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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUALQUER OUTRO LUGAR
QUALQUER OUTRO LUGAR

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

14

Água e Pedra

Saímos correndo para o estúdio de arte. Estou um passo atrás dos rapazes, seguindo ao lado de Chessie e Nikki, que jogam para Morfeu o chapéu que ele pediu enquanto percorremos o corredor.

Ao chegarmos, gritos agonizantes nos recebem, e o terror aperta meu peito. O estúdio está escuro. Uma luz azul nebulosa é filtrada pelo teto de vidro, remanescente do crepúsculo. Uma figura está deitada na mesa, contorcendo-se de dor.

— Pai! — Eu empurro Morfeu, que ficou parado na soleira da porta, com o chapéu apertado contra o peito.

Jeb já está perto da mesa, dando a papai a mão para ele apertar.

As lágrimas me estrangulam. Há semanas me preocupo com mamãe, quando era papai que estava em perigo o tempo todo. Por que minhas visões não me mostraram isso?

Aperto seu peito com a palma da mão. A fantasia de penas abafa as batidas de seu coração acelerado.

— O... o que... o que aconteceu? — pergunto.

Jeb concentra-se no rosto de papai.

— Eu não consegui detê-los.

— Deter quem? — eu insisto.

Em vez de responder, Jeb solta um grunhido — um som gutural misturado com raiva e remorso. Quero confortá-lo, mas também quero sacudi-lo. Por permitir que meu pai se ferisse, por ter ido sem mim.

Morfeu coloca-se entre nós.

— Paciência, amor. Nosso cavaleiro élfico finalmente percebeu que ele não é o deus que pensava ser.

Minha cabeça é tomada por medos infantis.

— Papai. — Eu me inclino sobre ele, fungando. — Papai, olhe para mim.

Seus olhos tremem, mas não se abrem.

— Nós seguimos o brilho, aterrissamos perto do abismo do nada — Jeb murmura com a voz trêmula e rouca devido à explosão anterior. — Os cavaleiros do portão do País das Maravilhas nos viram. Eles usaram seu medalhão e mandaram um túnel de vento. Nós estávamos esperando que nos recolhessem... mas fomos atacados. Os guardas da rainha chacoalharam uma jaula cheia de moscas-escorpião e libertaram um enxame. Eu tentei tirar o meu bloco de desenho, desenhar redes para capturá-las... como as que eu faço para você. — Ele volta o olhar para Morfeu.

— Sua magia falhou — Morfeu sugere.

— Eu falhei — Jeb diz, com os olhos novamente em papai. — O som me penetrou a cabeça. Mais alto do que um milhão de gafanhotos presos em um auditório.

Papai uiva, balançando a cabeça de um lado para o outro, tentando cobrir as orelhas.

— Faça parar!

— Do que ele está falando? — eu pergunto.

— Ele está dizendo isso desde que foi picado — Jeb responde. — É como se ainda estivesse ouvindo o zunido delas.

— Ele foi picado? — Sou eu quem pergunta? Não tenho certeza. As vozes de todos estão tão distantes, e meu corpo parece comprimido, como se estivesse nadando pelos sedimentos do fundo de um oceano.

— CC conseguiu matar a maioria delas, e eu capturei as outras... mas duas se soltaram. Eu sinto muito, Al. — Jeb ainda não olha para mim.

Morfeu tira o casaco, arrasta um balde de debaixo da mesa e molha uma esponja.

— Onde elas o picaram?

— Na perna esquerda, eu acho — Jeb murmura.

— Não. Não é verdade. — Eu me interponho entre eles, apertando com força o bíceps de Morfeu.

— Você disse que essas coisas transformam as pessoas em pedra. Ele não virou pedra, está vendo?

Ele afasta minha mão.

— Precisamos tirá-lo dessa fantasia, para ter certeza de que ele só foi picado em um lugar.

— Isso não pode estar acontecendo! — eu grito.

Morfeu me força a encará-lo.

— Se ele foi picado só em uma perna, teremos mais tempo, pois é longe do coração. Agora vá buscar algo para mantê-lo aquecido. Ele vai ficar muito molhado.

Chessie pousa no meu ombro, dando tapinhas em meu pescoço para confortar-me. Nikki me pega pelo dedo mindinho e me conduz a um cabide onde está pendurado um pano grande. Eu o levanto. Não estou mais debaixo da água. Estou flutuando em algum lugar distante, amarrada por uma corda elástica que fica me jogando de volta para algo de que não quero participar. A luz tênue do crepúsculo penetra pelo teto de vidro, ampliando a minha desorientação.

Entrego o tecido a Jeb.

— Isso não pode estar acontecendo. Não pode.

Nenhum deles responde. Eles cobrem papai até os ombros e usam esponjas ensopadas para derreter sua fantasia.

Conjecturas estranhas e idiotas me enchem a cabeça. O tecido não está derretendo. E quanto à mesa? A água não a destruiria, e papai não cairia no chão? Talvez não seja uma pintura; talvez seja como as flores de mel, o couro do morcego, a carne do coelho e a água da chuva. Algo derivado dos recursos naturais deste lugar.

Todas as perguntas desaparecem quando vejo a expressão séria no rosto de Morfeu e de Jeb.

Vou até a mesa e roço o nariz no cabelo de papai, com os dedos envolvendo suas orelhas.

— Você vai ficar bem, papai. A mamãe precisa que você fique bem. Nós duas precisamos de você. — O cheiro de xarope de bordo, sabão de lavar roupas e desinfetante de limão me rodeia. Não faz sentido que ele esteja com esses cheiros. Minha mente deve estar pregando peças porque ele sempre foi meu lar, minha segurança e meu conforto.

Papai bate a cabeça várias vezes na mesa, com o rosto retorcido de dor.

Coloco as mãos em sua nuca para proteger o crânio da madeira dura.

— Façam alguma coisa! — eu grito.

Jeb finalmente olha para mim.

— Al, estamos tentando.

Pela primeira vez, consigo olhar para seu rosto. Ele está igualzinho ao garotinho das fotos que tem em casa. Perdido, amargurado, assustado. As únicas diferenças são o sangue na bochecha e o piercing que cintila no lábio inferior.

Estou prestes a perguntar se ele também se feriu, quando olho de relance para o tornozelo de meu pai, que ficou para fora do tecido. A pele está branca, seca e empoeirada, como cimento. Os pelos caíram. Milhares de luzes minúsculas lampejam em sua pele, como uma calçada sob um céu noturno.

Ele está virando pedra.

Minha traqueia quase se fecha.

— Use a sua magia! — Minha voz parece uma chaleira avisando que a água ferveu: cheia de ar e assobiante. — O pincel. Cure-o como fez com a orelha de Morfeu. — Seguro o braço de Jeb. — Por favor.

Ele e Morfeu trocam um olhar misterioso.

— Só funciona com Morfeu porque compartilhamos da mesma magia — Jeb responde com a expressão tão cheia de remorso que ultrapassa seu estado encantado, fazendo com que ele pareça angustiado e humano. — Espere. — Ele franze a testa. — Sua magia do sonho. Thomas é humano. Ele pode embarcar nos sonhos.

Morfeu aquiesce, entendendo algo que eu não capto.

— O veneno se espalha pela corrente sanguínea, estimulado pela agitação da vítima. Se pudermos induzi-lo ao estado REM, mandar sua mente para onde ele não ouça o zunido, poderemos acalmá-lo e manter o veneno controlado.

— A Rainha de Copas — Jeb retoma. — Ela tem um antídoto para isso. Caso contrário, seus guardas idiotas não estariam lidando com esses insetos.

Olho para um e para o outro.

— Sim. Façam isso. Por favor... — Não percebo que meu rosto está molhado até Chessie vir secar minhas bochechas com a cauda.

Jeb começa a tocar a cabeça de papai, mas Morfeu o detém.

— Você não sabe como dominar a magia do sonho. Precisa de orientação.

Eu reteso o queixo, imaginando qual seria a verdadeira razão para a intervenção de Morfeu. Se ele permitisse que Jeb libertasse todo o seu poder, uma parte da Vermelha também penetraria em meu pai. E quem sabe o resultado que isso teria?

Jeb dá de ombros e eu me afasto, completamente inútil, apesar de toda a minha magia.

Morfeu coloca as mãos em concha sobre as têmporas de papai, e Jeb afasta uma asa para conseguir ficar ombro a ombro com ele, com as mãos sobre as de Morfeu. Embora a tatuagem de Jeb cintile em púrpura, a luz que ela irradia é de um azul imaculado — estritamente de Morfeu —, como se eles tivessem praticado transmitir a magia da Vermelha muitas vezes antes. Morfeu olha para Jeb, incrédulo, parecendo surpreso com a pureza daquela força.

A luz pulsa pelo corpo de papai, da cabeça aos pés, igual a quando Morfeu lançou sobre Jeb a magia do sonho no dia do baile de formatura.

O corpo de papai fica mole e os músculos de seu rosto relaxam.

Eu desmorono sobre a mesa, exausta, embora não tenha feito nada.

— Agora vamos cuidar de você — Morfeu avisa Jeb, fazendo sinal para que se sente. Ele volta a molhar a esponja. — Você está sangrando.

Jeb apoia-se na beirada da mesa.

— Não. — Ele passa a mão nas manchas vermelhas em sua fantasia. — É tinta — explica, parecendo delirar. — Um resíduo do CC. As mãos dele foram cortadas quando ele seguiu minha ordem de impedir que os guardas sequestrassem o funil.

Morfeu faz uma careta e para de secar o rosto de Jeb.

— Onde está CC agora?

— Ele estava dando cobertura para eu poder fugir com Thomas — Jeb responde. — Os guardas o capturaram.

Blasfemando baixinho, Morfeu joga a esponja dentro do balde. Depois de secar as mãos no tecido que cobre papai, ele veste o casaco e caminha na direção da entrada, onde deixou o chapéu. Ele o acerta sobre a cabeça, com as asas caídas sobre as costas.

— Precisamos de um plano para pegar o antídoto. — Ele veste as luvas com cuidado. — Qualquer esperança de ter o elemento surpresa está descartada. A Vermelha sabe que Alyssa está em Qualquer Outro Lugar. Agora eles estão com CC, que sabe o caminho para a nossa montanha.

Jeb cerra as mãos e dá um soco na mesa.

— Eu vou esta noite, antes que eles nos encontrem. Vou trazer CC de volta, com o antídoto. Vamos curar Thomas e fazer com que ele e Al atravessem o portão antes que aconteça mais alguma coisa.

Balanço a cabeça, discordando.

— Não vamos sair daqui sem vocês dois. Entenderam?

— E como você entraria, pode me dizer? — Morfeu contradiz. — Sua magia é limitada ao terreno natural. Coisas construídas pelas mãos de outros estão além de sua capacidade de alteração. — Ele arruma o chapéu e as mariposas laranja pousadas na aba balançam. Ele olha para mim. — A Copas marcou uma corrida eleitoral para amanhã a fim de eleger um rei oficial. Podemos usar o simulacro... ir de manhã bem cedinho, quando os portões estiverem abertos.

— Todos os prisioneiros ficarão preocupados — eu raciocino, afagando a mão de papai.

Jeb inclina a cabeça, pensativo.

— Ajudaria se tivéssemos uma planta do lugar. Saberíamos exatamente aonde ir para pegar a cura, sem desvios.

Morfeu concorda.

— Podemos enviar alguém esta noite, alguém pequeno o suficiente para passar pelos buracos do muro. Enquanto eles exploram, podemos descansar, nos preparar e planejar.

Nikki olha para nós do outro lado da sala, onde ela e Chessie estavam provocando os grous que ocupam os biombos japoneses. Ela voa até nós.

— Mandem a mim — ela insiste, a voz tilintando enquanto aponta para si mesma.

Fico comovida com sua bravura.

— Nikki é forte. Ela pode trazer o antídoto sozinha, caso o encontre.

— Eu não sei — Jeb diz. — Ela é tão pequenina. E se...

— Nikki é ideal — Morfeu retruca. — Você a desenhou para que ela corresse livremente por este mundo. Ela é pequena e veloz. E se dá bem com suas pinturas. Se fizerem o CC trazer os guardas até aqui, ela pode distraí-lo. Chessie e eu podemos acompanhá-la até os portões do castelo, esperar escondidos que ela termine a expedição.

Jeb passa a mão pelo cabelo, deixando-o desgrenhado. Obviamente, ele está preocupado com sua fada.

— Está bem. Mas fui eu quem estragou tudo. Se ela não conseguir pegar a cura, eu é que vou a essa corrida amanhã. Não será você nem a Al.

Eu começo a objetar, mas Morfeu se adianta.

— Você é necessário aqui. Você é quem comanda as criações. Está mais bem equipado para proteger Thomas caso a montanha seja atacada. Chessie será nosso mensageiro caso algo dê errado na nossa parte.

Jeb concorda, resignado.

Morfeu envolve papai no tecido e o ergue, deixando-o sentado.

— Ele precisa ir para um lugar seguro, caso a montanha seja invadida.

— Vou levá-lo para o farol — Jeb sugere. — Al, você pode passar a noite com ele.

— Está bem — eu sussurro. Tenho medo de ficar sozinha, embora seja meu próprio pai. Não sei o que farei se ele piorar. — E se ele acordar?

— Ele não vai acordar. O feitiço que colocamos vai durar até que Jebediah e eu o retiremos.

Procuro lembrar a mim mesma que uma rainha deve ser corajosa, e concordo.

Jeb coloca papai sobre o ombro. Ao me afastar para deixá-lo passar, Morfeu pega no meu braço antes que eu possa segui-lo para o corredor.

Ele aguarda até Jeb se distanciar o suficiente para que não ouça e olha para mim.

— Jebediah não pode ir para aquele castelo, sob circunstância nenhuma. — Ele vigia a porta. — É perigoso demais para ele.

Não sei se acredito em sua preocupação.

— Por quê?

— Ele é um recipiente em que todos nós podemos colocar nossa magia. Em uma terra de seres mágicos sem poderes, essa capacidade é inestimável. Uma arma a ser temida e cobiçada por todos. Ele quase morreu tentando controlar somente o meu poder e o da Vermelha. Os habitantes deste lugar, a Rainha de Copas, Manti e seus pássaros, são todos desalmados e impiedosos. Se eles perceberem o que ele é, o encherão com sua magia até as orelhas. Isso o comerá vivo feito um câncer até que não sobre nada. Não haverá como recuperar o seu mortal depois que eles terminarem.

A lógica de suas palavras pesa ainda mais na minha cabeça já muito pesada.

— Então, quer dizer que você o protegeu mesmo durante todo esse tempo? Mantendo-o enfiado neste buraco?

Sua mão escorrega até o meu pulso, numa confirmação silenciosa.

— Obrigada. — Eu aperto seus dedos nos meus.

Morfeu faz um gesto para que Chessie e Nikki vão para o corredor a fim de vigiar Jeb.

— Não fique sentimental. Não fiz isso por ele. Eu fiz porque não aguentaria ver você torturada pela culpa, caso ele tivesse esse fim. Você culparia suas próprias escolhas na noite do baile por essa tragédia. Isso arruinaria sua fé em sua capacidade de reinar. Você seria uma rainha imprestável se não confiasse no próprio julgamento.

A explicação cansada se alinha com o raciocínio de um ser mágico solitário. É óbvio que é para o bem maior do reino que ele ama. Mas, mesmo assim, ele fez a coisa certa e Jeb está vivo por causa disso. Não vou esquecer.

— Então, o que sugere que façamos? Que contemos a Jeb que uma parte da magia dele vem da Vermelha?

— De modo algum. Ele vai inventar algum plano esdrúxulo para enfrentá-la se fizermos isso. Vamos ter que tirá-lo deste reino antes que o descubram.

— Mas ele não quer ir embora — eu murmuro, incapaz de esconder a derrota na voz. — Como vamos proteger alguém que não quer ser protegido?

— Ele irá embora se você tirar a fonte de seu poder. Vamos fazer um trato com a Vermelha em troca do antídoto. Ela abomina este lugar. Então podemos oferecer a ela um plano de fuga. Ela pode compartilhar do corpo da Copas, mas a Vermelha é mais astuta, não tenha dúvida. Pegamos a cura para seu pai e, em troca, tiramos a Vermelha de Qualquer Outro Lugar. Jebediah será forçado a nos seguir, para ficar ligado à magia da qual se tornou dependente. Ele sentirá o chamado instintivamente. Assim como sente com relação a mim. Quando estivermos no País das Maravilhas, o efeito magnético do ferro se reverterá. A magia voltará para seus próprios recipientes. E Jebediah voltará a ser humano.

Por que Morfeu faria tal sacrifício? Arrastar não somente a Vermelha de volta para seu amado mundo, mas outra rainha inclinada à destruição, só para salvar dois mortais?

Mudo o apoio dos pés e controlo minhas suspeitas, tentando pegá-lo pelas palavras.

— Os guardas... não deixarão a Rainha de Copas passar pelo portão. Mesmo que meu pai esteja recuperado, ele não conseguirá convencê-los. A Vermelha está dentro dela, e a Rainha de Copas é prisioneira. As duas devem ficar aqui.

Morfeu dá um tapinha no diário em meu pescoço.

— E é por isso que a Rainha de Copas deve ficar para trás. Vamos contrabandear a Vermelha debaixo do nariz dos guardas.

— Mas não podemos vesti-la com o simulacro. Ela é um espírito... — O horror me toma antes mesmo que eu termine de verbalizar a frase. A afirmação críptica de Morfeu mais cedo, quando perguntei como tiraríamos a Vermelha do corpo de Jeb: “Isso, amor, exigirá o maior sacrifício de todos. E só você poderá fazê-lo”.

Era essa a intenção dele o tempo todo. Quando construiu uma magnífica mariposa para nos levar, quando disse que me ajudaria a traçar uma estratégia para meu plano.

O plano nunca foi meu. Foi dele. Para que eu entrasse no castelo, deixasse o espírito da Vermelha me possuir e a levasse para fora deste reino.

— Não — digo, o coração martelando com tanta força em meus pulsos que consigo ver o movimento da pele sob a luz fraca. — Eu vim aqui para acabar com ela. Não para dar-lhe acesso ao meu... — Não posso dizer em voz alta. Ela já fez algo ao meu coração que precisa ser reparado. Não permitirei que entre em mim novamente.

Tudo o que aconteceu hoje... as salas, minhas epifanias, a sedução de Morfeu, o estado letal de papai — tudo isso me sufoca feito fumaça, e respirar fica difícil. Enjoada e com muito calor, meu corpo treme. Morfeu me recosta na mesa.

— Agora já basta disso. — Ele me puxa para um abraço e afaga meu cabelo, um gesto terno que parece deslocado junto de suas palavras de repreensão. — Este plano é perfeito. — A voz ecoa em seu peito junto ao meu ouvido, suave e melódica. — É o menos perigoso para todos, principalmente para Jebediah. — Fecho os olhos, permitindo-me sentir as batidas firmes de seu coração contra meu rosto. — A parte mais difícil será convencer a Copas a deixar o espírito da Vermelha sair. Mas, quanto à Vermelha, nem vamos precisar barganhar. É tudo o que ela sempre quis, ser parte de você.

Ser parte de você. A bile queima o fundo da minha garganta. E se foi a Vermelha que a Marfim vislumbrou em sua visão... a Vermelha vivendo através do meu corpo? E se foi o futuro dela com Morfeu, e não o meu? Se isso for verdade, meu filho com Morfeu pertencerá a ela. Ela será a mãe dele.

Agarro-me à lapela do casaco de Morfeu. Será que ele não percebe o que acontecerá se eu não conseguir derrotá-la depois que ela estiver dentro de mim? Será que não compreende o perigo? Não somente para ele, mas para nosso futuro filho?

— Não vou deixar que ela me use como recipiente — digo junto a ele. — Mais uma vez, não.

Ele recua um pouco e arrasta o polegar enluvado por minha têmpora.

— Nem mesmo pelo seu mortal? E pelo pai que precisa de você? Você tem as memórias dela para derrotá-la no instante em que atravessarmos a fronteira e Jebediah ficar livre do poder dela.

Seguro com força o pequenino diário como se ele fosse minha tábua de salvação, mas ainda me sentindo afundar.

— Não pode ser a única forma.

— Mas é. A única forma de resgatar o que nós amamos.

Meus nervos formigam.

— Nós amamos? Você nem se importa com Jeb. Você mesmo disse.

Seus lábios se apertam.

— Ele tem seus méritos. Suficientes para ele merecer viver. Assim como seu pai, tantos anos atrás. — Ele quase parece sincero. Mas a variação na cor de suas joias o delata. Finalmente aprendi a entendê-lo.

Reúno minhas forças.

— Não. Você está mentindo. Essa não é a única forma de salvar Jeb.

Morfeu posiciona as duas mãos na mesa atrás de mim, encurralando-me.

— Como você mesma disse. Ele não tem vontade de partir.

Eu o empurro para longe.

— Posso convencê-lo.

— O quê? Seduzindo-o? — Morfeu ri com ironia. — Sou capaz de deixar você tentar. Qualquer coisa que tire esse rapaz da sua vida de uma vez por todas.

Uma corrente de raiva pulsa em minhas têmporas.

— Tem razão. Você só é capaz quando acha que o seu “deixar” vai lhe trazer alguma vantagem.

Seu sorriso arrogante dá a resposta.

— Então vá em frente. Vou apagar da memória que ele a tocou. E não precisarei da poção do esquecimento para fazer isso. Tenho muita fé nas minhas habilidades de eclipsar qualquer coisa que um mortal possa fazer por você, ou com você. — Ele arrasta a ponta do dedo pela minha cintura, fazendo-me recordar o que aconteceu entre nós em sua sala antes. — Por que estamos discutindo, hum? — ele cantarola. — É uma questão polêmica. Vocês passaram a manhã juntos. Ele a pintou seminua, sujeito de sorte. Se fosse meu trabalho, suas lindas roupas nunca teriam sido confeccionadas. Ele não a quer mais.

Essa verdade me dilacera. Mas não deixarei um ego ferido afetar minha decisão.

— Tem mais alguma coisa nessa história da Vermelha. E, se você não me contar, vou usar o simulacro e ir sozinha esta noite pegar a cura para o meu pai e acabar com ela de uma vez por todas.

Sua tez alva fica mais pálida.

— Não seja boba. Entrar naquele castelo exige um trabalho de equipe. Temos que ir munidos de um plano de fuga. O mais importante agora é que você precisa dormir. Mal consegue ficar de pé.

Eu me afasto dele e da mesa, avançando devagar na direção da porta.

— Por que eu precisaria ficar de pé? Posso voar. E nem você nem Jeb podem me deter. — Com um movimento das escápulas, minhas asas se libertam, lançando mais uma torrente de poder em minhas veias.

O olhar de Morfeu segue minhas asas. Filamentos de luar caem do alto, iluminando sua expressão embevecida.

— É uma demonstração impressionante, amor. Mas não ouse confundir minha veneração com rendição.

Ele vem na minha direção, a expressão transformando-se numa carranca. Eu deflagrei um de seus humores obscuros e combativos. Não importa, porque minha imaginação é mais refinada que a dele, e ele me contou o segredo da manipulação das pinturas de Jeb.

Antes que ele passe pelo biombo japonês, convoco mentalmente os grous. Eles param de bicar sua prisão de papel-arroz e voltam a atenção para mim. Eu lhes dou uma nova tarefa: tecer uma rede usando a luz da lua como fio.

Guinchos que soam como trombetas irrompem da garganta deles quando saem do biombo e surgem diante de Morfeu em forma tridimensional. Cambaleando sobre as pernas cinza escamosas, a dupla estala e escorrega sobre o piso, aprendendo a se equilibrar pela primeira vez. Depois, com as asas abertas, levantam totalmente o elegante pescoço, alcançando o queixo de Morfeu.

Ele recua, suas joias piscando em verde-amarelo — fascinação cautelosa.

Os grous capturam o luar no bico como se fossem fios tangíveis. Esticando-o a partir do teto, eles o tecem, formando uma rede de renda com velocidade estonteante. Num piscar de olhos, o painel já está na altura do peito de Morfeu.

Ele tenta passar por baixo, mas os pássaros ajustam sua trajetória, dando laços, torcendo e trançando a malha até ela alcançar a altura das canelas dele. Ele mal tem tempo de recuar antes que a barreira o confine ao canto nos fundos da sala... uma cerca de gaze do teto até o chão. Assim que terminam o primeiro painel, eles começam outro, os bicos estrepitando.

— Bem pensado — Morfeu diz do outro lado, enrolando os dedos nos fios inquebráveis. A admiração fulgura em seus olhos negros. — Eu sou seu prisioneiro. Mas sempre fui.

Observamos um ao outro em silêncio. Uma coisa inata em nós dois é o nosso medo de ficarmos presos. Lembro-me de sua linda e agonizante confissão semanas atrás: Nada pode quebrar as correntes com que você amarrou meu coração. Na visão que tive, quando dançamos sobre o sol, éramos livres e iguais de todas as maneiras. É isso que desejo para ele. Para nós dois.

— Eu nunca desejei que você fosse meu prisioneiro — insisto.

Ele faz um floreio com os braços, numa grande mesura.

— No entanto, aqui estou, em uma jaula feita por você.

— Se você aprendesse a ser sincero, as paredes viriam abaixo.

Ele cerra a mandíbula.

— Você está usando Jeb para influenciar minhas escolhas. De novo. Mas, desta vez, não vou cair. Por que quer libertar a Vermelha? Existe algo entre vocês dois? — Eu paro na soleira, aguardando.

— Não! Eu odeio aquela miserável. — Seu rosto, entrecortado pelas sombras da renda, torna-se obscuro. — Eu a odeio com a mesma paixão imutável com que amo você.

A confissão é terna em sua simplicidade, recordando-me de que as emoções que sente são estranhas para ele; sendo uma criatura solitária, não compreende quanto o amor é permeado com a confiança.

— Quer que eu acredite no seu amor? Então, chega de segredos. Se vamos ser iguais, temos que trabalhar juntos. Você está tão acostumado a ser sozinho que não sabe como confiar em ninguém a não ser em si mesmo. Isso tem que mudar. A humana em mim precisa de confiança. Confie que vou compreender você sem julgamentos. Que posso encontrar uma maneira de ajudá-lo. Talvez uma maneira melhor.

Seu silêncio resoluto zomba de mim, então eu me viro para sair.

— Não existe maneira melhor! — O desespero em sua voz me faz dar meia-volta e encará-lo. — Se houvesse, eu nunca lhe pediria isso. A Vermelha colocou o feitiço sobre o território do País das Maravilhas. Somente a magia dela pode reverter sua decadência e trazer de volta seu esplendor original. Sem ela, o reino interior ficará em ruínas, e nada poderá recuperar nosso mundo. Nosso lar. O seu reino. É por isso que temos que levá-la daqui... e a única saída é dentro de você. Você é da mesma linhagem, e a única forte o bastante para dominar a magia dela e usá-la para sempre depois que atravessarmos a fronteira.

Espirais de gelo se concentram em minha espinha.

— Você espera que ela viva dentro de mim para sempre?

Ele volta a segurar a renda.

— É claro que não. Só até que os reparos sejam feitos. Depois, nós nos livraremos de sua vil existência de uma vez por todas.

Chessie e Nikki adentram a sala, provocando pequenas lufadas de vento que esvoaçam meu cabelo ao se dirigirem para a prisão de renda. Eles se precipitam contra os grous numa tentativa de distraí-los.

Jeb esbarra em mim ao passar pela porta. Seu braço toca na minha asa, e uma comichão irradia da ponta dela até minha espinha. Ele deve ter percorrido todo o caminho até a porta de diamantes antes de perceber que eu não o acompanhei. Antes que eu possa perguntar, ele faz um sinal para o corredor, onde papai está apoiado, sentado — dormindo profundamente.

