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PROFUNDESAS / Roderick Gordon e Brian Williams
PROFUNDESAS / Roderick Gordon e Brian Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Com um silvo e um ruído surdo, as portas fecharam-se, depositando a mulher na garagem do automóvel. Aparentemente indiferente ao vento fustigante e à chuva pesada e persistente, ficou parada a olhar enquanto o veículo voltava a pôr-se ruidosamente em movimento, arranhando as mudanças à medida que descia a colina com dificuldade. Só quando o automóvel finalmente desapareceu por trás das sebes de roseiras-bravas, a mulher se voltou para olhar para as encostas cobertas de erva que se erguiam de ambos os lados da estrada. Através da chuva, pareciam desvanecer-se no cinzento desbotado do céu, de forma que era difícil dizer onde começavam e acabavam uma e outras.
Apertando com força o casaco em volta do pescoço, começou a andar, saltando por cima das poças de água da chuva no asfalto desfeito na borda da estrada. Embora o lugar estivesse deserto, transparecia nela uma atitude de cautela enquanto esquadrinhava a estrada à sua frente olhando para trás, por cima do ombro, de quando em quando. Não havia nada de particularmente furtivo nisto - qualquer mulher nova num local tão isolado como aquele poderia tomar as mesmas precauções.
A sua aparência não oferecia nenhuma pista sobre quem era. O vento estava sempre a soprar-lhe o cabelo para o rosto de queixo largo, obscurecendo-lhe as feições num véu sempre em movimento, e a roupa não tinha qualquer característica especial. Se tivesse calhado passar alguém, provavelmente pensaria que era uma pessoa da terra que ia para casa, ter com a família.
A verdade não poderia ser mais diferente.
Era Sarah Jones, uma evadida da Colônia que andava fugindo para salvar a vida.

 


 


Continuou andando até que repentinamente subiu para a calçada e se enfiou por uma abertura na sebe das roseiras-bravas. Foi parar a uma pequena depressão de terreno do outro lado e, mantendo-se baixada, deu meia volta de forma a ter uma boa visão da estrada. Ficou ali uns bons cinco minutos, a escutar e a observar, alerta como um animal. Mas, para além do bater da chuva e do zumbido do vento nos ouvidos, não havia mais nada. Estava totalmente sozinha.
Atou um lenço em volta da cabeça e saiu do buraco. Afastando-se rapidamente da estrada, atravessou o campo à sua frente, abrigado do vento por um muro de pedras soltas. Depois subiu por uma encosta íngreme, mantendo uma passada rápida até chegar no topo da colina. Aqui, com a silhueta a recortar-se no céu, Sarah sabia que estava exposta, e não perdeu tempo a continuar a descer para o outro lado, para um vale que se abria à sua frente.
À sua volta, o vento, canalizado pelas elevações, transformava a chuva em redemoinhos confusos, como pequenos tornados. E através disto, algo vibrou, algo se registrou no canto do olho. Estacou, virou-se e conseguiu perceber por um brevíssimo instante de uma forma pálida. Um arrepio percorreu-lhe a espinha... o movimento não pertencia ao ondular das urzes nem à agitação das ervas... tinha um ritmo diferente.
Fixou os olhos no local até conseguir distinguir o que era. Ali, do lado do vale, estava um carneirinho a saltitar no meio dos tufos de festucas. Enquanto o observava, saltou repentinamente para trás de uma mata de árvores raquíticas como tivesse se assustado com alguma coisa. Sarah sobressaltou-se. O que o teria feito fugir? Estaria alguém por perto? - outro ser humano?
Sarah ficou tensa, mas descontraiu-se quando viu o cordeiro aparecer novamente, desta vez escoltado pela mãe, que ia mordiscando a erva distraidamente enquanto o filho lhe começava a esfregar o focinho no flanco.
Fora um falso alarme, mas não havia nenhuma sugestão de alívio ou de divertimento no rosto de Sarah. Os olhos não se fixaram no cordeiro quando ele recomeçou a cabriolar, o pêlo limpo como algodão virgem, num contraste acentuado com o pêlo áspero e sujo de lama da mãe. Não havia lugar para este tipo de diversões na vida de Sarah, nem agora, nem nunca. Já estava a inspecionar o lado oposto do vale, esquadrinhando-o à procura de qualquer coisa que não encaixasse na paisagem.
Pôs-se novamente em movimento, avançando através da quietude céltica da vegetação luxuriante e por cima das lajes lisas, até chegar a um riacho aninhado na curva do vale. Sem hesitar um segundo, entrou na água transparente, seguindo na direção contrária à do riacho e usando por vezes as pedras cobertas de limos como caminho quando estas lhe permitiam avançar mais depressa.
Quando o nível da água subia, ameaçando entrar-lhe nos sapatos, saltava para a margem, que estava coberta por um elástico tapete verde de erva aparada pelas ovelhas. Mesmo assim manteve a mesma passada implacável e não tardou muito para que aparecesse uma vedação de arame enferrujado e depois o caminho da fazenda que ela sabia que existia por trás dela.
Nessa altura viu o que procurava. No lugar onde o caminho da fazenda cruzava o riacho havia uma tosca ponte de pedra, com os lados a desmoronarem-se e precisando urgentemente de obras. O caminho ao longo do riacho levava-a direito a ela, e começou a andar mais rápido com pressa de lá chegar. Minutos depois tinha chegado ao seu destino.
Dobrando-se para entrar debaixo da ponte, parou para tirar o lenço e limpar a umidade dos olhos. Depois passou para o outro lado, onde se deixou ficar perfeitamente imóvel enquanto estudava o horizonte. A noite estava chegando e o brilho tingido de cor-de-rosa das luzes dos candeeiros das ruas acabadas de acender começava a infiltrar-se através da cortina dos carvalhos, que escondiam tudo, exceto a ponta do campanário da igreja na aldeia distante.
Voltou para um local no meio da parte de baixo da ponte, curvando-se quando o cabelo raspou na pedra áspera por cima dela. Localizou um bloco de granito irregular, que estava ligeiramente saliente. Com as duas mãos, começou a puxá-lo, empurrando-o para a esquerda e para a direita e depois para cima e para baixo, até o soltar. Tinha o tamanho e o peso de vários tijolos, e ela gemeu com o esforço quando se baixou para pousá-lo no chão ao lado dos pés.
Endireitando-se, espreitou para o buraco e depois enfiou o braço lá dentro, até ao ombro, e apalpou o interior. Com a cara comprimida contra a pedra, encontrou uma corrente que tentou soltar. Estava completamente colada. Por mais que tentasse, não conseguia movê-la. Praguejou e, inspirando fundo, preparou-se para outra tentativa. Desta vez, a corrente cedeu.
Durante um segundo, não aconteceu nada enquanto ela continuava a puxar a corrente com uma mão. Depois ouviu um barulho como o troar de um trovão distante que emanava bem do interior da ponte.
À sua frente, juntas até então invisíveis, abriram-se com uma chuva de pó de argamassa e líquenes secos, e um buraco com o tamanho irregular de uma porta abriu-se perante os seus olhos quando uma seção da parede recuou e depois subiu. Após um último baque que fez estremecer a ponte toda, ficou tudo novamente silencioso excetuando o gorgolejar do riacho e o bater da chuva.
Entrando no interior sombrio, tirou da algibeira uma lanterna num chaveiro e acendeu-a. O tênue círculo de luz revelou que se encontrava numa câmara de uns quinze metros quadrados, com um teto suficientemente alto para conseguir estar de pé. Olhou em redor, registrando as particulazinhas de poeira que pairavam preguiçosamente no ar e as teias de aranha, espessas como tapeçarias apodrecidas, que decoravam a parte de cima das paredes.
Fora construída pelo trisavô de Sarah um ano antes de ter levado a família para o subsolo para iniciarem uma vida nova na Colônia. Exímio pedreiro de profissão, tinha recorrido a todas as suas capacidades para esconder a câmara no interior da ponte em ruínas e dilapidada, escolhendo intencionalmente um local a quilômetros de tudo no caminho de uma fazenda raramente utilizada. Mas por que razão se dera a todo este trabalho, nem o pai nem a mãe de Sarah haviam sido capazes de explicar. Mas, qualquer que tivesse sido o propósito original, este era um dos poucos lugares onde Sarah se sentia completamente segura. Com razão ou sem ela, acreditava que ninguém iria alguma vez encontrá-la ali. Tirou o lenço e sacudiu o cabelo para o soltar, permitindo-se descontrair finalmente.
Os pés no chão de cimento coberto de terra quebraram o silêncio sepulcral enquanto se dirigia para uma prateleira estreita de pedra na parede oposta à entrada. Em cada uma das extremidades da prateleira havia duas pontas verticais de ferro enferrujados com bainhas de couro grosso a cobrirem as pontas.
- Faça-se luz - disse ela baixinho.
Estendeu os braços e arrancou simultaneamente as bainhas, destapando dois globos luminosos, que estavam presos em cima das pontas por umas garras de ferro vermelho lascado.
Uma estranha luz verde irrompeu de imediato destas esferas de vidro do tamanho de nectarinas, tão intensa que se viu forçada a proteger os olhos. Era como se a energia delas tivesse estado a se acumular e a acumular debaixo das cobertas de couro e se deleitasse agora com a liberdade acabada de encontrar. Sarah esfregou de leve uma das esferas com as pontas dos dedos, sentindo a superfície fria como gelo e estremecendo levemente, como se o toque lhe conferisse algum tipo de ligação com a cidade escondida onde elas se encontravam por todo o lado.
A dor e o sofrimento por que passara sob esta mesma luz.
Pôs a mão em cima da prateleira e varreu a espessa camada de fuligem que a cobria.
Tal como esperara, a mão fechou-se num pequeno saco de plástico. Sorriu enquanto o agarrava e sacudia para limpar o pó preto. O saco estava fechado com um nó, que desmanchou rapidamente com os dedos gelados. Tirando para fora a folha de papel muito bem dobrada, levou-a ao nariz e cheirou-a. Concluiu que a mensagem já lá estava havia vários meses.
Embora não existisse sempre algo à sua espera quando lá ia, censurou-se por não ter ido mais cedo. Mas raramente se permitia lá ir a intervalos inferiores a seis meses, uma vez que este processo de "caixa de correio desativada" tinha os seus perigos para todos os envolvidos. Estas eram as únicas ocasiões em que contatava com alguém da sua vida antiga. Havia sempre o risco, por pequeno que fosse, de que o correio pudesse ter sido seguido quando saíra da Colônia para emergir à superfície, em Highfield. Também não podia ignorar a possibilidade de ele poder ter sido localizado na viagem de Londres até ali. Nada podia ser considerado como garantido. O inimigo era paciente, sublimemente paciente e calculista, e Sarah sabia que nunca abandonaria os seus esforços para a capturar e matar. Tinha de vencê-lo no seu próprio jogo.
Olhou para o relógio. Nunca usava os mesmos caminhos para chegar à ponte, e para se ir embora, e não tinha deixado muito tempo para cortar caminho até à aldeia mais próxima, onde iria apanhar o caminhão para a viagem de regresso a casa.
Devia pôr-se a caminho, mas a ânsia que sentia por notícias da família era forte demais. Esta folha de papel era a sua única ligação com a mãe, o irmão e os dois filhos - era a sua corda de salvação.
Tinha de saber o que continha. Voltou a cheirar a missiva.
Para além da necessidade que sentia de ter notícias deles, havia outra coisa que a impelia a quebrar as normas cuidadosamente estabelecidas que seguia infalivelmente sempre que visitava a ponte.
Era como se houvesse um cheiro característico e desagradável no papel que sobressaía da mescla de odores a mofo e a bolor da câmara úmida. Era forte e repugnante - era o pivete de más notícias. As suas premonições tinham-na ajudado anteriormente, e não era agora que iria começar a ignorá-las.
Com uma sensação de medo crescente, olhou para a luz da esfera mais próxima, remexendo a folha de papel enquanto lutava com a vontade de a ler. Depois, horrorizada consigo própria por ser tão fraca, fez uma careta e desdobrou-a. De pé, em frente da prateleira de pedra, examinou-a à luz tingida de verde.
Franziu a testa. A primeira surpresa era que a letra na carta não era a do irmão. A caligrafia infantil era-lhe desconhecida. Era sempre Tam que as escrevia. A sua premonição tinha sido correta - soube imediatamente que havia qualquer coisa errada. Virou a folha e olhou para baixo para ver havia algum nome.
- Joe Waites - disse em voz alta, sentindo-se cada vez mais preocupada.
Aquilo não estava certo; Joe era por vezes o correio, mas a mensagem devia ser do irmão Tam.
Mordeu o lábio, enervada, e começou a ler, percorrendo rapidamente as primeiras linhas.
- Oh meu Deus! - arfou, abanando a cabeça.
Releu a primeira folha da carta, sem conseguir aceitar o que lá estava, dizendo a si própria que devia ter interpretado mal ou que tinha de haver um engano qualquer. Mas era tão claro como água; as palavras simples não deixavam margem para confusões. E ela não tinha razão para duvidar daquilo que diziam - estas mensagens eram a única coisa em que confiava, uma constante na sua vida agitada e em constante mudança. Davam-lhe uma razão para continuar.
- Não, o Tam, não... o Tam, não - gemeu ela.
Como se tivesse sido violentamente atacada, cambaleou de encontro à prateleira de pedra, apoiando-se nela para não cair.
Inspirou trêmula e profundamente e forçou-se a virar a folha de papel para ler o resto, abanando a cabeça veementemente ao mesmo tempo que murmurava:
- Não, não, não, não... não pode ser...
Como se a primeira página já não tivesse sido suficientemente má, o que estava no reverso era demasiado para ela absorver. Com um gemido, afastou-se da prateleira e avançou para o meio da sala. Oscilando e abraçando-se, ergueu a cabeça e olhou sem ver para o teto.
De repente, teve de sair dali. Passou a porta numa pressa frenética. Deixando a ponte para trás, não parou. Enquanto cambaleava às cegas pela margem do regato, a escuridão ia se adensando rapidamente e a chuva continuava a cair num chuvisco persistente. Sem saber para onde ia, e sem se preocupar com isso, continuou a andar e a escorregar na erva molhada.
Não tinha avançado muito quando escorregou da margem e caiu dentro de água com um chape ruidoso. Ajoelhou-se, com a água límpida a chegar-lhe à cintura. Mas a dor era demasiado intensa para que sentisse o frio gelado. A cabeça girava-lhe nos ombros como se estivesse dominada por um paroxismo de dor.
Fez uma coisa que nunca mais fizera desde que tinha fugido para a Superfície, o dia em que abandonara os dois filhos e o marido. Começou a chorar, no princípio, foram apenas algumas lágrimas, mas depois não conseguiu controlar-se e elas correram-Ihe pela cara numa torrente, como se um dique tivesse rebentado.
Chorou e chorou até não ter mais nada para chorar. O rosto era uma máscara de raiva gelada quando se levantou lentamente, lutando para se equilibrar na torrente impetuosa do ribeiro. As mãos a pingar fecharam-se com força e, atirando os punhos cerrados ao céu, gritou com todas as suas forças, o som áspero e primitivo a ressoar pelo vale deserto.
Capítulo Dois
-E
ntão amanhã não há escola! - gritou Will a Chester enquanto o Trem dos Mineiros os levava para longe da Colônia, penetrando ruidosamente cada vez mais fundo nas entranhas da Terra.
Desataram a rir histericamente, mas isso foi sol de pouca dura e depressa se calaram, felizes por estarem novamente juntos. Enquanto a máquina a vapor martelava furiosamente ao longo dos carris, deixaram-se ficar no chão do enorme vagão aberto onde Will tinha descoberto Chester escondido debaixo de um oleado.
Passados vários minutos, Will puxou as pernas para si e esfregou o joelho que ainda lhe doía do pouso bastante desastrado no trem uns quilômetros atrás. Reparando nisso, Chester deitou-lhe um olhar interrogativo, a que Will respondeu levantando o polegar e acenando entusiasticamente com a cabeça.
- Como veio aqui parar? - gritou Chester, tentando fazer-se ouvir por cima do barulho do trem.
- Eu e o Cal... - respondeu-lhe Will muito alto, apontando por cima do ombro para indicar a parte da frente do trem, onde tinha deixado o irmão. Depois apontou para o teto do túnel, que refulgia por cima deles - ...saltamos... o Imago ajudou-nos.
- Hã?
- O Imago nos ajudou - repetiu Will.
- Imago? O que é isso? - gritou Chester ainda mais alto, pondo a mão em concha à volta do ouvido.
- Não interessa - respondeu Will, articulando as palavras silenciosamente ao mesmo tempo que abanava a cabeça devagarinho, desejando que ambos soubessem ler os lábios. Sorriu para o amigo e gritou: - É fabuloso estar bem!
Queria dar a Chester a impressão de que não havia nada com que se preocupar, embora a sua mente estivesse carregada de nuvens de preocupação em relação ao futuro. Gostaria de saber se o amigo fazia alguma ideia de que estavam se dirigindo para as Profundezas, um lugar a que as pessoas da Colônia se referiam com pavor.
Will girou a cabeça para ver o painel do fundo atrás dele. Daquilo que vira até ao momento, o trem e cada um dos vagões que puxava tinham uma dimensão várias vezes maior do que qualquer coisa que encontrara na superfície. Não estava com vontade alguma de fazer a viagem de volta ao lugar onde o irmão o esperava. Chegar ali não fora nada fácil; Will sabia que o erro de cálculo mais insignificante podia ter feito com que escorregasse para os trilhos lá em baixo e, muito provavelmente, fosse esmagado pelas rodas gigantes que trituravam os trilhos grossos, lançando faíscas esporádicas. Era melhor nem sequer pensar nisso. Inspirou fundo.
- Está pronto para irmos? - gritou a Chester.
O amigo fez um aceno afirmativo e levantou-se cambaleando. Agarrado ao painel do fundo, esforçou-se para se equilibrar, lutando contra a oscilação incessante enquanto o trem serpenteava pelas várias curvas do túnel.
Vestia o casaco curto e as calças grossas que eram o traje usual na Colônia, mas, quando o casaco se abriu, Will ficou consternado com o que viu.
Na escola tinham dado a Chester a alcunha de Chester Drawers por causa do seu físico imponente, mas, olhando para ele agora, parecia que definhara. A não ser que fosse um truque da luz, a cara estava chupada e com ar doentio e o corpo havia perdido grande parte do seu volume. Por incrível que fosse, naquele momento, parecia-lhe quase frágil. Will não tinha ilusões quanto às condições pavorosas no Cárcere. Não se passara muito tempo desde que ele e Chester tinham dado por acidente com o mundo subterrâneo até terem sido apanhados por um policial da Colônia e atirados para uma das celas escuras e sem ar. Mas Will só lá ficara cerca de quinze dias - Chester passara por uma provação muito maior. Meses dela.
Will percebeu que olhava fixamente para o amigo e desviou rapidamente os olhos. Estava atormentado com os remorsos, sabendo que era o responsável por tudo o que Chester sofrera. Ele, e só ele, tinha sido culpado de arrastar Chester para tudo isto, impelido pela sua impulsividade e determinação tenaz em encontrar o pai desaparecido.
Chester disse qualquer coisa, mas Will não percebeu uma única palavra, estudando o amigo sob a luz emitida pela esfera que tinha na mão enquanto tentava ler-lhe os pensamentos. Todos os centímetros visíveis da cara dele estavam cobertos com uma camada de porcaria do fumo sulfuroso que constantemente passava por eles. Era tão espessa que parecia um enorme borrão preto quebrado apenas pelo branco dos olhos.
Do pouco que Will conseguia ver, Chester não era de fato a imagem da saúde. No meio da porcaria sobressaíam manchas, algumas com um tom avermelhado nos lugares em que a pele parecia estar rasgada. O cabelo, tão comprido que começara a encaracolar nas pontas, estava oleoso e colado à cabeça. E, pela maneira como Chester por sua vez olhava para ele, Will deduziu que a sua aparência era igualmente chocante.
Inconscientemente, passou a mão pelo cabelo branco e sujo, que já não era cortado há muitos meses.
Mas havia coisas mais importantes a resolver naquela altura. Dirigindo-se para o painel do fundo do vagão, Will estava prestes a subir por ele quando parou e se virou para o amigo. Chester estava extremamente instável, embora fosse difícil dizer quanto daquela instabilidade se devia ao oscilar irregular do trem.
- Está em condições de fazer isto? - gritou Will.
Chester assentiu com pouco entusiasmo.
- Tem certeza? - Will voltou a gritar.
- Sim! - gritou Chester em resposta, assentindo com a cabeça um bocadinho mais vigorosamente desta vez.
Mas o processo de saltar de vagão para vagão era um assunto problemático, para dizer o mínimo, e, depois de cada um deles, Chester precisava se recuperar durante períodos cada vez mais longos. A manobra não era nada fácil porque o trem parecia ganhar velocidade. Era como se os dois rapazes estivessem lutando com uma forte ventania de velocidade dez, as caras repuxadas para fora e os pulmões a encherem-se com a fumaça pútrida sempre que inspiravam. A juntar a isto, havia o perigo de pedaços de cinzas a arder que flamejavam por cima das cabeças deles como pirilampos sobrecarregados. De fato, enquanto o trem continuava a acelerar, parecia haver tantos na corrente de ar que um clarão cor de laranja infiltrava-se na escuridão cerrada que os rodeava. Pelo menos isso significava que Will não precisava utilizar a sua esfera de luz.
À medida que avançavam na linha de vagões, o progresso era lento. E ainda se tornou mais lento porque Chester estava a ter grande dificuldade em se manter de pé, apesar de usar os lados dos vagões para se equilibrar enquanto avançava.
Não tardou muito até que não pudessem esconder o fato de que ele não estava em condições de continuar. Deixou-se cair agachado com as mãos no chão e a única coisa que conseguia fazer era rastejar vagarosamente atrás de Will, com a cabeça baixa. Will não estava disposto a deixar que o amigo continuasse a esforçar-se daquela maneira sem fazer nada. Ignorando os protestos de Chester, passou-lhe à força o braço à volta da cintura e ajudou-o a levantar-se.
Foi preciso um esforço tremendo para conseguir fazer com que Chester passasse para as seções restantes à força de braço, e Will teve de o ajudar em todos os centímetros do caminho. Qualquer cálculo errado podia ter feito com que um deles, ou mesmo os dois, caísse e ficasse debaixo das rodas enormes.
Will ficou tão aliviado que não tinha palavras para descrevê-lo quando viu que só faltava passar mais um vagão - sinceramente, duvidava da sua resistência para arrastar o amigo muito mais tempo. Continuando a segurar Chester, chegaram ao painel do fundo do último vagão e agarraram-se a ele.
Will inspirou fundo para se preparar. Chester movia as pernas debilmente, como se mal as conseguisse controlar. Nesta altura, Will já estava a aguentar todo o peso de Chester, mas com grande dificuldade. Só por si, a manobra já era bastante difícil, mas tentar fazê-la com o equivalente a um saco de batatas gigantesco debaixo do braço era pedir demais. Will reuniu todas as suas forças e arrastou o amigo. Com muitos gemidos e esforço, acabaram por passar para o outro lado, caindo desamparados no chão do vagão seguinte.
Ficaram imediatamente banhados por uma luz copiosa. Inúmeras esferas de luz do tamanho de bolas de gude grandes rolavam livremente pelo chão. Tinham saído de um caixote de madeira frágil que amortecera a aterrissagem de Will quando ele caíra dentro do trem. Embora Will já tivesse enfiado várias nos bolsos, sabia que necessitava de fazer qualquer coisa com as restantes - a última coisa de que precisava era que um dos Colonos no trem reparasse na luz e viesse ver o que se passava.
Mas naquele momento tinha as mãos cheias enquanto levantava o amigo doente. Com o braço em volta de Chester, Will dava pontapés em todas as esferas que lhe apareciam à frente para não tropeçar. Estas giravam caoticamente pelo chão, deixando esteiras de luz atrás delas e colidindo com outras esferas que, por sua vez, se punham em movimento, como tivesse se iniciado uma reação em cadeia.
Will arquejava e sentia os efeitos da exaustão enquanto cobriam a curta distância que ainda tinham de percorrer. Mesmo tendo perdido algum peso, Chester não era de forma alguma um corpo fácil de transportar. A tropeçar e a escorregar e envolvido por uma intensa luz rodopiante, Will lembrava um soldado a ajudar o camarada ferido a regressar às linhas quando um foguete luminoso do inimigo os apanhava na terra-de-ninguém.
Chester mal parecia registrar o que estava à sua volta. O suor escorria-lhe da testa como riachos, abrindo riscas na capa de porcaria da cara. Will sentia o corpo dele a tremer violentamente contra o seu enquanto ele arfava, numa respiração curta e pouco funda.
- Já não falta muito - disse ao ouvido de Chester, incitando-o a continuar quando chegaram a uma seção do vagão onde estavam empilhados vários caixotes de madeira.
- O Cal já está ali.
Quando se aproximaram, o rapaz estava sentado de costas para eles. Não saíra do meio dos caixotes desfeitos onde Will o tinha deixado. Vários anos mais novo do que Will, o irmão recentemente descoberto era assustadoramente parecido com ele. Cal também era albino e tinha o mesmo cabelo branco e as mesmas maçãs do rosto largas que haviam herdado da mãe que nenhum deles chegara a conhecer. Mas agora a cabeça de Cal estava tombada para a frente e as feições estavam escondidas enquanto ele esfregava suavemente a parte de trás do pescoço. Não tinha tido a mesma sorte de Will quando caíra para dentro do trem em movimento.
Will ajudou Chester a chegar a um caixote, onde este se deixou cair pesadamente. Aproximando-se do irmão, Will tocou-lhe levemente no ombro, esperando não lhe pregar um susto muito grande. Imago tinha-lhes dito que deviam manter-se alerta e prontos para tudo, porque havia Colonos no trem. Mas naquele caso, Will não precisava ter se preocupado em alarmar o irmão; Cal estava tão preocupado com as suas dores que mal reagiu. Só ao fim de alguns segundos, e de uns resmungos inaudíveis, é que ele finalmente se virou, ainda a massagear o pescoço.
- Cal, encontrei-o! Encontrei o Chester! - gritou Will, as palavras praticamente engolidas pelo barulho.
Os olhos de Cal e Chester cruzaram-se, mas nenhum deles abriu a boca, uma vez que estavam longe demais um do outro para qualquer troca de palavras. Embora já tivessem sido apresentados antes muito rapidamente, fora na pior das circunstâncias, com os Styx colados às canelas. Não houvera tempo para delicadezas.
Afastaram os olhos um do outro, e Chester desceu do caixote para o chão do vagão, onde ficou sentado com a cabeça aninhada entre as mãos. A viagem que ele e Will tinham acabado de fazer ao longo do trem esgotara-lhe toda a força que ainda lhe restava. Cal recomeçou a massagear o pescoço. Não pareceu minimamente surpreendido por Chester estar no trem, ou, simplesmente, talvez não lhe interessasse.
Will encolheu os ombros.
- Caramba, que par de lastimáveis! - disse ele num tom de voz normal para os outros não o ouvirem por cima do barulho do trem.
Mas mal recomeçou a pensar no futuro, a ansiedade regressou imediatamente, como se houvesse qualquer coisa a roê-lo por dentro.
Vendo bem as coisas, iam para um lugar de que até os próprios Colonos falavam em sussurros reverentes. De fato, para um Colono, um dos piores castigos imagináveis era ser "Banido" e enviado para lá, para uma terra deserta e selvagem.
E os Colonos eram uma raça de uma intrepidez fenomenal, que tinha suportado as mais duras condições de vida no mundo subterrâneo durante séculos. Por isso, se o local para onde este comboio os levava era assim tão horrível, como é que eles se iriam sair? Não tinha a mais pequena dúvida de que seriam postos à prova novamente, todos os três. E não se podia escapar à realidade: nem o irmão nem o amigo estavam em condições de enfrentar nenhum desafio. Pelo menos, para já.
Flexionando o braço e sentindo a rigidez, Will enfiou a mão debaixo do casaco para apalpar a mordida no ombro. Tinha sido ferozmente atacado por um farejador, um dos ferozes cães utilizados pelos Styx, e, embora os ferimentos tivessem sido tratados, também não estava em grande forma. Automaticamente, olhou para os caixotes de fruta fresca à volta deles. Pelo menos tinham bastante comida para manterem as forças. Mas, à parte isso, estavam muito mal preparados.
A responsabilidade era imensa, como se lhe tivessem colocado uns pesos enormes nos ombros e não houvesse maneira de se libertar deles. Envolvera Chester e Cal nesta busca disparatada e inútil do pai, que estava agora em algum lugar nas terras desconhecidas de que se aproximavam a cada curva destes túneis serpenteantes. Isto se o Dr. Burrows ainda estivesse vivo... Will sacudiu a cabeça.
Não!
Não podia permitir-se pensar dessa maneira. Tinha de continuar a acreditar que se iria reunir ao pai e que depois tudo ficaria bem, tal como nos seus sonhos. Os quatro - o Dr. Burrows, Chester, Cal e ele - trabalhando em equipe, descobrindo coisas inimagináveis e maravilhosas... civilizações perdidas... talvez até mesmo novas formas de vida... e depois... depois o quê?
Não fazia a mínima idéia.
Não conseguia ver a essa distância toda. Por mais que tentasse, não conseguia ver como é que tudo isto iria funcionar. Apenas sabia que, de uma maneira qualquer, haveria um resultado feliz, e encontrar o pai era a chave. Tinha de ser.
Capítulo Três
A
s máquinas de costura matraqueavam de diferentes pontos do piso e as prensas de vapor assobiavam as suas respostas como se estivessem a tentar comunicar entre elas.
De onde Sarah se sentava, os sons sibilantes de uma estação de rádio, sempre presente ao fundo, tentavam furar através do ruído metálico. Baixando o pedal com o pé, fez a sua máquina zumbir e ganhar vida enquanto enfiava uma linha no tecido. Toda a gente no andar estava trabalhando a toda a velocidade, pois havia pressa em ter as roupas prontas no dia seguinte.
Sarah olhou para cima quando ouviu alguém gritar - uma mulher abria caminho, serpenteando pelo meio das bancadas de trabalho, na direção dos seus companheiros que esperavam junto à saída. Quando ela se juntou a eles, conversaram ruidosamente como um ajuntamento de gansos sobreexcitados, e depois saíram pelas portas giratórias.
Quando as portas se fecharam ondulando por detrás deles, Sarah lançou um olhar às vidraças sujas das janelas da fábrica. Pôde ver nuvens a juntarem-se, tornando tudo escuro como no princípio da noite, embora fosse apenas meio-dia. Havia ainda um número razoável de outras mulheres no piso da fábrica, cada uma delas isolada debaixo de um cone de luz proveniente das lâmpadas suspensas, que labutavam persistentemente.
Sarah socou o botão debaixo da sua bancada para desligar a máquina e, agarrando no casaco e na mala, dirigiu-se rapidamente para a porta de entrada. Deslizou pelas portas de vaivém, assegurando-se de que não faziam barulho ao fecharem, e depois apressou-se pelo corredor. Através da janela que dava para o escritório, conseguia ver as costas fortes do gerente do piso sentado todo curvado sobre a secretária, absorto no seu jornal. Sarah devia ter-lhe dito que ia embora, mas tinha um trem para apanhar, além de que quanto menos pessoas soubessem que saíra, melhor.
Uma vez na rua, examinou cuidadosamente as calçadas para ver se havia alguém que não se enquadrava. Era automático; ela nem tinha consciência do que fazia. Os seus instintos disseram-lhe que estava segura, e seguiu pela colina abaixo, saindo da rua principal para ir por um caminho muito mais indireto do que o necessário.
Depois de tantos anos a viver como um fantasma, mudando de emprego de poucos em poucos meses e de casa com uma regularidade semelhante, vivia no meio das pessoas invisíveis, os imigrantes ilegais e os criminosos insignificantes. Mas, apesar de ser uma espécie de imigrante, não era uma criminosa. À parte as várias identidades falsas que adquirira ao longo dos anos, nunca sonharia em infringir a lei, nem mesmo se estivesse desesperada por dinheiro. Não, isso trazia consigo o risco de prisão e de ser apanhada no sistema. De repente estaria deixando um sinal que podia ser detectado.
Porque os primeiros trinta anos da vida de Sarah não foram o que seria de esperar.
Nascera nos subterrâneos, na Colônia. O seu tetravô e várias centenas de homens tinham sido escolhidos um a um para trabalhar na cidade escondida, jurando fidelidade a Sir Gabriel Martineau, um homem que eles acreditavam ser o seu salvador.
Sir Gabriel tinha dito aos seus seguidores voluntários que, num dia não especificado no futuro, o mundo corrupto seria varrido por um Deus zangado e vingativo. Todas as pessoas que viviam à superfície, os Habitantes da Superfície, seriam exterminados, e então o seu bando, as pessoas puras, retornaria à casa a que tinha direito.
E Sarah temeu o que aquelas pessoas temeram - os Styx. Esta polícia religiosa impunha a ordem na Colônia com uma eficiência brutal e eficaz. Contra todas as expectativas, Sarah tinha escapado da Colônia, e os Styx não se deteriam perante nada para a capturar e fazer dela um exemplo.
Entrou numa praça e deu uma volta inteira, verificando se não tinha sido seguida. Antes de fazer o caminho de regresso à rua principal, acocorou-se atrás de um carro estacionado.
Foi uma pessoa muito diferente que saiu de trás do carro uns momentos depois. Tinha virado o casaco do avesso para mudar dos quadrados verdes para um tecido cinzento baço e atara um lenço preto em volta da cabeça. As roupas quase a tornaram invisível, enquanto cobria a distância remanescente para a estação de trens, contra as fachadas sujas dos edifícios de escritórios e lojas por onde passava, como se fosse um camaleão humano.
Olhou para cima quando ouviu os primeiros sons de um trem a aproximar-se. Sorriu - o seu timing era perfeito.
Capítulo Quatro
E
nquanto Chester e Cal dormiam, Will analisou a situação em que se encontravam.
Olhando em redor do vagão, percebeu que a primeira prioridade era esconderem-se. Enquanto estivessem em movimento, Will achava que era muito improvável que algum Colono passasse revista no trem. No entanto, se parassem por qualquer motivo, ele, Chester e Cal deveriam estar prevenidos. Mas o que podia ele fazer? Não havia muita coisa com que trabalhar, mas resolveu que rearranjar os caixotes de madeira inteiros era a melhor aposta. Começou a arrastá-los e a colocá-los em volta dos vultos adormecidos de Chester e Cal, empilhando-os para improvisar um esconderijo com espaço suficiente para os três no meio.
Enquanto fazia isto, Will reparou que o vagão da frente tinha os lados mais altos do que o deles, e, de fato, do que todos os outros que subira na sua expedição anterior, quando encontrara Chester. Imago, quer intencionalmente, quer por sorte, tinha-os atirado para um lugar relativamente protegido, onde estavam de certo modo abrigados da fumaça e da fuligem que saíam da máquina do trem na parte dianteira.
Quando colocou o último caixote no lugar e recuou para apreciar a sua obra, a mente já estava passando para a prioridade seguinte - água. Podiam aguentar-se com a fruta, mas não tardaria muito que precisassem de qualquer coisa para beber, e também seria bom terem as provisões que ele e Cal tinham trazido da Superfície. Isso queria dizer que alguém teria de se aventurar a ir recuperar as mochilas nos vagões dianteiros para onde Imago as tinha atirado. E sabia que esse alguém seria ele.
Equilibrando-se com os braços estendidos, como se estivesse na cobertura de um navio em águas revoltas, ficou a olhar para a parede de ferro que ia ter de subir. Ergueu os olhos até o topo, que estava claramente recortado pelo clarão cor de laranja dos pedacinhos de brasas a arder que voavam. Calculou que devia ter quatro ou cinco metros - quase o dobro dos painéis que subira antes.
- Vá lá, meu medroso, ande logo - disse, e desatou a correr a toda a velocidade, saltando para o painel do vagão onde estava e agarrando-se à parede mais alta do seguinte.
Por uns breves instantes pensou que tinha calculado muito mal e que ia escorregar. Com as mãos a agarrarem com toda a força o vagão da frente, arrastou os pés pela parede até ficarem mais bem posicionados.
Permitiu-se um instante de auto-elogio e depois percebeu que não era o lugar mais seguro para ficar pendurado durante muito tempo. Os dois vagões oscilavam violentamente e sacudiam-no de um lado para o outro, ameaçando desalojá-lo da sua posição precária. E não se atrevia a olhar para os trilhos a correrem por baixo dele, para não perder a coragem.
- Aqui vou eu! - gritou ele e, usando toda a força das pernas e dos braços, içou-se por cima da borda.
Deslizou pelo lado de dentro e aterrou todo enrolado no chão. Tinha conseguido e estava lá dentro. Puxando a esfera de luz para poder ver bem o que o rodeava, ficou desapontado por descobrir que o vagão parecia vazio, excetuando pequenos montes de carvão. Continuou a avançar e deu graças silenciosamente quando viu duas mochilas na ponta mais afastada do vagão. Agarrou nas mochilas e voltou para trás. Com toda a precisão que conseguiu, atirou cada uma delas para dentro do vagão de trás. Quando voltou para junto de Cal e Chester, descobriu que os dois continuavam profundamente adormecidos. Nem sequer repararam nas duas mochilas que tinham aparecido milagrosamente do lado de fora do seu enclave. Sabendo como Chester estava debilitado, não perdeu tempo e preparou-lhe uma sanduíche.
Quando, depois de muitos abanões, Will conseguiu acordar Chester o suficiente para ele perceber o que lhe estava a ser oferecido, o amigo atirou-se ao sanduíche. Sorriu a Will com a boca cheia e engoliu tudo, empurrando com água de um dos cantis, e voltou a adormecer.
E nas horas seguintes foi assim que os três rapazes ocuparam o tempo - a dormir e a comer. Fizeram sanduíches bizarros de pedaços de pão branco com rato defumado e salada de couve e cenoura. Até se serviram das fatias nada apetitosas de cogumelos (o alimento principal da dieta dos Colonos - fungos gigantes conhecidos por "pães de tostão") que comeram com waffles carregadas de manteiga. E para finalizarem cada refeição, comeram tanta fruta que depressa acabaram com tudo o que havia nos caixotes arrebentados e foram obrigados a abrir outros.
E durante todo este tempo o trem avançava rugindo, afundando-os cada vez mais no manto da Terra. Will percebeu que tentar se comunicar com os outros era inútil, e, em vez disso, deitou-se para trás estudando o túnel. Era uma constante fonte de fascínio à medida que o trem penetrava na terra. Observou as várias camadas de rocha metamórfica que iam atravessando, documentando cuidadosamente as suas observações no bloco de notas numa caligrafia trêmula. Este ia ser o relatório geográfico que daria cabo de todos os relatórios geográficos. Não havia dúvida que reduzia a nada as suas próprias escavações em Highfield, onde mal tinha arranhado a superfície da crosta da Terra.
Também percebeu que o declive do próprio túnel variava consideravelmente - havia vários quilômetros de extensão que eram claramente feitos pelo homem, onde o trem descia mais suavemente. Depois, de quando em quando, a linha nivelava-se e atravessavam cavernas formadas naturalmente, onde conseguiam ver paliçadas gigantescas de depósitos de calcário. Só a dimensão destas estruturas era de cortar a respiração, e Will não conseguia deixar de se maravilhar com a sua espantosa semelhança com catedrais derretidas. Por vezes estavam rodeadas por fossos de água escura que lambia os próprios trilhos. Depois vinham as seções "montanha-russa" do túnel, que eram tão inclinados que os garotos, se estavam a dormir, eram atirados uns contra os outros e acordados com as sacudidelas.
ø ø ø
Subitamente, como se o trem tivesse caído de um rebordo, houve um choque violento e ruidoso. Os rapazes estavam sentados olhando ao redor com uma expressão espantada e sobressaltada quando, de cima, jorraram jatos de água. Era quente e inundou o vagão, encharcando-os dos pés à cabeça, como se tivessem sido atirados para baixo de uma catarata. Estavam a rir uns para os outros e a agitar os braços quando, tão abruptamente como começara, o dilúvio acabou, e eles calaram-se.
Um vapor fino elevou-se deles e do fundo do vagão e foi imediatamente dissipado pela corrente de ar. Will já tinha reparado que estava a ficar bastante mais quente à medida que o trem avançava velozmente. Ao princípio mal se sentira, mas, entretanto, a temperatura subira assustadoramente.
Passado um tempo, tinham desapertado as camisas e descalçado as meias e as botas. O ar estava tão quente e seco que faziam turnos para subirem para os caixotes de fruta inteiros, tentando apanhar um pouco da brisa. Will perguntou para si mesmo se iria ser sempre assim a partir dali. As Profundezas seriam insuportavelmente quentes, como as rajadas de ar da porta aberta de uma fornalha? Parecia ir a caminho do verdadeiro inferno.
Os seus pensamentos depressa foram interrompidos quando os freios guincharam com tal intensidade que foram forçados a tapar os ouvidos. O trem abrandou e depois parou com um safanão violento. Vários minutos depois, vindo de algum lugar à frente do trem, ouviram um estrondo metálico seguido do ressoar de metal a bater em rocha. Will calçou as botas rapidamente e dirigiu-se para a parte da frente do vagão. Içou-se para espreitar por cima do painel e ver o que se estava a passar.
Era inútil - mais ao fundo do túnel havia um clarão de um vermelho baço, mas todo o resto estava encoberto por mantos de fumaça que se deslocavam preguiçosamente. Chester e Cal reuniram-se a Will, esticando os pescoços para verem por cima dos vagões. Com a máquina desligada, o nível de ruído tinha diminuído quase totalmente, e todos os sons que eles faziam, cada tossidela ou arrastar de uma bota, pareciam muito remotos e pequeninos. Embora fosse uma oportunidade para conversarem, limitaram-se a olhar uns para os outros, sem saberem o que dizer. Por fim, Chester foi o primeiro a falar.
- Está vendo alguma coisa? - perguntou.
- Veja por si! - respondeu-lhe Will.
O amigo estava a mover-se com mais facilidade e tinha-se içado para o lado de Will sem qualquer dificuldade.
- Só estava com fome - murmurou Chester com indiferença, carregando com a palma da mão numa orelha como se tentasse aliviar a pressão resultante de um silêncio pouco familiar.
Ouviu-se um berro, a voz profunda de um homem a ribombar de um lugar mais à frente, e os três ficaram paralisados. Era uma chamada de atenção muito clara para o fato de não estarem sozinhos no trem. Como era evidente, havia um maquinista - possivelmente acompanhado por um colega, como Imago os avisara - e mais um Colono na carruagem dos guardas, na retaguarda do trem. E, embora estes homens soubessem que Chester estava a bordo e estivessem encarregados de o mandarem ao seu destino quando chegassem à Estação dos Mineiros, Cal e Will eram passageiros clandestinos e, muito provavelmente, tinham as cabeças a prêmio. Custasse o que custasse, não podiam ser descobertos.
Os rapazes entreolharam-se nervosamente e Cal içou-se mais alto no painel do fundo do vagão.
- Não consigo ver nada - informou.
- Vou tentar ali - propôs Will, e, deslocando uma mão e depois a outra, dirigiu-se para o canto do vagão para ter um melhor ângulo de visão.
Franzindo os olhos, espreitou ao longo do vagões, mas não conseguiu ver nada com a escuridão e a fumaça. Voltou para o lugar onde os outros estavam empoleirados.
- Acha que estão revistando os vagões? - perguntou a Cal, que se limitou a encolher os ombros e a olhar ansiosamente para trás deles.
- Jesus, está uma brasa! - resmungou Chester baixinho, soprando com força.
Tinha razão - o calor era quase insuportável sem a corrente de ar para os arrefecer.
- Isso é o menor dos nossos problemas - murmurou Will.
Nesse momento a máquina do trem estremeceu violentamente, começando outra vez a trabalhar e com uma sacudida e uma série de arranques recomeçou a andar. Os rapazes continuaram onde estavam, perigosamente pendurados no painel do vagão alto, e ficaram imediatamente submersos no tumulto violento e ruidoso e na fumaça carregada de fuligem.
Decidindo que já viram o suficiente, saltaram para o chão e voltaram para o esconderijo, embora continuassem a espreitar atentamente por cima dos caixotes. Will foi quem descobriu o que levara o trem a parar.
- Ali! - gritou, apontando enquanto o trem continuava a rolar ruidosamente.
Duas enormes portas de ferro estavam abertas de par em par na parede do túnel. Todos se levantaram para ver.
- Portões de tempestade - gritou-lhes Cal. - Vão se fechar outra vez depois de passarmos. Vão ver.
Antes de acabar de falar, os freios guincharam e o trem começou a desacelerar. Parou com outro safanão violento, que atirou os garotos ao chão. Seguiu-se uma pausa, e depois voltaram a ouvir o estrondo metálico, desta vez atrás deles. Culminou num baque de percussão que lhes fez bater os dentes e todo o túnel estremeceu, como se tivesse havido uma pequena explosão.
- Eu lhes disse, não disse? - observou Cal num tom presunçoso, na calmaria que se seguiu. - São portões de tempestade.
- Mas para que servem? - perguntou-lhe Chester.
- Para impedir que a força toda do Vento do Levante atinja a Colônia.
Chester olhou para ele perplexo.
- Sabe do que estou falando, das tempestades e vento que sopram do Interior - respondeu Cal, acrescentando: - É um tanto óbvio, não é?
Revirou os olhos como se a pergunta de Chester fosse completamente absurda.
- Provavelmente, ele ainda não assistiu a nenhuma - interveio Will muito depressa. - Olha, Chester, é uma poeira muito espessa que sopra do lugar para onde vamos. Das Profundezas.
- Oh, certo - replicou o amigo, voltando-lhe as costas.
Will não pôde deixar de reparar na expressão de irritação que lhe perpassou pela cara. Nesse instante, teve a perfeita noção de que a vida com Chester e Cal não iria ser fácil, nada fácil mesmo, com aqueles dois juntos.
ø ø ø
Quando o comboio ganhou velocidade, os garotos voltaram para os seus lugares no meio dos caixotes. Ao longo das doze horas seguintes, passaram por muitos mais destes conjuntos de portas de tempestades. Mantiveram-se atentos em todos eles para o caso de algum dos Colonos se lembrar de vir ver como é que Chester se encontrava. Mas não apareceu ninguém, e, depois de cada interrupção, os rapazes voltavam à rotina de comer e dormir. Sabendo que não deveria faltar muito para atingirem o fim da linha, Will começou a preparar-se. Armazenou em cima de todas as esferas de luz soltas que já tinha guardado nas duas mochilas toda a fruta que conseguiu. Não fazia idéia de onde ou quando iriam arranjar comida mal se encontrassem nas Profundezas, e decidira que iriam levar com eles o máximo que conseguissem.
Estava profundamente adormecido quando foi acordado pelo barulho de um sino a tocar ruidosamente. Num estado de confusão e atordoamento, a primeira coisa que pensou foi que era o despertador a acordá-lo para que se preparasse para a escola. Num gesto automático esticou o braço para o lugar onde deveria estar a mesa-de-cabeceira, mas em vez do despertador, as pontas dos dedos encontraram o chão coberto de terra do vagão. A urgência mecânica da campainha acordou-o completamente e fê-lo erguer-se de um salto, a esfregar os olhos para afastar o sono. A primeira coisa que viu foi Cal calçando as meias e as botas a toda a pressa enquanto Chester o observava atordoado. O toque estridente continuava, ecoando pelas paredes e pelo túnel atrás deles.
- Ei, vocês dois! Andem logo! - berrou-lhes Cal muito alto.
- Porquê? - perguntou Chester a Will, percebendo expressão amedrontada na cara do amigo.
- É agora! Preparem-se! - gritou Cal enquanto prendia a mochila.
Chester olhou para ele interrogativamente.
- Temos de saltar! - gritou-lhe o rapaz mais novo, apontando para a parte da frente do trem. - Antes da estação!
Capítulo Cinco
S
arah estava a caminho de Londres num trem muito diferente daquele que transportava os seus dois filhos. Não se deixou adormecer, mas na maior parte do tempo fingiu que dormia, semicerrando os olhos, para evitar qualquer contato com os outros passageiros. O vagão foi ficando cada vez mais cheio nas paradas frequentes que o trem fez na parte final. Sentia-se claramente ansiosa. Um homem com uma barba tinhosa tinha embarcado na última dessas paragens, um miserável num sobretudo axadrezado, agarrando uma seleção heterogênea de sacos de plástico.
Tinha de ser cautelosa. Às vezes, eles faziam-se passar por vagabundos e mendigos. Tudo o que o rosto chupado de um Styx vulgar precisava era de vários meses de crescimento dos pêlos faciais e de uma generosa pasta de imundície para o tornar indistinguível desses pobres infelizes que se encontram pelos cantos de qualquer cidade.
Era um estratagema inteligente. Com este disfarce, os Styx podiam insinuar-se praticamente em qualquer lugar que quisessem sem provocar o escrutínio dos habitantes da Superfície. E, o melhor de tudo, permitia-lhes manter postos de vigilância em volta das estações de trem com mais movimento durante dias sem fim para monitorizarem os passageiros que passavam por lá.
Sarah perdera a conta do número de vezes que vira vagabundos encostados nos vãos das portas, e de como os olhos vidrados, debaixo dos cabelos emaranhados, a tinham escrutinado, pupilas pretas que viam tudo e faiscavam na sua direção.
Mas seria este vagabundo um deles? Observou o seu reflexo na janela enquanto ele tirava uma lata de cerveja de um saco de compras sujo. Abriu-a com um estalido e começou a beber, entornando uma grande parte pela barba abaixo. Em várias ocasiões, apanhou-o a olhar diretamente para ela. Parecia olhá-la com uma expressão toldada, e ela não gostou dos seus olhos - eram pretos como o azeviche, e ele franzia-os como se não estivesse muito habituado à luz do dia. Tudo sinais de mau agouro; mas por muito que quisesse, não se mudou para outro lugar no vagão. A última coisa que queria era atrair a atenção.
Por isso, cerrou os dentes e ficou sentada quieta até que o trem chegou finalmente à Estação de St. Pancras. Sarah estava entre os primeiros passageiros que desembarcaram e, uma vez passada a barreira, dirigiu-se despreocupadamente para o lugar onde se localizavam os quiosques da estação. Manteve a cabeça baixa para evitar as câmaras de segurança espalhadas ao redor da plataforma, tapando a cara com um lenço quando pensava estar no raio de ação de alguma delas. Parou e voltou-se para a vitrine de uma loja, observando o vagabundo enquanto ele atravessava a multidão.
Se ele era um Styx, ou mesmo um dos agentes deles, seria muito melhor deixar-se ficar no meio da multidão. Ela pesou as suas opções para escapar. Debatia se devia saltar para um trem prestes a sair, que estava a não mais de quinze metros dela, quando o vagabundo parou atrapalhado com os sacos. Então, praguejando incoerentemente com um homem que lhe tinha dado um leve encontrão, encaminhou-se para as portas principais da estação num andar incerto e hesitante, os braços esticados para a frente como se estivesse a empurrar um carrinho de compras invisível, com uma roda presa. Sarah observou-o enquanto ele saía pela porta principal da estação.
A esta altura, estava quase certa de que ele era um vagabundo genuíno, e, de qualquer modo, estava desejosa de seguir o seu caminho. Portanto, escolheu uma direção ao acaso, furou pelo meio da multidão e esgueirou-se da estação por uma saída lateral.
Lá fora, o tempo estava bom e as ruas de Londres cheias de gente. Exatamente como ela gostava. Era melhor ter uma multidão saudável a andar à volta dela - era um caso de segurança nos números. Era menos provável que os Styx tentassem alguma coisa em frente de múltiplas testemunhas.
Começou a andar num passo razoavelmente rápido, dirigindo-se para norte, na direção de Highfield. O ressoar do tráfico intenso parecia se juntar numa batida única e contínua, que passava do chão para as plantas dos seus pés, e que ela quase sentia ressoar na boca do estômago. Muito estranhamente, isso pô-la à vontade. Era uma vibração reconfortante e constante, como se a própria cidade estivesse viva.
À medida que andava, olhava para os edifícios novos, virando a cabeça sempre que descortinava uma das muitas câmaras neles montadas. Estava espantada com quanto tinha mudado desde a sua primeira vez em Londres. Quando fora isso, havia quase doze anos?
Diz-se que o tempo cura. Mas isso depende do que tenha acontecido entretanto.
Durante muito tempo, a vida de Sarah fora um marasmo triste e incaracterístico: sentia que não tinha estado realmente viva. Apesar de ter acontecido havia muitos anos, a fuga da Colônia estava ainda dolorosamente viva na sua mente.
Agora, enquanto andava, descobriu que não podia conter o ímpeto das memórias que afluíam do passado e a submergiam por completo. Começou a reviver a dúvida esmagadora que tinha sentido quando conseguira escapar de um pesadelo apenas para ser lançada para outro nesta terra estranha, onde o clarão do pôr do Sol agonizava e tudo parecia tão diferente e desconhecido. Pior do que tudo, ficara arrasada pela culpa de ter deixado as crianças, os seus dois filhos, para trás.
Mas não tivera escolha, tivera de partir. O seu bebê, com apenas uma semana, tinha tido uma febre, uma febre horrível e consumidora, que atormentara o pequenino com tremores violentos enquanto sucumbia à doença. Mesmo agora, Sarah ainda conseguia ouvir o seu choro interminável e lembrar-se de como ela e o marido haviam se sentido tão impotentes. Suplicaram remédios ao médico, mas ele dissera que não tinha nada na sua mala preta que pudesse dar-lhes. Ficara histérica, mas o médico limitara-se a abanar friamente a cabeça, evitando olhá-la nos olhos. Ela sabia o que aquele abanar de cabeça significava. Sabia a verdade. Na Colônia, remédios como os antibióticos faltavam permanentemente. Os poucos que tinham sido armazenados eram apenas para uso das classes dirigentes, dos Styx, e talvez para um grupo muito selecionado da elite dentro do Conselho de Governantes.
Tinha havido outra alternativa: Sarah sugerira comprar penicilina no mercado negro, e queria pedir ao irmão, Tam, para lha arranjar. Mas o marido fora inflexível. "Não posso tolerar esse tipo de ações", foram as suas palavras enquanto fitava tristemente a desafortunada criança que enfraquecia a cada hora que passava. Depois tinha disparatado acerca da sua posição na comunidade e de como era seu dever respeitar os seus valores. Nada disso valia um centavo para Sarah; ela só queria que o seu bebê ficasse bom.
Não havia nada a fazer a não ser estar sempre a lavar com água a cara vermelha e reluzente da criança chorosa, para tentar baixar a febre, e rezar. Durante as vinte e quatro horas seguintes, o choro do bebê aquietou-se em pequenos arquejos patéticos, como se fosse a única coisa que conseguisse fazer para respirar. Era inútil tentar alimentá-lo; não fazia qualquer esforço para chupar o leite. O bebê estava a deslizar para longe dela e não havia nada, absolutamente nada, que ela pudesse fazer.
Julgou que ia enlouquecer.
Tinha ataques de fúria malcontida e, afastando-se do berço para um canto do quarto, tentava ferir-se a si própria, arranhando enlouquecidamente os antebraços com as unhas, mordendo a língua para não gritar alto e incomodar a criança semiconsciente. Outras vezes, deixava-se cair no chão, dominada por um desespero tão profundo que rezava para morrer juntamente com o filho.
Na hora final, os olhinhos pálidos tornaram-se vítreos e apáticos. Então, sentada ao pé do berço no quarto escurecido, Sarah foi despertada do seu desespero por um som. Era como um pequeno suspiro, como se alguém estivesse a tentar lembrar-lhe qualquer coisa. Inclinou-se sobre o berço. Soube instintivamente que tinha ouvido o último suspiro que saíra dos lábios secos do bebê. Estava quieto. Tinha acabado. Levantara o bracinho da criança e deixara-o cair no colchão. Era como tocar numa boneca primorosamente feita.
Mas nessa altura não chorou. Os olhos estavam secos e resolutos. Nesse preciso instante, qualquer lealdade que tivesse sentido pela Colônia, pelo marido e pela sociedade em que vivera toda a sua vida evaporou-se. E nesse instante viu tudo tão claramente como se um holofote se tivesse acendido na sua cabeça. Sabia o que devia fazer com tanta convicção que nada se iria meter no seu caminho. Tinha de poupar as outras duas crianças do mesmo destino, fosse qual fosse o preço.
Nessa mesma noite, enquanto o corpo do bebê morto, da criança que não tinha nome, jazia arrefecendo no berço, ela atirara algumas coisas para dentro de um saco a tiracolo e agarrara nos dois filhos. Enquanto o marido estava fora, a tratar dos preparativos para o funeral, saiu de casa com os dois rapazinhos, dirigindo-se para uma das rotas de fuga que o irmão tinha lhe descrito uma vez.
Como se os Styx conhecessem todos os seus movimentos, tudo começou a correr mal muito depressa e tornou-se um jogo de gato e rato. Eles nunca tinham estado muito longe enquanto ela lutava através do emaranhado dos túneis de ventilação. Lembrou-se de que parara por uns instantes para recuperar o fôlego. Encostada à parede, agachou-se na escuridão com uma criança debaixo de cada braço, sentindo os seus movimentos. Intimamente, sabia que não tinha outra alternativa senão deixar uma delas para trás. Lembrou-se da sua indecisão nessa altura.
Mas, pouco depois, um Colono, um da sua própria gente, tinha tropeçado nela. Na luta desesperada que se seguiu, livrara-se do homem, atordoando-o com um golpe selvagem. Ficara com o braço muito machucado na briga e já não tinha dúvida nenhuma.
Sabia o que tinha de fazer.
Deixou Cal para trás. Ele tinha pouco mais de um ano. Deitara delicadamente o embrulho, que se contorcia agitadamente, entre duas rochas no chão arenoso do túnel. Tinha-lhe ficado indelevelmente gravada na memória a imagem do cueiro, tipo casulo, manchado com o seu próprio sangue. E o barulho que ele estava a fazer, o gorgolejar. Sabia que não demoraria muito tempo até ser encontrado e devolvido ao marido, e que este tomaria conta dele. Uma consolação insuficiente. Tinha retomado a fuga com o outro filho e, mais por sorte do que por perícia, iludido os Styx e conseguido atingir a superfície.
Às primeiras horas da manhã, desceram a Highfield High Street, o filho no chão atrás dela, uma criança ainda com pouca estabilidade nas pernas. Era o filho mais velho e chamava-se Seth. Tinha dois anos e meio. Estava a voltar-se de um lado para o outro enquanto olhava embasbacado para aquele local desconhecido, com os olhos muito abertos e assustados.
Sarah não tinha dinheiro, nenhum lugar para onde ir, e não levou muito tempo a compreender que teria de lutar muito para conseguir tomar conta mesmo de uma só criança. Para tornar as coisas piores, a perda de sangue no braço ferido estava a fazê-la sentir-se cada vez mais entontecida.
Ao ouvir pessoas à distância, conduziu Seth para fora da rua principal e através de várias ruas laterais até ter descortinado uma igreja. Procurando refúgio num cemitério com vegetação, os dois sentaram-se numa pedra cheia de musgo, cheirando o ar da noite pela primeira vez nas suas vidas e olhando para o céu ensopado em sódio por cima deles. Sarah só queria fechar os olhos por alguns minutos, mas temeu que, se descansasse durante muito tempo, não conseguisse voltar a levantar-se. Com a cabeça rodando, reuniu todas as forças que lhe restavam e pôs-se de pé no intuito de encontrar um lugar onde pudessem se esconder e, se tivesse sorte, alguma comida e algo para beber.
Tentou explicar ao filho o que pensava fazer, mas ele só queria ir com ela. Coitadinho do pequeno e confuso Seth. A expressão do seu pequeno rosto, a pura incompreensão era de cortar o coração, era tudo mais do que ela podia suportar enquanto se afastava precipitadamente dele. Ele agarrou-se às grades à volta do túmulo maior e mais imponente do cemitério, que, estranhamente, tinha duas pequenas figuras de pedra em cima, empunhando uma picareta e uma espada. Seth chamou-a quando ela partiu, mas ela não podia virar-se para trás, todos os seus instintos a censurarem-na e a dizerem-lhe que não se fosse embora.
Saiu do adro da igreja, sem saber para onde se dirigir, e lutando contra as tonturas que a cada passo a faziam sentir-se como se estivesse a dançar o cakewalk no recinto de uma feira popular.
Sarah não se lembrava de muita coisa depois disso.
Tinha recuperado a consciência quando algo a espicaçou para a acordar. Quando abriu os olhos, a luz era insuportável. Era tão ofuscantemente brilhante que dificilmente conseguia perceber a mulher preocupada que estava debruçada sobre ela, perguntando-lhe qual era o problema. Sarah percebeu que tinha desmaiado entre dois carros estacionados. Escudando os olhos com as mãos, levantou-se e fugiu.
Tinha acabado por encontrar o caminho de volta a Seth, mas parou quando viu figuras vestidas de preto a andarem em volta dele. O seu primeiro pensamento foi que deviam ser Styx, mas depois, com os olhos molhados, conseguiu ler a palavra "Polícia" no carro. Fugiu.
Desde esse dia, tentou dizer a si própria um milhão de vezes que tinha sido o melhor, que ela não estava em condições de cuidar de uma criança, quanto mais para fugir dos Styx com ela a reboque. Mas isso não conseguia dissipar a imagem do garotinho com os olhos cheios de lágrimas a levantar a mão pequenina e a chamá-la repetidamente enquanto ela se esgueirava pela noite a dentro.
A mão pequenina a acenar tremulamente à luz dos candeeiros da rua, a chamar por ela.
Qualquer coisa ferida encolheu-se na sua cabeça, como um animal terrivelmente ferido a enroscar-se numa bola.
Os seus pensamentos eram tão vivos e claros que Sarah se interrogou se inadvertidamente teria falado alto quando um transeunte ficou olhando de soslaio para ela.
- Controle-se - incentivou-se a si própria.
Tinha de estar concentrada. Abanou a cabeça para afastar da mente a imagem da cara pequenina. De qualquer maneira, fora há tanto tempo e, tal como os prédios à volta dela, tudo tinha mudado, tudo estava irreparavelmente mudado. Se a mensagem na caixa de correio desativada dissesse a verdade - coisa de que ainda não se convencera -, então Seth tinha-se tornado Will, tornara-se outra coisa completamente diferente.
Ao fim de vários quilômetros, Sarah chegou a uma rua movimentada, com lojas e um supermercado monolítico de tijolo. Resmungou quando foi forçada a parar num cruzamento no meio de uma pequena multidão à espera que as luzes dos semáforos mudassem. Estava desconfortável e apertada dentro do casaco. Então, com um bipe, o homenzinho verde acendeu-se e ela atravessou a rua, passando à frente das pessoas carregadas com compras.
Na altura em que as lojas começavam a rarear, desatou a chover, e as pessoas debandaram à procura de abrigo ou de regresso aos carros, deixando as ruas mais vazias. Sarah continuou a andar, passando despercebida aos transeuntes, que continuava a perscrutar com os seus olhos peritos. Ouviu a voz de Tam tão claramente como se ele estivesse a andar ao lado dela.
- Veja, mas não se deixe ver.
Era uma coisa que ele lhe ensinara. Quando eram crianças, e em desobediência descarada às instruções dos pais, tinham-se escapado muitas vezes de casa. Disfarçando-se com trapos velhos e esfregando cortiça queimada nas faces, tomaram as vidas nas suas mãos e entraram profundamente num dos mais violentos e perigosos lugares que se podia encontrar em toda a Colônia - as rookeries . Ainda agora Sarah conseguia visualizar Tam como era nessa altura, a cara novinha e sorridente, riscada de preto e os olhos a brilharem de excitação enquanto corriam disparados depois de terem se metido em mais uma travessura. Sentia tanto a sua falta.
Foi despertada dos seus pensamentos pelos seus sentidos a tocarem como uma campainha de alarme. Um jovem magricelo num casaco camuflado, amarrotado e manchado, apareceu na direção oposta. Dirigia-se diretamente a ela. Sarah continuou a andar e, no último instante, o jovem desviou-se, batendo-lhe de lado com o cotovelo e tossindo-lhe em cheio na cara. Ela estacou com os olhos a flamejarem como se se tivessem acendido chamas por trás deles. Ele resmungou baixinho qualquer coisa abjeta enquanto continuava a andar. Nas costas do seu casaco estava escrito "TE ODEIO" em letras grandes brancas e com falhas. Depois de alguns passos, deve ter percebido que Sarah ainda estava a olhar para ele porque deu meia volta e olhou para ela carrancudamente.
- Vaca - cuspiu ele.
Todo o seu corpo se contraiu, como uma pantera prestes a saltar.
Ralé inútil, pensou Sarah, mas não disse nada.
Ele não tinha a menor ideia de quem era ela ou do que ela era capaz. Tinha acabado de arriscar a vida. A sua sede de sangue era grande e ansiava por lhe dar uma lição que ele nunca mais esquecesse - ansiava tanto por isso que até doía -, mas não se podia dar a esse luxo, não nesse momento.
- Noutra altura, noutro lugar... - murmurou enquanto ele continuava a andar com a sua postura insolente, arrastando as sapatilhas desgastadas no chão. Não voltou a olhar para trás, ignorando completamente quão próximo tinha estado de apanhar. Sarah parou uns momentos paraa recuperar o controle, enquanto inspecionava a rua molhada e o tráfico sibilante. Olhou para o relógio. Era muito cedo - andara muito depressa.
A sua atenção ficou presa numa troca de palavras em voz alta numa língua que não conseguia entender. Umas lojas abaixo, dois trabalhadores saíam de um café com as janelas embaçadas iluminadas pelas luzes de néon do interior. Sem hesitar, passou direto e entrou.
Pediu uma xícara de café ao balcão, pagou e levou-a para uma mesa perto da janela. Bebericando o líquido fraco e sem sabor, retirou a carta enrugada do bolso e releu lentamente a caligrafia sem graça. Ainda não conseguia se convencer a aceitar o que ela dizia. Como é que o Tam podia estar morto? Como era possível? Apesar de as coisas estarem tão más no mundo da Superfície, sempre conseguira tirar um pequeno conforto de saber que o irmão ainda estava vivo e com saúde na Colônia. Era como uma vela tremeluzente no fundo de um túnel inacreditavelmente longo, a esperança de que um dia poderia voltar a vê-lo. E agora ele estava morto, até isso lhe tinha sido tirado.
Voltou a carta e leu o outro lado, depois releu-a outra vez, abanando a cabeça. A carta devia estar errada, John Waites devia estar enganado quando a escrevera. Como podia o seu próprio filho, Seth, o seu primogênito, que fora o seu orgulho e alegria, ter traído Tam com os Styx? A sua carne e o seu sangue tinham efetivamente assassinado o seu irmão. E se realmente fosse verdade, como é que ele podia ter sido assim corrompido? O que o teria levado a isso? Mas havia notícias igualmente chocantes no último parágrafo. Releu vezes sem conta as linhas que diziam que Seth tinha raptado o seu filho mais novo, Cal, forçando-o a ir com ele.
"Não", disse ela alto, abanando a cabeça, recusando-se a aceitar que Seth fosse responsável. E ali estava outra vez, o seu filho era Seth e não Will, e não era capaz de nada disto. Apesar de a carta vir de uma fonte que ela sabia ser de confiança absoluta, talvez alguém a tivesse falsificado. Talvez alguém conhecesse a caixa de correio desativada. Mas como e porquê? E o que podiam eles ganhar deixando-lhe uma carta falsa? Nada disto fazia sentido.
Percebeu que respirava com força e que tinha as mãos tremendo. Apoiou-as com força na mesa, amarfanhando a carta na palma da mão. Enquanto lutava para dominar de novo as emoções, mirava de relance a sala e os outros ocupantes do café, preocupada com a possibilidade de ter sido vista por alguém. Mas as outras pessoas, empregados da construção civil na sua maior parte, a julgar pelas roupas de trabalho, estavam demasiado ocupadas com as suas fritadas enormes para repararem noutras coisas e o proprietário estava atrás do balcão de vidro a cantarolar baixinho.
Recostou-se e olhou em volta da sala como se a estivesse a ver pela primeira vez. Contemplou as paredes apaineladas de madeira falsa e o cartaz descolorido de uma Marilyn Monroe jovem, encostada em um grande carro americano. Uma estação de rádio estava a tocar, mas para ela era apenas um zumbido irritante e não prestava atenção.
Depois limpou um pequeno círculo na condensação do lado de dentro da janela do café e espreitou para fora. Continuava a ser demasiado cedo, a haver demasiada luz, por isso resolveu deixar-se ficar mais um pouco a desenhar com o canto de um guardanapo de papel num pouco de café entornado no tampo de melanina vermelha e riscada da mesa do café. Quando o café se evaporou, deixando-a sem nada para fazer, limitou-se a ficar sentada a olhar fixamente em frente como se estivesse em transe. Quando, momentos depois, voltou a si com um sobressalto, reparou que um dos botões do casaco estava preso só por um fio. Deu-lhe um puxão e ficou com ele na mão. Sem pensar, largou-o dentro da xícara vazia e depois ficou olhando sem ver para as janelas embaçadas, para as formas vagas das pessoas que passavam apressadas lá fora.
Por fim, o dono do café encaminhou-se vagarosamente na sua direção, passando o pano sujo de raspão pelas mesas e endireitando cadeiras ao longo do caminho. Parou perto da janela e juntou-se a Sarah na contemplação durante uns segundos, e depois perguntou-lhe se podia trazer-lhe mais alguma coisa. Sem lhe responder, Sarah limitou-se a levantar-se e a encaminhar-se para a porta. Furioso, ele agarrou na xícara vazia e viu o botão que ela tinha deixado no fundo.
Aquilo foi a última gota. Ela não era uma freguesa regular e ele podia passar bem sem estes clientes de passagem.
- Mise...! - gritou-lhe, mas só conseguiu articular as primeiras sílabas de "Miserável" antes de a palavra lhe morrer nos lábios.
Olhara justamente para o tampo da mesa. Pestanejou e mudou a posição da cabeça, como se a luz lhe estivesse a pregar truques. Ali, a olhar para ele da melanina vermelha, estava uma imagem surpreendentemente bem feita e real.
Era uma cara, com uns dez centímetros quadrados e formada de camadas em cima de camadas de café seco, como se tivesse sido pintada com têmpera. Mas não foi a arte que o gelou, foi o fato de a cara ter a boca aberta de um canto ao outro no rito de um grito. Pestanejou; era tão inesperado e assustador que durante vários segundos não se moveu, a olhar para a imagem. Tinha dificuldade em associar a mulher calada e tímida que acabara de sair do seu café com este chocante retrato da angústia. Não gostava nada dele e tapou-o rapidamente com o pano, começando a apagá-lo.
De volta à rua, Sarah esforçou-se por não andar muito depressa porque ainda tinha muito tempo para gastar. Antes de entrar em Highfield, interrompeu a caminhada para reservar um quarto num B&B. Havia vários na mesma rua, mas escolheu um ao acaso, uma casa vitoriana que já vira dias melhores. Era o que tinha de fazer se queria sobreviver.
Nunca duas vezes o mesmo.
Nunca duas vezes o mesmo.
Estava convencida de que se entrasse numa rotina qualquer, os Styx a apanhariam num abrir e fechar de olhos.
Dando um nome e um endereço falsos, pagou em dinheiro por uma noite. Recebeu a chave do gerente, um velho enrugado com mau hálito e cabelo grisalho escorrido e oleoso, e, a caminho do quarto, foi ver onde ficava a saída de emergência e anotou mentalmente uma segunda porta que presumiu que levava ao telhado. Por via das dúvidas. Quando entrou no quarto, fechou a porta coma a chave e enfiou uma cadeira por baixo da maçaneta. Depois fechou as cortinas desbotadas pelo sol e sentou-se na ponta da cama tentando arrumar as ideias.
Sobressaltou-se quando ouviu uma gargalhada nasalada e levantou-se instantaneamente. Entreabrindo as cortinas um pouco, olhou para os dois lados da rua, os olhos a examinarem atentamente a fila dos carros estacionados. Voltou a ouvir o riso e viu dois homens de jeans e T-shirts que se dirigiam para a rua principal. Pareciam bastante inofensivos.
Voltou para a cama e, estendendo-se de costas, atirou os sapatos para o chão. Bocejou, sentindo-se mais do que um pouco sonolenta. Mas não se podia deixar adormecer, e para se manter ocupada abriu o exemplar do Highfield Bugle que tinha trazido da recepção. Como fazia sempre, agarrou numa caneta e foi direto aos classificados na última página, começando a fazer círculos nos anúncios de trabalhos temporários que lhe poderiam convir. Depois de ter esgotado aquela seção, folheou o resto do jornal de trás para a frente, passando os olhos sem muito interesse pelos diversos artigos.
No meio das colunas que debatiam as vantagens e os inconvenientes de reservar a praça do mercado apenas para os peões e as propostas para novas lombas e mais uma faixa para os autocarros, um artigo chamou-lhe a atenção.
A FERA DE HIGHFIELD?
De T. K. Martin, jornalista
Este fim-de-semana, voltou a ser avistado o misterioso animal parecido com um cão, no Parque de Highfield. Mrs. Croft-Hardinge, de Clockdown Estate, passeava o seu basset, Goldy, no sábado ao fim da tarde, quando viu o animal nos ramos mais baixos de uma árvore. "Estava roendo a cabeça de alguma coisa. Julguei que era um brinquedo de pelúcia das crianças até que percebi que era um coelho e vi o sangue", contou ela ao The Bugle. "Era enorme, com uns olhos horríveis e uns dentes pavorosos. Quando reparou em mim, limitou-se a cuspir a cabeça e seria capaz de jurar que estava a olhar diretamente para mim."
Os relatos sobre o animal são confusos, alguns descrevem-no como um jaguar ou um puma, semelhante às aparições de um gato enorme em Bodmin Moor, que começou nos anos oitenta, ao passo que outros dizem que se parece mais com um cão. O inspetor dos Parques para Highfield, Mr. Kenneth Wood, supervisionou recentemente uma busca depois de um homem da zona se ter queixado de que o animal lhe levara o poodle, arrancando-lhe a coleira das mãos. Outros residentes da área de Highfield têm-se queixado de que os seus cães andam a desaparecer nos últimos meses.
O mistério continua...
Com golpes agressivos, Sarah começou a desenhar na margem ao lado do artigo sobre o animal selvagem. Embora estivesse a utilizar apenas uma Bic velha, não levou muito tempo até ter uma imagem intrincadamente detalhada de um cemitério iluminado pelo luar, não muito diferente do de Highfield onde se refugiara quando conseguira chegar à Superfície. Mas as semelhanças ficaram por aí quando desenhou uma grande pedra tumular em primeiro plano. Olhou para ela durante uns instantes antes de, usando o nome dele na Superfície, acabar por escrever nela Will Burrows, finalizando com um ponto de interrogação.
Sarah franziu o cenho. A fúria que se avolumava dentro dela por causa da morte do irmão era tão forte que se sentia como se estivesse a ser levada numa onda que iria acabar por levá-la a algum lugar. E quando chegasse a esse lugar, fosse ele o que fosse, precisava de alguém a quem atribuir as culpas. Claro que na origem disto tudo estavam os Styx, mas agora, pela primeira vez, permitiu-se pensar o impensável; se aquilo sobre o Seth fosse de fato verdade, então ele ia pagar, e pagar caro.
Ainda a olhar para o desenho, contraiu a mão com tanta força que a caneta se partiu com um estalo, disparando lascas de plástico para cima da cama.
Capítulo Seis
C
om umas caras muito sérias e tensas, os garotos agarraram-se à parede lateral do vagão, com a parede do túnel, uma mancha assustadora, a passar velozmente à frente deles, embora o trem estivesse a desacelerar enquanto fazia uma curva fechada.
Já tinham atirado as mochilas para fora do trem, e Chester fora o último a içar-se para a parede e a juntar-se aos outros dois. Deixou os pés resvalarem até encontrarem um rebordo e depois agarrou-se com todas as suas forças. Will ia gritar para os dois garotos quando o irmão resolveu que seria o primeiro a saltar.
- SALTEM! - gritou Cal, e, soltando um uivo muito alto, atirou-se.
Will ficou a vê-lo desaparecer na escuridão e depois olhou de relance para o vulto de Chester, sabendo que o amigo estava cheio de medo daquele momento.
Will não tinha outra opção senão seguir o irmão. Cerrou os dentes e, dando um impulso, saltou, girando ao mesmo tempo sobre si próprio. Houve uma fração de segundo em que pareceu suspenso no vento. Depois aterrissou de pé, com um impacto que lhe fez estremecer todos os ossos, e foi lançado para a frente a uma velocidade louca numa corrida desordenada, com os braços abertos para tentar equilibrar-se.
Era tudo uma confusão de fumaça acre enquanto as rodas enormes giravam apenas a uns metros dele. Mas Will estava a deslocar-se a uma velocidade tremenda e ainda mal tinha percorrido uma curta distância quando os pés tropeçaram um no outro e o fizeram cair. Voou e depois caiu, primeiro sobre um joelho e, no instante seguinte, espalhou-se ao comprido. Deslizava sobre o peito, o corpo a fazer sulcos na poeira. Quando parou, virou-se de costas devagarinho e depois sentou-se e tossiu, cuspindo uma grande quantidade de terra. As rodas enormes continuavam a passar velozmente, e agradeceu à sua estrela da sorte não ter caído debaixo delas. Tirou uma esfera de luz do bolso e começou à procura de sinais dos outros.
Passado um tempo ouviu um gemido alto que vinha mais à frente. Enquanto observava, Chester saiu da escuridão carregada de fumaça, engatinhando. Levantou a cabeça como uma tartaruga mal-humorada e, vendo Will, acelerou.
- Tudo bem? - gritou-lhe Will.
- Oh, esplêndido! - berrou Chester, deixando-se cair ao lado de Will.
Will encolheu os ombros, esfregando a perna que tinha suportado todo o impacto quando caíra.
- E o Cal? - perguntou Chester.
- Não sei. É melhor esperarmos por ele aqui.
Will não conseguiu perceber se Chester o tinha ouvido, mas, de qualquer maneira, o amigo também não parecia muito disposto a ir à procura do rapaz.
Uns minutos depois, enquanto o trem continuava a passar inexoravelmente por eles, o irmão de Will emergiu da escuridão e da fumaça com uma mochila em cada ombro, com um andar desenvolto, como se não tivesse qualquer preocupação no mundo. Agachou-se ao lado de Will.
- Tenho todas as coisas. Vocês estão inteiros? - berrou-lhes.
Tinha um grande golpe na testa e gotinhas de sangue escorriam-lhe pelo nariz.
Will assentiu com a cabeça olhando para trás de Cal.
- Abaixem-se! O vagão do guarda! - avisou, puxando o irmão para si.
Encostados uns aos outros e comprimidos contra a parede do túnel, viram a luz avançar sobre eles. Jorrava das janelas do vagão do guarda, formando retângulos amplos nas paredes do túnel ao passar. Enquanto o trem entrava velozmente no túnel seguinte e a luz diminuía, ficando cada vez mais pequena, até que deixou de ser visível, Will teve uma sensação esmagadora de irrevocabilidade.
No silêncio para eles agora estranho, levantou-se e esticou as pernas. Já estava tão adaptado ao balançar do trem que era uma novidade estar outra vez em terra firma.
Will fungou e preparava-se para dizer qualquer coisa aos outros dois quando o trem apitou umas vezes ao longe.
- O que significa aquilo? - perguntou finalmente.
- Que está chegando à estação - respondeu Cal, com os olhos ainda colados à escuridão onde tinha visto o trem pela última vez.
- Como sabe isso? - perguntou-lhe Chester.
- Foi o meu... o nosso tio que me disse.
- O seu tio? Ele pode nos ajudar? Onde está? - perguntou Chester a Cal, de supetão, a cara iluminada com a expectativa criada pela ideia de que poderia existir uma pessoa que podia socorrê-los.
- Não - retorquiu Cal secamente, franzindo o cenho para Chester.
- Porquê? Não entendo...
- Não, Chester - interrompeu Will rapidamente, abanando a cabeça determinadamente.
O amigo percebeu que tinha de ficar de boca fechada. Will dirigiu-se ao irmão.
- E agora? O que vai acontecer? Eles vão descobrir que o Chester desapareceu quando o trem chegar. E depois?
- Depois, nada - respondeu Cal, encolhendo os ombros.
- Caso encerrado. Vão pensar que ele fugiu. Eles sabem que ele não conseguirá sobreviver durante muito tempo sozinho... afinal, não passa de um Habitante da Superfície. - Riu-se sem humor e continuou a falar como se Chester não estivesse ali. - Não vão mandar ninguém à procura dele, nem nada.
- Como pode ter certeza disso? - questionou Will. - Não irão pensar que ele voltou para a Colônia?
- Boa ideia, mas mesmo que ele conseguisse fazer o caminho todo - a pé -, os Cabeças Pretas poriam-lhe as mãos logo que aparecesse - replicou Cal.
- Os Cabeças Pretas? - perguntou Chester.
- Os Styx, é o que os Colonos lhes chamam pelas costas - explicou Will.
- Oh, certo - disse Chester. - Bem, seja como for, nunca mais vou voltar para aquele lugar nojento. Nunca mais na vida - acrescentou para Cal, cheio de determinação.
Cal não lhe respondeu e pôs a mochila nas costas, enquanto Will agarrava na outra pelas alças e verificava o peso. Estava pesada, cheia até em cima com o equipamento, a comida e as esferas de luz. Pô-la às costas, fazendo uma careta de dor quando a alça se enterrou no ombro ferido. O emplastro que Imago lhe dera tinha feito maravilhas, mas qualquer pressão na ferida era incrivelmente dolorosa. Tentou ajustar a mochila para que a maior parte do peso recaísse no ombro direito, e puseram-se a caminho.
Não se passou muito tempo até Cal começar a acelerar, num trote rápido, deixando Will e Chester para trás, a verem a silhueta saltitante a avançar para a escuridão impenetrável que se estendia à frente deles. Os dois amigos avançaram mais calmamente por entre os trilhos.
Tinham tanta coisa que queriam contar um ao outro, mas, agora que estavam sozinhos, parecia que nenhum deles sabia por onde começar. Por fim, Will aclarou a garganta.
- Temos de pôr as notícias em dia - disse ele desajeitadamente. - Aconteceram muitas coisas enquanto esteve no Cárcere.
Will começou a falar da família, da sua família verdadeira que conhecera na Colônia e de como tinha sido viver com eles. Depois contou como ele e o Tio Tam haviam planejado a fuga de Chester.
- Foi horrível quando tudo correu mal. Nem queria acreditar quando vi que a Rebecca estava com os Sty...
- Que grande sem-vergonha! - explodiu Chester. - Nunca achou que havia qualquer coisa esquisita nela? Durante todos aqueles anos em que cresceram juntos?
- Bem, achava que ela era um pouco estranha, mas a verdade é que julgava que todas as irmãs eram assim - respondeu Will.
- Um poquinho estranha? - repetiu Chester. - Ela é completamente doida. Não sabia que ela não era sua irmã de verdade?
- Não. Como podia saber? Eu... nem sequer sabia que eu era adotado, nem de onde vinha.
- Não se lembra da primeira vez que os seus pais a trouxeram para casa? - perguntou Chester muito espantado.
- Não - respondeu Will pensativamente. - Devia ter os meus quatro anos, acho eu. De quantas coisas se lembra de quando tinha essa idade?
Chester fez um barulho como se não estivesse totalmente convencido, e depois Will continuou a narrar os acontecimentos que se seguiram. Arrastando-se pesadamente ao lado de Will, Chester escutou atentamente. Finalmente, Will chegou à parte da discussão com Imago, quando ele e Cal tinham tido de decidir se voltavam para a Superfície ou iam para as Profundezas.
Chester assentiu com a cabeça.
- E foi assim que acabamos no Trem dos Mineiros com você - terminou Will, tendo chegado ao fim da história.
- Bem, e estou muito feliz por isso - comentou o amigo, sorrindo.
- Não podia te deixar para trás - disse Will. - Tinha de me certificar de que estava bem. Era o mínimo que...
Faltou-lhe a voz. Estava tentando exprimir as suas emoções, os seus remorsos, por tudo o que Chester fora obrigado a suportar.
- Eles me espancaram sabe? - disse Chester abruptamente.
- Hem?
- Depois de terem voltado a me apanhar - disse ele tão baixinho que Will mal o conseguia ouvir. - Voltaram a atirar-me para o Cárcere e bateram-me com bastões... dúzias de vezes - continuou ele. - Às vezes, a Rebecca vinha assistir.
- Oh, não! - murmurou Will, chocado.
Deram alguns passos em silêncio enquanto escolhiam onde pôr os pés em cima das barras grossas.
- Machucaram-lhe muito? - acabou Will por perguntar, temendo a resposta.
Chester não respondeu logo.
- Eles estavam muito zangados conosco, principalmente com você. Gritavam muito falando de você enquanto me batiam, dizendo que os tinhas feito passar por idiotas.
Chester limpou a garganta com dificuldade e engoliu em seco. O discurso tornou-se confuso.
- Era... eu... eles... - inspirou fundo pelo canto da boca. - As surras nunca foram muito fortes e eu estava sempre pensando que tinham qualquer coisa muito pior guardada para mim. - Fez uma pausa enquanto limpava o nariz. - Depois este Styx velho condenou-me a ser Banido, o que foi ainda mais assustador. Estava tão apavorado que fui completamente abaixo.
Chester baixou os olhos para o chão, como se tivesse feito qualquer coisa errada, como se tivesse feito qualquer coisa de que estivesse envergonhado.
Continuou a falar com um tom resoluto, um tom da fúria mais fria e controlada, a infiltrar-se na voz:
- Sabe, Will, se tivesse podido, tê-los-ia matado todos... os Styx. Queria tanto fazê-lo. São uns filhos da mãe malvados. Teria matado todos, até a Rebecca.
Olhou para Will com uma tal intensidade que este se sentiu gelar. Will estremeceu - estava vendo uma faceta de Chester que não sabia que existia.
- Oh! Sinto muito, Chester.
Mas algo igualmente importante ocorreu a Chester, desviando-lhe os pensamentos. Estacou de repente, vacilando como se tivesse levado uma bofetada na cara.
- O que dizia sobre os Styx e os seus... como se chamam... a gente deles na Superfície?
- Agentes? - ajudou Will.
- Sim... os agentes deles - franziu os olhos. - Mesmo que eu conseguisse voltar para a Superfície, não poderia ir para casa, não é?
Will ficou parado à frente dele, sem saber o que dizer.
- Se o fizesse, a minha mãe e o meu pai seriam raptados, como aquela família de que falou, os Watkins. Agarrariam nos meus pais e os transformariam em escravos, ou os matariam, não é verdade?
Will não conseguiu fazer mais nada a não ser devolver o olhar do amigo, mas isso foi o suficiente.
- E o que eu poderia fazer? Se tentasse avisar a Mamãe e o Papai, acha que eles acreditariam em mim? Ou mesmo a polícia? Iam pensar que andava na droga ou qualquer coisa dessas.
Sacudiu a cabeça e suspirou.
- Durante todo o tempo em que estive fechado no Cárcere, a única coisa em que pensava era em você e eu voltando para casa. Tudo o que queria era voltar para casa. Isso me ajudou durante todos aqueles meses.
Começou a tossir, o que podia ter sido para disfarçar um soluço, mas Will não conseguiu perceber. Chester agarrou no braço de Will e olhou-o nos olhos. A expressão era de um profundo desespero.
- Nunca mais vou voltar a ver a luz do dia, não é?
Will continuou calado.
- De uma maneira ou de outra, estamos presos aqui em baixo para sempre, não estamos? Não há nenhum lugar para onde possamos ir agora, não é. Will, que raio vamos fazer?
- Sinto muito - repetiu Will numa voz estrangulada.
Gritos excitados de Cal chegaram-lhes vindos da frente.
- Ei! - chamava ele repetidamente.
- Não! - gritou-lhe Will, num tom de frustração. - Agora não! - Acenou com a lanterna num gesto repentino de irritação. Precisava de algum tempo com o amigo e ficou furioso com a interrupção. - Espere!
- Encontrei uma coisa! - berrou Cal ainda mais alto, ou porque não tinha ouvido a resposta de Will ou porque resolvera ignorá-la.
Chester olhou para o lugar onde estava o rapaz mais novo e disse num tom resoluto:
- É bom que não seja a estação. Não vou deixar que voltem a me apanhar.
Avançou uns passos pela linha.
- Não, Chester - disse-lhe Will -, espere um segundo. Quero lhe dizer uma coisa.
Os olhos de Chester ainda continuavam orlados de vermelho do cansaço quando parou ao lado do amigo. Will mexia nervosamente na esfera de luz que tinha nas mãos e, com a luz que ela emitia, Chester conseguia ver claramente a perturbação espelhada no rosto sujo do amigo.
- Sei exatamente o que vai dizer - disse ele. - A culpa não é sua.
- Mas é! - exclamou Will. - A culpa é toda minha... Não queria te meter nisto. Você tem uma família de verdade, mas... eu... eu não tenho ninguém para quem voltar. Não tenho nada a perder.
Chester tentou responder, estendendo uma mão para calá-lo, mas o amigo continuou, cada vez mais incoerente ao tentar dar voz às emoções e aos remorsos que lhe tinham enchido a cabeça durante aqueles últimos meses.
- Nunca devia ter metido você nisto... só estava me ajudando...
- Olha... - disse Chester, tentando acalmá-lo.
- O meu pai vai conseguir resolver tudo, mas se não o encontrarmos...
- Will - tentou Chester mais uma vez, mas depois deixou-o continuar.
- Não sei o que vamos fazer, ou o que vai acontecer-nos... podemos nunca mais... podemos morrer...
- Olha, esquece isso - disse Chester baixinho quando a voz de Will se tornou um murmúrio. - Nenhum de nós sabia que isto ia acontecer e, além disso - Will viu o sorriso largo regressar à cara do amigo -, a verdade é que não é possível tornar-se pior, não é?
Chester deu um murro brincalhão no ombro de Will, atingindo, sem saber, exatamente a área do corpo de Will que tinha sido tão horrivelmente maltratada pelo farejador feroz na Cidade Eterna.
- Obrigado, Chester - arquejou Will, cerrando os dentes para não gritar com a dor e usando o antebraço para limpar a nova torrente de lágrimas dos olhos.
- Andem logo! - berrou Cal outra vez. - Descobri um caminho por aqui. Venham!
- De que ele está falando? - perguntou Chester.
Will tentou controlar-se.
- Ele está sempre fazendo isto, a correr sem esperar pelos outros - disse ele, voltando a cabeça para o lugar onde o irmão estava e erguendo os olhos para o céu.
- Oh, verdade? Lembra-te alguém? - disse Chester, erguendo uma sobrancelha.
Um pouco envergonhado, Will concordou.
- Sim... um pouquinho.
Conseguiu fazer com que o sorriso de Chester voltasse a aparecer, embora fosse a última coisa que queria fazer naquele momento.
Juntaram-se a Cal, que estava positivamente vibrando de excitação enquanto balbuciava qualquer coisa sobre uma luz.
- Eu bem que disse! Olhem aqui para baixo!
Estava aos saltos a apontar para uma passagem larga que saía do túnel do trem. Will espreitou lá para dentro e viu um clarão de um azul suave a tremeluzir como se estivesse a uma grande distância.
- Venham comigo - ordenou Cal e, sem esperar que Will e Chester reagissem, começou a andar a grande velocidade.
Will tentou chamá-lo, mas Cal não parou.
- Quem ele pensa que é? - perguntou Chester, olhando para Will, que se limitou a encolher os ombros enquanto começavam a andar.
- Nem quero acreditar que estou recebendo ordens do raio de um anão - refilou Chester baixinho.
De repente, repararam que a temperatura parecia ter subido muito, deixando-os ofegantes.
- Jesus, isto é uma fornalha aqui em baixo. Parece a Espanha ou qualquer coisa assim - queixou-se Chester enquanto desabotoava vários botões da camisa e coçava o peito.
- Bem, acreditando nos geólogos, a temperatura devia subir um grau por cada vinte e um metros que nos aproximamos do centro da Terra - disse Will.
- O que quer isso dizer? - perguntou Chester.
- Bem, nesta altura devíamos estar transformados em torradas.
Enquanto Will e Chester iam atrás de Cal, perguntando-se onde se estariam metendo, a luz aumentou de intensidade. Parecia pulsar, por vezes banhando as paredes rugosas à volta deles para depois diminuir gradualmente até só restar uma névoa azulada mais à frente.
Apanharam Cal exatamente quando ele chegou ao final da passagem. Saíram e um espaço enorme abriu-se à frente deles.
Uma única chama, com cerca de dois metros de altura, irrompia do ponto central do espaço. Tinham os olhos pregados nela quando, com um silvo muito alto, a chama cresceu, a pluma azul a alongar-se até ter quadruplicado, projetando-se até a ponta lamber uma abertura circular no teto por cima dela. O calor da chama era impossível de suportar e eles foram obrigados a recuar e a tapar as caras com os braços.
- O que é isto? - perguntou Will, mas nenhum dos outros lhe respondeu, concentrados a observar a chama, enfeitiçados pela sua enorme beleza. Pois na base, quando emergia da rocha enegrecida, era quase transparente, mas transformava-se, através de um espectro de cores, em amarelos e vermelhos cintilantes e depois numa espantosa variedade de verdes até ficar numa magenta escuríssima no topo. Mas a luz resultante, a soma de todas estas cores, era a luz azul que lançava em volta deles e que os tinha conduzido até ali. Os três rapazes ficaram parados como estátuas, os olhos a refletirem aquele espetáculo iridescente até que o silvo se calou e a chama encolheu até ao seu tamanho original.
Como se tivessem todos acordado de um feitiço no mesmo instante, viraram-se para ver o que havia em redor deles. Conseguiram distinguir uma série de aberturas cheias de sombras nas paredes da câmara. Will e Chester dirigiram-se para a mais próxima. Quando entraram cautelosamente, a luz dos globos que tinham nas mãos misturou-se com o azul da chama residual revelando-lhes o seu interior. Para onde quer que olhassem, havia fardos do tamanho de um homem encostados às paredes, chegando, em certos lugares, a haver uma fila de dois ou três à frente uns dos outros.
Embrulhados em panos cobertos de pó, cada um deles estava atado em volta com uma espécie de corda ou cordel. Alguns dos fardos pareciam ser mais recentes do que os outros, envolvidos em tecido menos sujo e menos manchado. Mas os mais velhos estavam tão sujos que mal se distinguiam da rocha atrás deles. Seguido de perto por Chester, Will aproximou-se de um destes e levantou a luz para iluminá-lo. Algumas faixas de pano tinham apodrecido e caído, permitindo que os rapazes vissem o que estava lá dentro.
- Oh meu Deus! - exclamou Chester tão depressa que soou como uma única palavra, acompanhada por uma inspiração funda de Will.
A pele dessecada estava completamente esticada no rosto de um esqueleto que lhes retribuía o olhar com as órbitas vazias. Aqui e ali, o marfim baço de ossos limpos espreitava através das rachaduras na pele escura. Enquanto Will deslocava a luz, conseguiram ver outras partes do esqueleto: costelas que perfuravam o tecido, uma mão parecida com uma aranha pousada num quadril coberto com uma pele tão esticada como um pedaço de pergaminho antigo.
- Suponho que devem ser Coprolites mortos - murmurou Will enquanto ele e Chester contornavam a parede, inspecionando os outros fardos.
- Oh, meu Deus! - repetiu Chester, desta vez devagar. - São centenas.
- Isto tem de ser uma espécie de cemitério - disse Will, falando num tom de voz baixo como que a mostrar o seu respeito por estes corpos amontoados. - Tal como os índios americanos. Eles deixavam os seus mortos em plataformas de madeira, nas encostas das montanhas, em vez de os enterrarem.
- Então, se isto é uma espécie de lugar sagrado, não devíamos sair daqui para fora? Não queremos chatear essa gente, os Copos de Litro, ou lá como se chamam - disse Chester ansiosamente.
- Coprolites - corrigiu Will.
- Coprolites - repetiu Chester, articulando a palavra cuidadosamente. - Certo.
- Mais uma coisa - disse Will.
- O quê? - perguntou Chester, voltando-se para ele.
- O nome Coprolites - continuou Will, mal conseguindo conter um sorriso. - Sabe que isso é o que os Colonos lhes chamam, não sabe? Se alguma vez encontrar um Coprolite, não uses esse nome, está bem?
- Porquê?
- Não é muito simpático. Significa excrementos de dinossauro. Cocô de dinossauro fossilizado.
Will sorriu muito satisfeito consigo próprio enquanto continuava a avançar ao longo da parede de corpos mumificados, até que a sua atenção foi atraída por um cuja mortalha se tinha desintegrado completamente.
Incidiu a luz no corpo, fazendo o raio descer lentamente da cabeça até aos pés e depois outra vez até à cabeça. Embora o corpo fosse mais alto do que Will e Chester, estava tão encolhido que parecia não só muito pequeno como nada semelhante ao cadáver de um adulto. Em volta do pulso ossudo tinha uma grossa pulseira de ouro, onde estavam incrustadas pedras preciosas retangulares vermelhas, verdes, azul-escuras e algumas sem cor nenhuma. As suas superfícies baças brilhavam foscamente, como gomas velhas.
- Aposto que é ouro e acho que aquelas pedras são capazes de ser rubis, esmeraldas e safiras... e até diamantes - disse Will, muito excitado. - Não é incrível?
- Sim - replicou Chester, com pouca convicção.
- Tenho de tirar uma fotografia disto.
- Não podemos antes ir embora? - insistiu Chester, enquanto Will tirava a mochila do ombro e puxava da máquina fotográfica.
Depois viu que Will estava a estender a mão para a pulseira.
- Mas o que pensa que está fazendo, Will?
- Preciso mover isto um pouco - explicou Will - para a fotografia ficar melhor.
- Will!
Mas Will não ouvia. Tinha agarrado a pulseira com o polegar e o indicador e estava a girá-la devagarinho.
- Não, Will! Oh, Will, pelo amor de Deus! Não devia...
O corpo estremeceu todo, e depois, simplesmente desfez-se no chão, atirando uma nuvem de pó para o ar,
- Uups! - exclamou Will.
- Oh, droga! Mas que droga! - arfou Chester enquanto davam ambos um passo atrás. - Olha o que fez!
Quando a nuvem assentou, Will espreitou envergonhadamente para o monte de ossos e de cinzas acinzentadas à frente dele - parecia um montinho de ramos e tronquinhos que tinham restado de uma fogueira. O corpo tinha-se simplesmente desintegrado.
- Desculpe - disse-lhe. Com um arrepio, percebeu que ainda tinha a pulseira entre os dedos e deixou-a cair em cima do monte.
Tendo abandonado a ideia de tirar fotografias, Will agachou-se ao lado da mochila para guardar a máquina fotográfica. Tinha acabado de fechar o bolso lateral quando reparou que ficara com pó nas mãos. Começou imediatamente a inspecionar o chão onde ele e Chester estavam em pé. Fazendo uma careta, levantou-se rapidamente e esfregou as mãos nas calças. Tinha percebido que pisavam vários centímetros de pó e fragmentos de ossos de cadáveres decompostos. Estavam a pisar os restos de muitos cadáveres.
- Vamos recuar um pouco - sugeriu, não querendo perturbar o amigo ainda mais. - Para longe destes.
- Ótimo - respondeu Chester, agradecido, sem perguntar porquê. - Isto me dá arrepios.
Recuaram uns passos, parando enquanto Will olhava para as fileiras silenciosas encostadas às paredes.
- Devem estar enterrados aqui milhares deles. Gerações - disse ele pensativamente.
- Devíamos mesmo...
Chester parou no meio da frase, e Will, relutantemente, afastou os olhos dos corpos mumificados para se focar na cara ansiosa do amigo.
- Viu para onde foi o Cal? - perguntou Chester.
- Não - respondeu Will, ficando imediatamente preocupado.
Correram para a câmara central onde tinham parado para espreitarem em todos os cantos, depois deram a volta devagarinho, de forma a poderem ver o lado oposto, a seguir à chama, que, mais uma vez, estava começando a silvar e a lançar a sua pluma pontiaguda para o teto.
- Ali está ele! - exclamou Will, aliviado, quando viu a figura solitária a dirigir-se resolutamente para um canto afastado. - Porque ele nunca fica quieto?
- Sabe, só conheço o seu irmão há... o quê... quarenta e oito horas, e devo lhe dizer que já estou farto dele - queixou-se Chester, observando cuidadosamente a reação de Will para ver se tinha ficado ofendido.
Mas Will não pareceu nada incomodado.
- Talvez pudéssemos prendê-lo com uma correia? - sugeriu Chester com um sorriso.
Will hesitou um segundo.
- Olha, é melhor irmos atrás dele. Deve ter descoberto alguma coisa... provavelmente, outra saída - disse ele, começando a andar na direção do irmão.
Chester deu uma olhada de soslaio para a câmara com todos aqueles corpos.
- Boa ideia - murmurou ele, e, soltando um gemido involuntário, acompanhou Will.
Correram devagar, mantendo-se o mais longe possível da chama enquanto esta subia novamente a toda a sua altura. Ao longe, conseguiram ver Cal quando este saiu da zona mais afastada da câmara e passou por baixo de um arco de pedra tosco. Seguiram-no e descobriram que não era mais uma câmara funerária, mas algo completamente diferente. Encontravam-se numa área com o tamanho de um campo de futebol, com um teto alto. Cal estava de costas para eles e era evidente que olhava para alguma coisa.
- Não pode continuar a desaparecer e a andar por aí sozinho - repreendeu-o Will.
- É um rio - disse Cal, sem ligar à mínima para a irritação do irmão.
À frente deles estava um canal amplo, a água a correr velozmente e a lançar uns borrifos quentes. Conseguiam senti-los na cara, embora ainda estivessem a uma certa distância da margem.
- Ei! Olhem ali! - gritou Cal a Will e a Chester.
Projetando-se sobre a água, havia um cais com uns vinte metros de comprimento sustentado por vigas de metal enferrujado, que pareciam irregulares e feitas à mão. Embora não parecesse estar bem construído, tinha aspecto de ser seguro, e eles não hesitaram em ir até à ponta, onde havia uma plataforma circular com um gradeamento feito de pedaços de metal de tamanhos diferentes.
Enquanto as luzes deles, que mal chegavam à margem oposta do rio, iluminavam os fiapos brancos da espuma no lençol de água negra, as mentes pregavam-lhes peças, e sentiram-se como se eles próprios estivessem correndo com ela. De quando em quando, os borrifos molhavam-nos enquanto a água veloz batia contra os pilares por baixo da plataforma.
Cal debruçou-se por cima do gradeamento enquanto falava.
- Não consigo ver a margem, nem... - começou a dizer.
- Cuidado - avisou Will. - Não caia.
- ...nenhum lugar onde atravessar - concluiu ele.
- Não! - disse imediatamente Chester. - Eu, por mim, não vou pôr o pé em nenhum lugar perto disso. A corrente parece muito forte mesmo.
Ninguém discordou enquanto os três continuaram ali parados saboreando os borrifos quentes nos rostos e nos pescoços.
Will fechou os olhos e escutou o barulho da água. Por trás do seu exterior calmo lutava com as suas emoções. Uma parte dele dizia que devia insistir que atravessassem o rio, embora não fizessem ideia da profundidade, ou do que havia do outro lado, só para obrigá-los a continuarem a avançar.
Mas para quê? Não fazia a menor ideia para onde iam e não havia nenhum lugar para onde tivessem de ir. Naquele preciso momento, ele estava bem dentro do manto da Terra, mais fundo do que qualquer pessoa da Superfície tinha provavelmente estado, e porquê? Por causa do pai, que, tanto quanto sabia, podia ter morrido. Por muito difícil que fosse, tinha de considerar a possibilidade de poder estar fazendo com que todos estivessem a perder o seu tempo perseguindo um fantasma.
Will sentiu uma brisa leve a agitar-lhe o cabelo e abriu os olhos. Olhou para o amigo Chester e para o irmão Cal e viu seus olhos brilhantes a cintilarem nas caras sujas, fascinados com a visão do rio subterrâneo à frente deles. Nunca vira nenhum deles com um ar tão animado como naquele preciso momento. Apesar de todas as dificuldades por que tinham passado, pareciam felizes. As dúvidas desapareceram e sentiu que voltara a ter o controle de si próprio. Sabia que tudo aquilo tinha de valer a pena.
- Não vamos atravessá-lo - anunciou. - Vamos voltar para a linha do trem.
- Está bem - responderam Cal e Chester imediatamente.
- Ótimo. Então está decidido - disse enquanto davam meia volta e desciam o cais, lado a lado.
Capítulo Sete
S
arah desceu descontraidamente a High Street, parecendo não ter nenhuma pressa especial. Não conseguia explicar, mas havia algo profundamente relazante em voltar do lugar onde tinha subido à superfície pela primeira vez.
Era como se, ao voltar, estivesse a reafirmar que o espectro de que andava a fugir há tanto tempo, a Colônia escondida lá em baixo, existia realmente. Tinha havido ocasiões, no passado, em que chegara a se interrogar se não estaria apenas imaginando tudo, se toda a sua vida não se basearia numa elaborada auto-ilusão.
Passava pouco das sete e o interior do pouco inspirador edifício vitoriano que se autoproclamava o Museu de Highfield estava às escuras. E mais à frente, a seguir ao Museu, Sarah reparou, surpreendida, que Clarke Bros., a frutaria, parecia ter fechado. As persianas, pintadas com várias camadas de verniz verde-ervilha, estavam firmemente fechadas. Já deviam estar assim havia muito tempo, pois tinham uma crosta espessa de cartazes colada nela, os mais salientes a anunciar uma banda masculina qualquer que se reformulara recentemente e feiras de velharias do Ano Novo.
Parou e olhou para a loja. Durante várias gerações, a população da Colônia dependera do fornecimento regular de fruta e vegetais frescos dos Clarkes. Havia outros fornecedores, mas os irmãos e os seus antepassados tinham sido aliados de confiança desde sempre. Excluindo a possibilidade de ambos terem morrido, sabia que nunca fechariam a loja voluntariamente.
Olhou pela última vez para as persianas fechadas e afastou-se. Aquilo era uma prova do que a carta clandestina dissera: a Colônia fora isolada e a maioria das ligações com a Superfície tinha sido cortada. Sublinhava o quão longe as coisas tinham chegado lá em baixo.
Vários quilômetros depois, virou a esquina para a Broadlands Avenue. Quando se aproximou da casa dos Burrows, viu que as cortinas estavam corridas e que não havia sinais de vida. Um caixote de mudanças abandonado debaixo do alpendre e o jardim mal tratado falaram-lhe de meses de abandono. Não abrandou o passo ao passar, vendo pelo canto do olho o anúncio da agência imobiliária na relva alta por trás da corrente da vedação. Continuou ao longo da fila de casas idênticas até o final da avenida, onde uma viela a levou através do Parque Público.
Sarah pôs a cabeça para trás e abriu as narinas, enfiando ar nos pulmões, uma mistura de cheiros da cidade e de campo. O cheiro a tubos de escape e o odor levemente ácido de multidões lutavam com a erva molhada e a vegetação fresca à volta dela.
Ainda havia luz demais e, por isso, ocupou o tempo dirigindo-se para o centro do parque. Ainda não tinha percorrido uma grande distância quando pesadas nuvens cinzentas se acumularam no céu para criarem um crepúsculo antecipado. Sarah sorriu e voltou imediatamente para trás em direção ao caminho que circundava o parque.
Manteve-se neste percurso durante várias centenas de metros e depois abaixou-se e enfiou-se na vegetação, abrindo caminho pelo meio das árvores e dos arbustos até conseguir ver a parte de trás das casas da Broadlands Avenue. Deslocando-se furtivamente de uma para a outra, observou os ocupantes a partir do fundo dos jardins. Numa, um casal idoso estava sentado rigidamente à mesa da casa de jantar a beber sopa. Noutra, um homem obeso de camiseta e cueca fumava enquanto lia o jornal.
Os habitantes das duas casas seguintes estavam invisíveis, pois tinham as cortinas cerradas, mas na seguinte, uma mulher nova estava à janela brincando com um bebê, atirando-o ao ar. Sarah parou, compelida a observar a cara da mulher. Sentindo a emoção e a sensação de perda começarem a invadi-la de novo, Sarah afastou os olhos da mãe e da criança e continuou.
Finalmente, chegou ao seu destino. Sarah parou exatamente no mesmo lugar atrás da casa dos Burrows onde tinha parado tantas vezes antes, na esperança de conseguir um vislumbre do filho enquanto este crescia longe dela.
Depois de ter sido obrigada a deixá-lo para trás no cemitério da igreja, procurara-o em todos os recantos de Highfield. Durante os dois anos e meio seguintes, usando óculos escuros até se habituar à dolorosa luz do dia, vasculhara as ruas e parara ansiosamente à porta das escolas locais à hora de recolher as crianças. Mas não havia sinal dele em lado nenhum. Tinha alargado o raio da busca, aventurando-se a afastar-se cada vez mais, até andar a vaguear pelos municípios vizinhos de Londres.
Então, um dia, pouco depois do quinto aniversário do filho, aconteceu voltar a Highfield e vê-lo à porta do Correio. Tinha as pernas firmes, correndo como um doido com um dinossauro de brinquedo. Já era muito diferente da criança que ela deixara para trás. No entanto, reconhecera-o imediatamente; era inconfundível com a sua cabeleira farta e despenteada de um branco cintilante, exatamente igual à dela, embora agora fosse forçada a usar tintas para a escurecer.
Sarah seguira Seth e a mãe desde a loja para descobrir onde viviam. O seu primeiro impulso fora agarrá-lo e levá-lo outra vez. Mas era perigoso demais com os Styx ainda a persegui-la. Por isso, estação após estação, voltava a Highfield sem falhar uma única vez, mesmo que fosse só durante uma parte do dia, desesperada por conseguir vê-lo, ainda que por breves instantes. Ficava a observá-lo do outro lado da extensão do jardim, que era como um abismo intransponível. Ele cresceu e a cara encheu-se, tornando-se tão igual à sua que, por vezes, Sarah pensava que o que via no reflexo das vidraças era o seu próprio reflexo.
E nessas ocasiões ansiava por chamá-lo daquela distância tentadoramente curta, mas nunca o fez. Não podia. Interrogara-se muitas vezes sobre qual seria a reação dele se ela tivesse atravessado o jardim e entrado na sala de estar e, ali, o tivesse apertado nos braços. Sentia a garganta apertar-se enquanto a cena imaginária se desenrolava perante ela como uma pré-estréia de um melodrama televisivo qualquer, os olhos a encherem-se de lágrimas quando olhavam um para o outro num surpreendido reconhecimento mútuo. Ele iria articular as palavras "mãe, mãe", uma e outra vez.
Mas agora tudo aquilo tornara-se história.
Se o que a carta de Joe Waites dizia era verdade, o filho era um assassino, e tinha de pagar pelos seus pecados.
Como se estivesse a ser torturada na roda, estava dividida entre o amor que tinha sentido pelo filho e o ódio surdo que fervilhava nas suas margens, os dois extremos a puxarem-na implacavelmente. Eram ambos tão fortes que ela, apanhada no meio, estava mergulhada num estado de confusão e de um poderoso e profundo torpor.
Pare com isso! Pelo amor de Deus, acorde! O que se passa com você? A sua vida, durante anos tão controlada e disciplinada, estava a transformar-se num caos. Tinha de se controlar. Arranhou as costas de uma mão com as unhas da outra, e depois fê-lo mais uma e outra vez, aumentando a força de cada uma das vezes, até rasgar a pele, a dor ardente a trazer-lhe o alívio amargo da distração.
O filho fora batizado como Seth na Colônia, mas alguém da Superfície tinha-lhe chamado Will. Fora adotado por um casal da zona, chamado Burrows. Enquanto a mãe, Mrs. Burrows, não passava de uma sombra de mulher que passava a vida confortavelmente enroscada à frente da televisão, Will tinha claramente sucumbido ao encanto do padrasto, que trabalhava como conservador no museu local.
Sarah seguira Will em várias ocasiões, caminhando atrás dele quando ele partia na sua bicicleta, uma pá cintilante presa às costas. Ficava a observar enquanto a figura solitária, com um boné de beisebol enfiado na cabeça a tapar-lhe os característicos caracóis brancos, cavava arduamente no terreno duro na saída da cidade ou junto da lixeira municipal. Viu-o abrir buracos surpreendentemente fundos com a orientação e o encorajamento, supunha ela, do Dr. Burrows. Era de fato muito, muito irônico, pensava ela. Tendo escapado à tirania da Colônia, era como se Will estivesse tentando voltar para lá, como um salmão a subir a corrente até ao local da desova.
Mas, para além de lhe terem mudado o nome, o que acontecera a Will? Tal como ela e o irmão, Tam, ele tinha sangue Macaulay nas veias, era de uma das mais antigas famílias fundadoras da Colônia. Como ele podia ter mudado tanto, para pior, naqueles anos passados na Superfície? O que lhe podia ter feito isso? Se a mensagem estava correta, parecia que Will tinha enlouquecido, como um cão de guarda insubordinado que se vira contra o dono.
Um pássaro guinchou em algum lugar por cima dela, e Sarah encolheu-se e acocorou-se defensivamente atrás dos ramos baixos de uma conífera. Pôs-se à escuta, mas só se ouvia o vento a silvar por entre as árvores e o alarme de um carro a tocar intermitentemente a várias ruas de distância. Com um último olhar para o parque atrás dela, avançou devagarinho ao longo da parte de trás dos Burrows. Parou abruptamente, julgando ter visto luz a sair pelo intervalo entre as cortinas corridas da sala de estar. Satisfeita por verificar que era apenas um raio de luar a espreitar pelo meio das nuvens, olhou para as janelas do primeiro andar, uma das quais sabia ter sido a do quarto de Will. Tinha certeza de que a casa estava deserta.
Enfiou-se pelo buraco na sebe, onde outrora existira um portão, e atravessou o relvado até à porta de trás. Voltou a parar para escutar, depois virou um tijolo ao lado do tapete com o pé. Não ficou absolutamente nada surpreendida por descobrir que a chave sobresselente ainda lá continuava - os Burrows eram gente muito descuidada. Usou-a para entrar na casa.
Fechando a porta atrás dela, ergueu a cabeça e cheirou o ar, que estava parado e abafado. Não, ninguém vivia ali havia meses. Não acendeu a luz, embora os olhos sensíveis sentissem dificuldade em distinguir fosse o que fosse no interior escuro. Era arriscado demais.
Percorreu silenciosamente o corredor até à parte da frente da casa e entrou na cozinha. Apalpando em volta, descobriu que as bancadas estavam desimpedidas e os armários vazios. Depois recuou outra vez para o corredor e entrou na sala. O pé chocou com alguma coisa, um rolo de plástico de bolhas para embrulho. Tinham levado tudo. A casa estava completamente vazia.
Então era verdade. A carta dizia que tudo correra terrivelmente mal e ela tinha a confirmação aqui, aqui nesta escuridão terrível, que a família se desfizera. Lera que o Dr. Burrows descobrira acidentalmente a Colônia por baixo de Highfield e que fora transportado para as profundezas pelos Styx. Nesta altura, o mais provável era já ter morrido. Ninguém penetrava até muito longe no Interior e sobrevivia. Sarah não fazia a menor ideia para onde Mrs. Burrows e a filha, Rebecca, tinham ido, e não estava muito interessada. Era Will que a preocupava, que a preocupava muito.
Uma coisa no chão ao lado da porta atraiu-lhe o olhar, e agachou-se para apalpar em volta. Descobriu um monte de cartas espalhadas pelo tapete e começou imediatamente a apanhá-las e a colocá-las na mala a tiracolo. Quando estava no meio desta operação, pensou que ouvia barulhos... a porta de um carro a fechar-se... passos abafados... e depois a ligeiríssima sugestão de uma voz baixa.
Os nervos dispararam como curto-circuitos elétricos. Ficou completamente imóvel. Os sons tinham sido abafados - não conseguia perceber a que distância, mas não podia correr nenhum risco. Esforçou-se por ouvir mais alguma coisa, mas agora só havia silêncio. Dizendo a si própria que devia ter sido alguém a passar à frente da casa, ou, se possivelmente, apenas um dos vizinhos, acabou de apanhar a última das cartas. Era mais do que tempo de sair dali.
Apressou-se pelo corredor às escuras, saiu pela porta de trás e tinha acabado de se voltar para a fechar quando uma voz de homem soou quase colada aos ouvidos dela. Era confiante e acusadora.
- Te apanhei! - anunciou.
Uma mão enorme fechou-se no seu ombro esquerdo e afastou-a da porta. Virou a cabeça para ver o atacante. Na luz fraca, viu um triângulo magro e bem musculado de uma face e uma coisa que lhe fez o coração dar um salto, um relampejo de um colarinho branco e de um ombro envolto de tecido preto.
A sua mente rodopiou com um único pensamento angustiante: Styx!
Ele era forte e tinha a vantagem da surpresa, mas a reação dela foi quase instantânea. Atirou o braço contra o dele, soltando-lhe a mão do ombro. Não parou por aí, passando o braço à volta do dele num único e perfeito movimento que o prendeu numa chave dolorosa. Ouviu o inspirar fundo dele ao perceber que as coisas não estavam a correr como seria de esperar.
Quando ela arqueou o corpo para intensificar o controle sobre o homem, ele tentou se curvar para a frente para aliviar a pressão na articulação do cotovelo. Isto colocou-lhe a cabeça ao alcance dela, e tinha acabado de abrir a boca para gritar por socorro quando Sarah o silenciou com um único murro na têmpora. O homem caiu desmaiado no chão.
Sarah incapacitara o seu atacante com uma precisão selvagem e uma rapidez espantosa, mas não ia ficar ali a admirar o seu trabalho; havia mais do que fortes probabilidades de haver outro Styx na zona. Tinha de se pôr a andar.
Desceu o jardim correndo, procurando a faca dentro da carteira. Quando chegou à abertura na sebe, pensou que estava salva, e já planeava a fuga através do parque.
- O QUE VOCÊ FEZ? - ouviu uma voz furiosa gritar, e uma sombra enorme ergueu-se no caminho.
Tirou a faca do saco, e as cartas que tinha trazido da casa vieram atrás dela, voando pelo ar como uma saraivada de neve. Mas alguma coisa lhe bateu na mão, fazendo com que a faca se soltasse.
À luz do luar, Sarah viu o brilho prateado da insígnia, os números e as letras no uniforme do homem, percebendo tarde demais que eles não eram Styx. Eram polícias. Polícias da Superfície. E ela já derrubara um. Azar, ele tinha se metido no caminho e a sua autopreservação era a única coisa que contava. Provavelmente, não teria agido de maneira diferente, mesmo que tivesse sabido.
Tentou desviar-se do homem, mas este moveu-se rapidamente e bloqueou-lhe o caminho. Ela atirou-lhe de imediato com um soco, mas ele estava preparado.
- Resistir à prisão - grunhiu ele enquanto brandia uma coisa qualquer contra ela.
Sarah viu o que ele tinha na mão, um bastão, no instante antes do contato. Atingiu-a com uma pancada de raspão na testa, enchendo-lhe a visão com reflexos de luz brilhante. Não caiu, mas o bastão foi rápido a atingi-la na boca. Desta vez, caiu dobrada no chão.
- Já chega, monte de merda? - silvou ele, a boca contorcida a cuspir-lhe as palavras para a cara enquanto ele se inclinava por cima dela. Fez o possível para lhe atirar outro murro. Foi pateticamente fraco e ele defendeu-o facilmente.
- É só o que resta? - perguntou ele, rindo sem humor, e, atirando-se para cima dela, prendeu-a ao chão, calcando-lhe o peito com o joelho.
Sarah não tinha força para oferecer qualquer resistência, e o polícia estava louco de fúria e era demasiado pesado. Era como se um elefante a estivesse usando como um escabelo. Tentou contorcer-se para sair de debaixo dele, mas sem qualquer resultado. Sentiu um entorpecimento descer sobre ela enquanto oscilava na beira da consciência. Tudo estava a entrar num caleidoscópio torcido: o traço do bastão de metal recortado nas nuvens cinzentas e no céu índigo, e o círculo enevoado da Lua tapada pela cara dele, uma horrorosa máscara de pantomima. Pensou que ia desmaiar, e a sensação não era nada desagradável. Era um refúgio para a dor e a violência, um lugar seguro onde nada disto tinha importância.
Controlou-se.
Não, não podia desistir. Agora, não.
Do terraço, o policial ferido gemeu e o atacante de Sarah distraiu-se momentaneamente. Com o braço levantado para o golpe seguinte, olhou rapidamente para o colega, ao mesmo tempo que mudava a posição do joelho no peito de Sarah. O peso esmagador levantou-se por um brevíssimo instante, permitindo que ela engolisse uma golfada de ar e recuperasse os sentidos.
As mãos tatearam o chão de ambos os lados do corpo, à procura da faca, de uma pedra, de um pau, de qualquer coisa que pudesse usar como arma. A única coisa que encontrou foi a relva alta. Não tinha nada com que pudesse se salvar. A atenção do polícia estava outra vez concentrada nela; ele gritava-lhe e insultava-a, erguendo o bastão ainda mais alto. Preparou-se para o inevitável, sabendo que acabara tudo.
Estava derrotada.
De repente, algo sem forma definida e desfocado pela velocidade agarrou-se ao braço do homem. Sarah pestanejou, e no instante seguinte o braço já não estava onde tinha estado, e o joelho do policial pesava-lhe menos no peito. Fez-se um silêncio estranho em que lhe pareceu que ele já não gritava.
Era como se o tempo tivesse parado.
Não conseguia entender. Perguntou para si mesma se teria perdido os sentidos. Depois viu dois olhos enormes e uma explosão de dentes que pareciam uma paliçada de estacas afiadas. Voltou a pestanejar, pensando que não estava vendo direito depois de todas as pancadas que levara na cabeça.
O tempo recomeçou. O policial soltou um grito agudo e saiu de cima dela. Tentou pôr-se de pé atrapalhadamente, um braço pendurado inutilmente enquanto tentava defender-se com o outro. Sarah não conseguia ver-lhe a cara. O quer que fosse que o atacava tinha-se enrolado em volta da cabeça e dos ombros dele num emaranhado de garras e membros sem pêlos. Viu patas traseiras fortes e compridas a rasgarem a cara e o pescoço do policial. Ele não se aguentou de pé durante muito tempo, caindo de costas como uma árvore abatida enquanto o ataque selvagem continuava.
Lutando contra as tonturas, Sarah sentou-se. Afastou a franja encharcada de sangue e semicerrou os olhos, tentando ver, tentando compreender o que estava se passando.
As nuvens afastaram-se, permitindo que a Lua fraca lançasse a sua luz na cena. Apanhou um vulto.
NÃO, NÃO PODIA SER!
Voltou a olhar, sem acreditar no que via.
Era um Caçador, um tipo de gato grande especialmente criado na Colônia.
EM NOME DE DEUS, O QUE ESTAVA ELE FAZENDO ALI?
Com um esforço imenso, rastejou até o poste do portão e utilizou-o para se levantar. Mal se pôs em pé, sentiu-se tão tonta e confusa que esperou uns momentos enquanto tentava recuperar.
- Não há tempo para isto - ralhou a si própria quando se voltou a aperceber da realidade da situação. - Controle-se!
Ignorando os gemidos e as súplicas abafadas do polícia enquanto continuava a rolar pelo chão com o Caçador em cima dele, voltou a percorrer cambaleante o jardim até ao lugar onde pensava que a sua faca tinha caído. Depois de a apanhar, começou também a recolher as cartas. Embora tivesse dificuldade em focar os olhos, estava decidida a não deixar nenhuma para trás. Sentindo as pernas mais firmes, voltou-se para localizar o primeiro policial. Estava deitado sem se mexer no terraço no lugar para onde ela o atirara e era evidente que não oferecia nenhum perigo para ela.
No fundo do jardim, o segundo policial estava deitado de lado, com as mãos a agarrar a cara, gemendo horrivelmente. O Caçador libertara-o e sentara-se ao lado dele, a lamber uma pata. Parou quando Sarah se aproximou, enrolando a cauda em volta das patas e olhando atentamente para ela. Passou os olhos enormes pelo homem a gemer como se não tivesse nada que ver com o estado em que ele se encontrava.
Sarah tinha de decidir o que devia fazer, e muito rapidamente. O fato de os dois policiais estarem feridos e a precisar de ajuda deixava-a indiferente. Não sentia nem piedade nem remorsos pelo que lhes acontecera; eram apenas baixas na sua guerra de sobrevivência, nada mais, nada menos. Aproximou-se do policial consciente, parando para lhe tirar a arma do casaco.
Com uma rapidez que a apanhou desprevenida, ele agarrou-lhe o pulso. Mas estava fraco e só podia se servir de um braço. Sarah soltou-se da mão dele sem grande esforço e depois arrancou-lhe o rádio da túnica - a resistência tinha-o abandonado e desta vez não fez nenhuma tentativa para a deter. Sarah atirou o rádio para o chão e calcou-o com o salto, fazendo um barulho de plástico partindo.
Com algum nervosismo, deu um passo na direção do Caçador. Embora fossem assassinos natos, era raro atacarem pessoas. Havia histórias de eles se tornarem selvagens e atacarem os donos e todos que lhes atravessasse no caminho. Não tinha maneira de saber se podia confiar neste Caçador depois daquilo que ele fizera ao policial. Pelo aspecto da pele nua esticada sobre as costelas como uma tenda mal montada, estava muito mal alimentado e em muita má forma. Perguntou para si mesma há quanto tempo andaria ele a desenvencilhar-se sozinho ali em cima.
- De onde você veio? - perguntou baixinho, mantendo-se a uma distância segura.
O animal virou a cabeça na direção dela, como se tentasse entender, e piscou os olhos uma vez. Sarah aventurou-se a aproximar-se mais, experimentando estender-lhe uma mão, e ele inclinou-se para a frente e cheirou-lhe as pontas dos dedos. O topo da cabeça estava quase à altura do quadril dela - já tinha se esquecido de como estes animais eram grandes. Foi então que, subitamente, ele se inclinou na sua direção. Ficou tensa, à espera do pior, mas ele apenas esfregou afetuosamente a cabeça na palma da mão dela. Sarah ouviu o ruído surdo e prolongado de um ronronar a despontar, tão alto como o motor fora de borda de um barquinho. Isto era um comportamento amigável muito pouco vulgar num Caçador. Ou ficara um pouco maluco com a vida na Superfície ou pensava, por qualquer razão, que a conhecia. Mas ela não tinha tempo para pensar nisso - precisava pensar no que fazer a seguir.
Devia afastar-se para o mais longe possível, mas enquanto esfregava a pele bastante velha e sarnosa por baixo do focinho inacreditavelmente grande do gato, reconheceu que tinha uma dívida de honra para com o animal. Seria apanhada com certeza se ele não tivesse vindo em seu socorro. Não podia deixá-lo ficar - não tinha a menor dúvida de que ele seria apanhado na perseguição ao homem em grande escala que se iria seguir.
- Ande - disse ao gato enquanto se dirigia para o parque.
A cabeça ferida começou a aclarar um pouco ao ver o caminho à frente dela. Quando o Caçador deslizou para a sua frente, Sarah reparou que ele coxeava ligeiramente. Estava pensando no que poderia ter causado o ferimento quando ouviu vozes falando alto e viu um grupo de pessoas ao longe. Saiu rapidamente do caminho e escondeu-se atrás de um grande arbusto, apertando os dentes com as dores lancinantes no pescoço e nas costelas.
As pessoas já estavam mais próximas e ela deixou-se cair no chão, encostando a testa na erva molhada. Sentiu uma onda de náusea e receou vomitar. Não conseguia ver para onde o Caçador fora, mas partiu do princípio de que teria tido o bom senso de imitá-la e esconder-se.
Passaram-se alguns segundos e ouvia as vozes mais claramente. Eram jovens, provavelmente adolescentes. Uma lata rebolou no caminho, mesmo à frente dela, e depois ouviu uma pancada forte quando lhe deram um pontapé. Sentiu a corrente de ar quando lhe passou a apenas uns centímetros da cabeça, indo parar a uns arbustos atrás dela. Não se atreveu a mexer um músculo rezando para que os adolescentes não resolvessem ir buscá-la. Não foram, e ela ouviu as risadas do grupo passando e depois esmorecer enquanto eles seguiam o seu caminho.
Esperando que se afastassem para bem longe, aproveitou a oportunidade para tirar o lenço da mala e usá-lo para limpar as feridas da cara. Depressa percebeu que era uma causa perdida ao sentir sangue fresco a escorrer-lhe pela bochecha. Depois observou o resto do corpo; para além dos galos na cabeça, sentia uma dor fortíssima de lado quando inspirava fundo. Não ficou muito preocupada - a experiência dizia-lhe que não tinha costelas partidas.
Espreitou para fora do esconderijo sem saber se algum dos policiais feridos teria conseguido rastejar até o caminho. Precisava de mais tempo antes de ser dado o alarme. Mas parecia tudo calmo agora que os adolescentes tinham desaparecido.
O Caçador materializou-se ao lado dela, tão silencioso como um fantasma, mal ela se atreveu a sair de detrás do arbusto. Outra vez no caminho, os dois correram para o arco metálico que assinalava a entrada do parque. Sarah atravessou a rua na direção da High Street, mas parou quando olhou para trás para se certificar de que o gato ainda continuava com ela. Estava sentado na calçada ao lado do arco, olhando para a rua que seguia para a direita, como se tentasse dizer-lhe qualquer coisa.
- Ande! Por aqui! - disse ela impacientemente, apontando com o dedo na direção do centro da povoação e do hotel. - Não temos tempo para isto - mas calou-se, percebendo como ia ser difícil levar o animal pelas ruas até o quarto sem dar na vista.
Ele continuou firmemente voltado para a direita, tal como faria se estivesse a alertar o seu tratador de que tinha cheirado uma presa.
- O que é? O que há ai? - perguntou ela, voltando correndo para junto dele, sentindo-se um pouco ridícula por tentar conversar com um gato.
Olhou para o relógio, avaliando as suas opções. Por um lado, não iria tardar muito até que alguém descobrisse a cena na parte de trás da casa dos Burrows, e o parque e toda Highfield ficasse cheia de policiais. Por outro, sentia-se aliviada por a noite ter caído. Estava no seu ambiente; podia utilizar a escuridão em seu proveito. Mas a sua maior preocupação era que tinha de se afastar o mais possível da casa, e seguir pelas ruas mais movimentadas podia vir a ser um erro fatal. Sabia que a cara espancada iria fazer com que desse tanto na vista como um elefante.
Tentou ver o que havia na direção que o gato apontava; talvez não fosse má ideia deixar uma pista falsa e, se necessário, dar uma volta maior para regressar ao hotel. Enquanto debatia consigo própria, o Caçador raspava com a pata no chão, ansioso por se pôr outra vez a caminho. Sarah olhou para o gato, ciente de que poderia ser obrigada a descartar-se dele no caminho. Ele atraía muito a atenção e reduzia-lhe as chances de fuga.
- Muito bem, vamos fazer como quer - disse ela, decidindo-se repentinamente.
Seria capaz de jurar que o gato lhe sorriu antes de arrancar tão depressa que ela teve dificuldade em acompanhá-lo. Parecia que iam contornar os limites da povoação.
Vinte minutos depois, entraram numa rua que Sarah não conhecia e, por uma placa de sinalização, viu que se dirigiam para uma espécie de lixeira municipal. O gato parou por um breve instante junto de uma entrada no fim de uma comprida fileira de painéis publicitários, e depois entrou. Indo atrás dele, Sarah conseguiu distinguir com dificuldade uma área de terreno irregular, coberto de ervas daninhas e rodeado por arbustos pequenos.
O gato passou a galope por um carro abandonado em direção a um dos cantos. Parecia saber exatamente para onde ia. Travou, escorregando até parar e levantou o focinho para cheirar o ar. Sarah correu com dificuldade para perto dele.
