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PROSAS BÁRBARAS de Eça de Queirós
PROSAS BÁRBARAS de Eça de Queirós

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Prosas Bárbaras de Eça de Queirós 

 

 

ÍNDICE

 

Na primeira fase da vida literária de Eça de Queirós 

Notas marginais

Sinfonia de abertura

O Macbeth

Poetas do mal

A ladainha da dor

Os mortos

As misérias: 1. entre a neve

Farsas

Ao acaso

O Miantonomah

Misticismo humorístico

Lisboa

Uma carta

Da pintura em Portugal

O lume

Mefistófeles

Onfália Benoiton

Apêndice:

Inês de Castro

A morte de Jesus

 


 

NA PRIMEIRA FASE DA VIDA LITERÁRIA DE EÇA DE QUEIRÓS

 

I

 

Julgaram os Editores das «Prosas Bárbaras» ser necessário explicar como elas se escreveram e denominaram.

Fui talvez a testemunha mais próxima da redacção dos escritos agora reunidos em volume, e, por esse tempo, o mais inseparável companheiro do autor. Esta «Introdução» é pois uma página da sua biografia. Tento esboçar nela a figura do homem e a do escritor – tais como as conheci, ao formarem-se as criações deste livro – que circunstâncias e que espíritos principalmente influenciaram a aliás extraordinária originali­dade do génio de Eça de Queirós.

Quando nos encontrámos, já estavam publicados alguns dos seus «Folhetins» na «Gazeta de Portugal», que fora fundada por António Augusto Teixeira de Vasconcelos (em Novembro de 1862), 4 anos antes da aparição do primeiro deles, e ter­minou (Janeiro de 1868), pouco mais de um ano depois da publicação do último, sendo – em rivalidade com a «Revo­lução de Setembro», dirigida por Rodrigues Sampaio – o mais brilhante periódico do tempo. A «Gazeta de Portugal» publi­cava, além das do seu fundador, frequentes produções de Antó­nio Feliciano de Castilho, José Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado, Tomás Ribeiro, Zacarias d’Aça, Graça Barreto, Silveira da Mota, Cunha Rivara – quase todos os consagrados de então. Os «NOVOS» que aqui escreviam, ficavam, por este facto, para logo consa­grados também. Aí primeiro apareceram no «Folhetim», triunfantemente, Mateus de Magalhães, Pinheiro Chagas, Osório de Vasconcelos e Xavier da Cunha («Olímpio de Freitas»). Todos estes escritores se continuavam uns aos outros, sem contrastes nem revoluções, apenas levemente desenvolvendo fórmulas aceites e classificadas pelos aplausos de um público hereditariamente satisfeito.

Em 1866 a «Gazeta de Portugal» entrara porém em deca­dência; começava a viver de expedientes. Desde Dezembro de 1865 diminuiu o formato. A 14 de Julho de 1866, José da Silva Mendes Leal, poeta, dramaturgo, romancista, historiador, estadista, orador, diplomata – para muitos «mestre» e legítimo sucessor de Almeida Garrett – despedira-se da direcção lite­rária que até então, pelo menos nominalmente, exercera. Os colaboradores literários mais assíduos, mais genuinamente representantes do gosto geral, eram 16 então, no «Folhetim da «Gazeta de Portugal», Santos Nazaré e Luís Quirino Chaves. Por essa época Teixeira de Vasconcelos publicou aí o seu romance «A Ermida de Castromino», seguido porém, desde os primeiros dias de r866, por «O Diamante do Comendador» – do visconde Ponson du Terrail...

Repentinamente (em Março de 1866), começaram a apa­recer uns «Folhetins» assinados «Eça de Queirós».

Ninguém conhecia a pessoa designada por estes apelidos que, por algum tempo, se supôs serem um pseudónimo.

Os «Folhetins» de Eça de Queirós foram todavia notados: – mas como novidade extravagante e burlesca. Geral hilari­dade os acolheu desde a própria Redacção da «Gazeta de Portugal», até aos centros intelectuais reconhecidos do país, e até à parte mais grave, culta e influente do público. Para este, uma ou outra frase os arrumou logo no que então se chamava «a Escola Coimbra» – centro literário e filosófico que se supu­nha dedicado a escrever de modo sistematicamente ininteligí­vel. Citavam-se, como modelos de cómico inconsciente, as cenas, as imagens, os epítetos desses «Folhetins», lidas entre gargalhadas no Café Martinho, nas livrarias Silva, Rodrigues e Bertrand, no Grémio Literário, em alguns salões poéticos e polí­ticos e noutros centros representativos do tempo. O Severo – o Severo dos Anjos – principal e célebre noticiarista da «Gazeta de Portugal», entalando o monóculo ao canto do olho direito, inventava quotidianamente, sobre o Eça de Queirós e os seus «Folhetins», epigramas em geral adoptados; e o Tei­xeira de Vasconcelos, exagerando, com intenção mordaz, o seu natural gaguejar, concluía:

– Tem muito talento este rapaz; mas é pena que estudasse em Coimbra, que haja nos seus contos, sempre dois cadáveres amando-se num banco do Rossio, e que só escre...va...va...va em francês [1].

Pouco tempo depois de publicado o último desses «Folhe­tins» – em Dezembro de 1867 – já ninguém pensava no autor deles. Que importava às Academias, ao Café Martinho, ao Gré­mio «suposto» literário, e aos centros políticos, a aparição de um novo escritor com um novo estilo? Eram ministros... não sei quem; discutia-se no Parlamento e na imprensa... não sei quê; os negócios iam andando; os namoriscos e a maledicência seguiam o seu curso abundante; a arte, serena e comedida, não sacudia os que dormitavam.., e nada mais era de interesse, em Portugal, para as classes cultas.

 

II

 

Eu era, por 1866, estudante em Lisboa e muito novo. Cir­cunstâncias que é inútil referir me faziam frequentar a Redacção da «Gazeta de Portugal», no nº 26 da Travessa da Parreirinha, perto do Teatro de S. Carlos.

Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo, vi uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muita alto, cabeça pequena e aguda que se mostrava inteira­mente desenhada a preta intenso e amarelo desmaiado.

Cobria-a uma sobrecasaca preta abotoada até ao mento, uma gravata alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas e magríssimas, o cabelo corredio muito preto, de que se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre olhos cobertos por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e tam­bém muito preto, caía aos lados da boca larga e entreaberta onde brilhavam dentes brancos. As mãos longas, de dedos finís­simos e cor de marfim velho, na extremidade de dois magros e longuíssimos braços, faziam gestos desusados com uma ba­dine muito delgada e um chapéu de copa alta e cónica, mas de feltro baço, como os chapéus do século XVI nos retratos do duque de Alba, de Filipe II de Espanha, ou de Henrique III de França.

Era o Eça de Queirós.

Contava o quer que fosse a um tempo trágico e cómico, nervosamente, dando a espaços gargalhadas – ricanements, como se diria em francês – curtas, e sinistras.

O Severo, de monóculo fincado no olho direito, a larga máscara gorda, amarela, irónica, dilatada, escutava-o, rindo em notas agudas.

Saí do Escritório da «Gazeta de Portugal» com o Eça de Queirós, jantámos, passámos toda a noite Juntos, e desde então, por anos, não nos separámos quase.

O Eça de Queirós terminava em 1866 o curso de Direito na Universidade de Coimbra, e viera para Lisboa onde seu pai era magistrado. Por tradições de família, e como consequência natural dos seus estudos, deveria seguir, ele também, a magistratura oficial, ou, pelo menos, fazer-se advogado. Suponho que neste intuito frequentou algum tempo um escritório em Lisboa.

Mas a Arte tomava-o já a esse tempo fundamente, e ia-se-lhe o tempo a ler, a cismar, a idear, a cogitar os aspectos subtis das coisas.

Eça de Queirós morava em casa da família, ao Rossio, no quarto andar do prédio nº 26. O seu quarto – pequeno, com uma mesa ao centro e uma estante de poucos livros – dava para a Rua do Príncipe. Aí foram, em parte, escritos os «Folhe­tins» das «Prosas Bárbaras».

 

III

 

Havíamo-nos criado um mundo como que à parte da rea­lidade.

Quando por algum tempo nos separávamos durante o dia, reuníamo-nos logo, às horas de jantar, ou depois, num qual­quer restaurante pouco frequentado, cerca da Rua Larga de S. Roque ou do Chiado.

À sobremesa o café abria-nos as regiões visionárias por onde viajávamos: o Eça de Queirós bebia-o com atenção con­centrada e reverente, curvado de alto sobre a chávena, para onde cada feição, principalmente o nariz comprido e adunco, como que se pro1ongava aguçada. A uma primeira chávena seguia-se uma segunda e uma terceira; e íamos exaltados para minha casa continuar a beber café, às vezes até madrugada.

Nestas circunstâncias foram criados, por Eça de Queirós, muitos dos contas agora reunidos em volume.

Eu morava no primeiro andar da casa nº 19 da então Travessa do Guarda-Mor, em pleno Bairro Alto.

No meu quarto de estudante [2] havia um grande armário cheio de livros, cavado na espessura da parede, uma mesa cen­tral sobre que se escrevia, e uma secretária de feitio estranho. dada a meu pai por Almeida Garrett, usada por este para escre­ver de pé, que sugeriu a Eça de Queirós a forma da mesa onde, anos depois, em Paris, quase sempre trabalhava. Uma larga janela de sacada abria para a Rua dos Calafates [3] em frente a prédios baixos que, por isso, não impediam o acesso do ar, da luz, e a vista de um espaço largo aberto dando a impressão de canto de vila provinciana. No mais próximo desses prédios moravam duas raparigas, muito novas e bonitas, a cantar, entre craveiros e manjericões, costurando activamente o dia inteiro. por vezes, para o Eça de Queirós e outros líricos fantasistas que me visitavam, pontos de partida de longas variações, em verso e prosa, sobre o que o mesmo Queirós, corrigindo Goethe, chamava o «efémero feminino» [4].

Certas noites, entrava o Eça de Queirós já tarde, no meu quarto, com uns rolo de papel na mão, dizendo:

– Sou eu, sim, amigo.

E aludindo aos corvos, milhafres, gaviões que, com tanta frequência, fantasticamente, apareciam nos seus contos, acres­centava:

– Sou eu e os meus abutres: vimos cear, devorando cadáveres!

Muitas coisas preocupavam o Eça de Queirós, quando tra­balhava:

Durante tempos só pôde escrever em certo almaço, que ele próprio ia comprar a uma pequena loja de chá e papel selado, no nº 41 da Rua Larga de S. Roque.

Havia de sempre entrar no meu quarto com o pé direito, suspendendo-se por isso, no último momento, recuando o agou­rento pé esquerdo, quando já este inoportunamente se adian­tasse e fazendo hesitante e confuso, ao passar enfim a soleira da porta, um ruído de inexplicável trepidação. Aterravam-no correntes de ar, e andava continuamente a fechar a janela, ou as portas, a mudar a posição da cadeira onde se sentava, mur­murando em voz cava:

– É a pneumonia, a congestão pulmonar fulminante – a morte, menino!

A luz do candeeiro de petróleo que eu usava, feria-lhe a vista; de modo que, a fim de concentrar a claridade sobre o papel em que escrevia, ou sobre o livro em leitura, prolongava, do seu lado, o abat-jour, com longas tiras de papel. Não podia suportar poeira nas mãos e erguia-se amiúde da mesa para – interrompendo a composição, mas recitando em voz alta as frases já escritas – vir, cuidadosamente, lavar as pontas dos dedos. Fumava cigarros sem cessar, enquanto compunha, incli­nado sobre o papel que olhava muito de perto. E, uma vez embebido nas suas criações, não falava, não escutava, não aten­dia a coisa alguma – embrulhando o cigarro, indo lavar as mãos ou fechar a porta, passeando pela casa, muito curvo, dando passadas altas e largas, fazendo gestos de dialogar com alguém invisível, resfolegando ruidosamente, abrindo muito os olhos, elevando e baixando nervosamente as sobrancelhas, as pálpebras, e as rugas horizontais da testa, onde ondulava, con­vulsa, a sua madeixa corredia, negra e triangular.

Escrevia com extrema facilidade e, nesta época, emendava muito pouco: as imagens, os epítetos ocorriam-lhe abundantes, tumultuosamente, e ele redigia rápido, insensível a repetições de palavras e rimas ou a desequilíbrio de períodos, sem exigên­cias criticas de forma, aceitando, comovido o que tão esponta­neamente, tão sinceramente lhe ocorria.

Quando, nessas noites, ele me lia alguns dos seus contos, a figura e a voz com pletavam4he as fantásticas criações: erguia-se quase nos bicos dos pés, de uma magreza esquelética, lívido – na penumbra das projecções do candeeiro – os olhos esburacados por sombras ao fundo das órbitas, sob as lunetas fumadas de aro preto, o pescoço inverosimilmente prolongado, as faces cavadas, o nariz afilado, os braços lineares, interminá­veis. Então, com gestos de aparição e espanto, a voz lúgubre, sentimental – enfaticamente patética, ou gargalhando sinistramente – declamava.

Alta noite, quando a excitação do trabalho e do café nos havia quase alucinado, saíamos pelas ruas desertas do Bairro Alto – ou estendíamos as nossas explorações à Mouraria, à Alfama, em volta da Sé e pelas encostas mouriscas e fadistas do Castelo de S. Jorge, a examinar a fisionomia fantástica, e quase humana, das casas antigas, algumas ainda então, nesses bairros, mais ou menos medievais.

«As casas sem luz – escreveu Eça de Queirós então – têm o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas.»

De uma vez, quase de madrugada, seguindo no Bairro Alto a Rua de S. Boaventura, divisámos ao longe, junto do Pátio do Conde de Soure, uma fila de homens agigantados, segurando como que longas e grossas lanças, cujos ferros se perdiam talvez na atmosfera mal alumiada e cujos contos se esfumavam na massa confusa do que parecia ser nuvens rasteiras... Estes homens apareciam-nos apenas esboçados por grandes massas de sombra e luz... De alguns saíam barbas hirsutas... Estavam imóveis... Tivemos a impressão de um quadro sobrenatural.. Aproximámo-nos... Eram varredores municipais que esperavam, encostados às vassouras, a hora de se dispersarem pela cidade.

Nas noites mais serenas – nas noites de luar – saíamos da cidade e íamos pelos campos e pelos montes, ou ao longo das margens do Tejo, conversando, improvisando, até nascer o Sol.

De ordinário, nas noites de composição e conversa mais absorventes, ou em seguida às nossas divagações pari patéticas, o Eça de Queirós dormia em minha casa. E havia, para ele, ritos determinados no modo de dispor a roupa que despia, antes de se deitar, colocando os punhos sobre uma mesa pela ordem por que os tinha usado, no braço direito e esquerdo res­pectivamente, e dispondo as botas à porta; – para que o meu criado as limpasse, de manhã, sem nos acordar; – também, pelo mesmo método, ordenadamente emparelhadas.

E ao meter-se na cama, para explicar os seus movimentos supersticiosos, murmurava, persignando-se:

– É preciso obedecer com fé e sem exame às leis subtis das coisas: ninguém sabe exactamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos; e o mistério complicado dos Fados.

Na época em que publicaram os «Folhetins» da «Gazeta de Portugal», eram poucos os amigos que frequentavam a minha casa. O mais assíduo era, por esse tempo – além de Eça de Queirós, – o Salomão Saragga que, quando aparecia, nos expli­cava com veemência, prolixamente, simultaneamente, a cons­trução de carruagens, o livro do Profeta Isaías, a fabricação de tecidos com desperdício de lã, os Historiadores de Israel e as origens do Cristianismo.

De tempos a tempos, o Eça de Queirós dizia-me:

– Estamo-nos tornando impressos. Basta de ler e imaginar. Precisamos de um banho de vida prática. É-nos indispensável o acto humano – inverosímil, se for passível, – a aventura, a lenda em acção, o herói palpável: vamos pois cear com o capitão João de Sá – o João de Sá Nogueira, – d’Artagnan de África em Lisboa com licença registada.

E íamos, com efeito, encontrar este nosso amigo, oficial do Ultramar, que à ceia nos contava – durante o bacalhau com batatas, o meio bife, e o Colares, – as pitorescas aven­turas das suas viagens pelos sertões de Angola.

 

IV

 

Havendo eu pertencido à primeira geração afectada pelos escritos de Eça de Queirós, as recordações do meu sentir de então possuem talvez algum valor histórico.

Os anos de 1866 e 1867 são datas capitais na história da educação do meu espírito. A predominante paixão pela música ligara-me a Augusto Machado, que estudava então piano e har­monia com dois dos melhores mestres da especialidade em Lisboa.

Nesta cidade floresciam, por esse tempo, a par da ópera italiana e da zarzuela, o «pot-pourri» e as «variações». A sensi­bilidade pública alimentava-se de inumeráveis «rêveries» musi­cais. O grau supremo do patético geralmente conhecido atin­gia-se com os «nocturnos» de Ravina e Döhler. Os arranjos operáticos de Thalberg e Liszt eram o ideal raras vezes alcan­çado. Nas salas cantavam-se romanzas de Cara pana e árias tea­trais. A suprema forma de arte era, para Lisboa, a ópera ita­liana. Meyerbeer – autor de óperas italianas – passava por ser o mais genial representante da profunda mas obscura arte alemã.

Ora em 1867 Augusto Machado, ao voltar de Paris, onde cursara piano, harmonia e composição com Alberto de La­vignac e outros, trazia, como repertório de estudo, OS «prelú­dios» e «fugas» de Bach; as «sonatas» de Mozart e Beethoven, as obras de Mendelssohn, Schumann e Chopin.

Os «Folhetins» de Eça de Queirós fizeram-me uma impres­são só comparável, em profundidade e consequências subjecti­vas, à que justamente pela mesma época, me fazia a descoberta das obras dos grandes criadores da música moderna.

Esses «Folhetins» foram-me uma revelação – não tanto nos assuntos e na intenção, como no poder de realização artística: enfim encontravam formas e cores intensas de expressão, fac­tos, antes, na Literatura Portuguesa, insuficientissimamente revelados.

Pelos pontos de vista, pelo estilo, esses folhetins eram, ainda no ano de 1866, uma quase inteira novidade para os lei­tores da língua portuguesa; – como haviam sido, para todo o Sul da Europa, à aparição do Romantismo francês nos pri­meiros anos do século XIX, as mesmas ideias e estilos seme­lhantes.

Nesses primeiros escritos Eça de Queirós era, na verdade, o que geralmente se denomina um «romântico». Ele próprio - dizia da época imediatamente anterior:

«Naqueles tempos o Romantismo estava nas nossas almas. Fazíamos devotamente oração diante do busto de Shakespeare.»

E, então mesmo, achava ser preferível, «à saúde vulgar e inútil que se goza no clima tépido que habitam Racine e Scribe... a doença magnífica» que leva ao «hospital român­tico...» [5]

Com efeito, por uns dois séculos, pareceu gozar-se nas regiões mais evidentes da Literatura, uma inalterável saúde: só certos factos do espírito perfeitamente determinados – só as ideias e os sentimentos susceptíveis de clara determinação – eram nessa Literatura expressos. Os meios de expressão usados, os vocábulos e os seus grupamentos, os géneros literários – tudo parecia claramente, definitivamente assente, segundo nor­mas antigas e, por isso, venerandas, num sistema de simetria, de equilíbrio, de ordem, aplicável sem hesitações, com o mínimo esforço, na mais segura tranquilidade. Assim viveu na Europa, em geral, a gente culta, do século XVI ao século XVIII.

Começaram pelos meadas deste, a mostrar-se nos espíritos sinais inquietadores: além das ideias completamente com­preensíveis e dos sentimentos inteiramente claros, outras ideias e outros sentimentos se impuseram à expressão dos Literatos. Entre as grandes formas dos afectos, como entre as cores mais vivas, distinguirem-se transições e meias-tintas. Os homens não pareceram estar sempre, ou exuberantemente alegres, ou defi­nitivamente tristes. Havia comoções, sentimentos interme­diários ao amor e ao ódio. Entre o preto e o branco descobri­ram-se gradações infinitas.

Cada ideia classificada, cada sentimento catalogado antes, começou então, pouco a pouco, a mostrar-se centro de grandes grupos psicológicos, de factos espirituais diversamente com­plexos, susceptíveis de definições variáveis, expressas por séries simbólicas de clareza decrescente: uns que podiam ser nitida­mente – como que linearmente – desenhados, inteiramente descritos, completamente iluminados; outros que só podiam indeterminadamente sugerir-se, sumariamente indicar-se por vagas massas de cor, de sombra e de luz; uns que são as ideias e os sentimentos que todos os homens conscientemente reconhe­cem como a matéria superficial da existência; outros mais ou menos inconscientemente dominantes, sem nome ou descrição que os esgote, prolongando-se pelas profundidades insondáveis e inexpressíveis das almas.

Do conhecimento destes estados mais subtis e raros do espírito, resultou, inevitavelmente, a suo cultura intencional; os sistemas nervosos pareceram desenvolver-se em direcções anormais; e imprevistas, ou mais apreciáveis vibrações vieram impor-se, criar ou tornar complexas e mais conscientes as nevroses.

Novas formas de expressão foram necessárias, não só para os novos estados da consciência, mas porque cada espírito começou a sentir e a pensar independentemente, reconhecendo dever procurar por si – por isso, quanto possível fora de fórmulas e regras já feitas – os termos que mais exactamente lhe simbolizassem as concepções pessoais.

Toda esta revelação espiritual – este descobrimento de regiões ignoradas ou indolentes dos espíritos, toda esta apari­ção de aspirações, de incertezas, de incoerências novas, toda esta quebra de moldes, todo este desequilibrar de forças e sime­trias – inúmeras afirmações de personalidades – pareceu às gentes cultas, serenas e classicamente imitativas, um grande achaque mental, ou variadas doenças nervosas que atacassem a humanidade.

A este estado dos espíritos e da consequente Literatura deu-se, como é sabido, o nome de Romantismo – facto esté­tico, ainda hoje em busca de suficiente definição, mas que, pelo que deixo explicado, me parece poder essencialmente defi­nir-se a «procura directa» de «formas de expressão», para todos os sentimentos e todas as ideias, por isso, para as «mais inti­mas ideias» e os «mais vagos sentimentos» do ser humano.

Muitos pretendem tratar-se apenas de uma doença moral, e que esta foi, nos fins do século XVIII, a reincidência da epi­demia que devastara a Europa durante o período secular des­denhosamente denominado, por os saudáveis neo-greco-romanos, a Idade Média, idade escura – dark age dizem os ingleses, época de transição, que em História há a considerar entre os dois claros períodos clássicos de suposto equilíbrio e saúde normal.

O Romantismo pareceu ser, geralmente, a ressurreição idealizada dessa histórica mórbida Idade Média.

É que, durante esta, gradualmente se constituíram as nações modernas da Europa na sua íntima complexidade senti­mental. Nelas as forças humanas – como integral resultado de forças naturais – deram forma aos mais íntimos sentimentos do espírito. Os povos haviam vivido tradicionalmente mergu­lhados nas criações completas das suas artes e das suas reli­giões: haviam amado, adorado, temido, trabalhado, lutado, can­tado, dançado, cercados por todas as vibrações inconscientes das suas fantasias; haviam formado com a interpretação dos aspec­tos naturais, com os encantamentos, com os génios, e as fadas de mil religiões tradicionais, os novos santos milagrosos e cristãos; haviam sentido em cada ser, orgânico ou mineral, real ou fantasiado, propício ou hostil, influências humanas, e haviam-se suposto indissoluvelmente solidários com uma natu­reza sempre animada, por onde os próprios cadáveres nunca desvitalizados evoluindo se dispersavam em pulverizações de espíritos e energias.

Estas manifestações da vida espontânea dos povos durante a Idade Média, sem dúvida solicitaram, a interpretação dos Românticos, cuja razão de ser, cuja missão era também, como já mostrei, ir expressando, até aos mais profundos e subtis, todos os factos espirituais.

Mas o chamado Romantismo deu-se na Europa dos fins do século XVIII aos anos de 1830 ou 1850, modificando, durante esse tempo, a Literatura do remoto Portugal. Que novidades podia pois ainda apresentar o «romântico» Eça de Queirós aos «românticos» portugueses de 1866?

É o que vou tentar explicar:

O Romantismo tomou, primeiro, corpo saliente, ao Norte da Europa, e só depois se estendeu ao Sul. Veio dos países de luz atenuada e névoas visionárias, indeterminadoras de formos e de cores, para as terras do sol brilhante, atmosfera límpida, formas vincadas e cores elementares [6].

Nesta descida através das latitudes, as ideias foram ga­nhando nitidez, definição, brilho – e correlativamente per­dendo meias-tintas, subtil claro-escuro, indeterminação. Os sen­timentos, transportados com simplificações lúcidas à superfície dos espíritos, pelos artistas das terras do Sul, perderam muitos dos nimbos esfumados, muitas das atmosferas de esbatida ate­nuada iluminação, que os rodeiam nas regiões profundas onde eles nascem completos. Enquanto o Norte expressava tudo o que nas ideias é quase apenas sugerível, o Sul tão-somente apro­veitou o que possa nitidamente descrever-se. Os Românticos das raças do Sul da Europa começaram a fazer assim, mais uma vez, por uma fatalidade atávica e climatérica, o que os ante­passados cultos de muitos deles haviam completamente consu­mado séculos antes, na construção equilibrada e nítida do Classicismo greco-romano, sobre a atrofia estética e religiosa de exuberantes regiões da alma humana, pela redução das mis­teriosas formações místicas do Oriente, da Hélade e da Itália, aos moldes retóricos, às esculturas luminosas mas frias, e às biografias anedóticas dos obscuros politeísmos heróicos.

Eis porque tantos românticos portugueses – em Portugal, no extremo dos países claros do Meio-Dia [7] – só foram superficialmente românticos.

Nas partes mais profundas, mais obscuras, mais Indeter­mináveis do espírito, para além do real, do lógico, do coerente, do explicável – como que para preencher as lacunas deixadas no completo da totalidade psíquica, pelas definições fragmen­tárias do compreensível – existem com efeito, infinitamente, as necessidades misteriosas do contraditório, do sobrenatural, do maravilhoso.

É para as satisfazer que todos os povos criam, fatalmente, formas estéticas e religiosas, e é delas que todo o homem com­pleto se sente, por vezes, essencialmente possesso.

Essas formas constituem a «arte» e a «literatura mística e fantástica».

A França – a mais ao norte das nações definidoras – recebeu, em grande parte, a sua «literatura fantástica» da Ale­manha. Da Alemanha, por intervenção da França, a recebeu Portugal. Teve ela, de 1866 a 1867, em Eça de Queirós, a seu mais genial representante.

E porque essa Literatura me punha em vibração tantas faculdades Intimas e latentes, me comoveu ela a mim e como­vendo outros espíritos contemporâneos da minha primeira mocidade, talvez por educação, e quem sabe se por atavismo, não inteiramente, ou não exclusivamente filhos das raças e dos climas claros e analíticos do Sul.

 

V

 

Assim as primeiras influências que actuaram em Eça de Queirós – aquelas que mais evidentemente se reconhecem nas suas primeiras criações literárias, os escritores de cuja frequen­tação eu posso dar testemunho – foram principalmente, Hen­rique Heine, Gerardo de Nerval, Júlio Michelet, Carlos Baude­laire mais distantemente, ou mais em segunda mão, Shakes­peare, Goethe, Hoffmann, Arnim, Põe, e, envolvendo tudo pode­rosamente, Vítor Hugo.

A maior influência nesse período sobre Eça de Queirós – a de Heine – foi também considerável sobre alguns - dos seus mais ilustres contemporâneos e amigos: vê-se nas poesias, mais tarde reunidas por Antero de Quental sob o nome de «Primaveras Românticas», e no que este diz da sua própria obra, nas páginas autobiográficas que estão publicadas [8]; vê-se tam­bém nas poesias primeiro- escritas para o «Século XIX», de Penafiel, de 1864 a 1865, e depois coligidas, com o título de «Lira Meridional», por António de Azevedo Castelo Branco.

Eça de Queirós não sabia alemão e as obras de Heine adquirem nas traduções francesas – algumas feitas pelo pró­prio autor, outras por este em colaboração com Gerardo de Nerval – um carácter novo.

Heine é para mim um dos maiores escritores das línguas germânicas. Traduzi-lo é, sem dúvida, empobrecê-lo: foi ele quem disse que «um verso traduzido é um raio de lua... empa­lhado». Mas as qualidades musicais de som e ritmo de vaga indeterminação que as suas obras perdem, ao passar para o francês, são substituídas por outras: a singeleza patética como que se torna mais dolorosa à claridade nítida da nova língua; o humorismo, a um tempo irónico e ingénuo, como que se faz mais subtil nas formas do espírito latino; os versos, passados a prosa de ritmos incertos e sem rima, como que adquirem uma indeterminação, um vago especial que faz lembrar versículos bíblicos [9]. Recordo-me da impressão nova que me fizeram as poesias de Heine – que eu decorara no Colégio Alemão [10], onde fui educado – quando Eça de Queirós mas deu a conhecer em francês; e de uma noite em que ele me declamou enfaticamente, quase com lágrimas, tradu­zindo-as para a sua prosa fantástica de então, as páginas dos «Reisebilder» onde Heine – a quem a música sempre sugeria formas e cores literárias definidas – conta as transformações por que a seus olhos passara, num concerto, Paganini, tornado, pela evocação do sobrenatural rabeca, em galã cortejante do século XVIII, assassino por ciúmes, forçado, monge solitário junto ao mar e sob as abóbadas de catedrais, génio planetário entre as harmonias apoteóticas das esferas, por fim vulto espec­tral, curvo, humilde e grotesco, agradecendo os aplausos dos auditórios. Em muitas páginas das «Prosas Bárbaras» se encon­tra a influência desta lenda fantástica de Paganini. O conto «A Ladainha da Dor», que, em parte, tem o próprio Paganini por assunto, é directamente inspirado por Heine e por Berlioz [11]. «As Notas Marginais» parecem estâncias do autor do «Lyscher Intermezzo», do «Traumbilder», do «Nordsee».

Gerardo de Nerval foi, como se sabe, um dos iniciadores directos da França no Romantismo germânico. Foi ele o primeiro tradutor francês do «Fausto» de Goethe, e, como já disse, colaborador, na tradução francesa, de algumas das obras de Heine.

É evidente nas páginas das «Prosas Bárbaras» a influên­cia dos próprios escritos originais de Gerardo de Nerval, prin­cipalmente a dos misteriosos e fantásticos sonetos que começam:

 

Je suis le ténebreux, le veuf, l’inconsolé,

Le Prince d’Aquitaine à la tour abolie...

Ma seule étoile est morte, et mon Luth constellé

Porte le soleil noir de la mélancolie!...[12]

 

Júlio Michelet, pela originalidade, pelo poder evocador do seu estilo, pelo dom de criar vida íntima e fantástica, pela res­surreição mitográfica e profunda sobretudo, nos 8 primeiros volumes da sua «História de França» – da Idade Média, da Renascença e da Reforma – e, na «Sorcière», pela mate­rialização sentimental e pela explicação, a um tempo natural e visionária, da vasta lenda do Diabo – foi um dos país artís­ticos do primeiro Eça de Queirós.

  1. Heine – judeu alemão que aliás alguns críticos che­gam a considerar um espírito francês Gerardo de Nerval e Júlio Michelet representam, em França, profundas influências germânicas. Foi na forma vaga, íntima e completa das suas obras, que o «Romantismo fantástico» principalmente impres­sionou Eça de Queirós.

Por toda a parte, nos escritos das «Prosas Bárbaras», se encontram os mitos, as cores e formas do maravilhoso popular germânico, os aspectos evocadores da natureza teu tónica, as personalidades da História da Lenda do Norte da Europa loca­lizando, a cada passo, as fantasias do romântico português: são as Nixes, as Willis, os Elfos, as Ondinas, «as velhas mitologias do Reno», «as monjas dos conventos da Alemanha a quem o Diabo escreve», «o abade de Helenbach», «as abadessas de Vecker a quem o Diabo faz sonetos», «as mães melodramáticas dos Burgraves», «os pastores de Helyberg», «o abade de Tri­theim vendendo a alma pelo segredo da circulação do sangue», – que passam de contínuo nas narrações; e «as encruzilhadas da Alemanha», «as encruzilhadas da Floresta Negra», «as flores­tas da Turíngia», as alturas de Borxberg, onde a 30 de Abril se encanta a assembleia de Valpurgis, as catedrais da Alema­nha, o Reno, o mar do Norte, que é o «Nordsee» dos ciclos poéticos de Reine, «a Alemanha onde nasce a flor do absinto», onde se ouvem as velhas baladas da Turíngia e a guitarra de Inspruck [13], onde «a poesia popular foi a invisível que levou pela mão os trovadores.... às lareiras dos senhorios feudais...», «às brancas castelãs onde vão os Minnersingers errantes», onde se celebram as «quermesses de Leipzig» e se bebe a «cerveja de Heidelberg», onde Alberto Dürer desenhou a sua «Melancolia». onde correm as caçadas fantásticas do «Freischütz» e passam os imperadores do Santo Império, Fausto, Mefistófeles, Mar­garida, Lutero... Spohr, Weber...

O conhecimento directo das poesias de Carlos Baudelaire e a sua influência considerável em Eça de Queirós [14], só se deu de uma maneira importante, depois da dos autores que acabo de mencionar. A edição em volume das «Fleurs du Mal» só tarde lhe chegou às mãos. Recordo-me, na falta dela, de passarmos muitas noites na Biblioteca do Grémio Literário, procurando, em colecções antigas de revistas francesas, as poesias que Baudelaire aí havia pela primeira vez publi­cado.

Carlos Baudeknire foi um escritor essencialmente francês. Frio, impassível, coz recto de maneiras e toilettes, preocupado com a realização de uma certa simetria de forma, o mistério, o fantástico, foi, por ele, apenas intelectualmente sentido. Pene­trou, sem dúvida, em profundas, tenebrosas e inexploradas regiões do espírito; mas para principalmente revelar o que nelas é capaz de expressão 1ucidameme estranha. Nele o delí­rio é sempre crítico. a nevrose intensa, mas metodizada: as suas poesias, como se sabe, foram primeiro substancial mente redi­gidas em prosa. Cria na arte o frisson nouveau que Vítor Hugo celebra, mas compõe-no rigorosamente segundo as melhores formas da sábia língua francesa, com sintaxe directa e rimas ricas, pé a pé. vibração a vibração [15].

São, porém, estas- qualidades especiais que tornam decisiva a influência de Carlos Baudelaire sobre Eça de Queirós, mais tarde, no período de transição, quando pouco a pouco impres­sionado pelo Realismo e por Gustavo Flaubert, ele justamente denominou já então crítica a colecção de escritos prosas bár­baras.

Exerceu-se no mesmo sentido a influência das obras de Edgar Allan Pöe, que Eça de Queirós – ainda então ignorante de inglês, – só conhecia pelas traduções francesas do mesmo Baudelaire. A nitidez fria com que o escritor americano deter­minou o nevrosismo das «Histórias Extraordinárias», acentua-se ainda mais – privado, em todo o caso, da indeterminação lite­rária e flutuante da língua inglesa – nas formas lógicas e lapi­dares de um dos mais claros escritores da França.

Indico apenas, como já disse, as influências dominantes; mas o trato íntimo com quase todos os grandes românticos franceses – Musset, Gautier, Mallefille, Villiers de L’lsle Adam – é sensível neste primeiro período da vida literária de Eça de Queirós.

As influências portuguesas importantes que podem distinguir-se, são pouco numerosas e superficiais: – quase somente as da- poesia lírica popular [16], e as de alguns seus companhei­ros de Coimbra – João de Deus, Antero de Quental, porventura Gomes Leal [17]. Foi aliás o conto de Eça de Queirós, «O Milha­fre», que sugeriu a Antero de Quental uma das suas mais interessantes poesias [18].

A linguagem viva, isto é, falada, dos portugueses que Eça de Queirós encontrou em evolução, era de longa data já em parte formada por galicismos; por isso a acção reconhecível na sua forma literária é a língua francesa. Foi por meio de muitas das formas sintáxicas desta, e quase se pode dizer, do seu voca­bulário, que ele modelou o que quando a sua obra começou a ser apreciada, deu a impressão de uma como que nova língua portuguesa.

Mas esta «Introdução» às Prosas Bárbaras tão-somente tem por fim explicá-las rapidamente; não criticá-las: não lhe cumpre por isso mostrar que diferenças profundas há entre o fantástico alemão e o fantástico do escritor português, entre o humorismo subtil de Heine e a ironia poderosamente vincada de Eça de Queirós, entre a fantasia, ingénua, tranquila e vaga. dos homens do Norte e a imaginação veemente, exuberante, e imprevista do criador meridional; não tem enfim que provar como todas as influências notadas se sentem apenas à superfí­cie da obra do grande artista, essencialmente original, que escre­veu, na sua primeira mocidade, as extraordinárias páginas reu­nidas neste livro.

 

VI

 

Na intenção de Eça de Queirós os «Folhetim» da «Gazeta de Portugal» – apesar da sua desconexão episódica, – forma­vam série, obedeciam a um pensamento, constituíam um corpo, uma obra sistemática, cujos capítulos, separados por lacunas que nunca foram preenchidas, podem, cronologicamente, reu­nir-se nos seguintes dois grupos:

 

A

 

Sinfonia de Abertura (1)

1866

Outubro

7

Macbeth

1866

Outubro

14

Poetas do Mal (1)

1866

Outubro

21

A Ladainha da Dor

1866

Outubro

28

Os Mortos 2)

1866

Novembro

4

As Misérias: I – Entre a Neve

1866

Novembro

13

Farsas (1)

1866

Novembro

18

Ao Acaso (2)

1866

Novembro

27

O «Miantonomah»

1866

Dezembro

2

Misticismo Humorístico

1866

Dezembro

23

 

(1) Não incluídos na primeira edição.

(2) Com o título «A Península» na primeira edição.

 

B

 

O Milhafre (1)

1867

Outubro

6

Lisboa (2)

1867

Outubro

13

O Senhor Diabo (3)

1867

Outubro

20

Uma Carta (a Carlos Mayer)

1867

Novembro

3

Da Pintura em Portugal

1867

Novembro

10

O Lume

1867

Novembro

17

Mefistófeles (J. Petit) (4)

1867

Dezembro

1

Onfália Benoiton (5)

1867

Dezembro

15

Memórias de uma Forca

1867

Dezembro

22

 

(1) Tem uma introdução. omitida na primeira edição.

(2) Tem uma epígrafe e primeira parte. omitidas na primeira edição­

(3) Tem uma pequena «introdução., omitida na primeira edição.

(4) Tem uma parte crítica relativa ao baixo Júlio Petit, então cantando em S. Carlos, de Lisboa, omitida na primeira edição.

(5) Não incluído na primeira edição.

 

O primeiro «Folhetim» em data – Março de 1866 – as «Notas Marginais», – tendo por epígrafe as frases interrom­pidas de uma trova à Bernardim Ribeiro, e influenciado, como já mostrei, pela tradução francesa das poesias de Heine, foi inserido, na «Gazeta de Portugal», fora do seu lugar.

Porque os «Folhetins» têm uma introdução formal – uma «Sinfonia de Abertura», que se publica a 7 de Outubro de z866 – e continuam, quase sem interrupção, semanalmente, aos domingos, até 23 de Dezembro do mesmo ano. Uma longa ausência de Lisboa interrompe a publicação: dos primeiros dias de Janeiro a 1 de Agosto de 1867, Eça de Queirós reside no Alentejo, onde funda e redige o «Distrito de Évora», periódico político, literário e noticioso. Os «Folhetins» da «Gazeta de Portugal» recomeçam no dia 6 de Outubro, e prosseguem até 22 de Dezembro do mesmo ano de 1867.

A «Sinfonia de Abertura» [19] prepara, com efeito, o espí­rito para a ideia que os diferentes trechos depois vão desenvol­vendo. Neles a fantasia – livremente, irregularmente, fragmen­tariamente – esboça, sugere, deixa entrever, faz sentir essa ideia, em- episódios, em alegorias fantásticas e como que musi­ca)mente vagas.

Trata-se, na «Sinfonia de Abertura», das imagens dos Deu­ses, «desde os templos de Elora – onde eles andavam ferozes por entre os elefantes – até à cruz de Jesus, onde um rouxi­nol veio pousar cantando de amor» [...] «desde a matéria negra e informe, até às serenidades vivas para além das nuvens, das estrelas e dos caminhos lácteos».

Nestas viagem ideais os Deuses têm uma companheira que Intimam ente estabelece a sua comunicação com os homens, – a Arte.

Da história visionária desta – na longa peregrinação divina – a «Sinfonia de Abertura», faz-nos ouvir – adagio ou vivace, piano ou forte – algum trechos maravilhosamente instrumentados...

«Quando» os povos – na Caldeia, no Egipto. na Grécia – «plantavam tendas debaixo das estrelas»..., e, mais tarde, em céus de profundo misticismo cristão, nas regiões transcenden­tes, prodigiosamente luminosas, «onde as próprias estrelas são» apenas, «gotas de sombra...» [20]

Entrevêem-se, flutuando as imagens, as diferentes Artes:

A Arquitectura «que se abriu em transparência e transfi­gurações, como se quisesse ser, no espaço, a morada suspensa do espírito».

A Música enfim «liberta dos contornos, dos coloridos, e das gravidades, dissipando-se nos amolecimentos divinos...»

«...no terror da Natureza, onde o Diabo era visível... a alma alemã tinha todo a sorte de penumbras, de desfaleci­mentos, de pálidos silêncios que se exalavam divinamente no canto...»

Esvai-se «aquela melopeia grega esfarrapada pela aspereza do latim dos versículos...»

«Aparece Lutero, a alma alemã... que desfalecia naquelas melancolias imensas que Alberto Dürer revelou...»

Mas «a Música, que é a alma, o espiritualismo, o vapor da Arte, sumiu-se com a aproximação do Renascença que vinha cheia das rebeliões da carne...

Até que outra vez «se produziu, na nossa época, como a Grécia produziu a Escultura, como a Europa gótica produziu a Arquitectura...»

Chega-se assim aos tempos modernos:

«A alma começou a entrever cimos luminosos, por entre os astros, que se chamavam Homero, Ésquilo, Dante, Miguel Angelo, Rabelais, Cervantes e Shakespeare. A alma queria subir aqueles escarpamentos divinos para colher a flor do ideal.» [21]

A melancolia dó cor cio Romantismo...

«O tipo em quem se resumem todos os sofrimentos, todas as desesperanças, as melancolias, as incertezas, as aspirações. os lirismos desta época pálida e doentia: Fausto, Manfredo, Lara, Antony, Werther, Rolla, D. Juan...» que saem então de «toda uma- mocidade pálida e nervosa», de «toda uma Primavera....»

«O indefinido da alma de D. Juan revelado pela arte – eis aí a Música...», «aquela vaga Ofélia que se chama Música...», «uma voz Inesperada em que se entendem os des­consolados...» [22]

Constituiu-se enfim a música moderna:

«A Alemanha... a loura Alemanha de ideal seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de vapores e de constela­ções... A Alemanha que pensa com o doce ruído inefável», forma a sua «Música que é o vapor da Arte...»

E, ao lado dela, a «Música italiana.., tendo o quer que seja de palpável.., de ondeante como seda invisível».

Tal é, muito vagamente, a significação sentimental da «Sinfonia de Abertura».

Os escritos coligidos neste volume são assim, em prosa, os «Cantos Fragmentários» de um imenso «Poema Fan­tástico»:

O Universo é um infinito de almas. As coisas têm senti­mentos humanos que se disseminam, sem se alterarem, com a dissociação de todas as morres. Os que morrem vão difundir-se nas coisas sem nas decomposições inteiramente aniquilarem a personalidade, passando por formas inferiores no homem, e por formas purificadas na Natureza. Na alma é que se concebe, ria, o mal: o corpo, a matéria, essencialmente inalterável, volta sempre à pureza natural. Com sucessivos ideais, e sucessivas e profundas comoções, o homem gera, para rodo o sempre, deuses que o dominam, que vivem de uma vida sentimental e independente, mas que fogem, uns ante os outros, para des­vairados destinos, que se asilam, errantes, em todos os grandes centros de vida misteriosa da Criação, que sé fazem sedução sob a forma, ainda angélica e já irónica, do Diabo, que se dispersam na Natureza transformadora.

Com este vago tema geral, o «Poema» em prosa de Eça de Queirós propunha-se ser a expressão das mais profundas regiões do sonho, da visão, do indeterminável, do substrato fantástico que se encontra sob a realidade evidente; queria tor­nar Sonoras as capacidades de vibração musical que formam a intimidade de todos os seres – todas as vibrações impossí­veis de completamente reduzir aos sons calculados de uma escala musical; – era a fantasia tocando, um momento apenas, o mundo da realidade, para logo se afastar dele, voando, exilada pela incompreensão, pela insensibilidade, pela determina­ção nítida e clara das forças sensatas do espírito. E assim, após os belos deuses de mármore, que se escondem fugitivos nas florestas ainda enevoadas dos sonhos de religiões anteriores, os anjos sublimados ou réprobos do cristianismo – a própria ironia espiritualista de Satanás, o própria pálida e doce figura de Jesus – vão igualmente perder-se e ser esquecidos: morreu a fantasia. São fúteis todas as ilusões. Reina o cálculo demons­trável [23].

Heine também já contara o exílio dos antigos Deuses [24], e Michelet [25] recorda o brado, «Le grand Pan est mort!» [26] que se ouviu pelo vasto mundo ao aparecer de novas crenças.

O que caracteriza este momento da vida literária de Eça de Queirós é a sincera comoção do criar fantástico, sem excluir inteiramente, já então, a ironia–que mais tarde é o inse­parável instrumento de trabalho do seu espírito – fornecedora de tão delicadas velaturas, ou de toques tão vivos e reais a todas as suas obras. Consegue assim idear um inundo imaginário, um cenário de alegorias; sabe que esse mundo é ilusório, que só parece povoado por metáforas – e enternece-se, e comove-se, e comunica essa ternura e essa comoção. como se as produ­zissem realidades, sentindo e fazendo sentir, ao mesmo tempo. inexplicavelmente. que com efeito existe uma profunda reali­dade, vagamente simbolizada por todas essas imagens [27].

Como quer que episodicamente fale de assuntos inteira­mente reais – da América do Norte, de Lisboa, da vida de estudante de Coimbra – é sempre o mesmo substrato visio­nário da realidade para que o seu espírito procura expressão.

Esta situação especial do espírito de muitos artistas não foi ainda, parece-me, suficientemente estudada pela crítica e pela filosofia da arte.

 

VII

 

Eça de Queirós tinha, por aquele tempo, igual exuberância e originalidade de fantasia em verso; e sentia muitas vezes a necessidade de metrificar – quase o mesmo género de neces­sidade de som e ritmo que o fazia com frequência cantarolar, em voz baixa, pequenas frases musicais, sempre erradas, sem­pre fora de tom, mas sempre impregnadas das mais patéticas inflexões [28].

Os versos que compunha eram de um enorme relevo pela originalidade da concepção, dos epítetos e das imagem, e conser­vavam ainda a fluência romântica, apaixonada, fantástica, dos primeiros escritos, quando já ele a havia quase inteiramente eli­minado da sua prosa realista. Mas teve sempre grande dificul­dade em compreender e sentir os processos técnicos da metri­ficação.

Datam exactamente do mesmo período dos escritos coli­gidos no presente volume as linhas seguintes, que deviam, na intenção do autor, ser versos alexandrinos [29]:

 

Ó Satã tenebroso, trágico fulminado,

Tu vencerás em mim o íntimo Deus bom

Não com as armas bíblicas com que bateste os astros,

Mas vindo unicamente vestido à Benoiton!

 

Mas é de pouco depois a seguinte admirável poesia, mais tarde publicada com a assinatura de C. Fradique Mendes [30]:

 

SERENATA DE SATÃ ÀS ESTRELAS

 

Nas noites triviais e desoladas,

Como vos quero, místicas estrelas!.

Lúcidas, antigas camaradas...

Gotas de luz no frio ar nevadas,

Pudesse a minha boca inda bebê-las!

 

Não vos conheço já. Por onde eu ando!...

Sois vós místicos pregos duma cruz,

Que Cristo estais no Céu crucificando?

Quem triste pelo ar vos foi soltando

Profundos, soluçantes ais de luz!

 

Ó viagem nas nuvens desmanchadas!

Doces serões do Céu entre as estrelas!

Hoje só ais, ou lágrimas caladas...

Ai! sementes de luz mal semeadas,

Ave do Céu, pudesse eu ir comê-las!

 

Triste, triste loucura, ó flor’s da cruz,

Quando vos eu dizia soluçando:

– Afastai-vos de mim cardos de luz! –

Pudesse eu ter agora os pés bem nus,

Inda por entre vós i-los rasgando.

 

.............................................................

 

Hoje estou velho, e só, e corcovado;

Causa-me espanto a sombra duma estola;

Enche-me o peito um tédio desolado:

E corro o mundo todo, esfomeado,

Aos abutres do céu pedindo esmola.

 

Eu sou Satã o triste, o derrubado!

Mas vós estrelas sois o musgo velho

Das paredes do Céu desabitado,

E a poeira que se ergue ao ar calado,

Quando eu bato com o pé no Evangelho!

 

O Céu é cemitério trivial:

Vós sois o pó dos deuses sepultados;

Deuses, magros esboços do ideal!

Só com rasgar-se a folha de um missal,

Vós caís mortos, hirtos, gangrenados.

 

Eu sou expulso, roto, escarnecido;

Mas a vós já ninguém vos quer as leis

Oh! velho Deus, oh! Cristo dolorido!

Lembrai-vos que sois pó enegrecido

E cedo em negro pó vos tomareis. [31]

 

Dois episódios mostrarão o seu então quase permanente desejo de improvisação poética.

Uma noite no Verão de 1867 ou 1868, depois de cear» o Eça de Queirós, o Salomão Saragga e eu fomos de passeio, conv­ersando, até Belém.

A noite estava muito quente. Havia uma grande claridade de lua cheia.

Seriam umas duas horas de madrugada quando chegámos à praia da Torre.

Quase varado na areia, havia um barco. Metemo-nos dentro. A maré enchente fez-nos flutuar. Aí continuámos a nossa conversação até que o dia apareceu e o Sol se levantou por detrás da casaria e dos altos de Lisboa.

Desembarcámos então e dirigimo-nos para Belém, com fome, em busca de uma. taberna ou restaurante. Queríamos almoçar ali mesmo; continuando, à beira do rio, a nossa discussão. Mas conhecíamos os nossos três apetites, e verificámos, reunindo todo o dinheiro, que ele apenas pagaria um insuficiente repasto.

Que fazer?

– Tenho uma ideia – disse o Eça de Queirós, fazendo o resto consagrado de bater na testa. – Tenho uma ideia venial – acrescentou, erguendo tremulamente os braços ao céu: – Sigam-me.

E negro, linear, curvo, agitando a badine na mão como se esgrimisse, com passos largos e rítmicos que pareciam saltar obstáculos invisíveis, a sombra da figura esguia e imensa projectada pelos raios horizontais do sol-nascente, Eça de Queirós adiantou-se em direcção à calçada que leva de Belém à Ajuda.

Salomão Saragga e eu íamos atrás, famélicos, murmurando.

Seriam quase 5 horas da manhã.

Junto da Igreja da Memória o Eça de Queirós dirigiu-se a uma casa baixa, de janelas cerradas, e bateu.

Os habitantes da casa estavam ainda evidentemente no melhor dos seus sonos.

O Eça de Queirós explicou-nos:

– Mora aqui o Mancília, a quem vamos «dar um tiro». Só ele nos pode salvar neste deserto.

E continuou a bater durante minutos.

Por fim ouviu-se falar dentro da casa. Alguém abriu a porta resmungando, e vimos diante de nós uma cara larga, um bigode castanho, e uns olhos, entre terríveis e risonhos, sob uma grande trunfa de caracóis desordenados. Era o Lourenço Malheiro.

– Menino – contou o Eça de Queirós – estamos esfomeados após muitas horas de incalculável criação romântica. Jurámos não morrer antes de produzirmos três obras de génio. Dá-nos entretanto dinheiro para almoçar. Mas olha lá... Comunicámos toda a noite, espectralmente, no Restelo, com as armadas portuguesas que dali foram ao descobrimento da Índia e do Brasil: dá-nos pois dinheiros antigos e sugestivos –sequins, dobrões, florins, ducados, escudos, peças, ou, quando menos, pintos...

O Malheiro foi dentro e trouxe três moedas de cinco tostões.

– Ouvirás falar da tua generosa dádiva, Mancília – disse a Eça de Queirós, apertando-lhe as mãos com comoção e sole­nidade.

Voltámos a Belém.

E, enquanto na cozinha da taberna, onde bebiam mari­nheiros e uma guitarra gemia frases lancinantes do Fado, se preparava a pescada com batatas e a caldeirada que encomen­dáramos, o Eça de Queirós e eu, num quarto do primeiro andar, organizávamos o seguinte problema cuja glosa e solu­ção seria enviada ao providencial Lourenço Malheiro:

 

Cristo deu-nos o amor,

Robespierre a liberdade;

Malheiro deu-nos três pintos:

Qual deles deu a verdade?

 

O Salomão Saragga fez-nos uma sábia dissertação sobre a prosa rítmica dos livros hebraicos e declarou que, como semita puro, não pudera jamais fazer versos – mas comporia, para o caso memorável, um salmo penitenciário sobre a vaidade da pescada cozida e das caldeiradas humanas.

Almoçando, o Eça de Queirós e eu glosámos e resolvemos o problema em quatro quadras e décimas contadas ali logo, ao acompanhamento do Fado que continuava a ouvir-se chorar na cozinha do rés-do-chão.

Existem as minhas quadras mas perderam-se as décimas de Eça de Queirós, que com efeito sobrescritámos para o Lou­renço Malheiro, décimas cheias de graça e fantasia.

De outra vez dois dos nossos amigos – o capitão João de Só e o Zagalo – convenceram-nos a irmos com eles a uma espera de touros.

Na volta, pela madrugada, abancámos a cear numa tasca do Arco do Cego. Éramos, a esse tempo, um grupo numerosa. Apareciam amigos, conhecidos, desconhecidos. Nós, expansi­vamente, íamos convidando. Eles iam comendo, bebendo, desa­parecendo. Quando rompeu o dia e quisemos nós mesmos par­tir, descobrimos que havíamos gasta, em bacalhau, iscas de fígado, azeitonas e Colares, um dinheirão que não tínhamos na algibeira.

Comêramos num pátio onde havia galinhas, e uma. horta com couves e parreira. Ao lado, dava para esse pátio uma casa estreita, de janelas sem vidraças, onde se guardavam frutas, legumes secos e feno. Era madrugada.

O Eça de Queirós e eu, já sonolentos, resolvemos esperar ali, até à tarde seguinte, que o João de Sá e o Zagalo nos vies­sem desempenhar com o dinheiro necessário a pagar as nossas dividas.

Cerca do meio-dia acordámos sobre os molhos aromáticos do feno, rodeados por galinhas e pombos familiares. As paredes da casa onde dormíramos eram caiadas. Então – depois de almoçarmos ainda a crédito – com dois lápis. devorando fruta, principiámos a cobrir as paredes de um longo poema, difuso, indeterminado, lírico, humorístico, tristíssimo e hilariante, misto, como género do «Childe Harold» e «D. Juan» de Byron, do «Mardoche» e «Namouna» de Musset, do «Intermezzo» de Heine, e da «Fobia» de Francisco Palha. Este exercício durou 4 ou 5 horas. Duas das paredes da casa ficaram, até à altura de homens, cinzentas de versos.

Sinto hoje não haver copiado, e ter completamente esque­cido, a parte do Eça de Queirós nesta colaboração extravagante:

lembro-me nitidamente de que havia nessa parte trechos espan­tosos pelas imagens originais, pela fantasia, pela graça, pelo imprevisto.

 

VIII

 

Ainda dormíamos, um dia que o Eça de Queirós ficara em minha casa, quando à porta do quarto apareceu uma pequena cabeça de cabelo muito curto, faces pálidas, feições miúdas, ligeiro buço sobre os beiços grossos e uns olhos pequenos. piscos, risonhos e maliciosos. Por cima desta cabeça via-se outra de longo cabelo negro e crespo, nariz aquilino, olhos grandes, bigode audaciosamente retorcido, e mais abaixo uma terceira cabeço rosada, de olhos avermelhados, cabelos aos caracois louros, bigode louríssimo pendente.

Acordámos.

– Luís! Manuel! – exclamou Eça de Queirós bocejando.

– Chavarro! – concluí eu sentando-me na cama.

Eram o conde Luís de Resende, seu irmão Manuel [32], e o João de Sousa Canavarro. [33]

– Chegámos do Pano. Vimos buscá-los para jantar – disse o conde de Resende.

À noite jantámos com efeito no José Manuel, ao Cais do Sodré – um restaurante então célebre, a preço fixo, onde cau­sávamos devastação e horror, pela quantidade inverosímil do que comíamos, discutindo toda a sorte de assuntos ininteligíveis.

Nesse jantar demonstrou-se o vasto ridículo do Roman­tismo; descreveu-se, discutiu-se e aprovou-se o Realismo na arte; fez-se a apologia violenta e clamorosa da frieza, da impassibilidade, da serenidade crítica, da correcção nas ideias, nas maneiras, no estilo, na toilette – a apoteose de todas as correcções. Terminámos, depois da meia-noite, abraçando efu­sivamente o velho Andrews – o inglês que tinha uma lenda misteriosa, e ali jantou, durante anos, despejando por noite, em silêncio, com método, lentidão e continuidade, três garrafas de vinho do Porto [34].