Jeb estuda o espetáculo dos grous sibilantes, Chessie e Nikki, todos emaranhados na rede. Ele se vira para mim.

Eu meio que dou de ombros.

Ele ergue a mão e a parede de gaze se dissipa, voltando a ser fios de luar e libertando todos os seus prisioneiros. Jeb ordena que os pássaros voltem ao seu lugar no biombo. Eles guincham, entram e voltam a ser enfeites planos.

Nikki paira no ar e se enfia no cabelo de Jeb, oferecendo um tilintante agradecimento e enrolando as ondas sedosas em torno dela feito um vestido.

Chessie se aninha no ombro de Morfeu enquanto ele caminha na minha direção.

— Alyssa, você tem que perceber quanto isso é crucial.

Jeb o detém, colocando a palma da mão no peito de Morfeu.

— Alto lá, coxinha de mariposa. Quando eu estava vindo pelo corredor, ouvi que você espera que a Al deixe aquele monstro possuí-la outra vez. Mas isso não vai acontecer mesmo.

Morfeu grunhe.

— Isso não lhe diz respeito. Você preferiria partir o coração de Alyssa a abdicar do poder que tanto deseja e encarar o mundo real. Então, sua opinião não conta. A escolha é dela. É o reino dela que está em jogo. — Ele olha enfaticamente para mim. — Mais do que o reino dela.

Jeb o empurra e a disputa fica mais acirrada. Nikki voa em torno dos dois, tentando arbitrar.

Olho à minha volta: a magia distorcida está em todo lugar, salas cheias de pesadelos, meu pai recostado em uma parede, em coma induzido para não virar pedra.

Jeb quer ficar aqui?

Não. Este lugar é venenoso. Temos que sair. Todos nós; mesmo que a única maneira de convencer Jeb seja capitalizar seu vício no poder...

Chessie chama minha atenção, flutuando sobre a discussão entre Morfeu e Jeb como uma bola laranja cintilante e cinza. Seus olhos grandes e sábios falam comigo, forçando-me a encarar o que será dele, dos extravagantes e estranhos intraterrenos enfiados dentro do trem da memória no reino humano, dos que estão no País das Maravilhas. Forçando-me a reconhecer o que acontecerá com todos eles depois que seu lar lindamente bizarro se transformar em ruínas. Quão perdidos eles ficarão.

Uma lâmina aguda desliza pela couraça gelada que envolve minha coragem, cortando-a com precisão. Não há dúvida sobre o que tem de ser feito.

— Eu vou fazer isso. — Embora minha voz soe mais parecida com um grasnido, ela abafa a gritaria de Morfeu e Jeb.

Os dois se voltam para mim, num silêncio mortal.

Ergo os ombros para que minhas asas se elevem.

— Farei qualquer coisa para salvar o País das Maravilhas — para salvar todos aqueles que amo — porque eu sou responsável. Eu fui fraca. Não voltarei a ser.

Batendo mãos e patas, Chessie e Nikki se lançam ao ar dando giros de celebração.

— Alyssa... — A atitude de Morfeu é de pura reverência. — Eu sempre soube que você tem um coração de rainha.

Jeb segura a camiseta de Morfeu, rangendo os dentes.

— Se você a ama tanto quanto diz, deveria deixar aquela bruxa possuir você.

Morfeu crava os olhos nele.

— Não somos da mesma linhagem. E, mesmo que eu pudesse, somente Alyssa já conseguiu superar o poder da Vermelha. É seu destino tirá-la daqui e derrotá-la de uma vez por todas.

— Jeb, por favor. Já tomei minha decisão. — Minha garganta dói, embora eu esteja quase sussurrando. Estou tão cansada. — Papai precisa de roupas e de um lugar para se deitar.

Jeb solta Morfeu e dirige-se ao corredor. Sua expressão é de fúria contida quando ele ergue papai e o coloca no ombro.

— Presumo que venha desta vez — ele grunhe, e começa a percorrer o longo corredor mais uma vez.

Tremendo ao atravessar a soleira, olho de relance na direção de Morfeu.

— Ela quase me estripou uma vez. Sua marca ainda está lá. Posso senti-la. — Não lhe digo o resto: que é como se os fios do meu coração estivessem se partindo, que estou convencida de que é um efeito mágico de sua possessão e de que cada dia parece romper-se um pouco mais. — Não sei se tenho a força necessária para expulsá-la novamente. Não sem matar a nós duas.

A expressão dele muda para algo tão próximo do arrependimento que congela minha respiração. Ele olha para o diário.

— Agora você tem uma arma. As memórias lhe dão uma vantagem que ela não espera. Isso a enfraquecerá.

— Nós nem sabemos se isso vai funcionar — eu sussurro.

— Vai, sim — ele diz. — Tem que funcionar. — A preocupação que ecoa na imperscrutável profundeza de seus olhos trai a confiança de suas palavras. Pela primeira vez na vida, compartilhamos as mesmas dúvidas.

Ficamos assim por incontáveis segundos, olhando fixamente um para o outro.

Quando ele se adianta para me confortar, recuo para o corredor. Sem mais uma palavra, sigo atrás de Jeb, incapaz de me livrar do terror que carrego no pescoço em forma de diário: um brinquedo de criança que salvará minha vida ou a levará rapidamente ao fim.

 

 

15


Marés do Destino

Quando chegamos ao farol, Jeb leva papai para a torre. Ele o veste e me chama. Cubro o corpo adormecido de papai com cobertores e em seguida me sento na beirada do colchão ao seu lado, tirando as botas.

Faz pouco mais de um dia que cheguei ao mundo do espelho, mas parecem semanas. Não consigo acompanhar a passagem do tempo aqui. E esta noite promete ser a mais longa de todas, pois estamos todos ansiosos para ver se conseguiremos pegar a cura para papai, ou se teremos de enfrentar a corrida eleitoral mortífera da Rainha de Copas.

Afago a cabeça de papai, na esperança de que Jeb tente me desencorajar de levar adiante o plano de Morfeu. Em vez disso, ele me observa em silêncio enquanto o luar e a luz do farol se revezam para iluminar as paredes.

— Eu verifiquei a perna dele e o veneno não se espalhou — Jeb finalmente diz com sua voz profunda e aveludada, como se estivesse no reino humano, antes de a magia da Vermelha ter se infiltrado nele. Como é irônico que meu coração não seja o único que ela contaminou. Isso só me faz odiá-la ainda mais.

— Ele vai ficar bem — Jeb continua. — É o homem mais forte que já conheci.

Um vislumbre do menino do passado torna-se tão vivo que eu caio nos velhos hábitos e abro minha alma.

— Eu tive uma visão da minha mãe, que ela está viva e em segurança. Acho que ela está mandando mensagens através dos meus sonhos.

Jeb se recosta na parece, sem fazer perguntas. A esta altura, ele já viu e fez magia suficiente para acreditar no inacreditável.

— O que vou dizer a ela se...? — Minha voz emudece.

— Não, Al. Ele vai sair dessa porque é ele que está sonhando agora.

Com um sinal de cabeça, concordo.

— Espero que ele esteja sonhando que vai ficar bem. Com coisas que o deixam feliz.

— Ele deve estar pescando — Jeb acrescenta, de pé ao lado da vigia. — Como nas vezes que ele nos levava junto. — Ele força um riso breve, mais de pesar do que de alegria. — Lembra aquela vez que você deixou cair uma caixa cheia de iscas?

Eu quase sorrio. Foi no verão antes da oitava série. Papai comprou grilos na loja de pesca.

— Eles estavam gritando, pedindo ajuda.

Ouço um som surdo, e nem preciso olhar para saber que é o punho de Jeb contra a parede de pedra.

— Foi aí que eu comecei a gostar de você.

Olho para ele por sobre o ombro. Com o cabelo desgrenhado coroado por raios prateados de luar, ele está mais lindo que qualquer visão mística que eu já tive.

— Você nunca tinha me contado isso.

Ele se vira e olha para fora.

— Você estava tão preocupada com aqueles insetos. A mesma menina que os espetava com alfinetes todos os dias para fazer mosaicos não conseguia enfiar um anzol neles para pegar um peixe.

— Porque eles já estavam mortos quando eu os usava para os mosaicos. Eu não tinha que ouvir seu sofrimento.

— Eu não sabia disso. Só sabia que você guardava muitos mistérios. Então comecei a desenhá-la, tentando fazer com que eles viessem à tona, ler as entrelinhas.

Ele sempre me desenhou como uma fada, como se realmente estivesse decifrando meus segredos. Corta meu coração que ele tenha perdido a habilidade de me pintar enquanto esteve aqui, que quase enlouqueceu tentando.

— E seu pai — Jeb continua — não ficou bravo por você ter soltado os insetos. Ele só tirou as iscas de alumínio e começou a usá-las desde aquele dia. Eu não sabia que um pai podia agir daquele jeito. Perdoar. Ser gentil. Ele é o melhor homem que eu já conheci. Tenho certeza de que ele deve ter salvado a minha vida algumas vezes.

Eu fungo e limpo o nariz com as costas da mão, em seguida enfiando o cobertor por baixo do queixo de papai, estudando seu rosto sereno.

— Era para ele ser cavaleiro. — Minhas cordas vocais endurecem. — Mas, quando a mamãe foi internada, ele teve que ser pai e mãe. Eu o achava chato por causa disso. Mas isso fez dele o maior herói de todos. — Para não chorar, enfio o rosto no ombro de papai, acalmando-me com o ar que ele exala sobre minha têmpora. Sua pele ainda tem o cheiro da tinta que até instantes atrás cobria o corpo.

Quase não percebo o peso que se acomoda ao meu lado na beira da cama.

— Al — Jeb sussurra, mais próximo de mim do que jamais esteve desde que cheguei à montanha. Seus dedos percorrem o contorno de minhas asas.

— Eu quero a minha família de volta. Quero você e Morfeu em segurança, e quero consertar o País das Maravilhas.

— Eu sei.

Sua empatia me despe de minhas defesas e eu levanto o rosto para expressar meu maior temor.

— Mas estou apavorada de deixar a Vermelha entrar em mim novamente. — Eu me detenho quando estou prestes a revelar a razão (que meu coração parece que está se partindo, literalmente) porque ele desvia o olhar.

O colchão balança quando ele se levanta.

— Eu tenho que vigiar as entradas.

Embora eu não estivesse esperando uma palavra de estímulo nem um abraço reconfortante, procuro não ficar desapontada.

Ele se dirige para a porta.

— Tente dormir, está bem?

Eu concordo. Meu corpo, pesado de exaustão, quer fazer somente uma coisa: aninhar-se ao lado de papai. Contudo, enquanto ouço as botas de Jeb descendo os degraus da escada, começo a perceber por que ele não tentou me dissuadir de seguir os planos de Morfeu. Jeb se sente responsável pelo estado de papai. Ele acha que pode pegar a cura sozinho para que eu não tenha de enfrentar a possessão da Vermelha.

Consertar o País das Maravilhas não é a prioridade de Jeb. Ele só pensa em garantir a segurança de meu pai, de minha mãe e de mim. Entretanto, se for capturado no castelo, eles o usarão como um recipiente para a magia até que não sobre nada, como Morfeu disse...

Fecho as cortinas em volta de papai e desço as escadas correndo. Quando atravesso a cozinha deserta, sinto o terror ferver em minhas veias.

Disparo pela porta.

— Jeb!

Ele já está na última parte das escadas sinuosas, com a silhueta realçada pelas sombras e indo na direção da costa e do barco a remo.

— Jeb, espere!

Estimulo minhas asas a voar e pouso no mesmo instante em que ele pisa no último degrau. A areia parece uma lixa na sola de meus pés quando me coloco entre ele e o barco, fora do alcance da luz do farol.

— Não faça isso.

Ele fica tenso, a camiseta apertando seus músculos.

— É o meu dever.

— Não é culpa sua.

— Não se trata de culpa. Tem a ver com destino. Quem tem a melhor chance de derrotar a Vermelha sou eu.

Faço uma careta.

— Do que você está falando?

— Me dê o devido crédito. Somos artistas. Conhecemos as cores, como elas se combinam. A magia da Vermelha e a de Morfeu. — Ele ergue o pulso, onde brilha a tatuagem. — Deve haver uma razão para a minha ser púrpura.

Fico de queixo caído.

— Você sabia? — Fico tão atordoada que nem me mexo quando ele passa por mim.

— Eu sempre soube. Quando você descobriu? — ele pergunta, desamarrando a corda da âncora do pilar.

— Quando eu vi suas salas por dentro.

Ele para. Exalando o ar com força, senta-se na proa do barco. Com os cotovelos apoiados nos joelhos, enrola a corda entre os dedos.

— Então você compreende por que não posso ir embora agora. Minhas criações precisam de mim. — Sua devoção mal dirigida me dói. — Além disso, este... ódio. Ele ficou grande demais para o mundo humano. Eu poderia ferir alguém. A Jen, a mamãe. Você. Eu seria igual ao meu pai.

Digo a mim mesma que meus olhos ardem por causa da maresia.

— Não. Você nunca será igual ao seu pai. Você decidiu conscientemente não ser. Mesmo com o veneno da Vermelha alimentando sua alma, você ainda é gentil comigo.

— De acordo com Morfeu, eu quase estrangulei você um mês atrás em nosso mundo. Quando fiquei louco por causa do suco de Tumtum no ateliê. Você ficou tão desesperada para escondê-lo de mim que fez um trato irrevogável com o diabo.

Fico tomada pela raiva. Então Morfeu contou a ele. Tudo porque não tive habilidade suficiente para fazê-lo jurar que não contaria a Jeb. Bom, já chega de ser ingênua e descuidada com as minhas palavras. De agora em diante, só farei votos pela magia da minha vida que sejam vantajosos para mim.

É por isso que Jeb não conseguia pintar meu retrato. Não era o ódio da Vermelha, mas sua própria culpa por ter quase me estrangulado. Minhas entranhas se encolhem, mas é a empatia que faz com que me sinta assim, e não um frasco mágico dentro de uma toca de coelho.

Observo a corda escorregar pelos dedos de Jeb em movimentos graciosos, apesar da forma masculina de suas mãos.

— Eu não queria que você tivesse que lutar com o que aconteceu — digo. — Eu estava errada.

Ele dá de ombros.

— Não tenho tanta certeza, a julgar pelas coisas que criei.

— Não. É este lugar. A influência da Vermelha. Só precisamos que você passe pelo portão. Que se liberte do poder dela. Aí você voltará a ser você mesmo.

Ele balança a cabeça.

— Eu reprimi minha raiva durante anos. Vir para cá e me esconder nesta montanha me deu uma válvula de escape, trouxe tudo à tona. Agora que eu soltei as rédeas, não sei se consigo mais me controlar.

Seu rosto volta a se transformar no rosto daquele menino magoado. Morfeu estava errado. Não foi de mim que Jeb desistiu. Foi de si mesmo.

Eu me aproximo, a areia escoando sob meus pés, e percebo outra verdade.

— Espere... se você sempre soube da magia da Vermelha, estava fingindo para Morfeu, deixando que ele pensasse que estava enganando você.

— É. — Ele dá um sorriso sarcástico. — Enganei o enganador. Irônico, não? — Um quê de orgulho fica à mostra, fazendo seus olhos brilharem com a cor das folhas de outono.

— Você podia ter usado o poder dela contra ele. Podia feri-lo. Mas não fez isso. Por quê?

— Porque feri-lo seria ferir você.

A confissão faz meus joelhos amolecerem. Sento-me ao lado dele na proa. Minhas asas descansam, flácidas, dentro do casco do barco, e a areia quente preenche o espaço entre os dedos dos pés.

— Não entendo como você não vê.

— Ver o quê?

— Eu sou a prioridade, acima de seus próprios sentimentos. Você tem controle completo sobre a sua raiva. Tanto que escolheu não ferir Morfeu porque ele é meu amigo.

A coluna de Jeb se retesa.

— É mais do que isso. Você quer ficar com ele. Viver com ele no País das Maravilhas. Para sempre. — Ele bate com a corda na própria coxa de uma maneira jovial, mas não tem como esconder o peso em seus ombros.

Sinto um nó na garganta.

— Do que você está falando? O voto que eu fiz foi só por vinte e quatro horas.

— Na noite do baile — Jeb diz, levantando-se. — Depois que eu ajudei a sua mãe com seu pai. Quando voltei para o seu quarto. — Ele me conduz para fora do barco.

Eu me ponho de pé e esfrego os braços, sentindo frio com o rumo que a conversa está tomando.

— Jeb, aquele beijo não deveria ter acontecido. Não era minha intenção.

— Mas, quando eu voltei hoje, você estava no quarto dele. Suas roupas estavam amassadas e você corou.

Minhas bochechas pegam fogo. Então ele percebeu.

— Eu sinto muito. — E estou tão cansada de desculpas esfarrapadas. — Não consigo equilibrar muito bem o que sinto. Meus dois lados... estão sempre brigando. Não estou tentando manipular você. Nem a ele.

A testa de Jeb se franze ainda mais.

— Eu sei que você não está brincando conosco. Também sei que não é o tipo de garota que beija um cara de graça.

— Você está certo. Da primeira vez foi para pegar meu desejo de volta. E a segunda... era para ser um beijinho no rosto. Ele transformou em algo mais.

— Ora, por favor! — Jeb grita, fazendo-me recuar. — É isso que me deixa maluco. Que você não possa admitir para mim nem para você mesma. Você o beijou porque sente alguma coisa por ele.

Sentir... uma palavra tão simples, exceto a uma rainha intraterrena mestiça para quem não só a vida está se desfazendo, mas o coração também. Aperto os lábios.

Meu silêncio provoca uma expressão perturbadora no rosto de Jeb... como uma tempestade formando-se lentamente.

O barco atrás dele começa a tremer, uma manifestação física de sua agitação emocional. Dou um pulo quando um ruído alto parte as emendas da madeira. Os painéis se abrem, deixando nada mais do que um esqueleto emaciado.

— Eu tentei falar para você — ele diz em tom monótono e inquietante. — Não posso confiar em mim mesmo.

Levanto os ombros.

— A raiva não foi dirigida a mim. E nunca será.

— Não importa. Porque está acabado.

— Não acredito em você. — Procuro debaixo da camiseta e tiro o anel que ele pintou na sala do salgueiro. — Eu vi todos os sonhos lindos que você tem para nós.

Cerrando a mandíbula, ele pega meus ombros — com cuidado, como se eu fosse feita de vidro — e me manobra de modo que eu fique a alguns centímetros do barco, perto o bastante do oceano para que a maré cálida lamba meus dedos.

— Tinha — ele corrige. — No passado.

Com o olhar fixo no chão, ele agita a mão sobre a areia. Cada grão cintila com luz vermelha e dois buracos de abrem, sugando-me até os tornozelos. Eles se fecham sobre meus pés. Tento me mover, mas estou presa.

Fico totalmente confusa.

— Jeb?

— Outra coisa que seu príncipe das mariposas não sabe. Aprendi a separar as duas linhas de magia. Eu coloquei seu pai em transe para dormir antes. Morfeu foi só um adereço. Pena que não controlei os poderes dele na noite do baile. Talvez você tivesse escolhido a mim. Aí eu poderia dar todas as coisas que queria a você, em vez de só sonhar com elas. — Ele desliza o cordão com o anel pela minha cabeça e o mergulha na água até a linda faixa de diamantes se desintegrar em uma poça de tinta. Só resta a chave do diário.

Enraizada como uma erva daninha, não posso fazer nada além de assistir.

Ele recoloca o cordão em meu pescoço e faz o barco voltar à sua glória anterior com um floreio das mãos.

Eu recupero a voz.

— Mas eu escolhi você!

De costas, ele limpa o banco. Uma brisa faz seu cabelo esvoaçar, tornando-o ainda mais desgrenhado.

Estico o braço e seguro o bolso traseiro de sua calça jeans.

— Jeb, não faça isso.

Ele tira meus dedos e sai do meu alcance.

— Fazer o quê? Ajudar você a conseguir o que quer? — Ele recolhe a corda para o casco. — Quando seu amiguinho mágico estava com as asas em volta de você no seu quarto, você disse a ele que estava só pedindo mais um pouco de tempo. Você disse que a eternidade valia esse preço.

Só consigo soltar um suspiro.

Eu não fazia ideia de que ele estava ouvindo no corredor antes do beijo. Eu tinha tocado o rosto de Morfeu com os lábios, um beijo inocente. Jeb não viu isso, porque as asas de Morfeu me envolveram somente quando ele transformou o beijo em algo mais. Jeb viu o que Morfeu queria que ele visse. Mas pior do que o que Jeb viu foi o que ele ouviu. O que saiu da minha boca.

Às vezes, as palavras falam mais alto do que as ações.

A compreensão me açoita a mente, feroz e cortante como uma lâmina.

— Você precisava de tempo para terminar comigo — Jeb diz. — E eu tinha acabado de pedir você em casamento. Eu esperava a eternidade, mas você já a tinha planejado com ele. — Jeb lança o barco na água e pula rapidamente para dentro a fim de não molhar as roupas. Ele se senta, encarando-me, com o remo na mão.

A espuma da maré bate em meus tornozelos, derretendo minha meia-calça até expor as canelas. Tensiono os músculos da coxa e torço as panturrilhas. Mas a areia me prende como se fosse cimento. Ele está prestes a acabar com a própria vida, abdicar de tudo, e tudo pelo que ele acha que eu quero.

O diário no meu peito brilha, mas não consigo desacelerar os pensamentos o bastante para usá-lo. Minha mente está tão inútil quanto o corpo.

— Espere! — Tento alcançar a proa, mas ela escorrega sob meus dedos conforme a maré puxa o barco para o oceano. — Está tudo fora de contexto, entende? Eu não disse que queria terminar com você!

Jeb desliza para fora do meu alcance.

— Por que outro motivo você estaria pedindo tempo se não fosse para me dispensar? Eu entendo. Eu tentei estrangular você. Não sou digno de confiança. — Ele arrasta os remos na água até estar a vários metros de distância.

Não. Não posso permitir que ele acredite nisso. O único arsenal que tenho é a verdade. Meu voto para com a Marfim dizia que eu não poderia contar a ninguém sobre a visão de um filho meu e de Morfeu. Mas a perspectiva da minha imortalidade não contraria nenhuma regra.

— Eu posso ter dois futuros. Um com você no reino mortal. Depois, mais tarde, como rainha intraterrena. O que você ouviu na noite do baile era eu pedindo a Morfeu que desse espaço a mim e você. Que esperasse que minha vida humana terminar.

Jeb para de remar. A água bate no casco, levando o barco para mais longe. O farol faísca sobre ele, e seu piercing reluz enquanto ele me observa.

— Como isso pode ser possível?

Tento explicar que vou envelhecer no reino mortal, mas não morrerei. Que, quando estiver velha e frágil, posso falsear minha morte e ir para o País das Maravilhas. Que, uma vez que a coroa seja colocada em minha cabeça, retornarei à idade que tinha quando me tornei rainha.

O que não digo é quanto dói pensar em sobreviver às pessoas que amo, deixar minha família humana para trás. Não posso dizer isso porque a dor de Jeb me preocupa mais uma vez.

— Então, depois que todo mundo morrer, você vai para o País das Maravilhas e terá dezesseis anos para sempre? — O tom amargo de sua voz me fere como um espinho. — Eu estarei morto. E você passará a eternidade com ele. O que é que eu devo achar disso, Al?

Eu cerro os dedos, preocupada que ele possa partir o barco novamente e cair na água.

— Não sei.

— Mas eu sei. Eu vou ao castelo, pego a cura para seu pai e mando você e Morfeu para sua vida de felicidade. Aí você pode pular a parte chata do mundo real e ser eternamente jovem agora mesmo. Quem é que não gostaria disso, não é?

— Jeb, não! — Tenho de forçar minhas cordas vocais e isso mostra quanto ele está longe da margem. Estamos gritando um para o outro e nem percebemos.

Na verdade, ele está se distanciando sem ter de remar.

Um brilho vermelho ondula a água, iluminando as profundezas com pulsações, como se houvesse um coração vivo lá embaixo. A cada vibração, o barco de Jeb fica uma onda mais perto da margem oposta e da saída. Ele está controlando o oceano do mesmo modo como controla tudo o mais aqui.

— As areias vão soltá-la quando eu tiver partido, e você pode ir ficar com seu pai — ele grita a distância. — Amanhã de manhã, você estará a caminho do País das Maravilhas com Morfeu.

Lágrimas de frustração salpicam meus cílios. Aqui estamos nós novamente, em um mundo místico e hostil, brigando um com o outro em vez de enfrentarmos os perigos que nos aguardam.

— Você não tem ideia do que eles podem fazer com você!

Simultaneamente, puxo as pernas e bato as asas até meus ligamentos parecerem prestes a se romper. Quanto mais me esforço, mais quente fica o diário. Determinada a detê-lo, relembro passo a passo como usei o pequeno caderno como uma catapulta para meus poderes no quarto de Morfeu.

Quando o brilho carmim penetra em minhas veias, eu redireciono o fluxo, lançando-o ao oceano. Dá certo, produzindo uma onda que reverte a direção do barco para mim. O farol pisca, iluminando Jeb de pé no barco. Equilibrando-se graciosamente, como um surfista, ele joga os remos de lado. Apesar da distância entre nós, posso jurar que vejo um sorriso de escárnio.

Isso atiça minha metade obscura. Ela aprecia o desafio.

— Quer brincar, não é? — eu sussurro.

Seu cabelo chicoteia a cabeça. Ele ergue o punho tatuado — que brilha em púrpura, feito um farol — e compele outra onda, mais alta do que a minha. A água o arremessa na direção da margem oposta. Em resposta, faço o mesmo, atraindo-o de volta para mim. Nosso cabo de guerra aquático vai ficando mais violento, nossa determinação dançando em algum nível consciente até que o oceano vocifera e o cospe.

Jorros fortes açoitam nosso cabelo e nossas roupas. Um borrifo derrete minha meia até a metade da coxa e deixa a barra da saia em frangalhos. Uma onda perdida quebra sobre as costas de Jeb, deixando-o seminu.

Uma centelha de eletricidade percorre o ar entre nós — não visível, mas visceral, como em todas as vezes que jogávamos xadrez e lutávamos contra nossos sentimentos um pelo outro. É isso que entra em colisão e provoca a fúria do oceano num rugir de espumas — mais ainda do que nossa magia.

Percebo a bolha vermelha gigante nas profundezas tarde demais para detê-la, um acúmulo de nosso poder que incha até explodir em uma onda imensa. Jeb é arremessado na água. Sua cabeça vem à tona por um instante sob o brilho do farol antes de o barco emborcar e bater nele, fazendo-o desaparecer na onda.

Eu o matei.

— Jeb! — eu grito. A muralha de água vem na minha direção, bloqueando o céu estrelado. O chão treme e me puxa para baixo até a areia engolir meus joelhos, incrustando-me ainda mais fundo.

Eu me curvo na cintura, cavando até meus dedos doerem e sangrarem. É inútil. A onda se curva e se arqueia — dois andares acima de mim. Envolvo meu corpo com as asas, os braços sobre a cabeça, e me preparo para o impacto.

A água arrebenta — cobrindo-me e expulsando o ar de meus pulmões. Um grito silencioso irrompe da minha boca em bolhas. Minhas asas se abrem e se debatem, arranhando o corpo. Tento controlar a vontade de respirar enquanto minha espinha se contorce e se curva.

A água turva me cega. A salmoura penetra as narinas e entra pelos lábios. Debatendo-me para segurar o diário e a chave no pescoço, fico aliviada de ainda encontrá-los ali, embora não consiga me lembrar da razão. Meus braços, pernas e asas ficam moles e eu me dobro.

Uma pressão quente me pega pela cintura, colocando-me em alerta. A areia solta minhas pernas. Jeb me segura em seus braços e nós emergimos juntos. Busco desesperadamente respirar e me engasgo com a água salgada.

