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PRISIONEIRA DO DESERTO / Violet Winspear
PRISIONEIRA DO DESERTO / Violet Winspear

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PRISIONEIRA DO DESERTO

 

Ser seqüestrada por um sheik árabe nem passou pela cabeça de Diane, ao visitar o deserto do Saara. Porém, foi o que aconteceu. Khasim ben Haran era um homem poderoso e arrogante, cujo único objetivo, ao fazer dela sua prisioneira, era vingar a morte da mãe. No entanto, esse mesmo homem que a aterrorizava, com ameaças cruéis, também a fascinava. E a figura altiva e exótica não saía da mente de Diane nem por um instante...

 

*                         *                         *

 

Era uma região inóspita, crestada pelo sol. Uma imensidão de areia que se estendia para além do horizonte, formando dunas ondulantes que davam a im­pressão de um oceano dourado. Em alguns lugares, havia ca­minhos pedregosos e enormes formações rochosas: pedras gran­des, arredondadas e esculpidas pela erosão dos séculos. Um silêncio inquietante e ameaçador envolviam tudo, como se fosse prenúncio de algo terrível.

De repente, no céu avermelhado e abrasador, surgiu um gavião, cortando o espaço num vôo altaneiro. Voou em círculos e depois desceu, como se tivesse vislumbrado uma presa. O pássaro pousou numa rocha e fixou o olhar penetrante em algo que se movia, já quase sem forças, enterrando as unhas na areia, como se quisesse se agarrar a alguma coisa segura. Era uma jovem que, de olhos semicerrados, fitava o infindo e im­piedoso oceano de areia que parecia querer tragá-la.

O pôr-do-sol incendiava o céu e a terra. Ela fez mais um mo­vimento, e um gemido escapou de seus lábios ressequidos. Sua pele queimada ardia e incomodava, dificultando a movimentação. O rosto, o pescoço e as mãos estavam quase em carne viva, e as pálpebras estavam tão inchadas e doloridas que piscar era uma agonia. Tentou erguer a cabeça, mas sentiu uma pontada dilacerante e afundou-a de novo, escondendo o rosto nos braços.

E pensar que um enxame de gafanhotos fora à causa de tudo! Fora isso que fizera seu cavalo disparar. Os gafanhotos haviam invadido subitamente o oásis em que ela estava e, como uma nuvem negra, envolveram-na antes que ela tivesse tido tempo de controlar o cavalo e desviar a direção.

Um dos insetos entrara pela gola de sua camisa, causando-lhe certo pânico, que ela transmitira ao cavalo... Ainda era de manhã quando a nuvem de gafanhotos invadira Fetna, e agora o sol já estava se pondo... Diane percebeu que havia passado o dia todo ali, no deserto. Lembrou-se de como o cavalo a jogara para fora da sela e disparara a galope, deixando-a só e indefesa, observando-o, desesperada, até ele sumir de vista. E, ainda por cima, ela torcera o tornozelo na queda.

A dor era intensa demais para conseguir andar. Então, en­faixara o tornozelo com o lenço que usava no pescoço e pusera-se a caminhar, mancando, suportando a dor, querendo desesperadamente sair daquele inferno, até que tropeçara numa pedra escondida na areia e caíra de rosto no chão.

Agora, as lembranças do que acontecera de manhã lhe in­vadiam a mente. Estava tão animada com aquele passeio a cavalo até o oásis, onde havia as ruínas do forte de pedra! Ali, seu avô tinha passado muito tempo quando ainda era jovem. Ele havia sido designado para um posto importante, coman­dando os impetuosos spahis, homens nativos que serviam no Exército francês, os arrojados e audaciosos soldados do deserto que vestiam longas túnicas vermelhas e usavam botas de cano alto. Sob o turbante branco, os rostos morenos tinham sempre uma expressão de alerta e ameaça, como a dos gaviões.

Desde menina, Diane adorava ouvir as histórias que o avô contava sobre as legiões do deserto e sobre as batalhas que haviam sido travadas nessa área do Saara. Agora que estava mais velha, ela não pudera resistir à tentação de conhecer de perto o forte que fora cenário de tantas coisas interessantes que ouvira do avô. Pena que ele não pudesse ter viajado com ela, pois já estava idoso e adoentado para esse tipo de aventura. Passava, agora, a maior parte do tempo cuidando do jardim em casa, na Bretanha, e escrevendo suas memórias.

— Vá você e veja tudo por mim, minha filha — dissera ele a Diane. — Porém, siga meu conselho, não vá sozinha até o forte! Está me ouvindo?

Diane moveu de leve a cabeça que doía... Tudo teria sido bem diferente e nenhum acidente teria acontecido, se ela tivesse seguido o conselho do avô e não tivesse ido sozinha visitar Fetna. Mas acontece que no hotel de Dar-Arisi só havia o tipo de pessoas que Diane achava tremendamente cansativo e de­sagradável: turistas ruidosos e tagarelas, com seus livros-guias e suas máquinas fotográficas, ou então casais em lua-de-mel, desligados do mundo. Ela era de natureza um tanto tímido e preferia mesmo ficar sozinha, por isso fora até a cocheira onde alugavam cavalos, em Dar-Arisi, escolhera uma boa montaria e partira em direção a Fetna, levando um cantil com água depen­durado na sela e uma pequena arma de fogo presa à cintura.

O lugar era maravilhoso e tranqüilo e tinha, para ela, um significado especial, devido à lembrança das histórias que ou­vira desde pequena. Tudo ia muito bem, até que surgira aquele enxame de gafanhotos...

Ah... Mas como ela fora idiota de perder a cabeça só porque um dos insetos entrara pela gola de sua camisa! No entanto, ficava arrepiada só de pensar no contato daquelas perninhas na sua pele. Não pôde evitar se debater sobre a sela até conseguir se livrar do gafanhoto, o que acabara assustando o cavalo.

Isso poderia vir a lhe custar a vida! Estava ali havia horas, exposta ao sol tórrido, sedenta, queimada, correndo o risco de uma insolação. Chegara a ficar num estado sonolento de semiconsciência. Só melhorara um pouco porque a temperatura refrescara com o entardecer, o que a fez recuperar o senso de realidade.

— Nunca deixe que o nervosismo prevaleça sobre a disciplina — dizia sempre seu avô. — Quando se perde o controle, perde-se a batalha.

Perder... Era isso. Estava perdida! Diane sabia que estava a quilômetros de distância de Dar-Arisi, no meio do deserto, sem saber o caminho de volta. E, como não tinha feito amizade com ninguém no hotel, ninguém se preocuparia com sua au­sência. Sua única esperança era que o dono do cavalo que ela alugara fosse até o hotel falar com o gerente para reclamar a devolução do animal. Com isso, poderia despertar algum inte­resse quanto ao seu paradeiro.

Diane esforçava-se para lembrar se havia ou não comentado que iria visitar o forte de Fetna, lá onde alugara a montaria. Era pouco provável. Lembrava-se de ter pedido um cavalo vi­goroso e bom de galope, porque ela sabia montar muito bem. Só que não contava com aquela maldita nuvem de gafanhotos.

E, agora, o que faria? Tendo sido criada pelo avô francês, com quem morava havia nove anos, ela, em geral, tinha reações tipicamente gaulesas, possuía nervos resistentes e controlava bem as situações. Só que, naquele momento, estava se sentindo exausta e muito amedrontada. Sabia que o Saara era imenso e que não havia ninguém por ali, a não ser alguns nômades. E esses eram homens rudes, sem leis, que comerciavam entre um povoado e outro por onde passavam. Para eles, uma mulher branca seria considerada apenas uma presa fácil, que poderia ser vendida no mercado ou servir de escrava para eles em Timbuctoo. O avô conhecia bem o deserto e ensinara a ela os múltiplos perigos que ali se escondiam. Ela havia prometido ser ajuizada e não fazer nada arriscado, mas o ar do deserto a inebriara, como um vinho forte e saboroso, levando-a a co­meter a insensatez de ir sozinha a Fetna.

Porém, fora porque não arranjara nenhum amigo no hotel e queria tanto ver as ruínas do forte e poder imaginar como ele tinha sido no tempo do coronel Philippe Gérard Ronay! No dia em que o coronel reunira, com toque de corneta, os spahis, e saíram todos a cavalo, galopando, para enfrentar os árabes que queriam expulsar os franceses do deserto. Do ponto de vista dela, a colonização francesa fizera muito por essa terra indômita, contribuindo para o progresso e a civilização. Opinião essa que naturalmente não era a mesma dos nativos. Por isso, o Exército estava lá, naquele forte, para proteger os coloniza-dores franceses do ataque dos árabes que eram ferozes e im­piedosos na sua luta pela independência, na ânsia de se livrar do domínio francês.

Diane sabia que o avô apenas cumprira seu dever. Afinal, também obedecia às ordens de seus superiores.

Ah, se ela tivesse obedecido às ordens do avô! Agora, era tarde demais para se arrepender. Num esforço supremo, tentou se sentar, lutando contra a forte dor em suas têmporas. A areia que o vento levantava fustigava sua pele. Sem querer, um grito lhe escapou da garganta. O gavião emitiu um som estridente, depois abriu as asas como se fosse atacá-la. Diane apavorou-se e agitou os braços diante do rosto descontrolada-mente, numa tentativa de se defender, mas logo percebeu que a ave não olhava mais para ela e que movia a cabeça como se estivesse atenta a algum outro ruído.

Diane fitava o animal, com um aperto no coração, esforçan­do-se para não perder a consciência. Então, viu o gavião le­vantar vôo e instintivamente se encolheu. De repente, ouviu com clareza um assobio, longo, quase melódico, que se repetiu por três vezes seguidas, e percebeu que o som agudo era para chamar a ave. Devia ser o dono dela de algum lugar daquele imenso deserto. O coração de Diane quase parou. Não sabia se ficava alegre ou triste por saber que havia um outro ser humano por perto. Os árabes nômades eram quem costumavam criar gaviões, que sempre os acompanhavam em suas andanças, portanto era bem mais provável que essa pessoa que se apro­ximava fosse um homem do deserto, e não alguém da cidade.

Diane deixou-se cair de novo sobre a areia, desanimada, com uma sensação de fatalidade, e ficou lá, imóvel e sem forças para gritar por socorro, esperando apenas ser descoberta.

De novo, ela ouviu o assobio, e, dessa vez, o gavião, que sobrevoava sua cabeça, respondeu. Logo em seguida, vários cavaleiros apareceram. Meio nebulosamente, ela viu a silhueta de homens de túnica, montando belos e elegantes cavalos.

À medida que eles se aproximavam, Diane percebeu que um dos homens vinha à frente do grupo, com a túnica esvoaçando e cobrindo as ancas de sua montaria. Quando chegou perto dela, ele se virou e gritou algo para os outros que o seguiam, e o som gutural daquela frase em árabe encheu Diane de pavor. Ela estremeceu e ficou observando de olhos arregalados enquanto o gavião pousava no ombro esquerdo do dono e este se aproximava devagar, até que fez o cavalo parar a poucos passos dela.

Por alguns instantes, ele ficou ali, olhando-a com uma ex­pressão indecisa, como se não conseguisse descobrir se ela era uma garota ou um rapaz. Realmente era fácil confundi-la na­quela penumbra do entardecer. Ela cortara os cabelos antes de fazer essa viagem e estava vestindo calça comprida e camisa branca. O árabe desmontou, colocou o gavião sobre a sela e pegou o cantil que estava amarrado ali.

Diane ficou paralisado, olhando as botas dele bem perto de seu rosto. A garganta estava seca, e o coração, cheio de medo, batia descompassado.

— Roumia! — exclamou ele e se agachou ao lado dela enquanto abria o cantil. — Ora, mas é claro, sem dúvida! — acrescentou ele em francês, olhando o corpo feminino da cabeça aos pés, detendo-se nos seios que arfavam no ritmo da respiração nervosa dela. — Com licença — disse ele, colocando a mão sob a cabeça de Diane e erguendo-a um pouco. Depois, aproximou o cantil dos lábios ressequidos para que ela tomasse a água.

Diane engoliu o liquido e, após o primeiro gole, descobriu que era uma limonada fresquinha e deliciosa. Ele deixou que ela bebesse mais um pouco e depois afastou o cantil, fitando-a com um olhar penetrante.

— Agora, chega! Daqui a pouco, você bebe mais. Mas como você foi ficar desse jeito?! Onde estão seus companheiros?

Após ter feito o comentário em francês, ele passou a se dirigir a Diane num inglês com sotaque carregado, como se algo na aparência dela o tivesse feito pensar que era daquela nacionalidade. E, na verdade, ela era em parte. Sua mãe era inglesa, e fora dela que Diane herdara os cabelos loiros, cor de ouro, e os olhos azuis.

— Estou sozinha — respondeu ela, sem se dar conta de que poderia ser perigoso confessar isso a um estranho. No entanto, estava fraca demais para raciocinar com sensatez. — Meu ca­valo disparou... Jogou-me fora da sela há algumas horas e... Quando caí, torci o tornozelo... Posso tomar mais limonada, por favor? Minha garganta está tão seca...

— Não é para menos, depois de passar tantas horas expostas ao sol! — Ele colocou novamente o cantil nos lábios dela, e Diane bebeu com avidez, fitando o rosto dele.

Seus olhos eram a coisa mais impressionante que ela já vira. Pareciam duas brasas ardentes, capazes de esconder mis­térios insondáveis. O rosto era altivo como o de um falcão, e havia uma cicatriz profunda numa das faces. Diane percebeu que a túnica dele era azul e o pano que lhe cobria a cabeça estava preso por duas cordas, o que era um símbolo de auto­ridade. Mas bastaria a expressão em seu rosto para que se soubesse que se tratava de um líder.

Com um suspiro, ela afastou o cantil. Conseguira aliviar a sede, porém sua pele ainda ardia, como se tivesse sido queimada com fogo. O sol atravessara até o tecido da roupa que usava, e o corpo todo estava sensível e incomodando muito. Além disso, o tornozelo distendido doía ao menor movimento.

— Muito obrigado. Puxa... Como eu estava com sede! Onde estou? Será que Dar-Arisi fica muito longe daqui?

— Ah, então é lá que você está? No Jardim dos Prazeres, é? — perguntou ele, sarcástico. — Sua família e seus amigos devem estar preocupados com sua ausência.

— Não estou com minha família... — Diane se interrompeu bruscamente e mordeu o lábio. Esse homem era um árabe! Que tolice contar a ele que estava sozinha, sem parentes e amigos que pudessem se preocupar com ela! Recobrou a sensatez e pro­curou consertar o que dissera. — Mas meus amigos já devem estar aflitos com minha demora... Será que você poderia me levar de volta ao hotel? Eu lhe ficaria imensamente grata...

— Não sou guia turístico nem carregador, minha cara — ele falou, com arrogância, olhando-a da cabeça aos pés. — Que belos amigos você tem, não é ?! Como a deixaram se aventurar a cavalgar sozinha pelo deserto? E você deve ser ótima amazona para ter levado um tombo desses! — exclamou, com ironia. — Olhe só para essas queimaduras! Vai ver como estará se sen­tindo amanhã... Vamos, é melhor passar a noite no meu douar.

— Douar? — repetiu ela, tão assustada que a voz mal saiu.

— Sim. No meu acampamento. — A voz dele era sonora, com um certo tom sensual. — Já anoiteceu, e eu não pretendo deixá-la aqui, servindo de alvo para os selvagens que caçam no escuro! Qual é o problema, menina? Não gostou de ter sido convidada para ficar em minha tenda? Será que acha isso mais perigoso do que ficar aqui no deserto sozinha, enfrentando a noite?

— E que... Nem conheço você — respondeu, nervosa. — Você obviamente conhece Dar-Arisi, e não acho que seria tanto trans­torno assim se me levasse até lá:

— Meus homens e eu estivemos caçando o dia todo! Estamos cansados e famintos, e, além disso, inglesinha, não recebo ordens de uma simples garota. Você vai fazer exatamente o que eu disse!

— Não sou um de seus lacaios para que fale comigo desse jeito! — exclamou, indignada. — Quem pensa que é?

— Sou o cádi de Beni-Haran. — Ele fez um gesto altivo. — Sou o sheik Khasim ben Haran, e você está em meu território, o deserto de Shemara. Assim sendo, será uma hóspede em Beni-Haran, e não uma apetitosa fêmea que vai servir de sobremesa no meu jantar. Sem dúvida, deve ter a cabeça cheia de histórias terríveis sobre bárbaros beduínos, que acham as mulheres brancas irresistíveis! Mas, no estado em que você se encontra, assim queimada e com os cabelos cheios de areia, acho que não está nem um pouco irresistível. Portanto, inglesinha, se está preocupada com sua castidade, pode tirar essa idéia da cabeça. E absurda!

— Obrigada!

Como neta de um ilustre oficial francês, Diane não conhecera homens rudes, entretanto agora sabia que estava diante de um homem para o qual as mulheres eram apenas objetos de prazer ou escravas. Um cádi é um chefe do deserto que tem muita autoridade e é respeitado, mas Diane sabia que os árabes não tinham consideração alguma pelas mulheres.

— Bem, vamos! Coloque os braços em torno do meu pescoço, inglesinha, assim não vai sentir muita dor quando eu a erguer.

Não havia nada a fazer senão obedecer. Diane não conseguiu reprimir um gemido de dor ao levantar os braços para fazer o que ele mandara.

— Quando chegarmos ao douar, minhas criadas tratarão de suas queimaduras — disse ele, e ergueu-a sem o menor esforço.

O sheik carregou Diane até seu cavalo e colocou-a na sela, depois montou na garupa e envolveu-a com um pedaço de sua túnica, pois a noite se tornara repentinamente fria, e Diane estava tremendo. Ela se comportara de forma submissa, acei­tando tudo o que ele fazia sem contestar. Estava exausta. Afi­nal, a verdade era que estava nas mãos desse homem e era melhor concordar com e. Não tinha ânimo para discutir ou persuadi-lo a levá-la até o hotel em Dar-Arisi. Sem dúvida, ele não era do tipo que se deixava convencer e mudava de idéia com facilidade. Sua decisão era lei.

Ela o ouviu falar em árabe com os outros homens, e a única palavra que pôde entender foi roumia, que significava mulher estrangeira. Com toda a certeza, ele lhes contava o que acon­tecera a ela. Em seguida, o cavalo começou a galopar ao longo da enorme extensão de areia, e o sheik segurou Diane com firmeza, encostando o corpo dela no seu. Ela estava tão cansada e atordoada que apoiou a cabeça no ombro dele involuntaria­mente. Um cheiro de arreios de couro invadiu suas narinas, misturado a um aroma de fumo forte e ao cheiro da pele dele. Eram aromas bem masculinos que fizeram com que ela se lembrasse do avô e não se sentisse tão assustada quanto antes.

Amparada por aquele peito forte e musculoso, ela chegou a adormecer, repetindo para si mesma que não estava sendo raptada, embora estivesse sendo levada para o acampamento de um árabe no meio do deserto. O cádi, sem dúvida, apenas lhe daria de comer, iria deixá-la descansar e, na manhã se­guinte, providenciaria para que fosse levada de volta ao hotel. Seria apenas uma aventura inconseqüente, mas Diane não contaria nada ao avô. Ele não acharia graça alguma em saber que ela caíra nas mãos de um árabe. Para o avô, homens como esse sempre seriam inimigos. Ele admirava a coragem e a valentia deles, porém nunca deixara de erguer o sabre para algum deles em defesa dos colonizadores franceses e de suas famílias. Diane sabia muito bem que o avô sempre seguira a lei do deserto: olho por olho, dente por dente.

O movimento do cavalo parecia niná-la, e o ranger do ar­reios embalavam seu sono numa estranha canção. Assim que o animal parou, ela abriu os olhos e viu que haviam chegado ao acampamento. Lá estavam as tendas do douar.

Com um movimento rápido e preciso, o sheik desmontou e estendeu os braços para pegar Diane.

— Não se mexa -— murmurou ele enquanto a tirava da sela.

Ele sabia que as queimaduras doíam muito e que qualquer movimento seria um sacrifício quase insuportável. Por isso, ela obedeceu e ficou imóvel em seus braços, enquanto ele a conduzia para uma tenda grande, onde um criado de túnica e turbante brancos esperava na entrada. Os dois trocaram pa­lavras em árabe, e Diane, apesar do cansaço, não pôde deixar de notar a entonação de autoridade que havia na voz do sheik, quando ele falava em sua língua nativa. Já quando falava em francês, a voz era quente e macia. Sem querer, passou pela mente dela a idéia maluca de que ele provavelmente falava francês quando fazia amor com uma mulher.

Depois, Diane começou a examinar detalhadamente a enor­me tenda em que estava. As paredes eram de tecido azul do mesmo tom da túnica do sheik. O tecido das cortinas era lin­díssimo, com estampas e tons maravilhosos, e sem dúvida tinha vindo de Shiraz. O chão era coberto por tapetes espessos e muito bonitos. Havia uma espécie de divã largo, cheio de al­mofadas, ao lado do qual ficava uma mesinha baixa de madeira entalhada. Ali também havia uma caixa de madeira trabalha­da um isqueiro e um cinzeiro. Diane imaginou-o reclinado no divã, fumando, e uma garota ajoelhada no tapete ao lado dele, com roupas transparentes, olhando-o, apaixonada.

No entanto, logo afastou a imagem, assustada, pois não era próprio dela ter idéias românticas e fantasiosas sobre a vida no deserto. O avô sempre lhe dissera que os árabes gostavam muito mais de seus cavalos, da caça, da luta e dos gaviões do que de suas mulheres. E Diane lembrou-se do gavião que acom­panhava o sheik.

O criado saiu, fechando a cortina que vedava a entrada da tenda, e o sheik colocou Diane no chão com cuidado. Assim que o pé esquerdo dela tocou o solo, ela fez uma careta de dor.

— Razouk foi buscar uma criada para vir cuidar de você — disse o cádi, fitando-a da cabeça aos pés com seus olhos escuros e profundos, como se quisesse examiná-la melhor à luz do lampião que iluminava a tenda.

Diane olhou para ele, ciente de que devia estar causando uma péssima impressão. Sentia que estava horrorosa com a pele vermelha, queimada demais, e os cabelos finos empastados de suor e areia. Em contraste, o sheik parecia muito senhor de si, envolto na túnica leve e esvoaçante que realçava o corpo esguio e altivo. Possuía uma grandiosidade meio selvagem e indômita... E a cicatriz no rosto podia ser sinal de uma luta corajosa contra algum inimigo de outra tribo!

Ele a observava com uma expressão sarcástica, arqueando levemente as sobrancelhas, como se adivinhasse os pensamen­tos dela. Seus olhos pareceram a Diane duas brasas incandes­centes, onde a crueldade e a paixão se fundiam. Ela não co­nhecia muito bem os homens, mas intuiu que esse era do tipo que podia fazer uma mulher conhecer o céu e o inferno.

Os dois se olhavam em silêncio, e Diane sentiu uma força poderosa tomar conta do ambiente... Como se estivesse por vir uma tempestade. Seu coração começou a bater mais forte, e todos os seus nervos vibraram. A presença dele era perturba­dora, embora não entendesse bem por quê. Ergueu a mão e começou a mexer, nervosa, no medalhão de ouro que usava pendurado ao pescoço. Tanto mexeu que a corrente acabou arrebentando, e o medalhão caiu no chão.

Imediatamente, o sheik o pegou e, com curiosidade, abriu-o para ver o que tinha dentro. Ficou olhando fixamente para a foto que havia ali, de um oficial francês em uniforme de gala, e Diane percebeu que a fotografia lhe causara um certo impacto.

— Quem é este homem? — perguntou ele, franzindo o cenho e fitando-a com um brilho estranho no olhar que a fez estremecer.

O cádi de Beni-Haran estava pálido.

__Meu avô... — As palavras saíram com dificuldade, a voz parecia estar presa na garganta.

— Coronel Philippe Gérard Ronay? — A voz dele era como um açoite.

— Sim... ele é meu avô — repetiu ela, sentindo que havia um certo perigo no ar.

— Seu sobrenome é Ronay, então?

— Sim. Eu me chamo Diane Claire Ronay — respondeu ela, vendo-o cerrar os punhos, apertando o medalhão como se quisesse esmagá-lo, e depois a fitar com um olhar assustador. — Será que pode me devolver a medalha? Você vai estragá-la...

— Eu gostaria de apertar assim o pescoço desse homem que está na fotografia! — ele exclamou e, num acesso de fúria, jogou a jóia aos pés de Diane. — Esse homem foi um inimigo cruel de meu povo! Ele o destruía sem piedade... minha mãe foi uma das vítimas dele!

Diane ficou horrorizada com essas palavras. Seus olhos se arregalaram ainda mais.

— Vovô era um oficial... não acredito que ele tenha matado uma mulher indefesa alguma vez!

— Ouça, inglesinha, não pense que vou permitir que me chame de mentiroso.

Com um passo, ele eliminou a distância que os separava e agarrou Diane pelos ombros, com crueldade. Seus dedos aperta­vam a pele delicada dela. Diane gemeu de dor e fitou, assustada, os olhos dele, que refletiam ódio e hostilidade. Os músculos da face do sheik estavam contraídos, como se ele estivesse se esfor­çando para conter a violência. Ela estava apavorada, nunca vira uma expressão tão assustadora no rosto de um homem. Não pôde conter um soluço e ergueu as mãos como se quisesse se proteger. Ao ver esse gesto, ele estreitou os lábios e largou-a com tanta brutalidade que ela perdeu o equilíbrio e caiu.

— Foi exatamente isso que minha mãe fez. Ergueu as mãos numa patética esperança de se proteger — ele falou, ríspido.

Diane estremeceu. Como poderia acreditar que o avô que tanto amava fizera uma coisa dessas? Aquele homem encur­vado, que cuidava com carinho das flores de seu jardim na Bretanha? Não era possível!

— Acho que está enganado — disse ela, com veemência. — Vovô não seria capaz de fazer uma coisa dessas...

— Não, não estou enganado. Jamais esquecerei aquele ho­mem maldito! Foi ele quem deu a ordem para os spahis atacarem o acampamento, e eu vi minha mãe ser golpeada por um sabre. Corri para ela e também fui golpeado no rosto pelo mesmo sabre onde ainda corria o sangue dela!

Diane mordeu o lábio, pois sabia que o avô lutara implacavelmente contra os árabes, principalmente em certa ocasião em que uma família inteira de colonizadores franceses fora massacrada. Ele mesmo contara isso.

— Seu povo trata os franceses com a mesma crueldade — replicou ela, na defensiva.

— Meu povo é o de Beni-Haran, e ninguém aqui comete cruel­dade sem motivo — ele falou entre os dentes. — Jurei vingar-me do coronel Ronay! Jurei desforrar-me... Ele ainda está vivo?

— Sim, mas não está na ativa há muito tempo. Ele agora é um militar reformado. — Diane olhava fixamente para o rosto insensível do sheik. Estava nervosa. — Você... não está pensando em fazer mal a um velho, não é?

—A um velho, não!—ele exclamou, com desprezo, observando-a de um modo estranho. — Se é que Ronay é capaz de gostar de alguém, acho que ele gosta de você, não é? Ele está em Dar-Arisi?

— Não... — Diane respirou fundo, sentido o coração palpitar.

— Ele está muito longe da África, muito longe de você!

— Sim, mas sua neta está aqui! — Bruscamente, o sheik aproximou-se de Diane e ergueu-a do chão, depois a segurou pelo queixo, imobilizando o rosto dela bem perto do seu. — Aposto como você ouvia as histórias que ele contava sobre o deserto e agora quis verificar pessoalmente se o lugar era tão fascinante quanto ele descrevia, não é isso? Humm... espero que, depois que tiver tomado banho e que essas queimaduras melhorarem, fique um pouco mais apresentável, porque agora está parecendo um camarão frito! Sei que os franceses tomam conta das mulheres jovens tanto quanto nós, portanto creio que ainda é inocente e casta e não conhece homens. Estou certo?

Apesar de estar cansada e dolorida, Diane sentiu um impulso de se mostrar forte e de não deixar que esse árabe percebesse o pavor que suas palavras despertaram nela. Ficou arrepiada só de pensar que ele pudesse tocá-la. Nunca sentira tanto medo quanto naquele instante, nem mesmo quando estava perdida no deserto, achando que morreria de insolação,

— Vim a Dar-Arisi com uma dama de companhia — mentiu ela. — A essa hora, já devem ter formado uma expedição de busca para me procurar, portanto acredito que seria melhor para você se mandasse alguém me levar de volta ao hotel, antes que a expedição me encontre aqui...

— Se estivesse mesmo com uma dama de companhia, ela não a teria deixado sair a cavalo sozinha pelo deserto! Pensa que pode me enganar? Não é à toa que sou líder de uma tribo. Conheço bem as pessoas e sei que você está morrendo de medo. Não há amigo algum procurando por você, ninguém vai des­cobrir onde está. Depois de dois dias, se não voltar a Dar-Arisi, vão imaginar que você morreu de insolação no deserto. Sem dúvida, a polícia mandará uma pequena expedição para pro­curar seus restos mortais, e, como não encontrarão nada, vão concluir que algum animal arrastou sua carcaça para algum esconderijo. Isso é muito comum, sabia?

Diane estremeceu de novo e sentiu as pernas moles. Teve vontade de se atirar no divã e chorar para desabafar seu de­sespero. Mas isso daria prazer a ele. Era justamente o que queria: aterrorizá-la! Por isso, ela se conteve.

— Você não conhece meu avô — disse desafiadoramente.

— Ele não vai desistir enquanto não me encontrar. Ele conhece bem o deserto e o tipo de homens que vive nele.

— Então, minha cara, se seu avô conhece o deserto e o tipo de homem que sou, quando a encontrar, ele saberá que já não será a jovem casta e inocente que chegou aqui, iludida pelas his­tórias românticas de um certo coronel que comandava os spaJiis.

Diane estava tão atordoada e confusa que levou alguns ins­tantes para compreender o que ele dissera. Quando afinal en­tendeu, olhou, desesperada, para a abertura da tenda e saiu correndo, esquecendo o machucado do tornozelo. Porém, a dor foi forte demais, e ela perdeu o equilíbrio. Entretanto, antes que caísse, os braços fortes do sheik a ampararam. Então, ele a pegou no colo e a conduziu até o divã.

— Foi o destino que a colocou, indefesa, nas minhas mãos!

— zombou ele. — Você sabe que nós, árabes, acreditamos em destino, não é? Há muito tempo que venho esperando e dese­jando uma oportunidade para punir o coronel Philippe Ronay. Eu não poderia ir atrás dele com um revólver, porque não posso abandonar Beni-Haran, mas agora, graças ao destino, posso feri-lo mais do que se atirasse nele. Uma bala na cabeça seria uma morte muito rápida, no entanto ele sofrerá tormentos do inferno quando souber que a neta tão amada caiu nas mãos de um árabe, um dos inimigos dos velhos tempos. Não direi meu nome, é claro, mas ele sabe que deixou vários inimigos aqui no deserto. Sinceramente, estou admirado por ele a ter deixado fazer essa viagem! Por acaso ficou maluco ou esclerosado, depois que passou para a reserva?

O insulto final foi demais. Instintivamente, Diane ergueu a mão para esbofeteá-lo, mas Khasim foi mais rápido e segurou o pulso dela, antes que a mão atingisse seu rosto.

— Ah, então gosta de combate, hein? — Ele sorriu, e os dentes alvos e perfeitos contrastaram com a pele morena. — Bem... real­mente estou cansado de pessoas dóceis e submissas, mas agora você não está em condições para o tipo de combate que tenho em mente.

Diane olhou para ele de olhos arregalados e retraiu-se, as­sustada. Desde os onze anos, ela vivia com o avô, protegida e tranqüila. Ele a tirara do colégio interno depois que os pais dela morreram numa avalanche na Suíça e a educara com a ajuda de uma governanta francesa. Diane não tinha muito contato com rapazes. Talvez o avô temesse que ela resolvesse se casar cedo demais ou fizesse alguma tolice. O coronel nunca perdoara o filho Raoul, pai de Diane, por ter se casado, ainda estudante, com uma corista inglesa. Diane crescera cada vez mais parecida com a mãe: os cabelos loiros e sedosos, o corpo bem-feito, as pernas compridas e elegantes...

O avô a tutelava com zelo e dedicação, mas sem severidade. Ela o respeitava e admirava muito. Quando ela pediu para fazer essa viagem ao Norte da África, ele até gostou de saber que a neta queria conhecer de perto os lugares por onde ele havia passado durante tantos anos, como oficial de cavalaria.

— O deserto é misterioso e belo — dissera o avô —, porém não se fie nele! Se me prometer que tomará cuidado e que não cometerá imprudências, eu a deixarei ir sozinha. Acho que será uma experiência interessante para você! Não há no mundo coisa igual ao pôr-do-sol no deserto!

Só que ela quebrara a promessa. O avô confiara nela, e Diane o traíra! Se tivesse lhe obedecido, não estaria ali, agora, naquele acampamento árabe, nas mãos daquele homem, e sim no hotel, preparando-se para jantar com os outros hóspedes. Ah, como toda aquela gente que ela achara chata e cansativa lhe parecia ma­ravilhosa nesse momento! Daria tudo para estar com eles.

No entanto, lá estava ela agora, sem saber o que fazer para sair daquela situação. Contudo, talvez devido a sua indolência, ela abrigava, no fundo do coração, a esperança de que Khasim ben Haran estivesse só querendo a assustar para se divertir um pouco. Afinal, ele era um homem de responsabilidade, um líder tribal, e não poderia estar realmente com intenções de fazer o que estava lhe dizendo!