Tempos depois o Eça de Queirós partia em: viagem com o conde de Resende: – «Le comte de Rezende, grand amiral du Portugal et chevalier de Queirós» – diziam os jornais do Cairo. Assistiram à inauguração do Canal de Suez, visitaram a Egipto e a Palestina.

Na Primavera de 1869, estávamos uma tarde – o Antero de Quental e eu – na casa que então habitávamos a S. Pedro ele Alcântara, quando entrou o Eça de Queirós, chegado, havia pouco, do Oriente, mas que ainda não víramos.

Trajava uma longa sobrecasaca aberta de cuja botoeira saía, com coloridos, um enorme ramo de flores; cobria-lhe o em relevo, um plastron que nos pareceu imenso, sobre a qual se erguia um colarinho altíssimo, onde a custo a cabeça oscilava. Os punhos, que botões uniam pelo centro com ama corrente de ouro, encobriam grande parte das mãos meti­das em luvas cor de palha. Vestia calças claras, arregaçadas alto, mostrando meias de seda preta com largas pintas ama­relas como ouro e Sapatas muito compridos, ingleses, de poli­mento. Tinha na cabeça um chapéu alto, de pêlo de seda brilhantíssimo. E olhava-nos com um monóculo que lhe estava sempre a cair e que ele, por isso, elevando as sobrancelhas e abrindo a boca em esgares sarcásticos, amiúde reentalava junto da lacrimal do olho direito.

Abraçámo-lo com entusiasmo e cobrimo-lo de epigramas.

Contou-nos casos das suas viagens, descreveu-nos tipos, cenas nos bazares do Cairo, no deserto egípcio – os guias, os sheiks, e à noite, em volta das fogueiras, os camelos, «de ex­pressão humorística, sorrindo ironicamente», e alongando as cabeças como que para escutar o narrador, por sobre os ombros dos beduínos atentos, graves e de pernas encruzadas. Analisou, minuciosamente, as sensações que lhe dera, no Cairo, o uso do haschisch, e as visões fantásticas que nos preparava – porque de e o conde de Resende haviam-nos trazido haschisch mistu­rado a geleia, a bolos, e a pastilhas que se fumavam em cachimbos especiais.

Mas pretendia haver voltado doentíssimo, de uma extrema debilidade, de uma mórbida impressionabilidade nervosa, e agitava, de contínuo, um grande lenço perfumado de seda branca, com que limpava a testa e cofiava a barba, que atirava obre a mesa, interrompendo-se para entalar o monóculo e exclamar em voz desmaiada:

– Meu Deus! como me sinto mal! Vou ter o meu delíquio! meu apopleté! Meninos, depressa, os meus sais... onde estão os meus sais?!...

E tirava, com efeito, da algibeira, um longo frasco de sais que sofregamente aspirava.

Ficará para sempre o prazer delicado de ler os livros de Eça de Queirós; mas perdeu-se o prazer, ainda talvez maior, de o ouvir, quando ele conversava, quando ele contava, quando ele representava algum personagem que quisesse imitar ou a que quisesse dar vida. Parecia, com o seu forte e inesperado poder de expressão, de imagem, de réplica, de graça, o repre­sentante de uma raça especial diversa da portuguesa, ou de qualquer outra, falando, em Portugal, uma língua nova.

Ouvimo-lo toda aquela tarde, jantámos com ele – não o podíamos largar.

As ideias estéticas de Eça de Queirós haviam-se, a esse tempo, modificado e entrado numa fase de transição.

Citava especialmente a «Salambô» e a «Tentação de Santo Antão» [35] de Gustavo Flaubert. Preocupava-se com a perfeição da forma, com a realização da cor verbal, segundo este último literato. Lia também a «Vida de Jesus, o «São Paulo», de Ernesto Renan, e as «Memórias de Judas», de F. Petruccelli della Gattina.

Foi sob estas influências que – com as impressões locais da sua recente viagem à Palestina – começou, em Lisboa, a escrever a «Morte de Jesus», publicada em folhetins, na «Revo­lução de Setembro», de 13 de Abril a 8 de Julho de 1870.

Mas escrevera desta obra, além do que se publicou –uns capítulos que ele me leu, e depois sem dúvida destruiu ou se perderam.

 

IX

 

Entre os «Folhetins» da «Gazeta de Portugal» e a «Morte de Jesus» na «Revolução de Setembro», medeiam quase 3 anos.

Passou mais tempo ainda. A evolução crítica do espírita de Eça de Queirós continuava.

Um dia veio mostrar-nos, ao Antero de Quental e a mim, o primeiro esboço, muito desenvolvido – tão extenso que levou várias noites a ler – de um romance intitulado «História de Um Lindo Corpo».

Foi, julgo eu, a sua primeira tentativa na chamada Litera­tura Naturalista ou Realista. A ideia fundamental da obra era, até certo ponto, se bem me recordo, a do «Affaire Clémenceau», de Alexandre Dumas filho; mas a execução, já, em grande parte, devida à influência dos processos da «Madame Bovary» e da «Educação Sentimental» de Gustavo Flaubert.

Pouco depois – em 1871 – Eça de Queirós descrevia, suma das Conferências Democráticas do Casino, o Realismo na Arte, expondo as ideias praticadas por Flaubert e Courbet, e teoricamente descritas, por Proudhon, no livro «Do Principio da Arte e do Seu Destino Social».

O fim da Arte foi, doutrinalmente, desde então, para Eça de Queirós, a reprodução exacta da Natureza, da realidade, impes­soal, impassível. A intervenção da ironia [36] representa a forma superior, a única forma admissível da opinião do artista se manifestar, e a correcção necessária para qualquer excesso de sentimento.

Foi por este tempo que eu lhe aconselhei a reunião em volume dos antigos «Contos Fantásticos» da «Gazeta de Portu­gal» e lhe reli, se não me engano, «As Memórias de Uma Forca», de que se havia quase esquecido [37].

Ao ouvir a sua obra primitiva, Eça de Queirós soltava gar­galhadas sarcásticos, gritos de indignação contra as imagens, os assuntos, o estilo: não compreendia como pudesse ter escrito assim, tão pessoalmente, tão apaixonadamente, tão vagamente, com tanto desleixo – berrava ele – na criação das imagens. na construção da frase e no emprego dos vocábulos.

Mas depois de uma longa discussão concluiu dizendo-me

– Tens talvez razão, com eleito – está claro, tens razão Talvez se deva republicar. isso em livro. – E acrescentou muito grave: – Mas sob o titulo crítico e severo de «Prosas Bárbaras».

Não pertence a esta «Introdução» descrever as subsequentes fases do desenvolvimento estético e da obra literária de Eça de Queirós, e eu devo resistir à tentação de demonstrar aqui como ele foi um dos artistas mais eminentes da Literatura por­tuguesa de todos os tempos – e de todas as Literaturas, nos últimos anos do século XIX.

Juntarei ainda, apenas, uma última recordação.

Eu lamentara sempre que Eça de Queirós houvesse aban­donado o mundo de criações fantásticas onde a sua imagina­ção tão maravilhosamente vivera algum tempo.

Um dia, no Verão de 1891, estava o Eça de Queirós em minha casa – por esse tempo, em Vaucresson, numa clareira da floresta de Saint-Cloud, não longe de Paris. Então, passeando sob as árvores do maciço de alto furte que rodeio os lagos românticos de Saint-Cucufas, contou-me ele: «Saberás, porven­tura com satisfação, que estou seguindo o teu antigo conselho: enevoei-me outra vez, totalmente, no fantástico – quase na­quele velho fantástico da Gazeta de Portugal, feito agora com menos abutres, e em prosa talvez menos barbara que a desses longínquos tempos: estou escrevendo a vida diabólico e mila­grosa de S. Frei Gil. E por sinal – dir-to-ei agora aqui. quando justamente nos achamos sob os arvoredos – que a nossa riquíssima língua portuguesa me parece deficiente em cores com que se pintem selvas; e também te confiarei que. tendo metido, por minhas próprias mãos, o santo bruxo numa floresta, não sei como o hei-de tirar de lá.»

Sintra, Setembro de 1903.

Jaime Batalha Reis

 

 

NOTAS MARGINAIS

 

.................... deste lado do rio

.................... o namorado,

E a moça dos olhos pretos

.................... do outro lado.

 

Mas o rio era profundo,

Não se podiam juntar.

Nunca o Sol encontra a Lua.

Tal andava aquele par.

 

.................... flores

... à água iam dar:

................. os beijos

Ficavam todos no ar.

 

A moça ............................

Disse adeus ao namorado:

E foi ................................

......... bandas do povoado.

 

Ele ficou amarelo,

Como a vela de um altar.

Mas se o rio ....................

Não se podiam juntar.

 

Anoiteceu ...........................

Por ali andou penando.

E por fim lançou-se ao rio,

E o rio ................................

 

............................................

............................................

Mas as flores foram prender-se

Nas suas mãos cor de cera.

 

Na margem do papel marcado, onde se viam ainda estes restos de uma velha cantiga, alguém escreveu estas notas desordenadas e bizarras.

 

I

 

Ó doce cantiga dos namorados da beira do rio, tu és uma verdade sempre nova! Ainda hoje o triste anda penando nas águas escuras; e os teus olhos, ó serena rapariga, são eter­namente falsos!

Não era assim que eu pensava no tempo daqueles nossos amores, ó nome que eu não escrevo!, daqueles amores tão doces, como a suavidade das nossas noites de Outono – tão coloridos e vagos como aquelas nuvens, que sempre no ar andávamos formando e desmanchando!

 

II

 

Ó voluptuosidade!, tu és a imagem do oceano nos teus caprichos. Ora te embalas docemente dourada com os últimos raios do Sol; depois dormes tranquila aos calores silenciosos: por fim agitas-te cheia de tempestades.

 

III

 

E quando eu te via, não via mais as flores, nem as pombas, nem as estrelas: mas quando pensava em ti, via-te delicada como todas as flores, voluptuosa como todas as pombas, luminosa como todas as estrelas.

 

IV

 

Ás vezes, solitário e silencioso, via passar na sombra, diante de mim, como uma legião de inspirações rapsódicas, os teus olhos húmidos, como violetas debaixo de água – depois os teus braços da cor do mármore – depois os teus cabelos negros e flutuantes... Enfim sobre um fundo maravilhoso tu aparecias superiormente serena, perfeita e luminosa!

 

V

 

De cada um dos teus desejos nascia uma flor.

E os meus suspiros, como a aragem serena da tarde, embalavam docemente aquelas flores virginais.

E as flores cresciam, cresciam até se tornarem magnólias grandes – o vento tomava-as preguiçosamente pela haste – e elas, inclinando os seus rostos pálidos, contavam-lhe os per­fumes de mais segredo.

E as magnólias iam crescendo até se tornarem numa árvore imensa. Então o vento enroscava-se pelo tronco, pendurava-se nos ramos e espalmava-se nas folhas sonoras.

E então a árvore estremecia, como num sonho agitado – depois adormecia – e dava em redor uma sombra serena e Consoladora.

 

VI

 

Quando te vejo, despertam no meu pobre coração as melodias e as doces melancolias de amor, como na Primavera se reanimam as aves e desabrocham as violetas.

Quando me falas, tudo se alumia com constelações apai­xonadas, e parece que passam dentro de mim todos os aromas das magnólias.

Mas se me dizes que me queres muito, sinto que vem logo um estranho Inverno descorar-me as faces, desfolhar-me a alma de todas as emoções e cobrir de geada todos os loucos desejos.

Oh!, nunca me digas que me queres muito!

 

VII

 

Tua irmã é carinhosa, e doce, e meiga, e casta, e con­soladora.

Tu és altiva, e inquieta, e desdenhosa.

Tua irmã!... Mas se ela não tem o timbre suave da tua voz, o luminoso fulgor dos teus olhos, a cor mimosa dos teus cabelos! Mas se ninguém tem a santa, a purificadora brancura da tua fronte!

 

VIII

 

Os teus olhos negros são como duas flores do mal. Os seus olhos azuis são como duas doces elegias.

E a flor do loto, a apaixonada e inteligente flor do loto, somente se abre à doçura imensa da Lua!

 

IX

 

Oh!, minha bem-amada!, eu já vi os teus olhos brilharem dolorosamente, como duas estrelas negras da melancolia: tinhas tu então rasgado um véu cor de papoula; que te cobra.

 

X

 

Tu estavas na igreja, curvada, e perdida nas tuas orações como uma fidalga espanhola.

Tinhas um olhar velado e piedoso – um olhar que só dizia – Jesus!

Mas nos lábios tinhas um colorido aveludado e luminoso, como o das flores vermelhas metidas na água; e na linha de sombra dos teus lábios corria um sorriso, que só dizia – Amor!

Talvez um dia ainda te encontre na igreja. Somente, então. os teus lábios estarão descorados como a fadiga e tímidos como o arrependimento. Somente então os teus olhos estarão fixos como os dos esfomeados; e terão aquela luz desejosa e ávida que têm as estrelas.

 

XI

 

Foi debaixo das árvores. Voavam as pombas brancas. Das lágrimas das folhas nasciam as violetas. Os castanheiros, grandes e concentrados, ouviam subir a seiva.

Foi lá que me disseste aquelas palavras, que me pareceram uma blasfémia que te vinha do coração. Eu fiquei hirto e nulo. como um sacerdote esbofeteado pelo seu Deus!

 

XII

 

Eu tinha todo o corpo coberto de lágrimas, e ela compunha as pregas do seu vestido!

As vezes o grande mar embala-se preguiçoso, enquanto as ondas pequenas – as pobres ondas – soluçam e choram sobre a areia.

 

XIII

 

Houve um tempo em que andavam exiladas dos lugares humanos as estátuas, que tinham feito a legenda da beleza antiga. Eram de mármore pálido, e a sua nudez era doce, melodiosa e velada.

Outrora, no tempo dos idílios divinos, quando ainda vivia o grande Pã, e havia deuses debaixo das estrelas elas viviam entre os jogos, as coreias, e todas as flores do bem: brancas, como as espumas iónias; serenas, como a lua de Delos; melodiosas, como a voz das sereias.

Agora andavam perseguidas, e errantes pelas florestas sonoras, e envolvidas na consolação imensa, que sai do canto das aves e da humidade das plantas.

As vezes um cavaleiro, batalhador escuro, que voltava das cidades de ouro e de coral, encontrava uma das brancas peregrinas, como uma aparição de languidez e de tristeza, evocada pela música das ramagens. E se ele por acaso deixava mergulhar nos seus olhos os raios brancos e aveludados dos olhos de mármore, ao outro dia os caminheiros, os que vão de noite cantando à mole claridade das estrelas, encontravam, junto das grandes árvores pensadoras, um corpo inanimado e lívido, como aquelas crianças das legendas, a quem as bruxas chupam o sangue!

Esta história é de há seiscentos anos, e de ontem à noite.

 

XIV

 

Por fim, tu eras simplesmente uma alma preguiçosa e uma pele macia.

Todos os teus pensamentos se moviam numa comédia bizarra e solta.

Abafavas burguesmente a música do teu corpo em xales pesados e largas saias; e a seda dos teus vestidos tinha um frémito indefinido de sarabanda e de cachucha.

 

XV

 

Eu andava perdido pela floresta escura e sonora. As estrelas, como grandes olhos curiosos, espreitavam através da folhagem. Eu era o tenebroso, o inconsolável, o viúvo. Errava pela floresta e a espaços cantava uma canção vagamente triste como o sussurro dos ciprestes – depois dizia palavras iradas e ásperas como os cardos – e mais adiante uma oração indefinida enchia-me todo o coração, e saia-me pelos lábios, como uma açucena branca, que se abre dentro de um copo e que o enche.

E por cima de mim, ó meus amigos!, ó minha bem-amada!, os ramos estendiam-se para os mil e mil pontos do infinito, como para mostrar às cantigas, às iras e as orações todos os caminhos do céu.

 

XVI

 

Tu pensavas que o teu amor me envolvia molemente como um largo vestido de seda, todo forrado de arminhos.

E um dia, ó minha bem-amada de cabelos cor de amora., vieste despir-mo de golpe, com um rosto colorido de risos.

Mas o vestido estava colado ao corpo – vinte vezes colado ao corpo; e tão rapidamente o tiraste, que me rasgou pedaços de carne, e levou-me jorros de sangue, e arrancou-me os cabelos, e deixou-me, ó minha bem-amada de braços de aço!, como uma forma longa, vermelha e indefinida!

 

XVII

 

Quando te amava, e pensava em ti, via-te soberba como o mundo, e eras para mim a terra, o céu e o mar. Agora vejo que tinha razão; porque és tão vária como o céu, tão fria como o mar, tão dissoluta como a terra.

 

XVIII

 

Eu abri aquele coração, que era delicado, pequeno e feminino. Descobri lá dentro vagamente uma floresta medonha, que se debatia e rugia, como uma multidão de doidos sinistros, todos vestidos de ramos e de folhas; na sombra andavam os olhos redondos e famintos dos lobos: por cima da folhagem mugidora esvoaçava, balouçada por ventos imensos, uma confusão de sombras, que uivavam e se arrepelavam, e ras­gavam com os ossos dos cotovelos as carnes moles, e lambiam o sangue que escorria das órbitas sem olhos, e davam beijos selvagens, enroscadas e desfalecidas em voluptuosidades mais mórbidas do que os orvalhos da Lua.

Depois fixei o coração da minha bem-amada, e vi-o outra vez delicado, pequeno e feminino – e tão feminino, tão pequeno e tão delicado que lhe dei um beijo!

 

XIX

 

Eu ia para baixo dos arvoredos, para junto dos rios, e olhava para as nuvens.

Tudo me parecia despovoado, e apenas como a sombra de uma vida distante.

Outrora, ó lendas de encantos e de amores!, ó rondas aéreas das fixes por entre a música dos canaviais!, ó ondinas húmidas!, ó danças nebulosas das willis! ó espíritos gentis e vaporosos, que andáveis nos aromas das violetas!, ó elfos pequenos. que adormecíeis dentro do cálice dos lírios brancos, embalados como num berço!, Ó doces e enganadoras criaturas que povoáveis e alumiáveis tudo como estrelas românticas!

Os rios, o céu e os arvoredos encobriam-vos, ó invisíveis!, mas como um tecido fino, que deixa passar todos os aromas e todas as cores.

E agora os rios, o céu e os arvoredos estão desertos.

Os arvoredos só contam, como velhos palradores, histórias de gigantes, loucas legendas de combates, e feitiços, e as aventuras das filhas da folhagem.

O céu tem apenas nuvens, que eram lentas e pesadas como os pensamentos sérios de um crânio imenso.

Os rios vão sempre cantando, e fugindo, como os amores da mulher.

 

XX

 

Andamos todos sofrendo. Passamos lentos, desconsolados, e alumiados pelo sol negro da melancolia. Nem largos risos, nem bênçãos fecundas. A esperança fugiu para além das estrelas, das nuvens e dos caminhos lácteos. Nos corações nascem amores imensos e loucos. E tudo porque um dia nasceu uma criança estranha, que foi alimentada com um leite mórbido como a Lua, e envolta numa túnica lívida como a morte!

 

XXI

 

Onde estará ela agora – a minha bem-amada, aquela Criança de olhar profundo?

Era naquelas almofadas que ela se recostava: era por ali que ela passava, e as flores do tapete, sob a pressão dos seus pés, viviam e perfumavam.

A pé!, a pé!. meus desejos! Acordai, acordai, e ide buscar-ma! Acendei todas as estrelas, e ide procurá-la pelos caminhos escuros! Desgrenhai os cabelos verdes das florestas! Assoprai a espuma das ondas! Dispersai as multidões! Que­brai os encantos! Ide procurá-la pelos astros! Despedaçai as tendas aéreas, onde vivem os sonhos!

Ide, ide, ó meus desejos todos! Eu ficarei esperando, solitário e silencioso, como um pombal donde fugiram todas as pombas.

 

XXII

 

«Perdi a minha bem-amada, e todo o céu está negro, e não há estrelas que me consolem! Só resta morrer.»

 

E o corpo diz à alma:

 

«Adeus para sempre! Ó exilada divina, tu vais morrer!, ó flor dos sonhos, tu vais desfazer-te com todos os teus aromas! Lembras-te, filha, como eu velava por ti! Eu andava pálido e triste quando tu sofrias; e, quando te alegravas, andava corado e vestido de risos. As vezes tu deixavas-me e subias sere­namente a torre esguia de marfim, onde habita o ideal; e eu, em baixo, esperava sem olhar, sem voz e sem movimento; e quando descias iluminada e séria, eu escondia-te voluptuo­samente – tu, santa, tu, purificada! E agora vais morrer; e nunca mais te verei, ó minha vaporosa filha! Eu vou andar errante perdido no mundo, por entre a matéria enorme. Vou andar nas árvores e nos astros, nas escamas dos peixes e na luz dos cometas; nas rosas e nos olhos das mulheres lascivas. Vou talvez cobrir as maiores tristezas vivas, ser a folhagem dos ciprestes, e o farrapo dos mendigos! E tu vais sumir-te, ó alma doce e dolorosa!.

E a alma diz ao corpo:

«Não chores. Devia ser assim. Tu és são e forte: eu sou delicada, indefinida, dolente. Adeus; e perdoa-me. Fui desde­nhosa contigo. Queria ver-te frio e mudo. Queria que fugisses daquelas molezas, que são feitas da voz perdida das sereias. As vezes queria, na minha ideal seriedade, que te desfizesses em orvalho e pó. para eu poder ir fundir-me na minha imensa alma de luz. Mandava todos os meus desejos para aquele paraíso de sombras, onde anda a alma de Ofélia.

E quantas vezes. ó meu corpo bem-amado, eu não seduzi os teus olhos a que seguissem as viagens imensas das estrelas! Então não sabia ainda que havia de cair e desfazer-me, como uma gota de água! Adeus! Em breve não te lembrarás mais de mim.

Há-de nascer-te uma outra filha, e depois outra, e outra. E tu hás-de estreitá-las apertadamente. ou ela se chame alma como eu – ou então se chame aroma – ou então se chame Som.

Adeus! Escuta. Se nas tuas peregrinações através da matéria encontrares os átomos daquela que eu tanto amem, não te juntes com eles; porque se vos juntardes no cálice de uma flor, a flor há-de mirrar-se; se for na luz de uma estrela, a estrela há-de apagar-se: se for nas águas, o mar há-de gelar-se...

 

SINFONIA DA ABERTURA

 

VIAGENS DOS DEUSES – A SUA COMPANHEIRA

LUTERO – RENASCENÇA – A ALMA

GERAÇÃO NERVOSA – A MÚSICA – D. JUAN

AS ÓPERAS – OS ITALIANOS E OS ALEMÃES

O QUADRILÁTERO

 

Eu ontem pensava nas viagens imensas que os deuses têm feito desde o tempo de Elora, onde andavam ferozes por entre os elefantes sagrados, até à cruz de Jesus, onde um rouxinol veio pousar cantando de amor e de angústias de amor. Foram desde a matéria negra e enorme até às serenidades vivas, para além das nuvens, das estrelas e dos caminhos lácteos.

Esta coorte imensa dos deuses vinda do fim do Oriente teve sempre uma companheira cheia de servilidades e de amores – a Arte.

Ao princípio, na Índia, quando eles andavam pesados de matéria entre as fatalidades violentas, ela abria-lhes nas mon­tanhas templos onde corriam rebanhos de touros. Depois no Egipto, quando eles choravam de desejos lascivos, e se des­faziam em águas espumantes de fecundações, ela edificava-lhes arquitecturas lívidas e frias como os horizontes do Nilo; e por entre as esfinges que dormem com os olhos abertos às poeiras, pirâmides onde escrevia num misterioso encruzilhamento de linhas os velhos segredos do fatalismo.

Depois na Grécia, quando eles plantaram tendas debaixo das estrelas, e fizeram os Olimpos todos sonoros de risos, ela ergueu na luz os templos harmoniosos e serenos e formou com os doces esplendores do mármore os corpos melodiosos que fizeram a lenda da beleza antiga: e assim, com aquelas atitudes ideais, escreveu a «Ilíada» da harmonia, da graça e da luz. Por fim, quando eles subiram para as regiões onde as estrelas são gotas de sombra, ela fez os templos góticos, deu à pedra todas as aspirações do espiritualismo, à pedra, que se abriu em trans­parências e transfigurações, como se quisesse ser no espaço a morada suspensa dos espíritos.

Depois na imagem pintada tirava ao seio, aos braços, à carne toda a vitalidade, para a colocar no olhar, que assim mais forte e mais vivo pudesse chegar lá a cima até aos meus deuses queridos.

Por fim, com a sua ideal seriedade, libertou-se dos con­tornos, e dos coloridos, e das gravidades, dissipou-se nos amole­cimentos divinos, e apaixonada e lírica – dispersou-se em sons; e assim nasceu a música.

Então pôde livremente unir-se lá em cima aos companheiros da sua trabalhosa odisseia.

Esta transfiguração da Arte foi na Alemanha. Quando veio Lutero. Nesses tempos a alma alemã, que estava na lei católica como numa solidão lívida, desfalecia naquelas melancolias imensas que Alberto Dürer revelou.

Nem ao menos se podia refugiar na grande Natureza sonora, e embalar-se nas consolações vivas, cheias de mel, de frescura e de sóis. A Igreja condenava os arvoredos, as devezas, as eflorescências, as verduras – todas aquelas vidas, verdes, louras e esplêndidas, como as formas do mal em que o Diabo era visível. Naquele tempo de terror, o carvalho era um es­pectro, e a flor uma maculação. E a alma, para ficar pura, devia passar na vida sem ouvir a voz docemente profunda da velha Natureza – voz que o catolicismo dizia terrível como a das antigas sereias.

Assim a alma alemã tinha toda a sorte de penumbras, de desfalecimentos, de pálidos silêncios, que se exalaram divinamente no canto.

Lutero concorreu para este alívio divino e livre da alma germânica, libertando a música.

A meiga consoladora tivera sempre até aí uma atitude hierática: havia só salmos, cânticos e versículos segundo o rito litúrgico: era a velha melopeia grega esfarrapada pelas asperezas do latim dos versículos.

Palestrina, Allegri, Pergolesi foram apenas reveladores de madrigais seráficos e de subtilezas eucarísticas. Ela estava envolta no dogma, vestida de latim, embaraçada de dificuldades, presa, como uma estátua, nas escuridades do santuário.

Lutero tomou aquela bela e fria estátua, despiu-a do latim, desprendeu-a das subtilezas, desligou-lhe os braços descamados, tirou-a do santuário, levou-a para o ar livre – para as largas palpitações. E a estátua delicada, rosada, meiga, consoladora, tomou pela mão a triste Alemanha e levou-a como a Beatriz mística pela orla das moradas santas.

Foi o momento de lirismo e de paixão da Reforma. Aqueles braços que se tinham erguido por entre as constelações caíram logo como asas molhadas. A música teve um momento o rosto aceso nas iluminações divinas, mas ficou de novo fria, hierá­tica – mármore pálido.

A música que é a alma, o espiritualismo, o vapor da Arte –sumiu-se com a aproximação da Renascença, que vinha cheia de rebeliões da carne.

A Reforma tinha sido feita em nome do idealismo, em nome da alma escarnecida: a Europa tinha-se esquecido da alma, da pureza, das castidades, do olhar da Virgem cor de violeta; ela caminhava nas púrpuras e nas fulgurações, seguida das pombas lascivas, com as brancas nudezas cobertas de veludos, escutando os contos da rainha de Navana, acompanhando em serenata profana as cantigas de Ariosto, entre os mármores frescos e os seios macios, desfalecida nas molezas da carne.

O magro Martinho Lutero veio bradar em nome da alma, contra as púrpuras daquele pálido paganismo.

E a Europa assustou-se: os papas tomaram atitudes severas e lívidas; e voltou-se a Deus como no tempo de Dante. Foi momentâneo este puritanismo da velha Europa. O sensualismo tinha visto pela primeira vez a Igreja, sua velha inimiga, tremer, e encaminhou-se feroz com as vinganças da carne.

A Renascença vinha depois daquelas lívidas castidades góticas, dos jejuns transparentes, das faces maceradas, daquelas chagas roxas de Cristo. Vinha com toda a sorte de livres palpitações e de rebeliões soberbas. Vinha cheia da Natureza e em nome dela; sentiam-se-lhe as sonoridades e os acres cheiros das florestas, e as vivas humidades dos mares. A carne ia aparecendo, tremenda, João de Leyde ressonava de noite, cansado de gulas, entre as suas catorze mulheres: começava a surgir o ventre imenso de Gargântua: sentiam-se fumegar as bodas de Gamacho; e para as bandas do Norte já se ouvia o riso do velho Falstaff.

A atmosfera da Renascença, pesada de aromas fortes e de sensualidade, das vaporações da languidez, não podia conservar a vitalidade àquela vaga Ofélia, que se chama a música.

A época da música ainda não tinha vindo: a Arte é como a vegetação – só cresce, só tem coloridos e sombras e repousos dadas certas circunstâncias de vitalidade: mas dadas essas condi­ções, ela nasce espontaneamente, e vem então cheia da alma dessa época, da sua inteligência, da sua fé, das suas tristezas, das suas desesperanças. A música, toda alma, não achou essas condições na Renascença, toda carne. A nossa época é que devia produzir a música como a Grécia produziu a escultura, como a Europa gótica a arquitectura e a era das monarquias e das academias a tragédia raciniana.

Com efeito, nunca, como neste tempo, as profundidades da alma, cavadas e alargadas pelas revoluções, estiveram tão fundas e tão ilimitadas. Durante a lei católica e os embrutecimentos monárquicos, a alma movia-se lenta como o mar, unida, calma, pesada, opaca e coberta de brumas. De repente as revoluções passaram pela noite sacudindo os seus fachos severos, donde saltavam constelações. A alma alumiou-se entre repelões brutais:

iluminaram-se longes surpreendentes: houve um desencadeamento de brados, de vontades, de violências: daquela claridade viva saíam desejos, sentimentos, paixões, amores, imaginações, epopeias nos livres turbilhões. Toda a sombra se ia retirando da alma, em amontoações rápidas e cobardes, com o ruído distante de um desabamento de bastilhas. Era uma ressurreição mais cheia de seiva e de violência que a vida flamejante das conste­lações, que a vida desvairada dos mares. Saíam daquelas profundidades santas, como evaporações de luz, as criticas, as histórias, as filosofias, as medicinas, as químicas, as imagina­ções, os dramas, toda uma vegetação divina.

A alma começou a entrever cimos luminosos, erguidos por entre os astros, que se chamavam Homero, Ésquilo, Dante, Miguel Angelo, Rabelais, Cervantes e Shakespeare. A alma queria subir àqueles escarpamentos divinos, para colher a pequena flor do ideal. Fia via moverem-se ali mil figuras, voluptuosas e sinistras. disformes. irónicas, apaixonadas, ciosas e lívidas: e nas claridades e nos círculos de um vento divino subirem por entre as irradiações dos astros, os tremores das tormentas, os gritos das andorinhas e os luares silenciosos, subirem gritos, lágrimas, soluços, risos, cantos, suspiros, bênçãos e imprecações. A alma via aquela vida flamejante acesa no espaço Como uma Jerusalém humana erguida na luz, ao sopro dos fortes peitos. E queria subir à montanha sagrada e andar por entre aquelas imaginações que sofrem, que sangram, que deliram, que são Romeu, Hamlet, D. Quixote, Orestes, Prometeu, Francesca de Rimini e Ofélia! Era um Patmos estranho aquilo, um promontório do pensamento, donde se avistava um mar, ora embalando-se sereno nos silêncios alu­miados, ora dando-se lascivo aos beijos do vento, ora indolente e melodioso, depois cheio de iras, de esguedelhamentos, de farrapos lívidos de água, de trágicos soluços do abismo.

Os que não se aventuravam naquela passagem ficavam sossegadamente na sua fé ordinária, na sua virtude, na sua sonolência; mas os que as atravessavam entravam nos sofri­mentos infinitos: quase que ficavam fora da medida humana: o que quer que fosse de ilimitado entrava neles, com bruscos desvairamentos. O homem sente-se como possuído pelo de­mónio Legião. Sente as inquietações descoradas, os abati mentos dolorosos, os amores infinitos, as ambições nevrálgicas, as imaginações lívidas, toda uma amontoação apocalíptica de estranhas vitalidades interiores. Vai pálido. Quem é ele? É aquele que sofre. E o infinito que ele tem em si tortura-o como a presença de Deus torturava as sibilas antigas.

E depois, ao mesmo tempo, viu-se que os prometimentos das revoluções tinham mentido.

Tinham-se visto tantos derrubamentos, tantas forças desva­necidas, tantos direitos divinos assoprados, tantas fulgurações de Sodomas apagadas, que não se acreditava que ainda pela sombra pudesse estar de pé. e actuante, alguma antiga fata­lidade. Pensava-se que a miséria, que a fome, que o erro, que a mentira, que as bruxas e as negruras históricas tinham fugido. como um fumo: mas aqueles lobos trágicos ainda andavam pela noite mordendo as almas.

O mal passava ainda, nas suas façanhas fulgurantes enre­dando nos vícios e nas tentações, fixando no homem o seu olhar fúnebre através das transparências doentias da noite, batalhando com as almas e fazendo-lhes a chaga incurável do pecado. E então, como que nasceu uma convicção tenebrosa: a impossibilidade do libertamento. Erguiam-se os braços magros e suplicantes: olhava-se pela Terra, a ver se não viria alguém da parte da Natureza, um monte, uma floresta, um mar, um vulcão, que tomasse o homem pela mão e lhe dissesse com a bonomia dos monstros: Vem, eu te protejo. Nada.

Nasceram então tristezas vagas como o luar, profundas como a noite. A Terra ficou como se o lençol de Cristo tivesse sacudido sobre ela os seus suores e as suas frialdades. Luzia um grande Sol, mas negro, o Sol da melancolia. Nem largos risos, nem bênçãos fecundas. A mocidade, pálida e nervosa, sofria, ajoelhava, torcia os braços, e um dia morria, e ia como uma vaga forma húmida errar no céu dos fracos. Vagavam as coortes dos pálidos, dos nocturnos, dos desgrenhados, de todos os errantes da melancolia.

Embalde se perdiam nas violências do mal, e entre os braços nus e os reflexos dos vinhos, riam e bebiam, descan­tavam à viola, deixando os gemidos aos ventos e os soluços às ondas: por vezes a alma justa passava, como uma Ísis velada, lançando-lhes uma olhar severo, e toda a repugnância daquela vida estéril e perdida lhes refluía aos dentes como um soluço de tédio. Houve um momento em que a Terra moderna foi como o antigo vale de lágrimas da imitação: as almas queriam voar para o cimo onde está o ideal, sereno, branco, consolador e purificador. Debalde. Como aquele saltimbanco esfarrapado e lívido que queria fustigar o tecto de lona com os seus cabelos soltos, e que caía sempre nas poeiras entre os esgares da populaça. os novos também queriam soltar-se, em impulsos nervosos, rasgar o azul, rolar pelas estrelas, e caíam ofegantes, suados, lacrimosos e desolados [38].

Então apareceu o tipo soberano, em que se resumem todos os sofrimentos, todas as desesperanças, as melancolias, as incertezas, as penumbras, as aspirações, os lirismos desta época pálida e doentia. Esse tipo chama-se Fausto, Manfredo, Lara, Antony, Werther, Rolla, D. Juan.

Molière e Hoffmann ambos fizeram um D. Juan. O conto de Hoffmann é a revelação do poema de Mozart. A maneira diversa por que foi concebida a grande figura de D. Juan pelo poeta e pelo músico revela os profundos dilaceramentos mo­dernos.

O D. Juan de Molière é ateu, incrédulo, aceita os nervos como religião e a devoção como uma ironia.

Tem paixões e arroubamentos, contanto que não lhe amar­rotem as rendas do seu colar.

Derrama-se em astúcias e respeitos para burlar o Sr. Dimanche, e um dia que seu pai lhe vem falar da honra, recomenda-lhe que tome primeiro uma atitude de púlpito. En­coleriza-se com Elvira, que quer que ele ame, e com Esganarelo, que quer que ele creia. Convida o comendador por descrença, e quando se ouvem os passos sinistros na escadaria, e a estátua lhe estende a mão, morre nas convulsões de medo católico.

O D. Juan de Mozart este tem uma lista de três mil namoradas: e todavia vai pelo mundo, angustiado e incon­solável, procurando a esperada do seu coração, como um sacerdote perdido que anda perguntando pelo seu Deus. Vai pelos povoados, por entre as arquitecturas e por entre as florestas, pela Espanha, por Florença e por Berlim, suspen­dendo as escadas de sedas a todos os balcões, e os seus desejos divinos aos lábios da noite.

Ele embala nos seus braços moles de languidez as trigueiras, as louras, as joviais, as melancólicas, as castas, as fortes, as impuras, as nocturnas, as luminosas e as esfarrapadas. Depois soluça baixo como numa penitência.

Voam em redor dele figuras transparentes mais delicadas do que as virgens de ouro fino de um livro de legendas e ele envolve nos braços aquelas sombras de corpos flutuantes, bebe-lhes toda a vida em beijos infinitos. Ele encontra Elvira: ama-a, como se as asas com que há-de subir ao infinito nascessem nos ombros dela. A alcova tem uma sombra augusta e nupcial; as luzes esmorecem; da guitarra sai aquela música mole, e indefinida, e queixosa, semelhante a um luar sonoro. Ela, com os cabelos soltos como os raios dispersos de um grande Sol negro, com um divino movimento lascivo, como se a embalassem os braços de um deus, deixa, no colo de D. Juan, virem como uma onda, sobre os seus seios nus, as suaves preguiças.

E ele sofre e torce os braços nas suas dores mudas.

Lá fora estão os loucos companheiros, que hão ir logo em cavalgada nocturna, cantando sob a moleza dos astros. E ele soluça nas suas dores mudas.

Ao longe estão na sombra os seus palácios cheios de fulgurações, de sinfonias, de cantos, de radiosas violências flamejantes, como no fundo de uma glória. E ele foge com as suas dores mudas.

O que tem? Não perguntaram? Tem a nostalgia do infinito.

O indefinido daquela alma revelada pela Arte eis ai a música.

Por isso ela é a voz espontânea de todos aqueles que, como D. Juan, andam curvados, esfomeados de ideal, nocturnos, empalidecidos pela Lua.

Todas as tristezas deste tempo encontram na música o respiradouro do livre azul ideal e vivo: e nas horas da dor, vão ali respirar aquele ar, onde derramadas as consolações divi­nas [39], Assim a música aparece neste século como uma voz inesperada em que se entendem os desconsolados. E os des­consolados foram toda uma mocidade pálida e nervosa, toda uma Primavera sagrada! Poucos foram os fortes, os serenos, de largos risos sonoros e de seios de heróis.

As almas tinham tomado as qualidades da noite, o vago, o silêncio, a tristeza e o esvaecimento!

A música saía espontaneamente destas dores que se queriam exalar, como outrora saiu do choro rítmico de Rama todo o divino poema da Índia.

A loura Alemanha de ideal seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de vapores e de constelações, devia sobretudo adoptar a música como a pilha cheia de vozes, há tanto tempo esperada pelo seu Coração mudo.

A música que é o vapor da arte é a maneira de pensar da alma alemã, que os seus instintos sagrados levam para as livres claridades e para os esvaecimentos.

A Alemanha pensa com um doce ruído inefável.

A música italiana, essa tem o quer que seja de palpável, de luminoso, de ondeante, como seda invisível: sente-se que por pouco que se condensasse, as mãos encontrariam como que um tecido de sol, uma moleza viva que se poderia vestir.

A música italiana sai profundamente da Natureza, como a alemã sai profundamente da alma; de resto a alma, a Natureza, são duas maneiras de ser de Deus.

A música dos maestros do Sul é sobretudo voluptuosa: parece sair dos movimentos melodiosos de um corpo feminino e lascivo que estremece de desejos surdos sob os veludos, que se torce nas sedas, em desfalecimentos e sobressaltos. As heroínas dos seus poemas musicais, Lucia, Norma, Lucrécia, Traviata, são um coro lírico que canta todas as voluptuosi­dades adúlteras, todos os desvairamentos. Mesmo Bellini, o meigo Bellini, contemplativo, dolorosamente queixoso, deli­cadamente lânguido, não pode arrancar a sua Itália do cora­ção, e derrama pela partitura da Norma todas as fulgurações do desejo, todas as imolações apaixonadas, todos os arrependimentos desvairados e soberbos.

E agora Mozart encontra D. Juan, o de lábios africanos, vindo de Espanha, dos calores silenciosos, dos seios rijos, dos beijos flamejantes; quem escreve o libreto de D. Juan e Lorenzo de Ponte, um meigo doido de Veneza, jogador. duelista, neto de Lovelace, com largos horizontes e largas cantigas e o peito cheio da religião da carne e do Sol. Mozart mesmo tinha estado na Itália e amava a alma lu­minosa do doce Rafael; e apesar de tudo, quando anima D. Juan. não sente o coração e o talento da sua branca Alemanha?

Não estão naquela criação todas as esperanças, todas as religiões, todos os amores, todos os idealismos, todas as desesperanças da pátria?

É isto que Goethe, o olímpico, sentiu profundamente, quando disse que Mozart era o único músico capaz de com­preender Fausto e de sentir Margarida.

E todavia a Alemanha e a Itália têm o mesmo delicado sentimento do grande tipo, que simbolizava na vida o tempo moderno. É por ele que se levantam no Norte e no Sul as vozes que o revelam no amor, no ciúme, na severidade, e na melancolia. Em toda a obra musical, sempre aquela figura se ergue, trágica e desgrenhada. É ele que tem ciúmes em Otelo:

que se desespera em Fidélio: que quer ser livre em Guilherme Tell: que cisma ao luar em Freischütz: são as suas recordações que cantam na Lucia, na Traviata, na Sonâmbula: é ele que cisma com o Oriente em Semíramis: que desvaira em Roberto, o Diabo; que sonha aventuras no Hernâni: e que sofre de amor e de venturas de amor no D. Juan, do divino Mozart.

Assim estas escolas outrora hostis vão-se fundindo, a Alemanha dando o seu iluminismo e a Itália a sua paixão.

E assim a Arte vai sendo a primeira a unir as pátrias pela reconciliação das almas.

Ainda há pouco, nos lugares sagrados em que o monge Lorenzo enterrou Julieta, se estendia brutalmente o feroz quadrilátero austríaco; é necessário que os antigos ódios históricos se vão esvaindo como o fumo das pólvoras; que os uivos das batalhas expirem nos lábios da Alemanha, cheia dei idealismo, que é a formosura da alma, e nos lábios da Itália, cheia de formosura, que é o idealismo do corpo. Como em Shakespeare o amor reconciliou as famílias, possa, no mundo moderno, a Arte reconciliar as pátrias. E possamos nós todos, os que estamos neste canto da velha terra portuguesa, com alma serena sob o céu claro, possamos ver, no dia das glórias e das fraternidades, o Romeu italiano, apaixonado e melodioso, estender a mão de irmão, por cima dos montes, àquela eterna e doce Margarida que se chama a Alemanha!

 

O MACBETH

 

AS DUAS ALMAS TRÁGICAS – SHAKESPEARE

PÃ – POR QUEM NOS SOFREMOS

A VOZ SEM VERBO – VERDI – A ITÁLIA

MÚSICA POLÍTICA – O PEQUENO MACBETH

REY-BALLA OS DEUSES E OS TIRANOS

 

Foi no tempo de Filipe II, trágico mocho do Catolicismo, que Shakespeare criou o seu drama épico de Macbeth.

É desde então, que aquela figura, que exala noite e humidade, erra pelo enorme céu negro, vivida no meio das tempestades, alumiada e crescida por um estranho reflexo de saques e de incêndios, enquanto os abutres, os corvos, os milha­fres, os gaviões, as corujas voam em círculos sobre a sua trá­gica cabeça esguedelhada.

As outras imaginações nocturnas do poeta, que se chamam Hamlet, Lear, Otelo e pisam com pé trágico o solo augusto da epopeia, todas têm junto de si o doce corpo de uma mulher para lhes embalar no seio as angústias tenebrosas, como num leito misterioso; para lhes fazer subir por vezes ao rosto a serenidade augusta do bem.

Nós vemos hoje essas formas femininas andarem impalpa­velmente, nas respirações de luz, em redor daquelas terríveis cariátides do mal: elas derramam-se sobre aquelas almas noctur­nas, como umas auroras vivas cheias de meiguices, de orva­lhos, de claridades, de fecundos descansos, purificadoras e trans­figuradoras.

Assim Ofélia, húmida dos musgos da água, segue o seu dolente e lacrimoso Hamlet; Desdémona derrama o seu perdão, como um óleo santo, sobre a agonia flamejante de Otelo e Cordélia estira os seus braços como asas de bênção e com gestos de coroação, ampara a cabeça desvairada do velho rei Lear. Macbeth, esse vai seguido na sombra pelos seus negros vassalos, os incêndios, as pestes, os derrubamentos.

Macbeth é o mal-fantasma. Ele não é daqueles lobos que andam, pela noite da história, dilacerando as liberdades e as pátrias. Não.

É uma energia inconsciente e fatal. Um pouco mais mer­gulhado na sombra, seria o igual de Satã. Quando a sua coroa reluz na escuridão parece que ai constelações devem seguir aquele reflexo terrível, curiosas de saber que sombria aven­tura vai ele tentar contra o Homem. Porque é certo que ele provoca a atenção do infinito, e tem misteriosas afinidades na noite.

Ele atravessa todo aquele drama como um espectro.

Quando as ondinas saíam fora da água, a namorar os moços formosos debaixo dos plátanos, denunciavam-se, as pobres, porque a orla do seu vestido estava sempre ensopada de água. Macbeth é assim: debalde se cobre de púrpuras; e se assenta aos banquetes; e fala de manobras de guerra com os seus capitães tenebrosos; e se queixa que lhe foge o sono, para parecer humano: os que se aproximam dele empalidecem, por­que a extremidade do seu manto tem uma orla sulfurosa.

Ele ouve a predição das soberanias flamejantes da boca esverdeada das feiticeiras, que se dão lascivas aos beijos do vento, por cima das folhagens, e se somem nos esvaecimentos tenebrosos, riscando a noite de sangue. Ao atravessar pelas horas negras os seus terraços entrevê o luzir dos punhais: não pode sentar-se aos banquetes resplandecentes, entre os risos sonoros, sem ver diante de si, com a lividez dos que fizeram a viagem maldita, o espectro de Banquo donde se exalam os castigos. Por fim, quando toda a Escócia sangra, porque passou Macbeth esmagando as cidades, assolando os campos, enegre­cendo o céu com o fumo – luto dos incêndios, não são os exércitos que o vencem: a Natureza ouviu as queixas humanas. os brados de justiça que saíam dos postes, das queimadas, das forcas, dos cemitérios; ouviu a alegria estridente dos abutres, dos corvos e dos milhafres, e destaca então uma floresta, que vai com ruído trágico esmagar o homem sinistro. Neste castigo Shakespeare é maior que esquilo. esquilo, quando vê Prometeu pregado no Cáucaso, olha desvairado, e vendo lá em cima a serenidade de mármore dos deuses de nomes sonoros, vem, pálido, ajoelhar junto daquele rochedo ideal e santo torno um altar, e apenas, sufocado, pode fazer um gesto supli­cante ao velho mar, para que mande as suas oceânides con­solar o vencido enorme.

Shakespeare porém quando vê Macbeth matar os reis, matar o povo, matar os homens históricos, derrubar os capa­cetes heráldicos, matar os instintos, matar os Macduffs, matar as crianças de olhar divino, as mulheres de seios fecundos, matar a pátria, corre desvairado, toma uma floresta e vem esmagar a feroz criatura sob um desabamento da santa Natu­reza: e aquele castigo passa com o ruído terrível do carro da justiça.

Este Adão do mal tem uma Eva monstruosa – Lady Mac­beth. Lady Macbeth é a serenidade do mal. Ela, com a sua ati­tude soberana e bárbara, tem a vaga semelhança de uma Juno homérica. Tem em si todas as grandiosas rigidezas, todas as frias austeridades da Natureza do Norte.

Ela é a energia selvagem, que de longe conduz as batalhas. Ela passa no drama como sacerdotisa do mal, predestinada e serena: até às vezes parece flutuar, no seu olhar frio, não sei que fúnebre resignação: as cóleras e os castigos – têm quase piedade daquela trágica mulher estéril. Ela não tem o amor, não tem a compaixão. não tem a consolação, não tem a melan­colia, não tem a maternidade. Alguém, feroz e desconhecido, lhe tirou aqueles amolecimentos onde há lágrimas, para lhe poder conservar a atitude hirta e rígida do mal.

Lady Macbeth é como unia estátua do crime, feita de mármores e de bronzes, e erguida ao longe numa lividez silen­ciosa, tendo por pedestal a noite. De vez em quando concebe, com lascivos estremecimentos de alma, as opressões e as violên­cias, e vem então lenta, deixa cair da sua mão estendida as agonias e as destruições, acende com um olhar as sinistras quei­madas pela planície, e volta para os lados da noite e da humi­dade e arrastando o seu manto, que faz a cada passo como uma onda negra e húmida de sangue, que a segue.

E no entanto, quando ela passa, o olhar perde-se na con­templação perigosa daquele busto forte, daqueles braços de aço, daquela testa que tem reflexos de opala, daqueles cabelos pode­rosos de um negro flamejante, daquele seio de forma bárbara. E então abre-se na alma, como uma grande flor do mal, um desejo, negro e reluzente. Aquele olhar atrai como uma profun­didade cheia de ecos, de vapores húmidos, e de mugidos de águas. E a alma, esquecida da justiça e do bem e dos pudores da piedade, quer atravessar as brumas do mal que cercam aquela mulher, e palpar os brocados luzentes e recamados que a vestem, destrançar-lhe os cabelos pelas moles sombras e dis­solver-se naquele olhar negro como uma flor se dissolve num vinho forte. O coração ri-se dos gemidos da Escócia e do último highlander, que morre contemplativo tocando as árias da sua montanha na última cabana, e lastima unicamente Macbeth porque tem para matar – só um Duncan! Sufoca o peito a negra lembrança de um desfalecimento lascivo, naqueles braços de mármore pálido, salpicados de sangue. A contemplação daquela terrível Lady Macbeth no drama de Shakespeare deixa o corpo frouxo e trémulo como se sobre ele se estendesse a nudez de uma deusa.

Foram estas duas figuras tenebrosas que Verdi quis revelar no seu poema musical de «Macbeth».

Há, sem dúvida, na obra imensa de Shakespeare, criações que devem dar a sua alma, a sua vida, a sua paixão, a esta música moderna, vestida de sensualidades pesadas, coberta com veludos de pregas moles e silenciosas. Porque em Shakespeare há tudo: há os corpos disformes feitos de lodo; os corpos trans­parentes feitos de pulverizações de luz, os corpos luminosos feitos de argilas ideais: há almas tio puras como músicas de constelações, tão terríveis como as fulgurações do desespero, tão voluptuosas como os beijos vermelhos do sol: ele semeou ali, com mio augusta, as energias, o amor, as enervações, os ciúmes, as angústias, as melancolias, a dúvida, a paternidade, a cobardia – eu sei?... Há toda a sorte de vestidos, sedas, far­rapos, luxos, púrpuras, sudários; umas cabeças têm coroas fla­mejantes, outras cabeças têm coroas de violetas: aquelas cria­ções têm nos lábios o lirismo, a ode, a imprecação, a sátira, a chocarrice: há arquitecturas, tormentas aflitas, arvoredos sagra­dos, luares e aparições: assim caminha enorme aquela obra, tentando a grande aventura da imortalidade! Para dar a vida e o sopro ideal a esta criação imensa, é necessário que venha a arquitectura, a decoração, todos os coloridos, os vestuários, o lirismo, e sobretudo, a melodia e a orquestra.

A música deve ser a voz de tudo aquilo que ali está silencioso sem ter a faculdade de se exprimir, e nós termos a possibilidade de o compreender: das estrelas, das pedras, das nuvens, das flores; de tudo o que, desde as ervas molhadas até às vias-lácteas, fala muito indefinidamente e com vibrações muito sobrenaturais, para que o nosso êxtase as possa escutar. Quando Julieta suspira ao seu balcão, desejando que o corpo do seu Romeu, depois de morto, seja dividido em pequenas estrelinhas, para que todas as mulheres se namorem da noite, em roda dela, as flores, as vegetações, aquelas moles divindades fluas, que se chamam as nuvens, o arfar brando do seio da noite que cria as aragens, a floresta divina de que nós apenas vemos as pontas das raízes que são as estrelas: tudo se balança naquela evaporação de amor, que exala a alma da lânguida mulher, luminosa na escuridão do seu jardim, como um dia­mante no seio de uma negra: e toda a Natureza está cheia de confidências, de murmurações e de coros. Diante dos pudores, das indefinidas meiguices, das sentimentalidades da alma de Ofélia; diante dos pensamentos de Hamlet, incertos e revoltosos como as ondas, como os ventos, como as nuvens que no ar se formam e se desmancham, o lirismo do celeste William empa­lidece como um herói derrubado: e então a música vem, na sua ideal serenidade, dolorosa e branca, revelar todas aquelas vibra­ções celestes.

E estas imaginações radiosas dos poetas devem entrar antes nos poemas musicais, do que as figuras históricas.

São aquelas criações maravilhosas que nos enlevam, que nos fazem sofrer, que nos transfiguram a alma.

Que importa que agonize Maria Stuart, e a doce Maria Antonieta, e Beatriz de Cenci, e a idílica Inês de Castro? Nós vemos estes desaparecimenos de astros, com os olhos enxutos, atentos à justiça de bronze da história: e, se nos interrogam sobre aquelas fatalidades, mostramos lá em cima o grande azul constelado.

Mas que Julieta sé definhe e que lance chorosa o seu amor fulgurante pelo espaço, para alumiar a fuga de Romeu até Mân­tua; que Desdémona diga a «canção do salgueiro» onde se morre de amor; que apareça entre os lutos reais o enterro vir­ginal de Ofélia, nos vamos desgrenhados e aflitos, perguntando por que caminhos misteriosos sobe lá cima até à radiosa bon­dade divina o coro suplicante das lágrimas.

No entanto parece que as imaginações terríveis e ferozes dos poetas não podem ser nobremente transportadas para a música: e quando os maestros querem subir aqueles escarpa­mentos divinos, caem sem fôlego junto da montanha sagrada: e só recobram a paixão, a alma, o lirismo, o sopro divino, diante das criações femininas, lúcidas figuras feitas de cheiros suaves onde habita a alma dos deuses, e de pétalas macias., e de vapores de luz.

Sem falar em Gounod que não compreendeu a grande figura de Fausto, mas pôs divinas vibrações nos lábios de Mar­garida, o grande Rossini não pôde erguer-se até à região onde desvaira a alma de Otelo, e ficou-se a chorar um choro celeste com Desdémona, debaixo do salgueiro.

Assim também Verdi, o luminoso Verdi, não compreen­deu aquelas trevas que Shakespeare derramou na alma de Macbeth.

Verdi, o músico querido dos Mexicanos, dos Americanos, dos Russos e de nós outros os Portugueses, é realmente o único compositor italiano verdadeiramente sério que ficou, depois do desgraçado Donizetti; Rossini retirou-se da arte.

Verdi tem um talento vigoroso, apaixonado mesmo, mas falta-lhe o lume santo, o desvairamento ideal, o Deus, aquele sopro de que fala a Bíblia. A sua música é profundamente materialista: é uma melopeia enérgica e estridente: é uma melo­dia colorida e pesada: há mesmo o quer que seja de rígido e de metálico naquela sonoridade sensual: ele sabe excitar as sen­sibilidades materiais, mas não consegue arrancar a alma do seu vestido de carne e levá-la, nua e possuída do infinito, pelas regiões das surpresas radiosas.

Todo o entusiasmo que Verdi tem alimentado na Itália provêm do momento grave em que se revelou.

Nesse tempo a Itália revolvia o poema convulsivo da sua reconstituição: os Italianos, que tinham adormecido naquela rede tecida com os raios do sol que se chama a preguiça, come­çavam a erguer-se e a experimentar os seus músculos frouxos e amolecidos de amor e de sonhos. Nesse momento Verdi foi pela Itália com um canto poderoso, em que os libertamentos batiam as asas. Aquela música apaixonada, ardente e vermelha, enri­java as enervações e couraçava as energias: e a Itália seguia com idolatria o poeta, que lhe soprava na alma com o amor das epopeias o amor das liberdades.

No Norte, quando a Alemanha, no tempo de Napoleão, começou a pensar no seu passado, como no deus por que havia de bradar no dia das batalhas, aparece uma música nacional, a de Spohr e Weber, que canta as velhas poesias da Alemanha, melodias feitas quase dos cantos populares que diziam outrora à tarde, nas encruzilhadas da Floresta Negra, rapsodos errantes: e quando a grande pátria, ouvindo as caçadas de Samosel pelas florestas da Turíngia, os estremecimentos dos elfos vaporosos pelos prados hircínios, e todas as velhas mitologias do Rena, vivendo, sofrendo, voando, sussurrando num livre canto, ergueu-se terrível; entoou também, ela, o velho canto de Lutero couraçado de ferro e atirando para longe a sua roca de Mar­garida, ficou, severa e iluminada, esperando junto do Rena, tendo a um lado o espectro da honra e a outro lado o fan­tasma da justiça.

