Nicholas apartou sua cara da massa de carne e tendões que até fazia pouco tinha sido um pastor espanhol. A brisa arrastou um reguero de saliva escarlate que escorregava pelo bordo de sua boca e a jogou sobre a presa daquela tarde. Farejou o ar. elevou-se quão comprido era, e voltou a farejar.
O agora desatendido rebanho se dispersou quando Nicholas caiu sobre o pequeno ancião. O pastor não teve sequer tempo de defender-se ou gritar pedindo ajuda. Com o pescoço quebrado e a garganta aberta em canal, seu sangue tingiu a terra de seus pais.
Nicholas não cheirou nada ameaçador no ar. Nevado-los Pirineos estavam, além de algum balido ocasional e ansioso, em completo silêncio. Mas, apesar disso, o caçador não sentiu nenhum alívio.
A seus pés, o cadáver resultava uma silenciosa acusação. Nicholas não tinha querido assassiná-lo, a não ser simplesmente alimentar-se dele. Não necessitava muita sangue. Poderia ter deixado ao enrugado pastor com vida, dormindo obstinado a sua bota de vinho.
Não estava preocupado pela ruptura da Mascarada. Para ele não era mais que uma covarde concessão ao mundo dos mortais, imposta aos clãs da Camarilha pela intriga dos Ventrue. O que lhe preocupava era a imprudência de sua última caça. Como Gangrel que era, Nicholas não imitava as ineficazes e absurdas costumes da sociedade mundana. Vivia, em troca, como um depredador solitário. Estava acostumado a deixar-se guiar por seu instinto. Mas esta morte... tinha ido muito além de um impulso instintivo. Tinha sido um ato governado pela selvagem fúria que aninhava no mais profundo do coração do Nicholas.
A maldição do sangue. Sabia que esta era a causa.
......
Seus ancestros (Ragnar e Blaidd, velhos, poderosos, desaparecidos muito tempo atrás), cuja sombra e cuja lembrança tinham estado fazendo valer seus direitos sobre seu sangue cada vez com maior força, tinham-no abandonado tão repentinamente como aparecessem, lhe deixando tão solo uma fúria anciã e pura a que Nicholas se havia entregue sem remédio. Os insistentes pensamentos que o impulsionavam a procurar vingança contra Owain Evans se foram. Quanto o amigo do Nicholas, Plumanegra, tinha-lhe ensinado, se tinha ido também. Só ficava o anseia de sangue, imperativa e devoradora. O mutilado pastor era prova terrivelmente eloqüente de isso. Só recordando o ataque a fúria voltava a aparecer, elevando-se do interior como a bílis a ponto de ser vomitada. E com ela vinha o medo.
Nicholas não havia tornado a perder o controle de si mesmo tão completamente desde aquela noite no imóvel do Owain, em Atlanta. Suas vísceras pareciam estar ardendo; uma fome ardente começou a apoderar-se de sua vontade, apesar da presença do cadáver recentemente devorado sobre a terra. Nicholas sentiu que sua própria mente, seu vontade, retrocediam frente à irresistível fúria. observou-se a si mesmo, como se fora um estranho, saltando sobre uma ovelha próxima. As garras se cravaram profundamente em seu corpo, e o fluido vital de a patética besta fluiu para ele. Nicholas bebeu então com avidez, enquanto foram cessando as convulsões do animal, e o sangue se verteu sobre suas pernas e seus pés. elevou-se sobre o corpo morto de a ovelha e lançou um triunfante rugido para a noite.
O Gangrel sentiu como suas garras se abriam passo através da lã e da carne. Notou o familiar sabor do sangue que jorrava para sua boca. Mas não era mais que um simples espectador da matança. Incapaz de intervir, assistiu, cada vez desde mais e mais longe, ao macabro espetáculo de si mesmo, caçando uma ovelha detrás de outra. Com cada litro de sangue derramado, afogavam-no um pouco mais a fome e a fúria.
E o sangue seguiu sendo derramada.
Os ramos da árvore vivente, os malévolos brincos, se enroscavam em torno de Owain, sujeitando-o fortemente pelos braços e o torso. debateu-se recorrendo a toda seu sobrenatural força, sem conseguir nada. Os ramos, cadeias e grilhões de madeira que se estreitavam mais quanto mais violentamente lutava, estavam-no aprisionando com rapidez.
Um relâmpago no céu iluminou a uma figura que permanecia junto ao Owain sobre a crista da colina. Era um ancião. Um vento racheado agitava sua escura barba e seu traje branco. O trovão fez tremer a colina. O ancião tinha na mão uma vara, mas não o utilizava para apoiar-se. Em troca, a blandía em direção ao Owain, agitando-a frente à cara do vampiro prisioneiro.
Owain estava indefeso. Os ramos se enroscavam em torno de seu pescoço, e sujeitavam suas pernas até a altura dos joelhos. Lutou contra as cadeias de madeira, mas em vão. Era o cativo objeto de a ira do velho. De novo, o homem apontou com sua fortificação ao Owain e, elevando a voz sobre o estrondo que enchia a colina e o céu, disse:
--Convoca em seu auxílio quantas noites se puseram. -O rubor tingia suas bochechas e seu calvo crânio; manchones avermelhados revelavam seu ira-. Eu, José o Menor, advirto-te: não te servirá de nada.
As familiares palavras assaltaram ao Owain. Os ramos apertaram ainda mais seu abraço, como se compartilhassem a ira do ancião. Posto que não respirava, Owain não podia ser asfixiado, mas seus ossos e articulações começavam a chiar e ameaçavam fazendo-se pedaços ante a implacável pressão. Mas apesar da insuportável agonia, não podia apartar aqueles olhos de um azul cinzento que o observavam com fúria.
--A sombra do Tempo não é tão alargada como para que possa te esconder baixo ela -disse o ancião. Suas palavras estalaram nos ouvidos do Owain, por cima inclusive do rugido do vento e do incessante estalo continuado das folhas, que se estremeciam furiosamente formando redemoinhos sobre o chão, e do tremor se sacudiam no ar e se agitavam estendendo-se para a escuridão.
Enquanto o ancião falava, um dos ramos da árvore vivente desenroscou-se e se apartou ligeiramente do Owain. A ponta se apertou contra seu peito.
O ancião tomou o fortificação com ambas as mãos. Sua ira parecia ter alcançado o cénit. Elevando o fortificação para os céus, bramou sobre a tormenta.
--Este é o Fim dos Tempos.
Súbitamente, o ramo que tocava o peito do Owain retrocedeu. A ponta ser tinha transformado em um espinho gigante, tão afiada como uma espada. A luz do relâmpago cintilou por um instante sobre o afiado extremo, e então descarregou seu golpe com assombrosa velocidade. O espinho fez pedacinhos as costelas que protegiam o coração do Owain, e a madeira vivente rasgou o vulnerável órgão.
Em seus últimos instantes de vida, Owain jogou a cabeça para atrás, um uivo de agonia aceso de seus lábios...
--Senhor? Senhor...!
Os olhos e a boca do Owain se abriram completamente. A dor arqueou suas costas e cada músculo de seu corpo ficou tenso.
--Senhor...!
Os ramos sacudiram o corpo do Owain. Não... não os ramos, nem a árvore. Uma mulher, inclinada sobre o Owain, sujeitava-o pelos ombros e o estava sacudindo.
--Senhor! Vai tudo bem?
Owain se apalpou o peito com ambas as mãos. Nenhum apêndice de madeira atravessava sua carne. desabou-se sobre o assento, deixando escapar de seus lábios um gemido de medo e alívio a um tempo.
Kendall Jackson ainda sustentava ao Owain pelos ombros. Seus escuros cabelos caíram sobre seu rosto, cobrindo-o, enquanto se inclinava sobre ele.
--Senhor?
Owain o propinó uma bofetada que a enviou cambaleante através da pequena sala.
--Não me toque! -exclamou bruscamente.
Ela chocou contra a parede do outro extremo, e escorregou até o revisto com uma careta grafite no rosto. Permaneceu ali onde tinha cansado, observando-o, embargada por uma confusão dolorida. Enquanto isso, Owain tomava consciencia de quanto o rodeava: um compartimento estreito e alargado; assentos de respaldo alto, e tapeçaria de couro; uma exuberante atapeta oriental; mesas de mogno ao outro lado de um corredor de apenas setenta centímetros.
Contribuía a aumentar sua desorientação o fato de que todos aqueles acessórios e móveis que via seu redor não eram mais que uma coleção de mentiras. A cena, ostensiblemente o interior de um compartimento de luxo de um trem do século dezenove, não era o que sua aparência dava a entender. O tapete não era uma cópia exato da que alguém tivesse podido encontrar-se de viajar em um trem da já desaparecida Linha de luxo Oswood entre Boston e Nova York; e os assentos não eram bancos realmente restaurados, provenientes dos vagões confiscados ao prestigioso Serviço Wroughton de Londres. Todos aqueles objetos, falsificações, haviam sido escolhidos com o único objeto de recrear uma aparência.
Owain deslizou a mão ao longo da suntuosa e acolchoada superfície do couro de seu assento. Sobre cada botão se gravou a letra "G". Owain sabia que muitos Cainitas se encontravam inclusive menos cômodos que ele com os modernos métodos de transporte. Muitos anciões, cuja necessidade ou sequer desejo de viajar haviam desaparecido muitos anos atrás, não se dignariam a pôr o pé em um artefato impulsionado por combustão interna. E outros, incomprensiblemente em opinião do Owain, recusavam confiar seu segurança ao vôo mecanizado.
O compartimento em particular representava o intento por parte dos Giovanni de acomodar a estes últimos; aqueles Cainitas que, por alguma necessidade inesperada, deviam atravessar o Atlântico mas careciam dos meios para organizar uma viagem mais civilizada ou mais acorde a suas inclinações. Com um pouco de imaginação, podiam chegar a convencer-se de que estavam sendo transportados por trem, e não por a graça de Deus e da moderna tecnologia.
Embora Owain cultivava um agudo cepticismo no referente ao vôo, também era consciente, inequivocamente, de que naquele momento se encontrava a milhares de metros por cima do oceano. A presença da decoração ferroviária lhe trazia sem cuidado. Havia tido que abandonar a Espanha a toda pressa, e o único reator disponível tinha sido este. Nem que dizer tem que tinha pago aos Giovanni uma soma suficiente para comprar um avião. Tal era o preço da eficácia e a rapidez.
Owain devesse ter sido capaz de descansar com facilidade. Ele e sua criada Kendall havia por fim conseguido escapar da armadilha mortal em que Toledo tinha acabado por converter-se. Ou, mas bem, em que Owain tinha acabado por convertê-la.
Durante décadas, Owain tinha vivido como um ancião da Camarilha, enquanto mantinha suas conexões com o Sabbat na clandestinidade. Entretanto, quando a pedido de seu antigo amigo O Grego tinha tentado fazer-se passar por um ancião da Camarilha para infiltrar-se em uma facção rival do Sabbat, Owain havia, apenas em prazo de um punhado de noites, falhado miserablemente.
A ironia nunca cessa. Pensou.
Tratou de ponderar as graves repercussões que haviam acompanhado a esta ironia em particular. Owain tinha observado, de um telhado próximo, como Carlos, o rival do Grego no Sabbat, queimava a fazenda do, por então, amigo do Owain e aniquilava ao ancião Toureador junto a todos seus serventes, entre eles o chorão do Miguel. Foi uma lástima, pensou Owain, que Miguel houvesse de morrer à mãos de outro. O que outra vantagem pode ter uma disputa de séculos se não ser a do prazer que proporciona lhe pôr fim pessoalmente?
Todo o assunto do Toledo poderia ter resultado por completo diferente se O Grego tivesse sido capaz de expor ao Owain a situação de uma maneira mais precisa. Em vez disso, o velho Toureador tinha-lhe oculto o fato de que Carlos já tinha tratado de lhe arrebatar o controle da cidade outras vezes no passado. E este era um detalhe de certa importância. Mal informado, e irritado pela natureza obrigatória de sua missão, Owain se tinha conduzido com estupidez. Inclusive as escassas horas transcorridas desde sua fuga o emprestavam a suficiente perspectiva para dar-se conta disso. Precavendo-se muito tarde do frágil de sua posição, Owain tinha errado miserablemente e, ao final, tinha sido O Grego quem pagasse o preço.
O falecimento do Grego provocava no Owain emocione mais ambivalentes que o do Miguel. Mas tampouco muito. Owain e O Grego tinham sido amigos durante várias centenas de anos, mas entre os Cainitas a amizade não era tanto um laço duradouro e um compromisso, como um incomum acidente das circunstâncias; um que, indevidamente, acabava por tornar um enredo de manipulação emocionalmente incestuoso. Certamente, as relações do Grego e Owain tinham seguido este caminho. Quando O Grego forçou ao Owain a participar de sua conjuração contra Carlos, as antigas apreensões do Owain tinham terminado por cobrar forma, e qualquer sentimento quente que ainda abrigasse para O Grego tinha terminado por murchar-se. depois disso, não tinha sobrevivido muito tempo.
Não é que Owain tomasse a resolução do drama como alguma classe de moral (o intrigante Toureador que caía vítima de sua própria e traiçoeira intriga), em que a morte do Grego fosse resultado do julgamento divino. Mas bem ao contrário. Owain não albergava ilusões ao em relação a sua própria moralidade e heroísmo. Em seu momento, ele mesmo tinha concebido e desenvolvido planos de enorme baixeza. Havia sido, sem a menor sombra de remorso, martelo dos oprimidos e os derrotados. A única diferença entre ele mesmo e O Grego era que, enquanto este era agora uma pilha de cinzas que muito em breve seriam esquecidas, Owain ainda caminhava sobre a terra.
Mas bem, Owain considerava a morte do Grego como uma espécie de comédia dos enganos. A demência do Toureador lhe havia voltado incapaz de aceitar a realidade, de reconhecer que tinha deixado de ser o grande poder que um dia fora. Demência não, decidiu Owain, vaidade. E agora, O Grego já não existia.
Ao longo dos séculos, Owain não só tinha aprendido, mas também também, freqüentemente, tinha sido utilizado e pisoteado por esta, a primeira e principal lição da História: a justiça divina não existe. A malévola Divindade observava Sua criação com olhos frios e inmisericordes. De fato, Sua divindade só residia no fato de que Sua crueldade e Seu afã de vingança ultrapassavam com muito os de qualquer criatura mortal.
A entrada do avião em uma zona de turbulências distraiu ao Owain de suas reflexões filosóficas. Voltou sua atenção para quanto o envolvia, para aquela frágil imitação de um vagão do século dezenove. Enquanto o avião, junto com todos os tripulantes e passageiros, ascendia e descendia bruscamente, advertiu que não havia guichês depois das cortinas fechadas da cabine. Uma precaução funcional, em meio de toda aquela decoração supérflua, para proteger à clientela específica do clã dos Giovanni. Nenhum Cainita quereria encontrar-se, como resultado de uma decolagem apressado ou uma aterrissagem a fora de tempo, com a bem-vinda do sol da amanhã.
De fato, Owain se deu conta, os raios do sol deviam estar banhando o exterior do aparelho naquele preciso momento. Kendall e ele tinham chegado a Madrid pouco antes do amanhecer, e não podiam ter estado em vôo mais que umas poucas horas. Ao menos, isso explicaria em parte a extrema letargia mental em que se viu sumido quando tinha despertado de suas visões.
As visões. Involuntariamente, Owain se estremeceu. Um prelúdio da loucura? O primeiro sintoma da maldição da sangue? Tinha estado constante e ativamente tentando as manter afastadas de sua mente desde que começassem a manifestar-se, semanas atrás, e agora não era o momento de trocar de idéia. sentiu-se como se se drogou enquanto a preguiça do dia ganhava para si. Fechou seus olhos. Mas o avião voltou a sacudir-se e trepidou sob seus pés.
Naquele momento Owain reparou em que sua faxineira continuava sentada ao pé da parede do lado oposto, olhando-o fixamente. Não a tinha golpeado intencionadamente, mas sim por reflexo. Até aquele momento, Owain jamais lhe tinha posto a mão em cima. Mas assim era a vida de um ghoul, completa e constantemente a mercê dos desejos, caprichos e arrebatamentos de humor de seu domitor, de quem dependia o fornecimento daquele sangue que o elevava sobre o resto dos mortais e prolongava sua vida. Certamente, existiam professores muito piores que Owain. O abusar de seus servidores não era um hábito nele. Estava o caso do Randal, ao que Owain havia despachado sem muitas cerimônias não fazia muito, mas Owain sentia que naquele caso particular tinha sido provocado mais que suficiente. A disciplina devia ser mantida.
--Vêem -chamou o Kendall com um gesto-. Sente-se.
Ela deixou transcorrer apenas um instante antes de cumprir com o que lhe pedia. Sua obediência afligia qualquer vacilação que pudesse sentir. Como deve ser, pensou Owain, admirando um instante a sua criada e felicitando-se pelo acertado de sua eleição.
Kendall tomou assento junto a ele. Owain inclinou a cabeça para atrás e fechou os olhos enquanto lhe falava:
--Suspeito que não demoraremos muito em chegar a Atlanta. te encarregue de que não me incomode até depois da posta do sol. -Sentiu o silencioso movimento de assentimento dela.
Pese ao cansaço provocado pelas calamidades ocorridas a noite anterior, o verdadeiro descanso evitava ao Owain. Relaxou os punhos, forçou-se a apoiar as mãos sobre os joelhos, e tratou de relaxar-se. Aqueles últimos dias não tinha recebido a chegada do sonho com muita alegria, porque freqüentemente vinha acompanhado pelas visões, e sempre por sua ameaça. Entretanto, esta distava muito de ser a única, ou sequer a maior, das preocupações do Owain.
Embora era certo que suas conexões pessoais com o Sabbat tinham morrido junto Ao Grego, não o era menos que Carlos não necessitava evidências indiscutíveis para lançar-se em sua perseguição. O testemunho do traidor, Javier, unido à fuga do próprio Owain, seriam provas mais que suficientes para o Carlos. E, além disso, quereria ajustar as contas com ele. depois de tudo, Owain não tinha vacilado em expressar em voz alta sua certeza de que Carlos era o responsável de que se desencadeou a maldição do sangue sobre a sociedade Cainita. Só isto poderia impulsionar ao Carlos a persegui-lo e a atacar inclusive através do oceano Atlântico. E posto que aquele néscio Gangrel descendente do Blaidd, Nicholas (acaso não era esta uma complicação imprevista?, pensou), tinha revelado a identidade de Owain, não havia já névoa do anonimato em que poder desvanecer-se. Ou acaso, perguntou-se, sentaria-se Carlos a vigiar e esperar durante anos e anos até que o momento idôneo para seu vingança acabasse por apresentar-se? Em qualquer caso, o imóvel de Owain ia, por necessidade, a transformar-se em uma fortaleza, uma inclusive mais segura que aqueles castelos que o tinham protegido de as ameaças durante sua vida mortal.
além dos perigos reais aos que indubitavelmente se enfrentava, um abatimento do espírito afligia ao Owain. Caiu sobre ele com a te esmaguem força do peso de todos seus anos. Aqui estou de novo, fugindo da Europa, pensou. Sempre fugindo de todas partes. Sempre fugindo de alguém. Quase setecentos anos atrás havia abandonado sua pátria, Gales. Fugindo. depois de quase dois séculos de lutas e decepções, era certo, mas fugindo ao fim e ao cabo. Seu ulterior residência na França tinha concluído precipitadamente depois de um intervalo de tempo grandemente mais curto. A fuga tinha sido a decisão mais sábia e prudente, e o fato de abandonar permanentemente a inflexível a França e seus costumes não tinha resultado para ele um grande sacrifício. Mas mais tarde, na Espanha, tinha fugido inclusive da própria no-vista, retirando-se a uma letargia prolongado. Ao emergir de novo a consciencia não tinha sido capaz de reencontrar a paixão e o ardor que tinham alimentado seu existência mortal. Era como se algo naquele estendido sonho houvesse minado o fogo de sua alma, deixando-o reduzido a um autômato parasitário. De novo, a migração tinha parecido um remédio plausível, mas tinha resultado pouco mais que uma mudança de residência, enquanto o já familiar vazio permanecia em seu lugar.
Por fim, nos últimos meses, sua intumescida existência tinha sido estremecida e de novo se tinha visto exposto às tumultuosas emoções dos vivos: ira, dor, desengano. E apesar de tudo, por gelados que tivessem sido os anos de seu vazio, Owain tivesse estado disposto a retornar a ele. O apagado mal-estar do aborrecimento era preferível a aquela renovada, martilleante agonia de esperanças insatisfeitas e sonhos feitos pedaços.
As visões só aumentavam aquela dor.
Sua aparição tinha coincidido com o descobrimento por parte de Owain da sereia. Como uma criatura mitológica, seu lhe enfeiticem voz o tinha atraído, seduzindo-o com visões de sua pátria. E inclusive, o que resultava ainda mais milagroso, a inocência e profundidade encerrada nas notas da voz da sereia tinham permitido ao Owain, por primeira vez em séculos, sentir de novo a paixão pelas colinas de Gales, experimentar uma vez mais o amor por aquela que lhe havia sido negada em vida, e cuja lembrança tinha mantido pego a seu coração durante todos esses anos. Angharad.
Maldita seja! Owain se amaldiçoou. Não podia escapar de seu nome.
Não temia tanto as visões porque estivessem povoadas de figuras ameaçadoras e vozes apocalípticas que o assaltavam, mas sim porque a contemplação das maravilhosas terras e o duradouro amor de seus primeiros anos resultava insuportável. Porque o retorno da paixão e o amor haviam trazido consigo uma maior consciencia de sua perda e da dor. Oxalá fora insensível. Amaldiçôo-a. Em uma só noite, a sereia tinha derrubado muros que ao Owain tinha levado séculos levantar. merece-se o que lhe ocorreu.
por que, então, perguntou-se, sentia um ressentimento tão agudo para o Príncipe Benison, quem tinha ordenado seu destruição? Acaso porque Owain estaria disposto a suportar qualquer tortura com tal de voltar a ouvir aquela canção só uma vez mais?
Abriu os olhos bruscamente. Aquele fio de pensamentos, decidiu, não o levava a nenhuma parte. Kendall, sentada a seu lado, observava com ar preocupado sua agitação.
--Tão pequena é a sala -disse secamente- como para que tenha que te sentar virtualmente em cima de mim?
Sem protestar, Kendall se mudou a um assento mais afastado.
Mas o verdadeiro descanso seguia evitando ao Owain. Embora as visões se mantinham a distância, sua mente estava povoada por as imagens do Toledo: do curvado O Grego; do Miguel e seu irritante sorriso; do Carlos, presumido em sua vitória; daquele condenado Gangrel; das chamas estendendo-se ao longo de toda a morada do Grego. O episódio completo tinha sido uma travessia de derrota e perda. E, uma vez mais, o nome do Angharad tinha sido cruelmente pendurado diante do Owain como a cenoura diante do burro. Projeto Angharad. Como tinha chegado seu nome a estar envolto com a maldição? Coincidência? Owain não acreditava em coincidências. Não enquanto um cruel enganador fora o que levasse os atavios do Divino Criador.
Um suspiro prolongado escapou de seu peito. Tinha vivido tanto, e ao mesmo tempo tão pouco... "Paz", murmurou, enquanto o sonho do sol o tomava por fim entre seus braços. Quando tinha sido a última vez, se perguntou com amargo assombro, em que lhe tinha sido concedido um momento de paz? Se simplesmente tivesse tido a morte de um mortal, lá no Gales...
Mas não tinha sido assim.
Agora, uma vez mais, as visões retornaram.
O insidioso ruído proveniente do telefone despertou ao William Nen. Torpemente se estirou para ele e desprendeu o auricular no preciso momento em que soava o segundo timbrazo.
--Sim?
--Dr. Nen?
--Ao aparelho.
--Os corpos que examinou... de onde vieram?
--O que...? Corpos?
--Quanto tempo calcula que acontecerá que esta nova febre hemorrágica se estenda por todo o país? Qual acredita que poderia ser o número de vítimas?
Ainda não acordado por completo, e não muito seguro do que estava ocorrendo, William pendurou o telefone. Voltou a soar imediatamente. Em lugar de responder, desconectou o aparelho e se arrastou fora da cama para fazer o mesmo com o outro. Médio atento à voz do jornalista enquanto era gravada pela secretária eletrônica automático, William recolheu o periódico na soleira da porta, e foi dar-se de bruces contra o pasmoso titular: O CCE TEME UMA EPIDEMIA MUNDIAL.
Conmocionado, devorou o artigo do Atlanta Journal-Constitution. Nele se apresentavam feitos e dados que pareciam tirados do relatório que tinha estado redigindo a noite anterior. O mesmo relatório que Nen recordava perfeitamente ter deixado na parte esquerda de seu escritório quando, depois de um sábado inteiro comprovando dados e resumindo conclusões, correu a casa para passar um momento com sua mulher. O mesmo relatório que tinha planejado lhe entregar pessoalmente, a primeira hora da segunda-feira pela manhã, ao diretor do Centro de Controle e Prevenção de Epidemias.
Como era possível que o relatório, recém terminado, houvesse chegado já aos periódicos? Nen tinha trabalhado durante semanas em um isolamento quase completo. Sua supervisora, Maureen Blake, havia tratado de persuadi-lo para que abandonasse a investigação. Provavelmente supôs que ele o teria feito. Mas Nen havia perseverado. Não podia esquecer as caras de todas as pessoas às que, ao longo dos anos, não tinha conseguido salvar. Mães e meninos em o Suam ou no Zaire. Visitavam seus sonhos acusando o de não preocupar-se com eles, de não tentar salvá-los. E assim, a pesar do conselho do Blake, Nen tinha seguido adiante. Não podia simplesmente deixar de investigar uma potencial febre hemorrágica que podia lhe custar a vida a centenas ou a milhares de seres humanos... Umas baixas que poderiam ser evitadas, ao menos em sua major parte, se se tomavam medidas necessárias a tempo.
Contemplou boquiaberto o periódico. Isto não tinha nada que ver com as necessárias medidas nas que tinha pensado. Campanhas de informação ao público, acalmadas e racionais, e uma quarentena aplicada em seu momento ali onde fosse necessário, estratégias responsáveis que sim podiam evitar uma epidemia. Esse titular, ao contrário, cheirava a sensacionalismo barato de imprensa amarela, e podia desatar a histeria coletiva.
meu deus. William se cobriu o rosto com as mãos. Como há podido ocorrer isto?
Tinha solicitado a ajuda de seu amigo, o patologista Martin Raimes, para analisar algumas das amostras de sangue, mas Martin nunca tinha estado à corrente do alcance e a magnitude das hipótese de Nen. Inclusive se alguém tivesse conhecido cada detalhe de seu trabalho, e tivesse tido acesso ao relatório sobre seu escritório, por que razão o tivesse dado a informação aos meios de comunicação? E como podia o AJC haver impresso o artigo tão depressa? Materialmente, não tinha havido o tempo suficiente como para que um jornalista confirmasse a fidelidade dos dados, ou nem sequer para que falasse com outro especialista. De fato, o artigo não vinha acompanhado de nenhuma declaração de apoio. Só apresentava a informação e as conclusões do relatório do Nen.
O telefone seguia soando. A secretária eletrônica recolheu chamada detrás chamada de diferentes jornalistas que pretendiam entrevistar ao William. Embora seu nome não se citava no artigo, o tinham encontrado de algum jeito.
Leigh penetrou arrastando os pés na cozinha, dirigindo-se em linha reta para a cafeteira.
--No nome de Deus... o que é o que está ocorrendo?
Nen sustentou o periódico frente a seus olhos para que o visse.
--OH...
As coisas não trocaram muito o resto da manhã e aquela tarde. Ao cabo de umas horas, a memória da secretária eletrônica automático se encheu por completo. Eventualmente, Leigh acabou por desconectar os telefones da linha. Por volta da tarde, vários jornalistas tinham obtido já dar com a casa. William se plantou, de pé frente a eles, sem fala, enquanto os brilhos dos flashs o cegavam e o eram arrojadas perguntas a gritos, até que Leigh se adiantou e interveio:
--Esta é nossa casa! -exclamou-. Terão que esperar até amanhã para que lhes respondam suas perguntas, no CCE.
Aquela noite, quando o timbre da porta soou acontecidas as dez da noite, Leigh se levantou de um salto, ávida de sangue.
--vou carregar me a esses parasitas!
aproximou-se ruidosamente à porta principal e a abriu sem contemplações. Do interior da casa, William pôde notar como o tom de sua voz trocava de repente.
--Doutora Blake... perdoe. Pensei que se tratava de um jornalista.
William se reuniu com sua mulher na porta.
--Olá, Maureen.
A Doutora Blake devolveu a saudação com um gesto da cabeça. Vestia como quando se encontrava no trabalho: calças, um bonito suéter, sapatos planos. Sempre conseguia impressionar a William com seu profesionalidad e seu temperamento equilibrado. Aquela noite não foi a exceção.
--Parece que tenham tido um dia realmente largo.
--poderia-se dizer assim -disse Leigh.
--Chamei antes, mas não responderam.
--Havíamos... este... desligado o telefone da linha -explicou William. sentia-se de repente sobressaltado, como se tivesse feito algo mau-. Os jornalistas estiveram chamando todo o dia. Maureen, não tenho nem a menor ideia de como puderam...
A doutora Blake levantou uma mão para fazê-lo calar.
--Eu não me preocuparia muito por isso, William. Acreditam saber o que ocorreu. Mas, se não te importar, eu gostaria que me concedesse um pouco de seu tempo para discutir como vamos dirigir à imprensa. Assim terá uma idéia clara de como te comportar antes de você comparecimento de amanhã. Importaria-te vir um momento comigo?
William apareceu a olhar sobre o ombro do Maureen. Estacionada sobre o meio-fio esperava uma limusine negra e alargada.
--Cidadãos responsáveis -ofereceu a modo de explicação a doutora Blake.
--OH -todo aquilo resultava extremamente estranho ao William. Mas, que parte do dia não o tinha sido?-. Passa enquanto me ponho os sapatos.
Ao cabo de uns poucos minutos, Maureen e William atravessavam caminhando a calçada em direção à limusine. Maureen abriu a porta traseira e se apartou ligeiramente para que Nen pudesse entrar. Ele se deslizou ao interior e se encontrou à direita de um homem grande e barbudo. Vestia um traje escuro, ligeiramente passado de moda, e que despedia um acusado aroma de naftalina.
--Olá -disse William, nervoso. O homem se limitou a olhá-lo fixamente. Seus olhos, de uma cor verde clara, brilhavam intensamente, inclusive entre as sombras. A doutora Blake subiu ao carro, sentou-se a a direita do Nen e fechou a porta. A limusine arrancou e abandonou a calçada.
--William -disse a doutora Blake-. Apresento ao J. Benison Hodge.
Nen voltou a saudar o homem com um movimento da cabeça. Não sabia o que tinha que ver aquele estranho com o CCE ou com a imprensa. Deve tratar-se de um advogado, pensou.
--Doutor Nen -começou a dizer Hodge. Sua profunda e sonora voz transmitia um certo ar de inflexível formalidade. Nen teve a impressão de que aquele homem estava zangado com ele e não se esforçava em ocultá-lo-, filtrou seu relatório à imprensa?
--Não. É obvio que não. -William olhava alternativamente a Hodge e Blake, com nervosismo-. Não tenho a menor ideia de como... alguém deve ter roubado... o jornalista, devemos comprovar seu...
--Já nos ocupamos que jornalista -interrompeu-o Hodge-. por que não abandonou a investigação que estava realizando quando foi ordenado por seu superior?
Nen ficou boquiaberto. depois de um dia pouco menos que surrealista, ser miserável em plena noite até o interior de uma limusine para enfrentar-se ao agressivo interrogatório deste advogado...
--Ordenado? Não foi assim exatamente...
--Senhor Hodge -disse Maureen-. Em realidade, foi mas bem uma sugestão, não uma verdadeira ordem.
Hodge observou ao Maureen com uma ferocidade tal que William, surpreso, apertou-se contra o respaldo de seu assento para apartar-se na trajetória de sua visão. Maureen se sumiu imediatamente no silêncio.
--Acaso não entendeu -perguntou Hodge, voltando sua atenção de novo ao Nen- que era o desejo de seus superiores o que você abandonasse a investigação?
William podia sentir o olhar do Hodge cravada sobre ele. Aqueles olhos claros despediam um fogo gelado.
--Eu... bem... sim, eu... entendi-o. Sim. Claro que o entendi.
--E, apesar disso, seguiu adiante -disse Hodge-. por que? -em seu tom pulsava a dureza de uma acusação.
Nen se agitou no assento, sentindo-se intranqüilo. Olhou a Maureen em busca de algum apoio, mas o olhar dela estava obstinadamente perdida em seus joelhos.
--Acreditei que íamos falar de como tratar o assunto frente à imprensa...
--por que? -demandou Hodge.
O rosto do William se voltou de novo para o fornido advogado. Aqueles olhos. O olhar do Hodge se apoderou dele, obrigando-o a olhá-lo. Um tremor estremeceu o corpo inteiro do Nen. Por um instante, todo pensamento coerente o abandonou e foi incapaz de articular palavra. William parecia afundar-se nas profundidades de aqueles olhos, e o medo o alagava. Santo Deus. vou morrer. Santo Deus. Nenhuma ameaça tinha sido formulada, mas apesar disso, Nen não albergava a menor duvida de que seu bem-estar físico, seu mesma vida, dependiam de sua resposta. Repentinamente se sentiu invadido pelas nauseia. Sem poder remediá-lo, dobrou-se para diante e vomitou sobre o chão da limusine.
--OH, Deus. Sinto-o tanto... por favor, não... eu não...
--Responda -ordenou Hodge.
Nen se incorporou e se limpou a boca com um lenço. Começou a falar. Ao princípio de forma vacilante, mas rapidamente suas palavras inflamaram-se com a força de sua convicção.
--Não entendi que me sugerisse que abandonasse a investigação. Pensei que o perigo potencial justificava ulteriores estudos. Embora não fora o Ebola. Fora o que fosse... seja o que seja, é algo que não vimos até agora -fez uma pausa e tragou saliva-. O relatório que os periódicos publicaram não é o meu... mas acredito que é correto.
--Já vejo -Hodge falou lentamente, mas não deixou de olhá-lo com a mesma obstinação.
Nen apartou rapidamente o olhar. Já tinha respondido a seu pergunta. Advertiu de repente que Maureen não se moveu um ápice da posição que ocupasse antes. Seguia inclinada e olhando fixamente para seus joelhos. mantiveram-se em silencio durante algum tempo. William seguia aterrorizado, e ligeiramente envergonhado por ter vomitado no interior do carro. Aquele advogado resultava intimidatorio, além da razão, sem que William pudesse explicar por o que. Seus dedos tremiam.
--me olhe -disse Hodge.
Contra o que o sentido lhe ditava, em contra inclusive de seu vontade, Nen voltou o rosto uma vez mais para o imponente advogado. Uma fúria logo que contida brilhava nos olhos do Hedge. William sentiu que era miserável por volta daquele infinito e esverdeado mar, e perdia-se em seu interior. Caindo... caindo...
--Sua investigação era defeituosa -estava dizendo Hodge-. Encontrará enganos em seu trabalho. Muitos enganos, e conclusões ilógicas. Renunciará a seus descobrimentos e destruirá as amostras de dados. O projeto inteiro se viu comprometido, poluído. O compreende, doutor Nen?
Caindo... caindo...
--Sim. Compreendo.
Hodge assentiu, agradado.
--Mais tarde se tomará umas largas férias. Leve-se a sua mulher aonde ela queira. Trabalha muito duro, doutor Nen. Débito aprender a relaxar-se. Compreende?
--Compreendo...
Nen estava de pé, sobre a calçada, frente a sua casa. Maureen se encontrava junto à aberta porta da limusine. Olhando fixamente em direção ao William do interior do carro estava o senhor Hodge.
--É você um advogado, não..? -disse Nen, repentinamente, não muito seguro do que estava falando.
--Muito bem -disse Hodge-. Foi-nos que a máxima ajuda, doutor Nen -fez uma pausa. Ordenou com um gesto ao chofer que arrancasse, e acrescentou-. E, recorde: quão único deve dizer à imprensa é "sem comentários".
William assentiu. Isto sim podia recordá-lo.
Owain descendeu do avião com um humor de cães. Ao voar em direção Oeste, tinham aterrissado no meio da amanhã apesar de haver separado de Madrid pouco depois do amanhecer. Fisiologicamente, nenhum Cainita se via afetado por inconveniências físicas tais como a desorientação do vôo, mas entretanto ao Owain, apenas acostumado às viagens de larga distância e a grande velocidade, o perturbavam severamente as mudanças bruscas da hora do dia. Isso no melhor dos casos. E este não era o melhor dos casos.
Pouco depois da aterrissagem, Kendall informou ao Lorenzo Giovanni, que tinha subido a bordo para lhes dar pessoalmente a bem-vinda, de que seu professor não desejava ser incomodado até pouco depois da posta do sol. Lorenzo assentiu com um gesto elegante e descendeu de novo as escalerillas. Depois, assegurou-se de que o hangar privado ao o que o reator tinha sido conduzido permanecia em silencio o que ficava do dia. Nenhum mecânico nem trabalhador acessou às cercanias do avião. O reabastecimiento de combustível teria que esperar.
Esta cortesia concedeu ao Owain dez horas ininterruptas de aquele, seu sonho infestado de visões. Quando o sol se pôs, estava resolvido a não voltar a fechar os olhos nunca mais. Graças a Deus, esta vez não tinha tido que sofrer as imagens de sua pátria ou de sua adorada Angharad. Mas em troca, as ominosas palavras do colérico José o tinham açoitado sem descanso. Uma vez mais, o árvore vivente havia tornado a apanhá-lo com te esmaguem força, uma de seus ramos se apartou dele como uma víbora disposta para o ataque, e tinha atravessado seu coração com uma investida selvagem.
Owain se esfregou distraídamente o peito enquanto desembarcava. As escadas, acolchoadas, amorteciam o som de suas pegadas. Kendall o seguia de perto, silenciosa, com a graça de uma pantera em seus andar.
Lorenzo esperava ao pé das escadas. A seu lado se encontrava, como de costume, seu guarda-costas Alonzo. Seus trajes, impecavelmente bem cuidados e engomados, e seu imaculado porte, resultavam um agudo contraste em comparação com a camisa de Owain, rasgada e manchada de sangue. Owain se recordou que não devia brincar com o revólver roubado que tinha em seu cinturão se não queria pôr nervoso a aquele mamute, Alonzo.
Mas se Lorenzo tinha reparado na arma de fogo, nenhum gesto revelou-o. limitou-se a dar um forte abraço ao Owain assim que o mal-humorado Ventrue descendeu o último degrau e posou o pé sobre o chão do hangar.
--Owain, meu amigo. Se tivesse sabido que voltava, houvesse enviado um avião a te recolher. -Beijou brandamente ao Owain, primeiro em uma bochecha, logo na outra. Owain não sentiu nenhuma calidez genuína naquele gesto-. Estou seguro de que meus sócios de Madrid lhe haverão cobrado muito. Especialmente avisando com tão pouca antecipação. Equivoco-me?
Sócios. Owain suspeitava que aqueles aos que chamava sócios eram em realidade parentes do próprio Lorenzo, membros de alguma incestuoso ramo secundaria da arrevesada árvore da família Giovanni. Se até os membros da família não eram mais que meros sócios, rivais, para os Giovanni, que lealdade poderia esperar-se que mostrassem para um amigo?
--Comigo -disse Lorenzo- sua viagem é grátis. -Agitou a mão com um gesto displicente, como se estivesse se separando de si a tarifa.
Owain assentiu, consciente de que, no melhor dos casos, Lorenzo só dizia uma verdade pela metade. em que pese a que o ghoul Giovanni não lhe pediria um cheque como o que ia ter que enviar a Madrid, seus serviços teriam igualmente seu preço. Os Giovanni eram um clã, não uma agência de viagens. Cada relação cultivada, cada favor emprestado, acabavam mais logo ou mais tarde por ser explorados para lhe render algum beneficio à família. Owain era por completo consciente de que ao tratar com o Lorenzo estava dançando ao redor de armadilhas.
--Vamos -disse Lorenzo, conduzindo ao Owain fazia o escritório anexa ao hangar-. Que notícias me traz de Madrid?
--Todo esta muito tranqüilo por ali -disse Owain, contradizendo o que tão eloqüentemente revelavam suas roupas, desarrumada e coberta de sangue.
Esta vez, Lorenzo sorriu sinceramente.
Penetraram no escritório. Era uma pequena habitação em que logo que cabiam quatro pessoas. Os móveis eram de uma espartana modéstia, o suficientemente genéricos para confirmar que Lorenzo não estava acostumado a freqüentar esta instalação. Sem dúvida, os interesses bancários de os Giovanni em Atlanta deviam distrair a maior parte de sua atenção e seu tempo. Owain tomou assento. Kendall se manteve de pé, justo detrás dele. Sua posição parecia o reflexo sobre a superfície de um espelho da adotada pelo Lorenzo e Alonzo ao outro lado do escritório.
--Ao contrário que em Madrid, as coisas aqui em Atlanta estiveram bastante intranqüilas desde que te partiu -disse Lorenzo, abandonando seu tom jovial para adotar de repente um mais sério.
Owain não replicou.
--Os decretos do Príncipe Benison estão provocando muito mal-estar -continuou-. Naturalmente, está no certo ao dizer que os anarquistas não sabem qual é seu lugar. Mas tratar de lhes impor a disciplina pela força de maneira tão brutal... -deteve-se, torcendo o gesto como se sentisse alguma dor- está causando muitos problemas.
--Seriamente? -a resposta do Owain pretendia impulsionar a Lorenzo a revelar mais detalhes, sem comprometer ao mesmo tempo ao próprio Owain, nem supor nenhuma classe de conformidade com os Giovanni. Lorenzo, por sua parte, não fazia outra coisa mais que relatar os acontecimentos, quase de maneira inocente, embora de suas palavras derivava-se sem nenhum gênero de dúvidas que estava em desacordo com a política do Benison.
--OH, sim -assegurou Lorenzo-. Alguns anarquistas estão abandonando a cidade. Estão em seu direito, claro. Mas dos que ficam, muitos se escondem em vez de acatar o decreto. Não pensam unir-se a nenhum dos clãs. Não sacrificarão nem um ápice de sua liberdade. -Owain não pôde evitar reconhecer que Lorenzo se cobria as costas com soma cautela. Mofar da libertinagem dos anarquistas era como apoiar de facto ao Príncipe. E este resultaria um detalhe importante se a conversação era escutada por acaso ou repetida ante outros ouvidos mais adiante.
--É muito, muito difícil agradar ao Príncipe -comentou Owain. Não sabia mais que o que Lorenzo acabava de lhe contar a respeito do que estava ocorrendo na cidade. Mas já tinha previsto problemas quando, em Ano passado Novo, o Príncipe tinha anunciado o restabelecimento do vigor de seus decretos. Owain acreditava poder ver para onde se encaminhava Lorenzo com suas oblíquas insinuações.
--Não tolera a dissensão com muita elegância -disse Lorenzo-. Exilará O... persuadirá aos anarquistas, de um em um ou de dois em dois, mas isso poderia levar muito tempo.
Owain assentiu, e de quanto tempo dispõe antes de que o Círculo Interno da Camarilha tome o controle para pôr fim às disputas? Esta era a tácita pergunta. Os justicar não se arriscariam a confrontar outra Revolução Anarquista. Não com a instabilidade provocada pela maldição do sangue.
--Assim é -disse Owain. Lorenzo e ele se olharam em silencio durante uns instantes-. A situação requer um cuidadoso exame -acrescentou por fim.
--Assim é -repetiu Lorenzo como um eco. E imediatamente seu comportamento retornou a seus anteriores, e mais sociáveis maneiras-. Mas acredito que te entretive muito com meu bate-papo -disse-, e acaba de retornar de uma viagem muita comprido. me perdoe -levantando-se do assento, fez uma respeitosa reverência ante o Owain.
--Absolutamente -disse Owain, levantando-se também. Intercambiaram as cortesias de rigor e, depois, Owain e Kendall se encaminharam para o Rolls Royce que os esperava no hangar desde que abandonassem Atlanta, várias semanas antes.
A situação deve ser realmente precária, pensou Owain enquanto Kendall conduzia em direção a sua casa, para que Lorenzo tenha sido tão direto. Estava seguro de que podia dizer o que rondava pela cabeça do Giovanni: que Benison corria o risco de demorar muito em vencer a resistência anarquista. Se isso ocorria, poderia atrair a indesejável atenção dos verdadeiros poderes da Camarilha, e ser afastado de sua privilegiada posição.
E quem ocuparia seu lugar?
Eleanor? Era mais que competente, mas nestes assuntos a mera competência era uma consideração bastante menor comparada com a capacidade política e a intriga. Não, ao contrair matrimônio com Benison, Eleanor se tinha talhado politicamente a garganta. Havia ofendido a seu sire, o justicar Baylor. Sem sua aprovação, o Círculo Interno jamais apoiaria sua candidatura a ostentar o cargo de Príncipe em uma das cidades mais importantes deste Costa.
O Círculo Interno poderia também recorrer a um forasteiro. Neste caso, qualquer eleição era plausível. Inclusive que o manto do liderança recaísse sobre o próprio Owain. Um Ventrue como ele sempre estaria disposto a sacrificar-se em favor de seus irmãos Cainitas.
portanto, aquele cenário era a eventualidade para a que Lorenzo Giovanni se estava preparando. Cobria suas apostas, investigava a profundidade das águas. Seu pequeno intercâmbio verbal com o Owain tinha sido um intento de avaliar a posição do Ventrue e ao mesmo tempo tentá-lo sutilmente com uma oferta do apóio Giovanni, mas realizado de uma maneira que não comprometesse aos Giovanni no caso de que Benison fortalecesse sua posição ou Owain colocasse a pata.
Owain tinha interpretado sua parte na charada mais por hábito que por verdadeira ambição. A incerteza política que se vivia então permitia incontáveis variantes e numerosas resoluções potenciais. Mas inclusive embora o controle temporário de Atlanta fora a cair em suas mãos, não estava seguro de se aceitaria a carga. Uma proeminência como aquela incrementaria notavelmente a motivação e as possibilidades para a vingança do Carlos.
E, mais importante ainda, o assunto tinha deixado de lhe importar. Cultivava um rancor pessoal contra Benison por ter ordenado a destruição da sereia, mas derrubar a um Príncipe era uma empresa muito diferente a de ocupar seu lugar. depois de sua tumultuosa estadia na Espanha, o que de verdade precisava era retirar-se; retirar-se ao interior de seu imóvel e ao interior de si mesmo, e curar seus feridas. Queria lhes limar as pontas à dor e à sensação de perda que muito freqüentemente lhe tinha sido jogada na cara nos últimos tempos. Poderia ser que uma oportunidade para atacar a Benison acabasse por apresentar-se em algum momento. Mas, de não ser assim, o tempo e o isolamento seriam os elixires curativos do Owain.
Seu olhar se perdeu além dos cristais tintos do Rolls. Kendall estava seguindo o caminho mais reto a casa. Adref, pensou Owain. De volta a casa. Os edifícios e as ruas que foram deixado atrás não significavam nada para ele. Não sentia nada por este, seu novo lar. Podia chamá-lo assim, lar, no sentido de que ali havia passado a maior parte dos últimos setenta e tantos anos. Mas agora, ao retornar da Espanha, Owain se deu conta de que sentia uma conexão muito menos intensa com Atlanta que a que o havia unido com o Toledo. Esta cidade era um refúgio seguro. Mais que algumas mas menos que outras muitas. Contemplou com mais atenção o perfil do centro da cidade, recortado contra o horizonte, a moderna cidade entrelaçada com a telaraña de auto-estradas e estradas, artérias da vida mortal que pulsava a seu redor e da que estava completamente isolado.
E, enquanto contemplava a cidade, sentiu que se perdia. Podia, sim, recordar seu caminho seguindo os lugares conhecidos; podia encontrar o que precisasse encontrar, mas, com que fim? Voltava para casa para lamber suas feridas e esperar ao momento adequado... para fazer o que? E até quando? Até que outro século tivesse passado? E logo outro?
Ao cabo de um momento, acabou por afundar-se no assento e deixou de emprestar atenção à progressão de cenas que passavam a toda pressa junto à janela. Quais, perguntou-se com pesadumbre, eram seus perspectivas? Conseguir que todos e todo aquilo que lhe importava o fora arrebatado de seu lado? A sereia, depois de ter resgatado muito dolorosas lembranças de seu interior com sua maravilhosa canção, tinha sido destruída. O mais antigo dos amigos do Owain que ainda mantinham-se com vida tinha sido destruído a noite anterior. Agora, de novo em Atlanta, Owain recordava ao Albert, uma fonte de entretenimento ocasional e quem sabia se um verdadeiro amigo. Havia sido assassinado. Quantos mais encadeie terei que acrescentar à cadeia?
Finalmente, Kendall se incorporou ao King Road. A mansão do governador estava só uns blocos mais à frente. A maioria dos veneráveis membros do Clube King Road viviam em um rádio de dez ou quinze minutos em carro. Owain pensou no Franklin West, o quase octogenário e excêntrico mortal cuja companhia apreciava. A última vez que se alimentou dele, o sangue do ancião lhe havia sabido doce pela absenta. Owain deixou escapar um suspiro. Franklin não duraria muito mais. Desapareceria como todos os outros. Owain poderia fazer um ghoul dele, mas isso conduziria um montão de complicações, e provavelmente não faria mais que atrasar o inevitável. Como tinha ocorrido com o Gwilym.
Sua chegada à propriedade do Owain foi, como de costume, tranqüila. O carro se deteve um instante, enquanto as portas de ferro forjado, impulsionadas por um mecanismo se faziam a um lado. Logo, o Rolls continuou adiante seguindo o sinuoso caminho.
Adref.
De volta a casa.
Rum vigiava escondido em seu esconderijo a um lado da rua. O Rolls Royce chegou junto à cancela, esperou a que se abrisse e se perdeu entre as sombras além da entrada. Joder! Não podia acreditar sua sorte. Esta vez sim que me ganhei alguma classe de recompensa, pensou. Kline, o Príncipe Benison... todo mundo ia a estar encantado com ele.
Tirou seu .38 especial do bolso da jaqueta e revisou o tambor. Satisfeito, devolveu a arma a seu bolso e extraiu seu telefone móvel. Enquanto marcava os números, um novo pensamento foi a seu mente: Querem a esse tipo não-morto ou morto. Se me carregar isso, e resulta ser um ancião, haverá um pouco de sangue de alta octanagem que conseguir. Eu não gostaria que se desperdiçasse.
lambeu-se as presas com a língua, antecipando o momento. Já podia sentir o sabor do sangue.
O Rolls se deteve frente à porta de entrada da casa principal. O céu estava espaçoso. Owain abandonou o carro para entregar-se à fresca noite de maio. Grilos e pássaros noturnos o cantavam sua serenata, mas essa era a única festa de bem-vinda que esperava-o. Não é que esperasse uma celebração por seu retorno, mas normalmente Ardem e Mike, o casal que formava a confiável equipe de segurança do Owain, tivessem devido ao menos fazer ato de presença. Enquanto o carro se aproximou para a casa, Owain não tinha visto luzes na garagem que habitualmente os fazia as vezes de casa, assim tinha suposto que os encontraria na casa principal. Por isso podia ver-se na expressão do Kendall, ela também tinha encontrado estranha aquela falta de recebimento.
O ferrolho da porta principal não estava jogado. Outra anomalia.
Owain e Kendall penetraram no vestíbulo. As luzes conectadas ao temporizador estavam acesas. O resto não. Um silêncio de morte reinava na casa.
--Senhora Rodríguez! -chamou Owain. Não houve resposta. voltou-se para o Kendall. Sua cabeça, erguida pela inquietação, girou-se para examinar o vestíbulo e os saloncitos anexos.
--Comprova-o tudo -disse Owain.
Kendall assentiu e se dirigiu em silencio para a sala de estar.
Owain abriu a porta que dava ao estudo. Cruzou a escura habitação até chegar junto ao abajur que descansava sobre seu escritório e a acendeu, banhando de luz a escura nogueira do escritório. A maior parte da habitação continuava envolta em sombras, mas isso não representava um impedimento real para o Owain. Tirou o molesto revolver da pistolera e o depositou sobre o escritório enquanto realizava uma rápida exploração da habitação. Tudo parecia estar tal e como o tinha deixado: uns poucos papéis nos gavetas, o tabuleiro de xadrez, mostrando ainda a posição última de a assombrosa derrota do Owain, os livros nas estanterías...
Seu olhar se deteve, congelada, sobre os livros, sobre um de os livros em particular... seu livro de cabeceira, seu livro mais querido. Instantaneamente, cada músculo de seu corpo se esticou. A visão. Para desgosto do Owain, seus pensamentos nunca podiam afastar-se muito dos implacáveis fantasmas. Uma simples imagem se encarapitou a sua mente. Tão somente tinha passado uma noite, se maravilhou Owain, desde que jazesse em sua tumba, apanhado pelo Carlos e seus secuaces? Olhou os restos de suas roupas, o sangue seca da mulher sem nome, a recém-nascida do Sabbat que tinha tratado de detê-lo. E, apesar de tudo, parecia como se tivessem acontecido anos após.
Em sua fuga através do passadiço cuja existência tinha acreditado só conhecida por ele, Owain se tinha enfrentado a dois estranhos. Um atrás do outro. Na antinatural escuridão do túnel, tinham parecido muito reais, mas suas palavras tinham sido quão mesmas ressonavam nas visões. O Professor de Xadrez e o Cavalheiro deviam ser visões. Como se não sua presença e seu desaparecimento podiam haver passado por completo desapercebidas para um ancião Cainita? Mas então, de novo, desenquadrada-a noite se viu povoada por espectros e intrusos que apareciam e desapareciam frente aos olhos de Owain sem deixar nem rastro.
O Cavalheiro tinha levado um livro que Owain reconheceu. Seu livro de cabeceira. Não tal e como aparecia agora mesmo frente a ele, na estantería, a não ser adornado pela coberta original em que Angharad tinha tecido o escudo da Casa Rhufoniog: o urogallo galés pacote. O cavalheiro tinha aberto o livro e recitado suas proféticas palavras: Este é o Fim dos Tempos. As palavras das visões do Owain. Owain olhou fixamente o livro. Por um momento sua visão havia vacilado. Acreditou que via a adornada coberta sobre ele... mas não era assim. A coberta se converteu em pó muitos séculos atrás, tal e como tinham feito as mãos apaixonadas que a criassem. O livro que Owain tinha frente a sim tinha uma coberta de couro, de boa qualidade e sem adorno ou marca algumas.
Lentamente, como sempre lhe ocorria, Owain levantou uma mão tremente para o livro. Tocou-o com suavidade, deixando que a ponta de seu dedo se deslizasse pelo flexível lombo para baixo...
--Senhor!
Owain girou sobre seus talões. Kendall estava de pé, sob o gonzo da porta do estudo.
--Acredito que devesse vir e lhe jogar uma olhada a isto, senhor -disse. No rosto se pintava uma expressão de urgência que ele jamais havia visto antes.
Olhou ao livro, na estantería, e de novo ao Kendall. A ansiedade em seus olhos resultava difícil de ignorar, e era preocupe-se. A a contra gosto, deu as costas a estantería.
Ela o conduziu através da sala de estar até as escadas que desciam para a adega. Naturalmente, Owain já não bebia vinho, mas se sentia obrigado a interpretar ante seus ocasionais convidados mortais o papel do perfeito anfitrião. Com este fim, sua adega estava bem sortida. Ao pé das escadas, Kendall o guiou passando junto à porta fechada detrás da qual descansava a câmara de segurança do Owain. Não havia sinais de que alguém tivesse tentado forçar a porta. Kendall o estava levando a outro lugar, a ver outra coisa. Em quanto entraram na adega, fez-se evidente do que se tratava exatamente.
Kendall se deteve na soleira da porta. Owain caminhou para o interior, deixando-a detrás. A tênue luz resultava mais que suficiente para que pudesse fazer uma completa composição da cena. Em a parede do outro extremo da adega, as prateleiras das garrafas tinham sido se separados da parede e arrastados sem nenhum cuidado até um lado. O estou acostumado a estava talher dos pedacinhos das garrafas de cabernet e merlot. Ao longo da porção agora visível da parede pendiam o Senhor Rodríguez, a Senhora Rodríguez, e Ardem, cada um deles parecido no alto da parede com pregos de vias ferroviárias, um na boneca direita, outro na esquerda, e um terceiro no pescoço através das bocas abertas. Apoiado contra o muro descansava um maço. Sua conseqüência permanecia sobre o chão em forma de um amplo atoleiro de sangue pegajoso e médio seca.