— Acho que está querendo apenas me amedrontar — Diane falou, olhando-o com audácia.

Ele se ergueu e encarou-a em silêncio, com as feições severas, como que talhadas em pedra, e o perfil orgulhoso, dominador e impiedoso, como o de um gavião.

— Há um antigo provérbio árabe que diz que quando alguém salva a vida de outra pessoa torna-se dono dessa vida — ele disse por fim. — Parece uma ironia do destino que a vida que salvei pertença a uma jovem parente direta do homem que mais odeio. Quando saí para caçar, hoje cedo, nem sonhava que encontraria uma garota assustada e perdida, que tem a infelicidade de ter o mesmo sangue que o de meu maior inimigo! Se algum outro árabe descobrisse isso, poderia tê-la matado! Mas sou um pouco mais civilizado e sei apreciar a beleza dos olhos cor de safira... Você vai ficar aqui, na minha tenda, e, depois que estiver melhor das queimaduras e com uma apa­rência mais agradável, vou descobrir como ficam seus olhos quando é beijada e se seus lábios são macios como imagino.

Ao ouvir aquelas palavras, Diane ficou realmente amedron­tada. Olhou ao redor, desesperada, examinando a tenda, mas sabia que não havia como escapar. Ainda mais com o tornozelo daquele jeito! Ela mal podia andar, quanto mais correr! E esse árabe era forte e ágil como um leopardo, poderia dominá-la com facilidade e fazer dela o que quisesse.

Começou a tremer e sentiu-se enfraquecer. O avô sempre estava por perto para socorrê-la e ampará-la quando precisava, porém, dessa vez, ela estava completamente sozinha e enfren­tando a pior situação de sua vida.

O sheik a fitava em silêncio, como se imaginasse como ela era sem as queimaduras... Dirigia-lhe um olhar perturbador que a incomodava. Subitamente, ele sorriu.

— Será que entendeu o que estou pretendendo fazer com você? Ou quer que eu lhe explique mais detalhadamente? — ele indagou, com malícia.

— Não precisa me dizer o que acontece com uma mulher que cai nas suas garras — Diane respondeu, furiosa. — Basta olhar para você para saber como trata as mulheres... Mesmo que meu sobrenome não fosse Ronay, duvido que escapasse ilesa de suas mãos!

— Minhas mãos de árabe? — perguntou, mostrando as mãos morenas, magras e de dedos longos. — Se sabia tão bem o que os árabes fazem quando encontram uma mulher branca, então o que estava fazendo sozinha no deserto? Quem sabe estava pro­curando uma aventura amorosa com um de nós? Será que não pretendia encontrar algum selvagem de pele morena que a jogasse na areia e a tratasse com menos delicadeza do que os franceses?

— Você está maluco? Como ousa dizer uma coisa dessas? Eu devia era ter tido mais juízo, isso sim!

— É verdade, não teve um pingo de juízo saindo sozinha do hotel.

— Sei que não — concordou ela. — Devia ter me lembrado de que o deserto está cheio de chacais.

— As mulheres sempre sentem necessidade de insultar quando estão com medo.

— Não estou me curvando diante de você, nem me enco­lhendo de medo! — Diane exclamou, olhando-o com desprezo e esforçando-se para ficar de pé, sem demonstrar o tremor.

Ela nunca havia visto um homem assim, tão másculo e in­dómito! Esse tipo de virilidade não fazia parte da aparência dos homens das grandes cidades havia muito tempo. Ele com­binava bem com o deserto e com as roupas que usava.

— E o que a mantém assim empertigada? Força de vontade? Orgulho?

Khasim se aproximou dela, e Diane não pôde deixar de se afastar. Ao fazer isso, esbarrou o joelho no divã e perdeu o equilíbrio. Caiu e ficou encolhida enquanto o sheik se ajoelhava ao lado do divã e a olhava em silêncio, com ar sarcástico.

— Não... — murmurou ela, desviando o olhar dos lábios sensuais e perigosos.

Diane já se imaginava sendo beijada por ele.

— Não? O que devo fazer? — Seu olhar a deixava atordoada. — Você não disse que os árabes só querem as mulheres para uma coisa?! Sou um árabe, minha cara, para que gastar saliva me implorando clemência?

— Não... estou implorando nada.

— Ah, não está mesmo? Seria capaz de jurar que vi isso nos seus olhos.

— Eu não me rebaixaria a ponto de lhe suplicar algo!

— E eu não ouviria suas súplicas nem que se ajoelhasse a meus pés!

— Preferiria morrer a me ajoelhar diante de você!

— Tenho certeza de que fala sério. Mas prefiro que seja assim. Se você se rendesse facilmente, sem resistência, minha vitória não teria graça. Estragaria meu prazer.

— É assim que sente prazer? Dominando uma mulher com chicotadas?

— Não uso chicote com mulheres. Minhas armas com elas são mais sutis e eficientes.

— Seus beijos me dariam nojo, se é a isso que está se re­ferindo! — ela bradou.

— Beijos... e outras coisinhas mais — disse ele, insinuante. — Se não estivesse tão queimada e tão esgotada, eu lhe daria uma pequena demonstração agora mesmo.

— Tenho pena do povo de Beni-Haran por ter um líder tão bruto e cruel como você. Pena que aquele sabre só atingiu seu rosto, e não seu coração!

— Não diga isso! — ele exclamou, furioso, e a segurou pelos ombros, com força, sem se importar com a pele sensível e dolorida, e sacudiu-a com brutalidade. — Você é mesmo uma Ronay! Se eu fosse tão cruel como está dizendo, eu a agarraria agora mesmo e a torturaria até que gritasse por clemência. Você se sentiria como se estivesse sendo esfolada viva... É isso o que quer?

— Pouco me importa, sei que, quando tirar suas garras de cima de mim, vou querer morrer!

— Então que seja assim!

Ele a soltou e em seguida se levantou. Diane ficou enca­rando-o em silêncio. Todos os perigos e os mistérios do deserto estavam estampados naqueles olhos escuros.

Ela ficou imóvel, como que hipnotizada, observando Kha­sim... Os olhos dele a atraíam irresistivelmente, e ela se sentia semelhante a uma mariposa que procura a luz onde vai morrer queimada.

 

De repente, Khasim se virou e foi até a entrada da tenda, abrindo a cortina com um gesto brusco. Falou com alguém ali fora e saiu. Logo em seguida, uma jovem árabe entrou, com o rosto meio coberto por um véu, carregando uma caixinha de primeiros socorros até onde estava Diane. O criado de roupa branca a acompanhava, car­regando uma bacia grande, de cobre, cheia de água, só que ele seguiu até o outro extremo da tenda, separado por uma cortina vermelha. Deixou a bacia lá e voltou. Ficou parado, olhando para Diane, depois disse algo à garota que, em seguida, dirigiu-se a Diane em francês.

— Achmed está dizendo que a senhora precisa de roupas limpas, mas não temos roupas européias aqui. A senhora se importa se ele trouxer uma vestimenta oriental?

Diane suspirou de alívio ao ver que a moça falava uma língua conhecida, olhou para seu próprio corpo, e só então percebeu o estado em que estavam suas roupas. Amassadas e sujas. Qualquer coisa limpa seria melhor do que aquilo que estava usando, até um simples lençol para enrolar no corpo.

— Ah, é claro que não! Por favor, diga a Achmed que pode trazer o que quiser que eu vestirei com prazer. Pergunte-lhe também se minha roupa pode ser lavada e passada.

A garota virou-se para Achmed e traduziu o que Diane havia dito. Ele inclinou a cabeça e saiu da tenda. Diane, sentindo-se exausta e esgotada, aceitou, submissa, os cuidados da criada. A jovem árabe passou uma loção suave e oleosa no rosto de Diane. Seus dedos finos espalhavam o líquido com delicadeza, sem machucar a pele já tão castigada pelo sol.

— Amanhã, a senhora já vai estar se sentindo melhor. Sua pele não arderá mais, porém, com certeza, irá descascar.

— Obrigada você é muito gentil.

Então, Diane examinou a parte visível do rosto da moça. Os olhos eram grandes e castanhos, pareciam olhos de corça. Os cabelos negros estavam trançados e presos no alto da cabeça. Através do véu, Diane percebeu o brilho de uma pedra preciosa, colocada no canto do nariz dela. A jovem usava uma túnica floreada e, no pescoço, uma correntinha com um escaravelho.

— Venha, é melhor a senhora tomar um banho, assim po­derei passar a loção nas outras partes do corpo que foram afetadas pelo sol. Depois, vou enfaixar seu tornozelo.

— Ah! Adorarei tomar um banho!

Diane ergueu-se sem muita firmeza e, apoiada na criada, foi conduzida para o compartimento onde Achmed deixara a bacia. Ela estava cansada demais e emocionalmente abalada com tudo o que acontecera, por isso não protestou quando a moça começou a despi-la. Deixou que lhe tirasse a camisa, a calça, à roupa de baixo, depois entrou na bacia e permitiu que a outra a lavasse com uma esponja macia. Percebeu que a moça se espantou com a brancura de seu corpo, embora não tivesse dito nada. Era estranho ficar nua diante de outra jovem. Era difícil não sentir um certo constrangimento. No colégio interno, as garotas tomavam banho em boxes separados e eram obrigadas a usar um camisolão branco para esconder a nudez.

— A senhora tem coxas um pouco finas — disse a criada, com um sorriso. — Mas os seios tão bonitos compensam essa magreza.

O comentário deixou Diane espantada. Ela não tinha amigas íntimas e nunca ouvira coisas desse tipo, nem comparara seu corpo ao de outras garotas. Olhou para baixo e viu o contraste entre o colo, os braços, as mãos e o resto do corpo.

— Ah... como estou horrível! Pareço uma colcha de retalhos!

— Essa vermelhidão vai desaparecer. Aliás, acho que a se­nhora já deve estar se sentindo melhor... Foi muita sorte meu amo, o sheik Khasim, tê-la encontrado e trazido para cá, para o douar dele. Os europeus quase nunca vêem os riscos do de­serto, só seus encantos, enquanto nós, que somos parte dele, conhecemos bem todos os seus perigos. Ficar perdido no deserto sem ser encontrado por ninguém é um fim terrível.

Será que seria mais terrível do que cair nas mãos de um homem que a odiava porque seu sobrenome era Ronay?

— O sheik Khasim é um homem muito cruel? — perguntou Diane.

— Para os homens de Beni-Haran, ele é o todo-poderoso. Todos respeitam sua autoridade e admiram sua força e sua coragem.

— E as mulheres? — Diane não podia deixar de sentir cu­riosidade. — O que elas pensam dele?

— Todas gostariam de ter a honra de ser a preferida dele e de ter um filho, de preferência um menino, que garantiria a segurança da mulher.

— Ele não é casado? — Diane enrolou-se numa toalha, ao sair da bacia. — Pensei que ele tivesse umas quatro esposas, sem contar o harém cheio de garotas!

— O sheik Khasim ainda não escolheu esposas, mas ele tem um harém, é claro. Os chefes de outras tribos sempre lhe dão mulheres de presente, e ele até deu algumas delas em casa­mento para seus oficiais.

— Quanta honra! — Diane exclamou, com desprezo. — Quando se cansa de usá-las, o sheik as passa para outros, como se fossem roupas usadas!

— Ah, a senhora está completamente enganada! Meu amo Khasim só faz amor com uma mulher quando pretende guar­dá-la para si, e todos em Beni-Haran sabem muito bem que ele só dá esposas virgens para seus oficiais. Uma garota que não seja mais virgem não serve para ser esposa de um árabe, mesmo que ele não tenha boa posição social. Toda moça deve se manter casta para que, na noite de núpcias, apareçam no lençol os sinais de sua castidade. Esse lençol é bordado à mão pela noiva e é mostrado para a família do noivo na manhã seguinte à noite de núpcias, depois que fizeram amor.

— Que coisa primitiva! — Diane opinou, sentando-se no divã, ainda enrolada na toalha, enquanto a outra lhe enfaixava o tornozelo.

— É a lei do deserto. — A jovem árabe olhou Diane com cu­riosidade. — Com seu povo é diferente? Um homem europeu não se importa se sua esposa já dormiu com outros antes do casamento?

— Em alguns países, isso já saiu de moda, mas na França ainda se considera importante que uma jovem mantenha sua castidade até o casamento.

— Então a senhora ainda é virgem, não é? Acho que sim, porque se já tivesse dormido com homens não teria ficado tão envergonhada de ficar nua diante de mim.

Diane sentiu-se corar, embora não fosse possível perceber o rubor na pele queimada de seu rosto. Se sua virgindade era tão evidente assim até para essa garota, imagine então para o homem experiente que tanto a ameaçara! Um homem que governava uma tribo de árabes não teria escrúpulos em domar uma jovem rebelde e torná-la submissa às suas ordens! Ele poderia fazer o que quisesse com ela, e não havia ninguém nesse acampamento que fosse criticar sua atitude, principal­mente em se tratando de uma mulher.

A criada aplicou a loção nas outras partes queimadas do corpo de Diane com a mesma delicadeza.

— Qual é seu nome? — perguntou Diane.

— Yasmina, quer dizer jasmim em árabe.

— E um nome bonito e combina com você.

Após o banho e a massagem, Diane sentiu-se relaxar. Pelo menos por enquanto estava mais calma e contente de não estar perdida no deserto, à mercê da fúria da natureza. Ali no douar do sheik, ela estava sendo bem tratada e se sentia confortável e abrigada. Se conseguisse mantê-lo à distância, poderia até chegar a apreciar certos aspectos dessa estranha aventura.

— A senhora é muito gentil, obrigada.

Yasmina sorriu e pegou uma escova feita de casco de tartaruga, marcada com a letra "K", e começou a escovar os cabelos da es­trangeira. Diane ficou analisando aquele compartimento da grande tenda, que era o lugar de dormir. Sobre os belos tapetes, havia uma cama baixa e larga, coberta por uma colcha estampada. As poucas peças de mobília eram todas de madeira entalhada. Na mesinha-de-cabeceira, havia um lampião de cobre e alguns livros, Em uma das paredes de pano, estavam dependurados apetrechos de montaria. O lampião exalava um aroma agradável, como se fosse incenso. Tudo ali era estranho e exótico, igual ao dono.

— Vou ver se Achmed trouxe a roupa para a senhora — Yasmina disse e dirigiu-se para a divisão principal da tenda.

Diane levantou-se para ver se o tornozelo ainda doía, mas estava tão fraca que sentiu uma vertigem e caiu sobre a cama. Ainda estava estendida lá, mal coberta pela toalha e atordoada, quando entrou alguém.

O sheik parou perto da cama e ficou olhando Diane.

— Estava esperando por mim? — perguntou ele.

Por alguns instantes, ela pareceu em estado de choque, os olhos estavam bem abertos, mas o olhar estava ausente. Khasim trocara de roupa. Agora, vestia uma calça escura e uma túnica curta. Não usava mais o pano cobrindo a cabeça, preso com duas cordas, porém continuava imponente e intimidador. Os cabelos eram negros como o breu e bem curtos. Aos poucos Diane, recuperou-se e analisou-o à luz suave do lampião. Che­gou até a pensar que ele poderia ser bonito, não fosse a cicatriz do lado esquerdo do rosto. Era como se estivesse sonhando... Mas, então, ele prosseguiu, fazendo-a voltar a si:

— Como está se sentindo? Yasmina me contou que lhe deu banho e que enfaixou seu tornozelo.

— Estou bem melhor. — Diane esforçou-se para se sentar, e imediatamente ele estendeu a mão e ajudou-a.

— Porém, ainda está muito fraca. Também, não comeu nada o dia inteiro, não é? Vamos dar um jeito nisso, mas é melhor vestir isso antes. — Ele lhe estendeu as roupas. — Precisa de ajuda?

— Não. Posso me ajeitar muito bem sozinha! — Diane puxou a toalha, cobrindo-se melhor, e olhou para ele, desconfiada. Sem dúvida, o sheik estava zombando dela. Era um homem experiente e conhecia muito bem as mulheres. — Eu lhe agradeceria se saísse agora. Não estou acostumada a me vestir com platéia.

— Ora, não precisa bancar a tímida comigo! — Ele largou as roupas sobre a cama. — Já sei que meninas são diferentes de meninos.

— Ah, sem dúvida! — ela exclamou, enrubescendo. — Fui informada de que você possui um grande harém, só que não faço parte dele!

— Por enquanto, mas pode estar certa de que fará parte dele, sim.

Diane respirou fiando, indignada com tanta audácia. Em seu íntimo, sentia uma estranha perturbação que não sabia explicar.

— Conheço seu avô e sei que ele a guardou bem — Khasim continuou, com um riso gutural. — Aposto que a enclausurou, como se fosse uma freira. Entretanto, agora a pombinha voou do ninho e caiu nas garras do gavião!

Um arrepio percorreu o corpo de Diane, e, involuntariamen­te, ela se retraiu, diante da força viril que emanava do sheik.

— Não posso ser responsabilizada pelo que aconteceu antes mesmo de eu nascer... Não é justo!

— É justo, sim, embora pareça estranho. — Ele semicerrou os olhos, onde havia um brilho perigoso. — Quero que o coronel Philippe Ronay sofra como sofri quando amparei em meus braços minha mãe agonizante e vi a luz da vida apagar-se aos poucos nos olhos dela. Jurei que um dia o faria pagar por aquele sangue derramado, pelas lágrimas... E agora tenho em minhas mãos a melhor arma! Vou fazê-lo pensar que você está em poder dos selvagens barbudos que não respeitam mulher alguma... Seu avô não vai saber que está com o cádi de Beni-Haran.

— Considera-se superior a um selvagem barbudo, desses que andam pelo deserto? — perguntou ela, com desprezo.

— Tomo banho regularmente e não como com as mãos, mi­nha cara!

Diane estremeceu.

— Vovô é um homem velho agora. Ele é toda a minha fa­mília... Por favor, não pode ter clemência só uma vez? Que prazer isso vai lhe dar?

Ela se interrompeu, constrangida, percebendo que Khasim olhava fixamente para seu ombro nu, de onde a ponta da toalha escorregara. Ficou nervosa e tensa, a ponto de sentir as têmporas latejando. Como iria conseguir escapar desse lugar e desse ho­mem? Observou-o e pensou que aquelas mãos iriam tocar seu corpo assim que as queimaduras sarassem. Desviou o rosto brus­camente, como se quisesse afastar a idéia, mas não pôde deixar de admitir, no íntimo, que as mãos dele eram bonitas e bem-feitas, não eram grosseiras e não pareciam ásperas. Entretanto, estava aprisionada ali e sofria por antecipação ao pensar como o avô ficaria preocupado e como sofreria ao saber que ela fora raptada por um árabe que o odiava. Sabia que o avô se sentiria culpado por tê-la deixado viajar sozinha para lá. E a preocupação e a ansiedade poderiam ter um efeito desastroso sobre a saúde dele.

— Acho que ficará satisfeito por fazer meu avô adoecer, não é isso? Ele está velho e já não é mais forte como era, e sei que lamenta muitas coisas que teve de fazer quando estava no Exército.

— Só lamento ter precisado esperar tanto tempo para acertar as contas com ele. — Abruptamente, o sheik se abaixou e,segurando Diane pelos cabelos, forçou-a a encará-lo. — A lei do deserto é: olho por olho, dente por dente. Vou tirar o máximo proveito de você, minha cara, pode estar certa disso! Mas, por enquanto, quero só alguma coisa que possa provar a seu avô que está mesmo aprisionada aqui. — Khasim deteve o olhar no pulso dela, onde havia uma pulseira de ouro com um ma­caquinho de jade. — Foi ele quem lhe deu isso?

— Não... — A pulseira fora de sua mãe. O primeiro presente que Raoul dera a ela.

— Mas ele vai saber que é sua. Vamos, tire-a!

— Não.

— Então eu mesmo farei isso, pode deixar.

Ele a segurou firme pelo braço e, embora ela se debatesse, conseguiu retirar a jóia sem o menor esforço. Examinou por alguns instantes o macaquinho de jade, enquanto Diane o olha­va, tremendo de ódio.

— Seu bruto! Selvagem! E assim que consegue dominar as mulheres?

Ele lhe lançou um olhar fulminante, depois, bruscamente, segurou o braço dela e recolocou a pulseira.

— Acabo de me lembrar de algo melhor. Onde está a correntinha com o medalhão?

Diane lembrou-se de que ficara caída sobre o tapete, no mesmo lugar em que ele a jogara. Ela acabara se esquecendo de pegá-la. No entanto, encarou-o em silêncio. Ele a fitou por alguns instantes, em seguida estalou os dedos.

— Ah, já sei onde está! Pode deixar. Vista-se para jantar. Quem sabe depois de comer ficará menos teimosa.

— Posso jantar aqui, sozinha?

— Não. Jantará comigo na outra tenda.

E, antes que ela pudesse protestar, Khasim saiu e fechou a cortina vermelha. Diane ficou algum tempo olhando o vazio. Sabia que ele era um homem acostumado a ter tudo o que queria, principalmente das mulheres. Afinal, era o líder ali.

Instantes mais tarde, Diane pegou a roupa que ele deixara sobre a cama. Era um traje de odalisca de seda, em tons de amarelo. Havia também um par de sapatos de ponta virada.

Ela se vestiu, fazendo careta, pois o simples contato da seda incomodava sua pele sensível e ardida. Depois, analisou sua imagem num espelho e acabou achando graça. Os cabelos, loiros, e a pele vermelha não combinavam com a roupa. Estava longe de parecer uma sedutora figura de As Mil e Uma Noites, e, de certo modo, isso até era um alívio. Enquanto estivesse com essa aparência, não corria o risco de despertar o interesse do sheik.

Ela suspirou. Que situação! Ele não estava brincando, e não havia meios de impedi-lo. Sem dúvida, Khasim cumpriria as ameaças.

Sentindo-se ridícula naquele traje exótico, ela respirou fundo e encheu-se de coragem para aparecer diante dele. Com mãos trêmulas, abriu a cortina e passou. Ele estava em pé, perto da entrada. Diane viu a movimentação lá fora pela abertura da tenda. Havia fogueiras acesas e som de música. Ela já es­cutara composições musicais daquele tipo, mas ali, no deserto, com toda aquela atmosfera típica do douar, a cítara e a per­cussão pareciam criar sons mágicos.

Diane sentia-se completamente deslocada era a única estran­geira numa tribo árabe. Estava bem ciente dos perigos que poderia estar correndo, e o pior de tudo era que não tinha como se defender. O pequeno revólver que ela levava preso à cintura havia sido confiscado pelo sheik assim que ele a encontrara no deserto.

Ela ficou parada, olhando para ele, que, de onde estava, de costas para Diane, observava o acampamento. Ah, se ela tivesse uma arma nas mãos, ele não lhe daria as costas assim! Será que teria coragem de puxar o gatilho e matar um homem? Talvez não, mas não precisaria matar! Bastaria um tiro na perna... Ferido, Khasim não iria importuná-la, nem poderia cumprir a ameaça de possuí-la à força.

— Sente-se, não force seu tornozelo... — disse ele, por sobre o ombro, sem se voltar. — Assim, não vai sarar.

Diane caminhou com esforço até o divã e sentou-se entre as almofadas. Ele se virou e olhou para ela, analisando-a detalhadamente da cabeça aos pés, com um meio sorriso nos lábios.

— Fique tranquila — Khasim prosseguiu. — Não estou tão desesperado e carente para agarrá-la agora, do jeito que está. — Ele se aproximou, pegou os pés dela e fez com que ela estendesse as pernas no divã. Depois, tocou com delicadeza o tornozelo ma­chucado, como se o estivesse examinando. — E... foi uma torção grave! Como foi cair do cavalo? A neta de Philippe Ronay deveria ser boa amazona, já que o avô foi da cavalaria...

— E sou. Sei montar muito bem — ela falou. — É que surgiu uma nuvem de gafanhotos no oásis de Fetna, meu cavalo se assustou e disparou. Não estou acostumada à sela árabe, por isso ele conseguiu me jogar no chão.

— Ah... uma nuvem de gafanhotos? — O sheik semicerrou os olhos ao fitá-la. — Havia muitos?

— Milhares! — Diane estremeceu só de lembrar. — Cobri­ram tudo em poucos segundos, todos os arbustos e as plantas...

— Inclusive você, não é? Aposto como se emaranharam nos seus cabelos.

— Sim, um desses insetos horrorosos entrou pela gola da minha camisa — ela explicou. — Fiquei apavorada e me as­sustei tanto quanto o cavalo. Eles são horríveis, não são?

— Sim. São capazes de devorar uma plantação inteira em menos de uma hora. É melhor eu mandar avisar Shemara de que os insetos devem estar indo nessa direção. Temos uma grande plantação de tâmaras lá, além de figos e damascos. Não é nada fácil tornar fértil o deserto, e uma plantação dessas dá um trabalho tremendo! Não podemos deixar que todo esse esforço seja perdido. Esses insetos são uma praga! Agora, com sua licença, vou falar com um de meus homens. Não demorarei, mas se a comida chegar enquanto isso pode começar a comer, não precisa esperar por mim. Deve estar faminta!

Ele saiu da tenda e fechou a cortina da entrada. Diane ouviu-o dar ordens em árabe e adivinhou que mandara alguém ficar de guarda. Não podia ser porque quisesse evitar sua fuga, pois sabia que Diane não tinha condições de sair dali no estado em que se encontrava. Lembrou-se de que o avô lhe dissera certa vez que os árabes gostavam de guardar bem suas mu­lheres e mantê-las longe dos olhos dos outros homens. Então, sentiu-se prisioneira. Será que o sheik a mandaria usar um véu para cobrir o rosto também?

Pegou uma das almofadas de plumas macias, cobertas com tecido bordado com fios prateados, e abraçou-a. Era evidente que, mesmo estando no deserto, ele fazia questão de um certo conforto e luxo. Os tapetes, a mobília entalhada e os lampiões de cobre formavam um conjunto rico e de bom gosto que agra­dava a Diane, apesar de ela tentar resistir ao encanto. Não queria admirar nada que tivesse alguma relação com Khasim Ben Haran. Para reprimir a admiração, tentou se convencer de que o sheik, apesar de falar duas línguas européias e de ter um gosto refinado, não passava de um bárbaro, como os outros de sua tribo que nunca viram uma escola em toda a vida.

Empertigou-se ao ouvir um ruído lá fora, e, logo em seguida, a cortina foi afastada, e Achmed surgiu. Ele trazia uma bandeja de prata, que colocou sobre a mesinha perto do divã. Havia vários pratos cobertos com tampas de prata em forma de cú­pula, um bule de café e duas xícaras. Ao sentir o aroma da comida, Diane percebeu o quanto estava com fome. Fazia horas que estava com o estômago vazio e não poderia deixar de aceitar essa requintada refeição, embora achasse que, por uma questão de orgulho, deveria recusar.

Achmed olhou para ela e fez gestos indicando que era para ela se servir e começar a comer. Diane agradeceu, então ele inclinou a cabeça com delicadeza e se retirou para deixá-la à vontade. Serviu-se de costeletas de carneiro cozidas com ce­nouras, cebolas e ervas aromáticas. Nunca uma comida lhe parecera tão apetitosa, e ela comeu vorazmente. Limpou o mo­lho do prato com pedaços de pão preto que achou saborosíssimo. Depois, comeu uma fatia de melão e algumas tâmaras com mel. Em seguida, tomou café e repetiu, apesar de o ter achado forte. Agora, sentia-se menos fraca.

Estava comendo mais tâmaras quando o sheik voltou e, com movimentos ágeis e precisos, aproximou-se dela.

— Puxa, você estava com fome mesmo, hein? Ainda bem que jantei com Sayed Hamoud! Ele acabou de partir a cavalo para Shemara. Foi avisar sobre os gafanhotos, assim as árvores estarão protegidas, se os insetos chegarem lá. Essas tâmaras que está comendo são da nossa plantação. Também cultivamos café e quase tudo o que comemos aqui. Somos uma comunidade auto-suficiente em vários sentidos.

— E você é o senhor absoluto de tudo! — ela exclamou, sentindo os nervos se retesarem quando Khasim se sentou a seu lado e inclinou-se para pegar o bule de café.

— Sou o cádi da comunidade. — Ele tomou um gole de café enquanto a examinava com um olhar tão penetrante que Diane sentia como se estivesse sendo tocada. — Sou muito diferente da idéia que faz de um sheik. Não sou um homem ocioso que passa o dia reclinado entre almofadas, sendo servido por todos. Nada disso, minha cara, tenho minhas obrigações! Estou sempre cavalgando pelo deserto. Aliás, gosto muito do deserto... é excitante e imprevisível, parece infinito e fora do tempo. O deserto e o oceano têm muito em comum. Nesses dois lugares, um homem tem de ser muito cauteloso e prudente para so­breviver. Precisa aprender a entendê-los, mas, em compensa­ção, eles provocam no homem uma liberdade de espírito que a vida na cidade reprime e sufoca. O deserto está na alma do povo de Beni-Haran, apesar do sol, das tempestades, das cruel­dades... Somos filhos das estrelas e temos grãos de areia en­tranhados em nossas peles!

— Porém, você parece gostar de conforto — replicou Diane, abrangendo com um gesto a tenda. — Os tapetes são lindos, e a mobília parece bastante valiosa e antiga. Não vive no rigor espartano dos nômades, meu caro sheik Khasim.

— Numa tenda como a dos pastores nômades? — Ele a olhou, com um sorriso irônico. — Sou o cádi de meu povo e não posso viver com a mesma simplicidade deles, mesmo que quisesse! Você gosta da minha tenda... embora eu saiba que me acha odioso!

Diane baixou o olhar e mordeu o lábio, nervosa. Ainda sentia o gosto das tâmaras na boca. Os dedos estavam melados, e ela os lavou na tigela com água que estava sobre a bandeja.

— Já que é o cádi, não poderia ser mais gentil comigo... e deixar que eu fosse embora de seu douar amanhã cedo?

Ele ficou em silêncio por algum tempo, e, quando ela o encarou novamente, viu que a expressão do sheik se tornara sombria.

— Tenho de acertar contas com um velho inimigo, minha cara. E você não sairá daqui enquanto eu não tiver feito isso. Meu tormento só terá fim quando eu tiver massacrado os sen­timentos de Philippe Ronay, exatamente como ele massacrou o povo de Beni-Haran, pessoas inocentes que pagaram por um crime que não cometeram contra os colonizadores! Vou trans­formar a preciosa neta dele numa prostituta, numa dessas mulheres que vendem prazer pelas ruas. Depois que eu alcan­çar meu objetivo, poderá fazer o que quiser de sua vida.

Diane fitava Khasim, apavorada e fascinada ao mesmo tem­po. Na expressão de seu rosto, ela pôde ler todas as horríveis recordações que o atormentavam: a morte da mãe em seus braços, o sangue dela se misturando ao dele, que escorria do ferimento que lhe deixara a cicatriz. Só por ser uma Ronay,

Diane despertara nele o cruel desejo de vingança... Ela quase perdeu o fôlego quando o sheik se inclinou, aproximando-se dela. Teve a impressão de que ele iria esganá-la ali mesmo. Então, arregalou os olhos, trêmula.

— Sabe que não estou brincando, não é? — Ele estendeu uma das mãos e segurou o tornozelo de Diane que não estava machucado, apesar de ela ter tentado esconder as pernas sob as almofadas.

Em seguida, Khasim deslizou a outra mão, acariciando o peito dela.

— Não faça isso! — Diane tentou se esquivar daquele contato, mas, imediatamente, sentiu os dedos dele segurarem com força seu pé.

— Que pezinho pequeno... tão macio e sensível! Os pés das mulheres do deserto ficam chatos e grosseiros de tanto andar descalças. Porém, você foi bem tratada sem dúvida... Ainda não posso entender como seu avô foi deixá-la visitar o deserto sem uma acompanhante! E espantoso!

— E quem disse que ele deixou? — Diane indagou. — Já lhe falei que minha dama de companhia ficou em Dar-Arisi, e deve ter notado minha falta quando não voltei para almoçar no hotel. Você não pode me manter aqui, escondida...

— Acha mesmo que não? — ele replicou, arqueando as so­brancelhas, com ar de ameaça. — Pensa que eu não conside­raria a possibilidade de você ter uma dama de companhia em Dar-Arisi? Mas isso seria fácil de resolver. Poderia mandar um de meus homens lá para verificar isso. Acontece que já sei a resposta. Além disso, não acho que seja do tipo que gosta de fazer amizade com aqueles turistas barulhentos e chatos que ficam no hotel. Você deve ter outros interesses, não é? Afinal, é uma Ronay, e seu avô teve uma vida cheia de expe­riências interessantes! Aposto como gostava de ouvi-lo contar às aventuras que viveu. O grande herói de cavalaria, com suas medalhas militares numa caixa e a velha farda dependurada para que a neta a admirasse! Que romântico ter um avô que percorria as areias escaldantes do deserto montado em seu cavalo árabe! — O sheik fez uma pausa significativa e fitou os olhos de Diane. — Um homem com um passado desse vai saber o que imaginar quando receber o medalhão da neta junto com a notícia de que ela está nos confins do deserto, nas mãos do chefe de uma tribo que jurou fazer justiça por causa da morte da mãe e de inocentes.

Diane estava arrasada, mas não conseguia desviar o olhar daquele rosto moreno de traços arrogantes. Era como se esti­vesse sendo puxada para dentro dos olhos dele por uma força estranha. Sua proximidade era uma ameaça, e ela sabia disso, seu corpo de mulher lhe dizia...

— Será que não tem nem um pouco de piedade? — pergun­tou, com voz trêmula. — Será que é tão cruel assim, como quer parecer?

