais tempo do que o habitual. Gabriel suspeitou de que lhe estariam a dar as instruções finais. Sem dizer uma palavra, desligou, e depois deixou cair o telefone dentro da sacola.

— Para onde vamos?

Paris — disse ela. — Como suspeitavas.

— Para que lado é que ele quer que eu vá?

— A A4. Conheces?

— Conheço.

— Vai levar-te ao...

— ... ao Sudeste de Paris. Sei onde me vai levar, Palestina. Gabriel tornou a acelerar e entrou na autoestrada. O relógio indicava: 17h05. Um sinal de estrada piscava: PARIS 145. Cento e quarenta e cinco quilômetros até Paris.

— Acaba a tua história, Palestina.

— Onde é que íamos?

— Líbano — disse Gabriel. — O esquecimento.

— Acampávamos nos montes. Procurávamos comida. Sobrevivíamos à custa da caridade dos nossos irmãos árabes e esperávamos que os portões da Palestina nos fossem abertos, esperamos que os Judeus fizessem bom uso das promessas que nos tinham feito na manhã em que fugimos de Sumayriyya. Mas em Junho, Ben-Gurion disse que os refugiados não podiam voltar para casa. Éramos uma quinta coluna que não tinha permissão para regressar, disse ela. Seríamos um espinho no flanco do novo Estado judaico. Sabíamos que nunca mais iríamos ver Sumayriyya. Paraíso perdido.

Gabriel olhou para o relógio. 17h10. Centro e trinta quilômetros para Paris. — Caminhamos para norte, até Sidon. Passamos um Verão longo e quente a viver em tendas. Depois o tempo ficou frio e a chuva começou, e ainda estávamos a viver nas tendas. Chamamos à nossa casa Ein al-Hilweh. Doce primavera. Foi mais duro para o meu avô. Em Sumayriyya, tinha sido um homem importante. Tratava dos campos e dos seus rebanhos. Sustentava a família. Agora, a família sobrevivia de esmolas. Tinha um título da sua propriedade, mas não tinha terra.

Tinha as chaves da porta, mas não tinha casa. Ficou doente durante o primeiro Inverno e morreu. Não queria viver... não no Líbano. O meu avô morreu quando Sumayriyya morreu. .25. Paris: cem quilômetros.

— O meu pai era um rapazinho, mas teve de ficar responsável pela mãe e pelas duas irmãs. Não podia trabalhar, os Libaneses não o deixavam. Não podia ir à escola, os Libaneses também não o permitiam. Não tínhamos segurança social libanesa, nem cuidados de saúde do Líbano. E não tínhamos meio de saída, porque não tínhamos passaportes válidos. Não tínhamos país. Éramos não pessoas. Éramos nada.

5h37. Paris: 55 quilômetros.

— Quando o meu pai casou com uma moça de Sumayriyya, as pessoas que restavam da aldeia reuniram-se em Ein al-Hilweh para as cerimônias de casamento. Era como em casa, só que o meio era outro. Em vez do Paraíso, eram os esgotos a céu aberto e as cabanas de hulha betuminosa do campo. A minha mãe deu dois filhos ao meu pai. Ele falava-lhes todas as noites de Sumayriyya, para que nunca esquecessem o seu verdadeiro lar. Contava-lhes a história de al-Nakba, a Catástrofe, e instilava neles o sonho de al-Awda, o Regresso. Os meus irmãos haveriam de crescer e transformar-se em combatentes da Palestina. Não havia qualquer escolha na matéria. Assim que tivessem a idade suficiente para segurarem uma arma, a Fatah começou a treiná-los.

— E tu?

— Eu fui a última filha. Nasci em 1975, quando o Líbano caía na guerra civil.

17h47. Paris: 40 quilômetros.

Nunca pensamos que tornassem a vir atrás de nós. Sim, perdemos tudo... as nossas casas, a nossa aldeia, a nossa terra, mas pelo menos estávamos a salvo em Ein al-Hilweh. Os Judeus nunca iriam ao Líbano. Não?

5h52. Paris: 30 quilômetros.

— A Operação Paz para a Galileia, era assim que chamavam. Meu Deus, nem Orwell arranjaria um nome melhor. Em 4 de junho de 1982, os israelenses invadiram o Líbano para acabarem de uma vez por todas com a OLP. Para nós, tudo isto parecia familiar. Uma coluna armada israelense que se dirigia para norte pela estrada costeira, só que agora a estrada costeira era no Líbano, e não na Palestina, e os soldados eram membros do IDF, e não da Haganah. Sabíamos que as coisas iam ficar mal. Ein al-Hilweh era conhecida como território da Fatah, capital da Diáspora Palestina. A 8 de Junho, a batalha do campo começou. Os israelenses enviaram os seus paraquedistas. Os nossos homens ripostaram com a coragem dos leões, beco a beco, casa a casa, desde as mesquitas aos hospitais. Qualquer combatente que se tentasse se render era abatido. A palavra espalhou-se: a batalha pelo Ein al-Hilweh iria ser travada até o último homem.

"Os israelenses mudaram de tática. Usaram os seus aviões e artilharia para arrasar o campo, bloco a bloco, setor a setor. Depois os seus paraquedistas caíram sobre eles e massacraram os nossos combatentes. De poucas em poucas horas, os israelenses paravam e pediam para nos rendermos. De cada vez a resposta era a mesma: nunca. Continuou assim durante uma semana. Perdi um irmão no primeiro dia da batalha, e o meu outro irmão ao quarto dia. No último dia dos combates, a minha mãe foi confundida com uma guerrilheira enquanto rastejava para fora dos destroços e foi abatida pelos israelenses.

" Quando terminou, Ein al-Hilweh era uma terra arrasada. Pela segunda vez, os Judeus tinham transformado o meu lar em destroços. Perdi os meus irmãos, perdi a minha mãe. Perguntaste-me porque estava aqui. Estou aqui por Sumayriyya e Ein al-Hilweh. É isto que o sionismo significa para mim. Não tenho qualquer escolha além de combater.

— O que aconteceu depois de Ein al-Hilweh? Para onde foi?

A moça sacudiu a cabeça.

— Já contei o suficiente — disse ela. — Demais.

— Quero ouvir o resto.

— Dirija — disse ela. — Está quase na hora de ver sua mulher.

Gabriel olhou para o relógio: 18h. Dezesseis quilômetros para Paris.


CAPÍTULO 25

ST-DENIS, ZONA NORTE DE PARIS

 

 

Amira Assaf fechou a porta do apartamento atrás de si. O corredor, um longo túnel de cimento cinza, encontrava-se numa semiobscuridade, iluminado apenas pelo relampejo de uma luz fluorescente. Ela empurrou a cadeira de rodas em direção ao grupo de elevadores. Uma mulher, marroquina pelo som do sotaque, gritava com os seus dois filhos pequenos. Mais à frente, um trio de rapazes africanos ouvia música hip-hop americana numa aparelhagem portátil. Era aquilo que restava do império francês, pensou ela, algumas ilhas nas Caraíbas e os armazéns humanos de St-Denis.

Chegou junto dos elevadores e premiu o botão de chamada, depois levantou o olhar e viu que um dos elevadores estava a descer. Graças a Deus, pensou. Era uma parte da viagem que estava completamente para lá do seu controle: os velhos elevadores instáveis do prédio. Durante a preparação fora forçada por duas vezes a descer 23 andares porque os elevadores não estavam a funcionar. Tocou uma campainha, e as portas abriram guinchando. Amira empurrou a cadeira para o interior do elevador e foi saudada por um intenso cheiro a urina. Enquanto o elevador se afundava, ponderou acerca do motivo pelo qual os pobres urinavam nos elevadores. Quando as portas se abriram, impeliu a cadeira para o hall e respirou fundo. Não resultou. Apenas quando estava no exterior, no ar fresco do quadrângulo, é que escapou ao odor de demasiadas pessoas a viverem demasiado próximas.

Havia algo de aldeia do Terceiro Mundo no amplo quadrângulo que se encontrava no centro de quatro grande blocos de apartamentos: aglomerados de homens, divididos pelos seus países de origem, cavaqueando no entardecer frio; mulheres carregando sacos de mercearias; crianças a jogar à bola. Ninguém reparou na atraente jovem palestina que empurrava uma pessoa presa numa cadeira de rodas, de sexo e idade indeterminada.

Demorou exatamente sete minutos para chegar à estação de St-Denis. Tratava-se de uma estação ampla, uma combinação de estação de caminhos de ferro e metropolitano, e graças à hora espalhavam-se multidões pelas saídas para a rua. Entrou no hall das bilheteiras e detectou de imediato dois polícias, a primeira evidência do alerta de segurança. Tinha visto as novas atualizações e sabia que a segurança fora apertada no metro e nas estações ferroviárias por todo o país. Mas saberiam eles algo a respeito de St-Denis? Estariam eles à procura de uma inválida raptada na noite anterior de um hospital psiquiátrico? Continuou a andar.

— Desculpe, mademoiselle.

Virou-se: um funcionário da estação, jovem e atencioso, com um uniforme impecavelmente passado.

— Para onde vai?

Tinha os bilhetes na mão; precisava responder com a verdade.

— Para os trens — disse ela, acrescentando depois: — Para a Gare de Lyon.

O funcionário sorriu. — Há um elevador bem ali.

— Sim, conheço o caminho.

— Posso ajudá-la?

— Não é preciso.

— Por favor — disse ele — , permita-me.

Era mesmo do que ela precisava, pensou. Um funcionário simpático no sistema de metrô inteiro, e tinha de estar trabalhando naquela noite em St-Denis. Recusar pareceria suspeito. Assentiu e entregou os bilhetes ao funcionário. Passaram pela catraca e depois seguiram do hall povoado até o elevador. Desceram em silêncio até o nível da estação de caminhos de ferro. O funcionário acompanhou-a até a plataforma devida. Durante um momento, ela receou que ele tencionasse ficar até o trem partir. Por fim, ele desejou-lhe boa noite e voltou a subir as escadas.

Amira olhou para o painel das chegadas e partidas. Doze minutos. Olhou para o relógio, e fez contas. Sem problemas. Sentou-se num banco e esperou. Doze minutos depois, o trem entrou na estação e parou. As portas se abriram com um silvo pneumático. Amira levantou-se e empurrou a mulher para o carro.

CAPÍTULO 26

PARIS

 

 

Onde estou agora? Um trem? E quem é esta mulher? E a mesma que trabalhava no hospital? Eu disse ao Dr. Avery que não gostava dela, mas ele não me ouviu. Ela passou demasiado tempo à minha volta. Observava-me de mais. Está a ser paranoica, disse-me o Dr. Avery. A sua reação faz parte da sua doença. Chama-se Amira.

É muito simpática e altamente qualificada. Não, tentei dizer-lhe, ela está a observar-me. Vai acontecer alguma coisa. Ela é palestina. Consigo ver isso nos olhos dela.

Por que é que o Dr. Avery não me ouviu? Ou será que tentei realmente dizer-lhe?

Não tenho certeza. Não tenho certeza de nada. Olha para a televisão, Gabriel. Estão outra vez a cair mísseis em Tel Aviv. Acha que desta vez Saddam os encheu de químicos? Não suporto a ideia de estar em Viena no momento em que estão a cair mísseis em Tel Aviv. Come a massa, Dani. Olha para ele, Gabriel. Parece-se tanto contigo. Este trem lembra Paris, mas estou rodeada de árabes. Para onde é que esta mulher me levou? Porque é que não estás a comer, Gabriel? Sentes-te bem? Não pareces nada bem. Meu Deus, tens a pele a arder. Estás doente? Olha, outro míssil. Por favor, meu Deus, faça com que caia num edifício vazio. Não deixes que caia sobre a casa da minha mãe. Quero sair deste restaurante. Quero ir para casa telefonar à minha mãe.

Pergunto-me o que terá acontecido ao rapaz que foi ao hospital para olhar por mim. Como é que cheguei aqui? Quem me trouxe até aqui? E para onde vai este trem?

Neve. Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve torna-a bela. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv.

Trabalhas esta noite? Chegas tarde? Desculpa, nem sei porque me dei ao trabalho de perguntar. Merda. O carro está coberto de neve. Ajuda-me com as janelas antes de me ir embora. Certifica-te de que o cinto do Dani está bem apertado. As estradas estão escorregadias. Sim, vou ter cuidado. Vá lá, Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da voz dela. Beija-me, um último beijo, depois vira-te e vai-te embora. Adoro ver-te a andar, Gabriel. Andas como um anjo. Detesto o trabalho que estás afazer para Shamron, mas hei-de amar-te sempre. Raios, o carro não pega. Vou tentar de novo. Por que te estás a virar, Gabriel? Para onde é que esta mulher me leva? Estás a gritar e a correr em direção ao carro? Dá outra vez à chave. Silêncio. Fumo e fogo. Tira primeiro o Dani!

Despacha-te, Gabriel! Por favor, tira-o daqui!

Estou a arder! estou a morrer queimada!

Para onde é que esta mulher me leva? Ajuda-me, Gabriel. Por favor, ajuda-me.

CAPÍTULO 27

PARIS

 

 

A Gare de Lyon situa-se no 12º arrondissement de Paris, algumas ruas a leste do Sena, Em frente da estação existe um largo círculo de tráfego e, além dele, o cruzamento de duas das maiores avenidas, a Rua de Lyon e o Boulevard Diderot. Foi ali, sentado numa popular e atarefada esplanada com turistas, que Paul Martineau aguardou. Acabou de beber o Cotes du Rhône, e depois fez sinal ao empregado pedindo a conta. Passou-se um intervalo de cinco minutos, antes que lhe entregassem a conta. Deixou o dinheiro e uma pequena gorjeta, depois dirigiu-se para a entrada da estação.

Havia diversos veículos da Polícia no círculo de tráfego e dois pares de polícias paramilitares a montar guarda à entrada. Martineau juntou-se a um pequeno grupo de pessoas e entrou. Estava quase na sala de embarque quando sentiu alguém a bater-lhe no ombro. Virou-se. Era um dos polícias que estava de guarda na entrada principal.

— Posso ver a sua identificação, por favor?

Martineau tirou da carteira a identidade francesa e entregou-o ao policial, que ficou muito tempo a olhar para o rosto de Martineau antes de tornar a olhar para a carteira.

— Para onde vai?

— Aix.

— Posso ver o seu bilhete, por favor? Martineau entregou.

— Diz aqui que deveria regressar apenas amanhã.

— Mudei a minha reserva esta tarde.

— Por quê?

— Precisei voltar mais cedo. — Martineau decidiu mostrar-se um pouco irritado. — Ouça, o que há? Estas perguntas são mesmo necessárias?

— Receio que sim, monsieur Martineau. O que o trouxe a Paris?

Martineau respondeu: um almoço com um colega da Universidade de Paris, um encontro com um eventual editor.

— É escritor?

— Na verdade, sou arqueólogo, mas estou a trabalhar num livro.

O policial tornou a entregar-lhe a carteira de identidade.

— Tenha uma boa noite.

— Obrigado.

Martineau virou-se e encaminhou-se para o terminal. Deteve-se junto ao painel das chegadas e partidas, depois subiu as escadas para o Le Train Bleu, o famoso restaurante no hall. O maître encontrou-se com ele à entrada.

— Tem uma reserva?

— Na verdade, vou encontrar-me com alguém no bar. Acho que ela já chegou. O maître desviou-se. Martineau encaminhou-se para o bar, depois para uma mesa junto a uma janela sobranceira às plataformas. Aí sentada estava uma atraente mulher na casa dos 40 com uma madeixa grisalha no seu cabelo longo e escuro. Ergueu o olhar para Martineau quando ele se aproximou. Ele inclinou-se e beijou-a num dos lados do pescoço.

— Olá, Mimi.

— Paul — sussurrou ela. — Que bom voltar a ver-te.

CAPÍTULO 28

PARIS

 

 

Dois quarteirões ao norte da Gare de Lyon: a Rua Parrot, 18h53.

— Vira aqui — disse a moça. — Estaciona o carro.

— Não há nenhuma vaga. A rua está cheia.

— Acredita em mim. Encontraremos um lugar.

Naquele instante, um carro afastou-se perto do hotel Lyon Bastille. Gabriel, não querendo correr risco, entrou no espaço vago. A moça enfiou a Tanfolgio na bolsa e pendurou-a ao ombro.

— Abre o porta-mala.

— Por quê?

— Faz apenas o que te digo. Olha para o relógio. Não temos muito tempo.

Gabriel empurrou a alavanca para abrir o porta-bagagens, que se abriu com um baque abafado. A moça tirou a chave da ignição e atirou-a para a sacola, juntamente com a arma e o telefone por satélite. Depois abriu a porta e saiu. Deu a volta ao carro até o porta-bagagens e fez sinal a Gabriel para se juntar a ela. Ele olhou para baixo. No interior, encontrava-se uma mala de viagem retangular, de nylon preto, com rodas e uma alça dobrável.

— Pega.

— Não.

— Se não pegar, sua mulher morre.

— Não vou levar uma bomba para dentro da Gare de Lyon.

— Está entrando numa estação ferroviária. É melhor que pareça um viajante. Pega o a mala.

Estendeu a mão para baixo e olhou para o fecho. Fechado.

— Pega.

Havia um macaco cromado no espaço para as ferramentas.

— Que está fazendo? Quer que sua mulher morra?

Duas pancadas fortes, e o trinco abriu. Abriu o compartimento principal: maços de papel. Depois tentou os compartimentos exteriores. Vazios.

— Está satisfeito? Olha a hora. Pega a mala.

Gabriel pegou e colocou no passeio. A moça já começava a se afastar. Esticou a pega da mala, fechou o porta-bagagens e depois começou a segui-la. Na esquina da Rua de Laon, viraram à esquerda. A estação, situada num ligeiro promontório, elevava-se acima dele.

— Não tenho bilhete. — Eu tenho o teu bilhete.

— Para onde é que vamos? Berlim? Genebra? Amsterdam?

— Continua a andar.

À medida que se iam aproximando da esquina do Boulevard Diderot, Gabriel viu agentes da Polícia a patrulharem o perímetro da estação a pé e luzes de emergência azuis a piscarem no círculo de tráfego.

— Foram alertados — disse ele. — Vamos entrar diretamente num alerta de segurança.

— Vai correr tudo bem.

— Não tenho passaporte.

— Não precisa.

— E se nos mandarem parar?

— Eu tenho. Se um policial pedir identificação, olhe para mim, e eu trato do assunto.

— Você é o motivo para nos mandarem parar.

No Boulevard Diderot esperaram que o semáforo mudasse, depois atravessaram a rua por entre um enxame de peões. O saco parecia-lhe muito leve. Não parecia certo estar a empurrá-lo pelo pavimento. Deviam ter colocado roupa no interior para fazerem com que tivesse um peso adequado. E se ele fosse mandado parar? E se o saco fosse revistado e eles descobrissem que estava cheio de maços de papéis? E se eles olhassem para o interior da sacola da Palestina e encontrassem Tanfolgio... Disse a si mesmo para esquecer a mala e a arma na bolsa da moça. Em vez disso, concentrou-se na sensação que tivera anteriormente nesse dia, a sensação de que a pista para a sua sobrevivência estaria ao longo do caminho da viagem. De pé na entrada da estação estavam diversos agentes da polícia e dois soldados de fardas camufladas com armas automáticas no ombro. Estavam a mandar parar as pessoas aleatoriamente, verificando as identificações, revistando as bagagens. A moça enfiou o braço no de Gabriel e fê-lo andar mais depressa. Ele sentia os olhos dos polícias sobre si, mas ninguém os mandou parar até terem entrado.

A estação, de telhado arqueado e elevado, abriu diante deles. Detiveram-se por um momento ao alto de umas escadas rolantes que desciam para o nível do metropolitano da estação. Gabriel aproveitou esse momento para se recompor. À sua esquerda, situava-se um quiosque de telefones públicos; atrás dele, as escadas conduziam até o Le Train Bleu. Em extremidades opostas da plataforma haviam dois quiosques da Relay. A alguns metros para a sua direita havia um snack-bar, acima do qual estava pendurado um enorme painel negro de partidas e chegadas. Naquele exato momento, aquele alterou-se. Para Gabriel, o bater dos números a rolar soou obscenamente como um aplauso para o jogo impecavelmente orquestrado de Khaled. O relógio indicava 18h57.

— Viu aquela moça no primeiro telefone deste lado do quiosque?

— Que moça?

— Calças jeans, camiseta cinza, talvez francesa, talvez árabe, como eu.

— Estou vendo.

— Quando o relógio do painel de partidas indicar 18h58, ela vai desligar. Você e eu vamos até lá, e ocupamos o lugar dela. Vai se deter por um momento para nos dar tempo de chegar lá.

— E se alguém chegar lá primeiro?

— A moça e eu trataremos disso. Vai teclar o número. Está pronto?

— Sim.

— Não esqueça o número. Se esquecer, não repetirei, e sua mulher morrerá. Tem certeza de que está pronto?

— Diga a porcaria do número.

Ela disse e deu-lhe algumas moedas enquanto o relógio mudava para 18h58. A moça saiu do seu lugar. Gabriel aproximou-se, levantou o receptor e enfiou algumas moedas na ranhura. Teclou cuidadosamente o número, receando que se cometesse um erro da primeira vez não se conseguiria se lembrar de novo do número correto. Um telefone começou a tocar. Um toque, um segundo, um terceiro...

— Ninguém atende.

— Tenha calma. Alguém vai atende.

— Tocou seis vezes. Não há ninguém a atender.

— Tem certeza de que ligou para o número certo? Talvez tenha se enganado. Talvez sua mulher esteja prestes a morrer porque você...

— Cale-se — disse Gabriel. O telefone tinha parado de tocar.

CAPÍTULO 29

PARIS

 

 

— Boa noite, Gabriel.

Uma voz feminina, chocantemente familiar.

— Ou devo tratá-lo por Herr Klemp? Foi esse o nome que usou quando foi ao meu clube, não? E o nome que usou quando assaltou o meu apartamento.

Mimi Ferrere. A Pequena Lua.

— Onde ela está? Onde está Leah?

— Está perto.

— Onde? Não a vejo.

— Já vai descobrir em um minuto.

Um minuto... Olhou para o painel de partidas e chegadas. O relógio moveu-se: 18h59. Passaram por ele dois soldados. Um deles olhou para ele. Gabriel virou a cabeça e baixou a voz.

— Disseram que se eu os acompanhasse ela viveria. Agora, onde ela está?

— Ficará tudo claro dentro de alguns segundos.

A voz: agarrou-se a ela. Ela transportou-o ao Cairo, de volta à tarde que passara no bar em Zamalek. Tinha sido atraído ao Cairo por um motivo: plantar uma escuta no telefone da Mimi, de modo a poder ouvir a conversa com um homem chamado Tony e obter o número de telefone de um apartamento em Marselha. Mas teria ele sido levado ao Cairo por outro motivo?

Ela recomeçou a falar, mas o som da sua voz foi abafado pelo aviso na estação: Comboio número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D... Gabriel cobriu o bocal. Trem número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D... Conseguia ouvi-lo pelo telefone — tinha a certeza disso. A Mimi estava algures na estação. Virou-se e vislumbrou as ancas juvenis afastando-se calmamente na direção da saída. À sua esquerda,

Com a mão enfiada no bolso de trás da calça, estava um homem com ombros quadrados e cabelo escuro e encaracolado. Gabriel tinha visto esse mesmo andar naquela manhã em Marselha. Khaled tinha ido à Gare de Lyon para testemunhar a morte de Gabriel.

Observou-os a saírem da estação.

Comboio número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D. Olhou para a Palestina. Ela estava a olhar para o relógio. A avaliar pela sua expressão, sabia agora que Gabriel lhe contara a verdade. Estava a poucos segundos de se transformar numa shaheed na jihad de Khaled.

— Está ouvindo, Gabriel?

Ruído de trânsito: Mimi e Khaled afastavam-se apressadamente da estação. — Estou a ouvir — disse ele, e estou a perguntar-me porque é que me sentaste com três árabes no teu clube noturno.

Comboio número 765 para Marselha agora em fase de embarque na linha D.

Linha D Track Dalet... Tochnit Dalet...

— Onde ela está, Mimi? Diz o que...

E foi então que o viu, de pé junto a um expositor de jornais no quiosque da Relay na extremidade oriental da estação. A mala esportiva, retangular com rodas de nylon preto, idêntica à de Gabriel, estava a seu lado. Tinham-no chamado Bashir naquela noite no Cairo. Bashir gostava de Johnnie Walker Red com gelo e fumava Silk Cut. Bashir usava um relógio de ouro Tag Heuer no pulso direito e tinha uma paixoneta por uma das empregadas da Mimi. Bashir também era um shaheed. Dentro de alguns segundos, o saco vai explodir, bem como diversas dúzias de pessoas à volta dele.

Gabriel olhou para a esquerda, na direção do lado oposto da plataforma: outro quiosque Relay, outro shaheed com mala idêntica à de Gabriel. Aquele era Naji. Naji: "sobrevivente". Esta noite não, Naji.

A alguns metros de Gabriel, comprando um sanduíche que nunca poderia comer, estava Tayyib. A mesma mala, o mesmo olhar vidrado da morte. Estava perto de Gabriel o suficiente para que ele visse a configuração da bomba. Tinha sido enfiado um fio preto no interior de um dos lados da pega. Gabriel calculou que o botão na pega seria o próprio gatilho. Pressionava-se o botão, que iria embater na peça de contato. Isso significava que três shaheeds tinham de premir simultaneamente os botões. Mas como é isso lhes seria assinalado? O tempo, é claro. Gabriel olhou para os olhos de Tayyib e viu que estavam focados no relógio digital do painel de partidas e chegadas. 18.59.28...

— Onde ela está, Mimi?

Os soldados voltaram a passar, conversando casualmente. Tinham entrado três árabes na estação com sacos cheios de explosivos, mas as forças de segurança não pareciam ter reparado. Quanto tempo demorariam os soldados a tirar as metralhadoras do ombro e a colocá-las a posto? Se fossem israelenses? No máximo dois segundos. Mas estes rapazes franceses? O seu tempo de reação seria mais lento.

Olhou de lado para Palestina. Ela estava a ficar mais ansiosa. Tinha os olhos úmidos e puxava a alça da sacola. Os olhos de Gabriel agitaram-se pela estação, calculando ângulos e linhas de fogo.

Mimi intrometeu-se nos pensamentos dele.

— Está ouvindo?

— Estou.

— Como já deve ter calculado, a estação está prestes a explodir. Pelos meus cálculos, tens quinze segundos. Tem duas opções. Pode alertar as pessoas em volta e tentar salvar tantas vidas quanto possível, ou pode egoistamente salvar a vida de sua mulher. Mas não pode de modo algum fazer as duas coisas, porque se alertar as pessoas haverá um pandemônio, e nunca conseguirá tirar sua mulher da estação antes de as bombas explodirem. A única maneira de salvá-la é permitir que centenas de outras pessoas morram, centenas de mortes de modo a salvar um destroço de ser humano. Trata-se na verdade de um dilema moral, não acha?

— Onde ela está?

— Diga você.

— Na Linha D — disse Gabriel. — Linha Dalet.

— Muito bem.

— Ela não está lá. Não a vejo.

— Olha com mais atenção. Quinze segundos, Gabriel. Quinze segundos.

E depois a chamada foi cortada.

O tempo pareceu deter-se. Ele viu toda a cena, pintada com as cores vibrantes de um Renoir — os shaheeds, de olhos fixos no relógio das partidas; os soldados, de cujos ombros pendiam metralhadoras; Palestina, a segurar a sacola que continha no interior uma Tanfolgio de nove milímetros carregada. E no meio de tudo, viu a bonita moça árabe a afastar-se de uma mulher numa cadeira de rodas. Encontrava-se na linha um trem com destino a Marselha, e a metro e meio de distância do lugar onde a mulher esperava pela morte estava a porta aberta da última carruagem. Acima deles, o relógio marcava 18h59.50. Mimi enganara-o, mas Gabriel sabia melhor do que a maior parte dos homens que dez segundos eram uma eternidade. Num espaço de dez segundos seguira o pai de Khaled até um pátio de Paris e enchera-lhe o corpo de balas. Em menos de dez segundos, numa noite nevada de Viena, o seu filho foi assassinado e perdeu a mulher para sempre.

O seu primeiro movimento foi tão compacto e rápido que ninguém pareceu reparar nele: uma pancada dada do lado esquerdo da cabeça de Palestina que a atingiu com tanta força que Gabriel, quando lhe puxou a sacola do ombro, não teve a certeza se ela estava viva. Enquanto a moça lhe caía aos pés, enfiou a mão dentro da sacola e fechou-a sobre a Tanfolgio. Tayyib, o shaheed mais próximo dele no snack-bar, nem sequer se apercebeu, porque os seus olhos estavam fixos no relógio. Gabriel tirou a arma da sacola e apontou-a, com uma mão, ao bombista. Premiu duas vezes o gatilho, tap-tap. Os dois tiros atingiram o bombista no alto do peito, lançando-o para trás, para longe da mala carregada de explosivos.

O som dos tiroteios na vasta câmara de eco da estação teve o efeito que Gabriel esperava. Do outro lado da plataforma, as pessoas agacharam-se ou atiraram-se ao chão. A 20 metros, os dois soldados puxavam as metralhadoras dos ombros. Na outra extremidade da plataforma, os dois shaheeds, Bashir e Naji, ainda estavam de pé, de olhos fixos no relógio. Não havia tempo para os dois.

Gabriel gritou em francês:

— Bomba! Abaixem-se! Abaixem-se!

Abriu uma via de fogo enquanto Gabriel apontava a Tanfolgio àquele que se chamava Naji. Os soldados franceses, confundidos por aquilo que tinham testemunhado, hesitaram. Premiu o gatilho, viu um relampejo rosado e ficou a observar Naji a cair em espiral sem vida no chão.

Correu para a Linha D, na direção do local onde Leah estava sentada exposta à iminente onda de impacto. Agarrou a sacola de Palestina, pois esta continha as chaves para a sua fuga. Olhou por cima do ombro. Bashir, o último dos shaheeds, encaminhava-se do centro da estação. Devia ter visto os seus dois camaradas caírem; agora estava a tentar aumentar o poder destruidor da sua única bomba ao colocá-la no meio da plataforma onde ainda havia mais pessoas.

Parar agora significava uma morte quase certa para si e para Leah, por isso

Gabriel continuou a correr. Chegou à entrada da Linha D e virou para a direita. A plataforma estava vazia; o tiroteio e o alerta de Gabriel tinham conduzido os passageiros para dentro dos trens ou em direção à saída da estação. Apenas Leah ali permaneceu, indefesa e imóvel.

O relógio moveu-se: 19h00.00.

Gabriel agarrou Leah pelos ombros e ergueu o corpo, que não oferecia qualquer resistência, da cadeira, depois deu um mergulho final em direção à porta aberta da carruagem quando o saco explodiu. Houve um relâmpago de luz brilhante, um estrondo, uma onda de impacto cauterizante que pareceu retirar toda a vida de dentro de si. Parafusos e pregos envenenados. Vidro estilhaçado e sangue. Fumaça negra, um silêncio insuportável. Gabriel fitou Leah. Ela olhou diretamente para ele, com um olhar estranhamente tranquilo. Ele enfiou a Tanfolgio na sacola, tomou Leah nos seus braços e levantou-se. Parecia não ter peso.

Do exterior da carruagem despedaçada chegaram os primeiros gritos. Gabriel olhou à sua volta. As janelas de ambos os lados tinham explodido. Os passageiros sentados tinham sido cortados pelo vidro que voara. Gabriel viu, por fim, seis passageiros que pareciam fatalmente feridos.

Desceu os degraus e dirigiu-se à plataforma. Aquilo que ali se encontrava alguns segundos antes era agora irreconhecível. Olhou para cima e viu que uma grande porção do telhado tinha desaparecido. Se as três bombas tivessem explodido simultaneamente, toda a estação teria provavelmente ruído.

Escorregou e caiu no chão. A plataforma estava ensopada de sangue. À sua volta havia membros decepados e pedaços de carne humana. Levantou-se, ergueu Leah e cambaleou para a frente. Estava a pisar o quê? Não conseguia olhar. Escorregou uma segunda vez, perto do grupo de telefones, e encontrou-se a olhar para os olhos sem vida de Palestina. Teria sido morta pelo golpe de Gabriel ou pelos estilhaços da bomba de Tayyib? Gabriel não estava muito interessado em sabê-lo. Tornou a levantar-se. As saídas da estação estavam apinhadas: passageiros aterrorizados tentando sair, a Polícia a forçar o seu caminho para entrar. Se Gabriel tentasse sair por ali, havia uma boa hipótese de alguém o conseguir identificar como o homem que tinha disparado a arma antes da bomba explodir. Tinha de encontrar outra saída. Lembrou-se do caminho do carro até a estação, de ter esperado que o semáforo mudasse no cruzamento da Rua de Lyon e do Boulevard Diderot. Tinha havido ali uma entrada para o metro.

Transportou Leah até as escadas rolantes. Já não funcionavam. Passou por cima de dois cadáveres e começou a descer. A estação do metro estava num tumulto, passageiros a gritar, funcionários assustados tentando em vão manter a situação calma, mas pelo menos não havia mais fumo, e o chão não escorria sangue. Gabriel seguiu os letreiros através das passagens abobadadas em direção à Rua de Lyon. Perguntaram-lhe por duas vezes se precisava de ajuda, e por duas vezes sacudiu a cabeça e continuou a andar. As luzes tremeluziram e enfraqueceram, depois, por algum milagre, tornaram a acender-se.

Passados dois minutos, chegou a um lance de escadas. Subiu-as firmemente, e ao sair para a rua foi encontrar uma chuva fininha e fria. Saíra na Rua de Lyon. Olhou para trás por cima do ombro para a estação. O círculo de tráfego estava incandescente com as luzes de emergência, e saía fumo pelo telhado.

Virou-se e começou a andar. Outra oferta de ajuda.

— Está bem, monsieur? Essa pessoa precisa de um médico?

Não, obrigado, pensou ele. Por favor, saia do meu caminho, e por favor que aquele Mercedes ainda esteja à minha espera.

Contornou a esquina da Rue Parrot. O carro ainda ali estava: fora o único erro de Khaled. Transportou Leah para o outro lado da rua. Por um instante, ela agarrou-se ansiosamente ao seu pescoço. Será que ela sabia que era ele, ou pensaria tratar-se de um enfermeiro do hospital em Inglaterra? Passado um momento, ela estava sentada no lugar do passageiro, olhando calmamente pela janela enquanto Gabriel se afastava da beira e se dirigia à esquina da Rua de Lyon. Olhou uma vez para a esquerda, na direção da estação em chamas, depois virou à direita e acelerou pela avenida ampla em direção à Bastilha. Tornou a enfiar a mão na sacola da moça e tirou do interior o seu telefone por satélite. Quando deu a volta ao círculo de tráfego na Place de la Bastille, surgiu no horizonte Boulevard King Saul.


PARTE QUATRO


Sumayriyya


CAPÍTULO 30

PARIS

 

 

A chuva fininha que saudara Gabriel após a sua saída da Gare de Lyon tinha-se transformado numa chuva primaveril. Agora estava escuro, e ele sentia-se grato por isso. Tinha estacionado numa rua tranquila e sombreada perto da Praça de Colombie, e desligara o motor. Devido à escuridão e chuva intensa, estava confiante de que ninguém o conseguia ver dentro do carro. Limpou um pouco do para-brisas embaciado e espreitou para fora. O edifício onde se situava o apartamento de segurança ficava do outro lado da rua, algumas portas mais acima. Gabriel conhecia bem o apartamento. Sabia que era o apartamento 4B e que na placa junto à campainha se lia o nome Guzman numa caligrafia de um azul desvanecido. Sabia também que não havia nenhum lugar onde esconder em segurança uma chave, o que significava que tinha de ser aberta antes por alguém da delegação de Paris. Normalmente, tais tarefas eram efetuadas por um bodel, a terminologia do Escritório para os contratados locais que faziam o trabalho de sapa necessário para manter uma delegação estrangeira em funcionamento. Mas passados dez minutos Gabriel ficou aliviado por ver a figura familiar de Uzi Navor, o katsa de Paris, a bater na janela, com o seu cabelo loiro avermelhado colado ao crânio enorme e redondo, e a chave do apartamento na mão.

Navot entrou no prédio, e passado um instante as luzes acenderam-se numa janela do quarto piso. Leah remexeu-se. Gabriel virou-se e olhou para ela, e por um instante o olhar dela pareceu fixar-se no dele. Ele estendeu a mão e pegou no que restava da mão dela. A pele cicatrizada e áspera, como sempre, fez com que Gabriel se sentisse violentamente frio. Mostrara-se agitada durante toda a viagem. Agora parecia mais calma, como sucedia sempre que Gabriel a visitava no solário. Tornou a espreitar pelo para-brisas para a janela do quarto andar.

— És tu?

Sobressaltado pelo som da voz de Leah, Gabriel ergueu bruscamente o olhar — Com demasiada brusquidão, temeu ele, porque os olhos dela pareceram entrar de repente em pânico.

— Sim, sou eu, Leah — disse ele calmamente. — É o Gabriel.

— Onde estamos? — A voz dela era fina e seca, como o restolhar de folhas. Nada era como ele se lembrava. — Isto parece-me Paris. Estamos em Paris?

— Sim, estamos em Paris.

— Aquela mulher trouxe-me aqui, não trouxe? A minha enfermeira. Tentei dizer ao Dr. Avery... — Ela interrompeu-se a meio da frase.

— Quero voltar para casa.

— Vou levar-te para casa.

— Para o hospital?

— Para Israel.

Um ligeiro sorriso, um suave aperto da mão.

— Tens a pele a arder. Sentes-te bem?

— Estou ótimo, Leah.

Ela tornou a mergulhar no silêncio e olhou pela janela.

— Olha para a neve — disse ela. — Céus, como odeio esta cidade, mas a neve torna-a belíssima. A neve absolve Viena dos seus pecados.

Gabriel vasculhou a memória em busca da primeira vez em que tinha ouvido essas palavras, e depois lembrou-se. Estavam a caminho do carro, depois de terem saído do restaurante. Dani estava encavalitado nos ombros dele. A neve absolve Viena dos seus pecados. A. neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — É bela — concordou ele, tentando evitar um toque de desânimo na voz. — Mas não estamos em Viena. Estamos em Paris. Lembras-te? A moça trouxe-te para Paris.

Ela já não o ouvia.

— Despacha-te, Gabriel — disse ela. — Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir a voz da minha mãe.

