Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRISÃO DOURADA / Barbara Cartland
PRISÃO DOURADA / Barbara Cartland

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

A partir de 1870, a concorrência entre navios transatlânticos trouxe mudanças que deixaram o mundo maravilhado.

O Dynamic, de 1883, construído por Harland e Wolfl para a companhia Belfast Steamship, foi um dos primeiros navios a ser totalmente iluminado a luz eléctrica.

Os navios de passageiros estavam muito adiantados para a época, quanto à iluminação eléctrica. O Sauoy foi o primeiro teatro a ser iluminado electricamente, apenas em 1887, e os primeiros candeeiros públicos eléctricos só apareceram em 1891.

O Lucania, um navio da companhia Gun. rd, foi o primeiro a estar em comunicação telegráfica com ambos os lados do Atlântico.

O navio francês La Touraine era um navio lento, mas maravilhoso, e foi o primeiro a oferecer aos seus passageiros o conforto de camarotes tipo suite. A alimentação era melhor, embora não tão abundante como no Lucania a Gunard anunciava dez refeições por dia, incluindo uma chávena de bouillon, travessas de sorvetes às quinze horas, caramelos e rebuçados por volta das dezassete.

O Macy's, um dos mais antigos dos grandes Armazéns Americanos, ampliou as suas instalações em 1881, acrescentando seis andares à parte oriental do edifício que possuía na l3th Street. A construção ficou completa no princípio de 1892.

Incluía uma nova "Sala de Espera para Senhoras". O Macy's anunciava: "Trata-se da mais bela e luxuosa secção, destinada ao conforto feminino, que se pode encontrar num estabelecimento comercial desta cidade. O estilo da decoração é Luís XV, e não se pouparam despesas".

 

 

 

 

                                                                              1896

Crisa dirigiu-se à janela e olhou a Quinta Avenida. Não via o tráfego que passava lá em baixo, nem as casas de pedra castanha, enormes e feias, que se erguiam em frente da majestosa mansão creme, de pedra calcária.

Tinha sido construída à semelhança dos graciosos castelos do vale do Loire por Silas P. Vanderhault, por ocasião do seu primeiro casamento.

Em vez disso, ela só via uma velha casa senhorial. Fora a habitação dos Royden em Huntingdonshire, desde que Jaime criara o título de baronete.

Estava a necessitar de obras urgentemente, os tijolos vermelhos precisavam de ser pintados, a madeira das empenas tinha apodrecido e faltavam vários vidros nas janelas.

No entanto, para Crisa seria sempre o mais belo lugar do Mundo.

As saudades que sentia doíam-lhe como se tivesse uma ferida no coração.

Agora, perdera tanto a mansão como o seu pai, e o pior é que sentia que tinha perdido, também, a juventude.

Às vezes pensava que, naquela atmosfera tão luxuosa, naquelas ruas apinhadas e na agitação permanente de Nova Iorque, tinha envelhecido de um dia para o outro.

Na verdade, celebrara os seus dezanove anos ainda na semana anterior.

Dezanove anos apenas!

No entanto, parecia-lhe que tinha vivido dezanove séculos, desde que casara com Silas P. Vanderhault.

Fora a terceira esposa de um dos homens mais ricos da América.

Ainda lhe parecia mentira, a tal ponto lhe custava a acreditar que tanto ele como o seu pai estavam mortos...

Recordava-se perfeitamente do dia em que tudo acontecera. Tinha saído sozinha, a cavalo.

Desde a morte da mãe que o seu pai, como se não suportasse permanecer dentro da casa em que tinham sido tão felizes, ia constantemente a Londres.

Sempre que ele voltava, ela sabia que tinha passado o tempo comendo e bebendo em demasia.

Fazia-lhe mal à saúde, e, além disso, gastava todo o dinheiro que tinha.

Costumava voltar, então, para casa, pois, como ele próprio afirmara tantas vezes, estava completa e totalmente falido.

Dessa vez ele partira havia quase duas semanas. Crisa não o esperava, e, ao aproximar-se de casa, reparou numa carruagem elegante estacionada em frente da porta principal.

O coração palpitou-lhe de alegria.

Mas, à medida que se aproximava, começou a sentir-se chocada com aquela extravagância do pai.

Como é que ele tinha sido capaz de uma coisa daquelas? A carruagem, puxada por cavalos da melhor criação, devia ter sido caríssima.

Como é que ele pôde ser tão louco a ponto de voltar para casa deste modo, pensou ela, quando devemos já à Lovett uma quantia astronômica?

A Lovett era uma companhia de aluguer de cavalos e carruagens, onde o seu pai contratava um transporte, sempre que ia a Londres.

Invariavelmente, queixava-se do seu desconforto e lentidão, embora reconhecesse que sempre era melhor do que o comboio.

Mas este era um caso muito diferente.

Crisa entrou nos estábulos e entregou o seu cavalo aos cuidados do velho Hodges, que se movia com dificuldade, devido ao reumatismo.

Ao fazê-lo, decidiu que, agora que o seu pai estava em casa, ia aproveitar para ter com ele uma conversa muito séria sobre a sua situação financeira.

Na semana anterior tinha-se sentido embaraçada quando descera à aldeia.

Pensou que os pequenos comerciantes locais, embora gostassem muito dela, não veriam com bons olhos que lhes fizesse mais encomendas.

Sabiam que ela não podia pagar a farinha, o açúcar ou a manteiga de que Nanny, a velha criada, precisava.

Sobre esse assunto, Nanny era mais eloquente do que qualquer outra pessoa.

- O que é que o seu pai vai fazer, gostava eu de saber... tinha ela dito na noite anterior. - Foi com a maior dificuldade que consegui convencer Mister Goodgson, da quinta, a matar um galo para termos que comer.

Continuou a resmungar:

- Só Deus sabe como o bicho era velho, mal conseguia ter-se de pé, mas, mesmo assim, custou dois xelins, e, quando eu disse para pôr na nossa conta, ele quase que me atirou com o galo à cara!

Crisa suspirou, sabendo que não tinha resposta para aquilo, como Nanny também sabia.

- Ao menos, o seu pai podia perceber que não vamos limitar-nos a comer ervas... e que se eu tiver de passar outro Inverno sem carvão sou capaz de não sobreviver... e que se eu morrer... vai ficar cheio de remorsos!

Crisa soltou um risinho abafado e abraçou Nanny, dizendo:

- Não te atrevas a falar em morrer, Nanny, sabes muito bem que tens de estar viva para tratares de mim...

Beijou a velha mulher e continuou:

- Eu falo com o pai quando ele voltar... falo mesmo! Mas tu sabes como ele ficou infeliz, desde a morte da mãe, e como sente a falta dela.

Suspirou e prosseguiu:

- Não consegue estar nesta casa sem a ver entrar sorrindo, feliz por estar perto dele.

Ao dizer estas palavras, Crisa ficou com a voz embargada.

Amara sua mãe profundamente e viver sem ela era-lhe tão difícil como a seu pai.

Mas não podia consolar-se do mesmo modo que ele fazia, saindo e gastando o dinheiro que não tinham.

- É uma vergonha... - disse Nanny uma vez, sarcástica. Sair com essas mulheres todas, sempre na paródia!

- Parece que são todas muito bonitas e invulgares, pelo menos é o que dizem os jornais... - replicou Crisa.

- Não vá agora pôr mais ideias na cabeça do seu pai, mais do que as que ele já lá tem - ralhou Nanny.

Crisa sempre achara mais sensato não perguntar ao pai o que fazia quando ia a Londres.

Mas sabia que, sempre que ele lá ia, as suas dívidas aumentavam.

Pelo menos, pensou, ao dirigir-se a casa, ia poder vê-lo, falar com ele.

Quando ele não estava, Crisa sentia-se muito sozinha.

Só ouvia o resmungar de Nanny e o velho Hodges a queixar-se do reumatismo.

A sua única consolação era poder montar a cavalo.

Entrou no hall, com os seus retratos de antepassados dos Royden pendurados na parede.

A carpete estava tão gasta que mal se podia perceber o desenho.

Tentou adivinhar onde poderia estar o pai.

Foi então que ouviu vozes na sala de visitas e percebeu que ele não estava sozinho.

Pensou se deveria ir primeiro lá acima mudar de roupa, ou se poderia apresentar-se tal como estava vestida.

Trazia uma saia de montar velha e desbotada, com a qual, já que o dia estava quente, usava apenas uma blusa branca.

Mas essa blusajá tinha sido cosida em muitos sítios e remendada nos cotovelos.

Então, pensou que, quem quer que tivesse regressado com o pai, não daria pela sua presença.

Abriu a porta da sala de visitas e viu-o ao fundo, conversando com outro homem.

Com um grito de alegria, por o ver de volta, correu para ele, abrindo os braços para o abraçar.

- Voltaste, pai! - exclamou. - Porque não me avisaste da tua chegada? Teria ficado em casa à tua espera.

- Só decidi à última hora, minha boneca - respondeu ele -, e quando cheguei a Nanny disse-nos que, como eu calculava, tinhas ido passear a cavalo.

- Sempre a pensar que me apetecia que estivesses aqui comigo... - disse Crisa, tirando os braços do pescoço dele e olhando, curiosa, o outro homem.

Era mais baixo do que o seu pai e Crisa achou-o velho e pouco atraente.

O cabelo, ou o que dele restava, era grisalho e a cara estava cheia de rugas.

As roupas eram um pouco estranhas e não correspondiam exactamente às que Crisa esperava que um cavalheiro usasse.

- Deixem-me fazer as apresentações - disse Sir Robert Royden. - Mister Vanderhault, esta é a minha filha, Crisa.

- Pois tem uma filha encantadora! - disse Mr. Vanderhault, quando Crisa lhe estendeu a mão.

Tinha uma pronúncia nasalada e, mesmo que o seu pai não lhe dissesse de onde ele vinha, Crisa percebeu logo que Mr. Vanderhault era americano.

- Mister Vanderhault veio de Londres comigo para ver os nossos Van Dyck - explicou o pai de Crisa.

Crisa susteve a respiração e, com a maior dificuldade, evitou soltar um grito de horror.

Sabia exactamente porque é que tinha trazido aquele americano.

Apesar de todas as promessas, depois de tudu que ela lhe tinha dito, ia vender as duas únicas peças de valor que lhes restavam.

Os quadros de Van Dyek eram os retratos dos primeiros Royden agraciados pela corte de Carlos I, que tinham levado o nome Royden para os livros de História.

A mãe de Crisa adorava esses quadros e dissera muitas vezes ao marido:

- Aconteça o que acontecer, nunca devemos separar-nos dos nossos Van Dyck. Fazem parte da nossa vida, de tal maneira que tenho a sensação de que os conheço.

- Também penso assim - respondera Sir Robert -, e tens toda a razão, querida. Mesmo que não tenhamos um filho para herdar o nosso título, a Crisa dará continuidade à nossa família e talvez um dia que tenha um filho lhe dê o nome Royden.

- Dou, com certeza... - prometera Crisa.

No entanto, sabia como o seu pai lamentava profundamente que o título, tantas vezes passado de pais para filhos, acabasse com ele.

Quando sua mãe morreu, e apesar de nunca se ter atrevido a dizê-lo em voz alta, Crisa perguntara-se frequentemente se o pai voltaria a casar.

Era natural que desejasse ter o varão que a sua mãe nunca lhe tinha dado.

Sabia como a mãe sofria por sentir que tinha desiludido o marido, que amava tão apaixonadamente.

Um dia ouvira-a dizer, sem saber que Crisa escutava:

- Será que alguma vez me perdoarás, meu querido, por não te ter dado um filho?

O pai soltara uma gargalhada cheia de sinceridade.

- Deste-me a felicidade, que é uma coisa mais importante do que tudo o que um homem possa desejar - respondera ele -, e amo a nossa querida filha, porque é tão parecida contigo.

Mas Crisa sabia que, à medida que os anos passavam, o pai olhava cada vez mais para os retratos de família.

Havia sofrimento no olhar dele, pois sabia que só ela os poderia herdar e que, quando casasse, o seu nome deixaria de ser Royden.

Contudo, agora, depois de todas as promessas feitas a sua mãe e a si própria, ela sabia que os Van Dyck iam partir.

- Durante a viagem, estive a contar a Mister Vanderhault - dizia o seu pai -, a história da família Royden, e que os meus antepassados lutaram ao lado de Malborough e na Batalha de Waterloo.

Dirigiu-lhe um sorriso forçado e continuou:

- Além de, no princípio do século, um deles ter sido estadista no primeiro conselho de ministros da rainha Vitória.

Se não estivesse tão horrorizada com o que ele se preparava para fazer, Crisa teria sentido vontade de rir.

Percebeu que o pai escolhera épocas da história das quais o americano devia ter ouvido falar.

O pai sempre se interessara mais por outros antepassados. Um deles tinha sido explorador, um dos poucos homens que alguma vez alcançaram a nascente do Amazonas.

Outro tinha-se tornado famoso por mérito próprio, durante as guerras na Índia, sob as ordens de Sir Arthur Wellesley.

No entanto, mesmo um americano devia já ter ouvido falar do célebre duque de Malborough.

E decerto saberia que a Batalha de Waterloo fora a derrota final para Napoleão Bonaparte.

- Se há coisa que me dê prazer - replicou Mr. Vanderhault -, é levar para a América algumas das belas e antigas preciosidades que se encontram neste vosso grande pequeno país.

O que era verdade, como Crisa iria verificar ao conhecer a mansão Vanderhault, em Nova Iorque.

Encontrou uma enorme quantidade de quadros e de peças de mobiliário, amontoadas sem qualquer sentido artístico.

Havia sarcófagos egípcios, tapetes uns em cima dos outros, estantes, mesas, urnas, estatuetas e louças.

Todos esses objectos, encostados uns aos outros, tinham o aspecto assustador de um pesadelo.

Crisa não foi capaz de articular palavra, enquanto o pai os conduzia à outra extremidade da sala de visitas.

Os Van Dyck estavam pendurados de ambos os lados da lareira.

Era ali que costumavam sentar-se no Inverno, no Verão preferiam a outra zona da sala.

Uma porta envidraçada até ao chão dava para o roseiral, que rodeava um antigo relógio de sol.

Crisa olhou para os Van Dyck e reparou como eram maravilhosos, tão primorosamente pintados.

Parecia-lhe impossível que o pai pensasse tirá-los dali, mandá-los embora.

Há muitos séculos que as paredes da mansão eram a sua morada, o lugar deles era ali, tal como o do seu pai.

Os seus olhos admiraram a genialidade com que Van Dyck retratara o elegante drapeado do vestido de Charlotte Royden.

Os dedos longos e magros do marido tinham o seu toque inimitável.

No fundo de ambos os quadros via- se a mansão, exactamente como era hoje, mas sem precisar de obras.

- Pode ver que são excelentes - disse Sir Robert -, nunca ninguém, nem antes nem depois de Van Dyck, conseguiu pintar retratos tão bem como ele.

Mister Vanderhault fez que sim com a cabeça.

Crisa teve a desagradável sensação de que os olhos dele, embora velhos, tinham percebido que os dois quadros precisavam de uma limpeza.

Via-se uma pequena lágrima na tela que representava Charlotte Royden.

- Evidentemente que, se não estiver interessado - dizia Sir Robert -, sei que a National Gallery estará, mas só decidi vender os quadros uns dias atrás.

Depois de uma pausa, continuou:

- Estão na minha família há muitas gerações e encontram-se nesta casa há mais de duzentos e cinquenta anos. Crisa susteve a respiração.

Não era capaz de ouvir o pai falar como um vendedor.

Conhecia-o suficientemente bem para saber que detestava fazer aquilo.

Via-se forçado a isso, devido a circunstâncias de que ainda não tinha conseguido falar à filha.

Então, Crisa estremeceu, ao reparar que Mr. Vanderhault não tinha estado a olhar para os quadros, mas sim para ela.

- E o que pensa disto tudo, Miss Crisa? - perguntou ele.

- Gostaria de saber qual é a sua opinião.

- Eu adoro estes dois quadros - respondeu Crisa, em voz baixa - e parte- se-me o coração ao vê-los partir.

- Eu sabia que ia dizer isso.

Ele não disse nada, mas dirigiu-se, de um modo abrupto, à outra extremidade da sala.

Tinha pousado o copo que levava na mão quando Sir Robert o conduziu junto aos quadros.

Crisa viu o olhar furioso que o pai lhe lançou, pensando que, com as suas palavras, ela tinha afastado um possível comprador.

Então, deixando estupefactos tanto Crisa como seu pai, Mr. Vanderhault disse:

- Estava a pensar, Sir Robert, se seria muito incómodo para vocês eu passar cá a noite... é uma viagem cansativa, daqui até Londres.

E continuou, com uma voz que parecia suplicar:

- Gostaria muito de ficar hospedado numa casa inglesa autêntica, além de que teria, assim, a possibilidade de ver os vossos outros quadros.

Crisa ainda se lembrava da agitação que ele provocara. Era preciso arranjar acomodações, não só para Mr. Vanderhault mas também para o cocheiro.

Um homem que parecia um trintanário era, afinal, o secretário do americano.

- Viaja sempre comigo - explicou Mr. Vanderhault -, para onde quer que eu vá...

Nanny teve, pois, de arranjar um jantar para três pessoas, servido à mesa da sala.

Teve também de fazer jantar para Mr. Krissman, que comeu sozinho, e para o cocheiro, que, como era previsível, tinha mais fome do que qualquer dos outros.

Só foi possível que tudo estivesse pronto a horas graças à ajuda de Crisa e do velho Hodges, que trouxe os legumes da sua horta.

Mandaram o cocheiro comprar comida à aldeia, para preparar o que Sir Robert temia que fosse uma refeição um pouco pobre.

No entanto, Mr. Vanderhault pareceu muito satisfeito com o que puseram à sua frente. Apreciou, por certo, o excelente clarete, do qual já só havia algumas garrafas. Estavam guardadas para ocasiões muito especiais.

Enquanto comiam, falou sem cessar das suas propriedades na América.

Contou que possuía uma das grandes linhas de caminho de ferro que se estavam a construir no Oeste, e como tinha tido sorte por se ter descoberto petróleo nas suas terras do Texas.

De facto, mais ninguém conseguia falar a não ser Mr. Vanderhault, que parecia ter tanto para contar.

Crisa pensou como é que o pai tinha encontrado um americano como aquele, nos teatros e nos night clubs que frequentava quando estava em Londres.

Deu graças a Deus quando ouviu o pai sugerir que devia ir para a cama cedo.

- Mister Vanderhault e eu temos que falar de negócios, minha adorada - dissera ele. - Portanto, sugiro que vás deitar-te, e amanhã eu conto-te tudo.

Crisa calculou que ele quisesse negociar com Mr. Vanderhault o preço dos Van Dycks.

Não se sentiria à vontade se ela estivesse presente. Assim, Crisa deu um beijo de boas-noites a seu pai e estendeu a mão a Mr. Vanderhault, dizendo:

- Boa noite, Mister Vanderhault, espero que aprecie a sua visita à Inglaterra.

- É um dos assuntos que quero discutir com o seu pai - respondeu ele.

Para grande surpresa de Crisa, segurou a mão dela nas suas e continuou:

- É uma rapariga encantadora, um autêntico "doce", como se diz na minha terra. É uma pena que tenha de vender os tesouros que lhe pertencem, e que deviam ser postos a seus pés por homens apaixonados pela sua beleza.

Ela dirigiu-lhe um sorriso bonito e disse:

- Muito obrigada, por me dizer coisas tão agradáveis. Sentiu alguma dificuldade em soltar-se das mãos dele. Depois, olhando mais uma vez o pai, com amor, saiu da sala e subiu para o seu quarto.

Sabia de antemão que o pai viria dar-lhe as boas-noites. Por fim, ouviu- o subir, na companhia de Mr. Vanderhault. O americano entrou no quarto que era conhecido como "quarto da Rainha Anne", embora não houvesse a certeza de a rainha lá ter dormido alguma vez.

Depois, tal como esperava, ouviu o pai descer o corredor. Quando ele abriu a porta, ela sentou-se na cama. Ele veio para ao pé dela, que o achou com um ar muito sério, embora tão atraente como sempre fora.

Tal como fizera durante o jantar, pensou que o contraste entre os dois homens era quase ridículo.

Mister Vanderhault podia ser muito rico, mas o dinheiro não conseguia fazer nada pelo seu rosto enrugado.

O queixo em arco não assentava no colarinho engomado, que Crisa achou que era um número abaixo do que ele deveria usar.

O pai, esbelto e atlético, tinha um aspecto elegante. Apesar de o seu trajo de noite estar, como ela sabia bem de mais, muito gasto e a precisar de ser substituído há já muitos anos. Sentou-se na cama, ao lado dela.

Olhou-a como se nunca a tivesse visto antes.

- Ele... comprou... os Van Dyck, pai?... - murmurou Crisa. Ela já sabia qual era a resposta.

Mas ao mesmo tempo sabia que, para ter a certeza, tinha de o ouvir em voz alta, quase como se fosse a voz do destino.

- Fez-me uma proposta, Crisa, mas eu nem sei como hei-de contar-te.

A voz de Sir Robert revelava tanto sofrimento que Crisa colocou a sua mão nas dele.

- Lamento, pai - disse -, compreendo o que estás a sentir. Mas não podemos continuar assim, sem dinheiro. Temos de pagar o que devemos na aldeia, senão morreremos à fome.

- Eu sei - concordou Sir Robert, pesaroso -, mas Mister Vanderhault tem a resposta para essa situação.

- Só espero é que vendas muito bem os Van Dyck. O pai tomou fôlego e disse:

- Ele está disposto a pagar-me trinta mil libras, que, como sabes, seriam suficientes para pagar todas as nossas dívidas, e ainda uma quantia de três mil libras por ano até ao fim da minha vida!

Crisa olhou para o pai, completamente estupefacta. Pensou que talvez não tivesse ouvido bem.

- Trinta mil libras mais três mil por ano? - repetiu, sem acreditar no que dizia. - Tudo isso pelos Van Dyck?

- E... por ti - disse baixinho Sir Robert.

Durante uns segundos fez-se silêncio.

- O... o que é que disseste... pai? Eu... eu não... não compreendo.

- Mister Vanderhault quer casar contigo - respondeu Sir Robert. - Disse-me que, assim que te viu, soube que eras o que ele procura desde a morte da última mulher, há cinco anos.

Fechou os olhos e inspirou, depois, disse:

- Está disposto a oferecer-te um milhão de dólares no dia em que te casares com ele e deixar-te milionária doze vezes, quando morrer!

- Eu... eu não acredito! - disse Crisa. - Eu não acredito... que seja... possível!

E, antes que o pai dissesse alguma coisa, acrescentou:

- Claro que eu não posso casar com um... velho daqueles! Alguém que só conheço há umas horas! Como é que ele pôde pensar numa coisa tão... horrível... tão... impossível?

Ainda não tinha acabado de falar e já sabia, pela expressão no rosto de seu pai, que era o que ela teria mesmo de fazer.

- Não posso... não consigo... pai - disse.

Repetiu-o vezes sem fim, e continuaram a conversar até de madrugada.

Quando, finalmente, Sir Robert foi para o seu quarto, Crisa ficou com a certeza de que teria mesmo de casar com Mr. Vanderhault, não havia outra solução.

Envergonhado e com alguma relutância, o pai tinha-lhe falado das dívidas que contraíra em Londres e da sua conta a descoberto, no banco.

A situação atingira tais proporções que, se não fizesse alguma coisa, e depressa, havia toda a probabilidade de vir a ser preso.

- Se me matasse, os oficiais de diligências levariam tudo o que me pertence - disse -, incluindo esta casa e o seu recheio, e tu morrerias à fome. É-me impossível deixar-te alguma coisa.

Crisa não disse nada e ele continuou:

- Eu sentia-me desesperado, até que um dia um amigo do Clube me apresentou Mister Vanderhault, dizendo: "Penso que tens bons quadros, do género dos que Mister Vanderhault procura para levar para sua casa, na América. "

Já tinha pensado - continuou Sir Robert -, que teria de encontrar um comprador para os Van Dyck. Parecia uma intervenção do destino, aparecer-me um assim, sem grande esforço.

- E ele quer... mesmo... casar comigo? - perguntou Crisa, em voz baixa.

- Ele quer ter um filho antes de morrer - respondeu Sir Robert. - Tem quatro filhas, dos dois casamentos anteriores, mas nenhum filho.

Crisa sentiu-se estremecer.

Era muito inocente e não fazia ideia do que fosse o amor entre um homem e uma mulher.

Além disso, a ideia daquele velho americano a tocar-lhe dava-lhe vontade de fugir e esconder-se.

Foi um desejo que sentiu repetidamente, ao longo da semana seguinte.

Contudo, inevitavelmente, no final dessa semana ela era já a mulher de Silas P. Vanderhault e encontrava-se a caminho da América.

Desde o momento em que se dirigira ao altar da igreja da aldeia, pelo braço do seu pai, tudo deixara de parecer real.

O pequeno homem, com o seu rosto cheio de rugas, esperava-a nos degraus do altar.

Os dedos de Crisa estavam frios, quando ele lhe colocou a aliança de casamento.

Com a sua pronúncia nasalada, ele repetiu as palavras do padre, que a iam fazer sua mulher.

Tinha-se seguido um almoço muito íntimo na mansão.

Nanny tinha feito e decorado um bolo de casamento e Mr. Vanderhault trouxera o champanhe com que todos brindaram.

Depois, dirigiram-se à estação mais próxima, para apanhar um comboio para Liverpool.

Agora, aqui estavam, a bordo de um navio americano, que os levaria a Nova Iorque.

Só então Crisa reparou que não se tratava de um sonho, mas sim de um pesadelo:

O homem que estava sentado a seu lado, falando de si próprio e de tudo o que possuía, era o seu marido.

Para a ter pagara um preço superior- a tudo o que ela poderia alguma vez imaginar, mas, para Crisa, isso não compensava o facto de ser, agora, dele.

Os contratos assinados por Mr. Vanderhault, na presença do seu solicitador, vindo expressamente de Londres para o efeito, ali estavam, em cima da secretária.

A vida dela mudara, no momento em que passara a usar aquela aliança, mas a do seu pai também.

Ele era, agora, um homem rico e Crisa tinha a certeza de que, depois da sua partida, não iria permanecer na mansão.

Correria para Londres, na esperança de que as mulheres o ajudassem a esquecer.

Esquecer não só a morte da mulher, que amava, mas também o facto de ter vendido a filha, que tanto significava para ele.

Quando chegaram a Liverpool, apanharam um navio e fòram conduzidos a dois camarotes luxuosamente decorados com lírios e orquídeas.   

Crisa olhou em volta e sentiu-se encerrada numa prisão com grades de ouro.

Senti-las-ia sempre, a partir daquele momento, era quase como se as visse, realmente, a apertarem-se contra ela.

O seu marido continuava a falar.

Contava-lhe que tinha ordenado àquela companhia de navegação, da qual ele era, claro, um grande accionista, que os servisse o melhor possível, a si e a sua mulher.

Tinha sido Mr. Krissam a tratar de todos os pormenores - as flores e os grandes cestos de frutos exóticos que ela nunca iria comer.

Havia boiões de caviar e imensas garrafas de champanhe que eram retiradas mal as abriam.

Silas P. Vanderhault mostrava-se triunfante.

Convidou uma grande variedade de pessoas, assim que ficaram instalados.

- Venham beber à nossa saúde e desejar-nos felicidades... insistia.

O comandante, o comissário de bordo, os oficiais e os camareiros, todos aceitaram o champanhe, que beberam, deliciados.

Crisa sentiu que a olhavam com ar de curiosidade. Todos sabiam que ela se tinha vendido pelo dinheiro deste milionário.

Mas não se tratava apenas de dinheiro.

Quando veio de Londres para o casamento, ele já a tinha coberto de presentes.

Havia um enorme colar de diamantes, que Crisa achou vulgar e muito pesado para o seu pequeno pescoço.

Havia pulseiras de diamantes, grandes de mais para os seus pulsos delicados.

Deu-lhe um anel de noivado do tamanho de um florim e conjuntos de turquesas e diamantes em estojos de veludo.

Também havia um colar de pérolas, grandes e ostensivas. No entanto, ela agradeceu, educada, e ele respondeu, dando-lhe uma palmadinha no ombro:

- Nada é suficientemente bom para a mulher de Silas P. Vanderhault e garanto-te, meu doce, que, quando usares essas jóias em Nova Iorque, toda a gente vai morrer de inveja!

Crisa quase sentiu vontade de lhe perguntar se ele estava à espera que ela usasse todas ao mesmo tempo.

Mas sabia que era o género de piada a que ele não ia achar graça nenhuma. Já tinha percebido que ele não tinha qualquer sentido de humor, embora estivesse sempre a rir com as suas próprias piadas.

Cada vez chegavam mais pessoas para provar o champanhe. Quando se sentaram para jantar, nos seus aposentos, ainda lá estavam muitos convidados.

Os passageiros que ouviam que Mr. Vanderhault ia a bordo e estava a festejar o seu casamento corriam ao encontro dele, para o conhecer.

Os brindes sucederam-se até o navio partir, à meia-noite. Quando achou que, finalmente, podia ir deitar-se, Crisa deixou o marido a falar e a beber.

Saiu sem que ele desse por isso.

Via, com receio, que chegara o momento em que passaria a ser uma mulher casada.

Seria a esposa de um homem com quem mal tinha falado. Despiu- se, sentindo-se percorrida por um frémito gelado. Meteu-se dentro da grande cama de latão.