— O sentimento que tenho é forte demais, é brutal. Preciso satisfazê-lo até me sentir saciado para que fique livre dele. Vendo-a aqui, desse jeito, convenço-me cada vez mais de que o destino traça os caminhos que devemos seguir.

— No entanto, todos no acampamento sabem que estou aqui e devem estar esperando que você me devolva para minha gente...

— Minhas obrigações para com meu povo não têm nada a ver com minha vida privada, com meu relacionamento com uma mulher. Você me entende, não é?

Diane entendeu muito bem o que ele quis dizer e o que viu no olhar insinuante que Khasim lhe lançou. Sentiu-se descon­certada. Era perturbador estar ali, sozinha, com aquele homem de presença tão marcante.

De repente, o sheik começou a assobiar baixinho, num tom melodioso, e Diane reconheceu a música. Era Chanson d'un Coeur Brisé, que significava Canção de um Coração Ferido.

— Você se diverte com tudo isso, não é? Sente um enorme prazer!

— É claro. — Ele riu de maneira cruel. — Só Alá sabe quanto esperei por este momento! Apenas nunca imaginei que a opor­tunidade de vingança surgiria na forma de uma bela garota!

— Vingança... Você é um selvagem!

— O que disse? Como tem a presunção de querer me julgar?! Sei que é inexperiente e não conhece os homens, por isso não pode saber o que sou.

— Como já disse antes, sheik Khasim, basta um olhar para saber que é um ditador acostumado a ser obedecido e a fazer o que quer com as pessoas.

— Sem dúvida, posso fazer o quiser com você, sem o menor esforço... — concordou ele, com um sorriso insinuante, e colocou a mão sobre o ventre de Diane. Ela tremeu e se retraiu. —

Tocar o corpo de uma mulher é um deleite! A pele, as curvas... tudo é tão delicado sob as mãos rudes de um homem... Entre­tanto, poderia fazê-la em pedaços...

— Não — disse ela, meneando a cabeça. Não podia ignorar a mão cálida acariciando-a quase com delicadeza. — Você é bem mais sutil, sheik Khasim. Sei o que está tramando... Não pretende me bater ou me matar, e sim me devolver para meu avô com a alma ferida.

— Que garota esperta! — exclamou.

Diane tentava ignorar a mão dele que agora acariciava suas pernas, mas aquele contato a atormentava, e, num gesto brusco, ela se desvencilhou dele, encarando-o com os olhos bem abertos.

Khasim riu.

— Ah... esses seus olhos... parecem pedras preciosas. Que sorte a minha que você seja assim! Agradeço ao destino e a Philippe Ronay, Diane. Daqui a dois dias, mais ou menos, quando sua pele já não estiver assim, tão vermelha, vou adorar voltar para a minha tenda ao anoitecer e encontrá-la esperando por mim!

Essas palavras cravaram-se na mente de Diane, como se fossem punhais. Imaginou-se ali, esperando com medo o mo­mento em que ele a possuiria sem amor, para consumar a vingança pelo que havia sido feito a seu povo. E ela teria de pagar por isso. Talvez fosse mesmo seu destino.

 

-Estarei esperando por você com umpunhal! — Diane exclamou, com veemência, embora a frase soasse melodramática.

— Está no seu sangue mesmo... — Khasim respondeu. — Somos produto do que aprendemos e herdamos daqueles que nos criam. Você é uma Ronay, por isso herdou esse desejo de me apunhalar! Está escrito, Diane. Desde o momento em que nascemos, já estava determinado que nossos caminhos se cru­zariam, embora você tenha nascido numa sofisticada maternida­de enquanto nasci sob as estrelas do deserto, num tapete colocado sobre a areia. Minha mãe estava viajando pelo deserto com meu pai quando chegou a hora de eu nascer. O primeiro ar que entrou em meus pulmões foi o do deserto, e é aqui que pretendo morrer quando chegar a hora... Por isso, nunca deixarei punhais ou facas ao alcance de suas mãos, pode estar certa.

— Não se sinta tão seguro assim — Diane desafiou-o es­forçando-se para controlar os nervos. — Como irá me impedir de fugir quando não estiver no acampamento? Vai me amarrar, como se eu fosse um animal?

— É uma idéia interessante... — Ele sorriu. — Você é minha gazelinha! Sabia que gazela é uma palavra carinhosa com que apelidamos nossas mulheres ?!

— Não estou interessada em suas palavras de carinho — ela replicou. — Tem certeza mesmo de que não há ninguém neste acampamento que gostaria de espalhar que você está aprisionando uma mulher européia?

— Ninguém do meu povo pensaria que você está aqui, na minha tenda, contra a sua vontade, Diane.

— Ah, meu Deus, como você é arrogante! Sua gente sabe que sou uma estrangeira que encontrou perdida no deserto...

— Somos árabes, e é nosso costume oferecer teto e abrigo a qualquer estranho que esteja necessitado. E é o que estou fazendo, não é? Afinal, providenciei banho, alimento e roupas para você, não foi?

— Não se recusa o direito de ir e vir a um hóspede comum.

— Ah, mas ninguém se atreverá a lhe perguntar se está gostando de minha hospitalidade ou não! Sou o cádi de Beni-Haran, e todos acharão natural que esteja gostando de ser minha hóspede e que não queira ir embora.

Diane ficou perplexa. Lembrou-se de que ali a palavra dele era lei e que o sheik escolhia as mulheres que quisesse. Per­cebeu, desalentada, que, para o povo que Khasim governava, ela não passava de um objeto que ele desejava...

— Ninguém tem nada a ver com o que pretendo fazer com você, inglesinha. Talvez as mulheres fiquem um pouco curiosas e não consigam imaginar o que vi numa mulher de quadris es­treitos e de cabelos cortados acima dos ombros. Ainda bem que os cabelos crescem, pois acredito que ficará mais feminina de cabelos compridos. Assim, está parecendo um rapazinho bonito.

— Não pretendo ficar aqui até que meus cabelos estejam no comprimento que você quiser! Verá que não sou nem um pouco dócil e submissa como as mulheres de seu harém. Pode ser que elas caiam a seus pés, mas eu não!

— Ah, é só eu encostar-se a você que já começa a tremer... — zombou ele e, de novo, passou a mão devagar na perna dela.

Diane ficou paralisada, quase hipnotizada, observando a mão morena em seu corpo.

— Não precisa gritar — Khasim acrescentou, sorrindo com ar de provocação. — A brincadeira ainda não começou. Quando sua pele voltar ao normal e não doer mais, aí, então, irei en­siná-la a ser mulher. Todo mundo é sensual, basta saber des­pertar a sensualidade, minha querida.

— Não se atreva a me chamar de "minha querida"! — ela esbravejou e, numa explosão de nervosismo contido, inclinou-se e esbofeteou-o onde havia a cicatriz.

O sheik ficou impassível, e Diane prosseguiu: — Será que não percebe que meu avô é muito conhecido na França e que não permitirá que eu desapareça assim, sem que as autoridades tomem providências? Quando me descobri­rem, você será preso!

— E que escândalo vai ser quando a imprensa publicar os detalhes do rapto! Pode imaginar como o público gosta dessas coisas, não é? Todos saberão que a neta do coronel Ronay foi aprisionada por um chefe de tribo no deserto que fez dela um objeto de prazer! — Khasin sorriu. — Os repórteres sensacionalistas adoram histórias desse tipo e não omitirá um único detalhe. Só quero ver o orgulhoso coronel Ronay de cabeça baixa, ouvindo o depoimento da neta contra mim no tribunal! Poderei argumentar, como defesa, que meu crime foi passional e posso arranjar testemunhas para denunciar o crime do coronel contra o povo de Beni-Haran. Este acampamento está cheio de pessoas que se lembram daquele dia fatal tão bem quanto eu e que, se soubessem que é neta daquele homem amaldiçoado, exigiriam que eu a abandonasse no deserto para que morresse nas garras de algum animal selvagem. Será que devo fazer isso, inglesinha? Sem dúvida, pelo menos salvaria a honra de seu avô, evitaria um desmascaramento público, não acha?

Diane fitou, de olhos arregalados, o rosto severo e orgulhoso de Kasim Ben Haran. Era insuportável ouvi-lo falar daquele jeito de seu avô, que sempre fora um homem amoroso e gentil, que lhe dera afeto, ensinara-lhe a apreciar as artes e lhe ex­plicara com paciência e em termos simplificados as táticas de guerra, demonstrando movimentações com soldadinhos de chumbo sobre o tablado que tinha no escritório. Era assim que ela o conhecia e o amava.

— Insensível! — exclamou entre os dentes. — Prefiro ser atirada novamente ao deserto a ter de suportar sua companhia. Você é abominável!

Um pesado silêncio caiu sobre eles, mas Diane estava satisfeita por ter lhe dito tudo aquilo. Sabia que ninguém jamais ousara atirar no rosto dele tal insulto... O sheik podia ser poderoso e importante para a gente dele, porém, para ela, Khasim não pas­sava de um bárbaro do deserto. Preparou-se para enfrentar a reação dele quando o viu erguer-se, com um movimento ágil.

— Experimente falar assim comigo de novo — ele sussurrou. — E a venderei para o prostíbulo mais vagabundo de Argel. Então, veremos quanto tempo durará esse seu orgulho. Terá de passar pelas mãos de homens sujos e drogados, as mais baixas criaturas, que são menos do que animais. Não pense que vou ter escrúpulos porque você é jovem e inocente. Esqueça isso! — Ele fez uma pausa e olhou-a com intensidade. — Quero ter o prazer de destruir seu orgulho, de arrasar a audácia dos Ronay que há em você!

— E como pretende fazer isso? — perguntou ela, com des­prezo. — Usando suas esporas e um chicote?

— Não, inglesinha. — Khasim se inclinou na direção dela, e Diane pôde ver o brilho de escárnio em seu olhar, — Uso isso com meus cavalos. Para você, disponho de meios mais sutis e eficientes.

Ela sentiu a força sensual que emanava dele e defensiva­mente se afastou. Sua boca estava seca. Nunca estivera tão perto de nenhum outro homem, principalmente de um homem tão forte e de presença tão marcante assim.

Ele se endireitou devagar.

— Está ficando tarde, e você precisa dormir para relaxar a tensão. Vamos, vou levá-la para a cama. — Ele lhe estendeu a mão, mas Diane a recusou.

Ela só vira uma cama naquela tenda e não pretendia par­tilhá-la com ele.

— Estou bem aqui. Este divã é bastante confortável, dá para eu dormir muito bem e tem todas essas almofadas...

— Sua bobinha! — Com impaciência, ele a ergueu nos braços bruscamente e foi para a outra divisão da tenda. — Precisa descansar para se recuperar e melhorar essa aparência. Pode ficar sossegada que não está nem um pouco atraente.

Ele a colocou sobre a cama e indicou a roupa de dormir que estava estendida ali.

— Talvez seja um pouco grande para você, no entanto eu a aconselho a usá-la. Lembre-se de que estamos no deserto e de que à noite há insetos e aranhas. Você se arranja sozinha, ou quer que eu mande uma criada para ajudá-la?

— Não é necessário, eu me ajeito... Só gostaria de tomar um pouco de limonada. Ainda estou com a boca seca.

— Vou mandar trazer — disse ele e, pegando o lampião da mesinha-de-cabeceira, começou a examinar os cantos da tenda.

Diane adivinhou, nervosa, que Khasim estava inspecionando para ver se não havia aranhas ou insetos rastejantes. Após a vistoria, ele recolocou o lampião no lugar e olhou para ela.

Seus olhos tinham uma força tão grande e um poder de atração tão intenso que ela não conseguia evitá-los. Ficou imaginando quantas mulheres já não teriam deitado naquela cama com ele e fitado com paixão aqueles misteriosos olhos árabes... mu­lheres que se entregavam, dóceis, aos braços fortes e muscu­losos, que se deixavam beijar com ardor pelos lábios bem-feitos e sensuais. Ela, que era virgem e inexperiente, tremeu ao pen­sar nisso, diante da presença máscula de Khasim ben Haran. Ele pareceu ler seus pensamentos, e seus olhos brilharam com malícia.

— Na atual circunstância, não precisa temer nenhum avanço de minha parte. Não costumo violentar e atormentar virgens assustadas exaustas e queimadas de sol.

— Será que não? — questionou, ríspida. — E o que está fazendo comigo desde que me trouxe para cá? O que acha que sinto sabendo o que vai acontecer a meu avô quando ele receber meu medalhão... junto com as mentiras que vai lhe dizer?

— Estou morrendo de pena dele — Khasim falou, com escárnio.

— Ora, você é tão insensível... — Os lábios dela tremiam ligeiramente. — Por que não faz o que tiver de fazer comigo e o deixa em paz?

— Que sacrifício nobre, inglesinha! Acontece que isso não basta para me satisfazer. A justiça tem de ser feita por com­pleto. Quero que ele sofra bastante ao saber que sua neta casta e virginal está sendo usada, ao imaginar que ela passará as noites nos braços de um selvagem libidinoso... uma noite para cada vida que ele tirou do povo de Beni-Haran. O coronel viverá os horrores do inferno, imaginará seus gritos de deses­pero e derramará tantas lágrimas quanto às derramadas por nossas mulheres sobre os corpos de seus maridos ou filhos. Depois disso, eu a devolverei a ele! — Ele afastou a cortina vermelha e, antes de sair do quarto, acrescentou: — Vou man­dar trazer sua limonada. Durma bem!

— Vá para o inferno! — gritou ela.

Mas o sheik apenas riu e se afastou.

Diane ficou lá, sentada na cama, encolhida e imóvel. Pensava no infortúnio de ter caído nas mãos de um homem cruel que a via apenas como um instrumento de vingança. Ela precisava ar­ranjar um jeito de fugir daquele douar, antes que Khasim con-

seguisse possuí-la e fosse tarde demais. Um tilintar de pulseiras anunciou a entrada de Yasmina, que vinha trazendo a limonada. — A senhora parece cansada e triste...

— Yasmina! — Diane segurou o braço da moça, com deses­pero. — Você parece ser tão boa, e... preciso muito da ajuda de alguém. Tenho de fugir deste lugar... Será que pode me ajudar? Por favor, diga que sim!

Yasmina olhou para ela, com piedade.

— Não ouso contradizer meu amo Khasim de jeito algum. Ele próprio vai levar a senhora de volta a sua gente...

— Vai nada! — Diane meneou a cabeça freneticamente. — Ele pretende me manter aqui contra minha vontade, não quer me deixar voltar para minha família. Preciso de alguém que me ajude... Se você pudesse me arranjar um cavalo, eu iria embora, e o sheik nunca ficaria sabendo que me ajudou.

— Ele saberia que fui eu, sim. —Yasmina balançou a cabeça, pesarosa. — O cádi é muito esperto e poderoso, sabe tudo o que acontece por aqui. Se não fosse assim, ele não seria o líder de Beni-Haran. Além disso, meu irmão me chicotearia se sou­besse que fiz algo desacatando a vontade do sheik.

— Ele a chicotearia? — Diane repetiu, perplexa. — Seu próprio irmão faria isso?

— Se meu amo Khasim deseja manter a senhora com ele, deve ter suas razões. A senhora deveria se sentir honrada com a atenção dele.

— Honrada? — Diane ficou indignada. — Não estou inte­ressada nele, será que não entende? A única coisa que quero é sumir daqui, ficar o mais longe possível dele! Você é mulher, Yasmina, por isso deve entender como estou me sentindo! Se fosse aprisionada por um homem do qual não gosta, iria se submeter docilmente à vontade dele?

— Sou árabe, senhora. Meu irmão é meu protetor e guardião, e lhe devo obediência. Se algum dia ele escolher um marido para mim, devo aceitar, mesmo que nunca tenha visto o homem.

— Mas isso é uma barbaridade! É coisa do século passado! Onde se viu homens dominando mulheres desse jeito hoje em dia? Será que vocês pararam no tempo?

— Gostamos de nossas leis e costumes — murmurou Yas­mina. — Talvez para a senhora seja estranho... Veja só o véu que usamos no rosto, por exemplo. O cádi Khasim não obrigaas mulheres de Beni-Haran a usarem-no, mas nossos pais e irmãos preferem assim. Dizem que é para não corrermos o risco de despertar o desejo e a sensualidade dos homens. Viu o que aconteceu com a senhora, não viu?

— Acha que seduzi o sheik no estado em que estou? — Diane fez um gesto abrangendo seu corpo e conteve um riso amargo. — Será que entenderia melhor por que ele quer me manter aqui se eu lhe dissesse que meu sobrenome é Ronay?

— Ronay? — Yasmina arregalou os olhos e afastou-se da cama,

— Está vendo? — murmurou Diane. — Agora você também não gosta mais de mim.

— Meus pais morreram naquele ataque que houve em Beni-Haran... — disse Yasmina baixinho. — Meu irmão Sayed estava pastoreando os carneiros, e eu estava com ele naquele dia. Quando voltamos ao acampamento... — Yasmina baixou os olhos, evitando fitar Diane. — E melhor que não diga isso a mais ninguém, senhora. Agora, quer que eu a ajude a se trocar para dormir?

Diane estava se sentindo fraca e cansada e deixou que a criada cuidasse dela. Yasmina a despiu com a mesma delicadeza de antes, mas Diane percebeu que a jovem assumira uma atitude reservada e que havia cometido um erro ao contar seu sobrenome a ela. Com isso, Diane destruíra a mais remota possibilidade de conseguir ajuda. Yasmina e o irmão deveriam ter a mesma sede de vingança que o sheik e obedeciam à lei do deserto.

Já com a roupa de dormir, Diane entrou sob as cobertas. A colcha de seda fora substituída por uma grande manta de lã de carneiro.

— As noites são muito frias aqui — explicou Yasmina, en­tregando a Diane o copo com limonada.

Ela tomou um gole e achou o gosto levemente diferente.

— Há alguma coisa misturada nisso? — perguntou Diane, sobressaltada diante da súbita idéia de que o sheik pudesse querer drogá-la para levá-la para a cama.

— Apenas uma erva que vai fazer a senhora dormir bem e aliviar os efeitos do excesso de sol Achou o gosto muito ruim?

— Não, pelo contrário. — Tranqüilizada, Diane bebeu a limonada e devolveu o copo.

Logo em seguida, um langor e uma calma a invadiram. A dor que sentia no corpo foi suavizada, e ela sentiu que teria um sono sossegado, afastando da mente, pelo menos por algumas horas, todos os seus tormentos. Na manhã seguinte, já estaria refeita e bem melhor, então pensaria com calma num jeito de fugir. Era só conseguir um cavalo! O sheik pensava que ela não sabia montar, mas aprendera a cavalgar desde cedo com o ordenança do avô, que lhe ensinara até algumas palavras em árabe que os cavaleiros do deserto costumavam usar com seus cavalos. Ela daria um jeito!

Ajeitou-se mais confortavelmente na cama macia, voltando a imaginar quantas mulheres já não teriam se deitado ali, recebendo as carícias das mãos morenas, másculas e experientes... Fechou os olhos com força, assustada com a intensidade de seus pensa­mentos. Nunca pensara nessas coisas antes... Até então, sempre dormira em sua cama de solteira, num quarto de uma casa na Bretanha. Lembrou-se da velha casa com vista para o mar e antigas torres góticas. Sentiu saudade de seu quarto, dos livros e de outros pertences, e um aperto no coração de pensar que talvez nunca mais visse essas coisas de novo, principalmente o rosto bronzeado e cansado do avô querido.

— Quer que eu apague o lampião? — perguntou Yasmina.

— Sim, por favor. — No escuro, ela não veria os elementos estranhos e perturbadores do ambiente exótico em que estava.

— Boa noite, senhora — disse Yasmina e apagou o lampião que deixou no ar um cheiro de querosene.

Em seguida, a criada saiu e fechou a cortina.

Diane dormiu várias horas, sentindo-se aquecida e confortável. Dormiu tão profundamente que nem percebeu alguém entrar no quarto várias vezes durante a noite, aproximar-se e tocar nela para examinar sua respiração. O dia amanheceu, e, apesar da luz invadir a tenda, ela continuava a dormir sem se perturbar.

Afinal, acordou sem que ninguém a chamasse, sentindo-se descansada, bem-disposta e com vontade de ir ao banheiro. Sentou-se na cama, ainda meio-atordoada, sem entender direito onde estava, até que se lembrou do que acontecera. Examinou a tenda à luz do dia e percebeu que num canto do quarto havia uma divisão vedada por um biombo pintado. Saiu da cama e caminhou até !á, descobrindo com grande alívio um vaso sanitário impecavelmente limpo, coberto por uma tampa de madeira. Deu graças a Deus por ter encontrado aquele ar­remedo de banheiro que pôde usar sem constrangimento, pois sabia que em geral os árabes do deserto costumavam fazer asnecessidades na areia mesmo. Encontrou também, sobre uma mesinha, uma bacia com água, uma esponja, um sabonete de sândalo e uma toalha macia. Diane tirou a roupa e examinou as queimaduras. Já não estavam tão vermelhas, mas a pele começara a descascar em alguns pontos. Lavou-se, enxugou-se e procurou, no quarto, a calça comprida e a camisa que usava quando chegou. Encontrou apenas uma túnica de algodão e roupas de baixo que nada tinham de modernas- Vestiu-as, sentindo-se uma persona­gem de conto de fadas. Depois, foi até o espelho e começou a escovar os cabelos. Estava ali quando sentiu um calafrio ao ver a cortina da entrada se afastar e o sheik surgir. Ele estava com uma túnica branca aberta no pescoço e amarrada na cintura e uma calça comprida larga, presa dentro das botas de montaria. Sua figura irradiava força e vigor.

— Ah, então já está acordada e vestida! — ele exclamou, examinado-a com um olhar penetrante por meio do espelho. — Como está se sentindo depois de ter dormido?

— Bem melhor, obrigada. — Diane largou a escova e virou-se de frente para ele.

Estava se sentindo horrorosa naquela túnica larga e com o rosto descascando. Pensou que ele fosse rir de sua aparência, mas, em vez disso, Khasim se aproximou e tomou o pulso dela para examiná-lo. Depois, balançou a cabeça com ar de aprovação.

— Você não ficou com febre... o que é um milagre, tendo ficado tantas horas exposta ao sol como ficou!

Bruscamente, ele tocou os cabelos dela como se quisesse sentir a textura macia dos fios loiros. Ela sentiu os dedos dele na nuca e quis evitar o contato, mas achou melhor não de­monstrar o sentimento e ficou imóvel.

— O mau humor de ontem já passou? — O sheik segurou-a pelos cabelos, forçando-a a encará-lo, e analisou seu rosto, principalmente os lábios. — Sua aparência está melhorando, mas a aconselho a continuar usando a loção por algum tempo ainda. Não vai querer ficar com essa linda pele manchada, não é?

Sem querer, ela olhou para a cicatriz dele. Khasim lhe dis­sera que havia treze anos aproximadamente que aquilo acon­tecera. De certo modo, ela até entendia sua amargura, só que isso não justificava o desejo de se vingar nela! Diane comprimiu os lábios. Não perderia mais tempo discutindo com ele e ten­tando convencê-lo a soltá-la. Iria apenas esperar a oportunidade de roubar um cavalo!

— Vou ter de ficar fechada nesta tenda, como uma prisio­neira? Preciso tomar um pouco de ar, esticar as pernas, andar um pouco...

— Sem dúvida, em direção a Dar-Arisi! Não se aventure mais a sair sozinha pelo deserto, Diane, porque da próxima vez pode ser que não tenha a mesma sorte de ser encontrada e bem tratada.

Ouvi-lo pronunciar seu nome com intimidade causou-lhe uma estranha sensação. Ficou revoltada, mas não protestou. Era melhor fingir submissão até que conseguisse o que queria.

— Venha, vamos almoçar. — Ele a segurou pelo braço e a conduziu para fora da tenda.

Havia uma mesa posta ao ar livre, sob um toldo comprido, e Achmed estava ocupado diante de um fogareiro.

— Você dormiu até tarde hoje — disse o sheik, puxando uma cadeira de lona para Diane se sentar. — Mas aposto que não costuma fazer isso sempre.

— E verdade, não costumo mesmo.

Khasim sentou-se na cadeira diante dela, e Diane, para evi­tar seu olhar e também por curiosidade, aproveitou para ob­servar o acampamento. A primeira coisa que percebeu foi que ele ficava numa pequena elevação, acima do nível do deserto, onde era mais fácil chegar uma aragem. Para além do agru­pamento de tendas escuras, havia alguns animais pastando, e, quando ela viu cavalos, uma chama de esperança acendeu-se em seu coração. Qualquer lugar seria bom para ela, contanto que fosse longe dali, longe de Khasim ben Haran.

Prestou atenção nas mulheres que cozinhavam diante de suas tendas e reparou que algumas delas usavam véu como Yasmina, o que lhes dava uma aparência misteriosa. Todavia, usavam pul­seiras e colares. Sentiu-se observada, embora os homens da tribo, que passavam por ali e saudavam o sheik, mal erguessem os olhos para ela. Diane sabia que os árabes consideravam indeli­cadeza e falta de respeito olhar para uma mulher que pertencia a outro homem. Quem agisse de modo diferente estaria provo­cando briga. Seu avô sempre lhe dissera que os árabes tratavam as mulheres como se elas não tivessem alma, mas eram posses­sivos e ciumentos em relação ao corpo delas.

Diane sentiu uma onda de sensualidade percorrer seu corpo e, atraída por um magnetismo estranho, olhou para o sheik,

Ele a estava observando, de olhos semicerrados, com uma ex­pressão viril e autoritária. O coração dela quase parou, a visão dele a fascinava tanto quanto as areias douradas que se es­tendiam a perder de vista. Khasim era parte do deserto, com todos os mistérios e os perigos brilhando em seus olhos.

Achmed trouxe os pratos de comida e colocou-os na mesa. Tudo muito apetitoso, e Diane percebeu que estava faminta. Quando deu a primeira garfada, semicerrou os olhos, sabo­reando os alimentos. Pelo menos no que se referia ã alimen­tação, o sheik era civilizado. Estava tudo uma delícia!

— Parece uma gatinha tomando leite, submissa a quem a alimenta — murmurou ele.

Diane fingiu não ter ouvido e não olhou para ele.

— Achmed é um excelente cozinheiro — ela falou. — Seu acampamento é bem pitoresco, e eu até gostaria de estar aqui, se não fosse por você, sheik Khasim!

— Não adianta querer me arranhar, gatinha. A pele de um árabe é bastante resistente! O que está achando de nossas mu­lheres? Não acha que o véu que elas usam tem um certo encanto?

— Se acha que submissão é encanto... — Diane replicou, enquanto observava uma mulher ali perto que brincava com uma criança.

A mulher olhou para ela com certa animosidade e adquiriu uma expressão de desprezo ao fitar seus cabelos curtos.

— Seu povo, sem dúvida, não me acha atraente!

— Não se aborreça com isso. Quando estiver sozinha comigo na tenda, vai estar muito mais atraente, pode estar certa disso. As sedas vão ficar lindas sobre sua pele clara como marfim!

Diane quase perdeu o fôlego e disfarçou o impacto que as palavras dele lhe causaram. Khasim apenas sorriu e chamou Achmed para tirar os pratos.

— Daqui a alguns dias, meu povo vai presumir que a escolhi como minha mulher — informou a Diane. — E natural. Pensam que você é inglesa... Não seria nada bom eles saberem de quem é neta. Muitos têm várias razões para odiar seu avô. Só mais uma pessoa sabe do segredo, mas confio cegamente nela.

— Não é o irmão de Yasmina, é? — perguntou Diane, curiosa. — Ela me disse que...

— O que vocês andaram conversando, hein?

— Revelei meu sobrenome para ela, e Yasmina me disse que seus pais morreram naquele ataque e que o irmão jamais perdoará quem fez aquilo.

— Ora essa! Logo ele? Não, não... Sayed ainda não está entre meus homens de confiança. Estou me referindo a um outro que foi a Dar-Arisi para descobrir se você está viajando sozinha ou com alguma acompanhante, conforme me disse. Ele é discreto e saberá investigar com eficiência. A lealdade dele para com Beni-Haran é igual à minha: firme como uma rocha! Ele será marido da minha irmã, por isso também tem interesse em proteger os segredos de família.

— Você tem uma irmã? — indagou Diane, surpresa.

— Sim. — Ele arqueou as sobrancelhas, arrogante. — For que acha tão estranho que eu tenha família? Por acaso pensa que sou um ser demoníaco que não tem parentes e que surgiu do nada?

— Não, não penso, mas até que essa seria uma hipótese a considerar!

— Ora, vamos... — Ele riu. — Minha irmã chama-se Morgana e mora no acampamento de Shemara. Você vai conhecê-la.

— De jeito algum! — protestou Diane. — Já não basta você me obrigar a ficar aqui, agora vai querer me arrastar para sua casa também! Não irei!

— Minha casa, não, meu kasbah — corrigiu-a. — Dentro das muralhas, vive o povo de Shemara, e, fora delas, ficam as plantações. Lá existem muralhas altas e há torres acima do nível do mar que são postos de observação para proteger o povo de Beni-Haran dos piratas ou dos invasores que vêm do deserto. Em um dos pátios, há sete fontes, e é lá que ficam as mulheres.

— O seu harém, você quer dizer — Diane falou, corando.

— Sim, meu harém — ele concordou e se serviu de café. — Aposto como isso desperta sua curiosidade feminina, não é? Parece achar impossível que eu tenha outras mulheres além de você! Está pensando que é a única rosa do meu jardim?!

— Ora... Por que não vai para o inferno? — replicou, furiosa.

— Ainda bem que estamos conversando em inglês, do con­trário, muita gente ficaria chocada ao ouvir essa expressão da boca de uma mulher.

— Seu povo tem uma filosofia encantadora no que se refere a mulheres, não é mesmo? — questionou, irônica.

— Sim, preferimos ser os senhores, e não os escravos. A mulher foi feita para falar com suavidade, tal como a pombapara arrulhar. A mulher foi feita para se comover, para chorar, e não para ser dura e resistente. A natureza dotou-a de pele macia e cabelos sedosos, e isso é um reflexo de sua constituição íntima. Ela deve ser calma e tranquila, como as águas de um lago que refletem as palmeiras.

— Sem dúvida, as palmeiras a que você se refere são os homens, não é? Você usou uma linguagem simbólica.

— Vejo que me entendeu, estrangeírinha...

Ele se recostou na cadeira de lona e pegou um charuto que Achmed se apressou em acender, Diane percebeu que o sheik agradeceu o criado, e não apenas aceitou o serviço dele como coisa natural. Ela teve de admitir que Khasim era cortês e tinha boas maneiras, mas, no íntimo, sabia que essa suavidade era apenas superficial e escondia o verdadeiro sheik. Um homem que dominava uma tribo grande do deserto só podia ser forte, resoluto, tão temido quanto respeitado. Se fosse condescendente, não seria considerado entre os árabes, Diane sabia disso e podia ver o poder emanando dos traços do rosto dele, assim como via paixão e ironia no desenho sensual de sua boca. Será que ele amava todas as mulheres do harém? Era mais provável que desfrutasse de todas e que não amasse nenhuma,'

— Muito de nossa arte e de nossa literatura baseia-se em símbolos — continuou ele. — Até a arquitetura. As ogivas e os arcos que conduzem a interiores secretos refletem as linhas suaves e arredondadas das mulheres, as formas masculinas são representadas pelos minaretes e pelos obeliscos que inva­dem a abobada celeste...

O sheik fitou-a, como se quisesse se certificar de que Diane o entendera. Ela o compreendera muito bem e precisou se es­forçar para sustentar aquele olhar, resistindo à súbita onda de timidez que a compelia a baixar as pálpebras. Sabia que ele estava fazendo isso de propósito, só para se divertir a sua custa, e não quis fraquejar.

— As construções européias têm formas duras e ríspidas — ele acrescentou, com ar pensativo. — Como se os homens desses países relutassem em admirar as formas femininas... Acho que nós, orientais, temos uma atitude muito mais lisonjeira em relação às mulheres! A mulher é como uma pedra preciosa cuja beleza precisa ser realçada pelas roupas.

— E assim que são tratadas as mulheres do seu harém?

— Está mesmo curiosa sobre meu harém, não é? — per­gostou, soltando uma baforada de fumaça. — Será que está querendo ser instalada lá, no palácio das sete fontes?

— Só se for morta!

— Isso estragaria meus planos, Diane.

— Sim, eu sei, sheik Khasim.

— Há muitas mulheres européias que desejam ardentemente des­vendar os segredos de um harém oriental — disse ele langorosamente.

— Ah, não duvido nada! Mas devem ser do tipo que costu­mam ler historinhas fantasiosas em que um sheik se apaixona por uma mulher branca, e tudo é maravilhoso e romântico. No entanto, sei muito bem que isso está longe da realidade!

— Será que sabe mesmo, estrangeirinha?

Ele a olhou com intensidade, e mais uma vez ela não pôde fugir de seu magnetismo sinistro. Sentia-se como um animalzinho indefeso, acuado por um leopardo.

— Tenho curiosidade de saber o que você imagina... — Ele soltou a fumaça de um jeito insolente. — Não gostaria de me contar? Assim, saberei como espera ser tratada quando esti­vermos a sós.

— Para quê? Trata todas as mulheres do mesmo jeito... Usa-as como se fossem escravas e depois, quando está farto delas, simplesmente as põe de lado!

— Será que foi por isso que veio ao deserto, Diane? Quem sabe no fundo de seu ser há um desejo escondido de ser es­cravejada por alguém como eu, hein?! Será que quando se tor­nou mocinha não começou a achar tediosa a casa e a companhia de seu avô e daí começou a imaginar o deserto mais excitante do que o das descrições que ouvia dele?

