Se alguém disser que os vampiros não são reais, não acredite! O mundo está cheio de vampiros. Não de criaturas malvadas, que mudam de forma, têm medo da cruz, como diz a lenda, mas seres superfortes, honrados, que vivem séculos e precisam beber sangue para sobreviver. Eles se intrometem o mínimo possível nas vidas dos seres humanos e nunca matam aqueles de quem sugam o sangue. Escondida em um canto coberto de neve, de difícil acesso, fica a Montanha do Vampiro, onde os vampiros se reúnem de doze em doze anos. O Conselho (como eles chamam) é presidido pelos Príncipes Vampiros — obedecidos por todos os vampiros — e a maior parte dos seus auxiliares é de Generais Vampiros, cuja tarefa consiste em governar os mortos-vivos. Para me apresentar aos Príncipes, o Sr. Crepsley arrastou-me para a Montanha do Vampiro e para o Conselho. O Sr. Crepsley é um vampiro. Eu sou seu assistente, um meio-vampiro — meu nome é Darren Shan. Foi uma jornada longa e difícil. Viajamos com um amigo nosso — Torvelinho —, quatro lobos e dois Pequeninos, criaturas estranhas que trabalham para um homem misterioso chamado Sr. Tino. Um dos Pequeninos foi morto por um urso louco que bebera o sangue de um vampixiita morto (eles são como vampiros, só que têm pele arroxeada, olhos, unhas e cabelos vermelhos — e sempre matam quando sugam o sangue). O outro então falou — a primeira vez que um Pequenino se comunicou com alguém — e disse que seu nome era Harkat Mulds. Transmitiu também uma mensagem arrepiante do Sr. Tino. Um tal Senhor Vampixiita logo subiria ao poder e conduziria os assassinos de pele arroxeada a uma guerra contra os vampiros — e venceriam! Chegamos finalmente à Montanha do Vampiro, onde os vampiros habitavam um labirinto de túneis e de grandes cavernas. Lá me tornei amigo de um grande número de vampiros, incluindo Sebá Nilo, que tinha sido professor do Sr. Crepsley quando ele era jovem; Arra Barbatanas, uma das poucas vampiras; Vanez Blane, um mestre de esportes de um olho só e Kurda Smahlt, um General que logo se tornaria Príncipe. Os Príncipes e a maior parte dos Generais não ficaram impressionados comigo. Disseram que eu era muito jovem para ser vampiro e criticaram o Sr. Crepsley por me ter transformado num meio-vampiro. Para provar que eu merecia ser um meio-vampiro, tive de enfrentar as Provas de Iniciação e uma série de outras provas rigorosas, geralmente reservadas para aspirantes a Generais. Quando eu estava resolvendo se aceitava ou não o desafio, eles me disseram que, se eu passasse, seria aceito nas fileiras dos vampiros. O que só me disseram muito depois (quando era tarde demais para desistir) foi que, se eu falhasse, seria morto!
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CAPÍTULO UM
A vasta caverna conhecida como o Salão de Khledon Lurt estava quase deserta. A não ser por aqueles sentados à minha mesa — Torvelinho, Kurda e Harkat —, apenas outro vampiro estava presente. Um guarda, sentado sozinho, tomando cerveja numa caneca e assobiando desafinadamente.
Cerca de quatro horas tinham passado desde que fiquei sabendo que seria julgado nas Provas de Iniciação. Eu ainda não sabia muito sobre as Provas, mas, a julgar pela tristeza dos meus companheiros e pelo que fora dito no Salão dos Príncipes, deduzi que minhas chances de sair vitorioso eram, no máximo, muito pequenas. Enquanto Kurda e Torvelinho falavam em voz baixa sobre as Provas, eu observava Harkat, que ultimamente não aparecia muito (ele estava o tempo todo no Salão dos Príncipes, sendo interrogado). Harkat vestia seu tradicional manto azul, mas agora com o capuz caído nas costas, não mais se dando ao trabalho de esconder o rosto todo costurado e cheio de cicatrizes. Harkat não tinha nariz e suas orelhas eram costuradas sob a pele do crânio. Tinha olhos verdes, grandes e redondos, no alto da cabeça. A boca era serrilhada e cheia de dentes afiados. O ar normal era veneno para ele — matava-o em dez ou doze horas —, por isso uma máscara especial o mantinha vivo. Ele a puxava para baixo quando falava ou comia, e depois cobria novamente a boca com ela. Harkat fora antes um ser humano, mas morreu e voltou nesse corpo, depois de fazer um acordo com o Sr. Tino. Ele não lembrava quem tinha sido antes de morrer, nem que tipo de acordo havia feito. Harkat tinha levado uma mensagem do Sr. Tino para os Príncipes, dizendo que a noite do Senhor dos Vampixiitas estava próxima. O Senhor dos Vampixiitas era uma figura mítica cuja chegada seria supostamente o sinal do início de uma guerra entre os vampiros e os vampixiitas, a qual — segundo o Sr. Tino — seria vencida pelos vampixiitas, que eliminariam os vampiros. Percebendo que eu o observava, Harkat abaixou a máscara e disse: — Você... tem visto muitos... dos Salões? — Um bom número deles — respondi. — Você deve... me levar... para conhecê-los. — Darren não vai ter muito tempo para turismo — suspirou Kurda, tristemente. — Não quando tem de se preparar para as Provas. — Fale mais dessas Provas — pedi. — As Provas são parte da nossa herança de vampiros, mais antigas do que qualquer velho vampiro pode lembrar — disse Torvelinho. Torvelinho era um General Vampiro. Era corpulento, cabelos castanhos muito curtos e o rosto cheio de cicatrizes e marcas do tempo. O Sr. Crepsley estava sempre caçoando da sua respiração pesada e dos seus roncos quando dormia. — Nas noites antigas, eram realizadas por ocasião de todos os Conselhos — continuou Torvelinho —, e todos os vampiros tinham de passar por elas, mesmo que já tivessem passado uma dúzia de vezes. “Cerca de mil anos atrás, as Provas foram reestruturadas. Isso foi mais ou menos quando foi criado o posto de General. Antes disso, havia só os Príncipes e
vampiros comuns. Sob a nova ordem, só os que queriam ser General precisavam passar pelas Provas. Um grande número de vampiros comuns faziam as Provas, mesmo quando não pretendiam ser General — um vampiro deve geralmente passar nas Provas de Iniciação para ganhar o respeito dos seus iguais —, mas não é obrigatório.” — Não compreendo — disse eu. — Pensei que, se você passasse nas Provas, automaticamente se tornaria um General. — Não — respondeu Kurda antes de Torvelinho, passando a mão no cabelo louro. Kurda Smahlt não era fisicamente forte como a maioria dos vampiros, ele acreditava no cérebro acima dos músculos, e tinha menos cicatrizes do que os outros, embora tivesse três arranhões permanentes na face esquerda, marcas dos vampixiitas (o sonho de Kurda era reunir os vampiros e os vampixiitas e há várias décadas vinha falando sobre a paz com os assassinos proscritos). — As provas consistem apenas na primeira avaliação para os que pretendem ser General. Há outras Provas de força, resistência e sabedoria que vêm depois. Passar nas Provas significa apenas que você é um vampiro de boa reputação. De boa reputação era uma expressão que eu ouvia muitas vezes. Respeito e honra tinham importância vital para os vampiros. Ser um vampiro de boa reputação significava ser respeitado pelos seus pares. — O que acontece nas Provas? — perguntei. — Há várias Provas diferentes — disse Torvelinho, outra vez tomando a palavra. — Você tem de completar cinco delas. São escolhidas ao acaso, uma de cada vez. O desafio vai desde lutar com javalis a escalar montanhas perigosas e até se arrastar num ninho de serpentes. — Serpentes? — perguntei, alarmado. Meu melhor amigo do Circo dos Horrores, Ofídio, tinha uma serpente enorme, com a qual eu me acostumei, mas da qual nunca aprendi a gostar. Serpentes me davam arrepios. — Não haverá nenhuma serpente nas Provas de Darren — disse Kurda. — Nosso último tratador de serpentes morreu há nove anos e nunca foi substituído. Temos ainda algumas cobras, mas não o bastante para encher uma banheira, muito menos um ninho de serpentes. — As Provas são feitas uma noite depois da outra — disse Torvelinho. — Um dia de descanso é tudo que é concedido entre uma e outra. Portanto, é preciso ter muito cuidado no começo, se for ferido logo no princípio, não vai ter muito tempo para se recuperar. — Na verdade, ele pode ter sorte — disse Kurda. — O Festival dos MortosVivos está próximo. — O que é isso? — perguntei. — Comemoramos com uma festa enorme depois que tiverem chegado todos os vampiros que vêm para o Conselho — explicou Kurda. — Usamos a Pedra de Sangue para localizar os retardatários, faz duas noites, e só faltam três.
Quando chegar o último, começa o Festival e nenhuma função oficial acontece durante três noites e três dias. — Tem razão — disse Torvelinho. — Se o Festival começar durante suas Provas, você terá um intervalo de três noites. — Se os últimos vampiros chegarem a tempo — observou Kurda tristemente. Kurda aparentemente pensava que eu não tinha a menor chance de passar nas Provas. — Por que tem tanta certeza de que eu vou falhar? — perguntei. — Não que eu ache você incapaz — disse Kurda. — Mas é jovem demais e inexperiente. Além de estar fisicamente despreparado, não teve tempo para examinar as várias tarefas e de treinar para elas. Você está sendo jogado num poço sem fundo e isso não é justo. — Ainda reclamando do que não é justo? — alguém comentou atrás de nós, o Sr. Crepsley. Sebá Nilo, o intendente na Montanha do Vampiro, estava com ele. Os dois sentaram e nos cumprimentaram inclinando silenciosamente a cabeça. — Você concordou muito rapidamente com as Provas, Larten — disse Kurda, desaprovando. — Não acha que devia ter explicado as regras com maiores detalhes para Darren? Ele nem sabia que o fato de não completar as Provas significa morte certa! — Isso é verdade? — perguntou-me o Sr. Crepsley. Balancei a cabeça afirmativamente. — Eu pensei que podia desistir se a coisa não estivesse dando certo. — Ah. Eu devia ter explicado melhor. Peço desculpas. — É um pouco tarde para isso agora — desdenhou Kurda. — Mesmo assim — disse o Sr. Crepsley. — Confirmo minha decisão. Era uma situação delicada, não se pode negar. É importante para ambos que um de nós limpe nosso nome. Se pudesse escolher, eu enfrentaria o desafio, mas os Príncipes escolheram Darren. A palavra deles, ao que eu sei, é lei. — Além disso — acrescentou Sebá Nilo —, nem tudo está perdido. Quando fiquei sabendo da notícia, corri ao Salão dos Príncipes e fiz com que lembrassem a antiga e quase esquecida cláusula do Período de Preparação. — O que é isso? — perguntou Torvelinho. — Antes do tempo dos Generais — explicou Sebá —, os vampiros não passavam anos se preparando para as Provas. As Provas eram escolhidas ao acaso, como agora, mas em vez de enfrentá-las imediatamente, eles tinham uma noite e um dia para se preparar. Isso era para dar tempo de treinar. Muitos preferiam ignorar o Período de Preparação, geralmente aqueles que já tinham feito as Provas antes, mas não havia desonra em se aproveitar dessa cláusula. — Eu nunca ouvi falar dessa regra — disse Torvelinho.
— Eu ouvi — observou Kurda —, mas nunca pensei nela. Ainda se aplica? Não é usada há mais de mil anos. — Só porque está fora de moda não quer dizer que seja inválida — disse Sebá, rindo. — O Período de Preparação nunca foi abolido formalmente. Supondo que Darren é um caso especial, falei com os Príncipes e perguntei se seria concedido a ele. Mika objetou, é claro, aquele vampiro nasceu para fazer objeções, mas Paz Celestial o convenceu a aceitar. — Então Darren tem vinte e quatro horas para se preparar para cada Prova — disse o Sr. Crepsley. — E vinte e quatro horas para descansar depois, o que significa um intervalo de quarenta e oito horas entre uma prova e outra. — Boa notícia — concordou Torvelinho, animando-se. — Há mais — disse o Sr. Crepsley. — Também convencemos os Príncipes a excluir algumas das Provas mais rigorosas, aquelas que estão evidentemente além da capacidade de Darren. — Pensei que você tinha dito que não ia pedir nenhum favor — disse Torvelinho com um sorriso. — Eu não fiz isso — respondeu o Sr. Crepsley. — Apenas pedi aos Príncipes para usarem o bom senso. Seria ilógico pedir a um cego para pintar um quadro ou a um mudo para cantar. Assim também seria absurdo esperar que um meiovampiro possa competir em condições iguais às de um vampiro completo. Muitas das Provas permanecem, mas as que são evidentemente impossíveis para alguém da estatura de Darren foram eliminadas. — Continuo a dizer que não é justo — reclamou Kurda. Olhou para o velho Sebá Nilo. — Existe mais alguma lei antiga que podemos usar? Qualquer coisa sobre criança não poder competir ou não ser morta se falhar? — Nenhuma que eu conheça — disse Sebá. — Os únicos vampiros que não podem ser mortos quando falham nas Provas de Iniciação são os Príncipes. Todos os outros são julgados igualmente. — Por que os Príncipes fariam as Provas? — perguntei. — Há muito tempo eles tinham de participar das Provas em todos os Conselhos, como todos os outros — disse Sebá. — Alguns ainda fazem as Provas uma vez ou outra, quando sentem que precisam provar o próprio valor. Entretanto, é proibido para um vampiro matar um Príncipe, assim, se um Príncipe falhar e não morrer durante as Provas, ninguém pode executá-lo. — O que acontece em casos como esses? — perguntei. — Não tem havido muitos — disse Sebá. — Dos poucos de que tenho notícia, os Príncipes preferiram deixar a Montanha do Vampiro e morrer sozinhos. Só um, Fredor Morsh, voltou ao seu lugar no Salão dos Príncipes. Isso foi quando os vampixiitas se separaram, quando precisávamos de todos os nossos líderes. Uma vez passada a crise, ele foi embora para cumprir seu destino. — Venha — disse o Sr. Crepsley, levantando-se e bocejando. — Estou
cansado. Está na hora de terminar este dia. — Acho que não vou poder dormir — disse eu. — Você precisa — rosnou ele. — O descanso é vital se vai competir nas Provas. Precisa estar completamente alerta, com todos os seus sentidos em forma. — Tudo bem — suspirei, levantando-me também. Harkat também se levantou. — Vejo vocês todos amanhã — disse eu para os outros vampiros e eles inclinaram as cabeças tristemente. De volta à minha cela, procurei ficar o mais confortável possível na rede — a maioria dos vampiros dorme em caixões, mas eu não suporto caixões — e Harkat subiu também na sua rede. Levei uma eternidade para pegar no sono, mas afinal adormeci e, embora não tenha conseguido dormir um dia inteiro, estava razoavelmente alerta quando a noite chegou e eu tive de me apresentar no Salão dos Príncipes para saber a natureza da minha primeira Prova mortal.
CAPÍTULO DOIS
Arra Barbatanas esperava a mim e ao Sr. Crepsley fora do Salão dos Príncipes. Arra era uma das poucas vampiras na Montanha do Vampiro. Era uma lutadora feroz, igual — ou melhor — do que muitos homens. Eu tinha lutado com ela logo depois que cheguei e consegui ganhar seu respeito.
— Como vai você? — perguntou ela, apertando minha mão. — Muito bem — disse eu. — Nervoso? — Sim. — Eu também fiquei quando tive de enfrentar minhas Provas — sorriu. — Só um tolo as enfrenta sem ficar ansioso. O importante é não entrar em pânico. — Vou tentar. Arra pigarreou. — Espero que você não esteja ainda ressentido do que eu disse no Salão dos Príncipes — Arra insistira com os Príncipes para que me obrigassem a fazer as Provas. — Não concordo em facilitar as coisas para os vampiros, mesmo quando se trata de uma criança. Nossa vida é dura. Não serve para os fracos. Como eu disse no Salão, acho que você vai passar nas Provas, mas, se não passar, não pretendo pedir por sua vida. — Eu compreendo — disse. — Ainda somos amigos? — Somos. — Se precisar de ajuda nos preparativos, fale comigo — disse ela. — Já passei pelas Provas três vezes, mais para provar a mim mesma meu valor como vampira. É muito pouco o que não sei sobre elas. — Lembraremos disso — disse o Sr. Crepsley, inclinando-se para ela. — Larten, como sempre cortês — observou Arra. — E também belo como sempre. Quase ri alto. O Sr. Crepsley, belo? Eu tinha visto criaturas mais bonitas entre os macacos do zoológico! Mas o Sr. Crepsley aceitou o elogio como se estivesse acostumado a ouvi-lo, e outra vez inclinou o corpo numa cortesia. — E você está mais bela do que nunca — disse ele. — Eu sei — ela sorriu e foi embora. O Sr. Crepsley a observou enquanto ela se afastava, com um olhar distante no rosto normalmente solene. Quando me viu sorrindo, franziu o cenho, carrancudo. — Do que está rindo? — perguntou, zangado. — De nada — disse eu, inocentemente. Acrescentei com malícia: — Uma antiga namorada? — Se quer saber — disse ele, suavemente —, Arra foi, no passado, minha companheira. Pisquei os olhos espantado. — Quer dizer que ela foi sua mulher? — De certo modo, sim. Olhei boquiaberto para o vampiro. — Você nunca me disse que era casado!
— Não sou mais, mas já fui. — O que aconteceu? Vocês se divorciaram? Ele balançou a cabeça. — Vampiros não se casam nem se divorciam como os seres humanos. Fazemos um contrato temporário. Olhei para ele interrogativamente. — Como assim? — Se dois vampiros querem se unir — explicou —, concordam em viver juntos por determinado tempo, geralmente cinco anos. No fim desse tempo, podem concordar em viver juntos mais cinco anos ou se separar. Nossos relacionamentos não são como os dos seres humanos. Como não podemos ter filhos, e vivemos tanto tempo, poucos vampiros ficam juntos durante toda a vida. — Isso me parece estranho. O Sr. Crepsley deu de ombros. — É o modo dos vampiros. Pensei no assunto. — Ainda gosta de Arra? — perguntei. — Eu a admiro e respeito — respondeu com ar matreiro. — Não foi isso que perguntei. Você a ama? — Ah, ouça — disse ele rapidamente, corando em volta do pescoço. — Está na hora de nos apresentarmos aos Príncipes. Vamos depressa, não devemos nos atrasar. — E ele saiu com passos rápidos, como para fugir a outras perguntas pessoais.
Vanez Blane nos recebeu no Salão dos Príncipes. Vanez era mestre dos jogos, responsável pela manutenção dos três Salões de Jogos e pelo bem-estar dos competidores. Tinha só um olho e visto do lado esquerdo parecia ameaçador. Mas visto de frente, do lado direito, percebia-se que era um vampiro amistoso e gentil. — Como está se sentindo? — perguntou. — Pronto para as Provas? — Mais ou menos — respondi. Ele me levou para um lado e falou em voz baixa. — Você pode dizer não, se quiser, mas conversei com os Príncipes e eles não se opõem a que você peça que eu seja seu orientador nas Provas. Isso quer dizer que eu informarei você sobre as provas e o ajudarei a se preparar para elas. Serei como o padrinho de um duelo ou um treinador de uma luta de boxe. — Para mim parece ótimo — disse eu. — Você não se importa, Larten? — perguntou ele ao Sr. Crepsley. — De modo algum — disse o Sr. Crepsley. — Eu tinha pensado em ser o orientador de Darren, mas você é muito mais capacitado para esse trabalho. Tem certeza de que não será inconveniente para você?
— É claro que tenho — disse Vanez com firmeza. — Então está combinado. — Nós três trocamos um aperto de mãos, sorrindo uns para os outros. — É estranho ser o centro de tanta atenção — disse eu. — Tanta gente disposta a me ajudar. Vocês são assim com todos os novatos? — A maior parte do tempo somos — disse Vanez. — Os vampiros cuidam uns dos outros. Temos de fazer isso. Todo o resto do mundo tem medo de nós ou nos odeia. Um vampiro pode sempre depender da ajuda dos seus iguais. — Piscou o olho para mim e acrescentou: — Até mesmo aquele malandro covarde do Kurda Smahlt. Vanez, na verdade, não achava que Kurda fosse um malandro covarde — só gostava de provocar aquele que logo seria Príncipe —, mas muitos vampiros na montanha achavam. Kurda não gostava de tomar parte em guerras e era a favor de fazer as pazes com os vampixiitas. Para a maior parte dos vampiros isso era impensável. Um guarda chamou meu nome e eu me adiantei e passei pelos bancos circulares para a plataforma onde ficavam os tronos dos Príncipes. Vanez ficou atrás de mim, enquanto o Sr. Crepsley continuou sentado — só os orientadores das Provas tinham permissão de acompanhar os competidores até a plataforma. Paz Celestial, um Príncipe de cabelos brancos e barba grisalha — era também o mais velho vampiro vivo —, perguntou se eu estava disposto a aceitar qualquer Prova que me fosse designada. Eu disse que estava. Ele anunciou para o Salão em geral que o Período de Preparação fora lembrado e que algumas Provas haviam sido eliminadas devido ao meu tamanho e idade. Perguntou se alguém fazia objeção. Mika Ver Leth — que tinha sugerido as Provas — parecia não ter gostado das concessões e, irritado, arrumava as dobras da sua camisa negra, mas não disse nada. — Muito bem — disse Paz. — Vamos sortear a primeira Prova. Uma sacola com várias pedras foi levada até ele por um guarda de uniforme verde. Tinham me dito que havia dezessete pedras no saco, cada uma com um número. Cada número corresponde a uma Prova e a que eu tirasse seria a Prova que teria de enfrentar. O guarda sacudiu a sacola comprida e perguntou se alguém queria examinar as pedras. Um dos Generais levantou a mão. Era uma prática comum — as pedras eram sempre examinadas —, por isso não me preocupei, apenas olhei para o chão e tentei fazer parar o ronco no meu estômago. Depois que as pedras foram examinadas e aprovadas, o guarda sacudiu outra vez a sacola e a estendeu para mim. Fechando os olhos, enfiei a mão na sacola, agarrei a primeira pedra que encontrei e a retirei. — Número onze — gritou o guarda. — O Labirinto Aquático. Os vampiros no salão trocaram murmúrios.
— Isso é bom ou ruim? — perguntei para Vanez enquanto a pedra era levada para que os Príncipes a verificassem. — Depende — disse ele. — Você sabe nadar? — Sei. — Então é uma primeira Prova tão boa quanto outra qualquer. Podia ter sido muito pior. Depois que a pedra foi examinada e posta de lado para não ser retirada outra vez, Paz Celestial disse que eu devia me apresentar para a Prova no dia seguinte. Desejou-me boa sorte — disse que os negócios o impediriam de estar presente, mas que um dos outros Príncipes estaria no seu lugar e encerrou a conversa. Saindo do Salão, fui com o Sr. Crepsley e Vanez preparar meu primeiro encontro com a morte.
CAPÍTULO TRÊS
O Labirinto Aquático era artificial, com teto baixo e paredes à prova d’água. Tinha quatro portas para entrar e sair, uma em cada parede externa. Do centro, onde eu seria deixado, normalmente levaria cinco ou seis minutos para encontrar a saída, supondo que não me perdesse.
Mas, na Prova, eu tinha de carregar uma pedra pesada com a metade da minha altura, o que aumentava muito esse tempo. Com a pedra, oito ou nove minutos era um bom tempo. Mas, além da pedra, tinha de enfrentar a água. Assim que a Prova iniciava, o labirinto começava a se encher de água, bombeada através de mangueiras ligadas aos regatos subterrâneos. A água dificultava os movimentos mais ainda e a navegação no labirinto geralmente levava cerca de um quarto de hora. Se demorasse mais tempo, eu estaria com um sério problema, porque o labirinto enchia até em cima em exatamente dezessete minutos. — É fundamental não entrar em pânico — disse Vanez. Estávamos em um dos labirintos de treinamento, uma réplica menor do Labirinto Aquático. O caminho era o mesmo, as paredes do Labirinto Aquático podiam ser movidas, de modo que o labirinto era diferente para cada competidor, mas servia como um bom aprendizado. — A maior parte dos fracassos no labirinto é devida ao pânico — continuou. — Pode ser assustador quando a água começa a subir e o movimento fica mais lento e difícil. Você tem de lutar contra esse medo e se concentrar no caminho. Se deixar que a água o distraia, fica completamente desorientado e então está perdido. Passamos o começo da noite percorrendo o labirinto muitas e muitas vezes, Vanez me ensinando a fazer um mapa na cabeça. — Todas as paredes do labirinto parecem iguais — disse ele —, mas não são. Existem marcas de identificação, uma pedra desbotada, um pedaço de chão lascado, uma rachadura. Você deve notar essas pequenas diferenças e fazer seu mapa mental. Assim, se der consigo em uma passagem onde já esteve, vai reconhecer e pode começar imediatamente a procurar um novo caminho, sem perder tempo. Passei horas aprendendo a fazer mapas mentais do labirinto. Era mais difícil do que parece. Era fácil lembrar as poucas primeiras passagens — uma pedra lascada no canto superior esquerdo, uma pedra coberta de musgo no chão do seguinte, uma pedra arredondada no teto —, mas quanto mais me adiantava mais coisas tinha para lembrar e mais confuso tudo ficava. Eu tinha de encontrar algo novo em cada corredor porque, se usasse uma marca igual a outra já gravada na memória, confundia as duas e ia acabar perseguindo a mim mesmo. — Você não está se concentrando! — disse Vanez zangado quando parei pela sétima ou oitava vez em rápida sucessão. — Estou tentando — resmunguei —, mas é difícil. — Tentar não basta — rosnou ele. — Você tem de se desligar de qualquer outro pensamento. Esqueça a Prova e a água e o que acontecerá se falhar. Esqueça o jantar e o café da manhã e qualquer outra coisa que o esteja distraindo. Pense só no labirinto. Ele deve encher seus pensamentos
completamente, do contrário está perdido. Não foi fácil, mas eu fiz o melhor possível e no espaço de uma hora tinha melhorado consideravelmente. Vanez tinha razão — eliminar todos os outros pensamentos era a solução. Era tedioso andar num labirinto durante horas sem fim, mas era esse tédio que eu precisava aprender a apreciar. No Labirinto Aquático, qualquer excitação podia me confundir e me matar. Quando minha capacidade de fazer o mapa mental chegou ao auge, Vanez enrolou uma longa corda em volta da minha cintura e amarrou uma pedra na outra ponta. — Esta pedra tem apenas um quarto do seu peso — disse ele. — Vamos tentar outra mais pesada depois, mas não quero que se canse muito antes da Prova. Vamos fazer com que você se acostume com esta primeiro e passe para outra com um terço do seu peso. Depois usaremos a verdadeira por um curto tempo, para dar a você uma idéia do que vai ser. A pedra não era especialmente pesada — como meio-vampiro eu era muito mais forte do que um ser humano —, mas incomodava. Além de me fazer ir mais devagar, tinha também o péssimo hábito de se enganchar nas frestas e nos cantos, obrigando-me a parar para soltá-la. — O importante é parar assim que sentir que ela está presa — disse Vanez. — Seu instinto natural é puxar a corda com força para soltar a pedra rapidamente, mas acaba levando mais tempo do que se você parar. Segundos são fundamentais no labirinto. É melhor agir metodicamente e perder quatro ou cinco segundos soltando a pedra com as mãos do que agir precipitadamente e perder dez ou vinte segundos. Havia meios de evitar que a corda e a pedra se prendessem muito. Quando eu chegava aos cantos ou às curvas, tinha de puxar a corda e manter a pedra perto de mim — desse modo era menor a probabilidade de ficar presa. Ajudava também sacudir a corda de vez em quando — isso a mantinha solta. — Mas você tem de fazer isso automaticamente — disse Vanez. — Sem parar para pensar. Seu cérebro deve estar completamente ocupado com o mapeamento do labirinto. Tudo o mais é feito por instinto. — Não adianta — gemi, sentando no chão. — Vou levar meses para estar preparado para isso. Não tenho a menor chance. — É claro que tem! — rugiu Vanez. Agachando ao meu lado, ele bateu com as mãos fechadas nas minhas costelas. — Sente isso? — perguntou, enfiando um dedo pontudo na carne macia da minha barriga. — Ai! — Bati na mão dele, afastando-a. — Pare com isso! — Dói? — perguntou, batendo outra vez. — Machuca? — Sim! Ele sorriu, bateu mais uma vez e depois se levantou. — Imagine quanto mais dolorosas serão as estacas no Salão da Morte —
disse. Suspirando desanimado, levantei-me e enxuguei o suor da testa. Peguei a corda, sacudi com força e voltei ao labirinto, arrastando a pedra e fazendo o mapa das paredes, como Vanez tinha me ensinado.