Verdi ou instintivamente ou intencionalmente fez em. parte, no Sul, o que tinham feito os poetas do Norte: nem todos aqueles entusiasmos foram fecundos: as duas pátrias sangram ainda: e as flautas tristes do Norte, e as guitarras gemedoras do Sul só sabem aquele choro lento e doloroso de Roma quando perdeu a esposada da sua alma: e não é verdade que a esposada dos povos é a liberdade? Pobre Itália! Pobre Alemanha! Deus as envolva num olhar de bênção e de repouso, neste tempo em que estamos, que é a véspera das agonias!

Mas voltando ao «Macbeth», é certo que Verdi fez daquela figura desvairada um herói italiano, melodioso e mau. Por toda aquela ópera anda errante um terror transparente e mole. Será porque a música, a meiga errante do espiritualismo, não pode compreender aquelas duas almas pavorosas saídas da noite e pesadas de matéria? Não sei. O certo é que aquela ópera parece uma transfiguração do velho Macbeth: parece que o velho herói lívido entrou neste tempo moderno, amoleceu-se em voluptuo­sidades, perdeu-se em melancolias, teve as febres silenciosas da alma e assim, frouxo, doente, descorado, vem com Lady Mac­beth contar a sua velha legenda trágica sobre uma cena res­plandecente. Com efeito aquela ópera faz saudades do drama de Shakespeare: era ali que Macbeth erguia o seu rosto eriçado de barbas, e invocava Hécate de três cabeças: era por aquele ter­raço onde mugia o .vento que eles atravessavam esguedelhados e convulsivos para a câmara de Duncan.

E assim enquanto aquelas figuras líricas se adiantam para a orquestra de poderosos alentos com as gargantas túmidas de melodias gemedoras e violentas, a alma pode deixar o seu querido corpo, e ir para cima dos mares e dos continentes, para os descampados da Escócia, ver passar aquelas sombras unidas de Macbeth e de Lady Macbeth, que, segundo as legendas, pas­sam de noite nos clarões das tempestades uivando manobras de batalha.

E depois pode a alma voltar, para ouvir aquela confusão de ruídos coloridos e apaixonados, de melodias pesadas que murmuram, que estremecem, que gemem e que gritam, e que se vão desvanecendo em volta do corpo e cobrindo-o como uma onda. Enquanto se canta «Macbeth». a alma pode andar longe pelo país das quimeras.

De resto a cantora Rey-Balla encarna magistralmente a Lady Macbeth italiana de Verdi. Não é aquela mulher bárbara de trágicos sonambulismos. É uma heroína lívida, magra, ner­vosa, viperina, rancorosa, cheia de movimentos metálicos e ásperos e de frequentes iras nevrálgicas. É a verdadeira Lady que Verdi entreviu, semelhante às heroínas da sua velha Itália dos mascarados, dos duelos, dos envenenamentos e dos adul­térios com máscara de veludo.

As grandes figuras históricas vão-se: os Tiranos vão-se: os Deuses vão-se, vai-se a Arte.

Agora os Deuses e os Tiranos andam lá em cima pela imensidade negra; os Deuses arrastando-se na poeira luminosa; os Tiranos levados serenamente por um vento do infinito. serenos com as mãos sobre a espada. Às vezes encontram-se lá em cima, e vão,. por entre as ténebras da noite, contando as suas antigas façanhas flamejantes; e os olhares dos Deuses e os sorrisos dos Tiranos riscam a noite de sangue. Por vezes uivam comandos de batalha, e fazem as ilimitações todas sonoras e oscilantes como unia floresta, e as suas respirações cansadas dobram os fantasmas do vento. E depois os Reis, conchegando as suas púrpuras rotas e desbotadas, e os Deuses segurando os seus diademas de falsas estrelas, apontam sobre a terra negra, adormecida em baixo, o lugares onde eles passaram nas glórias e nos triunfos, e só se vêem nesses lugares cinzas, fumos que sobem, evaporações de sangue, virgindades perdidas, cúpulas pesadas de igrejas, vapores de lágrimas perdidas, amontoações trágicas de sombra.

E quando assim estão, começa a noite a tornar-se pálida e triste como uma noiva lasciva que sente vir o dia, e todo o céu começa a estremecer formidável de auroras: então aqueles espectros passam com olhos dolorosos, e vão transfigurados pela dor e feridos pela luz, desvanecendo-se nos esvaimentos misteriosos: em baixo nas cidades, nas vilas, nos povoados, acorda sereno, cantando a alvorada do trabalho – o povo imenso!

 

POETAS DO MAL

 

OS GRANDES ABORRECIMENTOS – SEM REFÚGIO

TÉDIO – PÖE, FLORES D0 MAL, SALAMBÔ

O EGOÍSMO

 

Conhecem Põe, Baudelaire e Flaubert? Estes homens só vêem o mal; os corpos magros despedaçados e podres. as vegetações líricas que luzem como no fundo de um sonho asiático, as nuvens ferozes onde vagueiam os danados do amor, os orvalhos caídos das frias esterilidades da lua, os uivos horríveis das almas que têm medo, os ventos que torcem os corpos dos enforcados, as pestes, as covardias do desespero – todas as flores do mal esplêndidas e negras.

Na alma humana só encontram pecados teimosos e arre­pendimentos covardes.

Se por acaso contemplam um dia o esvaecimento da luz, sereno e severo como a alma de um herói, julgam ver, na cate­dral de vapores acesa sobre o mar, um sacerdote – Deus, tomado de trágicas iras, arremessando pelo espaço os santos símbolos! Vêem-no rasgar pelas nuvens a sua alba flamejante: vêem-no lançar a hóstia – que é o Sol – às águas soluçantes: pensam ver o ar, pesado de lirismo, vergar ao sopro da sua respiração indignada: é ele que faz a noite com a negra irradia­ção do seu olhar: é ele que dispersa pelo ar, como um milhafre dispersa as penas de uma pomba, as folhas rasgadas do missal e é um pedaço do livro santo que flutua, onde nós julgamos ver um astro.

Estes homens com as suas violências radiosas, com os seus ideais desesperos, com as suas ironias, os seus espiritualismos estão no meio destes espíritos modernos da arte, baixos, ali­nhados, esbranquiçados e lisos como uma catedral gótica entre as casas caiadas de uma vila. Eles abafam nestas atmosferas pesadas com o fumo das indústrias.

A Natureza está vazia: as florestas meneiam a sua cabeça louca e frouxa; o céu tem o calmo olhar dos idiotas; os rios vão sempre fugindo e cantando como os amores das mulheres. Eles não podem derramar a alma nas bondades errantes que a Natureza tem; a Natureza mesmo quase que já não existe; per­dida como está entre as edificações, as granjas, as indústrias, as fábricas, os estaleiros, os circos – parece uma pouca de erva passando esmigalhada entre os dedos de um homem!

Eles não têm ao menos o grande refúgio do amor.

Passam é verdade junto deles mulheres de seios de âmbar, sérias entre os veludos silenciosos: quando elas assim passam a alma dos poetas anda humilde e perdida pelas lamas como um fumo que o vento abate: é o vento do materialismo que assim as verga; se a alma se eleva para ir buscar a flor de bênção ao interior daquele belo corpo feminino, se lhe vai pousar nos olhos negros e macios, se entra radiosa, como para um noivado santo, se escorrega até ao coração, sai logo aflita, dizendo: não vale a pena deixar esta lama para subir àquela alma.

Assim o amor não os pode tentar: e a glória também não: eles vêem que hoje os grandes espíritos sobem sempre para os pedestais em que hão-de aparecer – estátuas do futuro – como um truão sobe para o tablado – entre os brados inertes, os uivos, as imprecações da multidão – que vai passando para os esfriamentos do túmulo.

Mas podem refugiar-se na antiga poesia, no doce Virgílio, nos êxtases de Catulo, nas sentimentalidades de Petrarca – em toda aquela doçura untuosa, serena, fresca, consoladora: não podem: hoje aquelas santas colinas humildes foram invadidas pela multidão dos críticos, dos realistas, dos esquadrinhado­res – multidão esfomeada de materialidades, que anda revol­vendo o terreno para lhe explicar as camadas, que destrói todas aquelas meigas flores do bem para lhes contar as pétalas. que descascam as árvores sagradas donde caíam os versos para Ovídio para lhes estudar as fibras e os filamentos.

Então aqueles homens são tomados de uma doença horrí­vel – que doença? O tédio.

O tédio estende silenciosamente a sua rede em volta da alma.

A pobre alma estava cheia de auroras, de frutos, cantando nas madrugadas: vêm até ela as bondades condescendentes do Sol; acendem-se constelações dentro do peito; o inte­rior fecundo e vermelho do coração anda cheio de corpos de mulheres: tudo se transfigura: o choro é um coro de rouxinóis: a ira, a palpitação de asas de uma ave soberba. Os nossos olhos têm reflexos distantes de paraísos desconhecidos: os braços têm gestos soberbos que falam aos astros, e se se queixa uma planta e se suspira uma onda, nós estendemo-los com um gesto de consolação e de amparo; às vezes, nasce também na alma a melancolia, mas então a melancolia é a voluptuosidade da tristeza.

Então vem o tédio passo a passo: escurece. Espalha-se uma moleza errante; calam-se os coros interiores: aparecem os deses­peros lentos, as angústias frias: os braços caem nos desconsolos como as asas de um pássaro ferido: as antigas alegrias, as bon­dades, as energias, as coragens, apodrecem e vão-se em pó, e vê-se então a alma, nua, gelada, rígida, opaca, má, como quando se retiram os panos bordados e radiosos de um altar aparece o pau duro, tosco, escuro e carunchoso: somente debaixo dessa madeira do altar está às vezes a imagem do Cristo morto: na alma há também um Cristo morto – a fé.

Então aqueles tristes vão procurar uma região nova e apaixonada e lírica onde não ouçam a voz rouca do materialismo. Assim outrora os monges iam para os desertos da Nítria para não ouvir suspirar pelo céu ainda orvalhado pelo mel do Hibla a alma errante do paganismo. Porque eles pensam que, assim como o ocaso do Sol é feito por um Deus terrível que despe­daça as relíquias santas, o ocaso da arte é feito pelo mate­rialismo que despedaça as sociedades.

Então como vão para uma ideia nova, desordenada e bizarra, aparecem vestidos com uma forma nova, desordenada e bizarra: eles sabem que as mutações arcádicas estão gastas: que as velhas árvores donde se dependuravam liras clássicas estão secas: que os caminhos trilhados pelas togas brancas de pregas hieráticas Levam ao deserto. Assim esta revolução na arte feita pela banda Baudelaire não é, como diz a crítica ordi­nária, hemistíquios, prosas, rimas e medições que se alteram: é todo o poema divino das sociedades modernas que se vai aos farrapos. As formas novas são ó sintoma da sua dissolução.

Os espíritos não podem respirar o ar moderno pesado de materialismos: sufocam, sofrem, gemem; e então, como o abor­recido que cantou Henri Heine, pedem os ciúmes., as violências escuras, os rasgões da carne, os roubos, os beijos entre lábios tintos de sangue.

Então aparecem estes livros – «As Novas Histórias Extraordinárias», «As Piores do Mal», «Salambô», etc. O pri­meiro é de Edgar Põe; entre aquelas páginas passa o demónio da perversidade, ora hirto e lívido como os ciprestes, ora galho­feiro, jovial, ruidoso, às cambalhotas, mostrando os rasgões do fato, às risadas mostrando a podridão dos dentes, sinistro e debochado como um palhaço das esquinas.

Pöe não tem o vago iluminismo de Hoffmann, nem a fria imaginação de Darwin. Põe diz a realidade dos terrores e das visões, a realidade. O seu livro é a epopeia desvairada do sis­tema nervoso.

O outro é Baudelalre; Baudelaire é o viajante terrível que vai através do mal da carne, como, guardadas as proporções, Dante vai através do mal da alma. Baudelaire vai aos rios e toma os cadáveres dos afogados inchados e roxos que dormem no colchão da areia, cobertos com os farrapos lívidos da água; vai pelos túmulos erguendo os sudários e mostrando o mole apodrecimento das carnes; vai apanhar o sangue coalhado e pinta o rosto com ele, e vem assim, terrível, escancarar a boca entre as rimas e as molezas da forma; vai às alcovas húmidas buscar as mulheres descarnadas e lívidas que roem os cotovelos de desejos e traz aquela coorte medonha, e vem por entre as ceias ruidosas, os cristais, as mulheres luminosas, as grandes pregas harmoniosas das sedas e atira confusamente aquele feixe de formas soltas, deslocadas, rotas e gangrenadas sobre os seios cor de âmbar e sobre as palidezas suaves, sobre os sentimentos tépidos, sobre as mios macias.

Flaubert escreveu a «Salambô». Aquela alma, depois de ter criado em «Madame Bovary» a imagem desoladora de uma harmonia, de uma perfeição, presa nos braços gordos e toscos do materialismo, refugiou o seu desalento nas sombras do mundo antigo. E toda a antiguidade está em «Salambô». Mathô é a carne ardente e feroz, cheia da força do sol, da terra de África.

Spendius é a astúcia serena e fria da Grécia. Amílcar é a alma austera das antigas repúblicas. Salambô é a lascividade mística da Síria. Schaabarim é a alma desolada dos sacerdotes politeístas vergando ao peso de seis mil deuses. Hanan é a fúne­bre corrupção de Cartago. O exército de mercenários é o resto do mundo: ali estão os lusitanos enormes, os gauleses brancos abundantes de palavras, os líbios perversos: e todo o mundo bárbaro, terrível, obscuro, imundo, lento, coberto de lepras.

Já vêem que estes poetas não respeitam o egoísmo humano, o gordo egoísmo humano, sonolento, entre as almofadas, cer­cado de jornalistas, de críticos, de poetas que limes esfregam os pés com os aromas profanos, cantando: «Tu és forte, e sábio, e previdente, e profundo, e belo, e sereno!» E entanto ele flácido de preguiças vê passar as Imaginações saídas dos romances, dos poemas, dos dramas modernos, pequenas, límpi­das, castas, piegas, viperinas, burguesas. Então vêm aqueles poe­tas, atiram-lhe de encontro às paredes do cérebro as suas estra­nhezas, as suas ferocidades, as suas violências, dão-lhe as frial­dades do medo, os calores da angústia, os suores do túmulo, e ele vai-se, pisado, abalado, lívido, deslocado e coxeando.

São poetas livres, despedaçam as fórmulas, amaldiçoam os industrialismos.

Não têm aquela melancolia cheia de lúcidos reflexos de astros, de Byron e de Musset – a menina Byron. Estes, quando se vêem repelidos pelo materialismo crescente, erguem-se solu­çantes e bons, e mostram a alma coberta de lágrimas, vergada como se sobre ela caíssem as tristezas de um deus. Os outros não: combatem a carne com a carne; cantam a podridão; aqueles, Byron, Musset, Vigny, refugiados na Bíblia, mostra­vam a beleza daquilo que o egoísmo humano despreza; estes, Pöe, Baudelaire, Flaubert, mostram o horror daquilo que ele adora.

Às vezes também dizem as adorações do materialismo, mas do materialismo transfigurado, envolto no vapor subtil como se sobre ele se lançasse o vestido claro e lúcido de um Deus.

Mas a grande verdade, etc.

 

A LADAINHA DA DOR

 

Ao Sr. A. A. Teixeira de Vasconcelos

 

O músico Berlioz ao voltar das bandas moles da Itália e das ilhas da Grécia de lívidos escarpamentos sem sere­nidades idílicas e sem mirtos – recebeu nas ruínas das Sorveiras, junto de Nizza, onde trabalhava na sua sinfonia de «Harold» toda cheia de mar, esta carta vinda de França.

 

«O pintor Lyser voltou da Boémia com a sua doidice ele­gíaca. Pedi-lhe o retrato de Paganini como tu querias, mas ele disse-me em segredo que fora o Diabo que lhe guiara a mão naqueles traços, e que ia conservar uma lembrança do Diabo, seu velho amigo. Tem esse cartão numa pasta entre um dese­nho do velho Cláudio Loreno e um retrato de Dante.

«Ontem, ao cair da tarde, estávamos ambos sentados junto da janela. O ar entrava todo emaranhado nos cordões verdes das trepadeiras; nós estávamos calados e abandonados à doçura divina das coisas.

«O pobre Lyser, com os seus grandes cabelos caídos, tomou o retrato de Paganini e desenhou em volta toda a sorte de entrelaçamentos de folhagens, de penumbras delicadas, de dissi­pações de nuvens: e entre aquelas eflorescências escreveu os nomes de Dante, de Hamlet, de Romeu e de Sancho Pança, dizendo com a sua voz dolente: – Paganini tinha alguma coisa de todos estes homens. – E derramou-se em palavras sobre o espírito do músico onde havia materialismos de rei bárbaro e doçuras de apóstolos. Depois, no cimo do cartão, desenhou a figura de Ofélia levada pela corrente, e um morcego; com as asas dobradas, e olhando tristemente, de entre as canas debru­çadas sobre o rio, o corpo branco sumir-se levado serenamente como no seu elemento, e os grandes cabelos louros emaranha­dos nos musgos da água: e por baixo escreveu: Duvida Ofélia do meu amor, da verdade luminosa das estrelas, dos coloridos das folhas, da luz branca e séria do sol. E depois, com a voz séria: – Paganini sobretudo era um morcego.

«É assim aquele pobre Lyser com a sua triste loucura. Sabes que lhe morreu a irmã? No dia do enterro, Lyser acom­panhou o corpo com a sua rabeca debaixo do braço e fusti­gando com o arco as ervas molhadas. O dia estava nublado. – Minha pobre irmã – disse ele – que nem pode levar presa no seu lindo vestido uma réstia de sol. – Sabes a religião que Lyser tem pelo sol. Passa dias inteiros deitado entre as frescuras dos caminhos, sob a grande luz sonora do sol. Nessa noite em que a irmã foi enterrada, .ele foi sentar-se junto da cova tocando as velhas árias de Lully, e de vez em quando compunha as dobras de um xale que tinha lançado sobre a sepultura. Assim esteve perdido numa saudade mais doce que a lua, e mais profunda que a noite. Como o céu estava nublado, ele dizia, de vez em quando à cova: – Não tenhas pena, cá fora nem estrelas há.

«Foram-no buscar de madrugada, e ele vinha lento, depen­durando-se do fato do coveiro como uma criança, para ouvir os uivos dos cães e o chiar dos carros.

«Dias depois voltou ao cemitério e o coveiro não o deixou entrar o pobre Lyser ficou junto das grades com os olhos cheios de lágrimas. – uma coisa de pressa que tenho a dizer a minha irmã – dizia ele com a voz passada de suplicações. O coveiro estava dentro falando com uma mulher de cabelos cor de vinho; e como a quisesse prender num abraço bárbaro e rijo, a rapa­riga, ao fugir-lhe, caiu sobre uma sepultura toda coberta de violetas; o coveiro ergueu-a, sacudiu-lhe a terra dos vestidos, e deu com o pé rude na terra da sepultura resmungando: – Mal­ditos tropeços!

«Por fim, veio abrir a grade enferrujado ao pobre Lyser e com uma grande voz: – Vá, que já não são horas de entrar sem licença. – Lyser sumiu-se entre os ciprestes, debruçou-se sobre a cova e escreveu na brancura da pedra: Luísa, se lá em cima encontrares a estrela Vésper, pergunta-lhe de que tintas se faz o cor-de-rosa da tarde e os reflexos de roxo-pálido; preciso sabê-lo: ontem dei o teu xale branco a uma pobre: dize-me se queres que te traga alguns dos teus vestidos: olha, se passares de noite por estas alamedas não te aproximes da casa do coveiro, vive lá uma má mulher.

«Dias depois chamou-me e disse-me – Sabe? começo a acreditar que minha irmã morreu. Por isso, peço-lhe uma coisa, que quando tiver alguma camélia não a esmague, talvez seja feita do seio, da pobre rapariga. – E afastou-se, arras­tando os seus sapatos como se estivessem pesados de água: mas de repente voltando-se e com a voz cheia de suplicações: – Nem as violetas, talvez sejam feitas dos olhos dela. – Então tomou-me pela manga e levou-me para entre árvores onde havia o sol, o coro das colmeias, os cheiros de feno e os coloridos frescos dos frutos: ele ia com a face toda tomada pela cor quente e fecunda da vida: – Não sabe? – dizia-me o pobre Lyser com a sua voz lenta e doce como um escorrer de mel: – não sabe? Muita rapariga que dizia as cantigas das eiras e dançava debaixo dos plátanos morre nos frios de Fevereiro. Há-de ter visto, por esse tempo, os pobres namorados que andam chorando sobre ás covas com às cabelos caldos. Então aqueles corpos das raparigas desfazem-se. Alguém que sabe e que vê aproveita aquelas formas e aqueles coloridos; da pele do seio, fazem-se pétalas de camélia, dos olhos tristes fazem-se violetas, da cor dos lábios fazem-se Os rainúnculos, dos hálitos perdidos fazem-se os cheiros bons, e do olhar, da meiguice, do desejo delas faz-se a Primavera, o doce ar das madrugadas de Maio. De modo que de noite as flores que estão nos vasos na sombra das alcovas conversam das suas existências passadas; falam das danças ruidosas à guitarra; daquela manhã em que a ponta do seio veio espreitar pela abertura do vestido os olhos do namorado; daquela tarde em que a face se vestiu de cor-de-rosa para receber a visita de um bigode louro; daquela noite em que as pálpebras castas acudiram aos olhos, que estavam perdidos e quase a dizer sim; e se uma noite espreitar as flores que estão nos castos paraísos das alcovas, há-de vê-las sair dos vasos, entrelaçarem as formas e os coloridos e fazerem na sombra a vaga semelhança de um corpo feminino.

«É assim o pintor Lyser. Fez-se noite naquela alma, e, por isso, ela tem todas as qualidades da noite, o sombrio, o vago, o negro, o azul, o lânguido, o estrelado.

«Agora deseja morrer e ser enterrado numa paisagem casta, assoalhada, murmurosa,. para se julgar protegido e coberto pela alma errante do seu amigo Gáudio Loreno.

«Quando a luz do sol se retira, prende-se, como um manto de seda que se arrasta entre ervas secas e ramagens, ao dorso de uma onda, ao cimo ruidoso de uma árvore, à proa de uma barca de pesca; assim aquele espírito ao retirar-se daquele corpo se prende ainda a tudo o que na vida é superior, e elevado, e meigo, ao amor, à melancolia, à compaixão, à arte.

«Quando cheguei do Báltico soube que Paganini se retirara de França: tive a respeito dele grandes conversações com o rabequista Sica, que pensa em fazer para o Verão unia pere­grinação pela Síria.

«Estávamos horas debaixo das tílias, falando do quimérico espírito de Paganini, até que as estrelas apareciam, contempla­tivas e augustas. Sica contou-me toda a legenda idílica e bár­bara de Paganinh os seus amores em Verona, aquela cantora empoada, de mãos macias e sentimentos velados e grandes sedas, e aquele abade de fivelas luzentes, com quem ela ia debaixo dos veludos silenciosos, num entrelaçamento de braços, em doce e azulada viagem pelo país de Citera. Depois con­tou-me toda a sua trabalhosa odisseia das prisões e dos degre­dos: aquelas noites em que ele, poderoso e solitário, entrava na confidência dos negros soluços do mar: noites dolorosas das lágrimas, em que aquele trágico homem estava, enroscado nas palhas do seu cárcere, vendo ao longe o mar Mediterrâneo amo­lecido por aquela moleza que escorre dos astros, e da voluptuo­sidade da noite desconhecida e fecunda.

«Dizia-me Sica que Paganini lhe contava, que sempre às horas escuras via as fivelas do abade luzirem na noite e dizia Paganini: – Às vezes o remorso é bondoso, encarna-se em coisas que têm uma vida, uma carnação, um sangue, uma moleza, que se podem abrandar, a quem se pode suplicar; mas aquelas five­las metálicas, inertes, rígidas, eram um remorso frio, surdo, inflexível, faziam-me subir ao rosto o suor do antigo Josafá.

«Dizia também Paganini, que uma das suas grandes tor­turas no cárcere fora assistir pela visão à decomposição fria do corpo da pobre cantora Marietta.

«Ele via aquele corpo sem óleos, nem sacramentos, debaixo das terras limosas e das crescências túmidas de seiva, esver­dear-se entre as ossadas.

«Via de noite perto de si aquela terrível decomposição das carnes, aquelas brancuras inertes, aquelas moles curvas sugadas pela terra.. Via, aterrado, os cardos, as papoulas, as gramíneas, os ciprestes serenos comerem a sua bem-amada fria, muda, esverdeada e inchada!

«Então ali tomou o ódio da Natureza: ele atravessava sem­pre as frescas fecundidades, as searas, todas as verdes formas da vida., os campos e as granjas, com um horror judaico e místico. Só perdoava ao mar: e às vezes, depois, na Dinamarca, ia para junto das águas do mar do Norte, tocar na rabeca as velhas cantigas escandinavas e as baladas rúnicas; e desejava muitas vezes que depois de morto o seu corpo pudesse nadar durante a Eternidade nos verdes embalos da água.

«Foram terríveis todos aqueles anos de prisão.

«O rabequista Sica contou-me depois todas as viagens de Paganini com os estudantes da nova Alemanha, indo pelos burgos, pelos povoados, pelas cabanas de lareiras sonolentas, cantando às estrelas e dizendo, na sua rabeca, sob a lucidez do céu do Norte, as velhas baladas da Turíngia.

«Contou-me o amor da duquesa de Weimar por Paganini; e como uma noite de concerto em duas cordas da rabeca ele disse o diálogo misterioso de duas vozes que se falavam debaixo do arvoredo, depois entre as sedas de cortinas ao fresco ar de um balcão, e depois ainda na terra debaixo das raízes dos ciprestes, e, por flui, indefinidas, ténues, luminosas, entre o encruzamento sagrado dos raios dos astros.

«Era uma alusão desconhecida que encheu de lágrimas a duquesa de Weimar.

«Aquele homem ultimamente tinha o peito cheio de mortos. Dele retirara-se o elemento humano; já não tinha a compaixão, o riso, o amor, a indignação, a paternidade, a emoção.

«Lento, com os seus cabelos caídos, lívido, com as terrí­veis rugas da face semelhantes aos ff de uma rabeca, com as mios transparentes, cheias de agilidade, e de deslocações com os seus grandes casacos escuros de pregas hieráticas, atravessava os povoados, os silêncios, as cenas resplandecentes, poderoso e solitário, procurando aos pés, sempre, uma cova onde não se esfolhassem árvores, onde não nascessem ervas, sem saber que na noite, na humidade, nas choças, nas pedreiras, nas estradas, nas costas, há uma raça que sofre, e que há beiços lívidos da fome, e que há febres silenciosas, e amores desertos, e suores de angústia, e apodrecimentos de honras, e uivos de almas aflitas, e lentos e frios esvaecimentos de pudores e de belezas.

«Sica contou-me também o grande poder musical de Paga­nini e a sua atitude nos concertos cheia de abaixamentos e servilidades; e contou-me também, meu amigo, aquela noite gloriosa e flamejante em que se tocava a tua sinfonia de Romeu e Julieta, e cm que ele veio, entre os aplausos e as vozes de coroação, ajoelhar e beijar-te as mãos, dizendo com os olhos cheios de água – Tu serás Beethoven!

«Ultimamente, como sabes, tinha uma doença de garganta que o emudeceu; trazia então um livro branco em que escrevia o que pensava nas conversações da noite; aquela doença não o vergou mais; ele tinha já o silêncio estoicismo da alma, e refugiou-se na mudez estoicismo do corpo.

«Passava então com o rabequista Sica horas inteiras tocando rabeca ou guitarra. Ultimamente preocupava-o muito o ter de deixar a sua rabeca só, depois de morrer; e escrevia no seu livro: Quando eu estiver para morrer pensar que a hei-de deixar aqui, entre estas mulheres de aço, estes jornalistas lívidos e os agiotas calvos, no meio desta multidão esfomeada de materialidades! que se há-de encher de pó a um canto, ela, cheia de alma e de legenda!

«No entanto ele acreditava que no dia em que morresse a sua rabeca havia de estalar e os pedaços apodrecidos na terra ir-se-iam confundir com o corpo dele nos átomos das árvores, ou das estrelas, ou das águas; e escrevia então: Que felicidade poder ter a mesma folhagem, dar a mesma luz, lançar a mesma espuma.

«Ultimamente, porém, olhava para a rabeca com um ar triste e descrente; às vezes tomava a guitarra e ia tocar nela para junto da rabeca, com um gesto de carícias brandas, com um lento correr de dedos como se estivesse vestindo as cordas com a harmonia viva que tirava da alma; ele queria pôr todos os seus interiores divinos naquele gemer de guitarra, para fazer morrer de ciúmes a sua velha rabeca abandonada.

«Por esse tempo, um dia que ele estava com Sica, escre­veu assim: Já me não fio na minha rabeca; acredito que ela não há-de lamentai a minha morte; não morre, não! Há-de dar-se ao primeiro que a tomar nos braços; há-de dar-se com sufocações lascivas, e dizer-lhe os mesmos segredos místicos, voluptuosos e iluminados que me dizia a mim: que importa à rabeca que o pobre músico apodreça debaixo da terra? Ele escrevia isto com os olhos molhados de água.

«Ultimamente o músico Sica necessitou ir à costa nor. manda, porque tinha lá seu pai, velho marinheiro, morrendo junto das águas; e quando voltou coberto de lutos e soluços, disseram-lhe que Paganini tinha partido para o Sul e o sr. Geor­ges Harrys todo corado de saúde para as bandas do Hanover. Adeus, não te demores em Nizza, acaba depressa a tua sinfonia do Harold e recomenda-me ao nosso velho amigo – o Mar.»

 

Tempo depois o homem que tinha mandado esta carta recebeu estoutra de Berlioz.

 

«Estou ainda todo frio das visões desta noite. Sabes que moro nas Sorveiras, que são umas ruínas junto do mar, pedras bem conhecidas por toda a populaça do ar: abrigam-se ali, como numa pousada, os viajantes sombrios da atmosfera, que são as chuvas esguedelhadas, os ventos uivadores, os granizos que escarnecem, as moles brumas e os nevoeiros. Em redor estão espalhados os casebres dos pescadores todos conchegados como as ovelhas quando anda temporal no monte; a costa é terrível e no entanto às vezes o mar tem serenidades só seme­lhantes ao calmo olhar de um idiota.

«Este povo trigueiro de pescadores sai logo de madru­gada para os embalos da água nas suas lanchas esguias, carun­chosas, todas cheias de legenda e do cheiro das pescas: logo na alvorada se sente em baixo, junto da voz da maresia, aquelas cantigas fortes de deitar redes, robustas como calabres, e sãs como o sol. É uma bela vida! Durante o Verão, nas sestas silenciosas do mar todos andam na pesca, os velhos, as crianças rotas, resplandecentes e sujas, e as mães de forte seio essas belas mulheres da costa da Itália que eram tão desejadas pelos marinheiros gregos e fenícios, duros e calvos, que tinham visto Mileto e Abido e Corinto.

«Agora que o Outono começa, esta pobre gente deixa as redes rasgarem-se ao vento, e vai para o interior dos povoados juntar-se nos campos à pobre gente curvada que lavra e que semeia.

«Ontem fui, numa barca de pescador, até ao ponto em que o Var desagua. Sabes que é neste tempo que as pombas emigram para o Sul; reúnem-se em bandos gemedores e vão por cima do Mediterrâneo fazendo nódoas brancas pelo ar azulado. Quando voltei, o Sol descia: o barco vinha levado de um modo silencioso e casto pelos serenos embalos ondulosos. o mar tinha uma serenidade olímpica.

«Eu tinha-me abandonado às molezas da tarde, e todo estirado à popa via o céu cobrir-se de uma cor rosada, como de um rubor de castidade. As estrelas começavam a aparecer; donde vinham elas? E donde é que vem a noite de tão longe que vem suada de luz? Eu via-as tremer e pensava que elas deviam ter frio e medo, lá em cima, nas solidões, sem deuses. Àquelas horas também aparecem as ondinas na água; quem sabe se as estrelas são mulheres de um elemento desconhecido, que vêm de noite em sereias sagradas celebrando um rito ele­gíaco? Quem sabe se são árvores agitadas por um vento, que deixam cair estes negros frutos, a melancolia, o amor, a sensualidade?

«Depois ri-me destas imaginações; mas no meio do Medi­terrâneo, ao anoitecer, num barco de pesca, vendo ao longe as linhas moles da costa de Itália, e sobre os montes os fogos dos pastores, não podia ver as estrelas como nas verdades e nos positivismos modernos e esqueci Arago, Berthelot e o velho Laplace.

«E depois pensava como desejava morrer, que era nos braços da bem-amada; sol da minha natureza, sem dores mor­dentes, sem febres silenciosas, e ir assim entre as fulgurações do desejo e os deslumbramentos da alma e os beijos vermelhos e transfiguradores e os entrelaçamentos divinos sob o seu olhar santo, ir num lento desmaio da carne para a frialdade da terra e ali sentir-me lentamente dissipar pelas humidades fecundas, pelas seivas brancas, pelas espumas das nascentes, pelas raízes das florescências!

«Ora quando assim vínhamos, vi na linha escura e áspera da costa uma massa sonora de arvoredo e por entre a sombra uma luz elegíaca.

«– Que luz é aquela, meu velho? – disse eu da popa.

«O pescador suspendeu as rijas ondulações dos remos, que ficaram direitos, escorrendo, todos esverdeados dos musgos da água.

«– Aquela luz, senhor, é da casa das Serenas; a estas horas está ali abandonado um pobre homem que morreu lá ontem. Tinha chegado aqui há pouco, e era mais amarelo que a cera. do altar; até na costa diziam os velhos que ele se vendera ao Diabo; Deus me perdoe por falar assim nisto, de noite, em cima das águas. Ah! senhor, diziam que tocava na sua rabeca maldita que nem o Céu... Chamavam-lhe Paganini.

«E o pescador meteu os remos na água, cantando com um embalo da voz:

 

Altra volta gieri bele

Blanch’e rossa com’un fiore

Ma ora nó. Non san piu biele

Consumatc dal'amore.

 

«E depois voltando-se e com a voz ensurdecida pelo clamor das marés:

«–E os padres agora não lhe querem cantar as suas ladai­nhas e enterrá-lo em terra santa. Se fosse meu parente e tal sucedesse ia para o fundo do mar: debaixo da água anda muito corpo de patrões e pilotos: eles não morreram, não; andam ainda vivos; e quando um pobre homem que tem mulher e filhos deita as suas redes, em dia de vento, quando o peixe anda arredio, eles costumam afugentar a pescaria com ramos de coral para as bandas da rede!... – O pescador falava assim lentamente com a voz pesada da religião das legendas.

«Eu levava os olhos rasos de água e pensava que nunca tinha ouvido tocar o triste Paganini: sempre que ele deu os seus concertos, não sei que frias necessidades me prendiam longe da França.

«Entrei nas Sorveiras com o peito cheio de friezas e de mortalidades. Quis trabalhar mas sentia-me dissolvido na pesada materialidade das coisas.

«Tomaram-me uns moles cansaços e fiquei sem pensa­mento, sem desejos, inerte e silencioso como um pombal donde fugiram todas as pombas. Sentia apenas o miar dos gatos lascivos e os uivas dos cães que andam de noite na praia esfo­meados. O mar estava pesado de gemidos sob a noite lenta e mística.

«Ora quando assim estava ouvi distante, como vindo dos lugares hieráticos das nuvens e das vias-lácteas, o gemido de uma rabeca. – Quem é que, àquelas horas, numa costa áspera de ventos imensos, quando os pescadores dormem nas frial­dades da cinza da lareira enrodilhados nos farrapos dos man­téus, tocava assim rabeca junto do mar?

«Fui amedrontado ao meu antigo baldo gótico e olhei pelas transparências doentias da noite. Nada. As ondas chora­vam o seu choro místico e as estrelas estavam na sua imobili­dade donde se exalam religiões. Cerrei as portadas e voltei com o peito sacudido por um soluço de medo para junto do bra­seiro: então ouvi de novo aquele som triste da rabeca estender-se lentamente pelo mar como uma névoa sonora. Fiquei todo tomado de tremores e de frios: e ouvi então distintamente com os ouvidos da carne a música de uma rabeca acompanhada surdamente pelo mar.

«Ao princípio foi uma melodia de fresca serenata, que a água acompanhava com um marulho húmido e alegre: e ao mesmo tempo ao longe havia o gemer rítmico do vento.

«Então durante uns momentos eu ouvi unia música estra­nha da rabeca, acompanhada pelo mar, onde havia gemidos, dilacerações. e vozes pesadas de lágrimas, e melodias trágicas com dores da Natureza, e sempre por entre os sons alegres e meigos uma tristeza surda e lenta corria como a água corre lodosa entre os juncos, os canaviais e as eflorescências.

«Havia vozes de rabeca aflitas e bárbaras: e às vezes dois mugidos sinistros do mar pareciam presos por uma melodia da rabeca, delgada, ténue, clara, como um fio de som. Eu não te sei dizer o que era aquela música sobrenatural, ele­gíaca, selvagem, trágica, suave, e escarnecedora.

«Por fim de repente toda aquela orquestra poderosa se calou, como um bando de abutres e aves de noite gritando aflitas, com trágicas palpitações de asas, que vêm pousar num silêncio, sobre um rochedo das águas. Então senti, de entre aquela amontoação apocalíptica de harmonias, desprender-se solitária a voz da rabeca, e vir de leve tocar junto do meu balcão com meiguice, com moleza, com dissipação de lágrimas – as variações do Carnaval de Veneza.

«Ninguém me pode tirar do coração que foi a alma de Paganini que deixou o seu corpo na natureza solitária das Serenas, e veio dizer o adeus da música ao seu velho amigo.

«Adeus, meu meigo artista: sofre e transfigura-te pela dor: eu aqui estou cheio de saudade da nossa doce França, junto das águas tristes do Mediterrâneo.

«Creio que depois da noite de ontem, nunca mais terei o riso sonoro e são. Adeus: dei os teus recados ao Mar, que te manda como voz de saudação o terrível temporal que agora vai na costa.»

 

O homem a quem esta carta foi escrita era um meigo artista, um pintor como Lantara, e assim descuidado, vivendo na boémia errante das misérias, das jovialidades e das Primaveras: mas a alma não se maculou com os contactos do corpo: no meio daquelas loucuras esteve sempre como uma pomba adormecida. Aquele pobre rapaz vivia numa trapeira, onde trabalhava sem sol, naquelas alturas silenciosas e castas onde vivem e crescem as flores do bem: depois enlouqueceu e foi recolhido a um hospital: e ali era sagradamente velado por uma enfermeira doce, delicada e branca como uma Virgem de ouro fino de uru livro de legendas: o pintor, que, como o seu amigo Lyser, ainda depois de doido desenhava, pediu um dia à enfermeira a sua touca engomada e lisa, e com um lápis desenhou ali, como um agradecimento de alma, toda a sorte de delicadas imaginações – asas abertas, coroas de folhagens, atidas que vinham beijar um pé branco, coroações de caridades.

Uma noite a enfermeira ouviu um gemido, e veio encon­trar o pobre pintor com as mãos postas diante de um retábulo alumiado; a doce rapariga cuidou no seu coração que ele se encomendava à Virgem; escutou: o pobre rapaz doido estava rezando ao seu velho amigo Cláudio Loreno; quando sentiu a enfermeira, voltou-se, e disse-lhe quase a chorar: – Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a Mãe-Natureza. – Depois curvou-se, beijou a orla do ves­tido da enfermeira e ficou-se enroscado no chão, nas últimas frialdades.

A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da Virgem e estendeu-a sobre a face pálida do triste, transfigurada nas últimas formosuras.

 

Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam das farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres.

 

OS MORTOS

 

Ontem foi o dia dos mortos, os mortos são felizes. Enquanto nas dolentes celebrações da Igreja, ao pé dos altares luzentes, diante de Jesus roxo e descarnado, os tristes e os simples rezam pelos seus queridos mortos, eles andam dispersos pela grande Natureza, pelas florestas esguede­lhadas, pelas espessuras sonoras, pelas uberdades da seiva, pelos sulcos fecundos, por todas as verduras de acre cheiro.

A sua carne sofreu, empalideceu nos medos, coloriu-se com as febres, engelhou-se nos frios; mas agora anda, repousada e sã pelas frescas vegetações, pelos frutos coloridos, na luz selvagem e vital do sol, nos átomos da noite constelada e suave.

Os que morreram nos apodrecimentos das febres desfize­ram-se nas terras fecundas sob as eflorescências limosas, foram sugados pelas raízes e, confundidos com a seiva, vêm outra vez para o sol, sob forma de frutos, de corolas, de ramagens ondulosas.

Os que morrem sobre as águas do mar desfazem-se entre os verdes embalos, entre as areias, os corais, as conchas, as foliações dos rochedos, e vêm depois, sob a forma de ondas, embalar-se serenos ao sol, ou de noite estirarem-se ao peso da moleza que escorre dos astros, ou de madrugada, cantando com barbaridades de rainhas e doçuras de santas, acalentarem o povo dos pescadores silencioso e trigueiro.

Os que morrem sobre os montes, como os pastores con­templativos, são consumidos pelo sol; e andam dissipados pela luz hierática das estrelas, pelos vapores moles das nuvens, pelas auroras; são os átomos da luz, serenos, fecundos, consolado­res e purificadores.

Assim os mortos são felizes.

Nós outros. andamos ruidosos e nocturnos, gordos ou empalidecidos, esfomeados de materialidades, calcando as Margaridas, perdidos nos deslumbramentos da carne; celebra­mos as religiões, esboçamos deuses, riscamos sociedades no ar; e, nervosos, desconsolados, derrubadores, no meio desta forte vitalidade – como um lavrador que suspende a enxada e se fica, todo amarelo, a pensar na velhice sem pão e sem lume – nós estamos sempre a sustar as nossas alegrias alumia­das e sonoras para pensarmos aterrados nos esfriamentos lúgu­bres do túmulo.

E no entretanto, os mortos, que são os pais, as irmãs, as bem-amadas, as mães, estão pela Natureza, pelos montes, pelas águas, pelos astros – serenos e imaculados. E porque tememos a morte? Que instinto tenebroso ou sagrado nos faz amar tanto esta forma humana, estes cabelos, estes olhos, estes braços enrodilhados de músculos? As árvores, as eflorescências, as ervas, as folhas, são também formas da vida, santas e cheias de Deus. Por toda a parte, pelas famílias das constelações, pelos planetas, pelas árvores, pelos lívidos interiores da terra, pelas águas, pelos vapores, pelas plantações fecundas escorre a seiva, o átomo santo, a alma universal! Por toda a parte há atracções, amores, antagonismos, fibras, repulsões, polarizações, alegrias, estiolações, pólenes, alma, movimento – vida. Porque há-de então ser esta forma que tem braços e cabelos, e não aquela que tem ramos e folhagens?

A vitalidade é a mesma, cheia dos mesmos instintos negros, sagrados, luminosos, bestiais, divinos.

Por isso os mortos são felizes porque andam longe da forma humana, onde há o mal, pela grande Natureza santa, onde só há o bem, na pureza, na serenidade, na fecundidade, na força.

Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão para uma transfiguração sagrada. Mal caem sobre eles as últimas pazadas de terra e o canto dos padres, bárbaro e dolente, se perde com o fumo dos círios, o corpo fica só na plenidão da noite e do silêncio perante a grande vegetação esfomeada; ele vai dar-se ali como pasto às bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra e desfaz-se em podridões: então as raízes começam a sugar e a. comer: a podri­dão transforma-se em seiva; a seiva sobe pelos troncos, esten­de-se pelos ramos, palpita selvajamente dentro da árvore, en­grossa, fecunda, arredonda-se nas exuberâncias dos gomos, e abre-se depois em folhagens, em florescências e em frutos: e o corpo transformado vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente os orvalhos, e ouve as cantigas dos pastores, e vive sereno, repousado, na floresta imensa.

E no entanto junto daquele corpo, que sofreu a metem. psicose do bem, tinha sido enterrado outro, num . caixão de chumbo, entre pedra e cal, hirto e embalsamado: entre a enorme palpitação difusa, enquanto em redor vai a lenta transformação e fecundação da semente onde já estão no germe as folhas, os troncos, os frutos, as flores, os ramos que mais tarde o vento atormentará; entre as raízes fortes e retorcidas dos arbustos, entre os calores da seiva, entre as uberdades e as voluptuosi­dades da terra desconhecidos, serenos e fecundos, o cadáver embalsamado ali está, inteiro, hirto, rijo, frio, lívido. Ele inveja os átomos livres e soltos, que sobem e vão e descem no encru­zamento das vitalidades, que se deslocam e escorrem, como grãos de um saco, desde as constelações. e os cometas, até às espumas castas das fontes: ali, sequestrado à Natureza, não se pode dissolver na eterna matéria forte: ele não tornará a ver o sol, as noites amolecidas de orvalho, os soluços lascivos do mar: que estranha fatalidade pesava sobre ele que nem a morte o libertou?

Oh! possamos nós todos ter sempre em vida a religião do sol, da beleza e da harmonia: movermo-nos na atmosfera serena do bem e da liberdade; ter a alma limpa e transparente, sem sombras de deuses e de reis; sentir o enlaçamento divino dos braços da bem-amada, e depois, ó santa Natureza, toma os nossos corpos para fazer deles árvores cheias de sombra e ramos resplandecentes.

E ao menos durante a vida convivamos com a Natureza; quando entramos numa floresta parece que a luz do sol, que escorre abundante e fecunda, nos enche todo o interior, des­pertando ali, como faz nas madrugadas de Maio, os coros de pássaros: e depois há um repouso sagrado como se todas as iras, e as amarguras, e os desalentos, e os terrores, se curvas­sem na mesma humildade, ao elevar-se na alma uma hóstia misteriosa.

Durante o dia há nas florestas uma santa celebração: as árvores estão graves como sacerdotes: as flores incensam: a luz do sol é a alva flamejante e serena que a floresta veste: e ela murmura um canto dolente e acre, acompanhado pelos pás­saros religiosos, e de entre as ramagens eleva-se uma paz viva, fecunda e consoladora, como uma vaga hóstia: e, ao fim da missa, as árvores, balançando os ramos, parecem lançar ao povo curvado das plantas, das ervas, e das relvas, a sua bênção soberba.

Ora, quando nós passamos entre estas celebrações tristes, humildes, purificados, de entre a folhagem que se aninha inquieta no seio do vento, sai, para nós, toda a sorte de vozes, de saudações e de confidências.

São os nossos queridos mortos que nos falam, e então toda a matéria tende a elevar-se, a desfazer-se em vapores e orvalhos, a ir pousar, com suavidade e cansaços, nos seios da folhagem, que já foram seios amados.

E depois a Natureza tem imensos perdões e reconciliações formidáveis; todos os ódios trágicos, todos os corações ferozes se fundem divinamente na promiscuidade dos orvalhos, das sei­vas e das espumas: ela não escolhe; tudo lhe é bom; as raízes das rosas pastam a podridão dos tiranos; e dos homens que na terra ensanguentaram, dilaceraram, profanaram, faz carvalhos austeros e cedros religiosos.

Ela é mais doce que as religiões: ainda nas Escrituras Judas atraiçoa Jesus, e nó entanto há muito tempo que os dois corpos – o do homem luminoso e o do homem escuro –andam enlaçados e dissolvidos nas mesmas auroras e nas mes­mas corolas.

Ela acolhe indiferente todos os ritos, todas as religiões: as mesmas oliveiras que na Grécia encobriam, ondulosas, as coreias nuas e os ritos de Baco, cheios de sufocações lascivas, encobriram depois; agitadas por um vento feroz, sob a luz irada das constelações, o pobre Jesus, gemendo, arrastando-se na rocha e nas silvas, suando. sangue, bradando aflito na noite das Agonias.

As horas em que acabo estas linhas vai o dia a declinar: agora longe daqui, nos campos, lembra-me que anda o semea­dor erguido sobre os sulcos, roto e sereno, espalhando o grão com gesto augusto: e parece-me vê-lo daqui entre as transpa­rências mórbidas do anoitecer distribuindo a vida: são os cor­pos dos seus avós, que ele assim espalha pelos sulcos fecun­dantes: são eles que se tornaram searas e que lhe hão-de encher o celeiro; e são eles que lhe dão a comer a sua carne e a beber o seu sangue. Sagradas transfigurações!

Assim, é na Natureza que devemos ir procurar as conso­lações, estremecer com os amores mortos, chorar no seio das maternidades passadas. É na Natureza que se deve procurar a religião: não é nas hóstias místicas que anda o corpo de Jesus – nas flores das laranjeiras.

 

AS MISÉRIAS

ENTRE A NEVE

 

A Anselmo de Andrade

 

O lenhador, pela madrugada, ergueu-se da enxerga e acen­deu a candeia.

Junto da lareira, engelhado nos frios, cavado de magrezas, dormia um rapaz enrodilhado nos farrapos de uma manta. O pobre lenhador desfalecia de febre: até ao anoitecer da véspera andara pelo negro mato, e depois nem teve um magro caldo junto das sonolências da lareira.

Iam grandes neves pelos montes, e o triste tinha filhos pequenos, que à noite quando rezavam, todos arrepiados e magros, em redor da mãe, sufocavam no choro da fome: por isso àquelas horas, por entre nevoeiros moles, ele ia pelos montes, pelas colinas, pelos pinheirais, rachar, cortar e des­ramar, aos ásperos ventos, na grande neve silenciosa.

O rapaz dormia com os pés inteiriçados e todos brancos da lama seca; tinha os grandes cabelos espalhados, e branco tinha o peito. A um canto sobre esteiras bolorentas, cobertas com o saiote da mãe, as duas crianças dormiam com os cotovelos arroxeados – dissolvidas no sono dos frios e das fomes; o lenhador tirou a jaleca que levava para os montes, embrulhou­-lhes os pés duros, pesados dos longos esfriamentos, e com a candeia foi debruçar-se sobre a enxerga onde dormia a mulher; ela tinha o corpo colado ao fraco calor da enxerga como a um seio amado: os braços, caídos e frouxos como os de uma mulher estéril; os seus cabelos negros espalhavam-se triste­mente pela enxerga como um luto; e a manta esburacada modelava a forma casta e fecunda dos seus peitos.

Então o lenhador tomou o machado negro e o feixe rijo das cordas, cobriu-se com o capuz de saragoça e foi-se lento, esfomeado e magro, pelos grandes caminhos, duros, lívidos e cobertos de neve.

O seu casebre ficava perdido ao pé dos montes, longe dos povoados, entre umas poucas de árvores que erguiam para o ar os seus braços negros, descamados, nus e suplicantes.

Ali vivia aquela família húmida dos frios, emagrecida das fomes, diante da neve e dos invernos, com os peitos cheios da religião do Sol, das searas e das fecundidades sonoras e alumiadas – como coisas flamejantes e divinas, que estão tão longe como Deus, inacessíveis, na poeira da luz, entre os paraísos. O pai ia todos os dias para os grandes montes lidar entre a ramaria; a mulher em casa cosia os farrapos ao pé da lareira sem lume, e ao anoitecer ia para junto da porta descon­juntada dos ventos, gretada dos frios, ver se, pelos atalhos enevoados, via chegar o marido, lento, curvado sob os grandes feixes de lenha.

O lenhador caminhava para as bandas dos montes.

A madrugada pesava com as névoas, as frialdades e as chuvas desfeitas.

A neve caía, leve. A alma aconchegava-se dentro do seu querido corpo – como num vestido santo, amedrontado pela dureza sobrenatural das coisas. Porque toda aquela Natureza tinha estranhas barbaridades.

Os caminhos tinham o chão duro, nevado, opaco.

A manhã vinha escura, lenta e lacrimosa como uma viúva à hora dos enterros: e à pouca luz ténue, os pedaços de gelo pendurados dos cardos e das urzes tinham o aspecto frio e podre de farrapos de mortalha: sobre as árvores imóveis, os pássaros quietos e cheios eriçavam as plumagens aos ventos frios.

As nuvens dissolviam-se pelo ar, cheias de orvalhos esté­reis.

O lenhador caminhava frio, rasgando-se nas silvas, cheio da chuva das árvores, pálido como os choupos, roxo, des­consolado e sereno.

Ia lento. Pensava nos lavradores, que àquelas horas, nas terras quentes, saem, assobiando, sob a manhã religiosa e alumiada, entre as ervas claras, ao resplandecimento fecundo dos orvalhos, guiando pelos sulcos, enquanto as andorinhas gritam alegres e gloriosas, os bois fortes, lentos e bons. Ele tinha a mulher e os filhos esfomeados no casebre; desfazia-se em lides e em suores, e em cansaços, e nem sempre aquelas faces amadas se enchiam das cores da vida; aquela pobre gente estava sempre amarela; era o frio, era a fome; nem uma manta nova, nem uma pouca de lã: o bom Deus lá em cima parece que está tão bem agasalhado ao calor dos seus paraísos e das suas estrelas que não se lembra da pobre gente dos campos e dos montes que se arrepia de frio. E havia gente que via sempre os filhos bem quentes e bem corados!

Assim pensava o triste, caminhando, pesado, molhado e todo cheio de coisas dolorosas e mórbidas. A neve vinha descendo como um imenso desprendimento de lãs.

E ele pensava que podia ser um abastado dos campos, e ver à noite em volta da sua lareira flamejante e serena toda a multidão dura dos ceifadores e dos semeadores, com os cabelos caídos, entre os bons risos, em redor da grande tigela de caldo, ao estalido das castanhas, na atitude dos bons e dos simples.

A neve ia caindo direita e vaga: e ouvia-se o rumor indefinido como de um mar, laborioso como de uma col­meia – das multidões doentias dos pinheiros.

O pobre lenhador olhava em redor as grandes neves ex­tensas, enoveladas nas pedras, esfarrapadas pelos cardos, opacas e estéreis: ele olhava; e às vezes um corvo passando silencioso e nocturno vinha bater o ar em redor dele com a selvagem palpitação de asas.

Começava a espalhar-se o dia. Ele sentia-se só entre aquela Natureza inimiga e bárbara; e por vezes o braço enfraquecido da febre vergava sob o machado e as cordas húmidas.

Ele ia entrando pelo pinheiral indolente. O pinheiral era cerrado, e a noite estava ainda no encruzamento das ramagens lívidas. A neve que caía sobre os ramos desfazia-se em orvalhos ao calor da seiva.

As árvores estavam como tomadas de um susto religioso.

Quando saiu do pinheiral, em caminho para os montes, ele ia a recordar quando ia para as escamisadas numa aldeia do Sul, e sob a luz apaixonada e melódica das constelações cantava à viola junto da doce rapariga de testa santa e de cabelos cor de amora; e ele, o perdido, amolecia o olhar a esfregá-lo, pela abertura do lenço. sobre a brancura do colo dela!

Hoje, àquelas horas, pensava ele, aquela pobre mulher gemia na sua alma vendo os filhos, sem um bocado de pão, andarem pelo casebre húmido, rotos, dependurando-se-lhe das saias gemendo: «Mãe!, mãe!» E os olhos do pobre tremiam-lhe nas águas do choro.

O lenhador apertou o machado e entrou na floresta.

Os velhos carvalhos violentos e proféticos, os choupos desfalecidos, os castanheiros ruidosos, os olmos grotescos, as ramagens e os silvados erriçados onde o vento brada aflito, todas aquelas verduras vivas e sãs que cantam ao sol no empoeiramento da luz crua, toda aquela sombria Diana esgue­delhada que se chama a floresta, dormia sob as opressões da neve, triste, silenciosa – estóica e soberba.

O lenhador com o machado erguido ia por entre a floresta; ele conhecia aquelas estranhas atitudes, aqueles escarpamentos de neve, as faces pensadoras dos rochedos, todo o emara­nhamento de ramos de folhas donde caem gotas como um eco de chuvas passadas, e todavia ao endireitar-se contra um velho carvalho empalideceu como diante de uma profanação.

O seu coração simples e bom não compreendia, mas sentia aquelas vidas imóveis, silenciosas e sonoras que são árvores, ramagens, arbustos, eflorescências; ele tinha compaixão dos gemidos dos troncos, das cascas esmigalhadas, das fibras dilaceradas, e sentia que sacrificava ali à fome dos filhos vidas imensas de árvores.

O lenhador atirou o machado negro contra o tronco do carvalho e toda a árvore imensa ficou tomada de vibrações dolorosas; e as suas ramagens estenderam-se caídas, sem vida e sem força, estenderam-se pelo tronco como para se verem morrer sem gemidos, num silêncio soberbo e selvagem.

O Sol veio lívido, mole, desfalecido. Sem serenidade, sem ascensão flamejante e sagrada. Névoas arrastadas, escurezas, esvaecimentos lúgubres de nuvens.

Começavam a esvoaçar os pássaros, piando tristemente. Toda a floresta chovia abundante e sonora.

E o lenhador, com o peito erguido, os cabelos desman­chados, vermelho, trespassado de chuvas, feroz, com o machado erguido nas mãos, com justos e trágicos encarni­çamentos, lutava contra os troncos, contra os ramos, contra a inchação das raízes, contra as duras cortiças e os filamentos tenazes; e enchia o chão de ramagens negras, de braços mortos de árvores, caídos e inertes como armaduras vencidas.