— Pode ter certeza de que não vim visitar o deserto aca­lentando a idéia de ser capturada por alguém como você! — Os olhos dela faiscavam. Estava com vontade de esbofeteá-lo e arranhá-lo todo. — Como ousa insinuar uma coisa dessas?!

— Estou dizendo isso, Diane, porque sei que nós, seres hu­manos, nem sempre temos consciência de tudo que se passa nas profundezas de nossas mentes e de nossos corações. Talvez, vindo para cá, você tenha atendido a um chamado que só foi ouvido por seus instintos mais primitivos.

Diane estremeceu e lembrou-se de que o seu instrutor de equitação, que era árabe, fizera um comentário parecido, referindo-se ao "chamado do deserto" para explicar o desejo re­pentino de fazer essa viagem.

— Meu avô falava tanto do deserto que fiquei curiosa de conhecê-lo, só isso! Queria conhecer Fetna e o forte onde ele serviu... Meu avô teria vindo comigo se estivesse bem de saúde. Vai ser um choque muito grande para ele saber que fui cap­turada... Será que você quer matá-lo?

— Depois do que lhe contei, já devia saber a resposta para isso, estrangeirinha — falou, em tom implacável — O coronel não teve complacência quando comandou o ataque dos spahis contra meu povo. Ele devia saber que nosso acampamento era pacífico, mas só estava interessado em represálias, e, para esse tipo de gente, todos os árabes são iguais. O povo de Beni-Haran não teve nada a ver com a matança dos colonizadores franceses em Abbís-Aba. Porém, seu avô queria apenas se vin­gar, encharcando as areias de sangue árabe, sem se importar se era sangue de homens, mulheres e crianças inocentes. Na­quele dia, morreram cinquenta e seis pessoas do meu povo, inclusive minha mãe. Portanto, minha cara srta. Ronay vai demorar um bocado até que volte è proteção de seu querido avô. Ele vai saber quanto dói chorar a perda de alguém.

Nesse momento, um grito de mulher interrompeu brusca­mente a fala do sheik. Khasim se ergueu num gesto rápido, e Diane logo percebeu que a mulher que gritara havia sido a que brincava com o filho ali perto. A criança estava com o rosto congestionado, como se estivesse asfixiada ou engasgada. Assim que o sheik chegou onde estava o menino, levantou-o do chão e sacudiu-o vigorosamente. A criança tossiu e cuspiu o caroço de tâmara que tinha se alojado em sua garganta. Khasim acalmou o garoto, afagando-lhe a cabeça, e devolveu-o à mãe, com um sorriso tão cativante que Diane não pôde deixar de admirá-lo. A mulher abraçou a criança, depois olhou para Diane, apontou para ela e desandou a falar em sua língua nativa. O sorriso desapareceu do rosto do sheik, e ele tapou a boca da mulher, sob o véu, impedindo-a de continuar. Ficou sério e falou com severidade, enquanto Diane observava a cena e imaginava o que fizera aquela mulher assumir uma atitude de acusação tão evidente.

Mãe e filho se afastaram, entrando numa tenda próxima, e Diane ficou tensa, enquanto Khasim voltava para a mesa.

Ele parou perto dela, e Diane fitou-o, ainda trêmula do susto de ter visto a criança quase morrer asfixiada.

— O que foi que a mulher disse de mim? — perguntou. — Falou que você ficou olhando para o filho dela e que foram seus olhos azuis que fizeram o menino se engasgar. —Oh... Não! — Ela pôs a mão no rosto. — Que coisa desagradável!

— O povo do deserto é muito supersticioso. — Ele deu de ombros, como se aquilo fosse uma coisa naturalmente aceitável. — Olhos azuis estão relacionados com feitiçaria, e seus olhos, estrangeirinha, são azuis como safira!

— Que absurdo...

— O quê? Eu comparar seus olhos com safiras?

— Não... — Diane meneou a cabeça. — Essa mulher acreditar que eu tenha causado o acidente só por ter admirado a criança!

— Ela estava nervosa e precisava culpar alguém. Natural­mente, você tinha de ser o alvo, é uma estranha. Mas logo se acostumarão com sua pele clara, seus cabelos dourados e os olhos azuis. —Ele sorriu, mostrando os dentes alvos. — Quando amar um homem, esse tom de azul ficará mais doce.

O coração dela quase parou ao ouvir as últimas palavras. Apai­xonar-se por ele seria a coisa mais indigna que poderia lhe acon­tecer! E, no entanto, sabia que era possível. E sabido que muitas mulheres que são violentadas acabam se apaixonando pelo homem que as ultrajou, como se houvesse nelas um desejo primitivo e recôndito de ser arrastadas à força para uma experiência que desafia as convenções. Mas Diane recusava-se a crer que isso pudesse acontecer com ela. Não, nunca! De jeito algum!

— Você me inspira desprezo — disse ela, sem se importar com quem pudesse ouvir. — Ainda imagina que eu possa amá-lo, sheik Khasim ?! Tenho muito orgulho e bom gosto para me apaixonar por um homem como você!

— Por um árabe, você quer dizer? — As palavras saíram mansas e sem agressividade.

— É isso mesmo — respondeu, com ar de desafio. — Você é tão bárbaro e selvagem quanto o deserto onde vive... Esse verniz de educação e o fato de saber línguas estrangeiras não fazem de você um homem civilizado!

— Justamente, Diane.

Ela quase perdeu o fôlego. Sentiu uma pontada no peito com a reação dele. Olhou, desesperada, ao redor e viram apenas o povo estranho, as tendas escuras do douar e, além, a brilho dourado da infinita extensão de areia. Sentiu-se mais do que nunca uma prisioneira e correu de volta para a tenda onde estava alojada. Rapidamente, o sheik se aproximou dela, sorrindo de um modo diferente. Estendeu o braço, enlaçou-a pela cintura e ergueu-a como se não pesasse mais do que uma criança. Entrou na tenda carregando-a e, lá dentro, ficou com ela nos braços por alguns instantes, antes de colocá-la na almofada do chão.

— E assim que tem de ser... — disse ele.

— O grande senhor exige seus direitos! — exclamou, sar­cástica, olhando para Khasim, que ficara em pé, diante dela.

— É isso mesmo, estrangeírinha. O direito do amo de fazer o que quiser com a mulher que está em seu poder. Ainda bem que sabe disso!

— Basta olhar para você para saber!

Diane enfrentou com coragem o olhar dele, embora estivesse tremendo por dentro. Ele era o cádi... O senhor, e poderia fazer o que quisesse com ela. Se lhe implorasse piedade, o sheik sentiria mais prazer em humilhá-la. Se chorasse, ele diria que a paixão precisa se alimentar das lágrimas de uma mulher. De repente, ela viu uma expressão de ódio surgir no rosto dele. — E melhor passar mais loção na sua pele... — disse ele sucintamente — do contrário, vai ficar toda marcada. Depois, pode se deitar no divã e descansar. Leia um livro se quiser... Tenho coisas mais importantes para fazer do que dar atenção para uma mulher.

Ele deu meia-volta e saiu, fechando a cortina da entrada. Diane ficou sozinha, ouvindo-o assobiar, enquanto se afastava, uma melodia conhecida, chamada: O que me detém neste instante?

Ela cobriu o rosto com as mãos, sufocando um grito de de­sespero. Tentava não pensar nele, mas o sheik parecia ter to­mado conta de sua mente. Era inútil, não havia escapatória... Começou a socar a almofada, como se fosse ele, xingando bai­xinho e repetindo freneticamente que o odiava.

Mas Diane continuava a se enxergar nos braços fortes e morenos, subjugada, sendo obrigada a se render aos beijos cruéis e a outras intimidades...

Era preciso conseguir um cavalo quanto antes. Deus do céu! Como pudera fazer tamanha idiotice de cavalgar sozinha pelo deserto? Porém, como poderia imaginar o que o destino lhe reservava? Nem lhe passara pela cabeça que pudesse existir um homem como Khasim Ben Haran.

Ela, que nunca havia sido nem beijada até então, estava naquela tenda impregnada da masculinidade do proprietário, sentindo o cheiro forte de seu fumo. Além disso, escovara os cabelos com a escova dele e até dormira na sua cama!

Tudo lhe parecia muito estranho, e a sensação era de que estava sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo. Lá fora, o sol implacável fustigava as tendas escuras. A maioria das pessoas tinha se recolhido àquela hora da tarde em que o calor era quase insuportável. E pensar que ela já passara um dia inteiro exposto ao sol, nas areias escaldantes! Na próxima vez em que fosse enfrentar o deserto, precisaria levar bastante água, um pano para cobrir a cabeça e arranjar um cavalo veloz. Com tudo isso e um pouco de sorte, talvez conseguisse voltar sã e salva à Bretanha. Aí, então, poderia até achar interessante se lembrar do cádi e do acampamento... Mas, por enquanto, pensar nele era assustador demais. O deserto parecia menos cruel do que o sheik de Benin Haran.

 

Diane acordou, sobressaltada, e reconheceu logo o cheiro de chá de menta. Esfregou os olhos, pestanejou e firmou a vista, esperando ver Achmed com a bandeja de chá, entretanto, para seu espanto, viu uma moça árabe que não usava véu.

A garota estava inclinada sobre Diane, analisando-a detalhadamente. Era de uma beleza selvagem. As sobrancelhas arquea­das e espessas ressaltavam os olhos grandes, castanhos e pro­fundos. Os cabelos negros estavam trançados e presos com rede, e alguns fios soltos emolduravam as maças salientes de seu rosto. O nariz era fino e bem-feito, e os lábios, vermelhos e carnudos. No pescoço, ela usava uma corrente de ouro com um pingente de meia-lua. As pálpebras estavam sombreadas com um pó escuro, usado pelas orientais, e Diane não pôde deixar de notar que isso tornava os olhos da moça mais profundos e sedutores. Subitamente, a garota sorriu, mas não amistosamente. — Então você é a estrangeira que meu amo trouxe para a tenda dele! — disse em francês, com forte sotaque. — Pensei que fosse encontrar uma mulher de beleza arrebatadora, pelo menos isso explicaria o interesse do sheik'. Ele nunca se inte­ressou por mulheres da sua raça, com essa pele branca feito leite. Porém, você não é nem bonita! Seus cabelos parecem de homem, e sua pele está descascando.

A garota deu um passo para trás, colocou as mãos nos qua­dris, ficou olhando para o divã e caiu na risada, caçoando de Diane. Os dentes dela eram alvos e perfeitos, contrastando com a pele cor de mel. Diane não pôde deixar de admirá-la. Ela já ouvira falar que as jovens árabes eram muito bonitas, e essa realmente fazia jus ao elogio. Só não podia entender como alguém com toda aquela beleza pudesse se sentir insegura a ponto de ter ciúme de outra mulher.

Diane sentou-se no divã e passou as mãos pelos cabelos, ciente de que estava com uma aparência horrorosa. O bule de chá estava na mesinha ao lado, junto com algumas xícaras e um prato com bolinhos de ameixa.

— Isso é para mim? — perguntou Diane, apontando para a bandeja, estranhamente nervosa diante da outra garota.

— Sim. Foi Achmed quem trouxe, não eu... Não sou uma serva.

— Ah, é claro... — Diane inclinou-se para frente para se servir. — Aceita tomar chá comigo?

— Foi meu amo Khasim quem pediu o chá... Uma mulher não pode se servir enquanto ele não chegar.

— Mas o chá esfriará! — Diane ergueu o bule e encheu a xícara com o líquido perfumado. — Por que não toma também para me fazer companhia? O sheik Khasim não pode pretender que eu me porte como uma mulher árabe... que espere pacien­temente até que ele se digne a aparecer!

— No entanto, sou árabe e vou esperar.

A garota sentou-se com graça nas almofadas, cruzando as pernas como uma odalisca. Diane ficou imaginando que ela deveria ser uma dançarina, devido ao corpo esguio e à forma graciosa de se movimentar. E, com aquela demonstração de ciúme, ficara claro que devia ser encarregada de divertir o sheik... talvez não apenas dançando, pensou, com cinismo.

Diane bebeu um gole do chá e apreciou o aroma e o sabor. Estava com sede. Afinal, ainda não se acostumara com o ar seco do deserto.

— Coma um bolinho, pelo menos — disse, tentando distrair a atenção da outra que não parava de examiná-la abertamente, com curiosidade.

— É falta de educação a mulher comer antes do homem — a jovem árabe respondeu, com suavidade, mantendo as mãos cruzadas.

Diane concluiu que ela tinha o jeito e as maneiras de uma garota que fora treinado especialmente para agradar ao homem. Havia algo nela que fazia com que se parecesse mais com uma boneca do que com um ser humano. Talvez a falta de esponta­neidade. Era incrivelmente bela e, ao mesmo tempo, sem vida.

Diane serviu-se de mais chá e começou a ficar nervosa com a demora de Khasim. Queria que ele chegasse logo. Intuitivamente, percebeu que a moça era como uma gueixa e devia estar se sentindo ameaçada com a presença de uma mulher estranha na tenda do amo que se sentia honrada em servir. -— Será que é da cor de sua pele que ele gosta? — perguntou de repente. — Yasmina me disse que sua pele é branca como leite, onde o sol não queimou.

— Disse, é?! — Diane não pôde deixar de achar graça. — Achei Yasmina muito boazinha.

— De que adianta isso? — a outra indagou, com desprezo.

— Ela se casará com um homem comum e será apenas a mulher que cuida da casa dele.

— Talvez Yasmina prefira essa vida, em vez da honra, meio dúbia, de ser a kadine de um homem rico. Afinal, uma kadine fica com o homem só enquanto ele a achar interessante. Se ele perder o interesse, simplesmente a ignora ou a passa para outro homem, não é assim?

O rosto moreno assumiu uma expressão quase selvagem, e os olhos brilhavam.

— Uma kadine pode conseguir tudo o que quiser e ficar muito bem de vida se for bonita e esperta, se tiver à habilidade de saber agradar sempre e souber destruir suas rivais!

As palavras ficaram pesando no ar entre as duas garotas. Uma loira, a outra morena, uma ansiosa para fugir dos braços do sheik, e a outra ansiosa para continuar nesses braços.

Diane sentia o coração bater, descompassado. Estava pouco à vontade. Estendeu a mão e pegou um bolinho, disfarçando o nervosismo. Precisava se mostrar forte!

— Qual é seu nome?

— Hiriz... quer dizer "aquela que encanta", em árabe. — Ela analisou mais uma vez a figura de Diane. — Não entendo como meu amo foi se encantar com você. Parece um rapaz!

— Antes fosse! Pelo menos estaria fora de perigo — Diane falou secamente.

Em seguida, ficou observando o jeito da moça e, de repente, percebeu que, ali no douar, Hiriz era a única pessoa que poderia ajudá-la a rugir, pois gostaria de vê-la longe. Ela era bem diferente de Yasmina, não era tímida nem dominada pelo ir­mão. Era, isso sim, dominada por uma paixão em nome da qual faria qualquer coisa.

Diane inclinou-se para frente, fitando Hiriz nos olhos, com firmeza. Lembrou-se do que o sheik dissera sobre a cor de seus olhos e sobre a superstição do povo.

— Hiriz, quero fugir do sheik Khasim. Será que pode me ajudar a fazer isso? Será que conseguem me arranjar um cavalo e algumas coisinhas de que precisarei para atravessar o de­serto? Se eu sair desse acampamento, você voltará a ser o único interesse do sheik, não é mesmo? Enquanto eu estiver aqui, serei uma rival, e você sabe disso.

Hiriz ficou pasma, observando-a de olhos arregalados, sem ação, por alguns instantes. Depois, olhou de relance para a entrada da tenda que estava aberta.

— Quer mesmo ir embora do douaríl — perguntou, incré­dula, em voz baixa. — Não deseja ficar com meu amo Khasim?

— Quero ir embora, voltar para casa, para minha família... É claro que só tem a lucrar se me ajudar, Hiriz.

— Não vou lucrar nada se o sheik Khasim descobrir que a ajudei a fugir dele. — Ela passou de leve o dedo pela sobran­celha, e as pulseiras tilintaram em seu braço.

Diane sentiu o perfume que emanava dela, um misto de essência de rosa e de almíscar.

— Ele ficaria furioso e poderia até torcer o meu pescoço, afinal, sou apenas uma mulher... — a jovem árabe acrescentou. — Será que você vale o risco?

—  Se eu ficar aqui — provocou-a Diane —, ele a esquecerá enquanto se diverte comigo. Se você o ama, Hiriz, não vai suportar saber que há outra nos braços dele, sendo beijada e acariciada.

Hiriz respirou fundo e lançou um olhar cético, abrangendo Diane da cabeça aos pés.

— Sei que você não me acha bonita — continuou Diane —-, mas, se o sheik não me achasse atraente, não iria me manter aqui, na tenda dele, não é? Talvez ele goste da minha pele clara e dos meus cabelos... Quem sabe já está enjoado de pele morena e cabelos escuros, sem falar na submissão das mulheres que se entregam a ele só porque é o poderoso cádi de Beni-Haran. Ele deve estar com vontade de variar um pouco. Porque comigo é diferente, Hiriz, não sou submissa, ele tem de me subjugar e gosta disso.

— E você não gosta de ser subjugada por ele?

— É claro que não! Não sou desse tipo de mulher que se oferece a um homem só porque ele é um pouco importante.

Estou pouco me importando com o fato de ele ser o todo-poderoso neste pedaço de deserto!

— Mas não é só isso, o sheik é um homem e tanto! E alto, forte, sabe cavalgar como ninguém, atira com precisão, luta com qualquer homem e nunca perde... Sabe caçar melhor do que todos e tornou-se o líder de Beni-Haran aos vinte anos, quando o pai morreu de tifo. Outros homens mais velhos quiseram assumir a liderança, mas o amo Khasim não cedeu e conseguiu se fazer respeitar como chefe. Ele tem sabedoria e firmeza de caráter, por isso uma mulher se sente honrada quando é desejada por ele!

— No meu país, nenhum homem escolhe uma mulher e toma posse dela, como se fosse um pêssego numa árvore — explicou Diane.  Sei que é costume entre seu povo, mas com o meu é diferente. As mulheres são mais independentes, e os homens não podem dominá-las ou se apossar delas, sem que tenham consentido. É contra a lei!

—.Mesmo assim... — Sorriu Hiriz, com malícia. — Acho que é muito mais excitante quando o homem não respeita as leis. Aqui, é proibido o homem olhar com paixão para a esposa, a irmã ou a filha de outro homem, porém isso acontece, e há muitos encontros clandestinos. A paixão no deserto é forte, ardente e impetuosa. Todos em Beni-Haran sabem que meu amo Khasim não pune os amantes com a mesma severidade dos outros chefes. É proibido açoitar, a não ser no caso de violência contra menores ou de pessoas que maltratam animais. O homem que comete adultério é condenado a dar um carneiro, uma cabra e um cavalo ao marido da mulher em questão.

— E que punição recebe a mulher que prevarica?

— O sheik fala com ela e a avisa de que, se tornar a errar, será expulsa da tribo. Isso é o pior que pode acontecer a qualquer um de nós. Beni-Haran é uma das tribos mais antigas e mais nobres da Arábia. Estabeleceu-se no deserto quando os três reis magos seguiram a estrela indicando Belém. E uma honra per­tencer a essa tribo. Vencemos vários inimigos e, em uma das batalhas, fizemos parte do Exército comandado por Lawrence da Arábia. — De repente, Hiriz inclinou-se para Diane e disse, em tom confidencial: — Sabe, há um certo mistério em torno da mãe de meu amo Khasim. Dizem que ela veio de um país distante, chamado Eússia. O pai dele encontrou-a no deserto de Dismashk, onde ela estava sendo vendida como escrava. Ela se chamava Barishnaya... No acampamento, há um quadro dela e de Mor-gana, irmã do sheik, que é muito parecida com a mãe.

Diane estava curiosa, mas não queria se afastar de seu objetivo principal, que era conquistar Hiriz como aliada para sua fuga de Beni-Haran. Se ela fosse apenas uma hóspede ali, então seria interessantíssimo ouvir as histórias desse povo que parecia viver nos tempos bíblicos.

— Hiriz, tudo o que tem a fazer é me arranjar um cavalo, um cantil com água e roupa apropriada. Tenho certeza de que não vai querer dividir o sheik comigo... E é isso que vai acontecer se eu não conseguir escapar dentro de vinte e quatro horas, pelo menos. Por enquanto, ele ainda não fez nada porque estou muito queimada. Preciso fugir antes que ele... — Diane mordeu o lábio — não sou como você, Hiriz. Não estou apaixonada por ele!

— Você tem um homem no seu país?

— Tenho meu avô — Diane respondeu candidamente. — Sou tudo o que ele tem. Sem mim, ele vai ficar muito infeliz...

— Não sei se terei coragem de ajudá-la. — Hiriz inclinou a cabeça, parecia uma criança com medo.

— Ajude-me, por favor. O sheik não irá puni-la, você é bonita demais e sabe como lhe agradar. Você é a namorada dele, não é? É assim que se diz no meu país.

— Toco cítara para ele e danço... E o amo assim. Fico sentada em seu colo, olhando o rosto dele e ouvindo-o falar... Logo ele vai ter de escolher uma esposa, e eu daria a vida para ser escolhida!

— Então não vai deixar que eu atrapalhe seus planos — insistiu Diane. — Sabe que posso, não é?

— Você? — Hiriz olhou-a, enciumada. — Meu amo Khasim nunca se casaria com uma estrangeira!

— O pai dele se casou, não foi? — Diane alimentava o ciúme da outra propositalmente.

— Sim, mas a mãe dele era bonita. Tinha cabelos escuros e ondulados e olhos negros com longos cílios. Você não é bonita, não é do tipo que nossos homens gostam! — Hiriz apontou o dedo para ela, tilintando as pulseiras. — Você tem olhos de feiticeira, sua pele descasca e tem corpo de rapaz, parece um pastor de cabras!

— Apesar de tudo isso, estou aqui, na tenda de seu sheik. Ele me deu a cama dele para dormir e disse que vai me levar para o palácio das sete fontes.

— Só se for para varrer o pátio! — Hiriz riu, mas já não estava tão segura. — Acho que posso lhe arranjar um cavalo, estrangeira, e água também. Você deve ter posto feitiço no meu amo Khasim, com esses olhos de feiticeira. Só pode ser por isso que ele a quer.

— E claro que sim! — Diane suspirou, aliviada. — Olhe, preciso de um cavalo veloz e com sela.

— E você sabe o caminho? Para que lado ir? O deserto é muito grande! Já se perdeu uma vez e teria morrido se meu amo não a tivesse encontrado.

— Eu sei...

Diane não queria nem pensar nesse problema. Esperava achar um meio de encontrar o caminho para Dar-Arisi. Talvez encontrasse uma tribo de nômades amistosos que lhe indicasse a direção a seguir. A única coisa que queria no momento era escapar das garras do sheik. Não queria ser usada, humilhada e espezinhada até ele se sentir vingado. Não era por ele ser árabe que queria fugir, e sim porque era movido apenas pelo ódio. Não suportava a idéia de estar nos braços de um homem que odiava o avô que ela tanto amava.

— Você é corajosa, estrangeira! Eu me entregaria a qualquer homem para não ter de enfrentar os perigos do deserto. Acho que tem medo de homens, não é?

— Nunca os temi, até conhecer o sheik. — Diane interrom­peu-se bruscamente, ao perceber a cortina da entrada ser afastada.

Khasim entrou e, enquanto tirava o manto, ficou parado, olhando para as duas alternadamente.

— Meu amo fez boa viagem? — Hiriz indagou, com olhar de veneração.

— Fomos examinar um dos poços — explicou ele, sério. — Estragaram a água, jogando sal no poço, mas já desconfio de quem fez isso. A tribo Ab-Asha tem protestado há muito tempo, dizendo-se dona do poço, porém conheço muitos bem os direitos territoriais de Beni-Haran. Não gostei dessa atitude e já deixei homens de guarda lá. Ninguém deve usar aquela água en­quanto não for purificada. Essa é boa... Sal! A pior coisa que pode haver no deserto é beber água salgada! Mas os Ab-Asha vão pagar por isso! — Ele olhou para a bandeja e perguntou a Diane: — Esse chã ainda está quente?

Diane tocou o bule, constatou que estava morno e negou com um movimento de cabeça.

— Não faz mal. Sirva-me uma xícara, por favor.

— Posso ajudar meu amo a tirar as botas? — Hiriz ques­tionou, com voz sedutora.

Ele deu de ombros e espalhou-se no divã, enquanto a garota ajoelhou-se aos pés dele para descalçá-lo.

— Cuidado com as esporas — ele a avisou. — Não quero que se machuque.

— Meu amo é sempre atencioso com Hiriz. — Ela sorriu, provocante.

Diane observava a cena sem saber se achava graça ou se sentia desprezo pelo modo como ele aceitava a dedicação da moça. Estendeu para ele uma xícara de chá, que bebeu quase num gole só.

— Fui obrigado a experimentar aquela água salgada... Eu gostaria de tomar mais chá, Diane.

Hiriz fitou Diane com um olhar enciumado ao ouvir o sheik pronunciar o nome dela, depois colocou a mão possessivamente no joelho dele. Khasim olhou para a moça, com indulgência. Diane resolveu provocar o ciúme de Hiriz para fazê-la cumprir a promessa o mais depressa possível, por isso atraiu a atenção do sheik.

— O que vai fazer com o homem que salgou a água do poço, sheik Khasim? — Diane indagou, enquanto lhe entregava a segunda xícara de chá. — Sem dúvida, ele vai ser punido pelo crime, não vai?

— Sim. Tomei alguns goles daquela água, portanto ele terá de beber um pouco mais do que eu e depois será mandado de volta para Ab-Asha, sem cantil com água. Isso o ensinará a não brincar com a coisa mais preciosa do deserto.

Diane estendeu o prato com bolinhos de ameixa para que o sheik se servisse. Ela sabia muito bem quão preciosa era a água! Lembrou-se de como Khasim a tratara com gentileza quando a encontrara e ainda não sabia que era uma Ronay.

Enquanto mordia o bolinho, ele lançou um olhar insinuante a Diane, fazendo-a corar. Hiriz fulminou-a com um olhar.

— Meu amo vai querer que ela dance também? O sheik riu e pegou outro bolinho.

— A moça inglesa não tem as mesmas habilidades que você, Hiriz — respondeu ele. — Duvido que ela consiga usar um rubi no umbigo ou mover os quadris ao som dos tambores do deserto, mas ela sabe usar uma arma e cavalga bem.

— Essas são habilidades de um rapaz! — exclamou Hiriz, com desprezo. — Admira-me que meu amo aprecie essas qua­lidades numa mulher, se é que ela é uma mulher!

Ele olhou para Diane com ar divertido enquanto passava a mão pelos ombros de Hiriz.

— O que tem a dizer? — ele perguntou a Diane. — E uma mulher... No verdadeiro sentido da palavra? Quero dizer, não só por possuir um corpo de mulher, embora esguio?

Diane mordeu o lábio, procurando não perder a calma. Não queria se descontrolar diante de Hiriz, e sim deixá-la enciumada.

— Tenho certeza, sheik Khasim, que, com o conhecimento que tem das mulheres, deve saber muito bem se desperto ou não sua virilidade.

— Ah, quer dizer que possui senso de humor?

— Estou começando a recuperá-lo.

— Fico contente em saber. Coragem e humor enfeitam uma mulher tanto quanto um colar de pérolas!

— Pérolas? — Hiriz perscrutou o rosto do sheik. — Pérolas são para noivas!

— É mesmo? — ele indagou, enquanto olhava intensamente para Diane, como se quisesse entender por quê, de repente, ela assumira aquela atitude de flerte com ele. Diane temia que Khasim descobrisse a verdadeira causa.

— No meu país, pérolas simbolizam lágrimas — Diane ex­plicou. — Por isso, muitas noivas evitam usá-las no casamento. — Sorriu para Hiriz. — Espero vê-la dançar. Usa mesmo um rubi no umbigo? Como consegue isso?

— Hiriz dança desde criança, — O sheik parecia se divertir e, dirigindo-se à jovem árabe, prosseguiu: — Hoje à noite, irá dançar para a estrangeira e para mim. Estou precisando mesmo de distração depois do problema com o poço. — Em seguida, com ar de quem havia feito uma descoberta, voltou-se para. Diane e acrescentou, referindo-se a Hiriz: — Ela é graciosa como uma gazela, não é mesmo?

— Meu amo fala com sinceridade? — Hiriz se aproximou mais e ergueu a mão, como se fosse acariciá-lo no rosto, mas ele deteve o gesto, segurando o pulso dela e analisando o es­malte que usava nas unhas.

— Por que usa essas coisas, Hiriz? Parece que está com as mãos sujas de sangue.

— E para ficar bonita...

— Não gosto disso — disse ele, ríspido. — Você já é bonita naturalmente, não precisa ficar se borrando de pintura desse jeito. Acho melhor se pintar menos daqui por diante.

Hiriz fez beicinho, mostrando-se amuada.

— Faço isso para agradar a meu amo. Vivo para você e faço tudo o que lhe dá prazer!

A garota inclinou-se e encostou o rosto na palma da mão dele. Khasim fez uma rápida carícia, num gesto ausente, como se ela fosse um gatinho pedindo atenção. Ao mesmo tempo, olhou para Diane, que observava a cena em silêncio. Nesse momento, seus olhares se encontraram.

— Em que está pensando? Que mistério oculta atrás desses olhos azuis? Será que vou conseguir desvendá-lo?

— Olhos azuis não possuem mistério algum. Olhos escuros é que são misteriosos e escondem segredos.

— O dia e a noite... — ele murmurou. — E como o céu. Quando a gente olha para aquele azul infinito, não consegue ver as estrelas que a luz esconde é como o mar. Ninguém descobre o que há na profundeza do oceano sem arriscar a própria vida. Tudo o que é azul encerra um certo perigo!

— Sempre ouvi dizer que os árabes podem escrever provér­bios de significados profundos em cada pedra do deserto e que podem também decifrar enigmas nas areias.

— Em parte, isso é verdade, Diane. Quer que eu mande chamar nosso adivinho para que leia seu destino na areia?

— Pensei que você fosse dono do meu destino... — replicou ela, irônica.

— Ah... Agora peguei você. — Ele a fitou, com um brilho tão fascinante no olhar que Diane não pôde resistir. — Despertei sua curiosidade feminina, não foi? Aposto como quer saber o que a vida lhe reserva e que está escrito em enigmas na areia!

— Isso seria tolice, sheik Khasim. Como se eu não soubesse o que me espera! Já deixou bem claro, sem precisar ter lido na areia!

— Mesmo assim... — Ele se levantou bruscamente, fazendo com que Hiriz caísse nas almofadas do chão ao lado do divã.

Caminhou até a entrada da tenda, abriu a cortina e chamou Achmed. Assim que ele apareceu, o sheik disse-lhe alguma coisa em árabe. Depois, virou-se para dentro e ficou olhando as duas moças, com um sorriso sinistro, como se avaliasse o contraste entre elas. Aproximou-se da mesinha ao lado do diva, pegou um charuto na caixinha de madeira e acendeu-o. Hiriz continuava reclinada nas almofadas e emburrada.

— Eu queria que lessem o meu destino — ela falou, olhando para o sheik,

— Seu destino está escrito em seu rosto, doçura.

— Meu rosto agrada a meu amo? — Ela se ajoelhou e abraçou-lhe a perna esquerda, encostando a face no joelho dele.

Khasim apenas aceitou com indulgência o gesto, e Diane ob­servou a cena, com desdém. Como Hiriz podia ser tão servil assim e deixar tão evidente que adorava cada pedacinho dele? Na ver­dade, Diane não sabia o que era sentir-se sexualmente atraída por um homem, desejá-lo com tanto ardor que nada mais impor­tava a não ser pertencer fisicamente a ele. Para Diane, a atitude de Hiriz era degradante, e desprezava quem se rebaixava tanto... Ela jamais se ajoelharia assim aos pés de um homem.

Diane fitou o sheik com um brilho de orgulho nos olhos azuis e bastou encontrar o olhar dele para saber que Khasim lera seus pensamentos.

— Com o tempo, o ar do deserto vai fazer você ficar menos inibida — o cádi disse. — Ele afeta até os temperamentos mais frios. O gelo, por exemplo, quando exposto ao nosso clima, fatalmente derrete, e é o que vai lhe acontecer por mais que tente resistir. E a força da natureza!

— É assim que gosta de ver uma mulher? Curvada a seus pés, obediente? Será que não fica enjoado de ter as mulheres a seu dispor, obedecendo cegamente ao seu menor gesto?

Ele lançou a Diane um olhar insinuante e se demorou nos lábios dela. Imediatamente, ela adivinhou os pensamentos do sheik. Era preciso fugir dali o quanto antes! Enquanto estivesse aprisionada naquela tenda, estava à mercê dele, e ela sabia muito bem o que Khasim pretendia. Detestava-o pela reação física que provocava em seu corpo. Era uma coisa tão estranha! Não podia lhe demonstrar esse tumulto interior, que acontecia cada vez que ele a olhava daquele jeito.

— Uma coisa é certa, estrangeira: de você, sei que não vou enjoar — ele respondeu.

— Isso é um elogio ou um aviso? — ela perguntou, erguendo o queixo, num gesto de desafio.

— As duas coisas. Você é inteligente o bastante para saber. Seu avô sempre a tratou como se fosse um rapaz, mas eu não a tratarei assim. Ele a ensinou a não demonstrar medo por mais apavorada que estivesse... Deve ter sido uma decepção para ele você não ter nascido homem.