Já perto, a cautela forçou-a a dar meia volta para ter a certeza de que ninguém os seguia. Mas quando se voltou outra vez para o lugar onde o gato tinha estado, não havia sinais dele. Por muito boa que fosse a sua visão noturna, não fazia ideia nenhuma do local para onde o gato teria ido. Tudo o que Sarah conseguia distinguir eram pequenos montes de arbustos que brotavam do chão lamacento. Tirou a lanterna-chaveiro da algibeira e apontou-a para a frente. Então, a vários metros de onde se encontrava, viu a cabeça do gato quando ela emergiu, de forma bastante cômica, do chão.
Voltou a baixar-se, desaparecendo por completo. Sarah aproximou-se para investigar e descobriu que havia uma espécie de trincheira, em grande parte tapada por uma placa de madeira prensada. Enfiou a mão para tentar entender o que estava por baixo da madeira - parecia um buraco de tamanho razoável. Empurrou a placa para o lado, gemendo por causa das costelas machucadas enquanto abria o buraco o suficiente para poder caber.
Esticando cautelosamente uma perna para a escuridão, desequilibrou-se completamente na terra solta. Os braços esbracejaram desesperadamente enquanto tentava agarrar qualquer coisa que lhe parasse a queda rápida, mas não encontrou nada. Caiu de uma altura de quase oito metros, caindo sentada com um grande barulho. Praguejando baixinho, esperou que a dor abrandasse, e depois voltou a acender a lanterna porta-chaves.
Para sua grande surpresa, descobriu que tinha caído num poço cheio daquilo que parecia ser uma grande quantidade de ossos. O chão estava repleto deles, todos sem um único pedaço de carne e de um branco cintilante à luz da lanterna. Agarrando numa mão cheia, escolheu um fêmur minúsculo e examinou-o. Olhando em volta, viu várias caveiras pequeninas. Todas tinham marcas de dentes e, pelo tamanho, podiam ser de coelhos ou de esquilos. Depois reparou numa caveira muito maior, com caninos pronunciados.
- Cão - disse Sarah, identificando-a imediatamente. Colada à caveira estava o pedaço de uma coleira de couro, escurecida com sangue seco.
Estava na toca do gato!
De repente lembrou-se do artigo do jornal que lera no hotel.
- Então é você que tem andado a apanhar os cães! - exclamou ela. - Você que é a fera do Parque de Highfield - acrescentou com uma gargalhada, surpreendida, dirigindo-se à escuridão onde conseguia ouvir a respiração regular do gato.
Levantou-se, os esqueletos a estalarem e a partirem-se debaixo dos pés, e começou a descer a galeria que saía do poço dos ossos. Os lados da galeria estavam escorados com tábuas que, para os seus olhos treinados, não pareciam muito seguras - tinham sinais de apodrecimento e o tom esverdeado provocado pela umidade excessiva. E, pior ainda, não havia vigas suficientes para aguentar o teto, como se alguém tivesse andado a tirar algumas ao acaso, sem se preocupar com os efeitos que podiam advir. Era evidente que não estava no local mais seguro do mundo, mas, naquela altura, essa era a sua menor preocupação. Precisava de um lugar qualquer para recuperar dos ferimentos.
A galeria levou-a mais para o fundo, e, quando saiu dela estava numa área maior. Percebeu uma tábua em cima da terra lamacenta, a superfície coberta de gavinhas de podridão branca que se iam espalhando. Em cima da tábua havia duas poltronas em péssimo estado, colocadas lado a lado, e o gato estava sentado, completamente imóvel, numa delas, como se a esperasse já há muito tempo.
Sarah girou a lanterna em volta e arfou de surpresa. No seu ponto mais largo, a câmara tinha aproximadamente quinze metros de largura, mas na ponta mais afastada, era evidente que a parede se desmoronara, e os escombros quase chegavam às poltronas. A água pingava continuamente do teto, e, quando deu a volta na parede, enfiou-se imediatamente numa poça funda. Era enganadoramente funda, e ela desequilibrou-se.
Praguejando quando o pé ficou enfiado na água lamacenta, agarrou-se ao que encontrou mais perto para se equilibrar, uma das vigas do teto. Em vez de encontrar madeira sólida como esperara, agarrou uma mão-cheia de lascas de madeira encharcadas, e ela caiu de encontro à parede, com a perna a enfiar-se ainda mais na poça. Pior ainda, como a trave a que se agarrara se deslocara, abrira-se um espaço nas pranchas de madeira que aguentavam o teto. Uma torrente de terra caiu-lhe em cima ao mesmo tempo que ela tentava se endireitar e fugir.
- Pelo amor de Deus! - espumou Sarah. - Quem foi o grande idiota que construiu este lugar?
Saiu da poça limpando a terra dos olhos. Pelo menos tinha conseguido não deixar cair a lanterna, que usou para examinar mais pormenorizadamente o que a rodeava. Deu a volta na escavação com todas as cautelas, avaliando o estado das traves, que pareciam todas em diferentes estágios de apodrecimento.
Franzindo os lábios e perguntando para si mesma, o que lhe teria passado pela cabeça para descer para aquele buraco, virou-se para o gato, que não mexera um músculo enquanto ela tinha andado por ali aos tombos. Estava pacientemente sentado numa poltrona, com a cabeça levantada como se a estudasse. Sarah teria sido capaz de jurar que havia qualquer coisa na expressão dele... como se ele estivesse a divertir-se silenciosamente com as suas trapalhadas com a poça e a trave podre.
- Da próxima vez que tentar me levar a algum lugar, vou pensar duas vezes! - gritou-lhe muito zangada.
Cuidado! Controlou a língua lembrando a si própria com o que estava a lidar. Embora o gato parecesse bastante plácido, os Caçadores, principalmente quando se tornavam zangados, podiam ser voláteis, e ela não devia fazer nada que o alarmasse.
- Não se importa que me sente? - perguntou com uma voz gentil, levantando as palmas das mãos enlameadas para o gato mostrando-lhe que não queria fazer-lhe mal.
Quando se sentou, uma ideia começou a importuná-la. Estava olhando ao redor da escavação tentando entender exatamente o que a incomodava quando o gato deu um pequeno salto na sua direção. Ainda sem ter a certeza de que podia confiar nele, Sarah encolheu-se para trás e depois descontraiu-se ao ver que ele estava apenas a esfregar o focinho nas costas do cadeirão.
Sarah reparou que havia alguma coisa lá enrolada e, muito devagarinho, esticou-se para a agarrar. Parecia um pedaço de tecido úmido. Recostando-se, abriu-o. Era uma camiseta de rugby com riscas amarelas e pretas. Cheirou-a.
Apesar do odor forte a podridão e umidade que permeava o ar, um cheiro quase imperceptível fez-se notar. Era apenas um vestígio levíssimo. Voltou a cheirá-la para ter a certeza de que não estava enganada, e depois olhou atentamente para o gato. Franziu o sobrolho quando a ideia, que ao princípio fora pouco clara e desfocada, começou a ganhar forma. Ganhou ímpeto e, como uma bolha a subir à superfície da água, arrebentou subitamente com uma certeza incontestável.
- Isto era dele, não era? - disse ela, segurando a camiseta à frente do focinho cheio de cicatrizes do gato. - O meu filho Seth usou isto... e, por isso, ele deve ter escavado este lugar! Meu Deus, nunca percebi que ele tinha chegado tão fundo!
Durante uns segundos, voltou a examinar a escavação com um interesse renovado. Mas depois foi apanhada num tumulto de emoções em conflito. Antes da carta, teria ficado extasiada por estar ali, na escavação do filho, como se isso o fizesse ficar mais perto de si. Mas agora não conseguia saborear a descoberta - de fato, sentia-se apreensiva, apreensiva em relação às mãos que a tinham criado.
Estremeceu quando outro pensamento lhe explodiu na cabeça. Voltou-se para o animal, que nunca desviara dela os olhos vigilantes.
- O Cal? Era o Caçador do Cal?
Ao ouvir o nome, o gato contraiu uma bochecha, gotas de umidade nos bigodes compridos a cintilarem à luz da lanterna.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Meu Deus - disse ela atrapalhadamente. - Era, não era?
Franzindo o cenho, Sarah ficou uns segundos pensando. Se este animal era de fato de Cal, então isso comprovava aquilo que Joe Waites escrevera na mensagem: que Seth tinha obrigado Cal a ir com ele à Superfície antes de arrastá-lo para as Profundezas. Isso explicava a presença do gato ali - ele acompanhara Cal quando este fugira para a Superfície.
- Quer dizer que, fosse lá como fosse, você saiu da Colônia com... com o Seth? - disse ela a pensar em voz alta. - Mas você o conhece por Will, não é?
Repetiu o nome "Will", articulando cuidadosamente, atenta à reação do gato. Mas desta vez não houve qualquer sinal de reconhecimento da parte dele.
Sarah calou-se. Se era verdade que Cal tinha estado na Superfície, então tudo o resto a respeito de Seth também era verdade? As implicações eram demais para ela. Era como se os seus sentimentos intensos, todo o seu amor pelo filho mais velho, estivessem a ser sugados lentamente para fora dela a fim de abrirem espaço para uma coisa feia e vingativa.
- Cal - disse ela de novo, querendo voltar a ver a reação do animal.
O gato inclinou a cabeça na sua direção e depois voltou a desviar os olhos para a entrada da escavação.
Desejando que o gato lhe pudesse responder às centenas de perguntas que se atropelavam na sua mente confusa, Sarah deixou cair a cabeça contra a cadeira. Era tudo demasiado para ela e deu por si a sucumbir gradualmente ao imenso cansaço.
A ouvir os deslocamentos e os gemidos das madeiras à volta dela e o tamborilar ocasional da terra a cair, olhou por breves instantes para as raízes penduradas do teto antes de as pálpebras se tornarem pesadas demais. Quando o dedo deslizou do botão da lanterna, a câmara ficou mergulhada na escuridão, e ela adormeceu quase de imediato.
Capítulo Oito

O
s rapazes retrocederam, passando pela chama azul tremeluzente, e voltaram para o túnel do trem. Em pouco mais de vinte minutos tinham chegado ao lugar onde o trem havia parado.
Agachados ao lado do vagão do guarda, com as janelas cobertas de um filme de poeira agora apagadas, espreitaram ao longo da comprida fila de vagões para o lugar onde a locomotiva estava parada. Mas não se via ninguém - o trem parecia completamente abandonado.
Depois desviaram a atenção para o resto do espaço, concentrando-se na área à esquerda da caverna que estava salpicada por uma fileira de luzes. Não tinha nada de extraordinário, consistindo numa fila de barracões vulgares de um só andar.
- Não tem nada que ver com a plataforma nove e três quartos, não é? - murmurou Chester.
- Não... estava à espera que fosse muito maior - respondeu Will numa voz desapontada. - Nada de extraordinário - acrescentou, utilizando uma expressão que o pai costumava dizer quando não ficava impressionado com qualquer coisa.
- Ninguém fica aqui muito tempo - disse Cal.
Chester estava claramente desconfortável.
- Acho que também não devíamos ficar - sussurrou nervosamente. - Onde está todo mundo? O guarda e o maquinista?
- Nos edifícios, provavelmente - respondeu-lhe Cal.
Ouviu-se um ruído, um estrondo abafado como um trovão distante, e depois começou uma barulheira enorme.
- Mas que raio é isto? - exclamou Chester, assustado, ao mesmo tempo que os três se encolhiam outra vez dentro do túnel.
Cal estava apontando por cima do trem.
- Não, olhem, eles estão só carregando para a próxima viagem. Viram grandes calhas equilibradas por cima dos vagões mais altos. Com o diâmetro de pelo menos um caixote de lixo comum, eram cilíndricas e pareciam ser feitas de várias seções de metal que tinham sido ligadas umas às outras. Havia qualquer coisa que jorrava delas a grande velocidade, batendo nos fundos de metal dos vagões com um clamor estrondoso.
- Agora, é a nossa oportunidade! - gritou Cal aos outros.
Levantou-se e, passando rapidamente por trás do vagão do guarda, começou a correr ao longo do trem antes que Will pudesse objetar.
- Lá vai ele outra vez - gemeu Chester, mas, mesmo assim, ele e Will arrancaram atrás do rapaz mais novo, mantendo-se rente ao trem tal como Cal estava a fazer.
Correram ao longo da fila de vagões mais baixos, passando por aquele em que tinham feito a viagem até ali, e depois continuaram ao longo dos outros que tinham as anteparas mais altas. Pó e fragmentos de entulho voavam-lhes por cima das cabeças, e tiveram de parar várias vezes para os limpar dos olhos. Os rapazes levaram um minuto inteiro para percorrerem o comprimento do trem, o tempo suficiente até ficar completamente carregado. Os últimos pedaços de fosse lá o que fosse caíram das calhas, e o ar ficou cheio de poeira saibrosa.
Separada do trem, a locomotiva estava mais à frente na linha, mas Cal estava agachado ao lado do último dos vagões altos. Mal Will e Chester se juntaram a ele, Will atacou, dando umas palmadas na cabeça do irmão.
- Ei! - protestou Cal, levantando os punhos como se fosse retaliar. - Porque fez isso?
- Por ter desandado outra vez, seu grande estúpido - ralhou Will num tom de voz baixo e furioso. - Se continuar fazendo as coisas assim, ainda vamos ser apanhados.
- Bem, eles não nos viram... e de que outra maneira íamos conseguir atravessar isto? - defendeu-se o irmão veementemente.
Will não respondeu.
Cal pestanejou devagarinho como que a dizer que o irmão estava a ser entediante, e depois limitou-se a virar a cabeça para espreitar para longe.
- Precisamos de descer o...
- Nem pense - respondeu-lhe Will. - Eu e o Chester vamos investigar primeiro antes de qualquer um de nós fazer seja o que for. Você, fica quietinho!
Cal obedeceu relutantemente, deixando-se cair no chão com um resmungo mal-humorado.
- Tudo bem? - perguntou Will a Chester quando ouviu um fungar alto atrás de si. Voltou-se para olhar para ele.
- Esta coisa está em todo o lado - queixou-se Chester, e depois assoou-se, tapando uma narina de cada vez com os dedos, e fungou para fora para as libertar do pó.
- Que nojo - protestou Will baixinho quando Chester agarrou com as pontas dos dedos um bocado de ranho pendurado e o atirou para o chão. - Tem mesmo de fazer isso?
Sem fazer caso do nojo do amigo, Chester olhou com os olhos franzidos para a cara de Will e depois, examinando os seus próprios braços e mãos, comentou:
- Não há dúvida de que estamos bem camuflados.
Se as caras e as roupas já estavam imundas antes da corrente contínua de fumaça preta do carvão que saía do trem, agora estavam mais ainda, depois de terem sido banhados durante a carga dos vagões.
- Bom, se já acabou - disse Will -, vamos fazer o reconhecimento da estação.
Apoiados nos cotovelos, ele e Chester deram a volta ao vagão até terem uma visão desimpedida dos edifícios. Não tinham qualquer sinal de atividade.
Sem fazer o menor esforço para manter a cabeça baixa, Cal desobedeceu às ordens de Will e foi atrás deles. Era impossível manter-se quieto, positivamente a vibrar de impaciência.
- Ouçam, os homens do trem não estão na estação, mas vão voltar rapidamente. Temos de nos mover daqui o mais depressa possível, antes que eles voltem - insistiu ele.
Will voltou a analisar os edifícios da estação.
- Bem, ok, mas vamos nos manter todos juntos e só avançamos até à máquina. Entendeu, Cal?
Abandonaram rapidamente a proteção do vagão e correram meio agachados até ao lado da locomotiva enorme. De vez em quando, esta soltava silvos de jatos de vapor, como se fosse um dragão profundamente adormecido. Conseguiam sentir o calor emanado pela caldeira gigantesca. Sem pensar, Chester pousou a mão numa das enormes placas de aço corroído que formavam a parte lateral, e voltou a tirá-la muito depressa.
- Au! - exclamou ele. - Isto está mesmo quente!
- Não me diga - comentou Cal sarcasticamente, enquanto davam a volta até a parte da frente da locomotiva de proporções gigantescas.
- É fantástica! Parece mesmo um tanque - disse Chester, entusiasmado como um menino da escola.
Com as suas placas blindadas entrelaçadas e os gigantescos limpa-trilhos, não havia dúvida de que parecia um veículo militar qualquer, um velho tanque de guerra.
- Chester, não temos tempo para admirar a locomotiva! - repreendeu-o Will.
- Eu não estava - resmungou baixinho em resposta, ainda com os olhos fixos na locomotiva.
Começaram a debater o que deveriam fazer a seguir.
- Devemos descer por ali - disse Cal peremptoriamente, indicando a direção com o polegar.
- Bládi, Bládi, blá - resmungou Chester baixinho, deitando um olhar desdenhoso a Cal. - Lá vamos nós outra vez.
Will estudou a área da caverna para onde o irmão tinha apontado. Do outro lado de uma extensão de cerca de cinquenta metros de terreno aberto havia o que poderia ser uma abertura na parede da caverna, rampas de metal descendo de cada um dos lados, a partir de uma estrutura por cima. Will não conseguia ver o suficiente na escuridão para ter certeza de que era uma saída.
- Não consigo ver o que está ali - disse a Cal. - Está escuro demais.
- É exatamente por isso que devemos ir para lá - replicou-lhe o irmão.
- Mas se os Colonos saírem antes de chegarmos lá? - perguntou Will. - É impossível não nos verem.
- Eles estão tomando chá - respondeu Cal, abanando a cabeça para Will. - Não teremos problemas se formos já.
Foi então que Chester se intrometeu.
- Também podíamos recuar... voltando outra vez para o túnel, e esperar que o trem vá embora.
- Isso pode levar horas. Temos de ir agora - disse Cal com um tom de voz carregado de irritação. - Enquanto ainda temos possibilidade de fazê-lo.
- Espera aí - contrapôs Chester imediatamente, voltando-se para Cal.
- Vamos - insistiu Cal mal-humorado.
- Não, nós... - retorquiu-lhe Chester, mas Cal levantou a voz e não o deixou continuar.
- Você não sabe nada - disse-lhe com um sorrisinho de desprezo.
- Quem é que morreu e te fez chefe? - refilou Chester virando-se para o amigo, à procura de apoio. - Não vai ligar para que ele diz, não é, Will? Ele não passa de um fedelho estúpido.
- Calem-se! - silvou Will por entre os dentes cerrados, para ninguém em especial, com os olhos cravados na estação.
- Pois eu digo que... - declarou Cal muito alto.
Will levantou velozmente a mão e tapou rudemente a boca do irmão.
- Eu disse para se calar, Cal. Estou vendo dois. Ali - sussurrou nervosamente ao ouvido do irmão, e depois retirou a mão.
Cal e Chester procuraram os dois homens do trem, que estavam de pé debaixo de um pórtico que se estendia à frente de vários dos edifícios da estação. Aparentemente, tinham acabado de sair de um dos barracões, e excertos de uma música bizarra chegou até aos rapazes pela porta aberta.
Os homens vestiam uniformes azuis muito volumosos e tinham uma espécie de aparelhos para respirar enfiados nas cabeças; enquanto os rapazes os observavam, levantaram-nos para poderem beber das canecas que tinham nas mãos. Mesmo do local onde os rapazes estavam posicionados, conseguiam ouvir os resmungos dos homens quando avançaram alguns passos e pararam a analisar indolentemente o trem, e depois viraram-se para apontar para qualquer coisa na torre do guindaste por cima do trem.
Passados vários minutos, deram meia volta e entraram no barracão, batendo ruidosamente com a porta.
- Maneiro! Vamos! - disse Cal olhando para o irmão e evitando cuidadosamente olhar para Chester.
- Pare com isso - rosnou-lhe Will. - Vamos quando todos quisermos. Estamos juntos nisto.
Cal ia começar a reclamar, o lábio de cima levantado num esgar desagradável.
- Isto não é uma merda de um jogo, sabe - atirou-lhe Will.
O rapaz mais novo fungou ruidosamente e, em vez de continuar a desafiar Will, voltou-se para Chester e deitou-lhe um olhar furioso.
- Você... você, seu Habitante da Superfície! - silvou Cal.
Chester ficou completamente indiferente e, levantando uma sobrancelha, encolheu os ombros para Will.
E ficaram ali, Chester e Will a observarem cuidadosamente a parte da frente da estação enquanto Cal fazia desenhos na terra, que se pareciam espantosamente com Chester, com os corpos quadrados e as cabeças em forma de blocos. De quando em quando, soltava umas risadinhas maldosas e apagava-as, recomeçando a desenhar logo em seguida.
Ao fim de cinco minutos sem terem voltado a ver os homens, Will falou.
- Bem, acho que se instalaram lá dentro. Acho que agora podemos ir. De acordo, Chester?
Chester fez um gesto afirmativo com a cabeça, parecendo claramente infeliz.
- Até que enfim! - disse Cal, pondo-se de pé com um salto e esfregando as mãos uma na outra para tirar a poeira. No instante seguinte, estava banhado pelas luzes do espaço aberto, a afastar-se com um porte atrevido.
- Qual é o problema dele? - perguntou Chester a Will. - Vai fazer com que nos matem a todos.
Na escuridão ao pé da parede da caverna, saltaram para o meio das duas rampas e descobriram que havia de fato uma passagem, uma brecha de tamanho bastante razoável na rocha. Cal tinha acertado na lotaria com a sua sugestão, e não ia deixar passar isso em claro.
- Eu tinha ra... - começou ele.
- Sim, eu sei - interrompeu Will. - Desta vez.
- O que é aquilo? - perguntou Chester, reparando numa série de estruturas quando entraram no túnel.
Estavam quase enterradas por grandes quantidades de sedimentos ao longo de uma das paredes. Algumas assemelhavam-se a cubículos enormes e outras pareciam ser circulares. À volta delas havia pedaços de metal velho e entulho. Os rapazes aproximaram-se de uma das estruturas que, de perto, parecia uma colmeia gigantesca feita de tijolos. Quando Will avançava pelo meio dos sedimentos para chegar mais perto, o pé bateu em alguma coisa que se virou. Dobrou-se para a apanhar. Era do tamanho da mão dele e era dura e chata, com as bordas onduladas. Segurou-a enquanto se aproximava da estrutura-colmeia.
- Tem uma escotilha embaixo - disse Cal, passando à frente do irmão.
Limpou os sedimentos amontoados na base da estrutura com a bota. E, de fato, havia uma porta pequenina com cerca de um metro quadrado, que, quando ele se agachou e lhe deu um puxão para a abrir um pouco, guinchou muito alto nas dobradiças secas. Cinza escura derramou-se do interior.
- Como sabia? - perguntou Will.
Pondo-se em pé, Cal arrancou o objeto da mão do irmão e bateu com força com ele na superfície arredondada ao seu lado. O objeto emitiu um som abafado de vidro a estilhaçar e caíram vários fragmentos.
- Isto é um pouco de resíduos. - Deu um pontapé num monte de terra, fazendo-a voar para todos os lados. - E estou pronto a apostar que há carvão por baixo disto tudo.
- E então? - perguntou Chester.
- Então, isto são fornalhas - respondeu Cal cheio de confiança.
- Verdade? - disse Will, dobrando-se para espreitar pela escotilha.
- Sim, já vi coisas destas antes, nas fundições na Caverna Sul da Colônia. - Cal ergueu o queixo e olhou truculentamente para Chester como se tivesse provado a sua superioridade em relação ao rapaz mais velho. - Os Coprolites devem ter andado a fundir ferro aqui.
- Há uma eternidade, pelo aspecto que tem - comentou Will, observando o lugar.
Cal assentiu com a cabeça, e, não havendo mais nada digno de nota, continuaram a avançar pelo túnel, em silêncio.
- Ele tem a mania de querer ser esperto - disse Chester quando Cal já estava suficientemente longe para não poder ouvir.
- Olha, Chester - replicou Will em voz baixa -, provavelmente ele está se borrando de medo deste lugar, como todos os Colonos. E não se esqueça de que é muito mais novo do que qualquer um de nós. Não passa de uma criança.
- Isso não é desculpa.
- Não, não é, mas tem de lhe dar algum desconto - sugeriu Will.
- Isso aqui, não serve, Will, e você sabe isso muito bem! - protestou Chester violentamente.
Reparando que Cal tinha evidentemente ouvido a sua explosão de cólera e se voltara para eles cheio de curiosidade, Chester baixou imediatamente a voz.
- Não podemos nos dar ao luxo de fazer besteira. O quê, acha que podemos pedir aos Styx uma segunda oportunidade, que é como conseguirmos mais outra vida num estúpido de um jogo de videogame? Cai na real, está bem?
- Ele não vai nos meter em problemas - disse Will.
- Estás disposto a apostar a sua vida nisso? - perguntou Chester.
Will limitou-se a abanar a cabeça enquanto continuavam a avançar. Sabia que não havia nada que pudesse dizer que fizesse o amigo mudar de opinião e, provavelmente, Chester tinha toda a razão.
Longe das fornalhas e dos montes de escombros, o chão do túnel estava compacto, como se os muitos pés que o pisaram o tivessem transformado numa superfície firme. Embora se mantivessem sempre no túnel principal, de vez em quando este bifurcava-se em corredores mais pequenos. Alguns eram suficientemente grandes para se estar de pé lá dentro, mas na maior parte deles só se podia rastejar. Os rapazes não tinham qualquer intenção de abandonar o caminho principal - a ideia de descerem por um deles não lhes agradava, e, de qualquer das maneiras, não faziam ideia de para onde se dirigiam. Por fim, acabaram por chegar a um lugar onde o túnel bifurcava.
- Bom, qual dos caminhos? - perguntou Chester quando ele e Will se aproximavam de Cal, que tinha parado.
O rapaz vira alguma coisa caída junto à base da parede e dirigiu-se para lá, empurrando-a com a ponta do pé. Era uma tabuleta de madeira descolorida e lascada, com duas "mãos" presas em cima de uma estaca partida, as extensões, tipo dedos, a apontarem para direções opostas. Havia qualquer coisa quase ilegível gravada em cada sinal. Cal levantou a estaca e segurou-a de forma que Will conseguisse ver.
- Isto diz Cidade da Fenda , que deve ser o túnel à direita. Isto... - hesitou -, não consigo entender... a parte do fim está roída... acho que diz A Grande qualquer coisa.
- A Grande Planície - disse Cal imediatamente.
Will e Chester olharam para ele, muito surpreendidos.
- Uma vez ouvi os amigos do meu tio a falarem dela - explicou ele.
- Bem, e que mais ouviu? E como é esta cidade? É uma terra de Coprolites? - perguntou-lhe Will.
- Não sei.
- Então, acha que devemos ir para lá? - insistiu Will.
- De verdade, não sei mais nada - respondeu Cal com indiferença, largando a tabuleta no chão.
- Bem, a cidade soa-me bem. Aposto que Papai teria ido para lá. O que acha, Chester, vamos por aí?
- Tanto faz - respondeu Chester, ainda a olhar desconfiadamente para Cal.
Mas enquanto iam avançando lentamente, tornou-se evidente ao fim de poucas horas que o caminho que escolheram não era uma via principal como o túnel que tinham deixado para trás. O chão era mais acidentado e menos compacto, com grandes pedaços de rocha espalhados, o que sugeria que não era muito utilizado. E, ainda pior, eram obrigados a subir grandes desabamentos de rocha em lugares onde o teto ou as paredes tinham desmoronado parcialmente.
Quando tinham começado a discutir entre eles se deveriam voltar para trás, fizeram uma curva e as luzes cortaram uma faixa na escuridão revelando uma estrutura que lhes barrava o caminho. Era regular e claramente feita por pessoas.
- Afinal sempre há alguma coisa aqui - exclamou Will muito aliviado.
Quando se aproximaram da construção, o túnel transformou-se numa cavidade mais ampla. As luzes revelaram uma estrutura que parecia uma vedação alta com duas torres, cada uma delas com cerca de dez metros de altura, que formavam uma espécie de portão. À medida que se aproximavam, conseguiram ver que, esticado bem alto entre as torres, havia um painel de metal que dizia Cidade da Fenda, em letras toscamente recortadas.
Esmagando as cinzas e o cascalho, aventuraram-se a avançar cautelosamente. A vedação alta estendia-se ininterruptamente, de cada uma das torres, bloqueando completamente a largura da caverna. Parecia que não havia outra maneira de entrar senão pelo portão aberto. Acenando com a cabeça uns para os outros, penetraram furtivamente e, mal se encontraram lá dentro, viram que havia algumas estruturas que pareciam uma espécie de edifícios.
- Parece uma cidade fantasma - comentou Chester, observando as filas de cabanas de cada um dos lados da avenida central, por onde estavam andado. - Não deve haver ninguém vivendo aqui - acrescentou esperançosamente.
Se algum dos rapazes tivesse alimentado a ilusão de que as cabanas podiam estar ocupadas, depressa a perderam, quando perceberam as condições em que se encontravam. Muitas tinham simplesmente desabado sobre si próprias. Nas ainda em pé, as portas ou estavam abertas ou haviam simplesmente desaparecido, e todas as janelas estavam partidas.
- Vou dar só uma olhada nesta - disse Will.
Com Chester à espera nervosamente atrás dele, Will abriu caminho pelo meio de uma pilha de madeira na entrada, agarrando-se ao batente da porta para se equilibrar. Soltou uma exclamação quando toda a estrutura gemeu e balançou assustadoramente.
- Tenha cuidado, Will! - avisou Chester, recuando para uma distância segura, não fosse a cabana desmoronar-se de repente. - Parece um pouco perigoso.
- Sim - resmungou Will baixinho, mas não estava disposto a desistir.
Avançou mais para dentro da cabana e apontou a luz da lanterna de um lado para o outro enquanto abria caminho pelo entulho espalhado pelo chão.
- Está cheio de beliches - informou os outros.
- Beliches? - repetiu Cal interrogativamente do exterior, enquanto Will continuava a meter o nariz no interior.
Ouviu-se o barulho de madeira a rachar quando o pé de Will se enfiou pelo chão adentro.
- Raios!
Tirou o pé e começou a voltar para trás com todo o cuidado. Parou para espreitar para alguma coisa no canto mais escuro, que podia ter sido uma espécie de fogão. Mas decidiu que já tinha visto o suficiente, dado o estado perigoso do chão.
- Aqui não há nada - gritou para os outros, voltou-se e saiu.
Continuaram a andar pela avenida central até Cal quebrar repentinamente o silêncio.
- Consegue sentir este cheiro? - perguntou a Will. - É acre, como o...
- Amônia. Sim - interrompeu Will, fazendo incidir a luz na área à frente dos pés. - Parece que vem de... do chão. Dá ideia de que está úmido - observou, raspando o chão da caverna com o pé e acocorando-se depois. Agarrou numa pitada de solo e levou-a ao nariz. - Puff! É esta coisa. Fede demais. Parece excrementos de aves secos. Guano, não é assim que se chama?
- Aves. Então está bem - disse Chester numa voz aliviada, lembrando-se do bando de pássaros inofensivos que tinham encontrado na Colônia.
- Não, não são de aves, isto é diferente - corrigiu-se Will de imediato. - E parece fresco. E muito mole e úmido.
- Oh, doga! - exclamou Chester, olhando desvairadamente em redor.
- Que nojo! Há coisas lá dentro - observou Will, passando o peso de uma perna para a outra enquanto se mantinha de cócoras.
- Que coisas? - perguntou Chester, só faltando dar um salto com o susto.
- Insetos. Estão vendo?
Apontando as luzes para os pés, Chester e Cal viram aquilo de que Will estava falando. Escaravelhos do tamanho de baratas bem alimentadas rastejavam desajeitadamente pela superfície viscosa dos excrementos. Tinham carapaças esbranquiçadas, e as antenas da mesma cor contorciam-se ritmicamente enquanto se deslocavam. Havia outros insetos mais escuros à volta deles, mas, aparentemente mais sensíveis à luz, eram mais difíceis de observar, porque fugiam rapidamente.
Enquanto os rapazes observavam, viram que, no interior do círculo de luz, um escaravelho grande estava a abrir a carapaça. Will soltou um risinho abafado, fascinado, enquanto as asas ganhavam vida, zumbindo com o som de um brinquedo de corda, e ele levantava voo desajeitadamente, como um abelhão saciado. Uma vez no ar, voou erraticamente de um lado para o outro até desaparecer na escuridão.
- Há aqui um ecossistema completo - comentou Will, fascinado com a variedade de insetos que estava descobrindo.
Enquanto esgravatava os excrementos, descobriu uma lagarta de uma tonalidade clara, grande e inchada, do tamanho do polegar.
- Agarre-a! Provavelmente podemos comê-la - disse Cal.
- Ooooh! - exclamou Chester, estremecendo e batendo com os pés no chão. - Não seja nojento!
- Não, não, ele está falando sério - respondeu Will calmamente.
- Não podíamos continuar andando? - implorou Chester.
Relutantemente, Will afastou-se dos insetos e voltaram a caminhar pela avenida central. Tinham chegado à última cabana, quando Will os fez parar outra vez. O cheiro tornava-se mais acentuado e ele apontava para qualquer coisa enquanto os outros sentiam a brisa nos rostos.
- Estão sentindo? Acho que vem lá de cima - disse Will. - Toda esta área tem uma espécie de rede por cima. Olhem para os buracos.
Olharam por cima dos tetos das cabanas, onde conseguiram ver uma camada de malha de rede, que tinham originariamente tomado pelo teto natural da caverna. Carregada de excrementos, em alguns lugares pendia tanto que quase tocava nos telhados das cabanas, ao passo que noutros não havia qualquer malha. Tentaram fazer incidir as luzes através de uma dessas aberturas, para lá dos pedaços rasgados das malhas, para o vazio lá muito em cima. Mas não eram suficientemente fortes e não revelaram nada, a não ser a escuridão assustadora.
- Isto é capaz de ser a fenda que deu o nome a este lugar? - pensou Will em voz alta.
- HEI! - gritou Cal a plenos pulmões, sobressaltando os outros.
Ouviram os ecos vagos do grito a reverberar no vazio.
- É grande - disse ele desnecessariamente.
E foi então que ouviram um barulho. Suave ao princípio, semelhante ao som das páginas de um livro a serem passadas, foi-se tornando mais alto a um ritmo alarmante.
Qualquer coisa estava a agitar-se, a acordar.
- Mais escaravelhos? - perguntou Chester, esperando que não passasse disso.
- Hum, não, não me parece - respondeu Will, perscrutando o espaço por cima das cabeças deles. - Aquilo pode não ter sido uma grande ideia, Cal.
Chester acercou-se imediatamente de Cal.
- O que fez agora, seu imbecil? - disse ele num sussurro furioso.
Cal fez uma careta.
Um clamor baixo era agora perfeitamente audível e, de repente, dos buracos na rede por cima das cabeças dos rapazes, apareceram sombras escuras que mergulharam na direção deles. A envergadura das asas era enorme e os guinchos ressoavam nas paredes, como um eco agudo e fantasmagórico, quase lhes furando os tímpanos.
- Morcegos! - gritou Cal, reconhecendo imediatamente o som.
Chester uivou de medo enquanto ele e Will permaneciam cravados ao chão, hipnotizados pelo espetáculo dos animais que se projetavam a grande velocidade na sua direção.
- Corram, grandes idiotas! Corram! - gritou-lhes Cal, já fugindo.
Um segundo depois, o ar estava carregado deles, numerosos demais para ser possível contá-los, como um enxame de vespas zangadas e vingativas. Passavam tão depressa que Will não conseguia acompanhar um único com os olhos.
- Isto não é nada bom! - exclamou ele enquanto as asas tipo couro agitavam correntes de ar à volta das cabeças deles.
Os morcegos começaram a mergulhar em direção aos rapazes, desviando-se no último instante.
Will e Chester correram como lebres pela avenida abaixo, atrás de Cal, sem pensarem e nem se preocuparem para onde iam desde que escapassem ao ataque assassino daqueles monstros voadores. Não sabiam se os morcegos eram um perigo ou não; eram impelidos por um único pensamento, quase um medo primordial, fugir destes animais enormes e infernais.
E, como se fosse uma resposta aos seus problemas, no meio da escuridão avultou-se uma casa à frente deles. Com dois andares, a fachada austera erguia-se acima das cabanas baixas. Parecia construída com pedra clara, e todas as janelas tinham persianas. Havia anexos de ambos os lados, que Cal investigou desesperadamente enquanto corria, tentando descobrir um lugar onde pudessem se abrigar.
- Depressa! Por aqui! - gritou ao ver que a porta da frente da casa estava ligeiramente entreaberta.
No meio desta confusão de pesadelo, Will olhou para trás a tempo de ver um morcego particularmente grande a atirar-se para a parte de trás da cabeça de Chester. Ouviu o impacto surdo quando se chocou.
Do tamanho de uma bola de rugby, o corpo era preto e sólido. A colisão atirou Chester no chão. Will correu para ajudar o amigo, ao mesmo tempo que tentava proteger o rosto com os braços.
Aos gritos, levantou Chester. E com o rapaz ligeiramente atordoado e a correr com dificuldade, Will guiou-o para a casa estranha. Will estava abanando violentamente os braços à frente dele, tentando afastar os animais, quando um bateu com toda a força na mochila. Foi atirado para o lado, mas conseguiu se equilibrar agarrando-se ao ainda atordoado Chester.
Will viu que o morcego tinha caído no chão com uma das asas torcidas e a bater inutilmente. No instante seguinte, outro morcego estava em cima dele. Outro desceu num voo agitado, pondo-se ao lado do primeiro, e depois mais e mais, até o animal ferido ficar quase completamente escondido pelos morcegos que se amontoavam em cima dele, alguns dos quais guinchavam maldosamente como se estivessem brigando uns com os outros. Enquanto o morcego caído lutava inutilmente para fugir, tentando rastejar de debaixo deles, Will viu-os a mordê-lo, os dentes minúsculos como alfinetes tingidos de escarlate com o sangue dele. Estavam a atacá-lo impiedosamente, mordendo-lhe o tórax e o abdômen enquanto ele começava a guinchar pavorosamente.
Agachado e a se esgueirar com Chester ao lado, Will continuou a percorrer a última parte da avenida. Aos tropeções, subiram os degraus da casa, passaram o pórtico e entraram pela porta que Cal tinha aberto de par em par. Mal se encontraram todos em segurança lá dentro, Cal bateu com a porta, fechando-a atrás deles. Ouviram várias pancadas fortes quando alguns dos morcegos se atiraram a ela, e depois um restolhar quando outros roçavam as asas contra ela. Isto depressa desapareceu, deixando apenas os guinchos estranhos, que eram tão fracos que mal se ouviam.
Na calma que se seguiu, os rapazes tentaram recuperar o fôlego, olhando ao redor. Descobriram que estavam num átrio imponente, com um enorme candelabro, o design intrincado cinzento e coberto de pó. E de ambos os lados do átrio havia um par de escadarias de curvas elegantes que subiam até a um patamar. A casa parecia vazia; não havia mobília, e as únicas coisas penduradas nas paredes escuras eram os pedaços rasgados do papel que as cobrira. Parecia desabitada havia muitos anos.
Will e Cal começaram a andar pelo meio do pó, que era tão espesso como a neve varrida pelo vento. Chester, ainda abalado, estava encostado ao pé da porta de entrada, a respirar pesadamente.
- Tudo bem? - perguntou Will, o som da voz baixo e abafado na casa estranha.
- Acho que sim.
Chester endireitou-se e esticou a cabeça para trás, esfregando a nuca para aliviar a dor.
- Parece que fui agredido com uma bola de críquete.
Ao voltar a inclinar a cabeça para a frente, reparou numa coisa.
- Ei, Will, devia ver isto.
- O que é?
- Dá a ideia de que alguém arrombou a casa - replicou Chester nervosamente.
Capítulo Nove
A
pequena fogueira fazia piruetas nos pedaços de madeira, enchendo a câmara de terra de uma luz tremeluzente. Sarah rodava um espeto improvisado, onde estavam enfiadas duas carcaças pequenas, por cima das chamas. A visão da carne a tostar suavemente e o seu cheiro fizeram com que percebesse como estava esfomeada. Evidentemente, o gato sentia a mesma coisa, se é que os fios leitosos de baba que lhe escorriam dos cantos da boca eram de fiar.
- Bom trabalho - elogiou Sarah, desviando o olhar para o animal, que não tinha precisado de nenhum encorajamento para sair lá para fora e procurar comida para ambos. De fato parecera aliviado por poder fazer aquilo para que fora treinado. Na Colônia, o seu papel como Caçador teria sido caçar bichos nocivos, principalmente ratos sem olhos, que eram consideradas uma iguaria rara.
À luz da fogueira, Sarah tivera a oportunidade de inspecionar o gato mais atentamente enquanto estavam sentados ao lado um do outro nas poltronas. A pele sem pêlos, como um balão velho e parcialmente esvaziado, estava coberta de lacerações e, em volta do pescoço, várias delas eram de um vermelho-vivo e tinham sido infligidas recentemente.
Num dos quartos dianteiros, havia um golpe com mau aspecto, salpicado de manchas amarelas. Era evidente que a ferida incomodava o gato, pois ele estava sempre tentando limpá-la com a pata da frente. Sarah sabia que ia ter de tratar do ferimento em breve - estava muito infectada. Isto se queria que o animal vivesse, uma decisão que ainda não tinha tomado. Mas, enquanto houvesse a possibilidade de uma ligação qualquer com a família, sentia que não o podia abandonar.
- Então, a quem pertencia mesmo? Ao Cal ou ao meu... ao meu... marido? - perguntou ela, sentindo dificuldade em usar a palavra.
Acariciou suavemente o focinho do gato enquanto este continuava a olhar fixamente para as duas carcaças. Não trazia coleira com identificação, mas isso não a surpreendia nada. Não era prática comum na Colônia, uma vez que os Caçadores tinham de se deslocar através de passagens e buracos estreitos e baixos, e uma coleira podia prender-se nas rochas e prejudicar o animal na caçada.
Sarah tossiu e esfregou os olhos. Não era uma solução inteiramente satisfatória ter uma fogueira a arder num subterrâneo; o material para fazer a fogueira, que já estava demasiado úmido, tinha de ficar afastado das poças de água no chão da caverna, numa plataforma que ela construíra com um monte de rochas. E, como não havia nenhum lugar por onde a fumaça sair, este enchia a câmara de tal maneira que ela já tinha os olhos lacrimejando.
Acima de tudo, Sarah esperava que estivessem suficientemente longe para que ninguém sentisse o cheiro de comida a ser cozinhada. Consultou o relógio. Já tinham passado quase vinte e quatro horas desde o incidente e era pouco provável que as buscas, principalmente as que usassem cães, se estendessem até tão longe como o espaço vazio lá em cima. A polícia devia estar a concentrar os seus esforços na área circundante da cena do crime e no próprio parque.
Não, não lhe parecia nada provável que a descobrissem ali - de qualquer da maneira, nenhum polícia teria o olfato tão desenvolvido como a maioria dos Colonos. Ocorreu-lhe subitamente que era espantoso como se sentia segura ali na escavação - e sabia que estar outra vez debaixo do chão provavelmente tinha um papel importante nisso. O buraco de terra era um lar para ela.
Puxou a faca e espetou a ponta em cada uma das carcaças.
- Muito bem, o jantar está pronto - anunciou para o gato ao lado dela.
O gato desviava rapidamente o olhar expectante dela para a comida, e outra vez para ela, com a regularidade de um metrônomo. Fez deslizar a primeira carcaça, o pombo, do espeto para um jornal dobrado no colo.
- Cuidado. Está quente - avisou, balançando o esquilo ainda enfiado no espeto à frente do gato.
Mas estava a desperdiçar fôlego, uma vez que o gato se atirou para a frente, fechando os maxilares à volta da carcaça, arrancando-a do espeto.
Sarah atirou o pombo de uma mão para a outra, soprando-lhe para cima como se fosse uma batata quente. Quando já tinha esfriado o suficientemente, arrancou rapidamente uma asa, roendo a carne com os dentes. Quando passou para o peito, arrancando lascas e devorando-as com prazer, começou a avaliar a situação em que se encontrava.
A sua regra de sobrevivência fundamental era nunca ficar no mesmo lugar mais tempo do que precisava, mantendo-se sempre em movimento, particularmente quando as coisas estavam complicadas. Embora a cara estivesse uma desgraça, fruto da luta com o policial, limpara o sangue e fizera o melhor que podia para disfarçar o pior das equimoses. Tinha utilizado o kit de maquilagem para o fazer, algo que transportava sempre consigo, uma vez que a falta de pigmentação, o seu albinismo, a forçava a usar uma mistura de protetor solar e base para se proteger do sol. Por isso, estava segura de que a sua aparência não despertaria a atenção se decidisse sair do buraco.
Chupando pensativamente um osso minúsculo, lembrou-se dos papéis que tinha trazido do tapete da casa dos Burrows. Limpou a gordura das mãos com um lenço e tirou o molho de cartas da carteira. Havia os folhetos habituais a oferecer serviços de canalizadores e decoradores amadores, que examinou atentamente um a um, à luz fraca da fogueira moribunda, antes de alimentar as chamas com eles. E então encontrou uma coisa que parecia muito mais interessante: um envelope de papel manilha com uma etiqueta mal datilografada. Vinha dirigida a Mrs. C. Burrows, e o remetente era o dos serviços sociais locais.
Sarah não perdeu tempo a rasgá-lo para abri-lo. Enquanto lia, em algum lugar nas sombras, ouviu-se um estalo ruidoso quando o gato abriu a cabeça do esquilo com as mandíbulas e depois lambeu sofregamente os miolos expostos do animal com a língua áspera.
Sarah ergueu os olhos da carta. De repente, o caminho a seguir tornara-se claro.
Capítulo Dez
W
ill e Cal patinaram pela poeira até a porta da frente e dirigiram as luzes para onde Chester estava apontando. Ele tinha razão - a aresta da porta fora partida, e não havia muito tempo, podia se ver na madeira clara que ficara exposta.
- Parece-me recente - observou Chester.
- Não fomos nós que fizemos isto, não é? - perguntou Will a Chester, que abanou a cabeça. - Então, é melhor darmos uma olhada na casa para termos certeza.
Mantendo-se juntos, atravessaram o átrio até chegarem a um par de portas enormes, que abriram de par em par. O pó levantou-se em ondas à frente dos três rapazes, como uma premonição visual de cada movimento deles. Mas ainda antes de ter começado a assentar, já eles abarcavam o tamanho da sala e as suas características impressionantes. A profundidade dos rodapés e as elaboradas molduras do teto - um reticulado intrincado de gesso por cima deles - indicavam uma grandeza anterior. Podia ter sido um salão de baile ou uma sala de jantar formal, dadas as suas dimensões e localização na casa. Enquanto andavam as volta no meio da sala não conseguiam impedir-se de rir baixinho porque tudo aquilo era inesperado e inexplicável.
Will espirrou várias vezes, pois o pó estava a irritar-lhe o nariz.
- Só digo uma coisa - afirmou ele a fungar e a limpar o nariz.
- O quê? - perguntou Chester.
- Este lugar é uma desgraça. É ainda pior que o meu quarto lá em casa.
- Sim, não há dúvida de que a criada se esqueceu completamente desta sala - disse Chester com uma gargalhada.
Enquanto Chester imitava os movimentos de um aspirador à volta do chão, ele e Will desataram às gargalhadas, completamente descontrolados.
Abanando a cabeça, Cal olhou para eles como se achasse que tinham perdido o juízo. Os rapazes retomaram as explorações, andando com cautela por cima do pó, enquanto analisavam as salas contíguas. Eram na sua maioria áreas de serviço que estavam igualmente vazias, e, por isso, voltaram para o átrio, onde Will abriu com um empurrão uma porta ao fundo de uma das escadarias.
- Ei! Livros! - exclamou ele. - É uma biblioteca!
Excetuando duas grandes janelas com as portadas fechadas, as paredes estavam cobertas de estantes de livros que chegavam ao teto alto. A sala tinha cerca de trinta metros quadrados e no canto mais afastado havia uma mesa, à volta da qual estavam umas cadeiras tombadas.
Os três viram as pegadas ao mesmo tempo. Era difícil não as ver naquilo que, sem elas, era um carpete de pó perfeito. Cal pôs a bota dentro de uma, tentando calcular o tamanho. Havia vários centímetros entre os dedos dos pés e a parte da frente da pegada. Ele e Will entreolharam-se, e Will acenou-lhe afirmativamente, e depois começou a espreitar nervosamente para os cantos escuros da sala.
- As pegadas dirigem-se para lá - sussurrou Chester. - Para a mesa.
As pegadas iam da porta, onde os rapazes estavam parados, até as estantes, e depois davam várias voltas na mesa, numa grande confusão, acabando por desaparecer atrás dela.
- Quem quer que fosse - disse Cal -, voltou a sair.
Observava outro conjunto de pegadas menos óbvias que passavam pelas estantes e depois voltavam para a porta.
Will tinha dado uns passos para dentro da sala e levantava a lanterna para inspecionar os cantos.
- Sim, está vazia - confirmou, quando os outros dois se juntaram ao pé da mesa comprida.
Ficaram em silêncio, a ouvir os guinchos altos e o bater das asas ocasionais dos morcegos do outro lado das portas.
- Não vou sair daqui, não vou mesmo até essas malditas coisas irem embora - declarou Chester, encostando-se à mesa. Os ombros descaíram enquanto ele respirava fatigadamente por entre os lábios.
- Está bem, acho que devemos ficar aqui durante algum tempo - concordou Will, tirando a mochila e pousando-a em cima da mesa, ao lado de Chester.
- Então, vamos revistar o resto da casa, ou não? - perguntou Cal a Will.
- Não posso falar por vocês, mas eu preciso comer alguma coisa primeiro - interrompeu Chester.
Will reparou que, muito repentinamente, o discurso de Chester tornara-se arrastado e os movimentos muito lentos. A caminhada que tinham feito e a correria para fugirem dos morcegos haviam-no deixado exausto. Will lembrou a si próprio que provavelmente o amigo ainda estava a sofrer os efeitos do tratamento violento que recebera no Cárcere.
Dirigindo-se para a porta, Will voltou-se para Chester.
- Porque não fica aqui tomando conta enquanto eu e o Cal ... - disse ele, calando-se quando as lombadas dos livros nas estantes lhe atraíram o olhar. - Estas encadernações são fantásticas - continuou, fazendo incidir a luz sobre elas. - São muito antigas.
- Verdade? - observou Chester desinteressado.
Abriu a mochila de Will e tirou uma maçã.
- Verdade. Este é interessante. Chama-se O Nascimento e Progresso da Religião na Alma... ah.... - Limpou o pó e depois inclinou-se para a frente para ler as outras letras douradas na lombada de couro escuro. - Do Rev. Philip Doddridge.
- Parece fascinante - comentou Chester depreciativamente, com a boca cheia de maçã.
Will puxou delicadamente o livro do meio de outros dois tomos com uma aparência imponente e abriu-o. Fragmentos das páginas saltaram-lhe para a cara, o resto das páginas reduzidas a um resíduo de pó que caiu no chão perto dos pés dele.
- Raios! - exclamou ele, segurando a capa vazia do livro com uma expressão de profundo desapontamento estampada na cara. - Que pena, deve ter sido o calor.
- Esperava uma boa leitura, não? - troçou Chester com uma risadinha enquanto atirava o caroço da maçã por cima do ombro e começava a revolver a mochila à procura de mais comida.
- Ah, ah. Muito engraçado - retorquiu Will.
- Vamos logo, está bem? - disse Cal impacientemente.
Will subiu para o andar de cima com o irmão para confirmar que o resto da casa estava realmente desocupado. Entre todas aquelas divisões vazias, Cal descobriu uma pequena lavanderia. Consistia numa torneira incrustada de calcário que saía de uma parede forrada de azulejo por cima de uma velha bacia de cobre metida numa prateleira de madeira. Puxou para trás a alavanca em cima da torneira. Ouviu-se um silvo baixo e depois, ao fim de vários segundos, um barulho tremendo que parecia vir das próprias paredes.
Enquanto o barulho continuava, transformando-se num zumbido baixo e vibrante, Will saiu disparado do quarto que investigava e correu pelo corredor comprido que levava ao patamar. Parou para olhar para o átrio por cima da balaustrada lascada e depois correu para o corredor para onde Cal tinha ido. Gritando o nome do irmão, foi enfiando a cabeça em todas as portas até chegar ao quartinho no fundo do corredor, onde o encontrou.
- O que se passa? O que você fez? - perguntou Will.
Cal não respondeu. Estava olhando fixamente para a torneira. Com Will a assistir, um fluido espesso e escuro escorreu da torneira, e nessa altura o zumbido cessou por completo. Não aconteceu nada durante uns segundos, e depois saiu um jato de água límpida, para grande surpresa e alegria dos dois rapazes.
- Acha que se pode beber? - perguntou Will.
Cal meteu imediatamente a boca debaixo do jato para a provar.
- Humm, maravilhosa. Não há nada de errado nela. Deve ser de uma nascente.
- Bem, pelo menos resolvemos o problema da água - disse Will, dando-lhe os parabéns.
øøø
Tendo-se encharcado de comida, Chester dormiu várias horas deitado em cima da mesa da biblioteca. Quando finalmente acordou e Will o informou da descoberta, escapuliu-se da sala para ir ver com os próprios olhos e não voltou a aparecer durante um bom tempo.
Quando finalmente reapareceu, tinha a pele do rosto e do pescoço vermelho e coberto de manchas nos lugares onde o eczema se agravara com os seus esforços para esfregar a sujeira acumulada, e o cabelo molhado e puxado para trás. A sua aparência, agora que estava limpo, lembrou a Will como ambos eram antes. Trouxe-lhe recordações de tempos menos conturbados, antes de terem descoberto a Colônia, da vida que levavam em Highfield.
- Assim está melhor - balbuciou Chester envergonhadamente, evitando os olhares dos outros.
Cal, que tinha estado a tirar uma soneca no chão, erguera-se apoiado num cotovelo e, ainda não completamente acordado, olhava para Chester com uma expressão de divertimento sonolento.
- Porque fez isso? - perguntou com um tom trocista.
- Tem se cheirado ultimamente? - retrucou Chester bruscamente.
- Não.
- Pois eu, sim - respondeu Chester, torcendo o nariz. - E não é nada agradável.
- Bem, eu acho que é uma excelente ideia - disse Will rapidamente, para poupar Chester a mais embaraços.
Mas os comentários de Cal não pareciam incomodar Chester minimamente. Estava muito absorvido com qualquer coisa na ponta do dedo mindinho, que tinha acabado de usar para limpar energicamente o ouvido.
- E vou fazer exatamente o mesmo - informou Will enquanto Chester passava ao outro ouvido, enfiando um dedo repetidamente lá dentro.
Will abanou a cabeça e começou à procura de roupa lavada na mochila. Depois de ter escolhido a roupa, tirou um segundo para examinar o ombro, perguntando para si mesmo se era altura de mudar o curativo da ferida. Apalpou cuidadosamente a área à volta da ligadura através dos rasgões da camisa e depois resolveu que tinha de despir a camisa para ver o estado em que estava.
- Jesus, Will. O que aconteceu? - perguntou Chester, empalidecendo e esquecendo-se por uns instantes do ouvido.
Tinha visto a grande mancha vermelho-escura que aparecia por baixo da ligadura no ombro de Will.
- Resultado do ataque do farejador - respondeu-lhe Will.
Mordeu o lábio e gemeu quando levantou o curativo para espreitar por baixo.
- Arr... Que nojo! - exclamou ele. - Acho que não era má ideia pôr um emplastro novo.
Voltou-se outra vez para a mochila e vasculhou os bolsos de fora à procura da ligadura limpa e dos pacotinhos de pó que Imago lhe dera.
- Não percebi que tinha sido assim tão mau - disse Chester. - Quer ajuda?
- Não... sério... de qualquer maneira, já está melhor - replicou Will, mentindo deslavadamente.
- Está bem - disse Chester, a cara ainda a mostrar o mal-estar que sentia quando tentou sorrir, mas conseguindo apenas fazer uma careta.
E, apesar da sua reação inicial aos esforços de Chester para se limpar, Cal aproveitou a oportunidade para se escapulir da sala e se ir lavar na água tépida quando Will regressou.
As horas pareciam passar mais devagar dentro da casa, como se ela estivesse de algum modo isolada de tudo o que estava no exterior. E o silêncio profundo que impregnava o interior da casa dava a impressão de que ela própria dormia. Esta calmaria afetava os três rapazes; não esboçavam o menor esforço para falarem uns com os outros e iam tirando sonecas deitados na mesa comprida da biblioteca, utilizando as mochilas como almofadas.
Mas Will começou a sentir-se impaciente e descobriu que não conseguia dormir. Para passar o tempo, continuou a investigar a biblioteca, perguntando a si próprio quem teria vivido naquela casa. Andou de estante em estante a ler os títulos das lombadas antigas, cujos temas eram, na sua maioria, religiosos e esotéricos e deveriam ter sido escritos havia vários séculos. Era um exercício frustrante porque ele sabia que todas as páginas lá dentro não eram mais do que confetes e pó, mas, apesar disso, estava fascinado com os nomes obscuros dos autores e os títulos absurdamente longos. Aquela atividade já quase se transformara num desafio para encontrar um livro de que já tivesse ouvido falar, quando se deparou com uma coisa curiosa.
Numa prateleira mais baixa, um conjunto de livros iguais parecia não ter qualquer título. Depois de lhes ter limpado a sujeira, Will conseguiu ver que tinham encadernações da cor de um vinho escuro e que as minúsculas estrelinhas douradas estavam desenhadas em três pontos equidistantes de cada lombada.
Tentou imediatamente tirar um dos volumes, mas, ao contrário dos outros livros, que o tinham desiludido com a habitual avalanche de poeira das páginas desintegradas, este resistiu-lhe, como se estivesse colado no lugar. E ainda mais estranho, o próprio livro era sólido. Tentou outra vez, mas ele não se moveu, por isso, resolveu escolher outro da mesma série e tentou levantá-lo, com o mesmo resultado. Mas reparou que toda a série, que ocupava cerca de meio metro da prateleira, tinha se deslocado muito ligeiramente quando empregara mais força. Sentindo uma onda de alegria por, finalmente, ter descoberto algo que podia de fato ler e, intrigado por os livros parecerem colados uns aos outros, usou as duas mãos para puxá-los.
Saíram em bloco, os volumes todos juntos, e colocou-os no chão junto dos pés. Estava encantado - eram pesados, e até lhe pareceram intactos quando olhou para eles. Contudo, não entendia porque não conseguia separar uns dos outros. Apalpou a parte de cima das páginas, passando-lhes a unha para ver se estas se separavam, mas sem qualquer resultado. Depois deu-lhes umas pancadas com o nó de um dedo. Fizeram um som cavo - e de repente fez-se luz: não eram feitas de papel, mas de madeira, talhadas de forma a parecerem exatamente as folhas mal cortadas de livros antigos. Apalpou a parte de trás e descobriu uma alça que puxou. Com um estalido, a parte de cima levantou-se. Era uma tampa, com uma dobradiça invisível. Não eram livros nenhum. Era uma caixa.
Muito excitado, tirou para fora a camada de tecido esfarrapada que encontrou e espreitou lá para dentro. O interior de carvalho escuro continha objetos com um aspecto estranho. Agarrou num deles e examinou-o avidamente.
Era obviamente uma espécie de candeeiro. Tinha um corpo cilíndrico, com aproximadamente oito centímetros de comprimento, a que estava presa uma armação circular com uma lente grossa no interior. Na outra ponta do cilindro havia uma espécie de braço de mola e também uma espécie de interruptor por trás da lente.
Lembrava muito o farol de uma bicicleta, mas de um material robusto (de bronze, deduziu ele, dadas as manchas verdes que via nas superfícies). Tentou mover a alavanca sem resultado, e tentou puxar uma das extremidades do cilindro onde havia duas leves reentrâncias. Com um estalido, a extremidade soltou-se, revelando uma pequena cavidade interior. Se era de fato uma lanterna, precisaria de pilhas, mas, mesmo assim, Will não conseguia entender como é que uma pilha tão pequena podia fazê-la funcionar, nem onde estavam os fios.
Perplexo, gritou para o irmão:
- Ei, Cal! Imagino que não saiba o que isto é? Possivelmente, não passa de sucata.
Cal aproximou-se meio estonteado. A cara se iluminou, mal viu o objeto. Arrancou-o das mãos de Will.
- Uau! Isto é demais! - exclamou. - Tem um globo de luz a mais?
- Tome - disse Chester, balançando as pernas por cima da ponta da mesa e descendo.
- Obrigado - disse Cal, tirando o globo da mão de Chester.
Primeiro, tirou o pó de dentro do dispositivo, virando-o ao contrário e dando-lhe umas palmadas e depois soprando-lhe para dentro.
- Vejam isto.
Deixou cair o globo de luz dentro da cavidade do objeto e empurrou-a para baixo até se ouvir um clique.
- Passem-me a parte de cima.
Will entregou-lhe e Cal voltou a encaixar a extremidade do cilindro. Depois esfregou a lente nas calças para limpá-la.
- Mexe-se na alavanca para ajustar a abertura e focar os raios - explicou a Chester e Will.
Segurou no objeto de maneira a que eles conseguissem ver e tentou deslocar o que parecia ser uma alavanca atrás do invólucro da lente.
- Está um pouco enferrujada - disse ele enquanto tentava aplicar a máxima pressão com os dois polegares.
Quando a pequena alavanca cedeu, sorriu.
- Pronto!
Um raio de luz saltou da lente, um raio intenso que ele projetou nas paredes. Embora a sala já estivesse bem iluminada com a luz das esferas que os rapazes tinham distribuído pelas prateleiras, conseguiram perceber em comparação como o raio da lanterna era brilhante.
- É fabuloso! - exclamou Chester.
- Pois é. Chamam-lhes Lanternas dos Styx - muito raras, para dizer a verdade. Isto é o que têm de melhor - disse Cal, e, abrindo a paleta de mola de bronze na parte de trás da lanterna, prendeu-a na algibeira da camisa. Tirou as mãos e virou o peito de Will para Chester, a lanterna firmemente presa enquanto os raios de luz lhes incidiam na cara, fazendo-os pestanejar.
- Mãos livres - comentou Will.
- Exatamente. Muito útil quando tem de se deslocar. - Inclinou-se para olhar para o conteúdo da caixa. - E há mais! Se forem todas como esta, posso montar uma para cada um de nós.
- Maravilha - disse Chester.
- Então... - começou Will a dizer quando a ideia lhe ocorreu -, então esta casa, aqui tão longe, era para os Styx.
- Sim - confirmou Cal. - Julgava que sabia! - Fez uma careta como se aquilo sempre tivesse sido óbvio. - Eles viviam aqui. E os Coprolites eram guardados nas cabanas lá fora.
- Guardados? Para quê? - perguntou Will.
- Como escravos. Durante uns dois séculos foram obrigados a trabalhar nas minas para extraírem as coisas de que a Colônia precisava. Agora é diferente - fazem-no em troca de comida e das esferas de luz de que precisam para viver. Os Styx não os obrigam a trabalhar como faziam antes.
- Muito simpático da parte deles - comentou Will secamente.
Capítulo Onze
Mrs. Burrows estava na Sala de Dia da Humphrey House, um estabelecimento que passava por ser um abrigo de recuperação, ou "uma pausa nas preocupações e conflitos quotidianos", se se acreditasse nos folhetos. A Sala de Dia era o seu reino. Apossara-se da poltrona maior e mais confortável e do único banquinho para os pés da sala e, para se sustentar durante as tardes passadas vendo televisão, tinha enfiado um saco de doces na cadeira. Uma das empregadas do lar fora persuadida a comprá-los e a trazer-lhos regularmente da cidade, mas eram raramente partilhados com os outros doentes.
Quando Neighbours acabou, ela começou a correr os outros canais com uma ânsia desesperada. Passou por todos várias vezes só para descobrir que não havia nada em nenhum que lhe interessasse minimamente. Completamente frustrada, apertou o botão para silenciar a televisão e recostou-se com a cabeça apoiada nas costas da cadeira. Sentia tão profundamente a falta da sua extensa coleção de vídeos de filmes e programas favoritos como uma pessoa normal chorava a perda de um filho.
Soltou um suspiro profundo e lúgubre e a irritação desapareceu deixando em seu lugar uma vaga sensação de desamparo.
Estava a cantarolar o tema musical de Casualty, num tom triste e desesperado, quando a porta se abriu de abruptamente.
- Pronto, lá vamos recomeçar - resmungou Mrs. Burrows baixinho, quando a enfermeira-chefe entrou descontraidamente.
- O quê, querida? - perguntou a enfermeira-chefe, uma mulher esquelética com o cabelo grisalho arrepiado para trás num coque.
- Oh, nada - respondeu Mrs. Burrows inocentemente.
- Tem uma visita.
A enfermeira-chefe tinha se dirigido imediatamente para as janelas e agora abria as cortinas, inundando a sala de luz.
- Visitas? Para mim? - perguntou Mrs. Burrows sem entusiasmo ao mesmo tempo que protegia,os olhos do clarão. Sem se levantar, tentou enfiar os pés nos chinelos, um par de mocassins de camurça manchada, com os calcanhares pisados. - É pouco provável que seja família, não que ainda haja muita agora - disse ela num tom um pouco sentimental. - E não estou a ver a Jean a mexer as patas para trazer a minha filha até aqui... não tive nem uma notícia de nenhuma delas desde antes do Natal.
- Não é família - tentou dizer-lhe a enfermeira-chefe, mas Mrs. Burrows continuou a falar sem lhe dar importância. - E quanto à minha outra irmã, a Bessie, bem, não nos falamos...
- Não é da família, é uma senhora dos serviços sociais - disse a enfermeira-chefe, conseguindo finalmente fazer-se ouvir, antes de levantar uma das janelas com as palavras mágicas "assim está melhor".
Mrs. Burrows não reagiu a esta notícia. A enfermeira-chefe arranjou as flores numa jarra no peitoril da janela e apanhou umas pétalas caídas antes de se voltar para ela.
- E como se sente hoje?
- Oh, não muito bem - respondeu Mrs. Burrows teatralmente, num tom abatido e lamuriento e acabando a frase com um pequeno gemido.
- Não é de espantar. Não é saudável estar todo o dia fechada em casa - devia apanhar ar. Porque não vai dar uma volta pelo jardim depois de receber a sua visita?
A enfermeira-chefe calou-se e voltou-se outra vez para a janela, perscrutando o jardim como se estivesse à procura de alguma coisa. Mrs. Burrows percebeu isso imediatamente e ficou logo cheia de curiosidade. A enfermeira-chefe passava todas as horas do dia a organizar incansavelmente as pessoas ou as coisas, como se a sua vocação na vida fosse impor uma certa ordem a um mundo imperfeito. Um dínamo humano, ela nunca parava - de fato, era a completa antítese de Mrs. Burrows, que tinha interrompido momentaneamente a luta com o último dos chinelos rebeldes para observar a inatividade da enfermeira-chefe.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou Mrs. Burrows, incapaz de ficar mais tempo calada.
- Oh, não, não é nada, verdade... só que a Mrs. Perkiss jura que viu outra vez aquele homem. Ficou muito transtornada.
- Ah - Mrs. Burrows acenou com a cabeça com ar entendido. - E quando foi isso?
- Esta manhã, muito cedo. - A enfermeira-chefe voltou-se outra vez para dentro da sala. - Eu própria também não consigo entender. Ela parecia que estava a ir tão bem, e, de repente, começam estes episódios estranhos. - Franzindo a testa, olhou para Mrs. Burrows. - O seu quarto fica logo abaixo do dela - não viu ninguém lá fora, não é?
- Não, e não é provável que veja.
- Como assim? - perguntou-lhe a enfermeira-chefe.
- É bastante óbvio, não é? - replicou Mrs. Burrows rudemente, conseguindo finalmente enfiar o pé no chinelo. - É a pessoa que todos tememos, lá no fundo... a cortina final... o grande sono... como queira chamar-lhe. Ela já tem a espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça há muito tempo... pobre desgraçada.
- Quer dizer... - começou a enfermeira-chefe a dizer quando percebeu o que Mrs. Burrows estava a sugerir. Emitiu um suave "bah" só para lhe mostrar o que pensava da sua teoria.
Mrs. Burrows não ficou minimamente desencorajada com a reação da enfermeira-chefe.
- Ouça bem o que lhe digo, é isso com certeza - disse com completa convicção, os olhos a desviarem-se para a tela silenciosa da televisão, pois ocorrera-lhe que o seu Countdown deveria estar começando a qualquer instante.
A enfermeira soltou um suspiro cético.
- Desde quando é que a morte é um homem com um chapéu preto? - disse ela e, voltando ao seu modo eficiente e metódico, olhou para o relógio.
- Que horas são? Tenho de ir embora.
Olhou severamente para Mrs. Burrows, dizendo:
- Não faça a sua visita esperar, e depois quero que vá dar um grande passeio pelo jardim.
- Claro - concordou Mrs. Burrows, assentindo vigorosamente com a cabeça, mas intimamente achando aquela sugestão de fazer exercício extremamente desagradável.
Não tinha a menor intenção de dar um "grande passeio", mas iria fazer um grande espalhafato quando estivesse a preparar-se para sair, e depois limitar-se-ia a passear uma vez em volta da casa antes de se enfiar à sorrateiramente na cozinha e ficar lá escondida durante um tempo. Se estivesse com sorte, até podia ser que conseguisse que a cozinheira lhe oferecesse uma xícara de chá e umas bolachas de polvilho.
- Não está mal - comentou a enfermeira-chefe depois de passar os olhos pela sala para ver se não havia mais nada fora do lugar.
Mrs. Burrows sorriu-lhe docemente. Tinha aprendido muito pouco tempo depois de chegar que, se cooperasse com a enfermeira-chefe e o restante pessoal, conseguia fazer o que queria, bem, pelo menos na maior parte das vezes, principalmente porque não era uma pessoa que desse muito trabalho em comparação com muitos dos outros doentes.
Estes eram um bando muito misturado, e Mrs. Burrows sentia um profundo desdém por todos. A Humphrey House tinha uma boa dose de Fungadores, como ela lhes chamava. Havia uma tonelada destes infelizes que, se os deixassem à vontade, se espalhavam por toda a casa como órfãos abandonados e perdidos, geralmente em cantos onde podiam passar horas a choramingar sem serem interrompidos. Mas Mrs. Burrows também tinha presenciado a espantosa transformação por que esta raça podia passar principalmente durante a noite. Sem qualquer aviso, passavam por uma transformação depois "de se apagarem as luzes", como uma lagarta a envolver-se num casulo, para sair depois como uma criatura completamente diferente, um Gritador, às primeiras horas da manhã.
Nessa altura, esta raça normalmente não violenta uivava e chorava e partia coisas nos seus quartos até algum dos empregados aparecer para os apaziguar, ou administrar um comprimido ou dois. E, geralmente, voltavam milagrosamente a metamorfosear-se nos Fungões quando o Sol nascia na manhã seguinte.
Depois havia os Zombies, que andavam de um lado para o outro a arrastar os pés como se fossem extras num set de um filme, sem a menor ideia do que tinham de fazer ou para onde deviam ir e, evidentemente, sem nunca se lembrarem das suas deixas (na sua maioria, eram incapazes de ter uma conversa normal). Na maior parte das vezes, Mrs. Burrows ignorava-os quando eles andavam aos tropeções pela casa, sem saberem para onde iam.
Mas, para ela, os piores de todos eram os Homens do Saco, uns espécimes horríveis de profissionais de meia-idade que tinham tido um esgotamento nervoso por causa das suas carreiras demasiado estressante em contabilidade ou na advocacia, ou, na opinião de Mrs. Burrows, noutras ocupações igualmente pouco importantes.
Ela odiava estas vítimas de fatos às riscas com todas as suas forças - às vezes, pensava ela, porque os maneirismos e as expressões vazias lhe faziam lembrar muito o marido, Roger Burrows. Tinha visto os sinais de perigo que indicavam que ele ia por esse caminho pouco antes de ele ter posto a se mexer, desaparecendo sabia Deus para onde.
Pois Mrs. Burrows odiava intensamente o marido.
Mesmo nos primeiros anos do casamento, as coisas não tinham corrido muito bem. A incapacidade de terem filhos depressa lançara uma mancha na sua relação. E toda a trapalhada associada a adoção fizera com que ela não conseguisse se concentrar no emprego e se visse forçada a desistir. Mais outro sonho frustrado, depois de terem sido bem-sucedidos na adoção de duas crianças, um menino e uma menina, esforçara-se por lhes dar tudo o que tinha tido na sua infância, todos os acessórios, como roupas bonitas, e a convivência com as pessoas certas.
Mas foi impossível: depois de anos a tentar fazer da família algo que ela nunca poderia ser - pelo menos com o magro salário do Dr. Burrows -, desistira. Mrs. Burrows tinha fechado os olhos ao que a rodeava e à sua situação, procurando consolo nos mundos do outro lado da tela da televisão. Neste estado irreal, abdicara da maternidade, entregando a responsabilidade da casa, da lavagem da roupa, de cozinhar, de tudo, à filha Rebecca, que assumira tudo com uma facilidade surpreendente, tendo na época, apenas sete anos.
E Mrs. Burrows não sentia qualquer culpa ou remorso por ter feito isto, porque o marido não cumprira a sua parte do acordo que tinham feito quando casaram. E depois, para cúmulo daquilo tudo, o Dr. Burrows, o perdedor crônico, tivera a lata de abandoná-la, tirando-lhe o pouco que ainda tinha.
Arruinara-lhe a vida.
Odiava-o por isto. E todo este ódio fermentava dentro dela, nunca muito longe da superfície.
- A sua visita - voltou a lembrar a enfermeira-chefe.
Assentindo com a cabeça, Mrs. Burrows descolou os olhos da televisão e levantou-se pesadamente da poltrona. Saiu do quarto arrastando os pés, deixando a enfermeira-chefe a arrumar umas caixas de puzzles no aparador. Mrs. Burrows não queria ver ninguém, e muito menos uma assistente social. Que era capaz de lhe trazer recordações dispensáveis da família e da vida que tinha deixado para trás.
Sem pressa de chegar ao seu destino, arrastou letargicamente os chinelos pelo chão de linóleo ao passar pela Velha Mrs. L., que, com vinte e seis anos, era dez anos mais nova do que Mrs. Burrows, mas tinha uma chocante falta de cabelo. Estava no seu estado habitual, profundamente adormecida numa cadeira do corredor. Tinha a boca tão aberta que parecia que alguém tentara serrar-lhe a cabeça em duas, a laringe e as amígdalas proeminentes à vista de todos em todo o seu esplendor.
A mulher soltou uma tremenda golfada de ar pela boca escancarada, com um som vagamente semelhante ao de um pneu rasgado de um caminhão a esvaziar-se.
- Vergonhoso! - exclamou Mrs. Burrows, continuando a descer o corredor.
Chegou a uma porta com um letreiro em preto e branco de plástico grosseiro, que informava que era ali a Sala Feliz, e abriu-a.
A sala ficava no canto do edifício e tinha janelas nas duas paredes que davam para o roseiral lá fora. Um funcionário espertalhão tivera a ideia de encorajar os doentes a pintar murais nas outras duas paredes, embora o resultado final não tivesse sido exatamente o esperado.
Um arco-íris de um metro de largura composto de tiras de várias tonalidades de castanho arqueava-se por cima de uma estranha variedade de figuras humanóides. Uma das extremidades do arco-íris curvava-se para o mar, onde um homem sorridente estava de pé numa prancha de surfe, os braços esticados num cumprimento atrapalhado, enquanto a barbatana de um tubarão enorme cortava um círculo na água à volta dele. No céu, por cima do arco-íris sombrio, rodopiavam gaivotas, pintadas no mesmo estilo ingênuo. Tinham um certo encanto, até se reparar nos excrementos a caírem das partes traseiras em linhas tracejadas, lembrando muito a forma como uma criança é capaz de desenhar o disparo das armas numa cena de batalha, que metralhavam as cabeças das figuras com corpos humanos inchados e cabeças de ratos.
Mrs. Burrows não se sentia confortável na sala, como se as misteriosas imagens fraturadas lhe estivessem a tentar comunicar mensagens secretas, e, por nada deste mundo, conseguia imaginar por que razão era utilizada para receber visitas.
Desviou a atenção para a visita indesejada, olhando desdenhosamente para a mulher pobremente vestida, que tinha uma pasta nos joelhos. A mulher levantou-se de imediato e olhou para Mrs. Burrows com os olhos muito claros.
- Sou Kate O'Leay - apresentou-se Sarah.
- Já percebi - respondeu Mrs. Burrows a olhar para a placa de identificação presa na blusa de Sarah.
- Prazer em conhecê-la, Mrs. Burrows - continuou Sarah, imperturbável, forçando um sorriso de ocasião enquanto lhe estendia a mão.
Mrs. Burrows murmurou um cumprimento, mas não lhe apertou a mão.
- Vamos nos sentar, sim? - disse Sarah voltando a sentar-se no seu lugar.
Mrs. Burrows olhou para as cadeiras de plástico e, de propósito, não escolheu nenhuma ao pé de Sarah, mas sim uma ao pé da porta, como se estivesse à espera de ter de sair rapidamente.
- Quem é você? - perguntou Mrs. Burrows rispidamente, passando os olhos por Sarah. - Não a conheço.
- Sim. Sou da Assistência Social - respondeu Sarah, mostrando por breves instantes a carta que tinha apanhado no tapete da casa de Mrs. Burrows.
Mrs. Burrows esticou o pescoço para tentar ler.
- Escrevemos-lhe no dia quinze a informá-la desta reunião - disse Sarah enquanto punha rapidamente a carta amarrotada em cima da pasta que tinha no colo.
- Ninguém me disse nada acerca de uma reunião. Deixe-me ver isso - exigiu Mrs. Burrows, fazendo menção de se levantar com uma mão esticada na direção da carta.
- Não... não, agora já não interessa. Calculo que o gerente daqui se esqueceu de informá-la e, de qualquer maneira, não lhe vou tomar muito tempo. Só queria certificar-me de que está tudo bem com a senhora e...
- Não tem a ver com os pagamentos, não é? - interrompeu Mrs. Burrows, refastelando-se na cadeira e cruzando as pernas. - Tanto quanto sei, o seguro de saúde paga a parte que falta da contribuição do governo e, quando o seguro se esgotar, o dinheiro da venda da casa cobre o resto.
- Tenho certeza de que está tudo certo, mas não é do meu departamento, lamento - disse Sarah com outro leve sorriso.
Abriu a pasta nos joelhos e tirou um bloco de notas, e estava a tirar a tampa da caneta quando reparou numa pintura de um ursinho cor de café na parede, um pouco acima da cabeça de Mrs. Burrows. Em volta do urso estavam pintados cubos de várias cores vivas, vermelho, cor de laranja e azul, cada um com o seu número. Sarah abanou a cabeça e voltou a concentrar-se em Mrs. Burrows, a caneta pousada numa folha de papel vazia.
- Então, diga-me, quando foi admitida aqui, Celia? Importa-se que a trate por Celia?
- Claro, como quiser. Foi em Novembro do ano passado.
- E como tem passado? - perguntou Sarah, fingindo tirar notas.
- Muito bem, obrigada - respondeu Mrs. Burrows, acrescentando um pouco defensivamente -, mas ainda tenho muito que andar depois do meu... uh... trauma... e vou precisar de muito mais tempo aqui. Mais descanso.
- Sim - concordou Sarah evasivamente. - E a sua família? Tem tido notícias?
- Não, nenhuma. A polícia diz que ainda está investigando os desaparecimentos, mas não têm esperança nenhuma.
- A polícia?
Mrs. Burrows respondeu num tom monótono e infeliz:
- Eles até tiveram a ousadia de vir falar comigo ontem. Provavelmente, ouviu falar no que aconteceu há uns dias... o incidente na minha casa?
- Sim, li qualquer coisa a esse respeito - respondeu Sarah. - Um assunto desagradável.
- E como foi. Os dois policiais de ronda surpreenderam uma gangue na porta da minha casa e houve uma luta terrível. Os dois agentes levaram uma grande surra e um deles até foi atacado por um cão. - Tossiu e depois tirou um lenço sujo de dentro da manga onde estava escondido - Calculo que tenham sido esses malditos vagabundos. São piores do que animais! - exclamou Mrs. Burrows, ofendida.
Se ela soubesse, pensou Sarah. Acenou com a cabeça para mostrar que estava de acordo com Mrs. Burrows, enquanto a imagem do policial deitado no chão desmaiado depois de ela o ter derrubado lhe passava pela cabeça.
Mrs. Burrows assoou-se ruidosamente e voltou a enfiar o lenço na manga.
- Não sei onde vai parar este país, realmente não sei. Bem, de qualquer maneira, desta vez escolheram a casa errada. Não ficou nada para roubar... está tudo num armazém e a casa está à venda.
Sarah voltou a assentir com a cabeça enquanto Mrs. Burrows continuava a falar.
- Mas a polícia não é muito melhor. Nunca mais me deixaram em paz. O meu terapeuta tenta impedi-los de virem aqui, mas eles insistem em vir, uma e outra vez. Da forma como atuam, até parece que eu é que tenho culpa de tudo... do desaparecimento da minha família... até do ataque ao chui... pergunto-lhe, como podia eu ter tido alguma coisa a ver com isso, se estou aqui vigiada vinte e quatro horas por dia, pelo amor de Deus! Descruzou as pernas e mudou de posição na cadeira, antes de as voltar a cruzar. - E dizerem que preciso descansar. Isto é tudo muito enervante para mim, sabe.
- Sei, sim, entendo perfeitamente - concordou Sarah rapidamente. - Já passou por muito.
Mrs. Burrows assentiu e levantou a cabeça para olhar pela janela.
- Mas a polícia não desistiu de procurar o seu marido e o seu filho? - perguntou Sarah baixinho. - Ainda não há nenhuma notícia?
- Não, ninguém parece fazer a mínima ideia de para onde possam ter ido. Tenho certeza de que sabe que o meu marido se foi embora e que depois o meu filho desapareceu da face da Terra - disse ela num tom desolado. - Já o avistaram várias vezes - algumas delas até em Highfield. Há mesmo um filme da câmara de vigilância da estação do metro de uma pessoa que parece vagamente o Will, com outro rapaz... e um cão.
- Um cão? - perguntou Sarah.
- Sim, um cão da Alsácia, ou qualquer coisa desse gênero. - Mrs. Burrows abanou a cabeça. - Mas a polícia diz que não pode verificar nada disto. - Suspirou pesarosamente. - E a minha filha Rebecca está na casa da minha irmã, mas já não sei dela há meses.
A voz de Mrs. Burrows tornou-se um murmúrio, a cara inexpressiva e indecifrável.
- Todo mundo que conheço foi vai embora... provavelmente, todos eles encontraram um lugar melhor para viver.
- Só posso lhe dizer que lamento muito - disse Sarah numa voz gentil e consoladora. - O seu filho, acha que ele foi à procura do seu marido? Li em algum lugar que o agente encarregado das investigações considera que é uma possibilidade.
- Com o Will, tudo é possível - respondeu Mrs. Burrows, ainda olhando lá para fora, onde alguém tinha feito um esforço meio interessado para atar umas roseiras com ar doentio a uma argola de plástico barato, não muito distante da janela. - Não ficaria nada surpreendida, nada mesmo.
- Então, já não vê o seu filho desde... quando foi isso?... Novembro?
- Não, foi antes disso e não, não vi - respondeu Mrs. Burrows soltando um suspiro.
- Como é... qual era o estado de espírito dele antes de desaparecer?
- Não sei lhe responder, eu não estava muito bem nessa altura e não... - Mrs. Burrows interrompeu-se no meio da frase e largou o roseiral para se concentrar em Sarah. - Olhe, já leu com certeza as minhas notas, porque está me perguntando isto tudo?
De repente, os seus modos mudaram por completo, como se tivesse se acendido uma chama. A voz voltou para o seu tom habitual, bastante impaciente e autoritário. Endireitou-se na cadeira e endireitou os ombros enquanto olhava para Sarah com uma intensidade feroz.
A mudança de atitude na mulher mais velha não passou despercebida a Sarah, que quebrou o contato visual, fingindo que estava a consultar as notas sem sentido que fizera no bloco que tinha nos joelhos. Sarah esperou uns segundos antes de voltar a falar, a voz tão neutra e tão calma como conseguiu.
- É muito simples, na verdade. Recebi o seu caso há pouco e é muito útil ter informações contextuais. Lamento que esteja a ser doloroso para você.
Sarah conseguia sentir os olhos de Mrs. Burrows a trespassarem-na enquanto a analisavam como um raio X. Sarah recostou-se vagarosamente na cadeira. A sua aparência exterior era calma, mas, por dentro, preparou-se para o ataque. E este veio uns instantes depois.
- O'Leary... escocesa? Não tem muita pronúncia.
- Não, a minha família mudou-se para Londres quando eu tinha dezesseis anos. Mas volto lá nas férias para...
Mrs. Burrows, com a cara muito animada e os olhos a faiscarem, não a deixou terminar.
- Essa cor do seu cabelo não é a cor natural, tem as raízes aparecendo - comentou ela. - Parecem brancas. Pinta o cabelo, não pinta?
- Aah... sim, pinto. Porquê?
- E também há, algo errado com o seu olho... Isso é uma nódoa negra? E o lábio também... parece um pouco inchado? Alguém lhe deu umas bofetadas?
- Não, tropecei numa escada - replicou Sarah concisamente, injetando na voz indignação e exasperação em partes iguais para tornar a reação mais credível.
- Esse tom de castanho-escuro! Se não estou enganada, traz muita maquilagem por cima do que eu diria ser uma pele muito clara?
- Hum... suponho - respondeu Sarah aturdida.
Estava pasmada com o poder de observação de Mrs. Burrows. O seu disfarce estava a ser lenta, mas eficazmente desmantelado, como quando se arrancam as pétalas de uma flor uma a uma, para se ver o seu interior.
Estava pensando no que deveria fazer para desviar as perguntas de Mrs. Burrows, que não davam sinais de parar, quando deu conta de um amontoado de balões pintado na parede por cima do ombro esquerdo da mulher. Uma mancha de céu azul estendia-se por cima dos balões, obscurecendo e engolindo-os quase por completo, tornando sombrias as cores vibrantes. Sarah inspirou fundo e limpou a garganta e depois disse:
- Ainda preciso de lhe fazer mais umas perguntas, Celia. - Tossiu para disfarçar a atrapalhação. - Acho que está ficando um pouco... ah... pessoal...
- Um pouco pessoal? - Mrs. Burrows soltou uma gargalhada seca. - Não acha que todas as suas perguntas idiotas são um pouco pessoais?
- Preciso de...
- Você tem uma cara muito característica, Kate, por muito que tente disfarçá-la. Agora que penso nisso, tem uma cara muito familiar. Onde a posso já ter visto antes?
Mrs. Burrows franziu o cenho e inclinou a cabeça como se estivesse a tentar lembrar-se. Havia mais do que teatro na sua atitude - estava a divertir-se.
- Isto não tem nada que ver com...
- Quem é você, Kate? - interrompeu Mrs. Burrows com dureza. - Não é dos Serviços Sociais, nem pensar. Conheço o gênero e você não tem nada a ver. Por isso, quem é você realmente?
- Penso que provavelmente já chega por agora. Tenho de ir embora.
Sarah resolvera acabar com a reunião e estava a juntar os papéis e a enfiá-los na pasta. Tinha-se levantado apressadamente e agarrava no casaco nas costas da cadeira quando Mrs. Burrows saltou com uma velocidade espantosa e se pôs na frente da porta, barrando o caminho a Sarah.
- Não tenha tanta pressa! - exclamou Mrs. Burrows. - Primeiro tenho de lhe fazer umas perguntas.
- Estou vendo que cometi um erro em vir aqui, Mrs. Burrows - respondeu Sarah num tom final, pondo o casaco no braço.
Deu um passo na direção de Mrs. Burrows, que não se mexeu um centímetro, e ficaram as duas paradas cara a cara, como dois pugilistas a medirem-se um ao outro. Sarah começava a ficar cansada de fingir e era evidente que Mrs. Burrows não sabia mais sobre o paradeiro de Will do que ela própria. Ou, se sabia, não iria dizer.
- Podemos acabar isto noutra ocasião, Mrs. Burrows - disse, dirigindo-lhe um sorriso amargo e voltando-se de lado, como se tencionasse passar por entre Mrs. Burrows e a parede.
- Pare já onde está! - ordenou Mrs. Burrows. - Deve pensar que eu sou gagá. Aparece aqui com essas roupas miseráveis e uma representação de segunda categoria e espera que eu engula?
Os olhos, estreitando-se em duas fendas maldosas, faiscavam com a satisfação de saber.
- Julgou mesmo que eu não ia descobrir quem você é? É a cara chapada do Will, e nenhuma pintura de cabelo, nem nenhum teatro estúpido... - bateu com as costas da mão na pasta nos braços de Sarah -, vai esconder isso. - Sorriu manhosamente. - É a mãe dele, não é?
Era a última coisa que Sarah esperava ouvir. A mulher à frente dela era assustadora com a capacidade de observação que tinha.
- Não sei do que está falando - respondeu tão friamente quanto foi capaz.
- A mãe biológica de Will.
- Isso é absurdo. Eu...
- De que buraco saiu? - perguntou Mrs. Burrows com um sorrisinho sarcástico.
Sarah abanou a cabeça.
- Porque levou tanto tempo a voltar? E porquê agora? - continuou Mrs. Burrows.
Sarah não disse nada, deitando olhares assassinos à mulher com a cara toda vermelha à sua frente.
- Você abandonou o seu filho... deu-o para adoção... o que lhe dá o direito de vir para aqui xeretar? - perguntou Mrs. Burrows.
Sarah soltou um suspiro. Podia afastar do caminho aquela mulher preguiçosa e bastante fraca sem grande esforço, mas resolveu não fazer nada naquele momento. E assim ficaram as duas paradas, num profundo silêncio, uma, a mãe adotiva de Will, e a outra, a mãe verdadeira, inexoravelmente ligadas e ambas sabendo instintivamente o que a outra era.
Mrs. Burrows quebrou o silêncio.
- Deduzo que anda à procura dele, ou não teria aparecido aqui - disse a fervilhar de cólera. Ergueu as sobrancelhas como um detetive da TV a fazer uma dedução vital num caso. - Ou talvez você seja responsável pelo desaparecimento dele?
- Não tive nada que ver com o desaparecimento dele. Você é louca.
Mrs. Burrows resfolegou.
- Oh... louca, você diz... é por isso que estou neste lugar horrível? - perguntou ela de uma forma afetadamente melodramática, rolando os olhos como uma heroína aterrorizada num filme mudo. - Pobre de mim.
- Deixe-me passar, se faz favor - pediu Sarah com uma delicadeza decidida, dando um passo em frente.
- Não, ainda não - respondeu Mrs. Burrows. - Talvez tenha resolvido que quer o Will de volta?
- Não...
- Talvez tenha sido você que o raptou? - acusou Mrs. Burrows.
- Não, eu...
- Bem, eu acho que está envolvida de alguma maneira. Pois não meta o maldito do nariz na minha vida. É a minha família! - refilou Mrs. Burrows. - Olhe para o seu aspecto. Você não serve para ser mãe de ninguém.
Sarah ficou farta.
- Ah, sim? - retorquiu por entre os lábios muito apertados. - E o que fez você alguma vez por ele?
Uma onda de triunfo varreu a cara de Mrs. Burrows. Tinha conseguido desmascarar Sarah.
- O que fiz eu por ele? Fiz o meu melhor. Você é que o abandonou, diabos a levem! - respondeu, furiosa, sem saber que Sarah lutava com uma terrível vontade de matá-la. - Porque não veio vê-lo antes? Onde esteve escondida estes anos todos?
- Raios! - explodiu Sarah, revelando o desprezo e ressentimento que sentia pela outra mulher, a cara a irromper com toda a violência de que era capaz.
Mas Mrs. Burrows não ficou minimamente afetada por isto. Afastou-se da porta, não por estar batendo em retirada, mas para pousar a mão no grande botão de alarme vermelho na parede. Sarah tinha agora o caminho desimpedido para sair da sala e dirigiu-se para a porta, girando a maçaneta e entreabrindo-a um pouco. Quando o fez, o barulho de uma balbúrdia ecoou pelo corredor - um barulho terrível de gritos histéricos. Mrs. Burrows percebeu imediatamente que um dos relógios corporais dos Gritadores devia ter desatinado. Era estranho - eles geralmente reservavam os dotes histriônicos para as primeiras horas da manhã.
Por um brevíssimo instante, Sarah distraiu-se com o barulho, mas depois voltou a concentrar-se em Mrs. Burrows, que continuava com a mão pousada em cima do botão.
Sarah olhou furiosamente para ela abanando a cabeça.
- Não quer fazer isso - ameaçou.
Mrs. Burrows riu-se desagradavelmente.
- Ah, não? O que eu quero mesmo é que você vá embora... - disse ela.
- Oh, e vou mesmo - interrompeu Sarah bruscamente.
- ...e nunca mais volte a pôr os pés aqui. Nunca!
- Não se preocupe... já vi tudo o que precisava de ver - replicou Sarah causticamente, abrindo a porta toda com tanta força que ela chocou contra a parede com os murais bizarros e fez estremecer o caixilho.
Sarah deu um passo em frente, depois hesitou na soleira da porta, percebendo que não dissera tudo o que queria, agora que já tinham descalçado as luvas. E, no calor do momento, descobriu que era capaz de admitir a si própria o que tinha estado a reprimir tão violentamente - que a carta de Joe Waites pudesse dizer a verdade.
- Diga-me o que fez ao Seth...
- Seth? - interrompeu Mrs. Burrows bruscamente.
- Chame-lhe o que quiser, Seth ou Will - tanto faz. Você transformou-o numa coisa retorcida, numa coisa má! - gritou Sarah na cara de Mrs. Burrows. - Num assassino nojento!
- Assassino? - perguntou Mrs. Burrows, muito menos segura de si. - Que raio está dizendo?
- O meu irmão morreu! O Will matou-o! - uivou Sarah, as lágrimas a encherem-lhe os olhos.
No calor do momento, descobriu que, finalmente, conseguira admitir que os acontecimentos na carta de Joe Waites podiam muito bem ter acontecido como ele os descrevia. Era como se este encontro com Mrs. Burrows lhe tivesse fornecido a peça de um puzzle que, uma vez completo, iria lhe mostrar as cenas mais vis possíveis de imaginar. E a explosão de Sarah trazia tanta convicção e uma emoção tão crua que Mrs. Burrows teve poucas dúvidas de que fosse verdade. Ou que pelo menos Sarah acreditava que era verdade.
Mrs. Burrows começou a tremer - pela primeira vez estava completamente abalada. Porque esta mulher estava acusando Will de assassinato? E que era aquilo de ele se chamar Seth? Isto foi um choque maior do que o cancelamento de uma telenovela nova, altamente promissora e viciante, por parte de uma estação de televisão ao fim da primeira série. Não fazia sentido. A cara era a imagem da confusão quando retirou a mão do botão e a estendeu suplicante para Sarah.
- O Will... matou... o seu irmão? O que...? - gaguejou Mrs. Burrows enquanto tentava perceber o que Sarah tinha dito. Mas Sarah limitou-se a deitar-lhe um último olhar fulminante e fugiu da sala. Estava correndo pelo corredor quando dois empregados de constituição robusta passaram ruidosamente por ela na direção oposta.
Dirigiam-se para a fonte dos gritos estridentes, mas pararam repentinamente quando viram Sarah fugindo, sem saberem se deveriam interceptá-la ou não.
Mas Sarah não lhes deu oportunidade de se decidirem enquanto contornava correndo como uma lebre, uma esquina do corredor, os sapatos a escorregarem e a guincharem ao tentarem agarrar-se ao chão de linóleo encerado - não ia parar por ninguém nem por nada. Os empregados encolheram os ombros um para o outro e continuaram para o destino inicial. Sarah abriu as portas de vidro do átrio da entrada. Quando entrou, viu uma câmara CCTV na parede - estava virada diretamente para ela. Raios! Baixou a cabeça, sabendo que era tarde demais. Mas agora não podia fazer nada em relação a isso.
A recepcionista atrás do balcão era a mesma que tinha registrado a entrada de Sarah. Estava ao telefone, mas desligou imediatamente, chamando-a.
- Ei! Está tudo bem com você? Miss O'Leary, o que se passa?
Como Sarah a ignorou, a recepcionista percebeu imediatamente que havia qualquer coisa errada, e saltou da cadeira, gritando a Sarah que parasse.
Com a recepcionista ainda a gritar atrás dela, Sarah atravessou correndo o parque de estacionamento e depois o caminho que levava à estrada. Não abrandou até chegar à rua principal. Viu um ônibus parar e subiu nele rapidamente. Tinha de se afastar daquela zona, pois provavelmente a polícia podia ter sido chamada.
Sentando-se nos bancos de trás do veículo, o mais longe possível dos outros passageiros, Sarah estava tendo dificuldade em recuperar o fôlego. Fervilhava de pensamentos e emoções. Nunca, em todos aqueles anos na Superfície, tinha revelado tanto sobre si própria a alguém, muito menos a uma mulher como Mrs. Burrows. Nunca deveria ter deixado cair a máscara. Devia ter se mantido calma. Correra tudo tão terrivelmente mal. Em que tinha estado a pensar?
Todo o incidente fazia com que o coração lhe ressoasse nos ouvidos enquanto o voltava a passar na cabeça. Ficou imediatamente furiosa consigo própria pela falta de autocontrole e profundamente perturbada pela discussão com aquela mulher ridícula e ineficaz que desempenhara um papel tão importante na vida do filho... que tinha tido o privilégio de o ver crescer... e que tinha de ser responsabilizada por o ter tornado naquilo que era agora. Dissera a Mrs. Burrows coisas que até então se recusara a acreditar, que Will podia de fato ser um traidor, um vira-casacas e um assassino.
Mal se viu outra vez em Highfield, não conseguiu evitar começar a correr para chegar ao terreno baldio. Tinha recuperado parte da compostura quando empurrou para o lado a porta de madeira prensada e saltou para o poço da entrada, sendo recebida com o habitual esmagar de ossinhos.
Enfiou a mão na algibeira para procurar a lanterna, mas, tendo-a encontrado, não a acendeu, resolvendo, em vez disso, apalpar o caminho através da escuridão envolvente até chegar à câmara principal.
- Gato? Está aí? - perguntou, acendendo finalmente a lanterna.
- Sarah Jerome, calculo - disse uma voz quando a câmara explodiu numa luz brilhante e ofuscante, muito mais intensa do que a produzida pela lanterninha de Sarah.
Ela protegeu os olhos, meia cega e a cambalear com o que julgava ter visto. Tentou desesperadamente focar-se na fonte da voz.
- Quem...? - perguntou, começando a recuar.
O que era isto?
Havia uma garota de uns doze ou treze anos, reclinada numa das poltronas, com as pernas muito bem cruzadas e um sorriso sedutor na cara bonita. Mas aquilo que Sarah viu, e que fez com que o estômago se contraísse e desse um nó, foi que a garota estava vestida como uma Styx.
Uma grande gola branca num vestido preto.
Uma menina Styx?
E, ao lado dos pés da garota estava um Colono, um brutamontes mal-encarado. Tinha passado uma coleira grossa em volta do pescoço do gato e estava a conter o animal, que se debatia.
O instinto sobrepôs-se ao raciocínio quando Sarah abriu a mala e no instante seguinte tirava para fora a faca a relampejar na luz intensa. Deitou a mala para o chão, brandindo a faca, agachando-se e recuando ainda mais. Olhando desesperadamente à sua volta, viu de onde toda aquela luz vinha. Muitas esferas de luz - quantas, não sabia - estavam erguidas bem alto em redor das paredes da câmara, seguras por outros Colonos. Estes homens atarracados e muito musculados forravam as paredes como se fossem estátuas imóveis, como guardas.
Ouvindo a linguagem arranhada e indecifrável dos Styx, lançou um olhar rápido para o túnel de onde tinha vindo. Uma fileira de Styx, nos seus uniformes de casacos pretos e camisas brancas, tinham-se deslocado para a frente dele nas costas dela, bloqueando-lhe qualquer meio de fuga. Aquilo é que era uma casa cheia - os Pescoços Brancos também estavam ali, em força.
Estava completamente cercada. Não ia conseguir abrir caminho e safar-se desta. Era uma situação impossível. Tinha estado apressada demais - a cabeça tinha estado a pensar noutra coisa quando entrara descuidadamente na escavação sem tomar as precauções usuais.
Estúpida, estúpida.
E agora ia pagar pelo seu erro. E pagar caro. Largando a lanterna, ergueu a faca e encostou a lâmina ao pescoço. Tinha tempo. Não iam ser capazes de a deter. Foi então que a garota voltou a falar com a sua voz gentil.
- Não vai querer fazer isso.
Sarah grasnou qualquer coisa incompreensível, a garganta contraída com o medo.
- Sabe quem eu sou. Sou a Rebecca.
Sarah abanou a cabeça, os olhos apavorados. Um recanto remoto do cérebro perguntou por que razão uma garota Styx estaria usando um nome da Superfície. Ninguém sabia os nomes verdadeiros deles.
- Me viu na casa do Will.
Sarah voltou a sacudir a cabeça e depois ficou petrificada. Havia qualquer coisa familiar na criança. Sarah percebeu que ela devia ter estado a passar por irmã de Will. Mas como?
- A faca - pediu Rebecca -, pouse-a.
- Não - tentou Sarah dizer, mas o som saiu como um gemido.
- Temos tanto em comum. Temos um interesse comum. Devia ouvir o que eu tenho para lhe dizer.
- Não há nada a dizer - gritou Sarah, votando a encontrar a voz.
- Diga-lhe, Joe - disse a garota Styx, voltando-se para trás.
Uma pessoa desencostou-se da parede e avançou. Era o homem que escrevera a carta, Joe Waites, um dos membros do gangue do irmão Tam. Joe fora como família para ela e para o irmão, um amigo leal que teria seguido Tam até no fim do mundo.
- Ande - ordenou-lhe Rebecca. - Conte-lhe.
- Sarah, sou eu - disse Joe Waites. - O Joe Waites - acrescentou apressadamente quando ela não deu qualquer sinal de o ter reconhecido.
Avançou uns centímetros, as palmas das mãos tremendo, viradas para ela e a voz esganiçada de histeria enquanto largava as palavras de chofre.
- Oh, Sarah - suplicou-lhe -, por favor... por favor baixe-a... por favor baixe a faca... faça isso pelo seu filho... pelo Cal... deve ter visto a minha carta... é tudo verdade, é a vontade de Deus...
Sarah empurrou a lâmina com mais força, enterrando-a na carne, por cima da jugular, e ele estacou, as mãos ainda erguidas, mas com os dedos abertos e o corpo todo a tremer tão violentamente que Sarah julgou que ele ia desmaiar.
- Não, não, não faça isso, não faça, não... ouça-a... tem de a ouvir. A Rebecca pode te ajudar.
- Ninguém vai te atacar, Sarah. Dou-lhe a minha palavra - disse a garota calmamente. - Ouça-me, pelo menos.
Ergueu os ombros, encolhendo-os de leve, e pôs a cabeça de lado.
- Mas se quiser continuar... corte a garganta... não posso fazer nada para a impedir. - Soltou um longo suspiro. - Seria um desperdício tão grande, um desperdício tão estúpido e trágico. E não quer salvar o Cal? Ele precisa de você.
Voltando-se para um lado e depois para o outro e arquejando para tentar respirar como o animal encurralado que era, os olhos esbugalhados de Sarah fixaram-se em Joe Waites, pestanejando sem entender, no rosto inconfundível por baixo do barrete colado à cabeça, um dente solitário a sair-lhe do maxilar superior.
- Joe? - sussurrou-lhe roucamente, com a resignação calma de quem está pronto para morrer.
Torceu a lâmina enterrando-a mais fundo na garganta. Joe Waites abanou os braços freneticamente e gritou quando as primeiras gotas de sangue lhe escorreram pela pele pálida do pescoço.
- SARAH! POR FAVOR! - gritou ele. - OH NÃO! NÃO FAÇA ISSO! NÃO!
Capítulo Doze
W
ill tinha se oferecido para fazer o primeiro turno de vigia, por isso os outros podiam descansar um pouco. Tentou escrever no diário, mas estava com dificuldade em concentrar-se e, passado pouco tempo, pô-lo de lado. Passeou em volta da mesa, a ouvir o ressonar regular de Chester, e depois resolveu usar o tempo de que dispunha para explorar melhor a casa. Além disso, estava morto por experimentar a nova lanterna que Cal lhe montara. Muito orgulhoso, prendeu-a no bolso da camisa como o irmão lhe mostrara e ajustou a intensidade do feixe de luz. Pondo um último olhar aos camaradas adormecidos, abriu a porta silenciosamente e saiu da biblioteca.
A sua primeira escala foi a sala do outro lado do átrio, que ele e Cal tinham só investigado muito superficialmente na primeira excursão pela casa. Avançou na ponta dos pés pelo pó e, abrindo a porta, entrou.
Esta tinha as mesmas dimensões da biblioteca, mas estava completamente desprovida de mobília ou de estantes. Andou em volta pela sala, espreitando para os rodapés, onde havia pequenas tiras de papel verde-lima, que, obviamente, adornara todas as paredes em tempos passados.
Aproximou-se das janelas com as portadas fechadas, lutando contra o impulso de abri-las, e, em vez disso, deu várias voltas ao redor da sala, o feixe de luz da lanterna a cortar a escuridão à frente dele. Não vendo nada de interesse, estava quase a ir embora quando algo lhe atraiu o olhar. Não tinha dado por isso na primeira e breve inspeção, quando a única coisa que tinham era as esferas luminosas, mas agora, com a luz mais forte da lanterna, era difícil não reparar.
Rabiscadas na parede ao lado da porta, mais ou menos à altura da cabeça, estavam as seguintes palavras:
REIVINDICO ESTA CASA COMO UMA DESCOBERTA MINHA
ASSINADO DR. ROGER BURROWS
Depois, a seguir a um dia com um número ao lado que não significava nada para Will, estava:
PS. ATENÇÃO - CHUMBO NAS PAREDES - RADIOATIVIDADE ELEVADA LÁ FORA?
Espantado, Will estendeu o braço e passou a mão por cima de algumas das palavras, que refletiam a luz como se tivessem sido gravadas em metal.
- Papai! Meu pai esteve aqui! - gritou.
Ficou tão eufórico que se esqueceu de que tinham estado todos a tentar fazer o mínimo barulho possível dentro da casa.
- O meu pai esteve aqui!
Chester e Cal, que tinham acordado com os gritos, apareceram correndo no átrio.
- Will? O que é, Will? - gritou Chester da porta, preocupado com o amigo.
- Olhem para aquilo! Ele esteve cá! - gaguejou Will, dominado pela excitação.
Começaram a ler a inscrição, mas Cal não pareceu impressionado, deixando-se cair contra a parede quase de imediato. Bocejou e esfregou os olhos para afastar o sono.
- Gostaria de saber há quanto tempo é que ele escreveu isto - disse Will.
- Incrível! - comentou Chester quando acabou de ler a mensagem. - É mesmo fantástico!
Sorriu rasgadamente a Will, partilhando a euforia do amigo. Logo a seguir, franziu ligeiramente o cenho.
- Então, acha que as pegadas na biblioteca eram dele?
- Aposto que sim - respondeu Will, ofegante. - Mas não é mesmo extraordinário? Veja você que coincidência... escolhemos exatamente o mesmo caminho que ele.
- Tal pai, tal filho - disse Chester, dando uma palmada amigável nas costas de Will.
- Mas ele não é pai dele - disse uma voz ressentida das sombras por trás de Chester.
Cal estava a abanar a cabeça.
- Não é o pai verdadeiro - disse ele num tom desagradável. - E nem sequer teve coragem para te dizer isso, não é, Will?
Will não reagiu, não permitindo que o irmão lhe tirasse aquele momento.
- Bem, não podemos ficar muito tempo nesta área, se o Papai tiver razão em relação à radioatividade - acentuou cuidadosamente a palavra Papai sem olhar para Cal - e as paredes estiverem todas revestidas com chumbo. Acho que ele tem razão, apalpe aqui. - Apalpou a superfície da parede por baixo da mensagem, e Chester imitou-o. - Deve atuar como um escudo.
- Sim, sinto que está fria, como o chumbo, é mesmo - concordou Chester, olhando em volta da sala.
- Isso é óbvio. Eu lhes disse que nas Profundezas o ar é mau, seus idiotas - silvou Cal com desprezo e, a bater com toda a força com os pés no chão coberto de pó, foi-se embora, deixando os outros dois parados no mesmo lugar.
- Exatamente quando eu estou começando a pensar que ele não é um completo anormal - resmungou Chester, abanando a cabeça -, ele se sai com uma que dá cabo de tudo.
- Ignore-o - respondeu-lhe Will.
- Ele pode ser parecido com você, mas mais nada - continuou Chester a ferver de raiva. Estava furioso com o comportamento do rapaz mais novo. - O anão só se preocupa com uma pessoa, e essa pessoa é ele! E eu sei qual é o joguinho dele, sempre tentando me irritar... come com a boca toda aberta só para... - Chester parou no meio do discurso quando reparou na expressão distante na cara do amigo.
Will não estava ouvindo, olhava fixamente para a inscrição, totalmente absorvido pelas recordações do pai.
Os rapazes passaram as vinte e quatro horas seguintes preguiçosamente, umas vezes a dormir em cima da mesa da biblioteca, outras a vaguear pela casa. Enquanto andava a investigar as outras divisões, Will sentia-se um pouco desconfortável ao pensar que os Styx tinham vivido ali outrora, mesmo tendo sido há muito tempo. Todavia, apesar das buscas, não encontrou mais provas da presença do pai e começava a ficar impaciente e desejoso de recomeçar a viagem - estava entusiasmado com a ideia de o Dr. Burrows ainda poder estar naquela área. A cada hora que passava, ia ficando mais irrequieto, até que não conseguiu aguentar mais. Juntou os amigos e disse-lhes para arrumarem as coisas, e depois saiu da biblioteca e ficou à espera no átrio.
- Não sei o que é, mas há qualquer coisa neste edifício... - disse Will quando Chester se juntou a ele na porta da rua.
Will abrira uma fresta da porta e estavam a focar os raios das lanternas nas formas sinistras das cabanas atarracadas enquanto esperavam que Cal se apressasse. Depois da explosão por causa do pai de Will, Cal andara maldisposto e pouco comunicativo, e tanto Will como Chester tinham-no deixado entregue a si próprio.
- Me faz sentir... sentir assim, de um jeito... pouco à vontade - disse Will. - São todas aquelas cabaninhas ali e a ideia de que os Styx mandavam os Coprolites lá, para viver como escravos. Aposto que eram muito maltratados.
- Os Styx são a pior escória que há - disse Chester, e depois soprou por entre os dentes e abanou a cabeça. - Não, Will, eu também não gosto nada disto aqui. É estranho que... - calou-se a pensar.
- O que é?
- Bem, é só que esteve fechada durante anos e anos, provavelmente, séculos, até o seu pai ter forçado a entrada. Estava apenas fechada, como se ninguém se atrevesse a pôr um pé aqui dentro.
- Sim, é isso mesmo - respondeu Will pensativamente.
- Acha que as pessoas se mantiveram longe porque as coisas eram muito horrorosas aqui? - perguntou Chester.
- Bem, não há dúvida de que os morcegos são mesmo carnívoros, vi-os a atacarem um ferido deles, mas não me parece que sejam um perigo assim tão grande - replicou Will.
- Hum? - exclamou Chester apreensivamente, a cara a ficar exangue. - Nós somos feitos de carne.
- Sim, mas calculo que eles estejam mais interessados nos insetos - disse Will. - Ou em animais que não lhes dê trabalho. - Abanou a cabeça. - Tem razão, tenho certeza de que não foram só os morcegos que mantiveram as pessoas longe deste lugar - concordou.
Enquanto ele tinha estado a falar, Cal aproximara-se soturnamente, a arrastar os pés pelo pó, e, atirando a mochila para o chão, sentou-se em cima dela.
- Pois é, os morcegos - interveio mal-humorado. - Como vamos passar por eles?
- Agora não há sinal deles - respondeu Will.
- Grande - rosnou Cal maldosamente. - Então, não tem plano nenhum.
Will respondeu tranquilamente, recusando-se a deixar-se picar pela crítica do irmão:
- Muito bem, vamos a isto: desta vez, reduzimos a luz e não fazemos barulho nenhum, nem gritamos, está ouvindo, Cal? E, como precaução, tenho umas bombas prontas, se for preciso. Devem matar de medo essas coisas malditas.
Will abriu o bolso lateral da mochila onde estava um par de velas romanas que tinham ficado do monte que ele recuperara na Cidade Eterna.
- E é só isso? É esse o plano? - perguntou Cal agressivamente.
- É - respondeu Will, continuando a tentar manter-se calmo.
- À prova de idiotas! - grunhiu Cal.
Will lançou-lhe um olhar capaz de matá-lo e, muito cautelosamente, abriu mais a porta.
Cal e Chester esgueiraram-se pela porta com Will fechando a retaguarda, com um par de bombas numa mão e um isqueiro na outra. De quando em quando, ouviam os guinchos dos morcegos, mas a uma distância suficientemente grande para não causarem verdadeiro alarme. Os rapazes moviam-se rápida e silenciosamente, usando o mínimo de luz possível para iluminarem o caminho. Nas sombras à volta dos pés, as corridinhas precipitadas e as arranhadelas no chão punham à prova os limites da coragem, a imaginação descontrolada com as suspeitas do que poderia andar por ali.
Tinham deixado o portão para trás e voltado a descer um bom pouco do túnel principal quando Cal apontou para uma passagem lateral. Como de costume, avançara sozinho, e agora não dizia nada, limitando-se a apontar.
- O anão está tentando nos dizer alguma coisa? - perguntou Chester sarcasticamente a Will, enquanto se dirigiam para o rapaz amuado.
Will aproximou-se até ficar com a cara quase colada à do irmão.
- Pelo amor de Deus, Cal, cresça, está bem? Estamos todos juntos nisto.
- Um sinal - limitou-se a responder Cal.
- Do céu? - perguntou Chester.
Sem falar, Cal desviou-se para um lado para lhes permitir ver um poste de madeira com cerca de um metro de altura. Era preto-ébano, com a superfície lascada como se tivesse sido queimado, e em cima via-se uma seta gravada apontando para a passagem. Não tinham reparado nele quando passaram em sentido contrário porque estava enfiado já na entrada.
- Acho que pode ser uma boa maneira de chegarmos à Grande Planície - disse Cal a Will, evitando cuidadosamente o olhar beligerante de Chester.
- Mas porque havemos de querer ir para aí? - perguntou-Ihe Will. - O que tem assim de tão especial?
- Provavelmente, foi para lá que o seu pai foi - respondeu Cal.
- Então, é por aí que vamos - disse Will, voltando as costas ao irmão e entrando na passagem.
A viagem pela passagem foi relativamente fácil - era bastante espaçosa e o chão era plano, mas o calor aumentava a cada passo que davam. Seguindo o exemplo de Cal e de Chester, Will tinha tirado o casaco, mas continuava a sentir o suor a encharcar-lhe as costas por baixo da mochila.
- Vamos na direção certa, não vamos? - perguntou a Cal, que excepcionalmente não os tinha deixado para trás.
- Espero bem que sim, e você, não? - replicou o rapaz insolentemente, e depois cuspiu para o chão.
A mudança foi imediata. Houve um relâmpago de luz, muito mais intenso do que o clarão proveniente das lanternas que os três rapazes tinham prendido nos bolsos das camisas. Parecia que todas as superfícies das rochas, e até o próprio chão, emitiam uma intensa luz amarela. E não se limitava apenas ao lugar onde eles estavam parados, surgindo em impulsos ao longo do túnel, nas duas direções, e iluminando tudo como se tivessem acionado um interruptor. Parecia que alguém, ou alguma coisa, lhes iluminava o caminho.
Os rapazes estavam aturdidos de espanto.
- Não gosto disto, Will - gaguejou Chester.
Will puxou o casaco que estava pendurado na mochila e apalpou-o à procura das luvas, que calçou de imediato.
- O que está fazendo? - perguntou-lhe Cal.
- É só um palpite - respondeu Will, baixando-se para agarrar numa rocha do tamanho de uma bola de bilhar que brilhava intensamente.
Fechou a mão sobre ela, a fluorescência cremosa a brilhar pelos intervalos entre os dedos. Depois, abriu a mão e, balançando a rocha na palma da mão, examinou-a cuidadosamente.
- Olhem para isto - disse ele. - Vejam que está coberta com alguma coisa que parece líquen.
Cuspiu-lhe.
- Will? - exclamou Chester.
A rocha brilhou ainda mais. Will estava fascinado, a mente a trabalhar aceleradamente.
- Está quente. Quer dizer que a umidade ativa este organismo, seja lá ele o que for - possivelmente, bactéria -, e ele emite luz. Excetuando aquela coisa que existe nos oceanos, nunca tinha ouvido falar em nada igual a isto.
Voltou a cuspir, mas desta vez para a parede do túnel. Nos lugares onde tinham caído os pingos de saliva, a parede brilhou ainda mais intensamente, como se lhe tivessem atirado tinta luminosa por cima.
- Pelo amor de Deus, Will! - suplicou Chester, a voz baixa do medo que sentia. - Pode ser perigoso!
Will ignorou-o.
- Estão vendo o que a água lhe faz. É como se fosse uma mente adormecida... até se molhar. - Voltou-se para os dois rapazes. - É melhor não deixar que lhes toque na pele, nem quero pensar no que poderia acontecer. Seriam capaz de sugar toda a umidade...
- Obrigado, professor. Agora vamos nos pôr a milhas daqui e depressa, de acordo? - disse Chester, exasperado com o amigo.
- Tá bem, já acabei - concordou Will, atirando fora a rocha.
O resto da viagem não teve mais nenhum acontecimento digno de nota, e passaram-se várias horas monótonas até saírem da passagem e chegarem àquilo que à primeira vista Will tomou por outra caverna.
Entraram, e depressa se tornou evidente que era algo muito diferente de qualquer dos muitos espaços grandes que já tinham visto.
- Espere, Will! Parece-me que estou vendo umas luzes - disse Cal.
- Onde? - perguntou Chester?
- Ali... e muitas mais lá. Estão vendo?
Tanto Will como Chester olharam atenta e fixamente para o que parecia uma escuridão total.
Para as conseguirem ver era preciso não as focar diretamente - tentar vê-las focando-as de frente era inútil e apagava os pontinhos que cintilavam tenuemente.
Em silêncio, viraram as cabeças lentamente de um lado para o outro enquanto observavam os pontinhos minúsculos, que se espalhavam a intervalos irregulares pelo horizonte. As luzes pareciam tão distantes e vagas que davam a ideia de pulsarem suavemente e de se deslocarem por uma névoa de cores, lembrando estrelas numa noite quente de Verão.
- Isto tem de ser a Grande Planície - anunciou Cal, de repente.
Involuntariamente, Will deu um passo atrás. Tinha começado a perceber que o espaço à sua frente era realmente vasto. Era assustador porque a escuridão fazia com que a mente lhe pregasse peças, e por isso não sabia dizer se as luzes estavam a uma distância imensa ou, na realidade, muito mais próximas.
Juntos, os três rapazes avançaram cautelosamente. Até a Cal que passara toda a sua vida nas cavernas imensas da Colônia nunca se depararam dimensões como esta. Embora o teto se mantivesse a uma altura relativamente constante, a cerca de quinze metros do chão, o resto - um espaço imenso - não estava visível, mesmo com as lanternas na potência máxima. Estendia-se à frente deles, uma fatia de escuridão contínua que não era quebrada por um único pilar, uma única estalagmite ou uma única estalactite. E, o que era ainda mais notável, suaves rajadas de ar giravam à volta deles, arrefecendo-os um ou dois graus.
- Raios, parece terrivelmente enorme! - comentou Chester, exprimindo por palavras o que Will estava sentindo.
- Sim, nunca mais acaba - concordou Cal, indiferente.
Chester virou-se para ele.
- O que quer dizer com esse nunca? Qual é o tamanho real dela, afinal?
- Umas cem milhas - respondeu Cal sem emoção.
- Cem milhas? - repetiu Will.
- Quanto é isso em quilômetros? - perguntou Chester, mas não obteve nenhuma resposta de Will, que estava demasiado extasiado com a caverna que se estendia à sua frente para prestar atenção ao que o amigo dizia.
Subitamente, Chester perdeu as estribeiras.
- Raios te partam, isto é tudo maravilhoso, uma beleza, mas porque o seu irmão não nos conta tudo o que sabe, diabos o levem? Este lugar não pode nunca mais acabar! Ele é mesmo um idiota! Ou exagera tudo, ou nunca nos conta nada de parecido com a história toda - espumou ele. Com uma expressão muito azeda, inclinou a cabeça para um lado e depois para o outro, imitando Cal. - Isto é a Cidade da Fenda... blá, blá.... Aqui é a Grande Planície... blá, blá... - cuspiu, as palavras meio comidas com a raiva. - Sabe, Will, estou sempre com a sensação de que ele está nos ocultando coisas, só para me irritar.
- À nós dois - respondeu-lhe Will. - Mas é capaz de acreditar neste lugar? É de fazer a cabeça de qualquer um.
Will fazia o possível para mudar de assunto e desviar Chester de um caminho que, era evidente, iria acabar por levar a uma violenta colisão com o irmão.
- Sim, claro. Não há dúvida de que me fez perder a cabeça - replicou Chester sarcasticamente, começando a explorar a escuridão com a lanterna, como se estivesse a tentar provar que Cal estava enganado.
Mas parecia mesmo que o espaço se estendia eternamente. Will começou imediatamente a teorizar sobre a maneira como tinha se formado.
- Se houve pressão sobre duas placas de estrato ligadas frouxamente uma à outra de... de um movimento tectônico - disse ele. Sobrepondo uma mão na outra para demonstrar a Chester o que queria dizer -, então, é possível que uma tenha subido por cima da outra - arqueou a mão de cima. - E, bingo! Podia-se ficar com este tipo de coisa. Um bocadinho como o grão da madeira a partir-se quando fica úmido.
- Sim, isso é tudo formidável - disse Chester. - Mas e se voltar a se fechar? Como é então?
- Acho que seria possível, ao fim de muitos milhares de anos.
- Conhecendo a merda da minha sorte, provavelmente vai ser mesmo hoje - murmurou Chester amargamente. - E vou acabar esmagado como uma formiga.
- Deixe disso, as probabilidades de isso acontecer neste momento são muito pequenas.
Chester emitiu um grunhido céptico.
Capítulo Treze
N
uma entrada inteligentemente disfarçada no porão vazio de um antigo asilo em Highfield, perto da High Street, Sarah entrou num elevador. Deixou a mala escorregar do ombro, caindo junto dos pés, e abraçando-se, se encolheu o máximo que conseguiu. Sentindo-se muito infeliz, recuou para um dos cantos e observou o interior do elevador. Odiava estar confinada naquele espaço restrito, sem possibilidade de fugir. Com cerca de quatro metros quadrados, as paredes e o teto do elevador eram painéis de grades de ferro pesado e o interior tinha sido claramente coberto com uma pasta grossa de óleo, de que ainda restavam vestígios pontiagudos cobertos de terra e pó.
Sarah ouviu uma troca de palavras abafada entre os Styx e os Colonos que tinham ficado para trás na câmara de paredes de tijolo, do lado de fora do elevador, e depois Rebecca entrou sozinha. A garota nem sequer olhou de relance para Sarah enquanto girava elegantemente nos seus saltos, e um dos Styx fechava ruidosamente a grade do elevador atrás dela. Rebecca empurrou para baixo a alavanca de bronze ao lado da grade e, com um solavanco e um rangido vindos de cima, o elevador começou a descer.
Enquanto descia, a pesada cabine gradeada guinchava e chocalhava contra as paredes do poço, ouvindo-se ocasionalmente o rangido penetrante de metal a raspar em metal.
Elas estavam descendo vagarosamente para a Colônia.
Por muito que Sarah tentasse contê-la, uma sensação nova crescia dentro de si, impondo-se ao medo e à ansiedade. Era a antecipação. Estava voltando para a Colônia! Para o lugar onde tinha nascido! Era como se de súbito lhe tivessem oferecido a capacidade de voltar atrás no tempo. A cada metro que o elevador descia, o relógio andava velozmente para trás, recuperando hora após hora, ano após ano. Nunca, nem nos seus sonhos mais loucos, tinha verdadeiramente imaginado que poderia voltar a vê-la. Rejeitara tão irrevogavelmente essa possibilidade que lhe era difícil compreender o que estava a acontecer naquele momento.
Inspirando fundo várias vezes, soltou os braços e endireitou as costas.
Ouvira falar na existência daqueles elevadores, mas nunca tinha visto nenhum, quanto mais andar num.
Sarah encostou a cabeça no gradeamento e, enquanto o elevador descia aos solavancos, observou a parede do poço. O clarão da luz de Rebecca iluminava-o, revelando que estava salpicado de inúmeros sulcos regulares feitos com picaretas. Eram um testemunho dos grupos de trabalho que tinham escavado o caminho até à Colônia havia quase trezentos anos, usando apenas ferramentas manuais rudimentares.
À medida que os diferentes estratos de rocha iam sendo iluminados, oferecendo as suas tonalidades castanhas, vermelhas e cinzentas, Sarah pensava no sangue e suor que tinham sido derramados para estabelecer a Colônia. Tantas pessoas, tantas gerações, tinham trabalhado arduamente durante todas as suas vidas para a construírem. E ela rejeitara tudo isso ao fugir para a Superfície.
No topo do poço, agora a várias centenas de metros acima dela, o som do vento subiu de tom, ao aumentar de força, e o elevador acelerou a descida.
Este meio para entrar e sair da Colônia estava a léguas daquele que ela tinha utilizado na fuga doze anos antes. Nessa altura, fora obrigada a escalar o caminho todo, usando uma escada de pedra que subia em espiral por um enorme poço feito de tijolo. Havia sido muito moroso e difícil, principalmente porque arrastava atrás de si o pequeno Will. A parte pior tinha sido a subida final para o ar livre em cima de um telhado, pelo interior de uma chaminé velha. Enquanto ia procurando às apalpadelas qualquer tipo de apoio nas paredes cobertas de fuligem e a desfazerem-se, sempre arrastando o rapazinho aturdido e choroso, necessitara de todas as suas forças para se agarrar e não escorregar e cair aos trambolhões para o poço por baixo dela.
Não pense nisso agora, ralhou Sarah a si própria, abanando a cabeça. Percebeu que estava completa e profundamente esgotada pelos acontecimentos do dia, mas tinha de se controlar. Ainda faltava muito para o dia acabar. Concentre-se, disse para si mesma, enquanto olhava de soslaio para a Styx que seguia viagem com ela.
Virada para o lado oposto a Sarah, Rebecca não se tinha mexido do lugar onde estava junto da porta. Raspando de vez em quando com o sapato na placa de aço que servia de chão ao cubículo barulhento, estava claramente impaciente por chegar ao fundo.
Era capaz de acabar com ela neste preciso instante. O pensamento introduziu-se repentinamente na cabeça de Sarah. Como a garota Styx não tinha escolta, não havia nada que a impedisse. A ideia foi-se tornando mais insistente, e Sarah sabia que não tinha muito tempo até chegarem ao fundo.
A faca ainda estava na sacola de Sarah - por qualquer razão, os Styx não tinham lhe tirado. Olhou para a sacola aos seus pés, calculando quanto tempo levaria a colocar-lhe a mão. Não, era demasiado arriscado. Uma pancada na cabeça seria muito melhor. Fechou os punhos com força e depois voltou a abrir as mãos.
NÃO!
Sarah controlou-se. Terem-na deixado sozinha com a garota era uma demonstração da fé que os Styx depositavam nela, da confiança que depositavam nela. E tudo o que lhe tinham contado parecia encaixar, parecia ser verdade, por isso, resolveu alinhar com eles, pelo menos durante algum tempo. Tentou acalmar-se, voltando a inspirar fundo várias vezes. Levou a mão ao pescoço, apalpando cautelosamente o inchaço em volta do ferimento que infligira a si própria.
Tinha sido por pouco - começara a enfiar a faca na jugular, com a triste intenção de enterrá-la até ao cabo. Mas com Joe Waites a gritar e a suplicar como um louco, imobilizara a mão. Estivera preparada para ir até ao fim: vivera com a certeza de que os Styx iriam acabar por apanhá-la, e tinha ensaiado milhares de vezes várias formas de suicídio.
Com a faca parada e o público silencioso de Styx e Colonos encostado às paredes à sua volta, ouvira o que Joe e Rebecca tinham a contar-lhe, dizendo a si própria que mais uns segundos não fariam qualquer diferença a quem já estava morto.
E, na sua opinião, ela não tinha nada a perder porque já estava morta. Parecera-lhe inevitável. Mas a história que lhe contavam condizia com o que estava escrito na carta e soava verdadeira. Afinal, os Styx podiam tê-la executado imediatamente, ali, na escavação. Então porque se davam ao trabalho de salvá-la?
Rebecca contara-lhe o que acontecera naquele dia fatídico em que Tam perdera a vida. Como a Cidade Eterna tinha ficado coberta por um nevoeiro impenetrável e o mordaz Will lançara dispositivos pirotécnicos para atacar os soldados Styx. No meio da confusão, Tam fora atraído a uma emboscada e, tendo sido confundido com um habitante da Superfície, haviam-no matado. E, pior ainda, Rebecca dissera que havia uma forte possibilidade de ter sido o próprio Will a golpear Tam com um facão para servir de chamariz para os soldados Styx. O sangue de Sarah ferveu quando ela ouviu isto.
Fosse o que fosse que tivesse acontecido, o certo era que Will salvara a sua pele desprezível, forçando Cal a acompanhá-lo.
Rebecca também contou que Imago Freebone, um amigo de infância de Sarah e Tam, tinha estado presente neste incidente. Rebecca acrescentou que Imago desaparecera e que ela só podia concluir que Will também tivera a ver com isso. Sarah viu as lágrimas nos olhos de Joe Waites enquanto Rebecca falava. Como membro do pequeno bando de Tam, Imago também tinha sido amigo do Joe.
Sarah não conseguia sequer compreender o comportamento assassino de Will, quanto mais o seu desprezo desumano pela vida do próprio irmão. Em que tipo de animal ardiloso e tortuoso se teria transformado?
Quando Rebecca acabara de contar a cadeia de acontecimentos, Sarah pedira para ficar uns momentos a sós com Joe Waites, e a garota Styx, para grande surpresa de Sarah, autorizara. Rebecca e todos os Styx e Colonos tinham se retirado da caverna subterrânea, deixando-os sozinhos.
Só nessa altura é que Sarah baixara a faca. Sentara-se na poltrona vazia ao lado da de Joe. Os dois tinham tido uma conversa muito rápida enquanto Rebecca e a sua escolta esperavam no túnel que levava ao poço dos ossos. Falando muito depressa, Joe voltara a contar a história em sussurros rápidos, corroborando tudo o que escrevera na carta que deixara e a versão dos acontecimentos que Rebecca acabara de dar. Sarah tinha precisado de a ouvir outra vez, do princípio ao fim, da boca de uma pessoa em quem sabia que podia confiar implicitamente.
Quando voltara, Rebecca tinha feito uma proposta a Sarah. Se Sarah estivesse disposta a aliar-se aos Styx, ser-lhe-iam fornecidos os meios necessários para encontrar Will. Dar-lhe-iam a oportunidade de corrigir duas coisas más: vingar a morte do irmão e salvar Cal.
Era uma proposta que Sara não podia ignorar. Havia muitas coisas que tinham de ser feitas. E, agora, ali estava ela, numa gaiola de metal com a sua inimiga declarada, a garota Styx! O que tinha estado a pensar?