Aquelas árvores que tanto tempo levaram a formar-se e a enrijar, e a acostumar-se aos ventos tumultuosos, e a saber agarrar as clinas da chuva, e a enlaçar as moles nudezas das névoas e dos vapores, aquelas árvores cheias das mordeduras de Novembro, cheias de legenda e do cheiro das tormentas, encolhiam os ramos num estremecimento medroso quando o machado reluzia lugubremente no ar.

Ele tinha a camisa solta, a jaleca esfarrapada: os socos imensos faziam covas na neve; e, esfomeado, terrível, ia a grandes passos pela floresta, rasgando os silvados, com respi­rações imensas, esmigalhando as raízes, envolto em estilhas, em fibras partidas, com gestos trágicos, afastando com o machado o voo dos corvos; e todo cheio dos filhos, torturava as árvores com golpes flamejantes, gritando-lhes: «Covardes!»

Assim lidou sob a neve, e o vento, e a chuva, e a humi­dade, e a febre, e as névoas, e a dor, até ao anoitecer.

Tinha já um monte de ramagens e de lenhas: enfeixou-o nas cordas., duras como os seus braços; encravou no meio o machado: o feixe enorme estava encostado a um escarpamento de neve: as duas pontas da corda por onde ele o havia de erguer pendiam negras e húmidas: ele curvou-se todo para tomar o feixe sobre as costas largas; mas quando o ia a erguer, lento e cansado, sentiu os músculos afrouxarem, as mãos esfriarem, subiu-lhe um desfalecimento, e caiu com os cabelos suados e colados à testa, e os dedos inteiriçados esburacaram a neve.

Assim esteve perdido na moleza do esvaecimento, até que abriu os olhos vagarosos, e ficou-se encostado ao feixe, e cheio de tremuras e de silêncios.

Vinha-se derramando a noite, desciam as neblinas: todo o ar estava tomado de uma palidez opaca e severa: caia uma chuva desfeita e vaporizada: todo o chão estava pesado de neve.

Ao pé do lenhador estava estendido um grande tronco morto, sem raízes, sem ramagem, sem seiva, engelhado e mordido da neve; por um lado começavam a desfazê-lo os apodrecimentos.

Em redor erguiam-se as multidões de árvores, cobertas de neve, adelgaçadas entre as transparências do nevoeiro, tristes e nocturnas como monges brancos.

Ao fundo abria-se uma clareira que deixava ver ao longe a grande luz, que se ia, serena e tímida.

O lenhador tinha o pescoço nu – aos contactos da neve todo o peito dolorido e ensopado de chuvas; ele agarrou as cordas do feixe e, enrijando os músculos, com a face cheia, as fontes inchadas, as grandes veias saídas como cordagens, e as pernas hirtas, violentou o corpo para se erguer – mas caiu sobre a neve, amolecido, sufocado, e coberto das friezas húmidas da febre.

Então ficou-se a olhar o tronco esfolhado, nu, coberto de neve e a pensar que o seu corpo ia ali finar-se e dissipar-se entre as podridões dos troncos.

E toda a sua carne foi tomada por uma vibração terrível. Tinham-lhe lembrado os filhos, e a mulher, e o pobre pastor que lhe sacudia, quando ele entrava, a neve dos cabelos e as silvas da jaleca.

A neve caia triste. Àquelas horas ela esperava junto da porta a ver se o via ao longe chegar curvado debaixo dos seus feixes, pelos caminhos brancos e limpos.

Ela estaria com uma mão sobre a umbreira, e com a outra agasalhando as crianças nas dobras da saia contra os frios da noite.

E ele estava ali, só, esmagado, sob a neve implacável.

E quando o não vissem vir! E ele procurava na memória se já alguma vez teria ficado de noite pelos montes. Nunca.

Se o não vissem chegar iriam todos chorando e bradando, com a candeia acobertada do vento, procurá-lo pelas urzes sinistras.

Às vezes tomava-o o desvairamento, e via grandes figuras de sombra subirem pelos troncos, como um fumo terrível, e sempre aquele enovelamento de semelhanças humanas subia até se perder nas transparências lívidas do ar.

A neve caía como escorrida das nuvens.

E ele pensava, triste, que a mulher e os filhos saberiam a sua morte na neve sob o encruzamento irado das folhagens, e todas as mordeduras da ventania, silencioso e solitário como um lobo!

Então aquele corpo, pisado pela neve, entre as roupas molhadas, enodoado, dissolvido nas molezas da névoa, intei­riçou-se; com os olhos flamejantes, os dentes irados, tomado de risos, esfarrapado dos cardos, endireitou-se, e sufocado, esguedelhado, hirto, lívido, deu um grito na noite.

Houve um levantamento assustado de pássaros por toda a ramagem escura. E veio um vento e levou nas suas espirais violentas um enovelamento de folhas. E toda a luz do dia se sumiu na clareira. Ninguém havia pelo monte. Estava só. Só. Nem pastores, nem vaqueiros, nem caminheiros perdidos. Só. E iam-se os pássaros, iam-se as folhas, ia-se a luz. Ele ficava só

Então, vendo em redor a floresta solitária e negra, a amontoação irada das sombras, o esvaecimento lívido dos últimos ramos, as atitudes tenebrosas, as corcovas nocturnas das raízes, sentindo ao longe o uivo dos lobos e por cima da cabeça o esvoaçar dos corvos, estirou-se de bruços e bradou, na noite, sob a neve e o ruído dos ramos: «Jesus!»

E toda a floresta ficou silenciosa, indiferente, soberba; os corvos voaram gritando; ele caiu fraco, desalentado, roto, agonizante, macerado; e de cima o grande céu, o céu justo, o céu sereno, o céu sagrado, o céu consolador cuspia neve sobre aquela carne miserável.

E ficou inerte. A neve caia desfeita e branca. Estava estirado. Via por cima a grande imobilidade da floresta, os nevoeiros que deixavam cair farrapos que lhe vinham roçar o rosto, e a sombra espectral do feixe de lenha.

Ele sentia o corpo pesado com as dores do frio, e na testa e nos olhos sentia abrasamentos mordentes: e nas costas uma chaga imensa, que tivesse terríveis ardores ao contacto da neve, sob o peso do corpo.

As vezes soluçava. E quando assim estava viu grandes sombras que lhe esvoaçavam sobre a cabeça e fugiam bradando aflitas, com um terrível ruído de asas, esbranquiçadas da neve, apavoradas e ferozes.

Eram os corvos. Tremeu todo. Ele entrevia-os já quando eles viessem pousar-lhes sobre o peito, e curvados, batendo as asas, meio suspensos, enterrar-lhe os bicos negros na pobre carne.

Então moveu dolorosamente o braço entorpecido e apalpou em redor; encontrou um ramo solto, negro, espinhoso; lançou-o contra as sombras negras dos corvos; mas ele tinha a mão quase inanimada pelo frio, e o ramo debilmente arremessado veio-lhe cair sobre a face, e rasgou-lhe a carne com os espinhos: mas então as mãos inertes não tiveram força para o tirar.

E pôs-se a chorar. Os corvos voavam terríveis; ele enter­rava o pé na neve e atirava-a para o ar, como para os apedrejar. Os corvos desciam.

A neve caía e já lhe cobria as pernas hirtas. Ele então, vendo a floresta que o ensopava de água, o chão que lhe coalhava a vida, o vento que o transia, a neve que o enterrava, os corvos que vinham comê-lo, todas as hostilidades selvagens das coisas, encheu-se de cóleras, e, silencioso, feroz, com os olhos luzentes na noite, deitou rijamente a cabeça sobre o feixe e pôs-se a morrer.

Então veio repentinamente um vento tumultuoso: e pareceu ao pobre lenhador sentir naquele vento o som de um choro e uma voz bradando aflita.

O vento era imenso e poderoso: dispersou os corvos: eles balançavam-se nas asas entre os redemoinhos do sopro feroz.

A neve caía. Os corvos, assustados pelo vento que viera, pairavam sobre os últimos ramos.

A neve caía. E os braços do lenhador já estavam cobertos, e todo o peito. Os corvos fugiam: e todo o bando aparecia como uma sombra indecisa e pesada.

A neve caia. E estava coberta a garganta do homem, e estava coberta a boca.

Os corvos iam-se sumindo nas transparências da noite.

A neve caía, indomável e estéril. A testa do pobre estava coberta, e apenas se moviam ainda, lentamente, ao vento, os seus grandes cabelos escuros.

A neve riscava a noite de branco. Ao longe uivavam os lobos.

E a neve descia. As sombras dos corvos sumiram-se para além das ramas negras.

Os cabelos desapareceram. Só ficou a neve!

 

FARSAS

 

A LADRA – OS HOMENS DOS CÃES

A FILHA DO CARCEREIRO – O PESCADOR

O BECO ONDE MORA O REI LEAR

OS DENTES PODRES – A BEBEDEIRA DO COVEIRO

O POBRE SÁBIO – A FORMA – O SALTIMBANCO

O POETA LÍRICO

 

Aquele pobre moço tinha uma bem-amada, e nas brancuras tépidas da tarde passeavam entre os castanheiros enlaçados, como nas velhas estampas alemãs.

Quando ele a via – não via as pombas, nem as estrelas, nem as ervas: mas quando pensava nela via-a luminosa como todas as estrelas, lasciva como todas as pombas, mais fresca que todas as ervas. Ela tinha dois olhos negros como duas flores do mal. E ele dizia-lhe às vezes: eu queria ser a terra em que tu hás-de estar morta branca e fria – para te envolver toda num beijo fecundo. Ora, uma madrugada, ela ergueu-se do leito todo quente dos embalos lascivos, roubou-lhe uma bolsa de dinheiro, o relógio, um anel e fugiu.

O pobre moço foi para um hospital, com uma doidice elegíaca.

Um dia foi deitar-se para entre as ervas claras, entre o cheiro dos fenos e das seivas, ao sol sonoro, e pôs-se a morrer enquanto os pássaros cantavam gloriosos, e ao longe uma flauta entre os milhos tocava uma cantiga das ceifas.

A mulher morreu na enfermaria da cadeia, no apodreci­mento da febre, calva e com chagas.

 

*   *   *

 

Conheci um rapaz mirrado, engelhado, com grandes olhos profundos, que dormia pelos portais, pelos adros, pelas encru­zilhadas, e nos pedregulhos junto do rio.

No Inverno, nas geadas, nos luares nevados, nas neblinas, o miserável dormia com os cães sobre os lajedos: os cães conheciam a sua manta esfarrapada e podre, e quando a não viam nos grandes frios mordentes, uivavam.

Ele deitava-se entre os cães, punha a nuca sobre os pedre­gulhos, e dissolvia-se num sono mole e doentio: ele conhecia os cães mais felpudos, os mais gordos, e os que não cheiravam mal. As vezes deixavam-no dormir numa estrebaria.

 

*   *   *

 

A pobre rapariga tinha seis anos: era filha do carcereiro. Era loura, com grandes olhos lúcidos. Desde a madrugada ia pelos pátios, pelas enxovias, pelas gradarias, leve como uma seda e sã como um sol.

Levava braçadas de ervas aos presos e clematites.

Na cadeia chamavam-lhe a Cotovia. Tinha pombas.

Tinha um riso transparente e bom, e quando os miseráveis sujos e chorosos iam para os degredos – ela cantarolava entre eles, serena e gloriosa. Cresceu. A mãe era lavadeira e morreu no rio, entre os musgos e os canaviais. O pai teve um mal e ficou entrevado.

Vieram os Invernos. Ela lidava. Cuidava dos irmãos pe­quenos. Lavava ao sol. Costurava à lareira sonolenta.

De madrugada ia atirar grãos e migalhas às pombas: depois vinha dar ao pai engelhado, triste, doloroso, as sopas e o caldo.

Um dia entrou na cadeia um bêbedo, um covarde, um assassino, que tinha espancado o pai. Era um lindo rapaz, branco com um corpo delgado. A rapariga viu-o, e fugiu com ele de noite embrulhada num cobertor.

Todo o dia seguinte, as crianças não comeram. O pai gritou, chorou e arrastou-se até à lareira. Ninguém. As pombas voavam à tarde inquietas, fugitivas e medrosas. O pai ficou toda a noite ao pé da lareira a roer um bocado de pão duro. No outro dia ainda as crianças ficaram sem comer. Todas as pombas fugiram. O pai arrastou-se até o casebre; e esfomeado, batia de encontro à porta. Por fim vieram. Passados dias. Havia pela vizinhança um cheiro de podridão. As crianças tinham morrido; o pai tinha morrido. Tinha sido a fome, a mingua, a sede, o frio.

A que fugiu é hoje velha. Embebeda-se com aguardente: e quando na taberna as esfarrapadas e os miseráveis lhe falam nesta história, ela diz com voz rouca:

– Ai que noite aquela, filhas! Ele tinha um modo de dar beijos!

 

*   *   *

 

Havia um casamento. A noiva era divinamente linda, triste, séria, casta, religiosa; tinha a alma delicada e fina como a alma das virgens das legendas. Amava um rapaz, novo, forte, sério, inteligente, formoso. Ela tinha a religião da beleza, da harmonia e das árvores cheias de sol: mas o bem-amado era pobre. Velha história. Casou com um homem rico. A mãe era pobre e tinha irmãos. Necessidades frias, mordentes. Nessa noite havia pela sala sonora grandes sedas, e cintilações de pedrarias, e as penas dos leques coloridas e devassas.

Estava ali a gente pálida, que anda nos veludos, de mãos macias e sentimentos macios. O marido era gordo. Entre a orquestra poderosa havia uma flauta que chorava. Ela, àquela hora, sob o peso das luzes e as molezas das respirações, pensava nas alamedas onde os rouxinóis dão a réplica aos poetas. A meia-noite o marido levou-a para a alcova. O marido tinha comido muito e anotava. Ela tinha uns grandes cabelos negros. Cabelos do Sul. O Diabo gostava destes cabelos, no tempo dos seus amores. Mas a rapariga tinha também uns olhos azuis de uma serenidade elegíaca. Ficaram sós. Ela estava encostada à cama, quase escondida nos cor­tinados, com frio, e uma vibração dolorosa da alma. O marido prendeu-a nos braços e deu-lhe um rijo beijo Ela, triste, deu um grito. Ele tinha os dentes podres e a boca com maus cheiros.

 

*   *   *

 

Um coveiro tinha amigos a cear. Cearam. Beberam. Havia um vinho mordente e duro da taberna.

As estrelas estavam frias. Saíram para o cemitério incon­solável. Cambaleavam ferozes. Amontoaram a ramaria de um cipreste e acenderam uma fogueira. Cantavam à viola e dan­çavam como saltimbancos.

Um deles gritou:

– Mulheres! Venham mulheres!

– Há-de-as haver por aí – disse com largos risos o coveiro.

E todos começaram procurando uma cova onde estivesse fresco e são um corpo de mulher: tinha sido enterrada uma rapariga naquela madrugada. Vinha atrás do caixão um rapaz todo amarelo, com grandes cabelos caídos. Tiraram a terra. Apareceu o caixão. Ela tinha o vestido despregado no seio e via-se a carne branca.

– Archotes! Archotes!

Trouxeram ramos acesos.

– Quem há-de ser o primeiro? Que ela está a preceito!

Desceu um, bêbedo, desapertado, galhofeiro e obsceno. Estendeu a mão dura e meteu-a pela abertura despregada do vestido entre os seios da morta.

Deu um grito. Tinha sido mordido. Era um bicho das covas. O bicho era o último amante daquele corpo branco; o bicho das covas tinha ciúmes.

 

*   *   *

 

O velho Jerónimo morreu. Era pescador na costa. Um lobo-do-mar. Ninguém como ele para velejar com temporal e vento de travessia nas brumas de Novembro, entre as penedias, esmagando as espumas. Morreu.

Tinha mãe e dois filhos.

Ela consertava as redes ao sol enquanto os filhos dormiam na areia.

O Jerónimo tinha as mãos duras, o pescoço bestial, o peito largo, cheio do Sol e do mar. O Sol era o seu Deus. Deixou dito que o não enterrassem em cemitérios, debaixo das ervas, entre os germes das florescências, as raízes e as terras limosas.

Deixou dito que o atirassem ao mar. Ao outro dia os filhos saíram na barca cheirosa dos mares e dos musgos, com o corpo do pai embrulhado em redes. Uma grande luz de sol escorria pelo mar. Havia uma calmaria sonora e contente. A velha rezava à popa.

 

*   *   *

 

Num beco morava uma mulher perdida. Tinha o pai velho, estonteado e comido das magrezas. Ele é que abria a porta aos homens nocturnos.

Às vezes não o deixava comer. E arrepelava-lhe os cabelos. Um dia entrou um homem bêbedo; ela estava com os vestidos desmanchados, os peitos caídos, sobre a cama, assobiando. O velho aquecia-se à lareira. O homem disse com um grande riso:

– Vamos nós embebedar o velho!

– Valeu!

E fizeram-no beber aguardente. O velho teve agonias.

Eles torciam-se em obscenidades bárbaras. De manhã o velho, com as forças esmigalhadas, os músculos dissolvidos, não pôde acender o lume.

Caiu miseravelmente ao pé da lareira. A filha deu-lhe com umas cordas, o homem deu-lhe com o pé rijo e bestial. O velho soluçava.

A mulher esperou, calada, fria e metálica até que a noite veio.

Mandou-lhe então buscar azeite a uma venda vizinha.

O velho foi. A filha fechou a porta. O velho, ao voltar, chorou, rezou, suplicou de joelhos com as mãos postas.

Nada. A filha dentro cantava, toda lasciva, com as pernas nuas. O beco era solitário e viúvo. Veio o frio, a geada. O velho estirado à porta gemia. Toda a noite a filha na cama bem quente e sonolenta!

De madrugada uns carreteiros levantaram o velho transido, lívido e gangrenado.

Ao sol desse dia, arrastou a mulher pelas poeiras umas grandes sedas contentes e soberbas.

 

*   *   *

 

Ele caminhava pelas ruas, com os cabelos desmanchados, magro, angélico. Conhecia todos os livros santos e todas as Escrituras. E os livros sânscritos e os velhos letrados da China; e os poemas divinos e doces da Índia e da luminosa Grécia; e as histórias hieráticas e frias da Pérsia. Era pobre, miserável. Andava com um longo casaco esfarrapado, roído do frio e o peito cheio de religiões e de teogonias. Não tinha casa. As vezes dormia debaixo dos pinheiros, pelos montes. Prenderam-no.

– Mas que mal fiz eu? – dizia ele com a sua voz lenta e olhar iluminado.

Condenaram-no por vadio. Ele não sabia nada. Ninguém o defendeu.

Uma velha que por vezes lhe dava um bocado de pão foi dizer, toda triste:

– Perdoe-lhe, senhor juiz.

Os sargentos repeliram a velha.

Entre as alocuções das leis e as palavras dolentes e as togas negras, ele pensava nos países sagrados onde nasce a religiosa flor do lótus.

Levaram-no para uma enxovia. Assim esteve anos. Nos frios, na humidade, solitário, sem livros, sem consolações, sem vozes. Chorava. E tinha uma suave teima. Queria que todos os dias a velha lhe levasse flores. Um dia morreu, na enxerga, ao anoitecer, sem o Sol, sem os ventos, sem o grande ar, na humidade, sereno, desfolhando rainúnculos.

 

*   *   *

 

Quando tinha dezoito anos tinha um corpo robusto e melódico. Os cabelos eram como os grandes raios quentes de um sol negro. Tinha grandes braços fortes e magnéticos. O olhar tinha, como um mar, grandes ondas de luz, ou dolorosas, ou iradas, ou lascivas. O pescoço túmido e forte tinha bran­curas soberbas e rijezas cínicas. E a voz era como saída dos cristais e dos metais sonoros.

E a forma do seio dava o sabor das noites conjugais e a esperança das maternidades. Mas era pobre.

Tinha, ao andar, ondeamentos de sereia, musicais e castos. Mas era pobre.

Quem a acolhesse no leito de noiva teria contentamentos inefáveis e filhos sãos e belos. Mas era pobre. E ela era casta e religiosa.

Assim esteve virgem, apaixonada, orgulhosa até que aquela beleza se foi lentamente, como finda um cântico sagrado. E ela era de feito o cântico sagrado da forma da carne.

Outrora, quando ela passava, aquela forma escultural e a brancura lilial da sua pele arrastavam toda a multidão filistina. Mas era pobre. Não casou. E não se deu.

Agora, velha, engelhada, lenta, com vestígios lúgubres e um chapéu desbotado, passa, virginal, cheia de solitárias impurezas, arrefecida, oleosa, beata, e com um cão felpudo no colo.

 

*   *   *

 

O saltimbanco era são, forte, com grandes cabelos e uns olhos negros elegíacos. Uma velha rica desejou aquele corpo elástico, a pele cor de mármore e os beiços grossos.

Ora o saltimbanco tinha uma mulher bem-amada e filhos pequenos. De noite, eles deitavam-se entre os farrapos relu­zentes, com as nucas sobre um velho tambor, cobertos de estrelas. A velha sabia que aqueles corpos tinham frio e fome: tentou o saltimbanco com cintilações de dinheiro. O saltim­banco vem todo irado para junto da mulher, e apertam-se, amados, sujos e resplandecentes.

Mas o tambor e a flauta dos saltimbacos não chamavam a gente do povoado. Veio o frio: sem lume! Veio a fome: sem pão!

A velha tentou o saltimbanco com cintilações de dinheiro; o saltimbanco, veio todo curvado, abraçar os filhos todos rotos, amarelos, esfomeados e chorosos.

E então a mulher foi encontrar o saltimbanco a lavar-se, a preparar umas roupas brancas e a esfregar o peito com folhas.

– Onde vais?

Ele disse, a chorar: via a fome, o frio, a magreza, a lareira apagada, os trapos sujos, ia para o leito aveludado e quente da velha.

Ela teve um riso doloroso.

– Não vás.

Queria ir ela: ir, sob a névoa, com os peitos nus, para as encruzilhadas, agarrar os homens, os nocturnos, e ali mesmo sobre a erva e o chão duro, torcer-se aos beijos sujos – e entre as sufocações pedir-lhes um bocado de pão.

Ele chorava, arrepelado.

– Tu!

E limpava-lhe, com beijos sagrados, a orla das saias: e arrastava-se pelo casebre – com os joelhos roxos.

Ela queria ir.

– Sou eu que vou: deixa-me ir – disse o saltimbanco com a carne tomada de febres e os olhos reluzentes.

E apertavam-se com um amor angélico. E ela então, chorando, começou a penteá-lo, a lavá-lo, a compor-lhe as pregas, a enfeitá-lo – enquanto Deus dormia.

 

*   *   *

 

Ele tinha sido um poeta dos bons tempos, arcádico, lau­reado nos outeiros: tinha composto uma tragédia clássica. Depois envelheceu e empobreceu. Vivia de fazer versos para anos, de escrever cartas para as costureiras e para os lacaios, de redigir cartazes de touros e de fazer cantigas impuras.

Tinha um filho.

Ele esperava que o filho o amparasse na velhice. Mas o pobre rapaz teve uma febre mordente e ficou idiota. O pai cozinhava, limpava a casa e lidava com as rimas e com os sonetos para ganhar o pão: e nem sempre havia pão na trapeira. Passavam semanas comendo favas. As vezes tinha o pobre poeta lírico encomendas de cantigas obscenas, de epitalâmios ou de versos para namoradas: e então sentado, enquanto, com os olhos arregalados, o filho gritava: «Pão!, pão!, pai» – ele dizia: «Tem paciência, filho; amanhã creio que havemos de comer.» E escrevia, pensando e medindo com os dedos:

 

Dizeis, ó bela Márcia

Que deixei de te adorar:

Tem asas o Deus Frecheiro:

Pois não é para esvoaçar?

 

*   *   *

 

Tristes histórias! Sofrer, chorar, ter fome e frio, e morrer à míngua, e ter noites de agonia – o que é que isto prova? Nada, nada, meus senhores.

Words! Words! Words!, dizia o nostálgico Hamlet.

 

AO ACASO

 

Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!

Ah!, foi há muito tempo.

Era naqueles tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam para o céu as Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa uma transformação social. Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto bata­lhador, em nome do espírito, da alma. O papado ia morrer. Era necessário que todo o Sul se aliasse na cruzada católica.

Toda a revolta de Lutero foi tomada ao principio por um daqueles lentos suspiros alemães, que se perdiam no coro profano, luminoso, embalador e forte do Sul.

Viu-se depois que era a voz imensa da alma do Norte, toda uma humanidade austera e vital, que se movia, que vinha falar, pensar, examinar, revelar, sob o peso das teocracias romanas, dos papados, dos imperadores, das tiranias, dos sacerdócios.

Todo o Sul católico estremeceu; aquela revolta vinha imprevista e rápida; um dia a imperceptível e vasta humani­dade, quando fosse uma madrugada para as suas adorações, podia encontrar a velha Roma deserta, e ao longe o catolicismo dissipando-se com um som hierático de salmos e um colorido vermelho de fogueiras.

Era necessário salvar o Sul.

A Itália tinha-se familiarizado com o cristianismo; tinha-se acostumado às santas macerações de Jesus, à transparência ascética das Virgens; os renunciamentos e os medos católicos já a não vergavam para o pó. Ela, cheia de sol e de sons e de forças, começava a olhar a Natureza, as grandes fecundidades. as vitalidades poderosas, as melodias moventes da carne.

Os velhos deuses da Grécia tinham-se refugiado na alma italiana; ao princípio andavam no fundo, como recordação leve, transfigurados pela dor, encolhidos, soluçantes, miseráveis: depois lentamente foram aparecendo, espalhou-se um cheiro de ambrósia e um som de idílio; e os seus corpos são como astros, ocuparam por fim toda a alma italiana com coreias, derramações de néctares, palpitações de luz, divinos resplandecimentos de vida.

A Itália tinha-se afastado de Dante e das visões devoradoras do infinito; e os poucos que se curvavam sobre a Divina Comédia, não era para ver os castigos e os paraísos, mas para sentir as palpitações, que lá tinham ficado, da alma de Flo­rença.

A Itália seguia Petrarca: mas em Petrarca havia ainda uma religião e um misticismo – o amor: e a Laura dos Sonetos, como a Virgem mística, prendia nas humilhações religiosas todos os cavaleiros do Sul. A Itália então deixou Petrarca e rodeou Ariosto, o aventureiro, o jovial, o descrente, cavaleiro e escarnecedor.

Foi então que se ouviu aquela voz do Norte.

Todas as coortes católicas andavam dispersas, galhofeiras e namoradas, rindo com o Aretino, escarnecendo brutalmente com o poeta Pulei, guiadas por Lorenzo de Médicis e pelo cardeal Bembo, cantando às estrelas, adorando as Violantes, rindo de Fra Angelico, aclamando Ticiano, cobertas das sedas de Veneza, com o peito cheio da religião do Sol, da música e das noite profanas.

Foi então que se ouviu a voz do Norte, o canto de Lutero. Todos os católicos correram instintivamente, rodearam os papas severos, Adriano VI, Clemente VIII, cantaram os salmos e as missas de Marcelo, cheias dos renunciamentos ascéticos, e foram seguindo o Tasso, que voltava, apaixonado e religioso, para Dante e para Deus.

E o papado continuou caminhando, sereno e terrível, deixando as sombras das masmorras de Galileno e de Cam­panella, e mais longe o fumo das fogueiras de Vanini e de Giordano Bruno.

Tal era a luta do Norte e do Sul.

Ora durante essa luta das regiões e das pátrias, a Península, encolhida nas suas montanhas, cobertas de sol, violenta, sinistro cavaleiro de Deus, armava as caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas das ilhas, dos continentes das Índias, dos cabos temerosos. Nós outros, os peninsulares, aparecíamos às outras nações como velhos lobos-do-mar, sempre em viagens, trigueiros, rijos como calabres, sãos como o Sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios de legendas e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao longe, perdidos nas brumas terríveis.

De vez em quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um mundo, que lá tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais e nuas sob a bênção dos padres: ali mesmo sobre a areia, ao rumor das maresias, escrevia a história trágica da sua viagem, e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo, radiosos e bons, para a banda das Índias.

Era assim. Todos os anos, aquela multidão imensa de aventureiros embarcava nos galeões, entre os salmos e os coros, e eles iam silenciosos e flamejantes, por entre as sonoras ilimitações, os ventos aflitos e os tremores da água – para os nevoeiros inexplorados.

Iam, em demanda de mundos, levando Deus dentro do peito, sob as constelações augustas, entre as tempestades, os rochedos e as correntes, de pé nos tombadilhos, descobertos às temperaturas, rodeando um Cristo, cantando os salmos ao coro dos furacões, todos reluzentes de armaduras e de divisas de amor, com a alma cheia de altivezas de batalhadores e de doçuras de apóstolos.

Iam como numa glória e em nome de Deus! E quando encontravam as hostilidades e os encrespamentos irados do elemento, as opressões infinitas dos ventos e das águas. erguiam as mãos como para uma excomunhão, e bradavam soberbos àqueles sopros e àquelas maresias os versículos do Evangelho Segundo S. João.

Era assim. Ora aqueles homens marinheiros e batalhadores eram historiadores e poetas. Escreviam os seus feitos.

Escreviam-nos entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas, nos cabos tormentosos, nas florestas sagradas da Índia sob as imobilidades cruas da luz: escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trémulos das iras das batalhas. Por isso enchiam as suas crónicas e os seus poemas de uma estranha prodigalidade de força e de vida. E os seus diários de bordo tinham muitas vezes a simplicidade épica de Homero.

Mas eles também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões, lirismos interiores, e as saudades da pátria nasciam naquelas almas como grandes açucenas que se abrem dentro de um vaso e que o enchem.

De noite, nos tombadilhos, embrulhados nos seus mantos esburacados, deitados entre as cordagens, aos embalos das marés, enquanto os pilotos silenciosos seguem com os olhos as viagens imensas das estrelas, e todo o mar enorme se amolece como um seio cansado, eles contavam em voz baixa, com as cabeças juntas, as histórias de amores, os torneios, as aven­turas, as serenatas e a vida da pátria.

No meio daquela vida trágica da aventura eles tinham a alma cheia de amores, de legendas, de saudades, cheia da pátria.

E escreviam poemas, cantatas, sonetos, farsas, comédias e elegias.

E para vestirem o sentimento fecundo, forte, cheio do Sol e do mar tomavam a forma popular.

Estavam longe da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos gregos e romanos, das antigas formas rituais, das educações clássicas.

Não conheciam isto.

Mas lembravam-se sempre das cantigas da pátria, das endechas heróicas, dos romances populares, que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos embalavam, que se cantam de noite às estrelas por Sevilha e por Granada e que os mendigos diziam pelas velhas pontes dos Godos e dos Árabes. Porque o povo na Península tinha uma poesia, sua exclusi­vamente, que cantava nos trabalhos, com que adormecia os filhos, em que escarnecia os alcaides e celebrava os heróis.

Fazia daquela poesia um uso sagrado: era a sua consolação, o grande leito misterioso onde adormecia as tristezas: era ali que procurava confortos, recompensas e as ideias da pátria.

No Norte, a poesia popular foi a Invisível que levou pela mão os trovadores, filhos das glebas, até às lareiras dos senhores feudais: foi o primeiro suspiro de amor que os pobres poetas da populaça. místicos e sensuais, soltavam para as brancas castelãs que entreviam nos torneios, cobertas de pe­drarias: ou passando de noite, brancas, às estrelas, pelos altos terraços; ou entre as árvores, ao entardecer, quando as ogivas cheias do sol oblíquo estão flamejantes como mitras.

E as castelãs abriam os braços para os poetas tristes, indolentes e cheios do Paraíso. Admirável influência da poesia, que produziu pelo amor um renascimento social!

Mas a poesia da Península era unicamente do povo: era a epopeia austera do Cid, exterminador de mouros, e de Bernardo dei Carpio, exterminador de bárbaros. Na Península o povo estava sob uma condição especial; tinha uma importância no estado forte, fecunda e soberba: a Península tinha passado os primeiros anos da sua constituição nas lutas terríveis do forte Maomet e do Cristo místico; ora o popular da Península não era um servo, era um cristão: consagrado pelos baptismos, era uma força individual, que impelia e dissolvia o elemento mourisco, sensual e poderoso.

Ora, foi sob a forma popular que aqueles batalhadores e poetas, que vão hoje tomando a vaga atitude da legenda, escreveram os seus poemas, as suas cantatas, as suas comédias e os seus sonetos.

Então toda a literatura peninsular tem uma originalidade profunda, independente de formas e ritos: a arte, o drama, a poesia saem das tradições populares, do clima, do Sol, de todas as vitalidades meridionais; isto quando pelo resto da Europa todas as nacionalidades esqueciam as suas tradições, a sua história, a sua velha alma, para se envolverem nas formas antigas. Era a Renascença. Então aparece o teatro espanhol original, cavalheiresco, enérgico, apaixonado, cheio de sel­vagens palpitações, de lances de religião: onde a cruz é uma personagem; onde falam lacaios, heróis, santos, ventos, galeões: todas as formas da vida confundidas; o riso, o choro, a ironia, a sátira, o madrigal: tal é a impressão geral.

Depois uma pintura mística e sensual: não é a espiritua­lização da alma, é antes a imortalização da carne: inspirada daquele misticismo espanhol, que sob a influência da Natureza, do clima, da política, da raça, parece mais cheio das trágicas iras de Jeová do que das doçuras de Jesus.

Depois uma música, como a do Dies Irae, obra dos terríveis dominicanos: um poema de morte; uma das maiores agonias da alma: música ascética e flamejante, onde a Natureza aparece, trágica e desgrenhada figura.

Uma arte onde se torcem todas as chamas do Inferno e todas as pedrarias dos paraísos católicos, que parece uma luta trágica e cómica da vida e da morte: uma Igreja cheia de renunciamentos místicos, mas onde o misticismos parece mais um desespero de não poder saciar-se dos bens do mundo do que uma aspiração a poder fartar a alma nas contemplações diversas: uma defesa do catolicismo trágica e apaixonada: um amor sublime pelos despotismos e pelos sacerdócios: confusão dos imperadores com os santos e das coroas de metal com as coroas de luz: uma vida super abundante: ascetismos ferozes e onde o sentimento mais aparente e o rancor.

Ao mesmo tempo uma austeridade monástica em tempo de guerra: caravelas que partem, sem rumo, sob as indicações das estrelas: quase, por vezes, uma reconciliação aparente do maometanismo e do cristianismo: uma paixão avara pelo di­nheiro; o elemento da intriga que quer entrar na política, vindo substituir o elemento da força: combates cavalheirescos com a Europa vizinha: depois um sol ardente: um sangue exigente: uma carnação soberba: ao longe a América e as Índias como um paraíso de ouro, de metais e de soberanias.

Tal é o aspecto mais geral da Espanha. nas vésperas da Renascença.

É dramática aquela vida.

Não admira por isso que a forma suprema da sua arte –fosse o drama.

Em Portugal não é este rigorosamente o fundo do génio: há mais serenidade na força: o carácter português é mais parecido com o carácter italiano: os nossos sábios, os nossos viajantes, os nossos descobridores tinham mais a lucidez do tempo de Dante: as navegações são prudentes: por isso Portugal não resistiu nada à influência italiana. O renascimento da Anti­guidade. a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se na Espanha mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já não acreditasse na sua epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse a fazer trotar pelos caminhos o magro

  1. Quixote.

Em Portugal não: o génio antigo aclimatou-se: transformou-se mesmo: perdeu o elemento vital e fecundo e ficou-lhe o ele­mento retórico.

Ó Arcádia! Ó moços pastoris e burgueses! Ó clássicos!

 

O MIANTONOMAH

 

Há duzentos anos uns poucos de calvinistas exilados fre­taram um barco na Holanda húmida e úbere, e sob o equinócio e os grandes ventos, miseráveis, austeros, levando uma Bíblia, partiram para as bandas da América.

Duzentos anos depois, estes homens que tinham ido soli­tários, num barco apodrecido das maresias, derramaram uma esquadra épica pelo mediterrâneo, pelo Pacífico, pelo mar das Índias, pelo Atlântico, pelos mares do Norte.

Aquela colónia de desterrados, que choravam de frio, esfomeados, rotos, que dormiam às humidades do ar numa capa esfarrapada, é hoje a América do Norte os Estados Unidos.

América do Norte significa trabalho, fé, heroísmo, indús­tria, capital, força e matéria.

Ultimamente via eu o Miantonomah, sinistro e negro caçador de esquadras: é toda a imagem da América frio, sereno, contente, material, e cheio de fogos, de estrondos, de maquinismos, de forças e de fulminações.

É o que amedronta naquele navio a frieza na força.

Ele representa a consciência soberba da força e da indústria. e os grandes orgulhos do cálculo: despreza as iras e as hosti­lidades dos elementos: ele tem de atravessar o Pacífico, o oceano Índico, o Mediterrâneo, os grandes desvairamentos da água, os ventos imensos, os equinócios, as trombas, as correntes, os rochedos bruscamente aparecidos, os nevoeiros infames, os magnetismos, as electricidades, toda a vil populaça das tempestades: então todos os navios se preparam cordagens, velames, mastreações, complicações e resistências de forças, toda a combinação astuciosa de lonas e calabres que transforma as hostilidades em auxílios; ele, o Miantonomah, contenta-se com uma tábua rasa.

Em tempo de luta precavêem-se os almirantes e os cabos de guerra: um formigueiro de morteiros, de bombas, de obuses: metralhas, machadas, o arsenal reluzente das abordagens; a ele basta-lhe uma muralha de ferro.

O vento é temido: nas vastas solidões azuis ele é o lobo sinistro que anda rondando e uivando, à caça dos navios: ele acalenta o mar, massa inerte e salgada; ele faz com a água estranhas núpcias ferozes; extermina, cantando com alegrias bárbaras; esfarrapa as nuvens, persegue e esguedelha as chuvas, assobiando contente: em alguns mares do Norte, quando ele sopra as estrelas têm maior tremor: mas o grande horror do vento é que ataca com o peso, com a violência, com a força, com a compressão combinada e defende-se com o esvaeci­mento.

O Miantonomah é assim: ataca serenamente, com vio­lências enormes, com fulminações trágicas, e defende-se com a impassibilidade e quase com o esvaecimento.

Na luta das esquadras, no meio das descargas, das tro­voadas flamejantes, entre semelhanças abrasadas, os terríveis pendões do fogo, e os fantasmas do fumo, e as efervescências da água ele passa, solta a sua fulminação enorme, despe­daça, esmigalha, dispersa e continua lento, frio, impassível, mudo, tenebroso, coberto de ferro.

Ele não receia o mar: os outros navios erguem amuradas imensas para conter o encrespamento da onda: forram-nas de cobre, erriçam-nas de pregaria. O Miantonomah não: ele julga a demência do mar um prejuízo; corta a amurada e fica com o convés raso, ao rés da água: satisfaz a velha curiosidade da vaga: e por misericórdia dá-lhe hospitalidade: e para que o mar tenha alguma coisa a desfazer, a triturar, a roer dá-lhe por compaixão uma varanda de hastes de ferro enferrujado, e pedaços de corda podre. E o mar entra, desesperado, mugindo. e lambe o chão do navio americano: em baixo nas camas, agasalhados e preguiçosos, os marinheiros dizem: «Lá anda o mar a varrer e a lavar o tombadilho.» E com efeito o velho oceano dos dilúvios faz humildemente o serviço dos últimos grumetes.

Em cima, na superfície da água, há o vento, as espumas, os nevoeiros, as chuvas, as trombas; ele, aborrecido, afasta-se deste bando miserável e vai investigar o fundo das águas, as vegetações fantásticas, a região dos corais, as cavernas ence­ládicas, as purezas infinitas da transparência, todo aquele antigo ideal feroz de que os velhos mareantes falavam ben­zendo-se com terror religioso: com a quilha de ferro enorme ele brutaliza aquelas virgindades do mar: em baixo a tripulação nada sabe das tempestades: em vão ruge o mar e torce-se; e desencadeia o jogo fulminante das ondas, e espanca o convés do navio com o ruído de mil carros de batalha; os marinheiros em baixo riem, cantam, baloiçam-se, pulem os aços dos maquinismos, cachimbam, lêem a Bíblia serenos.

Como não há mastreação, nem velame, nem cordagens, nem toda a amontoação confusa de calabres e de lonas o tomba­dilho aberto é cheio de ar e de luz: e durante as viagens, é uma pousada das algas, das conchas, das aves do mar e dos granizos.

Dentro são as máquinas, as forças, os motores trabalham solitários com vozes, impaciências, preguiças, friamente; como as fatalidades da matéria. Ao atravessar os espaços obscuros vê-se o frio luzir dos aços e os cobres luminosos; depois são as fogueiras flamejantes, que dão a vida aos maquinismos – vermelhas como corações sobrenaturais: o ar é descido por máquinas de respiração, pulmões terríveis; e um vento geral, fecundo, benéfico, escorre constantemente por todo o negro bojo: fazem-se assim livremente temperaturas: frios mordentes, calores pesados e frescuras das manhãs do Sul: nas suas viagens pelo mundo aquele navio desmente quando quer os climas e as temperaturas: os marinheiros passam silenciosos, limpos, rosados, graves: alguns lêem.

Ora, sobre aquele negro navio, sobre os maquinismos frios, aquelas forças pavorosas, aquelas fogueiras terríveis, no convés entre as negras torres, ao livre ar, ao livre sol, alegre, glorioso, gordo, esvoaçando na sua gaiola – canta um canario.

Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte.

Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.

Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital: ado­ração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do indivi­dualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positi­vismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as planta­ções, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississipi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as com­plicações mercantis da América – como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação nervosa de homens.

A vida da América do Norte é quase um paroxismo.

Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro?

Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»

Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.

Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais.

A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.

Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam relu­zentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pen­savam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astro­nomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.

Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais.

É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça.

O nosso mundo europeu é também uma estranha amon­toação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas com exclusão da Idade Média; políticas pacificas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante: territórios violentos e con­quistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influên­cias monárquicas, nem é o individualismo; nem é o huma­nitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.

Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se em germe um novo mundo eco­nómico.

Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal económico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades.

Ora toda a América económica se explica por esta pala­vra – feudalismo industrial.

Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico, de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação, deslo­cação em proveito da alta finança – com detrimento das pequenas indústrias produtoras.

Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de bene­fícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma demo­cracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.

Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades de concepção – por isso mesmo sobreexcita o espírito, estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões, torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas pela habilidade, onde há mil moto­res – a ambição, a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se, cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios: e toda a seiva moral se altera e se deforma.

É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente, move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças, de vontades violentas, de aspirações nev­rálgicas.

Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absor­vedoras muitas amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue terrível no meio da febre da vida social, e toma-a mais perigosa. Londres dá hoje o aspecto desta luta.

De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas, infinitas as complicações económicas, e aí está sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses, a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções políticas.

E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão confiada, tão assente, tão satisfeita!

No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio, pela justiça.

O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força metálica, baça e sinistra do clima e do Sol. Pois bem. A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!

Eram estas as coisas que me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o Miantonomah, navio dos Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso Tejo.

 

MISTICISMO HUMORÍSTICO

 

Voltei. É agora que as toutinegras emigram. Andei pelos campos neste ar desfalecido do Inverno outonal.

Agora o azul está indolentemente belo. Tem quase uma irónica serenidade. E o azul intenso, frio, triunfante. Tem a luz, a beleza, a força, a inefabilidade. Agora a luz enternecida dos campos arrasta-se pelas grandes águas quietas e pálidas, onde o vento revolve e espalha a agonia das folhas.

Quando voltava, vi uma casa pequena, esbranquiçada, escondida entre as bênçãos indolentes das árvores. Tinha a serena quietação de quem tem ouvido segredos extáticos e era triste e religiosa como a entrada amarelecida de um convento católico. Havia uma corrente de água delgada que fazia claras murmurações, e era como o acompanhamento, natural e melódico, de uma écloga latina. Entre as árvores estava um banco solitário onde o musgo se dependurava. Nas plantas, nas clematites, nas trepadeiras que o cercavam, havia um murmúrio como de vozes distantes que contam felicidades perdidas. A pedra escura e molhada do banco tinha a tristeza das pedras do cemitério à luz consoladora, purificadora e branca que cai dos céus outonais.

Agora, ali sobre aquele banco dorme estirada a grande luz do Sol, e à noite o luar, porque já não há naquela casa namorados contemplativos, que venham de noite ou à sesta despertar para se poderem sentar – aqueles dormentes de luz.

Aquela casa abandonada faz lembrar amores místicos: e quando se vê à luz dolente do escurecer, faz subir do coração como um sabor de beijos antigos e esquecidos.

As árvores erguiam em atitudes violentas e proféticas os seus braços nus, engelhados, suplicantes para o frio azul, esperando no entorpecimento a fermentação violenta das seivas. Os ramos frios e nítidos deixavam passar indiferentes, sem as suspender, sem as acariciar, as moles nudezas das nuvens.

Toda a Natureza no tempo dos frios está impassível e sonolenta.

 

Passei por um cemitério. Andava um coveiro abrindo covas. Tinha um rosto inerte e animal. A luz dissipava-se. E uma estrela, que se chama Vénus, luzia metálica, ardende, desejosa, lancinante, num fundo sinistro de ramagens.

O coveiro é um semeador. Semeia corpos. Somente não tem esperança nem o amor das colheitas. Quem ceifará aquela plantação crescida? Quem sabe se os corpos que se atiram a vala, sementes fúnebres, se abrem, lá em cima, em searas divinas de que nós apenas vemos a ponta das raízes que são as estrelas? Mas não. A alma morre. O corpo revive e dissipa-se na matéria enorme.

E na alma que estão as más vontades, os negros remorsos, as lacerações do mal: o corpo desce livre, novo e são para as uberdades limosas das covas.

Quando chega o último frio, ódios, amores, tristezas, invejas, melancolias, desejos, todos cansados das lutas e da vida, dizem à Natureza como gladiadores vencidos: «Os que vão morrer saúdam-te!» E morrem. A vida e o seu suplício é absorvida na insensibilidade da Natureza, no silêncio perpétuo, na força fatal e cega. E a matéria vai pelos ares, pelas planícies, amolece-se nas sombras, vivifica-se nos raios claros, e rochedo, floresta, torrente, fluido, vapor, ruído, movimento, estremecimento confuso do corpo de Cíbele: e a matéria sente a vida universal, a palpitação do átomo debaixo da forma, sente-se banhada pelas claridades suaves e pelos cheiros dos fenos, sente­-se impelida para a luz magnética dos astros e dilacerada nos ásperos movimentos da terra. A matéria tem a consciência augusta da sua vitalidade. E assim, sob a tua impassibilidade, há uma angústia imensa, uma vida ardente, impiedosa. uma alma terrível, ó formidável Natureza!

A noite descia: caía de cima uma claridade láctea: pesava um austero e lento silêncio: a larga brancura celeste era gloriosa; os pastores desciam com os rebanhos lentos, balando; havia pelo ar uma bondade indefinida, uma virtude fluida: eu lembrava-me dos Elísios olímpicos e mitológicos onde, na claridade, passam as sombras heróicas, serenas, brancas, leves, levadas por um vento divino. Claridades sem sol!

 

Eu ia, escutando os passos da doce noite que vinha cami­nhando. Ia-me afundando no tédio como um navio roto numa maré do equinócio. Enchiam-me a alma crepúsculos brancos. Entrei no grande arvoredo negro. Àquelas horas, os linfáticos, os inocentes, os místicos, encontram nos arvoredos languidezas e elevações ascéticas. Mas eu tremia entre a ramaria inquieta como um mar, misteriosa como um firmamento – tremia como um homem medroso que visse erguer-se um mono. Toda aquela negra decoração de ramos torcidos, de folhagens lí­vidas, de silêncios, enchia-me de um terror profundo e trivial. A luz dissipada e transfiguradora do ocaso dava aos troncos um estranho aspecto de lutadores, vindos do sangue e dos incên­dios: os sinos distantes eram como vozes indefinidas de miséria e de dor.

Passava um vento incessante e perseguidor. Os mochos voavam, e as aguas sonoras eram como vozes vingativas e trágicas. A Lua entorpecida passava por detrás da estacada de ramos. O vento era rouco e lento como um canto católico de ofícios. E o grasnar lento e arrastado dos corvos parecia uma ladainha bárbara de padres. As árvores doentias rangiam ao vento hibernal, o ar estava diáfano, lácteo e mortuário. As estrelas que apareciam tinham o olhar lancinante.

Cheguei à estalagem. Em baixo na lareira um magro fogo lambia as fuligens. A luz do meu quarto tinha a lividez dos círios, e o espelho tinha reflexos pálidos, como de sombras mitológicas que passassem. Ouviam-se os lobos.

Lembravam-me então as outras noites, claras, doces, lentas, em que o céu derrama sonolências; então também eu ia por entre as árvores e ouvia ondas sonoras de cantigas, que o vento fazia retinir através da bruma, entre o acre cheiro das eflorescências. Aquelas vozes claras eram doces, santas, saídas de cristais, como veladas por um luar. Eram como claridades sonoras de estrelas. Era uma multidão de formas divinas que assim cantavam, divindades feéricas, willis, nixes, peris, fadas, que passavam ligeiras sem despertar os ramos ador­mecidos. Aquelas nudezas celestes, filhas do fogo, flores do mal, ondas do ar, entrelaçavam-se, dançando nas obscuridades, que as cintilações estelares franjavam de palidezas. No meio dos nevoeiros humanos elas faziam resplandecer diante dos olhos as visões paradisíacas, as criaturas siderais de lânguidos misticismos. Elas iam naqueles enlaçamentos, brancas e louras, cheias de lirismo, com os pés vermelhos e magoados de terem pisado auroras, iam, pousando nos jacintos, nos mirtos, nas rosas bárbaras cheias de sangue radioso, iam rolando sobre a brancura soluçante dos lírios e a sua voz triste subia por entre o azul lácteo para a Lua chorosa.

 

Quando assim estava no quarto da estalagem, inerte como uma múmia, pensando nestas coisas, vi repentinamente através das vidraças a Lua aparecer-me.

Mas não era aquela pura e imaculada Lua cor de opala – que derrama brancuras, como se através do azul caíssem lírios. Era uma Lua metálica, fria, hostil, material como uma moeda de ouro nova.

Ela aparecia-me mortuária e lívida como uma sombra finada, que se ergue às grades de um adro. E o seu olhar, lancinante e rápido, estava cheio das minhas agonias.

 

Ora nessa estalagem encontrei um amigo, antigo camarada, que se tinha feito saltimbanco.

Fez bem. Cansado dos pedantes, dos burgueses, dos ven­tres mercantis, dos imbecis afogados em gordura, fez-se sal­timbanco e vive entre os palhaços. Faz farsas coberto de farrapos luzentes, engole espadas, dança farto de vinho como um Sileno. Dorme numa capa esfarrapada, com a nuca sobre um tambor, à frescura das estrelas e sob a bondade dos luares.

Às vezes tem frio e fome e gela nuns calções feitos de veludilho e de galões de ouro. Anda errante de vila em vila e a populaça da lama admira-o cingido do seu diadema de metal luzente. Dança sobre a corda, e os seus gestos e as suas musculaturas fazem soluçar de desejos as gitanas e as feiticeiras. Que lhe importam as grandezas e as materialidades felizes?

Ele tem a multidão extática e enlevada nos giros dos seus sapatos, e tem uma bem-amada de tranças tão compridas como os ramos de um chorão e aneladas e fortes como negros penachos de voluptuosidade, e a sua testa tem um reflexo de luar, de mármore e de espelho: e tem um belo seio de formas bárbaras.

Ele pula à noite, no circo aluminado, enquanto as touti­negras cantam nos canaviais. Ele faz girar vinte punhais de cobre em volta da cabeça num circulo puro e sonoro. E a multidão, um dia, vendo aquele diadema terrível e faiscante, e o saltibanco impassível, grave, enfarinhado sob aquela coroa de luz, tomá-lo-á por um ídolo e fá-lo-á igual aos deuses!

Ele, o meu saltimbaco. tem a alma de ouro e o coração de diamante – e ri-se, ri-se, quando o vento soa como flauta do Inverno, e ao concerto das corujas e das ondas as estrelas dançam.

A miséria anda-lhe cavando a sepultura. Um dia, aban­donado da bem-amada, morrerá sem pão, sem luz, sem calor. sem orações e sem sol. E não sofrerá mais. Viu durante a vida todo um povo curvado, aplaudindo, debaixo dos seus borzeguins. Os tambores e os clarinetes tocarão o dia melhor do saltimbanco, o dia em que morrer: tocarão o seu melhor dia os ferrinhos, os timbales, os clarinetes e os tambores!

Todas estas coisas se parecem com sonhos. Mas o que é o sonho? O que são as visões? São as atitudes, fantásticas e desmanchadas, que a sombra dá às verdades. Já pensava assim o poeta Li Tai-Pé. que escrevia sobre as coisas santas da China, entre porcelanas e lacas, ao sopro dos nenúfares. vestido de sedas amarelas, perfumado de charão – doce. contemplativo, branco diante de um vaso de margaridas!

 

O MILHAFRE

 

Meus amigos. A literatura em Portugal está a agonizar: morre burguesmente e insipidamente: nem ao menos tem os efeitos de luz extravagantes de todos os oca­sos celestes.

É uma doidice o querer pensar, criar e criticar, nesta terra onde nascem as laranjeiras, como diz a cantiga de Mignon. Se ainda houvessem cabelos, seria muito preferível ser fabricante de caixinhas de banha.

Seria mesmo talvez melhor a profissão de poeta lírico, se não fosse uma profissão perigosa. Ainda há pouco, um pediu em casamento não sei que doce açucena, moradora na Baixa; o pai dela interrompeu a história dos idílios sacrossantos e municipais para perguntar ao namorado gentil qual era a sua profissão. «Sou poeta lírico, respondeu ele, e vivo do meu estado.» O velho ergueu-se de golpe, tomou uma bengala e espancou o poeta lírico, laureado em três cançonetas exóticas.

Todavia, é com verdadeira alegria que me acho neste canto que a política me deixa. Faço deste canto de boa vontade o lugar de espectáculo para assistir às últimas agonias do pen­samento em Portugal. Trata-se de cair bem, meus amigos, como os antigos gladiadores: «Oh egoísmo mundano, os que vão morrer saúdam-te!»

E depois, meus caros amigos, eu acho admirável a socie­dade moderna, a sua política perfeita, a sua indústria magní­fica, a sua agiotagem providencial, o seu luxo simpático, a sua retórica florida, a sua arte económica, os seus sonhos de oiro, mas persisto em invejar aqueles que como o antigo Daniel podem contemplar as estrelas, enquanto os bichos sociais se devoram na sombra.

 

Seja-me permitida uma pequenina fábula.

Um dia um homem entrou numa casa arruinada. No portal havia um nicho com um santo de pedra, que lia uma Bíblia, também de pedra, Em redor, na beira dos telhados, nas fendas das pedras, no canto do nicho, havia ervas molhadas e verdes, e ninhos de andorinhas. O santo tinha sempre as suas pálpebras de pedra descidas sobre o livro sagrado, Passavam as cavalgadas, os enterros silenciosos, os noivados, os cortejos, a pompa dos regimentos, e o santo lia atentamente o seu livro de pedra.

Vinham defronte dançar saltimbancos, passavam as frescas serenatas, vinham dos montes rebanhos e ceifeiras; o santo tinha os seus olhos de pedra sobre as páginas inertes. As devotas, lentas e desfalecidas, beijavam‑lhe os pés nus, os homens severos saudavam‑no, as crianças olhavam‑no com os seus grandes olhos inanimados, os cães ladravam‑lhe à calva: o santo, curvado, seguia o espírito de Deus por entre as letras do livro.

Passavam os fardos, os mercadores crestados pela indústria, os poetas lânguidos que desfalecem nas cançonetas, os histriões que cantam nos tablados, mulheres mais preciosas que o âmbar, os sábios, os mendigos, as virtuosas e as melodramáticas: – e o santo lia o seu livro profético.

Ora as torres gloriosas, as bandeiras, os ciprestes – ais de folhagem – os homens, perguntavam entre si: – «Que lê tão atentamente aquele santo, que nem sequer nos olha?» E os enxurros, que passam rosnando, diziam: – «Que lê tão devotamente aquele santo, que nem sequer nos escuta?»

Ora o santo lia assim. De noite, quando as bandeiras caem de sono, quando os homens estão cheios de comida e de inércia – a Lua, que ao nascer é material e metálica como uma moeda de ouro nova, depois, na suavidade do azul, é tão pura, tão imaculada, tão consoladora, como uma chaga de Cristo por onde se lhe visse a alma. A essas horas, uma criança, tão pobre e tão esfarrapada como o antigo pastor S. João, vinha deitar‑se junto do nicho do santo. E então, o santo afastava um pouco o livro, e toda a noite ficava cobrindo, com a grande luz dos seus olhos, aquela criança miserável, adormecida sobre as lajes.

Depois os planetas, a Lua, a noite seguiam a sua viagem imensa para o oeste, e a leste começava uma claridade: eram as hesitações da luz do dia, medrosa por ter de descer às misérias dos homens.

As bandeiras ainda estavam desfalecidas, sonhavam as árvores, a cidade dormia como outrora Sodoma. Acordavam então as. andorinhas. Esvoaçavam gloriosas, gritando, e vinham sofregamente, em tumulto, pousar no nicho.

As andorinhas estavam nas intimidades e nas confidências do santo.