— Antes tivesse! Se eu fosse homem, não estaria aqui agora, não é?

— Não, nas mesmas circunstâncias, é claro! — Ele riu. Nesse momento, um ruído na entrada da tenda chamou a atenção do sheik, e ele se virou para ver entrar um velho enrugado, que usava turbante verde, túnica e se apoiava num bastão talhado em forma de serpente. Ele se curvou diante do sheik, que respondeu com uma leve inclinação de cabeça e imediatamente puxou Hiriz, obrigando-a a se levantar,

— Vá, minha menina. — Khasim conduziu-a para fora da tenda. — Descanse um pouco, assim você dançará melhor hoje à noite.

— Quero ficar para ouvir o que o adivinho vai ler na areia sobre o destino da estrangeira- — Hiriz parou na entrada e olhou para ele, suplicante, —Não quero ser tratada como uma criança...

— Mas você é uma criança — ele replicou, empurrando-a de leve para fora. — Agora, vá embora e tire um pouco dessa pintura do rosto e das unhas.

Ele fechou a cortina da porta e virou-se para o adivinho.

— Só para a gente se distrair um pouco, gostaria que lesse nos grãos de areia o destino da estrangeira, Batouch. Ela está curiosa de saber o que o deserto lhe reserva.

Diane entendeu a ironia na voz dele e lhe lançou um olhar rancoroso. Enquanto isso, o adivinho já estava tirando do bolso da túnica uma bolsinha de couro. Aproximou-se da mesa ao lado do divã e despejou sobre ela o conteúdo da bolsinha, espalhando-o com o bastão em forma de serpente. Depois, virou-se para Diane e pediu, em francês, que ela passasse a mão na areia, espalhando-a como quisesse. Ela hesitou um pouco, mas, como o olhar dele era insistente, acabou dando de ombros e obedecendo. Diane percebeu que a areia tinha várias cores diferentes, como se fosse provinda de diferentes regiões do deserto. Uma porção era quase preta, outras rosadas e alaranjadas, em contraste com tons amarronzados. Era macia como veludo e lhe causou uma estranha sensação. O velho de turbante não tirava os olhos dela nem do sheik. Apesar de achar aquilo tudo uma besteira, ela sentia o coração bater, descompassado. Continuou traçando sulcos na areia com a ponta dos dedos, até que, de repente, a areia pareceu queimarem-lhe os dedos. Imediatamente, retirou a mão, refreando um impulso de mergulhá-la na tigelinha com água que viera acompanhando os bolinhos, segundo o costume árabe. Batouch fez um gesto com a cabeça, como se já soubesse o que iria acontecer, então se inclinou sobre a mesa e estudou atentamente os traços que Diane deixara. Depois, começou a falar baixinho, em árabe, e ela não podia entender nada. Diane fitou o sheik, que ouvia com atenção e seriedade o que o adivinho dizia. De repente, o velho apontou para ela, fazendo com que Diane estremecesse, nervosa. Começou a falar em árabe com ela, que olhou, aflita, para Khasim, esperando que ele tradu­zisse. Mas o sheik observava, compenetrado, o velho e, nesse momento, fez uma pergunta ao adivinho, que apenas apontou a porção escura da areia que ficara amontoada como se fosse uma pequena colina. Khasim balançou a cabeça, como se qui­sesse negar a afirmação do adivinho.

— O que ele disse? — perguntou Diane, com um estranho pressentimento. — Mesmo que seja besteira, quero saber...

O sheik deu de ombros, antes de responder;

— Como você já disse, ele falou uma porção de besteiras e nada mais. Disse que um estrangeiro moreno entrou na sua vida, mas isso nós dois já sabemos, não é?

— Foi isso mesmo? — Diane não acreditava. Subitamente, lembrou-se de que o velho falara em francês com ela quando entrara ali e perguntou a ele o que tinha visto na areia que o deixara tão preocupado. O adivinho a observou, e Diane percebeu que ele entendera a pergunta... Já ia lhe responder, quando o sheik o interrompeu com uma única pa­lavra, e Diane percebeu que Khasim havia ordenado silêncio.

— Mas como você se atreve? — perguntou, furiosa. — Deixe que ele me responda, senão vou pensar que está querendo me esconder algo. Para que esse mistério, afinal? Foi você mesmo quem inventou de chamar o adivinho para que lesse o meu destino! Acho que tenho o direito de saber tudo o que ele viu nessa areia!

— Pois então fique sabendo! Ele viu um túmulo! Diane sentiu um aperto no coração.

— De quem?

— De quem acha que pode ser? — Ele olhou um instante para os olhos assustados dela, depois sorriu, com cinismo. — Meu, é claro.

— Seu? Não acredito! Como é possível isso, se Batouch es­tava lendo a minha sorte?

— Você está aqui comigo, não está? No meu acampamento, na minha tenda. Os nossos destinos se cruzaram, portanto é compreensível que Batouch tenha visto parte desse entrelaça­mento. É fácil de entender, não é?

— Vou perguntar a Batouch.

Ela fez a pergunta em francês, mas novamente o sheik o proibiu de responder.

— Contente-se com o que eu lhe disse — falou ele, com arrogância, depois se inclinou para frente e desmanchou o traçado que Diane fizera na areia.

Em seguida, virou-se para o velho e conversou com ele num tom mais gentil. O adivinho inclinou a cabeça e cuidadosamente guardou a areia na bolsinha de couro. Antes que saísse, o sheik deu-lhe algumas moedas. O velho agradeceu e saiu, não sem antes olhar mais uma vez para Diane.

Ela cravou os olhos em Khasim. Era impossível imaginar que alguém tão forte e com tanta vitalidade fosse morrer... Era algo que deveria deixá-la contente, entretanto um arrepio percorreu-lhe a espinha só de pensar nisso.

— Não fique assim. — Ele se aproximou e colocou as mãos cálidas nos ombros dela. — Essa história de adivinhação era uma brincadeira... Eu só queria que você se divertisse um pouco...

— Ainda bem que achou graça.

Ela tentou se libertar das mãos fortes, mas ele a segurou firme e, sem o menor esforço, fez com que Diane se erguesse, ficando bem perto dele. Então a enlaçou pela cintura com o braço esquerdo e com a outra mão ergueu a cabeça dela, forçando-a a fitá-lo nos olhos. Olhos escuros, brilhantes e sensuais, de cílios espessos. Ficou observando-a, até que o coração de Diane começou a bater mais forte. Ela quis fugir, mas isso apenas o provocou ainda mais. Num gesto rápido, o sheik a imobilizou e a pegou no colo, conduzindo-a até o divã, onde a colocou, como se fosse uma boneca. Ele riu baixinho, com o rosto bem perto do dela.

— Viu como é fácil, benzinho? O que é uma mulher diante de um homem?!

— Um homem? — ela repetiu desafiadoramente, apesar de seus lábios estarem trêmulos.

Diane estava apavorada, mas era orgulhosa demais para deixar que ele percebesse isso. Se Khasim não estivesse segu­rando suas mãos, ela o teria arranhado, mas ele a imobilizara apenas com uma mão. Com a outra, acariciava sua face e traçava o contorno da boca.

— Está bem, então... — Diane murmurou. — Se vai me vio­lentar, por que não o faz logo e acaba de uma vez com essa agonia? — Está tão ávida assim? — ele indagou, olhando-a de um jeito que a fez sentir-se nua.

— Sabe muito bem o que estou sentindo. Detesto você. Não suporto nem que toque em mim, seu bárbaro!

— Então acho que vou tocá-la um pouco mais, senti-la mais de perto — o skeik zombou, deslizando a mão pelo ombro de Diane até chegar perto dos seios que arfavam. — O pudor das virgens é sempre excitante...

— Você violentou muitas mulheres?

Ela tentava se manter afastada. Parecia não existir mais nada no mundo a não ser aquela tenda azul e a pele dourada daquele árabe, emanando um calor que era como se o corpo dele estivesse encostado no seu.

— Cuidado com essa língua, Diane, ou vou ter de fazer algo com ela!

Khasim chegou mais perto e encostou-se nela de leve, de um jeito provocante. O olhar dele estava diferente, e a respiração ofegante perturbava Diane. Ela não era tão inocente assim, a ponto de não saber o que estava acontecendo com ele...

— Você não se portaria assim com uma moça árabe! — protestou ela.

— É claro que não! — Ele riu. — Com você é diferente, minha querida. Quando quero algo, não permito que escrúpulos sem sentido atrapalhem.

— Sem sentido?! Está planejando arruinar minha vida e faia dessa maneira? Você não tem um pingo de compaixão... É do tipo que bate e exige que a mulher beije a mão que a espancou!

— Não tenho a menor vontade de bater em você, amorzinho! — Acariciando de leve o pescoço dela, continuou: — Nesse mo­mento, a única coisa que desejo é acariciar sua pele. Eu já havia esquecido o que é ter nos braços uma mulher pura, imaculada como a neve. Pode resistir, estrangeira, é mais excitante ainda... Quero variar um pouco, estou cansado de obediência servil.

— Seu monstro! Pervertido... Árabe desprezível!

— Continue... Desabafe. Assim, com o sangue quente, vai doer menos.

— Doer? — Ela arregalou os olhos, alarmada, ao perceber a que ele se referia.

— Sim, minha querida, todo prazer tem um preço...

— E... Acha que vou ter prazer com você?

— E isso tem alguma importância? — o sheik questionou, bem perto dos lábios de Diane. — Desde que eu consiga o que quero...

Ela lutou desesperada mente para afastá-lo, mas foi em vão. Ele parecia ter uma força invencível. Murmurando alguma coi­sa em árabe, Khasim estreitou o abraço e, afinal, apossou-se dos lábios dela. O calor daquela boca incendiou Diane da cabeça aos pés. O tempo parou, e ela se sentiu consumir na chama que a envolveu... O beijo lhe despertou emoções e sensações que nunca imaginara existir.

Sentiu as mãos másculas desnudando-a e depois os lábios percorrendo sua pele nua... Ele estava invadindo sua intimi­dade, tocando-a como ninguém jamais o fizera.

Ela se contorcia sobre as almofadas, socava-o, arranhava-o e gemia, porém Khasim ignorava aquilo tudo.

Deu-se conta de que estava perdida... Ele a dominava fa­cilmente. Era como se estivesse afundando nas areias quentes do deserto. Aquela boca tinha um estranho sabor, tal como o perfume que emanava da pele dourada do skeik. Entretanto, continuou a se debater até ficar ofegante. Ele riu baixinho, perto da orelha dela.

— Agora chega! — Khasim exclamou, afastando-se. Ergueu-se um pouco, apoiou-se no cotovelo e, de olhos semicerrados, examinou-a. Diane ainda estava com os lábios en­treabertos, os cabelos espalhados e uma das mãos segurava com força uma mecha de cabelos dele.

— Não precisa me escalpelar... — Ela soltou seus cabelos e arregalou os olhos. O rosto dele ainda estava bem perto do seu. — Ah! O prazer de beijar lábios que nunca foram beijados! Diane ainda sentia o calor dos beijos do sheik. Odiou o fas­cínio que ele exercia sobre ela e o contato com o corpo dele... Bruscamente, Khasim se afastou e ergueu-se, ajeitando os ca­belos com uma das mãos.

— Arrume seu vestido — ordenou ele, virando-se de costas e pegando um charuto.

Ela obedeceu, trêmula. Olhou para as costas dele e teve vontade de fincar uma faca bem no meio delas.

— Odeio seu atrevimento! — ela exclamou, furiosa.

— Sem dúvida. — Ele deu de ombros e virou-se de frente. — É uma reação natural, mas com o tempo vai mudar. Dê graças a Deus porque a estou tratando com o mesmo cuidado com que trato uma potranca nova!

— Ora, obrigada! — Ela ajeitou os cabelos. — Nunca fui comparada a um cavalo!

— Sinta-se lisonjeada, estrangeira. Para um árabe, o cavalo é a criação máxima de Alá. Bonito, elegante, corajoso. Não há prazer maior do que cavalgar pelo deserto numa boa montaria.

— Nem mesmo os que você desfruta no seu harém? — Diane perguntou, com desprezo.

— Nem mesmo esses. — Riu. — Por acaso, está achando que seus encantos me seduziram?

— Não. Sei que fez isso só pelo prazer de me humilhar. E isso o que deseja, não é?

— Justamente!

Ele olhou mais uma vez para ela, inclinou levemente a cabeça e saiu da tenda. A fumaça do seu charuto ficou no ar, e a marca dos seus beijos ficou nos lábios dela. Diane suspirou, e um arrepio percorreu seu corpo. Precisava fugir logo.,. Hiriz tinha de ajudá-la! Diane acreditava que a garota teria coragem de fazer isso. Ela não gostara nem um pouco quando o sheik a mandara sair da tenda. Ficara com ciúme. Diane pensou de novo no estranho episódio com o adivinho, mas logo sua mente foi invadida outra vez pela preocupação com o perigo que corria aprisionada ali.

Não suportava a idéia de pertencer a um homem que só queria possuí-la por vingança! Encolheu-se no divã para se proteger. Ela não suportaria ser um objeto nas mãos desse homem, Tomara que Hiriz a ajudasse! Precisava escapar dali antes que o sheik fosse além dos beijos e das carícias... Aqueles lábios haviam queimado sua carne e deixado cicatrizes... E o que acontecera essa noite fora apenas um ensaio... Um ensaio que abalara o mais íntimo do seu ser.

 

A moça árabe dançava a luz bruxuleante das fogueiras do acampamento. De um cordão en­feitado de pedras, preso aos seus quadris, pendiam véus que esvoaçavam, seguindo os movimentos cadenciados que ela fazia. As costas e o ventre estavam descobertos, e a pedra presa no umbigo cintilava conforme os movimentos. Os braços estavam enfeitados com braceletes e os tornozelos com pequenos guizos que ela fazia soar, acompanhando o ritmo sensual da música. De repente, a melodia parou, e a dançarina continuou a movimentar o corpo só ao som dos tambores. Aproximou-se do tapete onde o sheik estava sentado, ao lado de Diane, e cur­vou-se diante dele, sempre movimentando os quadris e o ventre cadenciadamente. Ele se inclinou para frente e colocou uma corrente de ouro no pescoço da moça. Hiriz jogou os cabelos para trás e olhou firme para Khasim, Os olhos escuros e enor­mes pareciam suplicar algo, mas ele apenas deu uma risada lacônica e continuou a comer.

Quando Diane se deitou para dormir, ainda ouvia o ritmo compassado da música. Pensou até que nem fosse conseguir adormecer, porém não foi o que aconteceu.

Momentos mais tarde, acordou, sobressaltada, sentindo que alguém a sacudia de leve. Sentou-se, atordoada, e viu uma figura ao lado da cama.

— Sou eu... Hiriz — murmurou uma voz ao ouvido de Diane.

— Trouxe um cavalo, está aí fora, e aqui está à roupa para você usar no deserto.

— Mas ainda é noite... — Sonolenta, Diane saiu da cama.

— Onde está o sheik — perguntou, enquanto colocava a roupa.

— Está dormindo. Depressa. Não quero que ele acorde e me encontre aqui... Peguei um dos melhores cavalos dele, e está selado...

Diane não pôde deixar de imaginar Khasim dormindo na cama de Hiriz, depois de ter desfrutado o prazer da companhia da jovem.

— Não sei como lhe agradecer. Sei que está se arriscando, e eu... Sou-lhe imensamente grata.

— Se você conseguir fugir antes que ele descubra, então estarei recompensada. — Hiriz examinou a figura de Diane, vestida com roupa de homem. — Agora, sim, parece mesmo um rapaz. Espero que saiba cavalgar como um homem.

Diane a tranqüilizou quanto a isso.

— Você se lembrou do cantil com água?

— E claro. Está aqui. Agora, vamos.

Hiriz havia cortado com uma faca a parede do fundo da tenda, e, por ali, as duas passaram sorrateiramente. Diane segurou firme as rédeas do cavalo que estava amarrado lá fora e, ignorando a dor do tornozelo machucado, montou com segurança.

Hiriz desamarrou o animal e ficou parada com os cabelos negros soltos sobre os ombros. Diane não pôde deixar de admirá-la.

— Fuja depressa! Espero que não nos encontremos novamente.

— Eu também.

Diane bateu levemente com os calcanhares na barriga do cavalo e, assim que o animal reagiu a seu comando, percebeu que realmente Hiriz arranjara uma das melhores montarias do sheik. A galope, afastou-se rápido das tendas do douan A areia abafava o som das patas.

À medida que o acampamento ia ficando distante, Diane sentia aumentar a euforia, a tal ponto que nem chegava a se preocupar com o que teria de enfrentar depois que o sol nascesse, o dia ficasse abrasador e as areias se estendessem diante dela a perder de vista. Seu objetivo principal, por enquanto, era se afastar o máximo possível do sheik Khasim, pois sabia que ele iria procurá-la assim que notasse sua ausência. Não em consideração a ela, é claro, mas simplesmente para impedi-la de chegar a Dar-Arisi,

Diane não tinha a menor intenção de procurar a polícia e provocar um escândalo, no entanto o sheik poderia pensar que faria isso. Ela só queria telegrafar para o avô, dizendo que estava voltando para casa. Sentir-se segura outra vez na velha casa da Bretanha em companhia do avô era o que mais desejava.

O céu começava a mudar de cor, passando dos tons de lilás para o dourado suave. Uma brisa acariciava o rosto dela, e Diane respirou fundo, como se quisesse fazer uma reserva de ar fresco para quando o sol tornasse quase impossível respirar. Temia o amanhecer, pois sabia que então começaria a sentir sede e o cavalo ficaria mais lento. Olhou ao redor e ficou ima­ginando como alguém poderia amar o deserto. A imensidão era intimidante. Contudo, seu avô dizia amar, e o homem de quem estava fugindo falava do deserto com um amor que jamais demonstraria por nenhuma mulher...

Diane percorreu a paisagem ondulante e dourada que para ela parecia um oceano petrificado, impressionante, aterrador, algo realmente indescritível.

O cavalo continuava o galope elegante, golpeando a areia com seus cascos firmes. Passaram por um agrupamento de rochas, e ela viu de relance um gato selvagem fugindo de um gavião que se preparava para atacá-lo. De vez em quando, via a ossada de algum animal, mas nada de trilhas por onde pas­savam caravanas cruzando o deserto.

Diane sabia que elas eram assinaladas por pedras empilha­das indicando a localização de um oásis ou de uma cidadezinha. Enquanto não encontrasse uma dessas marcas, sabia o quão vulnerável estava, à mercê do deserto e do homem do qual tentava desesperadamente escapar.

Sabia que ele não pouparia esforços para encontrá-la. Kha­sim era como o deserto. A força e o perigo corriam em suas veias. Não iria deixar escapar assim a oportunidade de vin­gança que esperara por tantos anos!

Os olhos dela começaram a doer com a claridade excessiva. O sol fazia a areia brilhar, os grãos pareciam cristais cinti­lando... O calor começava a ficar insuportável. Sentindo a gar­ganta seca, procurou pelo cantil.

Tomou um gole do líquido e imediatamente cuspiu, tossin­do... O gosto era horrível! A água estava misturada com sa­bonete perfumado, para que ela não pudesse bebê-la.

Diane ficou olhando para o cantil, inconformada. Não podia acreditar que alguém pudesse ser tão cruel a ponto de fazer uma coisa dessas, ainda mais uma garota como Hiriz! Ficou chocada e depois sentiu medo. Não sabia quanto tempo levaria até achar um oásis, e a única água que possuía não servia para matar sua sede! Ela se lembrava muito bem da sensação horrível de ter sede no meio do deserto.

Uma onda de raiva a invadiu. Por que Hiriz fizera uma coisa dessas? Isso parecia vingança, mas por quê? Afinal, o sheik passara a noite com ela! Ou será que não? Será que ele não dormira na tenda de Hiriz?

Suspirando, pendurou o cantil na sela. Não poderia usar aquela água para beber, mas poderia usá-la ao menos para umedecer a peie, o que lhe proporcionaria um certo alívio. O sol já estava alto e quente, com certeza, ao meio-dia, pareceria uma labareda de fogo. Então, ela e o cavalo seriam forçados a descansar, a procurar uma sombra perto de um agrupamento de rochas. Os animais selvagens não atacavam a essa hora causticante, só quando começava a anoitecer, horário em que eles saíam para caçar. Ah, se ela tivesse a sorte de encontrar uma trilha de cara­vanas, marcada pelas patas dos camelos e pelos excrementos dos animais! Nessa região, os camelos são os "navios do de­serto", que deslizam pelo oceano de areia. São muito mais re­sistentes do que qualquer veículo motorizado. Suportam o calor muito bem e percorrem longas distâncias sem beber água, pois possuem um reservatório próprio em seu organismo. Trans­portam pessoas e mercadorias desde os tempos bíblicos.

Diane, que gostava tanto de ouvir as histórias do avô e ficava fascinada por elas, sentia agora na pele os perigos do deserto. Cavalgava, segurando as rédeas com firmeza e olhando ao redor. Acima de tudo, precisava manter o controle do cavalo e de seus próprios nervos. Não podia de modo algum se des­controlar, ficar nervosa... Pelo menos ela estava livre, não era mais prisioneira de um homem impiedoso, que pretendia co­bri-la de infâmia. Se for seu destino morrer nessa terra es­tranha, ao menos morreria com dignidade!

Só de pensar nele, sentiu horror e olhou para trás com medo de vê-lo em sua perseguição. Mas não havia nada, a não ser a infinita extensão de areia pontilhada aqui e ali por formações rochosas que pareciam gigantes. Um arrepio lhe percorreu a espinha. Era um lugar terrível para ficar sozinha. Felizmente, tinha a companhia do cavalo, afinal era um ser vivo.

Percebeu, então, que ele estava bem mais lento e que co­meçava a suar. Imediatamente, fez com que diminuísse o passo, pois sabia que, se o animal suasse demais, iria querer beber e, não encontrando o precioso líquido ali, poderia muito bem voltar em disparada para o dauar, obedecendo ao instinto de matar a sede. O avô lhe contara que os árabes treinavam seus cavalos, tal como seus gaviões, para que soubessem voltar para casa e atender aos assobios do dono.

— Calminha, meu rapaz — disse ela, inclinando-se para frente e acariciando o pescoço do animal. — Logo encontrare­mos um lugar para nos abrigarmos, ou, quem sabe, a gente tem a sorte de achar a trilha dos camelos.

Nesse momento, Diane parou, boquiaberta, e ficou olhando, incrédula, para uma pilha de pedras redondas bem diante dela. Ali estava o marco que tanto desejara encontrar! Logo ela localizou a inconfundível trilha, um caminhozinho de areia ba­tida, com sinais recentes da passagem de alguma caravana.

Não era miragem! Diane suspirou, aliviada, e murmurou uma prece de agradecimento. Talvez a trilha não conduzisse a Dar-Arisi, mas, de qualquer forma, deveria levar para fora das regiões ermas e perigosas do deserto... Para longe do pesadelo de estar perdida e sem água. Guiou o cavalo para a trilha e sorriu quando o viu farejar o ar, como se já sentisse o cheiro de um oásis ou uma cidade onde pudesse descansar e matar a sede. Diane tinha um pouco de dinheiro numa bolsinha de couro e sentia-se con­fiante. Tinha certeza de que conseguiria chegar à sua casa na Bretanha, entretanto sabia também que levava consigo lembran­ças marcantes, que não iria esquecer tão fácil.

À medida que percorria o caminho, Diane ia vendo os restos deixados pela caravana de nômades que passara por ali. Deu graças a Deus por eles terem deixado vestígios e também por não tê-los encontrado. Se ela já achava rude o sheik Khasim, imagine então como não seriam os nômades! Afinal, eram pessoas que levavam uma vida selvagem e sem lei no meio do deserto. Quantas vezes ela não ouvira histórias aterradoras sobre o tráfico de escravas brancas naquele confim de mundo! Moças que caíam nas mãos desses nômades rudes e eram vendidas nos bordéis das cidades maiores e ali afundavam na lama do vício e da degradação.

Apesar da temperatura estar altíssima, Diane sentiu outro arrepio de horror só de pensar numa coisa dessas. Pressionou o cavalo para que andasse mais depressa, assim que vislumbrou algumas palmeiras e habitações. Ali deveria haver alguma au­toridade a quem Diane pudesse recorrer, já havia até preparado uma história para contar. Diria que tinha se perdido e que alguns árabes de uma tribo muito gentil lhe haviam dado abrigo e aquele cavalo para que pudesse voltar a Dar-Arisi. Naquele momento, tudo o que precisava era de que lhe indicassem o caminho para essa cidade. Lá ela pegaria a bagagem que ficara no hotel e embarcaria de volta para a França.

As coisas que ela achara tão assustadoras havia algumas horas, agora lhe pareciam muito simples. Conseguira escapar do sheik e conseguiria voltar para a França. Não via a hora de chegar em casa.

Na imensidão do deserto, entretanto, a noção de distância ficava alterada, e, quando se avistava uma cidade que parecia próxima, demorava-se muito ainda até se chegar a ela. E foi o que aconteceu. Diane cavalgou mais de uma hora até que pudesse ver de perto a muralha que protegia as moradias.

Havia no ar um cheiro forte de eucalipto, e o lugar era cir­cundado por várias árvores, algumas com tronco largo, parecendo couro de crocodilo, e folhas grandes. Diane conduziu o cavalo por uma alameda sombreada, e foi enorme o alívio que sentiu, depois de ter passado tantas horas exposta ao sol inclemente. Respirou fundo várias vezes. O ar ali era fresco, pois a área de árvores era tão grande que chegava a formar quase um bosque, cheio de perfumes estranhos e cantos de pássaros e cigarras. Algumas árvores estavam carregadas de frutos.

— Estamos salvos! — exclamou ela, desmontando. Segurou com firmeza a rédea, fazendo com que o cavalo abaixasse a cabeça. Então, aproximou-se e afagou o focinho do animal. — Como vou fazer para devolvê-lo a seu dono ?!

Ela diria que fora o povo de Beni-Haran que lhe dera hospi­talidade e pediria que devolvessem o cavalo ao cádi. Ninguém imaginaria que ela tivera de fugir dele. Agora, tudo isso já passara! Poderia esquecer as coisas que Khasim dissera e os beijos que ele a forçara a dar. Será que poderia mesmo esquecer?

Segurando o cavalo pela rédea, Diane cruzou o portal de en­trada e viu-se numa enorme praça, onde havia várias fileiras de bancos, protegidos do sol por toldos que formavam arcos. Era meio-dia, e o local estava quase deserto. Não havia muitas pessoas por ali, a não ser algumas que cochilavam à porta de suas casas. Diane precisava encontrar alguém que a levasse até alguma autoridade. Olhou ao redor e viu um garoto maltrapilho, catando lixo ali perto, então pegou algumas moedas na bolsinha e aproximou-se dele. O rapaz ergueu a cabeça e encarou Diane assim que ouviu o ruído de passos, mas, quando viu a cor dos olhos dela, dos cabelos e da pele, imediatamente deu um passo para trás, amedrontado.

— Não tenha medo — disse Diane em francês, sabendo que muitos falavam essa língua para pedir esmolas aos turistas. — Não vou lhe fazer nada, eu lhe darei dinheiro se você me mostrar onde fica a prefeitura ou onde haja alguma autoridade com quem eu possa falar. Com esse dinheiro, poderá comprar bastante comida...

Os olhos escuros do menino brilharam ao ver as moedas, e ele estendeu a mão para pegá-las, entretanto Diane fechou a mão.

— Não. Primeiro mostre-me a casa da autoridade, depois lhe darei o dinheiro, certo?

O menino examinou-a da cabeça aos pés, como se estivesse indeciso, sem saber se ela era homem ou mulher. Diane sorriu, lembrando-se de que estava com roupas masculinas e de que devia estar mesmo com uma aparência muito estranha.

— Ouça, você vai trocar este dinheiro por esse lixo que pegou? — ela perguntou, mostrando de novo as moedas.

O menino olhou para os restos de comida que pegara do lixo e, de repente, jogou tudo fora.

— Venha — ele falou, chamando-a com um gesto.

Diane suspirou de alívio e seguiu-o, sempre segurando firme a rédea do cavalo que caminhava a seu lado. Atravessaram a praça, passaram por uma ruazinha estreita com lojas e casas velhas, até que viraram umas esquinas e entraram numa rua mais larga, com casas grandes, pintadas de branco, varandas em arco e pátios internos. Entre elas, destacava-se uma velha mesquita, circundada por palmeiras. Apesar de antiga, estava bem conser­vada. As paredes eram de pedra e as torres, verdes. As portas e as janelas eram ovais e alongadas. Vista de perto, a porta principal era toda esculpida, formando estranhos desenhos.

Continuaram a caminhar e passaram diante do mercado, onde se vendia artesanato de cobre, artefatos de couro, incenso, perfume, sedas e pedrarias. Só que aquela era a hora da sesta, e tudo estava fechado. Então, o menino parou diante de uma enorme construção, cercada por um muro alto, onde havia um portão de ferro. Parecia um palácio.

— Casa do Agha — disse ele, com um olhar de expectativa. Diane tentou abrir o portão, mas devia estar trancado, e parecia não haver ninguém por ali. Olhou para o garoto e perguntou se não havia outro meio de entrar. Ele respondeu que não e fez um gesto, indicando que ela deveria chutar o portão. Diane achou que não seria uma atitude gentil, porém parecia não haver outra maneira de atrair a atenção. Fez o que o menino disse e ime­diatamente ouviu os latidos de um cachorro.

— Obrigada — ela agradeceu, entregando as moedas ao garoto. Ele a olhou e sorriu, com candura. Em seguida, pegou o dinheiro e desapareceu correndo. E lá ficou Diane, esperando que lhe abrissem o portão.

Bruscamente, ele se abriu, e surgiram dois homens de tú­nica. Um deles segurava com firmeza a coleira de um enorme cão de guarda. Ambos olharam-na da cabeça aos pés, analisando-a, depois um dos homens olhou para o cavalo, que estava um tanto inquieto por causa do cachorro. Aproximou-se mais e examinou o cavalo de perto, em seguida disse algo em árabe para o companheiro.

— Gostaria de falar com o prefeito... O Agha — Diane falou em francês. — Preciso que ele me ajude a chegar a Dar-Arisi. Será que poderiam fazer o favor de me levar até ele para que eu explique pessoalmente?

O guarda mais alto olhou para Diane de cenho franzido, depois apontou para o cavalo e perguntou para ela como con­seguira o animal. Imediatamente, eía contou a história que inventara, disse que o cavalo era emprestado, más daí o guarda tocou no ponto fraco, perguntando por que alguém de Beni-Haran não a escoltara até Dar-Arisi. Ela estava bem longe da cidade, distanciara-se rumo ao sul.

— Quero falar com o chefe de vocês — disse ela, nervosa. — Quer fazer o favor de me levar até ele? Sou européia e quero voltar para casa.

O guarda conversou com o outro em árabe. Diane estava can­sada e com sede. O tornozelo estava doendo e ela, começando a ficar com medo. Será que a situação não piorara? Agora, estava numa cidade estranha, com um cavalo puro-sangue que sabia que nenhum árabe emprestaria a uma mulher. Será que a ajudariam?

— Acompanhe-nos, moça.

Diane hesitou por instantes, mas imediatamente um dos guar­das pegou a rédea do cavalo e não lhe restou outra alternativa senão acompanha-lo. O outro fechou o portão assim que ela entrou.

O pátio era cheio de fontes, algumas de mármore. O local parecia calmo e repousante. Havia exatamente sete fontes, e Diane começou a ficar cada vez mais desconfiada e apreensiva.

— A senhora está cansada. Deve ter cavalgado muito, não foi?

— Preciso falar com alguém que possa me ajudar. Que lugar é este? Quem manda aqui? E o Agha? Quero falar com ele.

— A senhora vai vê-lo. — Um dos guardas a segurou pelo braço e conduziu-a para dentro. — O Agha não está em casa agora, mas assim que ele chegar será avisado de sua presença aqui. Enquanto isso vou levá-la para comer e beber algo. Por aqui, faça o favor.

Apesar da desconfiança e do medo, ela o seguiu. Não havia mais nada a fazer. O outro guarda encarregou-se do cavalo. Entraram em uni saguão cheio de arcos. O chão de mosaicos estava enfeitado com tapetes lindíssimos. Havia vários divãs nos recantos e, diante deles, mesas baixas de madeira enta­lhada. O lugar era tão extravagante que Diane sentia-se como num pesadelo. Tudo era muito estranho, e ela estava mais nervosa ali, naquele ambiente desconhecido, do que no deserto. Perfumes exóticos invadiram-lhe as narinas... O árabe indi­cou-lhe um divã, dizendo-lhe para se sentar, e ela obedeceu pouco à vontade.

— A senhora será servida de água e comida — ele infor­mou, mal disfarçando a curiosidade com que olhava para os cabelos dela.

Diane fitou-o e ergueu o queixo, com ar de desafio.

— Diga-me, vou poder ver o Agha ainda hoje?

— Sabemos que ele está para chegar, mas não temos certeza se será hoje.

— Ah, meu Deus... — Ela mordeu o lábio. — Não há outra pessoa que possa me ajudar? Só quero que alguém me conduza a Dar-Arisi... Uma vez lá, pego minhas coisas no hotel e em­barco de volta para casa. Preciso embarcar o quanto antes e... Tenho certeza de que o Agha não se importará de alguém me acompanhar até Dar-Arisi!