Ao fazê-lo, sentiu o cheiro estonteante dos lírios que decoravam o quarto.

A suite era forrada a mogno e tudo nela condizia. Havia armários embutidos, nos quais, segundo as instruções de Mr. Krissam, os camareiros já tinham arrumado tudo o que ela iria precisar durante a viagem.

Tinham levado, depois, as grandes arcas de couro, para que não atravancassem a cabina.

Sobre a cama, repousava a camisa de noite que Nanny a ajudara a escolher, em Huntingdon.

Era muito fina, enfeitada com rendas, e Crisa sentiu-se um pouco embaraçada com a sua imodéstia.

O pai tinha frisado bem a Mr. Vanderhault que, sendo o casamento contratado em tão pouco tempo, não seria possível tratar do enxoval.

Assim, uma quantidade de roupas que ela nunca imaginaria comprar nem possuir foram-lhe mandadas de Londres.

Crisa sabia que Mr. Krissam as tinha comprado numa das lojas mais caras e selectas de Bond Street.

Mas não se tinha dado ao trabalho de as experimentar durante os últimos dias que passara na mansão.

Preferia estar com o seu pai todo o tempo possível. Só assim conseguia não chorar, horrorizada com o que o futuro lhe guardava.

Como se o tivessem combinado previamente, falavam de tudo menos do casamento próximo.

Só quando pôs o seu vestido de noiva é que Crisa percebeu que não só iria sentir-se diferente como mulher de Silas P. Vanderhault mas também a sua aparência seria muito diferente.

O vestido era maravilhoso.

Nanny gabou-o muito e Crisa viu um brilho de admiração nos olhos do pai.

Mas ela própria nem se deu ao trabalho de se ver ao espelho. O mesmo se passou com o fato de viagem.

Tinha uma capa a condizer, para o caso de o tempo estar frio no alto mar, que era toda debruada com a mais fina e mais cara zibelina.

O chapéu vinha de um chapeleiro que ela conhecia das páginas de uma revista de moda feminina.

Nanny costumava pedir revistas emprestadas à mulher do vigário.

As luvas de Crisa eram de uma pelica tão fina que ela teve medo de as rasgar.

E, pela primeira vez na sua vida, usava meias de seda verdadeira.

Quando acabou de se despir e pôs a camisa de noite, sentiu o coração bater com pancadas fortes.

Era como um relógio a dar os minutos que lhe restavam de vida.

Por um momento, passou-lhe pela cabeça fugir e pensou no que aconteceria, se o fizesse.

Se subisse ao convés e se atirasse à água, alguém daria por isso?

Já deviam ir no alto mar e, escuro como estava, seria muito dificil salvá-la.

Mas Crisa tinha tanto medo do seu marido como de morrer. Especialmente se morresse de um modo que o seu pai ia considerar uma vergonha.

Tinham tanto a agradecer a Silas P. Vanderhault... Deitou a cabeça na almofada e fechou os olhos. Lembrou-se que, agora, o pai poderia encher os estábulos com animais fogosos e bem tratados, como sempre desejara.

A casa ia poder ser arranjada, os tapetes gastos e as cortinas esfarrapadas substituídas.

Antes da partida de Crisa, Nanny já tinha contratado três criadas para trabalhar na mansão.

Duas raparigas da aldeia viriam ajudá-la na cozinha. "O pai será bem tratado, pensou Crisa.

Mas ela sabia que ele não suportaria a solidão. Estaria mais vezes em Londres do que em Hunting donshire.

Então, ouviu um ruído do lado de fora da porta do quarto e estremeceu de medo.

Chegara o momento de o seu marido ir ter com ela. Calculava que ele quisesse fazer amor, embora não soubesse muito bem o que isso significava.

Enquanto esperava, tremia, e de repente lembrou-se que ele nunca lhe tinha beijado os lábios.

Mas, também, não tinha havido tempo.

Quando ele a cumprimentou, à frente do seu pai, tinha-lhe dado um simples beijo na face.

Mesmo assim, ela percebeu que a boca dele era fria e os seus lábios velhos e ressequidos.

"Eu não suporto... não posso! gritou Crisa para consigo própria.

A porta abriu-se e Crisa susteve a respiração, abafando um pequeno grito.

Mas não era a silhueta do marido que se recortava contra a claridade que vinha da sua suite.

Era Mr. Krissam.

Ela fitou-o, boquiaberta, e ele disse:

- Lamento ter de lho dizer, Mistress Vanderhault, mas aconteceu uma coisa horrível!

- Que foi?... - perguntou Crisa, num sussurro.

- Mister Vanderhault teve um colapso. Só espero que não seja nada de grave, mas pu-lo na cama e o médico está com ele.

Houve um silêncio e, por fim, Crisa conseguiu dizer:

- Devo ir... vê-lo?

- Não vale a pena, Mistress Vanderhault, pois ele está inconsciente e não daria pela sua presença. Será melhor que fique aqui.

- Muito bem - disse Crisa, com dificuldade -, mas... peço-lhe que me avise imediatamente... se eu for... precisa.

- Sim, com certeza, Mistress Vanderhault, espero que consiga dormir e que tudo tenha passado amanhã de manhã.

Mister Krissam saiu e Crisa deitou-se e fechou os olhos. Mal podia acreditar que aquilo fosse verdade, estava sozinha - sozinha na sua noite de núpcias!

Sozinha e, pelo menos por agora, livre do que mais temia, com todos os nervos do seu corpo.

 

         CAPÍTULO SEGUNDO

Foi Mr. Krissam quem tratou de tudo.

Arranjou uma pessoa para estar sempre à cabeceira de Mr. Vanderhault, que jazia, inconsciente, no seu camarote.

O médico informou Crisa de que o marido sofrera um ataque cardíaco muito grave.

Entretanto, ela ia lendo as revistas que Mr. Krissam trouxera de Londres, e livros que requisitava na biblioteca do navio.

Duas vezes por dia dava um passeio pelo convés, pois achava que era isso que devia fazer.

Era demasiado tímida para falar fosse com quem fosse. Tímida de mais para fazer conversa com todos os que lhe dirigiam um "bom dia" ou "boa tarde".

Não tinha, portanto, nenhum contacto com o mundo exterior. Quando chegaram a Nova Iorque, Crisa sentiu-se apavorada com a sua entrada na sociedade americana, de que não conhecia nada nem ninguém.

Como era de esperar, foi Mr. Krissam quem lhe mostrou a enorme casa e a apresentou aos familiares do seu marido, que ansiavam por a conhecer.

Demorou algum tempo a perceber quem era quem. A pessoa mais em evidência era uma senhora chamada Matilda.

Era a irmã mais velha do seu marido e anunciou que ia mudar-se lá para casa, a fim de lhe fazer companhia.

- Quero mostrar-lhe os meandros desta casa - disse, com firmeza.

O que queria dizer, como Crisa iria perceber em breve, que ela se encarregaria de tudo.

Crisa não passava duma hóspede, em casa do seu próprio marido.

Havia muitos mais familiares, incluindo as quatro filhas de Silas P. Vanderhault, todas casadas e com filhos.

Uma outra irmã, Anna, era mais nova do que Matilda, mas pareceu-lhe muito velha e autoritária.

Desde logo Crisa percebeu com clareza que se esperava que tudo corresse exactamente como corria antes da sua chegada.

Nada poderia ser alterado sem o consentimento do seu marido. Como ele não se encontrava em condições de o dar, era óbvio que Crisa não ia ter voz em nenhuma matéria.

Todas as noites, quando se retirava para o seu quarto enorme, exageradamente mobilado e exageradamente enfeitado, Crisa chorava.

Tinha saudades de casa e sentia-se só.

Sentia um desejo enorme, que lhe ardia como se fosse uma dor física, de estar com o seu pai.

Escrevia-lhe todos os dias, contando-lhe em pormenor o que ia acontecendo.

Nunca lhe pedia para vir ter com ela pois sabia que, mesmo que ele viesse, não poderia fazer nada.

Crisa tinha a certeza de que ele odiaria a casa, grande e enorme, e os autoritários Vanderhaults.

O que só iria piorar as coisas.

Em sua casa ela tinha toda a liberdade e estava habituada a tomar as suas decisões, pelo menos naquilo que lhe dizia respeito.

Tinha de reprimir os protestos que lhe vinham aos lábios, cada vez que lhe ordenavam para fazer isto ou aquilo.

Levavam-na a conhecer pessoas, a ver as vistas, a fazer compras, quer ela quisesse ou não.

Percebeu facilmente que tanto Matilda como Anna não tinham gostado das anteriores mulheres do irmão.

Quanto aos seus sentimentos em relação a Crisa, eram os mesmos.

Não lhe perdoavam o facto de ser inglesa.

E jovem.

E mil vezes mais bela do que qualquer uma delas ou qualquer outro membro da família Vanderhault.

Como é que eu posso continuar a viver assim? interrogou-se Crisa um milhão de vezes.

Nunca encontrava uma resposta para essa pergunta. Foi então que, oito meses depois de se ter instalado em Nova Iorque, soube que o pai morrera num acidente, quando passeava a cavalo.

Não queria acreditar que fosse verdade, e que nunca mais o poderia ver.

Lamentou, desesperada, não ter sido suficientemente corajosa para recusar o casamento com Silas Vanderhault e ficar junto do pai até ao fim.

Um dos cavalos novos, de que ele lhe falava com tanta alegria, nas cartas, tinha-o deitado ao chão, inesperadamente.

Saltavam por cima de um muro de tijolo, quando Sir Robert caíra, partindo o pescoço.

Pelas cartas do pai, Crisa sabia que ele tinha usado parte do dinheiro para fazer obras na casa e mobilar os quartos.

Sabia, também, que continuava a ir a Londres à procura de divertimentos.

Quando receberam a notícia da morte de Sir Robert, os Vanderhaults mostraram alguma simpatia por Crisa.

Mas, quando ela falou em regressar a Inglaterra, tornaram esse regresso impossível.

Fizeram-na ver que, de qualquer modo, não chegaria a tempo de assistir ao funeral.

Salientaram que o seu lugar era ao lado do marido, embora não conseguisse comunicar com ele de nenhum modo.

Mister Krissam encarregara-se de tudo, como é evidente, com uma eficiência absoluta e irrepreensível.

Havia vários turnos de enfermeiras, de modo que Mr. Vanderhault nunca estava sozinho.

Diariamente vinham médicos, que saíam dizendo não haver nada a fazer.

Era óbvio que levavam muito dinheiro por essas visitas. Os aposentos do dono da casa, como o resto da mansão, estavam sempre cheios de exóticas flores de estufa.

Sempre que visitava o marido, Crisa chegava à conclusão que não podia fazer nada por ele, assim como não havia nada que ele pudesse fazer por ela.

Por esta altura, Crisa era já dona de um enorme guarda-roupa, constituído por vestidos que comprava por não ter mais nada com que se entreter.

Além disso, as mulheres da família Vanderhault gostavam de ir com ela às compras.

Mas como eram todos fatos coloridos, foram postos de lado. Para os substituir, Crisa comprou um guarda-roupa completo, todo preto, mais por achar que tinha de o fazer, pois sabia que o seu pai nunca aprovaria uma coisa dessas.

- Se há coisa de que não gosto - dissera repetidas vezes -, é ver mulheres vestidas como corvos. Além disso, meu amor, com a tua pele tão branca e o teu cabelo louro, o preto dá-te um aspecto muito trágico.

Tinha-lhe dirigido estas palavras após a morte da sua mãe. Assim, como não era preciso andar de luto em casa, um mês depois Crisa deixou os seus vestidos pretos.

Vestia sempre o seu fato de montar, que era de um cinzento indefinido.

Era suficientemente discreto para que os vizinhos, se a vissem, não ficassem escandalizados.

No entanto, ali em Nova Iorque, os Vanderhaults insistiram para que comprasse vestidos de dia pretos, debruados a crepe.

Os seus vestidos de noite eram de renda preta com enfeites de azeviche.

Crisa achava mais fácil concordar do que discordar, portanto fazia o que lhe recomendavam.

Sentia-se tão desesperadamente infeliz com a morte do pai, que a sua aparência lhe era completamente indiferente.

Então, um mês depois da morte de Sir Robert, Silas morreu durante o sono.

Nunca chegara a recuperar a consciência, fora sempre para Crisa uma figura impessoal.

Por isso, ela achou que o pranto e o luto da família eram completamente deslocados.

Sentiu alguma tensão, escondida sob o comportamento teatral da multidão de parentes que visitaram a casa a seguir ao funeral.

Pensou que se tratava de ansiedade e alguma desconfiança em relação à sua pessoa.

Levou algum tempo a perceber o que se passava, pois ninguém lhe falava de nada.

Compreendeu, então, que todos estavam muito apreensivos em relação ao testamento de Silas.

Depois de um pomposo funeral, acompanhado por todas as pessoas importantes de Nova Iorque, em que o cortejo de carruagens se estendia por mais de um quilómetro, Crisa pensou que tinha chegado o dia do juízo.

Mas o dia em que todos ficariam a saber como Silas distribuíra o seu dinheiro teve de ser adiado.

Ela lembrava-se vagamente de que ele tinha feito um testamento novo na altura do casamento.

O que ficou confirmado, quando Matilda lhe comunicou, asperamente, que o testamento não poderia ser lido logo após o funeral.

Esperavam o solicitador dela, que devia vir de Londres.

- Mas porque temos de esperar por ele? - perguntou Crisa. Matilda soltou uma gargalhada cheia de hostilidade e respondeu:

- Como se não soubesse já!

- Soubesse o quê?

- Que o meu irmão fez algumas disposições a seu favor, quando combinou esse casamento apressado, e os documentos têm de vir para Nova Iorque.

- Não fazia ideia de que iam ser precisos aqui - disse Crisa com simplicidade -, mas lembro-me, realmente, de ele, o meu pai e o solicitador terem assinado uns documentos quando voltámos da igreja.

Pela expressão de Matilda, percebeu o que ela estava a pensar, o que era, aliás, bastante compreensível.

Pensava que uma rapariga inglesa casara com o irmão só pelo dinheiro.

Tinha-lhe extorquido o máximo de dinheiro possível. Crisa pensou que isso era um pouco verdade, mas não tivera outra hipótese.

Não podia dizer, sem mentir, que tinha alguma vez amado o seu marido.

Recordava-se perfeitamente de ter suplicado a seu pai que não a fizesse casar com aquele velho.

Lembrava-se do alívio que sentira, no barco, ao perceber que ele não seria capaz de a tornar sua mulher.

Não lhe tinha dado, como ele esperara, um herdeiro para os seus muitos milhões.

"Para que serve o dinheiro, agora que o Papá morreu? costumava pensar, inconsolável, quando se encontrava sozinha no seu quarto.

Recebera, já, uma carta de Mr. Smithson, o solicitador de seu pai, dizendo-lhe que Sir Robert lhe deixara tudo o que possuía, incluindo a mansão.

Mister Smithson também lhe tinha aberto uma conta pessoal, no banco onde Sir Robert fora cliente. Tratava-se de uma quantia bastante considerável.

Estava à sua disposição, para quando ela precisasse. "Se ao menos eu pudesse ir para casa, pensou Crisa. Na sua opinião, agora que Silas morrera, nada poderia impedi-la.

Contudo, era óbvio que não queria dar essa notícia imediatamente após a morte do marido.

Passados oito dias, Matilda anunciou-lhe a chegada do solicitador.

Estava combinada uma reunião na biblioteca, durante a qual ele leria o testamento de Silas P. Vanderhault.

- Então - disse Matilda com uma voz áspera -, vamos todos ficar a saber com o que podemos contar...

Crisa sentiu vontade de dizer que, no que lhe dizia respeito, não queria aquele dinheiro para nada.

Só queria um bilhete de regresso para Inglaterra, onde seria bem capaz de tomar conta de si própria.

Lembrou-se, então, de como sofrera com a situação financeira de seu pai.

Agora, que morrera, já não receberia as três mil libras anuais que Silas lhe tinha prometido.

De modo que Crisa achou que seria mais sensato aceitar algum dinheiro.

O suficiente para impedir que a mansão voltasse a ficar quase em ruínas.

O suficiente para garantir que ela nunca chegaria a estar tão endividada como seu pai estivera, a ponto de se ver, se é que era verdade, ameaçado de prisão.

De uma coisa estava certa, os Vanderhaults podiam ficar com a casa para eles.

Ela odiava aquela colecção desconcertante do que Silas costumava chamar os meus tesouros.

Amontoados, apertados uns contra os outros, faziam-na sentir-se como se tivesse comido demasiado pâté de foie gras.

Sentia uma espécie de indigestão mental, cada vez que olhava todas aquelas obras-primas, comprimidas como sardinha em lata, nas salas excessivamente mobiladas, com os seus cortinados de veludo.

Crisa dirigiu-se à biblioteca, trajando um dos vestidos pretos que a filha mais velha de Silas a ajudara a escolher.

Sabendo como iam todos ficar contra ela, só esperava que Silas não lhe tivesse deixado uma grande fortuna.

Lembrava-se de o seu pai lhe ter dito que Silas prometera deixar-lhe determinada quantia, quando morresse.

Mas, preocupada como estava, na altura, com a ideia de ter de viver com ele, não prestara atenção, mesmo sabendo que ele já era um velho.

Tal como esperava, a sala estava cheia de Vanderhaults. Ao entrar, sentiu que todos a olhavam com hostilidade, o que a fez sentir-se muito pouco à vontade.

Apenas o filho de Anna, um jovem de vinte e dois anos chamado Dale, se levantou para a cumprimentar.

Crisa calculou que a mãe dele lhe recomendara que a conduzisse através da sala.

Sentado a uma mesa, de frente para a multidão de Vanderhaults, estava o solicitador londrino de Mr. Vanderhault.

Além dele, mais três sócios da firma que o representava em Nova Iorque.

Os quatro homens levantaram-se, à chegada de Crisa, e Dale encarregou-se das apresentações.

Depois de lhes ter apertado as mãos, Crisa sentou-se na cadeira que lhe era destinada.

Achou tudo aquilo um pouco estranho, mas não estava disposta a fazer quaisquer comentários.

No entanto, sentia-se um pouco embaraçada por estar de frente para todos os parentes de seu marido.

Assim que se sentou todos tentaram desviar o olhar. Como se temessem parecer demasiado avarentos. À sua frente, tinham colocado um lápis e um pequeno bloco de apontamentos, como se fosse suposto ela escrever algumas notas.

Em vez disso, quando o solicitador começou a falar, pôs-se a rabiscar no papel.

Desse modo, tinha uma desculpa para baixar a cabeça. Não suportava ver a avidez com que os familiares do seu marido ouviam cada palavra.

- Lamento profundamente - dizia ele, na sua voz firme, muito inglesa -, não me ter sido possível comparecer ao funeral do meu tão respeitável cliente, Mister Silas P. Vanderhault, bem como lamento o seu desaparecimento prematuro.

Aclarou a garganta e continuou:

- A última vez que o vi, em que parecia tão feliz e tão saudável, foi por ocasião do seu casamento com Miss Crisa Roydon.

Quando pronunciou o nome dela, todos olharam para Crisa. Tendo adivinhado que iam fazê-lo, Crisa baixara ainda mais a cabeça.

Continuava a fingir que estava a tomar apontamentos.

- Passo agora a ler a última vontade e testamento de Mister Silas P. Vanderhault - continuou o solicitador -, o qual foi assinado por ele no dia do seu casamento, aos oito de Julho de mil oitocentos e noventa e cinco.

Começou então a ler, com voz monótona e inexpressiva:

- Eu, Silas P. Vanderhault, encontrando-me em pleno juízo, venho por este meio declarar que esta é a minha última vontade e testamento.

A voz do solicitador ecoava pela sala.

Crisa recordava que, enquanto Silas estivera a redigir este testamento, ela tinha ido para o seu quarto, tirar o vestido de casamento e vestir o conjunto de viagem.

Nanny estava à sua espera e, quando a viu entrar, exclamou:

- Fez uma linda noiva!

Foi nesse momento que Crisa se descontrolou e esqueceu de toda a compostura que se tinha obrigado a aparentar, durante a cerimónia e o almoço.

Começou a chorar e, tapando os olhos com as mãos, disse:

- Não sou capaz, Nanny... não sou capaz! Quem me dera morrer... deitar-me ao mar... qualquer coisa... tudo menos... ir-me embora com ele.

Nanny abraçou-a e disse baixinho:

- Não há nada a fazer, meu amorzinho, sabe-o bem. Dispôs-se a salvar o seu pai, agora não o pode desiludir. A estas palavras, Crisa enxugou as lágrimas.

- Ele é horrível... Nanny... e tão velho... - murmurou.

- Eu sei, eu sei - respondeu Nanny. - Mas é o seu casamento com ele que vai tirar o seu pai da miséria. Vai poder continuar a viver aqui e as pessoas que vos amam e que confiam em vós não vão precisar de ir pedir esmola pelas ruas.

Crisa inspirou profundamente.

Sabia que tudo o que Nanny dizia era verdade. Tinha, pois, de cumprir a sua parte do contrato, por mais dolorosa que fosse.

Muito pálida, desceu as escadas e verificou que os papéis já tinham sido assinados.

O solicitador, o seu pai e o seu marido bebiam mais uma taça de champanhe.

Ainda se lembrava do olhar que Silas Vanderhault lhe dirigira, ao vê-la entrar na sala.

Erguera o seu copo e dissera- lhe:

- Minha esposa! Minha lindíssima esposa! Deus a abençoe! Bebeu o champanhe enquanto falava.

Instintivamente, Crisa tinha corrido para perto do pai e segurara-lhe a mão, como a pedir que a protegesse.

Como se sentiu segura quando os seus dedos apertaram os dela!

Ouviu então a voz do solicitador, distante, como se falasse através do nevoeiro:

deixo tudo o que possuo, prédios, terras e dinheiro a minha esposa, de seu nome de solteira Miss Crisa Royden, e, por morte desta, a seu filho, se o tivermos, ou, não havendo filho, qualquer criança que nasça desta união. Se não houver nenhuma, o dinheiro deverá ser repartido pelas obras de caridade a seguir mencionadas.

Todos ficaram em silêncio, estupefactos.

Em seguida, toda a sala pareceu vibrar com qualquer coisa semelhante a um grunhido de fúria.

O grunhido foi aumentando até se transformar em protestos indignados.

Por um instante, Crisa não foi capaz de compreender o que ouvia nem as dimensões de tudo aquilo.

Enquanto os Vanderhaults gritavam com os solicitadores, discutiam uns com os outros e exigiam que se contestasse o testamento, o seu orgulho fê-la levantar-se e sair.

Saiu sem dirigir palavra a ninguém.

Subiu as escadas a correr e entrou na sala de estar especial que Matilda lhe tinha destinado desde o dia da sua chegada.

Era lá que escrevia as suas cartas e que recebia algumas visitas, quando não lhe apetecia estar na sala, enorme e esmagadora.

Fechou a porta e sentou-se numa cadeira perto da janela.

Tentava decidir o que haveria de fazer e descobrir como iria participar àquela multidão furiosa que, por ela, podiam ficar com o dinheiro todo.

Tinha decidido conservar apenas uma quantia razoável. Não queria voltar a ver-se na situação de grande necessidade em que estava quando casara com Silas Vanderhault.

Foi então que um criado bateu à porta para lhe perguntar se poderia receber Mr. Metcalfe, o solicitador inglês, que desejava falar com ela.

Ela disse que estava bem.

Minutos depois ele apareceu, acompanhado do sócio principal da empresa americana de Silas.

- Lamento muito tudo isto, Mistress Vanderhault - disse Mr. Metcalfe -, e espero não vir importuná-la, mas trouxe comigo Mister Alfred Dougall, que, como sabe, representa o seu falecido marido em Nova Iorque.

Crisa convidou-os a sentarem-se e, antes que dissessem alguma coisa, disse:

- Eu não quero possuir todo aquele dinheiro e gostaria que tratassem da melhor maneira de ele ser distribuído pelos familiares do meu marido, pois basta-me ficar com o suficiente para as minhas necessidades, que não são muitas.

Fez-se um silêncio total.

Então, Mr. Metcalfe declarou:

- Lamento muito, Mistress Vanderhault, mas isso é impossível, embora eu aprecie a sua generosidade e a sua gentileza.

- Mas é impossível porquê?

- Porque - disse Mr. Dougall, com uma pronúncia que contrastava vivamente com a de Mr. Metcalfe - o seu marido nomeou, com a maior oportunidade, uma série de administradores para gerirem um fundo.

Depois de uma pausa, continuou:

- Esse fundo destina-se a garantir que o dinheiro não será mal gasto ou, como ele próprio disse, "indiscriminadamente dado às pessoas que, tenho a certeza, irão assediar a minha mulher com pedidos de dinheiro.

- Ele... disse isso? - perguntou Crisa.

- O seu marido, Mistress Vanderhault, tinha bem presen te a vossa diferença de idades e, apesar de querer deixá-la ri ca, por morte dele, conhecia muito bem as consequências da riqueza.

Olhou de relance para Mr. Metcalfe e continuou:

- Creio que, além disso, ele sabia como a família iria reagir quando se soubesse excluída do testamento.

- Mas é precisamente isso que eu não compreendo - objectou Crisa -, porque é que ele fez uma coisa dessas? Porque não lhes deixou, pelo menos, metade da sua fortuna?

- Porque já lhes tinha dado bastante... - explicou Mr. Dougall. - Ele já tinha percebido, há muito tempo, como eles são gananciosos e avarentos, sempre a pedir que lhe desse mais.

Sorriu e disse:

- Penso que compreenderá, Mistress Vanderhault, que uma vez que Mister Vanderhault enriqueceu à custa do próprio suor, sendo, como era, de origem muito humilde, acreditava que as pessoas deviam trabalhar para o seu sustento em vez de viverem como parasitas, à custa de alguém que tinha sido mais bem sucedido do que eles.

- Isso é verdade - disse Mr. Metcalfe. - Mister Vander hault disse praticamente o mesmo, quando eu estava a redigir, o testamento.

Sorriu para Crisa e continuou:

- Para o caso de estar preocupada com os seus familiares Mistress Vanderhault, posso garantir-lhe que todos eles são extremamente ricos, mesmo pelos padrões americanos.

Olhou para os documentos e prosseguiu:

- O seu marido tratou de arranjar para todos lugares muito bem remunerados, nas suas empresas, assim eles os queiram aceitar, tanto os seus genros como os filhos destes.

Crisa sentiu-se mais tranquila.

Mas parecia-lhe que ainda estava a ouvir os protestos indignados dos Vanderhaults, ao ouvirem ler o testamento.

Sabia que não lho iam perdoar nunca.

- O melhor que tem a fazer, Mistress Vanderhault - disse Mr. Metcalfe, num tom suave -, é deixar tudo nas mãos de Mister Dougall.

Fez uma pausa e acrescentou:

- Ele e os seus colaboradores dedicam todo o seu tempo aos negócios do seu marido e posso garantir-lhe que tudo continuará a processar-se como quando ele era vivo.

- E pode ter a certeza - cortou Mr. Dougall - de que a sua fortuna se multiplicará, ano após ano.

"Tenho de regressar a casa" pensou Crisa, depois de eles terem partido. "Não quero continuar aqui, a ser odiada por todos, e terei muito com que me ocupar na mansão. "

Pensou como seria bom voltar para o lado de Nanny. "Ainda por cima", pensou, "agora tenho dinheiro para desenvolver a herdade e dar trabalho a todos os que precisam".

Deteve-se, e murmurou de si para consigo: "Agora que tenho dinheiro, talvez possa receber mais, fazer novos amigos... "

Foi uma ideia animadora que a acompanhou até se deitar, nessa noite inesquecível.

Mas logo uma semana depois verificou que isso não passava de um sonho. Um sonho que não poderia realizar-se.

Na manhã seguinte à da leitura do testamento, Crisa desceu as escadas esperando ser recebida por olhares furibundos e, mesmo, provocadores.

Mas, em vez disso, esperavam-na sorrisos e cumprimentos. Sentiu à sua volta uma afabilidade que nunca sentira desde que chegara à América.

A casa estava sempre cheia.

Não só com os Vanderhaults que já conhecia mas, ainda, com primos afastados e outros parentes de todas as idades.

Tinham vindo para o funeral e não pareciam interessados em voltar.

Crisa levou algum tempo a perceber que o seu dinheiro a transformara numa pessoa poderosa e importante.

Para uns, ela representava a abundância de tudo o que eles queriam de bom.

Havia sempre alguém disposto a pedir-lhe que ajudasse as suas instituições de caridade preferidas ou a igreja da sua escolha.

Ou então falavam-lhe do aniversário que se realizaria daí a dois dias.

Informavam-na de quem deveria receber um presente nas suas bodas de prata.

Ou de que tal criança recebera um prémio na escola, devendo ter como recompensa o dinheiro suficiente para que se celebrasse devidamente uma ocasião tão auspiciosa.

Faziam-lhe infindáveis pedidos.

A princípio, Crisa fazia exactamente o que lhe pediam. Mas acabou por pedir a Mr. Dougall que destinasse uma verba que achasse adequada para dedicar às várias obras de caridade e para financiar novos empreendimentos.

Pediu-lhe, também, que comprasse automóveis a motor, o último grito da moda entre a juventude de Nova Iorque, para todos os netos de seu marido.

- Sei que, assim que retirar o luto, pensa dar um grande baile em honra de Sadie, que faz dezassete anos no ano que vem - disse-lhe a filha mais velha do seu marido. - Temos de fazer tudo para que seja o baile mais fantástico e exótico que alguma vez se realizou em Nova Iorque!