Ora o vento, que passava pelos campos e pelas eiras, vem cheio de grãos e de sementes: a chuva cai lúcida e fresca. O santo aparava a chuva nas pregas da capa, e os grãos nas páginas do livro. E as andorinhas, quando vinham para o nicho, bebiam na capa do santo e comiam sobre a Bíblia de Deus. E, enquanto comiam e bebiam, gritavam, batiam com as asas nas barbas do santo, beijavam‑se na sua boca, aninhavam‑se‑lhe entre os braços, cobriam‑no todo; e o sol, quando chegava, ficava maravilhado de ver aquele pobre santo de pedra, que ele não conhecia do Paraíso, com os pés entre as ervas verdes, rindo, sereno, sob a luz imensa, e todo vestido de asas!

 

O homem entrou na casa arruinada e foi, através de pedras esverdeadas, de grandes humidades que escorriam, de madeiros apodrecidos, de muralhas leprosas de musgo, de escadarias miseráveis, até uma sala enorme, escura e trágica, e tão alta, que involuntariamente o olhar procurava as constelações naquela sombra.

No fundo da sala havia um grande crucifixo de madeira. Sobre a cabeça macerada do Cristo, as traves podres do tecto abriam uma larga fenda. Por ali vinha a chuva escorrer‑lhe nos cabelos como o antigo suor do Jardim das Oliveiras, vinham os granizos magoá‑lo como as pedras da paixão, vinha o Sol alumiá‑lo como a tocha de Judas, e a Lua vinha, também, torná‑lo mais lívido, como naquela noite em que ele, depois de ter visto a gente soluçante descer para Jerusalém, sentiu pousar na sua cruz um rouxinol, que toda a noite cantou.

Sobre a cabeça e sobre os braços do Cristo, havia teias de aranha; em baixo os ratos roíam‑lhe a cruz.

Então o homem sentiu que aquele seio constelado, e aquela boca donde saiu a revelação do amor, do perdão, e da alma, tinham o pó, a podridão, a caliça e os bichos; e que, se um dia Cristo, vendo o homem aflito e miserável, lhe tinha arrancado da alma o mal, não era muito que o homem, encontrando Cristo abandonado, profanado e roído, lhe limpasse da cabeça as aranhas. Mas, quando ia a limpar a imagem, viu, sobre a cruz, junto da mão pregada, um milhafre enorme. O homem, com as mãos, quis arredar o milhafre.

E a ave, então, com a antiga voz dos animais da Bíblia, do Apocalipse e dos livros dos profetas, disse surdamente: «Homem, deixa a cruz sossegada!»

Através das fendas viam‑se os astros sagrados. E o milhafre, batendo as asas, dizia:

«Deixa a cruz, deixa! Não tenhas medo que apodreça. Lá em cima luzem agora estrelas, sóis, planetas, cintilações, carbúnculos. É o pó dos Deuses mortos. Todos se finaram, histriões ensanguentados, e a sua farsa acabou em desterros.

«Morreram velhos, expulsos, esfomeados e nus.

«Este ficou, solitário, alumiando. Ele perdoou enquanto os outros lutaram, ele amou enquanto os outros choraram: por isso fica enquanto os outros passam. Deixa. Esta cruz, que é de madeira, vale tanto como as que lá em cima fazem os raios dos astros, ou no silêncio dos mirtos dois olhares bem‑amados.

«Deixa as aranhas, o pó, a caliça, os bichos, a neve, a geada, o apodrecimento. Ele pode bem dar às aranhas o seu corpo de madeira, pois que vos deu a vós o seu corpo de carne – a vós, que pregais com o mesmo riso e o mesmo esquecimento os morcegos no alto das janelas e o Cristo no alto dos montes; a vós, que lhe vindes limpar os cabelos de madeira, depois de lhe ter arrancado os cabelos vivos; a vós, que quereis lavar as nódoas que ele tem no peito, e não vedes as imundícies que tendes na alma. Tudo o que ele criou, o amor, o ideal, o perdão, a fé, o pudor, a religião, Deus, todo aquele evangelho da vida nova anda pelo mundo, tão degradado, tão coberto de bichos, tão imundo como o seio desta imagem antiga. A matéria, o impudor, o apetite rude, o ódio, o aviltamento, o tráfico, a miséria e a penalidade, andam sujando a tua alma, ó homem! como as aranhas andam sujando a cabeça deste Cristo! E não reparais, e não vedes, sobre os espíritos, sobre os corações, sobre as consciências, o pó, a caliça, o caruncho, os ratos e os vermes!

«Sim, é verdade: tudo é magnífico e são, e banhado de sol. As cidades são cheias e caiadas, só as consciências é que têm nódoas; as praças estão limpas de iluminações, só os corações é que estão escuros; os cais estão arejados, só os espíritos é que sufocam; os corpos estão sãos, cobertos de estofos, frescos e resplandecentes, só as almas é que andam nuas, miseráveis e leprosas. De resto, tendes o riso, a farsa, os paraísos artificiais, as arcas venais, e também o esfriamento do túmulo! Oh! amigos íntimos dos vermes, como vós cuidais do corpo, e o lavais, e o amaciais, e o engordais – para a pastagem escura das covas!

«Homem, que fizeste tu da alma? Ao princípio não era conhecida, depois foi vendida, depois foi apupada; tu, modernamente, julgaste melhor matá‑la – mas não certamente de cansaço com viagens a Deus! Deste‑la a despedaçar à negra matilha do mal. Em compensação, guardaste o corpo: para esse uma religião, um asilo forte como o Sol, os sete selos da lei e a escolta dos regimentos. Esse é o sagrado, o imaculado, o pontifical, o vitorioso. Proibição a Deus de lhe tocar. Para ele palácios, cortejos, serralhos, estofos, pedrarias, o sol e a iluminação dos astros. Para ele a inviolabilidade: Não matarás!

«Começaram então as cruzes a ficar desertas, os cepos a encher‑se de musgo, as forcas a apodrecer nos caminhos. Nós, os milhafres, e os nossos camaradas, os abutres, para quem já não havia corpos nos despenhadeiros, ladrões arroxeados pela corda, afogados disformes, deixámos os grandes montes e os rios, as vastas tradições do sangue, e viemos, para viver, aceitar, com os capões, a domesticidade nos parques resplandecentes, ou andámo‑nos mostrando aos imbecis, pelas feiras, numa gaiola! E as aves da noite, depois de terem visto a natureza imensa, as aflições do vento, as núpcias do mar, de terem lutado nas tempestades e insultado as estrelas, vêm, modestamente, comer bichinhos no saguão dos burgueses! Eu, que tinha estado entre a força, quis, ao menos, ficar entre a graça; e, depois de ter vivido na noite de Deus, quis, ao menos, morrer na madrugada de Jesus! E, entretanto, a alma morre esmagada e solitária, e a grande vida moderna, a vida do sol, da música, dos metais, vai, entre fulgurações, pisando e cuspindo naquela coisa miserável. E ainda está quente o sangue de Jesus!

«Homem, que fizeste tu do pensamento?

«Anda expulso, perseguido e sublime, como um Deus antigo. Cravaste‑lhe no seio as sete dores. Coube‑lhe a dor e o escárnio. É necessário que, nas cidades, os pensadores e os artistas extáticos sofram e sangrem: os triunfos dos homens da matéria são como os dos antigos imperadores – só são completos, quando passam entre torturas. E quem havia de soluçar sobre a cena moderna da paixão, senão os que têm alma?

«Amam, sufocam, caem, agonizam, e, entretanto, vai passando a coorte dos vitoriosos e dos reluzentes, e as suas bolsas riem‑se daqueles corações, como os botões de ouro das suas camisas apupam a luz dos astros.

«E os que quiserem viver e tiverem a alma grande, bela e heróica, têm de se baixar à estatura burguesa e mercantil dos cérebros modernos. Os deuses olímpicos, se não se deixassem ajuizadamente finar nas florestas antigas, teriam de se empregar nas secretarias. O soberbo pavão de Juno viveria num pomar dos arrabaldes. Homero seria localista. Os cavaleiros andantes roubariam lenços nos ajuntamentos, e o trágico São Jerónimo seria presidente duma junta de paróquia. Deste modo tu aceitas a arte, o pensamento, a alma. Não, arte, não te vás; a vida moderna dar‑te‑á uma libré resplandecente; vem, música, tu que criaste a Alemanha, far‑me‑ás uma contradança; vem, arquitectura, tu que deste hospitalidade a Deus, far‑me‑ás uma estufa; vem, escultura, tu que fizeste o povo dos deuses, o bela escultura! vem fazer‑me um gavetão. Oh! tristes domesticidades do ideal!»

Houve um silêncio. Havia na sala um ar místico, como para concepção dum deus.

O milhafre esvoaçava. Ouvia‑se o chorar duma flauta. E o olhar do Cristo errava, contemplativo e atento, entre as estrelas inumeráveis, enquanto na escuridão, aos seus pés, os ratos lhe roíam a cruz.

«Vai‑te, disse o milhafre. Os ratos roem a cruz, eu estou velho: a antiga geração das aves da noite vai‑se. Os pregos já se despregam, a cruz apodrece. E quando ela se desfizer, atirarei o seu pó à grande natureza, ao elevar da Lua, que vale o elevar da hóstia. Irei, oh meu Deus! para além dos sóis e dos caminhos lácteos, onde as constelações são gotas de sombra, certo – eu que sou da vasta terra, o selvagem dos prados, a respiração dos antros, eu que sou a palpitação dos montes – certo de que, se os homens não deram a cruz aos Cristos, não lha dará também a natureza. E eu, que roí as ossadas verdes, tendo visto sempre Este que fez o bem, que amou, que perdoou, pregado numa cruz, irei também, entre os sóis meio doidos, eu, que devastei, e matei, e escorri de sangue, crucificar‑me num astro!»

Assim falou, lentamente, aquele milhafre filosófico e letrado, enquanto as violas gemiam, e os pobres tremiam de frio; assim falava, de cima duma cruz, numa sala legendária, longe das maravilhas dos Cains burgueses, nestes tempos livres, sensatos, verdadeiros, magníficos, em que, como se não podem pôr certas verdades na boca dos homens, têm de se dependurar do bico dos milhafres.

 

LISBOA

 

Et nunc et semper

 

(Divisa dos príncipes de Este)

 

As geografias antigas, dizem: «Lisboa, cidade antiga rica e forte: ali o ar é melhor que em qualquer sítio da Espanha. Está sobre sete montanhas à beira do Tejo. Long. 9.30, lat. 38.42.»

O ar é na verdade bom. Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o ar escorre pelas cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus ainda não é um poeta impopular.

Lisboa que faz?

Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava e que falava, que tinha o verbo e a luz. Roma criou a justiça, Atenas idealizou a carne, Jerusalém crucificou a alma. Por isso Roma caiu, e os porcos enlameiam os restos de Atenas, e os cães uivam no silêncio de Jerusalém. Os seus olhos olharam muito para a verdade e cegaram: os seus ouvidos escutaram muito o pensamento e ensurdeceram: as suas mãos esculpiram muito o ideal e tolheram-se.

Pensar é sofrer; alumiar é lutar. A noite, ao sucumbir, luta com a madrugada, e deixa-lhe a chaga incurável do Sol: dela escorre a luz. As superstições, os preconceitos, os erros, os prejuízos, as fatalidades, lutam com a alma e deixam-lhe a ferida insanável do ideal: dela escorre a verdade. Esta ferida dá a febre, o cansaço, o desespero, a convulsão. Paris tem esta antiga e trágica ferida que teve Atenas, Babilónia e Jerusalém. Sofre porque pensa. Os pés têm a intimidade da lama, as asas têm a camaradagem da luz. Todo o pé quer ser asa.

Daí ambições, desalentos, lutas obscuras, perdições, des­crenças. fulgurações do mal, impurezas, traições, invejas, injúrias, torturas – a congestão do espírito! São estas as dores imensas, as nódoas do pensamento, as manchas do Sol.

Lisboa não tem estes defeitos da luz: é serena, imper­turbável, silenciosa. Quer a sua inviolabilidade, evita as feridas terríveis. Tem a sensatez, a prudência, a economia, o medo. Não quer alumiar, para não lutar, não quer pensar, para não sofrer. Não quer criar, pensar, apostolar, criticar. Escuta e aplaude toda a voz, ou sejam as imprecações sagradas de Danton, ou os versos do poeta Nero. As ondas que solucem, as florestas que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno.

Sente-se abundante, gorda, coberta de luz. Sente-se pro­tegida, livre, caiada e fresca; não tem de catar as suas misérias, nem de amparar o pau das forcas, por isso comenta Sancho Pança. Não tem de construir a catedral de ideias, nem de compor a sinfonia da alma, por isso escuta os melros nas várzeas e reza as ave-marias. Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim, suam e trabalham, em espírito. Ela não tem que semear: por isso, ressona ao Sol.

Às vezes, porém, comete o mal, enterrando ideias. Aonde? Na escuridão, no silêncio, no desprezo. Lisboa é um pouco coveiro de almas!

 

Como Roma, ela tem as sete colinas, como Atenas, tem um céu tão transparente que poderia viver nela o povo dos deuses. Como Tiro, é aventureira do mar. Como Jerusalém, crucifica os que lhe querem dar uma alma. Todavia Lisboa o que faz? Come.

Come, ao cair da tarde, sem testemunhas impiedosas, quando sabe que os astros vêm longe, que as asas sonham com o vento, que os olhos das flores se fecham de sono. Deus não vê da sua varanda de sol, e então, para esta velha cidade, heróica e legendária, que nos seus velhos dias tomou o pecado da gula, o abdómen é uma realidade livre! Até ali, durante o dia, os seus cabelos caíam como ramos de salgueiros, as suas faces estavam amortalhadas, dos seus olhos chovia dor; ainda não tinha comido! Depois, à noite, quando sai do alimento como de uma vitória, os olhares são gritos de luz, os cabelos plumas gloriosas, o peito arca de ideias; comeu!

 

Lisboa nem cria, nem inicia; vai.

Em religião nem tem a devoção dos monges, nem a impiedade irónica: é simples: antigamente fazia ir um Cristo crucificado, erguendo os braços suplicantes, no préstito dos enforcados: hoje choraria pela Mãe Dolorosa, depois de ter erguido uma estátua a Voltaire: dependuraria ao pescoço singelamente, com as contas de um rosário, a sua antiga viola de Alfama.

Em política copia Sancho Pança.

Não tem a coragem que se dedica, nem o medo soluçante: parece ter justamente o heroísmo de uma espada embainhada: na campanha da Europa, todavia, com os seus uniformes negros, espantava a velha guarda: tem a religião sensual do Sol, do calor e do sono: e verdade. No Beresina, apupava as neves!

Nem tem a febre das especulações e das indústrias, nem o amor das contemplações e dos sonhos: tem um trabalho cheio de sestas: em Abril suspende a enxada para ver voltar as andorinhas.

No vício é tímida: copia desjeitosamente as babilónias distantes: aproveita o fogo de Sodoma para aquecer os pés; apara as unhas ao Diabo; é o banho tépido dos pecados mortais.

 

Adoradora, em arquitectura, da linha recta dos palácios de cristal, sectária, em escultura, dos biscuits de Sèvres, namorada, em poesia, do visconde d’Arlincourt, no teatro quer a mágica: tem sede e fome daquele ideal: quer as montanhas transpa­rentes, os palácios de missanga, nudezas celestes, noivas de coral, arquitecturas de luz e de sons, papéis colados, vermelhão e ourelo, mulheres despidas, pedraria, e ouro, ouro, ouro, e ainda ouro, e mulheres despidas, e mais ouro! Lisboa quer sobre uma cena resplandecente ver as formas estranhas que toma o sonho de imbecilidade: quer a mágica: em verdade, a mágica é o espectro solar do idiotismo!

Vem a noite. Lisboa toma a impassibilidade das penedias.

As casas sem luz têm o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas. A iluminação é um coro de gás, bocejando. Das encruzilhadas das ruas solitárias, de todo este deserto de cantarias e de vidraças, exala-se uma sonolência fluida, um hálito de tédio. Lisboa de noite é tão silenciosa que quase se sente o crescer da erva que a há-de cobrir no dia das ruínas.

É tão triste que a noite parece um arrependimento da vida! Nas belas moradas, nos casebres, nas trapeiras, em cambraia, em farrapos, em palhas, por toda a parte, há um vasto sono inerte e vegetal.

Que fazem entretanto os errantes da noite, a família Vicio, a gente crepuscular, os herdeiros terríveis de Lovelace e de D. Juan Tenório?

Compram na penumbra doméstica o amor fuliginoso das cozinheiras, comem melancolicamente mexilhões nas tabernas; os mais pobres encostam-se às esquinas esfarrapados, e doentes, cariátides sonolentas do tédio!

E nas casas? Ai, nos andares resplandecentes, onde as mãos são macias e macios os sentimentos, estão, concentradas e sérias, formas vestidas de luto, como os viúvos, ou vestidas de branco, como as monjas. E suaves são as falas e o andar cheio de ondulações, como o nadar das sereias, e as danças severas como a celebração de um rito: e suaves são as pétalas, e as músicas chorosas e as luzes, aves de claridade presas, que palpitam e querem o livre azul: mas sobre a alma e os cornos, e os adornos, derrama-se a tristeza dos viúvos e a frialdade das monjas. E isto são as festas!

Mas acima, nos andares modestos, ressonam aquelas famílias, vulgares e ásperas, que nascem com a alma cheia de frio, que vivem entre a beleza, a graça, a paixão, como insectos entre os cabelos de uma santa, e morrem solitárias, invejosas, com os corações cheios de revolta porque não amaram, com os pés cheios de musgo porque não caminharam!

Depois, mais em cima, nos últimos andares, é a gente do trabalho: operários severos, doces raparigas com alma de pássaro, gargantas onde, como nas veigas de Israel, todo o dia se canta, e também a gente estúpida e metálica que tem a brutalidade do trabalho, com a rudeza do coração, índoles ásperas, olhos invejosos, mãos avaras, peitos vazios, que a essas horas da noite, com os cabelos caídos, vêem a vida tão nua, tão apertada. tão brutal, tão suja como a sua trapeira!

E depois mais acima, debaixo dos telhados, os mendigos, os esfomeados, os miseráveis, a essas horas com grandes olhos aterrados, se catam, ou moem as côdeas, ou gemem de dor, ou morrem entre a caliça e as aranhas, ou se remendam, cantando impuramente!

E por cima como na jerarquia da dor, das tristezas do pobre, só estão as chagas de Cristo, o grande azul, sereno, transparente, cheio de universos, esconde por detrás da gra­daria dos astros o Mistério e a Graça!

A essas horas, ó miséria das cidades!, longe dos conser­vatórios e das academias e das mágicas, pelos prados e pelas várzeas representam-se as verdes comédias da Natureza: os rouxinóis dão a réplica às veigas melodiosas, as fontes choram pelas desgraças de um melro amoroso, os olmos têm atitudes grotescas de palhaços, e o céu, como amante trágico, criva-se de punhaladas de luz!

 

Em Lisboa a vida é lenta. Tem as raras palpitações de um peito desmaiado. Não há ambições explosivas; não há ruas [40] resplandecentes cheias de tropéis de cavalgadas, de tempestades de ouro, de veludos lascivos: não há amores melodramáticos: não há as luminosas eflorescências das almas namoradas da arte: não há as festas feéricas, e as convulsões dos cérebros industriais.

Há escassez da vida; um frio senso prático. A preocupação exclusiva do útil. Uma seriedade enfática. E a adoração burguesa e serena da moeda de cinco tostões – da moeda de cinco tostões, branca. perfeita, celeste, pura, imaculada, con­soladora, purificadora!

O luxo dos vestuários é reflectido. E pausado! E calculado!

Um outro luxo há, mais doido: esse, quando é novo muge, resplandece, deixa-se balançar em grandes pregas desfalecidas – um pouco baixamente, de camaradagem com a lama: mais tarde, depois das ostentações e dos amores, envergonha-se e vai-se mascarar às tinturarias: nos seus velhos dias anda, miserável, pedindo esmola, por casa das adelas!

 

A Lisboa material tem feições morais. Há sítios que dão, aos que os pisam, uma individualidade. O lajedo e a cantaria consagram espíritos. Encostar-se no Chiado! – isto significa ter a fina flor da graça, a vivacidade conceituosa e costumes despedaçados. Estar no Martinho – revela inspiração, divin­dade interior, lirismo e política crítica. Ó Lisboa, tu não tens caracteres, tens esquinas!

 

Lisboa tem compaixões celestes: agrupa-se em coro de lágrimas para ver a morte de um cão: mas afasta-se logo, assobiando, se começa a agonia de uma alma. Tem também uma curiosidade tímida e fácil: senta-se nos passeios, pelo Estio, entre o pó, olimpicamente, como os deuses entre a luz, e fica atenta, concentrada, suspensa, idiota – a ver caminhar seis mil pernas!

 

Um dia Paris aborreceu-se e expulsou os reis, outro dia aborreceu-se e acolheu os imperadores. As vezes Lisboa aborrece-se e entra na política – como homens que entram no banho são pisados pela maresia, são feridos pelas areias, esfriados pela neblina e vêm, contentes e transidos, enxugar-se ao sol!

 

Lisboa toma atitudes, clama, conjura nas esquinas, e bondosamente afastada pela policia, e vem, toda gloriosa e feliz pelas tiranias derrubadas, reler a cartilha!

 

Uma das maiores alegrias de Lisboa é sujar-se!

Nos tempos mitológicos, às vezes, uma deusa fazia-se mulher, esposa e mãe, fiava na roca de ébano incrustada de lápis e dobrava as lãs vermelhas de Mileto. Vinha porém um dia no ano em que a mulher ia no Olimpo ser deusa. Deixava esposo, filhos, lares, parentes; debalde lhe pediam que não fosse, temendo que ela, mulher e deusa, não se acostumasse na volta às lâmpadas de gineceu, ela que ia ser alumiada pelos astros do Olimpo. Debalde: chegado o momento, nada impedia a esposa de ser divindade: via-se aquele corpo casto, argila ideal, azular-se e, transparência viva, perder-se na luz.

Lisboa é assim. Vem um dia em que ela quer voltar ao seu elemento primitivo, e ninguém a pode impedir de ser lama: é o Entrudo.

Suja-se então livremente, faz tempestades nojentas, naqueles dias o seu tédio é feito de prodígio e de imundície, e é um sol dos escoadouros!

Transfigura-se. E como a deusa deixava, na Antiguidade, os filhos e os lares, para ir ser luz. Lisboa esquece as funções do seu tédio, a religião da moeda de ouro, o sacerdócio da economia, as atitudes enfáticas do seu pudor, para se dar livremente à lama!

Lisboa é a hospedaria do vento. O antigo Euro paga a hospedagem atirando a poeira às ruas, às praças, às avenidas, aos cais, à cara de Lisboa! Sublime adulação: suja-a!

Lisboa respeita a limpeza, mas adora a lama. Colisão! Lisboa, cidade inspirada, corta magnificamente o embaraço, lavando-se no lodo do Tejo!

Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou?

O fado.

Fatum era um deus no Olimpo; nestes bairros é uma comédia. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. Está mobilada com uma enxerga. A cena final é no hospital e na enxovia.

O pano de fundo é uma mortalha!

Todos os dias, quando o Sol se vai nas águas lavar dos olhares dos homens, quando os corpos estão em flor, e passam os olhos pretos, de que Deus é avaro, e a malediciência se abre como uma túlipa, e os risos são clarões, e a vida se balouça cheia de sonhos, de lustres de olhares, de beijos cor de sol, de camélias e de pomadas, passam na rua umas carruagens lentas, com grandes arabescos dourados: são coches; as suas armas são caveiras; vão ali os mortos. Aqueles vão apodrecer e ser ossadas verdes.

– Morreu um homem – pensa tristemente a alma.

– Aaah – diz tristemente o coro dos corpos, cobertos de pano, de seda, de cassa, de burel, de farrapos,

– Morreu – pensa a alma –, sofreu, comeu. digeriu, pobre corpo! Um corpo bem lavado, bem engordado, bem macio!

– As saias verdes e curtas são bonitas – diz o coro: – os pés pequenos, valem os grandes corações.

– Logo a terra encherá aquela boca que teve risos e beijos, e aquelas mãos que apertavam outras mãos esfriarão na hu­midade.

– Há olhos que são um mar, tudo têm: tempestades e sal. Abençoados os que lá se afogam.

– Os bichos da cova hão-de-lhe roer a cara; os olhos, aqueles olhos cheios de luz que vestiram tantas vezes uma alma bem-amada, serão comidos: ficarão dois buracos: ali aninham-se os bichos: é uma multidão: donde caiam lágrimas para a ternura, nas horas luminosas, hão-de escorregar umas formas viscosas, negras, que roem e incham – os vermes!

– Não são lindos os vestidos que modelam o seio? Não são lindas as comédias em que os maridos velhos morrem de ciúme? Não são lindos os cristais que às luzes parecem flores do Paraíso?

– Daqui a um mês aquele homem é uma ossada verde. Quando nasceu bateram-lhe. O amor emagreceu-o, o vinho secou-o, os agiotas torturaram-no, agora os bichos comem-no. E eis ai um homem!

– Que vida! Doces são as violetas, os seios são tépidos.

– Oh!, goivos debruçai-vos. pombas dos cemitérios pousai. estrelas descei, Sol alarga-te. erva espessa-te, vinde feitos pétalas mortas; vem com o teu xaile, libertina; com a tua estola. padre; com a tua bolsa, agiota; cobri-lhe a cova, cobri-lha bem, resguardai-o, agasalhai-o – porque faz bem frio, na cova, ao pé dos bichos!

E entretanto as carruagens, lentas, passam, com a sua caveira cor de ouro: «Anda cocheiro: é um freguês que vai para a cova: a passo! Alto de S. João! A Eternidade toma-te à hora!»

E enquanto o pobre morto vai, que dizem os que o viram partir, soluçando?

 

Os filhos dizem: «Tinha de ser...»

A esposa diz: «Vestida de luto!...»

O agiota: «Não foi mau freguês.»

Os médicos: «É um caso interessante...»

Os que o levam para a cova: «Era pesado, o maroto!»

O coveiro canta:

 

O preto que vem d’Angola

Traz a bordo fava-rica.

 

Tu, pobre mulher chorosa, amaste aquele homem: vestiste-o com os teus cabelos, alimentaste-o com o teu hálito, coroaste-o com o teu olhar, divinizaste-o com o teu desejo; ele era formoso, e são, e forte, e apaixonado: mas se passares por ao pé dele agora, ó pobre mulher chorosa, põe bem a mão no nariz!

 

Fica-te em paz, Lisboa! És Baixa e magnífica. Os que te quiserem abençoar terão de se curvar um pouco para a lama: mas consola-te, se alguém te quiser amaldiçoar terá de se aproximar bastante de Deus!

Tu dorme, digere, ressona, soluça e cachimba. E se algumas lágrimas em ti caírem, vai-as enxugar depressa ao sol! Fica-te em paz! Os que têm alma não querem a luz dos teus olhos; podes consumi-la a contemplar o céu e os universos; por causa do teu olhar sempre erguido para lá, ninguém terá ciúmes do céu!

Os que têm coração não querem as carícias das tuas mãos: podes emagrecê-las a rezar a Jesus; por causa das tuas mãos sempre erguidas para ele, ninguém terá ciúmes de Deus!

Tu tens a beleza, a força, a luz, a graça, a plástica, a água resplandecente. a linha magnífica. resigna-te. ó Lisboa querida. o clara cidade bem-amada. ó vasta graça silenciosa, resigna-te. o doce Lisboa, coroada de céu, resigna-te – a não ter alma!

 

O SENHOR DIABO

 

Como está provado que eu sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do de­funto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas histórias femininas e macias, que nos serões de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria.

 

Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensan­guentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século XVI é o maior zelador da colheita dos dizíamos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Ale­manha: consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo, e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez a nostalgia do Céu!

Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lucifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová, e comanda uma grande batalha entre as nuvens.

Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Job, tortura Sara e em Babilónia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas húmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constlncio4 Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexan­dria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos a S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades men­dicantes, sentado na relva, sobre a sela do seu cavalo.

Intentava processos contra a Virgem: e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juizes de Sócrates. Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da guia.

E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários deser­tos, escreve as suas memórias, e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio.

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aven­turas da noite, S. Tomás revelou o seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. Jogo Dique escreveu sobre a sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia dos seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.

O Diabo amou muito.

Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antiguidade, da mãe de César, e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.

Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha.

Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século XII, tentava com olhares cheios de sol as mies melodramáticas dos Burgraves. Na Escó­cia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava-lhes com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.

 

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.

Ó mulheres! vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orva­lhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir esta história florida!

Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto.

A casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm.

Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam pie­dosamente, com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Hei­delberg, os vinhos de Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo.

E todo o dia fiava.

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro.

Ela, sentada junto do crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros.

As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo ali estava – consolando, em cima, sob forma de planta, amando, em baixo, sob forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado.

Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!

– Se tu soubesses! – dizia um olhar. – A alma dela é imaculada.

– Se tu visses! – dizia o outro. – O coração dele é sereno, forte. e vermelho.

– É consolador, aquele peito onde há estrelas!...

– É purificador, aquele seio onde há bênçãos!

E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as árvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor, e o Reno cantigas de ceifeiras.

E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas.

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar:

 

Os teus olhos, bem-amada,

São duas noites cerradas.

Mas os lábios são de luz

Lá se cantam alvoradas.

 

Os teus selos, minha graça,

São duas portas de cera,

Fora a minha boca um sol

Como ele as derretera)

 

Os teus lábios, flor de carne,

São portas do Paraíso:

E o banquinho de S. Pedro

É no teu dente do siso.

 

Queria ter uma camisa

De um tecido bem fiado,

Feita de todos os ais

Que o teu peito já tem dado.

 

Quando nos formos casar

Canta missa o rouxinol.

E o teu vestido de noiva

Será tecido de sol!

 

A bênção nos deitará

Algum antigo carvalho!

E por enfeites de boda

Teremos gotas de orvalhos!

 

E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como os dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito tio corpete uma flor vermelha de cacto.

Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram na Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrósia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto da varanda, e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

– A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?

E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:

 

Quem depena um rouxinol

E rasga uma triste flor,

Mostra que dentro do peito

Só tem farrapos de amor.

 

E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desola­dores, como blasfémias de luz. Maria tinha levado a sua roca e só havia na varanda as. aves,, as. flores, e Jesus!

– A toutinegra voou – disse jovialmente.

E indo para Jusel:

– E que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel?

Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.

– No meu tempo, senhor Suspiro – disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços – já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isto! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem os braços fortes. Os lábios vermelhos de desejo gostam das armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel!

Jusel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito.

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rijamente a mão.

– Bacharel Ternura – disse – há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este exce­lente Rabil. – Era o pajem. –E necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou­-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado em lama, na ponta da espada! Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. E uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramen­tos, são inúteis: eu me encarrego de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas!

E batendo heroicamente nos copos da espada:

– Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?

– Ali! – respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda das plantas e das pombas, alumiado pelo sol que descia, branco entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas.

– Ah! – disse cavamente o homem da flor de cacto. – A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de laco e de Marte?

– Eram os meus irmãos – disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra.

– Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite! Chei­ra-me aqui às terras de Jerusalém!

E sumiram-se debaixo das arcarias e das pilastras, sinistros, soluçando.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado ao pilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água, que sobe em repuxo, suspira murmurosamente para o azul.

Maria disse suspiradamente:

– Vem.

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobravam-se, um para o outro, como se esti­vessem aproximando os braços de um Deus.

As folhagens escuras que envolviam o Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia, com a voz humilde dos corações primitivos:

– Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel: ouvia-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: «Aquele coro é de mortos: são os amantes infelizes que choram no cora­ção daquela mulher.» Outros diziam: «São as tristezas dos minnesingers errantes que ali soluçam.» Outros diziam: «Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali do exílio.» E então eu adiantei-me e disse: «Sim, sim, aquele coro é de mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem.» Que sonho tão mau, tão mau!

– Porque estás tu – dizia ela – todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas?

– Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem.

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.

– Quais são os meus olhos? quais são os teus olhos? – dizia Jusel. – Nem eu sei!

E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se despren­diam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.

E inclinando o corpo:

– Conheces meu pai? – disse ela.

– Não. Que importa?

– Ai, se tu soubesses!...

– Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há-de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés como um cão. Es uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão. toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixava-me andar esfar­rapado. Por eu entrar no teu coração, não tires nada dela, não? Tens lá a fé de Jesus, e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu constelado. O que quero eu de ti? As tuas penas. Quando chorares vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que te prende o cabelo. Será a nossa estola.

E com a ponta da agulheta, de pé junto da imagem, afas­tando os ramos, transfigurado e celeste, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas – J. e M.

– É o nosso noivado – disse ele. – O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, às florescências; porque, vês tu? as flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia!

E ajoelhados, extáticos, calados, eles sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça.

E as suas almas falavam cheias de mistério.

– Vês tu? – dizia a alma dela. – Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu e os universos, e encerra por toda a parte Deus!

– O meu coração – suspirava a alma dele – é uma con­cha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida nesse mar. Mas se tu me expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor!

– Olha – dizia a alma dela – eu sou como um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares!

– Sabes tu? – dizia a alma dele. – No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas- Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo vir descendo – quando cairás tu nos meus braços?...

E a alma dela dizia: «Cala-te.» Não falavam.

E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam deslumbradas, inefáveis, ternas; confundidas, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobe de justo, de perfeito, de casto, as orações, os pran­tos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas – para Deus passar por cima!

E então à porta da varanda houve uma risada metálica. imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros, ves­tidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo, sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.

O pai foi lentamente para Jusel e disse, com escárnio:

– Onde queres ser enforcado, vilão?

– Pai, pai! – E Maria, aflita, com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho. – Não. E meu ma­rido, casámos as almas! Olhe, ali está. Veja. Ali, na imagem!...

– O quê?...

– Ali, no peito; veja. Os nossos nomes enlaçados como numa escritura. Veja. É meu marido. Só me quer bem. Mas veja. Sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida!

O velho olhava as letras enlaçadas como uns esponsais divinos que se, tinham refugiado no seio de Cristo.

– Raspa, meu velho, que isso é marfim! – gritou o homem dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca do cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!

E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.

– E ele, Rabil! – gritou o homem da flor de cacto.

O velho soluçava.

E então o homem pálido, que tocava na guitarra de Ins­pruck, onde os pastores de Helyberg enroscam heras, veio tris­temente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai:

– Abençoa-os, velho!

E saiu, batendo rijamente nos copos da espada.

– Mas quem é?... – disse o velho apavorado.

– Mais baixo! – disse o pajem da ânfora de Mileto. –E o Senhor Diabo!... Mil desejos, meus noivos!

 

Pelas horas da madrugada, na estrada de Necker, onde as cerejeiras luzem, o homem dos grandes cabelos negros dizia ao pajem branco como os Apolos de mármore:

– Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu! Já não estou para aventuras de amor! A bela Impéria diz que eu me vendi a Deus!

– A bela Impéria! – disse o pajem. – As mulheres! vai­dades, vaidades! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados, trovadores! As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, vestidas de burel, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incómoda, e uma carne tão diáfana, que se vê através o lodo primitivo! Misérias! Ai Atenas! Corinto! Mileto! Tenedos! Abidos!

– Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo, e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo e a aparecer muito a tinta. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vida tinha de me entreter perdoando e consolando – para não morrer de tédio! Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos antigos tempos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar a carne a um Deus! E esta a minha última aven­tura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer.

– Também os diabos se vão! Adeus, Sati!

– Adeus, Ganimedes!

E o homem e o pajem separam-se na noite.

A poucos passos o homem encontrou um cruzeiro de pedra.

– Estás também deserto – disse, olhando para a cruz.

– Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu! Sofreste calado.

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio:

 

Quem vos desfolhou estrelas,

Dos arvoredos da luz?

 

E com uma grande risada melancólica:

 

Chegará o Outono ao Diabo?

Virá o Inverno a Jesus?

 

UMA CARTA

 

A Carlos Mayer

 

Meu caro Mayer: naqueles tempos, segundo a fórmula do Evangelho, o romantismo estava nas nossas almas. Fazíamos devotamente oração diante do busto de Shakespeare.

Lembras-te do teu quarto da Rua do Forno, creio eu, no último andar, quase nas confidências humorísticas das estrelas? O busto de Shakespeare, que era o nosso calvário da arte, estava ali, ao pé de uma medalha do Dante, e da Inocência de Greuze! Lembra-me também uma gravura do Juízo Final e dois esboços holandeses. Sobre a estante, por cima de Voltaire, de Diderot, de Rousseau, de Mirabeau e de alguns volumes da Enciclopénia – num quadro, a figura de Napoleão, sobre uns rochedos enfáticos via os prantos do mar e o voo das gaivotas. Tinhas também uma colecção de minerais e duas caveiras polidas e lavadas que riam serenamente. O meu quarto, no Salvador, era mais austero. Na parede, estava pintada a carvão uma grande cruz. Em redor, estavam escritos versículos da Bíblia e dísticos da Imitação. Mas, como eu andasse nesse tempo constipado, P., um pagão, fez raspar toda aquela decoração ascética, dizendo que o misticismo proibia o sol, o calor, os bens tépidos, a dilatação da molécula venturosa, a flanela e os melaços, coisas só próprias de César, e que, assim, eu perpetuaria aquela doença que era o ponto de reunião de todos os radículos atmosféricos, que o nusticismo em fresca exalava defluxos, e que o ateísmo era para mim uma neces­sidade higiénica. T. aconselhou, então, que se forrassem as paredes com pele humana: um outro achou ostentosa a pele humana e disse, beatificamente, que, como mais modesta e mais duradoura, lhe parecia preferível a pele catedrática. Outro instou para que se forrasse o quarto com as folhas dos compêndios: eu opus-me asperamente a isso, dando as mesmas dolorosas razões que daria um preso se lhe quisessem forrar as paredes da enxovia com um tecido feito dos seus próprios remorsos! Tirou-se à sorte. Destinou a sorte que se forrassem as paredes com pele humana. Dispersámo-nos lentos e tristes para ir assassinar gente!

Reunia-se ali um concílio formidável.

O mais implacável era A. Que ideias e que camisas! Foi ele que, um dia, na aula de Direito Canónico, profetizou, com gestos trágicos, a destruição de Babilónia! Vinha também S., todo armado; entrava ordinariamente pela janela, galhardamente, como Almaviva, estendia sobre os tímidos a grande sombra protectora dos seus bigodes, e pela noite alta saía à caça dos lobos. Perseguia debalde um bando de lobos errantes que, segundo ele, deviam ter acampado na humidade melodiosa do Salgueiral. Vinha também M., de sinistras ironias: um dia, no Buçaco, encontra um homem de suíças apostólicas, corre para ele e aperta-o entre as mãos robustas, com o gesto de quem esmaga um insecto. «O que faz?» bradava o homem. «Estou a catá-lo; o senhor, entre esta floresta, faz-me o efeito de uma pulga entre as barbas de Moisés!»

E continuou a esmagá-lo.

No teu quarto celebrava-se a arte. Era o Hotel Rambouillet do romantismo.

Ali, muitas vezes, sentado sobre a Mecânica Celeste de Laplace, tu me mostraste, misteriosamente, um sistema solar que tinhas criado e que tinhas fechado dentro de um frasco. Os universos eram glóbulos de água. Um dia um cão entornou aquele firmamento.

Que tardes! Da varanda via-se a serenidade virgiliana dos prados e do rio. Líamos: eu declamava Hamlet, tu tocavas na tua rabeca a mórbida Lucia! Muitas vezes, entre um concílio revolucionário, tu lias em pé sobre a mesa, dramaticamente, os lambes de Barbier. Os lambes – de quem o clássico A. dizia gravemente terem um defeito: serem sublimes! Celebrávamos ceri­mónias de um culto desconhecido diante do busto de Shakespeare.

Dávamos grandes batalhas! Combates cruéis! Ainda a serie­dade estremece! Eram dois bandos. De um lado os pagãos, os clássicos, os positivistas; do outro os bárbaros, os românticos, os místicos.

As balas eram nomes: arremessáveis, de bando a bando, sanguinolentamente, os nomes dos grotescos de cada seita. Um romântico feria um clássico, gritando-lhe com gesto terrível:

Domingos dos Reis Quita! O clássico cambaleava, mas res­pondia vingativo: Gilbert de Pixérécourt! Deves-te lembrar que uma vez um clássico traiçoeiro atirou desapiedadamente ao peito de um adversário romântico este nome mortal: visconde d’Arlincourt! O romântico levou dolorosamente a mão ao cora­ção e caiu inanimado.

Quando o levantámos não era um cadáver, mas era um convertido.

Desertou para as fileiras clássicas, por não querer pertencer a um bando que tinha suspensa eternamente sobre si esta vergonha de Dâmocles: o visconde d’Arlincourt! Lembras-te decerto que nós fomos os Sansões dos Filisteus clássicos: não os derrotámos com a mesma queixada, mas apunhalámo-los, um a um, com nomes de clássicos portugueses. Um dia deban­daram, atordoados, enquanto que nós do topo da escada gritá­vamos sem quartel: Sã de Miranda! Garção! Semedo! Quita! Sepúlveda! Ruas!

Já cansados, sem armas, atirávamos-lhes estes nomes como pedras!

Lembras-te dos ensaios dos Amigos Íntimos? Havia uma palavra que eu não conseguia pronunciar bem: era – soli­dariedade. Na noite da representação tomei o partido de a cantar, separando as sílabas como notas de música. Era na casa dos adereços do teatro que nós discutíamos com T. a supe­rioridade da arte grega. A pregar uma cortina, arredando basti­dores, proclamávamos o Moisés e o Pensieroso com grave detrimento da Vénus de Milo – a grande Afrodite. Depois das representações, havia ceias semelhantes às bodas de Gamacho! Uma noite saímos todos, de mantos, com coroas de louro, simbolizando a geração dos Petrarcas e cantando um coro lacrimoso.

Tinha havido na Rua de... uma reunião, e as famílias, ao sair, dispersavam com gritos de aves assustadas, ao ver aquela multidão de fantasmas coroados, que recitavam um soneto amoroso, oferecido a Deus em nome dos discípulos de Petrarca!

Aquela época foi uma pequena Restauração, tanta era a vida, a seiva espiritual, a vaga convulsão melodiosa da alma. Adorávamos o teatro. O teatro era a paixão, a luta, a dor, o coração arrancado, e gemendo, sangrando, rolando sobre uma cena resplandecente. O nosso teatro – era Shakespeare e Hugo, e os cómicos espanhóis sombrios e magníficos do século XVI.

Admitíamos também a sátira no teatro, mas a sátira sangui­nolenta. Juvenal dialogado, a brutalidade sublime de Rabelais, o largo riso gaulês, toda a lama de Marcial, com todo o sangue de Tácito, para pintar a casa macia do egoísmo humano.

Tínhamos um hemiciclo de poetas. Colocados sob um ponto de vista exclusivo, só era admitido à nossa comunhão – o que derivasse da força, do rugido da Natureza, da palpitação selvagem da vida e da paixão.

Tínhamos, ao mesmo tempo, ocultamente, um idealismo doentio e dissolvente. O nosso grande compositor era Beethoven; e, todavia, eu, desgraçado de mim, adorava Mozart em segredo. E eu suspeito-te, amigo, de teres nesse tempo condescendido com Novalis e Luís Tieck.

Para nós, e com grandes pancadas contritas sobre o peito o digo – Portugal não tinha direito de cidade na região da arte e da alma. Aceitávamo-lo como país de acção. Um dos maiores poetas de Portugal, para nós, era Vasco da Gama! Tínhamos um sistema de nações-almas e nações-braços. Assim, para nos, a maior epopeia portuguesa era a exploração do mar. As suas rimas eram conquistas. As cenas dos seus dramas escorriam de sangue junto das muralhas de Diu.

Literariamente, Portugal, na nossa opinião, era simples­mente o pretexto para o Bosque/o Histórico do senhor padre Figueiredo. Do passado apenas acreditávamos em João de Barros e Camões. Garrett tinha-se separado de nós, tomando pelo atalho que leva a Deus, e legando à geração presente a pouca alma que ela ainda tem.

Os contemporâneos, ai!, não os conhecíamos. Hoje eu, e creio que tu, conhecemos bem os nobres espíritos que se obstinam em pensar no meio deste deserto de almas, uns junto da história, outros junto do verso, alguns amparando a critica, outros reanimando o drama e o romance.

Mas, naquela época de espontaneidade, só víamos o que era verdadeiramente e incontestavelmente sol!

Discutíamos largamente a Natureza, e eu lembro-me de te ouvir falar, diante daquela luz que cai desfeita em tristeza no Penedo da Saudade, acerca da formação das nebulosas, e, partindo dai, descrever o homem e Deus, até à procissão da véspera.

Havia entre nós todas as teorias e todas as seitas: havia republicanos bárbaros e republicamos poéticos; havia místicos que praticavam as éclogas de Virgílio; havia materialistas senti­mentais e melancólicos que proclamavam a matéria com uma meiga languidez nos olhos, e falavam da força vital quase de joelhos, com as mãos amorosamente postas; havia pagãos que lamentavam as suas penas de amor, castamente, sob a névoa luminosa dos astros. Tudo havia, e também a serena amizade incorruptível, o fecundo amor do dever e a ingenuidade risonha de tudo o que desperta.

Diante da anatomia das ideias havia uma coragem magní­fica, e na vida real eram todos contemplativos, melancólicos e tímidos. E tu sabes qual era o grande espírito, hoje longe de nós, que explicava Proudhon, com a serena familiaridade dos sábios, e nas aulas dizia, com voz tímida, referindo-se aos jurisconsultos antigos: «O Senhor Pegas... Sua Senhoria o digno Paiva e Pona... O nobre cavalheiro Cujácio..., etc.» Tremia diante daqueles comentadores como diante de ídolos misteriosos; e imaginava abrandá-los, dando-lhes venerações.

Tal era aquele concílio. A força severa do espírito precisa destas precursoras explosões de vida. Hoje pouco resta desses camaradas. Separados ou distantes, todavia, sempre que um levanta o braço, reúnem-se todos em volta, como os hugue­notes em redor do penacho de Henrique IV.

Todos se perderam. Uns estão bem longe, para além do mar. Outros sofrem os tédios da vida oficial. Outros vivem nas castas serenidades do lar. Outros apodrecem debaixo da erva, e o que nos amávamos neles – a alma – dissipou-se, e o que víamos – o corpo – anda em redor de nós, nas metempsi­coses, no ar, nas plantas e nas pedras; mas nós não com­preendemos ainda o seu silêncio, como eles já não percebem o nosso ruído!

Ora quem nesse tempo me tivesse falado dos séculos clás­sicos de Augusto e de Péricles fazia-me uma injúria pessoal; e hoje em presença desta doença desoladora dos espíritos, destas chagas luminosas e incuráveis que as almas têm, eu estou quase pronto a ir declarar, com a vela na mão, como os antigos convertidos, que o pensamento tem tido apenas três épocas:

Péricles, Augusto e Luís XIV. É o ciclo dos três tiranos! E embora se lastime que as ideias nasçam com os escravos, eu acho magnífico e verdadeiro que aquelas datas gloriosas sejam o jazigo de tudo quanto a alma humana tem criado. Contiteor. Salve, Aristóteles!

Mas o mal é que em volta daquelas épocas, que são cimos luminosos, em baixo, nos crepúsculos constelados, move-se uma população infecta, disforme e revolucionária. Ali há o crime, a paixão, a luta, a dor, o sangue, o amor, o ciúme, a morte e a dúvida – todas as meias-tintas do mal! Quem desce daqueles cimos, que são glória, luz e verdade, onde habitam as almas nobres de Horácio, de La Harpe, de Boileau, de Reis Quita, de Garção, de Caminha e companhia, quem desce àqueles fundos perversos topa com figuras gigantescas e horrí­veis, Shakespeare, o humano, Dante, o sobrenatural, Rabelais, o escarnecedor, Isaías, o profeta, Juvenal, o vingador, Ésquilo, o fatal. Aquelas figuras devastam.

E é um encontro pior que o da Floresta Misteriosa, no começo da Divina Comédia. Adeus, as serenidades idílicas dos tempos de Péricles e de Augusto! Adeus, as claras águas da alegria nos olhos! Adeus, as tépidas branduras e os descansos arcádicos!

Aqueles poetas terríveis arrastam-nos, deslumbram-nos de ideal, esmagam-nos de paixão; dão-nos punhaladas de luz! Tudo arremessam sobre a pobre alma, o amor, a melancolia, a paixão, o ciúme, o misticismo, a ironia, o desespero, a dúvida! Além disso, não respeitam a felicidade corporal do egoísmo humano: atrevem-se a dar o terrível espectáculo da dor! O rei Lear mostra desapiedadamente os seus olhos arrancados e o seu coração caído na lama, pisado pelos filhos, cuspido pelos lacaios, apupado pela populaça!

Aqueles poetas abrem na alma longes surpreendentes. Quem os lê sente entrar em si. bruscamente, o infinito!

Sofre, como as sacerdotisas antigas sofriam com a presença de Deus!

E entretanto os que se deixaram ficar na luz branda, em companhia dos espíritos inofensivos de Racine, de Horácio, de Virgílio, de todos os clássicos, vivem contente e sossega­damente na sua fé ordinária, na sua virtude, na sua sonolência higiénica!

É que esses inofensivos fazem um ruído que embala, põem um abat-jour ao ideal, trazem a paixão açaimada e põem caio na face da dor.

Mas os que desceram para regiões românticas ficaram com a alma doente, febril, ansiada, nostálgica. Ai está como se explica toda esta geração moderna, contemplativa e doente! Porque – digamos a verdade – hoje a vida do pensamento é um vasto hospital de almas. E os gemidos que saem dos leitos são os dramas, os poemas, os romances modernos. Hoje, incontestavelmente, pensar é sofrer. A enfermeira, que se chama Democracia, consegue curar a poucos. Os poetas clássi­cos, esses, não obrigam a pensar: são a simplicidade, a frieza, a narrativa, a superfície, a afectação, a convenção – tudo menos a alma, com a sua tragicomédia de dores e de dúvidas!

Nós, meu amigo, somos uma geração desiludida por três revoluções, amolecida por uma invenção horrível – a musica, tomada da dúvida religiosa, geração que vê esvaecer-se Cristo, a quem tanto tempo amou, e não vê chegar a liberdade, por quem há tanto tempo espera. Quais podem ser as obras desta geração? Criações febris, convulsões cerebrais, idealistas e doentias. todo um pesadelo moral. Por isso, temos tido toda a série de figuras melodramáticas, desde Fausto – até Mr. de Camors.

Qual vale mais, esta doença magnífica, ou a saúde vulgar e inútil que se goza no clima tépido que vai desde Racine até Scribe? Eu prefiro corajosamente o hospital, sobretudo quando a primeira febre se chama Julieta e a última Margarida!

Os outros, os saudáveis, os doutrinários da arte, os petrifi­cadores da paixão, os sacerdotes da tradição e do magister dixit, não pertencem á arte pura, pertencem aos arquivos. São documentos históricos. São momentos sociais vistos através da arte. Racine explica Luís XIV. E como na história livre e pura se não pode conceber Luís XIV, na arte pura e livre não se pode admitir Racine. Toda a nossa Arcádia explica os remos de D. João V, e de D. José I, e de D. Maria I. Por essa literatura se podem conhecer todos os sentimentos monárquicos do tempo, o espírito cortesão, a influência clerical, a sujeição de antecâmaras, as subtilezas morais, a serenidade enfática, a majestade teatral, toda essa soma de falsos sentimentos e de falsos costumes que era o Antigo Regime. E aquela literatura falsa, ridícula – sendo excelente como documento, é grotesca como arte.

Na arte só têm importância os que criam almas, e não os que reproduzem costumes.

A arte é a história da alma. Queremos ver o homem: não o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes, deformado pelas instituições, transformado pela cidade – mas o homem livre, colocado na livre Natureza, entre as livres paixões. A arte é simplesmente a representação dos caracteres tais quais eles seriam – abandonados à sua vontade inteligente e livre, sem as redes sociais. Aí está o que dá a Shakespeare a supremacia na arte. Foi o maior criador de almas. Revelou a Natureza espontânea: soltou as paixões em liberdade e mostrou a sua livre acção. É aí que se pode estudar o homem. É o que faz também a grandeza de certos tipos capitais de Balzac, o Barão Hulot, Goriot, Grandet. Realizam o seu destino, longe da associação humana, sob a livre lógica das paixões.

No entanto, às vezes, os que reflectem o seu tempo, criam: e é quando não revelam só o carácter de um momento, um estado convencional e passageiro, mas traduzem e explicam toda a alma de um povo. E o que faz a grandeza de João de Barros. Historiador, revelou o génio de Portugal. o espírito aventureiro misturado de exaltação religiosa, o heroísmo su­persticioso. Camões, o filho da Renascença e das imitações latinas, não tem este espírito épico de João de Barros, que às vezes, numa página, constrói toda a antiga alma heróica da pátria.

Ultimamente, o espiritualismo entrou na sua fase retórica; e os poetas modernos de França, Mallarmé, Dierx. Sully­-Prudhomme. Catulle Mendés. Heredia, Boyier Ricardi, L’lsle-Adam. etc., fabricam maldições ao mundo e à matéria, com a mesma sábia reflexão e estudo com que os poetas de 1810 fabricavam madrigais. Uma certa escola, saída de Charles Baudelaire, afecta amores pelo mal: como os histriões medrosos põem vermelhão na face, para encobrir a palidez. eles tingem a alma de perversidade negra para encobrir o desfa­lecimento.

Há pouco falei de Mr. de Camors. Ainda um livro nostálgico. Ainda Manfredo e D. Juan sob uma forma remo­çada e teatral.

Mr. de Camors é um místico. Tem todos os desfaleci­mentos de alma, todos os desmaios do desejo dos heróis poéticos de 1830.

Traz só de mais – um aparato – o materialismo. Mas­cara-se de impassibilidade: mas quando? Justamente quando. pela posição política, pelo resplandecimento financeiro, pela força dos hábitos e das ligações ele tem uma vida compassada e material – em que a alma adormece. E como a alma ador­mece, calam-se os seus gemidos. Mas quando desperta, ou seja pelo amor, ou pela vergonha, ou pela paixão, ou pelo dever. ou pela paternidade. ou pelo remorso, começa logo, a pobre alma, chorando aflita, torturando-se e pedindo com as mãos postas às estrelas um refúgio sereno.

Aqui. em Portugal. também há uma grande doença. Falaria nisso agora. se não estivesse fatigado de escrever.

Mas é a pior das doenças: é a doença que afecta ares lânguidos: que compõe, ao morrer, a voluptuosidade do olhar: que, quando já sente o frio da morte, suspira correctamente: «Adeus.»

O que significa esta carta desordenada, em que me deixei ir. contra os meus hábitos impassivelmente silenciosos. a falar vagamente em literatura! Nada, senão que num dia de tristeza e de frio eu quis fazer uma romaria saudosa àqueles tempos distantes em que nós vivíamos numa noite de ideais e de desejos. alumiados pelos astros – Shakespeare, Dante, Rabelais, S. João, Goethe e Cervantes, e tendo sempre na alma aquela ternura luminosa – que vinha de uma aurora serena, clara, imensa, purificadora e consoladora: Jesus Cristo!

Teu

Eça de Queirós

 

DA PINTURA EM PORTUGAL

 

Quando penso na relação da arte plástica em Portugal com toda imensa criação das escolas da Alemanha, de França, de Itália e de Espanha, tenho a recordação instintiva e estranha de um escultor de madeira nos tempos góticos. O artista esculpe o pau, cria um entrelaçamento de figuras, de virgens ascéticas, de diabos satíricos, de monges grotescos, de rosáceas e de folhagens, enquanto a obra toma relevo, se destaca, se anima, toda cheia de ideias, de sentimentos, de crenças – quase um cântico de madeira –, as lascas e as aparas de pau caem no chão, imperceptíveis, chatas, desprezíveis e inúteis. As obras de arte em Portugal são estas lascas e estas aparas que restam da construção do pensamento na arte.

Portugal, na história, é sobretudo um país de luta, de força, de acção material. Na Europa, o Sul representa o corpo, a parte animal do homem, a sua maneira de ser exterior, como o Norte representa o vago sentimento íntimo e espiritual – a alma. O corpo tem estas manifestações prin­cipais – a percepção pelos sentidos, a acção vital, a exal­tação nervosa e o sono.

A alma manifesta-se pela ideia nítida e precisa, e pela vaga imaginação. No Norte, que é a alma, a França representa a ideia nítida, a razão ágil, e a Alemanha representa a imagi­nação e o sonho. No Sul, que é o corpo, a Itália e a Grécia são a percepção exterior pelos sentidos, que se traduz sempre. numa raça inteligente, pelo culto da forma; a Espanha é a exaltação nervosa; a Turquia é o sono animal; Portugal é a vigorosa acção vital, o movimento espontâneo, a decisão violenta do sangue.

A Europa é assim um grande corpo simbólico em que cada pátria é uma forte qualidade física ou uma ambição inteligente da alma. O desequilíbrio destas forças chama-se na ciência – doença, e na história – guerra.

