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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRISÃO PERPETUA / Ricardo Piglia
PRISÃO PERPETUA / Ricardo Piglia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Narrar é como jogar póquer. disse o pai de Steve. "todo segredo consiste em fingir que se mente quando se está dizendo a verdade. Assim reflete um dos personagens de Prisão perpétua novela que abre este volume. Piglia avança no caminho aberto por seu romance Respiração artificial. as incertezas do relato confundem-se com a história de um crime. Uma mulher na prisão é o centro de um caleidoscópio em que giram e se entrelaçam microscópicos mundos narrativos.
Este volume incluí ainda seis como escritos em momentos diferentes que trabalham com variantes do gênero policial, relato histórico, ficção teórica e do relato sentimental; definem o marco no qual se concentram as histórias deste escritor cujo livro publicado pela Iluminuras-foi escolhido por cinqüenta escritores como um dos dez melhores da literatura argentina.
Ricardo Piglia nasceu em Buenos Aires, Argentina. Romancista, contista e roteirista, publicou Respiração artificial e Nome falso, ambos pela Iluminuras. Traduzido em várias línguas, a crítica o tem apontado como um dos melhores escritores da literatura latino-americana.

 


 


Certa vez meu pai me deu um conselho que nunca pude esquecer: "Também os paranóicos têm inimigos!", me disse, aos berros, pelo telefone, tentando fazer-se entender
a distância, em fevereiro ou março de 1957. Não era um conselho mas eu sempre o tive como tal: uma máxima pessoal que condensa a experiência de uma vida. Essa frase
era o fim de um relato, o cristal onde se refletia a catástrofe. Meu pai tinha estado preso quase um ano porque saiu em defesa de Perón em 55 e de repente a historia
argentina parecia-lhe um complô tramado para destruí-lo.
Criou-se no campo, um médico de província que quando bebia e estava alegre deixava minha mãe furiosa cantando Lapulpe ra de Santa Lucía numa variante obscena que
tinha aprendido num prostíbulo de Trenque Lauquen. Tornou-se peronista em 45 e foi peronista a vida inteira. Os acontecimentos encadearam-se para fazê-lo desistir,
mas ele se manteve firme. Saiu da prisão e continuou reunindo-se com os companheiros do movimento (como ele os chamava) que vinham em casa imaginar a volta de Perón.
Há homens sóbrios e aprumados a quem a desgraça quebra por dentro, sem que se veja. Não sabem se queixar, são cerimoniosos e gentis, pensam que os outros irão agir
com a mesma magnanimidade que eles usam na vida. O ponto de máxima ruptura acontece quando começa o desengano
Cinqüenta e cinco foi o ano da desgraça e 56 foi o da prisão e 57 foi ainda pior. As coisas sempre podem piorar: essa é a tradição dos vencidos.
Estava encurralado e decidiu escapar. Em março de 57 abandonamos meio clandestinamente Adrogué, um subúrbio de Buenos Aires onde eu tinha nascido e onde tinha nascido
minha mãe, e fomos para Mar del Plata, uma cidade que fica quatrocentos quilômetros ao sul da cidade de Buenos Aires. Amontoamos os móveis num caminhão, eu viajei
entre as cordas e as tralhas; sentado num cesto de vime olhava passarem os povoados, as vacas, a mansidão idiota da planície. Em Mar del Plata, o amigo de um amigo
lhe arranjou um lugar para abrir um consultório. Aos quarenta anos ia começar de novo. Procurava animar-se mas não se recuperou mais e antes de morrer, vinte anos
depois, continuava aferrado ao rancor que produz a injustiça.
A história de meu pai não é a história que eu quero contar. A convenção pede que eu lhes fale de mim, mas quem escreve não pode falar de si mesmo. Quem escreve só
pode falar de seu pai ou de seus pais e de seus avós, de seus parentescos e genealogias. De modo que esta será uma história de dívidas como todas as histórias verdadeiras.1
Eu tinha dezesseis anos. Vivi essa viagem como um desterro. Não queria ir embora do lugar onde tinha nascido, não podia conceber que fosse possível viver em outra
parte e na verdade depois disso nunca fez diferença o lugar onde vivi.
Lembro-me do silêncio dos últimos dias, dos amigos de meu pai que vinham no meio da noite despedir-se de nós. O rosto esquivo dos que querem animar-se e não encontram
as palavras. Veja doutor, disse-lhe um velho que ele tinha conhecido na prisão, vão nos perseguir até matar todos nós. Também não é assim, respondeu-lhe meu pai,
tentam nos assustar, não podem matar todo mundo. O senhor os conhece, doutor, respondeu-lhe o velho, são filhos e netos e bisnetos de assassinos. Então meu pai fez
uma brincadeira, mas o clima não se distendeu. Sentados em volta de uma mesa, despediam-se: ninguém conseguia dizer o que os outros queriam ouvir.
*1. Este relato é uma versão do texto lido em abril de 1987 no ciclo "Writers talk about themselves", dirigido por Walter Percy no Fiction today de New York.
Ir embora, para meu pai, foi uma forma de reconhecer que estava fora de jogo. Um homem pode sentir o peso de uma derrota política como se se tratasse de uma dor
pessoal. As notícias dos vencedores pareciam cartas dirigidas diretamente a minha casa.
Nesses dias, em meio à debandada, num dos quartos desmantelados comecei a escrever um Diário. O que eu buscava? Negar a realidade, repelir o que se aproximava. A
literatura é uma forma privada da utopia.
Quinta-feira 3 de março de 1957. (Vamos embora depois de amanhã). Resolvi não me despedir de ninguém. Despedir-se das pessoas parece-me ridículo. Cumprimenta-se
quem chega, quem a gente encontra, não quem se deixa de ver. Ganhei no bilhar, dei duas tacadas de nove. Nunca havia jogado tão bem. Tinha o coração gelado e o taco
batia com absoluta precisão. Pensei que construía as carambolas com o pensamento. Jogar bilhar é simples, é preciso estar frio e saber prever. Depois fomos para
a piscina e ficamos até altas horas. Mergulhei do trampolim maior. Lá do alto as luzes da quadra de tênis boiavam na água.
Tudo o que faço parece que faço pela última vez.
Assim comecei. E ainda hoje continuo escrevendo esse Diário. Muitas coisas mudaram desde então, mas eu me mantive fiel a essa mania. É claro, não há nada mais ridículo
do que a pretensão de registrar a própria vida. A gente se transforma automaticamente num clouwn. Apesar disso estou convencido de que se eu não tivesse começado
a escrevê-lo naquela tarde jamais teria escrito outra coisa. Publiquei três ou quatro livros e publicarei talvez mais alguns só para justificar essa escritura. Por
isso falar de mim é falar desse Diário. Tudo o que sou está aí mas não há mais que palavras. Mudanças na minha letra manuscrita.
Às vezes, quando o releio, custa-me reconhecer aquilo que vivi. Há episódios narrados ali que esqueci completamente. Existem no Diário, mas não em minhas lembranças.
E ao mesmo tempo fatos que permanecem em minha memória com a nitidez de uma fotografia estão ausentes como se eu nunca os tivesse vivido.
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Quase não há vestígios, por exemplo, daqueles dias, quando chegamos a Mar del Plata, abatidos e em fuga. Lembro-me claramente de meu pai que abre a porta da rua
Espafia onde vamos morar e vira o rosto para sorrir, resignado, antes de se por a elogiar as virtudes do lugar. Trazia um cachecol azul e o ar úmido embaçava seus
óculos e tentava parecer despreocupado e alegre enquanto minha mãe entrava no corredor. Onde estou eu? Talvez atrás de minha mãe, talvez já tenha entrado na casa.
Invisível na lembrança, sou quem olha a cena.
Tenho a estranha sensação de ter vivido duas vidas. A que está escrita nos cadernos e a que está fixa nas minhas lembranças. São figuras, cenas, fragmentos de diálogos,
restos mortos que renascem cada vez. Nunca coincidem ou coincidem em acontecimentos mínimos que se dissolvem no emaranhado dos dias.
No início as coisas foram difíceis. Eu não tinha nada para contar, minha vida era absolutamente trivial. Gosto muito dos primeiros anos do meu Diário justamente
porque ali luto com o vazio total. Não acontecia nada, na realidade nunca acontece nada mas naquele tempo isso me preocupava. Era muito ingênuo, estava o tempo todo
buscando aventuras extraordinárias. Então comecei a roubar a experiência das pessoas conhecidas, as histórias que eu imaginava que viviam quando não estavam comigo.
Escrevia muito bem nessa época, diga-se de passagem, muito melhor que agora. Tinha uma convicção absoluta e o estilo não é outra coisa senão a convicção absoluta
de ter um estilo. Vocês já irão ouvir os ritmos da prosa de minha juventude. O que será deles nesta língua que não é a minha? Confio em que ao menos persistam a
fúria e o desespero com que foram escritos.
O certo é que aos dezesseis anos começo a escrever um Diário e escrevo ali umas histórias cada vez mais extravagantes sobre mim mesmo e sobre meus amigos e de fato
percebo que estou fazendo ficção e começo a extrair desses cadernos meus primeiros relatos. Nesse momento estou terminando o bachillerato2 e aconteceu comigo, afinal,
um fato extraordinário. Por uma raríssima combinação de acasos conheço em Mar del Plata um sujeito excepcional, a quem em certo sentido eu devo tudo. Sem
*2. Eqüivale ao nosso antigo curso clássico. (N. do T.)
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ele eu não seria um escritor; sem ele eu não teria escrito os livros que escrevi. Por ele conheci a literatura norte-americana e por ele me pus a aprender a língua
em que estou falando com vocês Foi quem primeiro me falou de William Faulkner e quem primeiro me falou de Henry James e de Hortense Calisher e de Robert Lowell.
Uma tarde trouxe-me The great Gatsby numa velha edição da Scribners e desatou a rir quando me disse que essa era a melhor nouvelle que jamais fora escrita.
Seu nome era Steve Ratliff e todos em Mar del Plata chamavam-no "O inglês", mas tinha nascido em Nova York na rua 79 West em frente ao Central Park, como me contava
sem que eu, naquele tempo, pudesse imaginar outra coisa além das imagens de Nova York que tinha visto no cinema. Tenho certeza de que teria gostado de saber que
eu iria lembrar dele, nesta noite, nesta cidade da qual ele gostava tanto e à qual nunca pôde voltar e a qual só podia ver nos sonhos. Levava sempre consigo um mapa
de Manhattan meio desconjuntado e quando estava muito bêbado ele o abria para me mostrar as regiões do Village em que tinha vivido e o bar White Horse e o Hotel
Chelsea onde morreu Dylan Thomas e as quebradas sombrias do East River às margens do Hudson.
Ratliff era um homem culto e refinado, que tinha estudado em Harvard com Auden e com Edmund Wilson e que fora muito ligado ao grupo de Conrad Aiken 3
Escreveu toda sua vida, mas publicou apenas uma série de quatro relatos na revista Story que lhe deram um prestígio instantâneo nos círculos literários de Nova York
no início da década de 50. Em 1954, com seu admirável "An American romance" ganhou o prêmio O'Henry de melhor conto do ano. Depois ficou enredado numa obsessão que
o mergulhou no silêncio e o levou à morte.
A contrução da vida é dominada pelos fatos e não pelas convicções. Alguns tentam quebrar essa lei. São os alquimistas de
*3 "A morte de Steve tem para mim o triste consolo de uma premonição
confirmada. Logo de saída eu soube que ele estava condenado. Nada destrói tão
rápido um escritor nesse país como uma consciência artística elevada demais Ai ken para o irmão de Ratlifí.
*4 de abril de 1960, in AIKEN Conrad Letters (1931-1975). Nova York, Random
House. 1980
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si mesmos. Ratliff era um deles. Viveu sua vida como se fosse a de um outro, colocou-a a serviço daquilo que queria escrever. Era um norte-americano; buscava mergulhar
no fluir da experiência para destilar a arte da ficção. Embarcou para conhecer o mundo e esteve navegando cerca de um ano e teve uma trágica história de amor com
uma mulher na Argentina e não foi mais embora de meu país. Acabou trabalhando numa companhia de exportação de peixe, em Mar del Plata. Cativo de uma paixão ou da
lembrança de uma paixão, passava as noites bebendo genebra e falando de literatura no Ambos Mundos, um restaurante onde se come puchero depois da meia-noite que
naquele tempo funcionava com um bar na parte da frente.
Quando o conheci trabalhava há anos num romance que parecia não ter fim. Lembro-me dos cadernos em que escrevia com uma letra microscópica todas as variantes de
um relato que proliferava e se expandia.
A imagem de um homem desterrado, prisioneiro de uma história sinistra, que mergulha de modo maníaco num romance interminável, encerra para mim um sentido que nunca
terminei de decifrar. Às vezes imagino a história de Steve como um signo obscuro de mim mesmo.
Tem dias em que eu volto a vê-lo no bar do Ambos Mundos. Alto, de cabelo vermelho, usa uma capa branca; ao sentarse ajeita-a com um gesto rápido e enterra as mãos
nos bolsos e começa a espalhar sobre a mesa seus papéis e suas anotações, como quem constrói uma trincheira para si. Está ali, construindo com restos do passado:
fiel a sua obsessão, tem o olhar maligno dos que se deixaram vencer por uma ambição desmedida.
Em meus Diários daquele tempo sua figura se constrói e se perde na trama imperceptível dos dias inesquecíveis de minha juventude.

A idéia fixa. Steve se aproxima ao saber que meu pai é médico e que esteve na prisão. Só quem esteve na prisão pode falar de doenças, diz. Quer que meu pai seja
seu médico pessoal. Iniciam uma conversa fantástica sobre o álcool. Incidentalmente, diz meu pai, tudo o que foi escrito sobre a bebida é absurdo. É preciso recomeçar
do início. Beber é uma atividade séria, desde sempre associada à fisolofia. Quem bebe, diz Steve, procura dissolver uma obsessão. É preciso antes de mais nada definir
a magnitude da obsessão. Não há nada mais belo e perturbador que uma idéia fixa. Imóvel, parada, um eixo, um pólo magnético, um campo de forças psíquico que atrai
e devora tudo o que encontra. O senhor já viu alguma vez uma luz imantada? Traga todos os insetos que se aproximam dela, trata-os como se fossem de ferro. Vi uma
mariposa voar interminavelmente no mesmo lugar até morrer de exaustão. Todos falam de obsessões, diz Steve, ninguém as explica tal como elas são. A obsessão se constrói,
diz meu pai, vi serem construídas obsessões como castelos de areia, basta apenas que um acontecimento altere drasticamente nossa vida. Um acontecimento ou uma pessoa,
diz meu pai, dessas que não podemos discernir se mudou nossa vida para bem ou para mal. A estrutura de um paradoxo, diz Steve, um acontecimento duplo ou vacilante
em seu ser. Marca-nos, mas é moralmente ambíguo.
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As pessoas caminham para o futuro, diz meu pai, descentradas, sem orientação, fora da rota pela qual caminharam no passado. Uma amputação, diz meu pai, do sentido
de orientação. A obsessão nos faz perder o sentido do tempo, passamos a confundir o passado com o remorso.

A mulher do pastor. Não falo inglês, disse Steve, escrevo em inglês. Falo um jargão que todos entendem e escrevo numa língua particular. Aos doze anos descobri a
diferença graças à mulher do pastor da Igreja Anabatista do baixo Harlem onde minha mãe me levava. Essa mulher usava um idioma pessoal, construído de citações e
referências bíblicas e fragmentos dos sermões dominicais de seu marido que ela acabara decorando. Ninguém pode imaginar a impressão de altivez que produziam as cadências
da fala dessa mulher. Lia o tempo todo a Bíblia na tradução do reverendo A. J. Andrew e por isso seu inglês conservava tons da velha língua vernácula com suas metáforas
alambicadas e seus torneamentos populares. Pela primeira vez compreendi que a linguagem servia para outra coisa além de nomear ou dar ordens. Todos os que falavam
com ela achavam que estava louca. Quando eram complacentes imaginavam que sofria de alguma enfermidade que a obrigava a falar desse modo hermético e arrogante. Como
se a mulher do pastor, disse Steve, padecesse de uma forma antitética de gagueira.

A prisão. Steve fala da prisão. O romance carcerário. A solitária. Os pensamentos circulares. As tatuagens.
O irmão de Steve morava numa ínfima casa de cômodos da rua 102 East. Tinha chegado na noite anterior, em sua primeira visita a Nova York depois de anos de reclusão
com sua mulher mexicana Natividad. Viajaram trinta e seis horas e desceram do Greyhound e atravessaram a rua e entraram no White Horse para tomar uma cerveja e a
partir daí esse bar foi para meu irmão, contava Steve, o símbolo de Nova York.
Meu irmão não parava de dizer a Natividad coisas como: agora, garota, estamos em New York City e apesar de eu não ter dito a você tudo o que estava pensando quando
atravessávamos o
Missouri e principalmente quando passamos pelo reformatório de Boneville, que me fez lembrar de minha detenção, então, quero dizer que é absolutamente necessário
que adiemos tudo o que se refere aos nossos amores pessoais e comecemos logo a pensar em planos específicos de trabalho e de realização econômica. E assim por diante,
contou Steve, no percurso circular de quem já esteve na prisão.

A voz cantante. Meu pai, disse Steve, diz que a melhor história do mundo é a mais fácil de se contar. Conhece várias. Por exemplo a história de Randolph, um agrimensor
que esteve fazendo levantamento de mapas no delta do Mississípi e se encontrou com um velho que tinha ficado escondido nas ilhas desde o tempo da guerra.
Tinha quase setenta anos e vivia numa balsa e se alimentava de peixe. Sua única preocupação era um transmissor de ondas curtas de que cuidava mais que a sua alma.
Parece que durante a guerra tivera problemas com o Exército norte-americano e então foi se esconder nos pântanos e dali transmitia suas mensagens em inglês e em
italiano. Um dos seus temas favoritos era a usura, o caráter satânico do dinheiro. Dirigia-se diretamente ao presidente dos Estados Unidos, que para o velho continuava
sendo Truman. De vez em quando mudava de freqüência para não ser interceptado pelo FBI. Às vezes quando estava muito bêbado punha-se a cantar My darling Clementine
enquanto a balsa navegava pelos riachos pantanosos.

A moça do caixa. Parávamos então no White Horse, uns sujeitos jogavam bilhar, a loira do caixa levantava-se de vez em quando e enfiava moedas na vitrola automática,
sem olhar para as teclas, de cor, os olhos na luz néon, os mesmos discos, uma e outra vez. Depois voltava a se sentar no banco de pés de bambu, numa ponta do balcão,
mascava chiclete, olhava para o nada, cruzava o pé esquerdo sobre o tornozelo da perna direita, balançava imperceptivelmente a cabeça ao compasso da canção de Frankie
Lane. Cada vez que mudava de posição ajeitava as meias com um gesto suave, a palma da mão direita na barriga da perna esquerda. Calculei que passava oito horas ali,
todos os dias, repetindo
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essa rede invariável de gestos. Percebi que era igual a mim. Porque os últimos dias das últimas semanas tinham sido iguais aos últimos dias dos últimos
meses da minha vida.

Um pai. Encontrei no jornal uma história que vale a pena, disse Steve hoje. Um sujeito tinha matado sua mulher e sua filha mais nova e tinha enterrado os corpos
nos fundos do clube onde trabalhava como jardineiro. Cobriu a arma com um travesseiro para não ver a cara de sua filha e abafar o barulho. Na sua confissão disse
que estava convencido de que sua mulher era uma prostituta e não queria que sua filha seguisse o mesmo caminho.

Saber vender. Meu pai, disse Ratliff, foi um narrador excepcional. Vendia máquinas de costura no campo. Ia de um lado para o outro, com um caminhãozinho coberto,
e parava nas chácaras e sentava-se à sombra das tílias para conversar com as mulheres que vinham lhe oferecer limonada. Era capaz de vender uma máquina imprestável
usando a arte hipnótica da narração. Narrar, dizia meu pai, é como jogar pôquer, todo segredo consiste em parecer mentiroso quando se está dizendo a verdade.

W. H. Hudson. Vim para este país, dizia às vezes, porque quis conhecer o lugar onde nasceu um dos melhores narradores do século XIX.

A caça de elefantes. Se a literatura não existisse esta sociedade não se daria ao trabalho de inventá-la. JSeriam inventadas as cátedras de literatura e as páginas
de crítica dos jornais e as editoras e os coquetéis literários e as revistas de cultura e as bolsas para pesquisa mas não a prática arcaica, precária, anti-econômica,
que sustenta a estrutura.
A situação atual da literatura sintetizava-se, segundo Steve, numa opinião de Roman Jakobson. Quando foram consultá-lo sobre o oferecimento de um cargo de professor
em Harvard a Vladimir Nabokov, ele disse: Senhores, respeito o talento literário
do senhor Nabokov, mas a quem passa pela cabeça convidar um elefante para ministrar aulas de zoologia?
A estúpida e sinistra concepção de Jakobson é a expressão sincera da consciência de um grande crítico e grande lingüista e grande professor que supõe que qualquerpessoa
está mais apta a falar da arte da prosa que o maior romancista deste século. A autoridade de Jakobson permite-lhe enunciar o que todos seus colegas pensam e não
têm coragem de dizer. Trata-se de uma reivindicação de classe: escritores não devem falar de
literatura! parajiãplixar é trabalho dos críticos e dos professores.

A mulher equivocada. Tinha se apaixonado por uma louca e depois passou a pensar que era exatamente a loucura o qUe o atraía na mulher. Viveram juntos um verão, em
56, na boêmia do Village, na breve temporada em que Ratliff foi uma das grandes promessas da narrativa norte-americana. A moça já trazia uma aura de tragédia e de
escândalo. Dois ou três dias antes de completar dezoito anos tinha fugido com um músico de jazz e tinha se misturado nos ambientes suspeitos de Chicago e de Nova
Orleans. Viajavam por todo o país e paravam nos hotéis do gueto e compravam droga da polícia. O pai da moça, um juiz liberal que sempre tinha defendido as leis contra
a discriminação racial, ativou todas as suas influências até que conseguiu localizá-la em Havana onde o sujeito estava tocando numa boate. O juiz encontrou-se secretamente
com o músico no quarto de seu hotel e lhe deu dinheiro e o sujeito a levou enganada até o aeroporto e a entregou.
Daquela época a moça guardara apenas o prazer de tirar no piano o estilo de Marion MacPartland.
Quando ela o deixou para se casar com uma espécie de milionário que a estava levando para a América do Sul, Steve disse a ela que esse ato era mais destrutivo e
mais abjeto que a decisão de fugir com um canalha que tocava piano na banda de Lester Young.

Dois carros. Minha mãe foi a primeira mulher a dirigir um carro no Estado de Tennessee. Durante anos guardou o recorte
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de jornal onde se podia vê-la com uma capelina branca, o rosto coberto com um tule, dirigindo um Ford A. Tempos depois perdeu a virgindade num carro fechado desses
que já naquela época eram conhecidos como prostíbulos ambulantes. Minha mãe sentia orgulho de ter se iniciado nesse recinto. Segundo ela a proliferação dos carros
fechados tinha feito mais pela liberação sexual que qualquer outra coisa na história dos EUA.

Tatuagens. Na cadeia são uma arte e um modo de estabelecer as hierarquias. Um japonês, numa prisão de segurança máxima no Alabama, tinha mandado tatuar um haiku.
Os caracteres brilhavam em seu corpo como luminosos numa rua de Chinatown. Ergue as sobrancelhas para nós, dizia o haiku, como o velho alfaiate ao enfiar a agulha.
Os que mandam tatuar frases são homens de poucas palavras. Levam escrito na pele tudo o que têm a dizer sobre si mesmos.