E começou a descrever como o tinha imaginado, enquanto as palavras ano que vem pareciam gravar-se na mente de Crisa.

Não suportaria ficar ali tanto tempo!

Viver naquele enorme casarão onde não tinha nenhuma autoridade e se sentia oprimida por todos os Vanderhaults.

Nessa noite, deitada na sua cama, pensou seriamente em tudo aquilo.

A morte do seu pai deixara-a demasiado infeliz, e a do seu marido demasiado confusa para compreender exactamente o que lhe tinha acontecido.

Só agora se dava conta de que era uma prisioneira. Uma prisioneira numa gaiola dourada, cujas grades a mantinham cativa e das quais era impossível fugir.

Dissera a Matilda:

- Gostaria de regressar a Inglaterra, para visitar o túmulo do meu pai.

A mulher soltara um grito de horror.

- Como pode pensar numa coisa dessas, quando há tanto para fazer aqui? Assim que possa aliviar um pouco o luto, tem milhares de obrigações a cumprir, como viúva de Silas.

Desenrolara, então, uma lista de comissões, às quais Crisa deveria presidir.

E outra lista, ainda maior, das obras de caridade com que teria de colaborar.

Havia, também, grande quantidade de festas familiares em que deveria ter um papel importante.

Crisa ficou boquiaberta.

Não apenas por verificar que esperavam tanto dela mas também por perceber que Matilda tinha congeminado tudo aquilo.

Tinha deixado bem claro que era impossível, para Crisa, escapar ao cumprimento de todos aqueles deveres.

Tenho de fugir, disse Crisa para consigo.

Mas, embora parecesse ridículo, sabia que encontraria os maiores obstáculos ao tentar fazer qualquer coisa que lhe apetecesse.

Ao ponto de usarem, se tal fosse necessário, a força fisica para a impedir de abandonar Nova Iorque.

Ou, pelo menos, para a manterem naquilo que Crisa considerava ser território Vanderhault.

Um dos primos tinha propriedades na Califórnia. Sugeriram-lhe que o visitasse, acompanhada, claro, por, pelo menos, meia dúzia de Vanderhaults.

Garantiram-lhe que havia um rancho no Texas que acharia muito interessante.

Até lhe sugeriram que fizesse um passeio às montanhas Rochosas, que os Vanderhaults mais novos achariam muito divertido.

Poderiam viajar no comboio privativo de Silas e no seu próprio caminho de ferro.

Viajariam até à propriedade extremamente valiosa que ele adquirira em São Francisco.

Crisa sentiu que o programa da sua vida era desdobrado à sua frente, como se fosse um mapa.

Pensou que nunca teria possibilidade de fugir. Se não era Matilda ou Anna a tentar controlar a sua vida, eram as filhas de Silas, ou os maridos destas.

Também eles viviam à custa do dinheiro dele.

Quando olhavam para Crisa, tinham um brilho especial no olhar.

Brilho que a informava de que eles fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para evitar que ela escapasse àquela estranha congregação.

Sentiu-se percorrida por uma sensação de pânico. Teve vontade de gritar, de fugir daquela casa e nunca mais voltar.

Num momento de quase loucura, chegou a pensar em ir pedir protecção à polícia.

Mas pensou que teria de resolver o assunto com inteligência. Uma vez que conseguisse chegar a Inglaterra, organizaria a sua vida como melhor entendesse e pediria aos amigos do seu pai que a ajudassem.

Por estranho que pudesse parecer, embora tivesse vivido sempre no campo, Crisa tinha recebido uma esmerada educação.

A sua mãe insistira em que ela desenvolvesse a sua inteligência.

Além disso, recebera um nome grego, pois, como sua mãe lhe tinha explicado:

- Foram os Gregos que ensinaram o mundo civilizado a pensar, e isso é uma coisa que não devemos esquecer.

Quando era ainda muito pequena, explicaram-lhe porque tinha um nome tão estranho.

- Quando fui à Grécia com o teu pai - dissera sua mãe -, fomos, de barco, a Crisa, local onde Apolo brotou das águas, pela primeira vez, disfarçado de estrela, ao meio-dia.

A mãe fizera uma pausa e continuara:

- Chegados a Crisa, o teu pai contou-me essa história, enquanto olhávamos os Penhascos Brilhantes, em Delfos. Nesse momento, senti o meu bebé, que eras tu, minha querida, mexer-se dentro de mim.

Abraçou Crisa.

- Soube, então, que serias uma pessoa muito especial, imbuída do espírito da Grécia, e que te daria o nome de Crisa.

Crisa parecia que estava a ouvir a mãe contar-lhe aquilo, com a sua voz suave e musical.

À medida que foi crescendo, a mãe foi-lhe falando da Grécia e das características dos gregos da Antiguidade.

Falava especialmente da luz que não só enriquecia a própria Grécia como iluminava todos os que eram distinguidos pela Luz Sagrada dos deuses.

- É essa luz - dissera a sua mãe - que tens de procurar e seguir durante toda a tua vida e que, assim espero, encontrarás, na companhia do homem que vieres a amar e com quem te casarás.

E prosseguiu, num tom muito comovedor:

- Não te esqueças, ela estará sempre presente, pronta a ajudar-nos e, sempre que estivermos em dificuldades ou em perigo, poderemos recorrer a ela, que nunca nos faltará. Sentada, agora, perto da janela da sua sala de estar, Crisa parecia ouvir as palavras da sua mãe.

Ela trazia-lhe a Luz Sagrada, para lhe mostrar o que havia de fazer, como poderia fugir.

Lembrou-se de que, para regressar a Inglaterra, a primeira coisa de que iria precisar era do seu passaporte.

Mas estava averbado ao do marido.

Sendo assim, teria de o conseguir das mãos de Mr. Krissam. Calculou que ele se sentiria obrigado a informar toda a família sobre as suas intenções de partir.

Mas teve uma ideia e chamou um criado, a quem disse para informar Mr. Krissam de que precisava de falar com ele.

Apareceu imediatamente.

Quando Mr. Krissam se aproximou, Crisa pensou se seria capaz de ser franca com ele.

Deveria contar-lhe o que tencionava fazer?

Reparou nos seus lábios finos, no seu rosto anguloso e nos seus olhos, escuros e vivos.

Certamente que seria para ele mais vantajoso, como era para os Vanderhaults, que ela permanecesse em Nova Iorque, sob a sua própria vigilância.

Portanto, foi com um sorriso um pouco forçado que disse:

- Boa tarde, Mister Krissam. Há muito tempo que não falamos um com o outro.

- Espero que esteja melhor, Mistress Vanderhault - respondeu Mr. Krissam. - Calculo que estas últimas semanas tenham sido muito dificeis.

- Sem dúvida alguma - disse Crisa -, e agora preciso da sua ajuda.

- Como sabe, estou à sua inteira disposição - disse Mr. Krissam.

- Penso que não vai achar dificil - respondeu Crisa. - Recebi carta de uma amiga inglesa que trabalha aqui, como secretária de um escritor.

Fez uma pausa, sorriu e continuou:

- Ela tem viajado muito e parece que perdeu o seu passaporte inglês.

Mister Krissam ouvia atentamente.

- Participou o desaparecimento às autoridades, mas o passaporte ainda não apareceu.

Esperou um instante e disse:

- Tenho a certeza, Mister Krissam, de que, para ajudar a minha amiga, vai conseguir arranjar-lhe um novo, junto da embaixada inglesa.

Ele não lhe pareceu muito interessado e Crisa continuou:

- Ela receia não ter tempo para tratar do assunto, quando o seu patrão regressar a Nova Iorque, e seria muito desagradável se não pudesse acompanhá-lo na sua próxima viagem de barco, como ele espera.

- Com certeza, Mistress Vanderhault - disse Mr. Krissam. - Compreendo perfeitamente, e tenho a certeza de que não haverá qualquer problema.

Esperou um instante e, olhando para Crisa, continuou:

- Através de Mister Vanderhault conheço muito bem o embaixador inglês e já falei muitas vezes com ele, em seu nome.

- Isso é maravilhoso! - exclamou Crisa. - Seria muito amável se tratasse de tudo e eu vou já escrever à minha amiga, dizendo-lhe que não precisa de se preocupar.

Mister Krissam tirou um bloco de notas do bolso e disse:

- Agora, se fosse possível, gostaria que me desse algumas informações, que vão, evidentemente, ser necessárias. Q, ual o nome da sua amiga?

Crisa respirou fundo.

- O nome dela é - disse -... Cristina Wayne.

- E a idade?

Crisa hesitou um pouco e respondeu:

- Tem vinte e três anos.

- E disse que era secretária?

- Exactamente.

Mister Krissam pensou um pouco e disse:

- Como diz que ela viaja muito, penso que o melhor, se me permite, será dar esta morada como sua residência em Nova Iorque, mas claro que podem pedir uma morada em Inglaterra.

- The Vicarage, Little Royden, Huntingdonshire - disse Crisa.

Mister Krissam voltou a pôr o seu bloco no bolso e, depois de alguns cumprimentos, saiu.

Crisa ouviu-o fechar a porta.

Respirou fundo, pensando que o primeiro passo estava dado, o primeiro passo para a liberdade.

A questão era a seguinte - seria capaz de ir até ao fim sem ser descoberta?

 

           CAPÍTULO TERCEIRO

Mister Krissam levaria alguns dias a conseguir o passaporte para Miss Wayne.

Assim, Crisa resolveu ocupar esse tempo na elaboração do resto do plano.

Para onde quer que fosse, nunca conseguia ir sozinha. Normalmente, era uma das filhas de Silas que sugeria irem às compras.

Era a coisa que ela mais gostava de fazer.

Mesmo se Crisa tinha vontade de dar um passeio, tinha de ir acompanhada por um dos Vanderhaults.

Havia sempre um deles pronto para a acompanhar. Senão, teria de ir com Abigail, a sua criada particular. Era de meia-idade, muito magra, e Crisa tinha a certeza de que era uma espécie de espia dos Vanderhaults.

O que significava que tudo o que Crisa dissesse ou fizesse chegaria ao conhecimento de Matilda ou de Anna.

Contudo, isso era uma coisa que Crisa não podia provar. Mas já reparara, uma ou duas vezes, que Matilda estava ao corrente de coisas ditas ou feitas por si, sem que ela própria as tivesse mencionado.

Tinha a certeza de que Abigail fora a informadora.

- Se ao menos a Nanny estivesse ao pé de mim - não se cansava de lamentar.

Tudo seria muito mais fácil se isso fosse possível. Mas Crisa estava decidida a regressar a Inglaterra, fosse como fosse.

Estar com Nanny seria como voltar a ser criança, sem mais problemas ou dificuldades para resolver.

Uma das coisas mais importantes, pensou, seria ter dinheiro e roupas.

Conseguir o dinheiro seria o mais difícil, pois tudo o que comprava era posto na sua conta.

Quando os recibos chegavam, ela nem sequer os via, pois eram pagos ou por Mr. Krissam ou pelo seu empregado de escritório.

Portanto, um dia disse a Mr. Krissam:

- É verdade, eu precisava de duzentos dólares para ir às compras amanhã.

Tal como esperava, Mr. Krissam ficou muito surpreendido.

- Basta mandar receber tudo o que quiser comprar, Mistress Vanderhault - respondeu ele.

- Bem sei - respondeu Crisa -, mas preciso de comprar alguns presentes e não quero que a pessoa a quem os vou oferecer saiba quanto custaram.

Pareceu-lhe que Mr. Krissam se preparava para argumentar com ela.

Mas, afinal, dez minutos depois estava de volta com os duzentos dólares em grandes notas.

Crisa arrumou-as na sua malinha de mão.

No dia seguinte foi às compras com Anna, que estava ansiosa por ver os vestidos da última moda.

Tinham acabado de chegar de Paris.

Enquanto estavam no armazém, Crisa aproveitou para comprar um presente muito caro, um conjunto de secretária constituído por um mata-borrão com os cantos dourados, uma caneta dourada e um tinteiro a condizer.

Embora o empregado se oferecesse para o mandar a casa, Crisa preferiu levá-lo consigo.

Quando chegou a casa, ofereceu-o a Mr. Krissam. Preparara um pequeno discurso, agradecendo-lhe toda a gentileza demonstrada para com ela desde que a conhecera em Inglaterra.

Mister Krissam ficou rendido à sua generosidade. Pela primeira vez, ele pareceu-lhe bastante humano, quando gaguejou os seus agradecimentos e, pensou Crisa, corou mesmo um pouco.

Depois disso, todos os dias ela lhe pedia dinheiro para ir às compras.

Comprou presentes para Matilda e Anna e para os netos mais novos de Silas.

Todos ficavam encantados com o que Crisa lhes oferecia. Ela tinha o cuidado de fazer com que sobrasse sempre algum dinheiro, e guardava o troco numa gaveta, fechada à chave, da sua secretária.

Levava sempre a chave consigo.

Mas em breve compreendeu que ia precisar de muito mais do que o que conseguia juntar tão modestamente desse modo.

Pelo menos, era um princípio, mas teria de pensar num modo de obter uma quantia muito maior.

Tinha de conseguir o suficiente para comprar o bilhete de regresso a Inglaterra.

E, também, para comprar algumas roupas.

Se queria fugir sem que ninguém desse por isso, tinha de ter que vestir a bordo.

Era impossível fugir de casa se tivesse que carregar uma mala grande.

Todos mostrariam curiosidade em saber para onde ia e pelo menos um dos Vanderhaults havia de querer ir com ela.

Mas enquanto pensava nisso tudo surgiu, de súbito, mais uma complicação.

Crisa começou a perceber que os Vanderhaults lhe tinham arranjado um marido.

Parecia incrível, já que Silas morrera havia tão pouco tempo. Estava certa de que o que os preocupava era a sua enorme fortuna.

Estavam, na verdade, cheios de medo que, sendo tão nova, Crisa se apaixonasse e quisesse voltar a casar.

Tudo se tornou claro para Crisa quando foi a uma pequena festa, dada em sua honra por um amigo íntimo dos Vanderhaults, que também tinha uma casa na Quinta Avenida.

Ao jantar, conheceu um inglês, hóspede em casa dos seus anfitriões.

Não era muito jovem, mas Crisa sentiu-se reconfortada por conhecer alguém que se parecia muito com o seu pai.

Falavam a mesma língua e Crisa pôde conversar sobre Huntingdonshire, pois ele conhecia a região.

Crisa ficou muito feliz por o conhecer.

Conversaram animadamente e só quando voltou para casa é que ela compreendeu, pela expressão de Matilda, que havia alguma coisa no ar.

No dia seguinte, pareceu-lhe ver na casa mais Vanderhaults do que era costume.

Era óbvio que o que se passava lhe dizia respeito. Sempre que entrava nalguma sala, encontrava-os a conversar em voz baixa.

Mal ela aparecia, calavam-se imediatamente.

Começavam então a falar de coisas fúteis e triviais, de um modo denunciador de que tentavam esconder alguma coisa.

Dois dias depois, chegava Thomas G. Bamburger. Crisa era suficientemente esperta para compreender que ele tinha sido escolhido pelos Vanderhaults para seu futuro marido.

Era um primo afastado e a sua mãe fora uma Vanderhault. Silas dera-lhe emprego na sua companhia ferroviária e, segundo Matilda, que não se cansava de gabar os talentos dele, destacara-se de tal modo que o mais natural era vir a ser director-geral de toda a companhia.

Tinha trinta e quatro anos, mas parecia mais velho. Assim que o viu, Crisa achou que ele era o tipo de americano de que ela não gostava e com o qual não tinha nada em comum.

Conversaram bastante, mas às vezes ele caía num profundo silêncio e fitava-a com um olhar frio.

Crisa tinha a certeza de que ele pensava em quanto ela valia.

Como seria vantajoso tornar-se seu marido.

Crisa nunca se perguntou como tinha percebido tudo tão rapidamente, sem que nunca lhe tivessem dito nada.

No entanto, desde o momento em que se voltara para sua mãe, pedindo que a ajudasse a fugir, sentira sempre que estava a ser ajudada e guiada pela luz da Grécia, sob a qual nascera.

Estava certa de que não faltaria muito para que Thomas Bamburger lhe revelasse as suas intenções.

Uma vez que estavam sempre na mesma casa, Matilda arranjara as coisas de modo a sentarem-se ao lado um do outro, às refeições.

Mas Crisa fazia os possíveis por nunca se encontrar a sós com ele.

E decidiu que tinha de apressar a fuga.

O próximo passo seria conseguir as roupas com que iria voltar a casa.

Pensou com muito cuidado no que haveria de fazer. Esperou pelo dia em que Matilda, Anna e duas das filhas de Silas saíram, para irem a um bazar de caridade que se realizava a dois quarteirões de distância.

Tinham-na convidado para ir com elas.

Crisa respondeu-lhes que o marido morrera há muito pouco tempo e que achava, portanto, muito cedo para ser vista em público.

Embora sentissem vontade de protestar, tiveram de ir sem ela. Crisa esperou que as carruagens tivessem partido, depois tocou a campainha e pediu que arranjassem uma carruagem para si própria.

Subiu para o quarto.

Enquanto colocava na cabeça um dos seus chapéus com véu preto de viúva, ouviu bater à porta.

Como esperava, era Abigail, dizendo que Mr. Krissam desejava falar com ela.

Dirigiu-se à sala de estar, que ficava ao lado, e achou-o com um ar um tanto ansioso.

- Pelo que sei, Mistress Vanderhault, mandou pedir uma carruagem... Não sabia que pensava sair esta tarde...

- Nem eu, até abrir o correio que veio esta manhã e ler uma carta da minha amiga Miss Wayne, de cujo passaporte está a tratar.

Sabia que não corria perigo pois ainda recebia, todos os dias, cartas de pêsames de todos os cantos da América.

Suspeitava que Mr. Krissam examinasse as que lhe eram dirigidas.

Mas não poderia conhecer o seu conteúdo, a não ser que se desse ao trabalho de as abrir ao vapor.

- Miss Wayne talvez venha a Nova Iorque em breve e, como não deve demorar muito aqui, pediu-me se lhe comprava algumas roupas de que vai precisar na sua viagem a Inglaterra.

- Compreendo - respondeu Mr. Krissam -, mas não prefere esperar pelo dia de amanhã, pois tenho a certeza de que Mistress Anna gostaria de a acompanhar?

- Não espero conseguir comprar tudo hoje - replicou Crisa -, além disso, levo a Abigail comigo.

O que não lhe apetecia nada.

Mas tinha a certeza de que Mr. Krissam levantaria os maiores obstáculos se ela tentasse sair sozinha.

Não havia mais nada a esclarecer, portanto ele saiu. Dez minutos depois, Crisa, acompanhada de Abigail, dirigia- se aos armazéns Macy's, na West l4th Street.

Ao chegar aos principais armazéns de Nova Iorque, Crisa mandou chamar a gerente da secção de vestidos.

Fê-lo com uma autoridade que nunca tinha sentido antes de casar.

- Sou Mistress Silas Vanderhault - disse -, e desejo comprar algumas roupas para uma amiga minha que em breve passará por Nova Iorque.

Dirigiu um sorriso à gerente, e continuou:

- Infelizmente, tenho muito pouco tempo, mas agradecia que me mostrasse uns vestidos simples, pois a minha amiga vai viajar para Inglaterra, e uma capa quente, pois vai viajar por mar.

O nome Vanderhault" fez maravilhas.

Um exército de empregadas trouxe-lhe toda a espécie de vestidos.

Crisa explicou que a sua amiga tinha, mais ou menos, as mesmas medidas do que ela.

- Ela disse-me - contou Crisa, rindo - que, como anda a viajar pela América há muito tempo, as suas roupas estão num péssimo estado.

Esteve calada uns instantes, depois continuou:

- Também perdeu alguns artigos que terão de ser substituídos, como sapatos e roupa interior.

A gerente fez um gesto de indignação e disse:

- Os roubos em alguns hotéis do Oeste são, segundo tenho ouvido dizer, Mistress Vanderhault, um escândalo! um facto revoltante e que dá mau nome ao nosso país, mas o que é que se há-de fazer?

- Sim, o quê? suspirou Crisa.

Solícita, a gerente mandou trazer chapéus e toucas que condissessem com cada fato de dia.

De outra secção, trouxeram sapatos.

Crisa experimentou-os, contando que toda a vida ela e a sua amiga tinham emprestado sapatos uma à outra.

Crisa esperava que ela não se tivesse modificado muito, desde a última vez em que a vira.

Encomendou três vestidos de dia, dois vestidos simples para a noite e uma capa de fazenda de lã quente, debruada a pele.

Pediu à gerente que arrumasse tudo numa mala nova e numa caixa de chapéus.

Pediu-lhe que tivesse tudo pronto, para ser levantado a qualquer altura por uma tal Miss Christina Wayne,

- Não sei se virei eu própria - disse Crisa - ou Miss Wayne, mas, nesse caso, ela apresentará um cartão meu.

A gerente disse que estava bem e Crisa agradeceu-lhe, acrescentando:

- Mande a conta para Miss Wayne, na minha morada, por favor.

- Espero que nos compre, também, alguns vestidos, madame.

- Virei ter consigo assim que comece a aliviar o luto - prometeu Crisa.

Dirigiu-se para a porta, recebendo vénias dos empregados que encontrava pelo caminho.

Ao chegar a casa, verificou que tanto Matilda como o resto da família ainda se encontravam no bazar.

Quando voltaram, tinham tanto para contar que não se aperceberam de que Crisa saíra durante a sua ausência.

E, para seu grande espanto, Mr. Krissam não lhes contou que ela tinha sido suficientemente ousada para fazer qualquer coisa sozinha.

No dia seguinte, Mr. Krissam trouxe-lhe o passaporte que ela lhe tinha pedido.

Quando ele lho entregou, ela reparou que estava assinado pelo embaixador britânico, em nome do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.

- Estou-lhe tão agradecida, Mister Krissam - disse Crisa. - Sei que Miss Wayne sentirá o mesmo. Se ela tivesse de tratar de tudo sozinha, perderia um tempo precioso na Embaixada.

Crisa sorriu-lhe e acrescentou:

- Talvez tivesse de ir lá várias vezes, antes que estivesse pronto.

- Fico feliz por ter sido útil, Mistress Vanderhault - disse Mr. Krissam.

Desde que recebera o seu presente, Crisa achava-o mais amável do que nunca.

Mesmo assim, Crisa não queria correr nenhum risco e disse- lhe, ao dirigir-se para a sua sala de estar:

- Vou já escrever a Miss Wayne e dizer-lhe que tenho aqui o passaporte, mas, como não tenho a certeza de ela se encontrar ainda na mesma morada, guardá-lo-ei até à sua chegada. Depois de tanta maçada, seria um disparate se se extraviasse.

- Tem toda a razão - concordou Mr. Krissam. Assim, Crisa escreveu uma carta que começava assim: "Minha querida Cristina... ", onde explicava que o passaporte estava pronto, bem como as roupas que ela lhe tinha pedido para comprar.

Ela tinha a certeza que as cartas recebidas não eram lidas de maneira nenhuma.

No entanto, as que eram enviadas eram seladas no escritório de Mr. Krissam.

Este registava num livro o custo e o destino de cada uma. Crisa calculava que alguma carta de aspecto menos vulgar fosse mesmo lida.

Portanto, teve o cuidado de não escrever nada que o levasse a suspeitar da existência de Christina Wayne.

Escreveu no envelope a morada de um hotel de São Francisco, que encontrara num guia da cidade.

No canto superior esquerdo escreveu "espera chegada". Não tinha a certeza absoluta, mas calculava que, passado bastante tempo, a recepção considerava que a destinatária não aparecera e que não era preciso guardá-la por mais tempo.

Ou a deitavam fora, ou a abriam.

"Por essa altura", pensou Crisa triunfante, "eu já cá não estarei! ".

O passo seguinte era decidir quando partir, e escolher o dia. Não era difícil saber os dias de partida dos navios, pois vinham anunciados no jornal.

Silas fora uma figura tão proeminente que ela excluiu logo a hipótese de viajar numa companhia de navegação americana.

Agora, os navios mantinham-se em comunicação telegráfica com terra.

Assim, Crisa temia que, embora lhe parecesse um pouco absurdo, mesmo depois da partida a família conseguisse descobri-la e arrastá-la de volta para Nova Iorque.

Portanto, chegou à conclusão de que o modo mais seguro de viajar seria num navio de uma companhia francesa.

Pelo que sabia, o La Touraine era mais lento do que os navios alemães.

Mas era de uma beleza extraordinária e o primeiro navio, diziam os jornais, a oferecer as confortáveis suites.

Esta novidade já tinha sido adoptada por muitos outros navios, claro.

Mas Crisa achava que o La Touraine parecia não só mais confortável mas também mais seguro.

Gostaria de viajar num navio da companhia inglesa Gunard. Mas tinha a certeza de que era por aí que os Vanderhaults começariam as suas buscas.

Partiriam do princípio que ela se sentiria em segurança entre os seus compatriotas.

O La Touraine partia dentro de dois dias.

Crisa sabia que, se quisesse embarcar nele, teria de escolher a melhor altura para conseguir fugir da família.

Além disso, tinha de arranjar dinheiro suficiente para o bilhete.

Esse era o problema principal mas, mais uma vez, Crisa sentiu que alguém a ajudava e orientava.

Matilda participou-lhe que, na quinta-feira seguinte, iriam almoçar fora de Nova Iorque.

Almoçariam com uma das filhas de Silas. Ela e o marido tinham comprado uma casa no Connecticut.

- Tenho a certeza de que vai gostar do passeio, Crisa - disse Matilda -, e sei que vai querer levar-lhes um presente para a casa nova.

- Claro - concordou Crisa.

Mas em vez de mandar chamar Mr. Krissam, dirigiu-se ela própria ao seu escritório, pela primeira vez.

Ficava no rés-do-chão da grande casa e, tal como as outras divisões, estava demasiado mobilado.

Neste caso, de arquivos, estantes e secretárias.

As paredes estavam cheias de mapas, que representavam as propriedades Vanderhault.

- Quero comprar um presente caro - disse-lhe -, mas tem de ser uma coisa requintada e original.

- Pode pôr o que pretender na sua conta, Mistress Vanderhault.

- Mas não nas lojas onde estou a pensar ir - respondeu Crisa. - Estou a pensar comprar um jarrão chinês ou talvez uma peça estranha e exótica do Japão.

Mister Krissam pareceu hesitante e ela continuou:

-Ainda há pouco tempo Mister Bamburger contou que os vendedores orientais não gostam de contas, pois não as compreendem.

Crisa riu e continuou:

- Portanto, venho pedir-lhe que me dê algum dinheiro, por favor. Não tenho tempo para mais explicações e, inglesa como sou, sempre preferi pagar no momento.

Mister Krissam tirou uma chave de uma gaveta da sua secretária e abriu um cofre enorme.

Ocupava muito espaço, a um lado da lareira.

- Que grande cofre! - exclamou Crisa. - O que é que tem lá dentro?

- Ficaria surpreendida, Mistress Vanderhault, se soubesse quanto custa manter esta casa - respondeu Mr. Krissam. Há os ordenados dos criados, além das contas, muitas das quais são pagas em dinheiro e não por cheque.

- Não os censuro - brincou Crisa -, mas deve dar-lhe muito trabalho.

- Como sabe, sobra-me muito pouco tempo - respondeu Mr. Krissam.

Enquanto falava, retirou do cofre um molho de notas de cem dólares.

Crisa reparou que, ao lado, estava um maço de notas de mil dólares.

Apontou com o dedo e disse:

- Notas de mil dólares! Não sabia que se faziam notas tão grandes!

- De vez em quando, é preciso ter notas de mil dólares - respondeu Mr. Krissam.

- Uma nota dessas - observou Crisa -, daria para uma pessoa viver muito confortavelmente durante um mês ou dois...

Mister Krissam riu.

Tirou do molho algumas notas de cem.

Entretanto, Crisa, que segurava o maço de notas de mil, com a outra mão deu um esticão no colar de pérolas que trazia ao pescoço.

As pérolas espalharam-se pelo chão, como gotas de orvalho. Crisa soltou um gritinho e exclamou:

- As minhas pérolas! O meu marido ofereceu-mas no dia do nosso casamento!

- Não se preocupe, Mistress Vanderhault - apressou-se a dizer Mr. Krissam.

Voltou a colocar dentro do cofre as notas que tinha na mão e ajoelhou- se.

As pérolas tinham rolado em todas as direcções. Ele pôs-se a apanhá-las, verificando que umas tinham ficado debaixo dos tapetes e outras estavam enfiadas nas reentrâncias do soalho de madeira.

Entretanto, Crisa conseguiu tirar do maço três notas de mil dólares.

Depois voltou a colocá-lo dentro do cofre. Escondeu as notas no decote do vestido.

Foi, então, ajudar Mr. Krissam e estendeu o seu lenço no chão para lá porem as pérolas que iam apanhando.

Quando parecia que não havia mais pérolas espalhadas, Crisa levantou-se.

Segurou o lenço pelas extremidades e entregou-o a Mr. Krissam, dizendo:

- Posso deixá-las consigo, Mister Krissam, para as mandar enfiar? Foi por eu ser tão descuidada que o colar se partiu. Mas foi uma sorte ter acontecido aqui e não nalgum lugar público!

- Isso seria, sem dúvida, um grande aborrecimento - concordou Mr. Krissam.