Todas estas qualidades têm um período de decadência e de exageração; assim, há um momento na Alemanha em que o espiritualismo se converte no iluminismo; há um momento em que na França o excesso das ideias produz a febre cerebral; a transbordação doentia de teorias, a precisão do raciocínio, produz a estéril escolástica, assim o sono da Turquia tem um período que se torna imbecilidade; na Itália vem um dia em que o culto da forma se transforma num materialismo sem dignidade; a exaltação física da Espanha exagera-se e torna-se epilepsia política e revolucionária; a acção vital de Portugal começa a ser, por uma exageração de violência, um espasmo ininteligente, semelhante ao adormecimento que toma um braço robusto depois de um prodígio de força. E este o estado a que chegámos hoje entre nós.

Ora, no passado, a França, que e a razão, cria as escolas filosóficas, esboça informemente o seu espírito critico em Rebelais, e resume-o, aperfeiçoado, em Voltaire. A Alemanha, que é a imaginação, cria a musica, a arquitectura espiritualista, a pintura cheia de comoção religiosa de Alberto Dürer, e a escola dramática e pungente de Rembrandt. A Itália, que é a percepção dos sentidos, a forma, produz a magnífica pintura materialista, que durante quinhentos anos teve por inspiração a beleza do corpo pressentida por Giotto, imperfeita e desgra­ciosa com Verrocchio e Cailagno e outros, monótona ainda nas figuras de Perugino e de Ghirlandaio, aperfeiçoada por Antonello de Massina, que revela o colorido, e depois ainda por Leonardo da Vinci, que dá o segredo da luz e dos claros-escuros, chega gloriosamente a um período su­perior com Correggio e com Ticiano, cercado dos venezianos. A Espanha nervosa e inquieta produz D. Quixote, os poetas dramáticos, o Dies Irae, o estranho romance de Lazarillo de Tormes, que fez escola, e os pintores torturados, misticamente materialistas. A Turquia não podia produzir nada porque dormia. Portugal, que é a acção vital, não podia criar nada porque lutava.

E lutou corajosamente. A sua constituição foi difícil, entre a Espanha inquieta e a África traiçoeira. Depois veio a época dramática das conquistas. Apertados no seu pedaço de terra, estes homens iam através dos mares inexplorados, em nome de Cristo, supersticiosos e heróicos, terríveis como batalhadores, serenos como apóstolos, desfazendo os temporais com as palavras do Evangelho, iam, conquistavam as ilhas, os países, os bárbaros, os continentes, os cabos temerosos, e depois, ensanguentados e miseráveis, rezavam na praia, devotadamente, de joelhos, diante de uma cruz de pau! A sua vida era lutar, orar, morrer; não tinham o amor, o riso, o descanso; estavam quase fora do elemento humano e das serenas alegrias do pensamento.

As suas epopeias eram os diários de bordo: a sua escultura era a armação dos galeões. Como pintavam eles? Com sangue: nas muralhas. E a sua única música, deles, heróis do Sul, sem os frescos amores, sem os olhares celestes, era, sob o céu, o gemido do mar. E por vezes também o grito das aves sinistras: e então o piloto, que seguia atento, no galeão silencioso, a viagem das estrelas dizia: «De joelhos, compa­nheiros, é a alma de mestre que passa!» E todos, de joelhos, rezavam tristemente, na noite, pela alma dos pilotos mortos na viagem das Índias!

João de Barros foi o que contou estes combates épicos aos homens, e era digno de os contar a Deus!

Assim Portugal, no passado, foi estéril na arte: não falo de arquitectura.

E no presente é grotesco.

Não quero falar no drama de que apenas existe hoje uma aparência inconsistente e banal, nem da poesia que, ou é tristemente arcádica, ou colorida com sentimentalidades retó­ricas e todas individuais; não quero de modo algum falar da arquitectura, que consiste entre nós na uniforme perfeição da linha recta; nem da escultura, que em Portugal se limita a ser uma suportável estatuária oficial; nem da música, porque apenas temos as dos rouxinóis; mas quero falar levemente de pintura, que tem um fingimento de vida!

A arte estuda o homem. Não como ele existe sob as transformações de que cobre a vida social e momentânea, mas como ele deve ser na Natureza, na pura verdade do corpo e da alma. A literatura e a música estudam a alma sem a sociedade, com toda a liberdade das paixões, toda a fermentação e explosão cerebral, toda a tirania do sangue, toda a fatalidade do carácter.

E todo o livro que não estudar assim o mistério humano, será uma cópia de um costume, a repercussão de uma in­fluência momentânea, a expressão de uma ordem de caracteres superficiais, mas não será uma obra ideal. Um exemplo: a epopeia humana de Shakespeare. Ali, o que surpreende radio­samente não são os diálogos enfáticos dos cavalheiros e das damas, as jovialidades dos jograis, os conceitos covardes dos cortesãos, tudo isso que reflecte magnificamente os costumes, as feições, os sentimentos efémeros do século XVI.

O que apaixona, o que esmaga o espírito de revolução e de luz, são as dores do rei Lear, o ciúme de Otelo, as hesitações nostálgicas de Hamlet, a fatalidade do mal em Macbeth, toda essa real história da alma, essa consciência viva da huma­nidade, com todas as suas dores, misérias e magnificências, onde aparece sempre sofrendo e gemendo a trágica visão da Natureza! Assim, na mesma obra, tudo que é feição momen­tânea do tempo fica inútil e imperceptível, entre os magníficos estudos do homem e as inesperadas revelações da Natureza – como uma pouca de erva seca entre a forte fermentação da seiva vegetal!

Ora, se a literatura e a música estudam a alma, a pintura e a escultura estudam o corpo. Não o corpo como ele é na vida moderna, emagrecido pelo cansaço, com as grandes deformi­dades e curvaturas do trabalho, estancado e torturado pela fermentação violenta das ideias, com os músculos amolecidos pela vida cerebral, com a pele mórbida, e deformado pelo vestuário, mas o corpo direito rítmico, puro, harmonioso e são, perfeito em toda a pureza da forma.

Assim, o que se admira na pintura, o que é ideal, não são as figuras da arte bizantina, descamadas, hirtas e monótonas; não são os quadros primitivos, das catedrais, cheios de uma legião de figuras tristes e maceradas, com todas as consumpções do corpo e todos os renunciamentos da vida, não são os corpos diáfanos de Fra Angelico, aparecendo com túnicas resplande­centes, num fundo tenebroso: não são as formas despropor­cionais com que Alberto Dürer veste as almas que dramatizam a sua criação: não são as atitudes penosas, as fealdades vulgares, a grossura bestial dos músculos nos primeiros pin­tores da Renascença: o que se admira é a pintura perfeita de Ticiano e dos venezianos, onde a forma tem a beleza ideal e serena dos antigos deuses de mármore, mas animada por uma voluptuosidade delicada, por uma energia inteligente e por uma fisionomia de estrutura que tem o que quer que seja de aristocrático e de cristão! O que se admira sobretudo é o tipo da forma ideal da escola de Florença que teve os três cimos da arte: Leonardo da Vinci, que dava ao corpo uma inteligência delicada, Miguel Ângelo, que lhe dava uma sublimidade violenta, e Rafael, que lhe dava uma doçura infinita, o que quer que seja da imortalidade serena do Paraíso pagão, aquela suavidade luminosa, aquele equilíbrio perfeito de todas as maneiras da alma que mais tarde Mozart teve na musica e Goethe na poesia.

Nesta pintura a expressão moral não tem ascendente: há, como na arte grega, o equilíbrio perfeito e rítmico da alma e da forma.

Miguel Ângelo, todavia, começa na Capela Sixtina a revelar na pintura os dramas da alma que hão-de ser o carácter da escola de Rembrandt e dos flamengos Van Ostade, Gerard Dow, etc., e depois. mais tarde, serão a pintura francesa de 1830, de Delacroix, de Delaroche e de Ary Scheffer.

Por consequência o ideal na pintura é o corpo perfeito e a bela nudez animal. Foi esse durante quinhentos anos o estudo das escolas da Itália! Foi esse o mistério religioso da Grécia!

É essa também a beleza da escola de Flandres, pequeno país católico do Sul, perdido nos nevoeiros espiritualistas da Alemanha. Aí, as escolas de que saíram Tarberg e Metzu fazem o estudo do corpo; mas, como pintavam a existência do seu tempo, não o puderam nunca libertar das deformações da vida mecânica e prática. A perfeição foi alcançada pela escola de Rubens, apesar da violência bestial, da sensualidade monstruosa, do esplendor brutal da carnação, das decorações do vestuário, das atitudes sanguíneas e carnais dos seus tipos, que parecem representar uma geração nascida para engordar e para roncar!

Murillo, mesmo, católico e exaltado, dá às suas Virgens a forma sã e melodiosa, o olhar vital, os cabelos deslumbrantes, os lábios sanguíneos, e todo aquele cântico de carne que é o ideal italiano. O seu São João é uma criança robusta e perfeita, que um dia, se crescer, poderá ser Apoio!

Em presença deste ideal da arte, realizado na Itália, com a serenidade inteligente daquela raça, e em Flandres, com a animalidade daquele país de pastagens, vê-se que importância poderão ter na arte a pintura dos costumes, os quadros domés­ticos, a representação por meio de formas das pequenas comédias ou dramas da vida real, os desenhos de género, as aguarelas, a estatuária oficial e a paisagem. A mesma impor­tância que tem a imagem colorida de um figurino diante da Jocunda de Leonardo da Vinci ou uma figura grotesca de biscuit em presença do Antinous.

Em 1830, em França, a pintura tornou-se dramática. Delacroix, Delaroche, Ary Scheffer, Ingres, abandonaram a idealização do homem material, pela pintura do homem espi­ritual. Representaram com formas, com atitudes e com coloridos todos os dramas interiores do espírito, todos os fragmentos do homem ideal. Foi a pintura da alma. Os quadros são epopeias, sátiras, idílios ou dramas. Não se compreendiam então, quase, os pintores anatomistas da Renascença, admiradores pagãos dos músculos e da energia animal. O seu fim era, como o das antigas escolas germânicas, o estudo da pessoa espiritual, com as profundidades do carácter, com os sonhos intensos, com a poesia pungente do sentimento. Isto era o tempo em que o tipo dominante na arte, e na poesia sobretudo, era o homem de paixões espiritualistas, nostálgico, nervoso, cheio de lirismo, lacrimoso pelas dores humanas, fraco, com todas as revoltas do espírito e do coração – no meio de uma geração prática. Este tipo, que aparece em todo o teatro de Victor Hugo, em Alexandre Dumas, nas elegias de Musset, nos livros mórbidos de Vigny, de Mallefille, de Morice, de Sand, é simplesmente o filho popular da revolução, que, vendo-se livre das servilidades e tendo pela primeira vez, no mundo real, o direito de falar e de pensar, faz a história pomposa e declamatória das suas pequenas tristezas do coração e da carne. Este tipo é uma degeneração de Fausto, o verdadeiro idealista, o homem desi­ludido da ciência, da vida, da arte, da filosofia e até da matéria, que no fim se refugia num estoicismo melancólico, tendo todavia sempre vivo no fundo do coração o mundo incorporal das curiosidades infinitas e dos desejos nevrálgicos.

Era este tipo que os pintores franceses de 1830 tinham em vista, ainda mesmo nas obras religiosas e nas criações histó­ricas. Os Cristos de Delaroche e de Ary Scheffer têm a alma de Fausto, no olhar e na expressão. Imagine-se por isto quanto se estava longe do centro luminoso da arte italiana, do sentimento da vida física, da contemplação harmoniosa da beleza corporal, activa, viva e sã! Este espiritualismo ainda não cessou de ser inspiração doentia e íntima da arte moderna.

Na época gloriosa da Renascença não se conhecia a paisagem: era ela, simplesmente, uma decoração, um fundo onde se perdia a degradação da luz. A arte é a verdade natural da alma e do corpo, sem a influência da vida real. A Natureza é verdadeira por si, existe na pureza da sua força e apenas pode ser copiada radiosamente. Mas em questões de cópia, a fotografia é sempre preferível à pintura, pelo realismo correcto e pela verdade geométrica. A idealização da Natureza, ou como vegetação, ou como atmosfera, ou como água, seria uma transformação grotesca. Demais, o processo do colorido não pode reproduzir toda a cor vital, animada, luminosa da Natureza orgânica. A paisagem hoje é ainda um resultado da pintura espiritualista. Cláudio Loreno, Lantara e os paisagistas modernos revelam, por meio de perspectivas e de horizontes, todo o estado ideal do seu pequenino coração: querem que as arvores digam as suas contemplações, e a água o seu choro interior. Quando Lantara pintava os grandes luares silenciosos alumiando as clareiras, queria revelar a sua tristeza vasta e feliz, todo o indefinido da alma.

Esta pintura, assim, aceita-se junto da grande arte plástica como os idílios vegetais de La Fontaine se admitem, por condescendência, ao pé das fortes almas da epopeia shakes­peariana.

Estou fatigado de escrever, senão dizia o motivo por que hoje temos o culto da pintura dramática e não compreendemos a pintura plástica da Renascença: mas eu quero dizer ainda como a pintura portuguesa é a apara inútil de toda a imensa criação artística.

A pintura portuguesa não tem o grande fim ideal da arte, o estudo da beleza nua; não tem sequer o sentimento dramático; não é mesmo imitativa: nem mesmo é cópia estéril!

A pintura portuguesa, quando pinta o corpo, faz-lhe a caricatura; quando quer reproduzir a vida, desentranha-lhe a farsa idiota; quando quer imitar a Natureza, fá-la grotesca e absurda.

Não pertence ao numero de tentativas inexperientes, em que se pressente todavia uma futura atitude artística, cheia de poder e de vida; não é também uma decadência onde através das degradações e dos defeitos do gosto, da verdade, da beleza, se descobrem ainda os caracteres superiores que fizeram o período de florescência. O que é, não tem nome.

Nas outras escolas, quando a arte se transvia nos maus caminhos e se afasta da idealização do corpo e do culto da verdade transfigurada em beleza, ao menos compensam os seus erros pela correcção do desenho e da forma, pela delicadeza, transparência e realidade do colorido e pela escolha inteligente e original das ideias.

Em Portugal, o desenho é grotesco. não tem o elemento natural e verdadeiro; é flutuante, tem a confusão obscura da linha, é aproximativo, não e real, na pintura portuguesa um rosto é quase um rosto! O colorido é fantástico e gratuito. não há a luz, a meia-tinta, a transparência, a claridade difusa, a opacidade forte e colorido na sombra – há grandes estendais de tinta! A carnação de uma face costuma ser um medalhão de escarlate, quando a fisionomia é sanguínea, de amarelo, quando é linfática, há a confusão das cores desmentindo as realidades e as reses, há animais nestes quadros que têm os coloridos visionários de flores de legenda; o colorido, nesta arte, é sempre opaco, morto, pesado e baço; os quadros são apenas produções da paleta suja.

Não há ideias, há cópias estéreis que o desenho torna desconhecidas e o colorido fantásticas; estuda-se a imobilidade da natureza-morta, desenha-se a atitude banal de um boi a pastar ou uma mulher arrastando grandes folhos, no asfalto de uma rua, e julga-se ser isto uma criação e uma ideia!

Desconhecem o Belo, estragam o Suportável, são péssimos no Péssimo!

Termino. Possa esta geração moderna de artistas, compe­netrando-se da religião da Arte, estudar, pensar, viver da grande vida espiritual no refúgio e na concepção do Belo. Nós, os que criticamos, temos por única recompensa destes ásperos e dolorosos sacrifícios à verdade a glorificação dos que criam: e quem estas linhas escreve quereria bem, ó meus amigos, artistas e pensadores, apertar-vos a mão, no dia dos triunfos, lembrando-vos que se já houve uma raça de homens que deram a este país a força, que é o ideal do corpo, haja agora uma geração nova que lhe dê o ideal, que é a força da alma.

 

O LUME

 

Agora, no Inverno, no campo, as noites são ásperas e hostis. Toda a Natureza está impassível e entorpecida, espe­rando a fermentação violenta das seivas. As árvores erguem os braços nus, miseráveis e suplicantes. E as águas, que no Outono estavam quietas e pálidas, e que em Maio faziam claras murmurações, tão melódicas como o ritmo de um idílio latino, têm agora vozes vingativas e más. O vento é rouco e lento como um canto católico de ofícios: as chuvas caem de cima, como escárnios triunfantes e ruidosos.

Às vezes vem a Lua – não aquela imaculada Lua cor de opala, donde se exala um nevoeiro magnético que faz a alma docemente doente, mas uma Lua metálica, fria e lívida, como a face dos corpos finados nas legendas católicas.

Então o homem sente a sua pequenina e inútil alma afundar-se no tédio, silenciosamente, como um navio roto numa calmaria, e vai por instinto dar-se à intimidade conso­ladora da lareira, das brasas e do fogo. E enquanto a força vital se dissolve numa sonolência fluida, ele sente aos seus pés uma pequena voz, alegre, inquieta, clara, que lhe fala como num êxtase profano:

 

«Sou eu», diz a voz, «eu, o teu velho camarada, o bom lume. Sou eu, o teu velho Deus misterioso. Eu que te quero bem, e que te dei o que há em ti de grande e justo – a família e o trabalho. A minha história é triste, luminosa e terrível, imunda e meiga. Eu fui o teu companheiro das noites da Índia, o consolador e o purificador; eu fui o Moloch das regiões da velha África, ensanguentado e trágico: e sou agora o escravo a quem tu mandas mover as máquinas.

Sempre escondido e silencioso, ocupando a um canto o mais pequeno espaço da casa, eu venho todo jovial e radioso quando tu me chamas, e fico, nas tuas horas negras de dor e de miséria, calado ao pé de ti, lambendo-te os pés como um cão. Na Índia, lembras-te?, durante noites primitivas, eu fui o teu bom Agni que te alumiava, que espantava os chacais e as onças, e protegia, como um templo, os teus amores religiosos e simples. Escondia-me nas pedras e nos paus secos: assim para onde tu fosses, ou solitário ou em bando, encontravas-me sempre aos teus pés, bom e humilde. Foi ao pé de mim que tu criaste a trindade humana da família.

Era ao pé de mim que tu descansavas dos teus bárbaros trabalhos, no princípio, quando a vasta Natureza te combatia. E eu era o amigo único, o aliado radioso. Eu tive a confidência dos teus primeiros beijos. E eu sabia as tuas dores e os teus medos.

Tinhas em redor de ti a hostilidade dispersa: a grande floresta tenebrosa, que depois foi para ti berço, lenha, morada, navio, defesa e forca, era então a tua sepultura iminente. Quando saías de ao pé de mim, da tua cabana ajoelhada ao sol, encontravas-te só, entre os seres implacáveis, o mar que te ladrava, a vegetação espinhosa que te mordia, a chuva que te paralisava, a neve que te dava sudários. Tudo, sob a pressão doentia do Sol, era para ti força inimiga ou forma resplan­decente do mal. E só quando voltavas, encontravas o teu bom lume que te enxugava, que te alumiava, que te dava o pão, a força e a fé. Eu e a mulher, a minha companheira celeste e silenciosa, ficávamos em casa, esperando os teus cansaços. Ela fiava, limpava o chão da cabana, tirava a água fresca e adormecia o filho no seio branco como num leito espiritual: eu estava quieto e atento, combatendo a sombra e a noite, vencendo a humidade traiçoeira, fazendo um dossel de vida e de luz para o teu sono, dando à cabana a serenidade tépida, e às tuas fadigas um paraíso de sossego, de silêncio e de calor.

Em volta de mim, criou-se a família. Eu era o purificador da tua natureza. Era o Deus presente e bom, que fecunda as almas, fortalece os braços e ampara na hora das dores.

Eu tenho ainda por ti aquele amor servil e adulador, que se glorifica quando abdica, que tem um êxtase quando se dá a uma humilhação. Quando te afastas, quando me deixas, fico triste, amorteço-me, toda esta grande alma de chama, que te quer tão bem, se definha, e apenas ficam as brasas, ainda quentes, ainda vermelhas, mas já inertes e cheias de negro –justamente como o corpo de um amor abandonado.

‘Mas quando vens para mim, quando me estendes a mão, como para um afago, quando me revolves, desperto, revivo, canto salmos de luz, requebro-me como uma mulher que se abandona, tenho vivacidades que são gritos de fogo, tenho cintilações que são beijos; e como numa rapariga para quem o inconstante bem-amado volta, toda a tristeza se desfaz em rir, eu mais infeliz, que não tenho o riso, aurora sonora dos lábios, toda a minha dor e o meu abatimento se vai somente em fumo!

Por ti tenho feito mal. Fui eu que matei Giordano Bruno, João Huss, tantos santos, e tantos mártires, e tantos alucinados de Deus!

Fui eu que queimei, nas cidades misteriosas de África, as crianças e as virgens no altar de Moloch.

Por ti, eu que sou a paz, fui a devastação. Estou fatigado. Durante os tempos tenho sido o camarada, o amigo, o servo, o vigia, o cão, o confidente, o pão, o calor, a vida – não queiras que eu seja o carrasco! Podia ir contigo, insensivel­mente, lareira, se era o teu amor que me assoprava, incêndio, se era a tua cólera – no tempo em que tu eras uma força inconsciente e fatal. Mas hoje és uma consciência. Contigo só me aliarei para ser fé, consolação e paz. Sendo paz e fé, é que eu te tenho consolado das servidões dolorosas.

No tempo das catedrais, quando tu nada tinhas, nem o amor, nem o pão livre, nem a voz, nem o sono, nem a esperança, eu dei-te o que mais agrada ao escravo – o direito de mandar. Em volta de mim, a família ajoelhava à tua voz, rezava ao teu olhar, erguia a hóstia do amor [41] – ao teu coração. Eras servo e tinhas estas grandezas: era eu que tas dava: como? Pela fé, pela paz, pela consolação, pela união. Para ti, eu tenho representado a essência humana. Eu tenho advogado a causa da vida.

A minha irradiação lenta e amorosa dissipou o misticismo. Eu sou o bem. A família e o trabalho, a educação, esta trindade misteriosa da vida, tudo está em mim. Toda a feli­cidade humana canta, ama, ora, no círculo da minha luz. Tudo para além é sombra – sombra na parede, e sombra na alma. Procuras o ideal na religião, na conquista, na arte; debalde:

trabalhas, adoeces, morres, apodreces: vida inútil! Os únicos momentos verdadeiros e sãos foram aqueles em que estiveste ao pé de mim, olhando castamente a mulher, ensinando a ler a criança. Então realizaste o ideal, o símbolo –Deus, que as religiões esboçam e as criticas dissipam.

Lembras-te da Índia?

Ali tinhas uma cabana, a tua mulher, branca e mais doce que a lã dos novilhos, e o filho, encarnação misteriosa do amor das almas, e a minha doce presença. Trabalhavas, aquecias-te, amavas, dormias. A alma vivia em ti no estado de pres­sentimento. Tinhas apenas do ser interior o bastante para um dia, mais tarde, dirigires a bela e serena educação do teu filho.

Depois disso, tens tido uma vida lengendária de lutas, de criações, de religiões, de conquistas, de descobertas, de ideais.

O que aumentaste em ti? Nada: apenas a tristeza, o desfa­lecimento, a dor e o mal.

Eras puro e são, estás mórbido e enfraquecido. Eras forte, estás raquítico. Eras sereno, estás torturado. O teu bom riso é uma triste ironia: o teu largo olhar é uma áspera desconfiança.

Tinhas por inimiga a Natureza. Venceste-la? Não. Absorveste-la. E tudo o que ela tinha de terrível e de doloroso, tudo hoje tu tens: a independência desesperada do mar, o mistério doentio da floresta, o choro aflito das águas, a inquietação do vento, a barbaridade das feras, a escuridão supersticiosa dos astros, tudo hoje está em ti, com surdas irritações, com rebeliões formidáveis. Aí está. De cada vez que te afastaste de mim, do sossego do meu calor, voltaste trazendo uma chaga.

Foste criar o misticismo, vieste com a nostalgia incurável. Quiseste criar os Direitos do Homem, trouxeste um mal divino chamado Liberdade, que vai sempre fugindo de ti, e só às vezes se volta de repente, para te borrifar de sangue! Quiseste ir construir a adoração do corpo e da matéria exclusiva, trouxeste o elemento dissolvente da força e o egoísmo brutal. Não tens dado um passo de mais para o bem. As tuas obras ai estão imensas, acumuladas, contraditórias e inúteis. Tens uma complicação infinita de asas que te impede o voo.

A mim, abandonaste-me.

Eu não me apaguei. Durante as revoluções e as lutas, andei errante, miserável, sobrecarregado de infâmias, e, para viver, vendendo-me ao carrasco!

Mas conservei sempre a minha chama, casta e familiar, para o dia em que quisesses vir, tristemente, enxugar-te ao meu calor do sangue dos teus irmãos.

Vem para junto de mim. Eu sou completo. Correspondo a todos os teus instintos luminosos, ou sagrados, ou materiais, ou lascivos. Eu dou-te o pão, o calor, a fortaleza, dou-te as visões que são a poesia do movimento na alma, dou-te a sensualidade sonolenta que exala amor, dou-te a serenidade que dispõe para a contemplação e a força que prepara para o trabalho. Eu sou a cura, inteligente e boa, do mal natural. Eu alumio-te nas vigílias dolorosas. Quando estás entorpecido na doença, eu, pequenino e encolhido, tremo ao pé de ti. Quando morres e a tua alma vai partir, eu alumio-lhe o caminho de Deus. Eu cerco Cristo nos altares, para que tu o vejas bem. Quando andas no mar, eu sou junto das praias o grito de luz que te chama.

E o que fazes tu em paga deste amor que se dá, que cria e que purifica? Esmagas-me. Fazes-me o escravo das máquinas. A mim que embalava as almas, fazes-me mover os aços. Embalo que era amor, movimento que é força: os dois termos da tua vida – pureza e putrefacção! Eu que vivia, alumiava, criava em liberdade, estou encadeado e martirizado na tarefa brutal das indústrias. Fazes-me o motor da tua miséria. Nas fábricas, as criaturas doentias, as crianças estioladas, as mu­lheres definhadas e soluçantes. Fazes-me mover a vapor estas misérias. Sou o colaborador dos teus martírios. Tu, homem, tomas o fogo. o ser sagrado, por ajudante de execuções! Dás-me por salário a infâmia. Fazes de mim explosão. Obrigas-me a devastar na guerra!

Eu que sou a pureza, o trabalho, a família, a paixão casta: levas-me a ser o mal, a viuvez, o pranto e a dor! Tenho um cortejo de ambulâncias e de macas, eu que era o firmamento dos berços! Não! Maldita seja a árvore que consentir em ser forca e o fogo que consentir em ser explosão.

Não quero que na minha vegetação de luz haja um orvalho de sangue. Não quero que o vento, ao embalar-me, faça soltar os gritos e os choros que se tivessem aninhado em mim. Tu, homem, sê piedoso e justo. Eu alumio o mais que posso as igrejas, mas parece-me que tu não vês bem a Cristo. Não, deixa-me ser a pureza, a graça, a família, a intimidade casta e o bem. Peço-te. rojando-me como um mendigo. Oh!, homem. oh!. meu velho camarada das choupanas da Índia!, não me faças ser explosão, morte e devastação, para que eu no dia de pureza e de castidade, quando estiver alumiando e aquecendo os beijos. as orações e os berços – não sinta entre as minhas chamas bailarem espectros!»

 

MEFISTÓFELES

 

No Fausto de Charles Gounod a figura dramática e sintética é Mefistófeles.

Em volta dele, Fausto canta artificialmente como um lírico histrião de óperas; Margarida sente as primeiras rebeliões ner­vosas do desejo; Siebel estremece com a nascente seiva do amor, como o antigo Querubim; os batalhões góticos têm instrumentações triunfantes; a alma legendária do rei de Tule canta na sua torre que molha a espuma do mar; o povo celebra as quermesses, e os judeus dizem a música da avareza: mas só Mefistófeles vive! E a sua grande figura angulosa, nervosa, elástica, incisiva, atravessa o drama com os seus lirismos nostálgicos, as suas sensualidades tristes, os seus misticismos artificiais – glorificando a força brutal do dinheiro, escarne­cendo as castidades expirantes, empurrando o Fausto espiri­tualista para a violência lasciva, combatendo a serena inspi­ração do Cristo, negociando em almas, e abatendo toda a penosa construção da honra, do dever, do perdão, do amor, da purificação – com o riso trágico do mal!

Aquela ópera é uma simples aventura do antigo Diabo.

Nela, o Fausto não é o sábio que penetrou a medicina, a física, a lógica, a dialéctica, a dogmática, a teologia, a metafísica, para quem os seis mil anos do passado são apenas o prefácio do saber humano, que procura o X terrível da equação dos. astros, e que ao ruído que faz a sua alma buscando através da Natureza o Deus fugitivo, o Mistério, só consegue despertar os dormentes do seu coração, os desejos, os beijos luminosos, e as languidezas silenciosas: não é o homem que se enoja das vazias realidades da vida e da paixão, e que se recolhe num estoicismo trágico, tendo todavia, sempre, dentro do peito, o coro soluçante e rebelde dos desejos infinitos e das ásperas curiosidades, até que enfim, mais sereno e transfigurado, vai ao fundo do mundo antigo buscar o corpo sublime de Helena e tem dela, que é o ideal da forma antiga, um filho, Eufórion, que é o ideal do espírito moderno.

Não. Na ópera, Fausto é simplesmente um daqueles ambiciosos grotescos, que contratavam por escrito com o velho Diabo, nos claustros malditos, e lhe compravam a realização de um desejo por uma pequena coisa desprezível, menos valiosa que o dinheiro e que os estofos, uma coisa inútil e estéril, que se lhe atirava desabridamente – e que era sim­plesmente a alma!

As legendas estão cheias destas negociações.

Cornélio Agripa vende a alma pelos segredos da filosofia; o abade de Tritheim, pelo segredo da circulação do sangue; Falstaff vende a alma, numa Sexta-Feira Santa, à noite, quando estavam fechadas as tabernas de Londres, por uma garrafa de vinho de Espanha e uma perna de capão. Luís Gaufridi, pelo poder de exaltar nervosamente as mulheres. Um lacaio do Marais, pela felicidade aos dados. Ricardo Dugdale, um namorador do condado de Landshire, por uma lição de dança! Todos estes! Fausto vende desprendidamente a alma pelo amor vulgar de uma rapariga clara e loura, que tinha um modo celeste de fiar, cantando!

O Diabo cumpria escrupulosamente o contrato: havia para estas negociações uma jurisprudência dogmática. Sujeitava-se mesmo a acompanhar o contratador, como uma inspiração visível, como um camarada de perigos, para lhe facilitar a ampla realização do desejo. Seguia Agripa sob a forma de um escudeiro, vestido de negro, com o nome de «Sujeito». Seguia Fausto, vestido de escarlate, com o nome de «Mefistófeles». Nada mais.

Margarida não é, na ópera de Gounod, como em Goethe, o símbolo da alma alemã, simples, casta, sofredora, daquela alma alemã que, como na Melancolia de Alberto Dürer, quando a matéria, a tirania, a desesperança a oprimem, só sabe, resignadamente, dobrar as suas asas; aquela alma alemã que exala toda a sua imensa dor em frescas cantigas religio­samente humanas, que tem todas as simplicidades, todas as inteligências, todos os deveres, que quando olha para a terra é para amar, quando olha para o céu é para orar, quando olha para si é para morrer. Não. A Margarida da música sábia de Gounod é uma alma lírica, nebulosa, nostálgica, sensual, para quem o amor é um magnetismo suave, a oração uma luta com o mal, a morte um libertamento romântico da vida – insu­ficiente e vazia. Este Fausto tem na alma um lirismo teatral, esta Margarida um paraíso artificial.

Mas ele, o bom Mefistófeles, tem uma vida real e poderosa. E ele – a antiga criatura terrível e grotesca, vai­dosa, infame e trágica. É o antigo Satanás das legendas. E ele – o mesmo a quem os Sevérios ouviram dizer que antes queria devorar uma alma do que voltar, entre purificações, para os seus antigos camaradas, os astros, sidera lucida! E ele, o eterno inspirador dos heréticos e dos impostores, ele que ensinava os oráculos aos crocodilos de Arsinoé, e aos carva­lhos proféticos de Dodona, e que dava a Manés, o homem ímpio, a ascética palidez dos monges, como dá a Fausto, velho e tépido, o resplandecente magnetismo do olhar. Ele, que segundo as tradições judaicas, inventou os enfeites e as jóias para ferir os castos instintos da mulher – e que atirava os corais ao regaço das mulheres de Brabante, como mostra a Margarida a cor traiçoeira e hipócrita das pérolas. E ele o mesmo que em Babilónia tomava as atitudes hieráticas de um Deus, e fugia do olhar de Daniel – como na quermesse de Leipzig toma a voz sinistra e rouca do dinheiro, e cai torturado e cobarde diante da serena aparição das cruzes das espadas. É ele o antigo Diabo que dava aos monges da Tebaida o mal da acedia, como dá à pobre Margarida o mal do amor. Tortura os monges do Ocidente; dá-lhes as chagas e as dores de Job, envolve-os nas visões magníficas do mal.

As virgens diáfanas fazem, no silêncio da noite, as mil orações da prostração: os monges passam os anos em jejuns dolorosos. Debalde! Se se deitam na neve – a neve toma um calor vital e lascivo que os definha: se bebem a água fria e purificadora das fontes – a água dá-lhes ao corpo a palpitação dos vastos apetites. Se querem rezar no silêncio, ouvem os risos ambrosíacos dos deuses sensuais, e o gemer desfalecido dos bandolins. Também a pobre Margarida, se queria fiar castamente e chorar o velho rei de Tule, sentia a melodia da carne cantar-lhe baixo: «Vê como Fausto, o cavaleiro do veludo, é branco, e belo, e são, e forte!»

Os monges de Alexandria andavam de noite, pelos cor redores solitários e sonoros, com as cruzes alçadas, cantando, para o afastar, os versículos do Evangelho, e regando com água santa as lajes do claustro: assim o gentil Siebel asperge, tristemente, as flores maculadas de Maio.

E ao mesmo tempo este Diabo terrível, que andava disperso nos elementos, de tal sorte que o vento era a sua tosse, ele que era o carrasco da Inquisição, a fera dramática das almas, ele que redigiu a sentença de Cristo, que acendeu as fogueiras das feiticeiras, que celebrava o sabbat, onde à luz de uma lâmpada sem óleo pregava o sermão dos sete pecados, ele que tinha por filhos Menino, Roberto de Normandia, Atila e os Hunos, era ao mesmo tempo jovial, grotesco, bailarino, poeta, jogador e palhaço. Bebia gloriosamente o vinho das missas do Papa. Tinha uma taberna no Inferno, onde se comiam, com molho de beata, as almas dos usurários. Dava serenatas às patrícias de Veneza.

Fazia sonetos correctos e académicos às abadessas de Vecker. Vestia-se de veludos e de sedas, emprestava dinheiro aos estudantes das universidades livre se assinava-se «Bel­zebu, cozinheiro do Inferno». Os trovadores cantaram esta legenda faceta das farsas de Satã.

Tomou tanta familiaridade com o homem que Lutero sujou-o de tinta, e Rabelais deu-lhe piparotes. Na Alemanha, na noite de 30 de Abril, dava um sarau magnífico nas alturas de Borx-Belg. Era a noite de Walpurgis. Havia a grande dança das nudezas. Nas noites claras as estrelas assistiam, com a impassibilidade de vestais.

Assim é a figura complexa de Mefistófeles. Durante a ópera de Ch. de Gounod, esta individualidade sinistra deixa escorrer sobre o drama dos amores e dos arrependimentos o seu desprezo resplandecente e ruidoso, como aquelas figuras de Satã que nas catedrais da Alemanha deixam cair do último coruchéu uma risada de pedra, que nos nichos, nas esculturas, nas rosáceas, nos fustes, nos baixos-relevos, em todas as figuras de santos, de virgens e de anjos – vai gelar as aspirações ideais e os sentimentos do céu.

Toda aquela música da ópera que envolve Mefistófeles é a vaga melodia sombria do mal. Tem o escárnio, tem a vio­lência, tem as trevas, a jovialidade e o medo. Range, ri, treme, devasta, insulta e vence.

 

Júlio Petit realiza admiravelmente esta figura que se prende à tragédia, à farsa, à fatalidade, à filosofia, ao dogma e à legenda. Nele, o gesto é a voz, o riso, o terror, o aniqui­lamento, o orgulho. a perversidade – tudo. A sua interpre­tação é o poema do movimento. A sua figura, imitada da do Mefistófeles de Ary Scheffer, tem o anguloso, o esguio, o hirto, o adunco do Diabo das legendas. Cada gesto é toda a longa história de Satã, durante a sombria aventura que ele tentou contra o espírito.

Quando, no prólogo, contrata a venda da alma do Fausto lírico e idiota – é cortesão, fluente, insinuante, flexível, como o antigo Satã quando discutia com Alberto Magno as condições da sua venda: e envolve o Fausto fraco e desfalecido de desejos com as visões da vida e com as palpitações da natureza sensual, como o Satã prendia as hesitações de Alberto com a visão serena e luminosa do segredo das coisas.

Na quermesse, no primeiro acto, tem a familiaridade jovial do Diabo no século XVI, quando viajava na Flandres, e dançava na corda diante da populaça, e lia a buena-dicha, com grandes risadas sinistras, às damas corpulentas de Brabante. Na canção do ouro, é violento, áspero. apaixonado, rancoroso, como as antigas cronicas monásticas contam que era o Diabo, quando dizia a Savonarola, na sua cela do convento dos Dominiquinos, em Florença, o poder das suas armaduras e das sua legiões flamejantes. Durante o coro místico, em que os soldados o esmagam com a cruz das espadas, Júlio Petit faz com alguns gestos o drama da vida infeliz do Diabo, perante a serena superioridade do cristianismo: ao princípio, medroso e traiçoeiro, depois, cheio de desesperação, mordendo a sua espada de aparato, como o Satã de Milton, vencido, arranha raivosamente a sua armadura, por fim abatido, esmagado, deixando-se cair no chão, inerte, às últimas notas triunfantes do coro cristão – como simbolizando o aniquilamento de Satã sob a serena legião vitoriosa dos espíritos siderais.

No Jardim, Júlio Petit é o Diabo cheio de desprezo pelas delicadezas femininas, inquieto pela timidez mística e toda alemã de Fausto, guiando asperamente aquela alma, que vai fazendo, passo a passo, a sua entrada no mal.

O último gesto magnífico é o empurrão que atira Fausto para o seio de Margarida, gesto cheio de desprezo, como o de um Diabo que atira uma coisa, para ele imunda, a alma de um homem, para outra coisa imunda também, o seio de uma mulher. Dante descreve gestos semelhantes. Assim nos quadros místicos do século XVI se pinta Satã, atirando as almas para a sombra tenebrosa, onde se perde a esperança.

Defronte da igreja, no quarto acto, na cena magnética da possessão, Júlio Petit faz com o canto e com o gesto a história terrível daquela batalha que durante a Meia Idade a Natureza deu à religião. O Diabo é o aliado da Natureza; auxilia o pecado, combate o arrependimento. Quando ele se coloca defronte da igreja, com a capa caída, semelhando duas asas negras dobradas, faz lembrar aquela visão de Santo António, que numa noite de tempestade, no deserto da Nítria, viu, através do êxtase, no infinito apocalíptico, os dois grandes braços de Satã, abertos diante do céu, a impedirem, sinistros, a subida soluçante das almas.

Criação magnífica esta de Mefistófeles, que ficará gravada na história da arte, como, guardadas as proporções e as condições de duração, ficaram as realidades que Rembrandt pressentiu no mundo sobrenatural!

E se é certo que o Diabo morreu, e que já lhe fizeram o epitáfio, e que as suas imagens são estátuas que o homem lhe ergue, e que, depois de morto, teve para dizer a sua beleza Milton, e para dizer a sua tragédia Dante, se é certo que se foi juntar, no vasto cemitério azul onde os sepulcros são astros, aos finados enormes, que foram os deuses da Índia, do Egipto e da Grécia, se é certo que é por ele morto que o mar geme e que as florestas rezam, se é certo que ele se deitou na serenidade eterna, deixando o homem por herdeiro, se é certo que ele morreu, o bom Diabo – é também verdade que esta criação de Mefistófeles, por este artista – é uma ressurreição, e que todas as noites o velho Satã vem, como no tempo dos seus amores vestido de escarlate, contar sobre uma cena resplandecente, entre as instrumentações esplêndidas – a sua velha legenda da tentação!

Mas por desgraça as criações do canto e do teatro morrem e esquecem, tão depressa como os diabos das religiões. E a condenação de tudo o que é forma – desaparecer. Só ficam as puras idealizações da alma e da Natureza.

Quem se lembra hoje da Malibran, da Sontag, de Talma, de Frederick Lemaire e da Dorval? E todavia ainda Shakes­peane dá a sua alma, como uma eucaristia da arte, a todas as gerações moças, primaveras sagradas e fecundas.

Quem se lembra hoje de Siva, de Brama, de Visnu, de Indra, de Typhon, de Osínis, de Bel, de Moloch e dos Olímpicos gregos, de nomes sonoros, e de toda a imensa legião dos esboços de Deus?

E todavia, um ficou, o elemento espiritual e ideal, aquele que preside sereno – à tragicomédia da alma!

 

ONFÁLIA BENOITON

 

Quem se lembra hoje da história de Onfália Benoiton, uma mulher nervosa, e de Estêvão Basco, um homem vencido e esquecido, e que todavia foi um homem?

As canas que contam essa história de martírios reais e de falsas glorificações, tenho eu a alegria mefistofélica e bárbara de as copiar aqui.

 

A primeira carta assinada unicamente por uma letra – Z. – é o documento incisivo e lúcido da Srª Onfália Benoiton. É assim:

 

«A Srª Onfália Benoiton, meu caro, é descendente das belezas gregas. Mesma materialidade de forma correcta e fria. Somente as mulheres gregas eram musas, cantavam nos festins ao modo jónio, coroadas de mirtos; discutiam com os sábios e com os filósofos, celebravam com as túnicas soltas as Elêusis de Baco, edificavam cidades, eram os modelos da arte e a inspiração dos tiranos. E a Srª Onfália Benoiton, com os seus vestuários onde há uma provocação especuladora, as suas atitudes masculinas, os penteados disformes que lhe dão uma aparência de animalidade audaz, com a sua pele colorida, acumulações da sua vida de fadiga trivial e de aparato sono­lento, lembra uma daquelas Vénus de corpos harmónicos, que depois de ter atravessado este exílio moderno, a velhice, a miséria, e o vício imbecil – se vestisse de roupas bárbaras e grotescas, para parecer ainda, de longe, à luz soluçante do gás, um ídolo material – aos idiotas!

A Srª Onfália Benoiton é um pouco magra e nervosa. E um corpo alto, coberto de estofos, pedestal de um crânio vazio. As suas formas, dignas talvez do biscuit, sem contorno inte­ligente e espiritual, não conseguem encobrir o lodo primitivo. Nenhuma ideia nas atitudes e nos gestos: só a retórica da futilidade. Tem uma graça oficial; compõe um olhar com o mesmo trabalho compassado e métrico com que um poeta arcádico cinzela um verso. Tem sempre a pele admiravelmente colorida: tem o segredo do rosado da face casta e transparente.

Desenha as sobrancelhas com a delicadeza de um artista chinês. Põe em redor do olhar uma cor de sépia ligeira semelhando a fadiga, invejável para uma imagem de Impéria ou de Vinon.

A sua fisionomia bela e trivial tem a vaga intenção das aves de rapina. Toma umas atitudes de tédio e de indolência, semelhantes às que têm os viciosos de absinto.

Caminha com o seio erguido, com a pompa de quem arrasta atrás de si toda a atmosfera e o ar de todos os peitos. Dança com os movimentos melodiosos que teria Juno se tivesse passado dois séculos a frequentar os casinos. Tem uma bela fragilidade muscular, um ap2tite vasto e um amor cálido das bebidas. As indústrias têm maculado aquele corpo: o gás amoleceu-lhe o olhar, os espartilhos de Birmingham desva­neceram-lhe o modo feminino. Pelo materialismo idiota é muito inferior aos ídolos egípcios, pela originalidade risível do vestuário superior às caricaturas chinesas.

É toda a síntese do nosso tempo: é a entrevista grotesca dos erros modernos. O olhar metálico é o símbolo do dinheiro. A boca é nervosa e móbil, os dentes acerados e de um branco morto: é a difamação, a intriga, a palavra fútil que corrói as construções da alma.

A mão delgada, flexível, magra, adunca, significa a agiotagem, o materialismo avaro e covarde.

Onfália Benoiton é a tragicomédia da afectação e da vaidade. Para modelar a sua alma seria necessário inventar uma lama. Colocada inferiormente, prende-se a todas as ideias oficiais, aristocracia, realeza, elegância, moda, com a mesma insistência violenta e vaidosa com o que o pó se prende ao veludo.

Tem uma maneira insultante e vã de fazer os seus vestuá­rios – de tal sorte que o seu chignon parece uma carranca feita ao céu, e as suas caudas beijos dados à lama. A sua existência é pintar-se, fazer-se, trocar friamente recepções e diálogos, transfigurar o vestuário numa celebração misteriosa, decorar a comédia das modas, passear ostentosamente, errar pelas óperas, pelos casinos, pelos saltimbancos, dançar, envol­ver-se no combate da beleza e da seda, dar-se à fadiga dissolvente do lucro. Eu pôr-lhe-ia por epitáfio: Aqui jaz o ruído de um bocejo.

Tem todos os prejuízos do seu tempo. Tem o espírito das pequenas maquinações femininas, das ironias dolorosas, dos escárnios inteligentes. Adora os romances dramáticos de sangue, pelo mesmo motivo por que as damas romanas aplau­diam a morte dos gladiadores. Todos os dias as suas belezas lhe dizem: “Oh Cesareia, os que vão morrer saúdam-te!” Prefere Leotard a Shakespeare – isto contém um carácter. Copia o modo de falar das actrizes. Há só uma coisa que a distrai de admirar os saltimbancos, é ter de pensar na libré dos lacaios.

Para ela a Natureza é uma decoração; a alma uma imper­tinência dos pobres; o cemitério uma infâmia de Deus.

Assim vive na comédia do luxo, radiosa, contente, idiota, desfolhando o corpo, pensando nos vestuários, criando enfei­tes, até que Deus, por entre as névoas do cemitério, lhe mostre o último figurino, o supremo adorno sinistro – a mortalha à Benoiton!»[42]

 

A segunda carta, escrita por A., o melhor de nós todos, espírito criador e lógico, fala largamente do escritor Estêvão Basco:

 

«Estive ontem», dizia a carta de A., «com Estêvão Basco. É uma alma justa e sã, mas tímida e apaixonada, forte para o sacrifício, cheia de nobres morais latinas, mas idealista e nervosa, tendo assim toda a antiga virtude estóica com muitos dos dolorosos erros modernos.

Este homem, antes que os seus livros fossem comentados e estudados, antes de ser a voz alta e sensata para que correm todos os espíritos novos, como para a lição visível das almas, antes de ter o seu jornal incisivo, livre, cheio de pensamentos e de revelações – teve uma existência de miséria, numa tra­peira, sem sol, sem repouso, sem amizades purificadoras. Sentiu, uma a uma, as sete dores que a vida costuma cravar nas almas possuídas do ideal.

Criança, tinha sofrido todas as tristezas incisivas da escola, espécie de prólogo chorado sobre a tragicomédia humana: mais tarde, nos positivismos da família, tinha sentido aquela luta íntima do ideal e do real, que deixa no espírito eternas feridas, que sangram e que alumiam. Depois, tinha vivido, escuramente, no pequeno jornalismo, caricatura fluida da vida cerebral, e ali tinha sofrido a intriga, a difamação, o escárnio e a fome. Muito tempo o seu corpo chorou pelo calor e pelo repouso, como a sua alma chorava pelo ideal e pela fé.

Hoje entre esta geração sonolenta, nocturna, inútil e fraca, homens entorpecidos pela retórica, pelos textos, pelas regras, que petrificam as livres palpitações do ser, que passam um traço negro sobre o ideal, que são os fechos da Bíblia humana, que são os sacristães da arte e os glorificadores de toda a víscera morta – ele, Estêvão Basco, é o único que, voltado contemplativamente para as augustas claridades da ciência da arte, concentrado como um solitário antigo, vivendo pelo verdadeiro e pelo belo, vai lentamente, com dores resistentes, levando os entendimentos para o útil, para o justo, para o verdadeiro e para o racional.

Leu-me os seus estudos sobre a história e sobre a arte. E um livro poderoso e cheio de vida. Combate os petrificadores conservadores da história, cujo intento é imobilizar nos ar­quivos as atitudes superficiais dos reis e das cortes. Ele quer que a história seja a reconstrução da alma do passado, uma ressurreição humana. Não podem bastar à consciência cres­cente do homem as crónicas escassas e concisas de batalhas de diplomacias, de aparatos e de vingança. Estêvão Basco pensa que, há muito, na história se tem afastado sempre para os últimos planos a grande figura do povo: e é ele, a sua alma ambiciosa e progressiva, as suas livres palpitações, as suas transfigurações e as suas misérias, que a história deve surpre­ender. através das literaturas e da arte. Sob este ponto de vista ele aceita na arte todas as escolas, ou manifestações de uma tendência espiritual, ou expressão de um estado de animalidade e de materialismo, ou resultado de uma doença idealista e nervosa (1830) – logo que eles representem fiel­mente a sua época e sejam os documentos das almas extintas. Lerás em breve este livro eloquente: provam-se as últimas folhas.

Mas o que fará a sua voz, cheia de equidade que lhe enche o peito. neste tempo de instintos animais e de consciências fluidas?

Felizmente, a sua alma tem ficado pura. e isolada na torre de marfim do ideal, no meio desta vida moderna, e as sacer­dotisas do luxo e todos os errantes da ambição. E ele afasta-se sempre de todo este movimento sonoro e coberto de luz, onde há o vago rir descorado, a retórica da graça e a largura das saias e das consciências, para ir pensar, só, no silêncio da alma, na família, na maternidade, no sossego, e naquela união do homem e da mulher, limitada e divina – em que ambos estendem a alma sobre o mundo, para Deus passar por cima! Não te lembras daquelas estampas alemãs em que os pares silenciosos. que parecem ter a loucura elegíaca do amor, enquanto a quermesse ruge nos primeiros planos, se afastam e se perdem no fundo indefinido da folhagem – para se irem sentar à sombra do cruzeiro? Assim é ele. Estêvão Basco todavia, na sua serenidade superior. não faz a sátira do luxo e da meiga farsa dos estofos e das pedrarias. Ele, o grande obreiro desperto das ideias, apenas se ri alegremente dos dormentes do luxo. Síbaris nunca conseguiu mais do que provocar o riso protector de Esparta.

Para ele, não vale nada, como sintoma, este triunfo estéril e momentâneo do luxo. Segundo ele, o luxo audacioso, violento. bárbaro, idiota, é apenas um pequeno desmentido grosseiro. dado à alma, tão risível como a vaidade de um sportman que quisesse raspar Deus da Bíblia.

Dizia-me ele que as saias das mulheres não podem. como receiam os juvenais da caricatura, ser o prólogo de uma deca­dência. Os sintomas das transformações espirituais não podem partir dos jornais de modas. Graças a Deus, um figurino ainda não é o cartaz de uma revolução. Existe sim um luxo animal, um apodrecimento calculado de tudo o que é Justiça e Beleza – mas isto é apenas uma doença da forma. A sere­nidade justa da alma nada tem com as pequenas borbulhas que vêm à pele. São furúnculos que se curam pela supuração. A bela saúde vital permanece na sua pureza e na sua força. E segundo Estêvão Basco nada pode haver mais risível e mais inofensivo do que as tiranias que se vestem à militar, ou as decadências que se vestem à Benoiton.

E todavia Estêvão Basco odeia aquelas mulheres, sem elec­tricidade e sem magnetismo, inertes e materiais, pendidas na fadiga trivial do aparato. que foram anuladas pelo luxo, cobertas da cabeça aos pés por um vestuário – epitáfio da graça. Receio mais as tabuinhas do seu leque, disse-me ele, do que as grandes tábuas do esquife. Porque enfim, morrer é dissolver, é trans­formar-se: e transformar-se é ainda viver, ter seiva, força, sol e consciência. Mas prender-se a uma daquelas mulheres é assistir em roda de si à queda dolorosa e ao desvanecimento dos nossos sentimentos, das nossas ambições espirituais, das nossas ideias, das nossas criações. O seu amor é como uma mortalha: colada ao corpo, deixa ainda pressentir que a forma existe, e manifesta que a alma se dissipou. Diante destas mulheres, disse ele, sinto que em lugar do coração se me vem colocar um pedaço de cérebro. Evito-as. Não quero dar aos meus olhos o hábito da nódoa. Não quero que elas me esfarrapem a alma para fazer mortalhas às suas consciências. Assim diz. Realmente naquele olhar cheio de Natureza não fazem falta os rostos pintados. Naquela alma povoada de Deus, não fazem falta os figurinos.»[43]

A terceira cana que eu abro para copiar, já triste, é de Jacques. um pobre artista, escultor medíocre, imitador dos gregos, que diz descaradamente os factos desta história mi­serável:

 

«Estamos ainda surpreendidos. meu amigo, pelo desenlace desta farsa humana. Estêvão Basco tinha conhecido numa igreja Onfália Benoiton. Cantava-se o Requiem de Mozart. Era um ofício clerical em dia de mortos. Tinha sido dominado por aquela beleza escultural e nervosa, toda coberta de preto. Depois encontraram-se numa daquelas festas em que sempre me pareceu que as camélias. flores do tédio, olham idiota­mente, sem alma, para as inquietações soluçantes do gás. Estêvão Basco. numa sala distante da multidão magnética das mulheres, fazia a sátira dos penteados disformes, das caudas e das cintas modernas onde pendem argolas. Estava com o escritor Sérgio, com o antiquário Salinas, com Sarça o cinze­lador. Onfália Benoiton. que tinha escutado, pediu-lhe que lhe escrevesse uma palavra na vara branca do leque.

Estêvão escreveu:

 

Oh, Satã tenebroso, trágico fulminado,

Tu vencerás em mim o íntimo Deus bom,

Não com as armas bíblicas com que bateste outros:

Mas vindo unicamente vestido à Benoiton!

 

Onfália levou-o pelo braço para as iluminações feéricas. para a acção eléctrica dos espelhos. para a claridade magnética dos ombros nus, transformou-o com as suas exalações lân­guidas, com as irradiações doentias do olhar, com aquela essência nervosa dos seus cabelos falsos, que deviam ser mais macios ao contacto que a pura plumagem da cabeça das rolas. Onfália Benoiton, com aquela voz abafada e velada que ela tem às vezes, que parece que lhe estão dando beijos no coração, disse a Estêvão Basco que lhe limpasse o vestido, enlameado nas ruas do jardim. Estêvão limpou o pó, a humi­dade e a lama!

Desde então, Estevão Basco tirou lentamente da alma, uma a uma, as santas ideias castas, a Justiça, a Beleza, a Razão, a Honra, para dar lugar à imagem coberta de sedas e de cabelos mortos de Onfália Benoiton.

Estêvão, com o seu trabalho severo e robusto, dava o pão a três irmãs puríssimas e a sua mãe, velha, doente, triste, meia desvanecida em Deus.

As doces raparigas, meigas e delicadas, como as mais lindas virgens de ouro fino que se pintavam nos livros de legendas, tinham vestidos de cassa. e todo o dia trabalhavam nos seus castos paraísos. cheias das vozes dos canários. Ele passeava sempre com elas, nas alamedas silenciosas, como os antigos sábios das gravuras flamengas. Desde então Estêvão Basco nunca mais passeou nas alamedas. Desamparou a casa, a família e a alcova cheia da celebração do estudo. Perdido entre as despesas do luxo deixou ao abandono a mãe e as três irmãs. Não havia dinheiro em casa.

Elas, as tristes silenciosas, bordavam, costuravam, ven­diam ramos aos floristas. No Inverno não havia lume. Nem sempre havia pão. Roxas de frio, esfomeadas, cosiam e choravam. Foram viver para uma trapeira, batida do vento e da chuva. Ali morreu a mãe, aquela doce alma dolorosa, numa tarde, ao escurecer. O Sol talvez, ao ir-se, levou aquela alma por engano, como uma pureza e uma virtude da sua luz. Ninguém tão amante, tão triste e tão casta. Foi enterrada no cemitério, entre a erva comum, com uma cruz. Talvez agora sobre aquela cruz cantem rouxinóis.

As raparigas tinham cabelos magníficos, indomáveis e compridos: venderam os seus cabelos. Estêvão, com Onfália Benoiton, errava pelas óperas. pelos casinos, pelas salas, entre as sedas, os tules e as festas. Renegou as fortes e sãs amizades do estudo e da ciência. O seu jornal acabou desamparado e espoliado. Fez contratos terríveis com os editores para livros futuros de critica e de moral. Mas não escrevia, não pensava. não vivia pelo espírito.

Enfim casou com Onfália Benoiton. Tiveram dois anos. carnais e contentes. Por fim, ele tinha assinado letras, foi penhorado nas mobílias. Voltou ao pequeno jornalismo. Criou uma folha de difamação. Insultava a tanto por linha. Veio-lhe à alma a esterilidade. Embranqueceram-lhe os cabelos. Onfália Benoiton andava de noite com um vestido de chita. Estêvão, esmagado, desesperado, vendeu-se de corpo e de alma a um jogador terrível – Mincoso. Roubou. Voltaram os magne­tismos do luxo. Onfália namorou-se do cinzelador Sarça, espírito frio e retórico. Depois deu-se ao tenor Vidalleti.