Sarah tentou imaginar o que Tam teria feito se tivesse de enfrentar uma situação semelhante. Mas não lhe serviu de nada, e começou a ficar muito agitada, escarafunchando o coágulo de sangue no pescoço, sem se preocupar nada com a possibilidade de o golpe reabrir e recomeçar a sangrar.
Rebecca virou a cabeça, mas não olhou para Sarah, como se percebesse o turbilhão de sentimentos que avassalava a mulher mais velha. Limpou a garganta e perguntou suavemente:
- Como se sente, Sarah?
Sarah olhou fixamente para a nuca da garota Styx, para o cabelo preto como azeviche que se espalhava pelo colarinho impecavelmente branco, e respondeu, a voz com um tom agressivo novo.
- Fantástica. Este tipo de coisas estão sempre me acontecendo.
- Eu sei como isto deve ser difícil para você - respondeu Rebecca, apaziguadoramente. - Há algum assunto de que queira falar?
- Sim - replicou Sarah. - Você conseguiu introduzir-se na família Burrows. Esteve na casa deles com o meu filho durante todos aqueles anos.
- Com o Will, sim, é verdade - respondeu Rebecca sem a menor hesitação, mas parou com o esfregar constante do sapato no chão do elevador.
- Fale-me dele - pediu Sarah.
- O que nasce torto nunca se endireita - disse a garota Styx, deixando a frase pairar no ar enquanto continuavam a descer vagarosamente. - Havia nele qualquer coisa estranha desde o começo. Tinha dificuldade em arranjar amigos, e foi se tornando cada vez mais retraído e distante à medida que crescia.
- Não há dúvida de que ele era um solitário - concordou Sarah, recordando as vezes em que observara Will enquanto ele se entretinha com as escavações.
- Nem faz ideia de quanto - disse Rebecca numa voz ligeiramente trêmula. - Ele era capaz de ser muito assustador mesmo.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Sarah.
- Bem, ele estava sempre à espera que lhe fizessem tudo: que lhe lavassem a roupa, lhe fizessem a comida... tudo, e perdia a paciência com a menor coisa que não estivesse exatamente como ele queria. Devia tê-lo visto - estava perfeitamente bem, e no instante seguinte mudava e ficava completamente enraivecido, a berrar como um doido e a partir tudo o que apanhava à frente. Na escola, estava sempre a meter-se em problemas. No ano passado, numa luta, espancou violentamente uns colegas. Eles não lhe tinham feito nada. O Will perdeu a cabeça, muito simplesmente, e atirou-se a eles com a pá. Vários deles tiveram de ser levados para o hospital, mas ele não ficou nem um pouco arrependido do que fez.
Sarah ficou calada, a absorver o que tinha acabado de ouvir.
- Não, Sarah, não faz a mínima ideia daquilo que ele era capaz - continuou Rebecca baixinho. - A madrasta sabia que ele precisava de ajuda, mas era demasiado preguiçosa para fazer fosse o que fosse. - Rebecca passou a mão pela testa, como se aquelas recordações lhe estivessem a provocar dor. - Talvez... Talvez a Mrs. Burrows fosse a culpada de ele ser assim. Ela negligenciou-o.
- E você... para que estava lá? Para o vigiar... ou para me apanhar?
- As duas coisas - respondeu Rebecca indiferente, enquanto se torcia pela cintura para olhar para Sarah com uma expressão firme. - Mas a prioridade era trazê-la de volta a si. Os Governadores queriam pôr um ponto final nisto. Tem sido mau para a Colônia não se saber do seu paradeiro. Uma ponta solta. Complicado.
- E conseguiu fazer tudo, não foi? Até me apanhou viva. Eles devem estar mais do que encantados com você.
- Não é nada disso. Seja como for, a decisão de voltar a casa foi sua.
Não havia nada nos modos de Rebecca que sugerisse que ela se estava a vangloriar dos seus êxitos. Voltou-se outra vez para a porta de grades. De quando em quando, a luz brilhante das entradas dos outros níveis passavam rapidamente à frente dela, refletindo-se no brilho lustroso do cabelo preto como azeviche.
Depois de uma pausa, recomeçou a falar:
- Foi uma coisa extraordinária conseguir sobreviver durante todo este tempo, sempre um passo à nossa frente e a conviver todos os dias com aquela multidão. - Ficou calada durante vários segundos. - Deve ter sido difícil para você, longe de tudo o que conhecia?
- Sim, às vezes - replicou Sarah. - Costuma dizer-se que a liberdade tem o seu preço.
Sabia que não devia estar se abrindo com a garota Styx, mas, mesmo contra vontade, sentia respeito por ela. Por causa de Sarah, Rebecca fora atirada para o local estranho que era a Superfície. E quando era tão novinha. Quase toda a vida da garota tinha sido passada na Superfície, na casa dos Burrows; dizer que eles tinham alguma coisa em comum seria um exagero rematado.
- E você? - perguntou Sarah. - Como se aguentou?
- Para mim, era diferente - replicou Rebecca. - Viver no exílio era o meu dever. Era um pouco parecido com um jogo, mas, durante todo aquele tempo, nunca me esqueci a quem devia lealdade.
Sarah sentiu um calafrio. Embora parecesse ter sido feito sem o intento de censurar, o comentário foi como um soco, atingindo-a no âmago do seu sentimento de culpa. Enfiou-se no canto do elevador e envolveu o peito com os braços.
Durante um tempo, nenhuma delas falou enquanto o ranger e o chiar do elevador a descer continuavam.
- Já não falta muito - anunciou Rebecca finalmente.
- Tenho outra pergunta - atirou-lhe Sarah.
- Com certeza - respondeu Rebecca distraidamente, olhando para o relógio.
- Quando isto acabar... quando eu tiver feito o que tenho de fazer... vão me deixar viver?
- Claro - Rebecca deu meia volta graciosamente e fixou os olhos brilhantes em Sarah. Sorriu rasgadamente. - Vai voltar para o seu lar, com o Cal e a sua mãe. A Sarah é importante para nós.
- Mas porquê? - perguntou Sarah franzindo o sobrolho.
- Porquê? Não é óbvio, Sarah? A Sarah é a filha pródiga.
Rebecca sorriu ainda mais rasgadamente, mas Sarah não conseguiu retribuir o sorriso. Tinha a cabeça numa confusão. Obviamente, queria acreditar no que a garota estava dizendo mais do que a conta. A voz da cautela censurava-a insistentemente, pondo-lhe os nervos em alta. Não tentou calá-la. Tinha aprendido, por experiência amarga, que, se uma coisa parecia demasiado boa para ser verdadeira, então, era quase certo que não o era.
Por fim, a caixa do elevador bateu nos batentes no fundo do poço, sacudindo as suas duas ocupantes. Sombras moveram-se do lado de fora. Sarah viu um braço numa manga preta quando este puxou para trás a porta de grade, e Rebecca saiu cheia de determinação.
Isto é uma armadilha? É o fim? Estas perguntas martelavam a cabeça de Sarah. Ela permaneceu dentro do elevador, espreitando pelo corredor forrado de metal para os dois Styx que se mantinham nas sombras. Estavam posicionados de cada um dos lados de uma espessa porta de metal, a cerca de dez metros de distância. Rebecca ergueu a lanterna e fez sinal a Sarah para que a seguisse, apontando para a porta. A única saída do corredor estava coberta de tinta preta brilhante com um zero grande grosseiramente pintado. Sarah sabia que estavam no último nível e que do outro lado da porta havia uma câmara de compressão, depois uma última porta e a seguir o Quarter.
Era agora, o passo final: se ela atravessasse aquela câmara de compressão, estaria de volta e completa e irrevogavelmente nas mãos deles.
Com o casaco de cabedal até aos tornozelos a ranger quando se movia, um dos deis Styx avançou para a zona iluminada e agarrou na borda da porta com os dedos finos e brancos, puxando-a para trás e fazendo-a bater com um estrondo contra a parede. Ninguém falou enquanto o barulho ecoava em volta delas. O cabelo preto do Styx, puxado para trás e colado à cabeça, revelava traços de prata nas têmporas e a cara tinha uma tonalidade claramente amarelada e estava profundamente enrugada. Havia rugas tão desconfortavelmente fundas em cada uma das faces que a cara parecia prestes a dobrar-se sobre si mesma.
Rebecca olhava para Sarah, à espera que ela entrasse na câmara. Sarah hesitou, o seu instinto a gritar-lhe que não entrasse por aquela porta.
O outro Styx era mais difícil de observar, pois permanecia nas sombras atrás da rapariga. Quando o viu, a primeira impressão de Sarah foi que era muito mais novo do que o outro homem, com pele clara e cabelo do mais puro preto-azeviche. Mas, enquanto continuava a observá-lo, percebeu que era mais velho do que pensara primeiro; a cara era magra e chupada ao ponto de as faces serem ligeiramente cavadas, e os olhos pareciam cavernas misteriosas na luz fraca.
Rebecca continuava a olhar para ela.
- Nós vamos continuar. Venha quando estiver pronta - disse ela. - Está bem, Sarah? - acrescentou suavemente.
O mais velho dos dois Styx trocou um olhar com Rebecca e dirigiu-lhe um leve aceno com a cabeça quando os três entraram na câmara de compressão. Sarah ouviu os pés deles a ressoarem no pavimento de metal enrugado da sala cilíndrica, e depois um silvo quando o selo da outra porta era quebrado e sentiu o jacto de ar quente na cara.
Depois ficou tudo silencioso.
Eles tinham ido para o Bairro, uma série de cavernas grandes ligadas por túneis, onde apenas viviam os cidadãos da maior confiança que tivessem sido selecionados. E uma mão-cheia deles estava, sob a supervisão dos Styx, autorizada a negociar com os Habitantes da Superfície aqueles artigos básicos que não podiam ser produzidos ou extraídos das minas na Colônia ou na camada mais abaixo, as pavorosas Profundezas. O Quarter era algo semelhante a uma cidade de fronteira, e as condições de vida não eram muito saudáveis, com o risco sempre presente de desmoronamentos e inundações dos esgotos da Superfície.
Sarah inclinou a cabeça para espreitar para a escuridão do poço do elevador por cima dela. Percebeu que estava a enganar a si própria pensando que tinha uma alternativa. Não havia nenhum lugar para onde fugir, mesmo que quisesse. Tinham-lhe roubado o seu próprio destino e colocado nas mãos dos Styx, no preciso momento em que afastara a faca da garganta. Pelo menos ainda estava viva. E qual era a pior coisa que lhe poderiam fazer? Matá-la, depois de a terem submetido a uma das suas horríveis torturas? No fim, o resultado iria ser o mesmo. Morta agora, ou morta mais tarde. Não tinha nada a perder.
Varreu com os olhos o poço acima do elevador e depois começou a dirigir-se para o interior sombrio da câmara de compressão. Esta tinha cerca de cinco metros e era oval, com ranhuras profundas a todo o comprimento. Usando os lados para se equilibrar quando os pés escorregavam nos sulcos metálicos oleosos por baixo deles, avançou lentamente até à porta aberta na outra ponta, sentindo-se cada vez mais apreensiva.
Inclinou-se para fora. Ouviu a língua detestável dos Styx, palavras esganiçadas e em staccato que pararam mal o trio a viu. Esperavam-na a uma curta distância do outro lado de um túnel amplo. Tanto quanto a luz de Rebecca lhe permitia ver, o túnel estava vazio e tinha uma extensão de estrada empedrada e depois uma faixa de passeio de pedra onde Rebecca e os dois Styx se encontravam. Não havia casas; Sarah percebeu imediatamente que era um túnel-auto- estrada, que provavelmente ia dar a uma das cavernas que serviam de armazéns e que existiam em volta da periferia do Quarter.
Lentamente, levantou o pé por cima da borda da porta da câmara de compressão e pousou-o nas pedras arredondadas, brilhantes da umidade. Depois, igualmente devagar, fez o mesmo com o outro pé, ficando completamente fora da câmara de compressão. Não conseguia acreditar que tinha realmente regressado à Colônia, ia dar mais um passo, mas hesitou. Olhando por cima do ombro, observou a parede que se erguia num arco elegante até ao local onde se juntaria com a parede oposta, construída da mesma maneira, embora o vértice estivesse escondido pela escuridão lá em cima. Estendeu uma mão para tocar na parede ao lado da porta, comprimindo a palma contra um dos enormes blocos retangulares, de pedra calcária perfeitamente cortada. Sentiu o leve vibrar das ventoinhas enormes que faziam circular o ar pelos túneis. Completamente diferente das vibrações na cidade da Superfície lá em cima, era um ritmo constante que a confortava, como o bater do coração de uma mãe.
Encheu os pulmões de ar. O cheiro estava lá, o característico odor a mofo, uma destilação de todas as pessoas que viviam no Quarter e na extensa área da Colônia por baixo dele. Era tão característico, e ela já não o cheirava havia muito tempo.
Estava em casa.
- Pronta? - gritou-lhe Rebecca, interrompendo-lhe os pensamentos.
A cabeça de Sarah virou-se para os Styx.
Assentiu com a cabeça.
Rebecca estalou os dedos e, da escuridão, apareceu uma carruagem puxada por cavalos, com as rodas de ferro a fazerem muito ruído nas pedras redondas da rua. Negras e angulosas, e puxadas por quatro cavalos do branco mais puro, estas carruagens não eram uma visão invulgar na Colônia.
A carruagem parou ao lado de Rebecca, com os cavalos a baterem com os cascos no chão e a erguerem os focinhos, ansiosos por continuarem a andar.
A carruagem austera oscilou quando os três Styx entraram, e Sarah começou a avançar vagarosamente na sua direção. Um Colono estava sentado no lugar do condutor, um velho com um chapéu de feltro muito amachucado, e fixou os olhos pequeninos e duros em Sarah. Ela soube instintivamente o que ele deveria estar a pensar; provavelmente nem sabia quem ela era, mas bastava ela estar vestida com roupa da Superfície e ter uma escolta de Styx - ela era o inimigo, o odiado.
Quando Sarah subia para o passeio, ele limpou a garganta de forma exagerada e inclinou-se para a frente para lhe cuspir, não lhe acertando por milímetros. Sarah parou imediatamente e resolutamente pisou a porcaria que ele tinha cuspido, esfregando a ponta do pé em cima dela, como se estivesse a esmagar um inseto. Depois, ergueu os olhos e retribuiu-lhe o olhar com uma expressão de desafio. O homem encolerizou-se, mas depois pestanejou e desviou o olhar.
- Ok, vamos lá começar com isto - disse Sarah em voz alta, e subiu para a carruagem.
Capítulo Catorze
-Q
uer uma bebida? - perguntou Will. - Estou seco.
- Boa ideia - respondeu Chester com um sorriso, ficando logo mais bem-disposto. - Vamos lá ter com o menino batedor ali à frente.
Estavam se aproximando de Cal, que ainda se encaminhava rapidamente na direção de uma das luzes distantes, quando se voltou para eles.
- O Tio Tam dizia que os Coprolites viviam no chão... como ratos nas tocas. Ele referia que tinham povoações e armazéns de comida que estavam escavados no...
- Cuidado! - gritou Will.
Cali deteve-se a tempo, na borda de uma extensão de escuridão onde deveria estar o chão. Oscilou e depois caiu para trás no chão de pedras soltas, os pés a fazerem saltar terra por cima da saliência à sua frente. Ouviram o salpicar da água quando ela aterrou.
Enquanto Cal se levantava, Will e Chester aproximaram-se cautelosamente da borda e espreitaram lá para baixo. À luz das lanternas, conseguiam ver que havia uma queda de cerca de quatro metros e depois água escura e ondulante que refletia os raios das lanternas, formando círculos de luz. A água parecia fluir suavemente, sem nada que se parecesse com a velocidade das correntes subterrâneas que tinham encontrado anteriormente.
- Isto foi feito pelo homem - observou Will, apontando para as lajes cortadas do mesmo tamanho que formavam a borda.
Inclinou-se o mais que se atreveu para examinar o que havia lá em baixo. A parede lateral do canal também estava forrada de lajes até à superfície da água. E tanto quanto conseguiam ver, a outra margem tinha uma construção idêntica.
- Feito pelos Coprolites - disse Cal baixinho.
- O que disse? - perguntou Will.
- Foram os Coprolites que construíram isto - disse Cal mais alto. - O Tam me contou que eles tinham um sistema gigantesco de canais para deslocarem as coisas que extraíam das minas.
- Uma informação útil que se devia ter sabido... antes - queixou-se Chester baixinho. - Tem mais surpresas para nós, Cal? Algumas palavras sábias?
Para adiar um confronto violento e cheio de insultos entre os dois, Will interveio apressadamente, dizendo-lhes que deviam parar para descansar um pouco. Isto acalmou a situação e os três instalaram-se confortavelmente ao lado do canal, apoiados nas mochilas e a beber dos cantis. Enquanto observavam o canal que se estendia para cada um dos lados deles, estavam todos pensando a mesma coisa: parecia que não havia nenhum lugar onde pudessem atravessá-lo. Tinham de se limitar a seguir ao lado dele e ver para onde os levava.
Estavam sentados em silêncio havia já algum tempo quando um estalido suave os fez voltar à realidade. Levantaram-se nervosamente e espreitaram para a escuridão profunda, fixando as lanternas no ponto de onde pensavam que emanara o barulho que tinham ouvido.
Como um fantasma, a proa de um barco entrou nos limites distantes da iluminação que tinham criado em conjunto. Estava tudo tão sobrenaturalmente silencioso, excetuando o velho gorgolejar da água, que eles piscaram os olhos, perguntando para si mesmos se estes lhes estariam a pregar peças. À medida que a embarcação deslizava para mais perto deles, conseguiam vê-la melhor - era uma barcaça, de um castanho-ferrugento, impossivelmente larga e bem enfiada na água. Segundos depois, já conseguiam ver a razão disto. Parecia estar muito carregada, a seção intermédia com uma pilha muito alta de qualquer coisa amontoada.
Will não conseguia acreditar no comprimento desmesurado da barcaça - parecia que nunca mais acabava. A distância entre a margem onde os rapazes estavam e a parte lateral - quando muito um par de metros - era tão pequena que eles poderiam ter saltado lá para dentro com toda a facilidade, se lhes tivesse dado na telha. Mas a verdade é que ficaram imóveis, pregados ao chão por uma mistura de medo e fascínio.
A popa ficou à vista e os rapazes repararam numa chaminé atarracada de onde saíam nuvens de fumaça, e conseguiram ouvir, pela primeira vez, a batida profunda e abafada de um motor. O som era suave, como o de um coração acelerado a bater regularmente, vindo de algum lugar abaixo da linha da água. Depois viram outra coisa.
- Coprolites - sussurrou Cal.
Três formas pesadas estavam completamente imóveis na popa, uma delas a segurar a cana do leme. Os rapazes observavam, hipnotizados, enquanto as formas imóveis eram impelidas para mais perto. Depois, enquanto elas passavam a deslizar ao longo da margem onde os rapazes estavam em pé, conseguiram ver todos os pormenores das caricaturas de homens, inchadas e lembrando larvas, com os seus corpos redondos e braços e pernas globulosos. As roupas tinham a cor do marfim e absorviam a luz. As cabeças eram do tamanho de pequenas bolas de praia, mas a coisa mais notável nelas era que no sítio onde se esperava que tivessem olhos brilhavam umas luzes que pareciam holofotes gêmeos. Em resultado disso, podia dizer-se com exatidão para onde é que aqueles seres estranhos estavam a olhar.
Os rapazes não conseguiam deixar de fitá-los, de boca aberta e olhos arregalados, ao passo que os três Coprolites pareciam não ter dado por eles. Como a presença deles na margem, com as lanternas no máximo, era tão inconfundível, não havia a menor possibilidade de os Coprolites não os terem visto.
Mas não houve qualquer tipo de sinal ou indicação de que os Coprolites estivessem a prestar-lhes atenção. Pelo contrário, os Coprolites movimentavam-se muito lentamente como gado a pastar, os raios de luz dos olhos a girarem em volta da barcaça, como faróis preguiçosos, sem nunca se deterem nos rapazes. Foi então que dois dos seres estranhos se voltaram lenta e pesadamente, fazendo com que as luzes varressem a barcaça a bombordo e estibordo, acabando ambos por se deter na proa, onde se deixaram ficar.
Mas repentinamente o terceiro Coprolite deu meia volta, ficando virado de frente para os rapazes. Movia-se mais depressa do que qualquer dos companheiros; os raios oculares passaram para trás e para a frente por cima dos rapazes. Will ouviu Cal inspirar fundo e depois murmurar qualquer coisa quando o Coprolite passou uma mão papuda por cima dos olhos, a outra mão erguida como numa saudação ou talvez num aceno. A cabeça do estranho ser balançava de um lado para o outro, como se estivesse tentando ver melhor os rapazes, ao mesmo tempo que passava os raios dos olhos por cima deles.
Esta conexão silenciosa entre os rapazes e o Coprolite foi breve, com a barcaça a continuar a sua rota firme e sem desvios para a penumbra das sombras. O Coprolite ainda estava voltado para eles, mas a distância crescente e as nuvens de fumaça da chaminé foram tornando as manchas gêmeas dos olhos cada vez mais enevoadas até que desapareceram na escuridão.
- Não devíamos cair fora daqui? - perguntou Chester. - Eles não irão dar o alarme ou qualquer coisa assim?
Cal não se mostrou preocupado.
- Não, nem pensar... eles não ligam à mínima para as pessoas de fora. São estúpidos... a única coisa que fazem é extrair minério, que depois negociam com a Colônia, por coisas como fruta e as esferas luminosas que estavam no trem em que viemos.
- Mas o que acontece se eles falarem de nós aos Styx? - insistiu Chester.
- Já lhe disse... eles são estúpidos, não falam nem nada - replicou Cal em tom cansado.
- Mas o que são eles? - perguntou Will.
- São homens... mais ou menos... usam aqueles macacões de proteção por causa do calor e do ar daqui serem maus - respondeu Cal.
- Radioatividade - corrigiu-o Will.
- Sim, se é isso que lhe quer chamar. Está nas rochas deste lugar. - Cal esticou o braço, abarcando toda a área. - É por isso que ninguém da minha gente fica por aqui muito tempo.
- Oh, que maravilha! Magnífico. Isto está ficando cada vez melhor - lamentou-se Chester. - Quer dizer: não podemos voltar para a Colônia, e agora também não podemos ficar aqui. Radioatividade! O seu pai tinha razão, Will, e vamos fritar neste lugar horrível, abandonado por Deus.
- Tenho certeza de que não vamos ter problemas durante algum tempo - retorquiu Will, tentando aplacar os receios do amigo, mas sem grande confiança.
- Oh, maravilha, é mesmo maravilhoso - resmungou Chester, e precipitou-se para o local onde tinham largado as mochilas, sempre a resmungar consigo.
- Havia qualquer coisa que não estava lá muito certo ali em baixo - confidenciou Cal a Will, agora que estavam sozinhos.
- O que quer dizer?
- Bem, você viu a forma como aquele último Coprolite olhava para nós? - perguntou Cal a abanar a cabeça com uma expressão de perplexidade na cara.
- Vi sim - respondeu-lhe Will. - E você acabou de nos dizer que eles não ligam à mínima para os forasteiros.
- É como te disse... não ligam. Já os vi milhares de vezes na Caverna Sul e eles nunca o fazem. Nunca, mas nunca mesmo, olham para nós. E ele estava a mexer-se de uma maneira esquisita... demasiado rápida para um Coprolite. Não se portava normalmente - Cal fez uma pausa para coçar a cabeça pensativamente. - Possivelmente é diferente aqui em baixo, uma vez que é a terra deles. Mas, mesmo assim, é muito estranho.
- Pois é - concordou Will pensativamente, sem saber como tinha estado tão perto do pai.
Capítulo Quinze
O
Dr. Burrows mexeu-se, julgando que tinha ouvido o toque suave dos sinos, o toque da alvorada que soava todas as manhãs, sem falhar, no acampamento dos Coprolites. Escutou atentamente durante um tempo e depois franziu o cenho. Não havia mais nada a não ser o silêncio.
- Devo ter dormido demais - concluiu ele, esfregando o queixo com uma expressão algo surpreendida ao sentir a barba por fazer.
Afeiçoara-se à barba desgrenhada que usara durante tanto tempo e descobriu que sentia saudades dela agora que a rapara. Algo no interior da sua psique tinha-se sentido muito confortável com a imagem que apresentava. Prometera a si próprio que voltaria a deixá-la crescer para o seu regresso glorioso, fosse isso quando fosse. Os cabeçalhos imaginados avultavam-se à sua frente: O Robinson Crusoé do Mundo Subterrâneo, O Selvagem das Profundezas, Dr. Hades...
- Já chega - disse a si mesmo, pondo um ponto final no seu auto-elogio.
Atirou para o lado o cobertor áspero e sentou-se no colchão curto que estava cheio de qualquer coisa parecida com palha. Era demasiado curto até para um homem de altura normal, como era o caso dele, e as pernas ficavam quase meio metro de fora.
Pôs os óculos, coçando o cabelo. Tentara cortá-lo sozinho e não fizera um grande trabalho; em certos lugares quase tinha chegado ao couro cabeludo, ao passo que noutros deixara tufos com vários centímetros. Coçou-se ainda mais vigorosamente, correndo a cabeça toda e descendo para o peito e os sovacos. Franzindo a cara com desagrado, olhou desfocadamente para as pontas dos dedos.
- O diário! - exclamou repentinamente. - Ontem não escrevi nada.
Tinha chegado tão tarde que se esquecera completamente de fazer um registro dos acontecimentos do dia. Dando estalidos com a língua contra os dentes enquanto tirava o diário de debaixo da cama, abriu-o numa página que estava em branco, excetuando o título:
Dia 141
Começou a escrever abaixo dele, enquanto assobiava uma melodia desafinada:
Quase me matei de tanto me coçar durante toda a noite.
Parou e lambeu pensativamente a ponta do toco do lápis, e depois continuou:
Os piolhos são insuportáveis, e estão ficando ainda piores.
Olhou ao redor do quarto pequeno e quase circular, uns quatro metros de um lado ao outro, e depois para cima, para o teto côncavo. A textura das paredes era irregular, como se o reboco, ou a lama, ou lá o que fosse com que fora construída, tivesse sido aplicado à mão. Quanto à forma, dava-lhe a sensação de estar num frasco enorme, e achava engraçado saber, agora, como um gênio preso dentro de uma garrafa se devia sentir. Esta impressão era realçada pelo fato de a única saída, ou entrada, se situar por baixo dele, no centro do chão. Estava tapada com um pedaço de metal amolgado, parecido com a tampa de um caixote de lixo antigo.
Olhou de relance para o macacão de proteção pendurado num cabide de madeira na parede, como a pele abandonada de um lagarto, mas com a luz a sair dos buracos dos olhos onde estavam inseridas as esferas luminosas. Devia vestir o traje, mas sentia-se obrigado pelo dever de completar primeiro a entrada do dia anterior. Por isso, continuou com o diário.
Sinto que chegou a altura de voltar a me por a caminho. Os Coprolites...
Hesitou, debatendo se deveria usar o nome que inventara para estas pessoas, partindo do princípio de que eram uma espécie distinta do Homo sapiens, coisa que ainda não tinha conseguido averiguar. Homo caves, disse para si mesmo, mas depois abanou a cabeça, decidindo não o usar. Não queria confundir as coisas antes de ter certeza dos fatos. Recomeçou a escrever:
Os Coprolites estão, creio eu, tentando me comunicar que devo ir embora, embora eu não saiba porquê.
Não me parece que tenha a ver comigo ou, mais especificamente, com qualquer coisa que eu fizesse. Posso estar enganado, mas tenho certeza de que o estado de espírito mudou no acampamento. Durante as últimas vinte e quatro horas houve mais atividade do que a que vi nos últimos dois meses. E ainda por cima, com os armazéns de comida adicionais que os vi montarem e as restrições às saídas impostas às mulheres e às crianças, estão a agir quase como se estivessem sob cerco. Claro, estas coisas podem ser apenas medidas de precaução que eles põem em prática de vez em quando - mas estou convencido de que vai acontecer qualquer coisa.
E por isso parece que chegou o momento de recomeçar com as minhas viagens. Vou sentir a falta deles, e não vai ser pouco. Aceitaram-me na sua sociedade pacífica, em que parecem perfeitamente à vontade uns com os outros, e, por estranho que pareça, comigo. Possivelmente é por eu não ser nem um Colono nem um Styx e perceberem que não represento qualquer perigo nem para eles, nem para os filhos.
Em especial, os filhos deles são uma constante fonte de fascínio para mim, quase temerários e divertidos. Tenho de estar constantemente a lembrar a mim próprio que os jovens não são uma espécie completamente diferente dos adultos.
Parou com o assobio para se permitir uma risadinha ao recordar como ao princípio os adultos nem sequer conseguiam suportar o seu olhar, quando ele tentava inutilmente comunicar com eles. Desviavam os olhos cinzentos, bastante pequenos, a linguagem corporal a exprimir submissão envergonhada. A diferença de temperamentos entre ele e estas pessoas modestas era tão grande que às vezes se imaginava como o herói de um western, o pistoleiro solitário que, depois de uma longa e difícil viagem através das pradarias, chegava a uma povoação de lavradores ou mineiros, ou outra coisa qualquer, amedrontados. Para eles, o Dr. Burrows era um herói poderoso e invencível. Hah! Ele!
- Vá, continue - disse a si próprio, e recomeçou a escrever:
Tomando tudo em consideração, eles são uma gente tão gentil e cronicamente reticente, e eu não posso dizer que tenha conseguido conhecê-los. Afinal, provavelmente, os humildes herdaram mesmo a terra.
Nunca esquecerei o seu ato de misericórdia ao me salvarem. Já escrevi sobre isto antes, mas agora que estou de partida, tenho pensado muito nisto.
O Dr. Burrows parou e ergueu os olhos, olhando fixamente em frente durante alguns instantes, com o ar de alguém que está tentando se lembrar de qualquer coisa, mas que já se esqueceu da razão por que está a tentar lembrar-se.
Depois começou a folhear as páginas do diário para trás até encontrar o primeiro registro quando entrara nas Profundezas, e leu-o em voz alta.
Os Colonos mostraram-se antipáticos e taciturnos quando me levaram para longe do Trem dos Mineiros e me meteram naquilo a que chamaram um tubo de lava. Disseram-me para continuar por ele até à Grande Planície e que aquilo que eu queria ver ficava no caminho. Quando tentei lhes fazer algumas perguntas, tornaram-se bastante hostis.
Não estava disposto a envolver-me numa discussão com eles, por isso fiz o que me tinham dito. Afastei-me num passo rápido, mas parei mal fiquei longe da vista deles. Não estava convencido de que ia na direção certa. Suspeitava de que eles tentavam fazer com que me perdesse no labirinto dos túneis, por isso, voltei para trás e...
Nesta altura, o Dr. Burrows voltou a estalar a língua de encontro aos dentes e abanou a cabeça.
... ao fazê-lo, perdi-me por completo.
Virou a página rapidamente, como se ainda estivesse irritado consigo próprio, depois passou os olhos pela descrição da casa vazia que tinha descoberto e das cabanas circundantes.
Passou essa entrada como se não lhe interessasse muito até chegar a uma página besuntada e suja. A sua caligrafia, que nunca tinha sido muito legível mesmo nos seus melhores momentos, era ainda pior aqui, e as frases escritas à pressa enchiam a página numa confusão de ângulos diferentes, ignorando por completo as linhas pautadas. Em certos lugares, as frases até estavam escritas urnas por cima das outras, numa espécie de "pauzinhos de micado". No fim de três páginas sucessivas, estava escrito a palavra PERDIDO, em letras maiúsculas cada vez mais erráticas.
- Uma grande confusão - censurou-se. - Mas eu estava em péssimo estado.
Foi então que uma passagem do texto lhe despertou a atenção e leu-a em voz alta.
Não consigo dizer com exatidão durante quanto tempo andei vagando pela confusão destes corredores. Às vezes, a esperança abandonava-me por completo, e cheguei a pensar que nunca iria conseguir sair deles, mas tudo aquilo tinha valido a pena...
Logo abaixo, um subtítulo anunciava orgulhosamente: O CÍRCULO DE PEDRAS. Nas páginas seguintes havia esboços atrás de esboços das pedras que constituíam o monumento subterrâneo que se lhe deparara por puro acaso. Ele não só tinha registrado as posições e os feitios das pedras, como desenhara círculos nos cantos de cada uma das páginas, como se fosse a imagem vista através de uma lupa, registrando os símbolos e a escrita estranha cinzelados nas superfícies laterais com uma cuidadosa atenção aos pormenores. Ficara extraordinariamente animado, apesar da fome e da sede crescentes. Como não sabia para quanto tempo tinha de fazer as provisões durarem, forçara-se a consumir o mínimo possível.
Um sorriso de satisfação consigo próprio animou-lhe o rosto enquanto inspecionava estas páginas, admirando o seu trabalho em cada uma delas.
- Perfeito, perfeito.
Depois parou ao chegar à página seguinte, franzindo os lábios num "Ohhh!" silencioso quando leu o título.
AS CAVERNAS DAS PLACAS.
Tinha escrito umas linhas por baixo:
Depois de encontrar o círculo das pedras, pensei que tinha tirado a sorte grande. Não fazia ideia de que ia descobrir uma coisa que, na minha opinião, é tão, ou mesmo mais, importante. As cavernas estavam cheias de placas, dúzias delas, todas com uma escrita semelhante à gravada nos menires do círculo.
Seguiam-se dez páginas com desenhos das placas, cópias perfeitas da escrita gravada nelas, tudo meticulosamente representado. Mas, à medida que passava as páginas, eles iam-se tornando cada vez menos bem feitos até parecerem de uma criança.
TENHO DE CONTINUAR A TRABALHAR, a frase estava escrita com tanta força por baixo de um dos últimos esboços atamancados que as linhas do lápis estavam profundamente gravadas na página e até a tinham rasgado em alguns lugares.
TENHO DE DECIFRAR ESTA ESCRITA! É A CHAVE PARA QUEM VIVIA AQUI EM BAIXO! TENHO DE SABER, TENHO DE...
Passou um dedo pelos sulcos das palavras nas folhas, tentando recordar o seu estado de espírito naquele instante. A comida já tinha desaparecido toda e ele continuara a trabalhar febrilmente, dando pouca importância à pequena quantidade que lhe restava. Quando descobrira que ela acabara, fora apanhado completamente de surpresa.
Ainda tentando recordar-se, olhou para a nota que tinha rabiscado com mais cuidado e quase em desespero, no meio de um esboço de uma das placas que nunca acabara.
Tenho de continuar a trabalhar. As forças estão a abandonar-me. As pedras estão a ficar cada vez mais pesadas quando as tiro das pilhas para as examinar. Vivo no pavor de deixar cair uma. Tenho de aca...
Acabava aqui. Não se lembrava de nada do que acontecera a seguir, exceto que, numa espécie de delírio, tinha ido aos tombos à procura de uma nascente e, não encontrando nenhuma, conseguira, sem saber como, voltar às Cavernas das Placas.
A seguir a uma página em branco estava escrito DIA? e as palavras: Coprolites. Continuo sem saber se ainda estaria vivo se as duas crianças não me tivessem encontrado e ido buscar os adultos. Provavelmente, não. Devia estar muito mal. Tenho uma imagem na cabeça de duas figuras estranhas inclinadas sobre o meu diário, as luzes a cruzarem-se quando olhavam para as páginas onde eu fizera os desenhos, mas não tenho certeza de ter visto realmente isto, ou se é a minha mente a dizer-me que era o que devia ter acontecido.
- Estou a divagar. Não é bom - disse a si próprio com firmeza, abanando a cabeça. - A entrada de ontem! Tenho de acabar a entrada de ontem.
Passou as páginas rapidamente até encontrar aquela em que tinha começado a escrever, e levou o lápis até ao papel. Escreveu:
De manhã, depois de ter enfiado o traje, desci aos armazéns de comida para ir buscar o café-da-manhã, atravessando uma área comum onde um grupo de filhos dos Coprolites estava a jogar um jogo parecido com o de bolinhas de gude. Devia ser cerca de uma dúzia de jovens, de várias idades, agachados e a fazerem rolar estas bolinha enormes, feitos do que parecia ser ardósia polida, por uma zona do chão que tinha sido varrida. Estavam tentando derrubar uma espécie de boliche que lembrava vagamente um homem.
À vez, iam atirando as bolinhas na direção dele, e, quando todos tinham atirado, o boliche ainda continuava de pé. Uma das crianças mais novas deu-me uma bolinha. Era mais leve do que eu esperava e, para começar, deixei-o cair umas vezes (ainda não estava habituado às luvas), e depois, com alguma dificuldade, consegui colocá-lo na posição correta entre o polegar e o indicador. Estava tentando, bastante atrapalhadamente, apontá-lo para lançá-lo quando - imaginem a minha surpresa! - de repente, a esfera cinzenta ganhou vida! Desenrolou-se e arrastou-se pela minha mão! Era um bicho-de-conta enorme, como eu nunca tinha visto.
Tenho de dizer que fiquei tão espantado que o deixei cair. Era parecido com um Armadillidium vulgare, um tatuzinho de jardim, mas sob o efeito de esteróides! Tinha múltiplos pares de patas articuladas, que usava brilhantemente, afastando-se a uma velocidade extraordinária, enquanto várias das crianças corriam atrás dele. Eu conseguia ouvir os risinhos abafados das outras enfiadas nos trajes; achavam tudo aquilo hilariante.
Mais tarde, nesse dia, vi que um casal de membros mais velhos do acampamento estava se preparando para partir. Tocavam com as cabeças dos trajes uma na outra, muito provavelmente a conversar, mas nunca ouvi em que língua. Tanto quanto sei, até podia ser inglês.
Fui atrás deles e não pareceram importar-se - nunca parecem. Subimos e saímos do acampamento, com alguém a voltar a rolar o pedregulho atrás de nós para fechar a entrada depois de estarmos do lado de fora. O fato de os acampamentos deles serem escavados no solo da Grande Planície e os corredores laterais saírem de lá, ou, às vezes, serem abertos dentro do teto, torna-os quase invisíveis para um observador acidental. Fui andando atrás dos dois Coprolites durante várias horas até que saímos da Grande Planície, descendo por um túnel muito íngreme e, quando este se tornou plano, descobri que estávamos numa zona portuária qualquer.
Era vasta, com trilhos grossos e largos que corriam ao longo de uma bacia de água. (Estou convencido de que os Coprolites foram os responsáveis pela construção da linha do Trem dos Mineiros e do sistema de canais, ambas as coisas empreendimentos tremendos.) Havia três embarcações atracadas no cais, e fiquei encantado quando os Coprolites entraram para a primeira. Ainda não tinha estado em nenhuma. Estava carregada de carvão acabado de extrair das minas. Era um barco a vapor, e estive a observar enquanto eles atiravam carvão para dentro de uma fornalha e o acendiam com um isqueiro de pederneira.
Quando já havia pressão suficiente, partimos, saindo da bacia e percorrendo milha após milha de canais fechados. Paramos várias vezes para abrir as eclusas quando lá chegávamos - nessas alturas eu pude sair do barco e ficar na margem a observar enquanto eles abriam manualmente as comportas.
Enquanto navegávamos pensei muito em como estas pessoas e os Colonos dependiam uns dos outros, numa espécie de simbiose descuidada, mas, em minha opinião, as esferas luminosas e a fruta eram uma recompensa pequena pelas inúmeras toneladas de carvão e ferro que a Colônia recebia em troca. Estas pessoas são mineiros exímios, trabalhando com os seus pesados equipamentos de escavação a vapor (ver os meus desenhos no Apêndice 2).
Passamos por algumas das áreas de calor intenso que já descrevi antes, onde a lava deve fluir muito perto das rochas que a cobrem. Tremia só de pensar na temperatura que devia estar no exterior do meu traje de proteção, mas não me senti tentado a descobrir. Finalmente, voltamos à Grande Planície, já a uma boa velocidade agora que a fornalha estava a rugir, e eu começava a sentir-me bastante exausto (estes trajes tornam-se horrivelmente pesados quando são usados durante muito tempo) quando vimos um grupo de pessoas que, na minha opinião, só podiam ser Colonos na margem do canal.
Não eram categoricamente Styx e acho que os devemos ter assustado. Eram três, um grupo heterogêneo, por aquilo que eu conseguia ver, parecendo um pouco perdidos e nervosos. Não conseguia ver muita coisa porque a combinação dos meus óculos com as esferas de luz em redor dos oculares do traje produz um tal clarão que me reduz um pouco a visão.
Não pareciam Colonos adultos, por isso não faço a mínima ideia do que estariam fazendo tão longe do trem. Olhavam para nós de boca aberta, ao passo que os dois Coprolites que estavam comigo, como era típico deles, não lhes prestavam qualquer atenção. Tentei acenar ao trio, mas eles não corresponderam - provavelmente também tinham sido Banidos da Colônia, tal como teria me acontecido se não tivesse sido eu a querer vir para o Interior.
O Dr. Burrows releu o último parágrafo e a seguir os olhos ficaram vidrados quando ele começou outra vez a sonhar. Imaginou o seu diário muito danificado, aberto exatamente nesta página, numa vitrina de vidro da Biblioteca Britânica, ou, quem sabe, até mesmo na do Instituto Smithsonian.
- História - disse para si mesmo. - Está a fazer História.
Por fim, vestiu o traje e, empurrando para o lado a porta tampa-de-caixo- te-de-lixo, desceu os degraus entalhados na parede. Quando chegou ao fundo, ficou parado no chão de terra perfeitamente alisado e olhou ao redor, a respiração a soar-lhe muito alto aos ouvidos.
Tinha tido razão ao pensar que a mudança andava no ar.
Tinha acontecido alguma coisa.
O acampamento estava invulgarmente escuro e completamente deserto.
No centro da área comum, ardia uma solitária luz tremeluzente. O Dr. Burrows começou a dirigir-se para ela, mantendo a parede ao seu lado e a olhar para os espaços vazios do telhado por cima dela. Os raios gêmeos do traje revelaram-lhe que todas as portinholas que davam para os outros espaços de habitação estavam abertas. Os Coprolites nunca as deixavam assim.
O seu pressentimento estava certo. O acampamento tinha sido evacuado enquanto ele dormia.
Aproximou-se da luz no meio do espaço comum. Era um velho candeeiro a petróleo, suspenso por cima do tampo de uma mesa de obsidiana "floco de neve" polida, que assentava numa estrutura de ferro enferrujado. Como se fosse um espelho, a superfície preta muito bem polida, salpicada com umas manchas brancas difusas, refletia a luz e ele conseguiu ver que havia qualquer coisa em cima dela, misteriosamente iluminada pela luz oscilante por cima. Pacotes retangulares, cuidadosamente embrulhados no que parecia ser papel de arroz, estavam dispostos em fila em cima da mesa. Agarrou num e sentiu-lhe o peso.
- Deixaram-me comida - disse ele.
Sentindo uma inesperada onda de emoção por aquelas pessoas gentis com quem passara tanto tempo, o Dr. Burrows levou a mão ao rosto para limpar os olhos. Mas a mão enluvada encontrou as lentes de vidro do capacete bulboso que tinha posto.
- Vou ter saudades de vocês - disse ele, a voz trêmula reduzida a um murmúrio através das camadas espessas do traje.
Abanou a cabeça rapidamente, acabando com aquela demonstração emocionada. Não confiava nestes extravasamentos de sentimentalismo. Se cedesse a eles, sabia que iria começar a sentir as dores angustiantes da culpa em relação à família que abandonara, a mulher, Celia, e os filhos, Will e Rebecca.
Não, a emoção era um luxo a que não se podia dar, naquela altura não. Tinha o seu objetivo e nada o iria desviar dele.
Começou a juntar os embrulhos. Quando apanhou o último, aninhando-os no braço, viu que tinham deixado um rolo de pergaminho no meio deles. Rapidamente, voltou a pousar tudo em cima mesa e abriu o rolo.
Era um mapa, desenhado com linhas grossas e com símbolos estilizados a toda a volta. Rodou o pergaminho, primeiro para um lado e depois para o outro, tentando entender onde estava no mapa. Com um "é isso!" triunfante, reconheceu o acampamento onde se encontrava, e depois passou a ponta de um dedo em volta do contorno mais carregado no mapa, a fronteira da Grande Planície. Deste saíam pequeníssimas linhas paralelas que, evidentemente, marcavam os túneis que saíam dela. Ao lado delas havia muitos mais símbolos que não conseguiu compreender de imediato. Franziu o cenho, totalmente concentrado no mapa.
Estas criaturas atrapalhadas e tímidas tinham lhe dado aquilo de que ele precisava. Tinham-lhe mostrado o caminho. Apertou as mãos uma na outra e ergueu-as em frente ao rosto, torcendo-as numa oração de gratidão.
- Obrigado, obrigado - disse ele, a mente já a fervilhar com ideias sobre a continuação da viagem.
PARTE DOIS
O Regresso ao Lar
Capítulo Dezesseis
S
arah prendeu a cortina de couro a um dos lados para espreitar pela janela pequena na porta da carruagem. A viagem levou o veículo por uma sucessão de túneis escuros até que, finalmente, virou uma esquina e Sarah viu uma área iluminada mais à frente.
À luz dos candeeiros da rua, viu a primeira de muitas filas de casas geminadas. Quando passaram velozmente por elas, reparou que algumas portas estavam abertas, mas não conseguiu ver nem uma pessoa, e os pequenos relvados à frente de cada uma das casas estavam cobertos de grandes torrões de líquenes pretos e fungos hermafroditas. Os passeios estavam cheios de coisas que outrora tinham feito parte do recheio das casas: tachos e panelas e pedaços de mobília partida estavam abandonados por ali.
A carruagem abrandou para tornear um desabamento no túnel. Era um desabamento grave; parte do túnel desmoronara-se e os grandes blocos de calcário tinham caído em cima de uma casa, esmagando o telhado e quase esborrachando o edifício ao passarem.
Surpreendida, Sarah olhou para Rebecca que estava sentada à frente dela.
- Esta parte do túnel vai ser enchido para podermos cortar no número de portais para a Superfície. É uma das consequências da entrada ilegal do seu filho na Colônia - disse Rebecca num tom indiferente, enquanto a carruagem voltava a ganhar velocidade, atirando-as de um lado para o outro com a oscilação.
- Isto é tudo por causa do Will? - perguntou Sarah, imaginando como as pessoas teriam sido cruelmente forçadas a abandonar as suas casas.
- Eu já lhe disse: ele está pouco ligando para as pessoas que magoa - respondeu Rebecca. - Não faz ideia do que ele é capaz. É um sociopata e alguém vai ter de pará-lo.
O Styx velho ao lado de Rebecca acenou com a cabeça animadamente.
E lá continuaram através dos túneis sinuosos e das ruas de pedras arredondadas, sempre a descer, e a dada altura passaram por uma enfiada de lojas. Sarah percebeu pelas fachadas tapadas com tábuas que a maioria tinha sido fechada.
Quando iniciaram a última descida para a Colônia, deixou de haver fosse o que fosse para ver, e Sarah recostou-se. Sentindo-se pouco à vontade, baixou os olhos para o colo. Uma das rodas passou por cima de alguma coisa e a carruagem inclinou-se perigosamente para o lado, atirando violentamente os passageiros para a outra ponta dos bancos de madeira. Sarah pôs um olhar assustado em Rebecca, que lhe dirigiu um dos seus sorrisos reconfortantes, enquanto a carruagem se voltava a endireitar com um estrondo. Os outros dois Styx continuaram impassíveis, tal como tinham estado durante toda a viagem. Sarah deu-lhes uma olhadela furtiva e não conseguiu reprimir um estremecimento.
Imaginem.
Os inimigos que ela sempre odiara com todas as fibras do seu ser distavam escassos centímetros. Eram seus companheiros de viagem. Estavam tão perto que conseguia cheirá-los. Perguntou pela milionésima vez o que eles quereriam realmente dela. Provavelmente, iam apenas atirá-la para uma cela quando chegassem ao destino e depois bani-la ou executá-la. Mas para quê toda aquela charada, se era esse o caso? O impulso para escapar, para correr dali para fora, crescia irreprimivelmente dentro dela. A mente gritava-lhe para fugir, e Sarah começou a calcular até onde conseguiria chegar. Estava olhando para o fecho da porta, os dedos a retorcerem-se quando Rebecca estendeu uma mão e a pousou em cima das dela, fazendo-as parar de se mexerem.
- Já não estamos longe.
Sarah tentou sorrir-lhe e foi então que, sob o clarão da luz de um candeeiro da rua, reparou que o Styx velho estava a olhar fixamente para ela. As pupilas dele não eram preto-azeviche, como acontecia com o resto dos Styx, parecendo ter uma tonalidade adicional, o cintilar levíssimo de uma cor que não conseguia classificar - entre o castanho e o vermelho -, que, para ela, era mais escura e mais profunda do que o próprio preto.
E enquanto o olhar dele se fixou momentaneamente nela, Sarah sentiu-se intensamente desconfortável, como se ele soubesse exatamente o que ela pensava. Mas logo a seguir ele já estava novamente olhando para fora da janela, e não afastou os olhos dali até ao final da viagem, nem mesmo quando começou a falar. Era a primeira vez que o fazia durante todo o trajeto. Os seus modos eram os de alguém que os anos tinham tornado sensato; não foi o discurso inflamado e vingativo que Sarah estava habituada a ouvir aos membros mais velhos dos Styx. Parecia pesar cuidadosamente as palavras, como se as comparasse umas com as outras antes de deixá-las passar por entre os lábios finos.
- Nós não somos assim tão diferentes, Sarah.
Ela virou a cabeça para ele. Ficou fascinada com a teia de rugas fundas nos cantos dos olhos que, por vezes, se encaracolavam como se ele estivesse prestes a sorrir - mas nunca o fez.
- Se nós temos um defeito, é o de não reconhecermos que uma meia dúzia de pessoas aqui em baixo, uma minoria, não é muito diferente de nós, os Styx.
Ele piscou os olhos devagarinho quando passaram por um candeeiro de rua particularmente grande, cuja luz forte iluminou intensamente todos os cantos da carruagem. Sarah viu que nenhum dos outros na carruagem estava olhando para o velho Styx, nem, na realidade, para ela, quando o velho recomeçou a falar.
- Pomo-nos à parte e, de vez em quando, aparece uma pessoa como você. Tem uma força que te torna diferente; resiste com a paixão e o fervor que esperamos dos da nossa própria espécie. Está apenas se esforçando para ser reconhecida, a lutar por algo em que acredita - não interessa o quê -, e nós não ouvimos. - Fez uma pausa para inspirar profunda e respeitosamente. - Porquê? Porque tivemos de dominar e controlar as pessoas da Colônia durante tantos anos - para o bem comum - e temos tendência para tratar a todos da mesma maneira. Mas vocês não são todos da mesma cepa. Embora seja uma Colona, Sarah, é apaixonada e empenhada, e não é como os outros... nada mesmo. Obviamente devia ser tolerada, nem que fosse só pelo seu espírito.
Sarah continuou olhando fixamente para ele muito depois de se ter calado, perguntando-se se teria estado a convidá-la a responder. Sarah não fazia a mínima de qual era a mensagem que lhe tinha sido dada. Estaria ele tentando mostrar compaixão por ela? Seria isto uma operação de charme da parte dos Styx?
Ou estaria ele a fazer um convite bizarro e sem precedentes para ela se juntar aos Styx? Não podia ser isso. Isso era impensável. Nunca tinha acontecido; os Styx e os Colonos eram raças separadas, os opressores e os oprimidos, como o velho Styx dera a entender. E as duas nunca se encontrarão... e fora assim que sempre tinha sido e sempre seria, até ao fim do mundo.
A cabeça dela não largava o assunto enquanto tentava compreender o que tinha querido ele dizer, e surgiu uma outra possibilidade. Seriam as palavras dele simplesmente uma admissão do fracasso dos Styx, um pedido de desculpa atrasada pela forma como fora tratada quando o bebê estava morrendo? Meditava ainda nisto quando a carruagem parou em frente do Skull Gate.
Sarah só passara por ele uma dúzia de vezes em toda a sua vida, quando acompanhara o marido em qualquer circunstância oficial no Quarter, onde tinha sido deixada à espera na rua, ou, se por acaso a deixavam assistir à reunião, limitara-se a ficar calada. Era o costume da Colônia; as mulheres não eram consideradas iguais aos homens e nunca podiam ter lugares com qualquer nível de responsabilidade.
Sarah ouvira uns boatos que diziam que as coisas eram diferentes com os Styx. Na verdade, a prova viva disso estava sentada à frente dela, na forma de Rebecca. Sarah tinha dificuldade em acreditar que esta simples criança parecesse ter tanto poder. Também ouvira dizer, principalmente de Tam, que havia um círculo interior, uma espécie de realeza no topo da hierarquia dos Styx, mas isto era pura especulação da parte dele. Os Styx viviam afastados das pessoas da Colônia e, por isso, ninguém sabia exatamente o que se passava, embora, nas tabernas, corressem rumores sussurrados sobre os seus bizarros rituais religiosos, que iam ficando cada vez mais exagerados à medida que iam passando de boca em boca.
E, ao olhar da garota para o velho Styx e depois outra vez para a garota, Sarah deu por si a pensar que eles podiam ser aparentados. Se se acreditasse no que se ouvia dizer, os Styx não tinham unidades familiares tradicionais e as crianças eram levadas, ainda de tenra idade, e criadas por tutores ou professores designados em escolas particulares.
Mas Sarah sentia que havia claramente qualquer coisa entre os dois ali sentados na escuridão. Sentia uma ligação qualquer que ultrapassava a lealdade dos Styx, que os unia uns aos outros. Apesar da idade avançada e do rosto inescrutável, havia uma vaguíssima sugestão de qualquer coisa paternal ou avuncular na forma como o velho Styx tratava a garotinha.
Os pensamentos de Sarah foram interrompidos quando se ouviu uma pancada na porta da carruagem e esta se abriu repentinamente. Uma lanterna ofuscantemente brilhante iluminou rudemente o interior, o clarão a fazer com que Sarah protegesse os olhos com a mão. Depois houve uma breve troca de palavras, em estalidos agudos, entre o Styx mais novo sentado ao lado dela e o dono da lanterna. A luz retirou-se quase de imediato e Sarah ouviu o ressoar ruidoso da grade levadiça quando o Skull Gate foi subido. Não se inclinou para fora da janela para ver; em vez disso, imaginou o portão de ferro a subir e a entrar na enorme esfinge de uma caveira por cima dele.
A finalidade do portão era manter os habitantes das enormes cavernas no seu lugar. Evidentemente, Tam tinha descoberto dez mil maneiras de contornar esta barreira principal. Para ele fora como um jogo de Snakes and Ladders; sempre que uma das suas rotas de contrabando era descoberta, ele conseguia encontrar uma rota alternativa que o levava até à Superfície.
Na realidade, ela própria tinha utilizado um desses caminhos para fugir, através de um túnel de ventilação. Com outro aperto do coração pela sua perda, Sarah sorriu para si mesma ao recordar como o homem enorme, com as suas mãos de urso, traçara laboriosamente um mapa complicado usando tinta castanha num quadrado de tecido do tamanho de um lenço de assoar. Ela sabia que esse caminho não era agora utilizado - com a eficiência típica dos Styx, devia ter sido fechado nas horas que se seguiram à sua chegada à Superfície.
A carruagem arrancou, movendo-se a uma velocidade incrível, descendo cada vez mais fundo. Depois houve uma mudança no ar, e um cheiro de queimado encheu-lhe as narinas, e tudo começou a vibrar com um ruído surdo e prolongado. A carruagem passava pelos postos principais das ventoinhas. Escondidas dos olhares, num espaço imenso escavado por cima da Colônia, ventoinhas gigantescas giravam dia e noite, extraindo a mistura de gases e nevoeiro e o ar rançoso.
Sarah fungou e inalou profundamente. Aqui, era tudo mais concentrado: o fumo e os vapores de fogos, o cheiro a cozinhados, a ranço, a podridão e a decadência, e o fedor coletivo de grande número de seres humanos a serem segregados em várias áreas interligadas, ainda que todas fossem muito grandes. Uma essência destilada de toda a vida na Colônia.
A carruagem fez uma curva apertada. Sarah agarrou-se ao banco de madeira para não deslizar pela superfície gasta e chocar com o Styx mais novo sentado ao lado dela.
Mais perto.
Ela estava cada vez mais perto.
Enquanto continuavam a descer, inclinou-se, expectante, para fora da janela.
Olhou para fora sem ser capaz de parar de fitar o mundo crepuscular que outrora tinha sido a única coisa que ela conhecia.
Àquela distância, as casas de pedra, as oficinas, as lojas, os locais de oração atarracados e os edifícios oficiais imponentes que compunham a Caverna Sul pareciam estar iguais à última vez que os vira. Não ficou surpreendida. A vida ali em baixo era tão constante e inalterável como a pálida luz das esferas que brilhavam vinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana, nestes três últimos séculos.
Então a carruagem desceu a parte final do declive e atravessou as ruas a uma velocidade inacreditável, com as pessoas a saírem precipitadamente do caminho ou a empurrarem os carrinhos de mão de encontro às bordas dos passeios para não serem esmagadas.
Sarah viu Colonos a olharem para a carruagem veloz com expressões desnorteadas. As crianças apontavam, mas os pais puxavam-nas para trás mal percebiam que a carruagem transportava Styx. Não se olhava para os membros da classe governante.
-- Chegamos - anunciou Rebecca, abrindo a porta antes de a carruagem ter parado completamente.
Com um sobressalto, Sarah reconheceu a rua familiar. Estava em casa. Ainda não tinha controlado os seus pensamentos. Não estava preparada para isto. Tremendo, levantou-se para seguir Rebecca quando a garota saltou agilmente do degrau da carruagem para a calçada.
Sarah mostrava-se relutante em sair da carruagem, e ficou parada no degrau.
- Venha - disse-lhe Rebecca gentilmente. - Venha comigo.
Agarrou na mão de Sarah, ajudando a mulher trêmula a sair para a obscuridade da caverna. Enquanto se deixava levar, Sarah levantou a cabeça para olhar para a extensão imensa de rocha que se estendia por cima da cidade subterrânea. A fumaça saía preguiçosamente das chaminés em ondas verticais, como se fossem enfeites de fitas que tivessem sido pendurados na cúpula de pedra, ondulando ao de leve quando os ventiladores enormes em volta das paredes lançavam ar fresco para dentro da caverna.
Rebecca manteve a mão de Sarah presa na dela enquanto a fazia avançar. Ouviu-se um estrépito e outra carruagem parou atrás daquele de que tinham acabado de sair. Sarah parou e, resistindo a Rebecca, voltou-se para olhar para ele. Conseguiu distinguir Joe Waites através da janela da carruagem. Depois voltou-se para trás para olhar a fila uniforme de casas que se estendia ao longo da rua. A rua estava completamente vazia, o que não era habitual àquela hora, e ela começou imediatamente a sentir-se novamente apreensiva.
- Julguei que não iria querer pessoas a olharem embasbacadas para você - disse Rebecca como se soubesse o que estava se passando na mente de Sarah. - Por isso, mandei fechar esta área.
- Ah - exclamou Sarah baixinho -, e ele não está aqui, não é?
- Fizemos tudo exatamente como nos pediu.
Na caverna de terra em Highfield, Sarah tinha insistido numa condição: não conseguia suportar ver o marido, mesmo ao fim de todos aqueles anos. Se era porque isso ia lhe trazer recordações do bebê morto, ou por não ser capaz de lidar com o fato de o ter traído e abandonado, não sabia.
Ainda o odiava e, quando se permitia ser brutalmente honesta consigo própria, ainda o amava, em proporções iguais.
Caminhava como num sonho enquanto iam se aproximando da sua casa. Esta não mudara nada, como se ela a tivesse deixado na véspera e os últimos doze anos nunca houvessem acontecido. Sarah estava em casa ao fim de todo aquele tempo sempre fugindo, vivendo ao deus-dará, como um animal qualquer.
Tocou no corte profundo da garganta.
- Está bem, não parece muito grave - disse Rebecca apertando a mão de Sarah.
Lá estava aquilo outra vez: uma criança Styx, gerada da maior porcaria imaginável, a tentar confortá-la! Segurava-lhe na mão e agia como se fosse sua amiga. O mundo teria enlouquecido?
- Preparada? - perguntou-lhe Rebecca, e Sarah voltou-se de frente para a casa.
Da última vez que a tinha visto, o seu bebê morto estava exposto - naquele quarto ali -, os olhos subiram para o quarto de dormir no primeiro andar - o quarto dela e do marido, onde ela tinha estado sentada ao lado do berço naquela noite pavorosa. E ali em baixo - virou a atenção para a janela da sala de estar - lampejos da sua vida passada com os dois filhos voltaram-lhe: a arranjar-lhes a roupa, a despejar a grelha da lareira de manhã, a levar chá ao marido enquanto ele lia o jornal e a voz profunda do irmão Tam como se estivesse a ouvi-la noutra divisão, o riso dele a vibrar enquanto os copos tilintavam uns nos outros. Oh, se ao menos ele ainda estivesse vivo. Querido, querido, querido Tam.
- Preparada? - perguntou Rebecca outra vez.
- Sim - replicou Sarah num tom decidido. - Estou preparada.
Subiram devagarinho o caminho de acesso, mas quando chegaram à porta da frente, Sarah encolheu-se e deu um passo atrás.
- Está tudo bem - arrulhou Rebecca docemente. - A sua mãe está à espera. - Empurrou a porta e entrou, e Sarah seguiu-a para a pequena entrada. - Ela está ali. Vá ter com ela. Eu espero aqui fora.
Sarah olhou para o familiar papel de parede com riscas verdes em cima do qual estavam pendurados os retratos dos antepassados do marido, gerações de homens e mulheres que nunca tinham visto o que ela vira: o Sol. Depois tocou no abajur azul fosco de um candeeiro em cima da mesa da entrada, como se quisesse assegurar-se de que era tudo verdadeiro, que não estava presa nas garras de um sonho bizarro.
- Demore-se o tempo que quiser.
Com estas palavras, Rebecca deu meia volta e, em passadas rígidas, saiu da casa, deixando Sarah sozinha.
Sarah inspirou fundo e, andando muito ereta, como se fosse um autômato, dirigiu-se para a sala de estar.
A lareira estava acesa e a sala tinha o aspecto de sempre, talvez um pouco mais gasta e descolorida pelo fumo, mas ainda quente e confortável. Avançou silenciosamente para o tapete persa e as poltronas de couro, contornando-as devagarinho para ver quem estava lá sentado. Continuava a pensar que a qualquer momento iria acordar e tudo aquilo teria desaparecido, desaparecendo da memória como qualquer sonho.
- Mamãe?
A velha senhora ergueu debilmente a cabeça como se tivesse estado a dormitar, mas Sarah percebeu que não quando viu as lágrimas nas faces enrugadas. A mãe tinha o cabelo branco preso num coque mal feito e trazia um vestido preto com uma gola de renda lisa, presa à frente com um broche simples. Sarah sentiu que o seu corpo ficava mole com todas as emoções que a estavam a percorrer.
- Mamãe.
A voz fraquejou-lhe e a única coisa que conseguiu foi um grasnido.
- Sarah - disse a velha senhora, e levantou-se com alguma dificuldade. Ergueu os braços para Sarah, que viu que ela ainda chorava, e não conseguiu evitar fazê-lo também. - Eles disseram que estava chegando, mas não me atrevi a ter esperança.
Os braços da mãe estavam à volta dela, mas pareciam-lhe fracos, não tinham o aperto forte de que ela se lembrava. Ficaram de pé, abraçadas, até que a mãe falou:
- Preciso me sentar - arquejou ela.
Quando se sentou, Sarah ajoelhou-se à frente da cadeira, ainda agarrando as mãos da mãe.
- Está com bom aspecto, minha filha - disse a mãe.
Houve um silêncio enquanto Sarah procurava qualquer coisa para dizer em resposta, mas estava esgotada demais para conseguir falar.
- A vida lá em cima deve convir-te - continuou a velha senhora. - É mesmo tão má como nos dizem?
Sarah começou a responder, mas depois fechou a boca. Não conseguia sequer começar a explicar e, naquele momento, de qualquer maneira, as palavras não interessavam a nenhuma delas. Era estarem juntas, estarem reunidas, que contava.
- Aconteceu tanta coisa, Sarah. - A senhora hesitou. - Os Styx têm sido bons para mim. Têm-me mandado uma pessoa para me ajudar a ir à igreja todos os dias para eu poder rezar pela alma do Tam. - Ergueu os olhos para a janela como se fosse demasiado doloroso olhar para Sarah. - Eles me disseram que ia voltar para casa, mas não me atrevi a acreditar neles. Era esperar demais poder te ver outra vez... uma última vez... antes de morrer.
- Não diga isso, Mamãe, ainda tem uns anos à sua frente - disse Sarah muito docemente, enquanto sacudia as mãos da mãe numa reprimenda gentil.
Quando a mãe virou a cabeça para ela, Sarah olhou-a nos olhos. Fazia doer o coração ver as diferenças neles, como se uma luz se tivesse apagado. Existira sempre uma faísca cintilante neles, mas agora pareciam baços e vazios. Sarah sabia que a responsabilidade disso não tinha sido apenas do tempo. Sabia que era em parte responsável e sentiu que tinha de justificar as suas ações.
- Fui a causa de tanta coisa, não fui? Dividi a família. Pus os meus filhos em perigo... - disse Sarah, com a voz a tremer e a começar a falhar. Inspirou fundo rapidamente. - E não faço ideia de como o meu marido... o John... se sente.
- Ele cuida de mim agora - disse a mãe muito depressa. - Agora que já não há mais ninguém.
- Oh, Mamãe - gemeu Sarah, começando a gaguejar. - Eu... eu não queria que ficasse sozinha... quando fui embora... lamento tanto... tanto...
- Sarah - interrompeu a velha senhora, as lágrimas a correrem-lhe livremente pelo rosto enrugado enquanto apertava com força as mãos da filha. - Não se torture. Fez o que achava que devia fazer.
- Mas o Tam... o Tam morreu... e eu não consigo acreditar.
- Não - disse a velha senhora suavemente, tão suavemente que mal se ouvia com o barulho do fogo a estalar na sala, e inclinou a cara amargurada. - Eu também não.
- É verdade... - Sarah hesitou a meio da frase e depois fez a pergunta que tanto receava fazer. - É verdade que o Seth teve a ver com isso?
- Chame-o Will, não lhe chame de Seth! - disse a mãe asperamente, a cabeça a virar-se repentinamente para Sarah.
A explosão foi tão inesperada que Sarah se sobressaltou.
- Ele não é o Seth, já não é o seu filho - disse a mãe, a fúria a contrair-lhe os tendões do pescoço e a transformar-lhe os olhos em fendas. - Não, depois do mal que fez, não.
- Tem certeza disso?
A mãe tornou-se incoerente.
- O Joe... os Styx... a polícia... todo mundo tem certeza! - disse ela de forma confusa. - Você não sabe o que aconteceu?
Sarah estava dividida entre precisar de saber mais e não querer perturbar mais a mãe. Mas tinha de descobrir a verdade.
- Os Styx disseram-me que o Will fez com que o Tam caísse numa armadilha - disse Sarah, apertando carinhosamente as mãos da mãe, tensas e rígidas.
- Apenas para salvar a sua pele inútil - disse a velha senhora numa voz carregada de desprezo. - Mas como foi capaz de fazê-lo?
A cabeça descaiu, mas os olhos continuaram fixos em Sarah. A raiva pareceu abandoná-la naquele instante e foi substituída por uma expressão de incompreensão muda. Durante uns momentos ficou mais próxima da pessoa de quem Sarah se lembrava, a velha senhora bondosa que tinha passado toda a vida a trabalhar tão duramente para a família.
- Não sei - respondeu Sarah num sussurro. - Dizem que obrigou o Cal a ir com ele.
- Obrigou, sim!
Num ápice, a mãe tinha voltado à máscara vingativa e feia, arqueando os ombros já curvados numa demonstração de cólera e arrancando as mãos das de Sarah.
- Recebemos o Will de braços abertos, mas ele tinha se tornado um abominável e odioso Habitante da Superfície. - Bateu nos braços do cadeirão com os dentes cerrados. - Enganou-nos... a todos, e o Tam morreu por causa dele.
- Eu só não compreendo como... porque fez ele isso ao Tam? Porque havia um filho meu de fazer uma coisa dessas?
- ELE NÃO É O SEU FILHO, RAIOS! - gritou a mãe, o peito pequeno a arfar.
Sarah encolheu-se - nunca tinha ouvido a mãe praguejar, nem uma única vez em toda a sua vida. Também estava com medo por causa da saúde dela. Atingira um tal estado de excitação que Sarah receou que se pudesse magoar se continuasse tão angustiada.
Depois, voltando a acalmar-se, a velha senhora implorou:
- Faça o que fizer, tem de salvar o Cal.
Inclinou-se para a frente, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces enrugadas.
- Vai trazer o Cal de volta, não vai, Sarah? - perguntou a mãe, uma tonalidade dura como aço a introduzir-se na voz. - Vai salvá-lo - prometa-me isso.
- Nem que seja a última coisa que faça - murmurou Sarah, voltando-se para olhar para a lareira.
Este momento em que voltava a encontrar a mãe, com que tinha sonhado tantas vezes e durante tantos anos, ficara sujo e profanado pela duplicidade de Will. Naquele instante, a convicção profunda da mãe de que ele era responsável baniu todas as reservas que ainda tivesse. Mas o mais difícil para Sarah era a sua ligação mais forte com a mãe, depois de um intervalo de doze anos, ser a necessidade esmagadora que ambas sentiam de se vingarem.
Ficaram escutando o estalar do fogo na lareira. Não havia nada para dizerem e nenhuma delas tinha vontade de falar, consumidas pela raiva e pelo puro ódio que ambas sentiam por Will.
ø ø ø
No exterior, Rebecca observava os cavalos a mastigarem ruidosa e impacientemente e a sacudirem os arreios quando abanavam as cabeças. Ela encostara-se à porta da segunda carruagem, onde Joe Waites estava sentado, muito enervado, rodeado por vários Styx. Olhava para Rebecca através da janela pequena da carruagem, a cara tensa e retesada, um brilho de suor doentio na testa.
Apareceu um Styx ao lado da porta dos Jeromes. Era o mesmo Styx que estivera sentado ao lado de Sarah durante a viagem até à Colônia e que, sem que ela e a mãe soubessem, se tinha introduzido na casa pela porta de trás para poder monitorizar a conversa delas do vestíbulo.
Ergueu a cabeça para Rebecca. Ela fez-lhe um aceno com a cabeça em resposta.
- Isso é bom? - inquiriu Joe Waites muito depressa, aproximando-se mais da janela da carruagem.
- Sente-se! - disparou Rebecca com a veemência de uma víbora.
- Mas, a minha mulher, a minha filha? - perguntou roucamente, os olhos com uma expressão patética do desespero. - Vão me devolvê-las agora?
- Talvez. Se for um Colonozinho bonzinho e continuar a fazer o que te mandarmos - escarneceu Rebecca.
Depois, na linha de estalidos nasalados dos Styx, dirigiu-se à escolta na carruagem.
- Quando acabarmos aqui, levem-no para junto da família. Trataremos deles em conjunto quando o trabalho tiver terminado.
Joe Waites observou apreensivamente quando o Styx ao lado dele assentiu, dirigindo um sorriso sardônico a Rebecca.
Rebecca voltou para a primeira carruagem, balançando os quadris da forma que tinha visto as adolescentes precoces fazerem quando estivera na Superfície. Era o seu andar vitorioso. Agora a vitória já estava tão próxima que quase a conseguia saborear fisicamente, a boca a encher-se de saliva pegajosa. O pai iria ficar orgulhoso dela. Tinha agarrado em dois problemas, duas estirpes, e estava a pô-los um contra o outro. O melhor resultado seria se se neutralizassem um ao outro, mas mesmo que restasse um no final da peça, ela conseguiria neutralizá-lo rapidamente. Ah! A elegância!
Postou-se ao lado da carruagem onde o velho Styx continuava sentado.
- Progressos? - perguntou-lhe ele.
- Ela está engolindo tudo, isca, anzol e lastro.
- Excelente - disse-lhe o velho Styx. - E quanto à ponta solta? - perguntou, apontando com a cabeça para a carruagem atrás dele.
Rebecca sorriu com aquele sorriso gentil que usara para convencer Sarah.
- Quando Sarah estiver segura no Trem dos Mineiros, vamos cortar em tiras Joe Waites e a família e espalhá-las pelos campos da Caverna Ocidental. Estrume para os cogumelos.
Torcendo o nariz, fez uma careta como se tivesse cheirado qualquer coisa desagradável.
- E vamos fazer o mesmo com aquela bruxa velha ali dentro - disse ela, apontando com o polegar na direção da casa dos Jeromes.
Soltou um risinho de satisfação quando o velho Styx assentiu aprovadoramente com a cabeça.
Capítulo Dezessete
-C
omida... não há dúvida... é comida - disse Cal, inclinando a cabeça para trás e abrindo as narinas, inspirando profundamente.
- Comida? - reagiu Chester de imediato.
- Ná, não sinto nada - disse Will a olhar para os pés enquanto se arrastavam vagarosamente sem saberem exatamente para onde iam e porquê. A única coisa que sabiam era que andavam a acompanhar o canal havia vários quilômetros e ainda não tinham encontrado nada que se parecesse, mesmo vagamente, com um caminho.
- Arranjei água fresca para todos na casa velha, não arranjei? Agora vou descobrir provisões frescas para todos nós - declarou Cal, com a petulância habitual.
- Ainda nos restam algumas - contrapôs Will. - Não era melhor dirigirmo-nos para aquela luz lá à frente ou descobrir uma estrada ou qualquer coisa assim, sem irmos para onde podemos encontrar Colonos? Digo que devemos tentar descer para o nível inferior, para onde o meu pai provavelmente já foi.
- Exatamente! - concordou Chester. - Principalmente se este maldito lugar vai nos fazer brilhar no escuro.
- Ora - disse Will -, isso ia ser muito útil.
- Não seja idiota - disse Chester sorrindo para o amigo.
- Desculpem, mas não concordo - disse Cal, interrompendo-lhes a brincadeira. - Se isto for uma espécie de loja de comida, podemos estar perto de uma aldeia dos Coprolites.
- Sim, e...? - desafiou-o Will.
- Bem, o seu pretenso pai... ele também vai andar à procura de comida - raciocinou Cal.
- É verdade - concordou Will.
Continuaram a avançar mais um tempo, os pés a levantarem poeira, até que Cal anunciou em tom de cantilena:
- Está ficando mais forte.
- Sabe, acho que tem razão. Há qualquer coisa - disse Will quando pararam para cheirar o ar.
- Hummm, talvez um quiosque de hambúrgueres? - sugeriu Chester ansiosamente. - Neste momento, dava um dedo por uma Big Mac, tamanho super.
- Parece... alguma coisa doce - disse Will, uma expressão de profunda concentração enquanto voltava a farejar o ar repetidas vezes.
- Seja lá o que for, não vamos nos incomodar com isso - propôs Chester. Começava a ficar nervoso, dando olhares cautelosos ao redor, o que o fazia parecer um pouco com um pombo empertigado.
- A verdade é que não tenho vontade nenhuma de cruzar com essas coisas dos Coprolites.
Cal voltou-se para ele.
- Olhe, quantas vezes tenho de te dizer? Eles são completamente inofensivos. As pessoas na Colônia dizem que podemos tirar-lhes tudo o que quisermos, isto se primeiro conseguirmos encontrá-los, claro.
Como Chester não deu qualquer resposta, Cal continuou:
- Temos de investigar tudo o que seja invulgar. Se dermos por uma coisa, o pai de Will também pode ter dado, e é a modos por causa dele que estamos aqui, não é assim? - concluiu em tom sarcástico. - Seja como for, tivemos de ficar deste lado do canal porque você não quis molhar os pés.
Cal dobrou-se para apanhar uma pedra, que atirou agressivamente. Bateu ruidosamente na água, levantando uma nuvem de borrifos.
- Meu Deus! Você nunca para, não é? - gemeu Chester.
- Ah, sim? - replicou Cal.
- Bem, é engraçado, mas não vi você se despir e se atirar de cabeça lá para dentro - disse Chester, olhando furiosamente para o rapaz mais novo. - Como diz o ditado? Chefiar pelo exemplo?
- O que quer dizer com isso de chefiar? Nós não temos um chefe, estamos todos nisto.
- Pois, quem diria!
- Vamos lá, pessoal - pediu Will. - Parem com isso. Não precisamos de besteiras como essas.
O trio caiu num silêncio opressivo enquanto recomeçavam a andar, a guerra de palavras entre Cal e Chester momentaneamente suspensa.
Então Cal afastou-se de Will e de Chester, começando a andar numa direção perpendicular ao canal.
- Está vindo dali.
Parou quando a luz da lanterna apanhou um afloramento rochoso. Ao lado havia uma abertura, uma fenda formada naturalmente no chão, como uma grande caixa de correio.
Enquanto os outros dois espreitavam pela abertura, Will reparou numa cruz espetada na terra ao lado do afloramento rochoso. A cruz era feita de dois pedaços de madeira, raspada até ficar tão branca como um osso, e ligados por uma coisa qualquer.
- O que significa isto? - perguntou, apontando-a a Cal.
- Aposto que é uma marca dos Coprolites - retorquiu o irmão, muito entusiasmado. - Se tivermos sorte, é capaz de haver uma povoação lá em baixo, e com certeza que eles têm comida. Podemos comer tudo o que quisermos.
- Não tenho certeza de que seja boa ideia - disse Will abanando a cabeça.
- Will, vamos esquecer isto e continuar - pediu Chester ao amigo, espreitando apreensivamente para dentro do buraco. - Também não estou gostando do aspecto disto.
- Você não gosta do aspecto de nada - retorquiu-lhe Cal com brusquidão. - Porque não ficam aqui enquanto eu dou uma olhada? - continuou ele, enfiando-se pela abertura.
Segundos depois, gritou que tinha encontrado uma passagem.
Will e Chester estavam cansados demais para lhe dizerem que parasse, sabendo perfeitamente que iam envolver-se noutra discussão. Por isso, e com grande relutância, seguiram-no. Quando chegaram no fundo, encontraram uma galeria horizontal. Cal não tinha esperado por eles e já avançara bastante pela passagem. Foram atrás dele, mas não era nada fácil. Quando a galeria se tornou mais baixa até se transformar numa pequena passagem, Will foi forçado a largar a mochila, ao lado do lugar para onde Cal tinha atirado a sua.
- Odeio isto - gemeu Chester.
Tanto ele como Will respiravam pesadamente enquanto continuavam a avançar com dificuldade, tendo às vezes de arrastar o peito pelo chão para conseguirem passar nos lugares onde a passagem era mais estreita.
Chester enfrentava dificuldades. Will sabia que ele estava com problemas porque conseguia ouvir a respiração ofegante do amigo enquanto se arrastava. Ele ainda não tinha se recuperado dos meses em que estivera encarcerado no Cárcere, apesar dos pequenos períodos de descanso no trem e na casa velha.
- Porque não volta para trás? Nos encontramos na entrada - sugeriu Will.
- Ah, tudo bem - arquejou Chester, gemendo enquanto se forçava para passar por um espaço particularmente apertado. - Tenho esta gordura toda, não tenho? - acrescentou.
- Está bem, se tem certeza.
Embora Will quisesse deslocar-se mais depressa para apanhar o irmão, abrandou deliberadamente para não deixar Chester para trás. Passados uns minutos, sentiu-se aliviado ao descobrir que a altura do teto aumentava e que podiam levantar-se outra vez.
E lá estava Cal, a uns vinte metros, parado à frente do que parecia ser outra caverna comprida. Enquanto Will e Chester esticavam os braços e as pernas, acenou-lhes. E depois foi embora, brandindo a lanterna à sua frente.
- Ele é rápido, tenho de reconhecer. Acho que deve haver qualquer coisa de coelho nele - disse Chester, respirando mais calmamente.
- Está se sentindo melhor? - perguntou-lhe Will, reparando na expressão dolorida de Chester enquanto esfregava os braços e o suor que lhe escorria pela cara.
- Estou sim.
- Então é melhor nos juntarmos a ele - disse Will. - Não gosto nada deste cheiro. É muito pegajoso - acrescentou, franzindo o nariz.
Chegaram ao lugar onde Cal tinha estado parado e olharam lá para dentro.
Conseguiam sentir a secura do ar e o cheiro tornara-se ainda mais intenso. Não era agradável, havia algo de insubstancial nele, e as campainhas de alarme estavam começando a soar na cabeça de Will. Percebeu instintivamente que havia qualquer coisa falsa nele, tipo sacarina.
Cal explorava agora uma zona do chão que estava cheia de enormes pedregulhos arredondados. Em cima deles havia uns feixes de estruturas parecidas com canos que se elevavam chegando algumas a ter uns dois metros. Will não fazia a mínima ideia do que seriam. Não pareciam ter sido formadas pela ação da água, como as estalagmites; percebeu isso pela forma como estavam dispostas - demasiado organizadas. Cada feixe tinha vários canos maiores no centro, com cerca de dez centímetros de diâmetro, e à volta deles havia grupos de outros mais pequenos que irradiavam para fora, todos a apontar para cima.
Os canos eram de uma cor ligeiramente mais clara do que a da rocha onde estavam assentes, e, do sítio onde parara, Will conseguia ver que as partes de fora destes canos tinham anéis bem definidos que os circunscreviam a intervalos regulares de alguns centímetros. Isto sugeria-lhe que as coisas segregavam os seus invólucros à medida que cresciam. Também percebeu que estavam presos aos pedregulhos por uma espécie de secreção resinosa, como uma cola orgânica. Eram criaturas vivas.
Fascinado, deu um passo para elas.
- Will, acha que isso é seguro? - perguntou Chester, agarrando-o pelo braço para o deter.
Will limitou-se a encolher os ombros e estava olhando para trás, para a caverna, quando ambos viram Cal escorregar. Ele agarrou-se à parte de cima de um dos tubos para se equilibrar. Tirou apressadamente a mão quando se ouviu um barulho, como se alguém tivesse estalado os dedos, só que mais forte. Cal recuperou o equilíbrio e endireitou-se.
- Ai! - disse ele baixinho, a olhar para a mão com uma expressão aturdida.
- Cal? - chamou Will.
Durante um curtíssimo segundo, ele ficou ali parado, de costas para eles, a examinar a mão. Depois, caiu no chão.
- CAL!
Will e Chester trocaram olhares assustados e olharam rapidamente para o lugar onde Cal estava caído, sem se mexer. Will começou a avançar, mas descobriu que Chester ainda o agarrava pelo braço.
- Largue-me! - disse ele, tentando soltar-se.
- Não! - gritou-lhe Chester.
- Tenho de fazê-lo! - teimou Will, lutando para se libertar.
Chester soltou-o, mas ele parou ao fim de alguns passos. Estava acontecendo alguma coisa. Conseguiam ouvi-la.
- Mas que raio...? - arquejou Chester quando ouviram mais cliques, que iam soando mais alto e mais perto. Cliques secos e abafados que se tornavam cada vez mais rápidos até se fundirem numa barragem ressonante. Os rapazes, aterrorizados, viravam-se de um lado para o outro, tentando entender de onde vinha a pulsante cacofonia de percussão. Mas não conseguiram; nada parecia ter mudado na caverna onde Cal estava caído.
- Temos de tirá-lo dali! - gritou Will, precipitando-se para a frente.
Os dois rapazes correram para junto de Cal, chegando ao mesmo tempo. Chester observou cautelosamente as colunas em volta deles enquanto Will se agachava para virar Cal de costas. Ele estava inerte e sem reação, os olhos abertos e sem expressão.
Ao princípio pensaram que estivesse apenas atordoado, como se tivesse apanhado um choque, mas no preciso momento em que o estavam a observar, lívidas linhas púrpura, que acentuavam a rede de vasos capilares sob a pele, espalharam-se a partir dos olhos, de forma muito semelhante à maneira como a tinta se espalha pela água. Com uma rapidez terrível, as nódoas negras foram ficando cada vez maiores até se espalharem pelas faces. Parecia que tinha dois olhos negros enormes.
- O que se passa? O que ele tem? - gritou Will, a voz rouca de pânico.
Chester estava perplexo.
- Não sei - respondeu.
- Ele bateu com a cabeça nalguma coisa? - gritou Will.
Chester examinou imediatamente a cabeça de Cal, passando a mão por cima dela, de cima até à nuca. Não havia sinal de nenhum ferimento.
- Verifique a respiração - murmurou para si próprio, tentando recordar os procedimentos dos primeiros socorros.
Inclinando a cabeça de Cal para trás, baixou-se para ficar com o ouvido por cima do nariz e da boca do rapaz, e escutou. Afastou-se, parecendo perturbado. Depois voltou a inclinar-se para a frente, abrindo bem a boca de Cal para se certificar de que não havia nada a obstruí-la e voltou a pôr a cabeça de lado para escutar. Soprando pela boca, pôs-se de cócoras e pousou a mão no peito do rapaz.
- Jesus Cristo, Will! Acho que ele não está respirando!
Will agarrou no braço inerte do irmão e sacudiu-o.
- Cal! Cal! Vamos lá! Acorde! - gritou.
Pôs dois dedos no pescoço do rapaz, à procura da artéria e tentando desesperadamente sentir a pulsação.
- Aqui... não... onde é?... nada... ONDE RAIO É QUE ESTÁ? - gritou ele. - Estou fazendo isto certo?
Olhou para Chester, os olhos muito abertos com a consciência angustiada e lancinante de que não conseguia sentir o bater do coração.
Que o irmão estava morto.
Nesse preciso momento, os cliques foram substituídos por outro som. Um estouro suave parecido com o das rolhas das garrafas de champanhe a saltarem, mas mais leve, como se se estivesse a ouvi-lo através de uma parede.
O ar ficou instantaneamente cheio de uma brancura que fluía em grandes ondas, um dilúvio que bloqueava o ar e envolvia os rapazes, apanhando os raios de luz das lanternas e tornando o ar sólido. Estas partículas, como um milhão de pétalas minúsculas, surgiam em torrentes. Podiam sair dos tubos, mas o ar estava tão denso que era impossível saber.
- Não! - guinchou Will.
Com uma mão tapando a boca e o nariz, começou a arrastar o irmão pelo chão, puxando-o pelo braço, tentando levá-lo para a entrada da caverna. Mas Will percebeu que não conseguia respirar; as partículas pareciam areia, entupindo-lhe a boca e as narinas.
Arqueou as costas e engoliu um pouco de ar, o suficiente para gritar umas palavras a Chester:
- Leve-o lá para fora! - gritou por cima do incessante ruído dos estouros.
Chester não precisara que lhe dissessem. Tinha se levantado, mas estava a cambalear sob aquele ataque violento, a piscar e a proteger os olhos enquanto aquela matéria parecida com neve continuava a ser cuspida. O ar estava tão denso e impenetrável que, quando acenou a Will, o braço deixou uns remoinhos atrás de si.
Will escorregou e caiu no chão, tossindo e arquejando.
- Não consigo respirar - chiou ele com o pouco ar que lhe restava nos pulmões.
Deitando-se de lado, esforçou-se para voltá-los a encher. Praguejou quando se lembrou das máscaras de gás que ele e Cal haviam usado na Cidade Eterna. Tinham-nas deitado fora, julgando que não voltariam a precisar. Tinham se enganado.
Com a mão a tapar a cara, Will estava deitado de lado, incapaz de fazer fosse o que fosse. Através do dilúvio, viu Chester arrastando Cal, o corpo do rapaz a deixar uma esteira atrás de si, na brancura do chão.
Will obrigou-se a rastejar, os pulmões a doerem com a falta de oxigênio e a cabeça a rodar. Não podia pensar no irmão, sabia que ele iria sucumbir se não saísse da caverna. Tinha a garganta e as narinas bloqueadas, como se o tivessem enterrado em farinha. Com um esforço supremo, conseguiu levantar-se aos tropeções e dar uns passos, tentando gritar a Chester que saísse também, mas não foi capaz. Não conseguia arranjar ar suficiente para gritar, e Chester, de costas para Will, continuava a puxar e a arrastar o corpo sem vida.
Will lançou-se para a frente, avançando apenas uns cinco metros antes de voltar a cair no chão. Bastava. Estava longe do pior do torvelinho da tempestade branca, e conseguiu inalar ar limpo.
Continuou a rastejar lentamente, mas ainda não tinha avançado muito quando se dobrou e tossiu tanto que começou a vomitar, incontrolavelmente. Ficou consternado ao ver que o vômito estava cheio de pequenas partículas claras e um pouco de sangue. Dominado apenas pela ideia da sobrevivência, forçou-se a descer a passagem engatinhando, avançando cegamente pela zona estreita, e só parou quando chegou à abertura de caixa do correio.
Içou-se para fora e voltou à Grande Planície, pondo-se a tossir, a espirrar e a vomitar um fluido sarapintado. Mas a sua provação ainda não acabara. As particulazinhas brancas que tinham se colado à pele exposta do pescoço e da cara começaram a irritar-lhe a pele, e essa irritação depressa se transformou numa pavorosa sensação de queimadura. Tentou arrancar as partículas com as mãos, mas isso parecia piorar as coisas ainda mais. Quando os pontinhos brancos eram arrancados, traziam consigo pedacinhos de pele e viu que tinha os dedos cheios de manchas de sangue.
Sem saber que mais poderia fazer, Will agarrou mãos cheias de terra e esfregou-se com isso, raspando furiosamente a cara, o pescoço e as mãos. Isto pareceu funcionar, a coceira e a dor intoleráveis diminuíram ligeiramente. Mas os olhos continuavam a arder intensamente e levou alguns minutos a limpá-los com a parte de dentro da manga da camisa.
Foi então que Chester apareceu. Subiu para fora da abertura, tropeçando às cegas. Quando caiu ajoelhado a tossir e a vomitar, Will viu que ele tinha vindo a arrastar qualquer coisa atrás de si. Com os olhos cheios de lágrimas, Will julgou que era Cal. Mas depois o coração caiu-lhe aos pés quando viu que eram apenas as mochilas que Chester tinha trazido da passagem.
Chester uivou, arranhando a cara e os olhos. Will conseguia ver que ele ficara completamente coberto com as partículas brancas; o cabelo estava salpicado delas e a cara forrada nos lugares onde elas se tinham colado ao suor. Chester voltou a uivar, arranhando-se violentamente no pescoço como se estivesse a tentar arrancar a pele.
- Que raio de coisa é esta! - gritou num estrangulado gemido agonizante.
- Use a terra, esfregue-se com ela! - berrou-lhe Will.
Chester fez imediatamente o que Will lhe disse, agarrando porções de terra e esfregando a cara com ela.
- Tenha cuidado! Não a deixe entrar nos olhos!
Chester revolveu os bolsos das calças e, tirando um lenço para fora, esfregou-o freneticamente nos olhos. Passado um tempo os seus movimentos tornaram-se menos frenéticos. Tinha ranho a escorrer-lhe do nariz e os olhos continuavam lacrimejantes e orlados de vermelho. A cara era uma mistura de terra e sangue, como se tivesse uma máscara horrorosa. Olhou para Will com uma expressão apavorada.
- Não consegui aguentar mais - disse roucamente. - Não consegui ficar lá... não conseguia respirar. - Recomeçou a tossir terrivelmente e depois cuspiu.
- Tenho de tirá-lo dali - disse Will, começando a dirigir-se para a abertura. - Vou voltar.
- Não, não vai! - retorquiu Chester rapidamente, levantando-se de um salto e agarrando-o.
- Tenho de ir - disse Will, tentando se soltar.
- Não seja estúpido, Will! E se aquelas coisas te apanharem e eu não conseguir te tirar de lá? - gritou-lhe Chester.
Will lutou com o amigo, tentando libertar-se, mas Chester estava decidido a não o deixar ir. Por pura frustração, Will fez uma tentativa pouco convencida para lhe dar um murro. Sabia que o que Chester dizia fazia sentido. O corpo ficou flácido, como se as forças o tivessem abandonado por completo.
- Está bem, está bem - disse Will em voz trêmula, erguendo as mãos num sinal de rendição para Chester, que o soltou.
Will tossiu e depois virou a cabeça para cima como se procurasse o céu, embora soubesse que ele estava escondido por muitos quilômetros do manto da Terra. Soltou um suspiro que lhe fez estremecer o corpo todo quando, finalmente, percebeu a verdade.
- Tem razão. Cal morreu.
Chester fixou os olhos em Will e assentiu com a cabeça.
- Sinto muito, Will. Realmente sinto muito.
- Ele só estava tentando ajudar. Tentando arranjar-nos comida... e agora vê o que aconteceu.
Os ombros de Will curvaram-se e ele baixou a cabeça.
Como a pele em carne viva continuava a arder, Will esfregou o pescoço, a mão a tocar e a fechar-se inconscientemente no pendente de jade que trazia pendurado. Fora-lhe dado por Tam minutos antes de ter sido chacinado pelos Styx.
- Prometi ao Tio Tam que tomaria conta do Cal. Dei-lhe a minha palavra - disse tristemente, e virou as costas. - O que estamos a fazer aqui? Como é que isto tudo aconteceu? - Tossiu e depois disse muito baixinho: - Provavelmente, o Papai também está morto em algum lugar, e nós somos uns idiotas e também vamos morrer. Desculpe, Chester, o jogo acabou. Estamos acabados.
Deixando a lanterna para trás, afastou-se de Chester, e tropeçou até a um rochedo. Aí, na escuridão, sentou-se e ficou a olhar para o vazio à sua frente, e parecia que este lhe devolvia o olhar.
Capítulo Dezoito
C
om um estalo ruidoso do chicote, a carruagem abandonou a casa dos Jerome. Rompeu o cordão de uma barricada que uns polícias estavam a afastar rapidamente do caminho. Uma pequena multidão juntara-se ao fundo da rua e as pessoas faziam o possível para darem a ideia de que estavam a tratar dos seus assuntos quotidianos. Falhavam redondamente ao esticarem os pescoços para a carruagem na tentativa de verem quem estava lá dentro, tal como, aliás, também faziam muitos dos polícias.
Sarah olhava pela janela com uma expressão vazia, sem reparar nas caras e nos olhares curiosos. Estava completa e profundamente exausta do encontro com a mãe.
- Como vê, é uma celebridade - comentou Rebecca, sentada ao lado do Styx velho; o mais novo tinha ficado em casa dos Jerome.
Sarah dirigiu a Rebecca um olhar vidrado antes de se voltar outra vez para a janela.
A carruagem rolou ruidosamente pelas ruas até ao canto mais longínquo da Caverna Sul onde ficava o recinto dos Styx. O recinto estava cercado por uma vedação de arame farpado com dez metros de altura, e lá dentro ficava um edifício enorme e intimidante. Os seus sete andares estavam escavados na própria rocha e tinha duas torres quadradas em cada uma das extremidades da frontaria. O edifício, conhecido pela Cidadela dos Styx, era funcional e severo, as paredes de pedra em bruto não tinham um único elemento decorativo que amenizasse a simplicidade geométrica. Nenhum Colono alguma vez pusera os pés lá dentro, e ninguém sabia exatamente qual o seu tamanho nem o que se passava lá dentro, uma vez que a estrutura penetrava profundamente no leito rocha firme. Dizia-se que a Cidadela estava ligada à superfície por vários túneis para que os Styx pudessem subir sempre que quisessem.
Também no interior do recinto e a um dos lados da Cidadela havia um outro grande edifício muito mais atarracado, com filas de janelas pequenas e regularmente espaçadas nos seus dois andares. Pensava-se que era o centro das operações militares dos Styx embora ninguém tivesse certeza -, mas, apesar disso, era frequentemente designada pela Guarnição. Ao contrário do que acontecia com a Cidadela, os Colonos estavam autorizados a entrar neste edifício e, de fato, alguns trabalhavam lá ao serviço dos Styx.
E foi para este edifício, a Guarnição, que a carruagem se dirigiu. Desembarcando, Sarah seguiu atrás de Rebecca, sem fazer qualquer pergunta, até à entrada, onde um policial numa guarita fez a continência, desviando os olhos. Mal se encontraram dentro da Cidadela, Rebecca entregou Sarah a um Colono e foi-se imediatamente embora.
Sarah, com a cabeça inclinada pelo cansaço, conseguiu olhar de relance para o homem. As mangas enroladas da camisa deixavam ver uns antebraços possantes e o peito era largo e robusto, como acontecia com muitos homens da Colônia. Vestia um avental comprido de borracha preta com uma pequena cruz branca no centro. A cabeça estava quase rapada, com uns tufos de cabelo branco a começarem a despontar, e as sobrancelhas enormes pendiam sobre uns olhos de um azul-claro perfeito, mas bastante pequenos. Com um tom de pele semelhante ao de Sarah, era de "cepa pura", para utilizar a designação local para os albinos, os descendentes de alguns dos fundadores originais da Colônia. Tal como o policial, também ele tinha tratado Rebecca com deferência, mas agora estava sempre a olhar de soslaio para Sarah, que se arrastava indiferente atrás dele.
Levou-a por um lance de escadas e ao longo de vários corredores, os passos de ambos a ecoarem no chão de pedra polida. As paredes eram lisas e sem adornos, quebradas apenas por várias Portas de ferro escuro, todas elas fechadas. O homem parou junto de uma dessas portas e abriu-a para trás. O chão de pedra prolongava-se para dentro, e Sarah viu um colchão estendido num canto por baixo de uma janela estreita no alto da parede. Havia uma tigela de esmalte branco ao lado da cama, cheia de água, e junto dela uma caneca esmaltada igual e umas fatias de cogumelos cuidadosamente empilhadas num prato. A simplicidade e o despojamento do quarto davam-lhe uma sensação de mosteiro ou de um tipo de retiro religioso.
Sarah ficou parada na soleira, mas não fez qualquer movimento para entrar.
O homem abriu a boca como se fosse falar e depois fechou-a. Repetiu isto várias vezes, como um peixe na areia, e, finalmente, pareceu ter arranjado coragem.
- Sarah - disse ele, muito baixinho, inclinando a cabeça para ela.
Ela ergueu os olhos para ele com a incompreensão provocada pela exaustão total.
O homem olhou para um lado e o outro do corredor, assegurando-se de que não havia ninguém perto que o pudesse ouvir.
- Não devia falar assim com você, mas... não me reconhece? - perguntou-lhe ele.
Sarah franziu os olhos como se estivesse tentando focá-lo, e depois uma expressão sobressaltada de reconhecimento espelhou-se-lhe na cara.
- Joseph... - disse ela, quase inaudivelmente, reconhecendo o amigo.
Tinham a mesma idade, e quando eram adolescentes haviam sido muito amigos. Sarah perdera-lhe o rasto quando a família dele passara um mau bocado e fora forçada a mudar-se para a Caverna Ocidental para trabalhar nos campos.
Ele esboçou um sorriso tímido que não condizia com a cara grande e pesada, o que, estranhamente, ainda o fazia parecer mais terno.
- Deve saber que todo mundo compreende porque foi embora, e... nós... - gaguejou à procura das palavras certas -, nós nunca te esquecemos, alguns de nós, eu.
Uma porta bateu em algum lugar dentro do edifício e ele olhou nervosamente por cima do ombro.
- Obrigada, Joseph - disse Sarah, tocando-lhe no braço, e depois entrou no quarto arrastando os pés.
Joseph murmurou-lhe qualquer coisa e fechou a porta devagarinho atrás dela, mas nada disto foi registrado por Sarah, que largou a mala no chão e se deixou cair no colchão, onde se enroscou. Ficou a olhar para a pedra polida da parede no lugar onde se unia ao chão, vendo os contornos de muitas formas de fósseis, a maioria amonites e outros moluscos, os traços subtis a aparecerem como se um desenhista divino os tivesse desenhado ali com um lápis de óleo.
Enquanto tentava pôr os diferentes pensamentos e emoções em qualquer coisa que se parecesse com uma ordem, os inúmeros restos dos fósseis, todos misturados mas apanhados para toda a eternidade nas suas atitudes petrificadas, quase fizeram sentido. Era como se de repente os compreendesse, como se conseguisse ler um padrão na sua disposição caótica, uma chave secreta, que ajudava a explicar tudo. Mas depois esse momento de clareza passou e, no silêncio imenso, caiu num sono profundo.
Capítulo Dezenove
O
s primeiros raios de sol derramaram-se no horizonte, tingindo uma tira estreita do céu com a variedade de tons vermelhos e laranjas da aurora. Poucos minutos depois, a sua luz nascente estava a estender-se muito baixo por cima dos telhados, empurrando a noite e iniciando o novo dia.
Lá em baixo, em Trafalgar Square, um trio de táxis pretos arrancou num semáforo quando um ciclista solitário serpenteou incautamente pelo meio deles. Virou bruscamente à frente do que ia na dianteira, fazendo com que o condutor pisasse fundo nos freios, que soltaram o característico guincho penetrante. O motorista do táxi agitou o punho e gritou pela janela aberta, mas o ciclista limitou-se a fazer-lhe um gesto desagradável ao mesmo tempo que acelerava em direção a Pall Mall, as pernas a trabalharem furiosamente.
Para lá da esquina mais afastada da praça apareceu um trem de automóveis vermelhos de dois andares; estes encostaram nas respectivas paradas, mas não se viam muitos passageiros a sair ou a entrar àquela hora da manhã. A hora do pico ainda não tinha chegado.
- O pardal madrugador é que apanha as minhocas - Rebecca riu-se alegremente, esquadrinhando as calçadas lá embaixo ao mesmo tempo que observava os raros peões que lá circulavam.
- Não penso neles como minhocas; são piores do que coisas inanimadas - declarou o velho Styx, contemplando a cena com os seus olhos brilhantes, que estavam tão alerta como os de Rebecca.
Na luz crescente, o seu rosto estava tão pálido e resoluto que parecia ter sido talhado num bloco de marfim antigo. E com o sobretudo de cabedal até os tornozelos e as mãos apertadas atrás das costas, parecia um general vitorioso, de pé, ao lado de Rebecca, na borda do telhado do Admiralty Arch. Nenhum deles mostrava o menor sinal de medo perante a queda abrupta com que se defrontavam.
- Há aqueles que se oporiam a nós e às medidas que vamos tomar - disse o velho Styx, ainda olhando para a praça. - Você começou limpando as Profundezas dos Renegados, mas não acaba aqui. Existem facções reacionárias tanto aqui, na Superfície, como na Colônia, nas Rookeries, com quem temos sido demasiado tolerantes há muito tempo. Você apresentou os planos do seu falecido pai e, agora que eles estão prestes a serem postos em prática, não podemos permitir um único grão de areia na engrenagem.
- De acordo - respondeu Rebecca, não deixando transparecer que, ali e naquele preciso instante, tinha sido tomada a decisão de matar vários milhares de pessoas.
O velho Styx fechou os olhos, não porque a luz crescente da Superfície o estivesse incomodando, mas porque tinha sido assaltado por uma ideia que o aborrecia.
- Aquele rapaz Burrows...
Rebecca abriu a boca para falar, mas segurou a língua enquanto o velho Styx continuava:
- ...você e a sua irmã agiram bem trazendo a mulher Jerome e neutralizando-a. O seu pai também não era pessoa para deixar as coisas por acabar. Vocês duas têm o instinto dele - disse o velho Styx, tão suavemente que poderia ser interpretado como afeto.
O seu tom recuperou a dureza habitual.
- Sendo assim, nós queimamos a serpente, não a matamos. O Will Burrows está contido por agora, mas ainda pode se tornar um ídolo falso, um testa-de-ferro, para os nossos inimigos. Eles podem tentar usá-lo na oposição que fazem a nós e às medidas que tencionamos tomar. Não o podemos deixar continuar a vaguear livremente pelo Interior. Tem de ser achado e parado. - Só nessa altura é que o velho Styx virou devagarinho a cabeça para Rebecca, que continuava a olhar para a cena lá em baixo. - E o rapaz ainda pode perceber o que estamos fazendo e acabar com os nossos planos. Não preciso te dizer que isso tem de ser evitado... custe o que custar - acentuou ele.
- Será resolvido - garantiu-lhe Rebecca com uma convicção inabalável.
- Assegure-se disso - disse o velho Styx e, soltando as mãos detrás das costas, puxou-as para a frente e bateu as palmas.
Rebecca percebeu o gesto.
- Sim - disse ela. - Temos de nos pôr a caminho.
O comprido casaco preto aberto enfunou-se com a brisa quando ela se voltou para o grupo de Styx que esperava silenciosamente atrás dela.
- Deixem-me ver uma - ordenou ela, quando abandonou a beira do telhado e se dirigiu imperiosamente para a fila dos homens na sombra.
Deviam ser uns cinquenta, numa linha perfeita, e desta um Styx ganhou vida instantaneamente, saindo obedientemente da formação. Ajoelhou-se para enfiar a mão enluvada por baixo da tampa de um dos dois grandes cestos de vime, que ele e todos os Styx no telhado tinham junto dos pés. Do cesto veio o som de um arrulhar suave enquanto ele tirava para fora uma pomba branca como a neve e voltava a fechar a tampa. Quando entregou a pomba a Rebecca, ela tentou bater as asas, mas Rebecca segurou-a firmemente com as duas mãos.
Virou a ave de lado para lhe inspecionar as patas. Havia alguma coisa enrolada à volta de cada uma delas, como lhe tivessem colocado algemas, mas estas coisas eram mais do que simplesmente anéis de metal. Feitas de um tecido branco ligeiramente acinzentado, faiscaram suavemente quando a luz as atingiu. Cada uma das faixas tinha esferas minúsculas embutidas, concebidas para se desintegrarem ao fim de várias horas de exposição à luz ultravioleta, e largarem a sua carga. Por isso, na realidade, o sol era o temporizador e o detonador.
- Estão preparadas? - perguntou o velho Styx, ao chegar ao pé de Rebecca.
- Estão - confirmou outro Styx mais ao fundo da fila.
- Excelente - disse o velho Styx, começando a percorrer a fila de homens, cada um deles a fundir-se com o seguinte na luz fraca; todos eles perfilados, ombro com ombro, todos eles com os seus casacões compridos de cabedal preto e as máscaras respiratórias postas.
- Meus irmãos - disse-lhes o velho Styx -, vamos deixar de nos esconder. Chegou a altura de tomarmos o que é legitimamente nosso. - Ficou calado durante uns segundos, deixando que as suas palavras fossem absorvidas. - O dia de hoje será lembrado como o primeiro de uma nova época da nossa História. É o dia que irá marcar o nosso regresso à Superfície.
Parando, esmurrou a palma da mão com o punho fechado.
- Nos últimos cem anos, temos feito os Habitantes da Superfície expiar os seus crimes libertando os germes a que eles chamam influenzas. A primeira foi no Verão de 1918. - Soltou uma gargalhada desagradável. - Os pobres idiotas chamaram-lhe gripe espanhola, e ceifou milhões. Depois demos-lhes mais demonstrações do nosso poder em 1957 e 1968 com as variantes asiática e de Hong Kong.
Voltou a dar um murro na mão ainda com mais força, o barulho das luvas de cabedal a bater uma contra a outra a ressoar pelo telhado.
- Mas aquelas epidemias não são mais do que simples constipações comparadas com o que está para vir. As almas dos Habitantes da Superfície estão podres até ao âmago - a moralidade deles é a dos loucos - e arruínam a nossa terra prometida com a ambição e o consumo desmedidos.
O tempo deles está chegando ao fim, e os Pagãos serão exterminados - continuou, rosnando como um urso ferido, varrendo com os olhos a fila dos homens de uma ponta à outra, antes de recomeçar a andar, os tacões das botas a ressoarem no telhado plano.
- Pois hoje estamos a testar uma estirpe fraca de domínio, a nossa praga sagrada. E, através dos frutos do nosso trabalho, confirmaremos que pode ser espalhada por toda esta cidade, por todo este país e, depois, pelo resto do mundo. - Ergueu a mão, abrindo os dedos para o céu. - Mal as nossas aves levantem voo, o sol tratará de fazer com que as correntes de ar levem a nossa mensagem às massas maléficas, uma mensagem que será escrita a sangue e que cobrirá toda a face da Terra.
Chegando ao último homem da fila, deu meia volta para fazer o mesmo caminho, mas em sentido contrário, mantendo-se em silêncio até ter alcançado o meio da fila.
- Por isso, meus camaradas, na próxima vez que voltarmos a encontrar-nos aqui, a nossa carga será de fato mortal. Nessa altura, os Habitantes da Superfície serão derrotados, tal como está decretado no Livro das Catástrofes. E nós, os herdeiros verdadeiros da Terra, voltaremos a nos apossar do que é legalmente nosso.
Fez uma pausa dramática e dirigiu-se aos Styx num tom mais baixo, mais íntimo:
- Ao trabalho.
Seguiu-se uma grande azáfama enquanto as tropas se preparavam.
Rebecca assumiu o comando:
- Ao meu sinal... três... dois... um... agora! - ordenou ela, atirando a sua pomba ao ar.
Os Styx abriram de imediato os cestos que tinham aos pés e as aves levantaram voo, um bando branco a bater as asas, subindo para o céu a partir do telhado.
Rebecca acompanhou a sua pomba com os olhos até onde conseguiu, mas as centenas de outras juntaram-se a ela e depressa se perdeu no meio do bando, que pareceu pairar por um segundo por cima da Coluna de Nelson, antes de se dispersar em todas as direções, como uma nuvem de fumaça clara espalhada pelo vento.
- Voem, voem, voem! - gritou-lhes Rebecca, rindo.
PARTE TRÊS
Drake e Elliott
Capítulo Vinte

terrível, simplesmente terrível! - repetiu Chester uma e outra vez à medida que ia tomando consciência da enormidade daquilo que acabara de acontecer. - Mas não havia nada que nós pudéssemos fazer. Ele não tinha pulso.
Chester argumentava consigo próprio, oprimido por um sentimento crescente de culpa. Achava que, de certo modo, era em parte responsável pela morte de Cal. Provavelmente, ao ter se mostrado tão crítico dele, tinha-o atiçado, levando-o a ser tão descuidado que entrara sozinho na caverna.
- Não podíamos voltar lá para dentro... - balbuciou Chester para si mesmo.
Estava abalado até à medula. Nunca vira ninguém morrer assim, bem na frente dos seus olhos. Fê-lo lembrar-se daquela vez em que ia no carro com o pai e tinham passado por um acidente mortal com uma moto. Não sabia se o corpo contorcido na beira da estrada era o de um morto - nunca chegara a saber -, mas isto era diferente. Era uma pessoa que ele conhecia e tinha morrido quando ele estava vendo. Num momento Cal estava ali e no seguinte era apenas um corpo inerte. Um corpo morto. Não conseguia aceitar. Era tão absoluto e tão brutalmente definitivo; era como se tivesse estado a falar ao telefone com uma pessoa e de repente a ligação fosse cortada, e nunca mais pudessem voltar a falar.
Passado um tempo, calou-se e os dois começaram a andar, lado a lado, as botas a arrastar na poeira. Will, com a cabeça baixa, estava mergulhado nas profundezas do desespero. Sem perceber o que o rodeava, punha mecanicamente um pé à frente do outro como um sonâmbulo, enquanto o canal continuava monotonamente, quilômetro após quilômetro.
Chester observava-o com preocupação, tanto pelo amigo como por si próprio. Se Will não reagisse, ele não sabia como poderiam continuar. Aquilo não era um lugar que lhes desse qualquer folga; tinham de estar sempre alerta e preparados para reagir, isto se queriam manter-se vivos. Se Chester tivesse precisado de alguma prova disso, o triste espetáculo da morte de Cal esclarecera-o. A única coisa que ele podia fazer era manter os dois no caminho ao longo do canal, que tinha mudado de direção e parecia estar a levá-los para um dos pontos de luz bruxuleantes. A cada hora que passava a luz ia-se tornando cada vez mais brilhante, como uma estrela guia. A guiá-los para o quê, Chester não sabia, mas não fazia tenção nenhuma de atravessar o canal com Will naquele estado.
No segundo dia, aproximaram-se o suficiente da luz para distinguirem o clarão vacilante que ela lançava na parede de rocha curva à sua volta. Era evidente que tinham chegado ao final da Grande Planície. Chester insistiu que parassem para investigar a zona, e, depois, quando se certificou de que não havia ninguém, consentiu que avançassem lentamente. Enquanto ele se deslocava o mais furtivamente possível, Will limitava-se a segui-lo, sem prestar a menor atenção à luz à frente deles ou ao que o rodeava.
Finalmente, chegaram à fonte da luz. Um braço metálico, com cerca de um metro de comprimento, saía da parede de rocha com uma chama tingida de azul a dançar na extremidade. Silvava e por vezes crepitava soltando faíscas na brisa como se estivesse a mostrar desagrado pela presença dos rapazes. Sob a luz do gás, o canal continuava livremente, direto a uma abertura na parede, tão perfeitamente redonda que só podia ter sido feita por homens, ou pelo menos por Coprolites. Mas quando os rapazes espreitaram para dentro do buraco, tornou-se evidente que não havia rebordo, nem qualquer outra coisa que lhes permitisse andar lá dentro.
- Bem, e é assim - disse Will num tom infeliz. - Estamos acabados.
Afastou-se do canal, ignorando por completo o pequeno regato que saía da parede ao lado dele. A água que pingava de uma fissura à altura do peito tinha escavado um rego pela parede da caverna abaixo. Corria para uma zona de rocha polida pela água, a transbordar. Dali, escorria pela borda, saltando por uma série de pequenas saliências na rocha até se juntar ao canal. A passagem da água tinha deixado uma mancha acastanhada ao longo do caminho, mas isso não impediu que Chester a provasse.
- É boa. Porque não bebe um pouquinho? - perguntou a Will-
Era a primeira vez que tentava falar com ele em quase um dia.
- Não - replicou Will taciturnamente, deixando-se cair no chão com um suspiro de infelicidade. Puxou os joelhos para o peito e, enrolando os braços em volta deles, abraçou as pernas ao mesmo tempo que se balançava devagarinho. Baixou a cabeça para esconder a sua da cara de Chester.
Com a frustração a crescer e quase a rebentar, Chester resolveu tentar meter algum juízo na cabeça do amigo e avançou para ele com passos pesados e determinados.
- Ok, Will - disse ele numa voz baixa e cuidadosamente controlada, tão controlada que não parecia nada natural, e alertou Will para o que estava para vir. - Vou ficar aqui sentado até você querer voltar a fazer qualquer coisa. Leve o tempo que quiser. Não ligo que sejam dias ou até semanas. Leve o tempo que quiser. Por mim, está tudo bem. - Soprou pela boca. - De fato, se quiser ficar aí sentado até apodrecer, por mim, maravilha. Sinto muito pelo o que aconteceu ao Cal, mas isso não altera a razão por que estamos aqui... por que me pediu ajuda para encontrar o seu pai. - Ficou uns instantes calado, inclinado por cima de Will. - Ou já se esqueceu dele?
A última frase teve o efeito de uma punhalada no estômago de Will. Chester ouviu a sua inspiração curta e a cabeça estremeceu, mas mesmo assim não a levantou.
- Faça como quiser, então - disse Chester secamente ao amigo e afastou-se um pouco, deitando-se no chão.
Não sabia quanto tempo tinha passado quando ouviu Will falar. Soaram-lhe como palavras num sonho, e Chester percebeu que devia ter cochilado.
- ...tem razão, temos de continuar - dizia Will.
- Hum?
- Vamos pôr-nos a caminho.
Will levantou-se rapidamente e foi direito ao regato para lhe dar uma breve olhada. Depois começou a estudar a abertura por onde o canal entrava para a parede da caverna, fazendo a luz da lanterna incidir no interior da entrada, nas sombras densas onde a luz do gás não penetrava. Assentindo com a cabeça, focou a atenção na rocha vertical por cima dela.
- Estamos bem - anunciou ele, voltando para o lugar onde largara a mochila e enfiando-a nos ombros.
- Hum? Estamos o quê?
- Acho que é seguro.
- Sim, tão seguro como lama escorregadia!
- Bem, vem ou não? - perguntou rudemente a Chester, que olhava atentamente para o amigo, desconfiado com aquela mudança repentina de comportamento.
Will já estava ao lado do canal, a enfiar a lanterna no bolso da camisa. Voltou-se para a parede durante alguns segundos e depois começou a subir. Encontrando apoios para os pés e para as mãos, subiu numa trajetória em arco que o levou para baixo da crepitante luz do gás, mas para cima da entrada do canal vagaroso, até ficar do outro lado numa posição segura.
- Não foi a primeira vez que alguém fez isto - declarou ele. Chamou Chester, ainda na outra margem: - Ande, não fique aí parado. É mole. Não custa nada atravessar - houve alguém que talhou uns apoios.
Chester parecia tão indignado como impressionado. O queixo caiu como se ele fosse dizer qualquer coisa, mas, pensando melhor, limitou-se a murmurar:
- Voltou ao seu normal.
Embora Will não estivesse a seguir qualquer rastro ou trilha visíveis, parecia tão convencido de que iam na direção certa que Chester o seguiu sem contestar. Andando depressa, foram penetrando cada vez mais fundo no espaço incaracterístico, sem encontrarem quaisquer canais ou outros marcos naturais, até que finalmente chegaram a um lugar onde o chão se tornou mais solto e começou gradualmente a subir. Talvez tivesse algo a ver com o fato de o teto por cima das cabeças deles também estar a subir, mas a cada passo que os rapazes davam, os ventos pareciam soprar com mais força.
- Fuuh! Assim é melhor! - disse Will, passando um dedo por dentro do colarinho da camisa ensopada em suor. - Agora já está um pouquinho mais fresco!
Chester não podia sentir-se mais aliviado por Will parecer ter conseguido sair da pavorosa melancolia em que se afundara. De fato, ele estava a tagarelar muito naturalmente, embora tudo parecesse mais calmo sem o Cal por ali para os atormentar. E, como se a sua mente lhe pregasse peças, Chester teve a sensação estranhíssima de que o rapaz ainda ali estava com eles, e deu por si a olhar ao redor, esforçando-se por o descobrir.
- Hei, isto parece uma espécie de calcário - notou Will enquanto marinhavam por uma encosta, escorregando e tropeçando quando o substrato de cor clara se deslocava debaixo deles. Durante o último trecho, a inclinação tornara-se mais pronunciada e tinham-se visto obrigados a subi-la de quatro.
Repentinamente, Will parou para espetar o dedo numa rocha do tamanho de uma bola de tênis à frente dele.
- Uau! Um belo espécime de uma rosa-do-deserto.
Chester viu as lâminas cor-de-rosa pálido que irradiavam de um ponto central para formar a estranha esfera de rocha. Parecia uma flor cubista. Will estava a riscar uma das lâminas com uma unha.
- Sim, isto é calcário, não há qualquer dúvida. Muito bonita, não é? - perguntou a Chester, que não teve tempo para responder antes que Will recomeçasse a falar entusiasticamente. - Um belo exemplo. - Olhou ao redor. - Portanto, deve ter havido evaporação a funcionar aqui durante o último século, mais coisa menos coisa - a não ser, claro, que isto estivesse enterrado e que seja muito mais antiga. Seja como for, vou guardá-la - concluiu, tirando a mochila das costas.
- Vai fazer o quê? É um pedaço de uma maldita rocha!
- Não, não é rocha. Na realidade é uma formação mineral. Imagine um tipo de mar qualquer aqui. - Will abriu os braços expansivamente. - À medida que seca, os sais saem todos da solução e... bem, o resto daquilo que vê aqui é sedimentar. Você sabe o que são rochas sedimentares, não sabe?
- Não, não sei - confessou Chester, estudando cuidadosamente o amigo.
- Bem, tem três classes de rochas: sedimentares, magmáticas e metamórficas - Will estava lançado. - As minhas preferidas são as sedimentares, tal como as que estamos a encontrar aqui, porque há uma história nelas, dos fósseis que lá encontras. Formam-se...
- Will - disse Chester suavemente.
- ...geralmente à superfície, a maioria debaixo de água. Porque havíamos de encontrar rochas sedimentares tão no interior da Terra, pergunto eu?
Pareceu ficar confundido com a sua própria pergunta, mas depois respondeu-lhe:
- Sim, suponho que deve ter havido um lago subterrâneo, ou qualquer coisa assim, aqui.
- Will! - tentou interromper Chester outra vez.
- Seja como for, as rochas sedimentares são demais - não estou dizendo demais no sentido de boas, mas demais por serem frias, o contrário de quentes, mas não no sentido de lava quente, que são rochas magmáticas, a que...
- Will, pare com isso! - gritou Chester, muito assustado com o comportamento bizarro do amigo.
- ...chamam a primeira grande classe, porque são formadas por magma quente e... - Will calou-se no meio da frase.
- Controle-se, Will! De que está falando? - a voz de Chester estava rouca de desespero. - O que se passa com você?
- Não sei - respondeu Will, abanando a cabeça.
- Bem, então cale-se e concentre-se no que estamos a fazer. Não preciso de nenhuma preleção, diabos o levem!
- Certo.
Will olhou ao redor, piscando os olhos como se tivesse acabado de sair de um nevoeiro e não conseguisse entender onde estava. Percebeu que ainda segurava a rosa-do-deserto na mão e jogou-a. Depois voltou a pôr a mochila às costas, preocupado, Chester observou-o quando ele se pôs outra vez em movimento.
Aproximavam-se do ponto mais alto da encosta e o chão começava a ficar mais plano. Chester viu um raio de luz atravessar o ar e varrer o teto. Percebeu que estava muito longe, mas parecia uma espécie de holofote. Como precaução, baixou a intensidade da sua lanterna até a reduzir a um clarão mínimo. Will fez a mesma coisa.
Rastejaram o resto do caminho, mantendo-se o mais baixo possível, com Chester a certificar-se de que Will, no seu estado de espírito imprevisível, se mantinha agachado atrás dele. No cimo, espreitaram para baixo, para um grande espaço circular do tamanho de um estádio. Poderia ser uma cratera lunar, parecia tão árido e poeirento.
- Jesus, Will, olha para isto - sussurrou Chester, acenando ao amigo para se pôr ao lado dele e desligando apressadamente a lanterna. - Está a vê-los? São iguais aos Styx, só que estão vestidos como soldados ou qualquer coisa assim.
Os rapazes conseguiam ver que no chão da cratera estavam cerca de dez Styx - embora o vestuário não fosse familiar, os corpos magros e a maneira como se moviam indicavam que não podiam ser outra coisa - e dois deles tinham farejadores. Os homens estavam em fila, com um outro Styx um pouco mais à frente deles a brandir uma lanterna enorme. Embora a base da cratera estivesse iluminada por quatro grandes esferas de luz montadas em tripés, a luz da lanterna do Styx era fenomenalmente forte, e ele fazia-a incidir em alguma coisa à sua frente.
O corpo de Chester foi percorrido por um tremor - enquanto observava os Styx, Chester sentia-se como se tivesse tropeçado num ninho de cobras das mais maldosas e venenosas que era possível imaginar.
- Oh, como os odeio - rosnou por entre os dentes cerrados.
- Hum-hum - respondeu Will vagamente, enquanto examinava um seixo com estrias cintilantes que lhe tinha atraído o olhar e depois o afastava com um piparote do polegar.
Não era preciso ser um psicólogo clínico para perceber que havia qualquer coisa errada com ele, que a morte do irmão o tinha perturbado muito.
- O que está se passando, Will? - disse Chester. - Pelo amor de Deus aqueles ali em baixo são Styx!
- Sim - respondeu Will. - Claro que são.
Chester ficou abismado com a descontração que o amigo estava a demonstrar.
- Bem, pois a mim me dão arrepios. Vamos embora daqui... - sugeriu ele insistentemente, começando a recuar.
- Olhe para o Coprolite - disse Will, apontando descuidadamente para a cena lá em baixo.
- Hum? Onde? - perguntou Chester, tentando localizá-los.
- Ali... à frente daquele Styx... - replicou Will, levantando-se apoiado nos braços para ver melhor - ...ali mesmo, iluminados pela luz dele.
- Onde exatamente? - voltou Chester a perguntar num sussurro.
Olhou para Will ao lado dele e rosnou imediatamente:
- Jesus Cristo! Baixe essa cabeça, meu palhaço. Vão te ver!
- Certo - replicou Will, baixando-se.
Chester voltou a concentrar-se na cena e, apesar da intensidade fortíssima da luz da lanterna do Styx, só quando um deles se mexeu é que o localizou (ou ele ou ela, ou isso, neste caso - Chester tinha dificuldade em considerar os pesados e desajeitados Coprolites como pessoas). Os raios dos olhos dos Coprolites mal se viam na área bem iluminada, e os trajes cor de cogumelo fundiam-se tão eficazmente com a pedra do chão da caverna que, tendo localizado um, Chester continuava a ter grande dificuldade em ver os outros. De fato, havia um número bastante grande deles numa fila irregular voltados de frente para os Styx.
- Quantos serão eles exatamente? - perguntou a Will.
- Não sei. Aí uns vinte?
O Styx no comando andava à volta da área entre os dois grupos. Pavoneava-se de um lado para o outro e, de repente, dava meia volta, ficando de frente para os Coprolites, apontando-lhes a lanterna. Embora os rapazes não conseguissem ouvir nada do que ele dizia por causa da distância e das rajadas de vento, pelos movimentos sacudidos dos braços e o rápido movimento da cabeça de um lado para o outro, era evidente que ele estava gritando com os Coprolites. Os rapazes observaram a cena durante vários minutos até Will começar a ficar irrequieto e a mexer-se.
- Tenho fome. Ainda tem aquelas pastilhas de goma?
- Deve estar brincando, como pode ter fome numa altura destas? - perguntou-lhe Chester.
- Não sei... dê-me uma, está bem? - lamuriou-se Will.
- Vá lá, comporte-se, Will - respondeu Chester, sem tirar os olhos dos Styx. - Sabe onde estão as pastilhas.
No estado estonteado em que se encontrava, Will levou uma eternidade a abrir a algibeira lateral da mochila de Chester. Depois, resmungando baixinho, revolveu a algibeira até encontrar o pacote verde das pastilhas de goma.
- Quer uma? - perguntou a Chester.
- Não, não quero.
Deixando-o cair várias vezes como se tivesse as mãos dormentes, Will conseguiu finalmente rasgar o pacote e extrair uma das tirinhas de pastilha lá de dentro. Estava se preparando para tirar o invólucro de papel em volta da bala com os dedos dormentes quando ambos os rapazes soltaram uns arquejos semelhantes.
Sentiram um peso esmagador nas costas ao mesmo tempo que lhes encostavam facas ao pescoço.
- Não façam barulho.
A voz era baixa e gutural, como se não estivesse habituada a ser usada. Vinha de um ponto muito perto da parte de trás da cabeça de Will.
Chester engoliu audivelmente em seco, pensando que os Styx tinham se aproximado sorrateiramente por trás deles e os haviam apanhado desprevenidos.
- E não movam um músculo.
Will deixou a pastilha escorregar-lhe da mão.
- Já consigo sentir essa porcaria malcheirosa e ainda nem sequer a abriu.
Will tentou falar.
- Disse-lhe para ficar calado.
A faca encostou-se ainda mais ao pescoço de Will. Sentiu a pressão nas costas aumentar, e uma mão enluvada esticou-se entre ele e Chester e começou a cavar um buraco no cascalho solto.
Os dois rapazes observaram-na pelo canto do olho, sem se atreverem a mexer as cabeças um milímetro que fosse. Era quase hipnótico, uma mão enluvada e sem corpo a escavar um buraco a pouco e pouco.
De repente, Chester não conseguiu controlar os tremores. Ele e Will teriam sido apanhados pelos Styx? E se não eram Styx, quem seriam? Tinha a cabeça cheia de pensamentos aterrorizadores sobre o que lhes iria acontecer a seguir. Aquelas pessoas iriam lhes cortar as gargantas e enterrá-los ali, naquele buraco? Não conseguia afastar os olhos dele.
Então, a mão enluvada agarrou no pacote de pastilhas de goma com o polegar e o indicador e deixou-o cair dentro do buraco.
- Esse pedaço também - ordenou a voz do homem a Will.
Este fez o que lhe mandavam, atirando a pastilha ainda por abrir para o buraco.
A seguir, a mão, com movimentos precisos, voltou a atirar pedaços soltos de calcário para dentro do buraco, até as pastilhas ficarem completamente enterradas.
- Isto vai ajudar, mas o cheiro ainda é forte - disse a voz do homem depois do interlúdio. - Se o tivesse aberto, o farejador mais perto de nós... - a voz calou-se e depois continuou - ...conseguem vê-lo ali em baixo... teria detectado o cheiro numa questão de... o que acham?
Houve uma pausa durante a qual Will não conseguiu ter certeza se devia responder ou não, e depois ouviram uma outra voz diferente e um pouco mais suave. Esta segunda voz parecia vir de trás de Chester.
- Eles estão a favor do vento - disse ela -, por isso, seriam apenas uns dois segundos, no máximo.
O homem voltou a falar.
- Nessa altura, os Limitadores soltariam os cães das coleiras e viriam logo atrás deles. E depois vocês seriam apenas um par de cadáveres, como aqueles dois desgraçados, ali. - Inspirou fundo. - Devem ver isto.
Apesar da ameaça das facas, tanto Will como Chester fizeram um esforço conjunto para se focarem no que estava a acontecer lá em baixo.
O Styx no comando voltou-se e deu uma ordem. Três homens vestidos com roupas de cor neutra foram escoltados até ao centro da cratera por dois Styx. Will e Chester não os viram antes porque tinham estado enfiados nas sombras fora do alcance dos holofotes. Foram empurrados para o lado dos Coprolites e as escoltas regressaram à formação dos Styx.
O Styx no comando berrou outra ordem e ergueu a mão no ar enquanto uns quantos dos seus homens davam um passo em frente e encostavam as espingardas ao ombro. Depois, com um grito agudo, o Styx baixou a mão e viram os clarões dos canos das armas do pelotão de fuzilamento. Duas das três figuras tombaram de imediato. A restante vacilou uns instantes antes de também tombar, atravessada em cima dos outros dois homens.
Quando os últimos ecos dos tiros reverberaram em volta da cratera e um silêncio assustador os substituiu, os três homens jaziam imóveis. Acontecera tudo tão depressa que Will e Chester não conseguiam absorver o que tinham acabado de ver.
- Não - disse Will, sem acreditar nos seus olhos. - Os Styx... eles não fizeram isto, não é?
- Sim, acabou de presenciar uma execução - disse a voz inexpressiva do homem atrás da cabeça dele. - E aqueles homens eram dos nossos, eram nossos amigos.
A outra ordem, o pelotão de fuzilamento entregou as espingardas aos camaradas que estavam mais perto. Depois, cada um deles tirou qualquer coisa da cintura e avançou vários passos. Havia uma sensação de inevitabilidade terrível quando cada um dos Styx se dirigiu para o Coprolite à sua frente, na fila oposta à deles.
Os rapazes observaram enquanto os soldados Styx investiam contra os Coprolites, que, muito simplesmente, caíram ao chão, como árvores derrubadas, à frente deles. Os rapazes viram o Styx mais próximo retirar o braço, com qualquer coisa a refulgir-lhe na mão.
Os outros Coprolites permaneceram na sua formação confusa, virados para todos os lados. Não fizeram nenhum movimento para ajudarem os irmãos caídos e, o que era ainda mais surpreendente, não pareceram reagir à morte deles. Era como se, no meio de uma manada, alguns animais tivessem sido mortos e os outros se limitassem a aceitar esse fato, como os animais estúpidos são capazes de fazer.
A voz rouca voltou a falar:
- Já chega disto. Vocês estão sentindo as nossas facas. Podem ter certeza de que as usaremos se não fizerem exatamente o que mandarmos. Compreendido?
Os dois rapazes murmuraram um "sim", sentindo as lâminas a enterrarem-se mais na pele.
- Ponham os braços atrás das costas - disse a voz mais baixa.
Amarraram com força os pulsos dos rapazes e depois levantaram-lhes rudemente as cabeças, agarrando-as pelos cabelos, e ataram-lhes umas vendas.