Por favor, Leah, pensou ele. Regressa. Não faças isso a ti mesma. — Já lhe vamos telefonar — disse ele.

— Certifica-te de que o cinto de segurança do Dani está bem apertado. As estradas estão escorregadias.

Ele está ótimo, Leah, tinha-lhe dito Gabriel naquela noite. Tem cuidado quando vieres a conduzir para casa.

— Vou ter cuidado — disse ela. — Beija-me.

Ele debruçou-se e pressionou os lábios contra a face arruinada de Leah.

— Um último beijo — sussurrou ela.

E então arregalou os olhos. Gabriel segurou-lhe a mão coberta de cicatrizes e desviou o olhar.

Madame Touzet enfiou a cabeça fora do seu apartamento quando Martineau entrou no vestíbulo.

— Professor Martineau, graças a Deus que é o senhor. Estava preocupadíssima.

Estava lá? Foi terrível?

Estivera a algumas centenas de metros da estação na altura da explosão, disse-lhe ele com honestidade. E sim, fora terrível, embora não tão terrível como esperara. A estação devia ter sido destruída pela força das três bombas. Era evidente que alguma coisa tinha corrido mal.

— Acabei de fazer chocolate quente. Quer fazer-me companhia e ver televisão? Detesto ficara a ver sozinha um caso tão horrível.

— Infelizmente, tive um dia muito longo, Madame Touzet. Vou-me deitar cedo. — Uma referência histórica de Paris, em ruínas. O que se segue, professor? Quem poderia ter feito semelhante coisa?

— Imagino que os muçulmanos, embora nunca se saiba as motivações de alguém capaz de cometer um ato tão bárbaro como este. Desconfio que nunca venhamos a saber a verdade.

— Acha que pode ser uma conspiração?

— Beba o seu chocolate, Madame Touzet. Se precisar de alguma coisa, estou lá em cima.

— Boa noite, professor Martineau.

O bodel, um judeu marroquino do Marais, de olhos castanhos-claros e chamado

Moshe, chegou ao apartamento de segurança uma hora mais tarde. Transportava dois sacos. Um deles continha uma muda de roupa para Gabriel, o outro mercearias. Gabriel entrou no quarto e despiu a roupa que a moça lhe tinha dado na casa em Martigues, depois manteve-se durante muito tempo debaixo do chuveiro e viu o sangue das vítimas de Khaled a correr pelo ralo. Vestiu roupa lavada e colocou o vestuário sujo dentro do saco. Quando tornou a sair, a sala de estar encontrava-se na semiobscuridade. Leah estava a dormir no sofá. Gabriel ajeitou a manta de flores que lhe cobria o corpo, depois dirigiu-se à cozinha. Navot estava em frente do fogão, com uma espátula na mão e um pano da loiça enfiado no cós da calça. O bodel estava sentado à mesa, a olhar para um copo de vinho tinto. Gabriel entregou-lhe o saco de roupa suja.

— Livra-te destas coisas — disse. — Num lugar onde ninguém as encontre. O bodel assentiu, depois saiu do apartamento de segurança. Gabriel tomou o seu lugar à mesa e olhou para Navot. O katsa de Paris era um homem compacto, não muito mais alto que Gabriel, com os ombros pesados de um lutador e braços grossos. Gabriel sempre vira algo de Shamron em Navot, e suspeitava de que Shamron também o via. Gabriel e Navot tinham tido desavenças no passado, mas Gabriel começara a considerar o jovem agente como um homem de campo meticulosamente competente. O caso mais recente em que haviam trabalhado juntos fora o caso Radek.

— Vai fazer um pé-de-vento com isto. — Navot entregou um copo de vinho a Gabriel.

— Agora bem podemos jogar fora as galochas.

— Quanto tempo lhes demos?

— Aos franceses? Duas horas. O primeiro-ministro telefonou diretamente ao Grey Poupon. O Grey Poupon disse algumas palavras escolhidas, depois fez subir o alerta para o Nível Vermelho. Não ouviste nada?

Gabriel contou a Navot que tinha o rádio do carro estragado.

— A primeira vez que me apercebi de algum aumento da segurança foi no momento em que entrei na estação. — Engoliu um pouco de vinho. — Até onde o primeiro-ministro lhes contou?

Navot transmitiu a Gabriel os pormenores que conhecia da conversa. — Como é que eles explicaram a minha presença em Marselha?

— Disseram que andavas à procura de alguém relacionado com o atentado de Roma.

— Khaled?

— Acho que não entraram em pormenores.

— Algo me diz que temos de combinar as nossas histórias. Porque é que eles esperaram tanto para alertar os Franceses?

— É óbvio que estavam à espera que aparecesses. Também precisavam de se certificar de que todos os membros da equipe de Marselha tinham deixado território francês. — E tinham? Navot assentiu.

— Suponho que nos podemos considerar afortunados por o primeiro-ministro ter entrado em contato com o Eliseu.

— Por quê?

Gabriel contou a Navot dos três shaheeds.

— Estivemos juntos na mesma mesa do Cairo. Estou certo de que alguém tirou uma fotografia muito boa da ocasião.

— Uma armadilha?

— Destinada a dar a ideia de que estive envolvido na conspiração. Navot inclinou a cabeça na direção da sala de estar.

— Ela vai comer alguma coisa?

— Deixa-a dormir.

Navot fez deslizar uma omeleta para o prato e colocou-o em frente de Gabriel. — Especialidade da casa: cogumelos, Gruyère, ervas frescas.

— Não como há 36 horas. Quando tiver terminado os ovos, tenciono comer o prato.

Navot começou a quebrar ovos numa tigela. O seu trabalho foi interrompido pela luz vermelha que piscava no alto do telefone. Agarrou no receptor, ouviu durante um momento, depois murmurou algumas palavras em hebraico e desligou. Gabriel levantou os olhos do prato.

— O que era?

— Boulevard King Saul. O plano de fuga estará pronto dentro de uma hora.

Acabaram por ter de esperar apenas 40 minutos pelo plano, que foi enviado para o apartamento de segurança através do fax de segurança: três folhas de texto em hebraico, compostas em Naka, o nome de código do Escritório. Navot, sentado junto a Gabriel na mesa da cozinha, tratou da decriptação.

— Está neste momento aterrado em Varsóvia um voo charter da El Al — disse Navot. — Judeus polacos a visitarem o seu velho país?

— Na verdade, a visitarem a cena do crime. Trata-se de uma excursão em pacote aos campos de morte. — Navot sacudiu a cabeça. Tinha estado em Treblinka naquela noite com Gabriel e Radek, e caminhara por entre as cinzas ao lado do assassino. — Porque é que alguém quererá visitar um lugar desses, é algo que me transcende. — Quando é que parte o voo?

— Amanhã à noite. Será pedido a uma das passageiras que se ofereça para uma missão bastante especial... viajar para casa com um passaporte israelense falso a partir de outro destino.

— E a Leah tomará esse lugar no charter?

— Exatamente.

— Boulevard King Saul tem um candidato?

— Na verdade tem três. Estão agora a tomar a decisão final.

— Como é que vão explicar a situação da Leah?

— Doença.

— Como é que a vamos conseguir levá-la até Varsóvia?

— Nós?

Navot sacudiu a cabeça. — Você vai voltar para casa por outro caminho: por terra até a Itália, depois vão te buscar à noite em uma praia de Fiumicino. Ao que parece conheces esse lugar...

Gabriel assentiu. Conhecia bem a praia.

— Então como é que a Leah vai chegar a Varsóvia?

— Eu a levo. — Navot viu a relutância nos olhos de Gabriel. Não se preocupe, não deixarei que nada aconteça a sua mulher. Vou acompanhá-la até em casa de avião. Há três médicos na excursão. Ela estará em boas mãos.

— E quando vota a Israel?

— Haverá uma equipe do hospital psiquiátrico Mount Herzl preparada para recebê-la.

Gabriel passou um momento a pensar naquilo. Não estava em posição de levantar objeções ao plano.

— Como é que vou conseguir atravessar a fronteira?

— Lembra da van Volkswagen que usamos no caso Radek?

Gabriel lembrava. Tinha um compartimento oculto sob a cama desdobrável. Radek fora ali escondido, drogado e inconsciente, quando Chiara dirigiu a van através da fronteira austro-checa.

— Trouxe-o para Paris após a operação — disse Navot. — Está estacionado numa garagem na 17th Street.

— Dedetizou?

Navot riu.

— Está limpo — disse. — Mais importante, vai levá-lo além da fronteira até Fiumicino.

— Quem vai me levar até a Itália?

— Moshe pode tratar disso.

— Ele? É uma criança.

— Ele sabe se cuidar — disse Navot. — Além disso, quem melhor que Moisés para levar você à Terra Prometida?

CAPÍTULO 31

FIUMICINO, ITÁLIA

 

 

— Ali está o sinal. Dois clarões curtos seguidos por um mais longo. Moshe ligou os limpa para-brisas e debruçou-se sobre o volante do Volkswagen. Gabriel estava placidamente sentado no lugar do passageiro. Estava tentado a dizer ao rapaz para se descontrair, mas, em lugar disso, resolveu deixá-lo gozar o momento. As missões anteriores de Moshe tinham envolvido o fornecimento de produtos alimentícios a apartamentos de segurança e a limpeza dos mesmos após a partida dos agentes. Um encontro à meia-noite numa praia italiana batida pelo vento ia ser o ponto alto da sua associação com o Escritório.

— Ali está de novo — disse o bodel. — Dois clarões curtos...

— ... seguidos por um longo. Ouvi-te da primeira vez. — Gabriel deu uma palmada nas costas do rapaz. — Desculpa, têm sido dois dias longos. Obrigado pela carona. Tem cuidado quando voltares, e usa...

— ... um local de entrada diferente — disse ele. — Ouvi-te as primeiras quatro vezes.

Gabriel saiu da van e atravessou estacionamento da praia, depois encarrapitou-se num muro de pedra e atravessou o areal até a borda de água. Esperou ali, as ondas batendo-lhe contra os sapatos, e viu o bote a aproximar-se. Passado um momento estava sentado à proa, com as costas viradas para Yaakov e os olhos fixos no Fidelity.

— Não devias ter ido — gritou Yaakov sob o rugido do motor fora de borda.

Se tivesse ficado em Marselha, nunca teria conseguido trazer a Leah de volta.

— Não sabes isso. Talvez Khaled tivesse jogado o jogo de outro modo. Gabriel virou a cabeça.

Tens razão, Yaakov. Ele tê-lo-ia jogado de outra maneira. Primeiro teria morto a Leah e teria deixado o seu corpo nalguma estrada do Sul da Inglaterra. Depois teria enviado os seus três shaheeds para a Gare de Lyon e tê-la-ia transformado numa ruína.

Yaakov afastou-se da válvula.

— Foi a jogada mais estúpida que já vi — disse Yaakov, acrescentando depois num tom conciliatório: — , e de longe a mais corajosa. É melhor darem-te uma medalha quando regressarmos à Avenida Rei Saul.

— Caí na armadilha do Khaled. Eles não dão medalhas a agentes que caem em armadilhas. Deixam-nos no deserto para serem bicados pelos abutres e picados pelos escorpiões.

Yaakov levou o bote até a popa do Fidelity. Gabriel subiu para a plataforma e trepou a escada até o convés da popa onde Dina o esperava. Usava uma camiseta grossa, e o vento agitava-lhe o cabelo escuro. Apressou-se para diante e lançou os braços em redor do pescoço dele.

— A voz dela — disse Gabriel. — Quero ouvir a voz dela.

Dina introduziu a cassete no gravador e premiu PLAY.

"O que lhe fizeram? Onde é que ela está?"

"Está em nosso poder, mas não sei onde está."

"Onde é que ela está? Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe."

"Estou a dizer-te a verdade."

"Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas."

"Se me matares, vais destruir-te... e atua mulher. Sou a tua única esperança."

Gabriel pressionou STOP, depois REWIND e de novo STOP.

"Se me matares, vais destruir-te... e atua mulher. Sou a tua única esperança." STOP. REWIND. PLAY.

"Sou a tua única esperança."

STOP.

Ergueu os olhos para Dina.

— Passaste-a pela base de dados?

Ela assentiu.

— Não há nada compatível em arquivo.

— Não interessa — disse Gabriel. — Tenho uma coisa melhor do que voz dela.

— E o que é?

— A sua história.

Contou a Dina a história de dor e perda que a moça praticamente despejara durante os últimos quilômetros da viagem até Paris. Como a sua família fora de Sumayriyya para a Galileia Ocidental; como tinham sido expulsos durante a Operação Ben-Ami e forçados ao exílio no Líbano.

— Sumayriyya? Era um lugar pequeno, não era? Umas mil pessoas?

— Oitocentas, segundo a moça. Parecia conhecer a sua história. — Nem toda a gente de Sumayriyya obedeceu às ordens de partida

— disse Dina. — Alguns ficaram para trás.

— E alguns conseguiram esgueirar-se através da fronteira antes de ela ser selada. Se o avô dela era realmente um dos anciãos da aldeia, alguém deve lembrar-se dele.

— Mas mesmo que fiquemos a saber o nome da moça, de que servirá isso? Ela está morta. Como é que nos pode ajudar a encontrar o Khaled?

— Ela estava apaixonada por ele. — Disse-te isso?

— Não foi preciso.

— Que perspicaz da tua parte. Que mais sabes a respeito dessa moça? — Lembro-me da aparência — disse ele. — Lembro-me exatamente da aparência dela.

Ela tinha encontrado o bloco de notas liso na ponte volante; e os dois lápis de carvão vulgares na gaveta da cozinha. Gabriel sentou-se no sofá e trabalhou à luz do candeeiro de leitura de halogêneo. Dina tentou espreitar por cima do ombro dele, mas ele lançou-lhe um olhar severo e mandou-a regressar ao convés varrido pelo vento até ter terminado.

Ela permaneceu de pé no varandim a contemplar as luzes da costa italiana que se afastavam no horizonte. Dez minutos depois regressou ao salão e descobriu que Gabriel adormecera no sofá. O retrato da moça morta encontrava-se junto dele. Dina desligou a luz e deixou-o dormir.

A fragata israelense surgiu a estibordo do Fidelity na tarde do terceiro dia. Duas horas depois, Gabriel, Yaakov e Dina aterravam no heliporto de uma base aérea de segurança a norte de Tel Aviv. Eram esperados por um grupo do Escritório. Estavam em círculo e pareciam pouco à vontade, como estranhos num funeral. Lev não se encontrava entre eles, mas, também, Lev nunca podia ser incomodado com algo tão vulgar como esperar por agentes de regresso de uma missão perigosa. Ao sair do helicóptero, Gabriel ficou aliviado por ver o Peugeot blindado a atravessar os portões e a dirigir-se através do alcatrão a alta velocidade.

Sem uma palavra, separou-se dos outros e dirigiu-se para o carro.

— Onde vais, Allon? — gritou um dos homens do Lev.

— Para casa.

— O chefe quer ver-te.

— Então talvez devesse ter cancelado uma reunião ou duas, e ter vindo esperar-nos pessoalmente. Diz ao Lev que vou tentar arranjar-lhe uma marcação para amanhã de manhã. Tenho de alterar uma coisa ou duas. Diz-lhe isso. A porta traseira do Peugeot abriu e Gabriel entrou. Shamron olhou-o em silêncio. Parecia ter envelhecido acentuadamente durante a ausência de Gabriel. O seu cigarro seguinte foi aceso por uma mão que tremia mais do que o habitual. Enquanto o carro dava um solavanco para a frente, colocou um exemplar do Le Monde no colo de Gabriel. Gabriel olhou para baixo e viu duas fotografias suas: uma na Gare de Lyon, momentos antes da explosão, e a outra no clube noturno de Mimi Ferrere no Cairo, sentado com os três shaheeds. — É tudo muito conjecturável — disse Shamron — , e portanto muito mais prejudicial como resultado. A sugestão é que de algum modo te envolvesses na intriga para fazerem o atentado na estação.

E qual poderia ter sido essa motivação?

— Desacreditar os palestinos, é claro. O Khaled armou um excelente golpe.

Conseguiu fazer um atentado na Gare de Lyon e culpar-nos por esse feito.

Gabriel leu os primeiros parágrafos da história.

— É evidente que ele tem amigos em posições elevadas, nos serviços secretos egípcios e franceses, para referir apenas dois. O Mukhabarat observou-me a partir do momento em que coloquei o pé no Cairo. Fotografaram-me no clube noturno, e depois do atentado enviaram a fotografia para o DST francês. O Khaled orquestrou a coisa toda.

— Infelizmente, há mais. David Quinnell foi assassinado no seu apartamento do Cairo, ontem à noite. É seguro partir do princípio de que também nos vão culpar por isso.

Gabriel devolveu o jornal a Shamron, que o tonou a enfiar na mala.

— A queda já começou. O ministro dos Negócios Estrangeiros deveria visitar Paris na próxima semana, mas rescindiram o convite. Fala-se de uma quebra temporária nas relações e em expulsões diplomáticas. Vamos ter de nos limpar para evitar uma ruptura maior nas nossas relações com a França e com o resto da comunidade europeia. Imagino que seremos capazes de reparar os estragos ao final, mas apenas até certo ponto. Afinal, a maior parte dos franceses ainda acredita que fomos nós que fizemos com que os aviões embatessem no World Trade Centre. Como é que alguma vez os vamos convencer de que não tivemos nada a ver com o bombardeamento na Gare de Lyon?

— Mas vocês avisaram-nos antes do atentado ter acontecido.

— É verdade, mas os apoiantes da teoria da conspiração verão nisso apenas mais uma prova da nossa culpa. Como é que haveríamos de saber que a bomba iria explodir às sete horas, a menos que estivéssemos envolvidos na intriga? Mais cedo ou mais tarde, vamos ter de contar a história, e isso inclui-te a ti.

— A mim?

— Os Franceses gostariam de falar contigo.

— Diz-lhes que vou estar no Falais de Justice na segunda de manhã. Pede-lhe para me reservarem um quarto no Crillon. Nunca tenho sorte nenhuma a arranjar quarto no Crillon.

Shamron riu.

— Vou manter-te afastado dos franceses, mas o Lev é outra história.

— Morte por comitê? Shamron assentiu.

— O inquérito vai começar amanhã. És a primeira testemunha. Deves esperar que o teu testemunho demore vários dias e que seja extraordinariamente desagradável.

— Tenho coisas melhores a fazer do que sentar-me em frente do comitê do Lev.

— Tais como?

— Encontrar o Khaled.

— E como tencionas fazer isso?

Gabriel contou a Shamron da moça da Sumayriyya.

— Quem mais sabe disso?

— Só Dina.

— Dedica-te a isso sem alaridos — disse Shamron — e, por amor de Deus, não deixes rasto.

— O Arafat teve uma mão nisto. Deu-nos o Mahmoud Arwish e depois matou-o para cobrir o rasto. E agora vai colher a recompensa das relações públicas do nosso alegado envolvimento no atentado da Gare de Lyon.

— Já os está a colher — disse Shamron. — A imprensa internacional está a alinhar-se no exterior da Mukata à espera de vez para o entrevistar. Não estamos em posição de lhe apontar o dedo.

— Então não fazemos nada e sustemos sempre a respiração no 18 de Abril, enquanto esperamos que a próxima embaixada ou sinagoga vá pelos ares? — Gabriel sacudiu a cabeça. — Não, Ari, vou encontrá-lo.

— Tenta não pensar nisso agora. — Shamron deu-lhe uma palmadinha paternal no ombro. — Descansa. Vai ver a Leah. E depois vai passar algum tempo com a Chiara. — Sim — disse Gabriel — , uma noite sem complicações vai fazer-me bem.

CAPÍTULO 32

JERUSALÉM

 

 

Shamron levou Gabriel até o Monte Herzl. Estava a começar a escurecer quando seguiu pelo passeio bordejado por árvores até a entrada do hospital. O novo médico de Leah esperava-o no hall. Rotundo e de óculos, tinha a barba comprida de um rabino e um porte inesgotavelmente agradável. Apresentou-se como Mordecai Bar-Zvi, pegou o braço de Gabriel e conduziu-o ao longo de um fresco corredor de pedra calcária de Jerusalém. Por gestos e tom da voz, deixou claro a Gabriel que sabia muito do pouco ortodoxo caso clínico da doente.

— Devo dizer que ela parece ter saído notavelmente bem de toda esta situação.

— Está a falar?

— Um pouco.

— Sabe onde é que se encontra?

— Às vezes. Só lhe posso dizer com toda a certeza que está muito ansiosa por vê-lo. — O médico olhou para Gabriel por cima dos óculos manchados. — Parece surpreso.

— Passou 13 anos sem me falar. O médico encolheu os ombros.

— Duvido que isso volte a acontecer.

Chegaram à porta. O médico bateu uma vez e levou Gabriel para o interior. Leah estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela. Virou-se para Gabriel logo que este entrou no quarto e esboçou um meio sorriso. Ele beijou-lhe a face, depois sentou-se na borda da cama. Ela olhou-o em silêncio por um momento, depois virou-se e tornou a olhar pela janela. Era como se ele já não estivesse ali.

O médico desculpou-se e fechou a porta atrás de si quando saiu. Gabriel ficou ali sentado com ela, satisfeito por não dizer nada enquanto os pinheiros lá fora iam mergulhando suavemente na obscuridade. Ficou ali durante uma hora, até a enfermeira ter entrado no quarto e ter sugerido que eram horas de Leah dormir. Quando Gabriel se levantou, Leah virou a cabeça.

— Onde é que vais?

— Eles dizem que precisas de descansar.

— Só faço isso. Gabriel beijou-a na boca.

— Uma última... — Ela interrompeu-se. — Vens ver-me outra vez amanhã?

— E no dia a seguir.

Ela virou-se e olhou pela janela.

Não havia táxis no Mount Herzl, por isso apanhou um ônibus cheio de passageiros. Não havia lugares vagos; ele manteve-se no espaço aberto ao meio e sentiu 40 pares de olhos a observá-lo. Na estrada de Jafa, saiu do ônibus e esperou por um ônibus para leste numa parada coberta. Depois pensou melhor nisso — tinha sobrevivido a uma viagem; uma segunda parecia um convite para o desastre — , por isso resolveu ir a pé através do turbulento vento noturno. Deteve-se por um instante à entrada do mercado Makhane Yehuda, dirigindo-se em seguida até a rua Narkiss. Chiara devia ter ouvido os seus passos nas escadas, porque estava à espera dele no patamar no exterior do seu apartamento. Depois das cicatrizes de Leah, a sua beleza parecia ainda mais chocante. Quando se inclinou para a beijar, Gabriel foi recebido apenas pela face. O cabelo recém-lavado de Chiara cheirava a baunilha.

Ela virou-se e entrou. Gabriel seguiu-a, parando de súbito. O apartamento tinha sido totalmente redecorado: mobiliário novo, carpetes novas e candeeiros, uma nova camada de tinta. A mesa estava posta e as velas acesas. O seu tamanho reduzido sugeria que já estariam acesas há algum tempo. Ao passar pela mesa, Chiara apagou-as.

— Está lindo — disse Gabriel.

— Esforcei-me muito para o terminar antes do teu regresso. Queria que se parecesse com um verdadeiro lar. Onde estiveste? — Tentou, com pouco êxito, fazer a pergunta sem um tom de confronto. — Não podes estar a falar a sério, Chiara.

— O teu helicóptero aterrou há cerca de três horas. E sei que não foste à Avenida Rei Saul, porque ligaram do Escritório do Lev à tua procura. — Interrompeu-se.

— Foste vê-la, não foste? Foste ver a Leah.

— Claro que fui.

— Não te ocorreu vires ver-me primeiro?

— Ela está no hospital. Não sabe onde é que está. Está confusa. Está assustada.

— Imagino que afinal eu e a Leah temos muito em comum.

— Não vamos entrar por aí, Chiara.

— Por onde?

Seguiu pelo corredor até o quarto. Também ele tinha sido redecorado. Na mesinha de cabeceira estavam os papéis que depois de assinados fariam com que o seu casamento com a Leah ficasse dissolvido. Chiara tinha deixado uma caneta ao lado deles. Ele levantou o olhar e viu-a de pé na soleira da porta. Estava a olhar para ele, procurando nos olhos dele um sinal das suas emoções — Como um detective, pensou ele, que observa a pessoa de interesse na cena do crime.

— O que te aconteceu à cara?

Gabriel contou-lhe que tinha sido espancado.

— Doeu? — Não parecia muito preocupada.

— Só um pouco. — Sentou-se na beira da cama e descalçou-se.

— O que te contaram?

— Shamron disse-me logo que o golpe tinha corrido mal. Manteve -me atualizado durante todo o dia. O instante em que ouvi que estavas em segurança foi o mais feliz da minha vida.

Gabriel tomou nota do fato de que Chiara não tinha mencionado Leah. — Como é que ela está?

— Leah?

Chiara fechou os olhos e assentiu. Gabriel citou o prognóstico do Dr. Bar-Zvi: Leah Leah tinha saído notavelmente bem de toda a situação. Ele despiu a camisa. Chiara cobriu a boca. As equimoses, depois de três dias no mar, tinham-se tornado de um roxo e preto escuros.

— Parece pior do que é — disse ele.

— Viste um médico?

— Ainda não.

— Despe-te. Vou preparar-te um banho quente. Um bom banho vai fazer-te bem. Ela saiu do quarto. Alguns segundos depois, ele ouviu a água a bater contra o esmalte da banheira. Despiu-se e dirigiu-se à casa de banho. Chiara tornou a examinar as equimoses, depois passou a mão pelo cabelo dele e olhou para as raízes.

— Agora já está suficientemente comprido para o cortares. Esta noite não quero fazer amor com um homem de cabelo grisalho.

— Então corta-o.

Ele sentou-se na borda da banheira. Como sempre, Chiara trauteava para si mesma enquanto lhe cortava o cabelo, uma daquelas tolas canções pop italianas de que ela tanto gostava. Gabriel, de cabeça inclinada, observava os restos prateados do Herr Klemp voarem até o chão. Pensou no Cairo e em como tinha sido enganado, e a fúria voltou a invadi-lo. Chiara sacudiu as aparas.

— Pronto, estás de volta ao teu velho "eu". Cabelo preto, grisalho nas têmporas. O que era aquilo que Shamron costumava dizer a respeito das tuas têmporas? — Chamava-lhes manchas de cinza — disse Gabriel. Manchas de cinza no príncipe de fogo.

Chiara experimentou a temperatura do banho. Gabriel tirou a toalha da cintura e enfiou-se dentro de água. Estava demasiado quente

— Chiara aquecia sempre de mais a água — , mas passados alguns momentos a dor começou a desaparecer do corpo. Ela sentou-se junto dele por um momento. Falou do apartamento e de uma noite que passara com Gilah Shamron — de tudo, menos da França. Passado algum tempo, foi até o quarto e despiu-se. Trauteava suavemente para si mesma. Chiara cantava sempre que se despia.

Os beijos dela, geralmente tão ternos, magoavam os lábios de Gabriel. Ela fez amor com ele de uma maneira febril, como se tentasse extrair o veneno de Leah do fluxo sanguíneo de Gabriel, e as pontas dos seus dedos deixaram novas equimoses nos ombros dele.

— Pensei que tinhas morrido — disse ela. — Pensei que nunca mais te tornaria a ver.

— Eu estava morto — disse Gabriel. — Estive morto durante muito tempo. As paredes do quarto de Veneza estavam cheias de quadros. Durante a ausência de Gabriel, Chiara pendurara-os ali. Algumas das obras tinham sido pintadas pelo avô de Gabriel, o conhecido expressionista alemão Viktor Frankel. A sua obra tinha sido considerada "degenerada" pelos nazis em 1936. Empobrecido, despojado da sua capacidade para pintar ou até ensinar, fora deportado para Auschwitz em 1942 e colocado na câmara de gás com a mulher logo à chegada. Irene, a mãe de Gabriel, tinha sido deportada com eles, mas Mengele dera-lhe um trabalho para fazer e ela conseguira sobreviver ao campo de concentração feminino de Birkenau até este ter sido evacuado perante o avanço russo. Algumas das suas obras estavam ali expostas, na galeria privada de Gabriel. Atormentada pelo que tinha visto em Birkenau, os seus quadros queimavam com uma intensidade que nem o seu famoso pai conseguia igualar. Em Israel, usara o nome Allon, que significa "carvalho" em hebraico, mas sempre assinara as suas telas com Frankel em honra ao pai. Só agora é que Gabriel conseguia ver os quadros por si mesmos, em lugar da mulher arruinada que os produzira.

Havia uma obra que não tinha qualquer assinatura, o retrato de um jovem, ao estilo de Egon Schiele. O artista era a Leah, e o assunto, o próprio Gabriel. Tinha sido pintado pouco depois de ele ter regressado a Israel com o sangue de seis terroristas palestinos nas mãos, e tinha sido a única altura em que concordara em pousar para ela. Ele nunca gostara do quadro, porque o mostrava como Leah o via: um jovem assombrado, prematuramente envelhecido pela sombra da morte. Chiara estava convicta de que o quadro era um auto-retrato. Ela acendeu a luz do quarto e olhou para os papéis na mesa-de-cabeceira. O seu exame era demonstrativo na sua natureza; ela sabia que Gabriel não os tinha assinado.

— Assino de manhã — disse ele. Ela estendeu-lhe a caneta.

— A Assina agora.

Gabriel apagou a luz.

— Na verdade, há outra coisa que quero fazer agora.

Chiara tomou-o dentro do seu corpo e chorou em silêncio durante todo o ato. — Nunca os vais assinar, pois não? Gabriel tentou calá-la com um beijo. — Estás a mentir-me — disse ela. — Estás a usar o meu corpo como uma arma de engano.

CAPÍTULO 33

JERUSALÉM

 

 

Os dias dele adquiriam rapidamente forma. De manhã, acordava cedo e sentava-se na cozinha de Chiara, recentemente decorada, com café e jornais. As histórias acerca do caso Khaled deprimiam-no. Ha'aretz batizou o caso de "Bunglegate", e o Escritório perdeu a batalha para manter o nome de Gabriel afastado dos jornais. Em Paris, a imprensa francesa cercou o Governo e o embaixador israelense pedindo uma explicação das misteriosas fotografias que tinham aparecido no Le Monde. O ministro dos Negócios Estrangeiros francês, um antigo poeta que alisava o cabelo, atirou mais achas à fogueira ao expressar a sua convicção de que "poderia na verdade ter havido uma mão israelense no Holocausto da Gare de Lyon". No dia seguinte, Gabriel leu de coração pesado que uma pizaria kosher, na Rua des Rosiers, tinha sido vandalizada. Depois, um bando de rapazes franceses atacou uma jovem quando ela ia de casa para a escola e gravou-lhe uma suástica na face. Chiara acordava geralmente uma hora depois de Gabriel. Ela leu os acontecimentos na França com mais alarme do que tristeza. Uma vez por dia telefonava à mãe em Veneza para se certificar de que toda a sua família estava em segurança.

Às oito, Gabriel deixava Jerusalém e conduzia pela Bab al-Wad até Boulevard King Saul. As reuniões decorriam na sala de conferências do último piso de modo a que Lev não tivesse de andar muito quando desejava aparecer ou observá-los. Claro que Gabriel era a testemunha-chave. A sua conduta, desde o momento em que regressara à disciplina do Escritório até a sua fuga da Gare de Lyon, foi revista com pormenores excruciantes. Apesar das previsões sombrias de Shamron, não iria haver derramamento de sangue. O resultado de tais investigações era normalmente pré-ordenado, e Gabriel conseguia perceber pelo resultado que não iam fazer dele o bode expiatório. Tratava-se de um erro coletivo, os membros do comitê pareciam estar a dizer pelo tom das suas perguntas que um pecado perdoável cometido pelo aparelho do serviço secreto desesperado por evitar qualquer perda catastrófica de vida. Apesar disso, por vezes as perguntas tornavam-se incisivas. Não teria Gabriel quaisquer suspeitas acerca das motivações de Mahmoud Arwish? Ou da lealdade de David Quinnell? Não teriam as coisas corrido de outro modo se ele tivesse dado ouvidos aos seus companheiros de equipe em Marselha e tivesse voltado atrás, em lugar de ter ido com a moça? Pelo menos assim o plano de Khaled para destruir a credibilidade do Escritório não teria tido êxito.

— Tem razão — disse Gabriel — , e a minha mulher estaria morta, bem como muitas mais pessoas inocentes.

Um a um, os outros também foram levados ao comitê, primeiro Yossi e Rimona, depois Yaakov e por fim Dina, cujas descobertas tinham iniciado a investigação respeitante a Khaled. Gabriel sentia-se magoado por vê-los colocados em questão. A sua carreira estava terminada, mas, para os outros, o caso Khaled, como se tornara conhecido, deixaria nos seus registros uma marca negra que nunca poderia ser limpa.

Ao final da tarde, quando o comitê se separava, ele conduzia até o monte Herzl para passar algum tempo com Leah. Por vezes, sentavam-se no quarto dela; e por vezes, se ainda houvesse luz, ele sentava-a na cadeira de rodas e passeava-a lentamente pelo jardim. Ela reconhecia sempre a presença dele, e normalmente conseguia dizer-lhe algumas palavras. As suas viagens alucinatórias até Viena tornaram-se menos evidentes, embora ele nunca tivesse bem a certeza do que estaria ela a pensar.

— Onde é que o Dani está enterrado? — perguntou ela certa vez, enquanto se sentavam à sombra de um pinheiro. — No Monte das Oliveiras. — Um dia levas-me lá?

— Se o teu médico disser que podes ir.

Uma vez, Chiara acompanhou-o ao hospital. Ao entrarem, ela sentou-se no hall e disse a Gabriel para demorar o tempo que quisesse.

— Gostaria de conhecê-la?

Chiara nunca tinha visto Leah. — Não — disse ela. — Acho que é melhor esperar aqui. Não por mim, mas por ela.

— Ela não saberá.

— Ela saberá, Gabriel. Uma mulher sabe sempre quando um homem está apaixonado por outra pessoa.

Nunca mais tornaram a discutir por causa de Leah. A partir daquele momento, a batalha deles passou a ser uma operação negra, um caso encoberto pautado por silêncios prolongados e observações entremeadas de duplos significados. Chiara nunca se deitava sem antes verificar se os papéis tinham sido assinados. Fazia amor com a mesma atitude de confronto dos seus silêncios. O meu corpo está intato, parecia dizer-lhe. Sou real, a Leah é apenas uma memória. O apartamento pareceu ficar claustrofóbico, por isso começaram a comer fora. Nalgumas noites iam a pé até a Rua Ben-Yehuda — ou ao Mona, um restaurante da moda que se situava precisamente na cave do velho campus da Bezalel Academy of Art. Certa noite seguiram pela autoestrada Um até Abu Ghosh, uma das muitas aldeias árabes ao longo da estrada que tinha sobrevivido às expulsões do Plano Dalet. Comeram hummus e carneiro grelhado num restaurante com uma esplanada para a praça da aldeia,

e durante alguns momentos foi possível imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes se o avô de Khaled não tivesse transformado a estrada numa zona de matança.

Chiara assinalou a ocasião comprando a um ourives de prata da aldeia uma pulseira cara para Gabriel. Na noite seguinte, na Rua Rei Jorge, comprou-lhe um relógio de prata a condizer. Uma recordação, chamava-lhes ela. Lembranças para te recordares de mim.

Quando regressaram a casa nessa noite havia uma mensagem no atendedor de chamadas. Gabriel premiu o botão de playback e ouviu a voz de Dina Sarid, que lhe dizia ter encontrado alguém que estava em Sumayriyya quando ela cairá. Na tarde seguinte, quando o comitê se tinha separado, Gabriel dirigiu até a Rua Sheinkin e encontrou-se com Dina e Yaakov numa esplanada. Conduziram para norte ao longo da autoestrada costeira através de uma luz rosada escura, passando por Herzliyya e Netanya.

Alguns quilômetros depois de Cesareia, as encostas do monte Carmelo ergueram-se diante deles. Deram a volta à baía de Haifa e dirigiram-se para Akko. Ao continuar para norte em direção a Nahariyya, Gabriel pensou na Operação Ben-Ami — a noite em que o Haganah tinha vindo por essa estrada com ordens para demolir aldeias árabes da Galileia Ocidental. Vislumbrou nesse instante uma estranha estrutura cônica, de um branco puro e brilhante, erguendo-se acima da manta verde de um laranjal. Gabriel sabia que o invulgar monumento era um memorial às crianças do Yad Layeled, um museu do Holocausto do Kibbutz Lohamei Ha'Getaot. O assentamento tinha sido fundado após a guerra por sobreviventes do levantamento do gueto de Varsóvia. Junto à extremidade do kibbut e mal visível entre a erva alta e selvagem, encontravam-se as ruínas de Sumayriyya.

Virou-se para a estrada local e seguiu-a até o interior. O entardecer aproximava-se depressa quando entravam no al-Makr. Gabriel deteve-se na estrada principal e, com o motor ainda a funcionar, entrou num café e perguntou ao dono como se ia até a casa de Hamzah al-Samara. Seguiu-se um momento de silêncio enquanto o árabe avaliava friamente Gabriel do lado oposto do balcão. Assumira claramente que o visitante judeu era um agente do Shabak, impressão essa que Gabriel não se esforçou para corrigir. O árabe levou Gabriel de volta à rua e, com uma série de gestos e sinais, mostrou-lhe o caminho. A casa era a maior da aldeia. Parecia que tinham ali vivido várias gerações de al-Samara, porque havia algumas crianças a brincar no pequeno pátio empoeirado. Sentado ao centro, estava um velho. Usava túnica cinza e kaffyeh branco, e sugava um cachimbo de água. Gabriel e Yaakov detiveram-se no lado aberto do pátio e esperaram por autorização para entrar. Dina ficou dentro do carro; Gabriel sabia que o velho nunca falaria honestamente na presença de uma judia de cabeça descoberta.

Al-Samara ergueu os olhos e chamou-os com um aceno da mão vago. Disse algumas palavras ao menino mais velho e num instante surgiram mais duas cadeiras. Depois apareceu uma mulher, talvez uma filha, que trazia três copos de chá. Tudo isto foi feito antes de Gabriel ter podido explicar o objetivo da sua visita. Sentaram-se em silêncio durante um momento, bebericando o chá e ouvindo o zumbido das cigarras nos campos vizinhos. Uma cabra entrou a trotar no 283 pátio e deu uma cabeçada suave no tornozelo de Gabriel. Uma criança, descalça e vestindo uma túnica, enxotou o animal. Parecia que o tempo tinha parado. Se não fosse pelas luzes elétricas que vinham da casa, e pelo prato de satélite no alto do telhado, Gabriel teria achado fácil de imaginar que a Palestina ainda era governada por Constantinopla.