Arkansas. Paris. Moscou. Uma mulher no Arkansas borrifou seu marido com gasolina enquanto ele dormia e pôs fogo nele; mas antes teve o cuidado de amarrá-lo à cama
para que não incendiasse a casa com seu corpo em chamas. Steve amava essa lógica dos pequenos detalhes.
Uma mulher que vive vários anos com um homem acumula uma quantidade suficiente de razões para amarrá-lo à cama e pôr fogo nele. Os maridos, em Arkansas, devem ser
executados pelo modo autocomplacente com que subjugam e avassalam suas cônjuges. Repetem com as mulheres o mesmo tratamento que dão a seus operários, empregados,
serventes, subordinados ou inferiores de qualquer condição. O caráter natural dessa submissão só pode ser alterado com um ato de violência. Portanto os crimes passionais
cometidos por mulheres são uma versão concentrada da ânsia de liberdade que pulsa sufocada nos oprimidos de qualquer sociedade. Esses assassinatos femininos são
a realização das esperanças secretas de milhares de pessoas.
O casamento é uma instituição criminosa, disse depois. Uma instituição pensada para que com seus laços seja enforcado um dos cônjuges. Esse é o sentido da sentença:

Até que a morte nos separe. O crime feminino é uma conseqüência lógica. As
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suicidas como Madame Bovary ou Ana Karenina, disse Steve, são utopias masculinas. Projeções invertidas do terror que provoca nos homens perceber o olhar assassino
de
suas mulheres. Então as transformam em suicidas! Essas histórias são contos de fada para rapazes, fábulas tranqüilizadoras, parábolas com moral. Contos contados
entre os homens na intimidade do fumadouro do expresso Paris-Moscou.
Seria preciso imaginar, ao contrário, disse Steve, Madame Bovary como Raskolnikov para que as coisas melhorassem. A heroína é uma criminosa. Mas esses são os contos
que as mulheres contam umas às outras na intimidade de um vagão-dormitório no expresso Moscou-Paris.

Um trem na imensidão da noite.
O crânio de cristal. Para Steve a prisão é o centro psíquico da sociedade. O pólo magnético interior, encravado entre os dispositivos elétricos e as molduras de
acrílico, uma engrenagem transparente, algo assim como um crânio de vidro. Um observatório onde se enxerga o pensamento. Uma amiga dele conhece bem esse mundo porque
é psiquiatra judicial. Segundo ela na prisão pode-se observar o futuro da sociedade.
A prisão deve ser vista como um laboratório. Realizam-se com homens e mulheres experiências muito sofisticadas. Procura-se reconstruir artificialmente as condições
da vida futura. Observa-se como reage um indivíduo quando é totalmente privado de experiências durante um longo tempo. Então cresce a paranóia. Os ascetas e os assassinos
precisam de espaços reduzidos. Redes múltiplas, uma ordem extrema. Os detalhes insignificantes sustentam as emoções fortes. Um caneco de lata no chão de cimento.
Ninguém está a salvo. A agilidade dos répteis no deserto.

A luz de Flaubert. O romance moderno é um romance carcerário. Narra o fim da experiência. E quando faltam experiências o relato caminha para a perfeição paranóica.
O vazio é coberto com o tecido persecutório das ligações perfeitas, a estrutura fechada, le mot juste. Flaubert traça esse caminho, dizia Steve. Um homem trancado
dias inteiros em sua cela de trabalho, isolado da vida, que constrói sob altíssima pressão a forma pura
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do romance. A luz laboriosa de seu quarto que permanecia acesa toda a noite servia de farol para os barcos que atravessavam o rio. Esses marinheiros é claro, disse
Steve, eram melhores narradores que Flaubert. Construíam o fluir manso do relato no rio da experiência.

Dependência. É claro que é preciso estar louco para escrever um livro sobre a caça às baleias. Quando está bêbado Steve diz ao contrário, que Moby Dick é um romance
sobre a cocaína. Uma metáfora fantástica dos efeitos da dependência.

Inferências. Os réus convictos são filósofos naturais. Sabem que não existe outra verdade além da existência sinistra de uma conspiração. Captam na aparência enganosa
da realidade as redes microscópicas que permitem reconstruir sua essência oculta. Tinha visto um homem contar as lajotas do chão, em seus horários de pátio, todos
os dias, e sempre tirar conclusões diferentes.

Uma arte que declina. Steve conta a história de um conhecido que desde a infância dedicou-se à mecânica. A mecânica é uma arte sutil que tende a desaparecer. Esse
seu amigo tinha conseguido construir um pequeno aparelho que alterava a memória.

A lição do mestre. Alguém faz algo que ninguém entende, um ato que extrapola a experiência de todos. Esse ato não dura nada, tem a qualidade pura da vida, não é
narrativo mas é a única coisa que faz sentido narrar.
Trazer para a vida a teoria do iceberg de Hemingway. O mais importante é aquilo que não se diz.

Uma história que o narrador não compreende. Essa é a lição de Henry James (segundo Steve).
A cadeia é uma fábrica de relatos. Todos contam, uma e outra vez, as mesmas histórias. O que fizeram antes, mas principalmente o que vão fazer. Ouvem-se uns aos
outros, compassivamente.
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O que importa é narrar, não importa se a história não interessa a ninguém. O contrário da arte do romance, que se funda na ilusão de transformar os leitores
em dependentes.
Os relatos da prisão se parecem com o relato dos sonhos que as pessoas costumam fazer ao acordar. O relato dos sonhos só interessa a quem o conta.
No caso dos sonhos, disse hoje Steve, a gente só se interessa se consegue imaginar que de alguma maneira está incluído na história. Quando uma mulher me conta um
sonho presto certa atenção porque imagino que a qualquer momento eu vou aparecer.
Seria preciso estar fora do mundo da cadeia, diz Steve, para interessar-se pelo relato dos presos. Mas justamente esses relatos estão destinados aos outros que compartilham
a prisão. Também nisso se diferencia da arte do romance: as histórias pessoais só devem ser contadas aos estranhos e aos desconhecidos.
Serve-se das anfetaminas assim como qualquer um de nós do ar que respira. Passou três noites sem dormir, num estado de gelada exaltação.
Steve conheceu ontem à noite no cabaré Bambu uma mulher que trabalha de garçonete, conta-me Morán. Chama isso de golpes de realidade.
Narrar é fácil, diz Steve, se a gente já viveu o bastante para captar a ordem da experiência. Não se pode ser um grande romancista antes dos quarenta anos.
Morreu sem deixar nada, como se só tivesse sido um narrador oral. Steve disse isso?
25
II

Steve apareceu na cidade uma tarde, no início do verão de
56. Começou a freqüentar o Clube Náutico, a contar uma história confusa sobre sua vida. Morán, que se tornou amigo de Ratliff antes de qualquer um de nós, dizia
que na primeira semana Steve ficou vagando e procurando um chalé em La Loma do qual sabia a localização exata. Dali, só de chegar à janela, podia se ver um grande
casarão que tinha sido do presidente Alvear, do outro lado da baía que se formava à altura dos grandes quebramares, perto da base naval, pouco antes de se chegar
ao porto. Sem sair de sua casa podia ver os jardins iluminados da casa de seus vizinhos, as festas que duravam a noite inteira. Morán, que envelheceu à frente do
escritório de advocacia que tinha sido de seu pai e que seu pai tinha herdado de seu avô, que foi um protegido dos ingleses na época em que foram instaladas as ferrovias
no sul da província, Morán, nessa tarde, tentou várias vezes me explicar o tipo particular de ambição que arruina a vida de sujeitos como Ratliff usando o exemplo
do chalé que tinha alugado pagando uma fortuna com a única intenção, ao que parece, de ficar perto de uma mulher que morava nessa casa que tinha sido de Alvear.
Apostou tudo na carta errada, disse Morán. Nem sequer na carta errada. Apostou sua vida numa carta que ninguém nunca viu no baralho. Resultado, não conseguiu ir
embora da
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cidade. Então procurou um trabalho qualquer que lhe permitisse sobreviver enquanto esperava o que tinha de esperar. O amigo de um amigo o recomendou a uma companhia
de pesca e exportação. Tudo o que sei sobre a arte da pesca eu aprendi lendo Melville, tinha dito Steve, não acho que as coisas tenham mudado muito desde então.
Falava desse modo, como um homem que escolheu suas desventuras.
Quando nos conhecemos eu tinha dezessete anos e Steve quase quarenta mas sempre tive a sensação de que ele achava natural que eu o ajudasse em tudo aquilo que precisasse.
Ao mesmo tempo eu tinha certeza de, no fundo, ser tão pouco importante para ele quanto qualquer um dos sujeitos que dele se aproximavam e o rodeavam e buscavam sua
amizade. Um dos traços mais característicos de Ratliff era a mágica ilusão de intimidade que sabia criar nos que estavam com ele. A gente parecia contar com sua
mais íntima atenção e no entanto, na realidade, para ele qualquer um dava no mesmo. Tinha um modo estranho de usar as pessoas, fazia com que sentissem que era imprescindível
para elas fazer aquilo que Steve precisava. Parecia natural cair em sua órbita, ajudá-lo, dar-lhe dinheiro, ser seu cúmplice. Em troca disso não podia se esperar
coisa alguma. Ninguém podia esperar coisa alguma, a não ser a sensação de intimidade que ele sabia criar. A sensação inesquecível de que a gente despertava seu interesse.
Praticava a amizade como uma exploração mas ninguém podia se ofender. Eu vi Morán passar semanas sem aparecer no bar, narrando para si mesmo, com rancor, as traições
de Steve e encontrá-los juntos, na noite seguinte, no Ambos Mundos, conversando e bebendo genebra como se nada tivesse acontecido. Bastava que Steve se aproximasse,
com as mãos no bolso de sua capa, com seu ar de alegria e de secreta cumplicidade e no ato o ofendido esquecia os motivos do rancor. Nunca estava sozinho, sempre
havia uma mulher com ele. E quando não havia uma mulher aferrava-se a quem estivesse por perto para não ficar sozinho quando o bar fechasse e começasse a amanhecer.
As mulheres estabeleciam com Steve uma cumplicidade instantânea. Tratava as recém-chegadas como se fossem velhas amigas. Tinha a virtude, disse uma vez Morán, de
fazer com que todos se sentissem mais inteligentes do que eram. E essa sensação, mesmo que dure um instante, não tem preço. As mulheres gostavam dele por
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isso ele as tratava como se fossem melhores e as usava para seu proveito próprio. Nunca vou me esquecer da surpresa que tive quando soube que Susana, uma colega
de
escola em quem eu andava interessado, há meses dormia com Steve. Dava a sensação de ser um homem que carregava uma desgraça tão funda, da qual nunca falava, que
era impossível não tentar ajudá-lo.
Empenhou-se em que eu aprendesse inglês porque precisava de pelo menos um leitor para testar seu romance enquanto o escrevia. Às vezes penso que me fez ler os livros
que eram necessários e me preparou para que eu pudesse entender com clareza o que estava buscando, sem perder, em todo caso, essa ingenuidade que Steve considerava
imprescindível num leitor de ficção. Falava-me do romance e lia para mim o que ia escrevendo e mostrava-me as versões e as variantes e discutia comigo as alternativas
da trama e eu era uma espécie de leitor particular que estava ali, na mesa do Ambos Mundos junto à janela da rua Rivadavia, esperando a continuação da história.
Está bem claro que tinha me escolhido para isso. Usou a mim como poderia ter usado qualquer outro. Talvez tenha me escolhido porque eu era o mais jovem e o mais
arrogante e o mais desesperado. Também eu era um recém-chegado na cidade, também eu, como ele, vivia em dois mundos. As noites luminosas no bar, as conversas infinitas
até o amanhecer, e a realidade ameaçada de minha casa onde tudo vinha abaixo, os esforços desesperados de meu pai para fazer as coisas caminharem.
Guardo ainda viva a impressão de pureza que me causava o relato de Steve. Recordo uma cena, ao entardecer, numa estação de ônibus, num povoado perdido do Novo México,
como se eu mesmo a tivesse vivido. O romance de Steve acabou fazendo parte de meu próprio passado. Quando escrevo tenho sempre a impressão de estar contando a sua
história, como se todos os relatos fossem versões desse relato interminável.
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Havia uma mulher que não fazia nada sem consultar o IChing. Imaginava uma roleta onde as apostas são pagas com os acontecimentos da vida de quem joga.
Convencer é infecundo. O monge escala a colina com um cajado de bambu. A tempestade se avizinha. Seu discípulo recusa-se a seguir.
O caráter enigmático das profecias lhe deixava certa margem de decisão pessoal. Havia vários futuros possíveis. Compreendeu que para construir um destino para si
o fundamental é decifrar, não decidir.
Vivia em Princeton, Nova Jersey. Seu marido era um biólogo que antes de terminar seu doutorado no M.I.T. tinha sido contratado por uma grande corporação. Viajava
todos os dias para Nova York e ela ficava sozinha. Nunca sabia o que fazer nessas horas vazias. Paralizava-a não poder escolher no emaranhado microscópico das possibilidades.
Via sua vida como um formigueiro destruído, com os insetos fugindo em todas as direções.
Certa noite, numa reunião, alguém falou do Livro das mutações e elaborou uma teoria sobre a construção artificial da experiência. No dia seguinte a mulher conseguiu
um exemplar na biblioteca. Pensou que não devia consultar o livro para tomar grandes decisões. Iria concentrar-se na cadeia insignificante dos
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fatos secundários que podiam dar lugar a desdobramentos imprevistos. Um homem sentava-se, toda manhã, para ler o jornal, no bar que ficava em frente à Universidade.
Devia falar com ele? O livro disse:
Antes da batalha o Rei decide banhar-se nos gelos do gran de lago. O exército acampa nas margens. A bruma eleva-se nos montes. Uma torrente de sangue reflete-se
no cristal da água.
Teve com o sujeito uma aventura que durou três meses Quando seu marido ia para Nova York ela consultava o livro e visitava seu amante ou era visitada por ele.
Um dia recebeu a ordem de deixar de vê-lo. Agiu com frieza e resistiu a todos os argumentos. No início ele lhe telefonava e chegou a ameaçá-la mas no final desistiu.
Via-o sempre lendo o jornal no café em frente à Universidade.
Começou a dar pequenas escapadas seguindo as indicações do I-Ching. Pegava um ônibus, saltava num povoado qualquer sentava-se a beber num bar. Essa vida secreta
a enchia de alegria. Nunca podia imaginar o que ia fazer. Uma vez vestiu-se de homem e foi a um dos cinemas pornográficos da rua 42. Outra vez foi a uma casa de
massagens atendida por mulheres. O livro insistia em que era homem. Um guerreiro. Começou a interessar-se pelo mundo do boxe. Passava horas assistindo lutas na TV
Uma tarde foi ao ginásio do Madison. Conheceu um boxeador negro, um peso-pena de vinte anos que media 1,60 e parecia um jóquei.
Por fim o livro disse que ela devia ir embora. Pegou todo o dinheiro que tinham no banco, alugou um carro e começou a viajar. O livro indicava-lhe o caminho.
Às vezes consultava o I-Ching para saber se devia consultar o I-Ching.
Havia um psiquiatra que tinha um centro telefônico de assistência ao suicida e a quem todos chamavam o Cura porque tinha sido predicador numa igreja evangélica do
sul do Bronx. Era um falso psiquiatra e um falso médico que atuava com os documentos de seu irmão, morto fazia dois anos em Cincinnati. Instalou-se num ruinoso apartamento
da rua 32. Gravava todas as conversas, nunca aceitava entrevistas pessoais. A qualquer hora do dia ligavam para ele homens e mulheres desesperados que lhe contavam
a história de sua vida.
Não se tratava da história de sua vida, na realidade contavam um acontecimento que, segundo eles, tinha provocado a decadência e a catástrofe.
Todas as histórias giravam em torno de um ponto só como se eles tivessem vivido uma única experiência. Não era a loucura, era a beira, o limite, podiam fingir, pagavam
três dólares por uma ligação de cinco minutos. A loucura nunca será narrativa.
Contavam que estavam sós, na miséria, que tinham perdido a mulher, alcoólatras, ex-alcoólatras, impotentes, uma mulher deixara escapar a oportunidade de ir para
Miami quando tinha vinte anos e agora tinha medo de sair de sua casa, não tinham mais droga, estavam drogados, estava nua, ouvia vozes que lhe davam ordens contraditórias,
o chamavam de o exterminador, era a
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neta legítima de Frederich Nietzche, um linho captava seu pensamento e influía diretamente em sua vida. tinha estado numa
clínica psiquiátrica com Rocky Graziano, tinham cortado um braço seu, já tinha morrido duas vezes.
Tornava a escutar as fitas, o relato múltiplo da cidade Queria captar o centro da obsessão secreta de Nova York
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Tinha o convicto que acabara de sair da cadeia. Seu único mundo conhecido era o presídio. Da primeira vez que o prenderam tinha dezesseis anos. Parece impossível
transmitir a pressão atmosférica que envolve um recluso condenado a uma longa pena numa prisão norte-americana. Quando se fica tanto tempo enclausurado as fantasias
que se constróem sobre o mundo livre não se distinguem daquilo que se sabe com certeza desse mundo.
Considerava-se um prisioneiro educado pelo Estado, quer dizer, um prisioneiro que tinha sido adestrado pelas instituições carcerárias. Uma educação integral, sistemática:
física, cerebral, psíquica, moral, filosófica, muscular, ótica, sexual. Ensinam-se novas relações com o tempo, outra relação com a linguagem e a obediência. Uma
prisão de segurança máxima nos EUA é uma instituição complexíssima. Fazem conviver os psicopatas e os espiões com os desesperados e as vítimas. Sabem que um homem
fraco se transformará num escravo e um escravo num autômato aterrorizado. Querem ver o que acontece com o espírito de rebeldia em condições de extrema pressão.
No vazio desse tempo sem futuro só se pode pensar. O pensamento poderia desenvolver-se plenamente no silêncio, pensava antes. Um pensamento silencioso pode desenvolver-se
até o infinito. Agora pensa que não existe pensamento sem linguagem.
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Pensa que todos os pensamentos podem ser utilizados para aniquilação da própria existência. Uma e outra vez voltava a pensar que estava morto há muito tempo.
Dentro não há contato com o mundo além do grasnar da TV ligada durante horas para todo o presídio. Fora teve a impressão de que a realidade tinha o som mal sincronizado.
Pareciam querer dizer-lhe algo que ele não entendia.
Tudo vinha carregado de um sentido múltiplo; as relações entre os acontecimentos dispersos eram excessivas. Procurava decifrar somente as mensagens que estavam dirigidas
diariamente a ele.
Quer chegar a Nova York mas não segue uma rota precisa. Deixa-se levar por intuições instantâneas e vai de um lugar a outro de um modo errante. Viaja em carros alugados
ou nos Greyhound e pára nos motéis do caminho. Mantém relação com homens e mulheres que conhece nas estações e nos bares.
Nunca diz que passou mais da metade da vida na prisão. Causa uma sensação de estranheza e de fascinação com seu olhar gelado e sua amabilidade excessiva. Parece
um homem sem passado, sem história, que veio de outro planeta, como se visse tudo pela primeira vez.
Conta sempre uma história diferente. Às vezes diz que acaba de sair do hospital. Às vezes diz que viveu no México. Fala no presente, o tempo morto que identifica
os que estiveram na prisão. Sabe que o vigiam, não acredita em coincidências nem no acaso. Todos os acontecimentos estão entrelaçados; sempre há uma causa.
Uma tarde conhece um sujeito num bar e o sujeito propõe a ele que sigam viagem juntos. O homem vai para o Leste porque quer alistar-se no Exército. O convicto desconfia
imediatamente, pensa que o homem o reconheceu e que vai entregá-lo. Ao sair do bar, numa viela perto da linha do trem, mata-o com uma punhalada. Nessa mesma noite
procura um cassino. Sempre associou o crime à sorte no jogo. Na época em que estava em liberdade ia para a rua em busca de um desconhecido cuja morte lhe desse a
certeza de que ia ganhar. Nessa noite ganha cinco mil dólares jogando bacará.
De vez em quando liga para Nova York. São telefonemas anônimos, a um serviço noturno de assistência ao suicida. Não diz quem é, nem onde está, mas diz a verdade.
Saiu da prisão, matou um homem, ganhou no cassino, vai para Nova York para encontrar-se com seu irmão.
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Havia um ex-alcoólatra que saía de noite para roubar na casa dos amigos. Conhecia seus hábitos e conhecia os dispositivos de segurança. Forçava as portas ou as
janelas ou as janelas e as portas e entrava quando seus amigos estavam ausentes. Gostava de percorrer os cômodos familiares, remexer nos móveis e nas gavetas secretas.
Levava todo o dinheiro. Guardava os objetos roubados no porão de sua casa. No dia seguinte seus amigos telefonavam para lhe contar que tinham sido saqueados.
Havia uma mulher que pensava ter uma filha falsa. A verdadeira tinha nascido morta. Tinha certeza de que era um cadáver porque aos seis meses
parara de se mexer.
Seu marido tinha lhe batido ("acidentalmente!") com a porta do banheiro, na barriga, ao entrar. Fizeram uma cesariana. Trocaram a morta por outra menina que agora
era sua filha. Gostava dela mas não era sua. Talvez seu marido tivesse tido essa filha com outra mulher. Foi preciso matar a sua, para que a outra ficasse com ele.
Ficara sabendo que seu marido tinha uma amante. Uma mulher tinha telefonado para ela. Não dizia nada para que seu marido não tirasse dela a filha postiça.
Havia uma mulher, em Trenton, que era descendente de Frederich Nietzche. Entrava e saía das clínicas psiquiátricas e falava fluentemente o alemão do século XIX.
Às vezes tinha de fingir não ser descendente de Frederich Nietzche para viver alguns meses em liberdade condicional.
Havia um historiador que recolhia provérbios e máximas. Pensava que essas frases anônimas eram ruínas de grandes relatos perdidos. Estava convencido de que se conseguisse
reconstruir a situação e o contexto real em que se originara pela primeira vez cada expressão conseguiria reconstruir a verdadeira história do país.
Uma mulher no Arizona tinha gasto metade do patrimônio familiar pagando do próprio bolso a publicação em todos os jornais do país de uma carta aberta onde expressava
sua surpresa ante as homenagens e manifestações de apreço e afeto que personagens da máxima consideração tinham feito chegar a ela, por ocasião da morte de seu marido,
um cientista que estivera três vezes a ponto de ganhar o Prêmio Nobel. Na carta a mulher dizia se sentir finalmente libertada do terror que tinha suportado durante
quase trinta anos de convivência forçada com um louco, um mitômano e um psicopata. Como exemplo da verdadeira personalidade do marido contava que o cientista tinha
um arquivo com fotografias de todos os cientistas rivais ou possíveis rivais ou futuros rivais cujos olhos ele espetava com minúsculas agulhas de platina que ele
mesmo confeccionava de noite em seu laboratório, com a intenção do paralizá-los em suas pesquisas, aleijá-los, cegá-los e impedir que pudessem superá-lo em sua luta
pela conquista do Prêmio Nobel de física.
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Havia um fotógrafo que antes de matar sua mulher a havia fotografado em todas as posições imagináveis.
Havia uma mulher que anotava seu nome e o número de seu telefone no banheiro dos homens dos bares. Entrava de manhã bem cedo quando tinha maiores chances de não
ser surpreendida. Recebia três ou quatro telefonemas por dia.
Havia uma mulher que escrevia cartas anônimas para seu marido nas quais contava a verdade sobre sua vida. O assombroso é que o marido nunca comentou com ela que
recebia essa informação confidencial.
Havia um professor universitário, especialista em Melville, que trabalhava para a CIA. Nem mesmo sua mulher conhecia essa conexão. Militava em grupos pacifistas
e em entidades anti-racistas. De vinte em vinte dias encontrava-se com um sujeito num quarto de hotel e passava seus relatórios. Imaginava a si próprio como um agente
duplo. Um solitário que se infiltra nas redes secretas do Estado; o último anarquista.
Um narrador deve ser capaz de criar um herói cuja experiência supere a de todos os seus leitores, dizia Steve. Que eu saiba nenhum romancista, neste século ou em
qualquer outro, assassinou ninguém na vida real. Quando disse isso estava bêbado demais e eu não entendi o sentido do que estava dizendo.
Nunca sei se eu recordo essas cenas ou se as vivi. Tal é o grau de nitidez com que estão presentes em minha memória. E talvez narrar seja isso. Incorporar à vida
de um desconhecido uma Experiência inexistente que possui uma realidade maior que qualquer coisa vivida.
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III