Finalmente paramos para comer e nos encontrar com o Sr. Crepsley e com Harkat no Salão de Khledon Lurt. Eu não tinha fome — estava nervoso demais para comer —, mas Vanez insistiu para que eu comesse tudo — ele disse que eu ia precisar de cada grama de energia para a Prova. — Como vai ele? — perguntou o Sr. Crepsley. Ele queria assistir a meu treino, mas Vanez disse que isso ia atrapalhar. — Muito bem — disse Vanez, mastigando os ossos de um rato feito no espeto. — Para ser franco, embora eu tenha procurado parecer satisfeito quando a Prova foi sorteada, pensei que era demais para ele. O Labirinto Aquático não é uma das Provas mais brutais, mas é uma das que exigem muito tempo de preparo. Mas ele aprende depressa. Tem ainda de aprender muita coisa, ainda não experimentamos dentro d’água, mas estou muito mais esperançoso agora do que há algumas horas. Harkat levara Madame Octa — a aranha do Sr. Crepsley — para o Salão e estava dando para ela migalhas de pão mergulhadas na sopa. Ele tinha concordado em tomar conta dela enquanto eu me concentrava nas Provas. Afastando-me dos vampiros, comecei a conversar com o Pequenino. — Vai indo bem com ela? — perguntei. — Sim. É... fácil... cuidar dela. — Apenas não a deixe sair da gaiola — avisei. — Ela é bonitinha, mas sua picada é mortal. — Eu sei. Muitas vezes... eu vi... você e ela... quando vocês... estavam no palco... no Circo... dos Horrores. Harkat estava falando melhor — ele arrastava as palavras muito menos agora —, mas ainda tinha de fazer longas pausas para respirar no meio das frases. — Você acha... que vai... estar preparado... para a Prova? — perguntou. Dei de ombros. — Neste momento, a Prova é a última coisa na minha cabeça, não tenho nem certeza de que vou conseguir terminar o treinamento! Vanez está me fazendo dar duro. Acho que ele tem de fazer isso, mas estou exausto. Podia ir para debaixo da mesa e dormir durante uma semana. — Eu estive... ouvindo os... vampiros — disse Harkat. — Muitos estão... apostando em você. — É mesmo? — Endireitei o corpo na cadeira, interessado. — Que tipo de possibilidades eles acham que eu tenho?
— Na verdade... eles não... falam em... possibilidades. Eles apostam... roupas... e jóias. A maioria dos vampiros... está... apostando contra você. Kurda, Torvelinho... e Arra... estão aceitando... a maioria... das apostas. Eles... acreditam em você. — É bom ouvir isso — sorri. — E Crepsley? Harkat balançou a cabeça. — Ele disse... que não... aposta. Especialmente... em crianças. — O tipo da coisa que aquele gavião velho diria — rosnei, tentando não parecer desapontado. — Mas eu... o ouvi falando... com Sebá Nilo — acrescentou Harkat. — Ele disse... que se você... falhar, ele come... sua capa. Eu ri, encantado. — Do que vocês dois estão falando? — perguntou o Sr. Crepsley. — De nada — disse com um largo sorriso para ele. Quando terminamos de comer, Vanez e eu voltamos para o labirinto, onde treinamos com pedras mais pesadas dentro água. As horas seguintes foram as mais duras da minha vida e, quando ele resolveu parar e me mandou para a cela, eu estava tão cansado que desabei no meio do caminho e tive de ser carregado até a minha rede por dois solidários guardas.
CAPÍTULO QUATRO
Quando acordei, estava todo dolorido e pensei que não seria capaz de chegar ao labirinto, muito menos encontrar o caminho para sair dele. Mas, depois de alguns minutos andando em volta da cela, as dores passaram e me senti mais em forma do que nunca. Compreendi que Vanez tinha me levado ao ponto exato da minha
resistência, como um aviso para que eu não duvidasse mais das suas táticas no futuro. Eu estava com fome, mas Vanez me dissera para não comer nada quando acordasse — se as coisas ficassem difíceis, alguns quilos a mais podiam significar a diferença entre viver e morrer. O Sr. Crepsley e Vanez me apanharam em minha cela quando chegou a hora. Os dois vestiam suas melhores roupas, o Sr. Crepsley resplandecente com os mantos vermelhos, Vanez, menos exagerado, com uma túnica e calça marrons. — Pronto? — perguntou Vanez. Fiz que sim com a cabeça. — Com fome? — Faminto! — Ótimo — sorriu. — Depois da Prova vou oferecer a você a melhor refeição da sua vida. Pense nisso se tiver problemas, às vezes ajuda ter alguma coisa para esperar. Seguimos pelos túneis iluminados com archotes até o Labirinto Aquático, Vanez na minha frente, o Sr. Crepsley e Harkat logo atrás. Vanez levava uma flâmula roxa, o sinal de que estava escoltando um vampiro para a Prova. Quase todos os vampiros pelos quais passamos faziam um gesto estranho quando me viam. Encostavam a ponta do dedo médio da mão direita na testa, com as pontas dos outros dedos de cada lado das pálpebras e o polegar e o mínimo estendidos para fora, nos lados. — Por que eles estão fazendo isso? — perguntei para Vanez. — É um gesto tradicional — explicou. — Chamamos de sinal do toque da morte. Significa “que você triunfe mesmo na morte”. — Eu preferia que dissessem “boa sorte” — resmunguei. — Isso não tem a mesma ressonância — riu Vanez. — Acreditamos que os deuses dos vampiros respeitam aqueles que morrem nobremente. Eles nos abençoam quando enfrentamos a morte orgulhosamente, e nos amaldiçoam quando morremos passivamente ou morremos mal. — Então eles querem que eu morra bem por interesse próprio — disse eu, sarcasticamente. — Para o bem do clã — corrigiu Vanez, muito sério. — Um vampiro de boa reputação sempre põe o bem do clã antes do próprio bem. Mesmo na morte. Aquele gesto com a mão é para fazer você se lembrar disso. O Labirinto Aquático ficava no fundo de um poço numa grande caverna. Visto de cima, parecia uma grande caixa quadrada. Em volta do poço estavam quarenta ou cinqüenta vampiros, a lotação máxima do lugar. Entre eles estavam Torvelinho e Kurda, Sebá Nilo e Arra Barbatanas e Mika Ver Leth, o vampiro que tinha me condenado às Provas. Mika nos chamou, cumprimentou solenemente Vanez e o Sr. Crepsley com uma inclinação da cabeça e então olhou para mim. Ele vestia suas roupas negras
de sempre e parecia mais severo do que o Sr. Crepsley. — Você se preparou para a Prova? — perguntou. — Sim. — Sabe o que o espera? — Sei. — A não ser pelas quatro saídas, não há como escapar do labirinto — disse. — Se você falhar nesta Prova, não terá de enfrentar o Salão da Morte. — Prefiro as estacas a morrer afogado — resmunguei. — A maior parte dos vampiros prefere — concordou. — Mas não precisa se preocupar, é água parada, não corrente. Olhei interrogativamente para ele. — O que isso tem a ver com o resto? — Agua parada não pode prender a alma de um vampiro — explicou. — Ah, o velho mito — ri. Muitos vampiros acreditavam que, se morressem num rio ou num regato, suas almas ficavam presas para sempre na água corrente. — Isso não me preocupa. Não gosto é da idéia de me afogar. — Seja como for, eu lhe desejo boa sorte — disse Mika. — Não, não deseja — funguei. — Darren! — sibilou o Sr. Crepsley. — Tudo bem — Mika o fez calar com um gesto da mão. — Deixe que o garoto diga o que tem para dizer. — Você me fez aceitar as provas — disse eu. — Você não me acha bastante bom para ser um vampiro. Ficará satisfeito se eu falhar, porque terá provado que estava com a razão. — Seu assistente tem péssima opinião a meu respeito, Larten — observou Mika. — Ele é jovem, Mika. Não conhece seu lugar. — Não se desculpe por ele. Os jovens devem dizer o que pensam. — Voltou-se para mim outra vez. — Você só está certo em uma coisa, Darren Shan, eu acho que você não tem o que é preciso para um vampiro. — Quanto ao resto do que você diz... — Balançou a cabeça — Nenhum vampiro tem prazer em ver outro falhar. Sinceramente espero que você prove que estou errado. Precisamos de vampiros de boa reputação, agora mais do que nunca. Erguerei um copo de sangue em seu nome se você completar as Provas e de boa vontade admitirei em público que eu o julguei mal. — Ah — disse eu, confuso. — Nesse caso, acho que estou arrependido do que eu disse. Sem ressentimentos? O Príncipe de cabelos negros e olhos de águia sorriu severamente. — Sem ressentimentos. — Então bateu palmas e rosnou asperamente: — Que os deuses o abençoem com a sorte dos vampiros! — E as Provas começaram.
Então me puseram numa maca, com os olhos vendados, e quatro guardas me levaram para o centro do labirinto — para que eu não pudesse memorizar o caminho. Uma vez lá dentro, me tiraram da maca e removeram a venda. Eu estava num corredor estreito, de mais ou menos um metro e meio de largura e menos de dois metros de altura. Meu tamanho seria vantajoso para mim nessa Prova — vampiros altos tinham de se curvar, o que dificultava mais ainda os movimentos. — Está pronto? — perguntou um dos guardas. — Estou pronto — disse eu, olhando em volta para encontrar minha primeira marca. Vi uma pedra esbranquiçada na parede à minha esquerda e anotei mentalmente, começando o meu processo de traçar o mapa. — Você deve ficar aqui até a água começar a jorrar — disse o guarda. — Esse é o sinal para começar a Prova. Ninguém pode acompanhá-lo depois que começar a andar, portanto nada impede que você tente nos enganar a não ser sua consciência. — Não vou roubar — disse eu, zangado. — Vou esperar a água. — Tenho certeza disso — o vampiro sorriu, desculpando-se. — De qualquer modo, eu tinha de dizer isso... tradição. Os quatro guardas saíram levando a maca. Eles calçavam sapatos supermacios para que seus passos não fizessem o menor ruído. Havia pequenas velas dentro de redomas de vidro no teto do labirinto, portanto eu tinha claridade suficiente para ver, mesmo quando a água estivesse bem alta. Meus nervos estavam tensos enquanto esperava a água. Uma voz covarde dentro de minha cabeça me incitava a começar antes que a água chegasse. Ninguém jamais saberia. Melhor viver com um pouco de vergonha do que morrer por causa de um orgulho idiota. Ignorei a voz — nunca poderia olhar nos olhos do Sr. Crepsley, de Torvelinho ou dos outros se fizesse isso. Finalmente ouvi um som gorgolejante e a água começou a sair de um cano perto de mim. Com um suspiro de alívio, corri para o fim do corredor, arrastando minha pedra, sacudindo a corda a intervalos regulares, como Vanez tinha me ensinado. Comecei fazendo um bom tempo. A água quase não atrapalhava meus movimentos e havia várias pedras marcadas para identificar os corredores. Não entrava em pânico quando chegava a uma parede sem saída ou voltava a um corredor por onde já havia passado, apenas abaixava a cabeça e continuava a andar por outro caminho. Começou a ficar difícil depois de cinco ou seis minutos. A água estava acima dos meus joelhos. Cada passo era um esforço. A pedra agora parecia
pesar uma tonelada. Eu tinha dificuldade para respirar e meus músculos estavam doloridos, especialmente os das pernas e das costas. Mesmo assim ainda não entrei em pânico. Vanez tinha me preparado para isso. Diminuí o passo. O erro que muitos vampiros cometiam era tentar andar depressa — ficavam exaustos mais cedo e nunca conseguiam chegar ao fim. Passaram mais alguns minutos. Eu começava a ficar ansioso. Não era possível saber a que distância eu estava do fim. Eu podia estar a uma única curva da porta de saída sem saber — ou perto de nenhuma. Pelo menos eu reconheceria uma saída se a visse — as quatro portas tinham um X enorme pintado com um botão negro no centro. Eu tinha de apertar o botão que a porta se abriria, a água escorreria para fora e eu estaria salvo. O problema era encontrar uma porta. A essa altura a água chegava ao meu peito e a pedra ficava cada vez mais pesada. Eu tinha parado de sacudir a corda — era esforço demais e eu a sentia boiando atrás de mim, ameaçando se enroscar nas minhas pernas. Isso acontecia algumas vezes — vampiros ficavam enredados na corda, paravam e se afogavam. Eu passava por uma curva quando a pedra se prendeu em alguma coisa. Puxei a corda, tentando soltá-la — em vão. Respirando profundamente, mergulhei para ver qual era o problema. Encontrei a pedra presa numa grande fenda na parede. Levei apenas alguns segundos para soltá-la mas, quando voltei à superfície, de repente me deu um branco. Já estivera naquele túnel. Procurei uma marca conhecida, mas não vi nenhuma. Havia uma pedra amarela no alto de uma das paredes, mas eu não tinha certeza de ter ou não passado por ela antes. Eu estava perdido! Segui rapidamente até o fim do corredor, entrei em outro, desesperadamente tentando estabelecer minha posição. O pânico me dominou. Tudo que eu pensava era: “Vou me afogar! Vou me afogar!” Estava tão estressado que podia ter passado uma dezena de marcas sem reconhecer nenhuma delas. A água chegava ao meu queixo, espirrava na minha boca. Eu batia na água, como se com isso pudesse afastá-la de mim. Tropecei e caí. Levantei-me cuspindo água, mal conseguindo respirar. Apavorado, comecei a gritar... ... e isso me fez parar. O som dos meus rugidos me fez voltar a mim. Lembrei-me do conselho de Vanez e fiquei completamente imóvel, fechei os olhos e me esforcei para ficar parado até conseguir controlar o pânico. Concentrei-me no pensamento da festa que me esperava. Carne fresca, raízes naturais e frutas. Uma garrafa de sangue humano para me reanimar. Sobremesa — montanhas de cerejas, quentes e suculentas. Abri os olhos. Meu coração já não batia como um tambor e o pior do acesso de pânico tinha passado. Segui lentamente pelo corredor, procurando uma
marca. Se pudesse encontrar alguma, lembraria o resto do meu mapa mental. Cheguei ao fim do corredor — nenhuma marca. O corredor seguinte também era novo para mim. E o outro. E o outro. Sentia o pânico me ameaçando outra vez quando vi um candelabro numa pedra cinzenta circular — uma das minhas marcas! Olhei para a vela e esperei que o mapa se formasse outra vez. Por vários longos segundos minha mente continuou em branco como antes — então o mapa apareceu. Chegou em partes primeiro, um pedaço de cada vez, depois rapidamente. Fiquei onde estava por mais alguns segundos, certificando-me de que ele estava claro na minha cabeça, antes de continuar. A água agora chegava ao meu lábio inferior. Era quase impossível me mover. Eu tinha de avançar aos saltos, erguendo a cabeça para mantê-la acima da água, com todo o cuidado para não bater no teto. Quanto tempo ainda até eu ficar sem ar? Três minutos? Quatro? Não podia ser muito mais do que isso. Eu tinha de encontrar a saída — rapidamente! Concentrei-me no mapa dentro da minha cabeça, tentando calcular a que distância estava do ponto de partida. Pelos meus cálculos, devia estar perto de uma das paredes externas. Se fosse esse o caso e a porta de saída estivesse perto, ainda tinha uma chance. Do contrário, a Prova tinha acabado. Saindo de uma curva, encontrei o primeiro trecho de uma parede externa. Reconheci-a imediatamente, porque as pedras eram mais escuras do que no resto do labirinto. Não tinha o X impresso mas meu coração saltou de alegria assim mesmo. Retrocedendo, apaguei o mapa da mente — não tinha mais necessidade dele — e corri para a próxima curva, procurando o X. Encontrei quatro partes diferentes de parede externa, nenhuma com a marca de saída. A água estava quase no teto agora. Eu mais nadava do que andava com os lábios encostados no teto para respirar. Tudo estaria bem se não fosse pela maldita pedra — arrastava-se atrás de mim, mais lenta do que nunca quando eu tentava nadar, obrigando-me a movimentos lentos. Quando fiz uma pausa para respirar, compreendi que estava na hora de tomar uma decisão crítica. Vanez falara sobre isso no labirinto do treino. Ele esperava que as coisas não chegassem a esse ponto, mas, se chegassem, era fundamental que eu fizesse a escolha certa. Se continuasse assim, eu estava morto. Progredia pouco e em um ou dois minutos a água cobriria completamente meu rosto e eu me afogaria. Chegara a hora de arriscar. Um último lançamento dos dados. Se a boa sorte dos vampiros estivesse comigo, significaria minha sobrevivência. Senão... Respirei fundo várias vezes, enchendo os pulmões de ar, então mergulhei até o chão. Peguei a pedra, virei o corpo, boiando de costas, e a ajeitei sobre a barriga. Então, comecei a nadar. Era difícil — a água entrava no meu nariz —, mas era o único modo de impedir que a pedra me puxasse para trás.
Os vampiros podem prender a respiração por mais tempo do que os seres humanos — cinco ou seis minutos facilmente —, mas, como eu estava de costas, tinha de soltar o ar pelo nariz para evitar a entrada da água, portanto teria dois ou três minutos no máximo antes de ficar sem oxigênio e me afogar. Contornando outra curva, olhei para um longo corredor. Vi o que devia ser a parede externa no fim, mas estava muito longe para ver se tinha um X ou não. Parecia que tinha, mas podia ser ilusão minha — Vanez me prevenira contra miragens sob a água. Nadei pelo corredor. Estava quase no meio quando vi que não tinha nenhum X — uma longa fenda da pedra tinha me enganado —, por isso voltei por onde tinha vindo. O peso da pedra me afundava. Parei com os pés no chão e dei impulso para cima, endireitei o corpo e continuei a nadar. Procurei em vão outro trecho da parede externa, mas as duas próximas curvas levavam a outros corredores, não para a parede. Meu oxigênio escasseava. Era cada vez mais difícil mover minhas pernas e meus braços. A curva seguinte também não me levou à parede externa, mas eu não tinha tempo para continuar nadando. Reunindo toda minha energia, nadei pelo corredor curto e no fim virei para a direita. Que me levou a outro corredor. Quando comecei a nadar nele, a pedra escorregou da minha barriga, arranhando-me quando caiu. Gritei sem pensar. A água entrou e o ar saiu. Tossindo, procurei alcançar o teto para respirar mas, quando cheguei, descobri que a água fora mais rápida do que eu — não havia mais ar em lugar algum! Continuei a nadar, praguejando em silêncio contra o destino e os deuses dos vampiros. Era o fim. Eu fizera o melhor possível, mas não tinha de ser. A melhor coisa agora era abrir minha boca, engolir água e fazer com que o fim fosse o mais rápido possível. Eu teria feito isso, mas esse corredor não era bem iluminado e não me agradava a idéia de morrer no escuro. Então, num último esforço, mergulhei até o fundo, peguei a pedra, virei de costas, ajeitei-a sobre minha barriga e nadei para encontrar um lugar mais claro para morrer. Quando virei para a esquerda, no fim do corredor, vi a pedra escura da parede externa. Com um sorriso desanimado, lembrei o quanto isso teria me entusiasmado alguns minutos atrás. Virei de bruços para morrer de pé — e então parei. Lá estava o X na parede! Olhei para ele atordoado, deixando escapar preciosas bolhas de ar da boca. Seria outra distorção da minha mente? Outra fenda falsa? Tinha de ser. De modo algum eu podia ter tanta sorte. O melhor era ignorar a marca e... Não! Era um X! Eu estava sem ar, mas a vista do X me deu novo alento. Reunindo as forças que eu não sabia que ainda tinha, comecei a bater os pés furiosamente e nadei
para a parede como uma bala. Bati a cabeça na parede e recuei, depois virei outra vez e examinei o grande e rústico X. Fiquei tão contente por ter encontrado o X que quase me esqueci de apertar o botão no meio dele. Que farsa seria então — ter ido tão longe e falhar no fim! Mas felizmente me foi poupada essa indignidade. Instintivamente, minha mão se adiantou, passei os dedos sobre o botão no meio do X e apertei. O botão deslizou para dentro e o X desapareceu quando a pedra deslizou para dentro da parede. Com um imenso rugido, a água saiu pela abertura. Fui levado por ela, parando logo depois da porta, quando a pedra enroscou em alguma coisa. Meus olhos e minha boca estavam fechados e por um momento pareceu-me estar ainda mergulhado no labirinto, enquanto a água passava sobre minha cabeça. Porém, aos poucos, o nível baixou e percebi que podia respirar. Depois da respiração mais profunda da minha vida, abri os olhos e pisquei. A caverna parecia muito mais clara do que há meia hora quando Vanez Blane me levara até ela. Tive a impressão de estar sentado numa praia num dia quente de verão. Gritos de encorajamento e de entusiasmo chegaram aos meus ouvidos. Olhando em volta como um peixe em terra seca, vi vampiros encantados caminhando para mim, chapinhando nas poças d’água, gritando, felizes. Eu estava cansado demais para identificá-los, mas reconheci o cabelo cor de laranja do vampiro que vinha na frente — o Sr. Crepsley. Quando a água acabou de sair, levantei-me e fiquei no lado de fora da porta do Labirinto Aquático, sorrindo idiotamente, passando a mão no galo na cabeça onde tinha me chocado com a parede. — Você conseguiu, Darren! — rugiu o Sr. Crepsley, chegando perto de mim e me abraçando, numa rara demonstração de afeto. Outro vampiro me abraçou e gritou: — Eu pensei que você tinha morrido! Tanto tempo passou que eu tinha certeza de que você tinha falhado! Piscando para tirar a água dos olhos, vi os rostos de Kurda e de Torvelinho. E, logo atrás, Vanez e Arra. — Sr. Crepsley? Kurda? Vanez? O que estão fazendo numa praia no meio do dia? — perguntei. — Vão pegar a luz do sol se não tiverem cuidado. — Ele está delirando! — alguém riu. — Quem não estaria? — disse o Sr. Crepsley, me abraçando com orgulho. — Acho que vou ficar sentado um pouco — murmurei. — Venham me chamar quando chegar a hora de fazer os castelos de areia. — E caí sentado, olhando para o teto, certo de que era o céu aberto, e comecei a cantarolar baixinho enquanto os vampiros me rodeavam.
CAPÍTULO CINCO
Eu tremia como um rato molhado quando acordei tarde no dia seguinte. Dormi quinze horas ou mais! Vanez estava lá para me dar bom-dia, com uma pequena caneca cheia de líquido escuro e me mandou beber. — O que é? — perguntei.
— Conhaque — disse ele. Eu nunca havia tomado conhaque. Depois do primeiro gole, com o qual engasguei, decidi que gostava. — Devagar — riu Vanez quando despejei o conhaque garganta abaixo. — Vai se embriagar! Largando a caneca, solucei e sorri. Então me lembrei da Prova. — Eu consegui! — gritei, saltando da cama. — Eu encontrei a saída! — Sem dúvida você encontrou — concordou Vanez. — Foi por pouco. Você estava lá dentro havia mais de vinte minutos. Teve de nadar no fim? — Sim — disse eu, e descrevi tudo que tinha acontecido no labirinto. — Sua atuação foi excelente — disse Vanez quando terminei. — Cérebro, força e sorte, nenhum vampiro vive muito tempo sem uma boa medida de cada um. Vanez me levou ao Salão de Khledon Lurt para comer alguma coisa. Os vampiros que estavam lá aplaudiram quando entrei e me rodearam para ouvir a história de como eu tinha conseguido. Eu minimizei o feito, com humildade, mas por dentro me sentia um herói. Harkat Mulds apareceu quando eu estava no terceiro prato de sopa de morcego e na quinta fatia de pão. — Eu estou... contente que... você sobreviveu — disse ele, no seu modo direto e simples. — Eu também — disse eu rindo. — As apostas... contra você... caíram... desde que você passou... na primeira Prova. Mais vampiros... estão apostando... na sua vitória... agora. — É bom ouvir isso. Você apostou alguma coisa em mim? — Eu não... tenho nada para apostar — disse Harkat. — Se tivesse... apostaria. Enquanto conversávamos, um rumor se espalhou pelo salão, preocupando os vampiros. Ouvindo com atenção, fiquei sabendo que um dos últimos esperados para o Conselho chegara antes do nascer do dia e imediatamente fora ao Salão dos Príncipes para informar sobre sinais de vampixiitas que havia encontrado na montanha. — Talvez seja o mesmo vampixiita que encontramos quando vínhamos para cá — disse eu, referindo-me ao vampixiita morto. — Talvez — murmurou Vanez com pouca convicção. — Vou deixá-lo por algum tempo. Fique aqui. Não me demoro. Quando voltou, o mestre dos jogos parecia perturbado. — O vampiro é Patrick Goulder — disse ele. — Ele veio por um caminho completamente diferente do seu, e as pegadas eram recentes. É quase certo que era outro vampixiita. — O que significa isso? — perguntei, alarmado com o murmúrio ansioso dos vampiros à minha volta. — Eu não sei — admitiu Vanez. — Mas dois vampixiitas no caminho da
Montanha do Vampiro dificilmente é uma coincidência. E, quando se considera a mensagem de Harkat sobre o Senhor dos Vampixiitas, não parece promissor. Pensei outra vez na mensagem de Harkat e na antiga previsão do Sr. Tino de que o Senhor dos Vampixiitas conduziria os vampixiitas contra os vampiros e os destruiria. Eu ainda tinha outras coisas para pensar — as Provas estavam longe de terminar —, mas era difícil ignorar essa terrível ameaça a todo o clã dos vampiros. — Porém — disse Vanez, como se não fosse importante —, o que os vampixiitas estão fazendo não nos interessa. Precisamos nos concentrar nas Provas. Deixaremos as outras coisas para os que estão mais bem equipados para tratar delas. Contudo, por mais que tentasse evitar o assunto, os rumores nos seguiram pelos salões o dia inteiro e meu feito da noite anterior, a partir de então, passou despercebido — ninguém se interessava pelo destino de um meio-vampiro quando o futuro da raça estava em jogo.