Dirigiu-se ao cofre e guardou-as lá dentro.

Quando Crisa se voltou, para sair do escritório, ele estava a guardar a chave na gaveta.

- Muito obrigada - disse ela -, é sempre tão gentil e prestável e é para mim uma alegria ver que gostou do presente que lhe dei.

Olhou para o tinteiro e Mr. Krissam replicou:

- Tenho muito orgulho nele, Mistress Vanderhault. Crisa sorriu-lhe.

E subiu as escadas a correr, esperando que ele não desse pela falta do dinheiro antes de sexta-feira, dia em que costumava pagar aos criados.

Nessa tarde, saiu para fazer compras para as filhas de Silas. Gastou bastante dinheiro, mas mandou pôr tudo na conta, pois sabia que só a iriam receber na semana seguinte.

Depois do jantar, em que Thomas Bamburger lhe parecera especialmente atencioso, ela disse que tinha de se retirar.

- Tenho uma leve dor de cabeça - disse - e quero ter a certeza de que amanhã me vou sentir bem.

- Com certeza - concordou Matilda. - Mas acontece que o Thomas estava com muita vontade de a levar a ver as orquídeas que acabaram de florir, na estufa.

E frisou:

- Ainda esta tarde ele me disse como eram lindas e sei que a Crisa as apreciaria.

Foi então que Crisa compreendeu que estava perante uma situação de perigo.

Sabia que não podia arriscar encontrar-se a sós com Thomas Bamburger.

Sorriu, parecendo anuir, mas levou a mão à cabeça e disse:

- Claro que gostaria de ver as orquídeas, Matilda, e sei que parece patetice, mas estou mesmo um pouco tonta e acho melhor ir deitar-me.

Todos começaram a dar provas de grande preocupação e ajudaram-na a ir para o seu quarto.

Depois chamaram Abigail.

Não se falou mais na sua visita à estufa com Thomas Bamburger.

Crisa deitou-se e, durante muito tempo, rezou para que tudo corresse exactamente como tinha previsto.

Não ia ser nada fácil.

Era uma grande sorte a família ir no dia seguinte ao Connecticut.

Isso dar-lhe-ia tempo para se recompor da indisposição que a impediria de os acompanhar.

Tinha de arranjar maneira de chegar ao cais a tempo de apanhar o La Touraine.

Receava não conseguir um camarote livre, aparecendo à última hora.

Por outro lado, tinha lido nos jornais que os navios atravessavam um período um pouco dificil.

A maioria chegava sem a lotação completa e partia nas mesmas condições.

Brincou com a ideia de reservar uma passagem em nome de Christina.

Mas para isso teria de ir a uma agência ou ao cais. Contudo, isso seria demasiado perigoso.

Um dos Vanderhaults, ou o próprio Mr. Krissam acabaria por saber, pelo cocheiro que a conduzisse, onde é que ela tinha ido.

Fariam muitas perguntas.

O único risco que terei de correr, disse para consigo, é de o navio se recusar a transportar-me.

Na manhã seguinte, tudo correu conforme planeara. Assim que Abigail a acordou, mandou um recado a Matilda dizendo que não se sentia bem.

Tal como previra, meia hora depois Matilda encontrava-se à sua cabeceira, mostrando-se muito preocupada.

- Acha melhor chamar um médico? - perguntou. Crisa fez que não com a cabeça.

- Não - respondeu. - Eu já tenho tido estas dores de cabeça e sei que passam, se eu descansar e não comer muito.

- A Susan vai ficar tristíssima se não a vir - disse Matilda.

- Leva-lhe os presentes que eu lhe comprei e os das crianças? - perguntou Crisa. - E diga-lhe, por favor, que espero poder visitá-la na casa nova para a semana que vem. Talvez pudéssemos ir juntas?

- Certamente que sim - concordou Matilda. - Tome cuidado, Crisa. Não gosto muito de a deixar aqui sozinha, mas os criados tratarão de si e nós voltaremos o mais depressa possível.

- Não, por favor, não façam isso! - protestou Crisa. - Senão, vou ficar a pensar que vos estraguei a festa. Eu fico bem.

Só preciso de dormir um pouco.

Franziu a testa, como se lhe tivesse sido muito difícil falar. Matilda saiu, depois de recomendar a Abigail que desse a Crisa uma bebida fresca e lhe preparasse um almoço muito leve.

Foi a seguir ao almoço que Crisa se levantou e vestiu. Escolheu um dos seus vestidos pretos mais simples. Com muito cuidado, descoseu o véu de crepe negro da sua touca de viúva.

Em seguida, meteu na mala de mão as jóias que queria levar consigo.

Já lá se encontrava todo o dinheiro que tinha conseguido juntar.

Quando estava completamente pronta, chamou Abigail. A criada veio e ficou espantada de a ver levantada e vestida.

- Que é que está a fazer, Mistress Vanderhault? - exclamou. - Sabe muito bem que devia estar a descansar!

- Bem sei - disse Crisa -, mas só agora me lembrei de que hoje era o dia de aniversário da minha mãe.

Esperou um pouco e suspirou antes de continuar:

- Como todos os anos, neste dia, vou à igreja rezar por ela, tenho de ir agora à Catedral de Saint Patrick.

Abigail ficou boquiaberta.

- Não fazia ideia, Mistress Vanderhault, que a sua mãe era católica!

Crisa sorriu.

- E não era, mas, como viajava muito, pela França e outros países europeus, costumava visitar as belas igrejas antigas.

Sorriu e acrescentou:

- Lembro-me de ela me contar, quando eu era pequena, que acendia uma vela e depois rezava, pois acreditava que, enquanto estivesse a arder, a vela ajudaria a sua oração a chegar ao céu.

Achou que Abigail, uma convicta dissidente da igreja anglicana, parecia um pouco céptica e continuou:

- Como eu amava muito a minha mãe e sinto muitas saudades dela, é isso que eu quero fazer hoje, portanto, por favor, mande arranjar a carruagem e, claro, venha comigo.

Pareceu-lhe que Abigail teve vontade de a contrariar. Mas, em vez disso, fez o que lhe mandou e, dez minutos mais tarde, estavam a caminho da Catedral de St. Patrick.

Quando chegaram aos degraus que davam entrada à porta lateral, Crisa disse:

-Espero que compreenda, Abigail, que desejo entrar sozinha.

- Penso que a minha obrigação é ir consigo, Mistress Vanderhault - disse Abigail, com firmeza.

- Não, não posso aceitar, pois sei que não é crente - disse Crisa, com um sorriso -, e quero rezar durante muito tempo, diante da minha vela, que será muito comprida, portanto o melhor é esperar por mim aqui.

Antes que Abigail pudesse dizer alguma coisa, Crisa saiu da carruagem e subiu rapidamente os degraus.

Avançou pela coxia central.

As velas acesas tremeluziam em frente das figuras dos santos e a luz do sacrário brilhava por cima do altar.

Rezou fervorosamente a sua mãe, pedindo-lhe que a ajudasse e que Abigail não entrasse, à sua procura, antes de tempo.

Ela já se certificara de que uma outra porta, na ala sul da catedral, estava sempre aberta.

Saiu por aí e encontrou-se na rua movimentada. Andou uns metros e teve a sorte de encontrar logo uma carruagem da companhia Hackney.

Pediu ao cocheiro que a conduzisse ao Macy's.

Quando chegaram, pediu-lhe que a esperasse e correu à secção de vestidos.

Mandou chamar a gerente.

- Estou cheia de pressa - disse -, porque a minha amiga acabou de chegar e tem de apanhar um comboio que parte daqui a três quartos de hora para Washington. As coisas que comprei estão prontas?

- Vou imediatamente buscá-las, Mistress Vanderhaultdisse a gerente -, e espero que a sua amiga fique satisfeita com elas.

- Tenho a certeza de que vai ficar - respondeu Crisa -, e muito obrigada pela sua amabilidade e pela grande ajuda que me deu.

A gerente tinha arrumado tudo na mala que Crisa mandara, também, pôr na conta.

Os chapéus estavam em duas caixas próprias.

Assim que viu tudo devidamente arrumado na carruagem, Crisa ordenou ao cocheiro que se dirigisse para o cais, o mais depressa possível.

- Vou viajar no navio francês La Touraine - explicou -, espero que saiba onde ele está.

O homem fez que sim com a cabeça.

Ela recostou-se, sentindo-se percorrida por uma estranha excitação.

Até agora, tinha sido bem sucedida na sua fuga da gaiola dourada, de onde, ao princípio, pensara que nunca ia conseguir escapar.

Lembrou-se, então, de que tinha ainda de fazer uma coisa muito importante, que era ver-se livre do seu véu de viúva.

Puxou-o com força e fez uma bola com ele.

Enfiou-o atrás das costas do assento, onde não seria encontrado tão cedo.

Tirou da mala de mão uma écharpe de seda lilás. Comprara-a poucos dias atrás, fingindo ser mais um presente para as filhas de Silas.

Meteu-a no corpete do vestido e pregou nela um alfinete de diamantes.

Assim, não parecia tanto uma viúva.

Embora não se desse conta, Crisa estava maravilhosa, com o seu cabelo louro e olhos azuis.

Mas não deixava de parecer uma senhora.

O La Touraine, um dos mais belos navios em serviço, tinha duas chaminés e três mastros.

No dia do seu baptismo, tinha sido considerado o navio de linhas mais requintadas que havia na altura.

Chamavam-lhe, por brincadeira, o galgo do Atlântico.

Crisa subiu a prancha de embarque, sabendo que era o último obstáculo que teria de vencer.

Se o La Touraine se recusasse a transportá-la ou já não tivesse lugares, seria obrigada a voltar, derrotada.

Estava certa de que, se tal sucedesse, nunca mais conseguiria fugir aos Vanderhaults.

- Por favor, Mãe, ajuda-me - rezava, ansiosa, ao dirigir-se à secretária do comissário de bordo.

Este, um francês de meia-idade e bastante bem-parecido, olhou para ela e os seus olhos encheram-se de admiração.

Crisa dirigiu-se-lhe num excelente francês parisiense. Devia-o a sua mãe, que sempre insistira em que ela aprendesse línguas desde pequena.

- Não tenho nenhuma reserva, monsieur - disse -, mas espero que tenha a gentileza de me arranjar um lugar, pois tenho de partir imediatamente para Inglaterra, de onde recebi uma má notícia sobre um membro da minha família.

- É inglesa, madame? - perguntou o comissário. O modo como ele a olhava mostrava que se tratava de um cumprimento.

- Sim, sou inglesa - respondeu Crisa - e chamo-me Christina Wayne.

Mostrou o passaporte.

O comissário pegou nele e tomou nota das informações de que precisava.

- Importa-se de me dizer porque se encontra nos Estados Unidos?

Embora mais tarde verificasse que não o devia ter feito, Crisa contou automaticamente a mesma história que contara a Mr. Krissam.

- Tenho estado a trabalhar como secretária de um escritor que anda a viajar pelo país. Infelizmente, devo regressar, como já lhe disse, por razões familiares, e ele terá de se arranjar sozinho.

- Tenho a certeza, mademoiselle, de que isso lhe será muito dificil - observou o comissário, lisonjeador. - Por sorte, temos um camarote para si, espero que o ache confortável.

Só mais tarde é que Crisa achou estranho que ele tivesse partido do princípio de que ela queria viajar em primeira classe.

Sendo uma secretária, era mais natural que viajasse em segunda classe.

Talvez ela tivesse, ultimamente, um aspecto opulento. Ou talvez a sua beleza o tivesse feito pensar que não poderia viajar de outra forma.

Pagou a carruagem Hackney e a sua bagagem foi levada para bordo.

Tal como o comissário prometera, foi-lhe destinado um camarote exterior muito confortável.

Tinha a novidade de a cama se poder transformar em sofá, de modo a, durante o dia, parecer uma sala de estar.

Crisa tinha ao seu serviço uma criada muito competente, que saíra quando a vira começar a abrir as malas.

Disse-lhe que, quando acabasse, a chamasse para fazer a cama.

Por incrível que parecesse, tinha conseguido! Tinha fugido, tinha conseguido escapar!

A não ser que Mr. Krissam ou algum dos Vanderhaults fosse mágico, ninguém iria adivinhar que, naquela noite, ela se encontrava a bordo de um dos navios que deixavam Nova Iorque.

Já era tarde de mais para alguém a deter.

- Obrigada, Mãe, muito obrigada! - disse para dentro do seu coração.

Então, em reacção à ansiedade que sentira e ao medo que tivera de não conseguir ir até ao fim, as lágrimas correram-lhe pelas faces.

 

               CAPÍTULO QUARTO

Na primeira manhã depois da sua partida, Crisa deu uma volta pelo convés.

Sentiu-se feliz por ter comprado aquela capa quente no Macy's.

Quando, manifestando alguma timidez, desceu para almoçar, pediu ao chefe dos camareiros se poderia ter uma mesa só para ela.

Ele sugeriu que seria mais divertido sentar-se numa das mesas maiores, mas ela insistiu que preferia estar sozinha.

Além de timidez sentia, também, medo.

Sabia que era ridículo, mas receava que, se falasse com alguém, pudesse, sem querer, denunciar-se.

Claro que não havia razão para ninguém desconfiar dela. No entanto, tinha sofrido tanto, com medo de que tudo corresse mal, que não queria, agora, correr mais riscos.

Assim, Crisa comeu sozinha.

Por entre os pratos excelentes daquela comida deliciosa, muito superior à que comera na viagem para Nova Iorque, Crisa foi observando os outros passageiros.

Sendo quase todos franceses, as mulheres eram extremamente elegantes.

Embora não fossem propriamente bonitas, emanavam um charme e um fascínio tais que Crisa compreendeu porque é que os homens pareciam não se cansar de as adular.

Faziam-no de um modo que nunca nenhum inglês conseguiria imitar.

Reparou, contrariada, que um dos passageiros mais jovens a olhava com admiração.

Com medo que ele lhe dirigisse a palavra, mal acabou de almoçar apressou-se a voltar para a segurança do seu camarote.

Se calhar estou a ser pateta, pensou. Esta é uma boa oportunidade de conhecer pessoas, como eu raramente tive, e de praticar o meu francês.

Mas, ao mesmo tempo, assustava-a a ideia de se dar com os outros passageiros.

Sabia que quase todos achariam muito estranho que ela viajasse sem companhia.

E talvez que, por causa disso, os homens fossem demasiado ousados.

-Já falta pouco para eu estar ao pé da Nanny - consolou-se -, então posso voltar a ser como era, antes de me casar com Silas Vanderhault.

Mas sabia que a verdade era que a sua casa nunca mais seria a mesma sem o seu pai.

Pensou em tudo o que teria de fazer quando chegasse. Primeiro, teria de falar com os advogados e examinar o testamento do seu pai.

Além disso, mais cedo ou mais tarde teria de avisar os Vanderhaults de que decidira não voltar para a América.

Sabia que eles fariam tudo para a ter, e à sua fortuna, nas mãos.

Mas, pelo menos, estava livre de Thomas Bamburger! Não tinha ousado pensar bem nesse caso quando estava em Nova Iorque. Mas sentia-se aterrorizada com a possibilidade de ser, de algum modo, obrigada a casar com ele.

Tinha a certeza de que ninguém ouviria as suas razões.

- Estou livre! Estou livre! - não se cansava de repetir.

Pensou como poderia ocupar o resto do dia.

A solução mais óbvia era a leitura.

Quando fora comprar as suas roupas, não lhe tinha ocorrido que teria sido uma óptima ideia comprar alguns livros, também.

Mas lembrou-se de que todos os navios transatlânticos dispunham de bibliotecas.

Um deles até anunciava que tinha novecentos volumes ao serviço dos seus passageiros.

Saiu do camarote e dirigiu-se ao comissário, que com certeza lhe daria todas as informações necessárias.

Ele recebeu-a com um sorriso acolhedor.

- Bonjour, mademoiselle - disse -, espero que se sinta confortável e que nada lhe falte.

- Muito obrigada, monsieur - respondeu Crisa. - Onde fica a biblioteca deste navio maravilhoso?

- Eu sabia que a iria apreciar, mademoiselle - declarou o comissário.

Saiu do seu gabinete e acompanhou-a pelo convés. Conduziu-a a um compartimento mobilado com muita elegância, onde se via uma grande quantidade de livros.

Estantes com portas de vidro evitavam que, em dias de temporal, os livros caíssem e se estragassem.

- Muito obrigada - disse Crisa.

Para sua grande satisfação, havia uma grande variedade de romances de autores franceses modernos, que ela sempre quisera ter a oportunidade de ler.

Escolheu alguns e regressou ao seu camarote.

Tinha acabado de pegar num deles quando ouviu bater à porta.

Mandou entrar e verificou, espantada, que se tratava do próprio comissário.

- Pardon, mademoiselle, - disse ele -, mas estou com um problema e pensei que talvez tivesse a amabilidade de me ajudar.

- Com certeza, se me for possível - respondeu Crisa.

- Temos connosco um cavalheiro inglês - explicou o comissário - que, tanto quanto sei, sofreu um acidente que lhe afectou a vista.

Fez uma pausa e continuou:

- Parece que tem umas cartas urgentes para escrever e perguntou-me se lhe arranjava uma secretária a quem ele as pudesse ditar.

Crisa pareceu surpreendida e o comissário apressou-se a acrescentar:

- Sei que não devia tomar esta liberdade, mas não tenho comigo nenhum funcionário que saiba escrever inglês correctamente, embora muitos sejam capazes de o falar.

Olhou, suplicante, para Crisa.

- De qualquer modo, estamos muito ocupados e ser-nos-ia dificil servir convenientemente Mister Thorpe.

- É assim que ele se chama? - perguntou Crisa, pensando que nunca ouvira falar dele.

- Monsieur Adrian Thorpe - respondeu o comissário -, e penso que é alguém importante, em Inglaterra. Mandaram-me reservar para ele a suite melhor e mais confortável.

Crisa percebeu que o comissário queria dizer que ele era muito rico.

Não era costume um homem solteiro viajar numa suite, normalmente para duas pessoas.

A sua vontade foi recusar, pois pensou que nunca seria capaz de ser uma boa secretária.

Mas lembrou-se que, muitas vezes, o seu pai lhe pedira que escrevesse algumas cartas.

Quase sempre eram sobre cavalos e ele ditava-as muito rapidamente.

Quando não conseguia escrever exactamente o que ele dizia, improvisava de um modo inteligente.

O resultado final satisfazia-o sempre.

- Por favor, mademoiselle - suplicou o comissário, ao vê-la hesitar. - Se lhe for impossível, ele terá de tratar dos seus assuntos só depois de chegarmos a Inglaterra.

Crisa sabia que isso significava um atraso de, pelo menos, uma semana.

Os navios franceses viajavam a uma velocidade de apenas vinte nós.

Seria um pouco egoísta da sua parte não tentar ajudar Mr. Thorpe e o comissário.

Sorrindo, disse para o francês:

- Pode dizer a Mister Thorpe que farei o meu melhor para o ajudar, mas o trabalho que estive a fazer antes de embarcar pode ser muito diferente deste.

-Tenho a certeza, mademoiselle, de que irá agradar-lhe - disse o comissário. - Importa-se de vir comigo para eu a apresentar a Monsieur Thorpe?

Manifestando alguma relutância, Crisa pousou o romance e levantou-se.

Enquanto percorriam o longo corredor, Crisa pensou como Nanny tinha razão quando lhe repetia tantas vezes uma mentira leva a outra mentira.

Pensou que nunca devia ter dito ao comissário, quando embarcou, que trabalhara como secretária mas, agora, o mal estava feito.

Nessa altura, a sua preocupação era representar o papel de Crhistina Wayne.

Ao fazê-lo, recordou tudo aquilo que tinha contado a Mr. Krissam.

Quando o comissário bateu à porta da suite presidencial, um homem de meia-idade, baixo e de aspecto activo, que Crisa adivinhou logo ser um criado particular, veio abri-la.

- Trago comigo a senhora que assistirá Monsieur Thorpe.

- Que boa notícia! - respondeu o criado.

Pelo seu olhar, Crisa compreendeu que ele viu logo que ela não era uma secretária vulgar.

Falou-lhe num tom de voz ainda mais respeitoso:

- É muito amável da sua parte, minha senhora, o meu patrão ficar-lhe-á muito agradecido.

Parecendo aliviado, o comissário disse:

- Vou deixá-la, mademoiselle, e quero agradecer muito a sua simpatia.

Despediu-se com uma vénia, e Crisa entrou na suite. Para sua surpresa, não viu ninguém lá dentro. Lembrou-se, então de que o comissário mencionara que Mr. Thorpe tinha sofrido um acidente.

No entanto, Crisa nunca pensara que ele estivesse de cama. Como se adivinhasse o que ela estava a pensar, o criado disse:

- Se quiser sentar-se, miss, vou buscar o senhor, que teve um acidente, como já deve saber. Os médicos recomendaram-lhe que não forçasse a vista, por isso ele fica às escuras o máximo de tempo possível.

Sem esperar uma resposta, o criado desapareceu pela porta do camarote contíguo.

Crisa olhou em sua volta.

Pensou, com agrado, que a suite estava decorada com óptimo gosto.

O mesmo não se podia dizer do navio americano que a trouxera, e a Silas, para a América.

Não se podia lembrar dele sem pensar logo no exagero de flores e frutos, caviar e champanhe, que atafulhavam os camarotes.

No que dizia respeito a Silas, o champanhe revelara-se desastroso.

Sempre achara que o excesso de bebida, juntamente com a excitação do casamento, tinham sido os responsáveis pelo seu ataque cardíaco.

Ninguém ousara falar nisso.

Mas, quando chegou a Nova Iorque, teve a certeza de que a família dele a considerava culpada por ele estar em perigo de vida.

Pensavam que, se não se tivesse casado com ela, Silas ainda estaria vivo.

Teria continuado a ser o mesmo homem de negócios dedicado, cujo único passatempo eram as antiguidades.

Recordar-se do que se passara depois do seu casamento era recordar a sua infelicidade.

Lembrava-se perfeitamente do medo que sentira na primeira noite, enquanto esperava que o noivo viesse ter com ela.

Estava tão absorta nestes pensamentos, que se assustou quando o criado disse:

- O senhor espera que lhe desculpe não vir até aqui. Ali está mais confortável e custa-lhe muito mexer-se.

- Com certeza... compreendo - disse Crisa.

Levantou-se e seguiu o criado, que atravessou o camarote. Lá estava a enorme cama de latão, a última palavra em luxo a bordo de todos os transatlânticos.

Mas a decoração era muito elegante.

Tinha um toque francês indiscutível, que Crisa achava muito belo.

Mister Thorpe não se encontrava de cama, mas sim, sentado numa poltrona, perto de uma vigia.

A cortina, meio fechada, deixava o seu rosto na escuridão. Quando a olhou, Crisa viu que usava óculos escuros. Um grande penso tapava-lhe metade da testa.

Aproximou-se e viu que usava um roupão comprido de veludo, a esconder- lhe um dos braços.

O outro estava ao peito e o roupão cobria-o, apenas, como se fosse uma capa.

Tinha uma manta em cima dos joelhos.

Embora não pudesse ter a certeza, pareceu-lhe que ele estava parcialmente vestido.

Enquanto se dirigia para ele, o criado dizia:

- Esta é Miss Wayne, que veio ajudá-lo, sir, foi uma sorte encontrar aqui alguém que falasse inglês!

Crisa achou que ele parecia querer obrigar o patrão a sentir-se agradecido.

Antes que Mr. Thorpe dissesse alguma coisa, Crisa apressou-se a dizer:

- Espero poder ajudá-lo. Mas receio que me considere poucco habilitada para o trabalho que tem para eu fazer.

O criado puxou uma cadeira e, enquanto Crisa se sentava, Mr. Thorpe disse, com voz profunda:

- É muito bondoso da sua parte, Miss Wayne, pois, como vê, estou impossibilitado de tratar dos meus assuntos, não apenas paralisado mas também cego. Preciso que me escreva umas cartas. Têm de ser enviadas assim que atracarmos.

- Compreendo - disse Crisa -, e julgo que serei capaz de as transcrever, se não as ditar muito depressa.

Ele não disse nada e ela continuou:

- Eu tomo nota do que ditar rapidamente, a lápis, depois passarei tudo a limpo, a tinta, e leio- lho, para que possa fazer as correcções que entender.

- Parece-me excelente - disse Mr. Thorpe. - Tem onde escrever?

- Receio bem que não - respondeu Crisa. - Eu... não esperava ter de... trabalhar, quando embarquei.

- Então peço-lhe que me desculpe ter interrompido o que deveriam ser umas férias - disse Mr. Thorpe.

Virou-se para o seu criado e acrescentou:

-Jenkins, arranje um bloco de notas, onde Miss Wayne possa escrever, e um lápis, claro.

Jenkins dirigiu-se ao camarote do lado, onde havia uma escrivaninha, e Mr. Thorpe disse a Crisa:

- Estou-lhe muito agradecido, Miss Wayne.

- Por favor, não me agradeça antes de ter a certeza de que sirvo para alguma coisa.

- O comissário contou-me que tem trabalhado como secretária de um escritor - observou Mr. Thorpe. - Terei já lido algum dos seus livros?

Crisa susteve a respiração.

Aqui estava mais uma mentira que ela lamentava ter dito.

- Na verdade - disse, depois de pensar um pouco -, esse escritor para o qual trabalhei ainda não publicou nenhum livro, apenas alguns artigos.

Esperou um pouco e prosseguiu:

- Neste momento, está a escrever um livro sobre a América... é por isso que temos... andado... a viajar... de um lado para o outro.

- E achou esse trabalho interessante?

- Oh! sim, muito, mas tive de voltar inesperadamente, por razões familiares.

Calou-se e Mr. Thorpe perguntou- lhe:

- Então viaja sozinha?

- Sim... sim.

Crisa desejou que ele parasse de fazer perguntas. Jenkins entrou com uma pasta de papel de carta, em que se lia o nome do navio.

- Lamento, miss, mas não encontrei nenhum bloco - disse a Crisa. - Trouxe-lhe uma revista, sobre a qual poderá escrever, neste papel. Espero que consiga.

- Claro que sim - concordou Crisa.

Pegou na revista e no papel e ele estendeu-lhe um lápis. Depois de ajeitar a manta que cobria os joelhos do seu patrão, o criado saiu, fechando bem a porta.

- Estou pronta - disse Crisa, pois sabia que o homem sentado a seu lado não via.

Olhou para ele e pensou que devia ser bastante bem-parecido, se não tivesse os óculos e aquele penso na testa. Tinha o queixo quadrado e uma boca firme, que revelava muita determinação.

Os seus lábios pareciam sorrir, como se tivesse muito sentido de humor.

Era fascinante poder examinar assim um homem sem que ele desse por isso.

Mister Thorpe tinha umas mãos bem feitas, muito elegantes, as mãos de um cavalheiro, que nunca tivera de trabalhar com elas.

Embora não houvesse nada que o indicasse, Crisa achou que aquele homem devia perceber de cavalos.

Estava tão distraída, a imaginar como seria o homem a seu lado, que se sobressaltou quando o ouviu dizer:

- Estou muito interessado em saber a que conclusões chegou quando acabar o seu exame...

Crisa abriu muito os olhos e disse, confundida:

- Eu... eu pensava que não via.

- Para já, só distingo a claridade e a escuridão - explicou Mr. Thorpe -, mas, instintivamente, percebi o que estava a fazer, as suas vibrações, chamemos-lhe assim, ou, se quiser, os seus pensamentos, comunicaram-me o que estava a passar-se.

- Quer dizer que consegue... ler os pensamentos? - perguntou Crisa.

- Que eu saiba, não - respondeu Mr. Thorpe -, mas, por alguma razão que não sei explicar, adivinhei o que estava a pensar. Também adivinhei que está nervosa e assustada, não comigo, mas com outra coisa qualquer.

- Pare! - gritou Crisa. - Está a falar de um modo muito estranho e eu não estou a gostar nada disso! Se é um leitor de pensamentos ou um adivinho, acho melhor fugir.

- Não sou nem uma coisa nem outra, acredite - respondeu Mister Thorpe -, mas, assim que aqui entrou, senti, com muita força, a sua presença.

Crisa apertou o lápis com os dedos.

- Penso - disse - que é melhor começarmos a trabalhar.

- Muito bem - concordou Mr. Thorpe.

Ficou uns instantes calado, depois começou:

- Caro Edward: Sei que estás interessado em saber como decorreu a minha viagem à América...

E continuou, muito lentamente, a ditar uma carta longa e aborrecida.

Era tão diferente do que Crisa pensava que seria uma carta de um homem para outro, que ela ficou intrigada.

Mr. Thorpe continuava a ditar, páginas atrás de páginas, descrevendo os lugares onde tinha estado.

Eram umas descrições tão infantis que Crisa sentiu vontade de lhe perguntar se estava a brincar.

Depois de algum tempo, Mr. Thorpe parou, pareceu-lhe que para pensar.

Ela olhou para ele e viu que estava a contar pelos dedos. Então, pensou se aquela carta não estaria escrita em código. Não sabia bem porque tinha tido aquela ideia.

Mas pareceu-lhe que essa seria a explicação para uma carta tão estranha.

Devia ser por isso que ele falava tão lentamente e que muitas frases pareciam mal articuladas, não fazendo sentido.

Código!

Pensou no que sabia acerca de códigos e de quem os costumava utilizar.

Talvez Mr. Thorpe pertencesse ao Corpo Diplomático, ou estivesse de alguma maneira ligado à segurança naval ou militar.