Havia um segredo na vida de Steve Ratliff mas eu demorei muito para descobri-lo e quando o descobri já era tarde. Steve cultivava o mistério porque sabia que uma
boa intriga precisa de um mecanismo oculto. Na realidade não é bem um enigma, dizia, mas uma história que não é o momento de contar.
Fiquei sabendo do assunto por acaso em junho de 60. Quem me contou foi Morán uma vez que viajamos juntos para Buenos Aires e o carro quebrou e tivemos de esperar
quase seis horas numa cidadezinha à beira da estrada até que consertassem o radiador. Sentados no bar do hotel que ficava em frente à praça principal, Morán começou
a falar de Steve e de repente me contou a história toda.
Nunca consegui livrar-me da sensação de que tudo nessa conversa era imoral e de que o simples fato de ouvir sua história me tornava um cúmplice.
Nessa época eu estudava em La Plata e publicava meus primeiros relatos e repetia, como se fossem minhas, todas as opiniões de Steve Ratliff. Também eu era um traidor
e estava à altura das confidencias de Morán.
Sempre vou me lembrar dessa viagem, o tédio da espera nessa cidadezinha ridícula, os dois sentados à mesa do bar, no hotel onde pousavam os inspetores de escola
e os compradores de ga-
do, suspendendo a cortina de pano cru para ver as trilhas de cascalho vermelho da praça e o monumento a algum assassino vestindo uniforme.
Tínhamos saído às sete da manhã na esperança de chegar antes do meio-dia, mas o carro começou a esquentar e fomos obrigados a sair da estrada e nos enfiar num caminho
de terra para entrar em Hoyos, uma cidadezinha que fica a menos de cem quilômetros de Mar del Plata.
Conseguimos achar uma oficina mecânica que era atendida por um sujeito a quem chamavam o Uruguaio e que demorou um bom tempo para sair e antes de olhar o carro fez
um comentário sobre a situação política. Parece que Vítolo está para renunciar, disse, como se o tivéssemos procurado para ouvir essa informação. Depois pediu a
Morán que desse a partida e se inclinou para escutar o barulho e sem mexer no carro nem olhar o motor disse que precisava de no mínimo quatro horas de trabalho para
aprontá-lo.
Fomos dar uma volta pela cidadezinha que era igual a todas as cidadezinhas da província, com caminhos que se perdem no matagal e casinhas baixas com portão de ferro.
Quase no fim da rua principal, em pleno descampado, demos com o museu. Uma construção circular com dois mirantes na frente e telhado abobadado. Ali tinha vivido
Alfred von Riheler, o engenheiro alemão que chefiou o projeto da vala de Alsina. Na realidade Von Riheler convencera Alsina, que naquele tempo era governador da
província, de que essa era a melhor maneira de dar fim ao problema dos índios. Consistia em cavar uma vala circular de 1.200 quilômetros que servisse para conter
os malones. O engenheiro era um aventureiro que tinha estado na Venezuela metido no negócio das ferrovias e chegou a Buenos Aires recomendado por Miguel Cané, a
quem tinha conhecido em Caracas. A escavação tinha três metros de profundidade por três de largura, começava no lugar onde estávamos e atravessava meia província.
Fomos conhecendo os detalhes enquanto percorríamos a casa. O guia era um paisano loiro e baixinho, que falava com muita precisão, com um timbre metálico e um sotaque
que parecia paraguaio. Nas vitrines viam-se planos e diagramas da obra e do complexo sistema hidráulico de desaguamento. Várias cartas e anotações explicando detalhes
do projeto, escritas num espanhol quase sem verbos, podiam ser lidas sob a lente de aumento dos painéis. A idéia era
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cavar uma espécie de Muralha da China às avessas para isolar as estâncias dos caciques rebeldes. Uma série de pontes levadiças controladas por pequenos destacamentos
do Exército regular permitia manter a comunicação. Já tinham sido cavados mais de quinhentos quilômetros quando as coisas começaram a sair errado Os sistemas de
drenagem não funcionavam e os buracos se enchiam de água; a grande enchente de julho de 1873 destruiu parte da terraplenagem; os índios adestraram seus cavalos e
voavam sobre o fosso como fantasmas. Von Riheler viajava para Buenos Aires e defendia seu projeto e exigia que o deixassem terminar antes de avaliar os resultados.
Mas Alsina morreu em meio às disputas e Roca sepultou a idéia e usou os recém-importados Remington de repetição para resolver de modo cristão o conflito com os
índios. Ainda se vê na planície a cicatriz da vala. Do mirante da casa parecia o espinhaço de um animal pré-histórico. Extendia-se por quilômetros e quilômetros
até onde a vista alcançava. Quem dera a obra tivesse sido acabada, disse o guia, assim não teriam precisado matar tanta gente. Os índios eram bravos. Uma vez se
enfiaram
na igreja da cidade, a cavalo, porque os estancieiros tinham escondido o dinheiro lá dentro. Eram infiéis, não sabiam que estavam cometendo uma heresia, mas também
é uma heresia usar a casa de Deus como se fosse o Banco de la Nación. Mostrounos um cabestro trançado com pele humana que tinha pertencido ao general Rauch. Mostrou-nos
uma foto do engenheiro Von Riheler vestido de paisano, com bombachas e alpercatas e lenço no pescoço, ao pé da escavação. Está rodeado por vários homens com cara
de polacos ou de centro-europeus, de pé no chão, com o peito nu, sujos de lama, apoiados no cabo da pá fincada. Grandes montes de terra erguem-se à beira da vala;
ao fundo se vêem as barracas onde viviam os valadores; o acampamento avançava lentamente província adentro à medida que se estendia a escavação Numa charrete, num
canto da fotografia, há uma mulher belíssima, com uma sombrinha na mão. Segundo o guia essa era Ingrid, a esposa do engenheiro, que voltou para a Alemanha duas semanas
depois de ter conhecido as belezas do campo argentino.
Levamos um folheto com o diagrama da obra e a transcrição da carta onde o engenheiro explicava pela primeira vez seu projeto a Adolfo Alsina.
Demos algumas voltas e voltamos para a oficina do Uruguaio, mas ainda faltavam mais de duas horas para que o carro
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ficasse pronto, de modo que nos enfiamos no bar do hotel em frente à praça principal e começamos a beber genebra. E dali a pouco, sem nada o fizesse esperar, Morán
me contou o que sabia de Steve. Ele não disse como tinha ficado sabendo, simplesmente começou a contar os fatos e sua interpretação. A história era tão estranha
que acreditei nele imediatamente. Morán erguia a voz e contava várias vezes as mesmas passagens e tudo estava carregado de suspeitas e sarcasmos.
Lembro que no dia seguinte, em La Plata, fui até a Biblioteca da Universidade, na praça Rocha, e consegui os jornais de março de 57 onde tinha saído a notícia. A
mulher chamava-se Pauline OConnor e estava casada com Tom Bruchnam, um engenheiro que dirigia uma fábrica de aparelhos ópticos em Camet nos arredores de Mar del
Plata. A mulher tinha matado o marido e se entregado à polícia. Tinha de cumprir uma pena de dez anos de prisão. O nome de Ratliff aparecia uma única vez. Insinuava-se
que Pauline era sua amante mas em nenhum momento foi diretamente relacionado com o crime.
Tinham vivido juntos, num verão, em 1956, metidos na boêmia do Village, mas a mulher o abandonou para se casar com Bruchnam que a trouxe para a Argentina. Por ela,
disse Morán, Steve tinha vindo a Mar del Plata e alugado um chalé em La Loma e por ela continuava aqui. Está esperando que saia, vai visitá-la aos domingos na prisão
de Dolores, como se estivesse lhe pagando uma dívida com sua vida.
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Steve nunca ficou sabendo que Morán tinha me contado a história. Nós nos víamos pouco naquele tempo, só alguns dias quando eu voltava a Mar del Plata nas férias.
Eu o encontrava na mesa do Ambos Mundos, cercado por dois ou três sujeitos que o ouviam e o festejavam. Desprezava todo mundo mas acima de tudo desprezava a si mesmo.
Parecia cada vez mais cínico e mais desesperado. O álcool o mantinha num estado de permanente exaltação. Falava como um predicador, como a mulher do pastor, em voz
alta, mas só para si mesmo. Quem sabe também para mim. Eu não conhecia o segredo, então podia acreditar nele. Nisso reside a arte da ficção.
Falava-me de seu romance e lia para mim capítulos ou versões e falava-me de seus planos de voltar para Nova York. Só os que mentem conhecem a verdade. Steve disse
isso?
O auto-engano é uma forma perfeita. Não é um erro, não se deve confundir com um equívoco involuntário. Trata-se de uma construção deliberada, que é pensada para
enganar a quem a constrói. É uma forma pura, talvez a mais pura das formas que existem.
É possível a ficção de um a um? Ou é preciso haver dois? O auto-engano como romance particular, como autobiografia falsa. Os atos mais perfeitos só têm por testemunha
quem os realiza.
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Uma arte cuja forma exige não ser descoberta. Mas é difícil a perfeição resistir sem deixar traços. Steve foi capaz disso. Trabalhou anos na solidão mais absoluta
e no fim aniquilou tudo o que tinha feito. Eu fui seu cúmplice. Na verdade escreveu para mim e viveu para a mulher que estava na cadeia. Ou foi o contrário?
Se matou em março de 1960. Não restou nada, mas nunca resta nada, a não ser uma cicatriz na planície. A sombra do iceberg de Hemingway na claridade da água.
Se empenhou em apagar seus rastros, no entanto ninguém morre tão pobre como para não deixar pelo menos um legado de lembranças. Steve disse isso? Pode ter dito.
Não importa quem fala. Sou quem pode dizer o que disse.
Várias vezes tentei falar por ele e usar seu legado mas só há pouco tempo eu pude escrever um relato sobre Steve. Ele não é citado, mas trata-se dele. Eu reproduzi
seu tom e seu modo de narrar. Eu contei o que não conheço de sua história e a entremeei com a minha, como deve ser. Estamos no bar, um dos dois tem dezessete anos.
O relato chama-se O fluir da vida poderia se chamar Páginas de uma autobiografia futura e também Os rastros de Ratliff. Não quis narrar outra coisa além da experiência
única de senti-lo narrar. Porque ele foi para mim a paixão pura do relato.
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O fluir da vida

No bar, converso com Artigas.
Melhor: No bar, o Pássaro Artigas conta sua história de amor com Lucía Nietzsche.
Eu conheço parte dessa história porque o Pássaro já a contou várias vezes e agora ele ri quando volta a começar porque o Pássaro diz que sempre o assombram as variantes
inesperadas.
Todos os domingos ele vai visitar Lucía Nietzsche que há anos está recluída num manicômio judiciário. Passeiam pelo jardim e conversam e a mulher envelhece sem estardalhaço.
Parece que o tempo resvala por seu corpo e não a toca. O mesmo pode se dizer do Pássaro que continua fiel ao passado e às versões do passado em sua memória. Um homem
prisioneiro de uma história, empenhado em contá-la até demonstrar que é impossível esgotar uma experiência.
Passou um verão com Lucía Nietzsche em 1956 e desde então tem reconstruído os fatos em seus mínimos detalhes como quem pule uma lente até dissolvê-la invisível no
ar.
Um narrador, diz o Pássaro, deve ser fiel ao estado de um tema. Busca surpreender num espelho os reflexos de uma cena que acontece em outra parte. O relato está
ligado às artes divinatórias, diz o Pássaro. Narrar é transmitir à linguagem a paixão do que está por vir.
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O Pássaro é um narrador tradicional, por isso intercala reflexões e máximas no meio de suas histórias. No fundo é uma forma de retardar a ação. Pensar é uma maneira
de criar suspense, diz ele. Construir um espaço entre um acontecimento e outro acontecimento, isso é pensar.
Pensa que com ela, ao perdê-la, começou sua mania de fixar o fluir da vida. O que Artigas chama: "a arte de narrar". Fixar, diz o Pássaro, o lento fluir da vida,
deter esse movimento impreciso.
Lucía era neta da irmã de Nietzsche. Seu pai tinha escolhido o sobrenome materno para apagar os rastros de seu próprio pai, o paranóico doutor Fõrster, anti-semita
e nazista avant-la-lettre, plagiário, criminoso, utópico, falsificador. Segundo o Pássaro, Fõrster instalou-se no Paraguai quando Nietzsche ainda vivia com a intenção
de fundar um falanstério da nobreza alemã.
Lucía Nietzsche passou sua infância no que ainda restava de pé da construção erguida por seu avô. Um castelo de pedra no meio da selva, com um laboratório de pesquisas
biológicas no porão e um ermo amuralhado.
Depois de uma série ridícula de litígios e trâmites burocráticos destinados a provar a legitimidade de sua origem, o pai de Lucía mal conseguiu vender o que não
tinha sido confiscado pela polícia paraguaia e com as sobras da herança familiar mudouse para a Argentina e instalou-se em Adrogué, e começou a ganhar a vida como
fotógrafo e retratista.
A mudança precipitou-se porque a mãe de Lucía Nietzsche apareceu morta em condições estranhas. Nua, envenenada, num hotel dos bairros periféricos de Assunção. Guardava
dois mil dólares e uma passagem para Nova York numa nécessaire de couro. Os sinais por demais evidentes de seu suicídio fizeram todo mundo suspeitar. Crime passional?,
perguntavam os jornais paraguaios que Lucía Nietzsche mostrava a ele e que traziam incríveis fotografias de sua mãe estampadas na página toda. Porque o pai de Lucía
quase não tinha feito outra coisa além de fotografar sua mulher na cama e os jornais cuidaram de ventilar os retratos mais escandalosos.
Não existe nada mais abjeto, disse Lucía, que a convivência de um homem e uma mulher. Em teorias podemos compreender uma pessoa, mas na prática não a suportamos.
O casamento é uma instituição criminosa. Com os laços matrimoniais um dos
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cônjuges sempre acaba enforcado. Nisso reside o sentido da fórmula: Até que a morte nos separe.
Seu pai tinha fotografado sua mãe em todas as posições possíveis, de costas, de viés, com fantasias, em pêlo, com trajes alemães ou paraguaios. Era um artista óptico
e estava obcecado. Trancavam-se dias inteiros nos altos da casa e abandonavam a filha que morria de tédio e subia descalça as escadas para espiá-los.
Até que por fim imagino que minha mãe se cansou daquilo
e quis fugir, disse Lucía.
O suicídio da mulher acabou caracterizado como morte duvidosa e o pai foi liberado sob suspeita; o caso ficou em aberto mas ele conseguiu viajar para a Argentina
com sua filha. Receberam proteção dos membros da velha coletividade de alemães expatriados nos tempos da Segunda Guerra Mundial, todos eles antifascistas inveterados,
antinazistas e aristocratas liberais que tinham se arrimado à Libertadora (porque também tinham sido antiperonistas). Esses alemães, todos filósofos e músicos e
criminosos, financiavam a Associação da Alemanha Livre que cuidou de expatriar o pai de Lucía.
Expatriar é modo de dizer, dizia Lucía Nietzsche, na verdade nos emprestaram uns trocados e nos tiraram do Paraguai meio à força porque não gostavam de ver os nobres
alemães (os descendentes dos nobres alemães e poloneses como dizia meu tioavô) metidos em histórias obscuras.
Foram se instalar numa casa que a Associação alugou para eles, a qual foi preciso reformar porque até setembro de 55 a Unidade Básica da região tinha funcionado
ali e estava cheia de retratos rasgados de Perón e Eva, palavras de ordem escritas nas paredes, distintivos peronistas pisoteados, listas de filiados e cédulas eleitorais
espalhadas pelo chão. Alguns meses depois Lucía viria a descobrir uma espécie de sótão onde tinham escondido uma caixa cheia de discos da Marcha Peronista cantada
por Hugo del Carril e dois revólveres Ballester Molina calibre 45, com o emblema do Exército argentino, enrolados em trapos e meio dissimulados numa trave do telhado.
E na gaveta de um armário embutido na parede achou uma sacola de lona cheia de cartas que as pessoas do bairro tinham escrito a Eva Perón nos dias que
antecederam a sua morte.
Pintaram a fachada e o pai instalou seu estúdio fotográfico e logo era comum vê-lo tirar fotos nas festas do Clube Adrogué.
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A mim, dizia Lucía, pouco importa que meu pai seja um fracassado e também pouco me importa a história insensata de meu avô Fórster. A única coisa que me interessa
é poder ir embora daqui e voltar para a Europa de onde eu nunca devia ter saído embora nunca tenha estado lá. Eu sou uma européia alemã falsamente nascida no Paraguai,
e não me interessa viver nestas províncias.
Foi contratada como bibliotecária na Associação dos Amigos da Alemanha Livre e sua função consistia em atender os velhos expatriados e os imbecis que resolviam estudar
a língua alemã, como se essa língua na qual tudo declina pudesse ser aprendida. Quando na verdade é quase impossível aprender a própria língua materna e chegar a
expressar-se nela com alguma elegância. Ou seu tio-avô não tinha dito que os grandes artistas eram fiéis à sua língua nativa e não queriam conhecer outra e por isso
eram grandes artistas e grandes estilistas? Não podemos nos deixar corromper pelos brilhos estrangeiros e as quinquilharias mortas de outros idiomas.
E o Pássaro aceitou isso e disse que sim e teria dito que sim a qualquer coisa que ela dissesse. Artigas tinha então dezessete anos e apaixonou-se pela mulher nem
bem a viu. Até mesmo agora, quase trinta anos depois, recorda com nitidez a imagem de Lucía Nietzsche no espelho do guarda-roupa, o cabelo vermelho e o rostinho
malvado e os olhos que ardiam como se estivesse deslumbrada pela luz do ar.
Passeavam pelos fundos da casa, que davam para os fundos da casa do Pássaro, de modo que podia ver sua mãe pendurando a roupa enquanto ouvia a moça dizer que nunca
iria acreditar que uma mãe fosse algo em que se pudesse pensar com decoro. Minha mãe, por exemplo, disse Lucía Nietzsche-Fôrster, era louca e eu sou louca e todas
as mulheres da minha família eram loucas, a começar por minha avó Elizabeth. Ou não é uma propriedade da língua alemã tornar as mulheres loucas e os homens assassinos?
De noite, às vezes, tinha a impressão de ouvir a voz de sua avó, a quem nunca tinha conhecido. Estava ali, no Paraguai, sua avó Elizabeth, lendo uma carta de seu
irmão. O ódio é a única coisa que nos mantém vivos. Quem carece de maldade não vive serenamente. Ou não é assim? É claro que é assim. A piedade é um sentimento abjeto.
Veja meu pai: tira fotografias para capturar a realidade porque vive fora dela.
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A história da viagem e da Associação de Alemães antinazistas que os ajudaram e a história de seu avô Fõrster ela começou a contar ao Pássaro poucos dias depois de
conhecê-lo, sentada numa poltrona de vime e remexendo papéis, e enveredou por essa história como poderia ter enveredado por qualquer outra.
De todo modo naquele tempo ela já estava fascinada com as cartas escritas a Eva Perón encontradas na sacola de lona, no móvel embutido do sótão, e com uma em especial
(realmente extraordinária) enviada por um sujeito que estava na prisão. Esse homem chamava-se Aldo Reyes e estava tentando construir o Santa Marta, navio-auxiliar
da Invencível Armada, uma fragata de três mastreações e ponte dupla que reproduziu em escala 6x2 com base num desenho que encontrou num revista náutica que sabe-se
lá como tinha ido parar no banheiro da cadeia. Tinha a intenção de dar o navio de presente à Fundação Evita para que o leiloassem e usassem o dinheiro para ajudar
os filhos dos presos e por isso resolveu escrever a tal carta para Eva Perón.
O homem contava uma história de desgraças e injustiças, que Lucía começou a ler para o Pássaro sentados na varanda que dava para o quintal. Reyes tinha matado a
mulher e a filha mais nova e tinha enterrado os corpos nos fundos do clube onde trabalhava como guarda-noturno e jardineiro, e tinha sido condenado à prisão perpétua.
A criatura tinha demorado para morrer, segundo Reyes, porque se emperrara a trava da arma que ele tinha coberto com um pano (o punho enrolado num poncho) para não
ver o rosto de sua filha e abafar o barulho. Achei que estava morta, mas só estava ferida. E precisei voltar a entrar lá para rematá-la, disse Reyes, no julgamento,
como quem faz um desabafo. Foi descoberto quase dois anos depois no Uruguai quando tentava vender um cavalo roubado.
"O acaso, Senhora, me trouxe aqui! Tem vinte anos que estou preso. Em Caseros. Quando entrei tinha vinte e dois anos acabados de fazer. Fiquei primeiro em Ushuaia.
Dividi o quarto com Mateo Banks que envenenou suas seis irmãs em Trenque Lauquen para receber uma herança. Venho usando esses anos para várias coisas. Lendo história
argentina. Lendo um pouco de filosofia. Construindo a réplica do Santa Marta. Quando alguém (como eu) se encontra trancado, com o tempo que há de vir definido para
toda a vida, pode, acredito, refletir, enfim, sobre o futuro e seu sentido. Por exemplo: Cláudio Cuenca, um poeta, o
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mataram em Caseros. Era médico do Exército Federal (já vai ver o que é a sorte) e foi surpreendido por um avanço do Exército Grande (uma patrulha brasileira) quando
tentava achar o lugar onde vadear um leito. Foi fuzilado (pelos mandigas) aí mesmo, ao lado do ribeirão, o grande poeta. Não me interessam os romances históricos,
conheço a trama da ficção e o rasgado do violão argentino. Enrolavam com sacos os cascos dos cavalos para andar na noite como fantasmas: a cavalaria entrerriana.
Sou um penado. Cheio de aflições. Como dizer? A rigorosa verdade. Cuenca escrevia versos e os carregava num bolso secreto da sua jaqueta. Era unitário!* O único
poeta unitário que não se exilou! E foi morto pelos mesmos que vinham libertá-lo. De noite escrevia seus versos; na alta escuridão. A luz perpétua de seu quarto
servia para guiar os contrabandistas que atravessavam o rio. No meio da noite, uma luz. É preciso saber olhar. Eu por meu lado sei olhar o que virá, enxergar o devir
da pátria na rotina idêntica dos dias. Vão semear o terror! Posso lhe anunciar o seguinte: eles são impiedosos (parentes bastardos do general Urquiza, filhos ilegítimos).
Capazes de qualquer coisa: bombardear, por exemplo, um asilo, se forem peronistas os velhos! É preciso, Senhora, armar o paisanaje. Em cada casa: uma máuser. Caso
contrário vão nos fuzilar no vau, contra o barranco, debaixo do chorão, perto do ribeirão, nas aguadas. São assassinos. Daqui a digamos vinte e cinco anos vão continuar
correndo rios de sangue neste país. Qualquer um que se dedique a refletir pode ver, sem dúvida, o que está para vir. Crimes e crimes e mais crimes! Os dias por aqui
são todos iguais (em Caseros). Não construímos o mundo a partir da experiência, as penas não ensinam nada. O que nós aprendemos do passado, Senhora, é conhecimento
só porque o futuro confirma que era verdade. Nunca tente vender um cavalo roubado no departamento de Durazno, da República Oriental do Uruguai, porque se for pega
vão e lhe aplicam cem anos de rigorosa prisão! A experiência tem uma estrutura complexa, em tudo oposta à forma possível da verdade. Nada se aprende da experiência!
Só se pode conhecer o que ainda não se viveu."
* Unitários: argentinos que defendiam uma Constituição centralizadora em 1819 e se opunham aos federais (N do E.)
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Lucía lia essa carta para mim (conta o Pássaro) porque via nesse criminoso trancado nessa cela o verdadeiro herdeiro da filosofia (o verdadeiro herdeiro e representante
do espírito filosófico de seu tio-avô). O Penado que escreve à Senhora que já morreu sem que ele o saiba (na cadeia tudo se sabe três dias depois) é uma encarnação
atual daquilo que hoje deve ser considerado um filósofo: o assassino de sua mulher e de sua filha, ladrão de cavalos, que reproduz com paciência infinita uma fragata
espanhola sobre a mesa de lata de sua cela em Caseros, província de Buenos Aires. E que escreve nessas cartas algumas coisas que Lucía queria que eu comparasse com
uma carta (inédita) de seu tioavô, uma carta escrita por Nietzsche para sua irmã Elizabeth e enviada a Assunção do Paraguai naquela fatídica semana de janeiro de
1889, postada em Turim, na pensão da Piazza Cario Alberto quando sofreu o que se chamou de um colapso nervoso, escrita depois do ataque e enquanto esperava a chegada
de seu fiel amigo Overbeck. A carta chegou três meses atrasada, quando minha avó já convivia, como se sabe, com o louco numa casa que também era o Arquivo Nietzsche
e onde iriam permanecer juntos (o filósofo e sua irmã) durante dez anos. E essa carta foi recebida por seu cunhado o doutor Fõrster, que ficou no Paraguai para tentar
salvar seu império e com ele ficou meu pai que tinha três anos e meio e a quem sua mãe (Elizabeth Nietzsche) abandonou como se fosse um bastardo, um filho seu porém
falso (como se uma mulher pudesse gerar um filho ilegítimo) para voltar para seu irmão e trancar-se com ele nessa casa alemã.
"O futuro é o único enigma. E aí se encerram todos os segredos da filosofia: o que chamamos de verdade tem a forma desse enigma. Leio o futuro como quem vê signos
na areia (os pés das gaivotas) porque sou o único que foi capaz de cruzar o deserto. Sou um aristocrata polonês pur sang e num bolso secreto de meu terno guardo
algumas revelações que o mundo ainda não está preparado para receber. Serei fuzilado por engano na primeira batalha em que eu me digne a intervir (eu sou um médico
polonês). Aprisionado por uma patrulha inglesa e fuzilado em Waterloo. Eu, o grande poeta polonês (conde polonês e aristocrata polonês) a quem nenhuma gota de sangue
ruim jamais se misturou e menos ainda de sangue alemão. No Paraguai viveu Voltaire que é minha verdadeira antítese. Meu outro eu aristocrático francês, o reverso
de mim mesmo. Mas quando busco minha antítese
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eu encontro sempre a senhora e minha mãe (minha irmã Elizabeth e minha mãe). Acreditar que eu estou aparentado com essa canaille seria blasfêmia contra minha divindade.
Com quem menos se está aparentado e com os próprios parentes: estar aparentado com os próprios parentes (de sangue) constituiria um sinal de extrema vulgaridade."
A carta era uma espécie de resposta elíptica ao livro do doutor Fõrster, Colônias alemãs no território superior do Prata, com especial atenção para Buenos Aires
e o Paraguai, que foi publicado no outono de 1888 e que Nietzsche leu em dezembro. Em janeiro ele escreve para sua irmã (e não para o doutor Fórster) um comentário
do livro já em condições de extrema tensão, trancado em seu quarto de pensão em Turim, revisando seus escritos e enviando cartas aos imperadores e reis e governantes
europeus para preveni-los da catástrofe que ele havia profetizado em sua obra. Lúcia (contava o Pássaro) estava interessada antes de mais nada em comparar a carta
de Nietzsche com a carta de Reyes, o assassino e ladrão de cavalos. E tínhamos começado a conversar sobre os elementos que se repetiam (com variantes) nas duas cartas
quando do fundo da casa, do laboratório fotográfico, na realidade, do quarto iluminado com luz vermelha que dava para a rua, seu pai (o fotógrafo e retratista) chamou
por ela. E Lucía se levantou e fez um gesto como para que eu não me impacientasse e entrou na casa. E eu fiquei na varanda que dava para o pátio dos fundos (e para
os fundos de minha própria casa), embaixo da luminária, no meio da noite, e os insetos atraídos pela luz estatelavam-se contra a lâmpada, como se se afogassem num
círculo de água clara, e caíam sobre a mesa e sobre os papéis e eu quis limpar as folhas que Lucía tinha deixado ali e me levantei para arrumá-las e as páginas que
ela tinha estado lendo para mim eram, na realidade, anotações que ela mesma tinha feito com letra nítida. Não havia nenhuma carta ali, conta-me o Pássaro. Não é
extraordinário? É extraordinário, diz o Pássaro e se põe a rir Uma lição. Não era uma lição refinadíssima? Essa mulher me ensinou tudo o que sei. Ensinou-me a não
confundir a realidade com a verdade, ensinou-me a conceber a ficção e a distinguir suas nuanças. Leu para mim cartas apócrifas ou verdadeiras e me contou histórias,
as histórias que eu queria ouvir, um verão inteiro, até a noite, diz o Pássaro, em que mais uma vez estávamos sentados naquele mesmo lugar, na varanda que dava para
o pátio.
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e os bichos se estatelavam contra a luminária e ela lia para mim ou me contava alguma outra história de si mesma ou de seu tioavô ou do doutor Fórster, quando o
fotógrafo chamou por ela lá de dentro e eu fiquei ali, sozinho outra vez. Uma situação simétrica. Uma repetição exata (na minha lembrança). Lucía fez um gesto para
que eu não me impacientasse e entrou na casa e eu fiquei na varanda que dava para o pátio dos fundos (e para os fundos da minha própria casa) e de repente ouvi um
barulho estranho, uma espécie de canto, não é?, que me encheu de alegria (eu tinha dezessete anos) e me aproximei da janela e por uma raríssima combinação de ângulos
e de perspectivas vi a lua do espelho do guarda-roupa que refletia a luz do laboratório, com um brilho de água na escuridão, e no meio do círculo, ao fundo, via-se
Lucía abraçada e beijando, enfim, a quem ela dissera ser seu pai. E da mulher elevava-se uma espécie de gemido, em outra língua, um murmúrio, como um canto, uma
música alemã poderia-se dizer, que realçava ainda mais o ar dócil do corpo, recortado e belíssimo, na claridade do espelho. Como se eu o visse através de uma lente
polida até a transparência, um objeto de cristal, invisível de tão puro, parecido ao que pudesse usar um narrador quando quer fixar na lembrança um detalhe e detém
por um instante o fluir da vida para aprisionar nesse instante fugaz. toda a verdade
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AS ATAS DO JULGAMENTO