Owain se aproximou dos corpos. Inclusive a vários metros de distância, suas pegadas começaram a produzir rangidos ao esmagar os fragmentos de dentes que se encontravam disseminavam entre os pedaços de cristal, mas continuou avançando até encontrar-se a escassos centímetros de distância dos cadáveres.
Supunha que as mãos teriam sido cravadas primeiro. Primeiro uma e depois a outra. Owain quase podia ouvir o metálico estalo despedido pelo maço ao se chocar contra o prego, e então um segundo golpe, e talvez um terceiro, para assegurar-se de que, atravessando a carne e o osso estilhaçado, cravasse-se profundamente no tijolo e o cimento que havia detrás.
Parecia como se a boca de cada vítima tivesse sido cheia por completo de trapos para assegurar-se de que o prego não pudesse ser cuspido. Quem quer que tivesse atirado os golpes não se havia preocupado muito pela precisão. O que subtraía das caras dos ghouls era em sua major parte uma massa relatório de pele rachada e fragmentos de ossos esmagados se sobressaindo da parede.
Owain não pôde imaginar nada útil que os ghouls tivessem podido revelar. Apenas os mantinha informados a respeito de suas atividades. Uma precaução contra, precisamente, este tipo de contingências. Embora Owain tinha pensado sempre que suas precauções eram precisamente isso: precauções. Nunca tinha imaginado que resultariam de utilidade.
Lenta e cuidadosamente, estudou os destroçados corpos desde onde se encontrava. A nua brutalidade das mutilações resultava óbvia. Podia ser que o atacante andasse em busca de informação, mas não cabia dúvida de que tinha desfrutado com seu trabalho.
--E Mike? -perguntou Owain sem apartar a vista dos corpos.
--Não há signo dele -respondeu Kendall.
Owain pôde ouvir como ela se agitava incômoda detrás dele, trocando o peso de uma perna à outra, enquanto ele continuava o exame dos cadáveres.
--Alegra-te de não ter estado aqui? -Tinha-o perguntado sem saber por que, mas imediatamente se deu conta de que a estava pressionando, tentando averiguar de que matéria parecia.
Ela voltou trocar o peso de lado.
--Se eu tivesse estado aqui, isto não tivesse ocorrido.
A resposta do Kendall provocou uma meia sorriso no rosto do Kendall, mas não se voltou para compartilhá-la com seu ghoul.
--Termina de registrar a casa. E os arredores -seus passos abandonaram a adega e se perderam escada acima.
Owain permaneceu de pé, no mesmo lugar, imóvel, durante vários minutos. Quatro avultados olhos lhe devolviam seus olhares desde os sombrios limites da adega. Só eram quatro porque um globo ocular do Senhor Rodríguez e outro de Ardem tinham arrebentado. Owain podia ler a dor, e algum medo, nas cruéis contorções de seus rostos. Enquanto os olhava, tratou de imaginar-se como tinha sido, o que haviam sentido, o que tinha cruzado pelo coração e pela mente do Senhor Rodríguez enquanto via a que tinha sido sua mulher durante mais de um século e médio, cravada contra a parede junto a ele, sabendo que não havia nada que ele pudesse fazer para lhe evitar a atroz tortura e a morte.
Owain não pôde convocar o menor pingo de empatia para eles. Não sentia nada.
Fechou os olhos por um instante. imaginou a si mesmo, com as bonecas cravadas à parede, um terceiro prego sustentado entre seus dentes, esperando a queda do golpe do maço e sentiu... alívio. Alívio ante o pensamento da morte definitiva, da liberação de seu miserável existência terrena. Um instante de agonia que poria fim a séculos de sofrimento.
Em pé frente ao jurado formado por seus três destroçados ghouls, inclinou a cabeça para trás e riu, mas o som não era mais que uma paródia de risada, uma declaração de ódio para si mesmo.
--Se isso for o que desejaste todo este tempo -perguntou-se, embora em voz alta-, por que não saudaste a saída do sol qualquer das manhãs destes novecentos anos? por que não fazê-lo hoje mesmo?
Esperou. Mas o jurado não se pronunciou. Os corpos quebrantados o confrontavam em completo silêncio. Covarde!, houvesse desejado que lhe gritassem. Oxalá tivessem podido arrancar seus perfurados membros do abraço do muro e apontá-lo com uns dedos sangrentos e acusadores. Covarde!
Então poderia lhes mostrar que se equivocavam. Poderia sair a campo aberto e esperar a saída do sol para refutar as acusações do jurado. Mas o olhavam com os olhos vazios e mudos, e Owain voltou a rir, esta vez com mais calma, burlonamente.
Possivelmente sim fora um covarde. Ou possivelmente a besta que morava em seu alma e que o conduzia através da existência não lhe permitisse uma saída tão fácil. Tanto como o sofrimento, o anseia de sobrevivência era uma parte dele. Cada um deles tinha sido refinado até alcançar quase a perfeição. E, certamente, o Todo-poderoso, lá vamos, não terminou ainda de jogar comigo, pensou Owain.
Naquele momento um som se escutou detrás dele.
Lentamente, voltou-se.
--Fique exatamente onde estas ou esparramo seus miolos por o chão, tio -disse o Cainita do outro extremo da adega. Vestia couro negro e jeans rasgados, o uniforme dos recém-nascidos não iluminados-. Não necessito uma estaca para te romper o culo.
Owain suspirou. Acreditava recordar o ter visto a cara deste imprudente menino em algum que outro evento oficial. Brujah? Owain tratou de fazer memória. Certamente o parecia. maravilhou-se de que a sangue do Caín pudesse estar tão diluída.
em que pese a que uma arma apontava a sua cabeça, Owain se assombrou ausentemente ante o fato de que, com tudo o que tinha passado, não embargasse-o a fúria. Seu refúgio tinha sido violado... estava sendo violado de novo naquele preciso momento, seus ghouls tinham sido torturados e assassinados, e um temerário, por não dizer desrespeitoso, cachorrinho do Brujah pretendia ameaçá-lo. Owain pensou que devesse encontrar-se sumido na fúria, e apesar disso apenas experimentava um pequeno comichão de irritação.
--Isto é tua coisa? -perguntou Owain, voltando a cabeça para indicar os corpos dos ghouls a suas costas.
O Brujah riu entre dentes.
--Deveria preocupar-se de seu próprio pescoço.
Olhada-las se encontraram, e Owain não apartou a sua.
--por que, tudo isto? -sua voz se abriu passo até os pensamentos do jovem Cainita. Não tentou tomar seu controle, mas sim começou a empurrá-los na direção que queria que tomassem.
O Brujah, inconsciente do fato de que Owain tinha começado a utilizar seus poderes, mantinha a presunçosa confiança que o outorgava a pistola com a que apontava ao rosto do Owain.
--Porque o Príncipe conhece seus crímenes, tio. Seu castigo está a ponto.
O Príncipe Benison. A mesma Vergôntea responsável pela destruição da sereia e a morte do Albert.
--Só fazemos o trabalho sujo do Príncipe. É uma forma de ganhá-la vida e, coño... -o Brujah se encolheu de ombros-, me gosta.
O conhecimento de que era o Príncipe o que tinha posto em marcha todo aquilo começou a provocar no interior do Owain uma fúria tranqüila, os primeiros farrapos de uma raiva que tinha estado por completo ausente até então. Ou pode ser que fora o sorriso depreciativa daquele recém-nascido, que não se recatava em reconhecer que se tinha divertido ao privar ao Owain da utilidade dos ghouls de seu casa, o que inflamasse sua ira. Em qualquer caso, em apenas uns instantes, a débil rabia se estava convertendo em uma fúria hirviente. Entretanto, nenhum signo externo a traiu. Manteve a emoção oculta dentro de si, saboreou-a.
Owain avançou um passo, sem apartar um instante o olhar do jovem Vergôntea.
--Deve ter desfrutado penetrando em meu refúgio, em minha casa.
O Brujah observava ao Owain, mas não parecia preocupado pelo feito de que lhe aproximasse.
Owain avançou outro passo.
--Assassinar a meus ghouls... isto deve te haver proporcionado uma infinita diversão.
Owain continuou caminhado para diante. encontrava-se já apenas ao meio metro de distância da arma que apontava diretamente para seu rosto. Não fez gesto algum de apartar-se de sua linha de fogo. O Brujah assistiu a cada passo, e escutou cada palavra, mas havia tal força na voz e no olhar do Owain, que o recém-nascido não pôde responder.
--Invadir o refúgio de um ancião -disse Owain-. Uma oportunidade que não se apresenta cada noite, verdade? Normalmente, este crime custaria-te caro. Cada uma das classes de nossa sociedade clamaria por vingança mas, claro, se o crime tiver sido cometido por mandato do Príncipe... -Owain se encolheu de ombros. Seu semblante adquiriu de repente uma insólita severidade-. Mas, sabe? Há outras razões pelas que este tipo de enganos não se produzem freqüentemente.
A expressão do Brujah não revelava alarme. Seguia vigiando a Owain de perto, escutando suas palavras com toda atenção. Nem sequer quando Owain alargou o braço até uma das prateleiras intactos, tomou uma garrafa, golpeou-a e blandió o denteado resto como uma faca, reagiu o recém-nascido.
Nenhuma surpresa decorou seu rosto até que, com um rápido e poderoso gesto da boneca do Owain, as vísceras do Brujah foram derramassem pelo chão. Então deixou cair a arma, retrocedeu cambaleante vários passos, e se desabou sobre o chão. Uma fileira de seus atrofiados intestinos marcava o caminho seguido. O Brujah se estremecia no chão enquanto o sangue brotava da enorme ferida de seu abdômen. Não era uma ferida mortal de necessidade. Owain era consciente disso. Não para um vampiro. O sangue poderia curar uma ferida como aquela.
Apartando-se, Owain voltou junto a seus ghouls e tomou entre seus mãos o martelo que se apoiava contra a parede. Sentiu seu peso... o mesmo peso que começaria a equilibrar a balança da justiça.
Voltou junto ao quejumbroso Brujah. O primeiro golpe acabou com ele. Um som surdo. O cérebro era, junto ao coração, o outro órgão essencial para um vampiro. Voltou a levantar o martelo.
Benison.
O nome ressonou na mente do Owain junto ao impacto do segundo golpe. Mas havia outros, estava seguro. Voltou a levantar o maço uma vez mais...
Kline.
Owain podia ver a brutal emano do Brujah naquele trabalho. O Vergôntea que jazia no chão da adega não tinha atuado só nem por própria iniciativa. Owain levantou o maço uma vez mais.
Benison.
O arquiteto da destruição.
Kline.
Tão seguro quanto sua tocha tinha feito pedaços a sereia.
Benison.
Kline.
--Senhor!
Owain se deteve. O maço estava elevado sobre sua cabeça. Kendall o olhava do gonzo da porta, com a perplexidade grafite no rosto.
--tivemos uma visita -disse Owain. Baixou o braço que blandía o maço até o chão e depositou a ferramenta junto ao que ficava daquele inesperado hóspede. Enquanto passava de comprimento junto ao Kendall, sua raiva não diminuiu. O ataque sobre o Brujah havia sido um lento e deliberado desafogo, mas as imagens de todos quantos tinham sido assassinados por vontade do Benison se elevavam, uma atrás de outra, na mente do Owain: Os Rodríguez e Ardem, ganchos atravessando seus pescoços para cravar-se na parede; a sereia, fendida em duas pela tocha de um maníaco; Albert, abandonado ao sol com o coração atravessado por uma estaca que havia blandido o Príncipe, membro de seu mesmo clã.
Ainda permaneciam sem explicar as últimas palavras do Albert: O que tivesse pensado Angharad? O persistente enigma alimentava ainda mais a fúria do Owain. De quantas maneiras tinha que ser desonrado o nome de sua amada?
Com os pensamentos ocupados no mistério desencadeado pela morte do Albert, Owain se deteve frente à porta que se elevava junto à base das escadas. Permitindo-se outro breve acesso de fúria, deu uma patada à porta. A fechadura resistiu, mas o resto da porta se fez lascas, que voaram e se disseminaram por a pequena habitação que havia ao outro lado. A caixa forte, rodeada por pedacinhos de madeira da porta, permanecia intacta.
--Senhorita Jackson.
--Sim, senhor? -abandonando, de momento, o açougue da adega, Kendall se apressou a chegar junto a ele.
--Conhece a combinação da caixa forte.
--Sim, senhor.
Um dolorido passo detrás de outro, Owain começou a ascender as escadas, enquanto instruía a seu único ghoul supervivente.
--Dentro há uma figura... de cerâmica. traga-me isso ao estudo.
--Sim, senhor. E, senhor...
Owain se deteve.
--É possível que tenha encontrado ao Mike. Há uma fossa recente aí fora -disse Kendall-. Junto ao velho edifício de cozinha... ou o que era o edifício de cozinha -corrigiu-se-. foi destroçado... derrubado por completo.
Owain não disse nada e reatou seu caminho. além das escadas, no piso de acima, penetrou na sala de estar. Caminhou de um lado a outro, deteve-se, e voltou atrás. Aproximando-se do muro mais longínquo, tomou a espada do lugar em que descansava. depois de tudo esse tempo, ainda sentia a folha perfeitamente equilibrada em seu mão, como uma extensão de si mesmo. Esboçou um sombrio sorriso. As armas de fogo podiam ser as armas do mundo moderno, e uma garrafa de vinho rota podia ser adequada em caso de apuro, mas uma espada, esta espada, era a arma de um verdadeiro nobre.
Enquanto voltava para estudo, Owain sentiu que aquele isolamento aprazível que tinha estado desejando lhe estava sendo negado por completo. De novo junto a seu escritório fechou os olhos, tratando de separar-se de sua mente a horripilante cena transcorrida na adega. Tentou sufocar sua raiva, que palpitava com força crescente sob a superfície. Respirou profundamente, mas isto não o acalmou muito.
Abriu os olhos, depositou a espada sobre o escritório, e então tirou da estantería seu livro. Enquanto abria o envelhecido tomo, Kendall entrou na habitação, levando consigo o tatu de cerâmica que Albert tinha crédulo aos cuidados do Owain.
--É isto o que queria?
--Sim. Ponha aí.
Ela o deixou sobre o escritório.
Owain voltou a vista ao livro. Para seu horror, uma grande gota de sangue manchava a página, até então impoluta. levantou-se de seu assento com um salto e advertiu que suas mãos e roupas estavam cobertas com o sangue e as partes das vísceras do Brujah. O próprio Owain tinha derramado sangue sobre seu mais prezado tesouro.
--Maldição! -tratou de limpá-las mãos nas calças, mas suas roupas estavam tão empapadas de sangue, e esta sobre o sangue seca do vampiro do Sabbat, lá em Madrid, que logo que serve de nada.
--Vete acima e me traga roupas podas -disse ao Kendall. Ela se apressou a obedecer.
Owain estava ansioso por abrir o livro de novo, em busca das palavras que o cavalheiro tinha lido em sua visão. Mas não podia arriscar-se a manchá-lo mais. Era a única herança física do Angharad que ficava. Lhe tinha entregue o livro. Inclusive tinha escrito parte dele. Embora nada do escrito tinha um caráter muito pessoal, seguia sendo sua caligrafia. Ela tinha posado sua pluma sobre as páginas deste livro, séculos atrás. Owain se obrigou a ser paciente.
voltou-se em troca para o objeto que recordava ao Albert, o tatu de cerâmica, que lhe era menos querido. depois de tudo, Albert não voltaria a necessitá-lo. Agarrou-o, deixando manchas de sangue lá onde se posavam seus dedos. Sacudiu-o, como tinha feito a noite que Albert o entregou. Nada.
Owain voltou a olhar o sangrento tatu e, por fim, arrojou-o contra o chão, fazendo-o mil pedaços. Naquele preciso momento, a porta principal da mansão foi arremesso abaixo. Segundos mais tarde, Xavier Kline, tocha em mão, irrompeu em seu estudo. Vestia uma larga americana sobre sua ajustada camisa e seu jeans. Depois dele, seu secuaz vietnamita se deteve sob o gonzo da mesma porta. Levava uma escopeta apoiada sobre o ombro.
Kline avançou duas grandes pernadas para o interior da habitação e balançou a tocha frente a sim.
--O que acontece, Owain? Muito tempo sem verte.
O pesado escritório de mogno escura se interpunha entre o Kline e Owain. Sobre ele, à direita, descansava a espada do Ventrue; à esquerda, o revólver gasto da Espanha. Kline, sustentando seu tocha com ambas as mãos, disposto para golpear, olhava aos olhos de Owain.
--O que significa isto? -perguntou este, usando tanto a voz como a memore para dirigir sutilmente os pensamentos do Kline. Owain suspeitava que o sangue do Caín não era tão fraco neste selvagem como o tinha sido no outro patético Brujah. Se queria que o engano voltasse a lhe servir para salvar a vida, teria que ser mais sutil.
--O que significa -mofou-se Kline- é que seu culo me pertence. O Príncipe o ordena.
Thu, a secuaz vietnamita do Kline, permanecia sob o gonzo de a porta, com sua escopeta entre as mãos. No momento parecia contentar-se simplesmente observando, mas sem dúvida nenhuma estaria disposta a dar uma mão ao Kline se este chegava a necessitar ajuda contra o Ventrue.
--Parte agora mesmo e possivelmente esqueça esta intrusão -disse Owain.
Kline inclinou ligeiramente a cabeça a um lado.
--Já começamos...
--Parte agora mesmo e possivelmente esqueça esta intrusão -repetiu Owain.
--Né... -Kline se arranhou o queixo-. Pensei que diria isso -riu entre dentes por uns momentos, e então se entregou a uma furiosa gargalhada. Thu parecia compartilhar seu bom humor-. Perfeito -disse Kline-. Agarra sua arma, pijito.
--Este é o último aviso -disse Owain.
O bom humor do Kline pareceu remeter. Seu zombador sorriso se permutou por um grunhido. Com assombrosa velocidade, blandió a tocha por em cima de sua cabeça.
Owain alargou o braço e tomou a espada justo no momento em que a tocha caía no escritório... sobre a pistola. Se Owain houvesse tratado de alcançar aquela arma, teria perdido uma mão, e possivelmente algo mais.
A tocha se incrustou na superfície de nogueira. Inclusive com sua prodigiosa força, Kline teve que esforçar-se durante um par de segundos para liberá-la. Owain deu uma cambalhota para trás e aterrissou de pé. Não havia maneira de saber se seus estímulos mentais haviam conseguido influir no Kline, ou se o pesado Brujah tivesse golpeado a pistola de todas formas. Em qualquer caso, Owain estava agora armado, e mais que disposto para lutar.
Aparentemente, Kline estava mais interessado em conseguir seu recompensa do Príncipe o antes possível. Sorriu ao Owain e começou a deslocar-se para sua esquerda.
--Está bem, Thu. vamos dar se o Thu pareció sumamente complacida por poder tomar parte. Dejó
Thu pareceu extremamente agradada por poder tomar parte. Deixou escapar uma risilla, martelou a escopeta e apontou ao Owain. Naquele instante, a parte alta de seu crânio explorou, destroçada por um impacto de detrás.
Uma expressão de completo assombro apareceu ao que ficava de sua cara. Inclusive pôde levantar um braço para sua cabeça. Mas antes de que a alcançasse, desabou-se sobre o chão.
Kendall, com o mágnum do .45 ainda fumegante, entrou na habitação. Recuperou a escopeta do chão e a apontou imediatamente para o Kline.
Este, inesperadamente sozinho, lançava olhadas alternativas a Kendall e Owain. Owain quase podia notar as engrenagens movendo-se no interior de sua mente, tentando determinar se poderia lançar seu tocha ao Kendall -daquela mesma maneira tinha assassinado à sereia-, esquivar a maior parte de um disparo de escopeta e fazer-se com uma arma o suficientemente depressa para enfrentar-se com Owain. Provavelmente, a habitação era muito pequena como para lhe permitir lançar com garantias a enorme tocha, mas a coisa era quanto menos questionável. Owain levantou uma mão para o Kendall.
--Senhorita Jackson, eu me encarregarei pessoalmente deste duelo. Muito obrigado -disse.
Kline pareceu inclusive mais surpreso que Kendall. Ela assentiu e abandonou a habitação, de maneira que os combatentes tivessem mais espaço. Kline sorriu, agradado com esta inesperada vantagem. Fez uma reverência.
--Bem... muito obrigado, sua Senhoria Ventrue. Só terei que lhes matar de um em um. -tirou-se a alargada jaqueta e a deixou cair sobre o chão.
Owain não perdeu o tempo com bravatas e insultos. limitou-se a aproximar-se do Brujah, que era quase trinta centímetros mais alto que ele. Imediatamente, Kline volteou sua tocha, e lançou um golpe.
Habilmente, Owain esquivou a estocada e lançou um talho para o lado direito do Kline, que estava exposto. O aço beijou a carne. Não tinha sido um golpe definitivo, mas Owain recuperou sua espada decorada com o primeiro sangue.
Kline não gritou. Em realidade, nem sequer emprestou atenção ao pequeno corte, embora sangrava copiosamente. Observando ao Owain com mais cautela, o Brujah apartou com caminhos patadas duas cadeiras que se interpunham em seu caminho. Agora, o escritório era o único obstáculo que ficava entre os dois. A mesa sobre a que descansava o tabuleiro de xadrez jazia jogada em um oco da parede.
Lentamente, ambos os oponentes começaram a girar o um fronte ao outro. Kline fez uma finta e esperou, enquanto Owain insinuava uma esquiva. De novo Kline voltou para fintar, e então sim golpeou. Owain esquivou o ataque e abriu uma segunda fatia, justo debaixo da primeira. Esta vez sim que grunhiu Kline, mas mais por frustração e raiva que por verdadeira dor.
Com cada golpe a confiança do Owain ia em aumento. Haviam passado mais de cem anos desde seu último duelo mas, até o momento, estava satisfeito de seu rendimento. Não obstante, era consciente de que aquelas pequenas e irritantes feridas, semelhantes a picadas de mosquito, não acabariam com o Kline.
Sem mediar aviso, Kline voltou para blandir sua tocha e golpeou. Uma vez mais Owain evitou o golpe, e a tocha passou sem fazer mal junto a seu rosto. Mas de algum jeito, no segundo último, Kline conseguiu desviar a direção de sua investida. A tocha variou seu trajetória e foi cravar se a um lado da pantorrilha do Owain, justo por debaixo do joelho.
Uma dor inesperada embargou a metade direita do corpo de Owain. Sua perna se curvou. A tocha foi liberada. Kline a levantou bruscamente no ar, disposto a golpear de novo.
Com apenas a força de sua perna esquerda, Owain se jogou sobre o escritório. Necessitava espaço para manobrar ou, de outra maneira, o colosso o encurralaria, esgotaria-o e acabaria com ele.
Kline reagiu com rapidez e lançou um golpe na direção do corpo em movimento. Owain patinou sobre o escritório enquanto o tocha se desabava sobre ele. A cabeça voltou a morder profundamente a escura e sólida nogueira e Owain se estrelou contra o chão, na esquina. Consumiu um precioso segundo seu examinando perna. A ferida era profunda e dolorosa, e derramava muito sangue, mas quando se levantou, voltava a sustentar o peso de seu corpo.
Kline tinha liberado sua tocha do escritório e carregava em linha reta contra Owain. Este fez uma cantada à esquerda, logo outro a a direita e por fim outro à esquerda. O golpe do Kline caiu à direita. A tocha falhou e destroçou o chão de parqué em vez da carne do Owain.
Kline, impulsionado pela força impressa à carga, não pôde deter-se, escorregou no atoleiro de sangue derramado e foi chocar com a força de um mercadorias contra seu rival, enquanto este lançava uma estocada com todas suas forças.
O terrível impacto do Brujah fez dobrá-la cabeça do Owain para trás e lhe arrancou a espada da mão. Kline, impulsionado ainda pela força da carga, escorregando, empurrou o corpo de Owain contra a parede, esmagando-o. A parede se gretou. Os ossos partiram-se. Umas luzes começaram a dançar frente aos olhos do Ventrue. Por um momento só houve escuridão. Owain piscou e abriu os olhos. Kline ficava trabalhosamente em pé. Cravada no lado direito de seu poderoso pescoço, estava a espada do Owain. A ponta da folha me sobressaía da parte baixa das costas. A punho e o pomo por diante, junto à cabeça. Virtualmente o tinha atravessado a coluna.
Kline uivou de dor. Agitou os braços freneticamente enquanto com a mão esquerda tratava de interromper o furioso jorro de sangue que brotava de seu pescoço. Tratou de aferrar a espada, mas a dor o enlouquecia, impedindo que se liberasse. A folha cortou profundamente seus dedos enquanto se fechavam sobre ela.
Owain, banhado pelo constante fluxo do sangue do Brujah, tratou de ficar em pé. Estava atordoado. Tratou de alargar uma mão para sua própria e ferida perna, mas o movimento provocou um terrível acesso de dor em seu ombro esquerdo. O braço pendia inerte de seu corpo em um ângulo inaudito. Um pequeno e afiado osso me sobressaía de sua ensangüentada camisa. Surpreso pelo repentino e crescente dor, deixou-se cair, apoiando-se sobre a destroçada parede.
Kline continuava vociferando, consumido por uma agonia insuportável. Aferrou a espada com tanta raiva que a folha cerceou a primeira falange de seu dedo anelar, que caiu ricocheteando ao chão. Seu braço direito se agitava grosseiramente enquanto se cambaleava e tratava de manter o equilíbrio.
Através de uma névoa de sangue e dor, Owain reparou no tocha, atirada junto ao profundo racho que acabava de abrir no chão de madeira. Alargou seu braço são e a sujeitou pela manga. Kline, ocupado pela espada alojada em seu pescoço, não oferecia resistência alguma.
Owain golpeou, mas a arma resultava muito pesada para um só braço e o golpe se desviou. A tocha se cravou no flanco de Kline, justo sob seu braço esquerdo, mas não tão profundamente como para causar grande dano.
Em troca, conseguiu atrair sua atenção, e alimentou ainda mais a fúria que a dor lhe provocava.
Por um instante, Kline esqueceu a espada, ou ao menos a ignorou. Jogando-se sobre ele, sujeitou ao Owain pelo pescoço com ambas as mãos e levantou-o em velo.
O tempo pareceu congelar-se para o Owain enquanto seu corpo era içado pelos ares, mas quase imediatamente caiu de cabeça sobre o escritório. A aguda dor voltou a convocar as luzes frente a seus olhos. Seu ombro e braço esquerdos pareceram de repente voltar-se mudos, como se lhe tivessem sido cortados e já não formassem parte de seu corpo.
Kline se desabou sobre ele. O sangue ainda brotava do pescoço do Brujah, mas já não com tanta força. Sua fortaleza se estava dissipando, mas estava longe de desaparecer por completo. Apertando o pescoço do Owain ainda com mais força, começou a retorcê-lo para a esquerda.
Imobilizado sob o imenso peso de seu competidor, Owain não podia nem sequer apoiar o ombro contra o escritório em busca de suporte. Suas vértebras e os músculos do pescoço estavam a ponto de romper-se.
Levantou a mão direita e a pôs sobre o olho do Kline. Uma garra formada a toda pressa começou a escavar a carne, fazendo estalar o globo ocular. Com um grunhido selvagem, Kline mordeu furiosamente a boneca esquerda do Owain. Este apartou rapidamente sua mão, deixando partes de pele e malha entre as presas do Kline.
Owain sentiu que algo estalava em seu pescoço. Kline retorceu a cabeça de sua vítima com renovado vigor.
Lançando frenéticos olhares em torno de si em busca de algo que pudesse lhe servir de ajuda, Owain reparou em algo sobre o escritório que lhe cravava nas costas. O abajur do escritório? Não. Sem dúvida teria cansado antes da mesa. Freneticamente deslizou seus dedos talheres de sangue para suas costas e sentiu as esmiuçadas páginas de um livro...
Apartou a mão. Mais à direita... e, aí, por fim, sentiu o frio e sólido contato do revólver.
Agarrando-o com força, tirou-o de detrás de suas costas. Com a cabeça girada na direção oposta, logo que podia ver o que estava fazendo. Tratou de pressionar o canhão contra a têmpora do Kline, rezando por não disparar-se a si mesmo.
Apertou o gatilho.
A detonação a tão curta distância resultou ensurdecedora. Voltou a apertar o gatilho. Outro disparo.
A pressão contra o pescoço do Owain cessou. Kline se deslizou ao comprido do escritório e caiu com estrépito sobre o chão.
Owain sabia que precisava levantar-se, assegurar-se de que a luta tinha terminado, de que não havia maneira em que Kline pudesse jamais recuperar-se embora tivesse ao seu dispor tudo o sangue do mundo. Mas ali, derrubado sobre o escritório, carecia da força de vontade necessária para ordenar a seu vapuleado corpo que se movesse.
A pesar do agudo zumbido que os disparos tinham provocado em seus ouvidos, Owain pôde ouvir uns passos aproximando-se apressadamente. Graças ao Céu, eram os passos familiares do Kendall Jackson. Ela se deteve junto ao corpo do Kline, e logo posou delicadamente uma mão sobre o ombro são do Owain.
--Quase se dispara a si mesmo, senhor.
Dolorosamente, Owain voltou seu rosto para o dela. Virtualmente tinha esquecido sua presença. Tinha estado ali todo o tempo, presenciando o duelo sem intervir, de acordo a seus instruções.
--A próxima vez não faz falta que seja tão condenadamente obediente -murmurou. Assinalou com gesto débil o cadáver do Kline-. te assegure.
Kendall compreendeu. separou-se do Owain. O rugido de seu escopeta pôs em ridículo a detonação do revolver.
--Se o Príncipe aprovou isto -assinalou ao chão-, é possível que haja outros.
Owain suspirou. Paz. Isolamento. Isso era tudo o que havia querido. Embalar seus ódios em privado durante uma ou duas décadas. Em vez disso, retornava a sua casa e encontrava seu refúgio violado, seus serventes mutilados e assassinados e, por fim, ele mesmo atacado e reduzido a uma sanguinolenta polpa.
--Necessita ajuda para ficar em pé? -perguntou Kendall.
--Meu ombro. Tem que voltar a me encaixar isso Depositó la escopeta sobre el suelo y dio una vuelta alrededor del
Uma vez mais, Kendall se mostrou extremamente eficiente em sua tarefa. Depositou a escopeta sobre o chão e deu uma volta ao redor do escritório.
--Aqui.
Introduziu um esponjoso cilindro de tecido na boca do Owain. Sem mais demora, colocou seu braço reto, em ângulo com respeito ao corpo, o que provocou uma dor considerável ao Owain. Mas insignificante em comparação com a agonia que o atravessou quando ela atirou com força do braço para cima.
Owain mordeu furiosamente o material que havia entre seus dentes. O tecido também serve para amortecer um tanto o uivo de dor que brotou de sua garganta.
--Não -disse ela-. Uma vez mais.
A dor voltou a percorrer como um relâmpago o flanco esquerdo do Owain, mas instantaneamente diminuiu quando o braço voltou para colocar-se em sua articulação. Owain jazia sobre o escritório, ofegante, pensativo, tratando de vencer à dor.
--A clavícula também está rota -disse Kendall-. Uma fratura múltiplo. Pode curar-se com sangue?
Owain conseguiu fazer um gesto afirmativo e cuspiu o cilindro de tecido de sua boca.
--Sim. Uma vez que o osso esteja em seu sítio, sim.
Lhe desejava muito que seu corpo estava contundido e rasgado de um extremo a outro. Apoiou sua cabeça contra o escritório, e voltou para fechar os olhos. Queria descansar; queria sangue para curar seus feridas, ao menos as físicas. Mas Kendall estava no certo. Se o Príncipe Benison tinha ordenado esteja ataque, bem podia haver outros assaltantes em caminho. Mas esta Certeza nem sequer supunha um princípio de resposta à pergunta que tão profundamente o intrigava: Porquê? por que teria enviado Benison ao Kline e seu arpía detrás dele?
O Sabbat? perguntou-se Owain. Haveria o Príncipe obtido descobrir suas conexões (antigas conexões) de algum jeito? Não seria uma grande ironia, meditou Owain, que seus vínculos com o Sabbat fossem postos ao descoberto precisamente agora que havia conseguido por fim cortá-los? Podia ser que, algumas semanas atrás, alguém tivesse reconhecido ao Miguel em Atlanta. Ou que Carlos não tivesse perdido um minuto em estender os rumores a respeito do ocorrido no Toledo. Mas isto último resultava duvidoso. Carlos, o mesmo que Owain, preferiria provavelmente que o assunto fora esquecido o mais rápida e discretamente possível.
O inesperado giro dos acontecimentos tinha confundido a Owain, mas não havia tempo para parar-se a considerar os numerosos interrogantes. Kendall e ele deviam partir o antes possível. Enquanto ele refletia, ela tinha estado enfaixando seu braço ferido. Mas se queria sanar por completo, ia ser necessário muito mais que isso.
--Necessito seu sangue -disse Owain.
Ela não vacilou um instante. subiu uma das mangas e lhe ofereceu a boneca nua. Owain podia sentir, podia cheirar, o sangue que fluía imediatamente por debaixo de sua pele. Mordeu a suave carne de seu antebraço.
Imediatamente, o sangue da artéria, perfurada com precisão, encheu sua boca. Debilitado como estava, Owain não pôde conter um gemido de prazer. comportava-se como um sedento que acabasse de atracar a um oásis no meio do deserto. Sentiu que o coração do Kendall pulsava, firme, vigorosamente. Enquanto bebia sentiu como parte do poder que tinha-lhe outorgado retornava a ele. E enquanto o fazia, o corte de seu perna e o resto das feridas menores começaram a suturar-se, a recuperar a saúde.
Kendall deixou cair sua cabeça sobre o peito dele. estremecia-se na agonia e o êxtase do Beijo.
Owain queria seguir bebendo dela, tomar tanto sangue como o fora possível, sentir como suas almas se fundiam em uma sozinha... mas a necessitava fisicamente capaz. Tudo seu sangue não seria capaz de curá-lo por completo e, em troca, sua ajuda lhe era muito necessária. Além disso, a menos que o ombro fora tratado adequadamente, e a clavícula alinhada corretamente, o poder do sangue só serviria para soldar os ossos em uma má posição, possivelmente danificando os músculos e os tendões no processo. Embora tentava conservar a máxima sangre possível, mantendo sua capacidade curativa afastada daquela área, podia sentir como nesse mesmo momento começava seu corpo a reparar-se.
separou-se do braço dela, sentindo-se muito melhor do que tinha estado em bastante tempo. Mas ainda não recuperado do tudo. Kendall, abraçada a ele, tratou de manter o equilíbrio. Seus pernas não suportavam todo seu peso.
--me ajude a me incorporar -ordenou ele.
Ainda um pouco tremente, ela ficou em pé frente a ele. depois de equilibrar uns instantes, ajudou-o a sentar-se na cadeira do escritório. Owain se sentia mais forte, mas distava muito de encontrar-se bem. Tinha deixado de sangrar mas ainda estava muito débil. A gaze que cobria a modo de vendagem sua perna já não era necessária. Então, surpreso, reparou em um detalhe estranho.
--Onde conseguiu ataduras podas? -perguntou ao Kendall.
--Ali -ela assinalou para uma massa de ataduras, tanto enroladas como soltas, que jaziam mescladas com os fragmentos do tatu de cerâmica sobre o chão. além dos sanguinolentos rastros digitais do Owain, agora se tinha unido a sua decoração as manchas do sangue do Kline. O conteúdo do tatu, aquela massa de vendagens, devia ajustar-se tão perfeitamente ao contorno interior da cerâmica que, quando Owain o tinha agitado, não havia escutado o menor signo que indicasse sua presença ali. Uma vez mais, a evidente pergunta era: por que?
Owain ficou em pé, cambaleante. Caminhou em torno do destroçado escritório, quebrado pelos golpes da tocha e os impactos das balas, salpicado pelo sangue e uns restos indefiníveis. Devagar e cuidadosamente, ajoelhou-se frente aos restos do tatu e revolveu as vendagens e os cilindros. Só um de eles atraiu seu interesse; havia um pouco escondido ali, envolto pela gaze.
A ameaça do tempo começava a pesar gravemente sobre os ombros do Owain. voltou-se a olhar ao Kendall, que tratava a duras pena de manter-se em pé. Obviamente não foram realizar uma fuga à velocidade do raio; necessitavam cada minuto com que pudessem contar. A contra gosto, deslizou o cilindro de gaze no interior de um de seus bolsos.
--Vamos.
O gesto afirmativo do Kendall revelou seu alívio. Ajudou ao Owain a levantar-se. Ele recuperou a pistola, aquela arma de moderna covardia, do lugar no escritório no que a tinha deixado. Foi muito útil, depois de tudo, admitiu enquanto a guardava sob sua calça.
--Minha espada.
apoiou-se contra o escritório enquanto Kendall recuperava aquela, a arma de sua eleição. Teve que apoiar o pé contra o corpo morto do Kline e atirar com ambas as mãos enquanto balançava a espada de um lado a outro antes de conseguir liberá-la. Owain limpou a folha com um farrapo de gaze e logo a deslizou sob o cinturão. Kendall levava sua escopeta junto à pistola. Assim, completamente armados, se arrastaram, apoiado o um contra o outro, em direção à porta.
--Espera! -Owain se voltou para o escritório. Sobre ele jazia aberto seu livro. Uma de suas esquinas superiores tinha sido atalho pela tocha do Kline. Várias páginas se soltaram. E virtualmente todas as restantes estavam rasgadas ou esmiuçadas; muitas estavam cobertas, ou ao menos manchadas de sangue que começava a secar-se. O coração do Owain se estremeceu frente à visão de sua mais apreciada posse, a que havia protegido durante centenares de anos, reduzida a este friável estado. Sentiu este golpe até mais vivamente que o do tocha do Kline. Tinha passado muito desde que se perdesse a coberta que Angharad fazia com suas próprias mãos para o livro, e agora seu conteúdo estava apenas a um passo da completa destruição.
Owain alargou o braço para alcançar a pequena folha seca de árvore que tinha decorado uma das páginas. Milagrosamente se tinha mantido intacta. Mas apenas seus dedos se posaram ligeiramente sobre ela, esmiuçou-se, convertida em pó que voou pelos ares. Repentinamente golpeado pela dor ante aquilo que nunca recuperaria, Owain tomou a página que tinha coberto à folha. Sobre o lugar em que tinha estado, escritas pela própria mão de Angharad, liam-se as palavras espinheiro branco. Baixo elas havia um espaço de um tom mais claro que o amarelado pergaminho. Neste espaço, que a folha tinha coberto, a mesma mão tinha escrito: Que seja assim. Que assim seja.
--Senhor? -Kendall esperava junto à porta. Seu tom demonstrava paciência. Queria evitar que Owain se sumisse em um sonho prolongado. Tinha entre as mãos o traje que tinha ido a procurar para ele pouco antes da última intrusão.
A comoção do Owain frente ao estado em que se encontrava seu livro e a aparição daquelas palavras, tanto tempo escondidas, era completa. Mas não havia muito que pudesse fazer além de reunir as páginas soltas e levar o patético dossiê em sua mão sã. Olhou ansiosamente uma vez mais para o próximo tabuleiro de xadrez. Algo distante, apenas o germe de um pensamento, começou a atirar dos pensamentos do Owain, mas não tinha tempo para entreter-se com ele. Resultava imperativo que abandonassem aquele lugar quanto antes, enquanto ainda ficava tempo. reuniu-se com o Kendall e, por fim, abandonaram o lugar.
A porta principal ainda permanecia aberta. A brisa noturna se desejou muito ao Owain particularmente fria depois do calor e o sangue que tinham reinado durante a batalha no agora destroçado estudo. Kendall o conduziu até a porta traseira do Rolls.
--Onde vamos, senhor?
--longe daqui -foi a única resposta do Owain. O que outra coisa podia lhe dizer? Sempre tinha estado a salvo. Nunca tinha estabelecido refúgios alternativos na cidade. Quem poderia pensar que um ancião de seus recursos e posição pudesse ver-se ameaçado?
Como se necessitasse uma resposta a esta última pergunta, Owain pôde ver, entre as árvores, luzes de faróis aproximando-se da cancela da direção do King Road.
Kendall viu as luzes no mesmo instante. Fechou a porta de Owain e se apressou para o assento do condutor. A descarga de adrenalina parecia ter dormitado sua anterior debilidade física.
O outro carro dobrou a última curva sem deter-se nem frear. As rodas provocaram um agudo chiado contra o asfalto. A negra limusine não estava feita para esse tipo de manobras a alta velocidade, mas seu invisível condutor governava o veículo com notável perícia.
Kendall saltou sobre assento do condutor e pôs o motor em marcha antes sequer de que a porta estivesse fechada.
A limusine, ainda a máxima velocidade, desviou-se bruscamente para dirigir-se ao passeio que rodeava a fonte frente à fachada e se lançou em linha reta contra o Rolls.
Kendall colocou marcha atrás e apertou o acelerador. O carro avançou para trás abandonando a curva da rotunda.
Mas a limusine se movia muito rápido. Investiu a parte frontal do Rolls, enviando o carro do Owain para trás, dando voltas inverificada, até chocar contra a fonte. deteve-se bruscamente.
Os dois impactos impulsionaram em rápida sucessão ao Owain de um lado a outro da cabine. Aterrissou pesadamente sobre o ombro ferido. As luzes voltaram a aparecer dançando frente a ele sem que pudesse fazer nada. forçou-se a sobrepor-se à dor, a manter a consciencia, em que pese a que a tentação do aprazível esquecimento era de fato muito poderosa.
--Owain Evans!
Escutou seu nome vociferado lá fora, mas não pôde reunir a força de vontade suficiente para apartar a cara do assento de couro. A porta traseira foi arranco de suas dobradiças. Mas tampouco então olhou. Não precisava fazê-lo. Tinha reconhecido a voz.
--Owain Evans! Seu Príncipe deseja falar contigo! -gritou J. Benison Hodge, Príncipe de Atlanta.
E assim, a Terra abrirá seu útero, e a Besta sairá arrastando-se de ele... A Ruína dos filhos do Caín está próxima.
Kli Kodesh deixou que a tolice o envolvesse e passasse através dele. imaginou a si mesmo liberado dos arcos gêmeos de seu prisão (o espaço e o tempo), cujos muros o tinham evitado durante tanto tempo. Uma vez tinha dedicado um século a contar suas pegadas, calculando o número de metros que tinha atravessado. Mas isto não o tinha aproximado um ápice a nenhum confine de seu fechamento. Do mesmo modo, fazia já muito que os caprichos do tempo tinham deixado de ter significado algum para ele. Os segundos se alargavam até parecer anos enquanto as décadas podiam esfumar-se em menos tempo de que demorava um coração em pulsar.
Mas agora, por fim, os muros se achavam a seu alcance. O cimento que mantinha as pedras unidas entre si começava a descascar-se e cair. Muito em breve, as profecias do José o Menor derrubariam as muralhas e Kli Kodesh séria livre. Quão generoso por parte do da Arimatea, pensou Kli Kodesh, embora sabia que a generosidade não tinha nada que ver com o assédio que suportavam os Condenados.
Um som próximo afastou do Kli Kodesh o desejado esquecimento. Passos. A suave carícia dos pés sobre os blocos de pedra da câmara.
No interior daquela câmara, incontáveis caixas, cofres e gavetas se empilhavam formando corredores. Sua existência só era conhecida para um punhado de escolhidos de entre todos os que percorriam santificada-las estadias que havia sobre ela. Na escuridão, rodeado pelas ocultas ninharias dos séculos, Kli Kodesh parecia encontrar-se em seu lugar.
Apagada-las pisadas se aproximaram, e então uma figura encapuzada emergiu desde detrás de uma pilha de cofres. O capuz do hábito escondia suas facções. O guardião da câmara se deteve por um instante breve, e então reatou seu caminho. O eco de seus metódicos passos voltou a elevar-se, profanando o silêncio de tumba que reinava na câmara, até perder-se nas invisíveis alturas. Kli Kodesh observou enquanto o Capuchino voltava a desaparecer na escuridão. O guardião conhecia muitos dos segredos da câmara, mas não tantos como Kli Kodesh.
Kli Kodesh pôs sua mão sobre o cofre pelo que tinha viajado até esta cripta sob a Cidade Maldita.
A Besta caminha sobre a Terra. A Ruína dos filhos do Caín está próxima.
O movimento de seu osso quebrado foi quase mais do que Owain podia suportar. Benison o tinha sujeito com força e o arrastava ao exterior do armação acidentado do carro. Os dentes apertados, Owain grunhiu de dor, mas isto não dissuadiu ao Príncipe. Pôde ver por a extremidade do olho que Kendall permanecia sobre seu assento, apertada contra o airbag que tinha saltado quando o Rolls se chocou contra a fonte.
Felizmente, embora era um magro consolo, Benison sujeitava ao Owain pelo braço direito, assim que a aguda dor proveniente de seu braço esquerdo era menor de que tivesse podido ser. Infelizmente, o Príncipe parecia estar-se sumindo a toda pressa em um de seus já legendários ataques de fúria assassina.
Benison levantou o Owain até obrigá-lo a permanecer de pé, e então o empurrou contra a carroceria do carro.
--Tão logo foi? -disse o Príncipe com voz zombadora-. Me parece que não! Temos muito que discutir.
O Príncipe retrocedeu um passo e extraiu da capa seu sabre de oficial da Guerra de Secessão.
Owain, afligido pela dor, escorreu-se até o chão, apoiado contra a carroceria do carro. Enquanto apertava o braço esquerdo contra o corpo, em um vão intento por evitar as ferroadas da dor, advertiu que o ghoul do Benison, Vermeil, tinha apoiado alguma classe de metralhadora montada em um trípode sobre o capô da limusine. A arma, é obvio, apontava ao Owain. face aos pulsantes tremores da dor, não pôde evitar que uma suave risada o assaltasse.
Benison se tornou atrás, surpreso por seu inesperado comportamento. manteve-se imóvel, espada em mão, contemplando ao Owain durante um momento.
--Não acredito que haja razão para rir -disse com sombria determinação.
Um novo acesso de dor convulsionou ao Owain por uns instantes. Ao cabo de um momento foi capaz de falar:
--Isso é para melhorar ao diálogo? -assinalou com um gesto da cabeça ao Vermeil e sua metralhadora.
--Terei justiça. -Não houve o mais leve indício de compromisso, ou de misericórdia, em sua voz.
--E Kline? -mofou-se Owain-. Também deveu dialogar, não? Me imagino que o enviou para me fazer algumas pergunta.
--Terei justiça! -repetiu Benison. Seus largos olhos resplandeceram com a antecipação da batalha.
Justiça? Suas palavras não tinham nenhum sentido para o Owain.
--Justiça? Justiça por que?
Owain tivesse jurado que os olhos do Benison não estavam só tintos pela luxúria da batalha, mas também pela loucura. Sua entupida barba de cor castanha avermelhada contribuía a formidável impressão que produzia seu musculoso porte. Com uma mão tremente, o Príncipe introduziu uma mão no bolso de sua americana e extraiu dele um pequeno hatillo de tecido branco. Sem utilizar a mão que sustentava a espada, começou a desatar o tecido, e finalmente a deixou cair ao chão. A mão do Benison sustentava a adaga do Owain, cuja dourada punho resplandecia intensamente sob a luz da próxima luz de gás.
A visão da adaga foi uma surpresa para o Owain. E não uma surpresa agradável. Tinha-a arrojado contra o chão da igreja a mesma noite que a sereia tinha morrido, a mesma noite em que a sereia tinha sido assassinada. Açulada pela lembrança de seu despedaçado corpo, a fúria do Owain se inflamou e se elevou até fazer emudecer sua dor. Uma tocha jogada pelos ares a havia golpeado em plena cara e no pescoço. Owain ainda recordava aquele instante, a última nota de sua maravilhosa canção atalho de coalho quando a tocha abriu em canal seu esôfago.
E aqui, em pé diante do Owain, encontrava-se o arquiteto de tão absurda destruição. Benison, consumido por suas ilusões messiânicas, tinha ordenado que a assassinassem. Owain começou a canalizar o sangue recém consumido para seu ombro ferido. Não se encontraria indefeso em presença daquele demente.
--Justiça -disse Owain lentamente, repetindo como um eco as palavras do Benison. O agente da destruição da sereia, pensou Owain com satisfação, jazia atirado no interior da casa, apenas a um centenar de metros de distância... sem um rastro de cabeça sobre os ombros.
Naquele momento a porta dianteira do Rolls se abriu violentamente e Owain e Benison se voltaram para uníssono. Trabalhosamente, Kendall conseguia apartar do desinchado airbag e se arrastava fora do carro. De onde se encontrava, Owain não podia distinguir se escondia ou não a escopeta a suas costas. Estava à vista do Vermeil, diretamente frente ao campo de tiro de seu metralhadora. Certamente, a colisão não tinha contribuído a remediar a debilidade em que a deixasse sumida Owain detrás alimentar-se dela.
--Que palavras pode invocar em sua própria defesa? -perguntou Benison, distraído apenas um instante do objeto de sua justa indignação-. Esta é sua adaga.
--É-o? -perguntou Owain. Abrigava poucas esperanças de escapar da situação mediante uma conflito dialética, mas com cada minuto que atrasava o enfrentamento, a vitae aumentava seu poder. Um magro verniz de carne começava a formar-se já ao redor do osso protuberante. E o osso começava a soldar-se, embora não em a posição correta. Apesar de tudo, estaria mais preparado para enfrentar-se a um perigo imediato se podia utilizar seu braço esquerdo e mover-se sem que isso lhe provocasse uma agonia. Enquanto isso, o Príncipe não parecia ter reparado no ombro ferido do Owain nem, muito menos, em sua acelerada recuperação. Ou talvez Benison, embriagado de fúria e confiança em si mesmo, não se preocupava com isso.
--Nada de "é-o...?" -disse Benison, blandiendo a adaga em direção ao Owain-. Esta é sua adaga. Você estava ali, naquela maldita e demoníaca capela a noite que a bruxa foi queimada.
Owain olhou fixamente à adaga. Tinha algum sentido o negar que era dela? Benison não parecia estar muito disposto a raciocinar, mas a discussão podia ganhar um pouco de tempo a seu ombro, permitindo que terminasse de curar.
--Quem diz que é minha? -perguntou.
--É tua -disse Benison. Seus olhos se afiaram, e cobraram um brilho de ódio-. Você estava ali. Viu a morte da bruxa.
Owain ficou rígido. Voltou a ver em sua mente a cena. Contemplou, incapaz de intervir, como Kline levantava a tocha, preparando-a para o coup de gráce. Benison se encontrava apenas uns metros mas lá. Owain queria gritar ao Príncipe, tirar sua luz ignorante e insignificante piedade. Mas por cima de tudo, queria sangue. Furioso, apertou o punho. Ambos os punhos. Seu ombro estava terminando de reparar-se, mas ainda necessitaria uns poucos minutos mais. Owain manteve sua fúria a raia, deixando que ardesse em seu interior a fogo lento.
--Mentiram-lhe -disse Owain. Espremeu seu cérebro em busca de alguma idéia. Quem pode lhe haver dito tudo isto? Talvez Albert, durante a tortura que tinha precedido a sua execução, havia-lhe falado ao Príncipe sobre a presença do Owain nos ritos? Owain pensava que Albert o tinha visto na igreja uma noite.
--Vi-o com meus próprios olhos -disse Benison, fazendo girar lentamente o punho de sua espada. Seus olhos e as aletas de seu nariz tremiam de cólera. Owain pensou que o Príncipe podia estar a ponto de estalar e atacar em qualquer momento. Mas, frente a aquele tirano, aquele destruidor da beleza, via-se capaz de fazer o mesmo.
»Ao princípio duvidei da magia Tremere -continuou Benison-. Mas ela utilizou minha espada -elevo-a frente a sim, para ilustrar seu narração- para me mostrar meu passado. Quão mesmo utilizou a adaga para me mostrar seu passado. Esteve ali.
O Príncipe apontou por um instante a adaga para o Owain e logo a arrojou furioso contra o chão.
--Enganaram-lhe -insistiu Owain-. É que vais acreditar em uma Tremere?
--Acredito em minha esposa -disse Benison, poseído por uma repentina e acalmada reverência.
Owain levou a mão até sua espada, no cinto. Não estava de humor para continuar a discussão com aquele Príncipe demente nem um minuto mais.
--Eleanor -disse-. A zorra mentirosa.
O rosto do Príncipe avermelhou. Deixou escapar um profundo suspiro. de repente parecia ser mais alto. Com um rugido ensurdecedor, investiu ao Owain.
Este desenvainó a espada enquanto se apartava à direita. Seu ombro, mal reparado, dificultava seus movimentos. Era-lhe possível saltar, rodar e dar cambalhotas, mas resultava doloroso.
Imediatamente Benison esteve sobre ele, descarregando uma tormenta de golpes. Com muita dificuldade pôde Owain bloquear seus ataques. O Príncipe estava completamente entregue à fúria da batalha. Cada poderoso impacto de aço contra aço reverberava por todo o corpo do Owain. Passo a passo, retrocedia sem parar. Felizmente para ele, tinha espaço suficiente para manobrar. De outro modo, a superior força do Benison tivesse decantado rapidamente o duelo em favor do Príncipe.
Depois de capear o primeiro temporal de golpes, Owain começou a encontrar-se mais seguro. Embora debilitado pelas feridas e o gasto de sangue que tinha tido que confrontar para curar-se, ainda era um espadachim consumado. Um que, felizmente, não apoiava seu uso na força bruta. um após o outro, parou ou esquivou os enérgicos embates do Príncipe.
Mas, contudo, Benison mantinha a pressão de seu ataque. Impulsionado pela fúria e a força bruta, um simples golpe que acertasse de cheio poria fim ao duelo. A esgrima do Benison mostrava pouca sutileza. Não a necessitava. Seu sabre levava consigo a força do trovão. Implacavelmente, golpe detrás golpe, os olhos inflamados de loucura e justa cólera, seguiu atacando.
Owain desviava cada um dos ataques, mas sua defesa ia voltando-se pouco a pouco menos precisa, menos brilhante. Aquela noite tinha perdido muito sangue, tinha passado por muitas coisas. A cada segundo, os golpes do Benison se aproximavam mais e mais a seu objetivo.
Benison golpeou de novo. Owain parou a estocada e as duas folhas, cruzadas e no alto, encetaram-se em conflito entre os dois duelistas.
--A verdade prevalecerá -murmurou o Príncipe-. O diabo se há procurador de ti. A cidade deve ser limpeza.
Owain estava muito ocupado tratando de conter com seu espada a terrível força do Benison para responder. Diabo. Demônio. As palavras se cravaram na mente do Owain. O Príncipe falava da sereia. Sem ter escutado sua canção, tinha decidido que se tratava de alguma classe de criatura demoníaca -mais que qualquer deles- e a tinha feito assassinar.
--Limpeza? -disse ao fim, esboçando um sorriso ao mesmo tempo dolorida e depreciativa-. Da beleza?
Benison pressionou até com mais força contra as espadas cruzadas.
--Primus não será destruída!
Primus? As palavras do Benison não tinham o menor significado para ele. Mas inclusive enquanto Owain pugnava contra seu poderoso inimigo, a lembrança da sereia permanecia presente em seu pensamento. Deixou de escutar o bate-papo religiosa do Benison, como se se afastasse na distância. Desapareceu a suas costas o rumor da fonte. Tudo o que Owain ouvia eram a delicada sucessão de estrofes da canção da sereia. Não estava seguro se as notas vinham do interior de sua mente ou as arrastava a brisa noturna mas, acaso importava? Enquanto as espadas se foram aproximando lentamente a seu rosto, enquanto sua fortaleza era dobrada naquele duelo de vontades, decidiu que se ia morrer, seria bom fazê-lo com o som daquela melodiosa música em seus ouvidos.
Obrigado pela força de seu oponente, Owain caiu sobre uma joelho. As espadas se encontravam a escassos centímetros de seu rosto. O Príncipe empurrava para baixo com toda seu considerável força.
--Aquela puta de Satanás tinha que morrer -ouviu Owain dizer a Benison.
Aquela puta de Satanás.
Owain recordou a primeira vez que a visse, lá no santuário: seu vaporosa toga branca; seu gentil rosto voltado para o alto; os olhos fechados em humilde súplica. A puta de Satanás? Lhe havia devolvido a beleza. Se aquela era a obra de um demônio, de bom grau a aceitava. Deus nunca se incomodou em enviar um de seus anjos para confortar ao Owain.
Levantou o rosto por cima das espadas cruzadas. Olhou fixamente a cara do Benison, apenas a uns centímetros de distância.
--Se ela era malvada, então Deus condenará sua alma. Mas essa não é sua prerrogativa.
Durante boa parte da noite, uma geada cólera se havia estado acumulando no interior do Owain. Seu fogo, mais intenso com cada golpe recebido -o Brujah na adega, Kline, Benison-, começava a alcançar as lembranças do passado, alimentando-se de todos os insultos proferidos contra ele, tão reais como imaginários. O Grego, Miguel... todos eles tinham julgado erroneamente ao Owain em várias ocasiões. E as palavras do Príncipe sobre a sereia não só representavam outro abuso, outro insulto contra ele. Reanimavam seu canção. E aquelas notas que haviam meio doido e tocavam o mais profundo de sua alma, levaram-no com elas, lhe abrindo a sua fúria incluso as mais longínquas lembranças.