Depois de me arrastar para a margem, Jeb desmorona ao meu lado, cuspindo água. O oceano se dobra gentilmente sob seu comando, como se não estivesse tentando nos separar alguns segundos antes.

Minhas asas se enrugam nas costas e eu as absorvo, a pele pinicando na areia. Todas as minhas roupas sumiram — tudo, exceto a lingerie, ensopada e grudada no corpo. Minha pulsação chega ao pico quando percebo que as roupas de Jeb também sumiram, exceto pela cueca samba-canção lilás ensopada que parece muito com o tecido da camisa de seu smoking.

Apoiado nos cotovelos, ele me vira para encará-lo e afasta cachos úmidos do meu rosto. Ele vira o diário e a chave, ajeitando-os atrás do meu pescoço para que não se interponham mais entre nós.

A água escorre por seu queixo barbado, acumulando-se na ponta do piercing.

— Eu não disse para você nunca mais me assustar desse jeito?

Minha mente clareia instantaneamente: foi isso que ele disse quando enfrentamos o oceano de lágrimas original no País das Maravilhas.

— Você voltou por minha causa. — Eu me aperto a ele, encho as palavras com o máximo de respeito e gratidão com que respondi um ano atrás.

Suas mãos seguram minha cabeça.

— Eu sempre vou voltar por sua causa, Al — ele sussurra.

Seguro seus pulsos e as batidas de nossos corações são só o que nos separa.

— E é por isso que você será sempre melhor do que seu pai.

Suas feições ficam mais ternas, uma expressão pungente, e ele se aproxima para roçar a boca na minha, deixando um traço quente de sal, tão ilusório quanto uma lágrima. No momento em que começo a responder, ele quebra o contato e se afasta.

Eu contenho um suspiro.

Ele se senta apoiado nos joelhos, parecendo pensativo demais para o meu gosto. Já vi essa cara antes. Ele está prestes a me repreender por correr riscos.

— Não vou me desculpar por ter sido imprudente. — Minha réplica defensiva sai antes que ele consiga abrir a boca. — Quanto mais penso como uma intraterrena, mais conivente e forte eu fico. Isso é ruim num lugar como este?

— Está certa. — Sua confissão me choca. — Seguir seus instintos mais obscuros é a única maneira de sobreviver e dominar esses mundos. Agora eu entendo.

É claro que ele entende. Ele me conhece desde que eu era uma menina esquisita no ensino médio. Conhece meu lado humano melhor do que qualquer pessoa. E agora, depois de se tornar também um intraterreno, ele tem outra percepção do meu lado que pertence ao País das Maravilhas.

Meu corpo fica todo arrepiado quando uma brisa nos envolve.

Ele fica de pé. Sua pele nua brilha sob a luz das estrelas, cada contorno lavado pela água e salpicado pela areia.

— Você está com frio. Vamos arranjar umas roupas.

Quando vou pegar a mão dele, seus olhos passeiam lentamente sobre minha lingerie.

— Onde foi que você arranjou isso? — Ele obviamente reconhece o tecido. — Como é que aquele baratão sabe as suas medidas, hein?

Franzo a testa e baixo o braço.

— Eu poderia perguntar a mesma coisa sobre a sua cueca. Você não sabe nem pregar um botão. Sempre dependeu da Jen para fazer essas coisas.

Ele para, de mandíbula tensa. Por sorte, o diário no meu pescoço pisca e o distrai. Ele pega o cordão.

— Este caderno... tem alguma coisa a ver com a sua tataravó, não tem?

— Como sabe disso?

— Você o usou contra a magia dela dentro de mim. Eu o vi brilhar com uma luz vermelha do outro lado do oceano. Foi isso que provocou a onda. Eu até... me sinto diferente.

— Sente? — Viro seu pulso para ver onde sua tatuagem brilha.

— É. Ainda sinto o poder dela. Só que está... domado.

Eu fecho a cara.

— São memórias que ela se forçou a esquecer. Elas são encantadas. Elas a odeiam e querem vingança.

Nós dois olhamos para a palma da mão dele, onde o diário deixou sua impressão. Ele larga o cordão e o pequenino caderno volta a balançar em meu pescoço.

— Al, você percebe o que isso significa? Não tem que deixar a Vermelha entrar em você para consertar o País das Maravilhas. Talvez Morfeu ainda não tenha percebido, ou talvez ele seja cretino demais para se importar, mas você tem a chave para reverter a destruição dela bem aqui. E você já aprendeu a dominá-la.

Eu respiro fundo. Por que não pensei nisso? Posso atiçar suas memórias contra o feitiço destruidor que ela colocou no País das Maravilhas, usá-las para fazer tudo voltar a ser como era.

Sinto uma pressão no peito, um lembrete de que tenho de enfrentar a Vermelha, reparar meu coração e dar um fim a essa coisa entre nós. Mas minha maior prioridade é curar papai e levá-lo, com Morfeu e Jeb, ao País das Maravilhas para ajudar mamãe. Vou reverter o feitiço da Vermelha sobre as paisagens, e depois voltar e terminar as coisas por aqui.

— Muito bem. — Delineio o novo plano em voz alta: — Só temos que pegar a cura para o meu pai e em seguida podemos sair daqui.

Jeb olha para mim.

— Vocês podem sair daqui.

— Jeb, por favor.

— Não tenho razão para voltar.

Quero gritar EU!, mas não faria diferença.

— Você vai conseguir esquecer sua mãe e Jen? Elas precisam de você.

Não há como mascarar a tristeza em seus olhos quando eu menciono sua família.

— Elas estão melhor comigo aqui. Ainda posso cuidar delas... ser uma ligação para os guardas nos portões, proteger o reino humano do lado de dentro.

— Então, seu plano é ficar e desviar a magia da Vermelha para sempre?

Um músculo em seu queixo tem um espasmo.

— Pelo menos assim eu posso ter a eternidade. — Ele estende a mão, insistindo para que caminhemos para o farol.

Uma sensação de enormidade me assola: papai estava absolutamente certo. Sou a única que pode convencer Jeb a deixar este lugar. Tenho de mostrar a ele que a vida vale a pena fora destas terras horríveis, mesmo com as limitações mortais.

Entrelaço meus dedos nos dele e o puxo para baixo, para ficarmos cara a cara. O terreno arenoso espeta meus joelhos nus.

Ele enfia um punho na areia.

— O que está fazendo?

— Lembrando a você que ainda sou humana o bastante para precisar de você. — Passo as mãos em seus bíceps e peitorais. Água e areia se misturam, formando trilhas granulares nos cabelos de seu peito. Ao meu toque, sua respiração relaxa e os cílios longos e negros se fecham numa bela agonia.

Estico os dedos e abro a mão para comparar suas marcas de cigarro com minhas cicatrizes. Seus músculos respondem com pequenas contrações, sua constituição forte onde a minha é suave.

— Jeb.

Ele abre os olhos e nosso olhar se encontra.

— É por isso que nós combinamos. Porque somos ambos machucados, de uma maneira que não pode ser curada. Nem mesmo pela magia.

Seu olhar continua firme.

— Eu te amo — sussurro. — Você ainda me ama?

Ele se inclina para mais perto, firmando o punho no chão ao lado dos meus quadris.

— Nunca vou parar.

Meu estômago dá um salto mortal.

— Então venha para casa.

— De que adiantaria? — A boca dele está a poucos centímetros e a pergunta escalda meus lábios. — As coisas nunca voltarão a ser como eram.

Meu queixo fica tenso.

— Tem razão. Porque nós dois crescemos e mudamos. Porque agora compreendemos um ao outro em todos os níveis. Eu vi os seus segredos. Você viu os meus. Podemos viver o presente. Sem pensar na eternidade.

Ele ergue a mão coberta de areia e toca minha mecha vermelha.

— Você está sendo ingênua. Morfeu não vai deixar. Ele vai acenar com sua eternidade mágica diante de mim, sabendo que é algo que eu nunca poderei dar a você. Sabendo, como humano, que não tenho nada a oferecer que se compare a isso.

Ele começa a se afastar, mas agarro sua cintura pela cueca perto do abdômen. Ouço seu respirar rouco quando ele olha para a minha mão, e depois para o meu rosto.

— Você está errado. Tem uma coisa que você já ofereceu que é tão mágica e rara quanto a eternidade. Você ofereceu envelhecer comigo. Isso é algo que Morfeu não pode fazer. — Corro os dedos por seu queixo com barba por fazer. — Eu não tive a oportunidade de dizer que sim, quero me casar com você.

Por um instante, os olhos de Jeb brilham com a luz da esperança.

— Você ainda quer? — pergunto.

Ele passa os dedos pelo meu cabelo, tão forte que tocam meu couro cabeludo.

— Não existe outra pessoa com quem eu queira passar a vida. Criar uma família. Mas você fez um voto para Morfeu. Vinte e quatro horas sozinhos. Ele vai fazer de tudo para impedi-la de voltar para o reino humano. — Ele pressiona a testa contra a minha. — Eu lutaria por você, Al. Até morrer. Só não sei mais combater magia sem usar magia.

Então, sou eu a razão pela qual Jeb não quer ir embora nem abdicar de seu poder. Sempre fui eu.

Sua expressão angustiada marca minhas entranhas a fogo. A promessa de Morfeu no dia em que fiz aquele voto dança no limite da minha alma: Eu lhe mostrarei os encantos do País das Maravilhas, e, quando estiver embriagada com a beleza e o caos pelos quais o seu coração tanto anseia, eu a acolherei sob as minhas asas e farei com que esqueça que o reino humano um dia existiu. Você nunca mais desejará deixar o País das Maravilhas, nem a mim.

Não é que Jeb não confie em mim. É que ele sabe o que pode acontecer. Morfeu sempre encontra uma forma de vencer. Ele é o mais manipulador e o mais brilhante estrategista que já conheci.

Mas ele encontrou uma adversária à altura. Ou melhor, ele a criou.

— Você não precisa lutar por nós. — Afago o pulso tatuado de Jeb. — Posso arranjar para que Morfeu nos deixe em paz.

Jeb faz uma careta.

— Está brincando, certo?

— Não. — Minha voz é resoluta e forte, quase tão forte quanto a de Morfeu quando ele me contou o segredo para ter o controle: Quando você conhece a fraqueza das pessoas, é fácil manipulá-las.

Jeb toca meu rosto, como se tivesse ficado abalado pela seriedade do meu tom.

Eu poderia argumentar que Morfeu causou isso para si mesmo ao forçar Jeb a viver sabendo que quase me estrangulou, apesar de nosso trato... ao sempre manipular toda e qualquer palavra, ação e promessa em seu benefício. Eu poderia dizer que ele foi um bom professor e que, enfim, estou pensando como uma intraterrena. Como ele.

Mas não se trata de vingança. Trata-se de influência. Morfeu e eu temos a eternidade para acertar as coisas entre nós, mas Jeb tem somente uma vida. Ele já teve sua parcela de tristezas. Sou eu quem o faz feliz, e ele faz o mesmo por mim. Então, devemos passar a vida de Jeb juntos.

— Jebediah Holt — digo, com a palma da mão cobrindo o peito, numa promessa. — Eu juro, pela magia da minha vida, que você será meu primeiro de todas as maneiras... no casamento e em tudo o que ele implica.

Seu rosto se abre em surpresa e espanto, como se eu lhe tivesse oferecido a Via Láctea e todas as galáxias ainda desconhecidas.

— Espera, você acaba de...?

Antes que ele termine, sinto um espasmo atrás do esterno que me deixa sem ar. Meu coração vacila por um instante, como um peixe pulando por trás das minhas costelas. Eu gemo e aproximo os joelhos do peito.

Jeb esfrega meus braços.

— Al, você está bem?

Encolhida, começo a desenrolar o corpo lentamente. Meus dedos se enterram na areia para resistir à terrível ferroada.

— Estou bem. É... é só uma câimbra. — A mentira tem gosto amargo como sangue.

E se a Vermelha colocou um feitiço em meu coração para me controlar? Para me dobrar à sua vontade? Toda vez que eu me afasto do caminho dela para o País das Maravilhas, sou punida com uma dor agonizante. Do mesmo modo como ela usou minhas veias como cordões de marionete quando compartilhou meu corpo no ano passado.

Não posso deixar que ela vença. O amanhã chegará logo e tenho de convencer Jeb a partir conosco. Se eu não conseguir, ele vai morrer.

Aperto a mão dele, ignorando a dor.

— Só você pode me libertar das amarras desta promessa. Morfeu nunca me pedirá para quebrá-la. Preciso da minha magia para ser a rainha que ele sempre me treinou para ser. O bem do País das Maravilhas é a única coisa neste mundo que ele colocaria acima dos próprios desejos.

Jeb fica de queixo caído. Ele dá uma meia risada.

— Usar seu papel como Rainha Vermelha para barganhar. É bem engenhoso.

Afasto sua franja escura.

— Tenho grande potencial como diplomata, não? — A provocação é um estratagema para ele não perceber que estou lutando para poder respirar sem que meu peito doa. Tenho de chegar à Vermelha. Forçá-la a desfazer tudo o que fez.

Jeb sorri — um genuíno sorriso de Jebediah Holt, completo, com covinhas e tudo. Que linda distração.

— Eu te amo, menina do skate.

O apelido abre caminho em mim, doce e reconfortante.

— Diga de novo.

— Eu te amo.

— Não... a outra parte — imploro.

Ele puxa meu corpo para junto do seu de modo que as bocas se unem num beijo terno e quente.

— Menina do skate — ele sussurra junto de mim, tirando o cabelo do meu rosto.

Nós nos beijamos novamente — seu toque não mais ilusório, mas confiante e urgente. Ele me deita, cobrindo meu corpo com seu delicioso peso enquanto me provoca até eu abrir a boca. Seguro seu rosto para saborear os movimentos de sua mandíbula, o sabor da pele represado nas gotículas deixadas pelo oceano, a sensação causada pelo dente incisivo junto à minha língua, reconhecendo minhas partes favoritas dele.

— Senti saudade, Al. — Seus beijos percorrem meu queixo e pescoço e descem até o centro da clavícula, seguindo os traços da água seca. O fogo que queima atrás de meu esterno torna-se tolerável junto aos seus lábios. Eu suspiro e arqueio o corpo junto a ele, mas ele para subitamente.

— Shhhh. Ouviu isso? — ele murmura.

Uma cacofonia surge de algum lugar a distância, abafada pela maré tempestuosa: asas batendo e guinchos agudos. Levanto a cabeça e vejo um bando de animais do tamanho de condores voando na nossa direção. Pássaros trogloditas estão montados em suas costas, usando capacetes de mergulho que parecem máquinas de chiclete feitas de latão com visores de vidro.

— Morcegos! — Jeb grita, rolando para o lado. — Corra para o farol agora!

 

 

16


A Corrida Eleitoral
Mortífera

A paródia de Pisca, Pisca feita por Carroll me vem à cabeça, mas as criaturas gigantes que voam direto para nós são a antítese de tudo o que é caprichoso e pequeno. E elas não se parecem em nada com bandejas de chá.

Voos rasantes cortam o ar e revolvem nosso cabelo. Eu me engasgo com uma nuvem de areia. Jeb me empurra no instante exato em que um morcego mergulha sobre nós. Lustrosa feito couro carmim, a criatura mutante ganha o ar, levando Jeb para o céu em suas garras.

Um pássaro troglodita com cara de águia abre a janela de vidro de seu capacete e ri, sentado no dorso do morcego.

— Fácil de pegar como caramujo ao sol.

— Seu bobo. Manti quer a garota! — um outro grita de seu poleiro alado. — E lembre-se de que ela deve estar intacta!

— Então eu diria que chegamos aqui na hora certa — comenta um pássaro com bico de galinha. Seus compatriotas uivam de rir antes de apontarem as montarias aéreas para mim.

— Jeb! — eu grito.

— Vá para o farol! — ele responde lá do alto enquanto luta contra as garras que o envolvem.

Nada disso. Liberto minhas asas. Ao me lançar na direção de Jeb, três morcegos mergulham em mim vindos de direções diferentes. Tão absortos em seu alvo, os pilotos trogloditas não percebem uns aos outros. O morcego mais próximo abaixa seu pescoço de cisne. O centro do focinho em forma de estrela se abre, empurrando para fora um amontoado de tentáculos de quase dois metros coalhados de presas afiadas. Um dos dentes arrebata meu colar com o diário e corta o cordão.

Aos berros, estendo a mão para puxar o cordão da língua cheia de presas do morcego, mas ele engole o caderno. Os outros dois pássaros desviam no último segundo. Eu mergulho na hora H. Os morcegos colidem e desmoronam sobre o oceano com seus pilotos. Planando em uma corrente de vento, deslizo sobre a água e me elevo.

Vejo a silhueta de Jeb contra o céu estrelado. Ele se liberta do captor e fica pendurado em uma garra ao mesmo tempo que convoca uma onda. A água se ergue o bastante para que ele se jogue nela. Ele desliza sobre uma prancha de espuma na minha direção, me pega pela cintura e nos leva sobre ela até a entrada do farol.

Nós entramos correndo e batemos a porta, trancando-a.

Lá em cima, papai ainda dorme. Jeb e eu caminhamos com cuidado para a vigia. Em meio a guinchos e asas gigantescas, nossa torre balança. Caem pedaços das paredes, formando uma fenda larga. Mais morcegos se reúnem na entrada, tentando cavar a rocha. O céu fica escuro quando eles começam a circular acima de nós, revezando-se para atacar nosso santuário.

O farol pisca sobre eles em intervalos, iluminando tentáculos terríveis e asas venosas. Mais e mais buracos surgem na torre, e as paredes não conseguem suportar as colisões.

Rajadas de vento provocadas pelas asas gigantes entram pelas aberturas. As cortinas que cobrem a cama de papai se agitam e minha pele nua sente frio.

Outro morcego martela a torre. É difícil manter o equilíbrio.

— São muitos!

— Não tantos — Jeb responde calmamente. Seus olhos reluzem de feitiçaria intraterrena. Com um movimento de seus dedos através da vigia, ciclones de areia se formam no terreno que circunda o farol. — Temos exércitos tão numerosos quanto os grãos de areia.

Inspirada pela sua engenhosidade, ergo a mão.

— E arsenais tão incontáveis quanto as estrelas. — Usando o truque que Morfeu certa vez me ensinou, dou uma nova missão ao céu noturno de Jeb: mísseis teleguiados.

As estrelas adernam na direção de nossos atacantes como gigantescas pedras em chamas, arrebanhando-os para os funis de areia de Jeb. Vários pássaros trogloditas evitam os ciclones, mergulhando sem os morcegos. Eles agitam asas deterioradas sobre o oceano, na esperança de escapar. Meus mísseis estelares os atingem, rasgando peitos emplumados e ceifando cabeças com capacetes. No fim, só restam os cadáveres — blocos alaranjados e cinzas negras surgem à tona entre a espuma das ondas.

Os ciclones de areia levam os morcegos para longe através da saída da sala.

Quando a poeira baixa, avaliamos o caos à nossa volta.

Eu rio com ironia, um som perplexo e sem sentido que parece completamente deslocado diante do que acaba de acontecer.

Jeb olha para mim e dá risada.

— Ainda formamos uma ótima equipe — ele diz, o cabelo flutuando ao vento.

— Como no País das Maravilhas, quando você não tinha nenhuma magia.

Ele não responde, só fica me olhando, pensativo. Desvia o olhar para fazer movimentos com as mãos sobre o chão cheio de destroços. A torre se reconstitui, os buracos se fecham aos poucos, até restarem somente alguns resíduos de poeira.

— Será que existem mais desses morcegos? — pergunto.

— Eles são indefesos sem os pilotos — Jeb responde. — Tenho que verificar como eles conseguiram entrar. O exército de pichações deveria tê-los impedido. Também preciso ter certeza de que as outras salas estão bem.

A aflição em sua voz me comove. Ele está preocupado com suas criações.

— Acho que seria bom vestirmos algumas roupas primeiro — eu o recordo.

Ele para, com o olhar atravessando meu corpo. Meus braços se cruzam instintivamente, embora tal modéstia pareça desnecessária depois de tudo o que prometi a ele. A chave em meu pescoço esbarra na parte interna do pulso e eu me lembro do diário perdido.

Como se percebesse meus pensamentos, Jeb franze a testa.

— O que aconteceu com o caderno?

— Um dos morcegos o engoliu. As memórias da Vermelha se perderam.

Ele pragueja.

O terror e a náusea me deixam zonza. Olho por sobre o ombro na direção da cama. As cortinas estão enroscadas nos pilares, deixando à mostra o rosto pacífico e adormecido de papai.

— Vai ficar tudo bem, menina do skate. — A voz de Jeb é suave e carinhosa. Ele passa a ponta de um dedo por minha asa esquerda, enviando milhares de centelhas excitantes que me percorrem a espinha.

— Espero que sim.

Ele me puxa para um abraço, acariciando meu cabelo encrespado.

— Vai, sim. Porque você não é mais só uma menina. Você é poderosa e corajosa. Uma rainha melhor do que a Vermelha jamais poderia pensar em ser. — O calor de seu torso nu penetra em meu peito, aquecendo-me até os dedos dos pés.

Um som sibilado surge através da vigia. Jeb separa nosso abraço para olhar a nuvem de poeira alaranjada e cintilante que entra por ela.

Eu suspiro de alívio.

— Chessie.

Jeb estende a mão para que ele pouse.

O pequeno intraterreno mostra um sorriso que é, na verdade, uma careta, pois, quando ele se materializa na palma da mão de Jeb, está de cabeça para baixo, a cauda curvada formando um ponto de interrogação. Amarrado à sua pata há um frasco com tampa de cortiça. No rótulo está escrito Neutralizador de Empedramento, logo acima de um desenho em preto e branco de uma mosca-escorpião.

— Você conseguiu a cura — Jeb diz, incrédulo.

— Obrigada! — Pego o frasco, tão aliviada que não consigo deixar de sorrir.

O intraterreno peludo dá saltos no ar, mas seus bigodes estão murchos.

— O que foi? — Eu me concentro em seus olhos rodopiantes. — Espere. Foi Morfeu quem pegou a cura? — traduzo para Jeb. — Ele foi até o castelo? Mas ele planejava ir amanhã.

Ele nunca faria algo tão espontâneo. A menos que estivesse realmente convencido de que eu não sobreviveria a um confronto com a Vermelha. Sou a única pessoa por quem ele se arriscaria, porque sou uma rainha e o País das Maravilhas é a maior prioridade dele. E, mais do que isso... porque ele me ama.

Minha alma se encolhe, com plena consciência do quanto eu o magoei esta noite. E ele nem sequer sabe.

— Onde ele está? — pergunto.

Quando a resposta surge dentro das pupilas de Chessie, eu caio de joelhos.

— Al. — Jeb se ajoelha ao meu lado e me força a olhar para ele. — O que ele disse?

Rilho os dentes com força para não gritar.

— Morfeu foi capturado. Ele está programado para ser o entretenimento das festividades de amanhã. A rainha vai colher seu coração.


Nós fazemos papai engolir o antídoto e Jeb o liberta de seu estado de sonho. Depois, nós nos revezamos para tomar banho, nos vestimos e explicamos a papai tudo o que aconteceu enquanto ele esteve adormecido. Nem Jeb nem eu mencionamos nosso compromisso. Parece errado dar-lhe algum motivo para comemorar enquanto a vida de Morfeu está por um fio.

Nosso plano volta a ser sair bem cedo pela manhã, quando os portões serão abertos. Escolhemos nossas roupas com cautela. Seria um erro ter a vulnerabilidade da água — roupas solúveis em uma missão tão arriscada.

Papai e eu usaremos a túnica e as calças do tio Bernie, enquanto Jeb se vestirá com o que sobrou de seu smoking do baile: colete de veludo com estampa azul-marinho e calças azuis. Combinado com uma camiseta da mesma cor de seu guarda-roupa pintado, o traje está completo.

Ainda tenho de contar a papai sobre o pequeno detalhe da possível possessão da Vermelha. Agora que perdi o diário, é a única forma de salvar o País das Maravilhas. Ele nunca concordaria com esse plano, se soubesse. Volto a mentir para seu próprio bem.

Enquanto Jeb e Chessie verificam as salas da montanha, papai fica de molho em uma banheira quente. Embora o antídoto tenha dissolvido a pedra, os músculos e ossos de sua perna ficaram um pouco danificados.

Ele sai mancando do banheiro, já completamente vestido e esfregando uma toalha no cabelo molhado.

— Tem alguma coisa para comer? Estou morrendo de fome.

Jeb me disse que isso aconteceria. É um efeito colateral do estado de sonho. Faço uma travessa com flor de mel e carne-seca de coelho e pego alguns pedaços para mim. As lanternas flutuantes lançam uma luz âmbar e sombras em torno de nós enquanto eu o observo engolir todo o resto. Fico imaginando se estava tão faminto quando mamãe o resgatou do País das Maravilhas. Afinal, ficou dormindo durante anos daquela vez.

Papai já se serviu três vezes quando Chessie e Jeb retornam.

Jeb está com a sacola de viagem de papai e o saco que contém meu vestido de asas de escorpião. Não consigo parar de me lembrar da reação de Morfeu quando abri a embalagem. Como ele me provocou e brincou, fazendo pouco de um gesto tão incrivelmente terno. Como esqueceu todos os cortes das beiradas afiadíssimas que deve ter aguentado até finalmente costurar todas as pernas da centopeia no lugar como uma borda protetora.

— As roupas de simulacro estão na sacola? — pergunto, tentando esconder o tremor em minha voz.

— Só encontramos duas. — Jeb limpa a tinta das mãos em uma toalha. — O quarto de Morfeu estava em ruínas. Todas as salas estavam. Havia alguns morcegos presos nas pichações. Foi assim que os trogloditas passaram pela entrada. Eles vieram pelo oceano e sacrificaram alguns para despistar. Não sei ao certo como eles acharam o caminho para a montanha, para começar. Eu não vi sinais do CC. Também não sei bem como eles sabiam que podiam usar a água da chuva para derreter as portas e todo o resto. — Ele procura parecer despreocupado, mas seu rosto está pálido.

Sei muito bem como é ver algo que você criou morrer. Um mês atrás, dei vida às chamas e depois tive de extingui-las para salvar meus companheiros de escola. Doeu como se tivesse perdido um pedaço de mim mesma.

Talvez tenha sido melhor assim. Talvez as partes obscuras e machucadas da alma de Jeb finalmente sejam deixadas de lado e ele possa abandonar este mundo e toda a amargura e as dúvidas... deixar tudo para trás sem pensar duas vezes. Com a exceção dos sonhos da sala do salgueiro. Espero que ele os conserve.

— A única coisa que restou no quarto de Morfeu foi este cabide de roupa — Jeb diz, despertando-me dos pensamentos. — Sabe o que é esta roupa dentro dele?

— Uma armadura — eu sussurro, sentindo-me paralisada quando as palavras de Morfeu voltam a me provocar: Espero que você vista isso quando for enfrentá-la. É a única armadura digna de sua perigosa beleza.

Minha intuição intraterrena desperta, e uma teoria ganha forma. Não é coincidência que somente um disfarce de invisibilidade tenha sumido, que os pássaros trogloditas soubessem como destruir o trabalho de Jeb, ou que, quando tudo derreteu, a sacola e o cabide de roupas tenham sido as duas coisas que restaram... porque são reais, não pintadas. Também não é coincidência que os pássaros tivessem ordens de capturar somente a mim.

Mordo o lábio.

— Al, no que está pensando? — Jeb insiste.

Papai levanta-se da mesa, com a perna esquerda à frente.

Passo a mão no cabelo molhado para esconder que meus dedos tremem.