Na cidade de Concepción del Uruguay, aos dezessete dias do mês de agosto de mil oitocentos e setenta e um, o senhor juiz da primeira instância criminal, doutor
Sebastián J. Mendiburu, assistido por mim o subscrito secretário de Atas, constituiu-se na Sala Central do Julgado Municipal a tomar declaração do acusado Robustiano
Vega como testemunha nesta causa, quem sob o prévio juramento de dizer a verdade sobre tudo o que soubesse e lhe fosse perguntado, o foi no seguinte teor:
- O que os senhores não sabem é que ele já estava morto desde antes. Por isso é que eu quero contar tudo do início, para que não pensem que ando arrependido do que
fiz, pois uma coisa é a tristeza e outra diferente é o arrependimento, e o que eu fiz já estava feito e não foi mais que um favor, coisa que só se faz para aliviar,
coisa que não faz diferença para ninguém. Nem para o General.
Porque para nós ele estava morto desde antes. Isso os senhores não sabem e agora armam esse escarcéu e andam dizendo que nos Bajos de Toledo tivemos medo. Quer dizer
então que fizemos por medo. Nós que botamos para correr a dom Juan Manuel e a Oribe e a Lavalle e ao manco Paz. Nós que estávamos,
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naquela tarde, em Cepeda, quando o General juntou todo o povo do Quinto numa lombada e o sol batia de frente e o iluminava, e falou que se os portenhos eram mil
bastava com quinhentos. "Porque com a metade dos meus entrerrianos eu os espanto", disse o General, e o sol apertava seus olhos.
Naquele tempo já contávamos quase dez anos de saber como é nunca ter fugido, como é galopar e galopar como que aos boléus e sentir a terra embaixo que treme e remeter
aos gritos e nisso os outros são uma poeirada miúda, como se a gente os caçasse a corrição.
Naquele tempo pelejar era quase uma festa e quando nos juntávamos era para uma festa e não para morrer. Ouvia-se um galope tendido ao longe que vinha e aumentava
até que atravessava a vila sem parar, avisando a gente. Ali mesmo as mulheres começavam a choramingar e às vezes era de fazer dó por causa das colheitas ou porque
os animais estavam de cria ou a gente acabava de se juntar e tinha de deixar a dona com vontade, porque o General dizia que para pelejar como é devido não se pode
ter a mulher com a gente; porque levar a mulher de arrasto não é coisa de homem. Ele era o único que levava mulher, mas o General era diferente e precisava de mulher
pelo mesmo motivo que nós não precisávamos.
Todo Entre Rios ficava vazio, quando a gente ia-se embora. Era um tal de não se ver ninguém por lado nenhum, como se fosse de noite, que não se vê nem uma alma,
nem um cavalo, nada, porque todos andávamos pelejando. Teve vezes que voltamos só com o do corpo e era duro ajuntar os animais e às vezes o mato tinha tomado conta
de tudo e era triste de se ver. Por isso é que os portenhos mentem quando dizem que cada um dos soldados da confederação era dono de uma estância. Mentem, e eu quero
que o senhor escreva aí que eles mentem, para que se fique sabendo. Mentem porque somos muitos e Entre Rios não dá terra para todo mundo. Pelo menos terra que preste,
porque a que fica nos banhados ninguém quer, e o resto, contando a que é do General e a que o General deu para os oficiais, não sobra terra nem para cair morto.
Mas os portenhos vão mentindo já faz muito tempo e não fazem nem idéia do que se passa por aqui. Eles não conhecem essa coisa que dava na gente de se ajuntar quase
todos os entrerrianos em dois dias para perguntar ao General a quem carecia de se espantar. Essa coisa de ver chegar homens de todo
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lado, que para onde a gente olha tem cavalos, e o General ali de poncho branco, só esperando.
Por isso esses que falam que tivemos medo não sabem de nada e na certa que são portenhos. Não conhecem o orgulho de ser os melhores. Não sabem que tudo aconteceu
por causa mesmo desse orgulho. Aquela alegria que nos deu da vez que fizemos as cem léguas que vão do Ubajay a Pago Largo numa só galopada que durou nove dias corridos.
E aí Oribe. E se careceu de domar os potros no caminho porque a metade rebentou na tal galopada, com o sol sempre castigando e a gente corria e corria, como que
para fugir dele. Isso é o que nos pareceu, que disparávamos do sol que se enfiava dentro da nossa pele, que enchia a nossa cabeça de poeira e de cansaço e na certa
foi isso mesmo que nos fez andar tão ligeiro. Quando chegamos, o Uruguai estava na cheia. Devia estar chovendo longe, porque ali o céu doía de tão claro enquanto
a gente se amontoava nas margens e o rio estava tão largo que se avistava só mesmo a sombra dos chorões do outro lado. Estava cheio de enxurro e troncos que passavam
pulando, e quando não tinha troncos a água ficava quieta e marrom, semelhada com a terra. Ficamos ali olhando e olhando, até que o sargento Reys foi e disse para
o General o que todo mundo estava pensando. Se lhe achegou e sem apear do cavalo, disse aquilo para ele. O General galopou de uma ponta para a outra e levantava
o chapéu na mão, como que agradecendo. A água puxava que metia medo e carecia de ir se firmando devagar e era fodido nadar levando o cavalo da sujigola e a água
estava morna e de repente cortava de tão fria e a cada tanto tinha um que dava um berro e uma cabriola e apareciam as patas do cavalo e a barriga e era que a correnteza
tinha carregado com ele e o tal já não saía mais, pelo menos até o Salado. Contam que o rio estava cinza porque a gente o cobria; tantos éramos que em vez de água
parecia cheio de entrerrianos. Ficamos nisso por coisa de uma hora até poder firmar os pés no barro. Contam que o General foi por um perau e por pouco que não se
afoga. Que bracejou feio e acabou agarrado num tronco. Isso é o que contam, mas tem os que o viram do outro lado, muito sossegado e não sufocado como nós, que respirávamos
abrindo a boca, porque uns mais outros menos tinham sentido o gosto de azeite morno da água
revirando as tripas.
- Quem disse que não é disso que eu tenho que falar? Se foi por isso que eu fiz o que fiz e por essas coisas entendeu o
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General que não era por medo que a gente lhe fez corpeada, naquela noite, nos Bajos. Soube disso por essas coisas e porque ele da gente sabia tudo. Pelo menos enquanto
ele foi o de sempre, antes que o mudassem; enquanto foi o de sempre e pelejou para ganhar e para mandar ganhar. Enquanto remeteu com a gente, nas salteadas, também
ele com a lança e a galope e xingando, como qualquer um. Enquanto o vimos se achegar aos festejos e se entreverar, como se gostasse. E a gente sentia ele mandar,
não porque fosse o General, mas porque tinha esse jeito de olhar, com esses olhos amarelos, que mandava sem dizer nada, mesmo dançando conosco, na rancharia. Lembro
da tarde que desafiou o Dávila, que tinha um alazão invicto, e correram no riacho seco e todos estávamos com o Dávila, que entrou tranqüilo, e o General que se ria,
como se fosse um desfile. Quando acabaram de correr da única coisa que se ficou sabendo foi que o General era muito ginete mas que contra o alazão do Dávila ninguém
podia. Ninguém esquece dele naquela noite, do tanto que estava se ardendo pela mulher do Payo que era loira e de olhos semelhados com os dele e nunca ninguém soube
de onde ele tinha trazido a tal. Foi isso que o General perguntou para ele:
- De onde você a tirou, Chávez? É muito boa sua mulher. Pois que a queria com ele.
- É mulher muita para você. - Ouvimos, e dizem que estava meio passado de cana.
O Payo estava quieto e olhava para ele sem se levantar, como que dizendo: "O senhor fala assim, meu General, porque é quem manda", e então perguntou para ele se
não tinha nada para dizer.
- Não tem nada para dizer, Chávez? - E a voz ficou como que pendurada no ar porque já não tinha mais música, só o silêncio, quando falou aquilo, com aquela sua voz
acostumada a mandar.
Contam que o Payo respondeu quase em voz baixa:
- O senhor fica de animação com a minha mulher porque é quem manda, meu General.
- Você acha, Chávez? - E que viesse com ele e mexeu um braço assim, meio sem vontade, apontando para a escuridão, para ver qual dos dois estava errado.
Eles se meteram entre as árvores. A gente ficou no meio de toda luz. Não se ouvia coisa nenhuma além do vento bulindo com
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as folhas e um cheiro de couro suado ou de laranjas e a mulher do Payo que apertava as mãos, e quando o General saiu, ela já era viúva do Payo e mulher do General.
Não, senhor. E era por isso que estávamos com ele. Porque sempre fez o que era devido e dava gosto pelejar por ele, que era como a gente, que tinha começado de baixo
e tudo o que fez foi com a coragem, já do tempo em que arreava os cavalos no meio dos índios, quando mal andava pelos vinte e já não dava jeito de contar nem seus
filhos, nem suas léguas.
- É certo que sim, mas diferente. Como se tivesse ficado só a carcaça, o couro e mais nada e por dentro tudo revirado. Na gente dava como uma indignação. Teve uns
que se armaram para o desagravar quando naquela altura começaram a falar essas coisas, mormente depois do caso do Pavón. Castro foi o primeiro que deixou boqueando
um correntino que tinha dito que o General estava velho.
- Se vendeu para o Mitre - contam que ele falou, e o Castro, sem muita gana, fez ele sair do boliche e o outro que dizia: - Eu falei só de farra, compadre, eu falei
só de farra - com os olhos arregalados pela falta de coragem.
Quando deixou o tal esticado deu um sossego em todo mundo, mas era com se começassem a nos dizer o que já andávamos sabendo: que o General estava como que morto.
Uns dizem que tudo começou quando lhe mataram o Sauce, um tordilho que era uma luz, e mataram o bicho por acaso. Contam que ficou ali agachado, ele que não era de
fraquejar, só olhando, e que afagava seu cangote como com nojo, enquanto ia morrendo. Depois começou a se encurvar e de repente o rematou com um tiro no meio dos
olhos.
Quando se ergueu pedindo: "Um cavalo que agüente, caralho", já não era o mesmo e tem os que dizem que chorava, mas isso não, porque não era homem para isso, para
mudar porque lhe falta o cavalo.
- No fundo, nenhum de nós sabe de onde ele tirava aquela vontade de fazer as coisas que nem ele mesmo podia achar bonitas. Aquilo de ficar com a terra das viúvas.
Ou de querer nos pôr para lutar contra os paraguaios, que nunca nos fizeram mal, e ainda do lado do Mitre. E aquilo com os desertores de fazer que
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a gente os lanceasse a seco, como se fossem índios. Ajuntou eles no curral grande e nos fez formar na avenida, como para uma diversão. Ia largando eles de um em
um e depois escolhia qualquer um de nós, com o olhar. A gente se encolhia em cima do cavalo porque era sujo isso de ver eles correr e correr sozinhos e ao sol, no
meio da rua, escarranchados pelo medo, cada vez mais perto, como recuando, até se meterem embaixo da barriga do cavalo. E ali se jogavam no chão ou começavam a estrebuchar
e a berrar levantando os braços como se a gente outra coisa não pudesse fazer que os rachar de uma estocada.
Passamos a tarde inteira nessas corridas até que acabamos nos acostumando com os gritos e o cheiro de sangue. E eles foram ficando estendidos, feito trapos ao sol,
numa fileira baralhada que bordeava a lagoa.
- Não, senhor. Nenhum de nós sabe. Mas era de se notar. Até que se sucedeu aquilo do Pavón, que foi como se quisesse nos humilhar. Fazer a gente vadear o rio para
fugir, meio escondidos, e deixar para o portenhos a melhor sem nem uma chamuscada. Ir embora assim, calados e com gana, é o que dá vergonha. Isso de ver quando o
coronel Olmos (que foi dos que agüentaram da vez da emboscada em Corral Chico) que se lhe achega e diz:
- Com todo respeito, meu General, e desculpe. Mas por que a retirada?
E ele, com a cara sumida nas rugas, que o manda para o cepo, só por causa da pergunta.
Nenhum dos senhores sabe o que é andar todo o dia e toda a noite, de uma só puxada, até entrar em Entre Rios, como se eles tivessem nos botado para correr, sendo
que vinha todo mundo inteiro e com essa coisa cá dentro que revirava só de pensar que os portenhos iam poder dizer que nos puseram para correr e a gente que nem
viu a cara deles.
Ele galopava sozinho e na frente e a gente esperava que virasse com esse sorriso que lhe apaga as rugas, para nos explicar que essa história de fugir assim, de repente
era uma armadilha para o bando do Mitre. Mas quando apeou no San José não tinha dito palavra, só aquilo para o coronel Olmos.
É dessas coisas que eu quero pergungar para os senhores, que são letrados, mesmo que tenham se ajuntado aqui para que
seja eu o que fala. Que eu não posso dizer mais do que sei e o resto os senhores vão ter que campear. Eu sei é que tudo o que fizemos foi para remediar o que lhe
sucedia e que nos deixava assombrados. Que nos mandasse vestir de gala e esperar a diligência que vem de Rosário. Ficar ali, no fio do caminho, com o sol que vai
esquentando o sangue da gente, e toca esperar. Ver a tal aparecer lá no fundo, contra os montes e depois ir ficando maior e maior. Vir de escolta por todo o vale
para descobrir que tínhamos é escoltado portenhos. A gente se apercebeu quando desceram na praça, batendo na roupa como se assim dessem jeito de tirar a poeira que
tinham misturada no suor. Ficamos sabendo que eles vinham da outra banda do Arroyo del Médio só de ver como estavam vestidos e não porque o General nos avisasse.
Depois a gente pensou que ele ia domá-los, mas recebeu os tais como se precisasse deles, com tudo embandeirado e pela janela dava para se ver a luz e a mesa cheinha
de portenhos e o General disfarçado ali no meio e vestido à moda deles. Contam que os portenhos é que falavam as coisas, falavam do trem e do porto e da Pátria,
sempre com a voz de quem manda. E o General ouviu eles calado, como se estivesse com sono.
No dia seguinte fez a gente desfilar na frente desses suados, que enfiavam o lenço na boca quando a poeira levantava, no galope. E foi assim que a gente ficou, de
um lado para o outro, lhes festejando, como se não fossem os mesmos "Cartoludos que vamos empurrar até o rio para que aprendam quem somos os entrerrianos, que aprendam
o que é a Pátria, e o que é ser Federal", como ele falou para a gente daquela vez, tão quieto no tordilho, depois de Caseros, antes de entrarmos a florear por Buenos
Aires, todos com a fita encarnada e a trote, devagarinho mesmo, para que aprendessem.
Como se não fosse os mesmos.
- Foi por tudo isso que eu fiz o que fiz. Mas já tinha acontecido antes, naquela noite nos Bajos de Toledo, enquanto a chuva não deixava que a gente respirasse tomando
todo o ar. Foi dessa vez que aconteceu. E não foi por diversão. Nem por medo de lutar, como andam dizendo, mas por coragem e porque o General já não mandava nem
nele mesmo. E foi dessa vez que nós falamos para ele. O que aconteceu depois, foi como se não tivesse acontecido. Essa história de que todo Entre Rios anda com gana
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de guerrear e gritando "Morra Urquiza!" quando para a gente, os que pelejamos do lado dele, já estava morto desde antes. Essa noite é a que
conta. Com o céu sujo de terra e os esteiros manchados pelas fogueiras lembro dela mais que da outra e me dói mais, e nenhum de nós, dos que estavam lá, esquece
dela, porque foi
como uma despedida.
Soprava um vento cheio de tormenta que trazia como que uma tristeza e de repente trouxe a chuva. Uma chuva feia, meio morna e tão forte que foi ajuntando a gente
na barranca, perto do rio. Não dava jeito nem de se enxergar as nossas caras e se ouvia a chuva, o cheiro de suor ou de couro molhado e os cavalos se sacudindo.
Então teve um que disse aquilo de a gente ir-se embora. Melhor é voltar para Entre Rios, o General já não presta, se ouviu, e como se com isso o tivessem chamado
apareceu,
não ele, mas aquela voz tão quieta.
- O que acontece aqui? - disse.
- Acontece que vamos voltar, meu General.
- E quem caralho deu ordem para voltar?
E se ouviu o rio que estava perto e crescendo. Aquilo como um trovão que era o rio e mais nada porque ninguém sabia responder quem era que mandava voltar. Ficamos
calados, enquanto a chuva nos obrigava a fechar os olhos e a nos apertar na sela como para não estar ali, tudo no meio de uma escuridão que mesmo a gente arregalando
os olhos mesmo assim não enxergava mais que a chuva e era como estar sozinho, em cima do cavalo, até que estalava um relâmpago como uma labareda e então se via o
barranco cheio de homens, como se brotassem. Eu nunca estive perto do General, mas escutei sua voz misturada com a rumorada. Alguns dizem que falava com a gente
mas não se entendia mais que a chuva. Até que demos a ladear, devagarinho, para o lado do estrondo, e nos metemos no rio que puxava feio, como da vez de Oribe, e
no meio daquela água que vinha de todo lado, a gente ouvíu ele gritar e às vezes, de repente, era como se o visse, com o poncho meio ruço, cor de cinza, semelhado
a um tronco arrancado da terra, jogado no meio do rio. Eu não me lembro de outra coisa além da água e dos berros e de uma hora, no clarão de um relâmpago, que me
pareceu que o via e tive vontade de dizer para ele vir conosco, para Entre Rios.
Essa foi a vez que o fizemos.
O resto aconteceu porque dava dó de vê-lo, tão apagado. Até
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as mulheres começaram a notar. Foi por esse tempo que lhe faltou a Gringa, que era a melhor mulher de Entre Rios, que fugiu com Olmos, sem que ele fizesse mais que
se inteirar.
De tarde passeava perto do rio, e a gente o olhava de longe e era como ver o vento passar. Andava sozinho e calado e dava assim uma indignação.
Também por isso eu fiz o que fiz. Para ajudá-lo.
Mas teve outras coisas, porque se não fosse os senhores não armavam esse escarcéu e eu não estava aqui falando disso que só me dá pena. Alguma outra coisa andou
acontecendo que não se sabe, algo que vem de longe e que foi o que modificou o General. E disso parece que não tem quem conheça. Nem no meio dos senhores.
Eu o malsinei de entrada, naquela noite, na estância de dom Ricardo López Jordán, quando me perguntaram se eu me animava a fazer. "Você se anima a fazer, Vega?",
me perguntaram, e eu fiquei quieto e não falei nada. Pedi seis homens e antes que clareasse me apurei a fazer o que devia, como quem estoura a cabeça de um potro
quebrado.
Lembro que entramos a galope e gritando, para nos dar coragem. Os cavalos escorregavam nos ladrilhos e os gritos iam e voltavam pelas paredes quando entramos sem
apear, atropelando. Ele apareceu de repente, no fundo corredor, sozinho e meio nu, contra a luz. Recebeu a gente como se estivesse esperando e não se defendeu. Só
fez olhar para nós com esses olhos amarelos, como se estivesse apurando nossa alma. Não sei por que eu me lembrei daquela tarde, quando apeou do tordilho depois
de perder do Dávila. Ficou parado ali, bem embaixo da luz, com aquela camisa que deixava ver as pernas, até que o derrubamos.
Quando Matilde, a filha da que tinha sido mulher do Payo Chávez, se jogou em cima dele para defendê-lo, eu mesmo ouvi ele dizer que não chorasse. E essa foi a única
coisa que ele falou nessa noite e a última coisa que falou na vida. "Não chore, minha filha, que não tem por quê", eu ouvi dele enquanto tentava acertar seu corpo
nos claros que me deixava o da Matilde, e o General tinha a cara escondida pelas rugas e os olhos parados em alguma coisa, não em mim que estava bem perto, em alguma
coisa mais longe, no povo a cavalo, ou na parede meio desbotada de tanto pôr e tirar a bandeira.
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E estava assim com os olhos para o alto, a cara escondida pela morte, a Matilde, deitada em cima e se manchando de sangue, quando o matei:
- Perdoe, meu General - lhe falei, e me apurei procurando o meio do peito para lhe evitar o sofrimento.