— Fiz alguma coisa errada? — perguntou o velho em árabe. Era a primeira suposição de muitos árabes quando dois homens de aparência dura do Governo surgiam à sua porta sem serem convidados.

— Não — disse Gabriel — , só queríamos falar com você.

O velho, ao ouvir a resposta de Gabriel, sugou pensativamente o cachimbo de água. Tinha olhos cinzas hipnóticos e um bigode impecável. Os seus pés com sandálias pareciam nunca ter visto pedra-pomes.

— De onde são? — perguntou.

— Do vale de Jezreel — respondeu Gabriel. Al-Samara assentiu lentamente.

— E antes disso?

— Os meus pais vieram da Alemanha.

Os olhos cinzas moveram-se para Yaakov.

— E você?

— Hadera.

— E antes disso?

— Rússia.

— Alemães e Russos — disse al-Samara, sacudindo a cabeça. — Se não fosse pelos Alemães e pelos Russos, eu ainda estaria a viver em Sumayriyya, e não aqui em al-Makr.

— Estava lá na noite em que a aldeia caiu?

— Não exatamente. Estava a passear por um campo perto da aldeia. — Deteve-se e acrescentou num tom conspiratório: — Com uma moça.

— E quando o ataque começou?

— Escondemo-nos nos campos e observamos as famílias a seguirem para norte, em direção ao Líbano. Vimos os sapadores judeus a dinamitarem as nossas casas. Ficamos no campo até o dia seguinte. Quando a escuridão voltou a cair, viemos a pé até aqui, ao al-Makr. O resto da minha família, a minha mãe e o meu pai, os meus irmãos e irmãs, acabou toda no Líbano. 284

— E a moça com quem estavas naquela noite?

— Tornou-se minha mulher. — Tornou a sugar no cachimbo de água. — Também sou um exilado... um exilado interno. Ainda tenho o contrato da terra do meu pai em Sumayriyya, mas não posso regressar. Os judeus confiscaram-na e nunca se deram ao trabalho de me compensar pela sua perda. Imagine, um kibbut construído por sobreviventes do Holocausto sobre as ruínas de uma aldeia árabe.

Gabriel olhou para a casa grande. — Parece que se saiu bem.

— Estou bem melhor do que aqueles que partiram para o exílio. Poderia ter sido assim para todos se não tivesse havido uma guerra. Não o culpo pela minha perda. Culpo os líderes árabes. Se Haj Amin e os outros tivessem aceitado a partição, a Galileia Ocidental teria feito parte da Palestina. Mas eles escolheram a guerra, e quando a perderam, gritaram a plenos pulmões que os Árabes tinham sido vítimas. Arafat fez o mesmo em Camp David, não fez? Afastou-se de outra oportunidade de partição. Começou outra guerra, e quando os judeus ripostaram, ele afirmou que era a vítima. Quando é que aprenderemos?

A cabra regressou. Desta vez, al-Samara bateu-lhe no focinho com o bocal do cachimbo de água.

— Certamente não veio até aqui para ouvir as histórias de um velho. — Ando à procura de uma família que veio da sua aldeia, mas não sei o nome deles.

Contou ao velho as coisas que a moça tinha dito durante os últimos quilômetros antes de Paris: que o avô tinha sido um dos anciãos da aldeia, não um muktar mas um homem importante, e que tinha possuído 40 dunams de terra e um grande rebanho de cabras. Tinha tido, pelo menos, um filho. Depois da queda de Sumayriyya, tinham ido para norte, para Ein al-Hilweh, no Líbano. Al-Samara ouviu pensativamente a descrição de Gabriel, mas parecia perplexo. Gritou para a casa, por cima do ombro. Da casa emergiu uma mulher, idosa como ele, com a cabeça coberta por um véu. Falou diretamente a al-Samara, evitando cuidadosamente o olhar de Gabriel e Yaakov.

— Tem a certeza de que eram 40 dunams? — perguntou o velho.

— Não 30 ou 20, mas 40?

— Foi o que me disseram.

Ele sugou o cachimbo, pensativo.

— Tem razão — disse ele. — Essa família acabou no Líbano, em Ein al-Hilweh. As coisas pioraram durante a guerra civil libanesa. Os rapazes tornaram-se combatentes. Estão todos mortos, pelo que ouvi dizer.

— Sabe o sobrenome?

— Al-Tamari. Se encontrar algum deles, por favor apresente-lhes os meus cumprimentos. Diga-lhes que estive na casa deles. No entanto, não fale da minha villa em al-Makr. Só iria partir o coração deles.

CAPÍTULO 34

TEL AVIV

 

 

— Ein al-Hilweh? Endoideceu por completo?

Era o início da manhã seguinte. Lev estava sentado à secretária de vidro vazia, com a xícara de café suspensa a meio caminho entre os lábios e o pires. Gabriel tinha conseguido introduzir-se no Escritório enquanto a secretária de Lev tinha ido à casa de banho. A moça iria pagar caro pelo lapso na segurança quando Gabriel se fosse embora.

— Ein al-Hilweh é uma zona proibida, ponto final, fim da discussão. É pior agora do que era em 1982. Fixaram-se aí meia dúzia de organizações terroristas islâmicas. Não é lugar para gente de coração fraco... nem para um agente do Escritório cuja fotografia foi espalhada por toda a imprensa francesa.

— Bem, alguém tem de ir lá.

— Nem sequer tens certeza se o velho ainda está vivo. Gabriel franziu a testa e sentou-se sem ser convidado numa das elegantes cadeiras de couro em frente da secretária de Lev.

— Mas se ele ainda está vivo, pode dizer-nos para onde foi a filha depois de ter deixado o campo.

— Talvez — concordou Lev — , ou talvez não saiba nada. Certamente que Khaled disse à moça para enganar a família por motivos de segurança. Tanto quanto sabemos, toda a história a respeito de Sumayriyya pode ser mentira.

— Ela não tinha qualquer motivo para me mentir — disse Gabriel.

— Pensava que me iam matar.

Lev passou um longo momento a pensar.

Há um homem em Beirute que poderá ser capaz de nos ajudar. Chama-se Nabil Azouri.

— Qual é a sua história?

— É libanês e palestino. Faz um pouco de tudo. Trabalha como informante para algumas agências noticiosas ocidentais. É dono de um clube noturno. Por vezes, faz contrabando de armas, e sabe-se que de vez em quando faz tráfico de haxixe. É claro que também trabalha para nós. — Parece um homem verdadeiramente respeitável.

— É um merda — disse Lev. — Libanês até o âmago. A encarnação do Líbano. Mas é exatamente o tipo de pessoa de que precisamos para entrar em Ein al-Hilweh e falar com o pai da moça.

— Porque é que ele trabalha para nós?

— Por dinheiro, é claro. Nabil gosta de dinheiro.

— Como falamos com ele?

— Deixamos uma mensagem no telefone do clube noturno em Beirute e um bilhete de avião com o concièrge do hotel Commodore. Raramente falamos com Nabil no seu território.

— Para onde ele vai?

— Para Chipre — disse Lev. — Nabil também gosta de Chipre.

Passariam três dias até que Gabriel estivesse preparado para partir. As Viagens trataram dos preparativos. Larnaca é um popular destino turístico israelense, de modo que não foi necessário viajar com um passaporte estrangeiro falso. No entanto, era impossível viajar com o seu nome verdadeiro, por isso as Viagens emitiram um documento israelense com o nome bastante vulgar de Michael Neumann. No dia anterior à partida, as Operações deixaram-no passar uma hora a ler o arquivo de Nabil Azouri na sala de leitura de segurança. Quando terminou, deram-lhe um envelope com dez mil dólares em dinheiro e desejaram-lhe boa sorte. Na manhã seguinte, às sete, ele embarcou num avião da El Al no Aeroporto Ben-Gurion para um voo de uma hora até o Chipre. Ao chegar, alugou um carro até o aeroporto e dirigiu a curta distância pela costa até uma estância chamada Palm Beach Hotel. Aguardava-o uma mensagem Boulevard King Saul. Nabicl Azouri chegaria naquela tarde. Gabriel passou o resto da manhã no seu quarto, para em seguida, pouco depois da uma da tarde, descer até o restaurante junto à piscina. Azouri já tinha uma mesa. Uma garrafa de 1 champanhe francês caro, bebido até abaixo do rótulo, encontrava-se a gelar num balde de prata.

Tinha cabelo encaracolado escuro, salpicado com as primeiras madeixas de cinza e um bigode espesso. Quando tirou os óculos escuros, Gabriel encontrou-se a olhar para um par de enormes e sonolentos olhos castanhos. No seu pulso esquerdo encontrava-se o obrigatório relógio de ouro; no direito, diversas pulseiras de ouro que titilavam quando levava a taça de champanhe aos lábios. Vestia uma camisa de algodão bege, e tinha a calça de popelina amarrotadas por causa do voo de Beirute. Acendeu um cigarro americano com um isqueiro de ouro e ouviu a proposta de Gabriel.

— Ein al-Hilweh? Está completamente doido?

Gabriel antecipara aquela reação. Azouri tratava a sua relação com os serviços secretos israelenses como se estes fossem apenas mais um dos seus negócios comerciais. Era um vendedor do bazar, o Escritório era o seu cliente. Regatear o preço fazia parte do processo. O libanês inclinou-se para a frente e fixou Gabriel com o seu olhar sonolento.

— Esteve lá por baixo ultimamente? Parece o far west ao estilo de Khomeini. Ficou transformado num inferno desde que vocês se vieram embora. Homens de negro, que Alá, o mais misericordioso, seja louvado. Os estranhos não têm qualquer hipótese. Que se lixe, Mike. Beba um pouco de champanhe e esqueça. — Você não é um estranho, Nabil. Conhece toda a gente, pode ir a qualquer lado. É por isso que pagamos tanto.

— Não passa de gorjeta, Mike, é tudo o que recebo pelo meu disfarce... cigarros e champanhe, e alguns dólares para gastar com mulheres.

— Deve ter gostos muito caros no que se refere a mulheres, Nabil, porque já o vi a pagar fortunas. Fez uma considerável quantia à conta da sua relação com a minha empresa.

Azouri levantou a taça na direção de Gabriel.

— Fizemos bons negócios juntos, Mike. Não o posso negar. Gostaria de continuar a trabalhar com vocês. É por isso que outra pessoa precisa ir até o Ein al-Hilweh por mim. É demasiado risco para o meu sangue. Demasiado perigoso. Azouri fez sinal ao empregado e mandou vir outra garrafa de champanhe francês.

O fato de recusar uma proposta de trabalho não ia impedir que tivesse uma boa refeição por conta do Escritório. Gabriel atirou um envelope para cima da mesa. Azouri olhou-o pensativamente, mas não fez qualquer gesto para lhe pegar.

— Quanto está aí dentro, Mike?

— Dois mil.

— De que sabor?

— Dólares.

— Então, qual é o acordo? Metade agora, metade na entrega? Não passo de um árabe parvo, mas dois mil mais dois mil somam quatro mil, e não vou entrar em Ein al-Hilweh por quatro mil dólares. — Dois mil é apenas o sinal.

— E quanto para a entrega da informação?

— Mais cinco. Azouri sacudiu a cabeça.

— Não, mais dez.

— Seis.

Outro gesto de negação com a cabeça.

— Nove.

— Sete. — Oito.

— Combinado — disse Gabriel. — Dois mil adiantados, mais oito mil na entrega. Não é mau para uma tarde de trabalho. Se te portares bem, talvez te paguemos o dinheiro da gasolina.

— Ah, vão mesmo pagar a gasolina, Mike. As minhas despesas são sempre contabilizadas à parte. — O empregado trouxe a segunda garrafa de champanhe.

Quando tornou a ir-se embora, Azouri disse:

— Então, o que queres saber?

— Quero encontrar uma pessoa.

— Há 45 000 refugiados naquele campo, Mike. Tens de me dar uma ajudinha.

— É um velho chamado al-Tamari.

— Primeiro nome?

— Não sabemos.

Azouri bebericou o champanhe.

— Não é um nome terrivelmente vulgar. Não deve ser muito difícil. Que mais me podes dizer a seu respeito?

— É refugiado da Galileia Ocidental.

— Quase todos são. De que aldeia?

Gabriel contou.

— Pormenores de família?

— Dois filhos mortos em 1982.

— No campo?

Gabriel assentiu.

— Eram da Fatah. Aparentemente, a mulher também foi morta.

— Lindo. Continua.

— Tinha uma filha, que acabou na Europa. Quero saber tudo que puder descobrir sobre ela. Onde foi à escola. O que estudou. Onde morava. Com quem dormia.

— Qual é o nome da moça?

— Não sei.

— Idade?

— Trinta e poucos. Falava um francês razoável.

— Por que está à procura dela?

— Achamos que pode estar envolvida no atentado à Gare de Lyon.

— Ainda está viva?

Gabriel sacudiu a cabeça. Azouri ficou a olhar para a praia durante muito tempo. — Então achas que se lhe seguirmos os antecedentes, vamos apanhar quem está por trás do atentado? O cérebro por trás da operação?

— Qualquer coisa no gênero, Nabil.

— Como é que lido com o velho?

— Faz como quiser — disse Gabriel. — Limite-se a conseguir o que preciso.

— Essa moça — disse o libanês. — Como é que ela era?

Gabriel entregou a Azouri a revista que trouxera do quarto. Azouri abriu-a e folheou as páginas até encontrar o esboço que Gabriel tinha feito a bordo do Fidelity.

— Era assim — disse Gabriel. — Exatamente assim.

Nada soube de Nabil Azouri durante três dias. Tanto quanto Gabriel sabia, o libanês tinha-se aproveitado da primeira parte do pagamento e tinha sido morto a tentar entrar em Ein al-Hilweh. Depois, na quarta manhã, o telefone tocou. Era Azouri a telefonar de Beirute. Estaria no Palm Beach Hotel à hora de almoço. Gabriel desligou, depois desceu até a praia e deu uma corrida comprida pela borda de água. As equimoses começavam a desaparecer, e quase já não sentia o corpo dorido. Quando terminou, voltou ao quarto para tomar uma ducha e mudar de roupa. Quando chegou ao restaurante junto da piscina, Azouri estava a beber a segunda taça de champanhe.

— Que raio de lugar, Mike. O inferno na terra.

— Não estou pagando dez mil dólares por um relatório das condições de vida no Ein al-Hilweh — disse Gabriel. — Esse é o trabalho das Nações Unidas. Encontrou o velho? Ainda está vivo?

— Encontrei.

— E?

— A moça deixou Ein al-Hilweh em 1990. Nunca mais voltou.

— Qual era o nome dela?

— Fellah — disse Azouri. — Fellah al-Tamari.

— Para onde ela foi?

— Parece que era uma moça inteligente. Obteve uma bolsa das Nações Unidas para estudar na Europa. O velho disse-lhe para a aceitar e para nunca mais regressar ao Líbano.

— Onde estudou? — perguntou Gabriel, embora suspeitasse que já sabia a resposta.

— Na França — disse Azouri. — Primeiro Paris, depois foi para algures no Sul. O velho não tinha a certeza do lugar. Segundo parece houve longos períodos sem qualquer contato! — Tenho certeza que sim.

— Não pareceu culpar a filha. Queria que ela tivesse uma vida melhor na Europa. Não queria que ela se afundasse na tragédia palestina, segundo palavras suas.

— Ela nunca se esqueceu de Ein al-Hilweh — disse Gabriel distraidamente. — O que ela estudava?

— Era arqueóloga.

Gabriel lembrou-se das unhas dela. Tivera a sensação de que seria ceramista ou alguém que fazia trabalhos manuais no exterior. Uma arqueóloga ajustava-se bem à descrição.

Arqueóloga? Tens a certeza? — Pareceu muito convicto.

— Mais alguma coisa?

— Há — disse Azouri. — Há dois anos ela enviou-lhe uma carta muito estranha. Pediu-lhe que destruísse todas as cartas e as fotografias que lhe tinha enviado de Europa ao longo dos anos. O velho desobedeceu ao pedido da filha. As cartas e as fotografias eram as únicas coisas que tinha dela. Passadas algumas semanas, apareceu um rufia no quarto dele e queimou tudo.

Um amigo do Khaled, pensou Gabriel. Khaled estava a tentar apagar o passado dela.

— Como conseguiste essas informações?

— Obtive as informações que querias. Deixa os pormenores operacionais comigo, Mike.

— Mostrou o esboço?

— Mostrei. Ele chorou. Não via a filha há 15 anos.

Passada uma hora, Gabriel saiu do hotel e dirigiu até o aeroporto, onde esperou pelo voo noturno para Tel Aviv. Passava da meia-noite quando chegou à Rua Narkiss. Chiara estava a dormir. Mexeu-se quando ele se deitou, mas não acordou. Quando ele pressionou os lábios contra o seu ombro nu, ela murmurou qualquer coisa incoerente e afastou-se dele. Gabriel olhou para a mesinha de cabeceira. Os papéis tinham desaparecido.


CAPÍTULO 35

TEL MEGIDDO, ISRAEL

 

 

Na manhã seguinte, Gabriel partiu para o Armagedon.

Deixou o Skoda no estacionamento do centro de visitantes e foi a pé por um caminho até o alto do mundo sob o sol ofuscante. Deteve-se por um instante para olhar para o vale de Jezreel. Para Gabriel, o vale era o local do seu nascimento, mas os eruditos da Bíblia e as pessoas obcecadas pelas profecias do fim do mundo acreditavam que aquele seria o cenário do confronto apocalíptico entre as forças do bem e do mal. Independentemente da calamidade que se encontrava à sua frente, Tel Meggido já testemunhara muitos derramamentos de sangue. Situado no cruzamento entre a Síria, o Egipto e a Mesopotâmia, tinha sido o local de dezenas de grandes batalhas durante o milênio. Assírios, Israelenses, Cananeus, Egípcios, Filistinos, Gregos, Romanos e Cruzados: todos eles haviam derramado sangue naquela montanha. Napoleão derrotou ali os Otomanos em 1799, e passado pouco mais de um século, o general Allenby, do exército inglês, tornou a derrotá-los.

O solo ao alto do monte estava cortado por um labirinto de fossos e trincheiras. Tel Meggido era submetido a intermitentes escavações arqueológicas havia mais de um século. Até aquele momento, os investigadores tinham descoberto provas de que a cidade no alto do monte tinha sido destruída e reconstruída umas 25 vezes. Naquele momento, estava a proceder-se a uma escavação. De uma das trincheiras chegou até si o som de inglês falado com sotaque americano. Gabriel aproximou-se e olhou para baixo. Dois estudantes universitários americanos, um rapaz e uma moça, estavam agachados sobre qualquer coisa enterrada no solo. Ossos, pensou Gabriel, mas não tinha a certeza.

— Estou à procura do professor Lavon.

— Está a trabalhar no K esta manhã. — Foi a moça que falou com ele.

— Não compreendo.

— As trincheiras de escavação estão colocadas em formato de grelha. Cada lote tem uma letra. Dessa maneira conseguimos traçar a localização de cada artefato. Você está junto do F. Vê o sinal? O professor Lavon está a trabalhar no K.

Gabriel encaminhou-se para o fosso K e olhou para baixo. Ao fundo da trincheira, dois metros abaixo da superfície, encontrava-se agachada uma figura franzina que vestia um chapéu de palha de aba larga. Estava a raspar o subsolo endurecido com uma pequena picareta e parecia totalmente concentrado no seu trabalho, mas isso era algo de habitual nele.

— Encontrou alguma coisa, Eli?

O raspar parou. A figura olhou por cima do ombro.

— Apenas alguns pedaços quebrados de cerâmica — disse ele.

— E você?

Gabriel estendeu a mão para a trincheira. Eli Lavon agarrou a mão de Gabriel e impeliu-se para cima.

Sentaram-se a uma mesa dobrável, à sombra de um toldo azul, e beberam água mineral. Gabriel, de olhos fixos no vale, perguntou a Lavon o que ele fazia em Tel Meggido.

— Atualmente, há uma escola popular de pensamento arqueológico chamada minimalismo bíblico. Os minimalistas acreditam, entre outras coisas, que o rei Salomão era uma figura mítica, algo semelhante a um rei Artur mítico.

Estamos a tentar provar que eles estão errados.

— Ele existiu?

Claro — disse Lavon — , e construiu uma cidade mesmo aqui em Meggido.

Lavon retirou o chapéu mole e usou-o para sacudir a poeira castanho-acinzada da calça caqui. Como era habitual, parecia estar a usar toda a sua roupa ao mesmo tempo: três camisas, pelas contas de Gabriel, com um lenço de algodão vermelho preso ao pescoço. O seu cabelo grisalho, escasso e despenteado, movia-se na brisa fresca. Afastou uma madeixa da testa a avaliou Gabriel com os seus olhos castanho escuros.

— Não é um pouco cedo para estar aqui neste calor?

Da última vez que Gabriel tinha visto Lavon, ele jazia numa cama de hospital no centro médico Hadassah.

— Não passo de um voluntário. Trabalho apenas algumas horas ao princípio da manhã. O meu médico diz que é uma excelente terapia.

— Lavon bebericou a sua água mineral. — Além disso, acho que este lugar nos dá uma valiosa lição de humildade.

— Por quê?

— As pessoas vão e vêm deste lugar, Gabriel. Os nossos antepassados governaram-no há muito. Agora voltamos a governá-lo. Mas também um dia haveremos de desaparecer.

A única questão é quanto tempo ficaremos aqui desta vez, e o que deixaremos para ser desenterrado por homens como eu no futuro? Espero que seja mais do que a marca do Muro da Separação.

— Ainda não estou preparado para desistir, Eli.

— Estou a ver que não. Tens andado muito ocupado. Tenho lido coisas no jornal a teu respeito. Não é uma coisa boa no teu tipo de atividade... aparecer nos jornais.

— Também foi o teu tipo de atividade.

— Em tempos — disse ele — , há muito tempo.

Lavon era um jovem arqueólogo promissor em Setembro de 1972 quando Shamron o recrutou para membro da equipe da Ira de Deus. Tinha sido um ayin, um localizador. Seguira os elementos do Setembro Negro e aprendera os seus hábitos. Em vários aspectos, o seu trabalho tinha sido o mais perigoso de todos, porque fora exposto aos terroristas durante dias infindáveis e sem qualquer apoio. O trabalho tinha-o deixado com uma desordem do foro nervoso e problemas intestinais crônicos. — O que sabes a respeito do caso, Eli?

Ouvi por portas travessas que estavas de regresso ao país, e que tinha algo a ver com o atentado de Roma. Depois Shamron apareceu à minha porta uma tarde e disse-me que estavas atrás do rapaz de Sabri. É verdade? O pequeno Khaled sabia alguma coisa de Roma?

— Ele já não é um rapazito. Foi o culpado de Roma e da Gare de Lyon. E de Buenos Aires e Istambul, antes disso.

— Não me surpreende. O terrorismo corre nas veias do Khaled. Ele bebeu-o no leite materno. — Lavon sacudiu a cabeça. — Sabes, se eu tivesse estado a proteger-te na França, como fiz nos bons velhos tempos, nada disto teria acontecido.

— Provavelmente será verdade, Eli.

As tácticas de rua de Lavon eram lendárias. Shamron dizia sempre que Eli Lavon podia desaparecer enquanto nos apertava a mão. la uma vez por ano à Academia para transmitir os segredos do seu ofício à próxima geração. Na verdade, os vigilantes que tinham estado em Marselha haviam provavelmente passado algum tempo sentados aos pés de Lavon.

— Então o que te traz ao Armagedon? Gabriel colocou uma fotografia sobre a mesa.

Tipo atraente — disse Lavon. — Quem é ele?

Gabriel colocou uma segunda versão da mesma fotografia sobre a mesa. Esta incluía uma figura sentada à esquerda do sujeito, Yasser Arafat.

— Khaled? Gabriel assentiu.

— O que isto tem a ver comigo?

— Acho que tu e o Khaled têm algo em comum.

— Que é?

Gabriel olhou para as trincheiras.

Três estudantes americanos juntaram-se a eles à sombra do toldo. Lavon e Gabriel desculparam-se e caminharam lentamente à volta do perímetro da escavação. Gabriel contou-lhe tudo, começando com o arquivo descoberto em Milão e terminando com a informação que Nabil Azouri desenterrara em Ein al-Hilweh. Lavon ouviu sem fazer perguntas, mas Gabriel conseguiu ver, nos inteligentes olhos castanhos de Lavon, que ele já fazia ligações em busca de outros percursos. Era mais do que um artista de segurança especializado. Como Gabriel, Lavon era filho de sobreviventes do Holocausto. Depois da operação Ira de Deus, tinha-se fixado em Viena e abrira um pequeno Escritório de investigações chamado Reclamações e Informações em Tempo de Guerra. Funcionava com um orçamento reduzido, mas conseguira encontrar milhões de dólares de valores roubados aos Judeus e desempenhara um papel significativo na espionagem de um estabelecimento multimilionário pertencente aos bancos suíços. Cinco meses antes tinha explodido uma bomba no escritório de Lavon. Os dois assistentes de Lavon morreram; Lavon, gravemente ferido, tinha ficado em coma durante várias semanas. O homem que colocara a bomba estava a trabalhar para Erich Radek.

— Então acha que Fellah al-Tamari conhecia o Khaled?

— Sem dúvida.

— Parece um pouco estranho. Para ter conseguido permanecer escondido durante todos estes anos, deve ser um tipo bem cuidadoso.

— Isso é verdade — disse Gabriel — , mas ele sabia que Fellah ia morrer no atentado da Gare de Lyon e que o seu segredo ia ficar protegido. Ela estava apaixonada por ele, e ele mentiu-lhe.

— Estou a ver onde queres chegar.

— Mas a prova mais convincente de que eles se conheciam veio do pai dela. A Fellah disse-lhe para ele queimar as cartas e fotografias que lhe enviara ao longo dos anos. O que significa que o Khaled devia aparecer nelas.

— Como Khaled? Gabriel sacudiu a cabeça.

— Era mais ameaçador que isso. Ela deve tê-lo mencionado pelo nome, pelo seu nome francês.

— Então achas que o Khaled conheceu a moça sob circunstâncias normais e passado algum tempo a recrutou?

— Era esse o seu modo de atuação — disse Gabriel. — Também era assim que o pai dele atuava.

— Eles podiam ter-se encontrado em qualquer lado.

— Ou poderiam ter-se encontrado num lugar como este.

— Uma escavação?

— Ela era estudante de Arqueologia. Talvez o Khaled também o fosse. Ou talvez fosse professor como tu.

Ou talvez fosse apenas um árabe bem-parecido que ela conheceu num bar.

— Nós sabemos como ela se chama, Eli. Sabemos que era estudante e que estudava Arqueologia. Se seguirmos o rasto da Fellah, ele há-de conduzir-nos até o Khaled. Tenho a certeza. Então segue o rasto.

— Por motivos óbvios, não posso voltar à Europa para já.

— Por que não entregar o caso ao Escritório e deixar que os investigadores deles façam o serviço?

— Porque depois do fiasco em Paris, não há qualquer espécie de vontade em ir outra vez atrás do Khaled em território europeu, pelo menos oficialmente. Além disso, eu sou o Escritório, e estou a entregar-te o caso. Quero que o encontres, Eli. Em silêncio. E o teu dom especial. Tu sabes como fazer este tipo de coisas sem causares agitação.

— É verdade, mas perdi-me nalgumas coisas.

— Estás suficientemente bem para viajar?

— Desde que não haja percalços. Essa é a tua área. Eu sou o rato de biblioteca, tu és o judeu dos músculos.

Lavon tirou um cigarro do bolso da camisa e acendeu-o, cobrindo-o com a mão contra a brisa. Olhou para o vale de Jezreel durante um momento antes de tornar a falar.

— Mas sempre o foste, não é verdade, Gabriel?

— O quê?

— O judeu dos músculos. Gostas de representar o papel de artista sensível, mas lá no fundo és mais parecido com Shamron do que julgas.

— Ele vai tornar a matar. Talvez espere até Abril próximo, ou talvez apareça primeiro outro alvo... qualquer coisa que lhe permita mitigar temporariamente a sua sede de sangue judeu.

— Talvez sofras da mesma sede?

— Um pouco — admitiu Gabriel — , mas isto não se trata de vingança. Trata-se de justiça. E trata-se de proteger a vida de inocentes. Vais encontrá-lo por mim, Eli?

Lavon anuiu.

— Não te preocupes, Gabriel. Vou encontrá-lo, antes que ele torne a matar. Permaneceram em silêncio por um instante, contemplando a terra que se avistava à sua frente.

— Fomos nós que os fizemos irem-se embora, Eli?

Aos Cananeus?

— Não, Eli. Aos árabes.

— Por certo que não lhes pedimos para ficarem — disse Lavon.

— Talvez fosse mais fácil assim.

Havia um carro azul parado na Rua Narkiss. Gabriel reconheceu o rosto do homem sentado atrás do volante. Entrou no prédio e subiu rapidamente as escadas. Encontravam-se duas malas no patamar, no exterior de uma porta entreaberta. Chiara estava sentada na sala de estar, vestida com um elegante costume europeu de duas peças e sapatos de salto alto. Estava maquiada. Gabriel nunca vira Chiara maquiada.

— Onde vai?

— Nem devia perguntar.

— Um trabalho?

— Sim, claro, um trabalho.

— Quanto tempo vai ficar fora?

O silêncio dela disse que não regressaria.

— Quando estiver terminado, vou voltar a Veneza. — Depois acrescentou: — Para tomar conta da minha família.

Ele permaneceu imóvel olhando para ela. Ao caírem pelo rosto dela, as lágrimas de Chiara estavam negras de rímel. Para Gabriel pareciam faixas de chuva suja numa estátua. Ela limpou-as e examinou as pontas dos dedos escurecidas, furiosa com sua incapacidade de controlar as emoções. Depois endireitou-se e pestanejou várias vezes.

— Parece decepcionado comigo, Gabriel. Por quê?

— Por chorar. Nunca chora, não?

— Não mais.

Foi sentar-se junto dela na cama e tentou segurar-lhe a mão. Ela afastou-o e limpou a maquilhagem borrada com um lenço de papel, depois abriu uma caixa compacta e olhou para o seu reflexo ao espelho.

— Não posso entrar num avião assim.

— Ótimo.

Não fiques com ideias. Continuo de partida. Além disso, é aquilo que queres. Nunca me dirias para eu partir, és demasiado decente para isso. Mas eu sei que queres que eu vá. — Fechou a caixa. — Não te culpo. De uma maneira estranha, amo-te mais. Só desejava que não me tivesses dito que querias casar comigo. — Eu queria — disse ele.

— Querias?

— Eu quero casar contigo, Chiara — hesitou — , mas não posso. Sou casado com a Leah.

— Fidelidade, não é verdade, Gabriel? A devoção ao dever ou às nossas próprias obrigações. Lealdade. Fidelidade.

— Não a posso deixar agora, depois daquilo que ela passou por causa do Khaled. — Dentro de uma semana, não se vai lembrar. — Ao reparar na expressão no rosto de Gabriel, Chiara pegou-lhe na mão. — Céus, desculpa. Por favor, esquece que eu disse isto.

— Está esquecido.

— És louco por me deixares ir embora. Nunca ninguém te amará como eu. — Levantou-se. — Mas tornaremos a encontrar-nos, tenho certeza disso. Quem sabe, talvez esteja em breve a trabalhar para ti. — De que é que estás a falar?

— O Escritório está cheio de mexericos.

— Normalmente está. Não devias prestar atenção aos mexericos, Chiara. — Uma vez ouvi o boato de que nunca deixarias a Leah para casares comigo. Oxalá lhe tivesse prestado atenção.

Ela pendurou a mala ao ombro, depois inclinou-se e beijou-lhe os lábios.

— Um último beijo — sussurrou ela.

— Deixa-me pelo menos levar-te ao aeroporto.

— A última coisa de que precisamos é de um adeus choroso no Ben-Gurion. Ajuda-me com as malas.

Ele levou as malas para baixo e colocou-as no porta-bagagens do carro. Chiara Entrou no banco de trás e fechou a porta sem olhar para ele. Gabriel deixou-se ficar à sombra dos eucaliptos a ver o carro afastar-se. Enquanto voltava a subir até o apartamento vazio, apercebeu-se de que não lhe pedira que ficasse. Eli tinha razão. Era mais fácil dessa maneira.

CAPÍTULO 36

TIBERÍADES, ISRAEL

 

 

Uma semana depois da partida de Chiara, Gabriel dirigiu até Tiberíades para jantar com os Shamrons. Yonatan estava lá, bem como a sua mulher e os seus três filhos pequenos. Rimona e o marido também lá estavam. Tinham ambos saído de serviço e ainda estavam de uniforme. Shamron, rodeado pela família, parecia mais feliz do que Gabriel o via há anos. Depois do jantar, levou Yonatan e Gabriel para o terraço. Havia um brilhante quarto crescente refletido na superfície calma do mar da Galileia. Para lá do lago, negro e sem forma, elevavam-se as colinas de Golã. Shamron gostava do seu terraço, porque ficava de frente para oriente, voltado para os seus inimigos. Ficava satisfeito por se sentar calmamente sem proferir palavra durante algum tempo enquanto Gabriel e Yonatan falavam num tom pessimista do matsav — "a situação". Passado um bocado, Shamron lançou a Yonatan um olhar que dizia que precisava de falar em privado com Gabriel.

— Já percebi, Abba — disse Yonatan, levantando-se. — Deixo-os sozinhos.

— Ele é coronel do IDF — disse Gabriel, quando Yonatan saiu.

— Não gosta que o trates assim.

— Yonatan tem a sua profissão, e nós temos a nossa. — Shamron mudou habilmente o foco dos seus problemas pessoais para os de Gabriel. — Como está a Leah?

— Vou levá-la amanhã ao monte das Oliveiras para visitar a campa do Dani.

— Deduzo que o médico tenha aprovado esta saída?

Ele vem conosco, bem como metade do pessoal do hospital psiquiátrico de Mount Herzl.

Shamron acendeu um cigarro. — Sabes alguma coisa de Chiara?

— Não, e não espero saber. Sabes onde ela está? Shamron olhou teatralmente para o relógio.

— Se a operação estiver a correr conforme planejado, estará provavelmente a beber brandy numa estância de esqui em Zermatt com um certo cavalheiro suíço de personalidade duvidosa. Esse cavalheiro está prestes enviar um carregamento de armas bastante grande para um grupo de guerrilheiros libaneses que não está muito preocupado com o nosso bem-estar. Queremos saber quando vai partir esse carregamento e para onde vai.

— Por favor, diz-me que as Operações não estão a utilizar a minha ex-noiva como isco numa armadilha de mel.

— Não conheço bem os pormenores da operação, apenas os objetivos que se pretendem obter. Quanto a Chiara, é uma moça de elevado caráter moral. Tenho certeza de que vai fazer-se difícil com o nosso amigo suíço.

— Continuo sem gostar disso.

— Não te preocupes — disse Shamron. — Em breve serás aquele que decidirá como é que a vamos usar. — De que é que estás a falar?

— O primeiro-ministro gostaria de falar contigo. Tem um emprego que gostaria que tu aceitasses.

— Caçador de javalis?

Shamron atirou a cabeça para trás e começou a rir às gargalhadas, sofrendo depois um ataque de tosse demorado e espasmódico.

— Na verdade, ele quer que seja o próximo diretor das Operações.

— Eu? Quando a comissão de interrogatório do Lev tiver acabado comigo, terei sorte se conseguir um emprego como segurança num café da Rua Ben-Yehuda.

— Vai se sair bem disso. Esta não é a melhor hora para autoflagelação pública. Deixe isso para os americanos. Se tivermos de dizer algumas meias-verdades, se tivermos de mentir a um país como a França, que não está interessada na nossa sobrevivência, então que assim seja.

— Como forma de engano, fareis a guerra — disse Gabriel, citando o lema do Escritório.

Shamron assentiu uma vez e disse: — Amém.

— Mesmo que eu saia disto vivo, o Lev não permitirá que eu fique com as Operações.

— Ele não terá opinião a dar nesse assunto. O mandato do Lev está a terminar, e ele tem poucos amigos no Boulevard King Saul e na Rua Kaplan. Não será convidado para uma segunda dança.

— Então, quem vai ser o próximo chefe?

— O primeiro-ministro e eu temos uma pequena lista de nomes. Nenhum deles é do Escritório. Quem quer que nós escolhamos, precisamos de um homem experiente para dirigir as Operações.

— Eu sabia que haveria de ir dar a isto — disse Gabriel. — Soube-o no momento em que te vi em Veneza.

— Admito que os meus motivos são egoístas. O meu mandato também está a chegar ao fim. Se o primeiro-ministro sair, eu também saio. E desta vez não haverá um regresso do exílio. Preciso de ti, Gabriel. Preciso que tomes conta da minha criação. — O Escritório?

Shamron sacudiu a cabeça, depois levantou a mão em direção à terra que se avistava do terraço.

— Sei que o farás — disse Shamron. — Não tens escolha. A tua mãe chamou-te Gabriel por algum motivo. Miguel é o mais elevado, mas tu, Gabriel, és o mais poderoso. És aquele que defende Israel contra os seus acusadores. És o anjo do juízo... o príncipe de fogo.

Gabriel olhou em silêncio para o lago.

— Primeiro há uma coisa que tenho de tratar.

— Eli vai encontrá-lo, em especial com as pistas que tu lhe deste. Tratou-se de um brilhante trabalho de detective da tua parte. Mas também sempre tiveste esse tipo de pensamento.

Foi a Fellah — disse Gabriel. — Ela condenou-o ao contar-me a sua história. — Mas é essa a maneira palestina de fazer as coisas. Eles estão presos na descrição da perda e do exílio. Não há maneira de lhe escapar. — Shamron inclinou-se para a frente, repousando os cotovelos nos joelhos. — Tens mesmo a certeza que queres dar-te ao trabalho de transformar o Khaled num mártir? Há outros rapazes que podem fazer isso por ti.

— Eu sei — disse ele — , mas tenho de o fazer. Shamron suspirou pesadamente. — Se tens de o fazer, fá-lo, mas desta vez vai ser um assunto privado. Não há equipes, nem vigilância, nada que o Khaled possa manipular para sua vantagem. Apenas tu e ele.

— Como deve ser.