Sabia que esta dispunha de um serviço secreto, de que não se sabia muito.

Mister Thorpe continuou a ditar laboriosamente e, quando voltou a fazer uma pausa, Crisa disse:

- Quer que lhe leia o que ditou até agora? Há partes que me parecem um pouco estranhas.

- Estranhas, como? - interrompeu ele, com brusquidão.

- Verá que muitas frases estão mal coordenadas - disse Crisa - e, às vezes, não há continuidade entre elas.

- Está a criticar a minha carta? - perguntou.

- De maneira nenhuma - disse Crisa -, só queria ter a certeza de que não me enganei e de que o que escrevi corresponde exactamente ao que me ditou.

- Claro, claro - respondeu, como se se tentasse convencer de que ela tinha razão. - Muito bem, Miss Wayne, leia-me lá o que escreveu e deixe as críticas por minha conta.

Pensando que o tinha irritado, Crisa leu o que escrevera, com a sua voz calma e musical.

Quando terminou, ele disse com um leve sorriso:

- Tem toda a razão! Está, realmente, um pouco confusa, e talvez seja por eu não estar habituado a ditar cartas tão pessoais, e também tem razão ao achá-la muito aborrecida.

Crisa não respondeu e, passados uns instantes, ele disse:

- É isso que pensa, não é?

- S... sim - confessou Crisa.

Pensou que, se ele pudesse vê-la, estaria agora a olhá-la com insistência.

Era como se ele suspeitasse que ela não lhe estava a dizer a verdade.

Ele disse, então:

- Estou um pouco cansado, portanto acho melhor continuarmos amanhã. Obrigado, Miss Wayne, pela sua ajuda. É muito amável da sua parte.

Crisa levantou-se, convencida de que não lhe tinha agradado e de que tinha sido um erro não concordar com tudo o que ele dizia.

Chegou-se mais para junto dele, para lhe colocar os papéis na mão.

- Peço desculpa se lhe pareceu que o estava a criticar - disse em voz baixa. - Tive muito prazer em o ajudar e, se o puder voltar a fazer, é só mandar chamar-me.

- Ainda não terminámos esta carta - respondeu Mr. Thorpe -, e certamente terei outras coisas que preciso que me faça. Pode estar aqui amanhã de manhã às onze horas?

- Com certeza - concordou Crisa.

- Mas não quero que, por isso, deixe de se divertir - disse Mr. Thorpe. - Não vai participar nos jogos que o navio organiza para jovens da sua idade?

- Não, não tenciono fazê-lo.

Ficou admirada com aquela pergunta. Então, acrescentou:

- A verdade é que... sou... muito tímida e não me sinto bem no meio de uma multidão de desconhecidos... nem estou habituada.

Pensou que aquilo não era completamente verdade. Tinha estado no meio de muitos desconhecidos, quando chegara a Nova Iorque.

Seguidamente, encontrara-se rodeada por uma multidão de Vanderhaults hostis.

Lembrou-se de como sofrera com isso.

Como desejara ter um amigo: alguém que compreendesse o que estava a sentir.

- O que a magoou tanto? - perguntou Mr. Thorpe, com uma voz calma.

Sobressaltada, Crisa verificou que ele adivinhara, mais uma vez, os seus pensamentos.

- Não posso. contar.

- Porquê?

Ela quis sair mas ele disse- lhe:

- Sente-se e converse um bocado comigo. Se está enervada, eu também estou. E não se esqueça de que, enquanto pode, ao menos, ver o que se passa, eu nem isso posso fazer.

A sua voz era tão suplicante que Crisa não conseguia ficar indiferente.

Como se ele lhe tivesse dado uma ordem, voltou a sentar-se e fitou-o de olhos muito abertos.

Não sabia como é que ele conseguia intuir, esta era a palavra certa, tanto a seu respeito, sem nunca ter podido vê-la.

- Fale-me de si - disse Mr. Thorpe.

A sua voz tinha, agora, um tom divertido.

- Realmente, é um pouco estranho - continuou -, que uma pessoa tão jovem viaje sem uma dama de companhia, ou alguém que tome conta de si.

- Como sabe que eu sou... muito nova? - perguntou Crisa.

Ele sorriu e o seu rosto, ou o que se podia ver dele, transformou-se.

- A sua voz é muito musical e, para mim, muito agradável, depois de ter ouvido apenas vozes americanas, durante as últimas semanas. E tem uma voz muito jovem, a voz de alguém que ainda não viveu muito.

- Como pode saber... tantas coisas? - perguntou Crisa. -  A não ser que, como eu já sugeri, seja mesmo um adivinho.

- Tenho-me dedicado ao estudo dos seres humanos.

- Porquê? É psiquiatra, ou qualquer coisa assim?

- Nada disso - disse ele -, mas acho a raça humana muito interessante. Pode-se saber muito sobre as pessoas, através das suas vozes e das vibrações que emanam, especialmente quando essas vibrações nos tocam.

- Acredito que seja fascinante - concordou Crisa. - Mas

deve ser muito difícil, no estado em que se encontra.

- De certo modo é, até, mais fácil porque assim posso concentrar-me melhor.

Crisa não respondeu e, instantes depois, ele disse:

- Agora, fale-me de si.

- Não há... nada a contar - apressou-se ela a responder.

- Isso não é verdade - disse ele - sei que é muito nova, como já lhe disse, e que não está habituada a andar sozinha. Sendo uma senhora, não deve mesmo andar sozinha.

Crisa ficou a olhar para ele, tentando encontrar uma resposta para o que ele acabara de dizer, mas não conseguiu.

Torcendo os lábios, o que lhe dava um ar cínico, Mr. Thorpe continuou:

- O que é que aconteceu ao escritor com quem andava a viajar? Achou-a incompetente ou foi enfeitiçado por outra mulher?

Crisa não conseguiu fazer mais nada a não ser olhá-lo, espantada, pensando que não tinha ouvido bem.

Depois caiu em si e percebeu o que ele queria dizer. Estava a insinuar que o tal escritor não passava, afinal, de um amante que a levara para a América.

Muito tensa, disse-lhe, furiosa:

- O que está a pensar é uma grande mentira! Claro que não era nada disso! Nada!

Mister Thorpe soltou uma pequena gargalhada, e disse:

- Minha querida, peço-lhe as minhas mais humildes desculpas, se me contar a verdade.

Crisa levantou-se.

- Não - disse -, não tem o direito de se meter na minha vida privada, de imaginar coisas que não são verdade, de inventar histórias a meu respeito.

Fez uma pausa e continuou:

- Vou voltar para o meu camarote e virei amanhã, se precisar de mim. Mas como secretária e não como cobaia para as suas experiências!

Enquanto falava, dirigiu-se para a porta, abriu-a e saiu. Lá fora, ouviu Mr. Thorpe rir baixinho.

Ria como um homem intrigado e divertido.

Com a pressa, Crisa tinha saído pela porta que dava para a sala de estar.

Quando entrou, Crisa viu Jenkins, sentado numa poltrona a ler um jornal.

Pôs-se imediatamente de pé e disse:

- O meu patrão já acabou? Queria pedir-lhe que não o cansasse muito.

- Mister Thorpe diz que já trabalhou o suficiente, por hoje - respondeu Crisa. - Se precisar de mim amanhã, estarei à disposição.

Sem dizer mais nada, abriu a porta que dava para o corredor e correu para o seu camarote.

Quando lá chegou, ainda lhe parecia impossível que Mr. Thorpe tivesse sido capaz de dizer uma coisa daquelas.

Tinha sido um insulto.

Mas, ao mesmo tempo, sentia-se intrigada pelas coisas que ele dissera e pelo que tinha adivinhado a seu respeito.

Mas o que mais a intrigava era pensar que tinha escrito uma carta em código.

Passou-lhe pela cabeça que ele talvez fosse um criminoso qualquer, fugindo de Nova Iorque.

Se calhar até levava dinheiro roubado, que queria esconder da Polícia.

Mas depois pensou que não era provável.

Fosse ele quem fosse, tinha os modos de um cavalheiro e não de um criminoso.

Mais uma vez pensou que a carta que tinha escrito devia fazer parte de algum trabalho secreto.

Tinha vontade de descobrir do que se tratava.

Apesar de tudo, Mr. Thorpe interessava-a.

Não conseguia concentrar-se no romance que começara a ler quando foi interrompida pelo comissário.

Ao descer para a sala de jantar, nem reparou nos outros convidados, que lá se encontravam.

As senhoras estavam encantadoras, nos seus vestidos de noite, e os cavalheiros muito elegantes.

Mas Crisa só era capaz de pensar num homem de óculos escuros, sentado, sozinho, na sua suite solitária.

Depois do jantar, as pessoas começaram a dançar. Quando Crisa se preparava para sair, um jovem francês foi ter com ela e disse- lhe:

- Pardon, mademoiselle, ficaria encantado se me desse a honra de dançar comigo.

Crisa ficou tão espantada que deu por si a gaguejar:

- D... desculpe... é... muito amável mas... estou muito cansada... vou... deitar-me.

- Mas não devia, se me permite - respondeu. - Terá tempo suficiente para dormir, mais tarde, e é um desperdício de beleza e juventude.

Em francês, as palavras pareceram mais lisonjeadoras do que se tivessem sido ditas em inglês.

Crisa corou mas, apesar da insistência do jovem, voltou rapidamente para o seu camarote.

Talvez tivesse feito mal em não querer dançar com o desconhecido.

Mas sabia que era uma coisa que a sua mãe nunca aprovaria. Como poderia fazer algo tão íntimo com um homem que não lhe tinha sido apresentado e sobre o qual nada sabia?

Despiu-se e meteu-se na cama ao som da música, alegre e divertida.

"Talvez fosse melhor aproveitar as oportunidades que me forem aparecendo", pensou.

Mas era demasiado tímida para aceitar um convite feito por um francês.

Além disso, não pareceria bem.

Na manhã seguinte, Crisa perguntou-se se   seria que'

Mr. Thorpe a ia mandar chamar.    

Ou se estaria à espera que ela lá aparecesse às onze horas, como lhe tinha dito.

Às dez para as dez, Jenkins bateu à sua porta e disse-lhe que o patrão a esperava às onze.

Como sabia que o exercício e o ar livre lhe faziam bem, Crisa embrulhou- se na sua capa e foi dar uma volta pelo convés.

O mar estava bravo, mas não demasiado, como estivera no dia anterior.

Estavam poucas pessoas no convés, a maioria homens. Alguns tiraram os chapéus à sua passagem e quase todos a olhavam com admiração.

Tímida, passou depressa por eles, sempre a olhar para as ondas verdes do oceano.

Foi para o seu camarote, para se arranjar.

Exactamente às onze horas, bateu à porta da luxuosa suite ocupada por Mr. Thorpe.

Quando Jenkins abriu, viu Mr. Thorpe sentado, de costas para a luz, numa poltrona de aspecto confortável.

Havia flores na mesa a seu lado.

- Bom dia, Miss Wayne - disse, quando ela apareceu. Espero que tenha dormido bem.

- Muito bem, muito obrigada - respondeu Crisa - e espero que se sinta melhor.

- Sinto-me muito melhor - respondeu Mr. Thorpe. Crisa sentou-se noutra poltrona, ao lado dele, que disse:

- Ora bem, Jenkins, Miss Wayne já aqui está, portanto insisto que vás até ao convés, e apanhes um pouco de ar. Depois, podes ir para o teu camarote e descansar.

- Não é preciso, sir - respondeu Jenkins.

- É uma ordem, Jenkins! Miss Wayne fará o favor de me fazer companhia até à hora do almoço. Portanto, dou-te duas horas de folga e não se fala mais nisso!

- Muito bem, sir - disse Jenkins -, e se precisar de alguma coisa importante, sabe onde está.

Crisa reparou na palavra "importante", mas Mr. Thorpe não disse nada.

Pareceu-lhe que a maneira de falar de Jenkins o tinha irritado.

O criado saiu.

Desta vez, Crisa trouxera papel do seu próprio camarote.

O lápis também era oferta da companhia de navegação e vinha dentro de uma espécie de gaveta, que fazia tanto de secretária como de toucador.

Estava sentada, à espera, quando Mr. Thorpe disse:

- Ontem à noite estive a pensar qual será o seu nome de baptismo.

Sem pensar, Crisa respondeu:

- Crisa.

Embora ele não pudesse ver, pareceu-lhe que a olhava, admirado. Então, ele disse:

- Bem me parecia que tinha de ter alguma coisa a ver com a Grécia.

- Sabia que Crisa é um nome grego?

- Claro que sabia - respondeu Mr. Thorpe. - A última vez que estive na pequena cidade de Crisa imaginei que eu era Apolo e que saltava daquele barco puxado por golfinhos, disfarçado de estrela, ao meio-dia. Depois, subia aquela estrada íngreme e matava o dragão que guardava os Penhascos Brilhantes.

Crisa soltou um gritinho e disse:

- Nunca tinha encontrado ninguém que soubesse essa história! A minha mãe esteve, de facto, em Crisa antes de eu nascer, por isso é que me deu um nome tão estranho.

Lembrou-se do que os Vanderhaults tinham dito:

- Crisa deve ser um diminutivo de Cristabel e é um disparate não usar o nome inteiro.

Mas este homem enigmático, com os seus óculos escuros, conhecia Crisa.

E, tal como sua mãe, ele tinha contemplado os Penhascos Brilhantes e compreendido o que significavam para todos os devotos de Delfos.

Parecendo que, uma vez mais, adivinhava os seus pensamentos, Mr. Thorpe continuou:

- Como se deve lembrar, Apolo, depois de matar o dragão, reivindicou a posse de todo o território que se via do lugar onde ele estava.

Sorriu e continuou:

- Entre outras coisas, Apolo era o deus do bom gosto, portanto, como a sua mãe lhe deve ter contado, tinha escolhido a região mais bela de toda a Grécia.

- Que sorte ter podido lá ir - disse Crisa, em voz baixa. Sempre quis, desde criança, visitar a Grécia, mas agora acho que nunca lá chegarei a ir.

Tinha-se esquecido completamente de que era muito rica mas agora, de repente, lembrara-se.

A não ser que os Vanderhaults conseguissem arrastá-la de volta para Nova Iorque, poderia, finalmente, visitar a Grécia.

Ou qualquer outro país que lhe apetecesse.

Por outro lado, sabia que teria medo de viajar sozinha. Pelo menos enquanto fosse tão nova como era agora.

- Claro que tem de ir à Grécia - disse Mr. Thorpe, seguindo os seus pensamentos. - Hoje em dia não é dificil e gostaria de lhe mostrar o lugar que tem o seu nome.

Crisa murmurou qualquer coisa e ele continuou:

- Eu mostro-lhe o caminho sinuoso por onde, através dos tempos, milhares de peregrinos subiram em direcção ao templo de Apolo.

-Já lá não está?

- Nero mandou retirar setecentas estátuas de Delfos e levou-as para Roma - respondeu Mr. Thorpe. - Agora, só lá existem ruínas.

- Que pena! - exclamou Crisa.

- Mas há uma coisa que os romanos não conseguiram destruir, nem ninguém alguma vez conseguirá destruir - acrescentou ele.

- E o que é isso?

- A luz da Grécia! - disse Mr. Thorpe, numa voz pausada. Crisa respirou fundo.

Não podia acreditar que aquele desconhecido, aquele homem que ela não conseguia ver bem, falasse exactamente como a sua mãe.

Não conseguia ficar calada e pediu-lhe:

- Fale-me... fale-me da Grécia e do que... viu quando esteve... lá!

- Não sei por onde hei-de começar - respondeu Mr. Thor  pe, com um sorriso forçado.

      Enquanto falava, levou a mão ao braço ferido.

Pelo modo como o fez, Crisa apercebeu-se de que estava cheio de dores.

- O que foi? - perguntou. - Há alguma coisa que eu possa fazer?

- Penso que Jenkins se encontra no convés, tal como eu lhe ordenei. Talvez seja dificil encontrá-lo.

- O braço está a doer muito?

- O Jenkins deve ter apertado demasiado a ligadura, está um pouco inchado.

- Por favor, deixe-me vê-lo - ofereceu-se Crisa.

Como Mr. Thorpe hesitasse, ela disse:

-Já fiz muitas ligaduras, em diversas ocasiões, e prometo que não o vou magoar nem fazer nada de errado.

Lembrou-se de quando tinha tratado do braço do seu pai, quando este se magoara, ao cair de um cavalo.

Outra vez, ele cortou-se na perna e ela tratou-o e mudou-lhe a ligadura, durante um mês.

Visivelmente aflito, Mr. Thorpe acabou por ceder.

- Se não se importa de me ajudar - disse ele -, penso que basta alargar a ligadura.

Com muito cuidado, Crisa retirou o roupão do braço dele e, em seguida, o lenço que segurava o braço.

Podia agora ver a ligadura em volta do seu antebraço.

Ao retirá-la, viu que ele tinha razão ao dizer que estava demasiado apertada.

Era a ligadura que estava a provocar o inchaço e a causar      -lhe uma dor tão forte.

Sob a ligadura estava uma compressa, que ela retirou com muito cuidado, receando que estivesse colada à pele.

O braço estava vermelho e inchado.

Via-se uma ferida, não muito grande, mas muito profunda.

- O que é que o Jenkins tem posto na ferida?

- Qualquer coisa receitada pelo médico - respondeu Mr. Thorpe. - Eu acho que não tem servido de nada, pois a inflamação não há meio de passar.

- A minha mãe dizia sempre que uma ferida destas, contanto que fosse muito bem limpa - disse Crisa -, se devia tratar com mel.

- Mel? - perguntou Mr. Thorpe, muito admirado. - Tem a certeza?

- Absoluta! E tira a dor quase instantaneamente!

- Ainda me dói muito - disse ele -, mas melhorou quando tirou a ligadura.

- Gostava de experimentar pôr mel na sua ferida... - disse Crisa. - Posso chamar um criado?

- Estou disposto a fazer a experiência - acedeu Mr. Thorpe -, esperemos que seja tão eficiente e eficaz como a ambrósia dos deuses gregos, que conferia a juventude eterna!

Sorrindo, Crisa tocou a campainha. Um criado apareceu imediatamente.

- Pode trazer-me, por favor, um pote de mel? - perguntou.

- De preferência, mel espesso, de trevo.

O criado pareceu um pouco surpreendido mas saiu e Mr. Thorpe disse:

- Depois de termos estado a falar da Grécia, não posso ser céptico, sabendo como os gregos acreditavam nas suas ervas e plantas.

Depois de uma pausa, continuou:

- Claro que o mel deles era sempre muito eficaz, também.

- Devia ter-se lembrado disso antes, em vez de deixar o médico tratá-lo com o que a minha mãe costumava chamar um monte de químicos.

Mister Thorpe riu-se.

- Estou a ver, Crisa, que tem outros talentos, além do de secretária.

Ele tinha usado o seu nome de baptismo.

Crisa estava a pensar se seria correcto, quando o criado entrou, trazendo o mel.

Era do tipo que ela tinha pedido, um mel espesso, de trevo, que Crisa viu logo que devia ser do Norte da França.

Tirou a tampa e espalhou-o, numa camada grossa, sobre a ferida do braço de Mr. Thorpe, cobrindo-a novamente com a compressa.

Depois, voltou a ligá-lo, sem força, mas com firmeza, e colocou-o no lenço, ao peito.

- Creio que não voltará a latejar - disse -, mas, se isso acontecer, tem de tirar imediatamente a ligadura. Só doerá muito se a ligadura estiver demasiado apertada e, nesse caso, ficará muito pior do que está agora.

- Obrigado, senhora enfermeira! - disse ele, num tom divertido. - É evidente que farei tudo o que mandar!

- Como é que lhe aconteceu um acidente tão terrível e desagradável?

Quando fez a pergunta, Crisa já conhecia a resposta. Inspirou profundamente.

Ela tinha a certeza, a certeza absoluta, que a ferida que acabara de ver no braço de Mr. Thorpe fora feita por uma faca.

 

             CAPÍTULO QUINTO

Era o quarto dia a bordo do La Touraine.

Acordou a pensar que aquela viagem estava a ser muito agradável.

Estava a achar fascinante trabalhar com Mr. Thorpe. E não era só por causa do que ele lhe ditava, que se tinha modificado muito nos últimos dois dias, tanto quanto ao estilo como quanto ao tema.

Era também porque tinha a possibilidade de conversar com ele.

Ele retinha-a ali de propósito, para que Jenkins pudesse fazer algum exercício e apanhar ar.

Passara a estar com ele todos os dias, das onze à hora do almoço.

À tarde, depois de ele descansar um pouco, voltava das três da tarde até quase às seis da noite.

Para ela, era como estar na companhia do seu pai, a conversar sobre os mais variados assuntos.

Muitas vezes, discordava do que ele dizia, mas só para estimular a conversa, para torná-la mais interessante.

Ele sentia-se, agora, muito melhor e, segundo Jenkins, isso devia-se ao facto de que a ferida estava a sarar rapidamente.

- Confesso que achei um pouco rídiculo, miss, quando o meu patrão me contou que tratou a ferida com mel - disse ele -, mas tenho de admitir que lhe fez melhor do que tudo o que o médico receitou.

- O mel só faz bem - respondeu Crisa - e o melhor que tinha a fazer era convencê-lo a comer sempre um pouco ao pequeno-almoço.

Ou por causa do mel, ou devido ao repouso que fazia no na    vio, a verdade é que Mr. Thorpe estava, de facto, melhor.

Já lhe tinham retirado o penso da testa.

Agora via-se bem o ferimento, que tinha precisado de levar alguns pontos.

Crisa estava certa de que, tal como o ferimento no braço, tinha sido feito por uma faca.

Achava que não valia a pena fazer perguntas. No entanto, no dia anterior, enquanto conversavam, ela tinha perguntado:

- Afinal, que razão o levou à América? Foi algum motivo interessante?

Sabia que se tratava de uma pergunta pertinente e reparou que Mr. Thorpe demorava a responder, procurando uma resposta.

Para o provocar, acrescentou:

- Se calhar, como tantos ingleses, estava à procura de uma mulher rica.

Mister Thorpe riu.

- Isso era a última coisa que eu faria!

- Em Nova Iorque, contaram-me - continuou Crisa -, que muitos nobres europeus têm atravessado o Atlântico por essa razão e que o sonho de todas as debutantes americanas é tornarem-se duquesas ou mesmo princesas.

Mister Thorpe riu mais uma vez. Depois disse:

- Só a ideia me é repugnante! Se alguma vez tiver de casar, nunca será com uma mulher que seja mais rica do que eu.

Para continuar a conversa, Crisa disse:

- Mas, segundo a lei inglesa, o dinheiro da mulher que se casar consigo passará a ser seu.

- Pior ainda! - respondeu Mr. Thorpe. - Imagine o que seria, calculo que cada vez que eu gastasse algum dinheiro dela... ela ficava a pensar que eu era um gastador e talvez até me viesse pedir contas por cada tostão...

Na noite anterior, deitada na sua cama, Crisa pensara no que ele tinha dito.

Ele tinha a mesma opinião que qualquer cavalheiro inglês que os pais dela considerassem educado.

Depois, lembrou-se de um facto que a assustou muito.

Quando a sua fortuna fosse conhecida em Inglaterra, encontrar-se-ia numa situação muito semelhante à que tivera em Nova Iorque.

Homens como Thomas Bamburger haviam de querer casar com ela, enquanto que os homens por quem ela se poderia apaixonar lhe virariam as costas.

"Odeio o meu dinheiro! Odeio-o! ", disse para si própria, na escuridão do seu camarote.

Contudo, sabia que tinha sido esse dinheiro a salvar a man     são que estava na família Royden há tantos séculos.

Pelas cartas que o seu pai lhe escrevera, sabia que lhe tinha dado muita alegria, nos seus últimos meses de vida.

Mesmo assim, parecia que alguém lhe perguntava em voz alta:

- Mas... e o teu futuro?

Não sabia o que havia de responder.

Enquanto se vestia, via o sol a brilhar lá fora.

O mar estava razoavelmente calmo e daí a pouco tempo estaria na companhia de Mr. Thorpe, pensou, feliz.

"Se ao menos eu pudesse continuar sempre a ser Christina Wayne", pensou, "não teria mais problemas, nem precisava de ter medo de voltar a ser posta numa gaiola dourada, por causa do meu dinheiro".

Deu uma volta pelo convés, sentindo o sol na cara.

O mar estava lindo e tudo parecia radicalmente diferente de quando andava pelo barco cheia de medo de ser descoberta à última hora.

Deu mais umas voltas pelo convés.

Respondia aos cumprimentos que lhe dirigiam com um sorriso tímido.

Regressou ao seu camarote para se arranjar, antes de ir ter com Mr. Thorpe.

Bateu à porta e, como de costume, foi recebida por Jenkins, que a cumprimentou com um sorriso rasgado:

- Bom dia, miss! Parece um raiozinho de sol!

Crisa preparava-se para lhe responder quando viu Mr. Thor sentado no seu lugar habitual, perto da vigia.

Estava virado para ela e sorria.

Pensou, como tantas vezes fazia, à noite, como ficaria ele sem óculos escuros.

Já tinha reparado que o seu sorriso o fazia parecer mais jovem e mais bonito.

Sentou-se no sítio do costume e Mr. Thorpe disse:

- Podes ir, Jenkins! Não sei se o ar livre te vai fazer parecer um raio de sol, mas pelo menos vai fazer-te bem à saúde...

Jenkins voltou a sorrir para Crisa.

- Tome bem conta dele, miss - disse.

Saiu, fechando a porta com algum barulho.

Crisa riu.

- O seu criado parece que saiu de um romance ou de uma peça teatral - disse. - Nunca se sabe o que é que pode lembrar-se de dizer.

- Tem grande valor para mim - respondeu Mr. Thorpe. Mima-me como se fosse uma ama e dá-me sermões como os meus tutores costumavam fazer.

Riram os dois e depois Crisa perguntou, segurando o bloco de papel sobre os joelhos:

- O que é que vamos fazer hoje?

- Tenho estado a pensar - disse Mr. Thorpe com uma voz pausada -, em parte por ser tão eficiente e me ter ajudado tanto, que talvez fosse boa ideia eu escrever um livro.

- Escrever um livro? - repetiu Crisa, espantada.

- A ideia não foi minha, há muitos anos que os meus amigos me falam nisso.

Fez uma pausa e continuou:

- Sugeriram-mo porque eu tenho estado em muitas partes do Mundo e tenho tido experiências invulgares, para um viajante vulgar.

- Gostava que me falasse dos lugares que visitou - disse

Crisa, um pouco pensativa. - Tenho a certeza de que, se conseguir falar deles num livro, tão eloquentemente como me descreveu as suas visitas à Grécia, esse livro será um sucesso!      

Já tinham conversado várias vezes sobre a Grécia.

- Duvido muito! - riu Mr. Thorpe. - De qualquer modo, a Grécia é muito diferente dos outros lugares onde tenho estado.

Já tinham falado várias vezes da Grécia.

Ele parecia sempre muito impressionado, e não só pelo país. Falaram acerca da sua história e da influência que os gregos antigos exerceram sobre o mundo civilizado.

Conversaram tal como ela costumava fazer com a mãe.

Agora, Crisa lamentava não ter tomado nota do que Mr. Thorpe tinha contado.

Em vez de ditar, como costumava fazer, Mr. Thorpe começou a falar dos locais que gostaria de incluir no livro, como se estivesse a arrumar as ideias.     

Falou da Índia e de vários sítios na Malásia.

Descreveu, também, o Japão e a Turquia e o Norte de África, mais próximos.

Crisa fez várias perguntas.      

Ele respondeu-lhe sempre com alguma reserva, o que ela não compreendia.     

Quanto mais ele falava, mais ela se convencia de que todas aquelas viagens tinham sido secretas.

Deviam estar relacionadas com as cartas, que ele ditara em código, com a facada no braço e o ferimento na testa.   

Sabia que não valeria a pena fazer-lhe nenhuma pergunta directa sobre essa época da sua vida.       

Ao mesmo tempo, as suas descrições fascinavam-na.

Desde o Ganges, na Índia, aos templos Zen, no Japão, e aos estranhos costumes árabes, em África.

O tempo passava num instante e sempre que Jenkins vinha dizer que estava na hora do almoço, Crisa mal podia acreditar que já tivessem passado tantas horas.

Era sinal de que teria de deixar Mr. Thorpe.

Sabia que, como praticamente não via, ele não gostava que ninguém o visse comer.

Nunca lhe tinha sequer oferecido um chá, enquanto trabalhavam.

Mas nesse dia ficou espantada ao ouvi-lo dizer.

-Jenkins, como Miss Wayne e eu falámos muito hoje, penso que era uma boa ideia bebermos uma taça de champanhe antes do almoço.

- Perfeito, sir - respondeu Jenkins. - E vai fazer-lhe bem. Sempre achei que o champanhe é um tónico melhor do que todos os que o médico lhe tem dado!

Quando ele saiu, Crisa soltou uma gargalhada.

- Ele tem uma resposta para tudo!

- Muitas pessoas acham-no impertinente - respondeu Mr. Thorpe -, mas tem bom coração e isso é que é importante.

- Claro! - concordou Crisa.

Nesse momento, lembrou-se de Nanny. A seu modo, era parecida com Jenkins.

Seria maravilhoso poder estar com ela outra vez, esquecer como tinha andado assustada e triste durante o último ano.

- O que é que a está a entristecer? - perguntou, de súbito, Mr. Thorpe.

A pergunta sobressaltou Crisa.