A CAIXA DE VIDRO

para Juan José Saer

Depois do acidente, Rinaldi e eu estamos sempre juntos. Agora, por exemplo, ele está
aí sentado, afundado numa cadeirinha baixa, respirando com dificuldade. Não
fala, mas estuda minhas reações. Um pouco sufocado aponta para mim com seu perfil de pássaro. Cheira a tabaco e a água parada. Estou convencido de que viu tudo.
A notícia saiu nos jornais: não falam nada de mim, apenas uma vaga referência. Foi um acidente. As coisas teriam acontecido mesmo que eu não estivesse. O garoto
brincava na praça e a torre ardia sob o sol. Lembro dos fatos como num sonho. Um momento de fraqueza e a vida de um homem perde todo seu sentido. A tarde é clara
e suave. Nos vasos o cheiro dos cravos faz pensar na morte. Nos olhamos em silêncio. Nenhum remorso, só um vago temor, impessoal, quase anônimo. Falo no presente,
é tão fácil falar no presente quando já não se pode mudar nada. "Ontem à noite", diz Rinaldi de repente, "tive a impressão de que o senhor se queixava em sonhos".
Eu sorrio para ele com meu rosto mais doce. Uma música dócil vem do terraço; se mescla e se perde no rumor da cidade. No quarto faz calor demais. Aqui o ar é agradável.
O que é que Rinaldi realmente viu? Isso eu não sei. Na praça, Genz, o gentil, relaxado sobre o banco de madeira assume um ar distante. Conheço suas maneiras e não
me surpreende essa expressão ladina, como a de alguém que
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preparou uma armadilha. Quando entendo o que vai fazer já é tarde demais. A escuridão está em nossos corações. Cito de memória: não há outra coisa. Posso ficar tranqüilo.
Posso ficar tranqüilo? Me engano por querer. Se não, por que se empenha em registrar os acontecimentos? Guarda o caderno numa caixa sem chave. Anota pensamentos,
situações confusas, opiniões sobre minha pessoa. Hoje saímos para dar uma volta. Ele com ares de importância, eu dúctil e suave. Vamos até o salão de dança que fica
na esquina da Rodríguez Pena com Sarmiento. Chão encerado, espelhos que se multiplicam nas paredes. Mulheres que cheiram a perfume barato, a madressilva. Compram
tíquetes. Cada dança custa mil pesos, Genz escolhe as canções melodiosas para brilhar mais. Ar sonhador. Dança a noite inteira com uma mulher altiva, de cabelo enegrecido.
Rinaldi é de nacionalidade uruguaia. Fala sempre de Tacuarembó. Seu pai era ciclista profissional. Campeão da Banda Oriental. Certa tarde me mostrou a malha amarela:
Club Wandereres. Moramos juntos já faz um ano mas é pouco o que sei dele. Veio do nada, da penumbra benigna de um bar onde bebia, uma após outra, fundas canecas
de cerveja preta, dissolvido no sossegado adejo do ventilador de teto. Camisa listrada, suspensórios de crina e um brilho brando em seus olhinhos de gato. Fala com
um resfôlego asmático. "Não quer (resfôlego) tomar (resfôlego) uma cerveja (resfôlego)?" (Ele também escreveu sobre minha maneira de falar. No América, onde costumo
ir jogar xadrez, sempre encontro um homem muito magro, de uma timidez doentia e que fala tão baixo que ninguém sabe o que está dizendo. Por delicadeza vai se respondendo
ao acaso e assim o diálogo prossegue. Ontem por fim - eu estava um pouco alto - lhe disse: "Sabe, Genz, que o senhor nunca conversou com ninguém na sua vida? Todos
mentem". Ficou surpreso e respondeu com um sussurro que não consegui ouvir.) Nessa época eu estava só, perdido na cidade. Um homem invisível que anda pelo mundo
sem ser notado. Queria começar de novo. Queria começar a viver. Rinaldi tomou conta de mim. Foi como se sempre tivesse me conhecido. Olhava-me amistosamente, um
sorriso adoçando seu rosto vincado e eu me sentia feliz. Por isso eu o trouxe para a pensão, por isso resolvi dividir meu quarto com ele. Preciso dizer que sou um
sentimental? Digamos um homem fraco que nunca soube cuidar de si. Eu não sei nada sobre Rinaldi. Agora é que eu percebo, agora
que preciso saber algo de sua vida. É difícil fazê-lo falar de si mesmo. Ri das confissões e da sinceridade. Não tenho o hábito de contar o que acontece comigo -
escreveu em seu Diário. - Deve ser por orgulho e também por causa da minha falta de jeito. Não quero segredos nem estados de espírito: não sou uma virgem para brincar
de ter vida interior.
Bem no começo, porém, ele me mostrou a foto de uma mulher de rosto grave que se matou, segundo me disse, de amor por ele. Tínhamos saído juntos para jantar e de
repente começou a me falar dela. Uma história confusa, desalinhavada. Achei que fosse alarde. Quem não gosta de pensar que fez uma mulher morrer de amor? Depois
(faz três meses quando comecei a ler seu Diário) achei uma carta no meio dos seus papéis. Nunca nos encontramos como devíamos ter nos encontrado, cristal sonhador.
Definida e a tal ponto atada, meu amigo, pode uma vida assim me conformar? Não é tão injusto então que eu abandone os amanheceres e os entardeceres (que aliás faz
tempo que nem me incomodo em olhar) e o canto dos pássaros (nunca gostei dos pássaros) ou a íntima satisfação de ver minhas filhas se vestindo para ir dançar (fariam
isso mesmo sem mim: ainda que eu viva, mesmo assim vão sentir falta de alguma coisa ou vão se refugiar na lembrança de uma babá de quem gostavam - vão dizer, dirão
- mais do que de sua própria mãe). Você sempre soube me dar as explicações das coisas e eram certas as explicações que você me dava: eu por meu lado prefiro imaginar,
em lugar de saber, as razões pelas quais não sobrevivo ao acontecimento; não tenho
18 anos, nem 25, nem mesmo 33. Todas as coisas que meu corpo suportou: o álcool, os remédios para o álcool. Que diferença faz? Você vai entender, agora também. Mas
se sobrevivesse (ou sobrevivera), imagino teu sorriso. Tentarei evitar toda incursão (todo refúgio) na ironia. Sempre. Tua Dália. Uma mulher com nome de flor. Às
vezes penso que essa história pode me servir. Um suicídio sempre encerra a história de um crime. Talvez eu deva escapar, viajar para o Uruguai, investigar os detalhes.
Somos todos culpados de alguma coisa. Não apenas eu. Conhecer seus segredos, assim como ele conhece os meus. Ia lhe deixar o quarto. Eu disse a ele, escolhi o momento.
Agora já é tarde, estou em suas mãos. Frase ridícula. Ir embora. Buscar outro refúgio na cidade para enfiar meu corpo. Tornar a ficar sozinho. Ninguém que me vigie
e que acorde no meio da noite para ouvir meus
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sonhos. Fiquei semanas pensando. Sou um pusilânime. Careço do valor necessário para escolher entre duas alternativas. Por isso é que tudo aconteceu. O acidente,
quero
dizer. Eu me lembro dele (já disse isso) como se fosse um sonho. A praça, os canteiros de pedregulho, a caixa de vidro, o barulho dos sapatos de Rinaldi nos canteiros
de pedregulho. Eu me lembro, sim, do calor azedo, do bafo que incendiava a cidade. Rinaldi andava pelo quarto, meio nu. Ia de um lado para o outro, como um bicho,
engordado pela cerveja e pelo tédio; de um lado para o outro, até que estacou contra a claridade macilenta da janela e disse que precisava de dinheiro. Um imprevisto
o obrigara a empenhar seu terno de verão. Me implorou que eu lhe emprestasse algum para recuperar o terno porque precisava se encontrar com uma mulher. Me falou
dela com malícia, falsamente. Uma moça de dezessete anos, loira, de olhos azuis, que tocava piano. Deitado na cama eu olhava seu rosto diluído na claridade da manhã.
"A garota - ele dizia - se chama Nuty. Está me esperando numa casa com jardim, eu me sento entre as flores, debaixo do caramanchão e ela toca piano para mim. Toca
Chopin, toca Mozart, Beethoven." Andava pelo quarto, suado e confuso e eu deixava ele falar. Por fim, disse a ele que iria lhe dar o dinheiro. "Vou lhe dar o dinheiro",
disse a ele, "mas além disso quero lhe avisar que vou embora. Vou lhe deixar o quarto". Rinaldi roçou seu peito com a palma da mão, atento, cético. "Me avisar?",
disse e começou a sorrir. "Vai me deixar o quarto?" Houve como que um palpitar maligno em seus olhinhos de gato, um brilho sem sentido na metade de seu rosto. "Certo",
disse, "certo". Abriu o guarda-roupa e procurou seu único terno, um terno de flanela príncipe de Gales e começou a se vestir. "Tenho outros planos", disse a ele.
"Percebe?" "Claro, sei, outros planos", disse ele junto à porta entreaberta. "À vontade", disse, e penetrou na luz crua do corredor. Fiquei sozinho. Um quarto de
pensão é como qualquer outro quarto de pensão: duas camas, um guarda-roupa, o teto alto. No dia seguinte iria comprar os jornais para procurar outro lugar. Levantei-me
e fui até a janela. No pátio um garoto brincava fazendo pular uma bola de borracha. Eu pensava em tudo o que havia por fazer antes de ir embora. Ia ter de andar
pela cidade, atravessar saguões ladrilhados, escadarias escuras. Falar com mulheres gordas e sebentas que me ouviriam com desconfiança. O pior sempre são os detalhes.
É difícil começar. Não
tinha vontade de fazer nada. Lembro que sentei na cama e abri a gaveta onde Rinaldi esconde seus papéis. Na pensão contrataram uma mulher muito feia. Cuida da limpeza.
Deve ter uns cinqüenta anos e seu cabelo é cinza. Em dois meses fui violentado várias vezes de uma maneira curiosa pela velha empregada. De vez em quando brigamos
feito marido e mulher. Sua letra escarranchada. Um homem que escreve. A quem interessam as aventuras de Rinaldi? O filho do ciclista ensopado de suor dentro de seu
terno de flanela. Deveria tê-lo seguido. Ir atrás dele para vêlo desfalecer e dissolver-se no calor. Olhei o relógio: era meiodia. Meio-dia. Sempre é tarde demais
ou cedo demais para o que se quer fazer. Comecei a me mexer pelo quarto sob a luz pálida. Acendi a lâmpada sobre a mesa. Pela janela chegava o barulho de uma conversa.
"Você acha que eu ligo para o que ele possa pensar? Quero mais é que você morra, falei para ele. Estou cheia de tudo - dizia uma voz de mulher aguda e triste. -
Por mim, meu bem, você já sabe, afinal, falei, que diferença pode fazer para mim? Eu sou livre como uma andorinha." Também eu poderia escrever. Registrar os acontecimentos.
Não tenho ânimo. Por que fazer uma coisa em lugar de outra? Logo depois bateram na porta. Era a empregada. Seu nome é Aurora. Todas as manhãs vem fazer a limpeza.
Trabalha cantando. Era loira e seus olhos azuis, cantava, refletiam as glórias do dia. Inclinava-se para que eu visse suas coxas. Ela me desagrada um pouco. Cheira
a bebê acabado de sair do banho. Um cheiro doce demais de carne frouxa, de flores mortas. "O senhor não sabe", disse, "que é proibido fazer uso da eletricidade quando
tem sol?" Tinha se virado e me olhava com uma expressão que não correspondia ao tom de sua voz. Era uma expressão sonhadora, romântica. O desejo continua pulsando
nela e a faz agir como uma mocinha. Fui obrigado a fazer amor com ela, mas foi por cortesia. Ela acha que faz isso bem. Apertava minha cabeça contra seu peito, num
arroubo de paixão. Quanto a mim, remexia em seu sexo distraidamente. Pensava em Rinaldi, atravessando a cidade, sufocado em seu terno de flanela. Aurora faz amor
como as aranhas. É ávida e veloz e só pensa em seu próprio prazer. Empurra, aperta minha cara entre seus braços e logo começa a gemer com os olhos revirados, o rosto
dissolvido pelo gozo. Não posso olhar seu corpo: é mole, inflado, como recheado de algodão. De qualquer forma eu a prefiro a qualquer outra mulher porque ela sabe
o que
74 75
quer. Eu me sentia vazio e satisfeito. Aurora cantava e acabava de se vestir, esquecida de mim. Foi levada por um payador de Lavalle, cantava, quando o ano 40 se
acabava. Ia viver sozinho, sem ficar imaginando amizades que não existem. Sozinho como um pássaro. Ainda era jovem para começar de novo. Aurora tinha começado a
limpar o quarto mais uma vez. Levantava as cadeiras e as deixava no mesmo lugar. "Não pode ficar aí", disse para mim. "Vamos andando, vamos andando. Deixe as pessoas
trabalhar." Falou sem olhar para mim, o rosto enterrado no chão. Saí para o corredor, para a luz ofuscante do corredor. Gosto da luz do verão, violenta e crua, parece
feita de vidro. Enquanto atravessava o pátio ouvi a empregada cantar. Sua voz me acompanhava e por um momento pude pensar que era uma despedida. (Agora, que tudo
já passou, sei que era uma despedida.) A cidade estava como morta e eu me senti feliz. Deixei-me levar pelo hábito e fui até a praça. Era uma praça tranqüila, parecida
com qualquer praça de Buenos Aires, com plantas e flores e mães que passeiam seus filhos e seus cães. Procurei um banco, na sombra fresca das árvores. Tudo estava
quieto, linda calma. Quem poderia ter previsto o que aconteceu? Um torre de lata, alta e frágil. O garoto era ruivo e tinha uma camiseta azul. "Está vendo?", ele
me disse. "É um golf". E me estendeu uma caixa de vidro, um jogo: tinha que se acertar uma esfera de aço dentro de uns buracos pintados de azul-claro. Eu me entretive
vendo a bolinha prateada correr e pular. "O senhor vai ficar aqui?", perguntoume o garoto. "Eu vou brincar. Dá para tomar conta do meu golf?" Afastou-se um pouco
e sorriu para mim. Devia ter uns dez anos. A luz queimava o asfalto, mas o rosto do garoto, estranhamente estava atenuado e dulcificado pela sombra das árvores.
Eu segurei a caixa entre os dedos. A esfera de metal girava em volta dos buracos e escapava para as bordas. Recostado no banco olhei o garoto que tinha começado
a trepar pela torre, firmando-se com as mãos e os pés nas traves de madeira. Soprava um ar quente e as ruas estavam desertas. Assaltou-me uma estranha felicidade.
Eu tinha provado a Rinaldi que era capaz de decidir por mim mesmo. "Nada me importa", pensei. "Quando resolvo posso fazer o que eu quiser." A certeza de que cedo
ou tarde eu ia ter de voltar para o quarto e enfrentar Rinaldi atenuava, no entanto, minha alegria, como uma obscura premonição. Talvez ele sempre tenha mentido
para mim, talvez nesse momento
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já me vigiasse. Na praça, Genz, o gentil, relaxado sobre o banco de madeira assume um ar distante. Conheço suas maneiras e não me surpreende essa expressão
ladina, como a de alguém que preparou uma armadilha. Quando entendo o que vai fazer já é tarde demais. A escuridão está em nossos corações. Um caminhão amarelo parou
na esquina. Um caminhão de entregas, coberto. O motorista, de longe, parecia uma marionete; saiu com um embrulho de papel pardo e atravessou a rua em direção a uma
casa com entrada de pedra. Tudo voltou a ficar quieto. Gostaria que essa quietude nunca acabasse. Deixar-me estar no banco, com a caixa de vidro na mão brincando
de acertar uma esfera de metal dentro de um buraco azul-claro. Não desejava mais nada além de continuar ali, sob a sombra fresca, esperando a chegada da noite. O
vento fez vibrar as chapas com um zumbido manso. Com esforço ergui o rosto. O céu era uma mancha entre as folhas das árvores. O garoto estava no topo da torre. Era
lindo vê-lo ali, tão alto, dissolvido no resplandor. Ficou quieto, com o corpo curvado, olhando a cidade, e depois começou a descer, devagar, de cara para as chapas.
Parou e mexeu um pé no ar, procurando com a ponta do sapato um lugar onde se firmar. Parecia um boneco, ele também. Um boneco de cera. Pensei nisso e demorei para
perceber que a viga em que ele ia se firmar estava solta. "Parece um boneco de cera", pensei, e olhei como mexia um pé no vazio, sem ver a trave quebrada. Custava-me
pensar; tudo era lento e pesado. A torre se embaçava, longe de mim, como atrás de um vidro. O garoto estava colado às chapas, não tinha coragem de olhar para baixo.
Estava pálido, frágil e pálido, o cabelo vermelho sobre a testa. Mal baixou o rosto e nos olhamos por um instante. Ouvi ele respirar com um resfôlego nervoso. "Não
se decide", pensei. "Me vê sentado entre as árvores. Não se decide." Hesitava, indeciso, como que assustado; o corpo teso. Demorou muito para se mexer e o caminhão
arrancou, nesse momento. Mexeu-se do outro lado da rua. Foi um instante. Como se alguma coisa tivesse se quebrado. Primeiro ouvi o barulho e depois o corpo do garoto
bateu contra a base de cimento. Senti o frescor da caixa de vidro contra a palma da minha mão. "Um golf", pensei com lentidão. Então vi Rinaldi que atravessava a
praça na minha frente. Aproximava-se infinitamente como se caminhasse num sonho. Agora penso no barulho do cascalho sob a sola de seus sapatos. Eu ouvia o rumor
do cascalho sob a sola
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de seus sapatos. Pensei: "Eu ia avisá-lo." Pensei: "Parecia um boneco de cera." Rinaldi cuidou de tudo. Eu o segui, como adormecido. Quando descobri que levava
a caixa de vidro comigo deixei-a cair entre as flores. Ainda deve estar ali, entre as madressilvas. Quem sabe devesse ir pegá-la. É incrível, mas várias vezes estive
a ponto de contar a Rinaldi que eu tinha deixado a caixa cair. "É um jogo", disse o garoto, "um golf". Quando penso no garoto eu o vejo sempre igual: suspenso no
ar, os braços em cruz, mergulhado na neblina que parecia desprender-se das chapas, suspenso e como que flutuando, sem poder se mexer. É disso que eu devia falar
com Rinaldi. Está sentado na minha frente (acho que eu já disse isso) numa cadeira baixa. Olho para ele e é o mesmo que olhar-me num espelho. Genz e eu sempre ao
abrigo do pecado. Cotovelo contra cotovelo, o frágil siamês consulta com atenção o manual de estratégia. Corações valentes, alma pura. Quem sou eu para me esconder?
Repentina calma sob as luzes do verão que morre. No meio da noite me levanto, nu e em silêncio remexo em seus papéis: espero que escreva a verdade e encontro frases,
brandas mentiras. Ninguém é capaz de escrever a verdade. Aurora regou o pátio e o cheiro de terra molhada refresca o ar. "Vamos", diz agora Rinaldi. "Quero sair
para dar uma volta." Eu o sigo, vou atrás dele. Careço do ânimo para me negar. A rua declina entre paredes carcomidas e jardins com grades de ferro. Caminhamos.
Não é preciso falar. Olhamo-nos em silêncio. Nada como um segredo para unir os homens. Se esta compreensão é o que o mundo chama de amizade, as relações entre mim
e Rinaldi são, sem dúvida, de amizade. Compreendo que seus sentimentos por mim não têm outro objetivo além de me usar da maneira que mais convém a seu próprio prazer.
Esta idéia, como é óbvio, não me faz sentir muito feliz; de qualquer modo não posso esperar que sua opinião sobre mim seja diferente. Sou o servo de um servo. Quem
teria previsto tal destino para mim em minha distante juventude?
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ANOTAÇÕES SOBRE MACEDONIO NUM DIÁRIO

5.VI.62

Carlos Heras fala de Macedonio Fernández, de modo inesperado, num seminário sobre o ano 20. Ele o conheceu em Misiones quando Macedonio era promotor no Julgado Letrado
de Posadas. "Seria preciso fazer uma pesquisa", diz Heras, "sobre os argumentos e as acusações de Macedonio como promotor. Nenhum dos réus acusados por ele foi condenado."
Lembrava-se do caso de um homem que havia assassinado suas duas filhas com uma navalha, primeiro uma e duas horas depois a outra, que é claro estava quase desmaiada
de terror, e as havia enterrado nos fundos de uma igreja porque era solo sagrado. "Macedonio conseguiu construir uma acusação que tornou quase desnecessária a condenação."
Heras disse que o argumento de Macedonio consistiu em sustentar que o homem tinha matado suas duas filhas, uma de doze anos e outra de catorze, porque não queria
vê-las condenadas a repetir a vida de sua mãe que tinha acabado louca, nem a de sua irmã mais velha, Elisa Barrios, uma conhecida cantora popular. O homem tinha
planejado se matar, mas não teve coragem ou não conseguiu, apesar, disse Macedonio, de ter tentado se enforcar com um arame farpado. O fato de que tivesse usado
um arame farpado havia se tornado um elemento central na acusação de Macedonio. O professor Heras não estava bem lembrado dos movimentos do raciocínio mas via com
nitidez, disse,
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a sala do tribunal e a figura enxuta e clara de Macedonio argumentando diante de um público cético que tinha ido para ouvilo. O professor tinha quase certeza
de que o assassino das filhas havia sido absolvido ou havia recebido uma pena simbólica Com muita elegância. Heras relacionou o trabalho de Macedonio como promotor
em Misiones com os problemas de dupla legalidade que tinham se apresentado em Buenos Aires no dia dos três governadores.

12.VI.62

''Macedonio'', diz o professor Heras enquanto saímos da faculdade e caminhamos pela rua 7 em direção à estação de trem "gostava de evitar os contatos indesejáveis.
Queria permanecer a parte. Acho que não gostava de apertar a mão" Por outro
la do parece que refletia sobre seu corpo mais do que era habitual entre os intelectuais
do seu tempo. "No entanto", disse o professor, "as mulheres se entregavam a ele com uma facilidade espantosa, sem oferecer a menor resistência. Bem, melhor que no
entanto, deveria se dizer", disse o professor Heras, "por causa de". "Macedonio não gostava de fazer planos para o futuro nem que lhe chamassem a atenção para as
belezas naturais. Já é bastante difícil, dizia, captar os verdadeiros momentos
críticos." Enquanto o trem entra na estação e as pessoas se amontoam para subir,
o professor recomenda que eu procure na biblioteca da faculdade o exemplar de Una novela que comienza porque tem notas manuscritas do próprio Macedonio Fernández.