Caiu um silêncio entre eles. Observaram as luzes fugidias de um barco de pesca que navegava lentamente em direção a Tiberíades.

— Há uma coisa que tenho de te perguntar — disse Gabriel. — Queres falar-me acerca do Tochnit Dalet — disse Shamron.

— Acerca de Beit Sayeed e Sumayriyya.

— Como é que soubeste?

— Andas a deambular pelas terras ermas da dor palestina há demasiado tempo. É natural.

Fez a Shamron a mesma pergunta que fizera a Eli Lavon uma semana antes em Meggido. Expulsamos?

— É claro que sim — disse Shamron, acrescentou apressadamente em seguida: -Nalguns lugares, sob circunstâncias específicas. E se me pedires a minha opinião, deveríamos ter expulso mais. Foi esse o nosso erro. — Não podes estar a falar a sério, Ari.

— Deixa-me explicar-te — disse ele. — A História deu-nos uma batalha perdida. Em 1947, as Nações Unidas decidiram dar-me um bocado de terra para fundar o nosso novo Estado. Lembra-te, quatro quintos da Palestina Mandatária já tinham sido cortados para criar o Estado da Transjordânia. Oitenta por cento Dos restantes vinte por cento, as Nações Unidas deram-nos metade, dez por cento da Palestina Mandatária, a Planície Costeira e o Negev. E mesmo assim os Árabes disseram que não. Imagina se tivessem dito que sim. Imagina se tivessem dito que sim em 1937, quando a Comissão Peei recomendou a divisão. Quantos milhões poderíamos ter salvo? Os teus avós ainda estariam vivos. Talvez os meus pais e as minhas irmãs ainda estivessem vivos. Mas o que é que os Árabes fizeram? Disseram que não, juntaram-se ao Hitler e aclamaram o nosso extermínio.

— Isso justifica que os tenhamos expulso?

— Não, e não foi por esse motivo que o fizemos. Foram expulsos como consequência da guerra, uma guerra que eles começaram. A terra que as Nações Unidas nos deu continha 500. 000 judeus e 400.000 árabes. Esses árabes eram uma força hostil, empenhada na nossa destruição. Nós sabíamos que no momento em que declarássemos a independência seríamos alvos de uma invasão militar pan-árabe. Tivemos de preparar o campo de batalha. Não podíamos travar duas guerras ao mesmo tempo. Não podíamos lutar contra os Egípcios e os Jordanos por um lado enquanto combatíamos os Árabes de Beit Sayeed e

Sumayriyya pelo outro. Eles tinham de ir.

Shamron percebeu que Gabriel continuava pouco convencido.

— Diz-me uma coisa, Gabriel. Achas que se os Árabes tivessem ganho a guerra haveria refugiados judeus? Vê o que aconteceu em Hebron. Levaram os judeus para o centro da cidade e abateram-nos. Atacaram um trem de médicos e enfermeiros que se dirigiam para o monte Scopus e chacinaram-nos. Para se certificarem de que ninguém sobreviveria, regaram os veículos com gasolina e pegaram-lhes fogo. Era esta a natureza do nosso inimigo. O seu objetivo era matar-nos a todos, para que nunca mais pudéssemos regressar. E hoje continua a ser esse o seu objetivo. Querem matar-nos a todos.

Gabriel citou a Shamron as palavras que Fellah lhe dissera a caminho de Paris. O meu Holocausto é tão real como o seu, e, no entanto, negas o meu sofrimento e ilibas-te de culpa. Afirmas que as minhas feridas são auto-infligidas.

— E são autoinfligidas — disse Shamron.

— Mas houve uma estratégia oculta da expulsão? Também te meteste numa política de limpeza étnica?

— Não — disse Shamron — , e a prova está à nossa volta. Jantaste no outro dia em Abu Ghosh. Se houve uma política oculta da expulsão, como é que Abu Ghosh ainda existe?

E na Galileia Ocidental, como é que Sumayriyya desapareceu mas al-Makr ainda lá está? Porque os residentes de Abu Ghosh e de al-Makr não nos tentaram chacinar. Mas talvez tenha sido esse o nosso erro. Talvez devêssemos tê-los expulso a todos em vez de tentarmos reter uma minoria árabe no nosso meio.

— Então teria havido mais refugiados.

— É verdade, mas se eles não tivessem qualquer esperança de alguma vez regressarem, talvez se tivessem integrado na Jordânia e no Líbano, em vez de se permitirem serem usados como ferramenta de propaganda para nos demonizarem e desautorizarem. Por que o pai da Fellah al-Tamari ainda se encontra em Ein al-Hilweh depois de todos estes anos? Por que nenhum dos Estados árabes irmãos, nações com quem ele partilha uma língua, uma cultura e uma religião comuns, o aceitou? Porque o querem usar como instrumento para questionar o meu direito à existência. Eu estou aqui. Eu vivo, eu respiro. Eu existo. Não preciso da autorização de ninguém. E é certo que não tenho mais nenhum lugar para onde ir. — Olhou para Gabriel.

— Só preciso que tu o vigies por mim. Os meus olhos já não são o que eram. As luzes do barco de pesca desapareceram no porto de Tiberíades. Shamron parecia subitamente cansado.

— Nunca haverá paz neste lugar, mas também nunca houve. Desde que tropeçamos nesta terra, vindos do Egipto e da Mesopotâmia, que estamos a combater.

Cananeus, Assírios, Filistinos, Romanos, Amalecitas. Enganamo-nos ao acreditar que os nossos inimigos tinham desistido do seu sonho de nos destruir. Rezamos por coisas impossíveis. Paz sem justiça, perdão sem restituição. — Olhou provocadoramente para Gabriel. — Amor sem sacrifício.

Gabriel levantou-se e preparou-se para partir.

— Que digo ao primeiro-ministro?

— Diz-lhe que tenho de pensar nisso.

— As Operações são apenas uma estação pelo caminho, Gabriel. Um dia serás o chefe. O Memuneh.

— Tu és o Memuneh, Ari. E sempre serás. Shamron lançou uma gargalhada satisfeita.

— Que lhe digo, Gabriel?

— Diz-lhe que também não tenho outro lugar para onde ir.

A chamada telefônica de Julian Isherwood deu a Gabriel a desculpa que ele procurava para remover do apartamento os últimos vestígios de Chiara. Contatou uma obra de caridade de imigrantes russos e disse-lhes que desejava fazer uma doação. Na manhã seguinte, dois rapazes magricelas de Moscovo chegaram e levaram todo o mobiliário da sala de estar: os sofás e as cadeiras, as mesas de apoio e os candeeiros, a mesa da sala de jantar, até os vasos de latão decorativos e os pratos de cerâmica que Chiara escolhera e dispusera com tanto cuidado. Não mexeu no quarto, com exceção dos lençóis e do edredão, que ainda conservavam a fragrância a baunilha do cabelo de Chiara.

Durante os dias que se seguiram, a Rua Narkiss foi visitada por uma sucessão de camiões de entregas. A mesa de exame, ampla e branca, foi a primeira a chegar, seguida por candeeiros de halogêneo e de luz fluorescente com braços ajustáveis. A venerável loja de artigos de arte de L. Cornelissen & Son, Great Russell Street, Londres, enviou um carregamento de pincéis, pigmentos, diluentes e vernizes. Uma empresa química de Leeds enviou diversas caixas de dissolventes potencialmente perigosos que despertaram mais do que uma curiosidade passageira nas autoridades postais israelenses. Da Alemanha chegou um microscópio caro com um braço retráctil; de uma oficina de arte em Veneza, dois grandes cavaletes de madeira. Daniel na Cova do Leão, óleo sobre tela, duvidosamente atribuído a Erasmus Quellinus, chegou no dia seguinte. Gabriel passou grande parte da tarde a desmontar a sofisticada grade de transporte, e só com a ajuda de Shamron é que foi capaz de içar a enorme tela para os dois cavaletes gémeos. A imagem de Daniel rodeada por animais selvagens intrigou Shamron, que se deixou ficar até tarde enquanto Gabriel, munido com gaze de algodão e uma bacia com água destilada e amoníaco, encetou a tarefa entediante de esfregar mais do que um século de sujidade e fuligem da superfície do quadro.

Duplicou, até o máximo possível, os seus hábitos de trabalho de Veneza. Levantava-se antes do nascer do dia e resistia ao impulso de ligar o rádio, não fossem as notícias dos derramamentos de sangue diários e os constantes alertas de segurança quebrar o feitiço que o quadro lançara sobre ele. Permanecia durante toda a manhã no seu estúdio e trabalhava normalmente um segundo turno até noite dentro. Passava o mínimo de tempo possível no Boulevard King Saul; na verdade, ouviu falar da demissão de Lev no rádio do carro enquanto conduzia da Rua Narkiss até o Mount Herzl para visitar Leah. Durante as visitas, as viagens dela até Viena foram-se tornando cada vez mais breves e ligeiras. Ela fazia-lhe perguntas acerca do passado de ambos.

"Onde nos conhecemos, Gabriel?"

"No Bezalel. Tu és pintora, Leah." "Onde é que nos casamos?"

"Em Tiberíades. No terraço de Shamron, no mar da Galileia."

"E agora és restaurador?"

"Estudei em Veneza, com Umberto Conti. Costumavas ir visitar de poucos em poucos meses. Fazias-te passar por uma alemã de Bremen. Lembras-te, Leah?" Numa escaldante tarde de Junho, Gabriel bebeu café com o Dr. Bar-Zvi na cantina do pessoal.

— Alguma vez poderá deixar este lugar?

— Não.

— E por breves períodos?

— Não vejo porque não — disse o médico. — Na verdade, acho que é uma excelente ideia.

Das primeiras vezes ia acompanhada por uma enfermeira. Depois, quando se começou a sentir mais à-vontade com o fato de estar afastada do hospital, Gabriel levava-a sozinha para casa. Ela sentava-se na cadeira do estúdio e ficava a vê-lo trabalhar horas sem fim. Por vezes, a sua presença trazia-lhe paz, outras vezes uma dor insuportável. Desejava sempre poder colocá-la no cavalete e recriar a mulher que deixara dentro do carro naquela noite cheia de neve em Viena.

— Tens alguns dos meus quadros?

Ele mostrou-lhe o quadro que se encontrava no quarto. Quando ela lhe perguntou quem era o modelo, Gabriel disse-lhe que era ele.

— Pareces triste.

— Estava cansado — disse ele. — Tinha estado afastado durante três anos.

— Pintei mesmo isso?

— Eras boa — disse ele. — Eras melhor que eu.

Certa tarde, retocava Gabriel uma parte danificada do rosto de Daniel, ela perguntou-lhe porque tinha ido para Viena.

— Havia outra mulher, não havia? Uma francesa. Alguém que trabalhava para o Escritório.

Gabriel assentiu uma vez e recomeçou a trabalhar no rosto de Daniel. Leah tornou a pressioná-lo.

— Quem foi? — perguntou ela. — Quem colocou a bomba no meu carro?

— Foi Arafat. Eu também deveria ter morrido com você e com Dani, mas o homem que executou a missão mudou os planos.

— Esse homem ainda está vivo? Gabriel sacudiu a cabeça.

— E Arafat?

A noção que Leah tinha da presente situação era no mínimo tênue. Gabriel explicou-lhe que Yasser Arafat, o inimigo mortal de Israel, vivia agora a alguns quilômetros de distância, em Ramallah.

— Arafat está aqui? Como é isso possível?

Da boca dos inocentes, pensou. Nesse momento ouviu passos na escada. Eli Lavon entrou no apartamento sem se dar ao trabalho de bater.

CAPÍTULO 37

AIX-EN-PROVENCE: CINCO MESES DEPOIS

 

 

As primeiras rajadas do mistral açoitavam as ravinas e desfiladeiros do Bouches-du-Rhône. Ao sair do seu Mercedes, Paul Martineau abotoou o casaco de tela e levantou o colarinho até as orelhas. Chegara mais um Inverno à Provença. Mais algumas semanas, pensou ele, depois teria de fechar a escavação até a Primavera. Tirou o saco desportivo de tela do porta-bagagens, avançou ao longo do antigo muro de pedra da fortaleza do monte. Passado um instante, no local onde o muro terminava, deteve-se. A cerca de 50 metros de distância, perto da extremidade do alto do monte, encontrava-se um pintor em frente a uma tela. Não era invulgar ver artistas a trabalharem no alto do monte; o próprio Cézanne adorara a vista imponente sobranceira a Chaine de 1'Étoile. Apesar disso, Martineau achou que seria sensato observar melhor o homem antes de começar a trabalhar. Transferiu a Makarov do saco para o bolso do casaco, depois avançou em direção ao pintor. O homem estava de costas para Martineau. A julgar pela postura da sua cabeça, estava a olhar para o distante monte Sainte-Victoire, o que foi confirmado por Martineau alguns segundos depois quando olhou para a tela pela primeira vez. A obra era muito ao estilo das paisagens clássicas de Cézanne.

Na verdade, pensou Martineau, era uma reprodução estranha.

O artista estava tão absorvido no seu trabalho que parecia não ter ouvido Martineau a aproximar-se. Só quando ele se encontrava atrás de si é que parou de pintar e olhou por cima do ombro. Usava uma camiseta de lã grossa e um chapéu mole de aba larga que se movia com o vento. A sua barba grisalha era comprida e mal tratada e tinha as mãos manchadas de tinta. A julgar pela sua expressão, era um homem que não gostava de ser interrompido quando trabalhava. Martineau compreendia-o.

— É evidente que aprecia Cézanne — disse Martineau.

O pintor assentiu uma vez, continuando depois com o seu trabalho.

— É bastante bom. Estaria disposto a vender-mo?

— Receio que este já esteja apalavrado, mas poderei fazer outro, se quiser. Martineau estendeu-lhe o cartão.

— Pode encontrar-me no meu Escritório na universidade. Poderemos falar do preço quando eu vir a tela acabada.

O pintor aceitou o cartão e deixou-o cair numa caixa de madeira que continha pincéis e tintas. Martineau despediu-se e dirigiu-se à escavação, até a trincheira onde estivera a trabalhar no dia anterior. Desceu para o fosso e retirou o oleado azul que se estendia no fundo, expondo uma cabeça decepada de perfil esculpida em pedra. Abriu o saco desportivo e retirou uma pequena trolha e um pincel. Quando estava prestes a começar a trabalhar, uma sombra obscureceu a base do fosso. Ajoelhou-se e olhou para cima. Esperara ver Yvette ou um dos outros arqueólogos que trabalhavam na escavação. Em vez disso, viu a silhueta de chapéu do pintor, iluminada por trás pelo sol brilhante.

Martineau levou a mão à testa e escudou os olhos.

— Importa-se de se afastar daí? Está a bloquear-me a luz.

O pintor levantou em silêncio o cartão que Martineau lhe dera.

— Creio que esse nome está incorreto.

— Desculpe?

— O nome é Paul Martineau?

— Sim, sou eu.

— Mas esse não é o seu verdadeiro nome, pois não? Martineau sentiu um calor penetrante na nuca. Olhou com atenção para a figura de pé à beira da trincheira. Seria mesmo ele? Martineau não podia ter a certeza, não com a barba densa e o chapéu mole. Depois pensou na paisagem. Era uma imitação perfeita de Cézanne em tom e textura. Claro que era ele. Martineau moveu ligeiramente a mão em direção ao bolso e tentou ganhar mais algum tempo.

— Oiça, meu amigo, eu chamo-me...

— Khaled al-Khalifa — disse o pintor, terminando a frase por ele. As palavras seguintes foram ditas em árabe: — Queres mesmo morrer 315 como um francês? És o Khaled, filho do Sabri, neto do Asad, o leão de Beit Sayeed. A arma do teu pai está no bolso do teu casaco. Tira-a. Diz-me o teu nome.

Khaled agarrou o punho da Makarov e estava a tirá-la do bolso quando o primeiro tiro lhe rasgou o peito. O segundo tiro fez com que a arma que tinha na mão se soltasse.

Caiu para trás e bateu com a cabeça na base rochosa do fosso. Enquanto ia mergulhando na inconsciência, olhou para cima e viu o judeu, a agarrar uma mão cheia de terra do monte na borda da trincheira. Atirou a terra ao rosto de Khaled e levantou a arma uma última vez. Khaled viu o relâmpago de fogo, depois a escuridão. A trincheira começou a rodar, e ele sentiu-se a cair, em direção ao passado. O pintor tornou a enfiar a Beretta no cós da calça e regressou ao local onde tinha estado a trabalhar. Enfiou o pincel na tinta preta e assinou o seu nome na tela, depois virou-se e começou a subir a encosta do monte. À sombra do antigo muro encontrou uma moça de cabelo curto que tinha uma vaga semelhança com Fellah al-Tamari.

Cumprimentou-a e sentou-se no selim da mota. Passado um momento, tinha desaparecido.


NOTA DO AUTOR

Príncipe de Fogo é uma obra de ficção. Dito isto, baseia-se fortemente em acontecimentos reais, e foi inspirado em grande medida por uma fotografia — uma fotografia de um rapaz no funeral do pai, um líder terrorista morto por agente do serviço secreto israelenses em Beirute, em 1979. O terrorista era Ali Hassan Salameh, do Setembro Negro, o cérebro por trás do massacre das Olimpíadas de Munique e de muitos outros atos de assassinato, e o homem ao colo de quem a criança estava sentada na fotografia era Yasser Arafat. Os estudiosos do conflito israelo-palestino verão que tomei de empréstimo muito de Ali Hassan Salameh e do seu famoso pai para construir o Asad e o Sabri al-Khalifa de ficção. Existem diferenças básicas entre os Salamehs e os al-Khalifas, demasiadas para serem aqui enumeradas. Uma investigação na Planície Costeira não apresentará provas de uma aldeia chamada Beit Sayeed, já que tal lugar não existe. Tochnit Dalet era o verdadeiro nome do plano para remover os centros hostis de população árabe da terra destinada ao novo Estado de Israel. Existiu outrora uma aldeia chamada Sumayriyya, na Galileia Ocidental. A sua destruição ocorreu como descrito nas páginas deste romance. O Setembro Negro foi na verdade um braço oculto da Organização da Libertação da Palestina, de Yasser Arafat, e as consequências deste curto e sangrento reinado de terror ainda hoje vive. Foi o Setembro Vermelho que primeiro demonstrou a utilidade de se executarem atos espetaculares de terrorismo na cena internacional, e a prova da sua influência encontra-se a toda a nossa volta. Pode ser vista numa escola em Beslan, nos destroços de quatro trens em Madrid e no espaço vazio da Baixa de Manhattan, onde outrora se erguiam as torres gémeas do World Trade Center. Yasser Arafat adoeceu e morreu quando eu estava a concluir este romance. Se ele tivesse escolhido o caminho da paz em vez de ter libertado uma vaga de terror, este livro nunca teria sido escrito, e milhares de pessoas, tanto israelenses como palestinas, ainda hoje estariam vivas.

CAPÍTULO 22

MARTIGUES, FRANÇA

A casa ficava num bairro árabe da classe operária, na extremidade meridional da cidade. Tinha um telhado de telhas vermelhas, o estuque exterior rachado e um pátio dianteiro, cheio de ervas daninhas e entulhado de brinquedos em plástico de cores primárias partidos. Ao empurrar a porta da frente partida, Gabriel esperara encontrar provas da existência de uma família. Em vez disso, encontrou uma residência saqueada, com salas despidas de mobiliário e paredes nuas. Dois homens esperavam-no, ambos árabes, ambos bem alimentados. Um deles segurava um saco de plástico com o nome de uma conhecida cadeia de lojas popular entre a classe baixa francesa. O outro estava a baloiçar um taco de golfe enferrujado, só com uma mão, como se fosse um bastão.

— Despe-te.

A moça tinha-lhe falado em árabe. Gabriel permaneceu imóvel com as mãos pendendo contra a costura da calça, como um soldado em sentido. A moça repetiu a ordem de um modo mais agressivo. Como Gabriel continuasse imóvel, o homem que tinha conduzido o Mercedes esbofeteou-o no rosto.

Despiu o blusão e a camiseta preta. Já lhe tinham sido retirados o rádio e as armas — a moça tinha tirado quando ainda estavam em Marselha. Ela examinou as cicatrizes no peito e nas costas, depois mandou-o despir o resto da roupa.

— Que se passa com a tua modéstia muçulmana?

Recebeu um segundo estalo na face pela sua insolência, tendo esse sido dado com as costas da mão. De cabeça a andar à roda, Gabriel descalçou os sapatos e tirou as meias. Depois desabotoou a calça e tirou-as, fazendo-as deslizar sobre os pés nus. Passado um momento, estava em frente dos quatro árabes apenas de cuecas. A moça estendeu a mão e puxou o elástico.

— Isso também — disse. — Tira-as.

Acharam a sua nudez divertida. Os homens fizeram comentários acerca do seu pênis enquanto a mulher dava voltas em redor dele e lhe avaliava o corpo como se ele fosse uma estátua no pedestal. Ele lembrou-se de que para eles era um mito, uma criatura que surgira a meio da noite e matara jovens guerreiros. Olhem para ele, pareciam eles dizer com os olhos. Ele é baixo, tão vulgar. Como é que conseguiu matar tantos dos nossos irmãos?

A moça resmungou qualquer coisa em árabe que Gabriel não conseguiu compreender. Os três homens começaram a cortar a roupa que ele despira com tesouras e facas, e fizeram-nas em pedaços. Nem uma costura, nem uma bainha, nem um colarinho sobreviveu. Apenas Deus sabia de que andariam eles à procura. Um segundo sinal? Um transmissor de rádio escondido? Um diabólico dispositivo judaico que os matasse a todos e o deixasse escapar na altura e momento da sua escolha? Durante um momento, a moça observou aquela patetice com grande seriedade, tornando depois a olhar para Gabriel. Deu mais duas vezes a volta ao corpo nu dele, com uma pequena mão pensativamente premida contra os lábios. De cada vez que passava à frente dele, Gabriel olhava-lhe diretamente para os olhos. Havia algo de clínico no seu olhar, algo de profissional e analítico. Quase esperava que ela a qualquer momento tirasse de algures um minigravador e começasse a ditar notas de diagnóstico. Cicatrizes rugosas na parte superior do braço esquerdo do quadrante do peito, resultado de uma bala disparada contra si por Tariq al-Hourani, que Alá abençoe o seu glorioso nome. Cicatrizes tipo lixa em grande parte das costas. Fonte das cicatrizes desconhecida.

A revista à sua roupa nada produziu além de uma pilha de algodão e ganga desfeitos. Um dos árabes recolheu os restos e atirou-os para a lareira, depois regou-os

Com querosene e pegou-lhes fogo. Enquanto a roupa de Gabriel se transformava em cinzas, eles juntaram-se mais uma vez à volta dele, a moça de frente para ele, os dois árabes grandes um de cada lado, e aquele que servira de motorista nas costas dele. O árabe à sua direita baloiçava preguiçosamente o taco de golfe.

Havia um ritual para situações como aquela. Ele sabia que o espancamento fazia parte disso. A moça iniciou o ritual batendo-lhe no rosto. Depois afastou-se e deixou que os homens tratassem do trabalho pesado. Um golpe bem alvejado com o taco de golfe fez com que os seus joelhos enfraquecessem e ele caiu ao chão.

Depois começaram as pancadas pesadas, uma barragem de pontapés e socos que pareciam alvejar todos os centímetros do seu corpo. Evitou gritar. Não lhes queria dar essa satisfação, nem queria estragar o plano deles alertando os vizinhos — não que alguém naquela parte da cidade se preocupasse muito com três homens a espancarem um judeu. Terminou tão subitamente como começou. Em retrospectiva não era assim tão mau — na verdade, tinha passado por pior às mãos de Shamron e dos seus rufias da Academia. Tiveram cuidado com o rosto, o que quis dizer que ele precisava de permanecer apresentável.

Jazia deitado sobre o lado direito, com as mãos sobre os genitais de modo protetor e os joelhos contra o peito. Conseguia sentir sangue nos lábios, e o seu ombro esquerdo sentia-se gelado no seu lugar, o resultado de ter sido pisado diversas vezes numa sucessão rápida pelo maior dos três árabes. A moça atirou-lhe o saco de plástico para a frente do rosto e disse-lhe que se vestisse. Ele fez uma tentativa imediata de movimento, mas não pareceu conseguir rolar para o lado ou sentar-se ou levantar as mãos. Por fim, um dos árabes agarrou-o pelo braço esquerdo e puxou-o para uma posição sentada. O ombro esquerdo ferido ressentiu-se, e pela primeira vez gemeu com dores.

Aquilo, como a sua nudez, foi motivo de gargalhada.

Ajudaram-no a vestir-se. Era óbvio que tinham estado à espera de um homem maior. A T-shirt amarela-fluorescente, com MARSEILLES! escrito no peito, era muito grande. A calça de pregas brancas era larga na cintura e longa nas pernas. As sandálias baratas de couro escorregavam dos pés.

— Consegue levantar? — perguntou a moça.

— Não.

— Se não partirmos agora, vais chegar atrasado ao teu próximo posto de controle. E se chegares demasiado tarde ao teu próximo posto de controle, sabes o que vai acontecer à tua mulher.

Ele rolou pondo-se de gatas e, depois de duas tentativas falhadas, conseguiu levantar-se. A moça empurrou-o entre as espáduas e fez com que ele cambaleasse na direção da porta. Pensou em Leah e perguntou-se onde é que ela estaria. Enfiada num saco para cadáveres? Trancada no porta-bagagem de um carro? Enfiada dentro de uma grade de madeira? Será que ela sabia o que lhe estava a acontecer, ou teria a bênção de acreditar que se tratava apenas de mais outro episódio no seu pesadelo sem fim? Era por Leah que ele se mantinha íntegro e por Leah que continuava a pôr um pé à frente do outro.

Os três homens permaneceram na casa. A moça andou meio passo atrás dele, com uma sacola de couro pendendo-lhe do ombro. Deu-lhe outro empurrão, dessa vez em direção ao Mercedes. Ele tropeçou para a frente, através do pátio empoeirado e repleto de brinquedos. Os carros Matchbox revirados, o carro dos bombeiros enferrujado, a boneca sem braços e o soldado sem cabeça — a Gabriel parecia-lhe uma cena de carnificina causada por uma das bombas engenhosamente montadas de Khaled. Dirigiu-se instintivamente para o lado do passageiro.

— Não — disse a mulher. — Vais conduzir.

— Não estou em condições para isso.

— Mas tens de conduzir — disse ela. — De outro modo, vamos chegar atrasados e a tua mulher vai morrer.

Gabriel sentou-se, relutante, atrás do volante. A mulher sentou-se ao lado dele. Depois de ter fechado a porta, meteu a mão na sacola e tirou uma arma, uma Tanfolgio TA-90, que lhe apontou ao abdômen.

— Sei que me podes tirar isto em qualquer altura que queiras admitiu ela. — Se escolheres esse tipo de ação, não te vai servir de nada. Asseguro-te de que não sei onde está a tua mulher, nem sei qual o nosso destino final. Vamos juntos nesta viagem, tu e eu. Somos parceiros nesta aventura.

— Que nobre da tua parte. Ela bateu-lhe no rosto com a arma.

— Tem cuidado — disse ele — , pode disparar.

— Conheces a França muito bem, não conheces? Trabalhaste aqui. Mataste aqui muitos palestinos.

Acolhida pelo silêncio de Gabriel, atingiu-o uma segunda vez.

— Responde-me! Já trabalhaste aqui, não já?

— Sim.

Já mataste aqui palestinos, verdade?

Ele assentiu.

— Tem vergonha? Diga em voz alta.

— Sim — disse ele — , já matei aqui palestinos. Matei o Sabri aqui. — Então conheces bem as estradas da França. Não precisas de desperdiçar tempo a consultar um mapa. Isso é bom, porque não temos muito tempo.

Entregou-lhe as chaves.

— Vai na direção de Nimes. Tens uma hora.

— Fica pelo menos a cem quilômetros.

— Então sugiro que pares de falar e comeces a conduzir.

Gabriel tomou o caminho de Aries. O Reno, de um azul-prateado e agitado pelos remoinhos, deslizava debaixo deles. Do outro lado do rio Gabriel pressionou o acelerador em direção ao chão e iniciou a parte final em direção a Nimes. O tempo estava perversamente glorioso: o céu sem nuvens e intensamente azul, os campos incendiados com lavanda e girassóis, os montes inundados por uma luz tão pura que Gabriel conseguia distinguir as linhas e fissuras das formações rochosas a 20 quilômetros de distância.

A moça sentava-se calmamente com os tornozelos cruzados e a arma no colo. Gabriel perguntou-se Por que Khaled a escolhera para o escoltar até a morte. Porque a sua juventude e beleza se encontravam em marcado contraste com a enfermidade deformadora de Leah? Ou era alguma espécie de insulto árabe? Quereria ele humilhar Gabriel fazendo-o acatar as ordens de uma bela jovem? Quaisquer que fossem os motivos de Khaled, ela estava indubitavelmente bem treinada. Gabriel sentira-o durante o seu primeiro encontro em Marselha e de novo em casa, em Martigues — e conseguia vê-lo agora nos braços e ombros musculados dela, e no modo como manuseava a arma. Mas eram as mãos dela que mais o intrigavam. Tinha as unhas curtas e sujas de uma ceramista ou de alguém que trabalhava no exterior.

Ela tornou a bater-lhe sem aviso. O carro virou, e Gabriel teve de se debater para conseguir voltar a controlá-lo.

— Porque é que fizeste isso

— Estavas a olhar para a arma?

— Não estava.

— Estava a pensando em tirá-la de mim.

— Não.

— Mentiroso! Judeu mentiroso!

Levantou a arma para atingi-lo de novo, mas dessa vez Gabriel levantou defensivamente a mão e conseguiu evitar o golpe.

— É melhor apressar-se — disse ela — , ou não chegaremos a Nimes a tempo. — Estou a quase a 200 quilômetros por hora. Não posso conduzir mais depressa sem nos matar a ambos. Da próxima vez que Khaled ligar, diz-lhe que vai ter de prorrogar o prazo.

— Quem?

— Khaled — repetiu Gabriel. — O homem para quem estás a trabalhar. O homem que está a dirigir esta operação.

— Nunca ouvi falar de um homem chamado Khaled.

— Erro meu.

Ela estudou-o durante um momento.

— Falas árabe muito bem. Cresceste no vale de Jezreel, não foi? Não muito longe de Afula. Ouvi dizer que há aí muitos árabes. Pessoas que se recusaram a partir ou a serem expulsas.

Gabriel não mordeu o isco.

— Nunca lá foste?

— À Palestina? — Um ligeiro sorriso. — Vi-a à distância — disse ela. Líbano, pensou Gabriel. Ela viu-a do Líbano.

— Se vamos fazer esta viagem juntos, devia chamar-te qualquer coisa. — Não tenho nome. Sou apenas uma palestina. Sem nome, sem rosto, sem terra, sem casa. A minha mala é o meu país.

— Ótimo — disse ele. — Vou chamar-te Palestina.

— Não é um nome adequado a uma mulher.

— Está bem, então chamo-te Palestina. Ela olhou para a estrada e assentiu.

Podes chamar-me Palestina.

A um quilômetro de Nimes, ela orientou-o para o estacionamento de gravilha pertencente a uma loja à beira da estrada que vendia vasos de barro e estátuas para jardins. Durante cinco insuportáveis minutos, aguardaram em silêncio o toque do telefone por satélite dela. Quando este por fim tocou, o ruído eletrônico soou a Gabriel como uma sirena. A moça ouviu sem falar. Pela sua expressão apática, Gabriel não conseguiu perceber se lhe tinham pedido para continuar ou para o matar. Ela desligou a chamada e fez um aceno com a cabeça na direção da estrada. — Continua pela autoestrada.

— Em que direção?

— Para norte.

— Para onde vamos? Uma hesitação, e depois:

— Lyon.

Gabriel obedeceu. Quando se aproximavam da portagem da autoestrada, a moça enfiou a

Tanfolgio na sacola. Depois entregou-lhe alguns trocos para pagar a portagem. Regressados à estrada, ela tornou a tirar a arma. Pousou-a no colo. Tinha o indicador, cuja unha era suja e curta, pousado com indiferença no gatilho. — Como é que ele é?

— Quem?

— O Khaled — disse Gabriel.

— Como te disse antes, não conheço ninguém chamado Khaled.

— Passaste a noite com ele em Marselha.

— Na verdade, passei a noite com um homem chamado monsieur Véran. É melhor conduzires mais depressa.

— Sabes que ele nos vai matar. Vai-nos matar a ambos. Ela nada disse.

— Disseram-te que isto era uma missão suicida? Preparaste-te para morrer?

Rezaste e gravaste o vídeo de despedida para a tua família?

— Por favor, conduz e não voltes a falar.

— Somos shaheeds, tu e eu. Vamos morrer juntos... por motivos diferentes, mas juntos.

— Por favor, cala-te.

E ali estava, pensou ele. A fenda. Khaled mentira-lhe.

— Vamos morrer esta noite — disse ele. — Às sete. Ele não te disse isso?

Outro silêncio. O dedo dela movia-se sobre a superfície do gatilho.

— Calculo que ele se tenha esquecido de to dizer — prosseguiu Gabriel. — Mas, também, sempre foi assim. São os meninos pobres que morrem pela Palestina, os meninos dos campos e das barracas. A elite limita-se a dar as ordens a partir das suas villas em Beirute, Túnis e Ramallah.

Ela tornou a apontar a arma ao rosto dele. Dessa vez, ele agarrou-a e arrancou-lhe da mão.

— Quando me bates com isto, dificultas-me a condução. Gabriel estendeu-lhe a arma. Ela pegou-lhe e tornou a colocá-la no colo.

— Somos shaheeds, Palestina. Estamos a avançar em direção à destruição, e é o Khaled quem nos dá instruções. Sete horas, Palestina. Sete horas.

Na estrada entre Valence e Lyon, afastou Leah do pensamento e não pensou em mais nada que não o caso. O seu instinto foi abordado como se se tratasse de um quadro. Tirou-lhe o verniz e dissolveu a tinta, até nada restar além das linhas de carvão fragmentadas do esboço; depois começou a reconstruí-lo, camada a camada, tom e textura. Por um momento, foi incapaz de lhe dar uma autenticação fiável. Seria Khaled o artista, ou teria sido apenas um aprendiz na oficina do Velho Mestre, Yasser Arafat? Ter-lhe-ia Arafat ordenado que vingasse a destruição do seu poder e autoridade, ou ter-se-ia Khaled encarregado do trabalho por vontade própria para vingar a morte do pai e do avô? Tratar-se-ia de outra batalha numa guerra entre duas pessoas ou apenas de uma explosão no feudo que há tanto se alimentava entre duas famílias, os al-Khalifas e os Shamron-Allons? Suspeitava que se trataria de uma combinação de ambas, um cruzamento de necessidades e objetivos. Dois grandes artistas tinham cooperado num único trabalho: Ticiano e Bellini, pensou. O Festim dos Deuses.

No entanto, a data do comissionamento do quadro permanecia, também para ele, vaga. De uma coisa estava ele certo: o trabalho necessitara de diversos anos e muito sangue para ser executado. Tinha sido enganado, e com muita perícia. Sucedera o mesmo com todos. O arquivo encontrado em Milão tinha sido introduzido por Khaled de modo a atrair Gabriel para a sua busca. Khaled deixara atrás de si um rasto de pistas e dera corda ao relógio, de modo que Gabriel não tinha qualquer escolha além de os perseguir desesperadamente. Mahmoud Arwish, David Quinnell, Mimi Ferrere: todos eles tinham feito parte daquilo. Gabriel viu-os então, silenciosos e quietos, como figuras menores nos cantos de um Bellini, figuras essas de natureza alegórica, mas que apoiavam o foco. Mas qual seria o motivo? Gabriel sabia que o quadro estava por terminar. Khaled tinha mais uma cartada na manga, mais um espetáculo de sangue e fogo. Gabriel conseguira de algum modo sobreviver. Ele estava certo de que a pista da sua sobrevivência se encontrava algures ao longo do caminho por onde já viajara. E assim, enquanto acelerava para norte em direção a Lyon, não via a autoestrada, mas sim o quadro: cada minuto, cada cenário, cada encontro, óleo sobre a tela. Haveria de sobreviver, pensou, e um dia iria atrás de Khaled nos seus próprios termos. E a moça, Palestina, seria a sua porta de acesso.

— Desvia para a beira da estrada.

Gabriel obedeceu. Estavam a poucos quilômetros do centro de Lyon. Desta vez, apenas dois minutos se passaram antes de o telefone tocar.

— Volta para a estrada — disse ela. — Vamos para Chalon. É uma...

— Eu sei onde fica Chalon. Fica a sul de Dijon.

Esperou por uma abertura no trânsito, depois voltou a acelerar para entrar na autoestrada.

— Não consigo decidir se és um homem muito corajoso ou um tonto — disse ela.

— Podias ter-te afastado de mim em Marselha. Podias ter-te salvo.

— Ela é minha mulher — respondeu ele. — Será sempre a minha mulher.

— E estás disposto a morrer por ela?

Tu também vais morrer por ela. — Às sete horas?

— Sim.

— Porque é que inventaste essa hora? Porquê sete horas?

— Não sabes nada do homem para quem trabalhas, pois não? Tenho pena de ti, Palestina. És uma moça muito tola. O teu líder traiu-te, és tu quem vai pagar o preço.

Ela levantou a arma para lhe voltar a bater, mas deteve-se. Gabriel manteve os olhos fixos na estrada. A porta estava aberta.

Pararam para meter gasolina a sul de Chalon. Gabriel encheu o tanque e pagou com dinheiro que a moça lhe deu. Quando ele estava de novo sentado atrás do volante, ela mandou-o estacionar junto às casas de banho.

— Já volto.

— Estarei à espera.

Ela esteve ausente apenas durante um momento. Gabriel pôs o carro a funcionar, mas a moça retirou o telefone por satélite da sacola e mandou-o esperar.

Eram 14.55 horas.

— Vamos para Paris — disse ele.

— Ah, sim?

— Vai enviar-nos por um de dois caminhos. A autoestrada bifurca em Beaune. Se formos pelo atalho, podemos dirigir-nos diretamente aos subúrbios a sul. Ou podemos continuar para leste, de Dijon para Troyes, Troyes para Reims, e entrar pelo lado nordeste.

— Pareces saber tudo. Diz-me para que lado é que ele nos vai mandar.

Gabriel consultou o relógio de forma ostensiva.