Sentiram mãos a agarrarem-lhes os tornozelos e foram impiedosamente arrastados de barriga para baixo, pela encosta íngreme atrás deles. Sem poderem oferecer resistência, tentaram arquear as cabeças para manterem as caras afastadas do chão que corria velozmente por baixo deles.
Puseram-nos em pé com a mesma rudeza e ambos sentiram que lhes atavam qualquer coisa às cordas que lhes prendiam os pulsos. Arrastaram-nos, puxando-os por essas coisas, com cada um dos rapazes a ouvir os passos trôpegos do outro, e levaram-nos a uma velocidade tremenda pelo resto da encosta abaixo, inclinados para trás para não caírem. Pelo barulho e gemidos ocasionais, Will sabia que Chester estava à sua frente e calculou que os tinham atado um ao outro, como dois animais a caminho do matadouro.
No fim da encosta, Chester tropeçou e caiu, arrastando Will.
- Levantem-se, seus sacos de merda - silvou o homem. - Façam o que lhes mandam ou acabo com vocês aqui e agora.
Apoiando-se um no outro, voltaram a pôr-se em pé.
- Mexam-se - rosnou-lhes o outro, batendo com tanta força na ferida de Will que ele soltou um uivo de dor. Ouviu o seu captor dar um passo atrás espantado.
De repente, o desconforto e o medo que Will sentia, acumulando-se à dor intensa pela perda de Cal, fizeram com que qualquer coisa na cabeça dele acordasse. Voltou-se para o lugar onde estava o seu captor e disse-lhe numa voz baixa e ameaçadora:
- Volte a fazer isso e eu...
- E você o quê? - disse a voz.
Estava mais suave do que antes, e Will reparou, pela primeira vez, que tinha uma tonalidade juvenil e feminina.
- O que você fará? - voltou a voz a perguntar.
- É uma garota, não é? - perguntou Will, num tom incrédulo.
Sem esperar pela resposta, apertou com força as mãos atadas e cresceu para ela, o que era difícil porque ele não fazia ideia de onde ela realmente estava.
- Chamo os nossos reforços - disse ele ferozmente, lembrando-se de uma das frases de uma das séries de televisão preferidas da madrasta.
- Reforços? O que é isso? - perguntou ela hesitante.
- Uma equipe de homens escolhidos a dedo estão monitorizando todos os seus movimentos - acrescentou ele com toda a convicção que conseguiu arranjar. - A única coisa que preciso é de lhes fazer um sinal. Serão todos abatidos.
- Ele está blefando - disse a voz de homem. Também ela perdera alguma da sua dureza, e até tinha um tom divertido. - Eles estão sozinhos. Não vimos ninguém com eles, não é, Elliott? - Virou-se para Will: - Se não cooperar, retalho o seu amigo todo com a minha faca.
Isto teve o efeito desejado em Will, fazendo com que ele regressasse à Terra.
- Está bem, está bem, eu não vou armar problemas, mas é melhor terem cuidado. Não se metam conosco, se não... - disse Will, deixando a voz esmorecer.
Achava que já tinha abusado demais da sorte, e começou outra vez a andar, chocando-se com Chester, que ouvira o amigo, completamente abismado.
Capítulo Vinte e Um
-E
stá escrito no Livro das Catástrofes que as pessoas voltarão da Arca da Terra ao seu lugar de direito, na altura em que o ímpio dilúvio tiver acabado. E as pessoas voltarão a arar os campos não arados, a reconstruir as cidades destruídas e a encher as terras ermas com a sua semente pura. Assim está dito e assim será - disse o pregador Styx numa voz retumbante.
O casaco abriu-se e bateu contra o corpo magro quando ele deu um passo em frente para se aproximar de Sarah, a mão direita levantada e a apontar para o teto e a esquerda a apontar para o chão.
- Assim como no firmamento, assim como na Terra aqui em baixo - disse ele na sua voz fina. - Amém.
- Amém - ecoou Sarah.
- Que Deus esteja contigo em tudo o que faça em nome da Colônia.
De repente, lançou as mãos para Sarah, agarrando-lhe a cabeça e comprimindo os dois polegares na pele branca como a de um fantasma da testa dela, com tanta força que quando finalmente a libertou e recuou, havia duas marcas vermelhas visíveis.
Apertou o casaco contra o corpo e saiu velozmente do quarto, deixando a porta aberta atrás dele.
Com a cabeça inclinada, Sarah continuou ajoelhada até ouvir uma tosse abafada no corredor. Levantando os olhos, viu Joseph, com um prato de comida nas mãos gigantescas.
- Uma bênção, hein?
Sarah assentiu com a cabeça.
- Não queria incomodar, mas a minha mãe fez isto para você. Uns bolos.
- É melhor trazê-los para dentro depressa - não sinto que o Doutor Destino goste disso - disse ela.
- Sim - concordou Joseph, entrando rapidamente e fechando a porta atrás de si. Depois ficou parado pouco à vontade, como se tivesse se esquecido do que o levara ali.
- Porque não se senta? - perguntou Sarah, enquanto atravessava o quarto para se sentar na cama.
Sentando-se ao lado de Sarah, Joseph levantou uma musselina que cobria o prato para mostrar os bolos, a cobertura de açúcar de uma cor insípida de caramelo claro por cima das fibras fúngicas cinzentas usadas na Colônia. Entregou o prato a Sarah.
- Ah, balas de goma - disse Sarah sorrindo para consigo, vendo como eram parecidos com os bolos sem forma, mas deliciosos, que a mãe costumava fazer para os lanches de domingo.
Sarah serviu-se de um, mordiscando-o sem muito interesse.
- São maravilhosos. Por favor, agradeça à sua mãe - lembro-me tão bem dela.
- Ela lhe manda lembranças - respondeu Joseph. - Faz oitenta este ano e continua a...
Interrompeu-se e sem parar para respirar, como se tivesse estado a se preparar para o que queria realmente dizer, continuou:
- Sarah, posso lhe perguntar uma coisa?
- Claro, o que quiser - respondeu Sarah, olhando atentamente para ele.
- Quando tiver feito o quer que seja que eles querem que faça, voltará para casa, para sempre?
- Faz alguma ideia da razão por que estou aqui? - ripostou-lhe ela, observando-o cautelosamente.
Joseph esfregou o queixo como se quisesse ganhar tempo antes de responder.
- Não me compete saber essas coisas... mas aposto que tem que ver com o que está se passando na Superfície...
- Não, eu vou para o lado contrário - disse ela, inclinando a cabeça para indicar as Profundezas.
- Então não está envolvida na operação em Londres? - deixou escapar Joseph, cerrando logo a boca, claramente arrependido do que tinha dito. - Não quero cair em desgraça com os... - tentou acrescentar apressadamente antes de Sarah o interromper.
- Não, não tenho nada que ver com isso. E não se preocupe, tudo o que me disser não passa daqui.
- As coisas não estão nada boas por aqui nesta altura - disse Joseph baixinho. - Têm andado a desaparecer pessoas.
Como isso não era nada de novo na Colônia, Sarah não fez qualquer comentário e Joseph também se calou, como se ainda estivesse preocupado com a sua indiscrição.
- Então, vai voltar? - perguntou por fim. - Depois de acabar?
- Sim, os Pescoços Brancos dizem que terei autorização para ficar na Colônia quando lhes tiver tratado de um assunto. - Tirou uma migalha do canto da boca, olhou pensativamente para a porta e soltou um suspiro. - Mesmo que consiga fugir deles... e chegar à Superfície, uma parte de você nunca vai embora. Eles o prendem com tudo aquilo que considera precioso, tudo o que ama, a sua família... Descobri isso - continuou ela, a voz carregada de remorsos - demasiado tarde.
Joseph levantou-se e tirou-lhe o prato.
- Nunca é demasiado tarde - murmurou ele, enquanto o seu vulto enorme se encaminhava para a porta.
Durante os dias que se seguiram, Sarah recebeu ordens para descansar e ganhar forças. Por fim, quando já julgava que ia enlouquecer com a inatividade, foi chamada a uma outra sala por um homem que não era Joseph. Estava vestido da mesma maneira, mas era mais pequeno e mais velho, a cabeça completamente careca e movimentos excruciantemente lentos enquanto seguia à frente dela, a indicar o caminho.
Olhou para Sarah por cima do ombro, arqueando apologeticamente as espessas sobrancelhas brancas.
- As minhas articulações - explicou ele. - A umidade meteu-se nelas.
-- Acontece aos melhores de nós - replicou Sarah, lembrando-se de que o pai tinha ficado incapacitado devido à artrite crônica.
O velhote mandou-a entrar para uma sala bastante grande onde havia uma mesa comprida no centro e uma série de armários baixos à volta das paredes. O velho foi embora arrastando os pés sem dizer uma palavra, deixando-a a pensar no motivo por que a teriam trazido para ali. Havia duas cadeiras de costas altas, uma de cada lado da mesa, e Sarah dirigiu-se para uma e ficou de pé atrás dela. Olhando em redor da divisão, os olhos detiveram-se num pequeno sacrário a um canto, onde uma amolgada cruz de metal, com cerca de meio metro de altura, estava colocada entre duas velas bruxuleantes, tendo à frente um exemplar aberto do Livro das Catástrofes.
Os olhos de Sarah iluminaram-se ao verem uma coisa em cima da mesa. Era uma grande folha de papel aberta, com manchas coloridas, que ocupava a maior parte do tampo. Dando uma olhada por cima do ombro, certificou-se de que a porta estava fechada, sem saber o que esperavam dela. Depois, cedendo à curiosidade, aproximou-se e debruçou-se sobre a folha.
Descobriu que era um mapa. Olhou para o canto esquerdo superior, vendo duas minúsculas linhas paralelas meticulosamente sombreadas com linhas cruzadas, que, ao fim de vários centímetros, terminavam numa área com uma série de retângulos infinitesimamente pequenos ao lado delas. Ao lado destes retângulos estava a inscrição A Estação dos Mineiros e uns símbolos que não lhe eram familiares. Depois continuou e viu outra inscrição que dizia O Rio Estígeo ao lado de uma linha serpenteante azul-escura.
Começou a afastar-se do canto, perscrutando o resto do mapa onde havia uma enorme área castanho-clara com muitas gotas, algumas das quais estavam sombreadas com cores diferentes, como, por exemplo, castanhos mais escuros, laranjas e uma variedade de vermelhos que iam do carmesim ao vermelho-escuro - de fato, estas cores pareciam-lhe sangue em vários estádios de coagulação. Resolveu ver se conseguia descobrir o que representavam no mapa.
Escolhendo ao acaso umas das áreas, inclinou-se ainda mais para a examinar. Tinha uma cor escarlate vivo e era vagamente retangular, com uma minúscula cabeça preta como azevinho, uma cabeça da morte, sobreposta. Estava a tentar decifrar a legenda ao lado dela quando ouviu um som muito perto dela. Uma levíssima expiração.
Olhou imediatamente para cima.
Recuou, chocando com a cadeira e esforçando-se para não gritar.
Do outro lado da mesa estava um soldado Styx, envergando a farda verde-acinzentada característica da Divisão. Parecia inacreditavelmente alto e, com as mãos entrelaçadas à frente dele, estava parado a pouco mais de um metro dela, a escrutiná-la silenciosamente. Ela não fazia ideia de há quanto tempo estaria ali.
Quando Sarah ergueu os olhos, viu que a lapela do casaco comprido tinha uns fios curtos - tinham muitas cores diferentes: vermelhos, púrpuras, azuis e vermelhos, entre outras. Tal como as medalhas que eram dadas na Superfície, estes fios eram condecorações por atos de bravura, e ele tinha tantas que ela não as conseguia contar. Levantou os olhos ainda mais.
O cabelo preto como asa de corvo estava arrepiado para trás e preso num rabo-de-cavalo. Mas quando o olhar de Sarah incidiu na cara dele, por pouco não deu outro passo atrás. Era uma visão assustadora. Uma cicatriz enorme, semelhante a uma couve-flor tanto na cor como na textura, descia-lhe por uma das faces. Apanhava-lhe um terço da testa, estendendo-se até ao olho esquerdo, que estava tão deformado que parecia que o tinham feito girar noventa graus no seu eixo. A cicatriz alargava ao espalhar-se pela face até à articulação do maxilar. A boca e os lábios já impossivelmente finos do Styx também estavam muito esticados para os lados, de forma que os dentes estavam visíveis até às gengivas, quase até aos molares.
Era a matéria de que os pesadelos são feitos.
Ela procurou rapidamente o olho direito, tentando não se focar no deformado e lacrimejante, que mostrava tecidos vermelho-sangue por cima e por baixo dele, entretecidos com uma rede de vasos capilares azuis. Parecia uma investigação anatômica incompleta, como se alguém tivesse ficado a meio da dissecação da cara.
- Estou vendo que começou sem mim - disse ele.
As palavras eram audivelmente exaladas pela boca distorcida e a voz era baixa mas autoritária.
-- Sabe o que mostra o mapa? - perguntou.
Ela hesitou, depois deu um passo em frente, baixando gratamente os olhos para o mapa.
- As Profundezas - respondeu.
Ele assentiu com a cabeça.
- Vi que tinha localizado a Estação dos Mineiros. Ótimo. Diga-me...
Ele tinha a mão pousada em cima do desenho da linha férrea, e Sarah viu que lhe faltavam vários dedos e que os restantes eram pouco mais do que tocos. O Styx varreu o resto do mapa com a mão.
- ...sabia que isto tudo existia?
- A Estação dos Mineiros, sim, mas isto tudo, não - respondeu ela com sinceridade. - Mas ouvi histórias sobre o Interior... muitas histórias.
- Ah, as histórias.
Ele esboçou um rápido sorriso. O efeito foi desarmante, a margem brilhante à volta dos dentes a enrugar-se como uma onda sinusoidal preguiçosa e depois a alisar-se de novo. Sentou-se, indicando-lhe que devia fazer o mesmo.
- A minha função é garantir que vai poder operar na Grande Planície e nas suas redondezas. Quando acabarmos - as pupilas pretas dirigiram-se para os artigos ao fundo da mesa -, vai estar completamente a par do nosso equipamento e das nossas armas, e treinada para agir dentro das nossas regras. Compreendido?
- Sim, senhor - respondeu ela, dirigindo-lhe como era adequado à sua postura militar. Ele pareceu ficar satisfeito com isso.
- Nós sabemos que é muito eficiente - teve de o ser para nos escapar durante tanto tempo.
Ela assentiu.
- O seu único objetivo será descobrir e pôr fora de combate, usando todos os meios necessários, o rebelde.
O ar estava pesado enquanto ela olhava para a cara terrivelmente desfigurada.
- Está a referir-se ao Will Burrows?
- Sim, ao Seth Jerome - respondeu ele sucintamente. Limpou o olho lacrimoso com as costas da mão e depois fez estalar os dedos desajeitadamente, usando o que restava do polegar e do indicador.
- O quê...?
Sarah ouviu uns cliques atrás dela e virou a cabeça para ver o que era. Uma sombra passou rapidamente pela porta.
Era o Caçador, o gato gigante que tinha ido em seu socorro na Superfície. Parando para olhar em redor, cheirou rapidamente o ar e, num abrir e fechar de olhos, tinha pulado para o lado de Sarah e estava a esfregar-se afetuosamente na perna dela, com tanto vigor que lhe empurrou a cadeira para trás.
- Você! - exclamou Sarah.
Estava simultaneamente espantada e encantada por voltar a vê-lo. Partira do princípio de que os Styx o tinham matado na escavação. Ao que parecia, acontecera o contrário: era um animal muito diferente que estava agora ao lado dela, comparado com o espécime desgraçado que vira na Superfície.
Sarah percebeu pela forma como ele se movia ao correr para farejar qualquer coisa no canto da sala que tinham garantido que ele era bem alimentado. O seu aspecto melhorara consideravelmente e a ferida infectada do ombro havia sido tratada. Tinha uma compressa de algodão presa ao ombro por uma enorme quantidade de ligaduras cinzentas enroladas à volta do peito. Como também trazia uma coleira de cabedal completamente nova - nada semelhante ao que era costume ver-se nesses animais - Sarah presumiu que ele estivera entregue aos cuidados de Styx, e não de Colonos.
- Chama-se Bartleby. Achamos que o podíamos utilizar em nosso proveito - disse o Styx.
- Bartleby - repetiu Sarah, e depois olhou para o Styx velho do outro lado da mesa à espera de uma explicação.
- Como é natural, o animal vai estar ansioso por encontrar o antigo dono - o seu filho - e vai empregar o seu excelente sentido do olfato - disse-lhe o homem.
- Ah, sim - respondeu ela, assentindo com a cabeça -, isso é verdade.
Seria inestimável ter um Caçador com ela, quando andasse pelas Profundezas, e o fato de o rastro a seguir ser o cheiro de Cal iria ser, de fato, um excelente incentivo.
Sarah retribuiu o sorriso do homem e chamou:
- Bartleby, venha aqui!
Ele voltou obedientemente para junto de Sarah e sentou-se a olhar para ela enquanto esperava por outra ordem. Sarah afagou a extensão áspera da cabeça larga e chata do gato.
- Então é assim que se chama... Bartleby?
O gato piscou-lhe os olhos do tamanho de pires, ronronado ruidosamente enquanto mudava de uma pata da frente para a outra.
- Você e eu juntos, vamos trazer o Cal de volta, não vamos, Bartleby?
O sorriso desvaneceu-se do rosto de Sarah.
- E ao mesmo tempo vamos fazer sair da toca uma grande ratazana.
ø ø ø
No roseiral da Humphrey House, vários pombos pousaram ao pé da mesa dos pássaros, onde a cozinheira deixava regularmente fatias de pão seco e outros restos da cozinha. Distraindo-se da revista aberta à sua frente, Mrs. Burrows levantou a cabeça e esforçou-se o mais que pôde para focar as aves com os olhos vermelhos e inchados.
- Raios partam isto! Não consigo ver nada, quanto mais ler! - resmungou ela, fechando primeiro um olho e depois o outro. - Diabos levem este vírus imundo, nojento!
Na semana anterior, os telejornais tinham começado a fervilhar de notícias sobre um surto viral misterioso que parecia, tanto quanto se sabia, ter tido origem em Londres e que estava se espalhando como um fogo descontrolado pelo resto do país. Até já tinha chegado aos Estados Unidos e ao Extremo Oriente. Os peritos diziam que, embora a doença, uma espécie de mega conjuntivite durasse pouco tempo, quatro ou cinco dias no máximo no comum das pessoas, a velocidade com que se propagara era motivo para grandes preocupações. Os meios de comunicação social referiam-se-lhe constantemente como um "ultravírus", porque tinha o atributo único de se transmitir tanto pelo ar como pela água. Uma combinação fantástica, ao que parecia, quando se é um vírus que quer viajar.
Segundo os mesmos peritos, ainda que o Governo decidisse fabricar uma vacina, o processo, desde a identificação de um vírus novo até à produção de vacinas suficientes para toda a população, podia levar muitos meses, senão mesmo anos.
Mas as complicações científicas não interessavam a Mrs. Burrows - era o incômodo que a fazia ferver de fúria. Largando a colher na tigela de cereais, recomeçou a esfregar os olhos.
Estivera perfeitamente bem na noite anterior, mas, ao acordar com o sino matinal do lado de fora do quarto, tinha despertado para um inferno na terra. Ficara instantaneamente consciente da secura dolorosa dos canais nasais e da língua e da garganta ulceradas. Mas tudo isso perdera importância quando tentara abrir os olhos e descobrira que eles estavam tão fortemente colados que não os conseguia abrir. Só depois de tê-los banhado copiosamente com água quente no lavatório do quarto, ao mesmo tempo que utilizava uma linguagem que teria feito corar um soldado, tinha conseguido abrir as pálpebras um poquinho. Apesar de todas as lavagens, ainda davam a sensação de terem uma crosta que só poderia ser removida com lixa.
Agora, sentada à mesa, soltou um gemido triste. O esfregar constante só parecia piorar as coisas. Com as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo, encheu a boca com uma quantidade generosa de cornflakes e, com um olho injetado de sangue, tentou mais uma vez ler o exemplar de Radio Times em cima da mesa ao lado dela. Era o mais recente, distribuído nessa manhã, que furtara da Sala do Dia antes que outra pessoa qualquer tivesse tido oportunidade de lhe pôr a mão. Mas não valia a pena; tinha dificuldade em ler os títulos em cima das páginas, quanto mais as letras mais pequenas das listas dos programas ao fundo da página.
- Que vírus mais nojento e imundo! - queixou-se ela outra vez em voz alta.
A Sala de Jantar estava estranhamente silenciosa para aquela hora da manhã; num dia normal, até os primeiros a sentarem-se para tomar o café-da-manhã teriam trocado umas palavras.
Rangendo os dentes de frustração, Mrs. Burrows dobrou o guardanapo e usou um canto para limpar cada um dos olhos lacrimejantes. Depois de uma série de barulhos profundos enquanto tentava sem êxito aliviar os canais nasais, assoou ruidosamente o guardanapo. Depois, piscando rapidamente, tentou mais uma vez focar os olhos nas páginas da revista.
- Não vale a pena! Que chatice! Parece que estão cheios de terra! - disse ela, afastando a taça de cereais da sua frente.
Com os olhos fechados, inclinou-se para a frente na cadeira e esticou o braço para agarrar na xícara de chá. Quando a levou aos lábios e bebeu um gole, cuspiu ruidosamente, espalhando uma névoa por cima da toalha. Estava gelado.
- Ugh! Que nojo! - guinchou ela. - O serviço nesta casa é deplorável!
Pousou ruidosamente a chávena no pires.
- Este lugar está paralisado! - queixou-se ela para ninguém em particular, sabendo muito bem que a maior parte do pessoal não tinha aparecido nesse dia. - Qualquer pessoa seria capaz de julgar que estamos em guerra.
- E estamos - disse uma voz bem-educada.
Mrs. Burrows abriu uma pálpebra inchada para ver quem é que tinha falado. Sentado a uma das mesas, um homem com um casaco de tweed, provavelmente com uns cinquenta e cinco anos, estava mergulhando uma tira de uma torrada com manteiga no seu ovo cozido, com movimentos pequenos e deliberados. Tal como ela, parecia preferir a sua própria companhia, visto que tinha escolhido sentar-se na mesinha pequena no vão da outra janela. A sala estava completamente deserta excetuando ela e este outro comensal. Não havia dúvida de que tinham sido uns dias estranhos, com um pessoal esquelético com olhos inflamados e lacrimejantes a fazer o possível por cuidar dos doentes, que, na sua maioria, se deixava ficar fechado no quarto.
- Hum-hum - disse o homem, assentindo com a cabeça como se estivesse a concordar consigo próprio.
- Desculpe?
- Disse que há uma guerra - declarou ele, mastigando o pedaço de torrada mergulhada no ovo.
Daquilo que Mrs. Burrows conseguia ver, ele tinha sido pouco afetado pelo vírus.
- Como chegou a essa conclusão? - perguntou Mrs. Burrows beligerantemente e lamentando imediatamente ter dito fosse o que fosse.
Ele parecia-se, suspeitosamente, com um promotor de vendas - um profissional que tinha sido completamente ignorado, mas que estava a recuperar a imagem dentro da companhia. Quando voltava à sua boa forma antiga, este tipo de pessoas tornava-se extremamente arrogante e insuportavelmente pomposo - nesta fase da recuperação eram pessoas difíceis de ignorar, mas mereciam bem o esforço.
Mrs. Burrows baixou a cabeça, rezando para que ele a deixasse sozinha e se concentrasse no seu ovo. Mas não ia ter essa sorte.
- E estamos do lado que está perdendo - disse ele, a mastigar. - Estamos constantemente a ser atacados por vírus. E pode acontecer que tudo acabe para nós antes de termos tido tempo de cantar Ring a ring o'roses.
- Do que está falando? - resmungou Mrs. Burrows por entre dentes, não conseguindo se conter. - Que disparate!
- Pelo contrário - disse ele franzindo a testa. - Com o planeta tão sobrepovoado, temos uma situação ótima para os vírus sofrerem mutações e se tornarem verdadeiramente letais e, ainda por cima, num período duplamente mais rápido. Um campo de criação ideal.
Mrs. Burrows começou a pensar em fugir pela porta. Não estava disposta a ficar ali a ouvir este velho maluco a dizer disparates e, além disso, tinha perdido o apetite por completo. A vantagem desta pandemia misteriosa era que devia ser muito improvável que houvesse atividades organizadas para aquele dia, por isso, podia dedicar-se a uma bela sessão de televisão com pouca ou nenhuma oposição à sua escolha de programas. Mesmo que não conseguisse ver grande coisa, pelo menos, podia ouvir.
- Neste momento, estamos todos a sofrer com esta infecção ocular bastante desagradável, mas não seria preciso muito para que um par de genes se misturasse e a transformasse numa assassina. - Agarrou num saleiro de mesa e abanou-o por cima do - Preste atenção às minhas palavras: um dia vai aparecer a coisa verdadeiramente má que nos vai ceifar a todos - declarou o homem, dando uns toques delicados com o guardanapo nos cantos dos olhos. Nessa altura, vamos todos ter o destino dos dinossauros. E tudo isto - varreu a sala com a mão - e todos nós não passaremos de um capítulo bastante insignificante da história do mundo.
- Que animador. Até parece uma estúpida história de ficção científica - disse Mrs. Burrows zombeteiramente, levantando-se e começando a apalpar o caminho de mesa em mesa, em direção à porta.
- É um cenário desagradável, mas muito provável para a nossa partida final - replicou ele.
Esta última afirmação foi a última gota d'água para Mrs. Burrows. Já era bastante mau que os olhos estivessem irritando-a, sem ter de ouvir esta divagação.
- Oh, sim, nós estamos todos condenados, não estamos? E como sabe? - perguntou ela desdenhosamente. - Afinal quem é você? Um escritor falido ou qualquer coisa do gênero?
- Não, na verdade, sou médico. Quando não estou aqui, trabalho em St. Edmund's, é um hospital, é capaz de já ter ouvido falar?
- Oh! - balbuciou Mrs. Burrows, interrompendo a fuga e voltando-se para o lugar onde o homem estava sentado.
- Uma vez que também parece ser uma perita, gostaria de poder partilhar a sua fé de que não há nenhum motivo para preocupações.
Sentindo-se mais do que um pouquinho humilhada, Mrs. Burrows continuou parada onde estava.
- E tente não tocar nos olhos, minha cara - só vai fazer com que fiquem piores - disse o homem secamente, virando a cabeça para ver dois pombos a disputarem uma crosta de bacon no chão ao pé da mesa dos pássaros.
Capítulo Vinte e Dois
D
urante vários quilômetros, a única coisa que se conseguia ouvir era o rangido dos pés deles na poeira. Era uma caminhada difícil para Will e Chester, que se arrastavam atrás dos seus captores silenciosos, que os puxavam rudemente para os levantarem quando um deles tropeçava e caía. E os rapazes tinham sido maldosamente agredidos por diversas vezes para os fazerem andar mais depressa.
Repentinamente, sem qualquer aviso, os dois rapazes foram obrigados a parar e tiraram-lhes as vendas. Piscando os olhos, olharam em volta: era evidente que ainda continuavam na Grande Planície, mas não conseguiam distinguir nenhumas características do terreno com a luz da lanterna de mineiro na cabeça do homem alto que estava parado à frente deles. O clarão da luz fazia com que não conseguissem ver-lhe a cara, mas vestia um casaco comprido com um cinto em volta da cintura com muitas bolsas presas. Ele tirou qualquer coisa de uma delas - um globo luminoso, que segurou na mão enluvada. Depois esticou o braço acima da cabeça e desligou a lanterna de mineiro.
Desenrolou um lenço que lhe tapava a boca e o pescoço ao mesmo tempo que olhava de um rapaz para o outro. Tinha os ombros largos, mas a cara foi o que lhes atraiu a atenção. Era uma cara magra com um nariz forte e um olho azul que cintilava fixo neles. O outro olho tinha uma coisa qualquer à frente, segura por uma fita larga à roda da cabeça.
Aquilo fazia lembrar a Will a última vez que lhe tinham feito testes nos olhos; o oftalmologista que o examinara usava um aparelho semelhante. Todavia, esta versão tinha uma lente leitosa e, Will era capaz de jurar, um brilho cor de laranja muito suave, partiu imediatamente do princípio de que o olho se danificara, mas depois reparou num par de cabos torcidos presos no aro e que contornavam a fita da cabeça até à nuca.
O olho destapado continuava a avaliá-los, arguto e veloz, saltando rapidamente de um para o outro.
- Não tenho muita paciência - começou o homem por dizer.
Will estava tentando calcular a idade dele, mas o homem tanto podia andar pelos trinta como pelos cinquenta e tinha uma figura tão imponente que nenhum dos rapazes conseguia evitar sentir-se intimidado.
- Chamo-me Drake. Não tenho por hábito recolher os proscritos da Colônia - disse ele, e depois fez uma curta pausa antes de continuar: - Às vezes, com os destroçados e os rebentados, aqueles que foram torturados ou que estão demasiado fracos para durarem muito... propicio-lhes uma libertação mais rápida. - Com um sorriso amargo, passou a mão à volta do cinto, pousando-a no punho de uma faca enorme. - É a coisa mais bondosa que se pode fazer.
Como se já tivesse esclarecido a sua posição, afastou a mão da faca.
- Quero respostas honestas. Tenho andado a lhes seguir e não há nenhum reforço, não é?
Olhou atentamente para Will, que não lhe respondeu.
- Você, grandalhão, como se chama? - perguntou o homem, virando-se para Chester, que se apoiava num e noutro pé, pouco à vontade.
- Chester Rawls, senhor - respondeu o rapaz numa voz trêmula.
- Não é um Colono, não é?
- Ah... não - gaguejou Chester.
- Da Superfície?
- Sim.
Chester baixou os olhos, incapaz de suportar o olhar do homem durante mais tempo.
- Então como veio parar aqui?
- Fui Banido.
- Juntamente com os melhores - disse Drake, virando-se para Will. - Você, o valente, ou o grande idiota. Nome?
- Will - respondeu ele calmamente.
- O que você é, pergunto eu? É mais difícil. Comporta-se como um Colono e parece um Colono dos pés à cabeça, mas também tem um toque qualquer da Superfície.
Will assentiu com a cabeça.
Drake continuou:
- O que te torna de certo modo diferente. É evidente que não é um agente dos Limitadores.
- De quem? - perguntou Will.
- Acabou de os ver em ação.
- Não faço a menor ideia do que são os Limitadores - resmungou Will insolentemente.
- Um destacamento de especialistas dos Styx. Ultimamente têm andado a aparecer por todo o lado. Parece que as Profundezas se tornaram um hábito para eles - disse Drake. - Portanto, não trabalha para eles.
- Não, não trabalho droga nenhuma - replicou Will tão enfaticamente que o olho de Drake pareceu abrir-se ligeiramente com o que poderia ter sido espanto. Soltou um suspiro e cruzou os braços, afagando pensativamente o queixo com a mão.
- Foi o que eu pensei. - Olhou para Will, abanando a cabeça. - Mas eu não gosto nada quando não consigo compreender as coisas de primeira. Tenho tendência para agir precipitadamente... para me ver livre do que quer que isso seja. Diga-me rapaz, e depressa, quem é e o que é?
Will percebeu que era melhor obedecer ao homem e dar-lhe uma resposta.
- Nasci na Colônia e a minha mãe tirou-me daqui. Levou-me para a Superfície - respondeu.
- E quando foi para a Superfície?
- Quando eu tinha dois anos, ela...
- Basta - interrompeu Drake, levantando uma mão. - Não te pedi para me contar a história da sua vida - rosnou ele. - Mas sinto que é verdade. E faz com que seja... uma excentricidade. - Olhou para trás dos rapazes, para a escuridão para lá deles. - Sugiro que os levemos conosco. Podemos decidir o que fazer com eles mais tarde. De acordo, Elliott?
Uma figura mais pequena, que não chegava a ser mais alta do que Will, apareceu na frente deles, tão furtivamente como um gato. Mesmo com a luz fraca, conseguiam distinguir as curvas do corpo por baixo das calças e do casaco soltos, roupas iguais às que Drake vestia. Tinha um lenço cor de areia, um shemagh , a envolver-lhe a cara e a cabeça, que lhe obscurecia todas as feições, exceto os olhos, que nunca olharam na direção dos rapazes.
Trazia uma espingarda qualquer que colocou à sua frente, enterrando a coronha no chão, e apoiou-se nela. Parecia pesada, com um cano grosso que parecia um tubo, a que estava presa, mais ou menos ao meio, uma mira telescópica atarracada que cintilava baçamente como cobre sujo. A arma era quase tão alta como ela e parecia terrivelmente pesada para uma garota com uma estrutura tão delicada como a dela.
Os dois rapazes contiveram a respiração, à espera que ela falasse, mas ao fim de uns segundos ela limitou-se a assentir com a cabeça e depois voltou a pôr a arma às costas como se ela não pesasse mais do que uma cana de bambu.
- Venham - disse-lhes Drake.
Não deu sinal de querer voltar a vendá-los, mas deixou-os continuar com as mãos atadas. Apenas com o brilho fraquíssimo da lanterna de mineiro de Drake a mostrar-lhes onde ele estava, os dois rapazes seguiram o vulto de costas largas enquanto os conduzia por uma paisagem impiedosamente monótona. Apesar da falta de marcos, ele parecia saber sem qualquer hesitação qual o caminho que deviam seguir. Ao fim de muitas mais horas deste terreno deserto, chegaram ao fim da Grande Planície à entrada de um tubo de lava. Desceram-no a grande velocidade. Era quase como se Drake conseguisse ver na escuridão, pensou Will.
Agora, no espaço fechado do tubo, eles observavam o contorno indistinto da cabeça de Drake, mas quando olhavam para trás para verem onde Elliot estava, não havia qualquer sinal dela. E também não ouviam barulho. Will acabou por deduzir que ela deveria ter seguido por outro caminho ou que ficara para trás por qualquer razão.
Os três, Drake, Will e Chester, seguiram pela esquerda numa bifurcação e depressa chegaram ao que parecia ser um beco sem saída.
Drake fê-los parar. Virou para cima a luz da lanterna de mineiro e ficou ali parado, virado para eles, as costas encostadas à parede, enquanto Will e Chester olhavam em volta, sentindo-se pouco à vontade. Não viam razão para terem parado. Chester conteve a respiração quando repentinamente Drake levou a mão à anca e tirou a faca da bainha.
- Vou soltar-lhes as mãos - disse-lhes Drake antes que eles tivessem tempo para pensar o pior. - Venham cá - continuou chamando-os com a faca e, quando eles viraram os pulsos para cima, cortou-lhes as cordas com um só golpe.
- Há alguma coisa nessas mochilas que se estrague com água? Comida, ou qualquer outra coisa que queiram manter seca?
Will pensou uns segundos.
- Depressa! - pressionou-o Drake.
- Sim, há os meus cadernos de notas e a minha máquina fotográfica, uma grande quantidade de comida e... e uns explosivos - replicou Will. - Isso é na minha. - Olhou para a mochila do irmão que agora era transportada por Chester. - Na de Cal, a maior parte é comida.
Antes de ele ter acabado o que dizia, Drake atirou dois sacos dobrados para os pés deles.
- Usem isso. Ande logo.
Cada um dos rapazes agarrou num saco e sacudiu-os para abri-los. Eram feitos de um tecido encerado leve, com dois cordões nas aberturas.
Will abriu a mochila e colocou rapidamente as coisas que queria guardar para dentro do saco. Apertou os cordões e depois virou-se para olhar para Chester, que não estava familiarizado com o conteúdo da mochila e por isso levava mais tempo.
- Vá, apressem-se, por favor - rosnou-lhes Drake baixinho.
- Deixe-me fazer isso - ofereceu-se Will, empurrando Chester para o lado com o ombro e acabando a tarefa em segundos.
- Muito bem - disse Drake. - Tudo certo?
Os dois rapazes assentiram.
- Um conselho. Para a próxima vez, sugiro que fiquem com pelo menos um par de meias secas.
Will e Chester haviam estado tão ocupados com a tarefa que tinham entre mãos que nem um nem outro pensaram no que iria acontecer a seguir.
- Certo, senhor - disse Will.
Sentia-se reconfortado pelas palavras "próxima vez" e o conselho quase paternal deste completo desconhecido.
- Olhe, eu não sou senhor para ninguém - retorquiu Drake bruscamente, fazendo com que Will se voltasse a sentir desconfortável.
Não o dissera intencionalmente - tinha-lhe saído como se estivesse a falar com um professor na escola.
- Desculpe, se... - começou Will a dizer, conseguindo calar-se a tempo. Percebeu o rápido sorriso trocista nos lábios de Drake antes de o homem recomeçar a falar.
- Vão atravessar isto a nado - disse-lhes Drake, apontando com a ponta do pé para o chão ao fundo da parede.
Onde os rapazes tinham pensado que era chão sólido, viram ondinhas que se espalhavam preguiçosamente sob uma espessa camada de pó. Aparentemente, era uma pequena lagoa com dois metros de diâmetro.
- Nadar? - perguntou Chester assustado.
- É capaz de suster a respiração durante trinta segundos, não é, rapaz?
- Sou - gaguejou Chester.
- Ótimo. Isto é uma fossa pequena, que vai sair noutra passagem. É um tipo de curva em U.
- Parecido com o cano atrás da privada? - sugeriu Chester, a voz carregada de apreensão.
- Oh, essa foi boa, Chester - disse Will com uma careta.
Drake deitou-lhes um olhar de esguelha e depois lhes fez sinal para se aproximarem da água sombria.
- Lá para dentro.
Will pôs a mochila às costas e aproximou-se da lagoa, abraçando o saco à prova de água. Entrou sem hesitação, com cada passo a fazê-lo entrar mais profundamente na água tépida. Depois, inspirando fundo, enfiou a cabeça debaixo de água e desapareceu.
Sentindo bolhas a roçarem-lhe a cara, impulsionou-se para a frente usando a mão livre. Manteve os olhos muito bem fechados, o barulho da água a atroar-lhe os ouvidos. Embora o túnel não fosse particularmente largo, chegando a ter um metro nos pontos mais estreitos, não estava a mostrar-se difícil de percorrer, ainda que ele tivesse de lutar com a mochila e o saco à prova de água.
Mas apesar de ele achar que estava a progredir bem, parecia que não chegava a lugar nenhum. Abriu os olhos na escuridão profunda, o que fez com que o coração começasse a bater ainda mais depressa. A água à sua volta parecia pegajosa e resistente. Isto era o seu pior pesadelo.
Isto é tudo um truque? Devia voltar para trás?
Tentou manter-se calmo, mas com a falta de ar o corpo estava a começar a revoltar-se contra ele. Sentiu uma onda de pânico a invadi-lo e começou a debater-se às cegas, a agarrar-se desesperadamente a qualquer coisa que o ajudasse a mover-se mais depressa. Tinha de sair daquele líquido preto. Agora estava a deslocar-se com um desespero enlouquecido, avançando pelas águas escuras, numa corrida em câmara lenta.
Interrogou-se por um brevíssimo instante se isto seria a forma como Drake os iria matar aos dois. Mas ao mesmo tempo disse a si próprio que Drake não precisava de se ter dado a todo este trabalho - teria sido mais simples cortar-lhes as gargantas quando estavam na Grande Planície, se fosse isso que queria fazer.
Embora provavelmente não houvesse passado mais de meio minuto, pareceu-lhe que tinham sido várias vidas antes de irromper para a superfície com um tremendo espirrar de água.
A arquejar, procurou a lanterna às apalpadelas e ligou-a no mínimo. A luz fraca não lhe revelou muita coisa sobre o lugar onde se encontrava, exceto que o chão e as paredes pareciam brilhar um pouco quando a luz os atingia. Presumiu que isso se deveria à umidade nas superfícies. Grato pelo ar nos pulmões, esperou por Chester.
Do outro lado da fossa, Chester pôs a mochila nos ombros relutantemente e começou a arrastar os pés em direção à água, arrastando o saco impermeável atrás de si.
- O que está esperando, rapaz? - perguntou Drake, a voz dura e intransigente.
Chester mordeu o lábio, parando ao pé da água que batia devagarinho na margem, ainda agitada pela passagem de Will. Olhou timidamente para o olho brilhante de Drake.
- Ah... - começou a dizer, perguntando para consigo como poderia evitar submergir na poça assustadora à sua frente. - Eu não sei...
Drake agarrou-lhe no braço, mas sem exercer força.
- Ouça, não quero lhe fazer mal. Vai ter de confiar em mim. - Levantou o queixo, desviando o olhar do rapaz assustado. - Não é uma coisa fácil confiar num completo estranho, especialmente depois daquilo por que passou. Tem razão em ser cauteloso. Mas eu não sou um Styx e não vou fazer nada para te machucar. Ok? - Pousou o olhar do seu único olho no rapaz.
Perto do homem, Chester olhou diretamente para a cara dele e, por qualquer razão, soube que ele estava a ser sincero. De repente, Chester sentiu-se cheio de confiança.
- Está bem - concordou, e, sem mais hesitações, entrou na água escura e submergiu.
E enquanto se impelia através da água, usando a mesma técnica que Will tinha utilizado, meio a nadar, meio a correr, não permitiu que nenhuma dúvida lhe obscurecesse os pensamentos.
Do outro lado, Will estava à espera para ajudar Chester a sair.
- Tudo bem? - perguntou Will. - Demorou tanto que pensei que tivesse ficado preso, ou qualquer coisa assim.
- Não há problema - respondeu Chester, ofegante e limpando a água dos olhos.
- Agora é a nossa oportunidade - disse Will muito depressa, tentando ver o que havia para lá da escuridão e voltando a olhar para a poça. Não havia sinal de Drake, mas ele não devia estar muito longe. - Devíamos dar o fora.
- Não, Will - respondeu Chester resolutamente.
- O que está dizendo? - perguntou Will, já se virando e tentando puxar o amigo.
- Não vou a lugar algum. Acho que estamos a salvo com ele - replicou Chester.
Fincou os pés no chão para resistir a Will, que percebeu que ele estava decidido a fazer o que dizia.
- Tarde demais - disse Will, furioso, quando uma luz fraca brilhou no fundo da água.
Era a lanterna de mineiro de Drake na testa de Drake. Will emitiu um rosnado para Chester no preciso instante em que a cabeça e os ombros do homem irromperam à superfície e ele se levantou como uma aparição, quase sem agitar a água.
A luz dele era muito mais intensa do que a dos rapazes quando incidiu nas paredes à volta deles. Agora, Will conseguia ver que o que tinha tomado por umidade era uma coisa totalmente diferente. As paredes e o chão onde os garotos se encontravam estavam cheios de um sem-número de delicados veios dourados, como se tivessem sido cobertos por uma teia de aranha de um valor incalculável.
Os veios cintilavam com milhares de pontinhos minúsculos de luz, inundando a câmara com um glorioso caleidoscópio de quentes tonalidades de amarelo.
- Uau! - exclamou Chester.
- Ouro! - gaguejou Will sem querer acreditar.
Olhou para os braços, reparando que estavam cheios de salpicos de brilho e depois viu que tanto Chester como o homem também estavam cobertos deles. Todos tinham apanhado uma boa quantidade nas roupas e na pele da poeira cintilante à superfície da água.
- Lamento, mas não - disse Drake, que já estava de pé ao lado deles. - É apenas Ouro dos Trouxas. Sulfureto de ferro.
- Claro - disse Will, lembrando-se do cubo brilhante que o pai lhe trouxera para a coleção de minerais. - Sulfureto de ferro - repetiu, um poquinho envergonhado por se ter deixado enganar.
- Posso mostrar-lhes lugares onde há ouro, onde podem encher as botas - disse Drake enquanto examinava as paredes. - Mas para quê, se não há onde o gastar?
A frieza tinha-lhe voltado ao tom de voz quando apontou para as mochilas e disse:
- Tratem das suas coisas... temos de ir.
Mal os rapazes ficaram prontos, deu meia volta e começou a andar, uma figura imperiosa a percorrer com passadas compridas e fortes o túnel dourado.
Deslocando-se com rapidez por um confuso labirinto de túneis rochosos, só passado muito tempo é que chegaram a uma rampa que levava a uma entrada em arco. Drake meteu a mão pela abertura e apalpou um dos lados. Puxou para fora uma corda cheia de nós.
- Para cima - disse, estendendo-lhes a corda.
Will e Chester escalaram uns dez metros e ficaram à espera, a arquejar de cansaço. Drake seguiu-os com o esforço com que qualquer pessoa normal abriria uma porta. Os rapazes encontravam-se numa espécie de átrio octogonal, de onde podiam ver aberturas que davam para outros espaços fracamente iluminados. O chão era plano e coberto de sedimentos, e quando Will o riscou com a bota, percebeu pelos ecos que as divisões ao lado tinham um tamanho razoável.
- Isto vai ser a nossa casa durante uns tempos - informou Drake, desapertando o cinto volumoso que trazia à cintura.
Despindo o casaco, atirou-o por cima do ombro. Depois agarrou na engenhoca à frente do olho e levantou-a. Tinha uma dobradiça e revelou que, de fato, o outro olho era bastante normal.
Com ele ali de pé, à frente deles, os rapazes puderam ver bem a musculatura dos braços nus e como ele era excepcionalmente magro e bem desenvolvido. Tinha as maçãs do rosto proeminentes e a cara era tão magra que os músculos que a compunham estavam quase visíveis sob a pele. E todos os centímetros da pele, encardida com sujeira e com a cor de couro curtido, estavam cobertos por uma rede de cicatrizes. Algumas eram grandes, riscos brancos e descoloridos, que sobressaíam orgulhosamente, ao passo que outras eram muito mais pequenas, como se filamentos pálidos se tivessem espalhado pelo pescoço e pelas faces.
Mas os olhos, sob a testa proeminente, tinham um azul intenso e brilhavam com uma tal ferocidade assustadora que tanto Will como Chester tinham dificuldade em suportar o seu escrutínio. Era como se as suas profundezas deixassem entrever num ápice um lugar aterrador, um lugar de que nenhum deles queria conhecer fosse o que fosse.
- Certo, agora esperem ali.
Os rapazes começaram a dirigir-se, arrastando os pés, para o quarto que Drake apontava.
- Mas deixem as mochilas aqui - ordenou ele e, ainda virado para os rapazes, acrescentou: - Está tudo em ordem, Elliott?
Will e Chester não conseguiram resistir a espreitar para trás de Drake. A garota estava parada, completamente imóvel, ao pé da corda. Era evidente que nunca estivera muito longe, atrás deles, durante todo o tempo, mas nenhum deles dera pela presença dela até àquele momento.
- Você vai amarrá-los, não vai - perguntou ela numa voz fria e pouco amigável.
- Não é necessário, não é, Chester? - perguntou Drake.
- Não - respondeu o rapaz tão prontamente que Will olhou para ele com um espanto mal disfarçado.
- E você?
- Ah... não - murmurou Will com muito menos entusiasmo.
Uma vez lá dentro, sentaram-se em silêncio na obscuridade, numas camas rudimentares que lá tinham encontrado - as únicas peças de mobília que havia no quarto. Com o comprimento que dava justo para os rapazes, as camas tinham muito pouca largura e as superfícies praticamente não eram almofadadas - pareciam mais um par de mesas estreitas com uns cobertores em cima.
Enquanto esperavam, sem fazerem ideia do que iria acontecer, o quarto reverberava com os ruídos no corredor. Ouviram os sons abafados da conversa entre Drake e Elliott e depois o barulho das mochilas a serem abertas e o conteúdo atirado para o chão. Por fim, ouviram passos que se afastavam, e depois mais nada.
Will tirou um globo luminoso do bolso e começou a rolá-lo distraidamente pela manga. Agora que o casaco tinha secado, aquela ação fez com que os grãos cintilantes da sulfureto de ferro se soltassem, espalhando-se pelo chão.
- Até parece que estive na porcaria de uma discoteca - murmurou e, depois, sem parar para respirar, dirigiu-se ao amigo: - Qual é a sua jogada, Chester?
- O que quer dizer?
- Parece ter resolvido confiar nestas pessoas, por qualquer razão. Porque confia neles? - perguntou Will. - Está percebendo, com certeza, que eles vão nos roubar a comida e nos largar em um lugar qualquer? Na verdade, provavelmente, vão nos matar. Eles são dessa espécie de escória de ladrões.
- Não me parece - replicou Chester indignadamente, com o cenho franzido.
- Bem, então o que foi aquilo tudo ali fora? - perguntou Will, apontando com o polegar para o corredor.
- Acho que eles são uma espécie de rebeldes, em guerra com os Styx - disse Chester na defensiva. - Sabe, uns combatentes pela liberdade.
- Sim, sim, está mesmo parecendo.
- Podem muito bem ser - insistiu Chester. - Porque não lhes pergunta, Will?
- E porque não pergunta você? - retorquiu Will desabridamente.
Estava a ficar cada vez mais furioso. A acrescentar ao acidente de Cal, a forma traumática como tinham sido apanhados era realmente a última gota d'água. Caiu num silêncio meditativo e começou a formular um plano de ação em que iriam abrir caminho à força e fugir dali. Preparava-se para informar Chester do que achava que deviam fazer quando Drake apareceu à porta. Encostou-se ao umbral a comer alguma coisa. Era a guloseima preferida de Will - um Caramac *. Ele e Cal tinham comprado vários no supermercado da Superfície e tinha estado a guardá-los com todo o cuidado para uma ocasião especial.
- O que são estas coisas? - perguntou Drake, apontando para duas rochas pardacentas do tamanho de bolas de gude grandes, que trazia na concha da mão. Sacudiu-as como se fossem dados e depois fechou a mão e começou a esfregá-las uma na outra.
- Eu não faria isso, se fosse você - disse-lhe Will.
- Porque não?
- É mau para os olhos - disse Will, com os cantos da boca a curvarem-se com o princípio de um sorriso vingativo enquanto o homem continuava a esfregar as pedras uma na outra. Eram as últimas das pedras nodos que Tam tinha dado ao rapaz, e, como era evidente, Drake encontrara-as na mochila de Will. Quando se partiam, tornavam-se incandescentes, emitindo uma luz branca que cegava.
- Elas vão arrebentar-lhe na cara - avisou Will.
Drake olhou desconfiado para Will, sem saber se o rapaz estaria falando sério. Contudo, dando outra grande dentada no Caramac, parou de chocalhá-las enquanto as observava atentamente.
Will estava danado.
- Está se servindo bem, não está? - espumou ele.
- Sim - respondeu Drake sem rodeios, enfiando o último pedaço do chocolate na boca. - Pense nisto como um pequeno pagamento por salvá-los.
- E isso lhe dá o direito de se servir das minhas coisas, é? - Will estava agora de pé com os braços retesados, a cara rígida de raiva. - Além disso, nós não precisávamos de ser salvos.
- Oh, sério? - respondeu Drake descontraidamente, a boca ainda cheia de chocolate. - Olhe para vocês os dois. São umas autênticas desgraças.
- Estávamos nos saindo muito bem até vocês terem aparecido - retorquiu Will.
- Oh, verdade? Então, diga-me, o que aconteceu a esse Cal a que se refere? Não o vejo em lugar nenhum. - Drake olhou em volta do quarto e depois ergueu as sobrancelhas interrogativamente. - Onde estará ele escondido?
- O meu irmão... ele... ele... - começou Will a responder em tom beligerante, mas, repentinamente, toda a zanga e toda a arrogância o abandonaram, e ele deixou-se cair na cama.
- Ele morreu - disse Chester.
- Como? - perguntou Drake, engolindo o último pedaço de chocolate.
- Havia esta caverna... e... - a voz de Will falhou-lhe.
- Que tipo de caverna? - perguntou Drake imediatamente, com uma voz muitíssimo séria.
Chester tomou a palavra.
- Tinha um cheiro adocicado e havia aquelas estranhas coisas-plantas... elas morderam-no ou qualquer coisa assim e depois esta coisa...
- Uma armadilha de açúcar - interrompeu Drake, desencostando-se e entrando no quarto, olhando intensamente de um rapaz para o outro. - E o que vocês fizeram? Não o deixaram lá, não é?
- Ele não respirava - disse Chester.
- Ele morreu - acrescentou Will desconsoladamente.
- Onde e quando foi isso? - insistiu Drake.
Will e Chester olharam um para o outro.
- Vamos, digam logo - pressionou Drake.
- Há dois ou três dias... acho - disse Will.
- Sim, foi ao pé do primeiro canal a que chegamos - confirmou Chester.
- Então é possível de ainda haver alguma chance - disse Drake dirigindo-se para a porta. - Uma chance muito, muito fraca.
- O que quer dizer? - perguntou Will.
- Temos de ir - retorquiu Drake secamente.
- Hum? - disse Will, sem conseguir entender o que estava ouvindo.
Mas Drake já descia o corredor com passadas decididas.
- Sigam-me. Vamos precisar levar provisões - gritou-lhes por cima do ombro. - Elliott! Prepare-se! Traga as armas!
Parou ao pé das mochilas, ao lado das quais todos os pertences dos rapazes estavam arrumados em pilhas diferenciadas.
- Levem aquilo, aquilo e aquilo - disse Drake, apontando para várias pilhas de comida. - Deve bastar. Vamos levar uma reserva de água. Elliott! Água! - gritou ao mesmo tempo que se voltava para os rapazes.
Estes estavam parados, bastante atrapalhadoss, olhando para ele, sem entenderem o que iam fazer e porquê.
- Apressem-se a arrumar essas coisas... isto, claro, se quiserem salvar o seu irmão.
- Não entendo - disse Will, ajoelhando-se para arrumar a comida na mochila como Drake mandara. - Cal não respirava. Ele está morto.
- Não há tempo para explicar - ladrou-lhe Drake quando Elliott apareceu numa das outras portas.
Ela ainda trazia o shemagh na cabeça e a espingarda às costas. Entregou a Drake dois recipientes parecidos com bexigas que chocalhavam com a água dentro deles.
- Levem estes - disse Drake, passando-os aos rapazes.
- O que se passa? - perguntou Elliott calmamente enquanto começava a entregar outros artigos a Drake.
- Eles eram três. O terceiro caiu numa armadilha de açúcar - respondeu ele, virando os olhos na direção dos rapazes e agarrando num molhe de cilindros, com uns quinze centímetros de comprimento, que Elliott lhe passou. Abriu o casaco e enfiou-os um a um na parte de dentro. Depois prendeu uma bolsa com versões mais curtas dos cilindros - cada um deles com a grossura e o aspecto de um lápis, e presos com uma presilha - no cinto, que, por sua vez, atou à coxa com uma corda curta.
- O que são essas coisas? - inquiriu Will.
- Precauções - respondeu Drake distraidamente. - Vamos seguir direto, pela planície. Não temos tempo para sutilezas.
Apertou o casaco e voltou a pôr a engenhoca em cima do olho.
- Pronta? - perguntou a Elliott.
- Pronta - confirmou ela.
Capítulo Vinte e Três
M
ais tarde, nessa noite, Sarah estudava no quarto, cuidadosamente, o mapa que o soldado Styx lhe tinha dado. Estava sentada no chão, de pernas cruzadas, com o mapa estendido à frente, a familiarizar-se com os nomes dos vários lugares.
- Cidade da Fenda - repetiu várias vezes, e depois desviou a atenção para as zonas do nordeste da Grande Planície, de onde vinham relatórios recentes de atividades dos renegados. Perguntou para si mesma se Will estaria de algum modo relacionado com isso - dado o seu passado, Sarah não se sentiria surpreendida se ele já andasse a agitar as coisas nas Profundezas.
Foi distraída pelos passos pesados e regulares no corredor. Aproximando-se da porta do quarto, Sarah abriu-a uma fresta o mais silenciosamente possível e viu o inconfundível vulto grande e forte a descer pesadamente o corredor.
- Joseph - chamou baixinho.
Ele voltou-se e encaminhou-se para ela, enfiando umas toalhas muito bem dobradas debaixo do braço.
- Não quis incomodar - disse ele, dando uma olhada pela porta parcialmente aberta e para trás de Sarah, para o chão, onde o mapa estava estendido.
- Devia ter entrado. Estou tão contente por ter voltado - disse-lhe Sarah com um sorriso. - Eu estava... ah... - começou dizendo e depois calou-se.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer por você, basta dizer - ofereceu-se Joseph.
- Acho que não vou ficar aqui muito mais tempo - disse ela, e depois hesitou. - Há uma coisa que eu gostaria de fazer antes de ir.
- O que quiser - repetiu ele. - Sabe que estou aqui para o que precisar - continuou sorrindo-lhe, encantado por ela sentir que podia confiar nele.
- Quero que me leve para fora - disse-lhe Sarah baixinho.
Movendo-se como uma sombra, Sarah mantinha-se muito perto da parede. Já tinha evitado vários policiais da Colônia que faziam ronda nas ruas circundantes e não queria ser apanhada agora. Ocultando-se rapidamente num recanto atrás de um fontanário antigo com uma gárgula de bronze manchado, agachou-se e inspecionou a entrada sombria do outro lado da rua.
Ergueu os olhos e observou as paredes altas e sem janelas do círculo de edifícios exterior. Tinha sido exatamente daquele lugar que ela vira estes edifícios com os seus olhos de criança. Nessa altura, tal como agora, davam a impressão de não terem oferecido grande resistência aos estragos do tempo. As paredes estavam cobertas de rachas com aspecto sinistro, e havia buracos enormes e fundos nos sítios onde as pedras exteriores tinham simplesmente desaparecido. A alvenaria estava num estado tão assustador, que a qualquer momento tudo aquilo se poderia desmoronar em cima de um transeunte desafortunado.
Mas as aparências podem ser enganadoras; a área onde ela estava prestes a entrar fora uma das primeiras a serem construídas quando a Colônia se estabelecera, e as paredes das casas eram suficientemente fortes para aguentarem tudo o que o homem ou o tempo lhes pudessem atirar para cima.
Sarah inspirou fundo e atravessou a rua a correr, enfiando-se no corredor escuro como breu. Mal tinha largura para duas pessoas passarem ao mesmo tempo. O cheiro agrediu-a imediatamente. O cheiro rançoso dos habitantes, um fedor a ocupação sem lavagens tão intenso que era quase uma coisa física, misturado com tudo o que a acompanhava, as descargas dos excrementos humanos e o cheiro nauseabundo de comida podre.
Sarah chegou a uma viela soturnamente iluminada. Como todas as estradas e túneis que cruzavam este distrito, era pouco mais larga do que a passagem de onde tinha acabado de sair.
- As Rookeries - disse para consigo, olhando rapidamente em volta e vendo que não mudara absolutamente nada, este lugar onde as pessoas que não tinham nenhum outro lugar para onde ir acabavam por ficar. Começou a andar, reconhecendo um edifício aqui ou uma porta ali, ainda pintados com os mesmos traços fracos de tinta das mesmas cores de que se lembrava e deixando-se embalar pelas recordações das vezes em que ela e Tam se tinham aventurado neste recreio perigoso e proibido.
Reconfortada pelo calor das recordações, desceu pelo meio da viela, evitando as sarjetas por onde as águas residuais corriam como banha aquecida. De cada um dos lados dela ficavam as espeluncas velhas e degradadas, os andares mais altos tão inclinados que, em certos lugares, pareciam que se tocavam.
Parou para ajeitar o lenço em volta da cabeça enquanto um bando de crianças esfarrapadas da rua passava correndo por ela. Estavam tão imundos que mal se distinguiam da camada de sujeira que cobria todas as superfícies.
Dois deles, pequeninos, estavam gritando a plenos pulmões "Styx e pedras podem partir-me os ossos, mas as palavras nunca me machucarão!" enquanto corriam atrás dos outros. Sarah sorriu da irreverência deles; se tivessem feito aquilo fora dos limites das Rookeries, o castigo seria rápido e brutal. Um dos rapazes saltou por cima da sarjeta aberta no meio da rua e passou a correr por um grupo de velhas tagarelas que traziam na cabeça lenços iguais ao de Sarah. Estavam conversando entre elas, muito concentradas, a abanarem as cabeças. Quase sem olhar, uma das mulheres virou-se para fora do grupo no preciso momento em que o rapaz ficou ao seu alcance. Deitando-lhe a mão com uma força desnecessária, deu-lhe uma valente reprimenda. A cara da mulher estava cheia de rugas e pústulas e branca como a de um fantasma.
O rapazinho cambaleou ligeiramente e depois, a esfregar a cabeça e a resmungar baixinho, desatou a correr. Sarah não conseguiu conter uma gargalhada. Via no rapaz um Tam jovem, reconhecendo a força e a resistência que tanto admirara no irmão. As crianças continuavam a provocar-se umas às outras nas suas vozes altas e esganiçadas, fazendo uma grande algazarra e gritando de excitação enquanto desciam numa correria desenfreada uma viela lateral e desapareciam.
Uns dez metros à frente de Sarah, dois homens com aspecto bruto estavam parados conversando numa porta, ambos com cabelos compridos e barbas longas e emaranhadas, e vestindo sobrecasacas em muito mau estado. Sarah apanhou-os a olharem para ela com uns esgares maldosos estampados na cara. O maior dos dois baixou a cabeça como um buldogue preparado para atacar e fez menção de se aproximar dela. Tirou uma moca nodosa e parecida com uma raiz do cinto grosso e ela viu a facilidade com que ele a segurava na mão. Isto não era uma ameaça vã - percebeu que ele sabia como utilizá-la.
Estas pessoas não gostavam nada que os estranhos saíssem do caminho normal e entrassem no seu território. Ela retribuiu-lhe o olhar gelado e abrandou o passo. Se continuasse na direção original, iria direto a ele - não havia mais lugar nenhum para ir. A alternativa era dar meia volta, o que seria considerado como um sinal de fraqueza da parte dela. Se eles suspeitassem, por uma fração de segundo que fosse, que ela estava assustada e que não devia estar ali, a matariam - era assim que as coisas funcionavam neste lugar. De qualquer maneira, Sarah sabia que ela e aquele completo desconhecido estavam em conflito e que a situação precisava ser resolvida, de um modo ou de outro.
Embora não tivesse a menor dúvida de que conseguiria safar-se se fosse preciso, sentiu um arrepio do velho medo, o familiar formigueiro elétrico a descer-lhe pela espinha. Trinta anos antes, isto era o vício dela e do irmão, o início do desafio. Por estranho que fosse, achou que era reconfortante.
- Ei! Você! - gritou alguém inesperadamente atrás dela, acordando-a dos seus pensamentos. - Jerome!
- O quê? - sobressaltou-se Sarah.
Deu meia volta para encontrar os olhos orlados de vermelho da velha bruxa. Ela tinha a cara cheia de manchas de fígado enormes e estava a apontar acusadoramente para Sarah com um dedo artrítico.
- Jerome - voltou a dizer a velha, desta vez ainda mais alto e com mais confiança, a boca tão escancarada que Sarah conseguia ver-lhe as gengivas deslavadas e desdentadas. Sarah percebeu que tinha deixado o lenço escorregar-lhe da cabeça e que a cara estava completamente à vista do grupo de mulheres. Mas, em nome de Deus, como é que elas sabiam quem ela era?
- Jerome. Sim! Jerome! - grasnou outra mulher, com uma convicção crescente. - É a Sarah Jerome, não é?
Embora estivesse muito confusa, Sarah tentou fazer uma avaliação rápida da situação. Analisou as portas das casas mais de perto, calculando que, se acontecesse o pior, poderia entrar por uma delas num dos edifícios meio em ruínas e perder-se no labirinto de túneis. Mas as coisas não pareciam nada bem. As portas estavam todas fechadas ou tapadas com tábuas.
Estava encurralada, apenas com duas opções: recuar ou avançar. Olhava para a viela atrás das velhas bruxas, calculando se deveria tentar fugir por ali e sair das Rookeries, quando uma delas soltou um grito lancinante:
- SARAH!
Sarah encolheu-se com a força do grito e uma calmaria caiu sobre toda a zona, um silêncio estranho e alerta.
Sarah deu meia volta e começou a afastar-se das mulheres, sabendo que isso ia levá-la direto ao homem barbudo. Paciência! Teria de enfrentá-lo.
Quando se aproximou, o homem levantou a moca à altura do ombro e ela preparou-se para a luta, tirando o lenço da cabeça e enrolando-o no braço. Teve vontade de dar um pontapé a si própria por não ter trazido a faca.
Estava quase ao pé dele quando, para sua grande surpresa e alívio, ele começou a bater com a moca no lintel da porta por cima da cabeça, e a gritar o nome dela.
- SARAH! SARAH! SARAH!
E toda a área estava agora numa grande agitação, como se até as casas estivessem a despertar para a vida.
- SARAH! SARAH! SARAH!
A moca continuava a marcar o ritmo enquanto as pessoas começavam a sair das casas e a vir para a viela, mais pessoas do que era possível imaginar. Portadas abriam-se nas janelas sem vidros e caras espreitavam para fora. A única coisa que Sarah podia fazer era baixar a cabeça e continuar a andar.
- SARAH! SARAH! SARAH! - ouviam-se os gritos fortes e cada vez mais rápidos e as pessoas iam-se juntando ao ritmo da moca, o barulho a aumentar à medida que as chávenas de metal ou qualquer outra coisa que viesse à mão batiam contra as paredes, os peitoris das janelas e as ombreiras das portas. Parecia um coro de uma prisão, tão alto que as telhas das casas começaram a ressoar com aquele ritmo singular.
Ainda dominada pelo pânico, Sarah não abrandou o passo, mas começou a reparar nos rostos sorridentes, impregnados de espanto maravilhado. Homens velhos, dobrados com as doenças, mulheres esqueléticas, as pessoas usadas e gastas que a Colônia tinha despachado para a lixeira, estavam a aclamá-la, a gritar jubilosamente o nome dela.
- SARAH! SARAH! SARAH!
Muitas bocas, com dentes partidos e pretos, todas a gritarem em uníssono. Caras sorridentes, selvagens, e por vezes grotescas, mas todas com expressões de admiração e até de afeto.
Estavam a juntar-se ao longo do caminho - Sarah não conseguia acreditar no enorme número de pessoas que ladeava a estrada. Alguém - não viu quem - enfiou-lhe uma folha de papel descolorida na mão. Olhou para ela. Era uma gravura tosca num papel grosseiro, o tipo de coisa que a imprensa clandestina distribuía pelas pessoas das Rookeries - Sarah já tinha visto coisas semelhantes anteriormente.
Mas esta fez com que o coração de Sarah desse um salto. A imagem maior, no centro da folha, era um desenho dela, uns anos mais nova do que era agora, ainda que vestida com roupas quase idênticas. A cara dela no desenho tinha uma expressão ansiosa e olhava melodramaticamente para um lado, como se estivesse a ser perseguida. Estava bastante parecida. Isso explicava porque a reconheceram. Isso e os rumores, que muito provavelmente tinham se espalhado como um fogo descontrolado através da Colônia, de que ela tinha sido apanhada e trazida de volta pelos Styx. Havia mais quatro imagens em molduras circulares estilizadas semelhantes à do desenho dela, em cada um dos cantos da folha, mas agora não era altura de os examinar.
Sarah dobrou o papel e inspirou fundo. Aparentemente, não havia nada a temer, nenhuma ameaça, por isso, levantou a cabeça e atirou o lenço em volta dela para trás, enquanto continuava a descer a viela, as massas a apinharem-se de cada um dos lados. Não olhou para elas, nem olhou para a esquerda ou para a direita, mas continuou a andar enquanto o clamor se ia tornando ainda mais tumultuoso. Os assobios de apreço, os vivas e o entoar do nome "Sarah!" chegavam ao teto lá muito em cima, os ecos voltavam a descer e misturavam-se com a gritaria à sua volta.
Quando chegou à rua mais larga onde ficavam as casas dos Colonos mais ricos, Sarah parou para pôr os pensamentos em ordem. Sentiu-se tonta quando tentou analisar o que tinha acabado de acontecer. Não conseguia acreditar que todas aquelas pessoas, que nunca vira antes, a tivessem reconhecido e mostrado tanta adulação. Afinal, eram os habitantes das Rookeries - não respeitavam nem admiravam ninguém fora das suas fronteiras. Não era o estilo deles. Antes disto, Sarah nunca tinha tido o menor indício de que era uma figura tão famosa.
Lembrando-se do papel que ainda apertava na mão, abriu-o e começou a analisá-lo. O papel era grosseiro, com as margens a desfazerem-se, mas ela não percebeu isso, pois os seus olhos caíram no seu nome no topo da página, escrito em letras floreadas, gravadas a cobre dentro de uma faixa retorcida, como um estandarte a voar ao vento.
E ali estava ela, o seu retrato tão nítido como o dia, no meio da folha - o artista tinha feito um bom trabalho ao captar as suas feições. Ao lado do retrato, um nevoeiro delicado e estilizado, ou talvez uma forma de representar a escuridão, formava uma moldura oval, e nos quatro cantos da folha estavam os medalhões mais pequenos que ainda não tivera tempo de examinar.
Estavam tão bem conseguidos como o desenho principal; um mostrava-a debruçada sobre o berço do bebê, as lágrimas a fazerem-lhe o rosto brilhar. Havia uma figura na sombra ao fundo, que ela presumiu ser o marido, ali a seu lado, tal como tinha feito enquanto o filho de ambos agonizava.
O medalhão seguinte mostrava-a com os dois filhos, a escapulir-se de casa, e o outro a lutar corajosamente com um Colono num túnel pouco iluminado. O último mostrava uma enorme falange de Styx, gadanhas em riste, em perseguição de uma figura de saias que fugia por um túnel. Aqui, o artista tinha usado alguma imaginação; não acontecera assim, mas o significado era claro. Instintivamente, amarrotou a folha. Era completamente proibido representar os Styx fosse de que maneira fosse - só nas Rookeries é que se atreviam a fazer uma coisa daquelas.
Não conseguia refazer-se do espanto. A sua vida... em cinco imagens.
Ainda estava a abanar a cabeça sem querer acreditar quando ouviu o estalar suave do couro e levantou os olhos. Ficou petrificada com o que viu.
Colarinhos brancos engomados e casacos compridos pretos que ondulavam com a iluminação dos candeeiros da rua. Styx. Uma patrulha enorme - talvez umas duas dúzias. Estavam a observá-la, quietos e silenciosos, numa fileira pouco rígida, do outro lado da rua. A cena tinha qualquer coisa de uma velha fotografia do velho Faroeste - um bando de pistoleiros solitários reunidos em volta do xerife antes do início de uma caçada ao homem. Mas neste filme o xerife não era quem seria de esperar.
Quando Sarah olhou com mais atenção, viu um Styx mais pequeno, no centro da fila da frente, dar um passo em frente. Reconheceu Rebecca imediatamente. Enquanto estava ali parada, orgulhosa e imperiosa, à frente dos seus homens, emanava dela uma sensação fortíssima de poder. Mas Rebecca era uma adolescente!
Quem seria ela, raios? pensou Sarah, e não pela primeira vez. Um membro da lendária classe governante dos Styx? Ninguém da classe baixa da Colônia tinha estado suficientemente perto dos Styx para descobrir se isso realmente existia. Mas se Sarah precisava de uma confirmação de que ela existia mesmo, a prova viva estava ali, à frente dela. Fosse Rebecca quem fosse, tinha de estar lá no topo, no ponto mais alto da sociedade deles, e destinada aos mais altos cargos.
Rebecca agitou a mão num gesto vago que indicava aos Styx perfilados que permanecessem onde estavam. Enquanto o cântico continuava, agora abafado pelas fronteiras das Rookeries, esboçou um leve sorriso divertido. Cruzou os braços afetadamente e olhou de esguelha para Sarah.
- Uma recepção digna de uma heroína - comentou ela do outro lado da rua, batendo com a ponta do pé nas pedras da calçada. - Que tal se sente por ser uma pessoa tão importante? - acrescentou com azedume.
Sarah encolheu os ombros nervosamente, consciente de que todas aquelas pupilas negras dos Styx estavam fixas nela.
- Bem, espero que tenha aproveitado ao máximo, porque as Rookeries, e toda a escória que lá está a apodrecer, não serão mais do que uma má recordação daqui a uns dias - rosnou Rebecca. - Fora com o velho, como se costuma dizer.
Sarah não sabia como reagir a isto - seria apenas uma ameaça vã porque Rebecca estava furiosa por ela se ter atrevido a sair do recinto dos Styx e a ir para as Rookeries?
Um sino começou a tocar em algum lugar, ao longe.
- Já chega disto - anunciou a garota. - São horas de nos pormos a caminho - continuou, estalando os dedos, e os Styx à sua volta entraram em ação. - Temos um trem para apanhar.
Capítulo Vinte e Quatro
-O
Sítio dos Bastões Cruzados - disse Drake a olhar para o letreiro junto da abertura caixa de correio no chão. Will calculou que tinham levado dez horas a andar depressa, com frequentes trechos de corrida rápida, para chegar ao lugar onde - ele pensara até então - Cal morrera. Tanto ele como Chester estavam completamente exaustos, mas cheios de uma frágil esperança.
Por sugestão de Drake, tinham feito várias paradas no caminho, mas nenhum deles dissera fosse o que fosse enquanto bebiam água e mastigavam uns pauzinhos salgados sem qualquer sabor característico, que o homem taciturno tirara de uma bolsa.
Enquanto corriam, apenas com a luz fraca da lanterna de mineiro de Drake a guiá-los, Elliott tinha estado permanentemente a rondar atrás deles, indetectável nas sombras. Mas agora seguia com eles, enquanto Drake estava parado ao pé da abertura em forma de caixa de correio, um lugar que Will tinha esperado nunca mais tornar a ver em toda a sua vida, um lugar de medo e pavor, um portal para o mundo da morte.
Drake desapertou o cinto e pôs a bolsa para um dos lados ao mesmo tempo que Elliot lhe entregava uma máscara que ele fixou de forma a tapar-lhe a boca e o nariz.
- Isto me foi dado por um Limitador morto - explicou ele aos rapazes com um sorriso forçado. Depois assegurou-se de que a lente esquisita estava corretamente posicionada em cima do olho.
- Quero ajudar - disse Will. - Vou com você.
- Não, não vai.
- Cal é meu irmão. Eu era responsável por ele.
- Isso não tem nada que ver com o caso. Você fica com a Elliott e de guarda. Quebramos todas as malditas regras no caminho até aqui e não quero ficar encurralado quando estiver na armadilha de açúcar. - Drake apontou para Chester - Ele é o mais forte de vocês dois - vai comigo para me ajudar.
- De acordo - disse Chester entusiasticamente.
Elliott bateu de leve no ombro de Will. Ela estava tão perto que ele ficou um pouco espantado. Elliott apontou para o afloramento rochoso atrás da abertura no chão.
- Vá para aquele lado - sussurrou-lhe. - Se vir alguma coisa, não grite, diga-me. Está entendendo?
Começou a passar-lhe para a mão um dos pequenos cilindros que Drake tinha trazido, mas Drake viu o que ela estava fazendo.
- Não, Elliott, ele ainda não sabe usar isso. Se chegarmos a isso, fujam daqui e levem-nos para longe. Reagrupamos na VR de emergência. Ok?
- Ok. Boa sorte - disse ela, sorrindo por baixo do shemagh, enquanto arrancava o cilindro da mão de um Will pasmado, voltando a enfiá-lo no casaco.
- Obrigado - disse Drake, avançando para a abertura. Saltou lá para dentro, com Chester logo atrás.
Depois de eles terem ido embora, Will acocorou-se atrás das rochas a esquadrinhar a escuridão. Passaram-se dez minutos.
- Pssst!
Era Elliott.
Will olhou em volta. Não conseguiu vê-la.
- PSSST! - ouviu-se novamente, desta vez mais alto.
Will estava prestes a chamá-la quando Elliott aterrou logo atrás dele, como se tivesse caído do céu. Ele percebeu imediatamente que ela estivera em cima do afloramento rochoso.
- Está acontecendo alguma coisa ali - sussurrou ela, apontando para um ponto distante na escuridão. - Ainda está muito longe, por isso, não entre em pânico. Mantenha-se com os olhos bem abertos.
E desapareceu antes de Will ter tido oportunidade de lhe perguntar o que vira exatamente. Olhou na direção para onde ela tinha apontado. Tanto quanto via, não havia absolutamente nada ali.
Passados vários minutos, um ribombar profundo e distante ressoou pela planície. Não houve nenhum relâmpago, mas Will tinha certeza de que sentira o choque percussivo na cara, uma leve agitação de ar quente que se sobrepôs às brisas constantes Levantou-se, e Elliott reapareceu num instante.
- Era o que eu pensava - murmurou-lhe ao ouvido. - São os Limitadores a mandarem uma povoação de Coprolites pelo ar.
- Mas porque fazem eles isso?
- Drake julgava que provavelmente você é que podia nos dizer.
Will viu os ardentes olhos castanhos faiscarem através da abertura estreita no shemagh.
- Não - respondeu Will, hesitante. - Porque eu haveria de saber?
- Isto só começou - a caçada aos nossos amigos e a todos os Coprolites que têm negócios conosco - por volta da altura em que você apareceu. Provavelmente você que provocou isto. Então, o que fez para os Styx ficarem tão excitados?
- Eu... eu... - respondeu Will, completamente aturdido com a sugestão de ele próprio ser de algum modo responsável pelas ações dos Styx.
- Bem, seja lá o que for que fez, eles não vão esquecer. Eu sei como é. - Os olhos desviaram-se rapidamente dos dele.
- Mantenha-se alerta - disse ela, subindo, com um salto digno de um gato, na superfície inclinada das rochas, com a espingarda grande demais equilibrada nos braços.
A cabeça de Will estava rodando. Seria possível que ela tivesse razão? Teria sido ele que fizera com que a cólera dos Styx se abatesse sobre os renegados e os Coprolites? Seria, de algum modo, responsável por tudo aquilo?
REBECCA!
A lembrança daquela que outrora fora sua irmã fê-lo sufocar. Seria possível que Rebecca ainda andasse à procura de vingança? A sua influência maléfica parecia segui-lo para todos os lugares aonde se dirigisse, deslizando sorrateiramente atrás dele, como uma cobra venenosa. Estaria ela na origem de tudo o que acontecia? Não, não podia ser, era demasiado bizarro, tentou dizer para si mesmo.
Voltou a recordar o momento em que ele e Chester entraram, pela primeira vez, naquele mundo subterrâneo, através de uma das condutas de ar da Colônia, e depois tinham seguido para o Bairro, tendo originado a cadeia de acontecimentos, sobre a qual não tinha qualquer controlo. Depois, por muito penoso que fosse para ele, começou a pensar nas muitas vidas que tinham mudado para pior por causa dele.
Para começar, havia Chester, arrastado para esta confusão assustadora porque, por pura bondade, tinha se oferecido para ajudá-lo a encontrar o pai. Depois havia Tam, que perdera a vida a defendê-lo na Cidade Eterna. E não devia esquecer os homens de Tam: Imago, Jack e os outros de cujos nomes não conseguia se lembrar agora, que, muito provavelmente, andavam a fugir naquele preciso momento. Tudo isto por causa dele. O peso era demasiado. Não, tentou convencer-se, isto não pode se dever só a mim. Não pode ser.
Minutos mais tarde, Will percebeu um rebuliço que vinha da abertura e viu Drake sair correndo, as partículas brancas a saltarem-lhe da cabeça e dos ombros como borrifos de confete. Transportava consigo o corpo inerte de Cal. Chester saiu atrás dele.
Drake parou por um milésimo de segundo enquanto sacudia a máscara para tirá-la. Depois recomeçou imediatamente com a sua corrida maluca, em direção ao canal.
- Ande - disse Elliott a Will, que estava parado a observar estupidamente o que se passava.
O grupo correu atrás de Drake, a figura alta com o corpo nos braços, as partículas a rodopiarem atrás dele. Mas quando chegou ao canal, não parou. Arremessou-se da margem para a água escura, com um barulho enorme. A água fechou-se sobre ele, submergindo-o e a Cal totalmente.
Will e Chester ficaram parados na margem, sem entenderem o que estava se passando. Quando a água voltou a acalmar, havia apenas um amontoado de bolhas de ar a marcar o ponto onde Drake tinha mergulhado. Will olhou para Chester.
- O que ele está fazendo?
- Não sei - respondeu Chester com um encolher de ombros.
- Viu o Cal?
- Não, não vi bem.
Ouviu-se um chapinhar, como se, lá muito em baixo, a água estivesse a ser agitada. Pequenas ondas espalharam-se para longe da turbulência e depois a superfície voltou a ficar calma. Passaram-se uns segundos e Will começou a pensar que havia qualquer coisa que não estava bem.
Ainda a olhar sem ver para o canal, Chester disse numa voz abatida:
- Pareceu-me bastante morto, mas não consegui ver muito bem.
- Não entrou na caverna?
- O Drake me obrigou a esperar lá fora. Ele entrou lá muito devagarinho. Calculo que estivesse a tentar que as coisas não rebentassem. Mas depois saiu correndo...
Parou de falar quando a cabeça de Drake irrompeu da superfície da água. O homem balançou-se, inspirando fundo por diversas vezes. Não conseguiam ver Cal, pois Drake mantinha-o debaixo de água. Nadando só com um braço, Drake deu umas várias braçadas para o lado, onde encostou um ombro na parede a desfazer-se. Levantou Cal para fora água de modo a que a primeira parte do torso do rapaz ficasse visível e abanou-o selvagemente. A cabeça de Cal oscilou para um lado e para o outro com tal violência que parecia que se ia soltar dos ombros. Depois Drake parou, olhando atentamente para a cara dele.
- Iluminem-no com as lanternas - ordenou-lhes.
Will e Chester fizeram imediatamente o que lhes fora pedido. A cara tinha um aspecto horrível de se ver. Tinha a cor azulada da morte e estava cheia de manchas brancas e salientes. Não parecia haver qualquer sinal de vida. Will começou a desesperar, pensando que tudo aquilo era um completo desperdício de tempo. O irmão estava morto e não havia nada que alguém pudesse fazer para alterar isso.
Então Drake voltou a abanar o rapaz e deu-lhe umas bofetadas com força na cara.
Tanto Will como Chester ouviram um arquejo.
A cabeça de Cal estremeceu. Inspirou ao de leve e depois tossiu fracamente.
- Graças a Deus! Graças a Deus! - repetiu Chester uma e outra vez.
Ele e Will entreolharam-se, os olhos muito abertos, sem conseguirem acreditar. Will limitou-se a abanar a cabeça. Estava mudo de espanto. Até àquela altura, não soubera o que devia esperar. Não se atrevera a permitir-se qualquer esperança. Mas isto ultrapassava os seus sonhos mais loucos - o irmão, perante os seus próprios olhos, parecia ter regressado dos mortos.
Cal inspirou, arquejante, várias vezes e depois voltou a tossir, desta vez com mais força. Depois desatou a tossir continuadamente, com a garganta a produzir um som áspero e desagradável como se não conseguisse enfiar ar suficiente nos pulmões. A cabeça contorceu-se num espasmo e começou a vomitar violentamente.
- Vamos, rapaz! Ótimo - disse Drake, segurando-o. - É isso mesmo!
Drake deu meia volta e içou-o o máximo que conseguia.
- Agarrem-no - disse-lhes ele.
Will e Chester agarraram Cal por baixo dos braços e arrastaram-no para a margem.
- Não, não o deitem no chão! - gritou-lhes Elliott. - Ponham-no em pé. Dispam-lhe a camisa. Andem com ele às voltas e continuem a movê-lo. É bom para o veneno sair.
Quando lhe arrancaram a camisa, viram a pele tingida de azul em toda a sua glória. A superfície estava salpicada de borbotões brancos. Os olhos, intensamente vermelhos, estavam abertos e a boca movia-se sem formar palavras. Depois, um de cada lado, começaram a andar com a figura diminuta em círculos rápidos. A cabeça de Cal tombava de um lado para o outro enquanto andavam, mas ele estava incapaz de dar um único passo sozinho. Drake tinha saído do canal e estava de cócoras na margem enquanto Elliott esquadrinhava o horizonte com a mira da espingarda.
Mas os esforços de Will e Chester não pareciam ser suficientes. Passado um tempo, os olhos de Cal fecharam-se a boca parou de se mexer e ele voltou a ficar inconsciente.
- Parem! - disse-lhes Drake, pondo-se em pé.
Aproximou-se dos rapazes e, levantando a cabeça de Cal com uma mão, esbofeteou-o impiedosamente com a outra. Fez isto repetidas vezes. Will pensou que conseguia ver algo da cor azul a desaparecer das faces do irmão.
A testa de Cal franziu-se e Drake parou, a observar-lhe a cara com toda a atenção.
- Apanhamo-lo mesmo no momento certo. Mais um pouquinho e os narcóticos teriam começado a dominá-lo e os esporos a enraizarem-se - disse Drake. - Passado algum tempo tê-lo-iam digerido. Um saco de adubo humano.
- Esporos? - perguntou Will.
- Sim, estes. - Drake raspou com força um dos ásperos borbotões brancos no pescoço de Cal com o polegar.
Um pouquinho desfez-se com o toque dele, revelando um pedaço de pele de um azul ainda mais intenso que ressumava com pequenas gotas de sangue como se tivesse sido arranhada.
- Eles germinam, como estes fizeram, e criam raízes. Estas crescem dentro da carne da vítima, absorvendo todos os nutrientes dos tecidos vivos.
- Mas ele vai ficar bom, não vai? - perguntou Will muito depressa.
- Esteve inanimado muito tempo - respondeu Drake, encolhendo os ombros. - Agora lembrem-se: se algum de vocês for suficientemente idiota para cometer o mesmo erro duas vezes e cair numa armadilha de açúcar, é preciso acordar a vítima com um choque. O sistema nervoso quase desliga e é preciso um trauma para ele recomeçar a funcionar. Uma maneira é enfiar as vítimas dentro de água. Quase tem de a afogar para salvá-la.
Cal parecia estar outra vez a ir-se abaixo, e, por isso, Drake recomeçou a bater-lhe, com tanta força que o barulho machucava os ouvidos de Will e de Chester. De repente, Cal atirou a cabeça para trás. Inspirou profundamente e soltou o mais pavoroso dos gritos, fazendo com que Chester e Will estremecessem. Era inumano, como o grito de um animal, reverberando pelo deserto poeirento que os rodeava. Mas deu esperanças a Will e a Chester, algo semelhante ao primeiro grito de um recém-nascido. Drake soltou-o.
- Muito bem. Agora tornem a andar com ele às voltas.
E eles continuaram, em círculos intermináveis, e, pouco a pouco, a vida parecia estar a voltar ao rapaz. Começou a andar com eles, primeiro apenas com movimentos fraquíssimos - as indicações mais ínfimas de que ele estava a dar um passo - e, depois, passos mais fortes e descontrolados, enquanto a cabeça balançava ebriamente nos ombros.
- Drake, tem de ver isto - chamou Elliott, ajustando a mira telescópica na espingarda comprida.
Drake pôs-se imediatamente ao lado dela, tirando-lhe a espingarda. Olhou pela mira.
- Sim... estou vendo... estranho...
- O que acha? - perguntou Elliott. - Estão levantando muita poeira.
Ele baixou a espingarda e olhou para ela com uma expressão perplexa.
- Styx... a cavalo!
- Não! - disse ela sem conseguir acreditar.
- Eles apanharam um rastro de luz nosso - disse Drake, devolvendo-lhe a arma. - Não podemos ficar aqui. - Dirigiu-se para junto de Will e Chester. - Desculpem, rapazes, não há tempo para comer nem para descansar. Eu levo as suas coisas, mas vocês encarregam-se do doente.
Drake pôs as duas mochilas ao ombro e pôs-se a caminho sem esperar um minuto.
Will e Chester carregaram Cal entre os dois, Will a levantar o corpo segurando-o por baixo dos braços e Chester a agarrar-lhe as pernas. Corriam a meio trote, usando a luz fraca da lanterna de mineiro de Drake para se orientarem.
- Não podem nos seguir pelos tubos, a cavalo - disse-lhes Drake por cima do ombro. - Mas ainda temos um grande caminho a percorrer até ficarmos em segurança. Apressem-se!
- Isto é estafante - gemeu Will, quando voltou a tropeçar numa rocha, quase deixando cair o irmão. - Ele pesa uma tonelada!
- É duro - replicou Chester secamente. - Aumente a velocidade!
Will e Chester escorriam suor enquanto se esforçavam por continuar; estavam muitíssimo combalidos por causa do cansaço extremo e da falta de comida. Will tinha um sabor horrível na boca e o corpo queimava as últimas reservas. Sentia-se tonto e perguntou para si mesmo se Chester estaria a sentir tantas dificuldades como ele. E as coisas ainda se tornavam mais complicadas porque Cal estava sempre a torcer-se e a contorcer-se. Era óbvio que não fazia a menor ideia do que lhe acontecia e tentava libertar-se dos dois.
ø ø ø
Finalmente, chegaram ao perímetro da Grande Planície. Os dois rapazes estavam prontos para se deixarem cair no chão, com as pernas pesadas de fadiga. Entraram num tubo de lava tortuoso e quando viraram numa curva, Drake voltou-se para eles.
- Aguentem um segundo - ordenou-lhes, tirando uma das mochilas do ombro. - Bebam água. Saímos da planície mais cedo do que devíamos ter feito... é mais seguro, mas significa que vamos ter uma longa viagem até em casa.
Sentindo-se gratos, os rapazes deixaram-se cair no chão com Cal no meio dos dois.
- Elliott, prepare um par de minas - gritou Drake.
Ela apareceu de lugar nenhum iluminada pelo raio fraco da lanterna de Drake, agachando-se enquanto colocava qualquer coisa ao lado da parede. Era uma lata atarracada, aproximadamente do tamanho de uma lata de feijão cozido, mas de um castanho baço. Mal a prendeu, por meio de uma correia, a um pedregulho pequeno, recuou e afastou-se, enquanto desenrolava um fio muito esticado, tão fino que Will e Chester mal o conseguiram ver a atravessar o túnel de um lado ao outro. Atou-o a uma ponta na parede e depois puxou-o muito suavemente com uma unha, e ele emitiu um som vibrante de uma corda retesada.
- Perfeito - sussurrou ela, voltando para junto da lata. Deitando-se de bruços, soltou delicadamente um pequeno pino e em seguida levantou-se.
- Preparado - disse baixinho.
Drake voltou-se para Will e Chester.
- Temos de nos deslocar mais para dentro para Elliott poder armar a segunda - ordenou-lhes enquanto voltava a agarrar na mochila.
Will e Chester puseram-se em pé devagarinho e voltaram a levantar Cal. Nesta altura, ele tinha começado a fazer barulhos estranhos e sem sentido, e gemidos e resmungos, com uma ou outra palavra que eles mal conseguiam decifrar como "esfomeado" ou "sedento". Mas nem Will nem Chester tinham tempo ou energia para se preocuparem com aquilo. Arrastaram-no várias centenas de metros e depois estacaram quando Drake voltou a parar.
- Não, não se sentem - disse-lhes ele.
Por isso ficaram em pé enquanto Elliott montava um outro "tropeção", como Drake lhes chamava.
- O que fazem essas coisas? - perguntou Will, encostando-se a arquejar na parede do tubo de lava, enquanto Chester observava Elliott a repetir todo o processo.
- Fazem "bum!" - respondeu-lhe Drake. - São cargas explosivas.
- Mas para que precisa de duas?
- A primeira tem um retardador no fuso. Por isso, quando os Pescoços Brancos o ativam, entram na zona da segunda carga quase ao mesmo tempo que a primeira explode, e, logo, ficam presos numa secção do túnel. Bem, pelo menos, essa é a teoria.
- Inteligente - comentou Will, impressionado.
- Para dizer a verdade - continuou Drake inclinando-se para ele -, por vezes montamos duas ou mais porque os filhos da mãe são muito bons a encontrá-las.
- Oh, certo - murmurou Will, menos impressionado.
Pelos cálculos de Will, deviam ter percorrido uns bons quilômetros quando ouviram as primeiras explosões numa rápida sucessão, como duas grandes salvas de palmas. Depois, passados uns segundos, sentiram uma rajada de vento nos pescoços encharcados em suor. Drake não parou nem um passo, continuando a um ritmo que eles tinham dificuldade em acompanhar. E quando não avançavam à velocidade que ele queria, ameaçava-os rudemente. Naquela altura, Will já ia a segurar Cal por um braço, enquanto o outro balançava fracamente, roçando, por vezes, nas canelas de Will.
Serpentearam por tubos a seguir a tubos, subindo e descendo, umas vezes contraindo-se para caberem em várias séries de cavidades apertadas, outras vezes avançando com água até ao peito por cavernas semi-submersas e cheias de eco. Nestas, eram obrigados a erguer Cal quase à altura dos ombros, o melhor que podiam, para que a cabeça não ficasse debaixo de água.
O rapaz parecia recuperar as forças e, à medida que isso acontecia, ia ficando cada vez mais difícil de arrastar, contorcendo-se e debatendo-se nas mãos deles. Às vezes, era demasiado e eles o deixavam cair. Numa destas ocasiões, tanto Will como Chester estavam demasiado cansados para ligarem quando ele bateu no chão encharcado com um baque forte, espirrando água por todos os lados. Cal soltou uma fileira de palavrões guturais e truncados quando estavam outra vez a levantá-lo.
G'ANDA FIUUS MAA!
SSSEUS SA'ANAS PO'COS!
Estes insultos irreconhecíveis, combinados com a sua fúria ineficiente, eram tão cômicos que Will não conseguiu reprimir uma gargalhada. Isso contagiou Chester, que começou também a rir, fazendo com que as bizarras invectivas arrastadas e enroladas saíssem da boca de Cal a uma velocidade ainda maior enquanto ele se debatia. A exaustão dos rapazes e o enorme alívio por Cal estar vivo faziam com que ambos se sentissem estonteados.
- Hum... acho que não me lembro de já me terem chamado essas coisas - disse Chester, respirando pesadamente por causa do cansaço. - Sa'anas po'cos? - repetiu ele, articulando cuidadosamente as palavras.
- Tenho de confessar - disse Will com uma risadinha - que sempre pensei que você era um pouquinho po'co.
Os dois desataram a rir histericamente, e, como era evidente, Cal conseguia ouvir tudo o que eles estavam dizendo e abanava furiosamente com os braços.
- GANS SAA'DOS! - berrou roucamente, e depois teve um grande ataque de tosse.
- Calem-se! - silvou Drake lá da frente. - Ainda vão acabar por lhes indicar a nossa posição!
Cal voltou a acalmar, não por causa da reprimenda de Drake, mas porque percebeu que praguejar não o levava a lugar nenhum. Em vez disso, começou a tentar agarrar a perna de Will para fazê-lo tropeçar. A boa disposição de Will transformou-se em irritação e sacudiu o irmão.
- Cal! Já chega - ordenou-lhe rudemente. - Se não parar com isso, vamos te deixar aqui para os Styx te apanharem.
Por fim, descobriram que já haviam regressado à base. Como não tinham tido de passar pela poça, Will concluiu que deviam ter vindo de outra direção. Içaram Cal com a corda atada em volta da cintura e levaram-no para uma das camas no quarto do fundo. Drake disse-lhes para espremerem umas gotas de água para a boca do rapaz. Ele tossiu e cuspiu, a maior parte dela a pingar-lhe do queixo, mas conseguiu beber uma boa quantidade antes de cair num sono profundo.
- Chester, vigie-o. Will, venha comigo.
Will seguiu obedientemente atrás de Drake pelo corredor. Sentiu uma apreensão crescente, como se tivesse sido chamado ao gabinete do diretor da escola para levar uma repreensão.
Entraram numa zona às escuras e depois, passando uma porta de metal, Will viu que estava numa sala grande, onde um único globo luminoso, suspenso no meio do teto, cintilava intensamente. A sala tinha pelo menos trinta metros de comprimento e pouco menos de largura. Num dos cantos havia duas camas de campanha feitas de barras de ferro e todos os milímetros das paredes estavam cobertos com uma enorme quantidade de equipamento. Parecia um armazém militar, e, enquanto os olhos de Will o percorriam de um lado ao outro, ele viu prateleiras com uma quantidade enorme dos cilindros esquisitos iguais àquele que Elliott lhe tinha tentado entregar no Sítio dos Bastões Cruzados. Também havia alguns fatos de proteção cinzentos e esvaziados que Will reconheceu como os que os eram usados pelos Coprolites, e todo o tipo de tecidos resistentes, assim como rolos de corda e sacos de viagem, tudo pendurado em filas muito bem ordenadas.
Enquanto continuava a andar atrás de Drake, Will viu Elliott no meio das duas camas de campanha. Estava de costas para ele e conseguiu ver que ela tinha despido o casaco e as calças e os estava a meter num armário na parede. Vestia uma camisa de baixo cor de marfim e uns calções, e ele não conseguiu impedir-se de olhar para as pernas magras e delicadamente musculadas. Estavam manchadas de sujeira e, tal como a cara de Drake, pareciam ter um número chocante de cicatrizes, que se destacavam pela brancura em contraste com o pó castanho-avermelhado que lhe cobria todos os milímetros da pele. Apanhado de surpresa por a ver assim, Will estacou, mas depois reparou que Drake estava a observá-lo atentamente.
- Sente-se! - ordenou-lhe Drake, apontando para um lugar ao pé da parede, no preciso momento em que Elliott emergia do meio das duas camas de campanha.
Ela tinha uma cara espantosamente feminina, com maçãs do rosto altas e lábios cheios e suaves sob um nariz delicado Will viu-lhe os olhos faiscarem sombriamente quando olhou rapidamente para ele; depois Elliott bocejou e passou uma mão pelo cabelo preto muito curto. Os braços e os pulsos eram tão delicados que Will não conseguia acreditar que estava a olhar para a mesma pessoa que transportava a espingarda comprida de um lado para o outro como se não passasse de uma cana de bambu.
O olhar de Will caiu na parte de cima do braço dela, onde havia um buraco chocantemente fundo no bíceps. A pele que forrava o buraco estava toda enrugada com estrias irregulares e rosadas, e a sua superfície era áspera, como se lhe tivessem entornado cera derretida de uma vela.
O primeiro pensamento de Will foi que uma coisa qualquer lhe tinha dado uma dentada, arrancando-lhe um bocado, e um bocado bem grande.
Mas tudo o que via nela era suplantado pelo fato notável de, para Will, ela parecer jovem, talvez pouco mais velha do que ele. Era a última coisa que ele teria esperado, dada a sua presença intimidante na Grande Planície.
- Tudo bem? - perguntou-lhe Drake quando ela voltou a bocejar e coçou distraidamente o ombro.
- Sim. Vou tomar um banho - replicou ela, encaminhando-se descalça para a porta sem voltar a olhar para Will, que estava parado de boca aberta.
Quando Drake lhe estalou os dedos à frente da cara para lhe atrair a atenção, Will percebeu que tinha estado a olhar embasbacado para Elliott, e, envergonhado, desviou os olhos.
- Aqui - disse Drake, um pouco mais duramente desta vez.
Junto da parede estavam dois baús de metal com aspecto resistente, e eles sentaram-se cada um no seu, à frente um do outro. Embora Will não tivesse os pensamentos bem organizados, começou a falar:
- Eu... ah... queria agradecer-lhe por ter salvado o Cal. Estava completamente enganado em relação a você e à Elliott - confessou ele, os olhos a desviarem-se automaticamente para a porta quando pronunciou o nome dela, embora ela já tivesse saído da sala havia muito tempo.
- Claro. - Drake abanou a mão com indiferença. - Mas não estou preocupado com isso agora. Passa-se qualquer coisa e preciso saber o que você sabe.
Will ficou espantado com a pergunta e olhou para o homem com uma expressão perplexa.
- Você viu o que os Styx estão fazendo. Matam renegados às dezenas.
- Matando renegados - repetiu Will, arrepiando-se ao lembrar-se do incidente que ele e Chester tinham presenciado.
- Sim. Confesso que não tenho pena de ver alguns irem embora, mas também estamos perdendo amigos a uma velocidade espantosa. Antigamente, os Styx nos deixavam em grande parte entregues às nossas coisas, exceto quando precisavam de uma morte por vingança porque um dos caçadores com armadilhas exagerara e um Limitador desaparecera. Agora é diferente; estamos a ser eliminados e não me parece que os Styx vão parar até o último de nós ter morrido.
- Mas porque andam eles também a matar Coprolites? - perguntou Will.
- Para lhes enviarem um sinal, para eles não fazerem negócio conosco nem nos ajudarem. De qualquer maneira, isso não é nada de novo. Os Pescoço Brancos fazem limpezas periódicas para manterem os números deles baixos - disse Drake, esfregando as têmporas como se o assunto o perturbasse profundamente.
- O que são essas limpezas? - perguntou Will, sem perceber.
- Matanças por atacado - respondeu Drake bruscamente.
- Oh! - balbuciou Will.
- Não há dúvida de que os Styx estão preparando alguma. Os Limitadores andam aqui fora aos batalhões, e, pelo que temos visto, chegam Pescoços Brancos importantes no Trem dos Mineiros quase todos os dias. - Drake franziu o cenho. - Também sabemos de fonte segura que os cientistas estão aqui embaixo experimentando uma coisa qualquer em cobaias humanas. Há histórias de que estão montando uma área de testes, embora eu ainda não a tenha localizado. Isto faz lhe soar alguma campainha? - Fez uma pausa para escrutinar Will com os espantosos olhos azuis. - Não sabe nada sobre isto, não é?
Will abanou a cabeça.
- Bem, então preciso saber tudo o que você sabe. Quem é exatamente?
- Ah... está bem - respondeu Will, sem fazer a mais pequena ideia por onde devia começar, nem do que Drake queria realmente ouvir.
Sentia-se completamente esgotado e doíam-lhe os músculos todos por ter transportado Cal, mas estava disposto a ajudar Drake em tudo o que pudesse. Por isso, começou a falar com bastantes pormenores, com Drake a interrompê-lo de vez em quando com uma pergunta e os seus modos a suavizarem-se ligeiramente e a tornarem-se quase sociáveis à medida que Will ia falando.
Ele contou como é que o padrasto, o Dr. Burrows, tinha andado a observar um grupo de pessoas em Highfield que não pareciam encaixar muito bem e que se lançara numa investigação. E como esta investigação o levara a escavar um túnel, que lhe tinha fornecido um meio de aceder à Colônia. Depois, Will explicou como é que o padrasto apanhara voluntariamente o Trem dos Mineiros, engolindo em seco quando a garganta se apertou.
- E agora o meu Pai está em algum lugar aqui embaixo. Não o viu, não é? - perguntou muito depressa.
- Não, eu não.
Drake ergueu uma mão, reagindo à agitação evidente do rapaz.
- Mas - e eu não quero alimentar as suas esperanças - falei recentemente com um caçador que usa armadilhas... - Drake pareceu hesitar.
- E? - perguntou Will impacientemente, pressionando o homem para continuar.
- Ele ouviu uns boatos sobre um estranho que andava por um dos acampamentos. Ao que parece, este homem não é nem Colono, nem Styx... usa óculos...
- Sim? - disse Will inclinando-se para frente, expectante.
- ...e faz uns apontamentos num livro.
- É o Papai! Tem de ser! - explodiu Will, rindo de alívio. - Tem de me levar até ele.
- Não posso - respondeu Drake secamente.
A alegria de Will foi imediatamente substituída pela exasperação.
- O que quer dizer com isso? Não pode? Tem de fazê-lo! - implorou Will, depois a frustração transbordou e levantou-se de um salto. - Ele é meu pai! Tem de me mostrar onde é que ele está!
- Sente-se! - ordenou Drake sem hesitação.
Will não se mexeu.
- Disse para se sentar... e se acalmar, para eu acabar o que estava dizendo.
Will voltou a sentar-se devagarinho no baú, o peito a subir e a descer com a emoção.
- Eu lhe disse que não queria te dar esperanças. O caçador não me deu nenhuma informação sobre o local onde este homem está, e as Profundezas têm quilômetros e quilômetros. De qualquer maneira, com toda a atividade dos Pescoços Brancos, os Coprolites estão deslocando os acampamentos. Por isso, é provável que ele tenha se movido com os outros.
Will ficou calado durante um tempo.
- Mas se for o Papai, então, ele está bem? - perguntou por fim, olhando para os olhos de Drake à procura de uma confirmação. - Acha que ele está bem?
Drake esfregou o queixo pensativamente.
- Desde que ele não seja apanhado por um pelotão de fuzilamento dos Limitadores.
- Oh, graças a Deus - disse Will, fechando os olhos por uns instantes.
Mesmo que Drake não lhe pudesse dizer onde estava o padrasto, Will ficou tão confortado com a informação de que ele estava vivo que ganhou outro fôlego.
Lançou-se na sua própria história: como, depois de o padrasto ter desaparecido, ele conseguira que Chester o ajudasse, e como tinham ido parar à Colônia. Contou como tinham sido capturados e o interrogatório extremamente desagradável a que fora sujeito pelos Styx. Depois falou do primeiro encontro com o irmão e o pai verdadeiros e a revelação de que tinha sido adotado e os pais adotivos nunca haviam pensado em lhe contar. Quando mencionou a mãe verdadeira e disse que ela era a única pessoa que conseguira fugir das garras da Colônia e sobreviver, Drake interrompeu-o abruptamente.
- O nome dela? Como se chama ela?
- Ah... Jerome. Sarah Jerome.
Drake inspirou de forma quase imperceptível e, no silêncio que se seguiu, Will teve a certeza de ver uma mudança nos olhos penetrantes do homem. Era como se estivessem a olhar para ele pela primeira vez.
- Então, está me dizendo que é filho dela - disse Drake endireitando as costas. - Filho da Sarah Jerome?
- Sim - confirmou Will, surpreendido com a reação do homem. - O Cal também é - balbuciou ele.
- E a sua mãe, ela tem um irmão.
Will não conseguiu entender se aquilo era uma pergunta ou uma afirmação.
- Sim, tinha - replicou ele. - O meu Tio Tam.
- Tam Macaulay.
Will assentiu com a cabeça, impressionado por Drake conhecer o nome.
- Conhece-o?
- Só de reputação. Não era muito apreciado pelos poderes reinantes da Colônia... consideravam-no um arruaceiro - retorquiu Drake. - Mas você disse tinha? O que lhe aconteceu?
- Ele morreu nos salvando, a mim e ao Cal, dos Styx - respondeu Will tristemente.
Quando viu Drake franzir a testa, Will contou-lhe tudo o que sabia sobre Rebecca e de como Tam lutara com o pai dela e o tinha matado.
Drake soltou um assobio.
- Não há dúvida de que guardou o melhor para o fim - disse ele, e depois ficou a olhar para Will durante uns instantes. - Então - continuou muito suavemente -, chateou uma pessoa logo no topo da ordem Styx, e, - calou-se por um curto instante - eles querem a sua cabeça numa bandeja.
Will foi apanhado de surpresa por aquilo e não soube o que dizer.
- Mas... - começou ele a gaguejar.
Drake falou por cima dele.
- Não há chance de eles te deixarem à solta. Tal como a Sarah é uma espécie de figura de proa, uma heroína para os insurrectos na Colônia, você também será visto da mesma maneira.
- Eu? - perguntou Will, engolindo em seco.
- Sim - disse Drake. - Devia andar com um aviso de segurança.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que você, meu amigo, é uma pessoa extremamente perigosa para se ter por perto - explicou Drake ao pasmado rapaz. - E é provável ser outra razão para a planície estar a transbordar de Limitadores.
Depois, perdido nos seus pensamentos, Drake apoiou os cotovelos nas pernas compridas e inclinou-se para a frente a estudar o chão.
- Isto dá uma cor diferente a tudo.
- Porquê? Não, não pode ser por minha causa, não pode - protestou Will veementemente. - Sabe como eles são tratados lá na Colônia...
- Não, não sei - retorquiu Drake ferozmente, erguendo a cabeça de repente. - Já não vou lá há bastante tempo.
- Bem, seja como for, porque haviam eles de continuar a perseguir-me? O que eu posso lhes fazer?
- Isso não é o que importa. Ninguém se mete com eles e se safa, ponto final. - Drake resfolegou. - Os Styx não acreditam no princípio viver e deixar viver.
- Mas o senhor disse que todos os Styx importantes estavam chegando. Eles não se dariam ao trabalho de vir para aqui só por minha causa, não é?
- Não... isso é verdade. - Drake estreitou os olhos e assentiu com a cabeça, numa concordância vaga. - Eles podem querer te eliminar, mas com todos esses chefões e cientistas por aqui não há dúvida de que estão trabalhando em alguma coisa grande. E seja lá isso o que for, é óbvio que é importante para eles.
- O que pensa que é? - perguntou Will.
O homem limitou-se a abanar a cabeça sem apresentar qualquer sugestão.
- Posso lhe perguntar uma coisa? - aventurou-se Will, com a cabeça ainda rodando.
Drake assentiu com a cabeça.
- Hum... o Chester acha que o senhor é um combatente pela liberdade. É verdade?
- Não, nada disso. Sou um Habitante da Superfície, tal como você.
- Está brincando! - exclamou Will. - Como é que veio...?
- É uma história muito comprida. Talvez noutra altura - replicou Drake. - Há mais alguma coisa que queira saber?
Will estivera a reunir coragem para fazer a pergunta que já tinha na cabeça havia bastante tempo.
- Porque é que...? - começou, a voz a hesitar quando pensou que era capaz de estar ultrapassando os limites.
- Continue - disse Drake, dobrando o braço.
- Porque salvou o Cal? Porque está nos ajudando?
- Essa pedra que você traz - disse Drake de lado, como se estivesse evitando responder.
- Esta? - perguntou Will tocando no pendente de jade verde que trazia no pescoço.
- Sim, onde o arranjou?
- Foi o Tam que me deu. - Desenhando as três linhas convergentes gravadas na superfície polida com a ponta dos dedos, Will contemplou o pendente. - É alguma coisa importante?
- As lendas falam de uma raça fabulosa lá muito em baixo, no fundo do Poço. Dizem que é quase tão antiga como a própria Terra. Já vi esse símbolo muitas vezes... aparece nos templos em ruínas deles.
Drake ficou a olhar para o pendente, caindo noutro dos seus silêncios, durante o qual Will se foi sentindo cada vez mais desconfortável.
Se não estivesse tão completamente exausto, Will teria se lançado a fazer mil perguntas sobre o Poço e a raça antiga que Drake mencionara. Mas, no estado em que estava, a sua mente tinha assuntos mais importantes para resolver. Remexeu-se pouco à vontade no baú de metal e depois falou:
- O senhor... ah... não me chegou a responder... por que razão está nos ajudando?
Drake olhou para ele e, pela primeira vez, esboçou um sorriso genuíno.
- É um sujeitinho teimoso, não é? Não consigo imaginar o seu amigo Chester a ser tão insistente. - Reclinou-se para trás, com uma expressão contemplativa no rosto. - Há uns que comandam e outros que os seguem - disse baixinho.
- Hum? - disse Will, sem entender o que ele estava dizendo.
- Para responder à sua pergunta - disse Drake, endireitando-se -, a vida é dura aqui em baixo, mas pelo fato de vivermos como animais não quer dizer que tenhamos perdido a nossa humanidade. Há renegados muito menos acomodados do que eu ou a Elliott, que os matariam só para ficarem com as suas botas, ou que os manteriam vivos para... como irei explicar?... divertimento pessoal. Eu salvei a Elliott de um destino semelhante há muitos anos. - Esfregou o peito como se estivesse se lembrando de um ferimento recebido na altura. - Não gostaria de ver isso acontecer a um de vocês.
- Oh! - exclamou Will.
Drake voltou a suspirar, um suspiro longo e profundo.
- Você e o Chester não são como os feridos ambulantes que são geralmente banidos da Colônia - não foram estropiados, nem torturados, nem quebrados por muitos anos de serviço. - Esfregou as palmas das mãos uma na outra enquanto prosseguia: - Não estava contando em ficar encarregado de vocês três, confesso. - Fixou os olhos nos de Will. - Mas vamos ter de ver como reage o seu irmão.
Apesar de muito cansado, Will percebeu a insinuação.
- E você, meu rapazinho, pode ser um grande perigo com os Pescoços Brancos atrás do seu escalpe - disse Drake, bocejando, e com a cara ficando inexpressiva enquanto passava os olhos em volta da sala. - Mas preciso saber mais sobre o que os Styx estão fazendo aqui, antes de sair da planície. Vou dar algum tempo para o seu irmão recuperar as forças. E quando chegarmos ao lugar para onde vamos, não há dúvida de que umas mãos extras serão úteis.
Will assentiu com a cabeça.
- O fato de ser filho da Sarah Jerome e de conhecer bem a Superfície pode ser um trunfo valioso.
Will voltou a assentir, mas depois imobilizou a cabeça enquanto questionava porque seria aquilo tão importante para Drake.
- O que quer dizer?
- Bem, se os meus instintos estiverem certos, esta coisa em que os Styx andam a trabalhar pode ter grandes implicações para os Habitantes da Superfície. E não me parece que qualquer um de nós vá ficar sentado e deixá-los fazer o que querem, não é?
Ergueu uma sobrancelha interrogativamente.
- Nem pensar! - exclamou Will.
- Então, o que me diz? - perguntou-lhe o homem,
- Hum?
- Está conosco ou não? Vai se juntar a nós?
Will mordeu o lábio, muito confuso. Estava completamente confuso, tanto pela oferta deste homem tão formidável como pela sugestão de que Cal poderia não fazer parte daquilo. O que aconteceria se o irmão não se recuperasse completamente? Drake iria simplesmente descartar-se dele? E Will gostaria de saber o que aconteceria se os Limitadores estivessem ali de fato para apanhá-lo. Se viesse a se provar que tê-lo por perto era demasiado perigoso, o que aconteceria? Drake iria muito simplesmente entregá-lo? Mas Will também sabia que ele faria tudo para deter os Styx. Iria obrigá-los a pagar a morte de Tam.
Não tinha outra alternativa senão aceitar o convite de Drake. Além disso, ele, Chester e Cal não estavam em condições de continuar sozinhos com todos aqueles Limitadores por tudo o que era lugar, e muito menos no estado em que o irmão estava.
Com Drake a olhar atentamente para ele à espera de uma resposta, Will percebeu que não podia hesitar - não cairia nada bem. Que outra coisa poderia responder a não ser sim? Pelo menos, se jogasse bem as suas cartas, este homem poderia ser a chave para encontrar o padrasto.
- Sim - disse ele.
Conversaram durante mais um tempo e depois Will foi despachado para o quarto. Desceu o corredor e entrou, descobrindo que Chester dormia profundamente no chão, ao lado da cama onde Cal estava estendido.
Will queria dizer qualquer coisa a Chester, pedir-lhe desculpa por ter sido tão apressado a ignorar o palpite do amigo em relação a Drake e a Elliott. Mas Chester estava morto para o mundo, e não o iria acordar por nada desta vida. Will também se sentia dominado pelo cansaço e, depois de beber água, enroscou-se na cama desocupada e caiu num sono sem sonhos.
Capítulo Vinte e Cinco
N
os dias que se seguiram, Will e Chester cuidaram de Cal, servindo-lhe a comida indefinível que Drake e Elliott lhes forneciam. A única coisa que Cal queria era dormir na cama estreita, mas os rapazes obrigavam-no a fazer exercício. Dando passos hesitantes e desajeitados como se não conseguisse sentir os pés, atirava-lhes olhares furiosos.
O discurso tornou-se menos ininteligível e a tonalidade azul da pele foi desaparecendo gradualmente. Drake aparecia todos os dias para se informar dos seus progressos e depois levava um dos outros dois em expedições de reconhecimento para que eles começassem a ficar por dentro do assunto, como ele dizia.
Quando Chester estava fora numa dessas expedições, Will aproveitou a oportunidade para ter uma conversa com o irmão.
- Sei que está acordado - disse Will a Cal, que se deitara na cama, voltado para a parede. - O que acha do Drake?
Cal não lhe respondeu.
- Eu te perguntei, o que acha do Drake?
- Parece-me decente - resmungou Cal passado um tempo.
- Oh, acho que ele é melhor do que isso - disse Will. - Ele me disse que há outros aqui, nas Profundezas, que te cortam a garganta para ficarem com as suas roupas ou a sua comida. Isto, claro, se os Limitadores não te apanharem primeiro.
- Hum-hum - grunhiu Cal, nada convencido.
- Achei que devia saber para o caso de continuar a andar na lua e não tratar de se curar. A paciência do Drake é capaz de se esgotar.
Cal virou-se repentinamente para Will, com os olhos a chamejarem de fúria.
- Isso é uma ameaça? Está me ameaçando? O que ele vai fazer? Me mandar fazer as malas? - perguntou, sentando-se na cama.
- Sim, qualquer coisa desse tipo - respondeu Will.
- Como sabe? Está dizendo isso só por dizer.
- Não, não estou - respondeu Will resolutamente. Levantou-se e começou a dirigir-se para a porta.
- E você se limitaria a deixar que ele me abandonasse?
Nesta altura, Cal estava a olhar para o irmão com uma expressão ameaçadora.
- Oh, Cal - gemeu Will, virando-se para trás. - O que eu posso fazer se não ajudar a si mesmo? Sabe que o Drake fala em irmos embora em breve. Ele e a Elliot não vivem aqui permanentemente. E ele disse que vai nos levar com ele.
- A todos nós? - perguntou Cal.
- Isso depende. Acha que ele quer tomar conta de nós os três, especialmente quando um é um chato de primeira?
Cal pôs as pernas para fora da cama e olhou nervosamente para Will.
- Está falando sério?
Will assentiu com a cabeça.
- Achei que devia saber - disse ele, saindo do quarto.
Cal levou a sério as palavras de Will e nos dias que se seguiram foi uma pessoa completamente diferente. Lançou-se num esquema de exercícios, coxeando por todo o lado, apoiado numa bengala preta que Drake tinha lhe oferecido. O problema parecia ser o lado esquerdo do corpo de Cal, com o braço e a perna a levarem mais tempo a recuperar do que os do lado direito.
Numa destas ocasiões, incomodado pelo tape-tape constante da bengala e os roncos abruptos de Chester, Will sentia dificuldade em adormecer. O calor e o espaço fechado não ajudavam, embora eles já tivessem se habituado a isso. Por fim, Will decidiu que não valia a pena e levantou-se coçando a cabeça, sentindo os piolhos no couro cabeludo.
- Muito bom, mano - disse baixinho a Cal, que lhe murmurou "obrigado" em resposta, continuando a fazer o circuito do quarto.
- Preciso de água - disse Will em voz alta, e saiu para o corredor em direção ao pequeno armazém onde estavam guardados os recipientes com água.
Ouviu alguma coisa e estacou. Na outra extremidade do corredor fracamente iluminado apareceu Elliott. Ela trazia as calças e o casaco escuros do costume e a espingarda nas mãos, mas ainda não tinha coberto a cabeça com o shemagh.
- Ah... olá - disse ele timidamente, visto estar só de cueca.
Cruzou os braços sobre o peito para tapar a falta de roupa.
Com uma expressão de completa indiferença, Elliott mirou-o de alto a baixo.
- Dificuldade em dormir? - perguntou-lhe.
- Ah... sim.
Elliott voltou a olhar para a ferida no ombro dele.
- Impressionante - comentou.
Sentindo-se ainda mais desconfortável com o escrutínio dela, Will pousou a mão sobre a ferida que lhe tinha sido infligida quando fora atacado por um cão dos Styx. O calor das Profundezas fazia com ela lhe provocasse uma coceira danada e Will não conseguia parar de se coçar.
- Um farejador - acabou Will por dizer.
- Parece que ele estava com fome - comentou ela.
Sem saber o que dizer, Will tirou a mão para inspecionar a mancha vermelha da pele recentemente curada e assentiu com a cabeça.
- Quer vir fazer patrulha comigo? - perguntou ela, num tom desprendido.
Era a última coisa na cabeça de Will àquela hora da noite, mas estava intrigado porque a tinha visto muito pouco naqueles últimos dias e, ao mesmo tempo, encantado por ela o ter convidado. Drake falava das capacidades dela com tanto respeito, dizendo-lhes que ela atingira um nível de "capacidades militares básicas", como ele lhes chamava, que Will e Chester teriam de trabalhar muito duramente para igualá-la.
- Sim... maneiro - respondeu ele de rajada. - O que preciso levar?
- Nada de especial - ando sempre com pouca coisa - respondeu ela. - Aparecesse, ande! - disse-lhe quando viu que ele não dava sinais de se mexer.
Will voltou para o quarto, onde Cal mal pareceu dar por ele enquanto continuava com os seus exercícios, e vestiu-se num abrir e fechar de olhos. Um minuto depois, estava outra vez no corredor junto de Elliott. Ela ofereceu-lhe uma das bolsas com cilindros que Drake trazia sempre com ele.
- Tem certeza? - perguntou Will, hesitando em lhe pegar, uma vez que se lembrava de que não recebera autorização para ter uma no Sítio dos Bastões Cruzados.
- O Drake parece pensar que vai continuar por estas bandas, por isso, mais cedo ou mais tarde, terá de aprender a usá-los - respondeu ela. - E nunca se sabe, podemos dar de cara com uns Limitadores.
- Para dizer a verdade, nem sequer sei o que são estas coisas - confessou ele, prendendo a bolsa ao cinto e depois enrolando e atando a corda à volta da coxa.
- São armas de algodão-pólvora. Um pouquinho mais básicas do que isto - disse ela, erguendo a espingarda. - E devia experimentar isto - continuou, entregando uma coisa a Will.
Era um instrumento constituído por um tubo comprido e um outro mais curto, ao lado um do outro, os dois parecendo que tinham sido fundidos juntos de tal forma que a união entre os dois era quase indetectável. Todo o dispositivo era feito de latão baço e desgastado, a superfície coberta de arranhões e amolgadelas minúsculos e tinha cerca de meio metro de comprimento, com tampas em cada uma das pontas do cilindro mais comprido. Will percebeu de imediato porque lhe parecia familiar.
- É uma mira telescópica, não é? - perguntou ele, dando uma olhada na espingarda de Elliott, que tinha um instrumento semelhante montado no cano. A única diferença era que a versão dele tinha duas alças curtas.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Enfie o braço nas alças... faz com que seja mais fácil transportá-la. Ok, vamos embora.
Voltou-se para a saída e, num abrir e fechar de olhos, tinha desaparecido nas sombras ao fundo do corredor.
Will foi atrás dela, descendo pela corda e descobrindo que estava mergulhado numa escuridão total quando chegou ao fundo. Pôs-se à escuta, mas não conseguiu ouvir nada. Desprendendo a lanterna, aumentou ligeiramente a luz.
Sobressaltou-se quando a luz incidiu em Elliott - estava a vários metros de distância, imóvel como uma estátua.
- A não ser que eu diga para o fazer, esta foi a última vez que usou um globo de luz durante a minha patrulha. - Apontou para a mira telescópica no braço dele. - Use a mira, mas não se esqueça de protegê-la da luz intensa, uma vez que isso estraga o que tem lá dentro. E tenha cuidado com ela - são mais raras do que dentes de lesma.
Will desligou a lanterna e soltou o aparelho do antebraço. Levantando as tampas nas extremidades da mira telescópica, levou-a aos olhos, olhando em volta.
- Genial! - exclamou.
Era espantoso. A mira cortou a escuridão profunda como se estivesse iluminada por um pulsante clarão amarelo, ligeiramente difuso. Will conseguia ver os detalhes mais ínfimos da parede de rocha à frente dele e, quando a apontou para o fundo do túnel, conseguiu ver a grande distância. O chão e as paredes tinham um brilho estranho que lhes dava um aspecto brilhante e úmido, embora tudo estivesse completamente seco na área circundante.
- Ei! Isto é muito legal. Parece... Parece que está tudo iluminado por uma luz do dia esquisita. Onde arranjou isto?
- Os Styx raptaram uma pessoa da Superfície que sabia fazê-las. Mas ela fugiu e veio parar aqui, nas Profundezas. Trouxe com ele um grande carregamento de miras.
- Oh, certo - respondeu Will. - E o que lhes fornece energia? Baterias?
- Não faço ideia do que são "baterias" - disse ela, articulando a palavra como se esta fosse estrangeira. - Em cada uma das miras há um globozinho de luz que foi ligado a outras coisas. É a única coisa que sei.
Will girou devagarinho sobre os calcanhares, espreitando pela engenhoca para o outro lado do tubo de lava. Ao fazê-lo, apanhou de relance a cara de Elliott.
No etéreo clarão amarelado, a pele dela era suave e radiosa, como se estivesse banhada por uma luz do Sol suavíssima. Parecia linda e muito jovem, as pupilas a cintilarem como dois pontos de um fogo intensamente brilhante. E o mais espantoso ainda era o fato de ela estar sorrindo, o que ele nunca a tinha visto fazer antes. A sorrir para ele. Aquilo encheu-o de uma espécie de calor - uma sensação que era nova para ele. Involuntariamente, ingeriu ar e, depois, rezando para que ela não tivesse ouvido, conseguiu voltar a controlar a respiração. Continuou a mover a mira num arco em direção à outra ponta do túnel, como se estivesse a habituar-se ao aparelho, mas os seus pensamentos estavam a milhões de quilômetros dali.
- Muito bem - disse ela, amigavelmente, ao mesmo tempo que enrolava o shemagh na cabeça. - Siga-me, parceiro.
Seguiram pelo tubo de lava, fazendo uma curta pausa na caverna dourada para protegerem os seus equipamentos dentro de um pequeno saco à prova de água que Elliott trazia consigo antes de atravessarem a poça a nado. Quando se encontraram do outro lado, pararam outra vez para se organizarem.
- Posso lhe dar um conselho? - perguntou ela, quando ele atava a bolsa dos cilindros de algodão-pólvora na coxa.
- Claro. O que é? - replicou ele sem saber o que estava para vir.
- É a maneira como se move. Quando anda, é como os outros, até o Drake. Tente usar a parte de baixo dos dedos... fique apoiado nos dedos mais tempo, antes de voltar se a apoiar nos calcanhares. Observe-me com a mira.
Will fez o que ela lhe dizia, observando como ela dava cada um dos passos, movendo-se como um gato a aproximar-se sorrateiramente da presa. Através da mira, as calças e as botas dela, encharcadas com a água da poça, cintilavam com um brilho móvel da luz de um amarelo pálido.
- Diminui o barulho e até os rastros que possa deixar.
Will observou as pernas esguias enquanto ela fazia a demonstração, maravilhado com o seu talento, um talento que fazia parte da sua natureza.
- E vai ter de aprender a arranjar comida - disse ela repentinamente, reparando numa coisa qualquer na parede rochosa ao lado dela. - Há muita comida à nossa volta, se souber onde procurar. Como isto, uma ostra das cavernas.
Ele não fazia a mínima ideia do que é que ela falava enquanto se dirigia para o que ele achava ser um pedaço de rocha a sair da parede. Com a lâmina da faca, ela começou a escavar à volta. Depois voltou a meter a faca na bainha e calçou umas luvas.
- As bordas são afiadas - explicou ela, enfiando os dedos no buraco que tinha feito.
Firmando-se, puxou com as duas mãos e, com um ruído de sucção arrastado, a rocha começou a separar-se da parede. Depois, com um último barulho, como o da casca de um ovo a rachar, soltou-se por completo e ela recuou uns passos a cambalear.
- Olhe! - exclamou Elliott triunfalmente, e levantou-a para que ele a pudesse examinar.
Era quase do tamanho de uma bola de futebol e, quando Elliott a virou ao contrário, Will encolheu-se. A parte de baixo parecia de couro e ao mesmo tempo era polposa, com uma faixa de pequenos filamentos a contorcerem-se. Era alguma espécie de animal.
- Que raio é isso? - perguntou ele. - Um marisco gigante ou qualquer coisa desse tipo?
- Já te disse - é uma ostra das cavernas. Elas alimentam-se das algas-cinzas à volta dos buracos de água. Cruas, têm um sabor horrível, mas cozidas comem-se bem.
Quando ela enfiou o dedo no meio da massa polposa, esta agitou-se e o animal começou a estender um tentáculo grande e carnudo, parecido com o pé de um caracol mas muitíssimo maior. Elliott dobrou-se para enfiar o animal virado ao contrário, apoiado na concha, entre duas pedras.
- Isto deve impedi-la de desaparecer até nós voltarmos.
A viagem pela Grande Planície decorreu sem incidentes, embora tivessem sido obrigados a atravessar vários canais, usando as comportas estreitas como pontes. Will teve de se esforçar muito para acompanhar Elliott, que se deslocava a uma velocidade espantosa. Experimentou pisar o chão como ela lhe tinha ensinado, mas pouco tempo depois os pés estavam a doer-lhe tanto que teve de desistir.
Elliott abrandou quando avistaram a parede da caverna. Investigando cuidadosamente a área ao redor com a mira telescópica da espingarda, conduziu-o ao longo da parede para dentro de um túnel largo e baixo. Parou quando já tinham percorrido algumas centenas de metros.
O cheiro desafiava qualquer descrição.
Havia um cheiro nauseabundo fortíssimo a carne podre - rajadas azedas atingiram-nos. Will tentou respirar pela boca, mas aquilo era tão forte que quase sentiu o sabor do fedor horrível.
Foi então que, com a sua mira telescópica, viu algo que fez com que o coração falhasse um batimento.
- Oh, não! - arfou ele.
Num dos lados do túnel estavam os corpos do que, pelas roupas, só podiam ser renegados. Do outro lado, virados para eles, estavam Coprolites, ainda enfiados nos seus fatos-macacos de proteção. Will soube, sem ter de perguntar, que os Styx tinham sido os responsáveis e que os cadáveres haviam sido deixados ali já há algum tempo. O cheiro não podia ter outro significado.
Contou cinco renegados e quatro Coprolites. Os corpos de ambas as fileiras estavam presos a umas estacas de madeira grossa. As cabeças das vítimas pendiam para o peito, os pés estavam apoiados em duas pequenas traves cruzadas, pregadas às estacas a cerca de meio metro do chão. Isto produzia um efeito sinistro, como se os corpos escuros e silenciosos estivessem mesmo suspensos no ar.
- Mas porque eles fazem isto? - perguntou Will, abanando a cabeça perante aquela terrível perda de vidas humanas.
- É um aviso e uma demonstração do poder deles. Fazem isto porque são Styx - replicou Elliot.
Quando ela se dirigiu para a fila dos renegados, Will aproximou-se dos Coprolites, embora fosse a última coisa que quisesse fazer.
- Eu conhecia este homem - disse Elliott com tristeza, e Will voltou-se para a olhar enquanto ela permanecia imóvel a frente de um dos cadáveres.
Depois, contendo a respiração, Will obrigou-se a olhar para um Coprolite morto. A cor de cogumelo do traje via-se muito bem na luz amarelada da sua mira telescópica, mas havia uma mancha mais escura em volta dos buracos dos olhos. Faltavam-lhes os globos luminosos. Era evidente que a borracha espessa do traje tinha sido rasgada para tirarem os globos de luz. Estremeceu. Lembrou-se dos horrores de que os Styx eram capazes.
- Carniceiros! - murmurou para si mesmo.
- Will - chamou Elliott repentinamente, interrompendo-lhe os pensamentos.
Ela não estava a olhar para os corpos, mas para um lado e para o outro do túnel largo, como se todos os seus sentidos estivessem em ação.
- O que é? - perguntou Will.
- Esconda-se! - ordenou ela num murmúrio estrangulado.
E foi tudo. Will olhou para ela sem entender o que queria dizer. Estava parada ao lado do corpo do último renegado no lado oposto do túnel. Moveu-se tão depressa que Will mal a conseguiu acompanhar com a mira. Encontrou uma depressão no chão, um pequeno fosso, e, colando a espingarda ao corpo, rolou lá para dentro, com a cara virada para baixo. Will deixou de vê-la. Estava completamente escondida.
Ele olhou rapidamente em redor, procurando desesperadamente um buraco semelhante no chão do túnel. Não conseguiu ver nenhum. Para onde podia ir? Tinha de descobrir um esconderijo. Mas onde? Correu de um lado para o outro, enfiando-se atrás da fila de Coprolites no seu lado do túnel. Nada! O chão era plano - até subia ligeiramente em direção à parede.
Ouvindo um som, ficou petrificado.
O ladrar de um cão.
Um farejador!
Não sabia de onde vinha.
Estava completamente exposto.