— Ao contrário, o Agha não gostaria que a deixássemos partir, sem que ele tivesse tido a oportunidade de falar com a senhora. Além disso, há o problema do cavalo.

— Mas eu já lhe expliquei... — Diane bateu os pés com impaciência. — Eles me emprestaram o cavalo, e o animal não sofreu nada! Sou boa amazona!

— Deve ser mesmo. O animal é um garanhão puro-sangue, e poucas mulheres sabem lidar com um cavalo desses. A senhora percebeu que ele tem uma pequena marca na parte traseira?

— Deve ser a marca de Beni-Haran, não é? Eu lhe contei que eles foram muito gentis comigo.

— Continuo achando que seria muito mais gentil da parte deles terem mandado uma escolta acompanhar à senhora... O deserto é imenso, e poderia ter-se perdido. Além do mais, a marca que há no cavalo significa que ele só pode ser usado pelo líder da tribo, portanto, acho melhor que consiga explicar ao Agha como conseguiu montar esse precioso animal. Enquan­to isso, vou mandar servirem-na.

— Não roubei o cavalo — disse ela, com raiva. — Quero que ele seja devolvido a Beni-Haran.

— Pode ficar sossegada, ele será devolvido.

O guarda saiu da sala, e a cortina de miçangas fechou a entrada de novo. Diane levantou-se, como se quisesse fugir dali, mas logo desistiu da idéia, percebendo o quanto estava cansada. Precisava comer e descansar, era o mais sensato que tinha a fazer. Tomara que o dono da casa chegasse logo, assim poderia providenciar sua saída daquele país que só lhe trouxera infortúnios! Com uma careta de dor, tirou a bota e começou a massagear o tornozelo machucado.

Qual seria o castigo para quem roubava cavalos? Ela ouvira dizer que, em certos lugares do Oriente, mandava-se cortar a mão de quem roubava... Olhou para fora e, ao ver a janela gradeada, teve a sensação de estar prisioneira. Percebeu tam­bém que havia alguém de guarda na entrada, talvez para im­pedi-la de sair. Sentiu um calafrio.

Depois, sentiu-se injustiçada, e uma onda de raiva a inva­diu... Como essa gente se atrevia a aprisioná-la? Ela diria al­gumas coisinhas a esse Agha quando o encontrasse! Imagine... Ela, ladra de cavalos! E tudo por causa daquele maldito sheik Khasim... Por causa dele se metera naquela complicação toda! Ainda bem que não o veria nunca mais!

Nesse momento, uma criada surgiu, trazendo comida e café. Diane agradeceu e começou a refeição, apesar de estar ressen­tida com o guarda lá fora. Era de admirar que lhe tivessem trazido uma refeição tão deliciosa! Já que era prisioneira, de­veriam ter lhe dado só pão e água. Ela comeu tudo com apetite e tomou café, depois, sentindo-se reanimada, foi até a janela para ver a paisagem. Ficou surpresa com a beleza do jardim cheio de flores. Ah se pudesse sentar-se lá, em vez de ficar presa naquela sala sombria!

Foi até a porta e afastou a cortina. Imediatamente, o árabe que estava ali, parado, virou-se para ela. Diane pensou que fosse desmaiar ao ver aquele rosto marcado pela cicatriz.

— Você?! — O coração dela batia, descompassado, ao reconhecê-lo.

— Em pessoa! — Ele a olhou, com ironia. — Esperei até que terminasse de comer. Não queria estragar seu apetite, Diane.

— O que está fazendo aqui? Mandaram buscá-lo?.

— Minha querida, moro aqui!

— Como assim? Disseram-me que quem mora aqui é... O Aghal

— Pois é! — Ele fez uma reverência. — E você está diante dele, Diane. Será que não percebeu que o meu cavalo a trouxe a Shemara?

— Ah... Essa não! — Diane sentiu uma fraqueza nas pernas e deixou-se cair no divã.

Bem que ela desconfiara ao ver as sete fontes no pátio. Continuou a olhar, incrédula, para a figura daquele homem de quem tentara fugir.

— Se não fosse pela inteligência de Rumh, você estaria cor­rendo perigo de vida — disse ele, severo. — Mas parece que acha que sou mais perigoso do que o deserto.

— Sim, acho mesmo... — ela murmurou, sem conseguir des­viar o olhar daquele rosto moreno e autoritário. — O que vai fazer comigo agora? Punir-me, como se eu fosse um mero ladrão de cavalos?

— Até que não seria má idéia! Vai me dizer quem a ajudou a fugir do douar, ou quer que eu adivinhe?

— Vi o cavalo pastando e resolvi pegá-lo...

—- Mentirosa! — exclamou, com a voz carregada de ironia. — Os cavalos são muito valiosos e, portanto, muito bem guar­dados. Foi alguém de minha confiança que lhe deu Rumh! Sabe, você cavalga bem melhor do que eu imaginava.

— Espero que tenha examinado seu cavalo para se certificar de que não causei nenhum mal a ele.

— Sem dúvida. Você aprendeu a montar muito bem. Se tivesse feito algo errado com um garanhão puro-sangue como Rumh, ele a teria jogado para fora da sela! Fico contente em saber que não perdeu a coragem. — Ele sorriu. — Essa é uma das coisas que admiro em você, Diane. E, sem dúvida, por causa dessa admiração, Hiriz ficou enciumada e resolveu aju­dá-la a fugir. Só que você foi ingênua ao confiar nela...

— Ela me deu um cantil com água de sabão!

— Está vendo? Acho que aquela garota está precisando de uma lição. Vou dar um jeito nisso. — Ele a fitou nos olhos. — Parece que você gostou da dança de ontem à noite. Estava tão interessada que nem percebeu que, durante o espetáculo, um de meus homens veio falar comigo. Ele acabava de chegar de Dar-Arisi... Eu devia ter falado com você ontem à noite, Diane.

— Só que, ontem à noite, você estava pensando em outra coisa, não é? Mas o que tem para me dizer? E sobre meu avô?

— Por que diz isso?

— Porque estou sentindo, porque quero voltar para ele, e você precisa me deixar ir!

— Tenho de lhe dizer algo, Diane... — Ele a segurou pelo braço, com firmeza. — Fui informado de que chegou um telegrama para você no hotel, pedindo-lhe que voltasse para casa. Philippe Konay sofreu um ataque do coração e foi levado para um hospital, onde morreu antes de voltar a si. Sinto muito, mas não irá vê-lo nunca mais, Diane. Ronay descansou para sempre.

Ela ficou atordoada e, instintivamente, agarrou-se ao manto do sheik. Ele a abraçou e afagou-lhe os cabelos. Diane aceitou o afago passivamente. Estava magoada demais para ter qual­quer reação. Nem mesmo conseguia chorar... Estava chocada.

— E verdade? — murmurou ela.

— Sim, infelizmente para você.

— Ele morreu por sua causa... Você queria torturá-lo!

De repente, ela sentiu um desejo enorme de ferir o homem que a abraçava. Num impulso rápido, arrancou a faca que ele trazia presa à cinta e cravou-a no corpo dele, sentindo a lâmina afundar. Khasim praguejou baixinho, afastou-se dela e colocou a mão sobre o ferimento de onde o sangue começava a escorrer.

— Isso a faz sentir-se melhor?

— Espero que faça você se sentir pior! — Diane tremia. — Você matou vovó... Afinal, conseguiu se vingar, não é?

— Será que consegui, Diane? — O sheik pressionava o fe­rimento com o manto, e ela olhava o sangue escorrer, como se estivesse hipnotizada.

— Ah... Seu maldito! Espero que esteja doendo muito!

—- Posso lhe garantir que dói mesmo. — Ele a observou em silêncio por alguns instantes. — A notícia da morte de seu avô chegou ao hotel logo depois que você havia saído para visitar o forte. E nós dois, Diane, apenas nos encontramos muito mais tarde naquele dia. Portanto, ele morreu antes que eu pudesse me vingar dele. Morreu em paz, mas eu não quero morrer. Vamos, preciso que cuidem de meu ferimento! Não quero lhe dar o prazer de morrer na sua frente.

— Seria esperar demais! — disse ela, ríspida. — Para matar um demônio como você, é preciso muito mais que uma facada!

— Quer dizer que não está arrependida? Então, por que está tremendo? De medo do que vou fazer com você?

— Não pode fazer mais nada para me magoar. Deve estar decepcionado com a morte de meu avô, não é? Agora, ele está fora de seu alcance.

— Ele pode estar, mas você não!

— Não vai querer me manter aqui, não é? Não há mais motivo...

— Como você é inocente! — zombou ele. — Já se esqueceu do que falei? O que tem de ser, será!

— Não! Tenho de voltar para casa! — O coração dela batia, acelerado. — Vovô não tem mais ninguém no mundo a não ser eu...

— É claro. Uma neta que desapareceu no deserto. Vamos, conforme-se, minha querida.

— Não se atreva a me chamar de querida. — Ela fez menção de esbofeteá-lo, porém o sheik agarrou-lhe os pulsos com força. — Não vou admitir ser tratada desse jeito...

Nesse momento, ele chamou um de seus guardas, que ime­diatamente entrou e segurou Diane.

— Leve-a para o harém — ordenou Khasim. — Cuidado, pois ela é uma gata selvagem. Ainda precisa aprender a ser mulher. Deixe-a aos cuidados de Lalla Hathaya e diga para não deixarem nada cortante perto dela.

— Seu bruto... Selvagem! Não pode fazer isso comigo... — Mas o guarda já a levava para longe do sheik, que apenas esboçou um sorriso. — Espere só! — gritava ela. — Da próxima vez, acertarei o coração!

— Cale-se! — O guarda a sacudiu. — Nenhuma mulher pode falar com o cádi de Shemara desse jeito!

De repente, foi como se ela tomasse consciência de toda sua desgraça e desatou num choro desconsolado, soluçando como uma criança. E foi assim que transpôs a porta que vedava o harém do sheik Khasim.

Era um quarto amplo e suntuoso, iluminado a pela luz suave dos lampiões mouros. A mobília era de cedro entalhado, o chão coberto de tapetes finíssimos e o teto forrado de espelhos coloridos, que formavam diversos desenhos. Diane espreguiçou-se e abriu os olhos, ainda sentindo o langor do sono. Ela adormecera logo depois de ter tomado a bebida que haviam lhe trazido e que provavelmente continha alguma erva para acalmar seus nervos.

Ficou deitada na enorme cama quadrada, com uma estranha sensação de irrealidade. Olhava aquele ambiente e parecia estar sonhando. Os lampiões de cobre exalavam um perfume agradável. Não havia relógio no quarto, portanto Diane não sabia quanto tempo se passara desde que entrara ali, em prantos.

As lágrimas já haviam secado, mas o sentimento de desolação continuava a machucá-la. Sentia um aperto no coração e uma tristeza profunda de saber que nunca mais veria o avô. Agora, não havia mais ninguém no mundo que se preocupasse com o que pudesse lhe acontecer. Naturalmente, o desaparecimento dela já devia ter sido comunicado às autoridades de Dar-Arisi, porém, depois de algumas buscas, concluiriam que ela sucumbira à fúria sutil e misteriosa do deserto e encerrariam a questão.

O olhar de Diane vagava pelo quarto, analisando as minúcias da decoração tão diferente, até que o langor cedeu lugar à curiosidade. Sentou-se, então, na cama e percebeu que estava com uma linda camisola de seda. Os lençóis também eram finíssimos e o leito, majestoso.

O sheik ordenara que ela fosse levada para o harém, e lá estava ela, cercada de todo aquele luxo sensual! Ficou imagi­nando o que iria lhe acontecer.

Nesse momento, ouviu o ruído de uma chave girando na fechadura. A porta se abriu, e Khasim surgiu, imponente, ves­tindo uma túnica de seda branca. Ele ficou parado ali por alguns instantes, com os olhos semicerrados, um charuto preso entre os dentes, exalando fumaça languidamente.

Quando ele fechou a porta atrás de si, ela involuntariamente se retraiu, abrigando-se nos travesseiros. O olhar que o sheik lhe lançou provocou-lhe um arrepio.

— Descansou bastante? — perguntou ele. — Você dormiu um bocado, hein?

Os olhos dele brilhavam, como duas brasas numa fogueira.

— Quanto tempo dormi? — Ela puxou o lençol sobre o corpo, tentando se esconder dele.

— Desde o momento em que foi trazida para cá, e isso foi ontem à tarde.

— Quem me pôs na cama?

— Não fui eu infelizmente. — Ele sorriu, com malícia. — Eu estava aos cuidados do médico. Não vai perguntar se estou me sentindo melhor?

— Não é necessário. Estou vendo que está bem. Aliás, sua aparência nunca esteve tão saudável. Você é forte como um cavalo.

— Obrigado pelo interesse. Você também está em excelente forma. — Sorriu novamente quando viu que ela enrubescia.

— Ah... É como perseguir a caça!

— Com todas as mulheres que tem, admira-me que ainda se interesse por outra.

— Mas é claro! É como possuir um brinquedo novo.

—Não sou nenhum brinquedo, e muito menos de sua propriedade!

— Não queira se iludir, Diane. — Deu uma tragada no charuto.

— Você é tão meus quanto os animais que caço no deserto. Escolhi-a para mim, e ninguém no mundo vai conseguir impedir isso. Aqui, sou a autoridade máxima, e você não tem a quem recorrer. E, mesmo que não fosse, nesta parte do mundo, um homem faz o que quiser com a mulher que escolhe, os outros não interferem. Portanto, é melhor se resignar com sua situação, minha querida. Afinal, não é tão terrível assim! Você tem todo o luxo e o conforto, e, se comportar bem, posso permitir que saia para conhecer a cidade. Irá achá-la fascinante.

— Como uma prisão pode ser fascinante? — Ela o fitou com a angústia de quem sente sua liberdade roubada.

— Só será uma prisão, se você quiser encarar assim. Seria mais sensato considerar isso aqui seu lar, Diane.

— Meu lar fica na Bretanha! Como se atreve a me dizer que devo considerar esse harém meu lar? Quem pensa que é? Não sou oriental, não fui educada para ser o brinquedo de um homem!

-— Minha linda criança, assim quer o todo-poderoso Alá! -— 0 sheik apagou o charuto no cinzeiro. — Ele fez a mulher para agradar aos olhos, ao tato, a todos os sentidos. Por isso, fê-la com pele macia, bem-proporcionada e delicada. — Não. Ele quer que as pessoas se amem... — Então, deixe que eu te ame! — Ele se aproximou da cama lentamente, até ficar bem perto dela. — Vamos, doçura, seja meiga comigo...

Khasim puxou o lençol com que ela se cobria, e imediata­mente Diane pulou da cama e correu para o outro canto do quarto, mas estava tão agitada que não percebeu as almofadas no chão, tropeçou e caiu.

Com passos rápidos, o sheik chegou bem perto dela, antes mesmo que tivesse tido tempo de se levantar. Ajoelhou-se ao seu lado e segurou-a com as mãos fortes. Diane olhou-o ater­rorizada, quase sem fôlego. A respiração dele estava alterada, e os olhos brilhavam. Apertou-a de leve e puxou-a para junto de si, encostando o corpo tremulo dela ao seu, — Não... Não. Por favor!

— Não tenha medo, querida. — Ele a fitou, e Diane viu naqueles olhos a escuridão perigosa da noite no deserto. — Não tenho a menor intenção de machucar uma pessoa tão delicada e indefesa corno você. Vou conduzi-la com cuidado e dedicação a um mundo de prazer.

Então, Khasim se levantou, erguendo-a nos braços. Diane sentia os músculos rijos dele contra seu corpo. Ele a carregou para a cama, e ela sentia emoções tão confusas que nem tinha forças para resistir.

— Quando quero uma mulher, sei como fazê-la perder a timidez e a inibição. — O sheik sorriu, afastando uma mecha de cabelos dos olhos dela. — Ah... Você tem os olhos tão azuis e a boca tão macia...

Aproximou os lábios dos de Diane devagar, deixando-a pri­meiro sentir o hálito quente e perfumado, um misto de fumo e menta, depois sorriu mais uma vez, deixando à mostra os dentes alvos e perfeitos. Ela ficou paralisada, até que ele afinal se apossou de sua boca.

Diane estava imaginando que Khasim iria tratá-la com bru­talidade, mas, ao invés disso, ele a beijou suavemente.

Vários beijos se sucederam, prolongados e ternos, como se estivesse despertando nela sensações adormecidas. E realmente Diane se sentiu arrastar por um turbilhão de emoções desco­nhecidas. O resto do mundo foi esquecido, e a única coisa que percebia era a presença viril, viva e quente.

Ele se afastou um pouco, e ela notou que o sheik analisava seu rosto. Diane também fitou bem de perto o rosto moreno que a amedrontava tanto quanto a fascinava. Era curioso, mas a cicatriz não o deixava feio, ao contrário, acentuava sua apa­rência de força e autoconfiança.

— Minha cicatriz desperta repulsa em você?

Ela ia responder que não, porém achou que precisava de­fender-se dele.

— Bem, não posso dizer que ela o embeleza, não é? Mas acho que a cicatriz acentua sua posição. Um tirano deve ter aparência assustadora, não é assim?

— Quer dizer que para você sou um tirano?

— Sim, sheik Khasim, tenho certeza de que domina e acha natural que os outros aceitem seu domínio. Você mesmo disse agora a pouco que é um líder árabe e que, como tal, tem muito poder.

— É verdade, estrangeira! Tenho poder, no entanto não me acuse de usá-lo mal ou de abusar dele.

Imediatamente, o rosto dele se contraiu, e a expressão mu­dou. Ele a beijou novamente, mas, dessa vez, com agressivi­dade. Diane sentiu o corpo másculo sobre o seu, o joelho insi­nuando-se com força entre suas pernas. Ficou apavorada e tentou resistir, porém suas tentativas só serviram para pro­vocar mais a brutalidade dele.

— Se chama um homem de tirano, não espere que ele se comporte como um cavalheiro! — Khasim riu. — Você é muito ingênua mesmo! Ainda não aprendeu que, se agradar a um homem e tratá-lo com jeito, consegue abrandá-lo, mas, se o desafiar, só conseguirá torná-lo inflexível.

— Agradar-lhe? — De punhos cerrados, ela o socou. — Você é cruel... Ultrajante, violento, não passa de um selvagem! Quero que vá para o inferno!

— Mas antes vou ao paraíso, minha querida. Agora, fique quietinha, senão vou machucá-la mais do que o necessário.

No auge do desespero. Diane lembrou-se do ferimento que lhe fizera, que era um ponto vulnerável e deu uma joelhada com força. Khasim gemeu, e ela percebeu que ele sentia muita dor. — Por Alá! Você é mesmo uma gata selvagem! Ele se sentou na cama devagar e respirou fundo, depois colocou a mão por dentro da túnica, apalpando-se com uma careta de dor.

Diane percebeu que estava pálido e começou a ficar apreensiva. Ela agira sem pensar, apenas instintivamente, tentando se defender.

— Está sangrando?

— E claro. Você pretende mesmo lutar até o fim, não é, Diane?

— Sempre que for preciso. Se o machuquei, a culpa é sua.

— Diga-me, Diane, o que quer? A maioria das minhas mu­lheres, em toda a minha vida, conquistei com beijos e presentinhos... Mas você é diferente, não é? O que quer que eu lhe dê? Diamantes, rubis? Um cavalo árabe? Deve haver algo que deseje, que me permita tê-la em meus braços sem correr perigo de vida. Se outra mulher tivesse feito o que você fez, eu a chicotearia.

— E por que hesitou comigo?

— Sua pele branca não suportaria... Ficaria marcada. — Ele colocou a mão sobre a perna de Diane. — O que posso lhe dar para torná-la dócil?

— Minha liberdade.

— Droga! Essa é a única coisa que me recuso a lhe dar.

— Por quê? — Ela o fitou, súplice. — Será que é tão im­portante assim para você me manter aqui para me atormentar? Não pode mais magoar meu avô com isso e sabe que nunca vou deixar de odiá-lo,

— Será que não? — Ele sorriu, insinuante. — Você fica muito atraente quando odeia um homem, minha querida. Por quê, ao invés disso, não me ama? Eu poderia acabar me en­joando da submissão costumeira! Aí está, Diane, você tem uma escolha. Apaixone-se por mim, e a deixarei partir. Ela arregalou os olhos.

— Eu nunca poderia nem fingir amá-lo — disse, com amargura.

— Você não tem compaixão nem solidariedade... E um árabe!

— Sim, e, por isso, para você, não passo de um selvagem. Principalmente quando a toco, e você nota a diferença da cor das nossas peles. Por acaso, Ronay incutiu-lhe que ser branco é ser superior? Que os árabes são primitivos, mercadores, que tratam as mulheres como objeto de uso? Se formos um povo rude e des­confiado, estrangeira, é porque o deserto e os que tentaram nos subjugar nos ensinaram muito bem que amor e confiança tornam as pessoas fracas e tolas. Somos como o deserto, não podemos nos dar ao luxo de sermos dóceis e benevolentes, mas temos orgulho e linhagem tanto quanto os franceses que se gabam disso.

— Não foi isso que eu quis dizer... — Ela mordeu o lábio e olhou para a mão dele sobre a brancura da sua perna. Aca­riciou-a de leve, causando-lhe um leve estremecimento.

— Você é uma criança romântica, que pensa que o amor é um sentimento cheio de fantasia, e não um desejo ardente. — Bruscamente, o sheik se curvou e a beijou de novo. — Minha querida, vou lhe ensinar tudo o que precisa aprender. Vai ser uma experiência esclarecedora para nós dois. Irá descobrir que nossa cultura e nosso modo de vida são tão interessantes quanto sua educação anglo-francesa.

— Então... Pretende mesmo me manter aqui?

— Sim. Não se sente lisonjeada? Há várias mulheres nesta casa que adorariam estar em minha companhia.

— Só que elas estão aqui porque querem, mas eu sou sua prisioneira.

— Tem razão. — Ele sorriu e afagou os cabelos dela. — Sabia que antigamente, no tempo dos paxás, uma mulher com a pele como a sua e com os cabelos dessa cor valia uma fortuna? Os piratas vasculhavam os mares ã procura desse tipo de mulher para vender nos haréns. Era muito raro uma loira num harém.

— Tire a mão de mim! — Diane retraiu-se. — Você não é muito melhor do que esses piratas bárbaros! Deve haver uma expedição de busca à minha procura... O que fará se vierem a Shemara fazer indagações? Algumas pessoas me viram, e um garoto maltrapilho me trouxe para cá. Ele vai se lembrar de mim, dei dinheiro a ele!

— Se estava maltrapilho, então era nômade. Essas pessoas vão e vêm constantemente. Já deve estar longe. Pode me achar um tirano, Diane, mas, na minha cidade, não há pobreza. Te­mos escolas para todas as crianças e instituições para cuidar dos órfãos e desamparados. Nós nos preocupamos com eles.

— Sou órfã e desamparada, mas está pouco se importando comigo! Para você, sou apenas um corpo!

— E mesmo? — Ele riu. — Será que é tão ingênua que não sabe quanto é atraente? Sabe, aqui no harém, costumamos dar um nome apropriado para cada mulher quando ela chega, e acho que a chamarei de Opalina, por causa de sua pele branca, dos cabelos loiros e dos olhos azuis... Está vendo, não penso em você apenas como um corpo. Aliás, há corpos muito mais exuberantes do que o seu em Shemara!

— E todos a seu dispor, não é? Ora essa! Opalina! Muito obrigada, mas gosto do meu nome e prefiro mantê-lo.

Ele ficou analisando-a em silêncio, pegou outro charuto numa caixinha e acendeu-o. Diane começou a ficar nervosa. Aquela presença viril a perturbava.

— Gostaria que visse seus olhos agora — murmurou ele. — Sua mãe era inglesa, não era?

— Não é da sua conta! O que lhe interessa minha mãe? Ah... Como odeio isto aqui! — exclamou, abrangendo o quarto com um olhar.

— Não precisa ter medo de ficar confinada neste quarto. Sabe montar muito bem, por isso permitirei que cavalgue pelo deserto comigo.

— Isso se eu for boazinha e acatar suas ordens, não é? — ela indagou, escondendo a euforia de poder cavalgar pelo de­serto sem medo de se perder.

— Você gostou da idéia, não é? Mas não pense que vai ter oportunidade de me enganar. Acho que gostará muito do de­serto, da amplidão dourada, das dunas e dos vales que escon­dem povoados, do silêncio do amanhecer, das cores do pôr-do-sol e do mistério da noite. A noite no deserto tem uma luminosidade diferente, as estrelas parecem mais próximas, dão a impressão de que podemos tocá-las... Sim, acho que vai sentir muita afi­nidade com isso tudo, Diane.

— Hum... Que romântico! — caçoou ela. — Não duvido que o deserto possa ser fascinante, porém para alguém que não seja um prisioneiro.

— Prisioneiro do amor? — zombou ele. — Todas as mulheres escondem no fundo do coração, ao mesmo tempo, o medo de amar e o desejo de amar.

— Amor! Não tem nada a ver com... essas coisas que você tem em mente!

— E o que tenho em mente, além da preocupação de pro­porcionar luxo e conforto à minha prisioneira?

— Não preciso responder, não é mesmo, sheik Khasim?

— Quem a ouve pode até pensar que sou um monstro! Sou tão monstruoso assim para você?

— O seu comportamento é monstruoso. E as mulheres jul­gam os homens pelo modo como são tratadas por eles.

— Por acaso, já lhe ocorreu, Diane, que tratamento estaria tendo se tivesse caído nas mãos dos nômades? Estaria dormindo no chão sobre um trapo sujo, comendo numa lata uma vez por dia, apanhando das outras mulheres se desobedecesse e rece­bendo atenções de homens bem menos refinados do que eu, que pelo menos sou limpo, tomo banho sempre. — Ela sentiu um calafrio. Sabia que ele tinha razão. — Como dizemos aqui, Diane, é preciso olhar a esfinge dos dois lados. Um pode estar na sombra, mas o outro sempre estará banhado de sol.

— Está bem, sei disso, mas quando vim para o Saara não tinha a menor intenção de ficar morando aqui. Vim só passear. Minha pátria é a Bretanha, e amo minha terra!

— O que é o amor, afinal? — murmurou ele de olhos semicerrados, com ar pensativo. — E uma miragem... parece real e tangível, como um oásis onde se pode chegar, mas, quan­do se vai alcançá-lo, desaparece num piscar de olhos, como um sonho. A Bretanha era a sua terra, Diane, agora é Shemara, e você vai aprender a se adaptar ao novo ambiente.

— Mas por quê?! — Ela se ajoelhou na cama, fitando-o com olhar súplice, esquecendo-se da transparência da camisola.

O sheik a observou atentamente, com olhar profundo.

— Esta é a pergunta mais tola que poderia fazer, minha querida. — Ele sorriu. — Você sabe bem por quê, portanto, não banque a inocente, como se ainda acreditasse na cegonha. É uma mulher, e eu sou um homem.

Diane enrubesceu, porém não se deixou encabular.

— O deserto fez de você um líder cruel. Quando quer algo, não tem escrúpulos para consegui-lo, não é? Meus sentimentos não significam nada para você... Diz que tenho de me adaptar...

— Ordeno isso! — ele bradou, com arrogância. — Como toda mulher, começa com acusações e falatório quando fica nervosa-

— E, como todo homem, só pensa no que quer e não aceita opiniões. Não se importa de saber que eu o odeio?

— O ódio é como o amor, uma árvore com muitos ramos.

— Vocês, árabes, têm provérbios para tudo.

— Sim, gostamos muito de citá-los, eles têm sempre um fundo de verdade. As pessoas gostam de dizer que odeiam ou amam algo, mas o que querem dizer com isso, na verdade, é que esse algo as perturba e excita profundamente e, se de repente lhes falta isso, elas caem na apatia ou no desespero.

— Por acaso, está querendo dizer que sentirá minha falta, se eu for embora? Logo você, que tem tantas mulheres?

Ele olhou para ela em silêncio por alguns instantes, e, quan­do ia dizer algo, a porta se abriu bruscamente e uma mulher surgiu, vestida com roupas de seda verde e coberta de jóias. Em princípio, Diane pensou que fosse uma das mulheres do harém, mas, observando atentamente os olhos escuros dela, adivinhou que aquela era a irmã do sheik.

— Não conseguiu conter a curiosidade, hein, minha cara irmã? — Ele se ergueu. — Teve de vir correndo ver a nova aquisição!

— Então é ela? — Morgana entrou no quarto. Devia ser dois anos mais jovem que o irmão e era muito bonita. Parou perto da cama e examinou Diane da cabeça aos pés. — Estou vendo que já conseguiu o que quer dela...

— Minha irmã tem muito em comum com você, Diane. Há dois anos aproximadamente, conseguiu me convencer a deixá-la visitar Paris, Roma e Veneza e aí pegou o costume europeu de ser irreverente e falante. Mas ela é boazinha... Gostaria que vocês se tornassem amigas.

— Será que ela precisa de amiga, tendo a companhia viril de meu irmão? — Morgana sorriu.

As duas moças trocaram um olhar cúmplice, e Diane sentiu que a irmã do sheik simpatizara com ela. Será que Morgana aprovava as atitude de Khasim? Ou será que, apesar do contato com a cultura européia, ela acatava como lei à palavra do irmão?

Morgana aproximou-se dele, andando com elegância, fazendo farfalhar a seda, e, então, ficou na ponta dos pés e murmurou algo no ouvido de Khasim. Ele ouviu, com a cabeça meio inclinada, e Diane notou um ar de surpresa tomar conta do rosto dele... Depois, o sheik olhou para Diane.

— Vou deixar vocês a sós, para que se conheçam melhor — disse ele, dirigindo-se para a porta. Antes de sair, Khasim a avisou: — Por favor, Diane, não perca tempo pedindo para minha irmã lhe arranjar um cavalo. Já a preveni sobre os perigos do deserto e garanto que está muito mais segura aqui.

— Isso, segundo sua definição de segurança — ela respondeu.

— Bem, pelo menos por enquanto, pode se considerar a salvo, não é? — Ele riu.

A porta se fechou, e Morgana, sorrindo, sentou-se no divã que havia no quarto.

— Você tem medo do meu irmão?

— Tenho motivos para isso, não acha?

— Sempre ouvi dizer que os Ronay são corajosos, ou será que só meu irmão consegue fazer Diane Ronay tremer?

— Então sabe quem sou? — Diane sentiu-se humilhada por estar aprisionada.

— Você tem um sobrenome perigoso. Meu irmão é muito orgulhoso e não perdoa fácil os que o ferem.

— Eu nunca o feri... — ela se interrompeu bruscamente, lembrando-se da faca que enfiara nele. — Ele não tem o direito de me manter aqui. Você sabe que não!

— Preferia estar perdida no deserto do que recebendo cui­dados na casa de meu irmão?

— Está distorcendo os fatos. Assim, ele parece estar certo, e eu pareço uma tola.

— Ele é o cádi, e até eu, que sou irmã dele, devo lhe obedecer, como todos em Shemara. Quando viajei, pude perceber que as mulheres européias têm muito mais liberdade do que nós, orien­tais, e, durante algum tempo, rebelei-me contra o controle que Khasim exerceu em minha vida. Eu me apaixonei por um rapaz enquanto estava fora e escrevi a meu irmão, dizendo que iria me casar. Pouco depois, chegou um emissário que ele mandou para me trazer de volta. Tive vontade de matar Khasim naquela ocasião, porém, mais tarde, percebi que ele agira certo, impe­dindo que eu fizesse uma besteira. Ele sabia que eu era jovem demais para saber o que queria.

— Acontece que você é irmã dele, mas eu sou uma cidadã anglo-francesa e estou sendo mantida aqui contra minha vontade. Ele pode ter direito de exercer controle sobre você, porém não sobre mim! Não sou parente dele!

Morgana sorriu e brincou com uma de suas pulseiras.

— Será que deseja mesmo deixá-lo? Ele é muito charmoso quando quer. Talvez no fundo você...

— Eu lhe garanto que sou imune ao charme dele! Não tenho a menor intenção de fazer parte de seu harém!

— Ah, esse harém não existe! Meu irmão ganhou várias moças de presente de outros sheiks, mas, diplomaticamente, conseguiu arranjar casamento para elas com oficiais dele ou primos. Todas as que moram aqui são casadas e estão com os maridos. As pessoas gostam de fazer fofocas e dizer que ele tem uma coleção de mulheres, no entanto é porque nunca en­traram nesta casa. — Morgana riu. — Imagine! Olhe bem para o meu irmão, ele não é do tipo que leva uma vida devassa, que só pensa nos prazeres do corpo. E um homem do deserto, que gosta de cavalgar e governar bem sua tribo. — Morgana fez uma pausa e olhou para Diane com seriedade. — Ele tra­balha muito, tem muitas preocupações, afinal, é líder de uma tribo enorme, que se espalha por várias regiões do deserto. Há muitos acampamentos do povo de Bení-Haran. Grandes rebanhos de carneiros e cabras, sem falar na criação de cavalos puros-sangues, que são vendidos para criadores do mundo todo. Khasim poderia, como vários outros sheiks que têm poder, viver viajando pela Europa, mas ele adora o deserto. E lá que busca consolo e paz de espírito para governar bem sua tribo.

Diane ouvira em silêncio, fascinada, imaginando a figura imponente do sheik: o físico bem-proporcionado, o rosto moreno, os olhos escuros e cheios de vida... Não, ele não parecia mesmo um devasso... Mas por que insistia em mantê-la prisioneira?

— Então, por que seu irmão me deixa trancada aqui desse jeito? — Diane suspirou. — Meu avô morreu, não há mais possibilidade de vingança. O que mais o sheik Khasim quer?