— Vai querer que continuemos em movimento, e não vai querer que cheguemos ao alvo demasiado cedo. Aposto no caminho ocidental. Digo que ele nos vai mandar ir por Troyes e que nos vai dizer para esperarmos por instruções. Terá opções se nos mandar por Troyes.

Naquele momento, o telefone tocou. Ela escutou em silêncio, depois desligou.

— Regressa à autoestrada — disse ela.

— Para onde vamos?

Limita-te a conduzir — disse ela.

Gabriel pediu autorização para ligar o rádio.

— Claro — disse ela afavelmente.

Ele premiu o botão, mas nada aconteceu. Um meio sorriso surgiu no rosto dela. — Bem orquestrado — observou Gabriel.

— Obrigada.

— Porque estás a fazer isto? — Deves estar a gozar.

— Na verdade, estou a falar a sério.

— Eu sou a Palestina — disse ela. — Não tenho qualquer opção.

— Estás errada. Tens uma opção.

— Sei o que estás a fazer — disse ela. — Estás a tentar desgastar-me com as tuas sugestões de morte e suicídio. Achas que me vais conseguir fazer mudar de ideias, que vais ser capaz de me fazer perder a calma.

— Na verdade, nem sonharia com semelhante coisa. Há muito que lutamos um contra o outro. Sei que és dotada de uma coragem veemente e que raramente perdes a calma. Só quero saber porquê: Por que estás aqui? Por que não casares e teres filhos? Por que não viveres a tua vida?

Outro sorriso, esse trocista.

— Judeus — disse ela. — Vocês pensam que possuem a patente da dor. Pensam que monopolizam o mercado do sofrimento humano. O meu Holocausto é tão real como o seu, e, no entanto, negas o meu sofrimento e ilibas-te de culpa. Afirmas que as minhas feridas são auto-infligidas.

— Então, conta-me a tua história.

— A minha história é a do Paraíso perdido. A minha história é a de um povo simples forçado pelo mundo civilizado a desistir da sua terra de modo a que a cristandade pudesse aliviar a sua culpa relativamente ao Holocausto.

— Não, não — disse Gabriel. — Não quero um sermão propagandístico. Quero ouvir a tua história. De onde és?

De um campo — disse ela, acrescentando depois: — Um campo no Líbano.

Gabriel sacudiu a cabeça.

— Não te estou a perguntar onde nasceste, nem onde cresceste. Estou a perguntar-te de onde és. — Sou da Palestina.

— Mas é claro. De que região?

— Do Norte.

— Isso explica o Líbano. De que parte do Norte?

— Da Galileia.

— Ocidental? Superior? — Da Galileia Ocidental.

— De que aldeia?

— Já não existe.

— Como é que se chamava?

— Não me é permitido...

— Tinha um nome?

— Claro que tinha um nome.

— Era Bassa?

— Não.

— Era Zib?

— Não.

— Talvez fosse Sumayriyya?

Ela não respondeu.

— Então era Sumayriyya.

— Sim — disse ela. — A minha família era da Sumayriyya.

— Fica muito distante de Paris, palestina. Conta tua história.

CAPÍTULO 23

JERUSALÉM

 

 

Quando o Varash se tomou a reunir, fizeram-no em pessoa no Escritório do primeiro-ministro. As atualizações de Lev demoraram apenas um momento, já que pouco se alterara desde a última vez em que se tinham encontrado por videoconferência. Apenas o relógio tinha avançado. Eram agora 17 horas em

Tel Aviv, elo em Paris. Lev queria fazer soar o alarme.

— Temos de deduzir que dentro de três horas vai haver um enorme atentado terrorista na França, provavelmente em Paris, e que um dos nossos agentes vai estar no meio dele. Dada a situação, receio que não tenhamos qualquer opção além de o contar aos Franceses.

— E quanto ao Gabriel e à sua mulher? — perguntou Moshe Yariz, do Shabak. — Se os Franceses emitirem um alerta nacional, o Khaled pode muito bem considerá-lo uma desculpa para os matar.

— Ele não precisa de uma desculpa — disse Shamron. — É precisamente isso que ele tenciona fazer. O Lev tem razão. Temos de o dizer aos Franceses. Moral e politicamente, não temos alternativa.

O primeiro-ministro moveu desconfortavelmente o seu amplo corpo na cadeira. — Mas não lhes posso dizer que enviamos uma equipe de agentes a Marselha para matar um terrorista palestino.

— Isso não será necessário — disse Shamron. — Mas seja como for que joguemos a nossa cartada, o resultado vai ser mau. Temos um acordo com os Franceses para não atuarmos no seu território sem os avisarmos primeiro. É um acordo que estamos sempre a violar, com o entendimento tácito dos nossos irmãos nos serviços franceses. Mas um entendimento tácito é uma coisa, e ser-se apanhado em flagrante é outra.

— Então o que lhes digo?

— Recomendo que te mantenhas o mais próximo possível da verdade. Dizemos-lhes que um dos nossos agentes foi raptado por uma célula terrorista palestina, que opera no exterior de Marselha. Dizemos-lhes que o agente estava em Marselha a investigar o bombardeamento da nossa embaixada em Roma. Dizemos-lhe que temos provas credíveis sugerindo que Paris vai ser alvo de um ataque esta tarde às sete. Quem sabe? Se os Franceses fizerem soar o alarme bem alto, isso poderá forçar o Khaled a adiar ou a cancelar o seu atentado.

O primeiro-ministro olhou para Lev.

— Qual é o estado do resto da equipe?

— O Fidelity encontra-se em águas territoriais francesas, e o resto dos membros da equipe atravessaram todos fronteiras internacionais. O único ainda em território francês é o Gabriel.

O primeiro-ministro premiu um botão na consola do telefone.

— Apanha o presidente francês na linha. E arranja também um tradutor. Não quero que haja mais confusões.

O presidente da República Francesa estava numa reunião com o chanceler alemão no ornamentado Salão dos Retratos do Palácio Eliseu. Entrou silenciosamente no salão um ajudante-de-campo, que lhe murmurou algumas palavras ao ouvido. O líder francês não conseguia esconder a sua irritação ao ser interrompido por um homem que ele desprezava.

— Tem de ser agora?

— Ele diz que é uma questão de segurança de primeira prioridade. O presidente levantou-se e olhou para o convidado.

— Dá-me licença, chanceler?

Alto e elegante no seu terno escuro, o francês seguiu o ajudante para uma antecâmara privada. Passado um momento, a chamada foi-lhe passada. — Boa tarde, senhor primeiro-ministro. Calculo que não se trate de uma chamada social?

— Não, senhor presidente, com efeito. Receio ter tido conhecimento de uma grave ameaça contra o seu país.

— Imagino que seja uma ameaça de natureza terrorista?

— Na verdade, é.

— Está iminente para quando? Semanas? Dias?

— Horas, senhor presidente.

— Horas? Por que me está informar só agora? — Também só fomos agora informados da ameaça.

— Conhece algum pormenor operacional?

— Apenas a hora. Acreditamos que a célula terrorista palestina tenciona atacar às 19 horas. Paris é o alvo mais provável, mas não o podemos dizer com toda a certeza.

— Por favor, senhor primeiro-ministro. Diga-me tudo que sabe. O primeiro-ministro falou durante dois minutos. Quando terminou, o presidente francês disse:

— Por que tenho a sensação de que me está a contar apenas parte da história?

— Receio que saibamos apenas parte da história.

— Por que não nos disse que estava a perseguir um suspeito em território francês?

— Não havia tempo para uma consulta formal, senhor presidente. Caiu na categoria de uma perseguição em grande.

— E quanto aos Italianos? Informou-os de que têm um suspeito de um atentado que ocorreu em solo italiano?

— Não, senhor presidente, não informamos.

— Que surpresa — disse o francês. — Têm fotos que possam ajudar a identificar homens-bomba potenciais?

— Infelizmente, não.

— Espero que não se importe de enviar uma foto de seu agente desaparecido.

— Nestas circunstâncias...

— Pensei que fosse essa a sua resposta — disse o francês. — Vou enviar o meu embaixador ao seu Escritório. Estou confiante de que ele receberá um relatório completo e honesto de toda esta situação. — Dou-lhe a minha palavra, senhor.

— Algo me diz que este caso ainda há-de dar que falar, mas vamos primeiro ao que interessa. Manter-me-ei em contato.

— Boa sorte, senhor presidente.

O líder francês desligou o telefone com força e olhou para o seu ajudante.

— Reúne imediatamente o Grupo Napoleão — disse. — Eu trato do chanceler. : Vinte minutos depois de ter desligado, o presidente da França sentava-se no seu lugar habitual à mesa do Escritório no Salão Murat. Reunidos à volta dele estavam os membros do Grupo Napoleão, uma eficiente equipe de elementos superiores do serviço secreto, oficiais de segurança e ministros, destinada a lidar com ameaças iminentes em território francês. Mesmo em frente da dispendiosa mesa encontrava-se sentado o primeiro-ministro. Entre os dois homens havia um relógio de bronze de face dupla. Marcava 16.35 horas. O presidente abriu a reunião com uma recontagem concisa daquilo que ficara a saber. Seguiram-se alguns minutos de uma discussão um pouco acalorada, pois a fonte da informação, o primeiro-ministro israelense, era um homem verdadeiramente impopular em Paris. No entanto, ao final, cada membro do grupo concluiu que a ameaça era demasiado credível para ser ignorada.

— É óbvio, cavalheiros, que precisamos aumentar o nível de ameaça e de tomar precauções — disse o presidente. — Até onde vamos?

Na sequência dos atentados da al-Qaeda ao World Trade Center e ao Pentágono, o Governo francês concebera um sistema de quatro camadas com um código de cores semelhante aos dos Estados Unidos. Nessa tarde, o nível encontrava-se no Laranja, o segundo nível, estando apenas o Amarelo abaixo. O terceiro nível, o Vermelho, fechava automaticamente vastas extensões do espaço aéreo francês e colocava no seu lugar precauções de segurança nos sistemas de trânsito e nos monumentos históricos franceses como o Louvre e a Torre Eiffel. O nível mais elevado, o Escarlate, fecharia virtualmente o país. Incluindo o fornecimento de água e eletricidade. Nenhum membro do Grupo Napoleão estava preparado para o fazer com base num aviso dos Israelenses.

— E provável que o alvo do ataque seja judeu ou israelense — disse o ministro do Interior. — Mesmo que seja à mesma escala de Roma, não justifica aumentar o nível para Escarlate.

Concordo — disse o presidente. — Vamos aumentá-lo para Vermelho.

Passados cinco minutos, e terminada a reunião do Grupo Napoleão, o ministro do Interior francês saiu do Salão Murat para enfrentar as câmeras e os microfones.

— Senhoras e senhores — Começou ele, com uma expressão grave — , o Governo francês recebeu aquilo que acredita serem provas credíveis de um iminente atentado terrorista contra Paris esta noite...

O apartamento situava-se na Rue de Saules, na calma extremidade norte de Montmartre, várias ruas afastado do atoleiro de turistas à volta do Sacré-Coeur. O apartamento era pequeno mas confortável, o lugar perfeito para aquelas ocasiões em que o trabalho ou as conquistas amorosas levavam Paul Martineau da Provença à capital. Chegado a Paris, tinha ido ao bairro do Luxemburgo para almoçar com um colega da Sorbonne. Tinha depois seguido até St-Germain para um encontro com um potencial editor para o seu livro acerca da história pré-romana da antiga Provença. Às 16.45, atravessava o pado silencioso do edifício e entrava no vestíbulo do prédio. Madame Touzet, a porteira, enfiou a cabeça pela porta quando Martineau entrou.

— Bonjour, professor Martineau.

Martineau beijou-lhe as faces cobertas de pó de arroz e ofereceu-lhe um ramo de lírios que lhe comprara numa banca na Rue Caulaincourt. Martineau nunca ia ao seu apartamento francês sem levar um pequeno presente a Madame Touzet.

— Para mim? — perguntou ela de forma elaborada. — Não o devia ter feito, professor.

— Não o consegui evitar.

— Quanto tempo vai ficar em Paris?

— Apenas uma noite.

— Uma tragédia! vou buscar-lhe o correio.

Regressou passado um instante com um maço de postais e cartas, impecavelmente atado com um laço rosa perfumado. Martineau subiu as escada para o seu apartamento. Acendeu a televisão, mudou para o Channel 2 e foi até a cozinha para fazer café. Ao som da água corrente, ouviu a voz familiar do ministro do Interior francês. Fechou a torneira e dirigiu-se calmamente à sala de estar. Ali ficou, petrificado perante a tela da televisão, durante os dez minutos que se seguiram.

Os Israelenses tinham decidido alertar os Franceses. Martineau tivera essa possibilidade em conta. Sabia que o aumento no nível de ameaça significaria uma alteração das tácticas de segurança e dos procedimentos em locais críticos por toda a Paris, um desenvolvimento que requeria um ajustamento menor nos seus planos. Pegou no telefone e marcou um número.

— Gostaria de mudar uma reserva, por favor.

— O seu nome?

— Dr. Paul Martineau.

— Número do bilhete? Martineau deu-o.

— De momento, está previsto regressar a Aix-en-Provence vindo de Paris amanha de manhã.

— É isso, mas infelizmente surgiu um imprevisto e preciso de regressar mais cedo do que esperava. Ainda posso apanhar um trem ao princípio da noite de hoje?

— Há lugares disponíveis no das sete e um quarto.

— Primeira classe?

— Sempre.

— Então fico com um, por favor.

— Está sabendo do alerta governamental contra um atentado terrorista?

— Nunca dou muita importância a esse tipo de coisas — disse Martineau. — Além disso, se pararmos de viver, os terroristas vencem, não é verdade?

— É bem verdade.

Martineau ouvia o tamborilar de dedos no teclado do computador.

— Tudo bem, Dr. Martineau. A sua reserva foi alterada. O seu trem parte às sete e um quarto da Gare de Lyon.

Martineau desligou a chamada.

CAPÍTULO 24

TROVES, FRANÇA

 

 

— Sumayriyya? Queres saber de Sumayriyya? Era o paraíso na Terra. O Éden.

Pomares e olivais. Melões e bananas, pepinos e trigo. Sumayriyya era simples. Pura. A nossa vida seguia os ritmos das plantações e das colheitas. As chuvas e as secas. Éramos 800 em Sumayriyya. Tínhamos uma mesquita. Tínhamos uma escola. Éramos pobres, mas Alá abençoou-nos com tudo de que precisávamos.

Ouçam-na, pensou Gabriel enquanto dirigia. Nós... Nosso... Ela tinha nascido 25 anos depois de Sumayriyya ter sido varrida da face da Terra, mas falava da aldeia como se tivesse vivido ali durante toda a vida.

— O meu avô era um homem importante. Não um muktar, repare, mas um homem influente entre os anciãos da aldeia. Tinha 40 dunams* de terra e um enorme rebanho de cabras. Era considerado rico.

*Medida usada em muitos países que outrora fizeram parte do império otomano. Um dunam - 1000m2

— Um sorriso sarcástico. — Ser rico em Sumayriyya significava que se era apenas um pouco pobre.

Os olhos dela escureceram. Olhou para a arma, depois para os terrenos agrícolas franceses que passavam velozmente pela janela.

O ano de 1947 marcou o início do fim da minha aldeia. Em Novembro, as Nações Unida votaram a favor da divisão da minha terra para se dar metade aos Judeus. Sumayriyya, como o resto da Galileia Ocidental, estava destinada a fazer parte do Estado Árabe da Palestina. Mas claro que não foi esse o caso. A guerra começou no dia seguinte à votação, e no que dizia respeito aos Judeus, toda a Palestina era agora deles para a tomarem.

Tinham sido os árabes a iniciar a guerra, quis Gabriel dizer: fora o xeque Asad al-Khalifa, senhor da guerra de Beit Sayeed, quem abrira os portões do sangue com o seu atentado terrorista no ônibus de Netanya para Jerusalém. Mas agora não era o momento para referir os fatos históricos. A descrição de Sumayriyya enfeitiçara-a, e Gabriel não queria quebrar o feitiço.

Ela olhou para ele.

— Estás a pensar nalguma coisa.

— Estou a ouvir a tua história.

— Com uma parte do cérebro — disse ela — , mas com a outra estás a pensar noutra coisa. Estás a pensar em tirar-me a arma? Estás a planejar fugir?

— Não há fuga, Palestina... para nenhum de nós. Conta-me a tua história.

Ela olhou pela janela.

— Na noite de 13 de Maio de 1948, uma coluna de veículos blindados do Haganah dirigiu-se pela estrada costeira de Acre. A sua intervenção tinha o nome de código Operação Ben-Ami. Fazia parte do Tochnit Dalet. — Ela olhou para ele. — Conheces este termo, Tochnit Dalet? Plano D?

Gabriel assentiu e pensou em Dina, de pé entre as ruínas de Beit Sayeed. Há quanto tempo é que aquilo tinha acontecido? Havia apenas um mês, mas que parecia uma vida.

— O objetivo declarado da Operação Ben-Ami era o reforço de diversos assentamentos judeus isolados na Galileia Ocidental. No entanto, o verdadeiro objetivo era a conquista e a anexação. De fato, as ordens referiam especificamente a destruição de três aldeias árabes: Bassa, Zib e Sumayriyya.

Deteve-se, e olhou-o para ver se os seus comentários tinham provocado alguma reação, e continuou a contar. Sumayriyya foi a primeira das três aldeias a morrer. O Haganah cercou-a antes do nascer do dia e iluminou a aldeia com os faróis dos seus veículos blindados. Alguns dos homens do Haganah usavam kaffiyehs aos quadrados vermelhos. Um vigilante da aldeia viu os kaffijehs e deduziu que os judeus atacantes seriam na verdade reforços árabes. Disparou para o ar em jeito de celebração e foi imediatamente abatido pelo fogo do Haganah. As notícias de que os judeus estavam disfarçados de árabes espalhou o pânico entre a aldeia. Os defensores de Sumayriyya lutaram corajosamente, mas não eram se comparavam aos Haganah, que estavam muito bem armados. Passados alguns minutos, tivera início o êxodo.

— Os judeus queriam que partíssemos — disse ela. — Deixaram imediatamente o lado ocidental da aldeia sem proteção para nos dar uma rota de fuga. Não tivemos tempo de pegar roupas nem alguma coisa para comer. Apenas corremos. Mas nem assim os judeus ficaram satisfeitos. Dispararam contra nós enquanto fugíamos pelos campos que cultivávamos há séculos. Morreram cinco aldeões nesses campos. Os sapadores do Haganah entraram de imediato. Ouvíamos as explosões enquanto fugíamos. Os Judeus estavam a transformar o nosso paraíso numa pilha de destroços inabitáveis. Os aldeões de Sumayriyya tomaram a estrada e dirigiram-se para norte, na direção do Líbano. Não tardaram a juntar-se-lhes os habitantes de Bassa e de Zib, e diversas aldeias mais pequenas para leste.

— Os Judeus mandaram-nos para o Líbano — disse ela. — Disseram-nos para esperarmos ali algumas semanas até a luta ter terminado, e que depois poderíamos regressar. Regressar? E regressávamos para onde? As nossas casas tinham sido demolidas. Por isso continuamos a andar. Atravessamos a fronteira, em direção ao exílio. Ao esquecimento. E atrás de nós, os portões da Palestina foram para sempre barrados contra o nosso regresso.

 

 

Reims: 17 horas

 

 

— Encosta — disse ela. Gabriel levou o Mercedes para a beira da autoestrada. Permaneceram sentados em silêncio, o carro estremecendo na turbulência do tráfego que passava. Depois o telefone. Ela escutou, durante mais tempo do que o habitual. Gabriel suspeitou de que lhe estariam a dar as instruções finais. Sem dizer uma palavra, desligou, e depois deixou cair o telefone dentro da sacola.

— Para onde vamos?

Paris — disse ela. — Como suspeitavas.

— Para que lado é que ele quer que eu vá?

— A A4. Conheces?

— Conheço.

— Vai levar-te ao...

— ... ao Sudeste de Paris. Sei onde me vai levar, Palestina. Gabriel tornou a acelerar e entrou na autoestrada. O relógio indicava: 17h05. Um sinal de estrada piscava: PARIS 145. Cento e quarenta e cinco quilômetros até Paris.

— Acaba a tua história, Palestina.

— Onde é que íamos?

— Líbano — disse Gabriel. — O esquecimento.

— Acampávamos nos montes. Procurávamos comida. Sobrevivíamos à custa da caridade dos nossos irmãos árabes e esperávamos que os portões da Palestina nos fossem abertos, esperamos que os Judeus fizessem bom uso das promessas que nos tinham feito na manhã em que fugimos de Sumayriyya. Mas em Junho, Ben-Gurion disse que os refugiados não podiam voltar para casa. Éramos uma quinta coluna que não tinha permissão para regressar, disse ela. Seríamos um espinho no flanco do novo Estado judaico. Sabíamos que nunca mais iríamos ver Sumayriyya. Paraíso perdido.

Gabriel olhou para o relógio. 17h10. Centro e trinta quilômetros para Paris. — Caminhamos para norte, até Sidon. Passamos um Verão longo e quente a viver em tendas. Depois o tempo ficou frio e a chuva começou, e ainda estávamos a viver nas tendas. Chamamos à nossa casa Ein al-Hilweh. Doce primavera. Foi mais duro para o meu avô. Em Sumayriyya, tinha sido um homem importante. Tratava dos campos e dos seus rebanhos. Sustentava a família. Agora, a família sobrevivia de esmolas. Tinha um título da sua propriedade, mas não tinha terra.

Tinha as chaves da porta, mas não tinha casa. Ficou doente durante o primeiro Inverno e morreu. Não queria viver... não no Líbano. O meu avô morreu quando Sumayriyya morreu. .25. Paris: cem quilômetros.

— O meu pai era um rapazinho, mas teve de ficar responsável pela mãe e pelas duas irmãs. Não podia trabalhar, os Libaneses não o deixavam. Não podia ir à escola, os Libaneses também não o permitiam. Não tínhamos segurança social libanesa, nem cuidados de saúde do Líbano. E não tínhamos meio de saída, porque não tínhamos passaportes válidos. Não tínhamos país. Éramos não pessoas. Éramos nada.

5h37. Paris: 55 quilômetros.

— Quando o meu pai casou com uma moça de Sumayriyya, as pessoas que restavam da aldeia reuniram-se em Ein al-Hilweh para as cerimônias de casamento. Era como em casa, só que o meio era outro. Em vez do Paraíso, eram os esgotos a céu aberto e as cabanas de hulha betuminosa do campo. A minha mãe deu dois filhos ao meu pai. Ele falava-lhes todas as noites de Sumayriyya, para que nunca esquecessem o seu verdadeiro lar. Contava-lhes a história de al-Nakba, a Catástrofe, e instilava neles o sonho de al-Awda, o Regresso. Os meus irmãos haveriam de crescer e transformar-se em combatentes da Palestina. Não havia qualquer escolha na matéria. Assim que tivessem a idade suficiente para segurarem uma arma, a Fatah começou a treiná-los.

— E tu?

— Eu fui a última filha. Nasci em 1975, quando o Líbano caía na guerra civil.

17h47. Paris: 40 quilômetros.

Nunca pensamos que tornassem a vir atrás de nós. Sim, perdemos tudo... as nossas casas, a nossa aldeia, a nossa terra, mas pelo menos estávamos a salvo em Ein al-Hilweh. Os Judeus nunca iriam ao Líbano. Não?

5h52. Paris: 30 quilômetros.

— A Operação Paz para a Galileia, era assim que chamavam. Meu Deus, nem Orwell arranjaria um nome melhor. Em 4 de junho de 1982, os israelenses invadiram o Líbano para acabarem de uma vez por todas com a OLP. Para nós, tudo isto parecia familiar. Uma coluna armada israelense que se dirigia para norte pela estrada costeira, só que agora a estrada costeira era no Líbano, e não na Palestina, e os soldados eram membros do IDF, e não da Haganah. Sabíamos que as coisas iam ficar mal. Ein al-Hilweh era conhecida como território da Fatah, capital da Diáspora Palestina. A 8 de Junho, a batalha do campo começou. Os israelenses enviaram os seus paraquedistas. Os nossos homens ripostaram com a coragem dos leões, beco a beco, casa a casa, desde as mesquitas aos hospitais. Qualquer combatente que se tentasse se render era abatido. A palavra espalhou-se: a batalha pelo Ein al-Hilweh iria ser travada até o último homem.

"Os israelenses mudaram de tática. Usaram os seus aviões e artilharia para arrasar o campo, bloco a bloco, setor a setor. Depois os seus paraquedistas caíram sobre eles e massacraram os nossos combatentes. De poucas em poucas horas, os israelenses paravam e pediam para nos rendermos. De cada vez a resposta era a mesma: nunca. Continuou assim durante uma semana. Perdi um irmão no primeiro dia da batalha, e o meu outro irmão ao quarto dia. No último dia dos combates, a minha mãe foi confundida com uma guerrilheira enquanto rastejava para fora dos destroços e foi abatida pelos israelenses.

" Quando terminou, Ein al-Hilweh era uma terra arrasada. Pela segunda vez, os Judeus tinham transformado o meu lar em destroços. Perdi os meus irmãos, perdi a minha mãe. Perguntaste-me porque estava aqui. Estou aqui por Sumayriyya e Ein al-Hilweh. É isto que o sionismo significa para mim. Não tenho qualquer escolha além de combater.

— O que aconteceu depois de Ein al-Hilweh? Para onde foi?

A moça sacudiu a cabeça.

— Já contei o suficiente — disse ela. — Demais.

— Quero ouvir o resto.

— Dirija — disse ela. — Está quase na hora de ver sua mulher.

Gabriel olhou para o relógio: 18h. Dezesseis quilômetros para Paris.


CAPÍTULO 25

ST-DENIS, ZONA NORTE DE PARIS

 

 

Amira Assaf fechou a porta do apartamento atrás de si. O corredor, um longo túnel de cimento cinza, encontrava-se numa semiobscuridade, iluminado apenas pelo relampejo de uma luz fluorescente. Ela empurrou a cadeira de rodas em direção ao grupo de elevadores. Uma mulher, marroquina pelo som do sotaque, gritava com os seus dois filhos pequenos. Mais à frente, um trio de rapazes africanos ouvia música hip-hop americana numa aparelhagem portátil. Era aquilo que restava do império francês, pensou ela, algumas ilhas nas Caraíbas e os armazéns humanos de St-Denis.

Chegou junto dos elevadores e premiu o botão de chamada, depois levantou o olhar e viu que um dos elevadores estava a descer. Graças a Deus, pensou. Era uma parte da viagem que estava completamente para lá do seu controle: os velhos elevadores instáveis do prédio. Durante a preparação fora forçada por duas vezes a descer 23 andares porque os elevadores não estavam a funcionar. Tocou uma campainha, e as portas abriram guinchando. Amira empurrou a cadeira para o interior do elevador e foi saudada por um intenso cheiro a urina. Enquanto o elevador se afundava, ponderou acerca do motivo pelo qual os pobres urinavam nos elevadores. Quando as portas se abriram, impeliu a cadeira para o hall e respirou fundo. Não resultou. Apenas quando estava no exterior, no ar fresco do quadrângulo, é que escapou ao odor de demasiadas pessoas a viverem demasiado próximas.

Havia algo de aldeia do Terceiro Mundo no amplo quadrângulo que se encontrava no centro de quatro grande blocos de apartamentos: aglomerados de homens, divididos pelos seus países de origem, cavaqueando no entardecer frio; mulheres carregando sacos de mercearias; crianças a jogar à bola. Ninguém reparou na atraente jovem palestina que empurrava uma pessoa presa numa cadeira de rodas, de sexo e idade indeterminada.

Demorou exatamente sete minutos para chegar à estação de St-Denis. Tratava-se de uma estação ampla, uma combinação de estação de caminhos de ferro e metropolitano, e graças à hora espalhavam-se multidões pelas saídas para a rua. Entrou no hall das bilheteiras e detectou de imediato dois polícias, a primeira evidência do alerta de segurança. Tinha visto as novas atualizações e sabia que a segurança fora apertada no metro e nas estações ferroviárias por todo o país. Mas saberiam eles algo a respeito de St-Denis? Estariam eles à procura de uma inválida raptada na noite anterior de um hospital psiquiátrico? Continuou a andar.

— Desculpe, mademoiselle.

Virou-se: um funcionário da estação, jovem e atencioso, com um uniforme impecavelmente passado.

— Para onde vai?

Tinha os bilhetes na mão; precisava responder com a verdade.

— Para os trens — disse ela, acrescentando depois: — Para a Gare de Lyon.

O funcionário sorriu. — Há um elevador bem ali.

— Sim, conheço o caminho.

— Posso ajudá-la?

— Não é preciso.

— Por favor — disse ele — , permita-me.

Era mesmo do que ela precisava, pensou. Um funcionário simpático no sistema de metrô inteiro, e tinha de estar trabalhando naquela noite em St-Denis. Recusar pareceria suspeito. Assentiu e entregou os bilhetes ao funcionário. Passaram pela catraca e depois seguiram do hall povoado até o elevador. Desceram em silêncio até o nível da estação de caminhos de ferro. O funcionário acompanhou-a até a plataforma devida. Durante um momento, ela receou que ele tencionasse ficar até o trem partir. Por fim, ele desejou-lhe boa noite e voltou a subir as escadas.

Amira olhou para o painel das chegadas e partidas. Doze minutos. Olhou para o relógio, e fez contas. Sem problemas. Sentou-se num banco e esperou. Doze minutos depois, o trem entrou na estação e parou. As portas se abriram com um silvo pneumático. Amira levantou-se e empurrou a mulher para o carro.

CAPÍTULO 26

PARIS

 

 

Onde estou agora? Um trem? E quem é esta mulher? E a mesma que trabalhava no hospital? Eu disse ao Dr. Avery que não gostava dela, mas ele não me ouviu. Ela passou demasiado tempo à minha volta. Observava-me de mais. Está a ser paranoica, disse-me o Dr. Avery. A sua reação faz parte da sua doença. Chama-se Amira.

É muito simpática e altamente qualificada. Não, tentei dizer-lhe, ela está a observar-me. Vai acontecer alguma coisa. Ela é palestina. Consigo ver isso nos olhos dela.

Por que é que o Dr. Avery não me ouviu? Ou será que tentei realmente dizer-lhe?

Não tenho certeza. Não tenho certeza de nada. Olha para a televisão, Gabriel. Estão outra vez a cair mísseis em Tel Aviv. Acha que desta vez Saddam os encheu de químicos? Não suporto a ideia de estar em Viena no momento em que estão a cair mísseis em Tel Aviv. Come a massa, Dani. Olha para ele, Gabriel. Parece-se tanto contigo. Este trem lembra Paris, mas estou rodeada de árabes. Para onde é que esta mulher me levou? Porque é que não estás a comer, Gabriel? Sentes-te bem? Não pareces nada bem. Meu Deus, tens a pele a arder. Estás doente? Olha, outro míssil. Por favor, meu Deus, faça com que caia num edifício vazio. Não deixes que caia sobre a casa da minha mãe. Quero sair deste restaurante. Quero ir para casa telefonar à minha mãe.

Pergunto-me o que terá acontecido ao rapaz que foi ao hospital para olhar por mim. Como é que cheguei aqui? Quem me trouxe até aqui? E para onde vai este trem?

Neve. Meu Deus, como eu odeio esta cidade, mas a neve torna-a bela. A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv.

Trabalhas esta noite? Chegas tarde? Desculpa, nem sei porque me dei ao trabalho de perguntar. Merda. O carro está coberto de neve. Ajuda-me com as janelas antes de me ir embora. Certifica-te de que o cinto do Dani está bem apertado. As estradas estão escorregadias. Sim, vou ter cuidado. Vá lá, Gabriel, despacha-te. Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir o som da voz dela. Beija-me, um último beijo, depois vira-te e vai-te embora. Adoro ver-te a andar, Gabriel. Andas como um anjo. Detesto o trabalho que estás afazer para Shamron, mas hei-de amar-te sempre. Raios, o carro não pega. Vou tentar de novo. Por que te estás a virar, Gabriel? Para onde é que esta mulher me leva? Estás a gritar e a correr em direção ao carro? Dá outra vez à chave. Silêncio. Fumo e fogo. Tira primeiro o Dani!

Despacha-te, Gabriel! Por favor, tira-o daqui!

Estou a arder! estou a morrer queimada!

Para onde é que esta mulher me leva? Ajuda-me, Gabriel. Por favor, ajuda-me.

CAPÍTULO 27

PARIS

 

 

A Gare de Lyon situa-se no 12º arrondissement de Paris, algumas ruas a leste do Sena, Em frente da estação existe um largo círculo de tráfego e, além dele, o cruzamento de duas das maiores avenidas, a Rua de Lyon e o Boulevard Diderot. Foi ali, sentado numa popular e atarefada esplanada com turistas, que Paul Martineau aguardou. Acabou de beber o Cotes du Rhône, e depois fez sinal ao empregado pedindo a conta. Passou-se um intervalo de cinco minutos, antes que lhe entregassem a conta. Deixou o dinheiro e uma pequena gorjeta, depois dirigiu-se para a entrada da estação.

Havia diversos veículos da Polícia no círculo de tráfego e dois pares de polícias paramilitares a montar guarda à entrada. Martineau juntou-se a um pequeno grupo de pessoas e entrou. Estava quase na sala de embarque quando sentiu alguém a bater-lhe no ombro. Virou-se. Era um dos polícias que estava de guarda na entrada principal.

— Posso ver a sua identificação, por favor?

Martineau tirou da carteira a identidade francesa e entregou-o ao policial, que ficou muito tempo a olhar para o rosto de Martineau antes de tornar a olhar para a carteira.

— Para onde vai?

— Aix.

— Posso ver o seu bilhete, por favor? Martineau entregou.

— Diz aqui que deveria regressar apenas amanhã.

— Mudei a minha reserva esta tarde.

— Por quê?

— Precisei voltar mais cedo. — Martineau decidiu mostrar-se um pouco irritado. — Ouça, o que há? Estas perguntas são mesmo necessárias?

— Receio que sim, monsieur Martineau. O que o trouxe a Paris?

Martineau respondeu: um almoço com um colega da Universidade de Paris, um encontro com um eventual editor.

— É escritor?

— Na verdade, sou arqueólogo, mas estou a trabalhar num livro.

O policial tornou a entregar-lhe a carteira de identidade.

— Tenha uma boa noite.

— Obrigado.

Martineau virou-se e encaminhou-se para o terminal. Deteve-se junto ao painel das chegadas e partidas, depois subiu as escadas para o Le Train Bleu, o famoso restaurante no hall. O maître encontrou-se com ele à entrada.

— Tem uma reserva?

— Na verdade, vou encontrar-me com alguém no bar. Acho que ela já chegou. O maître desviou-se. Martineau encaminhou-se para o bar, depois para uma mesa junto a uma janela sobranceira às plataformas. Aí sentada estava uma atraente mulher na casa dos 40 com uma madeixa grisalha no seu cabelo longo e escuro. Ergueu o olhar para Martineau quando ele se aproximou. Ele inclinou-se e beijou-a num dos lados do pescoço.

— Olá, Mimi.

— Paul — sussurrou ela. — Que bom voltar a ver-te.

CAPÍTULO 28

PARIS

 

 

Dois quarteirões ao norte da Gare de Lyon: a Rua Parrot, 18h53.

— Vira aqui — disse a moça. — Estaciona o carro.

— Não há nenhuma vaga. A rua está cheia.

— Acredita em mim. Encontraremos um lugar.

Naquele instante, um carro afastou-se perto do hotel Lyon Bastille. Gabriel, não querendo correr risco, entrou no espaço vago. A moça enfiou a Tanfolgio na bolsa e pendurou-a ao ombro.

— Abre o porta-mala.

— Por quê?

— Faz apenas o que te digo. Olha para o relógio. Não temos muito tempo.

Gabriel empurrou a alavanca para abrir o porta-bagagens, que se abriu com um baque abafado. A moça tirou a chave da ignição e atirou-a para a sacola, juntamente com a arma e o telefone por satélite. Depois abriu a porta e saiu. Deu a volta ao carro até o porta-bagagens e fez sinal a Gabriel para se juntar a ela. Ele olhou para baixo. No interior, encontrava-se uma mala de viagem retangular, de nylon preto, com rodas e uma alça dobrável.

— Pega.

— Não.

— Se não pegar, sua mulher morre.

— Não vou levar uma bomba para dentro da Gare de Lyon.

— Está entrando numa estação ferroviária. É melhor que pareça um viajante. Pega o a mala.

Estendeu a mão para baixo e olhou para o fecho. Fechado.

— Pega.

Havia um macaco cromado no espaço para as ferramentas.

— Que está fazendo? Quer que sua mulher morra?

Duas pancadas fortes, e o trinco abriu. Abriu o compartimento principal: maços de papel. Depois tentou os compartimentos exteriores. Vazios.

— Está satisfeito? Olha a hora. Pega a mala.

Gabriel pegou e colocou no passeio. A moça já começava a se afastar. Esticou a pega da mala, fechou o porta-bagagens e depois começou a segui-la. Na esquina da Rua de Laon, viraram à esquerda. A estação, situada num ligeiro promontório, elevava-se acima dele.

— Não tenho bilhete. — Eu tenho o teu bilhete.

— Para onde é que vamos? Berlim? Genebra? Amsterdam?

— Continua a andar.

À medida que se iam aproximando da esquina do Boulevard Diderot, Gabriel viu agentes da Polícia a patrulharem o perímetro da estação a pé e luzes de emergência azuis a piscarem no círculo de tráfego.

— Foram alertados — disse ele. — Vamos entrar diretamente num alerta de segurança.

— Vai correr tudo bem.

— Não tenho passaporte.

— Não precisa.

— E se nos mandarem parar?

— Eu tenho. Se um policial pedir identificação, olhe para mim, e eu trato do assunto.

— Você é o motivo para nos mandarem parar.

No Boulevard Diderot esperaram que o semáforo mudasse, depois atravessaram a rua por entre um enxame de peões. O saco parecia-lhe muito leve. Não parecia certo estar a empurrá-lo pelo pavimento. Deviam ter colocado roupa no interior para fazerem com que tivesse um peso adequado. E se ele fosse mandado parar? E se o saco fosse revistado e eles descobrissem que estava cheio de maços de papéis? E se eles olhassem para o interior da sacola da Palestina e encontrassem Tanfolgio... Disse a si mesmo para esquecer a mala e a arma na bolsa da moça. Em vez disso, concentrou-se na sensação que tivera anteriormente nesse dia, a sensação de que a pista para a sua sobrevivência estaria ao longo do caminho da viagem. De pé na entrada da estação estavam diversos agentes da polícia e dois soldados de fardas camufladas com armas automáticas no ombro. Estavam a mandar parar as pessoas aleatoriamente, verificando as identificações, revistando as bagagens. A moça enfiou o braço no de Gabriel e fê-lo andar mais depressa. Ele sentia os olhos dos polícias sobre si, mas ninguém os mandou parar até terem entrado.