Quase ninguém prestou atenção quando entrei com Vanez Blane no Salão dos Príncipes ao cair da noite. Alguns levaram os dedos da mão direita às têmporas quando viram a flâmula roxa — o sinal do toque da morte —, mas eles também estavam preocupados demais para falar sobre minha primeira Prova. Tivemos de esperar um longo tempo pelo chamado dos Príncipes — eles discutiam com seus Generais, tentando decidir o que os vampixiitas tramavam e quantos deviam estar por perto. Kurda defendia seus parentes afastados, os vampixiitas. — Se eles estivessem dispostos a nos atacar — gritou —, já teriam atacado no caminho, quando estávamos sozinhos ou aos pares. — Talvez planejem nos atacar na volta — disse alguém. — Por que fariam isso? — desafiou Kurda. — Eles nunca atacaram antes. Por que atacariam agora? — Talvez o Senhor dos Vampixiitas os tenha mandado — sugeriu um General, e rosnados nervosos de assentimento soaram no Salão. — Bobagem! — disse Kurda com desdém. — Não acredito nessas velhas lendas. Mesmo que fossem verdadeiras, o Sr. Tino disse que a noite da chegada dele estava próxima, e não já pairando sobre nós. — Kurda está certo — disse Paz Celestial. — Além disso, nos atacar desse modo, sozinhos, quando estamos vindo ou partindo, seria covardia, e os vampixiitas não são covardes. — Então, por que eles estão aqui? — exclamou alguém. — O que querem? — É possível — disse Kurda — que tenham vindo me ver. Todos os vampiros olharam para ele. — Por que fariam isso? — perguntou Paz. — Eles são meus amigos — suspirou. — Não acredito nesse mito do Senhor
dos Vampixiitas, mas muitos vampixiitas acreditam e muitos deles estão tão preocupados com isso quanto nós. Eles não querem uma guerra mais do que nós. É possível que o Sr. Tino tenha avisado os vampixiitas também e os dois encontrados no caminho vinham me avisar ou discutir a situação. — Mas Patrick Goulder não conseguiu encontrar o segundo vampixiita — disse Mika Ver Leth. — Se ele estivesse vivo, já não teria entrado em contato com você? — Como? — perguntou Kurda. — Um vampixiita não pode simplesmente chegar aos portões e perguntar por mim. Seria morto imediatamente. Se for um mensageiro, provavelmente está aqui perto, esperando me alcançar quando eu sair. Isso fazia sentido para alguns dos vampiros, mas outros descartaram essa possibilidade — a idéia de um vampixiita se dar ao trabalho de ajudar um vampiro era uma tolice na opinião deles — e a discussão recomeçou e durou mais algumas horas. O Sr. Crepsley falou pouco. Sentado no seu lugar, logo na frente, ele ouvia atenta e pensativamente. Estava tão absorto no que eles diziam que nem notou minha chegada. Finalmente, quando a discussão amainou um pouco, Vanez se adiantou e murmurou alguma coisa para um dos guardas, que foi até a plataforma e disse alguma coisa no ouvido de Paz Celestial (no seu único ouvido bom — o direito fora cortado havia muitos anos). Paz Celestial inclinou a cabeça assentindo, depois bateu palmas, pedindo silêncio. — Estamos esquecendo nossos deveres, meus amigos — disse ele. — A presença dos vampixiitas deve nos preocupar, mas não podemos deixar que interfira nos procedimentos normais do Conselho. Há um jovem meio-vampiro para quem o tempo é precioso. Aproveitemos alguns momentos de paz para tratar desse assunto premente. Quando os vampiros voltaram aos seus lugares, Vanez me levou até a plataforma. — Meus parabéns por passar na primeira Prova, Darren — disse Paz Celestial. — Muito obrigado — respondi cortesmente. — Eu, que nunca aprendi a nadar, tenho razões de sobra para admirar sua vitória apertada — disse Arqueiro, o grande e calvo Príncipe com tatuagens de flechas nos braços e na cabeça. — Na sua situação, eu não sairia vivo. — Você foi muito bem, jovem Shan — concordou Mika Ver Leth. — Um bom começo é metade da batalha. Você tem ainda um longo caminho pela frente, mas estou disposto a aceitar que me enganei a seu respeito. — Ouviríamos mais sobre seu feito no labirinto se tivéssemos tempo — suspirou Paz Celestial —, mas, infelizmente, é uma história que devemos guardar
para outra ocasião. Está pronto para escolher sua nova Prova? — Sim, estou. A sacola com as pedras numeradas apareceu então. Depois que as pedras foram verificadas, enfiei a mão na sacola e tirei uma do fundo. — Número vinte e três — anunciou o guarda, depois de olhar para a pedra. — O Caminho das Agulhas. — Pensei que só houvesse dezessete Provas — murmurei para Vanez quando a pedra foi levada para os Príncipes. — Dezessete para você — concordou —, mas são mais de sessenta ao todo. Muitas foram retiradas porque não temos equipamento necessário, como o ninho de cobras, e outras foram omitidas por causa do seu tamanho e da sua idade. — É uma Prova difícil? — perguntei. — É mais fácil do que o Labirinto Aquático — disse ele. — E seu tamanho pode ser uma vantagem. É tão favorável quanto se poderia desejar. Os Príncipes examinaram a pedra, anunciaram sua aprovação e me desejaram êxito. Eles me trataram laconicamente, mas eu compreendi sua distração e não fiquei ofendido. Quando saí com Vanez, ouvi recomeçar a discussão sobre os vampixiitas, e o ar carregado de tensão do Salão era quase tão sufocante quanto a água no Labirinto Aquático.
CAPÍTULO SEIS
O Caminho das Agulhas era uma caverna longa e estreita cheia de estalactites e estalagmites com pontas aguçadas. Vanez me levou para vê-la antes de começarmos a treinar em outra caverna. — Tudo que tenho de fazer é atravessar? — perguntei.
— Sim, é tudo. — Não é uma grande Prova, é? — disse eu, muito confiante. — Veremos se vai pensar assim amanhã — resmungou. — As estalagmites são extremamente escorregadias, um passo em falso e você pode ser empalado num instante. E muitas das estalactites estão precariamente presas por um fio. Qualquer barulho repentino pode derrubar uma delas. Se você for atingido quando ela cair, pode ser atravessado por ela. Apesar do aviso, eu ainda achava que ia ser fácil. No fim da nossa primeira sessão de treinamento, revisei minha opinião. Treinamos numa caverna onde as estalagmites não eram tão aguçadas nem tão escorregadias quanto as do Caminho das Agulhas, onde as estalactites não se quebravam e caíam sem aviso. Porém, apesar dessa caverna ser muito menos perigosa comparativamente, eu quase me acidentei várias vezes, salvo somente pelas mãos rápidas de Vanez Blane. — Você não está se segurando bem! — resmungou ele, depois que eu quase tive um olho furado. Eu tinha arranhado o rosto em uma estalagmite e Vanez estava aplicando saliva no corte para estancar o sangue (como meio-vampiro, minha saliva não serve para fechar cortes). — É como tentar se firmar num pau-de-sebo — reclamei. — Por isso você precisa segurar com mais força. — Mas machuca. Vou ficar com as mãos em pedaços se eu... — O que você prefere? — interrompeu Vanez. — Mãos ensangüentadas ou uma agulha de gelo no coração? — Essa é uma pergunta idiota — resmunguei. — Então pare de agir como um idiota! — disse ele. — Você vai ficar com as palmas das mãos em frangalhos no Caminho das Agulhas, não é possível evitar. Você é um meio-vampiro, portanto a pele vai se refazer rapidamente. Precisa ignorar a dor e se concentrar na firmeza dos seus dedos. Depois da Prova, terá muito tempo para gemer reclamando do estado dos seus pobres dedos e pensando que nunca mais vai poder tocar piano. — De qualquer modo, eu não sei mesmo tocar piano — disse eu zangado, mas obedeci e segurei com mais força nas traidoras estacas de mineral. No fim da sessão, Vanez aplicou ervas e folhas especiais nas minhas mãos para aliviar a dor e enrijecer minhas palmas para a prova. Por algum tempo, era como se meus dedos estivessem em fogo, mas aos poucos a dor desapareceu e, quando me apresentei para o segundo treino, eram apenas latejamentos surdos nas extremidades dos meus braços. Dessa vez nos concentramos na atenção. Vanez me ensinou a verificar cada estalagmite antes de passar meu peso para ela. Se uma delas se partisse na caverna, podia me mandar direto para a morte, ou o som podia provocar a queda de estalactites, o que era igualmente perigoso.
— Preste atenção ao teto — disse Vanez. — A maior parte das estalactites que caem podem ser evitadas simplesmente se desviando. — E se não puderem ser evitadas? — perguntei. — Então você está encrencado. Se uma delas está vindo na sua direção e você não pode se desviar, tem de atirá-la para o lado ou pegá-la na queda. Pegar a agulha que cai é mais difícil mas é preferível, se você bate na estalactite, ela cai e se esfacela. Esse tipo de barulho pode provocar o desabamento do teto. — Pensei que você tivesse dito que ia ser mais fácil do que o Labirinto Aquático — reclamei. — É mais fácil — garantiu. — Você precisa de muita sorte para sair do Labirinto Aquático. No Caminho das Agulhas, você pode controlar melhor seu destino, sua vida está em suas mãos. Arra Barbatanas apareceu enquanto estávamos treinando para me ensinar a manter o equilíbrio. Ela vendou meus olhos e me fez andar sobre uma série de estalagmites sem ponta para aprender a manobrar só pelo tato. — Ele tem uma excelente noção de equilíbrio — disse ela para Vanez. — Desde que não se intimide por causa da dor nas mãos, ele vai passar nessa prova. Finalmente, depois de muitas horas de treino, Vanez me mandou de volta à minha cela para dormir um pouco. Mais uma vez ele me fez trabalhar o tempo certo. Cansado, machucado e espetado como eu estava, depois de algumas horas na minha rede, me senti como novo e pronto para qualquer coisa.
Poucos vampiros estavam presentes no Caminho das Agulhas para observar meu desempenho na segunda Prova. A maioria deles estava no Salão dos Príncipes ou reunidos em uma das muitas câmaras da montanha para discutir sobre os vampixiitas. O Sr. Crepsley apareceu para me animar, bem como Torvelinho e Sebá Nilo. Mas Harkat era o único outro rosto familiar no pequeno grupo dos que foram me desejar boa sorte. Um guarda me disse que os Príncipes enviavam suas desculpas, mas não podiam presidir à Prova. Vanez reclamou — disse que a Prova devia ser adiada se não houvesse um Príncipe presente mas o guarda citou alguns casos passados, quando os Príncipes não compareceram às Provas, que tinham sido realizadas assim mesmo. Vanez me perguntou se eu queria insistir — ele disse que, se criássemos um caso, provavelmente poderíamos convencer os Príncipes a adiar a Prova por uma ou duas noites, quando um deles tivesse tempo para assistir —, mas eu disse que preferia acabar logo com aquilo. O guarda que fora mandado pelos Príncipes certificou-se de que eu sabia o que devia fazer, desejou-me boa sorte, me levou até a entrada do Caminho das Agulhas e me deixou lá. Subi na primeira estalagmite e olhei para o mar de pontas cintilantes. O nome da caverna era muito apropriado — de onde eu estava parecia exatamente
um caminho feito de agulhas. Com um arrepio, comecei a avançar a passo de lesma. Não era possível se apressar no Caminho das Agulhas. Para sobreviver, era preciso se mover lentamente e com segurança. Eu experimentava cada estalagmite antes de pisar nela, sacudindo-a de leve de um lado para outro, certificando-me de que agüentaria meu peso. Levantar a perna não era fácil. Não podia prender as pontas das estalagmites com os dedos do pé, por isso eu tinha de abaixar bem o pé, às vezes encaixando-o entre duas agulhas de gelo. Isso me dava a chance de aliviar o peso dos braços e das mãos, mas o resultado eram arranhões nos joelhos e nas coxas quando chegava a hora de levar a perna para a frente. Era pior nos lugares em que as estalactites estavam dependuradas quase tocando as estalagmites. Então eu tinha de esticar o corpo quase me deitando sobre as estalagmites para continuar meu caminho. Depois de algum tempo comecei a invejar aqueles faquires fabulosos da índia, treinados para deitar numa cama de pregos! Quando já tinha percorrido mais ou menos um quinto do caminho, minha perna esquerda escorregou e bateu com força em uma estalagmite. Um som trêmulo e tilintante se espalhou no ar. Olhando para cima, vi várias estalactites tremendo. Por um ou dois segundos pareceu que iam cair, mas então uma delas se soltou e se espatifou no chão. O ruído fez outras se desprenderem e de repente estalactites estavam caindo como bombas em volta de mim. Não entrei em pânico. Felizmente, quase nenhuma estalactite me atingiu. Uma delas teria cortado meu braço direito se eu não a tivesse visto a tempo de me desviar, e tive de encolher a barriga rapidamente para evitar que uma pequena mas aguda estalactite abrisse um novo umbigo no meu corpo. Fiquei onde estava, observando atentamente o teto para sinais de perigo, e esperei passar a avalanche. Finalmente as estalactites pararam de cair e o eco da queda cessou. Esperei um minuto, com medo de alguma atrasada — Vanez tinha me prevenido sobre isso —, mas, quando tudo parecia seguro, continuei no mesmo passo lento e cauteloso. A chuva de estalactites me fez esquecer meu corpo espetado e arranhado. A adrenalina correu solta quando vi a chuva letal de agulhas, e por um momento fiquei imune à dor. A sensação voltou à medida que eu avançava, mas continuei ignorando a maior parte dos cortes, só me encolhendo uma vez ou outra quando uma ponta extremamente aguda se enfiava mais profundamente na minha pele. Consegui firmar os pés na metade do caminho e descansei por cinco ou seis minutos. O teto era bem alto ali e eu podia ficar de pé e girar meus braços e meu pescoço, aliviando em parte a rigidez dos músculos. Fazia calor e eu suava como um louco. Eu estava com uma roupa justa de couro, que me fazia suar mais ainda, mas que era necessária — roupas largas teriam se prendido nas
estalactites. Muitos vampiros não usavam roupa alguma para passar pelo Caminho das Agulhas, mas, embora eu não tivesse hesitado em tirar toda a roupa para atravessar o caminho cheio de espinhos na viagem para a Montanha do Vampiro, não estava disposto a tirar a roupa na frente de uma porção de estranhos! Enxuguei as mãos nas pernas da calça, mas elas estavam tão manchadas de sangue que ficaram mais escorregadias do que antes. Olhando em volta, achei um pouquinho de terra e usei para secar minhas palmas. A terra penetrou sob minha pele cortada, ardendo como se eu tivesse segurado uma porção de agulhas, mas a dor melhorou depois de algum tempo e eu estava pronto para continuar. Eu estava fazendo bom tempo e tinha passado o estágio dos três quartos do caminho quando cometi meu primeiro erro. Embora o teto fosse alto naquela parte da caverna, as estalagmites estavam muito juntas umas das outras e eu tinha de me esticar para andar sobre elas. As pontas se enfiavam na minha barriga e no peito, por isso acelerei o passo, ansioso para sair daquele amontoado de estalagmites. Estendi a mão esquerda para a frente e experimentei a estalagmite, mas descuidadamente — era tão grande que tive certeza de que agüentaria meu peso. Quando passei o peso do corpo para ela, ouvi um som de alguma coisa se partindo e a ponta quebrou na minha mão. Compreendi imediatamente o que estava acontecendo e tentei voltar, mas era tarde demais. Meu peso arrancou a ponta da agulha e meu corpo se curvou para a frente, batendo com força em algumas estalagmites próximas. O barulho não foi muito alto, mas cresceu como um trovão e ouvi o tilintar já conhecido no alto e vi várias estalactites caírem e quebrarem-se no chão. Não me preocupei com elas — mesmo que tivessem acertado o alvo, não podiam causar grande dano —, mas senti um nó no estômago quando olhei para a enorme estalactite logo acima da minha cabeça. Por algum tempo pareceu que estava firme — nem tremeu com o primeiro ruído —, mas enquanto as estalactites menores caíam e explodiam, a maior começou a balançar de leve a princípio, depois de modo alarmante. Tentei sair do seu caminho, mas estava preso entre as estalagmites. Precisaria de alguns segundos para me libertar. Rolei para o lado, criando espaço para manobrar. Eu olhava para cima para a estalactite, tentando calcular por quanto tempo precisava continuar rolando, quando pensei nas estalactites em volta dela. Se a grande caísse e se quebrasse, as vibrações derrubariam a maior parte das estalactites daquela parte da caverna em cima de mim. Enquanto eu considerava o problema e tentava descobrir um modo de sair dele, a estalactite grande se partiu ao meio e a metade inferior despencou em cima de mim rapidamente, a ponta aguda como uma agulha dirigida diretamente
para minha barriga — ia me liquidar!
CAPÍTULO SETE
Tive uma fração de segundo para pensar e reagir. Para um ser humano, seria o fim. Como meio-vampiro, eu tinha uma chance. Sair de baixo dela era impossível — não havia tempo —, então me deitei de costas, segurando na borda chata da estalagmite cuja ponta eu tinha quebrado. Soltando-me das estalagmites
à minha volta, ignorando a dor quando dezenas de pontas agudas se enfiavam em mim, ergui as mãos acima do corpo para aparar a estalactite que caía. Eu a apanhei no ar, poucos centímetros acima da ponta. Ela deslizou por minhas mãos, soltando várias lascas finas de gelo nas minhas palmas. Tive de morder a língua com força para não gritar ali dentro. Ignorando a dor, apertei as mãos uma contra a outra, segurando a estalactite com a maior firmeza possível, e a ponta parou poucos centímetros acima da minha barriga. O músculo de meu braço estalou com o esforço que fiz para parar e segurar o pedaço pesado da estalactite, mas não me falhou naquele momento. Cuidadosamente, com os braços trêmulos, levei a estalactite para um lado, procurando não fazer nenhum barulho, e então me soltei das estalagmites e assoprei minhas palmas ensangüentadas, com as linhas cortadas em vários lugares pelos lados agudos da estaca de minério. Pela sorte dos vampiros, nenhum dos meus dedos fora amputado, mas era a única coisa que eu tinha de agradecer. O resto do meu corpo também estava lacerado. A impressão era de ter levado inúmeras facadas. O sangue escorria das minhas costas, dos braços, das pernas, e eu sentia o corte na parte inferior das costas feito pela grande estalagmite. Mas eu estava vivo! Não me apressei para atravessar o resto daquele amontoado de agulhas, por mais difícil que fosse ir devagar. Quando finalmente passei, parei, limpei o sangue das mãos, lambi meus dedos e passei saliva nos piores ferimentos. Eu não podia fechar os cortes como os vampiros completos, mas a saliva aliviou parte da dor. Algumas lágrimas desceram pelo meu rosto, mas eu sabia que autopiedade não me levaria a parte alguma, por isso eu as enxuguei e ordenei a mim mesmo que procurasse me concentrar — ainda não estava fora da caverna. Pensei em tirar a camisa e cortar em tiras para envolver com elas as mãos para ter mais segurança nos dedos. Mas isso seria fraude e o sangue de vampiro em mim ferveu irado à sugestão. Em vez disso, procurei mais trechos de terra e usei para limpar o sangue das palmas e dos dedos. Esfreguei também bastante terra nos pés e na parte inferior das pernas, de onde saía mais sangue. Depois de um breve descanso, continuei. Desse lado do conjunto de agulhas as coisas pareciam mais fáceis, mas minha posição era tão precária que eu estava achando difícil. Continuei vagarosamente, verificando a resistência das estalagmites com mais cuidado do que era necessário, não querendo me arriscar de modo algum. Finalmente, depois de mais de uma hora e meia no Caminho das Agulhas — a maioria dos vampiros fazia a travessia em menos de quarenta minutos —, arrastei-me para fora da caverna, para ser calorosamente recebido pelos
vampiros que se reuniram para me congratular pelo sucesso. — E então? — perguntou Vanez, jogando uma toalha pesada nos meus ombros. — Ainda pensa que não é uma Prova muito difícil? Olhei furioso para o mestre dos jogos. — Se eu disser outra vez essa idiotice, corto minha língua e costuro meus lábios! — Ora, vamos — riu ele. — Vamos lavar esse sangue e essa terra, depois aplicar pomadas e ataduras. Apoiado em Vanez e no Sr. Crepsley, saí claudicando do Caminho das Agulhas, rezando silenciosamente para que a próxima Prova não tivesse nada a ver com cavernas apertadas e obstáculos afiados como navalhas. Se eu soubesse como minha prece seria atendida, não teria me dado ao trabalho de rezar.
Com as novas notícias, não precisei me preocupar imediatamente com minha nova Prova. Enquanto me lavava em uma cachoeira gelada no Salão de Perta Vin-Grahl, fomos informados de que o último vampiro tinha chegado finalmente à montanha, o que significava que o Festival dos Mortos-Vivos começaria no fim do dia seguinte, ao pôr-do-sol. — Aí está! — alegrou-se Vanez. — Três noites e três dias para beber, divertir-se, se refazer e relaxar. Não podia ter sido melhor se tivéssemos planejado. — Eu não sei — gemi com as unhas tirando a terra dos cortes nas minhas pernas e pés. — Acho que preciso de pelo menos umas duas semanas. — Bobagem — disse Vanez. — Algumas noites e você estará em plena forma. Um pouco cortado e arranhado, mas nada que possa prejudicá-lo nas Provas seguintes. — Terei meu dia extra de preparação para a Prova além dos três dias do Festival? — perguntei. — É claro — disse ele. — Não pode haver nenhum evento oficial durante o Festival dos Mortos-Vivos. É um tempo para descanso e jogos e para a troca de velhas histórias. Até o assunto dos vampixiitas ficará em compasso de espera durante as próximas três noites e três dias. “Há meses espero por isso”, disse Vanez, esfregando as mãos. “Como mestre dos jogos, não terei nada a ver com a organização ou a administração dos jogos durante o Festival — assim estarei livre para me divertir de verdade, sem ter de me preocupar com o que os outros estão fazendo.” — Você pode tomar parte nos jogos só com um olho? — perguntei. — Certamente — respondi. — Alguns jogos exigem o uso dos dois olhos, mas a maioria não. Espere para ver, vou quebrar muitas cabeças antes do fim das cerimônias do Festival. Dezenas de vampiros vão deixar o Conselho amaldiçoando meu nome e a noite em que me enfrentaram.
Quando terminei meu banho, saí da cachoeira e me enrolei em várias toalhas. Fiquei ao lado de alguns archotes potentes para me enxugar, depois Vanez tratou dos meus piores ferimentos com remédios e ataduras e vesti as roupas leves dadas por ele. Embora o tecido fosse extremamente fino, não me sentia confortável e, assim que voltei para minha cela, tirei a roupa e deitei despido na minha rede. Não dormi muito naquela noite — eu estava muito dolorido. Procurei ficar imóvel, em vão, e meus movimentos, virando de um lado para outro na cama, me impediram de dormir. Finalmente me levantei, vesti uma calça curta e fui procurar Harkat. Acontece que ele tinha voltado para o Salão dos Príncipes — eles o estavam interrogando sobre a mensagem do Sr. Tino pela milésima vez —, por isso voltei para minha cela, encontrei um espelho e passei algumas horas contando os arranhões na parte de trás dos meus braços e pernas. O dia passou — eu começava a me acostumar com a passagem do tempo dentro da montanha; quando cheguei, não podia distinguir a diferença entre dia e noite —, voltei para minha rede para tentar dormir outra vez. Consegui adormecer e, embora meu sono fosse agitado, passei algumas horas dormindo até o começo do tão esperado Festival dos Mortos-Vivos.
CAPÍTULO OITO
O Festival era realizado no imenso Salão de Stahrvos Glen (também chamado Salão de Reuniões). Todos os vampiros da montanha estavam presentes. Apesar de o Salão ser imenso, estávamos apertados como sardinhas em lata. Olhando em volta enquanto esperávamos o pôr-do-sol, contei pelo menos quatrocentas
cabeças, possivelmente umas quinhentas. Todos vestiam roupas de cores vivas. As poucas vampiras no Salão usavam vestidos longos e rodados, e a maioria dos homens estava com capas vistosas mas empoeiradas. O Sr. Crepsley e Sebá Nilo vestiam roupas iguais e pareciam pai e filho, um ao lado do outro. Até Harkat pedira emprestado um manto novo, azul vivo, para a ocasião. Eu era o único que parecia deslocado. Meus cortes coçavam desesperadamente e eu vestia ainda a camisa fina de cor neutra e a calça curta dadas por Vanez no Salão de Perta Vin-Grahl. Até mesmo aquele tecido fino irritava minha pele — a todo momento eu levava a mão às costas para desgrudálo de minha pele. O Sr. Crepsley me disse várias vezes para ficar parado, mas eu não podia. — Venha me ver mais tarde — murmurou Sebá quando puxei a camisa pela milésima vez. — Tenho uma coisa que vai aliviar muito essa coceira. Comecei a agradecer ao velho intendente, mas um gongo soou alto e me interrompeu. Todos os vampiros pararam de falar. Momentos depois, os três Príncipes Vampiros apareceram na extremidade do Salão e subiram na plataforma para que todos pudessem vê-los claramente. O Festival dos MortosVivos e a Cerimônia de Conclusão — no fim do Conselho — eram as únicas vezes em que os Príncipes deixavam seu Salão inexpugnável no topo da montanha. Pelo menos um deles estava sempre presente o resto do tempo. — É bom ver vocês, meus amigos — disse Paz Celestial com um largo sorriso. — Nós damos as boas-vindas da Montanha do Vampiro — disse Mika Ver Leth. — E desejamos que tenham uma feliz estada — acrescentou Arqueiro. — Sei que todos ouviram os rumores sobre os vampixiitas — disse Paz Celestial. — Estes são tempos de preocupação e precisamos discutir e planejar muito. Mas não nestas três noites. Porque este é o Festival dos Mortos-Vivos, em que todos os vampiros são iguais e todos devem se divertir. — Tenho certeza de que todos esperam ansiosos o início das festividades — disse Mika. — Mas antes a chamada dos que passaram para o Paraíso desde nosso último Conselho. Arqueiro disse o nome de nove vampiros que tinham morrido nos últimos doze anos. Quando cada nome era anunciado, os vampiros no Salão faziam o sinal do toque da morte e murmuravam em uníssono: “Mesmo na morte, que ele possa ser triunfante.” Quando o último nome foi chamado, Paz Celestial bateu palmas e disse: — Encerramos assim a última parte dos procedimentos oficiais. Não haverá mais nenhum até o fim do Festival. Boa sorte para vocês, meus amigos. — Boa sorte! — gritaram os vampiros, jogando para o ar suas capas,
abraçando-se e gritando: — Boa sorte! Boa sorte!