— Morfeu sempre tem um plano de fuga. Foi por isso que ele levou um simulacro. Para ser capturado, ele teve que deixar que o capturassem. Alguma coisa fez com que ele mudasse o plano original. Talvez tenha até revelado algumas coisas de propósito. Tudo o que aconteceu nesta montanha esta noite foi uma jogada estratégica para nos forçar a ir buscá-lo. Por alguma razão, é importante que cheguemos ao castelo amanhã, e que um de nós... eu... esteja totalmente visível.

Papai bate o punho na mesa, fazendo a travessa balançar.

— Isso é suicídio! Temos que ir direto para o portão do País das Maravilhas enquanto todos estão preocupados com essa festa monstruosa.

— Eu irei. — Agarro o cabide de roupas. — Não importa por que o capturaram. Se foi intencional ou não, ele foi capturado, o que significa que seu disfarce também foi confiscado. Ele se colocou em perigo real. Não vou deixá-lo lá. E ele está contando com isso.

Não termino de explicar... que preciso salvá-lo porque meu lado intraterreno se apaixonou por ele. Não tenho tempo para lidar com os efeitos de admitir isso em voz alta.

Papai bate em sua coxa.

— Devíamos pelo menos tentar buscar reforços. Sem um disfarce, sou inútil. Não conseguimos enviar a pomba de volta, então o Bernard deve estar a meio caminho daqui, procurando por nós. Podemos encontrá-lo e pedir sua ajuda.

— Isso pode levar um dia inteiro — Jeb diz.

Eu balanço a cabeça.

— Morfeu não tem todo esse tempo.

A pálpebra de papai treme.

— Você não vai arriscar seu pescoço por causa daquele manipulador...

— Pai! — Tento fazer vista grossa ao seu preconceito. Papai não viu como Morfeu o ajudou quando ele foi picado e nenhuma das outras coisas corajosas que Morfeu fez no passado; todos feitos incríveis para um ser mágico solitário e egoísta.

Ele também não pode ver que bem lá no fundo meus instintos intraterrenos me dizem que a razão pela qual Morfeu arquitetou isso está, de alguma forma, relacionada ao bem do País das Maravilhas. Embora eu ainda não confie plenamente em seus métodos, compreendo os motivos. E se existe algo de que eu nunca duvidaria é de sua lealdade para com seu adorado lar.

Nosso lar.

— Concordo com a Al — Jeb diz, surpreendendo a ambos. — Você sabe que eu sou a última pessoa a defender o insetão. — Ele me lança um olhar carrancudo, assegurando-me de seu infinito desdém por Morfeu. — Não gosto das táticas dele, mas ele me protegeu enquanto estive aqui. Ele poderia ter me explorado para ter prestígio e poder. Por alguma razão, ele fez o que era certo. E, por causa disso, nós devemos levá-lo para o País das Maravilhas.

Antes, eu havia explicado a Jeb o que Morfeu disse sobre ele ser um recipiente, e mesmo assim ele não se intimida. Ele confia na minha força e no meu julgamento a esse ponto.

— Obrigada — sussurro.

Alguma coisa reluz em seus olhos antes de ele desviar seu olhar do meu: angústia. Ela corta com a destreza de uma lâmina. Sei que é por causa de meus sentimentos não expressos por Morfeu. Mesmo com tudo o que foi acertado entre nós, estou começando a compreender que pedir para Jeb viver uma vida comigo sabendo que terei um futuro com outro pode ser demais para qualquer mortal suportar. Só espero que isso não o impeça de atravessar o portão do País das Maravilhas quando chegar a hora, não importa o que isso signifique para nós.

Aquela sensação intensa e dilacerante cava mais fundo em meu coração. Viro as costas para mascarar minha reação e pressionar o polegar contra o esterno, indo na direção das escadas.

— Não pode estar falando sério — papai diz lá de trás.

Eu respiro superficialmente algumas vezes.

— Chegou a hora de eu enfrentar a Vermelha. Não posso mais me esconder. — Estou resignada quanto à batalha que me aguarda, sabendo que ela é a única que pode consertar tudo o que está errado, em mim e no País das Maravilhas. Dá certo alívio reconhecer isso.

— É uma armadilha! — papai grita. Ouço-o movendo-se desajeitadamente sobre sua perna ferida. — Que vantagem você teria em ser capturada?

Eu me viro para encará-lo. Jeb ressuscitou a sombra de papai. A sombria criatura segura os cotovelos dele por trás para ajudá-lo a equilibrar-se.

— A nossa vantagem — respondo — é que Jeb, Chessie e eu somos os únicos três seres neste mundo que podem usar magia. E, por essa mesma razão, você não pode me deter. Então, ou vem conosco e se esconde fora do castelo para nos dar cobertura ou espera aqui até tudo terminar. Eu amo você, papai, mas é o meu reino que está em risco, e esse é meu dever como rainha.

Jeb baixa o olhar. Papai cerra os dentes com tanta força que eu poderia jurar que o veneno da mosca-escorpião passou para o seu queixo. Mas ele não diz nem uma palavra sequer.

Na torre, desembrulho o vestido e admiro como as fileiras de asas reluzem sob a suave luz da lua — laranja, vermelho e preto contrastando feito sombras e chamas. Parece quase um sacrilégio afrouxar as pernas verdes cintilantes das centopeias, tão meticulosamente costuradas no lugar, para enfraquecer cada franja. Mas Morfeu aplaudiria a escolha. Na verdade, sinto que estou fazendo exatamente o que ele espera que eu faça.

Quando termino, tiro a chave do diário do pescoço. Ela é inútil agora. Cuidadosamente, visto o traje deslizando-o sobre minha pele. Ele me serve como se tivesse sido pintado em meu corpo, abraçando minhas curvas e alargando-se nos joelhos. O forro é feito de pele de coelho. Estou embrulhada em uma concha de conforto enquanto, por fora, só preciso usar minha magia para levantar as barras de centopeias e expor as bordas cortantes das asas, o que me deixa intocável.

Não consigo pensar em uma armadura melhor. Não ficarei diante da presença da Vermelha ou da Copas usando uma túnica de cavaleiro e calças largas. Neste vestido, farei o papel de Medusa, transformando minhas cruéis ancestrais em pedra ao revelar o lado terrível dessa beleza. Se os ferrões não tivessem sido removidos, eu poderia transformar a Copas literalmente em uma estátua, o que a faria abdicar do espírito da Vermelha com mais facilidade. Em vez disso, tenho um vestido perigoso o bastante para fazer a rainha sem coração pensar duas vezes antes de ignorar a mim e minhas exigências.

Coloco os protetores de ombros feitos de couro vermelho para preservar meus braços e em seguida visto a legging e calço as botas — que, é claro, têm o talhe perfeito. Perfeito para me levar direto à teia do guardião da sabedoria.

Não estou entrando nessa às cegas. Sei que Morfeu tem seus interesses. Só espero que seja por um bem maior, e que o plano seja infalível desta vez.

Do contrário, serei a maior de todas as idiotas por conduzir os dois humanos que mais amo para a morte.


Decidimos que algumas horas de sono são mais importantes do que Jeb alterar a paisagem em nosso benefício. Quando a manhã chega, está nublada e fria, mas pelo menos estamos descansados e prontos para a batalha.

Voamos na direção do castelo — Jeb e papai carregados por suas sombras e eu planando lá no alto em uma corrente ascendente de vento frio. A sombra de Morfeu segue atrás de nós sob as ordens de Jeb para que todos tenhamos um meio de escapar quando nosso assunto no castelo estiver resolvido.

O nascer do sol estria o horizonte em ramos vermelho-sangue espalhados pelo céu cinzento; tento convencer a mim mesma que não é um presságio. Nosso destino é um penhasco bem distante do castelo para evitar que sejamos vistos pelos pássaros trogloditas e seus morcegos, que patrulham as torres de tiro, mas próximo o suficiente para monitorar a entrada.

Chegamos a um afloramento de rochas que formam uma caverna. Eu aterrisso suavemente atrás de algumas árvores, querendo que Morfeu estivesse aqui para ver.

— O segredo está nos calcanhares — eu murmuro.

Chessie se enfia debaixo de meu coque frouxo, cutucando minha nuca. Jeb e papai pousam ao meu lado e nós espiamos por entre os troncos grossos. No lugar de água, o fosso que circunda as muralhas externas contém cinzas — os restos dos mortos. Um cardume de enguias gigantes de aparência pré-histórica, com saliências ossudas saindo das costas, como barbatanas de tubarão, nada em meio ao pó resultante dos massacres.

Não se parecem nada com as mascotes de casa.

Uma multidão heterogênea de mutantes está reunida nas margens externas do fosso, aguardando, como nós, que a ponte levadiça seja abaixada e os convide a entrar.

Embora convidar não seja a palavra correta. Não há nada convidativo neste lugar. Crânios gigantes cheios de presas descansam no alto das torres de vigia, como uma efígie, junto a caudas de esqueletos que circundam as torres em espirais. É como se uma legião de dragões tivesse sido presa ali para morrer, e depois se petrificado. As muralhas externas são inclinadas para dentro em um ângulo anormal, dando a impressão de que podem cair e esmagar todos que estão lá dentro a qualquer momento.

Um rangido alto acompanha o baixar da ponte e me revira o estômago.

— Precisamos ir até lá — Jeb diz.

Eu me viro para papai.

— Por favor, não fique bravo.

Ele suspira.

— Como eu poderia ficar? Sua mãe teria feito a mesma coisa. Sacrificado tudo para salvar alguém de quem gosta. Na verdade, foi o que ela fez.

Eu o abraço, inalando todos os cheiros de casa. Quando era pequena, aninhada em seu ombro, sempre me sentia segura. Isso nunca vai mudar.

— Obrigada, papai.

— Tudo bem — ele murmura junto à minha cabeça. — Eu compreendo. Mas não gosto.

Ele vai gostar ainda menos quando vir quem trarei de volta, além de Morfeu.

— Eu te amo, Borboleta — ele sussurra.

— Também amo você. — Ele me abraça por tanto tempo que preciso me afastar.

Suspirando, ele se volta para Jeb, para bater em seu ombro e entregar-lhe a adaga de ferro.

— Tome conta da minha menina.

Jeb segura a arma.

— É ela quem tem todos os recursos. Espero que ela tome conta de mim.

Antes que papai nos atrase mais um segundo, nós seguimos caminho.

Contornamos as árvores até o final do penhasco e descemos acompanhando um afloramento escarpado. Jeb manda sua sombra voltar para ficar com papai.

Enquanto esperamos para entrar na fila, Jeb estuda meu rosto, como se quisesse memorizar cada traço. Deslizo meus dedos enluvados por seu queixo, afastando alguns cachos ondulados e escuros.

Seu olhar fica mais intenso, cheio de emoções inomináveis.

— Vamos preparar você, gata.

Consigo dar um sorriso enquanto ele pega uma máscara peluda parecida com uma raposa de dentro do casaco e a coloca sobre meus olhos. Ele a pintou para mim, desenhando as fendas dos olhos sob medida e o focinho para encaixar na metade superior do rosto. Penas formam as orelhas, e ele até acrescentou antenas de borboleta. Com minhas asas e meu vestido, fico quase parecida com os insetos que um dia matei tão impensadamente.

Eu ajusto o traje de simulacro sobre o smoking e a camiseta dele. O outro disfarce está com os itens de pintura dentro da sacola de viagem que ele tem no ombro, pronto para Morfeu usar assim que o encontrarmos. Sei que, lá no fundo, ele espera encontrar seu sósia também, embora não tenha dito nada.

— Hora de nos misturarmos — Jeb diz, escondendo a cauda pendurada de Chessie dentro do meu coque.

Balanço a cabeça, concordando, mas ainda não estou pronta para tirar os olhos dele. É a única coisa que dá às minhas pernas a força para ficarem de pé.

— Lembre-se — ele continua. — Vamos seguir o plano. Fique a sós com a Copas, convença-a a entregar a Vermelha enquanto eu vou procurar na masmorra. Depois que pegar a Vermelha, corra para fora. Não se preocupe conosco. Estaremos invisíveis, e você pode voar. Vai dar tudo certo. Mande Chessie se alguma coisa der errado e nós encontraremos você.

Balanço a cabeça novamente. Tenho tanta coisa para dizer a ele: Obrigada por ter fé em mim, por sempre se arriscar por esta louca vida dividida que eu tenho — eu te amo e não quero perder você... Mas tudo o que consigo dizer é:

— Tenha cuidado.

— Até já. — Ele enfia a sacola debaixo do braço para mantê-la escondida sob o disfarce e começa a colocar o capuz na cabeça.

Como se tivesse repensado algo, ele para e entrelaça os dedos na minha mão enluvada, puxando-me para perto.

— Caso eu não tenha outra oportunidade de dizer... Primeiro, você está maravilhosa. — Ele passa o dedo sobre as marcas em meus olhos no ponto onde elas se mostram sob as bordas felpudas da minha máscara. — Segundo... — Ele vira minha mão e beija a palma coberta. — Você vai conseguir, minha rainha.

Respirando fundo, passo os braços em volta de seu pescoço. Ele me abraça forte, aperta os lábios contra o alto da minha cabeça e se afasta, colocando o capuz e desaparecendo.

Seus dedos invisíveis tocam meus dedos cobertos de couro, conduzindo-me para junto da corrente de criaturas grandes e pequenas. Com a reconfortante pressão de sua mão me dirigindo, entro no fim da fila.

Meu vestido vibra suavemente ao marcharmos pela ponte de madeira, uma melíflua subcorrente que nada combina com o nefasto ruído das enguias a dez metros abaixo de nós. Um arrepio me percorre a espinha quando Chessie se afunda ainda mais no meu cabelo.

Os convidados produzem gorgolejos, resfôlegos e zumbidos, desviando minha atenção do que está lá embaixo para o que se encontra adiante. Na aparência, eles se assemelham com os intraterrenos que encontrei no Banquete das Bestas do País das Maravilhas, um ano atrás... mais bestiais do que humanoides, alguns com plantas vivas crescendo na pele. Essas criaturas, porém, são distorcidas e nodosas e sofreram mutações por terem usado sua magia.

É um hábito difícil de largar, como provou a luta de Jeb para abdicar de seu poder. Talvez esta seja uma vantagem de deixar a Vermelha me possuir. Dará a Jeb mais estímulo para partir, caso minha promessa para o futuro não seja suficiente.

Ao sairmos da ponte, passamos por um pequeno pórtico coberto que se abre para o pátio, que tem cerca de três acres de largura. Elevando-se no centro, há duas estruturas esqueléticas de vinte andares, sinistramente parecidas com os restos petrificados dos dragões nas torres de vigia do castelo. Fico tão impressionada com essa visão que quase tropeço em uma cauda de réptil na minha frente. Uma boca arreganhada escorrega por suas escamas, indo da cara da criatura até o final da cauda, e late para mim feito um filhote irritado.

Peço desculpas e recuo alguns passos.

Jeb me firma por trás e eu volto a me concentrar em nosso entorno.

Quando eu tinha dez anos, papai e eu fomos a um circo no reino humano. Cenário ultravioleta, inquietantes fantasias fluorescentes — um pesadelo sob a luz negra, tão rico em sua atmosfera e personagens que criavam vida própria. Na época, não entendi por que me senti tão confortável em meio à grandiosidade bizarra de tudo aquilo. Só fui entender no ano passado, quando comecei a me lembrar de que as paisagens do País das Maravilhas têm as mesmas qualidades e de quantos sonhos passei lá junto a Morfeu.

Agora, cercada por habitantes de Qualquer Outro Lugar dentro deste pátio, não consigo deixar de recordar essas cenas. Com o céu encoberto e as muralhas baixas nos envolvendo, o pano de fundo escuro amplia o esquema de cores fluorescentes das fontes, das barracas montadas para a festa e das estátuas.

Jeb aperta minha mão três vezes, o nosso sinal. Como não posso vê-lo partir, olho para o lado, onde vários guardas reptilianos escoltam um mutante com cabeça de urso e corpo de macaco preso por algemas. Eles descem alguns degraus encravados na muralha do castelo. Posso apostar que estão se dirigindo à masmorra.

— Tenha cuidado — eu sussurro, embora saiba que ele já se foi. O calor de Chessie sob meu cabelo oferece um pouco de conforto.

Passo por um aglomerado de fontes. Um estranho sortimento de criaturas toca instrumentos musicais artesanais, compondo canções assombrosas com tambores de abóboras, violões de aipo e flautas feitas de juncos de rio. Fadas reluzentes rodopiam no ar e encenam um balé aéreo usando a água das fontes para propeli-las para cima. Elas guincham quando a água se transforma em um jato de vapor que queima sua pele desnuda. Saindo dali, correm para a beira das fontes e ficam gemendo enquanto cuidam de suas bolhas. Os espectadores bestiais ao meu lado riem e gritam palavras ofensivas, como se estivessem intoxicados pela violência. O vapor volta a seu estado líquido e as fadas cavalgam os jatos de água mais uma vez. As pequeninas intraterrenas devem ser movidas por uma compulsão à dor, pois continuam até seu corpo ficar tão ferido que elas morrem e viram montes de cinzas.

Controlo minha fascinação e viro o rosto.

Por toda parte que olho, esportes cruéis e jogos sádicos do mesmo tipo acontecem. Em um canto, dentro de uma barraca aberta, criaturas felinas cobertas por escamas, com cara de serpente e língua bifurcada, caminham nas quatro patas em cima de arames esticados bem no alto sobre um buraco em chamas. As patas macias fritam ao contato com o metal causticante e o cheiro nocivo de escamas chamuscadas enche o ar. Mais uma vez, noto pilhas de cinzas onde morreram participantes anteriores.

— Mais depressa! — uma criatura lanosa com musgo saindo das orelhas berra lá de baixo. — Chega de andar como gatinhos! Queremos um show! — Os participantes uivam e gritam, mas, mesmo mancando, voltam ao arame assim que pulam dele.

Dentro de outra barraca, os competidores se revezam para rastejar por um fosso cheio de besouros cujos exoesqueletos são reluzentes, prateados e cortantes como lâminas de barbear. Embora todos saiam cortados e sangrando, não hesitam em retornar para outra rodada.

Cerrando os dentes para tentar resistir a um desejo inquietante de andar descalça pelo fosso, caminho na direção do centro do pátio, onde guardas reptilianos rolam em duas bolas de vidro transparente — grandes o suficiente para abrigar um barracão de ferramentas — e as içam com cordas e polias para cima das estruturas esqueléticas de montanha-russa que vi pouco antes. Os guardas os fixam em declives íngremes que lançarão as esferas para a queda de trinta andares. A imagem me faz lembrar as corridas de bolas de gude que Jeb costumava fazer com seu pai, só que estas eram miniaturas.

Uma multidão se reúne e grunhe impaciente pelo próximo evento. Fico atrás, curiosa, mas mantenho os olhos abertos para qualquer sinal da Rainha de Copas. Depois de verificar se ninguém está olhando, cutuco a cauda de Chessie, o sinal para que ele comece a procurar Nikki. Ele deve encontrá-la e trazê-la de volta para mim. Sai voando, usando as sombras como cobertura.

Um homem alto com o porte de um deus grego e usando somente calças de cetim preto que colam em seus músculos sobe uma escada até o alto da rampa de madeira. Ele para na beirada da gigantesca moldura. Em vez de pés descalços, tem cascos prateados, embora as mãos sejam humanoides.

Sua pele lisa brilha feito cobre — um contraste enorme com seus olhos de um pálido azul. O cabelo branco cresce a partir da cabeça, correndo ao longo da nuca, e vai até as escápulas, como a crina de um cavalo. Um chifre espiralado de uns trinta centímetros desponta do dorso de seu nariz aquilino, centralizado entre as sobrancelhas.

Ele é deslumbrante. E, obviamente, está no comando.

Manti. Eu me aproximo da multidão barulhenta. Ele é a melhor pista para encontrar a Copas e a Vermelha.

— Se algum de vocês deseja me desafiar pelo trono do rei... — Sua voz profunda e melódica silencia o burburinho. — Esta é sua chance. — Ele ergue uma coroa dourada e sorri, mostrando dentes afiados como os de um cão e ofuscantes de tão brancos.

Alguém se mexe na multidão. Um ser leonino, andando em duas pernas como um homem, levanta a pata no ar.

— Eu o desafio! — ele ruge. O pelo dourado cintila sob a luz suave enquanto dois guardas portando lanternas o escoltam na direção da escada.

Quando chegam ao alto, os guardas abrem portas transparentes nas bolas de vidro para que Manti e seu oponente possam subir nas esferas. Cada guarda solta na esfera uma criaturinha peluda de dentro de uma caixa.

Embora os animais pareçam adoráveis e bonzinhos como filhotinhos de lulu da Pomerânia, o manticórnio e o leão eriçam o pelo e recuam, de olho nos companheiros.

— Que comece a corrida eleitoral! — um dos guardas grita quando as portas se fecham.

A multidão uiva no instante em que as rampas se abrem, lançando as esferas no jogo ao longo da pista distorcida com um som alto como o de um trovão. Não demoro para perceber por que Manti e seu oponente temiam a adição dos animaizinhos. As criaturas têm a habilidade de virar-se do avesso e tornar-se nada além de dentes. Respingos de sangue surgem na parte interna da esfera, manchando-a, à medida que os ocupantes tentam evitar a tortura cortante. Eles estão presos na companhia de piranhas peludas dentro de um aquário que gira.

Minha sensibilidade intraterrena me domina e me provoca o desejo de assistir. Cada participante tenta se equilibrar o bastante — apesar de estar sendo comido vivo e escorregando no próprio sangue — para aumentar o impulso de sua bola e ser o primeiro a terminar a corrida.

O globo de Manti chega à linha final e ele é rapidamente libertado enquanto o bichinho cortante lá dentro — ensopado de sangue — é enfiado novamente em sua caixa. Dois guardas ajudam Manti a ficar de pé, derramando o conteúdo de um frasco em sua garganta. Os buracos em sua pele são milagrosamente curados sem deixar cicatrizes.

A esfera do leão finalmente para e outros dois guardas o arrastam para fora. Ele foi tão mastigado que sua pelagem não existe mais — deixando no corpo inteiro uma enorme ferida aberta.

Os espectadores começam a entoar:

— Acabem com ele! Arranquem o coração!

Com passo fluido, Manti vai na frente. Os guardas arrastam a inconsciente criatura leonina até um poço de água redondo e profundo no solo, rodeado por pedras lisas.

— Para o poço do medo! — Manti grita.

Os guardas largam o leão lá dentro. Ele acorda e começa a se debater, uivando de terror, enquanto bolhas emergem e a água se torna vermelha. O que resta de sua pele é comido por uma reação ácida, até que alguma coisa o puxa para as profundezas. Alguns segundos depois, um objeto carnudo aparece na superfície. Manti o recolhe com cuidado e o coloca sobre uma almofada de cetim dourado, exibindo o coração que ainda bate para que todos vejam.

Eu deveria estar petrificada. Mas estou é furiosa. Pensar que a rainha planeja fazer o mesmo com o coração de Morfeu deflagra uma compulsão assassina dentro de mim. O País das Maravilhas é violento e bizarro, mas tem seu charme. Qualquer Outro Lugar está em outro nível de crueldade. Um hospício descontrolado.

Os apupos crescem, ensurdecedores, quando uma mulher requintada entra com graça na cena. Seu cabelo está repartido no meio, um lado cor de vinho escuro e o outro, carmim ardente. Seu vestido é, ao mesmo tempo, espantoso e lindo, assim como ela. Babados vermelhos e vinho cascateiam sobre uma anágua de tule preto. Isso produz um efeito de listras de zebra que se alarga para uma forma cheia e adorável que se arrasta no chão. Contas pulsantes e tremeluzentes do tamanho de feijões decoram as mangas que chegam até os cotovelos. Mas não são contas, na verdade. Ela está usando os corações dos seres mágicos em suas mangas.

Suas asas se parecem com as minhas: opacas e cravejadas de joias. Isso, mais as marcas nos olhos, a pele brilhante e uma pequena tiara de ouro, não deixa dúvida sobre sua identidade. Ela pode ter séculos de idade, mas parece jovem o bastante para ser a irmã de minha mãe.

Manti ergue a almofada para a Copas e ajoelha-se.

— Para ti, ó Majestade.

Ela coloca uma coroa dourada na cabeça dele e pega o coração. O sangue jorra entre seus dedos quando ela ergue o órgão ainda palpitante.

— Algum outro desafiador se sentindo um leão hoje? — ela pergunta, a voz melodiosa uma mescla de duas oitavas, como se estivesse cantando um dueto consigo mesma. Ou talvez seja a voz dela unida à da Vermelha.

Eu vacilo, lembrando-me de como a Vermelha me usou como recipiente um ano atrás, de como me senti ao ter suas gavinhas enterradas em minhas veias e ser manipulada como um fantoche.

— Algum de vocês deseja desafiar o rei? — a rainha provoca uma vez mais.

Minha garganta fica seca. É agora ou nunca. Fazendo uma careta, tiro a máscara de raposa e a largo. Bato as asas para me elevar acima da multidão, alto o bastante para ser vista à luz das lanternas, mas fora do alcance de garras e mãos.

— Eu desejo desafiar a rainha! — eu grito.

A Rainha de Copas coloca o prêmio sangrento e macabro na almofada, franzindo a testa para mim enquanto limpa o sangue das mãos na crina branca de Manti. Vários dos guardas afastam os espectadores abaixo de mim e apontam flechas para minhas asas.

O lado cor de vinho do cabelo da rainha começa a tornar-se carmim, fio por fio.

— Abaixem as armas! Eu ordeno. — A voz da Vermelha irrompe da boca da Copas em uma rajada de ar. Um apêndice semelhante a uma trepadeira se desenrola do antebraço da rainha, uma manifestação física da possessão da Vermelha. A hera bate nos guardas. — Eu mandei abaixarem as armas!

Eles abaixam os arcos e recuam.

— Não! Quem está no comando sou eu — grita a Copas, com a voz uma oitava acima. Ela luta contra a protuberância tentacular da Vermelha, os cachos cor de vinho voltando a aparecer. — Capturem a garota e tragam-me seu relógio da vida! Ele é especial. Será o orgulho da minha coleção.

Confusa com sua ordem, bato as asas com mais força para permanecer no ar e fora de alcance.

A rainha faz um sinal para os guardas. Dois novos apêndices de hera se libertam de suas mangas e trancam os dois pulsos.

— A garota deve ficar intacta — sibila a Vermelha, enroscando as gavinhas nos braços da Copas até eles ficarem presos na cintura.

A rainha luta com as vinhas e seu cabelo pisca — de vermelho-vivo a cor de vinho. Os guardas se remexem, sem saber a qual rainha devem obedecer. Até Manti parece confuso. É como se eles tivessem aprendido a duras penas que devem ser leais à rainha que ganhar o controle do corpo.

— A garota veio por vontade própria — a Vermelha argumenta —, como Morfeu previu que viria. Seu corpo não deve ser ferido. Ela está aqui para a cerimônia, e esta plateia deprimente servirá de testemunha. — Com isso, todo o cabelo da rainha assume a cor carmim.

Cerimônia. Morfeu deve ter explicado nossa proposta para que a Vermelha habite meu corpo e saia deste mundo. Presumo que eles, de alguma maneira, tenham convencido a Copas.

Mas o que uma cerimônia tem a ver com isso?

— Eu não estava ciente de que precisaríamos de testemunhas — grito, pairando mais alto ainda.

Algo se mexe atrás da rainha. Seus súditos e criados se afastam para abrir caminho e Morfeu aparece. À primeira vista, fico emocionada por vê-lo solto e ileso. Então, percebo como está vestido e à vontade ali, parado em plena festa real.

Olhando para mim, ele tira uma cartola xadrez vermelha e vinho que complementa seu terno com listras vinho, camisa preta e gravata vermelha. As joias em seus olhos piscam num púrpura muito escuro e ele me oferece seu sorriso mais cintilante.

— Desça, amor. Não se intimide. Toda cerimônia de casamento precisa de testemunhas. Por que a nossa seria diferente?