A estação, de telhado arqueado e elevado, abriu diante deles. Detiveram-se por um momento ao alto de umas escadas rolantes que desciam para o nível do metropolitano da estação. Gabriel aproveitou esse momento para se recompor. À sua esquerda, situava-se um quiosque de telefones públicos; atrás dele, as escadas conduziam até o Le Train Bleu. Em extremidades opostas da plataforma haviam dois quiosques da Relay. A alguns metros para a sua direita havia um snack-bar, acima do qual estava pendurado um enorme painel negro de partidas e chegadas. Naquele exato momento, aquele alterou-se. Para Gabriel, o bater dos números a rolar soou obscenamente como um aplauso para o jogo impecavelmente orquestrado de Khaled. O relógio indicava 18h57.

— Viu aquela moça no primeiro telefone deste lado do quiosque?

— Que moça?

— Calças jeans, camiseta cinza, talvez francesa, talvez árabe, como eu.

— Estou vendo.

— Quando o relógio do painel de partidas indicar 18h58, ela vai desligar. Você e eu vamos até lá, e ocupamos o lugar dela. Vai se deter por um momento para nos dar tempo de chegar lá.

— E se alguém chegar lá primeiro?

— A moça e eu trataremos disso. Vai teclar o número. Está pronto?

— Sim.

— Não esqueça o número. Se esquecer, não repetirei, e sua mulher morrerá. Tem certeza de que está pronto?

— Diga a porcaria do número.

Ela disse e deu-lhe algumas moedas enquanto o relógio mudava para 18h58. A moça saiu do seu lugar. Gabriel aproximou-se, levantou o receptor e enfiou algumas moedas na ranhura. Teclou cuidadosamente o número, receando que se cometesse um erro da primeira vez não se conseguiria se lembrar de novo do número correto. Um telefone começou a tocar. Um toque, um segundo, um terceiro...

— Ninguém atende.

— Tenha calma. Alguém vai atende.

— Tocou seis vezes. Não há ninguém a atender.

— Tem certeza de que ligou para o número certo? Talvez tenha se enganado. Talvez sua mulher esteja prestes a morrer porque você...

— Cale-se — disse Gabriel. O telefone tinha parado de tocar.

CAPÍTULO 29

PARIS

 

 

— Boa noite, Gabriel.

Uma voz feminina, chocantemente familiar.

— Ou devo tratá-lo por Herr Klemp? Foi esse o nome que usou quando foi ao meu clube, não? E o nome que usou quando assaltou o meu apartamento.

Mimi Ferrere. A Pequena Lua.

— Onde ela está? Onde está Leah?

— Está perto.

— Onde? Não a vejo.

— Já vai descobrir em um minuto.

Um minuto... Olhou para o painel de partidas e chegadas. O relógio moveu-se: 18h59. Passaram por ele dois soldados. Um deles olhou para ele. Gabriel virou a cabeça e baixou a voz.

— Disseram que se eu os acompanhasse ela viveria. Agora, onde ela está?

— Ficará tudo claro dentro de alguns segundos.

A voz: agarrou-se a ela. Ela transportou-o ao Cairo, de volta à tarde que passara no bar em Zamalek. Tinha sido atraído ao Cairo por um motivo: plantar uma escuta no telefone da Mimi, de modo a poder ouvir a conversa com um homem chamado Tony e obter o número de telefone de um apartamento em Marselha. Mas teria ele sido levado ao Cairo por outro motivo?

Ela recomeçou a falar, mas o som da sua voz foi abafado pelo aviso na estação: Comboio número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D... Gabriel cobriu o bocal. Trem número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D... Conseguia ouvi-lo pelo telefone — tinha a certeza disso. A Mimi estava algures na estação. Virou-se e vislumbrou as ancas juvenis afastando-se calmamente na direção da saída. À sua esquerda,

Com a mão enfiada no bolso de trás da calça, estava um homem com ombros quadrados e cabelo escuro e encaracolado. Gabriel tinha visto esse mesmo andar naquela manhã em Marselha. Khaled tinha ido à Gare de Lyon para testemunhar a morte de Gabriel.

Observou-os a saírem da estação.

Comboio número 765 para Marselha está agora em fase de embarque na linha D. Olhou para a Palestina. Ela estava a olhar para o relógio. A avaliar pela sua expressão, sabia agora que Gabriel lhe contara a verdade. Estava a poucos segundos de se transformar numa shaheed na jihad de Khaled.

— Está ouvindo, Gabriel?

Ruído de trânsito: Mimi e Khaled afastavam-se apressadamente da estação. — Estou a ouvir — disse ele, e estou a perguntar-me porque é que me sentaste com três árabes no teu clube noturno.

Comboio número 765 para Marselha agora em fase de embarque na linha D.

Linha D Track Dalet... Tochnit Dalet...

— Onde ela está, Mimi? Diz o que...

E foi então que o viu, de pé junto a um expositor de jornais no quiosque da Relay na extremidade oriental da estação. A mala esportiva, retangular com rodas de nylon preto, idêntica à de Gabriel, estava a seu lado. Tinham-no chamado Bashir naquela noite no Cairo. Bashir gostava de Johnnie Walker Red com gelo e fumava Silk Cut. Bashir usava um relógio de ouro Tag Heuer no pulso direito e tinha uma paixoneta por uma das empregadas da Mimi. Bashir também era um shaheed. Dentro de alguns segundos, o saco vai explodir, bem como diversas dúzias de pessoas à volta dele.

Gabriel olhou para a esquerda, na direção do lado oposto da plataforma: outro quiosque Relay, outro shaheed com mala idêntica à de Gabriel. Aquele era Naji. Naji: "sobrevivente". Esta noite não, Naji.

A alguns metros de Gabriel, comprando um sanduíche que nunca poderia comer, estava Tayyib. A mesma mala, o mesmo olhar vidrado da morte. Estava perto de Gabriel o suficiente para que ele visse a configuração da bomba. Tinha sido enfiado um fio preto no interior de um dos lados da pega. Gabriel calculou que o botão na pega seria o próprio gatilho. Pressionava-se o botão, que iria embater na peça de contato. Isso significava que três shaheeds tinham de premir simultaneamente os botões. Mas como é isso lhes seria assinalado? O tempo, é claro. Gabriel olhou para os olhos de Tayyib e viu que estavam focados no relógio digital do painel de partidas e chegadas. 18.59.28...

— Onde ela está, Mimi?

Os soldados voltaram a passar, conversando casualmente. Tinham entrado três árabes na estação com sacos cheios de explosivos, mas as forças de segurança não pareciam ter reparado. Quanto tempo demorariam os soldados a tirar as metralhadoras do ombro e a colocá-las a posto? Se fossem israelenses? No máximo dois segundos. Mas estes rapazes franceses? O seu tempo de reação seria mais lento.

Olhou de lado para Palestina. Ela estava a ficar mais ansiosa. Tinha os olhos úmidos e puxava a alça da sacola. Os olhos de Gabriel agitaram-se pela estação, calculando ângulos e linhas de fogo.

Mimi intrometeu-se nos pensamentos dele.

— Está ouvindo?

— Estou.

— Como já deve ter calculado, a estação está prestes a explodir. Pelos meus cálculos, tens quinze segundos. Tem duas opções. Pode alertar as pessoas em volta e tentar salvar tantas vidas quanto possível, ou pode egoistamente salvar a vida de sua mulher. Mas não pode de modo algum fazer as duas coisas, porque se alertar as pessoas haverá um pandemônio, e nunca conseguirá tirar sua mulher da estação antes de as bombas explodirem. A única maneira de salvá-la é permitir que centenas de outras pessoas morram, centenas de mortes de modo a salvar um destroço de ser humano. Trata-se na verdade de um dilema moral, não acha?

— Onde ela está?

— Diga você.

— Na Linha D — disse Gabriel. — Linha Dalet.

— Muito bem.

— Ela não está lá. Não a vejo.

— Olha com mais atenção. Quinze segundos, Gabriel. Quinze segundos.

E depois a chamada foi cortada.

O tempo pareceu deter-se. Ele viu toda a cena, pintada com as cores vibrantes de um Renoir — os shaheeds, de olhos fixos no relógio das partidas; os soldados, de cujos ombros pendiam metralhadoras; Palestina, a segurar a sacola que continha no interior uma Tanfolgio de nove milímetros carregada. E no meio de tudo, viu a bonita moça árabe a afastar-se de uma mulher numa cadeira de rodas. Encontrava-se na linha um trem com destino a Marselha, e a metro e meio de distância do lugar onde a mulher esperava pela morte estava a porta aberta da última carruagem. Acima deles, o relógio marcava 18h59.50. Mimi enganara-o, mas Gabriel sabia melhor do que a maior parte dos homens que dez segundos eram uma eternidade. Num espaço de dez segundos seguira o pai de Khaled até um pátio de Paris e enchera-lhe o corpo de balas. Em menos de dez segundos, numa noite nevada de Viena, o seu filho foi assassinado e perdeu a mulher para sempre.

O seu primeiro movimento foi tão compacto e rápido que ninguém pareceu reparar nele: uma pancada dada do lado esquerdo da cabeça de Palestina que a atingiu com tanta força que Gabriel, quando lhe puxou a sacola do ombro, não teve a certeza se ela estava viva. Enquanto a moça lhe caía aos pés, enfiou a mão dentro da sacola e fechou-a sobre a Tanfolgio. Tayyib, o shaheed mais próximo dele no snack-bar, nem sequer se apercebeu, porque os seus olhos estavam fixos no relógio. Gabriel tirou a arma da sacola e apontou-a, com uma mão, ao bombista. Premiu duas vezes o gatilho, tap-tap. Os dois tiros atingiram o bombista no alto do peito, lançando-o para trás, para longe da mala carregada de explosivos.

O som dos tiroteios na vasta câmara de eco da estação teve o efeito que Gabriel esperava. Do outro lado da plataforma, as pessoas agacharam-se ou atiraram-se ao chão. A 20 metros, os dois soldados puxavam as metralhadoras dos ombros. Na outra extremidade da plataforma, os dois shaheeds, Bashir e Naji, ainda estavam de pé, de olhos fixos no relógio. Não havia tempo para os dois.

Gabriel gritou em francês:

— Bomba! Abaixem-se! Abaixem-se!

Abriu uma via de fogo enquanto Gabriel apontava a Tanfolgio àquele que se chamava Naji. Os soldados franceses, confundidos por aquilo que tinham testemunhado, hesitaram. Premiu o gatilho, viu um relampejo rosado e ficou a observar Naji a cair em espiral sem vida no chão.

Correu para a Linha D, na direção do local onde Leah estava sentada exposta à iminente onda de impacto. Agarrou a sacola de Palestina, pois esta continha as chaves para a sua fuga. Olhou por cima do ombro. Bashir, o último dos shaheeds, encaminhava-se do centro da estação. Devia ter visto os seus dois camaradas caírem; agora estava a tentar aumentar o poder destruidor da sua única bomba ao colocá-la no meio da plataforma onde ainda havia mais pessoas.

Parar agora significava uma morte quase certa para si e para Leah, por isso

Gabriel continuou a correr. Chegou à entrada da Linha D e virou para a direita. A plataforma estava vazia; o tiroteio e o alerta de Gabriel tinham conduzido os passageiros para dentro dos trens ou em direção à saída da estação. Apenas Leah ali permaneceu, indefesa e imóvel.

O relógio moveu-se: 19h00.00.

Gabriel agarrou Leah pelos ombros e ergueu o corpo, que não oferecia qualquer resistência, da cadeira, depois deu um mergulho final em direção à porta aberta da carruagem quando o saco explodiu. Houve um relâmpago de luz brilhante, um estrondo, uma onda de impacto cauterizante que pareceu retirar toda a vida de dentro de si. Parafusos e pregos envenenados. Vidro estilhaçado e sangue. Fumaça negra, um silêncio insuportável. Gabriel fitou Leah. Ela olhou diretamente para ele, com um olhar estranhamente tranquilo. Ele enfiou a Tanfolgio na sacola, tomou Leah nos seus braços e levantou-se. Parecia não ter peso.

Do exterior da carruagem despedaçada chegaram os primeiros gritos. Gabriel olhou à sua volta. As janelas de ambos os lados tinham explodido. Os passageiros sentados tinham sido cortados pelo vidro que voara. Gabriel viu, por fim, seis passageiros que pareciam fatalmente feridos.

Desceu os degraus e dirigiu-se à plataforma. Aquilo que ali se encontrava alguns segundos antes era agora irreconhecível. Olhou para cima e viu que uma grande porção do telhado tinha desaparecido. Se as três bombas tivessem explodido simultaneamente, toda a estação teria provavelmente ruído.

Escorregou e caiu no chão. A plataforma estava ensopada de sangue. À sua volta havia membros decepados e pedaços de carne humana. Levantou-se, ergueu Leah e cambaleou para a frente. Estava a pisar o quê? Não conseguia olhar. Escorregou uma segunda vez, perto do grupo de telefones, e encontrou-se a olhar para os olhos sem vida de Palestina. Teria sido morta pelo golpe de Gabriel ou pelos estilhaços da bomba de Tayyib? Gabriel não estava muito interessado em sabê-lo. Tornou a levantar-se. As saídas da estação estavam apinhadas: passageiros aterrorizados tentando sair, a Polícia a forçar o seu caminho para entrar. Se Gabriel tentasse sair por ali, havia uma boa hipótese de alguém o conseguir identificar como o homem que tinha disparado a arma antes da bomba explodir. Tinha de encontrar outra saída. Lembrou-se do caminho do carro até a estação, de ter esperado que o semáforo mudasse no cruzamento da Rua de Lyon e do Boulevard Diderot. Tinha havido ali uma entrada para o metro.

Transportou Leah até as escadas rolantes. Já não funcionavam. Passou por cima de dois cadáveres e começou a descer. A estação do metro estava num tumulto, passageiros a gritar, funcionários assustados tentando em vão manter a situação calma, mas pelo menos não havia mais fumo, e o chão não escorria sangue. Gabriel seguiu os letreiros através das passagens abobadadas em direção à Rua de Lyon. Perguntaram-lhe por duas vezes se precisava de ajuda, e por duas vezes sacudiu a cabeça e continuou a andar. As luzes tremeluziram e enfraqueceram, depois, por algum milagre, tornaram a acender-se.

Passados dois minutos, chegou a um lance de escadas. Subiu-as firmemente, e ao sair para a rua foi encontrar uma chuva fininha e fria. Saíra na Rua de Lyon. Olhou para trás por cima do ombro para a estação. O círculo de tráfego estava incandescente com as luzes de emergência, e saía fumo pelo telhado.

Virou-se e começou a andar. Outra oferta de ajuda.

— Está bem, monsieur? Essa pessoa precisa de um médico?

Não, obrigado, pensou ele. Por favor, saia do meu caminho, e por favor que aquele Mercedes ainda esteja à minha espera.

Contornou a esquina da Rue Parrot. O carro ainda ali estava: fora o único erro de Khaled. Transportou Leah para o outro lado da rua. Por um instante, ela agarrou-se ansiosamente ao seu pescoço. Será que ela sabia que era ele, ou pensaria tratar-se de um enfermeiro do hospital em Inglaterra? Passado um momento, ela estava sentada no lugar do passageiro, olhando calmamente pela janela enquanto Gabriel se afastava da beira e se dirigia à esquina da Rua de Lyon. Olhou uma vez para a esquerda, na direção da estação em chamas, depois virou à direita e acelerou pela avenida ampla em direção à Bastilha. Tornou a enfiar a mão na sacola da moça e tirou do interior o seu telefone por satélite. Quando deu a volta ao círculo de tráfego na Place de la Bastille, surgiu no horizonte Boulevard King Saul.


PARTE QUATRO


Sumayriyya


CAPÍTULO 30

PARIS

 

 

A chuva fininha que saudara Gabriel após a sua saída da Gare de Lyon tinha-se transformado numa chuva primaveril. Agora estava escuro, e ele sentia-se grato por isso. Tinha estacionado numa rua tranquila e sombreada perto da Praça de Colombie, e desligara o motor. Devido à escuridão e chuva intensa, estava confiante de que ninguém o conseguia ver dentro do carro. Limpou um pouco do para-brisas embaciado e espreitou para fora. O edifício onde se situava o apartamento de segurança ficava do outro lado da rua, algumas portas mais acima. Gabriel conhecia bem o apartamento. Sabia que era o apartamento 4B e que na placa junto à campainha se lia o nome Guzman numa caligrafia de um azul desvanecido. Sabia também que não havia nenhum lugar onde esconder em segurança uma chave, o que significava que tinha de ser aberta antes por alguém da delegação de Paris. Normalmente, tais tarefas eram efetuadas por um bodel, a terminologia do Escritório para os contratados locais que faziam o trabalho de sapa necessário para manter uma delegação estrangeira em funcionamento. Mas passados dez minutos Gabriel ficou aliviado por ver a figura familiar de Uzi Navor, o katsa de Paris, a bater na janela, com o seu cabelo loiro avermelhado colado ao crânio enorme e redondo, e a chave do apartamento na mão.

Navot entrou no prédio, e passado um instante as luzes acenderam-se numa janela do quarto piso. Leah remexeu-se. Gabriel virou-se e olhou para ela, e por um instante o olhar dela pareceu fixar-se no dele. Ele estendeu a mão e pegou no que restava da mão dela. A pele cicatrizada e áspera, como sempre, fez com que Gabriel se sentisse violentamente frio. Mostrara-se agitada durante toda a viagem. Agora parecia mais calma, como sucedia sempre que Gabriel a visitava no solário. Tornou a espreitar pelo para-brisas para a janela do quarto andar.

— És tu?

Sobressaltado pelo som da voz de Leah, Gabriel ergueu bruscamente o olhar — Com demasiada brusquidão, temeu ele, porque os olhos dela pareceram entrar de repente em pânico.

— Sim, sou eu, Leah — disse ele calmamente. — É o Gabriel.

— Onde estamos? — A voz dela era fina e seca, como o restolhar de folhas. Nada era como ele se lembrava. — Isto parece-me Paris. Estamos em Paris?

— Sim, estamos em Paris.

— Aquela mulher trouxe-me aqui, não trouxe? A minha enfermeira. Tentei dizer ao Dr. Avery... — Ela interrompeu-se a meio da frase.

— Quero voltar para casa.

— Vou levar-te para casa.

— Para o hospital?

— Para Israel.

Um ligeiro sorriso, um suave aperto da mão.

— Tens a pele a arder. Sentes-te bem?

— Estou ótimo, Leah.

Ela tornou a mergulhar no silêncio e olhou pela janela.

— Olha para a neve — disse ela. — Céus, como odeio esta cidade, mas a neve torna-a belíssima. A neve absolve Viena dos seus pecados.

Gabriel vasculhou a memória em busca da primeira vez em que tinha ouvido essas palavras, e depois lembrou-se. Estavam a caminho do carro, depois de terem saído do restaurante. Dani estava encavalitado nos ombros dele. A neve absolve Viena dos seus pecados. A. neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — É bela — concordou ele, tentando evitar um toque de desânimo na voz. — Mas não estamos em Viena. Estamos em Paris. Lembras-te? A moça trouxe-te para Paris.

Ela já não o ouvia.

— Despacha-te, Gabriel — disse ela. — Quero falar com a minha mãe. Quero ouvir a voz da minha mãe.

Por favor, Leah, pensou ele. Regressa. Não faças isso a ti mesma. — Já lhe vamos telefonar — disse ele.

— Certifica-te de que o cinto de segurança do Dani está bem apertado. As estradas estão escorregadias.

Ele está ótimo, Leah, tinha-lhe dito Gabriel naquela noite. Tem cuidado quando vieres a conduzir para casa.

— Vou ter cuidado — disse ela. — Beija-me.

Ele debruçou-se e pressionou os lábios contra a face arruinada de Leah.

— Um último beijo — sussurrou ela.

E então arregalou os olhos. Gabriel segurou-lhe a mão coberta de cicatrizes e desviou o olhar.

Madame Touzet enfiou a cabeça fora do seu apartamento quando Martineau entrou no vestíbulo.

— Professor Martineau, graças a Deus que é o senhor. Estava preocupadíssima.

Estava lá? Foi terrível?

Estivera a algumas centenas de metros da estação na altura da explosão, disse-lhe ele com honestidade. E sim, fora terrível, embora não tão terrível como esperara. A estação devia ter sido destruída pela força das três bombas. Era evidente que alguma coisa tinha corrido mal.

— Acabei de fazer chocolate quente. Quer fazer-me companhia e ver televisão? Detesto ficara a ver sozinha um caso tão horrível.

— Infelizmente, tive um dia muito longo, Madame Touzet. Vou-me deitar cedo. — Uma referência histórica de Paris, em ruínas. O que se segue, professor? Quem poderia ter feito semelhante coisa?

— Imagino que os muçulmanos, embora nunca se saiba as motivações de alguém capaz de cometer um ato tão bárbaro como este. Desconfio que nunca venhamos a saber a verdade.

— Acha que pode ser uma conspiração?

— Beba o seu chocolate, Madame Touzet. Se precisar de alguma coisa, estou lá em cima.

— Boa noite, professor Martineau.

O bodel, um judeu marroquino do Marais, de olhos castanhos-claros e chamado

Moshe, chegou ao apartamento de segurança uma hora mais tarde. Transportava dois sacos. Um deles continha uma muda de roupa para Gabriel, o outro mercearias. Gabriel entrou no quarto e despiu a roupa que a moça lhe tinha dado na casa em Martigues, depois manteve-se durante muito tempo debaixo do chuveiro e viu o sangue das vítimas de Khaled a correr pelo ralo. Vestiu roupa lavada e colocou o vestuário sujo dentro do saco. Quando tornou a sair, a sala de estar encontrava-se na semiobscuridade. Leah estava a dormir no sofá. Gabriel ajeitou a manta de flores que lhe cobria o corpo, depois dirigiu-se à cozinha. Navot estava em frente do fogão, com uma espátula na mão e um pano da loiça enfiado no cós da calça. O bodel estava sentado à mesa, a olhar para um copo de vinho tinto. Gabriel entregou-lhe o saco de roupa suja.

— Livra-te destas coisas — disse. — Num lugar onde ninguém as encontre. O bodel assentiu, depois saiu do apartamento de segurança. Gabriel tomou o seu lugar à mesa e olhou para Navot. O katsa de Paris era um homem compacto, não muito mais alto que Gabriel, com os ombros pesados de um lutador e braços grossos. Gabriel sempre vira algo de Shamron em Navot, e suspeitava de que Shamron também o via. Gabriel e Navot tinham tido desavenças no passado, mas Gabriel começara a considerar o jovem agente como um homem de campo meticulosamente competente. O caso mais recente em que haviam trabalhado juntos fora o caso Radek.

— Vai fazer um pé-de-vento com isto. — Navot entregou um copo de vinho a Gabriel.

— Agora bem podemos jogar fora as galochas.

— Quanto tempo lhes demos?

— Aos franceses? Duas horas. O primeiro-ministro telefonou diretamente ao Grey Poupon. O Grey Poupon disse algumas palavras escolhidas, depois fez subir o alerta para o Nível Vermelho. Não ouviste nada?

Gabriel contou a Navot que tinha o rádio do carro estragado.

— A primeira vez que me apercebi de algum aumento da segurança foi no momento em que entrei na estação. — Engoliu um pouco de vinho. — Até onde o primeiro-ministro lhes contou?

Navot transmitiu a Gabriel os pormenores que conhecia da conversa. — Como é que eles explicaram a minha presença em Marselha?

— Disseram que andavas à procura de alguém relacionado com o atentado de Roma.

— Khaled?

— Acho que não entraram em pormenores.

— Algo me diz que temos de combinar as nossas histórias. Porque é que eles esperaram tanto para alertar os Franceses?

— É óbvio que estavam à espera que aparecesses. Também precisavam de se certificar de que todos os membros da equipe de Marselha tinham deixado território francês. — E tinham? Navot assentiu.

— Suponho que nos podemos considerar afortunados por o primeiro-ministro ter entrado em contato com o Eliseu.

— Por quê?

Gabriel contou a Navot dos três shaheeds.

— Estivemos juntos na mesma mesa do Cairo. Estou certo de que alguém tirou uma fotografia muito boa da ocasião.

— Uma armadilha?

— Destinada a dar a ideia de que estive envolvido na conspiração. Navot inclinou a cabeça na direção da sala de estar.

— Ela vai comer alguma coisa?

— Deixa-a dormir.

Navot fez deslizar uma omeleta para o prato e colocou-o em frente de Gabriel. — Especialidade da casa: cogumelos, Gruyère, ervas frescas.

— Não como há 36 horas. Quando tiver terminado os ovos, tenciono comer o prato.

Navot começou a quebrar ovos numa tigela. O seu trabalho foi interrompido pela luz vermelha que piscava no alto do telefone. Agarrou no receptor, ouviu durante um momento, depois murmurou algumas palavras em hebraico e desligou. Gabriel levantou os olhos do prato.

— O que era?

— Boulevard King Saul. O plano de fuga estará pronto dentro de uma hora.

Acabaram por ter de esperar apenas 40 minutos pelo plano, que foi enviado para o apartamento de segurança através do fax de segurança: três folhas de texto em hebraico, compostas em Naka, o nome de código do Escritório. Navot, sentado junto a Gabriel na mesa da cozinha, tratou da decriptação.

— Está neste momento aterrado em Varsóvia um voo charter da El Al — disse Navot. — Judeus polacos a visitarem o seu velho país?

— Na verdade, a visitarem a cena do crime. Trata-se de uma excursão em pacote aos campos de morte. — Navot sacudiu a cabeça. Tinha estado em Treblinka naquela noite com Gabriel e Radek, e caminhara por entre as cinzas ao lado do assassino. — Porque é que alguém quererá visitar um lugar desses, é algo que me transcende. — Quando é que parte o voo?

— Amanhã à noite. Será pedido a uma das passageiras que se ofereça para uma missão bastante especial... viajar para casa com um passaporte israelense falso a partir de outro destino.

— E a Leah tomará esse lugar no charter?

— Exatamente.

— Boulevard King Saul tem um candidato?

— Na verdade tem três. Estão agora a tomar a decisão final.

— Como é que vão explicar a situação da Leah?

— Doença.

— Como é que a vamos conseguir levá-la até Varsóvia?

— Nós?

Navot sacudiu a cabeça. — Você vai voltar para casa por outro caminho: por terra até a Itália, depois vão te buscar à noite em uma praia de Fiumicino. Ao que parece conheces esse lugar...

Gabriel assentiu. Conhecia bem a praia.

— Então como é que a Leah vai chegar a Varsóvia?

— Eu a levo. — Navot viu a relutância nos olhos de Gabriel. Não se preocupe, não deixarei que nada aconteça a sua mulher. Vou acompanhá-la até em casa de avião. Há três médicos na excursão. Ela estará em boas mãos.

— E quando vota a Israel?

— Haverá uma equipe do hospital psiquiátrico Mount Herzl preparada para recebê-la.

Gabriel passou um momento a pensar naquilo. Não estava em posição de levantar objeções ao plano.

— Como é que vou conseguir atravessar a fronteira?

— Lembra da van Volkswagen que usamos no caso Radek?

Gabriel lembrava. Tinha um compartimento oculto sob a cama desdobrável. Radek fora ali escondido, drogado e inconsciente, quando Chiara dirigiu a van através da fronteira austro-checa.

— Trouxe-o para Paris após a operação — disse Navot. — Está estacionado numa garagem na 17th Street.

— Dedetizou?

Navot riu.

— Está limpo — disse. — Mais importante, vai levá-lo além da fronteira até Fiumicino.

— Quem vai me levar até a Itália?

— Moshe pode tratar disso.

— Ele? É uma criança.

— Ele sabe se cuidar — disse Navot. — Além disso, quem melhor que Moisés para levar você à Terra Prometida?

CAPÍTULO 31

FIUMICINO, ITÁLIA

 

 

— Ali está o sinal. Dois clarões curtos seguidos por um mais longo. Moshe ligou os limpa para-brisas e debruçou-se sobre o volante do Volkswagen. Gabriel estava placidamente sentado no lugar do passageiro. Estava tentado a dizer ao rapaz para se descontrair, mas, em lugar disso, resolveu deixá-lo gozar o momento. As missões anteriores de Moshe tinham envolvido o fornecimento de produtos alimentícios a apartamentos de segurança e a limpeza dos mesmos após a partida dos agentes. Um encontro à meia-noite numa praia italiana batida pelo vento ia ser o ponto alto da sua associação com o Escritório.

— Ali está de novo — disse o bodel. — Dois clarões curtos...

— ... seguidos por um longo. Ouvi-te da primeira vez. — Gabriel deu uma palmada nas costas do rapaz. — Desculpa, têm sido dois dias longos. Obrigado pela carona. Tem cuidado quando voltares, e usa...

— ... um local de entrada diferente — disse ele. — Ouvi-te as primeiras quatro vezes.

Gabriel saiu da van e atravessou estacionamento da praia, depois encarrapitou-se num muro de pedra e atravessou o areal até a borda de água. Esperou ali, as ondas batendo-lhe contra os sapatos, e viu o bote a aproximar-se. Passado um momento estava sentado à proa, com as costas viradas para Yaakov e os olhos fixos no Fidelity.

— Não devias ter ido — gritou Yaakov sob o rugido do motor fora de borda.

Se tivesse ficado em Marselha, nunca teria conseguido trazer a Leah de volta.

— Não sabes isso. Talvez Khaled tivesse jogado o jogo de outro modo. Gabriel virou a cabeça.

Tens razão, Yaakov. Ele tê-lo-ia jogado de outra maneira. Primeiro teria morto a Leah e teria deixado o seu corpo nalguma estrada do Sul da Inglaterra. Depois teria enviado os seus três shaheeds para a Gare de Lyon e tê-la-ia transformado numa ruína.

Yaakov afastou-se da válvula.

— Foi a jogada mais estúpida que já vi — disse Yaakov, acrescentando depois num tom conciliatório: — , e de longe a mais corajosa. É melhor darem-te uma medalha quando regressarmos à Avenida Rei Saul.

— Caí na armadilha do Khaled. Eles não dão medalhas a agentes que caem em armadilhas. Deixam-nos no deserto para serem bicados pelos abutres e picados pelos escorpiões.

Yaakov levou o bote até a popa do Fidelity. Gabriel subiu para a plataforma e trepou a escada até o convés da popa onde Dina o esperava. Usava uma camiseta grossa, e o vento agitava-lhe o cabelo escuro. Apressou-se para diante e lançou os braços em redor do pescoço dele.

— A voz dela — disse Gabriel. — Quero ouvir a voz dela.

Dina introduziu a cassete no gravador e premiu PLAY.

"O que lhe fizeram? Onde é que ela está?"

"Está em nosso poder, mas não sei onde está."

"Onde é que ela está? Responde-me! Não me fales em francês. Fala-me na tua verdadeira língua. Fala-me em árabe."

"Estou a dizer-te a verdade."

"Então sabes falar árabe. Onde é que ela está? Responde-me, ou empurro-te pelas escadas."

"Se me matares, vais destruir-te... e atua mulher. Sou a tua única esperança."

Gabriel pressionou STOP, depois REWIND e de novo STOP.

"Se me matares, vais destruir-te... e atua mulher. Sou a tua única esperança." STOP. REWIND. PLAY.

"Sou a tua única esperança."

STOP.

Ergueu os olhos para Dina.

— Passaste-a pela base de dados?

Ela assentiu.

— Não há nada compatível em arquivo.

— Não interessa — disse Gabriel. — Tenho uma coisa melhor do que voz dela.

— E o que é?

— A sua história.

Contou a Dina a história de dor e perda que a moça praticamente despejara durante os últimos quilômetros da viagem até Paris. Como a sua família fora de Sumayriyya para a Galileia Ocidental; como tinham sido expulsos durante a Operação Ben-Ami e forçados ao exílio no Líbano.

— Sumayriyya? Era um lugar pequeno, não era? Umas mil pessoas?

— Oitocentas, segundo a moça. Parecia conhecer a sua história. — Nem toda a gente de Sumayriyya obedeceu às ordens de partida

— disse Dina. — Alguns ficaram para trás.

— E alguns conseguiram esgueirar-se através da fronteira antes de ela ser selada. Se o avô dela era realmente um dos anciãos da aldeia, alguém deve lembrar-se dele.

— Mas mesmo que fiquemos a saber o nome da moça, de que servirá isso? Ela está morta. Como é que nos pode ajudar a encontrar o Khaled?

— Ela estava apaixonada por ele. — Disse-te isso?

— Não foi preciso.

— Que perspicaz da tua parte. Que mais sabes a respeito dessa moça? — Lembro-me da aparência — disse ele. — Lembro-me exatamente da aparência dela.

Ela tinha encontrado o bloco de notas liso na ponte volante; e os dois lápis de carvão vulgares na gaveta da cozinha. Gabriel sentou-se no sofá e trabalhou à luz do candeeiro de leitura de halogêneo. Dina tentou espreitar por cima do ombro dele, mas ele lançou-lhe um olhar severo e mandou-a regressar ao convés varrido pelo vento até ter terminado.

Ela permaneceu de pé no varandim a contemplar as luzes da costa italiana que se afastavam no horizonte. Dez minutos depois regressou ao salão e descobriu que Gabriel adormecera no sofá. O retrato da moça morta encontrava-se junto dele. Dina desligou a luz e deixou-o dormir.

A fragata israelense surgiu a estibordo do Fidelity na tarde do terceiro dia. Duas horas depois, Gabriel, Yaakov e Dina aterravam no heliporto de uma base aérea de segurança a norte de Tel Aviv. Eram esperados por um grupo do Escritório. Estavam em círculo e pareciam pouco à vontade, como estranhos num funeral. Lev não se encontrava entre eles, mas, também, Lev nunca podia ser incomodado com algo tão vulgar como esperar por agentes de regresso de uma missão perigosa. Ao sair do helicóptero, Gabriel ficou aliviado por ver o Peugeot blindado a atravessar os portões e a dirigir-se através do alcatrão a alta velocidade.

Sem uma palavra, separou-se dos outros e dirigiu-se para o carro.

— Onde vais, Allon? — gritou um dos homens do Lev.

— Para casa.

— O chefe quer ver-te.

— Então talvez devesse ter cancelado uma reunião ou duas, e ter vindo esperar-nos pessoalmente. Diz ao Lev que vou tentar arranjar-lhe uma marcação para amanhã de manhã. Tenho de alterar uma coisa ou duas. Diz-lhe isso. A porta traseira do Peugeot abriu e Gabriel entrou. Shamron olhou-o em silêncio. Parecia ter envelhecido acentuadamente durante a ausência de Gabriel. O seu cigarro seguinte foi aceso por uma mão que tremia mais do que o habitual. Enquanto o carro dava um solavanco para a frente, colocou um exemplar do Le Monde no colo de Gabriel. Gabriel olhou para baixo e viu duas fotografias suas: uma na Gare de Lyon, momentos antes da explosão, e a outra no clube noturno de Mimi Ferrere no Cairo, sentado com os três shaheeds. — É tudo muito conjecturável — disse Shamron — , e portanto muito mais prejudicial como resultado. A sugestão é que de algum modo te envolvesses na intriga para fazerem o atentado na estação.

E qual poderia ter sido essa motivação?

— Desacreditar os palestinos, é claro. O Khaled armou um excelente golpe.

Conseguiu fazer um atentado na Gare de Lyon e culpar-nos por esse feito.

Gabriel leu os primeiros parágrafos da história.

— É evidente que ele tem amigos em posições elevadas, nos serviços secretos egípcios e franceses, para referir apenas dois. O Mukhabarat observou-me a partir do momento em que coloquei o pé no Cairo. Fotografaram-me no clube noturno, e depois do atentado enviaram a fotografia para o DST francês. O Khaled orquestrou a coisa toda.

— Infelizmente, há mais. David Quinnell foi assassinado no seu apartamento do Cairo, ontem à noite. É seguro partir do princípio de que também nos vão culpar por isso.

Gabriel devolveu o jornal a Shamron, que o tonou a enfiar na mala.

— A queda já começou. O ministro dos Negócios Estrangeiros deveria visitar Paris na próxima semana, mas rescindiram o convite. Fala-se de uma quebra temporária nas relações e em expulsões diplomáticas. Vamos ter de nos limpar para evitar uma ruptura maior nas nossas relações com a França e com o resto da comunidade europeia. Imagino que seremos capazes de reparar os estragos ao final, mas apenas até certo ponto. Afinal, a maior parte dos franceses ainda acredita que fomos nós que fizemos com que os aviões embatessem no World Trade Centre. Como é que alguma vez os vamos convencer de que não tivemos nada a ver com o bombardeamento na Gare de Lyon?

— Mas vocês avisaram-nos antes do atentado ter acontecido.

— É verdade, mas os apoiantes da teoria da conspiração verão nisso apenas mais uma prova da nossa culpa. Como é que haveríamos de saber que a bomba iria explodir às sete horas, a menos que estivéssemos envolvidos na intriga? Mais cedo ou mais tarde, vamos ter de contar a história, e isso inclui-te a ti.

— A mim?

— Os Franceses gostariam de falar contigo.

— Diz-lhes que vou estar no Falais de Justice na segunda de manhã. Pede-lhe para me reservarem um quarto no Crillon. Nunca tenho sorte nenhuma a arranjar quarto no Crillon.

Shamron riu.

— Vou manter-te afastado dos franceses, mas o Lev é outra história.

— Morte por comitê? Shamron assentiu.

— O inquérito vai começar amanhã. És a primeira testemunha. Deves esperar que o teu testemunho demore vários dias e que seja extraordinariamente desagradável.

— Tenho coisas melhores a fazer do que sentar-me em frente do comitê do Lev.

— Tais como?

— Encontrar o Khaled.

— E como tencionas fazer isso?

Gabriel contou a Shamron da moça da Sumayriyya.

— Quem mais sabe disso?

— Só Dina.

— Dedica-te a isso sem alaridos — disse Shamron — e, por amor de Deus, não deixes rasto.

— O Arafat teve uma mão nisto. Deu-nos o Mahmoud Arwish e depois matou-o para cobrir o rasto. E agora vai colher a recompensa das relações públicas do nosso alegado envolvimento no atentado da Gare de Lyon.