As horas seguintes foram tão excitantes que eu quase consegui esquecer meus cortes e a coceira. Fui levado para os Salões dos Jogos por uma onda de vampiros ávidos para testar a própria força contra amigos e inimigos antigos. Alguns nem esperavam chegar aos Salões e começavam a lutar e boxear ainda nos túneis. Eram separados por vampiros mais controlados e levados — quase sempre lutando e protestando — para os Salões, onde poderiam lutar com conforto e para o benefício da platéia. Os três Salões dos Jogos eram puro pandemônio. Como nenhum dos mestres oficiais dos jogos estava de serviço, não havia ninguém para gritar os comandos ou fazer com que tudo procedesse em ordem. Os vampiros se amontoaram nos Salões e uns sobre os outros, desafiando qualquer um que estivesse no seu caminho, desferindo golpes alegremente e com imenso prazer. O Sr. Crepsley não era melhor do que os outros. Sua dignidade habitual tinha desaparecido no meio daquela loucura e ele investia para todo lado como um louco, gritando, dando murros e saltando. Até os Príncipes Vampiros entraram na bagunça, incluindo Paz Celestial, que tinha pelo menos oitocentos anos. Eu segui o movimento do melhor modo possível, tentando manter a cabeça acima do mar de vampiros enlouquecidos. Aquela explosão inicial de atividade me assustou um pouco — eu não esperava —, mas logo comecei a me divertir, abrindo caminho entre as pernas dos vampiros que lutavam, derrubando-os. Em certo momento me encontrei costas com costas com Harkat. Ele fora apanhado na desordem como todos nós e estava muito ocupado jogando vampiros por cima do ombro, à esquerda e à direita, como se fossem sacos de algodão. Os vampiros adoravam aquilo — não podiam entender como uma criatura tão pequena podia ser tão forte. Tive oportunidade de tomar fôlego enquanto estava atrás de Harkat — ninguém se interessava por um meio-vampiro quando havia um Pequenino para desafiar. Quando consegui recuperar parte da energia gasta, afastei-me para me juntar à multidão dos vampiros que lutavam. Aos poucos o caos se acalmou. Muitos vampiros tinham se machucado na luta e, enquanto se arrastavam para fora para serem tratados, os que ainda estavam de pé pararam para enxugar o suor das testas e saciar a sede com um bom e longo drinque. Depois de algum tempo, começaram os jogos verdadeiros. Os Vampiros foram para os tatames, para os ringues e para as barras, dois ou três de cada vez, como devia ser. Os que estavam cansados ou muito feridos para lutar, formaram as torcidas pelos que iam lutar. Vi o Sr. Crepsley lutando. Era uma espécie de caratê e ele parecia muito bom. Suas mãos se moviam como relâmpagos, rápidas demais até para um
vampiro, e ele derrubava os oponentes como moscas, geralmente numa questão de segundos. Vanez lutava em outro tatame. O mestre caolho dos jogos estava se divertindo como previra. Enquanto eu assisti a sua luta, ele mandou três vampiros embora com o nariz sangrando e a cabeça girando, e estava quase acabando com o quarto quando fui para outra luta. Eu passava pelo ringue das lutas quando um vampiro, rindo, me agarrou e me puxou para a frente, para competir. Eu não protestei — era uma lei do Festival nunca recusar um desafio. — Quais são as regras? — perguntei, gritando para ser ouvido. — Está vendo as duas cordas dependuradas naquela barra? — disse o vampiro que me agarrou. Balancei a cabeça, assentindo: — Segure uma delas e fique de pé neste lado da plataforma. Seu oponente segura a outra e fica de frente para você. Então vocês saltam para o centro e dão pontapés e socos até um dos dois ser derrubado. Meu oponente era um vampiro grande e peludo que parecia um monstro de história em quadrinhos. Eu não tinha a menor chance contra ele, mas tentei bravamente. Segurando a corda com força, balancei o corpo para ir ao encontro dele e passei alguns segundos evitando seus pés e seus punhos. Consegui acertar um pontapé nas costelas e bater com a mão aberta na cabeça dele, mas meus golpes não tiveram nenhum efeito e logo ele me acertou esplendidamente no queixo e me derrubou. Os vampiros em volta do ringue correram para me ajudar a levantar. — Você está bem? — perguntou o que me arrastara para a competição. — Estou ótimo — disse eu, passando a língua nos dentes para ver se havia algum quebrado. — É a melhor de três ou de cinco? Os vampiros deram vivas e pancadinhas nas minhas costas — eles adoravam um destemido. Fui levado de volta para a corda e para a frente do gorila outra vez. Resisti apenas alguns segundos, mas ninguém esperava coisa diferente. Fui carregado para fora do tatame como um campeão e me deram uma caneca de cerveja. Eu não gostava de cerveja, mas seria indelicado não aceitar, por isso tomei a caneca inteira, sorri quando eles outra vez deram vivas e fui embora à procura de um lugar para descansar. Muita cerveja, vinho, uísque e conhaque estavam sendo consumidos (bem como muito sangue!), mas praticamente nenhum vampiro ficou embriagado. Isso porque os vampiros têm um metabolismo mais forte que o dos seres humanos. O vampiro comum precisava beber um barril de cerveja para ficar atordoado. Como meio-vampiro, eu não era tão imune aos efeitos do álcool. Senti a cabeça leve depois da caneca de cerveja e resolvi não beber mais nada — pelo menos não naquela noite! Kurda apareceu ao meu lado, corado e sorrindo, quando eu estava
descansando. — Uma loucura, não é? — disse ele. — Todos esses vampiros agindo como crianças mal-educadas. Pense em como seria embaraçoso se alguém nos visse! — Mas é divertido, não é? — ri. — Certamente — concordou. — Mas sinto-me feliz por só ter de agüentar isso de doze em doze anos. — Kurda Smahlt! — gritou alguém. Olhando em volta, vimos Arra Barbatanas no seu conjunto favorito de barras, girando um bastão acima da cabeça. — Que tal, Kurda, não quer se arriscar? Kurda fez uma careta. — Estou com a perna machucada Arra — gritou ele. Os vampiros em volta das barras vaiaram. — Venha — chamou Arra. — Nem mesmo um pacifista como você tem o direito de recusar um desafio durante o Festival dos Mortos-Vivos. Kurda suspirou, tirou os sapatos e foi para as barras. Com gritos de alegria, os vampiros não demoraram a espalhar a notícia de que Kurda Smahlt ia entrar em ação contra Arra Barbatanas. Logo uma multidão se formou em volta das barras, a maioria vampiros que queriam ver Kurda acabar caído de costas. — Há onze anos ela não é derrotada nas barras — murmurei para Kurda enquanto ele escolhia seu bastão. — Eu sei — resmungou ele. — Tente não ficar muito perto dela — aconselhei (falando como se fosse entendido, quando de fato só tinha estado uma vez nas barras). — Quanto mais longe você ficar, mais tempo evita os golpes. — Vou me lembrar disso. — E tenha cuidado — avisei. — Ela abre sua cabeça se você der uma chance. — Está tentando me encorajar ou desencorajar? — disse ele, irritado. — Encorajar, é claro — sorri. — Pois está fazendo um péssimo trabalho! Ele experimentou o bastão, gostou e subiu nas barras. Os vampiros deram vivas e recuaram, deixando bastante espaço para ele cair. — Há décadas espero ver você aqui em cima — sorriu ela, girando o bastão e avançando. — Espero que tenha valido a pena esperar — disse Kurda, bloqueando o primeiro golpe e dançando para longe dela na barra. — Você conseguiu me evitar da última vez, mas agora não pode escapar. Eu vou... Kurda desferiu alguns golpes e Arra saltou para trás, surpresa. — Você está aqui para conversar ou para lutar? — perguntou Kurda, amavelmente.
— Para lutar! — rosnou Arra, e então se concentrou. Os dois tentaram alguns golpes leves e cautelosos por alguns minutos, testando-se mutuamente. Então o bastão de Arra atingiu o joelho de Kurda. Parecia um golpe inocente, mas ele cambaleou na barra e abaixou a guarda. Arra sorriu e avançou para acabar com ele. Então Kurda saltou para uma barra paralela e, girando o bastão, desferiu um golpe largo. Arra foi tomada de surpresa e não pôde evitar que o bastão tirasse as pernas debaixo dela. Arra caiu no chão com um baque surdo — derrotada. Depois de um momento de silêncio espantado, os vampiros correram a apertar a mão de Kurda. Ele passou por eles para ver se Arra estava bem. A vampira bateu nas mãos dele quando Kurda as estendeu para ajudá-la a se levantar. — Não toque em mim! — sibilou. — Eu só estava tentando... — começou. — Você roubou! — interrompeu ela. — Você fingiu que estava machucado. Quero que seja a melhor de três. — Eu a derrotei honestamente — disse Kurda, calmo. — Não há nenhuma regra contra fingir que está machucado. Você não devia saltar para o golpe de misericórdia como fez. Se não estivesse tão ansiosa para me derrotar, meu truque não teria funcionado. Arra olhou para o futuro Príncipe Vampiro, depois abaixou os olhos e murmurou: — Há verdade nas suas palavras. — Ergueu os olhos para os olhos de Kurda. — Peço desculpas por desrespeitar você, Kurda Smahlt. Falei com raiva. Pode me perdoar? — Perdoarei se aceitar a minha mão — sorriu Kurda. Arra balançou a cabeça. — Não posso — disse ela, arrasada. — Você me derrotou limpamente, envergonho-me de recusar apertar sua mão, mas não posso. Kurda pareceu ofendido mas conseguiu um sorriso forçado. — Tudo bem — disse ele. — De qualquer modo eu lhe perdôo. — Muito obrigada — disse Arra, depois se virou e saiu correndo do Salão, o rosto contraído de dor e de vergonha. Kurda sentou-se ao meu lado com o coração pesado. — Tenho pena dela — suspirou. — Deve ser dolorosa tanta teimosia. O fato de ter recusado apertar a minha mão vai atormentá-la pelo resto da vida. Para ela, e para os que pensam igual a ela, Arra cometeu um ato imperdoável. Para mim, não importa que ela aperte ou não a minha mão, mas para ela é uma vergonha. — Ninguém podia acreditar quando você a derrotou — disse eu, procurando animá-lo. — Pensei que você não fosse bom em lutas. Kurda riu levemente.
— Prefiro não lutar, isso não quer dizer que não posso! Não sou um vampiro heróico e versátil, mas também não sou o covarde inútil que muitos pensam. — Se você lutasse mais vezes, não pensariam isso — observei. — Verdade — admitiu. — Mas a opinião deles não importa. — Kurda encostou o dedo no meu peito e apertou de leve sobre o coração. — É aqui que um homem deve se julgar, não em barras, num ringue ou num campo de batalha. Se seu coração sabe que você é honesto e bravo, isso deve bastar. “Dos nove vampiros que morreram desde o último Conselho, cinco podiam estar aqui esta noite, vivos e bem, se não tivessem insistido em se mostrar para os outros. Morreram antes do tempo, só para que seus companheiros os admirassem." Abaixou a cabeça e suspirou profundamente. “É uma idiotice”, murmurou. “Inútil e triste. E uma noite destas pode significar o fim de todos nós.” Levantando-se, ele se afastou, tristonho e deprimido. Fiquei onde estava por um longo tempo depois que ele se foi, observando os vampiros ensangüentados que lutavam e meditando nas palavras de paz de Kurda, solenes e perturbadoras.
CAPÍTULO NOVE
As horas se passaram e muitos vampiros se retiraram para seus caixões. Teriam continuado a lutar e a beber alegremente se não tivessem de se preparar para o primeiro dos bailes formais que começaria ao pôr-do-sol. Três bailes eram realizados durante o Festival dos Mortos-Vivos, um no fim de cada dia, em dois
grandes Salões para acomodar todos os vampiros. O baile era um evento estranho. A maioria dos vampiros vestia trajes coloridos, como no começo do Festival, mas agora as camisas, calças e capas estavam rasgadas, manchadas de sangue, e os corpos e os rostos deles cheios de arranhões e contusões. Muitos tinham braços ou pernas quebrados, mas todos foram para a pista de dança, mesmo os que usavam muletas. Ao pôr-do-sol, todos os vampiros ergueram os rostos para o teto e uivaram como lobos selvagens. Isso durou vários minutos, cada vampiro procurando uivar o maior tempo possível. Chamavam isso de uivo da noite e era executado no primeiro baile de cada Festival. O objetivo era uivar por mais tempo do que os outros — o vampiro vencedor teria adicionado ao nome o título de “do Uivo” até o próximo Conselho. Assim, se eu ganhasse, teria de ser chamado de Darren Shan do Uivo durante os doze anos seguintes. É claro que nem cheguei perto de ganhar — uma vez que eu era um meiovampiro, minha voz era uma das mais fracas e fui um dos primeiros a me calar. Aos poucos as vozes dos outros fraquejavam, e eles se calavam também, um a um, até sobrar apenas poucos vampiros uivando, os rostos vermelhos com o esforço de emitir aquele grito selvagem. Enquanto os últimos poucos vampiros ficavam roucos de tanto uivar, o resto encorajava seus favoritos: “Continue, Butra!”, “Uive como um demônio, Yebba!” — e batiam com os pés e as mãos no chão. No fim, o vencedor foi um vampiro enorme chamado Yebba, que já havia vencido duas vezes antes — mas não no último Conselho — e era um vencedor muito popular. Houve uma breve cerimônia na qual ele teve de beber uma quantidade enorme de sangue sem parar para respirar, depois Paz Celestial conferiu a ele o título de Yebba do Uivo. Quase no mesmo instante que as palavras saíram dos lábios do Príncipe, a banda começou a tocar e os vampiros começaram a dançar. A banda consistia inteiramente em bateristas, que mantinham uma batida lenta e pesada. Enquanto dançavam rigidamente — passos curtos acompanhando a música funérea —, eles cantavam as letras das canções antigas que contavam grandes batalhas e enalteciam os vampiros campeões, os que morreram nobremente, e amaldiçoavam os que haviam traído ou envergonhado o clã (embora não citassem nomes — era um costume nunca mencionar os nomes dos traidores ou dos vampiros de má reputação). Tentei dançar — todos tinham de experimentar —, mas não era muito bom nisso. Eu teria me entusiasmado com uma música rápida e mais alta, mas aquela era “dura” demais. Quem não sabia exatamente o que fazer, parecia um idiota. O fato de não saber as letras das canções sombrias era outra desvantagem. Além disso, dançar aumentava a coceira mais do que nunca e eu tinha de parar a todo momento para coçar as costas.
Depois de alguns minutos, pedi licença e me retirei. Fui procurar Sebá Nilo, que me prometera uma coisa boa para a coceira. Encontrei o intendente na segunda câmara. Ele dançava e conduzia o canto, por isso me sentei e esperei que ele terminasse. Torvelinho estava no Salão. Depois de algum tempo ele me viu e veio sentar ao meu lado. Parecia exausto e respirava mais ruidosamente do que nunca. — Eu só fui para meu caixão há mais ou menos uma hora — explicou. — Fui apanhado por dois dos meus antigos orientadores e tive de passar o dia inteiro ouvindo suas histórias. A música parou por um momento para que os músicos pudessem beber sangue e preparar o número seguinte. Com uma curvatura para seus companheiros, Sebá saiu da pista de dança. Acenei para chamar sua atenção. Ele parou para pegar uma caneca de cerveja e veio na minha direção. — Torvelinho. Darren. Estão se divertindo? — Eu estaria se tivesse energia suficiente — resfolegou Torvelinho. — E você, Darren? — perguntou Sebá. — O que está achando do nosso Festival dos Mortos-Vivos? — É estranho — respondi francamente. — Primeiro vocês todos uivam como animais, depois dançam como robôs. Sebá conteve a risada. — Você não devia dizer isso em voz alta — censurou-me mansamente. — Vai ferir nossos sentimentos. A maioria dos vampiros orgulha-se da sua dança, pensam que dançam em grande estilo. — Sebá — disse eu, coçando as pernas —, lembra-se de ter dito que tinha uma coisa para fazer passar esta coceira? — Sim, eu lembro. — Você se importaria de me dar agora? — Não é fácil conseguir — disse Sebá. — Teremos de fazer uma breve viagem pelos túneis debaixo dos Salões. — Pode me levar quando tiver tempo? — perguntei. — Eu tenho tempo — disse. — Mas antes vá procurar Kurda Smahlt. Prometi que o deixaria acompanhar-me nessa viagem, ele quer mapear a região. — Aonde eu digo que vamos? — perguntei. — Diga que vamos aonde vivem os aracnídeos. Ele sabe o que isso quer dizer. Traga também aquela sua bela aranha, Madame Octa. Quero levá-la conosco. Encontrei Kurda ouvindo vampiros que contavam histórias lendárias do passado. Os contadores de histórias eram muito procurados nos Festivais. Os vampiros não se importavam muito com livros. Preferiam manter o passado vivo oralmente. Acho que a verdadeira história dos vampiros jamais foi escrita.
Puxei a manga de Kurda e murmurei a mensagem de Sebá. Ele disse que nos acompanharia, mas pediu alguns minutos para apanhar seu equipamento para mapear. Disse que nos encontraria no lado de fora do alojamento de Sebá, na parte baixa da montanha, perto dos depósitos dos quais o intendente era encarregado. Quando cheguei com Madame Octa, fiquei sabendo que Torvelinho também iria conosco. Ele disse que ia cair no sono se ficasse ali, ouvindo a música, aquecido pelos archotes e pela multidão de vampiros. — Um passeio lá por baixo é justamente o que o capitão ordenou — disse ele, imitando o modo de falar dos marinheiros. Olhei em volta procurando Harkat — pensei que ele gostaria de ver como eram os túneis da Montanha do Vampiro. O metabolismo de Harkat era mais forte que o dos vampiros e ele podia beber álcool o dia todo e a noite inteira sem sentir os efeitos. Os vampiros estavam atônitos com sua capacidade para a bebida e o aplaudiam enquanto ele tomava uma caneca depois da outra. Eu não queria tirá-lo da companhia dos novos amigos, por isso não o chamei. Quando estávamos prontos, nos reunimos no lado de fora dos alojamentos de Sebá e partimos para os túneis. Os guardas do portão que ligava os túneis aos Salões não eram da guarda regular — nenhum vampiro podia desempenhar seus deveres normais durante o Festival. Não estavam tão bem-vestidos quanto os guardas habituais e alguns tinham bebido, o que os guardas jamais fazem quando estão de serviço. Sebá disse-lhes aonde íamos e eles nos deixaram passar, recomendando que tivéssemos cuidado para não nos perder. — Espero que não aconteça — disse Kurda com um sorriso. — A julgar pelo cheiro, vocês não poderiam encontrar uma maçã no fundo de um barril de cidra! Os guardas riram e, brincando, ameaçaram não nos deixar voltar para os Salões. Um dos que estavam mais sóbrios perguntou se queríamos archotes, mas Sebá disse que não era preciso — o lugar aonde pretendíamos ir tinha as paredes cobertas de líquen luminoso. Kurda preparou seu equipamento para fazer mapas quando chegamos aos túneis que não conhecíamos. Consistia simplesmente em uma folha de papel quadriculado e um lápis. Ele parava de vez em quando para acrescentar uma pequena linha à página, marcando o comprimento do túnel em que estávamos. — Fazer mapas é só isso? — perguntei. — Parece fácil. — Túneis não são difíceis de se mapear — concordou. — Não é o mesmo que tentar mapear um trecho de terra aberta ou da costa. — Não dê atenção a ele — disse Torvelinho. — Até mesmo os túneis são difíceis. Tentei uma vez e fiz uma bagunça. Você tem de trabalhar com escala e certificar-se de que as marcas do comprimento são exatas. Um engano, por mínimo que seja, estraga todo o resto.
— É só ter jeito para a coisa — disse Kurda. — Você aprende rapidamente, se levar a coisa a sério. — Não, obrigado — disse Torvelinho. — Não tenho intenção de passar meu tempo livre preso num labirinto de túneis, tentando fazer um mapa. Não sei qual é o prazer disso. — É fascinante — disse Kurda. — Porque nos dá uma compreensão muito mais clara do ambiente, para não mencionar uma grande sensação de ter realizado uma coisa importante, no fim. Além disso, há o aspecto prático. — Aspecto prático! — zombou Torvelinho. — Ninguém a não ser você usa seus mapas! — Não é bem assim — corrigiu Kurda. — Ninguém está interessado em me ajudar a fazer mapas, mas muitos estão dispostos a usá-los. Você sabia que vamos construir um novo Salão, mais abaixo do que qualquer outro, nos próximos anos? — Um Salão de depósito — disse Torvelinho. — Será construído em uma caverna que descobri, que será ligada ao resto dos Salões por meio de um túnel que ninguém conhecia até eu começar a andar por aqui. — Há também os pontos de entrada — observou Sebá. — O que é isso? — perguntei. — Túneis que se abrem nos Salões — explicou Sebá. — Há muitos caminhos para os Salões além dos portões de entrada. Kurda descobriu vários e chamou nossa atenção para eles, para que possamos fechá-los em caso de ataque. — Quem atacaria aqui em cima? — perguntei, intrigado. — Ele está falando de ataques de animais — disse Kurda. — Lobos desgarrados, ratos e morcegos geralmente entravam por esses pontos à procura de comida. Começavam a ser um problema. Meus mapas nos ajudaram a acabar com isso. — Tudo bem — sorriu Torvelinho. — Eu estava errado, seus mapas são úteis. Mas, mesmo assim, não estou disposto a ficar aqui dentro ajudando a desenhá-los. Seguimos em silêncio por algum tempo. Os túneis eram estreitos e o teto era baixo, o que dificultava a caminhada dos vampiros altos. Tiveram alguns minutos de alívio quando os túneis se abriram, mas logo depois se encolheram outra vez e voltaram a andar agachados ou a se arrastar. Estava escuro também. Tínhamos luz apenas para ver de perto, mas não dava para Kurda fazer seus mapas. Ele tirou uma vela do bolso e ia acender, mas Sebá o fez parar. — Nada de velas — disse o intendente. — Mas não estou enxergando nada — queixou-se Kurda. — Sinto muito, mas terá de fazer o melhor possível.
Kurda resmungou, abaixou a cabeça, com o nariz quase tocando o papel, continuou a desenhar cuidadosamente enquanto prosseguíamos na nossa caminhada, tropeçando muitas vezes porque não prestava atenção ao caminho. Finalmente, depois de nos arrastarmos por um túnel bastante pequeno, chegamos a uma caverna de tamanho médio, coberta do chão ao teto de teias de aranha. — Silêncio agora — murmurou Sebá enquanto esperávamos. — Não convém perturbar as residentes. As “residentes” eram aranhas. Milhares — talvez centenas de milhares — de aranhas. Elas enchiam a caverna, dependuradas no teto, nas teias, correndo no chão. Eram como as aranhas que eu tinha visto quando cheguei à Montanha do Vampiro, peludas e amarelas. Nenhuma tão grande quanto Madame Octa mas maiores do que as aranhas comuns. Uma porção de aranhas correram para nós. Sebá ajoelhou-se cautelosamente e assobiou. As aranhas hesitaram e depois voltaram para seus cantos. — Essas são as sentinelas — disse Sebá. — Defenderiam as outras se quiséssemos fazer mal a elas. — Como? — perguntei. — Pensei que não fossem venenosas. — Sozinhas, são inofensivas — explicou Sebá. — Mas se atacam em grupos, podem criar problemas. A morte é pouco provável, para um ser humano talvez, mas não para um vampiro, mas certamente causarão muito desconforto, possivelmente até mesmo paralisia. — Compreendo por que você não quer nenhuma vela acesa — disse Kurda. — Uma centelha e este lugar vai pelos ares como papel seco. — Exatamente. — Sebá foi até o centro da caverna. Nós o seguimos lentamente. Madame Octa estava na barra da gaiola observando atentamente as aranhas. — Elas estão aqui há milhares de anos — murmurou Sebá, erguendo os braços e deixando que algumas aranhas andassem nas suas mãos. — Nós as chamamos de aranhas de Ba’Halen, o nome do vampiro que, se acreditarmos na lenda, as trouxe para cá. Nenhum ser humano sabe da sua existência. Não me importei quando as aranhas começaram a subir nas minhas pernas — eu estava acostumado a lidar com Madame Octa e, antes dela, meu passatempo era estudar aranhas —, mas Torvelinho e Kurda pareciam pouco à vontade. — Tem certeza de que elas não picam? — perguntou Torvelinho. — Para mim seria uma surpresa — disse Sebá. — Elas são dóceis e geralmente só atacam quando ameaçadas. — Acho que vou espirrar — disse Kurda quando uma aranha subiu no nariz dele. — Eu não aconselharia — advertiu Sebá. — Elas podem interpretar como
um ato de agressão. Kurda prendeu a respiração e estremeceu no esforço para controlar o espirro. Quando a aranha finalmente o deixou, seu rosto estava vermelho como brasa. — Vamos dar o fora daqui — disse ele, soltando o ar dos pulmões trêmula e longamente. — A melhor sugestão que ouvi esta noite — concordou Torvelinho. — Não tão depressa, meus amigos — sorriu Sebá. — Eu não os trouxe aqui para se divertir. Estamos numa missão. Darren, tire a camisa. — Aqui? — perguntei. — Você quer acabar com a coceira ou não? — Bem, quero, mas... — suspirando, eu obedeci. Quando minhas costas ficaram nuas, Sebá encontrou algumas teias abandonadas. — Incline-se — ordenou e, segurando as teias acima do meu corpo, as esfregou entre os dedos, deixando o pó cair em cima de mim. — O que está fazendo? — perguntou Torvelinho. — Curando uma coceira — respondeu Sebá. — Com teias de aranha? — disse Kurda, incrédulo. — Francamente, Sebá, nunca pensei que você levasse a sério essas crendices. — Não é crendice — insistiu Sebá, esfregando o pó na minha pele ferida. — Essas teias contêm produtos químicos que ajudam a cicatrização e evitam a irritação. Em uma hora, a coceira terá desaparecido. Quando eu estava coberto de pó, Sebá amarrou algumas teias grossas e inteiras nas áreas mais infectadas, incluindo minhas mãos. — Tiraremos as teias antes de sairmos dos túneis, mas recomendo que não lave o lugar por uma ou duas noites, se lavar a coceira pode voltar. — Isso é loucura — resmungou Torvelinho. — Nunca vai dar certo. — Na verdade, acho que já está funcionando — eu o contradisse. — A parte de trás das minhas pernas estava me matando quando chegamos, mas agora quase não sinto a coceira. — Se é tão eficaz — disse Kurda —, por que não ouvimos falar nisso antes? — Eu não anuncio — disse Sebá. — Se os poderes curativos das teias forem conhecidos, os vampiros passarão a vir sempre aqui. Perturbarão a rotina natural das aranhas, obrigando-as a mudar para a parte mais baixa da montanha, e com o tempo desaparecerão. Só trago as pessoas aqui quando precisam realmente de ajuda e sempre peço para manterem segredo. Espero que nenhum de vocês traia minha confiança. Todos nós dissemos que não. Terminado meu tratamento, Sebá tirou Madame Octa da gaiola e a pôs no chão. Ela parou, hesitante, enquanto uma multidão de aranhas intrigadas a
rodeava. Uma com pintas cinza-claras nas costas investiu para ela numa tentativa de ataque. Madame Octa a afastou facilmente e o resto recuou. Uma vez familiarizada com o terreno, ela examinou a caverna. Subiu pelas paredes e pelas teias, perturbando outras aranhas. Elas reagiram zangadas à intrusão, mas se acalmaram quando viram o tamanho de Madame Octa e perceberam que ela não tinha más intenções. — Elas reconhecem a majestade quando a vêem — disse Sebá, apontando para as aranhas que acompanhavam Madame Octa no seu reconhecimento. A aranha com pintas cinzentas ia na frente. — Se nós a deixarmos aqui, as aranhas farão dela uma rainha. — Madame Octa pode cruzar com elas? — perguntou Kurda. — Provavelmente não — disse Sebá, pensativo. — Mas seria interessante se pudesse. Há milhares de anos não é introduzido sangue novo na colônia. Para mim seria fascinante estudar os frutos da união. — Esqueça — estremeceu Torvelinho. — E se os filhotes fossem venenosos como a mãe? Teríamos milhares delas andando pelos túneis, matando à vontade. — Dificilmente — sorriu Sebá. — As aranhas não costumam enfrentar oponentes maiores do que elas, não enquanto houver presas menores e mais vulneráveis. Mas ela não é minha. Darren é quem deve decidir. Observei-a atentamente por alguns minutos. Madame Octa parecia feliz fora da gaiola entre suas iguais. Mas eu conhecia melhor do que ninguém as conseqüências da sua picada. Era melhor não arriscar. — Não acho que devemos deixá-la aqui — disse. — Tudo bem — concordou Sebá e assobiou baixinho. Respondendo ao assobio, Madame Octa voltou imediatamente para a gaiola, mas ficou perto das barras, como se estivesse solitária. Tive pena dela, mas lembrei que era apenas uma aranha e não tinha nenhum sentimento. Sebá brincou com as aranhas por algum tempo, assobiando e convidando-as a andar por cima dele. Peguei a flauta — na verdade, um pequeno apito — da gaiola de Madame Octa e juntei-me a ele na brincadeira. Levei alguns minutos para sincronizar meus pensamentos com os das aranhas — não eram tão fáceis de fazer contato mental quanto Madame Octa mas Sebá e eu nos divertimos a valer quando finalmente consegui, deixando que as aranhas saltassem sobre nós dois e começassem a tecer teias que nos envolviam da cabeça aos pés. Torvelino e Kurda assistiam, espantados. — Eu também posso controlá-las? — perguntou Torvelinho. — Duvido — disse Sebá. — É mais difícil do que parece. Darren tem um dom natural com as aranhas. Poucas pessoas têm a habilidade de se ligar a elas. Você é um jovem afortunado, Darren. Desisti das aranhas depois da coisa nefasta que aconteceu entre Madame
Octa e meu melhor amigo, Lucas Leopardo, há tantos anos, mas, ouvindo as palavras de Sebá, senti voltar meu antigo amor pelas predadoras de oito patas e prometi a mim mesmo me interessar mais pelo mundo das aranhas, no futuro. Quando a brincadeira acabou, Sebá e eu nos livramos das teias — com cuidado para não remover as aplicadas em mim por Sebá — e então nós quatro nos arrastamos para fora dos túneis. Algumas aranhas foram atrás de nós, mas voltaram quando perceberam que estávamos indo embora, todas menos a com pintas cinzentas, que nos acompanhou quase até o fim do túnel como se estivesse encantada com Madame Octa e detestasse vê-la partir.
CAPÍTULO DEZ
Voltávamos para os Salões quando lembrei o antigo cemitério de que Kurda tinha falado logo depois que cheguei à Montanha do Vampiro. Perguntei se podíamos vê-lo. Sebá e Kurda concordaram. Torvelinho não ficou muito satisfeito, mas disse que iria conosco.