- Entristecer? Eu?... - repetiu.

- Estava a pensar em coisas tristes.

- C... como... é que... sabe?

- Sinto-o, e tratam-se de emoções demasiado fortes para uma pessoa ainda tão jovem, que devia gozar todos os minutos de vida.

- E estou a gozar... este momento.

-Como há muito tempo não o fazia. Conte-me porquê. Apeteceu-lhe muito abrir-se com ele.

Contar-lhe o medo que sentira ao casar com Silas Vanderhault.

Como se sentira prisioneira na casa dele, como receara nunca conseguir escapar.

Mas considerou que não estaria certo confessar que o tinha enganado.

Seria uma tolice confessar que não era quem fingia ser. "Sou Christina Wayne", murmurou para si própria, com firmeza, "e assim será durante muito tempo".

Sabendo que Mr. Thorpe esperava uma resposta, disse:

- Sinto-me muito feliz neste momento e gostaria de lhe agradecer por me deixar trabalhar consigo. Senão, teria de estar sempre sozinha, sem ninguém com quem conversar.

- A propósito do seu trabalho - disse Mr. Thorpe -, ainda não me disse quanto é que eu lhe devo, ou talvez prefira fazer contas no final da viagem.

- S... sim... sim... claro... isso é uma óptima ideia - disse Crisa rapidamente.

Teve vontade de dizer que não queria o dinheiro dele, que não era preciso pagar-lhe nada.

Mas sabia que isso pareceria muito estranho.

Ele acharia uma atitude extremamente invulgar, da parte de uma secretária.

- Aproveito para lhe dizer, Crisa - declarou -, que tem sido muito importante para mim. Ter-me-ia sido insuportável ficar aqui sentado, às escuras, dia após dia, sem ninguém com quem conversar, a não ser o Jenkins, claro.

Ia a dizer qualquer outra coisa quando a porta se abriu e Jenkins entrou, trazendo o champanhe.

Tinha a temperatura ideal, portanto devia estar guardado num frigorífico, a pedido de Mr. Thorpe.

O criado serviu duas taças.

Estendeu uma a Crisa e colocou a outra na mão de Mister Thorpe, que ergueu a sua taça.

- A uma pessoa muito eficiente e muito bondosa, que só me pode ter sido enviada pelo Monte Olimpo.

O brinde apanhou-a de surpresa.

Ficou a olhá-lo, pensando no que quereria ele dizer com aquilo.

Esperava ver um ar trocista nos seus lábios, como se ele estivesse a brincar com ela e consigo próprio.

Mas, como já tinha aprendido a ler os pensamentos dele na sua boca, em vez dos olhos, viu que estava a ser absolutamente sincero.

Corada, respondeu:

- É um brinde muito bonito, e lembrar-me- ei sempre dele, quando pensar nestes dias passados no meio do Atlântico, em que parecemos duas pessoas dum outro planeta. Esperou um pouco e continuou:

- Que não têm algum contacto com o mundo que deixaram nem com o mundo que as espera.

Falou com ar sonhador e Mr. Thorpe disse, pausadamente:

- Sinto-me muito agradecido a este planeta, como lhe chamou, onde nos encontramos.

Passou-lhe pela cabeça que a sua mãe talvez considerasse demasiado inconvencional o facto de ela passar tanto tempo com um homem, a sós.

Também lhe pareceu que não tinham nada a ver com mais ninguém a não ser um com o outro.

Até parecemos marido e mulher, pensou Crisa. Corou novamente, pois pareceu-lhe uma ideia indigna de Mr. Thorpe. Acabou de beber o seu champanhe e, quando se levantou, ele disse:

- Eespero-a às três, e talvez comecemos a escrever o primeiro capítulo do livro que tenho em mente.

- Parece-me óptimo! - exclamou Crisa.

Enquanto almoçava, sozinha, na sala de jantar, só conseguia pensar no livro.

De uma das mesas maiores vinha muito barulho. Os passageiros riam, brincavam e chamavam uns pelos outros.

O ar sério e contido que apresentavam no início da viagem já tinha desaparecido.

As mulheres pareciam mais atrevidas, agora.

Mas eram, certamente, muito elegantes e atraentes.

Mister Thorpe apreciaria da mesma forma a sua companhia se não estivesse cego?

Se a comparasse àquelas mulheres achá-la-ia muito aborrecida e, seguramente, muito inglesa.

Quando acabou de almoçar, dirigiu-se ao seu camarote. Estendeu-se no que a criada já tinha transformado em sofá. Começou a ler um dos romances que trouxera da biblioteca. Era uma história interessante.

Certas partes fizeram-na pensar nas belas mulheres que acabara de ver.

A maneira como olhavam para os homens, e o modo como eles as olhavam, era, sem dúvida, excitante.

Era triste pensar que nunca ninguém a olhara assim. Talvez isso nunca chegasse a acontecer.

- Um dia - dissera-lhe a sua mãe, há muitos anos -, minha querida, espero que encontres um homem tão maravilhoso como o teu pai, que se apaixone por ti e te faça sentir tão feliz como eu me tenho sentido desde que me casei com ele.

- O pai foi o único que quis casar contigo?

A mãe sorriu.

- Tive três, não, quatro propostas antes de conhecer o teu pai, mas, assim que o vi, percebi logo que ele era o único que me interessava e o que eu amaria toda a minha vida.

- E ele sentia o mesmo por ti, mãe?

- Precisamente! Quando entrou na sala de baile e me viu dançar, disse ao amigo que o acompanhava: "É com aquela que me vou casar. Tenho de arranjar maneira de sermos apresentados."É isso mesmo que eu quero, pensou Crisa, "alguém que me ame por aquilo que sou e não por outras razões.

Mas pensava que o que acontecera com a sua mãe só acontecia uma vez num milhão.

Ela nunca teria tanta sorte.

A sua fortuna era uma desvantagem.

Nunca conseguiria acreditar que um homem se interessasse por ela própria e não pela sua fortuna.

Esse pensamento deprimia-a.

Olhava o relógio desejando que as três horas chegassem depressa, e que pudesse voltar para junto de Mr. Thorpe e conversar com ele.

Como de costume, encontrou-o na companhia de Jenkins, que disse, quando ela se sentou:

- Vou-me agora embora, sir. Podia, talvez, mandar um criado chamar-me quando Miss Wayne estiver pronta para sair.

- É o que farei, Jenkins - concordou Mr. Thorpe. - Diverte- te!

- Se eu não me divertir, não será por falta de vontade! disse Jenkins, bem-humorado, ao sair do camarote.

Crisa olhou para ele, à espera de uma explicação, e Mr. Thorpe deu-lha:

- O Jenkins confessou-me que conheceu uma jovem e bonita francesa no convés da segunda classe, e está muito interessado em convidá-la para dançar, uma noite destas, o que só será possível se eu conseguir convencê-la a ficar aqui comigo...

Crisa abriu muito os olhos, espantada, mas apressou-se a dizer:

- Claro... Teria muito prazer.

- Não quero que se sinta obrigada - disse Mr. Thorpe -, mas o Jenkins recusa-se a deixar- me sozinho e eu gostava que ele se divertisse um pouco, enquanto pode.

- Claro, claro - concordou Crisa.

- Bem, tenho estado a pensar no meu livro.

- Também eu! Tenho a certeza que vai querer começar pela Grécia, já que é um país que lhe diz tanto.

- Também pensei nisso - disse Mr. Thorpe - e acho muito adequado pois, para mim, você faz parte da Grécia.

Crisa pegou no lápis.

- Estou pronta - disse, entusiasmada.

Depois, soltou uma pequena exclamação de aborrecimento.

- O que foi? - perguntou Mr. Thorpe.

- Parti o bico do lápis - disse ela -, tenho de o ir afiar. Levantou-se e colocou o bloco de papel sobre a cadeira.

- Encontrará um canivete dourado numa gaveta, no camarote ao lado - disse Mr. Thorpe. - No que é suposto servir de toucador, tenho a certeza que Jenkins o arrumou ao pé do meu relógio de bolso.

- Vou ver - disse Crisa.

Saiu pela porta de comunicação.

Dirigiu-se ao toucador, sobre o qual havia um espelho grande, e abriu a gaveta.

Estava cheia de gravatas e de lenços, todos cuidadosamente arrumados.

Procurou outra gaveta e encontrou uma, na mesa-de-cabeceira.

Abriu-a e, para sua grande surpresa, descobriu um revólver. Sabia que se tratava de um modelo muito moderno, pois o seu pai tinha-lhe mostrado uma gravura dele.

Ficou a olhar para a arma, pensando que estava ali a confirmação das suas suspeitas.

Mister Thorpe tinha inimigos e recebera aquela facada de um deles.

Do outro lado da cama também havia uma gaveta, mas não encontrou nenhum canivete dourado.

Crisa lembrou-se então que, quando, na tarde anterior, tinha ido à biblioteca trocar o romance, reparara que havia lá uma série de lápis.

Tinha visto, também, algumas canetas em cima das secretárias.

Sem incomodar Mr. Thorpe, abriu a porta que dava para o corredor.

Deixando-a entreaberta, desceu o corredor em direcção à biblioteca.

Ficava a pouca distância da suite.

Tal como esperava, encontrou dois lápis bem afiados na secretária que ficava mesmo ao pé da porta.

Pegou num deles e voltou, rapidamente, entrando pela porta, que deixara aberta e que fechou, sem fazer barulho.

Nesse momento, ouviu a porta da sala de estar fechar-se e Mr. Thorpe perguntar:

- És tu, Jenkins?

Ouvia-se nitidamente uma chave a girar na fechadura. Então, uma voz de homem respondeu:

- Não, Thorpe, se é este o nome que usas, agora. Finalmente, apanhei-te a sós, já estava farto de esperar por isto.

- Então és tu, Kermynski - disse Mr. Thorpe, devagar. Ao falar, tiroú os óculos escuros.

- Embora tenhas conseguido esconder-te tão bem - respondeu o homem -, devias calcular que, mais cedo ou mais tarde, eu acabava por te encontrar.

- Depois da última vez que me atacaste - disse calmamente Mr. Thorpe -, eu tinha esperança de, pelo menos, conseguir chegar a Inglaterra em paz.

- Aí é que te enganas! - respondeu o homem chamado Kermynski.

Crisa ouviu-o falar em inglês fluente mas, pelo sotaque, tinha a certeza de que era russo.

Percebeu que Mr. Thorpe estava em perigo, mas não sabia o que havia de fazer.

Quando tentava chegar à campainha, para chamar um criado, ouviu Kermynski dizer:

- Tenciono matar-te, Thorpe, mas, primeiro, vais dizer-me os nomes dos teus homens nos três lugares que me interessam.

- Pensas mesmo que eu faria uma coisa dessas? - respondeu Mr. Thorpe.

A sua voz tinha, agora, um tom trocista.

- Vais ver que é impossível não o fazeres - respondeu Kermynski -, assim que eu te der uma facada por cada nome que te recusares a revelar-me.

A sua voz tornou-se mais forte até ficar feroz como a de um animal selvagem, quando disse:

- Estás a ver esta faca que tenho na mão? Pois hei-de furar o teu peito com ela por cada vez que te recusares a responder-me e, por fim, espeto- ta no coração e morrerás, como devias ter morrido da última vez que nos encontrámos!

Foi então que Crisa teve a certeza de que fora Kermynski quem infligira aquele golpe profundo no braço de Mr. Thorpe.

Também tinha sido o autor do ferimento na testa. Donde estava, não via o que se passava.

Mas, pelo que ouvia, tinha a certeza de que o russo atacara Mr. Thorpe e, agora, o ameaçava.

Respirou fundo.

Depois, em bicos dos pés e no maior silêncio, dirigiu-se para um dos lados da cama.

Abriu a gaveta onde tinha visto o revólver e pegou nele. O seu pai ensinara-a a disparar há alguns anos, um dia em que estivera a experimentar uma arma nova.

O revólver não era muito pesado e estava carregado com seis balas.

De novo em bicos dos pés, conseguiu alcançar a porta que dava para a suite.

Espreitou pela frincha da porta.

Tal como tinha pensado, o homem, que não era muito alto, mas era forte, estava de pé, perto da poltrona de Mr. Thorpe.

Ouviu-o dizer:

- Dou-te três segundos para me responderes! Como se chama o teu homem em Moscovo?

- Não faço ideia do que é que estás a falar... - respondeu Mr. Thorpe.

O russo levantou o braço.

Crisa viu que o que ele tinha na mão reflectia a luz que entrava pela vigia e disparou o revólver.

Só quando o fez é que reparou que estava equipado com um silenciador.

Em vez de uma grande explosão, só se ouviu um leve pingue" quando a bala saiu do cano.

O homem que estava debruçado sobre Mr. Thorpe tropeçou e virou-se na direcção dela.

Nesse momento Crisa voltou a disparar, atingindo-o no peito. Caiu lentamente, batendo com as costas no chão. Enquanto ele ali jazia, ela empurrou a porta e atravessou o camarote, em direcção a Mr. Thorpe.

Este tinha-se levantado, quando o russo caíra.

Crisa lançou-se nos seus braços, falando incoerentemente:

- Eu... matei-o... eu... matei-o!

Mister Thorpe agarrou-a com o braço direito e disse, numa voz calma:

- Muito obrigado, Crisa. Salvou-me a vida.

- E... ele... está morto? Ele já... não... pode... fazer-lhe mal? - perguntou Crisa.

Ela não conseguia olhar para o russo, que jazia no meio do chão.

- Ele está morto - disse Mr. Thorpe.

Voltou a pôr os óculos escuros e continuou:

- Agora, escute o que lhe vou dizer, é muito importante que faça exactamente o que eu lhe vou dizer...

Crisa tremia e tinha uma enorme vontade de chorar.

- Foi muito corajosa, maravilhosa - disse ele -, mas não posso permitir que se envolva em algo que, como calcula, ia exigir muitas explicações.

Tirou o seu braço da mão dela, com muito cuidado, para não a fazer cair.

Depois de se ter sentado outra vez, disse-lhe:

- Dê-me o revólver.

Crisa não tinha reparado que ainda o segurava na mão. Embora estivesse a tremer tanto que mal conseguia mexer-se, estendeu a arma a Mr. Thorpe.

Estava tão agitada que se tinha esquecido de que ele não via.

- Primeiro, antes de se ir embora - disse ele, ainda numa voz calma-, quero que limpe as suas impressões digitais. Compreendeu?

- S... sim.

- Tenho um lenço no bolso interior.

Ela debruçou-se e retirou-o.

Era um lenço de linho branco e cheirava a água-de-colónia. Limpou o revólver, como ele lhe tinha dito que fizesse. As suas mãos tremiam tanto que teve medo de o deixar cair para o chão.

Quando achou que o revólver estava bem limpo, embrulhou-o no lenço e colocou-o na mão de Mr. Thorpe.

Ele agarrou-o e disse:

- Agora, Crisa, vá para o seu camarote e fique lá. Não volte aqui sem que eu a mande chamar, e se alguém lhe perguntar o que se passou aqui, o que não é muito provável, diga que não sabe de nada. Está bem claro? Não sabe de nada!

- Eu... percebi - disse Crisa -, mas... o que é que vai fazer?

- Quando ficar sozinho, chamo umas pessoas para me ajudarem - disse Mr. Thorpe -, não se preocupe. Acabou com o meu inimigo e pode acreditar que agora já não corro perigo.

- T. tem a certeza. que. não vão aparecer. mais? perguntou Crisa, cheia de medo.

- Se aparecerem, saberei defender-me - disse Mr. Thorpe -, e pode ter a certeza de que lamento ter sido tão descuidado a ponto de deixar o revólver no outro camarote em vez de o ter tido sempre comigo.

Nervosa, Crisa olhou para o homem que continuava caído no chão.

Distinguia perfeitamente a cara dele.

Pelas maçãs do rosto salientes Crisa teve a certeza de que era de facto um russo.

Embora ela o tivesse atingido com dois tiros, não tinha um aspecto muito assustador.

Parecia um homem vulgar, desagradável, tal como devia ter sido em vida.

Adivinhando o que ela estava a pensar, Mr. Thorpe disse:

- Vá lá, Crisa, obedeça-me, eu mando chamá-la assim que for possível.

- Promete? Pro... mete, que me... manda... chamar?

- Prometo!

Passando o mais longe possível do cadáver do russo, Crisa dirigiu-se para a porta.

Abriu-a, mas não pôde deixar de olhar para trás. Mister Thorpe estava sentado, muito direito, na poltrona habitual, e o sol que entrava pela vigia iluminava-lhe a cabeça, como se fosse uma áurea.

Depois, Crisa olhou para o cadáver, grande e repugnante, que estava estendido aos pés dele, e estremeceu.

Então saiu do camarote.

Correu o mais depressa que conseguiu, entrou nos seus aposentos e fechou a porta à chave.

Deixou-se cair no sofá e desatou a chorar.

Como era possível, como podia ter acontecido uma coisa daquelas?

Tinha matado um homem, ela, que sempre dissera ao pai que não suportava ver matar nada!

Sempre se impressionara ao pensar que as galinhas que comiam eram mortas.

Mesmo o facto de se terem de exterminar os ratos, nos estábulos, a incomodava.

"Eu... matei... um homem! ", pensou.

Só nesse momento é que reparou que, se não o tivesse feito, Mr. Thorpe é que estaria, agora, morto.

Quando pensou nele a receber uma facada do russo, depois de este o ter torturado, sentiu o coração pular-lhe dentro do peito.

Por incrível que parecesse, nesse momento Crisa teve a certeza de que amava aquele homem estranho, cujos olhos nunca tinha visto.

 

           CAPÍTULO SEXTO

Sentada no seu camarote, à espera, cada minuto lhe parecia uma hora e cada hora um século.

Estava ansiosa por saber o que se estava a passar. Mas, por outro lado, não se atrevia a desobedecer a Mr. Thorpe, saindo do seu camarote.

Tinha visões em que ele era preso por assassínio. Outras vezes, via o comandante pô-lo a ferros ou qualquer outra coisa terrível acontecer no navio.

De repente, Crisa teve uma ideia extraordinária! Se houvesse falatório e publicidade, decerto apareceriam jornalistas.

Sabia como os jornais franceses explorariam o assunto quando tivessem conhecimento dele.

Certamente que um dos passageiros, ou dezenas deles, teria o maior prazer em contar o que se tinha passado à imprensa francesa, assim que chegassem ao Havre.

Se houvesse uma acusação, Mr. Thorpe nunca conseguiria, por mais que tentasse, evitar que o nome dela aparecesse nos jornais.

Era certo que apareceria como Miss Christina Wayne". Mas, mesmo assim, os Vanderhaults haveriam de tentar entrar em contacto com ela.

Para lhe perguntar se conhecia o paradeiro da amiga. A sua cabeça não parava de pensar.

Teve vontade de correr para a suite, e saber o que tinha acontecido a Mr. Thorpe.

Seria interrogado e, tal como lhe dera a entender, confessaria ser o autor do assassínio.

Era uma ideia intolerável, pois Crisa sabia como isso o aborreceria e humilharia.

Além disso, se ele fosse acusado de homicídio ela teria de contar a verdade.

Era essa a possibilidade que mais a assustava.

Que explicação podia ela dar para o facto de usar uma falsa identidade?

Que razão a poderia ter levado a ganhar dinheiro como secretária de um desconhecido?

Tudo pareceria ainda mais estranho, sendo ela tão rica:

Não via saída para o seu dilema!

A não ser que, mas isto era uma possibilidade muito remota, Mr. Thorpe tivesse conseguido, por artes mágicas, silenciar o caso.

"Mas como? ", perguntou-se Crisa. "Como é que ele ia conseguir esconder um cadáver? "

Os minutos iam passando.

Crisa esperou e esperou, mas ninguém aparecia. Por fim, quando eram quase nove da noite, ouviu bater à porta.

Meia hora antes, como não tinha nada para fazer, tinha vestido um dos trajes de noite que comprara no Macy's.

Eram muito bonitos, apesar de extremamente simples, comparados com o estilo elaborado e rebuscado das criações da última moda.

Crisa tinha pensado que, se Christina Wayne existisse realmente, teria escolhido aqueles.

Escolheu, portanto, as suaves cores de tom pastel que lhe ficavam bem.

Mandou, até, tirar das saias e dos corpetes alguns folhos e flores.

Com aquele vestido verde, muito claro, a cor das folhas na Primavera, ela parecia mesmo, embora não o soubesse, uma ninfa saída das águas do mar.

Estava tão preocupada com Mr. Thorpe que nem se dera ao trabalho de se olhar ao espelho.

- E se já o levaram e prenderam? - torturava-se ela. - Ficarei sem saber onde ele está e posso ficar aqui à espera até à meia-noite!

No entanto, sabia que Jenkins não se esqueceria dela. Correu a abrir a porta e viu-o lá fora.

- O meu patrão está à sua espera, miss - disse ele. Falava muito depressa.

E, sem esperar por ela, como costumava fazer, desapareceu pelo corredor.

Ficou a olhar para ele, muito espantada.

Jenkins mostrara um comportamento tão estranho que Crisa ficou ainda mais apreensiva.

Pegou na écharpe de chiffon, que condizia com o seu vestido, e correu em direcção à suite de Mr. Thorpe.

Para sua surpresa, a porta estava aberta.

Entrou e viu que, apesar de ainda não estar escuro lá fora, as cortinas das vigias estavam corridas.

Uma lâmpada eléctrica era a única iluminação. Quando ela entrou, Mr. Thorpe levantou-se do lugar onde costumava estar sentado; ela fechou a porta e foi ter com ele.

Quando os seus olhos procuraram o rosto dele, Crisa ficou parada, a olhar.

Ele tinha tirado os óculos escuros.

Atordoada, Crisa verificou que ele era muito mais atraente do que ela tinha pensado.

Os seus olhos eram escuros, sob sobrancelhas escuras. Olhava-a de um modo tão penetrante que ela se sentiu envergonhada.

Mas, como se mais nada a interessasse a não ser a verdade, correu para ele, dizendo:

- Que... aconteceu? Está... bem? Tenho estado apavorada... a pensar... no que... lhe poderia ter... acontecido.

As palavras pareciam jorrar sem coerência da sua boca.

Mister Thorpe pegou na mão dela e respondeu:

- Tenho muito para lhe contar, Crisa, mas primeiro deixe-me dizer-lhe que é ainda mais bela do que eu esperava e que lhe estou muito, muito agradecido por estar vivo.

- Mas... consegue... v... ver! - gaguejou Crisa.

- Consigo, porque eu não aguentava mais tempo sem a poder ver - respondeu ele. - Assim, tirei os óculos escuros, embora tenha de os voltar a usar durante uns tempos, à luz do dia.

- E... está... bem?

- Estou óptimo.

Enquanto ela ouvia a sua voz, tão calma e confiante, reparou que ele ainda lhe segurava a mão.

Crisa tinha colocado a sua outra mão, inconscientemente, sobre a lapela do casaco dele.

Quando deu por isso, corou, pois pareceu-lhe muito ousado da sua parte, e afastou-se um pouco dele.

Pôs as mãos numa atitude de súplica e disse:

- Por favor. conte-me. o que se passou.

- É o que tenciono fazer - disse Mr. Thorpe -, mas acho

que primeiro temos muitas coisas para festejar, Crisa, por isso mandei Jenkins buscar champanhe.

- Festejar?

Era uma palavra tão inesperada que Crisa ficou a olhar para ele.

Então, adivinhando o que ele queria que ela fizesse, sentou- se numa cadeira, a seu lado.

Ele também se sentou e disse:

- Desculpe-me não lhe ter contado mais cedo o que aconteceu, o que lhe teria evitado muita preocupação...

- Claro que me tenho preocupado - interrompeu Crisa -, pensei... que... se calhar tinha sido... preso!

A dificuldade com que falou e a sua voz trémula revelaram a

Mr. Thorpe como ela se tinha assustado.

Foi então que a porta se abriu e Jenkins entrou, trazendo uma garrafa de champanhe.

Colocou-a sobre uma mesinha, abriu-a e encheu duas taças.

Crisa ficou calada, até que ele lhe estendeu uma, numa salva. Então, conseguiu agradecer-lhe, mas com grande dificuldade, tão estranho e inesperado era aquilo tudo.

Quando pegou numa taça, Mr. Thorpe disse:

- Daqui a pouco desceremos para a sala de jantar, Jenkins, portanto, acaba tu esta garrafa.

Esperou um pouco e acrescentou:

- Bem a mereces, mas talvez fosse mais simpático dividi-la com um ou dois criados.

-Já tinha pensado nisso, sir - respondeu Jenkins -, e de certeza que eles não vão recusar.

Dirigiu-se para a porta e, antes de sair, disse:

- ESpero que goste do jantar, sir. Ouvi dizer que já avisaram o chefe de cozinha de como é exigente.

Jenkins saiu e Crisa virou-se para Mr. Thorpe, cada vez mais espantada.

-Vai... descer para o jantar? - perguntou. - Porquê? Ele sorriu-lhe.

Embora já tivesse reparado em como a boca dele era atraente, verificou que, quando os seus olhos sorriam, era o homem mais fascinante do mundo.

- Porque quero que tenha um bom jantar - disse ele -, mas agora vou contar-lhe rapidamente o que se passou para que as suas preocupações cessem de uma vez.

Crisa inspirou e apertou com os dedos a taça de champanhe. Não disse nada e Mr. Thorpe começou:

- Antes de ter tido a coragem de me salvar a vida, eu estava convencido de que não tinha nenhuma hipótese de sobreviver. Estava nas mãos de um homem procurado por assassínio e por muitos outros crimes, tanto em França como na América.

- Mas por que razão ele... queria... matá-lo? - perguntou Crisa.

- A isso não lhe posso dar uma resposta completa - respondeu Mr. Thorpe -, mas mandaram-me à América para o procurar e, quando o encontrei, conseguiu escapar-se no último momento.

A voz dele baixou de tom:

- Mas ainda teve tempo de me ferir na testa e no braço.

- E... agora que ele está... morto... vai dar muito que falar? E se disser... que o matou... haverá... um julgamento...?

Crisa tremia.

Lembrou-se do que tinha sofrido a pensar nisso tudo, enquanto esperava notícias de Mr. Thorpe.

Este bebeu um golo de champanhe e disse:

- Não haverá julgamento!

- N... não? - repetiu Crisa. - Mas... tem a certeza?

- Pelo menos, tanto quanto eu sei.

- Eu... não... compreendo!

- Pode parecer misterioso - disse ele - e, embora seja contra os meus princípios falar do que aconteceu, acho que, já que teve um papel tão decisivo na exterminação de Ivan Kermynski, tem o direito de saber o que se passou depois.

- Tenho de saber! - exclamou Crisa. - Seria uma grande... crueldade... deixar-me na... ignorância... morta de... curiosidade!

- E muito assustada, também - completou Mr. Thorpe -, e isso é que eu não posso permitir.

- Como é que eu podia não estar assustada - perguntou Crisa -, pensando que podia... ter de encarar... a hipótese de ser enforcado?

- Essa ideia perturbou-a?

A sua voz estava cheia de ternura.

Crisa desviou o seu olhar do dele, receando que o que ia dizer a seguir fosse demasiado revelador.

-Claro que... me... perturbou - respondeu -, eu teria de... aparecer... e dizer que... fui eu quem disparou contra... ele.

- Teria mesmo feito uma coisa dessas?

- Claro... que sim! Ou pensa que eu ia permitir que um... inocente fosse. condenado por assassínio... principalmente...

Calou-se, de repente, e Mr. Thorpe disse, com suavidade: Principalmente tratando-se de mim!

Crisa voltou a corar, e ele disse, com uma voz diferente:

- Não vou fazê-la esperar mais - vou contar-lhe o que se passou.

Bebeu um golo de champanhe e começou:

- Depois de a mandar para o seu camarote, chamei um criado e, quando ele chegou, abri um pouco a porta e disse-lhe: Chame o meu criado, Jenkins, o mais depressa possível, não estou a sentir-me bem. A seguir fechei a porta à chave até Jenkins chegar, dez minutos depois.

Mister Thorpe fez uma pausa e depois prosseguiu, com um sorriso:

- Como deve calcular, Jenkins fartou-se de me ralhar, pelo que aconteceu. Não fui capaz de evitar que Jenkins adivinhasse quem matou Kermynski, quando ele me atacou, salvando-me a vida.

Crisa soltou um grito.

- Acabei de... me lembrar de uma... coisa... horrível!

- O quê? - perguntou Mr. Thorpe.

- Foi por minha... culpa que ele conseguiu entrar na sua suite. Só agora é que reparei! Eu ouvi-o dizer que era a primeira vez que o apanhava a sós... portanto... ele deve... ter-me visto... sair para a... biblioteca.

Mister Thorpe olhava-a admirado, e ela explicou:

- Não encontrei o canivete que me mandou procurar na gaveta, só lá encontrei o revólver. Depois lembrei-me de que encontraria um lápis afiado na biblioteca.

Continuou, com uma voz muito agitada:

- Só demorei... dois minutos. Mas o russo devia ter andado a vigiar a sua suite, portanto... foi o suficiente para ele entrar... sabendo que... ia encontrá-lo... sozinho.

Inspirou profundamente e continuou:

-Peço-lhe... que me desculpe... peço-lhe mil desculpas... por ter sido tudo... culpa minha.

Sem dar por isso, tinha estendido as mãos, numa atitude de súplica.