 

 

17


Assuntos do Coração

O cabelo da Rainha de Copas muda repentinamente de um tom para o outro enquanto ela nos acompanha até uma sala do castelo. Três de seus guardas nos seguem. Isso me lembra de quando fui forçada a caminhar por um corredor no castelo da Vermelha com Morfeu, um ano atrás, a poucos minutos da morte certa na boca arreganhada do bandersnatch.

Uma morte da qual ele me salvou, lembro a mim mesma.

Cerro os dentes enquanto ele segura minha mão, os dedos entrelaçados nos meus. Decidi adiar a liberação de minha magia e do vestido mortal. Estou aceitando a farsa do noivado por três motivos:

Primeiro: Jeb está em algum lugar deste castelo e tenho de me manter calma por tempo suficiente para localizá-lo.

Segundo: estou tão aliviada que o coração de Morfeu não esteja na tábua de carne que ainda não consigo ter vontade de estrangulá-lo.

Terceiro: a expressão de Morfeu promete respostas e implora por cooperação. Há mais coisas que ele não está demonstrando.

Com tato, arrancarei a verdade dele quando estivermos a sós, que deve ser o que ele tinha em mente quando pediu um momento só para nós antes da cerimônia. A Vermelha concordou, mas cada passo que dou se torna mais pesado. Desconfio que ela foi condescendente porque vamos a algum lugar privado para transferir o espírito dela.

Sem a tábua de salvação do diário, pode ser que eu esteja me afogando. Aperto os dedos de Morfeu enquanto ondas de insegurança se agitam dentro de mim. Sustentando meu olhar, ele levanta minha mão e beija meus dedos enluvados. Está genuinamente feliz em me ver.

Isso mudaria num piscar de olhos se ele soubesse da promessa que fiz a Jeb. Embora meu lado humano tenha sempre pertencido a Jeb, embora em algum lugar do coração de Morfeu ele sempre tenha sabido disso, vai ficar furioso. Os dois podem ter aprendido a coexistir neste mundo, mas, se Jeb atrapalhar algum plano mestre, as coisas podem mudar da noite para o dia. Não contarei a Morfeu enquanto estivermos no castelo. Seu lado ciumento e feroz é imprevisível demais quando se trata do País das Maravilhas ou de mim.

Depois de subirmos dois lances de escadas sinuosas, passamos por um saguão de mármore. Centenas de caixas de sombras perfilam as paredes, exibindo uma seleção de corações de diferentes tamanhos e formas que batem loucamente em seus compartimentos. A cada batida surda, jatos vermelhos mancham as tampas de vidro, como se os órgãos estivessem batendo à porta de sua prisão. Um fedor acre de carne me revira o estômago.

Tento não comparar os insetos que matei e pendurei nas paredes de minha casa com o que a Copas faz, mas o paralelo é incrível. Colecionar deve estar em meu sangue. Não ouso especular o que mais pode estar...

Os guardas abrem uma série de portas duplas e nos conduzem para uma câmara com um tapete felpudo preto e paredes de azulejos cor de vinho. A rainha entra conosco, mas a contragosto. Fica aparente, pelo cabelo carmim, que a Vermelha assumiu novamente. Depois que estamos seguros lá dentro, os guardas saem para o corredor e fecham a porta.

— Bem-vindos à sala de jogos da Copas. — A voz soprada da Vermelha invade meu espaço pessoal.

Sua presença alfineta aquele espaço frangível atrás de meu esterno onde ela deixou sua marca. Aperto o corpete forrado contra a pele numa tentativa de não ser paralisada pelo clima de terror e opressão que a circunda de todas as formas. Tenho de ser mais forte do que ela.

Eu me familiarizo com a sala, buscando possíveis armas. Uma variedade de cadeiras de salão de beleza forradas de veludo dourado e espreguiçadeiras perfila as paredes. Corações roubados oferecem a decoração: molduras de fotos e espelhos utilizam os órgãos pulsantes de maneiras horrendas, embora criativas; tapetes ornamentam o carpete, com borlas de contas latejantes do tamanho de fadas, como as que vi nas mangas da rainha.

A demonstração mais intrincada e mórbida é um candelabro gigante de latão no centro do teto abobadado, pontuado pelos órgãos pulsantes. Empalados com lâmpadas, eles brilham de dentro, lançando fachos venosos pelo teto branco. As contrações dos músculos ocos e o fluxo do sangue circulam infinitamente, como se estivessem projetados em uma tela. Com a dissonante vibração das batidas e as luzes estranhas pulsando, a sala parece ter algo de consciente — e nós somos a presa, aprisionados em sua caixa torácica.

Foi assim que Morfeu se sentiu quando foi engolido pelo bandersnatch?

Desorientada, pego em seu cotovelo. Em resposta, uma de suas asas envolve as minhas, aninhando-me ao seu lado em um gesto de apoio inabalável. Seu cheiro me envolve.

— A única coisa que a Copas quer — diz a Vermelha, as gavinhas lutando contra as mãos da rainha pelo controle — é que vocês não toquem em suas tintas nem em suas tortas.

Uma mesa encontra-se posta, com salgados e um copo com um líquido branco que parece leite. Na parede acima dela está pendurado um cavalete cheio de papéis em branco seguros por um clipe. Uma série de tintas para pintura a dedo em pequenos recipientes aguarda ser usada. Vê-las me faz pensar em Jeb, e eu engasgo com a falta de ar que vem acompanhada daquela punhalada atrás de meu esterno. A tontura borra minha visão.

Como se sentisse minha aflição, Morfeu senta-se em uma cadeira de salão e me puxa para seu colo — minhas asas caem para um lado de sua perna e minhas panturrilhas ao longo do outro. Ele me envolve nos braços, completamente à vontade.

— Está vendo? É como eu disse — ele fala para a Vermelha, e sua voz provoca um ruído surdo e profundo junto ao meu ouvido. — Estamos absolutamente apaixonados e planejando nosso futuro. — Ele acomoda nossas mãos entrelaçadas no meu colo, fazendo as camadas do vestido tilintarem suavemente. Procuro não retesar o corpo enquanto aguardo a sensação dilacerante dentro de mim se acalmar. A parte de trás das minhas coxas fica totalmente em cima de suas pernas musculosas, uma distração e um conforto. — Ela está usando o vestido de casamento do qual eu falei. Isso não é prova suficiente? Agora, quanto ao seu lado do trato...

— Ah, não — a Vermelha entoa. — Não até nós estarmos casados. Este é o trato. Você já me enganou uma vez. Não acontecerá novamente.

— Nós estarmos casados? Como assim, nós? — Olho para Morfeu, que oferece um pedido de súplica por baixo da aba do chapéu. É enfurecedor ter a cúpula de ferro acima de nós. Sem ela, ele poderia me enviar seus pensamentos em vez de ficarmos brincando de cabra-cega.

— Nós três. A trindade perversa. — A Vermelha ri sarcasticamente de sua esperteza, e um galho de hera tira a mecha vermelha de meu coque. Os corações nas mangas de seu vestido pululam de modo tão frenético que reproduzem o som de beijos ruidosos. Seu olhar azul-escuro recai sobre o meu, e meu cabelo ganha vida, envolvendo sua hera com afeição. Foi a minha magia que causou o contato, não a dela, o que me assusta ainda mais.

— Você e eu vamos reivindicar o trono para a nossa linhagem de uma vez por todas — continua a Vermelha. — E, para me provar que você encara suas tarefas reais com seriedade, que viver como uma rainha no País das Maravilha é sua maior prioridade, e para garantir que não haja mais distrações mortais, você se casará com Morfeu hoje. Ele me disse que vocês se amam e que, juntos, governarão o Reino Vermelho. Desejo ver com meus próprios olhos. Não sairei deste lugar até que você tenha expurgado sua outra vida e o rapaz que tem sido uma distração para você. Ou, se preferir, posso livrá-la dele permanentemente e dar à nossa antecessora o coração humano que ela tanto anseia ter em sua coleção.

O temor pela segurança de Jeb ressuscita minha coragem. Com um puxão, liberto meu cabelo traidor, forçando-o a ficar atrás da orelha.

— Continue fazendo ameaças assim e não a levarei daqui nunca, sua miserável. Pode ficar aqui e apodrecer.

— Seu adorado prometido deseja demais que eu conserte o País das Maravilhas para permitir que sua rebeldia atrapalhe tudo. Não é mesmo?

Olho para Morfeu atrás de mim. Ele retribui o olhar, insondável.

— Parece que a única coisa a apodrecer será seu espírito livre sob meu comando — a Vermelha rebate, enquanto um de seus galhos desliza na minha direção pelo chão.

Ainda dando trela ao meu surto de ódio, concentro-me no tapete por baixo dela, imaginando as cerdas como os tentáculos de uma anêmona-do-mar. As fibras se esticam, altas e tubulares, capturando seu apêndice rastejante.

Eu sorrio enquanto ela olha para mim, chocada.

— Andei praticando. Quer tentar novamente? Tenho um mar inteiro de tapetes com que brincar. E, segundo eu me recordo, seu espírito definhou sob o meu comando, como agora.

Os dedos de Morfeu apertam os meus — um aperto de estímulo ou de alerta? Não sei ao certo. De qualquer forma, eu o ignoro e me envolvo na luta contra o olhar venenoso dela.

— Ah, mas eu tomei medidas para garantir que isso não volte a acontecer. Ainda não notou? — A Vermelha ergue a mão inanimada da Copas e aponta para o meu peito, provocando novamente aquela dor lancinante.

Minha concentração vacila. A gavinha que eu capturei escapa dos filamentos do carpete.

No mesmo momento, a Vermelha tomba, levada ao chão pelo ressurgimento da Copas em seu corpo compartilhado. Elas rolam de um lado para o outro, parecendo uma paciente de sanatório mutante, arranhando e puxando o próprio cabelo, que não para de mudar, com dedos e espinhos de hera.

Coloco-me de pé, pronta para aproveitar a vantagem e libertar as lâminas de meu vestido para rasgá-la em pedaços.

Morfeu me puxa de volta para o colo e sussurra em meu ouvido:

— Você só estaria destruindo a carcaça e transformando os dois espíritos em cinzas. — É incrível como ele pode ler minha mente mesmo sem nenhuma magia. — Precisamos da Vermelha para consertar o País das Maravilhas. Aguarde o momento certo, amor. Aguarde o momento certo.

Sempre a voz da razão, mesmo quando a loucura conduz todas as ações. A Vermelha detém todas as cartas, e também o meu coração. Ela admitiu ter me contaminado, confirmou minha suspeita de que preciso dela não somente para reparar o País das Maravilhas, mas também as minhas entranhas.

Com um baque surdo, o corpo da rainha gira e bate na perna da mesa, entornando o leite. A Vermelha consegue levar a melhor mais uma vez. Ela fica de pé, enrosca-se nos braços da rainha e alisa o cabelo carmim com um galho trêmulo.

— Controle a sua prometida, ou o trato estará cancelado — ela diz a Morfeu. — E você sabe o que isso significará para o seu precioso lar.

Ameaço retrucar com grosseria, mas Morfeu aperta minha cintura — um apelo silencioso.

A atenção da Vermelha volta-se para mim.

— Hoje, você receberá meu espírito dentro de seu corpo. Nós desposaremos Morfeu, deixaremos Qualquer Outro Lugar e assumiremos o lugar que nos é de direito no trono Vermelho. Seu prometido expressou uma ansiedade especial para começar a lua de mel. — Ela corre para a porta em uma fluida cascata de renda, cetim e ramos parecidos com tentáculos. — Preparem-se para a cerimônia. Retornarei em menos de uma hora.

Ela fecha a porta, deixando-nos trancados com nada além das batidas de uma centena de corações — os que não têm corpo e embalam a sala, e os dois que lutam dentro de nosso peito.

Eu pulo de seu colo e o encaro.

— Ansioso para começar nossa lua de mel? É mesmo?

— Ora, não seja tão recatada, florzinha — ele diz, ronronando, seu rosto perfeito a encarnação da tentação sob o brilho pulsante do candelabro. — Você sabe que não conseguimos tirar as mãos um do outro.

A intraterrena dentro de mim se inquieta, atormentada pela provocação.

— O que eu sei é que você adora se vangloriar.

Em vez de um sorriso pomposo ou do sarcasmo como resposta, ele me cala levando um dedo aos lábios e fazendo sinais.

— As paredes têm ouvidos.

Nem ouso presumir que ele esteja falando no sentido figurado. Levantando-se devagar, ele olha com cuidado à nossa volta. Tira o chapéu e as luvas e os coloca sobre a cadeira.

Eu aguardo enquanto ele pega um guardanapo da mesa e corre o dedo pela parede de azulejos cor de vinho. Ele está quase no fim da sala quando pega algo na mão e me chama. Cinco criaturas do tamanho de ervilhas correm loucamente sobre a palma de sua mão. Elas lembram diminutas orelhas humanas, com pernas de caranguejo e asas que parecem pequenas demais para erguê-las no ar.

Embrulhando-as no guardanapo, Morfeu as esmaga e enfia o tecido amassado por baixo da porta.

— Ácaros de ouvido. Eles teriam gravado tudo o que disséssemos e relatado à rainha. — Ele me leva para o centro da sala. — Agora podemos falar livremente.

Digo a mim mesma para não ter uma reação exagerada... para dar a ele uma chance de se explicar.

— Então, este é um vestido de casamento?

O sorriso irônico que eu esperava mais cedo faz sua aparição tardia.

— Talvez não o que eu, originalmente, pretendia que você usasse em nossa união, mas vai nos tirar do aperto. Você não está feliz por ter tido a intuição de vesti-lo?

Desfaço o coque em minha nuca para dar às mãos algo para fazer que não seja dar-lhe um soco.

— Você deixou bem claro que eu deveria usá-lo — respondo, entrelaçando a mecha vermelha com o resto das minhas ondas platinadas.

Morfeu observa cada movimento meu, momentaneamente distraído enquanto eu volto a prender o cabelo, mecha por mecha.

— Eu pensei que este vestido fosse uma arma. — Coloco o último alfinete no lugar.

— Ah, do jeito que ele cai em você, certamente é — Morfeu diz com voz rouca. O leite derramado sobre a mesa começou a produzir um ping-ping-ping irritante sobre o tapete. Ele me faz recuar até uma espreguiçadeira afastada de toda a sujeira.

Sento-me na beira da almofada central com as asas jogadas nas costas.

— Me conte o que está acontecendo, e é melhor que seja bom.

Ele sacode um guardanapo de tecido.

— Ainda não confia em mim, não é?

— Eu confio que você não queira provocar minha ira.

Ele desdenha.

— Sou pau para toda obra. Vai me bombardear com corações que caem em uma chuva simbólica do nosso amor não correspondido? Ou talvez me acorrentar a uma parede feita de renda de luar e fazer de mim o que quiser? — As joias que decoram seu rosto piscam em uma rapsódia de cores: flerte, provocação e malícia.

— Quer falar sério? Você tem muita coisa para explicar.

Suas joias se fundem num verde-esmeralda.

— E você também. Vamos começar com o motivo pelo qual você estava zanzando por aí seminua com Jebediah nas areias de uma praia enquanto eu estava arriscando a minha pele para pegar o antídoto para seu pai.

Tento segurar meu queixo para ele não cair. Ele não pode me culpar. Só há um jeito de ele ter descoberto isso, e não fica bem para suas próprias atividades noturnas.

— Você está trabalhando com Manti... — Minhas cordas vocais arranham uma na outra como se fossem feitas de lixas.

Morfeu absorve o leite com o guardanapo para cessar o som de gotejamento.

— Vamos chegar a essa parte. Mas primeiro você precisa ser notificada do que aconteceu enquanto brincava de pega-pega com nosso pseudoelfo. Dois parentes de seu pai foram capturados pelos guardas da rainha ontem à noite. Quando eu estava acompanhando Nikki até o castelo, eu os vi atravessando o portão, escoltados. Eu não sabia quem eles eram, só que eram cavaleiros e que um deles tinha os olhos do seu pai.

Eu entrelaço as mãos, nervosa.

— Tio Bernard.

— Ele está bem.

— Não posso acreditar que nós o envolvemos nisso...

Morfeu senta no braço da espreguiçadeira, com as asas pensas nas costas. A luz pulsante do candelabro treme sobre seu punho de renda preta enquanto ele caça um fiapo.

— Você deve agradecer a Jebediah por isso, na verdade. Antes de as transformações cênicas dele confundirem os túneis de vento, os cavaleiros nunca tiveram motivo para viajar pelo mundo do espelho a pé. A interferência do seu ex colocou em perigo os frágeis meandros deste mundo.

— Mas ele fez isso para proteger você — eu defendo. — Você mesmo me disse que ele mudou a paisagem para confundir a vida animal.

Morfeu aperta a própria coxa.

— Por que você ainda está tão apaixonada por aquele mortal? Depois de tudo o que ele fez para magoá-la?

Olho para ele com seriedade.

— Algo que você nunca fez.

Baixando os olhos para seus dedos brancos, Morfeu cerra os dentes.

— Eu nunca desisti de você.

O tom sincero de sua voz me amolece.

— Eu sei. — Entrelaço meus dedos nos dele, e seus músculos se contraem em resposta. — Mas Jeb também nunca desistiu de mim. Ele desistiu de si mesmo. E você teve participação nisso.

Morfeu revira os olhos.

— Estamos saindo do rumo. Você não está percebendo a seriedade da situação. Durante séculos, a Copas vem procurando uma forma de atacar o portão do País das Maravilhas, de sequestrar um túnel de vento e atravessar o abismo do nada. Pode imaginar o caos que ela provocaria se tivesse acesso ao medalhão de um cavaleiro?

É estranho, mas, em algum nível, fico aliviada com as palavras dele.

— Eu estava certa... eu sabia que o País das Maravilhas tinha que estar em perigo. — O fato de confiar nele e ele não me desapontar me tira um peso dos ombros. Não coloquei Jeb e papai em perigo desnecessariamente.

— Mais do que o País das Maravilhas, na verdade — Morfeu diz, interrompendo meus pensamentos. — A Rainha de Copas concordou em manter o espírito da Vermelha vivo somente porque a Vermelha a convenceu de que você viria aqui me resgatar, e a Jebediah, se ela não achasse que ele estava morto. Foi por isso que a Vermelha nos capturou e nos arrastou para Qualquer Outro Lugar, primeiramente. Como garantia. As duas rainhas planejavam usar você para encontrar o caminho de volta para o País das Maravilhas, onde a Copas teria acesso aos portais para os domínios humanos e poderia colher relógios de vida humanos para sua coleção.

— Relógios de vida? — Reviro as palavras na língua, saboreando as sílabas. Quando me viu pela primeira vez, a rainha disse que queria o meu.

Morfeu faz um gesto mostrando a decoração da sala.

— É como ela chama os corações que rouba. Relógios de vida.

Tremendo, dou um soco no meu peito para acalmar a dor. A Copas disse que sentia que o meu era especial. Ela devia saber que estava contaminado. Talvez ela possa me dizer o que a Vermelha fez com ele.

— Alyssa. Por que você está tão pálida? — Morfeu escorrega pelo braço da cadeira para se acomodar ao meu lado. Ele coloca as costas da mão sobre minha bochecha, verificando a temperatura. — Você está absolutamente glacial.

A mão dele escalda minha pele e eu a afasto.

— Estou só preocupada. — Com mais coisas do que posso dizer. Como pode meu corpo estar tão frio enquanto há um rastro de gasolina que queima atrás de meu esterno? Aperto a beirada da almofada, determinada a me controlar. — Temos que recuperar os medalhões... e tirar meu tio e o outro cavaleiro daqui.

Fazendo beicinho, Morfeu pega minha mão e tira uma das luvas para colocar o polegar sobre meu pulso. Ele franze a testa, mas parece satisfeito, porque recoloca a luva e acomoda minha mão no meu colo.

— Já foi providenciado. Devido ao meu pensamento rápido, e não graças a você e sua falta de confiança.

— Quer parar? Não é falta de confiança. Você e eu ainda não temos um compromisso um com o outro.

— Ainda. — Seu rosto se ilumina. — Então você vislumbrou um futuro comigo.

Resisto a uma onda de ternura que me invade. Como pode essa criatura mágica e eterna ser tão sábia quando se trata de guerra, estratégias e política, mas tão infantil em assuntos como relacionamentos e amor?

— Me conte os detalhes de seu plano, porque eu sei que você tem um.

Seu queixo se contrai.

— Não é exatamente um plano. É mais um trato.

— Que envolve a mim, sem o meu consentimento. — Estreito os olhos. — É estranho como isso sempre acontece.

Ele solta a gravata e pigarreia.

— Primeiro, deixe-me assegurá-la de que seus parentes estão bem. Manti usou CC para encenar uma revolta na masmorra.

— Espere... então Manti está com o sósia de Jeb?

— Sim, foi um presente da rainha. Manti estava ávido por ele, pois cavaleiros élficos são os melhores soldados. E esse, por ser uma pintura, é ainda mais robótico do que a maioria. Durante a confusão na masmorra, Manti ajudou seu tio e seu amigo a escapar antes que a rainha pudesse arrancar o coração deles. Felizmente, eles levavam somente um medalhão para os dois. Infelizmente, a Copas já o tinha confiscado. Ela o entregou para que os guardas o escondessem, então nem ela sabe qual deles o escondeu, nem onde. Desse modo, a Vermelha também não sabe. Então a Copas não precisa mais de ninguém para ajudá-la a atravessar a fronteira para o País das Maravilhas. Mas a Vermelha controla metade de seu corpo e está disposta a enganá-la e a pegar o medalhão em troca de certas... exigências.

As joias em torno dos olhos de Morfeu brilham num tom verde-chá, a cor da satisfação. Não é surpresa, visto que as exigências parecem envolver um casamento. Mas ainda não sei se a cerimônia será encenada ou real.

— Detalhes, Morfeu.

Ele se inclina para mais perto da mesa e pega a travessa de tortas em forma de losango, oferecendo-me uma com calda de uma fruta vermelha que lembra sementes de romã.

— Você devia comer. Ainda está com aparência anêmica demais para o meu gosto.

Solto um grunhido para suas táticas de enrolação.

— Disseram para não mexermos nas tortas.

Morfeu dá uma mordida delicada e mastiga.

— O roubo das tortas — ele diz enquanto engole — é a menor preocupação da Copas neste momento. — Coloca a travessa de lado e limpa os lábios com um guardanapo. — Ela tem um traidor em sua corte.

— Manti. — Franzo a testa. — Estou confusa. Eu achava que vocês dois fossem inimigos.

— Inimigos podem se tornar fiéis aliados, uma vez que compartilhem dos mesmos objetivos. — Ele toca meu lábio inferior, deixando um pouco de calda de fruta. Ele me observa lamber o resíduo agridoce, e então lambe o resto da calda no dedo. Ao ver sua língua, fico corada.

Ele dá um sorriso malandro.

— Olhe só. Consegui fazer suas bochechas voltarem a corar.

Faço uma careta de reprovação.

— Dá para pular a sedução? Não é hora para romance.

Seu sorriso de resposta é incontrolável.

— Pelo contrário. Toda e qualquer esperança de escaparmos depende de romance. Andei observando Manti desde que caí neste buraco infernal. Ele está totalmente apaixonado pela Copas. Ele a vinha cortejando fazia séculos, sem sucesso, até que os dois vieram dar aqui. Neste mundo, ele não tem a interferência dos pretendentes formais. Além disso, ela pode ser ela mesma... Suas obsessões cruéis e sua degradação foram acolhidas pelos bárbaros habitantes daqui. Ela é reverenciada pelas mesmas ações que resultaram em sua expulsão de nosso mundo. Manti acredita que seu espírito seria destruído se ela voltasse. E ele teme perdê-la para algum outro rei. Ele não permitirá que isso aconteça, mesmo que precise enganá-la.

Eu o encaro com olhar sério.

— Os paralelos são impressionantes.

Morfeu pisca para mim, inabalável.

— E não são? Como eu conheço o modo como o tolo apaixonado pensa, ele foi fácil de manipular.

— O que significa que você estava por trás do ataque à montanha. — Como eu suspeitava.

— Na maior parte — Morfeu admite. — Expliquei a Manti como chegar lá, o que pegar e o que deixar de pé. Você e Jebediah conseguiram frustrar meu plano de tê-la entregue em mãos a mim. Mas eu sabia... — Seus olhos negros brilham e ele afaga minha face. — Sabia que você não me deixaria aqui para morrer. Então contei a Chessie que a rainha estava planejando arrancar meu coração.

Meu corpo inteiro se encrespa com um misto de frustração e fúria. Ameaço me levantar, mas Morfeu me puxa para baixo.

— Para sua informação — ele diz —, eu estava à beira da morte. A Vermelha estava decidindo se me matava pessoalmente ou se me servia como alimento para as enguias da ponte levadiça. Foi preciso convencê-la depressa de que eu tinha algo a oferecer em troca de minha vida patética. E, se você não tivesse vindo para cumprir a troca, eu já teria virado ração de enguia a esta hora.

Balanço a cabeça.

— Então, o antídoto para meu pai. Aquilo foi uma garantia.

— Sua consciência humana não permitia que você me deixasse aqui depois de eu salvar Thomas, mesmo que conseguisse sobrepujar o amor que seu lado obscuro sente por mim.

Estou prestes a censurar sua tática e negar quaisquer sentimentos por ele quando ele coloca a mão em minha nuca e pressiona os lábios aveludados contra os meus. Não é mais do que um beijinho, mas o sabor da torta que ele provou perdura como uma ferida quente e saborosa — um tormento irresistível para a intraterrena dentro de mim.

Ele recua e minha pele brilha, prismas radiantes refletidos em seu rosto e nas almofadas. Estou segurando as lapelas do casaco dele, mas não me recordo de ter me aproximado.

— Chega de negar — ele diz ao apertar minha mão com a sua esquerda. — Eu vi o amor em seus olhos e em suas ações. Eu o senti ontem, quando a peguei nos braços, e hoje, quando veio me salvar. E é por isso que o meu trato com a Vermelha pelo medalhão não deve ser encarado como uma manobra ou uma barganha, mas como o próximo passo lógico em nosso relacionamento.

Eu solto suas lapelas.

— Lógico? Um casamento? Nós vamos fingir, certo?

— Como podemos fingir se a Vermelha estará dentro de você? Não, tem que ser autêntico. E eterno. — Ele sorri de alegria, toda a ingenuidade juvenil e o charme mundano em um ser primoroso.

Devo estar com uma expressão de dor, porque ele passa o polegar sobre as marcas de meus olhos.

— Alyssa, vamos ter um futuro muito glorioso. Você verá.

Isso não pode acontecer, e por muitos motivos. Um deles é o voto que fiz para Jeb. Mas há outra razão muito óbvia.

— É cedo demais. Nós só estamos começando a nos conhecer.

A expressão de Morfeu fica séria.

— Nós passamos a infância juntos.

Eu entrelaço os dedos nervosamente.

— Foi tudo muito inocente... brincadeiras... treinamento. Os humanos demoram a assumir esse tipo de compromisso. É preciso uma prova de fogo.

— Ah! E nós teremos nossa prova de fogo. É uma tradição intraterrena que o casal atravesse um círculo de chamas para queimar as rusgas do passado e começar uma vida nova, pura. Como purificar um metal precioso.

A imagem de nós dois sob o sol do País das Maravilhas me vem à cabeça: dançando descalços enquanto nossas roupas soltam faíscas e pegam fogo, abraçando um ao outro sem reservas.

Um frêmito de expectativa percorre meu corpo, mas eu o reprimo.

— Não, não literal. Simbólico. Dar e receber. Aprender a compreender e confiar um no outro em todas as situações. Eu tive isso com Jeb, durante seis anos. Estou só começando a ter isso com você.

Morfeu solta um grunhido que vem de suas entranhas.