— Câmaras mortuárias me deixam mórbido — disse ele, enquanto seguíamos pelos túneis. — Uma coisa estranha para um vampiro — observei. — Você não dorme em um caixão? — Caixões são diferentes — disse Torvelinho. — Sinto-me aconchegado num caixão. O que não suporto são cemitérios, necrotérios e crematórios. O Salão da Viagem Final era uma caverna grande com teto abaulado. Liquens luminosos cresciam espessos nas paredes. Um regato borbulhante atravessava o meio da caverna e saía por um túnel que o levava de volta ao subterrâneo. O regato era largo, rápido e barulhento. Na sua margem, tínhamos de falar muito alto para sermos ouvidos acima do ruído da corrente. — Os corpos dos mortos eram antes trazidos para cá — disse Kurda. — Eram despidos, depositados na água e soltos. O regato os levava embora, através da montanha e para fora, para os campos e florestas. — O que acontecia com eles então? — perguntei. — Acabavam sendo deixados em uma margem distante, onde eram devorados por animais e pássaros de rapina. — Ele riu quando eu empalideci. — Não é um modo muito bom de morrer, não é? — É tão bom quanto qualquer outro — discordou Sebá. — Quando eu morrer, é o que quero que façam com meu corpo. Corpos mortos são partes essenciais da cadeia natural de alimento. Cremar corpos é um desperdício. — Por que pararam de usar o regato? — perguntei. — Os corpos ficavam presos — disse Sebá, rindo. — Empilhavam-se quase na saída do túnel. O fedor era terrível. Uma equipe de vampiros com cordas amarradas na cintura nadava no túnel para livrar os corpos. Eram puxados de volta pelos outros, porque ninguém podia nadar contra a corrente forte. “Eu fiz parte de uma dessas equipes”, continuou Sebá. “Felizmente só tinha de puxar a corda e não precisava me aventurar na água. Os que nadavam no túnel para libertar os corpos nunca falavam do que encontravam.” Olhando para a água escura do regato, estremecendo ao pensar em nadar no túnel para soltar cadáveres encalhados, tive uma idéia e me voltei para Kurda. — Você diz que os corpos eram deixados na margem para servir de alimento para animais e pássaros — disse eu para Kurda —, mas o sangue dos vampiros não é venenoso? — Não havia nenhum sangue — disse Kurda. — Por que não? — perguntei, intrigado. Kurda hesitou e Sebá respondeu por ele. — Era todo tirado pelos Guardiões do Sangue, que retiravam também os órgãos internos. — Quem são os Guardiões do Sangue? — perguntei. — Você se lembra das pessoas que viu no Salão da Cremação e no Salão da
Morte quando eu o levei para conhecer a montanha? — perguntou Kurda. Lembrei-me então das pessoas estranhas, extremamente pálidas, com sinistros olhos brancos, vestidas com farrapos, sentadas sozinhas e silenciosas no Salão sombrio. Kurda não quis falar sobre elas e disse que me contaria mais tarde quem eram, mas, com tudo que tinha acontecido desde então, eu me esqueci do mistério. — Quem são eles? — perguntei. — O que eles fazem? — São os Guardiões do Sangue — disse Kurda. — Vieram para a Montanha do Vampiro há mais de mil anos, não sabemos de onde, e residem aqui desde então, embora de dez em dez anos pequenos grupos saiam e voltem com novos membros. Eles têm alojamentos separados debaixo dos Salões e raramente se misturam conosco. Eles têm também linguagem, costumes e crenças próprias. — Eles são humanos? — perguntei. — Eles são espíritos maléficos! — resmungou Torvelinho. — Isso não é justo — reclamou Sebá. — São servidores leais, e merecem nossa gratidão. São encarregados das cerimônias de cremação e fazem um trabalho nobre preparando os mortos. Além disso, eles nos fornecem sangue, é de onde vem a maior parte do sangue humano dos nossos depósitos. Jamais poderíamos encomendar todo o sangue de que precisamos para suprir as necessidades dos vampiros durante o Conselho, por isso dependemos dos Guardiões. Eles não nos deixam sugar o sangue diretamente deles, mas o retiram e passam para nós, em vidros. — Por quê? — perguntei, atônito. — Não pode ser muito divertido viver dentro da montanha dando sangue. O que eles ganham com isso? Kurda tossiu embaraçado. — Você sabe o que é um saprófago? — Balancei a cabeça. — São criaturas, ou pequenos organismos, que se alimentam das excreções ou dos corpos mortos dos outros. Os Guardiões são saprófagos. Eles comem os órgãos internos, incluindo o coração e o cérebro, dos vampiros mortos. Olhei para Kurda, me perguntando se era brincadeira. Mas pela cara séria dele vi que não era. — Por que vocês deixam? — exclamei com o estômago revirado. — Precisamos deles — disse Sebá, simplesmente. — O sangue deles é necessário. Além disso, eles não nos fazem nenhum mal. — Você acha que comer corpos mortos não é um mal? — disse eu, perplexo. — Nunca tivemos nenhuma queixa dos mortos, por enquanto — riu Torvelinho, mas com um humor forçado. Seu desconforto parecia tão grande quanto o meu. — Eles cuidam muito bem dos corpos — explicou Sebá. — Para eles, nós somos sagrados. Eles primeiro retiram o sangue e guardam em barris especiais
feitos por eles mesmos, por isso receberam esse nome, depois cortam delicadamente o torso, abrindo-o, e retiram os órgãos necessários. Extraem também o cérebro, inserindo pequenos ganchos no nariz do cadáver e tirando em pequenos pedaços. — O quê? — rugiu Torvelinho. — Nunca ouvi dizer isso! — A maioria dos vampiros não sabe — disse Sebá. — Mas eu estudei os Guardiões detalhadamente durante séculos. O crânio dos vampiros é valioso para eles e eles nunca o quebram. — Isso é um tanto impressionante — murmurou Kurda com desagrado. — É desonroso! — rugiu Torvelinho. — Incrível! — disse eu. — Uma vez removidos os órgãos e o cérebro — continuou Sebá —, eles os cozinham para segurança: nosso sangue é tão mortal para os Guardiões quanto para qualquer outra criatura. — E é disso que eles vivem? — perguntei, revoltado, mas fascinado. — Não — respondeu Sebá. — Não sobreviveriam por muito tempo se fosse seu único alimento. Eles comem comida normal, preservando e reservando nossos órgãos para ocasiões especiais, como casamentos, funerais e outros eventos desse tipo. — Isso é nojento! — gritei, dividido entre um riso sinistro e sentindo-me moralmente ofendido. — Por que eles fazem isso? — Não temos certeza do motivo por que gostam disso — admitiu Kurda —, mas em parte deve ser porque os mantém vivos por mais tempo. O Guardião vive em média cento e sessenta anos ou mais. É claro que, se se tornassem vampiros, viveriam muito mais, mas nunca aconteceu, aceitar o sangue de um vampiro é tabu para os Guardiões. — Como vocês deixam que eles façam isso? — perguntei. — Por que não mandam esses monstros embora? — Eles não são monstros — discordou Sebá. — São pessoas com hábitos alimentares diferentes dos nossos! Além disso, bebemos o sangue deles. É um arranjo justo: nossos órgãos por seu sangue. — Justo não é a palavra que eu usaria — resmunguei. — É canibalismo! — Não é, não — objetou Kurda. — Eles não comem a carne dos seus iguais, portanto, na verdade não são canibais. — A diferença parece insignificante — rosnei. — É uma linha muito tênue — concordou Sebá —, mas há uma diferença. Eu não gostaria de ser um Guardião e não socializo com eles, mas são apenas seres humanos estranhos, que procuram viver do melhor modo possível. Não esqueça que também nos alimentamos das pessoas, Darren. Seria um erro desprezar os Guardiões, bem como é errado para os seres humanos odiar os vampiros.
— Eu disse que a coisa ia ficar mórbida — riu Torvelinho. — Tinha razão — sorriu Kurda. — Este é o reino dos mortos, não dos vivos, e devemos deixá-lo para eles. Vamos voltar para o Festival. — Já viu bastante, Darren? — perguntou Sebá. — Sim! — Estremeci. — E ouvi bastante também! — Então, vamos embora. Sebá foi na frente, Torvelinho e Kurda apressados, atrás dele. Fiquei para trás por um momento, olhando para o regato, ouvindo o rugido da água entrando na caverna e saindo, pensando nos Guardiões do Sangue, imaginando meu corpo morto, sem sangue, vazio, na longa descida da montanha, jogado como uma boneca de trapos, de rocha em rocha. Era uma imagem horrível. Balançando a cabeça, tirei a idéia do pensamento e corri atrás dos meus amigos, sem saber que numa fração de tempo assustadoramente curta eu voltaria àquele mesmo lugar, não para lamentar a morte de alguém, mas para lutar desesperadamente por minha vida!
CAPÍTULO ONZE
O Festival dos Mortos-Vivos chegou a um grande final na terceira noite. As comemorações começaram várias horas antes do pôr-do-sol, e, embora o Festival tivesse terminado oficialmente com a chegada da noite, vários vampiros continuaram com o espírito festivo até bem tarde, na manhã seguinte.
Não houve lutas no último dia do Festival. O tempo foi dedicado a contar histórias, à música e ao canto. Aprendi muito sobre nossa história e nossos ancestrais — os nomes dos grandes líderes vampiros, batalhas ferozes contra os seres humanos e contra os vampixiitas — e teria ficado a noite toda ouvindo se não tivesse de me informar sobre minha próxima Prova. Dessa vez escolhi o Salão das Chamas, e todos os vampiros reunidos para assistir pareceram entristecidos quando a Prova foi sorteada. — É ruim, não é? — perguntei para Vanez. — Sim — o mestre dos jogos respondeu com franqueza. — Será sua prova mais difícil. Pediremos a Arra Barbatanas para nos ajudar no treino. Com a ajuda dela, talvez você consiga. Ele acentuou significativamente a palavra talvez. Passei quase a noite e o dia seguintes aprendendo a evitar fogo. O Salão das Chamas era uma sala grande de metal com uma porção de buracos no chão. Labaredas potentes eram acesas debaixo do Salão para a Prova e os vampiros usavam foles para conduzir o fogo para dentro da sala e por todo o assoalho. Porque eram muitos os canos que levavam o fogo para os buracos, era impossível prever o caminho que as chamas seguiriam quando aparecessem. — Você deve usar os ouvidos tanto quanto os olhos — disse-me Arra. Ela estava com o braço direito numa tipóia, machucado pelos vampiros durante o festival. — Você pode ouvir as chamas quando elas estão chegando, antes de vêlas. Um dos fogos fora aceso fora do Salão e dois vampiros com os foles as mandavam para dentro da sala para que eu aprendesse a reconhecer o som do fogo passando pelos canos. Arra ficou atrás de mim, puxando-me do caminho das chamas quando eu não reagia depressa como devia. — Está ouvindo esse silvo? — perguntou ela. — Estou. — É o som das chamas passando por você. É quando você ouve um assobio curto, como este! — Ela me puxou para trás quando uma coluna de fogo brotou do chão aos meus pés. — Você ouviu? — Mais ou menos — disse eu, tremendo nervosamente. — Isso não basta — disse ela, preocupada. — Mais ou menos vai matar você. Vai ter muito pouco tempo para se desviar das chamas. Cada fração de segundo é preciosa. Não adianta reagir no momento, você tem de reagir com antecedência. Algumas horas depois, eu peguei o jeito e estava correndo e pulando pelo Salão, evitando as chamas com facilidade. — Isso é ótimo — disse Arra quando paramos para descansar. — Mas só uma fogueira está acesa no momento. Na Prova, cinco fogueiras são acesas. As chamas chegarão mais depressa e em maior volume. Você tem muito que
aprender antes de estar pronto. Depois de mais treino, Arra me levou para fora do Salão e até o fogo. Empurrou-me para perto dele, pegou um galho em brasa e passou nas minhas pernas e nos meus braços. — Pare! — berrei. — Você está me queimando vivo! — Fique parado! — ordenou ela. — Tem de se acostumar com o calor. Sua pele é espessa, pode suportar o castigo. Mas precisa estar preparado para ele. Ninguém passa ileso pelo Salão das Chamas. Você será queimado e chamuscado. Suas chances de sair vivo dependem de como reagir aos danos. Se você se deixar levar pela dor e entrar em pânico, você morre. Do contrário, poderá sobreviver. Eu sabia que ela não diria essas coisas se não fossem verdade, por isso fiquei parado e apertei os dentes, enquanto ela passava a ponta em brasa do galho na minha pele. A coceira, que tinha desaparecido quase por completo depois da aplicação das teias por Sebá, voltou, aumentando meu sofrimento. Durante um descanso, examinei os lugares em que Arra havia passado o galho ardente. Tinham uma cor rosada feia e ardiam quando tocados, como uma grave queimadura de sol. — Tem certeza de que isto é uma boa idéia? — perguntei. — Você tem de se acostumar às chamas — disse Arra . — Quanto mais seu corpo for exposto à dor agora, mais fácil será lidar com o resto depois. Mas não tenha ilusão, esta é uma das Provas mais duras. Você sofrerá muito até o fim. — Você não está exatamente me enchendo de confiança — gemi. — Não estou aqui para encher você de confiança — respondeu com desdém. — Estou aqui para ajudá-lo a salvar sua vida. Depois de uma breve discussão entre Vanez e Arra, ficou decidido que eu teria de passar sem minhas poucas horas habituais de sono até a Prova. — Precisamos dessas horas extras — disse Vanez. — Você teve três dias e três noites de descanso. Neste momento, o treino é mais importante do que o sono. Assim, depois de um curto intervalo, eu estava outra vez no Salão e no fogo, onde aprendi a escapar por pouco das chamas. Era melhor se mover o mínimo possível durante a Prova. Desse modo, você podia ouvir com maior atenção e se concentrar na direção de onde vinham as chamas. Isso significava ficar chamuscado e levemente queimado, mas era preferível a dar um passo em falso e ir para os ares numa nuvem de fumaça. Treinamos até meia hora antes do começo da Prova. Eu fui à minha cela para tomar fôlego e mudar de roupa — eu estava apenas com um short de couro —, depois voltei ao Salão das Chamas, onde muitos vampiros tinham se reunido para me desejar boa sorte. Arqueiro — o Príncipe calvo e tatuado — viera do Salão dos Príncipes para assistir à Prova.
— Infelizmente nenhum de nós teve tempo para assistir à última — desculpou-se fazendo o sinal do toque da morte. — Tudo bem. Eu não me importo. — Você é um competidor muito cortês — disse Arqueiro. — Então, conhece as regras? Inclinei a cabeça assentindo. — Tenho de ficar lá dentro quinze minutos e tentar não ser assado. — Disse muito bem — sorriu o Príncipe. — Está pronto? — Quase — disse eu com os joelhos batendo um no outro. Virei para o Sr. Crepsley. — Se eu não conseguir, quero que você... — comecei, mas ele me interrompeu furioso. — Não fale desse modo! Pense positivamente. — Estou pensando positivamente, mas sei que vai ser difícil. Eu só ia dizer que estive pensando e, se eu morrer, gostaria que você levasse meu corpo para casa e o enterrasse no jazigo da minha família. Assim, estarei perto de minha mãe, do meu pai e de Annie. O Sr. Crepsley piscou rapidamente (estaria contendo as lágrimas?) e pigarreou. — Atenderei seu pedido — disse ele com a voz embargada, depois me ofereceu a mão. Eu a empurrei e o abracei com força. — Orgulho-me de ter sido seu assistente — murmurei no ouvido dele, depois recuei antes que ele pudesse dizer qualquer coisa e entrei no Salão das Chamas. A batida da porta se fechando atrás de mim abafou o som do fogo que estava sendo aceso. Fui para o centro da sala, suando copiosamente de calor e de medo. O assoalho já estava quente. Eu queria passar saliva nos pés, para refrescar, mas Arra tinha dito para não fazer isso logo no princípio. As coisas iam ficar muito mais quentes depois — era melhor guardar um pouco de saliva para quando realmente precisasse. Ouvi um gorgolejo dos canos debaixo do assoalho. Fiquei tenso, mas era só um dos canos balançando. Relaxei, fechei os olhos e respirei profundamente várias vezes, enquanto ainda havia ar puro para respirar. Esse era outro problema que eu teria de enfrentar — embora houvesse aberturas no teto e nas paredes, o oxigênio seria pouco e eu teria de encontrar o ar em bolsões, entre as chamas, ou me arriscar a morrer sufocado. Enquanto eu pensava no ar, ouvi o silvo feroz no chão sob meus pés. Abrindo os olhos, vi um funil de chama brotar a alguns metros à minha esquerda. A Prova tinha começado. Ignorei as chamas — estavam muito distantes para me fazer mal — e prestei atenção à próxima investida. Dessa vez veio de uma extremidade da sala. Tive a sorte de um bom começo. Segundo Arra, às vezes, as chamas saltam sobre você do começo até o fim da Prova. Pelo menos tive tempo para me
ajustar gradualmente ao calor. Ouvi um assobio à minha direita. Saltei para o lado quando a chama subiu no ar muito perto, depois me afastei rapidamente — aquela foi muito perto, mas não teria me atingido. Eu devia ter ficado onde estava ou me desviar cuidadosamente para longe. Fazendo um movimento brusco daquele modo, eu podia ter imediatamente arranjado um problema sério. As chamas chegavam em rápidas explosões agora em todo o Salão. Eu sentia um calor terrível enchendo o ar e já era difícil respirar. Uma abertura a poucos centímetros do meu pé esquerdo assobiou. Não me movi quando O fogo subiu e chamuscou minha perna — eu podia tolerar uma pequena queimadura como aquela. Uma explosão maior saiu de uma abertura mais larga atrás de mim. Eu fui um pouco para a frente, rolando para longe do calor mais intenso. Senti as chamas lamberem minhas costas nuas, mas não chegaram a queimar realmente. O pior era quando dois ou mais funis de chamas saltavam de aberturas próximas. Eu não podia fazer nada quando era apanhado entre vários pilares de fogo, a não ser encolher a barriga e passar cuidadosamente pela fina parede de chamas. Em poucos minutos meus pés tinham se transformado numa verdadeira agonia. Absorviam o pior das chamas. Cuspi nas palmas das mãos e passei a saliva nas solas, o que me proporcionou um alívio temporário. Eu teria plantado bananeira para dar um descanso aos pés, porém desse modo estaria expondo minha cabeça ao fogo. Muitos vampiros, quando se preparavam para as Provas, raspavam a cabeça meses antes e estavam completamente calvos quando começavam as Provas. Desse modo, se a sorte os destinava ao Salão das Chamas, estavam mais preparados, uma vez que o cabelo queima com muito maior facilidade do que a pele. Mas não era permitido raspar a cabeça especialmente para a Prova e as coisas aconteceram tão depressa para mim que ninguém pensou em me preparar contra a possibilidade de enfrentar as chamas. Não havia nenhum meio de calcular o tempo. Eu tinha de me concentrar totalmente no assoalho e no fogo. A menor distração podia ter conseqüências fatais. Várias aberturas na minha frente explodiram em chamas ao mesmo tempo. Comecei a recuar devagar quando ouvi os canos assobiando selvagemente atrás de mim. Encolhendo a barriga outra vez, desviei-me um pouco para a esquerda, para longe das paredes mais espessas de fogo. O momento de perigo passou, mas eu estava ficando encurralado num canto. Vanez me advertira contra isso, mesmo antes de encontrarmos Arra e pedir para que ela me treinasse. “Fique longe dos cantos”, disse ele. “Procure
ficar no meio tanto quanto possível. Se sentir que está recuando para um canto, saia rapidamente. A maioria dos que morrem no Salão das Chamas, morrem nos cantos, encurralados pelas paredes de fogo, incapazes de escapar.” Comecei a voltar por onde tinha vindo, mas o fogo continuava a saltar das aberturas, bloqueando meu caminho. Relutantemente, recuei mais para o canto, pronto para aproveitar a primeira abertura que aparecesse. O problema era que não aparecia nenhuma. O resfolegar dos canos atrás de mim me fez parar. As chamas explodiram do chão, chamuscando minhas costas. Fiz uma careta de dor mas não me mexi — não tinha para onde ir. O ar era muito pouco naquela parte da sala. Sacudi as mãos na frente do rosto, tentando criar uma corrente de ar fresco, mas não adiantou. As colunas de fogo na minha frente formaram uma parede de pelo menos três metros de espessura. Eu mal via o resto da sala através das chamas. Enquanto esperava que se abrisse um caminho, as bocas dos canos aos meus pés sibilaram, várias delas ao mesmo tempo. Uma imensa bola de fogo estava a caminho, pronta para explodir diretamente debaixo de mim. Eu tinha uma fração de segundo para pensar e agir. Não podia ficar parado — seria queimado. Não podia recuar — seria queimado. Não podia desviar para os lados — seria queimado. Para a frente, através das paredes de fogo? Provavelmente seria queimado, mas além do fogo havia espaço aberto e ar — se eu conseguisse passar. Era uma péssima escolha, mas eu não tinha tempo para me lamentar. Fechando os olhos e a boca, cobri o rosto com os braços e me lancei para a frente, na parede de chamas.
CAPÍTULO DOZE
O fogo se fechou em volta de mim como uma nuvem feroz vermelha e amarela de gafanhotos. Nunca nos meus piores pesadelos eu tinha imaginado aquele calor. Quase abri a boca para gritar. Se tivesse feito isso, o fogo teria entrado na minha garganta e me incinerado de dentro para fora.
Quando saí do outro lado da parede de fogo, meu cabelo era uma sarça ardente e as chamas brotavam do meu corpo como cogumelos. Atirei-me no chão e rolei de um lado para outro, batendo no cabelo, apagando as chamas. Não prestei atenção aos silvos e aos apitos dos canos. Se as chamas tivessem me atacado naquele breve momento de loucura, teriam me devorado. Mas tive sorte... A sorte de Darren Shan... a sorte dos vampiros. Depois de apagar as piores chamas, ajoelhei, gemendo fracamente. Aspirando ar quente e fino, levei a mão cuidadosamente ao alto da minha cabeça para me certificar de que nenhuma fagulha esperava voltar à vida para me queimar todo. Meu corpo estava todo preto e vermelho. Negro da fuligem, vermelho onde as queimaduras tinham devorado minha carne. Eu estava em péssimo estado, mas tinha de continuar. Ferido, dolorido a cada movimento, tinha de continuar. Os demônios vorazes do fogo me devorariam se eu não continuasse. Levantei-me e apurei o ouvido para os rugidos das chamas e para o som dos canos. Não era fácil — minhas orelhas selvagemente queimadas afetavam minha audição —, mas consegui detectar os sinais fracos dos silvos e dos apitos e depois de alguns passos trêmulos estava de volta no caminho, esperando as explosões e me movendo para evitá-las. A única coisa boa de ter atravessado a parede de fogo era que grande parte da sensibilidade dos meus pés tinha desaparecido. Quase não sentia dor do joelho para baixo. Isso significava que eu estava gravemente queimado, e uma parte de mim se preocupava com o que ia me acontecer depois daquela Prova — se meus pés estivessem queimados irreversivelmente, teriam de ser amputados —, mas isso era uma preocupação para outra hora. Naquele momento, eu estava satisfeito com o alívio e procurei me consolar com ele. Minhas orelhas incomodavam demais. Tentei passar um pouco de saliva, mas minha boca estava completamente seca. Eu as acariciei cuidadosamente entre os dedos, mas isso foi pior. No fim, desisti e procurei fazer o melhor possível para ignorá-las. As chamas estavam me forçando a fugir para outro canto. Em vez de me deixar encurralar outra vez, investi abaixado contra uma muralha de fogo e voltei para o espaço aberto, suportando a dor. Eu fechava os olhos sempre que possível, sempre que o fogo amainava. O calor era terrível para os olhos. Estavam secos, como minha boca, e tive medo de perder a visão. Quando rolei para longe de outra explosão de fogo, as chamas no Salão começaram a se apagar. Parei, desconfiado. Seria o começo de outro ataque pior? Eu devia esperar que uma enorme bola de fogo explodisse dos canos e acabasse comigo? Esforcei-me para ouvir e então a porta do Salão se abriu e vampiros com
capas pesadas entraram. Olhei para eles como se fossem extraterrestres. O que estavam fazendo? Seriam bombeiros perdidos? Alguém devia dizer que não deviam estar ali. Era perigoso. Recuei, afastando-me dos vampiros quando eles convergiram para mim. Eu os teria avisado para sair antes do ataque da grande bola de fogo, mas não tinha voz. Não consegui sequer um gemido rouco. — Darren, terminou — disse um dos vampiros. Parecia a voz do Sr. Crepsley, mas não podia ser. O Sr. Crepsley não entraria no Salão no meio de uma Prova. Sacudi uma das mãos para os vampiros e, sem voz, apenas movendo os lábios, disse: — Vão embora! Saiam daqui! — Darren — disse o vampiro outra vez. — Acabou. Você venceu! Eu não conseguia entender aquelas palavras. Tudo que sabia era que uma enorme bola de fogo estava chegando e se aqueles tolos idiotas estivessem bloqueando meu caminho eu não poderia evitá-la. Batendo neles, tentei abrir caminho entre seus braços para um lugar seguro. Desviei o corpo das mãos do vampiro que estava na frente, mas o outro me agarrou pela nuca. O toque da sua mão era doloroso e eu caí no chão, gritando silenciosamente. — Tenha cuidado! — disse o primeiro vampiro, zangado, e se inclinou para mim: era o Sr. Crepsley! — Darren — disse, suavemente —, está tudo bem. Você conseguiu. Você está salvo. Balançando a cabeça, sem poder pensar direito, eu repetia a mesma palavra: “Fogo! Fogo! Fogo!” Eu continuava a dizer isso, sem voz, quando eles me puseram numa maca e me levaram para fora do Salão. E mesmo quando já estávamos fora, livres das chamas, e minhas queimaduras estavam sendo tratadas, eu não podia evitar que meus lábios formassem a palavra de aviso, nem que meus olhos deixassem de girar para a esquerda e para a direita, procurando apavorado os sinais do terror vermelho e amarelo.
CAPÍTULO TREZE
Minha cela. Deitado de bruços. Os paramédicos examinando minhas costas, passando loções frias na minha pele. Alguém levantando meus pés queimados, e com uma exclamação abafada gritando por ajuda.
Olhando para o teto. Alguém segurando uma lanterna apontada para meus olhos, examinando minhas pupilas. Uma navalha sendo passada na minha cabeça, me escalpelando, removendo o que restava do cabelo queimado. Torvelinho aproximando-se de mim, preocupado. — Acho que ele está... — começou a dizer Torvelinho. Escuridão completa.