14.VI.62

A edição de Una novela que comienza foi doada por alguém talvez por Virasoro. Tem uma dedicatória ("Para Benjamín Virasoro, patriota e metafísico, com total amizade",
Macedonio Fernández) e na última página estas notas escritas por Macedonio com sua letra microscópica:
"São homens pequenos (fisicamente: frágeis) (riscado e escrito em cima: murados), como por exemplo Raskolnikov que pesava 58 quilos ou Kant (1,60) ou esse jóquei
japonês que vi certa tarde numas canchas de Lobos, com um impulso particular nascido metade do vulcanismo e metade da apatia. No terreno das
82
relações sociais são perfeitamente carentes de interesse. De modo geral são tranqüilos, elegantes e tranqüilos, por certo que não podem levar a termo tudo de uma
só vez. É preciso, dizem eles, saber ser lento, deve-se saber calar. Valéry por exemplo manteve-se em silêncio durante 20 anos, Rilke não escreveu um só poema durante
catorze anos, depois apareceram as elegias de Duino."

Embaixo e ao lado:

"Nada. O artista está só, entregue ao silêncio e ao ridículo. Tem a responsabilidade de si mesmo. Inicia suas coisas e as leva a termo. Segue uma voz interna que
ninguém ouve. Trabalham sós, os líricos, sempre trabalhou só, o lírico, porque em cada decênio vivem sempre poucos grandes líricos (não mais de três ou quatro) espalhados
por diferentes nações, poetizando em idiomas vários, geralmente desconhecidos entre si: esses phares faróis como os chamam os franceses, essas figuras que iluminam
a planície, os campos, por longo tempo, mas permanecem eles nas trevas."
"Knut Hamsun viveu até os 93 anos mas terminou sua vida num hospício. Interessante também Ricarda Husch que viveu até os 91 anos e suicidou-se (Lagerlof 82, Voltaire
84). Os velhos são perigosos: o futuro lhes é absolutamente indiferente. Entardeceres da vida, esses entardeceres da vida! A maior parte na miséria, com tosse, encurvados,
toxicômanos, bêbados, alguns até criminosos, quase todos não casados, quase todos sem filhos, quase todos no hospício, quase todos cegos, quase todos imitadores
e farsantes."

Na página seguinte:

"Quando o contrabandista Oskar Van-Velde pulou do alto da ponte Barracas (ou foi do edifício Álea?) deixou uma misteriosa mensagem: A 7 300 metros acima do nível
do mar, eis o confim da morte, mais um quilômetro e teremos chegado. O viajante olha para baixo: uma boa notícia, digo eu (escreve Macedonio), nem acima, nem abaixo,
o centro arruina tudo, agulha magnética e rosa-dos-ventos fora de questão, mas o conformismo cresce e se reforça. Para evitar o contágio nesta sociedade que agoniza
corroída pela avidez de dinheiro e honras, é preciso isolarse das correntes do meio e ignorá-las: não comprender como as crenças dominantes podem ser o que são."
83
(Essas notas foram escritas por Macedonio, ao que parece, em meados de 1941.)

6.VI.65

Ontem à noite, em Los 36 billares, discussão sobre o estilo de Macedonio. Trata-se de um estilo oral, embora pareça sua antítese. A forma da oratória particular,
que supõe um círculo de interlocutores bem conhecidos, com os quais todos os subentendidos funcionam. A presença real do ouvinte define o tom e as elipses. Prova
de que a oralidade é antes de mais nada musical e tende à ilegibilidade. Analisar os discursos de Macedonio nas cenas de Martin Fierro: o cenário do seu estilo.
Nesse espaço se cruzam os neologismos, as alusões, o jargão filosófico, o prazer barroco dos incidentes. Além do mais digo, ontem à noite, que o escritor mais próximo
de Macedonio Fernández é o padre Castaneda: a forma do panfleto e da diatribe, o gosto pelo escândalo, a violência satírica da polêmica, tudo isso é transformado
por Macedonio em estilo íntimo, em música de câmara.
Em Macedonio a oralidade nunca é lexical, joga-se com a sintaxe e o ritmo da frase. Macedonio é o escritor que melhor escreve a fala, desde José Hernández.

2.XI.67

O pensamento negativo em Macedonio Fernández. O nada: todas as variantes da negação (paradoxos, nonsense anti-romance, anti-realismo). Principalmente a negatividade
lingüística: o prazer hermético. O idioleto, a língua cifrada e pessoal. Criação de uma nova linguagem como utopia máxima: escrever numa língua que não existe. O
fraseado macedoniano; os verbos no infinitivo; o hipérbato. A sintaxe arcaizante da fala popular. "Uma gramática onírica", diz Renzi. "Nisso ele se parece com Gadda.
A oratória criolla como pastiche. A payada filosófica. Um guitarrero. Era, diz Renzi, um guitarrero. Por isso sempre aparecia nas fotos com um violão, não porque
soubesse tocar, mas para dizer, de um modo discreto que só lhe interessava ser um guitarrero argentino. "Ou não?", diz Renzi. "Sim. Para que mais? Payador e guitarrero,
com muita honra."
84
12.11.68

Uma das aspirações de Macedonio era transformar-se num inédito. Apagar seus rastros, ser lido como se lê um desconhecido, sem prévio aviso. Várias vezes insinuou
que estava escrevendo um livro do qual ninguém nunca iria conhecer uma só página. Em seu testamento determinou que o livro fosse publicado em segredo, por volta
de 1980. Ninguém deveria saber que esse livro era seu. Em princípio tinha pensado que seria publicado como um livro anônimo. Depois pensou que devia ser publicado
com o nome de um escritor conhecido. Atribuir seu livro a outro: o plágio às avessas. Ser lido como se fosse esse escritor. Por fim decidiu usar ui pseudônimo que
ninguém pudesse identificar. O livro devia ser publicado em segredo. Gostava da idéia de trabalhar num livro pensado para passar inadvertido. Um livro perdido no
mar dos livros futuros. A obra-prima voluntariamente desconhecida. Cifrada e escondida no porvir, como uma charada lançada à
história.
A verdadeira legibilidade é sempre póstuma.

14.VIII.68

Releio o Diário escrito na Estância. Macedonio o escreveu entre janeiro e março de 1938, em La Suficiente, de Pilar. Anotações cotidianas absolutamente excepcionais,
entremeadas à sua leitura de Schopenhauer "Eu sou quem melhor sentiu o assombroso desamparo de sua linguagem em suas relações com o pensar. Na verdade, perco-me
em meu pensar como quem sonha, como quem entra subitamente em seu pensamento. Eu sou quem conhece as delícias da perda." Nesse Diário entende-se por que o escritor
não pode manter outro diário além do da obra que não escreve.

2.V.71

A poética do romance. Polêmica implícita de Macedonio com Manuel Gálvez. Aí estão as duas tradições do romance argentino. Gálvez é sua antítese perfeita: o escritor
esforçado, "social", com sucesso, medíocre, que se apoia no senso comum literário.
Antes de Witold Gombrowicz chegar à Argentina pode-se dizer que Macedonio não tem com quem conversar sobre a arte
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de fazer romance. Transatlântico, romance argentino, já é um romance macedoniano (para não falar de Ferdydurké). A partir de Gombrowicz pode-se ler Macedonio. Ou
melhor, Gombrowicz permite ler Macedonio.

4.V.71

Em 1938 se propõe a "publicar o romance como folhetim na Crítica principalmente, ou no LaNación". Movimento típico da vanguarda: isolamento, ruptura com o mercado
e ao mesmo tempo fantasias de penetrar nos meios de comunicação de massa. Estudar essa estratégia (sempre fracassada) é entender a tensão interna da forma em seu
romance (os prólogos didáticos). A vanguarda é um gênero. Macedonio sabia bem disso. Um escritor arrivista, dizia, é aquele que ainda não arribou. De qualquer modo
não é extraordinário que tenha passado por sua cabeça pensar o Museo de la novela de la Eterna como um folhetim?
Macedonio começa a escrever o Museo em 1904 e trabalha no livro até sua morte. Durante quase cinqüenta anos enterra-se metodicamente numa obra desmesurada. O exemplo
de Musil, o homem sem qualidades. Um livro cuja própria concepção exclui a possibilidade de um fim. O romance infinito que inclui todas as variantes e todos os desvios;
o romance que dura o que dura a vida de quem o escreve.

9.VII.71

No Diário argentino de Gombrowicz descubro uma nota sobre Macedonio que depois não consigo encontrar de novo. "Há um tartamudear próprio da linguagem argentina que
me enche de uma estranha exaltação. É um ritmo mais ou menos assim: da, da, do, da, da, que é interno às próprias palavras e não se dá apenas entre palavra e palavra.
Uma letra contra outra se choca como pedregulhos numa lata. Macedonio Fernández foi o único que soube transmitir esse tocotoc, tocotoc, tocotoc, do galope criollo
ao estilo. Esse senhor Fernández, digo ao meu amigo Mastronardi, esse senhor Fernández sabia, hum, escrever, hum, tinha, como dizer? uma idéia do ritmo, ou não?
Sim, é claro, lógico, responde-me Mastronardi, como não, com efeito, não resta dúvida, é assim: Aceita mais um chazinho?

6.VII.73

O amor como clichê narrativo. No Museo, a história da Eterna, da mulher perdida, desencadeia o delírio filosófico. Constroem-se complexas construções e mundos alternativos.
O mesmo acontece em "El aleph" de Borges, que parece uma versão microscópica do Museo. O objeto mágico onde se concentra todo o universo substitui a mulher que se
perdeu. Curiosamente, vários dos melhores romances argentinos contam a mesma coisa. Em Adán Buenosayres, em Rayuela, em Los siete locos, em El museo de
la novela de Eterna, a perda da mulher (chame-se Solveig, La Maga, Elsa, ou a Eterna, ou chame-se Beatriz Viterbo) é a condição da experiência metafísica. O herói
começa a
enxergar a realidade tal qual ela é e capta seus segredos. Todo o universo concentra-se nesse "museu" fantástico e filosófico.
Trata-se na realidade da tradição do tango. O homem que perdeu a mulher olha o mundo com olhar metafísico e extrema lucidez. A perda da mulher é a condição para
que o herói do tango adquira essa visão que o distancia do mundo e que lhe permite filosofar sobre a memória, o tempo, o passado, a pureza esquecida, o sentido da
vida. O homem ferido no coração pode, por fim, olhar a realidade tal qual ela é e captar seus segredos. Basta pensar nos heróis de Discépolo. O homem enganado, cético,
moralista sem fé, enxerga a verdade. Nesse sentido Cambalache de Discépolo é uma versão popular de "El aleph" de Borges.

5.V.74

A leitura macedoniana: salteada, parcial, episódica, suspensa. Seus textos provocam microscopicamente o suspense: são folhetins, em miniatura. Quero dizer que usam
a técnica do folhetim de suspender a ação, mas usam-na atomizada e condensada ao máximo e repetida várias vezes na mesma página.

30.IX.77

Macedonio trabalhou os fragmentos dispersos da língua jurídica, filosófica, entrerriana, espanhola do século de ouro, de bairro, de comitê, traduzida do alemão e
os trata como se cada um
86 87
fosse um idioma diferente. Nisso ele se parece ao Joyce do Finnegans.

13.11.78

Longa conversa com Renzi sobre Macedonio Fernández. "Era ele, sem dúvida, quem escrevia os discursos para Hipólito Yrigoyen. Transferiu seu hermetismo barroco à
linguagem presidencial", diz. Conheceram-se por intermédio da Clara Anselmi. "Yrigoyen o contrata pela primeira vez quando tem sua polêmica com Leopoldo Melo e Pedro
Molina no ano de 1912, e se forma uma facção no partido que se opõe à abstenção longa. Macedonio escreve para ele toda a polêmica. A partir daí empresta seu estilo
à Causa. Nesses anos Macedonio não publica nada. Quando se afasta de Yrigoyen em 22, começa a publicar de novo. Mas a partir daí quem fica mudo é Yrigoyen. Por esse
lado", diz Renzi, "seria preciso estudar os efeitos da política na língua de uma época. Trata-se, aliás, de uma tradição nacional. Por exemplo, quando Juárez Celman
assume o poder quem escreve seu discurso é Eduardo Wilde, e o texto de sua renúncia Ramón Cárcano. Por outro lado", disse Renzi, "a partir daí Macedonio começou
a delirar com o presidente e o colocou como personagem central no Museu."

9.X.80

"Mas há outra questão", diz Renzi. "Qual é o problema maior da arte de Macedonio? As relações do pensamento com a literatura. O pensar, diria Macedonio, é algo que
pode ser narrado como se narra uma viagem ou uma história de amor, mas não do mesmo modo. Parece-lhe possível que num romance possam se expressar pensamentos tão
difíceis e de forma tão abstrata como numa obra filosófica, mas sob a condição de que pareçam falsos. Essa ilusão de falsidade", disse Renzi, "é a própria literatura".
88
III

O PREÇO DO AMOR

para Andrés Rivera

Entrou no saguão sob a suave claridade do entardecer: imperturbável, de chapéu, um pouco ridículo e como que disfarçado, esforçando-se por parecer mais velho ou
mais seguro, menos frágil com seus vinte e dois anos acabados de fazer e o pacotinho embrulhado em papel de seda. Reconheceu o cheiro de umidade e de madeira queimada
que descia pelo poço de ventilação, uma neblina pálida, invisível, que ele sempre associava à pele de Adela. Olhou seu rosto no espelho do elevador, satisfeito,
e depois saiu, lento e escuro, revendo o que tinha preparado para dizer quando lhe abrissem a porta. Demoraram um tempo para atender e ele continuou imóvel, de perfil
para a porta do apartamento, ensaiando um gesto humilde, temeroso de que se tentasse insistir não o recebessem. Do outro lado chegava um gemido apenas perceptível,
como se alguém estivesse rezando em voz baixa ou chorando debaixo d'água. "Parece uma gata que mia", pensou ele, "uma gata com cria". Voltou a tocar e depois de
um tempo a porta entreabriu-se. No umbral uma menina que não devia ter mais de seis anos olhava para ele inclinando a cabeça para um lado num gesto tímido que a
assemelhava a um pássaro. Tinha trancinhas e óculos de muitos graus e sem aro, que lhe davam uma expressão adulta, concentrada. Ele se agachou até ficar na altura
da garota.
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- Tudo bem? - disse-lhe. - Hein, Lucía?
A menina continuou olhando para ele em silêncio, distante alheia.
- A mamãe não está - disse, por fim, como se recitasse
- E eu não posso abrir a porta para estranhos.
- Mas como você não lembra de mim! Você não se lembra de Esteban?
A garota negou com a cabeça e ficou quieta contra o reflexo do sol que brilhava no fundo do corredor. "O mesmo rosto só que envelhecido", pensou ele, "como se a
filha envelhecesse no lugar da mãe."
- Eu estava brincando com ele - disse a garota de repente, e mostrou-lhe um boneco de borracha.
- Bonito.
- Não, bonito não é, o que tem é que bóia.
- Não diga...
- Na banheira, eu coloco e ele bóia.
- Então você o coloca na banheira e ele bóia - disse ele, e se sentiu um pouco idiota falando com a menina ali embaixo! Ela o olhava de frente agora, os olhos muito
pálidos, o olhar agradecido e turvo dos míopes por trás do vidro dos óculos.
- E você quem é? - disse depois.
- Já falei para você. Eu sou Esteban. Como você não se lembra de mim?
A garota ajeitou as lentes e tocou o rosto, suave, com a ponta dos dedos.
- Você sabe o nome dele? - disse mostrando o boneco.
- E Oscar.
- Que bom. Agora escuta: Adela não te falou para onde ela ia?
- Ela não vai voltar.
- Por que não vai voltar?
- Ela sempre vai embora e depois não volta.
"Está aí dentro. Está transando com um cara", pensou ele, e sentiu uma espécie de alegria, como se fosse isso' o que viera buscar. "Ela com um cara e a menina brincando
com água."
- Bom - disse. - Eu vou entrar, vou esperar por ela. A garota apertou o boneco contra o corpo e pareceu que
ia cair no choro, mas se afastou para o lado deixando a porta livre.
Dentro a luz da tarde aquietava-se contra as cortinas de ponto de cruz. Tudo continuava igual, as coisas no lugar de sempre, mas não havia sinal de Adela. "Mulheres",
pensou, tentando darse ânimo. "Sujas, abertas. Sangram e choram. Mulheres", pensou ele, como se estivesse sonhando. Procurou uma poltrona e acomodou-se no centro
da sala, o chapéu apoiado nos joelhos, cobrindo o pacotinho cor-de-rosa. A garota tinha se sentado na frente, numa cadeira baixa e embalava o boneco. "Parece uma
sonâmbula", pensou ele sem emoção, "uma versão em miniatura da mulher que haverá de ser. Boba, míope, desencantada".
- Você era um namorado da mamãe?
- Era - disse ele. - Agora você se lembra?
- Eu achei que era - disse a garota, e sorriu para ele, tímida, sossegada.
Ele acendeu um cigarro e decidiu que iria ficar. Não tinha para onde ir, no fundo dava no mesmo. "Esperar aqui, esperar
em outro lugar."
- Sabe - disse a garota de repente -, eu sei cantar canções.
- É mesmo?
- Quer ver? - disse ela, e ajeitou as lentes antes de começar a cantar com voz baixa e serena, sempre com o mesmo rosto
indiferente:
"Oh Madre madre mia
oh consuelo del altar
amparadme y guiadme
hacia el mundo celestial", * cantou a garota, tesa na cadeira, e depois parou, bruscamente.
- Muito bem - disse ele. - Você canta que é uma beleza. Quem te ensinou?
- Adela - disse a garota, e tornou a ficar calada.
O rumor da cidade chegava pela janela surdamente como uma respiração, um resfôlego. Esteban sentiu que o cheiro desse lugar o deixava triste. Era um cheiro doce,
de suco de laranja, de terra úmida, que o obrigava a pensar na sua infância, nas viagens de trem para Bolívar, sentado no vagão-restaurante. A garota tinha saído
da cadeira e brincava num canto. Ele a ouvia
* "Oh minha Mãe / oh consolo do altar / amparai-me / e guiai-me / até o mur do celestial"/
92 93
murmurar e rir, falando sozinha. Levantou-se e foi até a janela. Dali viam-se os telhados e os terraços de Buenos Aires. Chapas, esqueletos de caixotes, antenas
de televisão. "Cidade de merda", pensou ele, "suja e arruinada."
Quando tornou a olhar para dentro a garota estava encolhida num canto e parecia farejar o ar, o rosto erguido para o barulho que os saltos da mulher faziam nos ladrilhos
do corredor: "Aí está", pensou ele, endurecido, desafiante. "Aí está ela", e tentou encontrar uma frase para recebê-la: "Sou eu. Sou Esteban, estava aqui perto,
e quis te ver. Estava aqui perto, estava passando, me deu vontade de te ver. Estava aqui perto", pensou ele, como quem reza, enquanto a mulher abria a porta e sua
figura alta e suave se recortava contra o último resplandor da tarde.
- Paixão! - disse Adela, erguendo a menina. - O que é que conta, minha flor?
- Tem um moço - disse a garota, e Adela procurou no fundo da sala, ofuscada, a figura do homem que sorria, difuso, teso.
- Esteban - disse ela, confusa. - Querido.
- Eu estava passando. Vim te ver - disse ele. - A menina estava sozinha e eu...
- É claro. Mas deixa eu me refazer. Meu Deus, olha só do jeito que você me pegou. Mas senta, não fica aí, senta, por favor.
- Eu estava passando - teimou ele. - Me deu vontade de te ver.
- Mãe - disse a garota -, é teu namorado?
- É Esteban - disse ela. - Esteban. Mas olha, meu Deus, do jeito que você ficou. Passa o tempo todo brincando com água. Espera só um minutinho, um minutinho e eu
já volto.
Esteban olhou-a abraçar a menina e passar para a outra sala, atabalhoada e um pouco culpada, como sempre que lidava com sua filha. Depois percebeu que conversavam,
ouviu barulho de papéis, barulho de água no encanamento e ficou quieto, sem pensar, até que Adela reapareceu, sorrindo, um tênue brilho de receio nos olhos úmidos.
Tinha retocado a maquiagem; as finas rugas que marcavam sua pele davam-lhe uma expressão cansada, turva.
- Você não mudou - disse ele. - Nada mudou.
- Que é isso. Nem me fale. Se você soubesse o que eu corri hoje - disse ela. - De um lado para o outro o dia inteirinho.
94
Olharam-se sem falar, dissolvidos na líquida claridade da sala.
- É tão estranho - disse ela, e tentou sorrir. - Não sei
o que te dizer.
Estranho? O quê?
- Sei lá, você ter vindo, eu ter chegado e você... Mas não
liga para o que eu digo.
- Eu estava passando, como te disse - disse ele, e mexeu-se, minimamente, para um lado. - Eu trouxe isto para você - disse e começou a desembrulhar o pacote com
cuidado,
procurando não estragar o papel transparente com florzinhas coloridas. - É um perfume. Eu te trouxe perfume. Você gosta?
"É tão ridículo, meu Deus. Me trouxe perfume", pensou ela. "Tão lindo. Me faz sentir tão velha."
- Você não vai abrir? - disse ele. - Abre. Você não quer? Se você não gostar eu posso trocar.
- Não. Claro. Obrigada - disse ela, e obrigou-se a sentir o perfume barato e a se emocionar.
- É importado - disse ele. - Eu consigo perfume de contrabando. Quanto eu quiser.
- É mesmo?
- Eu tenho um amigo na alfândega - disse ele, sempre sério e solene. - Arranjo o que eu quiser: perfume, roupa fina. Querendo qualquer uma dessas coisas é só falar.
Ela o olhou erguendo, ávida, o rosto agudo e pálido, tentando parecer feliz, humilde.
- Estou tão contente por você ter vindo. Esse tempo todo, sempre pensando, precisava ver. Primeiro eu fiquei sabendo que você estava morando com o Adolfo, mas você
é louco mesmo, morar com ele. Só você. Encontrei com ele outro dia, ele não te
falou?
- Morei, sim, na casa dele, um tempo. Acabei me enchendo: todo o dia aporrinhando com a política. É um samaritano, um cara do Exército de Salvação. Agora estou num
hotel.
- Eu quase fui te ver, sabe? Adolfo não te falou? Queria te dizer, olha: eu fui tão ruim, aquele dia. Queria te pedir desculpas, Esteban. Eu estava tão nervosa,
fui injusta com você, estava meio louca.
- Tudo bem - disse ele. - Não é a primeira vez que me
expulsam de um lugar.
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- Não - disse ela, a cabeça baixa, bulindo com as pérolas do colar. - Você precisava ver, querido. Eu me sentia...
- Eu já sei - cortou ele. - Deixa pra lá.
- É que eu preciso te dizer, queria que você soubesse: estava meio louca, nervosa, neurastênica.
- Tudo bem - disse ele. - Por que você não vai fazer um café?
- Mas claro! Olha, vê só como eu sou. Te deixar assim, coitadinho do meu querido. Trago alguma coisa para comer? Quer comer alguma coisa? Com o café?
Ele ficou olhando para a figura esguia, elegante, de Adela, envolta no vestido azul: o brilho azulado da carne da mulher que caminhava para a cozinha, batendo com
os saltos. Do outro quarto chegava o riso sufocado da menina que brincava, falando sozinha.
- Essa menina é uma santa, você viu? - disse ela, na cozinha, voltando o rosto para ele. - Precisa ver como fica sozinha, como me faz companhia.
Sem motivo, como querendo prepará-la para o que viria, ele obrigou-se a mentir.
- Me reconheceu de cara, assim que me viu, tua filha. Lembrava de uma vez que eu levei ela no zoológico.
- Mas, claro, como não ia se lembrar? Desde que você foi embora ela não faz outra coisa senão falar de você.
"Bom", pensou ele. "Começamos o jogo, ela e eu."
- Mas o que você fez esse tempo todo - disse ela, entrando com a bandeja e sem olhar para ele. - Me conta. O que será que você andou fazendo, seu bárbaro?
- Um pouco de tudo.
- Olha, eu te matava. Você é um bárbaro - disse ela ajeitando as xícaras na mesinha de centro. - Tenho strudel. Você gosta de strudel?
- Gosto, é claro - disse ele, e começou a comer, inclinado, jogando o corpo para a frente. - Eu te vi, um dia. Você estava com um cara. Você não me viu?
- Não - disse ela. - Quando foi?
- Estranho. Você ia pela Suipacha, com o cara. Estranho você não ter me visto. Você estava com um vestido vermelho, parecia bem feliz. Não sei por que achei que
o cara era brasileiro.
- Brasileiro? Você é louco mesmo. Não. Devia ser, já me lembro, devia ser o amigo da Patrícia que...
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- Não sei por que eu achei que o cara era brasileiro - interrompeu ele. - A gente tem dessas coisas, não é? Pelo jeito de andar, imagino.
- É como eu te disse, era um amigo da Patrícia, a gente devia estar indo para a casa dela. Mas, que diferença faz isso agora? Não faz diferença nenhuma. Agora você
veio, está aqui, estou tão feliz. Eu nunca teria me atrevido a te procurar. Você me conhece, sabe como eu sou. Nunca teria me atrevido e apesar disso desde aquele
dia, você não vai acreditar, eu tinha certeza de que você ia voltar. A gente ia se encontrar para conversar, para que eu pudesse te dizer, Esteban querido - disse
ela, e pareceu que sua pele se franzia, dissolvida na piedade que sentia por si mesma - Eu tenho sentido tanta falta de você. Eu estava louca, meio vazia. Você nunca
vai saber - disse ela, e inclinou-se tão perto que Esteban chegou a sentir o perfume doce que se desprendia da pele da mulher. Era um perfume como uma névoa turva
que o entristecia e que o fez se decidir, por fim, a começar a lhe dizer para que tinha vindo.
- É, claro. Mas eu, sabe - disse ele sem poder olhar para ela. - Queria te dizer, eu vim para me despedir. Estou voltando para Bolívar.
- Meu Deus - disse ela. - Você ficou louco?
- Por quê? Eu quero mudar de ares. Meu velho vai me colocar à frente da loja. Futuro acertado - disse ele. - Buenos Aires não é para mim. Enquanto eu estava com
você não me dava conta disso. É claro, como você me sustentava...
- Esteban, por favor. Já te falei que naquele dia, já te falei
que eu...
- Não. Você tem razão. Você é uma mulher prática. As tuas coisas sempre vão andar direito. Você se arranja.
- Eu me acostumo, você quer dizer.
- Pode ser. Mas eu não, sabe. Nunca me acostumo, nunca vou me acostumar a nada. Os que fazem isso é como se estivessem mortos.
Ela pegou um cigarro e o acendeu, tensa, procurando disfarçar a mão que tremia.
- E por que você está voltando, se é que se pode saber'
- Porque a gente pensa as coisas de um jeito e depois tudo sai diferente. Parecia fácil, não é?, logo que cheguei. Eu me lembro e morro de rir. Ia pôr o mundo no
bolso, vê só, e aqui estou.
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- Parou como se não conseguisse respirar. - Nesta cidade de merda, percebe? A gente chega, acha que estão esperando pela gente. Quando quer se lembrar já está perdido,
triturado.
A escuridão ia chegando aos poucos; na janela a cidade era uma massa cinzenta.
- E quando você está pensando ir embora?
- Não sei ainda. Amanhã, depois. O pior vai ser quando eu chegar. Tem cada filho da puta no interior, você nem imagina. Para cada um que volta fazem uma festa.
Adela procurou se acalmar e fumou quieta, a fumaça nublando seu rosto.
- No que você está pensando? - disse ele.
- Em nada. Estou tentando entender.
- No fim vai ser melhor - disse ele, e se levantou. Foi até a janela. Ao fundo o rio era uma mancha suja. - Você ainda tem a estátua - disse ele, e segurou-a com
as duas mãos. Era uma figura de prata. A imagem de uma virgem com rosto de pássaro. - El Cuzco. Trezentos anos. Nunca gostei desta estátua, vou te confessar. Cara
demais para ser um enfeite. Sempre achei que você era como esta estátua: fina demais para mim.
Ela continuou quieta, as mãos moles; olhou-o colocar a imagem suavemente na prateleira e voltar para a poltrona.
- Bela pinta de safado tinha o cara que estava com você, para falar a verdade - disse ele. - Você gosta de colecionar. Os homens, quero dizer.
- Não seja bobo.
- Mas se é o que você faz!
- Certo, e daí?
- Nada - disse ele.
Tinha sentado outra vez e olhava para o chão, um ponto no chão, concentrado, rancoroso.
- Bobo - disse ela. - Você é tão bobo.
Estendeu a mão e roçou o rosto dele com a ponta dos dedos. Ele olhou-a de frente, indeciso, como se não a visse.
- O que será que aconteceu com a gente, Adela?
- Quem sabe? - disse ela.
- Sempre me lembro de quando você chegou do Chile. Me lembro disso, não sei por quê. Você estava tão linda. A gente ia se gostar pro resto da vida.
- É - disse ela. - A gente ia se gostar pro resto da vida.
- Você me trouxe uma garrafa de pisco, lembra?, quando veio do Chile - disse ele. - Você nunca vai saber como eu gostava de você. Queria
me casar para que você não pudesse me deixar, olha que babaca.
- Não - disse ela. - Querido.
- Estou tão fodido - disse ele e afundou o rosto no corpo da mulher.
- Lindo - disse ela, e o abraçou. - Meu pequeno.
Ele tinha se recostado no sofá e a acariciava, os olhos fechados, o rosto tenso. Ela sentia as mãos dele contra seu corpo, roçando suas coxas, a junção das coxas,
e se deixava tocar, úmida, aberta.
- Você viu o perfume que eu te trouxe. Consigo quantos eu quiser - disse ele de repente, sem deixar de acariciá-la.
- Sei - disse ela -, sei.
- Estive pensando, com isso posso sair do buraco. O cara que te falei, o cara da alfândega, diz que tendo um capital posso me estabelecer por conta própria.
- Por favor - disse ela. - Não fala agora, espera, não fala, por favor.
- Tudo o que eu preciso, em resumo são cem mil pesos. Ela se sentiu mole. Desfeita. Sentiu que se afogava.
- Não - disse. - Não. Me solta - disse ela.
- O que você está fazendo? - disse ele - O que foi? Adela estava de pé diante dele, um leve tremor na pele das
pálpebras.
- De quanto você precisa? Quanto dinheiro você quer? - disse. - Eu te dou. Você vem aqui, eu te dou o dinheiro. Está certo?
- Mas, o que foi? - disse ele, mal sentado no sofá e tentou sorrir. - Ficou louca?
- Você veio para isso, não é? Você traz tudo, eu te dou o dinheiro.
Esteban levantou-se, devagar, até ficar de cara para a mulher.
- Por que me humilhar? - disse.
- Quem? - disse ela. - Quem?
- Você. Por que me humilha? O que você pretende? Por que me humilha? Quer me ver no chão, ajoelhado. É isso que você quer? - disse ele, e ajoelhou-se aos pés da
mulher. - Aí
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está! - disse. - Muito bem. A senhora é uma senhora. Tem senso prático, é orgulhosa, tem senso de oportunidade. A senhora - disse ele.
- Levanta daí, por favor. Não seja ridículo.
- Ridículo? Sou ridículo, sim. Ridículo. E daí?
- Pára com isso. Não estraga tudo.
- Estrago tudo, sim. Não tenho saída, não tenho para onde ir, para você é fácil!
A menina tinha se encostado no batente da porta e olhava para eles.
- Esteban, a menina - disse Adela. - Só te peço que... Ele buscou o rosto da garota e sorriu para ela; depois abriu
os braços e começou a cantar.
"Oh Maria, madre mia
oh consuelo del altar
amparadme y guiadme
hacia el mundo celestial", * cantou ele, desafinado.
A menina sorria para ele, o rosto suavizado, apertando o boneco contra o corpo, enquanto Adela a abraçava para erguê-la.
- Vai ser como você - disse ele. - Igual a você: míope, boba.
- Sai daqui - disse ela. - Vai embora.
- Tudo bem - disse ele, e começou a se levantar. - Você tem razão.
No outro quarto, o ar ainda era claro e transparente, luminoso contra as paredes brancas.
- O que é que ele tem? - diz Lucía.
- Nada - diz Adela. - Não se preocupa.
De joelhos, ajeita-lhe o cabelo, passa a mão por seu rosto, procurando não chorar. Dali, como envolto numa bruma, longínquo na penumbra do outro quarto, vê Esteban
que esconde, desajeitadamente, a estátua de prata debaixo do casaco.
- Por que ele cantava? - diz a menina.
- Não tem importância - diz Adela, e a abraça. - Não tem importância, minha querida. A mamãe já vem.
"Oh Maria, minha mãe / oh consolo do altar / amparai-me e guiai-me / até o mundo celestial"
Quando sai, ele continua no mesmo lugar, o casaco abotoado, o chapéu na mão, um braço apertado contra o corpo.
- Você vai embora? - diz ela.
- Eu vou - diz ele.
Adela olha-o ajeitar, com uma das mãos, a aba do chapéu e caminhar devagar até a porta
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O LAUCHA BENÍTEZ CANTAVA BOLEROS