— Não vou ficar esperando e virar o reserva de Jebediah até seu lado mortal começar a me compreender e a confiar em mim.

— Você não é a segunda escolha. Você e eu temos a eternidade. A eternidade. Jeb tem só uma vida. É justo que eu a passe com ele. — Eu contorno a verdade, chegando o mais perto que consigo.

— Justo? Todo esse tempo ele esteve com você nas horas em que estava acordada. Eu só a tinha durante seus sonhos. Quero você na realidade. Já esperei pelo que parecem ser mil anos. É hora de nossa eternidade começar.

Ele não está pensando direito.

— Quer mesmo começar nossa vida juntos enquanto estou abrigando o espírito da Vermelha?

— Nós dois saberíamos que você a estaria levando para fora deste mundo. — A afirmação é pragmática, mas a compaixão abranda sua voz. — E você vai derrotá-la. A única coisa que mudou é que ela quer uma garantia de que você não abandonará suas responsabilidades reais novamente. Ela sabe que, se nos casarmos, você nunca deixará o País das Maravilhas. Foi a única forma de fazê-la concordar em entregar o medalhão. E ela se recusa a fazer a troca até que o casamento seja oficializado. Você pode ver que não tive escolha.

A visão da Marfim me invade a mente, com o ruído de passos de uma criança, desencadeando meu maior medo: a Vermelha encontrou um modo de obter tudo o que sempre desejou. Fazer-me desposar o único intraterreno que pode dar-lhe acesso a uma criança que sonha e ficar próxima de meu corpo enquanto isso acontece. Ela está planejando usar nosso filho para se vingar. Mas como?

Levanto-me e recuo.

— Eu pensei que, pelo menos uma única vez, você não tivesse motivos ocultos. Você não está mais preso à Língua dos Mortos. Não está mais tentando impedir a onda de destruição da Vermelha pelos domínios intraterrenos. Sua única motivação era sair de Qualquer Outro Lugar, consertar o País das Maravilhas e fazer com que eu ficasse ao seu lado.

— Essa é a minha única motivação. — As joias em seus olhos são do tom mais cristalino e sincero, como lágrimas humanas.

Eu recuo ainda mais, arrastando as botas no tapete felpudo.

Morfeu se levanta com cautela, como se eu fosse um animal selvagem que ele está tentando não assustar.

— Alyssa, estamos trancados em uma sala com quatro paredes. Você não tem como correr de mim, ou seja do que for que estiver me acusando.

Solto um gemido.

— O motivo pelo qual a Vermelha atraiu Alice para a toca do coelho era mudar as próprias bases em que o País das Maravilhas foi construído. Ela queria introduzir sonhos e imaginação em sua linhagem para que os intraterrenos não precisassem mais depender do reino humano para obtê-los.

Por sua expressão chocada, fica óbvio que esta é a primeira vez que ele ouve sobre o plano dela.

— Essa é uma cruzada muito mais nobre do que eu a julgava capaz de empreender.

— Nobre, não. Ela não vai deixar os sonhos serem livres e acessíveis a todos. Ela quer controlar esse poder para se tornar a rainha mais temida de todos os tempos. Sim. Sim, tem que ser isso. — Fico arrepiada dos pés à cabeça, aterrorizada demais para pensar no que vou dizer em seguida. — Não vou permitir que ela o use dessa maneira.

— Use quem? — A pergunta escapa da boca de Morfeu em um suspiro trêmulo.

O pânico me assola — uma torrente fria e quente. É tarde demais para retirar o que eu disse. Prendo a respiração, esperando para ver se me sinto diferente... se há alguma sensação física enquanto meus poderes desaparecem.

Mas nada acontece. Com um pensamento somente, faço os papéis no cavalete virarem e flutuarem no lugar. Então percebo que não quebrei meu voto; não especifiquei o nosso filho na afirmação que fiz. É anônimo. Os votos intraterrenos são baseados na construção das frases e palavras.

Na verdade, se eu pensar bem, prometi à Marfim nunca contar a ninguém sobre a visão que ela teve, mas não disse que não mostraria a ninguém.

Paro ao lado do cavalete. Já arruinamos as tortas da Rainha de Copas. E se abrirmos alguns potes de tinta?

Morfeu se posiciona atrás de mim para olhar sobre minhas asas, perto o bastante para suas roupas serem rasgadas pelas camadas de meu vestido com pequeninos estalos. Posso sentir a tensão que emana dele.

Eu tiro as luvas. Depois de abrir três cores — vermelho, azul e preto —, enfio o dedo em uma, deixando que a gosma fria cubra a ponta. Eu trabalho com mosaicos. Não é fácil retratar o que vi em minha cabeça usando tinta e papel. Não tenho as habilidades de Jeb, as pinceladas suaves, a capacidade de traduzir formas internas e linhas de gravidade. Mas faço o melhor que posso, esboçando uma imagem de mim mesma vestida de monarca, Morfeu de terno e um menininho com meus olhos, o cabelo azul do pai e asas.

Antes que eu possa dar os toques finais em nossas coroas, Morfeu recua e desmorona sobre a cadeira onde havia deixado o chapéu e as luvas, amassando-os. Pela primeira vez, ele parece não se importar.

As pedras em suas têmporas e face brilham num profundo azul-real, como se ele estivesse sonhando.

— Você o viu — ele sussurra.

Eu não respondo.

— Quando? Como? — ele pergunta.

Aperto os lábios ainda mais.

Pelo travamento resignado de sua mandíbula, fica claro que ele compreendeu que estou me equilibrando na corda bamba de um voto pela magia.

— Oh, Alyssa — ele murmura. — Faz tanto tempo que eu quero lhe contar. Eu temia assustá-la. Ele é a criança mais especial de todas. Ele vai salvar nosso mundo. Vai ensinar a todos como imaginar e sonhar. — Aquela expressão caprichosa retorna ao seu rosto, um reluzir de euforia. — Já fiz uma lista de nomes para ele. E existem tantas brincadeiras que podemos usar para desenvolver suas habilidades.

— Eu quero que ele seja feliz, Morfeu. Acima de qualquer coisa. Que tenha uma infância.

Sua expressão se atenua para uma profunda ternura.

— Naturalmente. Cantarei canções de ninar para ele todas as noites. Você... você pode ensiná-lo a ver o mundo pelas lentes da inocência. Nós o amaremos. Cegamente. Seria impossível não amá-lo. Não consigo parar de ver a beleza dele, a mescla perfeita de nós dois. — Morfeu pega minhas mãos borradas e entrelaça nossos dedos. Os três tons de tinta mancham sua pele, que fica parecida com a minha enquanto ele coloca nossos dedos lado a lado. — Todos os nossos tons em um arco-íris luminoso.

A sala fica mais sombria, ou talvez seja a iluminação esquisita.

Morfeu me puxa para o colo e aninha minha cabeça debaixo de seu queixo, confortando-me em seu abraço com cheiro de tabaco. É o gesto mais gentil que já tivemos.

— Agora você sabe qual é o seu lugar, Alyssa. Comigo e com nosso filho.

A marca cruel da Vermelha me repuxa atrás do esterno, fincada em meu coração. Eu me afasto para ver seu olhar sonhador, pegando seu rosto nas mãos e deixando marcas de tinta no queixo.

— É isso que você não está vendo — digo com voz sussurrada. — Ele não será nosso. Sim, você estará introduzindo uma criança mestiça nos domínios intraterrenos. Talvez seja só o que importa. Mesmo que seja a Vermelha a compartilhar essa vida, e não eu. Desde que o País das Maravilhas floresça.

— Não. — Ele me assusta ao levantar-me com ele. Com um gesto, arrasta o chapéu amassado e as luvas para o chão, volta a me acomodar na cadeira e se ajoelha aos meus pés, pegando minhas mãos. — Você é a minha única rainha. Nós a expulsaremos no momento em que consertarmos o País das Maravilhas. Antes que uma criança seja concebida. Eu juro para você.

Eu realmente acredito que ele deseje isso, mas não sabe que perdi a carta na manga nem quanto meu corpo está cansado e exaurido.

— Eu perdi o diário. Minha única chance de derrotá-la. — Quase digo que foi culpa dele por ter mandado os pássaros trogloditas de Manti, mas que diferença faria culpá-lo a esta altura?

Morfeu balança a cabeça.

— Aquela solução era temporária. As memórias ainda estão dentro de você, adormecidas. Você pode acordá-las, enfraquecê-las. Acredito em sua força. Você nunca fará o mesmo?

Fico tensa.

— Meu coração... não é forte o bastante. Quando ela esteve dentro de mim, fez alguma coisa. Eu tenho certeza.

Ele desliza meus dedos por seu queixo, borrando os tons de vermelho, azul e preto que deixei em sua pele momentos antes. É óbvio que ele acha que estou reagindo histericamente.

— Você está assustada. Mas, agora que você sabe como nosso filho vai ser especial, agora que você o adora tanto quanto eu, isso lhe dará ainda mais motivos para ser corajosa. E ainda mais razões para aceitar nossa união.

Puxo minhas mãos. Ele não está me ouvindo.

— Não posso me casar com você hoje.

Ele cerra os dentes e se levanta, olhando para mim.

— Então, suas pífias inseguranças humanas, mais uma vez, são mais importantes do que o bem-estar de todo um mundo? De dois mundos? Vai permitir que o estilo de decoração particular da Copas seja estampado em todos os muros do reino humano? Vai deixar que as paisagens do País das Maravilhas sucumbam?

— Estou só dizendo que precisamos descobrir outro modo de pegar aquele medalhão, e outro modo de tirar a Vermelha daqui.

As luzes pulsantes brilham nas manchas de tinta em seu rosto... colorindo-o com uma estranha e perigosa camuflagem.

— Você e seus malditos outros modos. Isso tudo não é por causa do que temos ou não temos entre nós, é? Há mais alguma coisa impedindo este casamento... algo que você está com medo de me contar.

Eu hesito.

— Alyssa! — Ele me pega pelos ombros e me faz ficar de pé, perdendo a paciência.

Minha confissão sai aos trancos:

— Eu fiz um voto pela magia da minha vida de me casar com Jeb primeiro. Se eu me casar com você, perderei meus poderes... para sempre.

 

 

18


Crisálida

Com um afago mais sinistro do que reconfortante, Morfeu desliza as mãos dos meus ombros para os pulsos, fazendo uma trilha de tinta sobre minha pele.

Em seguida, sem dizer nada, ele tira um lenço do casaco e limpa os borrões. Seu toque delicado deixa a pele do meu braço arrepiada. Depois de limpar seu rosto e suas mãos, ele guarda o lenço e pega o chapéu amarrotado do chão.

Com um movimento das asas negras, ele dá as costas e caminha a passos largos, dando tapas para desamassar a cartola vermelha e vinho no mesmo ritmo dos passos. Os músculos esguios se movimentam em linhas fluidas e poderosas debaixo do terno feito sob medida, exagerados pela pulsação das luzes.

Ele é preciso e controlado, mas sua mente está dando voltas. Por baixo de toda essa graça e contenção, um selvagem se prepara para atacar — uma pupa, aguardando emergir na forma de uma mosca-escorpião para transformar Jeb em pedra.

Eu avalio a sala mais uma vez, pensando se ela comporta redes. As possibilidades são infinitas, mas não estou com pressa de aprisioná-lo novamente. Não depois de ele ter passado todas essas semanas preso e humilhado sem uma magia própria.

— Como você pôde usar um voto de magia de modo tão leviano? — Sua voz raivosa interrompe minha maquinação silenciosa. A pergunta soa como uma farpa venenosa, fazendo meu esterno queimar como se houvesse cera quente pingando bem no meio dele.

Estudo a tinta úmida na palma e nos dedos das mãos e depois as viro, tocada pelas impressões digitais coloridas que ele carimbou nas costas delas quando falamos sobre nosso filho.

— Não houve nada de leviano. Foi a única maneira de garantir que você me permitisse compartilhar com Jeb sua vida mortal... para dar esperança e fazê-lo sair deste mundo.

Morfeu se detém. Tenho sua total atenção.

— Então você manipulou a nós dois com um só voto. — Seus longos cílios negros tremem, e a admiração cintila por trás de seu olhar ferido, o mesmo olhar que recebi a vida inteira cada vez que lhe agradei. Embora o tom carmim escuro e raivoso de suas joias piscantes contradiga qualquer prazer verdadeiro. — A mais amarga das ironias. Parece que eu a treinei bem demais...

Um zumbido fraco o interrompe, fora de sincronização com o batimento rítmico dos corações da sala. Nós dois o vemos: uma mínima perturbação diante do meu rosto, onde um ácaro de orelha paira em pleno ar.

Morfeu tenta pegá-lo com o chapéu, mas ele voa em zigue-zague entre nós, repetindo minha voz em mimetismo perfeito: “Eu fiz um voto pela magia da minha vida de me casar com Jeb primeiro. Se eu me casar com você, perderei meus poderes”.

O inseto repete a minha confissão mais uma vez antes de eu tentar estapeá-lo. Ele dá um voo rasante e voa para a porta. Morfeu o ataca tarde demais. O ácaro de orelha rasteja sob o espaço debaixo da porta, escapando.

Colocando o chapéu na cabeça, Morfeu me lança um olhar arrasador.

— Presumo que Jebediah esteja em algum lugar deste castelo. Ele nunca permitiria que você viesse sozinha, agora que pertence novamente a ele.

Busco o olhar de Morfeu sob a aba de seu chapéu.

— Suas intenções?

— Ele está prestes a correr grande perigo se aquele ácaro chegar à Vermelha antes de mim.

Não posso argumentar que Morfeu seja o menor dos dois males quando se trata do bem-estar de Jeb.

— Ele está usando um traje de simulacro, procurando você na masmorra.

A expressão de Morfeu fica grave.

— Não ouse deixar esta sala. Tudo de que não preciso é você correndo por aí e estragando as coisas mais do que já estragou.

Antes que eu possa responder, ele sai correndo pela porta, batendo-a. Discute com os guardas e em seguida os dissuade de prendê-lo sugerindo que eles “tranquem a maldita porta para conter a prisioneira, considerando que ela é a maior ameaça a Qualquer Outro Lugar”.

Em seguida, ele inventa uma desculpa dizendo que precisa encontrar a rainha.

Seus passos determinados desaparecem no corredor enquanto eu o apresso mentalmente. Ele tem de pegar o ácaro de orelha antes que ele se reporte à Vermelha e, mais importante ainda, encontrar Jeb antes que algo aconteça com ele.

Digo a mim mesma que é por isso que ele saiu com tanta pressa... para proteger Jeb. Não porque tem ciúme e quer eliminá-lo, tornando meu voto nulo e vazio. Os dois começaram a se entender no mês que passou. Eles nunca gostarão um do outro, mas pouparam-se inúmeras vezes e aprenderam a trabalhar juntos porque ambos me amam.

Tenho de acreditar que Morfeu não está agindo por causa de seu desejo de que nosso futuro comece hoje. Que não está sendo motivado por seus ideais românticos: uma complexidade de emoções e ações tão violentas e imprevisíveis quanto a crueza do próprio País das Maravilhas. Vi sua compaixão e como ele luta para fazer o que é certo.

— Confie nele — sussurro para ninguém além de mim mesma. — Ele será seu rei um dia.

Ele me disse para ficar alerta. Ele mal percebe que não tenho escolha. Estou fraca e tonta demais para sair de minha prisão.

Volto ao cavalete e passo os dedos pela tinta ainda úmida a fim de borrá-la e deixar a imagem irreconhecível. Já basta a Vermelha estar esperando que tenhamos um filho. Quando ela tiver possuído meu corpo e o vir por si mesma, vai ficar mais difícil ainda me livrar dela.

Quando meus dedos deslizam pela imagem de nosso menino, borrando-a até ficar uma mancha indecifrável, aquela pontada no coração irrompe em outro nível de agonia. Um gosto acobreado formiga em minha língua. Eu tusso, cobrindo a boca com a mão. Quando a afasto, sangue fresco respinga sobre a tinta entre meus dedos. Eu me curvo, procurando respirar.

A sala é sacudida ao ritmo de milhares de pulsações. Raios cor de vinho e pretos se misturam com a luz trêmula. Meus braços e pernas doem. Absorvo as asas para diminuir a carga, mas minha coluna se curva e caio de joelhos, com a escuridão invadindo minha visão. Fecho os olhos, concentrando-me na respiração. Encolhendo-me, deixo o tapete felpudo acolher minha face enquanto vou ficando inconsciente, e penetro na calidez nebulosa de uma visão...

Meu corpo está leve como o ar, livre da dor. Um caldo oleoso e preto pinga das paredes e rasteja pelo chão na minha direção. As poças se erguem em formas fantasmagóricas e esfumaçadas.

Momirratos.

Eles me engolfam, cheirando meu cabelo, gemendo em meus ouvidos até meus ossos retinirem. Marcas oleosas carimbam minha pele no lugar onde eles seguram meus braços, dedos de sombra e ilusão a me morderem. Eles me arrastam para o alto da torre do castelo e me jogam de lá. Meu estômago vai parar na garganta.

Lá embaixo, a toca do coelho se abre — um túnel negro e espiralado. Eu caio rápido, passando por guarda-roupas abertos, pilhas de livros que flutuam, despensas e jarras de alimentos enlatados presas às laterais do túnel com galhos de hera retorcidos. Eu me agarro a uma parede, batendo na mobília e arrancando as gavinhas até a queda desacelerar.

Na escuridão lá no fundo, está acontecendo uma luta. A Irmã Dois briga, em pleno ar, com a minha mãe, que está suspensa por teias. Mamãe usa sua magia, animando livros e móveis para bombardear a cabeça e o tronco da Irmã Dois. As oito pernas da guardiã de túmulos e suas mãos de tesouras venenosas estão ocupadas se defendendo do ataque, e mamãe ganha tempo para se soltar. Ela se liberta da armadilha da aranha e começa a cair.

— Mamãe! — eu grito.

Ela olha para cima.

— Allie! — ela chama, e estende a mão para mim.

Os momirratos gemem lá em cima e fecham a toca do coelho, lançando-nos para fora do túnel e nos impelindo para o País das Maravilhas num desmoronamento de terra.

Cavando, consigo sair do jardim de flores. Um relâmpago chicoteia o céu, lançando tons fluorescentes sobre a paisagem. Um aroma pungente de queimado traz consigo um vento ruidoso e melancólico. Nuvens escuras de cor purpúrea encobrem o céu.

Mamãe está quase ao meu alcance, cercada por flores zumbis do tamanho de árvores. A Irmã Dois corre na direção dela com um exército de brinquedos mortos-vivos.

Eu escalo para ajudar mamãe, mas minha mão passa através dela. Sou somente um fantasma aqui, e percebo que estou revivendo sua chegada ao País das Maravilhas naquela noite fatídica.

Um cisne branco dá um voo rasante, transformando-se na Marfim. Pousando no chão, ela brilha das pontas das asas até os pés. Sua magia irradia os mais puros tons prateados. Ela gira como uma bailarina de cristal, e uma bruma branca flui de sua boca. Uma camada de gelo cobre as flores cruéis, reduzindo a velocidade de seus movimentos.

Um homem surge dos caules grossos como troncos. Eu o reconheço. É Finley, o mortal cujo corpo Morfeu usou quando esteve no reino humano. Finley está vestido como um cavaleiro élfico e comanda o exército da Marfim. Com um grito coletivo, os elfos atacam as flores, brandindo suas espadas contra os galhos congelados, cortando-os com um só golpe. As flores gritam e caem, contorcendo-se no chão. A Irmã Dois sibila e arrebanha os brinquedos mortos-vivos para dentro do coração do País das Maravilhas, batendo em retirada para o jardim das almas.

A Marfim se vira e oferece a mão a mamãe.

Mamãe a pega e olha para mim.

— Estou segura e estamos sobrevivendo. Mas o coração do País das Maravilhas está morrendo. A estagnação está próxima. Venha logo. Vamos aguentar o máximo que pudermos.

Tento compreender seu alerta, forçando minha mente a buscar a definição de estagnação, mas não consigo.

— Allie! — mamãe grita. — Acorde... acorde!

Um relâmpago corta o céu e penetra em meu peito, trazendo-me de volta ao corpo cansado e à realidade da dor inquebrantável.

Alguém me recostou no que parece ser uma parede de azulejos frios. Estou tão fraca que não consigo nem sequer erguer as pálpebras. Inspiro e me engasgo com o líquido que enche meus pulmões.

— Ela está morrendo — a Vermelha diz de algum lugar além de meus olhos fechados.

— Como deveria — a Copas responde. — Olhe só a bagunça que ela fez com as minhas tintas! E provou uma torta. Maldita ratinha.

A julgar pela tirada da Copas, ainda estamos na sala de jogos. O cheiro de seu perfume me sufoca, ainda mais forte com os olhos fechados. É a fetidez da morte — flores murchas e carne podre.

— Me deixe sair para preservar seu recipiente — a Vermelha reclama.

— Não fique brava comigo! — ralha a Copas. — Você tinha que saber que este seria o resultado quando a enfeitiçou.

— Não. Uma vez que o lado intraterreno tivesse despertado completamente para a loucura, ele deveria ter absorvido o lado humano, transformando-o. Eu nunca poderia ter previsto que a metade mortal do coração dela resistiria tanto. Que ela seria tão forte e aguentaria tanto tempo que colocasse em risco as duas.

Um soluço se aloja em minha garganta e um gosto metálico amargo me engasga. Quero pegar o pescoço da Vermelha, sufocá-la. Mas quem está se sufocando sou eu... em meu próprio sangue.

— É o seu feitiço. Reverta-o, simplesmente — a rainha sugere, ignorando minha batalha.

— Agora que o coração está se partindo ao meio, não conheço magia que consiga salvá-la. Não há nada que eu possa fazer além de juntá-lo quando estiver lá dentro.

Eu solto um gemido.

— Depressa, sua boba — a Vermelha apressa a rainha, com desespero na voz. — Liberte meu espírito.

— Preciso de uma garantia — a Copas retruca. — Pela troca do medalhão. Quero mais do que somente um mísero relógio de vida humano. Eu quero todos.

Um relógio de vida humano? De quem elas poderiam estar falando? Jeb? Meu pai? Será que capturaram o tio Bernie de novo?

Seja de quem for, alguém que eu amo está em perigo.

Tento me mexer, mas sou tomada pela dor agonizante, uma estaca de metal que se parte e escava meu esterno. Para impedir a mim mesma de gritar, fico congelada no lugar. Meus cílios se selam com mais força.

— Eu já disse que você vai ganhar mais. Minha barganha com Morfeu é entregar o medalhão assim que o casamento se oficializar. Eu não disse nada sobre deixar você aqui.

— Não acha que o seu rei terá algo a dizer quando souber que atravessarei o portão com você?

— Quando Morfeu perceber que sou a única coisa que mantém sua adorada Alyssa viva, ele fará tudo o que eu mandar.

Respiro fundo. O ar escalda e arranha meus pulmões, como se nascessem espinhos em seu caminho. A sensação confunde meu raciocínio; mesmo assim, tento juntar as peças. Os planos da Vermelha para enganar Morfeu. Ele já deve desconfiar disso. Ele é astuto. A sábia e críptica lagarta que emergiu da crisálida na forma de um lindo ser mágico alado.

Mas ele não sabe o que ela tem como garantia. Não sabe que meu coração está morrendo nem que a Vermelha me enfeitiçou.

Além do País das Maravilhas, sou sua única fraqueza. E ela está usando as duas coisas.

Como ele pode dizer não a ela?

Eu sou a única que pode impedir isso. Abro um pouquinho os olhos e gemo, tentando me concentrar o bastante para liberar minha magia. Uma névoa negra encobre minha visão periférica... tornando impossível focar-me em alguma coisa.

A Rainha de Copas está agachada diante de mim, com metade do cabelo carmim-vivo e a outra metade cor de vinho.

— Isso é discutível — ela diz para a Vermelha. — Você ouviu o que o ácaro de orelha disse. A bobinha fez um voto para o mortal. Não haverá casamento entre ela e Morfeu.

— Tudo vai entrar nos eixos quando encontrarmos o menino. O voto só vale enquanto ele viver. Nós o matamos, você tem a primeira peça de sua coleção humana, e eu tenho meu casamento real.

— Não. — Tento falar mesmo com o sangue me engasgando. Fiz novamente. Coloquei em perigo a vida de Jeb mais do que ela já estava. — Não... vou... deixar.

Tento dar um tapa na cara da Vermelha, mas minha mão cai sobre o colo, inerte.

A mão pegajosa da rainha segura meu queixo.

— Notável! Seu relógio de vida está se partindo ao meio, pendurado por um fio. Mesmo assim, ela tem desejo de lutar. — Sua expressão fica mais intensa. — Eu já tenho o medalhão. Tenho meios próprios de entrar no País das Maravilhas. Não há motivo para fazer nada que você me peça, Vermelha. Vou deixá-la morrer e colher este espécime. Nunca vi nenhum igual.

— Haverá outro, um dia — a Vermelha insiste, frenética. — Morfeu e eu teremos filhos por meio dela. Reservarei para você o coração de um deles. Mas não o dela. O dela pertence a mim. Não importa que você entre no País das Maravilhas. Não terá acesso aos humanos sem os portais. Alyssa é a única que pode reabri-los. E meu plano para ela e Morfeu vai além de seus ideais mesquinhos. Darei seu primeiro rebento, o primeiro intraterreno capaz de sonhar, à Irmã Dois. Ela abomina ter que caçar crianças humanas. Há séculos ela reclama que é uma tarefa tediosa demais. Então, em troca de uma criança imortal que suprirá eternamente as almas de seu covil, ela e seus brinquedos insatisfeitos me auxiliarão a destituir a Marfim. Uma vez em posse da magia das duas coroas, meu controle sobre todo o País das Maravilhas será absoluto. E você e todos os habitantes de Qualquer Outro Lugar poderão atravessar nossas fronteiras e saquear os domínios humanos quanto quiserem.

Eu soluço, enfim, face a face com o horrendo plano da Vermelha, mas fisicamente incapaz de intervir.

A Copas estala a língua.

— Você me convenceu. Temos um acordo. Mas a menina está bloqueando a transferência de seu espírito deliberadamente. — A rainha retira a mão, com os dedos pingando minha saliva sangrenta. — É a ela que você precisa convencer agora.

— Deixe-me entrar, Alyssa. — A súplica da Vermelha é assustadoramente gentil. — Você vai sangrar até morrer. Que vantagem essa perda trará a alguém? Só colocará em perigo o rapaz humano e Morfeu. Sem falar de todo o País das Maravilhas.

Lágrimas rolam por meu rosto.

Seu argumento é sólido. Por mais atemorizada que eu esteja por meu futuro filho, ele nunca existirá se eu não salvar a todos hoje. A única saída é permitir que o espírito da Vermelha me mantenha viva, e depois sequestrar sua magia para consertar o País das Maravilhas. Agora conheço sua estratégia. Se eu conseguir ser mais forte do que ela por tempo suficiente, derrotarei a Copas e me livrarei da Vermelha de uma vez por todas. Não posso me permitir pensar no que acontecerá com meu coração depois disso.

Desmorono para a frente, rendendo-me.

Meus pulmões encolhem e minhas veias murcham, privadas de oxigênio. Minhas pálpebras caem, incapazes de resistir à escuridão que me aguarda.

— Depressa, bruxa. Liberte meu espírito antes que ela vire cinzas e nenhuma de nós obtenha o que deseja.

A Copas resmunga em resignação e sua mão pegajosa pressiona minha testa. Uma luz forte explode atrás de meus olhos.

Tentáculos quentes disparam de meu crânio para a espinha, forçando meu corpo a endireitar-se. A acordar.

Eu me recordo desta sensação...