Pesadelos. O mundo está em fogo. Correndo. Queimando. Gritando. Pedindo socorro. Todo mundo em fogo também. Acordando de repente. Vampiros em volta da cama. Pesadelo ainda no fundo de minha mente. Convencido de que a cela está pegando fogo, tento fugir. Eles me seguram. Eu praguejo. Luto. A dor domina meu corpo. Encolho-me. Relaxo. Volto aos sonhos cheios de fogo. Finalmente saí do reino dos delírios. Estava deitado de bruços. Movi de leve a cabeça para olhar em volta da cela. O Sr. Crepsley e Harkat Mulds estavam sentados ao meu lado, me monitorando. — Pensei... ter visto... Torvelinho — disse eu num chiado. O Sr. Crepsley e Harkat saltaram para a frente, sorrindo, preocupados. — Ele esteve aqui — disse o Sr. Crepsley. — Kurda também, Vanez, Arra. Os paramédicos os mandaram sair. — Eu... consegui? — perguntei. — Sim. — Minhas... queimaduras são... muito graves? — Muito — disse o Sr. Crepsley. — Você parece... uma salsicha cozida demais — brincou Harkat. Ri fracamente. — Estou falando... como você... agora — disse eu. — Sim — concordou. — Mas você... vai... melhorar. — Vou mesmo? — fiz a pergunta para o Sr. Crepsley. — Sim — disse ele, balançando a cabeça afirmativamente com firmeza. — Você passou por uma experiência terrível, mas os danos não são permanentes. Seus pés sofreram o pior castigo, mas os paramédicos os salvaram. Vai levar tempo para sarar e seu cabelo pode nunca mais crescer, mas você não está em perigo imediato. — Eu me... sinto péssimo — disse. — Fique satisfeito por poder sentir algo — respondeu secamente. — E... a próxima Prova? — Não pense nisso agora. — Eu... preciso — murmurei. — Terei... tempo... de me preparar... para ela? — O Sr. Crepsley não disse nada. — Diga... a verdade. — Não vai haver tempo extra — suspirou. — Kurda está no Salão dos Príncipes neste momento defendendo seu caso. Mas não poderá persuadir os
Príncipes a adiar a Prova. Não há nenhum precedente de intervalo maior entre as Provas. Os que não podem continuar devem... — parou de falar. —... ser levados para... o Salão da... Morte — terminei por ele. Enquanto o Sr. Crepsley, ali sentado, tentava pensar em alguma coisa para me consolar, Kurda voltou, vermelho e agitado. — Ele está acordado? — perguntou. — Estou — respondi. Agachando ao meu lado, ele disse: — O sol está quase se pondo. Você precisa escolher sua próxima Prova ou admitir fracasso e ser levado para a execução. Se nós o levarmos para o Salão dos Príncipes, acha que pode ficar de pé por alguns minutos? — Não... tenho certeza — respondi. — Meus pés... doem. — Eu sei — disse ele. — Mas é importante. Achei um meio de dar a você um pouco mais de tempo, mas só se você puder agir como se estivesse bem. — Qual meio? — perguntou o Sr. Crepsley, atônito. — Não há tempo para explicações — disse Kurda, impaciente. — Está disposto a tentar, Darren? — Fiz que sim com a cabeça. — Ótimo. Vamos arranjar uma maca e seguir imediatamente para o Salão dos Príncipes. Não devemos nos atrasar. Seguindo apressadamente pelos túneis, chegamos ao Salão a tempo do pôrdo-sol. Vanez Blane nos esperava no lado de fora com sua flâmula roxa. — O que está acontecendo? — perguntou ele para Kurda. — De modo nenhum Darren estará pronto para enfrentar a Prova amanhã. — Confie em mim — disse Kurda. — Foi idéia de Paz Celestial, mas ninguém deve saber. Temos de agir como se estivéssemos prontos para continuar. Tudo depende de Darren ficar de pé para sortear sua Prova. Vamos. E lembremse, temos de agir como se não houvesse nenhum problema. Estávamos todos intrigados com o comportamento de Kurda, mas não tínhamos escolha a não ser fazer o que ele mandava. Entrando no Salão dos Príncipes, percebi que os vampiros pararam de falar, e todos os olhos se fixaram em nós. Kurda e o Sr. Crepsley me carregaram para a plataforma dos Príncipes, Harkat e Vanez logo atrás. — Este é o jovem Sr. Shan? — perguntou Paz Celestial. — Sim, senhor — respondeu Kurda. — Ele parece péssimo — observou Mika Ver Leth. — Tem certeza de que ele está bem para continuar com as Provas? — Ele está só descansando, senhor — disse, casualmente. — Ele gosta de fingir que está mal porque gosta de ser carregado por toda parte como um lorde. — É mesmo? — disse Mika, sorrindo, desconfiado. — Se esse é o caso, mande o menino se adiantar e escolher sua próxima Prova. Você compreende — acrescentou ameaçadoramente — o que devemos fazer se ele não for capaz?
— Compreendemos — disse Kurda e abaixou a ponta da maca onde estavam meus pés. O Sr. Crepsley fez o mesmo com a outra ponta. Os dois vampiros me ajudaram a levantar, então lentamente me soltaram. Eu cambaleei perigosamente e quase caí. Provavelmente teria caído se não houvesse tantos vampiros presentes, mas eu não queria parecer fraco na frente deles. Lutando contra a dor, andei para a plataforma. Levei um longo tempo para subir os degraus, mas consegui. Ninguém disse nada enquanto eu estava subindo e, quando cheguei à plataforma, como sempre foram conferidos os números da sacola. — Número quatro — anunciou o vampiro que segurava a sacola quando eu tirei a pedra. — Os Javalis Vampirizados. — Uma Prova complicada — disse Paz Celestial, pensativo, quando a pedra foi passada para que os Príncipes a examinassem. — Está preparado para ela, Darren? — Eu... não sei o que... é — disse eu. — Mas... estarei... lá para enfrentá-la... amanhã... conforme está marcado. Paz Celestial sorriu bondosamente. — É bom ouvir isso. — Pigarreou e arregalou os olhos inocentemente. — Entretanto, eu não poderei estar presente. Tenho negócios urgentes para tratar e infelizmente terei de perder essa Prova. Meu bom colega Mika irá no meu lugar. Mika imitou o olhar inocente de Paz Celestial. — Na verdade, eu também não posso sair do Salão amanhã. Esse assunto do Senhor dos Vampixiitas toma todo meu tempo. Que tal você, Arqueiro? O Príncipe calvo balançou a cabeça tristemente. — Sinto muito, mas devo pedir desculpas. Minha agenda, por assim dizer, está cheia. — Senhores — disse Kurda rapidamente, adiantando-se para a plataforma. — Já deixaram de comparecer a uma das Provas de Darren. Aceitamos sua ausência naquela ocasião, mas deixar de ocupar seu posto duas vezes durante o decorrer das Provas é imperdoável e muito prejudicial para Darren. Devo protestar seriamente. Paz Celestial começou a sorrir, controlou-se e franziu a testa. — Há verdade nas suas palavras — murmurou. — Não podemos faltar a outra Prova do menino — concordou Mika. — Mas um de nós deverá estar presente — acrescentou o Arqueiro. Os três Príncipes confabularam em voz baixa. Pelo modo como sorriam e piscavam para Kurda, tive certeza de que estavam tramando alguma coisa. — Muito bem — disse Paz Celestial em voz alta. — Darren se apresentou para sua próxima Prova. Uma vez que não podemos estar presentes, resolvemos adiá-la. Pedimos desculpas pela inconveniência, Darren, você nos perdoa? — Deixarei... passar... desta vez — sorri.
— Quanto tempo teremos de esperar, senhores? — perguntou Kurda, fingindo impaciência. — Darren está ansioso para acabar com suas provas. — Não muito — disse Paz Celestial. — Um de nós estará presente à prova ao pôr-do-sol, daqui a setenta e duas horas. Tudo bem? — É desagradável, senhor — suspirou Kurda teatralmente —, mas se temos de esperar, esperaremos. Fazendo uma reverência, Kurda me fez descer da plataforma, me ajudou a subir outra vez na maca e, com o Sr. Crepsley, me carregou para fora do Salão. Uma vez lá fora, os vampiros pararam e riram alto. — Kurda Smahlt, seu maroto! — disse o Sr. Crepsley às gargalhadas. — Como teve essa idéia? — A idéia foi de Paz Celestial — respondeu Kurda, humildemente. — Os Príncipes queriam ajudar Darren, mas não podiam simplesmente dizer que estavam dando a ele tempo para se recobrar dos ferimentos. Precisavam de uma desculpa. Desse modo, é como se Darren estivesse pronto e disposto a ir em frente, portanto não há nenhuma vergonha em adiar a Prova. — Por isso... tive de ficar de pé — observei. — Para que ninguém... suspeitasse. — Certo — disse Kurda com um largo sorriso. — Todos no Salão sabem o que aconteceu realmente, mas desde que pareça que tudo está em ordem, ninguém fará objeção. — Três noites... e três dias — disse, pensativo. — Serão... suficientes? — Se não forem, não é por falta de tentar — disse o Sr. Crepsley com feroz determinação, e seguimos pelos túneis rapidamente à procura de paramédicos capazes de me fazer voltar a boa forma antes de enfrentar os Javalis Vampirizados.
CAPÍTULO QUATORZE
O tempo passou vagarosamente enquanto eu convalescia, confinado à minha rede. Os paramédicos se desdobravam em cuidados, passando loções na minha pele chamuscada, trocando ataduras, limpando os ferimentos para que não infeccionassem. Muitas vezes comentavam a minha sorte. Nenhum dos danos
era permanente, com exceção, talvez, da perda de cabelo. Meus pés ficariam curados, meus pulmões estavam bem, a maior parte da minha pele voltaria a crescer. Pensando bem, eu estava em ótima forma e devia agradecer à minha boa estrela. Mas eu não me sentia em ótima forma. Sentia dor o tempo todo. Já era ruim quando eu ficava imóvel, mas quando me mexia tornava-se insuportável. Chorei muito no travesseiro, desejando poder dormir e não acordar até a dor desaparecer por completo, mas até mesmo dormindo eu era torturado pelos efeitos do fogo, apavorado por pesadelos, nunca muito distante de estar completamente acordado. Eu recebia muitas visitas que ajudavam a me distrair da dor. Sebá e Torvelinho passavam horas ao meu lado, contando histórias e piadas. Torvelinho começou a me chamar de Assadinho, porque, segundo ele, eu parecia um pedaço de carne queimada. E ele se ofereceu para arranjar um pedaço de madeira queimada para desenhar sobrancelhas na minha testa, uma vez que as minhas tinham desaparecido junto com meu cabelo. Eu disse a ele onde podia enfiar seu pedaço de madeira — e o resto do archote também! Perguntei a Sebá se ele tinha algum tratamento especial para queimaduras, esperando que o velho vampiro conhecesse algum remédio antigo e tradicional que os médicos ignoravam. — Infelizmente não. Mas, quando seus ferimentos estiverem cicatrizados, faremos outra viagem às cavernas das aranhas de Ba’Halen e procuraremos teias para evitar mais coceira. Arra me visitava sempre, mas passava mais tempo conversando com o Sr. Crepsley do que comigo. Os dois passavam muito tempo falando sobre as noites antigas e sobre sua vida juntos quando eram parceiros. Depois de algum tempo, comecei a me perguntar se os dois estariam planejando se casar outra vez e como isso afetaria meu relacionamento com o vampiro. Quando perguntei ao Sr. Crepsley, ele tossiu embaraçado e disse zangado que eu não devia incomodá-lo com essas bobagens: Arra e ele eram apenas bons amigos. — É claro que são — disse eu, rindo divertido, e o provoquei com uma piscadela. Kurda só conseguiu me visitar umas duas vezes. Agora que o Festival dos Mortos-Vivos tinha terminado, os vampiros tinham muito que discutir, grande parte a respeito dos vampixiitas. Como General mais antigo e perito em vampixiitas, ele tinha de passar a maior parte do tempo em reuniões e conferências. Arra estava comigo em uma das raras ocasiões em que Kurda apareceu. Ela ficou tensa quando o viu e ele fez menção de se retirar para evitar o confronto.
— Espere — chamou ela. — Quero agradecer o que você fez por Darren. — Não foi nada — sorriu ele. — Como não foi nada? — discordou ela. — Muitos de nós se importam com Darren, mas só você teve a iniciativa de salvá-lo quando foi preciso. O resto de nós teria ficado parado, assistindo à sua morte. Não concordo com seus métodos, há uma linha muito fina entre diplomacia e covardia, mas às vezes funcionam melhor do que os nossos. Arra saiu e Kurda sorriu levemente. — Quer saber? — observou. — Isso é o mais perto que ela vai chegar de dizer que gosta de mim. Kurda me deu água — eu estava numa dieta só de líquidos — e me contou o que estava acontecendo enquanto eu estava fora de ação. Um comitê fora formado para discutir os movimentos dos vampixiitas e o que fazer no caso do advento do Senhor dos Vampixiitas. — Pela primeira vez estão falando seriamente em fazer a paz com os vampixiitas — disse ele. — Isso deve deixar você satisfeito. Ele suspirou. — Se tivesse acontecido há alguns anos, eu estaria pulando de alegria. Mas o tempo está acabando. Acho que vai ser preciso mais do que um comitê para unir as tribos e combater a ameaça do Senhor dos Vampixiitas. — Pensei que você não acreditasse no Senhor dos Vampixiitas — disse eu. Ele deu de ombros. — Oficialmente não acredito. Entre nós dois... — Abaixou a voz. — Só de pensar nele, fico morrendo de medo. — Você acha que ele é real? — perguntei. — Se o Sr. Tino diz que é... sim. Seja lá o que for que eu acredito, não posso duvidar dos poderes do Sr. Tino. A não ser que entremos em ação rapidamente para evitar a possibilidade da chegada do Senhor dos Vampixiitas, tenho certeza de que ele virá. Impedir sua vinda a tempo pode significar um tremendo sacrifício, mas se esse é o preço de evitar a guerra, que seja. Era estranho ouvir essa confissão de Kurda. Se ele — amigo dos vampixiitas — estava preocupado, os outros vampiros deviam estar apavorados. Eu não dera muita atenção ao caso do Senhor dos Vampixiitas, mas resolvi que no futuro ouviria com mais cuidado. Na noite seguinte — a véspera da minha quarta Prova —, o Sr. Crepsley foi me visitar depois de uma reunião com Vanez Blane. Harkat já estava ao lado da minha rede. O Pequenino tinha passado mais tempo comigo do que os outros. — Estive conversando com Vanez — disse o Sr. Crepsley — e chegamos à conclusão de que seria melhor para você, para sua próxima Prova, descansar em
lugar de treinar. Não são exigidas habilidades especiais na Prova dos Javalis Vampirizados. Você simplesmente terá de enfrentar e matar dois javalis infectados com sangue de vampiro. É uma luta comum até a morte. — Se eu posso derrotar um urso enfurecido, posso derrotar dois javalis — sorri, tentando parecer despreocupado. — Eu matei um urso selvagem na nossa vinda para a Montanha do Vampiro. — Sem dúvida você pode — concordou o Sr. Crepsley. — Se não fossem seus ferimentos, eu até arriscaria dizer que você pode fazer isso com um braço amarrado nas costas. Eu sorri e depois tossi. Desde o Salão das Chamas eu estava tossindo muito. Era uma reação natural a toda a fumaça que tinha inalado. Meus pulmões não tinham sofrido nenhum dano grave, portanto a tosse devia parar dentro de mais alguns dias. O Sr. Crepsley me deu um copo com água e eu bebi devagar. Já podia me alimentar e naquela noite tinha feito minha primeira refeição desde o Salão das Chamas. Eu ainda estava péssimo, mas, graças ao meu sangue de vampiro, convalescia depressa. — Você sente que está pronto para a Prova? — perguntou o Sr. Crepsley. — Eu gostaria de mais vinte e quatro horas — suspirei —, mas acho que estou. Hoje, depois do desjejum, andei durante quase um quarto de hora e me senti bem. Desde que minhas pernas e meus pés agüentem, estarei bem, com os dedos cruzados. — Estive falando com Sebá Nilo — disse o Sr. Crepsley, mudando de assunto. — Ele me disse que está pensando em se aposentar assim que terminar o Conselho. Ele acha que já serviu tempo suficiente como intendente da Montanha do Vampiro. Ele quer ver o mundo uma última vez antes de morrer. — Talvez ele possa ir conosco para o Circo dos Horrores — sugeri. — Na verdade — disse o Sr. Crepsley, olhando atentamente para mim para ver minha reação —, talvez não voltemos para o Circo dos Horrores. — O quê? — perguntei, intrigado. — Sebá me ofereceu o posto de intendente. Estou pensando em aceitar. — Pensei que ninguém gostasse de ser intendente — disse eu. — Não é um trabalho muito procurado — concordou o Sr. Crepsley —, mas intendentes são muito respeitados. Dirigir a Montanha do Vampiro é uma grande responsabilidade. Pode também ser muito bem recompensada, por centenas de anos você pode influenciar a vida de cada General Vampiro. — Por que ele ofereceu o posto para você? — perguntei. — Por que não para um dos seus assistentes? — Os assistentes são jovens. Sonham em ser Generais ou em sair para o mundo e deixar sua própria marca. Seria injusto arrancar um deles desses sonhos quando estou disponível, pronto e capaz de ocupar a vaga. — Você quer fazer isso, não quer? — perguntei, vendo o desejo nos olhos
dele. O Sr. Crepsley balançou a cabeça afirmativamente. — Há uma ou duas décadas teria sido a última coisa que eu queria. Mas a vida não teve nenhum sentido depois que deixei os Generais. Eu não imaginava o quanto ia sentir falta do clã, até vir a este Conselho. Será o modo ideal para a minha reintegração ao grupo. — Se você quer tanto, vá em frente — encorajei. — Mas, e você? — perguntou. — Como meu assistente, teria de ficar aqui comigo até ter idade suficiente para se aventurar sozinho. Gosta da idéia de passar os próximos trinta anos de sua vida dentro desta montanha? — Na verdade, não — disse eu. — Gostei de ter vindo, a não ser pelas Provas, mas imagino que depois de alguns anos ficaria entediado. — Passei a mão na minha cabeça calva e pensei no assunto. — E temos de pensar também em Harkat. Como ele vai voltar se ficarmos aqui? — Eu... ficarei com você... se resolver... ficar — disse ele. — Ficará? — perguntei, surpreso. — Parte da... minha memória... voltou. Muita coisa... ainda está esquecida, mas... lembro do Sr. Tino... me dizer que o único... meio para descobrir... quem eu... era antes de morrer... é... ficar com você. — Como eu posso ajudá-lo a lembrar quem você era? — perguntei. Harkat deu de ombros. — Eu não... sei. Mas ficarei... ao seu... lado enquanto... você... quiser. — Não se importa de ficar preso dentro de uma montanha? — perguntei. Harkat sorriu. — Os Pequeninos... se contentam... com pouco. Recostei no travesseiro e considerei a proposta. Se eu ficasse, podia aprender mais sobre os costumes dos vampiros, talvez até treinar para ser um General Vampiro. A idéia de ser um General me agradava — podia me ver conduzindo uma tropa de vampiros na batalha contra os vampixiitas, como um capitão pirata ou um oficial do exército. Por outro lado, talvez eu nunca mais visse Ofídio, o Sr. Altão ou os outros amigos do Circo dos Horrores. Acabariam as viagens pelo mundo, representando para as platéias, e luxos como ir ao cinema ou pedir comida chinesa para comer em casa — não por pelo menos trinta anos! — É uma grande decisão — pensei em voz alta. — Pode me dar algum tempo para pensar? — É claro — disse o Sr. Crepsley. — Não há pressa. Sebá não espera uma resposta até o fim do Conselho. Falaremos disso com detalhes quando você tiver acabado suas Provas. — Se eu acabar — sorri, nervoso. — Quando acabar — insistiu o Sr. Crepsley, sorrindo confiante.
CAPÍTULO QUINZE
A quarta Prova — os Javalis Vampirizados. Parecia que metade dos vampiros da montanha estava presente para me ver enfrentar os dois javalis selvagens. Enquanto esperava o começo, fiquei sabendo que era grande o interesse na minha pessoa àquela altura. Muitos vampiros
esperavam que eu tivesse falhado muito antes disso. Ficaram perplexos quando sobrevivi ao Salão das Chamas. Os contadores de histórias da Montanha do Vampiro já tratavam de transformar meus feitos numa lenda moderna. Ouvi um deles descrevendo minha Prova do Caminho das Agulhas: segundo ele, suportei dez avalanches e fui atingido no estômago por uma estalactite, que teve de ser cortada depois da Prova! Era divertido ouvir as histórias murmuradas espalhando-se entre os vampiros, mesmo que a maior parte delas fosse invenção. Elas me faziam sentir como o Rei Artur ou Alexandre, o Grande. — Não fique vaidoso — riu Torvelinho, vendo a atenção com que eu ouvia as histórias. Ele me fazia companhia enquanto Vanez escolhia as armas para a minha Prova. — O exagero é a base de todas as lendas. Se você falhar nesta ou na última Prova, vão inventar que você era preguiçoso, idiota, sem nenhum valor, e farão da sua imagem um exemplo para futuros vampiros. “Trabalhe com afinco, meu jovem”, dirão, “ou vai acabar como aquele inútil Darren Shan.” — Pelo menos não poderão dizer que eu roncava como um urso — disse eu. Torvelinho fez uma careta. — Você tem passado muito tempo com Larten — resmungou. Vanez voltou e me entregou uma pequena clava de madeira e uma lança curta. — São as melhores armas que consegui — disse ele, coçando a pele debaixo da órbita vazia com a ponta da lança. — Não são grande coisa, mas têm de servir. — Estão ótimas — disse eu, embora esperasse alguma coisa mais forte. — Sabe o que vai acontecer? — perguntou. — Os javalis serão soltos no ringue ao mesmo tempo. Podem lutar um com o outro no começo, mas, logo que sentirem meu cheiro, virão para cima de mim. Vanez concordou. — Foi assim que o urso localizou você quando vinham para cá, e foi por isso que ele o atacou. O sangue de vampiro aguça os sentidos do animal, especialmente o olfato. Eles atacam aquilo que tem o cheiro mais forte. “Você tem de chegar perto dos javalis para matá-los. Use a lança para atacar os olhos deles. Reserve a clava para os focinhos e as cabeças. Não dê atenção ao corpo — é desperdício de energia.” “Os javalis provavelmente não coordenarão o ataque. Geralmente, quando um deles se prepara para o golpe de misericórdia, o outro recua e espera. Se atacarem ao mesmo tempo, um pode atrapalhar o outro. Use a confusão, se for possível.” “Evite suas presas. Se ficar preso nelas, saia imediatamente, mesmo que tenha de largar suas armas para se livrar. É o máximo de danos que podem
provocar se você ficar longe das presas.” Um toque de corneta anunciou a chegada de Mika Ver Leth, que iria presidir a Prova. O Príncipe vestido de negro me desejou boa-noite e perguntou se eu estava pronto para começar. Eu disse que estava. Então, ele me desejou boa sorte, fez o sinal do toque da morte, verificou que eu não tinha nenhuma arma escondida, e se afastou para seu posto, enquanto eu era levado para a arena. A arena era um buraco grande e redondo, circundado por uma forte cerca de madeira para evitar que os javalis fugissem. Os vampiros estavam em volta da cerca, torcendo como a multidão no Coliseu romano. Ergui o braço acima da cabeça e fiz uma careta de dor. Grande parte do meu corpo estava ainda dolorido e alguns dos ferimentos exsudavam líquido sob as ataduras. Meus pés não doíam muito — grande parte das extremidades dos nervos tinha sido queimada e eu levaria semanas, talvez meses, para me recuperar —, mas todo o resto do meu corpo ardia. As portas da arena se abriram e dois javalis enjaulados foram levados para o centro pelos guardas. Todos os vampiros ficaram em silêncio. Quando os guardas se retiraram e fecharam as portas, as fechaduras das jaulas foram abertas por meio de fios pendurados no teto e as jaulas erguidas por cordas. Os javalis rosnaram ferozmente quando se viram fora da jaula. Imediatamente encostaram as cabeças, enganchando as presas. Eram criaturas ferozes, com um metro e meio de comprimento e talvez um metro de altura. Quando sentiram meu cheiro, pararam de lutar e se afastaram um do outro. Um deles me viu e guinchou estridentemente. O outro acompanhou o olhar do primeiro, me viu e atacou. Ergui a lança defensivamente. O javali parou a alguns metros de onde eu estava e virou para o lado, bufando ferozmente. O javali que estava mais longe caminhou devagar e decidido para mim. Parou a alguns metros, com olhar malévolo, escavou o chão com as patas e investiu. Eu o evitei facilmente e consegui atingir uma das suas orelhas com a ponta da clava quando ele passou por mim. Ele rugiu, virou rapidamente e me atacou outra vez. Saltei por cima dele, dessa vez procurando atacar os olhos com a lança, e errei por pouco. Quando cheguei ao chão, o outro javali atacou. Atirou-se contra mim, abrindo e fechando as mandíbulas como um tubarão, girando as presas ferozmente. Desviei-me do assalto, mas tropecei. Por causa das extremidades dos nervos destruídas nos meus pés, percebi que não podia confiar muito neles como antes. Insensibilidade nas solas significava que eu podia tropeçar a qualquer momento, inesperadamente. Eu tinha de andar com cuidado. Um dos javalis me viu cambalear e atacou de lado. Felizmente suas presas não me atingiram, e embora a investida tivesse tirado o ar dos meus pulmões, consegui rolar para o lado e recuperar o equilíbrio. Não tive muito tempo de me preparar para o ataque seguinte. Antes que eu
me desse conta, um enorme pedaço de carne corria para mim. Instintivamente, desviei para o lado e brandi a lança. Ele berrou e, quando levantei a lança, vi que tinha sangue na ponta. Houve um breve descanso quando os javalis começaram a andar em volta de mim. Era fácil ver onde um deles fora ferido — um longo corte no lado do focinho, do qual o sangue pingava —, mas não era um ferimento grave e pouco adiantaria para deter outros ataques. O javali vampirizado investiu contra mim. Sacudi a lança e ele se afastou, bufando. O outro correu decidido, mas abaixou a cabeça antes do tempo e consegui evitá-lo saltando para o lado. Os vampiros lá em cima gritavam conselhos e encorajamento, mas ignorei suas vozes e me concentrei nos javalis. Eles andavam à minha volta outra vez, arranhando o pó do chão com as patas, ofegantes. O javali que não estava ferido de repente parou de me rodear e atacou. Desviei para o lado mas ele manteve a cabeça erguida e continuou a corrida. Retesando os músculos das pernas, saltei e tentei atingir a cabeça dele com a clava. Mas calculei mal o salto e, em vez de atingir o javali, o javali foi que me atingiu. A cabeça e os ombros do animal bateram nas minhas pernas e eu caí pesadamente no chão. O javali virou rapidamente e estava em cima de mim antes que eu tivesse tempo de me levantar, seu hálito quente obscurecendo meu rosto, as presas brilhando perigosamente na luz fraca da arena. Bati no javali com a clava, mas não estava em posição para que os golpes tivessem efeito. O animal os aparou e me atacou com as presas. Senti uma cortando as ataduras em volta da minha barriga e ferindo um pedaço da pele queimada. Se eu não me movesse logo, o javali teria me ferido gravemente. Segurando a bola da ponta da clava, eu a enfiei na boca do javali, abafando seus roncos ávidos. O animal recuou, rosnando furioso. Levantei-me rapidamente. Nesse momento, o segundo javali me atacou por trás. Caí sobre o primeiro javali, rolei de cabeça para baixo, como uma bola, e bati na cerca. Quando me sentei, ouvi o som de um javali correndo em minha direção. Sem tempo para atacá-lo, desviei cegamente para a esquerda. O javali errou o alvo e bateu ruidosa e ferozmente com a cabeça na cerca. Eu tinha deixado cair a lança, mas tive tempo de apanhá-la enquanto o javali se afastava, balançando a cabeça, confuso. Eu esperava que ele desmoronasse, mas, depois de alguns segundos, ele se refez, parecendo mais feroz e decidido do que nunca. Minha clava ainda estava enfiada na boca do outro javali. Não dava para recuperá-la, a não ser que ela caísse. Segurando a lança com força, resolvi dar bastante espaço para os animais. Estava na hora de começar a atacá-los. Agachando, segurei a lança na minha
frente e avancei. Os javalis não sabiam o que fazer com meu comportamento. Tentaram duas investidas desanimadas e recuaram, desconfiados. Evidentemente não estavam infectados com uma grande quantidade de sangue de vampiro, do contrário teriam atacado continuamente, ignorando a própria segurança. Levando-os para a outra extremidade da arena, focalizei o javali com o focinho machucado. Parecia o menos decidido dos dois e recuou um pouco mais depressa. Senti uma sugestão de covardia naquele movimento. Fingi que ia atacar o javali mais corajoso com a clava na boca, brandindo a lança, e ele se virou e fugiu. Quando o outro pareceu relaxar, mudei de direção e saltei sobre ele. Agarrei o javali pelo pescoço e segurei firme enquanto ele corria e procurava abaixar a cabeça. Ele me levou num circuito quase completo da arena antes de perder as forças e parar. Enquanto tentava me atingir com as presas, tentei enfiar a lança nos seus olhos. Errei, cortei seu focinho, sua orelha, errei outra vez — então ataquei de verdade e arranquei o olho dele. O rugido do javali quando perdeu o olho quase me ensurdeceu. Ele sacudiu a cabeça, mais furioso do que nunca, e arranhou meu peito e minha barriga com as presas, mas não gravemente. Continuei a segurar com firmeza, ignorando a dor nas mãos e nos braços quando as feridas abriram e o sangue jorrou livremente. Os vampiros lá em cima ficaram entusiasmados e gritos de “Mata! Mata!” enchiam o ar. Tive pena do javali — ele só me atacou porque fora provocado —, mas era ele ou eu. Não era hora para misericórdia. Fui para a frente do javali — uma manobra perigosa — e me preparei para o ataque frontal. Fiquei à direita, de modo que ele não podia me ver, ergui a lança acima da cabeça e esperei o momento certo para desferir o golpe. Depois de alguns frenéticos segundos, o javali me viu com o olho esquerdo e parou, hesitante, oferecendo um alvo imóvel. Abaixando o braço rapidamente com força, enfiei a ponta da lança profundamente na órbita vazia até o cérebro do animal enlouquecido. Um horrível ruído de coisa esmagada e o javali enlouqueceu de todo. Empinando o corpo, apoiado nas pernas traseiras, ele soltou um grito estridente e caiu pesadamente. Desviei dele, mas, assim que tocou o solo, ele investiu como um cavalo selvagem. Recuei apressadamente, mas ele me seguiu. Não podia me ver — não podia ver nada — ou me ouvir por causa dos próprios rugidos, mas de algum modo me seguiu. Virando-me para fugir, vi o segundo javali preparando-se para outro ataque. Parei por um momento, inseguro, e o javali agonizante colidiu comigo. Cai debaixo dele, largando a lança. Quando tentei rolar para o lado, o javali despencou em cima de mim, estremeceu e ficou imóvel. Estava morto — e eu preso debaixo dele!