Com renovadas forças, Owain fez frente ao impulso do Benison. Olhando ferozmente ao interior de seus olhos de assassino, deixou que as chamas do ódio ardessem poderosamente em seu interior. Lentamente, as folhas cruzadas começaram a apartar-se de sua cara.
Benison grunhiu e seu rosto se convulsionou em uma careta de assombro enquanto, fração de centímetro detrás fração de centímetro, as espadas começavam a aproximar-se dele com lhe exasperem lentidão.
Um grunhido surdo de pura fúria e ódio começou a elevar-se do interior do estômago do Owain. Foi ganhando força e volume a medida que obrigava ao Benison a retroceder. Owain ficou em pé. de repente, uma suave piscada de dúvida parecia insinuar-se no zelo evangélico do Príncipe. No passado, Owain tinha visto aquela mesma expressão em outros: a confusão do caçador quando se converte de repente em presa.
Com um estalo de fúria primária, Owain jogou no Benison para atrás, lhe fazendo cambalear-se. O Príncipe retrocedeu dando tombos vários passos até que pôde recuperar o controle de si mesmo e se deteve. Agora olhava ao Owain com mais cautela, mas não com menos determinação. Sua segurança e a confiança na sanção divina seguiam brilhando em seus olhos.
--Se o que quer é um ajuste de contas -disse Owain-, um ajuste de contas é exatamente o que terá. E não te faz idéia de quão severo é a justiça que eu reparto.
Agora foi Owain o que se jogou sobre o Príncipe. De quantas batalhas tinha emerso vitorioso? Quantas vistas, tanto de mortais como do Cainitas, tinha segado com sua espada? Com cada choque de suas espadas, podia recordar outra. Os anos tinham derramado muita sangre sobre suas mãos. E agora queria mais.
Owain atacava sem piedade. Benison não carecia de habilidade com a espada, mas por temperamento e natural força, seu estilo se ajustava melhor a um ataque direto e frontal que a uma defesa prolongada. Entretanto, suas paradas eram funcionais, se não elegantes, e inclusive frente à magnitude da experiência e inato talento do Owain, cedia terreno a contra gosto.
--Primus não será destruída -murmurava Benison uma vez atrás de outra. depois de cada golpe do Owain, o Príncipe repetia seu mantra-. Primus não será destruída -como se extraísse renovado vigor de aquelas palavras.
Owain fintó uma estocada baixa e então atirou um golpe para vamos. Benison conseguiu bloquear o ataque, mas a folha do Owain se escorou, esquivou a do Príncipe e o alcançou no rosto, abrindo uma ferida da orelha esquerda até o nariz. O sangue começou a emanar, derramando-se e tingindo o castanho de sua barba. Um ou dois centímetros mais acima e se cobrou o olho do Príncipe.
Mas a ferida não era séria, e a surpresa ante o primeiro sangue pareceu respirar ao Benison. Passou de novo ao ataque depois de parar os golpes do Owain. Primeiro manteve sua posição, sem perder terreno, e logo começou lentamente a avançar. Sua espada já não era impulsionada pela redobrada força de uma loucura imprudente. Seus golpes se produziam agora a um ritmo mais acalmado. Mas seu infatigável força começava de novo a ganhar terreno ao Owain.
Owain tinha estado a ponto de consegui-lo. O golpe que quase alcançou o olho bem poderia ter marcado a diferença. Mas as provas que o destino tinha arrojado a seu passo esta noite, e as noites anteriores, começavam a cobrar-se seu preço. Tinha perdido muita sangre no duelo com o Kline, e muita mais tratando de curar-se para ter ao menos uma remota esperança de sobreviver a este combate. Agora, com a fortaleza que a fúria lhes tinha emprestado a ambos quase esgotada, a superior força do Príncipe voltava a empurrar frente a sim ao debilitado Ventrue.
Pela primeira vez desde que começasse a luta, Owain se arriscou a jogar uma olhada a seu redor. Onde, perguntou-se, se encontrava Kendall? Tratava de aproximar-se sigilosamente por detrás para levar a cabo um ataque por surpresa? Mas então a viu, pálida, apoiada contra o carro. Vermeil seguia vigiando-a. A força do Kendall e boa parte de seu sangue já tinham sido gastas. Não podia esperar-se ajuda daquele flanco.
As poucas forças que ficavam começavam a abandonar a Owain. Nesse momento, só seus muitos anos de experiência o estavam salvando de uma derrota imediata. Mas, à medida que seus reflexos se faziam mais lentos, os golpes do Benison se aproximavam de ele mais e mais.
O Príncipe podia sentir a vitória ao alcance da mão. O ritmo de seus ataques se freou ligeiramente, mas cada um dos golpes foi descarregado com deliberada determinação e total força. As bonecas e o braço do Owain começaram a resentirse dos repetidos impactos. Muito em breve, era consciente disso, a folha do Príncipe atravessaria sua debilitada defesa. Owain perdia terreno. Se encontrava já quase encurralado contra o muro da fonte.
Então, dos bosques que cobriam a colina, chegou até ele o som do motor de um carro. De vários carros, para ser exatos. Benison também escutou o som. Freou seus ataques, mas não os deteve por completo. Owain, combatendo a fadiga e a distração, observou cuidadosamente a seu inimigo se por acaso em algum momento baixava o guarda, mas Benison não se esqueceu dele.
Primeiro um carro, logo um segundo, e por fim um terceiro, dobraram a última curva da estrada que vinha dos bosques. Owain estava de costas a deslumbrante luz dos faróis. Benison protegeu-se os olhos e, apesar disso, reatou imediatamente seu ataque. Pela extremidade do olho, Owain podia ver como Vermeil lançava olhadas alternativas para o Kendall, para o duelo que se desenvolvia a um lado, e para os carros que se aproximavam pelo outro.
Em rápida sucessão, os carros, com os faróis apontando ao Owain e o Príncipe, foram-se detendo junto a uma ladeira afastada.
--Detenha, Benison!
Um golpe mais se estrelou contra a folha do Owain, mas então o Príncipe retrocedeu um passo. Mantendo o guarda alta, olhou para as luzes com os olhos entreabridos. Agora Owain não estava seguro de poder reunir as forças necessárias para um ataque incluso se Benison ignorava-o por completo. Apartando uns passados do Príncipe, Owain se voltou para os carros, além da fonte.
Ao menos meia dúzia de veículos se alinhavam até alcançar o limite das árvores. Ao outro lado da fonte, e ocultos pelas deslumbrantes luz, elevavam-se numerosas figuras. A luz e o movimento impediam de precisar quantas.
--Atende a nossas demandas!
Então Owain reconheceu a voz do Thelonious, Primogênito Brujah de Atlanta. Benison também o reconheceu. A Barbuda mandíbula do Príncipe se estremeceu com fúria redobrada.
--Não trato com traidores! -exclamou como resposta.
Owain retrocedeu um pouco mais, com a espada baixa, junto ao flanco. A arma parecia lhe pesar mais de cinqüenta quilogramas. Aquele intercâmbio de palavras entre o Thelonious e Benison resultava uma surpresa para ele. Sabia pelo que Lorenzo Giovanni lhe tinha contado que os anarquistas não estavam contentes com o Príncipe. Aparentemente, Thelonious tinha respaldado a seu chusma. Não resultava tão surpreendente, decidiu depois de lhe dar duas voltas. Virtualmente cada Brujah ao que tinha conhecido era, bem um romântico amante da utopia como Thelonious, que queria lutar para emendar as injustiças do mundo, bem um valentão psicopata como Kline para quem o mundo perfeito consistia na licença para agredir a qualquer que lhe desejasse muito.
--Você é o que traiu à raça dos Cainitas -disse Thelonious ao Príncipe.
Benison sujeitou sua espada ainda com mais força.
--Eu? Eu traí a nossa raça? -parecia assombrado pela acusação-. Eu ofereço a salvação a esta cidade. Ao mundo! -O fanático resplendor retornou a seus olhos enquanto voltava a recitar seu sermão-. É você o verdadeiro traidor. A obrigação de um Primogênito é a de assistir a seu Príncipe no governo.
--A obrigação de um Primogênito é proteger contra os abusos do Príncipe -replicou Thelonious.
Entre os Condenados, Benison era conhecido como um orador e contertulio de certa habilidade, mas esta noite, sua sempre escassa reserva de paciência se esgotou por completo. Caminhou para a ladeira e levantou a espada.
--Renderão-lhes imediatamente, ou não haverá piedade para ninguém.
Owain pôde ouvir o estalo de várias armas ao ser carregadas ou marteladas entre a tropa que acompanhava ao Thelonious. O Príncipe, em troca, não pareceu reparar em tão detestável feito. Owain pôde afastar-se um pouco mais dele.
Um disparo escapou desde algum lugar entre a multidão. A bala passou zumbindo entre o Benison e Owain. Owain se jogou em um lado. Em mudança, Benison carregou para diante. Saltou a baixa cerca da fonte e avançou chapinhando talher pela água até os tornozelos.
No mesmo momento, Vermeil abriu fogo com sua metralhadora sobre o grupo. Os corpos saltaram em todas direções em busca de refúgio. Os cegadores faróis, um após o outro, estalaram em uma chuva de faíscas e cristais. A noite se encheu com o som dos gritos e o vaia do ar ao escapar das rodas perfuradas.
Sem vacilação, Benison carregou em linha reta contra o caos. Não parecia lhe importar o que logo bloquearia com seu corpo a linha de fogo do Vermeil. O Príncipe existia exclusivamente para atacar a aqueles que se interpunham em seu caminho e no de sua Santa visão.
Owain se arrastou engatinhando longe da rotunda. Kendall, quem se tinha arrojado ao chão ao primeiro som do tiroteio, pisava-lhe nos talões. A um lado da formada redemoinhos massa de figuras, Owain podia fazer um claro quadro da cena. Parecia que Thelonious havia gasto consigo um numero importante de seus partidários, ao menos dez ou inclusive pode que quinze. Entre eles alcançou a ver, apenas por um instante, a figura de Benjamim, o suposto amante da mulher do Príncipe, Eleanor.
Parece que isto fica interessante, meditou Owain. Mas ao instante uma bala perdida impactou em uma árvore próxima, lhe recordando que aquele não era, provavelmente, o melhor lugar para os espectadores.
Kendall já o tinha alcançado. No momento, ao parecer, tinham sido esquecidos por completo. A atenção do Benison e Vermeil parecia enfocada por completo no grupo de anarquistas, e viceversa. Owain não queria ficar a comprovar quanto duraria aquela situação.
--Pensei que provavelmente quereria isto -disse Kendall. Tirou de debaixo de sua camisa uma bolinha feita com farrapos de suas roupas. A desembrulhou e lhe entregou o livro, ou o que ficava dele ao Owain. Provavelmente se tinha perdido quando a limusine se estrelou contra a fonte mas, de algum jeito, ela tinha conseguido salvar o tesouro que ele tinha esquecido.
Enquanto isso, Benison tinha saltado da fonte e se jogava na batalha. Ignorou as balas perdidas, assim como as que impactavam em seu corpo. Por fim, entre o Thelonious e seus anarquistas, levantou a espada com mortais e evidentes intenções. Cainitas e meio Cainitas, o grupo se dispersou em todas direções. Não importava que o superassem em número por mais de dez a um. Nem a proporção nem a improvisada coleção de paus, estacas e armas de fogo que levavam os anarquistas teriam detido ao Benison.
--Vamos -disse Owain. Não acreditava que o Príncipe fora a cair, inclusive enfrentando-se a tantos. Este era o tipo de luta, direta e a morte, que ao Benison adorava. Inclusive apinhados em densos grupos a seu redor, os anarquistas não pareciam rivais para seu espada.
E inclusive se Thelonious conseguia vencer, Owain, em seu debilitado estado, não queria encontrar-se com nenhum Cainita. E muito menos com uma turfa de anarquistas predispostos para a violência. Para um ancião como ele, aquele cenário resultaria igualmente pouco saudável.
Permanecendo agachados, Kendall e ele correram até o limite das árvores. Em meio do açougue que estava tendo lugar junto à fonte, ninguém reparou neles. Assim que se encontraram a salvo depois das árvores, rodearam a rotunda e a fonte, descrevendo uma amplo círculo até encontrar-se detrás da refrega. Um anarquista flutuava cabeça abaixo na fonte. Seu sangue coloria o água de um suave e doentio vermelho.
Benison seguia lançando estocadas e talhos em torno de si, enquanto os anarquistas o assaltavam desde todas direções. Como o Príncipe tinha podido evitar que lhe voassem a cabeça, era algo que Owain não podia imaginar.
Vários dos carros dos anarquistas permaneciam, as portas abertas, as luzes acesas, apartados a um lado da estrada e longe do banho de sangue que se estava produzindo. Normalmente a Owain lhe tivesse bastado com uma fibra de sua concentração para assegurar-se de que não fossem vistos enquanto corriam discretamente por volta de um deles, mas nas atuais circunstâncias, suficiente fazia permanecendo em pé e em movimento. Suas reservas de energia se tinham esgotado.
De todos os modos, a mesma intensidade da batalha estava servindo para ocultar sua presença. O segundo dos carros que investigaram, um sedan escuro bastante amolgado, ainda tinha a chave no contato. Entraram, e Kendall ficou ao volante. Chegado o caso, e se as condições o exigiam, Owain podia conduzir um carro, mas ela estava muito mais versada que ele no manejo dos veículos modernos.
Já afastado da luta, uma entristecedora fadiga se apoderou de Owain. Estava exausto. deixou-se cair sobre o assento enquanto Kendall punha em marcha o motor, e o carro se afastava a toda pressa da casa, aquela casa que tinha feito as vezes de seu lar nos últimos tempos. Owain não olhou para trás para comprovar se alguém advertia sua fuga. Se era assim, não lhe importava. Deixou que a espada caísse de sua mão e ficasse apoiada contra a porta. Logo, não ficou mais som que o do motor, e o da estrada apressando-se baixo eles.
Owain esperava que Kendall lhe perguntasse aonde deviam dirigir-se, mas ela conduzia em silêncio. Em qualquer caso não tinha uma resposta para lhe dar. Possivelmente ela já soubesse. Tinha aprendido a desentranhar e compreender suas maneiras, gestos e intenções... uma habilidade valiosa, mas também potencialmente perigosa, para um ghoul.
O vento que penetrava pela janela aberta era muito frio. Não refrescava. Owain se separou da cara o cabelo, rígido pelos grumos de sangue seca. Precisava pensar, decidir o que faria. Ainda ficavam várias horas de escuridão. por agora, limitou-se a fechar os olhos e apoiar a cabeça contra o respaldo do assento. permitiu-se o luxo de perder a consciencia, embalado pelo som do motor, enquanto ele e seu único ghoul supervivente se afastavam a toda velocidade daquele refúgio que nunca tinha sido verdadeiramente seu lar.
O carro roubado estacionou no interior de um hangar privado, propriedade de uma escura companhia de importação e exportação, a subsidiária de alguma ramo secundária de uma divisão de alguma outra subsidiária maior. Frente à porta do hangar se encontrava o atual diretor em funções, Lorenzo Giovanni, e seu guarda-costas, Alonzo.
Owain saiu do carro. O decrépito veículo não lhe havia impressionado muito. Carecia do conforto dos Rolls, ao que se tinha terminado por acostumar-se. O amolgado sedan, com seu capô traseiro daquela estranha cor, havia poseído em troca a inapreciável virtude de encontrar-se no sítio justo no momento adequado, e tinha levado ao Owain e ao Kendall aonde precisavam ir.
Pela segunda vez naquela noite, Owain saudou o Lorenzo.
--Não esperava voltar a verte tão logo -disse Lorenzo. Embora discreto até o extremo, não podia ter deixado de reparar no arrugadísimo traje do Owain. Assim como no fato de que levava a espada, apenas oculta, sob a gabardina.
--Minhas mais sinceras desculpas por te haver feito vir outra vez -disse Owain, enquanto Lorenzo e ele intercambiavam beijos nas bochechas-. Sei que tem assuntos mais importantes que atender.
--Não se preocupe -respondeu Lorenzo, sujeitando com firmeza a Owain pelos ombros-. vim assim que recebi sua chamada. Que menos podia fazer por um amigo?
Não era isto exatamente o que Owain se estava perguntando. Mas bem, que mais faria Lorenzo? Por esta razão não queria perder um segundo de tempo.
Quando Kendall e ele tinham escapado do imóvel, acreditava que Benison estava a ponto de derrotar aos anarquistas. Eles tinham a vantagem do número, mas ele era um guerreiro nato. Owain já conhecia o tipo. Aos que eram como ele terei que derrotá-los por meio da astúcia, não da força nua.
Em todo caso, se o Príncipe conseguia pôr em fuga aos anarquistas, podia ser que se lançasse em sua perseguição, ou que voltasse sua atenção de novo para o Owain. E Owain não estava, de nenhuma maneira, preparado para confrontar uma nova luta. Necessitava tempo para descansar e recuperar-se. Já tinha deformado seu ombro ao obrigá-lo a curar antes de que o osso estivesse em seu lugar, mas nesse caso não tinha tido outra opção.
Ao Owain não preocupava tanto o que Benison fora a encontrá-lo como o que Lorenzo, em busca de alguma vantagem política, pudesse atrasar sua marcha a propósito. Owain e o Giovanni pareciam estar em bons términos, é certo, mas uma aliança recente como a sua podia permutar-se rapidamente em traição se um dos bandos conseguia conseguir uma vantagem definitiva sobre o outro.
Lorenzo obsequiou ao Owain com um sorriso alentador.
Owain sabia que o Giovanni tinha em muito pouca estima ao Príncipe. Aquela era a primeira razão pela que Lorenzo havia realizado aquelas sutis manobra de aproximação para ele. Quem melhor que um Ventrue para aspirar ao título de Príncipe, embora tivesse que arrancar o de mãos do Benison? Em Atlanta, ninguém. Com a meada política emaranhando-se ao redor do Benison, com o esforço de revolta anarquista e a possibilidade latente da intervenção do Círculo Interno, Lorenzo se tinha mostrado cada vez mais amigável.
Mas, perguntou-se Owain, o que ocorreria se o Príncipe era capaz de escorar sua posição, talvez acabando com suas próprias mãos com boa parte da facção anarquista? A Camarilha estaria muito menos disposta a intervir se a ordem era restabelecida. Nesse caso, os inimigos do Príncipe deixariam de ser rivais aspirantes a seu posto para passar a converter-se em proscritos. Quão favorável se tornaria a atitude do Benison para os Giovanni se o representante do clã na cidade entregava a um criminoso, que além disso era um herege?
--Está preparado o avião? -perguntou Owain.
--Estão-o preparando neste momento -respondeu Lorenzo.
Owain não podia ler no interior do ghoul. Quanto do que tinha ocorrido tinha chegado até seus ouvidos? Era conhecido o desejo do Príncipe de ver o Owain morto? Não tinha forma se soubesse. Pelo que ele sabia, Benison podia inclusive ter devotado uma recompensa. Mas, nesse caso, por que se tinha mostrado Lorenzo tão amigável e tão desejoso de colaborar com ele aquela mesma tarde? Talvez jogava a carta da paciência, esperando a ver se a balança do poder se inclinava a favor ou em contra do Príncipe. Se esta era a situação, então o destino do Owain podia muito bem depender do resultado da batalha do Benison com os anarquistas e do rápido que chegassem as notícias até o Giovanni. Não havia tempo que perder.
--Talvez estaria mais confortável esperando a bordo -Lorenzo assinalou ao pequeno reator, que se encontrava próximo. Uma equipe de três homens revisava diversas peças de sua equipe e enchia o depósito de combustível.
Mais confortável... ou apanhado, pensou Owain. Estaria Lorenzo tão depravado se de verdade estivesse conduzindo à mosca a seu tecido de aranha? Ao Owain não agradava a idéia de encerrar-se no avião antes de que estivesse completamente preparado, mas tampouco queria pôr sobre alerta ao Lorenzo nem lhe fazer acreditar que ocorria algo estranho... além da apressada e inesperada chamada Telefónica, seu aparição no amolgado sedan, e o particular adorno do próprio Owain.
--Quanto demoraremos para separar? -perguntou.
--Uma meia hora -respondeu Lorenzo.
--É muito amável.
Owain fez um gesto afirmativo em direção ao Kendall. Ela havia deixado a escopeta no carro. A arma resultava quase impossível de esconder e, uma vez mais, queria evitar tudo que pudesse alarmar a Lorenzo.
Os quatro se dirigiram caminhando para o avião. Owain vigiava cuidadosamente o armazém em busca de qualquer sinal de emboscada ou engano. Os mecânicos, sentiu Owain, eram todos mortais. Cada um deles parecia atarefado em algum tipo de atividade técnica. Embora, lamentou-se, em nenhum caso tivesse podido dar-se conta se em realidade fingiam fazê-lo.
Owain, Kendall, e os dois Giovanni se detiveram frente à escalerilla que dava acesso ao avião.
--Desejo-te uma aprazível viagem -disse Lorenzo-. Estou encantado de te haver podido ser de utilidade.
Owain se deteve, congelado, no primeiro degrau da escalerilla. Não sabia se tinha sido pelo particular matiz do suave acento italiano do Giovanni, ou pela eleição concreta das palavras. Olhou a comporta aberta ao final das escalerillas, e se o desejaram muito as fauces abertas de alguma besta carnívora. Um pressentimento frio despertou em sua mente. Sujeitou os passamanes de ambos os lados das escalerillas com tal força que, de não haver-se encontrado no estado em que se encontrava, seus dedos se haveriam parecido no brando metal.
--Vai tudo bem? -perguntou Lorenzo a suas costas.
Owain podia sentir os olhos de todos eles voltados para ele, seus olhadas cravadas sobre suas costas. Sabe, pensou Owain. Sabe, e eu estou me dirigindo a minha perdição. Ainda não era muito tarde para dar a volta e escapar. O carro não estava muito longe. Alonzo, ou a equipe de mecânicos... nenhum deles poderia deter Owain. Mas é que já havia, depois da ignominiosa fuga de seu própria propriedade, determinado o único curso de ação que o ficava. Não permaneceria escondido em Atlanta. Nem fugiria a qualquer outra cidade americana para ver-se envolto nas maquinações de algum outro grupo de intrigantes Vergônteas. Eleanor o tinha derrotado. Tinha unido suas forças às dos Tremere e, com a ajuda de seu magia, tinham revelado uma parte de sua deslealdade para o Príncipe. Sua posição na cidade tinha sido comprometida por completo. Não havia lugar ali para ele. Além disso, Atlanta não lhe era tão querida como para lutar por conseguir uma nova posição. Entesouraria em seu interior a antipatia, que a passos aumentados se estava convertendo em simples ódio, que sentia para a Eleanor. por agora abandonaria a cidade, e também o continente, e tramaria um plano com o que saldar, ao menos em parte, a conta dos equívocos e afrontas que se haviam perpetrado em seu contrário. Talvez, em algum momento futuro, Eleanor e ele voltariam a encontrar-se...
No momento presente, seu caminho conduzia longe de ali. E o primeiro passo desse caminho se encontrava diretamente frente a ele.
--Owain? -disse Lorenzo, a voz tinta pela preocupação.
Lentamente Owain se voltou. É sua preocupação por mim, querido Lorenzo, desejava dizer, ou por seus traidores intuitos, pela possibilidade de que me parta e os arruíne?. Mas conteve a língua.
Lorenzo e Alonzo olharam a seu convidado, levemente confundidos. Kendall o vigiava com extrema atenção.
--passou muito tempo, Lorenzo -disse Owain- desde que entrou em serviço de seu clã.
Suas palavras, aparentemente desconjurado, desconcertaram a Lorenzo.
--dediquei muitas noites a honoráveis tarefas, sim.
--E não lhe resultam esses veículos -assinalou ao reator que havia depois dele-, quando menos, pouco tranqüilizadores?
Lorenzo sorriu apesar de si mesmo, convencido agora, tal e como Owain tinha pretendido, de que as vacilações do Ventrue eram o resultado de uma aflição muito comum entre os Cainitas Antigos, e muito bem conhecida pelos Giovanni: o cepticismo frente à tecnologia moderna.
--Asseguro-te -disse Lorenzo- que nenhum detalhe foi passado por alto.
As palavras golpearam ao Owain como um ataque física. Nenhum detalhe foi passado por cima. Lançou um olhar além de seu anfitrião. Provavelmente o hangar está cheio de assassinos contratados pelos Giovanni para me deter se me ocorre tentar fugir, pensou Owain.
Nenhum detalhe foi passado por cima.
--Não me cabe dúvida. -Owain se voltou relutantemente e começou a subir pela escalerilla. O jogaria tudo à carta de que, embora Lorenzo não era de confiar, talvez não estivesse informado do paradeiro e as atividades do Príncipe durante aquela noite. Mas se estava equivocado, deu-se conta, aquela escalerilla subia para sua tumba definitiva. Jogava a ser Jonás em sua particular baleia metálica, mas sem o benefício de ter a Deus como guardião e protetor. Owain pôde ouvir os passos do Kendall a suas costas enquanto ela ascendia as escalasse. Quando penetrou no avião, não olhou atrás.
O interior deste avião, ao contrário do outro, não estava decorado com um mobiliário de aparência fantástica para diversão do viajante temeroso. Em troca, era uma suíte de luxo mobiliada com grossos sofás e poltronas de couro. Owain se derrubou sobre uma destas últimas. Kendall, como sempre em guarda, investigou a habitação contigüa antes de voltar e render-se também à fadiga.
A comporta de entrada se fechou violentamente, de repente. O som ressonou na mente do Owain como o áspero deslizar da tampa de pedra de um grande sarcófago.
Uma meia hora. Esse era o prazo de tempo que Lorenzo lhe havia dado até que o avião estivesse preparado para o decole. Trinta minutos... um período de tempo suficientemente curto como para que a partida resultasse iminente e o suficientemente largo como para permitir organizar um ataque. Owain apoiou a cabeça sobre o respaldo da poltrona. Já não podia lutar mais. Não é que se entregou ao desespero, mas sim à resignação. Se tiver que ser traído, pensou, melhor que seja agora, e acabemos de uma vez. Kendall e ele se sentavam em silêncio. Não havia nada que dizer. Muito em breve, assassinos contratados bem pelos Giovanni, bem o Príncipe mesmo, irromperiam no avião. E se não, finalmente separariam. Ao Owain tinha deixado de lhe importar qual das duas possibilidades respondia à verdade. A traição poria fim a sua luta, uma opção que resultava mais atrativa a cada minuto que passava. A luta. Durante aproximadamente um milênio, não tinha conhecido nada além da luta. Muito a miúdo acompanhada pela derrota O que mau podia ter uma nova derrota se trazia consigo um descanso definitivo? Desde não ser covarde e débil, fazia tempo que se teria entregue ele mesmo ao descanso. Ano detrás ano detrás ano, a oportunidade lhe tinha ido apresentando cada amanhecer. Mas apesar da sedutora promessa da liberação, Owain não tinha tido a coragem suficiente para suicidarse. Noite detrás noite tinha falhado. Cada novo amanhecer era para ele o sinal de uma nova derrota.
Um ensurdecedor som provocado pelo choque de metal contra metal distraiu ao Owain de seus pensamentos. Todo o avião vibrava ligeiramente. Instantaneamente Kendall esteve em pé, o .45 na mão e apontando para diante, preparada para receber a qualquer que entrasse da cabine ou do exterior. Owain se limitou a permanecer sentado e esperar. Transcorreu um momento.
--Estarão fechando algum compartimento da parte baixa do avião? -conjeturou Kendall.
--Pode ser -disse Owain.
Kendall voltou a sentar-se. Durante alguns momentos permaneceram onde estavam sem falar. Indubitavelmente a cabine estava cheia de microfones, mas é que, à margem disso, o que terei que dizer? Enquanto os mecânicos foram completando os preparativos, cada som chegado do exterior parecia supor uma ameaça iminente. Kendall manteve uma mão sobre sua arma. Owain fechou os olhos e tratou de reencontrar o conforto do intumescimento, o vazio emocional que tinha sido seu único refúgio durante tantos anos. Mas a sereia, com o presente de sua canção, o tinha arrebatado ao Owain a capacidade de perder-se em um nada.
Recebeu quase com decepção o som das turbinas ao ficar em marcha. O avião começou a mover-se, lentamente ao princípio, como se rodasse pela estrada em direção à pista de decolagem, e então Owain sentiu que uma crescente pressão ia empurrando contra o assento à medida que aumentava a velocidade. O aparelho levantou o vôo. Suspirou ostentosamente. Teve sua oportunidade, Lorenzo. Seu viagem não tinha acabado.
Naturalmente, esta cabine tampouco tinha janelas. Owain não podia ver o perfil de Atlanta ao perder-se na distância, sob o avião, mas em troca podia sentir a separação. Sentiu que nunca voltaria para este lugar. Não lhe importou. Havia algumas medidas que tomar. Seus advogados teriam que lhe enviar recursos e fiscalizar a venda da imóvel. Além disso, nada o retinha já aqui.
Owain podia haver-se sentido liberado pelo curso que haviam tomado os acontecimentos. Tinha acesso a recursos financeiros virtualmente ilimitados, o que lhe dava a oportunidade de começar de novo virtualmente em qualquer lugar que lhe desejasse muito. Em troca, sentiu-se como se havia sentido, com leves diferencia, cada vez que tinha tido que abandonar uma terra desde que a primeira vez fugisse de seu Gales natal: à deriva, sem leme, sujeito aos inconstantes ventos da mudança. Tinha atracado a numerosos portos ao longo dos anos (França, Toledo, Atlanta) mas, em seu coração, tinha sabido sempre que aqueles lugares não eram a não ser escalas em seu viagem, jamais seu destino. Sempre tinha desejado retornar a seu lar. Mas sempre lhe tinha sido negado. Assim agora, uma vez mais, seu existência em Atlanta destruída, ele mesmo açoitado pela esposa do Príncipe, ao igual ao dia que abandonasse Gales o haviam açoitado os Normandos, Owain voltava a encontrar-se à deriva.
Lorenzo Giovanni não o tinha liberado da carga de sua viagem, assim que teria que seguir adiante com seus planos. Não procuraria um novo começo, a não ser a emenda dos enganos do passado. Agora, durante algum tempo, só haveria uma vingança que poderia abordar. O desejo de lhe fazê-lo marcou seu próximo destino: Berlim. Enquanto Kendall e ele escapavam de sua propriedade, Owain não tinha tido a oportunidade de considerar para onde poderia dirigir-se a seguir, nas poucos horas que subtraíam até o alvorada, nem para onde se dirigiria no futuro. Tinha considerado a possibilidade de solicitar a ajuda de algum de seus conhecidos mortais do Clube King Road. Poderia requisitar algum porão sem janelas ou algum outro alojamento semelhante. De fato, se tinha dado conta, teria podido abrir-se caminho até o interior de virtualmente qualquer moradia mortal para passar ali as horas do dia. Mas os mortais tendiam a ser imprevisíveis, e com eles um nunca podia estar seguro de quem ia aparecer ou o que complicações foram surgir.
De todas formas, a concentração do Owain tinha sido entorpecida pela fadiga e pela preocupação de ser seguido desde seu refúgio. Inclusive as considerações práticas mais elementares tinham cedido o passo em seus pensamentos às reflexões sobre a magnitude de suas perdas. Enquanto se trocava de traga no assento traseiro daquele desmantelado carro roubado, dedicou-se a pensar nos poucos objetos materiais que guardavam algum significado para ele. Seus dedos tinham acariciado os restos de seu livro, cuidadosamente protegidos junto a seu peito. O dano sofrido pelo livro o afligia, mas a lembrança permanecia vivo. Do mesmo modo, a espada do Owain, tinha que admiti-lo, tinha ao mesmo tempo um valor sentimental e outro prático.
Aqueles dois objetos representavam tudo o que tinha podido salvar. Teve que fechar os olhos ao assaltá-lo a lembrança da tocha de Kline, destroçando aquele escritório de mogno negra que havia conservado como um tesouro durante muitos anos.
Também estava o jogo de xadrez. O tabuleiro, fabricado da mais delicada madeira de cerejeira, as peças lavradas a imagem e semelhança dos participantes na batalha do Hastings, incluindo a Haroldo Godwin e Guillermo o Bastardo, pelas mãos de um artesão que a tinha presenciado com seus próprios olhos. Owain havia cuidado daquele tabuleiro durante quase novecentos anos. Esta noite converteu-se em outra baixa. Uma baixa que, algum dia, Benison pagará, e cara, com seu sangue!, pensou.
Saboreando a dor da perda, bebendo-o até os sedimentos para afirmar sua resolução de fazer pagar a quem o havia traído, ao Benison, ao próprio Deus, Owain experimentou o que um homem piedoso teria chamado uma epifanía. Um persistente pensamento que o tinha assaltado ao começo daquela tarde, e cujo sentido então não tinha reconhecido, acabava de voltar para ele.
Justo antes de que abandonasse seu estudo por última vez, seu olhar tinha percorrido toda a habitação até ir deter se sobre o jogo de xadrez. Naquele momento não tinha tido tempo de parar-se a pensar na significação do que, apenas uma hora mais tarde, fugindo no carro, voltaria-se tão dolorosamente óbvio.
O tabuleiro ainda mostrava a última posição daquela partida que representava a maior humilhação do Owain. Seu eterno oponente, O Grego, aproveitou-se com um só movimento (torre a cinco bispo de rei) de seu excesso de confiança para permutar uma aparentemente inevitável e total derrota em uma repentina vitória. A porosa defesa do Grego tinha sido um ardil, uma armadilha refinadísima, uma armadilha em que Owain se precipitou às cegas com muito prazer.
Mas recordava também o que tinha visto no Toledo: uma partida muito semelhante, mas não exatamente igual, desdobrada sobre o escritório do Grego. O velho Toureador tinha famoso com um macilento dedo ao tabuleiro. Um tabuleiro que mostrava uma posição final diferente, uma em que as brancas se encontravam ao bordo da derrota. E então, O Grego havia dito: neste campo de batalha derrotaste-me, como se aquela partida fora quão mesma Owain conservava em seu tabuleiro lá em Atlanta. Naquele momento havia atribuído suas palavras à demência, mas agora pensava de maneira diferente.
além daquele enigmático comentário, estava a carta que Owain tinha descoberto, a carta que supostamente tinha escrito ele mesmo, a carta escrita com aquela letra que, embora era a sua, não podia ser a sua. Tenho a sorte de destacar em matérias de ainda maior peso que o xadrez, assim não infravalorize muito vocês próprias habilidades.
O Grego pensava que Owain o tinha derrotado no xadrez. Em a carta falsificada, o pseudo-Owain tinha proclamado sua vitória. Ao mesmo tempo, Owain tinha acreditado que era O Grego o que havia vencido. Coincidência?
É obvio que não.
Era esta conclusão a que lhe tinha levado a reclamar de novo a ajuda dos Giovanni. Este era o descobrimento que havia encaminhado seus passos para o Berlim. Porque ali, na cidade antes dividida, existia uma pequena estalagem a que ambos, O Grego e ele mesmo, tinham remetido durante muitos anos sua correspondência, seus movimentos de xadrez. Os dois Cainitas, um um Priscus do Sabbat, o outro ostensiblemente um Antigo da Camarilha, não queriam que seus relações fossem descobertas. Com os movimentos apartados entre sim anos, quando não décadas, tinha parecido suficiente precaução o enviar as cartas a um terceiro lugar, em vez das intercambiar diretamente.
Mas aparentemente não tinha sido assim, pensou Owain.
O Grego se encarregou de organizar a partida e o assunto das cartas. Owain sempre tinha enviado seus correios à estalagem. O plano tinha funcionado brandamente, sem problemas ou assim o haviam acreditado Owain e, aparentemente, O Grego durante muito tempo. Alguém na estalagem, não obstante, tinha tomado por néscios a ambos Cainitas. As cartas tinham sido interceptadas e substituídas, e o engano tinha sido levado a cabo sem uma só falha. De fato, Owain tinha sido incapaz de detectar a falsificação de sua própria letra. Quanto tempo passou, perguntou-se, da última carta autêntica de O Grego?
Além disso, resultava duplamente insultante o que quem quer que tivesse levado adiante a charada, tinha mantido duas partidas separadas e simultâneas de xadrez, uma contra O Grego e a outra contra Owain, e em ambas tinha obtido uma ressonante vitória.
Enquanto descansava no interior do jato dos Giovanni atravessando a toda pressa o Atlântico, enfureceu-o o pensamento de que não só tinha sido superado em astúcia e forçado a abandonar seu refugio pela Eleanor, mas sim também tinha sido uma boneco em mãos de um desconhecido.
Mas, por que? perguntou-se Owain. Que sentido tinha o apropriar-se da partida de outro? Owain acreditava que a resposta a esta pergunta o esperava no Berlim. Embora já tinha uma idéia bastante definida a respeito do que aquele desconhecido professor de xadrez e de enganos estava a ponto de perder.
Kli Kodesh viajava através de uma névoa de violência, traição e morte. As imagens dançavam agitadas em torno dele formando redemoinhos, assaltando-o desde todas direções. Era seu legado, a maldição imposta sobre suas costas muitíssimo tempo atrás, quando as legiões de Roma ainda ocupavam Terra Santa.
Tinha trocado detrás conhecer aquele jovem agitador que se levantava e clamava contra o jugo de Roma e que tinha vendido todas suas posses para alimentar a quão famintos enchiam as ruas de Jerusalém. Aquele moço tinha morrida centenas de anos atrás. Não atravessado por uma lança romana, a não ser destroçado baixo o peso de centenas de pedras jogadas contra ele, de sigilosas punhaladas, de rangentes sogas...
O tempo tinha debilitado suas duas grandes paixões, as ocultando em seu interior: o ódio para todo o romano e sua luta por redimir aos pobres. Kli Kodesh já não explorava os rostos de quantos lhe rodeavam profiriendo contra eles aquelas silenciosas acusações. Todos estavam iluminados pelo mesmo fogo desumano: cólera, vingança, astúcia, sofrimento. Agora, todos eram uma mesma costure para ele.
Se não podia pôr fim a interminável procissão de atos violentos da humanidade, ao menos se evitaria a percepção da depravação e o sofrimento individual. Já não olharia aos olhos, a não ser que manteria o olhar baixo, enfocada em suas mãos. Os punhos fechados, as mãos levantadas em silenciosa súplica, as bonecas abertas derramando a vida, estes eram seus intermediários, os pontos de contato com seus semelhantes.
Estendeu dúbio um braço para apartar uma das mãos que aproximava-se dele através do redemoinho. Viu os dedos agitar-se, sacudir-se, apertar-se. Sentiu o frio até antes de que seus dedos se fechassem em torno da carne torcida e azulada... uma mão que já não estava viva.
Derrotado, relaxou sua presa e viu como a mão se afastava descrevendo uma espiral de volta à tormenta. Ali havia dúzias de outras, dando palmadas, apertando-se, clamando por um pouco de atenção. Apartou-as com um violento gesto de seu braço e com seu mão livre voltou a tomar sua carga uma vez mais.
Arrastava detrás de si uma caixa de carvalho alargada. A madeira era antiquísima e estava descolorida. Despedia detestáveis rangidos e ameaçava fazendo-se lascas com cada novo buraco ou sacudida com que se encontravam em seu caminho.
Através das gretas, era possível vislumbrar uma pequena parte dos conteúdos do cofre: o farrapo de uma descolorida vestimenta, um mecha de cabelo tão negro como a meia-noite, a carne, seca de tudo sangue, e de uma palidez fantasmal. Um bom punhado de séculos se tinham consumido na fogueira do tempo da última vez que a luz da lua se derramou sobre o cofre de madeira e as cadeias metálicas que o envolviam.
Nem o cofre nem seu conteúdo eram pesados, mas para o Kli Kodesh resultavam uma pesadísima carrega. De repente se sentiu muito velho e muito cansado. Seu exílio, duas vezes milenario, chegava por fim a seu conclusão. Certamente, a liberação final estava ao alcance da mão. Era o Fim dos Tempos. Era a Hora dos Vorazes. Era o tempo da Hirviente Sangre.
O que tinha começado com o primeiro assassinato de uma Vergôntea a as portas mesmas do Éden seria ao fim desfeito. A noturna irmandade a que Kli Kodesh se uniu com uma traição em outro jardim, aos subúrbios das muralhas de Jerusalém, seria destruída para sempre. A Terra se livraria da praga dos Condenados, e aqueles que se alimentavam do sangue não voltariam a espreitar aos miseráveis seres humanos.
Kli Kodesh tinha reunido e entesourado pedaços de profecias, de sagas e de lendas. Durante dois milênios tinha crivado as incertas areias do tempo em busca de sementes de futuro. Kli Kodesh havia seguido o traiçoeiro atalho das profecias com a mesma facilidade com a que a maioria dos homens riscariam com o dedo uma rota sobre um mapa.
Entretanto, muitas incertezas permaneciam vivas ainda em sua mente. Muitas incertezas.
Tinha começado a discernir o Desenho Final cobrando forma quando emergisse do mar e se arrastasse cambaleante até a Cidade dos Anjos. Kli Kodesh seguiu a pista ao evasivo desenho através do Atlântico e de volta a sua toca na Cidade da Cicatriz. Ali, no centro mesmo de uma vasta rede de profecia, viu ante si um resplandecente caminho que se estendia em direção à Cidade da Espada e um encontro com aquele a quem as lendas antigas chamavam Assassino da Estirpe.
Kli Kodesh sentiu que o mesmo tecido do tempo começava a desembaraçar-se. O Grande Alinhamento que traria a prometida liberação estava ao alcance da mão. Seu único propósito era acelerar esse fim.
Nenhum intuito de menor importância o houvesse devolvido à Cidade Maldita, ao ninho da odiada Águia Dourada, a Roma. Havia contemplado a sete anjos posados sobre as Sete Colinas, e cada um deles levava uma trompetista dourada e uma espada chamejante.
Tinha sabido então que o momento tinha chegado ao fim. O momento de descender à Cidade do Adversário com uivos e o chiar dos dentes. O momento de internar-se nas catacumbas de Roma e liberar o que tinha sido aprisionado depois de que Jacques do Molay e os últimos Mestres Templarios foram entregues à fogueira. O momento de recuperar a antiga caixa, o panteão selado com o Poder da Tríada, a triplo barreira dos símbolos antigos, o sangue Santa e nome secreto do Baphomet.
Kli Kodesh se deslizou em segredo além da vista do guardião e tinha reclamado seu tesouro, o fragmento final da convergente Tríada.
Sim, certamente um grande ajuste de contas se morava. Inclusive agora alcançava a distinguir, chegado do interior da decrépita caixa de madeira, o tênue arranhar de uma unhas sangrentas, o crescente uivo da Besta Voraz debatendo-se contra suas ataduras.
Nicholas jazia sobre o chão, nu e feito um novelo. Uma débil nevada, apenas uma neblina de minúsculo pó, caía sobre ele. A queimação se ia estendendo por todo seu corpo, e enquanto o fazia, ele implorava a morte, o fim da dor, a paz.
por que? perguntava-se. por que? A maioria dos Cainitas que tinha visto ou dos que tinha ouvido que sofressem a maldição de o sangue tinham morrido ao cabo de uns poucos dias. Semanas no pior dos casos. Entretanto, a agonia do Nicholas tinha durado meses. Pior ainda, tinha ido piorando com o tempo. A maldição não relaxaria sua presa, não o abandonaria à morte.
O Gangrel tratou de sobrepor-se a autocompasión. Apertou os pálpebras com todas suas forças, e se concentrou assim que o rodeava, no som de cada floco de neve ao posar-se sobre a montanha ou em o da geada brisa que acariciava as ladeiras dos Alpes. Nicholas não sabia se ainda se encontrava na França ou tinha penetrado em Suíça. Não lhe importava.
A queimação voltou a golpeá-lo.
Apertou os joelhos contra seu rosto ainda com mais força, e se mordeu o antebraço até que pôde saborear o sangue... o sangue maldita que o estava atormentando. Logo que sentia o contato da neve contra suas costas nua e seus quadris.
Quantas vezes se alimentou durante as últimas noites? Não podia recordá-lo. Tantos mortais, tantos animais, e sua sede continuava intacta...
A morte, suplicou. Deixa-a vir para mim.
Mas o único que respondia a sua chamada era a fome, e seu inevitável bloco, a implacável agonia.
Desejo com todas suas forças encontrar-se de novo junto a seu amigo Plumanegra. O estranho Cherokee Gangrel, com seu círculo tatuado, seu Zippo, e seus enrugados cigarros, tinha sabido como manter a dor a raia. Seguia ali, impossível de esquecer ou ignorar, mas enterrado, imperceptível. Plumanegra parecia ter conhecido coisas que para o Nicholas estavam além da percepção.
Forças que se elevam, chegadas desde mais à frente do Véu, pensou Nicholas. Havia-as sentido. Havia sentido como o roçavam, como o mediam, como o provavam. Há algo mais em jogo que a maldição.
Mas então a dor percorreu de novo seu corpo e tudo pensamento consciente desertou de sua mente, açoitado pelo aroma imaginário da carne abrasada. A dor, nascido em seu estômago, começou a estender-se com rapidez. precipitou-se hirviente através de seu peito e de seu coração, saboreando o sangue que fluía em seu interior, pedindo mais e mais. abriu-se passo a navalhadas até seu cabeça, arrancou uivos a sua garganta, retumbou em suas têmporas. Se cobriu os olhos com as mãos, para impedir que estalassem.
E então a dor desapareceu. No momento.
Nicholas derramou lágrimas de sangue sobre a neve recém queda. Voltava a afundar-se no abismo. Tão seguro como se tivesse saltado do alto de um penhasco alpino, voltava a afundar-se no abismo, e algo muito mais velho se elevava para apanhá-lo.
Owain estava de pé, perto do topo de uma colina estofada de verde. Ladeira acima, a escassa distância, elevava-se um espinheiro, cujas ramos estavam cobertas de folhas mas que ainda não haviam florescido. Uma espessa névoa cobria a colina. Mas não estava preocupado pelo isolamento. Seus olhos, cheios de inquietação, estavam cravados no espinheiro. Vagas lembranças o reclamavam; imagens a médio formar dançavam através de sua mente como intrusos espectrais, mostrando-se abertamente nos confine de sua visão, mas escabullándose nas sombras se tratava de enfrentar-se diretamente a elas.
Incomprensiblemente, foi miserável através das sombras noturnas para a árvore. Como uma traça atraída pela luz do fogo, Owain ascendia a colina. Sabia que esta mesma cena tinha tido lugar muitas vezes, em outros mundos, em outros tempos, mas essa certeza não deteve seu avanço. Um brilho de cor lhe mostrou ao mesmo espinheiro, animado, dotado de vontade própria, estendendo seus ramos para ele e capturando-o violentamente.
encontrou-se sujeitando o peito. Fora recordo, ou acaso premonição, sentiu como uns sedentos brincos de madeira penetravam em sua carne tão facilmente como as raízes se abrem passo no chão. Mas não. Voltou a olhar. O que havia frente a ele não era mais que uma simples árvore. Aquelas imagens irracionais, impossíveis caprichos da imaginação, não cabiam na realidade. Não mais que um homem, antigamente mortal mas privado da verdadeira morte, que tivesse caminhado sobre a Terra durante centenares de anos.
Imóvel, com a mão ainda sobre o peito, reparou lentamente em uma estranha anomalia. Os medos voaram longe de sua mente. Apartou bruscamente a mão e logo, muito devagar, voltou a posá-la sobre o peito. Havia ali a estranha sensação de um pulso rítmico, o pulsado de um coração... o batimento do coração de seu coração mortal.
Voltou a afastar a mão, assustado e incrédulo. Temia estar enganando-se. Contemplou suas mãos. Os dedos eram carnudos e rosados, os de um mortal, não os alargados e esbranquiçados dos Cainitas. O sangue fluía aprazível através de veias e artérias. Aspirou profundamente, enchendo de ar os pulmões. Sobre ele, as nuvens começavam a desaparecer. A noite se tornou um glorioso amanhecer, e os raios do sol dissipavam a espessa névoa. Incrédulo, Owain levantou ambas as mãos por volta daquele sol que durante tanto tempo tinha-lhe sido negado.
de repente advertiu que não se encontrava sozinho sobre a colina.
A figura de uma mulher, brotando da névoa que se batia em retirada, caminhava para ele do outro lado da colina. Era alta, de porte tão orgulhoso como grácil e crédulo era seu passo. Seu cabelo, de um negro resplandecente, descendia em cascata sobre seus ombros, emoldurando o rosto formoso e arredondado. aproximou-se do espinheiro, e deteve-se. O bordo de sua túnica flutuava agitado em torno dela, acariciando a erva.
--Angharad. -Owain pronunciou seu nome sem poder acreditá-lo do tudo.
Mas ela estava ali, resplandecente sob a luz do amanhecer.
Owain deu um passo para ela. Seu coração pulsava com o estrondo do trovão. Sentiu a força dá aquele palpito, tanto tempo esquecido, em suas têmporas, no pescoço, nas bonecas. Ela se encontrava ali, esperando-o.
No transcurso de sua breve vida mortal, ela tinha sido seu único desejo verdadeiro. Mas se tinha negado seu contato, e ela o dele. Tudo por lealdade a um irmão que depois o tinha feito assassinar, sem dar-se conta de que com seu ato perpetuava seu insatisfeito desejo toda a eternidade.
Mas o coração do Owain, seu coração mortal, tinha-lhe sido devolvido. E Angharad também lhe tinha sido devolvida.
Ali estava, esperando, sonriendo brandamente junto ao espinheiro. A curva de seus lábios e os gentis olhos empurraram ao Owain para diante. Cada passo o aproximava um pouco mais ao desejo de muitos séculos... tomá-la entre seus braços, gozando com a certeza de que nunca mais voltariam a estar separados, unir-se a ela no enlace espiritual que só a preciosa mortalidade podia outorgar.
--Angharad -caiu de joelhos frente a sua amada, e enquanto ela tomava suas mãos, umas lágrimas de puro gozo se derramaram por suas bochechas. Não as lágrimas sangrentas dos eternamente Condenados, a não ser as salgadas pérolas do amor satisfeito, e da humanidade. Owain escondeu o rosto em seu regaço. Sentiu sob seus bochechas a suave curva daquele ventre que nunca poderia engendrar filhos.
--Owain.
Durante séculos, tinha tratado de recordar o tom exato de seu voz, o som de seu próprio nome pronunciado por aqueles lábios. depois de tanto tempo, suas palavras o turvaram mais que qualquer carícia. Owain depositou um delicado beijo sobre sua mão, só um, e então ela se separou dele.
--Owain.
Levantou a cabeça. Olhou-a aos olhos. Ainda eram gentis e suaves, mas também negros, tão negros como... tão negros como os do próprio Owain. Negros como seus olhos; negros como sua alma depois de tantos e tantos anos de ódio e espera.
Angharad levou uma mão às dobras de sua túnica e extraiu de ali uma adaga dourada. A adaga do Owain. Apoiada sobre as Palmas de suas mãos, a mostrou.
De novo, como tinha ocorrido com o espinheiro que se encontrava depois do Angharad, distantes lembranças pugnaram por abrir-se caminho até a superfície, mas logo que eram meros fragmentos de pensamento, pedras sem cimento nem base. Owain não flauta lhes dar forma. Não queria ver a adaga, dada de presente a seu sobrinho Morgan, ao que Owain havia enviado a uma segura perdição. Não queria ver a adaga que, mais recentemente, havia-lhe flanco perder um refúgio de luxo.
Queria reclamar seu amor. Como amante. Queria reclamar seu humanidade.
--Owain -ela voltou a pronunciar seu nome. Olhou fixamente ao interior de seus olhos, negro sobre negro, olhos que eram um reflexo dos deles. E então Angharad disse seu nome.
--Assassino da Estirpe.
Owain se separou de seu amor, e enquanto ela se prostrava frente a ele, e frente ao espinheiro, os raios do nascente sol voltaram a feri-lo. Seu carne começou a crepitar e esquartejar-se, e imediatamente ardia quase fervendo, como se fora líquida. Tratou de proteger do sol, mas não havia sombras nas que cobrir-se.
--Assassino da Estirpe -voltou a dizer, e só então viu a adaga em sua mão, levantada por cima de sua cabeça. Ela afundou a adaga em seu peito, e atravessou seu palpitante coração.
Owain se aferrou ao punho dourado que me sobressaía de seu peito. Seu sangue emanava a fervuras e se derramava sobre a terra. Enquanto se desabava sobre o chão, pôde ver de novo ao espinheiro que se encontrava detrás do Angharad. Estava florescendo. Ante seus olhos, enquanto sua visão se apagava, abriam-se as flores, e como uma miríade de flocos de neve, as pétalas caíam silenciosamente sobre o chão da colina.
Arrancou violentamente lençóis e mantas da cama. Enrugadas, Owain as apertava ansiosamente contra seu peito. Volta! Gemeu, enquanto as imagens da visão retornavam velozmente ao nebuloso reino do sonho. Mas é que tinham sido tão reais... Ela tinha sido tão real...
Mas à medida que os segundos foram passando, aquela realidade foi revelando como o que era, uma mera ilusão; seu cálida pele, uma aparição etérea, a matéria dos sonhos que serve para alimentar a antecipação e o desejo, mas que poucas vezes cobra forma na realidade. Owain não se encontrava no alto de uma colina. Não havia espinheiro, nem névoa. Não estava Angharad.
Deixou cair de novo a cabeça sobre o travesseiro. encontrava-se a sós na espaçosa habitação. Umas portas dobre, fechadas, conduziam ao resto da luxuosa suíte. Em cada cidade onde os jogadores do poder e a influência se enfrentavam, e certamente Berlim era uma delas, havia hóspedes que preferiam a segurança a umas boas vistas. Owain estava interessado em um tipo diferente de segurança que a maioria deles. Embora as habitações interiores, sem janelas, e com uma acesso muito limitado, não eram trocas, ele não carecia de recursos financeiros.
Kendall tinha assegurado a habitação e Owain, expulso de seu refúgio e fisicamente debilitado, entregou-se a um descanso que seu corpo reclamava com urgência. Isso tinha sido três noites atrás.
Três noites e três dias de intermináveis visões. Uma detrás de outra, cada cena se confundia com a seguinte. Todas elas mostravam algumas coincidências -a colina, a vara, a árvore, a torre-, mas também, sempre, algumas diferencia. O escuro professor de xadrez podia conduzir ao Owain a uma armadilha, ou o estranho José podia apanhá-lo e insultá-lo. Ou, recordou Owain com o coração dolorido, podia vislumbrar a sua amada.
A última das visões tinha sido a mais terrível. Não a havia espionado através de uma janela, nem a tinha contemplado impotente como um espectro incapaz de falar ou de tocá-la. Aquelas visões anteriores tinham sido tentadoramente dolorosas por si mesmos. Sem embargo, esta vez ela tinha estado com ele. Ele havia meio doido seus mãos, tinha apoiado sua cabeça contra seu corpo em um gesto mais íntimo que qualquer outro ao que se houvesse a atrevido em vida. Owain voltou a fechar os olhos. Desesperadamente queria voltar a vê-la, voltar a estar com ela. Tinham estado juntos, e ela o havia reconhecido. E o tinha acusado.
Assassino da Estirpe.
Owain se encolheu. Lentamente, abriu os olhos. Ainda se encontrava terrivelmente cansado.
Assassino da Estirpe.
Não podia negar a acusação. depois de quarenta anos de no-vista, Owain tinha retornado a sua pátria, ao Gales. Tinha-lhe quebrado o pescoço a seu irmão Rhys e tinha arrojado seu pestilento cadáver por umas escadas. No curso de umas poucas noites, tinha organizado a morte do primogênito de seu irmão maior e tinha cativado ao outro. Morgan. Quão ingênuo e ambicioso tinha resultado. Quão parecido ao próprio Owain. Quão profundamente humano.
Em seu afã de destroçar seu humano espírito, Owain o havia esporeado e empurrado a cometer atrocidades quase tão perversas como as dele mesmo. Mas Morgan era forte. O fogo da rebeldia ardia com força em sua alma. Muito em breve, frustrado, Owain se tinha cansado do jogo e tinha arrojado a seu sobrinho à perdição.
Assassino da Estirpe.
Jamais se tinha pronunciado acusação mais justa que aquela.
Mas, por que era precisamente Angharad a que o havia acusado? Esta pergunta o preocupava muito mais que qualquer ilusão vã que tivesse podido fazer-se sobre sua própria moralidade. Ela nunca tinha sabido de suas façanhas. A última vez que a havia visitado, velha e cega, encerrada na abadia do Hollywell, Rhys e Iorwerth já estavam mortos fazia tempo, e embora Morgan seguia ainda com vida, ela não sabia nada do que lhe tinha ocorrido. Então, como era que ela, precisamente ela, tinha-lhe dado esse nome?