Meus olhos se abrem, trêmulos. A mecha colorida de meu cabelo se solta, dançando. Pouco a pouco, os grampos saltam para o chão até todo o cabelo assumir a mesma cor da mecha encantada, livre e esvoaçante pelos ombros em ondas de vivo carmim.

A intrusão migra para meus braços e pernas, enchendo os membros de poder.

Minhas veias se iluminam sob a pele. Cada uma delas cresce, expande-se e toma a forma de uma planta viva que floresce e brota de mim feito uma serpente.

A Vermelha habita meu corpo, e eu a recebo porque ela me torna forte.

A agonia lancinante em meu coração dá lugar a uma sensação de agulhas que o remendam. Toda a dor desaparece e a batida é única e sólida. Encho os pulmões, saboreando o ar.

Passo os braços em torno do peito, abraçando a mim mesma, aceitando a vitalidade da Vermelha.

— Sim, minha criança. — A voz dela sai à força da minha boca, numa golfada. — Juntas, Nós seremos invencíveis. — Ela fala no coletivo Nós, como se Nós fôssemos um único ser. A possibilidade agrada à minha loucura de formas que nunca imaginei.

Os tentáculos folhosos que brotam de minha pele serpenteiam na direção da Rainha de Copas. Ela dá um passo para trás, cautelosa. A Vermelha usa a conexão entre suas trepadeiras e minhas veias para me movimentar, como se eu fosse uma marionete. Desta vez, não sinto dor, não sinto os ossos nem os músculos e veias sendo esmagados, pois não ofereço resistência. Movimento-me com graça, como se estivesse flutuando. Olho para baixo e descubro que meu corpo é propelido pelas gavinhas, uma planta rastejante. Meus pés nem tocam o chão.

Por mais errado que pareça, todo o medo desaparece.

O que há de tão ruim, na verdade? O poder que corre em nós? O horror no rosto da Copas enquanto Nós a envolvemos em nossa hera mortal? Seus olhos saltando como os de um peixinho de aquário enquanto Nós apertamos seu pescoço?

Não. Não há nada de errado nisso. Pelo contrário. A brutalidade é entusiasmante.

— Por favor — a Copas murmura, a voz um mero assobio de ar comprimido. — Nosso trato... o medalhão.

Certo. Ainda não sabemos qual dos guardas escondeu o medalhão. Os meus pensamentos e os da Vermelha se entrelaçam em um. Deixe-a viver. Ela ainda tem uma função.

Antes de Nós soltarmos a rainha, vários guardas entram na sala, com as caras reptilianas refletindo seu terror.

— V-v-vossas Majestades — o que está no comando gagueja. — Manti capturou o rapaz humano.

Nós desenrolamos nossos tentáculos e largamos a Copas. Ela cai no chão, buscando desesperadamente respirar. Seus guardas a colocam a uma distância segura de Nós.

— Diga a Morfeu que a transferência foi completada — dizemos com nossas vozes se misturando. — Levem o rapaz para o pátio e deem início à cerimônia.

 

 

19


Cinzas, Cinzas...
Todas Elas Caem

Nuvens escurecem o céu e um vento frio esvoaça nossos cachos carmim, fazendo-os bater em nossos ombros como chamas incontroláveis.

O pátio foi despido das barracas coloridas, exceto por uma cobertura de lona esticada sobre o palco onde a cerimônia será realizada. O palco de dois metros e meio se eleva ao lado do poço do medo. Grossas cordas pretas pendem do alto das muralhas inclinadas do castelo para uma estaca larga fincada no centro dele. Laços de fitas vermelhas encontram-se amarrados ao longo das cordas, uma reminiscência do jeito esquecido e traiçoeiro da boba da Grenadine.

Nós reprimimos um rosnado de orgulho. Em breve, teremos nosso reino de volta, e nossa primeira ordem será banir aquela bruxa infiel para sempre do País das Maravilhas.

A Rainha de Copas aguarda em cima do palco com uma caixa de sombras aninhada nos braços. Ela está diante de um padre vestindo uma toga cor de vinho e um chapéu retangular alto. Sua forma, parecida com a de um sapo, está presa por uma correia ao poste central para que ele possa dormir na vertical. Seu queixo gordo solta borbulhas a cada ronco. Um pequeno enxame de vaga-lumes paira sobre sua cabeça, aguardando.

Atrás da Copas, no nível do chão, estão sentadas centenas de testemunhas — os mesmos convidados que antes se divertiam em jogos sádicos na esperança de matarem a si mesmos. Imbecis.

Esperamos atrás da plateia que Morfeu chegue e caminhe em nossa direção pelo corredor. Fora da cobertura, no alto da plataforma esquelética onde a corrida eleitoral começou, há uma esfera gigante. Um inferno queima em seu interior, lambendo o vidro em flamejantes tons de laranja, amarelo e vermelho. Ao final da cerimônia, Nós andaremos em meio às chamas com nosso noivo, iniciando nossa prova de fogo. Depois disso, estaremos unidas a ele para sempre.

Do outro lado do pátio, o músico arrasta o arco pelas cordas do violoncelo. As cordas são feitas das entranhas evisceradas de um animal meio vivo. As vibrações se harmonizam com os gemidos da criatura e ecoam na imensidão, criando uma mórbida marcha nupcial.

Ao soar a terceira nota, Morfeu surge das sombras na torre mais distante. Seus sapatos produzem um ruído quase inaudível em meio à animada acústica. As asas ficam mais murchas quando ele vê nossa aparência alterada.

Com sua chegada, a plateia se levanta e aplaude.

Nossas gavinhas chicoteiam a pequena fada e o gato abelhudo que voam em volta da cabeça de Morfeu. Eles se acovardam e mergulham para baixo de seu chapéu.

A plateia aplaude ainda mais.

Com a mandíbula retesada, Morfeu oferece a mão. Nossa hera se estende, mas ele a rebate.

Os convidados ficam em silêncio. Até a música para. Somente o ronco do padre, o zunido dos vaga-lumes e o inferno que estala dentro da esfera podem ser ouvidos.

Morfeu abre sua luva mais uma vez.

— Dê-me a mão de Alyssa. Só tocarei nela.

Nós conduzimos nossos dedos inertes para juntá-los aos dele, poderosos. Ele inclina a cabeça e os beija. O contato desperta um calor que envia uma centelha de prazer familiar através de nosso corpo humano. Nossos dedos saltam em resposta.

Morfeu levanta o queixo, as joias dos olhos brilhando em apaixonado tom de púrpura.

— Alyssa, pode me ouvir, florzinha? Ela a fez esquecer sua humanidade. Mas eu sei que você ainda está aí.

— É claro que Nós estamos aqui — respondemos. — Mas tem lugar para mais um. — Sorrimos sedutoramente, correndo os tentáculos folhosos por sua camisa preta e penetrando nos espaços entre os botões para acariciar seu peito nu por baixo.

A afeição no rosto de Morfeu muda para uma expressão torturada, e ele arrasta nossas gavinhas para longe do tecido, empurrando-as.

Nós sorrimos com sarcasmo. O conforto e a felicidade dele são irrelevantes. Ele é um meio para alcançarmos um fim, um lindo peão no tabuleiro de xadrez da nossa vida. Nós apreciaremos usá-lo até o fim.

Um tendão do pescoço salta quando ele caminha pelo corredor ao som da macabra música que ecoa mais uma vez pelo pátio. As asas das monarcas sacodem em nosso vestido quando nos movemos.

Ele aperta nossos dedos.

— Por que não está usando suas luvas? — ele murmura pelo canto da boca.

A pergunta não faz sentido, mas seu recato nos diverte, então Nós respondemos:

— Achávamos que você admirava nossas mãos nuas. As cicatrizes de batalha adquiridas em nossa forma mais frágil.

Ele lança um olhar taciturno, como se Nós não tivéssemos o direito de falar dessas coisas. Como se elas fossem, de alguma forma, sagradas.

Saboreamos seu tormento. Nosso coração bate em unificada vindicação. Uma só pulsação... um só propósito: obter nossa vingança. Finalmente colher as recompensas do esquema que começou tanto tempo atrás com uma curiosa menininha chamada Alice.

À esquerda do palco, uma tropa de pássaros trogloditas entra abruptamente. Manti aparece atrás deles com o rapaz humano capturado. O prisioneiro veste calças de smoking e um colete. Um saco de tecido preto cobre a cabeça. As mãos estão amarradas atrás das costas com correntes envoltas em uma enorme pedra. Manti faz força para carregar a pedra a fim de que o rapaz possa caminhar.

O sósia arlequim vem mais atrás, usando camiseta e jeans velhos. A linha de joias vermelhas brilha em um lado de seu rosto. Do outro, o tapa-olho em forma de coração está rasgado, e algo se movimenta no vazio escuro onde a pele se abre. A parte de trás de um globo ocular surge na superfície, com as veias e o nervo óptico. Ela gira e em seguida desaparece dentro do buraco.

O quadro medonho nos encanta e Nós rimos bem alto, um riso esganiçado e alegre, como o de uma criança com um brinquedo novo. O som acorda o padre de seu sono por cerca de dois segundos, e em seguida os olhos bulbosos ficam pesados e ele volta a roncar mais alto ainda.

Morfeu baixa a cabeça e nos puxa pela mão. Deslizamos ao lado dele, orgulhosas, propelidas por nossas gavinhas.

O sósia sobe no palco e toma seu lugar ao lado da rainha. Uma brisa levanta o cabelo que cobre uma de suas orelhas, revelando a extremidade pontuda. Manti força o mortal a se ajoelhar na beira do palco, perto do poço do medo, e larga a pedra ao lado dele com um baque surdo.

Nós deslizamos escada acima e observamos o prisioneiro humano com remorso. Não por sua vida, mas pelo entretenimento que ele poderia ter nos proporcionado. Ele é atraente, para um ser inferior. Nós teríamos apreciado usá-lo até o fim também.

Assumimos nosso lugar diante do padre, nosso noivo à esquerda entre Nós e o mortal acorrentado; a Copas está à direita, segurando sua caixa. Manti e o sósia estão do outro lado dela.

Estamos a instantes da vitória. A instantes do País das Maravilhas, de nossa coroa e de nosso trono.

Morfeu retira o saco que cobre a cabeça do mortal e recua, soltando um palavrão.

Uma tira de pano cobre os olhos do mortal, e outra aperta sua boca. A tez morena está perfeita, apesar dos fios de sangue que escorrem pelo rosto, unindo a venda nos olhos à mordaça. Outro filete vermelho escorre pelo queixo.

— Por que ele está amarrado desse jeito... e sangrando? — Morfeu inquire.

— Esta era exatamente a minha pergunta! — A Copas resmunga de seu lugar entre Nós e Manti. — Eu quero ver o medo nos olhos dele e ouvir seus gritos quando retirarmos seu relógio de vida.

— Não tive escolha, ó Majestade — Manti responde a sua rainha. — Eu confisquei as tintas dele, mas ele improvisou. Ele pintou na cela dele com lama feita de terra e saliva e escondeu tudo o que fez nas sombras. Os grilhões nas paredes e as barras das celas ganharam vida e se voltaram contra nós quando tentamos trazê-lo para cá. Perdemos uma dúzia de nossos guardas mais fiéis com mortes violentas nas mãos das criações dele. A única forma de deter sua magia foi arrancar seus olhos para que ele não pudesse mais ver e dar vida a outras coisas... e cortar sua língua para que ele não pudesse mais comandá-las.

Morfeu fica pálido, como se nem ele tivesse estômago para o que aconteceu com o mortal.

Alguma coisa se retorce no âmago de nosso ser, uma dor incômoda que provoca uma voz inesperada e indesejada...

Jebediah Holt, a voz diz aos soluços.

Nosso coração para por um segundo, e então volta ao seu ritmo. Não seremos influenciadas por um nome. Nós nos postamos altivas ao lado dele, bloqueando tudo exceto o triunfo iminente que pulsa em nossas veias — o maior de todos.

Mas ele é mais... A voz fraca não cede. Ele é mais do que um nome... os dois são mais.

Não. Nós nos recusamos a ouvir. Eles são somente degraus. E, em breve, todo o País das Maravilhas se tornará degraus sob nossos pés. Nós reinaremos sobre dois reinos e todos nos venerarão.

— Seus idiotas! — Morfeu grita, fazendo-nos lembrar de onde estamos, do que está em jogo. — Eu poderia ter convencido o mortal a libertar Alyssa de seu voto. Eu poderia ter... — A voz dele falha.

— Ah! — a Copas diz, bufando. — Bem, agora ele não pode mais fazer isso, não é? Ele perdeu para sempre a capacidade de falar. Só há um modo de libertá-lo agora.

Num explosivo ataque de fúria e asas, Morfeu salta sobre Manti, pegando o manticórnio pelo chifre e colocando-o de joelhos. Ele segura uma faca na base do chifre de Manti.

— Afastem-se — ele grita para os guardas.

A Copas grita, e a plateia dá pulos e vivas. Alguns ficam de pé nas cadeiras para enxergar melhor, antecipando, em frenesi, o banho de sangue.

Já que Morfeu está com a vantagem no palco, os guardas e os pássaros trogloditas descem as escadas para tentar conter a multidão.

Em meio a tudo isso, o padre adormece sob o zumbido da nuvem de vaga-lumes.

— Você me traiu — acusa Morfeu junto ao ouvido humanoide de Manti, fervendo de raiva. — Eu lhe informei a localização do mortal com a condição de que ele não fosse ferido.

Manti encolhe os ombros, mas o chifre é seu calcanhar de aquiles, sua fonte de força e, ao mesmo tempo, fraqueza. Ele está à mercê de Morfeu.

— Eu precisava provar minha lealdade à rainha. Compensá-la pelos cavaleiros humanos que escaparam do calabouço sob minha custódia.

— Selvagem! — rosna Morfeu, forçando o manticórnio a se levantar. O sósia se joga contra eles, separando-os.

Morfeu perde a faca, que é agarrada pela Copas, enquanto Manti volta ao seu lugar entre ela e o sósia.

— Basta de atrasos — ameaça a Copas, entregando a faca a Manti. — O casamento segue conforme planejado, Morfeu. Tente qualquer outra coisa assim, e nadará com as enguias antes que o dia acabe.

Envolvemos o braço de Morfeu com nossas gavinhas e o puxamos para nós enquanto Manti e a Copas se voltam para a plateia, bradando comandos para silenciá-la.

Morfeu avalia o mortal mutilado. Uma tristeza profunda obscurece suas feições. Ele se livra de nossos ramos, sussurra uma imprecação e tira o chapéu.

A fadinha e Chessie saem voando, carregando um narguilé em miniatura. Nós os observamos, desconfiadas.

Incitado pela atividade, o prisioneiro humano contrai os músculos numa tentativa inútil de se libertar das correntes. Ele produz um som gutural e engasgado — bestial e agoniado, sem a língua.

Sua agonia nos fascina, chama nossa atenção. Novamente, aquele aperto de reconhecimento lá dentro, desta vez mais agudo, feito uma faca. A voz indesejada retorna:

Não é a primeira vez que ele sangra por você, ela incita. E ele já pintou com outras coisas além de lama. Como pôde esquecer a sala de luar e neve, as fitas com desejos e sonhos? Como pôde esquecer tudo o que ele sacrificou por você?

Chessie aparece diante de nosso rosto. Ele dá uma tragada do narguilé e solta uma nuvem de fumaça. A névoa aromática permeia o ar e atinge nossa língua, deflagrando imagens: tabaco de alcaçuz e um ser mágico sedutor com segundas intenções, o sal do oceano e o suor de um rapaz mortal, o xarope de bordo e o amor de um pai, o sacrifício de uma mãe e um jardim lunar cheio de lírios e madressilvas.

A humana dentro de nós vacila por um instante, despertada pelos sentidos. Suas emoções são avassaladoras... aterrorizantes.

Nós nos retorcemos no lugar, nossas gavinhas chicoteando Chessie para afastá-lo. Mas é tarde demais. A faca do reconhecimento começa a serrar as amarras que Nós colocamos em nosso coração.

Não permitiremos. Vai doer se as costuras forem rompidas.

Concentrem-se. Concentrem-se somente no homem que será nosso rei.

Nossa atenção se volta para Morfeu e depois para a Copas enquanto ela e Manti se postam diante do padre, tendo aplacado os convidados sedentos de sangue. Os guardas e os pássaros trogloditas bloqueiam as escadas, formando um cordão de isolamento entre a cerimônia de casamento e a plateia.

— Acorde, seu bufão — a Copas diz ao padre, e os vaga-lumes o eletrocutam até ele rir tão alto que seus olhos arregalados se abrem. — Comece a cerimônia.

O padre estala os lábios grossos e grudentos.

— Vocês vêm para esta união livres de toda e qualquer amarra? — A pergunta coaxada jorra de sua garganta esverdeada.

A cabeça de Morfeu está tão baixa que seu cabelo cobre todo o lado esquerdo do rosto. Vislumbrado através de espaços na cortina azul, seu perfil cravado de joias se desvanece, assumindo a cor de lágrimas.

— Um voto pela vida de magia se interpõe entre nós.

— Então ele deve ser quebrado, ou a união será nula — o homem-sapo diz, e boceja bem alto.

O silêncio envolve o pátio. Nós olhamos para as chamas na esfera lá em cima. O brilho deixa uma marca em nossa mente, cauterizando as emoções humanas que tentam nos despertar.

— Chegou a hora, Morfeu — a Copas urge. — Prove lealdade a suas noivas e ao seu mundo e será recompensado com a chave do portão. Traga-me o coração do rapaz.

Morfeu grunhe.

— Primeiro, mostre-me o medalhão. Eu quero vê-lo.

A Copas passa a caixa de sombras para Manti. Ela abre a tampa, revelando dois relógios de vida pulsantes. Com um barulho de molhado, a Copas mergulha os dedos no coração maior e retira o medalhão. Ela o coloca na palma da mão, pingando sangue.

— É prova suficiente? Agora, mate-o.

Morfeu toma nossa mão inerte e a leva aos lábios. Sua respiração envolve nossos dedos, mais uma sensação de rendição.

— Lembre-se: as lembranças são nossa maior arma — ele sussurra.

Nós nos voltamos para o agonizante mortal. Imagens piscam em nossa mente: o mesmo rapaz de bermuda cargo e camiseta escura por baixo do colete do Submundo, luzes negras salientando os braços torneados com flashes azulados; o rapaz com a máscara de plumas no baile de formatura; Jeb surfando na areia comigo em carrinhos de chá e derramando o próprio sangue para salvar minha vida inúmeras vezes; Jeb me beijando depois de eu ter partido seu coração e lutando na noite do baile por mim e por todos os outros seres humanos.

Um dos fios em nosso coração se solta com uma pontada visceral, ressuscitando a voz:

A língua dele disse palavras lindas a você... Os olhos dele a cobriram em carinhosa contemplação. Nunca mais. A menos que impeça isso. Ele ainda pode ser curado com magia, assim como ele, um dia, curou Morfeu.

É a minha voz — o meu raciocínio — muda e imóvel, desesperada por ser ouvida. Mas minhas cordas vocais estão dormentes, como se eu tivesse respirado a névoa negra do portão de Qualquer Outro Lugar. Assim como meu corpo, minhas palavras são prisioneiras dos tentáculos da Vermelha.

Mesmo assim, ela pode ouvir meus pensamentos libertados.

Jeb está ferido... mas pode ser salvo. Morfeu vai fazer o que é certo.

Morfeu não mostrará misericórdia, a Vermelha contradiz em minha mente. Ele fará qualquer coisa pelo País das Maravilhas. Essa é a prioridade dele. É por isso que o escolhi para ser nosso rei. Por isso, e pelo fato de que, por causa da infância que passou com você, ele pode gerar uma criança que sonha. Que perfeição profunda essa mudança no destino acabou tendo.

Mais um fio se desprende de meu coração, com dor precisa e aguda. Eu a aceito, porque ela me lembra de que ainda estou aqui. Estou viva. Tenho poder.

A determinação ferve em meu sangue, escalda minha pele. Concentro-me em meus dedos, forçando-os a apertar a mão de Morfeu.

Os olhos dele se arregalam. Ele olha de mim para o medalhão na mão da Copas. Um músculo em seu queixo dá um pulo.

— Faça uma escolha — a Copas diz, fervendo de raiva. — Ou o humano dá a vida ou o País das Maravilhas pertencerá aos habitantes do mundo do espelho.

Morfeu olha para a multidão de convidados dementes, salivantes e brutais, e para o corpo de Jeb ajoelhado. O sangue no queixo de Jeb já escorreu para a camiseta sob o colete do smoking, tingindo o tecido branco de vermelho-vivo.

Meus pés se contraem... As pernas doem... O estômago se revira. Cada parte de mim acorda lentamente, mas minhas cordas vocais se encolhem sob as garras da Vermelha. Luto para usar os membros. Suas gavinhas me seguram muito alto; não consigo pôr os pés no chão. Uma sensação agonizante açoita meus ossos, como punição por ter tentado. A Vermelha enrola meus braços em sua hera e os fixa junto do corpo.

Um lamento morre em minha garganta.

A memória me provoca por baixo da dor. Uma lembrança de que eu a sobrepujei um dia. Eu me mexo, ignorando a sensação interna de estar me partindo ao meio, e envolvo uma gavinha com os dedos. Eu a puxo. Regatos de sangue jorram de onde o ramo estica minha pele.

Mais uma das costuras em meu coração se solta... e outra, e mais outra. Eu berro com o ardor excruciante. Não consigo arrancá-la sem rasgar meu coração ao meio.

Derrotada, quedo-me inerte.

— Depressa — a Vermelha diz bem alto, usando-me como seu bocal, agora desesperada. — Mate o rapaz e ela será sua rainha para sempre, Morfeu. Simples assim.

— Dê-me seu relógio de vida! — a Copas grita para Morfeu. Ela ergue o medalhão no ar, balançando-o diante dele como um pêndulo, para tentá-lo.

Morfeu segura o colete de Jeb e o força a levantar-se. Jeb vacila, desequilibrado pela incapacidade de ver. Ele luta contra as amarras nas mãos e dá chutes às cegas para defender-se.

Morfeu volta o olhar para mim, as profundezas negras cheias de tanto remorso que sei o que ele vai dizer antes que abra a boca.

— Alyssa, me perdoe. Mas eu sempre farei o que é melhor para o País das Maravilhas.

— Não! — eu grito, enfim libertando minhas cordas vocais.

A multidão explode, fazendo os guardas e os pássaros trogloditas reforçarem a barricada.

Ainda segurando o colete de Jeb, Morfeu olha para o caos atrás de si.

— Agora! — ele grita.

Chessie e Nikki aparecem do nada e voam sobre a Copas. Nikki distrai a rainha enquanto Chessie mergulha e arrebata o medalhão, em seguida voando para o portão. Manti manda o sósia atrás do mágico felino. O fervor da multidão atinge uma intensidade frenética, e eles se voltam contra o grupo real e o palco.

A Copas dá um grito e Manti a arrasta para o castelo, protegendo-a.

A Vermelha berra dentro de minha cabeça. O som atinge meu ouvido interno como uma serra descontrolada, fazendo-me girar desordenadamente com a vertigem.

Tudo à minha volta fica borrado, como se eu estivesse cavalgando um pião. Consigo ter alguns vislumbres: as gavinhas da Vermelha chicoteando Morfeu e Jeb e desequilibrando-os; Morfeu tropeçando em suas asas, batendo a cabeça e fechando os olhos; Jeb tropeçando na pedra atrás dele e empurrando-a para perto da borda.

As correntes presas à pedra arrastam seu corpo de cima do palco. Ele cai no poço. Nikki se lança sobre ele, tentando puxar as correntes, e em seguida mergulha na água atrás dele.

Minha visão distorcida se dissipa quando Jeb vem à tona, debatendo-se. As profundezas o puxam para baixo, engolindo-o — meu melhor amigo, meu dedicado amor, o homem que deixou tudo para trás por mim, mais vezes do que eu poderia contar.

A água se agita com bolhas vermelhas, ácidas.

Eu viro a cabeça, soluçando, fraca demais para ver o que sobrou dele voltar à superfície. Fico ouvindo sua voz em minha cabeça, um ano atrás, da primeira vez que nos beijamos. Estávamos no País das Maravilhas e eu pedi a ele que não partisse meu coração. E a resposta dele foi: “Eu arrancaria o meu primeiro”.

Ele não pode ter morrido. Isso não pode ser real. Deve ser um pesadelo.

Tudo em torno de mim se move em câmera lenta: Morfeu inconsciente no chão do palco, os convidados ensandecidos fechando o cerco, dominando os guardas e os pássaros trogloditas.

Tudo o que há de bom em mim morre. Toda a compaixão e a misericórdia afundam na parte mais obscura de minha alma. A cor do sangue as substitui, uma maré tortuosa na qual quero nadar para sempre.

Os convidados tentam se aproximar do palco, e os guardas e os pássaros recuam.

Covardes...

Em uma explosão de obstinação cruel, os mutantes, babando, passam por cima do corpo inconsciente de Morfeu sem tocar nele, com os olhos vidrados em mim, atraídos por minha herança real.

— Você perdeu tudo — a Vermelha provoca de algum lugar dentro de minha cabeça. — Suas memórias falharam porque você pertence a mim agora. Renda-se ao meu controle e eu salvarei a nós duas.

Entretanto, não eram somente as minhas lembranças que Morfeu queria que eu usasse.

— Acabem com ela! Arranquem o coração! — a turba de mutantes entoa enquanto se aproxima. As gavinhas-tentáculos da Vermelha se multiplicam, mantendo-os afastados.

Deixo que ela nos defenda, deixo que sua distração sirva como minha oportunidade para entrar ainda mais, buscar os momentos manchados de carmim que o diário me ajudou a suprimir. Eu os arrasto para a superfície: o rosto jovem e corado da Vermelha ainda criança, quando tentou segurar o espírito de sua mãe, o brilho rubi do cabelo de sua meia-irmã durante uma dolorosa aula de croqué, quando ela sentiu que o pai estava se distanciando, e o tom carmim profundo das fitas sussurrantes a anunciar o erro mais devastador da Vermelha, quando ela atirou o marido nos braços de outra mulher por causa das próprias inseguranças egoístas.

A Vermelha guincha, sem defesa contra o choque de seus arrependimentos. Suas memórias vingativas a esfaqueiam por dentro. Suas gavinhas se retraem para dentro de mim, minha pele se fecha em volta delas como se nunca tivessem existido. Meus pés tocam o palco.

Evoco minha imaginação, pensando nela como uma aranha presa pelo tórax com um alfinete, até que ela se encolha em meu peito, indefesa como um inseto preso a um quadro de gesso. A dor me apunhala, dilacerando-me enquanto ela sucumbe ao próprio sofrimento, e meu coração começa a se partir em dois. Eu me engasgo com o gosto de cobre.

Mas não vou morrer. Não até me vingar.

Concentrando-me nos letárgicos galhos dentro de mim, ordeno que eles apertem o órgão no lugar.

Ela não me possui mais. Eu a possuo.

A turba de mutantes me subjuga em um ataque de pelos, baba e garras. Eles puxam meu cabelo, grunhem em meus ouvidos e amarram meus braços nas costas. Então, me levantam e me levam para a beirada do palco de onde Jeb caiu.

— Acabem com ela! Arranquem o coração! — O coro mórbido fica mais frenético.

Sou passada por cima das cabeças, de criatura em criatura, surfando pela multidão na direção do poço do medo. O ódio dentro de mim vai crescendo, fervendo. Ele retira a cor do meu cabelo e o retorce em dreadlocks platinados, reavivados por pura magia — alimentando meu próprio e sombrio poder.

A esfera flamejante na pista atrai minha atenção. Visualizo a plataforma esquelética como uma centopeia, a pista tornando-se o exoesqueleto e a estrutura de apoio, as pernas. Com um pouco de persuasão, ela refaz sua posição. As rampas se abrem e libertam o grandioso inferno de vidro. Ele vem rolando pela pista virada, dá um salto e voa na direção do poço. Ele pousa no lugar e bloqueia a abertura, impedindo que as criaturas me joguem lá dentro.