Esforcei-me para me livrar, mas ele era pesado demais. Se eu estivesse em boas condições físicas, teria conseguido, mas estava machucado, queimado e ensangüentado. Simplesmente não tinha forças para mover o possante animal. Então relaxei, tentando respirar antes de tentar outra vez, e foi quando o segundo javali chegou e bateu com a cabeça na minha. Gritei e tentei me arrastar para longe dele, mas não consegui. O javali parecia estar rindo, mas devia ser por causa da clava, ainda enfiada na sua boca. Ele abaixou a cabeça e tentou me atingir outra vez, mas a clava o impediu. Rosnando, ele deu alguns passos para trás, balançou a cabeça, recuou mais alguns passos, escavou o chão, abaixou as presas... e avançou direto para mim.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Eu me livrara de algumas situações desesperadas no passado, mas então a sorte me abandonou. Eu estava preso, à mercê do javali, e sabia que ele não teria mais misericórdia do que eu havia demonstrado para com seu companheiro. Ali deitado, à espera do fim, com os olhos fixos no javali, ouvi alguém gritar
lá em cima. Os vampiros estavam em silêncio, portanto o grito soou claro na caverna: “NÃO!” Um vulto saltou para a arena, adiantou-se para o espaço que me separava do javali, apanhou a lança que eu deixara cair, enfiou o cabo no chão com a ponta virada para o javali. O animal não teve tempo para deter o impulso da corrida. Correu pesadamente para a lança e foi empalado, depois colidiu com meu protetor, que o empurrou para o lado para que não caísse em cima de mim. Os dois lutadores caíram no chão. O javali lutou fracamente para se levantar. Mas não teve força nas pernas. Rosnou surdamente. E morreu. Quando a poeira assentou, mãos fortes pegaram o javali que estava em cima de mim e atiraram a carcaça para longe. Quando as mãos encontraram as minhas e me ajudaram a levantar, olhei para ele e finalmente vi quem saltara na arena para me ajudar: Harkat Mulds. O Pequenino me examinou, certificando-se de que nenhum osso estava quebrado, e depois me levou para longe dos javalis mortos. Lá em cima, os vampiros estavam em silêncio. Então, quando caminhamos para a porta, alguns assobiaram. Em seguida, alguns vaiaram. Logo todo o Salão ficou cheio com o som de apupos e assobios. “Roubo!”, eles gritavam. “Vergonha!” “Matem os dois!” Harkat e eu paramos e olhamos atônitos para os vampiros furiosos. Um pouco antes eles me louvavam como um guerreiro valoroso — agora estavam pedindo meu sangue! Nem todos os vampiros gritavam. O Sr. Crepsley, Torvelinho e Kurda não bradavam por justiça. Nem Sebá, que eu vi balançando tristemente a cabeça e dando as costas para os assistentes. Enquanto os vampiros gritavam, Vanez Blane pulou a cerca e entrou na arena. Levantou as mãos, pedindo silêncio, e aos poucos conseguiu. — Senhor! — gritou para Mika Ver Leth, que estava de pé, impassível, ao lado da cerca. — Estou tão perplexo com isso quanto qualquer um de vocês. Mas isto não foi planejado e não foi armado por Darren. O Pequenino não conhece as regras e agiu por conta própria. Não nos culpem, eu peço. Alguns vampiros vaiaram quando ouviram isso, mas Mika Ver Leth os fez calar com um movimento da mão. — Darren — disse o Príncipe devagar —, você planejou isso com o Pequenino? Balancei a cabeça. — Estou tão surpreso quanto vocês todos — disse eu. — Harkat — rosnou Mika. — Você interferiu por conta própria ou estava cumprindo ordens? — Nenhuma ordem — respondeu Harkat. — Darren meu... amigo. Não podia ficar... parado... deixando-o morrer.
— Você desafiou nossas regras — advertiu-o Mika. — Suas regras — disse Harkat. — Não as minhas. Darren... amigo. Mika, o Príncipe com olhos de águia, parecia preocupado e passou um dedo enluvado de negro no lábio superior, estudando a situação. — Devemos matar os dois! — gritou, furioso, um General. — Devemos levar os dois para o Salão da Morte e... — Mataria sem mais nem menos o mensageiro de Desmond Tino? — interrompeu-o o Sr. Crepsley, falando suavemente. O General que pedia nossas cabeças ficou calado. O Sr. Crepsley virou-se para o Salão. — Não devemos nos precipitar. Este caso deve ser levado ao Salão dos Príncipes, para ser discutido sensatamente. Harkat não é um vampiro e não pode ser julgado como se fosse. Não temos o direito de condená-lo. — E o meio-vampiro? — perguntou o outro General. — Ele está sujeito às nossas leis. Ele fracassou na prova e deve ser executado. — Ele não fracassou! — gritou Kurda. — A Prova foi interrompida. Ele matou um javali, quem pode dizer que não mataria o outro? — Ele estava preso! — urrou o primeiro General. — O javali ia desfechar o golpe de misericórdia! — Provavelmente — concordou Kurda —, mas nunca saberemos ao certo. Darren provou sua força e engenhosidade nas Provas anteriores. Talvez ele tivesse se livrado do javali morto e evitado o ataque no último momento. — Bobagem! — zombou o General. — É mesmo? — disse Kurda, irritado, saltando para a arena e juntando-se a mim, a Harkat e a Vanez. — Alguém aqui pode dizer com certeza que Darren teria perdido? — Girou o corpo lentamente, procurando os olhos de todos no Salão. — Alguém pode dizer que ele estava realmente numa posição desesperada? Fez-se um silêncio embaraçoso, quebrado, no fim, por uma voz de mulher: Arra Barbatanas. — Kurda tem razão — disse ela. Os vampiros se remexeram, pouco à vontade: não esperavam que Arra ficasse ao lado de Kurda. — A situação do menino era perigosa, mas não necessariamente fatal. Ele podia ter sobrevivido. — Eu digo que Darren tem o direito de retomar a Prova — disse Kurda, aproveitando o silêncio de incerteza que enchia o Salão. — Devemos fazer um intervalo e repetir a Prova amanhã. Todos olharam para Mika Ver Leth, esperando o julgamento. O Príncipe pensou no assunto por alguns momentos, depois olhou para o Sr. Crepsley. — Larten? O que você tem a dizer sobre isso? O Sr. Crepsley deu de ombros tristemente. — É verdade que Darren não foi realmente derrotado. Mas uma quebra dos regulamentos em geral implica derrota. Meu relacionamento com Darren me
manda falar a seu favor. Infelizmente não sei como justificar um caso de misericórdia. Sejam quais forem as circunstâncias, ele fracassou na Prova. — Larten! — gritou Kurda. — Você não sabe o que está dizendo! — Sim, ele sabe — suspirei. — E está com a razão. — Empurrando Harkat para o lado, fiquei sozinho e olhei para Mika Ver Leth. — Eu não acho que teria escapado — disse eu honestamente. — Não quero morrer, mas não pedirei nenhum favor especial. Se for possível fazer a Prova outra vez, eu farei. Do contrário, não vou me queixar. Um murmúrio de aprovação soou no Salão. Os que estavam de pé, furiosos, ao lado da cerca, sentaram e esperaram pela palavra de Mika. — Você fala como um verdadeiro vampiro — elogiou-me o Príncipe. — Não o culpo pelo que aconteceu. Nem culpo seu amigo, ele não é um dos nossos e não podemos esperar que aja como nós. Nenhuma medida será tomada contra Harkat Mulds, é uma garantia que posso dar aqui e agora, por minha conta. Alguns vampiros olharam furiosos para Harkat, mas nenhum ergueu a voz contra ele. — Quanto a você — disse Mika, depois hesitou. — Devo conversar com meus companheiros, os Príncipes e com os Generais, antes de dar a sentença. Não acho que sua vida possa ser poupada, mas talvez Kurda tenha razão em parte, talvez seja possível repetir a Prova. Ao que eu sei, isso nunca foi permitido, mas talvez haja uma lei antiga à qual possamos recorrer. “Volte para sua cela”, decidiu Mika, “enquanto eu e os outros nos aconselharemos com nossos colegas. Você será informado da nossa decisão assim que chegarmos a ela. Meu conselho”, acrescentou num murmúrio, “seria que você ficasse em paz com os deuses, pois temo que tenha de enfrentá-los muito em breve.” Inclinei a cabeça para Mika Ver Leth, assentindo obedientemente, e a mantive abaixada enquanto os outros vampiros saíam do Salão. — Não deixarei que você pereça sem lutar — prometeu Kurda, quando passou por mim. — Você vai se livrar desta, tenho certeza. Deve haver um meio. Então ele se foi. Bem como Vanez Blane, o Sr. Crepsley e o resto, deixandome só com Harkat e os javalis mortos. Harkat parecia envergonhado quando olhei para ele. — Eu não... queria... causar problemas — disse ele. — Eu agi... sem... pensar. — Não se preocupe — disse eu —, provavelmente eu teria feito a mesma coisa se estivesse no seu lugar. Além disso, o pior que podem fazer é me matar, de qualquer modo eu teria morrido, se você não tivesse me salvado. — Você não... está zangado? — perguntou Harkat. — É claro que não — sorri e caminhamos para a saída. O que eu não disse para Harkat era que eu queria que ele tivesse me deixado
morrer. Pelo menos com o javali, minha morte teria sido rápida e fácil de enfrentar. Agora eu teria uma espera longa e nervosa, quase certamente seguida por uma caminhada angustiosa para o Salão da Morte, onde eu seria erguido sobre as estacas e sujeito a um fim doloroso e humilhante. Teria sido melhor morrer nobre e rapidamente na arena.
CAPÍTULO DEZESSETE
Harkat e eu sentamos nas nossas redes e esperamos. As celas vizinhas estavam vazias, bem como os túneis. Quase todos os vampiros estavam reunidos no Salão dos Príncipes ou esperavam o veredicto no lado de fora — vampiros adoram intriga quase tanto quanto gostam de lutar e estavam todos ansiosos para ouvir a
notícia em primeira mão. — Por que você saltou para me ajudar? — perguntei a Harkat depois de algum tempo para quebrar o silêncio exasperante. — Você podia ter morrido tentando me salvar. — Para ser franco — respondeu timidamente Harkat —, eu agi... por mim... não por você. Se você morrer, talvez... eu nunca... descubra... quem eu era. Eu ri. — Acho melhor não dizer isso para os vampiros. A única razão pela qual eles o pouparam foi por respeito à bravura e ao sacrifício. Se souberem que você fez isso para salvar a própria pele, nem sei o que poderão fazer! — Você não... se importa? — perguntou Harkat. — Não — sorri. — Se eles resolverem... matar você, você... vai deixar? — Não poderei fazer nada para impedir — respondi. — Mas você... irá sem reclamar? — Não tenho certeza — suspirei. — Se eles tivessem me levado logo depois da luta, eu teria ido sem um murmúrio, eu estava cheio de adrenalina e sem nenhum medo da morte. Agora que me acalmei, estou com medo. Espero ir para a morte com a cabeça erguida, mas temo ficar com medo, chorar e pedir misericórdia. — Não você — disse Harkat. — Você é muito... corajoso. — Você acha mesmo? — ri baixinho. — Você lutou... contra javalis e enfrentou... fogo e água. Você não... demonstrou medo antes. Por que iria demonstrar agora? — Isso foi diferente — disse eu. — Eu tinha a chance de lutar. Se eles decidirem me matar, terei de ir para o Salão da Morte sabendo que é o fim. — Não se preocupe — disse Harkat. — Se você... morrer, talvez... possa voltar... como... um Pequenino. Olhei para o corpo monstruoso de Harkat, o rosto desfigurado, cheio de cicatrizes, os olhos verdes e a máscara sem a qual ele não podia sobreviver. — Grande consolo — disse eu, sarcasticamente. — Só tentando... animar você. — Pois não tente! Os minutos passavam com agonizante lentidão. Eu queria que os vampiros tomassem uma decisão rapidamente, mesmo que significasse morte — qualquer coisa seria melhor do que ficar ali sentado, sem saber. Afinal, depois do que pareceu uma vida, ouvimos o som de passos no túnel. Ficamos tensos, descemos das redes e ficamos de pé ao lado da porta da cela. Entreolhamo-nos nervosamente. Harkat com fraco sorriso. Eu com um sorriso mais fraco ainda. — Lá vamos nós — murmurei. — Boa sorte — respondeu.
Os passos ficaram mais lentos, pararam e recomeçaram, cautelosamente. Um vampiro apareceu do escuro do túnel e entrou sorrateiramente na cela — Kurda. — O que está acontecendo? — perguntei. — Vim ver como você está — disse ele com um sorriso contrafeito. — Estou ótimo! — disse eu, irritado. — Perfeito. Não podia estar melhor. — Foi o que pensei. — Olhou em volta nervosamente. — Eles... já decidiram? — perguntou Harkat. — Não. Mas não vai demorar. Eles... — Kurda pigarreou. — Eles vão exigir sua morte, Darren. Eu esperava isso, mas foi um golpe tremendo assim mesmo. Dei um passo para trás e meus joelhos se dobraram. Se Harkat não tivesse me amparado, eu teria caído. — Tentei fazer com que desistissem — disse Kurda. — Outros também, Torvelinho e Vanez arriscaram suas carreiras para interceder por você. Mas não há nenhum precedente. As leis são claras, fracasso em uma Prova deve ser punido com a morte. Tentamos convencer os Príncipes a deixar que você fizesse a Prova outra vez, mas eles se recusaram a ouvir nosso pedido. — Então, por que ainda não vieram me buscar? — perguntei. — Ainda estão discutindo. Larten está chamando velhos vampiros e perguntando se ouviram falar de algum caso igual no passado. Ele está lutando por você. Se houver a menor saída legal, ele vai encontrar. — Mas não há, certo? — perguntei, desanimado. Kurda balançou a cabeça. — Se Paz Celestial não sabe de nenhum meio de salvá-lo, tenho certeza de que ninguém mais sabe. Se ele não pode ajudar você, duvido que alguém mais possa. — Então acabou. É o fim. — Não necessariamente — disse Kurda, desviando os olhos, estranhamente embaraçado. — Não compreendo — disse eu, intrigado. — Você acabou de dizer... — O veredicto é inevitável. Isso não significa que você tem de ficar e enfrentar a sentença. — Kurda! — exclamei, escandalizado com o que ouvia. — Você pode ir embora — disse. — Conheço um modo de passar pelos guardas, uma brecha sobre a qual não falei para ninguém. Podemos atravessar a montanha por túneis quase nunca usados. O nascer do dia não demora. Quando você estiver fora da montanha, pode fugir livremente até o pôr-do-sol. Mesmo então, não acredito que alguém vá atrás de você. Como você não representa uma ameaça, eles o deixarão ir. Poderão matá-lo se o encontrarem mais tarde, mas por enquanto...
— Não posso fazer isso — interrompi. — O Sr. Crepsley se envergonharia de mim. Sou seu assistente. Ele será responsável. — Não — disse Kurda. — Ele não é responsável por você desde que você começou as Provas. Podem falar mal dele pelas costas, mas ninguém questiona seu bom nome abertamente. — Eu não posso — disse com menos convicção dessa vez. — E você? Se descobrirem que me ajudou a escapar... — Não descobrirão — disse Kurda. — Não deixarei pistas. Desde que você não seja apanhado, estarei bem. — E se eu for apanhado e eles me obrigarem a dizer a verdade? Kurda deu de ombros. — Estou disposto a arriscar. Hesitei, inseguro. A minha parte vampiro queria ficar e enfrentar o que viria. A parte humana dizia para não ser tolo, para agarrar a oportunidade e fugir. — Você é jovem, Darren — disse Kurda. — É loucura jogar fora sua vida. Vá embora da Montanha do Vampiro. Recomece a vida. Você tem experiência suficiente para sobreviver sozinho. Não precisa mais que Larten tome conta de você. Muitos vampiros vivem sozinhos, sem nada a ver conosco. Seja dono de você mesmo. Não deixe que o orgulho tolo dos outros distorça sua lucidez. — O que você acha? — perguntei para Harkat. — Eu acho... Kurda está certo — disse ele. — Não adianta... deixar que eles... o matem. Vá. Viva. Seja livre. Eu irei... com você... para ajudar. Mais tarde talvez você... possa me ajudar. — Harkat não pode ir — disse Kurda. — Ele é muito grande para caber nos túneis que pretendo usar. Vocês podem combinar de se encontrar em algum lugar quando o Conselho terminar e ele puder sair sem levantar suspeitas. — O Circo... dos Horrores — disse Harkat. — Você vai poder... encontrar? Fiz que sim com a cabeça. Eu conhecera muita gente do mundo todo durante o tempo em que estive com o Circo, pessoas que ajudavam o Sr. Altão e seus companheiros quando eles iam à cidade. Poderiam me informar sobre o paradeiro do circo no momento. — Você já se decidiu? — perguntou Kurda. — Não temos tempo para discutir o assunto. Venha comigo agora ou fique e enfrente a morte. Engoli em seco, olhei para meus pés, resolvi repentinamente, então olhei nos olhos de Kurda e disse: — Eu vou. — Não estava orgulhoso de mim mesmo, mas a vergonha era muito mais doce do que as estacas aguçadas do Salão da Morte.
CAPÍTULO DEZOITO
Seguimos rapidamente pelos corredores desertos até os quartos de depósito. Kurda me levou para a parte de trás de um deles, onde tiramos do lugar alguns sacos, revelando uma pequena abertura na parede. Kurda começou a entrar na abertura, mas eu o puxei para fora e perguntei se podia descansar por alguns
minutos — eu sentia muita dor. — Vai poder continuar? — perguntou. — Vou, mas só se pararmos de vez em quando. Sei que o tempo é precioso, mas estou exausto demais para andar sem descanso. Quando senti que estava pronto, entrei na abertura atrás de Kurda e me encontrei num túnel apertado e muito inclinado. Sugeri que escorregássemos até o fim, mas Kurda vetou a idéia. — Não vamos até o fim — disse. — Há uma plataforma no meio desta abertura que leva a outro túnel. Depois de alguns minutos, chegamos à plataforma, saímos da abertura e logo estávamos em terreno plano. — Como você encontrou este lugar? — perguntei. — Segui um morcego — disse ele e piscou um olho. Chegamos a um cruzamento. Kurda parou e tirou um mapa do bolso. Estudou o mapa silenciosamente por alguns segundos e viramos para a esquerda. — Tem certeza de que sabe para onde está indo? — Não completamente. — Riu. — Por isso eu trouxe meus mapas. Há décadas não venho a esses túneis. Tentei memorizar o caminho que fazíamos, para o caso de alguma coisa acontecer a Kurda e eu precisar voltar sozinho, mas era impossível. Fomos tantas vezes de um lado para outro que só um gênio teria guardado o caminho. Passamos por uns dois pequenos regatos. Kurda disse que eles se juntavam a outros mais adiante para formar um regato mais largo que, no passado, fora usado para sepultar os mortos. — Em último caso podemos nadar para um lugar seguro — sugeri, brincando. — Por que não sacudir os braços e voar? — respondeu Kurda. Alguns dos túneis eram completamente escuros, mas Kurda não acendeu nenhuma vela — ele disse que os pingos de cera marcariam nossa passagem, tornando mais fácil para os vampiros nos perseguirem. Quanto mais nos adiantávamos, mais difícil ficava para mim manter o passo, e parávamos várias vezes para que eu pudesse tomar fôlego e reunir a energia para continuar. — Eu o carregaria se tivesse espaço — disse Kurda em uma das vezes que paramos, enxugando com sua camisa o sangue e o suor do meu pescoço e dos braços. — Logo entraremos em túneis mais largos. Posso então dar uma ajuda se você quiser. — Seria ótimo — balbuciei. — E quando sairmos dos túneis? — perguntou. — Quer que eu vá com você por algum tempo, para ter certeza de que está bem? Balancei a cabeça.
— Você seria descoberto pelos Generais se fizesse isso. Estarei bem quando sair daqui. O ar fresco vai me animar. Encontrarei algum lugar para dormir, descansar por algumas horas e então... Parei. Ouvi o barulho de pedras soltas no chão vindo de um túnel atrás de nós. Kurda ouviu também. Ele foi até a boca do túnel e agachou perto da abertura, escutando atentamente. Depois de alguns segundos, correu para meu lado. — Vem alguém! — disse em voz baixa, me fazendo levantar. — Depressa! precisamos sair daqui! — Não! — suspirei, sentando-me outra vez. — Darren! — disse ele. — Você não pode ficar. Temos de correr antes que... — Eu não posso. Arrastar os pés já foi difícil. De modo algum serei capaz de correr para fugir de alguém. Se formos encontrados, esse é o fim. Vá se esconder. Direi que estou sozinho. — Sabe que não o deixarei — disse ele, agachando ao meu lado. Esperamos em silêncio, ouvindo os passos cada vez mais perto. Pelo som, era só uma pessoa. Esperei que não fosse o Sr. Crepsley — eu temia a idéia de encará-lo depois do que tinha feito. O vampiro que nos perseguia chegou à entrada do túnel, da sombra onde estava olhou para nós por um momento, depois se abaixou e correu para a frente. Era Torvelinho! — Vocês estão encrencados — disse ele. — De quem foi a idéia idiota de fugir? — Minha! — Kurda e eu dissemos ao mesmo tempo. Torvelinho balançou a cabeça exasperado. — Um merece o outro — disse, irritado. — Vamos... a verdade. — A idéia foi minha — respondeu Kurda, apertando meu braço para silenciar meus protestos. — Eu convenci Darren a vir. A culpa é minha. — Você é um idiota — censurou Torvelinho. — Isso o destruirá se os outros souberem. Terá de esquecer a promoção a Príncipe, provavelmente será levado ao Salão da Morte para sofrer a mesma pena que Darren. — Só se você me delatar — disse Kurda em voz baixa. — Acha que não vou fazer isso? — desafiou-o Torvelinho. — Se sua intenção fosse nos punir, você não teria vindo sozinho. Torvelinho olhou para o vampiro mais velho e praguejou: — Tem razão — gemeu. — Não quero ver você morto. Se vocês dois voltarem comigo, deixo seu nome fora disso. Na verdade, ninguém precisa saber o que aconteceu. No momento, só Harkat e eu sabemos. Podemos levar Darren de volta, antes que terminem o julgamento. — Por quê? — perguntou Kurda. — Para que ele seja levado ao Salão da
Morte e empalado? — Se for esse o julgamento dos Príncipes... sim — disse Torvelinho. Kurda balançou a cabeça. — É disso que estamos fugindo. Não deixarei que ele volte para ser morto. É errado tirar a vida de um jovem de modo tão cruel. — Certo ou errado — disse Torvelinho secamente —, o julgamento dos Príncipes é final! Kurda entrecerrou os olhos. — Você concorda comigo — murmurou. — Acha que a vida dele deve ser poupada. Torvelinho assentiu com relutância. — Mas é a minha opinião. Não pretendo ignorar a decisão dos Príncipes por causa disso. — Por que não? — perguntou Kurda. — Temos de obedecer-lhes mesmo quando estão errados, mesmo quando tomam uma decisão injusta? — É assim que somos — rosnou Torvelinho. — Isso pode ser mudado — insistiu Kurda. — Os Príncipes são inflexíveis demais. Ignoram o fato de que o mundo anda para a frente. Dentro de algumas semanas, eu serei Príncipe. Posso mudar as coisas. Deixe Darren ir que eu anulo a ordem de morte contra ele. Limparei seu nome e permitirei que volte e complete suas Provas. Feche os olhos só desta vez e juro que não vai se arrepender. As palavras de Kurda perturbaram Torvelinho. — É errado conspirar contra os Príncipes — murmurou. — Ninguém vai saber — prometeu Kurda. — Pensarão que Darren fugiu sozinho. Nunca seremos investigados. — Isso vai contra tudo em que acredito — suspirou Torvelinho. — As vezes temos de abandonar nossas crenças em favor de crenças novas — disse Kurda. Enquanto Torvelinho se torturava em busca da decisão, eu falei. — Eu volto se você quiser. Tenho medo de morrer, por isso deixei que Kurda me convencesse a fugir. Mas, se você disser que devo voltar, eu volto. — Não quero que você morra — exclamou Torvelinho. — Mas fugir nunca resolveu nada. — Bobagem! — disse Kurda com desprezo. — Os vampiros estariam muito melhor se tivessem o bom senso de fugir de uma luta quando as probabilidades estão contra nós. Se levarmos Darren de volta, nós o levaremos para morrer. Qual o sentido disso? Torvelinho pensou em silêncio, depois balançou a cabeça assentindo relutantemente. — Não gosto disso, mas dos males o menor. Não vou delatá-los. Mas —
acrescentou — só se estiver disposto a dizer a verdade aos outros quando for Príncipe. Seremos francos, limparemos o nome de Darren se for possível, aceitaremos a punição se não for. Certo? — Para mim tudo bem — disse Kurda. — Dá sua palavra? Kurda assentiu. — Tem minha palavra. Com um longo suspiro Torvelinho olhou para mim na escuridão do túnel. — Afinal, como você está? — perguntou ele. — Não tão mal — menti. — Você parece prestes a desmoronar — observou ele ceticamente. — Vou conseguir — prometi. Então perguntei como tinha nos encontrado. — Fui procurar Kurda — explicou. — Eu esperava conversar com ele e encontrar um meio de sair dessa encrenca. Seu armário de mapas estava aberto. Na ocasião não pensei nada, mas quando cheguei à sua cela e encontrei Harkat sozinho uni uma coisa com a outra. — Como nos seguiu pelos túneis? — quis saber Kurda. Torvelinho apontou para uma gota de sangue no chão, debaixo de mim. — Ele veio perdendo sangue o caminho todo. Deixou uma trilha que até um tolo podia seguir. Kurda fechou os olhos e fez uma careta. — Pelas entranhas de Charna! Espionagem nunca foi o meu forte. — Tem razão! — rosnou Torvelinho. — Se vamos fazer isso, acho melhor nos mexermos rapidamente. Assim que descobrirem que Darren desapareceu, uma equipe de perseguidores encontrará esta pista em poucos minutos e logo o apanhará. Nossa única chance é levar Darren para fora daqui e esperar que o sol os impeça de continuar a busca. — Exatamente o que eu penso — disse Kurda e começou a andar. Eu o segui do melhor modo possível com Torvelinho resfolegando atrás de mim. No fim do túnel, Kurda virou para a esquerda. Fui atrás dele, mas Torvelinho segurou meu braço e me fez parar, depois examinou o túnel à sua direita. Quando Kurda percebeu que não o seguíamos, parou e olhou para trás. — Por que estão demorando? — perguntou ele. — Já estive antes nesta parte da montanha — disse Torvelinho. — Durante minhas Provas de Iniciação. Eu tinha de encontrar uma jóia escondida. — E daí? — Conheço o caminho — disse Torvelinho. — Sei onde fica a saída mais próxima. — Eu também sei — disse Kurda —, e é por aqui. Torvelinho balançou a cabeça. — Podemos sair por aí — disse ele —, mas é mais rápido se formos por este
outro túnel. — Não! — disse Kurda, irritado. — A idéia foi minha. Eu estou no comando. Não temos tempo para ficar andando a esmo. Se você estiver errado, pagaremos muito caro. Meu caminho é o certo. — O meu também — insistiu Torvelinho e, antes que Kurda pudesse dizer mais, entrou no túnel da direita, puxando-me atrás dele. Kurda praguejou em voz alta e nos chamou de volta. Torvelinho o ignorou e ele não teve outra escolha senão correr atrás de nós. — Isso é uma idiotice — resfolegou Kurda quando nos alcançou. Tentou passar por mim para tratar do caso cara a cara com Torvelinho, mas o túnel era muito estreito. — Devemos ficar no caminho que está nos mapas. Conheço mais esses túneis do que você. Por onde estamos indo não há nada a não ser becos sem saída. — Não — discordou Torvelinho. — Podemos ganhar mais de quarenta minutos indo por aqui. — Mas e se... — começou Kurda. — Pare de discutir — interrompeu Torvelinho. — Quanto mais falamos, mais tempo perdemos. Kurda resmungou alguma coisa que não entendi, mas não disse mais nada. Porém percebi que ele não estava satisfeito. Passamos por um pequeno túnel debaixo de um regato barulhento. A água parecia tão perto que tive medo que atravessasse as paredes do túnel e nos afogasse. Eu não ouvia nada, por causa do barulho do regato, e estava tão escuro que também não enxergava nada. Era como se eu estivesse sozinho. Com satisfação vi a luz no fim e corri para ela o mais depressa possível. Torvelinho e Kurda também andavam depressa, portanto deviam também estar ansiosos para sair do túnel. Enquanto tirávamos a poeira do túnel da nossa roupa, Kurda passou na frente. Estávamos em uma pequena caverna. Três túneis saíam dela. Kurda foi para o túnel da esquerda. — Vamos por este — disse ele, retomando o comando. Torvelinho sorriu. — Exatamente o que eu pretendia fazer. — Então, ande depressa — disse Kurda, irritado. — O que há com você? — perguntou Torvelinho. — Está agindo de modo estranho. — Não, não estou! — disse Kurda, zangado, mas depois sorriu amarelo. — Desculpe. Foi aquele túnel debaixo do regato. Eu sabia que tínhamos de passar por ele. Por isso queria ir pelo outro, para evitá-lo. — Com medo de que a água atravessasse as paredes? — riu Torvelinho. — Sim — respondeu Kurda friamente. — Eu também fiquei com medo — disse eu. — Não gostaria de ter de
passar muitas vezes por um lugar como aquele. — Covardes — zombou Torvelinho. Virou-se para Kurda, sorrindo, então parou e inclinou a cabeça para o lado. — O que foi? — perguntei. — Pensei ter ouvido alguma coisa — disse ele. — O quê? — Parecia alguém tossindo. Veio do túnel da direita. — Uma equipe de busca? — perguntei, preocupado. Torvelinho franziu a testa. — Duvido... se fosse eles viriam lá de trás. — O que está acontecendo? — perguntou Kurda, impaciente. — Torvelinho acha que ouviu alguma coisa — disse eu enquanto o General examinava cautelosamente o túnel. — É só o som do regato — disse Kurda. — Não temos tempo para... Mas era tarde demais. Torvelinho já tinha entrado no túnel. Kurda correu para onde eu estava e olhou para o túnel escuro onde Torvelinho tinha entrado. — Acho melhor irmos sozinhos — resmungou Kurda. — Tudo que ele está fazendo é nos atrasar. — E se tiver alguém lá? — perguntei. — Não há ninguém aqui embaixo a não ser nós três — disse Kurda. — O melhor é continuarmos sem aquele tolo e deixarmos que ele nos alcance. — Não — disse eu. — Prefiro esperar. Kurda revirou os olhos para o alto mas ficou ao meu lado. Torvelinho voltou em poucos minutos, mas parecia ter envelhecido anos. Suas pernas tremiam e ele sentou pesadamente assim que saiu do túnel. — O que aconteceu? — perguntei. Ele balançou a cabeça sem dizer nada. — Você descobriu alguma coisa? — perguntou Kurda. — Há uma... — pigarreou Torvelinho. — Vão ver vocês mesmos — murmurou. — Mas tenham cuidado. Não deixe que eles os vejam. — Quem? — perguntei, mas ele não respondeu. Intrigado, entrei no túnel com Kurda atrás de mim. Era um túnel curto e, quando chegamos quase no fim, vi a luz de uma lanterna numa caverna logo adiante. Deitei de bruços e me arrastei para a frente para examinar toda a caverna. O que vi gelou meu sangue. Vinte ou trinta pessoas descansavam, despreocupadas. Algumas sentadas, outras deitadas em esteiras, outras ainda jogando cartas. Tinham a aparência geral de vampiros — traços pesados, duros, cortes de cabelo primitivos. Mas eu podia ver o brilho da sua pele arroxeada e dos cabelos e olhos avermelhados, e as identifiquei imediatamente. Nossos inimigos de sangue — os vampixiitas!