— Já os está a colher — disse Shamron. — A imprensa internacional está a alinhar-se no exterior da Mukata à espera de vez para o entrevistar. Não estamos em posição de lhe apontar o dedo.

— Então não fazemos nada e sustemos sempre a respiração no 18 de Abril, enquanto esperamos que a próxima embaixada ou sinagoga vá pelos ares? — Gabriel sacudiu a cabeça. — Não, Ari, vou encontrá-lo.

— Tenta não pensar nisso agora. — Shamron deu-lhe uma palmadinha paternal no ombro. — Descansa. Vai ver a Leah. E depois vai passar algum tempo com a Chiara. — Sim — disse Gabriel — , uma noite sem complicações vai fazer-me bem.

CAPÍTULO 32

JERUSALÉM

 

 

Shamron levou Gabriel até o Monte Herzl. Estava a começar a escurecer quando seguiu pelo passeio bordejado por árvores até a entrada do hospital. O novo médico de Leah esperava-o no hall. Rotundo e de óculos, tinha a barba comprida de um rabino e um porte inesgotavelmente agradável. Apresentou-se como Mordecai Bar-Zvi, pegou o braço de Gabriel e conduziu-o ao longo de um fresco corredor de pedra calcária de Jerusalém. Por gestos e tom da voz, deixou claro a Gabriel que sabia muito do pouco ortodoxo caso clínico da doente.

— Devo dizer que ela parece ter saído notavelmente bem de toda esta situação.

— Está a falar?

— Um pouco.

— Sabe onde é que se encontra?

— Às vezes. Só lhe posso dizer com toda a certeza que está muito ansiosa por vê-lo. — O médico olhou para Gabriel por cima dos óculos manchados. — Parece surpreso.

— Passou 13 anos sem me falar. O médico encolheu os ombros.

— Duvido que isso volte a acontecer.

Chegaram à porta. O médico bateu uma vez e levou Gabriel para o interior. Leah estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela. Virou-se para Gabriel logo que este entrou no quarto e esboçou um meio sorriso. Ele beijou-lhe a face, depois sentou-se na borda da cama. Ela olhou-o em silêncio por um momento, depois virou-se e tornou a olhar pela janela. Era como se ele já não estivesse ali.

O médico desculpou-se e fechou a porta atrás de si quando saiu. Gabriel ficou ali sentado com ela, satisfeito por não dizer nada enquanto os pinheiros lá fora iam mergulhando suavemente na obscuridade. Ficou ali durante uma hora, até a enfermeira ter entrado no quarto e ter sugerido que eram horas de Leah dormir. Quando Gabriel se levantou, Leah virou a cabeça.

— Onde é que vais?

— Eles dizem que precisas de descansar.

— Só faço isso. Gabriel beijou-a na boca.

— Uma última... — Ela interrompeu-se. — Vens ver-me outra vez amanhã?

— E no dia a seguir.

Ela virou-se e olhou pela janela.

Não havia táxis no Mount Herzl, por isso apanhou um ônibus cheio de passageiros. Não havia lugares vagos; ele manteve-se no espaço aberto ao meio e sentiu 40 pares de olhos a observá-lo. Na estrada de Jafa, saiu do ônibus e esperou por um ônibus para leste numa parada coberta. Depois pensou melhor nisso — tinha sobrevivido a uma viagem; uma segunda parecia um convite para o desastre — , por isso resolveu ir a pé através do turbulento vento noturno. Deteve-se por um instante à entrada do mercado Makhane Yehuda, dirigindo-se em seguida até a rua Narkiss. Chiara devia ter ouvido os seus passos nas escadas, porque estava à espera dele no patamar no exterior do seu apartamento. Depois das cicatrizes de Leah, a sua beleza parecia ainda mais chocante. Quando se inclinou para a beijar, Gabriel foi recebido apenas pela face. O cabelo recém-lavado de Chiara cheirava a baunilha.

Ela virou-se e entrou. Gabriel seguiu-a, parando de súbito. O apartamento tinha sido totalmente redecorado: mobiliário novo, carpetes novas e candeeiros, uma nova camada de tinta. A mesa estava posta e as velas acesas. O seu tamanho reduzido sugeria que já estariam acesas há algum tempo. Ao passar pela mesa, Chiara apagou-as.

— Está lindo — disse Gabriel.

— Esforcei-me muito para o terminar antes do teu regresso. Queria que se parecesse com um verdadeiro lar. Onde estiveste? — Tentou, com pouco êxito, fazer a pergunta sem um tom de confronto. — Não podes estar a falar a sério, Chiara.

— O teu helicóptero aterrou há cerca de três horas. E sei que não foste à Avenida Rei Saul, porque ligaram do Escritório do Lev à tua procura. — Interrompeu-se.

— Foste vê-la, não foste? Foste ver a Leah.

— Claro que fui.

— Não te ocorreu vires ver-me primeiro?

— Ela está no hospital. Não sabe onde é que está. Está confusa. Está assustada.

— Imagino que afinal eu e a Leah temos muito em comum.

— Não vamos entrar por aí, Chiara.

— Por onde?

Seguiu pelo corredor até o quarto. Também ele tinha sido redecorado. Na mesinha de cabeceira estavam os papéis que depois de assinados fariam com que o seu casamento com a Leah ficasse dissolvido. Chiara tinha deixado uma caneta ao lado deles. Ele levantou o olhar e viu-a de pé na soleira da porta. Estava a olhar para ele, procurando nos olhos dele um sinal das suas emoções — Como um detective, pensou ele, que observa a pessoa de interesse na cena do crime.

— O que te aconteceu à cara?

Gabriel contou-lhe que tinha sido espancado.

— Doeu? — Não parecia muito preocupada.

— Só um pouco. — Sentou-se na beira da cama e descalçou-se.

— O que te contaram?

— Shamron disse-me logo que o golpe tinha corrido mal. Manteve -me atualizado durante todo o dia. O instante em que ouvi que estavas em segurança foi o mais feliz da minha vida.

Gabriel tomou nota do fato de que Chiara não tinha mencionado Leah. — Como é que ela está?

— Leah?

Chiara fechou os olhos e assentiu. Gabriel citou o prognóstico do Dr. Bar-Zvi: Leah Leah tinha saído notavelmente bem de toda a situação. Ele despiu a camisa. Chiara cobriu a boca. As equimoses, depois de três dias no mar, tinham-se tornado de um roxo e preto escuros.

— Parece pior do que é — disse ele.

— Viste um médico?

— Ainda não.

— Despe-te. Vou preparar-te um banho quente. Um bom banho vai fazer-te bem. Ela saiu do quarto. Alguns segundos depois, ele ouviu a água a bater contra o esmalte da banheira. Despiu-se e dirigiu-se à casa de banho. Chiara tornou a examinar as equimoses, depois passou a mão pelo cabelo dele e olhou para as raízes.

— Agora já está suficientemente comprido para o cortares. Esta noite não quero fazer amor com um homem de cabelo grisalho.

— Então corta-o.

Ele sentou-se na borda da banheira. Como sempre, Chiara trauteava para si mesma enquanto lhe cortava o cabelo, uma daquelas tolas canções pop italianas de que ela tanto gostava. Gabriel, de cabeça inclinada, observava os restos prateados do Herr Klemp voarem até o chão. Pensou no Cairo e em como tinha sido enganado, e a fúria voltou a invadi-lo. Chiara sacudiu as aparas.

— Pronto, estás de volta ao teu velho "eu". Cabelo preto, grisalho nas têmporas. O que era aquilo que Shamron costumava dizer a respeito das tuas têmporas? — Chamava-lhes manchas de cinza — disse Gabriel. Manchas de cinza no príncipe de fogo.

Chiara experimentou a temperatura do banho. Gabriel tirou a toalha da cintura e enfiou-se dentro de água. Estava demasiado quente

— Chiara aquecia sempre de mais a água — , mas passados alguns momentos a dor começou a desaparecer do corpo. Ela sentou-se junto dele por um momento. Falou do apartamento e de uma noite que passara com Gilah Shamron — de tudo, menos da França. Passado algum tempo, foi até o quarto e despiu-se. Trauteava suavemente para si mesma. Chiara cantava sempre que se despia.

Os beijos dela, geralmente tão ternos, magoavam os lábios de Gabriel. Ela fez amor com ele de uma maneira febril, como se tentasse extrair o veneno de Leah do fluxo sanguíneo de Gabriel, e as pontas dos seus dedos deixaram novas equimoses nos ombros dele.

— Pensei que tinhas morrido — disse ela. — Pensei que nunca mais te tornaria a ver.

— Eu estava morto — disse Gabriel. — Estive morto durante muito tempo. As paredes do quarto de Veneza estavam cheias de quadros. Durante a ausência de Gabriel, Chiara pendurara-os ali. Algumas das obras tinham sido pintadas pelo avô de Gabriel, o conhecido expressionista alemão Viktor Frankel. A sua obra tinha sido considerada "degenerada" pelos nazis em 1936. Empobrecido, despojado da sua capacidade para pintar ou até ensinar, fora deportado para Auschwitz em 1942 e colocado na câmara de gás com a mulher logo à chegada. Irene, a mãe de Gabriel, tinha sido deportada com eles, mas Mengele dera-lhe um trabalho para fazer e ela conseguira sobreviver ao campo de concentração feminino de Birkenau até este ter sido evacuado perante o avanço russo. Algumas das suas obras estavam ali expostas, na galeria privada de Gabriel. Atormentada pelo que tinha visto em Birkenau, os seus quadros queimavam com uma intensidade que nem o seu famoso pai conseguia igualar. Em Israel, usara o nome Allon, que significa "carvalho" em hebraico, mas sempre assinara as suas telas com Frankel em honra ao pai. Só agora é que Gabriel conseguia ver os quadros por si mesmos, em lugar da mulher arruinada que os produzira.

Havia uma obra que não tinha qualquer assinatura, o retrato de um jovem, ao estilo de Egon Schiele. O artista era a Leah, e o assunto, o próprio Gabriel. Tinha sido pintado pouco depois de ele ter regressado a Israel com o sangue de seis terroristas palestinos nas mãos, e tinha sido a única altura em que concordara em pousar para ela. Ele nunca gostara do quadro, porque o mostrava como Leah o via: um jovem assombrado, prematuramente envelhecido pela sombra da morte. Chiara estava convicta de que o quadro era um auto-retrato. Ela acendeu a luz do quarto e olhou para os papéis na mesa-de-cabeceira. O seu exame era demonstrativo na sua natureza; ela sabia que Gabriel não os tinha assinado.

— Assino de manhã — disse ele. Ela estendeu-lhe a caneta.

— A Assina agora.

Gabriel apagou a luz.

— Na verdade, há outra coisa que quero fazer agora.

Chiara tomou-o dentro do seu corpo e chorou em silêncio durante todo o ato. — Nunca os vais assinar, pois não? Gabriel tentou calá-la com um beijo. — Estás a mentir-me — disse ela. — Estás a usar o meu corpo como uma arma de engano.

CAPÍTULO 33

JERUSALÉM

 

 

Os dias dele adquiriam rapidamente forma. De manhã, acordava cedo e sentava-se na cozinha de Chiara, recentemente decorada, com café e jornais. As histórias acerca do caso Khaled deprimiam-no. Ha'aretz batizou o caso de "Bunglegate", e o Escritório perdeu a batalha para manter o nome de Gabriel afastado dos jornais. Em Paris, a imprensa francesa cercou o Governo e o embaixador israelense pedindo uma explicação das misteriosas fotografias que tinham aparecido no Le Monde. O ministro dos Negócios Estrangeiros francês, um antigo poeta que alisava o cabelo, atirou mais achas à fogueira ao expressar a sua convicção de que "poderia na verdade ter havido uma mão israelense no Holocausto da Gare de Lyon". No dia seguinte, Gabriel leu de coração pesado que uma pizaria kosher, na Rua des Rosiers, tinha sido vandalizada. Depois, um bando de rapazes franceses atacou uma jovem quando ela ia de casa para a escola e gravou-lhe uma suástica na face. Chiara acordava geralmente uma hora depois de Gabriel. Ela leu os acontecimentos na França com mais alarme do que tristeza. Uma vez por dia telefonava à mãe em Veneza para se certificar de que toda a sua família estava em segurança.

Às oito, Gabriel deixava Jerusalém e conduzia pela Bab al-Wad até Boulevard King Saul. As reuniões decorriam na sala de conferências do último piso de modo a que Lev não tivesse de andar muito quando desejava aparecer ou observá-los. Claro que Gabriel era a testemunha-chave. A sua conduta, desde o momento em que regressara à disciplina do Escritório até a sua fuga da Gare de Lyon, foi revista com pormenores excruciantes. Apesar das previsões sombrias de Shamron, não iria haver derramamento de sangue. O resultado de tais investigações era normalmente pré-ordenado, e Gabriel conseguia perceber pelo resultado que não iam fazer dele o bode expiatório. Tratava-se de um erro coletivo, os membros do comitê pareciam estar a dizer pelo tom das suas perguntas que um pecado perdoável cometido pelo aparelho do serviço secreto desesperado por evitar qualquer perda catastrófica de vida. Apesar disso, por vezes as perguntas tornavam-se incisivas. Não teria Gabriel quaisquer suspeitas acerca das motivações de Mahmoud Arwish? Ou da lealdade de David Quinnell? Não teriam as coisas corrido de outro modo se ele tivesse dado ouvidos aos seus companheiros de equipe em Marselha e tivesse voltado atrás, em lugar de ter ido com a moça? Pelo menos assim o plano de Khaled para destruir a credibilidade do Escritório não teria tido êxito.

— Tem razão — disse Gabriel — , e a minha mulher estaria morta, bem como muitas mais pessoas inocentes.

Um a um, os outros também foram levados ao comitê, primeiro Yossi e Rimona, depois Yaakov e por fim Dina, cujas descobertas tinham iniciado a investigação respeitante a Khaled. Gabriel sentia-se magoado por vê-los colocados em questão. A sua carreira estava terminada, mas, para os outros, o caso Khaled, como se tornara conhecido, deixaria nos seus registros uma marca negra que nunca poderia ser limpa.

Ao final da tarde, quando o comitê se separava, ele conduzia até o monte Herzl para passar algum tempo com Leah. Por vezes, sentavam-se no quarto dela; e por vezes, se ainda houvesse luz, ele sentava-a na cadeira de rodas e passeava-a lentamente pelo jardim. Ela reconhecia sempre a presença dele, e normalmente conseguia dizer-lhe algumas palavras. As suas viagens alucinatórias até Viena tornaram-se menos evidentes, embora ele nunca tivesse bem a certeza do que estaria ela a pensar.

— Onde é que o Dani está enterrado? — perguntou ela certa vez, enquanto se sentavam à sombra de um pinheiro. — No Monte das Oliveiras. — Um dia levas-me lá?

— Se o teu médico disser que podes ir.

Uma vez, Chiara acompanhou-o ao hospital. Ao entrarem, ela sentou-se no hall e disse a Gabriel para demorar o tempo que quisesse.

— Gostaria de conhecê-la?

Chiara nunca tinha visto Leah. — Não — disse ela. — Acho que é melhor esperar aqui. Não por mim, mas por ela.

— Ela não saberá.

— Ela saberá, Gabriel. Uma mulher sabe sempre quando um homem está apaixonado por outra pessoa.

Nunca mais tornaram a discutir por causa de Leah. A partir daquele momento, a batalha deles passou a ser uma operação negra, um caso encoberto pautado por silêncios prolongados e observações entremeadas de duplos significados. Chiara nunca se deitava sem antes verificar se os papéis tinham sido assinados. Fazia amor com a mesma atitude de confronto dos seus silêncios. O meu corpo está intato, parecia dizer-lhe. Sou real, a Leah é apenas uma memória. O apartamento pareceu ficar claustrofóbico, por isso começaram a comer fora. Nalgumas noites iam a pé até a Rua Ben-Yehuda — ou ao Mona, um restaurante da moda que se situava precisamente na cave do velho campus da Bezalel Academy of Art. Certa noite seguiram pela autoestrada Um até Abu Ghosh, uma das muitas aldeias árabes ao longo da estrada que tinha sobrevivido às expulsões do Plano Dalet. Comeram hummus e carneiro grelhado num restaurante com uma esplanada para a praça da aldeia,

e durante alguns momentos foi possível imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes se o avô de Khaled não tivesse transformado a estrada numa zona de matança.

Chiara assinalou a ocasião comprando a um ourives de prata da aldeia uma pulseira cara para Gabriel. Na noite seguinte, na Rua Rei Jorge, comprou-lhe um relógio de prata a condizer. Uma recordação, chamava-lhes ela. Lembranças para te recordares de mim.

Quando regressaram a casa nessa noite havia uma mensagem no atendedor de chamadas. Gabriel premiu o botão de playback e ouviu a voz de Dina Sarid, que lhe dizia ter encontrado alguém que estava em Sumayriyya quando ela cairá. Na tarde seguinte, quando o comitê se tinha separado, Gabriel dirigiu até a Rua Sheinkin e encontrou-se com Dina e Yaakov numa esplanada. Conduziram para norte ao longo da autoestrada costeira através de uma luz rosada escura, passando por Herzliyya e Netanya.

Alguns quilômetros depois de Cesareia, as encostas do monte Carmelo ergueram-se diante deles. Deram a volta à baía de Haifa e dirigiram-se para Akko. Ao continuar para norte em direção a Nahariyya, Gabriel pensou na Operação Ben-Ami — a noite em que o Haganah tinha vindo por essa estrada com ordens para demolir aldeias árabes da Galileia Ocidental. Vislumbrou nesse instante uma estranha estrutura cônica, de um branco puro e brilhante, erguendo-se acima da manta verde de um laranjal. Gabriel sabia que o invulgar monumento era um memorial às crianças do Yad Layeled, um museu do Holocausto do Kibbutz Lohamei Ha'Getaot. O assentamento tinha sido fundado após a guerra por sobreviventes do levantamento do gueto de Varsóvia. Junto à extremidade do kibbut e mal visível entre a erva alta e selvagem, encontravam-se as ruínas de Sumayriyya.

Virou-se para a estrada local e seguiu-a até o interior. O entardecer aproximava-se depressa quando entravam no al-Makr. Gabriel deteve-se na estrada principal e, com o motor ainda a funcionar, entrou num café e perguntou ao dono como se ia até a casa de Hamzah al-Samara. Seguiu-se um momento de silêncio enquanto o árabe avaliava friamente Gabriel do lado oposto do balcão. Assumira claramente que o visitante judeu era um agente do Shabak, impressão essa que Gabriel não se esforçou para corrigir. O árabe levou Gabriel de volta à rua e, com uma série de gestos e sinais, mostrou-lhe o caminho. A casa era a maior da aldeia. Parecia que tinham ali vivido várias gerações de al-Samara, porque havia algumas crianças a brincar no pequeno pátio empoeirado. Sentado ao centro, estava um velho. Usava túnica cinza e kaffyeh branco, e sugava um cachimbo de água. Gabriel e Yaakov detiveram-se no lado aberto do pátio e esperaram por autorização para entrar. Dina ficou dentro do carro; Gabriel sabia que o velho nunca falaria honestamente na presença de uma judia de cabeça descoberta.

Al-Samara ergueu os olhos e chamou-os com um aceno da mão vago. Disse algumas palavras ao menino mais velho e num instante surgiram mais duas cadeiras. Depois apareceu uma mulher, talvez uma filha, que trazia três copos de chá. Tudo isto foi feito antes de Gabriel ter podido explicar o objetivo da sua visita. Sentaram-se em silêncio durante um momento, bebericando o chá e ouvindo o zumbido das cigarras nos campos vizinhos. Uma cabra entrou a trotar no 283 pátio e deu uma cabeçada suave no tornozelo de Gabriel. Uma criança, descalça e vestindo uma túnica, enxotou o animal. Parecia que o tempo tinha parado. Se não fosse pelas luzes elétricas que vinham da casa, e pelo prato de satélite no alto do telhado, Gabriel teria achado fácil de imaginar que a Palestina ainda era governada por Constantinopla.

— Fiz alguma coisa errada? — perguntou o velho em árabe. Era a primeira suposição de muitos árabes quando dois homens de aparência dura do Governo surgiam à sua porta sem serem convidados.

— Não — disse Gabriel — , só queríamos falar com você.

O velho, ao ouvir a resposta de Gabriel, sugou pensativamente o cachimbo de água. Tinha olhos cinzas hipnóticos e um bigode impecável. Os seus pés com sandálias pareciam nunca ter visto pedra-pomes.

— De onde são? — perguntou.

— Do vale de Jezreel — respondeu Gabriel. Al-Samara assentiu lentamente.

— E antes disso?

— Os meus pais vieram da Alemanha.

Os olhos cinzas moveram-se para Yaakov.

— E você?

— Hadera.

— E antes disso?

— Rússia.

— Alemães e Russos — disse al-Samara, sacudindo a cabeça. — Se não fosse pelos Alemães e pelos Russos, eu ainda estaria a viver em Sumayriyya, e não aqui em al-Makr.

— Estava lá na noite em que a aldeia caiu?

— Não exatamente. Estava a passear por um campo perto da aldeia. — Deteve-se e acrescentou num tom conspiratório: — Com uma moça.

— E quando o ataque começou?

— Escondemo-nos nos campos e observamos as famílias a seguirem para norte, em direção ao Líbano. Vimos os sapadores judeus a dinamitarem as nossas casas. Ficamos no campo até o dia seguinte. Quando a escuridão voltou a cair, viemos a pé até aqui, ao al-Makr. O resto da minha família, a minha mãe e o meu pai, os meus irmãos e irmãs, acabou toda no Líbano. 284

— E a moça com quem estavas naquela noite?

— Tornou-se minha mulher. — Tornou a sugar no cachimbo de água. — Também sou um exilado... um exilado interno. Ainda tenho o contrato da terra do meu pai em Sumayriyya, mas não posso regressar. Os judeus confiscaram-na e nunca se deram ao trabalho de me compensar pela sua perda. Imagine, um kibbut construído por sobreviventes do Holocausto sobre as ruínas de uma aldeia árabe.

Gabriel olhou para a casa grande. — Parece que se saiu bem.

— Estou bem melhor do que aqueles que partiram para o exílio. Poderia ter sido assim para todos se não tivesse havido uma guerra. Não o culpo pela minha perda. Culpo os líderes árabes. Se Haj Amin e os outros tivessem aceitado a partição, a Galileia Ocidental teria feito parte da Palestina. Mas eles escolheram a guerra, e quando a perderam, gritaram a plenos pulmões que os Árabes tinham sido vítimas. Arafat fez o mesmo em Camp David, não fez? Afastou-se de outra oportunidade de partição. Começou outra guerra, e quando os judeus ripostaram, ele afirmou que era a vítima. Quando é que aprenderemos?

A cabra regressou. Desta vez, al-Samara bateu-lhe no focinho com o bocal do cachimbo de água.

— Certamente não veio até aqui para ouvir as histórias de um velho. — Ando à procura de uma família que veio da sua aldeia, mas não sei o nome deles.

Contou ao velho as coisas que a moça tinha dito durante os últimos quilômetros antes de Paris: que o avô tinha sido um dos anciãos da aldeia, não um muktar mas um homem importante, e que tinha possuído 40 dunams de terra e um grande rebanho de cabras. Tinha tido, pelo menos, um filho. Depois da queda de Sumayriyya, tinham ido para norte, para Ein al-Hilweh, no Líbano. Al-Samara ouviu pensativamente a descrição de Gabriel, mas parecia perplexo. Gritou para a casa, por cima do ombro. Da casa emergiu uma mulher, idosa como ele, com a cabeça coberta por um véu. Falou diretamente a al-Samara, evitando cuidadosamente o olhar de Gabriel e Yaakov.

— Tem a certeza de que eram 40 dunams? — perguntou o velho.

— Não 30 ou 20, mas 40?

— Foi o que me disseram.

Ele sugou o cachimbo, pensativo.

— Tem razão — disse ele. — Essa família acabou no Líbano, em Ein al-Hilweh. As coisas pioraram durante a guerra civil libanesa. Os rapazes tornaram-se combatentes. Estão todos mortos, pelo que ouvi dizer.

— Sabe o sobrenome?

— Al-Tamari. Se encontrar algum deles, por favor apresente-lhes os meus cumprimentos. Diga-lhes que estive na casa deles. No entanto, não fale da minha villa em al-Makr. Só iria partir o coração deles.

CAPÍTULO 34

TEL AVIV

 

 

— Ein al-Hilweh? Endoideceu por completo?

Era o início da manhã seguinte. Lev estava sentado à secretária de vidro vazia, com a xícara de café suspensa a meio caminho entre os lábios e o pires. Gabriel tinha conseguido introduzir-se no Escritório enquanto a secretária de Lev tinha ido à casa de banho. A moça iria pagar caro pelo lapso na segurança quando Gabriel se fosse embora.

— Ein al-Hilweh é uma zona proibida, ponto final, fim da discussão. É pior agora do que era em 1982. Fixaram-se aí meia dúzia de organizações terroristas islâmicas. Não é lugar para gente de coração fraco... nem para um agente do Escritório cuja fotografia foi espalhada por toda a imprensa francesa.

— Bem, alguém tem de ir lá.

— Nem sequer tens certeza se o velho ainda está vivo. Gabriel franziu a testa e sentou-se sem ser convidado numa das elegantes cadeiras de couro em frente da secretária de Lev.

— Mas se ele ainda está vivo, pode dizer-nos para onde foi a filha depois de ter deixado o campo.

— Talvez — concordou Lev — , ou talvez não saiba nada. Certamente que Khaled disse à moça para enganar a família por motivos de segurança. Tanto quanto sabemos, toda a história a respeito de Sumayriyya pode ser mentira.

— Ela não tinha qualquer motivo para me mentir — disse Gabriel.

— Pensava que me iam matar.

Lev passou um longo momento a pensar.

Há um homem em Beirute que poderá ser capaz de nos ajudar. Chama-se Nabil Azouri.

— Qual é a sua história?

— É libanês e palestino. Faz um pouco de tudo. Trabalha como informante para algumas agências noticiosas ocidentais. É dono de um clube noturno. Por vezes, faz contrabando de armas, e sabe-se que de vez em quando faz tráfico de haxixe. É claro que também trabalha para nós. — Parece um homem verdadeiramente respeitável.

— É um merda — disse Lev. — Libanês até o âmago. A encarnação do Líbano. Mas é exatamente o tipo de pessoa de que precisamos para entrar em Ein al-Hilweh e falar com o pai da moça.

— Porque é que ele trabalha para nós?

— Por dinheiro, é claro. Nabil gosta de dinheiro.

— Como falamos com ele?

— Deixamos uma mensagem no telefone do clube noturno em Beirute e um bilhete de avião com o concièrge do hotel Commodore. Raramente falamos com Nabil no seu território.

— Para onde ele vai?

— Para Chipre — disse Lev. — Nabil também gosta de Chipre.

Passariam três dias até que Gabriel estivesse preparado para partir. As Viagens trataram dos preparativos. Larnaca é um popular destino turístico israelense, de modo que não foi necessário viajar com um passaporte estrangeiro falso. No entanto, era impossível viajar com o seu nome verdadeiro, por isso as Viagens emitiram um documento israelense com o nome bastante vulgar de Michael Neumann. No dia anterior à partida, as Operações deixaram-no passar uma hora a ler o arquivo de Nabil Azouri na sala de leitura de segurança. Quando terminou, deram-lhe um envelope com dez mil dólares em dinheiro e desejaram-lhe boa sorte. Na manhã seguinte, às sete, ele embarcou num avião da El Al no Aeroporto Ben-Gurion para um voo de uma hora até o Chipre. Ao chegar, alugou um carro até o aeroporto e dirigiu a curta distância pela costa até uma estância chamada Palm Beach Hotel. Aguardava-o uma mensagem Boulevard King Saul. Nabicl Azouri chegaria naquela tarde. Gabriel passou o resto da manhã no seu quarto, para em seguida, pouco depois da uma da tarde, descer até o restaurante junto à piscina. Azouri já tinha uma mesa. Uma garrafa de 1 champanhe francês caro, bebido até abaixo do rótulo, encontrava-se a gelar num balde de prata.

Tinha cabelo encaracolado escuro, salpicado com as primeiras madeixas de cinza e um bigode espesso. Quando tirou os óculos escuros, Gabriel encontrou-se a olhar para um par de enormes e sonolentos olhos castanhos. No seu pulso esquerdo encontrava-se o obrigatório relógio de ouro; no direito, diversas pulseiras de ouro que titilavam quando levava a taça de champanhe aos lábios. Vestia uma camisa de algodão bege, e tinha a calça de popelina amarrotadas por causa do voo de Beirute. Acendeu um cigarro americano com um isqueiro de ouro e ouviu a proposta de Gabriel.

— Ein al-Hilweh? Está completamente doido?

Gabriel antecipara aquela reação. Azouri tratava a sua relação com os serviços secretos israelenses como se estes fossem apenas mais um dos seus negócios comerciais. Era um vendedor do bazar, o Escritório era o seu cliente. Regatear o preço fazia parte do processo. O libanês inclinou-se para a frente e fixou Gabriel com o seu olhar sonolento.

— Esteve lá por baixo ultimamente? Parece o far west ao estilo de Khomeini. Ficou transformado num inferno desde que vocês se vieram embora. Homens de negro, que Alá, o mais misericordioso, seja louvado. Os estranhos não têm qualquer hipótese. Que se lixe, Mike. Beba um pouco de champanhe e esqueça. — Você não é um estranho, Nabil. Conhece toda a gente, pode ir a qualquer lado. É por isso que pagamos tanto.

— Não passa de gorjeta, Mike, é tudo o que recebo pelo meu disfarce... cigarros e champanhe, e alguns dólares para gastar com mulheres.

— Deve ter gostos muito caros no que se refere a mulheres, Nabil, porque já o vi a pagar fortunas. Fez uma considerável quantia à conta da sua relação com a minha empresa.

Azouri levantou a taça na direção de Gabriel.

— Fizemos bons negócios juntos, Mike. Não o posso negar. Gostaria de continuar a trabalhar com vocês. É por isso que outra pessoa precisa ir até o Ein al-Hilweh por mim. É demasiado risco para o meu sangue. Demasiado perigoso. Azouri fez sinal ao empregado e mandou vir outra garrafa de champanhe francês.

O fato de recusar uma proposta de trabalho não ia impedir que tivesse uma boa refeição por conta do Escritório. Gabriel atirou um envelope para cima da mesa. Azouri olhou-o pensativamente, mas não fez qualquer gesto para lhe pegar.

— Quanto está aí dentro, Mike?

— Dois mil.

— De que sabor?

— Dólares.

— Então, qual é o acordo? Metade agora, metade na entrega? Não passo de um árabe parvo, mas dois mil mais dois mil somam quatro mil, e não vou entrar em Ein al-Hilweh por quatro mil dólares. — Dois mil é apenas o sinal.

— E quanto para a entrega da informação?

— Mais cinco. Azouri sacudiu a cabeça.

— Não, mais dez.

— Seis.

Outro gesto de negação com a cabeça.

— Nove.

— Sete. — Oito.

— Combinado — disse Gabriel. — Dois mil adiantados, mais oito mil na entrega. Não é mau para uma tarde de trabalho. Se te portares bem, talvez te paguemos o dinheiro da gasolina.

— Ah, vão mesmo pagar a gasolina, Mike. As minhas despesas são sempre contabilizadas à parte. — O empregado trouxe a segunda garrafa de champanhe.

Quando tornou a ir-se embora, Azouri disse:

— Então, o que queres saber?

— Quero encontrar uma pessoa.

— Há 45 000 refugiados naquele campo, Mike. Tens de me dar uma ajudinha.

— É um velho chamado al-Tamari.

— Primeiro nome?

— Não sabemos.

Azouri bebericou o champanhe.

— Não é um nome terrivelmente vulgar. Não deve ser muito difícil. Que mais me podes dizer a seu respeito?

— É refugiado da Galileia Ocidental.

— Quase todos são. De que aldeia?

Gabriel contou.

— Pormenores de família?

— Dois filhos mortos em 1982.

— No campo?

Gabriel assentiu.

— Eram da Fatah. Aparentemente, a mulher também foi morta.

— Lindo. Continua.

— Tinha uma filha, que acabou na Europa. Quero saber tudo que puder descobrir sobre ela. Onde foi à escola. O que estudou. Onde morava. Com quem dormia.

— Qual é o nome da moça?

— Não sei.

— Idade?

— Trinta e poucos. Falava um francês razoável.

— Por que está à procura dela?

— Achamos que pode estar envolvida no atentado à Gare de Lyon.

— Ainda está viva?

Gabriel sacudiu a cabeça. Azouri ficou a olhar para a praia durante muito tempo. — Então achas que se lhe seguirmos os antecedentes, vamos apanhar quem está por trás do atentado? O cérebro por trás da operação?

— Qualquer coisa no gênero, Nabil.

— Como é que lido com o velho?

— Faz como quiser — disse Gabriel. — Limite-se a conseguir o que preciso.

— Essa moça — disse o libanês. — Como é que ela era?

Gabriel entregou a Azouri a revista que trouxera do quarto. Azouri abriu-a e folheou as páginas até encontrar o esboço que Gabriel tinha feito a bordo do Fidelity.

— Era assim — disse Gabriel. — Exatamente assim.

Nada soube de Nabil Azouri durante três dias. Tanto quanto Gabriel sabia, o libanês tinha-se aproveitado da primeira parte do pagamento e tinha sido morto a tentar entrar em Ein al-Hilweh. Depois, na quarta manhã, o telefone tocou. Era Azouri a telefonar de Beirute. Estaria no Palm Beach Hotel à hora de almoço. Gabriel desligou, depois desceu até a praia e deu uma corrida comprida pela borda de água. As equimoses começavam a desaparecer, e quase já não sentia o corpo dorido. Quando terminou, voltou ao quarto para tomar uma ducha e mudar de roupa. Quando chegou ao restaurante junto da piscina, Azouri estava a beber a segunda taça de champanhe.

— Que raio de lugar, Mike. O inferno na terra.

— Não estou pagando dez mil dólares por um relatório das condições de vida no Ein al-Hilweh — disse Gabriel. — Esse é o trabalho das Nações Unidas. Encontrou o velho? Ainda está vivo?

— Encontrei.

— E?

— A moça deixou Ein al-Hilweh em 1990. Nunca mais voltou.

— Qual era o nome dela?

— Fellah — disse Azouri. — Fellah al-Tamari.

— Para onde ela foi?

— Parece que era uma moça inteligente. Obteve uma bolsa das Nações Unidas para estudar na Europa. O velho disse-lhe para a aceitar e para nunca mais regressar ao Líbano.

— Onde estudou? — perguntou Gabriel, embora suspeitasse que já sabia a resposta.

— Na França — disse Azouri. — Primeiro Paris, depois foi para algures no Sul. O velho não tinha a certeza do lugar. Segundo parece houve longos períodos sem qualquer contato! — Tenho certeza que sim.

— Não pareceu culpar a filha. Queria que ela tivesse uma vida melhor na Europa. Não queria que ela se afundasse na tragédia palestina, segundo palavras suas.

— Ela nunca se esqueceu de Ein al-Hilweh — disse Gabriel distraidamente. — O que ela estudava?

— Era arqueóloga.

Gabriel lembrou-se das unhas dela. Tivera a sensação de que seria ceramista ou alguém que fazia trabalhos manuais no exterior. Uma arqueóloga ajustava-se bem à descrição.

Arqueóloga? Tens a certeza? — Pareceu muito convicto.

— Mais alguma coisa?

— Há — disse Azouri. — Há dois anos ela enviou-lhe uma carta muito estranha. Pediu-lhe que destruísse todas as cartas e as fotografias que lhe tinha enviado de Europa ao longo dos anos. O velho desobedeceu ao pedido da filha. As cartas e as fotografias eram as únicas coisas que tinha dela. Passadas algumas semanas, apareceu um rufia no quarto dele e queimou tudo.

Um amigo do Khaled, pensou Gabriel. Khaled estava a tentar apagar o passado dela.

— Como conseguiste essas informações?

— Obtive as informações que querias. Deixa os pormenores operacionais comigo, Mike.

— Mostrou o esboço?

— Mostrei. Ele chorou. Não via a filha há 15 anos.

Passada uma hora, Gabriel saiu do hotel e dirigiu até o aeroporto, onde esperou pelo voo noturno para Tel Aviv. Passava da meia-noite quando chegou à Rua Narkiss. Chiara estava a dormir. Mexeu-se quando ele se deitou, mas não acordou. Quando ele pressionou os lábios contra o seu ombro nu, ela murmurou qualquer coisa incoerente e afastou-se dele. Gabriel olhou para a mesinha de cabeceira. Os papéis tinham desaparecido.


CAPÍTULO 35

TEL MEGIDDO, ISRAEL

 

 

Na manhã seguinte, Gabriel partiu para o Armagedon.

Deixou o Skoda no estacionamento do centro de visitantes e foi a pé por um caminho até o alto do mundo sob o sol ofuscante. Deteve-se por um instante para olhar para o vale de Jezreel. Para Gabriel, o vale era o local do seu nascimento, mas os eruditos da Bíblia e as pessoas obcecadas pelas profecias do fim do mundo acreditavam que aquele seria o cenário do confronto apocalíptico entre as forças do bem e do mal. Independentemente da calamidade que se encontrava à sua frente, Tel Meggido já testemunhara muitos derramamentos de sangue. Situado no cruzamento entre a Síria, o Egipto e a Mesopotâmia, tinha sido o local de dezenas de grandes batalhas durante o milênio. Assírios, Israelenses, Cananeus, Egípcios, Filistinos, Gregos, Romanos e Cruzados: todos eles haviam derramado sangue naquela montanha. Napoleão derrotou ali os Otomanos em 1799, e passado pouco mais de um século, o general Allenby, do exército inglês, tornou a derrotá-los.

O solo ao alto do monte estava cortado por um labirinto de fossos e trincheiras. Tel Meggido era submetido a intermitentes escavações arqueológicas havia mais de um século. Até aquele momento, os investigadores tinham descoberto provas de que a cidade no alto do monte tinha sido destruída e reconstruída umas 25 vezes. Naquele momento, estava a proceder-se a uma escavação. De uma das trincheiras chegou até si o som de inglês falado com sotaque americano. Gabriel aproximou-se e olhou para baixo. Dois estudantes universitários americanos, um rapaz e uma moça, estavam agachados sobre qualquer coisa enterrada no solo. Ossos, pensou Gabriel, mas não tinha a certeza.