Capítulo Vinte e Seis
A
quela aberração de cão, o farejador, fazia os mais horrendos ruídos e rosnados impertinentes, enquanto esticava a coleira. O seu tratador era um dos quatro Limitadores que iam descendo o túnel. Estava com dificuldades em manter o animal sob controle.
Os soldados Styx usavam barretes pretos, baços, na cabeça, e tinham as caras obscurecidas por uns óculos enormes, como olhos de inseto, e máscaras antigas de couro. Os casacos, que desciam até aos tornozelos, tinham um padrão com uma camuflagem especial de retângulos castanho-acinzentados e cor de areia, e o equipamento que levavam nos cintos e nas mochilas chocalhava ligeiramente a cada passo. Era evidente que não estavam de serviço - não esperavam que estivesse mais alguém naquela zona.
Pararam entre as duas filas de corpos mortos, o tratador do cão a sibilar uma ordem ininteligível ao animal. Este rosnou e sentou-se imediatamente, ainda a resfolegar em explosões iradas quando a cabeça pendeu para a frente para farejar o odor rançoso dos corpos a apodrecer. Um fio de saliva pegajosa escorria-lhe do focinho, como se achasse o fedor apetitoso.
As vozes dos Limitadores eram nasaladas e aflautadas, as palavras entrecortadas e, na maioria, incompreensíveis. Então, um deles começou um cacarejo, uma cruel gargalhada estridente, e os outros acompanharam-no, até parecerem um rebanho de hienas distorcidas. Estavam evidentemente a regozijar-se com as suas vítimas mortas.
Will nem ousava respirar, não só por causa do cheiro mais horroroso que alguma vez encontrara, mas porque estava paralisado com medo de que pudessem ouvi-lo.
À medida que os Limitadores se aproximavam, fora obrigado a esconder-se no único lugar de que conseguiu lembrar-se.
Estava ferozmente agarrado a uma das estacas, logo atrás de um Coprolite morto. Com um pânico total, tinha dado um salto para cima, enfiando o braço entre o Coprolite morto e a madeira áspera da estaca. E, enquanto tentara segurar-se, os pés tinham raspado na estaca sem sucesso até que a ponta da bota batera na cabeça de um grande prego. Felizmente para Will, projetava-se para fora vários centímetros, atravessando a parte de trás da estaca e, pelo menos, proporcionava-lhe uma espécie de apoio para o pé.
Mas só isto não chegava para mantê-lo lá em cima - quando os Limitadores se aproximaram, precisara encontrar qualquer coisa a que pudesse se agarrar com a mão esquerda. Tateando desesperadamente em volta, os dedos encontraram um rasgão no fato de proteção do Coprolite, mesmo junto à omoplata. Enfiou lá os dedos, no tecido grosso de borracha, tocando em algo úmido e macio que estava no seu interior. Cedeu quando os dedos fizeram pressão - era pastoso. Os dedos penetravam na carne podre do corpo do Coprolite. Compreendendo o que se passava, sabia que não havia tempo para encontrar um apoio alternativo para a mão. Não penses! Não pense nisso!, atravessava-lhe o espírito.
Mas o cheiro do corpo do Coprolite parecia intensificar-se, atingindo-o com a força de um pontapé na cabeça.
Oh, meu Deus!
Se antes fora forte, agora era simplesmente insuportável. Os dedos tinham rompido o traje de borracha, com dois centímetros de espessura, alargando mais o rasgão, e foram libertados lá de dentro gases extremamente fétidos. O fedor estava a espalhar-se para fora. Will queria deixar-se cair para o chão e correr - era mais do que podia suportar. Era o fedor da carne quente e pútrida do homem em decomposição. Era macabro!
Pensou que ia vomitar. Sentiu o vômito a subir-lhe à boca, e rapidamente voltou a engolir o fluido acre. Não podia permitir-se estar agoniado ou escorregar do seu esconderijo. Se isso acontecesse, estar-lhe-ia reservado um destino terrível nas mãos dos Limitadores. Tinha de ficar muito quieto, por muito mal que se sentisse. A lembrança do ataque do farejador na Cidade Eterna estava dolorosamente fresca no seu espírito - não havia qualquer chance de se sujeitar a uma coisa dessas de novo.
Tinha os olhos fechados com força e tentava desesperadamente focar toda a sua atenção naquilo que os Limitadores estavam fazendo. Enquanto os ouvia, desejava que continuassem a seguir o seu caminho. Começaram por falar na língua styx, depois alternaram com inglês. De vez em quando, apanhava uns fragmentos soltos do que eles diziam. Parecia que vinham de membros diferentes da patrulha, mas não era capaz de dizer ao certo, pois todas soavam da mesma forma estranha.
- ...a próxima operação...
- ...neutralizar...
Então, depois de um momento de quietude, durante o qual só conseguia ouvir o som do farejador que farejava a lama e rosnava, ouviu:
- ...capturar o rebelde...
- ...mãe...
- ...vai ajudar...
Como tinha o corpo rígido, os braços doíam-lhe e percebeu que estava acontecendo o pior que lhe podia suceder. A perna, que estava numa posição horrivelmente desconfortável, começava a tremer com o esforço que fazia para aguentar o corpo. Tentou controlar o tremor, cheio de medo de que a bota escorregasse do apoio no prego.
Mas não adiantou nada - não havia nada a fazer. O suor escorria-lhe das têmporas, enquanto tentava distanciar-se do total desconforto e ouvia as vozes dos Limitadores.
- ...varrer...
- ...busca exaustiva...
Ainda não se atrevia a abrir os olhos, rezando para que estivesse suficientemente escondido atrás do corpo rotundo, mas não tinha a certeza. Bastava que um dos Styx reparasse numa perna ou num braço dele, e o jogo acabava. Pensou por um instante em Elliott deitada na pequena vala do outro lado.
Nessa altura aconteceu. A perna ficou paralisada com fluxos de dores lancinantes. As cãibras trespassavam-lhe a coxa e a barriga da perna, como se alguém, com uma pinça de ferro, estivesse a esmagar impiedosamente cada um dos seus músculos, todos ao mesmo tempo. Mas não podia perder o apoio do pé no prego. Ansiava por se içar mesmo ligeiramente nos braços, mas não se atrevia.
A perna teve outro espasmo, como se tivesse vontade própria. Lutou contra os seus movimentos involuntários. Toda a sua concentração estava nela, tanto assim que por uns segundos se esqueceu de tudo - do fedor e dos murmúrios lacônicos dos Limitadores, e do farejador, ali tão perto. Mas a dor e a tremedeira estavam a piorar, era demasiado para ele. Tinha de fazer alguma coisa.
Oh, Jesus! Contraiu os braços e ergueu-se só um pouquinho. O peso sobre a perna foi reduzido e sentiu um alívio instantâneo, mas a estaca oscilou ligeiramente. Percebeu que os Limitadores tinham parado de falar.
Por favor, por favor, por favor!, rezava.
Nessa altura os Limitadores recomeçaram a falar.
- O habitante da Superfície - dizia um. - Havemos de encontrá-lo...
Imediatamente ouviu-se outra frase, mas só registrou uma única palavra. Foi dita com uma entoação diferente, quando comparada com tudo o que ouvira antes, como se o Styx estivesse a demonstrar grande respeito.
- ...Rebecca...
Rebecca? Não, não, não podia ser! A sua mente deu um salto, mas não podia permitir-se reagir ao que ouvira.
Tinha de ser à irmã - a desgraçada que ele pensara que era sua irmã - que eles se referiam. Por que outra razão é que poderiam ter mencionado exatamente aquele nome? Era uma coincidência grande demais. Deu-se conta de que havia respirado com força. Tê-lo-iam ouvido?
Os Limitadores estavam agora em silêncio. Ouvia o resfolegar do cão, nitidamente, como tivesse se aproximado.
O que se passava? Se ao menos pudesse ver!
Então, ouviu o som de botas a arrastar na terra. Semi-abriu um olho e viu luzes a agitarem-se sobre as paredes e o teto. Estariam os Styx a rodeá-lo, a cercá-lo? Teria sido apanhado?
Não.
Ouviu os sons. Eles estavam a andar.
Os seus passos entraram num ritmo único. Estavam indo embora. Queria saltar dali, mas tinha de aguentar e esperar. Agradecendo a Deus o fato de os Limitadores estarem a caminhar depressa cerrou os dentes. Achava que não conseguia aguentar o cheiro durante mais tempo.
Nessa altura, algo lhe puxou o tornozelo.
- Tudo livre - sibilou Elliott num sussurro. - Pode descer
Will atirou-se imediatamente para trás, largando a estaca, e caiu no chão, recuando e afastando-se do Coprolite o mais depressa que pôde.
- Pelo amor de Deus, fique quieto! O que é? - perguntou ela.
Retorceu os dedos, aqueles que estiveram no traje de proteção do Coprolite. Tinham uma umidade pegajosa agarrada. Sucos do cadáver em decomposição. Estremeceu. Aquilo abalou-o até à medula. Sem olhar nem para os dedos nem para a mão, levantou-a cuidadosamente até à cara, e sentiu o fedor rançoso de uma morte já antiga. No mesmo instante afastou bruscamente a mão, esticando-a para o mais longe possível dele. Sentiu o estômago revolver-se e respirou algumas vezes rapidamente. Raspou a mão na terra, usando a outra para a esfregar repetidamente com mãos cheias de areia solta.
- Que nojo! - exclamou, e cheirou outra vez a mão. Retirou-a, mas não tão violentamente desta vez, pois o fedor tinha abrandado. - Como pode alguém viver assim? - murmurou entre os lábios apertados.
- Habitue-se - respondeu Elliott com uma voz inexpressiva. - Isto é o que eu e o Drake fazemos todos os dias. - Levantou a espingarda para esquadrinhar o túnel, acrescentando com uma voz fria. - Para sobrevivermos.
Conduziu-o, não para trás, para a planície, mas mais para dentro de um túnel. Não queria, de maneira nenhuma, continuar a caminhada, estava exausto e ia aos tropeções. Ainda tinha os pêlos em pé de pensar no corpo morto que tocara. Subitamente ficou furioso por si próprio, pelos homens nas estacas, e furioso pelo fato de Rebecca parecer estar, de algum modo, relacionada com o que se passava. Alguma vez se veria livre dela?
- Se aprece! - sussurrou Elliott bruscamente, pois ele ia a arrastar os pés.
Ele parou de imediato, dizendo atabalhoadamente:
- Eu... eu.
Pode ter sido uma reação ao terror absoluto que sentira, mas ficou enfurecido, cheio de uma raiva súbita que precisava de escape. Encontrou um alvo na garota minúscula que tinha à frente. Levantou a mira e tentou focar a cara dela, com as mãos trêmulas.
- Porque nos deixou entrar naquele lugar, lá atrás? Quase fomos apanhados! - espumou ele, dirigindo-se à sua figura cor de âmbar. - Nunca devíamos ter ficado encurralados daquela maneira... com todos aqueles Styx tão perto de nós. Podíamos ter sido ambos mortos por aquele sabujo. Pensava que era competente. - Ficou tão entupido de fúria que mal podia continuar a falar. - Pensava que sabia o que estava fazendo. Você...
Ela ficou muito quieta, impávida ante a sua explosão de raiva.
- Eu sei o que estou fazendo. Aquilo foi inesperado. Se eu estivesse com o Drake, teríamos enfrentado os Styx e escondido os corpos debaixo de um desmoronamento de pedras.
- Mas o Drake não está aqui! - respondeu-lhe ele com brusquidão. - Eu é que estou!
- Nós corremos riscos diariamente - disse ela. - Se não o fizermos, podemos ir engatinhando até um lugar qualquer e morrer - acrescentou com frieza, e começou a andar, mas depois fez uma pausa, balançando a cabeça para trás para olhar de frente para ele. - E se voltar a falar comigo desta maneira, me livro de você. Apesar do que o Drake pensa, não precisamos assim tanto de você, mas você precisa de nós, tão certo como eu estar aqui. Entendido?
A fúria de Will abandonou-o depressa e ele ficou atrapalhado, já arrependido das suas palavras. Ela não se mexeu, à espera da resposta dele.
- Ah... sim... desculpe - murmurou Will.
Sentiu-se vazio, abalado pela consciência de quão totalmente dependentes estavam, ele e os outros rapazes, de Drake e de Elliott para o seu bem-estar. Era dolorosamente óbvio que não teriam durado muito tempo nesta terra selvagem e sem lei se ninguém tivesse ido em seu socorro. Ele, Chester e em particular Cal estavam vivos graças à perícia de outros, conquistada com muito esforço, e deviam estar agradecidos. Ela virou-se e ele foi atrás dela, acertando o passo, enquanto caminhavam ao longo do túnel.
- Desculpe - voltou a dizer para a escuridão à sua frente mas ela não deu qualquer indicação de o ter ouvido.
Uma hora mais tarde, depois de terem percorrido um emaranhado confuso de galerias interligadas, ela parou e pareceu procurar qualquer coisa na base da parede. Havia cascalho espalhado pelo chão, intercalado com grandes lajes parecidas com escudos que Elliott estava a usar como caminho.
- Ajude-me com isto - disse ela irritada, começando a levantar uma das lajes.
Will agarrou na outra ponta e, juntos, retesando-se com o esforço, puxaram-na para o lado, deixando à vista um pequeno buraco no chão.
- Fique atrás de mim, há cavernas de Vermes Vermelhos muito perto do caminho - aconselhou ela.
Lembrando-se de que Tam tinha referido que os Vermes Vermelhos eram perigosos, Will achou que não era o momento apropriado para lhe perguntar o que eram. De qualquer maneira, Elliott baixou-se imediatamente e começou a engatinhar para dentro do buraco, e Will seguiu-a obedientemente, perguntando para consigo aonde é que o buraco os levaria. Embora não conseguisse ver nada, usou as mãos para apalpar em volta e descobriu que o túnel tinha uma forma quase oval e cerca de um metro de largura. Orientava-se pelo barulho de Elliott à frente dele, mas havia sítios em que o cascalho e as lascas de pedra acumulados no chão lhe dificultavam a passagem e tinha de serpentear, deitando para trás o cascalho que empurrara.
A passagem era inclinada e os movimentos de Elliott atiravam-lhe grandes quantidades de cascalho para cima. Sem se atrever a queixar-se, parou várias vezes para sacudir a terra e o pó da cara.
E de repente deixou de haver barulhos da Elliott. Will estava prestes a chamá-la quando ouviu as reverberações dos movimentos dela num espaço mais amplo. Subiu a seção final e quase vertical da passagem e, usando a mira telescópica, viu que estavam numa galeria com uma área de dez por cinquenta metros. Elliot já estava deitada ao lado de uma fissura no chão. Will começou a sacudir-se e depois desatou a tossir por causa de todo o pó que tinha inalado.
- Cale-se - rosnou-lhe ela.
Conseguiu abafar o barulho da tosse com a manga e foi para perto dela, deitando-se a seu lado.
Juntos, espreitaram para dentro da fissura de bordas irregulares. Estavam olhando de uma altura estonteante para uma câmara enorme, que lembrava uma catedral. Lá muito em baixo, Will conseguiu ver a mancha de vários pontos de luz. Afastou-se um pouco da fissura e, pondo a cabeça de lado, obteve uma visão melhor da área lá em baixo, onde estavam as máquinas com o aspecto mais estranho que já vira. Com o clarão de luz que as rodeava, Will contou dez ao todo, dispostas numa fila.
Pareciam cilindros atarracados, cada uma delas com uma geringonça semelhante a uma roda dentada numa das pontas. Faziam-lhe lembrar as fotografias que tinha visto do equipamento usado na construção do Metropolitano de Londres. Will partiu imediatamente do princípio de que também seriam um equipamento de escavação. Depois viu vários grupos de Coprolites parados e uma pelotão de Styx a observá-los de longe. Will olhou para a espingarda ao lado de Elliott, perguntando a si próprio se ela a iria usar. Àquela distância, não lhe seria difícil atirar contra os Styx.
Passados vários minutos, houve uma súbita explosão de atividade. Alguns dos Coprolites começaram a mover-se vagarosamente enquanto os Styx caminhavam ameaçadoramente atrás deles, com as espingardas compridas nos braços. Os homens bulbosos pareciam minúsculos comparados com as máquinas, quando subiram para dentro delas. Uma das máquinas arrancou, o motor a girar com um rugido e uma nuvem preta a sair da parte de trás. Depois começou a avançar pesadamente, ainda sob o escrutínio dos Styx, e passou em frente das outras máquinas.
Will continuou a observar enquanto ela ganhava velocidade. Conseguia distinguir as escotilhas nas traseiras e a coleção de canos de exaustão à volta dela, por onde saíam vapor e fumo. Também viu as rodas enormes que as moviam e conseguia ouvir as rochas a estalarem por baixo delas. A máquina virou para um túnel que saía da câmara principal e desapareceu. Will calculou que os Coprolites deveriam ir trabalhar nas minas, mas não fazia a menor ideia da razão que levava a estarem a ser monitorizados por tantos Styx.
Elliott resmungou qualquer coisa ao afastar-se da fissura e ele ouviu-a dirigir-se para um canto da galeria. Usando a mira telescópica, observou-a enquanto ela tirava para fora vários embrulhos escuros. Foi para junto dela.
- O que é isso? - perguntou-lhe sem conseguir se conter. Ela não lhe respondeu durante vários segundos e depois disse "comida", enquanto enfiava os pacotes na saca.
Elliott não parecia disposta a acrescentar fosse o que fosse, mas a curiosidade de Will estava espicaçada.
- On... de onde é que isso vem? - atreveu-se a perguntar.
Elliott tirou um embrulho mais pequeno, cuidadosamente atado da mochila e enfiou-o por trás do pedregulho.
- Se precisa mesmo saber, foi posta aqui pelos Coprolites, nós fazemos trocas com eles. - Apontou para o pedregulho. - Acabei de lhes deixar alguns dos globos que roubei do Trem dos Mineiros.
- Oh - disse Will, sem vontade de se queixar.
- Eles dependem totalmente dos globos de luz. A comida não é assim tão importante para nós, mas tentamos ajudá-los sempre que podemos. - Atirou um olhar fulminante a Will. - Depois de tudo o que tem acontecido por aqui, precisam de toda a ajuda que conseguirem.
Will assentiu com a cabeça, partindo do princípio de que a intenção dela ao dizer aquilo era fazer um comentário venenoso a seu respeito. Will tinha dificuldade em acreditar que era responsável por aquilo que os Styx estavam a fazer aos Coprolites, e resolveu ignorar o comentário. Começava a pensar que estava a ser responsabilizado por tudo o que corria mal.
Elliott afastou-se dele.
- Vamos voltar para trás - disse ela, e, juntos, dirigiram-se para onde tinham vindo, regressando ao túnel oval.
A viagem de volta a casa correu sem incidentes. Pararam enquanto Elliott ia buscar a ostra da caverna - ainda estava onde ela a deixara. Era evidente que sua única perna, parecida com um toco, tinha estado a fazer horas extraordinárias, girando em redor enquanto se tentava pôr direita, produzindo uma repugnante espuma branca que tinha transbordado da concha em grandes porções pegajosas. Mas isto não esmoreceu Elliott, que enrolou um pedaço de pano em volta da concha volumosa e a enfiou no saco. Enquanto ela fazia aquilo, Will observou-lhe o rosto pela mira telescópica. Tinha uma expressão dura e carrancuda. Muito diferente da de horas antes.
Will estava arrependido da sua explosão de cólera. Sabia que não devia ter dito o que lhe dissera. Cometera um terrível erro e não sabia como remediar a situação. Mordeu o lado de dentro da boca com frustração, tentando pensar em qualquer coisa para dizer. Então, Elliott meteu-se na poça e desapareceu. Ele olhou para a água escura, a película de pó que girava em círculos provocados pela passagem dela, e sentiu vontade de chorar. Inspirou fundo e seguiu-a, descobrindo que até se sentia grato pela imersão total na água escura e quente. Era como se esta lhe pudesse limpar a mente de todas as suas preocupações.
Não conseguia entender as garotas - eram insondáveis, pelo menos para ele. Pareciam dizer apenas parte do que estavam a pensar e depois fechavam-se como ostras, escondendo-se atrás de um silêncio amuado, sem dizerem a parte que realmente interessava. No passado, quando metera o pé na argola com as garotas, fizera possível por resolver a situação pedindo desculpa por o quer que fosse que tivesse feito para ofender, mas elas não tinham querido saber.
Olhou para as costas de Elliott e suspirou. Oh, bem, lixara tudo outra vez. Que grande idiota fora. Tentou consolar-se com o pensamento de que não tinha de ficar com ela, ou com Drake, para sempre. O seu único objetivo na vida continuava a ser encontrar o pai, utilizando todos os meios que fossem necessários. Tudo isto era apenas temporário.
As botas encharcadas chapinhavam no silêncio profundo. Chegaram à entrada da base e subiram pela corda. Havia sossego nos quartos, e Will pensou que Cal se tinha cansado do exercício e se fora deitar.
No corredor, Elliott estendeu-lhe a mão aberta, sem olhar para ele. Ele limpou a garganta atrapalhado, sem saber o que ela queria, e de repente percebeu que estava lhe pedindo que devolvesse a mira telescópica. Tirou os braços das alças. Ela lhe arrancou, mas voltou a estender a mão. Depois de uns instantes de confusão, Will lembrou-se da bolsa de cilindros de algodão-pólvora atada na coxa e atrapalhadamente desatou o nó. Ela também lhe arrancou aquilo com um gesto brusco e depois virou a cabeça e foi embora. Ele ficou ali parado, a escorrer água para a poeira e a lutar com um turbilhão de isolamento e arrependimento.
Nas semanas seguintes, Will nunca mais voltou a acompanhar Elliott. E o pior era que ela andava a convidar Chester, cada vez com mais frequência, para as suas patrulhas de reconhecimento "rotineiras". Embora Will e Chester nunca falassem disso, Will via de relance o amigo a conversar com Elliott no corredor, os dois a sussurrarem em conjunto, e sentia uma dor terrível por estar a ser posto de parte. Por mais que tentasse suprimi-lo, também sentia um ressentimento crescente contra o amigo. Dizia para si mesmo que Elliott devia estar a ensiná-lo a ele e não o vaidoso do Chester. Mas não podia fazer nada em relação a isso.
Will descobriu que tinha tempo livre. Já não precisava tomar conta do irmão, que progredira e passara das voltas constantes no quarto e no corredor para o túnel à saída da base. Aqui, ele marchava de um lado para o outro, ainda que com a ajuda da bengala. Por isso, para preencher as horas, Will tentava escrever o diário ou deixava-se ficar deitado na cama, a remoer na situação deles.
Compreendeu, provavelmente um pouco tarde, que até no meio mais duro e mais hostil, onde se tinha de fazer tudo o que fosse preciso, por mais chocante e repulsivo que pudesse ser, a consideração para com os amigos era fundamental. Esta consideração, este código de comportamento, era a cola que mantinha uma equipe unida. Não duvidava do discernimento de Drake ou de Elliott. Não questionava as ordens deles. Fazia exatamente como eles mandavam, porque era para seu bem e para o deles.
Mas Will tinha de reconhecer que Chester estava mais bem preparado do que ele para acatar ordens. Desde o início, Chester parecera sentir uma lealdade inquestionável e inabalável em relação a Drake, que tinha alargado para incluir Elliott.
E Cal também não era muito diferente de Chester na sua aliança com os dois renegados. Cal mudara. Talvez o seu encontro com a morte o tivesse mudado. Ainda havia uma explosão ocasional de criancices, mas, no geral, o irmão estava mais calmo e até estóico em relação à sua situação. Will usou esta palavra para descrever o temperamento diferente de Cal no seu diário - tinha-a aprendido com o pai e havia pensado, quando lhe explicaram o que queria dizer, que implicava fraqueza, uma disponibilidade para aceitar fosse o que fosse, por muito mau que fosse. Mas agora começava a perceber que se enganara, uma pessoa que enfrentava uma situação de vida ou de morte precisava de um certo desprendimento para ser capaz de pensar bem e não se deixar levar pelo pânico e tomar as decisões erradas.
Nas semanas que se seguiram receberam lições de Drake sobre vários tópicos, como, por exemplo, encontrar e preparar comida. Isto tinha começado com a ostra da caverna, que, depois de cozinhada, sabia vagamente a uma lula muito dura.
Drake também os levava em patrulhas curtas e ensinava-lhes as técnicas para se desvencilharem em espaços abertos. Numa ocasião, acordou-os em uma hora que parecia muito cedo, embora o tempo não tivesse muito significado na escuridão permanente. Disse aos três rapazes que se preparassem e levou-os pelo túnel por baixo da base, na direção oposta à Grande Planície. Eles sabiam que não ia ser uma saída muito demorada porque ele lhes tinha dito para cada um deles levar apenas um cantil de água e umas rações leves, ao passo que ele carregava com uma mochila cheia.
Enquanto percorriam uma série de passagens, os rapazes tagarelavam entre si para passarem o tempo.
- Que coisas estúpidas e anormais - tinha dito Cal quando Will e Cal estavam discutindo sobre os Coprolites.
Por acidente, Drake ouviu o comentário.
- Porque acha isso? - perguntou calmamente.
Will e Chester ficaram calados.
- Bem - disse Cal, recuperando, aparentemente, o seu velho atrevimento -, eles não passam de uns animais estúpidos... a cavar nas rochas como lesmas inúteis.
- Então está mesmo convencido de que somos melhores do que eles? - perguntou-lhe Drake.
- Claro que somos.
Abanando a cabeça enquanto continuava a guiá-los por um túnel, Drake não estava disposto a deixar passar o comentário de Cal.
- Eles colhem a sua comida sem a esgotarem por completo e sem terem de estar sempre a mudar-se de um lado para o outro E sempre que extraem minério, voltam a encher as minas. Repõem tudo porque respeitam a Terra.
- Mas eles são... eles são apenas... - Cal ficou sem palavras.
- Não, Cal, nós é que somos os estúpidos. Nós somos os animais estúpidos. Nós esgotamos tudo... consumimos e consumimos até todos os recursos se esgotarem... e depois, surpresa surpresa, temos de levantar acampamento e começar noutro lugar qualquer novo, e recomeçar tudo. Não, eles é que são os espertos... estão em harmonia com o seu meio ambiente. Você e eu... os iguais a nós, somos os desadaptados, os destruidores. Não chamaria a isso de estúpido?
Agora em silêncio, caminharam uns quilômetros até que Will aumentou a passada, deixando Cal e Chester para trás enquanto apanhava Drake.
- Está preocupado com alguma coisa? - perguntou Drake, ainda antes de Will estar ao lado dele.
- Hum, sim - gaguejou Will, perguntando para si mesmo se não deveria ter-se deixado ficar com os outros.
- Diga lá.
- Bem, você disse que era um Habitante da Superfície...
- E você quer saber mais? - interrompeu Drake. - Um rapaz curioso.
- Sim - balbuciou Will.
- Bem, a verdade é que não interessa quem eu era no mundo. Não interessa o que nenhum de nós era. É aqui e agora que conta.
Drake não falou durante uns momentos.
- Você não sabe nem metade - começou ele, depois pareceu arrepender-se e calou-se durante mais uns quantos segundos. - Olhe, Will, provavelmente eu conseguiria escapar aos Styx e voltar para a Superfície, onde seria forçado a viver uma vida muito parecida com a da sua mãe, sempre a olhar por cima do ombro quando passasse por lugares escuros. Mas, sem querer faltar ao respeito a Sarah, acredito que viver nas Profundezas é mais honesto. Está entendendo o que estou a dizer?
- Não, não estou - confessou Will.
- Bem, você já viu por si próprio que isto aqui não é um passeio pelo parque. É terrivelmente duro; uma existência de pobreza e perigo - disse Drake e depois fez uma careta. - Se os Colarinhos Brancos não te apanharem, há um milhão de outras coisas que podem te matar num abrir e fechar de olhos... infecções, quedas de rochedos, outros renegados, etc. Mas posso te garantir, Will, que nunca me senti mais vivo do que nos anos em que aqui estou. Tão verdadeiramente vivo. Não, pode ficar com a sua segura vida de plástico na Superfície - não é para mim.
Drake calou-se quando chegaram a uma intersecção com outro túnel. Disse-lhes que esperassem enquanto começava a tirar várias peças de equipamento da mochila. Fê-lo eficientemente, sem olhar para os rapazes. Cal deixou-se ficar atrás dos outros dois, preocupado por ter aborrecido Drake. Will observou com crescente excitação quando viu que Drake tinha trazido uma seleção dos cilindros de algodão-pólvora que ele e Elliott levavam para todo o lado.
- Ora bem - disse Drake depois de ter disposto os cilindros na areia em frente deles, e os cilindros em cada grupo por ordem decrescente de tamanho. Os rapazes olharam para ele, expectantes.
- Chegou a altura de aprenderem a usá-los.
Desviou-se para o lado para eles poderem ver a coleção de cilindros no primeiro grupo, o maior, um tubo largo com uma circunferência pouco maior do que a secção de um cano e vinte centímetros de comprimento.
- Todos estes... com as faixas vermelhas em volta... são cargas. Quanto mais faixas, maior o fusível. Se se lembrarem, viram a Elliott montar vários destes com as minas.
Will abriu a boca para falar, mas foi impedido por Drake, que levantou a mão.
- Antes que perguntem, não vou demonstrar nenhuma das cargas aqui. - Drake voltou-se para o outro grupo de cilindros. - Mas estes, como vocês sabem - disse ele, passando a mão por cima de uma série de tubos mais curtos ao lado das cargas - chamam-se cilindros de algodão-pólvora. Este - disse ele apontando para o maior - é artilharia pesada... um morteiro de algodão-pól- vora. Podem ver que, ao contrário das outras armas, não tem um mecanismo de disparo na base.
Levantou o morteiro e pô-lo à frente deles.
- Simples, mas muito eficiente para eliminar uma porção de inimigos, quer dizer, dos Styx. O invólucro - nesta altura, bateu-lhe de leve com os nós dos dedos e ouviu-se um som surdo - é de ferro e tapado de ambos os lados. - Deu-lhe umas pancadinhas com os dedos como se fosse um bongô alongado. - Esta versão especial é disparada batendo na extremidade. - Respirou fundo. - A carga pode ser o que se quiser; sal-gema, lápis de lousa ou ferro-gusa, é tudo muito eficaz quando é preciso limpar uma grande quantidade de alvos. Muito popular - disse ele, com um sorriso irônico. - Sintam-lhe o peso e, façam o que fizerem não o deixem cair!
Com um silêncio respeitoso, os rapazes passaram-no uns aos outros, segurando-o com todo o cuidado, enquanto inspecionavam a extremidade mais pesada, onde estava alojado o detonador. Cal devolveu-o a Drake, que voltou a pousá-lo na areia.
Depois, Drake indicou os outros cilindros com um aceno da mão.
- Estes são mais fáceis de transportar e são disparados como armas verdadeiras. Têm todos detonadores mecânicos mais do gênero do cano de um fuzil que se levanta.
Parecia indeciso quanto à arma a escolher, e depois optou por uma que estava no meio da fila. Era praticamente idêntica em tamanho a alguns das bombas que Will tinha feito explodir na Cidade Eterna, com mais ou menos quinze centímetros de comprimento e vários centímetros de diâmetro. O invólucro emitia um brilho embaçado à luz das suas lanternas juntas.
Drake virou-se de lado para demonstrar a posição correta.
- Como todas estas armas, só dão um tiro. E cuidado com o recuo, segurem-nas muito perto do olho e arrependeram-se. Como com as outras, são ativadas por uma alavanca de mola na parte de trás... são disparadas puxando o cordão. - Limpou a garganta e olhou para eles. - Então, quem quer experimentar?
Os rapazes acenaram com a cabeça, ansiosos.
- Muito bem. Eu disparo uma primeiro, para mostrar como se faz.
Avançou e procurou no chão até encontrar uma pedra aproximadamente das dimensões de uma caixa de fósforos. Depois deu mais uns vinte passos até uma saliência no meio do cruzamento, na qual equilibrou a pedra. Voltando para trás, pegou num cilindro de algodão-pólvora, não dos que estavam na areia, mas da caixa que tinha na coxa. Os rapazes juntaram-se ao seu lado, empurrando-se à procura de um lugar em que vissem bem.
- Afastem-se um pouco mais, está bem? É muito raro, mas podem disparar para trás.
- O que quer dizer? - perguntou Will.
- Rebentam-se na cara.
O aviso não caiu no vazio, particularmente quanto a Chester, que se afastou cuidadosamente - tanto assim que estava quase com as costas encostadas à parede do túnel. Will e Cal foram menos cautelosos, colocando-se alguns metros atrás de Drake, Cal apoiado com ambas as mãos na bengala e dando à demonstração toda a sua atenção. Tentava descobrir o mundo como um observador numa caça aos patos.
Drake levou o seu tempo a fazer pontaria, e depois disparou. Os rapazes estremeceram quando o estrondo ressoou à sua volta. A dez metros de distância, viram o impacto no afloramento rochoso e os jatos de fragmentos e de pó. A pedra que fazia de alvo tremeu um pouco, mas permaneceu no local.
- Bastante perto - disse Drake. - Estes não são precisos como a espingarda da Elliott. Destinam-se principalmente a serem utilizados muito perto do alvo. - Virou-se para Cal. - Agora é você - disse.
Cal estava ligeiramente hesitante, e Drake teve de posicioná-lo corretamente, empurrando-lhe o pé da frente mais para diante e rodando-lhe os ombros de modo a que a sua posição ficasse correta. Cal estava em desvantagem pelo fato de ter a perna esquerda ainda um pouco fraca, e o esforço para manter aquela posição estava patente na sua cara.
- Ok - disse Drake.
Cal puxou o cordão na parte de trás do cilindro. Não aconteceu nada.
- Puxe com mais força - o cano tem de dar um estalo ao ser puxado para trás - disse-lhe Drake.
Cal tentou outra vez, mas ao fazê-lo deslocou o cilindro do alvo. A bala atingiu a parede do compartimento a alguma distância, e eles ouviram um silvo quando fez ricochete ao longo do túnel que ficava do outro lado.
- Não se preocupe, é a primeira vez que tenta. Nunca tinha disparado uma arma, não é?
- Não - admitiu Cal, sombriamente.
- Vamos ter muito mais oportunidades de praticar quando chegarmos aos níveis mais profundos. Nada como uma situação de perseguição a caça grossa com os animais selvagens lá de baixo disse Drake enigmaticamente. As orelhas de Will arrebitaram-se imediatamente, perguntando-se ele que espécie de animais seriam esses, mas nessa altura Drake disse-lhe que era a sua vez.
A arma disparou à primeira vez que Will puxou o cordão e, agora, viram o jato de pó logo à frente do alvo.
- Nada mau - felicitou-o Drake. - já tinha disparado uma arma.
- Tenho uma pistola de ar - disse Will, lembrando-se das suas sessões ilegais com a velha pistola no Jardim Público de Highfield.
- Com alguma prática vai melhorar na avaliação da distância. Agora você, Chester.
Chester avançou um pouco hesitante e pegou na arma. Curvou um pouco os ombros, parecendo muito desajeitado a tentar apontar o instrumento.
- Apoie-a na parte de trás da mão. Não, avance mais com a mão por baixo. E, pelo amor de Deus, descontraia-se, rapaz.
Drake agarrou-lhe os ombros e, em vez de os rodar como tinha feito com Cal, empurrou-os para baixo.
- Descontraia-se - repetiu - e leve o tempo que for preciso.
Chester continuava a parecer terrivelmente desajeitado, os ombros a voltarem a levantar-se. Pareceu uma eternidade até finalmente puxar o gatilho.
Nenhum deles conseguia acreditar no que estavam vendo.
Desta vez não houve jatos de fragmentos de rocha, nem o zumbido de um ricochete. Com um estouro, a bala acertou em cheio na pedra e desapareceu no túnel atrás dela.
- Assim é que é, rapaz! - disse Drake, dando uma palmada nas costas do rapaz, estupefato. - Na mosca!
- Ganha um coco - exclamou Will, rindo.
Chester estava sem fala. Olhava, com os olhos a piscar, para o lugar onde a pedra tinha estado, como se não conseguisse acreditar nos seus próprios olhos. Will e Cal deram-lhe os parabéns, muito entusiasmados, mas era evidente que ele não sabia o que dizer, completamente aturdido com o seu êxito.
Perceberam que a sessão de treino tinha acabado quando, com alguma pressa, Drake enrolou de imediato as cargas e as armas de algodão-pólvora num rolo de pano e as voltou a meter na mochila. No entanto, deixou uma, um cilindro de tamanho médio, na areia. Will estava olhando para ela, sem saber se devia chamar a atenção de Drake, quando percebeu porque tinha sido deixada de fora.
Uma pedra voou à frente deles e caiu no chão, rolando até vir parar na argila ao pé dos pés de Drake. Era a mesma que Chester tinha atingido com tanta pontaria.
Uma voz ceceosa e irritante penetrou as sombras, como se tivessem libertado um cheiro mau.
- S-sempre pronto para uma demonsstraç-ção de períc-cia, não é, Drakey?
Will olhou imediatamente para Drake, que já estava a observar a escuridão, a arma preparada nas mãos. Não era de modo algum uma atitude ameaçadora nem defensiva, mas Will viu a intenção mortífera na cara dele, instantes antes de pôr a lente no olho direito.
- O que estás fazendo aqui? Lembra-se da Regra, não se lembra, Cox? Os renegados mantêm as distâncias, ou sofrem as consequências - disse Drake numa voz atroadora.
- Mas você não obedeceu à Regra quando despachou o desgraçado do Lloyd, não é? E levou a garota.
Um vulto amorfo emergiu do fundo do túnel, um fardo disforme e curvado iluminado pelas lanternas dos rapazes.
- Aah, ouvi dizer que tinhass novoss queridos. Carne madura.
O vulto tossiu e continuou a avançar, como se estivesse a flutuar um pouco acima do chão. Will viu que era um homem, que trazia um xale imundo a tapar-lhe a cabeça e os ombros, como se fosse uma camponesa. Estava penosamente dobrado, dando a impressão de estar seriamente deformado. Parando à frente dos rapazes e de Drake, levantou a cabeça. Era uma visão assustadora. Tinha uma excrescência enorme numa têmpora, como se fosse um melão pequeno, e a porcaria fora raspada ali, de forma que eles podiam ver pele cinzenta coberta por uma rede de grossas veias azuis. Tinha outra excrescência, mais pequena, na boca, o que fazia com que os lábios, pretos e rachados, estivessem repuxados num "O" permanente. Uma baba de saliva leitosa e oleosa escorria-lhe do lábio inferior pelo queixo abaixo, onde ficava pendurada como uma barbicha líquida.
Mas os olhos eram o pior. Perfeitamente brancos, como ovos cozidos acabados de descascar, sem nenhum vestígio de pupilas ou de íris. Eram a única área de cor sólida e coesa nele, o que ainda era mais chocante.
Uma mão nodosa, como uma raiz ressequida pelo sol, saiu do xale e desenhou um círculo enquanto ele falava.
- Tenss alguma coissa para o seu velho compincha? - sibilou Cox em voz alta, soltando uma chuva de perdigotos. - Qualquer coissa para o pobre velho que te ensinou tudo o que sabe? Que tal um dessess rapazess?
- Não te devo nada. Vai embora - respondeu Drake ameaçadoramente. - Antes que eu...
- Ssão os rapazess que os Cabeças Pretas andam à procura? Ond'é que oss tens escondido, Drakey?
Como uma cobra a preparar-se para atacar, a cabeça espetou-se, os olhos brancos e cegos a passarem por Will e Cal, com Chester a esconder-se aterrorizado atrás deles. Will viu as cruzes grossas das cicatrizes escuras, uma sobre cada olho, e a matriz de muitos mais golpes cinzentos na pele preta como carvão das faces.
- O cheiro jovem deless é tão - o homem limpou rapidamente o nariz com a mão nodosa - bom e limpo.
- Passa tempo demais por estes lugares... parece que está no fim, Cox. Talvez queira que eu te ajude a seguir viagem? - disse Drake secamente, ao mesmo tempo que erguia a arma de algodão-pólvora.
A cabeça do homem voltou-se para ele.
- Não há necessidade dissso, Drakey, para um velho amigo.
Depois a figura fez uma vênia cerimoniosa e desapareceu instantaneamente na escuridão. Chester e Cal ainda olhavam para o lugar onde o homem estivera, mas Will olhava para Drake. Não lhe escapou que as mãos de Drake agarraram o cilindro com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.
Drake voltou-se para os rapazes.
- Aquele encanto era o Tom Cox. Prefiro a companhia dos Styx, seja quando for, à deste homem abominável. Ele é tão doente por dentro como por fora. - Drake inspirou tremulamente. - Vocês poderiam, com toda a facilidade, ter acabado por cair nas garras dele se eu e a Elliott não tivéssemos lhes encontrado primeiro. - Os olhos pousaram na arma e, como que surpreendido por ainda estar preparada para ser usada, baixou-a. - O Cox e os da laia dele são a razão de não passarmos muito tempo na planície. E já podem ver o que a radiação acabará por lhes fazer.
Voltou a enfiar o cilindro de algodão-pólvora na bolsa presa na coxa.
- Temos de nos por a caminho.
Virou a cabeça para o lugar onde Tom Cox tinha estado, os olhos a demorarem-se no lugar, vendo sombras que Will e os rapazes nem sequer conseguiriam imaginar. Depois, levou-os de volta, sempre a olhar para trás a certificar-se de que o homem não os seguia.
Numa outra ocasião, Will tinha passado uma noite de sono irrequieto, pontuado por uma série de sonhos muito profundos. Outra vez começava a dormir quando foi despertado pela voz de Elliott no corredor. Era tão fraca e irreal que ele não teve a certeza de a ter realmente ouvido ou se estivera outra vez a sonhar. Quando se sentou na cama, Chester entrou no quarto completamente ensopado, o que indicava que tinha acabado de atravessar a poça a nado.
- Tudo bem, Will? - perguntou Chester.
- Sim, acho que sim - respondeu Will, sonolento. - Esteve numa patrulha?
- Sim... só a fazer a ronda. Está tudo calmo lá fora. Não acontece nada - respondeu Chester alegremente enquanto descalçava as botas.
Falava com uma desprendida submissão militar, como se estivesse a fazer apenas a sua obrigação, e a fazê-lo com um entusiasmo forçado.
De repente, Will deu-se conta de como a amizade deles tinha mudado durante os últimos dois meses, como se o encontro de Cal com a morte na armadilha de açúcar e o aparecimento de Drake e Elliott, especialmente da Elliott, tivessem de algum modo redesenhado a geometria das relações entre eles todos. Quando se deitou na cama estreita, com os braços cruzados atrás da cabeça, a recordação de como tinha sido a amizade entre ele e Chester passou-lhe pela mente. No estado de entorpecimento causado pelo sono, Will foi capaz de aceitar o sentimento caloroso com gratidão e fingir que nada mudara. Ouviu Chester a despir a roupa molhada e sentiu que podia dizer-lhe aquilo que queria.
- É engraçado - disse Will baixinho, para não acordar o irmão.
- O quê - perguntou Chester enquanto dobrava as calças como se estivesse a preparar o uniforme da escola para o dia seguinte.
- Tive um sonho.
- Sim? - respondeu Chester distraidamente, pendurando as meias encharcadas nuns pregos na parede para que secassem.
- Foi mesmo muito esquisito. Estava num lugar quente e cheio de sol - disse Will devagarinho, tentando recordar o sonho, que já estava a desaparecer. - Nada tinha importância, nada era importante. Também lá havia uma garota. Não sei quem era, mas era uma amiga. - Will calou-se uns instantes.
- Era muito simpática... e mesmo quando eu fechava os olhos a cara dela continuava lá, contente e descontraída e a modos que... perfeita.
"Estávamos deitados na erva - como se tivéssemos acabado um piquenique no prado, ou lá o que era aquele sítio. Acho que se calhar sentíamo-nos ambos um pouco sonolentos. Mas eu sabia que estávamos num lugar onde devíamos estar, onde pertencíamos. Embora não nos mexêssemos, era como se flutuássemos numa cama de erva fofa, uma espécie de verdura pacífica à nossa volta, sob o céu mais azul que possas imaginar. Estávamos felizes, felizes. - Soltou um suspiro. - Era tão diferente da umidade e do calor e de estarmos sempre rodeados de rochas, como agora. No sonho, tudo era suave... e o prado era tão real... Eu até conseguia cheirar a relva. Era...
A voz esmoreceu e ele deixou-se aquecer pelo que restava das imagens e sensações, que se iam apagando. Percebendo que já falava havia um bom tempo e que não estava a ouvir nenhum barulho no canto de Chester, virou a cabeça para olhar para o amigo.
- Chester? - chamou baixinho.
Ficou espantado por ver que o amigo já estava enfiado na cama, virado para a parede para que Will não o pudesse ver.
Chester soltou um ronco sonoro e virou-se, ficando de barriga para cima. Dormia profundamente.
Will soltou um grande e resignado suspiro e fechou os olhos, desejoso de voltar para o seu sonho, mas sabendo que era muitíssimo improvável.
Capítulo Vinte e Sete
O
uviu-se um estrondo incrível quando o Trem dos Mineiros deu um solavanco e guinou de um lado para o outro de uma forma tão impressionante que Sarah se convenceu de que ia mesmo descarrilar. Agarrando-se ao banco com toda a força, lançou um olhar ansioso a Rebecca, que dava mostras de estar completamente impávida. Na verdade, a garota parecia quase em transe, com o rosto perfeitamente tranquilo e os olhos totalmente abertos, mas sem olhar para nada em particular.
Finalmente, o trem retomou o seu anterior ritmo hipnótico. Sarah respirou com mais facilidade quando espreitou para o interior da carruagem do guarda. Mais uma vez deixou os olhos vaguearem para o local onde estavam os Limitadores, mas afastou rapidamente o olhar, não querendo que eles reparassem no seu interesse.
Tinha de continuar a beliscar-se para ter certeza de que tudo aquilo era real; não só estava praticamente ombro a ombro com uma patrulha Styx de quatro homens, mas estes eram Limitadores autênticos, elementos do "Pelotão do Hobb", como eram chamados em alguns círculos.
Quando ela era pequena, o pai contava-lhe histórias assustadoras destes soldados, dizendo-lhes que eles gostavam de comer os colonos vivos, e que, se ela não fizesse o que ele lhe mandava e não fosse imediatamente dormir, estes canibais apareceriam pela calada da noite. Segundo o pai, escondiam-se debaixo da cama das crianças malcomportadas e, se alguma pusesse um pé de fora, os Limitadores arrancavam-lhe um pedaço do tornozelo. Dizia que eles gostavam especialmente de carne jovem e tenra. Isto era mais do que suficiente para a impedir de dormir.
Só vários anos mais tarde é que soube por Tam que estes homens misteriosos existiam mesmo. Claro que todo mundo na Colônia, sabia da existência da Divisão - os grupos que patrulhavam as fronteiras do Bairro e da Cidade Eterna, as regiões mais próximas da superfície. Qualquer lugar, a bem dizer, que os Colonos pudessem utilizar como uma via de fuga para chegar à Superfície.
Mas os Limitadores eram completamente diferentes e raramente, ou nunca, eram vistos nas ruas. Em consequência, a Colônia estava cheia de mitos sobre eles e a sua intrepidez como combatentes. Algumas das histórias mais improváveis, dissera-lhe Tam, eram realmente verdadeiras: acreditava piamente que eles tinham mesmo devorado um Colono Banido lá nos confins das Profundezas do Norte, quando as suas provisões de alimentos se tinham esgotado. Tam também lhe dissera que "Hobb" era outro nome dado ao Diabo, e um nome muito adequado, disse ele, a esses soldados demoníacos.
Apesar destas e das muitas outras historietas evidentemente inverossímeis que eram sussurradas atrás de portas fechadas, muito pouco se sabia na realidade sobre os Limitadores, exceto quanto à especulação de que estavam envolvidos em operações secretas na superfície. Quanto às Profundezas, dizia-se que eram treinados para ali sobreviverem durante longos períodos sem apoio. E agora, quando ela se atreveu a estudar os Limitadores de novo, tinha de concordar que eram o grupo com o aspecto mais assustador, com os olhos mais frios, que ela alguma vez vira, olhos baços de peixes mortos.
Havia muito espaço na grande mas bastante elementar carruagem, construída sobre os mesmos chassis dos caminhões da carga, uma longa fila dos quais a precedia no trem. Os lados e o telhado da carruagem eram feitos de tábuas, que tinham sido expostas a um calor intenso e a cargas de água ao longo do caminho com tal regularidade que haviam ficado gravemente empenadas. Tinham-se aberto largas fendas entre as tábuas, deixando entrar a fumaça e o vento impetuoso, à medida que o trem se deslocava como um foguete, e tornando a viagem pouco mais tolerável do que aquela que Will e os outros tinham experimentado no vagão aberto.
Ao longo do interior da carruagem, dos dois lados, havia bancos corridos de madeira tosca, e duas mesinhas baixas, à altura do joelho, estavam pregadas ao chão de cada um dos lados, o último dos quais ocupado pelos quatro Limitadores.
Os soldados estavam vestidos com as suas fardas características, os compridos casacos castanho-escuros e as calças largas com joalheiras grossas, muito diferentes da roupa geralmente usada pelos Styx. Também tinham fornecido um conjunto a Sarah, e ela vestira-o, embora a fizesse sentir-se claramente desconfortável. Com muito pouco esforço, calculava o que Tam teria tido a dizer sobre isso se a visse com o uniforme dos seus arqui-inimigos. Apalpando a lapela do casaco, imaginou o ar de mortificação no rosto do irmão. Quase conseguia ouvir a voz dele.
Oh, Sarah, como se meteu numa coisa destas? O que pensa que está fazendo?
Incapaz de dissipar o sentimento de constrangimento, achou difícil manter-se quieta e, de cada vez que mudava de posição no seu implacável banco de madeira, a farda não fazia o mais leve som. Isso vinha desmistificar a afirmação que ela ouvira de que as fardas eram feitas de pele de Coprolite; pareciam ser confeccionadas num cabedal excepcionalmente maleável, talvez no couro mais fino. Considerava que isto era para permitir aos Limitadores movimentarem-se mais sub-repticiamente, sem a chiadeira característica da roupa negra como azeviche que usavam na Colônia.
Os Limitadores pareciam descansar por turnos, dois dormindo com os pés em cima da mesa, enquanto os outros dois ficavam acordados e desumanamente quietos, sentados rigidamente retos e olhando fixamente em frente. Havia uma espécie de vigilância feroz em todos eles, mesmo naqueles que dormitavam, como se estivessem prontos a entrar em ação num abrir e fechar de olhos.
Sarah e Rebecca não tentaram conversar por causa do barulho constante - mais alto do que o habitual, Rebecca tinha-lhe informado, porque o trem ia ao dobro da velocidade normal.
Em vez disso, Sarah examinava algo que parecia ser uma mochila da escola, bastante velha e gasta, que estava em cima da mesa à frente de Rebecca. Via-se um maço de jornais da Superfície a sair dela, e Sarah conseguiu perceber o título melodramático do que estava por cima, que dizia Megavírus Ataca, em letras gordas. Sarah estivera afastada do contato com os acontecimentos da Superfície durante algumas semanas e não tinha a mais vaga ideia do que pudesse significar. De qualquer modo, passou muitas horas, durante a viagem, a refletir sobre se aquilo poderia ter interesse para Rebecca e para os Styx. Rebecca nem por uma vez fechou os olhos ou cabeceou. Recostada contra o lado da carruagem, com os braços elegantemente cruzados no colo, era como se se encontrasse sob alguma forma de profundo estado de suspensão. Sarah achou que era mais do que levemente desconcertante.
A única troca de palavras que teve com a garota Styx ocorreu mais tarde, quando o trem abrandou finalmente, passando a um ritmo mais lento, acabando depois por parar.
Como se se libertasse do seu estranho estado de suspensão, inclinou-se para a frente e dirigiu-se a Sarah.
- Portões de Tempestade - disse simplesmente, depois tirou rapidamente os jornais da mochila e começou a folheá-los, passando os olhos por eles.
Sarah acenou com a cabeça, mas não respondeu, pois naquele preciso momento ouviu-se um ruído baixo, seco e metálico, vindo de algures um pouco à frente. Os Limitadores agitaram-se, fazendo um deles circular marmitas cheias de tiras de carne seca e canecas de esmalte branco, amolgadas, com água. Sarah pegou na dela, agradecendo ao homem, e comeram em silêncio, enquanto o comboio retomava a marcha. Mal tinha começado a andar, quando fez outra paragem convulsiva, e as portas fecharam-se com estrondo.
Rebecca estava estudando o seu jornal com toda a atenção.
- De que fala isso? - perguntou Sarah, lançando um olhar para o título, que dizia PANDEMIA - É OFICIAL. - Esses jornais são recentes?
- São. Arranjei-os esta manhã, quando estive na Superfície. - Rebecca virou os olhos para cima, fechando o jornal. - Que idiota! Passo a vida me esquecendo que conhece bem Londres. Comprei-os muito perto de St. Edmunds - provavelmente conhece?
- O hospital... em Hampstead - confirmou Sarah.
- Exatamente - disse Rebecca. - E, meu Deus, devia ter visto o espetáculo gratuito no exterior da A&E. Era uma enorme confusão lá em cima - filas de quilômetros. - Abanou a cabeça afetadamente, depois parou e fez um esgar como um gato que acabou de comer uma cuba cheia das mais finas natas.
- Sério? - observou Sarah.
Rebecca soltou um risinho abafado.
- Toda a cidade parou.
Sarah olhou para ela de soslaio enquanto abanava o jornal para o abrir, e recomeçou a lê-lo.
Mas aquilo não batia certo!
Rebecca permanecera na Guarnição toda a manhã preparando-se para a viagem de trem. Sarah vira-a lá algumas vezes e ouvira a sua voz a ecoar pelos corredores em várias outras ocasiões - a garota não podia ter estado fora do edifício mais de uma hora seguida. Isso não lhe teria dado tempo suficiente para ir a Highfield e voltar, quanto mais a Hampstead. Rebecca tinha de estar mentindo. Mas porquê? A garota estaria brincando com ela para ver como reagia, ou talvez a encenar uma demonstração da sua autoridade, do seu poder sobre ela?
Sarah ficou tão desconcertada com tudo isto que não fez mais perguntas sobre as notícias dos jornais.
Antes de o trem recomeçar a viagem, Rebecca pôs os jornais de lado, e, depois de beber um último gole da caneca, baixou-se para puxar de debaixo do banco um pacote comprido enrolado em serapilheira. Estendeu-o a Sarah, que agarrou nele, e, desenrolando a serapilheira, descobriu que era uma das compridas espingardas dos Limitadores, munida de visão telescópica. Ela manuseara por breves momentos uma arma semelhante na Guarnição quando o soldado Styx que tinha uma cicatriz de guerra lhe dera instruções sobre como utilizá-la.
Sarah lançou um olhar interrogador a Rebecca. Não tendo qualquer reação, inclinou-se para a garota.
- Sério? É para mim? - perguntou.
Com um lento aceno de cabeça, Rebecca devolveu-lhe o sorriso com um ar reservado.
Sabendo que não devia tirar as coberturas de cabedal dos dois lados da volumosa mira de latão, porque qualquer luz acidental poderia queimar a componente aí existente, Sarah levou a arma ao ombro. Avaliou o seu peso, enquanto a apontava à extremidade desocupada da carruagem. Era pesada, mas nada que ela não fosse capaz de aguentar.
Sarah podia ter ronronado de satisfação. Encarou a oferta da espingarda como sinal da confiança que Rebecca depositava nela, embora ainda estivesse um pouco perturbada pela afirmação impossível de que tinha estado em Hampstead naquela manhã. Sarah tentou dizer a si própria que Rebecca devia ter confundido os dias e que pensava noutra manhã qualquer. Afastou esses pensamentos para se concentrar no assunto que tinha em mãos.
Correu os dedos a todo o comprimento do cano baço da espingarda. Existia apenas uma razão para lhe terem fornecido uma arma. Agora tinha as ferramentas e estava pronta para fazer o que fosse necessário para vingar a morte de Tam. Devia-o a ele e à mãe.
Enquanto o trem ganhava velocidade, ela passou o resto da viagem a manusear a arma. Umas vezes, erguendo-a para a posição de apontar enquanto trabalhava o ferrolho, puxando o gatilho em espiral e disparando-a sem munições, outras vezes, embalando-a apenas no colo, até ficar perfeitamente à vontade com ela, mesmo à luz diminuta da carruagem.
Capítulo Vinte e Oito
D
rake tinha-os levado no serviço de patrulha na Grande Planície, e eles caminhavam através daquilo a que ele chamava "os Perímetros", onde disse que a presença dos Limitadores devia ser mínima.
Era um grande dia, pois tratava-se da primeira incursão de Cal através do poço coletor cheio de água em direção à enorme área da Grande Planície desde que Will e Chester o tinham levado de volta à base como um destroço balbuciante, muitas semanas atrás. A decisão de Drake de lhe permitir sair veio na altura certa. Cal estava bem e verdadeiramente preparado para uma mudança de cena. Sentira-se enlouquecer no espaço limitado da base. Embora ainda coxeasse ligeiramente, o rapaz tinha recuperado quase toda a sensibilidade na perna e estava morto por se afastar para mais longe.
Depois de terem atravessado o poço coletor e partido com Drake e Elliott, Will teve uma sensação de júbilo pelo fato de estarem juntos, como grupo, pela primeira vez. Após várias horas a caminhar penosamente, com Elliott na liderança, Drake disse-Ihes que iam em breve desviar-se da planície e entrar num túnel de lava. Mas sugeriu que antes disso comessem alguma coisa, depois do que lhes daria informações e instruções sobre alguns assuntos. Pôs uma luz tênue numa cova do chão e eles reuniram-se à sua volta, enquanto cada um pegava no seu quinhão de provisões, e depois sentaram-se a comer.
Não foi indiferente a Will o fato de Chester e Elliott terem resolvido sentar-se juntos e estarem a conversar um com o outro em tom reservado. Até partilhavam um cantil. A boa disposição de Will esmoreceu e, mais uma vez, sentiu-se excluído. Causou-lhe tanta amargura que descobriu que perdera o apetite por completo.
Precisava urinar, e, muito melindrado, levantou-se e, com um andar pesado, afastou-se do grupo. Ficou grato por ser poupado ao espetáculo do pequeno e íntimo cochicho de Chester e Elliott durante o tempo que passaria a esvaziar a bexiga. Enquanto caminhava, olhou por cima do ombro para todos eles, sentados à volta da lanterna. Mesmo Drake e Cal estavam totalmente concentrados no que quer que discutiam e não repararam no que ele fazia.
Não tencionara afastar-se muito, mas, distraído com os seus pensamentos, continuou a andar. Para ele, tornava-se cada vez mais evidente que estava afastado dos outros porque havia qualquer coisa que tinha de fazer. Todos eles, Drake, Elliott, Chester e Cal, pareciam completamente absorvidos pela sobrevivência diária, como se isso fosse o seu único destino na vida, conseguir a custo uma existência primitiva naquele local infernal.
Mas Will sentia que tinha um objetivo distinto, prioritário; havia mais qualquer coisa que tinha de fazer. De uma maneira ou de outra, havia de localizar o pai, e, uma vez juntos, iriam os dois trabalhar em equipa para investigar o que se passava ali em baixo. Tal como nos bons velhos tempos em Highfield. E depois, finalmente, voltariam à superfície com todas as suas descobertas. Abrandou o passo quando se apercebeu de que, à exceção de Chester, nenhum dos outros desejava isso - na verdade, nenhum dos outros parecia ter qualquer intenção ou desejo de ir para a Superfície. Bem, ele tinha uma missão maior, e não ia certamente passar o resto dos seus dias naquele desagradável exílio subterrâneo, esgueirando-se para se esconder como um coelho assustado sempre que os Styx aparecessem.
Quando chegou à parede do perímetro, viu à sua frente as entradas de vários túneis de lava. Seguiu pelo que estava mais perto, saboreando a sensação de distanciamento à medida que a escuridão cerrada o envolvia. Quando já estava aliviado, emergiu do túnel de lava ainda perdido em pensamentos sobre o futuro. Tinha dado cerca de dez passos quando reparou que nem tudo estava como devia.
Parou e ficou completamente imóvel. No lugar onde ele pensava que deixara os outros não havia qualquer movimento, quaisquer vozes, qualquer luz. Sentiu-se completamente aturdido com a cena - ou com a ausência dela - que o saudou. Eles tinham desaparecido. O grupo não estava ali.
Will não entrou imediatamente em pânico, dizendo a si próprio que devia estar à procura deles no lugar errado. Mas não, ele tinha certeza absoluta de que não - e, além disso, não fora assim tão longe.
Esquadrinhou a escuridão durante alguns segundos, depois elevou a lanterna a pilhas acima da cabeça e balançou-a de um lado para o outro, na esperança de os alertar para a sua localização.
- Ah, estão aí! - exclamou quando os avistou. A uma distância que parecia alarmante, alguém do grupo fez-lhe sinal, deixando escapar um breve lampejo de luz em resposta à sua lanterna ondulante.
E, como que apanhada pelo flash de uma máquina fotográfica, a imagem deles, correndo caoticamente como uma manada de gazelas assustadas, formou-se na retina de Will. O flash revelara Drake a apontar desesperadamente para longe, como se estivesse a querer dizer alguma coisa a Will. Mas Will não entendeu o que ele pretendia. Depois deixou por completo de ver Drake e o resto do grupo.
Will voltou a olhar para o lugar onde tinham estado sentados. Deixara lá o casaco e a mochila, levando com ele apenas uma pequena lanterna a pilhas. Não tinha nada!
Teve uma sensação no estômago como se tivesse caído de um edifício alto. Devia ter-lhes dito aonde ia, e sabia com uma certeza inelutável que o que quer que fosse que estivesse a obrigados a fugir em tal confusão era algo ameaçador. Sabia que também ele devia estar a fugir. Mas para onde? Deveria tentar alcançá-los? Deveria tentar recuperar o casaco e a mochila? Que deveria fazer? Estava atormentado pela indecisão.
De repente, sentiu-se novamente como uma criancinha, revivendo o seu primeiro dia na escola primária de Highfield. O pai depositara-o junto à porta principal e, na sua distração habitual, tinha-se esquecido de se assegurar de que Will sabia para onde devia ir. Com uma ansiedade crescente, Will caminhara sem destino pelos corredores vazios, perdido e sem ninguém a quem perguntar nada.
Will esforçou-se por ver outra vez Drake e os outros, tentando fazer todo o possível por descobrir para onde se tinham dirigido. Na sua mente não existia qualquer dúvida de que estariam a refugiar-se num dos outros túneis de lava. Abanou a cabeça. Grande ajuda essa! Havia túneis demais. As chances de ele acertar no mesmo eram, no mínimo, escassas.
- O que faço eu agora? - disse várias vezes, numa sucessão rápida. Fixou o horizonte escuro para onde Drake apontara. Tinha um aspecto inocente. Rezava para que não houvesse lá nada, sabendo bem, no fundo do seu coração, que não podia ser assim. O que era? O que os tinha feito fugir daquela maneira? Então, ouviu um ladrar distante e os pêlos do pescoço puseram-se-lhe em pé.
Farejadores!
Estremeceu. Aquilo só podia querer dizer uma coisa. Os Styx aproximavam-se. Olhou freneticamente para o lugar onde tinha deixado o seu equipamento, mas não conseguiu vê-lo na escuridão. Seria capaz de ir buscá-lo a tempo? Atrever-se-ia? Não tinha mais nada consigo além da lanterna a pilhas; nem globos luminosos nem comida nem água. Tomado por um pavor crescente, ficou parado a olhar, enquanto os minúsculos pontos de luz dos Styx, que estavam a aproximar-se, começaram a ver-se, aparentemente a grande distância, mas suficientemente perto para o deixarem num pânico cego.
Tinha dado uns passos hesitantes em direção ao local onde pensava que estavam o casaco e a mochila, quando se ouviu um ruído agudo, como uma pancada forte, rapidamente seguido de outro. Não muito longe da sua cabeça, lascas de rocha espalharam-se pelo chão. Seguiu-se o estampido de tiros de espingarda, passando para trás e para a frente em toda a área, como o rumorejar de uma trovoada distante.
Os filhos da mãe estavam disparando contra ele!
Agachou-se quando outra saraivada de tiros levantou o pó de ambos os lados dele. Depois vieram mais. Caíam desagradavelmente perto. Parecia que o ar estava vivo, chiando com a passagem das balas.
Tapando a lanterna com a mão, lançou-se ao chão. Ao rolar por trás de um pequeno rochedo, uma salva atingiu a pedra, e cheirou-lhe a chumbo quente e a cordite. Não valia a pena; eles estavam a afinar a pontaria - pareciam saber exatamente onde ele se encontrava. Levantou-se precipitadamente e, rastejando tão baixo que estava quase dobrado, correu desajeitadamente para trás, para o túnel de lava.
Depois de passar uma curva do túnel, não parou. Chegou finalmente a uma encruzilhada e tomou a bifurcação à esquerda, unicamente para descobrir que havia uma enorme fissura no caminho. Ao voltar apressadamente à encruzilhada, sabia que a sua primeira prioridade era ganhar a maior distância possível entre si e os Styx.
Mas não podia ignorar o fato de que teria de voltar atrás se quisesse juntar-se de novo a Drake e aos outros. Sabia que lhe seria praticamente impossível fazer isso se continuasse a andar. A rede de túneis de lava era complexa, sendo cada um dos túneis virtualmente impossível de distinguir do seguinte. Sem qualquer espécie de traço distintivo ou ponto de referência, não fazia a menor ideia de como iria encontrar o caminho de regresso.
Dividido entre a necessidade de fugir e a perspectiva de que ia, sem qualquer dúvida, perder-se se continuasse, demorou-se uns segundos na encruzilhada. Pôs-se à escuta, perguntando a si próprio se os Styx iam realmente no seu encalço. Quando o ladrar baixo de um farejador ecoou ao longo do túnel, foi impelido a entrar novamente em ação. Não havia nada a fazer senão fugir. Começou a andar, mantendo uma passada rápida para se afastar dos Styx.
Cobriu uma distância razoável em apenas algumas horas. Não lhe tinha passado pela cabeça que devia limitar a utilização da lanterna a pilhas. E então, para seu horror, reparou que ela estava a perder alguma intensidade. Começou a poupar energia, desligando-a quando parecia haver um caminho ininterrupto à frente, mas não faltou muito para o feixe de luz começar a tremeluzir e a diminuir até se tornar uma tênue luz amarela.
Depois apagou-se completamente.
Não esqueceria nunca o seu completo desânimo nesse momento, quando ficou submerso na escuridão absoluta, latejante. Agitou freneticamente a lanterna, tentando em vão arrancar mais vida de dentro dela. Tirou as pilhas, esfregando-as entre as mãos para as aquecer antes de voltar a colocá-las, mas também não serviu de nada. Estava morta!
Fez a única coisa possível e continuou a andar, lidando às cegas com os túneis invisíveis. Não era só o fato de não ter a mais vaga ideia de para onde ia e de estar a ficar desesperadamente perdido, mas também o de ouvir um som ocasional nos túneis atrás de si. Queria parar para escutar, mas a ideia de um farejador a sair, voando, da escuridão, e a atacá-lo, obrigou-o a prosseguir. O medo que tinha dos perseguidores era maior do que o da implacável escuridão na qual estava a afundar-se cada vez mais. E sentiu-se tão perdido e tão infinitamente só!
Idiota! Idiota! Idiota! Porque não fui eu atrás dos outros? Tenho certeza de que tinha tempo! Que imbecil que sou! A auto-recriminação surgiu abafada e rápida enquanto a névoa o envolvia, tornando-se algo palpável e físico, como uma sopa negra e viscosa.
Estava desesperado, mas havia um único pensamento que o levava a andar. Tinha-o no seu espírito, um farol de esperança a guiá-lo. Imaginava o momento em que se juntaria ao pai e como tudo ficaria bem outra vez, tal como sonhara.
Sabendo que era inútil fazê-lo, mas achando que lhe dava algum conforto, de vez em quando chamava.
- Papai! - gritava. - Papai, onde está?
ø ø ø
O Dr. Burrows estava sentado no mais baixo de dois rochedos, com os cotovelos apoiados no maior, que estava à sua frente, enquanto mordiscava contemplativamente um pedaço de comida seca que os Coprolites lhe tinham dado. Desconhecia se era animal ou vegetal, mas sabia que era predominantemente a sal, pelo que estava grato. Suara em bica quando seguira a estrada tortuosa do mapa e já começava a sentir cãibras nas barrigas das pernas. Sabia que se não ingerisse sal, muito em breve estaria com graves problemas.
Virou-se para espreitar para o lado da fenda. Perdido na escuridão estava o caminho minúsculo que acabara de descer - um rebordo perigoso, tão estreito que tinha sido obrigado a espalmar-se contra a superfície inclinada da rocha, descendo por ele a arrastar os pés, sempre muito devagar e com muito cuidado. Suspirou. Não queria voltar a fazer aquilo outra vez à pressa.
Tirou os óculos e limpou-os muito bem à manga da camisa puída. Tinha-se desfeito do fato de Coprolite alguns quilômetros atrás - era demasiado pesado e limitativo para continuar a usado, apesar das reservas que ainda tinha sobre a exposição à radioatividade. Olhando para trás, pensou que podia ter exagerado um pouco quanto aos riscos associados à radioatividade - estava provavelmente confinada a áreas específicas na Grande Planície e, em qualquer caso, não passara lá muito tempo. De resto, agora não podia preocupar-se com isso, tinha coisas mais importantes em que pensar. Pegou no mapa e estudou os traços araneiformes pela enésima vez.
Depois, com a tira de carne presa ao canto da boca como um charuto por acender, pôs o mapa de lado e, utilizando o grande rochedo como um suporte para livros, abriu o seu diário para ver qualquer coisa que tinha estado a importuná-lo. Passou as folhas com os desenhos que fez das placas de pedra que encontrara pouco depois de chegar à Estação dos Mineiros. Descobrindo um dos últimos desenhos da série, começou a estudá-lo. Era um pouco tosco, devido ao estado físico em que se encontrava na altura, mas, apesar disso, confiava que tinha captado a maioria dos pormenores. Continuou a perscrutá-lo durante algum tempo e depois encostou-se de novo para trás, pensativo.
A placa documentada nesta página particular era diferente das outras que encontrara; para começar, era maior, e também algumas das inscrições que tinha eram totalmente diferentes de tudo o resto que ele descobrira no local.
Gravadas na sua superfície estavam três áreas claramente definidas, cada uma distinta das outras; na que estava mais acima, a escrita era composta por estranhos caracteres cuneiformes - letras em forma de cunha - que ele estava muito longe de decifrar. Infelizmente, estas eram as letras utilizadas em todas as outras placas que tinha visto na mesma gruta. Estava muito longe de compreendê-las.
Abaixo havia outro bloco de estranhas letras cuneiformes angulosas, muito diferentes das da primeira secção, que não se pareciam com nada que ele tivesse alguma vez encontrado em todos os seus anos de estudo. O terceiro bloco de escrita era tão mau como os anteriores, mas aqui havia uma bizarra sucessão de símbolos glíficos - imagens estranhas e irreconhecíveis - todas completa e absolutamente desprovidas de sentido para ele.
- Não consigo compreender - disse devagar, franzindo o cenho. Passou para outra página na qual já tinha anotado rapidamente alguns cálculos numa tentativa de traduzir nem que fosse a mais pequena parte de qualquer dos três blocos. Olhando para símbolos repetidos no do meio e no de baixo, pensou que seria capaz de começar a juntar as peças para uma interpretação dos escritos cuneiformes. Mesmo que fossem semelhantes à escrita logográfica chinesa, com um número prodigioso de caracteres diferentes, tinha esperança de que surgisse pelo menos uma espécie de padrão básico.
- Vamos lá, vamos lá, pense, homem! - exortava-se com um grunhido, batendo violentamente na testa com a palma da mão. Passando a tira de comida de um lado para o outro da boca, recomeçou os seus cálculos, tentando fazer mais progressos.
- Eu... não... consigo... compreender - resmungava. Com uma total frustração, rasgou a página dos cálculos e, amachucando-a, atirou-a por cima do ombro. Recostou-se e cerrou os punhos, em profunda reflexão. Quando fez isto, o diário escorregou do rochedo.
- Maldito! - exclamou, baixando-se para o apanhar. Tinha caído aberto no desenho que estava a causar-lhe tantos problemas. Voltou a colocá-lo no rochedo.
Ouviu um som. Uma chiadeira, seguida de uma série de pequenos estalidos. Acabou mal tinha começado, mas ele levantou imediatamente o globo luminoso ao alto, olhando com atenção à sua volta. Não viu nada e começou a assobiar entre dentes, numa tentativa de se tranquilizar.
Baixou o globo luminoso e, ao fazê-lo, a luz bateu na página do diário que estava a contrariar os seus esforços para a traduzir. Aproximou a cabeça da página, depois ainda mais.
- Seu imbecil! - começou a rir, enquanto examinava cuidadosamente a inscrição até então sem sentido para ele. A parte do meio estava agora a merecer toda a sua atenção.
- Boa, boa, boa, BOA!...
Estava tão mal quando desenhou a placa que simplesmente não reconheceu o alfabeto. Não de pernas para o ar, de qualquer modo. - É escrita fenícia, seu grande estúpido! Tinha tudo ao contrário! Como pude fazer uma coisa destas?
Começou a escrever apressadamente na página e descobriu que, com a excitação, estava a tentar usar a tira de comida seca meio mastigada em vez do lápis. Jogou-a fora e, agora com o lápis, escreveu rapidamente na margem, tentando adivinhar os símbolos onde era preciso, ou porque o seu esboço tinha sido feito com pouco cuidado em alguns lugares ou porque a própria placa estava gasta ou danificada.
- Alef... lamed... lamed... - murmurava para si próprio à medida que ia trabalhando de letra para letra, hesitando quando chegava àquelas que eram pouco nítidas ou que não conseguia recordar de imediato. Mas não demorou muito a lembrar-se delas, pois era proficiente em grego antigo, que provinha diretamente do alfabeto fenício.
- Caramba. Decifrei-o! - gritou, ecoando a voz à sua volta.
Descobriu que o escrito da seção do meio da placa era uma oração de algum tipo. Nada de muito interessante por si só, mas era capaz de a ler. Tendo chegado a este ponto, começou a examinar outra vez o escrito da seção mais acima, que consistia num bloco de glíficos. Os símbolos começaram imediatamente a fazer sentido, agora que ele estava a ver os sinais pictográficos em pormenor na posição correta.
Os símbolos não eram nada parecidos com os mesopotâmicos que tinha estudado para o seu doutoramento. Sabendo que os pictogramas mesopotâmicos foram a primeira forma conhecida de escrita, datando do ano 3000 a. C, o Dr. Burrows tinha plena consciência de que a tendência era para que os sinais pictográficos se tornassem cada vez mais esquemáticos à medida que os séculos passavam. Portanto, no princípio, as imagens teriam sido facilmente compreendidas - por exemplo, a imagem de um barco ou de um saco de trigo -, mas, com o tempo, evoluiriam para algo mais estilizado, algo mais parecido com as letras cuneiformes dos blocos do meio e de baixo da placa. Para um alfabeto.
- Boa! Boa! - disse ele, ao ver que a secção de cima repetia a oração escrita na do meio. Mas não parecia que a escrita tivesse evoluído diretamente dos símbolos pictográficos. De repente, ficou chocado com as implicações daquilo que se lhe tinha deparado.
- Meu Deus! Tantos milênios atrás, por qualquer razão, um escriba fenício veio da superfície... fez isto... gravou uma tradução de uma antiga língua hieroglífica. Mas como chegou ele aqui? - Encheu as bochechas de ar e expeliu-o por entre os dentes. - E esta raça antiga desconhecida... quem eram?... que diabo eram?
A sua mente foi bombardeada com hipóteses, mas uma, talvez a mais forçada, começava a aparecer bem mais nítida do que as outras. - Os Atlântidas... a Cidade Perdida da Atlântida! - Susteve a respiração, com o coração a bater com a conjectura.
Balbuciava sem fôlego para si próprio, desviando rapidamente a atenção para o bloco de escrita inferior, comparando-o com as palavras fenícias de cima.
- Caramba. Acho que consegui. É... a mesma oração! - começou a gritar. E imediatamente notou as semelhanças entre os hieróglifos da parte de cima da placa e as formas das letras da parte de baixo - não existia qualquer dúvida na sua mente de que ambas estavam relacionadas, de que os pictogramas tinham evoluído para letras.
E, utilizando a escrita fenícia, não deveria ter qualquer problema para traduzir a inscrição inferior. Agora tinha a chave que lhe permitia traduzir todas as outras placas que encontrara na gruta e que registrara no seu diário.
- Raios! Eu sou capaz de fazer isto - anunciou, cheio de júbilo, folheando os desenhos para trás. - Sou capaz de ler a língua deles! A minha própria Pedra de Roseta. Não... espere... - Levantou o dedo quando a ideia lhe ocorreu. - A Pedra de Burrows! - Levantou-se de um salto e virou-se para a escuridão, segurando o diário triunfantemente acima da cabeça. - A Pedra do Dr. Burrows.
- Seus pobres convencidos, todos vocês do Museu Britânico, de Oxford e Cambridge... velho mesquinho professor White e seus compamheiros da Universidade de Londres, que cruelmente me roubaram a minha escavação romana... VENCI... SEREI LEMBRADO! - As suas palavras ecoaram a toda a volta da fenda. - Sou mesmo capaz de ter o segredo da Atlântida aqui nas minhas mãos... E É SÓ MEU, SEUS GRANDES IMBECIS!
Ouviu estalidos outra vez e pegou na lanterna ao alto.
- Que raio...?
Ali, no lugar onde tinha caído a tira de comida, movia-se uma coisa grande. Com a, mão a tremer, dirigiu para lá a luz.
- Não! - arfou.
Era do tamanho de um pequeno carro familiar, com seis pernas articuladas a saírem de ângulos à sua volta, e uma enorme carapaça em cúpula como corpo principal. Tinha uma cor branca-amarelada e deslocava-se pesadamente. O Dr. Burrows conseguia ver as suas mandíbulas a rangerem uma contra a outra enquanto mastigava a comida que ele tinha jogado fora. Com as antenas a contorcerem-se exploratoriamente, avançava muito devagar na sua direção. Ele recuou um passo.
- Eu... não... posso... acreditar - desabafou o Dr. Burrows. - O que é você, em nome de Deus... um inseto gigantesco? Um enorme ácaro-do-pó? - disse ele, corrigindo-se mentalmente quando ainda estava a falar. Sabia muito bem que os ácaros não eram insetos, mas aracnídeos, o mesmo que as aranhas.
O que quer que fosse parara, evidentemente um pouco cauteloso perante ele, com as antenas a moverem-se sincopadamente como dois pauzinhos chineses a dançar. Não via quaisquer sinais de olhos na cabeça, e a sua carapaça parecia tão espessa como a blindagem de um tanque. Mas, quando a examinou mais de perto, viu também que estava amolgada, com mossas semelhantes a golpes, em toda a sua superfície baça, e que havia golpes fundos ao longo das suas arestas, nos locais onde parecia ter sido rompida.
Apesar do seu tamanho e da sua aparência, o Dr. Burrows sabia que a criatura não constituía perigo para ele. Não tentava aproximar-se mais, permanecendo cautelosamente onde se encontrava, talvez com mais medo dele do que ele dela.
- Andou na guerra, não andou? - disse o Dr. Burrows, orientando o globo luminoso na sua direção. Ela fez barulho com as mandíbulas como que confirmando. Por momentos, o Dr. Burrows ergueu os olhos, desviando-os da criatura gigantesca, para olhar à sua volta.
- Este lugar é tão... rico... é uma autêntica mina de ouro! Suspirou, e depois meteu a mão na sacola. - Toma lá, amigo - disse, atirando outra tira de comida à criatura bizarra, que recuou rapidamente alguns passos como que assustada. Depois, muito devagar, aproximou-se um pouco mais, encontrando a comida e examinando-a prudentemente. A criatura decidiu obviamente que era seguro comer a tira de comida, agarrou-a nas mandíbulas e começou instantaneamente a devorá-la com uma variedade de sons ásperos.
Um assombrado Dr. Burrows voltou a sentar-se no rochedo e procurou um apontador de lápis no bolso das calças e, encontrando-o, começou a rodá-lo no bico diminuto do seu lápis. Ainda a mastigar, a criatura gigante baixou-se, dobrando as pernas, como se esperasse, cheia de expectativa, por outro pedaço.
O Dr. Burrows riu-se com a estranheza da situação enquanto pegava no diário e passava as folhas até uma nova, para fazer um registro do "ácaro-do-pó" que tinha à sua frente. Olhou para a página em branco, depois hesitou, com os olhos vidrados de indecisão. O barulho da criatura gigante despertou-o abruptamente, e soube o que tinha a fazer. Voltou-se de novo para o desenho da placa. Traduzir o resto da Pedra do Dr. Burrows era a sua prioridade imediata.
- Não tenho tempo - murmurou. - Não tenho tempo...
Capítulo Vinte e Nove
-S
ocorro! Alguém me acuda! Socorro! Tem alguém aí?
Oh, acorde, você... como é possível?, soou uma voz áspera, desagradável, na cabeça de Will. Por muito que tentasse reprimi-la, não conseguia silenciá-la. Não há ninguém a milhas ao redor. Está por sua conta, amigo, continuou a voz.
- Ajudem-me! Socorro! Socorro! - gritou Will, fazendo o possível por ignorá-la.
De que estás à espera... que o seu Papai vá saltar da esquina mais próxima e mostrar-lhee o caminho para casa? O "Superpai" Dr. Burrows, que se perdeu no Metro de Londres? Sim, tudo bem!
- Perdeu-se! - respondeu Will, com um rugido, à sua dúvida enervante, ressoando o grito nos túneis à sua volta.
Perdeu-se, hã? Isso é engraçado! - persistia a voz. Estava tranquilamente satisfeita consigo mesma, como se soubesse exatamente como aquilo ia acabar. As coisas não vão ficar pior do que já estão, disse. Você já era!
Will parou e abanou a cabeça, recusando-se a aceitar o que a voz estava a dizer-lhe. Tinha de haver uma maneira de sair daquela situação.
Fechou e abriu os olhos, tentando distinguir alguma coisa, qualquer coisa, mas não havia nada. Mesmo a noite mais escura lá em cima, na superfície, tinha um minúsculo vestígio de luz, mas ali, não - ali a escuridão era absoluta. E pregava peças, dando esperanças. Falsas esperanças.
Deslocou-se ao longo da parede, sentindo nas mãos a sua agora já tão familiar aspereza, avançando lentamente até que ficou impaciente e tentou começar a andar demasiado depressa. O pé bateu num obstáculo e ele caiu para a frente, indo aos trambolhões por um declive. Ficou com a cara apoiada na superfície pouco firme, a respirar com dificuldade.
Se se permitisse pensar durante tempo demais na situação em que se encontrava, tinha demasiado com que se ocupar. Ali estava ele, mais de oito quilômetros abaixo da superfície da Terra, se aquilo que Tam dissera estava correto, sozinho e assustado e desesperadamente perdido. Já estava afastado de Drake e dos outros, pelas suas contas, havia pelo menos um dia. Podia muito bem ter sido mais tempo, mas não tinha absolutamente nenhuma maneira de o saber.
Cada novo segundo neste oblívio era tão vital e assustador como o último, e parecia-lhe que milhões desses segundos se estendiam atrás dele. Na verdade, não tinha qualquer ideia de quanto tempo passara naqueles túneis intermináveis, mas se a sua garganta ressequida servisse de referência, então teriam de ser pelo menos vinte e quatro horas. A única coisa de que tinha certeza era de que nunca tivera em toda a sua vida uma sede tão horrível.
Levantou-se e estendeu o braço para tentar chegar à parede. Os seus dedos esticados não encontraram nada a não ser ar quente. A parede não estava onde ele pensava. Imaginou-se imediatamente à beira de um enorme precipício e foi assaltado por uma onda de vertigens. Relutante, deu outro passo. O chão não lhe pareceu plano, mas já nem disso conseguia ter certeza. Chegara a um ponto em que já tinha dificuldade em dizer se era o chão que estava inclinado ou se era ele que estava em ângulo. Começava a desconfiar até dos sentidos que lhe restavam.
A vertigem piorou e sentiu-se enjoado. Tentou readquirir o equilíbrio levantando os braços de cada lado do corpo. Depois de ter estado alguns momentos nesta posição, como um espantalho assimétrico, começou a sentir-se um pouco mais confiante. Deu alguns passos hesitantes, mas continuava a não haver qualquer sinal da parede. Gritou, ficando a ouvir o eco.
Encontrava-se num grande espaço - isso era ele capaz de dizer por causa das reverberações à sua volta -, talvez estivesse no cruzamento de vários túneis. Tentou desesperadamente conter o pânico crescente, os silvos superficiais da respiração e o pulsar do coração que lhe batia violentamente nos ouvidos num ritmo dissonante. Implacáveis ondas de pavor percorriam-lhe o corpo e ele tremia descontroladamente, sem saber se tinha frio ou calor.
Como chegara àquela situação? A pergunta batia-lhe aos arrancos na cabeça, como uma traça num frasco mortífero.
Encheu-se de coragem e deu mais um passo. Continuava a não haver parede. Bateu as palmas e ouviu o som a reverberar. O resultado comprovou de forma conclusiva que ele se encontrava, na realidade, em algo com dimensões maiores do que um simples túnel - só esperava que isso não significasse que havia um abismo à sua espera na escuridão. Sentiu outra vez a cabeça a andar à roda. Onde estão as paredes? Perdi o raio das paredes!
Sentiu uma fúria a subir e cerrou os dentes com tanta força que eles rangeram. Apertando as mãos, fez um barulho inumano, algo entre um grunhido e um grito, mas que não soou nem como um nem como outro. Tentou pôr em ordem as suas emoções, achando que não podia reprimir a raiva e o desprezo por si próprio.
Idiota! IDIOTA! IDIOTA!
Era como se a voz áspera na sua cabeça tivesse saído vitoriosa, afastando qualquer esperança de que ele iria ultrapassar aquela situação. Era um parvo e merecia morrer. Começou a culpar os outros, em particular Chester e Elliott, gritando-lhes obscenidades, a eles e às paredes silenciosas que o rodeavam, desejando muito machucar, infligir dor. Ali, no anonimato da escuridão, começou a agredir-se a si próprio, batendo com os punhos na parte superior das coxas. Depois deu um murro na cabeça, de lado, e a dor produziu uma clareza acutilante que lhe restituiu a razão.
NÃO, EU SOU MELHOR DO QUE ISTO! Tenho de continuar a andar. Pôs-se de joelhos e rastejou, sondando com as pontas dos dedos o caminho à sua frente à procura de qualquer fresta, qualquer vazio, verificando e tornando a verificar que não ia mergulhar às cegas nalguma fissura. Tocou em qualquer coisa. A parede! Com um suspiro de alívio, levantou-se lentamente e, abraçando-a, recomeçou a lenta e enfadonha descida.
ø ø ø
Durante as horas seguintes, o Trem dos Mineiros passou por vários outros conjuntos de portões de tempestade a que Rebecca tinha feito referência.
O primeiro aviso que Sarah recebeu de que estavam a chegar ao destino foi um sino tocando e depois o gemido forte do apito do trem. O trem começou a acionar os freios e chiou até finalmente parar. As portas laterais do vagão foram erguidas para trás, nos cilindros, e lá estava a Estação dos Mineiros, com luzes pálidas a brilharem nas janelas.
- Mudar! - anunciou Rebecca, com um ligeiro sorriso. Quando Sarah saltou da carruagem e esticou as pernas rígidas, viu uma delegação de Styx a dirigir-se apressadamente para lá.
Agarrando na mochila, Rebecca disse a Sarah que ficasse junto ao trem, e foi ao encontro da delegação. Era pelo menos uma dúzia deles; andavam tão depressa que levantavam uma onda de poeira no seu rasto. Sarah reconheceu um no meio deles - era o velho Styx que a acompanhara à carruagem no dia em que voltara à Colônia.
Os velhos hábitos de Sarah entraram em ação e ela aproveitou o tempo para tomar nota, mentalmente, do número e da localização do pessoal no terreno. Precisaria saber o estado das coisas se surgisse a oportunidade de fugir.
Além dos vários Limitadores espalhados por ali, havia um grupo de soldados da Divisão Styx, imediatamente reconhecíveis devido à camuflagem verde dos seus uniformes. Mas porque estariam ali em baixo?, interrogava-se ela. Estavam a uma grande distância de casa. Calculava que o grupo devia ter uns quarenta, e cerca de metade tratava das armas, que incluíam morteiros e várias armas de grande calibre. Os restantes soldados estavam montados a cavalo e pareciam prestes a partir. Cavalos! Que raio se passava ali?
Desviou a atenção para a configuração da caverna, examinando as pontes de apoio e as passagens lá em cima. Tentou identificar entradas e saídas, mas desistiu pouco depois - era impossível distinguir muita coisa na escuridão tenebrosa que cobria o perímetro da caverna.
Começando já a transpirar muito dentro da farda dos Limitadores, percebeu que ali em baixo estava muito mais calor. Ao inspirar o ar seco para os pulmões, tudo lhe cheirava a queimado, como se tivesse sido chamuscado. O ambiente era novo e estranho, mas ela acreditava que se adaptaria a ele, tal como fizera quando fora para a Superfície.
Reparou num movimento à direita dos edifícios da estação Conseguiu distinguir mais ou menos uns seis ou sete homens de pé numa fila desordenada. Não os tinha visto antes porque estavam muito quietos e também parcialmente escondidos por pilhas de caixotes de mercadorias. Calculou que eram Colonos pela sua roupa civil e porque todos, sem exceção, tinham as cabeças baixas enquanto um Limitador estava de guarda, com a espingarda apontada para eles. Isto parecia bastante desnecessário, pois eles tinham as mãos e os pés presos uns aos outros com correntes pesadas. Não podiam ir a parte nenhuma.
Sarah só podia pensar que deviam ter sido Banidos. No entanto, era altamente estranho um grupo de homens daquele tamanho ser exilado ao mesmo tempo, a não ser consequência de alguma espécie de sublevação ou revolta organizada que os Styx tivessem esmagado. Estava precisamente a começar a pensar naquilo em que se metera e a interrogar-se se ia compartilhar a sorte daqueles prisioneiros quando ouviu a voz de Rebecca.
A garota Styx estava mostrando os jornais da Superfície ao velho Styx, que acenava imperiosamente com a cabeça enquanto a delegação assistia. Sarah começou a pensar que todo este interesse pelos títulos dos jornais - possivelmente sobre a doença dos habitantes da Superfície - tinha de significar mais do que a simples vigilância dos Styx relativamente aos assuntos da atualidade lá de cima. Em especial à luz da gafe de Joseph lá na Guarnição sobre uma importante operação em Londres. Sim, havia, para além de tudo aquilo, mais do que ela a princípio pensara.
Os jornais foram passados ao resto do grupo e, enquanto a reunião continuava, o velho Styx parecia ser o único a falar. Sarah estava demasiado longe para ouvir alguma coisa, e, de qualquer maneira, ele mudava frequentemente para a linguagem arranhada e indecifrável dos Styx. Então, Sarah ouviu a voz de Rebecca.
- Sim! - exclamou a garota, muito distintamente, e cheia de alegria juvenil. Levantou o braço num gesto de vitória, como que encantada com o que quer que tivesse ouvido o velho Styx dizer. Então o velho Styx voltou-se para outro elemento do grupo, que abriu uma pequena mala e deu a Rebecca qualquer coisa que tirou lá de dentro. Ela o pegou, segurando-a cuidadosamente à sua frente enquanto a comitiva continuava a observar.
Ficaram todos em silêncio. Sarah não conseguia ver com precisão o que era, mas, pela maneira como por breves momentos brilhou à luz, pareceu-lhe que Rebecca estava a olhar para dois pequenos objetos de vidro ou de outro material semelhante.
Rebecca e o velho Styx trocaram um longo olhar - era evidente que alguma coisa significativa acontecera. A reunião terminou abruptamente quando o velho Styx deu uma ordem e, ladeado pelo resto da delegação, passou majestosamente na direção dos edifícios da estação.
Rebecca girou o corpo para olhar de frente o Styx solitário que guardava os prisioneiros algemados. Fez-lhe um sinal, esticando os dedos como se estivesse a enxotar alguém. O guarda berrou imediatamente aos prisioneiros e eles começaram a afastar-se arrastando os pés, dirigindo-se para um canto afastado da caverna.
Sarah observou Rebecca a voltar na direção dela, segurando ao alto os dois objetos.
- O que se passa com aqueles ali? - perguntou-lhe Sarah, indicando os prisioneiros, que agora mal se viam ao entrarem na sombra.
- Oh, nada... - respondeu Rebecca, e depois acrescentou um pouco vagamente, como se o seu espírito não estivesse focado no que ela dizia -, não precisamos de mais cobaias, agora não.
- E estou vendo que a Divisão trouxe algum armamento pesado - arriscou Sarah, quando algumas das tropas montadas arrastaram atrás de si a primeira das armas.
Mas Rebecca não estava interessada nas perguntas de Sarah. Sacudindo o cabelo para trás, ergueu os objetos que tinha nas mãos à altura da cabeça.
- Pois isto é o Domínio - entoou Rebecca em voz baixa. - E o Domínio garantirá que a justiça será restituída aos justos, e os de bom coração segui-la-ão.
Sarah viu que os objetos eram dois pequenos frascos cheios de um fluido transparente, e que em cima estavam selados com cera. Ambos tinham atados cordões finos, de modo que Rebecca podia deixá-los pender das mãos.
- Alguma coisa importante? - perguntou Sarah.
Rebecca estava distante, os olhos vidrados com uma espécie de euforia sonhadora ao contemplar os frascos.
- Tem alguma coisa que ver com o Megainseto que vem nos jornais? - arriscou ainda Sarah.
Um ínfimo brilho de sorriso dançou nos lábios da rapariga Styx.
- É possível - disse ela, provocante. - As nossas preces estão prestes a ser atendidas.
- Então vão utilizar outro micróbio contra os habitantes da Superfície?
- Não é apenas outro micróbio. Estávamos só a exercitar-nos com o Megavírus, como resolveram chamar-lhe. Isto - agitou os frascos - é o artigo genuíno, como dizem - sorriu Rebecca irradiando alegria. - O Senhor dá... e continua a dar.
Antes de Sarah poder dizer fosse o que fosse, a garota Styx rodopiou e afastou-se a passos largos.
Sarah não sabia o que pensar. Não sentia qualquer amor pelos habitantes da Superfície, mas não era preciso um grande poder de imaginação para perceber que os Styx tramavam algo terrível contra eles. Ela sabia que os Styx não pensariam duas vezes antes de espalharem a morte e a destruição se isso significasse atingir os seus objetivos. Mas não ia deixar nada disto distraí-la - só havia uma coisa que tinha a fazer e que era alcançar Will. Ia descobrir se era ele o responsável pela morte de Tam. Eram assuntos de família, e não podia deixar que nada se atravessasse no seu caminho.
- Vamos lá. Vamos andando - rosnou um dos Limitadores atrás de Sarah, assustando-a. Era a primeira vez que um deles lhe dirigia a palavra diretamente.
- Hum... disse... disse nós vamos? - gaguejou, dando um passo a afastar-se dos quatro Limitadores. Quando o fez, ouviu um esgaravatar aos seus pés e olhou para baixo.
- Bartleby! - exclamou.
O gato tinha aparecido de repente. Sacudindo os bigodes, lançou um miado baixo e indeciso, depois baixou o focinho para o chão e farejou-o profundamente várias vezes. Levantou abruptamente a enorme cabeça, o nariz coberto com o fino pó preto que parecia estar em toda a parte. Obviamente não gostava do pó, pois esfregava o focinho com a pata, fazendo ruídos altos a fungar. De súbito, deu um enorme espirro.
- Amém! - disse Sarah, antes de conseguir evitá-lo. Estava encantada por tê-lo de volta. Era como se agora tivesse a companhia de um velho amigo na sua busca - alguém em quem podia confiar.
- Vamos andando! - disse outro dos Limitadores, de cenho franzido, esticando o dedo fino em direção à zona mais afastada da câmara, para lá do motor parado que estava a soprar nuvens copiosas de vapor. - Agora! - rosnou.
Sarah hesitou um momento, com os olhos apáticos dos quatro soldados postos nela. Depois, baixou a cabeça e deu um passo relutante na direção que eles tinham indicado. Bem... se vender a sua alma ao Diabo... pensou ela perversamente para si própria. Escolhera o seu caminho, e tinha de se manter fiel a ele.
Por isso, com as figuras sombrias a segui-la, Sarah conformou-se com o destino e começou a andar mais energicamente, com o gato atrás de si.
De resto, que alternativa tinha ela com aqueles monstros a vigiá-la tão de perto?
Capítulo Trinta
A
s horas passavam, e a testa de Will e a roupa nas suas costas estavam ensopadas com um suor pegajoso, tanto por causa do calor em seu redor como das implacáveis ondas de pavor que ele se esforçava por reprimir. Tinha a garganta seca, sentia o pó colado à língua, mas não conseguia juntar saliva suficiente para a molhar.
O enjoo voltou e ele foi forçado a parar quando sentiu o chão mover-se debaixo dos pés. Inclinou-se contra a parede, abrindo e fechando a boca como um homem a afogar-se, e resmungando consigo próprio. Com um esforço imenso, endireitou-se e esfregou os olhos com força, com os nós dos dedos; a pressão provocava vagas explosões de brilho que ajudaram a acalmar-lhe os nervos. Mas não passou de uma breve pausa, pois a escuridão voltou imediatamente a inundar tudo.
A seguir, como tinha feito tantas vezes antes, agachou-se e começou a ver o conteúdo dos bolsos das calças. Era um exercício completamente fútil, um ritual que não levaria a nada, porque ele sabia de cor, com exatidão, o que tinha lá dentro - mas rezava por ter deixado passar alguma coisa que pudesse utilizar, por mais insignificante que fosse.
Primeiro, tirou para fora o lenço e abriu-o no chão à sua frente. Depois, tirou as outras coisas e pô-las, usando o tacto, sobre o quadrado do lenço. Colocou o canivete, um toco de lápis, um botão, um pedaço de cordel e algumas outras curiosidades inúteis e, finalmente, a lanterna apagada. Ali, na escuridão, apalpou cada uma das coisas, sentindo-as com as pontas dos dedos, como se, por algum milagre, alguma pudesse revelar-se a sua salvação. Largou uma gargalhada curta, desiludida.
Aquilo era ridículo.
O que ele pensava que estava fazendo?
Contudo, fez um exame final nos bolsos, para o caso de ter deixado passar alguma coisa. Estavam inevitavelmente vazios, à exceção de algum pó e gravilha. Lançou um silvo de desilusão, depois preparou-se para a última parte do ritual. Pegou na lanterna, embalando-a com ambas as mãos.
Por favor, por favor, por favor!
Fez deslizar o interruptor. Absolutamente nada. Nem sequer um sinal, nem sequer um lampejo de luz.
Não! Filho da mãe!
Falhara-lhe outra vez. Quis quebrá-la, fazê-la sofrer tal como ele estava a sofrer. Queria que ela sentisse dor.
Com um ataque de fúria, levou o braço atrás para lançar o objeto inútil para longe, depois suspirou e baixou-o. Não foi capaz de fazê-lo. Grunhiu de frustração, e voltou a enfiar a lanterna à pilha no bolso. Depois embrulhou os restantes objetos no lenço e voltou a guardá-los.
Porquê, oh, porquê, porque eu não trouxe um dos globos luminosos? Podia ter trazido, com toda a facilidade.
Teria sido uma coisa tão insignificante e, no entanto, faria agora toda a diferença. Começou a pensar no casaco. Se ao menos tivesse tido o bom senso de o manter vestido. Imaginou-o onde o deixara, dobrado sobre a mochila. A lanterna estava presa ao casaco, e nos bolsos tinha outra lanterna a pilhas e uma caixa de fósforos, já para não falar nos vários globos.
Se ao menos... se ao menos...
Aqueles simples objetos eram de uma importância vital para ele agora. Não tinha nada consigo que pudesse ser útil.
GRANDE ESTÚPIDO!, começou a gritar, forçando-se a continuar, com um coaxar áspero, e amaldiçoando a escuridão à sua volta, chamando-lhe todos os nomes à face da Terra. Depois calou-se, julgando ver qualquer coisa a rastejar lentamente atravessando o seu campo de visão. Seria uma luz, um brilho de luz vacilante à sua direita?
O quê? Não ali, sim, à distância, um brilho, sim, uma luz, uma saída? Beleza!
Com o coração a bater, deslocou-se na sua direção, mas tropeçou na superfície irregular e caiu mais uma vez. Levantando-se rapidamente, procurou a luz, esquadrinhando freneticamente a escuridão aveludada.
Desapareceu. Onde estava ela?
A luz, se é que tinha existido, já não estava lá.
Quanto tempo posso continuar assim? Quanto tempo antes de... Sentiu as pernas a tremer enquanto a respiração lhe falhava. Batch 330
- Sou novo demais para morrer - disse ele em voz alta, compreendendo pela primeira vez na vida o que aquelas palavras significavam na realidade. Sentiu-se como se tivesse ficado sem fôlego. Começou a soluçar. Tinha de descansar e deixou-se cair de joelhos. Depois dobrou-se para a frente, sentindo a gravilha debaixo das mãos. Não está certo. Eu não mereço isto.
Tentou engolir, mas a garganta estava tão seca e inchada que não conseguiu. Dobrou-se ainda mais para a frente até a testa pousar na gravilha dura. Tinha os olhos abertos ou fechados? Não havia qualquer diferença; pequenos pontos de luzes coloridas, reticulações em remoinho, aglomeravam-se em manchas que dançavam à sua frente, confundindo-o. Mas ele sabia que nada daquilo era real.
Ficou naquela posição, arquejando, com a cabeça no chão, e, por qualquer razão, a visão da madrasta ergueu-se à sua frente. Era tão nítida que por instantes sentiu que tinha sido transportado para qualquer outro sítio. Mrs. Burrows estava recostada em frente de um televisor, numa sala cheia de sol.
A visão tremulou e foi substituída pela imagem do padrasto num lugar muito diferente, em algum lugar nas profundezas da Terra, passeando despreocupadamente e assobiando entre os dentes naquele tom agudo de sempre.
Depois viu Rebecca, como a tinha visto milhares de vezes antes. Estava na cozinha, preparando o jantar para toda a família - tarefa que fazia todas as noites -, uma espécie de constante na vida dele que parecia estar presente mesmo nas suas memórias mais antigas.
Como se um filme tivesse saltado da bobina, viu-a a sorrir cruelmente enquanto ela se exibia com o uniforme preto e branco dos Styx.
Vaca! Desgraçada mentirosa e traidora! Tinha-o traído, traído a família dele. A culpa era toda dela.
Aos seus olhos, ela era o pior tipo de traidor, algo retorcido e negro e malévolo, um cuco mandado do Inferno para semear a destruição no ninho, um colaboracionista.
Levante-se! O ódio absoluto que sentia por Rebecca galvanizou-o. Inspirou penosamente e forçou-se a erguer-se, ficando de novo de joelhos. Gritou consigo mesmo, obrigando-se a pôr-se de pé. Levante-se, vamos lá! Não a deixe vencer! Depois, de pé sobre as pernas trêmulas, os braços agitaram-se violentamente naquele vazio à sua volta, na interminável terra da noite que lhe sugava a alma.
- Ponha-se a andar! Ponha-se a andar! EMBORA! - gritou numa voz estridente. - EMBORA!
Começou a andar, vacilante, gritando por Drake e pelo padrasto, por qualquer pessoa, para o ajudarem. Mas não ouvia nada, exceto a sua própria voz a ecoar. Então, houve um desprendimento de pequenas pedras atrás dele, e pensou que talvez fosse demasiado perigoso continuar a gritar, e calou-se. Mas continuou a andar, marcando o ritmo à medida que caminhava.
Um dois, um dois um, um dois.
Pouco depois, começou a ver coisas horríveis a surgirem-lhe de paredes invisíveis. Disse a si próprio que não eram reais, mas isso não as impediu de se aproximarem.
Estava a endoidecer. Acreditava piamente que iria enlouquecer se a sede e a fome não acabassem com ele antes.
Um dois, um dois...
Tentou encher o espírito com o ritmo e continuar a arrastar-se inflexivelmente, mas as visões não davam tréguas. Eram tão vivas e naturais que quase podia sentir-lhes o cheiro. Concentrou-se com firmeza e tentou dissipá-las, e finalmente elas desapareceram.
Amaldiçoou o dia em que tomara a decisão de apanhar o Trem dos Mineiros e descer às Profundezas. Em que estava pensando? Perder-se daquela maneira, quando podia ter ido para a Superfície. Afinal, o que era o pior que podia ter-lhe acontecido lá em cima? Agora, passar o resto da vida a fugir dos Styx não lhe parecia tão mau. Pelo menos não teria se metido naquela situação.
Caiu outra vez e foi uma queda ruim. Tinha tropeçado numas rochas irregulares e batido com a cabeça. Rolou lentamente até ficar de costas e de braços abertos, e levantou os braços. No lugar onde devia ter visto o branco das suas mãos à sua frente não havia qualquer diferença em relação ao vazio, à tela em que tudo se tornara. Ele já não existia.
Rolou sobre si e apalpou o chão à sua frente, temendo que pudesse haver ali qualquer espécie de declive. Mas o chão do túnel continuava sem interrupção, e ele sabia que teria de voltar a levantar-se, uma vez que não estava a progredir absolutamente nada.
Sem mais nada em que se fiar, tinha ficado em grande sintonia com os ecos familiares que as botas faziam à medida que ele se arrastava através do cascalho e da poeira. Aprendera a ler as informações detalhadas do som dos seus passos ao ser refletido das paredes - era quase como se tivesse o seu próprio radar. Em várias ocasiões, tivera aviso prévio de fendas abertas ou de alterações no nível do chão unicamente pela natureza dos ecos à sua volta.
Pôs-se em pé e deu alguns passos.
Houve uma mudança radical nos sons que estava a ouvir. Eram mais fracos, como se o tamanho do túnel de lava tivesse subitamente se expandido. Avançou a passos lentos, cheio de medo de se chocar às cegas contra algum poço vertical.
Pouco depois, deixou por completo de haver ecos - pelo menos que ele pudesse distinguir. As botas encontraram subitamente qualquer coisa diferente da lama habitual no chão dos túneis. Seixos! Batendo e rangendo uns contra os outros e emitindo aquele som ligeiramente cavo que não se confunde com mais nada. Deslocavam-se sob os seus pés e, como ele estava exausto, dificultavam ainda mais a sua marcha.
Depois, fungou ao sentir umidade no rosto. Fungou outra vez. O que era?
Ar!
Cheirou o ar, que lhe fazia recordar a praia e os passeios à costa com o pai. Onde tinha ido ele parar?
Capítulo Trinta e Um
M
rs. Burrows estava à porta do quarto, observando o que se passava ao fundo do corredor.
Fora acordada da sua sesta por vozes altas e pelo bater rápido de passos na superfície de oleado do corredor exterior. Aquilo pareceu-lhe estranho. Durante a última semana não tinha havido praticamente nenhum movimento naquele local. Um silêncio desconfortável caíra sobre a Humphrey House, limitando-se a maioria dos doentes a ficar na cama, à medida que, um após outro, sucumbiam ao vírus misterioso que dominava o país.
Quando começara a ouvir a agitação, Mrs. Burrows julgara que se tratava simplesmente de algum doente a fazer uma algazarra, e não fizera o esforço de se levantar. Mas, alguns minutos mais tarde, ouviu-se um grande estrondo vindo da zona do elevador de serviço. A impressão de que qualquer coisa se passava foi acentuada devido a uma voz de mulher que falava num tom insistente. Era a voz de uma pessoa que estava aflita ou zangada e queria gritar, mas quase a conseguir controlar-se. Só quase.
Com a curiosidade a levar a melhor, Mrs. Burrows decidira finalmente ir dar uma olhadela. Os olhos estavam consideravelmente melhores, mas ainda suficientemente doridos para a obrigar a semicerrá-los.
- O que se passa? - murmurou por entre um bocejo quando saiu do quarto e foi para o corredor. Parou quando alguma coisa à porta do quarto da Velha Mrs. L. se tornou nítida.
Observou com mais cuidado a cena e os seus olhos vermelhos arregalaram-se de surpresa. Mrs. Burrows tinha visto suficientes dramas hospitalares para perceber o que se passava ali.
Era um carro do paraíso. Um horrível eufemismo para uma maca com os lados e a parte de cima de aço inoxidável... uma maneira de transportar corpos mortos sem chamar a atenção de ninguém para o que estava lá dentro. No fundo, um caixão de metal brilhante sobre rodas.
Enquanto observava, a enfermeira-chefe e dois carregadores de maca surgiram à porta para irem buscar o carro. Os carregadores empurraram-no para dentro do quarto de Mrs. L. enquanto a enfermeira-chefe ficou lá fora. Vendo Mrs. Burrows, desceu lentamente o corredor na direção dela.
- Não. Não é o que eu estou pensando...? - começou Mrs. Burrows.
Com um lento movimento da cabeça, a enfermeira-chefe disse-lhe tudo o que ela precisava saber.
- Mas a Velha Mrs. L. era tão... tão jovem - ofegou Mrs. Burrows, esquecendo-se, com o desgosto, e utilizando a alcunha que dava à doente. - Que aconteceu?
A enfermeira-chefe abanou a cabeça de novo.
- Que aconteceu? - repetiu Mrs. Burrows.
A voz da enfermeira-chefe era muito baixa, como se não quisesse que nenhum dos outros doentes a ouvisse.
- O vírus - disse.
- Não foi esta coisa? - perguntou Mrs. Burrows, apontando para os olhos, que, como os da enfermeira-chefe, estavam ainda vermelhos e inchados.
- Receio que sim. Entrou-lhe no nervo óptico e depois espalhou-se pelo cérebro. O médico disse que isto está acontecendo numa grande quantidade de casos. - Respirou fundo. - Especialmente nas pessoas que têm o sistema imunitário deficiente.
- Não posso acreditar. Meu Deus, pobre Mrs. L. - disse Mrs. Burrows, ofegante, sentindo-o genuinamente. Foi um raro momento em que algo lhe abalou as defesas e a tocou. Estava a sentir compaixão por alguém que existia na realidade e não por um ator a representar um papel numa das telenovelas que sabia que não eram reais.
- Pelo menos, foi rápido - disse a enfermeira-chefe.
- Rápido? - murmurou Mrs. Burrows, franzindo o cenho de espanto.
- Sim, muito. Queixou-se de que estava se sentindo indisposta mesmo antes de almoço, depois ficou muito desorientada e entrou em coma. Não houve nada que pudéssemos fazer para a reanimar.
A enfermeira-chefe apertou os lábios com uma expressão de tristeza e baixou os olhos para o chão. Puxando de um lenço, esfregou primeiro um olho e depois o outro. Mrs. Burrows não foi capaz de perceber se era por causa dos efeitos persistentes da infecção nos olhos ou porque estava abalada.
- Esta epidemia é terrivelmente grave, sabe. E se o vírus sofrer mutações... - disse a enfermeira-chefe em voz baixa.
Não chegou a acabar o que estava a dizer. Precisamente nessa altura os carregadores empurraram o carro lá para fora, para o corredor, e a enfermeira-chefe apressou-se a ir ter com eles.
- Tão depressa - voltou a dizer Mrs. Burrows, tentando chegar a um acordo com a morte.
Ao fim da tarde, na Sala do Dia, Mrs. Burrows estava tão ensimesmada com o falecimento prematuro da Velha Mrs. L. que não dava muita atenção à televisão. Tinha estado inquieta e não lhe apetecera ficar no quarto, por isso decidiu procurar consolo na sua cadeira favorita - o único lugar que costumava trazer-lhe alguma felicidade e satisfação. Mas, quando chegou, descobriu que já havia bastantes doentes a passearem por ali em frente do televisor. O horário de atividades diárias ainda estava desorganizado devido à falta de pessoal, por isso encontravam-se, em grande parte, entregues aos seus próprios planos.
Mrs. Burrows tinha estado estranhamente submissa, deixando os outros doentes ditarem a escolha dos programas, mas, quando apareceu uma notícia no jornal informativo, ela falou.
- Ei! - exclamou, apontando para a tela. - É ele! Eu conheço-o!
- Então quem é? - perguntou uma mulher, levantando os olhos de um quebra-cabeças que estava à sua frente, em cima da escrivaninha junto à janela.
- Não o reconhece? Ele esteve aqui! - disse Mrs. Burrows, com os olhos excitados fixos na notícia.
- Como se chama ele? - disse a senhora do quebra-cabeças, segurando uma peça do puzzle na mão.
Como Mrs. Burrows não tinha ideia nenhuma do nome dele, fingiu que estava tão atenta à televisão que não ouviu.
- É o professor Eastwood tinha sido encarregado de trabalhar no vírus? - foi a pergunta do entrevistador que estava fora da tela.
O homem na tela disse que sim com a cabeça - o mesmo homem de voz distinta que falara com Mrs. Burrows de uma maneira bastante arrogante, ao café-da-manhã, apenas uns dias antes. Até tinha vestido o mesmo casaco de tweed que usava nessa altura.
- É um médico importante, sabem - disse Mrs. Burrows, de modo presunçoso, ao punhado de pessoas que estava na fila atrás dela, como se estivesse a fazer-lhes confidências sobre um amigo íntimo. - Gosta de ovos quentes com torradas no café-da-manhã.
Uma pessoa na sala repetiu "ovos quentes com torradas" como se estivesse muito impressionada com esta informação.
- É verdade - confirmou Mrs. Burrows.
- Shhh! Ouçam! - sibilou uma mulher da última fila, com um roupão amarelo-limão.
Mrs. Burrows voltou a cabeça para trás para olhar para a mulher, mas as notícias despertavam-lhe demasiada curiosidade para levar aquilo mais longe.
- Sim - respondeu o homem-dos-ovos-quentes-com-torradas ao entrevistador. - O professor Eastwood e a sua equipe de investigação em St. Edmund's estavam a trabalhar vinte e quatro horas por dia para identificar a estirpe. Era consensual que faziam grandes progressos, embora os registros tivessem se perdido.
- Pode dizer-nos exatamente quando começou o fogo? - perguntou o entrevistador.
- O alarme foi dado às nove horas e quinze minutos desta manhã - respondeu o homem-dos-ovos-quentes-com-torradas.
- E pode confirmar que quatro membros da equipe de investigação do professor também morreram com ele no incêndio?
As sobrancelhas do homem-dos-ovos-quentes-com-torradas uniram-se quando ele acenou sombriamente. - Sim, receio que tenha sido o que sucedeu. Eram cientistas excepcionais e altamente considerados. Os meus pensamentos estão com as famílias.
- Sei que é cedo demais para dizer o que ateou o fogo, mas tem alguma teoria? - perguntou o entrevistador.
- O laboratório tinha uma série de solventes no armazém, por isso penso que a investigação forense vai começar por aí.
- Houve especulações durante a última semana de que a pandemia pode ter mão humana. Pensa que a morte do professor podia...?
- Não vou pronunciar-me sobre essa conjectura - vociferou, com ar reprovador, o homem-dos-ovos-quentes-com-torradas. - Isso é matéria dos teóricos da conspiração. O professor Eastwood foi um grande amigo pessoal durante mais de vinte anos e eu não vou...
- O professor Eastwood devia estar se aproximando demais - foi isso que aconteceu! Alguém lhe deu um jeito! - disse Mrs. Burrows, como um trovão, abafando o som da televisão. - Claro que é o raio de uma conspiração. São outra vez os malditos russos ou talvez os de esquerda, que já não têm nada de que se lamentar exceto daquilo que andamos todos a fazer ao ambiente. Vejam como eles já estão a tentar atribuir esta praga aos gases com efeito de estufa e à flatulência das vacas.
- Acho que saiu de um dos nossos laboratórios, como aquele material confidencial em Portishead - fez-se ouvir a senhora do quebra-cabeças, acenando vigorosamente como se tivesse resolvido o mistério sozinha.
- Penso que quer dizer Porton Down - disse Mrs. Burrows.
O silêncio voltou à sala, com o noticiário a apresentar mais um "correspondente de ciência" que estava a transmitir a agourenta profecia segundo a qual, à mais pequena coisa, o vírus podia sofrer uma mutação para uma forma ainda mais letal, com consequências medonhas para a raça humana.
- Ah - disse a senhora do quebra-cabeças que estava à secretária, enquanto carregava numa peça do puzzle para a pôr no lugar.
Depois, a tela da televisão ficou cheio de uma peça de arte urbana muito bem conseguida. Grafitada numa seção de parede entre duas lojas no norte de Londres, era uma figura em tamanho natural que usava uma máscara antigás e vestia um volumoso trje contra ameaças biológicas. À parte o fato de ter um par do que eram, incontestavelmente, grandes orelhas de rato de desenhos animados a saírem de cima do seu capacete militar, a figura era muito realista e, à primeira vista, parecia que realmente estava ali uma pessoa. A figura brandia um letreiro que dizia:
O FIM ESTÁ PRÓXIMO
E ESTÁ À VISTA
- Está mais do que certo, raios! - rugiu Mrs. Burrows, com os pensamentos a voltarem à morte inesperada e horrivelmente prematura de Mrs. L., quando a mulher do roupão amarelo-limão a mandou calar outra vez.
- Oh, não é capaz de ficar calada? - queixou-se a mulher com uma reprovação arrogante. - Tem de berrar tanto?
- Sim, tenho, isto é grave! - rosnou Mrs. Burrows. - De qualquer modo, pelo menos não berro tanto como o seu horroroso roupão, sua velha tonta - retorquiu-lhe Mrs. Burrows, umedecendo os lábios ao preparar-se para a batalha. Mesmo que o fim do mundo estivesse a chegar, não iam falar com ela daquela maneira.
Capítulo Trinta e Dois
D
rake tinha de admitir que não fazia a menor ideia de onde estava Will.
Em primeiro lugar, censurava-se por não ter visto o rapaz afastar-se. Fora Chester que o vira a tentar fazer-lhes sinal quando todos eles procuravam refugiar-se num túnel de lava. Nesse momento, bombardeado por uma saraivada de tiros disparados sem grande precisão por um atirador escondido, Drake só tivera tempo de devolver o sinal ao desamparado rapaz. A sua única preocupação fora levar os outros para longe dos Limitadores e para a segurança.
Will ainda não conhecia bem o local, e Drake não conhecia suficientemente bem o rapaz para prever para onde é que ele poderia ter ido, como teria sido capaz de fazer com Elliott. Não, Drake estava completamente perplexo, sem saber por onde começar a procurar o rapaz perdido.
E agora, à medida que se arrastavam pelo túnel sinuoso, com Cal ficando em algum lugar para trás e Elliott a seguir à frente, na sua busca, Drake tentou mais uma vez pôr-se no lugar de Will. Esforçava-se por apagar todos os seus anos de conhecimentos e experiências, e colocar-se na perspectiva mental de um completo principiante. Pensar a partir da ignorância.
Tentou seguir os processos de pensamento de Will. Apanhado desprevenido e desorientado pelo terror, o primeiro impulso do rapaz deve ter sido tentar apanhá-los. Consciencializando-se de que tal era impossível, devia ter ido para a opção mais óbvia e saído da planície pelo túnel de lava mais próximo. Mas não necessariamente.
Drake sabia que o rapaz não levava nada com ele, nem comida nem água, portanto, podia ter tentado desafiar o fogo do atirador e ir buscar as suas coisas. Não lhe teria servido de nada, de qualquer modo - Drake decidira não deixar nem o casaco nem a mochila dele para os Styx.
Teria então descido um túnel de lava? Se o fez, isso era mesmo uma má notícia. Podia ter sido qualquer um entre muitos, e o enorme volume de túneis interligados, uma vez dentro da rede, apenas aumentava o problema. Não havia qualquer chance de Drake montar uma operação de busca e salvamento numa área tão extensa - levaria semanas, se não meses, e estava totalmente fora de questão enquanto persistisse a ameaça constante das patrulhas dos Limitadores.
Drake cerrou os punhos de frustração.
Não valia a pena. Não conseguia ter qualquer ideia.
Vamos lá, exortava-se Drake, o que teria ele feito a seguir?
Talvez...
...talvez, como ele tinha esperança, Will não tivesse entrado no túnel mais próximo, mas tivesse permanecido na planície, seguindo a parede do perímetro à medida que esta encurvava para trás - pelo menos, isso ter-lhe-ia permitido ficar a coberto do fogo das espingardas.
Provavelmente estava a ser excessivamente otimista, mas Drake apostava que este tinha sido o rumo mais provavelmente seguido por Will, enquanto levava agora Elliott e Cal consigo mais para o fundo da planície. Estava a contar com a probabilidade de Will ter decidido dirigir-se para o local onde os vira pela última vez, e depois continuar a andar enquanto os Limitadores o perseguiam. Se tivesse feito isto, e se os Styx não o tivessem apanhado, existia uma leve chance de ainda estar vivo. Havia uma tremenda porção de ses... Drake sabia que estava a agarrar-se a qualquer coisa, no seu desespero.
Chegou mesmo a ocorrer-lhe que talvez os Limitadores já tivessem apanhado o rapaz e que, naquele preciso momento, estivessem a torturá-lo para extraírem todas as informações que pudessem. Podiam conseguir ter uma ideia aproximada do lugar onde ficava a base, mas, em todo o caso, estava na altura de continuar a andar.
Lamentava muito se este tivesse sido o destino de Will; os Limitadores fariam o habitual e lhe arrancariam tudo o que quisessem, utilizando os seus métodos excruciantes. Mesmo o mais forte cedia, mais cedo ou mais tarde. Era um destino mil vezes pior do que a morte.
Cal ia aos tropeções atrás dele, disparando uma saraivada de pedras pelo chão. Barulho demais. Reverberava no espaço em volta, e Drake ia precisamente repreendê-lo quando a sua linha de pensamento continuou, fazendo-o quase parar. Três novos membros na equipe, três novas responsabilidades... tudo ao mesmo tempo! Com os Limitadores a saltarem de toda a parte, como bonecos malvados a saltarem de caixinhas de surpresas, em que é que, em nome de Deus, ele tinha estado a pensar?
Ele não era um santo itinerante a salvar as almas perdidas que a Colônia cuspia. Então o que era aquilo? Algum delírio retorcido de grandeza? O que tinha estado ele a imaginar - que os três rapazes seriam o seu exército privado se aquilo acabasse numa batalha campal com os Limitadores? Não, era ridículo. Devia ter despachado dois dos rapazes e ficado apenas com aquele - Will - porque, com a sua mãe infame e o seu conhecimento da vida na Superfície, podia ter desempenhado um papel nos seus planos futuros. E agora Drake perdera-o.
Cal tropeçou outra vez atrás dele, caindo de joelhos com um gemido abafado. Drake parou e virou-se para trás.
- A minha perna - queixou-se Cal, antes de Drake ter oportunidade de dizer qualquer coisa. - Vou ficar bem. - Cal levantou-se imediatamente e recomeçou a andar, apoiando-se com força no seu bastão.
Drake pensou por um momento.
- Não, não vai. Tenho de te esconder em qualquer lugar. - O seu tom era frio e desprendido. - Cometi um erro ao te trazer... esperei demais de você.
A sua intenção tinha sido colocar Chester e Cal em pontos estratégicos onde pudessem ficar emboscados à espera de Will no caso de ele por acaso aparecer. Olhando para trás, devia ter deixado ficar Cal e levado Chester em vez dele. Ou deixado ficar os dois.
À medida que caminhava, Cal afundava-se numa agitação cada vez maior. Tinha percebido o tom da voz de Drake e as suas implicações punham todos os outros pensamentos de lado.
Lembrava-se das palavras de Will, o aviso de que Drake não levava passageiros consigo, e intensificava-se o pavor de que isto fosse exatamente o que ia acontecer agora.
A cabeça de Drake subia e descia lá à frente e, depois de uma última curva apertada no túnel, estavam de volta à Grande Planície.
- Mantenham-se perto e diminui a luz da lanterna - disse a Cal.
ø ø ø
Depois de alguns passos, Will teve de parar, perguntando a si próprio se estaria a sonhar. No entanto, parecia tudo bem real. Para se tranquilizar, tinha acabado de se baixar para apanhar um seixo, sentindo a sua superfície macia e polida, quando uma brisa leve lhe roçou na cara. Levantou-se depressa. Sentiu vento!
Continuou a descer o declive e então ouviu o som de uma pancada. Apesar do ar quente que o atingia, ficou arrepiado em todo o corpo. Sabia o que aquilo era. Água. Havia ali uma grande área de água... ali, na escuridão à sua frente, invisível e assustadora - mexia-lhe com os piores dos seus íntimos receios.
Continuou a andar com passos de bebê até que os seixos deram lugar a qualquer outra coisa - areia, areia macia e escorregadia. Daí a uns metros, o seu pé pousou com um chape. Acocorou-se e apalpou à sua frente, hesitante. As mãos encontraram líquido. Era água tépida. Estremeceu. Imaginou uma extensão enorme, escura, à sua frente, e os seus instintos tentaram fazê-lo voltar para trás, gritando-lhe que se afastasse, que fugisse. Mas ele precisava tanto de água que se controlou. De cócoras, recolheu, nas mãos em concha, um pouco do fluido e levou-o à cara. Cheirou e voltou a cheirar. Era leve e inerte - não tinha cheiro. Levou-a aos lábios e sorveu-a.
Cuspiu-a instantaneamente, caindo para trás na areia molhada. A boca ardia-lhe e a garganta estava contraída. Começou a tossir e depois vomitou. Se tivesse comida no estômago, teria ficado extremamente indisposto. Não, não prestava, era salmoura, era água salgada. Mesmo que fosse capaz de engolir alguma, sabia que iria acabar com ele, como aqueles sobreviventes à deriva num salva-vidas, sobre os quais uma vez lera. Tinham morrido de sede no meio do Atlântico.
Ouviu a batida letárgica da água e depois pôs-se em pé, de modo inseguro, ponderando se havia de voltar outra vez para trás, para os túneis de lava. Mas não conseguia arranjar coragem para fazer isso - não, depois de todas as horas que já tinha passado dentro deles. Além disso, não havia a mais remota probabilidade de encontrar o caminho de volta à Grande Planície, e, mesmo se, por algum milagre, sobrevivesse à viagem, o que o esperaria lá? Uma festa de boas-vindas dos Styx? Não, não havia nada a fazer senão seguir à beira da água, com o barulho a afetar-lhe a mente e a tornar-lhe a sede ainda mais lancinante.
Embora a areia fosse plana, movia-se sob cada um dos seus passos, esgotando-lhe a energia à medida que ele caminhava laboriosamente sobre ela. Enquanto andava, percebeu que não era capaz de pensar como devia ser. O seu espírito estava a divagar com a fadiga e com a fome horrível. Tentou concentrar-se. Qual seria a extensão de água? Estaria ele apenas a andar à volta das suas margens num grande círculo? Tentou dizer a si próprio que não era assim - tinha a certeza de que estava a seguir em linha reta.
Mas, passo a passo, sentia-se cada vez mais num estado de desânimo entorpecido. Com um longo e fundo suspiro, deixou-se cair na areia e pegou numa mão-cheia dela, pensando que talvez não voltasse a levantar-se. Um dia, no futuro, alguém havia de descobrir os seus ossos, um cadáver ressequido na escuridão solitária. Que maldita ironia: ia morrer à sede enroscado junto a um mar subterrâneo. Talvez os seus ossos fossem apanhados sem carne por algum animal necrófago, as costelas a saírem da areia, como o esqueleto de um camelo no deserto. Estremeceu perante este pensamento.
Will não sabia quanto tempo ali tinha ficado, exausto e entrando e saindo de um sono intermitente. Por várias vezes tentara dizer a si próprio que se levantasse e voltasse a andar. Mas estava demasiado cansado para retomar a sua marcha sem rumo.
Pensou que podia simplesmente permitir-se cair num sono final. Aninhou a cabeça na areia e virou-se na direção que ele sabia que devia tomar, se é que ainda sabia alguma coisa. Piscou os olhos várias vezes, com as pálpebras a rasparem nos olhos secos, e aconteceu-lhe, acidentalmente, girar a cabeça um pouco mais para olhar para trás de si.
Ao fazê-lo, podia ter jurado ver um fraquíssimo vislumbre de luz. Supôs imediatamente que era a sua visão a pregar-lhe peças de novo, mas continuou a fitar o local. Depois, viu-o pela segunda vez, um clarão minúsculo e pouco nítido. Levantou-se precipitadamente e começou a correr para ele, deixando a margem arenosa para trás, enquanto pisava os seixos ruidosos. Tropeçou e estatelou-se. Quando se levantou, começou a amaldiçoar-se a si próprio, porque estava desorientado e não fazia ideia de onde estava a luz. Enquanto procurava à sua volta, viu-a outra vez muito de relance.
Isto não era algo que o seu espírito cansado fizesse aparecer por magia - estava convencido de que era real, e ele estava tão próximo. Disse de si para si que podiam ser os Styx, mas nem se importava. Precisava de luz como um homem a asfixiar precisa de ar.
Tendo mais cuidado do que antes, subiu a margem de gravilha. Conseguia ver que os clarões irregulares emanavam de um túnel de lava, cuja entrada estava claramente delineada por eles. E, embora a luz parecesse vacilar na sua intensidade, à medida que se aproximava conseguia ver que havia uma iluminação constante dentro do próprio túnel. Alcançou a abertura, caminhando lentamente até ser capaz de espreitar para lá da esquina.
Viu figuras sem forma, sombras sem cor. Custou-lhe muito lembrar-se de como utilizar os olhos. Tinha de continuar a dizer a si próprio que o que estava à sua frente era autêntico e não qualquer manifestação falsa de sua própria criação.
Piscou os olhos rapidamente durante vários segundos enquanto tentava juntar as suas duas linhas de visão e obrigar a oscilação ritmada das imagens a parar. Fundiam-se e distanciavam-se, algo seguro em que ele podia confiar.
- GLUTÃO! - grasnou. - GLUTÃO DUM RAIO!
- Qu...? - exclamou Chester, endireitando-se com o susto e cuspindo a comida. Pôs-se em pé de um salto. - Quem...?
Will conseguia ver de novo. Os seus olhos deliciaram-se com a luz, mimando-se com as formas e as cores que estavam à sua frente. A não mais de dez metros, estava Chester, sentado, com uma lanterna na mão e a mochila aberta entre as pernas. Tinha estado a servir-se de comida, enfiando-a na boca sem qualquer cerimônia, e obviamente preocupado demais para ouvir Will se aproximar.
Will cambaleou em direção ao amigo, mais radiante do que seria possível descrever. Meio caiu, meio se sentou ao lado de Chester, que olhou para ele de olhos arregalados como se tivesse visto um fantasma. Chester ia dizer qualquer coisa quando Will lhe arrancou a lanterna e a agarrou nas mãos.
- Graças a Deus - repetiu Will várias vezes, com uma voz rouca que não parecia nada a sua, olhando diretamente para a luz. Era tão brilhante que lhe fez arder os olhos e forçou-o a semicerrá-los, mas, naquele preciso momento, tudo o que ele queria era deliciar-se com o seu lúgubre bruxulear verde.
Chester saiu da sua estupefação.
- Will... - começou ele.
- Água - grasnou Will. - Dê-me água - tentou gritar quando Chester não reagiu, mas a sua voz não foi capaz de o fazer. Estava tão fina e fraca que mal se ouvia, e saiu como um jato de ar gutural. Will apontou freneticamente. Chester percebeu o que ele queria e passou-lhe apressadamente o cantil.
Will não conseguiu tirar a tampa tão depressa como queria, procurando com os dedos pateticamente. Depois, ela saltou com um estalido e ele enfiou o gargalo na boca, engolindo a água sofregamente e tentando tomar fôlego ao mesmo tempo. A água ia para toda a parte, escorrendo-lhe para o queixo e para o peito.