CAPÍTULO DEZENOVE
Kurda e eu recuamos devagar e voltamos para Torvelinho na pequena caverna. Sentamos ao lado dele e ninguém disse nada por algum tempo. Finalmente Torvelinho falou com voz surda e desanimada: — Eram trinta e quatro.
— Havia trinta e cinco quando olhei — disse Kurda. — São duas cavernas unidas do mesmo tamanho — observou Torvelinho. — Pode haver mais deles. — O que estão fazendo aqui? — perguntei em voz baixa. Os vampiros olharam para mim. — Por que acha que estão aqui? — perguntou Torvelinho. Passei a língua nos lábios, nervosamente. — Para nos atacar? — sugeri. — Isso mesmo — disse Torvelinho, sombrio. — Não necessariamente — disse Kurda. — Eles podem ter vindo para discutir um tratado. — Você acha? — ironizou Torvelinho. — Não — suspirou Kurda. — Na verdade não. — Precisamos avisar os vampiros — disse eu. Kurda assentiu, balançando a cabeça. — Mas, e a sua fuga? Um de nós pode levá-lo para... — Esqueça — interrompi. — Não vou fugir de uma coisa como esta. — Então vamos — disse Kurda, levantando-se e seguindo para o túnel debaixo do regato. — Quanto antes avisarmos os outros, mais depressa podemos voltar e... — Ele se inclinava para entrar no túnel, mas parou de repente e virouse para o lado. Fazendo sinal para que ficássemos onde estávamos, espiou cautelosamente para dentro do túnel, depois voltou correndo para nós. — Vem vindo alguém! — sussurrou. — Vampiros ou vampixiitas? — perguntou Torvelinho. — Está muito escuro para dizer. Acha que podemos esperar para descobrir? — Não — disse Torvelinho. — Temos de sair daqui. — Examinou as entradas dos três túneis. — Podemos voltar para os Salões pelo túnel do meio, mas vai demorar muito. Se eles encontrarem o rastro de sangue de Darren e vierem atrás de nós... — Iremos pelo túnel da esquerda — disse Kurda. — Esse não nos leva para cima — observou Torvelinho. — Segundo os meus mapas, leva — discordou Kurda. — Há um pequeno túnel que sai dele, difícil de ser notado. Só o encontrei por acaso. — Tem certeza? — perguntou Torvelinho. — Os mapas não mentem — disse Kurda. — Então, vamos — resolveu Torvelinho e seguimos em frente. Esqueci a dor quando começamos a caminhar rapidamente pelos túneis. Não havia tempo para me preocupar comigo. Todo o clã dos vampiros estava ameaçado e eu só pensava em voltar ao Salão dos Príncipes para avisá-los. Quando chegamos ao pequeno túnel de Kurda, encontramos um desmoronamento. Olhamos para a pilha de pedras, desanimados, então Kurda
praguejou e chutou furioso o bloqueio. — Desculpem — suspirou. — A culpa não é sua — disse Torvelinho. — Você não podia saber. — Para onde vamos agora? — perguntei. — De volta para a caverna — sugeriu Torvelinho. Kurda balançou a cabeça. — Se formos descobertos, eles virão por lá. Há outro túnel que podemos usar, que também nos levará de volta e tem conexão com túneis que levam aos Salões. — Então vamos — exclamou Torvelinho, e seguimos no escuro atrás de Kurda. Falávamos o mínimo possível, parando de vez em quando para ouvir o som dos perseguidores. Não ouvíamos nada, mas isso não queria dizer que não estávamos sendo caçados — os vampixiitas podem se mover tão silenciosamente quanto os vampiros quando querem. Depois de algum tempo, Kurda parou e aproximou a cabeça das nossas. — Estamos bem atrás da caverna dos vampixiitas — murmurou. — Procurem se mover devagar e cautelosamente. Se nos descobrirem, lutem por suas vidas, depois corram como demônios! — Espere — disse eu. — Não tenho arma. Vou precisar de uma se formos atacados. — Tenho só uma faca — disse Kurda. — Torvelinho? — Eu tenho duas, mas vou precisar das duas. — Então com que vou lutar? — perguntei, furioso. — Com mau hálito? Torvelinho sorriu tristemente. — Não leve a mal, Darren, mas se Kurda e eu não pudermos detê-los, acho que não fará muita diferença. Se tivermos problemas, pegue os mapas de Kurda e corra para os Salões enquanto ficamos e lutamos. — Não posso fazer isso — murmurei. — Vai fazer o que estou mandando — rosnou Torvelinho sem admitir discussão. Seguimos em frente outra vez, mais silenciosos do que nunca. Os sons da caverna chegavam até nós — vampixiitas rindo e conversando calmamente. Se eu estivesse sozinho, podia ter entrado em pânico e parado, mas Kurda e Torvelinho eram feitos de material mais resistente e a presença serena deles ajudava a me controlar. Nossa sorte durou até entrarmos em um túnel longo e dar de frente com um vampixiita solitário andando em nossa direção, arrumando o cinto. Ele ergueu os olhos casualmente quando paramos, viu num instante que não éramos vampixiitas e abriu a boca para gritar. Torvelinho avançou com as facas cintilando. Enfiou uma profundamente na
barriga do vampixiita e a outra no pescoço, antes que ele pudesse emitir um som e alertar seus companheiros. Foi por pouco e nós sorrimos com alívio quando Torvelinho largou o corpo sem vida no chão. Mas, quando estávamos prontos para seguir nosso caminho, outro vampixiita apareceu na extremidade do túnel, nos viu e gritou por socorro. Torvelinho rosnou desanimado. — De nada adiantou nosso cuidado — resmungou, quando os vampixiitas começaram a sair da caverna. Ele firmou os pés no meio do túnel, verificou as paredes dos dois lados e disse, virando-se para trás: — Vocês dois vão embora daqui. Eu os deterei o maior tempo possível. — Não vou deixar que você os enfrente sozinho — disse Kurda. — Deixará se for inteligente — rosnou Torvelinho. — Este túnel é estreito. Uma pessoa pode detê-los tão bem quanto duas. Leve Darren e corram para os Salões o mais depressa possível. — Mas... — Kurda começou a dizer. — Você está desperdiçando nossas chances! — rugiu Torvelinho, brandindo a faca para o vampixiita mais próximo, obrigando-o a recuar. — Tire aquele vampixiita morto detrás de mim para que eu não tropece nele, e dê o fora! Kurda assentiu tristemente. — Boa sorte, Torvelinho — disse ele, sombrio. — Boa sorte — rosnou Torvelinho, desviando outro ataque. Arrastamos o corpo do vampixiita morto para fora do caminho de Torvelinho e voltamos para a entrada do túnel. Kurda olhou para Torvelinho e o viu golpear o vampixiita com as duas facas. Ele os estava mantendo a distância, mas era só uma questão de minutos para que eles o atacassem em grupo, tirassem as armas das suas mãos e o matassem. Kurda virou-se e saiu na frente, depois parou e tirou um mapa do bolso. — Você lembra a antiga câmara funerária que visitamos? — perguntou. — O Salão da Viagem Final? — Sim — disse eu. — Acha que, quando chegarmos a ela, pode encontrar o caminho para os Salões? — Provavelmente. Ele guardou o mapa e apontou para o túnel em que estávamos. — Vá até o fim deste túnel — disse. — Vire à direita, outra vez à direita, depois quatro vezes à esquerda. Isso o levará à câmara. Espere alguns minutos para o caso de um de nós aparecer. Aproveite para tomar fôlego. Tente arrumar suas ataduras para parar de deixar um rastro de sangue. Então vá. — O que você vai fazer? — perguntei. — Vou ajudar Torvelinho. — Mas ele falou...
— Eu sei o que ele falou! — disse Kurda, irritado. — Não me importo. Dois de nós trabalhando juntos têm muito mais chance de deter os vampixiitas. — Kurda segurou no meu ombro e apertou com força. — Boa sorte, Darren Shan. — Boa sorte — respondi sombriamente. — Não fique para ver — disse ele. — Vá embora imediatamente. — Tudo bem — concordei e fui embora. Cheguei até a segunda virada para a direita e então parei. Sabia que devia obedecer a Kurda e correr para os Salões, mas não podia suportar a idéia de deixar meus amigos para trás. Eles estavam naquela situação por minha causa. Seria injusto deixar que enfrentassem a morte enquanto eu fugia livre. Alguém tinha de avisar os vampiros, mas eu não achava que seria eu. Se eu dissesse para Kurda que tinha esquecido o caminho, ele teria de ir, deixando-me para lutar ao lado de Torvelinho. Voltei para o túnel onde eles lutavam. Quando cheguei, vi que Torvelinho continuava a deter os vampixiitas sozinho. Kurda não conseguia se mover. Os dois discutiam. — Eu disse para você ir embora! — rugiu Torvelinho. — E eu estou dizendo que não vou! — gritou Kurda. — E Darren? — Eu ensinei a ele o caminho para voltar. — Você é um tolo, Kurda — gritou Torvelinho. — Eu sei — riu Kurda. — Agora, vai me deixar tratar de uma parte disto ou tenho de lutar contra você também? Torvelinho atacou um vampixiita que tinha uma marca redonda vermelhovivo no lado esquerdo do rosto, depois recuou alguns passos. — Tudo bem — rosnou. — Da próxima vez que houver uma parada na luta, venha para a minha direita. — Certo — disse Kurda e segurou a faca com força ao lado do corpo, enquanto esperava. Adiantei-me em silêncio. Não queria gritar e distrair os dois. Estava quase ao lado deles quando o vampixiita recuou um metro ou dois e Torvelinho gritou: — Agora! Torvelinho afastou-se para a esquerda e Kurda se adiantou, ocupando o espaço ao lado dele. Percebi que era tarde demais para tomar o lugar de Kurda, por isso comecei a voltar relutantemente. Nesse momento, aconteceu uma coisa louca que me fez parar, pregado ao chão, atônito e paralisado. Quando Kurda se pôs ao lado de Torvelinho, ele ergueu a faca bem alto e abaixou num arco violento. A arma encravou na barriga do alvo escolhido, cortando a carne, um ferimento sem dúvida mortal. Teria sido um belo golpe se tivesse sido dirigido a um dos vampixiitas. Mas Kurda não tinha enfiado a faca em nenhum dos invasores de pele arroxeada, ele a enfiou em Torvelinho!
CAPÍTULO VINTE
Eu não podia entender o que estava acontecendo. Torvelinho também não. Ele encostou na parede, olhando para a faca espetada no seu corpo. Deixou cair as duas facas, segurou o cabo da arma de Kurda, tentando arrancá-la, mas perdeu as forças e deslizou para o chão.
Embora Torvelinho e eu estivéssemos chocados, os vampixiitas não pareciam nem um pouco surpresos. Relaxaram, e os que estavam atrás voltaram para a caverna. O vampixiita com o sinal vermelho no rosto ficou ao lado de Kurda, olhando para o vampiro agonizante. — Por um minuto pensei que você fosse ajudá-lo — disse o vampixiita. — Não — respondeu Kurda. Sua voz era tenebrosa. — Eu o teria deixado inconsciente e o mandaria para algum lugar se fosse possível, mas outros nos encontrariam depois de receber seus sinais mentais. Tem um menino ali adiante, um meio-vampiro. Ele está ferido, portanto não será difícil alcançá-lo. Eu o quero vivo. Não serão capazes de localizá-lo. — Está falando no menino que está atrás de você? — perguntou o vampixiita. Kurda se virou rapidamente. — Darren! — exclamou, atônito. — Há quanto tempo está aqui? Quanto você... Torvelinho gemeu. Eu entrei em ação, adiantei-me, ignorando Kurda e o vampixiita, e me abaixei ao lado do meu amigo agonizante. Seus olhos estavam completamente abertos mas ele não parecia ver coisa alguma. — Torvelinho? — perguntei, segurando a mão dele, ensangüentada por ter tentado tirar a faca. O General Vampiro tossiu e estremeceu. Eu sentia a vida aos poucos fugindo dele. — Eu estou com você, Torvelinho — murmurei, chorando. — Você não está sozinho. Eu... — Des-des-des — murmurou. — O quê? — chorei. — Não se apresse. Você tem muito tempo. — Era uma mentira descarada. — Des-culpe por meu ronco... não dei-deixar você... dormir — disse, respirando com dificuldade. Eu não sabia se estava falando comigo ou com outra pessoa e, antes que tivesse tempo de perguntar, seu rosto ficou imóvel e seu espírito passou para o Paraíso. Encostei a testa na de Torvelinho e lamentei em voz alta, apertando seu corpo morto contra o meu. Os vampixiitas podiam ter me pegado facilmente então, mas estavam embaraçados e ninguém se adiantou para me capturar. Apenas ficaram ali, esperando que eu acabasse de chorar. Quando finalmente levantei a cabeça, ninguém teve coragem de me olhar nos olhos. Olharam para o chão, Kurda mais depressa do que todos. — Você o matou! — esbravejei. Kurda engoliu em seco. — Eu tive de matá-lo — disse ele com voz rouca. — Não havia tempo para deixar que ele tivesse uma morte nobre, você podia ter fugido se eu o deixasse para os vampixiitas. — Você sabia que eles estavam aqui o tempo todo — murmurei.
Ele assentiu. — Por isso eu não queria passar por debaixo do regato — disse. — Temia que isto acontecesse. Tudo estaria bem se tivéssemos ido por onde eu queria. — Você está mancomunado com eles! — gritei. — Você é um traidor! — Você não compreende o que está acontecendo — suspirou. — Isto parece terrível, mas não é o que você pensa. Estou tentando salvar a nossa raça, não destruí-la. Há muita coisa que você não sabe, coisas que os vampiros sabem. É lamentável a morte de Torvelinho, mas quando eu explicar... — Para o diabo com suas explicações! — gritei. — Você é um traidor e um assassino, um miserável de primeira classe! — Eu salvei a sua vida — lembrou Kurda, suavemente. — A custa da vida de Torvelinho — solucei. — Por que fez isso? Ele era seu amigo. Ele... — Balancei a cabeça e, tomando forças, disse, antes que ele pudesse continuar: — Não importa. Não quero ouvir. — Levantando-me, peguei uma das facas de Torvelinho e a brandi na minha frente. Os vampixiitas ergueram suas armas imediatamente e se aproximaram de mim. — Não! — gritou Kurda, ficando na frente deles. — Eu disse que o quero vivo! — Ele tem uma faca — o vampixiita com o sinal vermelho rosnou. — Quer que o deixemos cortar nossos dedos antes de tomarmos a arma dele? — Não se preocupe, Glalda — disse Kurda. — Tudo está sob controle. — Deixando cair a faca, ele abriu a mão e caminhou lentamente para mim. — Pare! — gritei. — Não chegue mais perto! — Estou desarmado — disse ele. — Não me importa. Eu o matarei assim mesmo. Você merece. — Talvez mereça — concordou Kurda. — Mas não acho que você mataria um homem desarmado, não importa o que ele tenha feito. Se estou errado, pagarei do modo mais severo possível esse meu erro de julgamento. Mas não creio que esteja errado. Ergui a faca para atacá-lo, depois abaixei a mão. Kurda tinha razão. Embora ele tivesse matado Torvelinho a sangue frio, eu não tinha coragem de fazer o mesmo. — Eu odeio você! — exclamei, atirando a faca nele. Quando ele se abaixou, dei meia-volta, entrei no túnel, virei à direita e corri. Os vampixiitas correram atrás de mim e ouvi Kurda gritando para não me fazerem mal. Ele disse que eu estava ferido e não podia ir muito longe. Um deles rugiu que ia cortar caminho com alguns outros para bloquear os túneis que levavam aos Salões. Outro queria saber se eu tinha mais alguma arma. Então por um momento saí do alcance dos ouvidos dos inimigos e do traidor e corri no escuro, cegamente, chorando por meu amigo sacrificado — o pobre
morto Torvelinho.
CAPÍTULO VINTE E UM
Os vampixiitas não se apressaram na perseguição. Sabiam que eu não podia escapar. Eu estava ferido e cansado, portanto tudo que tinham a fazer era permanecer perto e me capturar. Eu corria e ziguezagueava pelos túneis, o rugido do regato da montanha aumentando, e percebi que meus pés me levavam para a
antiga câmara da morte. Pensei em mudar de direção, em enganar Kurda, mas eu me perderia se fizesse isso e jamais voltaria para os Salões. Minha única chance era seguir pelos caminhos que conhecia e esperar que pudesse bloquear um deles, fazendo o teto desabar depois da minha passagem. Irrompi ao Salão da Viagem Final e parei, prendendo a respiração. Eu podia ouvir os sons dos vampixiitas atrás de mim. Eles estavam perto demais. Eu precisava descansar mas não tinha tempo. Continuei a correr, procurando a saída. A princípio a caverna me pareceu desconhecida e imaginei se eu teria tomado o caminho errado. Então percebi que estava simplesmente no lado do regato oposto àquele em que estivera antes. Avançando para a margem, olhei para o outro lado e vi o túnel pelo qual eu teria de sair. Vi também uma pessoa de pele muito pálida, sentada numa pedra, perto da parede: um Guardião do Sangue! — Socorro! — gritei, assustando o homem magro, que se levantou de um salto e olhou para mim. — Vampixiitas! — disse eu com voz rouca. — Eles invadiram a montanha! Você tem de avisar os Generais! O Guardião entrecerrou os olhos, balançou a cabeça e disse alguma coisa numa língua que eu não conhecia. Abri a boca para repetir o aviso, mas, antes que tivesse tempo de falar, ele desceu da pedra e entrou na caverna, desaparecendo rapidamente nas sombras do túnel. Praguejei furioso — os Guardiões do Sangue talvez estivessem também mancomunados com os vampixiitas! —, então olhei para baixo, para a água escura aos meus pés, e estremeci. O regato não era especialmente largo, e eu podia ter saltado para o outro lado com facilidade. Mas eu estava exausto, cheio de dores e desesperado. Tudo que queria era deitar e deixar que os vampixiitas me apanhassem. Continuar parecia sem esperança. Certamente seria apanhado. Seria muito mais fácil me entregar agora e... — Não! — gritei. Eles mataram Torvelinho e vão matar o resto dos vampiros, incluindo o Sr. Crepsley, se eu não puder chegar aos Salões antes e conseguir detê-los. Eu tinha de continuar. Voltei alguns passos, preparando-me para saltar na água. Olhando para trás, vi o primeiro vampixiita entrar na caverna. Recuei mais alguns passos, corri para a margem e saltei. Imediatamente tive certeza de que não ia conseguir. Não havia força nem agilidade no meu salto. Agitei os braços, esperando segurar na margem, mas caí cerca de um metro distante da salvação e mergulhei na água gelada do regato. A corrente me envolveu imediatamente. Quando voltei à superfície, a entrada do túnel que levava para fora da caverna e de volta aos túneis estava quase em cima de mim. Bati os braços, apavorado, e segurei numa pedra que se projetava da margem. Usando o que restava de minhas forças, arrastei-me para uma área segura. Desafiando a força da água, boiei para a pedra e agarrei
algum mato com raízes firmes. Era uma posição perigosa, mas eu teria conseguido me livrar dela — se não fosse pela dezena de vampixiitas que tinham atravessado o regato e estavam no alto da margem agora, braços cruzados, esperando pacientemente. Um deles acendeu um cigarro e jogou o fósforo na direção do meu rosto. Errou a pontaria, o fósforo caiu na água, apagou com um chiado e desapareceu com uma velocidade assustadora no túnel negro da montanha. Quando subi na pedra, gelado e encharcado, tentando pensar no que ia fazer, Kurda abriu caminho entre os vampixiitas e ajoelhou-se na margem. Estendeu a mão para me ajudar, mas não consegui alcançar. — Alguém segure meus tornozelos e me abaixe — disse ele. — Por quê? — perguntou o vampixiita chamado Glalda. — Deixe que ele se afogue. Será mais fácil. — Não! — rugiu Kurda. — A morte dele não serve para nada. Ele é jovem e aberto a novas idéias. Precisamos de vampiros como ele se vamos... — Tudo bem. Tudo bem — suspirou Glalda e fez sinal para que dois homens segurassem as pernas de Kurda e o baixassem na margem, para me salvar. Olhei para as mãos de Kurda, que se estendiam para as minhas, depois para seu rosto, a poucos centímetros de distância. — Você matou Torvelinho — rosnei. — Falaremos disso mais tarde — disse ele, segurando meus pulsos. Puxei as mãos, cuspi nos dedos dele e quase caí outra vez na água. Eu não podia suportar a idéia de Kurda me tocar. — Por que fez isso? — gemi. — É muito complicado. Venha comigo que eu explico mais tarde. Quando você estiver a salvo, seco e alimentado, vamos nos sentar e... — disse Kurda, balançando a cabeça. — Não toque em mim! — gritei quando ele estendeu as mãos outra vez. — Não seja idiota — disse. — Você não está em posição de discutir. Segure a minha mão e me deixe salvá-lo. Não lhe faremos nenhum mal, eu prometo. — Você promete! — zombei. — Sua palavra não significa coisa alguma. Você é um mentiroso e um traidor. Eu não acreditaria nem que você dissesse que o mundo é redondo. — Acredite no que quiser — disse ele, irritado —, mas eu sou tudo que há entre você e seu túmulo na água, portanto não pode se dar ao luxo de ser exigente. Segure a minha mão e pare de agir como um idiota. — Você não tem a mínima idéia — disse eu, balançando a cabeça com repulsa. — Você não sabe nada sobre honra e lealdade. Prefiro morrer a me entregar a um lixo como você. — Não seja... — Kurda começou a dizer, mas, antes que ele pudesse terminar a frase, soltei minhas mãos da pedra, dei impulso para trás com as
pernas e deixei que a água me levasse. — Darren... não! — gritou Kurda, tentando me apanhar pela última vez. Mas era tarde demais, seus dedos agarraram o ar. Fui levado para o meio do regato, fora do alcance de Kurda e dos seus aliados vampixiitas. Houve um momento de paz estranha, durante o qual eu boiei, subindo e descendo na água. Olhando para os olhos de Kurda, lá dependurado, sorri fracamente e encostei os dedos da minha mão direita na testa e nas pálpebras, fazendo o sinal do toque da morte. — Mesmo na morte que eu seja triunfante! — gritei, acrescentando uma prece rápida para que meu caminho fosse o verdadeiro e que meus sacrifícios convencessem os deuses dos vampiros a se vingarem terrivelmente do traidor e dos seus aliados. Então, antes que Kurda pudesse responder, fui apanhado pela corrente e, levado embora num instante brutal, para longe dos olhos dele, para a loucura escura e encapelada e para as entranhas famintas da montanha.
Darren Shan
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