--É parte das visões -teve que recordar-se-. Um fantasma de sua mente. Nada mais.
estremeceu-se. As palavras que tinha pronunciado-lhe arrebatavam as lembranças que dela entesourava. Não era ela. A pele esbranquiçada que havia meio doido não era a sua. Os gentis olhos que se tinham posado sobre ele não eram os seus. Nem a severo acusação nem a mão que tinha fundo a adaga em seu peito eram delas. Mas Owain tivesse preferido que todo isso, inclusive a adaga, fora real. Tanto estava disposto a suportar por seu amor.
Sacudiu a cabeça com força. Os pensamentos resultavam muito dolorosos. Decidiu desterrar os de sua mente.
Necessitava alguma distração. além da dobro porta, chegou até ele o som da fechadura eletrônica que dava acesso à suíte. A porta exterior se abriu e pôde escutar os familiares passos do Kendall Jackson. Retornava de seus assuntos diurnos.
Lentamente, levantou-se da cama. Já tinha perdido muito tempo descansando, e não tinha o suficiente sangue ao seu dispor como para que outra noite vadiando resultasse frutífera. Se aproximou da porta mas, então, um objeto que descansava sobre a mesa junto à parede atraiu sua atenção: o cilindro de gaze que havia descoberto entre os restos do tatu de cerâmica. deteve-se. Tinha podido sentir algo em seu interior, mas a precipitação dos acontecimentos lhe tinham impedido de investigá-lo, lá em sua propriedade, e após tinha feito pouco mais além de descansar. E sonhar.
Owain jogou longe de si as lembranças das visões. Voltou toda sua atenção para o cilindro e concienzudamente começou a desfazê-lo. Estava preparado para encontrar-se algo. depois de tudo, o tatu tinha pertencido ao Albert, capaz inclusive na morte de surpreendê-lo.
Como lhe tinha chamado Angharad?
Assassino da Estirpe.
Owain, em efeito, estava preparado para encontrar-se qualquer coisa... qualquer exceto, possivelmente, um medalhão dourado magnificamente lavrado. Não mostrava sinal alguma de deterioro a causa do tempo ou de um trato pouco delicado. O desenho era majestoso, elegante, livre de os vãos ornamentos que caracterizavam as influências Vitorianas. Sua singela beleza não era o que tivesse podido esperar-se do Albert. Mas, depois de tudo, quando se tinha mostrado o Malkavian sequer predecible?
Tão cuidadosamente como lhe era possível, abriu o medalhão. Em seu interior havia um pedaço de papel com um desenho diminuto. A figura, grosseiramente riscada com tinta, de uma moça. Aproximou um abajur e examinou com mais parada a figura sob a luz. Em realidade, o risco não era tão tosco como lhe tinha parecido ao princípio. A igual a o próprio medalhão estava dotado de uma beleza singela, e precisamente tal simplicidade conseguia comunicar uma emoção funda e contida. A frente da moça, seu nariz e sua boca, eram sugeridos apenas por umas suaves e finas pinceladas, mas ao mesmo tempo seus rasgos estavam dotados de força e personalidade. Seu queixo e seu cabelo, solto, eram delicadas curvas. Sugeriam doçura de espírito. Inclusive os olhos, embora não eram mais que marcas quase imperceptíveis, pulsavam cheios de preocupação e misericórdia. Aquele desenho não representava a nenhuma mulher a que Owain houvesse conhecido, mas de algum jeito, deu-se conta, era a síntese de muitíssimas mulheres -pacientes, consoladoras, generosas- que se esforçavam dia detrás dia pelo bem-estar de suas famílias. Aquela mulher, convocada apenas pelo suave cura do pincel e a tinta, era muito mais real que os fantasmas que povoavam as visões de Owain, e estava muito mais viva que ele ou qualquer dos de seu raça. Era possível que Albert, consumido por sua demência, houvesse desenhado aquilo?
Owain não pôde suportar por mais tempo a visão daqueles olhos cheios de emoção. Deu a volta ao papel. Em seu reverso havia uma palavra manuscrita. Reconheceu a caligrafia. Era a do Albert.
Mãe.
Por um instante, Owain reviveu em sua mente a cena da morte do Albert. Benison tinha fundo a estaca em seu coração. O impacto, o golpe seco e surdo, tinha ressonado como um eco por todo o abandonado armazém. Voltou a contemplar o desenho e acreditou descobrir nos olhos da mulher uma grave e profunda pena que, momentos antes, não tinha percebido. Ou que não se encontrava ali.
Fechou o medalhão e o oprimiu fortemente em sua mão.
Albert me contagiou sua loucura, pensou. Mas sabia que em seu interior havia mais que o reflexo de uma demência emprestada. Cuidadosamente depositou o medalhão sobre as gazes, e o deixou na mesa.
Abriu as dobre portas da habitação. No interior da ampla sala se encontrava Kendall, deixando sobre sua mesa compras do dia. Com aquele traje de jaqueta liso e reto, comprido até os joelhos, parecia uma verdadeira mulher de negócios. Uma jaqueta malva e uns sapatos da mesma cor, assim como o cabelo, recolhido, penteado à última moda, outorgavam-lhe um ar ligeiramente provocador a sua séria vestimenta. Seu rosto mostrava uma palidez extrema. Owain advertiu em seus movimentos a sombra de uma fadiga extrema. Desde que chegassem ao Berlim, alimentou-se duas vezes dela. Em uma cidade estranha, sem contatos aos que recorrer, e suas possibilidades de obter sustento estavam bastante limitadas. Sabia que vagar às cegas pelas ruas e selecionar seu alimento ao azar poderia atrair uma desnecessária e incômoda atenção. E tinha necessitado muito sangue desde sua fuga de Atlanta.
--boa noite, senhor -disse Kendall, reparando em que seu professor se tinha levantado por primeira vez em três dias.
--Senhorita Jackson... Kendall, pode me chamar Owain -disse, tão surpreso como ela ante as palavras que acabava de pronunciar. Owain nunca tinha fomentado a familiaridade por parte de seus ghouls. Não desde o Gwilym, recordou.
--Como quer -respondeu ela, perplexa, depois de uma breve pausa-. Fiz tudo o que pediu... o que pediu.
Owain se voltou a olhar os objetos que descansavam sobre a mesa: um traje de três peças, negro carvão e de corte conservador; gravata, cinturão, sapatos e meias três-quartos a jogo; casaco escuro; roupa menos formal; um relógio de bolso com sua cadeia; e alguns outros acessórios e complementos, entre eles um cinturão moedeiro.
--Bem. Muito bem.
Pouco depois de sua chegada ao Berlim, Owain se tinha posto em contato com um de seus advogados dos Estados Unidos e lhe havia ordenado que lhe cursasse uma transferência uns quantos centenas de milhares de dólares. Kendall tinha retirado parte daqueles recursos. A um lado da roupa dispôs o cinturão moedeiro, e junto a este, sobre a mesa, depositou uma maleta. Abriu-o.
--Do dinheiro que seu advogado nos enviou -informou-, retirei cinqüenta mil dólares, tal e como pediu. A metade em dólares americanos; e a outra metade em euros.
Owain fez um gesto aprobatorio. Tudo se tinha feito de acordo a suas instruções. Com o tempo, tinha aprendido a não esperar menos do Kendall.
--Esplêndido -disse-. Estarei preparado para sair à hora assinalada.
Tomou alguns dos objetos da mesa e retornou ao dormitório. O primeiro que figurava em sua ordem do dia era uma ducha e um barbeado. Rapidamente dispôs da incipiente barba de dois dias, mas consumiu mais tempo de que tinha programado sob a quase hirviente água da ducha. Owain não transpirava nem despedia aroma corporal algum, mas tinha acumulado sobre sua pele o pó de três cidades e a imundície de dois sangrentos duelos.
depois de haver tomado banho, deteve-se frente ao espelho. A maioria de suas feridas se curou Só leves cicatrize subtraíam como testemunhas do açougue. É obvio, seu ombro era outra coisa. Sua clavícula esquerda, embora coberta já por completo de pele estancada, sobressaía-me em um ângulo peculiar e que aparentemente devia resultar muito doloroso. O certo é que causava ao Owain certo desconforto, e tendia a mover-se com rigidez, tentando não forçá-lo. Em centenas de anos, jamais se tinha encontrado em situação tão desesperada como a que confrontasse em seu duelo com o Benison. Mais tarde ou mais cedo, Owain teria que voltar a romper o osso e deixar que se soldasse de maneira adequada. Ao menos, sua posição financeira era o suficientemente desafogada para lhe permitir contratar a um cirurgião para que realizasse a operação corretamente. Conhecia os casos de muitas outras Vergônteas que tinham tido que recorrer a seus companheiros, carentes da perícia ou os conhecimentos necessários, para isso. Habitualmente tinham tido que romper várias vezes o osso até conseguir colocá-lo em seu lugar da forma correta. por agora, entretanto, Owain teria que agüentar seu deformidade.
vestiu-se com rapidez. A noite parecia feita para seu traje novo. ficou em torno da cintura o cinturão moedeiro, por debaixo da camisa, e encheu os compartimentos com bilhetes. Não confiava o suficiente em nenhum hotel ou seus empregados para deixar em seu habitação grandes quantidades de dinheiro. depois de sujeitar ao bolso do colete o relógio e sua cadeia, Owain se deteve refletir. Sem nenhuma razão, além do fato de que não era muito partidário deles, tirou o relógio de seu engaste na cadeia e o substituiu pelo medalhão dourado. Não voltou a abri-lo. Não desejava voltar a ver o desenho. Mas a simples presencia do medalhão, cujo peso notava no bolso do colete, resultava extrañamente reconfortante. Embora tinha irradiado ao diretor do hotel instruções precisas para que ninguém, nem sequer os membros do pessoal, acessassem a sua luxuosa suíte, havia outro objeto que não estava disposto a deixar ali. Agarrou os maltratados restos de seu livro e os guardou no bolso de seu casaco, que levava sobre o traje. Então recolheu-se o cabelo e, com destreza, sujeitou-o em um acréscimo. Finalmente, acomodou sua espada nas correias de couro que Kendall havia ordenado à alfaiate costurar ao efeito no interior do casaco.
Ao outro lado do salão se encontrava a habitação do Kendall. Apareceu a cabeça e a encontrou sentada sobre o chão, com as pernas cruzadas, as mãos sobre os joelhos, os olhos fechados, sumida na meditação. Tinha trocado seu traje de executiva por umas calças ajustadas e um suéter sem ombreiras. Sentindo imediatamente sua presença, ela se levantou, uniu-se a ele junto à porta principal, e ficou o casaco que tinha levado antes.
--Deu com a direção? -perguntou ele.
--Sim.
--Bem. Vamos, pois.
Era quase meia-noite quando abandonaram o hotel. Além das outras compras, Kendall tinha alugado um carro, um esplendoroso Mercedes. Era mais pequeno e de aparência mais moderna do que a Owain lhe tivesse gostado, mas teria que valer. Durante o trajeto de meia hora até o Parque Hasenheide, Owain se manteve atento e silencioso. Durante os últimos anos, tinha escutado histórias sobre os Príncipes feudais do Berlim, sobre o zelo com que guardavam seus territórios. Ao parecer abordavam a todos e cada um de os visitantes Cainitas. De todas formas, Owain não pôde ver sinal alguma que indicasse que eram seguidos. De fato, não viu sinal alguma de atividades de membros da Estirpe. Excetuando alguns pequenos grupos de vagabundos mortais, as ruas do Berlim se encontravam bastante desertas. Não resulta estranho, pensou, que a maldição se estendeu por este lugar como o tem feito por outros lugares. Na atualidade, aventurar-se pelas ruas podia ser mortal para os Cainitas. Também existia a possibilidade de que o Parque Hasenheide não fora um lugar muito atrativo para as Vergônteas do Berlim. O estendido jardim estava virtualmente deserto de mortais, especialmente durante a noite. E sem mortais não havia comida, nem entretenimento.
O mesmo parque não era o destino do Owain. Kendall rodeou Hasenheide, e se encaminhou para as antigas zonas residenciais que o rodeavam. Durante a manhã, ela tinha feito um reconhecimento prévio da zona. Quando por fim alcançaram o lugar ao que se dirigiam, freou e estacionou frente a uma pitoresca estalagem que encontrava-se na rua que vinha do parque. A estalagem, supervivente da destruição maciça que tinha assolado a maior parte da cidade durante a Segunda guerra mundial, era mais velha que os edifícios que a rodeavam. Por sua aparência, podia coligir-se que se tratava de um refúgio para trasnochadores e apaixonados por escassos recursos. face ao avançado da hora, uma luz brilhava em o vestíbulo da entrada.
Owain descendeu do carro e se voltou para o Kendall.
--Vigia com muita atenção. Se vir algo suspeito, não perca um segundo em te reunir comigo -deu uns tapinhas à espada que ocultava sob o casaco-. Entendido?
--Entendido.
Owain sabia exatamente o que devia fazer. Durante décadas, tinha dado instruções aos correios que levavam seus movimentos de xadrez até este mesmo edifício. Silenciosamente, aproximou-se de a estalagem. As sombras projetadas sobre a rua pelos edifícios pareceram estirar-se para ocultar seu passo. Enquanto cruzava a rua, tirou de forma ausente o dourado medalhão do Albert, tirou-o do bolso e começou a brincar com ele entre seus dedos, de cima abaixo, de cima abaixo, um rápido puxão da cadeia e volta a começar. Ao chegar junto às escadas que conduziam ao alpendre de entrada, voltou a depositar a pequena peça em seu bolso. A porta foi aberta e fechada antes de que o mais leve farrapo de brisa pudesse penetrar no interior. A campainha se manteve muda.
O vestíbulo era estreito e alargado. A decoração resultava tão singular como a fachada do edifício. Evidentemente, a estalagem acolhia à classe de clientes que andavam em busca de evasão à última moda. O luxo e, em opinião do Owain, o bom gosto, brilhavam por seu ausência. Várias portas, que aparentemente conduziam a outras habitações e corredores, estavam fechadas. À direita do vestíbulo, depois de um mostrador iluminado por um único abajur, se sentava uma enxuta anciã.
Owain não acreditava que ela tivesse advertido sua presença, mas deveu fazê-lo, porque não se sobressaltou quando ele perguntou:
--É você Frau Schneider?
A mulher levantou a vista do livro que estava lendo. Seus olhos estavam quase escondidos sob capas e capas de rugas. Tantas rugas, por acima e por debaixo das pálpebras, que sua cara parecia haver-se congelado em uma careta estrábica. Respondeu em um cuidadoso e correto inglês.
--Tem que tocar a campainha.
Owain a olhou, intrigado. Havia, era certo, uma campainha sobre o mostrados, mas não via a necessidade de utilizá-la.
--Frau Schneider -disse de novo-. Trago uma mensagem para o Herr Schneider. Eu gostaria de conversar com ele. Seria melhor que não me decepcionasse.
Ela o olhou com os olhos entreabridos e sem pestanejar. Aquela mulher era uma mortal. Sua cara era um mapa de todos os anos que havia conhecido. Um estranho em meio da noite não era algo novo para ela. Não estava disposta a fazer exceções.
--Tem que tocar a campainha.
Pela primeira vez em muitas noites, Owain sorriu. Encontrava divertida a idéia de que aquela diminuta e jorobada mujercita pudesse formular demandas a um Antigo dos Ventrue. Obviamente, ela não tinha a menor ideia de quem era ele. Do que era. Isso, ou pensava que sua avançada idade a protegeria. Mas Owain tinha dez suas vezes idade. Sabia muito bem quão débil era o amparo oferecido pelos anos. Voltou a levá-los dedos ao bolso do colete e deslizou os dedos sobre o medalhão. Com um movimento exagerado, levantou a outra mão e fez soar a campainha.
Instantaneamente, as luzes se apagaram. Uma escuridão total envolveu ao Owain.
Vigiar. Esperar. Kendall sentia que tinha passado as nove décimas partes de sua vida preparando-se para fazer seu trabalho. Mas, uma vez mais, o preparar-se era seu trabalho. Tanto como ocupar-se de os problemas quando se apresentavam. Kendall podia ver com claridade a estalagem ao outro lado da rua. Durante o dia, entre compra e compra, tinha explorado a zona. E agora estava aqui de novo. Vigiando. Esperando. Fazia vários minutos que Owain se havia partido.
Owain. Ainda estava tentando acostumar-se a dirigir-se a ele daquela maneira em vez de utilizar o clássico "Aquilo senhor, que lhe pedisse que o chamasse por seu nome de pilha, tinha-a alegrado, tanto como o que ela tivesse deixado de ser para ele a "senhorita Jackson". O chefe do Kendall sempre tinha atuado de forma imprevisível no passado. Mas, a seu parecer, sempre com um motivo oculto. Recentemente, em troca, parecia ver-se miserável em direções que ela não conhecia nem tinha previsto. Não parecia tanto estar atuando como reagindo aos acontecimentos. Por exemplo, a viagem a Espanha, com aquele bastardo do Miguel, havia estado a ponto de resultar um completo desastre. E agora se encontravam na Alemanha. Ela não alcançava sequer a recordar uma ocasião passada em que Owain tivesse abandonado Atlanta.
Naturalmente, recordou-se, ela só tinha estado a seu serviço durante uns poucos anos, e ele rondava pelo mundo desde muito tempo atrás. Em qualquer caso, não estava entre suas funções o dar conselhos a seu patrão. Só esperar, vigiar e, se era necessário, atuar. No momento, a estalagem parecia perfeitamente tranqüila e normal do exterior.
Podia senti-los, vigiando-o, escondidos entre a espessa maleza. Não podia vê-los (não eram tão descuidados), mas sua agitação alagava as aletas de seu nariz; o vento noturno transportava seus ameaçadores grunhidos mais longe do que acreditavam.
Apesar disso, Nicholas não estava atemorizado. Tinha perdido a capacidade de sentir medo. Tinha-o abandonado pouco depois que a esperança.
arrastou-se rodando entre as matas como se o roce das rangentes ramos e os aguijonazos das sarças pudessem aliviar a queimação que o devorava. Os outros se mantiveram a distância. Não sabiam ainda o que fazer com ele. Ou possivelmente já tinham visto outros infectados pela maldição, e simplesmente estavam esperando a que morrera por si só. Oxalá pudesse.
Mas o presente de uma morte piedosa lhe tinha sido negado a Nicholas.
Durante as últimas noites, tinha avançado a tropicões em direção norte, médio cegado, como se estivesse em um sonho, uma pesadelo interminável. Via com um olho o mundo dos mortais, enquanto com o outro lhe revelava o dos espíritos. Nenhum deles era real para ele. Nada de quanto via tinha significado além de alguns segundos... breves, estáticos pedaços da eternidade.
Em um momento estava percorrendo as acidentadas colinas de Alemanha, seguido por formadas redemoinhos legiões de espectros susurrantes, meninos mortos, mas de uma vez não-mortos, detrás de seu Flautista do Hamelín. Ao seguinte as sombras cobravam uma substância ainda mais escura, e o campo se desvanecia, deixando ao Nicholas cambaleante, arrastando-se para quem sabia onde. O único que entendia era que a fome o empurrava implacável para diante, lhe negando descanso ou distração.
Durante muitas noites (quantas, não podia sabê-lo) havia contínuo para o norte até que, finalmente, exausto, tinha cansado de cabeça ao rio Havel. Mas as sombras que o perseguiam não se tinham detido. Tinham contínuo seu caminho em detrás dele, transformando as acalmadas águas em um agitado caldeirão hirviente de não-morte. Quando Nicholas se arrastou até a borda ocidental, ainda o acompanhavam. Inclusive parecia que, em qualquer lugar que fosse, atraía mais e mais mortos viventes.
Inconsciente de seus atos, cego, precipitou-se ao interior do bosque do Grunewald, tentando desesperadamente escapar de as hordas de mortos que se agarravam a ele. Mas para então Nicholas tinha aprendido uma coisa, algo que duvidava que nem tão sequer o murcho Plumanegra tivesse chegado a conhecer: no Véu, lá no imóvel do Evans, Nicholas se tinha convertido em uma anomalia, um transtorno entre os mundos que irremediavelmente, como chama-a as traças, atraía às massas de quão mortos balbuciavam ininteligíveis discursos. reuniam-se em enxames atrás dele, se arrastavam e reptaban sobre ele quando caía ao chão. Não podia livrar-se deles. E ali, no mesmo coração do Holocausto, estavam sempre pressente.
Agora, felizmente, sua visão começava a apartar do mundo do Esquecimento. Mas então, pouco a pouco, foi retornando o dor. Um mundo de dor, um mundo de morte. As duas caras da mesma moeda.
Nicholas rodava espasmodicamente entre a folhagem, seu corpo nu esquartejado e lhe sangrem. Eles o observavam, escondidos entre a próxima maleza. Não os mortos daquele mundo, a não ser os predadores de este.
Que venham, pensava Nicholas, suplicante. Fariam-me um favor.
Mas não vinham. Não aquela noite. Nicholas estava sozinho. Solo com as babeantes legiões dos mortos, que se encarapitavam a ele como os vermes a um cadáver putrefato.
Owain saltou a um lado e se agachou para adotar uma posição defensiva. Quase ao mesmo tempo, sua espada estava em sua mão. Não escutou ao Frau Schneider mover-se em busca de refúgio, nem percebeu nenhum outro movimento. Além do tictac proveniente do relógio que havia depois do mostrador, Owain se encontrava completamente isolado, como se fosse o único ser presente na estalagem... solo que sabia que não era tão afortunado. perguntou-se se haveria mortais nos pisos superiores, e se o tumulto de um ataque os alertaria, mas em seus pensamentos, e frente à sobrevivência, tal preocupação ocupava só um lugar secundário.
depois de uns segundos breves de cegueira, os olhos do Owain começaram a acostumar-se à escuridão. Ao cabo de um momento, podia ver com tanta claridade como se se encontrasse a plena luz. Mas então houve um brilho de luz, e em seguida de novo a escuridão. Um brilho e a escuridão. Um brilho e a escuridão, em um rápido piscada que semeava o caos nos potentes sentidos do Owain. A luz era diferente à iluminação habitual do vestíbulo. Em vez do quente brilho derramado pelo abajur do vestíbulo, a lhe pisquem luz estava tinta de um azul sorvete.
Rapidamente, Owain apoiou as costas contra a parede. Seus olhos saltavam de um lado a outro tentando esquadrinhar a habitação que o rodeava. A estranha luz azulada (não podia determinar de onde vinha exatamente) ainda piscava, mas não a intervalos regulares. Os períodos de luz e de sombra se aconteciam um após o outro com grande rapidez, mas a duração de cada brilho e o tempo transcorrido entre cada um deles pareciam variar sem seguir um patrão definido. A diferença entre os intervalos era só de uma fração de segundo, mas impedia que a visão do Owain se ajustasse como o teria feito de haver-se encontrado com um ritmo regular. A habitação cobrou a desconcertante e espasmódica aparência de um velho filme muda... e Owain se encontrou a si mesmo interpretando um papel.
de repente, havia um homem de pé frente a Owain. Mas depois do seguinte brilho da luz, voltava a encontrar-se a sós. Um momento mais tarde, o estranho voltava a aparecer, mas a vários metros do lugar que tinha ocupado segundos antes.
Owain preparou a espada. Não para atacar, ainda não, a não ser para assegurar-se de que qualquer que se aproximasse muito depressa se topasse com a folha e ficasse empalado.
Mas a estranha figura não se aproximou tanto. de repente se encontrava perto. Uns poucos brilhos depois estava à esquerda, e quase imediatamente ao outro extremo do estreito salão. Por fim de novo frente a Owain.
Algo mais tinha trocado a seu redor. As quatro portas que podia ver com o passar do corredor estavam agora abertas. Da escuridão que se levantava mais à frente do vestíbulo, muitos pares de olhos o observavam. De algum modo, os brilhos de luz não chegavam a iluminar mais à frente do vestíbulo principal. Tudo o que alcançava a vislumbrar fora da habitação eram aqueles olhos, que trocavam de posição tão freqüente e impredeciblemente como a estranha figura que tinha aparecido frente a Owain.
Vendo que aparentemente não ia ser atacado de uma maneira imediata, Owain se tranqüilizou um pouco e tentou estudar com mais parada a figura e a aparência daquele estranho. Era alto, mas estava curvado, quase jorobado. Sua cara, logo que vislumbrada entre brilho e brilho, aparecia terrivelmente desfigurada por verrugas ou tumores de algum tipo. Possivelmente fora o efeito provocado pelas luzes, mas Owain não podia assegurar a ciência certa que o estranho o estivesse olhando a ele. Seus olhos pareciam trepidar ligeiramente, ou acaso estivessem mal alinhados. Mas em todo caso, sua figura não se fazia visível o tempo suficiente como para que Owain pudesse estar seguro de nada.
--Quem é? -exclamou Owain, com a espada ainda elevada.
Pareceu que o estranho esboçava um sorriso sinistro, mas Owain não pôde assegurá-lo. Os olhos giravam e trocavam de posição contra a escuridão do fundo. Quantas criaturas habitavam aquela escuridão? Cinco, dez, mais? Owain não podia averiguá-lo. Seus intentos pelas contar resultavam fúteis.
--Estou procurando o Herr Schneider -disse Owain-. Tenho que falar com ele.
de repente, as destellantes luz se detiveram. A escuridão retornou. Owain se afirmou sobre o chão, esperando um ataque, durante os segundos que seus olhos necessitavam para acostumar-se a ela. Mas não houve nenhum ataque. Tanto o estranho como o enxame de olhos tinham desaparecido sem deixar rastro. Entretanto, não importava o que os sentidos do Owain pudessem ou não revelar. Podia ainda perceber a presença dos outros.
--te mostre -ordenou. Mas não recebeu resposta.
--Deveria falar comigo -disse uma voz que Owain não pôde localizar-. Seria melhor que não o decepcionasse.
Owain soltou uma gargalhada. Suas palavras de apenas momentos antes cheiravam agora a bravata estúpida, mas pareciam ter completo seu propósito.
--Suponho que falo com o Herr Schneider.
--Não, não o faz -replicou a voz. Owain acreditou escutar garras que se arrastavam entre as sombras além das portas, mas possivelmente era o som de umas risadas contidas.
Owain tratou de localizar a procedência da voz, mas não parecia vir de nenhum lugar em particular. Ele tinha utilizado esse mesmo truque contra os recém-nascidos do Sabbat, no Toledo, mas o estranho o utilizava com muita mais perícia. Não veria aquela criatura a menos que queria ser vista. Consciente de sua desvantagem, Owain apartou a espada e voltou a guardá-la sob o casaco.
--Confia em nós? -perguntou a voz, confundida ou acaso simplesmente divertida.
--Asseguro-lhes que não represento um perigo para vós -respondeu Owain-, e por isso não há razão para que me ataquem.
--Isso já o veremos -disse a voz desprovida de corpo.
Owain estava assombrado pelas dificuldades que encontrava para seguir o rastro à voz. encontrava-se na presença de um professor. Livre de sua arma, Owain deslizou sua mão pela cadeia até o medalhão.
--É Herr Schneider?
--Herr Schneider não existe -respondeu a voz.
É obvio que não existe um verdadeiro Herr Schneider, pensou Owain. Por quem toma esta criatura? Por um néscio? Até esse momento, o estranho tinha desviado ou ignorado cada pergunta e cada afirmação. Possivelmente, decidiu Owain, uma aproximação mais direta o proporcionaria respostas mais claras.
--Meu nome é Owain Evans, também conhecido como Owain ap Ieuan. É você o que, sob o nome do Herr Schneider, esteve recebendo todos estes anos meus movimentos de xadrez?
Uma prolongada pausa aconteceu a suas palavras. Embora não podia vê-los, Owain podia sentir todos aqueles olhos observando-o da escuridão. Agora seus próprios olhos estavam bem adaptados à escuridão, mas por alguma razão não podiam brocar as sombras que elevavam-se além das portas que limitavam o vestíbulo. Aqueles com os que se enfrentava eram muito destros na arte de enganar à vista, inclusive a de um tão ancião como Owain, cujos olhos acumulavam a aprendizagem de muitos séculos nos caminhos das trevas. Nosferatu, suspeitou Owain. O que outros podiam haver-se escondido com tal facilidade dele?
--por que vieste ao Berlim? -perguntou a voz por fim.
A súbita mudança de tema não passou desapercebido ao Owain.
--Para responder a estas perguntas.
--Então as responda -mais risitas apagadas se elevaram desde as sombras.
--Para encontrar respostas a minhas perguntas -Owain escolheu mais cuidadosamente as palavras. Passou o medalhão entre seus dedos, de adiante atrás.
--Procura respostas, ou buscas vingança?
Pergunta-a surpreendeu ao Owain. Assim como o fato de que não pudesse respondê-la. Lá em Atlanta, seu desejo de vingança se havia atiçado até tornar-se quase uma febre. Seu ódio tinha sido seu sustento contra Kline, contra Benison. Mas desde seus combates, o fogo se tinha ido apagando, ao igual a, lentamente, tinha-o feito durante os séculos precedentes. O ódio já não podia sustentá-lo por mais tempo.
Então era a necessidade o que o tinha empurrado. A escapar de Atlanta, do alcance do Benison, a procurar refúgio no Berlim. Recentemente sorteado o perigo imediato, tinha procedido como o tinha feito porque... porque era quão único podia fazer. Podia não fazer nada, o que significava abandonar-se ao assalto de umas visões cada vez mais freqüentes, ou podia procurar respostas aos enigmas que o perseguiam. Mas, por que empenhar-se em procurar as respostas se não era por vingança?
Conhecimento ou vingança? Owain já não podia as distinguir. Cada uma delas conduzia inexoravelmente à outra. Não podia as separar.
--Não sei -disse ao fim.
Repentinamente, onde apenas um instante antes não havia ninguém, encontrava-se agora o estranho. Owain deu um coice. As suspeita sobre sua natureza Nosferatu eram certas. Agora que o estranho se mostrava abertamente a seus sentidos, o fedor a lixo de esgoto, que até então tinha sido mascarado, resultava evidente. As verrugas que Owain tinha entrevido brotavam enrugadas entre forúnculos endurecidos e feridas que derramavam pus sobre as andrajosas roupas do estranho. Seu braço esquerdo pendurava inerte a seu lado.
O Nosferatu se aproximou coxeando ao Owain. Por um instante Owain pensou que era melhor ver a criatura entre os brilhos de luz, ou não vê-la absolutamente. Mas, lentamente, o estranho seguia aproximando-se. Owain teve que refrear o impulso de recuperar sua espada e manter afastada de si a aquela monstruosidade. O Ventrue suspeitava que os irmãos do Nosferatu não se encontravam longe. Cairiam sobre ele em segundos, como uma manada de ratos em um cadáver, se se atrevia a ameaçar a seu chefe.
O Nosferatu levantou uma mão disforme e a aproximou do Owain. Mais perto. Mais perto.
Se este monstro se atrever a tocar minha espada, pensou Owain, mandarei sua cabeça rodando ao chão.
Mas a mão do estranho não procurava sua espada, a não ser o medalhão que sustentava na mão esquerda. Os grossos e torpes dedos tocaram os do Owain, e foram posar se sobre o medalhão.
--Sou Ellison -disse o Nosferatu-. E você procura respostas à perda do amor.
Owain piscou, perplexo. Não podia acreditar o que estava ouvindo. Um rastro de ternura na voz cascata do monstro? Preocupação nesta criatura que, até esse momento, dedicou-se a confundi-lo com jogos de palavras?
Owain apartou bruscamente a mão e devolveu o medalhão a seu bolso. Ellison, ao mesmo tempo, apartou também a sua como se tivesse recebido uma dentada.
Repentinamente, a escuridão do corredor se estendeu até situar-se a uns poucos passos do Ellison. Muitos pares de olhos eram visíveis de novo. Uma ominosa mescla de vaias e grunhidos encheu a habitação.
Owain levantou devagar a mão para mostrar que não pretendia nada mau. Ellison o olhou, áspero, mostrando pouco convencimento. Retrocedeu um passo.
--Seria muito melhor que abandonasse a cidade -disse o Nosferatu. Todo rastro de compaixão tinha desaparecido de sua voz, substituído pelo anterior tom zombador-. Não apresentaste a nenhum dos Príncipes. Essa é a maneira de atuar de um espião, e eles vêem um espião detrás de cada esquina e detrás de cada sombra.
Owain sentiu que lhe secava a garganta. O pânico começava a apoderar-se dele. Um momento antes o Nosferatu tinha parecido disposto a ajudá-lo, mas de algum jeito o tinha ofendido. Sem embargo, não podia abandonar este caminho. Não tinha outro sítio onde procurar. Suas mensagens tinham sido enviados a esta estalagem. E a própria pergunta do Nosferatu, conhecimento ou vingança, mostrava às claras que sabia que havia algo, algo que tinha sofrido Owain, que merecia vingança. Não podia partir com as mãos vazias.
--Tem que me falar das cartas -disse.
O rumor de vaias e grunhidos que rodeava ao Ellison aumentou de volume.
--Deve ir.
A perspectiva do fracasso se fez amenazadoramente iminente. Owain se estremeceu ante o pensamento de ver-se expulso por um habitante dos esgotos, aquela caricatura de ser humano. Mas não parecia haver muitas coisas que pudesse fazer para obrigar ao Ellison e seus seguidores a responder a suas perguntas.
Deve ir. As palavras flutuaram na mente do Owain, enchendo seu coração de desespero. Ir... mas onde? perguntou-se a si mesmo, sem dar-se conta de que tinha formulado ao mesmo tempo a pergunta em voz alta.
Pela segunda vez, Ellison se aproximou do Owain. Seus movimentos eram cautelosos. Lentamente, levantou a mão direita. Levou-a até seu peito e extraiu algo que se escondia entre suas miseráveis farrapos. Então, movendo-se com o que Owain pôde interpretar como acanhamento ou acaso reverencia, Ellison alargou o braço e tocou com suavidade o flanco do Owain, o bolso de seu colete onde descansava o medalhão.
--Deve ir -disse uma vez mais. Mas, com um suspiro, acrescentou-, a Inglaterra, ao Glastonbury.
O Nosferatu acariciou uma segunda vez o bolso. E imediatamente desapareceu.
Owain se encontrava de novo em uma habitação vazia. As portas que tinham estado abertas, formando uma galeria de olhos, permaneciam agora fechadas. Ellison, seus misteriosos acompanhantes, Frau Schneider, todos eles tinham desaparecido. Owain estava sozinho. Tomou o medalhão do bolso. Aliviado por seu contato, apertou-o com suavidade.
Inglaterra. Glastonbury.
Owain se perguntou se podia confiar no Nosferatu. Ellison podia haver-se oculto onde quisesse. Podia desaparecer sem que ele tivesse forma de encontrá-lo. Não havia razão para enganar ao Owain, para lhe oferecer um chamariz de informação falsa. Ou, ao menos, não havia uma razão óbvia. Os manejos da mente dos Nosferatu resultavam a Owain quase tão estranhos como os dos Malkavian.
voltou-se para o mostrador, agora envolto em sombras. O que tinha sido do Frau Schneider? Tinha desaparecido com os Nosferatu? Era uma deles? Tinha podido ocultar sua natureza a Owain? Por um momento quase desejo voltar-se para encontrar frente a ela -então sim que tocaria sua maldita campainha-, mas em vão.
Ellison partiu sem intercambiar uma palavra com os Nosferatu menores que o tinham acompanhado à estalagem. O que havia presenciado ali o tinha perturbado poderosamente. Tanto, de fato, que tinha devotado informação sem reclamar nada em troca. Certamente este deslize não tinha passado desapercebido a seus irmãos de clã. Poderia ser que um deles tomasse sua falha como um signo de debilidade e se atrevesse a desafiá-lo? Duvidava-o. E em todo caso, não temia a nenhum deles. Entretanto, era certo que tinha sido um lamentável descuido.
Mas o medalhão...
Descendeu pelos túneis e galerias, entrando mais profundamente entre as vísceras da cidade. Aferrava com força o medalhão que pendurava de seu pescoço. O descarado Ventrue possuía um medalhão exatamente igual. Se lhe tinha assombrado vê-lo em seus mãos, ainda mais assombrosa tinha resultado a ostentação com que o luzia. Não devesse me haver surpreso, admoestou-se a si mesmo. Isabella jamais prometeu que não faria outros. por que devia havê-lo acreditado?
Uma suspeita mais perturbadora se abriu caminho entre seus pensamentos. Advertiram-no os outros? perguntou-se. E se suspeitam de meu segredo, da existência de meu tesouro? A resposta era muito terrível para ser sequer considerada. Durante as próximas noites teria que vigiar e escutar cuidadosamente, e se chegava a seus ouvidos o menor rumor, teria que atuar rápida e sem piedade. Limparei Berlim do Nosferatu antes de renunciar a meu tesouro.
O túnel desembocava em um beco sem saída. ajoelhou-se sobre o chão coberto de pestilento líquido, e atirou de uma das pedras que formavam o muro. Apartou-a e se arrastou, talher até o queixo pelo lixo e os excrementos, por um diminuto passadiço.
Mas, e o Ventrue? Representava uma ameaça? Ellison e os outros poderiam, sem dúvida, havê-lo destruído. A ameaça potencial teria sido conjurada. Mas em toda luta aberta, recordou-se, o resultado da batalha pode voltar-se inesperadamente contra ti. Deu as obrigado porque nenhum de seus Príncipes parecesse destinado a aprender esta particular lição. Preferia que lutassem constantemente entre si, que cada bando necessitasse desesperadamente os serviços dos Nosferatu.
O passadiço desembocou em uma pequena e acolhedora câmara, coberta com peles de rato e quente lodo. Não, decidiu Ellison, é melhor ter afastado ao Ventrue da cidade, havê-lo enviado longe. Isabella trataria com ele como melhor lhe parecesse. O Ventrue levava um de seus medalhões. Era evidente que se encontrou com ela no passado.
Convencido ao fim de ter atuado corretamente, Ellison se deitou feito um novelo no mais estreito rincão da diminuta câmara. Sobre ele se elevavam toneladas e toneladas de rocha e terra. Nem sequer um de seus irmãos poderia seguir seu rastro até aqui. Apertou o medalhão contra seu peito e, uma vez mais, voltou a sentir-se em presença de sua amada Melitta. Ela descansava a salvo e, algum dia, voltaria para ele.
Os arranhões que provinham do interior do grande cofre eram cada vez mais fortes e constantes. Kli Kodesh estava sentado, completamente imóvel. Não se tinha movido, nem sequer havia pestanejado, durante horas. As bolinhas de pó que flutuavam no ar da remota granja se posavam em sua figura semelhante a uma estátua.
O momento da vitória, a hora da liberação tanto tempo tida saudades, aproximava-se rapidamente. Não recordava haver sentido jamais uma impaciência como esta. Seu peito estava alagado pelo sabor da antecipação. de repente odiava intensamente o precipitado passado do tempo. Contava os segundos, entesourava-os, arrebatando-lhe ao futuro, sustentando-os avaro em suas mãos portanto tempo como lhe era possível antes de lhe permitir ao passado que os levasse. Até então o tempo se negou a apressar-se, negou-se a aliviar o aborrecimento que era o perpétuo companheiro do Kli Kodesh. Agora, da mesma maneira, não se deteria para prolongar seu deleite.
depois de tantos anos, os fios da profecia começavam a aproximar-se, enredando-se entre si para completar a tapeçaria do tempo. Kli Kodesh tinha seguido a trajetória dos fios com a perícia de um professor tecedor. Século detrás século de paciente contemplação e observação tinham forjado sua habilidade. Tinha seguido os fios da Cidade de Los Angeles, para o interior das câmaras baixo a Cidade do Adversário, para liberar aquela caixa com aspecto de sarcófago que agora se encontrava a seu lado. Tinha jogado o papel do Deméter com a encerrada Perséfone para permitir a sucessão de as estações e a culminação da História.
Lentamente e a contra gosto, Kli Kodesh se elevou. Do interior da caixa chegavam os sons de uma fútil luta. Tinha-os ignorado desde que abandonasse a Cidade Maldita. Mas agora podia ver que o momento famoso se aproximava.
E assim, a Terra abrirá seu ventre e a Besta brotará arrastando-se dele para reclamar o sangue que apague sua sede.
As cadeias metálicas que tinham mantido a caixa selada jaziam já roda sobre o chão. Kli Kodesh alargou um braço e, com apenas o golpecito de um de seus dedos, enviou voando a tampa de madeira ao outro lado da habitação. Em seu interior jazia um Cainita sobre o que Kli Kodesh não tinha posto os olhos em centenas de anos. Não desde aquela noite em que Montrovant, escravo de sua busca, escravo de sua obsessão, tinha sido confinado a uma mais estreita escravidão em uma prisão de madeira e metal.
Montrovant piscou frente ao esquecido brilho da luz. em que pese a que a caixa estava já aberta, ele permanecia aprisionado por umas cadeias semelhantes a que Kli Kodesh tinha retirado de seu exterior. Era mais desço do que Kli Kodesh recordava. Contrafeito e jorobado, sua pele estava pálida e macilenta pela falta de sangue. debateu-se contra as cadeias, mas carecia por completo da força necessária para liberar-se.
Kli Kodesh levantou ambos os braços por cima da cabeça.
--Retorna ao mundo da superfície, formosa Perséfone -disse com tom teatral, como se estivesse declamando um texto. Mas só conseguiu que Montrovant se debatesse até mais violentamente contra as cadeias. Kli Kodesh franziu o cenho, mas então recordou que Montrovant não era consciente do papel que ia interpretar em este, seu drama do fim do mundo. Montrovant sempre tinha sido curto de miras. Isso o tinha conduzido a sua atual e penosa situação.
Kli Kodesh levou um dedo até seus próprios lábios.
--Silêncio, silêncio -disse, como se estivesse admoestando a um menino peralta, mas o gesto não acalmou ao Montrovant mais do que havia feito sua anterior declamação. De novo, Kli Kodesh voltou a franzir o cenho. Levantou o polegar e o índice e se arranhou o cabelo do queixo. Na Cidade da Espada tinha tentado à profecia, e inclusive havia falado brevemente com o Assassino da Estirpe. Mas, além de isto, tinham passado muitíssimos anos da última vez que tivesse contato algum com os vivos ou os não-mortos. As convenções sociais, fugazes e inconstantes ao longo das foi, não eram para ele mais que lembranças nebulosas.
--chegou a hora de que sua busca continue -disse Kli Kodesh. Mas apesar disso, Montrovant continuou sacudindo fracamente a cabeça de um lado a outro. Seus olhos giravam nas órbitas-. Hmpf -bufou Kodesh. Cansado de falar sem receber resposta, estendeu uma emano para o grande pote que tinha depositado junto à gaveta-. Possivelmente seja melhor isto primeiro-. Levantou com facilidade o pote sobre a cabeça do Montrovant e então o inclinou justo o suficiente para que um chorrito de sangue começasse a cair sobre seu rosto.
O cativo vampiro pestanejou várias vezes enquanto o sangue começava a esparramar-se por toda sua cara mas então, quase imediatamente, abriu a boca. Boqueó ansiosamente, tratando de alcançar o chorrito. Ao cabo de uns segundos se acalmou e começou a beber, enquanto um espasmo de prazer parecia estender-se periodicamente por todo seu corpo.
Kli Kodesh parecia agradado em seu papel de babá. Continuou vertendo lenta e metodicamente o sangue sobre a boca de Montrovant. O granjeiro e sua mulher tinham sido tão amáveis e cooperativos... e o menino, não devia esquecer ao menino. Ou possivelmente era que, com os anos, Kli Kodesh tinha acabado por ignorar a resistência dos mortais. Como aqueles peixes pescados no mar da Galilea, batiam as asas e se sacudiam um pouco, mas realmente não chegavam a lutar.
Por fim, depois de um comprido estranho, Montrovant jazia imóvel, exausto. Seu corpo começava lentamente a recuperar-se de um letargia de seiscentos anos. Distraídamente, como se fosse uma ocorrência tardia, Kli Kodesh tinha quebrado as cadeias que o aprisionavam. Não tinha nada que temer do Montrovant. Não havia nada que, nem sequer um vampiro tão ancião como Montrovant, pudesse fazer para danificá-lo.
--chegou a hora de que sua busca continue -disse uma segunda vez-. Me escute com atenção e te falarei do Assassino da Estirpe e da relíquia que persegue.
O interdependente, entrelaçado e incestuoso mundo das finanças internacionais resultava às vezes uma verdadeira bênção. Com umas poucas chamadas e alguns favores solicitados, Owain pôde organizar rapidamente uma viagem junto com o Kendall da Alemanha a Inglaterra. Não queria voltar a arriscar-se com os Giovanni. Sem dúvida, a estas alturas o Príncipe Benison teria dado o alarme e houvesse devotado uma recompensa por sua cabeça. Owain não era tão néscio como para enganar-se pensando que o ghoul Giovanni, até no suposto improvável de que queria ajudá-lo, teria a suficiente influencia em o seio de seu clã para poder fazê-lo. Assim, em vez de recorrer a ele, Kendall fez a mala com suas escassas posses e os dois se dirigiram ao Hamburgo por rodovia.
Ali, nos moles, esperava-os A Serene, um navio mercante não muito marinheiro, capitaneado por um francês bêbado, que navegava sob bandeira holandesa. Tudo neste homem irritava a Owain: sua forte e procaz risada; o aroma de suor, sal e uísque barato que acompanhava-o como uma segunda sombra; os lúbricos olhares que, sem nenhuma dissimulação, dedicava ao Kendall. Mas seu pequeno navio estava disponível de maneira imediata e sem perguntas. As concessões eram necessárias.
Com voz brusca e imperiosa, utilizando os escuros poderes que tinha chegado a dominar ao longo dos séculos, Owain penetrou a neblina de álcool que rodeava a mente do capitão e lhe impôs uma repentina sobriedade. Deu ordens estritas de que, salvo caso de emergência, nem ele nem seu ajudante fossem incomodados até que o navio atracasse à costa meridional da Inglaterra, além do Bournemouth.
O capitão assentiu recatadamente e conduziu ao Owain e Kendall a seu camarote... por chamá-lo de algum jeito. Mas bem parecia, em opinião do Owain, um quarto de banho muito grande. Mas, embora tivessem que estar apertados havia ali espaço suficiente para eles dois, e estariam a salvo de indiscretos olhares. Assim, uma vez mais, as concessões eram necessárias.
Os seguintes dias e noites se confundiram um após o outro sem clara divisão, como uma infernal montagem de ruído, movimento e calor. Aparentemente, o desmantelado camarote se encontrava pego à sala de máquinas do navio. Assim que o casco de navio ficou em marcha, seu agitado balanço contra as ondas se viu acompanhado por uma cacofonia de sons mecânicos, o rugido e detestável retumbar de uma maquinaria forçada. Mas inclusive mais notório que o acre aroma do combustível diesel ou o contínuo estrépito, resultava o brusco aumento da temperatura. Primeiro a parede que dava à sala de máquinas, e logo o mesmo chão, esquentaram-se até voltar-se dolorosos ao contato. Ao cabo de uma hora desde sua marcha, o calor gerado pelos ruidosos motores enchia até o último centímetro do imundo camarote.
Owain arquivou os diversos desconfortos em seus pensamentos, sem fazer nenhum comentário, e sem mostrar reação de nenhuma classe. O calor e o som eram como um muro para ele, um dique surrealista contra as ásperas realidades do mundo exterior que se feito pressente de maneira tão brusca e desumana em seu até então assentada no-vista. Não necessitava o ar fresco, nem sentia o menor desejo de passear pela ponte e recrear-se na visão do mar. Não havia ali nada nem ninguém a quem desejasse ver, e com quantos menos marinheiros se encontrasse, melhor. Assim Kendall e ele se mantiveram isolados, enclausurados no oscilante camarote, envoltos no sufocante calor e o dissonante zumbido da maquinaria.
Durante boa parte da travessia, Owain se entregou a um intermitente sonho. Seu corpo ainda tinha muito que sanar antes de que recuperasse por completo as forças. Voltou a alimentar-se de Kendall e pôde notar que ela ainda se encontrava bastante débil. De feito, alimentar-se dela tão freqüentemente começava a resultar perigoso. Para o Kendall, porque punha em perigo sua saúde física. Para Owain, porque lhe privava das habilidades e serviços de uma vigorosa e eficiente ajudante. Mas nas atuais circunstâncias se faziam necessárias medidas, desesperada-se. Uma vez que ele recuperasse o vigor, poderia estancar com facilidade a fortaleza dá ela.
Freqüentemente, tão de noite como de dia, Owain despertava bruscamente, empurrado a consciencia pela ferocidade de seus visões. Às vezes, a diferença entre a vigília e o sonho se voltava a seus olhos tão sutil, tão carente de significado, que não sabia em que estado se encontrava. Estava seu cabelo úmido e esmagado contra seu rosto e seu pescoço por causa da umidade da densa névoa que cobria a colina sobre a que se elevava a detestável árvore de seus sonhos, ou acaso pela condensação de vapor que cobria cada superfície do camarote? Era a colina o que trepidava sob seus pés ou acaso o navio acabava de entrar em águas enfurecidas? Era o salgado sabor que notava nos lábios o de seu próprio sangue, derramada no momento em que a árvore lhe arrancava a vida, ou acaso a salgada presença do mar do Norte?
Cada um dos dois mundos era igualmente opressivo para ele, mas enquanto o do sangue e a carne não o fazia demanda, o de suas visões estava povoado por aqueles que o faziam responsável por atos conhecidos, e igualmente por outros não conhecidos.
Convoca em seu auxílio quantas noites se puseram. O ancião virtualmente cuspia as palavras ao Owain. Eu, José o Menor, você o advirto: não te servirá de nada.
José. O nome se agitava na memória do Owain. José...
Mas o ancião, poseído por um paroxismo furioso, a branca barba empapada de espumosa saliva, levantava sua vara sobre o Owain.
A cena da colina se formava redemoinhos frente a seus olhos. José... a vara... a vara que tinha mudado, transformada diante dele em um espinheiro infernal. De novo, sempre, aferrando-o, aprisionando-o. Destroçando seus ossos, mordendo a carne para beber-se sua ímpia sangue. Owain não podia liberar-se, não podia mover-se. Todos seus esforços eram em vão.
Mas inclusive antes de que José pudesse lhe arrojar mais insultos e acusações, antes de que o espinheiro pudesse mergulhar-se como a estaca de um diabolista em seu corpo e perfurar seu coração, a névoa cobria toda a colina. Os gritos desapareciam; desaparecia o ancião, e desaparecia a árvore. A névoa ocultava ao Owain toda visão, tudo som, toda sensação, salvo uma vaga impressão de movimento... torvelinho de névoa, mar tumultuoso...
Também o passado do tempo se fez mais vago, estirando-se no interior da benéfica névoa até que a pausa entre dois pulsados de coração podia durar meros segundos ou possivelmente décadas de silêncio e estancamento. Era o batimento do coração de um coração, de seu próprio coração, o que impulsionava ao Owain adiante. A névoa se dissipava e voltava para encontrar-se no alto da colina. A mesma colina, mas a mundos de distância da que tinha conhecido momentos antes.
O espinheiro se elevava sereno, inocente. Já não se agitava nem tremia. Já não estava talher de sangue. E a seu lado se encontrava Angharad, sua branca túnica resplandecendo contra a escuridão. Pode que fossem as lágrimas que alagavam os olhos do Owain as que lhe emprestassem aquela luminosidade radiante a sua vestimenta. A tropicões, aproximava-se dela. Médio cegado, cheio de assombro e maravilha ante o milagre do furioso martilleo de seu coração, seu coração mortal. E ali, apenas a dez metros de distância, se encontrava seu único amor.
Seus pés se moviam com agônica lentidão. Não podiam igualar o ritmo frenético com que a impaciência para agitar-se a seu sangue mortal por todos os rincões de seu corpo. Séculos de uma morte rançosa só tinham servido para mascarar seu desejo, não para destrui-lo. Cada pesada pernada o aproximava um pouco mais a seu culminação, e enquanto o dava não permitia que seu olhar se apartasse um segundo solo dela por medo de que fosse arrebatada de novo.
Finalmente, Owain caía prostrado de joelhos a seus pés. Atraía as delicadas mãos a seus lábios e suas lágrimas se derramavam sobre seu pálida pele. Deixava que o contato daquela mulher a que havia acreditado que não voltaria a ver o reconfortasse. Com os olhos fechados contra uma corrente de lágrimas, Owain elevava lentamente uma mão trêmula até que seus dedos se encontravam com o peito de Angharad. Sua pele era suave sob a delicada gaze de sua túnica. Um estremecimento percorria seu corpo ante o contato de suas mãos, e de seus lábios escapava, prenhe da dor dos remorsos, seu nome.
--Owain...
Ele beijava a curva de seu ventre e a apertava com força contra sim. Seus joelhos se dobravam, mas a sustentava, mantinha-a no alto. Mas quando Owain elevava a vista para olhá-la, via que o que ela sofria não era a agonia de um amante.
De seu peito me sobressaía uma adaga dourada, e era a mão do Owain a que aferrava o punho.
--Owain -voltava ela para dizer. Mas então Owain via que seus olhos eram mais escuros que a mais negra das tormentas, e que seu dor se transformava em cólera-. Assassino da estirpe.
E então Owain estava de novo caindo, afastando-se dela colina abaixo, até a ávida névoa. Tratava de protestar, de clamar por sua inocência, mas suas mãos estavam empapadas com o sangue acusadora. Corria como um riacho por suas bonecas e antebraços, manchando o tecido de sua camisa. Angharad se encontrava já muito longe, tragada como o mesmo Owain pela névoa. Pensava que ainda podia vê-la, mas possivelmente estava vendo só o que queria ver. Não havia já mais que a névoa mas Owain, só e indefeso, não sentia desespero ante a renovação de sua perda. Agora estava consumido por algo muito pior: a tolice, que muito tempo atrás tinha-lhe revelado que não voltaria a vê-la, um nada que era a morte de a esperança.
Durante algum tempo (Minutos? Horas?) não havia mais que esta nada, o vazio e a formada redemoinhos névoa. Desejo, desejo, antecipação, consumação, frustração... todo isso se encontrava a quilômetros de distância, a muitos anos para o passado, e em seu lugar não havia nada. Só então, muito lentamente, emergia Owain do abraço da névoa. encontrava-se no que por um momento parecia ser um lugar desconhecido: o estreito e desmantelado camarote. Sentia a áspera textura do saco de tecido sobre o que descansava. O motor seguia esforçando-se e tossindo na habitação contigüa, e o acre aroma do combustível diesel impregnava cada centímetro de quanto rodeava ao Owain, aferrando-se a suas roupas e seu corpo.
A alguns metros de distância se encontrava Kendall, sumida em a meditação, com os olhos fechados, sentada sobre os joelhos. Vestia uma singela camiseta. Seu corpo estava talher completamente por o suor. Enquanto Owain a olhava, tênues vestígios de sentimentos arrastaram-se até ele do outro lado da névoa. Ainda recordava o batimento do coração de seu coração, suas lágrimas mortais e, por um momento, viu-a como o teria feito um mortal. Imunda e despenteada como estava, seguia sendo uma imagem de escultural beleza. Seus braços e pernas estavam bem formados e musculados, e a expressão de seu rosto era acalmada, aprazível, comtemplativa. Seu camiseta, virtualmente empapada pela umidade, pegava-se a seus ombros, suas costas e seus peitos.
Ausente, Owain sentiu que estendia o braço para ela para tocar com os dedos seu cálida e úmida pele, mas enquanto o fazia se mostrou a seus olhos a visão de sua própria mão, os dedos antinaturalmente pálidos, e as veias azuladas claramente visíveis em a superfície. Sua pele, bem sabia, estava seca face à umidade lhe reinem, e resultava fria ao contato. Poderia enviar sangue ao membro se lhe desejava muito. Desta maneira a carne se voltaria rosada e cálida. Mas isso não seria mais que uma ilusão de vida. A malha, e seu própria mão, permaneceriam tão mortos como o tinham estado durante os passados séculos. O próprio Owain seguiria sendo a caricatura de um ser vivo, e sua humanidade uma farsa.