- Meu Deus, Will, pensávamos que o tínhamos perdido! - disse Chester.
- Típico - ofegou Will entre goles. - Eu a morrer de sede... - Engoliu, sentindo a água a começar a hidratar as suas cordas vocais - ...enquanto você está a enfardar. - Sentiu-se outro, exultante; as longas horas passadas no escuro tinham acabado e agora estava outra vez em segurança. Estava salvo. - Muito típico!
- Está mesmo com um aspecto ruim - disse Chester calmamente.
A cara de Will, normalmente pálida devido ao seu albinismo, estava agora ainda mais pálida, branqueada pelos cristais de sal que tinham secado como uma crosta em volta da boca, na testa e nas bochechas.
- Obrigado - murmurou finalmente Will, depois de outro grande gole. i
- Está bem?
- Estou ótimo - respondeu Will sarcasticamente.
- Mas como veio parar aqui? - perguntou Chester. - Onde esteve este tempo todo?
- Nem queira saber - respondeu Will, com a voz ainda gutural e pouco compreensível. Olhou para trás de Chester ao longo do túnel de lava. - O Drake e os outros... onde estão? Onde está o Cal?
- Andam à sua procura. - Chester abanou a cabeça, incrédulo. - Meu Deus, Will, é tão bom te ver. Pensamos que tinha sido apanhado, ou abatido, ou qualquer coisa.
- Desta vez, não - disse Will e, depois de respirar algumas vezes, voltou a atacar o cantil, sorvendo a água até esgotar a última gota. Arrotou satisfeito, atirando o cantil para o chão, e depois, pela primeira vez, tomou consciência da preocupação gravada na cara do amigo. A mão de Chester, a segurar a comida, ainda estava suspensa à sua frente. Querido amigo Chester. Will não conseguiu evitar rir-se, primeiro baixo, depois aproximando-se de tal nível de histeria que o amigo recuou ligeiramente. A garganta de Will ainda não tinha recuperado da falta de água e o seu riso era áspero e bastante inquietante.
- Will, o que é? Qual é o problema?
- Não me deixe privá-lo disto - deixou Will escapar antes de cair noutro ataque de riso ruidoso e estranho. Chester ficou mais do que levemente alarmado com isto.
- Não tem graça nenhuma - disse ele, baixando a mão que segurava a comida. Como Will não desse qualquer sinal de parar as suas gargalhadas abafadas, a indignação de Chester aumentou. - Pensei que nunca mais te viria - declarou honestamente. - De verdade.
Então, na sua cara imunda, com os lábios cobertos de pedacinhos de comida, começou a formar-se um grande sorriso. Abanou a cabeça.
- Desisto. É mesmo doido varrido. - Apontou para o saco que estava dentro da mochila aberta. - Coma. Aposto que está morrendo de fome.
- Ah, obrigado - disse Will, com gratidão.
- Nada. De qualquer maneira, a comida é sua - esta é a sua mochila. O Drake apanhou as suas coisas quando fugimos.
- Bem, fico contente por vocês não as deixarem desperdiçar-se! - disse Will, dando-lhe um murro suave no braço.
De momento, Will sentiu-se próximo do amigo outra vez, e isso era bom.
- Sabe, as pilhas da minha lanterna acabaram-se. Nem sequer tinha uma luz, pensei que estava perdido - disse-lhe.
- O quê? Então como conseguiu fazer o caminho todo até aqui? - perguntou Chester.
- Apanhei uma carona - respondeu Will. - Como pensa que eu cheguei aqui? Andando!
- Raios te partam! - exclamou Chester, abanando a cabeça desgrenhada.
Will olhou para o sorriso estúpido na cara do amigo, que lhe fez lembrar o momento em que tinham voltado a encontrar-se no Trem dos Mineiros.
Nessa altura tinha visto o mesmo sorriso largo, estúpido, e, embora tivesse sido apenas dois meses atrás, parecia que fora há séculos. Acontecera tanta coisa, tanta coisa mudara.
- Sabe - disse a Chester -, acho que preferia voltar para a escola a ter de fazer o mesmo outra vez!
- Foi assim tão ruim, hum? - perguntou o amigo, com uma seriedade fingida.
Will acenou com a cabeça, passando a língua inchada pelos lábios e apreciando mais uma vez a novidade da saliva na boca. Quase podia sentir a água a inundar-lhe o corpo, refrescando os seus membros cansados.
Ainda com a lanterna na mão, deliciou-se com a sua luz crua, que via através dos olhos semicerrados. A voz de Chester ondulava em algum lugar ao fundo enquanto o amigo falava animadamente, mas Will estava demasiado exausto para assimilar o que ele dizia. À medida que ia caindo suavemente num estado de prostração, a cabeça recostou-se contra a rocha que estava atrás dele. As pernas tinham contrações ligeiras, como se achassem difícil abrandar o ritmo da longa marcha que haviam sido obrigadas a fazer e estivessem a tentar impeli-lo com elas.
O seu movimento foi diminuindo até ficarem completamente quietas, e Will encontrou um bem merecido descanso, ignorando a terrível cadeia de acontecimentos que, naquele mesmo momento, estava a ocorrer na Grande Planície.
Capítulo Trinta e Três
C
al tinha concentrado todas as suas forças na marcha e levantou os olhos alguns segundos antes de perceber o que estava à sua frente.
Ele e Drake tinham andado ao longo da orla da Grande Planície, mas a habitual parede irregular que ele esperava ver não estava lá.
No seu lugar havia uma superfície vertical e aparentemente lisa, do chão ao teto, enchendo completamente o espaço entre os dois. Era como se o sulco que era a Grande Planície tivesse sido simplesmente selado. A barreira era perfeita demais para ser uma característica natural, e estendia-se pela escuridão dentro até onde penetrava a luz da sua lanterna silenciosa. Tinha-se habituado de tal maneira à rocha irregular e escarpada em toda a volta que aquilo foi um verdadeiro choque.
Aproximou-se para tocar na superfície. Era sólida e cinzenta, mas não tão perfeita como ele tinha originalmente pensado. Pôde ver que a superfície estava, de fato, muito corroída e faltavam grandes pedaços em alguns lugares, dos quais derramavam, para baixo, manchas vermelho-acastanhadas que sujavam a parede.
Era cimento. Uma grande parede de cimento - a última coisa que ele teria esperado encontrar naquele local natural. E ele percebeu quão enorme era quando continuaram a andar ao seu lado durante mais de vinte minutos, até que Drake lhe fez sinal para parar. Apontou para qualquer coisa que estava na parede, uma abertura retangular a metro e meio do chão. Inclinando-se para Cal, sussurrou:
- Conduta de acesso.
Cal ergueu a lanterna para inspecioná-la.
Drake agarrou-lhe no braço e puxou-o para baixo.
- Deixe-a abaixada, palerma! Está tentando revelar a nossa posição?
- Desculpe - disse Cal, observando Drake a enfiar a mão na abertura sombria da parede. Depois, ouviu um estalido surdo quando Drake puxou algo, e uma portinhola enferrujada girou e se abriu.
- Primeiro você - ordenou Drake.
Cal esquadrinhou a escuridão sinistra e engoliu em seco.
- Você espera que eu entre ali? - perguntou.
- Sim - rosnou Drake. - Isto é o Bunker. Está vazio há anos. Não há problema.
Cal abanou a cabeça.
- Não há problema! Eu não quero fazer isso. Não quero fazer isso! - murmurou tão baixo que mal se ouviu.
Subiu sem qualquer entusiasmo para dentro da conduta, ajudado por Drake, e começou a rastejar.
A luz da sua lanterna iluminava debilmente o caminho à frente, revelando metro a metro a passagem regular, enquanto as suas mãos esgaravatavam em vários centímetros de saibro seco no fundo da conduta. O som da sua própria respiração era íntimo e abafado e ele odiava aquele sentimento de opressão. Apanhado como uma ratazana num cano de esgoto. De vez em quando, parava para esticar o bastão e bater nos lados a fim de verificar o caminho à sua frente. Isso dava-lhe a oportunidade de descansar a perna, que estava a começar a doer-lhe muito. Parecia que ia emperrar de vez e deixá-lo preso dentro daquela passagem.
No entanto, obrigava-se a continuar depois de cada descanso. A conduta parecia continuar para sempre. - Que espessura terão estas paredes? - perguntou em voz alta. Depois, quando parou para voltar a investigar o caminho à sua frente com o bastão, pareceu-lhe que a ponta não encontrou nada. Andou um pouco mais para a frente e experimentou outra vez. Não havia ali nada - chegara ao fim. Instintivamente percebera isso, pois o ar tinha um cheiro muito diferente. A umidade e a mofo e a anos de vazio.
Tateou à volta da abertura e desceu da conduta com muito cuidado. Com os pés em segurança no chão, virou a lanterna para cima e, com um gesto largo, moveu-a à sua frente. Quase gritou quando uma figura se ergueu ao seu lado, e levantou o bastão na defensiva.
- Silêncio - avisou Elliott, e ele sentiu-se, imediatamente, bastante idiota. Esquecera-se completamente de que ela devia ter ido a abrir caminho à frente deles, como sempre fazia.
Drake desceu da conduta sem fazer qualquer ruído e apareceu atrás dele. Com uma cotovelada, mandou Cal seguir e, sem qualquer palavra, continuaram a andar mais para dentro.
Tinham estado numa sala pequena, sombria, vazia, tendo apenas poças de água estagnada, mas agora avançavam, vigilantes, para um espaço maior, e as suas passadas emitiam pequenos ecos à medida que caminhavam, arrastando os pés sobre um chão de oleado ou de um revestimento semelhante. Era de cor clara e podia ter sido branco noutros tempos, mas agora estava sulcado de porcaria e encardido com montes de lixo putrefato, de cheiro acre.
Quando Cal e Drake pararam para Elliott ir à frente a fazer o reconhecimento, a luz de Cal revelou que estavam numa sala comprida. Encostada a uma parede havia uma secretária, e as paredes estavam sujas, com manchas de umidade castanha e cinzenta, com pequenos fungos a germinar em excrescências esporádicas, como pequenos recifes circulares. E ao lado do lugar onde Cal estava à espera havia algumas prateleiras cheias de pastas e papéis em decomposição. O papel tinha sido reduzido pela água a uma pasta amorfa e fluida. Escorria das prateleiras formando no chão pequenos montes de papier-maché, que eram duros ao tato.
Respondendo a um sinal de Elliott, Drake sussurrou a Cal que continuasse a andar, e esgueiraram-se através de uma porta para um corredor estreito. A princípio, Cal julgou que o brilho indistinto refletido das paredes de ambos os lados se devia à umidade que as cobria, mas depois percebeu que estava a passar entre tanques de vidro de qualquer tipo. A luz dele não penetrava muito para lá do vidro incrustado de algas pretas, mas nos locais aonde chegava parecia haver formas extremamente grotescas suspensas dentro de água. Pensou ver de relance um reflexo da sua própria cara. Quando olhou mais de perto, sentiu arrepios na espinha. Não! Não era de modo algum o seu reflexo. Era uma cara humana, branca como a cal, encostada ao vidro, com olhos cavernosos e as feições corroídas como se alguém tivesse estado a roê-las. Estremeceu, recomeçando rapidamente a andar, não olhando segunda vez.
Contornaram uma esquina no fim do corredor, depois de um último tanque, vindo a descobrir que o caminho estava bloqueado por placas maciças de cimento partido. O teto e as paredes tinham caído lá para dentro. Mas, precisamente quando Cal estava pensando que iam ter de voltar para trás, Drake guiou-o para a escuridão ao lado, onde o teto desmoronado pendia para uma espécie de vão de escada. Estava rodeado por um gradeamento torcido e deformado. Encolheram-se por baixo da chapa e, juntos, desceram, rastejando, os degraus a desagregar-se, até ao sítio onde Elliott esperava.
O fedor a apodrecimento que lhes chegou estava longe de ser agradável. Cal julgou que tinham chegado ao fundo quando Elliott deu mais alguns passos e avançou a custo para dentro de água escura. Ele hesitou, mas Drake deu-lhe uma grande cotovelada nas costas até que ele se baixou relutantemente. A água morna e túrgida chegou-lhe ao peito. Arco-íris de poeira e de óleo começaram a circular quando os três perturbaram a superfície com os seus movimentos. Por cima deles havia excrescências de fungos, dispostas em raio, tão grossas e numerosas que tinham necessariamente de crescer umas em cima das outras, como um recife de coral.
Dos fungos pendiam filamentos minúsculos, que cintilavam à luz de Cal como um milhão de teias de aranha. Mas o fedor estava a ser demais para ele, pelo que não conseguia evitar tossir, apesar de o barulho certamente irritar Drake. Tentou conter a respiração, mas só conseguiu fazê-lo durante um tempo e, finalmente, foi forçado a arrastar os vapores insalubres para os pulmões. Colaram-se à parte de trás da garganta, e ele começou a tossir.
Ao tentar reprimir a tosse, olhou para baixo, para a água. Para seu horror, teve a certeza de ver movimentos mesmo abaixo da superfície. Sentiu qualquer coisa a enrolar-se na barriga da perna. Depois, apertou-a.
- Oh, meu Deus - engasgou-se, e tentou precipitar-se pela água, com movimentos frenéticos.
- Pare! - grunhiu Drake, mas Cal não deu importância.
- Não! - gritou bem alto. - Vou embora.
Lançando-se para a frente, viu Elliott a subir uns degraus à frente dele. Alcançou-a, agarrando-se a um corrimão de ferro pouco sólido que vergou ao seu peso. Conseguiu arrastar-se para fora da água fétida. Subiu os degraus aos tropeções e a cambalear, batendo com o bastão na parede, ansioso por chegar ao ar puro, quando uma mão o agarrou pelo ombro. Fê-lo parar ali mesmo, carregando-lhe de uma maneira atroz na clavícula e fazendo-o girar.
- Não volte nunca mais a fazer uma proeza destas - disse Drake com um grunhido baixo, tendo a cara apenas a uns centímetros da de Cal e o olho descoberto a brilhar de fúria. Empurrou o rapaz aterrorizado de encontro à parede, ainda a agarrá-lo pelo ombro.
- Mas havia... - começou Cal a explicar. Estava a hiperventilar, tanto por causa do ar fétido como do terror.
- Não me interessa. Aqui em baixo, uma única ação estúpida pode fazer a diferença entre sermos bem-sucedidos ou não... é tão simples como isso - disse Drake. - Faço-me entender?
Cal disse que sim com a cabeça, fazendo o possível por parar a tosse, quando Drake lhe deu outra cotovelada. Avançaram para outro corredor, com um teto muito mais alto do que a passagem claustrofóbica da qual tinham acabado de sair. Os lados eram verticais, inclinados para fora e depois outra vez para dentro, próximo do topo, fazendo lembrar algo como um túmulo antigo. O chão estava úmido, e de vez em quando as botas de Cal rangiam e estalavam em cima de qualquer coisa, como se pisasse vidro.
Pouco depois estavam a passar por aberturas que conduziam, de cada um dos lados, para fora desta galeria construída de forma estranha. Entraram numa delas e percorreram uma pequena distância antes de virarem para um espaço considerável. Embora Cal não conseguisse ver muito na escuridão, pareceu-lhe estar dividido em zonas mais pequenas; um labirinto de grossas divisórias de cimento chegava até meio da distância do chão ao teto, formando uma série completa de recintos. Espalhados pelo chão à entrada destes recintos havia montes de entulho e pilhas do que parecia ser metal enferrujado.
- Que local é este? - perguntou Cal, atrevendo-se a quebrar o silêncio.
- Os Campos de Criação.
- Criação... de quê? De animais? - disse Cal.
- Não, não é de animais. De Coprolites. Os Styx criavam-nos para os usarem como escravos - respondeu Drake lentamente. - Construíram este complexo há séculos.
Conduziu Cal para diante, antes que ele pudesse fazer mais perguntas, para uma antecâmara mais pequena. Dava a sensação de uma enfermaria de hospital. Cal viu que o chão e as paredes estavam cobertos por azulejos brancos, agora descolorados por anos de sujeira e umidade, e que uma grande quantidade de camas estava empilhada de qualquer maneira perto da entrada, como se alguém estivesse a retirá-las, mas fosse interrompido a meio do processo. A coisa mais estranha em relação a estas camas era o fato de elas serem, sem exceção, bastante pequenas - não havia absolutamente nenhuma possibilidade de terem acomodado alguém do tamanho dele, quanto mais um adulto.
- Berços? - disse em voz alta, quando viu que havia algo mais em relação a tudo aquilo para além do que ele tinha notado a princípio. Em cima destas camas diminutas havia gaiolas metálicas circulares, enferrujadas, a escamarem-se, a maioria das quais ainda estava fechada. Não havia qualquer indicação do que estivera originalmente preso nestas gaiolas, apenas alguns vestígios de colchões de palha podre. - Não eram para crianças? - disse Cal. Aquilo horrorizava-o, era como uma enfermaria de crianças de um pesadelo.
- Para bebês Coprolites - respondeu Drake quando alcançaram Elliott.
Ela passou por umas portas de vaivém, uma das quais estava segura apenas por uma dobradiça e começou a ranger alto quando a moveu. Ela agarrou a porta imediatamente, fazendo parar o seu movimento.
Cal e Drake seguiram-na para o corredor contíguo, que estava forrado de prateleiras deformadas. Em cima delas havia uma variedade de equipamento obscuro e de aspecto enigmático, castanho baço da corrosão, ou derramando verdete para a superfície em volta. O olhar de Cal fixou-se numa máquina que estava no chão, com um fole podre e quatro cilindros de vidro a saírem da parte de cima. Ao lado estava o que era evidentemente urna bomba de pé de uma espécie qualquer.
Ao olhar para cima, reparou numa estante de parede, de madeira, que guardava todos os tipos de instrumentos letalmente aguçados, muitos dos quais tinham enferrujado naquele mesmo lugar, assentes nos seus apoios. E ao lado disto viu um quadro. Embora estivesse muito danificado pelo mofo, conseguiu distinguir figuras angulosas e uma escrita bizarra, mas não tinha ideia absolutamente nenhuma do que aquilo significava nem tempo para parar e tentar perceber.
Arrastando-se através de poças de água turva, passaram por vários outros corredores estreitos. Estavam vazios, tendo apenas redes de canos largos que corriam ao longo do teto, dos quais pendiam pedaços de revestimento antigo e rolos de teias de aranha.
E depois viraram para um compartimento. Tinha a forma de L e estava atulhado do chão ao teto com grandes cilindros de vidro, alguns dos quais atingiam um metro de diâmetro. Enquanto ele e Drake esperavam o sinal de Elliott para prosseguirem, a atenção de Cal foi atraída para algo que estava num dos potes mais próximos dele.
A princípio, não tinha certeza do que continha, mas depois viu que era a cabeça de um homem em perfil transversal. Fora cortada com muita precisão do cimo do crânio para baixo, atravessando o resto da cabeça, de modo que o cérebro, e tudo o que estava dentro do crânio, era visível. Por qualquer razão, não parecia real - era difícil imaginar que alguma vez tivesse sido uma pessoa. Cal cometeu o erro de se inclinar para examinar o pote do outro lado. Quando a luz da lanterna penetrou no fluido amarelado no qual a cabeça estava imersa, viu um único olho fixo e pêlos escuros a romperem a pele do homem, branca como a cal, como se ele não tivesse feito a barba naquela manhã.
Cal ofegou. Era mesmo real.
Era tão mórbido que se afastou imediatamente, mas, depois, os seus olhos pousaram em coisas de outros potes que eram igualmente más. A boiar, havia embriões abominavelmente deformados, alguns inteiros, outros parcialmente dissecados. E muitos bebês completamente intactos, presos com arames, para todo o sempre, a lâminas de vidro numa variedade de poses. Viu um que estava a chupar o polegar. Se não fosse a sua pele quase translúcida, através da qual se viam feixes de minúsculas veias azuis, podia-se ter imaginado que estava simplesmente a dormir, tão vivo parecia.
Deslocaram-se silenciosamente para outra zona. Era octogonal e dominada por uma única peanha de porcelana sólida que estava mesmo ao centro. Cintas metálicas corroídas davam uma laçada por cima da peanha, obviamente para manterem o objeto no local.
- Carniceiros! - murmurou Drake, enquanto Cal avistava instrumentos espalhados na gravilha e pedaços de vidros partidos a cobrir o chão. Havia bisturis, fórceps enormes e outros instrumentos médicos bizarros.
- Oh, não - exclamou Cal, sem ser capaz de se conter quando um arrepio lhe percorreu as entranhas. Apesar de este compartimento não ter nada como os espécimes macabros que acabara de ver, havia no ar a mais horrorosa sensação. Era como se permanecessem no ar ecos da dor e do sofrimento agudo que tinham sido perpetrados dentro das suas paredes muitos anos atrás.
- Este lugar está cheio de fantasmas - disse Drake, solidário com aquilo que Cal estava sentindo.
- Sim - respondeu o rapaz a tremer.
- Não se preocupe, não vamos parar - assegurou-lhe Drake, e passaram para um corredor maior, parecia aquele onde tinham estado antes, com os lados estranhamente inclinados.
Desceram-no até que Drake os fez parar. Cal percebeu que o som à sua volta era diferente e voltou a sentir na cara um indício de brisa - calculou que deviam ter chegado ao outro lado do Bunker. Apoiou-se com força ao bastão, grato pela oportunidade de poder descansar a perna, e tentou não pensar naquilo que tinha acabado de ver.
Drake escutou por um tempo, espreitando através da lente que tinha sobre o olho, antes de virar a sua luz de mineiro para um local baixo. À frente deles estava uma área de formação natural. Era circular, com cerca de trinta metros de diâmetro e chão de pedra irregular. Em volta, Cal contou nada menos que dez túneis de lava, todos eles irradiando em diferentes direções.
- Enfie-se num deles, Cal - sussurrou Drake, apontando ao acaso para os túneis de lava enquanto entrava na área circular. Elliott tinha ficado para trás, acocorando-se à entrada do Bunker.
Drake reparou que Cal não estava a segui-lo.
- Se aprece, ouviu? - O rapaz gemeu baixinho e deu uns passos relutantes em direção a Drake. - A Elliott e eu vamos nos separar e procurar o Will, mas você fica aqui de vigia. Há a possibilidade de ele passar por aqui - explicou Drake, acrescentando em voz baixa: - se é que não passou já.
Cal mal tinha dado uns passos quando se ouviu um silvo vindo de trás dele. Parou. Elliott ainda estava acocorada, com a espingarda a postos encostada ao lado da abertura.
Drake parou, mas não se virou para ela.
- Volte para cá! - disse Elliott a Cal, num sussurro premente, sem tirar os olhos da espingarda.
- Eu? - perguntou Cal.
- Sim - confirmou ela, enquanto varria repetidamente a cena à frente deles com a mira telescópica.
Sem qualquer ideia do que estava a acontecer, Cal rastejou para trás até junto de Elliott, que, por um momento, tirou a mão da arma e lhe lançou um par de cilindros fininhos de algodão-pólvora. Ele os pegou, completamente confuso com a súbita mudança de planos de Drake, e enfiou-se mais para o fundo do corredor atrás de Elliott, mantendo a cabeça baixa.
Enquadrado pela entrada, viu Drake imóvel, ainda no espaço aberto, com o casaco a esvoaçar com a brisa fresca. Não apagara a lanterna de mineiro que tinha na testa e, embora o feixe de luz não fosse forte, apanhava alguns dos rochedos maiores e dos afloramentos rochosos em volta, projetando sombras bem delineadas nas paredes. Mas nada mexia na área em volta.
- Alguma coisa? - perguntou Drake a Elliott, baixinho.
- Sim - disse ela lentamente. - Uma sensação.
A sua voz era terrivelmente séria e ela tinha um ar tenso, a face fortemente comprimida contra a coronha da espingarda. Mudava velozmente o seu alvo de uma entrada de túnel para outra. Num único movimento rápido, desenganchou do cinto mais alguns cilindros de algodão-pólvora e colocou-os no chão ao seu lado.
Cal estreitou os olhos tentando ver a que se devia aquela preocupação. Nada se movia na zona para lá de Drake. Não conseguia perceber.
Passaram alguns segundos.
Estava um silêncio tão grande que Cal começou a descontrair. Não conseguia ver absolutamente nada. Tinha certeza de que era alarme falso e que tanto Elliott como Drake estavam a exagerar. Doía-lhe a perna e mudou ligeiramente de posição, pensando como gostaria de se pôr de pé.
Drake virou-se para Elliott.
- Olhe, olhe... o homem invisível está à porta - declamou em voz alta, já não fazendo o mais pequeno esforço para baixar a voz.
- Diga-lhe que não posso falar com ele agora - foi a resposta de Elliott, em pouco mais do que um sussurro.
Quando mudou rapidamente o seu alvo para a entrada de outro túnel, parou abruptamente, como se estivesse a demorar-se em alguma coisa que estava lá dentro, antes de finalmente virar a arma outra vez para Drake.
- Sim - murmurou com um aceno de cabeça, olhando para ele através da mira telescópica. - Eu devia estar no meu lugar. Eu é que devia ter ficado aí, e não você.
- Não, é melhor assim - disse Drake, objetivamente. Afastou-se dela.
- Adeus - disse ela com uma voz tensa.
Passaram-se uns segundos, que pareceram séculos, e depois Drake respondeu-lhe.
- Adeus, Elliott - disse, dando um único passo atrás.
Pandemônio imediato.
Limitadores saíram em massa dos túneis de lava, com as armas em riste. Pela maneira como se moviam, pareciam um enxame de insetos malévolos. A insipidez sombria das suas máscaras escuras e dos longos casacos castanho-acinzentados pareciam prolongar o vazio das entradas dos túneis, como se fossem uma extensão das próprias sombras. Numerosos demais para serem contados, começaram a dispor-se num semicírculo contínuo em frente dos túneis de lava.
- LARGUEM AS ARMAS! - ordenou uma voz penetrante e esganiçada.
- RENDAM-SE! - ouviu-se de outro lado.
Começaram a avançar ao mesmo tempo.
O coração de Cal tinha parado. Por qualquer razão, Drake não se abaixara para se proteger, permaneceu exatamente onde estava quando a linha avançou. Depois deu mais um passo atrás. Cal ouviu um tiro isolado e viu rasgar-se o tecido em cima do ombro de Drake, como se uma carga minúscula tivesse explodido lá dentro. O impacto fê-lo girar, mas ele endireitou-se rapidamente. Elliott respondeu com uma saraivada rápida, manuseando o ferrolho da espingarda a uma velocidade vertiginosa. Os Limitadores caíam um atrás de outro, à medida que ela lhes acertava um a um. Todos os tiros atingiam o alvo. Cal viu o efeito nas figuras magras dos soldados Styx. Alguns eram atirados para trás quando a espingarda poderosa se movia nas mãos dela, outros caíam no local onde estavam. Mas continuavam a avançar. E, por alguma razão, não pareciam responder ao fogo.
Com um movimento suave, Drake baixou-se. A princípio, Cal pensou que ele tinha sido atingido de novo, mas depois viu que tinha um morteiro de algodão-pólvora nas mãos. Bateu com a sua base numa pedra e irrompeu uma chama, que saiu pela boca. Uma faixa de Limitadores do semicírculo que estava a avançar foi literalmente dizimada. No lugar onde tinham estado havia apenas algumas manchas de fumaça - a explosão tinha-os apagado da existência. Houve gritos e uivos e berros de toda a parte. Mas, no entanto, mais Limitadores continuavam a avançar e estavam agora a responder ao fogo de Elliott.
Cal caminhava pelo corredor, afastando-se da entrada, com os cilindros de algodão-pólvora bem apertados na mão, úmida de transpiração. O único pensamento que lhe atravessava o cérebro era que tinha de fugir. De qualquer maneira.
Depois, através das nuvens de fumaça, pensou ver Drake a mexer-se. Pareceu-lhe que deu uns passos a cambalear e depois caiu. Cal não viu mais nada, pois nesse preciso momento Elliott agarrou-o pelo braço e afastou-o rapidamente dali. Depois, correu, correu, puxando-o atrás dela tão depressa que ele mal podia aguentar-se nos pés. Tinham andado umas centenas de metros quando ela o puxou do corredor para um dos compartimentos laterais.
- Tape os ouvidos! - gritou.
Uma explosão de pôr os cabelos em pé ouviu-se quase de imediato. Embora estivessem bem protegidos, a explosão ainda os jogou ao chão. Uma bola de fogo e pedaços de cimento a voar precipitaram-se pelo corredor para lá da porta. Cal percebeu que Elliott devia ter preparado algum ataque quando se afastou. Antes de os destroços terem tempo de pousar, ela levantou-se e empurrou Cal dali para fora, para uma tempestade de poeira em redemoinho. Pequenas partículas de fogo crepitavam e estalavam nas poças de água do chão.
Enquanto atravessavam densos turbilhões de fumaça sufocante, uma figura alta surgiu perante eles. Elliott tirou Cal da frente e pôs um joelho no chão. Manuseou o ferrolho. O Limitador ia diretamente a ela, com a arma erguida. Ela não hesitou. Apertou o gatilho. A boca da arma lançou fogo e o brilho iluminou a cara surpreendida do Limitador. O tiro atingiu-o em cheio no pescoço. A cabeça pendeu para a frente e bateu-lhe no peito, e ele desapareceu da vista, voltando à poeira encapelada. Elliott já estava de pé.
- Fuja! - gritou ela a Cal, apontando para o corredor.
Outra sombra escura precipitou-se para eles. Com a espingarda ainda à anca, Elliott puxou o gatilho. Houve um estalido surdo.
- Oh, meu Deus - gritou Cal, vendo o olhar assassino do Styx transformar-se num olhar de triunfo. O homem pensou que os tinha pego.
Cal levantou o bastão pateticamente à sua frente como se fosse utilizá-lo para o repelir. Mas, num abrir e fechar de olhos, Elliott deixou cair a espingarda e agarrou na mão de Cal, atirando os cilindros de algodão-pólvora que ele tinha na mão na direção do Limitador que se aproximava. Puxou os mecanismos dos gatilhos.
Cal sentiu o coice e o calor intenso quando as duas armas dispararam à queima-roupa.
Não conseguiu olhar para o resultado. O homem nem sequer gritara. Cal ficou pregado ao chão, com a mão suada e trêmula ainda a agarrar os cilindros fumegantes.
Enquanto Elliott tirava qualquer coisa da mochila, gritou-lhe. Mas Cal não assimilou o que ela dizia. Estava quase completamente entorpecido de terror. Ela lhe deu uma bofetada com tanta força que os dentes lhe tiniram. Isto abalou-o e fê-lo voltar à ação, precisamente no momento em que a viu atirar uma carga para o corredor para onde pensava que eles estavam prestes a ir. Não compreendia o que ela fazia. Como é que iam fugir se ela bloqueava o caminho de fuga?
- Procure um abrigo, idiota! - berrou-lhe, atirando-o para o outro lado do corredor com um pontapé. Caiu no vão de uma porta no lado oposto.
A explosão desta vez foi mais pequena, e eles correram imediatamente, a toda a velocidade, pela parte do corredor onde ela se dera. Cal tropeçou numa coisa mole - soube, sem olhar, que era um corpo -, mas ficou grato pelo fato de o pó estar a esconder tudo da vista à medida que ele ia caminhando aos tropeções.
Era como se o tempo se desfizesse em nada. Neste lugar não existiam segundos. E era o corpo de Cal, e não o seu espírito, que ditava as suas ações, que o fazia fugir. Ele tinha simplesmente de fugir - isso era a única coisa que interessava -, algo de básico e instintivo controlava-o.
Antes de ele dar por isso, estavam outra vez no teatro das operações, com a macabra peanha de cerâmica ao centro. Elliott lançou uma carga cilíndrica para trás deles. Esta devia ter um rastilho curto, pois tinham percorrido apenas metade da sala em L, a caminho da saída do teatro, quando a onda de choque da explosão os alcançou.
Horror dos horrores, a explosão estilhaçou e deixou abertos muitos dos potes com os espécimes. O seu conteúdo derramou-se e estes saíram como peixes mortos, enquanto o ar se enchia do cheiro forte a formaldeído. Viu de relance a cabeça meio dissecada a fugir precipitadamente pelo chão junto aos seus pés, com a sua metade de boca a sorrir-lhe tortuosamente e a metade da língua a sair com malícia. Cal saltou-lhe por cima quando saiu da sala atrás de Elliott, e correram a toda a velocidade pelos corredores que se seguiam. Viraram uma série de vezes para a esquerda e depois uma para a direita - embora o pó e o fumo não fossem ali tão densos, Elliott parou de repente e olhou freneticamente em redor.
- Merda, merda, merda - arengou ela.
- O quê? - arquejou Cal, agarrando-se a ela, pois estava desorientado e completamente exausto.
- MERDA! Enganei-me no caminho! Para trás... temos de voltar para trás!
Voltaram para trás contornando várias esquinas, depois Elliott parou para olhar para um corredor lateral. Cal viu a ansiedade nos seus olhos.
- Tem de ser por ali - murmurou, insegura. - Meu Deus, espero...
- Tem certeza? - interrompeu ele, desesperado. - Eu não reconheço...
Ela empurrou uma porta. Ele seguia-a tão de perto que, quando ela parou, chocou com ela.
Cal piscou os olhos e protegeu a cara. Estavam mergulhados em luz.
Deram consigo numa sala branca, com cerca de vinte metros de comprimento e metade de largura.
Era desconcertante.
Havia uma calma absoluta na sala.
Estava completamente em desacordo com tudo o que Cal tinha visto no Bunker. Estava limpa na perfeição, com um chão de azulejos imaculadamente brancos e um teto caiado havia pouco tempo, no meio do qual estava suspensa uma longa fila de globos luminosos.
Ao longo de ambos os lados da sala havia portas de ferro polido, e Elliott já tinha ido até à mais próxima e espreitava pela janela de vidro nela embutida para inspeção. Depois foi até à seguinte. As portas tinham todas uns grandes sinais de visto escritos a tinta preta, que haviam sido aplicados com tal espessura que a tinta escorrera sobre o metal polido.
- Vejo corpos - disse ela. - Portanto, esta é a zona de quarentena.
Havia mais do que apenas corpos. Quando Cal foi ver com os seus próprios olhos, havia dois - ou, em algumas celas, três - cadáveres estendidos no chão para onde ele olhou. Era óbvio que estavam mortos havia já algum tempo, porque já tinham começado a decompor-se. Viu que um fluido gelatinoso e transparente, com laivos amarelos e vermelhos, escorrera deles e formava uma poça nos azulejos completamente brancos.
- Alguns deles parecem Colonos - disse Cal, ao reparar no que tinham vestido.
- E alguns eram renegados - disse ela, com uma voz tensa.
- Quem fez isto? O que os matou? - perguntou Cal.
- Os Styx - respondeu ela.
A menção daquele nome fez-lhe lembrar instantaneamente a gravidade da situação em que se encontravam, e começou a entrar em pânico.
- Não temos tempo para isto! - gritou, tentando conduzida à porta.
- Não, espere - disse ela. Estava a olhar para ele com ar carrancudo, mas não a afastá-lo.
- Não podemos fazer besteira aqui! Eles vão nos seguir... - sibilou ele, tomando consciência de que os seus papéis se tinham invertido e era ela agora que estava a atrasar a fuga.
- Não, isto é importante. Estas celas foram seladas! - disse Elliott, examinando as arestas da porta. Como todas as outras portas, tinha soldaduras grossas, recentes, nos quatro lados, e não havia qualquer maçaneta ou outra coisa para a abrir. - Não vê o que isto é, Cal? É a zona de testes dos Styx de que ouvimos falar, estiveram a experimentar algum tipo de arma aqui!
Cal estava mesmo atrás de Elliott quando ela chegou à cela seguinte, e reparou que a porta não tinha nada pintado. Quando ela olhou lá para dentro, um rosto apareceu à janela. Tinha os olhos raiados de sangue e inchados. Era um homem - parecia encontrar-se num estado de pânico extremo. Cada centímetro da sua pele estava coberto de furúnculos inflamados, vermelhos, e as maçãs do rosto estavam encovadas. Gritava qualquer coisa, mas, através do vidro, não conseguiam ouvir nem um murmúrio.
Começou a bater debilmente na janela com os dois punhos, mas, mais uma vez, não se ouvia qualquer som. Parou, olhando para eles com os seus olhos dementes e dardejantes.
- Eu conheço-o - disse Elliott com voz rouca. - É um dos nossos.
O seu rosto estava cadavericamente magro, como se morresse à fome. Dizia qualquer coisa, tentando comunicar com ela articulando as palavras com os lábios.
Para ela, não tinha qualquer sentido.
- Elliott! - suplicou Cal. - Esqueça, está bem? Temos de sair daqui!
Ela percorreu com os dedos uma extensão de soldadura que se estendia sem interrupção em torno da aresta da porta numa linha grossa, interrogando-se se podia de algum modo arrombá-la. Mas sabia que não tinham tempo para tentar. Tudo o que podia fazer era mostrar ao homem um encolher de ombros desesperado.
- Vamos - gritou Cal, depois berrou - Agora!
- Ok - concordou ela, girando nos calcanhares para correr para a porta pela qual tinham entrado.
Passaram através dela e voltaram imediatamente a mergulhar no mundo obscurecido do Bunker, com o ar cheio de pó a redemoinhar em volta deles. Quando os seus olhos se readaptaram, depois da luminosidade da sala estranha, continuaram ao longo do corredor, na direção em que ela originalmente estava a conduzi-los.
- Mantenha-se perto - sussurrou Elliott, enquanto se moviam furtivamente.
Depois de percorrerem uma pequena distância, ela parou.
- Vamos lá, vamos lá! Por onde? - ouviu-a Cal murmurar, desesperada, para si própria. -Tem de ser por aqui - concluiu.
Depois de passarem vários outros corredores, entraram num pequeno átrio onde havia duas portas, uma de cada lado. Ela dirigiu-se de uma para a outra, depois parou por um brevíssimo momento entre as duas, fechando os olhos.
Por esta altura, Cal tinha perdido toda a fé na capacidade dela para levá-los para local seguro. Mas não teve tempo para exprimir a sua dúvida, pois ouviu-se um estrondo vindo dali perto. Uma porta estava a ser arrombada - os Limitadores aproximavam-se.
Os olhos de Elliott abriram-se de repente.
- Já sei! - gritou, escolhendo a porta. - Agora estamos a caminho de casa!
No fim de uma sequência de curvas para a esquerda e para a direita, começaram a escorregar e a deslizar pelas escadas, para o corredor submerso do subsolo. Desta vez, Cal não teve quaisquer escrúpulos em se enfiar na água estagnada e, sem dar por isso, já estava a subindo pelas escadas no lado oposto. Reparou que Elliott tinha ficado para trás. Colocava uma carga considerável na outra escada mesmo acima da linha de água. Uma vez isto feito, alcançou-o, e estavam mesmo passando sob as zonas de cimento desmoronado quando a carga explodiu.
Todo o local tremeu e torrentes de lodo caíram-lhes em cima. Ouviu-se um ribombar forte que se transformou num barulho opressivo e agourento. Parecia que estava tudo a deslocar-se. As enormes placas de cimento aluíram, lançando água e pó em todas as direções e bloqueando o caminho para trás.
- Esta foi forte - ouviu Elliott sussurrar, enquanto corriam para a sala com o chão de oleado e subiam para a conduta, fazendo todo o caminho às apalpadelas.
Ao sair da conduta, Cal caiu para trás, no chão da Grande Planície, com um grito de alívio absoluto. Elliott ajudou-o a pôr-se de pé e imediatamente se virou para seguir ao longo da parede de cimento, retrocedendo pelo caminho que tinham tomado.
Vários tiros estalaram no cimento à sua volta.
- Fogo de um atirador emboscado! - gritou Elliott, enquanto atirava qualquer coisa por cima do ombro, tão depressa que Cal não teve tempo de ver o que era. Quando rebentou, derramou fumaça em rajadas baixas, rentes ao chão. Elliott utilizou-o para protegê-los do fogo da espingarda. Embora o tiro ocasional ainda pairasse ali em volta, eles estavam bem longe.
Continuaram a correr até contornarem a esquina e entraram num túnel de lava, para longe da Grande Planície. Vários metros depois, Elliott gritou a Cal que continuasse a andar enquanto ela parava para arrancar o fio a mais um dispositivo. Ele não precisou de encorajamento. Correu precipitadamente, quase enlouquecido pela adrenalina que lhe corria nas veias. Estava tão excitado, que já mal sentia a dor na perna.
Quando Elliott o alcançou, o impacto da explosão atrás deles pareceu levantar os seus corpos no ar e encorajá-los a continuar. E eles não pararam de correr.
Will não sabia há quanto tempo estava a dormir quando foi bruscamente acordado com um grito premente. A cabeça doía-lhe como o diabo, com um latejar brutal a estender-se de um lado ao outro das têmporas.
- LEVANTE-SE!
- Eh...! - disse atabalhoadamente Will. - Quem...?
Piscou os olhos, atordoado, tentando focar as figuras indistintas. Viu Elliott e Cal inclinados sobre ele.
- Levante-se! - ordenou Elliott, com aspereza, e depois deu-lhe um pontapé.
Will tentou fazer o que ela mandou, mas caiu para trás. Estava trêmulo e confuso, achando que era impossível pôr em ordem os seus pensamentos desconcertados. Viu a cara dela. Embora estivesse preta da sujeira, conseguiu perceber que ela não estava minimamente contente por voltar a vê-lo. E tinha pensado que ela e Drake iriam dar-lhe os parabéns por continuar a andar, por conseguir safar-se contra todas as expectativas!
Talvez tivesse avaliado mal a maneira como eles iriam reagir, e eles estivessem furiosos com ele por se ter separado do grupo, embora tentasse dizer a si próprio que, na realidade, a culpa não fora dele. Talvez tivesse quebrado mais uma das misteriosas regras deles. Esfregando os cristais de sal dos olhos vermelhos, voltou a estudar a cara de Elliott. Tinha uma expressão extremamente carrancuda.
- Eu... eu não... quanto tempo...? - pronunciou de forma pouco clara, percebendo pela primeira vez que a expressão de Cal estava igualmente carrancuda. Também viu que tanto ele como Elliott estavam encharcados e que cheiravam a químicos.
Chester tinha começado a se mexer atrás deles, reunindo os recipientes de comida e metendo-os na mochila, atrapalhando-se com a pressa.
- Eles apanharam-no - disse Cal, com o peito a elevar-se enquanto brandia o bastão pelo ar ostensivamente. - Os Limitadores apanharam o Drake!
Chester interrompeu o que estava a fazer. Will abanou a cabeça, incrédulo, e depois olhou para Elliott à procura de confirmação. Não precisou de ver os arranhões no outro lado da cara dela, ou o sangue a sair de um golpe fundo na sua fonte, para saber que o irmão dizia a verdade. Ver os seus olhos contraídos e zangados era suficiente.
- Mas... como...? - observou Will.
Ela apenas se virou e começou a andar na direção do mar subterrâneo ao lado do qual Will tinha passado tanto tempo.
PARTE QUATRO
A Ilha
Capítulo Trinta e Quatro
O
s rapazes tinham a maior dificuldade em acompanhar Elliott, tão depressa ela caminhava. Como se não lhe interessasse se eles a acompanhavam ou não.
Dos três, era Cal quem mais se esforçava. Ia a arrastar-se penosamente, e até caiu várias vezes enquanto caminhavam ao longo da margem arenosa. Will chegou a pensar que o irmão não ia levantar-se de novo. Mas, de cada vez que caía, Cal conseguia erguer-se a custo e continuar. Dizia qualquer coisa para si próprio - pareciam orações, mas Will não tinha certeza e não estava para gastar saliva a perguntar. Tinha uma dor de cabeça de arrebentar, da qual parecia não ser capaz de se livrar, e estava fraco pela falta de sono e de comida. A sua sede continuava insaciável - bebia goles do cantil sem parar, mas isso não a aliviava.
Nenhum dos rapazes falava com os outros. Nas suas mentes ardiam perguntas. Com Drake desaparecido, iria Elliott simplesmente abandoná-los e continuar sozinha? Ou prosseguiria com os planos de que Drake tinha falado, e mantê-los juntos como uma equipe?
Will estava refletindo sobre isto quando notou uma mudança pouco perceptível no terreno debaixo dos pés. A areia extenuante e instável parecia estabilizar, tornando-se um pouco mais fácil andar sobre ela. Interrogava-se porquê.
O mar ainda estava à sua direita. Conseguia ouvir o estranho e lúgubre bater de uma onda, mas sabia que a parede da gruta - que estava à sua esquerda e invisível devido à escuridão - devia estar, naquela altura, a uma boa distância. Penetravam cada vez mais fundo numa zona da qual Will apenas se tinha aproximado nas suas horas de caminhada.
Depois, os seus pés começaram a roçar em coisas à medida que ia caminhando e, à luz tênue irradiada pela lanterna, viu que a arenosidade pálida se tinha transformado em algo mais escuro. Foi de encontro a uma coisa sólida e fixa, na qual a bota bateu com força, fazendo-o tropeçar. Inclinou-se para investigar o que era, e pareceu-lhe exatamente um pequeno cepo de uma árvore derrubada. Ao longo dos cem passos seguintes, mais ou menos, Will tentou conter a curiosidade, mas ela acabou finalmente por levar a melhor, e ele moveu a alavanca atrás da lente da lanterna, fazendo a luz brilhar em volta dos pés.
Imediatamente, Elliott precipitou-se para trás. Parou ameaçadoramente à sua frente.
- O que pensa que está fazendo? - grunhiu. - Apague isso!
- Estou só dando uma olhada - respondeu ele, recusando-se a desafiar os seus olhos cintilantes, enquanto examinava a área à volta dos pés. Tinha mudado.
Havia uma quantidade considerável de cepos de várias alturas, entre os quais estavam plantas de aspecto estranho - carnudas, calculou Will - que cobriam o solo de uma forma tão densa que pouco se via da areia. Eram pretas, ou pelo menos de um tom cinzento-escuro, e as folhas, saindo de caules centrais, curtos e grossos, eram redondas e volumosas, cobertas de uma cutícula de cera.
- Gostam de sal - sugeriu, batendo numa das plantas carnudas com a bota.
- Apague essa maldita luz - disse ela, franzindo o cenho. Respirava quase normalmente, enquanto Will e os outros arfavam violentamente e estavam gratos por esta pequena oportunidade para descansar.
Will levantou os olhos para ela.
- Quero saber para onde nos levas - pediu, aguentando o seu olhar. - Anda muito depressa e nós estamos todos horrivelmente exaustos.
Ela não respondeu.
- Pelo menos, diga-nos qual é o plano - pediu ele.
Ela cuspiu, não acertando por pouco no joelho de Will.
- A luz! - silvou entre dentes, enquanto levantava ameaçadoramente a coronha da espingarda.
Will não tinha o menor desejo de iniciar uma luta com ela por causa do brilho da sua luz, por isso voltou conscienciosamente a pô-la no mínimo. Ela sacudiu a cabeça com um movimento rápido e afastou-se dali a passos largos, com modos desagradáveis, passando por Cal, depois por Chester, para tomar a dianteira outra vez. Isto fez Will recordar a maneira como Rebecca o tratara em Highfield, reavivando memórias indesejáveis que ele queria simplesmente poder apagar. Refletiu se todas as garotas adolescentes teriam a mesma veia de vingança e, já não pela primeira vez, perguntou-se se chegaria alguma vez a compreender completamente o sexo oposto. E nas horas que se seguiram, apesar das suas súplicas para que ela fosse mais devagar, pareceu a Will que Elliott tinha metido outra mudança e estava agora a andar ainda mais depressa, exclusivamente para contrariá-lo.
As plantas carnudas eram mais altas à medida que eles avançavam nesta nova área. Quando pisavam as folhas, estas faziam barulhos de esguichos, como se estivessem a caminhar sobre lama. De vez em quando, uma das folhas rebentava com um estouro alto, como um balão furado, enchendo o ar de um cheiro a enxofre extremamente intenso.
Depois, começaram a encontrar plantas de aspecto normal, num emaranhado crespo sobre o solo, como montes de espinheiros demasiado crescidos. Will pensou para consigo que se assemelhavam à cavalinha comum, uma planta que ele conhecia devido ao seu crescimento desenfreado no cemitério de Highfield. Mas estas tinham caules branco-encardido, atingindo uns cinco centímetros de diâmetro, em torno dos quais havia aros de espigas pretas, muito finas e espinhosas, a intervalos regulares. Quanto mais os rapazes andavam, tanto mais abundantes se tornavam os montes de plantas, até lhes chegarem quase à cintura, e eles tinham um trabalho dos diabos para atravessá-los.
A acrescentar a isto, havia no caminho quantidades cada vez maiores de árvores grossas. Will viu que os seus troncos estavam cobertos de escamas rudimentares e, pelos vislumbres estranhos que teve, calculou que eram fetos enormes de uma espécie qualquer. A quantidade tornava cada vez mais difícil ver a pessoa da frente. O ar também ficava intensamente úmido, e daí a pouco tempo os rapazes estavam encharcados em suor.
Will estava logo atrás de Cal, enquanto ele se arrastava a custo, tentando assegurar-se de que não ficaria para trás, quando reparou que tomavam um novo rumo. Desciam um ligeiro declive e compreendeu que este iria levá-los finalmente à praia. Ouvia uma agitação em algum lugar mais adiante, à medida que os outros iam abrindo caminho por entre a folhagem compacta, e imediatamente ficou preocupado, pensando que ele e Cal estavam a afastar-se do caminho. Não queria perder-se ali - andar perdido nos últimos dois dias já lhe chegava para o resto da vida. Ficou aliviado quando viu de relance uma cintilação vaga e teve uma visão momentânea de Chester lá à frente. Ele e Cal ainda iam no caminho certo. Mas para onde é que Elliott os levava?
Desceram aos tropeções a última parte da ladeira e deixaram o matagal, para darem consigo na praia. Era a primeira vez que Cal e Chester viam o mar. Olharam para ele com um espanto silencioso, enquanto uma ligeira brisa lhes esfriava o suor na cara.
Will estava consciente do som de água a correr, espirrando e ressoando em algum lugar ali perto, mas a sua atenção estava absorvida pelo espetáculo da enorme floresta de onde tinham acabado de sair. Na penumbra da lanterna, parecia muito escura e impenetrável.
Árvores gigantes semelhantes a fetos elevavam-se muito alto, acima dele.
- Palmeiras! - exclamou Will. - Têm de ser gimnospérmicas. Os dinossauros comiam coisas destas!
Em cima dos seus troncos levemente curvos, que tinham anéis escuros em volta a intervalos regulares, como se tivessem sido feitos encaixando uns nos outros cilindros cada vez mais pequenos, estavam coroas maciças de frondes, que os faziam parecer excessivamente desequilibrados. Algumas destas frondes estavam totalmente abertas, enquanto outras ainda estavam enroladas sobre si mesmas. Ao contrário das folhas verdes das palmeiras que se encontravam na superfície da Terra, as folhas destas plantas enormes eram cinzentas.
Por entre estas árvores primordiais havia moitas das volumosas plantas carnudas e dos espinheiros rastejantes tão firmemente entrelaçadas que dava a impressão de que se estava a olhar para uma zona de selva extremamente cerrada, a altas horas da noite. E Will via pequenos objetos brancos palpitantes balançando entre os ramos altos das árvores - quanto mais olhava, mais destes insetos conseguia distinguir. Não sabia dizer o que eram os maiores, mas os que estavam mais perto dele eram claramente da mesma espécie da borboleta branca que ele tinha visto pela primeira vez na Colônia. E havia um som familiar, pouco frequente. Qualquer coisa que lhe fazia lembrar tão fortemente o campo da Superfície que ele sorriu. Conseguia ouvir o cantar dos grilos!
Recuou um passo na direção da água, dominado pelo mais intenso fascínio por toda aquela cena, e só alguns momentos depois é que desviou os olhos. Viu que Cal e Chester, ambos ainda a tentar recuperar o fôlego, estavam a lançar olhares preocupados para a extensão de água à sua frente.
Virou-se sobre a areia úmida e olhou para lá dos dois rapazes, para o lugar onde Elliott se encontrava de joelhos a inspecionar a extensão de costa do outro lado, através da mira telescópica.
Will foi para o lado dela, curioso em relação ao que agitava a água tão violentamente. Descobriu que estava na praia, no local exato onde uma linha branca, que fluía, quebrava a sua superfície. Formava um arco que se dirigia para a escuridão, e ele viu que havia uma grande quantidade de estrias brancas de espuma e de bolhas a mover-se num dos lados.
- Isto é a passagem sobre a água - disse Elliott de um modo brusco, antecipando a pergunta do rapaz.
Pôs-se de pé e os rapazes espalharam-se em volta dela.
- Vamos atravessar aqui. Se escorregaram, serão levados pela água. Por isso, aguentem-se. - A voz dela era inexpressiva, não lhes dizendo nada do que ela estava a pensar.
- Há uma espécie de afloramento rochoso aqui por baixo, não há? - pensou Will em voz alta, dando uns passos em frente para meter a mão na espuma borbulhante e descobrir o que estava debaixo da superfície. - Sim... aqui está ele!
- Eu não faria isso - avisou Elliott.
Will retirou a mão rapidamente.
- Há coisas aí dentro que te arrancam os dedos - continuou ela, e, quando o fez, virou a lanterna para cima e apontou-a sobre a água de maneira que os rapazes pudessem ver a extensão do vazio, os enormes lençóis negros que se estendiam de ambos os lados da passagem, fazendo-os tremer, apesar do calor e da umidade do ambiente.
- Por favor, diga-nos para onde nos leva - pediu-lhe Will. - Há alguma razão para nos manter na ignorância?
As suas palavras pairaram no ar vários segundos antes de ela responder.
- Muito bem - disse ela, respirando fundo. - Não temos muito tempo, portanto, quero que ouçam bem. Ok?
Cada um dos rapazes murmurou um "sim" como resposta.
- Nunca, mas nunca, tinha visto tantos Limitadores aqui nas Profundezas, e não estou gostando. É perfeitamente óbvio que eles têm em marcha qualquer coisa de grande alcance, e talvez seja por isso que estão a pôr em ordem algumas pontas soltas.
- Que quer dizer com algumas pontas soltas? - perguntou Chester.
- Renegados... nós - respondeu Elliott. Depois apontou a luz para Will. - E ele. - Olhou para baixo, para a água cheia de espuma. - Vamos para qualquer lugar seguro para eu poder pensar no que faremos a seguir. Agora, sigam-me - disse ela.
A travessia foi assustadora. Ela permitira-lhes aumentar a luz vários níveis, mas a corrente era imensamente poderosa, fazendo-lhes muita força nas botas e lançando uma névoa de vapor em volta deles. Também não eram ajudados pelo fato de o recife sobre o qual eram obrigados a caminhar ser irregular e coberto de ervas escorregadias. De vez em quando, descia bem abaixo da superfície - esses eram os lugares mais traiçoeiros. Will ouviu Chester resmungar enquanto transpunha um desses pedaços invisíveis, murmurando com gratidão quando conseguiu chegar ao lugar onde a água era separada outra vez e o recife se via melhor. Aí a travessia era ligeiramente mais fácil, uma vez que as manchas brancas de espuma davam uma indicação nítida do caminho, e a corrente parecia ser um pouco menos vigorosa.
Cal ia resmungando enquanto avançava e a sua voz atingia frequentemente um tom agudo, como se ele estivesse a implorar que a travessia chegasse ao fim. Não havia nada que Will pudesse fazer para ajudá-lo - cada um dos rapazes tinha um trabalhão apenas para dar o passo seguinte sem escorregar do recife e sem ser arrastado para a superfície de pesadelo à sua esquerda.
Não tinham andado muito quando se ouviu um grande chape, como se uma coisa grande tivesse caído à água.
- Meu Deus! O que foi aquilo? - exclamou Chester, cambaleando em cima do recife ao parar abruptamente.
Will podia jurar que vira de relance uma barbatana caudal larga, de cor clara, a menos de cinco metros deles, mas não podia ter a certeza, no meio de toda aquela água encapelada. Estavam todos a olhar apreensivos para o local, quando a água ficou de novo calma, pouco os ajudando a descobrir o que tinha causado aquilo.
- Mexam-se! - instou Elliott.
- Mas... - disse Chester, estendendo a mão trêmula para a água.
- MEXAM-SE! - repetiu ela, com um grunhido, olhando apreensivamente para a praia que ficara atrás deles. - Nós aqui somos alvos tão fáceis como patos numa barraca de feira.
Demoraram cerca de meia hora a chegar a terra firme outra vez. Deixaram-se cair na areia, na parte da praia a descoberto na maré baixa, vendo o muro de selva compacta à sua frente. Mas Elliott não lhes permitiu nem um momento de pausa, conduzindo-os imediatamente para diante, através de matagais de plantas carnudas e moitas emaranhadas de caules rastejantes com espinhos pretos, cada bocado tão denso como o mato na outra extremidade da passagem.
Chegaram finalmente a uma pequena clareira, com cerca de dez metros de largura, onde Elliott lhes disse que esperassem, partindo presumivelmente para fazer o reconhecimento do resto da zona. Devido à existência de selva em todos os lados, era impossível dizer onde estavam agora, e, naquele preciso momento, nenhum deles pensou sequer nisso. Sentiam-se exaustos e tinham as roupas encharcadas em suor, para o que contribuía a enorme umidade e a ausência total de vento. Quando um inseto estranho passou voando, Will e Chester estavam a partilhar um cantil de água.
Cal tinha escolhido um lugar na clareira tão longe quanto possível de Will e de Chester. Sentado de pernas cruzadas e olhando para o espaço, começou a balançar para trás e para diante, murmurando baixinho qualquer coisa monótona.
- O que se passa com ele? - perguntou Chester em voz baixa, limpando o suor da testa.
- Não sei - respondeu Will, bebendo um grande gole do cantil.
Nessa altura, a voz de Cal tornou-se mais forte e eles conseguiram ouvir fragmentos do seu resmungo: e o escondido não estará escondido aos olhos do...
- Acha que ele está bem? - perguntou Chester a Will, que tinha se encostado atrás, à mochila, e fechado os olhos, expirando longamente.
- ...e seremos nós a ser salvos... salvos... salvos... - divagava Cal.
Will, que não podia sentir-se mais exausto naquela altura, abriu um olho e gritou, irritado, ao irmão.
- Desculpe, Cal? Não consigo te ouvir.
- Não disse nada - respondeu Cal em defesa, sentando-se rigidamente ereto com uma expressão bastante assustada.
- Cal, o que aconteceu lá atrás? - perguntou Chester ao rapaz, hesitante. - O que aconteceu ao Drake?
Cal rastejou para eles e lançou-se imediatamente numa explicação desconexa dos acontecimentos, voltando atrás quando se lembrava de outro pormenor, e, de vez em quando, parando completamente, às vezes a meio de uma frase, para inspirar rapidamente antes de continuar. Depois falou-lhes da sala branca com as celas seladas que se tinham deparado a ele e a Elliott no Bunker.
- Mas esse renegado - aquele que estava vivo -, o que tinha ele? - perguntou Will.
- Tinha os olhos muito inchados e a cara era simplesmente horrível. Estava coberta de furúnculos - disse Cal. - Tenho certeza de que tinha uma doença qualquer.
Will pareceu pensativo.
- Então é isso? - disse.
- O que quer dizer? - interrompeu Chester.
- O Drake sabia que os Styx estavam testando qualquer coisa lá em baixo. Queria descobrir onde o faziam... e porquê.
Então, talvez seja uma doença.
Encolhendo os ombros ligeiramente, Cal continuou com o seu relato de como ele e Elliott tinham escapado para os túneis de lava, e, nessa altura, a sua voz quebrou.
- O Drake podia ter fugido, mas não fugiu para que eu e a Elliott tivéssemos chance de... foi como... como quando o Tio Tam resistiu...
- Ele pode não ter morrido - ouviu-se a voz de Elliott, que fez Cal calar-se. Estava envolta numa mistura de raiva e mágoa.
Atordoados pela sua declaração, olharam todos para ela, para o lugar onde estava, na orla da clareira.
- Nós não tivemos cuidado e eles nos apanharam, mas os Limitadores estavam a disparar para aleijar e não para matar. Se nos quisessem mortos, nem teríamos escapado. - Rodou para olhar de frente para Will, com o seu olhar recriminatório a calciná-lo. - Mas porque querem nos apanhar vivos? Diga lá, Will.
Todos os olhos estavam postos nele quando ele abanou a cabeça.
- Vamos lá, porque será? - insistiu ela, com um grunhido.
- Rebecca - respondeu Will calmamente.
- Oh, meu Deus! - exclamou Chester. - Ela outra vez, não!
Isto fez Cal reagir, e começou a balbuciar uma diatribe monótona, contorcendo as mãos. Agora, todos conseguiam ouvir o que dizia.
- E o Senhor será o salvador daqueles...
- Pare com isso! - atacou-o Elliott. - O que está fazendo? A rezar? - Estendeu a mão e deu-lhe uma grande bofetada na cara.
- Eu... eh... não... - balbuciou, com os braços em volta da cabeça, enquanto se encolhia, pensando que ela ia bater-lhe outra vez.
- Volte a fazer isso e acabo contigo aqui mesmo. Isso é tudo enganação. Eu devia saber, durante anos repetiram-me O Livro de Catástrofes continuamente na Colônia. - Agarrou-o pelos cabelos e abanou-lhe a cabeça sem piedade. - Controle-se, porque isto é tudo o que tem.
- Eu... - começou Cal, quase num soluço.
- Não, ouça o que eu digo, acorde, está bem? Fizeram-lhe uma lavagem cerebral - disse ela em voz baixa, cruelmente, puxando-lhe os cabelos e sacudindo-lhe a cabeça de um lado para o outro. - Não há céu. Lembra-se do tempo antes de nascer?
- Hã? - soluçou Cal.
- Lembra-se?
- Não - gaguejou ele, sem compreender.
- Não! E porque será? Porque nós não somos diferentes de qualquer animal, qualquer inseto ou germe.
- Elliott, se ele quiser acreditar... - começou Chester, incapaz de se manter calado perante o que estava ouvindo.
- Não se meta nisto, Chester! - disse ela bruscamente, sem sequer olhar para ele. - Nós não somos especiais, Cal. Você, eu, nós, todos viemos do nada, e é exatamente para lá que havemos todos de ir um dia, talvez em breve, quer queiramos quer não - Resfolegou de desdém e, com um empurrão, fê-lo cair de lado. - Céu? Ah! Ah! Não me faça rir. O seu Livro de Catástrofes não vale nada!
Num abrir e fechar de olhos, estava em frente de Will. Ele preparava-se, pensando que ia ser o próximo na fila para os maus-tratos que ela distribuía. Mas ela pôs-se à frente dele, em silêncio, com os braços cruzados agressivamente. A posição trouxe-lhe memórias indesejáveis da sua anterior irmã, que ele tentava expulsar da mente. Rebecca tinha-se posto muitas vezes à frente dele exatamente desta maneira, em Highfield, chateando-o por levar lama para o carpete ou coisas assim, infrações insignificantes. Mas isto era diferente, isto era uma questão de vida ou de morte, e ele estava exausto ao ponto de desfalecer, e não conseguia enfrentá-la.
- Você vem comigo - rosnou ela.
- O que quer dizer? Aonde?
- Você é que nos meteu nisto, portanto, que diabo, pode muito bem ajudar - disse bruscamente.
- Ajudar em quê?
- Vamos voltar à base.
Franzindo-lhe o cenho, Will não conseguiu entender o que ela estava a dizer.
- Eu e tu vamos voltar à base - disse ela outra vez, pronunciando com clareza cada palavra. - Entendeu? Buscar equipamento e provisões.
- Mas eu não consigo fazer todo o caminho de volta. Pura e simplesmente, não consigo - queixou-se. - Estou exausto... preciso descansar... de comer...
- Paciência.
- Porque não avançamos para a próxima base? O Drake e disse...
Ela abanou a cabeça.
- É muito longe.
- Eu...
- Levante-se.
Ela atirou-lhe a mira suplementar da espingarda e ele pôs-se em pé devagar, sabendo que ela não ia corresponder ao seu pedido.
Lançando um olhar desamparado a Chester, Will saiu da clareira e seguiu-a através da folhagem compacta até à passagem sobre a água.
Era como se vivesse um terrível pesadelo. Estava cansado ao ponto de cair, e isto era a última coisa que ele queria enfrentar. Nem num milhão de anos podia ter previsto que ia ter de fazer aquilo novamente, pelo menos tão cedo. Mas, quanto mais não fosse, sabia o que o esperava desta vez.
A água veloz irrompia-lhes com força em torno dos calcanhares e borrifava-lhes as pernas. Quando apontaram as luzes tênues à sua frente, as duas figuras recortaram-se, solitárias, no vasto deserto de água que os rodeava.
No fim da travessia, Will já não pensava. Anestesiado pela fadiga absoluta, seguia mecanicamente Elliott, um pé à frente do outro, arrastando-se sobre a extensão de areia, até que chegaram à orla da floresta.
- Pare aqui - ordenou ela, e, à luz da lanterna, começou a dar pontapés às plantas mais próximas. Procurava qualquer coisa que estava guardada na areia descolorida, em volta das raízes lenhosas e cheias de nós das plantas carnudas.
- Onde está? - disse para si própria, enfiando-se mais no matagal. - Ah! - exclamou, baixando-se para apanhar uma pequena planta em forma de rosácea que estava aninhada na intersecção de duas enormes raízes na base de uma das árvores maiores. Desembainhou a faca que usava para cortar as folhas cinzentas, deixando-as cair em volta dos pés, até só restar o coração da planta. Continuou a aparar a planta e, em poucos segundos, tinha-a reduzido a algo que parecia uma espécie de noz, que descascou cuidadosamente, jogando fora pedaços do invólucro lenhoso. Depois começou a trabalhar o caroço, que tinha aproximadamente o tamanho de uma amêndoa, cortando-o em tiras. Cheirou-as antes de estender a mão a Will, oferecendo-lhe algumas.
- Mastige isso - disse ela, e depois chupou um pedaço que estava colado à lâmina da faca, metendo-o na boca. - Não engula. Mastigue só, devagar.
Ele acenou, hesitante, triturando as tiras fibrosas entre os incisivos. Libertaram uma acidez forte, que o obrigou a fazer uma careta.
Ela observou-o, servindo-se de outra tira e levando-a à boca com um dedo imundo.
- Tem um gosto horrível - disse ele.
- Espere um tempo, vai ajudar.
Tinha razão. À medida que mastigava, espalhava-se uma frescura pelos membros. Era uma sensação agradável no meio do calor e da umidade constantes, e, com ela, veio uma onda de energia que venceu o peso das pernas e dos braços, que pareciam chumbo. Sentiu-se renovado, forte... pronto para o que quer que fosse.
- Que diabo é isto? - perguntou, endireitando os ombros, voltando-lhe a curiosidade com enorme energia. - Cafeína? - A única sensação com que podia comparar esta teve-a quando a irmã fez café a sério em casa e ele provou um pouco. O entusiasmo temporário tornou-o irritadiço, e ele não gostou nada do gosto que lhe deixou na boca.
- Cafeína? - repetiu?
- Uma coisa parecida - replicou Elliott com um sorriso despreocupado. - Ande. Vamos.
Descobriu que era capaz de acompanhar o ritmo de Elliott quando avançaram a toda a velocidade. Deslocando-se com a rapidez e a ligeireza de dois gatos, atravessaram a parte da praia descoberta pela maré vazia e depois subiram a encosta de seixos que iria levá-los até ao muro da caverna e aos túneis de lava.
Will perdeu completamente a noção do tempo e pareceu-lhe que alcançaram a base em coisa de minutos, embora soubesse muito bem que devia ter demorado consideravelmente mais tempo. Foi como se não tivesse feito qualquer esforço, como se estivesse fora do seu próprio corpo, um espectador a observar outra pessoa a transpirar e a respirar com dificuldade devido ao exercício despendido a viajar tão fenomenalmente depressa.
Elliott subiu pela corda e ele seguiu-a. Uma vez os dois dentro da base, Elliott girou por ali como um furacão, escolhendo os diversos artigos que iam levar. Numa pressa louca, corria de zona para zona, como se tivesse tudo planejado precisamente para esta eventualidade e soubesse com exatidão o que fazer.
Na sala principal, que Will só tinha visto uma vez, arrancou equipamento dos ganchos da parede e arrebatou todo o tipo de coisas das prateleiras dos velhos cacifos de metal. Em menos de um ai, o chão tornara-se um mar de coisas jogadas fora, que ela pontapeava, impaciente, quando lhe bloqueavam o caminho. Pousou o equipamento que iam levar na parte de dentro da porta. Sem lhe ser pedido, Will começou a arrumá-lo em duas mochilas de tamanho considerável e em dois sacos grandes com fechos de cordão.
De súbito, ela ficou em silêncio. Will levantou os olhos do local onde estava ajoelhado, junto à porta. Não a via, pois ela estava atrás de um dos beliches, onde tinha estado a tirar equipamento do armário de Drake. Will levantou-se quando ela apareceu lentamente do outro lado da cama. Parecia preocupada com o que quer que fosse que tinha nas mãos, transportando-o de tal modo que Will percebeu a sua reverência pelo objeto.
- O óculo frontal suplementar do Drake - anunciou, quando, parando à frente dele, lhe estendeu as mãos como que esperando que ele o agarrasse.
Will olhou para a correia de cabedal com a sua ocular esbranquiçada, e para os cabos que pendiam até uma caixinha retangular que, por não estar segura, balançava suavemente no ar.
- Hã? - disse, franzindo o cenho.
Ela não respondeu, mas chegou-o mais para ele.
- Para mim? - perguntou ele ao pegar-lhe. - Sério?
Ela confirmou, acenando a cabeça.
- Onde Drake arranjou isto? - questionou ele, examinando o óculo frontal.
- Fê-lo. Era isso que ele fazia na Colônia... os cientistas levaram-no para lá.
- O que quer dizer com levaram-no para lá? - perguntou Will rapidamente.
- Ele era uma pessoa da Superfície, tal como você.
- Eu sei, ele me disse - confirmou Will.
- Os Styx apanharam-no. De vez em quando vão à Superfície raptar pessoas com as aptidões de que eles precisam.
- Não - disse Will em voz baixa, com absoluta incredulidade. - Então quais eram as aptidões de Drake? Estava no exército ou alguma coisa do gênero? Tipo comando?
- Era engenheiro de óptica visual - disse Elliott, pronunciando as palavras com todo o cuidado como se estivesse a experimentar a língua numa nova linguagem desconhecida. - Também fez isto. - Levou a mão à mira telescópica da arma que tinha ao ombro.
- Está gozando - disse Will, tomando o peso ao aparelho com as mãos.
Lembrou-se de que Elliott dissera que os Styx tinham raptado alguém com capacidade para desenvolver instrumentos que lhes permitissem ver através da escuridão. Mas Drake? Imagens dele faiscaram na cabeça de Will: o homem magro, cheio de cicatrizes, que lhe inspirava tanto respeito, ao lado de cromos estereotipados, de batas brancas, curvados sobre equipamentos eletrônicos nos seus laboratórios. As duas coisas eram incompatíveis na sua mente e desconcertavam-no.
- Eu pensava, na verdade, que ele tinha sido uma espécie de soldado - murmurou Will, abanando a cabeça de incredulidade. - E que fora Banido da Colônia, como você.
- Eu não fui Banida!
Elliott respondeu com tal ardor que Will só foi capaz de emitir um grunhido apologético.
- Quanto ao Drake... os Styx obrigaram-no a trabalhar nessas coisas. Entende o que eu estou dizendo?
Will hesitou na resposta.
- Torturaram-no?
Ela acenou com a cabeça.
- Até ele fazer o que eles queriam. Arrastavam-no aqui para as Profundezas para testá-las no terreno, mas chegou o dia em que ele viu a sua oportunidade e tentou fugir. Eles devem ter pensado que tinham tirado dele tudo o que podiam porque não vieram aqui ver.
- Isso é assustador - disse Will. - Então ele era cientista, investigador... um pouco como o meu pai.
Elliott fez uma careta como se não fizesse ideia nenhuma do que Will estava dizendo e não tivesse mais nada a acrescentar. Voltou ao armário do outro lado do beliche, ao qual continuou a tirar o conteúdo, lançando de vez em quando um objeto estranho para cima da cama.
Sustendo a respiração, Will pôs cuidadosamente o óculo frontal.
Ajustando a correia à testa, assegurou-se de que a lente estava corretamente posicionada sobre o olho, testando-a através de movimentos para cima e para baixo. Quando enfiou a caixa retangular dentro de um bolso das calças, teve consciência de quão incrivelmente desconfortável se sentia com aquele dispositivo. Achou que era difícil explicar, mas que de certa maneira não era digno de usá-lo.
Talvez no princípio, quando ele conheceu Drake e ficou surpreendido com o curioso aparelho, tivesse havido uma emoção, uma excitação por o usar, mas agora, não. No espírito de Will, tinha-se tornado um emblema do domínio de Drake sobre aquele mundo subterrâneo, um símbolo do estatuto do homem, como uma coroa. Falava-lhe da vontade de Drake de se virar contra os Styx, e da sua supremacia sobre o bando heterogêneo de Renegados que deambulavam pelas Profundezas - e, na opinião de Will, Drake estava à parte destes. Era a encarnação de tudo aquilo que Will gostaria de vir a ser: corajoso, prático e sem prestar contas a ninguém.
Elliott reuniu mais algum equipamento nos braços e levou-o para as mochilas. Deixando-o no chão, passou por Will sem sequer olhar para ele de relance e desapareceu no corredor. Voltou uns minutos depois com uma caixa de cilindros de algodão-pólvora.
- Arrume isto e depois vamos embora.
Will colocou os cilindros de algodão-pólvora nas mochilas, que transportou para a entrada da base juntamente com os outros sacos. Atou a extremidade da corda em volta daquilo tudo e, embora fosse um grande volume, conseguiu fazê-lo descer até ao chão do túnel, por baixo deles. Não gostou muito da perspectiva de levar aquilo para a ilha onde Cal e Chester estavam à espera - pesava uma tonelada, e ele calculava que ele é que teria de aguentar com a maior parte.
Enquanto aguardava, junto da ponta da corda, que Elliott terminasse, reparou que ela caminhava lentamente de sala em sala.
Não sabia se estaria a verificar se não se tinha esquecido de nada, ou apenas a dar uma última olhadela, suspeitando que poderia nunca mais voltar a ver aquele lugar.
- Ok. Vamos - disse ela, quando se lhe juntou à entrada.
Desceu pela corda e, assim que se encontraram ambos no fundo, ele desatou as mochilas e os sacos. Quando se endireitou, notou que tinha havido uma mudança nela. Parecia estar lendo alguma coisa, um rolo de tecido.
- O que é isso? - disse ele.
Ela disse-lhe rudemente que ficasse calado. Depois de acabar, dirigiu o olhar para ele.
Will devolveu-lhe simplesmente o olhar.
- A mensagem é sobre o Drake... estava pregada na corda - respondeu ela. - É de outro renegado.
- Mas... mas eu só deixei a... eu não vi ninguém - gaguejou Will, perscrutando as sombras e com medo de que fossem sofrer uma emboscada de pessoas da laia do Tom Cox.
- Não, não podia ver, e, de qualquer modo, isto é de alguém que nós conhecemos, de um amigo. Temos de nos apressar - disse ela.
De um dos sacos tirou a maior carga que Will tinha visto até então. Fixou com firmeza a caixa, de um tom cinzento-metálico e do tamanho de uma grande lata de tinta, ao muro de pedra sob o qual a corda estava suspensa, depois recuou para o lado oposto do túnel, desenrolando um arame quase invisível atrás de si. Will não teve de perguntar o que estava ela a fazer. Colocava um poderoso explosivo para o caso de alguém ir à procura da base - tão poderoso que aquele lugar ficaria todo debaixo de toneladas de escombros.
Experimentou a sua obra, puxando o arame muito esticado, que lançou um ameaçador som metálico. Depois de puxar para fora a cavilha para a armar, voltou para junto de Will.
- Então e agora? Levamos isto conosco? - perguntou ele, apontando para os sacos.
- Esqueça.
- Não vamos voltar para a ilha?
- Mudança de planos - disse ela, os olhos a brilharem com uma determinação feroz, o que instantaneamente fez Will perceber que as coisas não iam ser tão lineares como ele esperara.
Nessa altura, percebeu que ela tinha qualquer outra coisa em mente e que eles não iam voltar para trás para se reunirem aos outros.
- Oh - disse Will, quando se deu conta.
- Temos de chegar ao outro lado da planície e depressa. - Sem razão aparente, ela olhou furtivamente para um e outro lado do túnel, cheirando várias vezes.
- Porquê? - perguntou Will, ao que ela levantou a mão, silenciando-o.
Ele também ouviu. Um gemido baixo. Enquanto escutava, o gemido tornou-se cada vez mais forte, até se transformar num uivo, e ele sentiu a brisa suave na cara, e viu-a puxar com força uma das pontas do lenço shemagh frouxamente enrolado em volta do pescoço de Elliott.
- Um Levante - disse ela e depois exclamou: - Vem aí o vento. Que grande sorte!
Aquilo era demais para Will. Cambaleou como se fosse desfalecer. Isso não passou despercebido a Elliott, que olhou para ele com preocupação. Vasculhou no bolso e depois ofereceu-lhe mais um pouco da raiz. Ele pegou em vários pedaços e mastigou-os melancolicamente, saboreando a acidez enquanto ela se espalhava sobre a língua.
- Melhor? - perguntou ela.
Ele acenou, reconhecido, vendo nos olhos dela não a preocupação de uma amiga, mas algo frio e desprendido, um profissionalismo clínico. Precisava de alguém que a ajudasse naquilo que iam fazer; na realidade, estava pouco se impostando com ele.
- Experimente o óculo frontal - ordenou, enquanto ele continuava a mastigar.
Ele acenou com a cabeça, puxando a lente para baixo, procurando depois o interruptor na caixa que tinha no bolso e ligando-o. Houve um som fraco, que começou a crescer, atingindo um tom agudo, e depois desceu em oitavas para um som mais baixo, tão pouco audível que ele não era capaz de dizer se estava a senti-lo através do crânio ou a ouvi-lo.
- Feche o olho esquerdo; use só o que está atrás da lente - ensinou-lhe Elliott. Ele fez o que ela disse, mantendo o olho esquerdo fechado, mas não conseguia ver nada com o olho direito, contra o qual a lente estava firmemente comprimida, pois a ventosa de borracha bloqueava a luz, da lanterna de Elliott, que ela tinha no mínimo. Então, precisamente quando começava a pensar que o aparelho devia estar defeituoso, uns vagos pontinhos minúsculos principiaram a girar, como se águas oceânicas estivessem a ser agitadas e revelassem uma fosforescência misteriosa vinda das suas profundezas. Mas, embora parecesse ser cor de âmbar, como o que se via através da mira telescópica da espingarda, estava a transformar-se rapidamente num amarelo mais vivo, até que todos os pontos se uniram com um brilho tão assustador que quase machucava. Ficou tudo intensamente visível, como se estivesse banhado por uma crua luz solar. Olhou à sua volta, para as mãos impregnadas de sujeira, para Elliott, que prendia o lenço shemagh sobre a cara, para as espirais de escuridão difusa que rolavam na direção deles, ao longo do túnel, à medida que o Levante se aproximava.
Ela viu que ele tinha reparado nas nuvens escuras que se aproximavam velozmente.
- Já esteve alguma vez num Vento Negro? - perguntou.
- Não num - disse ele, lembrando-se da altura em que ele e Cal tinham visto as nuvens invadirem a rua da Colônia, mas por trás de janelas fechadas. Will lembrou-se das palavras de Cal nesse momento, quando o rapaz imitou a voz nasalada dos Styx:... pernicioso para aqueles que o respiram...
Will olhou rapidamente para Elliott.
- Não são venenosas ou qualquer coisa assim?
- Não - fungou ela, troçando -, é só pó, pó comum, ou pó do jardim, que sopra do Interior. Não deve acreditar em tudo aquilo que os Pescoços Brancos te dizem.
- E não acredito - respondeu Will, indignado.
Ela ergueu a espingarda e virou-se na direção da Grande Planície.
- Vamos.
Ele seguiu-a, com o coração a bater com força contra a caixa torácica, tanto pelo efeito da estranha raiz como pela expectativa em relação àquilo que poderiam estar prestes a fazer. Estava animado pela visão tipo raios X que o óculo lhe proporcionava, atravessando a escuridão como um holofote invisível.
Chegaram à galeria dourada no fim do túnel e depois ao poço coletor. Assim que Will emergiu da água, do outro lado, viu que a paisagem já estava entretecida de laivos diáfanos de escuridão. As nuvens, que pareciam espuma, entravam rapidamente em ambos os lados do seu campo de visão, como duas mãos de luvas pretas a apertarem-se, e iriam rapidamente esconder tudo por completo. Teve consciência de que o aparelho de visão noturna de Drake não lhe serviria absolutamente de nada naquelas condições.
- Estas tempestades são muito cerradas - não vamos perder-nos? - perguntou a Elliott, enquanto o vento uivava em torno deles em rajadas cada vez mais fortes, e a negrura se espalhava na sua direção.
- De maneira alguma - disse ela, com desdém, passando um pedaço de corda em volta da cintura antes de lhe dar um nó, e estendendo-lhe depois a outra ponta para ele atar à cintura dele.
- Para onde isto for, você também vai - disse ela. - Mas se sentir que eu a puxo duas vezes, pare imediatamente. Entendeu?
- Está bem - respondeu ele, sentindo-se um pouco à margem de toda a situação.
Caminharam velozmente, mergulhando no negrume de tal maneira que ele não conseguia vê-la, embora ela estivesse apenas uns metros à sua frente. Sentia o nevoeiro, como fumaça, dentro das narinas e na cara, cobrindo-o de um pó fino e seco. Por várias vezes foi obrigado a apertar o nariz para reprimir um espirro, e o olho esquerdo, não protegido pelo dispositivo de visão noturna, estava colado e a lacrimejar.
Continuou a mastigar a raiz resolutamente, ao ritmo de cada passada, como se disso pudesse retirar mais energia. Algum tempo mais tarde, a raiz estava reduzida a algumas fibras, e depois não restava nada além de uma pasta fina que se colava por baixo da língua - e ele não tinha certeza quanto disso se devia à inalação das partículas de pó do Vento Negro.
Sentiu dois puxões e estacou imediatamente, agachando-se enquanto perscrutava à sua volta, vigilante. Elliott deslizou da névoa em direção a ele e ajoelhou-se, fazendo-lhe sinal, com um dedo nos lábios, para ficar calado.
Encostou-se a ele até o lenço shemagh que lhe cobria a boca roçar na orelha dele.
- Escute - sussurrou através do lenço.
Pôs-se a escutar e ouviu o uivar longínquo de um cão. Depois, passados uns segundos, ouviu-se um grito horrível.
O grito de um homem.
Da mais atroz agonia.
A cabeça de Elliott estava inclinada para o lado, e os seus olhos - a única parte dela que ele conseguia ver - não lhe diziam nada.
- Temos de nos apressar.
Os gritos, horríveis e longos gemidos de sofrimento, eram transportados pelo ar, para a frente e para trás, como que canalizados entre as cortinas de fumaça, que por vezes se dissipavam para lhes darem um vislumbre momentâneo do chão, ou formavam corredores estranhos e inconstantes pelos quais eles caminhavam.
Cada vez mais fortes, ouviam-se os gritos, acompanhando uivos baixos de cães, como se uma horrível ópera saída do Inferno estivesse a ser cantada.
Quando o terreno começou a levantar-se debaixo dos pés de Will e a sua bota estalou sobre um cristal com tonalidades rosa - uma rosa-do-deserto -, soube imediatamente que estavam a subir a encosta para a grande clareira em anfiteatro onde Drake e Elliott o tinham apanhado de surpresa, a ele e a Chester. O mesmo lugar onde ele testemunhara o assassinato horrível de renegados e de Coprolites perpetrado pelos Limitadores.
Ouviu-se um grito agudo. Era difícil dizer exatamente o que tinha produzido o som - era mais animal do que humano. Imediatamente a seguir, houve um grito súbito, de dilacerar a alma. Will não foi capaz de localizar com precisão a sua direção - era como se tivesse alcançado o teto de pedra, lá em cima, e estivesse a cair e a espalhar-se numa chuva de barulho em toda a sua volta. A combinação desse barulho, que lhe fez o estômago revolver-se de medo, com a memória das ações assassinas dos Styx fê-lo desejar cair sobre a superfície solta da encosta e enrolar os braços à volta da cabeça. Mas não podia; a corda entre ele e Elliott era intransigente, impelindo-o a continuar, arrastando-o para as névoas negras e em direção a algo que ele sabia instintivamente que não ia querer ver.
Ela puxou duas vezes e ele parou.
Estava ao seu lado antes de ele dar por isso. Fez-lhe sinal para avançar com um gesto lento da mão, que terminou com umas palmadinhas carinhosas. Ele disse que sim com a cabeça, compreendendo que ela queria que avançasse com cuidado atrás dela, mantendo-se tão baixo quanto possível.
Enquanto rastejavam, ela passou o tempo a parar sem qualquer aviso. Ele bateu com a cabeça nas botas dela várias vezes, recuando de cada vez para lhe dar espaço. Ela não parava por muito tempo, e Will calculou que estava provavelmente à escuta para verificar se havia alguém por perto.
Parecia que o Vento Negro abrandava um pouco. Pequenas extensões da encosta revelavam-se à frente deles, cenas indistintas da superfície lunar. O aparelho de visão noturna de Will falhava ocasionalmente, e depois havia uma tempestade de neve estática antes de estabilizar de novo. Estas falhas temporárias duravam apenas frações de segundo, mas, por qualquer razão, traziam-lhe à memória o tempo em que a mãe - ou madrasta, como tinha sempre de recordar a si próprio - apanhava uma fúria porque a sua querida televisão estava a funcionar mal. Will abanou a cabeça - esses dias eram tão sossegados e despreocupados, e tão ridiculamente insignificantes.
E, como que a recordá-lo de onde estava, os gritos angustiantes que tinha ouvido antes ergueram-se outra vez, algures mais adiante. Embora viessem de longe, ouviam-nos agora com muito mais nitidez, e o seu efeito sobre Elliott era eletrizante. Parou e olhou para trás, para ele, por cima do ombro, com os olhos furtivos e aterrados. O medo dela era contagioso - ele sentiu-o escorrer-lhe pelo corpo como uma onda fria, tanto mais porque não sabia por que razão tinham ido ali.
O que era? Qual era o problema?
Estava confuso. Se era a repetição do massacre que testemunhara ali, com Chester, então não teria justificado uma resposta assim da parte dela. Nessa ocasião conseguira manter-se calma, apesar de o incidente ter sido muito perturbador.
Continuaram a rastejar, braço após braço, os joelhos a deslizarem sobre o solo calcário, subindo a ladeira palmo a palmo até o vento lhes bater com mais força na cara e levantar minúsculos tornados à sua volta.
A cortina de carbono do Vento Negro estava retrocedendo pouco a pouco.
Chegaram à borda da cratera.
A espingarda de Elliott já estava erguida.
Ela dizia qualquer coisa, abafada e indistinta sob as camadas de tecido que tinha sobre a boca e que agora afastava, comprimindo a face com força contra a coronha da espingarda. Tremia e o cano da espingarda oscilava, inseguro. Não parecia ela. Porquê? O que se passava?
Estava tudo se passando depressa demais para o gosto dele. Tentou ver o que havia lá à frente, desejando ter levado consigo a mira telescópica suplementar.
A lente que tinha sobre o olho voltou a estalar devido à eletricidade estática, como o clarão de uma máquina, e depois ele concentrou-se na cena. Havia luzes sobre tripés, dispostas arbitrariamente, e uma grande quantidade de figuras, demasiado distantes para ele distinguir qualquer pormenor. Um véu de nuvens de pó flutuava em vários lugares no espaço intermédio, como cortinas que se moviam ao acaso e lhe passavam à frente da vista, umas vezes afastando-se para revelar a cena, outras, fechando-se para a obscurecer.
Já não era capaz de ficar quieto. Dirigiu-se a Elliott, enrolando a corda que ainda os ligava, enquanto caminhava.
- O que é? - sussurrou.
- Eu acho... eu acho que é o Drake - respondeu ela.
- Então está vivo? - sibilou ele.
Ela não respondeu, pondo fim ao otimismo inicial dele.
- Têm-no prisioneiro? - perguntou.
- Pior do que isso - disse ela, com voz tensa. Estremeceu ligeiramente. - O Tom Cox... está aqui. Passou para o outro lado... está trabalhando com os Styx. - A sua voz transformou-se um som rouco, que foi engolido pelo uivar do vento.
- O que estão eles fazendo ao Drake?
Enquanto continuava a olhar pela mira da espingarda, Elliott mal conseguia falar.
- Se, de fato, é ele, eles estão... um Limitador está... - Levantou a cabeça da espingarda e abanou-a violentamente. - Estão a torturá-lo na estaca. O Tom Cox está... está a rir-se ... aquele estafermo maldito...
Outro gemido de agonia, ainda mais terrível do que o último, interrompeu-a.
- Não posso ver mais... não posso permitir que isto continue - disse ela, cerrando os dentes determinadamente e olhando a direito para os olhos de Will, as suas pupilas pareciam da cor do âmbar mais profundo e mais escuro devido ao aparelho de visão noturna. - Tenho de... ele faria o mesmo por mim... - continuou, enquanto ajustava a ampliação da mira, aumentando-a vários níveis.
Enterrando os cotovelos no solo e firmando os braços para estabilizar o movimento da espingarda, inspirou e expirou várias vezes, numa sucessão rápida, depois susteve a respiração final.
Will observava-a, mudo, incapaz de acreditar no que ela estava prestes a fazer.
- Elliott? - perguntou, com a voz a tremer. - Você não vai...?
- Não posso disparar... as nuvens... não vejo... - disse ela, deixando sair o ar.
Os segundos passavam, longos como anos.
- Oh, Drake - disse ela, tão baixinho que mal se ouviu.
Depois inspirou outra vez e fez pontaria.
Disparou.
O estalido da espingarda provocou um grande choque em Will. A detonação ecoou em toda a volta, fluindo através da planície e voltando para ele, vezes sem conta, até ficar apenas o choro do vento de novo nos seus ouvidos.
Will não conseguia acreditar no que ela tinha feito. Olhou para a distância pouco nítida, depois para ela. Ela estava a tremer horrivelmente.
- Não sei se consegui... as malditas, malditas nuvens... eu...
Manuseou o ferrolho da espingarda para colocar outra bala, e então, subitamente, estendeu a arma a Will.
- Olhe você.
Ele recuou.
- Pegue-a - ordenou-lhe.
Relutantemente, fez o que ela lhe mandou, não querendo ver o que estava lá ao fundo, mas sabendo que não podia recusar. Segurou a espingarda exatamente como tinha visto Elliott fazer e, movendo a lente para cima do olho, espreitou através da mira telescópica. A mira estava fria e úmida, mas agora ele não podia pensar nisso. Tentava focar o grupo lá ao fundo, na base da cratera. A mira estava ajustada para uma grande ampliação e, com as suas mãos inexperientes, girava-a erraticamente ao tentar localizá-los.
Lá está! Viu de relance um Limitador!
Girou-a outra vez para onde o tinha visto. Outro Limitador! Não, era o mesmo, sozinho. Will manteve a espingarda firmemente sobre ele, com a cara assustadora do Styx nitidamente focada. O coração de Will caiu-lhe aos pés ao ver que o Limitador estava olhando para cima, para o cume onde ele e Elliott se encontravam. Depois Will viu outras figuras a correrem atrás dele, outros Styx. Afastou a mira do homem.
Onde está o Drake?
Depois aproximou-se, encontrando a figura mirrada de Tom Cox, com qualquer coisa na mão. Brilhava à luz - segurava uma lâmina de qualquer espécie. Depois, perto dele, Will viu a estaca. Nela, havia um corpo. Pensou reconhecer o casaco. Drake!
Will tentou não olhar muito bem para o que estava ali. Nisso foi ajudado pela enorme distância e pelas nuvens remanescentes do Vento Negro. Exatamente quando fazia um esforço para se controlar, reparou que havia algo escuro, pulverizado, em volta de Drake, sobre o chão. Através da mira, não era vermelho, mas mais escuro, e refletia a luz, mais como bronze fundido. Will ficou com suores frios e começou a sentir-se fraco.
Isto não é verdade, eu não estou aqui.
- Atingi-o? - pressionou-o Elliott.
Will virou a espingarda para cima, de modo que só podia ver a cabeça de Drake.
- Não sei...
Will não conseguia ver a cara de Drake, pois a cabeça pendia-lhe para a frente.
Detonações de tiros distantes ecoaram na direção de Will e de Elliott. Os Limitadores não perdiam tempo a devolver o fogo.
- Will, concentre-se... eles estão vindo na nossa direção - sibilou-lhe Elliott. - Tenho de saber se consegui.
Will tentou manter a espingarda fixa sobre a cabeça de Drake. As nuvens rodopiavam no seu campo de visão.
- Não consigo ver...
- Tem de ver! - disse ela bruscamente, com a voz distorcida pelo desespero.
Nessa altura, a cabeça de Drake mexeu-se.
- Cristo! - soprou Will, com absoluto horror. - Parece que ainda está vivo. - Tenta não pensar, disse a si próprio.
- Meta-lhe outra bala... depressa - implorou.
- Nem pensar! - disse Will, furioso.
- Faça isso! Acabe com o seu sofrimento.
Will abanou a cabeça. Eu não estou aqui. Não sou eu. Isto não está a acontecer.
- Nem pensar - sibilou de novo, sentindo que ia chorar. - Não posso fazer isso!
- Faça! Não temos tempo. Daqui a pouco eles estarão aí.
Will levantou a espingarda e inspirou, trêmulo, pela boca cerrada.
- Não puxe o gatilho... aperte-o... suavemente... - disse Elliott.
Desviou as linhas da mira telescópica da cabeça de Drake, que de vez em quando se erguia um pouco, balançando, e depois vergava outra vez como se ele não tivesse força para a ter levantada, e pousou-os diretamente no seu peito. Will disse a si próprio que seria menos provável falhar aí. Mas aquilo era tudo uma loucura, era de doidos. Na realidade, não lhe estava na massa do sangue matar alguém.
- Não posso fazer isto.
- Tem de fazer - suplicou ela. - Ele o faria por nós. Tem de...
Will tentou bloquear a sua mente. Isto não é real. Eu estou a ver um filme. Estas ações não são minhas.
- Ajude-o - disse ela. - Agora!
Todo o corpo de Will ficou tenso, revoltando-se contra o que sabia que tinha de fazer. A intersecção das linhas da mira movia-se de um modo pouco seguro, mas estava mais ao menos no lugar certo, em cima do peito do homem que ele tanto admirava, agora horrivelmente mutilado. Vá, vá. Vá! Aumentando a pressão no gatilho, fechou os olhos. A espingarda disparou. Ele gritou quando ela deu um tranco nas suas mãos e a mira telescópica lhe bateu na testa ao saltar. Nunca disparara uma espingarda e tinha posto o olho perto demais dela. Fazendo caretas e respirando rapidamente, começou a baixar a arma.
O cheiro forte de pólvora provocado pelo tiro encheu as narinas de Will, um cheiro que lhe fez lembrar a noite de Guy Fawkes, mas que a partir daquele momento significaria para ele algo completamente diferente. E, mais do que isso, era como se Will ficasse agora marcado para sempre, como se as coisas nunca mais fossem como eram. Vou transportar isto comigo até ao dia da minha morte. Posso ter matado um homem!
Elliott encostou-se a Will, passando os braços pelos dele, as faces a tocarem-se enquanto ela manuseava o cilindro da espingarda. Uma parte da sua mente registrou esta intimidade, mas ela não significava nada naquele momento. O cartucho usado saltou para a escuridão quando uma nova bala foi metida na câmara. Will tentou entregar-lhe a arma, mas ela empurrou-a de novo para ele, virando a boca da arma para cima. - Não! Certifique-se! - ordenou ela, com um silvo.
Will pôs o olho novamente na mira, tentando localizar a estaca e o corpo de Drake. Não conseguiu. A mira estava a fazer zoom de um lado para o outro, desfocada. Depois encontrou-o, mas o braço em que se apoiava escorregou. Voltou a tentar.
Então viu...
Rebecca.
Estava entre dois Limitadores altos, em algum lugar à esquerda de Drake.
Olhava na direção dele. Diretamente para Will.
Sentiu-se a cair.
- Viu-o? - perguntou Elliott, com voz rouca.
Mas Will estava concentrado em Rebecca. O cabelo dela estava puxado para trás, muito esticado, e ela usava um dos casacos compridos dos Limitadores com remendos quadrados de camuflagem.
Era ela.
Viu-lhe a cara.
Estava a sorrir.
Acenou.
Mais tiros soaram, cuspes de chumbo que furavam o que restava das nuvens indistintas. À medida que os Limitadores se aproximavam com as suas espingardas, os tiros aterravam mais perto dele e de Elliott, um deles tão próximo que foram bombardeados por pedaços de rocha.
- Conseguiu?
- Acho que sim - disse ele a Elliott.
- Certifique-se - suplicou ela.
Examinou rapidamente o corpo de Drake e a estaca, mas Rebecca estava outra vez no seu campo de visão, bem nítida. Parecia ter tirado o casaco no curto período de tempo que decorrera desde que a tinha visto pela última vez, e, ainda mais inexplicavelmente, fora para o outro lado da estaca. Ele não conseguia compreender, mas de repente pensou como seria fácil matá-la. Todavia, embora tivesse podido ter acabado de matar Drake, sabia que não tinha estômago para matar Rebecca. Apesar do ódio extremo que sentia por ela.
- Então? - disse Elliott, interrompendo-lhe os pensamentos.
- Sim, acho que sim - mentiu ele, enquanto lhe estendia a espingarda outra vez.
Não fazia ideia se tinha atingido Drake, e não queria saber - preferia deixar as coisas assim. Fizera os possíveis por disparar, para não desiludir Elliott ou, nestas circunstâncias, Drake, mas, pura e simplesmente, não queria saber. Era demais, um passo grande demais para ele dar.
E Rebecca. Tinha ali estado enquanto aquela tortura medonha prosseguia.
A sua irmãzinha!
A sua cara sorridente, a sua cara presunçosa, convencida - a mesma cara que o tinha confrontado vezes sem conta quando ele chegava tarde para o jantar ou levava lama para o carpete do hall ou deixava a luz acesa na casa de banho... um sorriso reprovador e superior que mostrava autoridade e mesmo domínio... era mais do que ele podia aguentar. Tinha de escapar, de fugir. Levantou-se, puxando Elliott com ele por causa da corda.
Correram como loucos pela encosta abaixo, o mais depressa que podiam, Will quase levando Elliott pelo ar.
Quando chegaram ao fim do declive, houve um clarão. Amplificado pela lente do aparelho de Drake, atingiu-lhe o olho com um brilho abrasador, doloroso. Soltou um gemido. Supôs imediatamente que eram os Limitadores, mas, não, era a tempestade elétrica que se seguia sempre a um Vento Negro. Os cabelos e os pêlos dos braços que estavam descobertos tinham-se posto em pé devido à eletricidade estática.
Monumentais bolas cintilantes provocadas pela descarga elétrica balançavam e ondulavam em volta deles, e depois houve outro clarão ofuscante e um estalo ensurdecedor, como de um chicote. Um raio azul semelhante a uma enorme língua de serpente passou horizontalmente sobre o chão à sua frente, depois dividiu-se em dois, multiplicando-se cada ramificação em muitas mais, até que os ramos minúsculos desapareceram completamente. O ar estava denso com o cheiro do ozônio, tal e qual como se fosse uma trovoada autêntica.
- Apague isso! - ouviu Elliott gritar, mas ele já estava à procura do interruptor de cobre na caixa que tinha no bolso. Não precisava que lhe dissessem que a luz intensa podia avariar o aparelho de visão noturna. De qualquer modo, havia tantas bolas de luz agressiva a saírem das nuvens de pó remanescentes e a vaguearem sobre a planície em todas as direções, que toda a área ficou iluminada como um jardim na noite de Guy Fawkes.
Will e Elliott corriam, não se desviando da sua rota quando estas esferas crepitantes, algumas do tamanho de bolas de praia excessivamente cheias, pairavam e se erguiam em torno deles.
Will ouviu tiros. Os Limitadores aproximavam-se, mas em toda aquela confusão era impossível dizer quão perto estavam. Depois, ouviu o ladrar feroz de cães.
- Farejadores! - gritou a Elliott.
Ela tirou alguma coisa do casaco, uma saco plastificado, e rasgou-lhe a parte de cima. Parecia estar a espalhar pó sobre o chão à medida que corriam.
Ele lançou-lhe um olhar interrogador, com o peito a arfar do esforço da corrida. Mas ela estava preocupada demais. Jogou fora a pacote vazio e continuou a correr.
Ele sentia-se vazio, da fadiga e da adrenalina, com o sabor da raiz ainda na boca e a cabeça a latejar como se pudesse explodir.
Uma pequena bola elétrica de faíscas estalejantes silvou a poucos centímetros de Elliott, como uma Sininho delinquente, mas ela não abrandou, quase passando pela sua circunferência.
Chegaram à orla da Grande Planície.
Pouco depois estavam num dos túneis de lava, e novamente na escuridão, com o brilho da tempestade elétrica a cintilar debilmente atrás deles. Ligando o óculo, Will viu que Elliott estava outra vez a tirar qualquer coisa do casaco enquanto corria - era outro dos pacotes coriáceos.
- O que está fazendo? O que é essa coisa? - perguntou com voz ofegante.
- Secantes!
- Hã?
- Faz os farejadores caírem rolando no chão. Queima-os horrivelmente - disse-lhe ela, apontando para o nariz com um sorriso malicioso.
Ele olhou para trás e viu o brilho sublime de amarelo puro quando um pouco do pó caía numa poça de água. Sabia que já o tinha visto antes... estava a lançar o mesmo brilho que a bactéria que ele, Chester e Cal tinham encontrado. Esperta. Se um cão a inalasse, secaria e possivelmente as suas membranas nasais ficariam chamuscadas. Riu-se. Tornaria os cães inúteis como farejadores.
Fartaram-se de correr. A certa altura, ele caiu, estatelado, com a cara e o queixo no chão áspero. Elliott ajudou-o a levantar-se. Quando se encostou ao muro, tentando tomar fôlego, ela aparelhou uma carga de um lado ao outro do túnel.
Gritou-lhe que continuasse a correr.
Capítulo Trinta e Cinco
-Q
ue barulho é este? - sussurrou Chester. Piscando os olhos para tentar ver na escuridão, ele e Cal escutaram com atenção.
- Está se tornando mais alto - disse Chester. - Parece um motor.
- Shhh, fique calado, está bem? - pediu Cal, nervoso.
Puseram-se ambos a escutar outra vez enquanto o barulho continuava.
- Não consigo saber se está aqui perto ou muito longe - disse Chester, perplexo.
- Acho que está andando à nossa volta - disse Cal numa voz sussurrada.
Subitamente tornou-se muito mais forte, depois parou por completo.
Chester soltou um grito áspero de desespero.
- Depressa, Cal - gritou, com voz frenética. - Acenda a sua luz.
- Não. Acende a sua - respondeu Cal. - Elliott disse que não devíamos...
- Faça o que eu digo! - ordenou Chester bruscamente. - ESTÁ NO MEU BRAÇO! ESTOU SENTINDO!
Não foi preciso dizer mais nada a Cal. Agarrou na lanterna e virou-a para Chester.
- Oh, meu Deus! O que é? - berrou Chester, afastando o braço lentamente do corpo. Houve uma expressão de horror abjeto no seu rosto.
Aquilo estava agarrado ao braço dele com as pernas. Parecia vagamente uma libélula na medida em que tinha dois pares de asas que refletiam luzes do arco-íris na sua extensão diáfana, mas esse era o único aspecto do inseto que se podia dizer que era vagamente atraente. O seu corpo tinha cerca de quinze centímetros da cabeça à cauda e estava coberto por um pêlo empoeirado cor de ocre.
Por baixo de um par de protuberantes olhos compostos, do tamanho de metade de bolas de gude, estavam dois proboscídeos com um aspecto monstruoso, e o seu longo abdômen era encaracolado, com uma farpa na ponta, como se o ferrão de um escorpião tivesse sido transplantado para ali. De fato, se alguém tentasse conceber uma criatura mais diabólica e assustadora, teria tido um trabalhão.
- Tire-o daqui! - disse Chester, com os dentes cerrados, tentando não se mexer demasiado depressa para não provocar a criatura.
Embora tivesse estendido o braço o mais longe que podia, a criatura estava a arquear o ferrão da cauda como se fosse atacar-lhe o rosto.
- Como? O que eu posso fazer? - disse Cal, com a luz a tremer-lhe na mão enquanto recuava devagar.
- Vamos! Bata-lhe com qualquer coisa!
- Eu... eu... - gaguejou Cal.
Nesta altura, a criatura tinha o ferrão da cauda enroscado firmemente sobre o tórax, e as suas asas vibravam enquanto tentava manter o equilíbrio sobre o braço trêmulo de Chester.
- PELO AMOR DE DEUS, BATA-LHE, RAIOS! - uivou Chester.
Cal andava por ali à procura de qualquer coisa que pudesse utilizar como arma quando Chester decidiu que não podia esperar mais por ele, e balançou o braço de um lado para o outro, esperando desse modo expulsar a criatura. Mas ela não o largava, agarrando-se ainda com mais força com os seus três pares de pernas, quando Chester, cheio de um pânico desesperado ao tentar ver-se livre dela, abanou o braço freneticamente. No entanto, ela continuou agarrada, com o ferrão a balançar e a oscilar sobre as costas. Então de repente, com um zumbido das asas, levantou voo, pairando alarmantemente perto da cara de Chester antes de desaparecer, zunindo, na escuridão.
- Foi simplesmente horrível - desabafou Chester, com o corpo todo a tremer, enquanto agitava os braços e emitia incoerentes sons de lamento. - Horrível... horrível... horrível... este lugar abominável é como uma espécie de exibição de anormalidades. Horrível! - Parecia estar a recuperar do incidente quando, de uma maneira totalmente inesperada, se virou para Cal e o atacou. - E você! - espumou ele. - Porque não bateu naquela maldita coisa como eu te pedi?
- O que havia poderia fazer? Não consegui encontrar nada - respondeu Cal, num tom ofendido, que instantaneamente se transformou numa raiva evidente. - Acontece que eu não ando com um mata-moscas gigante atrás de mim.
- Oh, pelo amor de Deus... qualquer coisa teria servido - resmungou Chester furiosamente. - Bem, obrigadinho, amigo... não irei me esquecer disto da próxima vez que estiver em apuros.
Sentaram-se ambos, caindo num silêncio abrupto até começarem a ouvir um zumbido à sua volta, mas este era um som mais suave, mais agudo.
- Meu Deus, o que é agora? - disse Chester. - Não é mais uma dessas coisas malditas?
Desta vez, sem lhe ser pedido, Cal procurou desajeitadamente a sua luz.
- Mosquitos? - sugeriu Chester, esperando que a libélula diabólica não fosse fazer-lhe nova visita.
- Não, são maiores do que isso - disse Cal, quando a luz revelou que o ar estava repleto de insetos, enxames deles, do tamanho de mosquitos subnutridos.
- Então que diabo é isto? O raio da família do inseto gigante? Acho que agora vieram todos me comer um pedaço - gritou Chester, exasperado.
Cal queixou-se, batendo na parte de trás do pescoço quando foi picado.
- Odeio-os. Sempre odiei insetos - disse Chester, tentando esmagar os que lhe apareciam à frente da cara. - Eu matava vespas e moscas no meu jardim só pelo prazer. Até parece que agora são eles que estão a gozar comigo.
O que quer que fossem estes insetos mais pequenos, tinham sido rápidos a compreender que havia carne fresca por ali.
Finalmente, para os evitarem, Chester e Cal enrolaram-se, como último recurso, em peças de roupa que tinham nas mochilas. Com Cal a falar em acender uma fogueira, mantinham-se sentados lado a lado, como duas múmias bastante mal-humoradas enquanto afastavam os insetos dos olhos, a única parte deles que deixaram destapada.
Will foi o primeiro a surgir, irrompendo na clareira e derrapando ao parar. Com as mãos nos joelhos, curvou-se, inspirando com força para fazer entrar ar nos pulmões.
Quando apareceu, Chester e Cal levantaram-se de um salto, surpreendidos. Will era uma visão alarmante. A cara estava suja da tempestade de pó e com riscas de suor. Tinha o óculo de Drake sobre um dos olhos e a pele em volta do outro estava manchada de sangue fresco do golpe que fizera na testa quando caíra.
- O que aconteceu? - balbuciou Chester.
- Isso não é do Drake, não é? - perguntou Cal ao mesmo tempo, apontando para o óculo que Will tinha.
- Eu... tive... de... - disse Will, ofegante.
Ainda a ofegar e a engolir ar, abanou a cabeça.
- Eu... - tentou dizer.
- Nós matamos o Drake - disse Elliott sem rodeios, saindo de detrás de Will e surgindo à luz fraca emitida pela lanterna de Cal. - Pelo menos, pensamos que o matamos. Will acabou com ele. - Agitou a mão à frente do rosto para afastar os insetos voadores. Depois, olhou para baixo, em volta dos pés, e apanhou uma folhagem de um mato que esmagou na mão. Passou a palma da mão pela testa e pelas faces. O efeito foi milagroso - os insetos evitaram-na de imediato, como se ela estivesse protegida por um campo de forças invisível.
- O que você disse? O Will fez o quê? - perguntou Cal, enquanto Chester colhia uma folhagem do mesmo mato e repetia o que Elliott acabara de fazer. Will parecia não ligar para os insetos que lhe rastejavam por toda o rosto; o olho descoberto estava vidrado ao olhar para a distância.
- Tivemos de fazê-lo. Estavam a torturá-lo. Aquele filho da mãe do Tom Cox também lá estava, a ajudá-los - disse Elliott com voz rouca, e depois cuspiu para o chão.
- Não - disse Chester, horrorizado.
- E a Rebecca - acrescentou Will, ainda sem olhar para qualquer coisa em particular. A cabeça de Elliott virou-se bruscamente para ele, e ele continuou a falar, ainda ofegante - estava com os Limitadores. - Parou para engolir mais algum ar. - Por qualquer razão, ela sabia que eu estava ali. Juro que olhava diretamente para mim... ela me sorriu, raios.
- Agora, digam lá! - rosnou Elliott. - Depois de o Cox passar para o outro lado, já era muito arriscado irmos à base buscar o equipamento. Mas agora é que não vou correr esse risco de modo nenhum. Impossível, com esse Styx por aí à nossa procura para nos apanhar.
Will baixou a cabeça, ainda se esforçando por recuperar o fôlego.
- Talvez fosse melhor eu... me entregar. Podia pôr fim a tudo isto. Podia fazê-la parar.
Houve uns segundos angustiantes enquanto todos os olhos estavam postos em Will, e ele olhava de uma cara para outra, com esperança de que nenhum deles concordasse com a sua sugestão. Depois, Elliott deu a sua opinião.
- Não, acho que isso não ia adiantar nada - disse ela, com uma expressão extremamente sombria e, tirando um pedaço de mato do lábio superior, cuspiu de novo. - Acho que isso não ia ajudar nenhum de nós. Essa Rebecca parece do tipo de querer uma limpeza total.
- Oh, é mesmo - concordou Will, com ar de desânimo. - Não há dúvida de que ela gosta de ver tudo limpo.
Capítulo Trinta e Seis
-Q
uieto, rapaz!
Sarah dobrava, a correr, uma esquina no túnel de lava, com os pés a levantarem uma porção de cascalho, enquanto Bartleby se precipitava para a frente, a toda a velocidade, puxando-a e fazendo-a quase cair.
- Devagar, devagar! - gritou ela, enterrando os calcanhares e usando toda a sua força para tentar refreá-lo. Daí a uns metros conseguiu fazê-lo parar. Ainda a respirar com dificuldade devido ao esforço, agarrou-lhe a coleira e segurou-o com firmeza. Estava muito grata pelo breve descanso; tinha os músculos dos braços a arder e duvidava sinceramente de ser capaz de controlá-lo por muito mais tempo se ele não abrandasse um pouco.
Quando ele rodou a cabeça, tensa, para ela, Sarah viu uma grande veia a latejar sob a pele cinzenta, a escamar-se, acima do focinho largo, e a ferocidade a cintilar-lhe nos olhos.
As narinas estavam bem abertas: o cheiro era agora forte, e ele ia no rastro.
Enrolou mais a grossa coleira de couro em volta da mão esfolada e dolorida. Respirando fundo mais umas vezes para se preparar, libertou então a coleira de Bartleby. Com um silvo de impaciência, ele precipitou-se para a frente de imediato e a trela deu uma pancada forte e ressonante quando se esticou de novo.
- Pare, Bartleby! - sussurrou ela. Esta ordem provocou obviamente uma reação emocional no cérebro superexcitado do animal, e ele acalmou-se um pouco.
Enquanto ela continuava a falar suavemente com o gato para o tranquilizar, suplicando-lhe que estivesse calmo, sentiu reprovação a irradiar das quatro sombras que se deslocavam furtivamente um pouco mais adiante. Os quatro Limitadores, ao contrário dela ou do gato enlouquecido, moviam-se tão silenciosamente como fantasmas. Normalmente passavam tão despercebidos por se integrarem muito bem no terreno, que eram invisíveis para Sarah, mas, naquele momento, permitiam-se ser vistos, quase como se quisessem que ela se sentisse intimidada. Se era essa a sua intenção, estava seguramente a ter o efeito desejado.
Sentia-se profundamente inquieta.
Rebecca tinha-lhe prometido liberdade de ação para procurar Will. Então porque lhe tinham imposto uma escolta? E porque se dera Rebecca ao trabalho de envolvê-la nesta caça ao homem, num ambiente que era tão novo para Sarah e do qual não tinha experiência absolutamente nenhuma, quando soldados altamente qualificados estavam a ser recrutados ao mesmo tempo? Não fazia sentido.
Enquanto este pensamento a atormentava subconscientemente, Bartleby fez nova investida para a frente, arrastando-a com ele, quer ela quisesse ir ou não.
ø ø ø
Elliott tirou-os da clareira e caminharam através de uma vegetação rasteira muito densa, com Will a tropeçar e a debater-se atrás deles, na retaguarda. Chester e Cal estavam preocupados com ele, mas nenhum deles achou que podia dizer fosse o que fosse. Quando saíram da vegetação, encontraram-se de novo numa faixa da costa. Ela levou-os ao longo da borda de água e caminharam um pouco naquilo que parecia ser o princípio de uma enseada, mas estava escuro como breu e não conseguiam ver suficientemente bem para saber se era o caso.
Will estava muito mal, extremamente cansado, pois o efeito da raiz que Elliott lhe dera passara e a sua enorme fadiga dominou-o. Ia andando com as pernas rígidas, como um monstro qualquer de Frankenstein, contribuindo o óculo ainda mais para esse efeito. Quando se reuniu a eles, Elliott observava-o com atenção.
- Está completamente exausto, precisa descansar - disse ela a Chester e a Cal, como se Will não estivesse presente, e, na verdade, ele não teve qualquer reação ao comentário dela, oscilando no seu lugar. - Neste momento, não serve para nada.
Chester e Cal trocaram olhares perplexos, sem compreenderem o que ela dizia.
- Não serve? - repetiu Chester, espantado.
- Sim, e isso não interessa. - Virou-se para Cal, percorrendo-o com os olhos. - E você? Como está a perna?
Chester percebeu imediatamente que ela estava a avaliá-los - exatamente por que razão, não sabia, mas não lhe agradava muito a ideia. Irritou-o; não se iludia quanto a terem de estar todos em forma se quisessem fugir dos Styx. Mas a pergunta dela era um pouco mais que sinistra, na sua opinião.
- A perna dele está muito melhor. Deu-lhe algum descanso - interpôs Chester rapidamente, lançando um olhar cortante a Cal, que ficou um pouco surpreendido com a intervenção de Chester.
- Ele não sabe falar? - observou Elliott, fulminando-o com o olhar.
- Oh, sim, desculpe - murmurou Chester apologeticamente.
- Então, como está ela?
- Como o Chester disse... muito melhor - respondeu Cal, dobrando a perna para tentar tranquilizar Chester. Na verdade, estava incrivelmente rígida, e de cada vez que fazia força sobre ela não sabia se ia aguentar com ele ou não.
Elliott estudou o rosto de Cal por um momento, depois, quando desviou a sua atenção para Chester, o rapaz interrogou-se que avaliação estaria a fazer dele e se teria sido aprovado. Mas, nessa altura, ficaram perturbados, pois Will murmurou a palavra "cansado" - só uma vez -, depois sentou-se pesadamente e tombou de costas. Começou a ressonar muito alto, caindo imediatamente no sono mais profundo.
- Está inconsciente. Daqui a umas horas vai se sentir fresco que nem uma alface - disse Elliott, e depois dirigiu-se a Cal: - Você fica com o seu irmão. - Entregou-lhe a mira suplementar da espingarda. - E preste atenção à parte da praia descoberta pela maré vazia... especialmente à passagem sobre a água. - Apontou para o mar e para a escuridão impenetrável, dentro da qual estava, algures, a faixa invisível da praia ao longo da qual tinham caminhado para chegarem à passagem igualmente invisível. - Preciso saber se vê alguma coisa, qualquer coisa, mesmo pequena. É muito importante que fique alerta... entendeu?
- Porquê? Aonde vai? - perguntou Cal, tentando afastar a ansiedade da voz.
Já tinha estado preocupado a pensar que ela e Drake iam abandoná-lo, e agora, que ela perdera Drake, esse medo voltou com muita intensidade. Estaria ela pensando em se pôr a andar com o Chester, e deixá-lo com Will no abandono?
- Não vou longe... só preciso fazer umas investigações - disse ela. - Tome conta disto também - acrescentou, sacudindo a mochila dos ombros e deixando-a cair ao lado da figura imóvel de Will.
Essa simples ação aliviou os receios de Cal - ela não ia muito longe sem o seu equipamento. Viu-a tirar uns sacos da bolsa lateral da mochila, e depois, acompanhada por Chester, esgueirar-se para a escuridão.
- Como se sente? - perguntou Chester a Elliott enquanto caminhava ao seu lado.
Tinha a lanterna na intensidade mínima e, como ela lhe dissera, tapava-a com a mão, pelo que havia uma faixa de luz extremamente fina a iluminar o caminho. Como sempre, Elliott não precisava de qualquer luz para encontrar o caminho, parecendo possuir uma consciência sobrenatural do que a rodeava. Dirigiam-se para o interior da enseada, continuando sempre com a densa vegetação rasteira à esquerda e o mar à direita.
Elliott não lhe tinha respondido à pergunta, mantendo um silêncio meditativo. Chester calculou que devia pensar em Drake. Sabia que ela estava certamente transtornada com a sua morte, e sentiu-se obrigado a dizer qualquer coisa, mas achou incrivelmente difícil conseguir fazê-lo. Embora tivesse passado uma porção considerável de tempo com ela nas numerosas patrulhas que tinham feito juntos, não falavam muito durante essas saídas. Compreendeu que não conseguira realmente conhecê-la melhor desde o dia em que ela e Drake o tinham apanhado, a ele e a Will. Era muito reservada, tão esquiva como uma brisa tênue ao cair da noite, que se podia sentir, mas não tocar.
Tentou de novo.
- Elliott, está... está mesmo bem?
- Não se preocupe comigo - foi a resposta brusca.
- Só quero que saiba que todos sentimos muito por Drake... devemos-lhe... tudo. - Chester hesitou durante uns momentos. - Foi horrível, lá atrás, quando Will teve de... eh... de...?
Sem qualquer aviso, ela parou e deu-lhe uma pancada forte no peito, com tal demonstração de agressão desenfreada que Chester ficou completamente estupefato.
- Não tente me paparicar! Não preciso da piedade de ninguém!
- Eu não estava a...
- Pare com isso, está bem?
- Ouça, estou preocupado com você - disse ele, indignado. - Estamos todos preocupados com você.
Enquanto ali esteve, pareceu amaciar um pouco, e havia certa rouquidão na sua voz quando finalmente falou.
- É que eu não consigo aceitar que ele esteja morto. - Deixou escapar um soluço. - Ele falava muitas vezes do dia que havia de chegar para um de nós ou para ambos, e que era apenas mais um virar de página. Dizia que temos de estar preparados para isso, mas que não podemos nos deixar abater. Disse que não devemos olhar para trás e que temos de aproveitar ao máximo o momento que vivemos... - Voltou a colocar a espingarda ao ombro, mexendo nervosamente na alça. - Estou tentando fazer isso, mas é difícil.
Quando Chester olhou para ela, com a cara abatida, na luz fraca da lanterna, a sua aparência dura parecia ter desaparecido, revelando uma adolescente muito assustada, muito perdida. Talvez estivesse pela primeira vez a ver a autêntica Elliott.
- Estamos juntos nisto - disse ele calorosamente, solidarizando-se com ela.
- Obrigada - respondeu ela, com uma voz suave, evitando os olhos dele. - Temos de ir andando.
Chegaram finalmente a uma pequena faixa da costa na enseada, que parecia ter uma sombra projetada sobre ela. Como Chester descobriu quando a examinou mais de perto, isso nada tinha que ver com a luz, mas era devido a um sedimento mais escuro e mais pesado que tinha se reunido naquelas águas pouco profundas.
- Aqui devem-se apanhar coisas boas - anunciou ela, e entregou os sacos a Chester. Entrou na água e, curvando-se, passou as mãos através dela, enquanto procurava alguma coisa.
Andando de lado e continuando à procura, caminhou ao longo da margem; depois subitamente endireitou-se com um grito de júbilo. Um grande animal de uma espécie qualquer agitava-se nas mãos. Com meio metro da cabeça à cauda, o seu corpo prateado era de certo modo como um cone achatado com barbatanas ondulantes de cada lado, que se agitavam loucamente, como se quisesse fugir nadando pelo ar. Em cima da cabeça tinha um par de enormes olhos compostos, pretos, e na parte de baixo, dois apêndices com garras dos quais saíam espinhos; estes estavam a tentar enrolar-se para alcançar as mãos de Elliott, enquanto ela se esforçava por dominar a criatura. Rodopiou e correu para a praia, e Chester caiu tentando sair-lhe do caminho.
- Valha-me Deus! - gritou. - O que é isso?
Elliott balançou o animal, esmagando-o contra uma rocha. Chester não sabia se ela o tinha matado ou apenas atordoado, mas ele parecia mover-se agora muito lentamente.
Ela rodou-o para ficar de costas, e Chester viu os dois apêndices ainda a retorcerem-se, e a boca circular, com dezenas de agulhas brancas brilhantes à volta da sua circunferência.
- Chamam-se caranguejos noturnos. São mesmo saborosos.
Chester engoliu em seco, como se estivesse tão enojado que fosse ficar doente.
- Juro que é o raio de um gigantesco peixe-de-prata - grunhiu.
Ainda estava no lugar onde tinha caído. Elliott olhou para os sacos que estavam onde ele os largara e, achando que ele não ia ajudar absolutamente nada, foi até lá e enfiou o animal num deles.
- Este é o prato principal - disse ela. - Agora vamos...
- Não me diga que vai apanhar outra coisa dessas - implorou-lhe Chester, com a voz um pouco aguda como se estivesse a ficar histérico.
- Não, não é provável - respondeu ela. - Os caranguejos-noturnos são bastante raros. E só os mais novos é que vêm até aqui em busca de alimento. Tivemos sorte.
- Sim, muita - disse Chester, só agora se levantando e limpando.
Elliott já estava novamente dentro de água, mas desta vez enfiava os braços bem fundo na lama.
- E era disto que o caranguejo andava à procura - disse a Chester.
Tinha os braços cobertos de lama espessa até aos cotovelos quando os tirou para fora. Estendeu a mão a Chester para ele poder ver as duas conchas curvas que tinha na palma da mão, cada uma com cerca de três centímetros de comprimento.
- Que delícia... moluscos. Vou ver se há mais.
Chester teve um arrepio involuntário perante a ideia de ela esperar realmente que ele comesse qualquer criatura daquelas.
- Continue, esbalde-se - disse ele.
Quando voltavam para trás ao longo da praia, Chester suspeitou de que havia algum problema. Uma completa falta de movimento; nenhum aceno nem grito de Cal a mostrar que os vira. Elliott estava lívida quando foi direto ao rapaz. Embora ainda sentado, a cabeça pendia-lhe pesadamente para a frente enquanto cochilava ao lado do irmão, que estava, do mesmo modo, morto para o mundo.
- Será que ninguém me dá ouvidos? - disse a Chester. Estava colérica - Chester ouvia a sua respiração a silvar entre os dentes. - Eu não expliquei bem que ele tinha de ficar alerta?
- Sim, explicou - respondeu Chester em voz alta.
- Shhh! - ordenou-lhe ela, enquanto caminhava um pouco ao longo da praia, onde levantou a espingarda para esquadrinhar o horizonte.
Chester ficou junto dos dois rapazes adormecidos até ela voltar.
- O Drake nunca teria deixado que isto acontecesse - disse ela, tensa, andando de um lado para o outro por trás de Cal, como uma leoa pronta a atacar.
Cal permanecia ditosamente alheio à sua fúria silenciosa, com a cabeça a balançar enquanto dormia.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Chester, tentando ler a expressão do seu olhar.
- Ele o teria largado aqui. Se poria a andar e ele que se virasse sozinho - disse ela.
- Isso ultrapassa tudo - quanto tempo acha que o Cal aguentaria sozinho? - objetou Chester. - Seria o mesmo que lhe assinar uma sentença de morte!
- Paciência.
- Não pode fazer isso - disse veementemente. - Tem de lhe dar tempo. O pobre do desgraçado está completamente exausto. Estamos todos.
Mas ela estava falando muito a sério.
- Não percebe? Por ter adormecido, podia ter acabado com as nossas vidas - disse ela, lançando um olhar sobre a água. - Não sabemos o que eles vão nos fazer a seguir... se são Limitadores, eu provavelmente nem os verei chegar. Mas podem ser civis - muitas vezes são mandados à frente porque são muitos, por isso valem pouco - pura carne para canhão. É assim que os Styx funcionam muitas vezes... os soldados vão mais tarde para acabar o serviço.
- Sim, mas... - disse Chester.
- Não, escute. Se cometer um erro, acabará de bruços ali dentro - disse ela num tom glacial, apontando para o mar com o polegar. Pareceu ponderar por uns momentos, depois atirou com a espingarda para cima do ombro. Pôs-se atrás de Cal e bateu-lhe com força na nuca.
- Aiiii! - gritou ele, imediatamente bem acordado. Deu um salto, com os braços a acenarem selvagemente. Depois, percebeu que tinha sido Elliott e fulminou-a com os olhos.
- Penso que isto é o conceito que tem de uma brincadeira, não? - disse ele, arquejando, ressentido. - Bem, eu não acho graça alguma...
A cara de aço de Elliott disse-lhe tudo o que precisava saber, e os seus protestos murcharam-lhe nos lábios.
- Você não pode adormecer quando está de vigia! - grunhiu ela ameaçadoramente.
- Não - disse ele, alisando a camisa com um ar extremamente embaraçado.
- Pensei ouvir vozes - disse Will, sonolento, esfregando os olhos com os nós dos dedos enquanto se sentava. - O que se passa?
- Nada, estamos só preparando o jantar - disse-lhe Elliott. Sem Will ver, lançou a Cal um último olhar demorado, passando a mão para trás e para a frente sobre a garganta, com um movimento que sugeria cortar-lhe o pescoço. Ele acenou com a cabeça, com uma expressão sombria.
ø ø ø
Elliott cavou um buraco na areia, depois mandou Chester e Cal apanhar silvas, que colocou em volta da abertura. Uma vez tudo como ela queria, acendeu uma pequena fogueira no fundo do buraco. À medida que o fogo crescia, ajustou algumas das silvas, evidentemente como mais uma precaução para não deixar fugir nenhum raio de luz.
Enquanto estava ocupada a fazer isto, Chester e Cal observavam Will, que foi cambaleando, com as pernas pesadas como chumbo, para um lugar onde havia uma série de poças entre as rochas à beira-mar. Tirou o óculo do olho e começou a molhar a cara. Depois parecia que nunca que acabava de lavar as mãos, esfregando-as alternadamente com areia molhada e passando-as por água, repetindo o processo uma porção de vezes, de uma maneira lenta e metódica.
- Acha que eu devia falar com ele? Está um pouco esquisito - perguntou Chester a Elliott, enquanto observava o estranho comportamento do amigo. - O que se passa com as mãos dele?
- Sequelas - disse ela simplesmente, deixando Chester e Cal na mesma.
Depois de saberem que Will podia ter matado Drake, ambos os rapazes se sentiam, na verdade, bastante aliviados pelo fato de a oportunidade de falar com ele ainda não ter surgido. O ato de matar afastara-o deles, pondo-o numa situação que eles estavam muito longe de compreender.
Então como deviam tratá-lo? Embora não tivessem sonhado em falar abertamente um com o outro sobre isso, a questão estava em primeiro plano no espírito de ambos. Certamente não podiam dar-lhe palmadinhas nas costas e felicitá-lo. Deveriam tentar dizer-lhe que lamentavam a morte de Drake, consolá-lo, quando ele tinha sido a causa? A realidade era que eles sentiam um profundo respeito por Will. Como se sentiria ele pelo que fizera? Não só tinha as mãos ensanguentadas por disparar e matar outro ser humano, mas tratava-se de Drake... um dos deles... seu protetor e amigo... o amigo dele.
Ao lançar um olhar discreto a Elliott, Chester voltou a perguntar a si próprio como é que ela estaria a lidar com a situação. Depois do breve momento em que ela lhe revelara o seu lado vulnerável, parecia ter voltado à sua velha maneira de ser, e estar a dedicar-se com todo o empenho a cuidar deles. A linha de pensamento de Chester foi interrompida quando Elliott tirou o caranguejo-noturno do saco e o deixou cair na areia. Estava tão vivo como quando o apanhara, e teve de pôr o pé em cima dele para impedi-lo de fugir.
Chester viu que Will se dirigia para eles. Os seus movimentos eram vagarosos, como se ainda não estivesse totalmente desperto. Pingava água e tinha um aspecto horrível. Não lavara a cara muito bem e tinha grandes manchas de fuligem por baixo dos olhos, na testa e no pescoço, e o cabelo branco também apresentava laivos escuros. Noutras circunstâncias, Chester podia ter gozado com Will, dizendo que tinha uma semelhança notável com um panda. Mas não era nem o momento nem o local próprios.
Will parou a vários metros de distância, recusando-se a estabelecer contato visual com qualquer deles. Em vez disso, baixou a cabeça e olhou para os pés. Raspava a palma da mão com o dedo indicador, como se estivesse tentando tirar qualquer coisa com a unha.
- O que eu fiz? - disse ele.
Era difícil entendê-lo; o seu discurso era mal articulado, como se a boca estivesse dormente, e ele não parava de arranhar a mão.
- Pare com isso! - disse Elliott com brusquidão.
Ele parou de a arranhar e deixou os braços penderem, flácidos, ao lado do corpo, com os ombros curvos e a cabeça baixa.
Quando Chester estava a observá-lo, uma gotinha soltou-se da cara de Will e brilhou momentaneamente quando a luz lhe bateu, mas ele não conseguiu perceber se era uma lágrima ou meramente água do mar proveniente dos seus esforços para se lavar.
- Olhe para mim - ordenou-lhe Elliott.
Will não se mexeu.
- Eu disse olhe para mim!
Will levantou a cabeça e fitou Elliott, hesitante.
- Assim está melhor. Agora vamos lá esclarecer as coisas... fizemos o que tínhamos a fazer - disse-lhe firmemente, e depois falou com uma voz mais suave. - Eu não estou pensando no assunto... faça o mesmo. Vai ter muito tempo para isso mais tarde.