Ele segurou-as, dizendo:

- Não teve culpa nenhuma. Teria acontecido, mais cedo ou mais tarde, e que outra coisa posso fazer a não ser felicitá-la por me ter salvado, graças à sua esperteza e à sua inteligência?

Os seus dedos eram fortes, firmes e reconfortantes.

Embora tremesse, devido ao choque que tivera ao perceber que era a culpada do perigo a que ele estivera exposto, conseguiu dizer:

- Por favor... continue.

- O Jenkins e eu - continuou Mr. Thorpe, ainda segurando na mão dela - estivemos metidos em maus lençóis, no passado, e Jenkins sabia que não nos interessava absolutamente nada que encontrassem na nossa suite o corpo de Ivan Kermynski e nos pedissem explicações...

- Mas... com certeza que... tiveram de... o... fazer?

- O Jenkins encontrou na algibeira de Kermynski a chave do seu camarote.

Sorrindo, continuou:

- Isso foi muito importante, pois não sabíamos sob que nome viajava, mas apenas que não devia ter usado o seu nome verdadeiro. Depois enrolámos o corpo num tapete.

- Num tapete! - exclamou Crisa. - Porquê?

- Foi assim que Cleópatra viajou, lembra-se, quando se encontrou com Júlio César pela primeira vez, e pode ter a certeza que, desde então, muita gente a tem imitado.

A voz de Mr. Thorpe tinha um tom divertido.

Crisa olhava-o, de olhos muito abertos.

Pensou que Jenkins, depois de o levar dali embrulhado no tapete, devia tê-lo atirado ao mar.

Mas depois lembrou-se que era impossível fazer uma coisa dessas em pleno dia, quando havia sempre tanta gente a passar.

Como se soubesse o que ela estava a pensar, Mr. Thorpe disse-lhe:

- Não, desse modo teríamos dado nas vistas. O Jenkins esperou até o corredor estar livre e depois, com Kermynski ao ombro, completamente oculto pelo tapete, levou-o para o convés inferior.

- O homem não era muito pesado?

- Certamente que sim - confirmou Mr. Thorpe -, mas Jenkins, quando esteve no exército, foi um excelente pugilista, um peso pluma.

Parou e soltou uma pequena gargalhada:

- O Jenkins não parece mas é, segundo ele próprio diz, forte com'um touro".

- E tem mesmo de ser, para carregar com um homem às costas! - exclamou Crisa.

- Levou o corpo para o próprio camarote de Kermynski, e colocou-o no chão, com a faca na mão. Assim, parecia que estivera a lutar com um assaltante, para se defender.

- Para se defender! - repetiu Crisa.

- Depois, dando provas, na minha opinião, de uma esperteza excepcional - continuou Mr. Thorpe -, espalhou em redor vários jornais, franceses e americanos, que descreviam alguns dos seus crimes mais recentes.

Agora a voz de Mr. Thorpe era triunfante:

- Havia várias notícias sobre a incapacidade da Polícia dos dois países em o apanhar.

- Quer dizer - disse Crisa - que, quando as autoridades o descobrirem, saberão imediatamente de quem se trata.

- Precisamente - afirmou Mr. Thorpe. - Tenho de admitir que é muito provável que o corpo de Kermynski desapareça durante a noite e que nunca mais se ouça falar dele.

Crisa fitou-o, espantada.

- Mas... porque é que pensa... assim?

- A resposta é que - explicou Mr. Thorpe -, devido à concorrência intensíssima entre as companhias de navegação dos três países, França, Inglaterra e América, qualquer escândalo, ou qualquer coisa que possa afectar a confiança dos passageiros seria uma grande notícia.

- Creio que percebi - disse Crisa. - Quer dizer que os passageiros do La Touraine ficariam muito chocados, se soubessem que tinha havido um assassínio a bordo.

- Chocados e apreensivos - disse Mr. Thorpe. - Antes de mais nada, as pessoas preocupam-se consigo próprias e com a sua segurança, e a ideia de poderem vir a ser assassinadas nos seus camarotes seria o suficiente para não voltarem a viajar com esta companhia.

Sorriu e continuou, sarcástico:

- Se se desse qualquer tipo de publicidade à morte de Kermynski, a companhia de navegação ia perder passageiros...

- Então... pensa mesmo - disse Crisa -, que não... voltaremos... a ouvir falar desse... homem horrível?

- Quase que apostava... - respondeu Mr. Thorpe. - Mas esta noite vamos jantar juntos, o que vai dar muito que falar a esta gente toda.

- Vamos mesmo... jantar os dois... no salão?

- Ficarei muito desiludido se recusar o meu convite.

-Nunca... pensei... nunca acreditei que um dia ia poder jantar consigo.

- Pode chegar à conclusão que é muito aborrecido - observou Mr. Thorpe -, mas deixe-me dizer-lhe que tenho a maior honra e orgulho de jantar em companhia da mais bela mulher deste navio.

- Como é que pode dizer uma coisa dessas - exclamou Crisa -, se ainda não viu mais ninguém?

- O Jenkins disse-me que nenhuma se lhe comparava - disse Mr. Thorpe -, e claro que eu acredito sempre no Jenkins! Crisa não pôde deixar de rir, depois, disse:

- Será que isto... é verdade... parece saído dum romance... e, mesmo assim... o leitor pensaria que era... um exagero.

- Agora, já passou - disse Mr. Thorpe -, e, como não quero pensar mais nesse assunto, o melhor é não voltarmos a falar dele, pelo menos a bordo.

Continuou, num tom um tanto autoritário:

- No que nos diz respeito, hoje não se passou nada de extraordinário, a não ser não termos começado o primeiro capítulo do meu livro, como eu queria, mas fá-lo-emos amanhã.

Crisa sabia que aquilo era uma ordem e não se atreveu a desobedecer.

Mister Thorpe ergueu a sua taça de champanhe:

- A uma deusa grega - disse - que desceu do Olimpo para me honrar com a sua companhia.

O modo como falou fez Crisa sentir-se tímida.

Mesmo assim, conseguiu soltar uma pequena gargalhada.

- Não posso responder ao seu brinde de outra maneira - declarou - a não ser dizendo "ao seu livro, e que seja um grande êxito! ".

- Creio que isso depende de si.

Levantou-se e ela percebeu que, apesar de ainda ter o braço ao peito, vestia um fato de gala.

- Tem a certeza de que não era melhor usar os óculos escuros? - perguntou. - As luzes do salão são muito fortes.

- Vou contar-lhe um segredo - disse Mr. Thorpe. - Já os podia ter tirado há dois dias, ou, pelo menos, ontem, mas tive as minhas razões para não o fazer.

Crisa sabia que elas se relacionavam com a sua relutância em revelar porque perseguira o criminoso russo.

E, também, com a razão pela qual escrevera, em código, a alguém com o nome de "Edward".

Receava que ele a achasse impertinente se lhe fizesse mais perguntas.

Portanto, seguiu-o até à porta, que ele abriu, convidando-a a sair à sua frente.

Desceram para a sala de jantar.

Como Mr. Thorpe previra, a sua chegada provocou alguma agitação.

Muitas pessoas interromperam as suas conversas e voltaram-se, para os ver.

Dirigiram-se para uma mesa de duas pessoas, mais bem situadas do que aquela a que Crisa costumava sentar-se.

Mal eles se sentaram, começaram a ouvir um burburinho, certamente constituído por comentários a seu respeito.

Era evidente que Mr. Thorpe, ou melhor, Jenkins, tinha encomendado uma refeição diferente da que estava a ser servida aos outros passageiros.

Estava mais do que deliciosa, Crisa percebeu que se tratava de cozinha francesa no seu melhor.

Com cada prato foi servido um vinho diferente.

Embora só provasse um pouco de cada, Crisa achou todos excepcionais.

Tinha a certeza de que só os serviam a passageiros muito especiais.

Sentada em frente daquele homem atraente e fascinante, Crisa sentia que ele a olhava de um modo que a fazia sentir-se envergonhada.

Mas, por outro lado, fazia o seu coração bater de uma maneira diferente.

Embora conversassem sobre muitos assuntos, todos eles acabavam por ter um carácter pessoal.

Mister Thorpe estava tão elegante que se destacava entre os outros cavalheiros e as senhoras o olhavam com admiração.

Crisa teve vontade de gritar: Ele é meu... meu! Então, sentiu que o coração lhe gelava.

Faltavam apenas três dias para o fim da viagem, depois nunca mais voltaria a vê-lo.

Pela primeira vez desde que planeara a sua fuga, a ideia de ir viver com Nanny em Huntingdonshire não lhe pareceu já tão atraente.

Foi com dificuldade que afastou o pensamento de como seria o seu futuro.

Fez o possível por aproveitar aquele momento em que estava na companhia de Mr. Thorpe.

Pareceu-lhe que conseguia ler os pensamentos dele, e não era só por observar os movimentos dos seus lábios.

Lia-os, também, nos seus olhos.

O jantar estava a chegar ao fim e muitos passageiros saíam para ir dançar.

- Uma noite destas - disse Mr. Thorpe -, convido-a para dançar, mas penso que teve um dia muito cansativo e que devia ir descansar.

Os lábios de Crisa tremiam, de vontade de lhe dizer que não o queria deixar.

Mas conteve-se, dizendo a si própria que seria muito atrevida se lho revelasse.

Se havia quem precisasse de descansar era, certamente, ele.

- Acho que não devia dançar antes de o seu braço estar completamente curado - respondeu - e não precisar de o trazer ao peito.

- O meu braço afectado é o esquerdo - respondeu Mr. Thorpe -, portanto sou perfeitamente capaz de a segurar e pretendo fazê-lo, a não ser que se recuse a dançar comigo.

- Sabe... que eu... não faria... uma coisa dessas.

- Porque não?

Aquela pergunta tinha um duplo sentido.

Sentindo-se, mais uma vez, atrapalhada, desviou o seu olhar do dele e disse:

-Creio que... tem razão... devemos... deitar-nos... cedo. Levantou-se e saiu, seguida por Mr. Thorpe.

Quando chegaram à porta da suite dele, Crisa disse:

-Quero agradecer-lhe um... jantar tão maravilhoso... tão diferente... das vezes em que comi sozinha!

Mister Thorpe abriu a porta e disse:

- Quero mostrar-lhe uma coisa. Crisa entrou e ele fechou a porta.

Só havia uma luz acesa, como antes de descerem para jantar. Durante uma fracção de segundo, Crisa lembrou-se que há pouco tempo estivera ali no chão um corpo, o de Kermynski, que ela própria tinha matado.

Mister Thorpe estava atrás dela.

Pondo as mãos sobre os seus ombros, virou-a para si.

- Não pense mais nisso, Crisa - disse -, agora está tudo terminado e já podemos pensar em nós próprios.

Ela olhou para ele, cuja voz era profunda e estranha. Quando os seus olhos encontraram os dele, sentiu-se enfeitiçada.

- Como já lhe tinha dito - disse Mr. Thorpe -, estou muito feliz por estar vivo e a melhor maneira que conheço para mostrar a minha felicidade é.

Enquanto falava, puxou-a para si.

Sem dar tempo para que ela percebesse o que se ia passar, os seus lábios encontraram os dela.

Crisa não acreditava no que estava a acontecer. O amor que confessara a si própria sentir por Mr. Thorpe

saltou, como uma onda, do seu coração para o dele. Primeiro ele beijou-a devagar, quase com meiguice. Mas, depois de sentir a suavidade e a inocência dos lábios dela, os seus beijos tornaram-se mais insistentes. Beijou-a até Crisa sentir que já não estavam ali. Voavam, por cima das ondas, em direcção ao céu estrelado. Foi perfeito, exactamente como ela pensava que um beijo devia ser.

Só que foi ainda mais maravilhoso.

Todo o seu corpo sentiu uma excitação, um êxtase que ela não conhecia.

Quando Mr. Thorpe ergueu a cabeça, ela só conseguiu murmurar:

- E... era assim... que eu pensava... que um beijo... deveria ser... só que foi... ainda... mais... maravilhoso.

- Nunca tinhas sido beijada?

- Claro que. não!

- Como é possível, sendo tu tão bela, tão absolutamente desejável?

A sua voz estava rouca.

Depois voltou a beijá-la; beijou-a até Crisa se sentir nas alturas mas, ainda, viva.

O que sentia era tão forte que lhe era quase insuportável. Murmurou um som inarticulado e escondeu o rosto no pescoço de Mr. Thorpe.

- Minha querida, meu amor - segredou-lhe ele -, apaixonei-me pela tua voz no minuto em que a ouvi, e todos os dias me apaixono um pouco mais.

- E eu... apaixonei-me pela... tua... boca - sussurrou Crisa. Ele riu e disse:

- O destino prega-nos estranhas partidas. Quando embarquei, ferido e furioso por não ter conseguido os meus objectivos, não podia adivinhar que ia encontrar aquilo que tenho procurado durante toda a vida e pensava que era um sonho impossível.

Crisa murmurou qualquer coisa, mas não disse nada e ele continuou:

- Isso que eu sempre quis encontrar era o amor, minha querida. Eu devia ter calculado que os deuses gregos, que adoro, ouviriam as minhas preces e acabariam por me enviar a própria Afrodite.

- E... eu não sou... nunca teria pretensões de ser... uma deusa... - disse Crisa - mas amo-te... embora só o tivesse percebido... ontem à noite.

- Eu decidi não te revelar o meu amor - disse Mr. Thorpe - antes de te poder ver e tu poderes ver-me a mim.

-És muito bonito... mas... fazes-me... sentir... extremamente tímida.

Ele soltou uma gargalhada.

- E eu adoro ver-te tímida. Começava a desesperar de encontrar uma mulher que não fosse mimada, farta de ser elogiada, lisonjeada, e habituada a ter sempre tudo o que quis.

Com os lábios sobre a testa de Crisa, disse:

- Quero envolver-te em peles, cobrir-te de diamantes, fazer-te esquecer, meu amor, que já tiveste que trabalhar para te sustentares.

Crisa voltou à realidade.

Tentou fingir que não percebera o que ele estava a dizer. Sabia que era impossível dizer-lhe que, muito pelo contrário, era dona de uma fortuna.

Dólares que lhe davam acesso a tudo o que ela quisesse. Mister Thorpe apertou-a mais contra si e disse:

- Temos tantas coisas para fazer, meu amor, e passaremos a nossa lua-de- mel na Grécia.

Crisa sentiu o seu coração parar.

Se não lhe contasse tudo naquele preciso momento, nunca mais o faria.

Tal como ele, encontrara o amor.

Mesmo que não o pudesse conservar para sempre, teria algo para recordar, para conservar na sua memória.

- D... disseste... lua-de-mel? - perguntou.

- Vamo-nos casar - disse Mr. Thorpe -, assim que chegarmos a Inglaterra, e não vamos esperar que passe o tempo do noivado, nem nada disso! Quero que sejas a minha mulher o mais depressa possível.

Como ela não dissesse nada, ele continuou:

- Pode parecer estranho querermos fazer tudo tão depressa, mas eu sinto, meu amor, não que te conheço apenas há alguns dias, mas, sim, que te conheço há muitos séculos.

Continuou, sorrindo:

- Talvez já tivéssemos estado juntos na Grécia, há muitos séculos, e por várias vezes.

Crisa ergueu os olhos para ele e perguntou:

-Acreditas... mesmo... nisso?

- Claro que acredito - disse ele, em voz baixa -, e tenho muitas provas disso, a primeira das quais é que, quando te beijei, senti que fazias parte de mim e que nada nos poderá separar.

Como se o quisesse demonstrar, os seus lábios procuravam os dela.

E de novo a beijou, até ela não conseguir, mais uma vez, pensar em mais nada a não ser o êxtase que ele a fazia sentir.

Ao sentir-lhe o bater do coração, teve a certeza de que ele experimentava o mesmo.

Quando alcançaram o êxtase máximo, Mr. Thorpe disse-lhe:

- Agora, vai descansar, minha querida, em breve poderemos estar sempre juntos, de dia e de noite, e eu tomarei conta de ti, tal como tu trataste de mim, mas hoje estás muito cansada.

- Sim... mas feliz... tão maravilhosa e imensamente... feliz - murmurou Crisa.

- Também eu - respondeu ele. - Eu não sabia que era possível sentir o que estou a sentir agora. Embora tenha sido uma longa procura, encontrei-te, meu amor, e nunca mais te vou perder.

Não ficou à espera que ela respondesse.

Beijou-a até ela sentir um fogo crescer dentro de si, um fogo que tinha sido aceso pelo ardor dos lábios dele.

De um modo quase abrupto ele conduziu-a à porta, dizendo:

- Vai, meu amor, enquanto ainda me é possível deixar-te. Desejo-te, desejo-te de uma maneira que me é insuportável! Mas o futuro pertence- nos.

Sem conseguir dizer nada, Crisa viu-se no corredor. A porta de Mr. Thorpe estava fechada.

Enquanto se dirigia para o seu camarote, sentiu que o fogo que ardia dentro de si ia diminuindo.

As estrelas que brilhavam nos seus olhos tornavam-se mais pálidas.

Como é que eu posso... contar-lhe? Como... é que eu vou... ser capaz de lhe... contar? ", pensava.

Deitou-se. Porém, a pergunta não parava de se repetir, na escuridão.

Desesperada, não encontrava uma resposta.

E o pior é que sabia que nunca haveria nenhuma.

 

             CAPÍTULO SÉTIMO

Os três dias que se seguiram foram os mais felizes que Crisa alguma vez vivera.

Todos os dias, acordava com a sensação de que ia acontecer algo de maravilhoso.

Esperava, impaciente, que chegasse a altura de ir ter com Adrian Thorpe.

Assim que ela entrava na suite, Jenkins saía.

Então, corria para Adrian, que se levantava para a receber. Ele abria os braços para ela.

Ela sentia-se em segurança, sentia que nunca mais ia precisar de sentir medo.

Então ele beijava-a, até se sentirem, ambos, a flutuar no céu. O mundo tornava-se distante e, com algum esforço, ela conseguia dizer:

- Penso que... devias... trabalhar... há tanto que fazer... em relação ao... livro.

Ao falar, tinha a sensação horrível de que nunca o veria acabá-lo.

Mas, pelo menos, ficaria a saber muito sobre o que ele tinha feito, onde tinha estado, as pessoas que tinha conhecido.

Seriam recordações que guardaria para sempre no seu coração.

Ele ditava devagar, para que ela conseguisse tomar nota de tudo sem dificuldade.

Mas não tão lentamente como quando escrevera o que ela pensava serem mensagens em código ao seu amigo Edward.

Às vezes, pensava se seria capaz de lhe falar nesse assunto. Mas tinha a certeza de não ser o desejo dele e que ia pensar que ela estava a ser bisbilhoteira.

Como estava loucamente apaixonada, Crisa não queria fazer nada que lhe pudesse desagradar.

Só queria fazer o que o fizesse amá-la mais, o que a enaltecesse aos seus olhos.

O que não era difícil, pois também ele estava profundamente apaixonado.

- Como podes ser tão absurdamente bela? - perguntou-lhe uma vez.

Crisa riu-se.

- Ainda deves estar cego - disse ela -, nunca ninguém me tinha dito uma coisa dessas.

- Pois fico muito feliz por ser o primeiro - disse ele - e podes ter a certeza, minha querida, de que, quando nos casarmos, serei muito ciumento.

Os seus braços apertaram-na.

- Se te atreveres a olhar para outro homem, acho que serei capaz de te estrangular, ou fecho-te num quarto, como fez o Barba Azul, onde ninguém, a não ser eu, te possa ver.

- Eu não me... importava - sussurrou Crisa -, contanto que te possa ver... a... ti.

Por vezes, ele comparava-a às deusas gregas que admirara toda a vida.

Conversavam sobre elas e ele entusiasmava-se com a semelhança entre elas e Crisa.

Ele passava o dedo pelo seu nariz, pequeno e direito, sobre as suas sobrancelhas arqueadas e pelo contorno bem definido do seu queixo.

Ela sentia-se tocada por chamas e, excitada, oferecia-lhe os seus lábios.

- Amo-te, minha pequena Afrodite - dizia ele -, e penso

que é impossível sentirmo-nos mais felizes do que somos agora, mesmo quando estivermos na Grécia.

Quando estivermos na Grécia!

Naquela noite, as palavras ecoavam na cabeça de Crisa.

A única coisa que detestava era ver as horas passar, pois sabia que, quando a noite chegasse, teria de o deixar.

Almoçavam cedo, na suite dele.

Em seguida, quando todos se encontravam na sala de jantar, davam um passeio pelo convés.

Adrian levava os seus óculos escuros, pois ainda lhe era dificil encarar a luz.

Viam poucas pessoas e depois voltavam para o que Crisa baptizara o seu planeta secreto".

vezes, Adrian ditava partes do seu livro.

Mais frequentemente, sentavam-se a conversar e cada novo assunto era, para Crisa, mais excitante e interessante que o anterior.

- Estar contigo é como estar com uma enciclopédia - disse-lhe.

- Envaideces-me! - respondeu. - Mas vou retribuir o cumprimento, dizendo-te que nunca tinha estado com uma mulher tão culta e interessada pelas mesmas coisas que me interessam.

Isso era verdade, pois eles falavam de toda a espécie de assuntos.

Ela sentia-se agradecida a seu pai por ter sempre falado com ela, mesmo quando era ainda uma criança, de igual para igual.

Além disso, ela lera muito.

Conhecia, portanto, bastante bem, os costumes das terras onde Adrian tinha estado, bem como as diferentes religiões que a Humanidade abraçara desde os começos da civilização.

Falavam da Índia, do Ceilão ou do sânscrito, dos praticantes de ioga e dos faquires que Adrian conhecera durante as suas viagens.

Também discutiam a teoria de reencarnação, a possibilidade de voltar a viver outras vidas.

Mas, por mais que tentasse, Crisa não conseguia esquecer certo tom que ouvira na voz de Adrian.

Foi quando ela lhe perguntou se tinha ido à América procurar uma esposa rica.

- Só a ideia me é repugnante! - tinha ele respondido. - Se alguma vez tiver de casar, nunca será com uma mulher que seja mais rica do que eu.

Ela recordava-se do que ele dissera em seguida:

- Imagine o que seria, calculo que, cada vez que eu gastasse o seu dinheiro, ela ficava a pensar que eu era um perdulário e talvez me viesse pedir contas de cada tostão!

"Eu nunca faria uma coisa dessas! pensou Crisa, infeliz. Mas as palavras dele não lhe saíam da cabeça: Só a ideia me é repugnante!

Era exactamente o que ele sentiria por ela.

Como não suportava pensar nessa possibilidade, passou a viver numa espécie de paraíso artificial.

Fingia que aquela situação duraria para sempre. "Porque é que eu hei-de preocupar-me com o futuro, pensava, revoltada, "quando talvez nem haja futuro? Este navio pode muito bem ir parar ao fundo do oceano e era o melhor que me podia acontecer, ao menos ficava ao pé daquele que me ama.

Assim, cada beijo que Adrian lhe dava era melhor e mais precioso do que o anterior.

- É evidente que já te amei, em vidas anteriores - disse ele. - Durante esta vida tenho andado à tua procura e só agora, que te encontrei, é que eu vejo como tenho estado sozinho.

- Tens a certeza de que tens mesmo estado sozinho? - perguntou Crisa. Ele respondeu, com os olhos a brilhar:

- Agora estás a ser indiscreta, mas claro que houve outras mulheres na minha vida e muitas delas eram muito bonitas.

Crisa escondeu o rosto para que ele não visse o ciúme que havia nos seus olhos.

- Mas, quando ouvi a tua voz - continuou ele -, percebi que, se eu as deixava e me fartava delas, era porque não eram como tu.

- Como é possível... teres-te apaixonado... por... uma voz? Crisa conhecia a resposta, mas queria ouvi-lo dizê-lo, mais uma vez.

- Senti a tua personalidade, ou as tuas vibrações, se lhes quiseres chamar assim, no minuto em que entraste por aquela porta - respondeu - e percebi logo que eras diferente, que qualquer coisa se tinha passado, algo tão maravilhoso que eu mal podia acreditar que fosse verdade.

Como ela quisesse continuar a fazer perguntas, ele apertou-a com tanta força que ela quase não conseguiu respirar.

Beijou-a e não foram necessárias mais palavras. Na última noite que passaram no mar, Crisa pensou que, no dia seguinte, aportariam ao Havre.

Só então reparou que aquele conto de fadas estava a chegar ao fim.

Como não queria desiludi-lo, nem ouvi-lo dizer que, dadas as circunstâncias, não poderia casar com ela, Crisa decidiu desaparecer.

"Vou esperar até chegarmos a Londres", pensou, "e depois, quando ele for para casa, digo que vou ficar com uma pessoa de família. Será a última vez que me verá".

Só de pensar nisso, sentia-se desesperada.

Apetecia-lhe gritar de dor.

Mas não lhe restava outra solução.

Quando chegasse à pequena aldeia de Royden, depois de ver Nanny, planearia o seu futuro com a maior sensatez possível.

Era importante não deixar Adrian perceber que as coisas não se iriam passar exactamente como ele tinha previsto.

Ele adivinhava tudo o que lhe dizia respeito, quase que conseguia ler os seus pensamentos.

Teria de ter muito cuidado, para que ele não percebesse que tencionava deixá-lo.

O seu braço tinha melhorado tanto nos últimos dois dias que ele já não precisava de o ter ao peito.

Crisa soubera, por Jenkins, que a ferida estava praticamente sarada.

- Foi o mel! - exclamou, radiante.

- Tenha cuidado, miss, senão ainda pensam que é uma bruxa e mandam-na queimar! - disse Jenkins. - Mas eu tenho que confessar que nunca vi o meu patrão tão bem e tão feliz!

Riu-se para Crisa.

Ele sabia o que eles sentiam um pelo outro.

Quando acordou e, da vigia, viu a costa francesa, apeteceu-lhe ir a correr para os braços de Adrian.

Apeteceu-lhe contar a verdade.

Ele ama-me... ele ama-me o suficiente, disse para si própria. Mas de novo lhe vinham à cabeça as palavras dele, dizendo que a ideia de casar com uma mulher rica lhe repugnava.

A sua montanha de ouro constituiria um obstáculo para qualquer homem, quanto mais um homem tão bem formado como era Adrian.

Amo-o! Amo-o! pensava Crisa, desesperada.

Sabia que, numa situação como aquela, o amor não era suficiente.

Na noite anterior, tinha feito as malas.

Deixando-as prontas para seguir para Londres, Crisa dirigiu-se à suite de Adrian.

Jenkins abriu-lhe a porta.

- Bom dia, miss! - disse, alegre. - O meu patrão está quase pronto!

- Entra, Crisa! - ouviu Adrian chamar.

Entrou pela porta de comunicação e viu que ele já se tinha arranjado.

Não usava os seus óculos escuros e Crisa achou-o extremamente belo, diferente de todos os homens que ela alguma vez tinha visto.

Ele sorriu-lhe e disse:

- Quando estava a fazer as malas, Jenkins encontrou uma fotografia da minha casa, que eu tirei com a primeira máquina fotográfica que possuí. Pensei que talvez gostasses de a ver.

- Claro que gostava! - exclamou Crisa.

Ele virou-se para Jenkins.

- Vai buscar a bagagem de Miss Wayne e põe-na ao pé da minha, assim irá directamente para o nosso camarote.

- Com certeza, sir - disse Jenkins, saindo.

Adrian disse, então:

- Antes de te mostrar seja o que for, quero dizer-te que estás maravilhosa esta manhã e que desejo beijar-te.

Crisa ergueu o rosto para ele.

- Eu... também... o desejo - murmurou.

Ele abraçou-a.

Os seus lábios tinham acabado de encontrar os dela, quando a porta se abriu e, Jenkins entrou no camarote.

Enquanto eles, institinvamente, se afastavam Jenkins disse:

- Estão aqui dois guardas da Súreté para falar consigo, sir. Crisa sufocou um pequeno grito e Adrian mostrou-se tenso. Perguntou:

- Estão na sala ao lado?

- Sim, sir.

- Muito bem, vou recebê-los. Vai buscar a bagagem, como eu disse.

Jenkins saiu para o corredor e Adrian dirigiu-se para a porta de comunicação.

- Espera-me aqui - disse suavemente a Crisa, e saiu. Crisa ficou à espera, ouvindo o bater do seu coração. Embora Adrian tivesse fechado a porta, não estava trancada. Pôde, pois, ouvi-lo, no seu francês perfeito:

- Bom dia, meus senhores, em que vos posso ser útil?

- O senhor é Milord Hawthorpe? - perguntou um dos guardas.

- Sou, sim!

- Temos muita honra em conhecê-lo, sir, e o chefe da Súreté, de Paris, pediu-nos que lhe transmitíssemos os seus melhores cumprimentos.

Fez uma pausa e continuou:

- Vimos pedir-lhe que tenha a amabilidade de aceitar o convite, dele e do primeiro-ministro, para ir imediatamente para Paris em vez de se dirigir, como é sua intenção, já para Londres.

Seguiu-se uma pequena pausa, durante a qual Crisa pensou que não acreditava no que estava a ouvir.

O homem que conhecera e amara como sendo Adrian Thorpe era, afinal, um membro da aristocracia.

Era alguém, Crisa estava certa, muito importante.

- Porque é que não mo contaste? - Crisa teve vontade de lhe perguntar.

Mas só pôde ouvi-lo responder:

- Diz que o primeiro-ministro me quer ver?

- Não apenas o primeiro- ministro - foi a resposta -, mas, também, o próprio presidente. Na verdade, ele já ordenou que pusessem a carruagem presidencial ao seu dispor, para que viaje com o maior conforto possível.