— Estou à procura do professor Lavon.

— Está a trabalhar no K esta manhã. — Foi a moça que falou com ele.

— Não compreendo.

— As trincheiras de escavação estão colocadas em formato de grelha. Cada lote tem uma letra. Dessa maneira conseguimos traçar a localização de cada artefato. Você está junto do F. Vê o sinal? O professor Lavon está a trabalhar no K.

Gabriel encaminhou-se para o fosso K e olhou para baixo. Ao fundo da trincheira, dois metros abaixo da superfície, encontrava-se agachada uma figura franzina que vestia um chapéu de palha de aba larga. Estava a raspar o subsolo endurecido com uma pequena picareta e parecia totalmente concentrado no seu trabalho, mas isso era algo de habitual nele.

— Encontrou alguma coisa, Eli?

O raspar parou. A figura olhou por cima do ombro.

— Apenas alguns pedaços quebrados de cerâmica — disse ele.

— E você?

Gabriel estendeu a mão para a trincheira. Eli Lavon agarrou a mão de Gabriel e impeliu-se para cima.

Sentaram-se a uma mesa dobrável, à sombra de um toldo azul, e beberam água mineral. Gabriel, de olhos fixos no vale, perguntou a Lavon o que ele fazia em Tel Meggido.

— Atualmente, há uma escola popular de pensamento arqueológico chamada minimalismo bíblico. Os minimalistas acreditam, entre outras coisas, que o rei Salomão era uma figura mítica, algo semelhante a um rei Artur mítico.

Estamos a tentar provar que eles estão errados.

— Ele existiu?

Claro — disse Lavon — , e construiu uma cidade mesmo aqui em Meggido.

Lavon retirou o chapéu mole e usou-o para sacudir a poeira castanho-acinzada da calça caqui. Como era habitual, parecia estar a usar toda a sua roupa ao mesmo tempo: três camisas, pelas contas de Gabriel, com um lenço de algodão vermelho preso ao pescoço. O seu cabelo grisalho, escasso e despenteado, movia-se na brisa fresca. Afastou uma madeixa da testa a avaliou Gabriel com os seus olhos castanho escuros.

— Não é um pouco cedo para estar aqui neste calor?

Da última vez que Gabriel tinha visto Lavon, ele jazia numa cama de hospital no centro médico Hadassah.

— Não passo de um voluntário. Trabalho apenas algumas horas ao princípio da manhã. O meu médico diz que é uma excelente terapia.

— Lavon bebericou a sua água mineral. — Além disso, acho que este lugar nos dá uma valiosa lição de humildade.

— Por quê?

— As pessoas vão e vêm deste lugar, Gabriel. Os nossos antepassados governaram-no há muito. Agora voltamos a governá-lo. Mas também um dia haveremos de desaparecer.

A única questão é quanto tempo ficaremos aqui desta vez, e o que deixaremos para ser desenterrado por homens como eu no futuro? Espero que seja mais do que a marca do Muro da Separação.

— Ainda não estou preparado para desistir, Eli.

— Estou a ver que não. Tens andado muito ocupado. Tenho lido coisas no jornal a teu respeito. Não é uma coisa boa no teu tipo de atividade... aparecer nos jornais.

— Também foi o teu tipo de atividade.

— Em tempos — disse ele — , há muito tempo.

Lavon era um jovem arqueólogo promissor em Setembro de 1972 quando Shamron o recrutou para membro da equipe da Ira de Deus. Tinha sido um ayin, um localizador. Seguira os elementos do Setembro Negro e aprendera os seus hábitos. Em vários aspectos, o seu trabalho tinha sido o mais perigoso de todos, porque fora exposto aos terroristas durante dias infindáveis e sem qualquer apoio. O trabalho tinha-o deixado com uma desordem do foro nervoso e problemas intestinais crônicos. — O que sabes a respeito do caso, Eli?

Ouvi por portas travessas que estavas de regresso ao país, e que tinha algo a ver com o atentado de Roma. Depois Shamron apareceu à minha porta uma tarde e disse-me que estavas atrás do rapaz de Sabri. É verdade? O pequeno Khaled sabia alguma coisa de Roma?

— Ele já não é um rapazito. Foi o culpado de Roma e da Gare de Lyon. E de Buenos Aires e Istambul, antes disso.

— Não me surpreende. O terrorismo corre nas veias do Khaled. Ele bebeu-o no leite materno. — Lavon sacudiu a cabeça. — Sabes, se eu tivesse estado a proteger-te na França, como fiz nos bons velhos tempos, nada disto teria acontecido.

— Provavelmente será verdade, Eli.

As tácticas de rua de Lavon eram lendárias. Shamron dizia sempre que Eli Lavon podia desaparecer enquanto nos apertava a mão. la uma vez por ano à Academia para transmitir os segredos do seu ofício à próxima geração. Na verdade, os vigilantes que tinham estado em Marselha haviam provavelmente passado algum tempo sentados aos pés de Lavon.

— Então o que te traz ao Armagedon? Gabriel colocou uma fotografia sobre a mesa.

Tipo atraente — disse Lavon. — Quem é ele?

Gabriel colocou uma segunda versão da mesma fotografia sobre a mesa. Esta incluía uma figura sentada à esquerda do sujeito, Yasser Arafat.

— Khaled? Gabriel assentiu.

— O que isto tem a ver comigo?

— Acho que tu e o Khaled têm algo em comum.

— Que é?

Gabriel olhou para as trincheiras.

Três estudantes americanos juntaram-se a eles à sombra do toldo. Lavon e Gabriel desculparam-se e caminharam lentamente à volta do perímetro da escavação. Gabriel contou-lhe tudo, começando com o arquivo descoberto em Milão e terminando com a informação que Nabil Azouri desenterrara em Ein al-Hilweh. Lavon ouviu sem fazer perguntas, mas Gabriel conseguiu ver, nos inteligentes olhos castanhos de Lavon, que ele já fazia ligações em busca de outros percursos. Era mais do que um artista de segurança especializado. Como Gabriel, Lavon era filho de sobreviventes do Holocausto. Depois da operação Ira de Deus, tinha-se fixado em Viena e abrira um pequeno Escritório de investigações chamado Reclamações e Informações em Tempo de Guerra. Funcionava com um orçamento reduzido, mas conseguira encontrar milhões de dólares de valores roubados aos Judeus e desempenhara um papel significativo na espionagem de um estabelecimento multimilionário pertencente aos bancos suíços. Cinco meses antes tinha explodido uma bomba no escritório de Lavon. Os dois assistentes de Lavon morreram; Lavon, gravemente ferido, tinha ficado em coma durante várias semanas. O homem que colocara a bomba estava a trabalhar para Erich Radek.

— Então acha que Fellah al-Tamari conhecia o Khaled?

— Sem dúvida.

— Parece um pouco estranho. Para ter conseguido permanecer escondido durante todos estes anos, deve ser um tipo bem cuidadoso.

— Isso é verdade — disse Gabriel — , mas ele sabia que Fellah ia morrer no atentado da Gare de Lyon e que o seu segredo ia ficar protegido. Ela estava apaixonada por ele, e ele mentiu-lhe.

— Estou a ver onde queres chegar.

— Mas a prova mais convincente de que eles se conheciam veio do pai dela. A Fellah disse-lhe para ele queimar as cartas e fotografias que lhe enviara ao longo dos anos. O que significa que o Khaled devia aparecer nelas.

— Como Khaled? Gabriel sacudiu a cabeça.

— Era mais ameaçador que isso. Ela deve tê-lo mencionado pelo nome, pelo seu nome francês.

— Então achas que o Khaled conheceu a moça sob circunstâncias normais e passado algum tempo a recrutou?

— Era esse o seu modo de atuação — disse Gabriel. — Também era assim que o pai dele atuava.

— Eles podiam ter-se encontrado em qualquer lado.

— Ou poderiam ter-se encontrado num lugar como este.

— Uma escavação?

— Ela era estudante de Arqueologia. Talvez o Khaled também o fosse. Ou talvez fosse professor como tu.

Ou talvez fosse apenas um árabe bem-parecido que ela conheceu num bar.

— Nós sabemos como ela se chama, Eli. Sabemos que era estudante e que estudava Arqueologia. Se seguirmos o rasto da Fellah, ele há-de conduzir-nos até o Khaled. Tenho a certeza. Então segue o rasto.

— Por motivos óbvios, não posso voltar à Europa para já.

— Por que não entregar o caso ao Escritório e deixar que os investigadores deles façam o serviço?

— Porque depois do fiasco em Paris, não há qualquer espécie de vontade em ir outra vez atrás do Khaled em território europeu, pelo menos oficialmente. Além disso, eu sou o Escritório, e estou a entregar-te o caso. Quero que o encontres, Eli. Em silêncio. E o teu dom especial. Tu sabes como fazer este tipo de coisas sem causares agitação.

— É verdade, mas perdi-me nalgumas coisas.

— Estás suficientemente bem para viajar?

— Desde que não haja percalços. Essa é a tua área. Eu sou o rato de biblioteca, tu és o judeu dos músculos.

Lavon tirou um cigarro do bolso da camisa e acendeu-o, cobrindo-o com a mão contra a brisa. Olhou para o vale de Jezreel durante um momento antes de tornar a falar.

— Mas sempre o foste, não é verdade, Gabriel?

— O quê?

— O judeu dos músculos. Gostas de representar o papel de artista sensível, mas lá no fundo és mais parecido com Shamron do que julgas.

— Ele vai tornar a matar. Talvez espere até Abril próximo, ou talvez apareça primeiro outro alvo... qualquer coisa que lhe permita mitigar temporariamente a sua sede de sangue judeu.

— Talvez sofras da mesma sede?

— Um pouco — admitiu Gabriel — , mas isto não se trata de vingança. Trata-se de justiça. E trata-se de proteger a vida de inocentes. Vais encontrá-lo por mim, Eli?

Lavon anuiu.

— Não te preocupes, Gabriel. Vou encontrá-lo, antes que ele torne a matar. Permaneceram em silêncio por um instante, contemplando a terra que se avistava à sua frente.

— Fomos nós que os fizemos irem-se embora, Eli?

Aos Cananeus?

— Não, Eli. Aos árabes.

— Por certo que não lhes pedimos para ficarem — disse Lavon.

— Talvez fosse mais fácil assim.

Havia um carro azul parado na Rua Narkiss. Gabriel reconheceu o rosto do homem sentado atrás do volante. Entrou no prédio e subiu rapidamente as escadas. Encontravam-se duas malas no patamar, no exterior de uma porta entreaberta. Chiara estava sentada na sala de estar, vestida com um elegante costume europeu de duas peças e sapatos de salto alto. Estava maquiada. Gabriel nunca vira Chiara maquiada.

— Onde vai?

— Nem devia perguntar.

— Um trabalho?

— Sim, claro, um trabalho.

— Quanto tempo vai ficar fora?

O silêncio dela disse que não regressaria.

— Quando estiver terminado, vou voltar a Veneza. — Depois acrescentou: — Para tomar conta da minha família.

Ele permaneceu imóvel olhando para ela. Ao caírem pelo rosto dela, as lágrimas de Chiara estavam negras de rímel. Para Gabriel pareciam faixas de chuva suja numa estátua. Ela limpou-as e examinou as pontas dos dedos escurecidas, furiosa com sua incapacidade de controlar as emoções. Depois endireitou-se e pestanejou várias vezes.

— Parece decepcionado comigo, Gabriel. Por quê?

— Por chorar. Nunca chora, não?

— Não mais.

Foi sentar-se junto dela na cama e tentou segurar-lhe a mão. Ela afastou-o e limpou a maquilhagem borrada com um lenço de papel, depois abriu uma caixa compacta e olhou para o seu reflexo ao espelho.

— Não posso entrar num avião assim.

— Ótimo.

Não fiques com ideias. Continuo de partida. Além disso, é aquilo que queres. Nunca me dirias para eu partir, és demasiado decente para isso. Mas eu sei que queres que eu vá. — Fechou a caixa. — Não te culpo. De uma maneira estranha, amo-te mais. Só desejava que não me tivesses dito que querias casar comigo. — Eu queria — disse ele.

— Querias?

— Eu quero casar contigo, Chiara — hesitou — , mas não posso. Sou casado com a Leah.

— Fidelidade, não é verdade, Gabriel? A devoção ao dever ou às nossas próprias obrigações. Lealdade. Fidelidade.

— Não a posso deixar agora, depois daquilo que ela passou por causa do Khaled. — Dentro de uma semana, não se vai lembrar. — Ao reparar na expressão no rosto de Gabriel, Chiara pegou-lhe na mão. — Céus, desculpa. Por favor, esquece que eu disse isto.

— Está esquecido.

— És louco por me deixares ir embora. Nunca ninguém te amará como eu. — Levantou-se. — Mas tornaremos a encontrar-nos, tenho certeza disso. Quem sabe, talvez esteja em breve a trabalhar para ti. — De que é que estás a falar?

— O Escritório está cheio de mexericos.

— Normalmente está. Não devias prestar atenção aos mexericos, Chiara. — Uma vez ouvi o boato de que nunca deixarias a Leah para casares comigo. Oxalá lhe tivesse prestado atenção.

Ela pendurou a mala ao ombro, depois inclinou-se e beijou-lhe os lábios.

— Um último beijo — sussurrou ela.

— Deixa-me pelo menos levar-te ao aeroporto.

— A última coisa de que precisamos é de um adeus choroso no Ben-Gurion. Ajuda-me com as malas.

Ele levou as malas para baixo e colocou-as no porta-bagagens do carro. Chiara Entrou no banco de trás e fechou a porta sem olhar para ele. Gabriel deixou-se ficar à sombra dos eucaliptos a ver o carro afastar-se. Enquanto voltava a subir até o apartamento vazio, apercebeu-se de que não lhe pedira que ficasse. Eli tinha razão. Era mais fácil dessa maneira.

CAPÍTULO 36

TIBERÍADES, ISRAEL

 

 

Uma semana depois da partida de Chiara, Gabriel dirigiu até Tiberíades para jantar com os Shamrons. Yonatan estava lá, bem como a sua mulher e os seus três filhos pequenos. Rimona e o marido também lá estavam. Tinham ambos saído de serviço e ainda estavam de uniforme. Shamron, rodeado pela família, parecia mais feliz do que Gabriel o via há anos. Depois do jantar, levou Yonatan e Gabriel para o terraço. Havia um brilhante quarto crescente refletido na superfície calma do mar da Galileia. Para lá do lago, negro e sem forma, elevavam-se as colinas de Golã. Shamron gostava do seu terraço, porque ficava de frente para oriente, voltado para os seus inimigos. Ficava satisfeito por se sentar calmamente sem proferir palavra durante algum tempo enquanto Gabriel e Yonatan falavam num tom pessimista do matsav — "a situação". Passado um bocado, Shamron lançou a Yonatan um olhar que dizia que precisava de falar em privado com Gabriel.

— Já percebi, Abba — disse Yonatan, levantando-se. — Deixo-os sozinhos.

— Ele é coronel do IDF — disse Gabriel, quando Yonatan saiu.

— Não gosta que o trates assim.

— Yonatan tem a sua profissão, e nós temos a nossa. — Shamron mudou habilmente o foco dos seus problemas pessoais para os de Gabriel. — Como está a Leah?

— Vou levá-la amanhã ao monte das Oliveiras para visitar a campa do Dani.

— Deduzo que o médico tenha aprovado esta saída?

Ele vem conosco, bem como metade do pessoal do hospital psiquiátrico de Mount Herzl.

Shamron acendeu um cigarro. — Sabes alguma coisa de Chiara?

— Não, e não espero saber. Sabes onde ela está? Shamron olhou teatralmente para o relógio.

— Se a operação estiver a correr conforme planejado, estará provavelmente a beber brandy numa estância de esqui em Zermatt com um certo cavalheiro suíço de personalidade duvidosa. Esse cavalheiro está prestes enviar um carregamento de armas bastante grande para um grupo de guerrilheiros libaneses que não está muito preocupado com o nosso bem-estar. Queremos saber quando vai partir esse carregamento e para onde vai.

— Por favor, diz-me que as Operações não estão a utilizar a minha ex-noiva como isco numa armadilha de mel.

— Não conheço bem os pormenores da operação, apenas os objetivos que se pretendem obter. Quanto a Chiara, é uma moça de elevado caráter moral. Tenho certeza de que vai fazer-se difícil com o nosso amigo suíço.

— Continuo sem gostar disso.

— Não te preocupes — disse Shamron. — Em breve serás aquele que decidirá como é que a vamos usar. — De que é que estás a falar?

— O primeiro-ministro gostaria de falar contigo. Tem um emprego que gostaria que tu aceitasses.

— Caçador de javalis?

Shamron atirou a cabeça para trás e começou a rir às gargalhadas, sofrendo depois um ataque de tosse demorado e espasmódico.

— Na verdade, ele quer que seja o próximo diretor das Operações.

— Eu? Quando a comissão de interrogatório do Lev tiver acabado comigo, terei sorte se conseguir um emprego como segurança num café da Rua Ben-Yehuda.

— Vai se sair bem disso. Esta não é a melhor hora para autoflagelação pública. Deixe isso para os americanos. Se tivermos de dizer algumas meias-verdades, se tivermos de mentir a um país como a França, que não está interessada na nossa sobrevivência, então que assim seja.

— Como forma de engano, fareis a guerra — disse Gabriel, citando o lema do Escritório.

Shamron assentiu uma vez e disse: — Amém.

— Mesmo que eu saia disto vivo, o Lev não permitirá que eu fique com as Operações.

— Ele não terá opinião a dar nesse assunto. O mandato do Lev está a terminar, e ele tem poucos amigos no Boulevard King Saul e na Rua Kaplan. Não será convidado para uma segunda dança.

— Então, quem vai ser o próximo chefe?

— O primeiro-ministro e eu temos uma pequena lista de nomes. Nenhum deles é do Escritório. Quem quer que nós escolhamos, precisamos de um homem experiente para dirigir as Operações.

— Eu sabia que haveria de ir dar a isto — disse Gabriel. — Soube-o no momento em que te vi em Veneza.

— Admito que os meus motivos são egoístas. O meu mandato também está a chegar ao fim. Se o primeiro-ministro sair, eu também saio. E desta vez não haverá um regresso do exílio. Preciso de ti, Gabriel. Preciso que tomes conta da minha criação. — O Escritório?

Shamron sacudiu a cabeça, depois levantou a mão em direção à terra que se avistava do terraço.

— Sei que o farás — disse Shamron. — Não tens escolha. A tua mãe chamou-te Gabriel por algum motivo. Miguel é o mais elevado, mas tu, Gabriel, és o mais poderoso. És aquele que defende Israel contra os seus acusadores. És o anjo do juízo... o príncipe de fogo.

Gabriel olhou em silêncio para o lago.

— Primeiro há uma coisa que tenho de tratar.

— Eli vai encontrá-lo, em especial com as pistas que tu lhe deste. Tratou-se de um brilhante trabalho de detective da tua parte. Mas também sempre tiveste esse tipo de pensamento.

Foi a Fellah — disse Gabriel. — Ela condenou-o ao contar-me a sua história. — Mas é essa a maneira palestina de fazer as coisas. Eles estão presos na descrição da perda e do exílio. Não há maneira de lhe escapar. — Shamron inclinou-se para a frente, repousando os cotovelos nos joelhos. — Tens mesmo a certeza que queres dar-te ao trabalho de transformar o Khaled num mártir? Há outros rapazes que podem fazer isso por ti.

— Eu sei — disse ele — , mas tenho de o fazer. Shamron suspirou pesadamente. — Se tens de o fazer, fá-lo, mas desta vez vai ser um assunto privado. Não há equipes, nem vigilância, nada que o Khaled possa manipular para sua vantagem. Apenas tu e ele.

— Como deve ser.

Caiu um silêncio entre eles. Observaram as luzes fugidias de um barco de pesca que navegava lentamente em direção a Tiberíades.

— Há uma coisa que tenho de te perguntar — disse Gabriel. — Queres falar-me acerca do Tochnit Dalet — disse Shamron.

— Acerca de Beit Sayeed e Sumayriyya.

— Como é que soubeste?

— Andas a deambular pelas terras ermas da dor palestina há demasiado tempo. É natural.

Fez a Shamron a mesma pergunta que fizera a Eli Lavon uma semana antes em Meggido. Expulsamos?

— É claro que sim — disse Shamron, acrescentou apressadamente em seguida: -Nalguns lugares, sob circunstâncias específicas. E se me pedires a minha opinião, deveríamos ter expulso mais. Foi esse o nosso erro. — Não podes estar a falar a sério, Ari.

— Deixa-me explicar-te — disse ele. — A História deu-nos uma batalha perdida. Em 1947, as Nações Unidas decidiram dar-me um bocado de terra para fundar o nosso novo Estado. Lembra-te, quatro quintos da Palestina Mandatária já tinham sido cortados para criar o Estado da Transjordânia. Oitenta por cento Dos restantes vinte por cento, as Nações Unidas deram-nos metade, dez por cento da Palestina Mandatária, a Planície Costeira e o Negev. E mesmo assim os Árabes disseram que não. Imagina se tivessem dito que sim. Imagina se tivessem dito que sim em 1937, quando a Comissão Peei recomendou a divisão. Quantos milhões poderíamos ter salvo? Os teus avós ainda estariam vivos. Talvez os meus pais e as minhas irmãs ainda estivessem vivos. Mas o que é que os Árabes fizeram? Disseram que não, juntaram-se ao Hitler e aclamaram o nosso extermínio.

— Isso justifica que os tenhamos expulso?

— Não, e não foi por esse motivo que o fizemos. Foram expulsos como consequência da guerra, uma guerra que eles começaram. A terra que as Nações Unidas nos deu continha 500. 000 judeus e 400.000 árabes. Esses árabes eram uma força hostil, empenhada na nossa destruição. Nós sabíamos que no momento em que declarássemos a independência seríamos alvos de uma invasão militar pan-árabe. Tivemos de preparar o campo de batalha. Não podíamos travar duas guerras ao mesmo tempo. Não podíamos lutar contra os Egípcios e os Jordanos por um lado enquanto combatíamos os Árabes de Beit Sayeed e

Sumayriyya pelo outro. Eles tinham de ir.

Shamron percebeu que Gabriel continuava pouco convencido.

— Diz-me uma coisa, Gabriel. Achas que se os Árabes tivessem ganho a guerra haveria refugiados judeus? Vê o que aconteceu em Hebron. Levaram os judeus para o centro da cidade e abateram-nos. Atacaram um trem de médicos e enfermeiros que se dirigiam para o monte Scopus e chacinaram-nos. Para se certificarem de que ninguém sobreviveria, regaram os veículos com gasolina e pegaram-lhes fogo. Era esta a natureza do nosso inimigo. O seu objetivo era matar-nos a todos, para que nunca mais pudéssemos regressar. E hoje continua a ser esse o seu objetivo. Querem matar-nos a todos.

Gabriel citou a Shamron as palavras que Fellah lhe dissera a caminho de Paris. O meu Holocausto é tão real como o seu, e, no entanto, negas o meu sofrimento e ilibas-te de culpa. Afirmas que as minhas feridas são auto-infligidas.

— E são autoinfligidas — disse Shamron.

— Mas houve uma estratégia oculta da expulsão? Também te meteste numa política de limpeza étnica?

— Não — disse Shamron — , e a prova está à nossa volta. Jantaste no outro dia em Abu Ghosh. Se houve uma política oculta da expulsão, como é que Abu Ghosh ainda existe?

E na Galileia Ocidental, como é que Sumayriyya desapareceu mas al-Makr ainda lá está? Porque os residentes de Abu Ghosh e de al-Makr não nos tentaram chacinar. Mas talvez tenha sido esse o nosso erro. Talvez devêssemos tê-los expulso a todos em vez de tentarmos reter uma minoria árabe no nosso meio.

— Então teria havido mais refugiados.

— É verdade, mas se eles não tivessem qualquer esperança de alguma vez regressarem, talvez se tivessem integrado na Jordânia e no Líbano, em vez de se permitirem serem usados como ferramenta de propaganda para nos demonizarem e desautorizarem. Por que o pai da Fellah al-Tamari ainda se encontra em Ein al-Hilweh depois de todos estes anos? Por que nenhum dos Estados árabes irmãos, nações com quem ele partilha uma língua, uma cultura e uma religião comuns, o aceitou? Porque o querem usar como instrumento para questionar o meu direito à existência. Eu estou aqui. Eu vivo, eu respiro. Eu existo. Não preciso da autorização de ninguém. E é certo que não tenho mais nenhum lugar para onde ir. — Olhou para Gabriel.

— Só preciso que tu o vigies por mim. Os meus olhos já não são o que eram. As luzes do barco de pesca desapareceram no porto de Tiberíades. Shamron parecia subitamente cansado.

— Nunca haverá paz neste lugar, mas também nunca houve. Desde que tropeçamos nesta terra, vindos do Egipto e da Mesopotâmia, que estamos a combater.

Cananeus, Assírios, Filistinos, Romanos, Amalecitas. Enganamo-nos ao acreditar que os nossos inimigos tinham desistido do seu sonho de nos destruir. Rezamos por coisas impossíveis. Paz sem justiça, perdão sem restituição. — Olhou provocadoramente para Gabriel. — Amor sem sacrifício.

Gabriel levantou-se e preparou-se para partir.

— Que digo ao primeiro-ministro?

— Diz-lhe que tenho de pensar nisso.

— As Operações são apenas uma estação pelo caminho, Gabriel. Um dia serás o chefe. O Memuneh.

— Tu és o Memuneh, Ari. E sempre serás. Shamron lançou uma gargalhada satisfeita.

— Que lhe digo, Gabriel?

— Diz-lhe que também não tenho outro lugar para onde ir.

A chamada telefônica de Julian Isherwood deu a Gabriel a desculpa que ele procurava para remover do apartamento os últimos vestígios de Chiara. Contatou uma obra de caridade de imigrantes russos e disse-lhes que desejava fazer uma doação. Na manhã seguinte, dois rapazes magricelas de Moscovo chegaram e levaram todo o mobiliário da sala de estar: os sofás e as cadeiras, as mesas de apoio e os candeeiros, a mesa da sala de jantar, até os vasos de latão decorativos e os pratos de cerâmica que Chiara escolhera e dispusera com tanto cuidado. Não mexeu no quarto, com exceção dos lençóis e do edredão, que ainda conservavam a fragrância a baunilha do cabelo de Chiara.

Durante os dias que se seguiram, a Rua Narkiss foi visitada por uma sucessão de camiões de entregas. A mesa de exame, ampla e branca, foi a primeira a chegar, seguida por candeeiros de halogêneo e de luz fluorescente com braços ajustáveis. A venerável loja de artigos de arte de L. Cornelissen & Son, Great Russell Street, Londres, enviou um carregamento de pincéis, pigmentos, diluentes e vernizes. Uma empresa química de Leeds enviou diversas caixas de dissolventes potencialmente perigosos que despertaram mais do que uma curiosidade passageira nas autoridades postais israelenses. Da Alemanha chegou um microscópio caro com um braço retráctil; de uma oficina de arte em Veneza, dois grandes cavaletes de madeira. Daniel na Cova do Leão, óleo sobre tela, duvidosamente atribuído a Erasmus Quellinus, chegou no dia seguinte. Gabriel passou grande parte da tarde a desmontar a sofisticada grade de transporte, e só com a ajuda de Shamron é que foi capaz de içar a enorme tela para os dois cavaletes gémeos. A imagem de Daniel rodeada por animais selvagens intrigou Shamron, que se deixou ficar até tarde enquanto Gabriel, munido com gaze de algodão e uma bacia com água destilada e amoníaco, encetou a tarefa entediante de esfregar mais do que um século de sujidade e fuligem da superfície do quadro.

Duplicou, até o máximo possível, os seus hábitos de trabalho de Veneza. Levantava-se antes do nascer do dia e resistia ao impulso de ligar o rádio, não fossem as notícias dos derramamentos de sangue diários e os constantes alertas de segurança quebrar o feitiço que o quadro lançara sobre ele. Permanecia durante toda a manhã no seu estúdio e trabalhava normalmente um segundo turno até noite dentro. Passava o mínimo de tempo possível no Boulevard King Saul; na verdade, ouviu falar da demissão de Lev no rádio do carro enquanto conduzia da Rua Narkiss até o Mount Herzl para visitar Leah. Durante as visitas, as viagens dela até Viena foram-se tornando cada vez mais breves e ligeiras. Ela fazia-lhe perguntas acerca do passado de ambos.

"Onde nos conhecemos, Gabriel?"

"No Bezalel. Tu és pintora, Leah." "Onde é que nos casamos?"

"Em Tiberíades. No terraço de Shamron, no mar da Galileia."

"E agora és restaurador?"

"Estudei em Veneza, com Umberto Conti. Costumavas ir visitar de poucos em poucos meses. Fazias-te passar por uma alemã de Bremen. Lembras-te, Leah?" Numa escaldante tarde de Junho, Gabriel bebeu café com o Dr. Bar-Zvi na cantina do pessoal.

— Alguma vez poderá deixar este lugar?

— Não.

— E por breves períodos?

— Não vejo porque não — disse o médico. — Na verdade, acho que é uma excelente ideia.

Das primeiras vezes ia acompanhada por uma enfermeira. Depois, quando se começou a sentir mais à-vontade com o fato de estar afastada do hospital, Gabriel levava-a sozinha para casa. Ela sentava-se na cadeira do estúdio e ficava a vê-lo trabalhar horas sem fim. Por vezes, a sua presença trazia-lhe paz, outras vezes uma dor insuportável. Desejava sempre poder colocá-la no cavalete e recriar a mulher que deixara dentro do carro naquela noite cheia de neve em Viena.

— Tens alguns dos meus quadros?

Ele mostrou-lhe o quadro que se encontrava no quarto. Quando ela lhe perguntou quem era o modelo, Gabriel disse-lhe que era ele.

— Pareces triste.

— Estava cansado — disse ele. — Tinha estado afastado durante três anos.

— Pintei mesmo isso?

— Eras boa — disse ele. — Eras melhor que eu.

Certa tarde, retocava Gabriel uma parte danificada do rosto de Daniel, ela perguntou-lhe porque tinha ido para Viena.

— Havia outra mulher, não havia? Uma francesa. Alguém que trabalhava para o Escritório.

Gabriel assentiu uma vez e recomeçou a trabalhar no rosto de Daniel. Leah tornou a pressioná-lo.

— Quem foi? — perguntou ela. — Quem colocou a bomba no meu carro?

— Foi Arafat. Eu também deveria ter morrido com você e com Dani, mas o homem que executou a missão mudou os planos.

— Esse homem ainda está vivo? Gabriel sacudiu a cabeça.

— E Arafat?

A noção que Leah tinha da presente situação era no mínimo tênue. Gabriel explicou-lhe que Yasser Arafat, o inimigo mortal de Israel, vivia agora a alguns quilômetros de distância, em Ramallah.

— Arafat está aqui? Como é isso possível?

Da boca dos inocentes, pensou. Nesse momento ouviu passos na escada. Eli Lavon entrou no apartamento sem se dar ao trabalho de bater.

CAPÍTULO 37

AIX-EN-PROVENCE: CINCO MESES DEPOIS

 

 

As primeiras rajadas do mistral açoitavam as ravinas e desfiladeiros do Bouches-du-Rhône. Ao sair do seu Mercedes, Paul Martineau abotoou o casaco de tela e levantou o colarinho até as orelhas. Chegara mais um Inverno à Provença. Mais algumas semanas, pensou ele, depois teria de fechar a escavação até a Primavera. Tirou o saco desportivo de tela do porta-bagagens, avançou ao longo do antigo muro de pedra da fortaleza do monte. Passado um instante, no local onde o muro terminava, deteve-se. A cerca de 50 metros de distância, perto da extremidade do alto do monte, encontrava-se um pintor em frente a uma tela. Não era invulgar ver artistas a trabalharem no alto do monte; o próprio Cézanne adorara a vista imponente sobranceira a Chaine de 1'Étoile. Apesar disso, Martineau achou que seria sensato observar melhor o homem antes de começar a trabalhar. Transferiu a Makarov do saco para o bolso do casaco, depois avançou em direção ao pintor. O homem estava de costas para Martineau. A julgar pela postura da sua cabeça, estava a olhar para o distante monte Sainte-Victoire, o que foi confirmado por Martineau alguns segundos depois quando olhou para a tela pela primeira vez. A obra era muito ao estilo das paisagens clássicas de Cézanne.

Na verdade, pensou Martineau, era uma reprodução estranha.

O artista estava tão absorvido no seu trabalho que parecia não ter ouvido Martineau a aproximar-se. Só quando ele se encontrava atrás de si é que parou de pintar e olhou por cima do ombro. Usava uma camiseta de lã grossa e um chapéu mole de aba larga que se movia com o vento. A sua barba grisalha era comprida e mal tratada e tinha as mãos manchadas de tinta. A julgar pela sua expressão, era um homem que não gostava de ser interrompido quando trabalhava. Martineau compreendia-o.

— É evidente que aprecia Cézanne — disse Martineau.

O pintor assentiu uma vez, continuando depois com o seu trabalho.

— É bastante bom. Estaria disposto a vender-mo?

— Receio que este já esteja apalavrado, mas poderei fazer outro, se quiser. Martineau estendeu-lhe o cartão.

— Pode encontrar-me no meu Escritório na universidade. Poderemos falar do preço quando eu vir a tela acabada.

O pintor aceitou o cartão e deixou-o cair numa caixa de madeira que continha pincéis e tintas. Martineau despediu-se e dirigiu-se à escavação, até a trincheira onde estivera a trabalhar no dia anterior. Desceu para o fosso e retirou o oleado azul que se estendia no fundo, expondo uma cabeça decepada de perfil esculpida em pedra. Abriu o saco desportivo e retirou uma pequena trolha e um pincel. Quando estava prestes a começar a trabalhar, uma sombra obscureceu a base do fosso. Ajoelhou-se e olhou para cima. Esperara ver Yvette ou um dos outros arqueólogos que trabalhavam na escavação. Em vez disso, viu a silhueta de chapéu do pintor, iluminada por trás pelo sol brilhante.

Martineau levou a mão à testa e escudou os olhos.

— Importa-se de se afastar daí? Está a bloquear-me a luz.

O pintor levantou em silêncio o cartão que Martineau lhe dera.

— Creio que esse nome está incorreto.

— Desculpe?

— O nome é Paul Martineau?

— Sim, sou eu.

— Mas esse não é o seu verdadeiro nome, pois não? Martineau sentiu um calor penetrante na nuca. Olhou com atenção para a figura de pé à beira da trincheira. Seria mesmo ele? Martineau não podia ter a certeza, não com a barba densa e o chapéu mole. Depois pensou na paisagem. Era uma imitação perfeita de Cézanne em tom e textura. Claro que era ele. Martineau moveu ligeiramente a mão em direção ao bolso e tentou ganhar mais algum tempo.

— Oiça, meu amigo, eu chamo-me...

— Khaled al-Khalifa — disse o pintor, terminando a frase por ele. As palavras seguintes foram ditas em árabe: — Queres mesmo morrer 315 como um francês? És o Khaled, filho do Sabri, neto do Asad, o leão de Beit Sayeed. A arma do teu pai está no bolso do teu casaco. Tira-a. Diz-me o teu nome.

Khaled agarrou o punho da Makarov e estava a tirá-la do bolso quando o primeiro tiro lhe rasgou o peito. O segundo tiro fez com que a arma que tinha na mão se soltasse.

Caiu para trás e bateu com a cabeça na base rochosa do fosso. Enquanto ia mergulhando na inconsciência, olhou para cima e viu o judeu, a agarrar uma mão cheia de terra do monte na borda da trincheira. Atirou a terra ao rosto de Khaled e levantou a arma uma última vez. Khaled viu o relâmpago de fogo, depois a escuridão. A trincheira começou a rodar, e ele sentiu-se a cair, em direção ao passado. O pintor tornou a enfiar a Beretta no cós da calça e regressou ao local onde tinha estado a trabalhar. Enfiou o pincel na tinta preta e assinou o seu nome na tela, depois virou-se e começou a subir a encosta do monte. À sombra do antigo muro encontrou uma moça de cabelo curto que tinha uma vaga semelhança com Fellah al-Tamari.

Cumprimentou-a e sentou-se no selim da mota. Passado um momento, tinha desaparecido.


NOTA DO AUTOR

Príncipe de Fogo é uma obra de ficção. Dito isto, baseia-se fortemente em acontecimentos reais, e foi inspirado em grande medida por uma fotografia — uma fotografia de um rapaz no funeral do pai, um líder terrorista morto por agente do serviço secreto israelenses em Beirute, em 1979. O terrorista era Ali Hassan Salameh, do Setembro Negro, o cérebro por trás do massacre das Olimpíadas de Munique e de muitos outros atos de assassinato, e o homem ao colo de quem a criança estava sentada na fotografia era Yasser Arafat. Os estudiosos do conflito israelo-palestino verão que tomei de empréstimo muito de Ali Hassan Salameh e do seu famoso pai para construir o Asad e o Sabri al-Khalifa de ficção. Existem diferenças básicas entre os Salamehs e os al-Khalifas, demasiadas para serem aqui enumeradas. Uma investigação na Planície Costeira não apresentará provas de uma aldeia chamada Beit Sayeed, já que tal lugar não existe. Tochnit Dalet era o verdadeiro nome do plano para remover os centros hostis de população árabe da terra destinada ao novo Estado de Israel. Existiu outrora uma aldeia chamada Sumayriyya, na Galileia Ocidental. A sua destruição ocorreu como descrito nas páginas deste romance. O Setembro Negro foi na verdade um braço oculto da Organização da Libertação da Palestina, de Yasser Arafat, e as consequências deste curto e sangrento reinado de terror ainda hoje vive. Foi o Setembro Vermelho que primeiro demonstrou a utilidade de se executarem atos espetaculares de terrorismo na cena internacional, e a prova da sua influência encontra-se a toda a nossa volta. Pode ser vista numa escola em Beslan, nos destroços de quatro trens em Madrid e no espaço vazio da Baixa de Manhattan, onde outrora se erguiam as torres gémeas do World Trade Center. Yasser Arafat adoeceu e morreu quando eu estava a concluir este romance. Se ele tivesse escolhido o caminho da paz em vez de ter libertado uma vaga de terror, este livro nunca teria sido escrito, e milhares de pessoas, tanto israelenses como palestinas, ainda hoje estariam vivas.

 

 

                                                  Daniel Silva       

 

 

 

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