- Eu... - balbuciou ele, abanando a cabeça lentamente.
- Não, não... ouça o que eu te digo. Você disparou porque eu não consegui. Eu falhei, e você não. Fez o que era bom... para o Drake.
- Ok - respondeu ele finalmente, a palavra quase sumida num suspiro. - Mencionou alguma coisa sobre o jantar? - perguntou após uma longa pausa.
Era óbvio que fazia o possível por se controlar, mas a expressão de desespero ainda estava bem funda nos seus olhos orlados de negro.
- Como se sente? - perguntou ela, lembrando-se de que tinha de fazer qualquer coisa com o caranguejo-noturno em cima do qual tinha o pé. E foi mesmo a tempo, pois ele agitou as barbatanas na areia para se desenterrar, tentando freneticamente voltar para a água.
- Mal - disse ele. - A minha cabeça deixou de zunir, mas parece que o meu estômago andou numa montanha-russa.
- Precisa comer qualquer coisa quente - disse ela, levantando o pé do caranguejo-noturno enquanto desembainhava a faca. Os apêndices por baixo da cabeça contorciam-se como uma antena de televisão animada.
Fez-se um momento de silêncio quando Will percebeu o que estava ali e gritou.
- Anomalocaris canadensis!
Para grande surpresa de todos, o seu comportamento sofreu uma transformação rápida. Ficou extremamente excitado, pondo-se aos saltos e agitando os braços.
Elliott virou o caranguejo-noturno e colocou-lhe a faca na linha de junção de dois dos segmentos da barriga achatada.
- Eh! - guinchou ele. - Não! - Esticou uma mão para tentar impedir Elliott de matá-lo, mas ela tinha sido rápida demais. Enfiou a faca, e os apêndices da cabeça do animal ficaram imediatamente inertes, cessando a sua interminável agitação.
- Não! - voltou ele a gritar. - Como pôde fazer uma coisa dessas? É um Anomalocaris. Deu um passo em direção a ela, com a mão estendida.
- Afaste-se de mim - avisou-o ela, levantando a faca -, se não, espeto-a em você.
- Mas... isso é um fóssil... quer dizer... está extinto... quer dizer... vi um fóssil... está EXTINTO - gritou, ficando ainda mais agitado porque nenhum dos outros parecia compreender nem ligar a mínima importância ao que ele tentava lhes dizer.
- Sério? A mim, não me parece lá muito extinto - disse Elliott, levantando o animal morto à frente dele, como se estivesse a provocá-lo.
- Não compreende como isto é importante? Não pode matá-los! Deixe os outros em paz!
Reparou no segundo saco e já não estava a gritar, mas a falar rapidamente, como se soubesse que não ia a lugar algum com Elliott.
- Will, não seja idiota, está bem? O outro saco só tem conchas. De qualquer modo, Elliott disse que há ali um lugar cheio desses caranguejos - tentou dizer-lhe Chester, fazendo um movimento em direção ao mar.
- Mas... mas...!
A expressão de puro exaspero de Elliott bastou para levar Will a pensar duas vezes antes de continuar a fazer mais alarido. Mordeu o lábio, continuando a olhar, com um horror silencioso, para o Anomalocaris morto.
- Era o maior predador que habitava os mares no seu tempo... o tiranossauro do período câmbrico - murmurou Will, desolado. - Está extinto há quase quinhentos e cinquenta milhões de anos.
Will ficou igualmente estarrecido quando Elliott tirou os moluscos, como ela lhes chamou, do segundo saco.
- Unhas-dos-pés-do-diabo! - ofegou Will. - Cryphaea arcuata. Tenho uma caixa cheia delas em casa. Encontrei-as com o meu pai em Lyme Regis... mas essas são simplesmente fósseis!
Portanto, com o Anomalocaris trespassado e suspenso sobre as chamas, Elliott, Cal e Chester estavam sentados em volta do churrasco pré-histórico, enquanto Will desenhava uma unha-do-pé-do-diabo viva que tinha implorado a Elliott. Os irmãos e irmãs dela (ou talvez ambos - Will não se lembrava bem se eram hermafroditas) não tinham tido tanta sorte e estavam a crepitar lentamente, aconchegados ao canto da fogueira sobre as cinzas quentes.
Ele falava sozinho e sorria como um tolo, com o tipo de êxtase que uma criança podia revelar ao examinar um bicho que apanhou no jardim.
- Sim, uma concha muito grossa... olhe para os anéis de crescimento... e ali está o opérculo - disse Will, com a ponta do lápis a bater levemente num círculo achatado da concha na extremidade mais larga do animal. Olhou para cima e viu todos os olhos postos nele. - Isto é tão legal! Sabem que este foi o antepassado da ostra?
- O Drake mencionou qualquer coisa a respeito disso. Ele gostava delas cruas - disse Elliott, impassível, enquanto reposicionava o Anomalocaris sobre as chamas.
- Nenhum de vocês faz a mais pequena ideia de como é importante a descoberta destes animais - disse Will, ficando frustrado, mais uma vez, com a sua total falta de interesse. - Como podem pensar em comê-los?
- Se não quiser o seu, Will, eu como-o - disse Cal em voz alta. Virou-se para Chester. - Agora, o que é uma ostra?
Enquanto a comida era cozinhada, Elliott mencionou o assunto do grotesco corredor de celas seladas que vira no Bunker com Cal. Tinha estado obviamente a preocupá-la, e precisava falar nisso.
- Nós sabíamos que havia uma espécie de zona de quarentena, mas não sabíamos onde era nem para que servia.
- O Drake referiu-se a isso; mas quando é que vocês ouviram falar nesse assunto pela primeira vez? - indagou Will.
- Através de um contato - disse Elliott, olhando rapidamente para baixo.
Will podia jurar que nos seus olhos houve a manifestação de algo próximo de inquietação, mas disse a si próprio que devia ter que ver com a descoberta das celas.
- Então, estavam todos mortos - disse Chester.
- Todos, exceto um homem - disse Elliott. - Era um renegado.
- Os outros eram Colonos - afirmou Cal. - Via-se pela roupa.
- Mas porque os Styx se dariam ao trabalho de trazer Colonos aqui para baixo, apenas para matá-los dessa maneira? - perguntou Chester.
- Não sei. - Elliott encolheu os ombros. - Eles sempre utilizaram as Profundezas como campo de ensaios, isso não é novidade, mas todos os sinais indicam que está para acontecer qualquer coisa em grande. A ideia do Drake era que vocês três nos ajudassem a pôr um grão de areia na engrenagem e a destruir o que os Cabeças Pretas estão a fazer. Especialmente aquele ali. - Fez uma careta ao olhar para Will, que estava horrorizado a ver o Anomalocaris a ser cozinhado. - Não tenho certeza se realmente Drake o teria avaliado bem.
Retirando o Anomalocaris das chamas, Elliott colocou-o no chão. Depois, tirou a pele de um dos segmentos da barriga com a ponta da faca e começou a dividir a carcaça.
- Está pronto - anunciou.
- Oh, maravilha - disse Will, num tom cavernoso.
Todavia, depois de a comida ser dividida, Will capitulou. Pondo de lado o diário, começou a comer a sua parte com os outros, primeiro de forma relutante, mas depois devorando-a, esfomeado. Até concordou com Chester que o Animalocaris era muito parecido com lagosta. As unhas-dos-pés-do-diabo eram uma coisa completamente diferente, e os rapazes fizeram caretas ao tentarem corajosamente mastigá-las.
- Hmmmm. Interessante - comentou Will quando acabou de comer o que tinha na boca, meditando no fato de ser uma das muito poucas pessoas vivas a banquetearem-se com animais extintos. A imagem dele próprio a comer um hambúrguer de dodó* veio-lhe à cabeça, e ele sorriu, constrangido.
- Maneiro, que belo churrasco - riu-se Chester, estendendo as pernas. - É como se estivéssemos em casa outra vez.
Will acenou com a cabeça, à maneira de resposta.
As revigorantes rajadas de vento e os estalos do fogo a extinguirem-se, misturados com o rebentar das ondas, e o sabor a marisco na boca - tudo isto fez Chester e Will sentirem as mais profundas saudades de casa. Estes elementos invocaram outros tempos, despreocupados, na Superfície - quer um passeio nas férias quer uma festa na praia numa noite de Verão (e embora a família de Will raramente desse esses passeios, pelo menos todos juntos, ele ainda estava emocionado com a ideia).
Mas, quanto mais tentavam convencer-se de que era como em casa, tanto melhor compreendiam que não era nada assim, e que estavam num lugar estranho e perigoso, no qual não era certo conseguirem sobreviver ao dia seguinte. Tentando afastar estes pensamentos, falaram um pouco, evitando qualquer coisa que tivesse que ver com a morte de Drake, mas a conversa em breve acabou, e cada um caiu nos seus próprios pensamentos, comendo a refeição em silêncio.
Elliott tinha levado a comida até à borda da água e periodicamente levantava a espingarda para esquadrinhar as praias distantes.
- Ora bolas! - disse Cal, e Will e Chester voltaram-se e viram-na levantar-se, deixando a comida escorregar-lhe do colo. Estava muito quieta, com a espingarda fixa em qualquer coisa.
- Está na hora de irmos embora! - gritou-lhes ela, com o olho ainda colado à mira.
- Viu alguma coisa? - perguntou Will.
- Sim, vi uma luz... contava com mais tempo antes de eles chegarem às praias... é provável que seja uma patrulha avançada.
Chester engoliu o que tinha na boca com um trago ruidoso.
Capítulo Trinta e Sete
-E
stúpido! Que animal estúpido me saiu! - gritou Sarah enquanto voava através das plantas carnudas, com Bartleby a puxada como nunca a tinha puxado antes. Não havia dúvida absolutamente nenhuma de que estava no rastro exato dos rapazes - esta era a boa notícia. A má era que ele estava ficando cada vez mais impetuoso e indomável, e Sarah pensou, uma ou duas vezes, que ele ia mesmo atacá-la.
- Mais devagar! - gritou ela.
Com um estalo brusco, a coleira ficou frouxa, e ela perdeu o equilíbrio e caiu de costas. A lanterna escorregou-lhe da mão, rolando para longe e ressaltando nas plantas pelo caminho, e passando, com as pancadas, para a intensidade máxima. Raios de luz ofuscantes bombardeavam as altas árvores atrás dela, clarões intermitentes que ela sabia que seriam visíveis num raio de quilômetros. Se quisesse anunciar a sua presença para todo mundo sem exceção, não poderia ter feito melhor.
Estava sem fôlego e durante longos segundos não conseguiu se mexer. Depois rastejou rapidamente para o lugar onde a lanterna tinha parado e atirou-se para cima dela, para esconder a luz. Ficou deitada sobre ela, ofegando e praguejando sem pensar no que dizia. Amadorismo absoluto! Queria gritar de pura frustração, mas isso não ajudaria nada.
Continuando a cobrir a lanterna com o corpo, baixou-lhe a intensidade antes de focar a atenção no resto da coleira de couro que tinha em volta da mão. A extremidade pela qual se partira estava rasgada e esfarrapada, e, quando a inspecionou mais de perto, viu marcas de dentes - Bartleby mordera-a rapidamente quando ela não estava olhando. Patife matreiro! Se não estivesse tão furiosa consigo própria, até podia ter admirado a sua astúcia.
A última imagem que tivera dele fora dos quartos traseiros, com as pernas a turbilhonarem numa confusão e as enormes patas a levantarem folhagem enquanto ele disparava como louco para a escuridão.
- O raio do gato! - disse para si própria, chamando-lhe todos os nomes ao cimo da terra. À velocidade que levava, cobriria uma grande distância, e ela só podia estar a enganar-se a si própria se pensasse que havia maneira de recuperá-lo. Perdera o último meio de encontrar Will e Cal. - O raio do gato! - voltou a dizer, num tom mais desesperado desta vez, ouvindo o som das ondas. A última solução que lhe restava era continuar a andar na parte da praia descoberta na maré vazia, na esperança de que pudesse ainda levá-la ao objeto da sua busca.
Levantou-se e desatou a andar a passo rápido, esperando que Will não tivesse partido numa direção totalmente diferente daquela que Bartleby estivera a seguir. Se tivesse escolhido um novo caminho através da densa parede de folhagem à sua esquerda, não teria a mínima chance de o encontrar.
Meia hora mais tarde, o som das ondas foi suplantado por um som diferente: o de água a correr. Ela lembrava-se do que tinha visto no mapa; havia uma espécie de cruzamento para uma ilha. Cortou para o lado do mar, e o barulho da água intensificou-se.
Estava perto da passagem sobre a água quando, vindo do nada, se materializou uma figura logo no seu caminho. Ela ficou quase petrificada. Viu que era um homem. Nesta altura, estava na praia, totalmente exposta, sem qualquer abrigo num considerável raio à sua volta - não fazia ideia de onde ele tinha saído. Com um pânico desconfortável, tirou a espingarda do ombro, quase a deixando cair ao chão.
Ouviu um estridente riso nasal e ficou completamente imóvel, com a espingarda atravessada sobre o corpo numa posição defensiva. De qualquer modo, ele estava perto demais para ela a erguer.
- Perdeu alguma coisa? - disse-lhe ele com uma voz que destilava desprezo. Deu um passo na sua direção e ela levantou um pouco a lanterna. A sua luz débil, conseguiu distinguir o rosto enrugado com as órbitas dos olhos envoltas em sombra.
Era um Limitador.
- Descuidada, muito descuidada - disse ele, e, com modos brutos, enfiou-lhe uma corda na mão. Tinha uma laçada.
Ela tremia de medo, sem saber o que vinha a seguir. No trem, quando Rebecca estava ao seu lado, tinha sido diferente. Ali, não gostava muito da ideia de estar sozinha com aqueles monstros - em especial se tivesse feito qualquer coisa que lhes desagradasse. Naquele ermo escuro, eles regiam-se pelas suas próprias leis. Passou-lhe pela cabeça o pensamento de que o fato de lhe entregarem a corda podia ser o prelúdio para a enforcarem. Seria algum jogo que estavam a jogar? Talvez fossem executá-la porque a consideravam incompetente e um empecilho. E, na realidade, ela não podia censurá-los - até essa altura só tinha feito disparates.
No entanto, neste caso, o seu medo era infundado. Bartleby surgiu de trás das pernas do Limitador, com a outra extremidade da corda atada firmemente ao pescoço e presa por um nó corredio. Todo o seu comportamento era de vergonha, com o rabo entre as pernas. Sarah não sabia se o Limitador lhe tinha dado uma sova, mas o que quer que lhe tivesse feito, o certo é que o gato ficara muito assustado. Bartleby não podia estar mais diferente; quando Sarah o puxou para si, foi até ela sem a mínima resistência.
- Vamos atravessar aqui - disse outra voz vinda mesmo de trás dela. Ela rodou e viu uma fila de figuras indistintas atrás de si: os outros três membros da patrulha dos Limitadores. Embora não tivesse visto nem sombras deles durante pelo menos meio dia, deviam ter andado a segui-la todo o tempo. Agora compreendia porque tinham eles uma fama tão merecida de fazerem as coisas pela calada; na realidade moviam-se como fantasmas. E ela a pensar que ela era boa.
Sarah limpou a garganta com apreensão.
- Não - começou docilmente, enquanto olhava na direção da água a espirrar, no início da passagem, e mantinha os olhos fixos nesse ponto. Preferia olhar para qualquer lugar a encontrar os olhos inertes dos Limitadores. - Eu levo o Caçador no rastro... para a ilha... para...
- Não é preciso - disse o Limitador que estava sozinho, a bloquear-lhe o caminho, com uma voz horrivelmente baixa. O fato de a ter baixado, em vez de lhe berrar uma ordem, era muito mais desconcertante. Ela conseguia sentir a sua ira por ter ousado discordar dele. Ele virou a cabeça bruscamente para o lado e outra vez para trás, um prenúncio do que podia acontecer a seguir se ela continuasse a opor-se. - Já fez o suficiente - murmurou ele. Isto foi dito de tal maneira que ela teve poucas dúvidas de que ele o disse com um desdém intencional.
- Mas a Rebecca disse... - começou Sarah, consciente de que esta podia ser a última coisa que dizia...
- Deixe isso conosco - rosnou um dos Limitadores lá de trás, e agarrou-lhe o braço causando-lhe tal dor que ela quis fugir.
Mas não fugiu, e recusou virar-se para olhar para ele. Naquele momento, estavam os três muito perto dela. Tinha certeza de que um deles lhe roçou no outro braço e estava a sentir a respiração deles no pescoço. Ainda que relutante em admiti-lo, estava extremamente assustada. Veio-lhe à mente uma imagem nítida: eles a cortarem-lhe o pescoço e a deixarem-na no lugar onde caíra.
- Está bem - disse ela, com uma voz que mal se ouviu, e a mão que estava a esmagar-lhe o braço cedeu ligeiramente, embora permanecesse no mesmo lugar.
Baixou a cabeça, já a odiar-se por não lhes ter feito frente. Mas era melhor ir com eles, pensava para si própria, do que ser executada. Se eles fossem bem-sucedidos e capturassem Will vivo, ela podia ainda ter chance de descobrir a verdade sobre a morte de Tam. Rebecca tinha prometido a Sarah que conseguiria ela própria acabar com Will - pelo menos isso significava que teria tempo para falar com ele. Mas agora não era o momento de discutir o acordo de Rebecca com aqueles selvagens.
- Vá ao longo da costa. Os renegados podem ter outro meio de sair da ilha. - sussurrou-lhe um Limitador ao ouvido, atrás dela.
A mão que lhe apertava o braço deu-lhe um puxão súbito e ela foi uns passos a cambalear. Quando se endireitou, eles tinham desaparecido completamente. Ficou sozinha, apenas com a brisa a bater-lhe na cara, e a mais dilacerante sensação de falha e vergonha. Tinha andado tanto apenas para ser desviada da caça. Sentiu um terrível vazio na boca do estômago quando pensou nos quatro soldados a avançar sem ela. Mas não havia nada a fazer. Seria tola se continuasse a resistir-lhes. Uma tola morta.
Caminhou muito devagar ao longo da praia, dizendo a si própria para não parar quando estivesse na passagem sobre a água. Estaria a desafiar o destino se o fizesse. Contudo, permitiu-se virar a cabeça para lançar uma breve olhadela. Embora não houvesse qualquer sinal dos Limitadores, estava pronta a apostar que um deles ficara para trás para ter certeza de que ela obedecia às suas ordens. Não havia nada a fazer senão ir aonde eles tinham dito, o que ela sabia que era uma total perda de tempo. Will estava na ilha - refugiara-se num beco sem saída, sem chance de fuga - e ela tinha estado muito, muito perto.
- Mexa-se! - disse a Bartleby, com uma brusquidão desnecessária. - Você é que tem culpa disto!
Puxava a corda com força. Ele seguia-a obedientemente, mas tinha a cabeça virada para a passagem e ia gemendo. Sabia tão bem como ela que iam numa direção completamente errada.
Capítulo Trinta e Oito
Numa área cavernosa, um vestígio de uma trilha. Uma faixa estreita mal perceptível através do terreno rochoso. Era possível que tivesse sido formada naturalmente... O Dr. Burrows não tinha certeza.
Olhou mais de perto e... aí está!... sim!... viu as lajes largas colocadas ao lado umas das outras. Usou a ponta da bota para afastar o cascalho e descobrir os espaços entre elas, que ocorriam a intervalos regulares. Não havia dúvida, nesse caso, decididamente, não era uma característica natural... e, à medida que ia progredindo, apareceu um pequeno lance de escadas. Subiu-as e parou. Reparando que o caminho continuava, perdendo-se ao longe, começou a esquadrinhar a área, primeiro de um lado, depois do outro. Descobriu que havia pedras salientes a erguer-se orgulhosamente do chão em ambos os lados.
- Excelente! Estas foram modeladas! - murmurou para si próprio. E depois viu que estavam dispostas em linhas. Inclinou-se para a frente para as examinar. Não, não era em linhas, estavam dispostas em quadrados.
- Estruturas retilíneas! - exclamou o Dr. Burrows, com uma excitação crescente. - São ruínas! Desenganchando do cinto o seu martelo geológico de cabo azul, saiu do trilho, olhando impetuosamente para o chão em volta, junto aos pés, à medida que caminhava.
- Fundações?
Inclinou-se para apalpar os blocos regulares, sacudindo seixos e usando a ponta do martelo para afastar para o lado pedaços de entulho solto que havia em volta deles. Acenou com a cabeça em resposta à sua própria pergunta, com um sorriso a enrugar-lhe o rosto manchado de sujeira.
- Não há dúvida, são fundações. - Endireitou-se e viu mais retângulos, esbatendo-se as formas na escuridão. - Isto teria sido em tempos uma povoação? - Mas quando estendeu o olhar ainda para mais longe, começou a avaliar as proporções daquilo que tinha descoberto. - Não, era maior do que isso! Era mais como uma cidade!
Voltando a colocar o martelo geológico no cinto, esfregou a testa. O calor era incapacitante ali dentro, e ouvia-se o som da água a gotejar muito perto. Longas faixas de vapor rendilhavam o ar, flutuando umas atrás das outras como serpentinas em câmara lenta. Um par de morcegos pequenos esvoaçava por ali, quebrando as faixas com o rápido bater das suas asas.
O enorme ácaro-do-pó estava fazendo uns ruídos secos, suaves, enquanto esperava por ele na trilha, como um cão bem treinado. Parecera decidido a segui-lo nos últimos quilômetros à medida que ele ia avançando. Apesar de o Dr. Burrows apreciar a companhia, não tinha ilusões quanto aos seus motivos. O que ele queria, claro, era mais comida.
A descoberta de que era capaz de ler a língua antiga das pessoas que outrora tinham habitado naqueles lugares inflamara o seu desejo de obter mais conhecimentos sobre elas. Ora, seria excelente se conseguisse encontrar alguns artefatos que lhe permitissem construir uma imagem de como elas viviam. Andava a bisbilhotar as fundações, à procura de qualquer coisa que pudesse ajudá-lo, quando ressoou um grito através do calor parado da gruta. Um guincho baixo, estridente, que ecoou nas paredes.
Seguiu-se o som de um movimento rápido, algo como Vvvvv. Vinha logo acima dele.
O ácaro-do-pó ficou quieto como uma estátua.
- O que...? - disse o Dr. Burrows. Olhou para cima, mas não foi capaz de localizar a origem dos sons. Só nessa altura é que percebeu que não via o teto da gruta. Era como se estivesse no fundo de uma fissura monumental. Ficara tão absorto pela descoberta das ruínas que não tivera tempo para inspecionar o que o rodeava.
Moveu lentamente o globo luminoso de modo a ficar estabilizado acima da cabeça. Na escuridão, só conseguia distinguir as extensões íngremes dos lados da fissura, pregas de pedra verticais ondulando suavemente, com a textura de uma barra de chocolate Cadbury's a erguer-se na escuridão. A cor também não era muito diferente - só que o castanho da rocha era mais claro. Privado durante tanto tempo do seu querido chocolate e das doses diárias que eram uma parte tão importante da sua vida em Highfield, o seu espírito começou a divagar e a sua boca a salivar. Este desejo fê-lo compreender quão fenomenalmente esfomeado estava - as provisões que os Coprolites lhe tinham dado não eram nada apetitosas e, na verdade, não saciavam nada.
O som do movimento voltou, acabando com quaisquer ideias de comida. Desta vez, estava mais perto e era mais alto. Sentiu na cara o enorme volume de ar deslocado - era algo mesmo muito grande. Bruscamente, baixou a mão que tinha a luz e, tapando-a com a palma da mão em concha, agachou-se.
Com um nó no estômago, do medo, resistiu ao impulso de fugir, mantendo-se imóvel naquela vastidão de rochas. Estava em campo aberto, sem nada ali perto que pudesse servir-lhe de abrigo, numa posição horrivelmente exposta. Lançou um olhar para o ácaro-do-pó. Mantinha-se tão quieto que demorou algum tempo a localizá-lo na trilha. Disse a si próprio que devia ser um comportamento defensivo - a criatura tentava esconder-se. Por isso, raciocinou ele, o que quer que estivesse a circular por cima deles era muito provavelmente algo a temer. Se um ácaro-do-pó monstruosamente grande, do tamanho de um elefante adolescente, e protegido por uma carapaça blindada, tinha razões para alarme, então ele devia ser um alvo perfeito. Um verme humano delicado, suave, suculento, pronto a ser apanhado.
Vvvvv!
Uma sombra enorme deslizava de um lado para o outro.
Aproximava-se cada vez mais - voava como um falcão, descrevendo círculos cada vez mais apertados.
Sabia que não podia ficar onde se encontrava. Nesse instante, o inseto estava outra vez em marcha, fugindo rapidamente por onde o Dr. Burrows calculava que a trilha continuava. Hesitou por momentos e depois largou a correr atrás dele, tropeçando nas fundações e no chão irregular. Arranhava as canelas nas rochas, escorregava e tropeçava em obstáculos à medida que fugia às cegas, mas, de qualquer modo, conseguia não cair.
Vvvvv!
Estava quase em cima dele. Reprimiu um grito, lançando os braços em volta da cabeça para a proteger enquanto corria. Que era aquilo, em nome de Deus? Algum predador alado? Vinha apanhar a presa como uma ave de rapina?
Estava de volta no caminho, mas nem podia acreditar na velocidade com que o ácaro-do-pó corria, impulsionando-se nas suas seis pernas. Mal conseguia vê-lo lá à frente, e, se não fosse o vago trilho, tinha certeza de que teria se perdido completamente. Mas aonde é que se dirigiam a trilha e o ácaro-do-pó?
Vvvvv! Vvvvv!
- Meu Deus! - gritou ele, e caiu ao chão. Uma corrente de ar quente provocada pelo batimento de asas sombrias bateu-lhe na cara. Estava perto! Agora de quatro, virou freneticamente a cabeça para ver se descobria o que era. Tinha certeza de que aquilo rodava em círculos, em algum lugar não muito longe, por cima dele, e havia de voltar para a arremetida final a qualquer segundo, para fazer a matança.
Acabaria assim? Arrebatado do chão por um animal voador subterrâneo?
A sua imaginação corria desenfreada, pensando no que aquela criatura podia ser, enquanto se lançava de novo a toda a velocidade, rastejando como um louco. Tinha de encontrar um lugar para se esconder e muito depressa.
Como tinha a cabeça baixa, chocou contra alguma coisa. Caiu de barriga para baixo, meio atordoado, e tentou imediatamente ver com o que colidira. Ainda estava no caminho, portanto, calculava que era para lá que o ácaro-do-pó tinha ido. Chegara à parede da gruta - isso conseguia ver. Mas havia mais. À sua frente, havia uma entrada talhada na superfície da rocha, com um lintel claramente definido, talvez uns vinte metros mais ou menos acima.
Gritou de alívio, ousando permitir-se pensar que tinha encontrado um lugar seguro para se esconder. Recomeçou a rastejar, dizendo a si próprio que devia manter-se colado ao chão. À medida que avançava, esfolava os joelhos e a barriga das pernas e batia com os nós dos dedos no cascalho, ferindo-os. Não parou até perceber que havia já vários segundos que não ouvia o barulho. Estaria a salvo?
Deitou-se no chão e enroscou-se com força, incapaz de reprimir um grave ataque de tremedeira. Era uma reação retardada ao seu profundo terror, e achou que não conseguia parar de tremer apesar de nessa altura estar tudo muito calmo e silencioso. Para cúmulo, ficou com um ataque crônico de soluços, cada um dos quais provocando-lhe um espasmo no corpo. Uns minutos mais tarde, esticou-se e, ainda cheio de soluços, rolou para o lado. Nessa posição, com várias inspirações fundas e trêmulas, descontraiu lentamente os dedos rígidos, afrouxando a pressão no globo luminoso que tinha na mão.
Limpou a garganta e murmurou: - Boa, boa, boa, hic!, como se tivesse vergonha da sua reação, e depois sentou-se para olhar em volta. Estava num espaço fechado, embora de um tamanho razoável, com duas filas de grandes colunas de cada lado dele, todas da mesma pedra acastanhada da gruta lá fora. Os olhos arregalaram-se de espanto.
- Que... hic!
ø ø ø
Elliott conduzia os rapazes para o interior. Em alguns lugares a vegetação rasteira era tão densa que tinha de usar a faca no mato para abrir caminho. Em fila indiana atrás dela, os rapazes ajudavam-se uns aos outros, assegurando-se de que os ramos cartilaginosos das altas plantas carnudas e as frondes mais baixas das árvores não oscilavam para trás, batendo na cara da pessoa que vinha a seguir. Estava abafado, e em pouco tempo os rapazes ficaram encharcados em suor e com saudades dos espaços abertos e das brisas suaves da praia.
Apesar disto, Will estava animado. Estava satisfeito porque parecia que eles trabalhavam outra vez como uma equipe e tomavam conta uns dos outros. Esperava que quaisquer diferenças que tivesse tido com Chester fizessem definitivamente parte do passado e que a sua amizade voltasse a ser o que era. E acima de tudo o resto, estava muito reconhecido pelo fato de Elliott ter tomado de imediato o lugar de Drake como o novo líder deles. Tinha poucas dúvidas de que ela era capaz de desempenhar esse papel.
Will ouviu sons ao longo do caminho, gritos roucos de animais e barulhos cavos, ribombantes. Tentava ansiosamente localizar a origem destes ruídos, esquadrinhando tudo à sua volta e lá em cima, nos ramos das árvores gigantescas, mas não conseguia descobrir nada. Teria dado tudo para parar e fazer uma pesquisa como devia ser. Encontrava-se numa floresta primitiva que podia estar cheia de toda a espécie de criaturas fantásticas.
O caminho levou-os até uma clareira, onde Will lançou olhares furtivos à vegetação luxuriante, rezando para que pudesse ter o mais leve vislumbre de um desses animais. Não conseguia evitar fantasiar sobre as maravilhas que podiam estar a dois passos dele.
Então, quando olhava para trás, um par de animais surgiu de entre as plantas carnudas na orla da clareira. Will olhou uma segunda vez, espantado - não tinha certeza se eram aves ou répteis, mas assemelhavam-se a um par de galinhas-miniatura, muito pequenas, recentemente depenadas, com pescoços atarracados e biquinhos ridículos. Como duas velhotas a lamentar-se uma à outra, comunicavam usando tanto os sons roucos como os ribombantes que Will ouvira. Viraram-se e fugiram para a vegetação, batendo as asas atrofiadas, das quais saltaram alguns pedaços sujos de pêlo ou de penas. A desilusão de Will era tangível. Lá se foram as criaturas exóticas com as quais ele estivera a sonhar.
Depois Elliott levou-os para uma trilha, e por ele continuaram até Will ouvir a voz de Chester lá à frente.
- O mar - disse ele.
Reuniram-se em volta de Elliott, agachando-se entre os arbustos. Havia uma praia à frente deles e ouviram de novo o som do mar. Esperavam que ela lhes dissesse o que iam fazer a seguir, quando Cal falou.
- Parece mesmo a nossa praia. Não vai me dizer que nos limitamos a dar uma volta completa? - interrogou-a Cal, indignado, limpando o suor da testa.
- Não é a mesma praia - informou-o ela friamente.
- Mas para onde vamos agora? - perguntou ele, franzindo o cenho enquanto esticava o pescoço para esquadrinhar ambos os lados da praia.
Ela espetou um dedo na direção do mar, para lá das ondas que rebentavam.
- Portanto, estamos numa ilha e a única... - começou Will.
- ...entrada e saída é a passagem sobre a água - Elliott acabou-lhe a frase. - E aposto com vocês que neste preciso momento os Cabeças Pretas estão a farejar os restos da nossa fogueira - disse ela.
Um silêncio constrangedor desceu sobre o grupo até que Chester falou em voz baixa.
- Então, vamos a nado até lá?
Capítulo Trinta e Nove
P
ôs-se em pé, a cambalear, piscando os olhos de surpresa. Ficou fascinado quando avistou o espaço em redor - a sua sede insaciável de conhecimento afastava todas as outras preocupações. Naquele instante, os soluços pareciam curados, e o Dr. Burrows, explorador intrépido, voltava ao trabalho. O seu medo da fera não identificada e todos os pensamentos sobre a sua corrida histérica para lhe escapar estavam postos de parte.
- Bingo! - gritou.
Tropeçou numa espécie de construção, aparentemente talhada no leito de rocha da própria gruta. Se andava à procura de provas de uma raça antiga, então tinha-as seguramente encontrado naquele momento. Rastejou para diante e a sua luz revelou filas e mais filas de bancos de pedra, muitos deles destruídos por destroços caídos. Dirigia-se à parte da frente, para onde os bancos estavam virados, quando resolveu olhar para cima.
O teto era liso e estava de um modo geral intacto, exceto em algumas áreas onde tinham se reduzido a pedaços. Quando fez incidir a luz em volta dele, teve um vislumbre perturbador de algo que parecia voltar a refletir a luz para ele.
- Extraordinário! - exclamou, erguendo o globo luminoso mais alto; os seus raios percorreram uma curta distância até um círculo com um brilho sombrio, que tinha pelo menos vinte metros de diâmetro.
- Mais alto... tenho de subir mais - disse a si próprio, trepando no banco de pedra mais próximo. Ainda não era o suficiente, por isso subiu para as costas do próprio banco.
Enquanto movia a luz lentamente em volta, oscilando precariamente nas costas estreitas do banco, o desenho tornou-se mais nítido. O círculo era da cor de ouro baço ou de bronze, e podia ter sido aplicada com alguma espécie de douradura, ou possivelmente mesmo pintada. Falou em voz alta enquanto o inspecionava.
- Então você é um círculo côncavo com... com... o que é isso no meio? Parece... - disse, virando os olhos para cima e empurrando o globo para o teto tanto quanto o braço lhe permitia, até ele ficar seguro apenas nas pontas dos dedos.
Logo no centro do círculo, também na parte metálica, havia um disco sólido. Partindo da circunferência deste disco, havia linhas serrilhadas que pareciam raios estilizados e angulosos.
- Ah, sim! É óbvio o que devia representar... você é o sol! - afirmou o Dr. Burrows, e franziu o cenho. - Então o que temos aqui - uma raça subterrânea a praticar um culto da superfície? Recordarão estas pessoas um tempo em que estavam lá em cima, na crosta terrestre?
Houve mais uma coisa que lhe chamou a atenção. Aquilo por onde tinha passado a princípio, pensando que eram simplesmente estragos ocorridos no círculo exterior, não era nada disso. Inspecionando melhor, viu perfeitamente que havia representações simples de humanóides andando em volta do interior do círculo maior - não havia qualquer dúvida a esse respeito -, eram homens, colocados a intervalos regulares em volta do interior do círculo, como se estivessem numa enorme roda de hamster.
- Eh, o que estão vocês aqui a fazer, rapazes? Vocês e o Sol estão nos lugares errados! - observou ele, franzindo ainda mais o cenho ao virar a luz outra vez para o disco sólido que estava ao centro. - Não sei quem os fez, mas estão todos ao contrário!
Apesar da aparente natureza confusa da imagem, compreendia que qualquer representação da Terra como uma esfera, remontando ao tempo dos Fenícios, significava que quem quer que a tivesse posto ali era, no mínimo, incrivelmente iluminado e muito avançado para o seu tempo.
O braço começou a ficar cansado de segurar no globo, por isso baixou-o e voltou a descer, perplexo com o que tinha visto.
- Basta de simbolismo! - disse ele, e fungou com desdém ao retomar o caminho para diante. Passou pela fila da frente dos bancos, e o feixe de luz pousou naquilo que estava à frente deles. Susteve a respiração quando viu um palco elevado, sobre o qual estava um sólido bloco de pedra. Quando se aproximou, calculou que o bloco tinha uns quinze metros de um lado ao outro e cerca de metro e meio de altura.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou, falando mais uma vez em voz alta com a escuridão sombria que o envolvia. Olhou para as filas de bancos, para o teto lá em cima com os círculos, e depois contemplou novamente o bloco de pedra. - Tem bancos de igreja, um mural ridículo no teto, e também tem um altar - anunciou como um postulado -, não há dúvida nenhuma... é decididamente um local de culto de alguma espécie... uma igreja, ou um templo, talvez?
O interior assemelhava-se seguramente a um templo no modo como estava disposto - um local arquetípico de culto formal com uma nave central -, e agora ele tinha encontrado um altar para compor o ramalhete.
Continuou a avançar silenciosamente, com a luz a revelar o altar cada vez mais à medida que ia andando. Ao parar, extasiou-se com a perfeição com que estava feito: decorado com lindos e intrincados entalhes geométricos dignos de qualquer escultor bizantino.
Erguendo o globo, a luz incidiu sobre uma área de parede imediatamente atrás do altar, que brilhou de um modo encantador.
- Meu Deus... olhe para isto!
Respirando rapidamente de expectativa, chegou-se mais. Era um tríptico: três painéis maciços - baixos-relevos - talhados com imagens de qualquer espécie. Sabia que os painéis eram feitos de um material diferente da pedra cor de chocolate que estava em toda a sua volta pelo modo como refletiam a luz e lhe davam certo calor.
Os pés sentiram um degrau na base do altar, e depois outro, e, como que hipnotizado, subiu até o topo, que tinha cerca de dois metros de largura. De um lado ao outro, os três painéis estendiam-se a todo o comprimento do altar e cada um deles tinha aproximadamente o dobro da altura do Dr. Burrows. Com o pulso acelerado devido à excitação, aproximou-se do painel central e, afastando suavemente o pó e as teias de aranha, começou a examiná-lo com movimentos súbitos da cabeça.
- Cristal de rocha polido... tão, tão primoroso... - proclamou ele, passando os dedos pela sua superfície. - É muito belo, não é... mas para que está aqui? - perguntou ao tríptico, olhando de perto para a sua superfície até a cabeça ficar apenas a uns centímetros dela. - Deus, acho que pode ter ouro aí dentro! - resfolegou de incredulidade, quando viu a grandiosidade cintilante que estava atrás da camada transparente. - Três enormes painéis de ouro, revestidos com cristal de rocha talhado. Que artefato fantástico! Tenho de fazer um registro disto.
Embora lhe crescesse água na boca com a perspectiva do que estava nos painéis, resolveu organizar-se primeiro como devia ser, e empreender a tarefa de reunir gravetos suficientes para fazer uma fogueira. Era a última coisa com que queria gastar o seu tempo, mas era incômodo utilizar o globo como única fonte de luz - e, além disso, refletiu para si próprio, permitir-lhe-ia apreciar os painéis em toda a sua glória. Em questão de minutos, apanhou materiais secos suficientes para acender uma pequena fogueira em cima do altar, e as chamas começaram a erguer-se sem qualquer hesitação.
Enquanto o fogo crepitava atrás dele, pôs-se a limpar o pó da superfície dos três painéis usando o antebraço. Para as seções mais altas de cada painel, desencantou o seu esfarrapado macacão azul e pôs-se a impeli-lo para cima, por vezes dando saltos, numa tentativa de chegar ao topo.
Estes movimentos levantaram uma onda de pó enquanto ele trabalhava, mas o esforço em breve se tornou demasiado para ele, por estar tão enfraquecido. Parou, respirando com dificuldade, para inspecionar os seus progressos. Com certo alívio, compreendeu que não precisava limpar o pó completamente; uma camada residual de pó, quando combinada com a iluminação do fogo, parecia tornar mais fácil de ver as imagens talhadas nos painéis.
- Bem, vamos lá dar uma boa olhada em vocês todos - anunciou, e, com o seu toco de lápis de confiança a pairar sobre uma nova página do diário, assobiou por entre os dentes de forma casual e impaciente, esperando que o pó assentasse. Depois, com a ponta da bota, empurrou mais alguns materiais secos para o fogo, para alimentar as chamas, e virou-se para dedicar aos painéis toda a sua atenção. - Bem, então o que vocês vão me dizer, pergunto eu? - disse, de um modo quase sedutor, ao painel mais à esquerda, quando se colocou à sua frente.
Com o painel amplamente iluminado pelas chamas tremeluzentes, o Dr. Burrows viu de imediato que representava uma figura que tinha na cabeça algo vagamente semelhante a uma mitra atarracada. A figura tinha um maxilar forte e uma testa grande, e a sua atitude sugeria que era uma pessoa de imensa importância e poder - isto era enfatizado pelo longo cetro que brandia no punho cerrado.
A figura ocupava a maior parte do painel, e, ao continuar a examiná-la, o Dr. Burrows viu que o homem estava à frente de uma grande e sinuosa procissão de pessoas. A procissão continuava por uma distância que parecia ser considerável, arrastando-se até ao horizonte, sobre algo que parecia ser uma vasta, mas incaracterística, planície. O Dr. Burrows inclinou a cabeça para mais perto do painel, e depois virou-a de um lado para o outro, enquanto o fogo atrás dele crepitava. Limpou mais um pouco do pó da figura e soprou sobre a superfície polida. Estava talhada de um modo extremamente estilizado.
- Influência egípcia? - murmurou o Dr. Burrows para si próprio, descobrindo semelhanças com objetos que remontam a esse período e que estudara na universidade. Recuou um passo do painel. - Então, o que está me dizendo? Tenta me contar que este tipo é, sem qualquer dúvida, uma personagem importante... um líder de qualquer gênero, uma figura como Moisés, talvez a conduzir o seu povo numa viagem até este lugar, ou... talvez exatamente o contrário, a conduzi-lo numa espécie de êxodo. Mas porquê... o que aconteceu de tão importante que fez alguém te esculpir com uma perícia tão magistral e te deixar aqui no altar?
Sussurrou durante um tempo, pronunciando palavras à toa, depois estalou a língua contra os dentes. - Não, não vai me dizer mais nada, não é? Vou ter de falar com os seus amigos, mas talvez volte daqui a pouco - comunicou ao painel silencioso. O Dr. Burrows girou elegantemente sobre os calcanhares e dirigiu-se ao painel mais à direita do tríptico.
Comparando com o primeiro painel, era mais difícil compreender o assunto. Não havia uma única imagem predominante a que o Dr. Burrows pudesse agarrar-se de imediato - era, no conjunto, mais complexo e mais confuso. Todavia, quando a luz do fogo incidiu sobre ele, começou a ver o que representava.
- Ah... com que então é uma paisagem estilizada... campos ondulantes... um riacho com uma pontezinha por cima e... o que se passa aqui? - murmurou, limpando uma área do painel que estava mesmo à sua frente. - Qualquer tipo de agricultura... árvores... talvez um pomar? Sim, acho que talvez seja. - Recuou para olhar para a metade superior do painel. - Mas o que serão aquelas coisas? Curioso, muito curioso, realmente.
Viu colunas estranhas a descer como lanças do canto superior direito sobre o resto da paisagem talhada de forma elaborada. Inclinou-se lentamente para o painel e voltou a afastar-se, enquanto se esforçava por compreender o que representava. Depois ficou imóvel quando percebeu para o que estava a olhar. No ponto a partir do qual as colunas irradiavam, havia um círculo.
- O Sol! Oh, é outra vez o meu velho amigo Sol! - exclamou o Dr. Burrows. - Que idiota que eu sou! É exatamente como o que está no teto! - A esfera estava enfiada num dos cantos, com os raios serrilhados espalhando-se sobre o resto da imagem. - Então o que você está me dizendo... está me mostrando o lugar para onde a figura de Moisés conduzia o povo? Seria uma grande peregrinação à Superfície? É isso?
Olhou para o primeiro painel que tinha examinado. - Um soberano a conduzir o seu povo a uma espécie de nirvana idealizado, aos Campos Elísios, ao Jardim do Éden? - Voltou a olhar para o painel à sua frente. - Mas você está mostrando a superfície da Terra e o Sol... então que faz uma imagem linda como você num lugar destes, aqui em baixo? Será apenas uma lembrança do que existe lá em cima, para refrescar a memória da raça, talvez? Uma nota de Post-it subterrânea? E quem são essas pessoas - serão realmente uma cultura esquecida ou os antepassados dos Egípcios, ou, mais provavelmente, dos Fenícios ou... ou talvez algo mais fantástico? - Abanou a cabeça. - Poderão ter sido retirados da cidade perdida da Atlântida? Será possível?
Controlou-se, compreendendo que estava chegando a demasiadas conclusões antes de conduzir uma investigação séria.
- Qualquer que seja a sua mensagem, porque sentiria alguém necessidade de te pôr aqui? Não estará a ser enigmático? Na realidade, não te compreendo. - Com isto, calou-se, mordendo os lábios secos, com a pele a cair, e perdido em pensamentos.
- Talvez você tenha todas as respostas - murmurou para si próprio ao desviar-se para o painel central.
Não estava absolutamente nada preparado para o que viu nele. Naquele que, por direito, devia ser o mais importante dos três painéis esperava encontrar qualquer coisa imponente - talvez um símbolo religioso, uma imagem coroada. Mas, afinal, era de longe o menos notável do tríptico.
- Ora, ora, ora - disse o Dr. Burrows.
Era a representação de uma abertura circular no solo, com bordas de pedra escarpadas. A sua perspectiva permitia ao Dr. Burrows ver um pouco lá para dentro, mas não havia lá nada, exceto a continuação dos lados rochosos.
- Ah! - exclamou, curvando-se para a frente e avistando umas figuras humanas minúsculas mesmo na borda do buraco.
- Então o que quer que esteja ainda a dizer-me, eu sei que você está numa escala gigantesca, não é? - disse ele, estendendo a mão para limpar o pó das figurinhas, não muito maiores do que formigas, com o polegar.
Continuou a fazer isso durante algum tempo, encontrando cada vez mais pessoas liliputianas numa procissão, até que imobilizou subitamente a mão e a retirou.
Vira que na extremidade esquerda da procissão muitas destas minúsculas formas humanas tinham os braços e as pernas abertos, como se estivessem em queda livre. Pareciam cair para dentro da enorme abertura. E, ao caírem, pairavam sobre elas estranhas criaturas aladas. O Dr. Burrows estava nas pontas dos pés e soprou com força para tirar mais pó de cima dessas diminutas formas voadoras.
- Bem, que descoberta! - declarou. Pareciam ter corpos humanos, mas com túnicas soltas, esvoaçantes, e com asas como as de cisnes a saírem-lhes das costas. - Anjos... ou demônios? - refletiu em voz alta.
Depois, deu vários passos para trás, tendo o cuidado de não pisar a fogueira, que ainda ardia. Com os braços cruzados e o queixo aninhado numa mão, continuou a observar o painel, assobiando todo o tempo, no seu modo errático e entoado. Parou de assobiar.
- Ah sim! - gritou, ao lembrar-se de qualquer coisa. Apressadamente, tirou do bolso das calças o mapa dos Coprolites, abriu-o e segurou-o à sua frente. - Eu sabia que já os tinha visto antes!
No mapa, no fim de uma longa linha que representava algo que ele calculava que fosse um túnel ou uma trilha, salpicada com vários símbolos ao longo do caminho, viu qualquer coisa que se assemelhava à imagem do painel, embora no mapa estivesse desenhada de uma maneira muito mais simplista do que a que estava no painel, só com alguns traços de caneta. Mas, também ela, parecia ser uma espécie de abertura no solo.
- Poderia ser a mesma coisa? - disse, pasmado, para si próprio.
Aproximou-se mais do painel do centro e examinou-o outra vez. Havia mais qualquer coisa na base, qualquer coisa que não notara, sob uma camada de fungos, que estava agora seca e empoeirada. Esfregou-a febrilmente e descobriu que tinha estado a tapar uma linha de escrita cuneiforme.
- Maravilha! - berrou, exultante, abrindo imediatamente o seu diário na página da Pedra do Dr. Burrows. Coincidia com a escrita da seção inferior da placa... podia traduzi-la!
Pôs-se de cócoras e não perdeu tempo - começou a trabalhar na inscrição, que era constituída por cinco palavras distintas. Olhou repetidamente do painel para o bloco de notas, formando-se no rosto um enorme sorriso de satisfação consigo mesmo. Decifrou a primeira palavra: - JARDIM...
Cacarejou de impaciência, com os olhos a passarem do bloco de notas para a escrita e vice-versa.
- Vamos lá, vamos lá - incitava-se. - Qual é a próxima palavra?
Então leu: - PARA... não, não é PARA, mas DE! - E depois - Você é uma palavra fácil... O.
Respirou fundo e resumiu as suas descobertas até essa altura: - Então, temos JARDIM DO... - anunciou.
A palavra seguinte deixou-o confuso.
- Pense, pense, pense! - disse, batendo todas as vezes na testa. - Organize-se, Burrows, grande imbecil - grunhiu, aborrecido porque a sua mente não estava funcionando à máxima potência. - O que é o resto?
As palavras restantes não eram tão fáceis, e ele sentia-se frustrado por estar a demorar tanto tempo a traduzi-las. Examinou a parte final da inscrição, com esperança de conseguir chegar, por algum golpe de sorte, a uma descoberta rápida.
Precisamente nessa altura, o fogo tremeluziu, quando um graveto grosso começou a arder com um silvo alto. O Dr. Burrows viu qualquer coisa pelo canto do olho, e virou a cabeça lentamente do painel.
Com a luz mais brilhante que nessa altura estava a ser emanada pelo fogo, conseguiu ver cavidades bastante grandes, ou talvez buracos, por toda a parte, nas paredes laterais do templo. Uma porção.
- É estranho - murmurou, franzindo o cenho. - Não tinha reparado nisto.
Quando olhou mais de perto, o seu coração começou a bater com mais força, da excitação.
Não, não eram buracos... estavam a mover-se.
Deu uma volta completa.
Gritou de surpresa.
À sua frente estavam tantos ácaros-do-pó enormes, que nem podia sequer contá-los. Era como se aquele do qual se tornara amigo tivesse chamado os seus irmãos, e, nessa altura, centenas deles haviam se juntado no interior do templo como uma congregação pavorosa e arrepiante. Entre eles havia gigantes três ou quatro vezes maiores do que o ácaro-do-pó que o conduzira até ali. Pareciam tão grandes como tanques Sherman e tão fortemente blindados como eles.
O grito dele pô-los em ação, e as suas mandíbulas estrepitaram como se estivessem a dirigir-lhe uma delicada explosão de aplausos. Vários começaram a deslocar-se pesadamente na sua direção com aquela determinação gradual e inumana que só um inseto possui. Isso fez gelar-lhe o sangue.
Não ficara excessivamente alarmado com o primeiro ácaro-do-pó - embora tivesse o cuidado de se manter à distância a princípio, não se sentira ameaçado por ele -, mas esta era uma situação completamente diferente. Havia muitos, e eram muito grandes, e esfomeados demais. Subitamente imaginou-se como uma barra de comida de tamanho gigante, convidativamente colocada sobre o altar à frente deles.
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus, repetia-se vezes sem conta na sua cabeça.
Alguns dos maiores, bestas de aspecto perigoso com carapaças amolgadas e esburacadas, começaram a avançar mais depressa do que os outros, afastando do seu caminho ácaros mais pequenos. Era como se ele tivesse entrado numa clareira na floresta apenas para descobrir que estava precisamente no meio de uma família de rinocerontes irados. Não seria uma boa situação para se estar, e ele sabia, sem dúvida, que a sua também não era.
Agarrou na mochila, enfiando o bloco de notas lá dentro, e depois atirou-a para as costas, com o pensamento a correr a toda a velocidade. Precisava encontrar uma saída, e depressa.
Eles avançavam mais, as pernas articuladas a bater nas pedras do chão com um ruído surdo. Alguns empinavam-se, as pernas grossas agitavam-se no ar, ao subir para as costas dos bancos, proporcionando ao Dr. Burrows uma visão das suas barrigas pretas e lustrosas.
Estava cercado. Havia-os em toda a parte; avançavam para a sua frente e para os seus lados, como uma divisão blindada, mas daquelas que dilaceram a carne.
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus.
Perguntava-se, como louco, se poderia fugir passando simplesmente por cima dos ácaros-do-pó, saltando de costa em costa, como se estivesse num engarrafamento a pular sobre os tetos dos carros. Não, bela ideia, mas tinha certeza de que eles não iam ficar quietos e permitir-lhe fazer isso. Sabia que não era uma opção - não seria assim tão fácil. E, de qualquer maneira, preferia não voltar para a gruta, onde a criatura voadora podia estar ainda à espera dele.
Pegou num pedaço de lixo, semelhante a um ramo, que estava no fogo e brandiu-o na direção deles, tentando assustá-los com as chamas. Os mais próximos encontravam-se nessa altura a apenas a uns metros da base do altar, e outros iam rastejando firmemente na direção dele, vindos dos lados. As chamas não adiantaram nada - na verdade, dava a ideia de que acontecera exatamente o contrário, pois eles pareciam atraídos pelo fogo, acelerando de um modo bastante apreciável.
Em desespero, atirou o ramo com toda a sua força a um ácaro-do-pó muito grande. Fez ricochete na carapaça sem causar danos, e ele não abrandou nem um pouco.
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus, NÃO!
Com um pânico absoluto, girou sobre si e tentou subir no painel central do tríptico, interrogando-se desesperadamente se seria capaz de se pôr lá em cima, e, talvez, chegar à parede por cima dele. Talvez isso lhe fizesse ganhar algum tempo? Não estava a pensar em mais nada senão nos segundos seguintes.
Escorregava e derrapava na superfície empoeirada do entalhe; não conseguia encontrar qualquer ponto de apoio.
- VAMOS LÁ, IDIOTA! - gritava para si mesmo, com a voz quase abafada pela barulheira dos ácaros-do-pó, estava mais alta e num ritmo mais rápido, como se estivessem a ser provocados pelo espetáculo da sua barra de comida humana a tentar fugir.
Então, os seus dedos agarraram os lados do painel e, com um muito esforço, ergueu-se em cima do altar. Ofegando e resmungando, com as mãos e os braços esticados até o limite, segurou-se no ar, os pés a labutar em vão por baixo dele.
- Por favor, por favor, por favor - dizia, enquanto os braços começaram a ceder.
Milagrosamente os dedos dos pés encontraram uma espécie de apoio no entalhe do painel. Era o suficiente. Rapidamente deslizou as mãos um pouco para cima, e depois, suspenso de novo apenas pelos braços, encontrou outro apoio para o pé. Usando a sua locomoção alternada tipo lagarta - mãos, pés, mãos, pés -, lá foi por cima, subindo para salvar a vida.
Recorreu ao resto da sua força sobre-humana, resultante do estado de histeria em que se encontrava, para chegar ao topo do painel. Uma vez aí, enfiou o pé direito no entalhe do enorme buraco do chão. Desta maneira, e com os dedos dobrados sobre a parte de cima do painel - uma saliência apenas com cerca de quatro centímetros de largura -, avaliou rapidamente a sua situação.
Estava numa posição extremamente precária, na qual não podia manter-se muito tempo: braços e pernas já exaustos do esforço de subir. E não havia qualquer motivo para ter a ilusão de que os ácaros-do-pó não seriam capazes de se precipitar maciçamente pela parede acima - tinha-os visto subir pelos lados do templo. Esperava convictamente que aparecessem em cima dele de repente. Mas o que podia fazer para se defender? A única coisa que lhe ocorreu foi que, escoiceando com o calcanhar, podia pelo menos impedir o ataque.
Olhou para cima, tentando freneticamente formular a manobra seguinte. Tirou uma mão trêmula da saliência, levantando-a para sondar a parede de rocha acima dele. Não, plana que nem uma tábua. Inútil. Era demasiado lisa - não havia nada que lhe proporcionasse qualquer espécie de apoio para a mão. Sentiu o suor a inundar-lhe a testa e a escorrer-lhe pelas costas abaixo quando encolheu a mão, e, respirando fundo várias vezes para tentar acalmar-se, agarrou-se com uma determinação obstinada.
Como um homem com vertigens, torceu a cabeça rigidamente para olhar para baixo, para os insetos. Quando se mexeu, o globo luminoso que tinha pendurado ao pescoço escorregou de dentro do casaco de modo que a luz incidiu sobre as suas filas compactas. Isto causou grande agitação entre eles, e começaram a ondular, para cima e para baixo, com as mandíbulas a fazer ainda mais barulho, como se estivessem a compor um crescendo frenético de expectativa.
Por qualquer razão, o Dr. Burrows pensou subitamente em pauzinhos chineses, muitos pauzinhos gigantescos, dilacerando-lhe o corpo, arrancando-lhe membro após membro.
- Xô! Vão embora! Xô! Ponham-se a andar! - gritou, por cima do ombro, as mesmas palavras que muitas vezes usara para afugentar do relvado dos fundos, em Highfield, o gato do vizinho do lado, embora esta situação fosse completamente diferente. Aqui, ele estava quase a ser mastigado por mil insetos gigantes.
As mãos estavam encharcadas em suor e tinham cãibras horríveis. O que ele podia fazer? Ainda tinha a mochila nas costas, e o peso suplementar não ajudava nada. Ponderou se havia de sacudi-la das costas, um ombro de cada vez, mas tinha receio de perder o seu tênue apoio em cima do painel. Além disso, não havia nada que pudesse fazer e nenhum outro lugar para onde subir.
Voltou a olhar para cima, para se certificar de que na realidade não havia nada a que pudesse agarrar-se para se içar mais alto. Ao fazê-lo, viu no outro lado do teto do templo uma montagem, em movimento, de partes serrilhadas dos aracnídeos, silhuetas juntas e sobrepostas, projetadas pela luz bruxuleante do fogo no altar lá em baixo. Já estavam perto. Era a própria essência do pesadelo.
- Meu Deus! - proferiu ele, com total desespero.
Sentiu que a mão esquerda começava a soltar-se da saliência à medida que o pó que estava sobre ela absorvia o seu suor e se transformava numa pasta escorregadia. Deslizou os dedos ao longo da saliência até ficar numa nova posição, tentando simultaneamente erguer-se um pouco mais.
Começou a acontecer qualquer coisa.
Um ronco baixo abanou todo o seu corpo.
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus!
Olhou rapidamente em volta, para um lado e depois para o outro, com a luz a balançar livremente em volta do pescoço, confundindo-o.
- Oh, não! O que é agora? - gritou, com uma nova onda de terror, ainda mais profunda, a perpassá-lo.
Tinha a sensação estranha de que se deslocava... mas como podia ser? As mãos, nessa altura quase completamente dormentes com o esforço de se conservar erguido, ainda mantinham alguma firmeza a agarrarem-se, e o pé ainda estava apoiado com segurança. Não, não estava a escorregar pelo painel abaixo para os aracnídeos ávidos e esfomeados.
Não era nada disso.
Mas nessa altura a trepidação parou, e, embora a sua situação permanecesse tão assustadora como antes, começou a felicitar-se. Subiu mais pelo painel.
Imediatamente o ronco surdo recomeçou, desta vez com mais violência.
O seu primeiro pensamento foi que se tratava de um abalo no subsolo, uma espécie de terremoto subterrâneo. Esse pensamento foi afastado quase de imediato, quando compreendeu que era ele que estava a mover-se, e não aquilo que o rodeava.
O painel de pedra, o do meio do tríptico, ao qual ele se agarrava para se salvar, estava a virar-se lentamente. Sob o peso dele, pendia para a frente, para a parede do templo.
- Socorro! - gemeu.
As coisas estavam a acontecer depressa demais para ele compreender. Como ficou tudo turvo, calculou imediatamente que o painel se tinha soltado e caía. O que ele não conseguia ver era que o painel girava pelo meio, inclinando-se mesmo abaixo do sítio onde estavam os pés dele.
E quer quisesse quer não, estava a acompanhá-lo. O seu movimento acelerava, e em frações de segundo já se deslocava a uma velocidade razoável. Continuava a girar, com ele ainda obstinadamente agarrado, até ficar na horizontal, mesmo deitado em cima do painel. Girou até ao limite máximo, e depois parou abruptamente, com um ruído de pedra contra pedra, como o ranger de maxilares.
O Dr. Burrows foi catapultado para a frente e rolou ao acaso, pelo ar escuro, várias vezes. O seu voo foi curto e doce, e acabou mal tinha começado. Caiu de costas, sem conseguir respirar. Engolindo e tossindo, tentou retomar a respiração enquanto as mãos agarravam a areia macia debaixo dele. Teve sorte - esta amortecera-lhe a queda.
Houve um grande baque atrás dele e uma borrifada de alguma coisa atingiu-lhe a cara, acompanhada de um som sibilante muito agudo.
- O que...? - O Dr. Burrows sentou-se e virou-se para ver o que era, esperando convictamente que as hordas de aracnídeos caíssem sobre ele.
Mas os óculos tinham-lhe tombado durante a queda, e sem eles era incapaz de distinguir qualquer coisa na penumbra. Tateou a areia em volta até que os encontrou, e voltou a pô-los rapidamente.
Nesse preciso momento, ouviu um esgaravatar ao seu lado e virou bruscamente a cabeça na sua direção. Era uma perna desmembrada de um dos ácaros-do-pó, do tamanho de um topete de cavalo, cortada à altura do que era provavelmente o equivalente do ombro. Viu-a abrir-se e fechar-se subitamente, com tal força que se virou na areia. Deslocava-se como se tivesse vontade própria, e, tanto quanto o Dr. Burrows sabia, provavelmente tinha.
Recuou, afastando-se do membro, e pôs-se em pé, a oscilar, um pouco estonteado, e ainda a resfolegar e a tossir à medida que a sua respiração voltava ao normal. Olhou ansiosamente ao redor, imaginando que a qualquer momento os aracnídeos se precipitariam como um enxame sobre ele.
Mas já não havia sinais deles, nem, na realidade, do interior do templo; apenas um silêncio contínuo, e a escuridão, e simples paredes de pedra.
Tinha a cabeça confusa por causa da queda e esforçava-se por entender o que se passara. Era como se tivesse sido transportado para um lugar completamente diferente.
- Onde diabo estou eu? - murmurou ele, e inclinou-se para a frente, apoiando as mãos nas pernas.
Passados uns minutos, começou a sentir-se melhor, e endireitou-se para inspecionar o que tinha à sua volta. Lembrou-se que o painel pareceu inclinar-se sob o seu peso, e em poucos segundos conseguiu reconstituir tudo. Nessa altura, percebeu como tivera uma sorte incrível, e começou a balbuciar umas palavras para si próprio.
- Oh, obrigado, obrigado. - Uniu as mãos para uma breve oração, derramando lágrimas de gratidão.
Outra borrifada de um fluido quente encheu o ar. Cheirava muito mal, um fedor amargo a algo desagradável e inumano que o fez engasgar-se. Olhou em volta para ver de onde vinha.
Cerca de dois metros acima do solo, os restos brilhantes e mutilados de um ácaro-do-pó projetavam-se da parede. Tinha sido, obviamente, apanhado pelo painel quando este voltou a fechar-se com violência. Um fluido transparente, azulado, escorria e projetava-se de vários tubos partidos, alguns com o diâmetro de um cano de esgoto, no meio dos destroços amassados. Enquanto continuava a olhar, jorrou outro jato de fluido, obrigando-o a dar um salto para trás, alarmado. Era como se as válvulas de uma máquina bizarra estivessem a abrir-se para libertar a pressão e descarregar-se.
Lembrou-se de que a cabeça do ácaro podia não estar muito longe, muito provavelmente com um par de mandíbulas ativas, se o membro decepado que continuava a abrir-se e a fechar-se pudesse servir de referência.
Estava decidido a não ficar ali para tentar descobrir.
- Grande idiota, quase entregou a alma ali atrás - disse a si próprio, enquanto fugia apressadamente da cena, aos tropeções. Limpou o rosto na manga e, ainda um pouco aturdido, viu que à sua frente, descendo por um corredor abobadado, havia degraus largos... muitos degraus, que ele começou então a descer, continuando a murmurar orações incoerentes de gratidão.
Capítulo Quarenta
S
arah estava sentada na praia, desalentada, abraçando as pernas, com os joelhos a tocarem-lhe no queixo. Tinha desistido de qualquer tentativa de se esconder; a lanterna estava na intensidade máxima e, com Bartleby ao seu lado, fitavam ambos as ondas agitadas que rebentavam na areia.
Fizera o que os Limitadores lhe tinham dito e seguido a linha da costa, mas teria estado a enganar-se a si própria se pensasse que aquilo era algo mais do que uma tática para a manter afastada do caminho. Não havia qualquer motivo possível em cima da terra para ela estar ali.
Quando caminhavam, notara que a agilidade tinha desaparecido completamente da passada de Bartleby, agora que não havia nenhuma trilha com um rastro para farejar. Não podia ficar zangada com ele pelo modo como se comportara; havia algo de comovente na tenacidade que revelara ao seguir o dono. Passava o tempo recordando a si própria que este Caçador tinha sido o companheiro de Cal - a verdade é que o animal passara mais tempo com o filho do que ela, e ela era mãe dele!
Com um ímpeto de afeto, observava as enormes omoplatas de Bartleby a subir e descer de um modo hipnotizador, primeiro de um lado, depois do outro, à medida que ele se deslocava. Elas espetavam-se para fora em condições normais sob a pele solta e sem pêlo, mas eram ainda mais proeminentes tendo ele o pescoço tão baixo. A cabeça estava só a alguns centímetros do solo e, embora ela não pudesse ver-lhe os olhos, parecia não mostrar interesse nenhum por aquilo que os rodeava. O modo sem sentido com que reagia dizia tudo - era exatamente como ela se sentia.
E agora, sentados na praia, ela não conseguia conter a sua frustração.
- É como procurar uma agulha num palheiro - grunhiu ao gato. Ele coçava a orelha com a pata, como se ela estivesse a irritá-lo. - Alguma vez encontraste uma agulha num palheiro? - disse-lhe ela, e ele parou, com a pata traseira ainda no ar, e olhou para ela com os seus enormes olhos brilhantes. - Oh, meu Deus, eu nem sei o que estou a dizer - admitiu, e deitou-se para trás, na areia branca, enquanto Bartleby recomeçava a coçar-se. - Ou a fazer - confessou ao teto de pedra invisível lá muito em cima, na escuridão.
O que teria Tam pensado de tudo isto? Mais exatamente, o que teria ele pensado dela se estivesse ali perto vendo o modo como agira? Tinha-se prosternado perante uma patrulha que mastiga cadáveres. Estava decidida a descobrir se Will tinha sido, de fato, o culpado da morte do irmão dela, e também a levar Cal de volta a casa, na Colônia, em segurança. Estava muito longe de atingir qualquer desses objetivos. Sentia que falhara miseravelmente. - Porque não lhes enfrentei? - perguntou a si mesma. - Estupidamente fraca - disse em voz alta. - Foi por isso!
Interrogava-se sobre o que aconteceria se os Limitadores apanhassem Will vivo. Se conseguissem, e se ela tivesse de ficar frente a frente com ele depois de ser capturado, que faria? Os Limitadores esperariam provavelmente que ela o matasse a sangue-frio. Não podia fazer isso, sem saber se ele era realmente culpado.
Mas se ela não o fizesse, a alternativa para ele seria pior... inconcebivelmente pior. As torturas que ele sofreria às mãos de Rebecca e dos Styx... Enquanto refletia nisto, compreendeu quão forte era o que sentia em relação ao filho, apesar de tudo o que diziam que ele fizera. Ela era mãe dele! Mas, mais uma vez, na verdade não o conhecia. Talvez ele pudesse ser capaz de trair a própria família? Tinha de falar com ele. Não saber a verdade estava a deixando louca.
Os seus pensamentos regressaram a Tam e, de súbito, ficou muito zangada por ele ter perdido a vida. Aquilo fervia dentro dela, e ela arqueou as costas, comprimindo a cabeça com força contra a areia.
- TAM - gritou.
Alarmado com a sua explosão, Bartleby levantou-se precipitadamente. Observou-a, sem compreender, enquanto ela relaxava a coluna vertebral e voltava a ficar deitada na praia, quieta, num silêncio taciturno, desamparado. A sua cólera não tinha escape, não tinha para onde ir. Era como um brinquedo de corda ao qual Rebecca e os seus comparsas tivessem dado corda, deixando-o correr apenas o suficiente para o pararem de repente.
Bartleby acabou de se lavar e emitiu vários sons, como se estivesse a cuspir grãos de areia, e depois bocejou com exuberância. Voltou a sentar-se sobre os quadris e, ao fazê-lo, libertou um gás com o volume de um corneteiro a tocar uma retirada urgente.
Não foi nenhuma surpresa para Sarah; notara que ele tinha estado a complementar a alimentação mastigando os restos, já a desfazerem-se, de coisas indescritíveis que ia encontrando ao longo do caminho. Obviamente, alguma coisa não lhe caíra bem.
- Eu própria não teria dito melhor - murmurou Sarah através dos dentes cerrados, fechando os olhos com força, de frustração.
Capítulo Quarenta e Um
N
ão tendo outra opção a não ser seguir o lance de escadas de pedra aonde quer que elas o levassem, o Dr. Burrows emergira finalmente num espaço amplo. Aqui, viu que o caminho de lajes colocadas a intervalos regulares continuava, e acompanhou-o, descendo um declive suave. Pois, tanto quanto conseguia ver, o solo estava salpicado de menires, rochedos atarracados em forma de lágrima, com três ou quatro metros de altura e a parte de cima arredondada. Era uma visão bizarra, como se alguma semidivindade tivesse estado a lançar ao acaso porções de massa naquele lugar.
Dada a uniformidade das formas dos menires, o Dr. Burrows começou a interrogar-se se tinham sido colocados deliberadamente, em vez de serem um fenômeno puramente natural. Ia murmurar várias teorias sobre a sua origem à medida que caminhava, dando saltos de vez em quando, sempre que a luz, incidindo nos mais próximos, lançava sombras sobre os que estavam atrás, dando a impressão de que havia ali alguma coisa enroscada. Depois das suas experiências com a criatura alada e o exército de insetos esfomeados, não ia correr mais riscos com a fauna local.
Mas outra parte do seu cérebro estava também a trabalhar nas imagens que vira no tríptico, tentando compreendê-las. Principalmente amaldiçoou a sua sorte por não ter sido capaz de decifrar por completo a inscrição do painel central. Gostaria de ter tido um pouco mais de tempo para a traduzir, mas nada deste mundo o faria voltar para trás e acabar a tarefa. Embora tivesse sido um vislumbre extremamente curto, tinha pelo menos visto as letras que formavam as palavras restantes e agora estava a fazer o possível por se lembrar delas.
Utilizando a técnica que empregava várias vezes, obrigou-se a pensar em qualquer coisa que não tivesse que ver com o assunto, esperando que isto desbloqueasse as imagens que tinha na memória. Dirigiu todos os seus pensamentos para o mapa dos Coprolites, muito do qual continuava a ser um enigma para ele.
Tudo o que encontrara até então, a gruta de chocolate e o templo, estava no mapa, e era fácil de ver, quando parou para o examinar de novo. O problema era que os ícones bastante estranhos que os representavam eram tão pequenos que pareciam quase microscópicos, e ele tinha perdido a lupa em qualquer lugar, durante o caminho. Provavelmente, a diferença não seria muita se ainda a tivesse consigo, uma vez que nenhuma das figuras do mapa tinha qualquer espécie de legenda para lhe dizer o que era. Interpretá-las reduzia-se ou a um puro trabalho de adivinhação ou a senti-las na pele.
No entanto, o mapa dos Coprolites dava-lhe, pelo menos, uma ideia da extensão das Profundezas. Tinha duas características principais: à esquerda estava a Grande Planície e as áreas circundantes, e à direita parecia haver qualquer coisa que podia muito bem ser um enorme buraco no solo (e que ele não precisava de nenhuma lupa para ver). O mesmo buraco retratado no tríptico, calculava ele.
Da Grande Planície irradiavam muitas trilhas, e muitos deles convergiam finalmente para o buraco, como se se tratasse do mapa das ruas do centro de alguma grande concentração, lá em cima na superfície da Terra. E agora ele estava numa dessas trilhas.
Depois, havia uma série de caminhos que saíam do buraco para a parte mais à direita do mapa, e que pareciam terminar todos em becos sem saída. Se era porque os Coprolites nunca os utilizavam, se era porque nunca os tinham explorado, não sabia. Mas esta última razão parecia-lhe pouco plausível - esta raça vivera as suas vidas naquela zona, por quantas gerações ele apenas podia presumir, e, dado que eram mineiros experientes, ficaria extremamente surpreendido se tivessem deixado alguma pedra por virar ou algum lugar por explorar. Os Coprolites, por aquilo que conseguia compreender, eram não só mineiros experientes, mas também prospectores experientes - os dois iam de par -, portanto, teriam inspecionado todas as áreas periféricas para o caso de haver por ali pedras preciosas ou algo similar.
Na sua mente, interrogava-se se a sua expedição, o seu grand tour das terras subterrâneas, ia terminar com ele a seguir por uma quantidade daqueles cul-de-sacs* e a ter de voltar para trás de todas às vezes. Por isso, se conseguisse arranjar comida e, o que era ainda mais crucial, água potável (e esse era um "se" muito grande), o seu tempo seria ocupado a explorar todas as zonas assinaladas no mapa dos Coprolites, passando-as a pente fino à procura de povoados antigos e de quaisquer artefatos dignos de nota.
Se fosse este o caso, a sua viagem tinha um fim finito e não havia qualquer maneira de alcançar níveis mais profundos do manto terrestre, onde podiam encontrar-se tesouros arqueológicos, ou podiam outrora ter vivido - ou viver ainda - civilizações passadas, para além da imaginação de qualquer um.
Sabia que não devia ficar desiludido. Apesar de todo o perigo que enfrentara, já tinha feito algumas das mais notáveis descobertas do século, ou provavelmente de qualquer século. Se alguma vez conseguisse voltar a casa, seria louvado como um dos maiores da fraternidade arqueológica.
Quando partira de Highfield, naquele dia já tão longínquo, afastando para cima as prateleiras do porão para começar a descer o túnel que cavara, como se fosse um personagem de uma improvável história infantil, não tinha ideia absolutamente nenhuma daquilo em que estava se metendo. Mas chegara até aqui, e no decurso da sua viagem superara tudo aquilo por que passara, surpreendendo-se com isso.
E agora, ao pensar nisto, compreendeu que tinha desenvolvido o gosto pela aventura, por correr riscos. Enquanto seguia pelo caminho escuro, os ombros endireitaram-se e permitiu-se um ar emproado.
- Vamos lá, Howard Carter - declarou em voz alta. - O túmulo de Tutankhamon não é nada comparado com as minhas descobertas!
O Dr. Burrows quase conseguia ouvir o aplauso ensurdecedor e os louvores, e imaginar as muitas intervenções na televisão, e...
Subitamente os ombros voltaram a descair e o ar emproado evaporou-se.
De qualquer modo, aquilo não bastava.
Tinha, claro, uma tarefa mastodôntica pela frente. Só documentar tudo o que estava nas áreas apresentadas no mapa era suficiente para o manter ocupado durante muitas vidas e exigiria uma grande equipe de investigação - mas, apesar disso, sentia uma profunda desilusão.
Queria mais!
Os seus pensamentos mudaram subitamente de direção. O buraco representado no mapa... toda a questão do que era na realidade, não o deixava. Que poderia ser? Tinha de ser alguma coisa importante, caso contrário, os Coprolites não lhe teriam dado tanto relevo... e não iriam convergir ali todos os caminhos.
NÃO! Tinha de ter mais importância do que ser apenas um elemento geológico. Pelo menos era isso, evidentemente, o que pensavam as pessoas do templo antigo.
Parou no caminho, falando e murmurando consigo próprio animadamente, quando começou a apontar no ar para uma ardósia imaginária.
- Grande Planície - anunciou, apontando para a esquerda da ardósia com um movimento exuberante da mão, como se estivesse se dirigindo a uma sala de aulas repleta de estudantes. Levantou o outro braço para a direita, descrevendo com a luz um anel no ar. - Buraco grande... aqui - disse, apontando repetidamente para o seu centro. - Que diabo é você?
Deixou cair os braços ao longo do corpo, expirando através dos dentes manchados. Tinha de ser qualquer coisa importante.
O tríptico reluzia à sua frente. Continuava a tentar dizer-lhe alguma coisa, mas ele não conseguia entender o que era. Havia uma mensagem naqueles três painéis. E ele precisava se recordar das últimas letras da inscrição, cuja lembrança ainda estava confusa no seu espírito, de modo a poder completar a tradução e juntar todas as peças. Mas continuava a escapar-lhe; às vezes, pensava que estava perto de se lembrar das letras restantes, outras, elas ficavam novamente turvas, como se os seus óculos ficassem embaçados.
Suspirou.
Só havia uma coisa a fazer. Tinha de chegar ao buraco e descobrir por si próprio o que era.
Talvez fosse aquilo por que ele ansiava... um caminho para baixo.
Talvez ainda houvesse esperança.
Recomeçou a andar, com uma explosão de entusiasmo, mas vinte minutos depois percebeu que estava incrivelmente esfomeado e fraco, e forçou-se a moderar o passo.
Quando fazia isto, ouviu um barulho áspero um pouco à frente, e olhou para cima imediatamente.
Ouviu o barulho de novo, desta vez mais nítido.
Segundos depois, a luz revelou duas figuras a deslizar na trilha, na sua direção. Não podia acreditar no que os seus olhos viam - duas pessoas a andar juntas.
Continuou e elas também - de qualquer modo, com a sua luz acesa, elas já deviam estar cientes de que ele se encontrava ali.
Quando se aproximaram, viu que eram dois Styx, os soldados conhecidos como Limitadores, pelo seus casacos compridos, espingardas e mochilas - sabia o que eram, pois vira alguns na Estação dos Mineiros, quando saíra do trem. O barulho áspero era das suas vozes ao conversar um com o outro.
Não podia acreditar na sua sorte. Não tinha visto alma viva durante dias e pensou como era estranho deparar-se outro ser humano ali em baixo, naquela rede de milhares de quilômetros de corredores e grutas interligadas. Quais eram as probabilidades de aquilo acontecer?
Quando eles estavam a não mais de cinco metros dele, saudou-os, gritando "olá" numa voz expectante e amistosa.
Um deles olhou para ele com olhos gélidos e um rosto desprovido de qualquer expressão, mas não fez qualquer esforço para indicar que o vira. O outro soldado nem sequer levantou os olhos do caminho à sua frente. O primeiro soldado desviou então rapidamente o olhar do Dr. Burrows, como se este não existisse. Os dois continuaram a marchar determinadamente e a conversar um com o outro, não lhe dando absolutamente nenhuma atenção enquanto prosseguiam.
O Dr. Burrows ficou desconcertado, mas também não parou. O total desinteresse dos soldados por ele fê-lo sentir-se como um pedinte que tinha tido o descaramento de pedir dinheiro a uns homens de negócios. Não podia acreditar.
- Muito bem, como quiserem - disse ele, encolhendo os ombros e desviando os seus pensamentos para assuntos mais importantes.
- Onde está, o que é, buraco no chão? - perguntou aos menires silenciosos que estavam à sua volta, com a mente de novo a rodopiar com teorias intermináveis.
Capítulo Quarenta e Dois
-R
eme! Reme! Reme! - gritava Chester enquanto ele e Will moviam os remos.
Chester dissera que tinha remado algumas vezes com o pai, e Elliott parecera preparada para deixá-lo assumir o controle no momento em que subiram para o barco de aspecto pouco seguro. De fato, "barco" era uma palavra demasiado grandiosa para aquela canoa transformada em barco coberto, que rangeu de modo agourento quando todos eles embarcaram. Tinha cerca de quatro metros de comprimento e uma estrutura de madeira sobre a qual estava esticado e costurado um tecido tipo pele.
Não tinha, obviamente, sido concebido para transportar quatro passageiros, particularmente com todo o seu equipamento. Acocorado à proa do barco, Cal murmurava baixinho consigo próprio, enquanto tentava cuidar da perna dolorida pondo-a numa posição nada agradável. Estava se esforçando por se colocar de maneira a poder esticá-la, o que era praticamente impossível com Will ali tão perto dele.
- Au! Tenha cuidado! Não consigo remar se continuar a fazer isso! - protestou Will, quando Cal lhe espetou as costas Pela enésima vez, ao virar-se. Cal descobriu finalmente que a posição ideal para ele era deitado no fundo do barco, com a cabeça enfiada no "V" da proa - assim, poderia apoiar a perna dolorida no lado do barco e estendê-la completamente.
- Para alguns, a vida é fácil - gracejou Will ofegante quando, pelo canto do olho, teve a curiosa visão de um pé espetado no ar, e se virou para ver o irmão deitado atrás dele. - Isto não é um cruzeiro de lazer, sabia?
- Reme... re... concentre-se, Will - ordenou Chester, tentando que o amigo remasse ao mesmo tempo que ele.
Rapidamente se tornou evidente que Chester também não sabia, na verdade, o que estava a fazer, apesar do que tinha afirmado antes. Com frequência, os seus remos deslizavam ineficazmente à superfície, lançando borrifos de água.
- Onde disse que aprendeu a fazer isto? - perguntou-Ihe Will. - Na Legolândia?
- Não, Center Parcs - admitiu Chester.
- Está brincando - exclamou Will. - Entre, número dezenove! - disse ele imitando uma voz a falar no altofalante.
- Cale a boca, ouviu? - respondeu Chester com um sorriso largo.
A sua sincronização era, no mínimo, caótica, mas Will decidiu que andar de barco tinha de ser a melhor maneira de uma pessoa se deslocar. O esforço físico de remar estava lhe tirando as teias de aranha da cabeça; sentia-se com as ideias mais claras do que nos últimos dias. E a brisa suave que soprava sobre a água era exatamente a necessária para lhe secar o suor da testa quando se esforçava para mover os remos. Sentiu-se revigorado.
Parecia que faziam um bom tempo, embora Will não conseguisse ver a costa - ou qualquer outra coisa - para avaliar a que velocidade iam. A escuridão infinita e a água invisível em toda a volta eram um pouco intimidantes; a única luz era a da lanterna de Chester, reduzida à mínima intensidade, no fundo do barco.
Elliott estava empoleirada no leme do barco e, como era de esperar, olhava para trás, vigilante, embora a ilha tivesse desaparecido da vista havia muito tempo. De frente para ela, a remarem, Will e Chester apenas conseguiam ver a sua silhueta indistinta - esperavam que ela desse instruções, mas pareceu decorrer um tempo interminável até dizer qualquer coisa.
Subitamente pediu-lhes que parassem, e Will e Chester pousaram os remos, embora o barco parecesse continuar a navegar sozinho, surpreendentemente depressa, como se tivesse sido apanhado numa corrente poderosa. Mas Will não prestava muita atenção a isso, mantendo a cabeça pendurada para fora do barco - a não ser que estivesse muito enganado, viu formas vagas e indistintas dentro de água, muito fundo. Pareciam intensificar-se e depois desvanecer-se da mesma maneira súbita, e ele não conseguia perceber com nitidez o que eram. Algumas eram pequenas e deslocavam-se velozmente, enquanto outras, mais corpulentas, se moviam pesadamente e emitiam uma luz muito mais forte.
Enquanto olhava com um fascínio enlevado, a cabeça larga e achatada de um peixe, talvez com meio metro de uma guelra à outra, apareceu logo abaixo da superfície. Entre os seus grandes olhos havia uma haste comprida, que tinha na ponta uma luz esverdeada a piscar. A boca escancarou-se para libertar um jato de bolhas, voltou a fechar-se, e depois o peixe submergiu. Com um estremecimento de excitação, Will identificou de imediato a semelhança com o diabo-marinho, que habita as enseadas profundas dos oceanos da Superfície. Compreendeu que devia haver um ecossistema inteiro escondido debaixo daquelas ondas: criaturas vivas que geravam a sua própria luz.
Tal como o peixe acabara de fazer, abriu a boca para contar a Elliott e aos outros a sua descoberta quando foi silenciado por um pequeno chapinhar, como uma pedra a bater na água, talvez a uns vinte metros a bombordo.
- Vai começar - sussurrou Elliott enigmática.
A primeira coisa que Will pensou foi que era outro dos peixes geradores de luz a bater na superfície da água, mas esse pensamento foi afastado quando um estrondo distante se seguiu, talvez um segundo depois. Seguiram-se mais destes chaps e estrondos subsequentes, mas de todas as vezes os chaps eram demasiado distantes para ele ver o que os causava.
- Agora é uma boa altura para apagar essa luz - sugeriu Elliott.
- Porquê? - perguntou inocentemente Chester, ainda a esquadrinhar a escuridão e a tentar descobrir o que eram os chaps.
- Porque os Limitadores estão na praia.
- Estão disparando contra nós, cretino - disse Cal em voz alta.
A estibordo, a não mais de cinco metros de distância, Will notou um pequeno som de água a erguer-se rapidamente da superfície do mar.
- Disparando contra nós? - repetiu Chester, devagar, para digerir o que estavam lhe dizendo. - Oh, meu Deus! - exclamou, quando finalmente percebeu, e dobrou-se imediatamente para a frente, tateando para apagar a lanterna enquanto arfava - Deusdeusdeusdeus! - Depois de apagar a lanterna, endireitou-se e virou-se para olhar para Elliott. Estava abismado com a maneira calma com que ela reagia a tudo aquilo. A saraivada continuou, com mais chaps em volta deles, pareciam vir de um pouco mais perto, e, a cada um, Chester encolhia-se.
- Se aquilo são realmente tiros... - começou Will.
- Com certeza que são - confirmou Elliott.
- ...então, não devíamos estar remando como doidos? - perguntou Will, apertando os remos com mais força, pondo-se a postos.
- Não é preciso, estamos fora do alcance deles... disparam em vão. - Elliott permitiu-se uma pequena gargalhada. - Devemos tê-los irritado de verdade. Seria uma possibilidade em milhões se eles nos atingissem.
Na escuridão intensa, Will ouviu Chester resmungar qualquer coisa como "com a minha sorte" - enquanto enfiava a cabeça no ombro, para protegê-la, tentando simultaneamente avistar a ilha contornando com o olhar a figura completamente imóvel de Elliott.
- Tenho-os exatamente onde os quero - disse ela, tranquilamente.
- Tem eles exatamente onde os quer? - A voz de Chester silvou de incredulidade. - Com certeza você...
- Rastilhos lentos - interrompeu Elliott. - É a minha especialidade.
O tom da sua voz não lhes disse nada, e eles ficaram à espera, apenas com os sons do barco a gemer e da água a redemoinhar à sua volta, e o estranho barulho do fogo contínuo a cair na água.
- A qualquer momento, agora - disse Elliott.
Passaram-se alguns segundos. Viu-se um enorme clarão vindo da ilha, iluminando a faixa da praia da qual tinham partido para o mar. À distância, parecia aos rapazes ser minúscula. Depois, o som da explosão chegou até eles, fazendo-os dar um salto.
- Jesus Cristo! - exclamou Cal, puxando a perna para dentro ao sentar-se.
- Não, espera... - disse Elliott, levantando a mão. A sua silhueta era realçada com nitidez pelas chamas longínquas. - Se algum deles sobreviveu àquilo, devem estar se atropelando como ratos escaldados para irem para o interior, para bem longe da praia. - Começou a contar, inclinando a cabeça muito ligeiramente a cada um dos números.
Os rapazes sustiveram a respiração, sem saber o que esperar.
Houve uma segunda explosão, muito mais forte do que a primeira. Monumentais explosões de estrelas vermelhas e amarelas irromperam, voando bem alto para dentro da gruta, com os raios pululando sobre o topo dos altos fetos. Will pensou que a ilha devia ter ficado toda em pedaços. Desta vez todos eles sentiram na cara a força da explosão, e já havia destroços levados pelos ares a caírem na água à sua volta.
- Raios partam! - ofegou Cal.
- Assustador! - disse Chester. - Arrasou com a ilha!
- Que diabo foi aquilo? - perguntou Will, ansioso por saber se teria restado alguma coisa da vida selvagem, ou se fora tudo tragado pelo fogo. Mas tinha de admitir para si próprio que, se algumas galinhas primitivas, bastante miseráveis, ficassem com as penas da cauda chamuscadas, então não estava nada preocupado.
- Foi o momento decisivo - disse Elliott. - A emboscada perfeita... a primeira explosão deve tê-los levado direitinhos para lá.
Enquanto continuavam a olhar, parecia que as chamas flutuavam na superfície do mar, enviando reflexos longos através das águas negras. Pela primeira vez, revelou-se a Will a vastidão do espaço em que se encontravam: a longínqua linha da costa à sua direita estava fracamente iluminada, mas não havia absolutamente nada visível na direção que tomavam, nem qualquer sinal de ferra à sua esquerda.
Com o som da explosão ainda a ressoar em torno da gruta imensa, continuavam a cair destroços perto do barco, muitos dos quais a arder, até atingirem a água e a apagarem-se crepitando.
- Foi você que armou aquilo tudo? - perguntou Chester a Elliott.
- Eu e o Drake. Ele chamou-lhe a sua "partidinha", embora eu nunca entendesse o que queria dizer com isso - confessou Elliott. Virou-se de costas para o espetáculo, com as feições escondidas numa escuridão impenetrável, enquanto o resplendor das línguas flamejantes lhe delineavam a figura. Inclinou lentamente a cabeça como se estivesse a rezar. - Ele era tão bom... um homem bom - disse ela em pouco mais que um sussurro.
Enquanto Will, Chester e Cal se maravilhavam com o fogo na ilha, nenhum deles pronunciou uma palavra, partilhando o seu sentimento de perda em relação a Drake. Era como se a ilha em chamas fosse uma pira funerária, uma despedida adequada para ele - não só havia um glorioso espetáculo de luzes naquele lugar improvável para honrar a sua morte, como também alguns dos seus inimigos tinham sido levados à justiça.
Depois de um solene momento de reflexão, Elliott falou.
- Então como preferem os seus Limitadores?
Começou a rir triunfalmente.
- Mal passados - respondeu Chester, rápido que nem uma flecha. Os rapazes juntaram-se ao seu riso, primeiro hesitantes, mas depois dando altas gargalhadas e fazendo o barco balançar.
ø ø ø
Sarah foi acordada do seu torpor pela primeira explosão, e, na altura em que ocorreu a segunda, estava de pé, correndo para a borda da água, com Bartleby a segui-la de perto.
Assobiou perante a dimensão da explosão e ergueu imediatamente a espingarda, enrolando a alça à volta do braço para manter a arma estável. Através da mira, escrutinou o local em chamas, muito pequeno, sobre as ondas. Depois, desviou lentamente a espingarda da ilha, passando a pente fino, de um lado ao outro, o horizonte esbatido. O brilho que irradiava do fogo na ilha permitia que a mira da espingarda, que captava luz, funcionasse com muita eficácia, mas demorou ainda alguns minutos a localizar fosse o que fosse. Ajustou a ampliação na mira, tentando tornar a imagem mais nítida.
- Um barco? - perguntou a si própria, enquanto verificava e voltava a verificar, convencida de que via uma pequena embarcação a uma enorme distância. Não era capaz de dizer quem estava lá dentro, mas instintivamente sabia que não eram Styx. Lá no fundo, sabia que aquilo que procurava estava naquele barco que balançava nas ondas. - Parece que voltamos à ação, meu velho amigo - disse ela a Bartleby, que abanou a cauda esquelética, como se já soubesse o que iam fazer. Sarah lançou uma última olhada à ilha a arder e os seus lábios esboçaram um sorriso malicioso. - E suponho que Rebecca vai precisar recrutar mais alguns Limitadores.
Capítulo Quarenta e Três
-S
incronizem-se! - exortava-os Elliott, do leme, enquanto Will e Chester impeliam os remos, mas ainda sem os moverem ao mesmo tempo.
- Para onde nós vamos, afinal? - gritou Cal. - Disse que ia nos levar para um local seguro.
Ouviu-se um chapinhar quando Will avaliou mal a sua remada, com a pá a saltar sobre a água. Elliott não deu qualquer resposta, por isso Cal voltou a tentar.
- Quero saber para onde está nos levando. Temos o direito de saber - insistiu.
Parecia irritado; Will sabia que a perna dele devia estar a afligi-lo.
Elliott afastou a cara da espingarda.
- Vamos nos perder nos Pântanos. Se chegarmos lá. - Fez uma pausa durante várias remadas irregulares, e depois voltou a falar. - Os Pescoços Brancos não vão ser capazes de nos seguir até lá.
- Porquê? - perguntou Will, silvando do esforço de remar.
- Porque é como... como um enorme e interminável pântano... - Parecia desconfortável, como se lhe faltasse convicção naquilo que dizia, e isto, por sua vez, não dava muita confiança aos rapazes, visto que estavam suspensos de cada palavra dela.
- Ninguém no seu perfeito juízo vai para esses lugares alguma vez - continuou. - Podemos nos esconder até os Styx nos darem como perdidos.
- Esses Lameiros são mais fundos? Mais abaixo do lugar onde estamos agora? - disse Cal, antes de Will ter oportunidade de perguntar.
Elliott abanou a cabeça.
- Não, é uma das áreas distantes da Grande Planície a que nós chamamos o Ermo. Algumas das orlas são muito perigosas, por causa dos pontos de radiação... O Drake nunca nos deixou passar lá mais do que uns dias. Vai servir-nos durante um tempo, depois avançamos para outros locais do Ermo. É mais fácil sobreviver aí.
Depois disto, os rapazes ficaram calados, cada um deles abandonado aos próprios pensamentos. As palavras dela "é mais fácil sobreviver aí" ressoavam na sua cabeça - não parecia muito esperançoso, vindo de Elliott, mas naquele momento nenhum deles se sentia muito inclinado a perguntar o que queria dizer com aquilo.
Ouviu-se o som da água a ser agitada - era muito diferente dos pequenos chaps que as balas tinham provocado.
- Esperemos que não sejam mais Limitadores - disse Chester imediatamente, enquanto ele e Will pararam de remar.
- Não... está quieto... muito quieto - sussurrou Elliott.
Seguiu-se outro chapinhar, maior, e a água começou a agitar-se e a ondular furiosamente em volta deles, como se algo imensamente grande estivesse prestes a irromper. Houve um som áspero vindo da parte de baixo do casco do barco, enquanto este balançava violentamente de um lado para o outro, atirando-os ao chão. Numa questão de segundos, a calma tinha sido restabelecida e o barco estabilizado.
- Ufa! - disse Elliott, soltando o ar dos pulmões.
- O que é...? - exclamou Chester.
- Leviatã - disse simplesmente Elliott.
Will deixou sair um "hã?" incrédulo antes de ela o interromper.
- Agora não há tempo para explicar... cale-se e reme - ordenou ela. - Estamos sendo puxados por correntes de um grupo de redemoinhos que ficam a algumas milhas a leste daqui. - Apontou um dedo por cima das cabeças deles para estibordo, a direção oposta àquela em que Will pensava que ficava a costa. - E se não quer vê-los de perto, o que não seria uma boa ideia, sugiro que vocês os dois se esforcem por nos manter na rota certa.
- Sim, meu capitão - rosnou Will para si próprio, já quase sem qualquer entusiasmo pela viagem.
Várias horas mais tarde, depois de uma maratona de remo ela lhes disse que parassem de novo. Will e Chester estavam totalmente exaustos e acolheram bem o descanso; tinham os braços tão cansados que tremeram quando levaram os cantis a boca. Elliott ensinou Cal a utilizar a mira da espingarda suplementar para ficar vigiando. Disse também a Will que usasse o óculo frontal.
Will virou-o para baixo, sobre o olho, e ligou-o. Quando o campo visual tremeluziu com neve cor de laranja até estabilizar numa imagem coesa, viu que não estavam longe da costa. O barco ia à deriva em direção àquilo que Will tomou por uma espécie de promontório, embora não conseguisse distingui-lo com clareza, mesmo com a vantagem do óculo frontal.
Enquanto continuavam a aproximar-se, dedos prateados assomaram à superfície da água. Uma vaga neblina rastejava na sua direção e, por fim, a sua camada indistinta adensou-se a tal ponto que começou a derramar-se para dentro do barco, galgando os lados. A lanterna que estava aos pés de Will emitia uma luz difusa através da neblina, conferindo-lhe uma diafaneidade leitosa e fazendo as suas caras brilharem assustadoramente. Durante muito tempo, não conseguiram ver nada dos seus corpos abaixo da cintura. Era uma sensação estranha estar ali sentados, dentro do barco agora invisível, com aquele manto ininterrupto em toda a sua volta, enquanto abriam caminho através dele. O manto parecia absorver todos os sons, abafando até o bater das ondas, de tal maneira que eles mal as ouviam.
Estava ficando apreciavelmente mais quente à medida que avançavam, e embora nenhum deles pronunciasse uma palavra, os rapazes sentiam uma pressão física a exercer-se sobre eles. Quer fosse a tristeza da paisagem de neblina ou qualquer outro fenômeno, todos eles experimentavam uma sensação idêntica de melancolia e pura desolação.
Foram à deriva durante mais vinte minutos. Pareciam estar entrando numa espécie de enseada ou baía. O silêncio desamparado foi quebrado quando a quilha do barco chocou contra rochas e encalhou. Era estranho. Parecia que o feitiço escuro fora quebrado, que todos eles tinham acordado de um sonho desassossegado.
Elliott não perdeu tempo a saltar do barco. Eles ouviram o barulho da água quando ela desembarcou, mas não havia qualquer indicação da sua profundidade, uma vez que o nevoeiro lhe chegava até às coxas. Ela avançou com esforço à frente do barco e, dando-lhe uma volta, puxou-o atrás dela.
Will virou a sua atenção para a faixa de costa e viu que, na verdade, tinham chegado àquilo que parecia ser uma baía, com dois promontórios a projetarem-se para o mar, um de cada lado. A neblina, que se deslocava lentamente, saía da enseada e espalhava-se, interrompida em alguns lugares por numerosas pontas agudas de rochas recortadas. Eles ficaram parados enquanto Elliott puxava o barco atrás de si por uma curta distância. Depois, ordenou-lhes que desembarcassem, e, um após outro, eles desceram relutantemente do barco, levando consigo o equipamento.
Os rapazes mostravam-se cautelosos porque não conseguiam ver para onde saltavam, mas, quando o fizeram, descobriram que a água não tinha mais de um metro de profundidade, embora correntes invisíveis lhes puxassem as pernas com toda a força. Com cuidado para não escorregarem na superfície irregular debaixo dos pés, caminharam para a costa rochosa enquanto Elliott rebocava o barco para uma pequena angra, presumivelmente para escondê-lo. Enquanto Will e Chester chapinhavam através do último dos baixios, ouviu-se um som áspero e cavo quando Elliott arrastava o barco para terra.
- Não devíamos ajudar?... ela... - sugeriu Chester a Will, no preciso momento em que notaram uma mudança abrupta na costa em ambos os lados. O barulho do barco pareceu provocar uma alteração instantânea, um trovão abafado, embora o manto de neblina os impedisse de ver o que o causava. Will e Chester estavam quase fora de água, e Cal, precipitando-se por cima das rochas uns vinte metros à frente deles, tinha também percebido que se passava qualquer coisa.
Os três pararam imediatamente, enquanto o trovão surdo continuava. Houve uma agitação e um movimento, como se as rochas ganhassem vida, e, de repente, montes de pequenas luzes tornaram-se visíveis mesmo acima da neblina, tremeluzindo debilmente como pares de chamas de velas avivadas por uma corrente de ar.
- Olhos! - balbuciou Chester. - São olhos!
Tinha razão. Os olhos recebiam a luz das lanternas de Chester e de Cal e refletiam-na, tal e qual como se fossem olhos de gatos no meio de uma estrada. Olhando através do óculo frontal, Will conseguia ver mais do que os outros. Reparou que aquilo que previamente tinha pensado ser a escarpada formação rochosa dos promontórios e a praia à frente deles era mais do que apenas isso: era um tapete vivo, e, numa fração de segundo, toda a área estava repleta de atividade. Estava em toda a parte, e sons ásperos vinham de todo o lado... assim como um som muito estranho que parecia borracha a bater. Quando uma área da neblina escorregadia se apartou, Will distinguiu o que pareciam ser aves de alguma espécie - cegonhas de pernas compridas - abrindo as asas. Mas não eram aves; eram lagartos - Will nunca tinha visto nada parecido antes.
- Que faremos agora? - disse Chester, aproximando-se mais de Will, cheio de medo.
- Will - chamou Cal, que andava por ali de modo inseguro, mas depois começou a recuar e a entrar novamente na água.
- Onde está a Elliott? - perguntou Chester, desesperado.
Todos eles a procuraram de imediato para verem como reagia, e localizaram-na andando a passos largos pela praia. Não revelando absolutamente qualquer preocupação, estava abrindo um caminho pelo meio das criaturas. Estas abriam as asas e afastavam-se do seu caminho, emitindo os sons mais inquietantes, como os de criancinhas a sofrer muito, chorando com gemidos infelizes.
- Isto é mesmo arrepiante - disse Chester, um pouco mais à vontade agora que vira que as criaturas não pareciam constituir qualquer perigo.
Enquanto as asas das criaturas batiam, afastando suavemente a neblina pelo ar, Will observou que eram angulosas e que todas tinham uma única garra preensível na parte da frente. Os corpos das criaturas eram bulbosos, com o tórax afunilados e abdômenes atarracados. E, como as asas, tinham um brilho cinzento, semelhante a ardósia polida. As cabeças em forma de cilindros achatados com bases arredondadas, suportadas por pescoços esguios, e os maxilares, quando abriram e se fecharam de novo, eram planos e desdentados.
A passagem de Elliott através do bando parecia inquietar as criaturas a tal ponto que começaram a levantar voo. Para o fazerem, precisavam de uma etapa preliminar, alguns passos estranhamente rígidos e mecânicos, antes de conseguirem erguer-se do chão.
Em segundos, o ar ficou denso com centenas destas criaturas, quando elas voaram, com as asas a bater e a arranhar o ar, de modo que se ouvia um zumbido contínuo e ininterrupto. Os estranhos sons inquietantes continuaram, espalhando-se pela colônia à velocidade do relâmpago, como se elas comunicassem o seu alarme umas às outras. Quando todas as criaturas estavam no ar, juntaram-se num único bando sobre a água. Extasiado, Will observou-as através da sua lente, aquela multidão de criaturas que pareciam uma nódoa cor de laranja a mudar continuamente, até desaparecerem ao longe numa migração maciça.
- Mexam-se - gritou Elliott. - Não temos tempo para fazer turismo. - Acenava-lhes com impaciência, indicando-lhes que deviam segui-la pela praia. O tom dela era de tal ordem que Will percebeu que pouca atenção lhe seria dada se fizesse perguntas sobre as criaturas.
- Não eram mesmo selvagens?... quem me dera ter-lhes tirado uma fotografia - balbuciou, excitado, para Chester, enquanto se apressavam para apanharem Elliott, que seguia o caminho mais curto para a parede da gruta.
Chester não parecia nada divertido.
- Sim, está bem. E que tal se a transformássemos num postal para mandar ao pessoal lá de casa? - respondeu ele, agressivamente, em voz alta. - Gostaria que estivessem aqui... nos divertimos muito... na terra dos malditos dragões falantes.
- Leu demasiadas histórias de ficção. Não são malditos dragões falantes de maneira nenhuma - respondeu Will bruscamente. Estava tão enlevado com esta última descoberta que não se tinha percebido o estado de espírito em que o amigo se encontrava. Chester fervia e quase explodia. - O que eles são, Chester, é fabuloso... uma espécie de lagarto voador pré-histórico, como o pterossauro - continuou Will. - Sabes, pterodáctilos...
- Ouça, amigo, não me interessa nada o que eles são. - Chester interrompeu Will com agressividade, de cabeça baixa, enquanto transpunham o caminho através das rochas escarpadas. - De cada vez que isto acontece, digo a mim próprio que não pode haver nada pior, e, afinal, logo ao virar a esquina seguinte... - Abanou a cabeça e cuspiu, como se tivesse nojo. - Talvez se você tivesse lido esses livros e feito coisas normais, em vez de andar a escavar túneis como um maníaco maldito, não estivéssemos metidos em apuros. É um anormal... não, é pior que isso, é um chato de um obcecado.
- Não é preciso ficar chateado, Chester - disse Will, tentando acalmar as coisas.
- Não me diga o que tenho de fazer. Não é você que manda - disse Chester, furioso.
- Eu só estava... os lagartos... eu... - Will tentou responder, com a voz a falhar-lhe de indignação.
- Oh, veja se te cala! Não é capaz de meter nessa cachola estúpida que mais ninguém quer saber dos seus fósseis asquerosos ou animais de merda, não é? São todos nojentos e deviam ser esmagados como insetos - respondeu ele, batendo com o pé no chão e rodando-o no pó, para enfatizar o que tinha dito. Virou-se para encarar Will.
- Eu não queria te incomodar, Chester - disse Will, apaziguadoramente.
- Incomodar-me? - gritou Chester, histérico. - Fez pior do que isso. Estou farto disto tudo até à raiz dos cabelos! E, principalmente, estou farto de você.
- Eu lhe pedi desculpa - respondeu Will, pausadamente.
Chester abriu as mãos com força, num gesto agressivo.
- Então, é tão simples como isso, não? Acha mesmo que pode safar-se disto com um desculpa, esperando que eu te desculpe, que eu tenha de te perdoar tudo, não é? - Lançou a Will um olhar tão desdenhoso que este ficou sem palavras. - As palavras valem pouco, especialmente as suas - disse Chester com uma voz baixa, trêmula, e começou a andar.
Will ficou abalado com os comentários do amigo. Lá se foi o espírito de camaradagem que ele sentira antes. Tivera tanta esperança de que a sua amizade voltasse a ser outra vez saudável, mas via agora que as conversas divertidas que tinham tido algum tempo antes, na praia e no barco, não significavam absolutamente nada. Will persistira numa ilusão. E por muito que tentasse afastá-la, ficara profundamente ferido pelo acesso de raiva do amigo Não precisava que lhe lembrassem que a culpa de tudo era dele. Arrancara Chester para longe dos pais e da vida em Highfield, e tinha-o envolvido nesta situação angustiante, que piorava a cada segundo que passava.
Recomeçou a andar, mas o seu sentimento de culpa voltara e pesava-lhe muito. Tentou dizer a si próprio que a enorme fadiga de Chester devia ser a causa da sua efusão - os ânimos deles estavam sujeitos a ser abalados, uma vez que tinham dormido tão pouco -, mas não achava isto uma razão muito convincente para o comportamento de Chester. O seu antigo amigo dizia o que pensava; era tão simples como isso.
Não tendo sido nem um pouco ajudado pelo acesso de raiva de Chester, Will sentia-se, ele próprio, bastante mal. Daria tudo por um banho quente e uma cama limpa, com lençóis brancos e frescos - achava que podia dormir durante meses. Procurou o irmão, um pouco à frente, com o olhar, e viu que a cada passo que dava se apoiava mais no bastão, e que o seu caminhar era estranho, como se a perna fosse deixá-lo na mão a qualquer instante.
Não, nenhum deles estava em boa forma. Esperava que daí a pouco tivessem um descanso bem merecido. Mas não ia iludir-se pensando que era provável que isso acontecesse, com os Limitadores a persegui-los.
Reuniram-se em volta de Elliott junto da parede da gruta. Ela estava de pé, em frente de um sulco aberto, semelhante a uma fenda, na base da parede, que tinha vários metros de altura. Parecia ser a origem principal da neblina, que escorria num fluxo incessante. Will manteve distância em relação a Chester, fingindo dedicar toda a sua atenção ao sulco, embora a neblina densa o impedisse de o ver todo, ou, na realidade, de ver de que largura era.
- Temos um longo caminho à nossa frente - preveniu ela, enquanto desenrolava um pedaço de corda, que eles ataram a cintura. Elliott estava na frente da cadeia, depois Cal, Chester e, por fim, Will. - Não quero ninguém se desviando do caminho - disse-lhes, e depois fez uma pausa antes de olhar de Will para Chester.
- Vocês dois agora estão bem?
Ela ouviu tudo... deve ter ouvido tudo o que Chester disse, pensou Will para si próprio, sentindo-se pouco à vontade.
- Porque isto não vai ser fácil, e precisamos todos de nos mantermos unidos - continuou.
Will resmungou qualquer coisa parecida com um "sim", enquanto Chester não deu qualquer espécie de resposta, evitando deliberadamente os olhos de Will.
- E você - disse Elliott, dirigindo-se a Cal -, preciso saber... está à altura disto?
- Irei conseguir - respondeu ele com otimismo.
- Espero sinceramente que sim - disse ela, e virou-se para lhes lançar, a todos, um último olhar, antes de se baixar para entrar no sulco. - Nos vemos do outro lado.
PARTE CINCO
O Poço
Capítulo Quarenta e Quatro
-N
otável! - exclamou o Dr. Burrows, com a voz ecoando repetidamente e depois a enfraquecer até que tudo o que se ouvia era o pingar de água. Esta caía em aguaceiros ocasionais quando ele parou em frente de duas grandes colunas de pedra aparentemente no fim do caminho.
Andava de um lado para o outro, tentando assimilar tudo ao mesmo tempo.
Para começar, a pedra angular do ápice do arco tinha gravado um símbolo com três dentes. Já o vira várias vezes em seções de alvenaria nas suas viagens às Profundezas, e também surgia nas placas de pedra que registrara no seu bloco de notas. O símbolo não parecia corresponder a nenhum dos glíficos da Pedra de Burrows, pelo que a questão do seu significado o inquietava consideravelmente.
Mas isso deixou de ter importância quando ele deu uns passos debaixo da estrutura e o caminho se alargou, indo dar a uma área coberta com grandes lajes.
Com uma incredulidade crescente, riu, depois parou, riu outra vez quando os seus olhos pousaram no vazio negro como breu que estava à sua frente. Era um buraco colossal no chão. E ele encontrava-se em cima de uma espécie de cais que estava suspenso sobre o buraco.
Soprava um vento de cima quando ele deu uns passinhos sobre as lajes gastas próximo à beira do precipício.
Achou-o imensamente inquietante - a enorme extensão da abertura fez o seu coração bater de excitação. Ele não conseguia ver seguramente nenhuma prova da existência do outro lado estava completamente envolto na escuridão. Gostaria de ter uma fonte de luz mais poderosa, para fazer um cálculo bem fundamentado do seu tamanho, mas, pelas suas contas, podia jogar lá para dentro uma montanha de tamanho bastante considerável, e ainda sobrava espaço.
Levantando a cabeça lentamente, viu também que no teto havia uma abertura do mesmo modo grande - o que quer que fosse, parecia continuar para cima, e era a origem do vento e das torrentes esporádicas de água que caíam em toda a volta. Os seus lábios moveram-se, mas não emitiram qualquer som, quando ele começou a especular quanto ao local onde aquele incrível elemento natural podia acabar - talvez outrora tivesse estado aberto na superfície da Terra, e, em qualquer altura, tivesse ficado tapado devido a um desvio das placas tectônicas, ou talvez a atividade vulcânica.
Mas não perdeu muito tempo com isso naquele momento, pois foi mais uma vez obrigado a olhar para baixo, para as profundezas. Era como se a escuridão do vácuo o hipnotizasse e atraísse para mais perto. Quando olhava lá para dentro, descobriu, pelo canto do olho, alguns degraus que saíam da borda da plataforma imediatamente à sua esquerda.
- Será isto? - perguntou a si próprio com a respiração suspensa. - Será isto o meu bilhete para o Interior?
Largou imediatamente a mochila e começou a descer as escadas de pedra rachadas.
- Raios! - disse ele, com os ombros encolhidos, quando descobriu que a escada acabava quase a seguir. Ajoelhou-se, esquadrinhando a escuridão para ver se tinha ruído alguma parte.
- Nada feito - suspirou desanimadamente.
Não havia nada que lhe sugerisse que a escada se estenderia, na verdade, até mais abaixo - havia apenas o pequeno lance rudimentar, que consistia em sete degraus, no qual ele estava empoleirado. Isto não era, de maneira nenhuma, o que esperava. Talvez a sua exploração tivesse chegado mesmo ao fim, mas ele não deixava que a esperança o abandonasse ainda, perguntando a si próprio se, mais para lá, na borda da abertura, não haveria um conjunto de degraus semelhante que estivesse intacto. Outro caminho para baixo.
Voltou lá acima e agarrou na mochila, ainda tentando entender aquilo tudo. Portanto, este era o buraco no mapa dos Coprolites, e tinha de ser o mesmo que estava representado no painel central do tríptico naquele horrível templo dos insetos.
Conseguia entender porque tinham os povos antigos o considerado tão importante. Mas havia mais alguma coisa; eles - a civilização que construíra e utilizara o templo - acreditavam obviamente que era algo sagrado, algo digno de adoração. Massageou a nuca quando começou a pensar.
Estariam aquelas pessoas do tamanho de formigas, na imagem principal do tríptico, a lançar-se no buraco como parte de algum ritual? Estariam simplesmente a sacrificar-se? Ou haveria mais alguma coisa?
Estas questões e ainda outras formavam-se na sua cabeça, rodopiando-lhe em volta do crânio como se tivessem sido apanhadas num tornado, a exigir, cada uma delas, a sua atenção, a pedir-lhe que as resolvesse, quando, subitamente, todo o seu corpo foi sacudido, como que atingido por um raio.
- É isso! Já entendi! - exclamou, por pouco não gritando eureka!
Abriu violentamente a mochila e puxou para fora o seu bloco de notas, lançando-se literalmente a ele, enquanto se atirava para o chão e começava a escrever aquilo de que se recordava. As palavras restantes do painel central do templo tinham-lhe vindo à memória - conseguia visualizar praticamente todos os pormenores, não exatamente com a perfeição de uma fotografia, mas o suficiente para poder utilizar a Pedra do Dr. Burrows para tentar fazer uma tradução, agora que tinha escrito as letras.
Após dez minutos de um rabiscar furioso, formou-se no seu tosto um grande sorriso.
- Jardim do... segundo sol! - exclamou. Depois, o sorriso evaporou-se e a testa enrugou-se. - Jardim do segundo sol? Que diabo significa isto? Qual segundo sol?
Virou-se de lado para olhar para o buraco.
- Fatos, fatos, fatos e só os fatos - disse, utilizando a muito usada mantra, da qual se lembrava quando sentia que estava quase a ser levado por uma onda de especulação delirante. Tentou pensar em sequências lógicas, por muito difícil que isso fosse com a excitação em que se encontrava, sabendo que tinha de se disciplinar para construir uma base a partir de tudo o que descobrira. Nessa altura, e só nessa altura, é que podia começar a elaborar algumas teorias sobre essa base, e propor-se testar a sua veracidade.
Uma coisa que ele podia assumir categoricamente era uma revelação em si mesma: todos os geólogos e geofísicos lá em cima estavam muito enganados. Ele encontrava-se muitos quilômetros abaixo da superfície e, pelas contas deles, devia estar completamente queimado por esta altura. Embora tivesse achado zonas de calor intenso, onde muito provavelmente havia a presença de rocha fundida, isso não correspondia à crença generalizada sobre a composição do planeta e ao grau de variação da temperatura crescente.
Tudo isto estava muito bem, mas não o ajudava a aproximar-se de qualquer das respostas que procurava. Começou a assobiar entre os dentes, pensando e voltando a pensar...
Quem eram as pessoas do templo?
Era óbvio que eram uma raça que, muitos milênios atrás, se refugiara debaixo da superfície do planeta.
Mas, como representado no tríptico do "jardim do Eden", tinham feito uma peregrinação à superfície da Terra; que lhes acontecera aí?
Com uma expressão de completa estupefação, deixou escapar um último assobio agudo e pôs-se de pé. Voltou para trás através do arco e desceu os degraus outra vez.
Talvez se tivesse enganado. Talvez os degraus continuassem, de fato, em algum lugar um pouco mais abaixo, mas ele não os vira. Tirou do cinto o martelo geológico de cabo azul e, acocorando-se no degrau de baixo, meteu a ponta numa fissura na parede ao seu lado. Deu-lhe uma pancada com a palma da mão para ter certeza absoluta de que estava fixado com firmeza. Parecia suficientemente seguro. Depois agarrou-o com uma mão e, com o globo luminoso suspenso da correia que estava na outra, debruçou-se o máximo que se atrevia, tentando distinguir mais alguma coisa do que ficava abaixo dele.
Quando olhou para a escuridão de breu, com o globo luminoso a balançar e o cérebro ainda a zumbir em volta do tríptico, veio-lhe uma ideia à cabeça.
Saltando para este buraco, as pessoas do templo acreditariam realmente que tinham alcançado a terra prometida? Seria este o caminho para o seu jardim do Éden, ou o seu nirvana, ou o que quer que se queira chamar-lhe?
Refletiu sobre esta sugestão e, subitamente, como um raio, foi atingido por uma ideia bombástica.
Talvez tivesse estado o tempo todo a olhar na direção errada. Estivera tão determinado a olhar para cima, que nunca considerara olhar para baixo!
Talvez houvesse uma muito boa razão para os povos antigos não terem tido nada que ver com as culturas da superfície durante tantos milênios. Mesmo se tivessem originalmente fugido da superfície, levando consigo a sua capacidade de escrever e os seus modos esclarecidos, talvez nunca tivessem voltado lá. Esta podia ser a razão pela qual ele não conseguia entender o que lhes acontecera - motivo por que ele não conseguia pensar em nada no registro histórico de todas as civilizações da Terra que prosseguisse a sua história.
Portanto...
Interrompeu os seus pensamentos para uma respiração rápida antes de mergulhar novamente neles.
...teriam eles o segredo do que existe mais abaixo, no centro da Terra? Haveria realmente um "jardim do segundo sol" no Interior? E acreditariam realmente que podiam lá chegar atirando-se para um buraco excepcionalmente grande? Porque acreditariam nisso? Porquê? Porquê? Porquê?
Talvez tivessem razão!
A ideia parecia-lhe demasiado fantástica, mas, mesmo assim, era muito evidente que as pessoas primitivas acreditavam que esse ato as levaria ao seu paraíso idílico. E acreditavam nisso com fervor.
Possivelmente, o Dr. Burrows estava excessivamente cansado e sofrendo de falta de alimento, mas veio-lhe à cabeça uma sugestão absurda.
Deveria arriscar tudo e saltar para o buraco?
- Deve estar de brincadeira! - disse em voz alta, de imediato.
Não, era demência! O que estava ele pensando?
Como é que ele, um homem de cultura considerável, podia subscrever uma crença pagã de que, por qualquer milagre, sobreviveria à queda, e encontraria esplêndidos pomares e um sol ardente à sua espera?
Um sol no centro da Terra?
Não, estava sendo excessivamente louco. E falava ele de dedução científica racional!
Pondo de parte inequivocamente a ideia, voltou para o degrau e virou-se.
Gritou de horror.
O aracnídeo gigante estava ali logo atrás dele - o seu enorme ácaro-do-pó -, com as mandíbulas a sibilarem no seu rosto.
O Dr. Burrows recuou, fugindo dele aos tropeções, com um pânico total e absoluto. Perdeu o equilíbrio, com os braços a gesticular quando caiu do degrau onde estava, para trás.
Não houve qualquer grito heróico quando ele caiu, apenas um pequeno guincho de surpresa inoportuna, e ele desapareceu, uma figura minúscula a girar como um saca-rolhas pelo ar, para baixo, em direção ao oblívio negro do Poço.
Capítulo Quarenta e Cinco
L
á de cima, Chester puxou a corda com tanta força que ela ficou presa no pulso de Will e esticou-lhe o braço para a frente. Ele caiu na lama quente e pegajosa. Ouviu a voz de Chester, abafada e indistinta, a pronunciar o que Will tomou por pragas, muito provavelmente dirigidas contra si. Chester puxou a corda outra vez, agora ainda com mais violência. Lembrando da sua conversa anterior, Will sabia, sem qualquer dúvida, que Chester devia estar lhe atribuindo a culpa desta desagradável etapa da viagem, tal como fazia em relação a todo o resto. O ressentimento de Will aumentou - ele não sofria tanto como os outros?
- Já vou! Já vou, raios! - respondeu ele gritando, furioso, quando começou a arrastar-se de novo, num esforço para o alcançar, cuspindo e praguejando enquanto caminhava.
Pensou que a distância em relação a Chester diminuía, mas continuava a não o ver através da neblina. Foi só quando Will puxou a corda que descobriu que esta devia ter se emaranhado em qualquer coisa. Estava presa e bem presa.
Chester gritava outra vez por causa da demora dele. O que quer que estivesse a dizer, era muito desagradável.
- Cale-se, está bem? A corda ficou presa! - gritou Will, jogando-se de lado e utilizando a lanterna para tentar ver o que causava o problema. Era inútil, não conseguia ver nada. Calculando que tinha ficado presa em volta de um pedaço de rocha, abanou-a várias vezes, com movimentos rápidos, até que, finalmente, ela se soltou. Depois rastejou como doido pela encosta acima até alcançar Chester, que, mais uma vez, tinha parado - presumivelmente porque Cal, à sua frente, também se imobilizara.
Desde o início que o sulco subia com uma inclinação constante e inalterada de trinta graus. A falta de espaço acima da cabeça significava que não havia nada a fazer senão ir de engatinhando encosta acima. O solo por baixo deles era macio e sobre ele corria água em grande quantidade, que escorria pela encosta para o mar. Enquanto caminhavam, a água foi substituída por lama quente. Tendo a consistência de grude, era incrivelmente escorregadia e tornava a subida muito mais difícil.
Um pouco acima, chegaram a um local onde a rocha se tornou muito quente ao tato, e Will viu pequenas poças de lama a borbulhar. Depois atravessaram uma zona em que pequenos jatos de vapor lançavam baforadas em volta deles como gêiseres em miniatura - estes eram obviamente a origem da neblina sempre presente que pairava em torno dos rapazes.
Não era diferente de uma sauna com a temperatura no máximo - estava intoleravelmente quente e úmido. Will respirava depressa, e puxou o colarinho da camisa numa tentativa vã de se refrescar. De vez em quando, o ar ficava impregnado de fedor a enxofre, de tal maneira que Will se sentia bastante tonto e perguntava a si próprio como estariam os outros a enfrentar aquilo.
Elliott permitira-lhes que tivessem as lanternas na intensidade máxima, dizendo que era improvável que a luz fosse detectada dentro dos limites do sulco, particularmente porque a neblina encobria tudo. Will estava muito grato por isto, pois teria sido horrivelmente claustrofóbico abrir caminho sem qualquer iluminação.
Em duas ou três ocasiões, Will ouviu a voz do irmão lá na frente. Pelas maldições que proferia, parecia claramente infeliz. Na verdade, os três rapazes descarregavam a sua frustração, intercalando os grunhidos e os gemidos com alguma linguagem muito requintada. Chester era o que vociferava mais, falando descontroladamente e praguejando como um carroceiro. Só Elliott continuava no seu estado taciturno, permanecendo calada enquanto caminhavam.
Com um puxão da corda vindo de Chester, Will percebeu que quase adormecera, e rapidamente começou outra vez a andar. De repente, teve de voltar a parar e, enquanto limpava a lama dos olhos, observou uma poça de lama ali perto, na qual se formavam bolhas que saltavam com um barulho que se podia descrever como um glop glop contínuo.
Sentiu mais um puxão desnecessariamente brutal da corda.
- Bolas, obrigado, amigo! - gritou pela encosta acima, para Chester.
Os puxões frequentes lembravam constantemente a Will a pessoa a quem estava atado. Sem nada a ocupá-lo para além da subida estafante, começou a matutar no que Chester lhe tinha dito.
As palavras valem pouco, especialmente as suas!
Estou farto de você!
As palavras ressoavam com toda a nitidez na mente de Will.
Como ele se atrevia a dizer aquelas coisas?
Will não tinha querido que nada disto acontecesse. Nunca pensara, nem num milhão de anos, que iam correr tantos perigos quando ele e Chester se propuseram a tentar descobrir o que acontecera ao pai de Will. E vários meses antes, quando caminhavam juntos ao longo da via da estrada-de-ferro e se aproximavam da Estação dos Mineiros, Will pedira desculpa a Chester do fundo do coração. Chester dera todas as indicações, nessa altura, de que aceitara as desculpas de Will sem qualquer reserva.
As palavras valem pouco, especialmente as suas!
Chester tinha lhe atirado tudo na cara, e que podia Will fazer para remediar as coisas?
Nada.
Era uma situação impossível. Pôs Will a pensar no que aconteceria quando se reunisse ao padrasto. Era claro que Chester tinha feito uma aliança forte com Elliott - talvez em parte para magoar Will. Mas, qualquer que fosse a sua motivação, os dois pareciam muito íntimos, e Will estava completamente excluído.
Mas se o padrasto aparecesse em cena, como reagiria Elliott ao fato de ele se juntar ao grupo? E como reagiria o seu padrasto a ela? Ficariam todos juntos: ele, o padrasto, Chester, Cal e Elliott? Will não conseguia de maneira nenhuma imaginá-los a entenderem-se todos - o Dr. Burrows seria por demais do outro mundo e pouco prático para Elliott. Afinal, não era possível pensar em duas pessoas mais diferentes - estavam em extremos opostos do aspecto em termos de caráter. Mundos diferentes.
Portanto, se eles se separassem, que aconteceria a Chester? Os campos tinham sido demarcados e Chester já não estava no campo de Will. Will admitiu para si próprio que as coisas estavam tão azedas que na realidade não se importaria nada se Chester fosse com Elliott. Mas não era tão fácil como isso; Will e o padrasto iriam também precisar de Elliott, especialmente com os Styx atrás de Will.
Os seus pensamentos pararam subitamente quando a corda se esticou outra vez, e a voz gutural de Chester o incitou a se apressar.
Continuaram a subir até que Will reparou que o ar parecia ficar sem neblina e sem vapor, quando um débil sopro de ar fresco circulou à volta deles. Isto não ajudava em nada, visto que eles estavam todos cobertos de lama espessa, e esta começava a secar e a fazer com que a roupa lhes esfolasse a pele.
A brisa transformou-se em vento forte e, por um puxão final da corda, Will descobriu que chegara ao topo. Com um enorme alívio, pôde pôr-se de pé e esticar as costas. Afastou a lama que tinha em volta dos olhos e viu que os outros já estavam de pé e a fazer o mesmo que ele, aliviando a fadiga dos membros contraídos. Todos eles, exceto Cal, que tinha encontrado uma rocha para se empoleirar e massageava a perna com uma expressão de pura agonia. Will olhou para si próprio e depois para os outros. Todos eles tinham um aspecto inverossímil, tão espessa era a crosta de lama seca que os cobria.
Quando avançou para o meio daquele espaço, o vento soprava com tanta força e com tanta constância que lhe cortou a respiração. Primeiro, pensou que estavam perante uma floresta de estalagmites ou de estalactites ou de ambas. Só quando tirou a lama da lente e ligou o óculo frontal é que descobriu que não era esse o caso. Estavam num grande túnel com um teto que tinha provavelmente vinte a trinta metros de altura, e, aos seus lados, havia múltiplos túneis mais pequenos que saíam dali - tantos, que as suas aberturas escuras o fizeram sentir-se imediatamente muito inquieto, imaginando Styx emboscados dentro deles.
- Agora não precisa da corda - gritou Elliott a Will. Ele fez o possível para desatá-la, mas o nó estava tão rijo da lama que ela teve de ajudá-lo. Uma vez desatada a corda da sua cintura, Elliott enrolou-a e depois acenou-lhes, chamando-os para junto de si. Will reparou que Chester continuou a evitar o seu olhar quando se juntou ao grupo.
- Vocês vão por ali - disse ela, apontando para o túnel grande. A voz dela era levada pelo vento, pelo que era difícil os rapazes ouvirem-na.
- Desculpa? - perguntou Will, pondo a mão em concha atrás da orelha.
- Eu disse que vocês vão por ali - gritou ela, recuando já para um túnel lateral. Era evidente que não ia com eles.
Os rapazes olharam todos para ela interrogativamente, com os rostos ansiosos.
ø ø ø
Sarah estava perto. Tão perto que quase conseguia sentir o cheiro deles, apesar dos jatos de enxofre.
O Caçador estava completamente no seu ambiente - fora criado para isto. O rastro era tão recente aqui que ele estava numa pressa louca para perseguir a caça. Tinha fios de saliva leitosa suspensos do focinho, e as orelhas abanavam enquanto mantinha a cabeça junto ao chão. O seu corpo era uma confusão de pernas a subirem desordenadamente, soltando lama no seu rasto à medida que corria pelo sulco acima. Estava literalmente puxando Sarah atrás dele, e ela fazia tudo o que podia para o segurar. Quando parou para tirar a lama das narinas, com roncos rápidos como os dos porcos, ela gritou-lhe.
- Onde está o seu dono?
Embora ele não precisasse do menor encorajamento, ela voltou a gritar com uma voz cantarolada, incitando-o a continuar.
- Onde está Cal? Onde está Cal?
Com uma partida lançada, largou a correr a toda a velocidade, apanhando-a de surpresa e fazendo-a cair de bruços. Ela foi arrastada, e durante uns bons vinte metros gritou-lhe que abrandasse, antes de ele finalmente reduzir a velocidade, o tempo suficiente para ela se pôr outra vez de joelhos.
- Quando aprenderei a manter a boca fechada? - murmurou ela para si própria, piscando os olhos através da máscara de lama.
Depois de ter visto os lagartos alados voando, sabendo muito bem o que os perturbara, ela e Bartleby tinham largado a correr ao longo da restante faixa da praia até à parede da gruta. Depois, em cima das rochas, ele tomou, daí a pouco, a trilha que levava ao sulco, levantando a cabeça e soltando um miado vitorioso, grave.
Agora, ao avançarem pelo sulco acima, ela via marcas que o grupo tinha deixado - a marca estranha de uma mão dizia-lhe que havia mais alguém, além de Cal e Will, alguém mais pequeno. Uma criança?, perguntou ela a si própria.
Capítulo Quarenta e Seis
O
vento não amainava e continuava a soprar com força pelo corredor principal, sendo por vezes afunilado nas partes mais estreitas e transformando-se num vendaval que empurrava com tanta violência as costas dos rapazes que os ajudava a avançar. Depois do calor e da umidade que tinham suportado no sulco, era uma mudança bem-vinda, embora ainda sentissem o ar quente na cara.
O teto era alto, bem acima deles, e todas as superfícies que viam eram lisas, como se tivessem sido polidas pela gravilha levada pelo vento, que, mesmo agora, obrigava os rapazes a manter a cabeça baixa, com medo de que alguma partícula lhes entrasse nos olhos.
Depois de Elliott os ter abandonado à sua sorte, continuaram andando a um ritmo rápido. Contudo, à medida que o tempo passava e ela não voltava a aparecer, começaram a perder a sua determinação e vagueavam, abatidos.
Antes de partir, ela explicara-lhes que tinham de se manter na trilha principal, enquanto ela fazia o reconhecimento do caminho em frente, à procura daquilo que chamava "Postos de Escuta". Chester e Cal pareceram aceitar a explicação dela para os deixar, mas Will estava desconfiado e tentara descobrir o que ele tramava na realidade.
- Não entendo... porque tem de ir embora? - perguntara-lhe, estudando os seus olhos cuidadosamente. - Pensei que tinha dito que os Limitadores estavam atrás de nós?
Elliott não respondera de imediato, desviando rapidamente o olhar e esticando o pescoço, como se ouvisse qualquer coisa sobre o gemido do vento. Esteve à escuta um momento antes de se virar para ele.
- Estes soldados conhecem o terreno quase tão bem como eu e o Drake. Como o Drake conhecia. - corrigiu ela, estremecendo. - Podem estar em qualquer lugar. Não se pode confiar em nada.
- Disse que eles podem estar emboscados à nossa espera? - perguntara Chester, olhando inquieto ao redor da passagem. - Então podemos ir direto a uma armadilha?
- Sim, por isso deixe-me fazer aquilo que faço melhor - respondera Elliott.
Agora não a tinham como guia. Chester ia à frente do grupo, com Will e Cal a seguirem-no de perto. Sentiam-se extremamente vulneráveis sem a sua felina protetora a tomar conta deles.
Embora a ventania os ajudasse a manter-se frescos, também os desidratava, e não houve quaisquer objeções quando Will propôs que parassem para descanso. Encostaram-se à parede da passagem, sorvendo água dos cantis, agradecidos.
Como a ruptura ente Will e Chester não fora resolvida, nenhum deles fez qualquer esforço para falar. Cal, com a perna coxeando, tinha de lidar com os seus próprios problemas e estava simplesmente calado.