Apartou a mão e a levou a rosto. Os dedos frios e mortos encontraram-se com uma carne tão morta como eles. Pôde notar a incipiente barba sobre seu queixo. Outra caricatura de vida. Nunca cresceria mais. Se se barbeava, aquele rastro de barba reapareceria de idêntica maneira de noite seguinte. De maneira ausente, riscou com os dedos a linha do perfil de seu nariz, recordando como, quando era mortal, agradou-se nos frescos aromas da primavera e no te apaixonem perfume das mulheres formosas. Agora era capaz de cheirar o sangue correndo pelas veias dos mortais a metros de distância, mas a maioria dos outros aromas, tanto os agradáveis como os desagradáveis, resultavam-lhe indiferentes, se é que sequer chegava a reparar neles. Seus dedos acariciaram os lábios que, muito tempo atrás, tinham recebido os beijos de mulheres jovens e formosas mas que agora não serviam mais que como portal para a sangre fresca. As visões lhe tinham permitido vislumbrar um retalho de sua perdida humanidade, tinham-lhe outorgada breves lembranças das paixões mortais, e imediatamente as tinham arrebatado. Porque, em a mesma medida em que a névoa se dissipava, faziam-no também as emoções que tinham engendrado. Owain conhecia a cólera. O ódio e a repugnância que sempre tinham sido sua bagagem se acendiam facilmente, mas dos mais doces sentimentos estava tão vazio como o tinha estado sempre. Só que agora era mais dolorosamente consciente de sua ausência.
Kendall, ainda em silêncio, permanecia sentada frente a Owain. Sim, ela era seu ghoul. Seu ímpio sangue corria pelas veias dela. Mas a faísca da vida ainda ardia em seu interior. Ainda era humana e por isso, deu-se conta Owain, era melhor que ele. Sua vida era muito melhor que a vazia charada que vivia ele. Ela pode sentir o que eu logo que alcanço a recordar.
Naquele instante, enquanto contemplava sua formosa forma humana, Owain advertiu a armadilha a que a estava conduzindo, a condenação familiar que a aguardava. Nunca tinha assegurado que uma noite outorgasse o Abraço ao Kendall; a esse respeito não existia entre eles acordo formal algum. Mas sim que havia, deu-se conta Owain, um tácito encargo por ambas as partes, a certeza de que um serviço leal acabaria por ser recompensado mais tarde ou mais cedo, embora não tivesse sido estabelecido se teria que prolongar-se tal serviço durante anos, décadas ou inclusive séculos.
Recompensa, pensou Owain, só ele entre os dois era consciente da ironia que representava. É de verdade assim como ela o vê? Esta maldição a que poderia gostosamente fim, de ter o valor suficiente para me enfrentar ao sol da manhã? Mas se deu conta, também, da natureza pouco sincera de suas reservas. Embora Kendall e ele nunca tinham falado de seus desejos ou motivações, não podia fingir ignorância no que às dela se referia. O chamariz de uma imortalidade aparente atraía aos humanos com mais força que um cadáver de três dias às moscas.
E nesse atrativo residia a armadilha que, como tinha feito com todos os mortais que o tinham servido ao longo dos séculos, o tinha tendido. Porque Owain os necessitava desesperadamente. Os rostos concretos podiam ser insignificantes, mas sem dúvida nenhuma necessitava a seus serventes ghouls para manter algum vínculo com o mundo moderno, esse mundo de constantes mudanças ao que muito tempo atrás tinha deixado de pertencer. um após o outro, tinha utilizado aos mortais, e um após o outro tinham ido morrendo. Bem à mãos de algum inimigo do Owain, como lhe tinha ocorrido ao Gwilym, capturado pela Inquisição, bem à mãos do próprio Owain, cansado de seu presunção ou sua inépcia, como lhe tinha ocorrido ao Randal, a morte sempre tinha acabado por aparecer. E da mesma maneira, a morte apareceria algum dia para levar-se ao Kendall.
Owain a olhou fixamente. Inclusive em um entorno tão pouco hospitalar, um ar de serenidade a envolvia por completo, tanto como o véu de ódio e perda o governava a ele. Que paz é a que encontra na meditação? perguntou-se. Que liberação? Espera a que chegue seu momento, o momento de seu "recompensa"?
Se este era o caso, Owain sabia que sofreria uma decepção. Ao comprido dos anos, tinha tido muitos ghouls a seu serviço, mas jamais tinha estendido a maldição do Escuro Pai, jamais havia concedido essa recompensa. E jamais o faria.
Tinha que apartar a de sua vista. Fechou os olhos e se afastou, cruelmente consciente de que não era mais que um enganador da pior espécie. Utilizava seus serviços, sua lealdade, agitando tacitamente frente a seus olhos a perspectiva de uma vulgar imortalidade, e ao mesmo tempo sabia que nunca a outorgaria. Inclusive mais que seus serviços, Owain extraía dela sua mesma alma, porque havia um preço que pagar em troca do ímpio sangue, um preço a pagar ao Deus vingativo que, depois de tudo, era o que tinha posto em marcha a maldição. Kendall encontraria a morte ao serviço do Owain, ou possivelmente sobrevivesse, deixasse de lhe ser útil, e então, um dia, lhe negaria o prodigioso fluido que naquela época teria prolongado seu existência muito além do que a natureza permitia. Ela se murcharia. E morreria.
Não. Owain abriu os olhos. Não será assim. Salvaria ao Kendall do que o destino tinha disposto para ela. Não, disse-se, porque ela merecesse dispensa alguma. Que mortal era verdadeiramente inocente? E tampouco em um intento de aliviar em algo o peso da corrupção que pendia sobre sua própria e negra alma. Em vez disso, ao salvá-la, Owain conseguiria fazer em benefício de outro o que não havia conseguido conseguir para si mesmo em séculos de no-vista: fugir do julgamento da colérica deidade que permitia, não, que tinha causado, seu persistente e tenebrosa condenação. Owain liberaria o Kendall de seu serviço. Liberaria-a antes de que fora muito tarde para reemprender uma vida mortal, antes de que seu tempo, como havia feito o dele, tivesse passado.
Continuaram vigiando ao Nicholas durante várias noites mais, mas não se aproximaram dele. Em muitas ocasiões acreditou vislumbrar o brilho de uns olhos na escuridão. O rumor de um grunhido apagado flutuava pelo ar, tão logo aproximando-se, como afastando-se de seu consciencia. Submetiam-no a uma vigilância constante. Algumas vezes pôde escutar suas vozes em sua mente.
Intruso, Estranho. Nosso bosque. Intruso.
Ou eram as vozes chegadas do outro lado do Véu? Não podia estar seguro. Ambos os mundos se enroscavam o um contra o outro, se fundiam, trocavam, desapareciam só para reaparecer um instante depois.
A maioria das ocasiões os vigilantes permaneciam fora de sua vista. As legiões dos não-mortos, em troca, mostravam-se muito menos cautelosas. atropelavam-se ruidosos através do bosque, levando a vida ao Grunewald com seus erráticos e bamboleantes movimentos, como o vôo de centenas e milhares de folhas negras impulsionadas pelo vento. Nicholas jazia sobre o chão, exausto, enquanto as sombras se encarapitavam sobre ele. Um detrás outro se deslizaram, empurrando-se e dando trancos para aproximar-se de ele, para tocá-lo. Levantaram seu braço inerte e cacarejaram com tumultuoso deleite quando voltou a cair ao chão, dez vezes, vinte vezes. aferraram-se como meninos de peito, babando, a cada um de os cortes e arranhões que cobriam seu corpo. Os mais ousados inclusive atreviam-se a abrir sua boca e introduziam suas amorfas línguas em seu garganta em busca daquilo que os chamava com insistência.
Nicholas oscilava em precário equilíbrio entre o mundo dos espectros e o de seus vigilantes. Durante o dia, quando seu corpo empapado de sombras se enterrava na terra, encontrava algum descanso. Por umas poucas horas muito breves, o silêncio da tumba o tragava. Mas então, quando emergia da terra à posta do sol, tudo voltava a começar. E cada noite eram mais numerosas as legiões de não-mortos que se arrastavam atrás dele.
Vinham em desajeitados e obscenos enxames de uma abismal escuridão. Pouco acostumados às formas corporais que os continham, arrastavam-se torpemente os uns em cima dos outros, golpeando-se e empurrando-se em seu desesperado afã por tocar a Nicholas. Escalavam sobre os corpos de seus companheiros, arranhando-se e mordendo-se sem piedade em busca de seu objetivo. Aqui, um espectro era esmagado por uma quebra de onda de seus irmãos; aqui, outro parecia ofender-se ante o agressivo avanço de um rival e lhe arrancava um apêndice em forma de braço, fazendo-o uivar de pânica e dor. Uma matilha de sombras, como cães sob a mesa de um açougueiro, se precipitaram sobre o esmigalhado membro.
E enquanto isso, Nicholas jazia indefeso, prostrado, afligido pela imensidão da isca de peixe de sombra que o engolia. O Rasgão estava crescendo, cada vez mais grande, cada vez mais brilhante, a seu redor. Já logo que via as árvores do Grunewald; raramente alcançava a escutar o rumor do rio. Essas visões e esses sons eram vagos e distantes, retalhos unidimensionales de um mundo mais à frente do qual estava sendo miserável. Empalideciam frente ao rumor dos vorazes e babeantes mortos.
Nicholas combateu o peso dos mortos e ficou em pé. Umas sombras que se retorciam trataram de aferrar-se a ele, de cravar seus garras nele. Uns poucos conseguiram manter-se onde estavam. O resto se deslizou por sua perna até o chão e imediatamente voltaram a escalar de novo. Nicholas se encontrava no alto de um precipício. A suas costas se encontrava o cada vez mais insustancial mundo do corpóreo. Frente a ele se abria um imenso abismo, do qual o fundo e o outro extremo estavam ocultos pela luz que fluía do Rasgo. A greta no Véu estava crescendo. Se arrastava para os limites do abismo, para o Nicholas, e da mesma maneira que os não-mortos no mundo físico se empelotavam detrás ele, as sombras fluíam através do Véu. Suas formas atravessavam o Rasgão, em cachas como uma praga de lagostas, e a brilhante, cegadora luz pareceu piscar um instante. Nicholas era atraído para a luz. Chamava-o. refletia-se em sua mesma alma.
por que está ainda aqui?
Incontáveis mãos acariciaram o peito nu do Nicholas, incontáveis dedos passaram entre seus cabelos. Empurravam-no para diante, para a luz devoradora.
por que está ainda aqui?
A luz voltou a piscar, como se fizesse sinais. As sombras olisquearon sangre, sangue verdadeiro, enquanto Nicholas se inclinava sobre o bordo do precipício. Mas a voz... vinha de outro lugar... de detrás dele.
nos abandone agora ou morre.
A luz cegadora era parte do Nicholas. Não só se derramava sobre ele mas sim, do mesmo modo, emanava de seu interior. Não poderia mantê-la a raia durante muito mais tempo. Mas havia uma voz, um desafio chegado de... desse outro mundo.
Lentamente, Nicholas se afastou do abismo. Um milhar de sombras furiosas lançaram uivos para ele, como os lobos à lua. Mas não deteve-se e, à medida que se voltava e se afastava, a luz foi diminuindo. O outro mundo se afastava. O estrépito das sombras dissipava-se e com ele, as mesmas sombras eram arrastadas de volta a seu mundo. Cravaram suas garras e seus dentes no chão ou sobre a carne do Nicholas, e lançaram ao vento uivos lastimeros, mas cada vez com mais rapidez foram desaparecendo, até que, por fim, Nicholas se encontrou firmemente situado no mundo do corporal, frente a frente com outro de sua espécie.
--nos abandone agora ou morre -disse o outro Cainita.
Nicholas, incapaz ainda de compreender do todo as palavras, olhou fixamente ao estranho. Gangrel. Através dos ecos do outro mundo, Nicholas alcançava a sentir a conexão do sangue. Na sangue que fluía no interior daquele Gangrel, Nicholas podia sentir o rastro da de seu sire, e a do sire de seu sire, e a do de este, e assim em uma linha que se estendia ininterrupta para trás no tempo, durante eones, até um antepassado comum. Muito rapidamente, o corpo do Nicholas se esquentava, ardia. Tratou de arrancá-las roupas, mas imediatamente reparou em que fazia tempo que as tinha perdido. A luz, o fogo das foi, começava a elevar-se uma vez mais em seu interior. Escutou, como chegado de uma grande distancia, o chiado das sombras.
A atenção do Nicholas voltou para mundo em que se encontrava, ao estranho que tinha frente a sim. Era um homem de cabelo selvagem em cujos olhos palpitava a sede de sangue. Nicholas levantou um dedo e, concentrando-se no rastro de seu antepassado comum, riscou a genealogia do sangue do estranho. Depois de uns instantes, concluiu seu cálculo lhe outorgando um nome.
--Lutz.
O estranho abriu a boca como se se dispusera a dizer algo, mas imediatamente voltou a fechá-la. Um grunhido se elevou das profundidades de sua garganta.
--Lutz -disse Nicholas uma segunda vez.
--Este é nosso bosque -disse Lutz-. Não é bem-vindo aqui.
Nosso bosque. Nicholas recordou aos vigilantes. Não se mostravam à vista, mas seus grunhidos enchiam a noite, e seu eco ressonava entre as árvores. A presença de seu porta-voz, do Lutz, advertiu Nicholas, demonstrava que eram de sangre Gangrel. Muito bem. A luz se aproximava de novo à superfície. Sua visão se foi turvando à medida que começava a brotar. Com cada respiração, um raio de luz se derramava desde sua boca, mas Lutz não parecia dar-se conta.
Do interior do Nicholas surgiram as antigas palavras de desafio:
--Sou a corrente: que outorga a vida.
--Sou o navio: miserável pela corrente.
Lutz deixou escapar um grunhido e se agachou ligeiramente.
--te leve seu sangue maldito a outra parte. Abandona nosso bosque ou morre.
Esta vez, Nicholas não combateu a luz do Rasgo. Permitiu que esparramasse-se sobre ele, que o engolira como um maremoto. Viu os vigilantes surgir de seus esconderijos e saltar sobre ele. Os outros não eram de seu sangue. A raiva os conduzia. Garras e presas cintilaram.
Desde além da superfície da luz, Nicholas contemplou como seu corpo, exsudando luz e fogo por cada um de seus poros, respondia ao ataque.
--Sou a onda: açoite das costas.
--Sou o fogo: pesadelo dos ossos.
O aroma da pelagem queimada e a carne escaldada encheu o bosque, acompanhado de um coro de gritos de agonia. Os espectros, liberados uma vez mais, brotaram do Nicholas. Escalaram desde sua boca, surgiram de seu peito, de seus mesmos olhos. Murmurando com uma alegria demente e sem motivo, reuniram-se como um enxame sobre a nova fonte de sustento, sobre as imóveis massas de carne ardente.
Abatendo-se sobre o precipício entre os dois mundos, Nicholas não cheirou a conflagração que tinha lugar a seu redor, mas sim a sangue de seus ancestros, e a memória se pegou a este aroma. O lembrança das ofensas cometidas contra seu sangue, ofensas que ainda estavam por ser vingados, a lembrança do assassino dos de sua raça. Ao igual às sombras, Nicholas estava consumido pelo aroma do sangue, um sangue que teria que reclamar.
voltou-se para o Oeste e começou a caminhar com irregulares pernadas. Os espectros se aferraram a seus tornozelos, e a suas costas, mas foram arrojados longe e ele foi aumentando sua velocidade. Uma grande pernada lhe levou a outro lado do rio e, em seguida, além dos limites do bosque.
As sombras se atrasaram no arrasado claro, entretidas com sua comida. Algumas, ahitas, desabaram-se sobre o chão. Outras começaram a olisquear o rastro, seguindo o caminho deixado pelas rastros do Nicholas enquanto se afastavam em detrás de sua luz.
A primeira sensação que Kendall advertiu, ao voltar para a superfície da consciencia da soleira de seu transe meditativo, foi o contato de um reguero de suor em suas costas. Começava entre seus omoplatas e descendia por suas costas até ir empapar o tecido de seu camiseta. Mas apesar de tudo, esta sensação resultava menos desagradável que o sufocante calor do camarote, ou o mofado fedor.
As coisas que tenho que fazer por este homem, pensou, embora era consciente de que neste caso, "homem" podia não ser a palavra mais adequada.
Owain, sabia sem necessidade de abrir os olhos, encontrava-se ainda perto. Kendall lhe tinha ouvido murmurar e dar voltas em seu agitado e pouco reparador sonho. Pesadelos diurnos. depois de experimentar em suas carnes sua violenta reação frente a seu bem-intencionada intervenção, lá no avião, estava o suficientemente castigada como para não voltar a fazê-lo. Ainda podia sentir a dor em seu queixo, embora o golpe não tinha deixado nenhuma marca visível.
OH, bom, pensou. Salários do ofício. Do primeiro instante em que se tinha posto a seu serviço tinha sido bem consciente de que o seus não era um dos típicos trabalhos de fichar e partir a casa. De fato, se um cheque a fim de mês era tudo o que ia tirar de isto, não mereceria a pena de maneira nenhuma. Mas, quanta gente conseguia trabalhar para alguém que tinha rondado pela Terra durante centenares de anos? Quanta gente tinha a oportunidade de voltar-se como ele? Certamente não era o que ela tinha esperado quando deixou a escola paroquial. Mas, em todo caso, nunca havia conseguido encaixar de tudo ali, e embora os outros estudantes haviam apreciado as classes de autodefesa que repartia, sua inclinação para as armas de fogo a tinha afastado definitivamente do resto de seus companheiros. E ao fim e ao cabo, se não tinha encontrado a eternidade, ao menos se tinha topado com um imortal.
Assim suportar o insólito horário (Que demônios. Não acredito que a escola de medicina tivesse sido muito melhor), e os ocasionais acessos de fúria do Owain não era algo tão terrível. Nem sequer o é o suportar este navio de mierda, recordou-se. Como se pudesse esquecê-lo um segundo solo.
O rumor do motor e as sacudidas do navio sobre as ondulantes águas, converteram-se ao longo da travessia em um ruído de fundo que Owain esperava e assumia. Em troca, o som de passos aproximando-se de seu camarote resultava alarmante como o rugido de um estrepitoso fluxo. No mesmo instante em que uns nódulos golpearam repetidas vezes a porta, Kendall, uma visão de plácida quietude até um momento antes, estava em pé e preparada para atuar. Seu mágnum, da que nunca se afastava muito, estava já em sua mão. Apoiou as costas contra um biombo, junto à porta.
--Sim? -disse Owain em voz o suficientemente alta para ser ouvido no corredor.
--deixamos atrás Portsmouth faz um bom momento -Owain reconheceu a voz do capitão entre o martilleo da maquinaria-. Logo chegaremos ao Weymouth.
--Esplêndido.
Os passados do capitão, advertiu Owain, afastaram-se mais rapidamente do que se aproximaram. É um homem mais sábio pelo que tivesse acreditado, pensou.
Ao cabo de uns pouco minutos, Owain e Kendall se encontravam em uma das cobertas. Viajavam com muito pouca bagagem. Owain havia prescindido do traje que tinha levado no Berlim, em favor do suéter, as calças jeans e a larga gabardina que lhe permitia esconder a espada com relativa comodidade. Enquanto o capitão assinalava com gestos nervosos o ponto da costa mais adequado para desembarcar, brincava constantemente com o medalhão do Albert. Kendall, vestida com jeans negros e um plumas para proteger do frio de Abril, levava uma pequena mochila sobre o ombro. Em seu interior, uma muda e umas quantas minúcias para cada um deles.
Subiram a uma lancha pneumática, acompanhados por um dos marinheiros aos remos, e lhes baixou até a superfície das águas. Vinte minutos mais tarde, a lancha atracou a terra. Owain saltou às ondas. Por fim tinha chegado à costa da Inglaterra. O lugar no que tinha recebido o Abraço. O marinheiro, aliviado por ver-se livre de aqueles misteriosos e pálidos passageiros, retornou apressadamente ao navio sem pronunciar palavra.
Owain se permitiu um breve momento para inspecionar a escarpada linha da costa. Literalmente falando, tinham passado séculos desde que pusesse o pé em chão inglês. Aquela terra invocava em seus pensamentos tanto dor como nostalgia. De pé sobre a acidentada praia, com as águas do Canal lambendo a areia apenas a uns passos de distância, Owain sentiu uma certa afinidade para Cornualles, esta porção da Inglaterra que, ao longo da História, tinha jogado o papel de enteado desfavorecido da Grã-Bretanha quase tanto como seu Gales nativo.
Gales. Owain levantou o rosto e se empapou das fragrâncias marítimas, tão similares mas não idênticas, às de seu lar. Não estava muito longe. Apenas trezentos quilômetros de distância. Podia sentir sua chamada.
E, por que não teria que voltar? perguntou-se. Uma caça de sangue tinha sido imposta sobre ele no remoto passado, e no mundo disso Estirpe significava que sua presença não voltaria a ser tolerada nas terras de seus antepassados. em que pese a que os Ventrue contra os que se enfrentou tinham morrido ou se haviam partido muito tempo atrás, a condenação seria executada por quem quer que governasse a terra nestas noites do presente. Fazia muito tempo que Owain tinha perdido a pista aos transtornos e as manobras políticas que sacudiam sua antiga terra. Mas com caça de sangue ou sem ela, refletiu, seria melhor que não me buscasse problemas. Prefiro a solidão às mesquinhas intrigas dos de meu Estirpe. Além de que, encolheu-se de ombros, tanto a Camarilha como, provavelmente, o Sabbat, estarão me buscando, e se alegrariam de saber que estou morto. Que diferença pode supor uma caça de sangue de séculos de antigüidade?
De todas formas, em suas atuais circunstâncias não tinha tempo que perder refletindo sobre tais possibilidades. Sua missão de vingança ainda não tinha sido culminada. Alguém o tinha enganado, tinha interceptado sua correspondência com O Grego, e a havia substituído por falsificações... perfeitas falsificações. A carta que Owain tinha visto no Toledo, a carta que supostamente ele havia escrito, a caligrafia supostamente realizada por sua própria mão, era uma criação de tão nítida perfeição que Owain poderia ter acreditado que as palavras que se liam nela eram as suas. Admirava a audácia do engano, mas ao mesmo tempo o enfurecia. Agora, o engano se tinha desvanecido ante seus olhos. Lhe devia um galanas, um pagamento de honra. E Owain estava resolvido a cobrar-lhe em sangue.
Deve ir a Inglaterra, havia dito o Nosferatu lá no Berlim. A Glastonbury.
Glastonbury. Possivelmente quando sua dívida fora satisfeita, poderia voltar seus pensamentos à idéia de infiltrar-se cuidadosamente em algum escuro rincão do Gales. Possivelmente então poderia permitir-se apartar ao Kendall de seu serviço. Uma vez que tivesse estabelecido um refúgio, e assegurado um rebanho de confiança de que pudesse alimentar-se em paz e segurança, poderia então liberá-la e devolvê-la ao resto de sua vida mortal.
Entretanto, no momento necessitava suas variadas habilidades. Com um gesto de assentimento, ela se voltou e se encaminhou em direção ao povo para cumprir o silencioso mandato de Owain. Em pouco menos de uma hora, retornou em um pequeno automóvel de pouca subida que se procurou nas ruas do Weymouth. Owain entrou no compacto veículo. Em comparação, o camarote do navio que os tinha agasalhado todos aqueles dias, resultava bastante espaçoso. Sem mais demora, dirigiram-se para o norte por as serpenteantes estradas inglesas.
Kendall não parecia ter problemas em trocar as marchas com a mão esquerda em vez da direita. Enquanto estavam ainda em Berlim e Owain se encarregava de organizar sua viagem por mar, ela havia comprado um mapa de Grã-Bretanha e se dedicou a estudá-lo. Glastonbury não estava longe do Weymouth, apenas a duas horas em carro, e Kendall dirigia o carro ao que, a julgar pelos lastimeros gemidos do motor, devia ser o limite de sua capacidade. Em todo o tempo que durou a viagem, Owain se manteve em silêncio, com a atenção posta no exterior, como se pretendesse apreender entre as sombras noturnas cada detalhe da ondulado paisagem.
Abandonaram o carro justo aos subúrbios da cidade do Street e cobriram a pé os três ou quatro quilômetros que os separavam de Glastonbury. A paisagem era muito plano como para que Owain pudesse sentir-se verdadeiramente em casa, mas apesar disso foi uma agradável caminhada. À medida que se aproximavam do povo, as sombrias silhuetas de uns cachos de colinas se foram fazendo visíveis contra o espaçoso céu noturno. Uma daquelas silhuetas em particular, a da maior das colinas, atraiu a atenção de Owain. A colina se elevava destacada sobre as demais, mas o que cativou ao Owain foi a torre que coroava seu topo.
Kendall seguiu caminhando vários passos antes de dar-se conta de que Owain se deteve.
--Senhor...? Owain?
--A torre -respondeu ele com um fio de voz. Era uma evocadora visão que conhecia perfeitamente, apesar de não ter posto jamais o pé sobre ela. A colina sobre a que se elevava a torre, Glastonbury Tor, era o objeto de numerosas lendas. Owain estava familiarizado com muitas delas: podia ser um portal ao inframundo, ou ao outro mundo; baluarte dos Bretães ou dos Romanos; lugar de poder para os mais anciões e poderosos druidas; havia tantas histórias sobre ela como narradores. As ninharias da mente acumuladas a o comprido dos séculos. Mas, extrañamente, a presença das visões não tinha dragado estes pedaços de oculta sabedoria das profundidades de sua mente. De fato, não tinha podido reconhecer a colina de seus sonhos como Glastonbury Tor até agora que a via em pessoa.
Owain, seguido de perto pelo Kendall, começou a ascensão colina vamos. Cruzaram nível detrás nível da aterrazada ladeira, coberta por uma erva muito enchente. À medida que Owain se aproximava do topo da colina, a torre parecia tornar-se mais alta, e mais ameaçadora. elevava-se quinze ou vinte metros sobre aquela, a mais alta das colinas. O arranjo dos sillares era exatamente como ele o recordava de suas visões. O aberto portal da entrada se o desejava muito as fauces de uma besta ansiosa por alimentar de sua carne não-morta. Teve que deter-se sobre a última das terraços.
Kendall, passando junto a ele, aproximou-se da torre. Desapareceu além da escuridão do portal e reapareceu uns instantes mais tarde.
--É uma capela dedicada a San Miguel.
Owain assentiu. O arcanjo Miguel.
A torre apenas se encontrava a uns metros de distância, mas os pensamentos do Owain tinham pirado para outra colina que, estava seguro disso, devia encontrar-se muito perto.
--te aparte de mim -disse ao Kendall, enquanto se forçava a si mesmo a afastar-se da torre. Havia alguns demônios, sabia, aos que devia enfrentar-se sozinho.
Owain descendeu a colina e cruzou o vale. Para o norte se encontrava o pequeno povo do Glastonbury, cujos edifícios e ruas mantiveram-se em boa medida intactos durante os últimos séculos. Esta era uma terra de tradição, de antigüidade. Todo o contrário que as advenedizas colônias do outro lado do Atlântico. Se se concentrava, Owain podia ouvir as vozes dos mortais no povo, quase a um quilômetro de distância, almas satisfeitas que se atrasavam no último pub que se mantinha aberto a aquelas horas.
Parecia-lhe que suas pernadas avançavam muito pouco e muito devagar. Acreditou sentir o peso do céu, pressionando-o como se pretendesse esmagá-lo. De novo começou a ascender uma ladeira. Esta vez se tratava da colina que tão bem conhecia. Caminhava entre as imagens perturbadoras das que tinha tratado de escapar durante as últimas semanas. Enquanto escalava, levou uma emano a seu bolso, tomou o medalhão e deixou que se deslizasse entre seus dedos uma e outra vez. Não podia caber dúvida de que se estava aproximando da chave de suas visões e à mensagem que escondiam. Até então não tinha podido reunir o valor suficiente como para enfrentar-se cara a cara com as evocadoras imagens do passado, com a misteriosa condenação imposta sobre sua cabeça tanto por uma pessoa desconhecida como pela mais amada.
E tampouco tinha tido tempo, tratou de convencer-se. Sua vida se fazia pedaços nos últimos meses. Patrões e esquemas construídos trabalhosamente no curso das décadas se haviam desbaratado em questão de noites e algumas breves semanas. A incomparável beleza e verdade que pulsavam no interior da canção da sereia tinham derrubado os muros da confortável apatia que tinha levantado seu redor; ela tinha tirado a superfície a quase esquecida saudade, os últimos farrapos de humanidade que o subtraíam a uma alma que, pelo resto, estava já vazia. O Grego tinha irrompido como uma tempestade na no-vista do Owain, trazendo consigo uma tempestade de engano e destruição. E agora Owain se via famoso como traidor por um Príncipe Malkavian médio louco. E, ao mesmo tempo, ganhou-se a perpétua inimizade de um bispo do Sabbat.
Tantas mudanças, e tão depressa, não se acomodavam bem na vida de lento transcurso de uma criatura que, como ele, tinha caminhado por a Terra durante quase um milênio. Ironicamente, era para esta ilha a onde seus pensamentos se tornaram com mais freqüência e era aqui aonde, a pesar do temor conjurado pelas visões, seu destino tinha acabado por conduzi-lo. Mas, com que fim?
Continuou sua ascensão até que, enquanto se aproximava da topo, encontrou-se frente a sim o que sabia que devia encontrar. E a pesar dessa certeza, não pôde evitar que o terror lhe atravessasse o coração. Uma dúzia de metros mais acima do lugar no que se tinha detido, elevava-se o espinheiro de suas visões. Vacilou. Não resultava fácil aproximar-se da árvore que o tinha capturado e havia procurado seu sangue e sua destruição, embora fora em sonhos. Aquele árvore era real. Acreditou por um instante que havia tornado a deslizar-se inadvertidamente em uma de suas visões. Um estremecimento gelado percorreu de cima abaixo seu espinho dorsal. Só a ausência da escura névoa o confortava um pouco. Mas as diferenças com suas visões só serviram para voltar mais vago o pressentimento que o assaltava, para torná-lo mais enigmático, mais perturbador. É possível que inclusive encontrou-se mais a gosto de ter cobrado a árvore e vida e havê-lo atacado.
Queria dar meia volta e correr. Tinha vindo até o Glastonbury para enfrentar-se a quem quer que tinha violado sua intimidade, não para ver-se arrojado ao tortuoso mundo de seus sonhos. Mas apesar disso não fugiu. A árvore não o tocava, é certo, mas o mantinha gelado no sitio com a mesma segurança que se seus ramos o tivessem obstinado como no sonho. Nas poucas visões em que o espinheiro não havia tomado uma forma monstruosa e ameaçadora, outra figura havia aparecido. À medida que as névoas retrocediam, ela apareceria no claro: Angharad. Agora, Owain tirou o chapéu esperando a aparição de seu único amor. Acreditou com ardor, contra toda esperança, que em apenas um minuto ela se mostraria e o chamaria com gestos. Mas esta noite, esta colina, não era uma visão. A crueldade das visões não podia ter sido mais refinada: estimular seu apetite com um desejo que nunca se consumaria.
--Na antigüidade -disse de repente uma voz feminina a seu costas-, as terras baixas que rodeiam às colinas estavam alagadas a maior parte do ano. Estas colinas eram pois ilhas sobre uma ilha.
Owain se sobressaltou. A voz não era a do Kendall. Com grande agitação, voltou-se. A mulher que se encontrou frente a sim não era muito alta; quase uma cabeça mais baixa que ele mesmo. A cor marrom de ricos matizes de seu singelo vestido contribuía a realçar o moreno de suas facções. Não era Angharad, e Owain se sentiu ao mesmo tempo aliviado, e entristecido além de toda medida.
--A Santa Sarça -disse ela, assinalando com um gesto da cabeça ao espinheiro-. De acordo à lenda, José da Arimatea, guardião do Santo Grial e fundador da Abadia do Glastonbury, fincou sua vara aqui, no alto da colina Wearyall, e a vara jogou raízes. Cresceram uns ramos, e destas nasceram folhas e, por fim, flores.
Em suas palavras Owain pôde detectar o ligeiro rastro de um acento espanhol, oculto em sua major parte pelos mais formais tons do que provavelmente seria uma educação britânica. Mas mais importante ainda eram as palavras em si mesmos. Seu significado golpeou ao Owain como um relâmpago arrojado dos céus.
José da Arimatea.
Convoca em seu auxílio quantas noites se puseram. Eu, José o Menor, advirto-lhe isso: não te servirá de nada.
O ancião. A vara. A árvore.
Owain a olhou boquiaberto.
José da Arimatea. Este é o Fim dos Tempos! As predições do Apocalipse. Mas, o que tinha que ver o guardião do Grial com a volta do Escuro Pai?
--Quem é você? -as palavras do Owain soaram humildes e insignificantes, como se as tragasse a vastidão da noite.
--Owain! -Kendall se aproximava correndo pela ladeira. Tinha o arma na mão. Também ela tinha demorado muito em detectar a presença da estranha.
--viajaste desde muito longe para vir para ver-me -disse a mulher com voz acalmada-. Estive-te esperando. Vem comigo? -acrescentou, assinalando em direção ao povo.
O assombro se levou os pensamentos de vingança e fúria longe de a mente do Owain. Durante um prolongado segundo, tinha acreditado que, ao voltar-se, encontraria-se com o Angharad. A impossível esperança de séculos tinha sido alimentada por um instante, e ao seguinte se tinha feito pedacinhos. Agora, aquela mulher... falava só de lendas, mas suas palavras apontavam à tortura do Owain.
Kendall, exausta, a cara tinta de vermelho pelo cansaço e a vergonha ante sua negligência, alcançou à mulher e ao Owain. Seu respiração era pesada. Levava a arma a um lado, posto que não havia perigo aparente.
--Vamos? -voltou a perguntar a mulher.
Owain assentiu. Seguiu-a enquanto ela começava a descender a ladeira deixando detrás deles a uma perplexa Kendall.
--Estiveste-me esperando -disse Owain à mulher-. Espero que não te tenha feito esperar muito tempo.
Conduzia-os a ambos para o interior do povo. Chegaram a um edifício de tijolo com janelas abuhardilladas e com um telhado de piçarra similar ao resto das casas do bucólico povo. De todas formas, ao contrário das casas vizinhas, uma luz ainda brilhava em seu interior apesar do avançado da hora. A casa estava cravada no extremo sul do Glastonbury, de cara às ruínas da velha abadia.
A mulher sorriu de modo amável, como se não tivesse advertido, ou tivesse preferido ignorar, o sarcasmo do Owain.
--OH, bom... estive esperando... por algum tempo.
À medida que se aproximavam da casa, a sensação de deixa vu e de desconcerto começou a abandonar ao Owain. Ao mesmo tempo, cobrava força em seu interior a certeza de que tinha encontrado a pessoa a que o Nosferatu o tinha enviado a procurar. Seus braços permaneciam rígidos a ambos os lados do torso. Tinha que esforçar-se conscientemente para evitar que suas unhas se transformassem em umas garras afiadas como cuchillas. Esta era a mulher que os havia enganado, ao Grego e a ele mesmo. Owain não toleraria que se jogasse com ele, não ignoraria o desafio e a brincadeira.
--Não tem medo de mim? -perguntou à mulher quando chegaram junto à porta principal de sua casa.
O sorriso dela se apagou. Sua expressão se tornou séria, embora não preocupada. Abriu a porta.
--Sei quem é. Sei o que é. Mas não, não te temo.
--Possivelmente deveria fazê-lo -aventurou Owain.
Uma vez mais, seu rancor pareceu escorregar sobre ela sem tocá-la.
--Possivelmente você e você... acompanhante -estudou ao Kendall com o olhar- fariam-me a honra de entrar. O dia chega cedo em um pequeno povo como este. Não nos faria nenhum bem atrair a atenção de algum vizinho muito curioso. Não crie?
Owain vacilou. Tinha chegado até este ponto, até esta luta, sem muita preocupação pelas contingências. Tanto se pretendesse desentranhar quão secretos escondia a misteriosa mulher como se meramente tratasse de abrir sua garganta em pago a seus maquinações, teria que procurar refúgio muito em breve do sol da amanhã. Ela permanecia de pé, com um braço estendido para o interior da casa. depois de outro momento de pausa, Owain cedeu e penetrou na casa. Kendall o seguiu.
O interior era exatamente tal e como Owain tivesse esperado de qualquer das moradias do povo. Um pequeno vestíbulo dava passo ao salão e ao comilão, assim como à cozinha e a uma pequena despensa. A emano direita, no vestíbulo, umas escadas subiam ao segundo piso.
--Parece ter ouvido falar de mim -disse Owain-. Temo-me que me encontro em desvantagem.
A mulher entrou na casa e fechou a porta.
--Meu nome é Isabella.
--Isabella...?
--Meus sobrenomes não significariam nada para ti. Prefiro, se não lhe importa, deixar a meus ancestros descansando sem ser incomodados -Isabella jogou o ferrolho da porta e se voltou para o Owain e Kendall-. Permitem-me os casacos? A espada?
Owain deixou escapar um sorriso, mas pelo resto ignorou as perguntas.
--Não tinha ouvido falar de ti antes de agora, Isabella -começou a dizer. Ela assentiu, como se fosse bem consciente disso-. Mas sim que sei algumas costure sobre ti. Acredito que você adora jogar xadrez, não é assim?
--OH. É um jogo tão maravilhosamente intrincado, verdade? -Apoiou as costas contra a porta e cruzou os braços sobre o peito. Seus olhos eram escuros, mas ao mesmo tempo estavam cheios de vida. fixavam-se em cada detalhe, sem passar nada por alto.
--Também tenho entendido que é muito mão direita com a pluma e o papel -acrescentou ele.
--A caligrafia é uma disciplina penosamente esquecida pela maioria nestes tempos -encolheu-se de ombros-, o qual é uma autêntica lástima.
Owain a olhou fixamente, muito sério. Assombrava-o aquela ligeireza, que tão mal casava com o comportamento quase solene que a mulher tinha demonstrado antes, no alto da colina Wearyall. Se, como pretendia, sabia de verdade o que ele era, então também saberia do que era capaz. É que aquela mulher era incrivelmente estúpida, ou verdadeiramente não tinha nada que temer?
--Senhor... -Kendall voltou sua atenção para a janela que havia junto à porta. O céu matutino começava a ficar perigosamente luminoso.
--As horas se escorrem entre os dedos, não é assim, Owain? -disse Isabella-. Sem dúvida há muito que temos que discutir, mas possivelmente seria melhor que demorássemos nosso bate-papo até mais tarde.
Owain a estudou atentamente. de repente tinha a impressão de que havia muitíssimo que aprender dela. Sabia que podia, quase com toda segurança, alargar a mão e lhe partir o pescoço naquele mesmo momento. Aparentemente não era nada mais que uma simples mortal. Mas o fazer isto deixaria muitas perguntas sem resposta.
--Convencionado -disse. Decidiu que a agradaria por algum tempo.
--Então vêem por aqui -Isabella passou junto a eles e os guiou a través do vestíbulo até a cozinha. Abriu uma porta que conduzia a umas escadas que conduziam à adega e lhes indicou com um gesto que entrassem.
--Os alojamentos são algo menos luxuosos, mas acredito que servirão perfeitamente a suas necessidades.
Owain se manteve imóvel, olhando-a, no alto das escadas. Não havia razão para confiar nela. Tudo o que sabia era que dirigia diestramente mentiras e enganos, e apesar disso aqui se encontrava, aceitando cegamente sua hospitalidade. Mas é que não o ficavam muitas alternativas. repreendeu-se a si mesmo por precipitar-se alocadamente no que bem podia ser uma armadilha, como um impulsivo recém-nascido do Novo Mundo.
Isabella advertiu suas vacilações e, uma vez mais com tom completamente sério, disse:
--Respondo de sua segurança entre as paredes de minha casa, Owain ap Ieuan.
Seus olhares se encontraram. Owain não estava seguro do que escondia-se nas profundidades daqueles olhos cheios de sentimento, mas sim que sabia que não se tratava da traição. Lentamente, começou a descender pelas escadas.
--Há uma fechadura no lado interior da porta -disse Isabella-. Utiliza-o se isso facilita seu repouso -suas palavras eram pela metade um consolo e pela metade um comentário mordaz.
Kendall fechou a porta atrás deles e Owain pôde ouvir como seu fiel ghoul jogava o ferrolho. Também escuto os passos da Isabella enquanto se afastavam da porta.
sentia-se aborrecido consigo mesmo. Enquanto viajava a Glastonbury seus planos tinham estado muito claros: tinha esperado encontrar ao responsável pelas falsificações. Então, depois de lhe arrancar uma explicação e, acaso, lhe administrar um castigo, seguiria sem mais seu caminho. Possivelmente para o Gales, para estabelecer um novo refúgio. Possivelmente então tivesse liberado ao Kendall. Mas o topar-se inesperadamente com os cenários de suas visões o havia agitado e desorientado poderosamente. Quando se encontrou com Isabella, logo que começava a repor-se e recuperar sua compostura. Ela, em troca, parecia ter estado esperando sua chegada desde muito tempo antes, e não mostrava a menor inquietação por encontrar-se frente a um dos Condenados. Owain se sentia como se estivesse sendo governado pelo curso dos acontecimentos.
Ao final das escadas de pedra, Owain dobrou a esquina e se deteve, assombrado. Golpeado por um acesso de desorientação que só era possível para alguém que tinha visto centenares de anos desvanecer-se no passado, retrocedeu cambaleando-se até topar-se com o Kendall, que vinha atrás dele.
--Senhor?
Owain apoiou uma mão sobre o gonzo da porta para recuperar o equilíbrio. Voltou a olhar à habitação que se abria diante dele. Sua decoração e mobiliário não resultavam extraordinários por si mesmos: uma cama rústica coberta por uma colcha bordada a mão, e travesseiros de plumas; um guarda-roupa muito alto fabricado em madeira de carvalho; um troféu, a cabeça de um urso, pendurado sobre a parede. Não resultavam extraordinários, em efeito, salvo pelo fato de que resultavam ser uma réplica exata dos que tinham adornado a habitação do Owain durante os dias de sua vida mortal, centenas de anos no passado.
Owain dirigiu um olhar de assombro ao Kendall. Com seus jeans negros e a pistola sob seu casaco, resultava a âncora que ele necessitava para aferrar-se ao mundo moderno. Ela começou a falar, mas Owain levantou uma mão em demanda de silêncio. Seu desorientação começava a dissipar-se. voltou-se e penetrou cautelosamente na habitação.
Como soube...?
Caminhou até o centro da habitação e, lentamente, descreveu um círculo completo sobre seus talões. Os muros e o chão de pedra, o tamanho da habitação... Como...? Owain voltou a vista de novo para o Kendall, e recordou que era a habitação, não ela, o que estava desconjurado. Ela o observava perambular ao longo da habitação, examinado ao mesmo tempo cada um dos objetos que formavam a espartana decoração.
Owain abriu o guarda-roupa. Estava vazio. Passando a mão por a superfície de carvalho, advertiu que a madeira era de melhor qualidade, e que a peça em conjunto estava em melhor condição, que o autêntico guarda-roupa que tinha utilizado durante sua juventude. Fechou a porta e situou-se a um lado do móvel. agachou-se e começou de novo a apalpar a madeira.
--Ja!
Alarmada pelo repentino som, Kendall se precipitou ao interior da habitação, com a arma na mão.
Owain lhe obsequiou um sorriso aberto de onde se encontrava.
--Quando era menino -começou a explicar-se-, estava acostumado a praticar com a espada em minha habitação. Algo que meu pai me tinha categoricamente proibido. Seja como for, em uma ocasião ensaiei um cutilada com muita força. Perdi o controle da arma e o golpe foi cair sobre um lado do guarda-roupa, abrindo uma profunda fatia -voltou-se para o móvel-. Limpei e lixei a greta, e logo a pintei. Não era um trabalho perfeito, mas sim o suficientemente bom como para não chamar a atenção -Owain voltou a acariciar a superfície de madeira-. Mas eu sempre podia encontrar a greta se a buscava -voltou a sorrir frente à perplexidade do Kendall, que não tinha a menor ideia do que estava falando-. Aqui, em troca, não está. E estas pedras... -levantou-se e aproximou-se de ao muro sobre a cama-, têm a cor correta, e a maioria delas também a forma, mas o arranjo não é exatamente o mesmo... era algo mais parecido A... -assinalou com os dedos a posição exata em que as pedras devessem haver-se encontrado.
Durante mais de meia hora, Owain se dedicou a examinar cada detalhe da habitação, e a explicar ao Kendall aquilo que não era uma réplica totalmente fiel da habitação que ele tinha ocupado durante sua juventude. Assinalou cada defeito, cada pequeno engano que Isabella tinha cometido. A malha da colcha era muito fino. A madeira do suporte da bacia muito basta. Parecia experimentar um estranho alívio no fato de que a habitação em seu conjunto fora uma mera simulação, não uma réplica exata, da câmara que um dia tinha ocupado. Mas à medida que seus membros se foram fazendo mais e mais pesados, e sua concentração vacilava (sinais inequívocos de que o sol se elevou sobre o horizonte e o torpor estava a ponto de reclamá-lo) pergunta-a fundamental voltou a fazer-se presente em seus pensamentos: Como? E inclusive mais importante, por que? Como podia Isabella estar à corrente com tanta exatidão dos mais insignificantes detalhes de sua vida mortal? Como podia ter sabido que ele acabaria por ir a seu encontro? E, por em cima de tudo, por que estava interessada nele?
Mas o dia se desperezaba e punha-se a andar a toda pressa, e a consciencia começou a abandonar ao Owain. Seus pensamentos vacilavam. A contra gosto, tirou-se a gabardina, envolveu com ela a espada e as depositou a ambas no guarda-roupa. Sentiu, também, em o bolso de sua jaqueta, os restos de seu prezado livro. Durante as últimas noites não tinha tido a oportunidade de inspecioná-lo com mais cuidado ou sequer de tentar repará-lo.
Esta manhã ficava tempo para pouco mais. Lutando para manter os olhos abertos por um momento mais, Owain se tendeu sobre a cama. Ao notar que não havia cadeira ou tapete alguma na habitação, apartou-se para fazer sitio ao Kendall. Ela fez um gesto de agradecimento com a cabeça, mas não se reuniu com ele.
Enquanto os últimos retalhos de seu consciencia o abandonavam, Owain recordou aquele momento mágico, aquele breve segundo de esperança passado junto à Santa Sarça, antes de voltar-se e encontrar-se a Isabella...
Ah, cruel é a esperança.
Seus olhos se fecharam e o dia o reclamou. E com ele chegaram as visões.
As visões não o abandonaram até um bom momento depois de haver despertado. Os lugares que tinha visitado em sonhos (a colina Wearyall, a colina que dominava Glastonbury) encontravam-se muito próximos. Se se afastava apenas umas centenas de metros do lugar onde se encontrava, a realidade e o mundo de suas visões se fundiriam.
Kendall já se encontrava acordada. Umas mantas enrugadas, situadas sobre o chão, revelavam que tinha passado ao menos parte do dia descansando. Enquanto se levantava, viu que ela o estava observando. Ainda estava muito pálida. Logo teria que voltar para alimentar-se dela. Mas, o que tinha sido de sua determinação por liberá-la? Não seria melhor dar começo quanto antes ao doloroso processo que ela devia suportar, o ver-se se separada do sangue vampírica que a dotava de força e resistência preternaturales? Do ponto de vista racional podia convencer-se de que ainda a necessitava, mas as demoras, era consciente disso, só serviriam como desculpas para demorar mais o processo. Lhe deu os bons dias, e no mesmo momento ele se deu conta de que ainda não podia liberá-la. Agora estava rodeado por circunstâncias, lugares e indivíduos muito estranhos, muito imprevisíveis. Em qualquer momento podia necessitar sua ajuda. Mais ainda, sem ela se encontraria privado de qualquer laço com tudo o que lhe era familiar. Muitas coisas tinham trocado com muita rapidez.
Logo, prometeu-se em silêncio. Logo.
Sentado sobre a cama, Owain lançou um olhar a seu redor, por toda a habitação, às frite pedras e o mobiliário feito a mão. Quantas manhãs de sua vida mortal se despertou em um entorno como aquele? Só que no exterior era de noite. Podia assegurá-lo pela rapidez com que o vigor e a fortaleza retornavam a seus membros e a sua mente. A presença da luz do dia era outra coisa que Isabella não podia replicar, como não tinha podido recrear com total exatidão a habitação de juventude do Owain. Agora, vamos a averiguar quem é e o que pretende, disse-se.
levantou-se da cama e se lavou a cara com a água da bacia. Kendall, sentada no primeiro degrau mais à frente da soleira da porta, estava situada de maneira que pudesse vigiar ao mesmo tempo a Owain e a porta no alto das escadas.
--Quanto dormiste? -perguntou ele.
Pergunta-a pareceu surpreendê-la com o guarda baixo, mas logo que vacilou um segundo antes de responder.
--Um par de horas.
--Dorme agora, então -estas palavras terminaram de surpreender ao Kendall. A modo de explicação, Owain acrescentou-. Pode que tenha que passar todo o dia de amanhã acordada.
Mas isso é o que estou acostumado a fazer, pareceu dizer sua expressão ligeiramente inquieta.
--Está seguro? -disse ao fim.
Owain assentiu.
--Se te necessitar, saberá -disse. Recuperou a espada do guarda-roupa, embainhou-a em seu cinturão e, passando junto a ela, começou a ascender as escadas. Seu condicionamento lhe permite passar dias e noites seguidos sem apenas sonho. Ou sem nenhum sonho absolutamente, recordou-se com um certo grau de irritação. Mas reconhecia suas próprias motivações. Se não podia liberar a de maneira imediata, talvez pudesse se mantê-la separada do perigo.
Abriu o cadeado e a porta. Ao outro lado, Isabella se encontrava sentada junto à mesa de sua cozinha. Suas mãos sujeitavam uma taça de chá, da que bebia a sorvos enquanto esperava.
--bom dia, Owain.
Ele não pôde evitar esboçar um sorriso ante sua audácia.
--Temos muito de que discutir.
--Estou de acordo -seus olhos brilhavam com sincero otimismo, mas de tanto em tanto se escorria de seu olhar um breve brilho afiado-. Necessita sustento?
--Sustento... -repetiu ele-. Certamente uma palavra estéril, não crie? -avançou um passo para ela-. Necessito sustento? Devo me alimentar? Possui-me a sede de sangue mortal? Desejo um sacrifício humano? -apoiou ambas as mãos sobre a mesa e se inclinou, aproximando-se dela até que o vapor que emanava de sua taça esteve apenas a uns centímetros de seu rosto-. Não esbanjemos as palavras. É isto o que me está perguntando?
A expressão da Isabella não trocou um ápice. Não pestanejou nem se separou-se dele. Muito lenta, deliberadamente, assentiu, uma só vez.
--Sim.
Owain voltou a erguer-se.
--Neste momento, não -podia, sem dúvida nenhuma, utilizar mais sangue. Tinham passado muitíssimos anos desde que sofresse um castigo semelhante ao dos últimos dias. Mas não a necessitava. E não tinha a menor intenção de revelar seus hábitos alimentícios à enigmática mulher.
Ela voltou a assentir.
--Então, será melhor que vamos acima. Poderemos nos sentar com mais comodidade. Como há dito, temos muito de que discutir.
levantou-se e Owain a seguiu até o vestíbulo, e escada acima.
--Vive aqui sozinha? -perguntou enquanto subiam as escadas.
--Assim é.
--Sem serventes? Sem marido? Sem amantes?
Ela se deteve no alto das escadas e se voltou para ele.
--A grosseria não é própria de ti, Owain.
--Acaso a falsificação e a fraude lhe resultam mais atrativas? -replicou ele imediatamente.
Ela continuou sem fazer nenhum comentário até uma das três habitações às que dava passado o corredor deste piso. A habitação era singela e funcional: o muro exterior era de tijolo visto, enquanto o resto das paredes estavam pintadas com gesso branco e cobertas por estanterías. Sobre estas últimas se dispunham numerosos objetos de aparência diversa: pequenas urnas de argila; floreiros de cristal decorados com flores secas; frascos decorativos de formas e tamanhos diferentes. Embora os objetos eram numerosos não se empilhavam nas estanterías. Ao contrário, cada peça parecia estar situada no lugar indicado e preciso. Owain se sentiu como se encontrasse em um museu, ou em presença das pertences, as bagatelas e quinquilharias pessoais de uma duquesa viúva, encerrada entre suas lembranças em o crepúsculo de sua vida.
Isabella tomou assento em um dos dois singelos assentos de madeira que se encontravam junto a uma mesa alinhada na parede esquerda. Convidou com um gesto ao Owain que se sentasse no outro, diretamente frente a ela. Sobre a mesa, entre ambos, descansava uma interessante coleção de objetos: uma espingarda vela em um escuro candelabro de madeira; uma caixa de fósforos de madeira; uma terrina vazio, aparentemente feito de ouro, no centro da mesa; e um cântaro de louça.
Owain aguardou enquanto Isabella acendia um dos fósforos e a aproximava da vela, que chispou um instante antes de cobrar vida. Uma fumaça densa e adocicada começou a deslizar-se pesadamente para o teto.
--Owain ap Ieuan -disse Isabella-, tem numerosas perguntas para mim, e deste modo eu as tenho para ti. Não me conhece e não tem raciocine para confiar em mim. De fato, é mais que provável que as tenha para desconfiar -acrescentou, cortando a réplica do Owain, que se dispunha a dizer exatamente isso-. Mas me deixe que te diga uma coisa: não vou responder a certas perguntas, nem a aquelas que me pareçam irrelevantes, mas o que sim vou revelar te compensará mais que generosamente sua curiosidade e seus afãs.
--Assim, responderá só às perguntas que lhe agradem? -perguntou Owain, incrédulo. Convocou a toda a força de sua vontade de ferro e a deixou que se arrastasse, levada pelo som de sua voz, até o outro extremo da mesa-. Preferiria que respondesse a todas minhas perguntas.
Os olhos da Isabella sustentaram seu olhar. Olhava-o diretamente, sem pestanejar e sem intimidar-se. Sua boca se abriu com lentidão.
--A vida, e deste modo a no-vista, é uma sucessão de decepções.
Owain se levantou furiosamente. A cadeira saiu despedida para atrás e caiu com estrépito ao chão. Deu uma mão para trás, disposto a derrubar todos os objetos que descansavam sobre a mesa, mas no último momento conteve o golpe.
--Joga comigo, mulher! -exclamou enfurecido-. Acredito que não é consciente da fragilidade de sua situação.
Lhe devolveu o olhar com completa calma, como se nada do que ele chegasse a fazer pudesse alarmá-la ou sequer surpreendê-la.
--Equivoca-te por completo. Reconheço perfeitamente meu "fragilidade". Sei que, com um simples golpe de sua mão, poderia me destroçar o crânio. Ou que poderia te equilibrar sobre mim e drenar de meu corpo até a última gota de sangue. Mas, sabe se for de linhagem suficientemente elevada como para que possa digerir meu sangue?
Sua ousadia e a mesma pergunta intrigaram e inquietaram ao Owain. Outra pergunta que permaneceria sem responder...
--Poderia destruir meu corpo -continuou Isabella-, mas meu espírito vagaria livre. Poderia ter sua satisfação, e pode que inclusive você sangue, mas jamais saberia o que tenho que te contar.
A mão do Owain descendeu lentamente.
--Não te mantenho aqui -disse ela- prisioneiro contra sua vontade. Está aqui porque buscas o conhecimento. Como eu.
O arrebatamento de fúria do Owain retrocedeu frente ao assombro. Como pode saber...? Sem pronunciar palavra, voltou a sentar-se.
--Pergunta o que queira -insistiu-lhe ela.
Owain se tomou um momento para ordenar seus pensamentos. Não estava preparado para isto. Como podia está-lo? Ao longo dos anos jamais se encontrou com alguém tão enojosamente arrogante mas que ao mesmo tempo tivesse o poder (neste caso o conhecimento era poder) para sustentar sua arrogância. No momento teria que lhe seguir o jogo. Mas uma vez que tivesse descoberto o que queria saber, ela deixaria de ter poder sobre ele, e ele não teria que conter suas mãos um minuto mais.
--Recentemente tempo me encontrei com uma carta -disse Owain ao fim-, uma carta supostamente escrita por minha própria mão. Lendo a carta, e examinando a caligrafia, não pode detectar nem sequer a menor sinal de que a carta não fora minha. Cada palavra nela soava como se a tivesse eleito eu mesmo. O que ocorre é que eu não a escrevi -Owain a vigiava cuidadosamente enquanto falava, mas nenhum gesto traiu suas reações ou seus pensamentos-. Segui o rastro da carta -explicou-, o rastro de parte por mim correspondência, em realidade. E me conduziu aqui.
--Assim que me está acusando de ter realizado a falsificação? -perguntou Isabella, seu rosto um busto de mármore.
--Acaso o nega?
--Negá-lo? depois de tão aduladora descrição por mim perícia? Céus, não!
A franqueza, e inclusive alegria de sua revelação, surpreenderam a Owain. É que queria lhe revelar seus segredos? O que seria então de seu poder? E de sua vida?
--Como o fiz? -disse Isabella, antecipando-se a seu seguinte pergunta-. Os detalhes lhe aborreceriam. Anos para refinar minha habilidade, umas pinceladas de sabedoria esotérica...
--Magia? -perguntou Owain, suspicaz.
Ela pareceu ponderar o término durante uns momentos, e finalmente assentiu.