Estêvão soube. Tinha um materialismo sem dignidade. Comprou-lhe a fidelidade com vestidos. Estêvão dava o vestido: ela cedia o homem. Voltou a miséria. A casa de jogo foi dispersa pela polícia. Veio a fome. Estêvão escrevia cantigas obscenas para um editor de almanaques imbecis e infames. Um dia encontrou Onfália com um saltimbanco. O saltimbanco atirou-lhe dinheiro. Estêvão contou-o e saiu asso­biando. Um dia encontrou a irmã que era florista e tinha casado com um homem trigueiro do trabalho, alma sã e vivifi­cadora como o Sol. Estêvão pediu-lhe para pão. “Tu não me desprezas ao menos, não é verdade?”, disse ele. A irmã olhou-o tristemente. “Não é verdade que me não desprezas?” – “Mui­tíssimo”, disse ela. Onfália Benoiton fugiu com o jogador Mincoso. Estêvão foi viver para uma trapeira, com um coveiro e com um palhaço. Adoeceu. Durante a febre o coveiro cosia os seus botões, cantando o ofício dos mortos: o palhaço para estudar os saltos pulava por cima da enxerga de Estêvão. Ele tinha então uma amante, corista de um casino. Ela ia todos os dias dar-lhe um caldo. O coveiro e o saltimbanco às vezes não vinham à trapeira durante dias. Uma dessas vezes a corista não veio. Estêvão tinha sede. Chamou. A água estava em cima de um vão do telhado, numa bilha. Ele chorava de febre, de sede e de tristeza. Anoiteceu.

No pátio da casa havia uma laranjeira. De noite, no silêncio, ele ouviu cantar um rouxinol. Teve a visão da sua vida de estudo e de serenidade. Chorava de sede. Ergueu-se tremendo e arrastou-se: no primeiro degrau da escada do vão, caiu. O sangue caía-lhe da testa e entrava-lhe na boca, com as lágrimas. Ao outro dia estava quase a expirar. Melhorou todavia. Andou pedindo de porta em porta, com os antigos orgulhos. que lhe dessem o pão do trabalho. Ninguém lhe deu nada.

Um dia encontrou um dos antigos camaradas das festas, a cavalo com outros. O camarada do luxo veio para ele e ati­rando-lhe o chapéu ao chão, com a ponta do chicote: “Estás calvo, pobre homem”, disse, rindo. “Tens tu fome?” – “És bem curioso”, disse Estêvão voltando as costas, sereno. E foi-se, assobiando.

A corista levou-o para o teatro. Ganhava ali o pão. fazendo de urso numa mágica. Caíram-lhe os dentes. Andava roto, com a barba crescida, lívido, e um casaco preto. diáfano, lustroso, colado à magreza do corpo.

Conheceu então uma linda rapariga. de treze anos, clara e loura, que pedia na rua. Estêvão deu-lhe um lugar na trapeira. Tomou-lhe um lugar puro e todo paterno. Para se embrutecer começou a beber aguardente. Tinha a vista debilitada, trazia uns óculos escuros; tinha feridas nos ouvidos e trazia-os cheios de algodão. Vivia fazendo cantigas grosseiras, para o velho editor dos almanaques. A rapariguinha adoeceu. Era a fome, a miséria e a febre. Ele velava junto dela, triste, chorando, e compondo os versos imundos.

À rapariga piorava. Tremia de frio na enxerga. Ele pro­curava aquecê-la com o hálito: a pobre miserável, que tinha ainda a sensibilidade e o olfacto, fugia com o rosto, porque o hálito era mau. A rapariga morreu.

Nesse dia ele tinha bebido longamente na taverna. Quando subiu à trapeira. e viu a triste, inerte, fria e hirta, deu com a ponta do pé no corpo inanimado, gritando: “Pouch!, coisa morta!” Passado pouco tempo voltou-lhe a consciência da vida. Caiu numa tristeza dolorosa. Veio-lhe uma saudade profunda da rapariga, morta na trapeira. Ia vê-la ao cemitério, à vala dos pobres onde ela estava. Como ela não gostava que ele bebesse, e ele se lembrava das lágrimas dela, não voltou às tavernas de noite.

Ia levar rosas e rainúnculos ao cemitério, ao lugar onde ela apodrecia debaixo da erva. Era necessário tirá-lo com vio­lência. Chorava pela fome que ela tinha tido, pelo frio com que ele tinha estremecido.

Ficava junto do muro do cemitério, de noite, ajoelhado. perdido numa saudade imensa como a noite e mais doce que a Lua.

Dormia pelos adros e pelos portais. Tinha um compa­nheiro, um cão, com quem se embrulhava na mesma manta. O cão morreu. Ele adoeceu e foi recolhido ao hospital. Ali não era o escritor Estêvão Basco, era o nº 27 da sala de Santo Amaro. Uma madrugada, teve um estremecimento e morreu. Ao outro dia de tarde foi levado para a vala dos pobres. numa tumba da Misericórdia.»

 

MEMÓRIAS DE UMA FORCA

 

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conheci­mento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida. Árvore, nin­guém sabia tão bem o mistério da natureza; forca, nin­guém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda – a não ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos com­pletos são estes que copio – resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opi­nião que a vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Diz assim o fragmento que eu copio – e que é simplesmente o prólogo das Memórias:

 

«Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte – que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo‑se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

«Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços: ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! – Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

«Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava‑o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria‑lhe as ramagens e as folhas, e escondia‑a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava‑se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher‑se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água!

Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto! Dorme na sepultura errante da água, entre o lodo de todos. Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos do Céu!

«Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

«Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar‑me à árvore. Não sabia eu o que me queriam. Deitaram‑me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia‑me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

«Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia‑me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam‑me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

«Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia‑me que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam‑se na augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

«Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas; encostam‑se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos – toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

«Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através do infinito, entre surpresas radiosas – como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!

«Que iria eu ser?... – Chegámos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

«Fiquei inerte, dissolvida na aflição. Ergueram‑me. Deixaram‑me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar‑se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

«Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

«O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar‑se‑iam nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar‑me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!

«E isto ia ser! Fiquei hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

«Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

«Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar‑se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração eléctrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

«Voltou‑me a consciência.

«Estava só. O povo dispersava‑se e descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei‑me!

«Eu sentia o frio e a lenta ascensão da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!

«O sol ia‑se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha‑se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.

«Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar‑me‑ia, atirando‑me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá‑los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.

«Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da forca para abençoar os carrascos!

«E depois de sustentarem os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra –fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos – faziam estalar de riso a sepultura!

«Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava‑se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam‑se, ruidosos, cravando‑me as garras.

«Um pousou no cadáver e pôs‑se a roer‑lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! – soluçava eu ainda – eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó meu Deus, liberta‑me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: – não queiras que, em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!

«Mas Deus dormia, entre os seus paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

«Enforquei um homem – um pensador, um político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

«Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção das almas, e corrigiu Deus com a forca!

«Enforquei também um ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol‑posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

«Enforquei vinte. Os corvos conheciam‑me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol alumiava‑me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava‑me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava‑me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava‑me o orvalho, frescura que prometia o perdão natural.

«Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou‑me os seus vestidos de hera. Os corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando‑me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar‑me. Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei‑me cair tristemente no chão, entre a relva e a humidade, e pus‑me silenciosamente a morrer.

«Os musgos e as relvas cobriam‑me, e eu comecei a sentir‑me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.

«O corpo esfria‑me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo‑me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar‑me! Não é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do corpo humano? ó matéria, absorve‑me! Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu sinto‑me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro, de lama e de ouro, que és um astro no infinito – adeus! adeus! – deixo‑te herdeiro da minha corda podre!»

 

Assim era a história testamentária da forca abandonada e morta! Oh meu Deus, se os seus átomos fossem agrupar-se e solidificar-se para fazerem o maquinismo da arma chassepot?...

 

APÊNDICE

 

INÊS DE CASTRO

(fragmentos)

 

Pedro

 

Como ela é bela! Que mulher, que olhos!

Por ela daria este castelo e a ameia.

Ela é como um lírio entre os abrolhos!

Como eu a amo! Que mulher! Que meia!

 

Casar com ela? Porque não? Inês

Não nasceu no curral de um abegão:

O sangue que roseia a sua tez

Vem das veias do duque de Aragão.

 

Ora afirmam os livros de juízo

Que Adão, depois de feito, ao acordar

Achou lá nos jardins do Paraíso

Os duques de Aragão a passear.

 

Mas para o Papá, que escândalo daninho.

Como ele vai arrepelar a pele!

E quantos pontapés ao escabelo

Lá nos paços reais de São Martinho!

 

Pior! Se eu teimo neste meigo trilho,

O mundo verá desastre sem igual:

Afonso IV, rei de Portugal,

Com o ceptro de ouro espancando o filho!

 

(pausa)

 

E se eu deixar que o meu coração rompa

Os preconceitos? Se eu fugir com ela

E me acolher a terras de Castela.

Ganhando a minha vida a ensinar trompa?

 

Perdê-la... não! Que preço tem a vida

Sem o sorriso dos seus olhos doces?

Sem o seu riso, o seu falar de sereia?

Dou a coroa real por bem perdida.

Só por a ver sentada, a fazer meia.

 

Foi-se. Acabou-se. O meu amor profundo

Será fiel às juras que jurámos.

Que me pertença Inês, e com mil demos

Acabe o Reino e que rebente o Mundo!

 

...............................................................

 

Pedro

 

Agora, juntos, por detrás do velho muro,

Dom Pedro e Dona Inês jantando.

Não se vê, mas há um aio venerando

Que os serve em baixela de ouro puro.

 

Já o cheiro se espalha. não o sentes?

De um chorumento caldo de galinha.

Que foi cuidado pelas mãos ingentes

Da que depois de morta foi rainha?

 

Segue a rica vitela da Lafões.

No covilhete vêm as azeitonas,

Com a batatinha bem assada e loura.

A salada é de alface e de cenoura;

E sobre o arroz negrejam salpicões.

 

Lá vem o peru. Admirai o peru!

Surge ao lado a divina cabidela:

E pela gana com que vai sob’ela,

Bem se vê que Dom Pedro há-de ser Cru.

 

Em seguida se ostenta uma lampreia

Guisada; e, logo atrás, a bela lula.

Misturam carne e peixe?

Mas o Senhor Infante já tem bula.

 

Depois a açorda de alho. Que delícia

Quando comida à beira do Mondego!

O leitãozinho assado com perícia

E o presunto sublime de Lamego.

 

Mas eis que os doces entram com arranco.

O desejado arroz com a canela;

O pastel de Tentúgal, a morcela,

O bolo podre e o manjarzinho branco.

 

Tudo se some na real goela.

Fica limpa a travessa e o covilhete.

Sem que o Infante, ao seu colete,

Desaperte a fivela...

 

Não se conta na crónica os vinhos

Que se esgotaram no jantar real!

Corramos sobre o caso honesta venda,

Por se tratar de um rei de Portugal.

 

Depois o Infante, todo recostado,

Saboreou com um sorriso farto e aberto,

Café que ainda não fora descoberto

E charuto que depois foi inventado...

 

...............................................................

 

Estavam eles dois postos em sossego,

Cedendo do amor a doce lei,

Quando lá em Lisboa o velho Rei,

Soube do que ia cá pelo Mondego.

 

Enverga logo o seu real pelote,

Manda fazer a mala à camareira

E grita: dai-me ca um bom chicote,

Que eu vou a Coimbra ver a maroteira!

 

Catrapuz, catrapuz,

Sobe o seu ginete,

Passa por Queluz,

Entra em Alcochete.

Pela estrada branca

Que no pé se estira,

Chega a Vila Franca,

Que chamam de Xira.

 

E o Infante e Inês tão descuidados,

Com os dedos sobre a mesa entrelaçados.

 

Num castelo além,

Num cerro,

O Rei diz contente:

Cá está Santarém!

 

E o Infante e Inês, com a alma em festa,

Trocando beijos no calor da sesta.

 

Já rompe a manhã.

Cada um o note,

Quando El-Rei a trote,

Chega à Golegã.

 

Numa hospedaria

El-Rei se acolheu,

Que a noite o colheu

Em plena Leiria.

 

De novo a cavalo.

Depois ele deixa

A estrada real;

E, adeus Pombal,

Penetra em Condeixa.

 

E o Infante e Inês, em doce enleio,

Rindo, partem ambos a bolacha pelo meio.

 

O termo está perto,

Avista telha,

E erro ou certo,

Está Formoselha.

 

Dom Afonso timbra,

No seu galopar,

Galope fremente,

Poeira no ar,

Pra frente, pra frente,

Lá está Coimbra!

 

À quinta chegou,

As rédeas largou;

Corcel desmontou.

No pomar parou,

Subtil espreitou.

 

E agora é que são elas, meus senhores,

Que um luto vai cobrir esses amores!

 

Dom Afonso entra.

O Infante, Inês...

É tempo: vou chamar o assassino.

 

Rente ao muro,

Devagarinho,

No manto escuro

Todo embuçado,

Do colarinho

Té ao joelho,

 

Vem o daninho,

Vem o malvado,

Pêro Coelho.

 

Toma Inês, no entanto, um menino.

E outro menino.

Tão enlevada,

Que até nem ouve,

Sob a latada,

A tosse seca,

Do assassino.

 

Mas, súbito, Coelho,

Aceso em furor,

Arroja a capa,

Larga o chapéu,

Ergue o punhal,

Despede um salto!

Horror, horror, horror!...

 

Caminhante! Na página fronteira

Tu vês D. Pedro, o Cru, forte e sem medos,

Ceando! Pedro pra quem o coração humano

Depois de assado já não tem segredos.

 

A MORTE DE JESUS

 

Por estranhos acasos encontrei este velho manuscrito copiado, num latim bárbaro, do antigo papiro primitivo. Não o traduzo textualmente: seria incompreensível, irritaria os nossos hábitos críticos, psicológicos! Transporto para a linguagem moderna, complexa, dúctil, sábia, o estreito dizer antigo.

Assim ordenado, este documento, que não encerra coisas novas, põe, todavia, em relevo muitos estados de espírito, muitas situações civis de uma pessoa excepcional, que tem nota­velmente merecido nestes últimos tempos a atenção da história e da crítica [44].

 

Jerusalém, Mediterranean Hotel, no Acra, 1 de Dezembro de 1869.

 

Dies irae, dies illa...

 

I

 

O meu nome é Eliziel, e fui capitão da polícia do Templo: estou velho e inclinado para a sepultura: e antes de me deitarem para a Eternidade sob uma pedra lisa, em Josafá, ou nas mortuárias de Siloeh, quero contar o que sei e o que vi de um homem excelente, que na minha mocidade esteve, pelos acasos providenciais da simpatia, intimamente ligado à minha vida. Nestes últimos tempos, sobretudo, a sua Imagem vive activa e poderosa no meu cérebro; e quando, pelo findar da tarde, a esta luz magoada que então habita no céu da Judeia, eu me vou sentar junto ao branco túmulo de Raquel olhando as muralhas de Jerusalém e a velha Suo, cheia de claridade, e as ruínas de David, é nele que penso – e nesses tempos distantes em que eu tinha a força, a barba escura, o andar ágil e firme, e a esperança fácil.

Eu sou o mais velho da geração desse homem: aqui vivo, afastado da cruel Jerusalém, em Betlem, junto desse poço que tem uma água tio fresca e consoladora que David a lamentava no desterro.

Os outros onde estão? Onde estais vós. Tomás, Mateus, Simão, Pedro, João? Onde estais vós? Judas de Karioth sei que morreu obscuro e sossegado no campo de Haceldama; Pôncio Pilatos esta em Espanha, retirado e pobre, ele o velho amigo de Tibério. Antipas, Herodíade, andam na aflição dos desterros; Hanan morreu, mas a sua memória e a sua doutrina ainda governam o Templo. Onde estão os mais: Nicodemus, José, Maria de Cleofas, a santa mulher, Gamaliel, o sábio doutor? Uns estão no vale de Josafá, outros no vale de Hinon, todos esque­cidos. Tanto a memória do homem é como a onda fugitiva e pérfida!

É por isso, para que se não perca a lembrança daquele homem, justo e bom, que eu procuro dizer com simplicidade e verdade tudo quanto vi e compreendi da sua vida; tão breve pelos dias, tão longa pelas dores.

Quando o conheci em Jerusalém, pela festa da Páscoa, era eu moço. A minha vida passava-se toda no Templo. O Tem­plo, reconstrução de Herodes, o Grande, estava então novo e res­plandecente: ainda se trabalhava nos pórticos exteriores. Ali era o centro de Jerusalém: ali se orava, se celebrava, se trata­vam as questões civis, se julgavam os condenados, se estabe­leciam as escolas rabínicas da Lei, se discutiam os éditos de Roma, o procedimento dos legados imperiais e dos procura­dores, se curavam os doentes, se tramavam as sedições. Os romanos não podiam entrar no templo: no átrio da primeira galeria havia inscrições em grego e em latim que vedavam aos gentios, aos pagãos e aos samaritanos penetrar além. No entanto nós víamos sempre os romanos nos terraços da Torre Antónia, que domina o recinto do Templo, observarem, rirem, dormirem ao sol, ou pela tarde jogarem a barra, exercitarem-se em lutas.

A mim, como oficial da polícia do Templo, competia-me abrir, fechar as portas, impedir que se entrasse no santuário com bastões ou armas, que se sujassem as lajes dos terraços com lama, que se passasse com fardos, ou que viessem orar junto às colunas do santuário os que estavam tocados de impureza.

Eu era escrupuloso e atento e desgostava-me (e muitas vezes o disse) que o serviço do culto autorizasse factos indignos da santidade da Lei, e da consagração do lugar, porque, no recinto do Templo, vinham estabelecer-se toda a sorte de ven­dedores e de bazares: vinham ali vender os animais para os sacrifícios, os estofos, os véus, as faixas de Tiro, trocava-se a moeda, negociava-se o azeite: e, como o Templo era o centro vital de Jerusalém, havia ali toda a semelhança de uma feira: pregões, fardos, arcas; e mais parecia o mercado pagão de Cesareia, do que o interior da casa de Deus.

Outra coisa me irritava ali, singularmente: eram os fari­seus, os escribas, e os doutores da Lei; não os estimo: entre eles só vi acrimónias, ódios, disputas estéreis. Nunca compreendi o orgulho dos doutores nem mesmo o seu desprezo pela sabedoria grega: meu pai cultivava as letras helénicas, e tinha-me dado um conhecimento daquela ciência, incorrendo assim na ira dos doutores fariseus, que envolvem na mesma maldição o que cria porcos, e o que ensina a seu filho a ciência grega. Meu pai tinha viajado no Egipto, em Alexandria, e aí se tinha ligado com um sábio, Filou, judeu pela mie, grego pela alma, de quem os mestres das sinagogas diziam o maior mal.

Desde então tinha-se tomado de afeição pela ciência grega, e, velho, entretinha-se a fazer passar ao meu espírito as grandes doutrinas daquelas gentes. Ora o ódio dos escribas pela ciência helénica indignava-me. Demais, eles são repulsivos e grosseiros.

Os fariseus, especialmente, são ásperos, desdenhosos, maus, respeitando mais as minuciosidades do culto, do que o espírito da Lei. Em tudo cheios de artifício e de vaidade: se entram na sinagoga, querem o melhor lugar, o mais largo, e todos os vêem batendo no peito sob a amplidão do manto: se vão pela rua ou pelo campo, prostram-se ruidosamente a orar, se vêem o olhar do homem: se dão uma esmola, contam-na como virtude, apre­goam-na como exemplo: e sempre argumentando, vociferando, enchendo o santuário de disputas e de invectivas! Se numa ceia, algum dos convivas faz a ablução sobre a testa, com a mão longa, em lugar de a fazer só com dois dedos, amaldiçoam-no, clamam pelas iras de Jeová e levantam-se escandalizados: nunca ninguém os vê consolar uma viúva, ou ajudar um velho a andar: os pobres, os abandonados, são para eles como os que estão tocados da peste: caminham com os olhos fechados para não verem as mulheres, e com os pés nus para se ferirem nas pedras: mas por baixo do seu zelo, são cheios de apetites, como um homem sanguíneo!

Quanto é melhor que estes o alto sacerdócio, que é todo da seita dos saduceus e dos boetozins: há ai mais sinceridade, e mais elemento humano: são homens pacatos e faustosos, que intrigam com Roma, não têm zelos nem devoç6es irritantes, amam o sossego, as lindas casas de campo junto a Silo ou para além de Bezeta, os moles estofos de Sídon, ou as belas mulhe­res de Idumeia.

Mas o que na vida do Templo me indignava superior­mente, era o vê-lo tornado um lugar de comércio, de venda e de troca de moeda. E foi por este ódio aos mercadores do Templo, que além disso me tornavam a polícia difícil e fati­gante, que eu conheci o homem inefável, por quem os meus olhos ainda se humedecem.

Um dia, entrava eu na Galeria de Salomão, que é a que tem três ordens de colunas, o tecto de cedro lavrado, e olho para o Monte das Oliveiras. Era na festa da Páscoa e na mul­tidão dos peregrinos. Um soldado da milícia do Templo tinha-me dito que, contra os avisos, dois mercadores de pombas e de carneiros tenros tinham-se vindo encruzar nas suas esteiras junto das colunatas, com as reses enfeitadas de escarlate, e os cestos de aves brancas. Eu ia, cheio de cólera, para os condenar, quando vi em redor uma confusa gente domi­nada pelo forte ruído de uma voz: defronte dos mercadores, havia um homem de pé, que lhes falava. Era alto, magro, fraco: tinha os cabelos louros, pendentes, separados ao meio, cabelos de homem de Galileia: mesmo, percebi logo, pelo acento e pela pronúncia, que ele era galileu: naquele momento o seu rosto era irritado e severo: tinha o gesto largo ao modo dos que pregam nas sinagogas, tinhas as feições inflamadas os olhos cheios de uma luz indignada: a sua estatura erguida pela cólera, enobrecida pela justiça das suas palavras, cheia do seu pensamento, fazia-o parecer mais que um homem.

Os mercadores, assustados, recolhiam os cestos, dobravam as esteiras, arrastavam as reses: as pombas esvoaçavam.

– Ide! – disse-lhes ele então – vós fazeis da casa da ora­ção uma caverna de ladrões.

E com a mão violenta empurrou-os largamente, para além das colunas. Eles iam, tomados de temor. Os homens em redor tinham uma aprovação simpática para o de Galileia: alguns riam, havia crianças assustadas que gritavam. Eu olhava, admirado.

– Quem é este? – perguntei a João, um galileu, que estava junto dele, e que eu conhecia de o ter encontrado no átrio da casa de Hanan.

– Não o conheces tu? É Jesus de Nazaré, profeta de Galileia!

 

II

 

Durante a minha vida do Templo eu tinha visto muitos videntes, muitos profetas: vinham da Galileia, da Judeia, de todo o pais que vai até Jopé. Não direi o que penso da inten­ção profética e da crença messiânica. Só direi que os profetas que no meu tempo vieram e eram lapidados às portas de Jerusalém eram bons; eram uma voz colectiva, a esperança, a consolação e o alívio.

O povo era profundamente infeliz: os saduceus afogados nos seus repousos, os fariseus perdidos nas suas devoções, os escribas e doutores absorvidos nas suas escolas, não viam o estado das almas. Além de tudo, estavam longe do povo, numa separação desdenhosa e enfática. Eu estava profundamente ligado ao povo pela raça e pelo instinto. Já na vida estreita e toda comum de Jerusalém, já nas conversações dos átrios do Templo, já nas minhas demoras em Bethel, em Efraim, em Galileia, eu via, compreendia, sabia o povo. Infeliz, desprezado, eternamente escravo, esmagado pelo tributo da dominação e pelo dízimo, refugiava-se, maltratado da terra, na esperança de um libertador, de um Messias. O Judeu é dado a preocupa­ções divinas e a sua verdadeira pátria é em Deus.

Uma série de homens fortes e piedosos eram os intérpretes deste desejo ideal, eram a voz daquela melancolia e eram os amigos do pobre, os ásperos juizes do rico, os consoladores austeros.

O povo, sufocado pela sua paixão interior, sentia-se ali­viado e consolado, quando um profeta falava. Os profetas con­firmavam a vinda do Messias, diziam-lhe a figura e as acções, a piedade e a paixão, esfarrapavam os seus vestidos, iam viver no deserto: daí a exaltação tornava-se um estado natural e humano, as almas cresciam em desejo e vontade. De sorte que todos os anos apareciam videntes e inspirados, que o Sanedrim mandava lapidar à Porta Esterquilinária. Mas lamentavam-no, porque o povo segue sempre todo o movimento que seja ori­ginal, amigo do pobre, anunciador da boa nova: Schammaï, Hillel, Jesus de Sirach, que tiveram altos pensamentos de pureza e de justiça, viveram ignorados da Judeia e da Galileia porque não saiam do meio simples e infeliz, porque não pregavam em nome da esperança religiosa, não tinham a paixão messiânica. Eram espíritos sábios e justos, e não videntes possuídos de fé.

Ora nesse tempo à esperança do Messias era activa. Cla­mavam por ele a Deus, jejuavam, oravam, para não morrerem antes da vinda dele; tinham desalentos, esperavam avidamente os sinais místicos, e as almas falavam baixo, porque vinha o Senhor!

Eu mesmo tinha visto muitos profetas, muitos mestres Inovadores; não conhecia João Baptista, que vivia no deserto do Jordão, mas sabia que ele também pregava um renasci­mento, e que, tendo escandalizado a olímpica Herodíade, se definhava numa prisão de Antipas.

No entanto nunca nenhum desses homens me dera uma sensação feliz como esse Jesus de Nazaré. Os seus olhos cheios de infinito, a sua voz poderosa e serena, a justiça das suas palavras deixaram-me numa vaga e imprevista perturbação como quando se olha para o céu, que se supõe escuro, e de repente se vê uma estrela imortalmente luminosa.

Nessa tarde, como eu caminhasse pela encosta de Suo para o lado do horto de Salomão, com Simeon, escriba do Tem­plo, perguntei-lhe se conhecia Jesus de Nazaré, que pregava na Galileia. Simeon disse-me, com um riso:

– Que sabes tu que possa vir de bom de Nazaré?

Realmente toda a Galileia é muito desprezada pelos de Jerusalém. Fomos conversando nesta apreciação; Simeon di­zia-me que os galileus eram fracos, femininos, imbecis; que eram ignorantes e pouco ortodoxos: que o sangue estava neles muito misturado: que tinham muito de Samaritano: que a sua pronúncia era viciosa: que eram grotescos a falar, insufi­cientes a pensar: e que idiotismo galileu era um provérbio de Jerusalém. Eu respondia que a gente de Galileia me parecia simples e delicada: que quem vive numa Natureza tão humana, tão cheia de águas, tão auxiliada das sombras, não podia deixar de ter qualidades finas, e harmoniosas; os galileus eram tra­balhadores e sóbrios: e que Isaías tinha dito: «Ó terra de Zabulon, e terra de Neftali, caminho do mar, Galileia dos gen­tios, o povo que caminhava na sombra viu uma grande luz!»

– Ora, Simeon – dizia eu – estas palavras de Isaías indi­cam que em Galileia pode nascer um profeta!

Íamos assim largamente conversando, quando chegámos ao horto de Salomão: a natural beleza, as árvores, as vinhas, a perspectiva suave e recolhida dos vales de Jerusalém, a silen­ciosa espessura. a fresca serenidade, os bandos de pombas que vêm beber aos velhos reservatórios de Salomão, fazem daquele lugar um retiro bom para espíritos sábios, para aqueles que têm no coração uma ideia, ou que são habitados por uma esperança: ali se reúnem assim .muitos de Jerusalém! Naquele dia andava ali, absorvido, grave e vagaroso, o sábio Gamaliel. Gamaliel era o maior do Templo: se os outros eram o poder, a intriga, a riqueza, a tradição – ele era a ciência: se os outros eram a lei – ele era a justiça. Eu, preocupado pelo Nazareno, perguntei a Gamaliel se conhecia aquele homem severo.

– Pelo que sei dele – disse Gamaliel – penso que é um justo.

Guardei com amor esta palavra: ela correspondia à atrac­ção suave e piedosa que eu sentia pelo severo mestre da Gali­leia. Ao voltar a Jerusalém pensava nele: via-o Irritado e augusto: imaginei-o cheio da cólera do justo e da rebelião do oprimido: o que ele pregava decerto era a condenação do rico. e a humilhação do fariseu. Era o que tu precisavas, Jerusalém, dizia eu, era um profeta amado e seguido, que fosse a alma de uma infinita desgraça que se vinga, que erguesse o povo, aniquilasse os sacerdócios corrompidos, expulsasse o Romano, que reconstituísse nas almas a velha Israel, nas instituições a velha Judeia, que fosse o homem forte e puro, e o continuador dos Macabeus. Produzira a Galileia esta alma terrível?. Ou será Elias ressuscitado de entre os mortos? Assim pensava, encami­nhando-me, pela noite pesada, para a casa de Hanan.

Hanan era o grande-sacerdote, ainda que na realidade e nas coisas do Templo o fosse seu genro Caifás; mas ele era o espírito, a direcção, o conselho, a iniciativa de toda a vida sacerdotal do Templo, Era velho, sabedor das tradições, astuto, possuía enormes riquezas, conspirava contra Roma, era con­centrado e soberbo.

Num dos largos pátios cobertos de sua casa em Bezeta era um costume reunirem-se em volta de um grande fogo, quando o frio entristecia Jerusalém, os oficiais do Templo: às vezes vinham escribas, doutores, sacerdotes afáveis. Aquele grupo, sempre igual, era como uma consciência um pouco mordente do Templo. As vezes, quando não estava algum austero doutor fariseu, pedia-se a um soldado expedicionário que entrasse para junto do lume, dava-se-lhe do vinho de Sídon e das colinas do Líbano e pedia-se-lhe que cantasse alguma das cantigas latinas do bairro de Suburra. Alguns velhos sacerdotes riam nas suas barbas brancas. Nessa noite, quando eu atravessava o átrio de Hanan, cruzei-me com aquele galileu, João, que eu tinha visto junto a Jesus de Nazaré, na Galeria de Salomão. Ele costumava vir ali ver uma velha, guardadora dos cães, que era de Cafar­naum, na Galileia. Chamei-o, tomei-lhe as mãos, falei-lhe afa­velmente em Jesus de Nazaré: eu enfim compreendia bem aquele que, por um imprevisto interesse, pela elevação da sua palavra, pela beleza do seu aspecto, habitava já no meu peito, como um amigo da antiga mocidade!

 

III

 

João disse-me vagamente todo o passado de Jesus, em pala­vras simples, mas penetradas de fé e de desejo.

Eu reconstruí então em espírito a vida obscura de Jesus; vi-o, pela intuição, em Nazaré, educado por aquela doce pai­sagem da Galileia, sob a influência do Carmelo, das serras do Tabor e das terras patriarcais.

Eu tinha ali viajado, e muitas vezes me tinha sentado num rochedo nas alturas de Nazaré. Se algum lugar há no mundo em que o homem sinta a estreiteza da vida civil, a instabili­dade dos interesses, o contingente e fugitivo das afeições e dos desejos, é ali, naquele vasto e sossegado horizonte, em que parece que o céu exerce mais profundamente a sua atracção infinita sobre a alma cativa.

Que pomares, que prados, que humanas águas, que aldeias delicadamente adormecidas entre as figueiras e as vinhas!

E eu via Jesus, imaginando, esperando naquele húmido paraíso da Galileia e nas suas montanhas queridas, de belas formas amorosas!

Via-o com os seus primeiros amigos, já possuído da ideia do seu Deus, entrando a falar nas sinagogas, correndo as aldeias, ajudando as pescas, dormindo nos largos terraços sob a luz das estrelas tão belas, tio expressivas como na velha Caldeia; chamando os que encontrava para que o amassem, acariciando os fracos, e dando-se a si e ao Deus interior que o habitava, em alimento às almas infelizes.

Os de Jerusalém, que nunca saíram das suas estreitas e duras ruas, e apenas têm visto da Natureza as suas colinas calvas e os seus vales cheios de mortos, riem quando se lhes fala na Natureza do Norte, na fecundidade da Samaria e da Galileia e na excelência daquela gente.

Pois se Jerusalém tem de ser erguida das suas choradas humilhações, será por alguém. vindo do lado das aldeias e dos lagos da Galileia! Esta Jerusalém áspera, seca, toda de pedra e de indiferença, só fará espíritos estreitos, fariseus argumenta­dores, escribas e lapidadores de homens. O sangue de Judas Galaunete, de Hillel, do filho de Sirach, de Gamaliel, de todos os homens justos do nosso tempo é parente da seiva das árvores da Galileia. Uma elevação ideal sai daquelas sombras e do rumor daquelas águas. Jerusalém será a lei, a autoridade, a sabedoria, a habilidade, a astúcia; mas a Galileia será a virtude e o sacrifício.

Ali não há cidades: há as pequenas aldeias sírias que eu amo, onde as mulheres têm o seio pacífico, os homens a força serena, e até os pequenos burros têm um olhar doce, em que parece habitar uma resignação humana. Tudo é fecundo, bem cultivado: a abundância impede a hostilidade ao imposto, a avareza, a economia áspera, qualidades de Jerusalém. Ah! lâmi­nas douradas do Templo, túmulos gregos dos Herodes, com relevos de folhagens, como eu vos dera por um dos pequenos regatos azulados, que dormem e sonham na espessura amada das searas de Chorazim! Porque não conheço melhor alegria, do que andar pelas estradas de Galileia vêem-se os casais escure­cidos pela sombra das figueiras, das vinhas; os pomares de nogueiras, de romãzeiras estreladas de vermelho: vai-se numa fresca espessura povoada de aves gloriosas! Quando se está fatigado senta-se a gente diante de uma porta, à sombra de um cedro, bebe-se o vinho de Safed, olham-se as formas lân­guidas das montanhas, conversa-se com as mulheres que vêm da fonte, todas frescas, cantando os cantos do tempo de Salomão! E não se encontram fariseus, nem escribas, nem saduceus, nem herodianos!

Era ali que Jesus vivia, falando pelos campos, pelos casais e nas sinagogas: ali devia ser escutado: não tinha sábios da Lei para o contradizer e para o injuriar, e podia-se penetrar do encanto de dizer a verdade aos simples!

O que João me contava da doce vida do lago de Tiberíade enchia-me de uma afeição inefável pelo doce mestre. Eu conheço bem o lago de Tiberíade, todo o país de Genezareth: muitas alvoradas andei pelas suas aldeias e pelos caminhos das suas vilas! Ai! Magdala, Chorazim, Betsaida, margens do lago, luga­res que eu choro, hoje velho, seco, pálido das saudades pela força do meu peito e pela altura da minha esperança! O arvo­redos sonoros de Genezareth, todos cortados de água, onde os meus pés faziam erguer as rolas! O caminho estreito do rochedo, cheio de musgos! O rio salgado, que nasces ao pé do lago e logo no lago cais, e que eu tantas vezes comparei ao meu ser fugitivo! O margem do lago, cheia de tamarindos, onde a água, tão azul como os olhos das mulheres de Tiro, vem termi­nar sem ondas, sem aflições, nas ervas verde-negras! O Galileia, se as ideias moças, que trago mortas dentro do meu peito, as pudesse sepultar fora de mim, escolheria a tua relva, ó terra de Neftali!

Jesus e os seus amigos viviam ao pé do lago, da vida de pescadores: aquele clima é tão doce, tão afável, que o homem pouco pensa no seu corpo: assim, de dia pescavam, de noite dormiam na areia, sob as estrelas; ao rumor da água. Jesus pescava, ou falava numa barca, no sossegado embalar da água, aos seus companheiros de rede: assentava-se às. vezes sobre- as colinas, que são de uma viva liberdade de ar e de luz, e cer­cado dos simples pescadores, de mulheres, de crianças, pregava-se a si, ensinava o seu coração, falava das esperanças do reino de Deus. Ele amava tudo o que era delicado, as mulheres, as crianças, os lírios, as aves: a sua palavra era assim tão suave como os olhos das crianças, tão pacífica como o cami­nhar dos regatos: ele pedia apenas que o amassem, e não tinha razões inflamadas de profeta. Ele era o centro de todo o amor na verde Galileia: dava a esperança às almas: dizia a vinda do Senhor, o fim das lágrimas, as glórias do pobre.

– O Céu é dos simples – dizia ele. – Os que choram serão consolados; os miseráveis possuirão a Terra; tendes fome e sede de justiça? Vinde a mim, sereis saciados. Sede pacíficos, sede puros. Se vos perseguirem no reino da Terra, abrir-se-vos-á o reino do Céu. Segui-me, segui-me.

E seguiam-no: abandonavam os campos, as hortas, os barcos, os casais: as crianças amavam-no: as mulheres iam presas da luz imortal dos seus olhos: todos queriam errar com ele pelo país de Genezareth, comendo os frutos casuais dos pomares, bebendo como as reses no fio dos regatos.

Ele explicava Deus de um modo novo: ninguém o conhecia melhor: ele era a consciência viva de Deus. O seu Deus não era Jeová, amigo de Israel, inimigo dos homens: não era o ser solitário, tenebroso, irritável: o seu Deus era o pai, o conso­lador, o purificador, o eternamente sereno, o eternamente justo.

O Mestre pregava a fraternidade entre os homens, o perdão, a caridade, a humildade, a grandeza, a poderosa virtude do sacrifício.

– Se vos ferirem, oferecei-vos; se vos odiarem, amai; se vos perseguirem, oral! Que mérito há em amar os que nos .amam?

Uma coisa que singularmente me tocava no ensino que João me repetia, era a condenação dos usos do Templo, dos zelos devotos dos fariseus: com efeito, para que são tantas purificações, tantos cilícios, tantos usos de piedade? Para que hão-de os fariseus trazer nas suas túnicas as tiras de papiro, que são o sinal da devoção, e para que dão a esmola, de pé, nas escadarias do Templo, gritando e elevando a moeda?

– Quando tu deres a esmola – dizia o Mestre de Nazaré – que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita.

E esta palavra enchia-me o coração. E alegrava-me o saber que ele não era como os mais profetas, não se retirava para o deserto, não se emagrecia em jejuns não rasgava os seus ves­tidos, não se feria nas rochas agudas; vivia como um simples e como um pobre e se procurara às vezes os lugares retirados, e amava as montanhas é que ai estava mais na fraternidade dos seus, e no coração de Deus.

João falava-me das mulheres que o seguiam, e eram Joana, mulher de Khouza, Salomé, Maria de Cleofas e Maria de Magdala, que eu conhecia do Acra, em Jerusalém. Maria de Magdala, aí e em Tiberíade, tinha tido uma vida apaixonada e impura: uma exaltação inexplicável era a essência daquele ser; tinha espasmos, contracções, entusiasmos perturbados: julgava acalmar a impetuosidade da sua natureza febril pelo amor dos homens; ligava-se com os doutores notáveis de então, penetrava em discussões e explicações da Lei, depois andava cercada de fariseus e envolta em devoções; mas tinha o amor dos estofos, e todos os dias chorava. Era uma alma inquieta que buscava alguma coisa: tudo o que fazia era com paixão: a cultura das plantas raras, a criação das moreias em reservatórios, a composição de aromáticos, o estudo das ervas, tudo tratava, ardente e enfastiada. Doente, pobre, foi para Magdala. Aí viu Jesus. pregando. Seguiu-o. Adorava a doutrina do Mestre, e amava a sua figura delicada e bela. Mas tinha fortes impa­ciências, erguia discórdias com os discípulos, retirava-se ao deserto. Mas voltava, porque a sua dedicação suave pelo Mestre era maior, e domava a sua tenebrosa e confusa natureza.

Gostava de derramar perfumes no corpo de Jesus, e de lhe coser à túnica franjas de Tiro.

Jesus, de resto, aceitava na sua companhia as mulheres transviadas, os publicanos, todos os pecadores.

Tal era Jesus, segundo João. Eu estava cheio de admi­ração. Demais, dizia eu, aquele homem que eu vi no Templo, com as indignações de Isaías, é pois suave como o céu de Galileia? Realmente, uma raça tão humana, tão simples, tão abundante, tão pacífica poderia dar um profeta irritado?

– O Mestre é a mesma doçura – dizia-me João.

Donde vinha então aquela cólera, aquele gesto de Messias vingador?

– Desde quando é ele assim? – perguntava eu a João.

– Dizes bem. O Rabi mudou desde que chegou a Jeru­salém.

 

IV

 

Era já manhã e ainda João me contava estas coisas paci­ficas, enquanto eu seguia para o Templo. Ia perturbado, sem centro moral, Ora me vinham desejos de ir à Galileia seguir os passos de Jesus de Nazaré, ora o meu velho orgulho estreito de homem do Templo me suscitava hostilidades ou desdéns.

O Templo abria-se, chegavam os fariseus, os devotos, os doutores aproximavam-se nos seus burros, os sacerdotes nas suas liteiras; encruzavam-se nas suas esteiras os mercadores; tirava-se a água das piscinas, acendiam-se os purificadores, des­dobravam-se os velários; os pregões anunciavam os debates civis, as vendas de campos; começavam a instalar-se as escolas rabi nicas; o ouro tinia nas bancas dos cambiadores; havia risadas; ouvia-se o balar das reses.

Quando eu estava vigiando os serviços, veio a mim, todo alegre, um velho camarada do Templo, Josué, que andava há muito pelas vilas de Galileia para a organização dos soforins nas sinagogas. Era homem conhecedor das tradições e cheio de experiência da vida sacerdotal. Perguntei-lhe se conhecia da sua peregrinação Jesus de Nazaré, filho de Maria de Caná, e os seus companheiros. Ele era douto, sincero, atento, devia saber explicar-me, melhor do que o simples, o exaltado João, a essência do Rabi da Galileia.

Disse-me, com efeito, que vira Jesus na sinagoga de Cho­razim; que conhecia a sua vida e a sua doutrina, e que era um homem destinado, mais tarde ou mais cedo, a ser lapidado às portas de Betel; que pregava toda a sorte de impiedades; que combatia a Lei, a tradição e os textos; que falava contra­riamente à velha sabedoria judaica, sendo ignorante e moço; que não respeitava nem os ricos, nem os sacerdotes, nem os fariseus; que queria distribuir as riquezas pelos pobres; que vivia em companhia de mendigos e de mulheres perversas; vivia, dormia ao acaso pelos hortos; não tinha casa nem campo; que se associava com o publicano e até com o pagão; que não fazia as abluções, nem sacrificava; e que era um vagabundo dos montes da Galileia, sem autoridade entre os doutos e entre os ricos.

Eu ouvia calado estas palavras, que eram todo o espírito dos fariseus e dos doutores. E quando saí do Templo sorri ao átrio de Hanan.

Jesus de Nazaré era-me já simpático e íntimo, pelo senti­mento e pela razão. Mas o que era aquele homem? Era um simples visionário? Era um contemplador, cheio da melancolia que dão as espessuras de Galileia, e tomado de um desdém divino? Era um espírito cheio de sabedoria? Era um continuador de Judas Galaunete? Vinha ele pregar contra o imposto e contra o dízimo? Era ele hostil a César, e cheio da tradição dos Maca­beus? Era um simples? Era um crente? Era um especulador frio das esperanças messiânicas? Vinha ele atacar o espírito do Templo?

 

Encontrei João, conversando no átrio lajeado com um homem da milícia sacerdotal. Chamei-o para uma longa galeria escura vagamente estrelada de. lâmpadas...

– João – disse eu – diz o que vem fazer a Jerusalém o sábio de Nazaré!

João olhou-me:

– Vem à festa da Páscoa – disse ele, lento.

– João – insisti – pelo Messias, e pela liberdade do Bap­tista, prisioneiro de Antipas, diz-me a que vem Jesus, a Jeru­salém e ao Templo?

– Pregar– disse lodo.

Compreendi, rapidamente, todos os resultados daquela luta original.

– Vai! – lhe disse eu exaltado – diz-lhe que parta, que volte para o lago de Tiberíade! Que viva nas suas montanhas, com o seu Deus, com os que o amam, sossegado, no repouso dos campos. Que vá, que evite as portas de Jerusalém! Diz-lhe que não venha nunca encostar-se como profeta à coluna do Templo! Que volte para a Galileia, que se lembre das pedras que estio à Porta Esterquilinária e que são para lapidar os profetas!

João tinha o espanto nos olhos, na voz.

– Eliziell Eliziel!

– Que volte, que volte para a Galileia!

E subi rapidamente, pela escadaria de granito verde que levava aos interiores de Hanan.

O velho sacerdote, debilitado, caduco, dobrado, comia, deitado sobre largas peles, arroz e mel. Ao pé. uma escrava síria, de Damasco, cantava. Jesus Bar-Abbás, defronte, fazia momices.

 

V

 

No outro dia, casualmente, tive ordem de Caifás para ir à Galileia, em serviço das sinagogas: a concentração dos sacer­dotes rituais em Jerusalém obriga assim os oficiais do Templo a sucessivas peregrlnaç8es; porque as sinagogas estio dominadas pelos escribas e pelos soforins, e por isso agitadas em. perpétuas. intrigas.

Mas esta viagem agradava-me porque me levava a Bet­saida, a Chorazim, a todo o país que fora até aí o centro amado de Jesus.

Em toda a região do lago achei muitos espíritos ou mais simples, ou mais lúcidos, ou mais amantes, singularmente ocupados na simpatia e na razão pela pessoa, pela doutrina do Rabi de Nazaré.

Falavam-me longamente da sua doutrina nas sinagogas, das suas palavras nas colinas: e a figura moral de Jesus acen­tuava-se, definia-se progressivamente no meu espírito.

Diziam-me que a voz do Mestre era doce, untuosa, que só o seu som cativante fazia esquecer as mulheres da roca, os homens da agulha da rede: falava devagar; a silêncios: as altas verdades, as palavras profundas apareciam de repente como uma centelha sai de um diamante tocado de uma luz inesperada. Contava parábolas, histórias; repetia com paciência, sorrindo: uns estavam deitados, preguiçosos, atentos, outros remendavam as velas, alguns sentados aos seus pés olhavam pasmados a água. Ele falava, sossegado, ou afagava uma criança, ou, contando as parábolas. consertava a sua rede.

Vivia como um simples, junto da vida, sem ter as curiosi­dades da vida. Tinha um desdém elevado pelas coisas exteriores.

– Não vos inquieteis pelo alimento, ou pelo vestuário – dizia ele. – Olhai as aves do céu, não semeiam, nem ceifam, e o pai dos Céus é quem as alimenta; e não sois vós mais que as aves que esvoaçam nos campos?

– Para que haveis de cuidar dos vossos vestidos? Vede os lírios: não trabalham, nem fiam: pois eu vos digo que Salomão em toda a sua glória não estava vestido como nenhum deles na sua simples candura. E o que Deus faz pelas ervas dos campos que florescem hoje, amanhã secam, não o fará por vós, homens de pouca fé?

Por isso os discípulos seguiam-no assim, enlevados naquelas ambições ideais, sem roupas, sem provisões, sem dinheiro. Naquele pensamento, o dinheiro era considerado como um fardo, um inimigo, um traidor, que assim como se toma da ferrugem, dá à alma a esterilidade.

– Vendei o que possuís – dizia ele – dai o dinheiro em esmolas!

Realmente de que servem na Galileia as riquezas?

Ali só há a verde Natureza: o dinheiro não dá mais infinito ao azul, mais repouso à água; o pobre, o mendigo, é o rei mis­terioso daquela glória da folhagem e da luz: para ele se vestem as açucenas de branco, para ele resplandecem os regatos.

Jesus glorificava o pobre: naquele evangelho da Galileia, o rico é considerado o inimigo, o pagão, o cruel, o inquieto: ele tem os largos vestidos fáceis, macios; ele come sobre leitos cobertos de peles; ele enterra os braços nus nas moedas do cofre: o pobre come escassamente as ervas mal cozidas dos hortos; remenda, à candeia, a sua túnica, traz apertada à cin­tura, tendo sobre ela uma pedra, a moeda de cobre que é a sua fortuna. Bem: Deus tomará conta do vestuário do pobre. e da brancura do lírio, ele velará para que ao homem não falte o pão e à rola o grão, ele fará no Céu, ao pobre, um saco, um tesouro de boas obras, de glória, sem temor da ferrugem e dos ladrões.

O rico irá para a Gena, para o fogo inextinguível: um cui­dado o emagreceu na vida, uma chama o consumirá na exis­tência extra-humana. O pobre estará junto de Deus, e a sua face será imortal e altiva.

– Porque em verdade vos digo – ensinava o Mestre –que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus.

Assim falava ele à beira do lago, e, desprendendo os homens dos fatais cuidados do mundo, era o criador da paz e o consolador da vida. Os tédios da existência ordinária, a dis­córdia dos interesses, as humilhações da vaidade, as invejas, as avarezas, a melancolia da miséria, a apatia da necessidade, as aflições da obscuridade, as desconsolações da doença, todos estes antigos demónios desapareciam, e a velha cabeça humana, obscura, cativa, pesada, podia enfim sentir, esperar. repousar, encostada ao mais profundo seio humano, que o pão da terra tem alimentado.

A alma tinha enfim um lugar, o seu lugar, o seu espaço, que era o reino de Deus. O reino de Deus era o reino das crianças, dos simples, dos deserdados da vida, dos que sofrem, e até do samaritano, e até do pagão e do publicano, e até do que habita Sídon. Ah! Vós não quereis esperar nas minhas palavras, amar no meu peito, vós, os fariseus, os saduceus, os escribas, os ricos, os sacerdotes, os príncipes! vinde vós, pois, os humildes, os repelidos, os lapidados, os enfermos, os cul­pados, todos os que eles repelem. todos os que eles amaldiçoam! Desgraçados de vós, ó ricos, que estais saciados, porque tereis fome, desgraçados de vós que rides, porque vos desfareis em lágrimas!

Boas palavras que eu amo, eu, que conheço as ricas exis­tências sacerdotais. Os nossos profetas já tinham, contra o rico ímpio e duro, cóleras terríveis em vingança do pobre que é doce e piedoso. Ora o Rabi feria assim violentamente todo o judaísmo sacerdotal do Templo, porque fazia dos que ele des­preza e domina os preferidos, os bem-amados do esposo, os amigos de Deus! Que significa na verdade que o fariseu não queira comer com o samaritano e com o pobre recebedor do imposto? Que quer dizer que os levitas de Caifa vão lavar à piscina os seus vestidos, se à entrada do santuário tocaram num mendigo ou num publicano?

Mas Jesus, na imortal ascensão a que obrigava as almas para o ideal divino, já não somente chamava a si o deserdado, mas chamava o culpado.

– O culpado é infeliz – dizia – merece por isso. Mais que o justo, o calor do meu seio. O filho pródigo merece mais amor do que o filho cuidadoso, porque é triste na sua alma, e todo em lágrimas.

– Havia uma mulher aqui – dizia-me o homem bom de Chorazim que me explicava estas coisas imortais – que era repelida, mal vista, amaldiçoada; as mães honestas não a que­riam ver: só os escribas da sinagoga se aproximavam dela, mas de noite, sob as figueiras do cemitério, porque de dia, se a viam, tapavam a cara com a túnica; e resmungavam maldições. Esta mulher ouviu Jesus, sentiu-se inesperadamente perdoada, viu-se solta da fatalidade por aquela palavra piedosa, e pela fé purificou-se. É Maria de Cleofas. Segue Jesus, serve-o: quanto mais se humilha, mais o ama, e quanto mais se sente amante, mais se sente perdoada.

Os pobres galileus, que nunca tinham ouvido uma tão doce e elevada palavra, julgavam-se já no Paraíso imortal. Ele ia seguido dos seus, confundido com todas as alegrias, aparecendo nas bodas, e nas noites de noivados misturando-se às danças, com a sua lâmpada na mão; caminhava pelos campos a pé, dizendo as boas palavras, ou montado num pequeno burro, que os discípulos cobriam com as túnicas; às vezes ajudava a ceifar, ou, assentando-se ao pé da fonte, falava às mulheres, escutava os cantares; entrava nos casais, nos hortos; as crian­ças vinham, vinham as mulheres: «Rabi, Rabi, diz-nos a boa nova: és tu o Messias?» Limpavam-lhe os pés, iam buscar os melhores frutos, os vinhos de Safe, os legumes que nadam em azeite; as mães mostravam-lhe os filhos de peito que com as suas pequeninas mãos vermelhas e gordas lhe puxavam as barbas: ele ria, agasalhava-os; quando ele passava atiravam-lhe ramagens, desejavam-lhe o bom caminho; os doentes vinham tocar as suas mãos, as viúvas limpavam as suas lágrimas: ele falava de Deus, endireitava as canas de milho caídas no cami­nho. Vinham das aldeias e diziam-lhe:

– Mestre, tu és bom.

– Bom só é Deus – dizia ele, sorrindo.

– Mestre, que havemos de fazer para entrar no Paraíso?

– Amai os outros, dai aos pobres, segui-me.

E seguiam-no todos, enlevados naquele sonho ideal, o mais belo, o mais doce, o mais acima da terra que até hoje tem feito o homem.

Então o céu, amigo e compassivo, tocou na lacrimosa terra; então pela primeira vez o olhar do pobre foi seguro e con­fiado; pela primeira vez o estreito sorriso do velho conteve a esperança!

 

VI

 

Mal sei dizer o que o meu pobre espírito, educado na antiga lição do cativeiro, sentia ao suave calor humano e feliz daquelas palavras.

Voltei a Jerusalém: passei sobre o Tabor, donde se vê a larga planície de Esdrelon, amada dos heróis, o branco Hermon, Endor, e as montanhas de Galaad: descansei em Djeneia, a cidade dos Levitas, toda escondida entre oliveiras e palmeiras, depois em Detem, onde José foi vendido por seus irmãos; depois na velha Betúlia, pátria da forte Judite: vi Shomeron, que foi uma das mais velhas cidades de Israel, hoje caída, coberta com muralhas e bastiões de Herodes: Siquém, junto da qual Abraão ergueu a sua tenda, debaixo dos carvalhos de Mora: Siloeh, onde se fez a partilha do território entre as tribos, e onde pousou pela primeira vez o tabernáculo, depois da conquista de Canaã.

Depois desviei-me para os lados de Jericó, que estava então cheio de selvas e de rosas: junto ao Jordão andavam ainda alguns discípulos de João, cheios de saudade e de desejo: atra­vessei as lúgubres colinas de Judá, asilo de profetas, túmulo dos heróis: uma madrugada entrei, só, em Jerusalém.

Nesse dia logo subi ao Templo. Junto dos pórticos exterio­res, onde trabalhavam ainda cinzeladores de Cesareia, pedrei­ros de Samaria, vi, entre homens da Galileia, a alta figura de Jesus de Nazaré. Estavam parados, esperando: um homem de Karioth, chamado Judas, curvado diante de um cambiador de moeda, trocava dracmas, atento. Parei, comovido, a olhar profundamente o Rabi. Ele estava triste: os braços caídos, sem vontade, sem gesto; a cabeça desanimada. Tinha nas feições finas, delicadas, pessoais, uma abstracção, uma transcendente serenidade. Os olhos cheios de infinito, que pareciam olhar do uru lugar inacessível, a testa larga, expressiva como a imobili­dade de um céu, assemelhavam-se, superficialmente, como o corpo se assemelha à sombra – aos olhos, à testa de Hillel, de jesus de Sirac e de um outro, que era como eles dado às contemplações, à abstracção, ao ideal. A boca tinha uma forma tão pura, tão leve, uma imobilidade tão penetrada de graça, que parecia que dela só deviam soltar-se ironias aladas: mas o forte contorno dos lábios, a linha que era como um arco em descanso, tinham uma gravidade, uma beleza austera, que denunciavam a origem das palavras elevadas, e faziam sentir o profeta, Parecia-me ver-lhe, na parte inferior do rosto, uma firmeza, uma expressão de energia, que o tornavam um pouco semelhante a Judas Galaunete, o poderoso agitador, em quem a acção era como um sangue vivo. De resto, um ar simples.

Ele olhava os trabalhos dos pórticos, com um desdém sereno. Nos galileus sentia-se o constrangimento, o isolamento.

Entrei no santuário: nas câmaras dos serviços dois escri­bas argumentavam junto da arca do tesouro, com exclamações abundantes. Interroguei-os; disseram-me que o Rabi de Galileia muitas vezes pregara no Templo; que curara alguns doentes dos que se lamentam nas galerias da piscina probática; que argu­mentara com os escribas, e que em casa de Hanan, na sala do banho, Gamaliel dissera do Rabi:

– Ele é bom e justo; mas não diz coisas novas.

Argumentava-se muito sobre aquela palavra contida e des­denhosa do sábio Gamaliel, entre os privados de Hanan.

– Mas Gamaliel – dizia soberbamente o escriba – é um homem alheio a nós; entretém relações com essa gente da escola de Alexandria; viaja demoradamente em Siquém onde estão os heréticos, e em Cesareia onde estão os romanos, e dá-se à cultura helénica, desprezando a Lei.

– Homem – disse eu – em que despreza Gamaliel a Lei, estudando e sabendo as letras gregas?

O escriba riu finamente, como em triunfo:

– Pois não diz o Texto – e a sua voz era compassada e enfática – «Estudarás a Lei de noite e de dia, e se assim não fizeres desagradarás ao Eterno?» Ora – e traçava amplamente a capa, tossindo, vitorioso – ora Gamaliel só não desagradará ao Eterno se estudar a sabedoria grega num tempo que não seja nem a noite nem o dia.