— Você, é claro! Já que não quer ser dele espontaneamente, ele a terá à força.

— E você não condena essa atitude? Será que ninguém nesta casa pode impedi-lo de me transformar num brinquedo?

— Ele é quem manda...

— Você é uma mulher instruída, Morgana, e mesmo assim se submete à vontade dele e ainda acha que devo fazer o mes­mo? Será que todas as mulheres no Oriente são escravas?

— Em alguns aspectos, sim — Morgana respondeu. — Talvez porque, no fundo, a mulher goste da dominação do homem. Vou lhe dizer uma coisa, Diane. Os homens árabes não con­sideram a mulher igual a eles pelo simples motivo de acredi­tarem que ela tem "poderes mágicos". Por exemplo, o fato de ela conceber um filho. Isso torna a mulher importante aos olhos de um árabe, coisa que não acontece com o europeu. A mulher pode confortar o homem, aliviar as preocupações e as tristezas e pode ainda lhe dar prazer físico. Quando eu estava na França, tinha inveja das mulheres com a mesma liberdade que você tem, porém, depois que voltei para Shemara, percebi que gostava de me sentir sob a proteção de meu irmão. Sabia que os símbolos de nossa casa são o pombo e o falcão?

— Não... Mas você não tem sede de liberdade? Costuma cavalgar no deserto?

— Quando estou inspirada, sim. Entretanto, logo vou me casar e então irei embora daqui, vou morar em Casablanca com meu marido. Ele é um diplomata do povo de Beni-Haran lá- O nome dele é Rauf Al Ahmar, e meu irmão permitiu que nos conhecêssemos e conversássemos...

— Você o ama? Foi você quem o escolheu para marido?

— Eu o acho atraente e sei que aprenderei a amá-lo. Foi sugestão de Khasim essa união, e concordo com ele. Acho que formamos um belo par. Minha mão foi pedida por um príncipe muito rico, só que ele tem sessenta anos. Rauf tem trinta e cinco, por isso meu irmão preferiu Rauf, pensando na minha felicidade. Ele quer que eu tenha um marido viril, que possa fazer com que me sinta mulher.

— Mas não preferiria escolher sozinha? Namorar?

— Sei que nossos costumes parecem estranhos para você, Diane, mas é natural. Se eu não tivesse gostado de Rauf, Kha­sim não insistiria no casamento. Mas Rauf é forte e bonito, um homem do deserto, corajoso e destemido, como meu irmão. Sabe, acho que você leva muito a sério essa idéia de que um homem e uma mulher precisam estar loucamente apaixonados para se casar... O amor pode deixar a gente cega para os de­feitos. Uma mulher apaixonada pode não perceber que o homem que ela ama é cruel e egoísta e depois sofrerá com isso.

— Seja como for, ainda acho que todo mundo tem o direito de fazer sua escolha afetiva, mesmo que cometa erros. Acho uma atitude ditatorial um irmão decidir a vida amorosa da irmã.

— E a nossa maneira de viver, e não questionamos isso. Os homens árabes acham que precisam proteger as mulheres, pensam que elas são fracas demais para se defender e repelir os avanços de um homem. Por isso, os jovens são bem vigiados para que não desonrem as famílias.

— Você diz isso e, no entanto, apóia a atitude de seu irmão com relação a mim! Acha justo que ele me desonre só porque não sou uma moça árabe?

— Ele é o cádi de Shemara...

— Isso não é motivo! Se um homem a roubasse, Morgana, e a prendesse na casa dele para se divertir com você, seu irmão iria atrás dele e o castigaria. Eu... não tenho irmão para me defender. Não tenho ninguém!

— Não é assim. Agora tem Khasim.

— Mas é justamente dele que preciso ser protegida! — Diane exclamou, perplexa.

— Somente se quiser lutar contra ele. Será que ainda não per­cebeu que pode ser muito melhor para você se não se opuser a ele?

— Não! Como pode achar certo o sheik me tratar desse jeito? Como acha que me sinto? É humilhante!

— Muitas garotas se sentiriam lisonjeadas, afinal, meu ir­mão não é qualquer um. O título dele equivale ao de um lorde na Inglaterra.

— E isso lhe dá o direito de me aprisionar aqui? Morgana apenas sorriu, e Diane entendeu que não poderia

esperar ajuda dela.

— Não quero! Prefiro morrer a pertencer a ele! — disse Diane, com veemência. — Sei que Khasim só quer esmagar meu amor-próprio, depois vai me abandonar, como um trapo usado. Ele nunca vai me perdoar por ser neta de Philippe Ronay e só ficará satisfeito quando puder me mandar embora de Shemara, coberta de vergonha. Será que não vê, Morgana, que seu irmão quer se vingar de mim?

— Meu irmão jamais fez mal a uma mulher...

— A nenhuma mulher da sua raça, porém sou diferente e comigo ele é impiedoso. Sei quais são as intenções dele, Mor­gana. O sheik precisa me ferir para se libertar dos fantasmas que o perseguem desde a infância... Vejo nos olhos dele quando me observa... Sinto isso quando ele me toca ou fala comigo. Khasim acha que estava predestinado que eu viesse ao deserto, e ele me encontrasse. Nunca vou esquecer o jeito como ele me olhou quando descobriu quem eu era... Basta pensar nele, e meu coração começa a bater descompassadamente.

As duas garotas se olharam em silêncio. Depois, Diane ana­lisou o luxo que a cercava naquele quarto majestoso. Shemara lhe parecia um lugar selvagem, perdido no mundo, onde tudo podia acontecer. Ninguém jamais a encontraria ali... Estava realmente presa numa gaiola de ouro, sentia-se como uma pom­ba nas garras de um falcão.

 

-Não! — protestou Morgana, quebrando o silêncio. — Não, Diane, você interpretou mal as intenções de meu irmão!

— Acho que não. — Diane encolheu-se na cama. — Sou neta do pior inimigo do sheik, e ele não terá compaixão de mim, não me tratará como trata as mulheres árabes. Khasim não pode esquecer que um dos soldados de meu avô matou sua mãe, ele sente que precisa me fazer sofrer para vingar o massacre. Fico aterrorizada só de pensar! — Ela escondeu o rosto entre as mãos, tentando apagar da mente o olhar abra­sador e sensual do sheik.

— Talvez pense que meu irmão é cruel só porque elo é árabe.

— Acho que desperto sua crueldade. Quando Khasim se aproxima de mim, sinto uma coisa violenta nele... Quando me toca, sinto que ele me queima...

— Meu irmão a queima? — Morgana arregalou os olhos, incrédula, sem entender.

— Não de verdade. Tenho a sensação de que estou quei­mando por dentro.

— Puxa! Ele causa uma forte impressão, hein? Mas, ouça, o sheik não é mau nem cruel. Já o ouvi várias vezes citar princípios do alcorão. Ele é bondoso, não precisa ter medo.

Diane desviou o rosto, confusa.

— Você nunca contraria as ordens dele, Morgana? E se o seu casamento não der certo?

— Não faz mal. — Ela deu de ombros. — Casablanca é uma cidade grande, cheia de lojas, restaurantes e distrações. Se não der certo, posso achar compensações...

— Que falta de romantismo!

— Talvez romantismo demais torne a mulher vulnerável, como você, Diane. Você é muito romântica, não é?

— Acho que sim. Eu não poderia aceitar um casamento como o seu nem essa filosofia de vida, de achar compensação em outras coisas. Para mim, é uma questão de vida ou morte.

— Mas isso é ser muito radical! — Morgana riu. — E não acha romântico estar trancada num harém de um sheik de verdade?

— Acho isso ultrajante... Não tem graça, Morgana! Esses costumes árabes podem ser naturais para você, mas se coloque em meu lugar!

— Bem, vamos deixar isso para lá. — Morgana ergueu-se e aproximou-se da cama. — Você e eu podemos nos divertir um bocado, se fizer um esforço para apreciar a vida aqui.

— Como pode falar em divertimento?

— Ouça, meu irmão é um homem solitário, está mesmo precisando da companhia de uma mulher e sabe ser gentil.

— E quem disse que quero me tornar escrava dele? Aceitar sua vontade e abaixar a cabeça sempre, até perder minha in­dividualidade? De Khasim, só quero uma coisa, e, mesmo assim, ela me é constantemente negada: minha liberdade!

— Mas para quê? O lugar da mulher é nos braços de um homem.

— De qualquer homem, menos nos dele! Fui trancada aqui, como se fosse um animal, nem roupas tenho!

— Ah, quanto a isso podemos resolver já! — Morgana sorriu. — Meus armários estão cheios de roupas, e somos do mesmo tamanho. Vamos até meus aposentos, e poderá escolher o que

quiser!

— Obrigada, é muita gentileza sua, porém não me sinto à

vontade usando roupas orientais.

— Ora, tenho roupas francesas e inglesas também! Embora eu ache que você fica muito bem com roupas orientais, pode escolher o que quiser. Khasim é muito bonzinho e me deixa gastar bastante dinheiro comprando vestidos. Acho que pode­mos ser amigas, não é, Diane?

— Você não tem raiva de mim por eu ser uma Ronay?

— Ah, eu era jovem demais naquela época para entender direito o que aconteceu, Khasim é quem se lembra bem porque estava lá quando o acampamento foi destruído, e ele próprio quase morreu. Picou com aquela cicatriz no rosto. Eu estavaaqui, em Shemara. Foi um acontecimento horrível, Diane. no entanto você não tem nada a ver com isso.

— Gostaria que seu irmão fosse sensato como você. — Sus­pirou ela. — Ele não pensa assim. Quer mesmo acabar comigo!

— Tenho certeza de que você está exagerando... — Morgana falou, com ar meio preocupado. — Venha, vamos para o meu quarto. Verá quanta roupa tenho!

Ela puxou Diane, fazendo-a se levantar da cama, e condu­ziu-a para fora do quarto. Quando iam virar o corredor, deram de encontro com o sheik, vestido com roupa de montaria e com um manto sobre os ombros que ia até os calcanhares. Assim que o viu, Diane sentiu-se constrangida por estar de camisola.

— Fugindo? — perguntou ele.

— Diane precisa de algo para vestir, e vamos escolher alguns vestidos no meu armário. Aonde você vai, Khasim?

— Vou jantar com um amigo.

De repente, para surpresa de Diane, ele tirou o manto e colocou-o sobre os ombros dela. Depois, ficou olhando-a, ali, parada, com o rosto enrubescido, os lábios entreabertos, e in­clinou-se, como se fosse beijá-la. Imediatamente, Diane se re­traiu, e, no mesmo instante, o olhar dele mudou, assumindo um brilho irônico.

— Minha capa de montaria nunca me pareceu tão bonita. Devia posar para um quadro, vestida assim.

Pela primeira vez na vida, Diane ficou sem saber o que falar. Ele também estava bonito, com uma túnica magnífica sobre as calças bombachas, as botas reluzentes e a cabeça coberta com um pano preso por uma corda de duas voltas, tecida com fios finos e dourados misturados à seda. Não poderia ser ninguém mais, senão um sheik, imponente e autoritário.

— Vá com minha irmã — ele disse bruscamente. — Duvido que vá fugir assim... .Morgana lhe arranjará tudo de que precisa.

— Por quanto tempo, sheik Khasim? — Diane indagou, com voz rancorosa.

— Tanto quanto for necessário, Diane. Agora, vá e divirta-se. Ele fez um cumprimento em árabe e afastou-se, deixando-a

parada, com seu manto sobre os ombros, vendo-o desaparecer no corredor. Somente de sua mente Khasim não desaparecia. A imagem dele com a elegante roupa árabe ficara lá, gravada com nitidez. Era como se sua presença a tivesse embriagado,sentia-se atordoada e com as pernas fracas. Quando Morgana falou com ela, a voz parecia vir de muito longe, e foi com muito esforço que conseguiu se controlar.

O quarto da irmã do sheik era tão amontoado de mobília, adornos, biombos, cortinas de seda, lampiões e outras quinquilharias, que mais parecia uma loja. Quase não havia espaço para andar. Morgana foi abrindo, um por um, os enormes ar­mários de madeira entalhada, e Diane perdeu o fôlego, admirada. Nunca vira tanta roupa! De todos os tecidos, todos os modelos e das mais variadas cores.

— Aí está. — Morgana começou a tirar os cabides do armário e colocá-los sobre os divãs. — Pode escolher o que quiser.

— Puxa! Nunca vi tantos vestidos! Como consegue usar tudo isso?

— Não consigo, mas gosto de tê-los. — Morgana sorriu da cara de espanto de Diane. — Adoro roupas bonitas. Você não gosta?

— Nunca pensei nisso, para falar a verdade. Lá em casa, na Bretanha, sempre usava calça comprida e blusa ou então short quando ia à praia. Estava sempre com meu avô, e ra­ramente íamos a alguma festa, por isso nunca senti necessidade de ter vestidos chiques. Acho que tenho só dois ou três longos.

— Só isso? — Morgana arregalou os olhos. — Não posso resistir... Adoro o contato de sedas e chefona em minha pele e sou maluca por perfumes! Ah, precisa ir comigo ao mercado um dia! Há um velho que faz perfumes incríveis. Compro dele desde me­nina. Acho aquele lugar fascinante e tenho certeza de que também vai achar, Diane. Vou pedir a Khasim para deixá-la ir comigo!

— Duvido muito que ele deixe... Seu irmão sabe que fugirei dele na primeira oportunidade que surgir.

— Sim, mas não vai fugir, com os guardas dele nos nossos calcanhares. — Morgana riu.

— Quer dizer que não pode sair sozinha?

— Não, nem para visitar amigas. Para onde quer que eu vá, fora dos portões do palácio, vou acompanhada de guardas. Afinal, sou irmã do cádi e corro o risco de ser seqüestrada, tanto por dinheiro como por questões políticas.

— Pena que eu não tenha um irmão assim para impedir meu seqüestro — murmurou Diane, afagando o tecido de um dos vestidos. — Posso desaparecer do mapa que ninguém se preocupará comigo!

— Diane... — Morgana olhou-a, penalizada. — Não tive a intenção de diminuí-la, não quis dizer que você não é importante. É que não consigo pensar que Khasim a tenha seqüestrado. Afinal, ele não a roubou de lugar algum, e sim a salvou do deserto.

— É verdade, porém, assim que descobriu quem eu era, resolveu me humilhar de todas as maneiras. Nunca vi ninguém tão arrogante, andando por aí com aquele manto, como se fosse um lorde, senhor da terra!

— Mas ele é um sheik, é um líder do deserto, portanto é natural que seja assim. — Morgana analisou a figura de Diane, ainda envolta no manto do irmão. — Estou acostumada com Khasim e o vejo como irmã, mas imagino que ele deva intimidar as mulheres. Pobre Diane! O sheik é o primeiro homem que... Bem, você sabe! É sua inexperiência que a faz temê-lo.

Diane estremeceu só de pensar no que a proximidade de Khasim lhe causava: medo, alvoroço, pânico, uma confusão de sentimentos que ela não conseguia entender. O simples contato do manto dele a lembrava de outro contato, mais quente e vibrante: seus braços envolvendo-a e o corpo musculoso contra o dela. A única coisa que sabia era que ele representava uma ameaça. Um calafrio percorreu-lhe corpo.

— Acho que meu avô sempre me tratou como se eu fosse um menino...

— E Khasim não a trata assim, não é?

Diane suspirou e olhou, desanimada, para a pilha de vestidos sobre os divãs.

— Você não possui alguma coisa mais simples?

— Não tenho calça comprida e blusa, mas espere aí... — Morgana remexeu nos armários e voltou com um vestido dis­creto em tom pastel.

— Esse parece bonito — murmurou Diane. — Acho que é mais o meu estilo, não acha?

— Ele é muito simples, entretanto concordo que é elegante. Quer vesti-lo já?

— Sim, mas não tenho roupa de baixo...

— Escolha o que quiser. — Morgana abriu uma gaveta cheia de lingeries de cetim, que, pelo jeito, deviam ser parisienses. — Pode pegar quanto quiser, Diane. Vou procurar outros ves­tidos do mesmo estilo, assim não se sentirá mais como escrava num harém, não é?

Diane sorriu enquanto escolhia alguns sofisticados conjuntos de calcinha e sutiã. Estava estranhando todo aquele luxo, ela que sempre usara roupa de baixo discreta e branca. Tirou o manto que ainda a cobria, dobrou-o e colocou sobre um banquinho de couro. Depois, virando-se de costas, tirou a camisola e vestiu-se depressa com as roupas que Morgana tão gentil­mente lhe arranjara.

— Deixe-me ver, vire-se para cá. Hum... agora precisa de colares e sapatos. Que número você calça?

Morgana foi buscar o que faltava e completou o traje. Num instante, Diane ficou elegante e encantadora. A moça árabe analisou-a mais uma vez, em seguida acrescentou:

— Ah, tome essa pulseira também! Pronto. Agora, olhe-se no espelho, você está linda!

Diane olhou, atônita, para o espelho, mal se reconhecendo. O . vestido bem talhado delineava suas formas e realçava o azul de seus olhos. Sim, não se sentia mais uma escrava do sheik, pri­sioneira do harém. Mas, afinal, como podia ser um harém se não havia mulheres à disposição dele? A ala era ocupada por parentes.

Ela esboçou um sorriso e ajeitou os cabelos dourados e macios.

— Imagino o que vovô diria se pudesse me ver assim! Morgana ergueu a sobrancelha num trejeito tão parecido

com o do irmão que Diane não pode deixar de constatar mais uma vez a enorme semelhança.

— Hei, por que está me olhando desse jeito, Diane?

— E que, às vezes, você se comporta de um modo tão parecido com o do sheik. Seus olhos... Vocês dois têm os olhos escuros e misteriosos e com cílios espessos e longos.

— Somos parecidos com mamãe. Venha comigo, vou lhe mostrar o retrato dela, que papai pintou logo depois que se casaram. Ela está usando a roupa do casamento no quadro, igual à que usarei quando me casar com Rauf.

— Eu vi o homem com quem vai se casar — disse Diane impulsivamente. — Ele estava no douar do sheik. Foi ele quem seu irmão mandou a Dar-Arisi para descobrir se eu estava viajando sozinha ou não e foi ele quem voltou com a notícia de que meu avô morrera e que era para eu voltar à Bretanha. Todo mundo obedece ao sheik cegamente, mesmo que esteja sendo injusto! Por acaso, o seu noivo tem motivo para me odiar por eu ser uma Ronay?

— Os pais dele foram mortos naquele ataque. Ah... não sei mais o que pensar! — Morgana segurou o pulso de Diane, confusa. — Não sei se é certo ou errado as pessoas guardarem mágoas antigas, mesmo com relação à morte de entes queridos. Não creio que seja vingança o que meu irmão quer... pelo menos no fundo do coração! Acho até que ele pode estar inseguro pela primeira vez na vida.

— O quê? O sheik inseguro? — Diane deu risada. — Não, não, o que ele quer é satisfazer seu senso de justiça árabe.

— Nossa mãe veio do Curdistão, sabia? Estava entre um grupo de garotas que seriam vendidas... Sim, Diane, não faça essa cara de espanto, porque isso ainda acontece fora de Shemara, no deserto, onde sabe que não há lei. Se você tivesse caído nas mãos dos nômades, poderia ter sido posta a leilão, tal como nossa mãe. Naquela época, papai ficou sabendo que uma das moças era muito bonita e imediatamente providenciou dinheiro para comprá-la, impedindo assim que se tornasse uma escrava. Ela descobriu que seu benfeitor era o cádi de Shemara e foi lhe agradecer. Daí, eles se apaixonaram e se casaram. Papai nunca arranjou outra esposa, ficou só com ela e, mesmo depois que ela morreu, ele não se casou de novo. Venha, vou lhe mostrar como mamãe era. Talvez assim entenda por que Khasim acha tão difícil perdoar a crueldade que foi a morte dela. Ele tinha treze anos e já podia compreender que mamãe

e papai sentiam um amor muito especial um pelo outro, talvez o amor romântico que nem mesmo a morte consegue apagar. Morgana conduziu Diane para outra ala do palácio, passando por enormes saguões com escadarias, conduzindo de um andar a outro. Os aposentos eram escuros, frios e tão grandes que faziam o som ecoar. Diane percebeu que um guarda as seguia discretamente, a certa distância. Estava vestido de branco, com uma faixa vermelha na cintura, onde havia uma faca embai­nhada. Ele andava em silêncio.

— Puxa, esse lugar preserva os costumes do século passado! Como suporta isso, Morgana?

— Acho que Selim recebeu ordens de vigiá-la. — Sorriu. — Vai ser assim toda vez que Khasim se ausentar de casa. Pode se acostumar. Ele deixará um guarda de confiança vigiando-a para que não consiga convencer alguém a lhe dar um cavalo outra vez. Você pode se perder no deserto ou ser capturada por nômades mercenários, que poderão ganhar um bom dinheiro ven­dendo uma virgem loira no mercado. Creio que era o que Hiriz queria que acontecesse, só que ela foi tola ao escolher para você um cavalo especialmente treinado por Khasim. Ele tem jeito para lidar com animais. Sabia que é veterinário formado?

— não, mas notei que ele também tem jeito com dançari­nas... Vi Hiriz dançar para ele lá no douar. Ela é muito bonita e extremamente ciumenta. não admite que o sheik dê qualquer atenção à outra mulher.

— Ah, eu sei, ela tem as garras afiadas mesmo! Foi dada de presente a Khasim quando tinha treze anos.

— Está falando sério? — Diane parou no meio da escada que estavam descendo e lançou um olhar incrédulo para Mor­gana. — Quer dizer que ela é realmente uma escrava?

— Sim. Hiriz pertence a ele, e Khasim pode fazer com ela o que quiser. Ficou chocada, Diane?

— Isso parece tão bárbaro... — Diane baixou o olhar e mor­deu o lábio. — Não é à toa que ela ficou tão enciumada com minha presença no douar e por eu estar instalada na tenda dele. Acho que o sheik a desalojou para que eu ficasse lá...

— Khasim não mora com ela! —- Eu pensei que...

— Hiriz é apenas a favorita dele para distrações. Ela só serve para diverti-lo quando está com vontade. É claro que Hiriz ado­raria se casar com ele, pois ser a mulher do cádi de Shemara dá status e poder, mas meu irmão exige muito mais da mulher que será sua esposa. Não basta apenas saber dançar bem.

— Acha que ele irá castigá-la?

— Deseja que ele a castigue? — Morgana lançou-lhe um olhar penetrante.

— Não sou vingativa, além disso ela é muito jovem. Eu é que fui tola em acreditar que ela queria realmente me ajudar.

— Hiriz queria afastá-la porque percebeu logo que você tem algo a oferecer que ela não tem...

— Mas não estou oferecendo nada! — protestou Diane. — E, mesmo que estivesse interessada, Hiriz ganha longe de mim quanto à beleza. Ela é muito mais bonita do que eu.

— Bonita como uma boneca — disse Morgana, com desprezo. — A única coisa que sabe fazer é dançar, de resto, é completamente vazia. Pelo amor de Deus, nem sonhe que ela possaser minha cunhada... Não me deseje esse mal! Não que eu tenha medo que isso vá acontecer. Creio que Khasim tem idéia de casá-la com um de seus guardas...

— Mas ele... — Diane se interrompeu e desviou o olhar.

— Ora, por que parou? Ia dizer algo sobre meu irmão?

— É que me disseram que ele só dá esposas virgens para os homens que o servem — Diane respondeu, com dificuldade, sentindo que enrubescera.

— É verdade.

Diane continuou olhando para a parede por mais alguns instantes, depois encarou a irmã do sheik.

— Eu tinha certeza de que Hiriz era a kadine dele.

— Acho melhor você não fazer suposições e torná-las como certas no que se refere ao meu irmão. Ele é um homem im­previsível sob vários aspectos. Veja você, a maioria dos homens árabes na situação dele teria usado Hiriz dessa maneira desde o momento em que a tivesse recebido de presente, entretanto Khasim não agiu assim. Não quis tratá-la desse jeito e mandou que ela aprendesse a dançar. Ele gosta muito de vê-la dançar, é a forma de distração que mais aprecia. Ele não é como a maioria dos homens, Diane. Meu irmão, como já lhe disse, é um homem que sente afi­nidade com a impetuosidade e a solidão do deserto. Se não fosse cádi, tenho certeza de que viveria com os beduínos, dormindo sob um tenda de pele de cabra, que facilmente pode ser enrolada e colocada nas costas de um camelo, teria apenas alguns animais e nada o impediria de explorar a imensidão do Saara. Mas não pode fazer nada disso porque tem sob sua responsabilidade a orientação e a proteção do povo de Beni-Haran. Por isso, uma criatura ego­cêntrica como Híríz jamais serviria para ser esposa dele.

— Mas o que mais Khasim poderia querer de uma mulher? Não basta ser tão bonita e saber distraí-lo? Se os árabes acham que sabem mais do que as mulheres, certamente não vão exigir que a esposa seja inteligente!

— Sabe muito bem, Diane, que meu irmão não é um homem comum, não é como os outros.

— Ah, sim, ele se julga um lorde. Acho que o sheik e Hiriz combinam muito bem. Sem dúvida, deve se sentir muito lisonjeado por ter alguém que se dedique a ele com tanto fervor!

— Os falcões e os cavalos dele também são dedicados e obedientes?— disse Morgana. — Quer dizer, então, que pensou que Hiriz fosse a kadine dele, hein?

— A vida de Khasim não me interessa, não é da minha conta saber o que ela é dele.

— Será que não? — Morgana arqueou as sobrancelhas e deu um sorriso matreiro. — Então não se incomodou nem um pouco ao imaginá-lo fazendo amor com Hiriz na tenda para onde levou você? Ou vai me dizer que não pensou nisso?

— Nem que ele tenha feito amor com mil mulheres, isso não me importa!

Diane ergueu o queixo, orgulhosa, e desceu a escada que terminava num salão cheio de colunas trabalhadas, ladrilhada com mosaicos em tons de azul. As imensas colunas faziam-na sentir-se minúscula e perdida, à medida que caminhava entre elas com Morgana, perdida no tempo, a milhares de quilômetros de distância da vida calma e sem grandes eventos que levava na Bretanha, até que a necessidade de visitar o Oriente a dominara a ponto de não poder mais resistir.

Olhou ao redor, meio amedrontada. Aquele lugar era sinis­tro, com as sombras estranhas projetadas pelos grandes lam­piões presos por correntes, às portas em arco, todo o esplendor oriental na decoração das paredes e na mobília de madeira entalhada. Percebeu também que, em vários pontos, havia guardas, parados, que a olhavam com curiosidade quando pas­sava por eles na companhia da irmã do sheik.

Morgana parou diante de uma das portas em arco e fez sinal para que Selim se aproximasse. Enquanto falava com ele em árabe, Diane fitava-o, com rancor. Será que os servos desse palácio pensavam que ela era a kadine do sheik? Que ele a mandara vigiar porque a considerava importante? Diane sabia muito bem que a única importância que tinha para Khasim era enquanto objeto de sua vingança. E agora iria ver o retrato daquela que, por ter morrido como morreu, era o motivo de toda a amargura e o ressentimento que ele guardava no coração.

Selim entrou no salão e acendeu os lampiões, que começaram a exalar o aroma que Diane já conhecia muito bem. O aposento era enorme e frio, dando a impressão de ser um recinto não muito freqüentado. No chão, havia um maravilhoso tapete, tecido com desenhos de várias cores. O teto era aureolado, enfeitado com madeira dourada entrelaçada, a mobília era de ébano, pintada no estilo típico oriental e no centro havia um divã, em forma de meia-lua, coberto de almofadas de seda em tons claros.

Diane teve uma sensação de grandiosidade melancólica, como se tudo aquilo pertencesse a um passado remoto, e agora ninguém mais usufruísse todo aquele luxo e aquela beleza. Era um lugar de recordações. Observou Morgana enquanto ela pegava um dos lampiões e levava-o para o outro lado da sala. Ali, ela parou e iluminou o enorme quadro pendurado na pa­rede, revestida de madeira. Diane se aproximou e parou ao lado de Morgana. Então, juntas, ergueram a cabeça para ad­mirar a mulher retraía d a na tela.

E lá estava ela. Nos lindos olhos negros, havia a mesma expressão inefável que Diane via nos olhos do sheik, mas, enquanto no rosto dele havia um certo traço impiedoso e inquieto, o rosto da mãe era extremamente calmo e adorável Ela usava um vestido simples de seda branca, sobre o qual cala o véu transparente da grinalda, que tinha um brilho de luar. Um cinto de prata marcava a cintura delgada, e os punhos largos das mangas tinham um lindo bordado também prateado. O brilho suave da pele dela era realçado pelo vestido, e seu único adorno era um colar de rubis e diamantes em forma de coração. A moldura do quadro era desenhada com flores de lótus e, na parte de baixo, havia uma inscrição em árabe.

— O que está escrito aí? — perguntou Diane.

— "Na vida, só se tem um grande amor”.—Morgana virou-se e fitou Diane. — As flores-de-lótus desenhadas ali são para nós o símbolo da eterna juventude. Foi Khasim quem mandou pôr o quadro nessa moldura e fez a inscrição abaixo. Como vê, ele a amava muito, mesmo sem ter sido um filho mimado. Orgulhava-se da beleza de mamãe e da maneira como ela sabia montar um puro-sangue árabe. Ela ia caçar no deserto como os homens, porém nunca perdeu a feminilidade. Acima de tudo, era uma mulher.

— E muito bonita, por sinal — disse Diane, com suavidade. — Você se parece com ela, Morgana.

— Eu sei. E Khasim também. Os olhos são idênticos. E, achando isso, por que não reconhece nenhum mérito nele?

— Não nego que ele é um homem que chama a atenção, mas muitos árabes são atraentes, não é? Ah, sua mãe está com um vestido lindo! Essa seda tem um brilho de luar, e gosto do véu transparente que permite ver os cabelos negros dela.

— Chamamos esse véu de ckaddur. Algumas noivas árabes exageram na maquilagem e usam sombras demais nos olhos e hena nos cabelos e nas unhas. A cerimônia é uma espécie de ritual da fertilidade, porém não ligo para essas coisas. Quan­do me casar com Rauf, vou usar um vestido simples, só com o chaddur e quero ficar como ela. Tenho o colar que ela está usando no retrato. Khasim presenteou-me com ele quando fi­quei mocinha. Eu lhe disse que devia guardá-lo para a esposa dele, mas meu irmão apenas sorriu e colocou-o no meu pescoço. Espero que... — Morgana suspirou e encarou Diane. — Sabe, às vezes, pergunto-me se Khasim vai se casar algum dia. O povo de Beni-Haran espera que ele faça isso para que tenha um filho que possa continuar em seu lugar, no entanto ele já está com trinta e quatro anos e ainda não escolheu uma noiva...

— Pode ser que tenha escolhido Hiriz.

— Ou... Você.

— O quê? — Diane deu um passo para trás e arregalou os olhos, que se tornaram de um azul mais intenso, coisa que sempre acontecia quando ficava perturbada. — O que disse?

— Ouviu muito bem. — Morgana iluminou Diane com a luz do lampião, que ainda segurava. — Você é jovem, saudável e o desafia como nunca vi nenhuma mulher ousar, você o enfrenta, têm nas veias sangue de soldado e os requintes de uma boa educação. Acho que você e Khasim teriam um filho lindo, forte e robusto.

— Por favor... Pare de falar assim! — Diane estava trêmula. — Seu irmão é o último homem com quem eu pensaria em me casar, e sei também que sou a última mulher com quem ele pensaria em fazê-lo! Nós nos odiamos!

— Diz isso com muita ênfase, como se quisesse convencer a si própria que é ódio o que sente por Khasim. Mas será que é, Diane? Pode dizer com sinceridade que não sente um calafrio quando olha para ele e uma sensação estranha quando ele toca em você? Será que pode dizer sinceramente que não su­porta a idéia de sentir os lábios do sheik sobre os seus e o corpo dele contra o seu?

— Não quero falar sobre essas coisas...

— Por quê? — insistiu Morgana. — Ficou tão reprimida assim por ter vivido com um avô idoso? Nesse país, achamos a sensualidade uma coisa muito natural. Sabemos que todos sentem isso desde a adolescência e, por essa razão, vigiamos bem os jovens e não os deixamos sozinhos, pois a realização desse instinto deve ter lugar no casamento. Você tem vergonha de seus instintos naturais?

— Não...

— Tem certeza, Diane? Fala que vivemos enclausuradas e protegidas pelos homens, mas parece que sua vida foi bem mais enclausurada do que a minha. As moças árabes aprendem desde cedo o que é ser mulher. Khasim sempre fez questão que eu recebesse todo tipo de instrução. Acho que você foi criada mais como um menino, não será isso? Creio que o coronel Ronay gostaria de ter tido um neto para que entrasse para o Exército e continuasse a. carreira militar, no entanto, como o destino quis que tivesse uma neta... E foi você mesma quem me falou que usava sempre calça comprida e blusa. Ele deve ter lhe ensinado habilidades masculinas, em vez das femininas.

— Vovô e eu éramos muito unidos, e eu gostava da vida que levávamos.

Os olhos de Diane se encheram de lágrimas ao se lembrar de que a única pessoa que amava em sua vida não mais lhe faria companhia, nem poderia lhe dar amor. Estava completamente só num mundo de estranhos... Observou ao redor, como se procurasse alguém que pudesse consolá-la, e uma lá­grima rolou por sua face.

Nesse momento, sentiu algo roçar sua perna, provocando-lhe um sobressalto. Olhou para baixo e viu um enorme gato persa ronronando a seus pés. Abaixou-se e afagou os pêlos do animal, segurando a cabeça dele e fitando-o nos olhos.