--Sim. Para o não iniciado, possivelmente se poderia expressar assim.
olharam-se o um ao outro em completo silêncio. Owain tratou de avaliar as perguntas, tanto as formuladas como as não formuladas, a as que ela tinha respondido. perguntou-se se haveria algo que pudesse lhe revelar sobre ele mesmo e que ela não conhecesse já.
--Não vi um tabuleiro de xadrez por nenhuma parte -disse, tratando de trocar de algum jeito o curso da conversação.
--É que não tenho nenhum.
--Mas...
--Mas apesar disso consegui lhes enganar, tanto a ti como a você amigo -completou sua frase-. O xadrez, Owain, é um jogo do intelecto.
--Jogava ambas as partidas só em sua mente?
--OH, vamos, vamos, Owain. Não é uma façanha tão assombrosa. Existem sem dúvida centenas de mortais que poderiam ter feito o mesmo e que lhes teriam derrotado inclusive em menos movimentos. A única dificuldade estribava na tediosa espera transcorrida entre cada movimento -desviou ligeiramente o olhar-. Tanto você como seu amigo vos agradam enormemente nas possibilidades. Inclusive quando o resultado está claramente à vista... especialmente quando o resultado está claramente à vista.
--O Grego está morto -disse Owain secamente.
Isabella não mostrou a menor surpresa.
--Uma lástima.
--Obra tua?
--Não -respondeu-. E pode te guardar sua justa indignação para outro. Duvido muito que te afligisse muito o vê-lo partir.
Esta vez sua descarada audácia lhe arrancou uma franco gargalhada a Owain.
--Realmente não conhece o medo... nem o tato.
--Isso é por viver sozinha -disse ela-. Sem serventes. Sem marido. Sem amantes.
Owain, repreendido com suas próprias palavras, se arrellanó na cadeira e cruzou os braços.
--Posso falar com franqueza? -perguntou Isabella depois de um momento.
--Acaso não é o que estiveste fazendo todo este tempo?
--Temos muitas coisas que aprender um do outro como para andar perdendo o tempo com esta ginástica verbal. A meia-noite já tem cansado sobre nós -seu mordaz humor havia desaparecido de suas palavras sem deixar rastro-. Posso responder à maioria de suas perguntas -quem sou? Como pude fazer isto? Como pude fazer aquilo...?- com três simples palavras: sou uma espião. Reúno o conhecimento. Aprendo o desconhecido. O "como" de o que faço carece de importância. Não está aqui para aprender meu ofício, e inclusive se o estivesse, eu não te instruiria.
--Então, para que estou aqui? -perguntou Owain-. Se formos a deixar de jogos, me diga de uma vez o que quero saber.
--por que crie que está aqui? -inquiriu ela, com a voz levemente irritada.
--Uma pergunta em troca de uma pergunta. É sua maneira de "falar com franqueza"?
--por que crie que está aqui? -repetiu a pergunta.
A paciência do Owain estava a ponto de esgotar-se, e optou por uma honestidade quase brutal.
--Vim aqui a procurar as pessoas que se misturaram em meu vida privada e violaram minha intimidade, e para procurar vingança.
--E talvez para descobrir por que essas pessoas fizeram o que fizeram? Para descobrir por que eu fiz o que fiz?
--Sim -respondeu secamente.
--Bem. me deixe te contar o porquê -seu tom era muito marcado, como se estivesse dirigindo-se a um menino pequeno. Um fato que não passou desapercebido ao Owain-. Só houve uma razão para que substituíra as mensagens, para que me misturara em você correspondência com o querido e desaparecido O Grego. Não foi pelo prazer do jogo, certamente. Talvez você goste de saber que você foi o menor jogador dos dois, mas nenhum tivesse suposto um verdadeiro desafio para mim. Não. Se interferi em suas partidas, se escrevi aquela carta a respeito do Carlos, foi porque sabia que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por descobrir minha intervenção, mas como traria-te até aqui. Assim, qualquer que seja a razão que crie que te conduziu aqui, Owain ap Ieuan, deve saber que está aqui porque essa foi minha vontade.
Owain se agarrou com força ao bordo da mesa. É obvio, era certo. Ela estava tão preparada para recebê-lo porque, do princípio, qualquer que este fora, tinha planejado atrai-lo até ali. Seus dedos se cravaram na madeira, escavando profundos sulcos em sua superfície. Faltava-lhe muito pouco para equilibrar-se sobre ela, agarrá-la pelo pescoço e sacudir sua cabeça até que os olhos se o saíssem das órbitas e o pescoço lhe partisse.
Ela se inclinou para ele, virtualmente situando seu frágil crânio ao alcance de suas mãos, e deixou escapar um suspiro. Suas palavras semelharam o vaio de uma serpente.
--E quereria saber o porquê? por que queria te ter aqui?
Quase imperceptivelmente, Owain apartou sua cadeira da mesa. Sim. diga-me isso puta pagã. diga-me isso e morre.
Isabella voltou a recostar-se sobre a cadeira.
--Queria-te aqui, a meu lado, para poder aprender de suas visões. E para poder as interpretar para ti.
Instantaneamente, o ódio que tinha ardido em seu interior, a crescente violência, dissiparam-se em um estalo de surpresa. As visões... Mas, como...? Owain voltou a encontrar-se pasmado. Aquela mulher sabia muitas coisas de sua vida mortal. havia-se interposto entre O Grego e ele. E conhecia as visões... as visões das que não tinha falado com ninguém. Deveria matá-la agora mesmo e pôr fim a tudo isto, pensou, sem me importar que conhecimento morre com ela... Mas então reparou no que esse conhecimento podia significar para ele. Se souber algo das visões...
--Posso aliviar a agonia das visões, Owain -disse-. Posso fazer que se vão.
O rosto do Owain se levantou. Seu olhar encontrou a dela. Tudo pensamento violento, a idéia de ignorar o que ela sabia, havia desaparecido.
--Quem é? Como pode saber todo isso? -disse, sua voz uma demanda vaiada entre dentes.
--Sei. Isso deve bastar.
Owain apartou um pouco mais a cadeira da mesa. levantou-se e começou a perambular pela habitação. Seus passos, lentos e pesados, conduziram-no inconscientemente até uma parede. voltou-se e caminhou em outra direção. Por um instante, acreditou que tinha escutado o tênue rumor da evocadora melodia da sereia. A canção que havia dado começo a todo aquilo, convocando frente a ele as imagens de um lar ao que sabia que nunca lhe permitiria retornar: Adref. Porque, Owain se dava conta agora, próximo como se encontrava a Gales, de que inclusive se retornava, tudo o que tinha feito de seu casa seu lar teria desaparecido tempo atrás. As mesmas colinas estariam ali, e a mesma costa. Mas estariam povoadas por mortais pertencentes ao mundo moderno, com suas estradas pavimentadas, seus automóveis e seus televisores. Já não haveria chaminés em torno de a que reunir à família, nem voltaria a caçar ao urso nos bosques... nem estaria Angharad. As visões lhe faziam recordar aquilo que nunca voltaria a ter. Nunca.
Só quero esquecer! Desejava a liberação que só o esquecimento poderia outorgar: retornar ao intumescimento ermo de cor. Aquele era o único arremedo de paz que tinha conhecido, que nunca conheceria. Owain posou uma mão sobre cada lado do marco da janela e apoiou a frente com lentidão contra o cristal. No exterior, não muito longe, o tor se elevava ameaçador.
As sombras do Tempo não são tão alargadas como para que possa te cobrir nelas. Aquelas eram as palavras que havia escutado em suas visões. As sombras do Tempo. Nem tão curtas, ou tão esquecidas como para que possa escapar delas, pensou Owain.
Mas ainda subtraía a questão da própria Isabella. Owain albergava muitas dúvidas, e ela tinha revelado poucas coisas, à parte de suas artimanhas.
--Palavras -disse Owain de costas a sua anfitriã-. Nada mais que palavras -voltou o rosto para ela-. Pretende saber muito, possuir vastos conhecimentos, mas desde que cheguei não tem feito outra coisa que falar.
--Como crie que aprendi todo aquilo do que falo? -perguntou Isabella como se pôr suas palavras em interdição não fora mais que um sinsentido.
--Essa -disse Owain enquanto retornava a seu assento-, é exatamente a questão. O "como" do que faz carece de importância, ou ao menos isso é o que você diz. Mas pode que eu não possa te encontrar utilidade a menos que saiba algo do que faz e de como o faz.
Isabella deixou escapar um suspiro. Seu cenho se franziu, outorgando a suas normalmente suaves facções um ar sombrio.
--Muito bem -disse. levantou-se da mesa e se aproximou de uma pequena caixa que descansava em uma das estameñas próximas-. O que é o que tem na mão? -perguntou sem apartar a vista da caixa. Passaram vários segundos antes de que Owain advertisse que, em efeito, tinha tomado o dourado medalhão do bolso e brincava com ele entre seus dedos-. Ponha sobre a mesa -disse-lhe ela.
depois de um momento de indecisão, e embora a a contra gosto, Owain fez o que lhe pedia.
Quase ao mesmo instante, Isabella se voltou. Sustentava em sua mão uma cadeia da que pendia um medalhão dourado. A surpresa de Owain cedeu rapidamente frente a uma cínica incredulidade. Truques de salão, pensou. Evidentemente, em algum momento da conversação, provavelmente enquanto brincava com ele como ultimamente estava acostumado a fazer, ele tinha mostrado inconscientemente seu próprio medalhão. Mas então Owain reparou em que o medalhão que ela sustentava era exatamente o mesmo que tinha conseguido do Albert lá em Atlanta.
Isabella voltou a sentar-se frente a Owain e depositou seu medalhão sobre a mesa. Então tomou o cântaro de argila e começou a verter um líquido que aparentava ser água na terrina vazia. Quando o terrina esteve cheia até o bordo, devolveu o cântaro a seu lugar na mesa e voltou a tomar entre suas mãos o segundo medalhão. Abriu-o, mostrando um pequeno desenho realizado à mão: uma mulher de assombrosa beleza com um largo e fino nariz e olhos redondos nos que palpitava uma profunda melancolia. O estilo com que estava realizado o desenho era muito similar ao do medalhão do Owain. A primeira vista as linhas pareciam riscadas com crueldade, mas imediatamente o espectador advertia como a simplicidade e escassez das pinceladas conseguiam de algum jeito refletir uma imagem da pessoa muito mais fiel e viva que qualquer fotografia. Como no desenho do do Albert, os olhos brilhavam com uma beleza cativante. Owain se encontrou desejando poder falar com aquela mulher, desejando que ela revelasse-lhe o que seus olhos pareciam tão se desesperados por dizer.
Sem aviso, Isabella extraiu o desenho do interior do medalhão e o deixou cair sobre a terrina. Instintivamente, Owain alargou uma mão para detê-la. O desenho se arruinaria! Mas antes de que pudesse fazer nada, o papel se afundou já sob a superfície da água. Extrañamente, a tinta não se correu, e o papel não se enrugou. Flutuou plácidamente sob a superfície da água e os olhos da mulher pareceram olhar fixamente ao Owain.
Isabella colocou a mão aberta, com a palma volta para baixo, sobre a terrina. Então, concentrando-se com toda sua atenção no desenho, começou a murmurar entre dentes. Owain esteve a ponto de lhe pedir que repetisse suas palavras, mas então se deu conta de que não estavam dirigidas a ele... se é que sequer eram palavras. Owain estava pasablemente familiarizado com as línguas romances, e podia identificar vários dialetos arábicos e do Oriente Médio, mas o balbuciar da Isabella, que pouco a pouco se estava permutando por uma espécie de salmodia rítmica e suave, parecia provir de um lugar, ou um tempo, que ele não tinha conhecido. Observou o acalmado movimento de seus lábios. Tratou de discernir que sons eram produzidos pela pressão de sua língua contra a parte alta de sua cavidade bocal, e quais pelo roce contra os dentes. Qualquer pista poderia servi-lo para conectar as palavras com um patrão reconhecível, e de um patrão poderia eventualmente extrair um grupo de línguas, uma área geográfica, algo que lhe permitisse adivinhar o que ela estava fazendo.
Isabella, ignorando o detido exame do Owain, foi apartando com lentidão a mão da boca da terrina. Seu movimento apenas o distraiu de seu escrutínio. Mas, em troca, quando a mão se houve retirado por completo, todas seus as caiba a respeito de patrões de fala e famílias de línguas foram imediatamente se separadas de sua mente pela visão do que continha a terrina. O desenho da mulher já não encontrava-se ali, ou ao menos não era visível. A água já não era transparente, a não ser escura, oleaginosa, como se estivesse mesclada com tinta, e embora a superfície do líquido estava em calma, livre de ondas ou ondas, parecia como se umas nuvens se avermelhassem em seu interior. A terrina era pouco profunda, mas a substância que continha parecia de algum jeito transbordar com acréscimo seus limites. Mas antes de que Owain pudesse começar a desentranhar este novo mistério, a massa de nuvens cobrou uma forma definida.
Ao princípio, Owain só pôde discernir uma silhueta vaga e escura. Mas à medida que olhava com mais atenção (ou acaso é que as nuvens se apartavam para mostrar o que se escondia em seu interior), pôde distinguir uma mão, e logo uma segunda, que se encontrava ao final do que parecia ser um braço disforme. Owain se inclinou sobre o terrina. A primeira das mãos sujeitava algo com força, mas Owain não alcançava a distinguir muito mais. Então, repentinamente, o resto da turva imagem cobrou sentido para ele. Viu a cara que até então não tinha reconhecido como uma cara porque estava deformada e desfigurada. A distorção não estava na imagem, a não ser na própria coisa. A criatura parecia empelotada, seu mão sã apertada contra o peito. Agora Owain viu a cara como o que era, e reconheceu o deformado semblante.
Ellison. O Nosferatu do Berlim.
Nem um segundo antes de que Owain tivesse pronunciado o nomeie em sua mente, outras palavras brotaram a seu redor. Palavras que pareciam pronunciadas pela voz do Ellison, embora os nodosos lábios da imagem não se moveram.
--Melitta, meu amor. Retorna a meu lado. Logo.
A profundidade da dor e a saudade contidas na voz surpreenderam ao Owain. Era acaso possível que uma criatura tão monstruosa como aquela sofresse uma pena e um desespero que podiam rivalizar com as suas? Imediatamente, Owain descartou tão absurda idéia. Mas apesar de tudo não se sentia cômodo espiando as emoções do Nosferatu, escutando, sentindo seus sentimentos. E, entretanto, não se sentia tão culpado para apartar a vista.
--Meu mais profundo amor, meu Melitta. Quanto mais tempo haverei de suportar sem te ter a meu lado?
A imagem se foi fazendo mais e mais clara. Ellison jazia em alguma diminuta e escura caverna, tendido entre o barro e o lixo como um feto malformado no interior de um útero corrupto. Por um instante, entretanto, abriu o punho e Owain entrevio na mão da criatura um brilho dourado, despedido por um medalhão. Só necessitou um segundo para reconhecê-lo como idêntico aos dois que se encontravam sobre a mesa, frente a ele.
Mas então a imagem desapareceu. Owain viu surpreso a Isabel a extrair o desenho da água. Não se tinha fixado em que sua mão aproximava-se da água. Nem tampouco tinha advertido que tinha deixado de cantar em que pese a que a ausência da rítmica cadência resultava evidente.
Owain olhou fixamente ao medalhão, ao que tinha pertencido a Albert.
Sou uma espiã.
Isabella era muito mais que uma espiã. Agora se dava conta de isso. Era uma bruxa, e sua magia a servia como os instrumentos eletrônicos serviriam a um espião moderno.
Owain aferrou o medalhão do Albert e, recorrendo a sua prodigiosa força, esmagou o suave ouro com um apertão da mão.
Isabella franziu o cenho.
--Isso não era necessário.
Owain deixou cair a sucata dourada que tinha sido o medalhão sobre a terrina. A água salpicou a mesa.
--Aí está sua prova -disse Isabella-. Posso interpretar suas visões, Owain. Posso te liberar delas.
Lhe lançou um olhar sombrio. Agora que tinha presenciado alguns de seus poderes, acreditava-. Entretanto, isto o perturbava ainda com mais intensidade.
--utilizaste sua dor -disse Owain, assinalando com um gesto da cabeça à terrina e a desaparecida imagem do Ellison.
Isabella lhe olhou de soslaio.
--Escrúpulos, Owain? A estas alturas? Seria capaz de assegurar que nunca utilizaste em seu favor o conhecimento do amor ilícito de um rival, ou as aspirações de um mortal que, em troca da promessa do governo da noite, serviria-te fielmente como um ghoul? É tão arrogante, ou simplesmente é um ignorante?
Owain reprimiu um estremecimento. Não resultava agradável escutar seus próprios pensamentos em boca de outro, e divulgados com tanta crueldade. Seu olhar se perdeu durante uns momentos no interior da terrina, na água, e então se voltou uma vez mais para a Isabella.
--De acordo. Deixarei que me ajude -disse-. Não sou tão ingênuo para pensar que não tem suas próprias razões para querer aprender de minhas visões. Duvido que tenha realizado todo este esforço pela simples bondade de seu coração. Não careço por completo de experiência na matéria. Mas te advirto. Deve ter isto em conta -inclinou-se para ela sobre a mesa-: Parece saber muito sobre mim. Então saberá que descendo de uma família nobre, uma família orgulhosa. O que suas chamas arrogância, eu o chamo orgulho -se inclinou ainda mais, aproximando-se da Isabella-. Também eu acredito que podemos nos ajudar mutuamente, mas não te necessito tanto como para tolerar insultos ou calúnias -reforçou a afirmação mostrando frente a seu rosto um comprido dedo acabado em uma unha semelhante a uma cuchilla-. Antes preferiria sofrer estas visões por toda a eternidade. Cuida sua afiada língua, mulher, ou lhe encontrará isso arranco da boca.
Isabella atendeu a suas palavras com ar desapaixonado.
--Comecemos então.
Owain estava sentado a sós, ainda frente à mesa. A vela, tão alargada ao começo da noite, tinha terminado por converter-se em um coto de cera. Rastros da cera corriam candelabro abaixo até formar um grumo endurecido sobre a mesa. Chama-a despedia uma fumaça espessa que apenas se elevava e obscurecia a visão. Owain logo que alcançava a distinguir a parede mais afastada da habitação. Voltou sua atenção à mesa, à terrina que descansava sobre ela e a a imagem que desde seu interior se enfrentava a ele.
De novo a água se encontrava em completa calma, e de novo a Lisa superfície refletia uma imagem que não tivesse devido refletir. Grácis nuvens esbranquiçadas cruzavam pausadamente um céu azul. Um céu diurno. Instintivamente, separou-se dos raios de sol que emanavam da cena. Mas, para sua surpresa, descobriu que a luz não lhe causava nenhuma dor, não arrancava sua carne morta dos ossos. Vacilante, voltou a inclinar-se sobre a terrina.
No meio do céu e das nuvens se materializou um rosto que conhecia muito bem. Angharad apareceu vagamente ao princípio, mas lentamente seus contornos e detalhes foram fazendo-se mais nítidos e claros, mais diferenciados de quanto a rodeava. Entretanto, seu rosto não era tal e como Owain estava acostumado a recordá-lo. Seu semblante estava composto a partir de linhas desenhadas, como se alguém tivesse realizado um esboço utilizando farrapos de nuvens. Não obstante, seus olhos lhe pareciam com o Owain completamente vivos, tão profundos como o mesmo céu.
Sem poder evitá-lo, estendeu uma mão para a terrina. deteve-se. Desapareceria a imagem se tocava a água? Inclusive com a agonia que acompanhava sempre à contemplação de seu rosto, experimentava uma certa paz frente a sua imagem. Não possuía nenhum retrato do Angharad e, ao longo dos anos se encontrou a vezes incapaz de recordar com exatidão alguns detalhes, como a curva de seu queixo, ou a forma de sua frente. Não estava disposto a perturbar a imagem que aliviava em parte uma dor já centenária.
Uma suave trepidação atravessou a superfície da água. A desespero assaltou ao Owain. Não me deixe. Outra vez não. Ainda não. Mas a trepidação era causada pelo movimento do Angharad. Lentamente, ela abriu a boca.
--Owain.
Escutando seu nome pronunciado por seus lábios, a perfeição do timbre de sua voz, voltou a sentir-se assaltado pelo desejo para aquela que lhe era negada. De novo, levantou a mão, e à medida que aproximava-a da terrina, a imagem pareceu cobrar maior aparência de vida, menos um esboço e mais o suave rosto que desejava acariciar.
Sua mão se aproximou ainda mais. Cada fração de centímetro equivalia a anos de tortura. Sua formosa, pálida pele, encontrava-se justo debaixo da superfície.
--Owain -voltou a chamá-lo.
Seus dedos cruzaram a superfície da água, e ela não fugiu. Afundou ainda mais a mão, temendo a cada momento que seus movimentos a farão desaparecer, mas, finalmente, as gemas de seus dedos tocaram, não a dourada superfície do fundo terrina a não ser uma pele suave e perfeita, a pele de sua amada. Enquanto as ondas da água foram morrer contra os borde do recipiente, Owain pôde ver como seus dedos se posavam na bochecha do Angharad. Ela fechou os olhos e Owain pôde ver e sentir que a mão dela se encontrou com a sua.
Owain não tinha a menor ideia de como funcionava aquela estranha magia, como podia ser que introduje a mão em um sob recipiente e fosse tocar a sua amada. Não sabia e não lhe importava. depois de tantos séculos de separação, encontrar-se de novo junto a ela, era quase mais do que podia suportar. Sua visão começou a nublar-se. Tão comovido estava por este simples encontro da carne que uma lágrima de sangue escapou de seus olhos e caiu sobre a água.
A gota se afundou no líquido e, imediatamente, os olhos do Angharad abriram-se como impulsionados por uma mola. Lançou um olhar a Owain e abriu a boca uma segunda vez para falar:
--Assassino da Estirpe.
Owain não podia forçar-se a apartar a mão. Não podia abandoná-la. O contato de sua bochecha era muito mais do que durante século se atreveu a esperar.
--Assassino da Estirpe.
Mas agora a imagem sob a superfície se estava voltando tormentosa. As nuvens que tinham sido brancas se tornavam escuras e ameaçadores. O semblante do Angharad refletia aversão e desdém. Ela sujeitou sua mão, mas sua pele já não era suave. tornou-se dura e escura, como a madeira, como a áspera textura da superfície de um espinheiro.
Owain tratou de apartar a mão, mas não pôde movê-la. Com seu mão livre, aferrou-se o outro antebraço e atirou com força. Em vão. A superfície de água permanecia em calma, em que pese a que a cena mostrava nuvens formadas redemoinhos em meio de um terrível vendaval. Angharad logo que era já visível. Owain atirou com todas suas forças, mas não pôde liberar sua mão.
Repentinamente, surgindo da água, apareceram outras mãos de madeira. enroscaram-se com força ao redor do Owain, apanharam seus braços, aferraram-se a seu cabelo. Sujeitaram-no pelo pescoço e com invencível força o arrastaram para a água.
Owain estava imerso na tempestade. Caía através das furiosas nuvens. O vento o sacudia. Os relâmpagos estalavam a seu redor enquanto caía e caía.
esmagou-se contra o chão, produzindo um som atroz. Seus costelas e suas vértebras se quebrado. Sob a furiosa tormenta, jazia imóvel na ladeira da colina, e sobre ele se encontrava o ancião, José, levando sua vara na mão.
--As sombras do tempo não são tão alargadas como para que possa te cobrir debaixo delas -disse José-. E por estes signos saberá que por minha boca fala a Verdade que desdenha asa Escuridão. Eu hei visto a Ilha de Los Angeles tremendo como golpeada por uma poderosa investida. Miguel, o mais exaltado da Gloriosa Companhia, aquele que expulsou ao Escuro das alturas, foi arrojado sobre a terra. Os homens, carentes de entendimento, voltam o rosto para o tenebroso céu, e os filhos do Caín se despertam à alvorada.
José deu uma passo para o Owain. O ancião sujeitava a vara diante de si, com o braço estendido, como uma barreira frente ao mal ao que se enfrentava. detrás dele, Owain podia vê-lo, a capela de San Miguel se elevava como uma fortaleza frente à tormenta. José se aproximou ainda mais, resplandecente de justa ira, enquanto dizia:
--Eu vi uma Cruz, empapada pelo sangue de nosso Senhor, ardendo para dar a luz uma nova vida. Vi brotar dela os ramos da Santa Sarça para impedir a ímpia cercania dos impuros e o sabor da fruta proibida. Vi uma grande Águia branca estalagem sobre seus ramos. Abre o pico e fala com a escondida voz das montanhas. E suas palavras levam a Ruína para os Filhos de Caín.
O corpo quebrantado do Owain não podia responder a seus desejos. Contemplou indefeso como José levantava a vara por cima de sua cabeça. Sujeitou-a com ambas as mãos como se fora uma enorme estaca e, reunindo todas suas forças, com um rugido brutal, a descarregou sobre o peito do Owain. A vara destroçou os ossos e se abriu passo entre a carne até empalar seu coração.
Com a visão obscurecida pela dor, Owain viu a torre, a Ilha de os Anjos, estremecer-se e tremer pela mesma violência do golpe.
Repentinamente a cena se formou redemoinhos e se fez imprecisa. Não ficava mais que o estrondo dos trovões. Acreditou escutar o estrondo da torre ao desmoronar-se. desabava-se sobre a terra, sem dúvida caindo sobre sua cabeça.
Mas lentamente, sua visão começou a esclarecesse. O agitado caos deu passo à estabilidade. Não havia nenhuma torre desabando-se sobre a terra para esmagá-lo. Não havia nenhum ancião, nenhuma vara, nenhuma colina.
Owain seguia sentado junto à mesa. Frente a ele, a vela se tinha consumido quase por completo. A terrina de água permanecia tranqüilo, e a seu lado se encontrava o vial que continha o elixir que Isabella lhe tinha administrado para induzir as visões. A própria Isabella se encontrava presente, sentada frente a ele. Mas sua atenção não estava posta no Owain, mas sim se dirigia a outra parte. Uma expressão de assombro e preocupação genuínos se apareceu em seu rosto.
--Que foi...?
Um novo estrépito se elevou do piso de abaixo. O ruído da madeira ao ser feita pedaços.
Owain, arrancando-se a si mesmo da névoa de suas visões, se levantou rapidamente, mas não tanto como Isabella. Ela já se encontrava em pé e encaminhando-se para as escadas. lançou-se torpemente atrás dela. Seu corpo ainda respondia como entorpecido a suas demandas. Esteve a ponto de tropeçar com ela, que se havia detido em meio das escadas.
A porta principal da moradia tinha sido aberta com violência, arranco parcialmente de suas dobradiças. Sob a soleira se encontrava, médio escondida, disposta para saltar, uma figura pálida, enxuta, e de compleição forte. Sua antinatural palidez e sua carne, exageradamente afundada, sugeriam que se tratava de um dos Condenados. Owain podia sentir que, em efeito, assim era.
Kendall permanecia de pé no meio do corredor que dava à cozinha. Apontava com sua arma ao intruso, desafiando-a a avançar um passo. Os selvagens olhos do Cainita dançavam de um lado a outro e seu olhar saltava rápida e alternativamente do Owain e Isabella a Kendall.
O desconhecido vaiou umas palavras. Ao princípio Owain não compreendeu o idioma, mas imediatamente se deu conta de que era francês, mas não o mesmo francês que Owain tinha chegado a conhecer no mundo moderno. O acento era muito estranho. Não, não o acento, pensou Owain enquanto começava a reconhecer o que estava ouvindo. A pronúncia em geral. A ênfase das palavras, a escassa elisão... O intruso falava em francês arcaico, o mesmo que Owain o aprendesse centenas de anos atrás.
--O Assassino da Estirpe! -bramou o recém-chegado-. vim a procurar o Assassino da Estirpe!
O intruso avançou um passo para o Kendall, que martelou a pistola. Aparentemente perplexo ante a arma, ele vacilou.
--O que significa isto? -exclamou Isabella em francês arcaico. Seus autoritárias maneiras, e o fato de que sua aparição não tivesse sido recebida com uma ataque imediato, pareceram acalmar ao estranho.
--O Assassino da Estirpe -repetiu-. Encontra-se aqui. Possui a relíquia -um brilho demente em seus olhos acompanhou a suas últimas palavras. Seu autocontrol pareceu remeter, e um estremecimento se estendeu por todo seu corpo. Lançou um olhar ao Kendall mas se manteve onde se encontrava-. Procuro a relíquia. Procuro o sangue.
Owain se adiantou além da Isabella.
--Eu sou o Assassino da Estirpe -disse. As visões tinham sido suficientemente claras sobre este ponto. Owain não podia negar seu herança. E não temia a aquele demente.
Os olhos do intruso se acenderam. Estendeu uma mão para a garganta do Owain.
O ensurdecedor rugido de um disparo se elevou do corredor. A mão do intruso, a meio caminho do Owain, explorou em uma chuva de sangue e ossos destroçados. A força do impacto o empurrou contra a parede, e proferiu um uivo de dor.
--Santo céu! -exclamou Isabella enquanto passava junto ao Owain-. Guarda essa coisa -disse ao Kendall em inglês-, antes de que todo o povo se encontre ante minha porta.
--um pouco tarde para preocupar-se por isso -disse Owain com voz seca, assinalando para os estilhaçados restos da porta.
Isabella lhe devolveu um olhar iracundo. aproximou-se do estranho, que se tinha desabado sobre o chão, junto à parede, e se aferrava a mão destroçada contra o peito. Conmocionado, olhou-a enquanto ela rasgava o tecido de sua manga e enfaixava cuidadosamente com ela a ferida.
--Quem é? -inquiriu Isabella enquanto tratava de curá-lo.
--Meu nome é Montrovant -respondeu, confundido porque o estivesse emprestando ajuda-. Estou procurando a relíquia.
--Isso diz -ela apertou com força o torniquete, lhe provocando um estremecimento de dor-. Vê ali -assinalou o salão-. Manten em calma e ninguém te causará dano. Pode fazê-lo? -Montrovant assentiu em silêncio-. E tráfico de não manchá-lo tudo com seu sangue.
Trabalhosamente, Montrovant ficou em pé, deixando um rastro sangrento sobre a parede e então se dirigiu para o salão, observando com toda atenção ao Kendall enquanto o fazia.
Montrovant. Owain tratou de recordar se o nome lhe resultava conhecido, mas ao longo dos anos tinha esquecido mais nomes de os que a maioria dos mortais conheceriam em toda sua vida. A pesar disso, o nome seguia palpitando em algum lugar de sua memória. Montrovant. Seus pensamentos voaram para o passado, para a França, para o tempo que tinha passado entre os Cavalheiros Templarios...
--te faça a um lado -Isabella o separou de um empurrão e começou a ascender as escadas.
--Aonde vai? -perguntou ele.
Ela respondeu sem deter-se:
--Há alguns rituais que devo realizar se queremos evitar ser descobertos. Posso me assegurar de que ninguém relacione o som do disparo com esta casa, e de que ninguém se fixe na porta destroçada, mas devo fazê-lo agora mesmo. -Sem mais explicações, desapareceu escada acima.
Owain e Kendall vigiaram ao Montrovant até que Isabella retornou, meia hora mais tarde. Para então, a mão do Montrovant estava curada quase por completo. Abria e fechava os dedos com evidentes dificuldades. De tanto em tanto, lançava um olhar furtivo em direção ao Owain e Kendall. Qualquer dúvida que Owain pudesse albergar sobre o fato de que se tratava de um Cainita se havia dissipado rapidamente. Pela careta de desagrado que tinha aparecido aos lábios do Kendall, Owain pôde dar-se conta de que o intruso o resultava ainda mais antipático que a ele mesmo. por que, perguntou-se, estava sendo Isabella tão hospitalar? Não se dava conta de quão perigoso e instável era, quão perto se encontrava de ver-se arrebatado por um frenesi de violência? Acaso sua percepção só se estendia a aqueles a quines tinha tido a oportunidade de espiar durante comprido tempo, e não aos visitantes inesperados?
Owain se sentiu tentado a executar imediatamente ao intruso. Me atacou. O que outra razão necessito? Mas obrar daquela maneira suporia renunciar à ajuda da Isabella. E embora esta estava resultando intermitente e, em ocasiões, oferecida a contra gosto, decidiu esperar ao momento adequado.
Naquele momento, Isabella descendia as escadas.
--Ninguém nos tem descoberto -assegurou-. As barreiras pertinentes foram levantadas. Os espectadores inocentes seguirão sendo só isso, espectadores inocentes.
Suas palavras não contribuíram muito a tranqüilizar a Montrovant. Perambulava de um lado a outro da habitação murmurando entre dentes em francês e atirando de vez em quando de sua camisa, que lhe estava muito grande. Vestia a calça de um bonito, sujo e descuidado, e sobre ele se calçava umas botas velhas e estragadas que, entretanto, pareciam a única peça de sua indumentária que quadrava com ele.
--Agora, nos conte, Montrovant -disse Isabella, começando a falar em francês arcaico com voz suave-. Nos fale dessa relíquia que te provoca tanta ansiedade.
Ante o som de seu nome, Montrovant se deteve em seco. Mas seus olhos se mantiveram em movimento. Giravam constantemente de um lado a outro, examinando sucessivamente cada rincão da sala e a cada um dos que a ocupavam.
--Procuro a taça de Cristo -disse ao fim. Seu olhar se afundou em Owain-. O Santo Grial. E você o tem, ou conhece seu paradeiro.
--O Santo Grial? -Owain não estava seguro do que era exatamente o que esperava ouvir, mas certamente não isto-. Eu tenho o Santo Grial? -jogou a cabeça para trás e deixou escapar uma sonora gargalhada.
A risada do Owain só serve para provocar a fúria do Montrovant. Seus olhos despediram brilhos de puro ódio. Grunhiu e avançou vários passos para o Ventrue. Kendall se situou atrás dele, mas antes de que pudesse tirar sua arma, Owain desenvainó a espada e a apontou diretamente à garganta do Montrovant.
--Quieto -disse.
Montrovant se deteve. Uma certa consciencia da situação na que se encontrava pareceu retornar a ele. A loucura que o havia assaltado retrocedeu, mas não muito longe.
--por que tenho que agüentar a este lunático? -perguntou Owain a Isabella.
Por um momento, ela examinou a cena: Owain com a espada em a mão, Montrovant, uma sombra escura, disposto a saltar, e Kendall preparada para tirar a arma. Quando falou, seu tom foi o de uma professora que conhecesse as respostas a todas as perguntas e que estivesse meramente esperando a que seus tutelados lhe emprestassem atenção.
--De acordo à lenda, Owain, quem era o portador do Grial? Quem o trouxe para a Inglaterra?
--E isso que tem que...? -Owain queria voltar-se para a Isabella para assegurar-se de que não estava brincando, de que não havia mais lunáticos na habitação que os que em um princípio havia suspeitado, mas não podia arriscar-se a apartar o olhar de Montrovant.
--Quem o trouxe para a Inglaterra? -voltou a perguntar.
Owain podia seguir o fio de seus raciocínios, mas não via onde queria chegar.
--José da Arimatea -concedeu.
--Nada ocorre sem uma razão -disse Isabella.
Owain não discutiu com ela. Não porque estivesse de acordo com o que dizia, não necessariamente, mas sim porque as visões eram intensamente pessoais. Embora tinha acessado às compartilhar com ela na esperança de que pudesse curá-lo, não desejava as comentar em frente daquele psicopata chamado Montrovant.
Repentinamente, Owain ficou rígido. Manteve a espada elevada entre o Montrovant e ele mesmo, mas voltou a vista para a Isabella. O verdadeiro sentido de suas palavras acabava de arraigar em seu entendimento. Com sua pergunta, Isabella tinha estabelecido a conexão entre o Montrovant, com seu bate-papo sobre o Grial, e uma de as principais figura de suas visões, José. A conexão era tênue, sim, mas Owain não podia ignorar a possibilidade de que existisse. Aquele pensamento o turvou, mas o que realmente o deixou boquiaberto foi o feito da Isabella tinha estabelecido a conexão, em que pese a que Owain não tinha-lhe falado ainda do José.
Ela o olhava com paciência. Owain soube, com amarga certeza, que ela era perfeitamente consciente do que acabava de compreender.
--Montrovant -disse Isabella trocando por completo de tema-. Hei garantido a segurança do Owain em minha casa. Ofereceria-te o mesmo a ti, mas primeiro devo estar segura de que não haverá mais lutas. Acredito que há muito que podemos nos ensinar os uns aos outros -lançou um olhar ao Owain-, mas não o faremos enquanto temamos por nossa segurança.
Montrovant olhou a espada que se elevava frente a ele, e depois a Kendall, quem fazia pouco tinha destroçado sua mão com aquela arma estranha. Seus olhos despediam um brilho fanático. Pesaria mais seu palavra que aquele fanatismo? perguntou-se Owain. Finalmente, Montrovant se voltou para a Isabella.
--De acordo -disse.
--Muito bem -respondeu ela, aparentemente satisfeita com seus palavras-. Owain, baixa a espada.
Owain duvidou. Estava chegando a marchas forçadas à conclusão de que ver-se livre de suas visões não merecia os riscos que estava confrontando. Tratar com a Isabella era uma coisa, mas expor-se à fúria daquele Cainita enlouquecido que balbuciava um galimatías sobre o Santo Grial e que tinha tratado de atacá-lo mais de uma vez... isso era um pouco completamente distinto. Também o preocupavam as perguntas da Isabella, o conhecimento que encerravam. Certamente ela havia demonstrado saber coisas que se supunha que não devia conhecer, mas ao mesmo tempo o tinha feito sem revelar nada. Possivelmente o mais sensato fora destrui-la e logo acabar também com o lunático. Mas não estava seguro. por agora, a decisão teria que esperar.
--Por favor, cavalheiros -disse Isabella. Nenhum dos dois Cainitas olhou-a. Seus olhares pareciam travadas em silenciosa conflito-. Sentem-se -de novo, ambos a ignoraram-. Montrovant. É compreensível que Owain se mostre um pouco cético sobre suas intenções, tendo em conta suas algo violentas afirmações. O que te tem feito pensar que ele possui o Grial, ou que conhece seu paradeiro? Montrovant... -estalou os dedos até que ele piscou e voltou o rosto para ela.
--Enviou-me aqui um ancião chamado Kli Kodesh -disse Montrovant-. Assegurou-me que o Assassino da Estirpe me conduziria à relíquia. Disse-me também que o Assassino da Estirpe respondia no nome de Owain ap Ieuan -fez uma pausa e voltou a olhar ao Owain.
Owain lhe devolveu o olhar. Tinha passado séculos dedicado a seus próprios assuntos, tratando de não atrair excessiva atenção, e apesar de isso seu nome parecia ser bem conhecido ao longo e largo do mundo por indivíduos dos que nunca tinha ouvido falar.
--Owain ap Ieuan -continuou Montrovant-. Era um nome que recordava do passado. Das noites passadas junto aos Templarios...
--Os Templarios... -Owain tinha estado a ponto de recordar apenas um momento antes-. Montrovant... O Escuro.
Montrovant assentiu com ar solene.
--Você também conheceu os Templarios, Assassino da Estirpe. E também perseguia o Grial.
Isabella, com aspecto meditabundo, o queixo apoiado contra seus nódulos, observou ao Owain.
--Sim. A primeira vez que abandonei Gales passei algum tempo entre os Templarios -explicou Owain-. Eram tão santarrões... acreditavam estar além da corrupção. Mas nenhum deles, nem tão sequer o mais virtuoso, era imune à tentação.
--Assim que lhes conheciam? -perguntou Isabella.
--Não -respondeu Owain-. Ouvi contar histórias do Escuro, mas jamais encontrei-me com ele.
--Também eu soube de suas façanhas -disse Montrovant ao Owain-. Em minhas viagens em busca da sagrada relíquia, freqüentemente escutei você nome. Parecia que quase sempre te encontrava um passo por diante de mim. Mas não soube até agora que tinha tido êxito -a demência voltou a aparecer em seu olhar, como se o mero pensamento de que alguém tivesse triunfado ali onde ele tinha colhido fracasso detrás fracasso fosse suficiente para empurrá-lo a um violento frenesi.
--Jamais procurei o Grial -disse Owain, apoiando a mão sobre o pomo de sua espada-. Está louco.
--E diz que um ancião chamado Kli Kodesh te contou tudo isto? -perguntou Isabella ao Montrovant. Ele assentiu-. O que sabe desse Kli Kodesh?
Um sorriso sombrio se desenhou nos lábios do Montrovant.
--Sei que é tão velho como o mesmo tempo, e que fui uma peça em seus jogos muito freqüentemente.
--Então, por que crie o que te diz? -perguntou de novo Isabella.
Montrovant riu amargamente ante a pergunta.
--Ele joga a seus jogos por mero entretenimento. A vida, a morte, as horas, os séculos... tudo é o mesmo para ele. Há suficiente entretenimento na verdade. Ele não necessita das mentiras. Envia-me em minha busca para que o divirta.
--E você empresta a seus jogos? -Owain se sentia enojado.
--Esta vez triunfarei! -Montrovant elevou o punho frente a ele. Vaiou e ensinou as presas.
Owain esteve a ponto de desenvainar a espada. Kendall mantinha a pistola em alto, apontando ao Escuro. Tinha-o estado vigiando com soma atenção, preparada para reagir ante o primeiro indício de agressão, em que pese a que a conversação em francês arcaico logo que tinha sentido para ela.
--Montrovant -a imperiosa voz da Isabella se elevou e devolveu uma aparência de calma à habitação. Montrovant pareceu recuperar o controle de si mesmo e retrocedeu um passo. Owain, a sua vez, apartou a mão do punho da espada. Kendall baixou a arma.
--Deve me contar mais a respeito desse Kli Kodesh e do que lhe disse.
--O Escuro não é só um louco, mas também um idiota -mofou-se Owain-. Pode perder todo o tempo que queira com suas tolices, mas eu não o farei -voltou-se e saiu da habitação, seguro de que Kendall guardaria suas costas se ao Montrovant lhe ocorria tentar aproveitar-se da oportunidade. Enquanto saía fez um discreto gesto a seu fiel ghoul para indicá-la que se mantivera onde estava. Ela se encarregaria de vigiar ao Montrovant. Isabella parecia confiar em aquele lunático, mas Owain não estava disposto a compartilhar seu insensatez.
Ignorando as imperiosas demandas da Isabella, que o ameaçava a voltar, Owain saiu da casa empurrando a desvencilhada porta. Confiava em não ativar ao fazê-lo-as barreiras mágicas de amparo que ela tivesse disposto, mas não o importava muito. Owain duvidava ainda que ela pudesse possuir algum poder capaz de danificá-lo. Entretanto, uma vez na rua se voltou a olhar a fachada. A porta aparecia intacta. Não havia nada incomum na casa, nada que permitisse distinguir a das vizinhas. Owain estava impressionado, mas nem sequer o poder daquela ilusão assombrosa lhe fez começar a temer por sua própria segurança.
As ruas da cidade não estavam tão deserta como Owain as visse a noite anterior. Os mortais passeavam aqui e lá, dedicando-se palavras amistosas entre si. Owain não confiava tanto em as habilidades da Isabella para permitir que os mortais advertissem sua presença. As sombras se alargaram para lhe dar a bem-vinda e, embora se encontrava em caminho aberto, nem tão sequer o mais próximo dos mortais reparou em sua presença.
De todas maneiras, não tinha nenhum sentido tentar à sorte, assim que procurou proteção a um lado da casa. De ali se voltou para o oeste, em direção a imponente torre que coroava Glastonbury Tor. Para o este, bem sabia, encontrava-se a Santa Sarça, esperando a que sobreviesse a próxima visão para poder aterrorizá-lo de novo. Owain não sentia o menor desejo de aproximar-se a nenhum dos dois lugares. Já tinha visto mais que suficiente de ambos. Em vez disso, elevou a vista e encontrou a janela que procurava.
Silencioso como uma sombra, escalou os quase sete metros de parede que havia até aquela janela. Seus dedos se cravavam com facilidade nos tijolos e a argamassa. Um ligeiro esforço de seu vontade bastou para abrir o fecho. Ao cabo de uns segundos, se encontrava no interior da habitação. Os objetos das estanterías estavam dispostos exatamente da mesma maneira em que o tinham estado a noite anterior. As mesmas peças descansavam sobre a pequena mesa junto à parede: a vela, o terrina dourada, o cântaro de água... e o vial que continha o elixir que tinha-o sumido na mais vivida visão que tinha experiente até então, o elixir que lhe tinha permitido tocar ao Angharad e sentir sua pele contra a gema dos dedos.
Owain se atrasou um instante junto à janela, escutando. Podia perceber com claridade as vozes que chegavam do piso de abaixo: a enojosamente sossegada da Isabella, e a inquieta do demente Montrovant. Sem dúvida Isabella continuava formulando suas perguntas, empurrando ao Montrovant a dizer o que ela queria que dissesse. Era uma lástima, pensou Owain, que Kendall não entendesse o francês arcaico, porque não poderia informá-lo mais tarde que o que ali se estava falado.
Rápida mas silenciosamente, Owain tomou assento junto à mesa. Seu olhar se posou imediatamente sobre o diminuto vial. Seus pensamentos retrocederam várias horas no passado. Isabel ao tinha devotado um traguito, embora a taça com aspecto de dedal que tinha utilizado já não se encontrava à vista. Ao contrário que quando viram o Ellison, esta vez não tinha metido encantamentos nem feito gestos. Era, pois, o elixir, tudo o que a magia requeria? Owain olhou a triste e pequena mecha que me sobressaía de um grumo de cera que uma vez tinha sido uma vela. Então tinha estado acesa, mas, era um componente necessário do que tinha ocorrido? Considerou a possibilidade de reacender o que ficava da vela, mas o aroma bem poderia alertar a sua anfitriã, assim decidiu não fazê-lo.
Levantou o vial da mesa. Tinha assumido que ele e Isabella discutiriam o que tinha visto, o que tinha experiente. Seu esperança tinha sido que ela poderia arrojar alguma luz sobre o porquê da persistência das visões. Ela assegurava que podia fazer que desaparecessem. Mas agora Owain sabia que seu mais fervente desejo não era livrar-se delas. Agora havia outras possibilidades que considerar.
Angharad.
Quando as canções da sereia tinham despertado por vez primeira as lembranças do Angharad em sua mente, tinha-a visto desde a distância, através de uma das janelas do lar de sua infância. Pouco tempo depois, quando as visões tinham começado, a tinha visto como em um sonho, real um momento e apenas uma vaga sombra ao seguinte. Mas aquela mesma noite, pouco antes (um estremecimento percorreu todo seu corpo ao recordar), tinha chegado a tocar seu rosto, havia sentido o contato de suas mãos sobre as próprias. E agora, várias horas mais tarde, ainda acreditava que de verdade havia-a meio doido. A despeito do que sua mente racional lhe dizia, Owain sabia que as lembranças não eram os de um sonho que lhe houvesse sido arrebatado. As gemas de seus dedos, a palma de sua mão, tinham acariciado aquela, a mais suave pele. Angharad, não uma sombra de sua mente. Tinha-lhe falado. Tão seguro quanto Isabella sentou-se frente a ele, ao outro lado da mesa, tinha estado em sua presença. Racionalmente era consciente de que devia livrar-se de as visões, mas agora, através do diminuto vial que sustentava entre suas mãos, tinha a possibilidade de voltar a ver o Angharad. De voltar a tocá-la. De escutar uma vez mais sua voz. E não podia deixar acontecer a oportunidade. Ao igual a não podia reunir a coragem para saudar o sol da manhã e pôr fim a sua solitária existência.
Desentupiu o vial e o levou a seus lábios. Sentiu a doce queimação do elixir entre seus lábios e sua língua, e percorrendo sua garganta. Logo que ficavam umas gotas, assim inclinou a cabeça para trás e sustentou o vial sobre sua boca, apurando-o.
Não tinha idéia do que continha o elixir. Não o tinha perguntado a Isabella. Sem dúvida ela teria esquivado a pergunta. Enquanto aguardava a que algo, algo, ocorresse, os pensamentos de Owain se voltaram para sua enigmática anfitriã. Sabia muito pouco mais a respeito dela que quando tinha chegado. acreditou-se muito inteligente ao seguir a pista aos movimentos de xadrez. Havia planejado enfrentar-se a ela e castigá-la por sua interferência. Mas em realidade, tudo o que dela tinha descoberto, incluindo em primeiro lugar sua mesma existência, não tinha sido mais que o que lhe havia permitido conhecer. Sua interferência na partida de xadrez não havia tido mais objeto que atrai-lo ali. Ou ao menos isso havia dito.
Ela podia ter previsto que ele iria ao Berlim em busca de quem interceptava suas cartas, mas como podia saber que Ellison o enviaria aqui? Era muita coincidência, e Owain era o suficientemente inteligente como para não acreditar nas coincidências. Acaso era Ellison seu cúmplice no plano? depois de havê-lo visto través da magia da Isabella, Owain duvidava por alguma razão que o Nosferatu participasse conscientemente em uma conspiração. Recordando seu encontro, Owain se deu conta de que Ellison havia trocado visivelmente de atitude uma vez que tinha posado sua vista sobre o medalhão que Owain levava consigo, o medalhão que era idêntico ao que ele mesmo possuía. Possivelmente pensou que eu era uma ameaça para seu secreto tesouro, pensou Owain, recordando com quanta desespero tinha obstinado o Nosferatu seu medalhão, como havia suspirado invocando o nome de seu Melitta, quem quer que esta fosse. Mas como podia Isabella saber que tudo ocorreria daquela maneira? perguntou-se Owain.
Uma vez mais, a resposta era incerta.
Inquieto, moveu-se na cadeira. O problema era que não podia estar seguro sobre nada que descobrisse a respeito da Isabella. Era um verdadeiro descobrimento, ou em realidade só descobria exatamente o que ela desejava?
Ela não pertencia à Estirpe. Disso estava seguro. Sempre tinha sido capaz de reconhecer aos de sua espécie. Aquela era uma habilidade que não todos os Cainitas possuíam, e que o próprio Owain não alcançava a explicar-se completamente. Ela não pertencia à Estirpe, mas sua vida se prolongou muito mais do que aos mortais estava-lhes permitido. De outro modo, nunca tivesse podido misturar-se em uma partida de xadrez em que os movimentos chegavam às vezes a atrasar-se durante décadas.
Também era uma perita colecionador de conhecimento. Uma espião, em suas próprias palavras. Tinha escrito a falsa carta ao Grego, o que significava que tinha reunido informação referente à facção do Carlos no Sabbat. O fracassado experimento que havia desencadeado a maldição do sangue sobre o mundo dos Cainitas era um pouco conhecido apenas por uns poucos, e Carlos mataria para que continuasse sendo assim. Parte daqueles conhecimentos podia havê-los obtido de mãos dos Nosferatu, aqueles hábeis traficantes de secretos, mas nem sequer eles poderiam conhecer tantas costure sobre os mais secretos assuntos do Sabbat.
Conhecia minha vida mortal, recordou-se Owain. O suficiente como para reconstruir com notável fidelidade a câmara que tinha habitado durante sua juventude. Como pôde conhecer ela tais coisas? Como?
Pergunta-a ardia em sua mente. À medida que tratava de desentranhar as diversas adivinhações, seus olhos foram fazendo-se mais e mais pesados. Que rapidamente tinha passado a noite, pensou, para que a chamada da manhã começasse já a arrastá-lo ao sonho. Mas a noite não tinha passado ainda. A escuridão ainda cobria o paisagem que se estendia além da janela, e nem sequer parecia próxima a levantar-se. Sobre o tor, a torre se levantava como um monólito, resplandecente sob a luz da lua.
Pestanejou. Não podia ter tido os olhos fechados mais de um segundo. É estranho, pensou, que me encontre tão cansado quando ainda ficam várias horas até o amanhecer. Voltou sua atenção a José, que tinha estado falando-o.
--Buscas o Grial como uma prova da existência de Deus? -perguntou o ancião. Sua escura barba estava recortada e cuidada com esmero. Seu queixo me sobressaía ligeiramente, como se o formular a pergunta tivesse sido uma espécie de desafio.
--Não -disse Owain-. Sei que Ele existe. Sei muito bem -se levantou da terra sobre a que tinha estado sentado com as pernas cruzadas. A colina estofada de erva estava completamente deserta à exceção dos dois homens-. Durante anos escutei sua voz -José levantou a cabeça, interessado-. Sim -continuou Owain-. Cada vez que acontecer um arroio, ou quando escuto o rugido de uma cascata, posso ouvir Sua risada. ri de minha dor, de minha perda. Quando escuto o sussurro das folhas secas arrastadas em uma última viagem pela brisa de outono O ouço burlando-se de minha pena. Uma pena que Ele arrojou sobre meus ombros!
O rosto do José se entristeceu. apoiou-se pesadamente em seu fortificação.
--por que, então, Owain? por que vieste em busca do Santo Grial? Quer fazer disso uma farsa?
A risada cruel do Owain se estendeu por toda a colina.
--Sustentaria entre minhas mãos esse sagrado recipiente, o cálice que conteve o sangue de Cristo. Não porque não cria em seu poder. Nem muito menos. Eu, mais que a maioria, acredito no poder, e na glória, e em a vida eterna -Owain avançou um passo para o José-. Pode que seja o cristão mais devoto com que jamais te tenha encontrado.
Owain se separou do ancião e se voltou para o este. Naquela direção pôde ver a solitária torre, a capela consagrada a São Miguel.
--Sustentaria-o, sim. Sustentaria-o porque é o símbolo daquilo que lhe é mais prezado a nosso Deus: seu amado Filho. Sustentaria-o para poder fazê-lo pedaços com minhas próprias mãos, para poder obliterar o vestígio de Deus e de Cristo sobre a Terra -Owain se voltou de novo e se aproximou do ancião-. E você, José, dirá-me onde se encontra... se é que valora em algo sua vida. E não acredito que houvesse vivido tanto tempo de não ser assim.
José não se amedrontou. Antes ao contrário, manteve-se em seu lugar.
--vivi muito tempo -disse o ancião-. É certo. Mas eu não sou como você. A maldição do Caín não mancha minha frente. Não vivo no medo. Não te temo -seus olhos, de cor azul pálida, desafiavam abertamente ao Owain-. Não me trouxe até aqui o medo, a não ser a esperança. Porque embora esteja marcado pela maldição, não é muito tarde para ti nem para os de sua raça.
--Esperança? -Owain se mofou das palavras do José-. É um homem de Deus, mas não pretenda me dizer que também é um homem de esperança. Quando era menino, vi como a esperança abandonava este mundo junto com a alma de minha mãe. Quando fui homem, vi como a esperança morria quando meu irmão se desposava com a mulher que eu amava. Então, senti que a esperança abandonava por completo meu corpo quando uma monstruosa besta tomou posse de mim e me fez seu para sempre. Vi a esperança morrer nos olhos de meu decrépito irmão pouco antes de que lhe rompesse o pescoço. Vi a esperança morrer enquanto enviava a meu sobrinho a sua morte. E deixei que a esperança morrera quando lhe dava as costas à terra de meus pais -à medida que sua fúria ia incrementando-se, Owain se tinha aproximado do José, até que seus rostos estavam apenas a centímetros de distância-. Atreve a me oferecer esperança? A mim?
Mas José se manteve firme.
--Assim é -um grunhido surdo começou a formar-se na garganta de Owain-. Ofereço-te esperança. Ofereço-te a esperança do amor eterno de Deus nosso Pai. Ofereço-te...
Owain lhe arrebatou o fortificação, cortando suas palavras em seco. Profiriendo um rugido de pura raiva, levantou a vara sobre sua cabeça, e descarregou um golpe sobre o rosto do José. O ancião se desabou sobre o chão com a mandíbula e o queixo feitos pedacinhos.
Owain se situou sobre a sanguinolenta figura.
--Oferece-me esperança para que seu Deus possa voltar para arrebatar-me isso de novo -voltou a levantar a vara sobre sua cabeça e a deixou cair. Não como um pau, mas sim como uma lança, em linha reta, para empalar a carne. A vara, apesar de que não estava afiada, caiu com tal força que atravessou o peito do José e se afundou quase um palmo na terra.
O ancião não gritou. Seu olho esquerdo já estava fechado pela inchaço e os ossos quebrados pelo primeiro golpe. Mas seu olho direito, muito aberto, olhava fixamente ao Owain. José não voltaria para dizer nada sobre o Grial, mas ao Owain, entregue em corpo e alma ao frenesi, não lhe importava já. equilibrou-se sobre a empalada figura e afundou suas presas na garganta do José.
À medida que Owain se alimentava, o corpo deixou de debater-se, até ficar por completo imóvel entre seus braços. Então começou a murchar-se. Enquanto isso, o fortificação experimentava uma prodigiosa transformação. Parecido na terra através do corpo quebrado do José, numerosos brotos começaram a separar do cabo de madeira. Umas raízes cobraram forma e se afundaram na terra. Umas ramos se estenderam em todas direções para os céus.