Will olhou para os outros dois rapazes. Pela maneira como se comportavam, percebeu que não era o único a interrogar-se se Elliott os tinha abandonado. Já se preparara para isso, acreditando que ela era mais do que capaz de os deixar ali desamparados. Se estivesse livre deles três, conseguiria deslocar-se a uma velocidade muito maior até aos Lameiros ou aonde quer que tencionasse ir.
Will gostaria de saber como é que Chester reagiria se ela realmente tivesse se comportado com eles de uma forma desonesta. Não havia dúvida de que confiava nela sem reservas e que isso seria um terrível choque para ele. Ao olhar para ele agora, Will via que Chester estava de olhos semicerrados postos na escuridão, à procura de algum sinal dela.
De súbito, sobre o rugido do vento, ouviu-se um barulho extremamente demoníaco, um gemido grave.
Assim que Will o ouviu, teve certeza de que sabia o que ia na direção deles. Era um som que esperara nunca mais ter de voltar a ouvir. Tomado de pavor, gritou assustado.
- Cão! Farejador!
Cal e Chester olharam ambos para ele com uma estupefação atordoada quando ele deixou cair o cantil e deu um salto para eles. Estava a puxá-los, tentando obrigá-los a andar.
- Fujam! - gritou, com um pânico absoluto.
Passaram-se várias coisas num único segundo.
Houve um gemido baixo, e uma mancha negra voou vinda da escuridão. Deu um salto do chão como uma mola, elevando-se direto a Cal. Se o rapaz não estivesse tão perto da parede do corredor, tê-lo-ia derrubado. Will foi lançado para o lado, mas recuperou o equilíbrio rapidamente. Viu de relance o animal sinuoso e ficou ainda mais certo de que se tratava de um cão de ataque dos Styx. Pensou que estava tudo perdido até ouvir os gritos do irmão.
- Bartleby! - gritou Cal, encantado. - Bart! É você!
Simultaneamente ouviram-se dois estalidos distantes. Pelo canto do olho, Will viu uns clarões no fundo do túnel.
- Ali vem ela! - exclamou Chester. - Elliott!
Will e Chester viram a garota saindo das sombras e aparecer no meio do túnel.
- Fiquem onde estão! - gritou ela, enquanto rastejava para trás ao longo da trilha principal.
Cal estava em êxtase. Sentado ao lado do gato, completa e absolutamente alheio a tudo o que se passava.
- Quem te pôs esta coisa idiota? - perguntou ao animal.
Desapertou imediatamente a coleira de cabedal e jogou-a fora. Depois abraçou o descomunal gato, que lhe retribuiu lambendo-lhe a cara.
- Nem acredito que tenho você de volta, Bartleby - repetia vezes sem conta.
- Nem eu. De onde é que diabo ele veio? - disse Will a Chester, esquecendo suas diferenças momentaneamente.
Apesar das suas instruções em contrário, começaram ambos a andar devagar na direção de Elliott. Will ligou o óculo para poder ver o que ela fazia. Tinha a espingarda apontada para baixo, para qualquer coisa. Will ainda estava muito abalado com o súbito aparecimento de Bartleby e não havia meio de compreender o que acontecera até Chester falar.
- Elliott disparou alguns tiros contra alguém - disse ele sem qualquer emoção.
- Oh, Cristo! - disse Will, num sopro, ao perceber que as luzes que vira deviam ser o clarão da boca da arma quando Elliott disparara. Estacou, não tendo o mais remoto desejo de se aventurar a continuar mais para a frente.
No fundo do túnel, Elliott tinha lançado a arma para longe do corpo, com um pontapé, e baixara-se para o examinar. Não era preciso apalpar-lhe o pulso - viu a poça de sangue que se espalhara na poeira -, se o Styx já não estivesse morto, era apenas uma questão de tempo.
O primeiro tiro tinha tido como alvo a parte inferior do corpo para fazer parar o atacante no lugar exato onde se encontrava, rapidamente seguido de outro, apontado à cabeça, que o atingira na têmpora. Incapacitar... depois matar. A pontaria saíra-lhe um pouco de lado e não tão limpa como ela teria gostado, mas o resultado final fora o mesmo. Permitiu-se um sorriso de contentamento consigo mesma.
O Styx tinha lama seca a cobrir-lhe o corpo todo - portanto, devia tê-los seguido ao longo do sulco. Com a ponta dos dedos, Elliott apalpou a superfície de cabedal encerado do casaco comprido, com remendos quadrados de camuflado castanho, um padrão que ela tão bem conhecia. Bem, era um Limitador a menos - aquele nunca mais voltaria a incomodá-los.
- Por você, Drake - sussurrou, mas depois a testa enrugou-se.
Alguma coisa não fazia sentido. O aspirante a assassino tinha ido atrás dos rapazes com a arma no ombro. Elliott tinha certeza de que estivera quase a dar um tiro "no ar", mas apesar disso não disparara. E não demonstrara a precisão nem a atuação furtiva que ela esperaria de um soldado da Divisão dos Limitadores. As suas capacidades de combate eram lendárias, mas, por qualquer razão, este homem ia com uma pressa louca. Franziu ainda mais o cenho quando refletiu sobre isto, mas agora já não interessava - ele estava morto -, e aquele não era lugar para se ficar muito tempo. Muito provavelmente haveria mais no caminho e ela não queria ser apanhada de maneira nenhuma em campo aberto.
Começou a vasculhar o que pôde. Não tinha mochila - era decepcionante. O Limitador devia tê-la largado na trilha para poder deslocar-se mais depressa. No entanto, ainda tinha a bolsa de munições, que ela lhe tirou e lançou para junto da espingarda.
Remexia nos bolsos do casaco quando encontrou um papel dobrado. Pensando que era um mapa, abriu-o rapidamente, deixando nele manchas carmesim do sangue do Limitador que ela tinha na mão. Era um folheto que comemorava um acontecimento qualquer - já vira iguais na Colônia. A imagem principal era de uma mulher, com quatro imagens mais pequenas em volta, vinhetas com cenas diferentes, pelas quais Elliott passou os olhos rapidamente antes de algo lhe chamar a atenção.
Havia uma quinta imagem, em baixo, que parecia ter sido acrescentada mais tarde, e estava desenhada a lápis. Olhou para ela desconfiada, sem acreditar no que via.
Era a cara estampada de Will, embora estivesse com melhor aspecto, com o cabelo muito bem cortado.
Observou-a mais de perto, chegando a lanterna ao papel. Era Will, mas havia mais um pormenor que a fez suster a respiração. Tinha a corda de um carrasco presa em volta do pescoço. A outra extremidade da corda estava enrolada sobre a cabeça, formando aquilo que intencionalmente era um ponto de interrogação.
E atrás dele havia uma figura pouco nítida, e definida com menos clareza, que parecia vagamente ser Cal. Enquanto Will se mostrava triste, como ela supunha que estaria qualquer pessoa prestes a ser enforcada, a segunda figura sorria serenamente. As expressões dos dois rostos estavam completamente defasadas, e a combinação das duas era bastante inquietante.
Estudou o resto da página, demorando-se na figura central da mulher, depois leu o nome que estava dentro de uma faixa ondulante mesmo no cimo.
Sarah Jerome.
Elliott inclinou-se imediatamente sobre o corpo, virando a cabeça de lado para poder examinar a cara. Apesar da enorme quantidade de sangue que saía da ferida da cabeça, viu logo que não era um Limitador.
Era uma mulher!
Com cabelo castanho comprido que tinha sido apanhado atrás.
Não havia mulheres entre os Limitadores. Era inédito - melhor do que ninguém, Elliot sabia-o.
Nesse instante, soube quem tinha à sua frente. Quem matara.
A mãe de Will e de Cal... era Sarah Jerome.
Empurrou a cabeça outra vez para o lado, pensando escondê-la no caso de algum dos rapazes aparecer por ali.
- Precisa de ajuda? - gritou Will.
- Eh... - respondeu Elliott -, pode deixar.
- É um estafermo de um Styx, não é? - gritou Will, com a voz um pouco trêmula.
- Acho que sim - respondeu Elliott uns momentos depois.
Hesitou, olhando para a cabeça encharcada em sangue, ponderando se devia dizer a Will. Com uma angústia súbita, lembrou-se da sua casa na Colônia. Recordou o momento dilacerante quando fora forçada a deixar a sua própria mãe, sabendo que o mais provável era nunca mais a ver.
Tomada de indecisão, Elliott olhou novamente para o papel. Não podia guardar para si este segredo. Não podia viver com ele na consciência.
- Will, Cal, venham aqui!
- Está bem - gritou Will, e apareceu correndo. - Acertou em cheio no estafermo - disse ele, olhando para o corpo com alguma perturbação.
- Pode querer ver isto - disse Elliott rapidamente, metendo-lhe o folheto nas mãos.
Ele examinou a folha enquanto o vento a agitava na sua mão. Reconhecendo o desenho dele próprio no fundo da página, abanou a cabeça, incrédulo.
- O que é isto? - Depois os seus olhos detiveram-se no nome que estava em cima. - Sarah... Sarah Jerome - leu em voz alta. Virou-se para Chester. - Sarah Jerome? - voltou a dizer.
- Não é a sua mãe? - perguntou Chester enquanto se inclinava para ver o folheto.
Elliott ajoelhou-se ao lado do corpo. Sem dizer palavra, virou delicadamente a cabeça, afastando para o lado o cabelo úmido para deixar ver a cara. Depois pôs-se em pé.
- Pensei que fosse um Limitador, Will.
- Oh, meu Deus! É ela! É ela! - exclamou Will, movendo o olhar entre a imagem e a mulher no chão. Na realidade, não precisava da imagem; as semelhanças entre a sua própria cara e a dela eram notáveis. Era como se estivesse a ver o seu reflexo num espelho coberto de pó.
- O que estava ela fazendo aqui em baixo? - perguntou Chester. - E porque trazia isso? - disse, apontando para a espingarda.
Will abanou a cabeça. Tudo isto era demais para ele. - Vá buscar o Cal - pediu bruscamente a Chester, ao chegar mais perto de Sarah. Agachando-se junto ao ombro dela, estendeu a mão para tocar no rosto, que era tão parecido com o seu.
Retirou-a para trás, quando ela emitiu um pequeno gemido.
- Elliott, ela está viva - arfou ele.
Nessa altura as pálpebras dela tremularam, mas mantiveram-se fechadas.
Antes de Elliott poder reagir, a boca de Sarah abriu-se e ela inspirou.
- Will? - perguntou, os lábios a moverem-se debilmente e a voz tão baixa que ele mal conseguia ouvi-la sobre o uivar triste do vento no túnel.
- É mesmo a Sarah Jerome? É mesmo a minha mãe? - perguntou com uma voz quebrada. As suas emoções estavam num tumulto total. Via a mãe biológica pela primeira vez, contudo, ela tinha vestido o uniforme dos soldados que andavam a persegui-lo. Além disso, na imagem que ela trazia consigo, ele tinha uma corda ao pescoço. Afinal, o que se passava? Teria ela estado prestes a matá-lo?
- Sim, sou a sua mãe - gemeu ela. - Tem de me dizer... - disse, mas a sua voz falhou.
- O quê? Dizer-lhe o quê? - perguntou Will.
- Você matou o Tam? - gritou Sarah, com o peito a elevar-se e os olhos a abrirem-se muito, enquanto fitava Will.
Ele ficou tão chocado que quase caiu para trás.
- Não, não matou - disse Cal, ao lado de Will, que nem sequer tinha reparado que ele se encontrava ali. - É mesmo você, Mãe?
- Cal - disse Sarah, com lágrimas a caírem-lhe dos olhos quando os fechou e começou a tossir. Demorou vários segundos até conseguir recomeçar a falar. - Diga-me o que aconteceu na Cidade Eterna... diga-me o que aconteceu ao Tam. Preciso saber.
Cal sentia dificuldade em falar, com os lábios a tremerem.
- O Tio Tam morreu ao salvar-nos... a nós dois - disse por fim.
- Oh, meu Deus - disse Sarah a chorar. - Me enganaram. Eu sabia. Os Styx mentiram o tempo todo.
Tentou sentar-se, mas não conseguiu.
- Tem de ficar quieta - disse-lhe Elliott. - Está perdendo muito sangue. Eu pensei que era um Limitador. Disparei...
- Isso agora não interessa - disse Sarah, rolando a cabeça de dor.
- Eu posso tratar-lhe das feridas - ofereceu Elliott, apoiando-se, constrangida, ora num pé ora no outro, enquanto Will olhava para ela.
Sarah tentou dizer que não, mas teve outro ataque de tosse. Depois de passar, continuou:
- Will, desculpe ter duvidado de você. Lamento tanto, tanto.
- Eh... está bem - gaguejou Will, sem saber ao certo o que ela queria dizer.
- Aproximem-se, vocês dois - pediu-lhes. - Ouçam.
Quando eles se inclinaram para ouvir o que a mãe queria dizer-lhes, Elliott aplicou algumas compressas de gaze no quadril de Sarah, prendendo-as com ligaduras.
- Os Styx têm um vírus mortal e vão espalhá-lo na Superfície. - Parou de falar, cerrando os dentes com um gemido, e depois continuou. - Já testaram uma forma do vírus aqui em baixo, mas... foi só uma experiência... o vírus em toda a sua potência é chamado Domínio... vai provocar uma praga terrível.
- Então foi isso que nós vimos no Bunker - sussurrou Cal, olhando para Elliott.
- Will, Will - disse Sarah, fitando-o com intenso desespero. - A Rebecca transporta o vírus com ela... e quer te destruir. Os Limitadores... - Sarah retesou o corpo, depois descontraiu-o outra vez. -...não descansaram enquanto não te virem morto.
- Mas porquê eu? - A cabeça de Will ficou num turbilhão, ali estava a confirmação do que ele temia. Os Styx andavam atrás dele.
Sarah não respondeu, mas, com um enorme esforço, olhou para Elliott enquanto a garota lhe fazia os últimos retoques numa compressa na testa.
- Eles andam atrás de todos vocês. Têm de sair daqui. Há outras pessoas a quem possam pedir ajuda?
- Não, somos só nós - respondeu-lhe Elliott. - Os renegados foram apanhados, na sua maioria.
Sarah calou-se enquanto tentava estabilizar a respiração.
- Então, Will, Cal, vocês têm de se esconder... num lugar onde eles não possam encontrá-los.
- É o que estamos fazendo - confirmou Elliott. - Vamos para o Ermo.
- Ótimo - gemeu Sarah. - E depois têm de ir à Superfície e avisar as pessoas do que vai acontecer.
- Como? - começou Will.
- Oh, isto dói - gemeu Sarah, e o seu rosto ficou flácido, como se ela tivesse desmaiado. Apenas o tremular ocasional das pálpebras lhes dizia que estava consciente.
- Mamãe - disse Will, hesitante. Dirigir-se a alguém completamente estranho daquela maneira era incrivelmente esquisito. Havia milhares de coisas que queria perguntar-lhe, mas sabia que aquele não era o momento nem o lugar para fazê-lo. - Mamãe, tem de vir conosco.
- Nós podemos te levar - disse Cal.
A resposta de Sarah foi determinada.
- Não, eu só iria atrasá-los. Têm alguma chance, pequenas mas reais, se continuarem a andar.
- Ela tem razão - disse Elliott, apanhando a espingarda e a bolsa de munições de Sarah e entregando-as a Chester. - Temos de partir agora.
- Não, eu não vou sem a minha mãe - insistiu Cal, agarrando na mão flácida de Sarah.
Enquanto Cal falava com a mãe, com as lágrimas a correrem-lhe abundantemente pelo rosto, Will chamou Elliott à parte.
- Tem de haver qualquer coisa que possamos fazer - insistiu com ela. - Não podemos levá-la conosco uma parte do caminho e escondê-la?
- Não - respondeu Elliott enfaticamente. - Além disso deslocá-la não seria.bom para ela. De qualquer modo, provavelmente ela vai morrer, Will.
Sarah chamou por Will, e ele juntou-se de imediato a Cal, a seu lado.
- Nunca se esqueçam - disse Sarah aos rapazes. Agora estava mesmo num grande esforço, com o rosto contorcido pela dor. - Tenho muito orgulho de vocês...
Não concluiu a frase. Enquanto Will e Cal olhavam, os olhos fecharam-se, e ela ficou quieta. Estava inconsciente.
- Temos de ir - disse Elliott. - Os Limitadores em breve estarão aqui, muito em breve.
- Não - gritou Cal. -Você é que lhe fez isto. Não podemos...
- Não posso desfazer o que fiz - respondeu-lhe Elliott calmamente. - Mas ainda posso lhes ajudar. A escolha é sua me deixar ou não fazê-lo.
Cal ia objetar outra vez, quando Elliott começou a afastar-se, com Chester logo atrás.
- Olhe para ela, Cal. Não iríamos fazer-lhe favor nenhum se tentássemos movê-la - acrescentou Elliott por cima do ombro.
Apesar dos contínuos protestos de Cal, tanto ele como Will sabiam, lá no fundo, que Elliott tinha razão. Não havia qualquer chance de levarem Sarah com eles. Começaram a andar quando Elliott disse que a mãe podia ter mais sorte se outro renegado a encontrasse e lhe tratasse dos ferimentos. Mas tanto Will como Cal sabiam que isso era pouco provável e reconheceram que Elliott estava tentando lhes dar o pouco consolo que podia.
Quando contornavam uma esquina, no túnel, Will parou e virou-se para olhar para Sarah no lugar onde ela jazia. Com o uivo fúnebre e incessante do vento à sua volta, era um pensamento desamparado e arrepiante que ela pudesse morrer ali, na escuridão, sem ninguém ao seu lado. Talvez o destino dele fosse o mesmo, exalar o último suspiro em algum canto remoto da Terra, sozinho.
Mas, embora estivesse incrivelmente angustiado devido a todo aquele incidente, sabia que devia sentir mais do que sentia.
Devia sentir a tristeza mais profunda pelo fato de a mãe verdadeira estar a esvair-se em sangue, ali no túnel. Mas onde a tristeza devia estar havia apenas uma nuvem de emoções confusas. Devia sentir mais, mas, para Will, ela era pouco mais do que uma estranha, que tinha sido abatida a tiro por causa de um erro infeliz.
- Will - apressou-o Elliott, puxando-o pelo braço.
- Não compreendo. O que ela está fazendo aqui em baixo? - disse ele. - E porque lhe deram o Bartleby?
- O Caçador era do Cal? - perguntou Elliott.
Will acenou com a cabeça.
- Então é simples, realmente - disse Elliott. - Os Pescoços Brancos sabiam que você e o Cal estariamjuntos. Por isso, que melhor podiam fazer do que deixar Sarah utilizar o animal para seguir o rasto do dono e conduzi-la diretamente a você?
- Acho que tem razão - disse Will, franzindo o cenho.
- Mas, antes de mais, porque ela está aqui embaixo? O que pensaram os Styx...?
- Não vê? Eles queriam que ela te apanhasse e te matasse - interrompeu Chester, com uma voz comedida e desapaixonada. Tinha permanecido calado até então, e pensava com mais clareza do que Will. - Obviamente, tentaram fazê-la acreditar que você foi o responsável pela morte de Tam. É outro dos seus esquemazinhos vis. Tal como essa coisa do Domínio de que ela falou.
- Olhem, podemos ir mais depressa? - disse-lhes Elliott, espalhando alguns Secantes na trilha atrás de si.
Continuaram ao longo da trilha principal, Cal indo afastado deles, com o gato a pavonear-se, radiante, ao seu lado. E daí a pouco apareceram na fina faixa de um rebordo, com o vento ainda a soprar com força. Pararam. Não viam nada à frente e nenhum caminho para baixo.
Capítulo Quarenta e Sete
-E
agora? - perguntou Will, tentando tirar da cabeça todos os pensamentos sobre Sarah e concentrar-se na sua situação atual.
Com todas as lanternas no mínimo, e sem a vantagem do óculo, tinha a nítida impressão de que havia manchas difusas na área à frente deles, como se existissem outros cumes ou plataformas elevadas sensivelmente na mesma altura. Não restava qualquer dúvida de que Elliott os levara para a beira de uma fissura de alguma espécie, mas o que estava para lá ou para baixo deles, não sabia.
Will tinha consciência do olhar frio que Chester lhe lançava, o que o fez ficar extremamente zangado. Parecia que o seu anterior amigo o culpava silenciosamente de tudo. Considerando aquilo por que Will acabara de passar, esperava que Chester lhe desse alguma folga. Obviamente, esperava demais.
- Então, vamos saltar? - disse ele, esquadrinhando o que julgava ser um penhasco íngreme.
- Claro, por favor! São várias centenas de metros até lá abaixo, como se vê quando a pedra cai - respondeu Elliott. - Mas pode querer tentar aqui.
Olharam para o lugar que ela indicava, próximo à beira do rebordo, e viram dois bicos. Aproximaram-se o mais que ousaram, pois a combinação do vento forte com o declive vertical obrigava-os a moverem-se com precaução, e descobriram que era a extremidade de uma velha escada de ferro, enferrujada, mas robustamente construída.
- Uma escada dos Coprolites. Não é tão rápido como saltar, mas é muito menos doloroso - afirmou ela. - Este lugar é conhecido como as Agulhas, vão ver porquê quando chegarmos lá abaixo.
- E o Bartleby? - disse Cal de repente. - Ele não pode descer esta escada e eu não vou deixá-lo aqui de maneira alguma! Ainda há pouco o recuperei!
Cal estava de joelhos com o braço em volta do gato, que esfregava a enorme bochecha na parte lateral da cabeça dele e ronronando tão alto que parecia uma colmeia sobrelotada.
- Mande-o ir ao longo do cume. Irá encontrar o caminho para baixo - disse Elliott.
- Não vou perdê-lo outra vez! - disse Cal decididamente.
- Acho que percebi - vociferou Elliott. - Se ele for mesmo um Caçador, vai nos procurar e nos encontrar lá no fundo.
Cal ficou indignado.
- O que quer dizer com isso? É o melhor Caçador em toda a bendita Colônia! Não é, Bart? - Percorreu afetuosamente com a mão o cocuruto enrugado e sem pêlos da cabeça abobadada do gato, e a colmeia soou como se tivesse estalado uma revolta.
Elliott foi a primeira, seguida de perto por Chester, que ultrapassou Will para chegar à frente.
- Com licença - disse bruscamente.
Will preferiu não dizer nada, e, assim que Chester desapareceu da vista, seguiu-os. Achou desconcertante agarrar os dois pilares e avançar devagar com as pernas sobre a borda até encontrar um degrau com o pé. No entanto, quando começou a deslocar-se, percebeu que não era assim tão mau. O último foi Cal, que tinha enviado Bartleby numa viagem mais longa pelo rebordo, mas parecia muito apreensivo ao descer a escada, movendo-se rígida e vagarosamente.
Era uma descida longa e a escada tremia e estalava agourentamente com os seus movimentos combinados, como se alguns dos ferros que a prendiam se tivessem partido e soltado. As mãos deles em breve ficaram cobertas de ferrugem e tão secas que eles tiveram de ter um cuidado suplementar para não se soltarem. O vento diminuía gradualmente à medida que iam descendo, mas, depois de algum tempo, Will reparou que não via nem ouvia Cal acima dele.
- Tudo bem? - gritou para cima.
Não houve resposta.
Repetiu a pergunta, desta vez mais alto.
- Tudo bem - foi a resposta de Chester, vinda de baixo e dada de má vontade.
- Não é com você, idiota! É com o Cal que estou preocupado.
Quando Chester murmurou qualquer coisa em resposta, o bastão de Cal passou por Will a silvar, rodopiando à medida que caía.
- Oh, Jesus! - exclamou Will, pensando durante um terrível instante que o irmão tinha escorregado e que ia cair a seguir ao bastão. Susteve a respiração e esperou. Os seus temores eram infundados, mas, de qualquer modo, ainda não havia sinal de Cal. Will concluiu que era melhor ir ver onde devia, ao próprio local, e, invertendo a direção, começou a subir. Pouco depois chegou perto de Cal, que estava completamente imóvel, com os dois braços firmemente enrolados em volta da escada.
- Deixou cair o bastão. O que se passa?
- Não sou capaz de fazer isto... - ofegou Cal -, estou indisposto... deixe-me em paz um pouquinho.
- É a sua perna? - perguntou Will, preocupado com o tom de voz agitado do irmão. - Ou ainda está perturbado por causa da Sarah? O que é?
- Não, só me sinto... só me sinto tonto.
- Ahhh - disse Will, ao compreender o que podia estar perturbando Cal. Ele não estava habituado a lugares altos, depois de ter passado toda a vida na Colônia. Tinha havido sinais disso mesmo quando estiveram na Superfície. - Não gosta de estar aqui em cima? É a altura, não é?
Cal engoliu um sim.
- Bem, confie no que vou te dizer, Cal. Não quero que olhe para baixo, mas estamos quase no fundo... Já vejo a Elliott lá em baixo, agora mesmo.
- Tem certeza? - observou Cal, um pouco desconfiado.
- Absoluta. Vamos.
A mentira funcionou durante uns trinta metros até Cal voltar a ficar imóvel.
- Está mentindo. Nesta altura já devíamos estar lá.
- Não, sério. Já não falta muito - garantiu-lhe Will. - E não olhe para baixo!
Isto sucedeu várias vezes, ficando Cal cada vez mais desconfiado do irmão e cada vez mais zangado, até que Will acabou por chegar ao fundo.
- Aterrissando! - anunciou.
- Me enganou! - acusou-o Cal enquanto descia da escada.
- Sim, mas olhe, funcionou, não foi? - Agora está a salvo - respondeu Will encolhendo os ombros, contente por ter sido capaz de convencer o irmão a descer, apesar de ter recorrido a uma mentira para o conseguir.
- Nunca mais te dou ouvidos - lançou-lhe Cal, amuado, enquanto começava a procurar o seu bastão. - É uma lesma mentirosa.
- Oh, claro, fique à vontade para me atacar... tal como todo mundo por aqui - respondeu Will, mais para Chester do que para Cal.
Will tinha estado tão preocupado com o irmão que ainda não reparara no que os rodeava. Virou-se de costas para a escada, com os pés a fazerem um barulho vítreo, como se pisasse pedaços de uma garrafa partida. Na verdade, quando eles se deslocavam, o chão produzia uma ressonância vítrea e opressiva.
Will percebeu o que estava à sua frente. Do pouco que conseguia ver, parecia ser uma colunata, com colunas muito juntas erguendo-se como lanças na escuridão lá em cima, cada uma com cerca de setenta metros de perímetro.
- Só vou fazer isto porque os Limitadores devem estar suficientemente longe para não fazer mal, e quero que vocês saibam onde estamos nos metendo - disse Elliott, ligando a lanterna e apontando-a para a zona à frente deles.
- Uau! - disse Will.
Era como olhar para um mar de espelhos escuros. Quando o feixe da lanterna de Elliott atingiu a coluna mais próxima, foi refletido para outra, e assim sucessivamente, cruzando-se consequentemente o feixe à sua volta, e dando a ilusão de que havia dezenas de lanternas. O efeito era espantoso. Também viu o seu reflexo e o dos outros vindos de todos os ângulos.
- As Agulhas - disse Elliott. - São feitas de obsidiana.
Will susteve a respiração de espanto, enquanto começava a estudar a coluna mais perto deles. A sua circunferência não era arredondada, como parecia à primeira vista, mas composta por uma série de placas perfeitamente planas que estavam dispostas na vertical em toda a sua extensão, como se tivesse sido formada por muitas fraturas longitudinais. Quando olhou para cima, a coluna não parecia adelgaçar-se no mínimo em direção à parte superior.
Depois, examinando o que o rodeava, viu outra coluna que parecia diferente. Observou que as placas planas ao longo da sua extensão eram levemente curvadas, fazendo-a assemelhar-se a um caramelo gigantesco em forma de rosca, com a ponta virada para baixo. Na verdade, quando continuou a olhar, detectou outras como esta entre as colunas na reta e um pequeno número com uma curvatura extremamente pronunciada.
Lembrando-se de que ainda tinha a sua máquina fotográfica, bastante rudimentar, na mochila, pensou se seria capaz de tirar uma boa fotografia da cena. Concluiu rapidamente que os reflexos o impossibilitariam. A sua mente zumbia quando começou a especular sobre os fatores que poderiam ter produzido um fenômeno natural tão singular.
Embora estivesse quase explodindo para dizer qualquer coisa sobre as colunas, reprimiu-se, lembrando-se dolorosamente da reação de Chester quando falara com entusiasmo sobre os lagartos voadores. Mas, se alguma coisa se assemelhava a um cenário para uma das preciosas histórias fantásticas de Chester, tinha de ser este conjunto de monólitos cristalinos. O covil secreto das fadas negras, pensou Will perversamente para si próprio. Não, melhor ainda: O covil secreto das fadas negras e extremamente fúteis. Reprimiu uma gargalhada, guardando a ideia firmemente para si. Não valia a pena continuar a provocar Chester; as relações com ele já estavam pior do que nunca.
Chester aproveitou aquele momento para falar, parecendo manifestamente pouco impressionado com o que os rodeava, muito provavelmente numa tentativa de enfurecer Will.
- Sim. E agora? - perguntou a Elliott, que virou outra vez a lanterna para baixo. A confusão de feixes de luz e imagens múltiplas acabou, e Will ficou, de fato, bastante aliviado, pois aquilo desorientava-o incrivelmente.
- Isto aqui em baixo é um labirinto, por isso façam exatamente o que eu lhes disser - respondeu Elliott. - Eu e o Drake arranjamos um depósito secreto no meio do caminho, onde podemos reabastecer-nos de comida e água e também de munições do arsenal. Não vai demorar muito tempo, e a seguir continuamos para o Poço. Depois de o passarmos, é uma tirada de uns dias até aos Lameiros.
- O Poço? - perguntou Will, com a curiosidade aguçada.
- E o Bartleby? - perguntou Cal, acabando com a conversa. - Ele ainda não chegou.
- Dê-lhe tempo. Sabe que ele vai nos encontrar - disse Elliott num tom compreensivo, tentando acalmar o rapaz, que estava ficando irritado.
- É bom que nos encontre - disse Cal.
- Vamos a isto - disse Elliott, suspirando, pois a sua paciência começava a esgotar-se.
Não havia qualquer chance de os rapazes se deslocarem sem fazerem barulho com o tinido e o rangido do piso de gravilha vidrada, embora Elliott conseguisse fazê-lo sem esforço, como se estivesse a planar sobre a superfície.
- Esse barulho todo que vocês fazem ouve-se a milhas. Não conseguem, seus macacos, andar com mais leveza? - implorou-lhes, mas era inútil; por muito cuidado que tivessem, continuavam a fazer barulho como um rebanho de rinocerontes a fugir em debandada através de um glaciar.
- O depósito secreto já não está longe daqui. Vou ver se está tudo em ordem e depois vocês podem seguir-me. Entendido? - perguntou Elliott, e afastou-se.
Enquanto esperavam por ali que ela voltasse, Cal falou subitamente.
- Acho que estou ouvindo o Bart. Está vindo.
Deixando Will e Chester, avançou devagar, abraçando o lado de uma coluna.
Inesperadamente, a luz reduzida da sua lanterna incidiu em alguma coisa.
Não era Bartleby.
O seu primeiro pensamento foi que via o seu próprio reflexo. Mas no mesmo instante percebeu que não era esse o caso.
Um Limitador estava à frente dele, em toda a sua glória sinistra.
Estivera contornando a coluna do lado oposto. Usava um casaco comprido e tinha uma espingarda à cintura.
Por um breve momento, pareceu tão surpreendido como Cal, que emitiu um aviso urgente, ininteligível, alertando Will e Chester.
O olhar de Cal e o do Limitador ficaram presos um ao outro. Depois, o lábio superior do Limitador retraiu-se num esgar brutal, os dentes à mostra na cara encovada e horrenda. Era animalesca e louca. A cara de um assassino.
Os instintos de Cal entraram em ação e ele utilizou a única coisa que tinha à mão. Levantou o bastão e, por um bizarro golpe de sorte, o cabo enganchou-se na espingarda do Limitador antes que ele pudesse usá-la, e arrancou-a das mãos.
Fez um estardalhaço na gravilha de obsidiana.
Depois houve outro momento em que o Limitador e Cal ficaram simplesmente ali, possivelmente ainda mais surpreendidos com o que acabara de acontecer do que quando tinham chocado um com o outro. Não durou muito. Em menos de um segundo, a mão do Limitador surgiu bruscamente à sua frente, exibindo um punhal brilhante em forma de foice. Era uma arma uniformizada feita para os militares Styx, com uma lâmina ligeiramente curvada de aspecto letal, com cerca de quinze centímetros de comprimento. Brandindo-a, atirou-se a Cal.
Mas Will já estava lá, vindo do lado. Agarrando no braço do Limitador, Will deu-lhe um encontrão, e o homem foi pelos ares. Will seguiu-o e, quando aterraram os dois, percebeu que estava atravessado em cima do Limitador. Will ainda agarrava o braço do soldado e usava toda a sua força para impedi-lo de utilizar a faca.
Vendo o que o irmão tentava fazer, Cal seguiu o exemplo e lançou-se sobre as pernas do soldado, enrolando os braços em volta dos tornozelos do homem com toda a força. O Limitador dava murros nas costas e no pescoço de Will com o braço que tinha livre, fazendo todo o possível por lhe atingir a cara. A mochila de Will tinha se fixado em volta dos ombros e impedia que o Limitador desferisse os seus fortes murros. Gritando por Chester, Will mantinha a cabeça protegida e baixa.
- Use a arma! - berrou Will repetidas vezes, com a voz abafada porque tinha a boca comprimida contra o braço do Limitador.
- Chester, a arma! - gritava Cal com voz rouca. - Mate-o!
Como as lanternas abandonadas dos rapazes emitiam uma agitação de feixes de luz fortuitos que incidiam nas colunas e eram refletidos numa confusão de pequenos holofotes, Chester, situado a vários metros de distância, tinha erguido a espingarda e tentava fazer pontaria.
- Dispare! - gritaram ao mesmo tempo Cal e Will.
- Não consigo ver! - respondeu Chester gritando freneticamente.
- Ande!
- Dispare!
- Não consigo disparar com precisão! - gritou Chester, em desespero absoluto.
O homem estava a debater-se selvagemente debaixo de Will e de Cal, e Will ia voltar a gritar quando algo muito grande bateu violentamente contra ele. O Limitador tinha parado de lhe bater, mas Will continuava a ouvir o barulho de socos rápidos.
Tinha de olhar.
Virou a cabeça, levantando-a apenas o suficiente para ver que Chester tinha se juntado a eles. Obviamente desistira de disparar um tiro com a espingarda e concluíra que a única coisa que podia fazer era associar-se à luta. Pusera-se de joelhos, um dos quais a fazer pressão sobre o abdômen do homem, e dava uma saraivada de murros na cara dele com ambos os punhos. Entre estes socos, Chester tentava prender ao chão o outro braço do soldado, de modo a imobilizá-lo completamente. Quando fazia outra tentativa para chegar ao braço, inclinando-se para a frente para tentar agarrá-lo, o Limitador viu a sua oportunidade. Esticou subitamente o pescoço e, com uma pancada revoltante, deu uma cabeçada na cara de Chester.
- SEU MERDA! - gritou Chester.
Recomeçou imediatamente a bater-lhe, tendo o cuidado de guardar, desta vez, a devida distância, e evitando o braço solto do Limitador cada vez que tentava bater-lhe.
- MORRE! MORRE! SACANA! MORRE! - arengava Chester enquanto intensificava os socos, os seus punhos a esmurrarem a cara do Limitador.
Se Chester tivesse visto por acaso o seu reflexo na coluna ao seu lado, não se reconheceria. A cara era uma distorção do seu ser normal; estava contorcida numa máscara enlouquecida e determinada. Nunca, nem em milhares de anos, teria alguma vez imaginado que era,capaz de tal ato de pura brutalidade e violência. Todo o ressentimento e fúria que sentia pela maneira como fora tratado na Colônia tinham encontrado um escape e estavam saindo aqui para fora numa torrente imparável. Continuou a bater no soldado, interrompendo apenas para se desviar do punho do Limitador quando ele tentava retaliar.
Os quatro contorciam-se naquela luta mortal, praguejando e contraindo-se num desespero ofegante, enquanto o homem grunhia num estertor, como um javali selvagem, tentando tudo e mais alguma coisa para se libertar. Chester ainda estava a martelar no homem, mas parecia ter pouco efeito nele. O peso total dos rapazes restringia-lhe os movimentos, mas ainda era capaz de utilizar o cotovelo do braço livre para contra-atacar ocasionalmente, embora com pouca ou nenhuma força. Como isto não resultava, tentou rasgar e dilacerar-lhes as caras com as unhas afiadas, mas, mais uma vez, sem resultado; Chester evitava todas essas tentativas, e Will mantinha a cabeça baixa e bem longe do seu alcance.
- MATEM-NO! - gritava Cal lá de baixo, da parte inferior do corpo do Limitador.
Os rapazes lutaram e aguentaram, sabendo apenas que tinham de controlar o soldado através de quaisquer meios que fossem necessários. Era como se estivessem a lutar contra um tigre, um tigre sarnento, mas, em todo o caso, letal. Pura e simplesmente, não havia outra alternativa a não ser continuar a lutar. Não podiam largá-lo. Os riscos não podiam ser mais elevados. Era ele ou eles.
Enquanto lutavam uns contra os outros num frenesi de combate e tensão, havia uma intimidade obscena em tudo aquilo. Chester cheirava a acidez do suor do homem e sentia o seu hálito azedo na cara. Will sentia os músculos do homem a contraírem-se e a formarem nós debaixo de si quando ele usava toda a sua força para tentar soltar o braço.
- NÃO, NÃO FAÇA ISSO! - gritava Will, dobrando e redobrando esforços para controlar o braço do homem que estava debaixo dele.
O Limitador mudou de tática, talvez como último recurso, uma vez que não conseguia dar murros significativos nem a Chester nem a Will. Levantou a cabeça o mais que conseguiu, cuspiu-lhes e abocanhou-os com os dentes, tentando mordê-los, enquanto fazia barulhos que não eram muito diferentes dos do farejador que maltratara Will tão horrivelmente na Cidade Eterna.
Mas esta selvajaria pura era só para distraí-los das suas verdadeiras intenções. Tinha identificado uma brecha no ataque combinado deles. Guinchou vitoriosamente quando dobrou os joelhos e deslocou Cal apenas o suficiente para ser capaz de libertar uma perna. Puxou-a para trás e bateu com o calcanhar com toda a força no estômago de Cal. O pontapé fez Cal estatelar-se de comprido na gravilha de vidro, sem conseguir respirar. Ofegando, enroscou-se, tentando fazer entrar ar nos pulmões.
Agora, o Limitador ganhava vantagem. Balançou as pernas e começou a dar safanões e a rolar com tanta força que Chester estava sentindo que era impossível aguentar. Quando Chester contra-atacou, o Limitador deu-lhe um murro retumbante na cabeça. Atordoado, caiu ao chão.
Will não fazia ideia nenhuma dos apuros em que os outros se encontravam. Não se atrevia a olhar para cima com medo de ser atingido ou ferido, continuando teimosamente agarrado ao braço do Limitador e espalhando o peso do seu corpo o melhor que podia para manter o homem no chão. Will fazia o possível para o impedir de utilizar o punhal, mesmo que fosse a última coisa que fizesse. E sabia que bem podia ser.
Agora que estava menos apertado, o Limitador esmurrava repetidamente a cabeça e o pescoço de Will, que gritava de dor. Não conseguia aguentar esta tortura por muito mais tempo.
Felizmente, o Limitador só o tinha espancado umas duas vezes antes de Chester voltar a entrar na batalha. Recuperando os sentidos quase de imediato, apanhara do chão um grande pedaço de obsidiana e, gritando e berrando, começou a bater com ele, com muita força, na cabeça do Limitador.
O Limitador amaldiçoou Chester na linguagem nasalada dos Styx. Esticou o braço e prendeu com a mão o maxilar de Chester. Depois enganchou o polegar no canto da boca de Chester, e utilizou esse golpe doloroso para empurrar o infeliz rapaz para o lado.
Com as pernas a lutar, Chester não tinha absolutamente outra alternativa a não ser ir para onde o Limitador puxava. Uma vez no chão e fácil de alcançar, o Limitador deu-lhe um murro tremendo no crânio com o punho. Desta vez, não iria haver uma recuperação rápida. Chester jazia numa confusão zonza, numa nebulosa de estrelas rodopiantes entrelaçadas com a matriz de feixes de luz refletidos em toda a sua volta.
Com Cal e Chester fora da corrida, só restava Will. O Limitador agarrou o pescoço de Will e enterrava-lhe os dedos, apertando-Ihe a traqueia. O soldado balbuciou qualquer coisa, exultante, na língua dos Styx. Pensava que tinha ganhado quando intensificou o aperto.
Ofegando com a dor e engasgando-se com a falta de ar, Will viu que o fim estava perto. Por qualquer razão, isto não o surpreendeu muito. Afinal, era um soldado treinado aquele que eles enfrentavam. E eram apenas três garotos.
O Limitador era, para eles, algo estranho e um ser à parte. Que chances tinham alguma vez tido? Will resignara-se a uma derrota implacável e dolorosa quando o Limitador lhe afrouxou o aperto na garganta. Inspirando fundo e tossindo, Will permitiu-se pensar que alguma coisa mudara, possivelmente para melhor. Não podia estar mais enganado.
Houve um clique, como se o Limitador tivesse estalado os dedos, e um segundo punhal materializou-se na sua mão livre, vindo de lugar nenhum. A lâmina cintilou à luz de uma lanterna próxima quando, com um movimento fluido e fácil, o Limitador agarrou a arma com a outra mão.
Will rodou a cabeça uns centímetros para tentar descobrir o que acontecia e se Chester ou Cal estavam suficientemente perto para intervirem.
Não os viu em parte alguma.
- Não! - gritou, alarmado, caindo-lhe o coração aos pés quando vislumbrou o punhal. Não havia absolutamente nada a fazer. Não havia tempo para se afastar do seu caminho. O Limitador apanhara-o de surpresa.
A lâmina brilhou quando o Limitador inspirou através dos lábios torturados e começou a mover o punhal. Agora o pescoço de Will estava completamente exposto. Will cerrou os dentes, toda a esperança a abandoná-lo enquanto esperava que a lâmina encontrasse o alvo.
Ouviu-se um estrondo ensurdecedor.
A bala passou tão perto de Will que ele sentiu o calor na pele. A mão erguida do Limitador pairou no ar durante aquilo que pareceu a Will uma eternidade, mas que, na realidade, foram meras frações de segundo, depois abriu-se, e a faca escorregou.
Will ficou exatamente onde estava, paralisado de estupefação, o som do tiro ainda a ressoar-lhe nos ouvidos. Não olhou para o soldado diretamente, mas viu o suficiente para saber que ele se encontrava num estado horrível. Enquanto Will ali estava, ouviu uma expiração longa quando os pulmões do homem se esvaziavam. Depois, seguiu-se um paroxismo exasperante, todo o corpo do homem a retesar-se debaixo de Will, e um gorgolejo molhado, quando uma bruma cor-de-rosa encheu o ar. Will sentiu gotinhas na cara. Aquilo era demais para ele - não conseguiu sair dali suficientemente depressa. Numa precipitação louca, engatinhou para trás, para longe do Limitador, e pôs-se em pé de um salto, pronunciando uma torrente de palavras ininteligíveis e lançando gritos de horror e repulsa.
Ainda a arfar rapidamente, limpou a cara repetidas vezes nas mangas. Parou e virou-se. Cal tinha na mão a espingarda de Chester. Estava olhando para o homem morto.
- Atingi-o - disse calmamente, sem baixar a espingarda nem o olhar.
Will foi para perto dele, tal como Chester.
- Atingi-o na cara - disse outra vez, com a voz ainda mais fraca. Tinha os olhos vazios e o rosto inexpressivo.
- Está tudo bem, Cal - disse Will, tirando-lhe a espingarda das mãos rígidas e entregando-a a Chester.
Pôs o braço em volta dos ombros do irmão e guiou-o lentamente para longe da vista do Limitador morto. Will estava abalado e um pouco inseguro, mas a sua preocupação com Cal superava quaisquer pensamentos em relação a si próprio. O rapaz obedeceu, sem palavras, quando Will lhe disse que os dois deviam se sentar.
Foi só quando Will voltou a olhar para o corpo inerte do Limitador que foi tomado de um fascínio macabro por aquilo que tinham feito. Não olhava para a cara do Limitador, mas estava petrificado com a sua mão, sobre a qual incidia uma luz fraca. Os dedos estavam frouxos e curvados, como que em repouso. Por algum motivo irracional, Will queria que a mão se mexesse, como se nada disto fosse real, mas uma espécie de representação. Mas ela não se mexeu, e nunca mais voltaria a mexer-se.
Desviou os olhos do Limitador quando sentiu Cal a tremer contra si. Não era o momento para o irmão entrar em choque.
- Atingiu-o bem! Matou-o! Matou um Limitador! - Chester resmungava com grande excitação e ria, as palavras empastadas e mal articuladas por causa do inchaço da cara. - Apanhou-o logo na boca! Em cheio! Bem feito! Ahahahah!
- Pelo amor de Deus, cale-se, Chester - rosnou-lhe Will. O irmão começou a engasgar-se, depois ficou violentamente indisposto. Chorava e murmurava qualquer coisa sobre o Limitador.
- Está tudo bem, está tudo bem - disse Will, não o largando. - Acabou.
Elliott apareceu correndo.
- Jesus! Acham que são capazes de fazer mais barulho?
Viu o Limitador morto e fez um aceno de aprovação. Depois olhou para os rapazes. Ainda agitado da adrenalina, Chester saltitava de um pé para o outro, enquanto Will e Cal pareciam completamente acabados.
Ela examinou as colunas de vidro.
- Os Pescoços Brancos estão ainda mais perto do que eu pensava.
- É o que o diga - murmurou Will.
Ela virou-se para Chester, que esfregava o nariz, tentando estancar o sangue que corria dele. Sorriu.
- Abateu-o. Belo trabalho - disse-lhe.
- Eh... eu... não... - gaguejou Chester. - Não consegui...
- Foi o Cal - interrompeu Will.
- Mas era você que tinha a espingarda? - perguntou ela a Chester, parecendo perplexa e desiludida.
Chester não apresentou qualquer espécie de explicação, lançando a Will, rispidamente, um olhar fulminante. Então, Elliott virou-se para Will e Cal.
- Levantem-se. Agora temos de ir... já. Alguém se machucou?
- O meu maxilar... o meu nariz... - começou Chester.
- Cal precisa de um minuto. Olhe para ele - interrompeu Will, desesperado, inclinando-se para trás de modo a que Elliott pudesse ver os olhos parados, desfocados, do irmão.
- Nem pensar! Sobretudo depois de toda essa barulheira - disse ela.
- Ele não pode...? - suplicou Will.
- Não - rosnou ela. - Ouçam!
Fizeram o que ela mandou. Ouviram ladrar à distância, mas era impossível dizer precisamente a que distância.
- Farejadores! - exclamou Will, com os pêlos da parte de trás do pescoço ferido a porem-se em pé.
- Sim, uma porção deles - assentiu Elliott. Olhou para os rapazes com um sorrisinho. - Há outra razão pela qual eu penso que agora seria uma boa altura para sairmos daqui - disse.
- O que é? - perguntou rapidamente Will.
- Porque acendi um detonador no depósito. O arsenal inteiro vai pelos ares dentro de sessenta segundos.
Felizmente esta última informação pareceu galvanizar Cal e fazê-lo entrar em ação. Elliott apanhou a espingarda do Limitador quando passaram que nem raios pelo seu corpo, e depois correram como nunca tinham corrido antes. Will manteve-se perto de Cal, que fazia o melhor que podia com a perna fraca, mas, quando Bartleby se juntou a eles, parecia que o rapaz conseguia correr tão depressa como qualquer um deles.
Como foguetes a arrebentar, houve uma salva de tiros. Uma saraivada de chumbo bombardeou as colunas em volta deles, lançando por vezes fragmentos do tamanho de placas que giravam no ar. Instintivamente Will baixou a cabeça e começou a abrandar.
- Não! Não parem! - gritou-lhes Elliott.
As balas faziam ricochete e gemiam nas superfícies espelhadas enquanto eles fugiam. Will sentia puxões nas calças junto às barrigas das pernas, mas não havia maneira nenhuma de poder parar para ver o que os causava.
- Preparem-se! - gritou Elliott, fazendo-se ouvir sobre a saraivada.
Ouviu-se.
A explosão foi enorme. Uma luz ofuscante queimava em volta deles, enviada em milhares de direções diferentes pelas superfícies refletoras, e depois, assim que as reverberações da detonação inicial abrandaram, começou um enorme estrondo.
Colunas partidas desmoronaram-se, colidindo umas com as outras, como dominós numa reação em cadeia. Uma seção colossal de uma coluna fraturada bateu violentamente no chão logo atrás deles, lançando no ar uma tempestade de vidro pulverizado, que cintilava como diamantes negros à luz. Obstruía-lhes a garganta e ardia-lhes nos olhos. O próprio chão tremia a cada um dos impactos. Enormes massas de ar deslocavam-se vindas das colunas a cair, com ventos fortuitos a levá-las para um lado e para o outro.
O pandemônio e enormes estrondos continuavam, e antes que algum deles desse por isso, todos já corriam atrás de Elliott para dentro de um túnel. Will rodou a cabeça aos solavancos para olhar para trás, logo a tempo de ver uma coluna desmoronar contra a entrada, selando-a completamente. Estavam submersos numa mistura de fragmentos de vidro que se estendia por várias centenas de metros, e depois o ar ficou limpo, e Elliott fê-los parar abruptamente.
- Temos de continuar, temos de continuar - insistiu Chester.
- Não, temos alguns minutos. Eles não podem seguir-nos aqui - disse ela, retirando da cara alguns fragmentos de vidro.
- Bebam água e recuperem o fôlego. - Depois de tomar uma grande golada do cantil para lavar a boca, bebeu vários goles e em seguida passou-o aos outros. - Alguém se machucou? - perguntou, enquanto começava a examinar um de cada vez.
Chester não conseguia respirar pelo nariz, mas Elliott disse-lhe que achava que não estava quebrado. A boca também estava muito inchada e cortada no canto onde o Limitador a tinha agarrado, e a cabeça, dolorida da quantidade de murros que levara. Quando Elliott utilizou a lanterna para examiná-lo, ele viu que tinha os nós dos dedos vermelhos e feridos, e que as mangas e os braços estavam ensopados em sangue. Ela examinou-os cuidadosamente.
- Está tudo bem. O sangue não é seu - disse, depois de uma inspeção rápida.
- É do Limitador? - perguntou Chester, olhando para ela com os olhos muito abertos e a tremer ao recordar-se de como tinha atacado o soldado com o pedaço de obsidiana. - É horrível... como posso ter feito aquilo... feito aquilo a outra pessoa? - sussurrou.
- Porque ele teria feito pior a você - disse ela bruscamente, antes de passar a Cal.
O rapaz parecia não estar ferido, tendo só umas costelas muito doloridas. Ainda tentando lidar com o fato de ter matado o Limitador, foi lento ao responder quando Elliott falou com ele.
Agarrou-o pelos ombros, com uma voz benevolente.
- Cal, ouça-me. Uma vez o Drake me deu um conselho, depois de uma coisa horrível me ter acontecido.
O rapaz olhou vagamente para ela.
- Disse-nos que a nossa pele tem uma camada morta por cima.
Agora, tinha captado a sua atenção - ele franziu-lhe o cenho, com perplexidade.
- É a coisa mais sensata. Morre e as camadas de cima descamam-se, para nos protegerem de infecções. - Endireitando-se, levantou as mãos dos ombros dele e esfregou uma delas nas costas da outra para ilustrar o que dizia. - As bactérias, ou germes, como as designamos, instalam-se, mas não se conseguem fixar.
- E então? - disse Cal, ficando intrigado.
- Então, neste preciso momento, parte de você está morrendo, tal como a sua pele. Pode demorar um tempo, aconteceu comigo, mas morre para te salvar. E da próxima vez vai ser mais rijo e mais forte.
Cal acenou com a cabeça.
- Portanto, deixe isso pra lá, e continue.
Cal acenou de novo.
- Acho que compreendo - disse ele, com a cara perdendo a rigidez e os olhos a ganharem alguma da sua vitalidade. - Sim, compreendo.
Will ouvira e estava impressionado com a maneira como ela tinha sido capaz de confortar o rapaz. Quase de imediato, Cal pareceu voltar ao que era antes, quando começou a conversar com o seu querido gato.
A seguir, Elliott examinou Will. Considerando aquilo por que ele passara, estava relativamente ileso, à exceção de algumas equimoses e arranhões vermelhos e inflamados no pescoço, uma série de raspões na cara e uma cordilheira de inchaços na parte de trás da cabeça. Quando lhes tocou com todo o cuidado, pensou nos puxões que tinha sentido quando iam a correr e, apalpando as barrigas das pernas com os dedos, descobriu alguns pequenos rasgões no tecido das calças.
- O que é isto? - disse a Elliott. Sabia que antes os rasgões não estavam lá.
Elliott inspecionou-os.
- São buracos de balas. Deve considerar-se uma pessoa com sorte.
Os tiros haviam perfurado o tecido e ele podia enfiar um dedo nos buracos para mostrar onde tinham entrado. Por qualquer razão, talvez por alívio absoluto por não ter sido atingido, percebeu que não era capaz de parar de rir. Cal lançou-lhe um olhar curioso, enquanto Chester apenas estalou a língua de desdém. Elliott olhou para ele com uma reprovação calma.
- Controle-se, Will - repreendeu-o ela.
- Oh, eu estou bem - respondeu-lhe, desatando outra vez a rir às gargalhadas. - Contra todas as expectativas.
- Bem, vamos para o Poço - anunciou ela. - E depois para os Lameiros.
- Onde estaremos em casa, confortáveis e secos? - perguntou Will, com um risinho.
Capítulo Quarenta e Oito

você, Will? - gemeu Sarah quando sentiu alguém a agarrar-lhe o pulso. Depois lembrou-se de que ele, Cal e os outros já tinham ido embora havia muito tempo, tal como ela insistira que fizessem.
Abriu os olhos para a escuridão e para a agonia mais excruciante que alguma vez experimentara na vida.
Se uma pessoa puder imaginar todos os sofrimentos e males, todas as dores de cabeça e de dentes, e todo o desconforto que se sente durante a vida, tudo acumulado num único momento de agonia insuportável, então, era isso que ela sentia. Era mil vezes pior do que as dores de parto.
Gritava, lutando para se manter consciente. Os olhos permaneciam abertos, apesar de ela não conseguir ver quem estava ali. Não sabia havia quanto tempo estava desmaiada - era como se tivesse aberto caminho entre duas pesadas cortinas e algo de inelutável estivesse a puxá-la para trás, através delas, de modo que elas pudessem fechar-se outra vez. Era uma luta tremenda, porque a dor estava a obrigá-la a voltar para trás, para o outro lado das cortinas, onde havia um lugar tão tranquilo e quente e acolhedor. Era tudo o que podia fazer para resistir à tentação de ir para lá. Mas não ia permitir-se vergar, e, a cada respiração penosa, lutava contra isso.
O aperto no pulso intensificou-se e, quando ouviu o som áspero da língua dos Styx, o coração caiu-lhe aos pés. Apareceu uma luz em algum lugar na periferia da sua visão, e houve mais vozes de Styx quando ela viu formas sombrias a pairar à sua volta.
- Limitador - disse ela, reconhecendo a camuflagem no braço que estava agora a examinar-lhe o corpo.
Confirmando, uma voz rouca falou-lhe com brusquidão.
- Levante-se!
- Não posso - disse ela, forçando-se a ver com aquela luz fraca.
Estavam ali quatro Limitadores. Tinha sido encontrada por uma patrulha. Dois deles puseram-na de pé. Sentiu a dor atroz no quadril e deu um grito - reverberou através do túnel, mas era como se outra pessoa gritasse. Esteve novamente à beira de perder a consciência, as cortinas a afastarem-se um pouco para lhe permitirem a passagem.
Suspensa entre os Limitadores, foi obrigada a andar. A dor era insuportável. Sentia bacia a ranger, osso fraturado sobre osso fraturado, e quase voltou a desmaiar. O suor pingava-lhe da testa, para os olhos, fazendo-a pestanejar, fazendo-a fechar os olhos.
Estava morrendo e sabia-o.
Mas não ia morrer ainda.
Desde que estivesse respirando, ainda havia a possibilidade de poder ajudar Will e Cal.
ø ø ø
Drake deslizou pelo túnel tão depressa como os ventos que sopravam à volta dele. De vez em quando fazia uma pausa para procurar no caminho algum sinal de ter sido utilizado recentemente. A ventania constante garantia que a areia e o cascalho não ficassem intactos durante muito tempo, por isso sabia que era pouco provável que houvesse confusão com outros rastos antigos ao longo do caminho.
Sem parar, tocou na ponta do ombro, que havia sido atingido por uma bala. Era só uma ferida na carne - já tinha tido piores. Levou a mão à faca que tinha na cintura e depois à caixa de algodão-pólvora que estava na coxa. Sentia-se francamente vulnerável sem a espingarda e sem a mochila cheia de munições que perdera lá atrás, na entrada do Bunker. E tinha a audição ligeiramente afetada pela explosão do morteiro, um assobio contínuo presente nos ouvidos.
No entanto, tudo isso era um pequeno preço a pagar por ter saído com vida. Estivera por pouco - como nunca acontecera até então - e nada daquilo fazia sentido. Os Limitadores podiam tê-lo liquidado, e, contudo, por alguma razão, tinham-se abstido de fazê-lo. Era como se o quisessem vivo, mas esse não era, de modo algum, o seu estilo. Depois de o morteiro ter causado devastação entre a multidão de Styx que se aproximava, tinha aproveitado o caos e a poeira em redemoinho para se enfiar outra vez no Bunker.
A partir daí fora uma brincadeira de crianças. Era capaz de se orientar no complexo de olhos fechados, embora as explosões de Elliott tivessem acabado com vários dos caminhos mais rápidos que o atravessavam. E havia numerosas patrulhas de Limitadores, muitas com farejadores, que tinha de enfrentar. Durante um tempo, esteve escondido num abrigo que preparara precisamente para esta eventualidade. Tinha a sorte de os cães estarem limitados como consequência da obra de Elliott; as fumaças e o pó que ainda estavam no ar impediam-nos de farejar o seu rastro.
Utilizou um cano de esgoto para sair do Bunker, mas, mesmo de regresso à Grande Planície, percebeu que ainda não estava livre de perigo. Não teve outra alternativa senão deixar algumas pistas falsas para se livrar da guarda montada dos Styx e das matilhas de farejadores que os seguiam. Fugir dos cães do inferno - ele usara todos os truques possíveis para, finalmente, os evitar.
Agora, enquanto o som do vento se juntava ao assobio dos ouvidos, agachou-se para analisar o solo. Estava preocupado por ainda não ter encontrado nada. Elliott podia ter tomado um dos vários caminhos, mas este era o mais provável, dependendo, claro, dos movimentos dos Limitadores ao longo do percurso.
Levantou-se e continuou por mais trinta metros até encontrar aquilo que procurava.
- Aqui está - anunciou, avaliando as marcas na poeira. Eram pegadas frescas, e era-lhe muito fácil dizer a quem pertenciam.
- Chester e... e este deve ser o Will! Então conseguiu! - disse, com um abanar de cabeça e um sorriso firme, aliviado por ver que o rapaz fora evidentemente encontrado e tinha se juntado ao grupo. Estendeu a mão para a esquerda, descobrindo outra marca, e depois baixou-se deitando-se de barriga para baixo para tentar avaliar o perfil pormenorizadamente.
- Cal - a sua perna está a portar-se mal, não está? - murmurou para si próprio, vendo a irregularidade de uma das pegadas do rapaz.
Houve outra coisa que lhe chamou a atenção na poeira, junto às marcas de Cal.
- Farejador? - admitiu para si próprio, interrogando-se se haveria na zona alguma evidência de luta e talvez até vestígios de sangue. Rastejou para mais perto para inspecionar as marcas, seguindo a direção que levavam até à parede do lado oposto do túnel. Todos os rastros pareciam ter tido origem aqui, mas neste momento só estava interessado no conjunto dos que não eram humanos.
Depois viu uma marca nítida da pata do animal.
- Isto não é um cão, não, é um felino. Deve ser um Caçador.
Refletindo sobre o que isto podia querer dizer, levantou-se e inspecionou uma área maior, voltando para trás pelo mesmo caminho.
- Elliott, onde está? - dizia para si próprio, enquanto tentava localizar as pegadas dela. Sabia que isso era mais difícil por causa do modo como ela se deslocava.
Uma busca rápida não resultou e ele concluiu que não podia dar-se ao luxo de passar mais tempo a examinar a área. Cada segundo significava que Elliott e os rapazes estariam mais longe dele. Por isso, pôs-se de novo em marcha ao longo do túnel.
Várias centenas de metros mais à frente, agachou-se para inspecionar o solo, e gritou.
- Ai! Raios me partam!
Sentiu os Secantes queimarem-lhe a mão e viu o brilho tênue que começavam a emitir. De imediato limpou a mão nas calças para remover as bactérias. Tinha de agir depressa antes que elas lhe sugassem a umidade da pele e despertassem totalmente para a vida. Um segundo que fosse mais tarde, já não haveria maneira de parar a reação; seria tão grave e dolorosa como se a mão tivesse sido imersa em ácido. Vira muitos farejadores a ganir e a correr a toda a velocidade, com a agonia, os focinhos a brilhar tanto quanto um farol traseiro de uma bicicleta na Superfície, para saber como era.
Mas removera as bactérias a tempo e, consciente de que Elliott não as devia ter utilizado a não ser que achasse absolutamente necessário, começou a correr.
Foi nessa altura que ouviu uma enorme explosão vinda de algum lugar mais à frente.
- Parece mesmo o meu depósito de munições indo pelos ares - disse para si mesmo.
Seguiu-se um ribombar profundo, que podia ter-se confundido com um trovão retumbante, embora durasse consideravelmente mais tempo do que algum trovão da Superfície, e depois o vento dentro do túnel vacilou e mudou de direção.
Se ele tinha corrido depressa antes, agora voava através do túnel, aterrorizado por pensar que ia chegar tarde demais.
Capítulo Quarenta e Nove
-V
ê alguma coisa? - perguntou Chester a Elliott enquanto estudavam o horizonte através das miras das espingardas.
- Sim... movimentação à esquerda - confirmou ela. - Está vendo?
- Não - admitiu Chester. - Nada.
- Há dois Limitadores, talvez um terceiro - disse Elliott.
Já haviam avistado Styx por várias vezes ao longo do caminho e, de cada vez, foram forçados a mudar de direção. Esta tinha sido a prática desde que chegaram a um espaço colossal com estranhas formações rochosas espalhadas por toda a parte. Eram as grandes formações tipo "massa" que o Dr. Burrows encontrara. Mas ao contrário do Dr. Burrows, evitavam ir pelo caminho - Elliott tinha dito que era perigoso demais manterem-se nele.
- É melhor nos esgueirarmos - disse Elliott.
Embora os Limitadores estivessem a uma distância considerável, ela e Chester continuavam abaixados e usavam os menires como cobertura enquanto se moviam furtivamente para trás, para o lugar onde Cal e Will esperavam.
- O que se passa? - perguntou Will.
- Há mais uns - respondeu Chester rapidamente, mantendo os olhos desviados dele.
- Não parece lá muito promissor - disse Elliott abanando a cabeça. - Não podemos seguir o percurso que eu queria, por isso vamos cortar caminho pela encosta mais perto do Poço, e depois... depois continuar para...
Hesitou quando ao som distante de um uivo transportado pelo ar seco se seguiu o de um latido.
Bartleby deixou escapar um pequeno miado e as orelhas espetaram-se como antenas de radar quando girou todo o corpo na direção de onde vinham os sons.
- Têm farejadores aqui dentro - disse Elliott. - Vamos.
Continuaram a andar, com um sentimento de premência, mas Will e os outros descobriram que não estavam tão em pânico como poderiam estar. Havia duas razões para isto, sendo a primeira o fato de os soldados se encontrarem tão longe que não parecia constituírem qualquer espécie de ameaça imediata. Em segundo lugar, a luta com o Limitador tivera um efeito profundo em todos eles. As palavras de tranquilização que Elliott dirigira a Cal antes, nas Agulhas, ressoavam nos três rapazes; era como se tivessem sido parcialmente anestesiados do medo e do terror constantes com os quais tinham vivido. Elliott estava certa - a experiência, horrível como foi, endurecera-os.
E descobriram que os adversários não eram os guerreiros invencíveis que haviam imaginado. Podiam ser vencidos. Além disso, tinham Elliott do seu lado. Enquanto se arrastavam pela encosta abaixo, Will começou sonhadoramente a imaginá-la como uma nova espécie de super-herói. A incrível garota destruidora, sonhava ele, com dedos de dinamite e nitroglicerina em vez de sangue. Riu para si próprio. Ela estava sempre à altura das situações, com algo na manga para os ajudar a sair de uma dificuldade. Por Deus, que continue assim por muito tempo, pensou para si próprio.
Portanto, foi uma surpresa quando, depois de outra paragem para fazer o reconhecimento do horizonte, ela parecia cada vez mais agitada. Estava sempre tão calma e controlada que o seu comportamento começou a contagiar os rapazes, pondo-os nervosos. Via Limitadores em toda a parte.
- Isto não é bom. Temos de descer ainda mais - disse-lhes ela, dando bruscamente um quarto de volta e levantando a espingarda ao ombro para uma verificação final antes de se lançar no novo caminho.
Will não percebera o significado desta mudança de direção até que chegaram finalmente ao Poço.
Caía-lhes água em cima em chuviscos esporádicos e batidos a vento, quando Will viu precisamente o que o Dr. Burrows tinha visto.
Assobiou de espanto.
- É um buraco extraordinariamente grande! - exclamou ele dirigindo-se imediatamente à beirada e espreitando para baixo.
Com as vertigens a afetá-lo, Cal não escondeu o seu desconforto, mantendo uma margem larga entre si e a beirada do enorme declive.
Will examinava a curvatura do Poro através do óculo.
- Caramba, isto é realmente grande!
- Sim - disse Elliott. - Eu que o diga.
- Nem consigo ver para o lado de lá - murmurou, para ninguém em particular.
- Na parte mais larga tem cerca de uma milha - disse Elliott, bebendo um gole de água. - E quem sabe quão profundo é? Ninguém que tenha lá caído voltou para contar a história - exceto, há muito tempo, um homem que se içou aqui para fora, dizem.
- Ouvi falar dele. Abraão qualquer coisa - disse Will, lembrando-se de que Tam falara dele.
- Muitas pessoas pensaram que era um impostor - continuou Elliott. - Ou isso ou então que tinha os miolos queimados da febre. - Olhou para baixo, para o Poço. - Mas há uma porção de velhas lendas acerca de uma espécie de... - hesitou como se aquilo que ia dizer fosse ridículo... - de uma espécie de lugar lá em baixo.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Will, virando-se rapidamente para ela. Tinha de saber mais, independentemente do modo como Chester pudesse reagir. - Que lugar?
- Oh, lá estamos nós outra vez com as vinte perguntas dele - murmurou Chester, exatamente como era de prever. Will ignorou-o.
- Dizem que há outro mundo, mas Drake pensava que era um monte de disparates - disse ela, enroscando a tampa do cantil.
Quando deram a volta à borda do Poço, deixou de haver sinais de mais Limitadores. Depois de um período de marcha rápida, Will viu o contorno de uma espécie de estrutura regular através da lente. Daí a uns minutos, tornou-se evidente que não era um edifício, mas um arco monumental.
Quando o alcançaram, houve duas coisas que o impressionaram. O arco, embora despedaçado e degradado, tinha um símbolo na pedra angular que ele reconheceu. Talhado nela estavam as três linhas divergentes, o mesmo símbolo que se encontrava no pendente de jade que o Tio Tam lhe dera mesmo antes do seu confronto final com a Divisão Styx na Cidade Eterna.
A segunda coisa que ele notou foi aquilo que pareciam ser papéis espalhados pelo chão no extremo mais afastado do arco. Chester e Elliott já tinham apanhado algumas dessas folhas e examinavam-nas.
- O que é isto? - perguntou Will quando se juntou a eles.
Chester meteu-lhe algumas folhas na mão sem fazer comentários.
Bastou-lhe um único olhar.
- Papai! - exclamou Will. - O meu Pai!
Viu que algumas delas continham imagens de pedras, nas quais estavam esboços escrupulosamente desenhados de filas de símbolos complexos e estranhos. A inconfundível caligrafia do padrasto estava espalhada pelas margens. Noutras páginas havia notas escritas de forma compacta.
Will examinou o chão, afastando as folhas soltas com a bota. Descobriu um par, bastante usado, de meias soquetes de lã castanhas, enroladas, com buracos dos dedos, e também, o que era muito curioso, uma escova de dentes do Mickey Mouse, muito usada, como se deduzia pelo aspecto que tinha.
- Eu bem me perguntava para onde tinha ido parar! - sorriu Will, esfregando com o polegar os pêlos sujos e gastos. - Pateta do Pai... trouxe a minha escova de dentes com ele!
Mas qualquer alegria que tivesse sentido evaporou-se quando deu com a capa marmórea azul e roxa de um bloco de notas. Tornou-se então evidente de onde tinham saído as folhas todas. Apanhou-a e estudou o rótulo que estava colado à frente, uma etiqueta com uma coruja de óculos, ao lado, e Ex Libris impresso numa letra bonita, em espiral, em cima. Tinha coisas escritas.
Diário Três... Dr. Roger Burrows, leu Will em voz alta.
Correu imediatamente para o arco outra vez. Passando debaixo dele, não parou quando se dirigiu à plataforma, descobrindo logo um lance de degraus de pedra gastos pelo tempo, que saía dali. Desceu-os e, quando chegou ao último, baixou-se para espreitar para baixo. Não via nada. Ao erguer os olhos, piscando-os quando a chuva lhe caiu na cara, houve algo que lhe chamou a atenção.
Mesmo à sua frente estava o martelo geológico de cabo azul do padrasto, com a ponta enfiada na rocha. Inclinou-se para recuperá-lo. Soltou-se depois de alguns puxões, e ele olhou-o durante uns segundos antes de renovar os seus esforços para tentar ver mais abaixo as paredes do Poço. Através da lente do óculo viu que não havia lá nada.
Imerso em pensamentos, e desta vez sem uma pressa louca, foi para perto dos outros.
- O que aconteceu aqui? - disse ele, com a voz quebrada de apreensão.
Elliott e Chester ficaram calados - nenhum deles foi capaz de lhe dar uma resposta.
- O meu Pai...? - disse Will a Chester.
Chester olhou para o espaço entre eles, com o rosto inexpressivo e os lábios firmemente apertados como se estivesse inclinado a não dizer nada.
- Espero que esteja bem - disse Elliott. - Se continuarmos a andar talvez...
- Sim, talvez o alcancemos. - Will completou-lhe a frase, agarrando-se à sugestão para dar a si próprio algum conforto. - Espero que ele tenha deixado estas coisas aqui acidentalmente... que as tenha deixado cair... às vezes é um pouco esquecido... - Tinha a cabeça rodando com diferentes explicações para a ausência do padrasto quando olhou para trás, para o arco. - Mas... não... descuidado - acrescentou devagar. - Quer dizer... não parece que a mochila dele esteja aqui, ou...
Nesse momento, ouviu-se um grito aterrorizado de Cal. Estivera encostado a um rochedo considerável, um pouco atrás da beirada do Poço, e deu um salto como se tivesse sido picado por uma abelha.
- Isto se mexeu! Juro que a maldita rocha se mexeu! - gritou.
A rocha tinha se mexido e ainda se mexia. Como um milagre, erguera-se em pernas articuladas e virava-se. Quando continuou a rodar e parou, todos eles viram as enormes antenas vacilantes. As peças da boca daquela espécie de máquina deram um único estalido.
- Ohmeudeus - guinchou Chester.
- Oh, cale-se! - repreendeu-o Elliott. - É apenas uma vaca-das-cavernas.
Os rapazes viram o inseto, o "ácaro-do-pó" gigantesco e anterior companheiro de viagem do Dr. Burrows, dar outro estalido e depois girar para a frente, com todo o cuidado. Bartleby andava correndo em volta da sua circunferência, aventurando-se a chegar-se à frente para o cheirar, e depois recuando de novo, como se não soubesse ao certo o que fazer.
- Mate-o! - Chester exortou Elliott a fazê-lo enquanto se protegia trás dela, petrificado. - Mate-o! É horrível!
- É apenas um bebê - disse Elliott, muito despreocupada, dirigindo-se a ele e dando-lhe uma palmadinha seca no exoesqueleto. - São inofensivos. Alimentam-se de algas, não de carne. Vocês não precisam de ter...
Calou-se quando viu qualquer coisa espetada na boca da vaca-das-cavernas. Fazendo novamente caricias ao inseto, como se faz a uma vitela premiada, inclinou-se para a frente para a tirar.
Era a mochila do Dr. Burrows, toda rasgada e virada do avesso.
Will aproximou-se lentamente de Elliott e tirou-a.
Os seus olhos diziam tudo.
- Então esta coisa... esta vaca-das-cavernas... disse que é inofensivo, mas pode ter feito mal ao meu pai?
- Nem pensar. Nem mesmo os adultos te fariam mal, a não ser que algum se sentasse em cima de você acidentalmente. Já te disse, eles não comem carne. - Pôs a mão sobre a de Will enquanto ele continuava agarrando a mochila, e puxou o saco para o rosto para poder cheirar a lona estragada. - Era o que eu pensava... tinha comida aqui dentro. Era disso que a vaca andava à procura.
Will não estava tranquilo e olhava repetidamente da vaca-das-cavernas, imóvel, para o arco, com a testa franzida de preocupação.
As coisas não pareciam estar nada bem e todo mundo sabia.
- Desculpe, Will, mas não podemos continuar aqui - disse Elliott. - Quanto mais depressa nós sairmos daqui, melhor.
- Sim, tem razão - concordou ele.
Quando Elliott, Chester e Cal se puseram em marcha, Will correu por ali apanhando todas as folhas que podia e metendo-as no casaco. Depois, receando ser deixado para trás, correu para alcançar os outros, com a escova de dentes do Mickey bem segura na mão.
ø ø ø
- Estas... botas... foram...
Versos da canção corriam pela cabeça confusa de Sarah. Ia meio a grunhir, meio a gritar estranhos pedaços da canção enquanto os Limitadores, um de cada lado, a obrigavam a continuar a andar, cada passo a causar-lhe a dor mais terrível na cintura, como se um arame farpado estivesse a ser lentamente torcido bem fundo na carne.
Pouco a pouco, Sarah ia morrendo, e os Limitadores sabiam-no. Nada de cuidados médicos. Estavam se lixando para ela. Provavelmente ganhariam uns tapinhas nas costas de Rebecca mesmo se lhe entregassem um cadáver.
Sarah também sabia que tinha de se manter consciente, e lutava contra a escuridão que ameaçava dominá-la.
- ...feitas para andar... um destes dias...
Um dos Limitadores berrou-lhe qualquer coisa gutural, mas ela desafiou-o, continuando com a canção.
- ...estas botas vão andar por cima de você...
O sangue de Sarah deixava um rastro intermitente atrás dela. Absolutamente por acaso, uma ou duas vezes, o sangue salpicou porções de Secantes que Elliott tinha espalhado pelo caminho, uma vez que ela e os rapazes haviam tomado exatamente o mesmo rumo. Despertas para a vida pelo sangue de Sarah, as bactérias flamejavam com tal intensidade que era como se a luz estivesse a brilhar diretamente do próprio chão, como clarões do círculo externo do Inferno.
Mas Sarah estava alheia a isto. A sua mente fixara-se completa e absolutamente num objetivo único, esmagador. Tanto quanto pensava, os Limitadores levavam-na na mesma direção que Cal e Will tinham seguido. Isso era bom e mau. Significava provavelmente que havia mais Styx no seu encalço, por isso os filhos corriam perigo. Mas também significava que ainda poderia ajudá-los, mesmo que isso fosse a última coisa que fizesse. E sabia, com toda a probabilidade, que bem podia ser.
O que ela não sabia era que, para ela, os acontecimentos estavam quase a sofrer uma inesperada virada.
Capítulo Cinquenta
D
rake fora obrigado a abrandar quando percebeu que se encontrava atrás da patrulha dos Limitadores. Praguejou para si próprio, em silêncio, porque eles estavam no seu caminho e não podia fazer nada para lhes passar à frente, a não ser fazer um desvio muito sinuoso por outra trilha.
Tentando a sorte, rastejou ainda para mais perto deles, a fim de poder avaliar com exatidão aquilo com que lidava. Conseguia perceber que arrastavam alguém consigo, mas não ia tirar conclusões sobre se era Elliott ou um dos rapazes. Talvez fosse algum infeliz renegado que os soldados tivessem apanhado, pensava para si próprio enquanto esperava, impaciente, sem fazer nada. Tocou na caixa de algodão-pólvora, que tinha na coxa - bastaria abri-la para o utilizar contra quatro soldados, para começar, mas também não queria arriscar-se a atingir o prisioneiro deles.
Portanto, foi obrigado a ficar ali à espera do momento certo, até que, finalmente, a patrulha arrastou o prisioneiro para a saliência no início das Agulhas. Dali, tomaram o cume mais longo e desceram o atalho. Mal ficaram fora do seu campo de visão, Drake desceu rapidamente a escada dos Coprolites. Quando chegou ao fundo, escondeu-se imediatamente. O ar brilhava com milhões de partículas minúsculas, a moverem-se lentamente, que lhe obstruíam os olhos e lhe tapavam a garganta. Enquanto ziguezagueava entre os tocos de vidro e as seções quebradas das colunas deixadas na sequência da explosão devastadora, foi forçado a parar e a esconder-se repetidas vezes. Descobriu alguns Limitadores mortos naquela zona, que estava também apinhada de bastantes vivos, os quais pareciam efetuar uma busca na área.
Finalmente chegou ao corredor que sabia que Elliott tomaria, mas a entrada estava completamente bloqueada por uma coluna de vidro. Nada a fazer, a não ser contornar ainda mais o perímetro e tomar o próximo caminho disponível.
Ao fazer isto, viu outra vez a patrulha com o prisioneiro quando desciam a última seção do cume. Dois dos quatro Limitadores deixaram o local no mesmo instante, provavelmente para irem ter com os camaradas que se encontravam mais no fundo da caverna. Os dois que ficaram permitiram ao preso escorregar até ao chão. Ouviu um grito de mulher quando a figura caiu. Drake não fazia ideia de quem era, e, por muito que precisasse de alcançar Elliott, não podia deixá-la à mercê deles.
Pegou num pedaço de obsidiana e lançou-o para uns vinte metros à esquerda do local onde os Limitadores estavam. Os dois soldados reagiram de imediato ao som, levantando as espingardas e avançando na direção do lugar onde caíra. Drake escolheu este momento para atirar outro grande pedaço, a fim de atraí-los ainda para mais longe, e correu para o local onde a mulher se encontrava. Pondo-lhe uma mão sobre a boca com medo de que ela gritasse, levantou-a nos braços e caminhou para a saída do túnel. Depois de já ter andado o suficiente lá dentro, pô-la no chão.
Estava intrigado com o fato de ela usar o uniforme de um Limitador, mas, ainda mais estranho do que isto era o fato de o rosto da mulher lhe ser de algum modo familiar. Ela tentou dizer qualquer coisa, mas ele pediu-lhe que ficasse calada enquanto lhe avaliava os ferimentos, reparando com certa surpresa que as ligaduras eram idênticas às que ele e Elliott traziam consigo.
- Estas ligaduras... quem fez isto? - perguntou à mulher.
- Você é um renegado, não é? - disse-lhe ela.
- Só me diga, foi a Elliott que fez isto? - insistiu, num grunhido, sem tempo para cordialidade.
- Uma garota pequena com uma espingarda grande? - disse Sarah como resposta.
Drake confirmou com um aceno de cabeça, continuando a tentar descobrir de onde conhecia aquela cara.
- Deduzo que é uma amiga sua? - perguntou Sarah.
Viu Drake erguer as sobrancelhas. Era estranho; por um instante, podia ser Tam, à frente dela, talvez numa versão mais magra, mas a expressão de perplexidade era idêntica. Sentiu imediatamente que podia confiar nesta pessoa completamente estranha, neste homem grisalho, de olhos azuis, duros, e com um aparelho esquisito em volta da cabeça.
- Bem, ela tem uma pontaria terrível - disse Sarah com um risinho feroz.
Drake ficou estupefato com a mulher, que mostrava a mais incrível coragem apesar da extensão das suas feridas. Mas não tinha tempo para isto, estava a perder segundos preciosos.
- Tenho de ir - disse apologeticamente, levantando-se. - A minha amiga Elliott, ela precisa da minha ajuda.
- E eu preciso de ajudar os meus filhos, Will e Cal - disse Sarah.
- Ah, agora já sei quem é - compreendeu Drake, com um sobressalto. - A lendária Sarah Jerome. Eu pensei que reconhecia a sua...
- E se quiser saber o que os Styx estão a tramar - interrompeu Sarah -, podemos ir falando pelo caminho.
ø ø ø
Elliott levou os rapazes até outro arco, embora este não tivesse suportado a devastação causada pelo tempo tão bem como o primeiro que tinham encontrado. Apenas um dos pilares estava ainda de pé, encontrando-se os restantes em pedaços espalhados na plataforma ladrilhada sobre a qual o arco fora construído.
Will e os outros tinham acabado de descer dos ladrilhos gigantescos quando o ladrar dos farejadores chegou de novo até eles. Desta vez, pareciam assustadoramente perto. Elliott tinha ido a correr a toda a velocidade, mas parou, e virou-se para olhar de frente para os rapazes.
- Como pude ser tão incrivelmente estúpida? - explodiu, num sussurro feroz.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Chester.
- Não vê? - disse ela, com a voz a falhar de desespero.
Juntando-se em volta dela, Will, Chester e Cal trocaram olhares inexpressivos.
- Têm vindo a nos perseguir ao longo de quilômetros e quilômetros... e eu não percebi. - Elliott agarrou na espingarda com tal agressividade que um dos nós dos dedos lhe estalou. - Que imbecil!
- Não percebeu o quê? - disse Chester. - Do que está falando?
- O padrão que seguiram... encontramos Limitadores a cada esquina, fomos exatamente aonde eles queriam que fôssemos, como galinhas estúpidas a serem recolhidas. Fizeram-nos saltar de um lado para o outro vezes sem conta.
Will pensou que ela quase se desfazia em lágrimas, tão furiosa estava consigo própria.
- Fui logo nos meter na boca do lobo... - deixou escorregar para o chão a coronha da espingarda, que ficou sobre a poeira, depois encostou-se no cano, com a cabeça baixa. Estava visivelmente abatida, como se toda a sua determinação a tivesse abandonado de repente. - Depois de tudo o que o Drake me ensinou. Ele não iria...
- Oh, deixe isso para lá, está tudo bem - interrompeu-a Cal, tentando ficar calmo, mas parecendo longe disso. Não queria ouvir o que ela dizia. Estava completamente exausto, ao ponto do colapso. Só queria chegar ao lugar para onde se dirigiam, qualquer que ele fosse, e ter um bem merecido descanso.
- Não podemos ir por ali? - suplicou-lhe, apontando para o perímetro do Poço.
- Nem pensar - respondeu Elliott, abatida.
- Porque não? - insistiu ele.
Não respondeu por um momento, com os olhos postos em Bartleby. Este tinha a cabeça erguida e as orelhas arrebitadas, alerta; quando o observaram, levantou a cabeça ainda mais e farejou. Elliott fez um aceno resignado quando, finalmente, respondeu a Cal.
- Ali, em algum lugar, está um grupo de Limitadores, todos com as espingardas apontadas e preparadas. - Perante a recusa contínua dos rapazes em aceitar o que ela dizia, pareceu controlar-se, com os olhos brilhantes de ira a observá-los, um a um. - E ali - virou o polegar para a área que ficava à esquerda deles - estão tantos Pescoços Brancos que davam para encher uma igreja fedorenta. Porque não pergunta ao seu Caçador? Ele sabe.
Cal olhou para o gato e depois fitou Elliott, duvidando, enquanto Will e Chester deram alguns passos nas direções que ela tinha indicado para escrutinar a paisagem árida.
Puxando a lente para baixo, Will conseguiu ver uma extensão considerável pela encosta acima onde os menires estavam dispostos ao acaso.
- Mas ali não há absolutamente ninguém - disse ele.
- Deste lado, também não - disse Chester. - Está ficando nervosa, é o que é. Está tudo bem, sério, Elliott - alegou, enquanto ele e Will voltavam para trás para ir ter com ela. Tal como Cal, Chester ansiava por que ela dissesse que estava tudo como devia ser.
- Se bem, é ser feito em pedaços, então tenho de concordar com você - disse, laconicamente, balançando a espingarda com um único movimento hábil e pondo-a no ombro.
- Olhe, aqui não há Styx nenhuns - insistiu Will, com a voz num gemido, pela falta de plausibilidade de tudo aquilo. - Isso é um disparate.
Nada podia tê-lo preparado para o que aconteceria a seguir.
Capítulo Cinquenta e Um
D
rake bombardeara Sarah com perguntas e mais perguntas enquanto caminhavam, espremendo-lhe o cérebro quanto ao que sabia. Ela sentia que era cada vez mais difícil concentrar-se e frequentemente respondia de forma desconexa, por vezes dando a sequência de acontecimentos numa ordem errada, como quando lhe falou sobre Rebecca e o plano do Domínio.
Finalmente ficaram em silêncio, Drake, porque tentava conservar a energia para transportar Sarah, e Sarah, porque os sinais de desfalecimento surgiam com maior frequência. Qual um balde furado, sentia o sangue da vida a escorrer dela, e sabia que esses sinais significariam apenas uma coisa, se continuasse a perder sangue com a mesma intensidade.
Não iludia a si própria; sabia que tinha muito poucas probabilidades de realizar o seu último desejo de moribunda: chegar até aos filhos.
- Estas botas vão... - arquejava ela, enquanto Drake a levava. A dor no quadril estilhaçado era tão grande e tão esmagadora que por vezes se via como uma rolha a balançar à superfície de um brilhante oceano em brasa, que, a qualquer momento, podia dobrar-se sobre ela e sugá-la para as profundezas. Fartou-se de lutar para ficar boiando, mas havia a dificuldade acrescida de a mente estar muito confusa - a cabeça latejava-lhe com uma dor lancinante devido à ferida provocada pelo tiro na têmpora, como se o cérebro tivesse sido rachado em dois.
- Você mente quando...
E finalmente, o tórax de Drake erguer-se com o esforço, chegaram ao declive que levava ao Poço. Como se pressentisse o que ia acontecer, começou a correr, apesar do efeito que sabia que isso ia ter na sua acompanhante.
ø ø ø
Um grito rolou pelo ar até eles.
- Oh, Will!
Ele ficou rígido.
- Sei que está aí, meu raio de sol - chamou o grito, alegremente.
Will reconheceu quem era sem um momento de hesitação. Trocou olhares com Elliott.
- Rebecca - suspirou.
Por um instante, nenhum deles se mexeu nem falou.
- Acho que estamos com problemas - disse Will, desesperado.
Elliott assentiu.
- Tem toda a razão - concordou, a voz desprovida de qualquer entoação.
Will sentiu-se exatamente como um coelho apanhado nos faróis brilhantes de um enorme caminhão TIR* que vinha a precipitar-se sobre ele com enorme barulho.
Era como se, lá muito no fundo, estivesse consciente de que este momento havia de chegar, que tinha sido inevitável desde o início, e que, apesar disso, levara todos eles para aquela situação. O seu olhar confuso pousou em Chester, mas o outro rapaz fulminou-o com olhos com tal recriminação amarga e desprezo que Will teve de o desviar.
- Bem, não fiquem aí parados! Escondam-se! - grunhiu Elliott.
Felizmente havia um par de menires baixos e grossos a apenas uns metros de distância. Espalharam-se, Elliott e Chester atirando-se para trás de um deles, enquanto Will e Cal ficaram com o outro.
- Oh, Willlllll! - voltou a voz, cheia de doçura de menina. - Apareça, apareça, onde quer que esteja!
- Não faças nada - disse-lhe Elliott com movimentos dos lábios, abanando rapidamente a cabeça.
- Olhe, irmão mais velho, não me chateie - gritou Rebecca. - Vamos ter uma conversazinha, por amor aos velhos tempos.
Como Elliott aconselhara, Will não respondeu. Espreitou com um olho em volta do rochedo, mas só havia escuridão. Rebecca continuou, nada divertida.
- Bem, se quer jogar jogos idiotas comigo, vamos lá definir as regras.
Houve uma calmaria - Rebecca estava evidentemente à espera de que Will lhe respondesse. Na falta de resposta, continuou.
- Pois... as regras. Um... como parece um pouco envergonhado, eu vou onde você está. Dois... se alguém meter na cabeça me dar um tiro, estou pronta para a luta, e é assim que sucede. Primeiro, largo os farejadores; os meus queridos não comem há dias, por isso, confie em mim, na realidade não vai querer que isso aconteça. Ou, na eventualidade pouco provável de os cães não acabarem com você, o meu pelotão de atiradores especializados acabara. Por fim, tenho a Divisão lá em cima com artilharia pesada... as armas deles esmagarão qualquer coisa que lhes surja no caminho, incluindo você. Portanto, dê uma de espertinho e sofrerá as consequências. Entendido?
Houve outra pausa, depois ouviu-se a voz dela, mais estridente e imperativa desta vez.
- Will, quero a sua palavra de que tenho o caminho livre.
Will desistiu de tentar ver pela encosta acima e baixou-se repentinamente atrás do enorme menir. Sentiu que, mesmo ali, Rebecca seria capaz de ver através da rocha, como se houvesse apenas um vidro a separá-los.
Suores frios escorriam-lhe pelo meio das costas e sentia que as mãos tremiam. Fechou os olhos e, batendo com a cabeça contra a rocha que estava atrás de si, gemeu: - Não, não, não, não.
Como podiam as coisas ter corrido tão mal? Tinham estado a progredir bem em direção aos Pântanos, com largos espaços abertos à sua frente e ansiosos por encontrarem um caminho que os levasse até lá. Agora estavam nesta terrível situação angustiante, cercados, e com o raio de um buraco enorme atrás deles. Como tinham podido chegar a isto?
E quanto a Rebecca, estavam sendo provocados por uma pessoa completamente impiedosa e brutal, uma pessoa que o conhecia como a palma da mão.
Não tinha absolutamente nenhuma idéia do que podiam fazer para saírem daquela situação. Lançou um olhar para Elliott, mas ela estava protestando com Chester. Will não conseguia ouvir nada do que eles diziam. Enquanto olhava, eles pareceram chegar a um acordo, e a sua conversa frenética acabou. Elliott tirou a mochila rapidamente e começou a procurar algo lá dentro.
- Eh, cara de toupeira - gritou Rebecca. - Estou à espera da sua reposta.
- Elliott! - sibilou Will, aflito. - O que faço?
- Ganhe tempo. Fale com ela - disse Elliott, sem olhar para cima, enquanto começava a tirar uma corda da mochila.
Encorajado pelo fato de lhe parecer que Elliott definira um plano de ação, Will respirou fundo várias vezes e espetou a cabeça ao redor da borda do menir.
- Sim! Ok! - gritou a Rebecca.
- Muito bem! - respondeu Rebecca alegremente. - Eu sabia que era capaz.
Nos momentos que se seguiram não voltaram a ouvir Rebecca. Elliott e Chester ataram a corda à volta deles, depois Chester atirou a outra ponta a Will, enquanto Elliott se baixava atrás da espingarda.
Will apanhou-a e encolheu os ombros para Chester, que apenas os encolheu em resposta. Will só podia pensar que, em último recurso, Elliott tinha decidido tentar descer pela parte de dentro do Poço. Não via que pudesse haver outra saída. Virou-se para Cal. O irmão choramingava baixinho, com a cara aninhada no pescoço de Bartleby, enquanto apertava o animal agitado contra o peito. Cal estava desfeito, e Will não podia censurá-lo por isso. Will apertou a corda à sua volta, depois amarrou-a em torno da cintura de Cal e deu-lhe um nó. O irmão permitiu-lhe fazer tudo isso, passivamente, sem perguntar porquê.
Will olhou para trás, para o Poço. Era a sua única saída. Mas, a não ser que Elliott soubesse alguma coisa que ele não sabia, não era uma solução lá muito boa. No que ela estava pensando?
Will tinha visto com os seus próprios olhos que havia apenas uma superfície rochosa íngreme, sem nada a que uma pessoa pudesse agarrar-se. Era bastante assustador para todos eles.
Will ouviu Rebecca a assobiar na escuridão enquanto se aproximava.
- É o meu raio de sol - murmurou ele, reconhecendo imediatamente a melodia. - Odeio essa canção.
Quando ela voltou a falar, estava muito mais perto, talvez a trinta metros.
- Pronto, só virei até aqui.
Enormes holofotes irromperam mais acima, na encosta.
- Merda! Não tenho visibilidade! - exclamou Elliott, afastando a cabeça da espingarda quando a luz intensa atingiu a mira. Fechou o olho várias vezes, como estivesse se recuperando do clarão ofuscante. - Isto é formidável! - fumegou ela. - Agora não consigo localizar nada!
Os feixes de luz ofuscante varriam, para a frente e para trás, a área onde Will e os outros estavam escondidos, enviando sombras negras que golpeavam o chão atrás deles.
Will esticou a cabeça um pouco mais em torno da borda do rochedo. Tivera de desligar o óculo para proteger o componente, e a mera intensidade das luzes não deixava ver com clareza, mas conseguiu distinguir alguém - parecia, seguramente, Rebecca. Estava de pé, em campo aberto, entre dois menires. Ele recuou e olhou para Elliott, que estava ainda deitada de bruços, com uma série de explosivos e cilindros de algodão-pólvora no chão, à mão, dando a impressão de que estava quase a disparar sobre a figura, mesmo sem utilizar a mira.
- Não faça isso, não a mate - suplicou-lhe Will num sussurro. - Olhe os farejadores!
Elliott não respondeu, continuando com a cabeça atrás da espingarda.
- Will! Tenho uma pequena surpresa para você! - gritou Rebecca. Antes de ter acabado de falar, ouviu-se outra vez a voz dela, como um truque de ventríloquo. - E que surpresa!
Will franziu o cenho e não conseguiu evitar de dar outra olhada.
- Venha conhecer a minha irmã gêmea - anunciou a voz de Rebecca. Ou melhor, anunciaram duas vozes em uníssono.
- Cuidado! - avisou Elliott, quando Will se pôs em pé e esticou ainda mais a,cabeça em torno do lado do menir.
Quando olhava, a figura solitária pareceu dividir-se em duas, revelando que uma segunda pessoa tinha estado imediatamente atrás da primeira. As duas figuras viraram-se uma para a outra, e Will viu perfis idênticos; as caras eram reflexos uma da outra.
- Não! - engasgou-se, cheio de incredulidade, recuando um pouco, depois inclinando-se de novo.
- Que me diz desta bomba, mano? - gritou a Rebecca da esquerda.
- Fomos sempre duas, todo o tempo, completamente intermutáveis - cacarejou a Rebecca da direita, como uma jovem bruxa.
Os olhos não estavam a enganá-lo.
Havia duas... duas Rebeccas, lado a lado.
Como podia ser?
Depois do choque inicial, tentou argumentar consigo mesmo que tinha de ser um truque - uma ilusão de qualquer espécie, ou talvez uma segunda pessoa com uma máscara. Mas, continuando a olhar, viu que não podia haver erro. Quando as gêmeas se moveram e ele ouviu as suas vozes, parecia que eram absolutamente idênticas.
Continuavam a falar tão depressa, que ele não podia dizer qual delas dizia o quê.
- O seu pior pesadelo - duas pustulazinhas chatas. Hã?
- Como acha que conseguíamos fazer quando uma de nós tinha de estar na Superfície o tempo todo?
- Revezávamo-nos para tomarmos conta de você.
- Uma de serviço, outra de folga, de plantão todos esses anos.
- Nós duas o conhecemos tão bem...
- Ambas cozinhamos a sua comida nojenta...
- ...tratamos da sua roupa suja...
- ...lavamos as suas cuecas asquerosas e malcheirosas...
- Cão nojento! - zombou uma, cheia de repugnância.
- ...e te ouvimos choramingar enquanto dormia, chamando pela Mamãe...
- ...mas a Mamãe não ligava...
Apesar da situação medonha em que se encontrava, Will contorcia-se com um enorme embaraço. Já teria sido suficientemente ruim se fosse apenas uma única Rebecca a dizer tudo isto, mas duas, a saber todas as coisas íntimas que se podia saber sobre ele e, ainda por cima, a discuti-las entre elas - era mais do que ele conseguia ouvir.
- Cale-se, sua desgraçada malvada! - gritou.
- Ohhh, que sensível! - balbuciou uma das gêmeas, com ar de escárnio.
De repente, Will foi transportado para a sua casa de Highfield, lembrando-se de como tinha sido a vida durante todos aqueles anos até o padrasto ter desaparecido. Ele e a irmã constantemente a discutirem um com o outro por causa das coisas mais triviais. Esta parecia exatamente mais uma das suas discussões pavorosas, em que ela o rebaixava com as suas intermináveis piadinhas provocantes e certeiras. O resultado era sempre o mesmo - ele acabava por perder as estribeiras, e ela recuava, deleitada, com uma expressão presunçosa no rosto.
- E acho que quer dizer desgraçadas malvadas - sugeriu a Rebecca da esquerda -, com dois "s" - sibilante, enquanto a outra continuava a discutir com ele.
- Mas a Mamãe não tinha tempo para o seu pequeno Will... ele não estava na programação da televisão...
- ...não fazia parte dos programas regulares.
Duas gargalhadas descontroladas.
- Que rapaz tão, tão triste - grasnou uma das gêmeas.
- O Zé Sem-Amigos a cavar os seus estúpidos buracos, completamente sozinho.
- A cavar por amor ao Papai - sorriu a outra, gozando, e ambas cacarejavam ruidosamente.
Will fechou os olhos. Era como se elas estivessem a espetar-lhe a cabeça por dentro, arrancando e revelando cruelmente os seus mais íntimos temores e segredos. Nada era inviolável - as gêmeas exibiam tudo para todo mundo ver.
Então, a gêmea da esquerda falou, com a voz tremendamente séria.
- O que nós queríamos lhe dizer, a você e a esse inútil e imbecil do Chester, é que muito em breve não vai haver casa nenhuma para onde voltar.
- Nem mais habitantes da Superfície - cantarolou a segunda gêmea, jovialmente.
- Bem, não tantos - corrigiu-a a primeira, com uma voz monótona.
- O que estão elas dizendo? - perguntou Chester. Suava as bicas, a cara cadavericamente branca sob as manchas de sujeira.
Will já tinha ouvido o suficiente.
- Asneiras! São tudo mentiras! - gritou, o corpo todo a tremer de terror e de raiva.
- Você viu com os seus olhos, temos sido abelhas diligentes na Cidade Eterna - disse uma gêmea. - Temos tido a Divisão a prospectar lá durante anos.
- E eles isolaram finalmente o inseto que procurávamos. Os nossos cientistas trabalharam nele e aqui estão os frutos do seu trabalho.
Will viu a gêmea da esquerda tirar qualquer coisa que tinha pendurada ao pescoço e segurá-la na mão. Brilhou quando o feixe de um holofote incidiu nela. Parecia ser um pequeno frasco de vidro, mas Will não podia ter certeza, àquela distância.
- Um exemplarzinho de primeira qualidade, este... genocídio engarrafado... o grande pai de todas as pandemias desde há muitos séculos. Chamamos-lhe Domínio.
- Domínio - repetiu a outra.
- Vamos deixá-lo devastar a Superfície e...
- ...a Colônia reclamará então a sua casa legítima.
A gêmea que tinha o frasco ofereceu-o à irmã como se estivesse fazendo um brinde.
- A uma nova Londres.
- A um novo mundo - acrescentou a outra.
- Sim, mundo.
- Não acredito em vocês, suas merdas! É tudo um disparate! - silvou Will. - Estão mentindo!
- Porque havíamos de nos dar a esse trabalho? - reagiu a gêmea da direita, mostrando um segundo frasco. - Vejam isto... temos a vacina, meu amigo. Vocês, habitantes da Superfície, não vão ser capazes de produzi-la a tempo. O país todo ficará doente e pronto a ser dominado.
- E não se iluda pensando que nós estamos aqui em baixo só por sua causa.
- Temos estado a fazer umas limpezas de primavera nas Profundezas, libertando-as dos velhos e porcos renegados e traidores da causa.
- E também temos estado a fazer uns testes finais ao Domínio, mas isso, alguns dos teus novos amigos viram com os seus próprios olhos.
- Pergunte a essa vagabundazinha da Elliott.
À menção do seu nome, Elliott levantou bruscamente a cabeça de trás da espingarda.
- O Bunker - disse ela a Will através de movimentos dos lábios, lembrando-se das celas seladas que tinha encontrado com Cal.
A mente de Will corria. Sabia, lá no fundo, que Rebecca - as Rebeccas, tinha de continuar a recordar a si próprio - era capaz da crueldade mais abjeta. Podia ser verdade? Tinham mesmo uma epidemia? Os seus pensamentos tiveram um fim abrupto quando elas começaram de novo.
- Bem, vamos aos negócios, mano - disse a Rebecca da esquerda. - Vamos te fazer uma oferta única.
- Mas primeiro vamos voltar atrás - acrescentou a outra.
Will viu as sósias girarem delicadamente sobre os calcanhares e começarem a saltitar encosta acima.
- Era capaz de abater uma... - sussurrou Elliott. Estava outra vez atrás da espingarda.
- Não, espere! - suplicou-lhe Will.
- ...mas não as duas - continuou Elliott.
- Não. Só vai piorar as coisas. Ouça o que elas têm para dizer - suplicou Will, o sangue a gelar-lhe nas veias ao imaginar a matilha de farejadores a lançar-se sobre eles quatro, arrancando a cada um membro após membro, como raposas apanhadas na caça. Quando viu as duas figuras desaparecerem da vista por entre os menires, recusou-se a abandonar a esperança. Não podia aceitar que este era o fim de todos eles.
Mas o que as gêmeas estavam tramando? O que seria a tal oferta?
Sabia que não ia ter de esperar muito para descobrir e, de fato, as gêmeas começaram a gritar-lhe lá de cima numa sucessão rápida.
- As pessoas têm o hábito de morrer perto de você, não é?
- O Tio Tam, que tanto gostava de se divertir, feito em pedaços pelos nossos homens.
- E aquele gordo e louco do Imago. Um peixinho me disse que ele ficou cheio de lama...
- ...e agora está morto e bem morto - acrescentou a outra gêmea.
- A propósito, já encontrou a sua verdadeira mãe? A Sarah está aqui em baixo e anda à sua procura.
- Por qualquer motivo meteu na cabeça que você é que teve culpa na morte do Tam, e...
- Não! Ela sabe que isso não é verdade! - gritou Will, com a voz a falhar.
Por um instante, as gêmeas calaram-se, como se tivessem sido apanhadas desprevenidas.
- Bem, ela não vai nos escapar uma segunda vez - prometeu uma gêmea, já não parecendo tão confiante.
- Ah, é sim. E enquanto brincamos de reuniões de família, lhe fale da Avó Macaulay - sugeriu a outra, com certa dureza na voz.
Esta gêmea não estava, obviamente, nada perturbada com a interrupção de Will.
- Ah, sim. Me esqueci dela. Morreu - respondeu a outra brutalmente. - E não de causas naturais.
- Deixamos ela estendida nos campos de cogumelos. - Riam ambas horrivelmente quando Will ouviu Cal murmurar, com a cara ainda encostada a Bartleby.
- Não - rosnou Will, não se atrevendo a olhar para o efeito que isto tinha sobre Cal. - Não é verdade - disse, com voz fraca. - Elas estão mentindo. - Depois, num grito angustiado, perguntou-lhes: - Porque estão fazendo isto? Não podem me deixar em paz?
- Desculpe, não é possível - respondeu uma.
- Olho por olho - acrescentou a outra.
- Por curiosidade, porque enfiaram uma bala naquele caçador de peles que estávamos interrogando lá atrás, na Grande Planície? - continuou uma gêmea de imediato. - Foi você, não foi, Elliott?
- Confundiu-o com o Drake ou algo no gênero? - disse a outra e deu uma enorme gargalhada. - É um pouco violenta, não é?
Perante isto, Will e Elliott trocaram olhares confusos, e ela disse ao rapaz, movendo os lábios:
- Oh, não.
- Quanto a esse devasso velho e estúpido do Dr. Burrows, deixamos ele andar por aí ...
Will ficou rígido quando ouviu o nome do padrasto, com o coração aos saltos.
- ...como isca numa armadilha...
- ...e nem sequer tivemos de acabar com ele.
- Parece que ele fez o trabalho por nós.
As risadinhas agudas das gêmeas ecoaram ao redor das pedras escuras.
- Não, o Papai, não - sussurrou Will, abanando a cabeça ao recuar atrás do menir. Escorregou pela superfície áspera e ficou sentado, com a cabeça baixa.
- Portanto, estas são as cartas que pomos em cima da mesa - gritou uma gêmea, agora com uma voz terrivelmente séria.
- Se quiser que os seus amiguinhos vivam...
- ...entregue-se.
- E nós seremos benévolas para com eles - concordou a irmã.
Brincavam com ele! Como se estivessem a jogar um jogo de crianças, só que desta vez era pura tortura.
Continuaram em tom persuasivo, dizendo-lhe que a sua rendição ajudaria os amigos. Will ouvia o que as Rebeccas diziam, mas tudo aquilo era apenas ruído para ele, como se já não conseguisse compreender o significado das palavras delas.
Como se um nevoeiro denso tivesse descido sobre ele, sentiu-se desorientado, e tudo o que conseguiu fazer foi ficar sentado, encostado ao menir. Examinou o chão à sua volta e agarrou apaticamente um punhado de lama, que esmagou na mão. Quando levantou a cabeça, os olhos pousaram no rosto de Cal.
Lágrimas escorriam-lhe pela face abaixo.
Will não fazia ideia do que havia de lhe dizer - não podia começar a exprimir o que ele próprio sentia acerca da morte da Avó Macauly - por isso, limitou-se a virar a cara para o outro lado. Ao fazê-lo, reparou que Elliott saíra do seu lugar atrás do menir. Ia rastejando como uma cobra sobre o pavimento, à beira do Poço, quase chegano ao primeiro dos degraus de pedra que não levavam a parte nenhuma. Ligado a ela pela corda, Chester tinha começado a mesma curta viagem e não estava muito atrás dela.
Tentando controlar-se, Will jogou fora a lama que tinha na mão. Olhou outra vez para Chester. Sabia que devia segui-lo, mas não conseguia - achou que não se podia mexer. Estava muito confuso. Devia desistir do jogo, considerando-o perdido e entregar-se? Sacrificar-se para salvar as vidas do irmão, de Chester e de Elliott? Era o mínimo que podia fazer... afinal, fora ele quem os metera nisto. E se não se rendesse, provavelmente estariam todos condenados de qualquer maneira.
- Então, o que vai acontecer, mano mais velho? - instigou-o uma gêmea Rebecca. - Vai fazer o que deve?
Elliott estava agora completamente escondida no lance de escadas, fora de visão, mas ouvia, evidentemente, tudo o que as gêmeas diziam.
- Não faça isso, Will. Não vai alterar nada - gritou-lhe.
- Estamos à espera! - gritou a outra Rebecca, estando agora qualquer traço de ironia ausente da sua voz. -Tem dez segundos, quer esteja pronto, quer não. - Começaram a contar para trás, ouvindo-se as vozes alternadas das irmãs segundo a segundo.
- Dez!
- Nove!
- Oh, meu Deus - murmurou Will, lançando outro olhar a Cal.
- Oito!
Com soluços a sacudirem-lhe o corpo, Cal balbuciava qualquer coisa incompreensível a Will, que, em resposta, apenas conseguia abanar a cabeça, desesperado.
- Sete!
De trás da borda do Poro, Elliott insistiu com ele e Cal para se porem a andar.
- Seis!
Chester, em cima da escada, sussurrava-lhe qualquer coisa rapidamente.
- Cinco!
- Ande, Will! - disse-lhe Elliott depressa, com a cabeça a balançar sobre a borda do Poço.
- Quatro!
Houve uma confusão absoluta quando todos tentavam falar com ele ao mesmo tempo, mas no meio de tudo isso, Will só conseguia ouvir os segundos à medida que as gêmeas os anunciavam com frieza, aproximando-se do fim da contagem.
- Três!
- Will - gritou Chester, sacudindo a corda numa tentativa de puxá-lo para mais perto.
- Will! - gritou Cal.
- Dois!
Will pôs-se em pé, cambaleando.
- Um!
- Zero! - disseram as gêmeas ao mesmo tempo.
- Acabou-se o tempo.
- O acordo está anulado.
- Mais mortes desnecessárias que você conseguiu, Will!
Tudo o que aconteceu a seguir pareceu ocorrer em milésimos de segundo.
Will ouviu Cal gritando, e virou-se rapidamente para ele.
- NÃO! ESPEREM! - gritou o irmão. - EU QUERO IR PARA CASA!
Saltara de trás do menir e estava a acenar com os braços, à vista dos Limitadores, iluminado em cheio pelos feixes de luz dos holofotes. Direto na linha de fogo.
Naquele preciso momento ouviram-se os estalidos de múltiplos tiros de espingardas que pareciam vir de todos os lados ao redor das partes superiores da encosta. Tantos em tão curto espaço de tempo que parecia um rufar de tambores acelerado.
O tiroteio atingiu Cal em todo o corpo com uma precisão desordenada, mortal. Não teve qualquer chance. Como se uma enorme mão invisível lhe tivesse batido, foi erguido no ar pelos impactos, deixando um momentâneo rastro vermelho no ar, atrás de si.
Will apenas viu o irmão a cair num monte despedaçado, perto da beira do Poço, como uma marionete à qual tivessem cortado todos os fios. Era como se aquilo tivesse acontecido numa macabra câmara lenta - Will absorveu até os mais ínfimos pormenores, como o ressalto do braço do irmão quando tocou no chão molhado, como algo inanimado e elástico, e que ele só tinha uma meia calçada. Cal deve ter-se vestido tão às pressas que se esquecera de calçar a outra - este pensamento ocorreu a Will num canto remoto do seu cérebro.
Depois, o corpo caiu simplesmente pela borda. A corda que estava em volta da cintura de Will ficou esticada, a tensão súbita a puxá-lo e a obrigá-lo a descer vários degraus.
Bartleby, que tinha ficado obedientemente à espera onde Cal o deixara, deu um salto no ar num agitar de membros compridos e correu atrás do dono, desaparecendo da vista sobre a borda do Poço. A tração da corda sobre Will aumentou, e ele percebeu que o gato devia estar agarrado ao corpo do irmão.
Will estava parcialmente visível aos atiradores dos Limitadores, e silvaram tiros através dos feixes de luz, alternando tão depressa que davam um efeito estroboscópico. As balas caíam à sua volta, como uma chuva metálica, uivando e fazendo ricochete nos menires, e levantando jatos de lama aos seus pés.
Mas Will não fez qualquer tentativa para se esconder. Com as mãos a apertarem fortemente as têmporas, gritou com as últimas bolhas de ar que tinha nos pulmões, até que tudo o que restou foi um coaxar áspero. Inspirou mais ar e gritou uma segunda vez, só que agora a palavra "basta!" foi perceptível. Quando acabou, uma quietude mortal encheu o lugar.
Os Limitadores tinham parado de disparar e, por agora, Chester e Elliott não estavam a gritar para chamar a sua atenção.
Will oscilou no lugar onde estava. Sentia-se entorpecido, alheio à corda que lhe cortava a cintura, fazendo-o cambalear ao puxá-lo.
Mas não sentia nada.
Cal estava morto.
Desta vez, não havia qualquer dúvida no espírito de Will.
E ele podia ter salvado a vida do irmão se tivesse se rendido às gêmeas.
Mas não o fez.
Uma vez, tinha pensado que Cal morrera, e Drake fizera um milagre e ressuscitara-o. Mas agora não havia adiamento, não havia fim feliz, desta vez, não.
Will estava esmagado pelo intolerável peso da responsabilidade que carregava. Ele, e só ele, fora responsável pela destruição de tantas vidas - via os seus rostos. O Tio Tam. A Avó Macaulay. Pessoas que tinham dado tudo por ele, pessoas que ele amava.
E não podia deixar de pensar que perdera o padrasto, o Dr. Burrows. Nunca mais o veria, agora, não. O sonho de Will tinha terminado.
A calmaria acabou abruptamente, pois os Limitadores abriram fogo outra vez, o tiroteio ainda mais feroz do que antes, e Chester e Elliott retomaram os gritos de pânico tentando fazer com que chegassem até ele.
Mas, como se o som tivesse sido baixado, Will não ouvia nada à sua volta. Os seus olhos vidrados vagueavam sobre a cara horrorizada e desesperada de Chester, a pouca distância, enquanto o amigo gritava com todas as suas forças. Não tinha qualquer efeito em Will - até a amizade de Chester lhe fora tirada.
Tudo aquilo em que confiara - as certezas que escoravam a sua vida incerta - tinha sido retirado de debaixo dele.
O cérebro ardia-lhe com a imagem horrível e vívida da morte do irmão. O último momento tinha apagado todo o resto.
- Basta - disse, com muita firmeza desta vez.
Cal tinha perdido a vida por causa dele.
Não havia maneira de evitá-lo, não havia lugar a desculpas, não havia clemência.
Will sabia que ele é que devia jazer ali, completamente crivado de balas, não o irmão.
Era como se alguma coisa estivesse a ser esticada e esticada no seu espírito, rangendo e inchando de um lado ao outro, até estar tão perto do ponto de ruptura que se partiria em minúsculos fragmentos aguçados que podiam nunca mais ficar juntos de novo.
Lutava para se manter de pé, pois o peso morto de Cal puxava-o com força. Os Limitadores continuavam a disparar contra ele, mas ele estava noutro lugar, e nada daquilo já lhe interessava.
Em cima das escadas de pedra, Chester rastejava. Continuava a gesticular e a berrar. Mas nada disso chegava a Will.
Tudo isso estava perdido para ele.
Deu um único passo largo e rígido em direção ao Poço, deixando que o peso o puxasse. Chester estava indo direto a ele, estendendo a mão e gritando o seu nome com uma voz rouca.
Will olhou para cima e viu-o, como se estivesse a vê-lo pela primeira vez.
- SINTO MUITO, WILL! - gritou Chester, depois a sua voz ficou estranhamente calma, quando viu que Will estava a ouvi-lo. - Venha aqui. Está tudo bem.
- Está? - perguntou Will.
Apesar da situação pavorosa em que se encontravam, nesse segundo era como se estivessem isolados de todo o horror e medo que os rodeava. Chester confirmou com um aceno e sorriu-lhe um pouco.
- Sim, e nós também - respondeu. - Desculpe.
Parecia estar pedindo desculpa pelo modo cruel como tinha tratado Will, percebendo que ele próprio era parcialmente culpado pelo total desalento do rapaz.
Um minúsculo germe de esperança nasceu em Will.
Ainda tinha o amigo - nem tudo estava perdido, e eles haviam de se safar daquilo de qualquer maneira. Will deu mais um passo, estendendo a mão a Chester. Deu mais passos, cada vez mais depressa, diminuindo a distância entre eles, até não estar, na verdade, a usar as pernas, pois a corda fazia-o por si. Mesmo junto à borda do Poço, estava quase agarrando a mão de Chester.
No topo da encosta, as gêmeas Rebecca gritaram simultaneamente.
- Que vá para o inferno!
- Abrir fogo!
A artilharia pesada a que elas tinham se referido pôs-se em atividade. A enorme quantidade de morteiros dos Limitadores cuspia projéteis maciços que guinavam como bolas de fogo para o lugar onde Will tentava equilibrar-se, à beira do Poço, deixando rastros vermelhos flamejantes atrás de si. A encosta inteira estava iluminada com a sua luz ofuscante, e o barulho era ensurdecedor.
Os projéteis atacavam, despedaçando quaisquer menires que estivessem no caminho e levantando no ar enormes cortinas de terra. Um deles bateu na área pavimentada, colocando abaixo a única coluna e levantando as lajes como uma rajada de vento espalha um baralho de cartas.
Will foi lançado para a frente, derrubado pelas explosões, sem sentidos. Viajou diretamente para a escuridão de breu, bem por cima da cabeça do amigo.
Se estivesse consciente, Will teria visto os braços e as pernas de Chester a agitarem-se enquanto procurava agarrar-se a qualquer coisa, numa tentativa desesperada de evitar ser arrastado pela corda que o ligava a Will.
E teria ouvido os gritos de Elliott quando, também ela, foi puxada para o Poço a seguir a Chester.
Se Will tivesse sido capaz de pensar, sentiria o ar escuro correndo à sua volta, à medida que caía vertiginosamente, cada vez mais para baixo, o seu irmão morto em algum lugar abaixo dele, e os outros dois, ainda a uivarem e a gritarem, acima dele. E teria ficado aterrorizado com os estranhos pedaços de alvenaria e destroços dos menires pulverizados que caíam em volta deles.
Mas ele não pensava, havia apenas um vazio negro no seu espírito, idêntico àquele através do qual mergulhava.
Estava em queda livre, os ouvidos a estourarem implacavelmente e a respiração cortada de vez em quando pela investida do ar, enquanto se precipitava através dele, alcançando uma velocidade fatal.
A certa altura chocou com Elliott, com Chester e até com o corpo mole de Cal, as cordas a enrolarem-se em torno dos membros e dos troncos, preparando-se fortuitamente para os ligar, e depois a desenrolarem-se quando eles flutuavam separados, como se estivessem num macabro balé aéreo. Durante a maior parte do tempo era assim que ele ia, aos trambolhões através do vácuo negro, mas, de vez em quando, a sua trajetória levava-o para o lado do Poço, que parecia não ter fim, onde era arremetido contra a rocha implacável ou, inexplicavelmente, batia numa matéria mais macia, que, se ele estivesse consciente, lhe teria causado uma grande surpresa.
Mas no seu estado insensível, não estava consciente de nada disto. Encontrava-se num lugar para lá de quaisquer preocupações.
Se a sua mente não tivesse sido desligada de tudo isto, de toda a sensação física, teria reparado que, embora continuasse a cair através da escuridão, o seu ritmo de descida abrandava.
Imperceptivelmente a princípio, mas, sem qualquer dúvida, a abrandar... a abrandar... a abrandar...
Capítulo Cinquenta e Dois
U
ma vez ao alcance dos holofotes dos Styx, Drake não arriscara continuar para a parte final. Em vez disso, arrastara Sarah consigo para um posto de observação a meio caminho entre o lugar em que os Limitadores estavam concentrados e aquele em que Elliott e os rapazes tinham sido aparentemente localizados e abatidos, ao fundo da encosta.
Enquanto Drake estava agachado atrás de um menir, Sarah ficou ali. Estava exausta demais para fazer qualquer coisa a não ser escutar. Com a cabeça encostada a um rochedo e a roupa ensopada com o seu próprio sangue a colar-se ao corpo, ouviu algo da conversa trocada, aos gritos, entre as gêmeas e Will. O fato de existirem duas Rebeccas não foi, na verdade, uma grande revelação. Corriam rumores na Colônia, havia muito tempo, de que os Styx se entretinham com a eugenia - manipulação genética para o progresso da raça - e que gêmeos, trigêmeos e até quadrigêmeos tinham se tornado a norma, enquanto eles multiplicavam o seu número. Mais um mito que fora confirmado. Ela devia ter percebido que havia duas Rebeccas quando aquela que ia no trem afirmou ter estado no hospital da Superfície nessa manhã - a garota Styx dissera a verdade.
Enquanto permanecia ali, ouviu as gêmeas a gozarem com Will, depois a ameaça delas de matarem habitantes da Superfície utilizando o Domínio.
- Ouviu aquilo? - sussurrou-lhe Drake.
- Sim - disse ela, acenando amargamente na escuridão.
A conversa aos gritos chegava até ela como se estivesse no fundo de um poço profundo, ecoando e rodando, muitas vezes demasiado indistinta para entendê-la integralmente. Mas, apesar de a sua situação estar a piorar, uma parte do cérebro mantinha suficiente funcionalidade para perceber, embora muito devagar, os fragmentos que ouvia por alto.
Ouviu mencionarem o seu nome e aquilo que as gêmeas disseram sobre as mortes de Tam e da Avó Macauly. O corpo de Sarah encolheu-se de fúria. Os Styx estavam limpando todos os membros da sua família, um a um. Depois ouviu as ameaças de matarem Will e Cal e todos os que estivessem com eles.
- Tem de ajudá-los! - disse a Drake.
Ele olhou desesperado para ela.
- O que posso fazer? Estou irremediavelmente em desvantagem numérica e só tenho um pouco de algodão-pólvora. Ali em cima está um exército Styx.
- Mas tem de fazer alguma coisa! - exortou-o ela.
- O que sugere? Atirar-lhes pedras? - disse ele, a voz irregular de angústia absoluta.
Mas Sarah tinha pelo menos de tentar ir em socorro dos filhos. Sem Drake perceber, pois continuava a observar os acontecimentos de trás do menir, começou a arrastar-se no chão. Estava decidida a chegar ao lugar onde se encontravam Will e Cal, mesmo que tivesse de parar de metros em metros para descansar.
Tinha a vista afetada, vendo tudo indistinto e desfocado, mas continuava, com perseverança, levantando a cabeça trêmula e olhando de esguelha, através de um olho, para os holofotes que bombardeavam a encosta.
Ouviu as gêmeas Rebecca contar, e os gritos de desespero lá ao fundo, na extremidade da corda.
Viu de relance uma figura pequena quando ela apareceu à luz. Soube, com intuição de mãe, que se tratava de Cal. O coração bateu-lhe debilmente quando estendeu a mão para o lugar onde ele estava, tão longe. Viu-o agitando os braços freneticamente e ouviu os seus gritos desesperados.
Depois vieram os tiros.
Assistiu à sua morte. Deixou cair a mão no chão.
Houve gritos horríveis, depois uma cacofonia de sons, e o ar encheu-se do que pareciam ser, na sua cabeça confusa, cometas flamejantes. O chão tremeu como nunca sentira antes, como se toda a caverna estivesse a desmoronar-se à sua volta. Depois, o barulho e a luz desapareceram e, em seu lugar, surgiu um terrível silêncio.
Chegara tarde demais, provavelmente tarde demais para todos eles. Queria ter gritado a Cal, mas não o fizera.
Chorou lágrimas envoltas em pó.
Percebeu como fora idiota. Nunca devia ter duvidado de Will. Os Styx tinham tentado enganá-la e levá-la a cometer o maior erro da porcaria da sua vida inútil. Até convenceram a Avó Macaulay de que Will era culpado. A pobre e iludida senhora acreditara nas mentiras deles.
Agora era tão óbvio para Sarah que os Styx estavam a fazer uma limpeza total nas coisas - à sua maneira -, e, claro, depois de ter cumprido o objetivo, seria a próxima na fila para o golpe final.
Porque não confiara ela nos seus instintos? Devia ter morrido na escavação em Highfield. Tinha sido um erro tão grande afastar a lâmina do pescoço, e deixar aquela cobrazinha persuadida a trabalhar com os Styx. A partir desse momento de fraqueza, Sarah havia sido involuntariamente posta num caminho que a lançara numa disparatada perseguição aos seus próprios filhos. Um dente estúpido na engrenagem grandiosa dos Styx.
Fechou os olhos, sentido o coração a bater num alvoroço, como se tivesse um colibri preso dentro da caixa torácica.
Talvez fosse melhor assim, para acabar tudo aqui e agora.
Abriu os olhos com um movimento rápido.
Não!
Não podia permitir-se o luxo de morrer, ainda não. Não, enquanto houvesse a mais tênue esperança de poder endireitar alguma daquela confusão demoníaca.
Conservava uma réstia de esperança de Will ainda estar vivo, e de ser capaz de chegar até ele - não o tinha visto abatido como o irmão, mas as explosões tornavam pouco provável que tivesse sobrevivido. Mas mesmo se, por qualquer razão, ainda estivesse vivo, e mesmo se ela conseguisse chegar até ele, o que podia fazer? Estes pensamentos e incertezas atravessavam-lhe o cérebro como espetos, causando-lhe quase mais dores do que os ferimentos físicos, e incitando-a a prosseguir.
Com a ajuda dos braços, arrastou-se até ao lugar onde Will fora apanhado, mas os movimentos tornavam-se cada vez mais penosos, como se estivesse a abrir caminho a força através de melaço espesso. Não desistia. Tinha coberto várias centenas de metros quando desmaiou outra vez.
Recuperou os sentidos, sem saber quanto tempo estivera inconsciente. Não havia sinais de Drake, mas ouviu vozes não muito longe dela. Levantou a cabeça e vislumbrou as gêmeas Rebecca. Davam ordens a um pelotão de Limitadores mesmo à borda do Poço.
Percebeu então que chegara tarde demais para salvar a vida de Will. Mas, mesmo enfraquecida como estava, podia fazer alguma coisa? Podia vingar-se dos Styx pela morte de Tam, da mãe e dos filhos?
O Domínio!
Sim, talvez houvesse qualquer coisa que pudesse fazer. Apostava que uma ou ambas as Rebeccas ainda tinham consigo os frascos do Domínio. E vira como o vírus era vitalmente importante para o plano delas.
Ótimo!
Viu então o que tinha a fazer. Se pudesse pelo menos boicotar os planos dos Styx, e talvez salvar, para além disso, algumas vidas de habitantes da Superfície, então isso ajudaria um pouco à sua absolvição. Duvidara do próprio filho. Tinha feito tanto mal. Era tempo de fazer alguma coisa de bem.
Usando o lado do menir estilhaçado, conseguiu pôr-se de pé. Sentia o pulso irregular a bater-lhe na cabeça, tão alto como um timbale zangado. A paisagem ficou escura como breu, enquanto ela se curvava nas sombras duras, uma forma diferente de escuridão a acumular-se e a começar a engoli-la, uma escuridão que a luz não afetaria.
As gêmeas estavam à beira de um considerável buraco no chão, no lugar onde, a não ser que ela estivesse muito enganada, o pilar solitário estivera antes. As garotas Styx apontavam ambas e olhavam para baixo, para o Poço.
Com um esforço hercúleo, Sarah lançou mão de todas as gotas de vitalidade que ainda restavam no seu corpo destroçado. Com os braços estendidos, voou para as gêmeas, cobrindo a restante distância tão depressa quanto o corpo arruinado conseguiu propulsioná-la.
Viu os olhares idênticos de surpresa nas suas caras quando se viraram, e ouviu os seus gritos idênticos quando arrastou consigo as duas pela borda. Não custara muito deslocá-las, mas levara tudo o que restava a Sarah.
Nos últimos momentos de vida, Sarah sorria.
Capítulo Cinquenta e Três
N
a Humphrey House, Mrs. Burrows estava sozinha na Sala do Dia. Passava bastante da meia-noite e, agora que os seus olhos haviam se livrado do vírus misterioso, não tinha qualquer problema em ver televisão de novo. Mas não estava absorta em nenhuma das suas muitas telenovelas; havia na tela, à sua frente, uma imagem em preto e branco. Como fizera muitas vezes, parou a fita, rebobinou-a e voltou a reproduzi-la.
A videogravação mostrava a porta que dava para a zona da recepção sendo aberta com violência e uma figura a correr através dela. Mas antes de a figura desaparecer da vista viu-se um rosto; olhou para cima e depois, às pressas, para baixo, como se soubesse que estava a ser apanhado na câmara de segurança.
Mrs. Burrows parou a fita com uma pressão determinada no controle remoto e avançou para o televisor, inclinando-se para ver o rosto com os olhos alvoroçados e o cabelo revolto. Tocou na tela, contornando as feições da mulher, que, saltando entre dois fotogramas da fita, estavam nebulosas e indistintas como se um fantasma tivesse sido involuntariamente capturado em filme.
- Para vosso deleite e prazer, a incomparável Kate O'Leary, mulher de conspirações - murmurou Mrs. Burrows franzindo os olhos e estalando a língua contra os dentes várias vezes, ainda a escrutinar a cara de Sarah. - Bem, Ms. Kate quem-quer-que-seja, não há nenhum lugar na Terra onde possa se esconder que eu não te encontre. - Mergulhou em pensamentos enquanto assobiava de um modo fortuito e atonal, hábito do Dr. Burrows, e, curiosamente, um hábito pelo qual ela o censurara muitas vezes. - E eu vou te arrancar a minha família e recuperá-la, mesmo que seja a última coisa que faço.
Um mocho piou e Mrs. Burrows virou-se para a janela, olhando para a escuridão dos jardins lá fora.
Quando o fez, um homem com um boné de lã e um grande sobretudo recuou claramente, afastando-se da janela, para que ela não o visse. Era altamente improvável que a mulher da Superfície, com a sua visão noturna pouco desenvolvida, fosse capaz de o distinguir na escuridão, mas ele não estava disposto a correr esse risco.
A coruja levantou voo e planou entre as árvores, enquanto o indivíduo bem constituído esperava pacientemente antes de continuar a sua vigília junto à janela.
Enquanto esperava, outro homem, sobre uma pequena colina a uns trezentos metros, focava-o com a sua mira telescópica montada num tripé.
- Estou te vendo - disse Drake, puxando a gola do casaco para cima, em volta do pescoço, quando ventou. Fazendo outro pequeno ajustamento num anel recolhido da mira telescópica, para ter uma imagem mais nítida do homem que estava na sombra, murmurou muito baixinho: - Quem vigia os vigilantes?
A uma distância de meio quilômetro, a luz dos faróis de um carro incidiu por breves instantes na parte e trás da Humphrey House. A essa distância, não era mais do que uma cintilação, mas, potenciada pela eletrônica da mira que intensificava a luz, era suficientemente brilhante para fazer Drake piscar os olhos. Apanhado de surpresa pela interrupção inesperada da sua vigilância, inspirou ar subitamente. O clarão desencadeou memórias dos arcos lampejantes, na altura em que Elliott e os rapazes foram bombardeados pelos Limitadores, nesses últimos momentos no Poço, quando tudo o que ele conseguira fazer fora observar os acontecimentos a desenrolarem-se.
Drake afastou-se da mira. Esticando as costas para aliviar a rigidez, olhou para as profundezas do céu noturno lá em cima.
Não, não tinha sido capaz de salvar Elliott nem os rapazes. Mas ia fazer tudo o que pudesse para parar os Styx. Se eles pensavam que iam retomar o plano para utilizar o Domínio, esperava-os um rude despertar. Tirou um celular do bolso e marcou um número, voltando para o Range Rover que estava estacionado enquanto esperava que atendessem a chamada.
Gostaríamos de agradecer a Barry Cunningham, Rachel Hickman, Imogen Cooper, Mary Byrne, Elinor Bagenal, Ian Butterworth e Gemma Fletcher, da Chicken House, por aturarem as nossas birras, e a Catherine Pellegrino, da Rogers, Coleridge and White, por as ouvirem.
Agradecimentos especiais vão para Stuart Webb, colega escritor, pelo seu valioso estímulo, e para Mark Carnall, do Grant Museum of Zoology and Comparative Anatomy, que nos corrigiu em relação aos insetos e a todas as coisas extintas, e para Kate Morrison e Cathrin Preece, da Colman Getty, que nos seguraram as mãos trêmulas.
Por fim, gostaríamos de agradecer às nossas famílias, que ainda estão à espera que surjamos à luz. Um dia destes...

 

 

                                                   Roderick Gordon & Brian Williams         

 

 

 

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