— Que beleza! — ela exclamou. — Gatinho, deixe-me pegá-lo no colo?

— Esse é Pasha — sorriu Morgana. — Ele deixa, sim, pode pegá-lo, ele gosta! Só que é um pouco pesado. Anda pelos porões do palácio, caçando ratos, e, como esta construção é muito antiga, está cheia de ratos. É por isso que está tão gordo assim.

— Adoro gatos!

Diane pegou o animal no colo e sentiu um certo consolo em seu ronronar. Lembrou-se dos dois gatos malhados que tinham ficado lá longe, no seu antigo lar. Suspirou fundo, com um aperto no coração. Seu lar agora nada mais era do que uma casa vazia, perdida na distância. O empregado de seu avô de­veria ter providenciado o enterro e, com toda a certeza, devia estar preocupado por ela não ter aparecido até aquele momento. Ele conhecia o deserto, devia estar pensando que ela morrera de insolação ou caíra nas mãos de nômades. Talvez ficasse ainda algum tempo na casa, acalentando uma vaga esperança de vê-la de volta, mas depois fecharia o velho casarão e iria viver com o irmão dele, em Marselha.

— Pasha gostou de você — Morgana falou. — Venha, é melhor irmos jantar agora. Se quiser, pode levar o gato. Sabe o que se diz aqui das pessoas que têm grande afinidade com gatos?

— Sim, já ouvi falar — Diane respondeu, sem jeito.

— E qual é o problema ser considerada sensual? — Morgana riu. — Não há nada de vergonhoso... Tenho certeza de que é muito mais sensível do que Hiriz, por exemplo. Sabe o que ela faz se Pasha olha para ela? Grita e sai correndo!

— Talvez ela sinta repulsa ao pensar nos ratos que ele caça... — Diane acariciava a cabeça macia do gato enquanto seguia Morgana.

Saíram daquele salão e passaram para um outro aposento menor e bem mais aconchegante, onde foi servido o jantar. Durante o tempo que durou a refeição, Selim ficou de guarda do lado de fora da porta.

— Quanto tempo vai durar isso? — Diane indagou. — Será que seu irmão pensa que poderá me manter aqui a vida inteira, neste castelo que mais parece o do Barba-Azul?

Morgana comia a sobremesa despreocupadamente.

— Ora, vamos, coma um pouco desse doce, que está uma delícia, e deixe de se preocupar tanto! Não fique tão ansiosa! Por que não aceita o fato? Se está aqui, é porque assim tinha de ser... É o destino!

— Sim. Estava escrito na areia, não é? Alguém me disse isso um pouco antes de eu vir para o Oriente. — Diane tomou um gole do café forte. — Fico imaginando se vovô já não sabia que tinha os dias contados e por isso não fez objeções quando lhe falei que queria vir para cá. Ele queria que eu conhecesse o deserto, mas estava muito doente para fazer a viagem comigo. Acho que devia estar bem mais doente do que eu imaginava e, como um velho soldado, queria morrer sem fazer alarde. Eu deveria ter percebido isso! Entretanto, estava tão eufórica com os preparativos da minha viagem que não via mais nada, e, depois, ele parecia tão contente quando me despedi dele! Estava no jardim, cuidando de suas rosas...

Diane queria continuar, mas a voz lhe faltou. Será que ha­viam providenciado rosas para o enterro dele? E a farda? Será que não tinham se esquecido da espada? A espada reluzente que dera o sinal de ataque ao povo de Beni-Haran?

— Ele cumpriu o dever, como achou certo — continuou ela, engolindo as lágrimas. — Não posso condená-lo quando foi tão amável e carinhoso comigo!

— Assim é a vida, minha cara — Morgana disse. — Temos de aceitar as pessoas e julgá-las pelo modo como nos tratam, como se comportam em relação a nós. Não existe ninguém perfeito, mas para cada falha ou defeito há sempre uma virtude, uma qualidade que a compense. Todos nós somos um pouco egoístas, porém, às vezes, temos atitudes altruístas. Somos um pouco cruéis, mas também temos gestos bondosos e podemos ser afáveis. Somos seres humanos, não anjos.

— Hum... Sabedoria oriental! — Diane pós um pouco de creme doce no dedo para que Pasha o lambesse.

— Como você mesma disse, Diane, está escrito na areia, portanto, por que não aceita a vida como ela é? Aceite natu­ralmente o que ela lhe oferece... Talvez Khasim lhe proporcione o romance em que você acredita tão fervorosamente.

Sem conseguir pegar no sono, Diane ficou ouvindo os sons exóticos da música oriental, que entravam pela janela de seu quarto. Embora não ouvisse ruídos de passos no corredor, sentia a presença de alguém do lado de fora da porta e imaginou que deveria ser o guarda que a vigiava constantemente.

Ela ficou, no escuro, sentindo os diferentes perfumes do am­biente estranho e o calor de Pasha deitado a seus pés. Puxou o lençol de seda e se cobriu melhor, imaginando o que faria para impedir Khasim de cumprir a ameaça que fizera.

Como ele podia ser tão cruel e, às vezes, tão atencioso? Dois elementos opostos que compunham a personalidade dele, e Diane nunca conseguia saber qual deles viria à tona cada vez que se aproximava dela. Pasha ronronava feliz, e Diane acabou ador­mecendo... Sem, no entanto, deixar de pensar na intrigante figura.

No dia seguinte, Diane quase não viu o cádi, mas, para sua alegria e sua surpresa, ele per­mitiu que ela fosse ao mercado com Morgana. As duas se ves­tiram com as roupas tradicionais que todas as mulheres de Shemara usavam para sair à rua.

Permaneceram bastante tempo na loja de tecidos, e Diane não parava de se deslumbrar. Nunca vira panos tão lindos! Era uma festa para seus olhos e tato. Não se cansava de tocar todos os tecidos. Sedas macias como pétalas de rosa, brocados brilhantes, gaze diáfana, veludos maleáveis e flexíveis e rendas tão lindas de fazer perder o fôlego. Tudo o que ela admirava era imediata­mente encomendado para ser entregue no palácio. A seus pro­testos constantes, Morgana dava de ombros e apenas dizia:

— Vou chamar uma costureira, e ela fará vestidos para você. Há uma ótima, que é especialista em modelos simples como você gosta! Agora, vamos à barraca do velhinho que faz perfumes divinos.

Passaram por uma alameda ensolarada, de casas velhas com sacadas pequenas. Na rua movimentada, ruídos estranhos se mis­turavam. Um vendedor de limonada anunciava seu produto ba­tendo duas canequínhas, uma na outra. De vez em quando, passavam camelos, fazendo soar os guizos que tinham no pescoço e jumentos carregados com cestos de mercadoria. Eram cenas co­loridas e exóticas da vida oriental... Assustadora e fascinante.

O mercado era abarrotado de pequenas lojas, que vendiam os mais variados artigos de artesanato: tapetes, jóias, artefatos de couro e muitas outras coisas. Nesse lugar, ainda se preser­vava a tradição dos trabalhos manuais, pois não fora atingido pela febre industrial.

Entraram bem no centro do mercado, que, àquela hora, es­tava movimentadíssimo. Havia no ar um burburinho e uma grande variedade de aromas. Sob os toldos de folhas de pal­meiras, estavam as barracas, abarrotadas de mercadorias. O sol batia nos rostos morenos, que variavam dos tons mais claros aos mais escuros. Mas todos olhavam com curiosidade ou es­tranheza para os olhos azuis de Diane, que usava um véu cobrindo o resto do rosto, como as mulheres nativas.

Um cheiro forte de café penetrava nas narinas de Diane, e, à medida que caminhavam, os aromas mudavam. Havia cheiro de laranja, damasco, figo, tâmaras e uvas.

Morgana conduziu Diane para uma das barracas, explican­do-lhe que ali eram feitos, à mão, os baús que as noivas levavam com o enxoval quando se casavam. Eles eram de madeira escura entalhada e forrados de madrepérola. O dono da loja disse algo para Morgana que lhe provocou o riso, depois ela explicou a Diane que ele queria saber qual das duas estava precisando Comprar um baú daqueles.

— Bem, Diane, não será melhor encomendar um para você? — Os olhos de Morgana brilharam, com uma expressão matreira.

— Muito obrigada, mas dispenso!

Diane deu alguns passos, mas imediatamente estancou, su­focando um grito. E que surgira na sua frente um árabe com uma cobra enrolada no pescoço. Ele a fitou nos olhos, seu rosto era cheio de pequenas cicatrizes. De repente, ele sorriu de um jeito estranho e jogou a cobra nela. Diane viu a língua do réptil a apenas alguns centímetros de seu rosto. No mesmo instante, o guarda do cádi pulou sobre o encantador de ser­pentes, tentando agarrá-lo, porém o homem, com uma agilidade incrível, escapou e sumiu na multidão. O guarda virou-se de­pressa e olhou para Diane, com ar preocupado, como se esti­vesse com medo de que ela tivesse sido picada pela cobra.

— Diga a ele que estou bem — disse ela a Morgana. — Esse homem me deu um susto com a cobra, apenas isso!

Morgana tranqüilizou o guarda, que fez uma reverência para Diane, como que se desculpando, e voltou para junto dos outros.

— Se tivesse sido picada, teriam agarrado o homenzinho horroroso, e ele seria esfolado vivo de tanto ser chicoteado — Morgana falou.

Diane estremeceu.

— A cobra era venenosa?

— Sim. Esses homens que lidam com elas acabam se tor­nando imunes ao seu veneno, mas você viu as cicatrizes que ele tem no rosto, não viu?

Diane assentiu com um movimento de cabeça, e continuaram a caminhar. Agora, sim, não podia deixar de perceber os olhares que lhe lançavam, enquanto percorriam o caminho até o velho perfumista. Ouviu comentários em árabe, que Diane não en­tendia, mas podia muito bem adivinhar. Sabia que para todos ela era a "estrangeira" que estava morando no palácio do cádi.

— Seu irmão é muito sutil, não é mesmo?

— Por que diz isso, Diane?

— Ele fala que estou livre, entretanto o que faria o guarda dele, se eu corresse para os portões da cidade?

Morgana simplesmente sorriu e parou diante de uma pe­quena barraca.

— Parece que meu irmão não sai do seu pensamento, não é, Diane? — perguntou, fingindo inocência. — Estou para me casar, mas não penso em Rauf o tempo todo, assim. Neste momento, por exemplo, estou pensando num perfume novo que vou mandar fazer especialmente para mim... e você? Que tipo de perfume prefere? Um que tenha aroma de couro, cavalo e fumo de charuto?

— Ora, isso não é verdade! — Diane ficou indignada. — Não estou sempre pensando em seu todo-poderoso irmão!

— Será que não? — Morgana riu.

As duas entraram na loja de perfumes, e Morgana retirou o véu que cobria seu rosto, enquanto do fundo da barraca surgia um velho árabe, enrugado e barbudo, cumprimentando-a calorosamente em francês.

— Trouxe uma amiga, Ahmar. Quero que o senhor faça um perfume com um aroma que combine com a personalidade dela. O senhor é inigualável nessa especialidade!

Ahmar olhou Diane por alguns instantes, depois pediu de­licadamente que ela retirasse o véu e estendesse a mão para ele, Diane deu graças a Deus por poder descobrir o rosto, pois se sentia um tanto ridícula com aquele traje, como se estivesse fantasiada para uma comédia musical. Estendeu a mão para ele e sentiu os dedos finos do árabe fecharem-se sobre os seus. Sua pele parecia ainda mais branca em contraste com a dele.

De repente, Ahmar puxou a mão dela para perto do seu nariz e cheirou a pele. Meio constrangida, ela esboçou um protesto. — E mera formalidade, moça. — Ele piscou e fitou-a nos olhos, — Ouvi dizer que havia uma moça inglesa hospedada no palácio do cádi. Num lugar como este, as notícias correm depressa, sabe como é, não? Peço que nos desculpe, mas é que achamos curioso que uma moça jovem venha de além-mar para ficar entre nós. O que está achando de Shemara?

— Minha amiga ainda não viu direito a cidade — Morgana interveio. — Esta é a primeira vez que visita o Oriente, e ela ainda está estranhando um pouco os nossos costumes.

— Shemara é uma das mais antigas cidades do deserto e, ao mesmo tempo, uma das mais adiantadas. Conseguimos pro­gredir sem estragar nossa tradição. — Ahmar observava os olhos de Diane como se quisesse ler o que havia neles. — Existem cidades, no Oriente, que progridem rápido demais, devido ao turismo, mas depois são abandonadas pelos sheiks ricos, que preferem viver em outros países e aplicar lá o di­nheiro deles, enquanto o lugar perde suas características e se enche de favelas. Isso não acontece com Shemara, porque nosso sheik se preocupa com o bem-estar de seu povo. Que Alá o conserve no poder!

Diane ficou ali, parada, de boca fechada, incapaz de dizer as coisas que pensava de Khasim. Morgana confirmou a história que circulava, que Diane era sua hóspede no palácio. Mesmo que o velho não tivesse acreditado, ficou quieto e aceitou como verdade. —Agora, vamos fazer a mistura do perfume. — Ahmar apertou de leve a mão dela e depois soltou-a. — Tem de ser um aroma fresco e delicado, com uma pitadinha de sensualidade, não é?

Passaram mais de umas horas ali, entretidas, observando o velho manipular com dedos ágeis os vidros, misturando várias fragrâncias orientais, até que finalmente conseguiu o aroma apropriado para cada uma delas. Daí, ele os colocou em duas lindas garrafinhas.

— Nunca compre perfumes em vidros grandes — explicou ele a Diane. — O perfume pode ser comparado ao amor, ele evapora, se não for bem cuidado e bem guardado. Agora, tem um perfume misturado especialmente para a senhora. Ele vai se mesclar com o cheiro próprio do óleo natural de sua pele vai provocar no homem que sentir esse aroma o desejo de mantê-la junto dele. É o que todas as mulheres querem, não é?

Diane pegou a garrafinha e comparou-a com a outra.

— Meu perfume não tem nome? — perguntou ela,

— Já vou escrevê-lo no rótulo.

Ahmar inclinou-se sobre sua mesa de trabalho e escreveu uma palavra em árabe num pequeno rótulo antigo, que esten­deu para ela. Diane umedeceu-o cuidadosamente na língua e colocou-o na garrafinha.

— Deixe-me ver. — Morgana inclinou-se sobre o ombro dela para olhar. — Bem apropriado... — murmurou. — Quer que eu traduza para você?

— E claro, estou morrendo de curiosidade! O que quer dizer essa palavra?

— "Jardim Fechado".

A expressão no rosto de Diane não indicava o que estava sentindo.

— Não gostou? Para um árabe, não há coisa mais atraente e sedutora do que um jardim fechado por muros, onde as flores e as fontes ficam escondidas do mundo exterior. Ahmar lhe fez um grande elogio, portanto, agradeça-lhe e sinta-se lison­jeada — Morgana disse.

— Obrigada. — Diane sorriu para o velho. — Vou usar o perfume só em ocasiões especiais.

— Para uma jovem como você, deve haver muitas ocasiões especiais —- ele falou. — Quando temos nossa juventude, não a devemos desperdiçar com preocupações, estas devem ser pos­tas de lado para quando formos velhos, mais sábios e mais pacientes para com as complexidades do ser humano. Para cada um de nós, há uma época de rosas e mel, portanto, minha cara senhorita, caminhe pelo jardim da alegria e deixe seu coração voar leve como se fosse um pássaro. Essa é a filosofia de vida que nos ajuda a chegar à velhice com serenidade. — Alisou a barba e ficou parado, olhando as duas se afastarem.

Elas cobriram os rostos de novo, saíram da loja, seguidas pelo guarda do cádi, e tomaram o caminho de volta ao palácio.

Os perfumes da loja pareciam ter ficado entranhados nas narinas de Diane, assim como as palavras do velho não saíam de sua mente. Não podia negar que Shemara era um lugar fascinante. Se pelo menos pudesse passear por ali com os vestidos simples que costumava usar, em vez desse traje esquisito e do véu no rosto que a deixavam constrangida e pouco à vontade. Será que as moças orientais gostavam de cobrir o rosto porque isso atraía os olhares dos homens e os fazia ficar imaginando se o rosto atrás do véu era bonito ou feio?

— Por que usa esse véu, Morgana? Todo mundo sabe quem você é...

— Mas a questão não é essa, minha cara. — Morgana Olhou para Diane, achando graça. — Nunca se inventou nada mais sedutor do que um véu de seda, cobrindo o rosto de uma mulher. Ele não é um sinal de opressão masculina, mas de um senti­mento de proteção e ciúme dos homens. Quando as mulheres são tratadas de igual para igual pelos homens, a distinção dos sexos perde o encanto.

— Mais um pouco da sabedoria oriental, não é?

Os olhos de Diane tinham um brilho profundo, refletindo o azul do céu. O sol do meio-dia batia nas torres da mesquita, de onde partia um chamado para as preces, que ecoava por toda a praça do mercado.

O som estranho, que provocava uma certa emoção, foi se diluindo na distância, à medida que as duas garotas se apro­ximavam do palácio, até que transpuseram os portões e en­traram no jardim. O pátio interno, onde ficavam as fontes, estava bem mais fresco. Ali, havia árvores frondosas, que som­breavam um lago artificial para peixes, e os muros estavam cobertos de videiras em flor.

Diane ajoelhou-se na beira ladrilhada do lago e ficou olhando os peixes que nadavam rápidos na água transparente, fazendo brilhar os corpos vermelhos. Na superfície, boiavam flores-de-lis.

— Está parecendo um monge em contemplação — Morgana disse. — Será que seus pensamentos são como os de uma monja?

— Isso é quase impossível num lugar tão sensual quanto o Oriente. — Diane mergulhou os dedos na água, e os peixes se aproximaram para ver se era algum alimento.

— Acho que foi muito confiante ao vir para o Oriente, assim como agora, ao colocar a mão na água, seguindo um impulso. E se meu irmão criasse piranhas nesse lago?

— Bem, a essa altura, eu já saberia, não é?! — Diane sorriu e olhou para os peixes novamente. — Nunca me passou pela cabeça que eu pudesse encontrar um homem como Khasim no deserto.

— Mas onde mais poderia encontrar alguém como ele? — Morgana fez uma pausa, olhando para a palmeira alta que projetava no chão uma sombra rendada. — Meu irmão, Diane, é o deserto. Ele faz parte do deserto tanto quanto os falcões que voam lá ou os leopardos da areia. Será que você respondeu ao chamado das areias ou à voz de meu irmão, gritando seu nome?

— Ele nem sabia da minha existência... — Diane empertigou-se, sentindo-se tensa. — Como se isso fosse possível acontecer! Eu apenas queria conhecer o Oriente por causa de vovô, e, como Fetna fica perto das terras de seu irmão, não é tão estranho assim que tenhamos nos encontrado. Vocês são supersticiosos demais, acham que tudo acontece por algum desígnio misterioso, o destino, ou sei lá o quê. Isso é muito fatalismo! Se meu avô fosse advogado ou fazendeiro, eu não estaria aqui!

— Não, realmente não estaria — concordou Morgana. — Nem Khasim teria a cicatriz que tem. As linhas de nossas vidas começam a se entrelaçar a partir das coisas que acon­teceram a nossos pais. Se Philippe Ronay tivesse sido um pa­cífico fazendeiro, então não seria responsável pelo ataque a Beni-Haran, e nós não o conheceríamos. Durante anos, Khasim viveu com o nome de Ronay gravado na mente, e creio que o pensamento dele cruzou o espaço até onde você estava e a trouxe até aqui.

— Ele não sabia de minha existência — repetiu Diane, pro­testando. — Nunca vi uma pessoa ficar tão feroz quanto ele quando descobriu quem eu era! Pensei que fosse me torcer o pescoço... Não sei como se conteve! Creio que achou que eu deveria sofrer devagarzinho para ir morrendo aos poucos.

— Não muda de opinião a respeito dele, não é, Diane? Mas e seu coração? Será que não mudou?

— Meu coração está sofrendo pela morte de meu avô. — Diane percorreu com o olhar o pátio das sete fontes. — Ninguém vai conseguir entrar aqui, ninguém irá acreditar que o sheik me mantém presa, contra minha vontade. Todos sabem que as mulheres caem aos pés dele e se entregam submissamente. Porém, não sou como elas! Sabe o que ele me disse, Morgana? Que quando eu me apaixonar por ele, irá me deixar partir. — Diane tirou a mão da água, e as gotas que caíram sobre o ladrilho quente secaram instantaneamente. — Ele só me dei­xará voltar para meu lar, na Bretanha, quando eu...

— Você poderia fingir que o ama — disse Morgana, com calma. — Por que não se porta com Khasim do mesmo jeito que Hiriz, se quer mesmo ir embora de Shemara? Faça com que ele enjoe de você. Pendure-se em seu pescoço e encha-o de beijos. Caia aos pés dele, Diane, se esse é o preço de sua liberdade.

— Eu... não conseguiria. — Diane ergueu-se. — Não darei essa satisfação a ele!

— Se não der, o sheik a tomará de qualquer jeito. Vamos, Diane, é melhor entrarmos para comer. Andar no mercado, sentindo aquele cheiro de comidas, sempre me abre o apetite.

Morgana entrou, mas Diane ficou ali, à beira do lago, pen­sativa. Milhões de pensamentos passaram por sua cabeça com a mesma rapidez com que os peixes nadavam. Não conseguia se fixar em nenhuma idéia precisa.

Suspirou fundo ao lembrar-se da casa na Bretanha. Agora, o jardim abandonado se encheria de mato, sem o avô que cui­dava dele com tanto carinho. A mobília se encheria de pó, os livros, os soldadinhos em miniatura na mesa em que estudava as táticas de combate.

A Bretanha parecia tão distante desse exótico jardim com perfume de flores extravagante! As fontes jorravam água, re­frescando o ambiente, e borboletas coloridas, de asas sedosas, voavam entre as plantas.

Insetos zumbiam a luz dourada do sol. As palmeiras eram contornadas, imponentes e gigantescas, contra o azul do céu, e os jacarandás estavam cobertos de flores lilases.

O olhar fascinado de Diane acompanhou o vôo de uma li­bélula, até que ela sumiu entre as flores de jasmim.

Sentiu como se ela própria tivesse caído numa armadilha, que era, ao mesmo tempo, bela e aterradora. Procurou com o olhar a libélula, desejando que ela ressurgisse de entre as flores de jasmim, mas os segundos passavam, e a libélula permanecia lá, talvez traída por um perfume... talvez não querendo aban­donar sua prisão.

Os passarinhos chilreavam em uma das árvores, até que, de repente, fez-se silêncio. Uma sombra se projetou no chão do pátio, e Diane quase perdeu o fôlego ao ver o falcão voando em sua direção. A ave passou tão perto que ela chegou a sentir o deslocamento do ar. Depois, foi pousar na beirada de pedra de uma das fontes, com o olhar penetrante fixo nela. Instintivamente, Diane ficou imóvel, apesar de o coração estar pal­pitando e de a pele estar arrepiada só de pensar nas garras daquele falcão apertando sua carne.

Aquele era o falcão do sheik, treinado para matar a caça no deserto. Estava apavorada e queria correr para dentro de casa, mas sabia que, se fizesse algum movimento, por menor que fosse, talvez despertasse uma reação da ave, que poderia atacá-la.

— Isso mesmo — disse uma voz conhecida, que a fez tremer. — Fique imóvel... Foram seus cabelos, querida, que chamaram a atenção dele. Refletindo o brilho do sol, assim dourados, pa­recem a plumagem de um pássaro.

Khasim aproximou-se da fonte e estendeu o braço, coberto com um pedaço de couro, para que o falcão pousasse ali. Dos lábios dele, saiu o assobio de comando, e Diane quase nem respirava enquanto via a ave desviar o olhar que fixara nela e olhar para o dono. O sheik falou em árabe com o falcão, e, para surpresa de Diane, o enorme e assustador pássaro obe­deceu-lhe, manso, e acariciou o dono com a cabeça, embora continuasse empoleirado na fonte.

— O amor é estranho, não é?— Khasim indagou. — Ele existe até no coração da criatura mais feroz e violenta e, talvez, tenha ainda mais valor quando começa a pulsar num coração rebelde e insubordinado do que em um que seja dócil e submisso. Interessante, sabia que também encontrei Malik no deserto? Ele era novinho, estava começando a voar e tinha machucado a asa, mas mesmo assim era feroz e me machucou bastante. Minha mão estava toda ensanguentada quando cheguei à minha tenda com ele. Fiz um curativo em sua asa, e ele se recuperou depressa. No começo, recebia minhas atenções, desconfiado, cauteloso, até que acabou me aceitan­do, no entanto até hoje nenhum dos homens que me servem se atreve a chegar perto dele. Além de ser forte, ele é tem­peramental... Você foi esperta ao ficar parada. Se tivesse corrido, Malik a teria atacado.

Durante o tempo que ficou falando, o sheik fitou o falcão e não olhou nem uma vez para ela. Falou novamente em árabe, e, com um único e possante movimento das belas asas, o falcão pousou no braço dele!

— Continue parada onde está, Diane — Khasim pediu, com suavidade. — De repente, Malik pode cismar com seus luminosos olhos azuis, por isso vou levá-lo para o poleiro dele. Fique aqui até eu voltar!

Naturalmente, ela se rebelou contra a ordem dele e, assim que o viu se afastar com a ave no braço, resolveu entrar. Deu um passo e só então percebeu quanto estava trêmula, seus joelhos quase se dobraram, e ela vacilou. Apoiou-se numa das ' palmeiras, ali perto, e encostou-se no tronco esguio. Isso era ridículo. O susto já passara, o falcão não a estava mais atocaiando. Agarrou com força o tronco da palmeira, tentando se recuperar. Nesse momento, o sheik reapareceu e aproximou-se dela, com a túnica azul esvoaçando e os olhos semicerrados, fitando-a. Então, ela sentiu que aqueles olhos escuros e pro­fundos eram tão perigosos quanto os do falcão.

Ele sorriu ao ver como ela se agarrava à palmeira.

— Não precisa mais ter medo — Khasim disse suavemente. — Você vai voltar para casa, onde é seu lugar...

Diane ergueu os olhos para ele, sem saber que refletiam o azul do céu onde o sol ardia, como uma labareda. O rosto moreno do sheik estava tenso. De repente, ela ouviu um estalido de algo se partindo. Era o cabo do chicote, Khasim o havia quebrado com as mãos. Depois, jogou o pedaço longe, num gesto de raiva.

— Não ouviu o que eu disse, menina? Vou levá-la, a cavalo, até Dar-Arisi. De lá, você poderá tomar o navio que a levará de volta ao seu lar, na Bretanha.

— Lar? — ela repetiu, com amargura.

Não pôde deixar de imaginar o casarão fechado, escuro e silencioso. Talvez o único ruído ali fosse o do tique-taque do relógio de parede. A porta do escritório do avô ficaria fechada para sempre, a cadeira dele vazia...

— É isso mesmo. E, desta vez, vou cavalgar pelo deserto com você para garantir que chegue sã e salva ao hotel. Par­tiremos ao pôr-do-sol. É melhor viajar depois que a areia re­frescar um pouco do calor do dia, e esta noite teremos a lua cheia para iluminar o caminho.

— Por que está fazendo isso? — ela perguntou, sentindo um nó na garganta.

— Porque é o que deseja, Diane.

— Mas você nunca usou essa tática comigo, sheik Khasim.

— Mudei de idéia — disse ele, quase com rudeza. — Um homem pode mudar, não pode? Acabou-se a dívida de Ronay! Eu não estava certo, pretendendo que você a pagasse.

Diane continuou onde estava, apoiada na árvore. Agora, sen­tia-se ainda mais fraca e trêmula. Olhou para o peito dele, os ombros largos e fortes cobertos pela túnica, em seguida ergueu o rosto devagar, fitando sua face e depois se detendo na cicatriz. De repente, sentiu um impulso irrefreável de tocá-la e, num gesto impensado, estendeu a mão para o rosto dele.

O sheik ficou imóvel.

— Diane... estou me esforçando para manter o controle até chegar a Dar-Arisi com você, portanto afaste a mão.

— E uma cicatriz tão profunda... — murmurou ela. — Não é à toa que tenha provocado tanta amargura! Você queria aca­bar comigo, como o falcão, não é?

— Sim. — E, com uma fúria mal contida, ele estendeu as mãos e segurou-a pelos ombros. Os olhos de Khasim faiscavam, e o rosto tinha uma expressão quase selvagem. — Todas as palavras cruéis que eu disse a você foram sinceras, mas, cada vez que eu agia assim, meu desejo era acariciá-la até que ge­messe de amor e desejo em meus braços. Todas as noites que passou aqui no palácio, eu próprio fiquei de guarda na porta do seu quarto e só eu sei o esforço que precisei fazer para não entrar e ir até você. Agora, chegou'a hora, é melhor você ir embora, Diane. Você me tornou vulnerável... Tornou-me cons­ciente da minha solidão. Tocou meu coração de uma maneira estranha e suave. No entanto, só provoco medo em você.

O coração dela batia, descompassado, mas seria de medo? O que estava sentindo não era medo, era uma espécie de sa­tisfação, uma alegria imensa! Seria porque ele falara em levá-la a Dar-Arisi para que voltasse para casa, na Bretanha? Con­siderou essa hipótese, porém percebeu que não conseguia ad­miti-la sem titubear. Imaginou-se despedindo-se de Khasim ben Haran, o árabe que a capturara.

— Não... — A palavra escapou-lhe dos lábios. — Eu não poderia suportar!

— Pois é! Por isso, resolvi que pode ir embora. Irei com você, para escoltá-la, não quero que nada lhe aconteça...

— Não quero ir embora! — Ela apertou o rosto contra o peito dele, trêmula.

Era um tremor estranho, uma espécie de excitação, a mesma coisa que sentira naquela manhã em que saíra para ir a Petna e entrara no deserto pela primeira vez, enfrentando a imensidão silenciosa, que achara ao mesmo tempo aterradora e deslumbrante. Quando o cavalo galopou com ela pelo oceano de areia, talvez Diane já tivesse intuído que estava se afastando para sempre da vida pacata e entrando no domínio do perigo, da paixão e do romance, que a esperavam na cidade de Shemara. Uma cidade sombreada por grandes tamareiras, cheia de pequenas e estranhas lojinhas, de casas de pedra, com um cheiro forte das exóticas especiarias do Oriente.

— Sabe o que está dizendo? Está falando sério? — O sheik segurou-a de leve pela nuca, fazendo com que ela o encarasse. — Sou um árabe, Diane. Se você for minha, tem de ser por completo. Cada pedacinho de você pertencerá a mim. Será que pode compreender meu jeito de amar?

— Se consegui enfrentar seu ódio, acho que saberei enfrentar e compreender o seu... amor. — Ela disse a última palavra ainda hesitante, como se tivesse medo de admitir que amava aquele homem, o pior inimigo de seu avô.

— Não se trata de enfrentar, estrangeirinha. Não é assim que pretendo me entender com você...

Com um sorriso malicioso e terno, ele a ergueu nos braços e fez menção de carregá-la para dentro do palácio.

— Khasim! — Ela se debateu um pouco, sem muita convic­ção. — Talvez seja melhor eu voltar para a Bretanha...

Ele parou imediatamente, com ela ainda nos braços.

— Não brinque comigo, Diane. A escolha é sua, pode ir ou ficar, mas se decida de uma vez porque será para sempre!

Ela encostou a cabeça no ombro do sheik e sentiu o perfume da pele dele, que já se tornara tão familiar e que acendia uma labareda dentro dela. Porém, no fundo de seu coração, surgiu uma dúvida quanto às intenções dele.

— Serei sua... kadinei — murmurou, perto do ouvido de Rhasim, temendo a resposta.

— Minha o quê? — ele perguntou, não contendo o riso. — Mas que idéia é essa? Por Alá! Vou me casar com você, mocinha! Pensei que estivesse me entendendo...

Os olhares se encontraram. O dela mais intenso do que nunca, com um brilho novo, e o dele profundo e sensual, como se penetrasse a alma de Diane. O sheik murmurou o nome dela e inclinou a cabeça até que seus lábios se encontraram. Foi um beijo apaixonado e terno.

— Por Alá! Teremos de enfrentar oposições — ele a avisou, beijando-a de leve nos olhos. — Meu povo espera que eu me case com uma moça de Beni-Haran. Agora, preciso convencê-los de que eu tinha de ter você. Estava escrito! Soube disso no dia em que a encontrei semimorta no deserto. Você era o último elo de Konay com a vida e cruzou mares e areias para vir me encontrar. E quase como se ele a tivesse mandado para mim. Eu a quero só para mim, Diane, e a terei! O povo de Beni-Haran terá de aprender a aceitá-la. Pode demorar um ano aproxima­damente, mas acabará acontecendo.

— Um ano?

Diane acariciou-o na nuca e percebeu que o sheik gostava de ser tocado por ela. Ele semicerrou os olhos, desfrutando o prazer da carícia. As pálpebras grandes, os cílios longos e es­curos... O rosto dele era tão sensual que Diane se sentia der­reter por dentro só de olhá-lo.

— Talvez tenhamos sorte e leve apenas nove meses depois de nossa primeira noite de casados.

— Khasim!

— De-me um filho homem, querida, e meu povo irá achá-la tão adorável quanto acho!

— Khasim...

Ele se apossou dos lábios macios de Diane, beijando-a com paixão. Por cima de suas cabeças, um bando de pombos passou em revoada, cortando o azul do céu, enquanto os dois entravam no palácio.

 

                                                                                            Violet Winspear  

 

                      

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