Owain apurou a última gota de anciã sangre, e o corpo de José de desmoronou, convertido em pó. Só ficava dele uma montanha de cinzas, ao pé daquilo que tinha sido sua vara, mas que agora era um espinheiro adulto. Em questão de segundos, e ante a atônito olhar do Owain, umas gemas brotaram e se converteram em folhas. Nasceram as flores, abriram-se em todo seu esplendor e logo caíram sobre ele como uma chuva de pétalas vermelhas e brancas.
Súbitamente, a mesma terra se estremeceu e Owain foi arrojado ao chão. Sobre a colina, em meio da vereda, a torre de San Miguel tremia violentamente. Alguns tijolos começaram a separar do muro no alto dos muros. A estátua de San Miguel, que coroava a torre, cambaleou-se e se precipitou para a terra. Owain observou seu queda como se se produzira a câmara lenta, a cabeça sobre os talões -um arcanjo que elevava o vôo-, e então a estátua caiu ao chão e se rompeu em mil pedaços.
O vento, chegado de nenhuma parte, levantou-se furioso, e arrastou pelos ares as cinzas que tinham sido o corpo do José. Owain, médio cegado pela poeirenta tormenta, escutou e sentiu, mais que viu, como a torre da capela se desabava sobre ele. Do povo e a abadia chegavam até seus ouvidos gritos de pânico, enquanto a terra se agitava e tremia.
Uma voz, mais próxima que as outras, elevou-se por cima do imperante caos.
--O Assassino da Estirpe matou ao guardião do Grial!
Owain olhou a terrina pouco profunda que tinha ante si, sobre a mesa. A imagem da torre desabando-se sobre ele se desvanecia por momentos, arrastada por umas ondas que cruzavam a superfície da água. Os ecos da destruição e a fúria que fervia em suas veias também estavam desaparecendo. A fatídica noite dava passo ao presente. Owain levantou a cabeça e viu a Isabella e ao Montrovant observando-o do outro lado da mesa. Kendall permanecia de pie junto a eles. A preocupação por seu professor coloria seu rosto.
--Matou ao guardião do Grial -disse Montrovant, olhando fixamente ao interior da terrina, que agora só mostrava água clara e transparente. Seus olhos se levantaram e foram posar se sobre o Owain-. Tem que havê-lo encontrado -sua voz soou quase suplicante por um momento, mas em seguida, o reverente temor de sua voz e seu rosto se permutou por algo muito mais ameaçador-. Me deve dizer isso resonar del viento, de la vibración, de la vara atravesando la carne y
As lembranças da magnífica árvore florescente e dos olhos cor azul pálido do ancião ainda se aferravam à mente do Owain. O ressonar do vento, da vibração, da vara atravessando a carne e os ossos até cravar-se na terra o separavam do que agora escutava e via. Olhou com expressão perplexa ao Montrovant e Isabella. Pareciam encontrar-se muito longe dele, como se os passos que separavam-nos fossem em realidade quilômetros.
Incapaz de reagir, Owain observou ao Montrovant estender as garras para sua garganta e equilibrar-se por cima da mesa sobre ele.
Montrovant pulverizou por todos lados a terrina, o cântaro e a vela enquanto saltava grosseiramente sobre a mesa. Owain, ainda desorientado, logo que podia fazer outra coisa que observar como as garras se cravavam em sua garganta, e a força da investida de Montrovant o jogava junto a sua cadeira para trás. Caíram os dois ao chão, encetados. O impacto da queda extraiu as garras de Montrovant do pescoço do Owain. Um estalo de dor sacudiu seu corpo. Sua laringe tinha sido seccionada de lado a lado. O sangue começou a emanar.
Owain se levou uma mão à garganta enquanto com a outra tratava de alcançar os olhos de seu atacante. Montrovant apartou a cara. Owain esperava um golpe ou outro talho das garras, mas durante uns instantes não o recebeu, e só então advertiu que a mão de Montrovant estava sobre o punho da espada, a seu flanco.
Owain soltou sua garganta e, com uma mão ensangüentada, agarrou a boneca do Montrovant e cravou as unhas na carne do Escuro, perfurando os músculos e os tendões e lhe destroçando o osso. Seu outra mão caiu sobre a cara do Montrovant procurando um olho.
Montrovant se balançou e propinó com o ombro um forte golpe sobre o peito do Owain. Este saiu despedido. Seu crânio se golpeou com força contra o chão. Qualquer vantagem que sua força superior o pudesse proporcionar era enxuta pela implacável violência do ataque do Montrovant.
O Escuro, ignorando sua destroçada boneca, arrancou a espada do Owain do cinturão. Com um rugido triunfante, rodou para seu esquerda e rapidamente se elevou sobre os joelhos. Com o sangue emanando de seu braço e sua cara, levantou a espada para administrar o golpe de graça.
Pela segunda vez aquela noite, uma explosão ressonou entre os muros da casa. E logo outra. O primeiro disparo do Kendall impactou no braço elevado do Montrovant, entre o ombro e o cotovelo. O segundo penetrou em seu peito de um flanco, destroçando as costelas e quaisquer órgãos internos que ainda possuísse seu macilento corpo. A força do impacto o enviou voando contra a parede e caiu sobre o Owain.
Este aproveitou o momento de pausa que lhe brindava. Rapidamente ficou em pé, preparado para confrontar o seguinte ataque. Seu potente sangue estava já acelerando o processo de cura. O talho de sua garganta começava a fechar-se e a enchente de sangue remetia.
Quando os combatentes se separaram, Kendall se preparou serena para realizar outro disparo. Owain estava seguro de que este o voaria a cabeça ao Montrovant. Isabella se mantinha à margem da refrega, com uma expressão sombria grafite no rosto, mas esta vez não tratou de deter o Kendall.
Montrovant, cambaleante pelas feridas recebidas, apoiou-se contra a parede, tratando de ficar em pé. Seu braço direito, destroçado pelo primeiro disparo, permanecia inútil a um flanco, mas seus dedos ainda se aferravam com força invencível ao punho de a espada. Olhou de soslaio ao Owain, mas sua atenção estava fixa em Kendall. Fúria e determinação ardiam em seus olhos, mas o respeito ante aquela arma moderna que o tinha ferido já três vezes parecia aplacar sua fúria assassina. Não estava seguro de como tratar com ela, confundido pelo estrondo das detonações e o terrível castigo que podia infligir.
Então, de súbito, Montrovant se moveu. Seu ataque foi muito rápida para os reflexos do Kendall. Não teve tempo de disparar de novo.
Owain estava preparado para receber outro ataque, ou para defender ao Kendall se era necessário, mas com um passo Montrovant atravessou a habitação e se jogou pela janela. O ruído dos cristais ao romper-se resultou agudo e estridente, comparado com o reverberante trovão das detonações que ainda ressonava nos ouvidos de Owain.
antes de que os cristais terminassem de cair ao chão, Montrovant tinha escapado, perdendo-se na noite.
Os três que permaneciam na habitação, conmocionados, guardaram silêncio por uns segundos.
--Obrigado por garantir minha segurança no interior de sua casa -disse Owain a Isabella.
--Não tinha contado com que o provocaria -respondeu ela com voz seca.
--Provocar...? -começou a protestar Owain. Mas entoe seguiu seu olhar e reparou na terrina de ouro, caído de barriga para baixo sobre o chão e no atoleiro de água a seu redor-. Viram...?
Isabella assentiu. Seus olhos encontraram os dele.
--Sim.
As sensações voltaram empelotando-se a sua mente: as palavras do José, a emoção experimentada enquanto a vara atravessava a carne e se cravava na terra, o sabor da anciã sangre sobre seus lábios, o tremor da torre ao derrubar-se... e então soube que não se tratou de uma visão, nem de uma profecia, mas sim de uma lembrança.
--Estava ali -disse Isabella-. Você matou ao José. Atravessou seu corpo com sua própria vara.
--Sim -murmurou Owain, mais para si mesmo que para ela.
--As profecias falam de ti, Owain. E então sobrevirá o Assassino da Estirpe. Seu é o sangue do sacrifício. Sua a agonia das foi.
Owain a olhou sem compreender. Os mundos da memória e de as experiências pressente se batiam as asas vertiginosamente em seus pensamentos. Suas palavras se mesclaram com as do morto, as do assassinado, José. E então sobrevirá o Assassino da Estirpe... lhe ofereço esperança.
As lembranças alagaram sua mente: lembranças do assassinato; lembranças de uma viagem esquecida a Inglaterra, ao Glastonbury; lembranças de sua fracassada busca do Grial. Montrovant havia dito a verdade.
Owain caminhou para a porta. Fora pela perda de sangue ou pelo peso entristecedor da revelação, suas pernas falharam e trastabilló. Seus pés tropeçaram com a terrina dourada, que saiu despedido pela habitação. Kendall se equilibrou sobre seu professor enquanto este vacilava. Seus fortes braços o sustentaram em pé.
--Há muito que aprender, muito que compreender -disse Isabella-. Mas agora deve descansar.
Kendall ajudou ao Owain a baixar as escadas até a habitação do subsolo. O forte aroma da pólvora a envolvia como um perfume. Com muito cuidado, fez que se tendesse na cama.
Montrovant havia dito a verdade. Owain repetiu as palavras uma e outra vez enquanto recreava obsessivamente as lembranças. de repente, as visões cobravam uma perspectiva completamente diferente, e não menos ameaçador. Havia nelas fantasia, mas também, na mesma medida, História. A sensação de familiaridade que o havia assaltado frente à Santa Sarça na colina Wearyall cobrava agora sentido. Tinha estado ali antes. O forte vínculo que sentia não derivava somente das lendas e as histórias que conhecia. Havia estado ali antes. Tinha estado ali, e não obstante a lembrança lhe havia sido oculto. Mas como? Soube a resposta incluso antes de formular a pergunta.
Owain podia sentir de novo o sabor do sangue do ancião sobre seus lábios. O sangue do José da Arimatea. Tão completamente humano e ao mesmo tempo muito mais que mortal. O poder de aquele sangue tinha afligido ao Owain, tinha enterrado no mais profundo de sua mente os acontecimentos daquela noite, de aqueles anos. Sua busca do Grial não tinha sido um capricho passageiro. Embora possa que a tivesse açoitado de forma menos compulsiva que Montrovant, Owain tinha investido muito tempo e energia recolhendo as numerosas histórias, reunindo os prodígios, tanto os mais antigos como os de seu tempo, que marcavam seu presença. E apesar disso, quando tinha negado ter empreendido aquela busca havia dito a verdade. A verdade que ele conhecia em aquele momento. Agora, escassas horas mais tarde, sabia que as coisas eram diferentes.
Quantas coisas mais esqueci? perguntou-se.
Apertou as mãos contra suas têmporas e cravou afiadas unhas em seu couro cabeludo como se dessa maneira pudesse extrair a oculta sabedoria das foi.
--Owain? -a voz do Kendall interrompeu a mutilação que se estava infligindo a si mesmo.
Owain pôde ler a confusão e a preocupação por sua sorte em seus olhos. Estava muito pálida. Embora lhe tinha sido de grande ajuda antes, resultava evidente que também se encontrava muito débil. Tinha que apoiar-se no guarda-roupa para permanecer em pé. Durante as últimas noites se alimentou dela com muita freqüência para recuperar-se das perdas de sangue que tinha sofrido, e não havia tido a oportunidade de estancar suas forças como tivesse devido. Não pode me servir se tiver que carregar ao mesmo tempo com o peso de me servir de rebanho, repreendeu-se a si mesmo. Mas enquanto esfregava as feridas de suas têmporas, uma pontada de culpa esporeou seu consciência. Acaso não tinha decidido liberar a de seu serviço? Não tinha decidido pôr fim à farsa da essência pró quo, seu serviço a mudança do presente da vida eterna?
Olhou-a com olhos angustiados. A força de sua delicada forma o assombrava. Tinha demonstrado ser capaz e letal. Duas vezes durante esta noite, tinha-lhe salvado a vida. Neste mundo que cada dia resultava mais diferente ao que ele tinha conhecido, poderia sair adiante sem sua ajuda? Poderia, se lhe permitia afastar-se, sobreviver?
Owain a chamou com um gesto. Com um rápido corte da unha, abriu sua boneca e a ofereceu. Ela levou a mão até seus lábios e bebeu.
Só uma última vez, prometeu-se. Havia muito em jogo para estar cego e indefeso durante o dia, precisamente agora. Só uma última vez. Assim que nos tenhamos partido deste lugar, liberarei-a. Owain pensou que ela jamais tinha reclamado sua liberdade, jamais tinha expresso a menor reserva ou preocupação por seu condição. Mas é que ela não conhecia a verdade como ele. Não podia saber que nunca lhe outorgaria o Abraço, que nunca jogaria a ser Deus estendendo a maldição a outro ser humano.
Só uma última vez.
Enquanto ela extraía seu sangue da ferida, Owain saboreou a sensação de seu fluir. deu-se conta de que ela era mais que seu conexão com o mundo mortal. Era sua conexão com o mundo da humanidade. E, entretanto, à medida que ela bebia dele, a medida que se voltava mais como ele, lhe arrancava naquela troca humanidade. Apanhado no êxtase do Beijo inverso, Owain podia imaginar que os objetos que enchiam a habitação eram em realidade as posses de seu passado mortal, dos dias de desenfreado vigor e completa humanidade.
Em agudo contraste com aquela sensação estava o recentemente descoberta lembrança da fatídica noite na colina Wearyall, a noite em que tinha assassinado ao José. Nunca como aquela noite se tinha afastado Owain de sua humanidade. Não se tinha entregue ao apetite, à Besta, a não ser ao mal. Tinha cansado a chumbo em abismos que foram muito além da devoradora fome que possuía a todos os de sua raça. Naquele momento a Besta tinha sido muito mais humana que ele.
Sentiu o entusiasmo com que ela aceitava o que lhe oferecia pelo tremor de sua língua sobre sua boneca aberta. Owain apoiou a cabeça sobre o travesseiro de plumas, uma das lembranças de seu perdida humanidade. Repentinamente, sentiu-se assaltado por uma sensação de ausência, de funda tolice, mais intensa do que tinha experiente em anos. Tinha bebido o elixir para encontrar a Angharad, para recuperar suas paixões mortais. E tinha encontrado, em troca, a incontestável prova de sua segura e completa condenação. A última noite tinha provado o sabor da humanidade. A maçã se apareceu ante seus olhos, mas se tinha revelado como o fruto proibido.
Não me darei por vencido! Foi às nuvens contra o Deus vingativo que tinha imposto a maldição sobre a descendência de Caín, que lhe tinha arrebatado ao Owain, primeiro o amor, e depois a humanidade. Não me darei por vencido!
Os lábios do Kendall se moviam ritmicamente sobre sua pele. A sensação que produziam era de muito agudo prazer. O sangue que ainda se encontrava em suas veias fluía a mais velocidade e com maior força. Era uma mescla de sua maldição e da humanidade dela. Algum dia, Owain sabia, se não a liberava antes, seu sangue acabaria por impor-se, e então só ficaria a maldição.
Sem apartar sua aberta boneca de seus lábios, Owain tomou uma de suas mãos. O aroma de seu sangue era muito forte. Deslizou sua língua a o comprido do antebraço, fazendo que lhe pusesse a pele de galinha. Em sua mente, viu o rosto do Angharad enquanto alargava a mão para ela. Sentiu sua delicada bochecha e escutou seu extasiado gemido enquanto cravava as presas na carne do braço que tinha ante si.
O sangue fluiu rápida e quente. Owain bebeu a compridos goles ao princípio, sugando profundamente, mas então tentou equiparar o ritmo de sucção ao dela com seu sangue. Era um equilíbrio precário.
Kendall deixou escapar um ofego contra sua boneca. Porque, sim, era Kendall e não Angharad. Seu corpo estava muito pego ao dele, seu perna enroscada na dele. Rodeado pela réplica das lembranças de sua vida mortais, Owain saboreava a humanidade da moça fluindo para ele. Sujeitou a parte de atrás de sua cabeça e a forçou a apertar-se contra a ferida de sua boneca. Ela bebia com avidez. Seus garras riscaram a linha de suas vértebras com o passar do pescoço. Chegaram à camiseta e a rasgaram, enquanto lhe arrancava a camisa, sem que nenhum dos dois renunciasse ao sangue.
Ela deslizou uma mão sobre o pêlo de seu peito, e enterrou as unhas na carne quando ele sugou com major força seu sangue. Seu lhe apaixonem aroma e seu acusado sabor enchiam os sentidos de Owain. Ela era tudo o que tinha perdido, o que nunca poderia recuperar. Apertou os dedos contra o insolente peito, percorreu com a mão aquele ventre que ainda podia iluminar um menino. Seu entristecedora humanidade, enfrentada a sua própria maldição, resultava uma tentação além de toda medida.
O desejo se apoderou do Owain. aproximava-se perigosamente ao ponto mais à frente do qual não poderia controlar-se. A pura luxúria da sangue se mesclava com um desejo insuportável. Fome e paixão eram um. A humanidade nua do Kendall o envolvia, arrastava-o, empurrava-o para diante.
Todos seus escrúpulos se dissolveram. Bebeu dela sem conter-se. O coração do Kendall martilleaba furiosamente, em um vão intento de compensar o volume de sangue que estava abandonando seu corpo. Não duraria muito, mas ao Owain tinha deixado de lhe importar. A teria por completo. Sua boca e sua garganta estavam alagadas com seu sangue. Devia possuir sua humanidade, consumi-la. Era dela. Completamente dela.
As mandíbulas do Kendall se afrouxaram. Sua mão caiu inerte sobre a coxa do Owain. Ele seguia dando um banquete com seu sangrenta essência, mas ela tinha deixado de beber. Assim, o círculo se tinha quebrado. Seu consciencia se estava afastando. rendia-se a ele. Enfrentada a imparable força de sua paixão, não podia fazer outra coisa.
Owain seguia bebendo. Sua fome e sua luxúria eram alimentadas pelo desejo de consumir a mesma alma do Kendall. Pôde sentir como seu frenético coração, mais pesado com cada pulsado, ia debilitando. Uns poucos minutos mais e se teria ido. Mas Owain seguia faminto. Nem sequer o sacrifício do Kendall bastaria para saciá-lo. E ela morreria. Morreria para ele.
Repentinamente, Owain se deteve, como se acabasse de receber um golpe. separou-se dela tão bruscamente que o sangue do Kendall, expulsa da ferida como a água de um sifão, regou o tapete, deixando uma espessa e intensa mancha vermelha. Owain tomou pelos ombros. Seus olhos tremiam e giravam nas órbitas. Mas ainda respirava. Seu coração ainda pulsava. Owain se aferrou a ela, escondeu a cabeça em seu regaço. Combateu sua fome enquanto se aproximava a ela. Era seu único vínculo com a humanidade, o único ser que durante séculos tinha conseguido engendrar um fogo tão intenso em seu interior. E, entretanto, tinha estado a ponto de destrui-la. Porque se houvesse contínuo só um pouco mais, não terá tido mais alternativa que Abraçá-la ou deixá-la morrer. E inclusive se tivesse optado pela primeira solução e não a tivesse matado, então a teria convertido em algo semelhante a ele mesmo. A preciosa faísca da vida, da humanidade, teria se extinto em seu interior.
Owain apertou a cara ainda com mais força contra ela. Era seu fonte de humanidade e tinha estado a ponto de destrui-la. Escutou, dando obrigado, como os batimentos do coração de seu coração se foram fazendo mais fortes. Enquanto se encontrava aproximado a ela, os batimentos do coração de seu coração se converteram na única medida do tempo para ele. Não se deu conta de que a manhã se levantava arrastando consigo a seu consciencia, e se rendeu ao sonho.
Chegou a tarde e Owain despertou, sozinho, tendido na cama. A sangre seca do Kendall decorava ainda o tapete, mas ela se tinha partido. Sua camisa, feita farrapos e enrugada, jazia sobre o chão. A muda de roupa que havia trazido consigo também havia desaparecido. Owain aguardou uns instantes, refletindo sobre o grave engano que tinha estado a ponto de cometer. Quase se havia privado de seu mais valioso recurso. De todos os ghouls que Owain tinha empregado ao longo dos anos, Kendall era muito provavelmente o mais regulável e no que mais podia confiar. Por essa razão, sua ausência neste momento não o preocupava muito. Provavelmente se estava assegurando de que a zona era segura, de que o lunático Montrovant havia realmente fugido e não estava esperando ao Owain nas cercanias para lhe tender uma emboscada.
Montrovant. Os pensamentos do Owain se voltaram para o Escuro. Tinha escapado com a espada do Owain, um dos dois objetos que ainda conservavam algum valor sentimental para ele. O recuperaria. Owain começou lentamente a planejar como poderia encontrar ao Escuro e como, por todos os problemas que lhe havia causado, destruiria-o.
De todas maneiras, outros assuntos reclamavam sua atenção imediata: a visão que não era uma visão; as lembranças que, durante séculos, tinham permanecido escondidos em seu interior. Havia muitos secretos que desentranhar. Em duas ocasiões tinha provado o elixir de Isabella, ferramenta de seus misteriosos quehaceres, mas em nenhuma das duas ocasiões, e graças às inoportunas interrupções de Montrovant, tinha podido investigar com a Isabel ao que tinha visto... o que tinham visto, porque aparentemente o espelho de água havia mostrado a outros as imagens que até então só haviam existido na mente do Owain.
depois de um momento, levantou-se da cama. Devo averiguar o que é o que Isabella sabe. Abriu o guarda-roupa e extraiu do bolso de sua gabardina o único objeto que ainda conservava que supunha para ele algum elo, alguma lembrança de sua vida mortal: destroçado-los restos do livro que Angharad lhe desse de presente. Ocuparei-me da Isabella, e então me ocuparei do Montrovant. Era consciente de que para levar a cabo esta última tarefa necessitaria a ajuda do Kendall, especialmente se tinha que viajar ao estrangeiro. A promessa que se fazia de lhe outorgar a liberdade teria que esperar um pouco mais. Primeiro ajustaria as contas com o Montrovant. Então a liberarei, voltou a prometer-se.
Owain encontrou a Isabella no salão, esperando-o. Sustentava um grande livro, encadernado em couro, sobre os joelhos.
--Assim que outra vez sozinhos -disse.
Isabella fechou o livro cuidadosamente.
--Sim.
A completa calma de suas maneiras surpreendeu ao Owain. A pesar de todo o ocorrido durante as duas últimas noites, parecia controlar-se sem nenhum esforço. E também parecia manter o controle da situação.
--Se ao Montrovant lhe ocorre voltar -disse Owain-, matarei-o.
Isabella o olhou fixamente, com um brilho intenso nos olhos, mas não respondeu. Maldita seja! Pensou Owain. É que não há nada que eu possa fazer ou dizer que perturbe a esta mulher? manteve-se de pé frente a ela, em completo silêncio, por uns momentos, antes de voltar a tentar surpreendê-la com o guarda baixo.
--Fez-o vir a propósito.
A acusação provocou uma resposta, embora não a que Owain tinha esperado. A mulher esboçou um sorriso e riu para seus adentros.
--Não o conhecia -respondeu-. E não sabia que ia vir, mas... -deixou escapar um comprido suspiro enquanto tratava de encontrar as palavras exatas- não posso dizer que sua aparição me agarrasse completamente despreparada.
--Suas palavras não têm nenhum sentido.
--Talvez para alguns -depositou o livro sobre a mesa maca que havia a seu lado-. Por favor -assinalou com um gesto a uma cadeira que havia em frente dela-, sente-se -esperou a que ele o fizesse e continuou-. Suspeitava que alguém poderia aparecer e, por isso vimos, Montrovant era de fato esse alguém. A Tríada Ímpia por fim está ao completo.
Owain se manteve em silencio durante uns segundos até que não pôde refrear a língua.
--Está tão louca como ele.
Ela se encolheu de ombros.
--O que sabe do Kli Kodesh, esse ao que Montrovant mencionou, o que disse que o tinha enviado? -perguntou.
--Nada.
--Está seguro? -inquiriu.
O que sabe? A resposta a essa pergunta não era tão simples como o tivesse sido vinte e quatro horas antes. Um prolongado período de tempo, vários anos cuja existência nem sequer tinha advertido, o tinham sido devolvidos de algum jeito a sua memória. Como poderia em adiante estar seguro do que na verdade sabia ou deixava de saber? Enquanto Isabella aguardava pacientemente, tratou de recordar aqueles anos nos que tinha estado perseguindo uma relíquia da Cristandade que, por isso ele sabia, bem podia ser só um mito. O tinha impulsionado a gélida determinação de destroçar com suas próprias mãos o mais potente símbolo da divindade, de cuspir à cara do Deus que certamente tinha cuspido na sua. Aquele propósito original tinha florescido com o passado do tempo, convertendo-se em compulsão, e mais tarde em uma verdadeira cruzada. Após Owain não havia tornado a conhecer uma motivação tão poderosa. Aqueles anos de busca, agora o recordava, tinham transcorrido em sua major parte na França e Inglaterra. Também recordava a Montrovant, quem tinha açoitado, quão mesmo ele, o Grial. A confrontação com o José, seu vil assassinato... tudo isto podia recordá-lo também. Mas Kli Kodesh...?
--Nada.
Isabella assentiu.
--Acredito-te -mas se isto significava que acreditava que Owain não sabia nada, ou que não havia nada que saber, ele não podia estar seguro-. Nunca vi ao Kli Kodesh -continuou-, mas ouvi falar dele. É muito velho, como disse Montrovant. Seu nome se menciona ocasionalmente em algumas historia relacionadas com o Grial. Essa parece ser a conexão entre o Montrovant e você.
--E se supõe que esse Kli Kodesh conhece o paradeiro do Grial? -perguntou Owain.
--supõe-se que sabe muitas coisas -respondeu Isabella-. Há tido muitos nomes ao longo da História. Algumas lendas asseguram que se trata do muito mesmo Judas Iscariote, o traidor entre os discípulos de Cristo. Em outras aparece como Merlín, conselheiro de Arturo, quem, conforme contam as histórias, conquistou Roma. Ainda outras contam que é um demente tão ancião como as foi do mundo, afligido pelo tempo e o aborrecimento, e que cria todos os contraditórios contos que sobre ele se contam. História? Mito? Lenda? -Isabella se encolheu de ombros-. Tudo o que sei é que é muito ancião, e que é o guardião das Profecias Sinistras.
Profecias Sinistras.
Os pensamentos do Owain voaram de volta a aquela noite de tormenta, no Toledo, ao estranho, escuro como o alabastro que lhe havia falado e logo se desvaneceu em um nada. Outro enigma sem solução em uma coleção de perguntas que não tinha princípio nem fim. Recordou suas palavras e voltou às pronunciar:
--O caminho que se abre ante te conduzirá ao mesmo centro da tecido de aranha da viúva. Conduzirá-te ao pé da sarça Santa. Lhe conduzirá à escondida presença do sagrado recipiente. É ali onde deverá pronunciar as palavras de ruína para os filhos do Caín. Esta é a tarefa que te foi encomendada. Que seja assim. Que assim seja.
Por uma vez, os olhos da Isabella se abriram completamente, surpreendidos. recuperou-se quase imediatamente, mas não antes de que Owain advertisse sua reação.
--O tecido de aranha da viúva? -disse enquanto lançava uma significativo olhar a seu redor-. Não há dúvida. Estava louco.
--diria-se que não é tão alheio aos manejos do Kli Kodesh como tinha pensado -disse Isabella.
--Isso parece -a surpresa do Owain não era tão intensa como o tivesse sido antes de conhecer as revelações sobre o José. O ancião Ventrue começava a adquirir clara consciencia do pouco que realmente sabia. Brevemente, descreveu a Isabella o estranho encontro acontecido nas ruas do Toledo.
--E algumas das palavras que te disse reapareceram em vocês visões?
--Sim -Owain não deixava de pensar na surpresa que por tão breve tempo tinha aparecido na expressão da Isabella quando recitasse as palavras do Kli Kodesh. Tampouco podia se separar de seus pensamentos aquele perturbador encontro, e sua frustração frente ao parlamento de aquele estranho que parecia estar em posse de secretos que envolviam ao Owain sem que ele soubesse.
Isabella esperava pacientemente a que Owain começasse a descrever suas visões. Olhando-a, Owain teve um interessante pensamento. Ela, ao igual a Kli Kodesh, tratava ao Owain como se soubesse mais do que em realidade sabia. Para ser mais precisos, advertiu, ambos o tratavam daquela maneira sabendo que ele ignorava o que sabiam em realidade. sentiam prazer no sentimento de poder que lhes outorgava, e se gabavam dele.
--Diz que é um guardião de profecias -falou Owain-. Profecias sobre o que?
--Esse conhecimento está em seu interior, Owain.
Owain se inclinou para diante.
--Já está bem de me tratar como a um moço. Ou responde a minhas perguntas, ou abandonarei esta casa, e seu jogo terá acabado. Se suas adivinhações ficam sem resposta, acredito que poderei suportá-lo. E você?
Isabella considerou sua pergunta atentamente.
--As adivinhações serão resolvidas -respondeu ao fim-. Pode que este não seja o momento famoso, mas serão resolvidos. E você será o que os resolva.
Com seu livro na mão, Owain se levantou da cadeira e se voltou para abandonar a habitação, abandonar a casa, e não retornar jamais.
--A profecia -disse Isabella com voz acalmada- fala de você destruição.
Owain se deteve, e voltou de novo o rosto para ela. As palavras que ela pronunciou então lhe gelaram o sangue.
--Este é o Fim dos Tempos. É a morte do sangue -as mesmas palavras que tão freqüentemente tinha escutado em suas visões brotavam dos lábios da mulher.
Owain voltou seus pensamentos por volta das visões mais recentes, as que lhe tinham sido induzidas pelo elixir, as do Angharad e José e que Isabella tinha podido presenciar através de sua magia. Este é o Fim dos Tempos. É a morte do sangue. Aquelas palavras não tinham sido pronunciadas!
Mas Isabella não tinha acabado.
--Este é o tempo da Colheita. E nos últimos dias o professor voltará para blandir suas ferramentas. O firmamento tremerá e a mesma terra será feita pedaços. Os lugares secretos da terra farão-se de repente visíveis, e as criaturas da escuridão proferirão seus chiados à luz do dia. Porque está escrito que Abel era um pastor de rebanhos, mas Caín um cultivador da terra.
Suas palavras encontraram assento no interior do Owain. Se ajustavam como as peças perdidas de um quebra-cabeças junto às palavras que tinha escutado em suas visões. Estava indefeso ante elas. A voz da Isabella cobrou um tom mais áspero e severo. Seus olhos resplandeceram cheios de justa convicção.
--O Primogênito vem envolto na fúria. Arranca a seus filhos de suas tumbas. Sua cólera é um martelo, um grosseiro pau úmido da sangue do Assassino da Estirpe. E conduz o relâmpago diante de sim. Sua voz é um vento tenebroso que percorre os campos. A seu mandato, os céus se abrem, e chove sangue sobre os sulcos que há escavado. Seus filhos levantam espectadores caras para o Céu, mas são sufocados e afogados na corrente de derramada vida. Tal é o preço de seu apetite.
A fera olhar da Isabella fulminou ao Owain. Parecia gozar com a profecia do destino.
--Só então liberará Caín de seu jugo ao boi de olhos vermelhos, cujo nome é Gehena, porque ninguém pode suportar a visão de seu semblante.
A lembrança de sua extraordinária façanha lhe emprestava uma direção clara ao movimento do Nicholas. E a sua fome. Viajou para o oeste a o comprido do precipício entre os mundos. Não pertencia já por completo a nenhum dos dois. Em nenhum podia encontrar distração do dor e a fúria que o possuíam. Manter-se em equilíbrio entre este mundo e aquele já não supunha uma luta. O cansaço tinha deixado passo à sede. Sede de sangue, sede de vingança. A cada passo que dava, não dois, a não ser três mundos demandavam sua atenção: aqui, ali, então.
Ali, encontrava-se sempre sobre o escarpado. O abismo estava alagado pelo brilhante Rasgo, que se expandia sem cessar. Logo transbordaria o canhão e alagaria a planície de todos os mundos. Os infatigáveis mortos, que seguiam perseguindo-o, tinham ficado atrasados, mas não muito. Agora que se deteve, seu excitado balbuciar se aproximava rapidamente.
Aqui, Nicholas tinha ido tão longe como lhe era possível. A espuma do mar do Canal lambia as rochas a seus pés, encrespando-se ao redor de seus tornozelos. A luz do Rasgo brotava de seu interior com cada irado ofego, como o ardente fôlego de um semental em uma manhã de inverno.
Então, Nicholas voltou a ver, como tantas vezes tinha visto, a vil façanha através dos olhos do Blaidd. Só que agora Nicholas era o Ancestro e Blaidd a Origem. A dor da lança atravessava seu peito. O aroma de seu medo e de sua definitiva morte enchia seu nariz enquanto o Assassino da Estirpe seguia aproximando-se, mais e mais.
O sangue ancestral unia todos os mundos no interior de Nicholas. Seu som o chamava, o suculento aroma do sangue roubada, o terrorífico vazio enquanto o sangue lhe era drenada.
Nicholas caminhou ao longo da costa enquanto as despreocupadas águas seguiam lhe lambendo os pés. Impaciente-os gritos que lançavam as sombras estavam muito próximos já. A maioria das criaturas o tinham seguido desde o Grunewald. Tão prolongada e obstinada ação tivesse estado normalmente mais à frente de suas possibilidades, mas o aroma da anciã sangre e a atração do resplandecente Rasgo os impulsionava infatigáveis para diante. Suas filas se estendiam pelo horizonte como um rio negro, e seus chiados de alegria imbecil se elevavam mais e mais à medida que sentiam a cercania de sua presa.
Com uma devoção pulseira do instinto, introduziram-se na água depois dele. Nicholas esperava. Agarrou a primeira das sombras e a levantou do chão. A sombra chiou, provavelmente de dor, mas só por um momento. Esmagou-a entre suas poderosas mãos, levou-a a seu boca e a devorou inteira. Enquanto dava a bem-vinda da mesma maneira à segunda sombra, pôde sentir à primeira descendendo por seu esôfago até ser consumida nas chamas do Rasgo que tanto tinha desejado alcançar.
A luz e o fogo que se derramavam da boca e os dedos de Nicholas acenderam ainda mais o frenesi que consumia às legiões de mortos. Nem podiam ver nem lhes importava o destino que, um após o outro, foram encontrando. aferravam-se às pernas de Nicholas, subiam por suas costas, enquanto muitos mais partiam em sua direção.
Logo, Nicholas não teve necessidade sequer de levantar uma mão. Os desventurados mortos subiam os uns por cima de os outros esporeados pela mera possibilidade de aproximar-se de sua boca e introduzir-se em sua garganta. Vinham por centenares, um detrás de outro, e um detrás de outro ia Nicholas consumindo. Durante quantas horas, não sabia, porque junto ao precipício o tempo se havia tornado líquido como a água do Canal a seus pés. Se formavam redemoinhos junto à Rasgão, que agora tinha começado a fluir dele. À medida que o fogo em seu interior crescia, sua pele cobrou um aspecto translúcido. E eles seguiam vindo, e seu festim continuava, embora a sede que queimava seu interior não fazia a não ser crescer. A sangue e a carne dos mortos não podia aplacar sua fome, não podia silenciar a ardente obsessão que tinha começado tanto tempo atrás. Se se voltasse e consumisse todas as terras do mundo, ainda arderia aquela chama em seu interior.
No alto do precipício, Nicholas sentia o Rasgo, expandindo-se e alcançando o bordo da sima. A cintilante luz acariciou seus pés, e logo seus joelhos, e ainda seguiu crescendo. O peso das sombras se fez muito grande. Enquanto caía, miserável por elas do escarpado para o furioso abismo, soube que sua viagem estava aproximando-se de seu fim.
Várias horas tinham acontecido desde que Kendall, enjoada e sentindo nauseia, tinha despertado. Não tinha tido que consultar seu relógio para comprovar que ainda era de dia. O profundo torpor em que Owain estava sumido resultava prova eloqüente disso. Durante um bom momento se manteve imóvel, simplesmente respirando, ignorando o martilleo que ressonava em suas têmporas e a ardência da ferida logo que cicatrizada em seu antebraço.
Ao cabo de um momento, foi capaz de incorporar-se. O úmido ar de a habitação resultava sufocante, e embora isso podia não ser um problema para seu professor, ela precisava respirar. Ao menos não é tão mau como o camarote do maldito navio, pensou. Lentamente, se vestiu. Grampear cada botão da camisa resultava um grande esforço. Introduziu trabalhosamente uma perna na perna da calça da calça, e logo a outra. Reparando nos farrapos que ficavam da roupa que Owain e ela tinham levado a passada noite, decidiu que logo teria que conseguir roupa nova. levantou-se e contemplou o nu corpo dele durante uns instantes. De uma palidez antinatural, nenhum movimento (nem respiração, nem pulsação) perturbava sua quietude. Parecia mais um cadáver que uma pessoa dormida. Mas, recordou-se, é que em boa isso parte é o que era.
Enquanto o observava ali tendido, com a aparência de um morto, Kendall não pôde evitar pensar em como se alimentaram mutuamente apenas fazia umas quantas horas. Seu contato havia sido muito mais que um simples intercâmbio de sangue. Que estranho, pensou. Nada como aquilo tinha ocorrido antes. Não é que o habitual ritual de alimentação não resultasse prazenteiro. De fato estava a quilômetros de distância do sexo dos mortais. Mas aquela noite algo diferente tinha ocorrido.
A habitação começou a dar voltas. Necessito ar fresco, recordou. Guardou seu mágnum .45 sob a camisa e se dirigiu lentamente escada acima. Não havia sinais da presença do Montrovant ou Isabella. Má coisa, porque Kendall tivesse estado encantada de ter a oportunidade de costurar a balaços a cabeça do vampiro. O Escuro, mofou-se. Mas bem eu diria o Lerdo.
O vigoroso ar da tarde a animou um pouco. Sua cabeça começou a esclarecer-se, e sentiu como as forças voltavam para ela. Tinha perdido um pouco de sangue a noite anterior, mas o sangue vampírica fresca que tinha tomado em troca enxugaria facilmente a perda.
O povo do Glastonbury parecia um pequeno e aprazível lugar. Os vizinhos passeavam tranqüilamente, sem emprestar muita atenção ao Kendall. Apesar disso, procurou não deixar-se ver muito. Estava intrigada pelo fato de que, do exterior, os estragos sofridos pela porta principal da casa da Isabella, ainda por reparar, não resultassem visíveis. Em todos os aspectos, a casa resultava muito semelhante às da vizinhança. O que outros truques, perguntou-se Kendall, guardaria sua misteriosa anfitriã na manga?
Agora que começava a sentir-se mais forte, dedicou-se a inspecionar a área ao redor da casa da Isabella, procurando qualquer série do passo do Montrovant, ou de outros perigos potenciais. Como a maior parte da conversação tinha tido lugar em francês, Kendall não tinha uma idéia muito clara do que estava ocorrendo, mas isso não lhe impedia de manter os olhos bem abertos e atentos a qualquer detalhe suspeito.
Terminou sua ronda quando o sol começava a ocultar-se depois do horizonte. Não tinha encontrado nada fora do ordinário. Seu olhar voltou-se para o este, em direção ao tor, cuja silhueta dominava a campina. Tinha investigado a colina e a capela da torre a mesma noite em que Owain e ela tinham chegado ao Glastonbury. Pensando de novo no Owain, não pôde evitar perguntar-se pela ferocidade com que se tinha alimentado dela a passada noite. Possivelmente fosse seu imaginação, mas por um momento tinha acreditado que ia sugar lhe tudo o sangue. Pode que então a tivesse tomado e a houvesse feito como ele. Ou pode que a tivesse abandonado, convertida em um cadáver murcho, morta e bem morta. Sentia que uma das duas possibilidades a tinha rondado muito de perto. Kendall lhe tinha notado debater-se, lutar contra si mesmo, contra seu desejo por ela, e não sabia o que pensar disso.
Embora a sua não era uma vocação típica, sempre havia considerado o Owain como seu patrono, e o trabalho que para ele desempenhava como o meio para conseguir um fim. Possivelmente, de alguma maneira, seu corpo se estava voltando viciado na excelência física que o sangue dele outorgava, mas em tudo caso ela se apreciava de servi-lo bem. A outra noite, entretanto, cada um deles havia cruzado a linha que separa a um patrão de seu empregado. Owain, estava quase seguro disso, tinha querido algo mais que seu sangue. A tinha querido a ela. E ela o tinha desejado a sua vez. Tinha desejado seu sangue; tinha desejado ser como ele; estar com ele daquela noite em adiante.
Aquilo sentimentos a angustiaram. Já era suficientemente mau perder o controle enquanto se alimentava, mas desenvolver laços emocionais e físicos e submeter-se aos caprichos de outro...
E não um simples homem, reprovou-se. Um vampiro, pelo amor de Deus! Tratou de jogar longe de sua mente tão estéreis pensamentos.
Com a chegada do crepúsculo, os habitantes do Glastonbury se dirigiram lentamente a suas casas ou ao pub local. Os últimos dos precoces turistas que realizavam excursões pelos arredores retornavam ao povo, ou montavam em seus carros alugados e tomavam o caminho ao Bristol ou Bath, ou em qualquer lugar que se alojassem. Kendall confiou em que Owain e ela se encontrariam longe do lugar antes de que a temporada turística chegasse a seu apogeu, o que ocorreria ao cabo de umas poucas semanas. Não queria encontrar-se perto quando as hordas de seguidores da Nova Era e de jovenzinhos a a última moda invadissem o povo. As lendas relacionavam o tor com todo tipo de coisas, do rei Arturo, até os druidas, passando pelo mundo faérico. A primeira reação do Kendall foi burlar-se ante tais fantasias, mas então se deu conta de que ela trabalhava para um vampiro, assim que quem sabia?
Mas esse tipo de coisas eram exatamente as que não queria considerar naquele momento Enquanto tentava ignorar a natureza de seus cambiantes relacione com o Owain, seus olhos se fixaram nas ruínas da Abadia do Glastonbury. Não se encontrava muito longe da casa da Isabella, apenas umas centenas de metros para o sul. A pesar dos séculos de abandono, numerosas porções dos muros e os arcos se mantinham em pé. Enquanto as sombras se abatiam sobre ela, Kendall imaginou que a Abadia estava ainda intacta, e que ela podia ver a paisagem que a rodeava tal e como poderia havê-lo feito alguém centenas de anos atrás.
aproximou-se de uma seção de um muro, e acariciou a envelhecida pedra com os dedos. Centenas de anos, pensou. Se Owain chegar a me fazer como ele, poderia rondar por aqui durante todo esse tempo. Suspirou. Apesar de seus propósitos não podia permanecer afastado de seus pensamentos a seu professor e ao que tinha ocorrido entre eles. Tinha ouvido o Owain referir-se a sua natureza como uma maldição. Mas ela... OH, que imenso prazer lhe proporcionaria uma vida de séculos e séculos! Franziu o cenho ante o novo curso que tinham tomado suas meditações. Não brinque contigo mesma, pensou. Acaso lhe parece que ele se sente feliz? Não compreendia a melancolia que dominava ao Owain como uma perpétua nuvem de tormenta. Mas tampouco era coisa de sua incumbência. E não tem nenhum sentido fantasiar sobre a possibilidade de converter-se em alguém como ele, se arreganhou. Ele outorgaria o presente, ou não o faria. Não havia nada que ela pudesse fazer além de seu trabalho.
Mas apesar de tudo, seguia sentindo curiosidade frente a uma vida estendida durante centenares de anos. O mundo parecia trocar muito, mas alguns lugares, como este no que se encontrava agora, pareciam quase invulneráveis ao passado do tempo. Possivelmente não resultasse muito presunçoso por sua parte lhe perguntar sobre isso a Owain uma noite. Para alguém como Kendall, que ainda não havia completo os trinta anos, a percepção do tempo em tão ampla escala era simplesmente inconcebível.
Repentinamente se deu conta, para seu desgosto, de que ultimamente estava acostumado a pensar no Owain como algo mais que seu patrão, que seu professor e que a fonte de suas superiores habilidades. Gostaria, se fosse possível sem superar os tácitos limites que os separavam, poder fazer algo para aliviar o peso da tristeza que via refletida em seu cara. Eu gostaria de poder ajudá-lo, estar ali para ele, admitiu para seus adentros.
Um som brusco despertou ao Kendall de seus ensoñaciones. Embora não distinguiu conscientemente do que se tratava, atuando por instinto, com um movimento fluido, extraiu a pistola de seu cinturão e se voltou.
--Só então liberará Caín de seu jugo ao boi de olhos vermelhos, cujo nome é Gehena, porque ninguém pode suportar a visão de seu semblante.
A transformação resultava assombrosa. Acalmada-a e cáustica Isabella era arrebatada enquanto falava por uma paixão, um sentido de urgência, que Owain nunca tivesse acreditado possível nela. Parecia como se as palavras da profecia tivessem provocado um incêndio em seus olhos.
As palavras também afetavam ao Owain, mas de diferente maneira. Gehena. O Fim dos Tempos. A mais escura das noites, quando os Cainitas mais anciões se levantariam depois de séculos de sonho e consumiriam a sua origem. A noite, dizia alguns também, em que o próprio Pai Escuro despertaria e voltaria a caminhar sobre a Terra. E se as profecias estavam no certo, não estanha muito agradado pelo que seus olhos veriam.
--O Primogênito vem envolto na fúria. Arranca a seus filhos de suas tumbas. Sua cólera é um martelo, um grosseiro pau úmido da sangue do Assassino da Estirpe.
Sim. Na verdade Owain tinha assassinado aos de sua estirpe, tanto a mortais como ao Cainitas. Havia inclusive destruído ao portador do cálice de Cristo.
--Sua voz é um vento tenebroso que percorre os campos. A seu mandato, os céus se abrem, e chove sangue sobre os sulcos que há escavado. Seus filhos levantam espectadores caras para o Céu, mas são sufocados e afogados na corrente de derramada vida. Tal é o preço de seu apetite.
Mas Owain duvidava de que seus pecados, por terríveis que pudessem ser, fizessem empalidecer aos de muitos de seus irmãos. Se estava no certo, o dia do julgamento não traria a condenação final só para ele, a não ser para todos os Cainitas.
A profecia ressonava com acordes de verdade no interior de Owain, abria-se caminho violentamente até a negrume de sua alma. Podia sentir o poder de suas palavras em seus mesmos ossos. As visões que durante todos aqueles meses o tinham assaltado começaram a aparecer-se sucessivamente em sua mente. Algumas imagens eram brilhos do inferno em que sua vida se havia convertido desde seus dias de mortalidade. Outras se referiam como alegorias ao destino que aguardava a raça de monstros a que se tinha unido. E a maioria delas se confundiam como um eco em seu mente, sem que pudesse as distinguir, com as palavras da Isabella.
--O tempo da Colheita -murmurou Owain para si. Durante muitas semanas tinha tratado de ignorar, de esquecer, as ferozes visões. Mas agora, escutando a Isabella falar, foi consciente de que a mensagem que escondiam não era só para ele. Não podia simplesmente apartá-lo e dedicar-se a outros misteres.
--Acaso não está claro? -perguntou ela-. O tempo da Colheita. Por todo mundo, seus irmãos de raça se murcham e morrem, vítimas de seu próprio sangue hirviente. As ruas, literalmente lotadas pelos Condenados, estão por fim vazias.
--Mas você, precisamente você -disse Owain recordando a carta dirigida ao Grego que Isabella tinha falsificado-, sabe que a maldição da sangue foi desatada pelo Carlos, foi um plano urdido pelo Sabbat que saiu mau.
--E isso o converte em menos certo? -perguntou, de novo um rastro de condescendência na voz. Levantou de seus joelhos o tomo forrado em couro que sustentava-. Estas são as palavras do José de Arimatea. A profecia escrita por sua própria mão. Devia cada peça ser situada em seu lugar por ele mesmo? Devia acaso pôr as mãos sobre o cadáver de um vampiro fulminado pela maldição e pronunciar as palavras "o tempo da colheita" para que se cumprisse a profecia? Os intuitos divinos freqüentemente vêem a luz da mão de insuspeitados agentes.
--As palavras do José da Arimatea? -perguntou Owain, olhando boquiaberto o volumoso livro.
Isabella assentiu.
--Ele vaticinou a maldição do sangue. Vaticinou o desvanecimento do sangue -seu olhar se endureceu sobre o Owain-. E vaticinou muitas mais costure... Assassino da Estirpe.
Com a mente ainda vagando entre as visões, Owain voltou lentamente a tomar assento e abriu o maltratado livro do Angharad sobre seus joelhos. As páginas estavam rotas e cobertas de sangue seca. Começou a passar as páginas desde atrás, deixando as que estavam em branco até chegar à última anotação, escrita por ele mesmo.
O que tivesse pensado Angharad?
Albert, o assassinado Malkavian, tinha pronunciado aquelas palavras. Albert, que tinha pronunciado um nome que nunca houvesse devido conhecer. Albert, que tinha entregue ao Owain o medalhão que tinha permitido a Isabella espiá-lo. Levantou os olhos do livro e olhou a Isabella.
--Os divinos intuitos freqüentemente vêem a luz da mão de insuspeitados agentes -voltou a dizer.
--Albert? -perguntou Owain, incrédulo.
--Vigiei-te durante muitos anos -disse Isabella-. usei muitos médios diferentes, e incontáveis agentes. Albert não era meu fonte de informação mais... confiável, mas se manteve em contato contigo, embora de maneira intermitente, durante centenas de anos.
Owain recordou o medalhão, o desenho da formosa mulher e a palavra rabiscada no reverso do papel: mãe. Como no caso do Ellison e seu Melitta, Isabella tinha proporcionado ao Albert uma conexão com alguém muito querido de seu passado.
O que tivesse pensado Angharad? Por um breve momento, a esperança resplandeceu no interior do Owain. Podia Isabella fazer o mesmo por ele? Mas então se encontraria em dívida com ela. Se converteria em um peão em seus jogos, tal e como Albert e Ellison faziam. Não toleraria essa servidão.
Owain seguiu acontecendo páginas de seu livro, deixou atrás as notas que tinha escrito ao longo dos anos, até chegar às páginas povoadas pela delicada letra de seu único amor, Angharad. Viu o perfil de uma folha que agora se converteu em pó, e as palavras que, durante tantos anos, a folha tinha mantido ocultas.
Que seja assim. Que assim seja. Isabella, desde seu assento, recitou as palavras que Owain estava lendo. Repicavam em sua mente. Eram as mesmas que tinham aparecido em suas visões. Quão mesmas Kli Kodesh tinha pronunciado nas ruas do Toledo.
--Angharad conhecia as profecias do José -disse Isabella.
--Como é possível? -perguntou Owain fracamente. Apenas escutou a resposta da Isabella. Seus pensamentos voavam rápidos em detrás do passado.
Isabella voltou a depositar o livro sobre seus joelhos.
--José não era um simples mortal, Owain. Acaso crie que houvesse acessado a encontrar-se com alguém como você, que se houvesse arriscado a ser assassinado e a que seu sangue te servisse de alimento, se não fora por um propósito mais elevado?
Ofereço-te a esperança. Também aquelas eram as palavras de José. Mas o que era o que, perguntou-se Owain, tinha esperado ganhar José com o sacrifício de sua própria vida?
Isabella seguiu recitando as palavras da profecia, que parecia conhecer de cor.
--Eu vi uma Cruz, empapada pelo sangue de nosso Senhor, ardendo para dar a luz uma nova vida. Vi brotar dela os ramos da Santa Sarça para impedir a ímpia cercania dos impuros e o sabor da fruta proibida.
--Ele sabia o que ia ocorrer, Owain -insistiu Isabella-. A Ilha de os Anjos tremendo... Miguel arrojado à terra. Em 1375, um terremoto assolou esta parte da Inglaterra. A capela de San Miguel no alto da colina foi destruída -seus olhos brilhavam cheios de convicção-. Estas palavras tinham sido escritas centenas de anos antes! A noite que bebeu o sangue do José, o período de tempo que permanecia oculto a sua memória... que ano era?
Owain recordou. Tinha fugido do Gales a começos do século quatorze. Primeiro tinha partido a França, mas alguns anos mais tarde tinha retornado a Inglaterra.
--Foi aquele ano -murmurou, embargado pela consternação.
--José falava de seu próprio sacrifício, do fim que sabia que o esperava. Assim como a cruz foi o instrumento do sacrifício de Cristo, a vara foi para o José. E arraigou e cresceu como a Santa Sarça.
Owain sacudiu a cabeça. Devia existir outra explicação. Como podia José ter sabido com séculos de antecipação o que Owain ia a fazer? Mas as visões o assaltaram com renovada fúria, e se cambaleou, a ponto do desmaio.
... a Ilha dos Anjos tremendo... Miguel... arrojado à terra.
A colina tremeu e se agitou. A torre se curvou a um lado e a outro. A cruz de pedra caiu sobre o chão e se fez pedaços. Os sillares soltaram-se dos muros da torre. inclinava-se perigosamente. Uma seção do muro cedeu. A estrutura completa tremeu, e se desabou sobre a terra...
--Owain.
Sua visão se esclareceu. Voltou a ver o mobiliário do salão. Mas a dicotomia era muito acusada. Olhou a Isabella, perplexo.
--Há mais -disse Isabella. voltou-se para seu próprio livro. Seu dedo deslizou-se sobre as palavras à medida que lia:
--E então sobrevirá o Assassino da Estirpe. Sua é a sangue do sacrifício. Sua a agonia das foi. As lamentações tingem sua alma. Os filhos do Caín são Colhidos. O Assassino da Estirpe é Colhido. E ele leva uma coroa de espinhos.
Owain escutou as palavras. Escutou o nome que, aparentemente, tinha-lhe sido outorgado: Assassino da Estirpe.
--Quando o Tempo da Colheita tenha passado, o Assassino da Estirpe se apresentará ante o Traidor do Sangue. Gemidos e chiar de dentes são a sombra do Traidor, seguindo-o como a noite segue ao dia. E assim, a Terra abrirá seu ventre e a Besta sairá arrastando-se dele, em busca do sangue com que saciar sua sede. Miguel, o mais exaltado entre os membros da Gloriosa Companhia, treme ante a Tríada Ímpia, ao fim completa. A Besta caminha sobre a Terra. A Ruína dos filhos do Caín está próxima.
--Não tinha ouvido essas palavras antes -disse Owain.
--Porque a hora não tinha chegado ainda -disse Isabella-. Até hoje.
--A hora? Para que?
A paixão voltou a iluminar os olhos da Isabella.
--A hora da culminação dos esforça do José. A hora de a destruição de sua raça. A hora da culminação de meus próprios esforços. É seu destino, Owain.
--É meu destino destruir a todos os vampiros? me destruir a mim mesmo? -sacudiu a cabeça-. Está louca.
--Mas, Owain. estiveste te destruindo a ti mesmo durante quase um milênio! -Isabella quase gritou-. O que te trouxe a maldição do Caín, salvo da morte lenta de cada farrapo de sua humanidade? sofreste durante quase mil anos. 'Sua a agonia das foi. As lamentações tingem sua alma' -repentinamente sua voz se tornou doce, pormenorizada-. chegou o momento de sua liberação.
--Essas profecias -Owain agitou a mão frente aos livros-. São um sinsentido. Como pode estar segura de que sou de verdade o Assassino da Estirpe, ou de que José tinha planejado que o mataria e beberia-me seu sangue? -argumentou. Mas mais por desafio que por convencimento. As visões tinham impressionado profundamente seu alma. As profecias, e as mesmas palavras da Isabella, pudessem ser provadas ou não, soavam verdadeiras em seus ouvidos e em sua mente.
Isabella fechou o livro e o deixou sobre seu regaço.
--Estou segura -disse-, porque José me revelou isso. -Owain não acreditava ter ouvido o que tinha ouvido-. Sentei-me tão perto dele como o estou agora de ti, e me falou, faz quase mil anos.
Owain permaneceu em um assombrado silêncio.
Isabella não esperou a que se recupera.
--Acusaste-me que ter trazido para o Montrovant aqui. Não o fiz. Mas acredito, em troca, que veio para servir a um propósito. Recorda. E assim, a Terra abrirá seu ventre e a Besta sairá arrastando-se dele, em busca do sangue com que saciar sua sede. Estou segura de que advertiu que falava em francês arcaico. Sem dúvida acabava de abandonar a terra, de sair de quaisquer imunda sima em que tenha dormido os últimos quatrocentos anos. E procurava o Grial. Queria beber o sagrado sangue que pudesse acalmar sua sede.
Owain pôde ver a conexão que ela estava sugiriendo. Assassino da Estirpe. A Besta.
--Mas isso só são dois terços da Tríada Ímpia. O que há do Traidor do Sangue?
Isabella ficou lentamente em pé.