O outro escriba, que era Eliel, de Efraim, aprovou ruido­samente, batendo no peito. E sob a sombra pesada do velário saudaram-se, risonhos.

Saí das câmaras levíticas, à hora sétima, quando há nos terraços do Templo uma vida poderosa. Uns argumentavam, ou estudavam a Lei, com as folhas de metal diante de si, em movimentos rítmicos; outros vinham comprar ofertas de pom­bas e cordeiros: alguns consultavam sobre questões agrárias; muitos vinham trocar moedas; os serventes do Templo passa­vam com as reses a levá-las às piscinas; tocavam as trompas que anunciavam a hora dos sacrifícios; os doentes cantavam os salmos; as mulheres levíticas lavavam as vestes brancas nos tanques exteriores, espertavam as fogueiras purificadoras, ou giravam em volta das primeiras colunas, batendo em discos de metal.

Eu entrei na Galeria de Salomão. toda sonora de vozes. Jesus, cercado de galileus, tinha ensinado. Alguns gritavam: «Hosana, ao filho de David!» porque os pobres, os doentes e as crianças, vendo que ele era entre os homens o melhor, o mais terno, o mais consolador, chamavam-lhe o filho de David; os escribas riam; bocejavam desdenhosos. Alguns fariseus, tomados de exaltação, queriam a convocação do Sanedrim. Um velho herodiano, com gestos desolados, lamentava a deca­dência da escola profética de Israel.

– É um ignorante – diziam, com desprezo, vastos dou­tores.

Ásperos, zelosos, com a cabeça envolvida na ponta do manto, as barbas eriçadas, insultavam-no. O povo, com o ruído de um arvoredo, falava do Mestre alguns velhos - diziam:

– Sim, sim, irmãos, este é um profeta!

– É o Cristo! É o Messias! – clamavam grandes vozes.

Muitos iam, correndo, prostrar-se diante da Porta da Arca. bradando:

– Graças, Senhor, o Messias chegou!

Os sacerdotes interrogavam, inquietos. Os homens espa­lhavam-se pelo Templo gritando:

– É o Messias, é o profeta da Galileia!

Os escribas andavam entre a multidão, explicando, con­vencendo:

– Que dizeis? Vós não conheceis a Lei?

– A Lei diz que o Messias virá, e que Elias ressuscitará!

–Calai-vos! – bradavam os escribas. – Sois também gali­leus? Não sabeis que a Escritura diz que o Messias há-de ser da geração de David? E não sabeis vós que este é o filho do car­pinteiro José, e de uma mulher da aldeia de Caná? Não vo-lo têm dito todos os que vêm de Nazaré?

– É verdade, é verdade – diziam alguns.

– E não sabeis – continuavam – que os Textos dizem que o Messias nascerá em Betlem, e onde nasceu este? Em Nazaré, bem o sabeis.

Uma voz, receosa mas irritada, disse:

– Pois ele nasceu em Betlem!

– Em Nazaré! – bradaram alguns escribas.

– Sim, sim, em Nazaré – disse à gente.

– É, pois, o Cristo? Ide, homens amaldiçoados, que andais afastados da Escritura!

Os do povo calavam-se, mas desciam rapidamente as lar­gas escadarias areadas, porque se dizia que Jesus estava curando e ensinando no Tyrepeon.

 

VII

 

Fui apressado ao Tyrepeon: Jesus tinha saído a Porta dos Rebanhos, atravessado o Cédron, subido a Betânia.

Quando eu voltava para Bezeta, veio a mim um homem muito conhecido em Jerusalém, que era Jesus Bar-Abbás. Era uma figura descamada, torta, arqueada, cheia de cicatrizes, imunda, rindo sempre, em farrapos. Era uma espécie de truão de Jerusalém. Tinha gracejos, farsas, deslocações: espancavam-no, ele ria, estendia uma ponta da túnica, para aparar os dracmas. Encontrava-se com a sua lâmpada em todos os noi­vados, gritando em todos os enterros, com uma pedra em todas as sedições, em todos os suplícios com uma cântara de posca, para vender aos soldados. Tinha todos os desastres da misé­ria, do vício, e era servil. Os soldados expedicionários espan­cavam-no, às vezes prendiam-no, mas o povo cobria-o com uma protecção avara. Era casado. Tinha uma voz vibrante, forte para cantar os salmos e imitava os profetas pregando. Cheirava miseravelmente a alho.

Jesus Bar-Abbás pediu-me um dracma, e disse-me que nessa noite Simeon, um rico do Sanedrim, tinha uma ceia para os oficiais do Templo e sacerdotes, fora das muralhas, em Betfagé.

Simeon amava as festas, tinha vivido em Roma, era soberbo; contava com o orgulho que fora amigo do gladiador Esterius.

Bar-Abbás fazia rir Simeon: comia com os seus servos, dormia nos seus átrios.

Nessa noite fui a casa de Hanan. Nos pátios, João aquecia-se ao lume, junto da velha de Cafarnaum.

Caifás e Gamaliel estavam com Hanan. Gamaliel dizia versos gregos: Hanan, repousado, com os olhos cerrados, grave, escutava; Caifás, aquilino, duro, áspero, tinha uma atitude des­denhosa. Dois escribas, encruzados no chão, comiam.

Quando o serão ia remoto, repentinamente Caifás man­dou-me a casa de Simeon. O Sanedrim devia reunir-se ao outro dia pela hora oitava: tinha havido exigências do legado impe­rial sobre os vasos do Templo.

Um escravo negro de Hanan seguia-me com uma lanterna; a noite era negra, quente, mole: ouviam-se apenas uivar os cães.

Em Betfagé, os servos de Simeon conduziram-me ao pomar onde era a ceia, sob um velário feito à moda grega, sus­penso às ramagens dos cedros. O chão estava coberto de areia vermelha, luzidia. Largas lâmpadas resplandeciam. Flores de Damasco, rosas de Jericó, jasmins de Chorazin, e as plantas fortes de Galaad, pendentes dos vasos negros da Perea como serpentes verdes, penetravam o ar da mole vitalidade que dão os aromas. No chão estavam ânforas, grossos cântaros envoltos em palha, jarros cinzelados. Os escravos frígios, com os longos cabelos reluzentes de óleo, giravam apressados.

Havia ali membros do Sanedrim, escribas, sacerdotes, hero­dianos, saduceus, fariseus. Todos eram zelosos devotos, amplos em sacrifícios, alguns costumavam cobrir-se de cinza. Estavam todos deitados em estrados, cobertos com lãs de Babilónia. Alguns eram gordos, fortes, vermelhos. Quase todos tinham a fisionomia áspera, adunca, eriçada de barbas. Reluziam cabe­ças calvas.

O vinho dourado, o vinho de Safed, um falerno de Cesa­reia, o massico dava uma ampla respiração aos peitos, uma feliz cintilação aos agudos olhos negros. Havia largas risadas. Fari­seus austeros, que se ferem nas pedras dos caminhos, curvados sobre os discos de aço brunido, devoravam com um ruído devoto. Outros tinham olhares ansiosos, e despercebidamente esvaziavam as largas taças de bronze. Alguns decrépitos, des­dentados, tinham sobre a barba fios de molho. Velhas mãos tré­mulas e lívidas levantaram as ânforas!

Alguns, estendidos sobre leitos como animais que rumi­nam, tinham as túnicas soltas, os braços nus. Cabeças enér­gicas, duras, mostravam uma expressão irritada, fixa, vazia; os velhos tinham largos risos cínicos. Uns dormiam, outro can­tava. Um velho curvado, frouxo, rouco, lembrava as mulheres, e os fariseus riam. Entre esta multidão sacerdotal havia um romano. Era Publius Sextus, lugar-tenente do legado imperial; falava com palavras abundantes, largos gestos. Era pálido, com uma pequena cabeça enérgica e voluntária; era devasso, servil, falso, luxuoso, e vinha de Cáprea. Era ali escutado como um profeta na antiga Israel; falava da Via Ápia, das festas de Roma.

Eu escutava, encostado a uma árvore, na escuridão, con­centrado e triste.

– Só em Roma se vive – dizia ele. – Isto é pior que o bairro das Esquílias. Não é por vós, Simeon, que tendes a escola do vosso amigo Ventidius, homem que sabe comer; mas, na verdade, que nos recebem aqui como Evandro recebeu Hér­cules, com farinha cozida e uma esteira espartana.

– Mas vós outros, os Romanos, sois glutões e amigos do vinho! – disse Nathaul, um escriba, homem invejoso, com lábios carnais.

Mas Publius falava de uma ceia em casa de Ático, antes de vir a Óstia embarcar com o legado da Síria.

– Quereis saber? – perguntava.

– Dizei, dizei – gritavam curiosamente pela mesa.

– O chão era de mosaicos gregos. Entre as colunas havia largos panos tecidos de aço, pesados, à moda de Cartago. Um vapor de água tépida penetrava os músculos, enlanguescia. Tínhamos esfregado os braços, o peito, com pedaços de pele de tigre humedecida de óleo. Os membros estavam ágeis, fáceis para as danças, para as escravas! Do tecto calam folhas de rosas húmidas!

Todos tinham olhos cintilantes; estendiam-se para escutar alguns estavam de pé, junto de Publius.

– O trinchador – dizia ele – o trinchador, meus ami­gos, era o próprio Tripherius! Tínhamos lebre, gazela, faisão de Lichtia, cabras da Getúlia, javalis, cordeiros de Tibur, que nunca tinham comido erva, e tartarugas delicadamente prepa­radas em molhos da Campânia, na própria concha, polida. transparente! Moreias do lago Lustrino, lagostas nadando no azeite de Venafre! As taças eram de âmbar. Que dizeis vós?

Os austeros doutores, os graves herodianos, os fariseus cevados, oleosos, com os beiços luzidios de molhos, a boca riscada de vinho, tinham um olhar ávido, guloso, ímpio, para as palavras de Publius.

Bar-Abbás, entre os escravos, tinha os olhos humedecidos pelo desejo. Todos admiravam,

O romano dizia o fim da ceia e as gaditanas que entra­vam, envoltas em tecidos diáfanos, correndo em coreias, em volta dos triclínios, e aspergiam a cabeça dos saciados com lilases molhados em falerno! – E falava das mulheres roma­nas do bairro de Suburra; e com uma voz branda, curvando-se:

– Que estas mulheres sírias – dizia – têm uns olhos escuros que valem centenares de sestércios.

Os outros riam. Falavam baixo, jovialmente, contavam, lembravam, desejavam.

– Estas mulheres são castas e cuidadosas, as romanas são devassas, e tudo ali terminará, como em Sodoma e Nínive!

Quem assim falava era um fariseu, Essen, homem magro, lívido, cavado de jejuns, com uns olhos tenebrosos, cheio de barba. Não comia, e parecia constrangido, isolado. Tinha vindo para amaldiçoar, para lembrar a morte, e o terror de Jeová!

– Devassas, dignas do fogo, para vós, devotos e zelosos! Mas belezas impecáveis, imortais, para quem pode desa­pertar a rede de ouro em que elas prendem o seio! São os seus costumes que as tornam desejadas, que as fazem mais ape­titosas que todas as farinhas molhadas em leite que elas põem na face, e que todos os unguentos de Poppea.

Publius falava, inflamado. descomposto: tinha gestos las­civos; bradava os nomes das damas romanas:

– Vede Laupella, uma patrícia! E Medulina! E Hillia, que se namorou do actor Urbius, e Hippra, que fugiu com o gla­diador Sérgio, e Hipulla, que em plenos jogos megalésios, diante do povo romano e das legiões, cuspiu na estátua do Pudor!

Uma larga risada sacudia os peitos. Bradavam:

– Contai, contai!

Enchiam as ânforas: arrepelavam os escravos. De bruços, sobre a mesa, com a cabeça apoiada nos braços, esperavam voltados para Publius, com olhos perturbados. Os velhos abriam largamente uma boca escura, sem dentes. Os olhos relu­ziam. Havia gritos. Um escriba da arca do tesouro gaguejava uma cantiga siciliana, com voz áspera, arrastada. O círculo de cabeças ávidas, duras, curiosas, destacava violentamente no escuro. Publius exclamava, com palavras tumultuosas: tinha a túnica clara manchada de vinho; tinha os braços nus. brancos, femininos: e com largos gestos.

– E Túcia, e Túcia – gritava – eu vi-a um dia no tea­tro, quando o actor Bactylo fazia com toda a sorte de lascí­vias o papel de Leda, torcer-se no seu lugar, arrancar a rede dos seus selos, e com os olhos mortalmente lânguidos chamar a altas vozes: «Bactylo, Bactylo, vem!»

Largas risadas. Alguns gritavam, imitando o romano:

– Bactylo, Bactylo!

Os velhos torciam-se nos seus triclínios, tomados de riso, de escândalo. Alguns escribas gritavam: «Viva Roma!» Os fariseus tinham olhos terríveis, uma atenção ávida. Um cor­tava violentamente o pau do estrado, mordendo os lábios!

Publius pedia falerno, folhas de louro, insultava a indo­lência dos escravos, queria lançar fogo ao velário e dizia:

– Quem conhece Cessénia? Ninguém conhece Cessénia? Cessénia tinha de dote seis milhões de sestércios. Casou com Sertório, o pobre, com a condição de poder escrever diante do marido os bilhetes aos amantes, e poder ir deitar-se uma vez cada mês, para quem entrar, no leito alugado de um lupanar de Suburra!

Os escribas riam, esvaziavam as taças, desafogavam o pescoço das túnicas pesadas, lançavam para longe as folhas de metal presas à cintura, onde está escrita a Lei. Um, ébrio, com os olhos riscados de sangue, pedia o culto de Baal.

Alguns sacerdotes tinham adormecido sobre os triclínios, curvados, enroscados, imóveis. Os fariseus torciam o braços, falavam de Tiro.

Publius clamava:

– Pois que há de melhor que ver uma patrícia, de longo penteado e saia curta, depois de estar cheia de ostras e lagostas irritantes, beber de um trago numa enorme taça o falerno con­sular, e vir, resvalando sobre o mosaico húmido de vinho, cair sobre o nosso peito, gritando em grego: «Minha alma, minha vida, ai!»

E Publius arqueava lascivamente os braços, deixando pen­der a cabeça, a garganta túmida de suspiros, arquejando!

Os escribas, os fariseus estavam cheios de delírio e de vinho. Riam animalmente. Soltavam grandes gritos. Alguns rolavam-se no chão: mordiam as almofadas dos triclínios. Der­ramavam o vinho sobre os vestidos, abraçavam os escravos, quebravam as taças, exaltados. Um jogava a luta com uma árvore, depois envolvia-a, beijava-a. Cantavam em grande voz os cantos do tempo de Salomão, dando-lhe expressões lascivas. Feriam a cabeça contra os grandes jarros cinzelados. Corriam, inflamados, como num mistério sagrado. Alguns gabavam-se de devassidões ocultas. Falavam de dinheiro, de banquetes, de mulheres, de prostituições sagradas no fundo dos bosques!

Publius gritava:

– Não sabeis, fariseus, não sabeis a aventura de Lentullus?

– Não, não! – bradavam alguns penetrados da alegria, do escândalo, de curiosidades inflamadas.

– Lentullus casa com uma virgem patrícia, neta de côn­sules: nove meses depois prepara, segundo o costume, para o filho que vai nascer, o berço de tartaruga, coberto de estofos e de ramos de loureiro, e expõe-no às boas palavras dos que pas­sam. Mas toda a nobreza da Via Ápia rompe em risadas. O filho de Lentullus era a imagem viva do bufão Euríalo, e tinha, como ele, três verrugas no queixo.

A risada fazia o ar sonoro. Publius, de pé, manchado, com a túnica rota, descomposto, gritava:

– Ouvi, ouvi!

Escutavam com um riso inquieto.

E Publius enfático:

– Os actores – dizia – os gladiadores, os bufões, os tocadores de flauta, os truões, são os pais de todas as crianças que nascem na nobreza romana!

Um velho fariseu, elevando sacerdotalmente uma ânfora, gritou com uma voz terrível:

– Vivam os truões!

A multidão sacerdotal bradava, uivava, cantava, rojava-se pelo chão. Era bestial e imundo.

Aquele ruído parecia-me triste como um cálice de pedra de sepulcros.

Bar-Abbás, espancado, cambaleava, blasfemando, imundo e jovial.

O vinho começava a domá-los, alguns escorregavam, calam, agitavam-se como agonizantes, e perdiam os espíritos num sono petrificado. Outros penetravam na espessura do pomar, buscando as frescuras da erva e da água. Uns falavam como num delírio grotesco. Dois escribas argumentavam, fre­néticos, hostis. Um forte e vasto fariseu, de bruços sobre a mesa, o olhar fixo, bestial, rosa monotonamente uma flor.

Simeon ressonava no seu estrado. Publius no chão húmido. Os escravos deitavam peles sobre os dormentes. Os lampadários extinguiam-se. Vinha um frio húmido. Cantavam os galos.

Eu atravessei o pomar, subi a um terraço.

Uma claridade assustada, abatida, aparecia. Eu via ainda reluzirem lâmpadas nos pequenos bazares que estão sob os cedros do Monte das Oliveiras. Ouvia-se o rumor grave do Cédron; por vezes o grito de um chacal. Via Betânia; ali Jesus dormia sereno, puro, impecável.

Voltei aos pórticos da casa, pela rua areada do pomar. Ali havia um rumor; os escravos, agitados, falavam. Alguns da milícia do Templo tinham encontrado, no Pórtico de David, nas lajes, uma mulher nos braços de um homem. Era uma adúltera; a milícia trazia-a a casa de Simeon, que naquela semana fazia a condenação dos desacatos ao Templo, em nome do Sanedrim. A milícia tinha sido diligente, apressada, minu­ciosa, porque a miserável era mulher de Bar-Abbás, e todos queriam ver as contorções joviais, o desgosto grotesco do truão! Mas Bar-Abbás estava prostrado, imóvel, enroscado, no chão.

Fui ao lugar do velário; os doutores, os fariseus acordavam; era já manhã azul; todos se erguiam, fatigados, sombrios, cala­dos, hostis; aconchegavam-se nos mantos, lívidos, tomados do frio; procuravam os cintos das túnicas, amarravam as franjas, apanhavam, limpavam as lâminas da Lei; sacudiam-se, pene­trados do orvalho. Queriam água clara, fria; os escravos tra­ziam largas conchas de jaspe; bebiam, mergulhando a cabeça; enchiam as taças; alguns iam estirar-se, de rastos, junto de um regato, e bebiam com a cabeça entre as ervas. Simeon, absorto, sonolento, bocejava.

– Vinde – dizia-lhe eu – tendes serviço; vieram uns da polícia, com uma miserável mulher.

Simeon, trémulo de frio, febril, encolhido no manto, cami­nhava, arrastando os coturnos, para o seu pátio civil. Fariseus, doutores, membros do Sanedrim, seguiam-no. O pátio era largo, em colunas. Uma lâmpada esmorecia. O cão acorrentado rosnava.

Os da milícia falavam, riam, partiam um pão escuro, bebiam em cântaros. A mulher, caída sobre o chio, rota, sono­lenta, imbecil, soluçava. A túnica aberta deixava ver a forma impecável do seio.

Simeon interrogava.

– Vem presa – dizia eu, com uma voz forte, que domi­nava, no silêncio – acharam-na à porta do Templo, no Pórtico de David. Vede-a. Estava em acto de adultério.

– Oh! – disseram todos, indignados.

E fariseus, escribas, sacerdotes, recuavam, escondiam a cabeça nos mantos, estendiam a mão espalmada, esconjurando:

– Lapidada, lapidada – disseram, irritados.

Alguns cuspiam-lhe sobre o seio. E saíam apressados,. erguendo os mantos, para que não tocassem o chão, impuro pelo contacto da mulher adúltera.

Essen afastou-se, e falou junto ao ouvido de Simeon.

– Sim, sim – disse Simeon; e voltando-se para os da milícia: – Esta mulher que seja aqui guardada até à hora sexta.

Eu saí. Os soldados romanos abriam, com estrondo metá­lico, as portas de Jerusalém. A multidão apressava-se: vinham os vendedores de legumes das hortas de Betfagé, da Betânia: os camponeses de Betel traziam os sacos de trigo: passavam solenemente as fileiras de camelos. Um beduíno de Idumeia conduzia rebanhos: as reses balavam. Do alto da Torre Antónia vinha um som de trompas: entravam velhos mercadores sen­tados em seus burros: um vidente clamava!

 

VIII

 

Eu ia triste: o amanhecer, a aparição espiritual da aurora, enche de melancolia depois das noites tomadas de vinho, fartas de carne. Demais nunca os tenebrosos devotos me tinham despertado, pelo seu artifício, tão altivos desprezos. Mal dormi, durante o resto da madrugada: à hora quarta, encaminhei-me, obscuro e inconsolado, para os meus mon6-tonos ofícios do Templo. Alguns dos fariseus, dos escribas que se tinham rajado nas relvas de Simeon já argumentavam, ajus­tavam reses para os sacrifícios.

O dia estava nublado, hostil ao homem. Eu afogava-me na melancolia: pensava nos prados da Galileia, nas águas do lago, nas espessas folhagens: Jerusalém, cidade de pedra escura e de negra intriga, pesava-me. Sentia-me desligado da vida sacer­dotal. E dizia: «Se eu fosse um pobre cultivador das vinhas de Safed, um semeador das planícies de Safed, um semeador das planícies de Saron!»

A multidão provincial enchia o Templo: havia o ruído de um mercado: a minha irritação crescia: percebia em volta de mim uma influência material, dura, mesquinha, sufocante! Ia-me encostar à balaustrada da Galeria de Salomão, olhava as verduras, as hortas, os cedros do Monte das Oliveiras: mas tinha de entrar nos santuários, de roçar pelos fariseus, escribas, por aquelas hierarquias sacerdotais que me amargavam. As colunas enormes e brancas, as portas esculpidas em bronze irrita­vam-me: invejava a erva que cresce junto às pedras dos mortos.

Aquela vida sem fé, sem dignidade, era-me tão odiosa como me seria odioso o meu corpo se ele se petrificasse, deixando-me a alma livre. Para qualquer lado que olhasse daquela organiza­ção sacerdotal, só via uma hipocrisia ou uma especulação, ou uma vaidade ou uma humilhação: os sacerdotes que se pros­tram à entrada do santuário, sustentado por dais levitas riso­nhos, no seu êxtase enfastiado; os argumentadores vãos, artificiais, vazios; os doentes que cantam os salmos, mendigam, riem, fazem a ostentação ruidosa das suas chagas, tudo me dava um tédio obscuro e atormentado. Sentia em mim cóleras de bárbaro: agradava-me a ideia de desprezar com um açoute aquele sacerdócio aviltado que vive do Templo, lhe compreende a vaidade e lhe aceita o lucro. Quantas vezes eu per­cebi o sorriso imperceptível dos sacerdotes sacrificadores diante da piedade simples e crente de pobres galileus e de provinciais ingénuos!

Invejava quase o Romano, o Grego, o mercador de Tiro, que não é de Jerusalém, nem do Templo, que não habita neste espaço duro, entre o Acra e o Moriah, cativos e gementes!

Que temos nós em Jerusalém de bom, de justo?

– Temos uma pátria? Não – E olhava a Torre Antónia, onde os expedicionários, com grande ruído, atiravam à barra.

– Temos uma religião, uma fé? Não – E via os sacrifi­cados vestindo os pertuais, para degolar a pomba da rocha sagrada, enfastiados, bocejando das noites mal dormidas na encosta de Sião ou na rua do Alto Mercado. no leito do cortesão de Cesareia!

– Temos nós uma ciência, uma lei elevada, forte, justa? Não! – E olhava aqueles estéreis, consumidos doutores, clamando contra uma palavra, e argumentando se os papiros devem ser enrolados ou dobrados para agradar ao Senhor!

Até a brancura do Templo, aquelas escadarias novas poli­das, aqueles frisos pálidos e nítidos, me faziam o efeito do quer que fosse que não tem alma, nem passado, nem legenda! Eu sentia que o ideal já não habitava Jerusalém!

Ambicionava ter a palavra de Isaías, a ciência de Gamaliel. a popularidade de Judas Galaunete, e à frente das multidões do Norte, Gaileus e Samaritanos, gente espontânea e forte, derrubar tudo na escura cidade, desde o pórtico onde ora o fariseu, até à ameia donde escarnece o Romano. Estes pensamentos enchiam-me, resultados da noite perturbada. ou de um estada elevado de consciência, ou enfim da reacção que em toda a alma honesta aparece um dia, contra o que ela julga, o erro ou a vaidade.

– Ah! Jesus de Nazaré – pensava eu – é o único homem que nos poderia salvar, ou como um Messias, ou como um Macabeu, ou como um simples, que tem a fé e a justiça! Mas terá ele a acção?

Aqueles braços consumidos de se erguerem em vão para o seu ideal terão o vigor de sustentar a velha espada da pátria Judeia? Será ele o homem humano, forte, duro? Ou o seu corpo é apenas o cárcere de uma alma melancólica e transcendente?

O Rabi de Nazaré tem popularidade na Galileia; as suas máximas largas, onde cabem o pecador e o pagão, chamar-lhe-ão a Samaria; a Perea é um país de profetas; o povo de Jerusalém sofre todos os dias a vexação de Roma; todo o país cultivado, que vai até Jopé, é infeliz, porque o tributo devora a seara. Poderá Jesus de Nazaré fazer este movimento popular?

Porque a ideia de uma pátria perseguia-me, como uma voz que pede socorro.

– Porque não? – dizia eu – eu surpreendi já nos seus olhos uma vontade dura: porque há-de ele ser apenas abstrac­ção, zomba, símbolo?

E pensava em falar a Jesus de Nazaré. Estas ideias alivia­ram-me, como inesperadas consolações.

O dia azulava-se, enchia-se de sol imortal. Eu sentia, junto aos pórticos, onde esperam as reses dos sacrifícios, o profundo mugir dos bois: tinha a sensação da Natureza verde, de tempos repousados, contentes.

O Templo estava cheio do rumor da multidão civil. Eu descia a larga escadaria para o Pátio da Balaustrada: vi Jesus de Nazaré junto do pórtico onde estão as inscrições latinas e gregas de entrada defesa, cercado de galileus, de povo. Os de Jerusalém começavam a atender às palavras de Jesus: ainda que penetrados da educação farisaica, e limitados num espírito estreito e hostil, achavam verdade, doçura, nas parábolas do Rabi da Galileia: era o povo do baixo mercado, dos arredores de Betânia, de Betfagé, do Monte das Oliveiras. Os mercadores, os ricos, mesmo os mais afastados dos zelos farisaicos, tinham para a palavra do Mestre o riso áspero, o desdém, ou a indi­ferença.

O Rabi de Nazaré estava triste. Sentia-se decerto Isolado, sufocado, naquele mundo hostil, argumentador. Jerusalém devia pesar à alma delicada e aspiradora do Mestre. Lamentava decerto os seus campos da Galileia. as solidões consteladas, os pomares de Chorazim. Naquela alma passava-se uma luta dolo­rosa entre a fé, a convicção que o retinham em Jerusalém, e os seus instintos todos suaves, idílicos, que, com vozes amantes, o estavam levando para os prados da Galileia! A sua vida até aí tinha sido larga, fácil como a sua túnica, toda penetrada do amor, da luz paradisíaca do reino de Deus.

Em Jerusalém a sua vida seria de luta, de intriga, de hosti­lidade, de desdém. E onde tinha tomado o doce Mestre do lago a energia, a resistente fibra, para esses dias amargos? Nos embalos da água, no ar doce das montanhas da Galileia, na leitura serena da sinagoga de Magdala, no amor humilde dos seus companheiros? O homem muito amado pode ser forte? A felicidade simpática, as intimidades femininas, a piedade dos velhos, podem dar a dureza, a altivez, a atitude indomável? Não, não: em presença daquelas poderosas hierarquias sacer­dotais, da hostilidade minuciosa dos escribas, das oposições farisaicas, da impassibilidade inimiga de Jerusalém, a sua alma acostumada a ser amada, rogada, devia fechar-se asperamente no seu ideal, como em uma concha. O receio da morte era, nele, decerto maior do que a repugnância que devia fazer à sua alma virginal o escárnio, a argumentação vingativa, o opróbrio. Viver sempre na Galileia, pregar o seu coração, dar-se em amor e em verdade aos infelizes mal-amados e transviados, ter a eterna serenidade do seu idílio social, que doce futuro, terno, purificado, coberto de luz!

E estava ele bem certo de convencer as almas, de converter as hostilidades? Como seria compreendida a sua palavra de amor, igualdade. perdão, pobreza., neste mundo todo egoísta, avaro, hierárquico, agonizador, político? Não ia ser repelido por um imenso desdém? Ele só pela sua palavra etérea, pela pro­messa do reino de Deus, como lutaria com estes sacerdotes que têm liteiras, milícias, escravos frígios, colunas de mármore grandes como torres, e um templo edificado como uma eter­nidade? E os seus olhos voltavam-se com amargura para as edi­ficações de Herodes, o Grande!

Os galileus tomaram, nas suas feições e perfil, da melan­colia do Mestre: eles, pobres camponeses ignorantes, sentiam-se esmagados no meio de tantos mármores do Templo, de tanta ciência de doutores, de tantas forças civis!

Jesus ia com passos casuais pelos terraços do Templo: os seus olhos tinham um vago inefável: os discípulos mostra­vam-lhe ou um sacrificador revestido, resplandecente, ou as altas colunas incrustadas de jaspe, ou as lâminas de ouro do santuário: ele olhava, infinitamente triste, com um desdém abatido.

Eu estudava junto dele o movimento provável, lógico, das suas ideias: mas um grande rumor encheu o Templo.

Jesus de Nazaré estava nos altos terraços, donde se domina todo o baixo recinto do Templo.

Pelos pátios, pelas escadarias, aproximava-se uma multidão cheia de vozes, de gritos penetrantes.

Adiante, entre alguns da milícia sacerdotal, armados de paus, couraçados de peles de búfalo, vinha uma mulher, arras­tada; escribas, fariseus, herodianos, inflamados de zelo, cheios das vinganças da lei, vinham em volta, com largos gestos de c6lera, ásperas imprecações. Os negros olhos irritados reluziam. A mulher a todo o passo caía, abatia-se, duramente espancada: tinha fortes cabelos negros desmanchados, os pés riscados de sangue, a túnica despedaçada, o rosto levemente aquilino, tomado de aflição.

A multidão dura clamava: todos corriam, curiosos: vinham os vendedores de pombas, os cambiadores de ouro: os escribas saíam do santuário vinham os pregoeiros, os demandistas, os que passeiam na rua com fardos, ou conduzindo gados; os doentes da piscina arrastavam-se, os coxos corriam com grandes deslocações nas suas muletas.

Todos interrogavam, queriam penetrar até aos soldados, aos fariseus, havia uma curiosidade bárbara: alguns subiam às balaustradas, e estendendo o manto sobre a cabeça, contra o pesado sol, olhavam avidamente: as aves de sacrifício assus­tadas esvoçavam, as reses balavam. Os sacerdotes revestidos à porta do santuário sobre a tripeça de bronze olhavam, inter­rogavam. A multidão enchia as escadarias e os pátios.

O Rabi de Nazaré estava no terraço, imóvel, sereno, cer­cado dos seus galileus: defronte dele havia um espaço batido do sol: os soldados pararam ali, e a mulher caiu sobre a pedra, sufocada, abandonada, torcendo os braços. Era alta, escultural, de fortes cabelos, com uma semelhança pagã.

Então, num grande silêncio, um escriba, que vinha, cami­nhou para Jesus, e com a voz austera, altiva, disse:

– Rabi, sabemos que és justo e verdadeiro; aqui está uma mulher que foi achada em adultério nos pórticos do Templo.

– Lapidada. lapidada – prorrompeu a multidão.

Erguiam-se braços com paus; apareciam rostos Inflamados; sentiam-se os gritos agudos, arrastados, das mulheres.

Jesus tinha o olhar abstracto; aos seus pés a mulher solu­çava. Os soldados riam.

O escriba falava, com gestos abundantes:

– Rabi – dizia – a lei de Moisés, a nossa lei, diz que a mulher adúltera deve ser lapidada; mas tu, que a comentas, explica a Lei; o que pensas tu, Rabi?

Jesus olhou o escriba, serenamente.

– O Rabi de Nazaré perdoa sempre esses pecados – gri­tou alguém entre a multidão.

Sentiram-se risos. Um velho, áspero, adunco, gritava:

– Ele vive com as mulheres possessas; ele vive com os publicanos!

E um fariseu bradou:

– É o Salomão das mulheres perdidas.

Toda a multidão riu largamente; mas o escriba mostrava o plilectério onde anda escrita a Lei, e exclamava:

– Ouve bem, Rabi, a lei de Moisés manda-a lapidar.

O povo cruel dizia num clamor:

– Lapidada, que seja lapidada!

Alguns fariseus gritavam:

– E o Rabi, e o Rabi de Nazaré!

Os sacerdotes, escandalizados, faziam ver os centuriões da milícia templária. A multidão era espessa; os mendigos apre­goavam posca; os vendedores de Betfagé mostravam pombas enfeitadas de escarlate; os doentes da piscina iam entre a gente, mostrando as chagas, dizendo os salmos, pedindo dracmas; da Torre Antónia cabeças de legionários espreitavam.

Então uma voz aguda, vibrante, amarga, gritou:

– Essa é a mulher de Jesus Bar-Abbás.

Uma risada sonora, pesada, tomou o povo os soldados apertavam as costelas; os sacerdotes, junto às portas da ara, riam nas suas longas barbas, fazendo oscilar as pesadas mitras cravejadas. Entretanto os fariseus iam entre os homens, con­tentes de riso, dizendo:

– Esse Rabi de Galileia quer que seja perdoada; é um homem impuro, que despreza a Lei.

Alguns queriam levar o Mestre diante do Sinédrio.

Mas na multidão havia uma oscilação; sentiam-se gritos, risadas joviais, vozes; o povo afastava-se; e de entre a sua escura espessura vinha empurrado, repelido, atirado, um homem.

E vozes alegres bradavam:

– Aí vai Jesus Bar-Abbás, aí vai!

O homem esfarrapado, absorto, assustado, veio estacar, olhando, nessa áspera inquietação, como um boi espantado, junto de Jesus.

Era Bar-Abbás.

Viu a mulher soluçando, caída sobre as largas lajes.

E olhava, com os olhos vibrantes, voltava-se, recuava, e tomando, com ambas as mãos, violentamente, uma ponta da túnica, estendeu-a para a multidão, gritando:

– Quem dá para o luto?

O povo ria; bradava:

– Lapidai-a, lapidai-a!

Bar-Abbás dizia:

– Lapidai-a, dai-me para o luto!

E ria, com grandes contorções, com visagens. A mulher chorava.

Havia um clamor; o povo pedia a lapidação; os fariseus, os escribas diziam que o Rabi queria o perdão, o desprezo da Lei.

– Fala, Rabi, fala – gritavam-lhe de entre a multidão. Mas Jesus olhava sereno, calado.

Então um escriba, erguendo os braços, convulso, com a voz mordente, colérica, bradou:

– Sim, sim, povo de Jerusalém, o Rabi de Galileia des­preza a Lei, quer o perdão da mulher adúltera.

Ergueu-se um clamor inimigo; alguns, zelosos, erguiam paus, pediam a morte.

Mas João, exaltado, tomando o braço ao escriba, bradou-lhe poderoso, irritado:

– Quem te disse que o Rabi de Nazaré perdoa à mulher adúltera? Ele manda lapidá-la.

Havia um silencio. E Jesus, adiantando-se, em toda a no­breza da sua estatura, para a multidão, com um olhar infla­mado de luz, disse:

– Sim, lapidai-a, e aquele de vós outros que se julgar sem pecado, que lhe atire a primeira pedra!

A sua voz era forte, côncava, misteriosa, assustava.

A imensa multidão estava calada, absorta; alguns rumores elevaram-se: os fariseus, os escribas afastavam-se, rosnando. Alguns velhos, choravam: vozes diziam: – o Messias, é o Messias! – Todos se dispersavam. Os largos pátios reluziam ao sol, quase desertos.

Eu afastei os soldados, soltei a mulher: os fariseus, em grupos irritados, concertavam, à porta do santuário, entre os centuriões da milícia templária.

Eu que tantas vezes assistira às lapidações de adúlteras, estava concentrado, absorto: aquela palavra, calda no meio da minha educação judaica, perturbava toda a organização do mundo interior que nos habita. Alegrava-me em ver, com uma palavra simples e genial. a hipocrisia de uma raça ferida na sua essência: tinha admirações Inesperadas pelo espírito harmo­nioso do Mestre da Galileia.

– Sim, sim – dizia eu – Jesus de Nazaré, pelo seu génio simples e justo. pela delicadeza penetrante da sua palavra, pelo seu ensino sobre a riqueza, sobre os pobres, sobre o perdão, sobre o culto, e pela influência poderosa do seu ser sobre os homens, está destinado, talvez, a ser a regeneração de Israel.

Se ele tem apenas o espírito, eu terei por ele a força. Ai de mim, ignorado. fraco, tímido, mais especulativo que activo, como poderia eu ser o homem decisivo de uma insurreição?

Mas o tédio da vida presente, uma mocidade ávida de acção, o desdém irreconciliável pelo Templo, e pela sua gente, o prestigio que em mim tinha a vida do agitador judas Galau­nete, tudo isso, e o desejo de me aproximar do Mestre da Galileia me levou a procurar Jogo, de Cafarnaum, e a pedir4he. sim­plesmente, rapidamente, que me levasse a Jesus de Nazaré. João disse-me que à noite estivesse junto à Porta dos Rebanhos; viria um homem que me diria esta palavra Shalon. que era a saudação usada do Rabi, que o seguisse. e pela noite alta falaria a Jesus.

Uma trémula inquietação me tomou até ao anoitecer: o contacto com aquele homem, a gravidade das Ideias que eu lhe levava, o perigo, tudo me tornava mais perfeito de sentidos, mais abundante de palavras, mais pronto de fé.

 

IX

 

À hora terceira da noite, eu descia por entre os pomares que têm a sua raiz na encosta onde assenta o bairro de Bezeta: era num horto, junto ao Monte das Oliveiras, que eu ia ver Jesus de Nazaré.

A noite estava cheia de um luar vivo, profundo: havia sombras suaves sob as largas ramagens: um silêncio doce ocupava a terra. Ouvi apenas um canto, triste, arrastado alguma pobre mulher embalava O filho, chorava o marido levado para as legiões de Roma.

O homem que me guiava abriu uma porta. estreita, de vime: entrei num espaço coberto por folhagem de cedro: sentia-se frescura de água. cheiro de plantas.

A Lua alumiava, defronte, um espaço aberto, areado, com um banco de pedra: aí, com os braços cruzados no regaço, a cabeça apoiada ao muro, o olhar afogado no espaço alumiado, estava Jesus.

Ergueu-se. lentamente, e disse:

– Paz.

– Paz e alegria. Rabi – disse eu. – Velavas?

– Velo sempre. Bem-aventurado o que vela! Ele é como o servo diligente, que espera acordado ó seu senhor que foi para as bodas: e mal o sente chegar, corre logo a abrir.

Jesus calou-se, perdendo o olhar no inefável espaço lu­minoso.

Eu aproximei-me, e com uma voz profunda. convencida, disse:

– Creio em ti, Mestre!

Jesus olhava, enlevado, transcendente.

Havia um silêncio; eu estava constrangido, e dizia para o chamar às nossas comuns imaginação:

– Rabi, o que é necessário, segundo pensas. para alcançar feliz a vida eterna?

Jesus pousou em mim, demoradamente. os seus olhos severos.

– Serves o Templo – disse – serves a Lei, e não conheces a Lei; a Lei que diz?

– A Lei – disse eu – ensina que amemos a Deus sobre tudo, e aos outros como a nós.

– E eu digo como a Lei.

E olhava-me, penetrantemente: falava como num sonho, ou a alguém invisível,

– Não se pode servir bem a dois amos: um deles se há-de desprezar, outro servir. Não se adora no mesmo coração a Deus e a Moloch.

Compreendi que o Rabi não tinha confiança em mim: que me julgava um emissário do Templo para lhe escutar a dou­trina, e dar testemunho Contra ele.

Respondi com uma dignidade dura:

– Tens para mim palavras desconfiadas, Rabi. Chama João. Ele sabe que creio em ti, e que não vou dar-vos testemu­nhos que o Sanedrim põe por trás das portas dos blasfema­dores da Lei. O meu corpo serve e vive no templo, mas muitas vezes o meu espírito tem andado contigo, em desejo e em verdade, no teu lago de Tiberíade. Chama João.

O Rabi considerava-me atento.

– O homem – disse ele – dá testemunho do homem: só Deus conhece os corações.

– Pois bem: tu, que segundo dizem, és hoje o maior vidente de Israel, tu julga, ou condena minha alma.

Dizia isto grave, firme, áspero. Jesus de Nazaré, com o rosto esclarecido, disse-me docemente:

– A fé salva.

E depois de um momento:

– E quem dizem então os de Jerusalém que eu sou?

– Uns, Mestre, dizem que és Elias, ou o Baptista ressus­citado, outros que és o Messias; os fariseus pensam que és um blasfemador ambicioso, ou um simples sincero, a maior parte ignora-te: esta é a verdade.

– E tu quem dizes que eu sou’

– Eu, digo que és um homem justo, e uma elevada cons­ciência das coisas divinas. Digo que és um homem mandado providencialmente, num tempo humilhado e vil, para erguer as almas, desmascarar as hipocrisias, vingar a pátria! Penso que se tens de ter uma acção no mundo, essa deve ser insurgires-te contra a aristocracia do Templo, contra este espírito estreito de Jerusalém, contra este culto pagão das tradições, contra o fariseu e contra o romano, ser o consolador, ser o vingador!

– Homem, em que espírito estás?! Eu vim a salvar as almas, e não a perdê-las.

– E é perdê-las. torná-las justas? É perdê-las, o combater este sacerdócio rico e indiferente, este culto ensanguentado e hipócrita? É perdê-las o quebrar-lhes este destino que as traz escravas, sempre choradas e sempre perdidas, e agora sob o arbítrio dos favoritos imbecis de Tibério?

– Essas coisas pequenas não me pertencem: são do mundo.

– Perdoa, Rabi: mas a que vieste então? E tu quem dizes que és, te pergunto eu agora? Queres ficar eternamente pre­gando e contemplando no lago de Tiberíade, e andar errante pelos casais? E pensas que isso influirá sobre os homens, tanto sequer como uma folha seca? Pensas fazer uma revolução na Judeia, acariciando as cabeças loiras das crianças de Chorazim, e contando parábolas, entre os campos, aos simples e às mulhe­res? Compreendo que a tua ambição não seja maior, e que te baste a felicidade de um sonho na fraternidade dos simples. Mas então para que vieste a Jerusalém? Para que pregas no Templo? Se tu não és uma iniciativa revolucionária, o que és então? Que és tu, se não és uma forte Intensidade de vontade? As máximas que tu pregas são de Hillel. são de Gamaliel, são de Jesus de Sirach: sei que há coisas novas no teu ensino, mas o que nelas há de grande é a tua força de convicção, e a tua fé, e a tua profunda virtude, e o teu amor do sacrifício, e a tua infinita vontade. De que te servem então estas qualidades, para que as guardas? Não és tu judeu? Não é a tua mãe de Caná? Não podia teu pai ser levado legionário para Roma? De que nos servem essas parábolas, essas ironias, essas respostas excelentes, se elas não vão ferir a riqueza do saduceu, a hipocrisia do escriba, a vexação do romano? Queres abster-te da acção? Imaginas que as prédicas do Templo e o ensino sobre as montanhas, só pela sua verdade abstracta, podem combater, vencer um mundo completo, organizado, civil, rico, amado? imaginas que se pode repetir o milagre das trompas de Jericó? Crês tu que um mundo inteiro, tribunais, templos, ofícios, mer­cados, sacerdócios, escolas, tudo fortemente ligado, se dissipe como uma visão, porque um homem simpático se ergue num caminho e diz: «Amai-vos uns aos outros, e sereis amados do vosso Pai celeste!» Não! tal não será, Rabi!

– Pela vossa incredulidade! que se tivésseis a fé tanto – eu sei? – como um grão de mostarda, e dissésseis àquele monte: passa-te daí!, o monte passaria! Oh! geração incrédula, geração incrédula, até quando estarei entre ti?

O Rabi dava largos passos, atormentado, doloroso.

– Rabi, Rabi, escuta-me. Eu tenho a tua fé, amo o teu reino de Deus. Mas o teu Deus consola muito em cima, e nós sofremos e choramos muito baixo na terra.

Jesus estava tomado de incerteza, de amargura. Eu dizia:

– Escuta, Rabi: consinto que só pela tua palavra, tu possas realizar o teu reino de Deus. Mas então deixa esses galileus simples, liga-te aos homens que têm a força, a ciência e o segredo das coisas humanas: nós seremos a acção, sê tu o nosso Messias na Judeia. nada se faz sem um profeta!

Como tens tu pensado realizar o teu reino de Deus?

Pela doçura e pela paciência. ou pela força e pela revolta? Não podes hesitar, se pensas. Queres fazer um renascimento, com os galileus que te cercam, com os publicanos infelizes, com os doentes que curas, com os miseráveis que consolas, com as mulheres que te amam, com as crianças que te sorriem?

– Deus esconde muitas coisas aos sábios, que revela às crianças.

– Para que pregas então no Templo, contra os fariseus e os príncipes?

– Deixa pelo espírito dos simples e crianças operar-se a regeneração!

– Na verdade, Rabi, dize-me: entendes tu que no mundo nada vale, e que só ø teu ideal pode dar felicidade e sossego?

Professas tu o desdém?

– Só o desdém dá a paz.

– Dá a inércia, o sacrifício e as virtudes passivas. E se amanhã tu pudesses começar a ver realizado no mundo esse reino dos pobres, dos simples dos pequenos? Se pelo menos visses uma terra bem preparada para a tua palavra? Se Visses tudo transformado por uma acção enérgica, revolucionária, pela nossa acção?

Jesus caminhava, inquieto, o seu olhar vibrava. As minhas palavras davam-lhe inesperadas perturbações.

Nós víamos o Templo luzir na branca polidez da pedra sob o Luar: eu dizia-lhe, profundo:

– Olha, vê o Templo, hoje ali tudo é intriga, artifício, aparato, riqueza, sangue, hipocrisia, vaidade: amanhã seria o lugar mais santo da Terra.

Jesus cobria o Templo com um vasto olhar, cheio da fulguração do seu desejo. Eu tinha-lhe tomado as mãos, dizia-lhe baixo, junto à face:

– Ouve: em Jerusalém há descontentes: alguns membros do Sanedrim estão irritados com a família de Elanan, com Beotos; Gamaliel não ama o Templo; o baixo povo do mercado detesta fariseus e escribas, é nosso; a Galileia é nossa, a Perea é nossa; mandar-se-ão emissários a Jopé: toda a Judeia se erguerá: tu serás o profeta. Queres? O teu sonho do lago de Tiberíade será então vivo, real, palpável, existente sob as nuvens! – Queres?

A noite era imortalmente bela: havia uma bondade no ar: o mundo parecia-me possuído de um elemento diverso.

Eu falava confusamente, ora contra os fariseus, ora contra os romanos: e não conhecia nem a força de Roma, nem o poder sacerdotal, nem a inércia de um povo egoísta. Uma grande tentação cativava o espírito do Mestre. Eu dizia-lhe, tomando-lhe as mãos:

– Rabi, Rabi, depois do fariseu, será a vez do romano. Tu serás o maior da Judeia: terás glorificado o pobre, terás humilhado o rico, terás aniquilado o hipócrita, terás expulso o romano: serás pela justiça igual a Ezequiel, pela força igual aos Macabeus: serás como David, terás a Palestina desde o Jordão até ao mar, e serás o rei de Israel.

Eu falava exaltado: mostrava-lhe Jerusalém e dizia-lhe:

– Terás a Palestina até ao mar, serás o rei de Israel!

Mas Jesus, erguendo a mão, mostrando-me com um gesto elevado e transcendente o céu cheio da Lua serena, o inefável silêncio, a pura beleza do elemento, o profundo mistério onde Deus habita, disse-me:

– Vai-te: o meu reino não é deste mundo.

Olhei longamente o Rabi, lamentei o seu desdém, sorri da sua palavra: e calado, concentrado, saí pelo caminho de Betfagé.

Uma claridade aparecia: os galos cantavam. No outro dia, pela hora da tarde, Jesus, seguido dos seus, subiu para a Galileia!

 

 

[1] Quando, em 1875, começou na Revista Ocidental a publi­cação de O Crime do Padre Amaro, Teixeira de Vasconcelos escreveu: «Nasceu na Gazeta de Portugal Eça de Queirós e assustou por diferentes vezes os espíritos serenos dos pacificas leitores dela. Não passaram sem observações nossas alguns dos seus realismos exagerados...» Jornal da Noite, 20 de Fevereiro, 1875, Lisboa.

[2] Veja-se Antero de Quental, «In Memoriam» Eça de Queirós, um Génio Que Era Um Santo», pp. 499-502; J. Batalha Reis, «Anos de Lisboa», idem, 442-445, Porto, 1896.

[3] Hoje, Rua do Diário de Notícias.

[4] In A Correspondência de Fradique Mendes.

[5] Veja-se a «Carta a Carlos Mayer».

[6] «Na Europa o Sul representa... a maneira de ser exterior, como o Norte representa o vago sentimento íntimo...» Eça de Queirós. «Da Pintura em Portugal», Gazeta de Portugal, 10 de Novembro de 1867.

[7] «...Nós... os que estamos neste canto da velha terra portuguesa, com a alma serena, sob o céu claro...» Eça de Queirós, «Sinfonia de Abertura», Gazeta de Portugal, 7 de Outubro, 1866.

[8] «Du Heine de deuxième qualité», Antera de Quental, «Carta a Wilhelm Storck», 14 de Maio, 1887.

[9] Há como se sabe muitas poesias de Heine em verso solto: «Das Nordsee»; etc.

[10] Colégio do Roeder, na Rua do Prior, Lisboa.

[11] H. Heine, «Reisebilder». «Les nuits florenthines», II, pp. 316 e 330 (cito a tradução francesa que Eça de Queirós conheceu); H. Ber­lioz, «Les Soirées de l’Orchestre» – 16ª, «Paganini», pp. 218-219, 2ª ed., Paris, 1854. Depois de contar o episódio que realmente nada tem de fantástico, Berlioz escreve: «Supposez Théodore Hoffmann à ma place: quelle touchante et fantastique élégie il eût ecrit sur ce bizarre inci­dent.» (P. 219.) Foi o que fez Eça de Queirós.

[12] Veja-se «Notas Marginais».

«Luzia um grande Sol, mas negro; o Sol da melancolia...) «Sinfonia de Abertura», Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.

 

«Un affreux soleil noir d’où rayonne la nuit!»

 

A expressão «Sol negro» é hoje, em pane, cientificamente verdadeira: os raios ultravioláceos da luz solar, podem chamar-se negros, e não são nem luminosos, nem quentes.

 

Vítor Hugo, «Les Contemplations, (ce qui dit tu bouche d’ombre).

[13] «La guitarre des monts d'Inspruck...» V. Hugo. «Légende des Siècles», Eviradnus.

[14] Veja-te «O Milhafre», «Misticismo Humorístico», no presente volume, e A Correspondência de Fradique Mendes, «Introdução», passim.

[15] «...Baudelaire, Poeta Retórico...» A. Z. (Eça de Queirós), «Leituras Modernas», Distrito de Évora, 6, Janeiro 1876, p. 2. A Corres­pondência de Fradique Mendes.

[16] Veja-se as quadras em «O Senhor Diabo», no presente volume. e Bernardim Ribeiro, Livro das Saudades, romance de Avalor: com as «Notas Marginais», no presente volume.

[17] Cujas poesias, muito conhecidas desde que foram compostas, só em 1875 apareceram coligidas em volume.

[18] «O Monge», destruída pelo autor e nunca publicada.

 

...aux voûtes gothiques

Des portiques.

Les vieux de pierre athlétiques

Priant tout bas pour les vivants!

 

  1. de Musset, «Prémières Poésies», Stances, 1828.

[19] Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.

[20] «Constelações, gotas de sombra», in «O Milhafre».

[21] Veja-se Vítor Hugo, «William Shakespeare»: principalmente, livre II, «Les Génies.», II. Veja-se também «Macbeth» no presente volume.

[22] Veja-se uma outra profunda definição de Música em «Macbeth», no presente volume.

«A Música deve ser a voz de tudo aquilo que ali está silencioso. sem ter a faculdade de se exprimir e nós termos a possibilidade de o compreender.»

É de notar que «Macbeth» reproduzido nas Prosas Bárbaras foi escrito em 1866. Entre os compositores de ópera mencionados nesse escrito de Eça de Queirós, não se acha citado o Ricardo Wagner, cujas óperas, «Tanhauser» (1845) e «Lohengrin» (1850), já existiam. É que essas obras não tinham ainda sido executadas em Lisboa.

[23] «Oh, egoísmo humano, os que vão morrer saúdam-te!» Eça de Queirós, «O Milhafre», «Introdução», Gazeta de Portugal, 6 de Outu­bro de 1867.

[24] «De l’Allemagne». «Les Dieux en Exil», IX partie, pp. 181-242. «La mer du Nord», «Les Dieux de la Grèce» (cito as traduções francesas que Eça de Queirós conheceu).

[25] «La Sorcière».

[26] Veja-se XIII de «Notas Marginais».

[27] As visões «são as atitudes fantásticas e desmanchadas que a sombra dá às verdades»: «Misticismo Humorístico», no presente volume.

«...à ceux qui ont mis leur foi dons les rêves comme dans les seulets réalités.» Edgar Allan Pöe, Eureka, trad. de Ch. Baudelaire que Eça de Queirós conheceu: «...to those who feel rather than to those think – to the dreamers and those who put faith in the dreams as in the only realities...» Edgar Allan Pöe, idem, II, p. 117. 1876, New York.

[28] Quando se deu, em Paris, o Hamlet com música de Ambroise Thomas, Augusto Machado leu-nos ao piano a partitura.

Há nela uma cantiga fantástica popular norueguesa que eu ouvi mais tarde a Cristina Neilson, que era escandinava, e impressionou francamente Eça de Queirós.

A poesia dessa canção é uma balada sobre assunto fantástico do Norte que então preocupava o espírito de Eça de Queirós.

Desde então ouvia-se cantarolar, a meia voz dolorosa e melodramática, como seguindo as suas visões: «Calme et blonde, dort dans l‘eau profonde la Willis, au regard du feu...»

[29] «Onfália Benoiton», Gazeta de Portugal, 15 de Dezembro de 1867.

[30] Os versos citados na Revista Moderna (20, Novembro 1897, p. 324) não são de Eça de Queirós. Nunca ele publicou na Revolução de Setembro, em folhetins – como também na Revista Moderna se afirma – os primeiros cantos de um poema, «A Tentação de S. Jerónimo». Existe, com efeito, de Eça de Queirós, mas inédito, um poemeto intitulado «A Morte de S. Jerónimo».

[31] Revolução de Setembro, 29 de Agosto de 1869.

[32] Depois conde de Resende.

[33] Oficial da marinha portuguesa, e desde 1881 cônsul-geral de Portugal nas ilhas Sandwich.

[34] Veja-se o tom em que Eça de Queirós fala dos seus escritos no Gazeta de Portugal, ao tempo da viagem ao Egipto, in A Corres­pondencia de Fradique Mendes.

[35] Uma revista francesa (Artiste) havia, em 1856, publicada alguns fragmentos desta obra cuja versão definitiva só apareceu em 1875.

[36] Nem o humorismo, nem a ironia, existem no espírito e na literatura portuguesa.

Camilo tem a graça, a chalaça, o sarcasmo. Não é irónico, nem humorista.

Queirós, sim: por isso é tão pouco português no estilo e nas formas do seu espírito, se bem que o seja nos assuntos dos seus romances de pois das Prosas Bárbaras.

A ironia, tão essencial e típica parte da sua personalidade, da sua estética, do seu estilo – de seu mestre, Reine – não aparece ainda então (no tempo das Prosas Bárbaras).

[37] Veja-se no presente volume.

[38] No texto da Gazeta de Portugal, «deslocados».

[39] De acordo com o texto da Gazeta de Portugal.

[40] No texto da Gazeta de Portugal, «ruínas».

[41] No texto da Gazeta de Notícias, «amo».

[42] Este tipo, felizmente, não existe em Portugal. Podemos aplaudir-nos desta inocência relativa. Existe sobretudo em Nova Iorque, Paris, Londres e Sampetersburgo. É o último resultado das civilizações violentas. Aqui está traçado arrebatadamente, à maneira das pinturas de Goya. No entanto existe, idiota e inofensivo, e sobretudo inofensivo.

[43] Este tipo infelizmente não existe em Portugal. Devemos lamentar esta inferioridade absoluta. Existe em Paris, em Berlim, na Itália, na Irlanda. É a última salvação das decadências. Aqui está traçado transparentemente. à maneira de Ary Scheffer. No entanto existe, sublime e criador – sobretudo criador.

[44] Este trabalho de Eça de Queirós, escrito por ocasião da sua viagem ao Egipto e à Palestina em 1869, foi publicado em 1870 na Revolução de Setembro, ficando, todavia, incompleto.

 

                                                                                 Eça de Queirós  

 

                      

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