Nunca vou chegar a saber com certeza se o Viking estava tentando me contar o que realmente aconteceu aquela madrugada no Clube Atenas, ou se queria descarregar
sua culpa ou se estava louco. A história era de qualquer modo confusa, desalinhavada: pedaços de sua vida, a desconsolada saudação de guerra dos escandinavos e um
estropiado recorte da revista El Gráfico enrolado em trapos, com a finíssima e luminosa cara do Viking olhando a câmara de frente.
Logo de saída eu tinha desconfiado que alguma coisa não funcionava na história que os jornais contavam, mas se tive alguma esperança de que ele mesmo desvendasse
os fatos, ela se desfez nem bem o vi chegar, receoso, a pele do rosto rachada pelo sol, escondendo as mãos no peito, com um ar obsessivo e brutal. Movia-se devagar,
num bamboleio suave, e era fatal recordar, com melancolia, aquele seu jeito tão indolente de caminhar no ringue para tomar distância, sua elegância natural para
dar os golpes e fazer jogo de cintura sem sair do corpo-a-corpo. Estava ali encolhido num canto, encostado contra a parede, meio perdido, e olhava sem ver no fundo
do corredor a última luz da tarde, já dissolvida entre os álamos e as grades do hospício. Ofereci-lhe um cigarro e ele fez as mãos em concha para resguardar a chama,
sem me tocar, envergonhado dos borrões de sujeira
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que tingiam sua pele; fumou, abatido, até quase não poder desgrudar a brasa dos lábios e depois ficou quieto, com os olhos vazios e de repente estava remexendo
nos bolsos da camisa, desenterrando um monte de trapos que foi abrindo com cuidado até encontrar o surrado recorte da El Gráfico onde se via seu rosto, jovem e apagado,
ao lado do rosto de Archie Moore. Alisava o papel, respirando de boca aberta, falando com dificuldade, com uma voz gutural, incompreensível, amontoando as palavras
sem ordem até que sem querer ficava calado e olhava para mim, como que esperando uma resposta, antes de começar de novo, retornando uma e outra vez a essa madrugada
no Clube Atenas de La Plata, ao corpinho despedaçado do Laucha Benítez largado no chão, de barriga para cima como flutuando na trêmula luz do amanhecer.
De um modo ou de outro toda esta história leva ao Clube Atenas; a história ou o que vale dela começa ali na tarde em que o Laucha Benítez achegou-se à figura desolada
e feroz do Viking e numa prova de lealdade, de inesperada lealdade para com esse monstro estapafúrdio, ele, com seu corpinho esquálido e sua cara de sagüi, aproximou-se
dos outros, daqueles que acossavam o Viking, e arrebatou-lhes o troféu, a única insígnia ou escudo heráldico que o Viking conseguira conquistar em anos de batalhas
perdidas e fracassos heróicos. Ele os afugentou, embravecido, a ponto de cair no choro e depois retirou-se a um canto junto do Viking e procurou acalmá-lo, sem saber
que estava buscando sua morte.
Ninguém nunca saberá o que aconteceu, mas é certo que é preciso buscar o segredo nesse ruinoso clube de boxe que ergue suas paredes carcomidas e seu telhado de duas
águas no fim de uma rua vazia: ali, numa tarde de maio de 51, o homem que anos mais tarde se verá obrigado a se fazer chamar de O Viking, calçou pela primeira vez
um par de luvas, jogou para a frente a perna esquerda, ergueu as mãos, ficou em guarda e começou a lutar boxe.
Introvertido e delicado, era ágil, rápido e elegante demais para ser eficiente. Movia-se com a soltura de um leve e todos elogiavam a pureza de seu estilo, mas era
impossível ganhar com aqueles golpes que mais pareciam carícias. No fundo não tinha nascido para boxeador e menos ainda para peso pesado, com seu rosto doce de galã
de cinema mudo, com sua figura espigada e
romântica teria feito melhor papel em qualquer outro lugar, mas era boxeador sem ter escolhido, fatalidade de ter nascido com aquele corpo esplêndido e perto do
Clube Atenas. Dava tristeza vê-lo agüentar, impávido e sem a menor vacilação, as investidas confusas dos brutais mastodontes da categoria. Era muito mais um homem
para lutar entre os leves, no máximo com algum meiomédio; de qualquer modo, inexplicavelmente e numa espécie de traição que o levava ao desastre, seu corpo enxuto
como uma palha pesava sempre os noventa quilos mesmo que se matasse de fome. Não chegou a lugar nenhum e nunca teve outra virtude além da pureza de seu estilo, uma
louca obstinação para assimilar o castigo, uma pertinácia, um orgulho que o obrigava a continuar de pé, e arremetendo mesmo que estivesse acabado.
O auge de sua carreira ele atingiu numa tarde anônima: uma tarde de agosto de 53, no ginásio meio iluminado e vazio do Luna Park, na qual conseguiu agüentar-se em
pé diante de Archie Moore, na única sessão de treinos que o campeão do mundo fez em Buenos Aires antes de lutar com o uruguaio Dogomar Martínez. Foi uma tarde vertiginosa
que depois sempre lhe doeu recordar. Ninguém se atrevia a ser sparring de Archie Moore e ele decidiu-se porque ainda conservava inalterada essa qualidade, digamos
adolescente, de desprezar os riscos e confiar sem a menor hesitação na força de sua insensata vontade, iludido de que essa era a sua chance, convenceu-se de que
era capaz de lutar de igual para igual durante cinco rounds de três minutos, com essa perfeita máquina de fazer boxe que era Archie Moore.
Ficou sozinho por muito tempo, sentado num canto, perto dos chuveiros, esperando. Olhava a luz sebenta que descia das lâmpadas gradeadas e misturava-se com a claridade
da tarde, sem pensar em nada, tentando esquecer que Moore era, naquele tempo, um dos três ou quatro maiores boxeadores da história do boxe. Por um momento teve a
impressão de adormecer, embalado pelo barulho confuso dos homens que se moviam ao fundo, mas de repente chegaram os fotógrafos como num turbilhão e ele se viu no
ringue com Archie Moore na sua frente. Começaram leve, trocando a guarda e fazendo trabalho de cordas. Moore era mais baixo, usava luvas vermelhas e botinhas de
veludo. O Viking sentia-se muito duro, amarrado, atento demais ao que acontecia fora do ringue, aos clarões que choviam inesperadamente nem bem Moore se mexia. Além
do mais sentia mais curiosidade
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do que medo. Vontade de saber o quanto iam doer os murros de um campeão do mundo. Dali a pouco Moore o havia encurralado duas vezes, mas nas duas vezes ele conseguiu
safar-se fazendo jogo de cintura. O campeão ficou descolocado, de cara para o vazio e parou de sorrir. O Viking começou a dar voltas em torno dele, sempre fora de
seu alcance e Moore o trabalhava com a canhota, quieto, balançando-se, e de repente partia para cima dele com uma velocidade fulminante. O Viking só fazia olhar
suas mãos, tentando prever, com a obscura sensação de que o outro adivinhava o que ele ia fazer. Numa dessas, ele se moveu um pouco mais devagar e Moore aplicou-lhe
dois cruzados de direita e um de esquerda baixo e o Viking teve a impressão de que algo tinha se quebrado, dentro dele. Moore tocou-o de leve com a esquerda, como
querendo tomar distância, fintou um passo para um lado procurando perfilar a direita e quando o Viking se mexeu para cobri-se, a canhota de Moore desceu como um
chicote e o encontrou no meio do caminho. O Viking sentiu sua vista escurecer, ergueu o rosto buscando ar, mas só viu os espotes do ginásio que giravam. Moore se
fez a um lado, sem tocá-lo, esperando que desmoronasse. O Viking sentiu que suas pernas se trançavam, balançou-se para se deixar ir mas segurou-se em algum lugar,
do ar, vá lá saber onde ele se segurou, o certo é que quando baixou o rosto estava outra vez em guarda.
A partir daí Moore começou a procurá-lo a sério. Para derrubá-lo. Quando estavam no centro do ringue e havia espaço o Viking se arranjava com o jogo de pernas, mas
cada vez que Moore o encurralava contra as cordas tinha vontade de erguer os braços e começar a chorar. Dali a pouco navegava numa névoa opaca, sem entender como
podiam estar batendo tão forte, toda sua energia concentrada em não desgrudar os pés do chão: única certeza de que ainda estava vivo. Tentava manter-se fiel ao seu
estilo e sair lutando, mas Moore era rápido demais e chegava sempre antes. Perto do final tinha perdido tudo, menos esse instinto fatal que o levava a procurar a
saída mais clássica e conservar certa elegância apesar de estar meio cego, despedaçado pelos cruzados e pela combinação de jab e uppercut que o barravam como se
batesse continuamente contra um muro. A essa altura o próprio Moore parecia um homem piedoso, obrigado a bater porque esse é o seu trabalho, com um leve lampejo
de respeito e consideração iluminando seus olhos levemente vesgos, uma
espécie de súplica, como se estivesse lhe pedindo que se deixasse cair para não ter de continuar batendo.
Quando tudo terminou quase não se deu conta. Continuou se cobrindo e não baixou os braços nem mesmo quando viu subirem os fotógrafos, como se tivesse medo de que
pensassem que Moore teria podido nocauteá-lo no final. Só quando alguém o colocou ao lado de Moore e viu um fotógrafo na sua frente, compreendeu que tinha conseguido
resistir: então olhou para a câmara, ficou teso e tentou se concentrar para não fechar os olhos quando estourasse oflash. Desceu do ringue ensaiando cada gesto,
atordoado pela dor mas invicto e satisfeito, tendo adquirido para sempre uma confiança no seu valor e em sua hombridade, como se realmente tivesse lutado com Moore
pelo título mundial, em meio a marés de embriagadora fama e sem enxergar o vazio, a mortiça claridade que diluía os rostos, a silhueta dos homens que cercavam Moore,
sem ninguém que se ocupasse dele, sozinho como nunca mais esteve.
Nos cinco anos que se seguiram não houve mais que uma longa série de massacres heróicos, nos quais só teve para oferecer a estranha beleza de seu rosto que costumava
encher de inquietude as senhoras da platéia e uma torva altivez, uma mania de perfeição imperceptível para quem não estivesse com ele entre as cordas. É claro que
a emoção das senhoras da platéia nunca passou de uma ansiedade secreta e nenhum dos seus adversários revelou-se um cavalheiro capaz de respeitar esse orgulho suicida.
De modo que sua campanha interrompeu-se, sem surpresas, numa noite de fevereiro de 56, no Clube Atenas. Naquele galpão quase deserto ele lutou pela última vez, enfrentando
um desconhecido brutal e de olhar turvo, que o perseguiu por dez rounds lançando lerdas maçadas, frente às quais ele opunha apenas a absurda perseverança e a fútil
pureza de seu estilo, um elegante jogo de cintura que parecia destinado a encontrar todos os socos que estivessem soltos pelo ar. Caiu quatro vezes mas acabou de
pé, embotado e cambaleante, o olhar fixo no vazio. Quando soou o gongo arrastaram-no para seu canto e ele os olhava, arisco, os olhos muito abertos, como alucinado
ou sonâmbulo, a cara quebrada, desfigurada pelo sangue.
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Nunca se decidiu a abandonar o boxe, porque para fazê-lo teria de duvidar de si mesmo e era inútil esperar que o fizesse; simplesmente deixaram de lhe oferecer
lutas, olhavam-no rondar os escritórios dos empresários, viam-no chegar ao ginásio todas as manhãs com sua sacola e começar a treinar, teimoso, incansável, inspirando
essa piedade irritada que costuma causar a supervalorização e o excesso de confiança. Seguro de si e acabado, nunca pediu outra coisa além de uma chance de voltar
a lutar e demonstrar o quanto valia. No fim, quando estava quase morrendo de fome, alguém o tirou da letargia e o colocou como lutador profissional numa trupe de
luta livre. Ali, pelo menos, para alguma coisa servia seu olhar acinzentado, seu rosto delicado e aristocrático; subia ao ringue com uma barba vermelha que o vexava
e uma espécie de capacete com chifres para justificar seu nome de guerra. Tinha de abrir os braços e inventar um ritual aparatoso que, segundo o empresário, era
a saudação viking. Fazia aquilo mal, desajeitadamente, e sem perceber procurava estar sempre de costas para o público como não querendo que o reconhecessem.
A trupe fazia turnês pelo interior e ele passava as tardes trancado nos quartos ruinosos de tristes hoteizinhos de província, largado na cama de barriga para cima,
esperando a noite, esperando os saltos absurdos e os risos, sem outro consolo além de desenterrar, de vez em quando, o amarelecido recorte da El Gráfico em que aparecia,
sua cara invicta e jovem, ao lado da cara de Archie Moore. Passava horas alisando o papel contra a mesa, tentando apagar as rugas que iam deformando seu rosto na
foto, retalhando seu belo rosto loiro que parecia ter envelhecido encarquilhado no papel quebradiço.
Todos o suportavam porque era útil para eles, porque sua expressão melancólica e sua figura altíssima, de cabeleira avermelhada e barba ao vento atraía o público
que parecia não notar sua total falta de jeito, seu ar ausente que mostrava às claras que estava a milhares de quilômetros desse quadrado de cordas erguido no meio
de uma praça.
Para disfarçar sua indiferença acabaram dizendo que ele era sueco ou norueguês, que não falava uma só palavra de castelhano, e essa fábula inventada para fortalecer
o mito, favoreceu sua esquivez, seu silêncio. Com o tempo, todos acabaram acreditando nisso, até quem o havia inventado, e talvez ele mesmo tenha
terminado por se convencer de que havia nascido em algum remoto país do qual restava apenas uma vaga nostalgia.
Ficou nisso por mais de dois anos nos quais mal falou com os outros, pelos cantos e sempre sozinho, enredado na vertiginosa e monótona sucessão de cidadezinhas,
de rostos brutais e saudações vikings, e ninguém estranhou quando, numa tarde, desapareceu de repente. A trupe tinha desembarcado em La Plata, e ele foi embora sem
avisar, subitamente, como que atendendo a um chamado, sem levar mais que uma velha mala de papelão, o pseudônimo que iria conservar até sua morte e a barba iluminando
seu rosto. Caminhou por ruas desertas, no ardente calor das sestas de fevereiro, metido numa malha preta com gola olímpica, chamando a atenção com seu corpo tão
alto, com sua figura estapafúrdia, sem olhar as pessoas que se viravam para ver passar aquele gigante loiro; atravessou o espesso e doce aroma das tílias e procurou
o Clube Atenas como quem volta para casa depois de um vendaval. Não tinha outra coisa para oferecer além daquela sua mesma obstinação, mas ali ficou até fazer irromper
a tragédia. Foi ali, depois de atravessar o saguão desmantelado do Atenas e abaixar-se para transpor a portinha que dava no ginásio, que viu pela primeira vez o
corpinho miúdo do Laucha Benítez. O garoto, um peso-mosca de dezessete anos que prometia muito mas que não se decidia entre seu inato talento para o boxe e sua vontade
de ser cantor de boleros, estava no fundo, perdido entre as cordas e o cheiro de breu e segundo contam mal fez um gesto, um leve balanço e foi esse seu modo de dizer
que estava esperando por ele desde sempre. Os dois se olharam, quase estáticos, e depois de um instante o Laucha continuou batendo com suas mãozinhas delicadas num
saco de areia mais alto do que ele, todo o rosto concentrado no esforço de parecer feroz. O Viking continuou caminhando em direção ao centro, como se o procurasse,
enquanto o Laucha abraçava-se ao saco de areia e o via aproximarse, já fascinado por essa figura à qual o sol da tarde descendo pelos vidros embaçados conferia um
ar fantasmal. Ficou olhando para ele, um leve sorriso pousado em sua boquinha de mulher, como se entrevisse a altivez e o furor secreto do Viking, ou melhor, como
se adivinhasse que esse furor e essa altivez eram dedicados a ele.
Talvez por isso, daí para a frente, o Laucha tenha sido o único a reparar na existência do Viking. Cativado, atento a seus
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mínimos gestos, ele o vigiava, emitindo estranhos sinais, caretas, murmúrios, equilibradas representações nas quais seu corpo adquiria a harmonia e o fulgor de uma
pequena estátua. Essas celebrações atingiam o clímax quando o Viking estava perto: então o Laucha abandonava o que estivesse fazendo, jogava a nuca para trás, cravava
os olhos no rosto desolado do Viking e com sua voz aguda, tristíssima e quase de mulher, cantava um dos boleros da época de ouro, no estilo de Júlio Jaramillo.
O Viking não parecia ouvi-lo ou perceber que existia, como se se movesse em outra dimensão, sempre ausente. Recolhia-se num canto com os olhos perdidos e passava
as horas, aturdido pelo rumor do ginásio, sem fazer mais que mudar de posição de vez em quando. Às vezes, no entanto, parecia excitado, remexiase nervoso com um
brilho azul nos olhos e de repente, nos momentos mais inesperados, era assaltado por estranhas inquietações, tremia levemente, começava a murmurar em voz baixíssima,
agitado e dando tapas no ar, até acabar enfurecido, contando num tom indecifrável uma história confusa: a história de uma sessão de luvas com Archie Moore. Repetia
os movimentos lutando sozinho, encurvado e em guarda, lançando lerdas maçadas tímidas. Pulava ou se movia, pesado, desajeitado, tentando resgatar algo de tudo aquilo,
ao menos uma visão fugaz desse pacto com Moore, desse louco, insensato e nunca valorizado heroísmo. Os outros (todos aqueles que usavam o Atenas como templo de suas
esperanças, de suas desgraças) faziam um círculo em volta dele, excitavam-no com gestos de alento, com risadas e sabendo que no final, indefectivelmente, suarento
e cansado, respirando de boca aberta, com movimentos lerdos e cuidados, iria escarafunchar em sua camisa até encontrar o recorte da El Gráfico que seguraria com
firmeza mas afastado de seu corpo, com um gesto de tristeza, de abatimento e de secreto orgulho.
O Laucha era o único que parecia impressionado, o único que olhava a foto do recorte, a cara do Viking um pouco machucada que chegava a se decifrar no pedaço de
papel. Os outros faziam piadas, riam, enquanto o Laucha se afastava, parecia se esconder, refugiar-se num canto e dali vigiava a todos os que se amontoavam em volta
do corpo vacilante do Viking. Assustado, sem atrever-se a intervir, olhava com dor para o Viking que tentava contar de algum modo aquela luta, a fulminante velocidade
de Moore e suas botinhas de veludo.
E nessa tarde, quando alguém arrancou-lhe o pedaço de papel, o Viking ficou quieto, como que desentendido e depois pareceu que algo escurecia sua vista porque passou
uma das mãos pelo rosto e de repente estava no meio deles, sem ver o Laucha que a seu lado, enfurecido e minúsculo, os insultava e os fazia recuar, até que no fim
virou-se para o Viking e mal encostava nele com a palma das mãos, devagar, arreando-o como se fosse um grande animal doente. Levou-o para um lado, longe dos outros
e
começou a lhe falar em voz baixa, acalentando-o, enquanto o Viking ia parando de se remexer e de gemer, já sossegado, os olhos perdidos no ar, a linda cara de paz.
A partir desse dia começaram a andar sempre juntos, separados do resto. Recolhiam-se ao fundo do ginásio, quietos, sem falar, e de repente o Laucha começava a cantar
os boleros, muito baixinho, só para o Viking, deixando-se levar nos agudos como se fosse desmontar.
Nessa época, segundo contam, o Viking pareceu renascer. Começou a entrar no ringue com o Laucha e servia-lhe de sparring. Alguns atribuem a isso a causa de tudo,
falam em acidente, numa mão descontrolada. De qualquer modo, era engraçado ver os dois trocando socos, o Laucha miúdo, quase um menino, pulando agilmente, com sua
cara de sagüi e ao lado a massa encurvada do Viking movendo-se pesadamente. Um único soco do Viking teria bastado para partir o Laucha ao meio, mas apesar disso
entrava no ringue seguro e pavoneando-se, como um domador na jaula dos ursos. Punham-se em guarda e iniciavam um simulacro de combate, o Viking postado no centro,
o Laucha cabritando em volta. O Viking golpeava-o com delicadeza, como se o acariciasse e oferecia o rosto impunemente, orgulhoso de ter recuperado sua fabulosa
resistência ao castigo. No fim o Laucha cansava-se de bater e dedicava-se a pular corda. O Viking sentava-se a um lado, os olhos parados no rosto do outro, tenso
pelo esforço, o corpo todo brilhando de suor.
Quando a tarde caía os dois iam juntos para os chuveiros; do lado de fora ouviam-se os guinchos do Laucha que demorava-se horas debaixo d'água, cantando com os olhos
fechados, enquanto o Viking se vestia e esperava por ele, deitado num dos bancos de madeira sem encosto, as mãos na nuca, cochilando até que o Laucha aparecia, a
pele azulada, cheirando a sabão de coco e começava a se vestir, elegante e teatral, fazendo caretas na
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frente do espelho embaçado. Os dois iam caminhar pela cidade ao entardecer, e as pessoas paravam para olhá-los como se viessem de outro planeta, o Laucha com sua
pinta de jóquei mas vestido como um dândi, caminhando ao lado desse gigante melancólico, de cabeleira avermelhada.
Acabavam sempre nos arredores da estação de trem sentados numa mesa, na calçada do bar Rayo, debaixo das árvores, tomando cerveja preta e respirando o ar suave do
verão. Passavam as horas ali, enquanto a noite crescia, olhando o movimento da estação, adivinhando a chegada dos trens pela enxurrada de gente que passava junto
a eles. Não conversavam, não faziam outra coisa além de olhar a rua e beber cerveja, tranqüilos, ausentes, até que por fim, sem que nenhum dos dois dissesse nada,
levantavam-se e iam embora, guiados pelo Laucha que olhava atentamente para um lado e para o outro antes de atravessar, andando sempre um pouco atrás do Viking,
como se o arreasse por entre os carros.
Assim passaram o que restava do verão: cada vez mais isolados aperfeiçoando entre os dois o final secreto da história. Todos acham que nessa época o Laucha dormia
no Atenas. Chegaram inclusive a vê-los, certa manhã, dormindo juntos, a cabeça do Laucha apoiada no peito do Viking que parecia embalar uma boneca. De qualquer modo
ninguém previu ou pôde saber o que aconteceu naquela noite: viu-se luz no clube até de madrugada e alguém ouviu a voz aguda e suave, desafinada, do Laucha cantando
El relicario. Um vento espesso soprou a noite toda, carregando o cheiro de madeira queimada do rio. Pareceu estranho que ninguém tivesse saído para abrir; a porta
estava quebrada, como se o vento a tivesse desencaixado, e do outro lado, na trêmula luz do amanhecer que se filtrava pelas janelas, encontraram o Laucha agonizando,
destroçado a murros, e o Viking no chão, chorando e acariciando sua cabeça suja de sangue e poeira. Todo o ginásio vazio, o suave murmúrio do vento entre as chapas
e ao fundo a figura encurvada do Viking abraçado ao corpo do Laucha que tinha o rosto destroçado e um sorriso em sua boquinha de mulher, como um obscuro sinal de
amor, de indolência, ou de gratidão.
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A LOUCA E O RELATO DO CRIME