Pelo tom da voz do guarda que falou Crisa percebeu que se tratava de um raro privilégio.

Não se admirou de ouvir Adrian responder:

- Nesse caso, messieurs, terei muita honra em aceitar o convite tanto do vosso presidente como do vosso primeiro-ministro e, sendo assim, mudarei de ideias e seguirei para Paris.

- Merci, monsieur, muito agradecidos.

- Creio que não será demasiado cedo - Crisa ouviu Adrian dizer - para vos oferecer uma bebida. Um copo de xerez, ou preferem outra coisa?

Crisa calculou que ele atravessasse o camarote, em direcção ao aparador.

Durante toda a viagem, estivera bem fornecido, com uma variedade de garrafas e de copos.

Foi então que Crisa reparou que a sua bagagem não podia ser posta no comboio, juntamente com a de Adrian.

Devia seguir, com ela, para o vapor que levaria os passageiros ingleses a Southampton.

Abriu a porta que dava para o corredor e foi à procura de Jenkins.

Para alcançar o seu próprio camarote, teve de passar pelo gabinete do comissário de bordo, que ficava ao cimo das escadas que conduziam à sala de jantar.

Havia muitas pessoas por ali, que se preparavam para apanhar o comboio para Paris.

Apenas alguns passageiros ingleses deveriam atravessar o Canal.

Crisa apressava-se para chegar ao seu camarote, quando ouviu um homem dizer, em inglês, sobrepondo-se a todo aquele falatório em francês:

Preciso de falar imediatamente com Miss Christina Wayne, antes que ela saia do navio!

Crisa ficou tão assustada que parou, petrificada. Olhou para o gabinete do comissário e viu um homem parado à porta, de costas para ela.

Não conseguiu ver-lhe a cara, mas percebeu imediatamente que se tratava de Mr. Metcalfe, o solicitador inglês do seu falecido marido!

Em pânico, correu pelo corredor de onde tinha acabado de chegar.

Não parou na suite onde tinha sido tão feliz, mas continuou até chegar ao fim do corredor.

Sabia que ele acabava numa escada que ia dar ao convés inferior.

Quando chegou à segunda classe, correu pelo corredor. Passou por muitas pessoas, carregadas de bagagem, até que alcançou a prancha de desembarque que ia dar ao cais.

Empurrando, abrindo caminho por entre homens carregados de malas e mulheres que levavam trouxas e bebés, foi dar ao caminho que conduzia ao vapor que atravessava o Canal.

Felizmente que, quando chegara ao La Touraine, tinha explicado que queria ir para Inglaterra.

Assim, o seu bilhete dava-lhe direito a viajar em primeira classe no vapor para Southampton.

Logo que entrou no barco, desceu para a sala de jantar. Sentou-se no canto mais obscuro que encontrou. Já lá se encontravam alguns homens e mulheres de idade. Crisa calculou que os mais jovens e aventureiros tinham preferido viajar no convés.

A sua única preocupação era conseguir a todo o custo fugir de Mr. Metcalfe.

Ele devia ter sido informado, pelo telégrafo, do seu desaparecimento.

Metcalfe e os seus funcionários deviam ter revistado todos os navios que saíram de Nova Iorque desde o dia em que ela desaparecera, na Catedral de St. Patrick.

Os Vanderhaults deviam ser condecorados pela sua eficiência!

Mas Crisa estava aterrorizada.

Tinha a certeza de que a iriam torturar e, de algum modo, coagi-la a voltar para ao pé dos familiares de Silas.

Além disso, Thomas Bamburer estaria à sua espera.

No entanto, Mr. Metcalfe deveria estar mesmo à prucura de Christina Wayne.

Só que, quando a visse, reconhecê-la-ia e a busca teria chegado ao fim.

Ele não pode... obrigar-me... a voltar, pensou Crisa.

Mas Crisa não tinha ninguém que a ajudasse.

Seria quase impossível vencer a vontade e a determinação da família Vanderhault.

Todos os seus conselheiros legais estariam, tal como

Mr. Metcalfe, do lado deles.

Mais uma vez, Crisa estava completamente sozinha.

Desesperada, pensou que, se ao menos conseguisse chegar a Inglaterra, lá encontraria um lugar para se esconder.

Precisava de pensar.

Era-lhe insupurtável olhar para toda aquela gente, ou ouvir o barulho que faziam, rindo e conversando em voz alta.

Tapou a cara com as mãos, tentando concentrar-se.

Ao mesmo tempo, rezava, com uma urgência que lhe vinha do fundo da sua alma, pedindo para conseguir fugir.

- Oh, meu Deus, ajuda-me!

Então, quase gritou, ao sentir alguém tocar-lhe no ombro.

Cheia de medo, olhou e viu que era jenkins.

- O meu patrão mandou chamá-la, miss - disse com naturalidade.

- Eu... não posso, tenho de... ir... embora...

Não conseguiu dizer mais nada.

Nem valia a pena.

Se Adrian a queria, ela não tinha outro remédio senão ir ter com ele.

Mesmo que se arriscasse a ser entregue a Mr. Metcalfe. Jenkins estava à espera.

Ela queria falar, mas não conseguia.

Ele estava a cumprir as ordens do seu patrão e as pessoas em redor não tiravam os olhos de cima deles.

Levantou-se e reparou que, apesar de estar mais bem vestida do que todas as outras pessoas, tinha-se esquecido da sua capa debruada a pele.

Teria tido muito frio, no mar, sem ela.

Mas isso era um problema que já não se punha. Seguiu atrás de Jenkins, do navio de novo para o cais. Sentiu-se como uma criança que se portara mal, tentando fugir da preceptora ou do professor.

Por outro lado, era como uma prisioneira que regressava à prisão, donde não teria mais possibilidade de escapar.

Sentindo o calor do sol, Crisa pensava se deveria teimar em ir já para Inglaterra, conforme planeara.

Mas sabia que não seria capaz de desafiar Adrian. Por essa altura, Mr. Metcalfe já lhe teria feito a sua descrição e ele já saberia quem ela era...

- Despache-se, miss - disse Jenkins, interrompendo os seus pensamentos -, o comboio está à sua espera para partir.

- O... c... comboio? - admirou-se Crisa.

Mal conseguia falar, pois Jenkins andava tão depressa que ela quase tinha de correr para o acompanhar.

Conduziu-a pelo cais onde ela apanhara o navio para Southampton.

Do outro lado do cais estava o comboio para Paris. Perto dele viam-se vários polícias e homens fardados que pareciam agentes da Súreté.

Esperavam à porta de uma das carruagens.

Estava pintada de uma cor diferente e tinha um aspecto importante.

Jenkins fê-la subir as escadas e entraram num compartimento transformado em sala.

Ao meio, muito alto e um pouco assustador, estava Adrian.

Durante um instante ficaram a olhar-se.

Ao ver os olhos dela muito abertos, ele compreendeu como estava transtornada e nervosa.

Em vez de falar com ela, dirigiu-se ao homem que estava à porta, do lado de dentro:

- Agora que Miss Wayne já aqui está, o comboio pode partir, e peço as maiores desculpas pelo atraso, monsieur.

- Merci, milord - disse o francês. - Bon voiage! Saiu, acompanhado de Jenkins.

Ouviram-se vozes, seguidas do longo apito que assinalava a partida.

Um segundo depois, o comboio punha-se em movimento.

- Vem sentar-te - disse Adrian.

Como o comboio começava a andar, ele estendeu o braço para a amparar.

Ela deixou-se cair no assento mais próximo, um sofá, onde ele tomou lugar a seu lado.

Na mesma voz calma, perguntou-lhe:

- Porque é que não me contaste?

- C... como... é que eu... podia? - começou Crisa e, depois, gritou: - O que... estás a fazer? Sabes que eu... não posso... ir contigo... onde está Mister Metcalfe?

Adrian sorriu e respondeu:

- Tantas perguntas, quando eu é que devia fazê-las.

- Não tens... o direito...

- Acho que tenho todos os direitos, já que vou ser teu marido.

Crisa respirou fundo e disse:

- Pensei... que tivesses estado... com... Mister Metcalfe.

- E estive. Ele disse-me que queria interrogar uma tal Miss Christina Wayne sobre o desaparecimento de Mistress Crisa Vanderhault, exactamente no dia em que ela embarcou no La Touraine.

Crisa fechou os olhos e não disse nada. Adrian continuou:

- Eu não acreditei que fosse possível haver duas mulheres tão belas como as que Mister Metcalfe descreveu, e as duas chamadas Crisa.

- Então... agora já sabes... ou, melhor, adivinhaste...

Havia pânico na sua voz, quando continuou:

- Mas onde está Mister Metcalfe? O que é que lhe fizeste? Ele... está... à minha espera... neste... comboio?

-Eu prometi-lhe que, com a ajuda de Miss Christina Wayne, o informarei muito em breve do paradeiro de Crisa Vanderhault.

- Disseste-lhe... uma coisa... dessas?

- Disse e ele pareceu-me muito satisfeito. Deixei-o a beber uma taça de champanhe, na minha suite, e vim para o comboio.

-Então ele não... faz a mínima ideia... que... eu... estou contigo?

- Não, a não ser que seja adivinho.

Crisa suspirou de alívio.

Era como se já conseguisse respirar, outra vez, como se o sangue tivesse voltado a correr-lhe nas veias.

- Quer dizer que, assim vou conseguir... escapar - disse.

- Oh! por favor... por favor... ajuda-me a esconder-me... onde não me possam... encontrar e... obrigar a voltar para... Nova Iorque.

- Isso não é dificil.

- Tu não compreendes... é muito dificil... eles são tantos... e tão... poderosos... e não querem de maneira nenhuma... que eu... os deixe... por isso é que eu inventei a Christina Wayne!

- Foi uma ideia muito inteligente, tens que me contar tudo - disse Adrian. - Mas não quero ver-te tão assustada, não há razão para estares nesse estado.

- Isso é porque... não... compreendes - gritou Crisa -, eu tenho... de me esconder... portanto... tenho muito medo!

- Concordo que tens de te esconder - disse Adrian -, mas eu estou disposto a ajudar-te.

-Vais mesmo... vais mesmo... ajudar-me?

- Claro! E é por isso que nos vamos casar assim que chegarmos a Paris.

Fez-se um silêncio e Crisa olhou-o, incrédula.

Devagar, com muita dificuldade, Crisa disse, hesitante:

- Sabes... que eu não posso... casar contigo.

- Porque não?

- Por causa do meu... dinheiro. Sei o que pensas sobre... as mulheres... com dinheiro... e eu tenho tanto... nunca conseguirei... ver-me livre... dele.

- Quando disse "mulheres com dinheiro - respondeu

Adrian -, era em abstracto, agora estamos a falar de ti.

- Pensas que eu... era capaz de... casar contigo - perguntou Crisa -, depois de te ter... ouvido dizer... que só a ideia te... repugnava e que... nunca quererias... uma mulher mais...

rica do que... tu?

- É isso que eu sinto, em princípio - disse ele -, mas a

verdade, meu amor, é que quero casar contigo, sejas tu pobre como eu pensava que eras, por trabalhares como secretária ou rica como Creso, ou mesmo que tenhas montanhas inteiras de ouro!

- É isso mesmo o que... eu tenho - disse Crisa, quase a chorar.

- Então, arranjaremos maneira de o empregar de um modo sensato - disse Adrian. - Tenciono fazer-te minha mulher e nada que tu possas ter me impedirá de o conseguir.

- Isso não... é verdade... porque tu não... percebeste!

Ele riu e, para ela, foi o som mais alegre que alguma vez tinha ouvido.

Debruçou-se para ela e desfez o laço da sua touca.

Tirou-lha e deitou-a para o chão.

Abraçou-a e, puxando-a mais para si, disse:

- Não sei porque estamos a perder tempo com esta discussão inútil, quando eu podia estar a beijar-te.

Sem esperar pela resposta dela, os lábios de Adrian pousaram sobre os seus.

Beijou-a de um modo possessivo, apaixonado, arrebatador, até ela se sentir incapaz de pensar.

Era impossível sentir outra coisa que não fosse a paixão e o êxtase que ele despertava nela.

Sentiu-se percorrida por frémitos que pareciam raios. Todo o seu corpo desejava fundir-se no dele.

Tinha-se assustado tanto...

Pensara que ia voltar para o cativeiro, pela mão de Mr. Metcalfe e, ao pensar que poderia ter perdido Adrian, as lágrimas correram-lhe pelo rosto.

Entretanto, todo o seu corpo pulsava ao ritmo dos beijos dele.

Adrian segurou o rosto dela e, vendo as suas lágrimas, limpou-as com muita suavidade.

- Não há razão para chorares, minha querida - disse, baixinho.

- Pensei que... como não podias amar-me... nunca mais te... ia ver.

- Pensas mesmo que eu era capaz de te perder? - perguntou ele. - Como é que te atreveste a duvidar de mim, meu amor?

- Eu... eu não acreditava... depois do que tu disseste... que... quando soubesses a verdade a meu respeito... continuasses... a... amar-me.

- Agora sabes que não há, nem nunca haverá, na minha vida, nada que me interesse a não ser... tu.

Beijou-a mais uma vez, e então ela encostou a cabeça no ombro dele e disse:

- Aqueles homens chamaram-te Lord Hawthorpe"! Porque é que não me contaste... quem és?

- Como decerto já deves ter percebido, eu viajava no cumprimento duma missão muito delicada e muito perigosa, também. Tive de sair precipitadamente da América porque tinha sido ferido e, como Kermynski desaparecera, pensei que não valeria a pena lá ficar, para mais sem poder ver.

Crisa soltou uma exclamação de horror.

- Em vez de mandar fazer um passaporte falso - continuou ele -, para o que, aliás, nem havia tempo, usei o que tinha, antes de herdar o título do meu pai. Tive esperanças que Kermynski, um homem muito perigoso e desagradável, não me conseguisse descobrir.

-Mas conseguiu!

- Mas, graças a ti, meu amor, nunca mais me incomodará nem a mais ninguém!

Crisa soltou um grito.

- Tenho sido tão egoísta, sempre a pensar em... mim - disse ela -, que nem... me preocupei... contigo. Não vais ter problemas em Paris?

- Problemas, não, mas receberei muitas felicitações – disse Adrian -, mas tu é que as deverias receber, e não eu!

-Não... claro que... sabes... que eu não quero.

que ninguém pense que eu... estive envolvida na morte dele.

- Como minha mulher - disse Adrian -, nunca mais te verás envolvida em nada do género, nem eu, daqui para a frente.

Apertou-a mais contra si, dizendo:

- Receio, meu amor, que possas vir a achar muito aborrecido viver no campo, olhando pelas pessoas que trabalham na minha propriedade há muitas gerações, inaugurando a exposição anual de flores, sendo uma importante senhora do campo.

O seu modo de falar, ligeiramente trocista, fez Crisa soltar uma pequena gargalhada.

- Sabes que tudo o que eu quero... é estar... contigo - murmurou ela.

- E estarás - disse Adrian. - Mas, primeiro, vamo-nos casar e gozar a lua-de-mel que te prometi, na Grécia, antes de assumirmos as nossas funções em Inglaterra.

Crisa olhou-o, curiosa, e ele disse:

- Não te preocupes com o que se vai passar em Paris. Suspeito que terei de contar, muito secretamente e à porta fechada, a Monsieur Jules Meline, o primeiro-ministro, como me viu livre de Kermynski, mas mais ninguém saberá o que se passou.

- Não existe a possibilidade de teres de ir a... tribunal? perguntou Crisa, em voz baixa.

- Não, nenhuma - respondeu Adrian. - O corpo de

Kermynski foi entregue ao oceano, sem que ninguém desse por isso, na noite a seguir àquela em que foi descoberto, no seu camarote.

Fez uma pausa e soltou uma gargalhada, continuando:

- Se os seus aliados em todo o Mundo ainda o esperam, têm de esperar em vão!

- E mais ninguém pode vir a... ameaçar-te?

- Para começar, nunca ninguém me ameaçou - respondeu Adrian. - Quem foi ameaçado foi o presidente francês, Monsieur Felix Fauré, que Kermynski quase conseguiu assassinar. Contudo, falhou e, quando a Súreté, insensatamente, o deixou escapar, ele conseguiu fugir para a América.

Crisa ouviu-o prosseguir:

- Foi então que, sabendo que eu já tinha sido bem-sucedido numa situação semelhante, há algum tempo, me pediram que encontrasse Kermynski e fizesse os possíveis para que ele não voltasse a atacar o presidente, ou qualquer outra pessoa igualmente importante.

Continuou, sorrindo:

- Como sabes, falhei, mas uma bela mulher, que fingia ser minha secretária, conseguiu-o. Só lamento não poder dar a conhecer ao Mundo que, além de muito bela, ela é, também, muito inteligente.

- Não, não! - implorou Crisa. - Eu não iria suportar! Eu não quero... que ninguém saiba... onde estou... ou quem sou.

- Todos vão saber que me vou casar com uma mulher maravilhosa - disse Adrian. - inglesa, de uma família muito antiga e respeitável.

Crisa fitou-o, boquiaberta.

- C... como é que sabes?

- Mister Metcalfe contou-me que o teu pai era o falecido Robert Royden, que eu conheci.

- Conheceste o meu pai?

- Estive várias vezes com ele, no Tattersall, onde eu ia comprar ou vender cavalos. Sempre o achei encantador e muito culto. Eu devia calcular que a sua filha o fosse, também.

- Mas eu nada sei... a não ser viver no campo e levar uma vida muito... calma - disse Crisa.

Chegou-se mais a ele, dizendo:

- Tenho medo de te. aborrecer. e de que me venhas a achar muito... aborrecida e... ignorante.

- Neste momento - disse Adrian - acho que és muito interessante, muito inteligente e muito inocente. Qualidades, meu amor, que me fascinaram, me cativaram e que me manterão enfeitiçado durante os próximos mil anos!

Crisa riu, mas foi quase a chorar que disse:

- É verdade... mesmo verdade... que posso casar contigo e que não te importas que eu tenha sido a mulher de Silas P. Vanderhault? Foi a única maneira de salvar o meu pai da ruína e, talvez, da prisão.

- Eu calculava que fosse essa a explicação - disse Adrian, pausadamente. - Mister Metcalfe contou-me que o teu marido sofreu um ataque cardíaco na noite do casamento e, quando te beijei, percebi que nunca tinhas sido beijada antes.

- Como podes ser... tão maravilhoso? - perguntou Crisa.

- Mas há, ainda o... problema do... dinheiro... de que eu não conseguirei... ver-me livre.

- Mister Metcalfe também me contou que tentaste fazê-lo, mas tenho a certeza de que, juntos, encontraremos uma maneira de nos vermos livres dele ou, antes, de evitar que ele nos traga mais problemas.

- M... mas... como? - perguntou Crisa. - Os Vanderhaults são uns fanáticos, no que diz respeito ao dinheiro.

E contou, com a voz a tremer:

- Eles queriam que eu... me casasse com um homem horrível chamado Thomas Bamburger, director da companhia de caminho de ferro deles, só para eu nunca mais poder... sair de perto deles... eu e os milhões de dólares que Silas me deixou.

- Não terão nenhum poder sobre ti, depois de te casares comigo - disse Adrian, com firmeza -, e criaremos muitos fundos, meu amor, que não poderão ser rejeitados, como foi a tua proposta, pelos membros da administração Vanderhault, pois serão utilizados para o bem da comunidade.

- Podemos mesmo fazê-lo?

- Como não posso ter uma mulher com tantos dólares - sorriu Adrian -, estou decidido a criar um fundo, em teu nome, para o desenvolvimento da ciência e das ideias.

Beijou-a na testa.

- Também podemos criar um fundo destinado à arte e outro para as crianças pobres, além de outras obras de caridade que precisam de milhões de dólares por ano e, mesmo assim, nunca têm o suficiente.

Rindo, acrescentou:

- A verdade, minha querida, é que em breve verás que precisas do dinheiro do teu marido para qualquer vestido que queiras comprar, para qualquer par de sapatos que precises para os teus minúsculos pés.

- É isso mesmo que eu quero - disse Crisa. - Quero, não só depender... de ti mas, também, estar contigo... e amar-te... sem que... nada nem ninguém possa... interferir.

- Eu garanto-te que será assim!

E, mais uma vez, Adrian beijou-a, com uma determinação e uma paixão tais que provaram a Crisa que nunca mais ia precisar de sentir medo.

-Amo-te! Amo-te! Amo-te! - repetiam as rodas do comboio, a caminho de Paris.

Dois dias mais tarde, Lord e Lady Hawthorpe deixaram Paris. O seu casamento tivera lugar diante do presidente da Câmara, como era obrigatório em França.

Seguira-se uma cerimónia íntima, na igreja da Embaixada inglesa.

- Há muitas coisas, minha bela e adorável mulher, que quero mostrar-te em Paris - disse Adrian -, e muitas outras que quero comprar.

Crisa erguia os olhos para ele, apaixonada.

- Mas é inevitável, uma vez que é impossível guardar um segredo em França, que o nosso casamento seja referido nos jornais.

- Oh, não! - murmurou Crisa.

- Não quero que sejas aborrecida nem incomodada - continuou Adrian - por jornalistas, nem por mais ninguém.

- Mas vamos... para a Grécia - disse Crisa -, para mim não podia haver nada... mais... maravilhoso!

- Claro que iremos à Grécia - respondeu ele. - Quero ver-te no teu ambiente natural. Quero que vás a Crisa, onde a tua mãe teve a ideia de te dar esse nome, e que olhes para os Penhascos Brilhantes de Delfos.

Crisa susteve a respiração.

- Tens de rezar - disse Adrian -, para que os deuses continuem a proteger-nos, como têm feito até agora.

- Eles não podiam ter dado... a mulher nenhuma... um marido mais... maravilhoso - sussurrou Crisa.

- E em lugar algum eu encontraria uma mulher mais bela, adorável e encantadora.

Mais uma vez o presidente tivera a amabilidade de lhes ceder a sua carruagem particular.

Estava ligada ao comboio expresso que os levaria a Marselha. Aí tomariam o iate particular de Adrian.

- Um iate particular! - exclamou Crisa, quando soube. És assim tão rico?

- Estás com medo de descobrir, depois de teres distribuído o teu dinheiro, que afinal eu sou pobre?

- Claro que não! - respondeu Crisa. - Às vezes até desejava que fosses tão pobre como eu e o meu pai fomos, no tempo em que não sabíamos que fazer para pagar as nossas dívidas, e não podíamos ter nenhuns luxos.

Sorriu-lhe, apaixonada, e continuou:

- Então, eu tomaria conta de ti e saberias como eu... te amo tanto.

- Isso já eu sei - disse Adrian -, mas, já que não páras de fazer perguntas acerca da minha vida particular, vou responder-te que sou, de facto, rico.

Fez uma pausa e continuou:

- Tenciono cumprir a minha promessa, querida e, quando voltarmos para casa, vou cobrir-te de peles e diamantes.

Crisa riu-se.

- Não quero nada disso. Quero cavalos para poder montar, contigo, e um lar onde eu possa tomar conta de ti e...

Calou-se e escondeu o rosto no peito dele.

e, talvez... um dia tenhamos... muitos filhos... que não se hão-de sentir tão sós como eu me tenho sentido.

Pelo modo como Adrian a abraçava, Crisa percebeu que o que dissera o tinha excitado.

Os braços dele apertavam-na, os seus lábios não largavam os dela e o seu coração batia-lhe contra o peito.

Enquanto ele a beijava, Crisa pensava que rezaria para que lhe pudesse dar filhos tão belos como ele.

E, o que era ainda mais importante, que fossem tão bons e compreensivos.

Ao jantar, deliciaram-se com a comida que lhes foi servida no comboio.

Em seguida, Crisa sentiu que a cama presidencial, tão grande que ocupava quase todo o compartimento, era muito confortável.

No entanto, só era capaz de pensar que aquela era a sua noite de núpcias.

Quando se tinham ajoelhado, frente ao altar, na igreja da Embaixada britânica, Crisa pensara que se tratava de um sonho.

Tinha a certeza que todo aquele espaço estava cheio com a presença de todos os que amara e as vozes celestiais dos anjos.

Sentiu o seu pai e a sua mãe a seu lado.

Estavam felizes por ver que ela encontrara um amor igual ao deles.

Esse amor ampará-la-ia durante toda a vida.

Crisa sentiu que todos os que se tinham casado naquela igreja haviam deixado ali as vibrações da sua fé.

Agora, elas voltavam para ela sob a forma de uma bênção. Crisa esperava que Adrian sentisse o mesmo.

Quando ele colocou a aliança no seu dedo e repetiu as palavras indicadas pelo padre numa voz sincera e firme, estava tão comovido como ela.

Era o momento mais sublime das suas vidas. Como ele tinha dito, encontrara-a, e ela a ele.

Ficariam juntos para sempre.

Agora, esperando por ele, com apenas uma luz acesa ao lado da cama, Crisa sentia-se percorrida pelo amor que sentia.

Sabia que nunca mais ia estar assustada, como estivera ao casar com Silas Vanderhault.

Nem nunca mais estaria tão desesperada como estivera ao pensar que nunca conseguiria escapar de Nova Iorque.

- Muito obrigada, meu Deus, muito obrigada! - rezou. Foi quando Adrian chegou.

Vestia um roupão comprido, em cujo bolso estavam bordadas as suas iniciais, sob uma pequena coroa.

Nunca nenhum homem lhe parecera tão atraente nem tão distinto.

Ficava mais excitante do que com as roupas elegantes que usara durante o casamento.

Sentou-se sobre a cama, olhando- a. Depois disse:

- Era assim que eu te queria ver. O teu cabelo é tão maravilhoso como eu pensava e o teu rosto é ainda mais belo.

- Era assim... que eu queria que... pensasses - sussurrou Crisa. - Oh! meu amor, ensina-me a fazer... com que sejas feliz e a nunca... te desiludir... de nenhuma maneira.

Ele beijou-lhe as mãos, uma de cada vez, depois percorreu-as com os seus lábios.

- Como é que alguma vez me podias desiludir? Entrou para a cama e disse:

- Pode parecer estranho que passemos a nossa primeira noite num comboio. Mas, até agora, só fizemos coisas extravagantes e originais, portanto, teremos que aceitar mais uma.

Chegou-se mais para ela e abraçou-a.

- Que importa... onde estamos? - perguntou ela. - Quando eu me sentia cheia de medo, no navio, imaginava que estava assim, agarrada a ti.

Respirou fundo, pois sentia-se muito emocionada.

- Eu tinha a certeza - disse-lhe - que, embora não parecesse possível, acabarias por me... salvar.

- Salvei-te, e agora nunca mais vais precisar de sentir medo.

- Sentirei medo se alguma vez... te zangares comigo... ou quiseres deixar-me.

Ele riu, com muita alegria.

- E achas que isso pode acontecer? Tive de lutar contra uma quantidade de forças ocultas para me certificar de que serias minha.

Ele beijou-lhe os olhos.

- Bem vês, eu sabia, meu amor precioso, porque li os teus pensamentos, e porque te amo, que se passava qualquer coisa.

Os seus lábios percorriam o corpo dela.

- Não consegui, claro, adivinhar do que se tratava. Como é que eu podia imaginar uma história tão fantástica?

A sua boca contornava o queixo dela.

- Sabia, apenas, que teria de te convencer a confiar em mim, de te fazer acreditar que pertencemos um ao outro e de que o nosso amor é maior do que tudo o que existe neste mundo.

- Fui idiota... por ter tido medo... e se eu tivesse mesmo... fugido e tu... nunca mais... me... encontrasses?

- Eu ter-te-ia encontrado! - disse Adrian, com firmeza. Eu ter-te-ia encontrado, mesmo que tivesses ido parar ao próprio inferno e agora, meu amor, não voltarei a perder-te e nada nem ninguém te voltará a meter medo.

Depois, voltou a beijá-la; a princípio, muito suavemente, como se estivesse a namorá-la.

Depois, com mais insistência, até ela sentir o seu corpo percorrido por raios, que o incendiavam.

Era tudo tão excitante e maravilhoso que Crisa balbuciou, incoerente:

- A... amo-te. Oh! meu marido maravilhoso, ensina-me... a amar... tenho... medo de... não o saber fazer... bem.

- Basta que me ames, meu amor, mas tenho medo de te assustar.

- Como poderia assustar-me, se... quando... me tocas... e... me... beijas... me sinto... no céu.

- É assim que deve ser, meu amor.

E os beijos tornaram-se ainda mais apaixonados, mais insistentes.

Crisa sentia o coração bater desordenadamente e era tudo tão extraordinário que as lágrimas lhe correram pelas faces.

- Não estás a chorar, pois não, meu amor? - perguntou Adrian, com uma voz tão comovida que quase tremia.

- É só por me sentir tão imensamente feliz - respondeu-lhe Crisa. - Pensei que nunca ninguém me amaria... pelo que eu sou.

Adrian apertou-a ainda mais e disse:

- Agora sabes que eu te amo pelo que tu és. És toda minha - completamente minha e nunca possuí nada tão maravilhoso e tão perfeito.

Enquanto falava, passou a mão pelo seio dela e o fogo tornou-se ainda mais intenso.

Um fogo que parecia consumi-los aos dois.

O seu amor transportou-os pelo céu, onde foram envolvidos pela luz de Apolo.

Adrian levou-a ao topo dos Penhascos Brilhantes, e já não eram humanos, faziam parte do céu, tal como os deuses. 

 

                                                                  Barbara Cartland

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades