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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PROTEU / Morris West
PROTEU / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PROTEU

 

Era um homem que viajava muito, sempre rodeado de conforto; portanto, tinha pouco da curiosidade do turista e muito da impaciência do executivo que precisa resolver seus negócios e seguir viagem.

No entanto, aquele Domingo de Páscoa em Roma era diferente. Era uma festa de família, um acontecimento tribal, em relação ao qual tudo o mais — os velhos esplendores da cidade, a massa de peregrinos, a missa papal na Basílica de São Pedro, até mesmo a proclamação do pontífice à cidade e ao mundo — era pano de fundo e panóplia. Era um dia ímpar em sua vida, quando lhe dava vontade de estofar o peito e gritar: "Olhem para mim! Olhem para John Spada, que hoje faz cinqüenta e cinco anos e está grato por todas as horas que viveu! Olhem para minha Anna, tão bela como no dia em que a conheci! Olhem para Teresa e o homem com quem se casou — um homem bravo, um homem bom, que me dará um neto para herdar o império Spada. Estou tão orgulhoso, tão feliz, que poderia abraçar todo este louco e maravilhoso mundo!"

Naturalmente, não disse nada disso. Era muito contido para fazê-lo. Mesmo ali, na terra de seus pais, era metade estrangeiro: John Spada de Nova York, presidente de uma empresa multinacional, um príncipe mercador em meio à velha nobreza e aos inquietos plebeus modernos daquela cidade de imperadores e papas. Mas Anna sabia, sem que ele o dissesse, como estava feliz. Ela se mantinha colada a ele, corada e excitada, enquanto abriam caminho através da mul­tidão na Praça de São Pedro, em direção ao beco atrás do Borgo Santo Spirito, onde o motorista do tio Andréa os esperava.

Teresa e Rodolfo avançavam na frente, e ele os olhava com orgulho e afeto. Ela era pequena e morena como a mãe. Ele, alto e magro, o herdeiro de uma velha família de fazen­deiros e criadores de cavalos dos pampas da Argentina. Era dez anos mais velho do que Teresa, o que Spada aprovava, porque um homem precisa construir sua carreira antes de sossegar e criar uma família. Rodolfo Vallenilla, aos trinta e oito anos, era um dos melhores editores de Buenos Aires; suas opiniões sobre a política sul-americana eram lidas com respeito em todo o mundo.

Era uma pequena tristeza para Spada, e constante mo­tivo de reclamação para Anna, que as famílias precisassem viver tão distanciadas, os mais velhos em Nova York, os mais moços na Argentina; mas — que diabo! — com aviões a jato, telefones e telex, a distância acabava sendo fator sem importância. Quando os filhos viessem, poderia providen­ciar-se um contato mais regular. Além disso, falando por si — e sempre em voz baixa quando Anna estava por perto —, preferia que Teresa se aperfeiçoasse um pouco mais como esposa antes de se tornar mãe. Não queria vê-la presa aos filhos cedo demais.

De qualquer forma, tudo isso pertencia ao futuro. Hoje era um dia cheio e bom. Iriam de carro almoçar com o tio Andréa na sua villa em Frascati, conversar sobre a família, os negócios e a política, modorrentamente, sob o quente sol da primavera. Isso era o que lhe fazia falta em Nova York: o senso de proporção, de continuidade, da desimportância, em última análise, de todos os assuntos que não os de famí­lia. Era difícil preocupar-se muito com os índices da Bolsa quando o caminho para o escritório era calçado com os ossos de legiões mortas.

Quando atravessavam o rio, Spada pediu ao motorista que seguisse pela Via Appia Antica até as Catacumbas de San Callisto e então dobrasse na direção da Via Ardeatina. Ro­dolfo precisava ver os escombros dos velhos monumentos fúnebres, e ele tinha um pequeno ato de devoção a realizar. Num prelúdio a esse ato, pediu ao motorista que parasse para que pudesse comprar um buquê de violetas de um vendedor na calçada. As flores eram pequenas, seu perfume, tênue e o preço que ele pagou, exorbitante. Teresa protestou, mas Anna tocou-lhe o braço, repreendendo-a com um sorriso.

— É o aniversário do papai. Hoje ele faz o que bem entende.

— E não faz sempre?

— No trabalho, pode ser — disse Anna, calmamente. — Em casa, as regras são outras.

— Acho que já ouvi isso antes — disse Rodolfo Val­lenilla, sorrindo. — Minha mãe costumava dizer a meu pai que ele era o melhor treinador de cavalos da Argentina, mas estava proibido de levar para dentro de casa os costumes dos estábulos.

— Hoje — disse John Spada — sou um santo. Con­fessei-me. Fui à missa. Recebi uma bênção do papa. Exijo ser tratado com respeito. . .   especialmente por mulheres casadas!

— Quem vai almoçar na casa do tio Andréa?

— Quem não vai? — havia um toque de malícia ro­mana na voz de Anna. — Ao saberem que seu pai vai, começam a arrebanhar os convidados. Haverá alguém do Quirinal, sempre um ou dois do Vaticano, Cario Magnoli, de Turim, certamente Fonseca, do Banco de Roma. . . Pode contar pelo menos uma dúzia, com as mulheres e as famílias também. Ah!. . . Já não dou mais para essas coisas.

— Então, descanse, Anna mia!

Spada afastou com um gesto as lamentações dela.

— Deixe sua filha carregar uma parte da carga. Como recém-casada, ela tem de começar a freqüentar o grupo das esposas.

— Eu poderia matá-lo com um sorriso, papai!

— Por quê? Você já dedicou tempo suficiente à sua carreira. Tem de fazer sua parte no clube das matronas. Hoje será um bom treino.

— Você fala como um chauvinista. Sou médica, não uma mexeriqueira.

— Mas, se quer ser uma médica bem-sucedida, precisa saber o que fazer à cabeceira dos doentes. A conversa fiada pode ajudar muito nessa parte.

— Rodo, você deveria estar defendendo sua esposa.

— Contra o grande John Spada? Sou editor, não um comandante de tanques.

— Vamos parar aqui.

Spada apontou pela janela para os portões negros que guardavam o sombrio encrave das Fosse Ardeatine, as caver­nas numa pedreira onde os alemães haviam metralhado tre­zentos reféns, em represália a um ataque de guerrilheiros na Via Rasella.

— Eu espero no carro — disse Anna Spada, encolhendo-se, com um arrepio, no canto do assento.

— Eu ficarei com a mamãe — disse Teresa.

Spada, levando o ramalhete de violetas, passou pelos portões com Rodolfo Vallenilla a seu lado. Explicou a Vallenilla o significado do monumento e depois o levou até a câmara pouco iluminada onde os trezentos sarcófagos esta­vam colocados em filas. Disse, em voz baixa:

— Eu estava na Itália quando aconteceu. Estávamos mourejando a caminho de Roma, através dos passos dos Abruzos. Eu não sabia então que o meu tio Eduardo, irmão de meu pai, era uma das vítimas. Quando entrei em contato com sua família e soube do acontecido, tive de escrever e contar a meu pai. . .   Partiu-lhe o coração. Antes de sua morte, prometi-lhe que, sempre que viesse a Roma, faria uma visita, por ele e por mim.

Colocou as violetas na tampa de pedra do sarcófago, e permaneceu imóvel por um longo momento, de cabeça baixa, em silenciosa reminiscência. Depois levantou os olhos, enca­rou o genro e disse, em tom sério:

— Tenho medo, Rodo. Sou um velho navegador e farejo o vento. Isto poderia acontecer de novo. Não exata­mente do mesmo jeito, mas pode acontecer, sim.

— Eu sei. — Vallenilla concordou com a cabeça. — E já começou.

— Tenho desejado falar com você. O tempo tem sido curto. . . e não quis estragar o passeio das mulheres.

— Nós realmente não nos conhecemos muito bem, não é, John?

— Gostaria de mudar isso, Rodo. Na próxima vez que eu for a Buenos Aires, vamos arranjar algum tempo a sós, hem?

— O prazer será meu.

— Eu sei que você não aprova inteiramente a minha pessoa, nem a maneira pela qual conduzo meus negócios...

— Sei que Teresa o ama muito. — Vallenilla estava estranhamente cerimonioso. — Tenho respeito por você, muito respeito. E isso é um bom começo. Entendê-lo deve vir depois. Aqui, neste lugar, eu compreendi um pouco mais.

— Você é um pensador — disse John Spada. — Eu ajo. Cavo o solo para extrair minerais. Faço coisas e vendo coisas. Negocio com dinheiro e produtos e fatos políticos. . . Quanto maior a escala, mais simples fica.

— Ou apenas parece simples? Como puxar o pino de uma granada. . . ou matar trezentos reféns com uma metra­lhadora?

— Talvez simples assim. Mas não me julgue depressa demais, Rodo. Vamos ser pacientes um com o outro, hem?

— Claro.

Vallenilla encolheu os ombros e sorriu:

— Feliz aniversário, sogro!

Pegou John Spada pelo braço e o levou de volta à luz do sol. Antes que chegassem aos portões, Spada parou mais uma vez e apontou para as bocas das cavernas, dentro das quais haviam sido encontrados os corpos das vítimas.

— Eu costumava sonhar com elas e com o que acon­teceu lá dentro. Mas, é curioso, eu nunca participava do que acontecia. Estava sempre de pé lá no alto, olhando para baixo. Via os caminhões alemães chegarem, os prisioneiros serem tirados para fora e empurrados para a entrada. Em seguida, eu estava aqui, neste lugar, olhando para dentro, vendo os soldados apontarem e dispararem, vendo as víti­mas caindo. . .   Nunca falava, nunca me movia. Ninguém jamais me via. E eu ainda estava aqui quando as cavernas eram tampadas e os alemães se iam embora. Sempre me sen­tia envergonhado, como se tivesse culpa pelo massacre. Há muito tempo que não tenho esse sonho.

— Então você exorcizou os seus demônios, fossem quais fossem?

Spada deu um meio sorriso e respondeu, quase sem pensar:

— Ou talvez tenha me acostumado a viver com eles.

— Eu também já vi isso acontecer — disse Vallenilla, subitamente tenso. Havia um traço de raiva em sua voz. — Não é nada bonito. É como. . . como crianças cegas brin­cando num matadouro.

Sua veemência espantou Spada. Olhou-o longamente, inquisidoramente, e disse, em tom controlado:

— Talvez devêssemos ter aquela conversa agora.

— Não há tempo. — Vallenilla falou com decisão: — Se improvisarmos a conversa, vamos acabar discutindo. Além disso, você não pode estragar a festa. Teresa e eu vamos pegar nosso avião amanhã de manhã. Eu lhe escreverei, tentando dar-lhe uma análise objetiva da situação e da parte que os Estados Unidos estão tendo nela. Se as coisas ficarem ruins, gostaria de usar o equipamento de telex dos escritó­rios Spada em Buenos Aires.

— Quando quiser. É tudo da família.

— Obrigado. Eu deveria. . . eu lhe sou grato. Havia um pedido de desculpas na ponta de sua língua, mas Spada o interrompeu com brusco bom humor.

— Nesta família, não é preciso ser bem-educado o tempo todo. Precisamos ir. As mulheres devem estar impa­cientes.

Quarenta minutos depois, eram recebidos com honras tribais na villa do tio Andréa, que, aos setenta e cinco anos, era reconhecidamente o patriarca do clã Spada, pai de dez filhos, avô de vinte e dois netos, ex-ministro da Justiça, ainda sócio do Clube de Caça, amante de orquídeas e belas mulheres. Era também um notável negociador, e a villa, escondida entre seus vinhedos e bosques de oliveiras, tinha sido o centro de muitas manobras clássicas entre esquerda e centro. No exercício daquele dia, a família era a peça bá­sica, uma sólida falange de velhas tias, jovens primos e seus filhos, devendo todos ser identificados, abraçados, cumpri­mentados, de forma a se sentirem amados e homenageados pelos parentes americanos. E o novo genro precisava ser apresentado e avaliado, quanto ao sangue, às maneiras e à virilidade, enquanto sua noiva era discretamente inspeciona­da em relação a sinais de gravidez. Spada e o tio Andréa assistiram ao ritual com expressões de satisfação levemente maliciosas. Finalmente o velho sorriu e balançou a cabeça em sinal de aprovação.

— Bom! Ele tem fogo nas entranhas e cérebro na ca­beça. Acho que você deveria estar feliz.

— Estou, tio. Estou também com medo.

— Dele?

— Por ele e por Teresa. O senhor está acompanhando o que tem acontecido na América do Sul?

— Eu acompanho tudo, Giovanni. Que horas são?

— Quase duas. Por quê?

— Achei melhor acabar com a parte familiar antes, e chamei nossos outros convidados para as duas e quinze. Almoçamos às três. Depois podemos ter nossa conversa na biblioteca.

— Quem vem?

— Magnoli, Frantisek, Fonseca. . . você conhece todos os nomes; mas desta vez há dois novos.

Hesitou um instante e depois acrescentou, como se pedisse desculpas:

— Os tempos mudam. Temos de mudar também. Um é Castagna, do PCI. Ele é muito chegado a Berlinguer.

— E o outro?

— Hugo von Kalbach.

— Por que ele?

— Porque é um dos grandes pensadores de nossa época. Está terminando uma obra importante, que ele chama Os fenômenos e a epidemiologia da violência. Acho que pode ter algo valioso para todos nós.

— E Castagna?

— Os comunistas conseguiram trinta e oito por cento dos votos nas últimas eleições. Temos de cooperar com eles para manter o país funcionando. Castagna é um cético, e teme os fanáticos... O que me faz lembrar. . .

Fez um gesto na direção de Vallenilla, que estava inves­tindo charme e paciência na mais idosa de todas as tias.

— . . .contou a ele?

— Ainda não.

— Confia nele?

— Confio.

— Traga-o, então. Logo saberemos que tipo de homem ele é. . . e se tem algo a nos ensinar.

Naquele momento, Anna se aproximou deles, sorridente mas resoluta.

— Vamos lá, vocês dois. Nada de cochichos antes do almoço! Juntem-se à raça humana! A família quer falar com você, John. E o senhor, tio, precisa salvar Rodo. Acho que ele já agüentou bastante.

Pegou ambos pelo braço e os forçou a descer com ela os degraus até o jardim, onde os criados serviam limonada às crianças e champanha aos mais velhos.

Quando Spada se aproximou, as mulheres convergiram em sua direção como camponeses cercando um mascate nu­ma praça do interior. Queriam notícias, e que aquele Spada que prosperara tão imensamente as notasse e lhes desse atenção. Queriam proteção para os seus jovens, uma garantia de apadrinhamento nos tempos ruins que, todas elas acredi­tavam, estavam se aproximando. Tia Lisa, com seus setenta e oito anos, marcada e enrugada como uma maçã de inverno, resumiu tudo, em seu áspero sotaque romano.

—   ... Eles agora têm listas de candidatos a seqüestro. Têm meninos em esquinas, esperando para atirar num ho­mem quando ele for comprar um jornal. . . Que diferença faz se são de esquerda ou direita? Dá tudo no mesmo. Des­crença, desordem, falta de confiança. Estamos de volta aos dias dos bandidos e dos condottieri! Eu sei; seu tio Andréa sabe. Já sobrevivemos a duas guerras e a todo o tempo dos fascistas. . . Todos os sinais apareceram de novo. Quase não agüentamos mais. . .

Spada rodeou seus magros ombros com um braço e tentou acalmá-la.

— Vamos, tia Lisa! As coisas não estão tão feias as­sim, nem a metade.

— Para você é fácil dizer! Você não vive aqui.

— Não, mas tenho grandes negócios aqui. Sei como o sistema funciona. Os extremistas fazem muito barulho; o governo fracassa; outro o substitui; mas sempre há pão e vinho sobre a mesa. É uma espécie de mágica, um truque de prestidigitação.

— Mas os espectadores estão fartos de truques de mágica. Estão saindo do teatro. Procuram outro tipo de espetáculo. Querem uma peça com um herói. . . e querem, depois, andar em ruas seguras. . .

Ela olhou para o grupo em volta.

— Esta é a nova geração. Pergunte-lhes o que estão pensando.

Spada sorriu e sacudiu a cabeça.

— Não antes do almoço! Não no dia do meu aniver­sário! Diga-me, o que acha do nosso Rodo?

As mulheres mais moças trocaram risadinhas e olhares. Tia Lisa soltou uma gargalhada forte, eqüina.

— Para um estrangeiro, nada mau! Mas você não vai domá-lo com muita facilidade.

— Não quero domá-lo. Quero um homem na minha família.

— Então esperemos que seja um bom reprodutor. . . e que a sua Teresa esteja interessada em criar uma família.

— Por que não estaria?

— Ora! Estas mulheres modernas, com suas carreiras e suas idéias de liberação. . .!

— Teresa é muito boa médica.

— Ela agora está casada. Tem um marido para cuidar. Ele não vai querer voltar para casa e encontrar uma mulher cansada, cheirando a iodo e éter! Eu já disse isso a ela.

— Tenho certeza de que ela vai se sair muito bem, tia Lisa.

— Ela precisa; a sua Anna não teve uma vida muito fácil com você.

— Já a ouviu queixar-se?

— Não. Mas você é um Spada. . . e eles se agüentam em forma mais tempo que a maioria dos homens!

— Você tem uma mente suja, tia Lisa!

— Isso também ajuda, meu filho.

Ela o afastou de si com um empurrão carinhoso.

— Os outros convidados estão chegando. Vá ficar com o seu tio Andréa!

O almoço foi servido no terraço ensolarado, onde tio Andréa, bom estrategista social, dispusera seus convidados, seis em cada mesa, de modo que a conversa pudesse fluir mais livre e intimamente, ao mesmo tempo poupando os de fora dos mexericos de família. Spada viu-se sentado com Hugo von Kalbach, Luigi Castagna, tia Lisa e duas das mais inteligentes esposas jovens, às quais o tio Andréa tinha pres­tado uma relutante homenagem.

— Não são as mais bonitas do lote, mas pelo menos não são tagarelas e conseguem ler palavras de três sílabas.

Von Kalbach era a figura mais impressionante do gru­po, um gigante encurvado com uma juba de cabelos brancos e um sorriso límpido e inocente como o de uma criança. Falava italiano com dificuldade, mas era um ouvinte ávido, atento a todas as minúcias da conversa. Castagna, o homem do PCI, era vinho de outra pipa, magro, moreno e saturnino, com um humor sereno e a lógica desembaraçada de um homem cujas premissas são todas nítidas e que conhece todas as regras do livro.

Antes mesmo que terminassem a pasta, tia Lisa come­çou a testar suas defesas:

— Florentino, hem?

— Por parte de mãe. Meu pai veio de Arezzo.

— E o que fazia seu pai?

— Ele trabalhava com pedra, signora. Especializou-se em lápides.

— E você?

— Fui promovido, signora. Dos epitáfios para os pan­fletos políticos.

— Talvez descubra que os epitáfios duram mais.

Castagna riu — uma gargalhada prolongada e alegre, surpreendente num homem tão contido. Spada sorriu e deu uma palmadinha na mão da anciã.

— Tenho certeza de que o seu não será escrito tão cedo, tia Lisa. Agora, comporte-se! Quando a revolução vier, precisará de todos os amigos que puder arranjar.

— Estou achando interessante — disse Von Kalbach, esforçando-se para ser espirituoso em seu italiano cuidadoso e correto. — Somos um grupo muito misturado: um grande capitalista americano, um deputado comunista, um bispo do Vaticano, um banqueiro, um fabricante de automóveis, um editor liberal, um filósofo falido. . . todos convidados de um democrata-cristão que vive como um príncipe.

— Andréa tem jeito para a comédia — disse tia Lisa, bruscamente.

— E talento para concessões razoáveis — disse Cas­tagna em voz neutra. — Precisamos disso nos dias de hoje.

— Concordo — disse Von Kalbach, subitamente ani­mado e eloqüente. — São os absolutistas que nos ameaçam agora. . . O terrorista que tenta inverter o sentido da his­tória com a explosão de uma bomba, o tirano que quer perpetuar o presente no qual ele floresce.

— Essa definição não é simples demais? — o tom de Castagna era enganadoramente suave. — Ela não ignora as organizações que patrocinam o terror, e as que fomentam a tirania em seu próprio benefício?

— Como o seu próprio partido, por exemplo? — inter­rompeu tia Lisa, que não se deixava silenciar facilmente.

A resposta de Castagna foi polida mas direta.

— Ou talvez as companhias Spada, que ajudaram a colocar Pinochet no poder no Chile e apoiam regimes seme­lhantes em outras partes.

Todos os olhos estavam em Spada, que se mantinha silencioso, digerindo a acusação e sabendo que também ele se submetia a um teste. Castagna era um homem esperto demais para cair na armadilha de uma discussão com uma astuta bruxa velha. E deveria ser esperto o bastante para evitar cilada igual. Pensou um pouco mais e então falou, calmamente: .

— Não será esse, em si mesmo, um julgamento absolutista? Nos negócios, convivemos com o que é; você se adapta ao que acontece. É como os velhos chefes de cara­vana. Eles tinham de fazer acordos com as tribos em suas rotas e pagar o tributo do rei às portas da cidade; de outra forma o comércio cessaria.

— Às vezes, também, eles pagavam aos conspiradores para arranjarem um novo rei... ou se juntavam aos homens do rei para lutar contra as tribos.

— Mas podemos nós, que não estávamos lá, fazer juízos realistas sobre eles?

— Um argumento interessante, meu amigo — Castag­na sorriu, com um gesto penitente. — Peço perdão pela minha grosseria. Talvez mais tarde possamos falar sobre o presente.

— Com prazer — disse Spada, que se voltou para Von Kalbach: — Tio Andréa me diz que o senhor escreveu um novo livro sobre os fenômenos da violência.

— Está quase pronto. — Curiosamente, o velho mestre parecia desanimado. — Não tenho certeza se sei como ter­miná-lo. . . ou mesmo se terei tempo para isso.

— Por que não, professor? — perguntou uma das moças.

— Bem. . . — Von Kalbach fez uma pausa, procuran­do construir a resposta em italiano. — Estamos todos fami­liarizados com os fenômenos, as coisas que acontecem: assassinatos, seqüestras, atentados a bomba, a violência praticada pela polícia, por agentes de segurança, por torturadores pro­fissionais. .. É a nossa reação que está em questão. Até onde vamos? Qual é a moral que se aplica?

— E qual é a sua resposta, professor? — perguntou John Spada.

— Não tenho resposta. — A voz do ancião era som­bria. — Para todo lado que me volto encontro-me num dilema. Posso, como cristão, escolher uma resistência passiva. Tenho o direito de ficar parado enquanto outro homem é brutalizado? Escrevi não uma resposta, mas uma charada: "Se ajo, torno-me um deles. Se não ajo, torno-me seu es­cravo".

— Acho que deve agir — disse tia Lisa com firmeza. — É seu direito e dever como homem!

— É mesmo, cara senhora? — E Von Kalbach a en­carou. — Então talvez eu devesse dizer-lhe que em meu próprio país estou na lista de execuções de um comando Baader-Meinhof, porque alegam que sou um instrumento dos reacionários. Na Rússia, um ilustre colega foi confinado num sanatório, reduzido por drogas a um estado vegetal, porque protestou contra o desrespeito aos direitos humanos em seu próprio país. Muito breve poderemos estar mortos, os dois. O que fará sobre isso, signora? Ou o senhor, Sr. Spada? Ou as jovens senhoras, o que ensinarão seus filhos a fazer?

— As senhoras não farão coisa alguma — disse Castagna, tranqüilamente. — Porque são indivíduos, impotentes ante as organizações. . . Spada não fará nada que possa pre­judicar sua influência ou seus lucros.

— E você, Castagna?

— Eu tenho sorte. — Havia mais do que um indício de autogozação na resposta: — Eu procuro uma diretriz do partido e faço o que me mandarem. É tão confortável quan­to ter um padre confessor.

— Gostaria de acreditar em você — Spada sorriu. — Acho que você sente tanta coceira quanto o resto de nós, e se coça com a mesma força. . . Deveria pedir à tia Lisa que lhe contasse a história do seu soldado desconhecido.

— Por favor? — Castagna parecia confuso.

Tia Lisa soltou outra vez sua gargalhada. Spada ex­plicou:

— Durante a retirada alemã, havia um destacamento das SS aquartelado aqui na villa. Um deles era um bêbado embrutecido que constantemente aterrorizava as mulheres da casa. Certa noite desapareceu e nunca mais foi visto. Existia um velho poço no fundo do vinhedo mais distante. Está tapado com tijolos hoje. E o homem ainda está lá dentro.

— Era muito fundo — disse tia Lisa. — E a fonte tinha secado, por isso não nos estávamos privando de água.

— E foi a signora quem o matou?

— Essa é a lenda — disse tia Lisa, placidamente. — Nunca me senti na obrigação de confirmá-la ou desmenti-la.

— Como vê. . . — John Spada acrescentou o comen­tário final — é   muito   difícil   prever como   as   pessoas agirão, ou decidir, depois, em que grau estavam certas ou erradas. Vamos mudar de assunto, não?

Quando a refeição terminou, Tio Andréa levou seus convidados especiais para a biblioteca. Um criado serviu café e licores e saiu. Tio Andréa fez uma breve comunicação informal:

— Para três dos senhores, esta é a primeira visita à minha casa. Como lhes disse particularmente antes do almo­ço, serão convidados a participar de um trabalho que está sendo realizado há algum tempo. Os senhores me deram sua palavra, como cavalheiros, de que, decidam ou não juntar-se a nós, manterão segredo sobre o que se passar aqui. É este o nosso acerto?

Vallenilla, Castagna e Von Kalbach assentiram. Tio Andréa fez um sinal para John Spada, que mexeu nos bol­sos, tirando um caderno de notas preto, encontrou a página que procurava e se dirigiu ao pequeno grupo.

— Alguns aqui sabem que os negócios que possuo hoje começaram nesta mesma sala, com uma reunião muito pare­cida com esta. Naquele dia, como agora, o tio Andréa era o anfitrião, Cario Magnoli estava aqui, e Freddie Fonseca. O Bispo Frantisek, não. . . ainda era pároco em Filadélfia. Eu? Eu era um garoto de Nova York, com uma cabeça cheia de idéias e quinhentos dólares no banco. Bem, o tio Andréa e seus amigos tiveram fé em mim e me ajudaram a construir o que temos hoje. . . E fizeram mais. No fim de tudo, deixaram-me livre. Por tudo isso, serei grato até o dia da minha morte. . .

Fez uma pausa e, com um gesto antiquado, tomou a mão do tio e apertou-a contra os lábios.

— Conte-lhes o resto — disse tio Andréa, enternecido.

— À medida que os negócios cresceram, descobri-me vítima da prisão que eu mesmo construíra. O sucesso ergue paredes à volta de um homem. Ele de tal forma se habitua a ler balanços e relatórios de negócios que perde de vista o homem que não tem sapatos, a mãe sem leite para seu filho. Mas há sempre uma absolvição automática para os seus pecados. Sem o seu capital, a fábrica não seria construí­da e não haveria trabalho para a força operária. Porque a fábrica está lá, ou a mina, o campo de petróleo, existem uma escola, um hospital, que de outra forma jamais seriam construídos. Porque ele é realista, consegue manter os polí­ticos cinqüenta por cento honestos e levar os banqueiros a se arriscarem em novos empreendimentos. Logo, as coisas não são inteiramente brancas ou inteiramente pretas como nos cartazes de propaganda. . . No entanto, algumas vezes, como no Chile, na Coréia, no Irã, companhias como a minha são prostitutas que dormem na cama do tirano e se aquecem ao sol sob a proteção de sua polícia. . . Mais uma vez, é fácil condenar a prostituta. Mas não é tão fácil apurar o que transforma uma mulher honesta numa meretriz... ou o que pode acontecer se ela decidir arrepender-se e ser virtuosa. . . Há muitos, além do seu companheiro de cama, que se bene­ficiam do que ela faz.

Ele riu e abriu os braços num gesto de rendição.

— Estão vendo? Mesmo aqui eu falo como um advo­gado de defesa! O que estou tentando dizer é que não pode­mos desmontar uma vasta empresa para resgatar a nossa própria consciência! O melhor que podemos fazer é usar o poder que ela nos dá para construir o que o tio Andréa um dia chamou de "pontes de benevolência", não apenas entre o rico e o necessitado, mas entre aqueles que, sem um me­diador, poderiam permanecer inimigos, entre amigos distan­ciados por questões protocolares, entre homens de boa von­tade separados por fronteiras ou ideologias. . . Este grupo é uma dessas pontes. Existem outros pelo mundo afora, no Irã, na Coréia e muitos outros lugares. Todos são secretos, todos identificados por um símbolo comum. . . Há três homens nesta sala que não conhecem o símbolo porque ainda não foram inteiramente iniciados. Antes que eu pros­siga tenho de lhes perguntar se desejam saber mais ou pre­ferem retirar-se sem um compromisso.

Houve um longo momento de silêncio, e então Rodolfo Vallenilla fez uma pergunta seca.

— Eu me casei com sua filha. Ainda assim, você me coloca, sem aviso prévio, no meio deste grupo. Por quê?

— Porque eu não controlo o grupo. Os membros de­vem aprová-lo, como devem aprovar tudo o que for pro­posto.

— Você financia os grupos?

— Apenas em parte. Outros membros contribuem de acordo com seus recursos. Em cada área, os fundos ficam sob controle coletivo local.

— O qual é exercido como?

— Pelo voto da maioria.

— Cada grupo, portanto, é autônomo?

— É.

— Cada membro é autônomo? O Bispo Frantisek, por exemplo. . . ele fala por si ou pelo Vaticano?

— Apenas por mim — disse Frantisek enfaticamente. — Comprometo-me a agir de acordo com minha própria consciência.

— Mas e se a votação der um resultado contra a sua consciência?                                             ]

— Abstenho-me de agir. Posso, inclusive, sair inteira­mente do grupo. Até agora não me senti obrigado a fazer nem uma coisa nem outra.

Luigi Castagna interferiu no diálogo.

— Estou aqui porque me sinto atraído pela idéia de que pontes de benevolência possam ser construídas. E me sentiria melhor se soubesse alguma coisa do que já foi feito.

Desta vez foi o tio Andréa que respondeu.

— Na semana passada, no Chile, quatro membros im­portantes do partido de Allende foram libertados e lhes per­mitiram deixar o país. Confirmou-se também que houve uma drástica redução dos poderes da DINA, o órgão de segurança. Meu sobrinho e alguns de seus colegas foram responsáveis por isso.

— Como?

— Recusando-se a endossar quaisquer novos emprés­timos bancários para o Chile até que isso fosse feito. Foi necessária uma árdua negociação junto aos diplomatas de Washington e os banqueiros de Nova York, mas no fim eles conseguiram o apoio de que precisavam.

— Ontem — disse Cario Magnolí —, o líder do Mo­vimento Cristão de Protesto da Coréia do Sul chegou a Tóquio. Nosso grupo em Seul tirou-o do país quando a po­lícia secreta do Presidente Park já se preparava para pegá-lo.

— Há três meses — Fonseca, o banqueiro, acrescentou o seu pós-escrito —, um conhecido editor sul-africano foi colocado em prisão domiciliar. Um dos nossos grupos o con­trabandeou para fora do país e o levou para a Inglaterra.

— Você poderia dizer que somos ladrões de corpos — disse Spada, sorrindo para o genro. — Ou poderia, se tiver gosto pela história, imaginar que somos pagadores de res­gates, como os homens-asnos da Idade Média, que dedica­vam suas vidas a libertar cativos dos mouros.

— Gostaria de saber — disse Castagna em voz baixa — quem lhes deu o mandato para essa tarefa.

— Eu o assumi — afirmou Spada, categoricamente. — Não precisei de um mandato para extrair cobre do solo, nem para iniciar programas de pesquisa de medicamentos. Por que precisaria de um para salvar uma vida ou devolver a um homem sua liberdade?

— Como fazem essas coisas? — insistiu Vallenilla.

— Usamos de todos os meios disponíveis: negociação diplomática, barganha comercial, suborno, chantagem, al­gumas vezes.. .

— Algumas vezes o quê?

— Digamos — disse Spada afavelmente — que neste tipo de exercício é preciso muita flexibilidade. O projeto lhe interessa, Rodo?

— Pode ser. — Vallenilla estava cauteloso e reservado. — No entanto, gostaria de saber mais. Por exemplo, vocês funcionam na Argentina ou no Brasil?

— Funcionamos.

— Nunca ouvi falar.

— É um elogio à nossa discrição. No entanto, precisamos de mais membros. É difícil encontrar bons, e é por isso que você foi convidado para esta reunião.

— Como escolhem as pessoas que decidem ajudar?

— Seus casos nos são recomendados. — Foi o tio Andréa quem respondeu. — O professor Von Kalbach, por exemplo, pediu-nos que examinemos o caso de seu colega, Lermontov, que está internado numa instituição psiquiátrica perto de Moscou. Estamos trabalhando nisso agora. Castagna quer nossa intervenção no caso de um estudante sob custódia da polícia em Milão, falsamente acusado de um atentado a bomba há seis meses.

Vallenilla estava silencioso. Spada puxou por ele, em voz baixa:

— É o mandato que o preocupa, não é?

— De certa forma, sim.

— Então pergunte a si próprio que mandato você tem para os editoriais que escreve, as reportagens que publica. . . Decerto você não o recebe de um governo ou de um partido.

— Não, é uma questão de consciência para mim.

— E você procura despertar a mesma consciência em seus leitores?

— É isso mesmo.

— Nós também — disse o tio Andréa. — Por que os nossos motivos seriam mais suspeitos que os seus?

Castagna deu uma risada seca e comentou em tom leve­mente irônico:

— Eu estou no mesmo dilema, meu amigo. É difícil acreditar que o capital tenha uma consciência social.

— Ou que a Igreja tenha horror à tirania — disse o Bispo Frantisek. — Todos carregamos às costas as culpas da história.

— E a vergonha do presente — disse Von Kalbach. — Os anarquistas que me ameaçam têm uma premissa muito simples: não há remédio para os males do nosso sistema a não ser a destruição total e um novo começo. Temos de levar em conta a possibilidade de protesto e reforma.

— Tenho mais uma pergunta para o meu sogro.

— Faça-a — disse John Spada.

— Neste. . . neste trabalho, você já matou alguém?

— Já. E mataria novamente.

— E o senhor, Bispo Frantisek, o que tem a dizer a isso?

— Nada — disse o bispo. — Nunca me deparei com a exigência do momento. Não posso dizer o que faria. John Spada nunca abriu sua consciência para mim. Não tenho nem os meios nem o direito de julgá-lo.

— Mas continua disposto a trabalhar a seu lado?

— Continuo.

— Eu, não — disse Rodolfo Vallenilla. — Lamento, John. Não posso juntar-me a assassinos.

— Respeito sua decisão — disse Spada. — Confio em que você respeitará o compromisso que assumiu nesta reunião.

— Precisava perguntar?

— Precisava — o tom de Spada era áspero. — Minha vida, nossas vidas, estão ameaçadas também!

— Nada têm a temer de mim — disse Rodolfo Valle­nilla. — Com licença, senhores!

Levantou-se, cumprimentou-os inclinando a cabeça for­malmente, e saiu da sala. A porta se fechou atrás dele com um ruído seco.

Houve um longo silêncio até que tio Andréa pergun­tasse, gentilmente:

— Isso era necessário, Giovanni?

— Era necessário — respondeu Spada, sério. — Ago­ra, Professor von Kalbach, qual a sua posição?

— Se posso ajudar, eu o farei — o velho mestre con­cordou calmamente. — Não me resta muito tempo. Não posso gastá-lo como uma criança numa gangorra.

— Você, Castagna?

— Dei os melhores anos de minha vida ao Partido. Não tenho mais certeza de que ele possua todas as respostas. Por isso, estou guardando um pouco de mim para mim mes­mo. Sim. . . contem comigo.

— Obrigado — disse John Spada. — Agora, deixem-me fazer um pequeno jogo com vocês.

Ele fez um desenho tosco no seu caderno de notas, arrancou a folha e mostrou-a aos outros:

— Este é o símbolo de nossa organização. Podem deci­frar seu significado?

O esboço era de um quadrado incompleto, contendo um peixe.

Castagna e von Kalbach estudaram-no por um bom tempo, mas se confessaram derrotados.

Spada explicou, com eloqüência inesperada:

— O traçado retangular é uma das mais antigas formas da letra "P". O peixe é apenas um peixe. O conjunto sim­boliza Proteu, deus do mar, pastor e guardião de todas as criaturas que habitam as profundezas: as focas, os golfinhos, as albacoras e as carpas miúdas dos baixios. Possêidon do­tou-o do conhecimento de todas as coisas, passadas, presen­tes e futuras, e lhe deu o poder de se transmudar à vontade em múltiplas formas: uma chama, um leão, uma flor, uma cobra, um javali fuçador. . .              

Ele fez uma pausa, sorrindo encabulado de sua própria retórica, e explicou:

— Estão percebendo a relevância do símbolo para o nosso trabalho? Somos guardiães daqueles que vivem em um meio alienígena, à margem das preocupações da huma­nidade. Temos à nossa disposição conhecimento e informa­ções de todos os cantos do mundo. Podemos assumir muitas identidades, muitas funções. . . Quando ameaçados, podemo-nos refugiar nas cavernas do oceano e emergir sob forma diferente. Se um peixe é capturado, há sempre outros para ocupar o seu lugar. No momento, eu sou Proteu, porque tenho meios para me deslocar e agir com mais liberdade do que a maioria dos nossos colaboradores. Mas, se alguma coisa acontecer a John Spada, outro homem assumirá o tí­tulo e as funções. Todos os nossos códigos são baseados em nomes de seres marinhos. Identificamo-nos uns aos outros com este desenho, que uma criança pode fazer.

— É um conceito interessante — disse Luigi Castagna.

— Acho-o mais comovente — disse Hugo von Kalbach. — Gostei da sua frase sobre aqueles que estão à margem das preocupações da humanidade. Quantos membros temos ao todo?

— Não perguntamos — disse tio Andréa. — Quando precisamos de colaboradores em outros países, entendemo-nos com Giovanni em Nova York. Ele providencia os con­tatos apropriados. É uma medida de segurança. . . baseada nas regras usuais dos serviços de informação.

— Mas ninguém tem uma lista completa?

— Essa lista existe — disse John Spada cautelosamen­te. — Eu sou a única pessoa que sabe onde está e o que contém. No caso de minha morte ou incapacidade, ela pas­sará para uma das duas pessoas encarregadas de prosseguir na tarefa.

— Interessante — disse Luigi Castagna secamente. — Para libertar os cativos, criamos uma ditadura.

— Existe um outro ponto de vista — disse Fonseca, o banqueiro. — John Spada foi o primeiro a colocar sua mão no arado, sozinho. Até agora ele abriu um sulco reto num terreno muito pedregoso. Nós aprendemos a confiar nele.

— Eu aprendo devagar — disse Luigi Castagna. — Espero que sejam pacientes comigo.

— Num mundo cão, a cautela compensa — Spada es­tendeu a mão para selar o pacto. — Agora, vamos trabalhar. Primeiro, professor, não sei se o senhor aceitaria um convite para ir a Nova York e. . .

Quando voltavam a Roma, no lento entardecer, Rodolfo Vallenilla estava silencioso e pensativo. Logo Teresa pergun­tou, no seu jeito direto:

— Alguma coisa aconteceu entre você e o papai hoje. O que foi?

— Um assunto particular — disse John Spada seca­mente. — Não é de sua conta.

— Falaremos sobre isso no hotel — disse Anna, fazendo um gesto na direção do motorista. — Aqui não é o lugar, nem a hora é esta.

— Rodo e eu partimos amanhã — insistiu Teresa. — Não queremos levar problemas de família conosco.

— Não há problemas — disse Vallenilla, enfático. — Seu pai me fez uma proposta. Eu recusei, como era de meu direito. O assunto está encerrado.

Spada fechou os olhos e descansou a cabeça no encosto.

— Uma das coisas mais difíceis no casamento é permi­tir que o outro tenha seus assuntos particulares. Desista, Teresa mia. Rodo e eu nos entendemos.

— Ele é que entende. — Vallenilla fez um esforço para parecer divertido. — Eu ainda estou tentando soletrar as palavras! Mas seu pai está certo. Desista, cara esposa!

— É o que mais detesto na Itália. Basta perguntar que horas são e tem-se uma conspiração nas mãos.

— Pergunte em Manhattan e a pessoa vai pensar que é um assalto — comentou Anna. — Gosto quando as coisas pequenas são importantes. . . Quando se tornam complica­das e de grandes proporções, puxo as cobertas por cima da cabeça e trato de dormir.

— Está certo, eu me rendo. — Teresa soltou um sus­piro de cansaço. — Serei uma boa esposa latina, submissa e insípida, deixando que os maravilhosos homens cuidem de seus grandes negócios.

— Mas isso é ótimo! — Spada assumiu uma expressão teatral de alívio. — Finalmente podemos relaxar, Anna, meu amor. Nossa filhinha tornou-se uma mulher!

— Vá para o inferno, papai!

— Com prazer, bambina. É onde se podem encontrar todas as moças bonitas.

O primeiro momento difícil passara, mas haveria mais um a enfrentar antes que o dia terminasse. Eram dez horas da noite. Anna e Spada haviam acabado de jantar e estavam se preparando para se deitar quando Vallenilla ligou de seu quarto e sugeriu um passeio, antes de se recolherem. Spada estava cansado como um burro de carga, mas concordou. Encontraram-se no saguão e foram caminhando lentamente pela Via Bissolati, na direção da Via Veneto.

Vallenilla disse bruscamente:

— Ofendeu-me terrivelmente hoje, John.

— Como assim?

— Eu lhe tinha dado a minha palavra de que guardaria o segredo. Entre cavalheiros, deveria ser suficiente.

— Chamou-me de assassino. Não foi um julgamento terrível?

— Tem razão. E peço desculpa.

— Não quis ofendê-lo quando pedi que confirmasse seu compromisso de silêncio. Lamento se o magoei, mas queria que se recordasse muito claramente daquele momento.

— Por quê?

— Já pensou o que pode acontecer quando voltar a Buenos Aires e continuar a escrever contra o governo?

— Tenho pensado nisso muitas vezes. Posso perfeita­mente desaparecer, como tantos outros.

— E isso representaria o quê?

— Eu seria morto. . .   o que não seria tão terrível assim. Ou seria preso e torturado. . . o que seria infinita­mente pior.

— E acabaria revelando tudo o que sabe.

— Inevitavelmente.

— Assim, tudo o que o ajudasse a resistir por mais um dia, por mais uma hora, seria um presente e não um insulto. Sim ou não?

— Sim.

— Era o que eu estava tentando fazer hoje: dar-lhe um momento para recordar.

— Não foi assim que encarei.

— Assim como também nunca havia pensado no que Frantisek chamou de "exigência do momento"... o momen­to em que se pode ter de optar por matar um homem.

— Tomei a decisão de me opor a toda e qualquer morte, a toda e qualquer violência. Tem de haver um fim para a vendeta social.

— É muito fácil. Pode hastear a bandeira branca. Ren­da-se. Pendure a sua harpa nas muralhas da Babilônia e comece a se lamentar.

— Sabe muito bem que isso não é solução.

— Pois então me diga qual é a sua solução, Rodo. O que devo fazer quando Teresa telefonar para dizer que você desapareceu?

— Vá a Buenos Aires e leve-a para sua casa.

— E o que devo responder quando ela se recusar a partir e suplicar que eu intervenha em seu favor? Até que ponto deverei ir? Em que momento deverei também parar de me render?

— Tem investimentos de oitenta milhões de dólares em Buenos Aires e quinhentos empregados, todos reféns do regime. Não pode expô-los ao perigo. . . Além do mais, é possível que jamais aconteça.

— E se acontecer?

— Não sei, não sei mesmo.

— Pois então é melhor chegar logo a uma conclusão! — Spada estava subitamente furioso, brutal mesmo. — Ao sentar-se à sua mesa e escrever um editorial, não é nenhum estudioso de cabelos brancos a destilar sabedoria para a pos­teridade. Está fabricando bombas-relógío, como qualquer maldito terrorista num quartinho miserável de Munique. E, assim como ele, tem um custo que deve levar em con­sideração, um efeito a medir, uma responsabilidade a assu­mir! Não estou querendo dizer que deve desistir de tudo e se afastar... muito ao contrário! Mas não deve também enganar-se, filho. Está empenhado num duelo com armas mortais. E por isso não se deve surpreender ao ver seu pró­prio sangue espalhado pelo chão. . .

— É um discurso e tanto — disse Vallenilla. — Eu até que gostaria de publicá-lo.

— Pode imprimi-lo na palma de sua mão. Leia-o todos os dias. Leia-o para sua esposa na cama.

— Tenho a impressão de que ela já o ouviu antes.

— Pelo amor de Deus! — A raiva de Spada se dissi­pou, tão subitamente quanto um fogo abafado. — Não va­mos discutir. Amo Teresa mais do que à minha própria vida. . . e quase tanto quanto à minha Anna. E acho que Teresa conseguiu encontrar um homem de bem. Mas tome cuidado, está bem? E se algum dia alguém o procurar e disser a palavra "Proteu" ou mostrar o desenho de um peixe num quadrado incompleto, dê toda a importância ao que ele tiver para falar. Combinado?

— Proteu e um peixe num quadrado incompleto. Não esquecerei. E obrigado por confiar em mim até esse ponto.

— Acabei de quebrar as regras. Mas precisa saber que confio em você, caso contrário acabaríamos por nos odiar­mos um ao outro.

— Obrigado por me dizer isso. Ajuda muito mais do que imagina. . . E gostaria de lhe falar algo mais.

— O que é?

— Conheci hoje outro homem em John Spada. A prin­cípio, não me agradou muito, porque sempre me senti afron­tado pelo exercício do poder sem qualquer disfarce. Com­preendo agora que às vezes sinto ciúmes do poder e por isso posso usar erroneamente o pouco de que disponho.

— O jogo do poder é como o golfe — disse John Spada, suavemente. — Exige prática. Cometem-se muitos erros. Aprendi a conviver com os meus. Mas não quero vê-lo morrer pelos seus.

— Farei um brinde a isso. Vamos tomar um conhaque antes de voltar.

De braços dados, ao estilo latino, encaminharam-se ra­pidamente para a Via Veneto. Era o máximo de intimidade que já haviam desfrutado um com o outro. Apesar de todas as suas apreensões, apesar de tudo o que sabia e temia, John Spada estava disposto a admitir que não havia sido um Dia de Páscoa dos piores.

 

Os dias terríveis começaram assim que Spada chegou a Nova York. E começaram, como sempre, com uma suces­são de pequenos aborrecimentos.

Anna estava cansada e irritadiça, lamuriando-se por causa da filha, que tinha de viver tão longe, e dos netos de que nem mesmo havia ainda qualquer expectativa, mas que seriam criados no meio de "uma família de broncos, no fim do mundo". Ficaram sobrevoando o Aeroporto Kennedy por uma hora, porque o tráfego aéreo estava atrasado. Um ins­petor da alfândega insistiu em abrir todas as malas de Anna, retendo-os por mais vinte minutos, enquanto preenchia me­ticulosamente um formulário para o pagamento de trinta dólares de excesso de peso. Ao deixarem a alfândega, tive­ram de ficar esperando por mais meia hora, porque um pneu da limusine de Spada furou na auto-estrada. Quando final­mente chegaram a casa, encontraram Carlos, o mordomo, de cama com um resfriado, enquanto a esposa dele estava em pânico porque a criada ainda não tinha voltado das compras.

Spada ergueu os braços em desespero, deixou Anna a enfrentar a crise doméstica, tomou um banho de chuveiro rápido e retirou-se para a paz relativa do seu gabinete. Mas não ficou em paz por muito tempo. Alguns minutos antes das cinco e meia, Kitty Cowan telefonou. A saudação dela foi um pouco mais jovial do que a ocasião parecia exigir.

— Seja bem-vindo à pátria, chefe! Como vai o último magnata?                       '   .

— Atordoado e amargurado.

— Lamento muito a confusão no aeroporto.

— E isso foi apenas uma parte! Deus me esqueceu hoje! Como estão as coisas aí no armazém?

— Ah. . .   — Spada quase pôde senti-la preparar-se para a explosão. — Como vai querer, Sr. Spada, meu pre­zado senhor? Puro ou com gelo?

— Pode ser puro, meu bem.

— Maury Feldman está aqui. É melhor deixar que ele fale. Posso varrer os destroços depois.

Os três sempre se falavam assim. Kitty Cowan era a ruiva de pernas compridas que datilografara as primeiras faturas para a "primeira empresa de Spada e era agora o "capitão da guarda" no topo da torre de vidro do Central Park. Maury Feldman, o advogado irrequieto e afável, que tocava piano como um mestre e colecionava quadros de pin­tores cinquecento, evoluíra de um escritório medíocre na Mott Street para uma das maiores firmas de advocacia das grandes corporações de Manhattan. Maury pegou o teleforie com um suspiro de cansaço.

— O dinheiro é muito bom, mas o horário de trabalho é terrível. . . e as notícias são ainda piores.

— Já ouvi a abertura, Maury. Agora, pode começar a cantar a ópera.

— Pois então prepare-se! — disse o advogado, jovial­mente. — Lembra-se daquele reator que construímos para a Central & Western?

— Claro.

— Houve uma rachadura na blindagem da pilha nú­mero 2. A situação pode se agravar. Tiramos Peters e Dubrowski de Detroit e mandamo-los para lá, a fim de cooperarem com a turma local e nos enviarem um relatório. Kitty está providenciando as cópias das especificações e dos certificados de aceitação. As melhores previsões indicam um risco não muito grande, protestos locais e uma publicidade incômoda. As piores são de danos de grande monta, risco amplo e um grande processo por negligência.

— Quer que eu vá até lá?

— De jeito nenhum! — Maury Feldman falou incisi­vamente. — Trate de ficar longe do caso. A companhia en­volvida é a Spada Nucleonics. A administração dela é que deve agüentar a carga. A companhia holding deve se manter a distância. Esse é o primeiro item. . .

— Deus do céu! Não me diga que há mais!

— E como!   Waxman telefonou do banco em San Diego. Há um desfalque de meio milhão de dólares.

— É uma cifra e tanto. Como aconteceu?

— Um contador estava manipulando o computador. . . e jogando nas mesas de Las Vegas. Neste momento, ele está se lamentando desesperadamente na sala de Waxman. O que devemos fazer?

— Meta-o na cadeia — respondeu Spada bruscamente.

— Waxman diz que o pobre-diabo tem uma esposa inválida e um filho excepcional.

— Vamos começar a ter agora música de violinos e sermões de misericórdia? Qual é a possibilidade de recupe­rar o dinheiro?

— Absolutamente nenhuma.

— Mande Waxman telefonar para minha casa depois que acabarmos de falar. Preciso de algum tempo para esfriar. Isso é tudo?

— Só mais duas coisinhas. Disse-me que tinha acer­tado o problema da greve na fábrica de Oxford, na Ingla­terra.

— E acertei. Os acordos já estavam sendo redigidos quando saí de lá.

— Pois agora eles estão de volta ao ponto zero. O governo diz que os acordos rompem as determinações para os ajustes salariais.

— Somos criticados por fazer e também o somos por não fazer? — explodiu Spada. — Enquanto isso, o nosso sangue vai se derramando pelo chão!

— Ponha sangue nisso, meu querido! Está em condi­ções de agüentar mais um pouco?

— Estou me sentindo como Prometeu, com os abutres a me bicarem o fígado.

— Carl Channing morreu enquanto você estava fora.

— Fui informado. E mandei um telegrama de condo­lências.

— O que ainda não sabe são os termos do testamento. A esposa fica com a metade dos bens. A outra metade, in­cluindo especificamente as ações da Spada, vira um fundo para o filho e a filha.

— E daí?

— E daí que   os   administradores   são   Hoffman   & Liebowitz.

— Essa não! E eu que pensava que Carl Channing era meu amigo!

— Você não poderia perceber, meu querido, mas a verdade é que Carl Channing era um homem extremamente invejoso — disse Feldman, calmamente. — E sempre teve a maior inveja de você.

— Isso significa que Hoffman & Liebowitz poderão votar em nossas assembléias.

— Pode contar com isso, Johnnyzinho. E eles não morrem de amores por você, desde que chamou Max Lie­bowitz de fanático míope. Com isso, você está agora a dois por cento da maioria acionária, com uma luta por procuração assomando no horizonte.

Spada ficou em silêncio por um longo momento. Feld­man tratou de induzi-lo a se manifestar:

— Ainda está ao telefone, John?

— Estou pensando. De quanto tempo dispomos até a próxima assembléia de acionistas?

— Três meses. Não é muita coisa.

— Sei disso. Vamos nos encontrar amanhã para dis­cutir a estratégia. Enquanto isso, vamos emitir ordens de compra para todas as ações que aparecerem no mercado.

— Eles estarão esperando por isso e vão querer ofere­cer mais.

— Quando isso acontecer, veremos até onde vai a co­ragem deles. . . Mas veja se agora me dá alguma boa notícia!

— Podemos comprar os Laboratórios Raymond.

— Quanto?

— Setenta por cento. . . incluindo as subsidiárias euro­péias.

— E quanto nos vai custar?

— Quinze dólares por ação.

— Condições?

— O velho se aposenta. O filho fica com um contrato de cinco anos para dirigir a divisão de pesquisa.

— Está barato demais. Qual é o caso?

— Eles estão com dificuldades de crédito. O velho está cansado, teve um enfarte. Quer passar o resto da vida pes­cando.

— E o filho?

— É um biólogo, pura e simplesmente. Detesta cuidar de negócios. Está interessado apenas em continuar a traba­lhar em pesquisa, com o lastro de um considerável investi­mento pessoal.

— É o que se pode chamar de um homem sensato — comentou John Spada, melancolicamente. — Provavelmente vai morrer feliz aos noventa anos, com o prêmio Nobel no bolso. Está certo, Maury, vamos comprar. Providencie tudo. Vamos nos encontrar amanhã de manhã, às dez horas.

— Vamos deixar para as dez e meia — disse Maury Feldman, jovialmente. — Tenho de me encontrar com um homem para tratar da compra de um quadro. Ele jura que é um Andréa del Sarto. Tenho a impressão de que não passa de um lixo qualquer, mas posso ter um golpe de sorte.

— Como arruma condições para esses pequenos luxos?

— Tenho alguns clientes generosos. E pagarei esse quadro com o dinheiro que vou ganhar na transação com Raymond.

— E ainda tem coragem de me confessar? Devolva o telefone a Kitty. Quero ditar alguns memorandos para ela.

— Eu estava me preparando para levá-la para jantar.

— Ela está na minha folha de pagamento. Trate de arrumar as suas mulheres por si mesmo.

— Eu amo você também, Johnnyzinho. Durma bem!

Kitty Cowan voltou ao telefone. Desta vez, mostrou-se submissa e solícita.

— Deixe-me cuidar do problema de San Diego, John.

— Qual é a sua sugestão?

— Não apresente qualquer acusação. . . pelo menos por enquanto. Waxman já arrancou uma confissão do con­tador. Deixe-o arrancar outro documento: um pedido volun­tário para tratamento psiquiátrico numa instituição reconhe­cida. E eu faria também com que Waxman continuasse a pagar o sustento da esposa e do filho, até que fique tudo devidamente esclarecido.

— Estou adorando a sugestão. — Spada conteve uma risada. — Perdemos meio milhão de dólares e respondemos com um tratamento psiquiátrico gratuito e o sustento da família do vilão.

— Não vai mesmo conseguir recuperar o dinheiro. Por que então não aproveita para obter alguma publicidade gra­tuita sobre o lado humano das Empresas Spada?

— E eu estava pensando que suas palavras eram ins­piradas por pura bondade humana!

— E é o que acontece. . . mas você é que entra com os instrumentos. O que me diz, chefe?

— Está certo. E agora tome nota. Emita ordens de compra para quaisquer ações da Spada que apareçam no mercado.   Providencie informações   pessoais   e   financeiras completas sobre Max Liebowitz, seus associados e sua fa­mília. Mande também um convite formal ao Professor Hugo von Kalbach para fazer o discurso de abertura de nossa reu­nião de executivos em Nova York, no próximo mês. Tele­fone para ele em Munique e acerte todas as providências para a viagem. Os honorários serão de quinze mil dólares. Verifique como e onde ele vai querer o pagamento. E, final­mente, quero uma relação atualizada dos acionistas da Spada em minha mesa pela manhã.

— E terei de providenciar também o diamante Hope e uma caixa de pedras da lua! Calma, chefe, calma! Aqui é Kitty, está lembrado? O impossível demora mais uma ou duas horas, mas no final sempre acabamos realizando-o. Mais alguma coisa?

— Quero, sim. Pergunte a Maury onde podemos en­contrar Henson e o Espantalho.

Houve um momento de pausa e depois Kitty indagou, abaixando a voz:

— Vai pescar?

— É possível. Divirta-se esta noite.

— E você não exagere nas coisas. Dê minhas lembran­ças a Anna.

— Ciao, Caterina!

— Shalom, John! Durma bem.

— Todo mundo está querendo que eu durma bem, mas põem espinhos na minha cama e pó-de-mico no meu pijama!

Muito tempo depois que Anna já estava adormecida e sonhando, John Spada ainda estava sentado em seu gabinete, desperto e tenso, tentando avaliar a nova ameaça que tinha pela frente. Uma grande corporação internacional era uma espécie de império, cuja estabilidade dependia de todos os tipos de tratados e alianças, alguns escritos, muitos não ratificados, mas todos baseados na confiança mútua, interesses partilhados, um equilíbrio precário de situações e persona­lidades. Cada expansão, cada novo empreendimento signifi­cava introdução de novos fundos, novos interesses, uma pressão a mais nas alianças originais. Amigos morriam. Ri­validades de família se intrometiam. Partidos perdiam o apoio dos eleitores. Rivais adquiriam novas forças. Velhas inimizades, há muito amortecidas, espocavam de repente como fogo numa pilha de serragem. Acionistas, sempre ávi­dos por mais lucros, tornavam-se inquietos e viravam presas fáceis para os embusteiros que prometiam tudo isso e o céu também.

John Spada conhecia — ou pensava que conhecia — todos os ardis do jogo. Ajudado por parentes e amigos na Europa, conseguira permanecer na sela por vinte e cinco anos, segurando as rédeas do poder com as duas mãos. Ago­ra, abruptamente, via-se em perigo, porque um homem que em vida não se teria atrevido a desafiá-lo estava agora escar­necendo dele além da sepultura.

Quando o banco de Carl Channing esteve em dificul­dades, Spada o sustentara com dinheiro e depois o comprara com ações das Empresas Spada. A transação transformara Channing de um banqueiro à beira da falência num homem extraordinariamente rico. Mas, ao que parecia, fazer um homem rico não era suficiente para torná-lo um amigo. Não era o favor que Channing havia recordado, mas sim a humi­lhação de ser obrigado a associar seu nome tradicional ao de um arrivista italiano de Roma. Por isso, ele se aliara a Max Liebowitz, que nos velhos tempos acusara as Empresas 'Spada de serem um empreendimento financeiramente irres­ponsável, provavelmente financiado por recursos da Máfia... e desde então vinha roendo as unhas de raiva.

Mesmo assim, a equação ainda não era inteiramente clara para Spada. Liebowitz poderia ganhar a luta por pro­curações na assembléia dos acionistas, mas ainda teria de propor uma administração superior à atual; e até aquele mo­mento, pelo menos, não havia nenhum candidato óbvio à vista. O homem certo teria de ser diplomata, financista, po­lítico, um administrador extraordinário. . . além de ter uma pitada de aventureiro. O próprio Spada, não tendo um filho, estava constantemente vasculhando o mercado à procura de um talento assim e verificando sempre que a escassez era muito grande.

Portanto, tudo indicava que ele teria algum espaço para manobrar, antes que a grande batalha fosse travada. Mas teria de aproveitar cada momento, testar cada aliado, ficar atento a qualquer possibilidade de deserção das fileiras dos seus partidários. A cautela se impunha também por outras razões. Era um homem levando uma vida dupla, ostensiva­mente como presidente das Empresas Spada, secretamente como Proteu, chefe de uma organização clandestina, envol­vida no jogo secreto e perigoso da política subterrânea.

Se transpirasse alguma coisa de suas atividades ocultas, ficaria irremediavelmente prejudicado aos olhos dos acionis­tas, que o encaravam como depositário de seus interesses financeiros, e jamais lhe dariam procuração para uma cru­zada particular. Ficariam felizes se ele instituísse uma fun­dação, criasse uma companhia de bale ou financiasse a pes­quisa do câncer; mas envolver-se em questões morais, em ativismo político. . . isso era inconcebível!

Mas ele, John Spada, tinha de pensar nisso todos os dias. Afinal, não se podia deixar de reagir quando o seu representante em Frankfurt telefonava para dizer: "A polí­cia acaba de me informar que estou numa lista da Baader-Meinhof. Preciso de guarda-costas para acompanharem meus filhos à escola, um sistema de alarme em minha casa e um carro à prova de balas para me levar à fábrica".

Assim como também era preciso dizer alguma coisa ao homem da SAVAC, quando ele comunicava: "Há cem técni­cos trabalhando em Teerã e alguns falam com muita liber­dade sobre a maneira como o xá dirige o país. De passagem, gostaríamos de pedir-lhe que substituísse Baraheni como ge­rente local, porque muito em breve vamos chamá-lo para uma conversa em particular".

Como se podia reagir quando o representante no Chile era obrigado a escrever perfis políticos de seus principais assessores e comunicar à DINA qualquer tentativa de ativi­dade sindical dos empregados? O que fazer se a polícia desse uma batida na casa de sua filha em Buenos Aires porque o marido dela escreveu um editorial considerado inadmissível?

John Spada não era nenhum gênio, mas falava seis lín­guas e suas raízes ainda estavam profundamente fincadas na cultura latina da Europa. Como Max Liebowitz iria reagir? Max era excepcional para levantar recursos, um vigoroso defensor de Israel, sempre eloqüente ao recordar os holo-caustos. Mas ainda falava em goyim, schwartzers e chicanos. O que faria Max quando largassem um bantu morto na porta da companhia, na Cidade do Cabo, alegando simplesmente que o homem estava bêbado e caíra pela janela de uma cela da polícia? Talvez ele se saísse muito bem. Talvez ele igno­rasse tudo, dentro do princípio de que se devia seguir pela estrada que se podia ver, e ao inferno com os bárbaros que se matavam mutuamente na selva dos dois lados do cami­nho. . . Talvez, talvez. . . De qualquer forma, não impor­tava a maneira como se encarasse isso, a verdade era que Max Liebowitz constituía um tremendo risco.

De repente, Spada sentiu-se desesperadamente cansado. Apagou a luz em seu gabinete, fez a última ronda do apar­tamento, verificando os alarmes, e depois foi se deitar. Es­tendeu a mão para tocar em Anna. Ela murmurou algo ininteligível, numa afeição sonolenta, aconchegando-se a ele. Spada enlaçou-a ternamente e assim ficou, até que Anna estivesse outra vez profundamente adormecida. Depois, trançou as mãos sob a cabeça e continuou acordado por muito tempo, olhando para a escuridão.

A matriz das Empresas Spada era uma torre de con­creto e vidro no Central Park. À entrada, via-se o emblema da corporação: uma gigantesca espada de cruzado, cravada num bloco de granito. Havia naquele símbolo uma arrogân­cia que agora, nos últimos anos, John Spada lamentava. Era um símbolo de força pessoal, do poderio de uma corporação, da precisão militar com que John Spada dirigia uma vasta variedade de empreendimentos espalhados por todo o globo: na Austrália, Formosa, Filipinas, índia, Japão, Reino Unido, África do Sul, América do Sul e Europa.

Os que tinham conhecimento das coisas comentavam: "Pode-se pensar em qualquer lugar e vai-se encontrar a Spada lá, sob uma forma ou outra: armas, equipamentos ele­trônicos, negócios imobiliários, petróleo, metais, minerais, atividades financeiras. É um tremendo colosso, e ele o con­trola pessoalmente. Se ele espirra num dia de chuva, pode deixar milhares de pessoas desempregadas e provocar uma corrida no mercado de ações. Quando começou, todos pen­saram que não passava de mais um arrivista esperto, que não iria resistir à primeira rajada adversa. Mas não foi o que aconteceu. Spada demonstrou ser tão sólido quanto aquele bloco de granito diante de seu prédio. Dirige sua empresa como a um exército e é melhor estadista do que a metade dos homens que estão esquentando assentos no Senado..."

No último andar da torre, havia uma sala de reuniões que mais parecia uma sala de operações de guerra, com um vasto painel eletrônico em que se podia verificar, a qualquer momento, em qualquer dia, a situação de cada operação da Spada, o movimento de cargas em navios, a quantidade de minério num determinado terminal ferroviário, as perspec­tivas de mercado, fluxos de caixa, estoques e transações fi­nanceiras em uma dúzia de capitais.

"Temos sempre que saber!" A proclamação de Spada era tão imutável quanto as leis dos medos e persas. "Boas e más notícias, temos que saber de tudo. Jamais me deixem ter uma surpresa. Se assumimos riscos, devemos fazê-lo com base em fatos conhecidos. Quero uma escrituração diária, não história passada. Cometam um erro e eu perdoarei. Co­metam novamente o mesmo erro e vou querer a cabeça do responsável numa bandeja."

Não era uma ameaça em vão e seus assessores sabiam disso. O homem pagava bem pelos serviços e discrição; o homem cuidava dos seus. Mas suas iras eram bruscas e im­piedosas . . . e havia muitas ossadas pelo caminho para com­prová-lo.

Contudo, apesar de todo o rigor de suas regras, Spada era um administrador calmo e ponderado. Com seus asses­sores imediatos, era sempre atencioso e polido. Jamais es­quecia um aniversário. Sempre se lembrava de um presente pessoal nas ocasiões festivas, inclusive das famílias. Suas diretrizes eram claras. Nas discussões, era receptivo e pon­derado. A partir do momento em que uma decisão era to­mada, assumia pessoalmente plena responsabilidade pelas suas conseqüências.

Entre os seus pares, tinha outra espécie de reputação: companheiro afável e espirituoso, anfitrião generoso, bom amigo nos momentos difíceis. Seu aperto de mão valia tanto quanto um contrato escrito. Mas, quando se estava numa posição de oponente, então era melhor cedo madrugar e es­miuçar tudo de trás para a frente. Suas recepções de negó­cios eram suntuosas, mas ninguém jamais pudera atribuir-lhe qualquer escândalo, pessoal ou financeiro. Quanto à sua fa­mília, havia uma regra inviolável: a vida particular de John Spada era sagrada. Só se tinha acesso por convite; não nos procure, deixe que nós o procuraremos.

Na vida profissional, apenas duas pessoas estavam a par de todos os seus segredos. Maury Feldman era uma dessas pessoas; a outra era Kitty Cowan, língua afiada, pro­tetora como uma supermãe, leal como a Brigada Ligeira. Com os dois em sua sala, Spada podia relaxar e desarmar-se, praguejar e conversar descontraidamente, saindo revigorado para o próximo embate. Naquela manhã, porém, havia um clima de premência e inquietação na reunião. Kitty Cowan começou com a informação dos corretores:

— Eles dizem que há bem poucas ações da Spada em oferta. A maioria dos acionistas está esperando pelos divi­dendos semestrais e pelo aumento da cotação.

Spada franziu o rosto, numa expressão desalentada, virando-se para Maury Feldman, que estava rabiscando uma miniatura erótica de Leda e o Cisne em seu bloco de ano­tações.

— O que Liebowitz tem a oferecer? Estamos numa situação excepcional. Em meio a uma recessão, estamos nos saindo melhor do que a maioria das corporações. Como Liebowitz poderia justificar uma mudança de administração? Quem é o candidato dele?

— Max não o revela a ninguém. Mas tenho a impres­são de que é Conan Eisler. Ele fez um bom trabalho na Allman Electronic e Max o considera um gênio financeiro.

— Uma ova! — gritou Spada. — Verifiquei-o há al­guns meses. Não passa de um homem metódico, pura e sim­plesmente. Até mesmo os seus lençóis de cama são feitos de papel de gráfico. E politicamente ainda é um bebê de colo!

— Sabemos disso, John — disse Kitty Cowan, sorrin­do. — Mas você é que terá de persuadir os acionistas.

Spada ainda estava brusco e irritado.

— Pois vamos então falar de persuasão. Não podemos fazer nada enquanto Max Liebowitz não mostrar os seus trunfos.

— Discordo. — Feldman acrescentou alguns retoques fantasiosos à anatomia de Leda. — Por que ficar esperando até que o estuprador comece a abaixar a calça? Devemos começar a persuadir os acionistas com direito a voto ime­diatamente. Kitty tem a relação. Assinalei os que se podem bandear para um lado ou outro e por isso precisam de uma atenção pessoal. Poderá constatar, apenas como registro, que a maioria representa capital judeu.

— O que significa que estamos agora envolvidos numa questão racial?

— Não. Mas estamos fazendo muitas transações com os sauditas e os kuwaitianos e Max Liebowitz é um fervo­roso sionista. . . O que me faz lembrar de uma coisa: não tenho muita certeza se é uma boa idéia convidar Von Kalbach para falar na reunião dos executivos.

— Por que não? — Spada ficou irritado. — Ele é um pensador importante e um orador eloqüente. Vai ter uma grande cobertura da imprensa.

— E que poderia fazer com que parecêssemos hipó­critas — disse Maury Feldman. — Von Kalbach fala elo­qüentemente sobre repressão e violência, enquanto estamos remetendo armamentos para o Irã e você é fotografado esquiando com o xá em St.-Moritz.

— Pelo amor de Deus, Maury! Sabe perfeitamente por que me encontrei com o xá.

— Eu sei, mas o público não sabe.

— E o que devo então fazer? Acabar com toda a rede de Proteu para provar que sou um grande humanitário?

— Maury tem razão, John — interveio Kitty Cowan. — O presidente está falando a todo instante em direitos humanos. As Empresas Spada estão ganhando vultosos lucros com transações à sombra de ditaduras. Nesta cidade, neste momento, isso irá prejudicá-lo.

— Prejudicaria muito mais se eu aderisse a qualquer grupo de guerrilheiros.

— Tem toda a razão. Mas. . .

Spada impediu-a de continuar, com um gesto brusco.

— Vamos falar de Proteu por um momento. Von Kalbach quer que ajudemos a tirar Lermontov do hospício em Moscou. Aceitei o projeto. Alguma idéia?

— Como já deve saber, vai haver um protesto formal na conferência mundial de saúde mental, no próximo mês — disse Maury Feldman. — Os russos estão preocupados. Determinaram a seus delegados que deixassem a conferência se o protesto for registrado nos anais.

— Mas não vão deixar Lermontov sair?

— Não. O KGB fincou pé. Não admitem qualquer in­terferência com a segurança interna.

— E não haveria possibilidade de um acordo par­ticular?

— Tem alguma idéia?

Maury Feldman parou de rabiscar e levantou a cabeça para fitar Spada.

— Pensei em conversar com Anatóli Koltchak, em Washington. É um diplomata de primeira categoria e tem muito prestígio no Politburo.

— Mas nem mesmo Koltchak pode se opor ao KGB.

— Tem razão. Mas ele sempre pode propor um acor­do. A Missão Comercial Soviética está há meses tentando obter os direitos de fabricação do díagnosticador automá­tico Spada. Até agora, estamos protelando o negócio porque achamos que eles podem pagar um pouco mais de royalties. Mas vamos supor que aceitemos a oferta deles e ainda por cima entreguemos uma unidade gratuitamente ao Hospital Geral de Moscou. . . contanto que Lermontov seja solto e receba um visto de saída.

— Nesse caso — disse Maury Feldman, fazendo a sua famosa paródia de Earl Warren —, você estará afundando até o pescoço nos esgotos. Estará usando os recursos dos acionistas para negociar com corpos humanos.

— Não se eu pagar o presente pessoalmente.

— Inevitavelmente, algum espertinho vai perguntar se o contrato de royalties é o melhor que se poderia obter no mercado. Em outras palavras, qual foi o desconto por um intelectual judeu em péssimo estado?

Spada sorriu e indagou jovialmente:

— Quem irá saber disso além de nós três?

— Anatóli Koltchak. . . e toda a turma do Politburo e do KGB.

— Mas eles nada irão dizer. . . a menos que estejam dispostos a admitir que também se metem em negócios de resgate.

— Mas há também Liebowitz, que vai examinar todos os documentos em que conseguir pôr as mãos.

— E o que Liebowitz vai dizer? Que deveríamos ter exigido mais um por cento de royalties e deixar Lermontov morrer? Não há a menor possibilidade. O seu trabalho, Maury, é demonstrar os riscos. E o meu é aceitá-los ou rejeitá-los. Conversarei com Koltchak.

— Se quer saber minha opinião, acho maravilhoso — disse Kitty Cowan.

— Se quer saber a minha, acho que é como Leda e o Cisne — disse Maury Feldman. — Trata-se de uma impos­sibilidade anatômica, mas pode ser divertido tentar.

Kitty Cowan consultou o seu bloco de anotações e abordou o item seguinte:

— Estava querendo saber do paradeiro de Henson e do Espantalho. Henson está em Roma, trabalhando num caso de seqüestro para a Consultores de Risco Ltda. O Espanta­lho está em Teerã, ensaiando seu persa e se mantendo de olho em Azudi. Mas, se precisar, ele pode ir para qualquer outro lugar.

— Mande-o vir para Nova York — disse Spada. — Vai passar vinte e quatro horas comigo, recebendo todas as informações possíveis. E depois irá para Buenos Aires. Diga a Henson que não aceite outro trabalho enquanto não rece­ber notícias minhas.

Maury Feldman começou outro desenho, desta vez de um sátiro ameaçador perseguindo uma ninfa com excesso de peso. Indagou calmamente:

— Isso significa que está preocupado com Teresa? E com o marido dela?

— Exatamente.

— Por que não providencia um emprego para Rodolfo nas Empresas Spada e o tira da Argentina?

— Ele não aceitaria. É o que se poderia chamar de um patriota antiquado. Alega que sua missão como editor é re­sistir nos momentos difíceis.

— O que eu acho muito bom — disse Kitty Cowan, firmemente.

— Mas pode ser terrível para ambos, se o maldito ge­neral decidir endurecer a situação — comentou Spada, em tom sombrio.

— Será péssimo   para   todo   mundo   —   acrescentou Maury Feldman. — Ainda mais se acontecer no meio de uma luta acionária. Você tem investimentos vultosos na Ar­gentina e uma porção de reféns em potencial.

— É justamente por isso que estou querendo que o Espantalho fique de olho na situação.

— E Henson?

— O espanhol dele é fraco, mas é o melhor tático de guerrilhas que conheço. Se a situação se agravar, pretendo mandá-lo também para a Argentina, depois do Espantalho.

Maury Feldman franziu o cenho e olhou para o relógio.

— Acabou o tempo de que dispõe gratuitamente para a Proteu. O resto custa dinheiro. Podemos agora voltar a tratar dos negócios da Spada?

Spada jogou a cabeça para trás e soltou uma risada.

— Posso lê-lo como a um livro aberto, Maury. Já viu o quadro. Está mais ou menos convencido de que é mesmo um Andréa del Sarto e mal pode esperar o momento de ter uma segunda opinião.   .

— Está redondamente enganado! — Feldman exibiu um sorriso sardônico. — O Sarto é uma falsificação. Mas o vendedor está precisando desesperadamente de dinheiro e quer me vender uma cruz peitoral que eu juro já ter visto num quadro de Farnese. Marquei encontro ao meio-dia, para começarmos a barganhar.

Kitty Cowan levou a conversa de volta à agenda da reunião:

— A crise do reator. Dubrowski diz que podem tam­par a rachadura na blindagem e acrescentar um reforço extra no ponto fraco. Mas a pilha terá de ser retirada de operação.

— Por quanto tempo?

— Ainda não foi calculado.

— Custo?

— Elevado. É tudo o que ele diz.

— Riscos?

— Não serão muito altos, se houver uma paralisação imediata, que já está sendo providenciada. Dubrowski reco­menda que evitemos quaisquer discussões sobre custos e responsabilidades, até que possa apresentar um relatório com­pleto. E ele acha também que devemos fazer uma campanha de relações públicas, em cooperação com a companhia que nos comprou o reator.

— Diga a ele que não há problema quanto a isso: Fa­larei com Fitch assim que terminarmos.

Maury Feldman acrescentou mais alguns retoques aos atributos sexuais do fauno, ao mesmo tempo em que aumen­tava o pavor no rosto da ninfa. E foi falando enquanto desenhava:

— Mais uma vez, devo dizer que é preciso manter a matriz fora desse caso. A Spada Nucleonics é que deve pres­tar todos os serviços. Os clientes vão se mostrar doces como açúcar até a crise terminar. E depois vão ficar azedos. É o que sempre acontece. Quanto ao contrato para comprar os Laboratórios Raymond. . .

E assim continuou o encontro particular na torre de vidro, que era o prelúdio para as reuniões de Spada com os chefes de departamentos, a programação de telefonemas in­ternacionais e a sessão das seis horas na sala de operações, quando a situação internacional era analisada. Foi um dia longo e extenuante. O controle de um império e o exercício do poder, que Spada outrora achava tão estimulantes quanto uma partida de tênis, agora, bruscamente, o deixavam irri­tado e inquieto.

A ameaça à sua autoridade pessoal era um problema sem importância, em comparação com as outras ameaças que ele via acumularem-se ao redor do globo: as tiranias mili­tares na América do Sul, o turbilhão sangrento no conti­nente africano, a concentração de armamentos no Irã, o desenfreado consumo de energia nos Estados Unidos, os ciú­mes das nações mercantes, brigando por mercados num mun­do cada vez menor, a desilusão da Europa com seus políticos e sábios, a hostilidade latente entre russos e chineses. Os satélites que suas empresas haviam ajudado a construir es­quadrinhavam um globo à beira de perder totalmente o con­trole e se precipitar numa zona de desastres cósmicos. A confiança do homem em sua sociedade estava sendo desgas­tada a um ponto em que, segundo muitos acreditavam, as brutalidades dos tiranos pareceriam uma cirurgia necessária e salvadora.

Era para resistir a esse momento que Spada começara a expandir a organização Proteu, da mesma forma que, entre as duas grandes guerras, Sir William Stephenson criara o grupo intitulado Coordenação de Segurança Britânica, a fim de acelerar os preparativos para o inevitável confronto com o Reich de Hitler. Chegara agora a um estágio em que as Empresas Spada constituíam uma vasta e lucrativa cobertura para uma cruzada pessoal. Se a cobertura fosse destruída, se uma nova administração assumisse a corporação, então a organização Proteu poderia ficar irreparavelmente abalada. Seu sistema de informações desmoronaria por completo. Sua capacidade de agir como intermediária entre interesses con­flitantes estaria liquidada. No mundo secreto da diplomacia internacional, não era apenas o dinheiro que falava, mas também a habilidade em utilizá-lo, controlar recursos, pro­porcionar trabalho, promover projetos em larga escala, criar vínculos de interesses partilhados entre rivais e antigos ini­migos. John Spada, um homem particular, poderia viver rico e feliz até o final dos seus dias. Mas, sem as Empresas Spada, ele seria como Sansão desprovido da cabeleira. Ainda não estava pronto para isso. Não podia admitir a idéia de que o testamento de um morto pudesse transformá-lo num eunuco, um espectador impotente do jogo do poder.

Quando estava arrumando a pasta dele ao final do dia, Kitty Cowan fitou-o nos olhos e indagou bruscamente:

— Está muito preocupado, não é mesmo?

— Estou, sim, menina.

— Nunca lhe perguntei isso antes, chefe, mas vou fa­zê-lo agora. Se tivesse de enfrentar uma aposentadoria pre­matura, estaria preparado para isso?

— Não.

A resposta de Spada foi incisiva e categórica.

— Mas um dia vai acontecer. Você é tão mortal quanto todos nós.

— Sempre falei que morreria de pé, em plena ati­vidade.

— Talvez não tenha essa oportunidade.

— Se pensa que vou deixar Liebowitz. . .

Kitty encostou a mão fria no rosto dele.

— Não estou falando de Liebowitz.

— Qual é então o problema?

— Você, Big John Spada. Por quanto tempo mais pensa que pode exigir tanto de si mesmo como está fazendo agora? O que vai acontecer se ficar doente?

— Sou forte como um touro. . . e você sabe disso.

— E às vezes igualmente estúpido. O que vou fazer com você, chefe?

— Para começar, pode nos servir um drinque.

Enquanto preparava os drinques, Kitty disse por cima do ombro:

— Agora que Teresa se foi, Anna vai precisar mais do seu tempo e atenção.

— Até agora, Anna não se queixou.

— Nem vai se queixar. O que não a impedirá de pre­cisar mais de você do que até agora.

Kitty entregou-lhe o bourbon com gelo. Tocaram os copos, num brinde silencioso. Spada contemplou-a com um sorriso malicioso de aprovação.

— Você é maravilhosa, Kitty.

— Sei disso. Kitty chinelo-velho! Estou gasta, mas me gastei bem. Mas não vamos mudar de assunto. Tem de co­meçar a se livrar de uma parte da carga do trabalho. Se não quer que Liebowitz assuma, é melhor começar a preparar seu sucessor. Ainda acho que Mike Santos é o homem mais indicado. E Maury concorda comigo.

— Ainda não tenho certeza quanto a Mike. Ele é com­petente, ambicioso, muito bom em suas funções, mas. . .

— Mike é mais do que muito bom. É o único com inteligência bastante para merecer seu respeito e o único com coragem suficiente para enfrentá-lo numa discussão. Soube que ele recusou duas ofertas este mês, porque acre­dita que lhe deve uma lealdade pessoal.

— Tenho pensado muito nele.

— Mas está pensando por tempo demais, chefe. Está na hora de mudá-lo para a sala ao lado e deixá-lo trabalhar em estreita colaboração com você.

— Inclusive na Proteu?

— Ainda não. Um passo de cada vez. Vamos ver antes como ele reage com as rédeas do poder nas mãos. — Abrup­tamente, Kitty estava à beira das lágrimas. Desviou-se, pegou o lenço, assoou o nariz vigorosamente. — Mas que diabo! Por que eu deveria preocupar-me tanto? A vida é sua, não tenho nada a ver com isso!

Spada estendeu a mão e fê-la virar-se. Beijou-a ternamente e depois abraçou-a, afagando-a com extrema gentileza.

— Vamos, menina. . . Essa não é a minha Kitty. Você é da família, sempre foi, sempre será. Então sou um touro velho e sinto ciúmes dos mais jovens que correm pelos pas­tos. .. Está certo. Se isso a deixa feliz, darei uma chance a Mike Santos. E agora enxugue os olhos e sirva-nos outro drinque.

— Vá para casa. — A voz de Kitty Cowan soava aba­fada, o rosto encostado no paletó dele. — Vá para casa, volte para Anna, antes que eu esqueça o meu lugar!

Naquela noite, depois do jantar, Spada comunicou sua decisão a Anna. Ficou surpreso com o ardor da reação da esposa. Ela enlaçou-o pelo pescoço, beijou-o e disse, com uma veemência apaixonada:

— Estou tão contente. . . mas tão, tão contente! É a melhor coisa que já fez em muito tempo!

— Ei, espere um pouco! — Spada manteve-a a distân­cia do braço. — Por que toda a emoção? Primeiro Kitty, agora você. Estou preparando um sucessor. O que há de mais nisso?

— Eu o amo — disse Anna simplesmente. — Há muito tempo que estou preocupada.

— Preocupada com quê?

— É o momento na vida de um homem em que ele precisa de um filho ao seu lado. Nunca lhe pude dar um filho. E isso sempre me deixou angustiada.

— Anna mia! — No mesmo instante, Spada tornou-se terno e solícito. — Não tem motivo nenhum para se angus­tiar. Jamais! Fez-me o homem mais feliz do mundo!

— Por favor, meu amor! Por favor, escute! Eu sempre soube que me havia casado com um grande homem. Sabia que não podia competir no mundo dele. . .   nem queria. Prometi a mim mesma que lhe daria um lar para o qual ele sempre se sentisse feliz em voltar. Sabia que eu não era toda a sua vida e que nunca poderia ser. Mas o que ele tinha a me dar era suficiente, mais do que suficiente. Não queria torná-lo isto ou aquilo. Sempre quis que fosse um homem livre, que fosse ele próprio.

— E pensa que eu não soube sempre disso. . . e que sempre me senti profundamente grato?

— Jamais duvidei de que soubesse, assim como sempre procurou manter-me a salvo de tudo, em segurança. Mas você não estava seguro, meu amor! Jamais esteve, por um momento sequer, neste mundo terrível e brutal em que sem­pre se manteve sereno. Certa ocasião, conversei a respeito com a tia Lisa. Ela me disse que você tinha Vocchio dello spadacino, o olho do espadachim, sempre alerta, sempre ava­liando o perigo, sempre pronto a se empenhar em combate com um adversário. Ela também disse algo mais. . . Ah, a tia Lisa! Ela me disse: "Não o distraia durante o duelo, porque o menor erro representa a morte para o espadachim. Quando ele quiser relaxar, deixe-o fazê-lo à sua própria ma­neira, porque as vigílias que ele precisa manter são longas e solitárias..." Não foi nada fácil para mim, porque sem­pre tive ciúmes de seu amor e atenção. Mas tentei. . . E agora, graças a Deus, não tenho mais que me esforçar tanto. Mike Santos é muito bom. Quanto mais se apoiar nele, vai descobrir que mais forte ele se torna.

— Não é suficiente ser forte, Anna mia. Ele tem de aprender a farejar o vento como um animal da selva.

— Pode ensiná-lo.

— Posso ensiná-lo a interpretar o cheiro. Mas não posso dar-lhe o olfato para senti-lo, se não nasceu com ele.

— A esta altura, já deve saber se ele tem ou não.

— Creio que sei, mas posso estar novamente enganado. Confiei em Carl Channing, e durante todo o tempo, até o dia de sua morte, ele estava se preparando para me trair.

— E agora você desconfia de si mesmo.

— E é justamente isso o que me assusta, Anna. Sem­pre, até agora, eu soube para onde estava indo e por quê. Agora, já não posso confiar nas fundações que finquei. As informações que recebo se contradizem.

— Está cansado, meu amor. Há semanas que estava viajando e volta para se deparar com uma série de desas­tres. . . Vamos para a cama e veremos o que um pouco de amor pode fazer.

— Você é a melhor mulher do mundo, Anna mia!

— Tenho de ser — disse ela, sorrindo. — Afinal, há uma porção de outras espreitando uma oportunidade de agar­rar o grande John Spada.

Na manhã seguinte, às nove horas, Spada reuniu-se com Mike Santos, o californiano moreno, de aparência jovem, que escalara firmemente a árvore ramificada de uma gigan­tesca corporação, até alcançar, calmo e paciente, um galho abaixo do topo, esperando ser convidado para terminar a subida. E o convite de Spada foi formulado, enquanto to­mavam café, nos termos mais simples:

— A sala ao lado está vaga, Mike. Gostaria de se mudar para lá?

— Gostaria e muito, se acha que já estou pronto para isso.

— Por que não me faz uma avaliação sua?

Santos pensou por um longo momento e depois respon­deu com uma série de definições cuidadosas:

— Item 1: sou um bom administrador, provavelmente o melhor que tem. Sei como esta organização funciona. Posso mantê-lâ em perfeito funcionamento. Item 2: viajei por todos os territórios. Conheço os dirigentes locais e seus problemas. Creio que eles confiam em mim. Item 3: entendo o dinheiro. Mantive-nos relativamente a salvo dos momen­tos difíceis que estamos enfrentando. Item 4: sei como es­colher homens e aproveitar integralmente seus talentos. Item 5: não me assusto facilmente. Esse é o lado do crédito. Os débitos são igualmente claros. Conheço os meandros de Washington, mas sou fraco em política externa. Preciso de tempo e oportunidade para formar bons relacionamentos di­plomáticos no exterior. Falo apenas inglês e espanhol, o que é uma desvantagem. Também não posso igualá-lo nos conhe­cimentos de direito internacional e por isso sou mais depen­dente dos conselhos dos advogados e menos crítico quanto às opiniões que recebemos. Tudo que posso dizer é que estou disposto a aprender, se está preparado para me dar o tempo necessário.

— Como se sente em relação a mim?

Santos sorriu, abrindo os braços num gesto tipicamente latino.

— O que posso dizer? Já tivemos algumas lutas ter­ríveis. Até agora, consegui permanecer no ringue. E você sempre me dispensou um tratamento justo, sempre se mos­trou disposto a ouvir-me.

— Quer o meu cargo?

— Quando estiver pronto para se retirar, quero, sim.

— Até que ponto o quer?

— Deixe-me explicar o que sinto — disse Santos, cal­mamente. — Há solidão lá no topo. A única companhia que se tem é a de si mesmo. É preciso sermos capazes de conviver com o sujeito que nos olha do espelho.

— E você pode fazer isso?

— Até agora, sempre pude.

— Alguém tem algum direito a lhe exigir alguma coisa?

— Minha esposa, meus filhos. . . e você.

— Pode ser vítima de uma chantagem?

— Duvido muito. Meu pai era um homem pobre, mas um ser humano excepcional. Eu o amava. Gostaria de poder tê-lo agora ao meu lado, vê-lo sorrir.

— Diga-me o que a nossa corporação está precisando neste momento.

— Pode não gostar.

— Isso é problema meu. Diga-me.

— As Empresas Spada constituem um império e você é o homem que o dirige. Os impérios são um anacronismo. Não podem perdurar. Mais cedo ou mais tarde terão de se fragmentar, de se humanizar, dar lugar e oportunidade às tribos que os tornaram ricos. Não se pode fazê-lo da noite para o dia, mas as estruturas têm de ser alteradas para que se chegue a isso ao final. . .

— E acha que podem ser alteradas?

— Têm de ser.

— Como?

— Preparei um estudo que gostaria que examinasse. Isto é, se ainda cogita da minha indicação, depois de tudo que acabei de falar.

— Por que não deveria mais cogitar?

— Aquele monumento lá embaixo... a espada na pe­dra. Sinto-me afrontado cada vez que o vejo.

— Custa milhões de dólares em publicidade divulgar esse símbolo ao redor do globo.

— Sei disso. . . e tudo o que divulga é seu nome.

— E o que mais deveria divulgar?

— Paz — respondeu Mike Santos, incisivamente. — Prosperidade partilhada. . . e não guerra e armas, não sa­quear a terra sem nada dar em troca.

— Mas você tem ajudado a executar a política que temos agora.

— Porque assim dizia o meu contrato com você: servir no que existia. Agora está me oferecendo um novo contrato: ocupar o seu lugar. Tem o direito de conhecer meus termos e a política que eu tentaria instituir.

— E se não forem aceitáveis?

— Então deve dizê-lo. Apresento o meu pedido de demissão e espero que possamos continuar amigos.

— Eu detestaria perdê-lo.

— E eu detestaria ter que ir embora. Tenho quinze anos aqui. . . e foram anos ótimos. Mas os tempos estão mudando e eu gostaria de plantar uma ou duas árvores para o futuro.

— Pois então continue por aqui. — Spada sorriu e estendeu a mão. — Antes de plantar as árvores, vai precisar preparar o terreno. É um trabalho mais árduo do que pode parecer, e necessita de um jardineiro muito paciente.

Santos apertou a mão estendida, indeciso. Parecia estar dividido entre o alívio e a incredulidade. Finalmente per­guntou:

— Está querendo dizer que concorda com o que falei?

— Foi uma declaração de princípios muito ampla — respondeu Spada, sempre sorrindo. — Ampla demais para permitir um debate. Gostaria de ler primeiro o estudo que preparou, para verificar até que ponto é exeqüível. Também tem algumas coisas a aprender a meu respeito, Mike Santos. Minha família está em atividade no mundo dos negócios desde os tempos de Lourenço, o Magnífico. Pode-se dizer que aprendemos alguma coisa sobre a arte do possível.

— Meus ancestrais foram simples peões. Provaram a terra com suas línguas para verificar se estava doce ou amar­ga. É outro tipo de lição que perdura. Obrigado por confiar em mim, John. Quando quer que eu me mude?

— Imediatamente! Temos de preparar a conferência dos executivos e uma luta pela maioria acionária na próxima assembléia. Quero que você formule a estratégia para os dois acontecimentos.

Três dias depois da posse de Mike Santos em seu novo cargo, Spada seguiu de avião para Washington, a fim de ter um almoço particular com Anatóli Koltchak, o embaixador soviético. Era uma ocasião agradável para ambos. Koltchak era um homem afável, espirituoso, inteligente, com o talento de um grande navegador para perceber o tempo da política global. Era também afiado e resistente como uma lâmina de aço; ai do carreirista do Partido que tivesse a presunção de ensinar-lhe seu ofício ou comentasse a maneira como reali­zava suas transações. Conhecia Washington como a palma da mão e a Wall Street melhor que o Banco Naródni. Seus despachos eram meticulosamente elaborados, as opiniões co­medidas, seu olho para uma mulher bonita ou um oponente vulnerável não tinha rival no ofício.

Spada, por sua vez, estava relaxado e ansioso pelo en­contro. Absorvera todos os detalhes do caso Lermontov e da correspondência com a Missão Comercial sobre os direi­tos de patente do diagnosticador automático. Era caracterís­tico dos dois homens o fato de que, quando os drinques que antecediam o almoço foram servidos, já haviam passado pelas amenidades sociais e estavam prontos para tratar do objetivo do encontro.

Spada apresentou a questão jovialmente:

— Vamos presumir, senhor embaixador, que ambos fi­zemos os nossos deveres de casa. Vamos presumir também que nenhum dos dois deseja transformar um bom almoço num duelo de esgrima.

— Excelente idéia, Sr. Spada. Levei muito tempo para arrumar um bom cozinheiro. Detestaria ver os esforços dele desperdiçados. O que deseja tratar comigo?

— Uma troca — respondeu Spada. — Um corpo por um contrato de fabricação favorável.

Anatóli Koltchak levantou seu copo num brinde silencioso.

— É uma boa abertura, Sr. Spada. Ensaiou-a?

— Sempre ensaio, senhor embaixador.

— Fale-me sobre o corpo. De quem é?

— De Liev Lermontov.

— Ah. . .   É difícil, muito difícil. — O embaixador bebeu o drinque e largou o copo. Sorriu e pegou Spada pelo braço, a fim de levá-lo à mesa do almoço. — Lermontov é a habitual cause célebre. O caso dele é um tópico complexo e bastante sensível para o meu governo.

— Os direitos humanos constituem um tópico sensível para qualquer governo — disse Spada calmamente. — In­clusive o nosso. Sendo assim, permita-me declarar que meu interesse é pessoal e minha proposta, particular. Não viso à publicidade, nem a lucro. Trata-se simplesmente de uma pro­posta comercial, na qual seu governo pode encontrar algumas vantagens.

Pela primeira vez, Anatóli Koltchak permitiu-se uma expressão de surpresa. Seu tom de voz era o de quem estava profundamente desconcertado:

— Confesso que seus motivos me escapam, Sr. Spada.

— Eu pensaria que são bastante claros.

— Na superfície, podem ser. Mas deixe-me explicar a minha perplexidade por outro ângulo. Sua proposta parece uma estupidez extrema. . . e sei que não é um homem estú­pido. Primeiro está querendo comprar o mais perecível e o menos valioso de todos os produtos: um corpo humano doente. Em troca, oferece um bem valioso e duradouro sob a forma de direitos de patente.

— Exatamente.

— Como justifica para si mesmo essa proposta unila­teral e economicamente indefensável?

— Tenho mesmo de justificá-la, senhor embaixador. . . uma vez que estou em condições de fazê-lo?

— Não. Mas, se eu compreender seus motivos e argu­mentos, isso pode ser-me útil para apresentar a proposta ao meu governo.

— Vamos abordar o problema por outro ângulo, se­nhor embaixador. Vocês também têm problemas. Têm um país imenso, controlando uma fusão de grupos minoritários, todos zelosos de suas identidades locais. Têm estados-satélites, inquietos sob o jugo da Rússia. Têm a China hostil, na fronteira a leste. Têm cismas e dissensões do Partido no exterior, cujos membros rejeitam o domínio de Moscou. Têm dissidentes entre cientistas e intelectuais, um KGB extrema­mente impopular, cujas medidas repressivas não lhes fazem crédito no exterior. Gostariam de exibir uma imagem mais humana. Não podem dar a impressão de assumi-la a pedido de potências estrangeiras ou sob pressão de cláusulas de tra­tados, que elas interpretam de uma maneira e vocês de outra. Assim, estou oferecendo um meio de realizarem um gesto liberal de grande repercussão sem darem a impressão de que se estão submetendo a qualquer influência exterior. Por minha parte, estou velho e rico o bastante para permi­tir-me o luxo de uma posição moral, num mundo em que a moral saiu de moda. Quando eu morrer, gostaria de ter um epitáfio melhor que o cifrão do dólar. . . Aí está, senhor embaixador. . . e meus cumprimentos! Possui um excelente cozinheiro!

Anatóli Koltchak largou o garfo e a faca e contemplou o visitante, com uma expressão grave e curiosa. Depois de um momento, disse suavemente:

— Gostaria de poder desfrutar também esses luxos, meu amigo. Mas posso apenas ser mediador num acordo; jamais assiná-lo.

— Está disposto a ser mediador neste caso?

— Com o KGB? Não. O melhor que posso fazer é encaminhar sua proposta e argumentos a Moscou.

— Obrigado.

— Posso perguntar-lhe, extra-oficialmente, o verdadei­ro motivo para esse pedido?

— Vivemos num planeta extremamente frágil, senhor embaixador. Os mártires podem ser mais perigosos do que os fanáticos. Não concorda?

Koltchak exibiu um sorriso de aprovação.

— Sem comentários, Sr. Spada. Mas permita-me repe­tir a frase para os meus colegas em Moscou. Há alguns que podem perceber o bom senso que ela contém.

— Pode recordar-lhes também que certamente ficarão muito gratos por terem os diagnosticadores automáticos Spada no momento em que ficarem doentes.

Anatóli Koltchak soltou uma risadinha e ergueu o copo num brinde.

— Isso não seria muito sensato, Sr. Spada. Já conheceu algum político que não se julgasse imortal? Mas agora vamos conversar sobre outras coisas. Andou viajando recen­temente. Quais foram as suas impressões de. . .

E essa era a outra parte da barganha. Na diplomacia como nos negócios, não havia o que se poderia chamar de um almoço gratuito e somente um tolo seria capaz de esperá-lo John Spada pagou a conta de bom grado: um comentá­rio sobre a situação econômica do Japão, os excessos mili­tares na Indonésia, o problema do lixo nuclear. Quando se despediu, Koltchak mostrava-se cordial e ligeiramente encorajador. É claro que tais coisas levavam tempo e havia mui­tos gambitos a serem jogados antes de se chegar ao fim. Mas não tinha importância. Proteu era um deus paciente e Liev Lermontov, apenas um peixe num mar imenso.

 

A primeira carta que Teresa enviou de Buenos Aires foi trazida pelo mensageiro da companhia, que todas as se­manas fazia a viagem entre a capital argentina e Nova York, levando correspondência e documentos confidenciais, delica­dos demais para que se pudessem confiar aos correios da Argentina. A carta era um relato longo e jovial sobre o novo apartamento, os encontros com o clã Vallenilla, as primeiras impressões da vida movimentada da capital. Teresa deixou as grandes notícias para a última página:

"... Decidi começar a trabalhar com as Irmãs Missio­nárias dos Pobres, que operam algumas clínicas nas áreas mais miseráveis da cidade. Precisam de pessoas com expe­riência em ginecologia e pediatria, para dar consultas nas clínicas e preparar as jovens enfermeiras. É um trabalho que representa um desafio e Rodo está feliz porque aceitei. Diz que é um 'testemunho em trabalho' e acha que o ajuda em seu 'testemunho de palavras'. Rodo está trabalhando ardua­mente e sob constante pressão para moderar o tom de seus editoriais.

A situação por aqui está terrível. Há mais de vinte mil pessoas relacionadas entre los desaparecidos. A polícia nega qualquer conhecimento do paradeiro ou destino dessas pes­soas. Esse silêncio oficial é ainda mais sinistro que as brutalidades que sabemos estarem sendo cometidas contra as víti­mas do regime. Além de seu trabalho no jornal, Rodo está preparando um documento de protesto e denúncia, que ele pensa publicar sob a forma de uma carta aberta ao governo. É uma atitude ousada e perigosa; mas creio, como Rodo, que deve ser feito. Tenho o maior orgulho de Rodo. Amo-o como jamais teria sonhado que fosse possível. Apesar de termos uma vida extremamente movimentada, somos felizes juntos como crianças.

O que me leva, meus queridos, à minha última grande notícia: vou ter um filho, provavelmente ao final de novem­bro. Estamos ambos profundamente emocionados com a perspectiva. E sabemos que vocês também ficarão. Espero que seja um menino. Rodo tem certeza absoluta do sexo. Diz que vamos chamá-lo de Rodolfo Giovanni Spada Vallenilla. Talvez, quando o momento estiver mais próximo, vocês pos­sam vir passar algum tempo aqui conosco. . . e eu gostaria que mamãe estivesse presente quando o bebê nascer.

Muito, muito amor mesmo de nós dois. Escrevam logo.

Teresa"

Anna chorou lágrimas de felicidade pela notícia e co­meçou imediatamente a planejar o seu papel como avó. John Spada ouviu-lhe os planos indulgentemente, transmitiu a notícia orgulhosamente aos amigos e guardou para si mesmo as suas piores apreensões, até o dia em que o Espantalho chegou a Nova York.

Seu nome oficial era Pavel Lunarcharsky. Seus do­cumentos, falsos ou genuínos, diziam que nascera em Xan­gai, filho de emigrados russos, no ano de 1930. Fora para a Inglaterra em 1946, como filho adotivo de um idoso casal britânico com o qual passara os anos da guerra num campo de prisioneiros japonês em Hong Kong. Quando eles mor­reram, deixaram-lhe um legado para que pudesse completar os estudos. Pavel Lunarcharsky saíra de Oxford com um diploma em literatura, uma excepcional capacidade como lin­güista e uma reputação de estudioso excêntrico e errante.

Era um homem de aparência estranha, magro e fino como um espeto, com um modo de andar espasmódico, uma cabeleira cor de palha perenemente desgrenhada, um rosto em que cada traço parecia um pouco torto. Tinha os gestos bruscos e desajeitados de uma marionete, e a atitude de um pedante ligeiramente malicioso. Spada conhecera-o em Bang-kok, onde ele estava empenhado em alguma missão vaga para a embaixada britânica. A primeira conversa que tiveram à beira da piscina do Erewan, fora inesperada e sur­realista.

Spada perguntara:

— Qual é a sua atividade, doutor?

— Serviços pessoais, Sr. Spada. Sou antes de tudo um lingüista, quase tão bom quanto o grande Mezzofanti. Falo e escrevo vinte e três línguas. Apesar da minha aparência meio estranha, tenho um talento excepcional para assumir diversas nacionalidades e identifícar-me com elas. Possuo vários passaportes, sob nomes diferentes: Dr. Pavel, Boris von Paulus, Henry Salmon. Não tenho vínculos de família e sou um excelente planejador e executor do que se poderia chamar de projetos exóticos. Tenho trabalhado pelo mundo inteiro. Meus honorários são altos, mas de um modo geral deixo os clientes satisfeitos. Tem alguma coisa em mente para mim, Sr. Spada?

— É bem possível. Dirijo uma grande multinacional, que precisa de informações locais acuradas. Diga-me uma coisa: quais são as suas convicções políticas?

— Não tenho nenhuma. — Lunarcharsky exibira um sorriso sardônico. — Os sistemas políticos são tão imper­feitos e corruptos quanto os homens que os idealizam. Para ser o mais simples possível: sou um mercenário, à venda pela oferta mais alta. Mas, a partir do momento em que aceito uma oferta, cumpro o meu lado do acordo. . . não por quais­quer razões morais, mas porque é a melhor garantia de sobrevivência e de uma receita contínua.

— Alguma vez matou um homem?

— Vários. As mortes deles foram necessárias nas cir­cunstâncias, mas não foram premeditadas. Não sou assassino. Isso é ofício para um psicopata e eu sou um ser humano normal, se bem que um tanto estéril. Minha única paixão real é a lingüística. Sendo assim, não tenho vícios para me comprometer ou a meus empregadores.

— Mulheres?

— Elas não me consideram atraente. De um modo geral, sou indiferente às mulheres. Uso-as quando preciso e depois as deixo sem o menor pesar.

— Dinheiro?

— Ganho bem e poupo o suficiente.

— Inimigos pessoais?

Lunarcharsky sorrira, abrindo os braços num gesto de protesto.

— Eu diria que tem mais inimigos do que eu, Sr. Spada. Não passo de um instrumento que as pessoas utilizam e depois abandonam, à vontade. Podem não gostar de mim, mas não têm motivos para me invejar ou odiar. Por meu lado, não sinto amor nem rancor. . . Mais alguma coisa?

— Quanto costuma cobrar?

— Cinco mil dólares por semana, com um mês pago adiantado, mais transporte e despesas extras, com um paga­mento inicial de quatro mil dólares. Presto contas acuradas de todas as despesas ao final de cada missão.

— Como posso fazer para encontrá-lo?

— Através do Clube dos Viajantes, em Londres.

— Está certo. Ainda vai ter notícias minhas.

Desde aquele primeiro encontro, Spada usara-o muitas vezes, em Praga, Beirute, Leningrado, Paris e no Irã. Agora, ele era um contratado permanente da Proteu, uma figura estranha e furtiva, vislumbrado num momento, desaparecido no seguinte, sem deixar o menor vestígio de sua presença de espantalho. Uma hora depois de chegar a Nova York, ele estava trancado com John Spada no topo da torre de vidro.

Spada transmitiu as informações necessárias de maneira sucinta e objetiva:

—   ... Rodolfo Vallenilla é um espinho na mão do re­gime. Mais cedo ou mais tarde, vão tentar silenciá-lo. Quero antecipar-me a isso, se for possível. Sua missão é proteger Vallenilla e minha filha, a qualquer custo. Pode providenciar uma identidade plausível?

— A melhor de todas. — Lunarcharsky agitou as mãos imensas. — E verdadeira, ainda por cima. Sou um estudioso de línguas. Estou interessado nas variações dialetais do espa­nhol local. . . como o lunfardo, por exemplo, que é a gíria de Buenos Aires. Os adidos culturais adoram esse tipo de coisas. E sentem a maior felicidade em estimular as visitas de estudiosos. Faz com que o regime pareça respeitável. . .

— Quando pode partir?

— Dentro de uma semana. Posso obter o visto imedia­tamente. Mas talvez demore alguns dias para obter as cartas de apresentação apropriadas. O que valerá a pena. Até que ponto está disposto a ir?

— Para proteger minha família? Precisa perguntar?

— Está certo — disse Lunarcharsky, placidamente. — Eles saberão que estou a caminho?

— Você é quem decide.

— Então é melhor não saberem.

— As instalações da companhia ficarão inteiramente a sua disposição.

— Não vou precisar delas. . . com exceção talvez do telex, no caso de alguma emergência.

— Se precisar, procure Herman Vigo em nosso escri­tório de Buenos Aires. Diga-lhe o nome de um peixe, "Ca­vala", e ele o porá em contato com os membros locais da organização Proteu, se por acaso tiver de utilizá-los. E, se precisar de mim pessoalmente, irei imediatamente.

— Espero que isso não seja necessário — disse o Es­pantalho. — Mas o mundo por lá é turbulento e imprevisí­vel. Tudo pode acontecer.

— Se tiver de entrar em ação, mandarei Henson para ajudá-lo.

— Ele é muito bom. Sempre trabalhamos bem juntos. Mais alguma coisa que eu deva saber?

— Minha filha está grávida.

— O que é uma complicação. Terei de levar esse fato em consideração nos meus planos.

— Ela admira o marido e está perdidamente apaixo­nada.      

— Como se sente pessoalmente em relação a ele?

— Eu o estimo muito.

— Ele pertence à Proteu?

— Não. Recusou o convite para ingressar na organiza­ção. Mas conhece o símbolo e reagirá à sua apresentação.

— É tudo o que preciso saber. — Lunarcharsky levan­tou-se para partir. — A menos que queira saber notícias sobre Azudi, que continua em Teerã. O homem é uma besta selvagem; para ele, a sala de torturas de SAVAK não passa de um jardim de infância. Pessoalmente, gostaria de eliminá-lo.

— Ainda não. Cuidarei dele quando chegar o mo­mento.

— Telefonarei antes de partir para Buenos Aires.

— Vá com Deus.

— Bem que gostaria — disse o Espantalho. — Se soubesse quem ele é ou onde encontrá-lo.

Ele partiu sem olhar para trás, esbarrando na mesa, tropeçando ao passar pela porta, uma excentricidade da na­tureza, um sobrevivente da época de Lilith, antes que o Todo-Poderoso complicasse o homem com uma alma.

A chegada de Meister Hugo von Kalbach, filósofo, teó­logo, prêmio Nobel, foi um acontecimento mais festivo. Spada e Anna receberam-no no aeroporto e acompanharam-no até a Bay House, a fim de que ele pudesse descansar durante o fim de semana, antes da conferência dos executi­vos, que se iniciaria na segunda-feira.

Apesar da idade e da fadiga da viagem, o velho erudito estava tão exuberante quanto uma criança. Beijou Anna nas duas faces, apertou Spada num abraço prolongado e falou sem parar durante todo o percurso.

Pensara muito no discurso que iria fazer. Escrevera-o em alemão. Fraulein Helga, sua secretária, fizera a primeira tradução para o inglês, que fora em seguida aprimorada por um membro do consulado britânico em Munique. Depois ensaiara o discurso com um lindo soprano inglês da Ópera de Munique. . . isso é que se pode chamar de bons prepara­tivos, hem? Depois, se a audiência se mostrasse crítica. . . Haveria discussão do tema, não? Ótimo! Viera participar, não fazer sermões. Era importante saber as reações das pes­soas. . . Lermontov? Era uma boa notícia o fato de o pri­meiro contato já ter sido feito. Com os russos, sempre se tinha de ser paciente. Mas esse Koltchak parecia ser boa pessoa. . . Como ele estava? Deus fosse louvado, a saúde dele era ainda muito boa. Frãulein Helga vivia atormentando-o para que se cuidasse, não comesse demais, se agasalhasse, bebesse uísque inglês em vez de cerveja alemã. Que coisa! Era quase como se estivesse casado!. . . As ameaças contra ele? Bom. . . A polícia ainda vigiava sua casa em Tegernsee. Insistiam em que devia levar um guarda-costas sempre que ia a Munique. Havia ocasiões em que se sentia como uma peça de museu, sempre espanado e vigiado. De qualquer forma, imaginava que um filósofo devia ser mais valioso que um político.. .

Mal acabara de se instalar na Bay House quando exigiu companhia para um passeio pelos jardins e depois pela praia. Estava tão obviamente feliz, tão inocentemente ávido de todas as pequenas alegrias da vida, que era impossível a alguém acalentar um pensamento triste em sua presença. Contudo, quando Spada abordou o assunto do novo livro dele e a possibilidade de uma tradução para o inglês, o velho pareceu ficar subitamente apreensivo:

— . . . Sei que lê alemão e por isso trouxe uma cópia do original. Vou dá-la a você esta noite. Preciso de uma segunda opinião sobre o último capítulo. E, com a sua grande experiência do lado prático da vida, pode ser o homem apropriado para me dar essa opinião. Tenho a im­pressão de que me deixei encurralar pelas palavras. Pior do que isso! Se meus receios são justificados, então estou falido como filósofo.

Procurando acalmá-lo, Spada disse firmemente:

— Não creio por um momento sequer que isso seja possível.

— Ah, meu caro amigo! A vida é repleta de surpresas, tudo é possível. Mas, aos setenta e cinco anos, meter-se numa negação absoluta... há um verdadeiro horror no pen­samento! Fiquei tão perturbado que fui a Tübingen na sema­na passada para conversar com meu velho amigo Hans Koenig. Eis um homem que deveria conhecer! O novo livro dele até parece uma avalancha. Pense nisso. . . um estudo sobre a moderna cristologia, que está vendendo como uma" novela pornográfica! O Vaticano convocou-o a Roma em abril último. Mantiveram-no lá por dois meses, interrogando-o como se fosse um herege antigo. Mas ele subjugou até mesmo os inquisidores do Borgo Santo Spirito. Agora está de volta, ainda sorrindo, ainda ensinando e pregando. Mas mesmo ele, meu caro John, está tropeçando na mesma pedra que eu...

— E que pedra é essa, Meister?

— É o problema sobre o qual conversamos na casa do seu tio: nossa reação pessoal à violência desfechada ao redor e em cima de nós. Não é uma questão nova. . . e Deus sabe disso!

O velho abriu os braços, num gesto de derrota.

— Mesmo os moralistas mais rígidos têm sido obrigados a fazer concessões em suas respostas. Podemos matar numa guerra justa. . . O que quer que seja isso! Podemos matar para defender nossas vidas ou propriedades. Podemos exterminar vidas fetais, deter ladrões em fuga com uma bala. Matar, matar, matar! Para um soldado, é uma obriga­ção. Para você e para mim, um ato permissível, contanto que possamos provar que houve uma grande ameaça. . . Será que isso é o fim de tudo? Será que é o único fruto de toda a nossa sabedoria acumulada, da experiência espiritual, das revelações sagradas?

O velho estava abalado por sua própria veemência. Spada levou-o de volta à casa e serviu drinques para ambos.

Mesmo assim, Von Kalbach não quis largar o assunto. Mais calmo, continuou:

— Perdoe-me. Estou dominado por esse terror. Tenho de falar a respeito para seus homens, responder às pergun­tas...

Spada estimulou-o gentilmente:

— Disse que foi procurar Koenig. E o que ele falou?

— A perspectiva dele é ainda mais sombria do que a minha. Está disposto a considerar, embora involuntariamen­te, uma teologia em que a violência pode não apenas ser tolerável, mas justificável e até mesmo obrigatória para um homem religioso. Faz algum sentido, embora um tanto som­brio. É possível ler a Crucificação como um ato de auto-imolação, deliberadamente cortejado pela vítima. Cristo ex­purgou o templo com um açoite. . . um ato inegavelmente violento. Dietrich Bonhoeffer podia seriamente cogitar do assassinato de Hitler como um dever cristão. . . Koenig re­sume tudo de uma maneira estranha. Diz que há determina­das situações das quais Deus parece ausentar-se, circunstân­cias concretas de ação e reação violentas, das quais não há escapatória e nas quais o homem fica sozinho, nas trevas, para tomar a sua própria decisão de vida ou morte. . .

— Eis uma posição que posso aceitar. — Spada remoeu o assunto por um momento. — De certa forma, tenho de tomar decisões assim todos os dias. Não há Bíblia, Talmude ou Corão que codifique a moral do mundo moderno. As coisas que fabrico têm aplicações construtivas e também letais. Faço transações com homens corrompidos, as quais beneficiam pessoas de bem. Não posso ficar de braços cruzados à espera de um julgamento divino. Tenho de agir de acordo com o que seu amigo Koenig classifica de "circuns­tâncias concretas". . . Aceita outro drinque?

— Esperem pelo vinho — disse Anna, firmemente. — Já nos podemos sentar para jantar. E tendo em vista que fui eu que cozinhei, não admito que desperdicem a comida!

— Eis uma circunstância concreta! — Spada riu e se­guiu na frente dos outros para a sala de jantar. — Nada deve estragar o frango a cacciatore de minha esposa!

— Exatamente como Frãulein Helga! — Meister Hugo lançou um olhar radiante e feliz para Anna. — Ela diz que boa comida e filosofia não se misturam. Diga-me uma coisa, mínha cara: como está a sua linda filha?

Spada sorriu e concentrou-se na pasta, enquanto Anna se lançava a um discurso lírico sobre a perspectiva de ser avó. Como filósofo, Von Kalbach podia ter seus problemas.

Como diplomata ao jantar, era melhor que Talleyrand.

A conferência dos executivos das Empresas Spada era tradicionalmente inaugurada com um jantar formal no Waldorf, em que John Spada e seus colegas recebiam delegados do exterior, diplomatas dos países em que a corporação operava, o secretário de Estado americano e os editores fi­nanceiros dos grandes jornais e revistas.

Era uma ocasião para cortesias políticas e os protocolos fixados por Spada eram simples e rígidos. As esposas não eram convidadas. As únicas mulheres presentes eram as que ocupavam postos diplomáticos ou cargos executivos na cor­poração. As precauções de segurança eram maciças. Uma frota de limusines trazia os convidados e depois os levava. Não havia qualquer exibição de emblemas ou produtos da companhia. Os únicos símbolos eram as bandeiras dos países em que as Empresas Spada operavam.

Todos os convidados eram anunciados pelo nome e título. Spada e seus companheiros de diretoria recebiam-nos. Havia um prelúdio cautelosamente breve para coquetéis e apresentações, após o que o jantar era servido. O próprio Spada dava as boas-vindas a todos e apresentava o orador principal. Os discursos em resposta eram feitos por dois delegados do exterior. Depois, durante o café e os licores, havia um intervalo para uma discussão informal entre o orador e os convidados. Tudo era calculado para terminar às onze e meia da noite, já que os delegados deveriam começar a trabalhar na sala de operações da torre de vidro às dez horas da manhã seguinte.

Havia na organização quem questionasse o valor de uma solenidade tão rígida e elitista. Mas a argumentação de Spada era sempre a mesma:

"Serve para dar o recado a que visa. Somos uma orga­nização internacional, operando em vários países, benefician­do-os. Cumprimos as leis desses países e respeitamos-lhes as determinações fiscais. Oferecemos a seus representantes uma hospitalidade diplomática nos Estados Unidos. Oferecemos os melhores alimentos e os melhores vinhos da terra, além da oportunidade de ouvirem um discurso pronunciado por um orador eminente. Depois disso, ponto final! Vamos tratar de nossos próprios negócios!"

O discurso de boas-vindas de Spada transmitiu a mesma mensagem, em termos menos formais e mais cordiais. Nor­malmente, ele acrescentava alguns comentários sobre o tema do discurso principal da noite. Daquela vez, porém, o as­sunto era tão delicado que decidiu deixar que Hugo von Kalbach assumisse toda a carga dos argumentos e debates que se seguiriam.

O velho filósofo era uma figura patriarcal ao se levantar para falar, ajustando o pince-nez. Começou calmamente, mas a paixão latente em sua voz imediatamente impressionou a todos:

— ... A violência, pelo que nos dizem, é um ato irra­cional, uma reação animal. Mas isso só se aplica no contexto mais limitado, no crime de paixão, por exemplo, num tumul­to de cervejaria, numa briga em campo de futebol. . .

"Eu os convido, meus amigos, a considerarem uma pro­posição muito mais sinistra: a de que a violência, a crueldade e o assassinato constituem atos completamente racionais, projetados tão deliberadamente quanto uma peça de teatro, para realizar os objetivos, políticos, financeiros ou pessoais, daqueles que os cometem. . .

"O seqüestro de um trem ou avião, o assassinato de crianças num ônibus escolar, a bomba que explode num saguão de hotel. . . tais coisas constituem parte integrante de uma campanha política. Visam a produzir outros aconte­cimentos, alguns imediatos, como a libertação de prisionei­ros, outros mais distantes, como a derrubada de um regime ou a destruição da confiança em governos legítimos. . .

"Mas os guerrilheiros e terroristas não têm o monopólio desse jogo brutal. Os governos também se empenham em tal jogo. . . e numa escala muito mais ampla. Os campos de concentração, os centros de detenção e as salas de torturas são concebidos, racional e cientificamente, como um sistema de opressão, para sufocar qualquer dissidência e incutir o medo nas massas populares, que não têm recursos contra a tirania. . .

"Onde tudo isso irá terminar? Já sou um homem velho. Vivi os anos monstruosos do Terceiro Reich, os anos dos holocaustos. Pois eu lhes garanto que tudo isso vai voltar, a menos que se ponha um ponto final. . . e o mais depressa possível. . . a essa terrível e rancorosa vendeta social."

Parou de falar por um momento, a fim de polir os óculos e virar a página do discurso. A audiência estava num silêncio opressivo, imaginando para onde Von Kalbach a levaria em seguida.

— Os senhores podem ficar surpresos se souberem que eu, neste momento em que lhes falo, sou um homem mar­cado para a morte por assassinato. E isso porque eu, que não pertenço a nenhum partido, que passei toda a minha vida em busca da verdade, sou considerado um instrumento dos reacionários. Posso ouvir os senhores dizendo para si mesmos: "Mas isso é uma loucura!" Não é, não. É uma peça de teatro macabra, concebida pelos que acreditam que a anar­quia é o primeiro passo necessário na estrada para uma nova ordem.

"O mais terrível é que eles podem estar certos. A anarquia inevitavelmente produzirá a tirania. A tirania é a sementeira da revolução. E todo o lamentável ciclo se irá completar, a menos que possamos encontrar uma solução para a insanidade que a todos aflige.

"Porque é uma insanidade, meus amigos, uma terrível loucura! Devemos ficar admirados com o desespero de guer­rilheiros quando torturadores são pagos com os recursos públicos e os governos, como gangsteres, contratam assassi­nos? Devemos ficar admirados com a brutalidade da polícia, quando, como aconteceu recentemente em meu país, jovens mascarados desfilam zombeteiramente diante do túmulo de uma vítima terrorista?. . .

"Será que rejeitamos totalmente a razão e a humani­dade? Estaremos tão acostumados a viver sob a nuvem de cogumelo que não mais acreditemos que uma sociedade justa e pacífica seja possível ou pelo menos desejável? Se chega­mos a esse ponto, então cometemos pecado contra o Espírito Santo e estamos irremediavelmente condenados a um inferno em nosso próprio planeta!"

Von Kalbach reuniu seus papéis e sentou-se. Houve um momento de silêncio profundo, e depois todos se levantaram para aplaudi-lo. Ainda estavam batendo palmas quando um empregado do hotel entrou apressadamente no salão com uma mensagem para John Spada. A mensagem dizia sim­plesmente: "Por favor, venha com urgência à sala do telex"..

Spada hesitou por um momento, depois tocou de leve no ombro de Mike Santos e sussurrou:

— Tenho de me ausentar por alguns minutos. Tome o meu lugar.

Ao se afastar, Santos já estava de pé e anunciando:

—   ... Nosso amigo do Irã, Riza Baraheni, que vai apresentar os agradecimentos de todos ao orador.

Na sala do telex, o operador apontou para as primeiras linhas impressas:

 

"Waldorf hotel?

 

Aqui é o Waldorf.

 

Bewley. . . Embaixador dos Estados Unidos na Argen­tina. Fui informado de que o Sr. John Spada está neste momento em seu hotel, num banquete da companhia dele. Por favor, mande chamá-lo. É urgente.

 

Vou chamar. Espere um pouco, por favor."

 

Spada ficou de pé ao lado do operador e iniciou o diálogo.

 

“Spada presente. Pode continuar.

 

Aqui é Bewley. Liguei para sua casa. Sua esposa infor­mou onde encontrá-lo. Más notícias. Seu genro telefonou às vinte e uma horas. Informou-me que sua filha Teresa foi presa pela polícia de segurança às dezoito horas. Quando estava trabalhando na clínica, na parte antiga da cidade. Ele ainda não conseguiu determinar o paradeiro atual dela, mas está recorrendo a todos os seus contatos e envidando todos os esforços. Os telefones de sua casa e escritório estão sendo interceptados e por isso não poderá fazer um contato pessoal por algum tempo. Os telefones da Spada provavelmente também estão sendo interceptados.

 

Por que Teresa foi presa?

 

Foi chamada pelas freiras ontem à noite para realizar uma operação de emergência num homem ferido a bala. A vítima foi imediatamente depois retirada da clínica por amigos. Teresa voltou para casa. A polícia aparentemente acha que o homem era revolucionário terrorista. Seu genro pensa que a polícia está querendo assustá-lo.

 

Quais as providências que está tomando?

 

Protesto e pressão para um contato imediato com Te­resa. Estou tentando audiência imediata com ministro do Interior e presidente, mas ele está ausente, em excursão pelo interior do país. Qualquer pressão que puder aplicar aí nos Estados Unidos ou através da Casa Branca será de grande valia.                                                                          

 

O Secretário de Estado Hendrick é nosso convidado esta noite. Vou falar com ele imediatamente. O mais impor­tante é você e a polícia saberem que Teresa está grávida.

 

Anotado, John.

 

Qual é a situação de Rodolfo Vallenilla?

 

Até agora está em liberdade, mas sob constante ameaça. Já lhe oferecemos ajuda, se for necessário. Ele acha que o dever exige que se mantenha em seu posto. Correspondentes estrangeiros estão transmitindo a notícia para os seus países.

 

Irei para aí o mais depressa possível. Grato pelo seu empenho. Por favor, mantenha a linha de telex aberta, para o caso de Hendrick querer falar-lhe.

 

Está certo.

 

Contou alguma coisa a minha esposa?

 

Não. Disse apenas que queria falar com você.

 

Mais uma vez obrigado. Spada desligando."

 

Spada arrancou o papel da máquina e leu tudo nova­mente, tremendo e dominado por uma raiva impotente. Depois, dobrou o papel cuidadosamente, concentrando-se em cada movimento, como se fosse uma afirmação de que ainda estava num mundo real. Voltou lentamente para o salão de banquetes, onde Toshi Hatanaka estava apoiando o discurso de agradecimento. O Secretário de Estado Hendrick estava sentado no lugar de honra, à direita da cadeira de Spada, que se sentou e lhe entregou o telex. Hendrick leu-o atentamente, tornou a dobrá-lo e devolveu-o.

— Vou falar com Bewley agora — sussurrou ele. — Faremos tudo que for possível. Onde poderei encontrá-lo mais tarde?

— Em meu apartamento. Tem o telefone.

— Ligarei para lá.

— Estou pensando em anunciar o que aconteceu.

O secretário de Estado refletiu por um momento e depois assentiu.

— Por que não? Mas deixe-me sair primeiro. E levarei o embaixador argentino comigo. Não há razão para subme­tê-lo ao constrangimento. É um homem decente e pode ser extremamente útil.

Os dois homens deixaram o salão no momento em que o japonês acabava de falar. John Spada levantou-se e silen­ciou os aplausos com um gesto. Ficou calado por um mo­mento, controlando-se, depois disse:

— Neste momento, há sempre um período reservado para debates entre os convidados e o orador. Mas peço desculpas por fazer uma declaração de natureza pessoal. Acabei de receber uma notícia que talvez confirme tudo o que Meister Hugo von Kalbach acaba de falar. Minha filha Teresa casou-se recentemente com Rodolfo Vallenilla, que alguns dos presentes conhecem como um dos mais liberais e francos jornalistas da América do Sul. Desde que voltou a Buenos Aires, Teresa estava trabalhando como médica na clínica dirigida pelas Irmãs Missionárias dos Pobres. Ontem, ela foi chamada para uma operação de emergência num ho­mem com ferimento a bala. E esta noite foi presa pela polícia de segurança e está sendo mantida num local não revelado. O marido dela continua em liberdade, mas está sob constante ameaça, segundo informações oficiais. Tirem as suas próprias conclusões. . . E agora peço que me desculpem, mas vou me retirar. O Sr. Mike Santos vai presidir o restante do nosso encontro.

Mike Santos aproximou-se rapidamente do microfone, pôs a mão no ombro de Spada, num gesto protetor, e levou-o até a porta. Kitty Cowan e Maury Feldman, sentados no meio da sala, fizeram menção de ir atrás, mas Spada fez um gesto para que continuassem onde estavam. Ele tentava manter-se aprumado e firme, mas tinha a sensação de que algo se lhe quebrara por dentro.

As aflições da noite ainda não haviam terminado. Ele estava de volta ao apartamento há cinco minutos, consolando Anna que soluçava desesperadamente, quando o telefone to­cou. Uma telefonista indagou em espanhol:

— Sr. John Spada?

— Ele mesmo.

— Um momento, por favor. Tenho uma ligação de Montevidéu para o senhor.

Por um momento, Spada ficou perplexo. Não conhecia ninguém naquela cidade. Mas logo se recordou de que Mon­tevidéu, capital do Uruguai, ficava bem perto de Buenos Aires, por avião. Ficou esperando, durante uma sucessão interminável de cliques, até que Lunarcharsky finalmente falou, num italiano incisivo:        

— Presumo que já sabe da notícia.    

— Claro que sei. Onde diabo você estava metido?

—   Cheguei à cidade esta manhã e fui para o Palace Hotel. À tarde, fui verificar os cenários: a residência, o escritório do jornal, a clínica. Voltei para o hotel e liguei para Cavala. A esta altura, porém, já era tarde demais. Vim para cá de avião, a fim de telefonar-lhe. Voltarei pela manhã.

—   O que Cavala diz?

—   Sobre a jovem? Há notícias boas e más. A prisão é pública e oficial. Portanto, terão de responder às indagações diplomáticas, embora seja certo que vão protelar qualquer informação o máximo que puderem. Se fizerem qualquer coisa contra o homem, não será oficial, o que pode ser muito ruim. Vou armar um esquema de vigilância. Mas, como precisarei providenciar alguma ajuda, ele não ficará plenamente coberto por algum tempo.

— Está certo. Faça o melhor possível. Mandarei Henson para aí assim que puder.

— Ajudaria bastante.

— Também irei, nas próximas quarenta e oito horas.

— Vai precisar de muita diplomacia e pressão.

—   Isso não é problema.

—   Se eu não estiver no hotel quando chegar, deixe uma mensagem de peixe. Hasta la vista.

Ele tinha acabado de desligar quando o telefone tocou novamente. Era o Secretário de Estado Hendrick.

— John? Aqui é Hendrick. As coisas já estão em mo­vimento. Liguei para a Casa Branca. O Homem está disposto a fazer uma pressão, desde que eu lhe garanta que não há nada no caso que possa comprometê-lo.

— Muito justo. Eu lhe mandarei um bilhete de agra­decimento. E que mais?

— Bewley tem instruções para atuar vigorosamente em nível ministerial. O embaixador deles aqui ficou chocado com a notícia e está disposto a colaborar. Pela manhã, ele vai receber um protesto nosso, veemente. Mas acho melhor você compreender claramente a situação. Os homens de lá vão resistir o máximo possível. Ficarão dentro das normas. Não haverá qualquer contato diplomático antes de transcor­ridos três dias, um prazo que podem prolongar para sete dias. Tentarão arrancar de sua filha um depoimento que justifique a prisão e depois farão com que a libertação dela pareça um ato de clemência.

— Não há qualquer dúvida de que vão libertá-la, não?

— Há todas as probabilidades de que isso aconteça.

— Entendo. Será que eles me permitiriam vê-la?

— Duvido muito. Certamente vão esperar até terem o depoimento dela.

— Se isso significa o que estou pensando. . .

— Estamos adotando uma posição mais firme por cau­sa disso.

— Santo Deus!

— Mais uma coisa, John. Se for até lá. . .

— É justamente o que vou fazer.

— Pois então trate de ficar quietinho e não faça coisa alguma sem consultar o Embaixador Bewley. Um movimento em falso e poderá estragar tudo que estamos fazendo.

— Está certo. Se houver mais alguma coisa que eu possa fazer. . .

— Há, sim, John. Pode começar a rezar. Boa noite.

Spada desligou o telefone e virou-se para fitar Anna.

Ela estava agora de olhos secos, mas extremamente pálida e aturdida.

— Era o Secretário de Estado Hendrick, Anna. O pre­sidente vai intervir, se for necessário. E toda a máquina do Departamento de Estado já está trabalhando por nós.

— De quem foi o primeiro telefonema?

— Do Espantalho. Ele está na Argentina, iniciando indagações particulares. Sabe como ele é bom nessas coisas. Tem contatos por toda parte.

Spada foi até o bar, serviu dois drinques, entregou um a Anna. Ela engasgou ao primeiro gole. Limpou os lábios e as mãos, depois levou o copo novamente à boca e tomou um gole prolongado. Spada fê-la sentar-se e tentou tranqüilizá-la.

— Sabíamos que algo assim podia acontecer. Agora que aconteceu, temos de ser calmos e sensatos. Todos, do presidente para baixo, estão dispostos a ajudar. . .   e isso representa um imenso poder, Anna, um verdadeiro rolo com­pressor! Vamos tirar Teresa da prisão num abrir e fechar de olhos!

— Mas ela não pode continuar na Argentina! Da pró­xima vez, será Rodo! Eles jamais terão qualquer sossego!

— É por isso que estou indo para Buenos Aires. Quero ter uma longa conversa com Rodo.

— Vou com você.

— De jeito nenhum, meu amor! Em hipótese alguma! Vai continuar aqui mesmo. Entrarei em contato com você pelo telefone ou telex todos os dias. E pedirei a Kitty Cowan que venha fazer-lhe companhia.

— Não quero Kitty! — O tom de voz de Anna era estridente e irado. — Não quero ninguém!

— Está bem, está bem. . . — Spada afagou-lhe a testa e os cabelos. — Como achar melhor. Mas se começar a se sentir muito solitária ou deprimida. . .

Ela ergueu a cabeça, num gesto orgulhoso, fitando-o com um sorriso trêmulo.

— Sou Anna Spada. Se minha filha pode suportar uma cela de prisão, certamente que posso ficar sentada no con­forto da minha própria casa esperando por ela!

— Ah, essa é a minha garota! Eu sou John Spada, e se não posso provocar protestos tão fortes para. . .

A campainha da porta tocou nesse momento. Carlos, o mordomo, foi atender. Um momento depois Maury Feldman, Kitty Cowan e Mike Santos entraram na sala.

Depois dos cumprimentos nervosos e quando todos já estavam sentados, com drinques nas mãos, Maury Feldman disse:

— Passamos por meu apartamento antes de virmos para cá. Liguei para o advogado que costumamos utilizar em Buenos Aires. Ele vai se apresentar como o advogado de Teresa à primeira hora da manhã.

— Obrigado, Maury. O que ele acha da situação?

Feldman ergueu ligeiramente uma sobrancelha, num gesto de advertência.

— Ele não é de falar muito sobre as perspectivas. Mas posso garantir que é extremamente eficiente e tem ligações nos altos escalões. Vai lhe prestar os melhores serviços.

— Obrigado outra vez, Maury. O que aconteceu de­pois que saí do jantar?

Mike Santos respondeu por todos:

— O tempo ficou inteiramente esquecido. Ninguém conseguiu falar mais nada depois do seu comunicado. Os jornalistas presentes correram para o telefone. Os outros ficaram conversando, em pequenos grupos, até que mandei fechar o bar. Todos estavam chocados. As chancelarias estarão extremamente movimentadas pela manhã. Alguns dos nossos homens estavam perguntando se seriam cogitadas represálias econômicas. Tratei de negar rapidamente, antes que os rumores se espalhassem.

— Fez bem. E Von Kalbach?

— Nós o levamos para o hotel — respondeu Kitty Cowan — Eu disse a ele que você o procuraria pela ma­nhã. . . E agora, chefe, o que vamos fazer?

— O Departamento de Estado já está tomando todas as providências possíveis. A Casa Branca vai intervir mais tarde, se for necessário. Vou partir para Buenos Aires ama­nhã. Irei no jato da companhia. É um vôo de dez horas. Avise para estarem com o avião abastecido e pronto para decolar ao meio-dia. Mande um telex para a nossa embai­xada na Argentina. Peça-lhes que entrem em contato com Rodo e o levem ao aeroporto para se encontrar comigo. Reserve-me a suíte de sempre. Não ficarei lá muito tempo, mas preciso de um endereço oficial. O que me faz lembrar de uma coisa. . .

Spada se levantou, foi até o telefone, discou um número de Nova York.

— O Sr. George Kunz, por gentileza? É John Spada quem deseja falar. . . Olá, George. Desculpe ligar tão tarde, mas estou precisando de um grande favor. Minha filha foi presa em Buenos Aires. . . É uma questão política, comprida demais para se explicar ao telefone. Estou seguindo para a Argentina amanhã. Tenho certeza de que todos os telefones da minha companhia estão sendo interceptados e não resta a menor dúvida de que o mesmo acontecerá com o meu telefone no hotel. Sei que você tem um apartamento da companhia em Buenos Aires. Se estiver vago, eu gostaria de usá-lo. . . Ótimo. Mil agradecimentos. Peça para mandarem as chaves para Herman Vigo. . . Você é um amigo de ver­dade. Não esquecerei.

Enquanto ele voltava a se sentar, Anna se empertigou em sua poltrona e disse:

— Então é isso o que está acontecendo por lá?

— É possível, meu amor. E gosto de estar preparado para tudo. Mais uma coisa, Kitty. Peça a Henson que vá para Buenos Aires assim que puder. Diga-lhe para procurar outro amigo no Palace Hotel.

— Está certo.

— Nunca ouvi falar de Henson — interveio Mike Santos. — Assim como também nunca ouvi falar de um amigo no Palace Hotel. Se é algo ligado à companhia, não acha que eu deveria saber?

Houve um silêncio breve e tenso. Kitty e Anna se entreolharam. Maury Feldman ficou contemplando as costas das próprias mãos. Mike Santos esperou, impassivelmente.

Spada finalmente respondeu:

— Está ligado à minha filha, mas não tem nada a ver com a companhia.

— Mas pessoas   da   companhia   estão   envolvidas. . . como Kitty, por exemplo.

— E daí?

— E daí que você me confia a direção de um empre­endimento de um bilhão de dólares e oculta o seu risco pes­soal nesse caso. Parece-me que não me deveria pedir que fosse a parte alguma, a nenhuma mesmo, no escuro.

— O argumento é procedente — comentou Maury Feldman.

— E muito — acrescentou Kitty Cowan.

— Já que pressionei meu marido a promovê-lo, gos­taria de fazer-lhe uma pergunta agora, Mike — disse Anna Spada.

— Pode perguntar qualquer coisa, senhora.

Mike Santos estava calmo e deferente.

— Tem visto o que pode acontecer, mesmo a pessoas altamente situadas. Pode imaginar a situação, quando acon­tece a pessoas que não contam com qualquer proteção, não têm ninguém para defendê-las?

— Posso, sim, senhora. Fiz uma referência ao assunto num estudo que preparei para seu marido, embora saiba que ele ainda não teve muito tempo para lê-lo.

— Já o li — disse John Spada. — E Kitty e Maury também leram. Há coisas com as quais não concordamos, mas a orientação geral está absolutamente correta.

— Assumiu um risco muito grande ao escrevê-lo, Mike — comentou Feldman, sorrindo.

— Será que estaria disposto a assumir um risco maior, Mike? — indagou John Spada.

— Que risco?

— O de sacrificar sua carreira por algo em que acre­dita.

— Não estou entendendo.

— Vou tentar explicar. Todos tencionávamos convidá-lo a se juntar a nós. Estávamos simplesmente querendo esperar um pouco, até que digerisse o seu novo cargo. Mas agora fomos superados pelos acontecimentos. Nós três aqui presentes. . . e excluo Anna, porque ela é parte de mim e não parte das Empresas. . . temos um outro trabalho, par­ticular, sem qualquer remuneração, sujeito a determinados riscos. Nosso trabalho para as Empresas Spada é uma cober­tura necessária para essa atividade particular. No seu caso, por exemplo, certamente perderia a luta com Liebowitz na assembléia dos acionistas se tal atividade paralela se tornasse conhecida. Se você se envolver nisso, estará correndo um risco ainda maior, porque é um executivo empregado da companhia e pode ser demitido a qualquer momento. Essa é a primeira parte. Agora, se quiser, pode sair daqui sem saber de nada; e quer eu fique ou saia, sua carreira não correrá perigo. Mas a partir do momento em que eu lhe revelar o que fazemos, estará numa situação difícil. Se não puder aceitar o que vai ouvir, terá que pedir demissão. Se puder, passará a fazer o que estamos fazendo há muito tempo: ou seja, levando uma vida dupla. Entendido?

— Até agora, sim. Mas deixe-me perguntar-lhe uma coisa: essa atividade é política. . . esquerda e direita, algo assim?

— É humana — interveio Kitty Cowan. — Ainda voto nos candidatos democratas.

— Ainda pode manter qualquer juramento de lealdade — disse Maury Feldman. — E fitar seu Deus nos olhos no domingo.                                                        

Spada arrematou:

— Mas pode ter que enfrentar uma rebelião incontrolável na assembléia dos acionistas... ou, em circunstâncias extremas, pode receber também uma bala nas costas.

— Pare com isso, Giovanni! — protestou Anna. — Não há necessidade de falar assim!

— Fui eu que pedi, senhora — disse Mike Santos. — Muito bem, já estou devidamente advertido. Agora, vamos ao que interessa.

— Há uma advertência final — disse John Spada, fir­memente. — A partir do momento em que souber, terá a responsabilidade de vidas humanas em suas mãos.

— Ainda quero ver meu pai sorrir quando nos encon­trarmos.

— Está certo. Vamos começar por um pequeno que­bra-cabeça que parece um peixe num quadrado. . .

Já era uma hora da madrugada quando Spada terminou de contar a história de Proteu e das criaturas do mar. Ao final, Mike Santos continuou sentado, apoiando o queixo nas mãos, a olhar para o tapete. Kitty Cowan estendeu a mão e. tocou-o de leve no ombro.

— Isso é tudo. Não há mais nada.

Mike Santos sacudiu a cabeça, como um homem a des­pertar de um longo cochilo. Empertigou-se e fitou John Spada.

— É muita coisa para engolir de uma só vez.

— Quer mais tempo?

— Não.

— E qual é a sua resposta?

— Há poucos dias, perguntou-me até que ponto eu desejava o cargo que me deu. Respondi que tinha de ser capaz de conviver com o homem que iria ver no espelho.

— E daí?

— Creio que essa é a maneira pela qual posso consegui-lo.

— Seja bem-vindo! — disse John Spada. — Maury e Kitty lhe darão as informações adicionais necessárias. E agora saiam todos daqui. Quero ir para a cama com minha esposa!

Ao se despedirem com um beijo na porta da frente, Kitty perguntou baixinho a Spada:

— Vai ao escritório amanhã?

— Claro.. Estarei lá às nove horas. No caminho, vou tomar o café da manhã com Von Kalbach.

— Qual a gravidade da situação para Teresa?

— Muito grande. Gostaria que segurasse a mão de Anna enquanto estou viajando.

— Não há problema, chefe. Coragem, hem?

Mike Santos apertou a mão dele e disse, com profunda emoção:

— Obrigado por ter-me convidado a entrar para a or­ganização. Sempre o admirei, John. Mas esta foi a primeira vez em que realmente gostei de você.

Ao que Maury Feldman acrescentou, num pós-escrito mordaz:

— Esta noite. . . divirta-se! Amanhã estará provando o fruto do mar Morto. . . poeira e cinzas na boca. Boa noite, John. E tome cuidado quando chegar a Buenos Aires!

Na manhã seguinte, enquanto Spada tomava a sua últi­ma xícara de café no quarto de hotel de Hugo von Kalbach, o velho filósofo disse, com uma convicção pungente:

— A noite passada foi horrível. Mas, ao final, vi tudo com extrema clareza. Não se pode transigir com o mal. É preciso lutar sempre. . . mesmo que seja até a morte.

— Tem certeza disso, Meister?

— Tenho, sim. Finalmente, depois de tanto tempo, tenho certeza. Quando fui me deitar, tive outro aviso . . . como é mesmo que se chama em inglês?. . . uma fibrilação do coração. Fiquei imóvel, até que passou, e o ritmo do coração voltou ao normal. Não fiquei realmente com medo. Compreendo agora que a morte é um evento insignificante, logo terminado, logo esquecido. Mas ser um homem é um grande evento, repleto de possibilidades, mesmo quando se é velho. Quando eu voltar para a Alemanha, tentarei encon­trar pessoas que lhe sirvam. . . pessoas para a Proteu. Assim que as encontrar, vou lhe mandar os nomes.

— Obrigado, Meister.

— E, assim que puder, vá me visitar, por favor. Deve conhecer Frãulein Helga. Uma boa mulher, que precisava de um bom casamento. Mas eu estava muito ocupado e muito velho para prepará-la devidamente. Ah, a passagem dos anos!

— Pode estar certo de que irei. E provavelmente muito mais cedo do que imagina.

— Não pode ser tão breve quanto eu gostaria. Ficarei rezando por sua filha e o marido dela. Não há mais nada que eu possa fazer?

— Há, sim.

— Então basta dizer.

— Um dia, posso precisar de uma nova identidade, de um novo passaporte. Meu alemão é bastante bom. Já me disseram que posso passar por um suábio.

— É quase igual. — O velho filósofo subitamente se animou. — Vou pensar a respeito e ver o que posso fazer.

— Mas com alguma pressa, por favor.

— De que outro jeito poderia ser, meu amigo? Quando se ouve a batida na porta, tudo se torna urgente.

Os dois se abraçaram afetuosamente. Na porta, Spada virou-se. O velho sorriu e acenou, o rosto molhado de lá­grimas.

Ao acabar de anotar a última das diretrizes que cobri­riam a ausência de Spada, Kitty Cowan disse:

— Chefe...

— O que é?

— Estamos juntos há muito tempo. Quando você se sente ferido, eu também me sinto.

— Sei disso, menina. E me sinto profundamente grato. O resto é muito difícil de pôr em palavras, mas. . .

— Mas você ama Anna e Teresa, tudo está bem claro e nada faz sentido. Mas não se esqueça de uma coisa: eu me importo tremendamente com tudo que acontecer. Assim, seja franco comigo, está bem?

— Prometido.

— Diz isso agora, mas eu o conheço muito bem. Vejo em seus olhos uma expressão de fúria incontrolável e começo a suar.

— Damas transpiram.

— Não sou uma dama. Nunca fui. Nunca serei. Se precisar de mim, telefone. Promete?

— Todos os dias. Mesmo que não precise. Como está Mike Santos esta manhã?

— Você vai vê-lo pessoalmente. Com fogo nos olhos, fogo nas entranhas, pronto para partir para a cruzada. Mas está muito bem.

— Fique de olho nele, menina. Mike ainda está no período de teste.

— Há mais uma coisa.

— O que é?

— Maury e eu conversamos ontem à noite. Somos judeus e por isso entendemos essas coisas. Quando a situação se torna difícil, como aconteceu na Argentina, como acon­teceu na Alemanha antes da guerra, há apenas duas coisas que se podem fazer: cair na clandestinidade ou partir e lutar no exterior. Eles não demoram a agarrar quem se põe a clamar em praça pública. Teresa e Rodo precisam compreen­der isso. Você tem de fazer com que compreendam.

— Pode estar certa de que vou tentar.

— Não vai ser fácil. Teresa é igual a você, obstinada até o fim.

— E sei que Rodo é extremamente orgulhoso e tem a coragem espanhola. Tudo que posso fazer é tentar persua­di-los.

— E se não conseguir?

— Acataremos a decisão deles.

— Será que Anna terá forças para tanto?

— Terei de ajudá-la.

— Por mais que tente, sei que você não pode e não vai aceitar tranqüilamente uma decisão dessas. Não vai ficar quebrado, mas se tornará amargo e difícil de tratar. Mas Anna ficará quebrada, a menos que você a ensine a se curvar ao vento. Está me entendendo, Big John?

— Claro que estou, Kitty. Deseje-me sorte, está bem?

— Toda a sorte do mundo. — Ela pegou o rosto dele entre as mãos e beijou-o. — Fale com Mike na saída. Já aprendi a viver sem você, mas ele ainda não.

Quando desembarcou em Buenos Aires, vinte minutos antes da meia-noite, Spada descobriu que sua sorte estava acabando. Herman Vigo estava à sua espera na saída da sala da alfândega e informou-o de que Rodolfo Vallenilla havia sido preso.

— Como? Quando?

— Espere até chegarmos ao carro, por favor!

— Quem está dirigindo?

— Eu mesmo.

Enquanto seguíamos para a cidade, Vigo transmitiu os escassos detalhes:

— Assim que recebi o seu telex, liguei para o apartamento de Vallenilla. Sabendo que os telefones deviam estar sendo interceptados, falei como se fosse um recado de famí­lia normal. Você estava a caminho de Buenos Aires. Talvez ele quisesse ir esperá-lo no aeroporto, junto comigo. Marca­mos um encontro num café perto da Plaza de Mayo. Ele não apareceu, e decidi ir ao apartamento. Estava na maior con­fusão, todas as gavetas arrancadas, roupas, livros e papéis espalhados por toda parte. Fui ao escritório do jornal. Dis­seram-me que ele normalmente não aparecia antes das três horas da tarde, quando começavam a preparar a edição que é fechada à meia-noite. Deixei um recado para que me telefonasse assim que chegasse. Às cinco horas da tarde, o assistente dele me ligou, informando que Rodolfo ainda não aparecera no jornal. Logo depois, Lunarcharsky me ligou, perguntando se não poderíamos tomar um drinque antes do jantar. Assim que nos encontramos, ele contou que estava vigiando o apartamento de Vallenilla desde o início da ma­nhã, de um carro estacionado no outro lado da rua. Viu quando Vallenilla deixou o prédio e começou a andar na direção da plaza. Três homens saltaram de um carro estacio­nado, arrastaram-no para dentro e partiram. Lunarcharsky seguiu-os por uma dúzia de quarteirões, mas acabou perdendo-os de vista na confusão do tráfego. Ele disse que passara o resto dò dia à procura de uma pista, sem nada conseguir descobrir.

— Onde Lunarcharsky está agora?

— Esperando por nós num ponto de ônibus perto do hospital geral.

— Alguma notícia de Teresa?

— Seu advogado e o pessoal da embaixada estão em contato com a polícia. Já apresentaram as petições formais para falarem com ela. A polícia diz que o assunto será resol­vido no devido tempo.

— Oh, diabo!

— Já avisei a todo o nosso pessoal da Proteu. Estão em busca de informações.

— O que acha da situação, Herman?

— Não é nada boa. Mas é fácil de entender. Eles sempre quiseram silenciar Vallenilla. Ficaram numa situação difícil quando ele se casou com sua filha, já que você con­trola muitos   investimentos por   aqui.   Mas calculam que, dessa forma, você estará de mãos e pés atados. Sua filha enfrenta uma acusação criminal, conspiração para ajudar um criminoso. Vão providenciar documentos suficientes para prová-la. E depois a soltarão, cuidando imediatamente de sua extradição. Esperam que ela fique quieta e você cruze os braços, por causa do que poderá acontecer a Vallenilla.

— Mas que desgraçados! A família dele já foi infor­mada?

— Já, sim. O pai virá a Buenos Aires para falar com você. Antes, porém, quer fazer as suas próprias indagações.

— Ele será capaz de fazer alguma coisa?

— Duvido muito. Tem muitos amigos bem situados, mas a maioria das pessoas tem medo de falar qualquer coisa.

— Tudo para a manutenção da ordem pública, não é mesmo?'

— É como está a situação por aqui. Lá está o hospital. Prepare-se para abrir a porta de trás. Não vamos parar, apenas diminuir a velocidade.

Spada inclinou-se para trás e manteve a porta ligeira­mente entreaberta. Ao passarem pelo ponto de ônibus, ele empurrou a porta e o Espantalho meteu-se no banco traseiro, com uma agilidade surpreendente. Vigo acelerou imediata­mente e o carro se afastou a toda velocidade.

Spada perguntou abruptamente:

— Alguma notícia?

— A polícia não tem qualquer registro da prisão de seu genro. O que significa que ele foi agarrado pela turma da segurança.

— E onde está?

— Provavelmente no quartel-general. É o lugar que costumam chamar de "Palácio das Diversões". Sinto muito. Vi quando aconteceu, mas não podia intervir. . . não com a sua filha sob custódia.

— O que vamos fazer agora?

— Você só pode fazer uma coisa: trabalhar com a embaixada e os advogados para tirar sua filha da prisão. Deixe Vallenilla comigo. O trabalho de libertá-lo é inteira­mente diferente. Vou saltar no próximo sinal. Seguirei a pé o resto do caminho.

— Mantenha-se em contato — disse John Spada.

— Está certo. Mas não espere milagres. E pode man­dar seu avião voltar para Nova York. Tudo indica que terá de ficar aqui por algum tempo.

Spada já lidara antes com a burocracia, mas sempre como um homem poderoso, que se podia afastar de qualquer lugar a retinir os dólares no bolso, até que os burocratas ficassem ansiosos por servi-lo. Agora, no entanto, tudo era diferente, tudo mudara brutalmente. Tinha de suplicar, era forçado a ser cortês, compelido a ser humilde, porque havia vidas em jogo e o direito de habeas-corpus não mais vigo­rava na Argentina.

O advogado que Maury Feldman contratara explicou-lhe tudo logo no primeiro encontro:

— Há mais coisas acontecendo na Argentina do que as que se podem perceber na superfície. Há uma luta pelo poder entre moderados e os representantes da linha dura na junta militar, uma lição para os investidores estrangeiros de que se devem submeter às imposições militares se quiserem fazer negócios aqui, uma advertência aos liberais de que se devem contentar com a tirania da ordem, agora que foram salvos da revolução. . . Para você e para sua filha, vão dis­tribuir seus favores em pequenas gotas, a fim de que, ao final, você acabe aceitando a condenação e o banimento dela como um ato de misericórdia. Pessoalmente, eu o aconse­lharia a não permanecer aqui. Seria melhor que viesse e partisse freqüentemente.

— Quanto tempo vai levar para que Teresa seja liber­tada?

— Não menos que um mês, provavelmente mais.

— Quando eles vão permitir que eu a veja?

— Não sei. Tenho certeza de que não será em breve. Nem eu mesmo posso vê-la, apesar de ser seu advogado.

A razão para isso ficou patente depois de um encontro com o cônsul-geral americano, dez dias depois. Ele apresen­tou o seu relatório a Spada e ao Embaixador Bewley, numa reunião confidencial na embaixada.

— Levaram-me para vê-la na penitenciária feminina. Mas não me permitiram ficar a sós com ela. Estavam presen­tes uma carcereira e um agente de segurança. Informei-a de que o senhor está aqui e que estamos envidando todos os esforços para libertá-la. Ela falou com extrema cautela.

— E como ela está?

— Em suas próprias palavras: "Estou até bastante bem, levando-se em consideração..." Ela disse que sofreu um aborto, mas já está recuperada.

— Como aconteceu?

— Sr. Spada. . .   — O cônsul hesitou, visivelmente constrangido. — É melhor saber de tudo agora. Sua filha obviamente foi interrogada sob coação.

— Está querendo dizer que ela foi torturada?

— Infelizmente, sim.

— Foi ela quem lhe disse?

— Evidentemente que não. Nem poderia dizê-lo, já que, ao final, sua libertação vai depender da assinatura de um documento dizendo que foi bem tratada. Mas ela conse­guiu dar-me uma indicação. Ao falar sobre o aborto, disse que o atribuía clinicamente ao estado de choque subseqüente à sua prisão. Um dos métodos costumeiros de interrogatório é a aplicação de choques elétricos.

— Oh, meu Deus!

Spada estava dominado por uma fúria intensa. O côn­sul tentou acalmá-lo:

— Se isso serve de consolo, posso dizer que os inter­rogatórios obviamente já acabaram, pois ela está agora na ala política da penitenciária feminina.

— Mas não poderiam recomeçar?

— Não é comum. A primeira sessão de interrogatórios é geralmente ampla e exaustiva.

Spada levantou-se e começou a andar pela sala, como um leão enjaulado, fervendo com uma raiva impotente.

— Alguma coisa tem que ser feita! Não podemos ficar sentados de braços cruzados, enquanto. . .

— Não estamos de braços cruzados, John! — A voz de Bewley era firme e incisiva. — Agora que já houve o pri­meiro contato, que já sabemos o que aconteceu com ela, estamos numa posição bem mais forte. Recebi instruções para apresentar um protesto pessoalmente ao presidente da Argentina. Vou encontrar-me com ele amanhã, às dez horas. A essa altura, ele já deverá ter recebido um comunicado diretamente da Casa Branca.

— Um protesto, pelo amor de Deus!   Minha filha está. . .

— Sua filha é uma entre milhares de pessoas que têm sofrido essas mesmas coisas. O marido dela está numa situa­ção muito pior. É bem possível que, a esta altura, ele já esteja morto. Está querendo saber o que um protesto pode conseguir. Pois vou lhe explicar. Falarei com o presidente amanhã, às dez horas. Ele me dirá que, sendo um homem muito ocupado, não está a par do caso, mas que eu fique tranqüilo, pois pedirá um relatório urgente a respeito do assunto e me dará todas as informações necessárias dentro de uma semana. Depois, vai comunicar a seus subordinados que está na hora de encenar o segundo ato, que é o de pro­videnciar os documentos que provarão que sua filha é uma criminosa. Em seguida, serei convocado mais uma vez e começaremos as negociações para a libertação dela. A resis­tência deles vai depender em grande parte da opinião pública que conseguirmos mobilizar lá fora. . . jornais, televisão, a ameaça de sanções econômicas.

— Enquanto isso, Teresa está metida numa cela e o marido dela simplesmente desaparecido da face da terra! — Um súbito pensamento ocorreu a Spada, que se virou brus­camente e fitou o cônsul. — Ela disse alguma coisa a respeito de Rodo?

— Disse, sim. Perguntou se havia alguma notícia dele. Pela maneira como falou, tive a impressão de que já sabia que ele havia desaparecido. Provavelmente foram eles pró­prios que a informaram, para deixá-la ainda mais desarmada e impotente durante os interrogatórios. Assegurei-lhe que estamos fazendo todo o possível para descobrir o paradeiro dele.

— E como ela reagiu?

— Disse algo muito simples: "Pelo menos não sou a única. Diga a papai que agradeço".

Spada perdeu subitamente o controle e descobriu-se a chorar. Mas eram lágrimas amargas, que não lhe proporcio­navam qualquer consolo. Quando as lágrimas finalmente se esgotaram e ele se virou para fitar os dois diplomatas, ambos depararam com uma máscara pálida, de olhos frios, impie­dosos. A voz que saiu daquela máscara parecia partir do mundo dos mortos:

— Não me entrego geralmente às emoções, como acon­teceu agora. Não verão isto acontecer outra vez. Obrigado a ambos pelo que estão fazendo. Vou cooperar, na medida do possível. Mas vou também fazer um juramento, aqui e agora. Se o presidente da Argentina se recusar a soltar Tere­sa, pagarei pessoalmente aos assassinos que irão matá-lo!

 

Às cinco horas daquela mesma tarde, John Spada saiu do hotel para se encontrar com o Espantalho.

Seu caminho passava pela Calle Florida. Apesar das preocupações, não podia deixar de observar a multidão pi­toresca, de prestar atenção aos trechos de conversas, em espanhol, alemão, francês, italiano. O tempo estava quente e agradável, o ar cheirava a uma mistura de poeira dos pam­pas, descargas de automóveis e exalações das camadas de lodo sobre as quais se espalhava, como um gigante inquieto, a imensa cidade.

Spada não tinha pressa. O encontro fora marcado ao melhor estilo latino, entre cinco e meia e seis horas, numa adega. Ele sentia-se grato pelo tempo disponível, necessário para ordenar os pensamentos, controlar as emoções desen­contradas. Estava agora em guerra, empenhado em luta con­tra todo e qualquer homem que se interpusesse entre ele e seu objetivo. Não se podia entregar aos luxos da lamentação e arrependimento, nem mesmo à distração de amar. Devia tornar-se o que fora em sua juventude, uma máquina de combate, precisa, insensível, implacável.

No meio da Calle Florida, virou à esquerda numa viela estreita, na qual era proibido o tráfego de carros e onde cidadãos a pé podiam barganhar calmamente com o açou­gueiro, o padeiro, o alfaiate, um vendedor de pérolas, uma chapeleira, um encadernador de livros. A adega ficava num porão escuro, dez degraus abaixo da rua, com banquetas saindo das paredes. As mesas eram barris de vinho, cobertos com toalhas vermelhas e encimados por velas de cera, tão grandes quanto punhos humanos. A um canto, quatro homens jogavam cartas. No lado oposto, um homem baixo e atarracado numa camisa de malha suja estava absorto num copo de conhaque. Por trás do balcão coberto de zinco, o patrón corpulento, com o rosto todo marcado, lia os resul­tados das partidas de futebol num jornal. O Espantalho es­tava sentado à frente, um caderninho de anotações em cima da mesa, assim como um copo de vinho e uma garrafa de água mineral.

Spada sentou ao lado dele, pediu um café e um conha­que e ficou esperando que o Espantalho fizesse o lance de abertura. Mas, antes que ele tivesse tempo de dizer qualquer coisa, houve uma diversão: sirenas, o ranger distante de freios, gritos, o barulho de pés correndo, depois um silêncio sinistro.

Os jogadores de cartas continuaram absorvidos no que estavam fazendo, imperturbáveis. O patrón dobrou o jornal cuidadosamente, tirou um livro-caixa de baixo do balcão e iniciou uma pantomima meticulosa de somar as contas. O homem baixo e atarracado no canto abaixou-se, como se fosse pegar uma moeda caída, depois meteu-se no interior escuro do barril, baixando a toalha para cobrir a abertura. O Espantalho tomou um gole de vinho, depois outro de água mineral, e continuou a fazer suas anotações.

Um momento depois, dois homens, de calça esporte e blusão de couro, abriram a porta bruscamente e desceram os degraus, parando e contemplando em silêncio os fregue­ses. O patrón deu de ombros e fez um gesto a indicar: "O que vêem é o que está aqui". Os quatro jogadores de cartas enfiaram as mãos nos bolsos e tiraram os documentos, dei­xando-os em cima do barril e continuando a jogar. O Es­pantalho ainda escrevia no caderninho de anotações. Spada olhou a cena com a surpresa cautelosa de um estranho.

Os dois homens examinaram rapidamente os documen­tos dos jogadores de cartas, depois se aproximaram lenta­mente da mesa de Lunarcharsky, parando ao lado dele. Um dos homens disse rispidamente:

— Você! Preste atenção!

O Espantalho levantou a cabeça, ligeiramente surpreso, quase servil. E disse em espanhol:

— Pois não, senhores. Em que posso servi-los?

— Seus documentos!

— Ah, sim, os documentos. . .   — Ele meteu a mão no bolso do paletó, tirou o passaporte e entregou-o ao agente. — Como pode verificar, sou um visitante em seu país.

Primeiro um e depois o outro agente examinaram o passaporte. E foi só então que as perguntas começaram:

— Quando chegou a Buenos Aires?

— A data está indicada aí, no carimbo de entrada.

— Qual o propósito de sua visita?

— Com licença. — Ele enfiou outra vez a mão no bolso e tirou um envelope grande. — Isto é uma carta da embaixada de vocês em Londres para os ministérios apropriados aqui na Argentina. Explica, melhor do que eu po­deria fazê-lo, o objetivo da minha visita.

Depois de lerem a carta, os agentes tornaram-se subi­tamente mais respeitosos.

— Desculpe, senhor. Mas é que estamos empenhados numa operação de segurança. Não queríamos incomodá-lo indevidamente.

— Eu compreendo.

— Há quanto tempo está aqui na adega?

— Há cerca de quinze minutos. Por quê?

— Viu alguém mais entrar ou sair?

— Não.

— Por que veio até aqui?

— Como pode ver pessoalmente, para beber alguma coisa. Saí para dar uma volta. E fiquei cansado e com sede.

— Onde está hospedado?

— No Hotel Plaza.

— Esses seus estudos... o que são exatamente?

— Posso oferecer-lhes um copo de vinho?

— Não, obrigado. Ainda temos muito trabalho a fazer. Por favor, responda à pergunta.

— Está bem. . .   Deixe-me pensar como posso expli­car. .. Estudo o desenvolvimento da língua sob as influên­cias do meio ambiente. Vocês dois, por exemplo, falam espanhol. Contudo, posso dizer que você é do norte, perto da fronteira com o Uruguai, enquanto seu amigo vem do sul, talvez da região de criação de ovelhas perto da Tierra del Fuego. Não é isso mesmo?

— E como sabe?

— Por causa das entonações, da maneira como pro­nunciam as vogais, como se demoram em determinadas con­soantes.

— Talvez esteja certo...

— Pode fazer o favor de me devolver os documentos? Eu estaria perdido sem eles.

Com evidente relutância, o agente de segurança entre­gou-lhe os documentos.

— Quanto tempo pretende permanecer na Argentina?

— Não sei. Mas o visto é válido por três meses, não é mesmo?

— É, sim. Depois disso, terá que partir. . . ou solicitar uma renovação do visto.

— Obrigado, senhores.

— Tem certeza de que não viu mais ninguém por aqui?

— Não vi mais ninguém. Mas, como pode verificar, eu estava escrevendo algumas anotações. Qualquer pessoa poderia ter entrado ou saído sem que eu percebesse. Lamen­to não poder ajudar.

— Não tem importância.

Os dois agentes deram-se por satisfeitos com ele e pas­saram a concentrar sua atenção em John Spada, que lhes entregou o passaporte, sem dizer nada. Eles examinaram-no meticulosamente e depois indagaram:

— Qual é o motivo de sua vinda a Buenos Aires?

— Tenho uma companhia aqui, a Empresa Spada da Argentina.

Spada estava esperando uma reação imediata. Ficou surpreso por não haver nenhuma, até se lembrar de que Teresa deveria ser conhecida pelo nome de casada, Vallenilla.

O agente fechou o passaporte e devolveu-o.

— Há quanto tempo está aqui na adega?

Spada apontou para a xícara de café e o copo de conha­que, ambos ainda cheios.

— Acabei de chegar.

— Pois então divirta-se com seu drinque.

— Boa idéia. — Spada levantou o copo num brinde irônico. — Salud!

Tão abruptamente quanto haviam chegado, os dois agentes partiram. Como uma personagem de uma novela de Boccaccio, o homem baixo e atarracado emergiu de baixo da toalha da mesa, com o copo de bebida ainda na mão. Os jogadores permaneceram concentrados nas cartas. O Es­pantalho continuou concentrado em suas anotações. Spada ficou calado. Depois de algum tempo, o patrón aproximou-se e tornou a encher os copos.

— Com os cumprimentos da casa, senhores.

— Obrigado — disse o Espantalho, placidamente. — É muito generoso.

— Ao contrário. Serão bem-vindos aqui, a qualquer hora.

— Os desgraçados estão por toda parte atualmente — disse um dos jogadores, falando sem se virar. — Por isso, é um prazer ainda maior conhecer uma dupla de cavalheiros. — Ele abaixou as cartas nas mãos e recolheu o dinheiro das apostas. — Como aprendeu a falar um espanhol tão bom?

— Digamos que é uma aptidão. — O Espantalho sol­tou a sua típica risadinha dissonante. — Como jogar cartas. Quem sabe, sabe.

O homem baixo e atarracado terminou o drinque de um só gole e preparou-se para ir embora. Parou por um momento ao lado da mesa de Lunarcharsky e Spada, e disse baixinho:

— Meu nome é Sancho. Se algum dia precisarem de um serviço, qualquer dos dois, perguntem por mim aqui mesmo. Alguém irá procurá-los. E tomem cuidado com o Plaza. As telefonistas sempre ficam na escuta das conversas. Hasta la vista, amigos.

— Hasta Ia vista — respondeu o Espantalho.

— Vá com Deus — disse John Spada. Depois que o homem se retirou, o patrón disse:

— Podem ficar certos de uma coisa: Sancho é um bom amigo e um terrível inimigo.

— Não me esquecerei — disse o Espantalho, e levan­tou o copo para John Spada. — Ao inferno com todos os desgraçados!

— Também bebo a isso. — Depois, baixando a voz, Spada indagou: — Quais são as novidades?

— Vallenilla está vivo, mas em péssimas condições. Já foi removido do Palácio das Diversões.

— E onde está agora?

— Em Martin Garcia. É uma ilha-prisão, no estuário do rio de Ia Plata.

— Tem certeza?

— Sempre tenho certeza das informações que transmi­to — respondeu o Espantalho, em tom de censura.

— Tem algum plano?

— Quando Henson vai chegar?

— Amanhã, procedente de Madri. Tem um quarto re­servado no seu hotel.

— A primeira providência é Henson dar uma olhada na prisão e nos arredores. Em segundo lugar, preciso obter informações sobre o que está acontecendo no interior da prisão. Se possível, precisarei de plantas da prisão. Para con­seguir isso, só com ajuda externa.

— Que espécie de ajuda?

— Contatos entre os grupos clandestinos. Eles são mais fechados que ostras. A única maneira de conseguir alguma coisa com eles é por recomendação do exterior.

— E esse exterior o que é?

— A Junta Revolucionária Sul-Americana, sediada em Paris. Há emissários chegando e partindo a todo instante. É claro que talvez você não queira se comprometer tratando com eles.

— Minha filha e o marido estão nas mãos dos carni­ceiros. Eu trataria com o próprio Diabo para salvá-los. Te­nho um amigo em Roma que pode ajudar. Ele é membro da Proteu. . . e pertence ao Partido Comunista Italiano.

— É melhor agir depressa — recomendou o Espan­talho. — A taxa de mortalidade em Martin Garcia é muito elevada.

— Meu embaixador vai falar com o presidente amanhã de manhã. Esperarei pelos resultados desse encontro. De­pois, decidirei se posso ausentar-me por alguns dias. Voltarei via Munique e Roma.

— Já pensou que sua filha nunca mais poderá voltar a partir do momento em que for extraditada?

— Eu diria que isso é óbvio.

— E já pensou que podem estender o banimento a você também?

— É claro que já pensei nisso -— murmurou Spada, sombriamente. — É por isso que preciso voltar através da Alemanha. . . Termine o seu vinho e vamos dar uma volta. Quero apresentá-lo a alguém.

Ele fez sinal para que o patrón trouxesse a conta. En­quanto Spada pegava o dinheiro, o argentino disse, em inglês:

— Não e muito sensato vir aqui com freqüência. Te­mos muitos visitantes indesejáveis. Estavam falando sobre Martin Garcia. . . — Spada e o Espantalho se entreolha-ram. O patrón apontou para o teto e acrescentou: — O som sempre se espalha bastante num porão. Ouvi tudo o que disseram. Felizmente, os outros não entendem inglês.

— Obrigado — disse John Spada.

— Aquele Sancho... — O homem baixou a voz para um mero sussurro. — Ele esteve prisioneiro em Martin Garcia por doze meses. Talvez possa ajudar.

— Talvez possa mesmo — murmurou o Espantalho. — Pergunte-lhe se está disposto a se encontrar comigo. . . e onde. Voltarei aqui amanhã para saber a resposta.

— Deixe para depois de amanhã. Sancho é um homem muito ocupado. Está sempre em movimento. Hasta la vista, senores!

A loja de Salvador González, negociante de gravuras e livros raros, era um prédio estreito, com uma única vitrina empoeirada, protegida por uma grade de ferro. A vitrina nada revelava, exceto umas poucas gravuras amareladas e livros indefinidos, encadernados em couro. Lá dentro, tudo se apresentava imaculado e em ordem: os exemplares da arte dos antigos cartógrafos muito bem emoldurados e ilumina­dos, as gravuras em exposição numa mesa grande, os volu­mes antigos meticulosamente limpos, as encadernações de couro feitas por mãos ternas.

O próprio Salvador González era um espécime singular de uma raça singular, a dos antiquários, que de alguma for­ma conseguia sobreviver a guerras, terremotos e mudanças políticas e emergir ilesa, ainda mantendo as suas preciosas relíquias, como se fossem talismãs contra os infortúnios. Ele era pequeno, quase um anão, com uma vasta cabeleira bran­ca e uma barba de aspecto distinto, sempre impecavelmente aparada. Suas roupas eram de um corte antiquado. Ainda usava botas de botões e polainas, um monóculo preso por uma fita preta de seda, uma corrente de relógio de ouro estendida através do colete.

Uma sineta retiniu sobre a porta quando John Spada entrou, acompanhado pelo Espantalho. O pequeno antiquário adiantou-se para cumprimentá-los.

— Bom dia, senhores! São bem-vindos à minha loja. Sou Salvador González. Desejam ver alguma coisa em espe­cial? Tenho gravuras, mapas, livros raros. . . Já tive o pra­zer de encontrá-los antes?

— Ainda não, o que lamento — disse John Spada, estendendo um cartão de visitas, no qual estava o símbolo de um peixe num quadrado. — Você é Golfinho. Creio que pode me ajudar a encontrar um mapa extremamente raro.

O homenzinho ajustou o monóculo no olho, examinou o cartão por um momento e depois devolveu-o a Spada.

— Ah, sim. . . Cavala me avisou que o esperasse. Qual é o mapa que está procurando?

— De Martin Garcia — disse o Espantalho incisiva­mente. — Os acessos pelo rio, a ilha e suas instalações, o exterior e o interior da fortaleza propriamente dita. Os sis­temas de alarme e os circuitos elétricos. Quanto tempo vai demorar para conseguir tudo?

A sineta na porta da loja tocou novamente e Salvador González, como um ator, lançou-se prontamente a um mo­nólogo meticuloso:

— ... Um exemplar muito raro dos Tratados de Bartolomé de las Casas, edição de 1552. O estado não é tão bom quanto se poderia desejar, mas a raridade da edição justifica plenamente o preço pedido. Não tenho pessoalmen­te os volumes, mas posso. . . Oh, minha cara Senora More­no! É um prazer vê-la, como sempre. Sua gravura já está emoldurada. Permita-me mostrar-lhe. . . Peço que me dêem licença por um momento, señores. Por aqui, por favor. . . Ele seguiu a visitante, uma jovem e atraente matrona, passando pela porta aos fundos da loja e subindo a escada. Estiveram ausentes durante cerca de cinco minutos. Ao vol­tarem, a mulher carregava um embrulho grande. Assim que ela se retirou, o homenzinho voltou a se mostrar objetivo e profissional:

— O que estão precisando. . . é muita coisa. Não sei qual a disponibilidade de informações sobre Martin Garcia. Vou precisar de três dias pelo menos para verificar o que há disponível e reunir tudo.

— A esta mesma hora, dentro de três dias — disse John Spada. — Um de nós dois estará aqui.

— É melhor telefonar primeiro. Tenho um grupo sortido de clientes. Como a Senora Moreno. Ela é a segunda esposa de um dos nossos generais mais preeminentes. Ele gosta de gravuras pornográficas antigas, e a mulher é que providencia. Vendo para ela tudo o que me aparece. Ay de mi! É uma pena que eu já esteja velho demais para apreciar essas coisas pessoalmente. Quem telefonar, deve mencionar os Tratados e a edição de 1552. E deve acrescentar que estaria interessado se o preço fosse revisto. E por falar em preço...

— Não vamos   falar de dinheiro — interrompeu-o John Spada, polidamente. — Precisamos do mapa e dos seus serviços. Estamos dispostos a pagar o que for preciso.

— Por favor! — O homenzinho estava ansioso por evitar qualquer incompreensão. — Para os amigos da Proteu, o preço é mínimo. Mas há sempre algumas despesas inevitáveis. . .

— Compreendo perfeitamente — disse John Spada. — E concordaremos com tudo, sem qualquer discussão. Agora, eu gostaria de esquecer os negócios por um momen­to, para podermos apreciar alguns dos seus tesouros.

— Como este, por exemplo. . .

O Espantalho apontou para um grande mapa, em pergaminho, protegido por vidro. O homenzinho fitou-o com um novo respeito.

— Ah, estou vendo que possui o olho do connoisseur! Esse mapa é uma das minhas melhores peças. Sua proveniência está bem definida. É uma das cartas do rio de la Plata, preparada pelo cartógrafo de Pedro de Mendoza, em 1536.. .

— Já vi outro igual em Londres — comentou o Es­pantalho.

— Deve viajar bastante.

— Lamentavelmente, é o que acontece. Invejo a sua vida de estudioso, cercado por todos esses tesouros.

O homenzinho franziu o rosto, mudando de posição, visivelmente aflito, sobre os pés metidos nas botas antiquadas.

— Por favor! Não me julgue um homem feliz. Infeliz­mente, não é o que acontece. Nestes tempos difíceis, deve­mos dar graças pelo simples fato de permanecermos vivos. Meu neto, um rapaz de dezoito anos, foi fuzilado pelos mi­litares há seis meses.

— Sinto muito — murmurou John Spada. — Minha filha está nas mãos da polícia. E o marido dela, Rodolfo Vallenilla, está preso em Martin Garcia.

— Eu já sabia disso. O pai dele é um velho e querido amigo. Há muitos anos que lhe vendo gravuras de caça. Farei todo o possível para ajudar. Devem ir agora. E não esqueçam. . .

— Não vamos esquecer. Daqui a três dias, um de nós vai telefonar para falar sobre os Tratados, edição de 1552. Por falar nisso, quem possui essa edição?

— Está na biblioteca do presidente. É verdade que ele jamais a lê, mas nunca a venderia a gente como nós. Vão com Deus, meus amigos.

— Ainda acredita em Deus, Señor González? — per­guntou John Spada.

— Está ficando mais difícil a cada ano que passa. Mas, se conseguirem tirar o prisioneiro de Martin Garcia, prome­to que irei à missa do arcebispo no domingo.

Quando saíram da loja para a rua ensolarada, o Espan­talho comentou:

— Permita-me dizer-lhe que é um homem surpreen­dente, Sr. Spada.

— Permita-me dizer, doutor, que quero estar em con­dições de abrir aquela maldita prisão como se fosse uma lata de sardinhas. . .   e não quero que a chave se quebre em minhas mãos!

— Amém — disse o Espantalho.

O homem sentado à escrivaninha mais parecia um ator escolhido a dedo para o papel de um ditador militar. Era magro, moreno, saturnino. O uniforme se lhe ajustava ao corpo como uma segunda pele. Tinha os gestos comedidos. O sotaque argentino estava disfarçado por um verniz de castelhano. Sua hostilidade se achava encoberta por um dis­curso meticulosamente formal:

— . . . Como presidente da Argentina, intervenho ra­ramente nos assuntos dos meus ministérios. Contudo, como um gesto de boa vontade fraternal para com o presidente dos Estados Unidos, fiz um estudo pessoal do caso de Teresa Spada. Não tenho a menor dúvida de que ela é culpada do que foi acusada, isto é, dar ajuda aos inimigos do Estado e obstruir a investigação da polícia. Confrontada com todas as provas, ela escreveu e assinou uma confissão completa, por sua livre e espontânea vontade. Também assinou uma declaração de que, durante todo o tempo em que esteve presa, foi tratada com o devido respeito por seu sexo e por seus direitos legais e pessoais. Tudo isso consta do protocolo e é confirmado pelas cópias fotostáticas que lhe entregarei. Agora, senhor embaixador. . .

O presidente fez uma pausa, recostando-se na cadeira e juntando as pontas dos dedos, como um inquisidor a con­siderar uma questão de teologia.

— Agora, senhor embaixador, gostaria que entendesse meu dilema. Essa jovem, uma cidadã americana, a quem foi concedido o privilégio de residência e trabalho neste país, cometeu graves crimes, pelos quais a sentença é uma prisão prolongada. Estou compelido por juramento a manter a lei e a ordem, a respeitar os devidos processos da justiça. O que faria o senhor, se estivesse em minha posição?

O Embaixador Charles Bewley permitiu-se um sorriso débil e desolado.

— Fui banqueiro antes de me tornar diplomata, senhor presidente. Penso em termos de custos e lucros. Um ato de clemência nada lhe iria custar e certamente renderia bons dividendos.

— Que tipo de dividendos, senhor embaixador?

— Melhores   relações   com   a   Casa Branca.   Alguma absolvição pessoal dos excessos de seus subordinados.

— Acha que preciso de uma absolvição? — Havia um ligeiro tom de irritação na pergunta. — O senhor fala como banqueiro, pois eu penso como historiador e soldado. As revoluções não se fazem com delicadezas!

— Sebastien Chamfort para Marmontel. Também li um pouco de história, senhor presidente. E conheço muito bem a história recente. O cavalo que o trouxe ao palácio presidencial havia sido selado por interesses financeiros americanos e outros neste país. Se quiser permanecer na sela vai precisar de mercados para os seus produtos agrícolas, vai precisar de investimentos para dar trabalho aos seus desem­pregados. Quinze por cento de suas exportações são absor­vidas por companhias controladas por John Spada. Dez por cento dos investimentos em dólares na Argentina passam pelas mãos dele. E mesmo assim está disposto a manter a filha de Spada na prisão?

— Não. Quero saber o que vou conseguir, se a soltar.

— Neste caso, é melhor falar pessoalmente com Spada. Ele está esperando lá fora. Mas aceite um conselho meu, senhor presidente. Deixe-me sair daqui para chamá-lo com o decreto de anistia no meu bolso.

Houve um longo silêncio na sala, em que se ouvia ape­nas o tique-taque do relógio em cima da lareira. Finalmente, com um cuidado insólito e meticuloso, o presidente desatou a fita rosa da pasta sobre a mesa e estendeu-a na direção de Bewley.

— Está tudo aí: o protocolo, os documentos, o decreto de anistia. A jovem será entregue em sua embaixada ao meio-dia de amanhã. Quero que ela esteja fora do país doze horas depois.

— Obrigado, senhor presidente. — Charles Bewley levantou-se, alisando a frente do paletó. — Ligarei para a Casa Branca e para o Departamento de Estado. Tenho cer­teza de que ficarão satisfeitos e gratos por sua decisão. Posso saber qual a decisão tomada com relação ao marido da jo­vem. . . Rodolfo Vallenilla?

— Não há qualquer decisão — disse o presidente cal­mamente. — Pela simples razão de que ninguém sabe onde ele está. Não foi preso, como insinuou. Nem a polícia nem as forças de segurança têm a menor idéia do paradeiro dele.;

Bewley digeriu a resposta em silêncio. O presidente acrescentou um comentário impassível:

— Contudo, mesmo que ele estivesse preso, o caso seria tratado como uma questão interna. E qualquer intro­missão dos Estados Unidos seria repelida prontamente.

— O que significa que devo informar ao Sr. Spada que sua filha será libertada, mas que não se tem a menor idéia do paradeiro do marido dela.

— Exatamente, senhor embaixador. Deve também ínformá-lo de que a jovem não terá permissão para retornar à Argentina, e ficaríamos satisfeitos se ele restringisse as suas visitas ao nosso país ao mínimo necessário para tratar dos negócios que mantém aqui.

— Com todo o respeito, senhor presidente. . .

— Pois não, senhor embaixador?

— Concordou em receber o Sr. Spada ao final de nossa conversa. Permita-me sugerir que uma atitude mais humana de sua parte poderia ser, ao final, mais lucrativa para o seu país. O Sr. Spada é um homem de grande influência.

— Agradeço o seu conselho — disse o presidente, bruscamente. — O Sr. Spada fala espanhol?

— Espanhol, francês, italiano, alemão. . . e creio que russo também.

— É algo notável.

— Em tudo e por tudo, o Sr. Spada é um homem notável. . .   E agora, senhor presidente, peço licença para me retirar.

— Até o nosso próximo encontro, senhor embaixador.

Na ante-sala, Bewley deu um conselho final a Spada:

— Teresa será libertada amanhã. O presidente nega qualquer conhecimento do paradeiro de Vallenilla. Vai rece­bê-lo agora. Pelo amor de Deus, procure controlar-se. Fi­carei esperando no carro.

Spada assentiu, sem dizer nada. Bewley hesitou por um momento e depois se afastou, deixando-o rígido como uma estátua de mármore, sob o olhar atento do guarda. Uma campainha abafada soou. O guarda abriu a porta para o ga­binete presidencial, fez um gesto para que Spada entrasse, bateu continência quando ele passou e em seguida fechou a porta silenciosamente.

Spada esperava uma longa caminhada ritual até a pre­sença do ditador. Em vez disso, encontrou o presidente de pe no meio da sala, um anfitrião solene e penitente. Seu primeiro cumprimento foi uma ligeira mesura, o segundo um pedido de desculpas.

— Não lhe ofereço minha mão, Sr. Spada, porque tenho certeza de que não gostaria de apertá-la. Se eu estivesse no seu lugar, também sentiria a mesma coisa. . . Con­tudo, espero que possa suportar a minha presença por alguns momentos.

John Spada não disse nada. O presidente fez um gesto para que ele se sentasse, continuando de pé, a fitá-lo. Acres­centou calmamente:

— Sei o que está pensando, Sr. Spada. Sua filha ainda está nas mãos da polícia. Nada fará ou dirá que possa com­prometer a segurança dela. Assim, permita-me dizer-lhe uma coisa: aconteça o que acontecer nesta sala, entre nós, sua filha será libertada amanhã, ao meio-dia. Comuniquei ao seu embaixador que ela deve deixar o país até doze horas depois.

— Meu avião está preparado para decolar. Vamos par­tir assim que minha filha for libertada. Eu esperava que o marido dela pudesse acompanhar-nos.

— Nada me daria maior prazer, Sr. Spada. Infelizmen­te, tudo indica que ele se ausentou por sua própria inicia­tiva. . . o que, nas circunstâncias, não lhe dá muito crédito.

— Ele foi seqüestrado, senhor presidente. E tenho tes­temunhas para prová-lo.

— Neste caso, deve persuadi-las a prestarem depoi­mento na polícia.

— E deixar que as testemunhas corram perigo tam­bém? Não, obrigado.

Um ligeiro sorriso contorceu os cantos da boca do pre­sidente.

— É um homem como eu, Sr. Spada. Compreende os usos e exigências do poder. Sua filha foi torturada e vio­lentada por interrogadores profissionais, sob o meu coman­do. Se eu soubesse desde o início quem era ela, tais coisas jamais teriam acontecido. Tenho três filhas. Estremeço só de pensar no que lhes aconteceria nas mãos dos meus ho­mens. Mas, neste país tão instável, sou forçado a usar tais métodos e tais homens. Não há um provérbio que diz que o medo, mais que o jardineiro, mantém o jardim seguro? Se sentir a necessidade de vingança pessoal, eu lhe darei os nomes e endereços dos responsáveis. Posso até mesmo enviá-los numa missão qualquer a Nova York, onde poderia cuidar deles à vontade. Mas de que isso adiantaria? Eu encontra­ria outros para tomar o lugar deles, assim como o senhor substitui os cães de guarda de suas fábricas, no momento que se tornam dóceis ou preguiçosos. Assim, ofereço-lhe uma vingança mais doce. Eu me humilho em sua presença. E pergunto-lhe qual o efeito que esse infeliz incidente terá nas transações que mantém em nosso país.

— Ao diabo com os negócios! Vamos falar sobre mi­nha filha. Ela foi presa e torturada porque realizou um ato de misericórdia, o de tirar uma bala de um homem ferido pela polícia.

— Já lhe disse o quão profundamente lamento o que aconteceu, Sr. Spada. E estou agora preocupado com uma questão mais ampla: o bem-estar econômico do meu povo.

— Os negócios são como a prostituição — disse John Spada. — Os bordéis continuam abertos, enquanto estão lavando o sangue de César das pedras do foro. Minhas em­presas ainda estarão aqui quando o senhor estiver morto. . . a menos que queira expropriá-las, o que representa um luxo que não pode ter neste momento.

— E qual a sua atitude pessoal em relação ao meu governo?

— É uma opinião particular. . . Mas, de qualquer for­ma, vou dizer. O senhor não tem um governo, mas sim uma tirania.

— O que não o impede   de lucrar com   isso,   Sr. Spada. . . e seus lucros dobraram desde que assumi a presidência.

— Sei disso. E o que acha que devo fazer? Enforcar-me como um Judas ou matá-lo como um carniceiro?

— Estaria morto antes de conseguir apertar o gatilho, Sr. Spada.

— As vezes fico pensando. . .   Costuma ler muito, senhor presidente?

— Muito pouco agora. . . exceto os documentos ofi­ciais.

— O que é uma pena. Ao que me parece, aprecia in­tensamente os provérbios. Pois pense neste, de Cervantes: “Todo porco sempre encontra seu dia de banquete". Eu lhe desejo um bom dia, senhor.

— Bom dia, Sr. Spada. Espero que encontre sua filha gozando de boa saúde.

Naquela noite, no apartamento que lhe fora empres­tado por George Kunz, Spada realizou um conselho de guerra. Estavam presentes o Espantalho, o Major Henson, um homem moreno e taciturno que olhava de soslaio para os civis à sua volta, Salvador González, negociante de gravuras e livros raros, e um homem magro, de pele morena, cinqüenta e tantos anos, que era o pai de Rodolfo Vallenilla. O relato de Spada foi preciso e detalhado:

— Teresa será entregue na embaixada dos Estados Unidos amanhã, ao meio-dia. Voltarei de avião para Nova York, junto com ela. Ficarei por lá o tempo suficiente para instalá-la e acertar alguns problemas de negócios, depois seguirei para a Europa a fim de entrar em contato com a Junta Revolucionária Sul-Americana. Aproveitarei para pro­videnciar também uma nova identidade. Estarei de volta o mais depressa possível.

— Por quanto tempo ficará ausente? — indagou o Espantalho.

— Creio que por dez dias. Duas semanas, no máximo. Até lá, espero que já tenha formulado um plano para tirar Rodo de Martin Garcia. O que temos até agora?

— Temos uma base de operações — declarou o Valle­nilla mais velho. — Possuo cinqüenta acres de laranjais perto do rio. Há uma casa grande, e os empregados são leais. Pode-se chegar à beira do rio, em frente a Martin Garcia, em apenas vinte minutos de viagem de carro.

— As plantas da prisão. . . — O pequeno antiquário estava visivelmente ansioso. -— Tenho um velho desenho da fortaleza original, assim como uma carta de piloto atualizada dos acessos pelo rio. Há uma pequena companhia que faz levantamento aerofotogramétrico rio acima. Estamos tentan­do encontrar um homem que possa tirar fotografias aéreas de Martin Garcia.

— Conversei com Sancho — disse o Espantalho. — É o camarada que conhecemos naquela adega. Ele está fazendo desenhos do interior da prisão e indicando todos os pontos estratégicos de que consegue lembrar-se. Está também for­necendo detalhes sobre a rotina da prisão. Tenho a impres­são de que ele poderá ajudar ainda mais, se você voltar com uma carta branca da Junta Revolucionária.

— Posso fornecer os veículos — disse Vallenilla. — Dois jipes e dois caminhões agrícolas. Também armas de caça e pistolas.

— E quanto aos homens necessários?

A pergunta era de Spada. O rancheiro sacudiu a cabeça.

— Não será possível. Não posso comprometer meus empregados dessa forma.

— O que nos leva de volta a Sancho — disse o Espantalho. — Ele participa do movimento subterrâneo. Mas não vai arriscar seus homens, a menos que haja a aprovação da Junta Revolucionária. Mas, a partir do momento em que conseguirmos isso, Henson poderá iniciar um programa de treinamento intensivo.

— Treinamento para quê? — Era a primeira vez que Henson falava. — Dei uma olhada em Martin Garcia, saindo de barco com um habitante local. Não há qualquer meio de se atacar a fortaleza, a não ser através de bombardeio por um cruzador. Mesmo que conseguíssemos entrar, o que já seria muito difícil, não teríamos qualquer lugar para ir ao sairmos. É simplesmente uma armadilha. Se querem tirar o homem de lá, precisam dar um jeito para que as autoridades da prisão o entreguem.

— E como pensa conseguir isso? — indagou Salvador González.

— Ainda não sei. As informações de que dispomos são insuficientes para qualquer planejamento. O que sei é que não podemos preparar qualquer tipo de operação sem as informações adequadas: geografia, horários, detalhes sobre o pessoal da prisão, comunicações locais. Um trabalho assim pode exigir semanas de preparativos.

— Meu filho pode não sobreviver por tanto tempo — disse Vallenilla.

— Muitas pessoas mais irão morrer se a operação não for bem planejada.

— Há um outro problema — disse o Espantalho. — Rodolfo Vallenilla é um liberal. Nunca pertenceu ao movi­mento revolucionário. Por que eles iriam arriscar seus pró­prios homens para salvá-lo?

— É por isso que estou indo para a Europa — decla­rou John Spada. — Farei um acordo com a Junta Revolu­cionária. Se nos ajudarem com Rodo, iremos ajudá-los com qualquer um dos seus que quiserem indicar.

— Agora já estamos falando de duas pessoas, pelo menos. — Henson era um homem muito persistente. — Também estamos falando em assumir um duplo risco, o pessoal da segurança por um lado e os grupos revolucioná­rios por outro. Detestaria ser apanhado entre esses dois fogos.

— Gostaria de dizer mais uma coisa. — Subitamente o Vallenilla mais velho assumia um papel dominante no gru­po. — Conheço meu filho. Ele jamais consentiria em ser salvo à custa da vida de outros homens.

— Precisamos de Rodo — disse Spada, categorica­mente. — Precisamos da voz dele para falar sobre a tirania que existe neste país.

— A esposa dele, que é também sua filha, talvez tenha algo a dizer.

— Não! — John Spada estava sombrio. — O que fizermos, daqui por diante, será por nossas próprias razões, ao nosso próprio risco. Agora, vamos tentar definir as infor­mações de que vamos precisar e onde provavelmente pode­remos obtê-las. . .

No dia seguinte, pontualmente ao meio-dia, Teresa Spada Vallenilla foi entregue, sob escolta militar, à embai­xada dos Estados Unidos. Ao vê-la subir coxeando a escada da embaixada, recusando o braço que um homem da escolta lhe ofereceu, John Spada tornou-se presa de uma raiva im­potente. Teresa tinha vinte e oito anos, os cabelos pretos cheios de fios brancos, a pele dourada e transparente como mel num jarro. Ela poderia ser irmã de sangue da Madonna Annunziata, de Palermo, com os mesmos olhos grandes e sombrios, a mesma ironia triste na boca. Embora não hou­vesse qualquer deformidade visível, ela se apoiava numa bengala. Quando John Spada a abraçou, Teresa estremeceu e sussurrou:

— Devagar, papai. Ainda está doendo.

Houve uma cerimônia breve e tensa de boas-vindas na embaixada, depois uma angustiante viagem de carro pela cidade, uma rápida solução diplomática de todos os trâmites burocráticos no aeroporto. E logo estavam avançando de carro pela pista, na direção do Boeing com o emblema Spada na fuselagem. A parte traseira do avião fora convertida numa sala de operações de emergência, com um médico e enfermeira à espera. Teresa protestou debilmente, mas Spada foi firme e intransigente:

— É uma longa viagem de volta a Nova York e não queremos ter nenhuma surpresa desagradável no caminho. O Dr. Timmins vai examiná-la e verificar quais os cuidados de que precisará ao chegar. Por favor, deixe-nos cuidar de você agora.

— Antes de qualquer coisa, nao se esqueça de que me prometeu que falaria sobre Rodo!

— Sabemos que ele está vivo. . . em Martin Garcia. Tenho homens já fazendo planos para tirá-lo de lá. Vou vol­tar assim que você estiver instalada em Nova York. Confie em mim, bambina.

— Tenho de confiar, papai!

Teresa começou a chorar nesse momento, baixinho, lágrimas de gratidão. Quando decolaram, ela segurou a mão do pai e aconchegou-se contra o ombro dele, estremecendo num imenso suspiro de alívio, como uma criança despertada de um pesadelo. O horror do pesadelo ficou patente uma hora depois, quando o Dr. Timmins foi apresentar a Spada o seu primeiro relatório.

— Dei um sedativo a ela, John. Vai dormir por duas ou três horas.

— Como está ela, doutor?

— Já sabe que ela perdeu o bebê?

— Já, sim. Conte-me o resto.

Timmins hesitou por um momento, depois começou a verificar suas anotações e foi falando, de uma maneira clínica e seca:

— Há indícios amplos de trauma, tanto interno como externo. A região dorsal inferior apresenta cicatrizes, apa­rentemente decorrentes de espancamento. Há danos no quin­to disco lombar e inflamação do nervo ciático, o que explica o fato de ela estar coxeando. Ambos os seios apresentam sinais de queimadura, por cigarros ou charutos. Os mamilos estão cauterizados e teriam de ser abertos cirurgicamente para permitir a lactação, depois do parto. Ela foi repetida­mente estuprada, tanto por membros masculinos como por instrumentos, havendo assim muita destruição de tecido de membrana. Há irregularidades cardíacas, provavelmente de­correntes das aplicações repetidas de choques elétricos. Os rins e o baço apresentam lesões. Há irregularidades nos dois pulmões e ela própria diagnosticou pneumonia, depois da tortura pela água.

— Os desgraçados! Os desgraçados sádicos! O que vai acontecer com ela agora?

— Ela vai se recuperar fisicamente de quase tudo, embora as conseqüências sejam inevitáveis e ela vá precisar de uma observação médica constante por um longo tempo.

— Como ela está mentalmente?

— Está lúcida, calma, aparentemente estável. O melhor sinal é o fato de suas preocupações não estarem concentra­das em si mesma, mas sim no marido e nas mulheres que conheceu na prisão. Teresa é uma mulher extremamente co­rajosa, John. Devia sentir-se orgulhoso dela.

— Ela poderá ter outro filho?

— Duvido muito.

— Ela sabe disso?

— Sendo médica, deve desconfiar.

— Deus do céu! Vamos tomar um drinque?

— Boa idéia.

Uma linda aeromoça, com o emblema da Spada na blusa, serviu os drinques, ficou esperando por um momento, indecisa, pelo sorriso de agradecimento do patrão, afastan­do-se depois, desapontada. Spada tomou um gole longo e pôs-se a olhar para o copo. Finalmente disse:

— Poderia fazer-me um favor, doutor?

— Claro.

— Escreva suas anotações de forma a que possam ser publicadas. Quero que sejam divulgadas pela imprensa em geral e por todas as publicações médicas especializadas.

Timmins sacudiu a cabeça.

— Não posso fazer isso sem o consentimento da pa­ciente. E não creio que seja o momento mais apropriado para pedir tal consentimento à sua filha.

— Esqueça, então.

— Há mais uma coisa, John.

— O quê?

— A imprensa. . . mantenha-a longe de Teresa. Não será bom fazê-la reconstituir tudo o que sofreu.

— Eu já tinha pensado nisso. Há uma ambulância à espera no Aeroporto Kennedy. Vamos levá-la diretamente para a sua clínica. A mãe pode fazer-lhe companhia lá.

— Ela vai precisar de você também, John.

— Ela precisa ainda mais do marido.

— Quais são as possibilidades de ele escapar?

— Bem poucas. Viu o que fizeram com Teresa, mesmo sabendo que iriam libertá-la. Imagine o que não fazem com os próprios argentinos. . . e ainda por cima quando é um dos seus críticos mais encarniçados! Estamos vivendo num hospício, doutor, dirigido por psicopatas carniceiros. — Spada virou-se subitamente na poltrona, fitando o médico. — Ela ainda está dormindo?

— Está, sim, e continuará a dormir por mais algum tempo. Por quê?

— Tenho que vê-la. Tenho que me lembrar nitida­mente do que fizeram com ela.

— Por favor, John!

— Mostre-me!

Timmins deu de ombros, desabotoou o cinto de segu­rança e seguiu na frente para o compartimento traseiro do avião. Fez um sinal para a enfermeira, que se adiantou para falar com a aeromoça, Timmins perguntou mais uma vez:

— Tem certeza de que está mesmo querendo isso, John?

— Certeza absoluta.

Timmins levantou o lençol e puxou a camisola cirúr­gica, a fim de que o corpo de Teresa ficasse exposto. Spada contemplou-a por um longo tempo, depois inclinou-se e bei­jou as cicatrizes. Cobriu-a novamente, como se fosse uma criança adormecida.

E disse simplesmente:

— Obrigado. Sei agora o que tenho de fazer.

Ele virou-se bruscamente, voltou para o seu assento e pediu outro drinque.

Era meia-noite quando aterrissaram em Nova York e duas horas da madrugada quando Teresa finalmente ficou acomodada na clínica, sob os cuidados de uma enfermeira especial e com Anna alojada no quarto ao lado. Spada espantou-se ao constatar como Anna estava calma, como estava determinada a transmitir força e tranqüilidade à filha Anna achava-se terrivelmente fatigada. Os olhos brilhavam com lágrimas não derramadas, mas ela ficou sentada, serena controlada e terna, até que Teresa adormecesse. Depois pegou a mão de Spada e levou-o para o quarto ao lado.

Enlaçou-o pelo pescoço e beijou-o, depois manteve-se a um passo de distância, enquanto lhe dizia:

— É um bom homem, Giovanni. Ambas temos sorte por contar com você. Deve ir para casa agora. Carlos pre­parou o jantar.

— Vai ficar bem aqui?

— Claro.

— Terei de partir novamente, Anna. E muito em breve.

— Eu compreendo. E é justamente isso o que lhe que­ria dizer. Deixe Teresa comigo. O problema agora será tra­tado melhor por mulheres. Assim que Teresa melhorar um pouco, eu a levarei para a Bay House. Para onde vai agora, Giovanni?

— É melhor você não saber, Anna. Direi um lugar e estarei em outro. Prometi a Teresa. . .

— Sei o que prometeu a ela: que traria Rodo de volta. Mas também quero-o de volta, amore. Não se esqueça disso.

— Jamais esquecerei, Anna mia. Mas preciso estar livre por algum tempo para ir e vir, aparecer e desaparecer sem quaisquer perguntas. O que eu vou fazer será da minha conta. . . apenas da minha, está certo?

— Não precisa explicar-me as coisas, amore. Já li tudo em seus olhos.

— E me culpa?

— Não. Você é o chefe da família. Sempre nos prote­geu. Faça o que fizer, não haverá censuras da minha parte. Vá agora para casa, amore. Jante e durma bem.

Eles se abraçaram novamente. Por um momento, Spada desejou que ela lhe pedisse para ficar. Mas ela empur­rou-o gentilmente para a porta e depois foi dar uma última olhada em Teresa, drogada e tranqüila, no quarto ao lado. Ao caminhar pelos corredores escuros e sair para o ar frio da madrugada, Spada teve a sensação de que um estranho entrara em seu corpo, algum espadachim sombrio e sinistro, ansioso pela hora de matar.

Na manhã seguinte, ao passar pela clínica a caminho i escritório, Spada ouviu pela primeira vez o relato pessoal de Teresa sobre a sua prisão. A princípio, tentou dissuadi-la de falar, mas Teresa rejeitou todas as objeções dele, dizendo impacientemente:

— Por favor, papai! Tenho de falar. Aprendi isso com as outras. Algumas passaram por coisas bem piores do que eu Mas todas concordavam em que era melhor contar tudo, até mesmo os atos mais bestiais. Se não fala, a pessoa co­meça a se sentir vil, repulsiva e covarde, a um ponto tal que pode enlouquecer. Para ficar sã, é preciso manter aque­les horrores dentro de proporções humanas. Assim, papai, deixe-me falar. Em parte é uma confissão, e preciso disso também.

— Ninguém no mundo tem o direito de julgá-la, bambina!

— Mas deixe-me contar tudo, papai. Está se arriscan­do muito por Rodo e tem de saber como são aquelas pes­soas. . .

Ela começou de forma objetiva e fria, dando a impres­são de que estava descrevendo um caso para o cirurgião da clínica, durante a ronda matutina:

— Eu estava em casa, depois de um dia cansativo de trabalho na clínica. Pouco antes da meia-noite, recebi um telefonema de uma das irmãs, pedindo-me que fosse a um endereço determinado na parte mais pobre da cidade. Parti imediatamente. Encontrei um grupo de pessoas, algumas das quais eu conhecia, com um rapaz que fora ferido a bala durante uma batida da polícia. Tirei uma bala dele e fiz um curativo de emergência, a fim de que pudessem transferi-lo para um lugar seguro. Depois voltei para casa. Fui presa na noite seguinte. Vendaram-me e fui levada para um lugar que posteriormente me disseram ser o Palácio das Diversões. Era a sede da polícia secreta de segurança. Esperei três horas numa cela. Depois, levaram-me para o gabinete de um tal Major Ilario Sánchez O'Higgins. Era um homem de seus quarenta anos, bastante bonito, bastante delicado. Leu-me um relato muito acurado das minhas ações na noite anterior. Disse que eu cometera um ato criminoso, embora ele ainda não estivesse preparado para apresentar formalmente as acusações. Compreendia perfeitamente que meus motivos haviam sido puros, misericordiosos, apolíticos. Contudo, eu me envolvera involuntariamente com elementos políticos e criminosos. Assim sendo, ele exigia que eu lhe desse todas as informações sobre as pessoas que encontrara naquela noite. Isso feito, eu poderia sair dali em liberdade e retomar a minha vida normal, como uma hóspede bem-vinda em Buenos Aires.

"Declarei que não podia fazer tal coisa. Ele perguntou por quê. Expliquei que estava presa ao juramento de Hipócrates, o qual me proibia de revelar qualquer coisa de que pudesse tomar conhecimento no exercício da arte de curar. Ele aceitou a alegação. Até mesmo fez um elogio ao que classificou de minha 'fidelidade profissional'. Depois, persuasivamente, começou a apresentar outra argumentação. Disse que, em condições anormais, em condições de crise para uma comunidade, de perigo mortal para seus cidadãos, outras considerações deveriam prevalecer. Chegou mesmo a citar o argumento clássico de Tomás de Aquino, para as situações de dilema moral: 'O bem maior para o maior nú­mero de pessoas'. Respondi que, no foro da minha própria consciência, somente eu deveria julgar. Ele aceitou isso tam­bém e disse que esperava que eu lhe concedesse a mesma liberdade de consciência no desempenho de seu dever. Con­cordei que ele devia mesmo agir assim.

"Depois ele disse. . . lembro-me de suas palavras niti­damente: 'Lamento, minha cara, mas agora tenho que enviá-la para uma temporada no inferno. Se quiser livrar-se a qualquer momento, basta chamar-me e responder às minhas perguntas. A menos e até que o faça, não há qualquer esperança para você. . .' O significado de tais palavras era óbvio. Se eu não cooperasse, seria entregue aos torturadores. Uma hora depois, eu estava nas mãos deles. E assim permaneci por sete dias. . . Ao final, falei tudo o que eles queriam saber. Traí Rodo, nossos amigos, a tudo e a todos."

— Sete dias constituem uma eternidade — disse John Spada, calmamente. — Na guerra, mesmo com os nossos melhores homens, o máximo de resistência que podíamos esperar era de quarenta e oito horas. Portanto, você não deve culpar-se. . . nem mesmo por Rodo. Se não o tivessem agarrado dessa maneira, teriam encontrado outro meio.

— Minha mente pensa assim, mas o coração reage de outra forma. Se não nos tivéssemos apaixonado, se não ti­véssemos casado, se eu não estivesse grávida do filho dele, Rodo teria uma chance melhor. . . É esse o horror que eles conseguem fabricar. Até mesmo o amor se transforma numa arma nas mãos deles.

Subitamente, Teresa começou a tremer, comto se esti­vesse prestes a sofrer um acesso de febre intensa. Recostou-se nos travesseiros e fechou os olhos. Spada enxugou o suor da testa e das mãos da filha. Inclinou-se e beijou-a.

— Durma agora, bambina. Eu lhe trarei o seu Rodo de volta.

Mesmo enquanto sussurrava a promessa, ele se pergun­tava até que ponto a sua realização não seria terrível. . . e se um atestado de óbito não poderia ser um presente mais suave que uma das grotescas vítimas do Palácio das Di­versões.

 

Spada mal se havia sentado à sua mesa quando Kitty Cowan entrou na sala, informando que Max Liebowitz es­tava lá fora, exigindo falar-lhe imediatamente. Por um mo­mento, irritado, Spada pensou em recusar-se a recebê-lo. Mas, no instante seguinte, um pensamento mais sensato lhe ocor­reu: Max Liebowitz era um homem difícil demais para que alguém lhe fizesse uma descortesia, sem que houvesse uma boa razão para isso. Era melhor recebê-lo e descobrir logo o que estava querendo.

Liebowitz era um homem pequeno, brusco e irritadiço, como se sofresse de dispepsia crônica. Naquela manhã, con­tudo, ele se mostrava controlado, quase amistoso. Suas pri­meiras palavras foram para se desculpar:

— Não tencionava intrometer-me. Mas, depois do que li nos jornais, achei que não podia deixar de passar por aqui e dizer-lhe que lamento profundamente o que aconte­ceu com sua filha.

— Obrigado, Max.

— Eu compreendo essas coisas. Perdi muitos parentes nos campos de extermínio. E alguns dos homens responsáveis são agora respeitáveis cidadãos na América do Sul.

— É um mundo sórdido e terrível o que existe por lá.

Spada descobriu-se completamente desorientado com aquele adversário a se comportar de forma tão inesperada.

— É um mundo sórdido por toda parte — disse Max Liebowitz. — E cheguei à conclusão de que não deveríamos torná-lo ainda mais sórdido um para o outro.

— Qual é a sua idéia, Max?

— Não é fácil explicar. Assim, eu gostaria que me deixasse falar à vontade.

— Como quiser.

— Muito bem...   — Liebowitz tirou um lenço de seda do bolso e começou a limpar os óculos. — Tenho os votos de Channing no bolso... o suficiente para enfrentá-lo e talvez mesmo vencer numa assembléia de acionistas. Tenho mais que os votos. Tenho a opinião, partilhada por muitos, de que o domínio de um homem só não pode durar para sempre. Você não representa. . .   desculpe dizê-lo. . .   uma dinastia como os Ford, os Mellon ou os Rockefeller. Sendo assim, o futuro das empresas não está bem definido. Pode ser até bastante perigoso. Precisamos de uma garantia me­lhor de que haverá uma continuidade na administração. Por isso, estamos dispostos a lutar. . .

Spada não disse nada. Liebowitz fitou-o com um sor­riso estranho e tenso.

— Será que não poderíamos tomar um café? Não comi nada esta manhã.

— Claro. — Spada   tocou   a campainha,   chamando Kitty Cowan. — Mande trazer café e alguns bolinhos.

— Eu preferia algumas rosquinhas — disse Max Lie­bowitz.

— Está certo — disse Kitty Cowan, pelo aparelho de intercomunicação. — Já vou providenciar.

— Está falando sobre uma luta...   — disse Spada para Liebowitz.

— Isso mesmo. Mas agora já não estou pensando nisso. Soube de coisas que ignorava antes. Seu amigo Feldman trabalha comigo num comitê que tenta ajudar a nossa gente na União Soviética. Ele me contou que você interveio pes­soalmente no caso de Liev Lermontov. E há também o pro­blema do banco de San Diego. Perdemos meio milhão de dólares lá. Liguei para Waxman. Ele me disse que estamos sustentando a família do homem que nos roubou.

— E concorda com isso?

— Não. Acho que é uma estupidez, mas respeito o homem que a comete. Acho também que ele está com mais problemas do que precisa neste momento.

— O que está querendo dizer-me, Max?

— Por favor! — Liebowitz afastou a pergunta com um gesto da mão. — Você promoveu Mike Santos. Eis outra coisa que me agrada. Não sei se ele é tão bom quanto Conan Eisler, mas. . .

— Melhor, Max! Muito melhor!

— É possível, é possível. . . Pelo menos, estou pre­parado para esperar resultados.

— Por quanto tempo?

— Um ano, a partir do dia em que você renunciar.

— E quando calcula que isso acontecerá?

Antes que ele tivesse tempo de responder, a porta se abriu e Kitty Cowan entrou, com a bandeja de café e ros­quinhas. Ficou na sala o tempo suficiente para perguntar:

— Já viu o Wall Street Journal, chefe?

— Ainda não — respondeu John Spada. — Vim direto do hospital. Por quê?

— Há uma matéria sobre as Empresas Spada.

— Eu a tenho aqui comigo — disse Max Liebowitz. Ele meteu a mão no bolso, tirou um recorte e colocou-o diante de Spada. Kitty deu uma piscadela de advertência a Spada e deixou a sala. Spada pegou o recorte e leu:

 

"... Um silêncio sombrio paira sobre a torre de vidro das Empresas Spada. John Spada jamais sofreu ataques sem reagir. Parece improvável que ele esqueça, sem guardar ran­cor, os ferimentos infligidos à sua filha e o desaparecimento suspeito do marido dela em Buenos Aires. Mike Santos, executivo das Empresas Spada, insiste em afirmar que a de­claração 'os negócios continuam como sempre' significa exatamente isso. Mas os veteranos do mercado prevêem mu­danças dramáticas em futuro próximo. Spada possui a repu­tação de notável estrategista, e este correspondente aconselha seus leitores a observarem o mercado cuidadosamente. . . e ficarem de olho também no noticiário".

 

John Spada dobrou o recorte e devolveu-o a Liebowitz, dando de ombros e comentando:

— O pessoal da imprensa já está uivando para a lua. Mas vai-se cansar em breve.

— Mas podem também acordar os lobos — disse Max Liebowítz. — Eu lhe falei de que precisávamos de mais garantias.

— E o que exigem é a minha renúncia?

O tom de Spada era extremamente frio.

— Não é bem isso. — Max Liebowitz partiu uma rosquinha ao meio e mergulhou uma das metades no café. — Creio que há um acordo que podemos fazer. Voto com as ações de Channing a seu favor, na próxima assembléia. Será confirmado como presidente. Você então tomará todas as providências para continuar no cargo só por mais um ano, depois do quê será designado um sucessor. E você pas­sará a ser presidente do Conselho de Administração.

— E o sucessor seria. . . ?

— Se ele tiver condições para o cargo, Mike Santos. Caso contrário, será Conan Eisler.

— O que significa que você acaba assumindo o con­trole, sem uma luta acionária. — John Spada exibiu um sorriso débil de admiração. — Eu lhe entrego a minha ca­beça numa bandeja de ouro e nem mesmo uma gota de sangue se derrama no chão. Muito hábil, Max!

— Também acho. — Liebowitz limpou a boca com o guardanapo. — Com isso, você se livra da pressão. A com­panhia evita uma possível crise política. E os acionistas obtêm a continuidade de que precisam.

— Diga-me uma coisa, Max: o que está realmente es­perando que eu responda?

— Apenas que vai pensar a respeito — declarou Max Liebowitz, placidamente.

— Pois farei melhor do que isso, Max. Retire o nome de Conan Eisler da sua lista de candidatos. Concorde em confirmar Santos como presidente, com um contrato de cinco anos. Aceite Maury Feldman como presidente do Conselho de Administração. Você será o vice-presidente. E eu deixo a companhia imediatamente.

Liebowitz ficou boquiaberto, inteiramente aturdido.

— Está querendo dizer. . . ?

— Exatamente o que eu disse, Max.

— Não tenho muita certeza se é uma boa idéia.

— Por quê?

— É sabido demais. Poderia provocar uma queda na cotação. Precisamos de mais tempo para preparar o mercado, garantir uma transição suave. . .

— Aceite ou recuse, Max! Mas, se recusar, fique certo de que terá a mais sangrenta luta acionária que esta cidade já presenciou nos últimos dez anos. Neste momento, meu ânimo é o de partir para a briga.

— Não vejo o que você poderia ganhar com uma de­cisão precipitada.

— Nada, Max. . . ou pelo menos nada que você possa compreender. E então, vai ou não aceitar?

— Preciso de tempo para. . .

— Nada de mais tempo, Max. Agora ou nunca!

Liebowitz mudou de posição na cadeira, irrequieto. Spada permaneceu em silêncio, observando-o com olhos hos­tis. Liebowitz deu de ombros, admitindo a derrota.

— Você joga duro, John. . . mas está certo! Como vamos providenciar tudo?

— Conversarei com Maury Feldman e ele entrará em contato com você. Por falar nisso, Max, o negócio estará automaticamente cancelado, se transpirar alguma coisa.

— Não há por que fazer ameaças.

— Não é ameaça, Max, mas sim um conselho amigá­vel. Fique contente por ter conseguido o que queria. Não tente enganar-me. Deve lembrar-se de um antigo provérbio italiano: "Nunca atice o fogo com uma espada".

Assim que Max Liebowitz se retirou, Spada pegou o telefone vermelho em sua mesa e falou durante vinte minu­tos com Maury Feldman.

Ao meio-dia, Spada telefonou para Hugo von Kalbach na Baviera e perguntou:

— Algum   progresso   nos   arranjos   de   que   falamos, Meister?

A resposta do velho foi cautelosa:

— Em princípio, é perfeitamente possível. Na verdade, seria melhor encontrar-se pessoalmente com meu amigo. Vai descobrir que ele partilha o seu interesse por pescaria.

— Ótimo. Estarei em Munique dentro de poucos dias.

— Ficará hospedado em minha casa.

— O prazer será todo meu.

— Como está sua filha?

— Recuperando-se. E o marido dela?

— Ainda não houve contato. Mas continuamos a tra­balhar no caso.

— Rezo pelo sucesso. Por favor, avise pelo telefone ou por telegrama o número do seu vôo. Providenciarei um carro para ir recebê-lo no aeroporto.

— Obrigado, Meister. Auf Wiedersehen.

A ligação seguinte foi para Turim. Castagna atendeu. A conversa foi breve.

— Já soube o que aconteceu com minha filha e o marido?

— Já, sim.

— Preciso de ajuda. Quero encontrar-me com o ho­mem que preside a Junta Revolucionária Sul-Americana. Soube que ele está baseado em Paris.

— Quando deseja encontrá-lo?

— O mais cedo possível.

— Posso dar-lhe uma razão para o encontro?

— Meu genro está preso em Martin Garcia.

— Isso não irá interessá-lo muito.

— Estou disposto a me interessar pessoalmente por qualquer outro preso que ele indicar.

— É possível que ele se interesse. Farei tudo o que puder.

— E quando terá uma resposta?

— Dê-me vinte e quatro horas. Volte a ligar amanhã para este mesmo número.

— Obrigado.

Kitty Cowan entrou na sala no momento em que Spada desligava. Ela ficou parada ao lado da mesa, contemplando-o como se fosse uma peça de museu, antes de apresentar seu veredicto:

— Está parecendo um buraco no chão que ninguém quer encher. Telefonei para o hospital. Teresa está passando bem, dormindo, e Anna decidiu voltar para o apartamento. E dentro de quinze minutos temos um almoço com Maury Feldman e Mike Santos. . . Agora, pode arrumar um tempinho para falar com a Kitty?

— O que posso dizer, menina? Fui grosseiro, vou sê-lo mais ainda.

— Eu não estava pensando nisso, pois compreendo perfeitamente como se sente em relação a Teresa. Mas qual o significado desse acordo com Max Liebowitz? Não íamos partir para a luta?

— Não precisamos fazê-lo agora. Temos Mike Santos no comando, com um contrato de cinco anos. E Maury Feldman será o presidente do Conselho de Administração.

— Mike ficará dirigindo a organização. E você? Vai ficar jogando boliche num asilo de velhos? E o que vai acontecer comigo? Cuidei de você durante todos estes anos. Estou velha demais para começar tudo de novo com Mike Santos.

— Sente-se! — Spada sorriu para ela. — Você parece a Medusa, com serpentes no lugar dos cabelos.

— Quem diabo é Medusa?

— Esqueça.

— Estou falando sério, chefe. Ajudou-me a ganhar dinheiro bastante para que eu possa passar o resto da vida divertindo-me... só que não há ninguém com quem eu me queira divertir. Adoro este trabalho, mas tenho certeza de que não será mais o mesmo quando você se for embora. Portanto, jogue limpo comigo, está bem?

— Não estou escondendo nada, Kitty. Mas, depois do que aconteceu com Teresa e Rodo, tudo que tenho feito me parece subitamente inútil. Desde que os militares assumiram o poder na Argentina, houve um dos mais selvagens reina­dos de terror na história da América do Sul. Há quinze mil pessoas desaparecidas sem terem deixado o menor vestígio, dez mil detidos, quatro mil mortos confirmados, cadáveres recolhidos todas as semanas em rios, lagos e praias. E não é apenas na Argentina que isso está acontecendo. Pode-se escolher a esmo qualquer ponto do mapa que se encontrará toda uma sucessão de horrores. De certa forma, faço parte disso. Aquele maldito ditador de Buenos Aires barganhou comigo por Teresa. Para ele, tudo não passava de uma tran­sação comercial. E estou envolvido em situações similares no mundo inteiro. Do jeito que estou agora, fico com as mãos amarradas, pois me sinto compelido, pela lei e pela consciência, a defender os interesses dos nossos investidores. A partir do momento em que eu deixar o comando da orga­nização, estarei livre para fazer o que bem entender com a minha própria vida, com o meu dinheiro. Não posso mais agüentar a situação total. E é por isso que estou largando. Daqui por diante, não serei mais as Empresas Spada, mas apenas a Proteu. Antes de morrer, pretendo travar uma batalha para valer contra os miseráveis deste mundo. Se você quiser acompanhar-me, terei o maior prazer. Mas não tenho o direito de pedir-lhe, porque você iria se meter num campo de batalha em que as forças opostas são impiedosas e sanguinárias. As pessoas são aleijadas e assassinadas. Levam vidas secretas, extremamente perigosas, que não podem par­tilhar com as pessoas comuns. Conheceu um pouco disso, mas pouco, bem pouco. Assim, compete a você decidir. Não me atrevo a tentar persuadi-la, para um lado ou para o outro. Nem mesmo posso apresentar-lhe plano algum, pois ainda não tenho nenhum. Estou simplesmente reagindo aos acontecimentos. Tudo que sei é que vou me levantar e dizer: "Já chega! Vou combater o mal, qualquer que seja a más­cara com que se apresente..."

Ele parou de falar de repente, surpreso com a própria veemência. Kitty Cowan sentou-se, contemplando-o com uma ternura estranha e triste, até finalmente murmurar:

— O que Anna diz a respeito disso?

— Ainda não conversei com ela. Ela só vê a situação até o ponto em que envolve Teresa e Rodo. Concorda ple­namente com qualquer coisa que eu faça por eles.

— E depois?

— Não sei. Tudo depende da maneira como Rodo estiver quando o tirarmos da prisão... se é que conseguire­mos tirá-lo. Anna pode ficar com dois inválidos nas mãos.

— E um marido que está enveredando por um cami­nho terrivelmente perigoso.

— Há sempre um preço para se pagar.

— Acho que você tem razão. O problema é saber quem vai pagar esse preço. . . De qualquer forma, obrigada por ser franco comigo.

— Alguma vez já fui outra coisa?

— Não. E agora deixe-me dizer minha parte. Ficarei segurando a mão de Mike até que ele esteja devidamente assentado. Depois, também deixarei as Empresas Spada. E se houver um lugar para mim no que estiver fazendo vou aceitá-lo com a maior satisfação.

— Esse lugar sempre lhe esteve reservado. . .   tem a prioridade número um.

— Obrigada, John. O que Maury pensa disso tudo?

— Como meu advogado, ele está feliz. Ninguém vai poder comprometer minha posição junto aos acionistas. Saio limpo da organização. No plano pessoal, Maury está preo­cupado. Acha que a Proteu ainda é frágil demais para supor­tar a pressão. Contudo, agora que passo a dispor de tempo e liberdade de movimentos, posso fortalecê-la e aperfeiçoá-la.

— E Mike Santos?

— Ele ainda não sabe. Vamos dar-lhe a notícia no almoço e fazer um brinde ao seu sucesso.

— Prefiro fazer um brinde ao seu sucesso, chefe.

— Pois não o faça! — disse John Spada, bruscamente. — Nesse jogo não há nada para se ganhar, a não ser o di­reito de morrer livre.

 

O almoço foi bastante difícil. Ao invés de se mostrar exultante com a sua designação, Mike Santos ficou visivel­mente infeliz. Concordava com Max Liebowitz: o momento era errado, por causa dos envolvimentos políticos das Em­presas Spada. Haveria uma reação negativa imediata no mer­cado de ações. Por que não esperar até a assembléia anual dos acionistas e só então fazer as mudanças?

Maury Feldman já rabiscara dois guardanapos com de­senhos eróticos malsucedidos de Pasífae e o Touro. Agora, estava resmungando contra a qualidade do café e recomen­dando uma reforma imediata nos serviços da presidência das empresas. Quanto às mudanças, embora concordasse em princípio com Mike Santos, via riscos maiores em ter-se um presidente empenhado em atividades criminosas. . . que era exatamente o que Spada estava planejando fazer na Argen­tina. Além disso, falando francamente entre amigos, ele não arriscaria um níquel furado em qualquer decisão financeira que John Spada tomasse no ânimo em que estava naquele momento.

Foi uma verdadeira obra-prima de argumentação irônica de advogado. Ao final, Santos acabou convencido. Se Maury cuidasse do Conselho de Administração, Spada preparasse uma declaração pessoal para a imprensa e Kitty concordasse em ficar pelo menos por mais seis meses, ele aceitaria a designação. Ficou finalmente combinado que a comunicação seria feita durante a ausência de Spada, que estava a cami­nho da Europa, a fim de que o término do seu controle ficasse definido não só legalmente, mas também fisicamente. Kitty Cowan fez um comentário mordaz:

— Parece até um truque de prestidigitação. Agora vocês podem ver John Spada. E agora ele desaparece numa nuvem de fumaça azul! Mas creio que os otários vão engolir.

— Eles sempre engolem — disse Maury Feldman. — Caso contrário, eu estaria desempregado. Metade do direito não passa de mágica, tigres de papel guardando o templo da deusa cega.

— Não acredito nisso — declarou Mike Santos.

— Pois eu acredito — interveio John Spada. — Quando a lei permite que uma mulher seja estuprada com um marcador de gado e que o torturador seja pago com os re­cursos públicos, está na hora de se levantarem as barricadas. Obrigado pelo que está fazendo, Mike. E obrigado a você também, Maury.

— Não me agradeça — disse Maury Feldman, sorrin­do. — Ou pelo menos não até dar uma olhada na conta. . . Há um Mantegna à venda em Paris. Como presidente do Conselho de Administração, acho que poderei dar-me ao luxo de comprá-lo.

— E o que eu vou conseguir? — indagou Mike San­tos, já relaxado o bastante para participar dos gracejos.

— Úlceras em dez línguas — disse Kitty Cowan. — Sirva-me outro copo de vinho, senhor presidente.

Dois dias depois, após uma segunda conversa telefônica com Castagna, John Spada seguiu de avião para a cidade de Basiléia, na Suíça. No jargão do submundo e dos movimen­tos clandestinos, Basiléia e seus arredores tinham um nome especial: o Polegar de Ferro. Era uma projeção de terra neutra entre a Alemanha, a leste, e a França, a oeste, com tantas saídas e entradas que até mesmo as patrulhas de fron­teira mais zelosas não podiam vigiar a todas.

Quem estivesse fugindo dos franceses ou alemães sem­pre podia encontrar um dono de barcaça para levá-lo na direção norte, até a Pequena Basiléia, ou para o sul, até a Grande Basiléia. Podia-se chegar de trem de Estocolmo, Roma, Madri, Istambul, Atenas e dos portos do canal da Mancha. Podia-se chegar de avião a Blotzheim, percorrendo apenas mais doze quilômetros para se estar na França. Quando se queria marcar um encontro, podia-se escolher como local o túmulo de Erasmo, no Munster, vaguear pelos Holbeins no Kunstmuseum ou sentar-se para sussurrar entre o milhão de volumes da biblioteca da universidade, na Peters Platz. Quando alguém é um conspirador com mais lazer, pode fazer o que quiser, contanto que não seja nas ruas e não assuste os bons burgueses locais, que acreditam em dinheiro limpo, ruas limpas e na eternidade da Confe­deração Suíça.

Foi nesse enclave famoso que um homem que se inti­tulava El Tigre, líder no exílio da Junta Revolucionária Sul-Ameriçana, concordou em se encontrar com John Spada, para discutir o destino de um homem chamado Rodolfo Vallenilla, prisioneiro na Argentina. O encontro foi marca­do para as oito e meia da noite, numa pequena estalagem chamada O Cervo Dourado, nos arredores da cidade.

Passavam dois minutos das oito e meia quando El Tigre apareceu, um homem alto, moreno, num terno de corte ita­liano. Estava impecavelmente arrumado, as mãos bem cui­dadas, os sapatos brilhando, os cabelos grisalhos recente­mente aparados. Ele sorriu e disse, em espanhol:

— Sr. Spada? Sou El Tigre, ao seu dispor.

— Obrigado por ter vindo.

— Seu amigo, Castagna, foi bastante persuasivo.

O garçom apresentou o cardápio com um floreio e de­pois retirou-se. John Spada perguntou:

— Vamos pedir, primeiro?

— Peixe. . .   truta   com   amêndoas.   E   depois   uma mousse. Tenho paixão pelas coisas doces.

— Vou pedir a mesma coisa. Vinho?

— Um chablis, por gentileza.

Spada fez sinal ao garçom. Depois que o pedido foi devidamente anotado, ele foi direto ao objetivo da reunião:

— Permita-me dizer logo o que estou querendo.

— Já sei. Quer tirar Rodolfo Vallenilla da prisão de Martin Garcia.

— Está disposto a ajudar?

— Somente por Vallenilla. . . não. Ele não nos interessa. É um bravo homem, é verdade, um jornalista admi­rável, mas não é, nunca foi e nunca será um de nós. É um liberal, um moralista, sempre pensando como Tomás de Aquino sobre o certo e o errado, a natureza do Estado, os deveres de um cidadão. . . Para nós, tudo isso é irrelevante, não vale os riscos que assumiremos para tirá-lo da prisão Ele ainda estará fazendo discursos comedidos no dia do Juízo Final! Contudo, um dos nossos também está preso em Martin Garcia. Eu gostaria especialmente de libertá-lo. É um veterano do ERP, um crente total, com uma devoção total. Tudo que ajuda à causa está certo, tudo mais é variável e perfeitamente dispensável. Não vale uma grande operação, que inevitavelmente acarretaria mais ataques, mais repres­sões. Numa operação conjunta, no entanto, a coisa seria plausível.

— Está certo — disse John Spada. — Como é o nome dele?

— Chávez.

— Muito bem. Vamos libertar Chávez e Vallenilla, na mesma operação.

— O que precisa de mim, Sr. Spada?

— Um bilhete, um aviso qualquer para a sua gente em Buenos Aires, informando que se pode confiar em mim e que pago bem pelos serviços prestados.

— Isso não constitui qualquer problema. Contudo, devo avisá-lo de que não posso obrigar ninguém a participar de sua operação.

— Preciso de voluntários e não de conscritos.

— E nós precisamos de dinheiro, Sr. Spada. — El Tigre sorriu, jovialmente. — Assaltos a bancos e seqüestros já não são tão lucrativos quanto antigamente.

— Quanto?

— Vamos fazer uns cálculos aritméticos. Digamos que Chávez e Vallenilla se equivalham. Eu não o insultaria bar­ganhando pelo corpo de seu genro. Contudo, sem a nossa ajuda, não poderia agir... ou pelo menos não poderia agir tão depressa ou com tanta eficácia. Assim sendo. . .   não poderíamos fixar em 200 mil dólares, pagos na Suíça? É menos do que cobraríamos por um seqüestro de classe média.

— Cem mil.

— Muito pouco, Sr. Spada.

— Será mesmo? Seu homem, Chávez, ainda está na prisão. Até agora, pelo que posso saber, sua organização ainda não foi devidamente testada.

— Mas o senhor continua a precisar de nós.

— E por isso mesmo acrescentarei outros cem mil dólares como gratificação. . . se tudo correr bem.

— Negócio fechado, Sr. Spada.

— A quem irei encontrar em Buenos Aires?

— Já o encontrou, Sr. Spada. Numa adega, se não me engano. O nome dele é Sancho.

— Eu poderia tê-lo recrutado por nada.

— Não creia nisso, Sr. Spada. — El Tigre mostrou-se subitamente carrancudo. — O senhor é um homem perigoso para se tratar, um lobo solitário e extremamente rico. . . com um nome que é conhecido em todos os continentes. Poderia ser resgatado por dez vezes o dinheiro que o senhor nos está pagando.

— Não seria um bom negócio — disse Spada, tranqüi­lamente. — Acabei de me retirar das Empresas Spada e os administradores dos meus bens têm instruções por escrito para não pagarem qualquer resgate, no caso de um seqüestro.

— Não conte muito com a razão no mundo de hoje — disse El Tigre, gravemente. — Com drogas e privação sensorial, pode-se transformar qualquer homem numa ma­rionete. . . Contudo, nada terá a temer de nós, enquanto formos aliados.

— Pode me indicar outros contatos em Buenos Aires?

— Não — respondeu El Tigre bruscamente. — Tudo terá que ser feito por intermédio de Sancho. Ele é que vai decidir quais os contatos que poderá fazer. Ah, sim. . . há outra condição. Se quiser um pistoleiro, terá que providen­ciá-lo pessoalmente. Cuidamos das vendetas do Partido, não das particulares.

— Alguma recomendação?

El Tigre pensou por um momento e depois disse:

— Há um camarada que usamos recentemente. É ale­mão, do grupo da Baader-Meinhof. Faz ponto em Amsterdam, ganhando a metade da vida como pintor e o resto como pistoleiro. Pelo que já me disseram, é muito bom em serviços em ruas   apinhadas,   transportes   públicos, coisas assim. Seu verdadeiro nome é Gebhardt Semmler.

— Como faço para entrar em contato com ele?

— Ligue para este número em Amsterdam. — El Tigre rabiscou o telefone no canto de um guardanapo de papel — Pergunte se ele não gostaria de comprar uma caixa de cerveja Tigre. Com isso, Semmler saberá que foi encami­nhado por mim.

— E qual é o preço dele?

— Dez mil dólares americanos. . . e nem um cent a mais, pois o senhor estaria estragando o mercado para nós.

Spada sorriu e fez um comentário sardônico: — Pensei que todos os revolucionários fossem idea­listas.

— E somos mesmo! — disse El Tigre, bem-humorado. — Mas o dia amanhece lentamente. Sempre ajuda ter um pouco de conforto no exílio. Agora, deixe-me dizer-lhe como nosso dinheiro deverá ser pago. . .

A partir do momento em que o acordo estava feito, El Tigre perdeu o interesse por tudo mais. Comeu apressada­mente e se retirou sem a menor cerimônia. Spada continuou sentado, sozinho, com um copo de conhaque nas mãos, con­templando a pequena comédia de costumes no restaurante. Era uma experiência nova. Subitamente, ele era o espectador em absoluto, remoto, indiferente, um ser de outra dimensão. Sua identidade primordial desaparecera. Não era mais John Spada, pilar da sociedade capitalista, mas sim o spadaccino nero, o espadachim negro, espreitando nas vielas do submun­do internacional.

Ao voltar a pé para o hotel, pelas ruas escuras da parte antiga da cidade, Spada sentiu uma estranha exultação. Pela primeira vez desde a sua juventude, ele era totalmente livre, uma partícula anônima, num meio estranho. Ao despir-se, preparando-se para dormir, teve um súbito impulso de ligar para Amsterdam e falar com Gebhardt Semmler, o pisto­leiro.

Levantou o fone do gancho, parou bruscamente no meio do movimento. O que deveria dizer? Como se identificaria? Estava realmente interessado em contratar um assassino pro­fissional? Ao final, acabou cedendo ao impulso da curiosi­dade. Sentou-se na beira da cama e discou o número. A campainha tocou uma vez, duas, três, até que uma voz de homem atendeu:

— Ja, bitte?

Spada respondeu em alemão:

— Fui informado de que poderia estar interessado num carregamento de cerveja Tigre.

— Ah, sim. . . De onde está telefonando?

— De fora da Holanda. Está interessado?

— Posso estar. . . mas não pelos próximos dias.

— Eu teria a maior satisfação em ir a Amsterdam para tratar do assunto.

— Como disse mesmo que era seu nome?

— Não disse. . . mas a cerveja é Tigre.

— Entendo. . . Estarei ocupado por alguns dias, como já falei. Poderia telefonar-me. . . deixe-me dar uma olhada no calendário. . . no dia 17, a esta mesma hora. Nessa oca­sião, marcaremos um encontro.

— Está certo.

— Já sabe qual é o preço?

— Dez. . . e mais as despesas.

— Onde está a mercadoria?

— Eu lhe direi quando nos encontrarmos.

— Está bem. Wiedersehen.

— Wiedersehen.

John Spada desligou, enxugando o suor das mãos. Su­bitamente, descobriu-se a rir. Era tudo tão simples! Podia-se encomendar a morte como se pedia um drinque num bar. Tudo de que se precisava era ter a coragem e o dinheiro. Além disso, o pensamento ocorreu-lhe subitamente, com al­guma sorte ele tinha agora algo com que barganhar em Munique.

No momento em que Spada deixou a sala do controle e passaportes, no aeroporto de Munique, um homem alto e ainda jovem abordou-o:

— Sr. John Spada?

Spada virou-se bruscamente, surpreso.

— Pois não.

O homem alto sorriu, estendendo-lhe a mão

— Deskau. . . Kurt Deskau. Sou amigo de Meister Hugo von Kalbach. Vou levá-lo de carro a Tegernsee.

— Obrigado.

— Trouxe bagagem?

— Apenas uma valise.

— Poderia fazer a gentileza de indicá-la?

Spada já ia perguntar como é que um simples moto­rista conseguia penetrar na área da alfândega, mas absteve-se. Quando sua valise apareceu, na correia transportadora, Deskau pegou-a e saiu andando na frente dele, passando pela barreira. O carro dele estava estacionado em local proi­bido, bem em frente ao ponto de táxis. Um guarda unifor­mizado estava de pé ao lado. O guarda cumprimentou Des­kau, pegou a valise e guardou-a no porta-malas do carro. Deskau fez um gesto para que Spada entrasse na frente e depois foi sentar-se ao volante. Spada ficou aturdido.

— É um carro da polícia?

— Sou o Inspetor Deskau, às suas ordens.

— É uma honra, inspetor.

— Estou encarregado das operações antiterroristas nes­ta área. Meister Hugo está sendo cuidadosamente protegido. Está sob a minha jurisdição. . . assim como o senhor ficará também, durante a sua estada.

Ele pegou a carteira e tirou um cartão, que entregou a Spada. Na parte de trás do cartão de visitas, havia um desenho a lápis do símbolo da Proteu.

— Estava curioso para conhecê-lo também por outras razões, Sr. Spada.

— É um prazer conhecê-lo, inspetor.

— Meister Hugo informou-me de seus problemas de família. . . e da sua necessidade de um novo documento de identidade. Mas estou curioso para saber por que está que­rendo justamente uma identidade alemã.

— Em primeiro lugar, porque falo alemão fluentemen­te. Em segundo, porque há muitos alemães na América do Sul, como sabe perfeitamente. Portanto, não será um papel difícil de sustentar.

— Contanto que o documento seja genuíno e possa ser verificado na fonte.

— Exatamente.

— Pois é essa a dificuldade. Contudo, não é insuperá­vel. Se puder ser demonstrado, por exemplo, que está pres­tando serviços especiais. . .

Ele não completou a frase, deixando isso para Spada:

— Em área de interesse comum?

— Precisamente.

— Pensarei a respeito — disse John Spada. — Até que ponto é real essa ameaça a Hugo?

— É bastante real, Sr. Spada. As técnicas de terror urbano estão sendo desenvolvidas a cada dia que passa. De­terminadas personalidades, como Meister Hugo, têm um va­lor de propaganda que vai muito além do das vítimas nor­mais. São símbolos, cujo seqüestro ou assassinato causa um tremendo impacto. O senhor é também um caso assim. . . o que é outro motivo pelo meu interesse em sua pessoa, en­quanto for hóspede de meu país.

— Tenho minhas dúvidas se sou mesmo um caso simi­lar — disse, Spada, sombriamente. — Minha filha e o marido são vítimas de outro tipo de terror, o terror dos governos e instituições que suprimem os direitos humanos para se manterem no poder.

— Ah, está percebendo agora os dois lados da meda­lha! Nossa liberdade e prosperidade de pós-guerra produzi­ram os spontis, os radicais espontâneos, que não têm qual­quer outro programa que não a destruição da ordem existen­te, não importando que seja boa ou má. São bem organiza­dos, bem financiados, bem armados. . .   e quase todos são também instruídos. Contudo, a dedicação deles é a um terror irracional. Ao final. . .

— O que se tem é a desordem civil — acrescentou Spada. — Depois, os profissionais assumem novamente, com sua própria espécie de terror. Ou seja, não há saída.

— Tenho homens infiltrados em Schwabing neste mo­mento — comentou Kurt Deskau, sombriamente. — Sabe o que os estudantes andam dizendo? "É uma pena se tiver de ser Von Kalbach, mas ele vai mesmo morrer muito em breve. . . e sua morte violenta será muito importante para o nosso movimento."

— Isso é sórdido!

— Em Geiselgasteig, ouve-se outra espécie de sordidez, a mesma que o senhor encontrou na Argentina: "Vamos abrir Dachau outra vez e dar a esses desgraçados um gostinho da disciplina de verdade". Meu problema, como policial, é que compreendo as duas posições. Foi por isso que reagi com interesse ao convite de Meister Hugo para ingressar em seu grupo. Talvez Proteu possa apontar o caminho. Soube que veio através de Basiléia. É uma cidade das mais interessantes.

— Não tive muito tempo para conhecê-la. Ontem à noite estive ocupado num encontro e parti esta manhã bem cedo. Diga-me uma coisa: já ouviu falar de um homem cha­mado Gebhardt Semmler?

Um súbito brilho de interesse transpareceu nos olhos pretos de Deskau.

— Foi com esse homem que se encontrou?

— Não. O nome dele foi mencionado durante a conversa.

— Em relação a quê?

— Como um Meuchelmoerder, um assassino profis­sional.

— Eu daria qualquer coisa para saber onde encontrá-lo.

— Qualquer coisa. . . como um passaporte, por exem­plo? — indagou Spada, sorrindo.

— E um passaporte todo especial, Sr. Spada. O que é usado pelos nossos agentes. A verdadeira identidade do por­tador só é conhecida pela autoridade que emite o passapor­te. .. e que também pode cancelá-lo à vontade. Está inte­ressado?

— E muito.

— Propôs usar Semmler?

— Não. Ele foi-me oferecido, caso eu precisasse de um operador assim.

— Tem alguns contatos muito estranhos, Sr. Spada.

— O que faria se estivesse no meu lugar, inspetor?

— Aceite o conselho de um amigo, Sr. Spada. Para se jantar com o Diabo, é preciso uma colher bem comprida!

 

A casa de Meister Hugo von Kalbach ficava na praia de Tegernsee. Era uma das construções mais antigas da área, um chalé grande, de dois andares, no tradicional estilo bá­varo, com um jardim a se estender até a praia e um ancoradouro de madeira com uma lancha atracada. A casa estava quase totalmente oculta pelas árvores. As jardineiras nas janelas estavam floridas.

Meister Hugo recebeu-os na porta. Deu um abraço forte e demorado em Spada e depois levou os dois homens, imediatamente, a seu gabinete) falando sem parar durante lodo o tempo.                                  

— Sejam bem-vindos, meus amigos! Sejam bem-vin­dos! Fez uma boa viagem, John? Parece estar forte e sau­dável. Ótimo! Agora, deixe-me lembrar. . . Bebe uísque bourbon com água e gelo. . . Esplêndido! Frãulein Helga disse-me que eu não conseguiria fazer as coisas direito. Mas consegui! Prost, meu caro John. Prost, Kurt. Vamos brindar a um futuro mais feliz para todos nós!

Eles beberam e depois o velho indagou, ansiosamente:

— Vocês dois já conversaram? Já chegaram a algum acordo?

— Estamos   chegando. . .   acho   eu   —   disse   Kurt Deskau.

— Podemos acertar o princípio, primeiro — disse John Spada. — Eu lhe dou o seu homem, você me dá o passaporte. Certo?

— Certo.

— A questão é como fazer a troca. Não posso com­prometer a operação em Buenos Aires.

— E por que deveria ser comprometida?

— Pode ser, se a informação que eu lhe der for mal usada.

— Tenho confiado no senhor, Sr. Spada. Até mesmo me liguei à organização Proteu, por insistência de Meister Hugo.

— Desculpe. — Spada imediatamente se mostrou arre­pendido. — Não falei com essa intenção. . . Ontem à noite, conversei com um homem chamado El Tigre, que controla a operação européia da Junta Revolucionária Sul-Americana. Ele prometeu, em troca de uma quantia vultosa, recomen­dar-me a seus homens na Argentina. Preciso da ajuda deles para tirar Vallenilla da prisão. Ele mencionou Semmler, para o caso de eu precisar de um pistoleiro. Depois, telefonei para Semmler. Combinei que voltaria a telefonar-lhe dentro de quatro dias. . . no dia 17.

— Por que fez isso, Sr. Spada? Ao que me lembro, disse que não tinha a menor idéia de usá-lo.

— Eu estava curioso. Queria saber como esses negó­cios são feitos.

— Creio que cometeu um erro, Sr. Spada. — A reação de Deskau era extremamente fria. — E um erro terrível! Sua cobertura é muito tênue. Há agora uma ligação direta entre o senhor, El Tigre e Semmler.

— Sei disso. Sendo assim, vamos discutir como reparar o erro e deixar minha operação a salvo.

— Talvez não seja possível, Sr. Spada.

— Tudo é possível — interveio Hugo von Kalbach apressadamente, tratando de servir outra rodada de drinques — Somos homens inteligentes. Temos um interesse comum. Vamos ter um pouco de paciência. Bebam, meus amigos! Até mesmo a águia precisa de duas asas para voar. . . e amanhã podemos estar mortos, com as mulheres chorando em cima dos nossos caixões!

A tensão se atenuou. Deskau deu de ombros, desfazendo-se de sua raiva.

— Desculpe, Sr. Spada. Esqueci que o senhor é novo nesse jogo.

— Mas estou aprendendo. — Spada levantou o copo numa saudação. — Semmler está em Amsterdam. Trabalha como pintor. Tenho o telefone dele. Ele me disse que estaria muito ocupado por alguns dias!

Deskau digeriu a nova informação e depois disse:

— O que provavelmente significa que está empenhado em algum novo trabalho. Vou lançar a rede e ver o que conseguimos apanhar. Com alguma sorte, talvez possamos pegá-lo no ato. Se tal não acontecer, talvez seja bom o se­nhor telefonar-lhe e marcar um encontro, conforme o com­binado.

— Ah, agora sim! — O velho filósofo estava radiante de satisfação. — Agora estão usando o cérebro. Vamos logo comer. . . caso contrário, Frãulein Helga vai tornar minha vida impossível!

Durante todo o almoço, ele desempenhou com prazer o papel de estudioso dominado por sua secretária enérgica. Frãulein Helga, de cabelos grisalhos e corada, adorou cada momento. Contou pequenas histórias das fraquezas e esque­cimentos de Von Kalbach. Censurou-o por seus apetites imoderados, pela extravagância com o dinheiro, pelos acessos de fúria quando esbarrava numa passagem difícil. Era tudo muito terno e comovente, um amor de outono entre uma virgem de cinqüenta e um anos e um sábio mais velho, que ainda conservava a inocência caprichosa de uma criança.

Precisamente às duas e meia, Von Kalbach consultou seu relógio de ouro, um presente de Adenauer quando recebera o prêmio Nobel, e anunciou que ia tirar o seu co­chilo vespertino. Deskau e Spada deveriam relaxar e discutir seus problemas em particular. Talvez quisessem pegar o bar­co para dar uma volta pelo lago. Ah. . . para o dia seguinte ele já providenciara um excepcional divertimento. Tinha duas entradas para a ópera em Munique, onde a nova diva, Minna Gottmer, iria fazer sua estréia em Rosenkavalier.

Spada sentiu-se acuado. Não estava com a menor dis­posição para se divertir. O Inspetor Deskau franziu o rosto. Tinha de providenciar as medidas de segurança apropriadas; portanto, deveria ser informado dessas coisas com antece­dência. Há quanto tempo as reservas tinham sido feitas? Quais eram as previsões para o transporte? Fräulein Helga prometeu que Von Kalbach apresentaria por escrito tudo o que iria fazer, antes de Deskau ir embora. Von Kalbach protestou contra as restrições à sua liberdade. Ora, parecia até que ele estava preso! Helga tirou-o da sala, rindo, di­vertida.

Kurt Deskau também riu e disse:

— Não acha que é igual a um conto de fadas? E agora, Sr. Spada, vamos ver se conseguimos impor alguma ordem e sentido aos nossos problemas.

Os dois desceram para o ancoradouro, entraram no barco e foram até o meio do lago, onde ficaram balançando suavemente nas ondulações das embarcações que passavam por perto. Deskau estava com o velho chapéu panamá de Von Kalbach inclinado sobre os olhos, e com uma linha de pesca enrolada na mão. A princípio, Spada sentiu-se ligeira­mente irritado com o passatempo infantil, mas depois de algum tempo sentiu-se relaxado e em sintonia com o ânimo de Deskau, que parecia ser o de desprendimento filosófico.

— Represento a lei, Sr. Spada. Sei que a lei é muitas vezes inadequada. Mas, se eu a corromper, estarei endos­sando a minha própria condenação.

— Pois eu estou à margem da lei. Porque, para a família, a lei provou ser um instrumento de injustiça.

— Deixe-me dizer-lhe algumas coisas a respeito de Gebhardt Semmler. — Deskau deu alguns puxões desco­nexos na linha vazia. — Sei que ele é um assassino, mas não tenho provas. Encontrando-o na Alemanha, posso pren­dê-lo por cumplicidade em diversos atentados da Baader-Meinhof. Mas seria muito difícil conseguir a extradição dele da Holanda. Os holandeses têm os seus próprios problemas e vão querer uma porção de provas concretas contra ele para emitirem uma ordem de extradição. No momento em que o levarem a julgamento, vão atrair uma porção de novos ata­ques terroristas.

— O que significa que, para todos os efeitos, são os bandidos que dão o tom.

— Exatamente como espera fazer em Buenos Aires, meu amigo.

— Tem razão. Assim, vamos fazer um trato. Você me dá o passaporte e eu darei um jeito de entregar-lhe Gebhardt Semmler.

— Quero-o vivo.

— Farei o melhor possível — disse John Spada. — Não posso prometer mais do que isso.

— Qual é a sensação? — perguntou Deskau, com apa­rente irrelevância.

— Qual a sensação do quê?

— Quando se passa para o outro lado da cerca e se entra no terreno de matar?

— Não é diferente do que o senhor deve sentir, ins­petor, ao empurrar um homem para a prisão de Stammhein por vinte anos. É um ato empírico. — Spada usou a frase alemã: "Auf Erfahrung gegründet". — O fim necessário de uma sucessão de circunstâncias inevitáveis. Nenhum julga­mento moral é possível. Acaba-se ficando louco quando se tenta fazer algum. Temos um trato?

— Apareça no meu gabinete amanhã às onze horas. Leve três fotografias, tamanho passaporte, e cinco mil mar­cos alemães para abrir uma conta bancária, porque vai pre­cisar de talão de cheques e cartões de crédito. Mas lembre-se de uma coisa: serei a autoridade que vai emitir o passaporte. Qualquer problema que o senhor criar vai parar na minha mesa. E preciso disso tanto quanto preciso de uma gripe forte.

— Tentarei poupar-lhe qualquer dificuldade — disse Spada sorrindo. — Um homem sem passaporte é como um morto-vivo.

 

O dia seguinte, em Munique, foi extremamente movi­mentado para Spada. Foi fotografado. Entregou as cópias a Kurt Deskau. Comprou um smoking barato mas apresentável para a ópera. Passou uma hora inteira numa loja de armas, escolhendo uma pistola e providenciando a sua ex­portação legal quando deixasse a Alemanha de avião. Na volta para Tegernsee, ficou preso num congestionamento do tráfego.

Ao chegar à casa, pouco antes das cinco horas da tarde, encontrou Frãulein Helga muito agitada. Ele estava atrasa­do. Tinha de se apressar, vestir-se imediatamente. A limusine estaria chegando dentro de trinta minutos. Ele poderia estar pronto a essa hora? Por favor, por favor. . . Ele podia e estaria. Graças a Deus, o smoking não caía tão mal assim, porque Meister Hugo era bastante exigente em seus apare­cimentos em público. Não tinha paciência com o que cha­mava de "a erudição da caspa". A sabedoria, declarava ele, devia ser devidamente honrada por aqueles que a amavam.

Spada vestiu-se às pressas e estava pronto, se bem que um pouco ofegante, quando o velho filósofo desceu a esca­da, esplêndido de casaca e manto, luvas brancas, bengala de castão de ouro. Helga contemplou o velho criticamente, ajei­tou-lhe a gravata, limpou-lhe um cisco imaginário do ombro e depois declarou que ele estava pronto para aparecer em público. Von Kalbach deu-lhe um beijo paternal na face e depois saiu como um príncipe, com John Spada em seus calcanhares.

Havia dois carros estacionados lá fora, uma limusine alugada para Meister Hugo e um carro da polícia, para os detetives da escolta. Era um lembrete amargo de que, por mais que Von Kalbach procurasse ignorar as ameaças à sua vida, a polícia levava-as muito a sério. Ao seguirem pela estrada, Von Kalbach estava tão excitado quanto uma criança a caminho de uma festa.

— Esta noite, meu amigo, vamos esquecer a feiúra do mundo e nos divertir. Vamos contemplar mulheres de contos de fadas. Vamos ouvir uma música extraordinária de um novo talento. Vamos comer amoras e tomar sorvete nas ga­lerias, vamos recordar as coisas boas do passado.

— A melhor coisa que já ouvi em muitas semanas! — Spada esforçou-se em igualar a disposição de Von Kalbach. — A primeira vez que assisti a Rosenkavalier foi quando Schwarzkopf cantou a Marechala, em San Francisco.

— E eu, meu jovem amigo, lembro-me de minha mãe a se vestir para a primeira apresentação, em Dresden, em 1911. Ela era mais linda do que qualquer Marechala que já vi. Ah, infelizmente os anos passam. . .!

Spada ficou esperando que ele falasse mais. Von Kal­bach fechou os olhos, recostou-se no assento e começou a assoviar uma versão esganiçada de Mein schöner Schatz, wíll Sie sich traurig machen. . . Spada teve que fazer um grande esforço para conter uma risada. Apesar de sua erudição mo­numental, havia algo de saltimbanco no velho, um rasgo de vaidade feliz, infinitamente atraente.

Ao entrarem na Maximilianstrasse e se aproximarem do Hotel Vier Jahreszeiten, Hugo von Kalbach ordenou ao motorista que parasse. Estavam trinta minutos adiantados. Devia conversar com o maitre sobre a ceia; depois, seguiriam a pé para o Teatro da Ópera. O motorista deveria estacionar o carro. Quanto aos detetives, poderiam perfeitamente ir tomar uma cerveja na Hofbrauhaus. O que poderia aconte­cer a qualquer homem nos duzentos metros entre o hotel e o Teatro da Ópera? Ou, pelo menos, os detetives deveriam permanecer a uma distância respeitosa e não incomodar seu passeio.

John Spada sorriu novamente. Era tudo feito com ex­trema felicidade: o mestre entrando em grande estilo na Walterspiel, conversando demorada e publicamente sobre a mes, o vinho, os pratos, depois saindo a caminhar pela avenida, retribuindo os cumprimentos dos homens e os sor­risos das mulheres, desafiando a curiosidade dos estudantes inexperientes, que eram jovens demais para saber qual a aparência de um homem erudito.

Como uma peça de teatro, tudo transcorreu à perfei­ção. O maitre se mostrou solícito e escreveu furiosamente, estalando os dedos para os seus subordinados. O porteiro se perfilou como um sargento. Um grupo de turistas americanos recuou para deixá-lo sair primeiro para a calçada, as mulheres sussurrando muito excitadas.

Houve mais saudações e mais sussurros enquanto ele avançava lentamente pela calçada, parando para admirar a porcelana de Dresden na loja da esquina e desdenhar as lito­grafias na galeria de arte moderna, apontar um pequeno te­souro na loja de antigüidades ao lado. Um pequeno grupo de pessoas se reuniu ao redor dele quando se pôs a contem­plar as fotografias na bilheteria do Teatro da Ópera e contou uma anedota picante sobre o baixo, o tenor e o contralto com excesso de peso. As pessoas que estavam na escadaria observaram-no apontar com a bengala para o frontão e fazer uma breve preleção para John Spada sobre as esculturas, sua história e seu significado.

Terminada a preleção, Meister Hugo sorriu como um menino malicioso, pôs a mão no braço de Spada e disse:

— Agora que já divertimos os outros, vamos nos diver­tir um pouco.

Ao chegarem ao alto da escadaria, onde a multidão era mais compacta, um jovem vestido a rigor saiu de trás de uma das colunas imensas e esbarrou neles. Virou-se como se fosse pedir desculpas. Spada ouviu dois estampidos aba­fados, como o espocar de rolhas de champanha. No momento seguinte, Meister Hugo estava caído no chão, o sangue a se espalhar pelo peito, enquanto o assassino sumia em meio à multidão em pânico.

 

Kurt Deskau era um homem dominado por uma raiva fria e implacável, o que não o impediu de trabalhar com a eficiência de um robô. Cinco minutos depois do assassinato, ele estava na escadaria do Teatro da Ópera, orientando as primeiras operações, colhendo depoimentos, ordenando a dis­posição dos bloqueios nas artérias da cidade. Superado o trabalho inicial, mais intenso, ele levou Spada de carro para o hospital, e depois, quando Meister Hugo foi declarado legalmente morto, para a chefatura de polícia. Sentou-o a urna mesa, com três volumes de fotografias da polícia, e disse bruscamente:

— O desgraçado está aí, em algum lugar. Avise-me quando o tiver encontrado. . . e não se esqueça de que pode ser uma mulher disfarçada!

— Tenho certeza de que era um homem!

— Não discuta! E trate de encontrar o rosto! E agora vou deixá-lo aqui sozinho, pois tenho muito trabalho a fazer.

Não havia qualquer identificação nas fotografias, ape­nas números de registro. Spada estava na metade do segundo volume quando deparou com um instantâneo de um grupo de estudantes, tirado durante uma manifestação em Frank­furt. Uma das cabeças estava contornada por um círculo vermelho, a tinta. Ao lado, havia uma ampliação, granulosa mas nítida. Spada contemplou-a por algum tempo e depois chamou Deskau.

— É este o homem. Tenho quase certeza.

Deskau pegou o telefone e deu uma ordem:

— Mande Fischer até aqui. . . correndo!

Poucos momentos depois, o desenhista da polícia en­trou na sala, carregando um bloco de desenho. Deskau apon­tou para a fotografia.

— Tire a barba, arrume os cabelos, meta-o num traje a rigor, gravata branca e colete.

O desenhista sentou-se à mesa e começou a trabalhar. Cansado, Spada perguntou:

— Teve alguma sorte com o resto?

— A reação habitual da multidão. Relatos conflitantes, descrições contraditórias. Estamos à procura de um anão barbado, com mais de dois metros de altura, carregando um facão de açougueiro.

— Como eles sabiam que Hugo ia à ópera?

— Isso não era problema. O velho tinha os mesmos lugares reservados há vinte anos. Jamais perdia a primeira noite de cada temporada. Se não o tivessem apanhado antes, iriam liquidá-lo depois. Mas ele ajudou-os, armando aquela encenação para você.

— Oh, meu Deus!

— E tem mais: Hugo sempre usou o mesmo serviço de limusines de Tegernsee. Eles têm apenas um veículo grande, o que usaram esta noite. Alguém telefonou querendo contratá-lo. Foi informado de que já estava reservado para um cliente regular.

— Eles foram bastante meticulosos.

— Estão constantemente melhorando seus métodos.

O desenhista deu os últimos retoques em seu trabalho e estendeu-o por cima da mesa para Spada. Deskau obser­vou-o atentamente. Spada sacudiu a cabeça enfaticamente.

— É ele mesmo.

— Tem certeza? — Havia um tom ríspido de adver­tência na voz de Deskau. — Está absolutamente convencido a ponto de mandá-lo para Stammhein por vinte anos?

Spada hesitou.

— Se a coisa chega a esse ponto, não posso dizer que tenho certeza absoluta.

Deskau virou-se para o desenhista.

— Traga-me a ficha desse homem.

O desenhista saiu apressadamente da sala. Voltou três minutos depois com um dossiê pardo. Deskau examinou a ficha em silêncio por um momento e depois disse para o desenhista:

— Isso é tudo. Obrigado. Pode deixar-nos agora.

O desenhista pegou as suas coisas e retirou-se. Deskau disse baixinho:

— Agora que estamos a sós, eu lhe pergunto nova­mente: é mesmo esse o homem?

— É, sim.

Deskau entregou a ficha a Spada. O nome em cima era Gebhardt Semmler. Spada ficou olhando, totalmente aturdido. Depois, um novo horror invadiu-o. Fitou Deskau, extre­mamente pálido.

— Fui fotografado pela imprensa diante do Teatro da Ópera.

— Sei disso — murmurou Deskau sombriamente.

— Se você pegar Semmler, estarei inevitavelmente en­volvido. El Tigre saberá que fui eu que o identifiquei e toda a minha operação na Argentina estará liquidada. Nunca con­seguirei libertar Vallenilla.

— Só se divulgarmos a notícia de que houve uma iden­tificação.

— Mesmo que não o faça, ainda sou a sua principal testemunha. Não pode me manter fora dos documentos oficiais.

— Podemos protelar o processo. . . mas não por mui­to tempo.

— Quanto tempo?

— Até pedirmos à polícia holandesa que prenda e ex­tradite Semmler.

— Não é suficiente. Tenho um grupo preso em Buenos Aires. Se El Tigre der o aviso, eles estarão liquidados.

Deskau não disse nada. Abriu a gaveta da mesa e tirou dois envelopes, entregando-os a Spada.

— Seu passaporte, em nome de Erwin Hengst, carteira de motorista, talão de cheques, cartões de crédito, número da conta do Deutsche Bank. Sua nova biografia: é um enge­nheiro consultor de Frankfurt am Main. Estude os detalhes cuidadosamente. Há um vôo da KLM para Amsterdam às catorze e trinta e cinco amanhã. Embarque nele.

— E o que vou fazer em Amsterdam será da minha conta?

— Exatamente. — Deskau já tinha descartado o assun­to. — Agora, vou chamar um estenógrafo para tomar o seu depoimento sobre os acontecimentos desta noite. Irá assiná-lo antes de partir. Não há meio de eu escondê-lo. Assim, seja bastante cauteloso ao explicar os motivos da sua presença em Munique e bem vago a respeito da identificação do assassino.

— Obrigado, Kurt.

— Não me agradeça! — Deskau estava a ponto de perder o controle. — Um grande alemão está morto. Acho que você tem melhores possibilidades do que eu de dar um jeito no miserável que o matou.

— Como vai querê-lo?

— O problema é seu — disse Deskau, com uma indi­ferença estudada. — Só quero que me avise depois que o serviço estiver feito. Agora, vamos tratar do seu depoimen­to. Depois, mandarei um carro da polícia levá-lo a Tegernsee. Foi escolhido para transmitir a notícia a Frãulein Helga.

Ao chegar a Tegernsee, Spada descobriu que a notícia correra na sua frente. Helga e o caseiro tinham visto as primeiras notícias pela televisão. Os vizinhos haviam pron­tamente aparecido, como sempre acontece no campo, e a casa estava repleta, uma pequena multidão iniciando o longo velório.

Helga correu para receber Spada, chorou no ombro dele e depois suplicou que lhe contasse até o último detalhe daquela noite fatídica. Spada teria ficado profundamente grato se pudesse evitar o papel de narrador, mas não havia escapatória. A reconstituição do drama era um ato curativo, uma purgação do terror que, caso contrário, poderia envenenar a todos.

Contudo, mesmo enquanto falava, Spada percebeu que cada palavra o levava um passo mais para longe da audiên­cia. Não que aquelas pessoas se mostrassem hostis, mas é que simplesmente o encaravam como um homem fatídico. Se ele não tivesse aparecido, Hugo von Kalbach poderia estar ainda vivo; portanto. . . mas não! A lógica nada tinha a ver com a atitude deles. Em vez disso, era um retraimento instintivo, primitivo, diante da presença de um estranho tão assustador. Assim, no momento em que pôde fazê-lo cortesmente, Spada deu um beijo de boa-noite em Helga e foi para o seu quarto, levando a caixa de papelão em que estava o original da última obra de Meister Hugo.

Ele prometera lê-lo em Nova York, mas a notícia da prisão de Teresa fizera-o esquecer-se inteiramente daquilo. Deveria agora pelo menos dar uma olhada, como uma última homenagem ao velho filósofo; ao mesmo tempo, encarava isso como um exercício inútil. Hugo von Kalbach estava morto, uma vítima da violência epidêmica cujo curso ele tentara determinar. A partir do momento em que eles se livrassem do último médico, a praga poderia espalhar-se sem qualquer estorvo, a cidade estaria entregue aos saqueadores e ladrões de túmulos. Era um pensamento sombrio e depri­mente para encerrar um dia brutal. Spada deixou o original em cima da mesa, sem abri-lo. Dez minutos depois estava dormindo e sonhando.

 

Num bar pequeno e enfumaçado da Leidesplein, em Amsterdam, o homem que matara Meister Hugo von Kalbach bebia schnapps com cerveja, à espera do homem que queria falar sobre uma partida de cerveja Tigre. Parecia uma boa perspectiva. Era recomendado por antigos clientes e aparentemente não se assustara com o preço. E o dinheiro seria bastante útil naquele momento. Aquele último trabalho nada lhe rendera, a não ser as despesas, pois fora realizado por conta do seu próprio comando. Os trabalhos de fora rendiam bem. . . e eram muito menos perigosos, porque não apresentavam qualquer característica rotineira.

Gebhardt Semmler era um homem que gostava de se manter na sombra. Como não era um mau pintor, pudera estabelecer uma atividade legítima. Reproduzia quadros fa­mosos nas galerias e os vendia aos turistas nas casas notur­nas. A polícia não apresentava qualquer problema. O nome dele não estava relacionado entre os dos membros da Baader-Meinhof na Holanda. O desenho do assassino de Von Kalbach divulgado pela polícia de Munique era tão imperfeito que chegava a ser ridículo. Sua única preocupação real era a solidão, a sensação de ansiedade e de que estava deslocado na sociedade, a necessidade da garantia de que ainda era amado e respeitado por seus companheiros. Era outra boa razão para aceitar um novo trabalho. Precisava manter a confiança em si mesmo.

Semmler sabia que alguns dos seus companheiros esta­vam na área de Amsterdam, mas o aviso já fora espalhado: “Fique longe dessa turma. É muito especial e sensível". O grupo em questão, Semmler sabia, tinha a guarda de dois mísseis SAM e estava procurando uma base apropriada, pró­xima das rotas aéreas do Aeroporto Schiphol.

Contudo, Gebhardt Semmler não os invejava demais. Preferia trabalhar sozinho, planejar a sua própria tática para alcançar seu próprio alvo. Estava absorvido em seus deva­neios e no segundo copo de schnapps quando um homem que usava uma capa suja, óculos escuros e uma barba de dois dias se sentou no banco ao lado dele e perguntou polida­mente em alemão:

— Importa-se de que eu sente aqui?

— À vontade.

A garçonete se aproximou. O homem pediu rum com água quente e depois disse em tom de indiferença:

— Geralmente bebo cerveja Tigre, mas está fazendo muito frio lá fora.

— Pode falar — disse Gebhardt Semmler. — Mas não muito alto.

Spada tirou um jornal dobrado do bolso e abriu-o pela metade sobre a mesa. A manchete era a notícia da prisão de quatro terroristas num apartamento perto do Aeroporto Schiphol e a descoberta de um grande arsenal, inclusive um lançador de foguete. Spada dobrou novamente o jornal e tornou a guardá-lo no bolso.

— Isso aconteceu às primeiras horas de hoje. O que significa que os camaradas passaram o dia inteiro sendo in­terrogados. Calculamos que as redes serão lançadas em breve. Este é um momento oportuno para deixar a Holanda.

— Não estou preocupado. Ninguém pode provar coisa alguma contra mim. . . ninguém!

— Tanto melhor. . . para nós e para você.

— Para onde está querendo que eu vá?

— Suíça.

— Qual é o serviço?

— O mesmo que executou com Hugo von Kalbach: um homem num local público apinhado. Você age e desapa­rece antes que qualquer pessoa perceba o que aconteceu.

— Como soube de Hugo von Kalbach?

Spada deu de ombros, sorrindo.

— Estamos atentos a você, filho. Por acaso pensava que iríamos comprar gato por lebre?

— Já não o vi em algum lugar antes?

— Duvido muito.

Semmler pareceu ficar aturdido por um momento e depois disse abruptamente:

— Diga o preço.

— Dez mil dólares.

— Quando recebo?

— Cinco mil agora, cinco mil depois que o serviço for executado.

— Quem paga?

Spada pegou a carteira e tirou um cartão no qual estava gravado o símbolo da Proteu. Entregou-o a Semmler.

— Guarde isso em sua carteira. Depois que o serviço estiver concluído, vá a um endereço em Paris que eu lhe darei, apresente este cartão e receberá o resto do dinheiro. . . E então, vai ou não aceitar?

— Quero ver o dinheiro primeiro.

— Aqui nesta espelunca? Deve estar brincando. Seríamos assaltados antes de darmos vinte passos pela rua. Se quiser ir ao meu hotel. . .

— Vamos ao meu apartamento. Fica a apenas um quar­teirão daqui, à beira do canal.

— Está certo. Vamos logo sair daqui.

Spada pagou a conta e os dois saíram para o vento gelado e a neve semiderretida na calçada. Spada perguntou:

— Que espécie de arma usou em Hugo von Kalbach?

— Uma Walther PK. Por quê?

— Ainda a tem?

— Claro. Sempre a levo comigo.

— Pois mude de arma! — disse Spada bruscamente. — Não queremos duas mortes com a mesma arma. Esse é o tipo de coisa que sempre acaba passando um laço pelo pes­coço das pessoas.

— Para mudar, terei que correr metade da cidade à procura de uma nova arma. E isso poderá ser também perigoso.

— Sabe manejar uma Luger?

— Claro.

— Pois então vamos trocar de arma quando chegarmos ao seu apartamento.

— O dinheiro primeiro — disse Semmler, firmemente. Aqui. Moro no terceiro andar.

No patamar, Spada limpou os pés cuidadosamente, tirou as galochas, ajeitou-as ao lado da porta. Semmler soltou uma risada.

— Essa não! Não precisa ser tão meticuloso. Vamos entrar.

O apartamento era uma mansarda grande, meio estúdio de pintor, meio moradia, tudo desarrumado e sujo, refletin­do a falta de cuidado de um homem solteiro. Spada contem­plou a sujeira com alguma repulsa.

— Santo Deus!   Não vive muito bem aqui, não é mesmo?

— Isso é problema meu. E agora mostre-me a cor do seu dinheiro.

Spada enfiou a mão enluvada no bolso do paletó e tirou dois envelopes pardos, um dos quais entregou a Semmler.

— Conte.

Semmler contou cuidadosamente as notas, depois ba­teu-as contra a palma da mão.

— Ótimo! Agora, fale-me sobre o trabalho. Spada entregou-lhe o segundo envelope.

— Está tudo aí. Leia, decore, depois destrua. Enquan­to estiver lendo, deixe-me dar uma olhada na sua Walther.

O jovem hesitou. Spada tirou a sua própria pistola e colocou-a em cima da mesa, ao lado do dinheiro. Semmler entregou-lhe a Walther, na qual estava ajustado um silenciador.

— Tome cuidado, pois está carregada.

Spada pegou a arma na mão enluvada e puxou a trava de segurança. Levantou a Walther e apontou-a pela janela.

Semmler enfiou o polegar na aba do envelope e abriu-o. Levantou a cabeça e disse:

— Com o silenciador, há um ligeiro desvio para a esquerda. Mas serve perfeitamente para um trabalho de perto.

— É sempre útil saber dessas coisas — disse Spada, alvejando-o na cabeça.

Ele recolheu os papéis e o dinheiro, guardou a sua própria pistola, depois ajeitou a Walther na mão do morto. Saiu do apartamento, fechando a porta silenciosamente. Não tinha pressa. Tudo de que precisava agora era fazer a barba, antes do seu próximo encontro. No primeiro trecho escuro, jogou a pistola no canal e continuou em frente, assoviando.

 

Na lista da organização Proteu, Jan Pieter Maartens estava relacionado sob o codinome de Arenque. Era um homem grandalhão, de rosto avermelhado, cujo apetite por boa comida e mulheres bonitas era quase tão grande quanto a sua fortuna particular e a sua coleção de mestres holan­deses. Intitulava-se, à maneira antiga, um mestre da marinha mercante. Suas embarcações singravam os mares, de Caracas a Callao, de Bandung a Botany Bay. Tinha contratos prolon­gados com as Empresas Spada e uma amizade longa e íntima com John Spada.

Meia hora depois da execução de Gebhardt Semmler, Spada estava sentado no gabinete de Maartens, com um copo de bourbon na mão e um burguês de Rembrandt como única testemunha da conversa.

Maartens disse, à sua maneira efusiva habitual:

— Está com uma aparência horrível, meu caro. O que andou fazendo?

— Um dos nossos foi morto em Munique. Hugo von Kalbach.

— Vi a notícia. É uma pena. Mas não sabia que ele era um dos nossos.

— E era também um amigo meu muito querido.

— E o que o traz a Amsterdam?

— Acabei de matar o homem que o assassinou.

— Ah... — Maartens procurou não demonstrar qualquer surpresa. — Precisa de alguma ajuda?

— Para isso, não. Foi um trabalho limpo. E a polícia não vai se empenhar muito a fundo na investigação. Mas tenho um outro problema. Soube o que aconteceu com minha filha e o marido?

— Soube, sim. O que posso fazer?

— Estou tentando tirar Rodolfo Vallenilla da prisão na Argentina. Se eu conseguir. . . e esse "se" é muito gran­de. .. ainda terei de tirá-lo do país. Ele provavelmente está doente, o que agrava ainda mais o problema.

— Então vai precisar de um navio.

— Mais do que isso, Jan. Preciso de um navio à es­pera, pronto para zarpar assim que embarcarmos.

— Sei. . . — Maartens pensou por um momento, ti­rando uma baforada do charuto. — Vai ter que passar pela polícia do porto e pelo pessoal da alfândega.

— Pode ajudar?

— Estou pensando nisso. Poderíamos usar o Freya. Está em Caracas neste momento, à espera de uma carga even­tual. Podemos mandá-lo para Buenos Aires. É uma banheira velha, mas ainda nos proporciona algum lucro.

— Pode mantê-lo à espera em Buenos Aires por algum tempo?

— Claro! A melhor coisa seria encenar um defeito qualquer. Dessa forma, as autoridades do porto não vão fazer perguntas.

— Como é o comandante?

— Jovem. O Freya é o seu primeiro comando. — Maartens soltou uma risadinha. — Gostamos de deixá-los quebrar a cabeça com essas velhas banheiras enferrujadas. . . Isso mesmo, o Freya provavelmente é o melhor.

— É um navio muito rápido?

— Não. Faz doze nós no máximo, com os rebites amea­çando pular fora. Mas isso não fará qualquer diferença. Basta duas horas de viagem e estarão seguros.

— Então será o Freya. Quem são os seus agentes locais?

— Os Irmãos Guzmán. Mas prefiro não envolvê-los. Deixe apenas um bilhete para o comandante no escritório deles. Eu o avisarei para esperar.

— O bilhete será de Erwin Hengst.

— Deixe-me anotar.

Maartens escreveu o nome no seu caderno de telefones.

— Vai perder dinheiro, Jan. Acertaremos as contas depois.

— Para a Proteu, nem se fala em cobrança! — Maar­tens estava visivelmente indignado. — Dê uma gratificação pessoal ao comandante e à tripulação. E mais nada!

— Você é um bom amigo, Jan.

— Vamos tomar outro drinque...   A imprensa de Nova York divulgou a notícia de que você renunciou à presidência das empresas. É verdade?

— É, sim.

— Aceita um conselho?

— Seu? Mas claro!

— Quando tudo isso terminar, vá se divertir um pou­co É um mundo cão. Nem mesmo a Proteu poderá conser­tá-lo durante a vida de um homem.

— E o que devemos fazer então, meu amigo? Deixar que os cães assumam?

— Já terminamos nossos drinques. Vou agora levá-lo para jantar fora.

— Eu não conseguiria comer nada.

— Vai comer, sim! — disse Jan Pieter Maartens fir­memente. — E vai beber também. Será bastante cortês com um par de mulheres bonitas, e amanhã. . .

— Amanhã eu parto para Buenos Aires. Não se esque­ça de me meter no avião.

 

No momento em que o avião decolou, Spada sentiu-se subitamente vazio e terrivelmente solitário. Os últimos elos que o prendiam à realidade haviam sido rompidos. Era um homem novo, com um novo nome, cuja identidade dependia da boa vontade de um policial de Munique. Matara um homem em Amsterdam. Embora não sentisse qualquer re­morso pelo ato, isso o distanciava do comum dos homens. Era uma experiência única, que não podia ser partilhada, inteiramente destituída de alegria.

No lugar para onde estava indo, levaria a vida de um criminoso, à margem da sociedade, sempre cauteloso. Teria de falar uma língua estrangeira, representar uma ficção complicada, sabendo que qualquer deslize representaria a tor­tura e a morte. E para quê? Isso era o mais desolador: para quê? Lembrava-se do que Anatóli Koltchak lhe dissera a respeito de Liev Lermontov: "O negócio que está querendo fazer é uma estupidez. . . Quer comprar o mais perecível e o menos valioso de todos os produtos: um corpo humano doente!"

Agora, ele estava arriscando a própria vida para obter esse produto tão deficiente e devolvê-lo à sua filha, ao amor e a ternura, até que a morte a libertasse. Ele próprio já demonstrara como o presente era realmente trivial. Matara um homem a sangue-frio e depois saíra a se divertir com Jan Pieter Maartens.

Por um momento terrível, teve a impressão de que seu crânio iria estourar com toda aquela loucura. Depois, gradativamente, o velho pragmático John Spada voltou a assumir o controle. Não pode andar para trás; siga em frente. Não sonhe; aja! Não mude as categorias; caso contrário, a lógica se tornará um absurdo.

E assim ele começou a responder ao questionário. Nome? Erwin Hengst. Nacionalidade? Alemão-ocidental. Idade? cinqüenta e cinco anos. Local de nascimento? Frank­furt am Main. Profissão? Engenheiro consultor. Que espe­cialidade da engenharia? Mineração. Propósito da visita à Argentina? Turismo. Endereço na Argentina? Hotel Plaza, Buenos Aires. Línguas que fala? Alemão, espanhol, italiano. Não devia falar inglês, a não ser entre os seus companheiros. Referências? Deveria registrar sua presença imediatamente com o cônsul-geral alemão. Qualquer contato com o escri­tório da Spada deveria ser feito em segredo, através de Herman Vigo. Para os encontros sigilosos, poderia usar o apartamento de Kanz. Dinheiro? Tinha vinte mil marcos alemães a declarar. Herman Vigo forneceria os recursos de que precisasse a mais. Hábitos? Devia renunciar ao bourbon e passar a tomar vinho, cerveja e uísque escocês. Devia en­comendar jornais alemães, comprar alguns romances alemães e um guia turístico alemão para a Argentina. Nome do pai? Franz Erwin Hengst. Profissão do pai? Mestre-escola. Nome de solteira da mãe? Ludmilla Dürer. . .

O ensaio e os coquetéis levaram-no pela primeira etapa da viagem, até Zurique. Durante a longa viagem noturna de Zurique a Monróvia e ao Rio, Spada comeu, bebeu e dormiu inquietamente, sempre assustado pelo temor de que pudesse falar alguma coisa enquanto estivesse dormindo. No salão de passageiros em trânsito do Rio, fez a barba, mudou a camisa e preparou-se para as últimas quatro horas de viagem, até Montevidéu e Buenos Aires.

Houve apenas um momento de tensão, enquanto o funcionário de rosto impassível no balcão do serviço de imigração examinava seu passaporte e depois conferia me­ticulosamente a lista dos indesejáveis. O homem finalmente fechou o passaporte e devolveu-o. Mais dois passos e John Spada, ou melhor, Erwin Hengst, entrava na arena para matar.

— Temos um plano — disse o Espantalho.

— Que não me agrada — acrescentou prontamente o Major Henson.

— Mas não apresentou nada melhor — interveio Sancho. — Exagera os riscos porque pensa como um soldado britânico e não como um guerrillero.

— O tempo está contra nós — declarou o pai de Ro­dolfo Vallenilla. — As informações que temos são de que meu filho está bastante doente. Ele morre um pouco a cada dia que passa.

Estavam sentados no pátio da casa da fazenda, tomando cerveja gelada e olhando para as fileiras de laranjeiras que se estendiam até a beira do rio. Estavam todos cansados e tensos, à exceção do Espantalho, que ainda mantinha o seu ar de indiferença sardônica.

Spada disse calmamente:

— Vamos conversar primeiro sobre as boas notícias. Há um navio vindo de Caracas para Buenos Aires. Quando libertarmos os dois homens, esse navio nos levará embora.

— Levará o seu homem — disse Sancho. — Chávez ficará aqui conosco. Precisamos dele.

— Está certo — disse Spada, amistosamente. — E agora me falem: qual é o plano para arrancá-los da prisão?

— Eles não vão ser arrancados à força, mas sim entre­gues — disse Sancho, obviamente ansioso por justificar-se. — Deixe-me explicar. Quando o pessoal da segurança ter­mina de trabalhar em alguém, trata de matá-lo ou então o deixa preso, caso julgue que poderá precisar dele novamente. Se e quando tornam a precisar, enviam uma ordem ao co­mandante da prisão, que entrega o prisioneiro. Entendido?

— Até aqui.

— A ordem é um formulário oficial assinado por um dos oficiais das forças de segurança, normalmente o chefe das equipes de interrogatórios, o Major O'Higgins.

— Foi esse o miserável que entregou minha filha aos ;torturadores! — disse Spada, veemente. — Quero vê-lo morto!

— Uma coisa de cada vez — interveio o Espantalho — Estamos todos metidos nisso. Continue, Sancho.

— Temos de providenciar tanto o formulário como a assinatura. Em seguida, teremos de apresentar-nos na prisão receber os prisioneiros e assinar um recibo.

— E podemos conseguir o formulário oficial?

— Claro! — respondeu Sancho, sorrindo. — Há uma mulher que trabalha no quartel-general. É feia como o pe­cado, mas eu a impeço de sentir-se solitária.

— E a assinatura?

— A mesma mulher, o mesmo motivo. Podemos pro­videnciar uma falsificação passável.

— E qual é o risco?

— O risco é a rotina da prisão — disse o Major Henson. — Sancho a conhece, porque já esteve lá e trabalhou como servente no escritório. Normalmente, os homens da segurança telefonam primeiro. Dizem que estão precisando do prisioneiro X e vão mandar um destacamento buscá-lo, com uma ordem por escrito para a entrega.

— E não podemos fazer isso?

— Claro que podemos — respondeu Henson. — Mas vamos supor que os homens da segurança telefonem e al­guém mencione o primeiro contato. Iríamos cair numa arma­dilha.

— Já pensei nisso — declarou Sancho, irritado. — Telefonamos e depois cortamos a linha.

— Mas Martin Garcia continuará a ter contato pelo rádio com o quartel-general das forças de segurança. E é uma ligação que não podemos interromper.

— Eles operam em horários regulares. Podemos desco­brir quais são.

— Se as ligações telefônicas forem cortadas, é mais do que provável que farão um contato pelo rádio fora dos horá­rios previstos. O risco é muito grande.

— Como podemos evitá-lo? — indagou Spada. — Ou pelo menos atenuá-lo?

— Martin Garcia é uma ilha — disse Henson. — A prisão possui o seu próprio serviço de transporte para o território continental. Se pudermos fazer com que os pri­sioneiros sejam entregues em território continental, pelo menos teremos uma possibilidade de fuga, se algo sair errado. Se não for assim, ficaremos encurralados na própria ilha.

— O que diz, Sancho?

— Em teoria, é possível. Mas representa uma quebra na rotina, o que é sempre suspeito. O oficial de plantão na prisão pode querer entrar em contato com o quartel-general da segurança, para pedir uma confirmação.

— Há muito tráfego entre a prisão e o território con­tinental?

— Há, sim. Ha o transporte dos suprimentos, o pes­soal da prisão saindo de folga. O comandante vai constan­temente à cidadezinha próxima.

— Temos   alguma espécie de horário   desses   movi­mentos?

— Estamos preparando-o — disse Sancho, na defensiva. — Não se esqueça de que só recebemos há poucos dias a autorização para participarmos da operação. Essas coisas levam tempo.

O Major Henson deu de ombros, como a dizer: "Estão vendo o que eu queria dizer? Como se pode realizar uma operação dessa maneira?"

O Espantalho voltou a falar:

— Entendo a posição do major. E entendo também a posição de Sancho. Vamos analisar o problema do ponto de vista dos próprios homens da segurança. Eles têm as suas próprias emergências. Estão interrogando um homem e, de repente, precisam comparar ou checar o depoimento dele com as informações de algum preso anterior. Telefonam para a prisão. Querem que tudo seja providenciado rapidamente. Levem o prisioneiro para o continente. Vamos pegá-lo às pressas. Não será possível?

— Possível, mas não provável — disse Sancho brusca­mente. — Esses homens operam em seu próprio circuito recriado. Por que haveriam de se apressar, quando sabem que suas vítimas estão sempre à espera? Já estive lá e sei como essas coisas funcionam.

— Então eles não têm emergências — disse o Espan­talho, placidamente. — Não poderíamos criar uma?

— Podemos — disse Sancho, imediatamente cauteloso. — Contanto que não redunde numa pressão demasiada em minha gente. Vocês vão embora, mas nós teremos de continuar a viver aqui. Não se esqueçam disso.

— Sancho tem razão — disse Vallenilla. — A última coisa que podemos querer é uma nova onda de repressão. De qualquer forma, nosso amigo Lunarcharsky pelo menos apresentou uma idéia nova, que devemos considerar cuida­dosamente. E agora, se me permitem, posso dizer alguma coisa? Recebemos notícias da prisão. São confusas e frag­mentadas, algumas vezes deliberadamente adulteradas. Mas tudo parece indicar que Rodo está sendo tratado de uma maneira particularmente brutal. . . como se quisessem trans­formá-lo num exemplo de como se avilta um intelectual. Ele ficou gravemente afetado pelas torturas. Agora, ao que pa­rece. . .

 

Haviam acabado com ele, há muito tempo, no Palácio das Diversões. Haviam-no esvaziado como a uma laranja, arrancando polpa, caroços e fibras, até que só restasse a casca amarelada, vazia por dentro. Haviam tomado cuidado para que nada lhe faltasse do catálogo de crueldades: os choques elétricos, o quase afogamento numa tina cheia de dejetos, as surras, os dias e noites dentro de um canil, onde tinha que ficar agachado sobre uma camada de pedras pon­tiagudas, incapaz de ficar de pé ou deitado, a extração vio­lenta das unhas, os pesos que o esticavam quando ficava suspenso do teto, amarrado pelos pulsos.

Muitas vezes ele estivera a apenas uma batida cardíaca da morte, mas sempre lhe negavam a fuga final e misericor­diosa para a escuridão. Quando lhes suplicara que o deixas­sem partir, que o jogassem no rio como a centenas de outros, mortos ou quase mortos, eles haviam se limitado a rir. Ja­mais, disseram. Martin Garcia precisava de um palhaço para animar os dias na prisão, uma mascote para enfeitar o desfile dos condenados. Agora, enquanto os outros prisioneiros se arrastavam pelo pátio de exercícios, eles acorrentavam-no, como a um cão, a um dos postes de execução, a fim de que pudesse apenas sentar-se ou rastejar num círculo de dois metros, único meio de exercitar os músculos que se atrofia­vam e as articulações que estavam ficando calcifiçadas.

Algumas vezes, um dos guardas parava e o afagava, meio por piedade, meio desdenhosamente. E todos os dias, sem falta, o Coronel Ildefonso Juárez aproximava-se dele, coxeando, levantava-lhe a cabeça com a ponta da bengala e escarnecia:

— Como está o grande Rodolfo Vallenilla hoje? Espero que ainda continue trabalhando. Não deve desapontar seu público. Eles esperam grandes coisas de você, muitos depoimentos sobre os nossos tempos difíceis. Ora, mas eu tinha esquecido! É um livro que está escrevendo, não é mes­mo? Já arrumou um título? Que tal O livro das revelações? Ou As confissões de Rodolfo Vallenilla, com fotografias selecionadas? Ainda nada? Ora, não tem importância. Há bastante tempo, muitos anos e anos...

E depois ele o espancava, com a bengala, jocosamente, mas com força, para doer, no traseiro esquelético, afastan­do-se em seguida, enquanto Rodolfo Vallenilla continuava sentado, todo encolhido, preso ao poste onde outros mais afortunados haviam sido fuzilados.

O Coronel Juárez julgava-se um comediante, mas não tinha a menor idéia da base da comédia. É que Rodolfo Vallenilla estava de fato escrevendo; não no papel, porque não dispunha de nenhum, porque seus dedos estavam tortos além de qualquer possibilidade de recuperação, porque mes­mo que houvesse luz em sua cela a vista estava começando a fraquejar. Ele estava escrevendo na mente. Era uma litania, que recitava interminavelmente, uma litania dos mortos e dos vivos que, como lhe acontecera, haviam sido priva­dos dos últimos resquícios de humanidade, haviam sido eli­minados dos registros, como se nunca tivessem existido. A cada dia, a cada semana, ele ia aumentando a litania: eram nomes sussurrados no pátio de exercícios, gritados pelos guardas, rabiscados no banheiro do bloco de celas. Um dia — nem que fosse no Juízo Final! — iria entoar aquela litania em voz alta e exigir, para cada nome, uma terrível condenação para os tiranos.

Sonhava também com outras obras: um poema épico vasto e idealista da terra que absorvera tantas correntes e tensões da humanidade, o folclore argentino, uma antologia lí'rica proclamando seu amor por Teresa. Mas tais obras ele não conseguia manter em sua mente por muito tempo. Elas apareciam e logo desapareciam. Ficavam apenas alguns farrapos, como pedaços de pano presos a um espinheiro nos pampas. . . Havia ocasiões em que o trapo preso no espinheiro era ele próprio, coberto de poeira, agitado pelo vento invadido por uma miscelânea de dores, sozinho, terrivelmen­te sozinho. . .

E, no entanto — ele aprendera a contar as bênçãos também! —, nem sempre estava sozinho. Quando o período de exercícios terminava, o guarda abria as correntes e dois outros prisioneiros o levantavam, passando os braços sob seus ombros e quase que o arrastando de volta à cela. Um deles era Ferrer, antigo pároco rural que protestara contra as brutalidades de um latifundiário local nos sermões domi­nicais. O outro era Chávez, outrora mestre-escola, veterano ativista, que sobrevivera a uma centena de batidas da polícia e comandara uma vintena de atentados a bomba, para ser finalmente preso por entoar canções de protesto obscenas num bar, quando estava meio embriagado. Davam um jeito de conduzi-lo devagar, o suficiente para transmitirem al­gumas notícias aos sussurros e talvez porem em suas mãos um pedaço de chocolate ou de fruta. Até mesmo o simples contato e a proximidade deles davam-lhe vontade de chorar de gratidão. Aos sábados, o velho Cabo Pascarelli é que se encarregava da ronda das celas, enquanto seus subordinados bebiam até tarde na cantina. Ele sempre estava disposto a dois minutos de conversa, sempre levava um pequeno pre­sente, como uma pílula de vitamina ou um cigarro. Mais raramente, quando havia sangue em sua saliva e permitiam-lhe visitar a enfermaria, recebia cuidados especiais do enfer­meiro, um homem pálido e de expressão triste, que lhe massageava as costas, tentando aliviar as dores da espinha deslocada. Apesar de suas atitudes aparentemente efeminadas, era um homem de extrema coragem e enfrentava o médico da prisão, Dr. Wolfschmidt, cujas únicas preocupa­ções pareciam ser a garrafa e as salas de tortura.

Até mesmo no inferno havia atos de compaixão, lamen­tavelmente pequenos, mas grandes o bastante para manter a sanidade de um homem e permitir-lhe acalentar um mí­nimo de esperança. Mas esperança para quê?

Ferrer, inabalável e persistente na fé antiga, insistia constantemente: "Cristo está com você, Rodolfo. Quanto pior se torna a situação, mais você fica com ele. Creia nele. Apegue-se a ele. Ele nunca o abandonará".

Chávez se manifestava de outra maneira, nem por isso menos encorajadora: "Resista em sua cabeça, homem! Está tudo lá dentro. Feche os olhos, feche a boca. Tape os ouvi­dos. Encolha-se dentro de seu crânio e esqueça-os. Dá certo. Creia em mim: dá certo mesmo!"

O velho Pascarelli arrotava, coçava as axilas e falava como um gângster, pelo canto da boca: "Os graúdos estão apavorados. Querem matá-lo, como mataram todos os ou­tros. Mas estão apavorados com a perspectiva de terem que apresentá-lo um dia. Não tente enfrentá-los, pois isso só serviria para que o atormentassem ainda mais. Trate apenas de parecer abobalhado, atordoado. Assim, eles o deixarão em paz. É a melhor coisa que tem a fazer. Banque o idiota".

Assim, por falta de coisa melhor, Rodolfo Vallenilla tentou tudo que lhe aconselharam. Nunca mais pisara numa igreja, desde o dia em que fora crismado. Mas tentou rezar. Ele, o comunicador, acalentava suas visões — ou seria sua loucura? — na solidão. Ele, o homem que a tudo enfrentava e desafiava, curvava-se submissamente e sorria como um macaco domado diante de seus algozes. . .

 

Depois que os outros partiram de volta à cidade, sepa­rados e por caminhos diferentes, John Spada ficou para jantar e para conversar sobre os problemas de família com o velho Vallenilla. Era a primeira vez que os dois ficavam realmente a sós, a primeira vez que Spada era convidado a usar o primeiro nome de seu anfitrião, Francisco.

— Não é estranho? — comentou Spada. — Nossos filhos se casaram, mas nós dois mal nos conhecemos.

— Mais estranho ainda é o fato de meu filho estar prisioneiro em meu próprio país, e você, o estrangeiro, vir salvá-lo. Faz com que me sinta incompetente e envergo­nhado.

— Pois não deve. O resto de sua família continua a viver aqui, é refém do regime.

— Que eu próprio ajudei a criar... se não por coope­ração, pelo menos por indiferença política. Enquanto eu tivesse liberdade para fazer o que queria. . . e pode estar certo, John, de que crio os melhores cavalos de corrida do país. . . eu me sentia feliz. Tinha também uma absolvição fácil. Era o homem com um único talento. Não estava fazendo mal a ninguém . . . e conseguia até fazer algum bem. Pensei, realmente acreditei, que meu filho estava provocando tumultos desnecessários por questões que se iriam corrigir com o tempo.

— Todos caímos na mesma armadilha — disse John Spada, melancolicamente. — Todos fizemos acordos com o Demônio, porque ele sempre paga bem. E é polido tam­bém. . . até o momento em que é contrariado.

— Diga-me com toda a sinceridade, John. Quais são as nossas chances?

— Neste momento, meio a meio.

— Não podemos melhorar isso?

— Só com informações mais acuradas. Além disso, é perigoso especular. Pode ser desmoralizante. Temos de fazer julgamentos racionais, com base em informações concretas. Mas há um problema. Vamos supor que consigamos libertar Rodo. O que aconteceria com você e sua família?

— Não creio que a perspectiva seja muito perigosa. É claro que seremos interrogados, provavelmente hostiliza­dos. Mas, ao final, acabarão por nos deixar em paz. Somos uma família rural. Os homens da segurança não se sentem muito à vontade nos pampas. São caçadores de ratos, trei­nados para se meterem pelos esgotos da cidade. Tenho quase certeza de que você correrá um perigo muito maior do que eu.

— Graças a Deus estarei longe. . . de volta a Nova York, com Rodo.

— Vivemos na era dos assassinos — disse Francisco Vallenilla. — Se Rodo sobreviver para voltar a escrever, e se se tornar conhecido que você foi o homem que derrotou o regime daqui, ambos se tornarão homens marcados.

— Uma coisa de cada vez, um dia de cada vez.

— Eles podem tentar expropriar seus investimentos aqui.

— Seriam tolos, se tentassem. Os banqueiros argenti­nos ficariam imediatamente revoltados. Além do mais, já é público agora que eu me retirei das Empresas Spada. Elas possuem alguns acionistas extremamente poderosos. As re­gras do jogo determinam que os homens são mortais, mas as corporações gigantescas são sagradas até a eternidade.

Francisco Vallenilla serviu mais vinho.

— Acha que haverá violência em nosso caso, John?

— É claro que tentaremos evitar, mas é possível que ocorra.

— Quero participar pessoalmente da operação.

— Não! — Spada era categórico. — Nem chegue per­to. Poderia comprometer muitas pessoas. E você poderia, ao final, ser forçado a pagar um tributo ao ERP.

— É possível. Mas. . .

— Mas reprima o seu orgulho e fique longe. O que me faz lembrar de uma coisa: preciso de uma boa pistola.

— Pode deixar que providenciarei. Mas, pelo amor de Deus, não a leve consigo nem a guarde no hotel. Muitos empregados de lá estão a soldo das forças de segurança.

— Eu a guardarei no apartamento de Kunz.

— Estaria preparado para matar um homem?

— Claro.

— Então eu lhe peço. . .   mais do que isso, eu lhe suplico!. . . se alguma coisa sair errada, se houver o perigo de Rodo ser capturado novamente. . . mate-o!

— Santa Mãe de Deus! — murmurou John Spada, aturdido. — Que espécie de homem está pensando que eu sou?

 

O Coronel Ildefonso Juárez era um homem extrema­mente metódico, o que não era a menor de suas qualifica­ções para ser comandante de uma ilha-prisão. Seus registros eram impecáveis, exceto nos casos em que o pessoal da segurança determinava que não deveria haver registro algum. Suas contas eram sempre equilibradas, o que significa que o desvio de recursos da prisão era mantido em níveis acei­táveis. Seus relatórios eram parcimoniosos e objetivos: ne­nhum acidente nem baixa, doenças infecciosas em níveis mínimos, nenhuma fuga, nenhuma infração disciplinar de maior gravidade, nenhuma queixa de prisioneiros, nenhum problema com os funcionários da prisão.

O gabinete dele era um modelo de limpeza: não havia um só papel fora do lugar, não havia o menor vestígio de poeira nos arquivos, os lápis eram apontados diariamente, ;a cesta de papéis era esvaziada ao meio-dia e ao final de cada expediente. Seus sapatos brilhavam como espelhos, os cabelos eram aparados duas vezes por semana pelo barbeiro da prisão, que também o barbeava todas as manhãs, antes de sua ronda matutina. Para com os superiores, ele demons­trava um respeito militar; com os inferiores, era de uma tirania inflexível, atenuada às vezes por um humor sardônico, que jamais deixava de arrancar risadinhas dos seus homens.

Sua residência, fora dos muros da prisão, era um chalé com um jardim e uma horta, cultivados por um antigo sar­gento, expulso e preso vinte anos antes, por ter matado a amante. Ele contava ainda com os serviços de um ordenança e de uma idosa criolla, que limpava o chalé e cozinhava.

Até mesmo as suas diversões eram metódicas. Nos últi­mos quatro dias de cada quinzena, ele deixava o comando, o qual sempre transferia formalmente ao Major Gutiérrez, seguindo de carro para Buenos Aires, onde lhe estava reser­vada uma suíte no Hotel Formosa. Ali, a mesma criada invariavelmente o recebia, mostrando que seus trajes civis estavam limpos e passados, as camisas e roupas de baixo no armário, o suprimento de bebidas e charutos intacto desde a sua última visita. Ela esperava enquanto o Coronel Juárez se despia, ajudava-o a vestir o roupão, servia-lhe um drinque e depois se retirava, levando as roupas sujas para serem la­vadas, o uniforme para ser passado.

Depois, a rotina da diversão começava. De banho to­mado e vestido em trajes civis, Juárez ia para o Clube dos Oficiais, a fim de renovar os contatos com seus colegas. Eles se mostravam bastante cordiais, embora Juárez algumas vezes desconfiasse de que o cheiro da prisão ainda o envolvia. Mas a cordialidade era menos importante do que as conversas sobre o serviço: quem estava servindo onde, quem fora transferido para o setor político, quais os visitantes que estavam na cidade, procedentes das áreas fronteiriças, quais os colegas do Uruguai, Chile ou Paraguai que se encontra­vam em Buenos Aires. Eram informações assim que manti­nham um homem seguro, permitiam-lhe desfrutar os favores e acumular um crédito favorável na hierarquia.

Se a companhia era escassa, ele se retirava cedo; se o clube estava cheio, Juárez jantava e depois ia coxeando de grupo em grupo na sala do café, trocando cumprimentos. Com os novos, o coxear era sempre útil, como um cartão de visitas. Invariavelmente alguém lhe perguntava qual era o problema, e ele podia explicar, com uma modéstia estudada, que levara um tiro numa emboscada revolucionária no inte­rior do país, mas que os filhos da mãe haviam sofrido muito mais, com três mortos e mais dois homens que sobreviveram para contar uma história comprida no Palácio das Diversões.

Depois do jantar, esquivando-se a qualquer colega soli­tário que manifestasse o desejo de acompanhá-lo, Juárez deixava o clube e seguia de carro para outro tipo de centro de recreação, a menos de um quilômetro da Plaza de la República. Ali, um oficial e cavalheiro podia se divertir à vontade, sabendo que as mulheres eram garantidas por ins­petores médicos do Exército e a casa cuidadosamente vigia­da pelo pessoal da segurança. No andar térreo havia um bar, com música e dança; em cima havia inúmeros quartos, que podiam ser alugados, juntamente com suas ocupantes, por hora ou por noite. Os preços eram altos, mas os riscos eram baixos; e Rosita, a sorridente e ativa matrona de Mar dei Plata, sempre cuidava especialmente dos fregueses regulares.

O Coronel Ildefonso Juárez era um dos fregueses mais regulares. . . e leal também, à sua maneira. Em determinada ocasião, ele favorecera uma mesma jovem por três visitas consecutivas, até que, em suas próprias palavras, "ela se tor­nara velha da noite para o dia, parecendo mais ter dezoito anos do que catorze". Assim, naquela noite quente de outu­bro, ele encomendara uma nova jovem, certo de que Rosita não iria desapontá-lo. Quando o carro parou na porta do estabelecimento, ele disse ao motorista, como sempre fazia:

— Venha buscar-me às dez horas da manhã. Até lá, divirta-se.

Ao que o motorista respondeu, grato como sempre:

— O coronel é muito generoso, mas tenho que cuidar do meu bolso. — Ao se afastar, o motorista sempre acres­centava para si mesmo: — Mas tenho muito mais tesão do que você, seu velho peidorrento!

O motorista seguia para a praia em seguida, onde seu primo Luis tinha uma cantina, na qual, depois das três horas da madrugada, ninguém se importava com a sífilis, a polícia ou os políticos.

Naquela noite, instalado na cantina, que funcionava num porão sempre alegre e ruidoso, o motorista teve a sorte de se sentar no mesmo banco com duas moças bonitas, um camarada de aparência esquisita chamado Pavel, Paul ou algo parecido e um homem chamado Sancho, que gastava dinheiro a rodo, parecendo estar com os bolsos estofados. Ao final da noitada, Sancho sacudiu o polegar para o quarto em que o motorista do Coronel Ildefonso Juárez roncava entre as duas moças, na maior felicidade, e co­mentou:

— Nosso amigo lá dentro devia ganhar uma medalha. Pense só no quanto ele nos revelou ao preço de duas garra­fas de conhaque vagabundo. Oito dias por mês ele fica em Buenos Aires com o Coronel Juárez. E Juárez sempre segue o mesmo percurso, sempre vai aos mesmos lugares, Hotel Formosa, Clube dos Oficiais, a casa de Rosita por duas noi­tes, depois novamente o Hotel Formosa e a volta a Martin Garcia. Esses camaradas são mesmo estúpidos. Poderíamos liquidá-lo na hora em que bem quiséssemos. Poderíamos co­locar uma bomba em seu quarto, matá-lo no quarto do hotel, jogar uma pílula em seu drinque na casa de Rosita, segui-lo para fora da cidade e emboscá-lo na estrada. . . Lindo, lindo!

— Ainda mais lindo será não pormos a mão nele — disse o Espantalho, jovialmente. — Vamos deixá-lo na igno­rância e felicidade, como um gafanhoto num jarro cheio de verduras, até estarmos prontos para usá-lo.

— Pois vamos planejar como poderemos usá-lo. — Sancho estava agora ansioso por formular um plano. — Toda vez que ele vem a Buenos Aires, sempre vai à casa de Rosita, lá chegando invariavelmente entre onze horas e meia-noite. Nunca sai antes das dez horas da manhã seguinte. Assim, podemos pegá-lo no momento em que ele entrar.

— E ele vai presumir que somos agentes da segurança?

— Exatamente. Os agentes estão sempre à paisana. Andam em carros sem qualquer identificação. Assim, se lhe mostrarmos um documento, ele não vai desconfiar de nada. Nós o levamos para uma casa segura, de onde ele telefona para a prisão, dizendo que precisam efetuar uma entrega de emergência de dois prisioneiros no continente. Ele confirma que estará presente para assistir à entrega.

— E esse telefonema serve também para nos revelar se houve algum chamado verdadeiro das forças de segurança.

— Estou gostando! — disse Sancho, alegremente. — O plano vai tomando mais sentido a cada minuto que passa!

— Uma pergunta — disse o Espantalho. — O que nós vamos fazer com o coronel depois?

— Vocês não vão fazer nada. — Sancho tornou-se imediatamente cauteloso. — Ele é a nossa gratificação es­pecial. Vocês não precisam mais pensar nele.

— Spada vai querer saber.

— Nesse caso, eu lhe direi. Não estamos ligados de cama e mesa, mas apenas realizando um contrato juntos. É por isso que não quero que ele se intrometa na situação local. Ele vai embora e nós continuamos aqui, com toda essa maldita confusão. E depois disso a pressão será ainda maior.

— Spada é um homem inteligente, e tenho certeza de que vai compreender — comentou o Espantalho.

— Estou metido nisso há muito tempo — murmurou Sancho. — Mas Spada mesmo assim consegue me assustar. Ele é quieto demais, controlado demais. É como fazer mala­barismo com uma granada de mão. . .   toda aquela força concentrada prestes a explodir.

— Está na hora de voltar para o hotel — disse o Espantalho. — Foi uma noite bastante instrutiva, e quero pensar a respeito, sossegado.

— Vai precisar de um transporte. Essa é uma área perigosa de madrugada, e pode ser detido por uma patrulha da polícia. Fique esperando aqui por cinco minutos, enquan­to lhe arrumo um táxi.

— Não precisa preocupar-se. Eu mesmo posso sair para procurá-lo.

— Tem que ser o táxi certo — disse Sancho, catego­ricamente. — Esta é uma casa segura e pretendo mantê-la assim.

— E o que vai fazer com o nosso amigo embriagado lá dentro?

— Não será problema. Vamos tirá-lo daqui dentro em breve. Ele acordará no carro do coronel, sem entender como roí parar lá. Mas um estrangeiro saindo daqui às quatro noras da madrugada. . . isso certamente é uma notícia para o boletim da polícia!

 

Por três dias após cada retorno de Buenos Aires, o Coronel Ildefonso Juárez entregava-se a um bom humor in­suportável. O velho Pascarelli comentava: "Ele parece um cachorro velho, babando em cima da gente e mijando em todo pé de cadeira, só para mostrar que ainda é capaz de farejar uma cadela no cio".

Juárez regalava seus oficiais com as conversas no Clube dos Oficiais e o relato de incidentes picantes na casa de Rosita. Provocava os subalternos com insinuações de obsce­nidades inimagináveis, acessíveis apenas aos oficiais e cava­lheiros, mas que eles podiam acalentar a esperança de um dia desfrutar, dependendo de conduta e promoções. Para os prisioneiros, inventava pequenas crueldades, como histórias de novos controles de segurança. Ou então dizia os nomes de parentes do sexo feminino em voz bastante alta para que pudessem ouvir, depois desatava a rir, como que de alguma comédia obscena. Naquele período pós-coital, a tensão nas celas se elevava a um ponto próximo da ruptura, os guardas se mostravam nervosos e apreensivos.

Dessa vez, no entanto, a exuberância costumeira do coronel foi arrefecida por um relatório do Major Gutiérrez. Houvera uma erupção de disenteria no bloco D e o Dr. Wolfschmidt, sóbrio por uma vez, diagnosticara-a como Endamoeba histolytica, altamente contagiosa, extremamente perigosa tanto para os presos como para os guardas.

As medidas médicas que ele exigia eram drásticas: uma requisição maciça de medicamentos e uma revisão completa da higiene da prisão. A requisição devia ser apoiada por uma explicação pessoal do comandante; e as medidas higiênicas deviam ser complementadas por um exame do abaste­cimento de água da prisão e por uma equipe de auxiliares para ajudar no tratamento dos pacientes. Abruptamente, o Coronel Ildefonso Juárez descobria o seu pequeno e tran­qüilo reino a desmoronar sob seus pés e sua história cuida­dosamente estabelecida a ser desmascarada como uma ficção. Mais perigosa ainda era a perspectiva de um motim e dis­túrbios entre os presos, numa população excessiva, mais do que medianamente inteligentes e isolados num lazareto em potencial.

Assim, ao sair para o pátio de exercícios a fim de ins­pecionar os presos, o Coronel Juárez estava num tremendo mau humor, violento e cruel. Rodolfo Vallenilla, acorren­tado e agachado junto ao poste de execuções, era a primeira e mais óbvia vítima. Batendo com a bengala na coxa, o co­ronel atravessou o pátio. Meteu a ponta da bengala por baixo do queixo de Vallenilla e levantou-lhe a cabeça.

— Como está o nosso cãozinho hoje? Creio que está ficando muito preguiçoso. Fica aí cochilando ao sol e so­nhando com as cadelas. Não podemos permitir uma coisa dessas, não é mesmo? Está na hora de fazer algum exercício. Devemos ficar andando de um lado para outro, a fim de melhorar a circulação, fortalecer os músculos. Vamos, ca­chorro, levante-se! Fique de quatro! Assim. . . E agora co­mece a andar. . .

Ele. bateu duas vezes com a bengala no traseiro de Vallenilla, forçando-o a rastejar em torno do poste, empur­rando e batendo cada vez com mais força, para que se mo­vimentasse cada vez mais depressa. Vallenilla acabou perdendo as forças, caindo de cara no chão, cuspindo sangue nas botas polidas do coronel. Isso deixou o Coronel Ilde­fonso Juárez extremamente furioso. Começou a espancar o homem prostrado até que um grito rouco e súbito lhe de­teve a mão. Ele levantou a cabeça, suando intensamente, para descobrir que os outros prisioneiros haviam parado de andar e estavam parados ao seu redor, num círculo fechado, hostis, os olhos brilhando de ódio. Juárez gritou para que continuassem a andar. Eles o ignoraram. Juárez ameaçou ordenar que os guardas abrissem fogo, caso eles não se afas­tassem. Os prisioneiros permaneceram onde estavam, acusa­dores mudos, enquanto o Coronel Ildefonso Juárez avaliava rapidamente as conseqüências de um pátio repleto de cadá­veres, assim como um lazareto cheio de casos de disenteria. Os guardas prenderam a respiração, notando com alívio que qualquer investida levaria os prisioneiros a correr para den­tro, passando sobre o corpo do coronel. Os segundos foram-se arrastando, um, dois, três, quatro. . . e então Juárez re­cuperou a sanidade. Gritou para o guarda mais próximo:

— Você! Desacorrente este homem!

Depois, apontou para Chávez e Ferrer.

— Você e você! Levem-no para a enfermaria!

O guarda   adiantou-se   apressadamente,   abaixou-se   e abriu as correntes que prendiam Vallenilla. Depois levantou a cabeça, aturdido e assustado.

— Ele está morto, coronel.

— Você é médico?

— Não, senhor, mas. . .

— Então não tire conclusões médicas! Levem-no para a enfermaria!

Chávez e Ferrer inclinaram-se sobre Vallenilla. Chávez sentiu-lhe o pulso, encostou a cabeça no peito esquelético. Depois levantou-se, enfrentando o coronel. E em voz alta e clara, como um juiz, anunciou:

— Ele está vivo, mas por pouco. Se esse homem mor­rer, coronel, o senhor será o assassino. Todos nós somos testemunhas.

Depois abaixou-se novamente, pegou Vallenilla nos bra­ços como se fosse uma criança e levou-o. O Coronel Ildefonso Juárez foi atrás, coxeando, enquanto os guardas avan­çavam, gritando e empurrando. Meia hora depois, o Coronel Juárez convocou o Dr. Wolfschmidt a seu gabinete, serviu-lhe uma dose de conhaque e perguntou:

— Como está Vallenilla?

Wolfschmidt deu de ombros, indiferente.

— Está por um fio. Conseguimos deter a hemorragia e o enchemos de estimulantes. Mas não resta muita coisa dele.

— Mantenha-o vivo! — ordenou o Coronel Ildefonso Juárez. — Se não conseguir, estaremos metidos na maior encrenca. O ambiente entre os outros prisioneiros não está nada bom.

— Se o quer vivo, tem de alimentá-lo e alojá-lo como um ser humano.

— Está certo. Mantenha-o na enfermaria. Trate dele até que esteja bom o bastante para voltar à cela.

— Tentarei. Mas está dando essa permissão um pouco tarde. Não posso prometer nada. Além do mais, por que diabo temos que nos preocupar com um traste desses?

— Porque o pessoal da segurança pode precisar dele outra vez e porque não quero ser acusado de assassinato, agora ou mais tarde.

— Pois está com sorte até agora. Este conhaque é muito bom.

— Pode servir-se de mais.

— Há outro problema. Quando vou receber os medi­camentos de que preciso e as equipes auxiliares para as me­didas higiênicas? A disenteria está se espalhando como fogo em capim seco.

— Não pode confiná-la com uma quarentena?

— Não se a água estiver poluída. E não até que tenha­mos um sistema apropriado para os dejetos, uma desinfecção das roupas e uma limpeza na cozinha.

— Já falei com o quartel-general. Prometeram provi­dências urgentes. E ajudaria bastante se você ficasse sóbrio por mais algumas horas por dia.

— Sempre me ajuda ficar embriagado. — Wolfschmidt tomou o.resto do conhaque de um só gole e levantou-se. — Não me pressione, meu caro coronel. Já enterrei uma porção dos seus erros. Agora está me pedindo para trazer mais um do mundo dos mortos. Tenho de estar muito bêbado para conseguir um milagre assim.

— Então fique com a garrafa, pelo amor de Deus! — exclamou o Coronel Ildefonso Juárez.

 

Na madrugada cinzenta de um dia chuvoso, o Freya, um cargueiro antiquado de oito mil toneladas, entrou lenta­mente no estuário e foi ancorar no porto de Buenos Aires. Quando as autoridades portuárias subiram a bordo, para a prática de rotina, os documentos apresentados indicavam que o navio estava a caminho de Callao. Sofrera uma avaria e estava temporariamente inutilizado. Não poderia seguir via­gem enquanto os consertos não fossem efetuados. As peças sobressalentes estavam vindo da Holanda de avião. As for­malidades foram rapidamente concluídas. Permissões para desembarque temporário foram concedidas aos oficiais e tri­pulantes. Uma hora depois, o comandante desembarcou e foi visitar os agentes da companhia, Irmãos Guzmán. Ao meio-dia, ele estava sentado num pequeno restaurante à beira-mar, em companhia de John Spada. Ou melhor, de Erwin Hengst.

As instruções que ele recebeu foram bastante simples. Durante cinco dias, deveria seguir a rotina normal de um navio que estava sofrendo reparos. Os tripulantes deveriam limpar e pintar o navio, desembarcando à noite de licença. Na casa de máquinas, simulariam a confusão de reparos, com ferramentas e peças sobressalentes espalhadas por toda parte, de forma a convencer qualquer autoridade que fosse a bordo. No sexto dia, o mais tarde possível, o comandante deveria comunicar que os reparos estavam prontos e o navio se pre­parava para zarpar, solicitando e obtendo a permissão para partir. O que deveria acontecer entre a meia-noite e o ama­nhecer, assim que os fugitivos estivessem a bordo.

O comandante levantou imediatamente um problema. É claro que ele podia partir com o navio, mas os regulamentos exigiam que tivesse a bordo um piloto do porto, até deixar o canal do estuário. Se tentassem partir sem um piloto, po­deriam ser abordados e detidos pela polícia portuária. De qualquer forma haveria riscos, mas o piloto era o menor.

— Então será assim — concordou Spada. — Agora vamos tratar de outro problema. Meu genro é um homem muito doente. Vai precisar de cuidados médicos. Qual o primeiro porto em que poderíamos providenciar isso?

O comandante ficou em dúvida.

— Montevidéu está excluído. O Uruguai e a Argentina cooperam nas medidas anti-subversivas. Poderíamos parar no Rio, mas a perspectiva também não me agrada. Se apre­sentarmos um homem doente e sem documentos, a polícia vai ficar desconfiada. O melhor mesmo seria levar um mé­dico para bordo e seguir diretamente para as Antilhas Ho­landesas. De lá, poderia transportar o paciente de avião para Nova York.

— De que espécie de recursos médicos dispõe a bordo?

— Os equipamentos habituais, que não são muitos: oxigênio, penicilina, drogas à base de sulfa, pílulas para indigestão, ungüentos para queimaduras, estimulantes car­díacos, talas, uns poucos bisturis... É de fato um equipa­mento de primeiros socorros.

— Está certo. Vamos ter de providenciar um médico, equipamentos e medicamentos. Darei um jeito. Tem alguma dúvida sobre o horário?

— Nenhuma.

— Está certo. A menos que haja alguma alteração nos planos, não voltará a receber notícias minhas. Gostaria ape­nas que verificasse diariamente nos escritórios dos Irmãos Guzmán se eu deixei algum recado. O que terá de dizer à tripulação?

— Não precisarei dizer nada. O chefe de máquinas está a par, porque teve de simular a avaria. Os outros de nada saberão até o último instante. Distribuirei algum di­nheiro para fazê-los ficar calados, até largarmos o piloto.

— Acho que é tudo... a não ser dizer-lhe muito obri­gado, comandante!

— O prazer é todo meu! — respondeu o comandante, sorrindo. — É melhor do que uma carga de peles e sebo, que geralmente o que conseguimos embarcar aqui. Boa sorte, meu amigo!

 

A visita seguinte de Spada foi ao convento das Irmãs Missionárias dos Pobres, num dos bairros mais antigos da cidade. Eram dez horas da noite quando ele chegou. A irmã que atendeu à porta protestou contra a sua visita a uma hora tão tardia. A comunidade já estava se preparando para dor­mir. A madre superiora tivera um dia longo e cansativo. Não poderia deixar para amanhã? Por favor, irmã, tem de ser agora! É extremamente importante! Nesse caso. . .

No pequeno parlatório, recendendo a vela de cera e sob olhar impassível de uma Madona de gesso, John Spada disse quem era e explicou sua missão à madre superiora, uma mulher surpreendentemente jovem e com um forte sotaque do Estado americano de Nebraska.

—   ... Minha filha, Teresa, trabalhou com as senho­ras. Por isso, pensei que poderiam me ajudar, se fosse pos­sível.

— Não tenha a menor dúvida de que estou disposta a fazer tudo o que for possível. Teresa prestou serviços ma­ravilhosos aqui e sofreu muito por causa disso. Como está ela agora?

— Está melhorando, mas   a convalescença é muito lenta. Temos informações de que o marido dela está em péssimas condições. É por isso que vou precisar de assistên­cia médica, para poder levá-lo daqui vivo.

— Há muitas dificuldades nisso, Sr. Spada. Qualquer médico que concordar em ir terá que se considerar pratica­mente exilado, já que dificilmente poderia voltar ao país, pois não teria meios de explicar como e quando partiu. E, enquanto isso, seus parentes e amigos correriam perigo.

— Nesse caso, o melhor seria encontrar alguém que desejasse sair da Argentina para nunca mais voltar. E posso garantir que não haveria a menor dificuldade em fornecer-lhe recursos ou ajuda para estabelecer-se em outro país.

— De qualquer forma, privaríamos os nossos pobres de uma assistência de que eles precisam desesperadamente. Mas deixe-me pensar. . . — A madre superiora refletiu por um momento e então acrescentou: — A Irmã Martha vai deixar-nos muito em breve. Já solicitou a liberação dos seus votos. É uma médica experiente e cidadã americana. Se ela estiver disposta a correr o risco, eu a liberarei para acompanhá-los.

— Podemos falar com ela agora?

— Infelizmente não será possível. Ela está neste mo­mento em nossa missão em Mendoza. Voltará de avião daqui a três dias.

— É muito tempo para termos uma resposta.

— Sei disso. Mas é o melhor que podemos fazer. E, se ela concordar em partir, será a escolha mais acertada: não tem quaisquer vínculos locais, não tem relações diretas co­nosco em Buenos Aires. Como poderei entrar em contato com o senhor?

— Eu lhe telefonarei. . . e não se esqueça de que sou Erwin Hengst. Mais uma coisa. Pode nos arrumar equipa­mentos médicos, como instrumentos cirúrgicos, medicamen­tos, coisas assim? — Spada tirou a carteira do bolso, pegou um maço de notas e pôs em cima da mesa. — Pague com esse dinheiro e fique com o resto para a missão.

A madre superiora deixou o dinheiro em cima da mesa, sem tocá-lo. E perguntou, gravemente:

— Tenho de saber uma coisa, Sr. Spada. Quais são os riscos para a Irmã Martha?

— Mínimos. A partir do momento em que estivermos a bordo, o pior terá passado. Que espécie de mulher é a Irmã Martha?

— Como médica, de primeira ordem. Como mulher... — A madre superiora fez uma pausa, exibindo um sorriso irônico. — Vamos dizer que ela se dá melhor com os ho­mens do que com as mulheres. Num convento, isso cria cer­tos problemas. . .

— Se esse fosse o nosso maior problema, seríamos pes­soas extremamente afortunadas — comentou John Spada.

 

Na sala de jantar do apartamento de Kunz, o Major Henson prendeu na mesa uma série de mapas feitos a mão e descreveu o plano de batalha.

— ... De Buenos Aires ao estuário do rio Paraná e ao terminal da barca para Martin Garcia a distância é de aproximadamente cento e trinta quilômetros, pela estrada. Já fui de carro até lá, de dia e â noite. Com algum tráfego, devemos prever duas horas e meia de viagem. Se houver um engarrafamento na cidade, pode demorar mais um pouco. À noite, porém, pode-se cobrir o percurso em duas horas. A ilha de Martin Garcia fica aqui. E aqui, no continente, fica o ancoradouro da barca. Como podem observar, há um local para estacionamento de veículos em frente ao ancora­douro. Há uma estrada estreita, com cerca de meio quilô­metro, que leva à rodovia principal. Nos dois lados há laranjais, bons para nos escondermos. Contudo, o acesso ao ancoradouro pode ser facilmente bloqueado, e nossos veí­culos ficariam presos. Assim, é um bom lugar para se escon­der, mas um péssimo lugar para se lutar. . . Seguindo-se de volta pela estrada principal, por cerca de doze quilômetros, vai-se encontrar um novo desvio que leva à beira do rio. Há uma praia deserta nesse trecho, onde pode ficar à espera a lancha do Freya. O Freya estará ancorado aqui, à beira do canal.. . Tudo claro até aqui?

Houve um murmúrio de assentimento em torno da mesa. Henson estendeu outro mapa, menor, no espaço livre sobre a mesa.

— Agora, vamos verificar as disposições e horários. Ficaremos divididos em dois grupos. Levarei o meu destaca­mento no caminhão, com o motorista que Sancho providen­ciou para nós. Estacionamos perto do ancoradouro e os homens se espalham pelo laranjal ao redor. Não há qualquer movimento de embarcações depois de meia-noite. Assim, deveremos ter uma espera tranqüila. . .

"Voltemos a Buenos Aires. O Coronel Juárez janta no Clube dos Oficiais. Entre onze horas e meia-noite, ele vai para a casa de Rosita, aqui, neste outro mapa. Dispensa seu motorista nesta esquina e depois caminha dez passos até a entrada da casa. É nesse ponto que ele é abordado por San­cho, Dr. Lunarcharsky e Spada. Mostram-lhe as suas identi­dades de agentes da segurança. Levam-no para o carro e seguem para a casa segura de Sancho, fora da cidade, cerca de vinte minutos de carro do ancoradouro. De lá, o coronel dá o seu telefonema para a prisão. Seguem depois para o ancoradouro, a fim de fazerem parte do comitê de recep­ção..."

— Com o coronel? — indagou Spada, em dúvida.

— É a minha opinião — disse Sancho, bruscamente. — Acrescenta alguma coisa à impressão de urgência e auten­ticidade da cena, quando os prisioneiros forem trazidos da prisão sob escolta e entregues. Se ele fizer qualquer movi­mento em falso, poderemos liquidá-lo prontamente.

— E o que faremos em seguida?

A pergunta era novamente de Spada.

— Você e seus homens seguem com Vallenilla para o ponto de embarque e partem para o Freya. Os outros voltam para a cidade. E está tudo acabado. Com a maior simpli­cidade.

— Parece bastante simples, mas quais são os principais riscos?

— Pode falar — disse o Major Henson para Sancho.

— Em primeiro lugar, a possibilidade de uma patrulha da polícia aparecer no ancoradouro. Eles patrulham aquele trecho da estrada e de vez em quando vão até a beira do rio, para fumarem um pouco ou se distraírem com alguma mu­lher que recolhem no caminho. Nesse caso, nós nos mostra­mos bastante formais. Apresentamos as nossas identidades de agentes de segurança, comunicamos que há uma operação em andamento e tratamos de despachá-los. Nem mesmo a polícia se intromete com os homens da segurança. O segundo risco, muito maior, é a possibilidade de alguém na prisão resolver confirmar a ordem no quartel-general das forças de segurança. Se isso acontecer, eles podem resolver dar uma batida. Isso significa que os homens no bosque terão que decidir se vão abrir fogo ou afastar-se a pé. Teremos uma vantagem. Chegaremos por último, com o coronel. Passare­mos pelo desvio e faremos a volta mais adiante. Dessa ma­neira, poderemos verificar se há ou não uma emboscada. O único outro risco é a possibilidade de um dos nossos veículos topar com alguma barreira rotineira na estrada, na ida ou na volta. Novamente, a única solução é exibirmos as identi­dades de agentes de segurança e tentarmos blefar para passar. Mais alguma pergunta?

— Somente uma — disse o Espantalho. — Até que ponto os seus homens estão preparados, major? Por exem­plo: será que vão permanecer calmos para se livrarem de uma verificação rotineira da polícia?

— É melhor que eles o façam. Já avisei que matarei o primeiro filho da mãe que soltar um peido sem autorização.

— Disse isso em espanhol? — indagou Spada, com um sorriso.

— Não. Sancho é que disse para mim. E parece que os homens acreditaram nele.

— Mais uma pergunta — disse John Spada. — O que acontecerá com o coronel?

— Ele é nosso — disse Sancho, incisivamente.

— O que vão fazer com ele?

— Por que diabo se importa com isso?

— Porque faço parte de tudo isso. . . e continuarei a fazer depois, quando o fato for divulgado.

— É um risco que assumiu desde o início.

— E é por isso mesmo que insisto em perguntar: o que vão fazer com o coronel?

— Arrancar-lhe todas as informações. . . e depois ma­tá-lo. Alguma objeção?

— Nenhuma — disse Spada. — Desde que não joguem o cadáver na minha porta. . . nem tentem cobrar-me as des­pesas do enterro.

— Como pôde pensar numa coisa dessas? — pergun­tou Sancho, com um humor mordaz. — Um trato é um trato, não é mesmo?

— Desde que se possam ler as cláusulas impressas em letras minúsculas — disse John Spada.

 

Na enfermaria de Martin Garcia, estavam tentando manter Rodolfo Vallenilla vivo. O Dr. Wolfschmidt pres­creveu os cuidados necessários e o seu assistente adminis­trava-os com uma perseverança e ternura comoventes de se ver... só que não havia ninguém para testemunhar, a não ser o próprio médico, que tinha um desprezo profundo por tudo que se assemelhasse sequer remotamente com humani­dade. O Dr. Wolfschmidt tinha um repertório de epítetos para o seu assistente: "minha madre superiora", "irmã ter-nura, "nosso jovem eunuco", "o menino de coro do co­mandante". Contudo, havia um limite que o médico, bêbado ou sóbrio, jamais se atrevia a transpor.

Ao contrário do que fazia nas salas de tortura, dentro da enfermaria o Dr. Wolfschmidt jamais tratava com violên­cia qualquer paciente. Podia negligenciar seus deveres, mas jamais insultava os doentes. Uma vez, somente uma vez, ele o tentara, mas fora reduzido a um estado de terror trêmulo diante da fúria implacável e disposição assassina de seu assis­tente, que o encurralara num canto da sala de operações e lhe demonstrara quantas maneiras havia, sutis e dolorosas, de matá-lo, e como haveria sempre um carrasco à espera para executar o serviço, dentro ou fora da prisão, quer ele estivesse dormindo ou acordado.

O fato de Wolfschmidt submeter-se à chantagem cau­sava espanto entre os presos. Para o assistente dele, no entanto, era apenas uma questão de cálculo delicado, embora perigoso. Ele sabia que o Dr. Wolfschmidt era procurado pelos israelenses e pelos movimentos clandestinos. Além disso, o médico era um homem ávido por ser dominado e castigado, algo que ninguém, a não ser aquele jovem pálido, tinha coragem de infligir-lhe. Assim, o estranho relaciona­mento persistia, e o anjo negro do inferno de Wolfschmidt transformava-se no anjo da misericórdia para as vítimas dele.

Por Vallenilla, o jovem assistente desenvolvera uma afeição quase filial, uma gentileza protetora, de que toda e qualquer emoção sexual fora há muito eliminada. Ele lavava o corpo frágil e debilitado de Vallenilla. Alimentava-o, pa­cientemente, como se podia alimentar a um bebê, colherada por colherada. Incutia-lhe um pouco de coragem, já que a sobrevivência de Vallenilla dependia de um mínimo de espe­rança que ele pudesse acalentar.

— Preste atenção, Rodolfo! Não desista! Preciso de você vivo. Todos precisamos. O que você tem na cabeça, o que um dia contará ao mundo, é importante para todos nós. . . até mesmo para um joão-ninguém como eu. Tem que acreditar nisso. Eu o alimento deste jeito, mas você também me alimenta. Um dia, poderei erguer a cabeça e dizer: "Esta vendo aquele grande homem? Pois fui eu que o devolvi ao mundo. As palavras que ele fala são as palavras que eu gostaria de poder dizer". É isso, meu caro! Vamos, coma mais um pouco. É uma boa sopa. Fui eu mesmo que a preparei, no fogareiro aqui da enfermaria. É muito diferente da porcaria que servem nas celas, hem?. . . Assim está ótimo! E agora fique quieto, enquanto preparo a sua injeção. . . sei que dói, mas é porque você está muito esquelético. Quando eu o fizer engordar, não vai sentir tanto. . .

Mas a batalha não seria vencida com facilidade. Muitas vezes Vallenilla resvalava para o poço tenebroso da depres­são em que se encolhia todo, apavorado e trêmulo, descon­fiado até mesmo do seu benfeitor.

— Por que eles estão me tratando deste jeito? Nunca se preocuparam antes. O pessoal da segurança está me que­rendo de volta, não é mesmo? Estão simplesmente querendo deixar-me num estado um pouco melhor, a fim de que me possam submeter a tudo novamente. Já fizeram isso com outros. . .

— Não, Rodolfo, não! Já lhe disse mais de uma vez: o comandante está apavorado! Se você morrer, ele será cul­pado, porque todos viram o que aconteceu no pátio de exer­cícios. E ele não pode deixar que isso aconteça. É um miserável, mas mesmo entre os miseráveis há certas regras que devem ser respeitadas,. . .   Ora, Rodolfo, não fique assim! Sabe que sou seu amigo, não é mesmo?

— Claro que sei. Mas quero que me prometa uma coisa.

— Qualquer coisa, Rodolfo. Prometo qualquer coisa que esteja ao meu alcance.

— Então jure! — As mãos esqueléticas de Vallenilla seguraram o blusão todo manchado do jovem. — Jure que, se algum dia souber que vão me levar de volta, você me matará antes! Pode fazê-lo. . . uma pílula, uma injeção . . . qualquer coisa! Jure pelo túmulo de sua mãe!

— Não posso jurar pelo túmulo de minha mãe, porque ela ainda está viva. . . e dormindo com um sargento de arti­lharia. Mas claro que prometo. Eles nunca o levarão de vol­ta. .. Vamos, não chore, Wolfschmidt estará de volta dentro de um minuto. Tem que parecer forte, assumir uma atitude de desafio!

Era uma promessa fácil de fazer e, no teste final, não muito difícil de cumprir. O jovem assistente já acabara com a vida de mais de um pobre coitado alquebrado demais para sobreviver, mas ainda forte o bastante para que lhe pudessem infligir mais alguns sofrimentos. Também não era muito dilicil de executar. Bastava uma bolha de ar na seringa, en­quanto os carniceiros estavam descansando, preparando-se para a próxima sessão. Não havia autópsias com que se preocupar, pois as mortes súbitas eram comuns... o jovem assistente ajeitou o lençol sobre o paciente, fê-lo fechar os olhos e ficou cantando até que Vallenilla caísse num sono inquieto e ofegante. Pobre coitado! Toda aquela inteligência, todo aquele fogo interior, numa carcaça tão frágil. . .

A porta da enfermaria se abriu e o velho Cabo Pascarelli entrou, sangrando pelo chão. Estava tentando retirar um vidro quebrado da janela do seu alojamento, quando escorregara e cortara a mão. Precisava levar alguns pontos e tomar uma dose reforçada do conhaque que Wolfschmidt guardava no armário. O filho da mãe nunca iria perceber! Enquanto o jovem assistente cuidava de sua mão, o velho cabo falou compulsivamente num sussurro de conspirador:

— Tenho duas mensagens lá de fora. A primeira é para o garoto que está ali. — Ele sacudiu a cabeça na direção da cama de Vallenilla. — Diga-lhe que alguém está mandando para ele um peixe numa caixa.

— Isso é tudo? Um peixe numa caixa?

— É tudo, sim.

— E o que significa?

— Jamais faço perguntas, filho. É mais seguro assim. As pessoas lá de fora me pagam para transmitir as mensagens e depois esquecer. Se quiserem uma resposta, eu tento pro­videnciar.

— E como sabem que a mensagem foi transmitida?

— Eles me conhecem. E confiam em mim. — Houve um brilho de orgulho nos olhos remelosos e injetados. — É uma boa reputação para se ter. Nem todos os prisioneiros ficam nesta pocilga para sempre. Ao saírem, sempre se lem­bram do velho Pascarelli. Muitos outros guardas são uns idiotas. Esquecem que, ao serem transferidos, haverá alguém à espera para enfiar uma faca em suas costelas ou matá-los a pontapés num beco escuro. Não quero isso para mim. Viver e deixar viver, é esse o meu lema. Melhor ter dinheiro no bolso do que seis dedos de aço na barriga. Assim sendo, transmita a mensagem como um bom menino, está bem?

— Claro, claro! Fique quieto agora, enquanto acabo de fazer o curativo. . . Para quem é a outra mensagem?

— Para Chávez. Ele está na solitária há seis dias. Vai sair amanhã, se tiver sorte.

— O que significa que provavelmente passará primeiro por aqui. O que vai querer que eu lhe diga?

— O tigre está farejando por aí. Entendido?

— Entendido. . . Pronto, aí está, todo enfaixado como um herói ferido. Tudo de que precisa agora é uma medalha.

— Para o nosso tipo de guerra, não há medalhas, ape­nas insultos rabiscados em nossos túmulos — resmungou Pascarelli, desdenhosamente. — Obrigado, filho. Até a pró­xima. E fique de costas para a parede!

Na manhã de sua partida para Buenos Aires, o Coronel Juárez fez a ronda habitual, acompanhado pelo Major Gutiérrez. Como sempre, o coronel estava exultante com a perspectiva de quatro dias de liberdade na capital. Ao chegar à enfermaria e deparar com Rodolfo Vallenilla todo enco­lhido sob o lençol sujo, ele ficou ainda mais animado. Puxou o lençol com a ponta da bengala e contemplou sua vítima com um desdém tolerante.

— Ótimo! Meu pequeno cão já está parecendo melhor. Devem estar alimentando-o muito bem. Trate de aproveitar enquanto pode. Não vai durar para sempre. Estou indo hoje para Buenos Aires. Avisarei aos homens da segurança que já está quase pronto para outro interrogatório. Pensava que eles o tinham esquecido? Nunca! Eles têm uma verdadeira paixão por detalhes e ainda há muitas perguntas para serem respondidas. Mas não deixe que isso o preocupe. Depois dessas férias, será capaz de suportar uma sessão bastante longa. E agora volte a dormir, cãozínho. E tenha bons sonhos!

Depois que ele se foi, Rodolfo Vallenilla ficou enroscado numa posição fetal, tremendo e com os dentes choca­lhando, como se estivesse sofrendo um ataque de malária. O jovem assistente sentou-se na beira da cama e procurou-confortá-lo.

— Fique calmo, Rodolfo. Ele já foi embora. E passará todo o fim de semana fora. . . além da segunda e terça-feira. Vou fazer-lhe um café, com bastante açúcar. Não gostaria de tomar?

— Não quero nada! — A intensidade do protesto foi como uma convulsão a abalar o corpo definhado. — Não posso agüentar mais nada! Não posso!

— Será que não percebe que ele está apenas fazendo um jogo? Ignore-o! Puxe as cortinas, tire-o de sua mente!

— Ele está falando a sério! Por que outro motivo me deixaria ficar aqui? Quer ver-me morto, mas não quer me matar pessoalmente. Sabe que os homens da segurança cui­darão disso para ele. Por favor, meu amigo! Fez-me uma promessa! Mate-me! Eu lhe suplico, mate-me!

Tão subitamente quanto irrompera, o fogo se desvane­ceu e Vallenilla ficou todo encolhido na cama, ganindo como um animal. O assistente enxugou-lhe o suor da testa com um chumaço de algodão.

— Vamos, anime-se! Tenho uma mensagem lá de fora para você.

— Que espécie de mensagem?

— Alguém está lhe mandando um peixe numa caixa.

— Diga isso de novo!

As mãos esqueléticas agarraram bruscamente a manga do jovem assistente.

— Um peixe numa caixa.

— Então tentarei resistir. . .

— Assim é melhor.

— Mas promete que nunca os deixará levarem-me de volta para o Palácio das Diversões?

— Prometo. E agora vou lhe dar algo para dormir.

— Obrigado. — Um sussurro agradecido. — Você é um bom rapaz.

— Quando chegar ao lugar para onde estiver indo, Ro­dolfo, diga uma boa palavra por mim, hem?

— A melhor que eu souber — disse Rodolfo Vallenilla. — A melhor mesmo. . .   Pode ficar sentado aqui comigo mais um pouco? Eu. . . eu gostaria de senti-lo perto de mim até dormir. . .

— Ainda é cedo. — Sancho estacionou o carro nas sombras, perto da entrada da casa. — Vocês dois ficam aqui. Vou passar pela frente da casa de Rosita para verificar se está tudo bem.

Ele saiu do carro e foi caminhando calmamente pelas sombras da passagem em arcada. Spada virou-se para o Es­pantalho.

— Está tudo bem?

— Está, sim. Henson saiu na hora marcada com seus homens, no caminhão. A tal médica já está a bordo do Freya. A lancha já está no ponto de embarque. Está tudo em ordem.

— Até agora — disse John Spada. — Sancho já está voltando.

Sancho entrou no carro e sentou-se ao lado de Spada, dando apressadamente uma última instrução:

— Vamos nos preparar agora. Há um portal em cada lado da entrada da casa de Rosita. Vocês dois tomam posição lá. Assim que o coronel entrar na passagem, encaminhem-se para ele! Não o deixem tocar a campainha, pois o homem que abre a porta é um agente de segurança. Simplesmente mostrem as identidades ao coronel e digam que precisam lhe falar. Enquanto isso, estarei verificando se o motorista dele já se afastou. Depois voltarei, aproximando-me por trás. Vamos trazê-lo para cá e sentá-lo no meio do banco de trás, encostando-lhe então uma arma nas costelas. . . Entendido?

— Entendido.

— Pois vamos embora!

Esperaram cinco, dez, doze minutos angustiantes nas sombras, até verem o veículo militar parar a alguns metros de distância, o motorista saltar e contorná-lo apressadamente, a fim de abrir a porta para o passageiro. Ouviram o diálogo habitual:

— Venha buscar-me às dez horas da manhã. Até lá, divirta-se.

— O coronel é muito generoso, mas tenho que cuidar do meu bolso.

O coronel parou por um momento na calçada, ajeitou o paletó, endireitou a gravata, enquanto o motorista arran­cava com o carro e se afastava. Spada e o Espantalho saíram das sombras e abordaram Juárez. Foi o Espantalho quem falou as primeiras palavras, num espanhol com sotaque de Buenos Aires bem passável:

— Coronel Ildefonso Juárez?

— Ele mesmo!

O coronel empertigou-se, num formalismo defensivo.

— Segurança! Nossa identificação. . . Gostaríamos de trocar algumas palavras. Não vamos   detê-lo por muito tempo.

— Pois vamos entrar.

— Nosso carro está parado ali. Se não se incomoda, coronel. . .

O coronel hesitou por um momento. Ao avistar Sancho emergindo das sombras, ele deu de ombros e disse, em tom irritado:

— Está certo. Mas espero que compreendam. .

— Compreendemos perfeitamente, coronel! — O Es­pantalho era a própria imagem da polidez. — Mas o problema é urgente, como lhe iremos explicar.

— Que problema?

— Dentro do carro, por favor. Não gostamos de con­versar no meio da rua.

Espremeram-se no banco de trás, o coronel no meio, Spada de um lado, o Espantalho do outro. O Espantalho encostou um revólver na barriga do coronel.

Sancho sentou-se ao volante e anunciou calmamente:

— E agora, coronel, fique quieto e tudo correrá bem. Faça um movimento em falso ou qualquer barulho e será um homem morto.

Ele deu a partida e se afastaram dali, seguindo cuida­dosamente pelas ruas, a caminho da rodovia para o norte. Passou-se pelo menos um minuto até que o Coronel Juárez encontrasse voz ou palavras para se expressar:

— Mas o que está acontecendo? Para onde estão me levando?

— Estamos numa operação de segurança — disse o Espantalho. — Por favor, coopere.

— Então por que precisam ameaçar-me?

— As pessoas costumam fazer bobagens no calor do momento. Não podemos correr esse risco, mesmo com gente de confiança, como é o seu caso, coronel. E agora trate de relaxar. Se formos detidos em algum ponto, não diga nada.

— Ainda não disseram para onde estão me levando.

— De volta a Martin Garcia.

— Mas estou de licença!

— Sabemos disso, coronel. Mas um bom soldado esta sempre pronto a ser chamado ao cumprimento do dever, não é mesmo? E agora preste atenção. Precisamos de dois dos seus prisioneiros para novos interrogatórios. Os nomes deles são Pablo Maria Chávez e Rodolfo Vallenilla. Vai telefonar para a prisão e ordenar a seu subcomandante que leve os dois para entregar-nos no ancoradouro à beira do rio.

— Eu poderia ter feito isso da casa de Rosita. Além do mais, Vallenilla está doente.

— Gostaríamos que tudo fosse feito conforme estamos dizendo, coronel.

— Preciso de documentos, autorizações.

— Nós as temos, como irá verificar.

— Então qual é o problema?

— Nós o levaremos junto com os prisioneiros.

— Isso é extremamente irregular.

— Vivemos em tempos irregulares — disse o Espan­talho, suavemente.

— Vocês não são da segurança!

— Não? Nossos documentos dizem que somos. Por que simplesmente não aceita os fatos? Eu lhe garanto que é muito mais seguro.

— Santa mãe de Deus!

— Recoste-se, coronel. Ponha as mãos nos joelhos. As­sim é melhor. E agora me diga uma coisa: quem é o oficial no comando durante a sua ausência?

— É o Major Gutiérrez. Mas ele deve estar dormindo agora. Há um oficial de plantão durante a noite.

— Pois vai acordar o major e dar-lhe as instruções diretamente.

— Ele vai querer identificação e confirmação.

— Temos tudo. Os documentos serão entregues no ancoradouro.

— Não acredito no que está dizendo!

— Oh, homem de pouca fé — disse o Espantalho, num tom de advertência jovial. — Por favor, procure acreditar. Caso contrário, nunca mais tornará a ver as mulheres de Ro­sita. Disse que Vallenilla está doente. O estado dele é muito grave?

— Ele está na enfermaria.

— O que significa que ele está quase morrendo — disse Sancho, do banco da frente. — Soubemos que o senhor o mantinha acorrentado no pátio de exercícios e que o es­pancava como a um cachorro.

— É mentira!

— Saberemos em breve, não é mesmo?

Durante toda aquela conversa, Spada permaneceu silen­cioso, tentando entender o homem ao seu lado. O coronel estava tenso, mas longe de se mostrar em pânico. O homem ainda estava funcionando logicamente, avaliando as informa­ções contraditórias que lhe eram fornecidas, observando o percurso que estavam seguindo, alerta a qualquer chance possível de escapar. Spada decidiu pressioná-lo mais um pouco.

— Deixe-me poupar-lhe algum trabalho, coronel. O percurso é direto. Não está amordaçado, nem vendado. Pode até mesmo gravar nossos rostos. Isso tudo não lhe diz algu­ma coisa?

— Não estou entendendo. . .

— Está sob observação há algum tempo, coronel.

— Observação? Como assim?

— Tem um bom cargo. Gostaríamos de nos certificar de que não abusou de seus privilégios.

— Abusar. . . ? Não tenho a menor idéia do que está falando! Minha ficha demonstra. . .

— Ah, sim, sua ficha. . .   Quem a escreve, coronel? Quem prepara os relatórios?

— Sou eu mesmo.

— Se os fatos confirmarem a ficha, não há motivo para se preocupar, não é mesmo? O Exército protege os seus. E agora fale-me a respeito de Vallenilla.

— O homem era um recalcitrante, um criador de pro­blemas. Tinha de ser disciplinado. . .

— Pelo senhor pessoalmente?

— Em situações exemplares, há ocasiões. . .

— Vamos deixar para depois, coronel. Poderá então explicar-nos o que isso significa. Já pensou alguma vez em defecção?

— Defecção? Para quem? Onde? A simples idéia é absurda.

— É estranho. Conversamos com seu motorista. Ele acha que o senhor leva uma vida muito dispendiosa para um soldo de coronel. Um quarto particular no Formosa.. . e as mulheres de Rosita não são nada baratas. Sabemos, é claro, que não gasta muito dinheiro em Martin Garcia. Mas mesmo assim. . . Como está verificando, coronel, há muitas pergun­tas precisando de respostas.

— Irei responder a elas no tribunal apropriado!

— Depois que prestar depoimento para nós.

— Não tenho nada a esconder! E terei o maior prazer em cooperar!

O coronel estava agora inteiramente confuso. Começou a exalar o primeiro cheiro de medo. Spada se afastou, olhan­do pela janela, para o tráfego e para as luzes dos subúrbios de Buenos Aires. As habitações começavam a escassear, sur­giam as primeiras granjas e pequenas hortas. Subitamente, Sancho deu uma guinada no carro para a esquerda. Entraram por uma estradinha de terra, toda esburacada, ao fim da qual havia uma estrutura grande, semelhante a um celeiro, com engradados de frutas e hortaliças empilhados na frente. Ele desligou o motor e as luzes e virou-se para falar ao coronel:

— Agora, coronel, preste toda a atenção. Há um tele­fone lá dentro. Vai telefonar para a prisão e chamar o Major Gutiérrez. Vai ordenar-lhe que envie imediatamente os dois prisioneiros, Chávez e Vallenilla, para o atracadouro no con­tinente. Vai informá-lo dos números dos documentos, que lhe diremos. E comunique também que estará presente, junto conosco, para testemunhar a entrega dos prisioneiros. Tudo bem claro até aqui?

— Está, sim.

— Quantos homens normalmente vêm na escolta?

— Três. O homem que maneja o barco e dois oficiais.

— Seu rádio está funcionando?

— Não a esta hora. Suspendemos o funcionamento às dez horas da noite, se não há qualquer emergência.

— O que não é o caso desta nossa operação. Assim que der as instruções, passe-me o telefone.

— Está bem.

— Só mais uma coisa, coronel. Diga apenas o que lhe mandei. Caso contrário, vai terminar como um porco de banquete, com uma maçã na boca.

— Não compreendo por   que precisam   ameaçar-me desse jeito. Já disse que vou cooperar.

— Mas está blefando, coronel — disse o Espantalho, suavemente. — Está pensando que não somos da segurança e está agindo de acordo com o que lhe ensinaram na escola do Estado-Maior: Fique calmo. Trate de apaziguar os ho­mens que o capturaram. Procure estabelecer um relaciona­mento pessoal... Só que desta vez não vai funcionar, coro­nel, porque temos regras diferentes. E que são apenas duas. Tente bancar o esperto e morre dentro daquele galpão. Coo­pere e ficará vivo por mais algum tempo. . . Isso é tudo. E agora vamos entrar.

O galpão era grande, com um pequeno cubículo servin­do de escritório na extremidade. Sentaram o Coronel Juárez à mesa e ficaram de pé em torno dele, empunhando armas. Sancho pôs o documento da segurança diante do oficial, apontando para o número de série, e lhe entregou então o telefone.

— Só espero que faça tudo direitinho, coronel.

Juárez discou o número com a mão trêmula. Na pri­meira tentativa, o dedo escapuliu, e teve que começar tudo de novo. Spada piscou para o Espantalho, que assentiu em compreensão. O coronel não era nenhum herói. Ouviram a campainha do telefone e depois a voz do telefonista da pri­são, distante e sonolenta. Sancho inclinou-se para escutar. O coronel disse, a voz não muito firme:

— Aqui é o Coronel Juárez. Quero falar com o Major Gutiérrez. . . Claro, seu idiota! Sei perfeitamente que ele já está deitado! Pois trate de acordá-lo!

Houve uma pausa prolongada, o som de uma transfe­rência de ligação, depois uma voz irritada e sonolenta:

— Gutiérrez!

— Major! Esfregue os olhos e acabe com o sono! Aqui é o Coronel Juárez!

— Sim, senhor! O que deseja, coronel?

— Preste toda a atenção. Estou com os homens da segurança. Querem a entrega imediata de dois prisioneiros, Chávez e Vallenilla. Prepare-os o mais depressa que puder. . . Esta noite? Mas claro que será esta noite! Estaremos espe­rando no ancoradouro. Já sei que Vallenilla está doente. Leve-o numa maça. . . Não, não desligue agora. Anote o número da ordem de transferência. Vai receber o documento original no momento da entrega dos prisioneiros. Aqui está: OS 759 barra 8635 barra 4126. Entendido?. . . Espere um momento.

Sancho pegou o fone e continuou o telefonema:

— Major Gutiérrez, aqui é o Major Borba, da segu­rança. Tem roupas civis para esses homens?. . . Servem, contanto que sejam razoavelmente decentes. Eles não vão a um jantar a rigor. Ah, sim. . . nada de correntes. Temos homens suficientes para mantê-los quietos. Quanto tempo vai demorar para levá-los ao continente? . . . Quarenta minu­tos? Oh, não, é demais! Isso faz parte de uma operação em grande escala. Se puder reduzir esse tempo para trinta minu­tos, ajudaria bastante. . . Só mais uma coisa: a partir deste momento, queremos um completo silêncio de rádio. Não deve haver nenhuma transmissão de Martin Garcia. Se quiser entrar em contato comigo ou com o coronel, não o faça atra­vés do quartel-general. Use o seguinte telefone: 758-9563. Estamos operando fora da cidade e bastante ocupados... Se o telefone estiver ocupado, continue tentando. Mas não atrase o envio dos prisioneiros. Isso é absolutamente vital. Mais alguma pergunta para o coronel?. . . Não, ele não vai voltar para a prisão. Irá conosco para Buenos Aires. . . Obrigado, major. E boa noite.

Sancho desligou e deu um tapinha no ombro do coronel.

— Agiu muito bem, meu amigo! Continue assim e viverá para se deitar com muitas outras mulheres! — Ele tirou o fone do gancho e o pôs em cima da mesa. Depois, aproximou a pistola do rosto do coronel e acrescentou: — E não se esqueça de que, daqui por diante, estará caminhan­do por um campo minado. Um passo em falso e. . . bum! Vamos, amigo!

O caminhão estava estacionado no espaço aberto junto ao ancoradouro. O motorista, ao volante, fumava um cigarro depois do outro. Os mercenários estavam dispersos pelo laranjal, suando no ar úmido e parados à beira do rio. Henson fazia rondas continuamente, verificando a entrada para a rodovia, passando de árvore em árvore, sussurrando ordens num péssimo espanhol, complementadas por sinais das mãos, um dedo a apontar, um toque no ombro, uma indicação da linha de fogo se a polícia aparecesse.

O rio estava vazio, cinzento sob a lua pálida, com luzes amareladas piscando nas ilhas do estuário. Os únicos sons que se podiam ouvir eram o zumbido distante do tráfego na rodovia, o grito ocasional de um pássaro noturno e o suspiro do rio passando pelas colunas do ancoradouro. Chegando ao caminhão, Henson arrancou o cigarro da boca do motorista e apagou-o na terra, com o calcanhar. O homem protestou, num espanhol eloqüente, mas Henson passou-lhe a mão pela garganta, num gesto significativo, e afastou-se, a caminho do ancoradouro. Olhou para o relógio e praguejou baixinho. Spada estava dez minutos atrasado. Se o barco chegasse antes do comitê de recepção. . . Foi nesse momento que ele ouviu o motor do carro. Virou-se e viu os faróis entrando no caminho que trazia à beira do rio. Os faróis se apagaram no instante seguinte e o carro avançou até a área de estaciona­mento, onde fez a volta para ficar de frente para o caminho e parou. Sancho saltou, abriu a porta de trás e acompanhou três homens na direção do ancoradouro. Henson adiantou-se ao encontro deles, ansiosamente.

— Graças a Deus que chegaram! Eu já estava come­çando a ficar preocupado.

— Pois não precisava — disse Spada. — Há tempo suficiente.

Sancho, o encenador do espetáculo, fez uma única per­gunta:

— Onde seus homens estão postados?

— Dois na entrada para a rodovia, dois no meio do caminho e dois à beira da área de estacionamento.

— Ótimo!   — Ele virou-se para o Espantalho e o coronel e acrescentou: — Quando o barco chegar, nós três vamos até o ancoradouro para recebê-lo. O coronel apresenta os documentos. O major e o Sr. Spada ficam um pouco mais atrás. Não queremos que Vallenilla o reconheça imediata-mente. Os guardas da prisão entregarão os prisioneiros no ancoradouro. E depois o coronel os manda voltarem. Enten­dido, coronel?

— Entendido.

— Assim que ouvir o barco que se aproxima, major, mande os seus homens ficarem à vista. Queremos dar uma demonstração de força.

— Está certo.

— Coronel. . .

— Pois não?

— Pense agora como um soldado. Somos dez homens em terra contra três homens numa embarcação. Estamos em superioridade esmagadora. . . e pode estar certo de que será o primeiro homem a morrer.

— Santa Mãe de Deus! Pensa que sou tão estúpido assim?

— Tem sido até agora — comentou o Espantalho. — Esta é a sua última oportunidade de usar os miolos.

Nesse momento, eles ouviram o barulho do motor da lancha. Poucos momentos depois, avistaram as luzes, verme­lha e verde, aproximando-se do ancoradouro. Sancho e o Espantalho empurraram o coronel para a sua frente e avan­çaram na direção do ancoradouro. O Major Henson soltou um assovio baixo e seis homens emergiram do laranjal, apro­ximando-se dele. Henson colocou-os num círculo, quatro de frente para o ancoradouro, dois de frente para a rodovia. Depois, com Spada ao seu lado, ele ficou olhando para o pequeno e tenso drama que se desenrolava no ancoradouro. Assim que o barco atracou, um dos guardas disse ao coronel:

— Trouxemos os dois prisioneiros, Chávez e Vallenilla, coronel. Este aqui. . . — Ele apontou para Vallenilla, es­tendido numa maça. — Ele está inconsciente. Deram-lhe um sedativo antes de partirmos.

— Tragam-no para o ancoradouro! — ordenou Sancho, rispidamente.

Os dois guardas pegaram a maca, subiram os degraus do ancoradouro, puseram a maca no chão e depois olharam para o coronel, à espera de instruções.

Sancho tornou a intervir. Chamou o outro prisioneiro:

— Você, Chávez!

— O que é?

— Suba até aqui!

Chávez subiu os degraus e parou diante de Sancho, encarando-o. Um ligeiro brilho de reconhecimento surgiu em seus olhos, mas ele não disse nada. Um dos guardas virou-se para o coronel e perguntou:

— Vai voltar conosco, coronel?

— Não. . . Ainda tenho alguns problemas para resol­ver. Diga ao Major Gutiérrez. . .

— Não lhe diga nada! — interveio Sancho outra vez bruscamente. — Isto é uma operação de segurança! Pode telefonar mais tarde, coronel, depois que tudo estiver termi­nado. E agora dispense seus homens, por favor.

— Estão dispensados! — disse o Coronel Ildefonso Juárez aos guardas.

Mas um dos guardas permaneceu onde estava.

— Precisamos da ordem, senhor. E de um recibo da entrega dos prisioneiros.

— Ah, sim. . . claro, claro.

Sancho estava bem perto e atento quando os documen­tos foram .entregues. Depois, com um alívio evidente, os guardas bateram continência e voltaram para o barco. Puxa­ram o cabo, ligaram o motor e partiram a toda a velocidade para a ilha no meio do rio. Sancho abraçou Chávez.

— Seja bem-vindo, camarada!

John Spada adiantou-se correndo e levantou o lençol sujo do rosto de Vallenilla. Ele parecia tão encolhido e pálido que por um momento Spada pensou que estivesse morto.

Chávez disse bruscamente:

— É melhor providenciar logo cuidados médicos para ele. . . Está quase morto. . . e esse filho da mãe é o culpado!

Ele cuspiu na cara do coronel. Spada interveio:

— Chega! Ponham Vallenilla no caminhão!

Sancho e Chávez pegaram a maca. Spada e o Espantalho foram atrás, com o coronel dois passos à frente deles. En­quanto a pequena procissão avançava pelo ancoradouro, o coronel virou-se e perguntou, em tom de lamento:

— Quem são vocês? O que vão fazer comigo?

Spada ficou calado, e foi o Espantalho quem respondeu:

— Nós? Nada. Não nos pertence. Sua própria gente é que cuidará de você. Mas não se preocupe. Eles são muito meticulosos com o protocolo. Quando o enterrarem, sempre haverá alguém para cuspir em sua sepultura.

 

Já passava de uma hora da madrugada quando o piloto deixou o Freya e o cargueiro atravessou o golfo, entrando no Atlântico, no curso nordeste. Spada e seus companheiros saíram do porão. Enquanto os outros ficavam no convés, para se refrescarem no ar frio da madrugada, Spada foi para a cabina do imediato, a fim de verificar como Vallenilla estava. Ele ainda se achava em estado de coma. A Irmã Martha já instalara um vidro de soro e uma máscara de oxigênio e estava naquele momento verificando o pulso do doente.

— Como está ele, irmã? — indagou Spada.

— Está resistindo. . . e isso é tudo o que posso dizer por enquanto. Já apliquei bastante penicilina e estou agora aplicando o soro. O pulso dele está fraco, mas firme. — Ela entregou uma máscara de gaze para Spada. — Ponha isto sempre que vier visitá-lo. Todos os sintomas indicam que ele está com tuberculose: saliva com escarro, sangue oca­sionalmente, o peito cheio de roncos. O resto dele. . . Só Deus sabe. Ele deve ter sofrido terrivelmente.

— Pode mantê-lo vivo até chegarmos a casa?

— Com um pouco de sorte, acho que sim.

— Eu a ajudarei a cuidar dele — disse Spada. — Basta que me indique o que devo fazer.

— É bastante simples: injeções regulares, mudar cons­tantemente o vidro de soro, mantê-lo sempre limpo e con­fortável. E o que é mais importante: fazê-lo querer conti­nuar vivo.

— Quero agradecer-lhe por ter concordado em nos acompanhar, irmã.

— Não sou mais irmã, mas apenas Martha. . . Martha Moorhouse. E me sinto satisfeita por poder ajudar.

Vallenilla remexeu-se e grunhiu, terminando por abrir os olhos. Estavam vidrados, sem focalizarem coisa alguma. Spada inclinou-se na direção dele, mas Martha deteve-o.

— A máscara primeiro.

Spada ajeitou a máscara de gaze sobre a boca e o nariz. A voz saiu abafada e estranha:

— Rodo, aqui é John. . . John Spada. Está me ouvin­do? Se estiver, aperte minha mão.

Ele sentiu uma débil pressão, em resposta, dos dedos descarnados e pegajosos. Acrescentou suavemente:

— Não tente responder. Está seguro agora. Basta que compreenda isto. Está seguro. Estamos levando você para Teresa.

— Teresa!

Através do plástico transparente da máscara de oxigênio, eles viram os lábios de Vallenilla formarem a palavra. Depois, ele tornou a fechar os olhos e a mão ficou inerte.

— Já chega — disse Martha. — Deixe-o descansar agora.

— Tenho de falar com o comandante — disse John Spada. — Virei substituí-la dentro de uma hora. Onde vai dormir?

— O segundo-oficial emprestou-me sua cabina. Fica no quarto do outro lado do corredor. Sr. Spada. . .

— Pois não?

— Presumo que vai entrar em contato com a família dele, não?

— Claro que vou. Usarei o rádio do navio assim que estivermos fora das águas territoriais argentinas. Mas por que está perguntando?

— Não os deixe ter muitas esperanças, especialmente sua filha. Está levando para casa um inválido. . . um invá­lido permanente. Ele nunca mais poderá se unir a uma mulher.

 

No jardim murado da Bay House, o verão atingia um viço precoce, com uma profusão de rosas desabrochadas, um zumbido de abelhas, peras amadurecendo contra as pedras quentes do muro, os espaços entre as janelas góticas ocupa­dos por trepadeiras em flor. O céu era azul por cima do tanque sereno como um espelho, onde carpas douradas na­davam preguiçosamente entre os nenúfares. A sombra do gnômon se estendia em linha reta pelo mostrador do relógio de sol.

No meio do muro no lado leste, ao abrigo do vento frio que soprava do mar, havia uma reentrância grande, semicircular, com um teto de ladrilhos vermelhos, móveis rústicos, onde nos dias de bom tempo o dono da casa podia receber os amigos e deleitar-se no ameno desfrute de seus domínios. Naquele dia, Rodolfo Vallenilla estava ali, um vulto pequeno e encurvado numa cadeira de rodas, cochi­lando às vezes, depois escrevendo num caderno escolar, em breves erupções de energia, enquanto Teresa observava, sorrindo aprovadoramente e inclinando-se outra vez para o seu tricô. Para John Spada e Anna, observando da janela, havia algo de pateticamente bucólico na cena.

— Parece até que são eles os velhos — murmurou Anna, tristemente. — E nós é que somos os jovens, com a vida toda pela frente.

Spada passou um braço pelos ombros dela, puxando-a para junto de si, num gesto protetor.

— Não fique pensando nisso, Anna. Eles estão contan­do as suas bênçãos.

— Não fico remoendo nada. — A negativa de Anna foi veemente. — Mas Teresa conversa comigo de vez em quando. Ela diz que não sente falta do sexo. Depois de tudo que lhe fizeram, não sente a menor vontade. Mas ela se preocupa com Rodo. Sente que ele está alquebrado e inútil. Tem de estimulá-lo a escrever durante todo o tempo, porque ele tem coisas importantes a dizer. Mas, quando Rodo fica cansado, mostra-se impaciente como um bebê.

— Não pode culpar o pobre coitado. Parte dele quer registrar tudo por que passou, mas outra parte prefere es­quecer. Teresa tem o mesmo problema. No momento, o me­lhor que podemos oferecer-lhes é esta casa, um lugar tran­qüilo e aconchegante, para quando precisarem.

— E você, amore? — Anna pôs a mão no rosto do marido, ternamente. — De que está precisando?

— Exatamente do que eu tenho. — Subitamente, Spada mostrou-se carrancudo e retraído. — Preciso de você. e de muito trabalho para manter-me ocupado.

— Não o tenho ajudado muito ultimamente.

— Por acaso me queixei?

— Não. Mas isso acontece com as mulheres. . .   os filhos sempre parecem precisar mais de nós do que o marido, especialmente quando é um homem forte como você. Não é bom para nós que você passe tanto tempo na cidade, enquanto eu fico aqui com Teresa e Rodo. Mas eles ainda estão precisando muito da minha presença.

— Sei disso. — Spada inclinou-se e beijou-lhe os ca­belos pretos. — Mas daremos um jeito.

— É uma pena que tenha deixado a firma logo agora. É o momento em que mais precisaria estar ocupado.

— Não se engane, Anna — disse Spada, taxativamen­te. — Desde que comprei a Poseidon Press ando tremenda­mente ocupado a reorganizá-la. Estamos abrindo subsidiárias em língua estrangeira e instituindo um sistema de compu­tador para estoque e levantamento de dados. Mais três me­ses e estaremos publicando matérias realmente sensacionais.

— De que tipo?

— Já falei. . .

— Sei que me falou. — Anna assumiu uma expressão penitente. — Escutei, mas não prestei muita atenção. . . e não compreendi a metade do que ouvi. Não fique zangado comigo, amore. É que Teresa e Rodo eram mais importantes.

— Tem toda a razão, Anna. Mas agora temos de usar as experiências deles para ajudar outros, milhares de outros, o mundo inteiro. As maiores armas da tirania são o silêncio as informações falsas. Vamos romper o silêncio e publicar relatos verídicos do que está acontecendo pelo mundo: rela­ções de prisioneiros políticos, descrições autênticas do que lhes aconteceu e a suas famílias, nomes, endereços, histórias pessoais daqueles que estão empenhados nos ofício da tortura e do terror. O pessoal da Proteu vai providenciar as informações. Vamos registrá-las, verificá-las, confirmá-las e publicá-las em boletins regulares, até o dia em que, queira Deus, os vilões sintam medo de se exibir em público em qualquer sociedade civilizada. É um trabalho grande, prolongado, mas pode ser o mais importante que já empreendi na vida.

— E o mais perigoso também. — Anna estremeceu e se aconchegou a ele. — Detesto a maneira como estamos vi­vendo agora, com guardas nos portões e na praia. . . pessoas nos seguindo por toda parte. . .

— É necessário, Anna. Os ditadores têm braços com­pridos.

— Mas você agora está criando mais perigo, atraindo novas ameaças.

— E o que eu deveria fazer? Ficar calado? Deixar que os homens diabólicos façam o que bem entenderem?

— Não há necessidade de ficar zangado, amore, Te­nho o direito de dizer o que sinto.

— Olhe para lá! — Spada apontou para o lugar em que Teresa estava ajeitando as cobertas sobre Rodo, que cochilava. — Os homens que submeteram os dois às piores torturas ainda estão livres e são considerados respeitáveis. Alguns parecem até pessoas comuns. Lavam o sangue das mãos depois de um dia de trabalho, vestem roupas limpas e voltam para suas casas, a fim de acariciar suas esposas, brin­car com os filhos. Como o trabalho deles é invisível, são ignorados, como os embalsamadores e os limpadores de esgo­to. Predominam pelo consentimento tácito das pessoas co­muns, que querem ver as ruas limpas e os trens correndo no horário, as casas a salvo de ladrões durante a noite. Os contribuintes é que pagam os salários deles. São promovidos nos serviços civis e militares. Desfilam em segurança pelas ruas, enquanto suas vítimas apodrecem em celas a cem metros da praça principal da cidade. É por isso que eles pre­cisam ser detidos. É por isso que. . .

— Está disposto a nos arriscar a todos novamente? — Anna desvencilhou-se do abraço dele e desafiou-o, num acesso de ira, as lágrimas escorrendo pelas faces. — Será que já não fez o bastante? Será que nunca mais voltaremos a ter um momento de paz?

No momento seguinte, Anna tinha-se afastado, subindo a escada a correr. Spada ouviu a porta bater, a chave ser virada. Ficou imóvel como uma estátua de pedra, olhando para o jardim. Nunca, em toda a sua vida, se sentira tão vazio, tão desolado e solitário.

Era normalmente orgulhoso demais para ter queixas de sua família. Agora, porém, sentia-se não apenas angustiado, mas também totalmente desorientado, como se estivesse meio embriagado e cometendo uma tolice que deixava os outros constrangidos. Ele saiu para o jardim e chamou Te­resa para acompanhá-lo num passeio pelo gramado, enquanto Rodo ainda cochilava, na cadeira de rodas. Quando ele con­tou a explosão de Anna, Teresa mostrou-se estranhamente defensiva.

— Não pode perceber, papai, porque está sempre em movimento, sempre em ação. Mamãe está agora nos anos di­fíceis. Ela precisa de ternura, estabilidade. . . da sensação de que está envelhecendo em segurança, ao lado do homem a quem ama. O que aconteceu comigo e com Rodo foi um choque terrível para ela. Não estava aqui para ver, mas. . .

— Pelo amor de Deus! — Spada estava subitamente fervendo de raiva. — Como eu podia ver alguma coisa? Estava em Buenos Aires, arriscando uma dúzia de vidas para tirar seu marido vivo da prisão!

— Por favor, papai! Não era isso o que eu estava querendo dizer.

— Pois então diga o que estava pensando! Tenho o direito de saber! Sim ou não?

— Sim, papai! Sim, sim! Mas será que não compreen­de? Sou a pessoa errada para lhe falar!

— Por quê?

— Porque Rodo e eu somos vítimas! Porque eles nos destruíram! Ê verdade que estamos nos recuperando, lenta­mente, um pouco a cada dia, mas nunca mais voltaremos a combatentes da linha de frente. Todos os dias, ao lermos os jornais e encontrarmos alguma história de terror, os pesadelos voltam.   Estamos   apavorados, porque   sabemos   que estamos condicionados como os cães de Pávlov e não temos condições de enfrentar mais riscos.

— E por isso eu entrei na luta, no lugar de vocês. O que há de errado nisso?

— Temos medo por você também!

A veemência de Teresa deixou Spada aturdido. Ele recuperou-se rapidamente e perguntou:

— Ficaria mais feliz se eu deixasse a luta? Se eu me rendesse?

— Mais feliz, não. Ficaria mais segura. Mas não temos o direito de pedir-lhe isso.

— E não têm mesmo. — A raiva dominou-o outra vez. — Tenho sido um bom marido, um bom pai. Nem você nem sua mãe têm o direito de me transformar num eunuco.

— Papai, por favor. . .

— Cale-se e escute! Não quero viver como um escra­vo, rastejando diante de um tirano, com medo de fazer qualquer coisa porque um anarquista idiota pode colocar uma bomba debaixo da cadeira. Se sou uma ameaça para você, sua mãe ou Rodo, irei embora, atrairei o fogo para outro lugar. Mas não há a menor condição de eu ficar sen­tado, de braços cruzados, enquanto os tiranos tomam conta do mundo! Vou lutar, bambina, e ao diabo com. . .

— Papai, pela última vez, escute-me!

— Estou escutando.

— Já chega! — Rodolfo Vallenilla interpôs-se entre os dois, em sua cadeira de rodas. — Fique calada, Teresa! John, já fui um homem como você. Agora, eu não agüentaria dez minutos com os interrogadores. Mas posso di­zer-lhe uma coisa: siga o seu caminho. Lute a sua batalha! Vamos apoiá-lo com as poucas forças que nos restam!

— E o que me diz de mamãe? — Teresa virou-se para encará-lo, furiosa. — Será que ela não tem nenhum direito?

— Claro que tem — disse Rodolfo Vallenilla. — Mas esses direitos ela tem de reclamar do marido e não da filha. Será que não percebe o que está acontecendo, Teresa? Está fazendo exatamente o que os tiranos esperam! Eles querem intimidar-nos, provocar discussões entre nós, fazer com que odiemos uns aos outros!

— Eu quero um pouco de paz!

As palavras saíram como um lamento.

— Em Martin Garcia, supliquei a um homem que me matasse — disse Rodo, amargamente. — Porque eu queria paz, exatamente como você neste momento.

— Talvez fosse melhor que ambos tivéssemos morrido!

— Nunca mais diga isso — murmurou Spada. — Ho­mens de valor arriscaram suas vidas por você e Rodo. Homens foram mortos por sua causa. . . e agora você nos cospe isso na cara! Rodo, tente incutir um pouco de bom senso na cabeça de sua mulher.

Ele virou-se bruscamente e deixou-os, atravessando o gramado como um gigante furioso. Minutos depois, saía de casa, dirigindo o carro furiosamente pela estrada, engasgado com a amargura da rejeição.

 

— O que esperava, meu querido? — Maury Feldman estava desenhando um musculoso Narciso a admirar seu sexo num tanque de nenúfares. — Passou pelo espelho e entrou numa dimensão diferente. Já não há a menor possi­bilidade de sua família compreendê-lo. . .   Falando nisso, nem eu mesmo consigo compreendê-lo muito bem.

— Oh, meu Deus! Até que ponto preciso simplificar a coisa? O que fazia nos holocaustos, papai?

— Seu filho da puta!

— Isso eu posso compreender! — Spada arrancou o lápis das mãos de Feldman e partiu-o ao meio. — Minha família foi violentada. Um velho amigo foi assassinado. Quero combater os carniceiros. Então eu sou um filho da puta! Pois muito bem! Vamos supor que eu fique de braços cruzados, engula tudo e diga: "Obrigado, doutor. Esse re­médio me fez muito bem". O que sou então?

— É um homem sensato que não exige demais da sua sorte. É um bom marido, que protege a esposa e a família.

— E isso é suficiente?

— Para mim, é. . . mas não tenho esposa, nem família-

— Pois não é suficiente para mim! — declarou John Spada, categoricamente.

— E o que quer então. . . justiça ou vingança?

— Justiça!

— Pois não há a menor possibilidade de consegui-la. — Maury Feldman pegou outro lápis e voltou a ocupar-se com seu desenho. — Sou um servo da lei e posso garan­tir-lhe que a justiça não passa de uma ilusão... a menos que o Todo-Poderoso cuide melhor do que acontece aqui por baixo.

— Vamos dizer então que estou querendo indeniza­ções punitivas.

— É um processo difícil de ganhar.

— Porque não há nenhum tribunal que cuide disso.

— Exatamente.

— Mas ainda existe o tribunal da opinião pública. . . e é por isso que estou me tornando editor.

— Tenho pensado muito nisso. — Maury Feldman largou o lápis em cima da mesa, cruzou as mãos atrás da cabeça e estendeu as pernas por baixo da mesa. — E tenho pensado muito porque você é um bom cliente, paga bem e dentro do prazo. Vai publicar uma série de dossiês sobre o terror. . . o terror institucionalizado, o terror revolucionário. Vai reunir provas: nomes, datas, lugares, histórias pessoais de vítimas e algozes. . . Vai divulgar as informações pelo mundo inteiro.

— E vou mesmo!

— E vai garantir pessoalmente que tudo o que publicar será verdade?

— Na medida do possível, vou.

— E até que ponto poderá garantir, meu querido?

— Com os sistemas que estou estabelecendo, a garan­tia poderá ser quase total.

— Mesmo assim, não será uma garantia cem por cen­to. .. Não! Não pule em cima de mim! Fique sentado aí, escutando! Há um fato elementar em relação aos terroristas e criminosos políticos. Eles usam nomes falsos, identidades fictícias, como você fez na Argentina. O que acontece se você indicar o nome errado e alguém jogar uma bomba na sala de estar da casa dele, matando-lhe a esposa e os filhos? O que acontece se você formular uma falsa acusação contra um homem culpado e ele o processar por calúnia ou difa­mação . . . e escapar impune ao final de tudo? O que acontecerá se algum serviço de informação secreta lhe fornecer dados falsos e destruir a sua credibilidade logo no início? O que acontecerá se você publicar a informação certa e emi­tirem um contrato contra a sua vida, as vidas de seus fami­liares e de seus empregados?

— São boas perguntas, Maury. Mas também tenho uma pergunta a fazer. O que acontecerá se eu não fizer nada?

— Morrerá em paz e tranqüilamente na cama — disse Maury Feldman, a voz cansada. — E eu ficarei sentado no Shibath, o que não vai ajudá-lo, mas fará com que eu me sinta um pouco melhor, porque é um goy estúpido e eu o amo! Quer que eu chame Anna?

— Não. Ela vai aparecer de qualquer maneira.

— E Teresa?

— Vamos deixar para depois. Como estão as coisas no armazém?

— Tudo bem. Mike Santos está fazendo um bom tra­balho. Já acertamos praticamente a compra dos Laboratórios Raymond. A Spada Nucleonics resolveu o problema do rea­tor e há um acordo razoável com os clientes quanto aos custos. Liebowitz está quieto, pelo menos no momento. Kitty é que anda meio irrequieta. Está querendo sair e ingressar na sua editora.

— E eu bem que estou precisando dela.

— Fale com Mike primeiro — Maury afastou o assun­to com um dar de ombros e depois franziu o rosto, infeliz, ao deparar com um novo pensamento. — Queria sugerir uma coisa. ..

— O quê?

— Uma visita a Washington, uma conversa com Hendrick, no Departamento de Estado. Você não está muito po­pular por lá neste momento, e isso pode afetar os interesses da companhia.

— Quais são as queixas?

— Uma porção de coisas pequenas. — Maury estava se mostrando deliberadamente indiferente. — Rumores e boatos que são bastante embaraçosos para o Secretário de Estado Hendrick.

— Por exemplo?

— Que você é um grande contribuinte para os fundos marxistas na Europa. Que trabalhou com o ERP na Argentina. Que foi cúmplice deles no assassinato do comandante de uma prisão. Os argentinos estão declarando guerra a você.

— Está certo. Irei a Washington em breve e farei o que for necessário. E vou aproveitar para conversar também com o Embaixador Koltchak. O caso de Lermontov está se arrastando mais do que é preciso.

— Agora que é um amigo do Partido, talvez os russos se mostrem mais acessíveis. — O sorriso de Maury Feldman era deliberadamente provocativo. — Você é agora uma fi­gura das mais notórias, de um jeito ou de outro. Eu não ficaria surpreso se recebesse alguma atenção da CIA e do FBI.

— Há algum indício de que isso está acontecendo?

— Há, sim. Pediram a Mike Santos que atualizasse as informações de segurança, o que é um tanto insólito nesta época. Se eu fosse você, mandaria verificar se não há micro­fones ocultos em seu apartamento.

— Essa, não! Esse tipo de pressão é algo de que preciso Tanto quanto de um ataque de sarampo!

Maury Feldman deu de ombros, voltando a debruçar-se sobre seu desenho.

— Eu já lhe disse, meu querido. Passou para o outro lado do espelho. É melhor estar preparado para alguns en­contros inesperados. . . e é bem possível que alguns sejam perigosos.

— A família está sendo protegida dia e noite. Estou tão protegido quanto é possível. Mas não há a menor possi­bilidade de se contar com uma proteção cem por cento eficaz na calçada de uma cidade.

— Acho que tem razão. Mas tome cuidado, hem? Se você morrer, vou perder uma fonte de vultosos rendimentos.

Spada conhecia Maury Feldman há tempo suficiente para não ignorar a advertência. Haviam subido juntos dos negócios de beira de calçada para as altitudes inebriantes das altas finanças e da política em ponto maior. Lá em cima, os pontos de apoio eram precários. Um escorregão, um empurrão, qualquer coisa era suficiente para fazer com que um homem despencasse de volta ao lugar de origem. Por isso, assim que chegou a seu apartamento, Spada deu um telefonema pessoal para o Secretário de Estado Hendrick, em Washington. Depois de uma demora significativa, foi informado de que o secretário estava em reunião naquele momento, mas poderia ser encontrado em sua residência depois das sete horas da noite. O que era bom. . . ou mau. O Secretário Hendrick não queria que um chamado de John Spada fosse registrado em sua agenda.

O telefonema seguinte foi para Mike Santos, o qual, se estivesse seguindo o horário tradicional, teria quinze minu­tos para dispensar-lhe, antes da reunião às seis horas na sala de operações. Ali também houve uma demora, mas Kitty Cowan explicou-a:

— Visitantes, chefe. Dois homens do Serviço de Inves­tigação da Defesa.

— E o que eles estão querendo?

— Dizem que querem conversar sobre a segurança de projetos para o Departamento de Defesa. Querem uma re­lação atualizada das medidas de segurança para documentos e das precauções para o acesso às áreas secretas de nossas fábricas. Pelo menos, foram esses os dados que me pediram.

— Há quanto tempo eles estão reunidos com Mike?

— Há cerca de uma hora. Devem estar saindo a qual­quer momento. Mike foi muito firme, dizendo que não po­deria conceder-lhes mais de quarenta e cinco minutos. Como estão as coisas com você, chefe?

— Mais ou menos. Teresa e Rodo estão se recupe­rando, lentamente. Mas Anna está sentindo a pressão. E eu também.

— Estamos sentindo muito a sua falta por aqui. Por que não aparece para fazer uma visita?

— Não é meu estilo, Kitty. E sabe disso. Por que você não aparece para jantar comigo. . .   esta noite, por exemplo?

— Está marcado. Aparecerei por volta das oito horas, depois da última reunião. . . Espere um instante, chefe. Os homens já estão saindo. Vou colocá-lo em contato com Mike.

Mike Santos parecia exausto e amargo com o mundo, mas empenhou-se na tentativa de ser cordial:

— Esses homens são insuportáveis, John. Estão sem­pre tão solenes e compenetrados que a gente chega a pensar que têm algum contato direto com Deus.

— Algum problema?

— Não chega a ser um problema. Nossos sistemas de segurança são muito bons e resistem a qualquer verificação. Eles têm algumas pequenas reclamações sobre a custódia do material de fissão, mas não é nada importante. O principal interesse deles parece ser você.

— É mesmo? — Spada ficou imediatamente alerta e cauteloso. — E que perguntas andaram fazendo?

— Queriam saber sobre as suas recentes atividades no exterior. . . e eu disse que não eram da minha conta. Per­guntaram sobre possíveis serviços futuros seus à companhia. Respondi que você tinha concordado em atender a qualquer pedido de ajuda. Indagaram em que áreas. Falei que em todas, mas acrescentei que neste momento, especificamente, estava precisando da sua ajuda na reorganização dos Labo­ratórios Raymond. O que, diga-se de passagem, é verdade.

— E qual foi a reação deles?

— Hesitaram, fizeram uma porção de rodeios, acaba­ram perguntando se ainda queríamos que você tivesse um completo acesso aos nossos segredos. Respondi que sim, que não havia a menor dúvida quanto a isso, que você tem e sempre terá pleno acesso a tudo da companhia.

— Obrigado, Mike.

— De nada. Mais uma coisa: quando poderíamos con­versar sobre os Laboratórios Raymond? Estive examinando alguns candidatos a assumir quando o velho Raymond sair, mas ainda não encontrei nenhum de primeira classe.

— Se você quiser, posso passar algum tempo lá para reorganizar tudo.

— Eu ficaria grato. . . mas acho que é pedir demais a um ex-presidente.

— Absolutamente. É um campo novo para mim. — Spada soltou uma risada. — E lhe dará a oportunidade de fazer um pequeno sermão na próxima reunião dos executi­vos. Todos por um, um por todos, essas coisas. Além do mais, fui eu que comprei a empresa e o mínimo que posso fazer agora é entregá-la em boas condições. . .   Podemos almoçar na próxima segunda-feira?

— Claro!

— Mais algum problema?

— Nenhum que eu não possa resolver sozinho. Obri­gado, John. E até segunda-feira.

Ao desligar, Spada estava de rosto carrancudo. Não tinha ilusões sobre as atividades dos chamados "cães de guarda" da América, sempre farejando pelo mato das finan­ças e da política. Como Maury Feldman comentara certa ocasião, eles saíam atrás de muitas pistas falsas, mas também farejavam muitas trufas. A partir do momento em que de­terminassem sua ligação com um grupo revolucionário, sua ficha seria elevada à categoria de ativo. Ficaria sujeito a uma vigilância constante e a rede da Proteu poderia tornar-se comprometida com a maior facilidade.

Ele serviu-se de um drinque e esperou, com crescente impaciência, até chegar o momento de tornar a telefonar para o Secretário de Estado Hendrick. Eram quase oito horas quando conseguiu completar a ligação. Hendrick foi cordial, mas um pouco mais formal que de costume.

— Em que posso servi-lo, John?

— Soube que a artilharia antiaérea está em ação. Eu gostaria de pousar e conversar com você a respeito disso.

— Eu não o recomendaria, pelo menos neste momento. Deixou-me numa situação um tanto embaraçosa.

— Pode ser mais específico, senhor secretário?

— Posso, sim. Os argentinos estão pressionando para obter sua extradição, a fim de levá-lo a julgamento sob as acusações de conspiração para cometer violência armada, efe­tuar uma fuga de prisão e cumplicidade no assassinato de um oficial do Exército. Pedimos que apresentassem provas. Felizmente para você, as provas são circunstanciais e algu­mas arrancadas sob coação. Advertimos que tais provas não resistiriam ao exame de um tribunal americano. Mas os argentinos forneceram muitas informações ao escritório local da CIA. A maioria veio parar na minha mesa e foi encami­nhada, por uma questão de rotina, ao FBI. Tais informações não o apresentam sob um ângulo muito favorável, John.

— Posso perguntar-lhe o que teria feito no meu lugar?

— Felizmente, não preciso responder a essa pergunta. Mas tenho certeza de que compreende que não posso deixar que sentimentos pessoais confundam o meu julgamento po­lítico.

— Claro que compreendo. Posso fazer-lhe outra per­gunta?

— Qual é?

— É uma questão muito pessoal. Afeta a mim e à mi­nha família. Estou sendo denunciado?

— Por este departamento, não. Por sua própria com­panhia, possivelmente. Pelo pessoal de Buenos Aires, mais do que provavelmente.

— E eu não poderia contar com nenhuma interven­ção oficial?

— Absolutamente nenhuma. . .   a menos que possa provar uma ameaça patente ou esteja preparado a ofere­cer. . . digamos assim, informações confidenciais úteis.

— Duvido muito de que isso seja possível.

— Era o que eu pensava.

— Mas vou lhe dar uma garantia pessoal: não estou empenhado em nenhuma atividade subversiva contra os Estados Unidos.

— Nunca pensei que estivesse. — Havia um ligeiro tom divertido na voz do secretário de Estado. — Mas isso não ajuda muito a nenhum de nós dois, não é mesmo?

— Acho que não. De qualquer forma, sinto-me grato, profundamente grato, por sua franqueza.

— Mas não me peça para repetir o desempenho. Já tenho mais problemas do que gostaria. E tome cuidado, está bem?

— Está bem. E obrigado, senhor secretário.

Era uma despedida fria e constrangida entre velhos amigos. Mas Spada não tinha tempo para ficar pensando nisso, porque queria ligar para Anna na Bay House, e de­pois ainda teria de fazer a barba e mudar de roupa antes que Kitty Cowan chegasse para jantar.

 

— Isso fede, chefe! E fede como peixe podre! — Kitty Cowan estava sentada no tamborete do bar, jogando caroços de azeitona num Matisse. — O fato de os argen­tinos o odiarem é perfeitamente natural. Mas alguém da companhia estar em cima de você? Isso me dá vontade de vomitar!

— Hendrick não o teria falado sem um motivo. Lem­bre-se de que ele viu os documentos.

— Mas o que alguém da companhia poderia dizer? As únicas pessoas que realmente conhecem as suas atividades particulares são Maury Feldman e eu. Nem mesmo Mike Santos sabe tanto quanto nós dois.

— Não é necessário saber das coisas, Kitty. Tudo que é preciso é insinuar que pode haver motivos para uma inves­tigação de segurança. O FBI e o Serviço de Investigação da Defesa se encarregam do resto. E não se esqueça de que eles não estão preparando um caso para levar aos tribunais. Estão apenas coletando informações. . . pelo menos, neste estágio.

— Mas de que adianta isso, se não podem usar as informações ?

— Acontece que podem, Kitty. — Spada falava enquanto preparava outra rodada de drinques. — É a técnica mais antiga do manual e ainda a mais eficaz. Primeiro, iso­la-se a vítima, depois corta-se o seu suprimento de energia, espalha-se o rumor de que está sob investigação. É como se a vítima tivesse contraído alguma moléstia contagiosa. Nin­guém mais quer chegar perto.

— Mas por quê? Como alguém pode atingi-lo? Deixou a presidência das empresas. E, com sua fortuna, pode com­prar e vender a metade das pessoas deste país!

— Não é o dinheiro, Kitty. É poder, influência, a capacidade de criar e orientar situações. . .   e isso é uma questão de crédito e credibilidade pessoais. Veja o caso por outro ângulo. Renunciei à presidência em favor de Mike Santos, mas ainda disponho de ações suficientes. . . ou quase suficientes. . . para voltar, se quiser. Quando eu trouxe Rodo da Argentina, os jornalistas, que são colegas dele, transformaram-me num herói popular, uma espécie de Pimpinela Escarlate. Não era um papel que eu desejasse, mas os meios de comunicação criaram-no para mim. Por isso, voltei a ser ativo nas finanças. E na política também, se estivesse dis­posto a entrar na arena. Era uma típica história do velho oeste. Havia um novo herói na cidade. . .   e muita gente ficou assustada ou invejosa. Ou ambas as coisas.

— Como quem, por exemplo?

— Não seria o caso de Max Liebowitz?

— Acha mesmo que ele se rebaixaria a esse ponto? Afinal, é uma espécie de assassinato, não é mesmo?

— Pode dizer que é assassinato de verdade, menina. O risco existe. Não se trata de caçada aos patos. Ou seja, ninguém precisa anunciar que a temporada está aberta para que a caçada comece. E não podemos esquecer a editora. Há mui­ta gente que não gostaria de vê-la em funcionamento.

— É preciso mesmo continuar com isso?

— Anna me fez a mesma pergunta. A resposta é sim.

— Por quê? — Kitty Cowan fitou-o com uma expres­são angustiada. — Por que tem de ser você?

— Porque, se eu não o fizer, sentirei vergonha de mim mesmo pelo resto da vida. Apenas por isso. Muito simples, não é mesmo?

— Simples para você. E o que me diz das pessoas que o amam. . . e entre as quais estou incluída, John Spada?

— Teresa respondeu a essa pergunta, embora prova­velmente ela tenha esquecido o que disse: "Este é o horror que eles produzem. Até mesmo o amor se transforma numa arma nas mãos deles". Será que não percebe, menina? — Spada inclinou-se sobre o bar e pôs a mão no rosto de Kitty Cowan, gentilmente. — É uma brutalidade inadmissível! Prefiro morrer a submeter-me. Você é uma boa moça judia. Entre todas as pessoas, deve compreender perfeitamente.

Kitty levou a mão dele a seus lábios e beijou-a.

— Você é um homem muito rude, John Spada. Não se engane com as moças judias. Elas se assustam tão facilmente quanto as goyim.

— O jantar está servido, senhor — anunciou Carlos, da porta.

 

Pelo resto da semana, Spada esteve constantemente ocupado, dia e noite, com a Poseidon Press, sediada em dois andares de um novo prédio de escritórios na Third Avenue. Para diretor, ele escolhera um canadense-escocês, Andrew Maclean, que tinha vinte anos de experiência na publicação de guias comerciais, índices biográficos, almanaques e enci­clopédias. Era um antigo membro da Proteu e instalara as primeiras células da organização em Ottawa e Montreal. A segunda pessoa fundamental na editora era um húngaro, Lajos Forman, que Spada tirara da ibm para que instalasse o sistema de computador e projetasse a operação. Forman também tinha a responsabilidade de recrutar e treinar os operadores, enquanto Maclean organizaria a coleta e análise das informações, além da contratação de tradutores e re­datores.

Mesmo no estágio embrionário, era uma operação dispendiosa, e a variedade dos detalhes de planejamento era assustadora. Maclean, no entanto, era um comandante obsti­nado e meticuloso, que sabia exatamente o que queria.

— Vamos fazer tudo certo desde o início, John, porque depois não poderá haver muita margem para erros. Pri­meiro, há as fontes de material, jornais, boletins, revistas, publicações nas mais diversas línguas. Haverá relatórios de organizações como a Anistia Internacional, Cruz Vermelha, grupos religiosos. Tudo isso exige uma grande equipe. Há também o material do nosso pessoal, os membros da Proteu, informações secretas e altamente sensíveis. Eles terão de despachar as informações de seus respectivos países e fa­zê-las chegar até nós, em Nova York. Como isso será pos­sível?

— Vamos pensar com base num exemplo — disse John Spada. — E para isso escolheremos uma região difícil e perigosa: a Rússia. Lá, a vigilância é intensa, a censura rigorosa, os riscos para os nossos membros bastante eleva­dos. Neste momento, temos cerca de cem membros da Proteu espalhados pela União Soviética. Temos até um ho­mem no Politburo. Há cerca de uma dúzia de diplomatas, três ou quatro homens ligados a projetos de desenvolvimento no exterior. Esses homens são os nossos canais de saída. Recebem as informações dos grupos locais e as transmitem para o contato exterior mais próximo. De Leningrado, por exemplo, as informações seguem para Tallin e de lá, pelo serviço de barcas de turismo, para Helsinque. E de Helsin­que vêm para os Estados Unidos. . .   mas não para Nova York. O correspondente de Helsinque está em Boston.

— É um desvio muito grande para chegar até aqui — comentou Maclean, em dúvida.

— Mas é um caminho seguro — disse John Spada. — Não se esqueça de que não estaremos fazendo um jornal. Vamos registrar fatos verídicos. O tempo é muito menos importante do que a exatidão.

— Vamos aceitar isso, pelo menos por enquanto. As informações chegam aos Estados Unidos. . . à Flórida, Bos­ton, San Francisco, qualquer lugar. Têm que ser despachadas para Nova York. Onde serão entregues? Não me agrada a idéia de todas essas informações explosivas vindo para cá na mala postal.

— Não será assim. As informações serão entregues em mãos, por um serviço de mensageiros.

— Puxa vida! Isso vai custar uma fortuna!

— Tenho o suficiente para gastar durante três vidas, Mac. E não posso levar dinheiro comigo para a sepultura.

— Ah. . . — Maclean suspirou, com uma expressão infeliz. — Mas vamos ver se podemos usá-lo de uma ma­neira um pouco melhor, hem? Quem coordena todos os contatos?

— Os chefes de grupos locais se reportam aos chefes de área, que por sua vez se reportam a mim.

— E como pode saber que é um deles que lhe está pas­sando informações e não algum agente policial?

— Há um código de reconhecimento.

— O que acontece. . .   que Deus nos livre disso!. . . se você cair morto na rua?

— Meu substituto assume o comando.

— E como vamos saber quem é ele?

Spada desabotoou a camisa e puxou a corrente de ouro pendurada no pescoço. A corrente tinha uma medalha reli­giosa e uma chave folheada a ouro. Na extremidade da chave estava gravado o símbolo do peixe no quadrado.

— Ele lhe mostrará uma chave igual a esta — disse Johri Spada. — É a chave do cofre em que estão guardados os registros da Proteu.

— Está depositando um bocado de confiança em mim — comentou Maclean, gravemente.

— Vai fazer jus a isso, Mac. A partir do momento em que lançarmos as nossas primeiras publicações, sua vida correrá perigo todos os dias. Mas agora vamos conversar mais um pouco sobre segurança. Quem vai verificar os ho­mens que pretende contratar?

— Denman Calder. Eles são caros, mas merecem total confiança. E também mantêm excelentes relações com as repartições governamentais.

— O que é mais do que temos. E como uma organi­zação privada de informações secretas, não vamos nos tornar mais populares.

— Eu não teria tanta certeza disso. — Maclean pa­recia mais otimista do que Spada esperava. — A partir do momento em que eles perceberem que nossas informações são acuradas, ficarão muito felizes em recebê-las. Há mais uma coisa que acaba de me ocorrer. Já pensou que vamos precisar passar todas as informações para microfilmes, além de transmiti-las ao computador? Não gosto de basear tudo num único sistema. . .   e recomendo também que mante­nhamos um cofre em algum lugar com registros em duplicata das informações confidenciais.

— Já aluguei um cofre da Union & Chemical.

— Que somente nós poderemos abrir?

— Exatamente, Mac.

— É um prazer muito grande trabalhar com um ho­mem meticuloso. Eis aqui uma amostra das fichas de re­gistros que manteremos sobre cada assunto. É assim que Lajos vai programar tudo no computador. Como pode veri­ficar, as informações terão uma graduação de fidedignidade. As fontes serão indicadas em código, apenas para referência interna. E aqui estão os modelos de três publicações: um boletim mensal, um sumário trimestral, classificado por países, e dois livros negros anuais, um sobre prisioneiros de consciência, o outro sobre os profissionais confirmados do terror e da brutalidade institucionalizada. Esta é a nossa lista inicial de circulação. . .

Era um trabalho de primeira ordem e Spada sentiu-se bastante animado. Mas ainda havia algo faltando. Havia uma falha qualquer no projeto que ele sabia existir, mas não conseguia identificar. Foi num fim de semana na Bay House que Rodolfo Vallenilla lhe explicou o que era.

Aconteceu no fim de um dia quente e agradável. Spada estava sentado no pavilhão, em companhia de Rodo, en­quanto Anna e Teresa colhiam botões de rosa e alfazema, para as poções aromáticas que Anna fazia a fim de presentear as amigas. Rodo estava agora um pouco mais animado, embora ainda parecesse terrivelmente pálido e encarquilhado. Tinha acabado de escrever quatro ou cinco páginas e parecia satisfeito com o que fizera.

— Quer saber de uma coisa, John? Creio que descobri a chave para abrir minha mente de novo. Durante todo esse tempo, eu estava tentando escrever uma denúncia... um relato sobre as coisas terríveis que estão acontecendo em meu país e no resto do mundo. Hoje, deixei isso de lado. Estava me sentindo cansado demais para continuar na mes­ma linha. Em vez disso, procurei recordar as coisas boas que me aconteceram na prisão. Compreendi que era estra­nho terem sido tantas: o velho Pascarelli, com seus cigarros e suas pílulas de vitamina; Chávez, com seus braços fortes a me amparar na volta à cela; aquele estranho rapaz da enfer­maria, que me dava na boca a sopa que ele mesmo prepa­rava . . . meus camaradas no pátio da prisão, desafiando as armas para me defender. . . Foi um alívio pensar em tudo isso. Descobri que podia escrever a respeito disso sem me sentir cansado. E foi então que um novo pensamento me ocorreu. O mal é tão monótono e a caridade, uma surpresa tão agradável. . .

— Entendo o que está querendo dizer — comentou John Spada.

— Não sei se pode realmente entender, John. — O desafio pegou Spada de surpresa. — Eu era muito parecido com você, sob vários aspectos. Para mim, a máquina de escrever sempre foi uma arma, uma espada contra o mal. Agora, não tenho certeza se eu a usava bravamente ou erra­damente. . .   Sei que apresentei depoimentos válidos, tam­bém necessários, como você está tentando fazer agora, com sua nova editora. Mas hoje me perguntei se os homens de bem não terão ficado tão insensíveis ao mal que isso já não os comove, já não os impressiona. Talvez a única coisa que possa fazê-los pensar agora seja a inocência, o sorriso de uma criança adormecida, uma velha avó cochilando ao sol. . . Você vai publicar documentos de denúncia. Não deveria pu­blicar também as coisas boas, pequenas velas iluminando a escuridão?

— Por que não as escreve para mim, Rodo?

Vallenilla sacudiu a cabeça, tristemente.

— Você sabe, John, assim como também sei, que tudo que eu fizer agora será bem pequeno. Mas há outros, muitos outros. Divulgue que está à procura deles. E irão à sua procura. . . Como conseguiu atrair inicialmente o pessoal da Proteu? Disse-lhes que queria construir pontes de benevo­lência. Essas palavras são suas, John, não minhas.

— Se apontar o caminho, Rodo, enveredarei por ele, tão depressa quanto for possível. Mas não se esqueça de que o mal continua a existir.

— Sei disso. . . e parte do que digo é uma desculpa por minha própria fraqueza. Mas nem tudo. Acredite nisso, John. Acredite com toda a sinceridade!

Spada queria acreditar. A advertência sóbria de Rodo comovera-o quase até as lágrimas. Era o testamento de duas pessoas a quem amava intensamente, duas pessoas que ti­nham ido ao inferno e voltado. Não queria negá-lo. Tentaria pô-lo em prática. Mas havia nele agora um ceticismo que a tudo resistia. No jardim murado da Bay House, um homem podia acalentar visões e ter seus sonhos. Mas lá fora, no mundo vasto e maravilhoso das pessoas comuns, havia assas­sinos de tocaia nos telhados e carniceiros nas salas do Palácio das Diversões.

 

Na segunda-feira, Spada almoçou com Mike Santos e em seguida foi de carro até Wilton, a fim de dar uma pri­meira olhada na sede dos Laboratórios Raymond, uma su­cessão de construções antigas, agrupadas em torno de um prédio central de administração, mais parecendo alojamentos militares que um moderno instituto serológico.

A história da empresa era bastante comum: uma expan­são constante a partir de uma base restrita de capital fami­liar, uma boa produção, mas uma administração antiquada e antieconômica, um fundador idoso com um filho que era um pesquisador brilhante, um grupo de executivos estiolados por anos de rígido controle. Era o tipo de situação que Spada apreciava. Podia comprar barato, injetar capital novo, re­formar a administração, aumentar o valor da ação e depois vender ou não, conforme achasse melhor.

Desta vez, no entanto, havia algumas atrações extras. Ele estava ansioso por atividade. O campo da pesquisa e produção de soro era novo para ele. Tinha a oportunidade de instituir uma operação exemplar, sem os encargos e dis­trações do comando de uma grande empresa. Além disso, com uma boa equipe de pesquisa, sempre havia a possibili­dade de uma descoberta que pudesse entrar para a historia da medicina.

O velho Raymond foi um guia cordial, visivelmente ansioso por se retirar, mas ainda entusiasmado com o tra­balho e orgulhoso do talento do filho. Este mostrou-se a princípio retraído e cauteloso, mas Spada logo o atraiu com promessas de novos equipamentos para pesquisa e recursos suficientes para contratar novos talentos para a equipe.

O jovem Raymond foi bastante franco em relação a suas deficiências. Não conhecia absolutamente nada de fi­nanças, mas tinha perfeitas condições de dirigir a pesquisa. Recentemente identificara uma variante do bacilo do botulismo Boise tipo A, que permanecera estável por uma série de culturas. Ele ainda estava tentando determinar se a va­riante era uma forma existente ou uma mutação sob condi­ções específicas de laboratório.

Spada ficou impressionado. O bacilo do botulismo era um dos que estavam relacionados nos manuais militares como de uso possível numa guerra biológica. Seus efeitos tóxicos eram elevados. A taxa de mortalidade era superior a cinqüenta por cento e o período de incubação, mínimo. Ha­via uma antitoxina disponível, mas normalmente só podia ser usada nos casos finais ou menos graves de um surto.

A conversa a respeito disso levou inevitavelmente a uma questão importante de política da companhia. Os Labo­ratórios Raymond sempre se haviam recusado a aceitar quaisquer contratos do governo relacionados com guerra biológica. O jovem Raymond era um defensor resoluto dessa posição. Spada tencionava alterá-la?

Spada assegurou que não. Já havia horror suficiente no mundo para acrescentar mais aquele. Contudo, ele estava interessado em saber quais as precauções adotadas contra a disseminação dos bacilos, o roubo de culturas de um labo­ratório ou de uma remessa em trânsito. Ao que parecia, as precauções eram um tanto elementares. Os regulamentos do laboratório eram rigorosos, é claro. Havia os alarmes habi­tuais contra ladrões e uma patrulha de segurança. As re­messas eram feitas em caixas especiais, lacradas. Havia agen­tes de embarque especializados em culturas de laboratório. Afora isso, o jovem Raymond não se preocupava com mais nada. O mercado era restrito demais para encorajar os la­drões. Os documentos de pesquisa eram muito mais vulne­ráveis que as próprias culturas.

Eram quase sete horas da noite quando Spada terminou a visita de inspeção. Ele aceitou o convite para tomar um café com o velho e depois voltou de carro para Nova York cheio de anotações e convencido de que as Empresas Spada haviam feito uma excelente aquisição.

Chegando ao apartamento, ficou surpreso ao encontrar Anna à sua espera. Ela não agüentara mais continuar na Bay House. E chegara à conclusão de que era melhor deixar Te­resa e Rodo a sós por algum tempo. Além disso, estava com saudade de seu homem e precisava estar ao lado dele. Spada ficou deliciado. Subitamente, sentia-se consciente da passa­gem rápida do tempo e do desperdício de tantas horas agra­dáveis.

Ao entrar no vestíbulo, com o braço passado pelos ombros de Anná, avistou um pacote na mesa que ali havia. Pegou-o. Era um grande envelope pardo, endereçado ao Sr. John Spada e com as indicações "pessoal, documentos — urgente". Largou-o novamente em cima da mesa e per­guntou:

— Quando isso chegou?

— Pouco depois das sete horas — respondeu Anna. — Foi o porteiro que trouxe.

Spada sentiu um ligeiro arrepio de inquietação. Os documentos das empresas normalmente não eram entregues por intermédio do porteiro do prédio. Um mensageiro da Spada levava-os ao apartamento e exigia a assinatura de um recibo. Spada foi ao telefone e ligou para a casa de Kitty Cowan.

— Kitty? Sou eu, John. Enviou-me alguns documen­tos esta noite?

— Não. — Kitty estava obviamente surpresa. — Mike também não mandou. Despachei pessoalmente toda a corres­pondência dele, antes de ir embora. Que espécie de documen­tos são?

— Ainda não abri o envelope.

— Não foi enviado por nós.

— Está certo. Isso é tudo, Kitty. Verificarei o que é pela manhã. Durma bem.

Ele cortou a ligação bruscamente. Anna perguntou:

— Algo errado, John?

— Não sei, Anna. — Ele ficou calado por um momento e depois acrescentou: — Chame Carlos, por favor.

— Mas, John. . .

— Faça o que estou mandando, Anna!

Quando Carlos se apresentou, Spada deu-lhe ordens bruscas e precisas:

— Quero que leve todos os criados e a Sra. Spada para jantar no Restaurante du Midi. Telefonarei para o res­taurante e avisarei quando puderem voltar.

— Mas o jantar está pronto para ser servido aqui, senhor!

— Sei disso. Mas faça o que estou mandando. Desligue o fogão e apresse os criados.

— Sim, senhor.

Carlos se retirou, perplexo e desconsolado. Anna indagou:

— Mas o que está acontecendo, John?

— Aquele envelope não foi enviado por Kitty, nem por Mike Santos. Quero que a polícia dê uma olhada. . . e quero que vocês todos saiam do apartamento. Ficarei esperando até a polícia chegar.

— Oh, meu Deus! — Anna ficou subitamente pálida. — Será que essa loucura nunca vai terminar?

— Trate de se apressar, Anna!

Depois que todos saíram, Spada pegou o telefone e chamou a polícia:

— Aqui é o Sr. John Spada, das Empresas Spada. Um pacote acaba de ser entregue em meu apartamento. Tenho motivos para acreditar que pode conter explosivos. Poderiam mandar alguém para este endereço, por gentileza?

Houve uma pausa, enquanto o telefonista da polícia anotava o endereço, depois uma pergunta ligeiramente cética: — Pode me informar o motivo das suas suspeitas, senhor?

— Posso, sim. Sou um empresário bastante conhecido, com ligações políticas que não podem ser discutidas pelo telefone.

— Obrigado, senhor. Alguém estará aí dentro de alguns minutos. Não toque no pacote. Feche a sala e procure ficar o mais longe possível.

Cinco minutos depois, dois homens do Esquadrão de Bombas apresentaram-se no apartamento. Eram bruscos e taciturnos. Os depoimentos podiam esperar. Pegaram o envelope e foram-se embora, avisando a Spada que ficasse espe­rando junto ao telefone. Meia hora depois, um deles te­lefonou:

— Mallard   falando. . .   do   Esquadrão   de   Bombas. Aquele pacote era mesmo uma bomba, Sr. Spada. Cerca de duzentos gramas de explosivo plástico, com dois detonadores preparados para explodir assim que o envelope fosse aberto.

— Alguma idéia sobre de onde veio?

— Ainda não. Estamos verificando as impressões digitais. Provavelmente vamos encontrar apenas as impressões das pessoas inocentes que por acaso pegaram no envelope. E é claro que vamos precisar do seu depoimento.

— Pode esperar até amanhã?

— É a sua vida, Sr. Spada.

Ele falou como se isso não representasse algum valor muito grande aos seus olhos.

— Já tem todos os fatos. O resto é especulação. Posso dizer-lhes, no entanto, que o assunto provavelmente passará à jurisdição do FBI.

— Isso compete a nós decidir, depois que tivermos o seu depoimento. Estaremos à sua espera aqui, às dez horas da manhã.

— Está certo. E obrigado.

— O prazer foi nosso, Sr. Spada. E se por acaso pre­tende sair esta noite, tome cuidado. A pessoa que entregou aquela bomba pode estar por perto, esperando pela ex­plosão.

O telefone ficou mudo. Spada pensou por um momento se deveria ligar para Teresa na Bay House, mas acabou re­solvendo que era melhor não fazê-lo. Os guardas-noturnos estavam de serviço e o máximo que poderia recomendar seria uma atenção redobrada. Telefonou para o restaurante, falou rapidamente com Anna, dizendo-lhe que podia terminar o jantar com calma. Não, ele não iria para o restaurante. Havia detalhes de que precisava cuidar. . . Detalhes! Ao desligar, Spada descobriu que estava tremendo como se sofresse um ataque de malária. Foi até o bar, serviu-se de uma dose de uísque, bebeu a metade de um só gole e depois se sentou, debruçado sobre o balcão, segurando o copo entre as duas mãos, até que o tremor passou.

Não havia agora qualquer escapatória à terrível reali­dade O contrato contra sua vida fora emitido. Os assassinos estavam à espreita. E não se importavam com quem pudes­sem matar junto com ele.

 

O novo diretor do FBI era, ao contrário de alguns dos seus antecessores, um homem de maneiras suaves e uma sim­patia ligeiramente acadêmica. Pediu desculpas por chamar Spada a Washington, mas achava que certos aspectos do caso seriam mais bem tratados entre os superiores. Spada ficou feliz em concordar com a sugestão. O diretor disse que po­deriam verificar juntos algumas informações que constavam dos arquivos. Spada achava que poderia ser uma boa idéia.

— Em primeiro lugar — disse o diretor quando se encontraram — devemos aceitar a possibilidade precípua de que o contrato contra a sua vida tenha sido emitido na Argentina. Há uma possibilidade secundária, que poderemos examinar posteriormente. Assim, se me permite fazer-lhe algumas perguntas. . .

— À vontade.

— Alguma vez teve ligações com a Junta Revolucioná­ria Suí-Americana e especificamente com um homem cha­mado El Tigre?

— Tive,   sim. Paguei-lhe duzentos mil dólares pela cooperação de um dos seus grupos em Buenos Aires. Não estou disposto a revelar os nomes de quaisquer membros desse grupo.

— Com a ajuda deles, planejou a libertação de seu genro e de um homem chamado Chávez?

— Exatamente.

— Foi cúmplice da morte do comandante da prisão, Coronel Ildefonso Juárez?

— Não.   Quando o vi pela última   vez,   ele estava bem vivo.

— Recrutou alguma ajuda entre homens que conhecia antes para o que fez na Argentina?

— A resposta é afirmativa, e novamente não posso especificar quantos e quem eram.

— Como entrou naquele país?

— Ilegalmente.

O diretor permitiu-se um ligeiro sorriso.

— O que significa que há amplos motivos para sua eliminação por agentes do regime, não é mesmo?

— É, sim.

— Sabia que, depois da fuga dos prisioneiros, mem­bros da equipe da prisão foram intensivamente interrogados pelas forças de segurança?

— Não, não sabia disso. Mas já era de se esperar.

— Um dos homens interrogados foi um guarda da pri­são, o Cabo Pascarelli.

— Nunca ouvi falar dele.

— Pascarelli confessou ter transmitido uma mensagem a Rodolfo Vallenilla. A mensagem dizia, em espanhol: "Um peixe numa caixa". Isso significa alguma coisa para o se­nhor?

— Não.

— É curioso. . .

— Por quê?

— Algo muito parecido apareceu num relatório da CIA enviado de Amsterdam. Nossos agentes lá trabalham em estreita ligação com as autoridades holandesas na investi­gação e repressão das atividades terroristas.

— Era de se imaginar.

— Não esteve recentemente em Amsterdam?

— Estive, sim. Fui de avião de Munique para lá, a fim de me encontrar com um dos armadores com que tra­balhamos, Jan Pieter Maartens.

— Pouco depois de sua visita, o corpo de um terro­rista alemão, Gebhardt Semmler, foi descoberto num estúdio de pintor, em Amsterdam. Os indícios apontavam suicídio. Na carteira dele, a polícia encontrou um cartão em que esta­va gravado um símbolo que parecia um peixe numa caixa. — O diretor pegou, na pasta sobre a mesa, uma cópia fotostática do cartão da Proteu e colocou-o diante de Spada. — Será que isso lhe sugere alguma coisa?

— Infelizmente, não.

— Talvez possamos interrogar seu genro a respeito da mensagem do peixe.

— Fique longe dele! — Spada perdeu subitamente o controle. — Ele já sofreu o bastante por duas vidas inteiras!

O diretor deu de ombros e voltou a concentrar-se na pasta.

— Há outra coincidência curiosa. O mesmo Cabo Pas­carelli admitiu ter transmitido uma mensagem diferente para o prisioneiro Chávez. Essa mensagem dizia: "O tigre está farejando por perto". Está percebendo aonde quero chegar, Sr. Spada? Por que o peixe para um e o tigre para outro?

— Percebo claramente. Mas, infelizmente, não posso ajudá-lo a esclarecer a questão.

— Pois então deixe-me apresentar-lhe agora outra pos­sibilidade: a de que as pessoas que querem matá-lo não estejam agindo por ordens da Argentina, mas sim ligadas de algum modo a El Tigre.

— Não entendo por quê. Afinal, cumpri a minha parte no acordo que fizemos.

— Sei. . . — O diretor deixou a palavra pairar no ar por um momento, depois mudou inteiramente de direção. — Qual foi a identidade que usou na Argentina?

— Uma identidade fictícia.

— Com base em documentos, não é mesmo?

— Claro.

— Como obteve os documentos?

— Paguei um preço bastante alto.

— Sr. Spada, estamos tentando proteger sua vida e sua família.

— Correção! Não está fazendo absolutamente o que acaba de alegar. Está procurando informações que comple­mentem as que recebeu da CIA, que não tem jurisdição sobre a segurança interna nos Estados Unidos. Reconheço livremente ter cometido atos ilegais no território de outro Estado soberano, o qual havia cometido abominações imperdoáveis contra minha filha e meu genro. Faria tudo novamente. . . e pior ainda, se fosse necessário! E sei que o senhor faria também a mesma coisa! Assim, vamos parar com esse jogo de empurra! Qual a proteção que me pode oferecer?

— Muito pouca — respondeu o diretor, friamente — Estamos com deficiência de pessoal e deficiência de informações. Sugiro que contrate os seus próprios guarda-costas. Há pessoas que podem fornecer tais serviços. E algumas são muito boas...   Ah, sim, só mais uma pergunta. Não foi testemunha da morte do filósofo Hugo von Kalbach em Munique?

— Fui, sim. Íamos assistir à ópera juntos.

— Mas não ficou para o enterro.

— A polícia alemã pediu-me que partisse. . . para minha própria segurança.

— Então talvez esteja interessado em saber que o ho­mem que matou Von Kalbach foi Gebhardt Semmler, que em seguida se suicidou em Amsterdam.

— Espero que ele esteja apodrecendo no inferno — disse John Spada. — Se me permite, diretor, acho que esta­mos desperdiçando o tempo um do outro.

 

Spada tinha mais uma visita a fazer, antes de ir buscar Anna no hotel. Desta vez, a recepção foi cordial. Ele poderia mesmo classificá-la de efusiva. . . se não fosse pelo fato de Anatóli Koltchak temperá-la com sua ironia habitual.

Trancado com Spada em seu gabinete particular, ele disse:

— Meu amigo, fiquei profundamente triste ao saber o que aconteceu com sua filha e o marido dela. Por favor, transmita meus sentimentos à sua esposa.

— Obrigado, senhor embaixador.

— E eu lhe ofereço, se é que posso, uma expressão de respeito pessoal pelo que fez. Quando li os detalhes, con­fesso que senti uma empolgação nada diplomática. E fiquei também contente pelo fato de o senhor estar operando em Buenos Aires e não em Moscou.

— Tivemos sorte. E também chegamos tarde demais.

— Não será facilmente perdoado.

— Eles estão querendo a minha vida — informou Spada, calmamente. — Enviaram-me uma carta-bomba ha dois dias.

— E continuarão tentando, é claro. Os governos são muito sensíveis com os insultos à sua majestade. Sinto-me feliz pelo fato de nossos camaradas terem podido prestar-lhe algum serviço.

— Soube disso também?

— Sabemos de quase tudo, meu amigo. E não posso deixar de perguntar-lhe se precisa de alguma ajuda agora. Desta vez, não haverá cobrança. Também nos prestou um serviço.

— Ainda quero Lermontov — disse Spada.

— Ah, sim, Lermontov... — O embaixador limpou os óculos meticulosamente, com um lenço de seda, e em seguida tornou a ajeitá-los sobre o nariz. — Lamento, lamento sinceramente informá-lo de que a questão foi agora encerrada, irrevogavelmente. A notícia ainda não é pública, mas Lermontov morreu na semana passada.

— Ainda em confinamento?

— Infelizmente, sim.

— Então, como falou, a questão está mesmo encerrada.

— Não inteiramente, Sr. Spada. Estou instruído. . . e uso a palavra deliberadamente, a fim de não envolver o nosso relacionamento pessoal, que prezo imensamente. . . estou instruído a dizer-lhe que, em troca de sua colaboração pessoal em determinadas   transações   comerciais   ainda   pendentes, outros intelectuais judeus seriam escolhidos para uma emi­gração imediata. . . Pronto, meu dever está cumprido. Tudo de que preciso agora é registrar sua resposta.

— Niet! — respondeu Spada, sorrindo. — Niet. Niet.

— O que me deixa bastante satisfeito. — Anatóli Kol­tchak relaxou. — Sou forçado a tratar com idiotas. Mas há algum método na insanidade deles. Neste ofício, todo mundo acaba ficando corrompido. . .   mesmo que seja apenas um pouco.

— Gostaria que me dissesse uma coisa, senhor embai­xador.

— Qualquer coisa. — Koltchak exibiu um sorriso ma­licioso de criança, antes de acrescentar: — Isto é, exceto os planos de batalha de Moscou e a data do Juízo Final.

— Qual é a coisa que mais receia?

— Política ou pessoalmente?

— Ambas.

Koltchak ficou em silêncio por um longo tempo, pensando na questão, antes de apresentar sua resposta, lentamente:

— É algo que já aconteceu, algo cujas conseqüências já nos afligem. Aviltamos a linguagem humana a tal ponto que é impossível continuar a acreditar no que lemos ou ouvi­mos. Eu digo "sim", o eco responde "não". Declaramos uma posição, negociamos outra. Você fala em "alimentos", eu ouço "bombas". Criamos uma linguagem de loucos. Vocês mostram na televisão corpos destroçados num acidente fer­roviário. No instante seguinte, aparece alguma mulher incri­velmente bonita demonstrando como fazer assoalhos brilha­rem como espelho. A ilusão é completa. Não existem corpos. Não poderia haver sangue numa superfície tão brilhante. . .

— E quais são as conseqüências, senhor embaixador?

— As que experimentou, meu amigo. A razão é atirada pela janela. Fica apenas a magia negra da violência, e mesmo assim a linguagem da loucura a fomenta. . .   "guerra de rastilho", "ações limitadas", "bombas atômicas limpas!" Somos todos culpados, porque todos colaboramos com os ilusionismos. . . Sei perfeitamente que, se me ouvissem falar assim em Moscou, iriam querer a minha cabeça. Mas nem por isso deixa de ser verdade. . .

Ele parou de falar bruscamente, como que embaraçado. Fez uma breve pausa, antes de continuar, mudando total­mente de assunto:

— Diga-me uma coisa, meu amigo: agora que sabe que sua vida corre perigo, o que pretende fazer?

— Permita-me fazer-lhe mais uma pergunta, senhor embaixador. É derivada de uma declaração que me foi feita há meia hora, pelo diretor do FBI. Em sua opinião, há algu­ma possibilidade de que os assassinos que estão tentando me matar não sejam da Argentina, mas sim da Junta Revolucio­nária Sul-Americana?

Koltchak pensou por um momento e sorriu sombria­mente.

— O seu diretor do FBI é um homem muito esperto. Os americanos sentem-se muito mais à vontade com dita­dores do que com governos revolucionários. Convém ao seu diretor insinuar um bode expiatório da esquerda. Minha primeira resposta é não. Não está correndo perigo por parte da Junta Revolucionária. Por outro lado, já não somos uma família grande e feliz de camaradas. Seguimos por uma dúzia de estradas diferentes. Assim, não encare o meu veredicto como um evangelho. E deixe-me fazer-lhe outra pergunta: há algum motivo para que a Junta Revolucionária queira a sua cabeça?

— Nenhum, ao que eu saiba. Isto é, a menos que os homens da segurança da Argentina tenham inventado alguma coisa a meu respeito.                                

— O que é sempre possível — disse Koltchak. — É a loucura de que estou falando. Vou fazer algumas indagações e depois voltarei a procurá-lo.

— Obrigado, senhor embaixador.

— Lamento profundamente o que houve com Lermontov.

— Pelo menos ele está fora do hospício.

— Enquanto você e eu, meu amigo, temos que tentar permanecer sãos dentro dele. Boa sorte!

— Amore?

— Che c'è?

— Temos de sair para jantar?

— Não. O que quer fazer?

— Ficar na cama com você.

Era depois do ato do amor e estavam enlaçados na cama, sonolentos, num quarto de hotel em Washington.

Spada virou-se para contemplar os seios da esposa e murmurou suavemente:

— Sto tanto contento, tanto tranquillo. . .

— Anch'io,   amore. . .   tanto   tranquilla. . .   Quando chegamos, odiei este quarto. Agora, não quero mais deixá-lo.

— É maravilhoso ficarmos juntos assim. . .

— Dolce come zucchero!

— Vemmina! Sei tutta jemmina, Anna mia.

— Gosto de falar em italiano com você.

— Sempre falou em italiano. . . na cama.

— E desde quando você me deu tempo para conversar?

— Vamos ter de conversar muito em breve, Anna.

— Sobre o quê?

— Como vamos dispor de nossas vidas.

— Não há nada para conversar. — Anna prendeu-o mais firmemente, com os braços e as pernas. — Tenho pen­sado muito nisso. Vamos continuar a viver da maneira como sempre vivemos. Não quero guardas, câmaras e campainhas de alarme ao lado da nossa cama. Fiquei apavorada antes mas não estou mais. A vida é curta demais para isso. Vamos desfrutá-la. . . exatamente como estamos fazendo agora.

— Ei, isso é novidade! O que aconteceu?

— Enquanto você estava fora, liguei para o tio Andréa em Roma. Contei todas as coisas que estavam acontecendo e como eu estava preocupada. Primeiro, ele me censurou. Dis­se que nenhuma mulher tinha o direito de privar o marido de sua virilidade. Depois, ele me contou como está a situação na Itália neste momento, com os atentados e seqüestros, mais de um por semana. E acrescentou: "Não se esqueça de uma coisa, Anna. Um parasita no sangue ou um coágulo numa artéria podem matá-la mais depressa do que uma bala. Mas o pior de todos os inimigos é o medo..." Esperando aqui por você, fiquei pensando nisso. Lembrei-me de que o fato de eu estar com medo impedia-nos de fazer amor, estava me transformando numa mulher que eu própria odiava e que você acabaria também odiando. . . Assim, amore, vamos seguir em frente. Você faz o que acha necessário. Sempre teremos bons momentos juntos. Vamos aos teatros, aos con­certos, à opera, como sempre fizemos. Teresa e Rodo saberão cuidar de suas próprias vidas. Não poderemos bancar os enfermeiros deles para sempre. . .   Capisci, amore? C'è il mio cuore che parla.

— Son tanto grato!

— Come grato? Ti lo debo, marito mio.

— Não há dívidas entre nós, apenas amor.

— Assim?

— Assim. . .

Mas mesmo depois, quando se sentiam imensamente felizes, Spada não pôde contar-lhe que o Espantalho estava sentado naquele momento de vigia no saguão, enquanto o moreno e taciturno Major Henson patrulhava os corredores, junto com os detetives do hotel.

Estranhamente, foi o Espantalho — o menos domesticado dos humanos — quem lhe mostrou como podia tirar proveito da situação da família. Num breve e furtivo encon­tro antes de deixarem Washington, o Espantalho explicou:

— Deve agora livrar-se da mentalidade de um homem acuado. Já tomou todas as precauções possíveis. Passe a tratar de sua vida, de maneira normal. Pare de olhar para trás a todo instante, porque não vai mesmo avistar coisa alguma. Precisa aprender a confiar em Henson e em mim, mesmo quando não estivermos visivelmente presentes. Lem­bre-se de que esse é o nosso ofício e há de concordar que somos bons nele. . . Mas a partir do momento em que acei­tar o fato de que não há garantias absolutas, irá viver muito mais tranqüilamente. . .

Spada assentiu em concordância e depois perguntou:

— Qual a sua avaliação do risco para a minha família?

— É bem pequeno. — O Espantalho foi categórico. — Na Europa, teríamos que nos preocupar com a possibi­lidade de seqüestro. Mas isso não está em moda aqui, e afi­nal é menos lucrativo. Na minha opinião, há mais perigo para sua esposa do que para sua filha e o marido. De certa forma, eles já foram postos fora de combate. Atacá-los seria contraproducente, uma propaganda negativa. Você ainda é o alvo principal.

— Por quanto tempo?

O Espantalho deu de ombros.

— Quem pode saber? Talvez por alguns anos. Pense em quanto tempo Stálin esperou para conseguir matar Trótski. Terá que se acostumar com isso como a úlcera estomacal crônica. . . exigindo alimentação amena, pensamentos ame­nos, tanto bom humor quanto for possível.

— Sabe realmente consolar alguém — comentou Spa­da, sorrindo.

— O trabalho de consolar é outro. Sou pago para mantê-lo vivo.

— Posso querer começar a viajar novamente muito em breve. . . para entrar em contato com os grupos da Proteu. Vou querer que comecem a nos transmitir informações numa base regular.

— Dentro de quanto tempo?

— Um mês, seis semanas no máximo.

— Quanto mais tarde, melhor — disse o Espantalho. —~ Preciso de tempo para instituir um sistema de segurança eficaz. . . e de homens nos quais possa confiar. Henson é um bom organizador, mas pensa como um anglo-saxão.

— E você?

— Já lhe falei de mim quando nos conhecemos, Sr Spada. Sou um homem matemático. Compreendo tudo e não sinto absolutamente nada.

Era um pensamento terrível. . . mas havia naquilo um grão de esperança. Anatóli Koltchak falara de um mundo controlado por ilusionistas. O Espantalho não tinha absoluta­mente qualquer ilusão; contudo, assombrosamente, ainda tinha coragem de enfrentar a grande maldição da existência.

 

Imediatamente depois do retorno a Nova York, Anna empenhou-se em restaurar a vida social deles: um coquetel para os amigos há muito negligenciados, uma série de noites no teatro e concertos no Lincoln Center. Decidiram que Te­resa e Rodo deveriam tomar conta da Bay House. Eles pre­cisavam de um lugar tranqüilo e separado, em que pudessem reconstituir alguma espécie de vida em comum. Spada dividia sua semana entre a Poseidon Press e os Laboratórios Raymond, uma discreta visita ocasional ao seu clube, só para afirmar que a praga não o estava realmente contaminando.

Spada descobriu um divertimento irônico na confusão de seus colegas, que o haviam descartado como uma força esgotada ou um contato infeccioso e de repente se viam for­çados a lembrar quanta força ele ainda tinha no mercado e como poderia agir, se assim desejasse. Foi numa dessas vi­sitas, em companhia de Maury Feldman e Mike Santos, que Spada teve o seu primeiro contato em muitos meses com Max Liebowitz. Haviam acabado de sentar-se quando Max passou, com um prato de salada, a fim de ocupar seu lugar na mesa comprida. Spada convidou-o a se juntar a eles. Max Liebowitz ficou obviamente embaraçado, mas soube disfar­çar bem e sentou-se no lugar vazio. Maury Feldman fez um gracejo a propósito do acontecimento:

— Isso é bom para o mercado, Max. Todos os gran­des eleitores das Empresas Spada comendo juntos em har­monia. Vamos subir três pontos antes do encerramento do pregão.

— Prefiro do jeito que está — disse Max Liebowitz, decidindo ignorar o gracejo. — A ação um pouco abaixo do valor. Dessa maneira, nenhum dos nossos acionistas eventuais vai querer lançar grandes lotes de ações no mercado como especulação.

— Sempre fui um comprador, Max — disse Spada, provocando-o. — Por falar nisso, temos uma boa perspectiva com os Laboratórios Raymond.

— Boa até que ponto?

Max ficou rígido como um pointer esperando que a caça caísse.

— Compramos a quinze. Dê-me mais alguns meses e eu diria que a ação vai chegar a vinte e cinco. Mas é claro que meus honorários serão bastante altos.

— Quanto estamos pagando a ele?

Liebowitz virou-se para Maury Feldman, que soltou uma risada.

— Relaxe, Max! Onde está o seu senso de humor?

— Eu o perdi! — Liebowitz estava irritado. Virou-se para Mike Santos e acrescentou: — Ouvi dizer que já não somos tão populares no Pentágono quanto antigamente.

— Deixe-me explicar o que está acontecendo — inter­veio Spada, ainda falando suavemente. — Conversei com o Secretário de Estado Hendrick e com o diretor do FBI. Fize­ram a insinuação de que alguém nas Empresas Spada está querendo destruir-me. Sabe como são feitas essas coisas: uma frase aqui e ali, uma insinuação discreta de que posso estar andando em companhias erradas.

— Isso é uma loucura! — exclamou Max Liebowitz, ainda mais irritado. — Qual o passarinho que seria tão estú­pido a ponto de cagar no próprio ninho?

— Mas você pode muito bem perceber o que acontece, Max. — Feldman pôs a mão no pulso de Liebowitz, para contê-lo. — A partir do momento em que se torna um ho­mem politicamente impopular, é como colocá-lo numa ga­leria de tiro ao alvo. Pode-se dar a impressão de que ninguém se importa com o que possa acontecer-lhe. . . E já há um contrato contra a vida de Spada. Ele recebeu inclusive uma carta-bomba em seu apartamento.

Max Liebowitz ficou profundamente abalado. Largou o garfo e a faca, estendendo a mão para o copo com água.

— E diz que isso está sendo feito por alguém da com­panhia?

— Não, Max — explicou Spada, pacientemente. — As duas coisas são separadas. A ameaça à minha vida vem do exterior, mas ajuda bastante se eu for impopular em minha própria terra. Conhece essas coisas melhor do que ninguém. Apóia o grupo de pressão sionista porque sabe perfeitamente que um homem simpático tem melhores chances que um homem azedo.

— Imagina então que alguém está tentando criar-lhe problemas em Washington?

— Exatamente.

— Pois não sou eu — declarou Max Liebowitz. — Na sala de reuniões, posso enfrentá-lo, criar-lhe as maiores dificuldades. Isso é negócio. Fora, porém, não! Não falei nada a ninguém. Juro pelo túmulo de minha mãe.

— Se assim o diz, Max, eu acredito.

— Pois é o que eu digo.

— Então quem é o inimigo que está em nossa casa? — indagou Mike Santos.

— Não sabemos — disse Maury Feldman. — O rumor é sempre um filho sem pai.

— Mas precisamos saber! — Max Liebowitz estava novamente excitado. — Se alguém joga lama em nossa porta, isso prejudica a todos! Por exemplo: fui informado de que podemos perder a concorrência para o novo Sistema de Orientação Minotauro.

— Eu não sabia disso. — John Spada ficou chocado.

— Pensei que já estivesse tudo definido. O que diz, Mike?

— Max está exagerando — disse Mike Santos calma­mente. — Ainda há mais dois comitês para examinarem as propostas.

— Mas não tivemos problemas no primeiro?

— Não se pode dizer a rigor que foram problemas. Apenas um pequeno contratempo.

— E há mais! — Liebowitz estava agora disposto a desfiar todo o seu rosário de queixas. — O Fundo Norden vendeu cinqüenta mil ações das Empresas Spada esta manhã.

— Então presumo que as comprei — disse John Spada. — Emiti ordens de compra para todas as nossas ações que aparecessem no mercado. Isto é, a menos que você me tenha batido, Max.

— Não, não as comprei — disse Max Liebowitz. — A transação não foi realizada no pregão. Foi uma transação particular, com a Morgan Guaranty representando o com­prador.

— Sempre pensei que o Fundo Norden fosse dirigido por amigos nossos. — Spada estava furioso e perplexo. — Por que não nos ofereceram primeiro?

— Ou a mim — disse Max Liebowitz. — Também faço muitos negócios com eles.

— Parece-me... — Maury Feldman estava amassando um pedaço de pão entre os dedos — com o devido respeito, Mike, que precisamos de mais informações do que nos está transmitindo.

— Não as tenho — respondeu Mike Santos, calmamente. — Já disse que atualmente não somos muito populares em Washington, e estou tentando reconstituir algumas pontes. Quanto à transferência de ações. . . mas que diabo aconteceu esta manhã?

— Minha opinião é que nunca deveria ter acontecido — insistiu Maury Feldman. — Você é pago para ficar em cima dessas coisas.

— O dia tem apenas vinte e quatro horas, Maury.

— Pois então delegue! — disse Spada. — Deixe que outro fique lambendo os selos!

— Ei, espere um pouco! — Santos estava subitamente vermelho. — Já esqueceu que estamos enfrentando algumas crises? Não fui eu que as criei, mas a confusão foi parar em cima da minha mesa. Estou procurando resolver tudo da melhor maneira possível, mas exige tempo e muita diplo­macia tortuosa.

— Fale-nos sobre o contrato do Minotauro. — Max Liebowitz enfiou um pouco da salada na boca. — Qual é o problema?

— Segurança — respondeu Mike Santos, relutante­mente. — Querem que seja cancelado o acesso de John a todos os documentos confidenciais para que a análise de nossa proposta possa prosseguir. Estou me empenhando em evitar que isso aconteça.

— Não me falou isso — disse John Spada. — Deu a impressão de que esse problema já estava resolvido.

— Tenho a esperança de que tudo fique logo resolvido.

— A esperança é uma virtude fundamental, mas não põe manteiga na torrada — disse Maury Feldman, seca­mente.

— Deveria ter-me contado   tudo — declarou John Spada. — Já sou crescidinho e consigo soletrar as palavras escritas no banheiro!

— E eu gostaria de saber quem anda espalhando os rumores e quem está comprando nossas ações em transações particulares — acrescentou Max Liebowitz.

— Com licença — disse Mike Santos bruscamente. — Não gosto de ficar ouvindo censuras no clube. Obrigado pelo almoço, senhores!

Ele largou o guardanapo em cima da mesa e afastou-se. Os três homens ficaram a se olhar. Max Liebowitz sacudiu a cabeça, assumindo uma expressão zombeteira de tristeza:

— Conan Eisler pode não ter muita inteligência, mas pelo menos conhece as regras do jogo.

— Tenho certeza de que Mike também conhece — disse Maury Feldman. — Fico imaginando se ele não as esta­rá ignorando deliberadamente.

— A favor de quem? — indagou John Spada.

— De cinqüenta mil ações. — Max Liebowitz termi­nou de comer a salada e limpou o molho dos lábios. — É um bom pecúlio para se ter. E eu gostaria muito de saber quem é o felizardo.

Deixando o clube de carro com Maury Feldman, Spada traduziu suas apreensões em palavras:

— É uma perspectiva terrível, Maury, mas acha mes­mo que Mike pode estar nos traindo?

Feldman deu de ombros.

— Os homens se embriagam quando chegam às altu­ras. E muitas vezes ficam com ilusões de grandeza.

— Ele mentiu-me a respeito do problema de segurança.

— Não é uma boa palavra para se usar, juridicamente. Digamos que ele dourou a pílula.

— E as ações? Mike devia saber. . .

— Fico imaginando se não foi ele próprio quem as comprou.

— São cinqüenta mil ações, a trinta e cinco dólares cada uma. O que dá um milhão e setecentos mil dólares. Ele não teria condições de levantar tanto dinheiro. Ainda por cima, é uma transação de quem está a par de informações internas, o que é proibido por lei. Poderíamos liquidá-lo por isso.

— Se fosse possível provar...   o que e praticamente impossível numa transação por procuração. E não esqueça­mos como você mesmo disse, que um milhão e setecentos mil é um bocado de dinheiro, mas muito dinheiro. . . A menos que alguém mais esteja pagando a conta.

— Não vejo como isso seria possível, Maury. O que ele teria para oferecer em troca. . . ou dar como garantia?

— Você — respondeu Maury Feldman, suavemente. — Você e a Proteu. Há um mercado para isso, não é mesmo?

— Santo Deus! Não, não é possível. Não posso acre­ditar. Nunca tivemos um traidor até hoje.

— Isso é inflação para você. Um bom Judas consegue muito mais que trinta moedas de prata.

Ajudava às vezes ser irreverente; era um meio útil de lidar com as complexidades de uma imensa estrutura de poder como as Empresas Spada. Mas nem Spada nem Maury Feldman estavam dispostos a ignorar os riscos de um trai­dor. . . ou mesmo de um subalterno ambicioso dentro da organização. A base era tão ampla, as informações tão valio­sas e as oportunidades de ação tão diversificadas que um executivo venal podia ganhar milhões com um golpe cuida­dosamente planejado.

O perigo para a organização Proteu era ainda maior. Mike Santos não participara até aquele momento de suas atividades, mas o simples conhecimento da existência e da estrutura da organização era uma arma em suas mãos. Spada e Feldman debateram o problema durante duas horas, en­quanto os desenhos de Maury iam se tornando mais eróticos e fantásticos.

Spada finalmente resumiu tudo, já cansado:

— Item 1: podemos estar cometendo uma grande in­justiça com Mike. Item 2: ele se corrompeu e temos que nos livrar dele. Item 3: não precisamos de provas judiciais, mas apenas o suficiente para pressioná-lo, fazendo com que nos diga qual o jogo em que está metido e com quem.

— Ou seja, temos de investigá-lo.

— Deixe isso comigo — disse John Spada, sombriamente. — Antes de acabar, saberei até qual é o sabonete que ele usa.

— E, se ele não sair bem limpo, vamos ter que dar-lhe um bom banho.

— O melhor será que ele se enforque — murmurou John Spada. — Eu o enterrarei com prazer numa cova rasa.

 

A tranqüilidade precária que Spada experimentara des­de a volta de Washington estava agora destruída. Ele estava no meio do furacão, de volta ao túmulo e à escuridão da tempestade. Deixando o escritório de Maury Feldman, per­correu a pé os trinta quarteirões até o prédio em que resi­dia, obrigando-se a pensar, preparando-se para as experiên­cias domésticas da noite.

Não diria nada a Anna. Não havia por que perturbá-la com notícias que ainda não estavam confirmadas. Pensou em procurar Kitty Cowan, a mais óbvia conhecedora do que se passava nas Empresas Spada. Mas decidiu que era melhor manter silêncio também com Kitty. Não tinha a menor dú­vida sobre a lealdade de Kitty, mas sabia que o controle dela não era muito grande e não podia arriscar-se a uma explosão prematura na torre de vidro. Precisava de uma opinião fria e de uma astúcia de conspirador. Por isso, entrou num bar, discou para um telefone de Manhattan e deixou um recado para o Espantalho.

Ao chegar ao apartamento, descobriu que Anna tinha saído. Ela deixara um recado, avisando que estava no cabe­leireiro e informando que combinara com Carlos de ele ir buscá-la de carro. Em sua mesa no gabinete, Spada encon­trou uma carta registrada. O selo e o carimbo eram da Suíça, mas a carta fora escrita por Kurt Deskau, de Munique. A letra de Deskau era irregular e meio ilegível, o estilo floreado e pomposo. Spada levou meia hora para decifrar todo o texto. Não era uma mensagem das mais animadoras.

 

"Prezado amigo,

Estou quebrando um hábito salutar e passando para o papel assuntos bastante delicados. Destrua esta carta assim que acabar de lê-la. Sou pago como policial e não como jor­nalista político.

Tenho acompanhado, pela imprensa européia, os relatos de seus feitos na Argentina. Fiquei contente ao saber que conseguiu libertar seu genro, embora saiba perfeitamen­te o risco que correu e os perigos que ainda devem amea­çá-lo. E são esses perigos que me levam a escrever-lhe.

Não preciso explicar-lhe que o trabalho de polícia se tornou hoje em dia uma atividade em escala internacional. Todas as forças policiais nacionais se comunicam entre si, mesmo não revelando tudo o que sabem. Mas procuramos sempre cooperar, na medida dos nossos interesses comuns, como seqüestros, atividades terroristas, tráfico de drogas, assassinos fugitivos ou ladrões de monta.

Estive recentemente na Itália, a fim de conferenciar com a polícia sobre o caso Moro e o possível envolvimento de elementos alemães no seqüestro. Também estive em Esto­colmo, Amsterdam e Viena, além de participar durante três dias de um seminário internacional de polícia, realizado em Paris. Assim, pude colher algumas informações importantes. Como bom funcionário público, vou apresentá-las numeradas.

1) Você se tornou um homem notório. Todos concor­dam em que os argentinos foram uns idiotas ao atacar sua família, mas muitos estão assustados com a idéia de um homem imensamente rico misturar-se com grupos políticos clandestinos. Tenho certeza de que vai sorrir ao ler isto, mas a verdade é que os criminosos e a polícia levam uma vida particular em comum e não gostam que estranhos se intro­metam nela.

2) Já deve saber que está correndo perigo pessoal da parte de agentes do governo. Em nenhum lugar da América do Sul eles estão dispostos a admitir uma subversão indepen­dente, especialmente de alguém que classificam de um rene­gado capitalista.

3)   É também um alvo dos extremistas de esquerda. Não porque desconfiem de alguma ligação entre você e Gebhardt Semmler, mas simplesmente porque estão agora concentrando sua atenção na destruição das finanças interna­cionais e podem perfeitamente estender suas atividades aos Estados Unidos. Apreendemos algumas listas de objetivos, relacionando instituições e altos executivos. Seu nome consta de quase todas.

4) O cartão da Proteu encontrado na carteira de Semmler despertou muita curiosidade entre os meus colegas europeus, sendo interpretado como o símbolo de um novo grupo de terror. Creio que foi uma imprudência de sua parte ter deixado o cartão. Foi um ato teatral que posso compreen­der, mas pessoalmente jamais o teria feito.

Até agora, ninguém tem a menor idéia do verdadeiro significado, mas o interesse oficial persistirá. Os policiais são condicionados a mostrar-se curiosos pelos detalhes não expli­cados. Pessoalmente, vejo outro perigo. O símbolo está in­trigando as pessoas. Pergunto-me o que acontecerá se algum grupo extremista resolver adotá-lo, e nós, da Proteu, come­çarmos a ser acusados de seus crimes. Sei que você exige lealdade absoluta, mas nenhuma organização está totalmente a salvo de indiscrições ou deserções. Peço-lhe que pense nisso. Se possível, deveríamos encontrar-nos e conversar.

Finalmente, estou presumindo que ainda conserva os documentos de Erwin Hengst. Se não tenciona voltar a usá-los, gostaria que os devolvesse. Se pretende usá-los outra vez, por favor avise-me com antecedência, para que eu possa dar cobertura aqui.

Gostaria de poder transmitir-lhe notícias melhores. Em vez disso, não posso deixar de informá-lo de que, diante da crise na Itália, a perspectiva de uma guinada para a direita na Alemanha continua a ser uma constante possibilidade. Conversei com um russo no seminário. Ele disse: 'Sei que pensa que somos muito duros com os nossos dissidentes. Mas espere só até tentar sentar-se na tampa do seu próprio caldeirão”. O que eu poderia responder? Nossos rabos já estão começando a esquentar!

Gostaria que nos pudéssemos encontrar pessoalmente muito em breve. Com os meus cordiais cumprimentos,

Kurt."

 

Spada leu a carta duas vezes, depois rasgou-a em peda­cinhos e queimou tudo num cinzeiro. Estava torcendo para que o Espantalho telefonasse logo. Tinham agora muita coisa para conversar.

 

A investigação de Mike Santos foi planejada e exe­cutada tão meticulosamente quanto uma cirurgia cerebral. A margem de erro era mínima, os riscos enormes. Uma ope­ração falha poderia prejudicar irremediavelmente a reputação de üm homem inocente. Uma revelação indiscreta poderia provocar ondas de choque por todos os mercados financeiros do mundo. Se o próprio alvo da investigação desconfiasse de alguma coisa, poderia pôr em risco toda a rede da Proteu. Assim, pela primeira vez em muitos anos, a mensagem cir­culou entre a rede norte-americana: "Proteu para os pei­xes . . . por favor, forneçam todas as informações disponíveis sobre Michael Santos..."

Um peixe na Morgan Guaranty verificou as transações por procuração com as ações da Spada. Outro peixe, em Nassau, começou a pesquisar as transações de fundos e os registros de novas companhias. Um perito em eletrônica foi à torre de vidro e instalou um complexo sistema de escuta na sala de Santos. Os compromissos sociais dele foram le­vantados e controlados. Suas contas bancárias passaram a ser verificadas. A rotina doméstica foi examinada, assim como as visitas ao dentista, ao médico e ao barbeiro.

Como Mike Santos era um homem bastante ativo, foi um trabalho de informações em larga escala. Sem o dinheiro de Spada e os recursos da organização Proteu, teria sido impossível concluí-lo no prazo de duas semanas determinado por Spada. Mas, finalmente, tudo ficou pronto. Enquanto Anna ia passar o fim de semana na Bay House, com Teresa e Rodo, Spada ficou em Nova York para analisar o relatório com Maury Feldman e o Espantalho.

— É uma estranha situação — comentou Maury Feld­man, o cenho carregado, olhando para as páginas datilogra­fadas. — De alto a baixo, ele parece limpo. Todos os seus registros financeiros, inclusive a declaração de imposto de renda, indicam uma administração prudente dos seus pró­prios rendimentos. Ele não joga. Tem apenas despesas men­sais rotineiras. A vida familiar parece estável. Os telefone­mas e a correspondência se enquadram num contexto nor­mal. . .

— Só há duas exceções — disse o Espantalho. — Toda quarta-feira ele fica em Nova York. Tem uma reserva per­manente no Regency. Vai jogar squash no Racquet Club, que é seu pretexto para passar a noite fora de casa, depois visita um apartamento no East Side. . . o endereço consta do relatório. . . que é ocupado por uma certa Marina Altamira. Fica lá durante uma hora, depois volta para o hotel toma dois ou três drinques e vai se deitar. O fato curioso é que a mulher em questão tem quase setenta anos. . .

— O que sabemos a respeito dela?

— Praticamente nada, além do que está no relatório. É a viúva de um empresário argentino que morreu há vinte anos. Vive do que lhe rendem os seus investimentos, admi­nistrados pela Morgan Guaranty. É cidadã naturalizada dos Estados Unidos e trabalha dois dias por semana numa pe­quena galeria que negocia com artesanato primitivo.

— E quais são as ligações dela com Santos?

— Ainda não sabemos. Contudo, o item seguinte é mais revelador. Aquelas cinqüenta mil ações da Spada . .. Aqui está o vínculo. Foram transferidas do Fundo Norden para a Morgan Guaranty, por conta de um cliente. O cliente em questão é a Altamira Investimentos Ltda., uma compa­nhia registrada em Nassau, Bahamas. As ações dessa compa­nhia pertencem a um fundo, instituído há dois meses pela Sra. Marina Altamira em benefício de um certo Michael Santos. Temos um relatório sobre essa companhia. Tem condições para transações de até dois milhões de dólares.

— E qual a origem dos recursos? — indagou John Spada.

O Espantalho deu de ombros e abriu os braços num gesto de desistência.

— Qualquer palpite é válido. O meu é que chegaram a Nassau numa valise.

— Para resumir: nos últimos dois meses, uma viúva argentina torna Mike Santos mais rico em dois milhões de dólares. Qual é a conclusão?

— Sexo? — disse Maury Feldman, sorrindo.

— Nenhum garanhão do mundo vale dois milhões de dólares. — Spada não estava com disposição para gracejos.

— E, então, a que outra conclusão podemos chegar?

— Talvez a explicação esteja na própria lei dos fundos — comentou o Espantalho. — É especialista no assunto, Sr. Feldman. Não é certo que a pessoa que institui o fundo pode administrá-lo a seu critério? Não é verdade que o beneficiá­rio não pode legalmente dirigir o fundo?

— É isso mesmo.

— Não poderíamos então ter uma situação em que o Sr. Santos só pode beneficiar-se se e quando executar um serviço específico?

— Ah. . .   — John Spada deixou escapar um longo assovio de espanto. — Ah, mas que maquinação! Estamos pagando ao nosso próprio assassino!

— Ainda não provamos coisa alguma — interveio Maury Feldman.

— E não vamos provar enquanto não conseguirmos instalar microfones no apartamento da mulher — disse o Espantalho. — O que, aliás, não é tão fácil quanto pode parecer. O apartamento é protegido como se fosse uma fortaleza. Sabem como são as coisas nesta cidade, especial­mente com as mulheres idosas que vivem sozinhas. De qual­quer maneira, Henson já está trabalhando no projeto.

— Enquanto   isso,   o   que   vamos   fazer   com   Mike Santos?

— Nada. — Spada estava frio como um juiz. — É a tradição, não é mesmo? Até mesmo Judas foi convidado à última ceia antes de receber suas trinta moedas de prata. Não podemos fazer menos pelo Sr. Mike Santos.

— Estou com um gosto horrível na boca — disse Maury Feldman. — Gostaria de me divertir um pouco. Tenho duas entradas para o Trovatore no Met. Alguém está interessado?

— Irei com você. Sempre fiquei bastante comovido ao ouvir Ai nostri monti.

— Não contem comigo — disse o Espantalho. — Sempre achei a ópera um espetáculo meio ridículo. Além disso, Henson vai me levar a um restaurante chamado Sím­bolo da Pomba, onde a Sra. Altamira sempre janta nas noites de sábado. É claro que estará sendo protegido na ópera, Sr. Spada.

— E Mike Santos?

— O senhor vai encontrar no relatório a rotina dele informou o Espantalho. — Aos sábados, sempre joga golfe, janta no clube com a esposa e depois faz amor com ela. Gostaria de ouvir as gravações?

— Se acha a ópera um espetáculo ridículo — disse John Spada, incrédulo —, o que dizer de Mike Santos no cio?

A cortina desceu quando faltavam quinze minutos para a meia-noite. À meia-noite, Spada e Feldman estavam an­dando de braços dados pela rua, dois cavalheiros de meia-idade a regalarem os transeuntes com uma apresentação duvidosa de Ai nostri monti. À uma hora da madrugada Spada estava tocando duetos com o pianista do bar do Regency, enquanto Maury Feldman conversava com outras pessoas. Às duas e meia, John Spada entrou no saguão do prédio em que morava, os passos meio trôpegos. Ao acenar para o porteiro, dois homens se aproximaram dele,

— Sr. Spada?

— Ele mesmo. Em que posso servi-los, senhores?

— Somos da polícia, Sr. Spada. E, infelizmente, as notícias que lhe trazemos não são nada boas.

 

A Bay House estava destruída, uma ruína enegrecida e fumegante, à débil claridade da madrugada. Os três corpos, queimados além de qualquer possibilidade de reconhecimen­to, dentro de sacos plásticos verdes. Ao lado, havia seis Ia toes de gasolina, meio derretidos pelo fogo.

Contaram-lhe que havia acontecido logo depois da meia-noite. Todas as luzes estavam apagadas, pois a família fora. dormir cedo. Dois agentes de segurança estavam de serviço. Um estava de vigia nos portões, patrulhando a estrada, en­quanto o outro vigiava a propriedade do lado que dava para a praia. O homem na praia é que viu as chamas primeiro. Ao chegar à casa, todo o andar térreo estava dominado pelo fogo e as chamas subiam pelas trepadeiras na parede externa. Não havia qualquer possibilidade de salvar os que estavam no interior da casa. Os ocupantes — que palavra estranha, neutra! — os ocupantes haviam morrido na cama. A casa fora encharcada de gasolina e os incendiários — haviam encontrado indícios de dois intrusos — tinham fugido facil­mente pelos bosques dos dois lados da casa. O detetive encarregado da investigação insistiu em explicar que a morte pelo fogo era mais rápida do que parecia. O fogo consumia todo o oxigênio. A maioria das pessoas morria rapidamente, sufocada. Spada afastou-se e foi vomitar no gramado.

À sua maneira brusca, profissional, os policiais foram delicados com Spada. Sentaram-no no banco do pavilhão e ficaram falando sem parar, enquanto os sacos plásticos eram metidos na ambulância. O médico-legista pegou algumas cápsulas em sua maleta e ofereceu-as a Spada, se ele quisesse dormir um pouco. Ele voltou para a cidade num carro da polícia. Os guardas esperaram até que Carlos o tivesse aco­modado, dócil como uma criança, pondo-o na cama e servindo-lhe as cápsulas. Chamaram Maury Feldman, a pedido do próprio Spada. Mas, antes que ele chegasse, John Spada já estava morto para o mundo.

Foi o próprio excesso do horror que lhe preservou a sanidade. A razão recuava diante do esforço de compreen­dê-lo ou explicá-lo. Lágrimas e palavras não podiam apagá-lo de sua memória. Assim, todos os que trataram com John Spada logo depois da tragédia, policiais, o juiz sumariante e o júri, jornalistas, colegas, Kitty Cowan, o Espantalho, Mike Santos, todos ficaram impressionados com a sua calma ina­balável. Ele aceitou as condolências com uma cortesia grave. Respondeu a todas as perguntas com uma precisão impassí­vel. Despachou eficientemente todos os assuntos que foram levados ao seu conhecimento, documentos de inventário, cartas para a família de Anna, para a sua própria e para a de Vallenilla, preparativos para o funeral, os problemas coti­dianos da Poseidon Press e dos Laboratórios Raymond.

Ele não chorou. Não demonstrou raiva. Não fez qual­quer censura. O que quer que sentisse, se é que realmente sentia alguma coisa, estava oculto sob uma máscara pálida, séria, a tal ponto que até mesmo Maury Feldman e Kitty Cowan descobriram-se excluídos de sua confiança.

À noite, jantou sozinho no apartamento. Depois, quan­do Carlos foi se deitar, saiu e foi para um pequeno hotel no West Side, onde se trancou num quarto com o Espantalho, examinando mapas e dicionários geográficos, pela madrugada afora. Eram agora como irmãos de sangue, vindos de algum frio planeta distante do sol, absorvidos numa intrincada matemática de retaliação.

Apesar da vigília prolongada, ele se apresentou pontual­mente às nove e meia nos escritórios da Poseidon Press. À uma hora da tarde, estava em Wilton, absorvido nos problemas de encontrar mercados para os soros e culturas desen­volvidos pelo jovem Raymond.

Aonde quer que fosse, levava consigo, no bolso do paletó, um envelope com um microfilme que lhe fora enviado pelo homem-peixe de Nassau. O microfilme era de um do­cumento assinado dois dias depois do incêndio na Bay House. Declarava que Marina Altamira renunciava ao cargo de ad­ministradora do fundo que instituíra e entregava ao benefi­ciário, Michael Santos, todos os bens do fundo, a saber, as ações da Altamira Investimentos Ltda.

O microfilme era a única coisa quente no mundo gelado de John Spada. Era como se tudo que restasse de sua vida ali estivesse contido, como se fosse entregar-se ao nada se perdesse aquilo.

O dia dos funerais amanheceu claro e quente. Maury Feldman e Kitty Cowan acompanharam-no na limusine até a Catedral de São Patrício, sentaram-se ao seu lado no pri­meiro banco, sentiram-lhe a primeira reação de choque diante dos três caixões à frente. Kitty chorou baixinho, Maury Feldman assoou o nariz ruidosamente e depois baixou a cabeça entre as mãos. Por trás deles, um murmúrio de com­paixão se espalhou pela catedral, ocupada por pessoas proce­dentes de todas as partes do país, para apresentar seus res­peitos aos mortos e compartilhar a angústia de John Spada pelas esperanças perdidas de continuidade e amor. O cardeal-arcebispo entoou a antífona:

— Concedei-lhes o repouso eterno, ó Senhor, e deixai que a luz perpétua brilhe sobre eles.

John Spada tentou participar da resposta, mas as pala­vras ficaram presas em sua garganta. Tentou focalizar o celebrante, mas não conseguiu desviar os olhos dos três caixões. Depois de algum tempo, tudo se fundiu numa névoa indistinta, enquanto o canto do ritual se elevava e baixava como a monotonia das ondas numa praia de inverno.

O sermão do cardeal foi eloqüente, mas estéril, cuidado e sincrético, aceitável para as pessoas de todos os credos ou de nenhum, sobre a fé que não falhava, a esperança que pro­porcionava o único sentido possível diante das propensões bárbaras do homem, a caridade que abrangia até quem pra­ticava o mal. Todo o ardor, que o cardeal tencionava apre­sentar como compaixão, estava na peroração final:

— . . . E rezemos por nosso irmão John Spada, a fim de que, nesta hora de desolação, ele possa receber a graça de suportar sua dor com coragem e tenha a generosidade de perdoar aqueles que tão brutalmente lhe roubaram os entes amados. Não devemos lamentar por Anna, Teresa ou Rodol­fo. Eles estão em paz agora. Nossos cuidados devem ser para com John Spada, que tanto precisa de nosso apoio fra­ternal. . . Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Quando se levantaram para o Credo, John Spada ba­lançou ligeiramente. Maury Feldman passou o braço pelos ombros dele, a fim de ampará-lo. Kitty Cowan segurou-lhe a mão e sussurrou:

— Agüente mais um pouco, John. Já está acabando.

Mas não iria terminar tão depressa. Houve ainda toda uma série de eventos irrelevantes: a bênção dos restos mor­tais, a procissão até o carro fúnebre, com Spada ajudando a carregar o caixão de Anna e imaginando por que ele parecia tão leve, a longa viagem de carro até o Cemitério Portão do Paraíso, em Westchester, a cerimônia de sepultamento. Hou­ve um momento de intensa agonia, quando Spada deparou com Mike Santos à sua frente, do outro lado da sepultura de Anna, e sentiu um impulso quase incontrolável de atacá-lo, matá-lo, matá-lo ali mesmo, com as próprias mãos, jo­gando o corpo no buraco já aberto na terra.

Depois, finalmente, tudo terminou. Maury Feldman ajudou-o a voltar para a limusine, junto com Kitty. Ao deixarem a cidade dos mortos, de volta à terra dos vivos, Maury disse firmemente:

— Já é o bastante, meu querido. Não vamos deixá-lo sozinho esta noite.

— Vai jantar no meu apartamento — disse Kitty Cowan.

— E acho que todos nós devemos nos embriagar.

— Parece uma boa idéia — murmurou John Spada, assentindo distraidamente. — Parece que não consigo mais pensar direito.

E foi nesse momento que a represa arrebentou. Ele encostou a cabeça no ombro de Kitty e chorou desesperadamente durante todo o percurso de volta a Manhattan.

 

Numa manhã de segunda-feira, quatro semanas depois dos funerais, Kitty Cowan pediu demissão das Empresas Spada. Mike Santos formulou as expressões formais de pesar e perguntou se ela não ia querer desfazer-se de suas ações da companhia. Kitty disse que não. E também se recusou a participar de qualquer cerimônia de despedida. Uma mulher sempre prática, ela preferia pegar seu dinheiro e ir embora discretamente. Quais eram os seus planos? Férias prolonga­das na Europa. E depois? Ela ainda não sabia. Com alguma sorte, podia encontrar um pretendente rico ou um talento para a ociosidade. Não ia trabalhar com Spada na Poseidon Press? Pelo menos no momento, não. E se Mike não se importasse, ela iria limpar sua própria mesa, pôr os arquivos em ordem e ir embora no final da semana. Mike Santos concordou em que uma despedida discreta e ordeira seria melhor para todos.

Na tarde do mesmo dia, John Spada apresentou nos Laboratórios Raymond um cliente europeu, o Dr. von Pau­lus, que dirigia de Paris um serviço de disseminação de informações científicas em muitas línguas. Ele estava parti­cularmente interessado no trabalho do Sr. Raymond sobre variedades anômalas de bacilos e gostaria de publicar alguma coisa a respeito do assunto. Com relação a isso, o Dr. von Paulus podia oferecer também um mercado comprador ativo de slides de microscópio, culturas e toxinas. Estava pensando em criar na França o equivalente da Coleção Nacional Americana de Culturas, uma instituição singular, na qual qualquer bacteriologista respeitável podia obter os espécimes que desejava. Quando o Dr. von Paulus partiu, ao final da tarde, para voltar a Nova York de carro com John Spada, levava uma pasta com documentos, uma caixa de slides e seis frascos lacrados de culturas anaeróbias repletas de bacilos de botulismo vivos.

Na noite seguinte, Spada recebeu Max Liebowitz para uns drinques em seu apartamento. Foi um momento som­brio, que Max respeitou com uma dignidade lúgubre.

— Agradeço ter-me contado primeiro, John. Sei que nunca fomos muito chegados, mas essa. . . essa monstruosi­dade não deveria acontecer com homem nenhum. Choro por você!

— Tenho de me afastar, Max. Simplesmente não posso agüentar mais. Preciso ficar à margem de tudo por algum tempo, procurar recuperar-me.

— É a melhor coisa que podia fazer. E pode deixar que ficaremos de olho na companhia.

— É sobre isso que quero conversar com você, Max. Posso ficar ausente por um longo tempo. Maury Feldman terá procuração para votar por minhas ações. Creio que você poderá trabalhar com ele sem maiores dificuldades.

— Será mais fácil do que trabalhar com você. — Max Liebowitz permitiu-se um sorriso melancólico. — Mas, se me permite dizê-lo, gosto mais de você agora. Mostrou que é um verdadeiro Mensch.

— Fico contente em ouvir isso, Max, pois vou precisar que confie em mim. Sem perguntas, sem explicações.

— Está certo, confio em você. E agora pode me falar o que está querendo.

— Mike Santos tem de sair.

— Ah! — Max sacudiu a cabeça como um Buda de porcelana. — Concordo e não pergunto por quê. Sempre achei que ele era grande demais para os seus sapatos. Mas o que Mike Santos diz?

— Ele ainda não sabe. Mas saberá antes de eu partir. Qual o prazo de que você precisaria para contratar Conan Eisler?

— Dois meses, três, no máximo. O antigo contrato dele já terminou. Está negociando um novo. Mas pode se desligar para vir trabalhar conosco rapidamente. Parece-me porém, que há algo mais importante: de quanto tempo vai precisar para tirar Santos? Afinal, ele tem um contrato de cinco anos.

— Não creio que ele invoque o contrato.

— Por que pensa assim?

— Nada de perguntas, Max. Acredite em mim, é me­lhor assim. Quando acontecer, poderá jurar que não sabia de nada.

— Enquanto isso, o que devo dizer a Conan Eisler?

— Diga que o cargo vai vagar, mas que ele poderá estragar tudo se falar a alguém.

— Pode deixar que ele vai compreender. Mas diga-me uma coisa: vamos ter um escândalo nas mãos?

— Há um escândalo, Max, muito maior do que pode imaginar. Mas creio que posso abafá-lo.

— Maury sabe o que é?

— Sabe. E concorda em que você deve ficar na igno­rância de tudo.

— Soube que Kitty Cowan pediu demissão.

— Fui eu que sugeri, Max. Não queria que ela esti­vesse por perto quando Mike Santos receber a notícia.

— Ela sabe do escândalo?

— Não.

— Gosto muito de Kitty. É uma mulher e tanto. . . e sempre foi devotada a você.

— Somos amigos há muito tempo, Max.

— Sei que não é da minha conta, John. Mas sabe o que se costuma dizer: depois de um bom casamento, é duas vezes mais difícil ficar sozinho.

— Está virando casamenteiro, Max?

— Deus me livre! Mas é verdade que poucas mulheres dariam uma esposa tão boa quanto Kitty Cowan.

— Ela pode se sair muito melhor sozinha...   e eu posso não ficar por aqui por muito tempo.

— Como assim?

— Eles ainda querem a minha morte, Max. E querem inclusive que eu morra o mais dolorosamente possível.

— Quem são eles?

— Isso é um segredo meu, Max.    

— Mas não pode ficar sentado de braços cruzados a esperar por uma bala!

— É por isso que estou me afastando.

— Há ocasiões em que me pergunto se os animais não estão começando a tomar conta do jardim zoológico. . . O que mais deseja de mim, John?

— Mais nada. . . a não ser o silêncio. Não ouviu nada. Não sabe de nada.

— Todos esses segredos. . .   Eles me dão pesadelo! Mas pode estar certo de que sou cego e surdo! — Ele levan­tou o copo, num brinde. — Eu lhe desejo bons amanhãs John!

Na manhã seguinte, Mike Santos recebeu um bilhete manuscrito de John Spada:

 

"Prezado Mike:

Decidi passar algum tempo viajando, numa tentativa de recompor minha vida. Não sei por quanto tempo estarei ausente, nem mesmo sei para onde irei. Acho que a coisa mais simples a fazer é espetar um alfinete num mapa e depois seguir para o lugar!

Os Laboratórios Raymond já estão devidamente organizados e funcionando satisfatoriamente. Antes de partir, eu lhe mandarei todas as minhas anotações e recomendações.

Na noite da quarta-feira da próxima semana, vou promover uma pequena reunião informal em meu apartamento, para me despedir dos colegas e amigos especiais. Pode chegar às oito horas. O traje é informal. Haverá drinques e um jantar de bufê. Conto com a sua presença. Talvez se passe muito tempo antes que eu torne a aparecer por aqui.

Espero que me dê um telefonema para confirmar. Se eu não estiver, Carlos poderá anotar o recado.

Até lá,

John."

 

Mike Santos era um homem extremamente metódico. Ligou para o apartamento de Spada e falou com Carlos. Anotou a data em sua agenda, depois escreveu no canto da anotação: "Rec. 10hl5m. Aceito por telefone, 10h20m" Imediatamente depois, por seu telefone direto, falou com a sexagenária que lhe proporcionara os seus primeiros dois milhões de dólares. A gravação dessa conversa foi entregue a John Spada ao meio-dia.

Agora que não tinha mais família, o domingo em Nova York era o pior de todos os dias. O apartamento estava vazio. Carlos, a esposa e a criada tinham saído, de folga. Não havia Anna para levá-lo a pé até a Igreja da Fé, Esperança e Caridade, pondo o missal em suas mãos e exortando-o a acompanhar atentamente toda a liturgia e o sermão. Qual­quer que fosse o Deus que lá residisse, estava agora silen­cioso e invisível, envergonhado dos feitos de sua própria Lcriação. As ruas ficavam vazias até meio-dia. Os que dor­miam juntos dormiam até tarde. Os que dormiam sozinhos saíam para correr, liam as histórias em quadrinhos dos jornais dominicais ou ficavam aguardando ansiosamente que as lojas e bares abrissem.

Apesar de tudo, ele não tinha motivos para se queixar. Podia ser um hóspede bem-vindo em qualquer lugar do continente. Podia ser anfitrião de uma dúzia de almoços. Podia convocar um harém de mulheres, podia voar para o Haiti, Honolulu ou Honduras, pela simples exibição de um cartão de crédito. Podia também telefonar para Kitty Cowan, que mais de uma vez já dissera que estaria sempre disponível para ele, insistindo para que fizesse alguma coisa:

"Pelo amor de Deus, John! Um de nós está doido . . . e garanto que não sou eu! Não pode continuar a desperdiçar sua vida desse jeito! Vá a um teatro! Vá a um bordel! Pegue um avião e siga para Las Vegas! Compre uma equipe de beisebol! Faça qualquer coisa! Não posso suportar pensar em você metido nesse imenso apartamento vazio! Venha até aqui e farei um almoço para você! Se não gostar da minha comida, pode levar-me para almoçar fora! Posso até pagar o vinho, se você está com dificuldades de dinheiro!"

Ele sempre recusara. O tédio do sofrimento o envolvia como um manto de chumbo. Iria lutar. Podia fazer planos.. . o que era até melhor do que a luta propriamente dita, uma intrincada alegria invertida, meio prazer, meio dor. Mas aquele domingo era diferente. Ele acordou cedo para uma nova e pungente solidão. Sentia-se atormentado pelo súbito desejo de uma mulher, alguém que pudesse pelo menos provar-lhe que ainda era um homem, numa selva de macacos. Pegou os jornais, preparou café e torradas, tomou um banho de chuveiro, fez a barba, vestiu-se com suas me­lhores roupas esporte, olhou pela janela para o vazio da Park Avenue. Depois de muita hesitação, ligou para Kitty Cowan.

— Kitty? Sou eu, John. O que está fazendo neste mo­mento?

— Estou pingando água sobre o tapete. O que está pensando?

— Não quer ir comer alguma coisa no Plaza?

— Com todas aquelas palmeiras? De jeito nenhum!

— Pois então vamos fazer um passeio pelo campo. Está fazendo um dia maravilhoso.

— E ao meio-dia estaremos metidos no engarrafamento habitual da estrada. Tenho uma idéia melhor. Por que não aparece aqui por volta das onze e meia? Tomaremos alguns drinques, farei o seu almoço. Se mais tarde sentir vontade, poderemos sair para olhar as vitrinas na Fifth Avenue.

— Boa idéia. Quer que eu leve alguma coisa?

— Duas garrafas do seu melhor borgonha. Tenho bifes na geladeira.

— Até onze e meia, Kitty.

— Ficarei esperando. E agora trate de desligar, que o tapete já está todo encharcado.

Foi a primeira refeição que ele pôde lembrar-se de ter apreciado em muitas semanas, a primeira conversa que não era sobre dinheiro nem estava impregnada de rancor. Re­cordaram suavemente os velhos tempos. Riram de antigas comédias, há muito tempo esquecidas. Enquanto Kitty lavava a louça, ele deitou-se no sofá, tirou os sapatos e ficou fa­lando, meio sonolento, até que o sono acabou por dominá-lo. Quando acordou, a sala estava escura e Kitty estava sentada no chão, ao seu lado, afagando-lhe os cabelos desgrenhados.

Ele piscou para Kitty e murmurou:

— Olá, jovem Kitty.

— Olá, Big John.

— Que horas são?

— Isso tem alguma importância?

— Acho que não.

— Você parecia tão sereno que não tive coragem de acordá-lo.

— Obrigado. Pela primeira vez, em muitas semanas, eu me sinto descansado.

— Não precisa levantar-se. Continue assim.

— Pensei que quisesse dar uma olhada nas vitrinas.

— Quem precisa disso? Posso comprar o que quiser em Paris.

— Paris? Ah, sim. . .   eu tinha esquecido. Você vai para Paris.

— Foi o lugar que me recomendou como a primeira escala.

— Foi mesmo?

— Parto amanhã.

— Esqueci-me disso também. Desculpe.

— Não precisa pedir desculpas. Já estou com as malas quase arrumadas.

— Kitty, querida. . .

— O que é?

— Também vou viajar.

— Sei disso. Você me falou.

— Quer saber para onde ou por quê?

— Sei por quê. Tem de procurar os cacos e juntar tudo novamente. Acho que o lugar não tem muita importância.

— Não lhe passou pela cabeça a possibilidade de me acompanhar?

— Poderia.          

— Mas teria que seguir na frente. Eu a pegaria em algum lugar do caminho.

— Por quê?

— Caso contrário, poderia ser perigoso para você. Ainda estão querendo me matar. E você sabe disso.

— Sei mesmo.

— Talvez não seja uma boa idéia, no final das contas. Afinal, fui eu que lhe sugeri que deixasse o emprego para não correr perigo.

— Não me importo com o perigo. Mas me importo com você.

Spada pegou o rosto dela entre as mãos e beijou-a gen­tilmente nos lábios. Kitty afastou-se, ficou sentada sobre os calcanhares.

— Para onde vamos, Sr. Spada?

— O caminho será longo, Kitty Cowan. Tóquio, Bangkok, Nova Delhi, Moscou. . . Diga qualquer lugar e por lá passarei, mais cedo ou mais tarde. Vai ser um piquenique e tanto. . . por algum tempo.

— E depois?

— Eu a deixarei — disse John Spada, bruscamente — Esse é o compromisso. Eu a deixarei. Tenho um encontro em Samarra. . . e vou comparecer sozinho.

— Onde fica Samarra?

— É um lugar diferente para cada homem.

— E é isso o que está me oferecendo. . . um pique­nique e uma separação? É esse o negócio?

— Não é um negócio, Kitty querida, mas sim um sonho louco. Esqueça!... Já ia me esquecendo de uma coisa que você precisa saber. Fiz um novo testamento. Como dizem os advogados, você é uma legatária substancial. E dei um jeito para que você não precise entregar muito dinheiro ao governo. Pode comprar uma porção de coisas com o resto.

— Não fale assim! Não quero um níquel seu! Quero é você vivo e sorrindo novamente, John Spada.

— Por que sempre digo as palavras erradas?

— Fique com o seu legado! Ofereceu-me um piqueni­que. . . pois prefiro isso.

— E a separação?

— Aceitarei isso também.

— Tem certeza?

— Tenho. Mas há muito tempo que não faço um pi­quenique. Vai ter que me ensinar a estender a toalha. . . — Não sei se entende. . .

— Claro que entendo, Kitty. Eis o que vamos fazer. Você segue para Paris amanhã. Faça as suas compras, co­nheça a cidade, exatamente como planejou. Depois, siga para Roma. Há uma reserva em seu nome no Grand Hotel. Es­pere até eu chegar. Seguiremos juntos de lá.

— Promete que não haverá fantasmas no quarto?

— Não há fantasmas, menina. . . apenas recordações.

— Estou assustada agora.

— Por quê?

— Não sou mais uma menina, John. . . e vivi sozinha durante muito tempo.

— Também não sou um menino. . . e não gosto do homem que está vivendo em minha pele.

— Estou sentindo frio.

— Eu também — murmurou John Spada. — Vamos nos aquecer um ao outro.

Ao levantá-la em seus braços e levá-la para o quarto, a voz interior de John Spada acrescentou a cadência admonitória: "Enquanto pudermos. . . "

 

Estavam sentados no gabinete de Maclean, na Poseidon Press, tomando café e verificando uma lista final de provi­dências. Spada anunciou de repente:

— Imediatamente depois do encontro em meu aparta­mento na noite de quarta-feira, vou partir num vôo noturno para a Europa. Ficarei muito tempo ausente, porque quero fazer contato com todos os grupos da Proteu e iniciar o fluxo de informações para você. . .

— Qual a extensão dos nossos recursos, John? — per­guntou Maclean.

— Praticamente indefinida. Instituí um fundo de in­vestimentos que vai lhe proporcionar cerca de dois milhões de dólares por ano. Os estatutos especificam que a Poseidon é uma organização não-lucrativa e permitem o levantamento de recursos extras, através de donativos e legados. Maury Feldman poderá responder-lhe qualquer pergunta nessa área.

— Vamos definir as prioridades. — Lajos Forman fo­lheou suas anotações. — Já é evidente que o grosso das informações será sobre prisioneiros políticos. Todas as orga­nizações com as quais entramos em contato forneceram listas e histórias de prisioneiros. As outras informações, sobre instituições e pessoas empenhadas em atos brutais e desuma­nos de opressão, são mais escassas, por motivos óbvios, exi­gindo uma verificação mais cuidadosa antes da publicação.

— Acho que estamos preparados para isso — comen­tou Andrew Maclean.

John Spada assentiu em concordância.

— De qualquer forma, os prisioneiros devem ter prio­ridade. É a ordem certa das coisas, a compaixão antes da denúncia. Rodo disse-me isso e estava certo. Agora, vamos tratar de algo extremamente importante. No máximo até a última semana de agosto, deverei ter em mãos listas amplas de prisioneiros políticos, país por país. Onde não for possível obter listas, vocês providenciarão números autorizados, ci­tando as fontes. Devem indicar os lugares conhecidos de detenção e especificar os meios de transporte pelos quais estão ligados às grandes cidades. Vou precisar de uma cópia, datilografada em papel branco, sem qualquer identificação. E vou precisar também de mil cópias impressas, prontas para distribuição. Serão informados posteriormente para onde enviá-las. . . se não diretamente por mim, pelo menos por alguém com nome de peixe. Entendido?

— Para   que   as   informações?   —   perguntou   Lajos Forman.

— A Assembléia Geral das Nações Unidas entra em sessão na terceira terça-feira de setembro.

— Estaremos prontos. — MacLean estava confiante.

— É um documento básico, com vários usos. A minha su­gestão é uma impressão inicial de vinte mil cópias. . .

— É uma decisão que lhe cabe — disse John Spada.

— Preciso apenas de mil cópias... O que vou dizer agora é de importância vital. A partir do momento em que eu sair daqui, não terei mais qualquer vínculo legal com a Poseidon. É uma organização autônoma, sob o comando de vocês dois. O que quer que me possa acontecer, o que quer que escre­vam ou digam a meu respeito, não os afeta em nada. Os recursos estão fora do meu controle. Vocês é que determina­rão a política futura da organização, à luz dos acontecimentos mundiais. Ajudei a forjar uma arma. Agora, ela está nas mãos de vocês. . .

— Isso está parecendo uma despedida final — mur­murou Lajos Forman.

— Tão final quanto morrer — disse John Spada.

Maclean fitou-o como uma expressão grave e perturbada.

— Pensei que estivesse querendo que a Poseidon fosse o trabalho de sua vida.

— E ainda quero, Mac. Mas, depois do que aconteceu, num certo sentido passei a ser incompetente. Sou um homem marcado. Ou maculado, se assim preferirem. Não sou mais uma ajuda, mas sim um perigo constante. Assim. . .   está tudo agora em suas mãos, senhores! E eu lhes desejo boa sorte, que prestem serviços prolongados e honrados!

— Nós também lhe desejamos boa sorte, John — disse Andrew Maclean. — Entre em contato conosco, sempre que puder.

— Se não receberem notícias minhas, receberão da Proteu.

— Boa viagem, John — disse Lajos Forman. — E muita paz ao final.

 

A reunião mais difícil que Spada teve de enfrentar foi com Maury Feldman. Eram amigos há tanto tempo, o rela­cionamento entre os dois era tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexo que era brutal ter que terminá-lo com meias-verdades e evasivas. E, no entanto, era essa a regra básica pela qual haviam jogado durante toda a vida. Maury Feldman é que a formulara, um milênio antes, no pequeno escritório de Mott Street.

— Há duas coisas em mim que não mudam. Sou um filho da lei e um servo da lei. Todo o resto pode ser nego­ciado. Assim, se eu me tornar seu advogado, há duas condi­ções fundamentais: jamais me diga uma mentira, mas também não me revele uma verdade que eu não possa controlar. Se estiver em dúvida, conte-me uma parábola e eu a inter­pretarei como José fez com o sonho do faraó. Mas jamais me diga que cometeu um homicídio ou assinou um documento com intenção de fraude. Assim, para mim, você será sempre inocente, até que um júri o declare culpado. Está claro?

Já era bem claro naquela ocasião, estava mais claro do que nunca agora. Ao chegar ao apartamento de Maury Feld­man, Spada levava um presente: um anel de engaste, do século XVII, de proveniência comprovada, que pertencera outrora a um grão-duque da Toscana. A pedra era uma esmeralda, na qual estava gravada a figura de Eros.

Maury Feldman examinou-a com reverência e mur­murou:

— É linda. . . Mas o que fiz para merecer este presente?

— Nada — respondeu Spada, sorrindo. — Achei que iria apreciar ainda mais se soubesse que nada tinha feito para ganhar esse anel. Digamos que é um presente de despedida.

— O que posso dizer? Você nasceu um príncipe, John. Estou comovido. Não fique longe muito tempo, pois vou sentir saudade.

— Não vamos nos enganar um ao outro, Maury. À meia-noite da quarta-feira, estarei em pleno ar, partindo para longe. Quando eu voltar, se eu voltar, fique bem longe de mim. . . Serei um homem perigoso de se conhecer.

— John, o que quer que esteja planejando, é melhor esquecer. E digo isso porque é meu amigo e o amo. Não quero vê-lo a se colocar à margem da lei. Sabe que não é preciso muita coisa para isso. Bastam alguns passos para se ir da aldeia à selva.

— Toda a minha família está morta, Maury! Tem que haver alguma reparação por isso!

— "A vingança é minha", disse o Senhor. . .

— Pensa que estou procurando vingança? Não é nada disso, Maury. Você está a um milhão de quilômetros do caminho certo. Sempre achei que a vendeta era um culto inútil. Mas quero uma reparação por meus mortos! E, por Deus, vou consegui-la! E não será apenas com os assassinos de aluguel, mas com todos os grupos e sistemas que tornam esses horrores possíveis! Sou um homem civilizado, mas em apenas meio ano despojaram-me de tudo, deixaram-me nu, de volta ao barbarismo. E agora vão ter de lidar com a besta que criaram!

— O que vai fazer, John?

Spada sacudiu a cabeça.

— Lembre-se de nosso acordo, Maury. Nada de men­tiras entre nós. . . e nenhuma verdade que você não possa controlar. E nunca poderá controlar esta.

— O que posso dizer? — Maury Feldman deu de ombros, num gesto de impotência. — O que quer que aconteça, sou seu amigo. Sempre que precisar de mim, ainda sou seu advogado.

— Pode deixar que apresentarei a argumentação para este caso sozinho, Maury. E, ganhe ou perca, eu lhe prometo que o mundo jamais esquecerá o meu dia no tribunal.

— Bem que estou precisando de um drinque — mur­murou Maury Feldman. — Aceita também um conhaque?

— Obrigado.

Feldman serviu o conhaque com a mão trêmula. Levantaram os copos na direção um do outro e tomaram o primeiro gole em silêncio. Depois, mais calmo, Spada per­guntou:

— Leu as transcrições de Mike Santos?

— Li, sim.

— Qual a sua opinião?

— A mesma que a sua. O que pretende fazer com ele?

— Apresentar-lhe as provas. . . e despedi-lo.

— Não pode ficar só nisso. O homem é um criminoso. Conspirou para o assassinato da sua família. Há provas sufi­cientes para metê-lo na cadeia pelo resto da vida.

— Mas não estarei aqui para tratar disso. Tenho coisas mais importantes para fazer. . .   Assim, vou deixar Mike Santos aos cuidados de Deus.

— Não creio nisso, meu querido.

— Você estará em minha festa de despedida amanhã e poderá ver pessoalmente. Vou direto do apartamento para o Aeroporto Kennedy. Gostaria que me levasse de carro, se não fosse incômodo.

— Claro que não é incômodo nenhum. Kitty me disse que você vai encontrá-la em Roma. Aceite as minhas bênçãos. Acho que é maravilhoso para ambos. Tome conta dela, hem?

— Você e Kitty constituem a única família que tenho agora na América.

— É o que estou querendo dizer, John. Estamos juntos há muito tempo. Já vimos uma porção de filhos da mãe aparecerem e desaparecerem. Detesto a idéia de nos sepa­rarmos agora.

— Eu a mandarei de volta sã e salva.

— Ela não vai querer voltar.

— Darei um jeito para que volte.

— Quando me sinto assim desconsolado, tenho logo fome. Vai me pagar o jantar?

— Espaguete e vinho no Gino's. . .   em nome dos velhos tempos. Vai aceitar?

— Você sempre acerta na ferida — murmurou Maury Feldman, com um ar de infeliz. — Vamos!

 

Às cinco horas da tarde, no dia em que seria realizada a festa de despedida de Spada, um homem chamado Ruiz Patino saiu de um salão de massagens na Seventh Avenue. Um homem torto e desengonçado, dando a impressão de que só estava preso por barbantes, aproximou-se dele e disse em espanhol, no jargão típico de Buenos Aires:

— Continue andando. Seguirei ao seu lado. Preciso falar com você.

— Quem diabo é você?

Ruiz Patino era um homem condicionado a encarar com desconfiança encontros assim.

— Sou do quartel-general. Não me conhece. Eu o co­nheço. Seu nome é Ruiz Patino. Foi contratado por Marina Altamira. Seu último trabalho foi num lugar chamado Bay House. Seu ajudante foi Vespucci. Não precisa dizer nada. Apenas continue andando. Essa mulher, Altamira, virou-se contra nós. Está nos traindo. . . e isso inclui você e Vespucci também. Ela e o americano Santos estão fazendo um acordo com o FBI.

— Santa Mãe de Deus! Como posso acreditar em suas palavras?

— Se não quiser acreditar, vai terminar parando na cadeia. . . Vou lhe passar um envelope. Pegue-o e meta-o no bolso. Não o abra senão quando voltar para o seu quarto. Contém dez mil dólares. Cinco mil para você e cinco mil para Vespucci. Também contém uma fotografia de Santos e um endereço na Park Avenue. Esta noite, em algum mo­mento depois das nove e meia, Santos deixará uma festa nesse endereço. Um de vocês deverá cuidar dele. O outro deve eliminar a mulher, Altamira, no apartamento dela. E depois os dois devem deixar Nova York por uma ou duas semanas. Onde está Vespucci?

— No apartamento dele. Vamos nos encontrar às sete horas.

— Então tem bastante tempo. Com silenciadores, será um trabalho simples. Sem qualquer problema. Aqui está o dinheiro. E não se esqueça de dividir o dinheiro ao meio. É dinheiro do quartel-general. Eles são muito exigentes nessas coisas. E agora pode se afastar.

O homem desengonçado seguiu na direção da Fiftn Avenue. Ruiz Patino ficou a fitá-lo por um momento, aturdido, depois deu de ombros, resignado. Naquele negócio, não valia a pena ser curioso demais. E dez mil dólares era uma quantia muito superior à que haviam recebido pelo tra­balho na Bay House.

 

A festa de despedida de John Spada foi tensa e contida, ao contrário das reuniões dos velhos tempos, quando Anna presidia, sempre afetuosa e jovial. Naquele tempo, as bebi­das corriam livremente, a conversa era animada, as risadas espontâneas. Os homens faziam corte a Anna, enquanto Spada bancava o galante com as mulheres.

Naquela noite, o clima era triste, mais de lamentação que de comemoração. Spada ficou se deslocando a todo ins­tante pela sala, sem se demorar por muito tempo em qual­quer grupo, para que a sua presença não interrompesse o fluxo de irrelevâncias corteses ou recordasse os brutais acon­tecimentos recentes. Ele sentiu-se novamente, como já acon­tecera na casa de Von Kalbach, uma personagem fatídica, uma presença estranha. Desejou que Kitty estivesse presen­te. Seu bom humor brusco e obsceno teria pelo menos o efeito de eliminar o clima lúgubre da reunião.

Quando Mike Santos chegou, Spada ficou surpreso com a autoconfiança dele. Pediu desculpas por seu atraso. A par­tida de squash fora mais árdua que o habitual. Apresentou os cumprimentos da esposa ausente. Fez a ronda dos con­vidados, sorridente e confiante, a própria imagem de um príncipe reinante da indústria.

Foi cordial e solícito com Spada. Não deveria preo­cupar-se com nada. Deveria simplesmente divertir-se e apro­veitar as férias ao máximo. Qualquer coisa de que Spada precisasse, em qualquer lugar do mundo, Mike Santos iria providenciar. Chegara mesmo a comprar um presente, um par de abotoaduras de ouro, com o monograma de Spada em alto-relevo. Spada agradeceu com uma cortesia sóbria, impressionado com o descaramento do homem.

Percebendo o incidente, Maury Feldman aproximou-se e levou Spada para um lugar seguro, perto do bar. E per­guntou, num sussurro:

— O que vai acontecer, John?

— Por enquanto, nada. Trate de desfrutar o jantar.

— Quase fiquei engasgado! — Maury estava indigna­do. — Mas que coragem a dele!

— Todo porco sempre encontra o seu dia de banquete Era o mesmo provérbio que ele usara para o presidente da Argentina.

— Já ouvi isso antes. Mas, em vinte anos, nunca des­cobri o que significa.

— Um velho provérbio espanhol. Na Espanha, os ban­quetes tradicionais sempre têm um porco.

— Vivendo e aprendendo — murmurou Maury Feldman, voltando a se misturar aos convidados.

Alison Hirchfeld puxou a manga de Spada e disse:

— Tem mais coragem do que eu, John. Até que está uma noite agradável. . . num estilo um tanto triste.

— Fico contente por saber que está gostando, Alison.

— O seu Sr. Santos é uma coisa, com tanta simpatia e fascínio. Ele é bom mesmo no trabalho?

— Muito bom. — Spada mostrou-se cuidadosamente paciente, pois Alison não era de esquecer coisa alguma. — As Empresas Spada ficarão em boas mãos.

— Isso é muito, muito bom mesmo. . . Será que Car­los podia me preparar outro martíni? Detesto vinho.

— Pode deixar que eu mesmo vou preparar.

Pelo menos era um alívio para a mascarada. Spada estava preparando o drinque quando Mike Santos bateu palmas e pediu silêncio. Quando os murmúrios pela sala cessaram, ele anunciou:

— Senhoras e senhores, quero propor um brinde!

Spada comprimiu os punhos cerrados contra o balcão do bar, fazendo um tremendo esforço para se controlar.

— Será um brinde muito simples. Sem gracejos, sem frases sonoras. A um galante cavalheiro, John Spada! Que vá com Deus e volte para casa são e salvo!

Todos bateram palmas, ergueram os copos e beberam. E depois gritaram:

— Discurso! Discurso!

John Spada ergueu as mãos para pedir silêncio e come­çou a falar:

— Obrigado, Mike. Obrigado a todos vocês, meus queridos amigos! Sei que não é como nos velhos tempos. Nunca mais voltará a ser. . . Mas estou contente e grato por terem vindo. Partilharam os bons tempos comigo, ainda estão ao meu lado nos momentos difíceis. Só Deus sabe quando voltarei. Mas espero encontrar no regresso todas as mulheres tão bonitas quanto são hoje e os homens duas vezes menos barrigudos e duas vezes mais prósperos. Que Deus abençoe a todos vocês!

Era a maneira certa de encerrar. Todos aclamaram. As mulheres foram beijá-lo. Os homens apertaram-lhe a mão, deram-lhe palmadinhas afetuosas no ombro, desejando-lhe toda a sorte do mundo. Quando o êxodo começou, pouco depois, Spada reteve Mike Santos:

— Fique mais um pouco, Mike. Eu gostaria de tomar um último drinque com você e Maury.

— Claro, John, claro!

Quando a porta se fechou atrás do último convidado, Spada disse:

— Vamos deixar Carlos limpar tudo aqui. Levem seus drinques para a biblioteca.

— Faltam quinze minutos para as dez, meu querido — disse Maury Feldman. — Não devemos nos demorar muito.

— Já está tudo arrumado, Maury. Partiremos dentro de quinze minutos.

Eles sentaram-se nas poltronas de couro, enquanto Spada se empoleirava na beira da escrivaninha. Pegou uma folha de papel timbrado da Spada, assim como uma caneta esferográfica, estendendo-a na direção de Santos.

— Um último documento, Mike. Preciso de uma assi­natura.

— O que é, John?

— Seu pedido de demissão, a entrar em vigor imedia­tamente. Assine.

— Não estou entendendo. — Santos olhou de um para outro, aturdido. — Tenho um contrato de cinco anos.

— Está cancelado — disse John Spada.

— Não pode fazer isso!

— Pois ele acaba de fazê-lo — disse Maury Feldman. Assine o documento, Mike.

— Não!

Santos levantou-se abruptamente.

— Então está despedido — disse Spada.

— Também não aceito isso! Tenho o direito de co­nhecer as razões!

— Eu lhe darei quatro — disse Maury Feldman. — Anna Spada, Teresa e Rodo Vallenilla e um investimento no valor de dois milhões de dólares em Nassau, Bahamas, que foi seu preço por articular um assassinato.

Mike Santos empalideceu. Continuou de pé no mesmo lugar, sem conseguir falar, balançando para a frente e para trás.

John Spada disse:

— Dê uma olhada em si mesmo no espelho do vestíbulo, Mike. Espero que possa conviver com o que vai ver. Espero que seu pai ainda lhe sorria quando o encontrar.

— Isso. . . isso é uma loucura! — Santos finalmente havia recuperado a voz. — Está blefando. Se tem certeza, por que não liga para a polícia e manda me prender imediatamente?

— Temos as provas — disse Maury Feldman, a voz cansada. — Cópias dos registros do fundo em Nassau, a identificação de Marina Altamira como uma antiga agente argentina em Nova York, transcrições de algumas de suas conversas com ela, uma identificação dos dois homens que queimaram a Bay House. . . os nomes deles são Patino e Vespucci. Está satisfeito?

— Por que fez isso, Mike? — indagou Spada, fria­mente. — Não posso acreditar que tenha sido pelo dinheiro.

— Não admito nada! Vocês têm duas opções agora: ou me prendem aqui e chamam a polícia, sabendo que não vou resistir, ou me deixam sair livremente.

— Nosso   homem   tem   coragem   —   disse   Maury Feldman.

— Nosso homem é um Judas — acrescentou John Spada. — Um hipócrita ganancioso e ambicioso. . . um as­sassino por dinheiro, por dois malditos milhões de dólares!

— Ainda digo que é um blefe! — explodiu Mike Santos. — Ainda não me mostraram nenhum documento, absolutamente nada!

— Aqui está sua cópia.

John Spada jogou um envelope cheio aos pés dele. Santos abaixou-se e pegou-o, segurou-o nas mãos desdenhosamente e depois soltou uma risada.

— Então é essa a jogada! Não se atrevem a apresentar acusações contra mim porque sei tudo sobre a Proteu e posso espalhar a história pelo mundo inteiro, comprometen­do uma porção de pessoas. Em vez disso, querem que eu fuja ou estoure os miolos, como algum honrado herói vito­riano! Pois não há a menor possibilidade! Se me derruba­rem levarei junto as Empresas Spada e a organização Proteu!

Ele jogou o envelope de volta para Spada.

— Estarei de volta à minha sala pela manhã, Maury. Espero-o para o café. Faça uma boa viagem, John. E man­de-nos um cartão-postal de vez em quando. Boa noite, se­nhores!

Ele virou-se bruscamente e saiu da sala, lampeiro como um ator que consegue uma saída em grande estilo. Assim que a porta se fechou atrás dele, Maury Feldman disse:

— O que será que ele vai fazer agora?

— Não tenho a menor idéia — disse John Spada. — Mas vamos definir o que aconteceu aqui. Nós três tomamos um último drinque juntos. Mike foi-se embora. Não disse para onde ia. É a verdade, não é mesmo?

— É uma verdade com que posso lidar — declarou Maury Feldman.

 

Enquanto o avião seguia para o norte, ainda subindo para alcançar a altitude de cruzeiro, o Espantalho sentou-se ao lado de John Spada.

— O trabalho está feito.

— Confirmado?

— Confirmado. Henson estava vigiando a casa. Segui Santos no momento em que saiu do seu apartamento. Ele parou para dar um telefonema de uma cabina na 71st Street. Patino alvejou-o lá dentro. Henson estava vigiando o apar­tamento de Altamira. Vespucci entrou e saiu quatro minutos depois. Henson e eu fomos para o aeroporto e ficamos esperando. Não vimos qualquer indício de que o estejam vigiando.

— Onde está Henson agora?

— Está no vôo da British Airways. Vamos nos encon­trar em Londres e coordenar a operação européia de lá. Depois, irei organizar tudo na América do Sul. Estarei em Nova York quando você voltar.

— E a mercadoria?

— Henson está levando alguma. Eu também. E isto é seu. Entregou a Spada uma caixa de charutos, de couro contendo quatro charutos. — Os frascos estão dentro dos charutos. Cada um está envolto num papel em que estão escritas as instruções para a reprodução das culturas. É mui­to simples. Pode ser feito até numa cozinha comum. . . Al­guma mudança em seus planos?

— Não. Vai receber notícias minhas quando eu estiver pronto para entrar em ação. O importante é que todos com­preendam o que deve acontecer se minhas comunicações forem suspensas,

— Nossos homens compreenderão. Não posso falar pelos outros.

— É justamente o que estamos querendo. Os outros devem responder por si mesmos.

— Fico imaginando se você próprio compreende o que o aguarda — comentou o Espantalho. — Toda cidade precisa de um caçador de ratos para entrar pelos esgotos, mas nenhum dos seus cidadãos o convida para jantar.

— Entendo o que está querendo dizer. E sinto-me bastante tranqüilo em relação a isso.

Spada estava falando a verdade. Sentia-se bastante calmo; no verdadeiro sentido da frase arcaica, estava em paz. . . embora a paz fosse a quietude do desespero.

O assassinato de sua família lançara-o numa nova dimensão, além da lei, além da razão, além da culpa, além de toda especulação filosófica ou religiosa. Ele estava lá, pura e simplesmente. Ninguém poderia chamá-lo de volta. Não podia recuar, mesmo que tivesse vontade, porque seu inte­lecto estava preso, como ferro num ímã, sua vontade conge­lada, como a dos mortos, na disposição de seu último mo­mento de existência. Sem uma certeza tão imperativa, o ato que estava agora planejando teria sido impossível.

Os ratos eram muitos e por demais selvagens. Os es­gotos em que viviam eram por demais sombrios e compli­cados. Além do mais, a cidade e os cidadãos eram, de uma estranha maneira, aliados dos ratos. Era como se desejassem que os ratos vicejassem, para justificar seus próprios temores secretos, as crueldades que se infligiam mutuamente.

"Não é que sejamos maus", diziam eles. "Os ratos é que nos obrigam a ser assim. Não somos nós que lançamos nossos irmãos em infernos e hospícios. A culpa é dos ratos que os infestam e nos obrigam a destruí-los para prote­ger-nos."

Assim, o caçador de ratos podia ser um honrado servi­dor na teoria, mas ao final os burgueses sempre se mostra­vam relutantes em pagá-lo. Se não pagassem, então deviam aprender a mesma lição brutal que o Flautista de Hamelin ensinara aos habitantes dessa cidade: as colinas se abririam para tragar seus filhos, de tal forma que nunca mais seriam vistos.

Era uma operação digna da Proteu, divina em sua sim­plicidade, terrível em suas conseqüências. Os planos haviam sido preparados há muito tempo, como um exercício estra­tégico. Os meios estavam à sua disposição. Cada um dos quatro frascos na caixa de charutos continha culturas que podiam ser multiplicadas indefinidamente. Produziriam toxi­nas suficientes para contaminar uma dúzia de grandes cida­des. Tudo de que Spada precisava — e isso estava agora implantado nele, quase que por uma intervenção cirúrgica — era a coragem e a convicção para executar o plano. Ao voar pelo Atlântico, através da escuridão estrelada, ele pen­sou nas reações que o tinham levado àquela decisão terrível.

A maioria das pessoas era, no fundo, bem-intencionada. Mas, em ação, quase todos eram hipócritas. Derramavam lágrimas sinceras por uma criança morta na rua, mas aceita­vam indiferentes as mortes de centenas de milhares de ou­tras, por subnutrição. A perda de um bote salva-vidas era uma tragédia épica; o genocídio tribal era um parágrafo lido apressadamente e rapidamente esquecido. Sessenta mortos num acidente ferroviário era um desastre; seis milhões de mortos nos campos de extermínio, uma estatística histórica. Os caridosos eram capazes de promover uma ponte aérea para transportar mil toneladas de alimentos para as vítimas de um terremoto; não levantariam a voz ou a mão em defesa de vinte mil pessoas lançadas ao esquecimento como dissi­dentes desaparecidos.

Diziam que não podiam compreender. O mundo e seus meandros políticos eram complicados demais. Essa não!. . Agora, iriam aprender como podia ser brutalmente simples. E, se o condenassem como um fanático, por que continua­vam a aceitar um ditador apoiado pelo exército ou um tra­ficante de armas que promovia a devastação em nome do comércio? A arma mais forte do arsenal dos tiranos era o medo. Agora, ele iria voltar essa arma contra os tiranos, não num combate singular, mas num brusco movimento uni­versal.

Iria fazer pairar sobre todos a ameaça de uma morte insidiosa e os desafiaria a ignorá-la. Iria proclamar um de­creto simples e brutal:

"Abram suas cadeias e acabem com seus Palácios de Diversões. Deixem os prisioneiros saírem. Se não o fizerem, eu, John Spada, que nada tenho a perder, transformarei suas cidades, uma a uma, em cemitérios".

 

A partir do momento em que desembarcou em Lon­dres, John Spada começou a apagar sua pista. Logo depois que passou pela imigração e pela alfândega, foi para o ter­minal 2 e comprou uma passagem para Zurique, usando o nome de Erwin Hengst. De Zurique voou para Roma, com o passaporte de Hengst, alugou um carro no aeroporto e seguiu direto para a viíla do tio Andréa, em Frascati.

O velho e a tia Lisa proporcionaram-lhe uma recepção emocionante. Ele teve de reconstituir para os dois todos os detalhes desde a Páscoa, mas encontrou uma certa espécie de terapia no relato. Aqueles eram os anziani, os mais velhos da tribo, seu vínculo com o passado, seus conselheiros e consoladores mais apropriados. Para aqueles dois, podia con­tar a verdade. Não iriam julgá-lo pelos códigos humanos, mas pelos precedentes de uma história longa e violenta. Porque ele era da família, iriam protegê-lo de perseguidores e inquisidores. Iriam proporcionar-lhe um sono seguro, aju­dá-lo nas viagens secretas e, ao final, suplicar um julgamento misericordioso para ele por uma Divindade compreensiva.

Depois que o longo relato terminou, a tia Lisa enxugou os olhos e retirou-se, a fim de tomar as providências para o jantar e ordenar aos empregados que se mantivessem em si­lêncio. O Signor Giovanni não estava ali. Nunca estivera. Estava dominado por uma dor profunda e devia ser deixado paz. O tio Andréa pegou Spada pelo braço e levou-o a dar uma volta pelo terraço, a contemplar o pôr-do-sol. Spada tirou um envelope do bolso e entregou-o ao velho.

— Aí está explicado como distribuí tudo o que é meu, tio. Maury Feldman tem as instruções e procurações neces­sárias. Quando eu morrer, ele vai pegar os arquivos da Proteu no cofre e passará a administrar a organização como eu fiz no passado.

O tio Andréa apertou-lhe o braço e levou-o até a mureta de pedra, de onde podiam contemplar os vinhedos e bosques de oliveiras descendo até o Tibre. O tio Andréa disse, gravemente:

— É jovem demais para falar em morrer, Giovanni. E ainda não é velho demais para encontrar outra família. Não pode passar o resto da vida de luto.

— O luto já acabou, tio. Vou percorrer o mundo fazendo contato com o pessoal da Proteu e instalando uma rede de informações para as nossas publicações. Estou via­jando com uma mulher, uma velha amiga. Ela está neste momento à minha espera na cidade.

— Deveria tê-la trazido para cá.

— Não, tio. É uma relação exclusivamente entre ela e mim. Nada tem a ver com a família.

— Nesse caso — disse o tio Andréa, visivelmente aliviado —, é melhor vocês se desfrutarem mutuamente longe da tribo. . . Mas diga-me uma coisa: se tem uma mu­lher, por que essa conversa de morrer?

— É apenas um exercício. — Spada tentou transfor­mar o comentário num gracejo. — Quero me acostumar à idéia, a fim de que ninguém possa novamente me assustar com isso.

— Não é um bom pensamento para se levar para a cama com uma mulher. — O tio Andréa sorriu maliciosa­mente. — Pode ter conseqüências desastrosas. E agora, meu sobrinho. . . — Subitamente, ele se tornou brusco e domi­nador, o velho cioso dos seus direitos. — Falou muito, mas não disse nada. O que vai fazer com a sua vida daqui por diante?

— Vou jogar com ela.

— E quais serão as apostas?

— Um momento, um único   momento   na história quando o mundo inteiro vai parar, escutar e compreender toda a loucura que o está afligindo.

— E será o homem que vai dizer tudo isso?

— Isso mesmo.

— Pode gritar tão alto?

— Posso.

— E se o mundo rejeitar o que disser?

— Muitas pessoas irão morrer.

— E você será o carrasco?

— Exatamente.

— Falou em loucura. Tem certeza de que está mesmo são, Giovanni?

— Creio que sim. Não estou aqui conversando nor­malmente?

— Vai usar o pessoal da Proteu nisso?

— Vou. Há alguns que acreditam que a benevolência é suficiente. Há outros, como eu, que acreditam que chegou o momento de lutar. Esses serão os meus homens do Juízo Final.

— Não tem o menor direito de lhes ordenar algo assim!

— Nunca lhes ordenei coisa alguma, tio. Eles sempre tiveram plena liberdade de dizer sim ou não a qualquer projeto.

— Não participarei disso.

— Eu jamais lhe pediria, tio. Assim como também não pedi a Maury Feldman.

— Mesmo assim, o que vai propor envolve todos.

— Sempre foi assim, tio. Há muito tempo, fixamos um princípio para toda a família Proteu. Os irmãos podem discordar, mas continuam a ser irmãos. Numa guerra, podem ser forçados a lutar entre si, mas nem por isso a família acaba.

— Compreendo agora por que se prepara para a morte — disse o tio Andréa, sombriamente. — Mesmo eu, que o amo, poderia chegar à conclusão de que é necessário matá-lo.

— E eu provavelmente o abençoaria por essa bondade. — Spada passou o braço pelos ombros do velho, apertando-o. — Nunca discutimos; não vamos começar agora. Estou na arena para lutar contra os carniceiros. Desaprova o que eu faço; é um direito seu. Mas pelo menos lembre-se de que minha vida é que está em jogo. . .

— Eu sei, Giovanni, eu sei. . . — O tio Andréa estava desolado. — Mas já vi muitos mortos, e os jovens passarem com tanques sobre suas sepulturas sem um pensamento sequer.

— A tragédia não é a morte, tio, mas sim o esqueci­mento. Por isso, darei ao mundo um momento para recor­dar. . . Ma noi due. . . almeno noi dobbiamo fare la pace. . . Mas nós dois, pelo menos nós dois devemos fazer a paz. Vou ter que partir de manhã bem cedo.

— Ainda vai levar as suas flores para a Fosse Ardeatine?

— Vou, tio.

— E o que vai dizer aos mortos? Que eles em breve terão mais companhia?

— Vou dizer que ainda estamos em luta contra os tiranos. . . e que ainda há um Spada entre os combatentes!

O velho estremeceu. Spada puxou-o para junto de si, a fim de esquentá-lo.

— Não é nada — disse o tio Andréa, bruscamente. — Sempre sinto frio quando o sol se põe.

— É como se fosse um sonho — murmurou Kitty Cowan. — Um sonho lindo e maravilhoso. . .

Estavam parados no jardim do templo de Ryoanji, con­templando um mar de areia branca que se agitava formando ondas em torno das rochas pretas ali plantadas séculos antes pelo grande Soami. O sol estava alto no céu, as sombras dos sulcos na terra sobressaindo distintamente, as rochas pro­porcionando uma sensação de vigor e tranqüilidade, como o sonho de Buda.

John Spada permaneceu calado por um longo tempo, antes de responder:

— É o lugar em que tudo se encontra, sem discussões, sem distrações, apenas tranqüilidade.

— Quando me falou a respeito disto aqui em Tóquio, com toda aquela confusão e as luzes feéricas, pensei que seria um lugar triste e vazio.

— O homem que me mostrou este lugar pela primeira vez agora está morto. — John Spada foi dominado por seu devaneio. — O nome dele era Takeshi Sai to. Levara uma vida estranha e violenta, primeiro como soldado na Guerra Sino-Japonesa e depois como uma espécie de capanga para uma quadrilha de Tóquio que vendia proteção. E finalmente ele se tornou um monge zen.

— Como? Por quê?

— Ele jamais quis me dizer exatamente. O máximo que falou foi que um dia entrou num silêncio. . . Depois de algum tempo, compreendi que não havia realmente necessi­dade de qualquer outra explicação. Conheci-o quando alguns colegas japoneses me trouxeram para uma excursão turística por esta região. Takeshi mostrou-nos tudo. Nós dois nos demos muito bem. Fiquei impressionado com a calma intensa que o envolvia. E creio que ele viu em mim algo do seu antigo e irrequieto ego. Depois disso, passei a procurá-lo sempre que vinha ao Japão. Passei algumas noites no mos­teiro. Foi Takeshi quem me explicou o jardim. Ele disse: "A areia se move porque está imóvel; as rochas falam por­que estão silenciosas..."

— Estou contente de que tenha me trazido até aqui, John — disse Kitty Cowan, suavemente. — Nunca o vi tão relaxado em muitos e muitos meses.

— Ainda não pude parar.

Kitty Cowan ficou surpresa com o comentário enig­mático.

— Ainda não pôde parar o quê?

— Estava pensando em outra coisa que Takeshi costumava dizer: "Um homem não chega senão quando pára de viajar".    

— Chegar aonde?

— A um lugar que não é lugar, a um tempo que não é tempo. — Spada sorriu ao perceber a perplexidade dela. — É um enigma zen, Kitty. Você está espantada porque parece ridículo. Mas depois, se você tiver sorte, chega um momento, chamado satori, em que descobre que não é abso­lutamente ridículo, mas profunda e simplesmente verdadei­ro. . .   Há outro jardim aqui, muito mais fácil de com­preender.

Spada afastou-a gentilmente do jardim de areia imóvel e expressivo. Passaram novamente pelo templo e saíram para um parque de cedros, bordos e poços de pedra, cercado por azaléias e rododendros. Ele sentou-se num banco que tinha um grande lampião de pedra ao lado, mostrou-lhe as carpas douradas que deslizavam pela água serena.

— Está apreciando seu piquenique, Kitty Cowan?

— E como! Cada hora de cada dia e cada noite!

— Mesmo com Erwin Hengst?

— Por causa de Erwin Hengst. . . O que é engraça­do. A princípio, detestei tudo, porque o nome era alemão, porque eu concordara em viajar com John Spada e não com algum. . . algum ator desempenhando um papel que eu não podia compreender. Fiquei imaginando por que não me le­vava a todos aqueles lugares sobre os quais ouvi você e Anna falarem: o Ermitage em Leningrado, a Acrópole, o Taj Mahal, os hotéis famosos. . . Fiquei desapontada, mas pensei que talvez não quisesse partilhar comigo o passado que teve com Anna. Mas depois compreendi que não queria aparecer em lugares nos quais era conhecido ou encontrar-se com pessoas em cuja companhia não queria ser visto. Assim, procurei tirar o melhor proveito da situação. . .

Kitty parou de falar de repente. Spada impeliu-a a continuar, gentilmente:

— E depois?

— Depois, compreendi como era íntima e especial a experiência que você estava me oferecendo, quanto de si mesmo estava me mostrando. Erwin Hengst era um sonha­dor, uma espécie de poeta. . . Lembra-se daquele dia em Torcello, quando nos sentamos na velha basílica de mãos dadas e ficamos contemplando aquela maravilhosa Madona em mosaico? Ficamos lá quase meia hora, sozinhos, praticamen­te sem falar. . . À noite, ficamos deitados na cama escutan­do as rãs e os pássaros noturnos, enquanto você me contava histórias dos velhos doges e do comércio no Adriático. Eram como os contos de fadas que eu lia nos tempos de criança. Foi nesse momento que a magia começou a exercer seus efeitos, que ainda não cessaram desde então. Samarcanda, Bangkok, Sydney, aqueles dias maravilhosos na ilha de Coral. . . e agora isto! Sinto-me como se tivesse vivido uma vida inteira em poucas semanas. Eu, Kitty Cowan, do Brooklyn!

— E agora está quase chegando o momento de ir para casa — disse Spada, gravemente.

— Tenho medo disso. — Os olhos de Kitty se enche­ram de lágrimas. Ela pegou um lenço e assoou o nariz vi­gorosamente. — Oh, diabo! Diabo! Diabo! Prometi a mim mesma que não faria isso. E agora estou estragando tudo!

— Não! — John Spada pegou seu próprio lenço e enxugou as lágrimas das faces dela. — Também não estou me sentindo muito feliz. Mas quero que saiba que apreciei o piquenique tão intensamente quanto você. E estou conten­te de que tenha gostado de Erwin Hengst.

— Adoro o alemão idiota!

— Ele também a ama, Kitty. O que é engraçado. Ter outro nome tornou mais fácil ficar apaixonado.

— Mas o que vai acontecer agora com ele?

— É melhor não perguntar, menina, porque será in­terrogada quando voltar e nunca foi uma mentirosa muito boa. Teve um lindo romance com um alemão. Basta! Foi maravilhoso enquanto durou, e uma mulher tem direito de manter sua intimidade. Se começarem a pressioná-la demais, fique de boca fechada.

— Não posso suportar ficar sem saber o que vai acon­tecer com você!

— Ao final, você acabará sabendo. Prometo.

— E acha mesmo que posso me contentar com essa promessa?

— Deve! — A voz de Spada era subitamente firme e incisiva. — É a única coisa que exijo de você!

— Aquelas pessoas que não me deixou conhecer. . . elas sabem mais do que eu?

— Sabem. Mas acontece que você estará sob uma ameaça maior. Por favor, menina, confie em mim.

— Está bem. Mas pode responder pelo menos a uma pergunta?

— Eu gostaria de saber primeiro qual é.

— O que realmente aconteceu com Mike Santos? Quando lhe mostrei a notícia da morte dele no Herald Tribune, disse que não queria falar daquilo. Pois muito bem! Eu fui uma boa menina e não quis estragar nosso piqueni­que. Mas agora preciso saber. E se eu me encontrar nova­mente com a esposa dele?

— Ela está oprimida por seus mortos. Deixe que Mike continue sepultado.

— Ele era um dos nossos, John. . .

— Não! Ele nunca foi um dos nossos. Lembra-se daquele discurso que ele fez, dizendo que seus antepassados provavam a terra para saber se estava doce ou amarga? Acho que tudo tinha um sabor amargo para Mike Santos, exceto a sua própria ambição. Ele só podia ser feliz lá em cima. Não se deteria diante de nada para permanecer no alto. Conspirou para matar Anna, Teresa e Rodo. Eu era o próximo de sua lista. Usou o dinheiro que recebeu pelas mortes para comprar o seu primeiro grande lote de ações das Empresas Spada. Depois disso, ele poderia ir aumentan­do a sua participação, ano após ano, até ficar como o fiel da balança.  

— Mas isso é horrível!

Kitty fitava-o com uma expressão horrorizada.

— Horrível, mas verdadeiro.

— Quem o matou?

— Eu é que mandei matá-lo — disse John Spada. — Não pode ser provado. E duvido muito de que alguém se empenhe a fundo para descobrir o culpado.

— E como John Spada se sente em relação a isso?

— Não sente absolutamente nada. Já é um homem morto. Foi por isso que Erwin Hengst a trouxe para este piquenique.

— Obrigada por me dizer. — Kitty puxou-o ao seu encontro e beijou-o nos lábios. — De certa forma, faz com que tudo se torne um pouco mais fácil. É que eu também amava John Spada. Não é toda mulher que consegue encon­trar duas vezes um grande amor. Obrigada, meu querido. Acho que devemos partir agora. Estou pronta para voltar.

— Antes de irmos, tenho mais uma coisa a dizer, Kitty. Maury Feldman ignora tudo isso. Portanto, não lhe conte nada.

— Eu não ia mesmo contar. Já esqueci tudo, exceto os contos de fadas. . . e o amor!

Ao atravessarem os bosques, um vento frio fez farfalhar as folhas e agitou a superfície dos lagos. Ainda era verão, mas em breve chegaria o outono, que os japoneses chamam de "o tempo dos bordos em chamas".

 

Um dia depois que Kitty Cowan deixou Tóquio, John Spada iniciou os últimos rituais de sua existência privada. Fez um embrulho de todos os seus documentos pessoais — passaporte, cartões de crédito, talão de cheques — e despa­chou-o para Maury Feldman, registrado, via aérea. Exami­nou todas as suas roupas, desfazendo-se de todas as que tinham uma etiqueta de Nova York e mantendo apenas as que comprara na Europa. Foi ao consulado americano e preencheu um formulário solicitando o visto de entrada nos Estados Unidos para Erwin Hengst. Depois, pegou um táxi até Nihonbashi, onde passou duas horas, numa casa de chá pequena e antiquada, almoçando com um bacteriologista da Universidade de Tóquio.

Depois do almoço, foi a uma gráfica em Yoshiwara, que lhe entregou um maço de papéis com o símbolo do peixe no quadrado. Da gráfica, foi a um idoso calígrafo, que copiou um documento escrito a mão. O documento estava em inglês, e assim o velho não podia compreender o seu conteúdo. À noite, sozinho e desolado, Spada foi a um rui­doso níghtclub. Às duas horas da madrugada, cansado do barulho, voltou para o hotel e escreveu uma carta para Kurt Deskau, enviando-a para o endereço particular de Kurt em Munique:

 

"Prezado Kurt,

Tenho certeza de que vai compreender por que não lhe escrevi antes. Tenho estado como uma vítima de terre­moto, aturdido e atordoado, empenhado em manter a sani­dade. Sinto-me grato pela sua preocupação com a minha segurança e pela amizade que a inspira. Contudo, devo dizer-lhe que estou agora quase no fim da estrada que leva ao lugar em que será travada a minha última batalha. Estou calmo, mesmo sabendo que provavelmente não sobrevive­rei; mas pelo menos deixarei um testamento aberto, farei uma derradeira investida contra a iniqüidade em expansão.

Quer saber dos documentos de Erwin Hengst. Tenho que usá-los mais uma vez. Depois, vou enviá-los de volta a você, antes que lhe possam fazer quaisquer perguntas em­baraçosas a respeito disso.

O que mais posso dizer? Envio-lhe uma última saudação de um homem parado à beira do mundo, olhando para o nada. Não tenho remorsos, apenas uma pequena esperança: de que tudo que estou prestes a fazer vá mostrar a inevitável conseqüência da violência do homem contra os seus semelhantes.

Meus cumprimentos afetuosos e agradecimentos sin­ceros,

John Spada."

 

Ele largou a caneta e continuou sentado por um longo tempo a olhar para a assinatura. Era a última vez que a usaria em qualquer documento, a última afirmação de que John Spada ainda estava entre os vivos.

 

A primeira sessão anual da Assembléia Geral das Na­ções Unidas estava marcada para a terceira terça-feira de setembro. Uma semana antes dessa data, um pacote lacrado chegou à sala de correspondência da onu. Estava marcado "Pessoal e urgente" e endereçado ao secretário-geral. A ve­rificação de segurança costumeira revelou que o pacote con­tinha uma carta, uma volumosa lista datilografada e uma pequena caixa acolchoada com algodão, com duas ampolas, uma delas contendo um líquido e a outra uma pequena quantidade de pó branco cristalino. As ampolas foram ime­diatamente enviadas para o laboratório, a fim de serem exa­minadas. O chefe de segurança encarregou-se de entregar a carta e a lista pessoalmente ao secretário-geral. Às oito horas da noite, o secretário-geral leu-a em voz alta para os seus colegas da secretaria:

 

"O símbolo que encima este papel representa Proteu, pastor das criaturas do mar, guardião do conhecimento, o deus esquivo de muitas formas. É também o símbolo da organização de que sou fundador e que, como Proteu, fun­ciona em muitos lugares e sob muitos disfarces.

Quando o senhor ler esta carta pela primeira vez, cer­tamente se sentirá tentado a dizer: 'Mas isso é coisa de louco!' Eu lhe peço que não ceda a essa tentação. Como o senhor vai verificar, esta carta não contém nenhuma pro­posta que não possa apoiar, juntamente com seus colegas, nenhuma exigência que a ONU já não tenha feito, repetidas vezes: quero apenas a libertação dos prisioneiros de cons­ciência, a abolição da tortura, a restauração dos direitos de livre expressão, livre reunião, julgamento justo, o direito de desfrutar a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

O fato de que já fizeram essas exigências é uma questão que pertence à história. O fato de que foram incapazes de impô-las é uma questão de pesar universal. Contudo, agora que se pode impô-las, suplico-lhe e a seus colegas, em nome da humanidade, que não as rechacem.

Com esta carta, o senhor receberá também duas ampolas de vidro. O líquido de uma delas é uma cultura viva do bacilo de botulismo tipo A. O pó é a toxina do botulismo, um veneno mortal. Qualquer bacteriologista poderá infor­mar que tanto a cultura como a toxina podem ser produzidas rapidamente, em condições de laboratório elementares, e que basta uma pequena quantidade para contaminar o abastecimento de água de qualquer cidade grande.

Minha organização, que existe em todos os grandes países, possui as culturas, toxinas e instalações de laborató­rio. Assim, está em condições de criar, no mundo inteiro, uma sucessão de desastres biológicos, contra os quais não existe qualquer remédio adequado.

Sei que, neste momento, as palavras familiares lhe sur­girão à mente: seqüestro, chantagem, terrorismo. Suplico-lhe que reflita sobre outra palavra: sanção. Estou colocando em suas mãos, senhor secretário-geral, o único poder de que o senhor jamais dispôs: o poder de impor uma decisão da ONU por sanção, por uma penalidade sem reparação. Se não está disposto a usar esse poder, então permita que eu o use, até que as minhas e suas legítimas exigências sejam atendidas.

Junto com esta carta, estou enviando uma lista, necessariamente incompleta, dos locais de detenção em que homens e mulheres estão confinados, sendo interrogados e torturados, numa negação de todos os princípios de humani­dade. Há ainda relações de prisioneiros, também incomple­tas, já que o sigilo é a arma de todos os tiranos. Peço e exijo que tais locais de detenção sejam abertos, os prisioneiros soltos e enviados de volta a suas casas, dentro de vinte e um dias a partir desta data. A libertação desses prisioneiros deve ser supervisionada e confirmada por observadores de organismos internacionais, designados pela ONU.

Quero também que esta exigência seja comunicada na primeira sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas; quero ainda que a Assembléia me convide, no dia seguinte, para defender o meu caso perante os seus membros.

Se e quando os prisioneiros forem libertados, todos os suprimentos de culturas e toxinas nas mãos da organização Proteu serão imediatamente destruídos. Imediatamente de­pois, eu me entregarei à custódia do país do qual sou cida­dão e aceitarei, sem contestação, todas as penalidades pre­vistas por suas leis. Se as exigências não forem atendidas, os desastres começarão. Não tenham a menor dúvida quanto à magnitude e continuidade de tais desastres.

Permita-me fazer agora uma exposição. Não pertenço a nenhum partido político, nem de esquerda, nem de direita. Não estou filiado a nenhuma causa nacional, e defendo apenas a causa dos que não podem falar porque estão privados do direito de fazê-lo. Não tenho qualquer ambição pessoal. A partir do momento em que estiver sob custódia, não terei qualquer futuro humano. Mas estou feliz em aceitá-lo, a fim de poder realizar tudo a que me propus.

Imediatamente depois da primeira sessão da Assem­bléia Geral, telefonarei para o seu gabinete, a fim de tomar conhecimento da decisão. Se for afirmativa, a Assembléia deve garantir minha imunidade dentro dos limites do prédio da ONU. Se a decisão for negativa, então não há mais nada a dizer. A ação se seguirá, tão certamente como a noite se segue ao dia.

E assim me despeço, senhor secretário-geral,

Com profundo respeito, Atenciosamente,

Proteu."

 

O secretário-geral baixou a carta e olhou para os seus colegas. Estavam todos calados e sombrios. Ele virou-se para o chefe da segurança:

— O que tem a nos dizer, Coronel Malin?

— Primeiro, os fatos mais simples. Espero que com­preendam que é uma investigação preliminar, realizada pelo serviço de segurança da ONU. O secretário-geral achou me­lhor não envolver organizações externas, a menos e até que isso fosse considerado necessário.

O Coronel Malin era um flamengo áspero e objetivo.

— O pacote foi despachado de Nova York. A carta está escrita em papel japonês à mão. O símbolo foi gravado com um clichê de madeira. A lista das pessoas presas foi datilografada numa máquina IBM, de esfera. O tipo usado é o que se costuma chamar de "letra gótica". O papel é do tipo comum, que se pode comprar em qualquer loja dos Estados Unidos. Os frascos contêm exatamente o que está descrito na carta: cultura viva do bacilo de botulismo e toxina cristalina de botulismo. Encaminhei a cultura e a toxina ao bacteriologista-chefe do Hospital Bellevue. Ele confirma o que está escrito na carta. O bacilo é do tipo A. A toxina é letal. A ameaça é real. A carta foi escrita numa caligrafia antiquada, como a que costuma ser usada pelos copiadores de documentos legais. Certos ornatos são carac­terísticos dos calígrafos japoneses que escrevem no alfabeto romano. Pode ter sido escrita por um japonês, no Japão, ou pode ter sido planejada de maneira a nos levar a essa con­clusão. As informações sobre prisioneiros políticos são acura­das e mais detalhadas do que as possuídas pela Anistia Inter­nacional e pela Cruz Vermelha. Ainda não tivemos tempo de entrar em contato com todas as organizações que lidam com esse tipo de informações. O tom da carta é cuidadosamente apolítico. O estilo é de um homem culto. Na minha opinião, devemos levar a ameaça a sério. Se me permitem, gostaria de fazer mais uma observação. É evidente que Proteu está a par da maneira como funciona a ONU. Ele escreve formal­mente ao secretário-geral, que é obrigado a levar o problema ao conhecimento da Assembléia Geral, que tem competência exclusiva para consentir em seu comparecimento perante os membros, como fez no caso de Yasser Arafat. . .

O secretário-geral fitou os colegas e disse:

— É esse o problema, senhores. Uma carta de exigências de um homem inteligente e culto, representando uma organização de dimensões desconhecidas e apoiado por uma ameaça autêntica de desastres sucessivos. . . Como devemos reagir?

— Eles vão responder com uma observância rigorosa do protocolo — disse o Espantalho. — O secretário-geral vai encaminhar o assunto aos chefes das delegações à Assem­bléia Geral. Eles transmitirão os fatos a seus respectivos governos, pedindo instruções. O chefe da segurança vai en­trar em contato com o Departamento de Polícia de Nova York, que tem jurisdição sobre as questões criminais na área da ONU. A polícia de Nova York, por sua vez, prova­velmente encaminhará o problema ao FBI, que vai solicitar informações à CIA e a outros serviços de informações secre­tas dos Estados Unidos.

— E, no final, todas as trilhas levarão a mim — disse John Spada. — E toda organização policial do mundo vai querer chamar-me para uma conversinha.

— Foi você mesmo quem quis assim. — O Espantalho deu de ombros. — Esse jogo de terror é teatro em grande estilo.

Escavam sentados ao sol, na Washington Square, dois homens que não chamavam qualquer atenção, ambos de calça esporte e, camisa de malha, jogando damas. Os cabelos de Spada estavam cortados rente. Tinha uma barba de três dias, usava óculos escuros e um par de sapatos ortopédicos, o que afetava seu equilíbrio, obrigando-o a andar com a ajuda de uma bengala. Estava morando a dois quarteirões dali, num hotel de segunda categoria, no qual se registrara como Erwin Hengst. Ficar tão mal alojado era, como o Espantalho ressaltou, um ato desnecessário de masoquismo. Mas o raciocínio de Spada era simples. Ninguém podia ima­ginar que ele alterasse tanto seus hábitos. Podia se deslocar livremente e dormir profundamente. Além disso, havia uma certa satisfação no exercício: um lobo solitário aprendendo as lições de sobrevivência num ambiente de total indiferença.

O Espantalho comeu duas peças dele e fez uma dama preta. E disse placidamente:

— Vamos supor que a Assembléia Geral concorde com a sua exigência e lhe ofereça imunidade dentro do prédio da ONU. Como vai chegar lá? Não se esqueça de que será preso lá fora, assim que for reconhecido.

— Estou convencido de que eles não se atreverão a divulgar o assunto antes de a Assembléia Geral o debater ou chegar a um consenso sem debates — disse John Spada. Farão todo o possível para evitar o pânico. Se consentirem em receber-me, com a garantia de imunidade, desem­barcarei de um helicóptero na área da ONU.

— E a partir desse momento estará preso numa arma­dilha. Será preso assim que tentar deixar a área.

— Mas você e os outros continuarão livres. Isso é o que importa. Eu já não serei necessário.

— Espera ser morto?

— Eles vão ter que se livrar de mim — disse John Spada. — Minha própria gente ou outra qualquer. Se me levarem a julgamento, a divulgação será inevitável.                

— Já pensou que podem preferir mantê-lo vivo e submetê-lo a um interrogatório? Tem muita coisa a contar. . . e, ao final, terminará contando tudo.

— Claro que pensei nisso também. — Spada preparou uma armadilha para a dama preta do Espantalho. — Lem­bro-me perfeitamente do que fizeram com Teresa e Rodo. Por isso, tratei de tomar as minhas precauções. Sempre levo comigo uma cápsula de cianureto.

— Era necessário ter certeza. — O Espantalho assentiu em aprovação. — Não tenho a menor intenção de ingres­sar ao seu lado na lista dos mártires.

— Eu não contava com isso.

Spada sorriu. O Espantalho indagou:

— Já pensou também que eles podem não acreditar que você possa ou queira retirar a ameaça?

— Por que não?

— A partir do momento em que se abre a caixa de Pandora, todas as pragas escapam. Ninguém jamais conse­gue metê-las novamente na caixa. Esse é o tipo de ameaça que pode ser repetida indefinidamente. O nome de Proteu pode ser associado a qualquer espécie de massacre. Por mi­nha parte, estou pouco ligando. Creio que o homem é uma espécie que se condenou a si mesma. Estou simplesmente interessado em saber até que ponto você pensou em todos os detalhes.

— Segundo a lenda — disse Spada calmamente —, a única coisa que restou na caixa de Pandora foi a esperança. Pois tenho a esperança de que, a partir do momento em que o horror se tornar visível, os homens recuarão diante dele. . . Se tal não acontecer, então você estará certo. Somos uma espécie autocondenada.

— Está se contradizendo, meu amigo. — O Espanta­lho exibiu um sorriso sombrio. — Aceita a sua própria execução como inevitável. Carrega uma pílula da morte para proteger-se dos torturadores. Que espécie de esperança é essa?

— Concordo em que não é muito grande. É a opção de Hobson: uma saída limpa ou uma longa escravidão.

— Como todos os fanáticos, meu caro Spada, você não está percebendo a verdadeira base da questão. Faz uma opção além da compreensão das pessoas comuns. Quando Moisés arrancou os israelitas da servidão, eles por acaso fi­caram gratos? Não. Clamaram pelas cebolas e pela vida rega­lada do Egito. A liberdade era um luxo que eles não podiam compreender nem desfrutar.

— Então por que está sentado aqui comigo neste mo­mento?

— Porque me paga bem — respondeu o Espantalho. — Além do mais, é como assistir a uma grande jogada num cassino. Sei que você não pode vencer a banca, mas estou fascinado por ver até que ponto conseguirá chegar.

 

As engrenagens do poder começaram a se movimentar, lentamente a princípio, depois cada vez mais depressa, à medida que as horas iam se escoando. O presidente dos Esta­dos Unidos ligou para o primeiro-ministro da União Sovié­tica pelo telefone vermelho a fim de determinar, antes de mais nada, que cada nação era tão vulnerável quanto a outra e que não se tratava de nenhum recurso para encobrir algu­ma aventura militar. Prometeram mutuamente que informa­riam um ao outro tudo que acontecesse, através de telefonemas diários. Houve conversas similares com outros chefes de estado na Europa, Oriente Médio e Ásia.

Foi o primeiro-ministro da Inglaterra quem primeiro formulou a definição que iria se tornar a tônica de todas as discussões posteriores:

— Esse Proteu, quem quer que seja, está querendo que joguemos roleta-russa.

O presidente dos Estados Unidos enfeitou a definição nas primeiras discussões na Casa Branca, numa reunião para determinar as instruções ao embaixador americano na onu:

— Estamos expostos, senhores, a um jogo intolerável. Temos de enfrentar não uma catástrofe isolada, como a perda de um avião repleto de passageiros, mas um ciclo quase interminável de invasões biológicas. Todos conhecemos o ce­nário. E Proteu sabe que o conhecemos. Assim, ele põe a pistola em cima da mesa e nos convida a disparar em nossas próprias cabeças ou na dele. Num sentido absoluto, ele é invulnerável, porque não tem medo do que pode acontecer-lhe. Enquanto isso, o que ele pode nos fazer é terrível só de se pensar. . . Primeira questão: temos alguma idéia de quem é Proteu e quais as dimensões e natureza de sua organização?

— Sobre as dimensões e a natureza da organização, nada sabemos — respondeu o diretor do FBI. — Proteu afirma que existe em muitos lugares e sob muitos disfarces. Eu presumiria que ele está dizendo a verdade. Sobre o ho­mem. . . — Ele pôs um par de cópias fotostáticas em cima da mesa. — Este é o símbolo que aparece na carta de Proteu. E aqui está a cópia de um cartão encontrado na carteira de um terrorista alemão, Gebhardt Semmler, que suposta­mente cometeu suicídio em Amsterdam.

— Nesse caso, devemos supor que estamos enfrentando uma organização terrorista?

— Possivelmente, senhor presidente. Mas peço-lhe que olhe novamente para as cópias fotostáticas. Como descreve­ria o símbolo em palavras?

— Hum. . . um peixe dentro de uma caixa virada ao contrário.

— Exatamente! Um peixe numa caixa.

— Mas não é uma caixa — objetou o Secretário de Estado Hendrick. — O quadrado incompleto é uma forma antiga da letra "p". A inicial abrange o peixe. Proteu é o protetor das criaturas do mar. É um símbolo bastante enge­nhoso.

— É irrelevante. — O comentário do diretor do FBI foi mordaz. — Voltemos à descrição do presidente: um peixe numa caixa.

— E aonde isso nos leva?                                          

— A uma fuga de prisão na Argentina. Um homem chamado Rodolfo Vallenilla foi arrancado da prisão. Sabemos que Spada organizou a operação. Uma mensagem em código foi transmitida a Vallenilla pouco antes de o libertarem. A mensagem era simples: "Um peixe numa caixa".

— Santo Deus! Isso significa. . .

— Por favor! — O diretor do FBI interrompeu-o com um gesto brusco. Pegou uma cópia da lista de prisioneiros e de locais de detenção. — Esta lista foi preparada por uma editora, recentemente fundada em Nova York, a fim de cha­mar a atenção da opinião pública mundial para a situação dos prisioneiros de consciência e as atividades dos regimes repressivos. Coletam as informações de organizações exis­tentes, como a Anistia Internacional e a Cruz Vermelha, complementadas por suas próprias fontes, as quais devem ser bastante acuradas, a julgar por este documento. A editora tem o nome de Poseidon Press. . .

— Diga logo aonde está querendo chegar! — falou o presidente, começando a ficar impaciente.

— Três coisas, senhor presidente — disse o diretor do FBI, continuando polido como sempre. — Primeira: Rodolfo Vallenilla era o genro de John Spada. Segunda: Gebhardt Semmler assassinou Hugo von Kalbach, o filósofo alemão. John Spada foi testemunha do crime e estava em Amsterdam por ocasião do suposto suicídio de Semmler. Terceira: a Poseidon Press foi fundada por John Spada. Poseidon era o deus do mar que concedia a Proteu todos os poderes de que este dispunha. O peixe na caixa liga todos esses fatos. . . E pense no que aconteceu à família de Spada e ao sucessor dele na direção de suas empresas. Todos foram assassinados. O que temos agora?

— Um motivo — disse o Secretário de Estado Hen­drick. — Um homem rico e poderoso levado ao desespero.

— E uma confusão de provas circunstanciais que jamais resistirão a um tribunal — disse o presidente secamente. — Mas vamos aceitar. A coisa faz sentido. Onde Spada está agora?

— Não sabemos, senhor presidente. Temos a informa­ção de que ele chegou à Inglaterra e preencheu uma ficha da imigração. Depois disso, não há mais qualquer vestígio.

— E o que diz a Interpol?

— Temos um problema aí, senhor presidente. Talvez seja embaraçoso para o governo se dermos a entender que um cidadão dos Estados Unidos pode estar ameaçando o mundo por um resgate.

— O resultado pode ser um tremendo desastre! — O presidente estava veemente. — Pelo amor de Deus, use todos os recursos possíveis!

— Há um meio de encerrar prontamente as investi­gações !

O Secretário de Estado Hendrick estava de igual modo veemente.

— E qual é? — indagou o presidente.

— Proteu quer se mostrar, quer falar, quer se entre­gar. Por que não deixá-lo fazer o que está querendo?

O diretor do FBI fitou-o com uma expressão de incre­dulidade.

— Vamos deixar que um terrorista dite os termos do resgate no plenário das Nações Unidas?

— Já aconteceu antes. Yasser Arafat compareceu ao plenário com uma arma na cintura e falou à Assembléia Ge­ral. É evidente que Proteu está a par do precedente.

— Além do mais, ele representa uma ameaça maior do que Arafat. — O presidente levantou-se e começou a andar de um lado para outro na sala, inquietamente. — Para ser franco, não posso deixar de simpatizar com Proteu. Ele está defendendo uma causa que venho recomendando desde que assumi o cargo. Nisso, ele é um amigo e não um inimigo. Contudo, não posso nem de longe dar a impressão de que aprovo os meios criminosos que ele adotou. Mas vamos ao ponto fundamental:   como devemos votar nesse caso, na ONU? Como vamos persuadir nossos amigos a votar?

— Acho que a questão é prematura, senhor presiden­te. — O diretor do FBI desafiou-o audazmente. — Hoje é quarta-feira. Ainda temos uma semana antes da reunião ini­cial da Assembléia Geral. Pelo menos, dê-nos tempo para. . .

— Para fazer o quê? Prender um homem que não pode encontrar? Interrogar um suspeito que será solto por um mandado de habeas-corpus antes que o senhor possa sequer piscar os olhos? Forçá-lo a cumprir sua ameaça? Qual é a sua opinião, senhor secretário?                                            

— Vamos   supor,   senhor   presidente. . .   apenas   supor. . . que essa exigência para uma audiência pública não tivesse sido feita sob coação. Estaria disposto a votar a favor?

— É possível.

— E como votariam os russos, chineses, argentinos, chilenos e sul-africanos?

— Claro que votariam "não"! — O presidente sen­tou-se, inclinou-se para a frente e cobriu o rosto com as mãos, assim ficando por algum tempo, em silêncio e absorto. Depois, tornou a fitá-los: — Todos os países do mundo estão diante de um desafio à sua soberania e segurança. Contu­do. . . — Ele fez uma ligeira pausa. Ao voltar a falar, pro­nunciou as palavras lenta e cuidadosamente. — Essas são palavras relativas. Nem todas as soberanias são plenamente legítimas, como sabemos perfeitamente, já que temos participação em algumas situações. E não é em todos os Estados que a segurança abrange a segurança do indivíduo. Assim, vamos colocar esses relativos contra o absoluto: que a recusa à exigência de Proteu pode provocar a morte de centenas de milhares de pessoas em catástrofes sucessivas. O que devo decidir?

— O que deve decidir, senhor presidente, se uma chantagem bem-sucedida leva a outras que imitam o primeiro episódio?

O diretor do FBI recostou-se em sua cadeira e esperou, enquanto o presidente digeria o seu desafio. A resposta, quando veio, foi suave, mas curiosamente incisiva e final, como a última badalada da meia-noite de um relógio:

— Tenho que decidir, senhores, com base no que é e não no que pode ser. Proteu nos deixou sem opção. Vamos votar a favor do comparecimento dele à Assembléia Geral da onu. E vamos persuadir nossos amigos a votar conosco.

— E se perdermos a votação?

— Então nada poderá impedir. . . essa morte negra.

Em meio ao silêncio que se seguiu, Hendrick pergun­tou em voz trêmula:

— Temos de enfrentar algo mais, senhor presidente: o que vamos fazer com a imprensa?

— É uma decisão que cabe à ONU. Da minha parte, sou a favor da divulgação pública dos acontecimentos. O povo tem o direito de saber. Talvez as pessoas tenham mais a dizer-nos do que nós a elas.

 

No início da noite de sexta-feira, Maury Feldman rece­beu um telefonema em seu apartamento. O interlocutor iden­tificou-se como Sr. Mullet e solicitou um encontro urgente para discutir um contrato. Às dez horas da noite, Maury Feldman estava sentado com John Spada, num bar, num porão sujo na Bleecker Street. O comentário inicial dele foi uma manifestação de repulsa:

— Santo Deus! Você está parecendo um vagabundo!

Spada soltou uma risadinha.

— Estou descobrindo como vive a outra metade da população. Recebeu o pacote que lhe enviei de Tóquio?

— Recebi, sim. Está em meu cofre.

— Como está Kitty?

— Muito bem. Só que ela recebeu alguns visitantes, como também aconteceu comigo. A polícia de Nova York e o FBI estão muito interessados em seu paradeiro.

— Disseram por quê?

— Não. Importa-se de me dizer?

— Foi para isso que o chamei até aqui.

Maury Feldman ouviu-o em silêncio. Depois, ficou olhando por um longo momento para a borra do vinho em seu copo. Finalmente sacudiu a cabeça, como que a remover os últimos vestígios de um pesadelo. E disse, sombriamente:

— Você é um homem morto, John.

— O atestado de óbito ainda não está assinado, Maury. A Assembléia Geral só se reunirá na terça-feira. O paciente ainda resiste, vivendo da esperança.