--O tempo que auguram as profecias e seu significado completo -disse-, foram um mistério para mim durante muito tempo. Como o apóstolo Pablo aguardando o retorno do Senhor, eu esperei o tempo da Ruína. Deixei um rastro para que o seguisse: as cartas entre O Grego e você. Através de meus próprios espiões no Sabbat, inclusive exerci algumas influencia na eleição do nome do experimento que conduziu à maldição do sangue.
Outra peça do quebra-cabeças que encontrava seu lugar.
--Projeto Angharad -murmurou, quase para si mesmo, e então se voltou para a Isabella-. Isso foi só para atrair minha atenção.
Ela assentiu.
--Temo-me que minha fé na profecia não é tão forte como era a de José. Ele deu sua vida, ao fim e ao cabo. Mas eu me esforcei em deixar sinais que lhe trouxessem até mim. Devi supor que as visões acabariam por te trazer até aqui, mais tarde ou mais cedo. Uma vez que a Colheita te golpeasse, as visões não demorariam para segui-la.
--Então é que estou infectado pela maldição do sangue? Isso é o que provocou as visões? -esta revelação deixou perplexo a Owain. A maioria dos Cainitas afetados pela maldição haviam morto de uma maneira atroz ao cabo de poucos dias, ou de semanas, em o melhor dos casos.
Isabella esquivou sua pergunta.
--Pode que a maldição, que José prévio, fosse a causa das visões. Ou pode que fora a canção de sua maravilhosa sereia, lá em Atlanta, o que tocou sua alma, a que liberou o suficiente os lembranças, e as visões viessem depois. Em qualquer caso, as visões apareceram, como José sabia o que fariam... e você está aqui. É seu destino.
O destino. Desde os primeiros dias de sua vida mortal, Owain tinha lutado sempre por ser o governante de seu próprio destino. Tinha fugido do Gales em vez de submeter-se à vontade dos descendentes dos invasores normandos. Tinha tratado de esquivar a autoridade do Grego e do Sabbat, do Príncipe Benison e da Camarilha. E, corrompendo aos Templarios e procurando o Grial havia chegado tão longe para desafiar a autoridade do Deus ao que fazia responsável pelas tragédias que se abateram sobre ele.
Agora, entretanto, encontrava-se com que não era um rei, a não ser um peão nos jogos que Isabella tinha levado adiante durante séculos. Era uma peça inconsciente das profecias do José.
Ou isso quereria Isabella que acreditasse.
--Meu destino -disse com voz deliberadamente mesurada- só me pertence para mim. Só eu posso decidir sobre ele.
Isabella não tentou fazê-lo trocar de opinião. Não diretamente.
--Antes me perguntou sobre o Traidor do Sangue ao que se mencionava na Profecia -recordou-lhe-. A mulher de suas visões era alguém que conhecia -era uma afirmação. Não uma pergunta.
Owain sentiu que suas bochechas ardiam. Albert e Ellison podiam haver-se emprestado ao marketing de emoções da Isabella, mas ele estava resolvido a não repetir seus enganos. Custasse o que custasse, manteria em seu poder o escasso controle que sobre seu destino o ficava.
--Já manchaste seu nome duas vezes -advertiu-a-. A primeira com o Albert, e a segunda com o Carlos e o Sabbat. Utilizou-o como chamariz para me atrair aqui. Ambos sabemos que ela não tinha nada que ver com este assunto, assim deixa de sujar a lembrança que conservo dela.
Isabella pareceu de repente preocupada. Sua expressão se voltou uma caricatura da de uma mãe afligida.
--OH. Mas, Owain. O que tem que seu livro? -fez um gesto em direção ao desvencilhado volume-. Acaso não foi ela a que lhe o deu? por que crie que teria escrito nele as palavras da profecia do José? E como podia as haver conhecido?
Owain ficou tenso ante suas perguntas. Tinha estado questionando-as mesmas coisas durante muito tempo, e não havia conseguido encontrar respostas razoáveis.
--E o que tem que as visões? -perguntou Isabella.
--O que? O que tem que elas? Sonhos e fantasmas do passado, nada mais.
--Mas, acaso não lhe pareceram com o princípio caóticas, infelizes, sem sentido? E agora, em troca, reconhece-as como o que são, signos que assinalavam às profecias.
--Seriamente o faço? -perguntou Owain. Durante um breve momento se tinha deixado arrastar pela história dela. Era certo que existiam inquietantes similitudes entre suas visões e as profecias mas, acaso significava isso algo?-. Pura coincidência -afirmou-. Nada mais que puras coincidências. E inclusive se estivesse no certo, inclusive se for o Assassino da Estirpe, e Montrovant é a Besta, Angharad não poderia ser o Traidor. Está morta faz já muito tempo. Sua profecia não se cumpriu.
--Tão seguro está? -inquiriu ela.
--Está louca -disse Owain-. Arrastaria a seus jogos para que acabasse me destruindo a mim mesmo?
--O que bom lhe proporcionaram os séculos de sua no-vista, Owain? -perguntou com brutalidade-. Todos aqueles a quem há conhecido e a quem amaste morreram, enquanto você seguia você caminho. vais dizer me que durante todas essas intermináveis noites não há sentido alguma vez a chamada do sol, o desejo de pôr fim a seu eterno pesadelo?
Uma vez mais, as questões que Isabella expor refletiam de maneira horripilante os pensamentos do próprio Owain. Havia-o estudado durante muito tempo como para que o Ventrue pudesse enganá-la. Mas precisamente aquela vigilância, a espionagem de que tinha sido objeto, enfurecia-o e o impulsionava a resistir a ela de todas as maneiras possíveis. Já o tinham manipulado suficiente. Nunca mais.
--Assegura ter vivido mais de um milhar de anos. Responde você a as perguntas.
--Ah, mas é que eu não sou como você, Owain -disse Isabella. Sua voz tornou-se gélida-. É uma perversão sobre a face da Terra, uma maldição para a humanidade. José disse que oferecia esperança. Dizia a verdade. Oferecia a esperança da liberação. Em seu caso, a esperança de verte livre de sua maldição. Para o mundo, a esperança de ver-se livre de ti. Não sou como você -repetiu-. Minha vida tem um propósito. Não me levanto cada noite para roubar a vida que me permita voltar a me levantar e seguir roubando mais e mais vida, noite depois de noite, até o fim dos tempos. O fim dos tempos, Owain. Este é o Fim dos Tempos.
Seu ódio por volta do Owain e todos os de sua espécie se revelava agora sem rodeios. Nenhum delicado véu de sarcasmo nem a pretensão de uma busca do conhecimento mascaravam suas intenções já. E por muito que ela enfurecesse ao Owain, não podia refutar seus palavras. Tinha passado muitos anos pensando o mesmo, desejando reunir a coragem para sair ao encontro do sol, querendo pôr fim à maldição. Mas lhe tinha faltado a fé. E a esperança.
Ofereço-te a esperança.
Agora era possível que obrassem em seu poder os meios para acabar com a maldição. Não só para si mesmo, mas também para o mundo inteiro. Isabella era erudita em profecias. Poderia simplesmente seguir a direção que lhe assinalava, e seu perpétuo inferno acabaria por fim. Mas então, enfrentado com a perspectiva da completa destruição de sua condenada raça, Owain se deu conta de que Isabella tinha passado por cima um detalhe. Uma diminuta faísca de esperança pulsava ainda no interior de seu peito.
--Está equivocada -disse-lhe-. Minha existência não carece por completo de propósito, embora durante muito tempo também acreditei que era assim. -Owain rememorou ao Angharad tal e como lhe havia aparecido em suas mais recentes visões. Tinha parecido tão completamente real... depois de tudo, não só a tinha visto. Também a havia meio doido. Tratou de ignorar o resto. Ela havia se tornado para ele. Tinha-lhe dado um nome: Assassino da Estirpe. Mas inclusive essas perturbadoras e dolorosas ações só tinham servido para provar ao Owain que sua lembrança permanecia vivo dentro dele. Seus paixões, que tinham sido despertadas da letargia meses atrás pela canção da sereia, ardiam poderosamente graças às visões. Seu humanidade havia de algum jeito voltado a despertar e, enquanto aquele fogo permanecesse aceso, a vida teria algum significado para ele.
»Há uma lembrança que guardo celosamente muito perto por mim coração -disse-. consumei muitos anos entregue à dor e a nostalgia, mas não é muito tarde para cuidar dessa lembrança. Lhe equivoca, Isabella. Minha vida sim tem um propósito.
Isabella, de pé frente a ele, permaneceu em silêncio. Inclinou a cabeça e, ao mesmo tempo, levantou ambas as mãos, com as Palmas para fora, frente a seu próprio rosto. Com voz apagada, começou a cantar. As palavras, na mesma língua que Owain a tinha ouvido utilizar antes, logo que resultavam audíveis. Entretanto, Owain não pôde contemplar durante muito tempo seu encantamento.
Lentamente, Isabella baixou ambas as mãos a um tempo, mostrando a frente, as sobrancelhas, e por fim os olhos. Owain saltou da cadeira bruscamente, e quase tropeçou com ela. Séculos de no-vista não o haviam preparado para confrontar o que viu. Seu primeiro impulso foi o de voltar-se, e correr, afastar-se daquela casa para sempre. Mas, em mudança, manteve-se de pé, imóvel, observando-a com aterrorizada fascinação.
Os movimentos da mulher eram lentos. O nariz, os lábios, a queixo, todo seu rosto era visível agora. As facções ainda eram escuras, mas tinham trocado, eram diferentes. A mulher que se encontrava frente a ele era mais alta do que tinha sido Isabella. Seu porte era gracioso e ao mesmo tempo pleno de majestade, como o de uma antiga rainha. Os olhos e o cabelo, negros, a cara brandamente arredondava... os rasgos que tinham obcecado as lembranças de Owain durante tantos séculos.
--Angharad...
erguia-se frente a ele. Sem dar-se conta, levantou uma mão e a alargou para sua bochecha. As gemas dos dedos sentiram o formigamento nervoso da antecipação do contato de sua pele, mais suave para ele que o velo dos cordeiros recém-nascidos. Mas então o peso de a paradoxo caiu por completo sobre sua mente. Esta habitação nesta casa, as centenas de anos transcorridos, a impossibilidade do que seus olhos presenciavam...
--Bruxaria! -apartou os olhos. Não olharia aquela perversão de seu memória, aquela abominação. Porque embora estava espantado, não podia confiar em que não cairia de joelhos ante ela para cobrir de beijos seus pés.
--Owain.
A voz era tudo o que ele recordava, e inclusive mais. Seus joelhos tremeram ante o som.
--Está morta -balbuciou apertando os dentes-. Ela está morta.
--Owain -voltou a dizer com voz paciente-. O que lhe dizem seus olhos? O que te diz seu coração?
Ele seguiu sem olhá-la.
--É uma criatura de engano, uma mulher de mentiras.
O som de sua aprazível risada, a risada do Angharad, envolveu-o, arrancando a sua memória lembranças intensas de sua vida mortal.
--Sou uma mulher de mentiras. Está no certo. Mas não da maneira em que pensa, querido Owain.
Querido Owain.
Tratou de controlar o tremor de seu corpo. Novecentos anos de solidão, e agora ela se encontrava de novo junto a ele.
--Ela está morta.
Um delicado passo. E logo outro.
--Tem razão, Owain. Seria uma coisa muito singela o adotar seu aparência, parecer como ela, falar como ela -seus dedos apartavam gentilmente o cabelo da cara dele. Fechou os olhos com força, tratando de defender-se, de negar sua existência, mas seu contato era tal e como ele o recordava-. Tem razão, mas isso não é o que crie.
situou-se a seu lado e tomou sua mão. Owain era incapaz de resistir a ela. Estava paralisado, sem saber se fugir ou estreitá-la entre seus braços.
Um tremor percorreu seu corpo. Podia sentir os batimentos do coração de seu coração, a seu lado. Só a tinha visto uma vez depois de seu Abraço: quando ela era velha e estava cega, e vivia encerrada na Abadia de Holywell. Aquela noite tinha podido cheirar o sangue que corria por seus veias. Tinha escutado o pulsar de seu coração. E embora seus olhos pudessem confundi-lo, o aroma do sangue não mentia jamais. Ela era Angharad.
--Não sou como você -disse em tom tranqüilizador, como se tratasse de lhe explicar os pesadelos a um menino para as afastar-, mas vivi muitos anos. Sou um dos Renascidos, meu querido Owain, e meu magia me permitiu ser o que devo ser para que as profecias acabem por cumprir-se.
A certeza da verdade que ela estava dizendo se apoderou de Owain, como os arranjos de um navio naufragado arrastando a um marinheiro às profundidades e à morte.
A boca do Angharad estava muito próxima a seu ouvido, agora. Podia sentir sua respiração. Suas palavras soaram como as promessas de uma amante.
--Não existem as coincidências -disse, utilizando as palavras dele-. Quando seu irmão Rhys, meu marido, decidiu que devia morrer, crie que foi por acaso que um dos Condenados decidisse te fazer dele? José me instruiu bem, querido Owain. Vivi aquela vida para que você pudesse te unir às condenadas legiões dos não-mortos, para que, um dia, pudesse chegar ao lugar preciso, no momento preciso, para que pudesse realizar seu destino em plenitude.
A habitação dava voltas ao redor do Owain. As certezas sobre as que tinha apoiado seus novecentos anos de vida estavam sendo feitas pedaços diante dele. Teria que acreditar que o único amor que tinha conhecido, que tinha sido ao tempo sua distração e seu tortura, era em realidade uma farsa?
--vivi muitas vidas e morri que muitas mortes -disse Isabella-. E retornei cada vez à existência para que meu propósito pudesse ser culminado. Que ventre crie que deu a luz a Albert? Quem crie que alimentou sua loucura para que, uma noite, um Malkavian o reclamasse e assim, outra noite, pudesse encontrar-se contigo?
A imensidão da decepção começou a devorar a alma de Owain.
--O momento famoso para que te seja revelada a verdade há chegado por fim -disse Isabella, disse Angharad-. E deve saber isto: nunca te amei, Owain. Preocupei-me com sua sorte só na medida em que essa preocupação te traria até aqui, neste momento. Há bebido o sangue do profeta, e eu te traí. O Assassino da Estirpe se apresentará ante o Traidor do Sangue. A ruína dos filhos do Caín se aproxima.
Um batimento do coração martilleante se elevou na cabeça do Owain. voltou-se para enfrentar-se ao Angharad, para enfrentar-se a seu amor. Lágrimas de sangue corriam por suas bochechas. Suas unhas, afiadas como garras, se cravavam nas Palmas de suas mãos. Séculos de luta para governar seu próprio destino, e agora descobria que o pilar que sustentava a base de sua mesma existência era em realidade uma mentira, um ardil urdido por indivíduos dos que não sabia nada. E agora me obrigará de alguma maneira a completar sua profecia? Fará-me alcançar o objetivo pelo que me traiu?
--Não!
O reverso de sua mão golpeou ao Angharad em pleno rosto, impulsionado com todas suas forças. A cabeça dela se torceu e seu corpo saiu despedido ao longo da habitação. Seu inerte forma chocou-se contra a parede e caiu ao chão.
Owain logo que podia ver através do sangue que alagava seus olhos. Levantou uma mão frente ao rosto. A mão que tinha golpeado a seu amor. Na outra mão, ainda sustentava seu amado libero. Apertou-o com força até que o lombo se partiu em duas e a coberta de couro, e cada uma das páginas se rasgaram. Então levantou a destroçada massa sobre sua cabeça e a jogou contra o chão.
Angharad jazia sobre o chão como uma boneca rota.
Owain se afastou dela. Pode que seu amor tivesse sido uma mentira, mas havia sentido o fogo da paixão no interior de seu peito. Pese ao entristecedora dor que o embargava, notava que a renascida humanidade ainda pugnava por emergir das sombras de sua negra alma. Cruzou cambaleante a habitação. Escaparia daquele lugar, e embora sua dor persistiria muito tempo, encontraria à única pessoa que de verdade se ganhou um lugar em seu coração. Encontraria ao Kendall, e ambos abandonariam juntos o lugar e a profecia. E então a liberaria. Devolveria-a a sua própria humanidade, para evitar que se apagasse a frágil chama que ardia entre eles.
Destroçou por completo a porta principal, que ainda pendia precariamente de uma das dobradiças A noite o chamava. Insistia-o a compartilhar a recém ganha liberdade que seu coração lhe havia entregue ao romper-se.
Mas então, depois de só três passos, deteve-se em seco, aturdido, horrorizado, pasmado ante o que via. Por um instante esteve seguro de escutar a cruel gargalhada de um deus vingativo.
Na rua, frente a ele, jazia uma mão humana, atalho pela boneca. Os dedos sem vida se aferravam ainda com força à pistola do Kendall.
Owain permanecia de pé, incapaz de mover-se, observando fixamente a mão atalho. Seu nariz tremia, apanhando o aroma de o sangue, o mesmo sangue que tinha compartilhado com o Kendall apenas uma noite antes, o sangue que era uma mistura da de ambos. Elevou a cara, e com ela sua fúria, para os céus. Em todas direções, escuras e ameaçadoras nuvens se reuniam sobre o horizonte.
Duas vezes, no transcurso das últimas horas, tinha acreditado Owain encontrar um sentido a suas vazias noites, um propósito que poderia converter sua enfastiada existência em uma vida que merecesse a pena ser vivida. Duas vezes, aquele propósito lhe tinha sido arrancado, tinha sido esmagado ante seus olhos e abandonado ali para apodrecer-se sob o sol como a carniça.
depois de centenas de anos de amargura pela perda de seu amor, tinha começado a acreditar que sena possível conservar seu lembrança quente junta ao coração em vez de mortificar-se constantemente pelo que não tinha chegado a ser. Então havia ocorrido o impossível: aqui e agora, Angharad, viva, a culminação de todos seus sonhos, tinha aparecido frente a ele para lhe dizer que seu amor era uma mentira, que o único que tinha sentido por ele ao longo dos séculos tinha sido um ardente ódio.
E apesar disso, Owain não se rendeu ao desespero. dava-se conta disso com sombria satisfação. Porque na verdade aquele tinha sido o propósito dela, que renunciasse por igual à vida e à no-vista e que, consumido pelo desespero, submetesse-se a seus desejos e completasse a profecia. Palavras de Ruína para os Filhos do Caín. Possivelmente ela as tivesse revelado para que pudesse realizar algum mágico e poderoso ritual.
Mas não. Inclusive afligido por uma insuportável tragédia, Owain deu-se conta de que a faísca de humanidade que ardia em seu interior não residia só na lembrança do Angharad, a não ser em seu mesma alma. Até sem seu único amor, seguia viva, embora debilitada. A faísca era alimentada por aquela mulher a que sempre tinha contemplado como uma faxineira, uma ferramenta para usar e da que prescindir. E agora...
Voltou o olhar para a mão. Owain sabia quem era o responsável. O corte tinha sido realizado com uma espada. A sua, sem dúvida nenhuma. Um escasso rastro de sangue, imperceptível salvo para alguém que, como ele, vivia no sangue, dirigia-se em direção este para o tor. Um rastro, Owain era consciente disso, que havia sido deixado a propósito. Mas nesse caso, pensou, ainda havia alguma possibilidade de que Kendall estivesse com vida. O Escuro obteria mais vantagem sobre ele se a mantinha viva. Owain devia segui-lo. Caminhou até a mão e começou a seguir o rastro para a colina.
A cada passo que dava, como em resposta, as nuvens que enchiam os céus avançavam também, como ondas que fossem a romper contra a costa. Os trovões, distantes ao princípio, se aproximavam em detrás delas. Parecia que toda a primária fúria dos céus estivesse convergindo para a Ilha dos Anjos. Owain atravessou o último vale e começou a subir pela ladeira da colina em direção à torre. Cada uma de suas pernadas era celebrada pelo estalo de um raio de uma ou outra direção. O vento açoitava seus cabelos, lhe obrigando a apartar o de seu rosto.
de repente, o brilho de um relâmpago revelou uma silhueta no alto da colina. Uma estátua onde não deveria haver nenhuma. Onde, momentos antes, não tinha havido nenhuma. Por um fugaz segundo a mente do Owain voou ao passado, às ruas do Toledo, à horripilante tormenta que se desatou, à criatura que se tinha apresentado ante ele.
--Kli Kodesh! -a voz do Owain se elevou por cima do bramido do vento.
Houve outro brilho, e a estátua apareceu com os braços estendidos. Owain não tinha captado movimento algum. Nem tampouco, até então, tinha reparado na deformada expressão de esperança que resplandecia nas cinzeladas facções, nem nas sangrentas lágrimas de júbilo que percorriam as bochechas de alabastro.
--vieste a me liberar! -exclamou o ancião elevando o rosto para os tormentosos céus.
--Não! -disse Owain-. Estou aqui por outra razão. Não tenho nada que ver com sua profecia.
Das profundidades do corpo do Kli Kodesh se elevou uma retumbante gargalhada. Vacilante ao princípio. Mas logo todo ele se rendeu a ela por completo, e seu lhe trovejem voz se elevou por cima do ruído da crescente tormenta.
--Mas está aqui, Assassino da Estirpe!
--Onde está Montrovant? -demandou Owain. Não toleraria mais jogos, mais adivinhações.
Kli Kodesh lutou por reprimir suas gargalhadas. Lágrimas frescas e avermelhadas manchavam a envelhecida superfície de seu antigamente branca túnica. Levantou uma mão e assinalou à torre que se elevava sobre eles.
--A Besta aguarda.
Owain se precipitou mais à frente do ancião. Kli Kodesh, sua risada mesclada com soluços de alegria, não fez nenhum movimento para detê-lo. Os metros que o separavam da capela eram muito levantados, mas parecia que o mesmo vento empurrasse ao Owain para diante e o esporeasse a seguir seu caminho. As nuvens se haviam fechado no céu sobre a torre, de maneira que só uma pequena franja de céu aberto era visível, diretamente por cima dela. Mas então, enquanto Owain escalava com mãos e pés os últimos metros, as nuvens chocaram entre si e nenhuma estrela brilhou através do torvelinho. Owain se deteve frente à porta da capela. Desde vamos, esculpida-a figura de San Miguel, o mais exaltado, parecia olhá-lo fixamente.
Inesperadamente, Kli Kodesh falou, e Owain advertiu que o ancião se encontrava a sua direita, muito próximo a ele.
--E quando o tempo da Colheita tenha passado, o Assassino da Estirpe se apresentará ante o Traidor do Sangue.
--Já me vi isso com o Traidor -disse Owain.
--Seriamente? -Kli Kodesh ergueu a cabeça-. A viúva? Realmente se sobrevalora.
Mais adivinhações. Owain tinha tido mais que suficientes para fartar-se. Estava rodeado por lunáticos que se entretinham com seus enigmas e suas profecias enquanto no interior da torre, uma pessoa cuja vida dependia dele podia estar morrendo naquele preciso instante. Sua paciência a ponto de esgotar-se, lançou uma invectiva ao Kli Kodesh. Mas o ancião se esfumou e em seu lugar só estava o ar da noite.
--Ele sabia que viria -disse uma voz em francês arcaico. Owain se voltou e se encontrou frente a Montrovant, que permanecia de pé baixo a soleira da capela. Sustentava em uma mão a espada do Owain. A folha estava manchada se sangre seca.
--Resulta tedioso -disse Owain.
Montrovant grunhiu, e enquanto abria a boca para replicar, Owain equilibrou-se sobre ele. Reagindo rapidamente, o Escuro blandió a espada e lançou uma estocada, mas a figura que a espada cortou não era mais que um fragmento de sombra. antes de que o volteio da folha tivesse concluído, Owain caiu sobre ele de um flanco, e rasgou com as garras a cara do Montrovant.
Ignorando os rugidos do vampiro, que tinha cansado ao chão, Owain se precipitou ao interior da capela. cobraria-se sua vingança, mas primeiro salvaria A...
Só deu um passo. Os olhos do Kendall, muito abertos, surpreendidos, perplexos, saudaram sua aparição. Sua cabeça tinha sido cravada sobre a cruz que coroava o altar. A boca estava levemente aberta, como se de seus lábios estivesse a ponto de brotar um grito de alarme.
Owain a olhou, conmocionado. voltou-se. Só tinha perdido um momento, mas lhe custou caro. A espada se afundou profundamente em seu flanco. Felizmente para ele, a presença da soleira dificultava os movimentos do Montrovant. desabou-se sobre o chão. Aterrissou em uma atoleiro de sangue que tinha gotejado do altar. O aroma da vida do Kendall estava por toda parte. Enquanto debatia-se, seu olhar se encontrou com seus olhos abertos.
Montrovant levantou a espada sobre sua cabeça e descarregou um golpe exatamente onde Owain tinha suposto que o faria. Se apartou, e a espada golpeou contra o altar de pedra, produzindo um som agudo. A garra do Owain rasgou o jugular do Escuro, e este se levou uma mão à garganta. Soltou a espada e Owain a recolheu antes de que tivesse sequer tempo de cair ao chão. Montrovant retrocedeu dando tombos para o exterior da capela.
--Seu tempo na Terra se acaba -disse enquanto avançava com a espada, banhada com seu próprio sangue. Não havia misericórdia.
Assim que deu um passo fora da torre, o vento atirou dele. Se enroscou em seu cabelo, em suas roupas, em seu braço, na espada, como se a tormenta tratasse de levantar o da terra. A intensa chuva que agora caía não permitia ver além de um palmo. Um novo relâmpago voltou a revelar a figura do Kli Kodesh, que se encontrava a um lado da torre. Owain manteve a espada firme entre o ancião e Montrovant.
--Vejo a ferida de seu flanco -disse Kli Kodesh-, mas, o que tem que a coroa de espinhos?
Owain logo que podia ouvir sobre o rugido da tormenta, e antes de que a última das palavras tivesse cruzado o vento, Kli Kodesh golpeou. moveu-se com mais velocidade da que inclusive Owain poderia alguma vez conceber. O impacto em sua cabeça fez cambalear-se a Owain, mas antes de que pudesse reagir, Kli Kodesh havia desaparecido.
Owain girou sobre seus talões para receber o ataque de Montrovant. O cotovelo do Ventrue destroçou o nariz do outro vampiro, enquanto sua espada cortava o ar e se afundava na carne. Montrovant caiu ao chão, incapacitado.
Owain retrocedeu cambaleando-se até apoiar-se contra o muro exterior da capela. A ferida de seu flanco pulsava dolorosamente. Olhou a seu redor procurando o Kli Kodesh, mas o ancião não se encontrava à vista.
Houve outro relâmpago, e Kli Kodesh apareceu acalmado junto a Owain. Este levantou o guarda, não muito seguro de como vencer a velocidade do ancião. Por um momento, distraiu-o a chuva que corria por seu rosto... não. Não era água. Sangue. Levou uma mão a sua frente e um de seus dedos recebeu uma espetada. Apartou-a rapidamente. Apalpando com mais cuidado, advertiu que a ardência em suas têmporas não devia-se ao golpe que lhe havia propinado Kli Kodesh, a não ser a uma coroa de espinhos que o ancião tinha colocado sobre sua cabeça.
Com o Montrovant momentaneamente imobilizado, Owain lançou um olhar ao Kli Kodesh através do manto de chuva. Entretanto, o ancião não atacou, mas sim se limitou a lhe devolver o olhar. Em seu rosto havia grafite uma expressão zombadora, quase espectador.
--Aqui estamos -disse ao fim-. A Tríada está completa. Pode pronunciar as palavras de Ruína.
--Já está bem dessas idiotices proféticas! -bramou Owain sobre a tormenta. Voltou a considerar a possibilidade de golpear ao Kli Kodesh, mas parecia haver poucas esperanças de êxito. Owain estava tão indefeso frente ao ancião como um mortal o estaria frente a ele.
--A relíquia! -gritou Montrovant, ficando de joelhos e arrastando-se para o Owain-. Me deve dizer isso violencia. Owain se vio arrojado contra el muro de la capilla.
Sem perder de vista ao Kli Kodesh, Owain se voltou um pouco para situar-se de cara a seu oponente. Ao menos contra este sabia que podia defender-se. Mas então a torre -não, toda a colina!- tremeu com violência. Owain se viu arrojado contra o muro da capela. Montrovant caiu de novo ao chão, e inclusive Kli Kodesh vacilou. Um trovão voltou a agitar a colina. Relâmpagos cegadores estalaram no céu, e ao menos uma dúzia de raios descarregaram sua fúria sobre a topo. Owain se pegou tudo o que pôde ao muro e se cobriu a cara, tratando de proteger-se contra a abrasadora energia dos raios. A força expansiva dos raios e a onda de terra que tinham levantado fizeram-no retroceder.
Quando pôde voltar a abrir os olhos, uma ampla cratera se havia aberto no topo da colina, apenas a dez metros de onde ele se encontrava, e no centro da depressão se erguia uma figura solitária. Ao princípio só sua cabeça e seus ombros eram visíveis, mas enquanto Owain observava, a forma de um homem se elevou, não caminhando, a não ser movendo-se diretamente em vertical, como se a mesma terra o estivesse levantando. Para assombro do Owain, o mesmo estou acostumado a parecia agitar-se e compactar-se para lhe emprestar sua forma ao corpo.
--Assassino da Estirpe -entoou a criatura. Possivelmente era uma falsa impressão provocada pela flutuante luz dos relâmpagos da tormenta, mas o corpo da criatura parecia trocar, piscar... feito de carne um momento, e de uma escura e insustancial matéria ao seguinte.
Owain o observou quase em transe e então, pôde entrever algo lejanamente conhecido em seus rasgos. Tinha visto aquela cara antes, embora agora, a diferença do passado, os olhos estavam completamente tintos de negro. O peito, as pernas, os braços, todo ele crescia além das proporções normais à medida que a criatura ia ganhando em estatura. Seu descuidado cabelo era agitado violentamente pelas rajadas de vento. Mas inclusive na deformada e demoníaca cara daquela coisa de outro mundo, Owain encontrava algo familiar.
--Nicholas?
O negro olhar da criatura se voltou para o Owain. Um sorriso cruel deixou entrever umas fauces tão negras como os olhos, mas rematadas por afiadas presas. De algum modo, Owain estava seguro, este era o mesmo Gangrel que tinha levado uma mensagem a Atlanta muito tempo atrás, o mesmo Gangrel que o havia açoitado pelas ruas do Toledo.
Toledo... a cidade onde por primeira vez se encontrou com o Kli Kodesh.
Owain apartou o olhar da criatura e olhou ao Kli Kodesh. É isto obra do ancião?
Kli Kodesh, entretanto, observava à criatura, perplexo. Ignorando ao Owain, o ancião disse:
--E assim, a terra abrirá seu ventre e a Besta sairá arrastando-se dele, em busca do sangue com que saciar seu sangue -incrédulo, agitou a cabeça-. Eu estava equivocado.
Naquele preciso instante, algo caiu sobre o Owain de um lado. Montrovant o esmagou contra o muro e se colocou sobre ele enquanto caía.
--O Grial! O Grial!
A espada escapou da mão do Owain. Os olhos de Montrovant pareciam a ponto de sair-se das órbitas. Suas garras se cravavam na garganta do Owain. Grosseiramente, o Escuro mordeu um dos lados da cara do Owain. A loucura o consumia. Em aqueles olhos já não ficava rastro algum de pensamento racional, só a obsessão de sua busca, e de séculos de fracasso.
--Não!
Uma simples palavra pronunciada pela Besta fez tremer a terra e trepidar as pedras da torre. Por sua aberta boca, a criatura vomitou uma massa escura e palpitante. Uma enchente, uma hirviente polpa de viscosas sombras gotejou para a torre. A boca da Besta se abriu impossivelmente enquanto vertia a sombra, que se compunha de inumeráveis forma vagamente humanas. Aqui se estendia um braço. Ali se entrevia um olho por um momento antes de afundar-se sob a superfície da massa.
A sombra arrepiada de formas se moveu com terrível rapidez. Mãos negras aferraram os tornozelos do Montrovant. Outra parte dela subiu por suas costas e agarrou seu braço, seu pescoço. A massa cobriu seus olhos, e atirou dele para trás até que, com bramido de fúria capaz de destroçar os tímpanos, Montrovant foi arrancado de em cima de Owain. Suas presas e suas garras gotejavam sangue do Ventrue.
Transcorreu só um instante mais e já unicamente o rosto de Montrovant era visível na superfície da tremente sombra. Pode que algum dos membros que ocasionalmente emergiam da massa pertencesse ao Escuro, Owain não podia estar seguro, mas a enlouquecida expressão de dor e frustração nas facções do Cainita revelava que era incapaz de escapar.
Enquanto novos raios caíam perigosamente perto da torre, a Besta de negros olhos avançou. Com cada passo que dava-se fazia mais grande. Seu rastro era de terra murcha e enegrecida. A Besta se inundou entre as sombras e a massa retrocedeu ante o impulso de suas gigantescas mãos. Chegou junto ao Montrovant, e o agarrou pelos ombros.
Súbitamente, a massa de sombras se lançou para diante, qual onda de um maremoto tão negro como os abismos, e enrolou violentamente a Owain e Kli Kodesh. Owain se viu engolido, sujeito, imobilizado por inumeráveis apêndices semelhantes a braços, enquanto a oleosa sombra se pegava a ele como uma segunda pele. Sua cabeça se afundou na massa, e todo se voltou escuridão, Entretanto, depois de um momento, descobriu que podia ver, embora com uma visão turva e cinza.
A Besta levantou o Montrovant vários pés sobre o chão. O indefeso Cainita, como a presa hipnotizada pelo olhar de uma cobra, não se debateu. A Besta golpeou na base de sua garganta. Seus presas perfuraram a carne. O Escuro jogou a cabeça para trás, mas nenhum grito de agonia escapou de seu contorsionada e convulsa forma.
O tamanho da Besta era mais de duas vezes o do Montrovant. Suas monstruosas dimensões faziam que aquele parecesse um miúdo. A Besta se alimentou, mas não só sangre foi sugada do corpo do Montrovant. Sua figura, de por si pálida e enxuta, ficou rígida. A pele se estirou como um tecido sobre os ossos. Crepitou, e logo se rompeu em pedaços. A cabeleira e o cabelo se enrugaram e secaram, convertidos em nada. Finalmente, as roupas, os ossos, e a carne que ainda ficava em seu corpo se converteram em pó e a Besta se ergueu com as mãos vazias.
Avançou para o Owain, e de novo a sombra lhe abriu passo. O Ventrue sentiu que o levantavam do chão. Olhou fixamente ao interior de aqueles olhos completamente negros. Sua fome, seu ódio, o arrastaram para as profundidades. A escuridão não estava vazia. Era um agitado reflexo da morte, e como a sombra que havia aprisionado o corpo do Owain, as almas de todos aqueles a quem a besta tinha consumido se revolviam e formavam redemoinhos em seu interior. Owain viu o Nicholas, e viu o Blaidd. Viu o Montrovant miserável para o esquecimento, e a incontáveis outros.
A Besta sacudiu ao Owain. Os ossos se partiram e as articulações arrebentaram quando foi sacudido como uma boneca de trapo em meio da tempestade. As fauces da Besta se abriram e o fedor e a podridão da morte envolveram a Owain.
--Assassino da Estirpe.
A força de sua voz penetrou no interior do Owain, apoderou-se de seu coração e o retorceu.
Do que parecia ser uma grande distancia, alcançou os ouvidos de Owain o som de risadas e soluços mesclados. Kli Kodesh, pensou ausente, como se nada de todo isso lhe importasse já. Mas certamente o ancião não se encontrava tão longe.
Os pensamentos do Owain foram arrancados de sua mente por a dor e a comoção. A Besta tinha parecido as presas em seu pescoço. Incontáveis dentes golpearam com a força de um centenar de martelos de ferro. Mas, de forma muito mais dolorosa, a voraz Besta penetrou em sua mesma alma e a apanhou. Tocou a fome que tinha devorado ao Owain do interior, que tinha consumido seu humanidade. A Besta tinha tomado o corpo do Nicholas, mas agora assumia também seu rosto, um dos muitos rostos que havia levado durante todo esse tempo, desde dia em que o Escuro Pai tinha exalado seu último suspiro; desde aquele tempo em que Gangrel e Ventrue eram uma mesma coisa, e a Besta estava completa, embora até então faminta.
A fome do Owain saiu à superfície. Sentiu uma fome como jamais tinha experiente em centenares de milhares de noites. Mas, inclusive então, a fome da Besta superava mil vezes a sua. Extraía substância dele enquanto tentava reclamar a própria.
E então uma voz falou de novo de uma grande distancia:
--Só então liberará Caín de seu jugo ao boi de olhos vermelhos, cujo nome é Gehena, porque ninguém pode suportar a visão de seu semblante.
Acaso era este o renascimento do Pai Escuro? perguntou-se Owain. De algum jeito, em que pese a que a Besta não o tinha solto, podia ver o interior de seus olhos negros, poços sem fundo. O arrastavam a seu interior como se ele não fora nada. Caía, caía, caía...
Os negros e tenebrosos cadáveres, testemunhas de sua fome, giravam violentamente ao redor do Owain. Ali estava o primeiro, um mortal sem nome assassinado nas ruas do Westminster. Ali estava Blaidd, brutal Gangrel cansado em desgraça. Ali estavam Morgan, e a família do outro sobrinho do Owain, Iorwerth: querido-los Blodwen e Branwen, os pequenos Elen e Sian, o menino, lago. Ali estava Gwilym, primeiro de muitos ghouls. E Kendall, o último.
Não o acusavam de nada, porque a fome era sua natureza.
Mas, e José? Owain tinha atravessado a carne, e saboreado a sangue, do da Arimatea.
Lentamente, a negrume retrocedeu. A escuridão já era só a noite, e uma fria brisa soprava sobre o topo do tor. Owain se encontrava junto à capela, e a seu lado estava José, sustentando em as mãos um cálice de ouro. Owain tinha ouvido os rumores e havia abandonado a França para viajar à Abadia do Glastonbury. Havia procurado o Grial para podê-lo destroçar com suas próprias mãos. Com regozijo no coração, destruiria o contêiner de Cristo.
E agora, em troca, ajoelhava-se diante do José. O Grial resplandecia com a glória de uma hoste de anjos. Todos os pensamentos sobre um vingativo e cruel Deus, tinham abandonado a mente do Owain.
--chegaste ao fim de sua busca -disse José-. Ao igual a todos nós, não é digno. E entretanto, pela graça de Deus, foste eleito.
José baixou o Grial até que as mãos do Owain sustentaram também o sagrado cálice. Enquanto se inclinava brandamente para ele, aproximou-se a seus lábios o sabor de uma vida completamente diferente a qualquer outra que tivesse provado. O ódio e o vazio desapareceram. Não importava quão desesperadamente o tentasse, não podia agarrar-se a sua fome. Enquanto Owain levantava o olhar para o céu, a sangue o encheu, alimentou-o, pôs sua marca sobre sua alma.
José levantou a taça sobre sua cabeça.
--Que seja assim. Que assim seja.
Sobre o Owain, a torre tremia e se agitava. As pedras se desabaram sobre ele, e com elas voltou a cair a escuridão. A formada redemoinhos névoa de morte negra cobriu ao Owain, e soube que não estava sozinho. A Besta estava com ele, tinha estado sempre com ele. Enquanto vagabundeava entre os rincões de sua alma, a Besta encontrou a coroa de espinheiros, e a santificado sangue que guardava a último pingo de sua humanidade.
--Assassino da Estirpe! -a Besta acusou ao Owain, mas nem sequer os mais atrozes de seus crímenes podiam negar sua redenção. Sem deixar-se intimidar, a Besta bebeu o sangue e devorou a coroa de espinhos com ela. Seu apetite não tinha limites. Não podia resistir a chamada do sangue.
Owain se desabou sobre o chão. A tormenta rugia enfurecida ao redor. O vento bramava com a fúria da Besta, que se elevava junto a ele. Mas enquanto isso, a sombra se quebrado em centenares de pedaços, cada um deles uma pequena sombra do Véu. Rota pela Besta. As babeantes sombras se lançaram freneticamente sobre a Besta, mas as rechaçou com facilidade. Cravou as garras em seu próprio peito e em sua própria garganta, como se uma grande queimação ardesse em seu interior. Owain jazia imóvel sobre o chão. Não tinha forças suficientes para ficar em pé. A Besta grunhiu grosseiramente e cuspiu um sangue vitriólica enquanto rasgava seu próprio peito.
Kli Kodesh se encontrava apenas ao meio metro do Owain. Falou:
--Eu vi uma Cruz, empapada pelo sangue de nosso Senhor, ardendo para dar a luz uma nova vida. Vi brotar dela os ramos da Santa Sarça para impedir a ímpia cercania dos impuros e o sabor da fruta proibida. Vi uma grande Águia branca estalagem sobre seus braços. Abre o pico e fala com a escondida voz das montanhas. Pronuncia palavras de Ruína para os Filhos de Caín.
Lentamente, Owain conseguiu reunir todas suas forças e ficar de joelhos. Tinha visto a verdade da humanidade que ainda vivia em seu alma apesar de todo o poder da Besta. Tinha visto os intuitos do José, a loucura da Isabel a e Kli Kodesh. E também ele falou:
--Que seja assim. Que assim seja
A Besta deixou escapar um ensurdecedor rugido, e ao redor de ela, as gimientes sombras foram arrastadas ao interior de um poderoso vórtice. O uivo de dor e cólera da Besta foi talhado em seco enquanto muitas mais sombras eram sugadas desde seu garganta. A espiral ganhou força. Seu abraço apanhou ao Owain, mas este conseguiu resistir. O negro vórtice se elevou mais acima e mais acima, enquanto os infatigáveis mortos arrojavam seus gritos de noite. Por fim, com um estalo de trovões e um brilho de relâmpagos através do centro da retorcida nuvem, as sombras exploraram no céu. Farrapos de escuridão saíram disparados contra o horizonte em todas direções. Só uma oleosa e acre fumaça permaneceu, pesado, sobre a colina.
Quase imediatamente, a tormenta remeteu. As escuras nuvens ainda ocultavam o céu e as estrelas, mas o vento começava a cessar e os trovões eram cada vez mais longínquos. Frente a Owain se encontrava Nicholas, não maior nem mais monstruoso que um simples humano. Suas mãos estavam cobertas de sangue. O peito, aberto em canal, mostrava um coração feito pedaços. Sua frente estava enrugada pela perplexidade. Deu um passo, mas então o falharam as pernas, caiu de joelhos e se derrubou sobre o chão.
Mas antes de que Nicholas tivesse morrido de tudo, a Ilha dos Anjos começou de novo a tremer e a agitar-se. Owain se lançou adiante para esquivar as toneladas de escombros que caíam de a torre e enchiam com grande estrondo a cratera deixada pela Besta.
A casa cheirava como um hospital de campanha da Confederação. Cheirava a morte. Mas em vez de habitações e habitações cheias de jovens ensangüentados e agonizantes, só havia um indivíduo em Rhodes Hall lutando por sua vida.
O Príncipe Benison permanecia sem mover-se junto à cama de Eleanor, como tinha permanecido durante os dois últimos dias e as duas últimas noites. Seus olhos logo que eram duas pequenas ranhuras inchadas pela fadiga. Embora o sol não podia alcançar a selada habitação em que Eleanor e ele viviam, tinha tido que recorrer a toda sua força de vontade para permanecer acordado durante os dias. E voltaria a fazê-lo o seguinte, e o seguinte. Tantos como fosse necessário, porque o embargava o temor de que o seguinte fora a ser o último momento que passaria com sua amada algema.
Afasta esses pensamentos! repreendeu-se. Não deixarei que se me vá. Permanecerei a seu lado, e ela não me abandonará.
Eleanor tremia e murmurava ocasionalmente, deslizando-se em o delírio, mas a maior parte do tempo sofria silenciosamente enquanto sua febre ia em aumento. A maldição do sangue havia golpeado rapidamente. Uma tarde sei encontrava perfeitamente, e à seguinte, presa da cólera, tinha destroçado o salão, aparentemente defendendo sua casa e a sua família de uns inexistentes invasores ianques. Quando Benison, com todo o cuidado que foi possível, conseguiu reduzi-la, ela se tinha desvanecido. Após tinha permanecido em um estado comatoso. O Príncipe tinha permanecido a seu lado em todo momento. A divina transformação de Atlanta, imposta ao Benison por suas sagradas visões, ainda não tinha sido culminada, mas Benison confiava em que o Senhor, sem dúvida nenhuma, recompensaria sua lealdade salvando a seu esposa e a sua cidade.
Durante vários meses, a maldição tinha remetido, aparecendo um caso mortal só de tanto em tanto. Mas, devia-se isso, Benison se tinha perguntado, a sua apelação à vontade de Deus, ou a que a praga se tinha levado já aos mais débeis? Não podia esquecer como, a começos de ano, a maldição se estendeu como um incêndio por toda a cidade. Agora, aparentemente, o perigo não tinha passado.
Eleanor tremia continuamente. O contemplar a ansiosa expressão de seu rosto inconsciente causava uma grande dor ao Benison.
--Benjamim... -sussurrou ela fracamente.
Benjamin. O Príncipe se encolheu. Evidentemente, encontrava-se tão doente que não podia pronunciar "Benison" com claridade. Ou acaso estava inquieta pela insurreição dos anarquistas de Atlanta, que Benison não tinha conseguido sufocar por completo. Benjamin, ao fim e ao cabo, pertencia ao clã da Eleanor. Provavelmente estaria envergonhada e zangada, e comprensiblemente, por não haver permanecido leal aos seus.
O Príncipe acariciou com suavidade sua enrugada frente. Com um lenço branco e fresco limpou o sangrento suor que empapava seu rosto.
--Não se preocupe -sussurrou-. Tudo irá bem.
Um golpe apagado soou na porta, e o ghoul Vermeil penetrou na estadia.
--Senhor. Theo Bell chegou.
O nome provocou um acesso de fúria no Príncipe, mas manteve a calma. Theo Bell, Arconte dos Brujah. Durante muito tempo, Benison tinha suspeitado que o professor justicar do Bell, Jaroslav Pascek, cão guardião do Círculo interno da Camarilha, estava procurando uma desculpa para intervir em Atlanta. Até o momento presente, Benison tinha conseguido manter o descontentamento anarquista em um ponto no que não resultava uma grande moléstia. Sem dúvida este fato devia incomodar ao Pascek e ao Bell posto que Thelonious, o líder da revolta, era como eles um Brujah.
Naturalmente que é um Brujah! Em opinião do Benison, todo o clã não era mais que uma coleção de agitadores que não sabiam qual era seu lugar. E agora, Theo Bell estava usando o assunto da maldição do sangue como desculpa para revolvê-lo tudo em sua cidade.
O Príncipe respirou profundamente, tentando acalmar-se. Isto é pelo Eleonor, recordou-se a si mesmo.
O rumor de três pares de pés soou do corredor e voltaram para bater na porta.
--Adiante.
Vermeil abriu a porta e Bell penetrou na habitação.
--Príncipe Benison...
Benison assentiu mas não apartou o olhar do leito de sua esposa. Tinha tratado anteriormente com o Arconte. Era um homem negro, de aparência agradável e grande, tão grande como o próprio Benison. Certamente, Bell estava à corrente das simpatias do Benison no que à Guerra de Secessão (ou Guerra de Agressão do Norte, como o Príncipe estava acostumado a chamá-la) referia-se, e embora Benison se alinhou naquele bando para defender os direitos dos estados e não por simpatia à escravidão, estava seguro de que Bell sentia um certo ressentimento para ele. Acrescentando a isto o caráter naturalmente recalcitrante dos Brujah, formava-se um personagem com o que Benison queria tratar o menos possível.
--trouxe comigo ao Vagabundo -disse Bell.
Benison voltou a assentir. Eleanor e ele tinham declinado aquela possibilidade no passado, mas agora sentia que ficavam poucas opções.
--ouvi que ajuda também ao Sabbat -disse Benison sem preâmbulos.
--Oferece ajuda lá onde a necessita -respondeu Bell-. Essa é a condição para nos ajudar a nós.
E não podemos sobreviver sem sua ajuda, pensou Benison.
--Pode atender a sua esposa?
Lentamente, Benison ficou em pé. Suas cansadas articulações rangeram a modo de protesto. deu-se a volta e pôde ver quão pouco respetuosamente vestia o Arconte: jeans azuis e uma volumosa jaqueta de couro. Aquela não era forma de entrar na casa de um Príncipe. Mas todo o suportaria pelo bem da Eleanor.
--Pode.
Do corredor, fez sua aparição uma figura encapuzada e coberta com uma túnica. As sombras ocultavam sua cara. Sem falar e sem deter-se, passou junto ao Bell e Benison até chegar à cama. Então, manteve-se imóvel um comprido tempo, contemplando a Eleanor, cuja cara voltava a estar coberta pelas diminutas gotas do sangrento suor. O Vagabundo levantou as duas mãos, abertas, diante de si, e então apertou ligeiramente a uma contra a outra. depois de um momento, voltou às separar. No centro mesmo de cada palma, aparecia uma pequena ferida onde antes a carne havia estado intacta. Sangre fresca e vermelha foi à superfície. Aproximou uma emano à boca da Eleanor e ela, inclusive sumida como estava na inconsciência, lambeu a vitae que gotejava sobre seus lábios.
--E isto a curará? -perguntou Benison, inseguro.
--Ainda não lhe vi falhar -disse Bell-. E estive com ele desde o princípio.
Benison se esfregou sua curta barba. Sabia que Bell tinha ajudado a os anarquistas que lhe opunham, mas não podia fazer nada para evitá-lo. Os líderes da Camarilha tinham sido muito explícitos ao advertir que todas as disputas eram assuntos secundários em comparação com o caos e o açougue causados pela maldição. Com a aparição daquela milagrosa padre, não estavam economizando esforços para erradicar o mal.
O Vagabundo se voltou e estendeu sua outra mão lhe sangrem para Benison, mas o Príncipe, com um gesto, deteve o estranho.
--Diz que o sangue atua também como uma vacina frente à maldição -explicou Bell-. Você sabe o rapidamente que a maldição pode estender-se. Seria muito melhor que o Príncipe de Atlanta estivesse fora de perigo.
Benison o olhou ferozmente. Falava o Arconte exclusivamente da maldição, ou se referia deste modo à situação política? A a contra gosto, o Príncipe aceitou a mão que lhe oferecia. As poucas gotas de sangue resultavam cálidas em sua língua, e essa calidez se estendeu rapidamente por todo seu corpo à medida que bebia.
O Vagabundo apartou a mão, e um repentino enjôo se apoderou do Benison. cambaleou-se para diante e teve que apoiar-se nos ombros do estranho para recuperar o equilíbrio. Sob sua mão, o Príncipe notou a protuberância de um osso mau colocado. Possivelmente uma antiga ferida que não tinha curado adequadamente. Enquanto Bell ajudava ao Benison a recuperar-se, o Príncipe vislumbrou por um segundo parte do rosto que se escondia sob o capuz. A linha de a mandíbula e o nariz lhe resultavam vagamente familiares, mas não podia terminar das atribuir a um rosto concreto.
--Está bem? -perguntou Bell.
Benison agitou a cabeça para esclarecê-la, e o enjôo passou.
--Sim.
O Arconte voltou o olhar a Eleanor.
--Acredito que sua mulher começa a parecer melhor. Espero que se recupere rapidamente -disse-. Será melhor que nos partamos. Há acessado a nos ajudar -assinalou ao Vagabundo-, mas não para sempre, e temos muito trabalho que fazer.
Eleanor, advertiu Benison, parecia descansar com maior facilidade. Mas algo no estranho continuava escamando ao Príncipe. Olhou fixamente ao Vagabundo enquanto Bell e ele se voltavam para partir.
--Oferece-nos milagres -disse o Príncipe.
Bell se encontrava já em corredor. O Vagabundo se deteve sob o soleira da porta, mas não se voltou.
--Ofereço esperança -disse. E então abandonou a habitação.
A imagem cobrou forma nas lembranças do Benison. A voz, a cara... tudo encaixava. A ira se revoltou em seu interior. Deu um passo detrás eles.
--Benison...?
O som da voz da Eleanor o deteve em seco. voltou-se. Ela tinha os olhos abertos, e a loucura e a dor se evaporaram. Por um segundo esteve a ponto voltar-se para o corredor e ir detrás o Bell e o Vagabundo, mas então, em troca, aproximou-se da cama de seu esposa.
O Vagabundo tinha realizado um milagre, dissesse ele o que dissesse. Possivelmente a clemência resultava adequada. depois de tudo, parecia encontrar-se sob o amparo da Camarilha. E além disso, não seria sábio por parte do Benison enfrentar-se ao Arconte Brujah.
Segue seu caminho, Vagabundo, pensou Benison, mas sabe que as velhas transgressões não se esquecem.
depois de vários meses, os escombros ainda cobriam a Ilha dos Anjos. Mas, o que eram meses a não ser a piscada de um olho para o Kli Kodesh? Tão imóvel como qualquer daquelas pedras, se sentava entre os restos do que tinha sido a capela de San Miguel.
O mais exaltado da Gloriosa Companhia.
Eventualmente, os mortais acabariam por reparar o dano causado na noite da Ascensão. por agora, limitavam-se a falar em tom aflito da grande tormenta que se desencadeou sobre eles e que tinha feito tremer a mesma terra. Também uma grande tormenta tinha cansado sobre o mundo dos Cainitas.
A Besta caminha sobre a Terra. A Ruína dos Filhos do Caín está próxima.
Seguindo para trás o rastro dos fios da profecia, Kli Kodesh se sentia cheio de irritação e impaciência ao mesmo tempo. Irritação, porque se tinha equivocado. Não uma, a não ser duas vezes. Havia assumido que Montrovant era a Besta, mas não era à fome do Escuro a que se referia a profecia. Kli Kodesh tinha errado com os fios, sim, mas podia uma verdadeira profecia ser negada para sempre? Certamente Montrovant tinha representado seu papel a pesar da errônea interpretação do Kli Kodesh, mas não tinha sido mais parte da Tríada que o desgraçado Gangrel que tinha atuado como portal para que a Besta pudesse cruzar do Véu.
Entretanto, a Besta tinha sido liberada. Sua semente sempre tinha existido, como bem sabia Kli Kodesh, no interior de cada Cainita. O insaciável apetite que murchava as raízes do pouco profundo chão da humanidade. Mas agora, a Besta tinha cobrado forma, e a ascensão do Escuro Pai estava muito mais próxima. Porque o Assassino da Estirpe podia ter conseguido negar o fome, mas... destrui-la?
O Assassino da Estirpe, meditou Kli Kodesh, ou o Vagabundo, como alguns começaram a chamá-lo. Esta, é obvio, havia sido a jogada professora do da Arimatea, e Kli Kodesh tinha estado completamente cego a ela.
Mas o pecado de seu engano merecia a absolvição, sequer pelo feito de que Kli Kodesh não era o único que tinha errado apesar de os incontáveis séculos de estudo. A viúva pensou que ela era o Traidor, pensou, divertido. Ah, a arrogância da juventude...
Mas acaso não tinha sido o orgulho o que tinha conduzido ao Kli Kodesh a seus enganos? Sua segunda interpretação errônea era, embora pudesse parecer paradoxal, a causa de sua esperança. O Assassino de a Estirpe. O Traidor. A Besta. A Ímpia Tríada ao completo. Kli Kodesh tinha assumido que o fim chegaria de uma vez. Mas precisamente ele, de todas as criaturas viventes, devesse ter sabido que o tempo flui constantemente. Em sua deliberada ignorância do tempo, tinha passado por cima este fato.
A viúva, a sua vez, tinha interpretado mal ao da Arimatea e a seu profecia. Ela tinha trabalhado para obter a destruição da raça de os Cainitas mas, ao final, um salvador tinha emerso da ruína de seus planos: o Vagabundo, um iluminado para o que alguns jovens Cainitas começavam a voltar-se na esperança de que os liberasse de sua fome. Oferecia-lhes a esperança de lhes arrancar o peso de seu maldição e isto, por cima de tudo, representava o topo dos lucros do da Arimatea. Suas profecias se desenvolveram ao longo dos séculos, mas não para destruir ao Escuro Pai, como à viúva lhe tinha feito acreditar, a não ser para redimir as almas manchadas pela maldição original.
Kli Kodesh admirou a audácia do engano urdido. Não tinha sido ele mesmo, depois de tudo, enganado? A redenção, entretanto, a deixava para os outros. A gente também podia lhe oferecer sua expiação ao céu ou às estrelas.
Mas não tudo estava perdido. A Besta caminhava livre sobre o mundo.
Só então liberará Caín de seu jugo ao boi de olhos vermelhos, cujo nome é Gehena, porque ninguém pode suportar a visão de seu semblante.
Aos borde dos lábios do Kli Kodesh apareceu a sombra de uma sorriso. Era a primeira vez em muitas horas que se movia. Não importavam os fracassos. A hora de sua liberação ainda estava próxima. O primeiro passo no caminho já tinha sido dado.
E o nome do caminho era Gehena, e estava pavimentado com sonhos moribundos.
Que seja assim. Que assim seja.
Gherbod Fleming
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