para Manolo Mosquera

Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu corpo, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento.
As ruas já se aquietavam; escuras e lustrosas desciam num suave declive e o faziam avançar mansamente, segurando a aba do chapéu quando o vento do rio tocava seu
rosto. Nesse momento as garçonetes entravam no primeiro turno. A qualquer hora há homens procurando uma mulher, andam pela cidade sob o sol pálido, passam furtivamente
em direção às boates que ao entardecer deixam cair uma música doce sobre a cidade. Almada sentia-se perdido, cheio de medo e de desprezo. Junto com o desalento retornava
a lembrança de Larry: o corpo distante da mulher, mole sobre o banco de couro, os joelhos separados, o cabelo vermelho contra as lâmpadas azul-claras do New Deal.
Vê-la de longe, em pleno dia, a pele gasta, as olheiras, vacilando contra a luz lívida que descia do céu: altiva, bêbada, indiferente, como se fosse uma planta ou
um bicho. "Poder humilhá-la uma vez", pensou. "Parti-la ao meio para fazê-la gemer e se entregar".
Na esquina, o ponto do New Deal era uma mancha ocre, corroída, mais pervertida ainda sob a neblina das seis horas da tarde. Parado em frente, atarracado, ensimesmado,
Almada acendeu
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um cigarro e ergueu o rosto como que buscando no ar o perfume maligno de Larry. Sentia-se forte agora, capaz de qualquer coisa, capaz de entrar no cabaré e
arrancá-la pelo braço e estapeála até que obedecesse. "Anos que eu quero levantar vôo", pensou de repente. "Instalar-me por conta própria no Panamá, Quito, Equador."
A um lado, deitada num saguão, viu o vulto sujo de uma mulher que dormia enrolada em trapos. Almada cutucou-a com um pé.
- Ei, você - disse.
A mulher sentou-se tateando o ar e levantou a cabeça como que enceguecida.
- Como você se chama? - disse ele.
- Quem?
- Você! Não ouviu?
- Echevarne Angélica Inés - disse ela, tesa. - Echevarne Angélica Inés, mas me chamam Anahí.
- E o que você está fazendo aqui?
- Nada - disse ela. - Me dá um dinheiro?
- Ah, você quer dinheiro?
A mulher apertava contra o corpo um velho casaco de homem que a envolvia como uma túnica.
- Bom - disse ele. - Se você se ajoelhar e beijar meus pés eu te dou mil pesos.
- Hein?
- Está vendo? Olha aqui - disse Almada agitando a nota entre seus dedinhos mochos. - Você se ajoelha e eu te dou isto aqui.
- Eu sou ela, sou Anahí. A pecadora, a cigana.
- Você ouviu? - disse Almada. - Ou está bêbada?
- A macarena, ai macarena, cheia de tules - cantou a mulher e começou a se ajoelhar entre os trapos que cobriam sua pele e a afundar o rosto entre as pernas de Almada.
Ele a olhou do alto, majestoso, um brilho úmido em seus olhinhos de gato.
- Aí está. Eu sou Almada - disse e estendeu-lhe a nota. - Compra um perfume para você.
- A pecadora. Rainha e mãe - disse ela. - Nunca existiu em todo o país um homem mais lindo que Juan Bautista Bairoletto, o cavaleiro.
Pela clarabóia da boate ouvia-se soar baixinho um piano, indeciso. Almada cerrou as mãos nos bolsos e perfilou-se na
direção da música, na direção das cortinas cor de sangue da entrada. - A macarena, ai macarena - cantava a louca. - Cheia de tules e sedas, a macarena, ai, cheia de
tules - cantou a louca.
Antúnez entrou no corredor amarelento da pensão de Viamonte e Reconquista, sossegado, manso então, grato a essa sutil combinação dos fatos da vida que ele chamava
seu destino. Fazia uma semana que vivia com Larry. Antes eles se encontravam toda vez que ele se demorava no New Deal sem escolher ou querer admitir que ia por ela;
depois, na cama, os dois se usavam com frieza e eficiência, lentos, perversamente. Antúnez acordava depois do meio-dia e ia para a rua, já esquecido do resplandor
acre da luz nas persianas entreabertas. Até que por fim uma manhã, sem nada que o fizesse prever, ela se postou nua no meio do quarto e, como se falasse sozinha,
pediu a ele que não fosse embora. Antúnez desatou a rir: "Para quê?", disse. "Ficar?", disse ele, um homem pesado, envelhecido. "Para quê?", tinha dito a ela, mas
já estava decidido, porque nesse momento começava a ser consciente de sua inexorável decadência, dos sinais desse fracasso que ele escolhera chamar de seu destino.
Então deixouse estar naquele quarto, sem nada para fazer além de se debruçar na sacadinha de ferro e olhar para a ladeira de Viamonte e vê-la chegar, lenta, envolta
na neblina do amanhecer. Acostumou-se ao modo que ela tinha de entrar trazendo o cansaço dos homens que lhe haviam pago bebida e aproximar-se, como ofuscada, para
deixar o dinheiro sobre o criado-mudo. Acostumou-se também ao pacto, à secreta e querida decisão de não falar do dinheiro, como se os dois soubessem que a mulher
pagava dessa forma o modo dele a proteger dos medos que de repente ela sentia de morrer ou de ficar louca.
"Já nos resta pouco tempo de jogo, para ela e para mim", pensou ao chegar no fim do corredor, e nesse momento, antes de abrir a porta do quarto, se deu conta de
que a mulher tinha ido embora e que tudo começava a se perder. O que não pôde imaginar foi que do outro lado iria encontrar a desgraça e a aflição, os signos da
morte nas gavetas abertas e nos móveis vazios, nos frascos, perfumes e pós de Larry jogados no chão: a despedida ou o adeus escrito com batom no espelho do guarda-roupa,
como um aviso que a mulher tivesse querido deixar antes de ir embora.
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Ele veio o Almada veio veio para me levar sabe tudo da gente veio no cabaré e é como um bicho um lixo ai meu deus vai embora por favor eu te peço foge você Juan
ele veio me procurar hoje de tarde é um rato me esquece te peço me esquece como se nunca tivesse estado na tua vida eu Larry pelo que você mais ama não me procura
porque ele te mata
leu Antúnez as letras trêmulas, desenhadas como uma rede sobre seu rosto refletido na lua do espelho.

II

Emilio Renzi se interessava por lingüística, mas ganhava a vida fazendo crítica de livros para o jornal El Mundo: passar cinco anos na faculdade especializando-se
na fonologia de Trubetzkoi para acabar escrevendo resenhas de meia página sobre o desolado panorama literário nacional era sem dúvida o motivo de sua melancolia,
desse aspecto concentrado e um pouco metafísico que o aproximava das personagens de Robert Arlt.
O sujeito que fazia a crônica policial estava doente na tarde em que a notícia do assassinato de Larry chegou no jornal. O velho Luna resolveu mandar Renzi cobrir
a notícia porque achou que obrigá-lo a se enfronhar nessa história de putas baratas e cafetões ia lhe fazer bem. Tinham encontrado a mulher crivada de punhaladas
perto do New Deal; a única testemunha do crime era uma mendiga meio louca que dizia se chamar Angélica Echevarne. Quando a encontraram ela embalava o cadáver como
se fosse uma boneca e repetia uma história incompreensível. A polícia deteve nessa mesma tarde Juan Antúnez, o sujeito que vivia com a garçonete, e o caso parecia
resolvido.
- Vê se consegue inventar alguma coisa que dê para se aproveitar - disse-lhe o velho Luna. - Vai até o departamento que às seis vão deixar a imprensa entrar.
No Departamento de Polícia Renzi encontrou um único jornalista, um tal Rinaldi, que cuidava dos crimes no jornal La Prensa. O sujeito era alto e tinha a pele esponjosa,
como se tivesse acabado de sair da água. Fizeram-nos entrar numa salinha pintada de azul-claro que parecia um cinema: quatro lâmpadas iluminavam com uma luz violenta
uma espécie de palco de madeira. Ali mostraram um homem altivo que cobria seu rosto com as mãos algemadas; logo em seguida o lugar se encheu de
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fotógrafos que tiraram instantâneos dele de todos os ângulos. O sujeito parecia flutuar numa névoa e quando baixou as mãos olhou para Renzi com olhos suaves.
- Não fui eu - disse. - Foi o gordo Almada, mas esse aí tem proteção dos graúdos.
Incomodado, Renzi sentiu que o homem falava somente para ele e lhe exigia ajuda.
- Certeza que foi esse aí - disse Rinaldi quando o levaram. - Eu sou capaz de farejar o criminoso a quilômetros: todos têm a mesma cara de gato mijado, todos dizem
que não foram eles e falam como se estivessem sonhando.
- Me pareceu que dizia a verdade.
- Sempre parecem dizer a verdade. Aí vem a louca.
A velha entrou olhando para a luz e atravessou o estrado com um leve bamboleio, como se caminhasse amarrada. Assim que começou a ouvi-la, Renzi ligou seu gravador.
- Eu vi tudo eu vi como se estivesse vendo meu corpo todo por dentro os gânglios os bofes o coração que pertence e que vai pertencer a Juan Bautista Bairoletto o
cavaleiro por esse homem estou dizendo vá embora daqui inimigo de maus bofes ou não está vendo que quer tirar a minha pele às tiras e fazer entremeios rendas roupa
de tule trançando o cabelo da Anahí cigana a macarena ai macarena uma azarada é o que você é não tem alma e o brilho nessa mão uma pederneira eu bebo ácido eu juro
que bebo ácido se você chegar perto eu bebo ácido pecadora louca de inveja porque estou limpa eu de todo mal sou uma santa Echevarne Angélica Inés mas me chamam
Anahí tinha razão o Hitler falou que precisavam todos os entrerrianos sou bruxa e sou cigana e sou a rainha que tece um tule precisam cobrir o brilho dessa mão uma
pederneira o brilho que fez ela morrer porque você tira a máscara mascarado que me viu ou não me viu e falou desse dinheiro Mãe Maria Mãe Maria no saguão Anahí foi
cigana e foi rainha e foi amiga de Evita Perón e onde será o purgatório se não fosse em Lanús para onde levaram a virgem com capuz nessa máquina com um laço de tule
para cobrir o rosto que eu tive sempre branco pela inocência.
- Parece uma paródia de Macbeth - sussurrou, erudito, Rinaldi. - Lembra, não? A história que nada significa contada por um louco.
- Por um idiota, não por um louco - corrigiu Renzi. -
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Por um idiota. E quem disse que não significa nada? A mulher continuava falando de cara para a luz.
- Por que me chamam traidora sabe por que vou dizer a mim me amava o homem mais lindo desta terra Juan Bautista Bairoletto cavaleiro de poncho inflado no ar é um
balão um balão gordo que flutua embaixo da luz amarela não chega perto se chegar perto eu te aviso não me toca com a espada porque é na luz que eu vi tudo eu vi
como se estivesse vendo meu corpo todo por dentro os gânglios os bofes o coração que pertenceu que pertence e que vai pertencer.
- Vai começar tudo de novo - disse Rinaldi.
- Talvez esteja tentando se fazer entender.
- Quem? Essa aí? Mas não está vendo que ela é biruta? - disse enquanto se levantava da poltrona. - Não vem?
- Não. Eu fico.
- Escute, meu velho. Não percebeu que repete sempre a mesma coisa desde que a encontraram?
- Por isso mesmo - disse Renzi controlando a fita no gravador. - Por isso é que eu quero ouvir, porque repete sempre a mesma coisa.
Três horas depois Emilio Renzi estendia sobre a surpreendida escrivaninha do velho Luna uma transcrição literal do monólogo da louca, sublinhado com lápis de diferentes
cores e cheio de marcas e de números.
- Eu tenho a prova de que Antúnez não matou a mulher. Foi um outro, um sujeito de quem ele falou, um tal de Almada, o gordo Almada.
- Mas que ótimo! - disse Luna, sarcástico. - Quer dizer que Antúnez diz que foi o Almada e você acredita.
- Não. É a louca quem diz isso, a louca que repete há dez horas a mesma coisa sem dizer nada. Mas justamente por repetir a mesma coisa é que dá para entender o que
ela diz. Tem uma série de regras na lingüística, um código que se usa para analisar a linguagem psicótica.
- Escuta aqui, garoto - disse Luna lentamente. - Você está me gozando?
- Calma, me deixe falar um minuto. Num delírio o louco repete, ou melhor, se vê obrigado a repetir certas estruturas verbais que são fixas, como um molde, percebe?
Um molde que ele
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vai enchendo com palavras. Para analisar essa estrutura temos
36 categorias verbais que são chamadas operadores lógicos. São como um mapa, o senhor os põe sobre o que eles dizem e vê que o delírio tem uma ordem, que repete
essas fórmulas. O que não cabe nessa ordem, o que não é possível classificar, o que sobra, o desperdício, é o novo: é o que o louco está tentando dizer apesar da
compulsão repetitiva. Eu analisei o delírio dessa mulher seguindo esse método. Se o senhor observar vai ver que ela repete um certo número de fórmulas, mas tem uma
série de frases, de palavras, que não é possível classificar, que ficam fora dessa estrutura. Eu fiz isso e separei essas palavras, e o que restou? - disse Renzi
erguendo o rosto para encarar o velho Luna. - O senhor sabe o que resta? A seguinte frase: "O homem gordo esperava por ela no saguão e não me viu e lhe falou de
dinheiro e brilhou essa mão que fez ela morrer." Percebe? - arrematou Renzi, triunfante. - O assassino é o gordo Almada.
O velho Luna olhou para ele impressionado e inclinou-se sobre o papel.
- Está vendo? - insistiu Renzi. - Repare que ela vai dizendo essas palavras, as que estão sublinhadas com vermelho, vai encaixando nos buracos que consegue abrir
no meio daquilo que é obrigada a repetir, a história de Bairoletto, da virgem e todo o delírio. Se o senhor prestar atenção nas diferentes versões vai ver que as
únicas palavras que mudam de lugar são essas com que ela tenta contar o que viu.
- Caramba, mas que bacana. Você aprendeu isso na faculdade?
- Que é isso, não avacalhe.
- Não estou avacalhando, estou falando sério. E agora o que você vai fazer com toda essa papelada? A tese?
- Como assim o que eu vou fazer? Vamos publicar no jornal.
O velho Luna sorriu como se alguma coisa lhe doesse.
- Calma, garoto. Ou você acha que este jornal se dedica à lingüística?
- Temos de publicar isso, o senhor não percebe? Assim pode ser usado pelos advogados do Antúnez. Não está vendo que esse cara é inocente?
- Escuta, esse cara já está frito, não tem advogados, é um cafetão, matou a mina porque no fim essas malucas sempre
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acabam desse jeito. Achei muito bacana o joguinho de palavras, mas vamos parando por aqui. Vê se faz uma nota de cinqüenta linhas contando que a mina foi morta a facada.
- Ouça, senhor Luna - interrompeu-o Renzi. - Esse cara vai passar o resto da vida em cana.
- Eu sei. Mas faz trinta anos que eu estou nesse negócio e de uma coisa eu sei: a gente não tem de arrumar confusão com a polícia. Se eles dizem que foi a Virgem
Maria que o matou, você escreve que foi a Virgem Maria que o matou.
- Muito bem - disse Renzi juntando os papéis. - Nesse caso vou mandar os papéis para o juiz.
- Mas o que que é, você quer arruinar sua vida? Uma louca de testemunha para salvar um cafetão? Por que você quer se envolver? - Em seu rosto brilhava um doce sossego,
uma calma que nunca havia visto nele. - Olha, tira o dia livre, vai pro cinema, faz o que você quiser, mas não arruma confusão. Se você se enrolar com a polícia
eu te mando embora do jornal.
Renzi sentou-se diante da máquina de escrever e colocou um papel em branco. Ia redigir sua demissão; ia escrever uma carta para o juiz. Pelas janelas, as luzes da
cidade pareciam fendas na escuridão. Acendeu um cigarro e permaneceu quieto, pensando em Almada, em Larry, ouvindo a louca que falava de Bairoletto. Depois baixou
o rosto e se pôs a escrever quase sem pensar, como se alguém estivesse ditando:
Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu corpo - Renzi começou a escrever -, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento.

 

 

                                                                  Ricardo Piglia

 

 

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