— Que esperança?

— De que as águas vão se abrir e o povo de Deus mar­chará por um caminho seco para a Terra Prometida.

— Pelo que me lembro, Moisés nunca conseguiu che­gar lá.

— Mas mesmo assim ele instituiu as leis. . . gravadas nas tábuas.

— E nenhum homem sabe onde ele está enterrado. O que quer de mim, meu querido?

Spada desabotoou a camisa e tirou a corrente de ouro na qual estava a chave de Proteu. Colocou-a na mão de Feldman.

— Isso agora é seu, Maury.

— Depois disso, o que vou fazer? Quando criamos a organização, o objetivo era construir pontes de benevolên­cia. Mas agora você destruiu todas elas!

— É o que realmente pensa, Maury?

— Pelo amor de Deus, John!   Será que não perce­be. . .

— Vou lhe dizer o que eu percebo e o que você sabe! Chega um momento em que a benevolência não é suficien­te. Chega um momento em que se fica parado nos penhascos de Masada e se diz: "Já nos pressionaram demais. Aqui va­mos resistir e morrer". E talvez, apenas talvez, não se morra e as legiões batam em retirada. O homem que fez explodir o Hotel Rei Davi é agora o primeiro-ministro de Israel. Isso é história, Maury! Se você morre, é um criminoso e jogam sal na terra que o cobre. Se sobrevive, é um herói e estadista. Não me falhe agora, Maury!

— Não sei que diabo você está querendo.

— Meu dia no tribunal. E quero que você esteja ao meu lado.

— Se eles concordarem. . .

— Se não concordarem, todas as apostas estão cance­ladas. Não me terá mais como um cliente. Pode sair limpo de tudo.

— Enquanto você lança uma praga sobre pessoas ino­centes!

— Metade dos seus impostos estão pagando novos holocaustos, Maury. E a cada ano você está votando a favor de incêndios maiores e melhores. Não me falte agora, por favor!

— Acho que está ficando louco, John. Além do mais, o que posso fazer?

— O que faz qualquer bom advogado? É um media­dor, interpreta, argumenta. E não me diga que não temos nenhum caso. Lembre-se de Yad Vashem e de todos os mi­lhões que morreram porque não havia ninguém para defen­der a causa deles e porque a luta começou tarde demais.

— Tenho mesmo de pensar em tudo isso.

— Ótimo! Eu voltarei a procurá-lo depois da decisão da Assembléia Geral.

— Ah, como eu gostaria de poder explicar você a mim mesmo!

— É muito simples, Maury. Sou um homem despojado de tudo. Nada tenho a perder, exceto a vida. Vamos em­bora?

Spada pagou a conta. Levantaram-se e saíram para o ar frio do outono. Apertaram-se as mãos na esquina e se sepa­raram. Maury Feldman ficou parado na calçada observando Spada se afastar, mancando como Jacó depois de sua luta com o anjo. Sentiu que estava à beira das lágrimas, sem saber se amava ou odiava aquele homem.

 

A primeira revelação foi feita, de acordo com o protoco­lo, pelo secretário-geral, numa entrevista coletiva com os jor­nalistas credenciados na ONU. A entrevista foi realizada às nove horas da manhã, horário de Nova York, na segunda-fei­ra anterior à terceira terça-feira de setembro. A data fora de­cidida a fim de haver tempo pelo menos para testar a reação inicial da opinião pública mundial, antes da votação da Assembléia Geral. As declarações do secretário-geral foram feitas num tom deliberadamente calmo. Cada correspondente recebeu uma cópia da carta com as exigências e da lista com as prisões e os prisioneiros, além de uma fotografia das duas ampolas com o material letal.

O secretário-geral falou rapidamente:

— Senhoras e senhores, os documentos que receberam falam por si mesmos O material dos dois frascos foi exami­nado por peritos e identificado como uma cultura e uma toxina, capazes de ampla disseminação e de resultados letais. Diante dessa ameaça, todos os delegados à ONU foram ins­truídos por seus governos a votar na Assembléia Geral, que começará às dez horas de amanhã. O objetivo dessa sessão é ouvir as opiniões de todas as nações membros e determinar, por votação, se o indivíduo que se intitula Proteu deve ser admitido no plenário para se dirigir à Assembléia ou se de­vemos recusar-nos a recebê-lo. . . com todas as conseqüên­cias que isso pode acarretar. Não tenho muitos comentários a fazer. Aceitamos a ameaça como autêntica e não como um embuste. Acreditamos que Proteu realmente possui os meios de cumpri-la. Suspeitamos de sua identidade; mas, por falta de confirmação final, não podemos divulgá-la no momento. Não sabemos, nem podemos especular nada sobre a localiza­ção do material letal ou o método para disseminá-lo.

Os jornalistas normalmente se mostravam irrequietos e agressivos. Agora, porém, ficaram quietos e desconcertados. A notícia os pegara desprevenidos. Suas táticas habituais eram agora triviais e sem sentido.

A primeira pergunta foi feita pelo correspondente da Agência Tass, soviética:

— Esse Proteu, cuja identidade é conhecida, mas não pode ser revelada, é um cidadão americano?

— Sem comentários.

— Tem algo a dizer sobre a reação das grandes po­tências?

— Nada que eu possa relatar. Só posso dizer que seus delegados foram instruídos a falar em nome delas.

— Senhor. . . — A mulher da UP levantou a mão, respeitosa. — Qual seria o índice de mortalidade de uma contaminação biológica do abastecimento de água de uma cidade como Nova York?

— Não tenho dados a respeito. Fui apenas informado de que seria uma grande catástrofe.

O homem do Washington Post perguntou:

— Quais as providências que estão sendo tomadas para descobrir esse Proteu e seus associados e localizar o mate­rial tóxico?

— Essas providências estão sob a jurisdição dos go­vernos envolvidos. Não posso dar detalhes, porque não os tenho. Pode-se apenas presumir que todos estão empenhados num grande esforço.

— Qual é a sua disposição, senhor? Convidaria um chantagista a falar no plenário da Assembléia Geral?

— A minha posição pessoal? Não tenho nenhuma que seja relevante nesta crise.

— Tem algum comentário a fazer sobre a situação?

— Tenho uma pergunta. — O secretário-geral estava subitamente tão duro quanto granito. — Uma pergunta que talvez queiram formular a seus leitores e espectadores. Se estivessem sentados onde em breve nos iremos sentar, como decidiriam? Iriam negociar com o chantagista ou iriam jogá-lo na prisão, enquanto observavam seus semelhantes e cidades perecerem?. . . Peço que me dêem licença agora. Nada mais sei além do que lhes disse. E não posso imaginar o que vai acontecer depois dos próximos dois dias.

 

As autoridades esperavam um pânico generalizado. Não houve nenhum. Era como se a humanidade estivesse saciada de horror, embriagada e entorpecida depois de uma orgia de imagens violentas que lhe eram impingidas hora após hora, sem qualquer trégua. Não havia lugar para se esconder. Não havia gráfico em que se pudessem verificar as chances con­tra ou a favor da sobrevivência pessoal. Não havia inimigo que pudesse despertar a fúria das pessoas. . . nem mesmo Proteu, porque a própria magnitude de seu desafio desper­tava dentro delas alguma exultação, uma simpatia desespe­rada. As questões do bem e do mal estavam tão entrelaçadas que não se podiam distinguir claramente. Não havia como apelar às autoridades, porque as autoridades estavam obvia­mente impotentes diante daquela intervenção fulminante nos assuntos humanos.

A única imagem que ficou na mente de todos foi a me­táfora da roleta-russa, o revólver com uma bala e cinco câ­maras vazias, passado de mão em mão numa festa de bêbados. Clique!... O cão do revólver bate numa câmara vazia. Gra­ças a Deus que ainda estou vivo. Clique! Clique! Clique!. . . Graças a Deus que eles ainda estão vivos. Bam!. . . Ele está morto! Mas a culpa foi dele, pobre-diabo! As pessoas não deviam brincar com armas carregadas. Foi só depois, muito mais tarde, que alguém se atreveu a perguntar:

"Mas o que estávamos fazendo lá? Como chegamos àquele momento de loucura? Por que alguém não nos deteve antes que ficássemos embriagados demais para pensar di­reito? "

Depois do primeiro tumulto de manchetes sensacionais e editoriais escritos às pressas, começou-se a ouvir um tom de sanidade controlada, se bem que desesperada. O objetivo proposto por Proteu era positivo. Não estava além da reali­zação humana. Há anos que vinha sendo defendido por pes­soas sensatas e compassivas. . . inclusive por nós, do Quarto Estado. Se nossas recomendações não foram ouvidas, foi por­que. . . e neste ponto os argumentos tornavam-se vagos e contraditórios, uma mistura de filosofia do direito, soberania dos Estados, considerações comerciais, conveniências po­líticas.

Mas mesmo o objetivo sendo positivo, não se poderia ter encontrado um meio aceitável para atingi-lo? Proteu estava errado ao exigir um resgate do mundo, como se fosse um salteador. . . As palavras emocionais não foram esquecidas: terrorista, chantagem, pressão sinistra. Mas pelo menos, co­mo reação do instinto ou por motivo de alguma diretriz, eles começaram a introduzir qualificações, que induziam alguma possível boa vontade. Nenhum editor se mostrava disposto a admitir que sua mão estava sendo guiada. Mas quando alguém pegava fotografias de vítimas de epidemias eventuais e dizia: "Vamos publicar essas fotos. Talvez isso detenha o miserável", havia sempre um coro de protestos: "O que está querendo? Que as turbas invadam a ONU?"

Ao final, foi o temor das multidões hostis que decidiu a votação. Às três horas da tarde, por uma pequena maioria, a Assembléia Geral decidiu que "Na esperança de uma rá­pida remoção da monstruosa ameaça à humanidade, concor­damos em convidar o indivíduo chamado Proteu, sob garan­tias de imunidade, a se dirigir aos membros desta Assembléia, numa sessão extraordinária, permitindo plena cobertura do acontecimento por todos os meios de comunicação".

Às cinco horas da tarde, John Spada telefonou para o secretário-geral e recebeu a notícia da decisão. Às dez horas da manhã seguinte, ele desembarcou de um helicóptero no re­cinto da ONU e foi escoltado por Maury Feldman até o gabi­nete do secretário-geral. Aqueles que o viram comentaram que, barbeado, bem-arrumado, vestido com um terno de quinhentos dólares, não se parecia absolutamente com um terro­rista. Ao que uma testemunha cética respondeu: "Não sa­biam que todos os agentes funerários sempre andam muito bem vestidos?"

O secretário-geral foi polido, se bem que não muito cordial:

— Ambos ficarão alojados neste prédio até que tudo esteja terminado. Sua imunidade está garantida, mas durante todo o tempo que permanecer aqui terá que ficar confinado a seus aposentos. A imprensa e possivelmente alguns dele­gados vão querer falar-lhe.

— Nada disso! — John Spada rejeitou a possibilidade categoricamente. — Só vou falar uma única vez e no próprio plenário da Assembléia. Farei meu discurso, responderei às perguntas dos delegados, se houver alguma, depois voltarei aos meus aposentos para aguardar o resultado. Espero que não precise agüentar-me aqui por muito tempo.

— É o que também espero, Sr. Spada. — O secretário-geral pronunciou essas palavras como se fosse uma prece. — Caso o resultado seja favorável, presumo que vai querer en­trar em contato com seus. . . hã. . . associados.

— Isso não será necessário, senhor. Eles já sabem o que deverão fazer qualquer que seja o resultado. O único perigo é a possibilidade de algum país. . . qualquer país. . . impor a censura às notícias, impedindo o conhecimento dos acontecimentos por meus colegas. Nesse caso, eles distribui­rão os contaminadores de acordo com os planos fixados.

— Santo Deus!

— Deve ter-lhe ocorrido, senhor, que determinados go­vernos vão impedir a publicação das notícias ou deliberadamente distorcê-las, como já está acontecendo nos últimos dias. Creio que seria prudente informá-los do que poderá acontecer se persistirem em fazer a mesma coisa.

— Mas está lhes impondo o julgamento por seus pró­prios povos! Eles não vão aceitar!

— Então terão que aceitar as conseqüências.

O secretário-geral olhou para Maury Feldman, que deu de ombros, num gesto de impotência.

— Sinto muito. Essa é uma determinação de Spada, não minha.

— Uma pergunta, senhor — disse Spada ao secretá­rio-geral. — No caso de minhas exigências serem aceitas, os seus observadores estão prontos para entrar em ação? Lem­bre-se de que a data para iniciar a libertação dos prisioneiros é fixa, e não móvel.

— Mas alguma flexibilidade. . .

— Não, senhor. Estou familiarizado com as táticas uti­lizadas para se lidar com grupos terroristas. . . adiamentos, discussões, novos termos, novas condições. Essa situação aca­ba por frustrar os objetivos deles.

— Deve ter nervos muito firmes, Sr. Spada.

— Posso garantir-lhe que tenho mesmo, senhor. Posso pedir-lhe um serviço? Preciso de uma secretária para dati­lografar o texto final do meu discurso e providenciar as có­pias para distribuição.

— Pode-se providenciar. Mais alguma coisa?

— Somente uma. Instruí o Sr. Feldman, aqui presente, a elaborar um documento destinando uma parte da minha fortuna pessoal, avaliada em dez milhões de dólares, para um fundo a ser administrado pela ONU. O fundo será usado para a reabilitação de prisioneiros libertados e suas famílias. Assi­narei o documento depois que a anistia for decidida.

— E se não houver anistia?

— Neste caso, o dinheiro não mais terá qualquer va­lor. É uma mercadoria curiosa, por ser uma manifestação de confiança na condição humana. A partir do momento em que essa confiança desaparece, pode-se muito bem usar o dinheiro para acender um charuto. . .

— Acredita em Deus, Sr. Spada?

— No momento, senhor, Deus está ausente de mim. Tenho rezado para encontrá-lo novamente aqui.

— Rezo com o senhor — disse o secretário-geral. — A ausência já foi longa demais.

 

Na grande câmara da Assembléia Geral das Nações Uni­das, John Spada enfrentou os delegados de todas as nações, a multidão da imprensa, a audiência privilegiada dos pode­rosos que enchiam as galerias públicas. Estavam todos silen­ciosos, as expressões sombrias, visivelmente hostis àquele intruso. Não estavam ali para ouvir o depoimento, mas para olhar o homem que iria fazê-lo, para avaliar sua força, deter­minação, seus nervos como jogador. Que assim fosse, pensou Spada. Ele próprio deveria testá-los também, verificar se saberiam reconhecer uma verdade quando a ouvissem, ficar a favor ou contra um direito enunciado objetivamente. Mas ele devia olhar além deles, falar por cima deles, para o mundo lá fora, no qual sua imagem e suas palavras alcan­çariam centenas de milhões de pessoas, as quais, mesmo que não pudessem impô-las no momento, fariam seu próprio jul­gamento sobre o depoimento.

O secretário-geral foi para a tribuna. Sua introdução foi rápida e fria:

— Estamos aqui sob coação e sob protesto. O homem que lhes vai falar não tem o direito de estar aqui. Não obstan­te, nós lhe concedemos imunidade, garantimos a sua segu­rança, enquanto ele estiver entre nós. Numa tribuna exigida por chantagem, nós lhe concedemos o direito de se expressar livremente. Senhoras e senhores, este é o homem que se inti­tula Proteu... Sr. John Spada.

O secretário-geral foi aplaudido ao descer da tribuna. Quando John Spada ocupou o seu lugar, os aplausos ces­saram imediatamente, fazendo-se um lúgubre silêncio. Spada ajeitou os seus papéis, ajustou o microfone e começou a fa­lar, calma e persuasivamente:

— É verdade que estão aqui sob coação; mas estão também no lugar que escolheram estar, com liberdade de ir e vir à vontade, de debater abertamente, comer bem, exigir imunidades para suas pessoas e suas casas. Há outras pessoas, dezenas de milhares, em prisões, em campos de detenção, em salas de torturas, em instituições psiquiátricas, que não são livres, e a quem os direitos humanos mais elementares são negados. É por essas pessoas que vim falar aqui. É por essas pessoas que reduzi, temporariamente, suavemente, a ampla liberdade dos delegados aqui presentes. Recordo a todos que, num documento que se tornou público, renunciei permanentemente à minha própria liberdade. . .

Todos estavam esperando outra coisa. . . ameaças, exor­tações, talvez denúncias e acusações. Ainda não estavam de­sarmados, mas pelo menos já se mostravam propensos a escutar. Spada começou a argumentar incisivamente:

— Estou sozinho aqui, um único homem perante to­dos. Os senhores são muitos. Por trás de todos, está o po­derio conjunto das nações, grandes e pequenas, suas riquezas, exércitos, marinhas, forças aéreas, polícias, a civil e a secreta. Em suma, dispõem de uma delegação de incomensurável po­derio. E eu, ao que parece, não tenho nenhuma.

"Mas afirmo que tenho. É uma delegação dos silen­ciosos para falar em nome deles, uma delegação dos prisio­neiros para defender sua liberdade, dos torturados para pro­clamar os crimes de que foram vítimas, dos mortos para que ao menos se escreva um epitáfio decente para eles. Esse é o significado do nome que assumi, Proteu, o pastor daqueles que vivem num elemento estranho, o Proteu das muitas for­mas. Quando me olharem, quero que vejam muitas outras formas e rostos... da colegial que foi estuprada e deixada a sangrar sobre uma mesa, do homem sábio reduzido por dro­gas a um débil mental a se babar, do jornalista transformado numa massa informe e ensangüentada, uma longa fila de prisioneiros, inadequadamente alimentados, inadequadamen­te vestidos, trabalhando em temperaturas abaixo de zero. . . Perguntam quem me deu delegação para falar aqui. Foram eles. As mãos que primeiro me ofereceram este mandato fo­ram as da minha própria filha, torturada brutalmente na Argentina. Depois, minha esposa, minha filha e o marido de minha filha foram assassinados. . . Será que a delegação de autoridade dos que estão aqui presentes é tão sólida? Não deveriam aceitar a minha, como aceito a dos senhores, sem perguntar de onde veio, mas querendo apenas saber que uso fazem dela, se bom ou mau?

"Não vou insultá-los com os chavões dos políticos, di­reita, esquerda, centro, capitalista, comunista, revolucionário, divergente, dissidente... Já ouviram tudo isso, vezes de­mais, neste lugar e em muitos outros. Não passam de rótu­los, pregados em manequins. Usarei outras palavras: homem, mulher, criança. . . e lhes mostrarei o que foi feito a esse homem, a essa mulher, a seus filhos."

Spada sentiu que estavam todos irrequietos e desa­fiou-os incisivamente:

— Estão entediados. . .   ou constrangidos? Já sabem de tudo isso? Então por que não se revoltaram contra essas coisas? Não foram os senhores que as fizeram? Claro que não! Há sempre subordinados, delegados, subalternos, para fazerem o trabalho sujo, deixando-os livres na consciência depois! Vão ficar sentados aqui! Vão ficar em silêncio! E vão escutar!

Ele leu toda a relação, país por país, dado por dado, detalhe sórdido por detalhe sórdido, até intimidá-los nova­mente ao silêncio absoluto. Ao final, jogou os papéis no chão do plenário, com um gesto de desprezo.

— Contestem, se se atreverem! Refutem, se puderem! Provem que sou um mentiroso. Eu até que gostaria!. . . Mas não podem. Sabem que é verdade. E o que fazem então? Dizem: somos apenas delegados, vozes títeres, vultos títeres. Culpe os nossos superiores, não a nós. Pois eu os culpo. . . e como os culpo! Mas culpo os senhores também, porque se escondem como covardes, a se lamuriarem diante da ira de seus amos. E é por isso que estou agora ameaçando, subme­tendo-os a uma coação, para mostrar-lhes que para cada monstro há uma imagem no espelho, para cada terror há uma reação de terror, ao longo dos tempos. Amém!

A voz dele foi como uma trovoada a ressoar pela imen­sa câmara. Depois da trovoada veio o silêncio, e depois do silêncio uma súplica veemente:

— Escutem! Prestem toda a atenção, eu lhes suplico! São seus irmãos e irmãs! O sangue deles é o sangue dos senhores, clamando não por vingança, mas por um fim a tan­ta iniqüidade! O que são os senhores? Selvagens dançando ao redor da fogueira, cantando enquanto suas vítimas são queimadas vivas? Inquisidores medievais arrancando irrelevâncias de homens agonizantes? Se o são, então o terror que fiz pairar acima dos senhores é menos do que merecem. Se não o são, então, em nome de qualquer que seja o deus que idolatrem, ponham um fim a essa monstruosidade! E lem­brem-se: o tempo está se escoando rapidamente!

Spada ficou imóvel por um momento de silêncio, a to­dos dominando, esperando pelas perguntas que ninguém se atreveu a formular. Depois, deixou o plenário e seguiu para a sala que lhe haviam destinado, jogou-se na cama e ficou deitado, como um cataléptico, a olhar para o teto branco.

 

Muito tempo depois, toda uma vida depois, Maury Feldman entrou na sala e sentou-se na beira da cama, afagando-lhe a cabeça e dizendo:

— Irmão, irmãozinho, saiu-se muito bem.

— Tudo foi divulgado?

— Aqui e na Europa, tenho certeza de que sim. O que fizeram em outros lugares, como apresentaram a coi­sa... ainda é muito cedo para se saber.

— Qual é a reação?

— Entre os delegados? Estão muito solenes . . .e im­pressionados.

— E a imprensa?

— Está dizendo que foi o discurso do século.

— E o que significa isso?

— A mesma coisa de sempre, John. O homem é sen­sacional. . . e agora vamos arrancar suas tripas e verificar o que está escrito lá dentro. Como se sente?

— Vazio.

— Você teria dado um grande advogado.

— Partindo de você, é um tremendo elogio. O que eles vão fazer agora?

— O que sempre fazem: conferenciar, confabular e, ao final, diluir.

— E podem?

— Claro que podem. Tudo o que precisam fazer é pôr um "mas" ao final de cada frase. "Uma súplica muito no­bre, mas. . .   Uma esplêndida demonstração de retórica, mas. . . Uma impressionante apresentação de provas, mas. . ."

— Mas o quê, Maury?

— Mas eles não podem deixá-lo escapar impune. . . não há a menor possibilidade!

— O que eles podem dizer? Está tudo registrado. O que podem fazer?

— Vencê-lo pelo cansaço. Há catorze dias até a data fixada para a anistia começar. É muito tempo. Eles o farão suar a cada hora até lá.

— Por favor, Maury, fique por perto!

— Claro que ficarei. Mas não se esqueça de que terei de dormir, ir ao banheiro, dar telefonemas. E eles apro­veitarão tais momentos para pressioná-lo. Vai conseguir agüentar?

— Tenho de agüentar. Falou com Kitty?

— Falei. Ela está vindo visitá-lo.

— Como ela se sente?

— Orgulhosa. Um pouco perturbada com as coisas, mas nem por isso menos orgulhosa.

— Eu gostaria de tomar um drinque.

— Vou tentar arrumar-lhe uma garrafa. Desconfio do serviço de bar daqui.

— Acha que eles tentariam envenenar-me?

— Não. . . mas prefiro abrir o lacre da garrafa pes­soalmente.

— Obrigado, Maury.

— Eu é que lhe agradeço. Quase restaurou minha fé na natureza humana. Mas apesar de tudo ainda não estou pronto para apostar alto nisso. E agora deixe-me ir providenciar aquela garrafa.

 

O visitante seguinte foi o secretário-geral, polido como sempre, mas desta vez muito mais cordial.

— Meus cumprimentos, Sr. Spada. Já ouvi muitos dis­cursos excepcionais durante a minha vida, mas o seu foi o mais comovente.

— Obrigado, senhor. Pode agora dizer-me o que con­segui com o discurso?

— Ainda é muito cedo para se determinar isso, Sr. Spada. Não é a reação do plenário que conta, mas sim a reação retardada, quando os delegados se comunicam com os respectivos governos. . . Mas posso dizer-lhe uma coisa: es­pero, no fundo do coração, que seu blefe dê certo.

Spada sentiu novamente os dedos frios do medo a com­primirem-lhe o coração. Esperou até que o espasmo tivesse passado e depois disse:

— Não era e não é um blefe.

— Eu esperava que fosse. Fez muita coisa esta noite, Sr. Spada, mais do que conseguimos fazer durante dez anos discutindo essa questão. Creio que poderemos preservar tudo o que conquistou para nós. Eu detestaria ver tudo isso se perder. . . por alguma ação extemporânea.

— Não há nada de extemporâneo, senhor. Está tudo previsto até em fração de segundos. Não se iluda. E não deixe que seus colegas o levem a uma ilusão.

— Entendo. — O secretário-geral imediatamente pas­sou a ser formal. — Descanse agora, Sr. Spada. Faremos o que for possível. O Sr. Feldman disse-me que a Srta. Kitty Cowan gostaria de visitá-lo. Já dei as ordens para a admis­são imediata dela.

— Obrigado.

— Mais uma coisa: o Embaixador Koltchak veio de Washington e está querendo falar-lhe. Posso deixá-lo entrar?

— Sabe o que ele quer?

— Não perguntei.

— Está certo. Pode mandá-lo entrar.

Anatóli Koltchak e Maury Feldman entraram juntos. Spada apresentou-os. Maury Feldman serviu os drinques. Koltchak iniciou o diálogo em seu estilo meticuloso:

— Esteve admirável esta noite, Sr. Spada.

— Obrigado, senhor embaixador.

— Farei um brinde a isso — disse Maury Feldman. — Mas diga-me uma coisa, senhor embaixador. O discurso do Sr. Spada foi transmitido para Moscou pela televisão?

— A maior parte.

— O que está querendo dizer com a maior parte?

Anatóli Koltchak tinha uma resposta pronta:

— A relação de crimes e vítimas foi cortada, como deve ter acontecido também em outros países. No lugar, houve o que chamamos de "uma análise dialética da oca­sião". Como não a ouvi, obviamente não posso dizer se foi boa. Contudo, o resto da transmissão ficou intacto.

— Quantas pessoas assistiram?

— Não sei — respondeu Anatóli Koltchak. — Eu di­ria que todas as pessoas que possuem um receptor de tele­visão. E é claro que não devemos esquecer a vasta audiên­cia de rádio. As partes cortadas só estiveram disponíveis para um grupo mais selecionado: o Presidium, o KGB, nossos monitores em Moscou. Provavelmente terei as avaliações de­les amanhã.

John Spada recostou-se na cama, cruzando as mãos atrás da cabeça.

— Espero que eles façam as avaliações corretas.

— Tenho certeza de que farão — disse Anatóli Kol­tchak calmamente. — A matemática não é muito compli­cada. Temos uma população entre duzentos e cinqüenta e duzentos e oitenta milhões de pessoas. Foi feita uma estima­tiva de que, numa cidade de meio milhão de habitantes contaminada pelo botulismo, pode-se esperar uma taxa de mortalidade de dez por cento, antes que as medidas de con­trole se tornem eficazes. O que representa 0,003 ou 0,004 por cento da população total. Mesmo que se multiplique por dez ou vinte, ainda é uma cifra mínima, Sr. Spada. Em com­paração com as nossas perdas na última guerra ou com as baixas previstas no caso de uma nova guerra é. . . como se pode mesmo dizer?. . . uma bagatela.

— E se sua esposa ou seu filho estiverem incluídos nessa bagatela?

— Isso me deixaria profundamente desolado. Mas os Estados não têm coração. Só as pessoas é que o têm. Digo-lhe isso não para escarnecer do senhor, apenas para mostrar as chances contra a sua jogada. Acontece que acho que está certo e estou fazendo todo o possível. . . Mas temo que isso não seja o suficiente.

— Então diga o seguinte à sua gente, senhor embai­xador: seis cidades serão atingidas em seqüência na Rússia. E Moscou será uma delas!

— Acredito no que está dizendo, Sr. Spada. É possível que não acreditem em Moscou. De qualquer forma, obri­gado por me dizer.

Ele terminou seu drinque de um só gole e se retirou. Maury Feldman disse secamente:

— Lá se vai um homem honesto.

— Todos eles são honestos, todos eles são honrados!

— Nem todos, John. Há alguns filhos da mãe de pri­meira e você vai conhecê-los muito em breve!

 

Naquela noite, embora estivesse imensamente cansado, John Spada teve um sono leve e irrequieto, os sonhos ator­mentados por debates e argumentos, cuja base sempre lhe escapava. Levantou cedo pela manhã e forçou-se a quinze minutos de ginástica. Depois, tomou um banho, fez a barba, vestiu-se e foi bater na porta de Maury Feldman. Maury estava servindo café para dois homens muito formais, que pareciam advogados praticando para serem juizes. Maury apresentou-os:

— Sr. Adams, Sr. Jewison. . . Meu cliente, John Spa­da. Estes cavalheiros são adidos à delegação dos Estados Unidos na ONU. Queriam falar-lhe. Sensatamente, decidiram procurar-me primeiro.

— Importa-se se eu tomar café?

— Sirva-se à vontade. Vou pedir mais.

Spada acomodou-se num canto do sofá e perguntou:

— Em que posso ajudá-los, senhores?

— Gostaríamos de fazer-lhe algumas perguntas.

— Esqueçam as perguntas — disse Feldman. — Eu aconselharia meu cliente a não responder a elas. Provavel­mente teríamos maior proveito se disserem ao Sr. Spada o que me estavam contando.

— Como achar melhor. — O Sr. Adams estava sur­preendentemente tranqüilo. — Provavelmente já sabe, Sr. Spada, que a ONU é muito zelosa de sua independência e de suas imunidades. Haveria muito ressentimento se órgãos do governo dos Estados Unidos começassem a se intrometer em suas instalações ou suas atividades. Estamos credenciados aqui. Assim sendo, estamos agindo como. . . intermediários, digamos assim. Gostaríamos de discutir a sua proposta de entregar-se ao final de tudo.

— Pois não?

— Compreende o que irá acontecer ao se entregar?

— Claro. Serei preso.

— Provavelmente sabe também que, enquanto esperasse o julgamento por acusações criminais, ficaria detido sem fiança.

— Isso é prowável, mas não certo — disse Maury Feldman. — Não podemos antecipar decisões judiciárias.

— Também não podemos antecipar certos riscos que o Sr. Spada correrá enquanto estiver sob custódia. Já se espalhou a notícia de que muitas pessoas desejam vê-lo morto. E as prisões são lugares notoriamente inseguros para pessoas impopulares. Assim sendo. . . podemos sugerir que há nisso uma base para um acordo.

— Que espécie de acordo?

— A espécie que já foi feita antes com pessoas que estão dispostas a cooperar: uma fuga arranjada, uma nova identidade, a possibilidade de começar vida nova em outro lugar.

— Ou seja, uma anistia — comentou Maury Feldman, secamente.

— Creio que se pode mesmo chamar assim.

— E que tipo de cooperação esperariam de mim?

— Nomes e lugares. Onde as toxinas são feitas, quem está manipulando. . . essas coisas. . .

— Em suma, uma traição — disse John Spada. — Per­mita-me fazer-lhe uma pergunta, Sr. Adams. Por que have­riam de anistiar um criminoso confesso, ao invés de centenas de milhares de pessoas inocentes que estão presas neste momento?

— Porque há centenas de milhares de outras pessoas inocentes às quais o senhor está ameaçando com uma morte terrível e dolorosa, se suas exigências não forem atendidas — respondeu o Sr. Adams.

— Pois então atendam às exigências e a ameaça será removida. A anistia pode ser concedida com um movimento de caneta. Por que esperar que o anjo vingador a escreva com sangue?

Adams fitou-o atentamente por um longo momento, antes de perguntar:

— É assim que se julga, Sr. Spada. . . um anjo vin­gador?

— Não, Sr. Adams. Simplesmente alterei um pouco o equilíbrio do poder. Reuni autoridades suficientes para tor­nar possível uma negociação que ninguém teria cogitado antes.

— Quer dizer que está disposto a negociar?

O Sr. Adams parecia um pouco ansioso demais. Antes que Spada tivesse tempo de responder, Maury Feldman in­terveio :

— Que diabo está pensando? Spada não está negocian­do com castanhas! Não está tentando tornar-se rei ou papa! Está apenas exigindo que sejam respeitados os direitos hu­manos daqueles que foram privados de tudo! Diz apenas que, se não restituírem os direitos humanos a algumas centenas de milhares de pessoas, tentará forçá-los a isso. E tem os meios para consegui-lo. Esse é um dos lados da mesa de negociações. Tem de haver uma resposta do outro lado: sim, não ou talvez!

— Bastante justo, senhor advogado. Já é alguma coisa que poderei levar de volta. Mas preciso de mais. Onde são produzidos e guardados os suprimentos de toxina, Sr. Spada?

— Nem adianta tentar! — Spada sacudiu a cabeça. — Continuo na mesma posição inicial: dêem-me corpos vivos, eu lhes darei em troca a toxina.

— Antes de acabarmos, gostaria que compreendesse uma coisa — disse o Sr. Adams, sem perder o controle. — Somos as únicas pessoas que podem oferecer-lhe a me­tade de uma chance de permanecer vivo. Pense nisso, Sr. Spada.

— Tenho pensado muito, Sr. Adams. Gostaria de po­der dizer-lhe que isso é importante para mim. Mas não é. Além do mais. . . — Spada fez uma pausa, antes de acres­centar um comentário final: — Está esquecendo a história de Proteu. É preciso agarrar o deus e manietá-lo, antes de obrigá-lo a revelar seus segredos. E, quando se pensa que ele está prisioneiro, o deus muda de forma. . .

O Sr.. Adams abriu a boca para responder, mas Maury Feldman silenciou-o com um gesto.

— Parece-me, Sr. Adams, que está no caminho errado. Objeta. . . e com razão. . . ao fato de meu cliente estar fa­zendo uma ameaça contra as nações. Mas está neste momento fazendo-lhe uma ameaça similar. Não foi exatamente isso o que nos levou a este impasse? Não pode haver uma lei para o Estado e outra lei para o indivíduo.

O Sr. Adams cometeu a gentileza de admitir o argu­mento. Deu de ombros, resignado.

— É esse o nome do jogo, não é mesmo? Sempre foi, sempre será.

— Se acredita nisso, por que deveria se importar com quantas pessoas podem morrer? — disse John Spada. — Afi­nal, o planeta está mesmo com um excesso de população.

— Acho que é uma questão de escala. — Era o Sr. Jewison quem falava, manifestando-se pela primeira vez.

— Não é o que está na Bíblia? É conveniente que um homem morra pelos outros.

— Já me ofereci como voluntário — disse John Spada. — Tudo que precisam fazer agora é cuidar da execução.

 

À tarde, o secretário-geral foi procurá-los. Parecia ten­so e cansado. Explicou-se com cuidado e solenemente:

— Sr. Spada, estamos agora num momento crítico. Pre­cisamos de sua cooperação para superá-lo. A Assembléia Geral designou um comitê especial para cuidar do problema. O comitê é formado por representantes dos Estados Unidos, União Soviética, França, Itália, Brasil, Japão, China, Suécia e Arábia Saudita. Em sua primeira reunião, esta manhã, o comitê levantou três questões principais. Primeira: se hou­ver um acordo, as partes devem ter garantias completas. Há dúvidas consideráveis sobre se o senhor está em condições de oferecer garantias apropriadas. Segunda: como podem as nações membros ter certeza de que suas comunicações públi­cas representam de fato o que dizem? Terceira: sua oferta de entregar-se pessoalmente é considerada insuficiente, sem a rendição de outros elementos fundamentais de sua orga­nização. Em suma, sua carta indicou uma ameaça amplamen­te planejada. Como podemos ter certeza de que a ameaça não será repetida em outra ocasião, a propósito de outras questões, como a limitação de armamentos ou um tratado de paz no Oriente Médio?

Houve um momento de silêncio, antes que Maury Feldman comentasse:

— É uma questão procedente, John. Acho que você deve tentar responder a ela. Afinal, a história recente do ter­rorismo não é animadora. Uma chantagem bem-sucedida sempre levou a outras tentativas.

— Sei disso — murmurou Spada, assentindo. — E estou consciente desse problema desde o início. Por isso, ao escolher os membros da organização Proteu que executariam essa operação, fixei-me apenas nos que se ateriam rigidamen­te às ordens fixadas.

— E quais foram essas ordens, Sr. Spada?

O secretário-geral estava tão concentrado quanto um juiz num tribunal.

— A primeira e a mais importante foi a de que acei­tariam apenas um aparecimento pessoal meu na televisão. . . não uma mensagem pela imprensa, não uma gravação pelo rádio, mas exclusivamente uma imagem ao vivo, em que poderiam ver meu rosto, meus gestos, ouvir minha voz saindo dos meus próprios lábios. A segunda foi que as palavras que eu falasse teriam exatamente o significado encontrado num dicionário. . . não mais, não menos. Para os que não sabem inglês, um gesto previamente combinado transmitirá a mensagem. A terceira foi que, no caso de haver um acordo, deveriam depositar todos os suprimentos de culturas e toxi­nas num lugar apropriado e comunicar à polícia local, por um telefonema anônimo, onde poderiam ser encontradas. Fi­nalmente, se um acordo não fosse obtido ou eu deixasse de aparecer na televisão, ou não dissesse as palavras combina­das, eles deveriam espalhar as toxinas nas áreas fixadas, nas datas previstas. . . Fui bastante claro?

— Muito, Sr. Spada. Mas, como as culturas são fáceis de reproduzir-se, não há qualquer garantia contra uma re­petição.

— Não pode haver — disse Spada, taxativamente. — Os bacilos podem ser facilmente obtidos. Pode-se escavar num jardim e iniciar todo o processo novamente. Qualquer pessoa, com os conhecimentos apropriados, pode fazê-lo.

— Está disposto a indicar os primeiros alvos?

— Não.

— Há mais algum dos seus homens disposto a se en­tregar às autoridades?

— Não.

— Eles estão a par de sua oferta de entregar-se pes­soalmente?

— Estão.

— E sabem do perigo que eles próprios correm se o submeterem a um interrogatório prolongado?

— Essa possibilidade foi amplamente considerada, e adotamos precauções apropriadas. Deve entender muito bem isso, para poder transmiti-lo com precisão ao comitê. Tudo depende do meu comparecimento final à Assembléia Geral e de sua transmissão ao vivo pela televisão. Pode acontecer, se um país resolver censurar a transmissão, que esse país sofra as conseqüências, enquanto outros serão aliviados da ameaça.

— Suponhamos que por alguma razão. . . doença, aci­dente, até mesmo um colapso nas comunicações... o senhor deixe de aparecer na televisão?

— Então a operação deverá prosseguir automaticamen­te. É outra coisa que deve transmitir aos seus colegas. É necessário que me mantenham vivo e são.

— Acredita realmente que o contrário seria possível, Sr. Spada?

— Tenho bons motivos para acreditar que sim. — O tom de Spada era tão frio quanto o vento do inverno. — Esta é a era dos assassinos. Sou seu produto perfeito. . .   um homem reduzido a zero nas escriturações do Estado. . . Mais alguma coisa?

— Só mais uma coisa: está disposto a aceitar que o Sr. Feldman negocie em seu nome? Temo que o senhor possa ser um advogado em causa própria por demais rígido.

— É por isso que estou aqui — disse Maury Feldman.

— E espero que possamos chegar a um acordo antes que fiquemos todos reduzidos a zero.

— Tenho um pedido a fazer — disse John Spada. — Está permitindo a visita da Srta. Cowan. Agradeço a sua gentileza. E gostaria que permitisse também a visita do meu confessor.

— Seu confessor? — repetiu o secretário-geral, sur­preso.

Spada deu de ombros e sorriu.

— É tão surpreendente assim? Eu sou. . . ou era. . . um cristão praticante. E também estou bem perto do fim. Gostaria de me preparar devidamente.

— É um pedido compreensível.

— E pode ajudar a todos nós — disse Maury Feldman.

— Entrarei em contato com o confessor e o trarei aqui. . . com sua permissão, é claro, senhor secretário-geral.

— Vou providenciar um passe. — O secretário-geral levantou-se. — Nossas precauções de segurança são bastante rigorosas neste momento. Pode dar-me o nome dele, por favor?

— Padre Pavel. . . O Reverendo Padre Pavel. Ele se afastou dos deveres paroquiais e está agora vivendo parti­cularmente. Mas eu gostaria que lhe fosse poupado qualquer constrangimento.

— Não haverá nenhum — garantiu o secretário-geral.

— Bem que estamos precisando de um pouco de religião aqui. Posso presumir que o senhor se colocará à nossa dis­posição, Sr. Feldman? Há muito trabalho a ser feito.

— E pouco tempo para fazê-lo — acrescentou Maury Feldman.

— Culpe o seu cliente por isso — disse o secretário-geral, retirando-se sem dizer mais nada.

Assim que a porta se fechou, Maury deu vazão à sua raiva, em voz baixa:

— Pelo amor de Deus, John! O que está querendo fa­zer agora? O Espantalho aqui? É uma idiotice completa!

— É um problema particular — disse John Spada. — Quero que ele cobre uma dívida.

— Se eu fosse Lunarcharsky, estaria a um milhão de quilômetros daqui.

— Mas não é — murmurou Spada, cansado. — Ele tem água gelada nas veias e uma pedra onde deveria estar o coração. Vai se sentir perfeitamente à vontade aqui.

Kitty Cowan foi visitá-lo no dia seguinte. Spada ficou chocado com a aparência dela. Kitty estava extremamente pá­lida e angustiada. Havia rugas de tensão nos cantos da boca. Quando ele a abraçou e beijou, Kitty desatou a chorar. Ele levou muito tempo para acalmá-la.

Só depois é que ela disse:

— Desculpe. Fiquei assim só por ver o grande John Spada trancado aqui como um prisioneiro.

— Estou bem, Kitty. A bebida é boa, a comida razoá­vel e estou jogando pôquer com as mais altas apostas pos­síveis. E você, como está?

— Estou inteiramente perdida. Tenho a impressão de que já não consigo entender mais nada. Quando o vi na televisão, pensei: "Olhe só para ele! É esse o homem a quem amo!" Depois, quando ouvi o que as pessoas estão dizendo, quando li as coisas terríveis que esse germe pode fazer. . . Não pude acreditar que fosse você quem estivesse amea­çando usá-lo. . .

Ela remexeu na bolsa, tirou um recorte de jornal do­brado.

— Leia isto!

Spada deu de ombros e leu rapidamente os fatos fami­liares: a facilidade de produção; a dosagem mínima neces­sária para matar um homem normal; os sintomas de verti­gem, náusea, visão dupla, a pressão no crânio que pressagiava a morte; o alto índice de mortalidade, de pelo menos cin­qüenta por cento, nos casos conhecidos; a disponibilidade limitada da antitoxina; a dificuldade de policiar os sistemas de abastecimento de água. Ele dobrou o recorte e devolveu-o a Kitty.

— É um relato bastante acurado.

— E é capaz de infligir tanto sofrimento a pessoas inocentes. . . até mesmo a bebês de colo?

— Se for necessário, sim.

— Não acredito!

— Não tem importância que você acredite ou não. O importante é que acreditem nos gabinetes e chancelarias, no plenário da Assembléia Geral. Eles estão tentando persua­dir-se de que estou blefando. Mas acontece que não estou.

— Não sei o que dizer. — Subitamente Kitty começou a tremer. Teve que se apoiar na beira da mesa. — Temos sido amigos. Temos sido amantes. Ainda acordo de noite e imagino que você está ao meu lado. . . E agora, de repente, estou olhando para um carrasco com um machado nas mãos! Pelo amor de Deus, John! Tem que haver algum acordo alternativo!

— Se houver, eles é que terão de me apresentar. No momento em que pensarem que estou fraquejando, vão ata­car como chacais e deixar-me em pedaços. Você viveu o bas­tante para saber como funciona o jogo do poder.

— Tem razão. Só que, de repente, descubro que não sei absolutamente nada. Pensa que Anna, Rodo ou Teresa teriam querido que fizesse uma coisa dessas? Teriam permi­tido que você fizesse?

— Não sei... e eles não estão aqui para que eu possa perguntar.

— Mas eu estou aqui e estou perguntando. Por quê? Por quê?

— Sente-se!

Abruptamente, Spada estava ríspido e dominador. Kitty obedeceu, cautelosamente, como uma criança diante de um pai zangado. Spada estendeu a mão para afagar-lhe os cabe­los. Kitty recuou, como se tivesse medo do contato dele.

— Pergunta por quê, não é mesmo? Porque este é um jogo de cartas marcadas. A única maneira de jogá-lo é com armas na mesa e olhos atrás da cabeça. Mesmo você, meu amor. . . é uma espécie de inimigo, porque me distrai, me amolece. Não posso deixar que isso aconteça. No momento em que minha atenção vaguear, eles atacarão para matar. . . Mas, se eu puder resistir à pressão por tempo suficiente, eles é que vão ceder, porque nenhum é tão absoluto como eu sou. Todos têm os seus controladores... a imprensa, seus gabi­netes, pessoas que querem seus cargos, os eleitores. Vejo você recuar diante de mim, como se eu fosse alguma espécie de monstro. Por que não tenta novamente ver-me como eu estava no plenário da Assembléia, ouvir-me como falei na­quele momento? Aquilo foi a verdade. Aquele era John Spa­da revelando-a. . . Eu a amo, menina. Não quero que saia daqui me odiando. Mas, se tiver de ser, que seja!

— Não posso nunca odiá-lo, John. — Kitty estendeu a mão relutantemente, procurando fazer contato com ele outra vez. — Apenas tudo isso é grande demais para mim. . . muito complicado e confuso. . .

— Pois então trate de manter tudo bem simples. Pres­te atenção, querida. O que eles fizeram com Teresa e Rodo foi um ato de ódio. Gostam de aviltar as pessoas, humi­lhá-las, desumanizá-las. Pelo menos ainda há amor no que estou fazendo. Estou me atendo a isso. . . mas, se eu per­der, será o fim. Sem amor, um ser humano não passa de uma bola de papel que as crianças destroem com chutes num beco. Por favor, para o seu próprio bem, tente apegar-se a esse pensamento. . .

Apesar de toda a indiferença de Spada, a ameaça à vida dele era real. Agora, havia guardas postados nas extremi­dades do corredor em que estava o seu alojamento. A comida que lhe serviam era preparada especialmente. O uísque que lhe forneciam vinha em garrafas com o lacre intacto. O pe­dido dele, formulado por intermédio de Maury Feldman, de ter permissão para fazer exercícios no pátio do prédio foi negado pelo secretário-geral.

— Eles estão assustados — comentou Maury Feld­man, visivelmente cansado. — E não posso culpá-los por isso. Há muita pressão se acumulando, mesmo entre os de­legados e os assessores. Falo com eles tanto quanto posso e só agora estão começando a compreender plenamente a si­tuação. Toda essa besteira sobre cálculo de chances e riscos toleráveis não significa muita coisa, quando se pensa em esposas e famílias numa área de possível contaminação.

Spada sorriu ao perguntar:

— Por que nunca quis saber onde estão as toxinas e como serão disseminadas?

— Simples prudência, meu querido. Se alguém pensas­se que eu sabia de alguma coisa, eu passaria a ser tão vulne­rável quanto você. Não tenho o menor desejo de me desco­brir de repente a suar sobre refletores fortes, num porão úmido. Para dizer a verdade, tenho sido bem claro com to­dos: não sei, não quero saber, nunca lhe pedi que me dis­sesse e ponto final!

— Qual seria a sua opinião sobre a situação atual?

— No momento, todos estão embatucados no velho argumento esfarrapado de que nenhum governo pode ou deve submeter-se a uma ameaça de terror. O que não passa de besteira, é claro. Eles já se submeteram antes. . . e vão se submeter novamente. . . aos árabes, japoneses, alemães, até mesmo aos xeques do petróleo, que usam outra espécie de chantagem. Mas eles precisam primeiro dourar a pílula, conservar a confiança dos cidadãos, manter a ordem nas ruas. A verdade é que estão apavorados. Todos os serviços secretos do mundo estão desesperadamente vasculhando as ruas e porões à procura de suas culturas e de seus homens. A segurança nos aeroportos foi redobrada. Estão detendo as pessoas por horas a fio na imigração e na alfândega. Neste momento, qualquer viagem internacional é um verdadeiro pesadelo. O que significa que eles estão sentindo a coisa. Mas quem vai fazer o primeiro movimento e começar a falar em anistia? A coisa mais sensata que você fez foi pedir e con­seguir imunidades aqui. Caso contrário, eles já teriam pren­dido eletrodos em todos os seus poros. E não se engane: isso ainda pode acontecer!

— Por que diz isso?

— Porque uma das frases que ouço constantemente é "um fora-da-lei sob a proteção da lei". Outra é "assassinato por protocolo". Se essa tendência ganhar força, você pode ser arrancado daqui com um saco metido na cabeça. Até ago­ra, o secretário-geral está resistindo firmemente. Mas não vamos esquecer que ele é apenas humano.

— Prometi que me entregaria.

— Eles precisam disso como de um resfriado, meu querido. Estamos agora num teatro de horror. Eles preci­sam de um ato para superar o seu no programa. Até agora, nada encontraram. Mas no momento em que o fizerem. . . — Maury Feldman deixou a frase inacabada e começou a de­senhar um tríptico sobre um tema sáfico. — Eu o avisei, não é mesmo? Esse jogo não é de brincadeira.

— Oh, meu Deus! Pode me servir um drinque?

— Sirva-o você mesmo. Sou seu advogado, não seu mordomo.

John Spada fitou-o aturdido por um momento e depois desatou a rir. Maury Feldman exibiu um sorriso sardônico.

— Se isso ajuda, posso ser ainda mais espirituoso.

Spada engasgou e enxugou os olhos molhados de tan­to rir.

— Eles estão mesmo querendo me pegar, não é? Da­qui a pouco vão começar a usar você.

Ele serviu dois drinques e entregou um a Maury Feld­man. Beberam em silêncio. Feldman finalmente largou seu copo e disse calmamente:

— Eles estão me usando, John.

— Como?

— Claro que é isso mesmo. Por que estão me deixando ficar aqui? Por que tenho liberdade de andar de um lado para outro, conversar com os delegados, jornalistas, asses­sores? Imaginam que, quando o dia da razão amanhecer, estarei aqui, Feldman, o Sábio, o Platão da Park Avenue, para formular o acordo.

— E você vai fazê-lo?

— Vou.

— E quando esse dia vai raiar?

— Quando você quiser, John.

Spada mostrou-se incrédulo.

— Você também?

— Eu também, John. A loucura já foi longe demais. Ele enfiou a mão no bolso e tirou duas folhas manus­critas. Entregou-as a Spada e disse:

— Essas são as minhas sugestões. Examine-as e depois me diga o que acha.

— Quem mais já viu essas sugestões?

Spada mostrou-se subitamente cauteloso e sombrio.

— Você é o primeiro.

— Que Deus me ajude a acreditar em você.

Maury Feldman respondeu friamente:

— Se não conseguir, trate de arrumar outro advogado.

— Desculpe, Maury. Eu não tinha o direito de fa­lar assim.

— O cliente está sob pressão e, assim, tem a respon­sabilidade reduzida. Mas trate de se aprumar agora, soldado. E pense! Esse é um bom documento. Podemos nos safar com isso.

A opinião escrita de Maury Feldman era simples e concisa:

 

"Diante das nações reunidas, da vasta soma de popu­lações e recursos, seu poder é insuficiente e temporário. Os danos que lhes pode infligir são terríveis, mas toleráveis. Por outro lado, os danos que eles sofreriam ao abdicarem de sua autoridade diante de uma chantagem biológica seriam intoleráveis.

Minha conclusão é que eles vão fazer algumas conces­sões e que você deve estar preparado para fazê-las também. Eles não vão renunciar a suas soberanias. Você terá de entre­gar-lhes suas toxinas. Eles trocarão corpos por isso. E não reputações. Você é que terá de capitular primeiro, não eles.

Quanto aos termos, creio que podemos obter o seguin­te: as nações concordariam em libertar, numa data determinada, um número limitado de prisioneiros. Antes dessa data, você removeria publicamente a ameaça e entregaria ou des­truiria as toxinas. Há uma dificuldade inerente aqui. Como a cultura e a toxina podem ser reproduzidas indefinidamente, sua garantia da destruição delas não tem muito valor. Con­tudo, podemos deixar para discutir esse ponto quando chegar o momento.

Os méritos destas propostas são: 1) uma vitória moral e real para você, na medida em que um número substancial de prisioneiros recuperaria a liberdade; 2) uma operação para salvar as aparências para os governos, os quais, bem ou mal, têm de continuar a governar; 3) um meio dissua­sório para quaisquer outras pessoas ou organizações que possam tentar formular uma chantagem similar no futuro.

Conclusão: uma posição irredutível de 'tudo ou nada' só serve para levá-lo cada vez mais a uma situação insusten­tável; uma concessão pode proporcionar algumas anistias."

 

— De jeito nenhum! — explodiu Spada. — Não há ga­rantias, basta um gesto simbólico e eu me desarmo! Não há condição!

— Pois então corrija! Melhore! Emende! — Maury Feldman estava exasperado. — Mas não jogue na lata de lixo! É um ponto de partida.

— Está certo. Vamos falar em números. Digamos que a contaminação de uma grande cidade represente cinqüenta mil mortos. Quantos corpos vivos eles me darão em troca? Um por um? Proporcionalmente às populações? E como po­derei acreditar nas promessas deles?

— Pelo mesmo raciocínio, por que eles deveriam con­fiar nas suas?

— Exatamente! Então tem que ser tudo na boca do cofre. Os observadores informam que os corpos foram en­tregues sãos e salvos. Nós lhes dizemos onde as toxinas po­dem ser recolhidas.

— Nesse caso, como vai conseguir separar as duas operações na mente do público? As nações têm de vencer. E você tem de perder.

— E a única maneira pela qual posso entrar em con­tato com os meus homens é através da televisão. Tenho de transmitir a mensagem pessoalmente.

— O que significa que os espectadores irão vê-lo hu­milhar-se. — Feldman deu de ombros. — Acho que não é tão ruim quanto morrer de botulismo.

— Vamos voltar às garantias.

— Eu não o faria, se fosse você. Já se comprometeu demais. Lembre-se do que disse em sua carta sobre a per­manência da ameaça biológica. Pensa que eles vão esquecer isso? É um caso difícil de defender, meu querido. Não tenha nenhuma ilusão a respeito. E então, qual é a sua decisão? Devo ou não começar a vender a idéia?

— Pode começar — mu-çrnurou John Spada. — Mas nunca os deixe esquecerem-se de que ainda estamos com as toxinas.

Na tarde de sábado, quando o funcionamento da ONU estava reduzido ao mínimo necessário, Maury Feldman levou o Espantalho para se encontrar com Spada. Era uma comédia macabra o espetáculo de Lunarcharsky todo de preto, em tra­je clerical, a olhar para todo mundo com a expressão bondosa de um cura de ficção. Por algum recurso de maquilagem, ele conseguira mudar tanto a aparência que não poderia ser identificado nem mesmo por uma fotografia em dose. Leva­va um breviário já bem gasto. A ponta de uma estola puída pendia do bolso do casaco. Até mesmo a sua dicção era algo untuosa. Suas primeiras palavras foram:

— Soube que queria fazer sua confissão, meu filho. Podemos fazê-lo aqui, sem que ninguém mais ouça?

— Claro que pode falar tudo — disse Feldman, brus­camente. — Foi a primeira coisa que exigi do secretário-geral. A sala é verificada todos os dias, à procura de micro­fones e outros equipamentos eletrônicos. E agora vou deixar vocês dois entregues a esse comovente exercício religioso!

Depois que ele se retirou, o Espantalho contemplou Spada como um espécime de museu e assentiu em aprovação.

— Nada mau! Parece que está resistindo bem. Como vão as coisas?

— Estão difíceis. E vão ficar ainda mais difíceis. Como está o clima lá fora?

— Variável — respondeu o Espantalho. — Depende da companhia que se tem. . . Na questão dos prisioneiros, há simpatia e alguma compreensão. Mas, quando se fala de toxinas na água, a reação é de raiva intensa. Eu diria que você seria esquartejado antes de conseguir dar cem passos na Broadway.

— E se ganharmos?

— As apostas são de que você não vai conseguir agüen­tar até o fim. Sobre o que está me querendo falar?

— Meus dois amigos na Argentina, o Major O'Higgins e o presidente. Prometi um dia de ajuste de contas. Quero que providencie.

— Será um prazer. Devemos mandar-lhes um convite gravado em relevo?

— Não. Deixe-os receberem a notícia do julgamento.

— Fala como um verdadeiro cristão. Será que o seu próprio julgamento o incomoda?

— Claro que me incomoda. E, antes de começar, espe­ro poder preparar um discurso de defesa.

— Pode ser uma boa idéia — disse o Espantalho. — Não posso falar pelo Todo-Poderoso porque não creio que ele exista. Contudo, pode ser um documento útil para a posteridade. . . contanto que sobre alguém para lê-lo.

O primeiro esboço de um acordo apresentado por Maury Feldman foi favoravelmente recebido. Foi saudado como "um primeiro raio de esperança, uma possível base para ne­gociações", o que era, nas palavras de Feldman, a mesma coisa que sacudir uma cenoura diante de um asno, enquanto alguém pega um porrete para espancá-lo na traseira.

— O que acontece agora? — indagou John Spada.

— Você mesmo já elaborou muitos contratos, John. Já cansou as pessoas com esboços e mais esboços. Agora, imagine-se sentado num comitê poliglota, no qual cada mem­bro só pode tomar alguma decisão depois de consultar seu governo. Eles ainda têm uma semana antes do prazo fatal. Pode estar certo de que vão tirar o máximo proveito de todo esse tempo. Enquanto isso, por que não relaxa e põe em dia a sua leitura?

— É o que estou fazendo — respondeu Spada, sorrin­do. Ele mostrou um exemplar de O príncipe, de Maquiavel. — Já se passaram muitos anos desde que o li. É bastante instrutivo, até mesmo animador. . .   Há uma coisa que eu gostaria de deixar bem clara entre nós, Maury.

— Acho que sempre fomos bem claros um com o outro.

— E quero que continue assim.

— Fale o que está pensando.

— Tem   certeza   de   que   poderemos   conseguir   um acordo?

— Creio que conseguiremos. Não posso ter certeza.

— E se não conseguirmos?

— Então a decisão final caberá a você.

— Vamos supor que eu decida usar as toxinas. Onde você ficará então?                  

— Não ficarei aqui — disse Feldman, solenemente. — Vou embora. Sou um servidor da lei. Defendo meus clientes nos termos da lei. Não posso e não vou cooperar com eles para que seja cometido um crime.

— Nem eu lhe pediria isso. Mas sua opinião é im­portante para mim, Maury. Mais importante do que imagina. Durante a guerra, você matou, fez explodirem quartéis e casas. Muitas pessoas morreram. . . Quando chegar o mo­mento de me julgar, lembre-se disso.

— Há uma outra questão.

— Que seja fácil.

— Bem que eu gostaria que fosse possível. Será que um Estado é menos culpado que um indivíduo? Está além do alcance da justiça porque não há nenhum tribunal em que possa ser julgado? Não há reparação contra as suas monstruosidades? Nenhuma. . . a não ser um banho de san­gue. É por isso que eu faço desenhos obscenos. Eles des­viam a minha atenção da maior de todas as obscenidades: o que o homem inflige à sua própria espécie. Mais alguma coisa?

— Apenas isto: quando e se conseguirmos um acordo e você mo trouxer para assiná-lo, saberá que pode garantir o meu cumprimento. Poderá também garantir o deles?

A resposta de Feldman, com toda a ironia de que estava impregnada, tinha o patético do desespero:

— Sou advogado. Elaboro documentos muito bons. Deus faz os homens. Nunca me senti em condições de garan­tir o trabalho dele. Muito triste, não é mesmo?

 

À medida que os dias e noites foram se passando, a tristeza foi aumentando em John Spada. Procuravam dei­xá-lo realmente cansado, enviando-lhe resmas e mais resmas de papéis — condições, exclusões, adendos, interpretações, cláusulas extras, subcláusulas, referências — deixando-lhe os olhos ardendo intensamente, a cabeça atordoada.

Maury Feldman passava agora cada vez menos tempo em sua companhia, porque era chamado a todo instante para um comitê ou subcomitê, reunindo-se com os advogados das embaixadas, intérpretes, assessores. Cada vez que ele apa­recia, barbado, cansado, havia um novo sumário a ser prepa­rado, uma nova decisão a ser tomada, contra o movimento inexorável dos ponteiros do relógio. Estavam-no pressionan­do também, e ele acabou por confessá-lo, numa explosão de veemência:

— Primeiro são os números. A Rússia concorda com um número determinado, mas depois recua porque a Ar­gentina não quer ir além. Os chilenos querem que os cuba­nos libertem tantos prisioneiros quanto eles. Os sul-africanos e os coreanos estão batalhando contra os alemães-orientais e os tchecos. Pode-se até pensar que eles estão discutindo gado e não seres humanos. Depois, surge a questão dos observadores. Quem é aceitável e quem não é. Alguns que­rem a Cruz Vermelha. Outros aceitariam a Anistia Interna­cional. Os iranianos não admitem grupos religiosos. Os in­gleses querem que seja feita uma distinção nítida entre pri­sioneiros de consciência e terroristas políticos. . . Depois, há o problema do tempo e dos pontos de entrega, onde os prisioneiros libertados serão alojados e como garantir que não serão presos novamente depois que a crise estiver supe­rada. . . É um tremendo hospício! Todos dizem que é preciso muito mais tempo para acertar os detalhes!

— Eu já estava me perguntando quando chegariam a isso. — Spada sorriu. — É a técnica, não é mesmo? Fazer recuar o prazo fatal. A partir do momento em que o con­seguirem, a crise inicial está superada. Podem respirar mais livremente e começar a pensar em novos meios de protelar o segundo prazo fatal. Mas desta vez, Maury, esse esquema não vai funcionar.

— Já lhes disse isso, John. E creio que eles acreditam. Sugeri uma saída. Se você aceitar, tentarei fazer com que seja aprovada.      

— Pois diga qual é. — Spada sacudiu a mão para a confusão de papéis em torno deles. — Qualquer coisa vai parecer boa depois de tudo isso!

— Antes de eu começar — disse Feldman, cautelosa­mente —, lembre-se da pedra no caminho. Eles insistem em que as duas coisas devem ser separadas. A ameaça deve ser removida primeiro, para que a anistia possa ocorrer em se­guida. Está bem claro?

— Está, sim. Mas. . .

— Esqueça os mas. E limite-se a escutar. O prazo fatal é meio-dia, terça-feira, horário de Nova York. Agora, deixe-me apresentar a proposta. Daqui até lá, transmitimos à imprensa a rotina habitual: negociações esperançosas, acordo próximo, tudo o mais. Seus homens estão atentos, esperando pela transmissão final de televisão. Às nove horas da manhã, horário de Nova York, você entra no ar com uma declaração. Houve demonstração de boa vontade. A humanidade preva­leceu. Em vista disso, você recua de sua posição. Conclama seus homens a revelarem as localizações das toxinas. Vinte e quatro horas depois, os primeiros grupos simbólicos são libertados. Cem prisioneiros de cada país. Os observadores já estão a postos para fiscalizar o processo. Enquanto isso, prosseguem as negociações para a libertação de mais prisio­neiros.

— E tudo isso consta da declaração?

— Tudo. Um compromisso público foi assumido. Mes­mo que depois os governos procurem protelar qualquer ação, já houve um começo.

— Por que as duas coisas não podem ser feitas simul­taneamente?

— Pelo amor de Deus! Por uma questão de soberania! Já falamos sobre isso mais de cem vezes!

— Quem escreve a declaração que será transmitida?

— Você. . . mas eles terão que concordar.

— Está certo. Vamos tentar esse esquema. Mas eu me reservo o direito de só tomar a decisão final depois que fica­rem definidos todos os termos.

— Não há problema. E agora vou voltar à reunião.

— Fique mais um pouco e jante comigo primeiro.

— Não, obrigado. Perdi o apetite. Há aves de rapina à minha espera lá fora.

— Diga-lhes que eu ainda não estou morto.

Mas ele estava quase morto e sabia disso. Tinham-no encurralado contra uma parede e suas espadas lhe espetavam a garganta. A partir do momento em que o desarmassem, o jogo estaria terminado. As libertações simbólicas, mesmo que ocorressem, seriam as últimas e únicas, presos insignifican­tes, sem a menor importância, os quais os carcereiros teriam o maior prazer em devolver à caridade do mundo. As pro­messas deles não teriam qualquer valor. Ele já conhecera documentos suficientes para saber que estariam condenadas ao abandono. Antes de se conseguir chegar a um acordo sobre a interpretação de qualquer documento, muito menos deter­minar o seu cumprimento compulsório, podiam-se passar dez anos brigando na justiça, alimentando-se todo um exército de advogados no processo.

Misericórdia? Anatóli Koltchak dissera-o claramente: os homens tinham coração; russos, americanos, chineses, chi­lenos, todos tinham coração; mas os Estados, as nações, as juntas militares não tinham coração. Eram ídolos de barriga vazia, alimentados pelos ossos das crianças. Por algum es­tranho truque de memória, ele se recordou de Rudolf Hess, um louco velho e alquebrado na prisão de Spandau, a quem se negava qualquer misericórdia, enquanto outros, mil vezes mais perigosos, engordavam em liberdade. Isso era política. Era o jogo do poder levado ao supremo e obsceno absurdo.

Apesar das esperanças de Maury Feldman, as discussões se prolongaram por mais três dias, em busca da redação final do documento de rendição. Eles diziam que não podiam aceitar mais sermão, mais propaganda por uma causa perdi­da. Spada concordara em separar a ameaça do ato de bene­volência; não podiam permitir que voltasse a juntar as duas coisas. Ele já apresentara a sua argumentação uma vez. Pode­ria apresentar, rapidamente, a questão que redundara em seu fracasso; se tentasse discorrer mais longamente, seria imediatamente tirado do ar.

Depois, eles apresentaram uma nova exigência. Spada devia revelar os nomes dos seus cúmplices, assim como as localizações da toxina. Nesse ponto, ele foi intransigente. Não iria trair seus amigos. Não podia alterar a comunicação combinada, pois isso indicaria a seus colaboradores que es­tava agindo sob coação. Era o momento em que tinham de aceitar ou renunciar a tudo. Eles aceitaram, mas odiaram-no por isso. O ódio deles foi a última justificativa para o que Spada tencionava fazer. Ele assinou o documento às sete horas da noite anterior ao prazo fatal.

Maury Feldman meteu o documento em sua pasta e tirou dela um envelope pardo, dizendo:

— Não mencionei isto antes, porque nunca pensei que eu ganharia. É um novo passaporte, com um novo nome. Está livre para ir aonde bem desejar, enquanto conseguir permanecer vivo. . . Nosso governo concordou porque prefere evitar o problema de levá-lo a um julgamento público e ter de enfrentar todo o debate novamente.

Spada ficou com o documento nas mãos por um mo­mento, depois devolveu-o. A voz estava trêmula quando falou:

— Obrigado, Maury. . .   obrigado por tudo. Mas não posso aceitar. Se o fizer, ficará patente que eu me entreguei, que fiz um mau negócio para salvar a própria pele. De jeito nenhum eu poderia me submeter a essa indignidade.

— A vida é sua, meu querido. E não posso dizer que discorde de sua posição.

— Tenho uma coisa para você, Maury. Gostaria que lesse e mostrasse a Kitty. É o que eu esperava poder ler amanhã. De qualquer forma, não há ninguém mais que o possa compreender melhor do que vocês dois.

Os dois se abraçaram ternamente, à velha maneira lati­na. Pela primeira vez desde que a amizade deles começara, Maury Feldman perdeu o controle. E como não podia deixar de ser, censurou-se a si mesmo:

— Essa não! Os judeus e os italianos. . . devemos ser os maiores chorões do mundo!

— Relaxe! — disse Spada, sorrindo. — Está sendo pago pelas lágrimas também!

— Desta vez não haverá honorários — disse Maury, recusando-se a ser confortado.

— Ora, deixe disso! Todo o trabalho que teve. . .

— Digamos que é um tributo, John. Eu lhe devo isso. Lamento profundamente termos perdido o caso. E até ama­nhã, no tribunal.

Foi cerca de uma hora depois que Anatóli Koltchak apareceu, solícito e cortês como sempre. Ah, obrigado, ele aceitava um drinque. Agora que o grande e tempestuoso debate estava terminado, ele gostaria de passar alguns mo­mentos na companhia de um amigo.

— John. . . — Era a primeira vez que o embaixador soviético o chamava pelo prenome. — Eu tinha de vir. Tinha de apresentar-lhe os meus cumprimentos.

— Obrigado, Anatóli.

— E também para dizer algo. Você não perdeu. Ga­nhou mais do que jamais saberá. Gostaria que tivesse sido um triunfo total, mas sou um servidor do que é. Talvez meus filhos desfrutem o que pode ser.

— Brindarei a isso.

— Como se sente?

— Vazio.

— Estarei na galeria amanhã. Gostaria que soubesse que terá um amigo presente.

— Não esquecerei...   Diga-me uma coisa, Anatóli: eles vão cumprir as promessas?

— Vão dar a impressão de cumprir — respondeu Ana­tóli Koltchak. — É esse o jogo, não é mesmo?

— Tem razão, é esse o jogo.

— Para onde irá depois?

— Ainda não pensei nisso.

— Não pode ser um fugitivo com um passaporte falso para sempre. Assim, se eu puder ajudar. . . talvez alguma pequena república, onde o povo seja ignorante demais para ler, simples demais para se preocupar com outra coisa que não a chuva e a colheita do milho. Pode-se dar um jeito.

— Não será necessário. De qualquer forma, muito obri­gado, meu amigo.

— De nada. Procure ter uma boa noite de sono. Ama­nhã terá um dia terrível. Mas, como os casos de amor e os escândalos financeiros, não vai durar muito tempo.

— Sei disso. E é justamente esse o problema. As pes­soas têm memória curta.

— Se não tivessem, meu amigo, uma carreira política representaria uma passagem de primeira classe para a cela da morte.

 

Estavam todos reunidos novamente na imensa câmara; só que desta vez não estavam sombrios nem temerosos, como acontecera na vez anterior, mas exultantes, esperando pelo epílogo, em que o bem triunfaria sobre o mal, a ordem sobre o caos, a arte do possível sobre o sonho impossível.

Não houve dessa vez uma introdução do secretário-geral. Os murmúrios cessaram quando John Spada avançou sozinho para a tribuna, com uma única folha de papel na mão. Colocou-a na pequena estante, alisou-a de encontro à madeira e começou a ler, a voz sem qualquer entonação:

— Digo o que está combinado que devo dizer, não aquilo em que pessoalmente acredito. Um homem, sozinho, entrou em conflito com as nações do mundo, com as forças da lei e da ordem estabelecida, a fim de defender uma causa humana. Sustentei a súplica com uma ameaça, porque as forças da lei e da ordem estabelecida também mantêm amea­ças sobre todos nós. Minha causa, a causa dos silenciosos, foi perdida.

"E perdeu-se no que diz respeito a uma questão funda­mental: o indivíduo é mais importante que a massa, a sobera­nia de uma nação é menos importante que a liberdade do povo que vive dentro de suas fronteiras. Vós, as nações, decidistes contra mim. Não sei se os povos também decidi­ram assim, porque não os ouvi se manifestarem.

"Prometeram-me que, como um ato de generosidade, algumas categorias de prisioneiros serão libertadas, em todos os países. É uma boa coisa, mas não é suficiente. A vergonha ainda paira sobre vós. Ainda tendes que suportar o desprezo de vossos filhos. Por mim mesmo, nada mais tenho a dizer.

"A mensagem seguinte é para meus amigos e colabo­radores. . . 'Proteu para os peixes, capitulem! Proteu para os peixes, capitulem! Proteu para os peixes, capitulem!' E agora vou me juntar aos silenciosos."

As câmaras continuaram a focalizá-lo. Os operadores haviam sido informados de que o último gesto era uma parte integrante do roteiro. Spada levou a mão esquerda aos lábios. Depois, pegou o copo com água e bebeu. Baixou o copo e largou-o. Viram-lhe o rosto contorcer-se num ricto de agonia. E no instante seguinte, diante dos representantes de cento e quarenta e nove nações, ele caiu no chão.

 

Em seu apartamento da Park Avenue, Maury Feldman leu em voz alta o último testamento de John Spada:

— "... Neste momento, à véspera de minha saída do mundo, vejo que estou extremamente calmo. Isso é estranho, porque, apesar de tudo, ainda sou um crente e estou con­vencido de que deve haver alguma espécie de prestação de contas, um julgamento dos nossos acertos e erros. Sei que não sou isento de culpa. Não peço que coisa alguma que eu tenha feito seja perdoada ou desculpada. Ao mesmo tempo, estou consciente de que havia uma lógica terrível e inevitá­vel na situação. Estava habituado ao exercício do poder. Fui educado não para sofrer, mas para agir. E, uma vez cometido o ato, eu estava comprometido com suas conseqüências, por mais extensas e drásticas que pudessem ser.

"Desde a infância que a ética cristã me foi proposta: perdoa a teus inimigos, abençoa aqueles que te amaldiçoam, reza por teus algozes. Aceitei-o como um credo formal, mas a verdade é que nunca fui capaz de aceitá-lo absolutamente ou aplicá-lo em minha própria vida. Imagino. . . e muitas vezes pensei nisso... o que teria acontecido se eu fosse capaz de aceitar a violação de minha filha com resignação, deixando a reparação para um Deus invisível. Não sei. Acho que, se eu tivesse sido a vítima, poderia ter perdoado o vio­lador. Mas sendo a testemunha, o sofredor por procuração? Deus me ajude! Ainda não posso acreditar que haja graça suficiente no mundo para essa espécie de submissão. Se não podemos recorrer à lei em defesa dos inocentes, o que resta senão o código de retaliação?

"Assim, tratei de revidar! Matei. Ameacei matar. Ca­minhei pela longa estrada até os confins do mundo e vi que dava num beco sem saída. Mais um passo e eu estaria caindo no vazio. Por isso recuei, não por covardia, mas simples­mente porque compreendi que o ato final era um inútil massacre de inocentes. Contudo, mesmo enquanto me retra­tava, eu sabia que outros não o fariam. Sabia, tão certamen­te como sei que o verão se segue à primavera, que algum general louco, algum comitê desesperado irá um dia apertar o botão e mergulhar a humanidade no nada. Meu jogo era o de que a humanidade, vendo o horror iminente, rejeitaria isso num irresistível movimento universal. O jogo falhou.

"Mesmo assim, quero que se saiba, pelo menos os meus amigos, que o meu suicídio não foi um ato de deses­pero. É — desejo que seja — um ato religioso, uma doação aos meus amigos, aos quais sei que poderia trair, sob tortu­ra. .. E que ninguém pense que a tortura é alguma espécie de monstruosidade medieval, com inquisidores encapuzados e ferros em brasa. Também temos isso, mas em nossa era iluminada é um sadismo desnecessário. Privem qualquer ho­mem da luz, do som e de qualquer referência táctil e em poucos dias ele estará reduzido à total insanidade. Apliquem-lhe drogas psicotrópicas e obterão o mesmo resultado ainda mais depressa. Mesmo nós, os livres, esclarecidos, civilizados, praticamos tais brutalidades. Não creio que qualquer um de nós esteja obrigado, por qualquer moral, a se submeter a esse supremo aviltamento.

"E assim me vou. E vou grato pelo amor que recebi, pela luz que um dia vi... isso mesmo, até pela luta que perdi. Peço que mantenham unido o nosso pessoal da Proteu, os benevolentes e os combativos. Os dois tipos são necessários. Nenhum dos dois pode sobreviver sem o outro. Os tiranos devem ouvir os rosnados na floresta. Suas vítimas devem ouvir o canto na escuridão. Ciao, Maury! Ciao, Kitty! Transmitam meu amor ao tio Andréa e providenciem para que ele receba uma cópia desta minha última mensagem. John Spada morrerá; mas Proteu continua livre das corren­tes. . . e quem sabe quantos peixes existem no mar?"

Maury Feldman baixou o papel. Pegou o livro da Fala da Verdade, procurou a página certa e entoou a prece kaddish:

— Deus, pleno de misericórdia, que habitais no alto, fazei com que a alma de John Spada, que partiu para o des­canso final, encontre repouso nas asas de Schechinah, entre as almas dos santos, puros como o firmamento dos céus, pois ofereceram caridade para a memória de sua alma; em consi­deração a isso, escondei-o no mistério de vossas asas para sempre e uni sua alma ao vínculo da vida; que o Senhor seja sua herança; e que ele repouse em paz no lugar do descanso. . .

— Requiescat — disse o tio Andréa. — Obrigado por sua amizade ao meu sobrinho.

Maury Feldman apagou a vela shivah e disse, à sua maneira áspera:

— Eu o amava. E sentirei saudade dele. Tinha um tre­mendo estilo. . . E ele tem razão. Não fracassou inteiramen­te. Proteu continua livre das correntes!

— Como todos os mitos, é fabricado pelo homem — disse o tio Andréa, sombriamente. — E tem uma falha. Pro­teu é o pastor das criaturas do mar. Mas, mesmo em seu reino, os peixes grandes ainda devoram os peixes pequenos e continuarão a fazê-lo por todo o sempre. . .

— Amém! — disse Kitty Cowan, no seu modo brusco. —Estou cansada. . . e com medo do escuro. Qual dos cava­lheiros vai fazer a gentileza de me acompanhar a casa?

— Eu irei — disse o tio Andréa. — E gostaria de mantê-la na família, Caterina!

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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