A pista continua a se mover, feito uma serpente, emaranhando as cordas e a cobertura amarrada na estaca ao centro do palco. A cobertura se rasga ao meio e as cordas se apertam cada vez mais até que as paredes externas do castelo desmoronem para dentro, soterrando metade da multidão. Cinzas enchem o ar quando as pedras atingem o pátio.

Os que sobraram da turba me largam, como se estivessem estarrecidos pela minha magia. Eles grunhem, rosnam e resmungam entre si. Conseguindo me orientar, fico de pé, com os braços ainda amarrados às costas.

— Cubram os olhos dela! — berra uma besta símia. — A magia dela está na visão! — Um deles cobre minha cabeça com o saco que cobria a de Jeb, o amarra e me empurra para o chão, tirando o ar de meus pulmões.

— Agora queimem! Que ela vire cinzas!

Eu inspiro, louca por ar, confusa pelos cheiros de tinta e sabonete cítrico. O aroma de Jeb.

Minha mente repassa sua morte. Ele nunca mais verá sua família, nunca me abraçará, nunca mais me chamará de menina do skate. Sua linda arte permanecerá no reino humano, mas ele nunca poderá ver como ela tocará a vida das pessoas, nem poderá perceber que já era o homem que sempre tentou tanto ser.

As criaturas rosnam e dão patadas no meu corpo curvado — respiração quente e garras afiadas — enquanto me conduzem para o inferno dentro da bola.

Estou muito absorvida no lamaçal de emoções para pensar em uma saída, chocada com a ideia do coração de Jeb boiando no poço, em algum lugar embaixo da esfera em chamas.

A desolação me assola, mais dura que os socos que sacodem meus ossos enquanto sou arrastada para morrer no fogo. Eu me curvo em posição fetal.

Lágrimas crestam meus olhos e eu grito até os pulmões se encolherem dentro de mim feito botões de rosa ressecados, pequenos e inúteis.

Então, por baixo do eco de meu desespero, o delicado tilintar de asas de borboleta me faz lembrar: a armadura de Morfeu.

Eu tenho de viver... eu vou viver. Pelas pessoas que amo e pelo País das Maravilhas. E para vingar a morte de Jeb.

Só é preciso um pensamento e a franja protetora se solta das camadas afiadas de meu vestido. Muitas garras me forçam para baixo, então eu me contorço feito uma minhoca. Algo úmido e quente respinga em minha pele, seguido do cheiro de sangue à medida que as lâminas aladas cortam meus captores, um a um. Mesmo sem enxergar, posso senti-los recuando, embora sem desistir, excitados demais pela possibilidade de assistir à mutilação uns dos outros.

No instante em que se abre espaço, rolo várias vezes. Gritos de agonia se alternam com risos sinistros, pois as criaturas continuam atrás de mim.

Rolando cada vez mais depressa, invoco o vento para que me pegue e me erga em um ciclone. Cegamente, ceifo todos à minha volta, deixando tudo em pedaços.

Eu sou o vento.

Eu sou a fúria.

Eu sou o pandemônio.

Eu giro, giro e giro como o Gravitron até não ouvir mais nenhum ruído. Até que silencie o último grito e a última risada doentia.

Quando minhas revoluções diminuem, pouso levemente sobre os pés, com a cabeça ainda coberta e os braços amarrados. Fico de pé no lugar e ouço o som de passos caminhando sobre o sedimento atrás de mim. Sei quem é, antes que as mãos suaves, agora sem luvas, comecem a desatar os nós em meus pulsos e a tirar o saco de minha cabeça.

Morfeu fica atrás de mim, como se me desse tempo para absorver a destruição que minha loucura deflagrou.

Uma névoa suave permeia o ar, precursora de uma tempestade. Eu pisco sob a luz cinza. Não há nada nem ninguém de pé no pátio. Nem paredes, nem palco, nem mesmo a pista esquelética. Morfeu deve ter acordado a tempo de buscar abrigo em uma das torres durante meu ataque de fúria, porque somente o próprio castelo ainda está de pé, assim como o pórtico coberto que se abre para a ponte levadiça. Reduzi tudo o mais a cinzas e poeira.

A Copas espia de uma das janelas mais altas da torre.

Olho para ela.

— Eu sou a Rainha Vermelha agora! — grito. — Você está acabada. E estará morta, se eu voltar a vê-la! — É uma promessa e um desafio.

Ela larga a cortina, retirando-se para trás de suas pregas negras.

Manti, os guardas e os pássaros trogloditas observam de outras aberturas para avaliar os estragos, mas é óbvio que não querem nada comigo nem com a minha fúria.

Quando Morfeu me vira para encará-lo, a poeira dos restos dos meus atacantes engole minhas botas e se revolve ao vento. Filamentos de um vermelho vívido cobrem meus braços, mas não é o sangue de minhas vítimas. É o meu.

Percebo agora por que ele perguntou onde estavam minhas luvas antes. Ele sabia que tudo acabaria assim.

Tantas emoções brilham nele — perplexidade, preocupação, remorso... e a sempre presente adoração. Ergo a mão na direção de seu rosto e ele se retrai, como se previsse um tapa. Em vez disso, eu o afago e àquelas joias lindamente expressivas sob seus olhos, e em seguida fico na ponta dos pés e toco seus lábios com os meus. Seu sabor e calor me envolvem. Ele geme e pega meu rosto nas mãos, beijando-me com mais ardor, mas eu me afasto.

— Amo você — eu sussurro, porque ele tem o direito de saber a verdade antes que eu o mate.

Sua mandíbula se afrouxa, as feições delicadas cintilando com a névoa e o reflexo do suave brilho azul do cabelo. Os penetrantes olhos se abrem, turbilhões de paixão, esperança e felicidade desenfreada. Neles, vejo os confins do País das Maravilhas... uma visão panorâmica do reino que nasci para governar. Em outro momento, eu teria sido atraída para dentro daquelas fascinantes profundezas, me perdido nelas. Agora, essas emoções delicadas estão fora do meu alcance.

Quando ele abre a boca para falar, coloco um dedo sobre seus lábios.

— É o meu amor por você que faz isso ser tão doloroso — digo com voz forte e resoluta. — Eu confiei em você e você me traiu.

Sua expressão desmorona e a indignação me percorre o corpo todo, tão poderosa que não consigo contê-la. Extraio a Vermelha de seu estado dormente, conjurando suas gavinhas a brotar de minha pele, comandando que obedeçam a mim agora.

Estendo um tentáculo e apanho Morfeu pela garganta, erguendo-o bem alto. Suas pernas balançam e as asas batem inutilmente.

— Eu fui ingênua o bastante para contar a você onde ele estava.

— Alyssa, espere — ele diz num sibilo, lutando para se soltar do galho enroscado em sua traqueia e sua carótida.

— Você o entregou. Você sabia que não podia confiar neles. Você brincou com a vida dele, depois de ele ter arriscado a dele para salvar você. — Minhas lágrimas retornam, de raiva e de angústia. Como se mostrasse compaixão, o céu se abre e uma chuva fina começa a cair, para lavar o sal quente de meu rosto. Lambo os lábios e sinto o sabor.

Eu vacilo, desequilibrada pelo peso de Morfeu. Minha pulsação se separa em duas tensões diferentes, e fica difícil respirar. O controle temporário da Vermelha sob meu coração duplo está tão frágil quanto ela agora, os fios se esticando porque estou usurpando seu poder.

Ignoro os alertas físicos e aperto o laço até a garganta de Morfeu inchar. Ele enterra as unhas na hera que o estrangula, desesperado por respirar. Vejo nosso filho em seus olhos e minha compaixão vem à tona, ameaçando me amolecer, mas a rainha já provou da vingança e está embriagada.

— Nada que você disser poderá mudar isso — murmuro em tom sombrio. — Nada pode merecer minha misericórdia.

As unhas de Morfeu se enterram na gavinha e ele inala ar suficiente para esganiçar algumas palavras:

— Você... é... o País das Maravilhas.

 

 

20


O País das Maravilhas

Eu afrouxo a tensão com que aperto o pescoço de Morfeu para deixá-lo respirar.

Ele traga o ar avidamente.

— Eu — ele diz, tossindo — vou sempre — respira outra vez — fazer o que for melhor para você.

Eu pisco, com lágrimas e gotas de chuva caindo dos cílios.

— Jeb está morto! — Meu grito arde na garganta e nos galhos que mantêm unido meu coração. Sinto tontura e titubeio. Volto a me orientar e puxo Morfeu para mais perto. Mais gavinhas irrompem de minha pele, envolvendo sua cintura e seu peito. — Como isso pode ser o melhor para mim? Responda!

— Menina do skate.

A voz vem de trás, não das cordas vocais comprimidas de Morfeu. Solto o galho que prende seu pescoço, mas os outros continuam a segurá-lo. Não consigo me virar, com medo de estar imaginando coisas.

— Escute, eu sei que ele é um pé no saco. — Uma mão forte e familiar toca a pele de meu cotovelo, e o calor faz meus cortes arderem. — Mas seria mais divertido usar um mata-moscas tamanho família. Coloque-o no chão, tá?

Morfeu sustenta meu olhar com um sorriso complacente curvando-lhe os lábios.

— Eu disse. — Em seguida, ele olha por cima da minha cabeça e dá outra golfada de ar. — Já era hora de você aparecer.

Meus membros tremem e eu abaixo Morfeu até o chão. As gavinhas se retraem para dentro de meu corpo e eu me viro.

É o CC que está olhando para mim. A cópia arlequim agora está usando túnica e calças de cavaleiro. Chessie está sentado em seu ombro, sorrindo de orelha a orelha. Duas das sombras criadas por Jeb estão sob o pórtico ao lado da ponte levadiça para não se molharem, as asas descansando enquanto aguardam novas ordens.

Extasiada, fico olhando o CC se transformar sob a chuva que cai.

As mangas de sua túnica estão arregaçadas, e uma tatuagem púrpura começa a aparecer na parte interna do pulso direito conforme a camada de tinta fresca é lavada pelas gotas. A ponta das orelhas, o remendo em forma de coração e as mutilações sob o olho esquerdo também se derretem. Sua cor de porcelana se esvai à medida que veios pretos, vermelhos e brancos vão escorrendo e revelam a tez morena de Jeb. Tudo — os cortes e o globo ocular deslocado, as joias de elfo e as orelhas pontudas — era pintado... e animado ao comando de Jeb.

De alguma maneira, ele e Morfeu conseguiram trocar Jeb por sua cópia.

Eles enganaram todo mundo. Inclusive a mim.

Balanço a cabeça. Chessie se lança do ombro de Jeb e flutua diante de mim. Seus olhos de torvelinho, que tudo sabem, me contam: Morfeu encontrando Jeb na masmorra; os dois sozinhos bolando o plano e entrando no quarto de Manti sem serem vistos porque usavam o traje de simulacro; Manti concordando com tudo, desde que ele pudesse bancar o rei fiel, para salvar sua reputação perante os olhos da rainha; Jeb pintando e animando o narguilé em miniatura que deflagrou minhas memórias humanas; e, finalmente, Jeb retocando o rosto de seu sósia com perfeição antes de pintar fios de sangue sob o tapa-olho e a mordaça, e em seguida mascarando as próprias orelhas e rosto com feições de elfo, pintura de arlequim no rosto, tapa-olho e buracos no corpo.

Chessie sorri novamente, os dentinhos reluzindo. Estendo a palma da mão e ele se deita de costas para que eu coce sua barriga. Com um grunhido de contentamento, ele se lança ao ar e voa em linha reta para Morfeu, que o manda ir procurar seu chapéu em meio às cinzas.

Volto-me para Jeb, ainda tremendo.

— A imagem do CC. O rosto dele. Eu pensei que você não conseguisse acabá-lo.

Jeb esfrega o piercing com o polegar.

— Porque eu não conseguia ver dentro do meu coração. Desde que eu consigo me lembrar, sempre medi o meu valor me comparando ao meu pai, ou ao sucesso da minha arte. Você me dizia o tempo todo que eu escolhi ser melhor do que meu pai. Que foi uma escolha. Eu finalmente entendi que você tinha razão. Toda vez que a sua vida estava em perigo, meu primeiro pensamento era ajudar você. Como hoje. Mesmo se eu não conseguisse pintar uma saída, teria encontrado outra. Essa é a única coisa boa que aprendi na minha infância. Ver o que existe de pior me ajudou a escolher ser melhor. Este lugar me fez enfrentar meus demônios. Mas você... sempre acreditou que eu poderia derrotá-los. E eu derrotei. E agradeço você por isso, Al. — Seus olhos verdes brilham com um autocontrole que nunca tiveram. Uma aceitação total e irrestrita.

A chuva para, e a realidade se instaura.

Jeb está vivo e inteiro — em todos os sentidos. Morfeu não nos traiu. E todo o horror que acabei de testemunhar foi uma mentira brilhante e louca.

Jeb enrola um de meus dreadlocks loiros em seu dedo.

— Você está bem?

Fico tentada a gritar com ele por ter me deixado acreditar naquelas coisas horríveis sobre os dois. Mas estou tão contente por ele estar vivo, aqui, do meu lado, conversando comigo... me tocando...

Quero pular em seus braços e abraçá-lo bem apertado. Todavia, como meu vestido é uma máquina mortífera, me contento em pressionar a mão contra seu peito. Seu coração bate forte por baixo das roupas. Nunca mais deixarei de dar importância a isso, nem ao fato de ele ainda possuir um relógio de vida.

— Nunca mais me assuste desse jeito — digo.

Ele ergue uma sobrancelha.

— Epa, essa fala é minha. — Usando meu dreadlock, ele puxa meu rosto para mais perto e roça os lábios e o labret na minha testa, e depois na têmpora, até a boca, dando um selinho.

Morfeu começa a bufar.

— Bem, isso tudo é muito lindo. Mas fui eu que ganhei um galo no coco e quase morri estrangulado.

Jeb me solta, revirando os olhos.

Com tapinhas, Morfeu tenta, em vão, tirar as cinzas grudadas em suas roupas.

— E você ganha toda a atenção dela, mas ficou com a parte mais fácil. Seguir Chessie até lá fora e levá-lo até o lugar onde o pai e o tio dela estão escondidos. Oooh, que medo.

Contendo um sorriso, observo as marcas vermelhas em seu pescoço que parecem queimaduras de cordas.

Pego a mão dele e a aperto.

— Me desculpe. Eu não sabia.

O polegar dele escorrega dos meus dedos.

— Você não podia saber. No momento em que a Vermelha entrou em você, tudo o que você soubesse ela também saberia. Tivemos que criar um plano para pegar o medalhão e fazer você se lembrar de sua força e ficar com raiva suficiente para domar o espírito dela sem que ela soubesse. Sem que você soubesse. Era a única maneira.

A única maneira...

A frase me faz recordar o conselho de papai quando chegamos aqui: Você nunca matou ninguém, Allie. Certifique-se de que essa é a única maneira. De outro modo, isso vai assombrá-la...

Volto a olhar para toda a chacina que causei. Meu estômago se revolta.

— Era a única maneira.

— Era, sim — Jeb diz ao meu lado.

— Certamente era — Morfeu concorda. Seu olhar se volta para a pilha de cinzas, deixando claro que ele compreende que estou falando de muito mais do que o plano deles. Estou contente que Jeb não estivesse aqui para testemunhar meu ataque de fúria. Já basta que ele tenha me visto sob o domínio da Vermelha.

Chessie emerge de uma pilha de escombros, propelindo o chapéu empoeirado de Morfeu, como fez com o roupão na estalagem ontem. O chapéu ziguezagueia pelo ar, mas Chessie se recusa a soltar o prêmio. Sua cabeça espia por trás e o sorriso maroto se abre quando Morfeu faz uma careta.

Eu mordo o lábio inferior, com mais uma dúvida me incomodando.

— E quanto ao Manti... você o atacou no palco. Foi parte do plano?

— Sim — Jeb responde. — Mais ou menos. — Ele inclina a cabeça, apontando Morfeu. — Você pegou pesado.

Morfeu estala a língua.

— Meu desempenho foi perfeito — ele comenta, finalmente conseguindo pegar seu chapéu de Chessie.

— Certo — Jeb diz, zombando. — Tenho certeza de que meus maus-tratos não teriam deixado você histérico, seu dramático.

Morfeu sorri com desdém.

— Faz sentido. Por outro lado, seu desempenho como robô desmiolado foi impecável.

Os lábios de Jeb se curvam, como se ele estivesse tentando conter um sorriso.

— Olha, eu ainda tenho tinta suficiente para fazer aquele mata-moscas.

— Tsc, tsc. Não precisa usar de violência. — Morfeu limpa a poeira do chapéu e o coloca na cabeça. — Eu só estava dando o crédito merecido.

Os olhos deles brilham com leveza, como quando eles me provocam. Estão gostando dos gracejos. Há até mesmo certo tom de respeito quando antes havia pouco mais do que tolerância.

Meu coração fica cheio, os dois lados dele, orgulhoso de como eles trabalharam juntos e deixaram os ressentimentos de lado por um bem maior. A sensação é maravilhosa, mas causa mais uma pontada — um estalo visceral atrás do esterno.

Falta-me o ar.

— Al, você está branca como papel. — Jeb olha para Morfeu com preocupação. — Talvez ela esteja perdendo muito sangue.

— Talvez. — Morfeu pega meu pulso esquerdo para senti-lo. Posso adivinhar, pelo arco de suspeita em sua testa, que ele está pensando no meu ataque de anemia na sala de jogos da Copas.

Eu me afasto.

— Estou bem. De verdade.

Jeb vira meu outro braço para avaliar o estrago. Eu me contraio quando minha pele ferida se estica.

— Eu não tenho a magia dela — Jeb diz. — Não posso curá-la.

— Eu posso, quando estiver recuperado. Por enquanto, vamos estancar o sangue. — Morfeu tira seu lenço manchado de tinta, fazendo-me lembrar nossos momentos na sala da Copas. Ainda não consigo acreditar que quase o estrangulei. E depois de professar meu amor... algo que ele esperou tanto para ouvir.

Com um olhar, ele alivia minha culpa. Mesmo sem estar dentro da minha cabeça, sei no que ele está pensando: que compreende meu lado sombrio e suas facetas cruéis; que, de fato, são essas mesmas facetas que o desafiam e o fazem sentir-se vivo.

Faço um sinal de agradecimento. Ele pisca para mim e pressiona o lenço com cuidado sobre minha pele.

Uma forte rajada de vento varre o pátio, revolvendo montes de cinzas molhadas e formando uma nuvem furiosa. Um túnel de vento surge a distância, logo acima do penhasco onde pousamos esta manhã.

Jeb pega meu cotovelo com cuidado.

— Temos que ir. Seu pai, seu tio e o outro cavaleiro estão naquele arvoredo, esperando. Nós temos um funil de vento para pegar.

— Você disse nós — comento enquanto vou rapidamente com eles na direção do pórtico para reaver as sombras pintadas.

Jeb lança um último olhar para o poço do medo e a enorme bola de fogo que o cobre, como se procurasse fantasmas.

— Não tenho razão para ficar.

Sou egoísta, porque estou contente que todas as criaturas que ele criou na montanha tenham sido destruídas. É irônico que eu deva agradecer a Morfeu por isso também. Ou talvez ele tenha planejado tudo desde o começo. Nunca canso de me surpreender com a amplitude do escopo de suas maquinações.

— Pobre Nikki — Jeb fala com voz pesarosa.

Com um sinal da cabeça, Morfeu concorda, triste, e Chessie desmorona em seu ombro, o sorriso virado para baixo.

— Eu pensei que ela estivesse tentando salvar seu criador — acrescento enquanto passamos pelo pórtico e subimos na ponte. — Mas ela estava tentando salvar seu amigo.

— Ela era uma fadinha corajosa — Morfeu reconhece. — E, por falar de fêmeas pequenas, mas ferozes, é hora de você abrir as asas, amor.

Não me sinto tão feroz. Só essa pequena caminhada pelo pátio já me deixou exaurida. Não sei quanto tempo ainda tenho antes que o poder da Vermelha se esgote e os galhos que seguram meu coração cedam.

Por um segundo, penso em contar aos rapazes sobre seu feitiço, compartilhar minhas preocupações para não ter de carregá-las sozinha. Mas de que adiantaria? Eles ficariam atormentados porque não conseguiriam revertê-lo. Ninguém pode.

A própria Vermelha disse que não havia magia que pudesse me curar.

Meus olhos ardem nas bordas. Nunca me senti tão só.

— Vamos pegar sua mãe. — Jeb recua para que minhas asas possam se abrir completamente.

Forço um sorriso, deixando para trás a sensação lancinante em meu esterno, e alço voo, ávida por ver papai e abraçá-lo. Com Jeb levado por sua sombra de um lado e Morfeu com a dele do outro, rumamos para o penhasco e para o nosso transporte até o País das Maravilhas.

Enquanto voamos, a lembrança de minha visão de mamãe me açoita como as correntes de vento. Ela está segura, mas o coração do País das Maravilhas está aflito. O que enfrentaremos ao chegarmos lá? Só espero que eu possa consertar as coisas antes que meu próprio coração aflito entregue os pontos.

Poderei morrer satisfeita se souber que o País das Maravilhas viverá.


Tenho tempo somente para absorver as asas, despir-me do vestido mortífero e vestir uma túnica extra sobre minha legging de couro antes de ser sugada para dentro do túnel de vento e largada diante do portão que leva ao País das Maravilhas. Depois que coloco todos a par de minha visão com minha mãe e a Marfim, tio Bernie se despede de nós com um abraço. Prometemos visitá-lo quando retornarmos ao reino humano.

É uma promessa que receio não poder cumprir.

Deixando tio Bernie com os outros cavaleiros, atravessamos o portão sem ninguém saber que estou abrigando uma fugitiva. Depois disso, exceto pelo fedor horrível de podridão, viajar pela garganta de quase meio quilômetro de madeira tulgey não é nem de perto tão aterrorizante ou perigoso como eu esperava. Em parte porque papai já se aventurou por aqui antes e nos conduz pelo caminho, mas também porque a tulgey está congelada. Literalmente.

Morfeu já esperava por isso e até nos preparou. Ele disse que, de acordo com a minha visão, a Marfim congelou tudo para desacelerar o feitiço de degeneração colocado pela Vermelha. Para nos dar uma oportunidade de revertê-lo.

Avistamos a boca aberta da árvore sob uma luz nebulosa, prateada. Nossa respiração forma nuvens de condensação enquanto manobramos em torno da língua gigante acinzentada pelo gelo, usando os dentes lascados como degraus.

Eu salto da mandíbula desengonçada para o bosque, atrás de papai. Jeb e Morfeu vêm em seguida. A grama de néon brilha com a geada e quebra ruidosamente sob minhas botas. Um cheiro de mofo paira no ar, embora tudo esteja envolvido pelo inverno.

Galhos emaranhados e refugos do espelho — intraterrenos que foram cuspidos da tulgey em estranhas e terríveis formas —, todos imóveis. Morfeu identifica as criaturas: uma formiga carpinteira com corpo feito de ferramentas; uma vespa com nariz de trompete; e um inseto com corpo de gafanhoto e cabeça de cavalo exibindo um torrão de grama congelada no focinho — como se em plena mastigação.

A cena é assombrosamente igual à do chá da tarde congelado que Jeb e eu encontramos em nossa primeira viagem para cá. Entretanto, diferentemente do chá, não há nenhum relógio quebrado que tenha aprisionado o tempo em sua cela de gelo. Isto é algo completamente diferente.

Meu olhar cruza com o de Jeb e ele faz um sinal com a cabeça, reconhecendo a lembrança.

Morfeu para ao meu lado. Salpicos azuis brilhantes giram em torno de suas mãos, como luvas de fibra óptica. Elas se acendem, apagam e voltam a se acender. A magia dele titubeia conforme vai esquentando, como o motor de um automóvel que ficou muito tempo sem ser ligado.

— Tem certeza de que nos contou tudo sobre sua visão? — ele me pergunta enquanto Jeb e papai procuram um caminho.

— Creio que sim. — Esfrego a testa. — Eu estava... em um lugar esquisito quando a tive. Por quê?

Morfeu faz beicinho.

— Eu esperava ver o solo sob um inverno perpétuo. Mas a Marfim congelou os habitantes. Não consigo entender o motivo. Era a paisagem que corria o perigo de deterioração. Não os intraterrenos.

Eu mordo o lábio. Alguma coisa cutuca minha mente lá no fundo. A mamãe não usou uma palavra estranha para descrever a doença que tinha acometido tudo? Mas não consigo lembrar qual era... começava com E.

Frustrada com a minha amnésia, vou até onde papai e Jeb estão retirando galhos que caíram sob uma trilha que parece ser a única saída.

Papai para quando eu me agacho para ajudar.

— Allie, pode deixar com a gente. Não quero que suas feridas voltem a abrir. — Ele se vira para Morfeu. — Será que vai poder curá-la logo?

Luminosos orbes de luz azul — fortes e firmes — explodem na ponta dos dedos de Morfeu. O brilho se reflete em sua face. Ele sorri como um menino encantado.

— Sim.

Chessie dá voltas em torno dele, rodopiando em comemoração.

Com um sinal de cabeça, papai agradece. Ele tira sua adaga de ferro da bainha no ombro.

— Muito bem. Jeb e eu vamos ver se esta trilha é segura. Voltamos logo.

Jeb aperta a minha mão antes de segui-lo. Eu a seguro, surpresa por ver que sua tatuagem ainda está brilhando, embora, em vez de violeta, esteja vermelha. Ele ergue as sobrancelhas, parecendo confuso, e desce as mangas da camisa, num pedido silencioso para que deixemos esse mistério para depois. Ele e papai se agacham sob uma massa de galhos tulgey e somem de vista.

Os olhos de Chessie se reviram, contando a mim e a Morfeu quanta saudade ele sentiu de casa e como quer visitar seus refúgios prediletos.

— Primeiro, encontre a mãe de Alyssa e a Marfim — Morfeu insiste. — Diga a elas que estamos aqui. Se as portas nos espelhos estiverem funcionando, peça a elas que abram uma para nós.

Chessie concorda e parte, desviando de algumas árvores quase grudadas umas nas outras antes que eu possa piscar.

Morfeu levanta as mãos, testando seu poder. Filamentos elétricos azuis atingem cada galho da copa acima de nós, balançando-a e libertando flocos brancos. Ele fica ali de pé — com as asas num arco alto —, orgulhoso e régio enquanto uma chuva de flocos macios cai sobre ele. Um riso franco ressoa do fundo de seu peito. Está tranquilo e brincalhão, ainda mais do que estava em seu quarto em Qualquer Outro Lugar. Ele ficou tanto tempo sem sua magia que agora está embriagado dela.

A neve cai sobre mim também, fria e refrescante. Ela me faz lembrar o Texas e as nevascas sazonais em que Jeb, Jenara e eu brincávamos quando crianças. Bonecos de neve, sorvete de neve, fortes de neve. Não consigo me conter e rio com ele, apesar da fraqueza que sinto.

— Dance comigo, flor — ele convida, e, quando hesito, me puxa com sua magia. Eu me aninho em seu peito, saboreando sua vitalidade, querendo poder absorvê-la.

Ele passa um braço pela minha cintura e pega minha mão. Com os lábios pressionando minha cabeça coberta por dreadlocks, ele cantarola a canção de ninar enquanto sua voz interior enche minha cabeça em uma frequência que só eu posso ouvir:

— Você me deixou extasiado hoje. Tão desinibida. Tão cheia de malícia.

Eu sorrio secretamente e sigo seus passos graciosos. Suas asas cascateiam à nossa volta feito rodamoinhos de tinta etérea.

— Na verdade — a voz de sua mente continua —, agora que recuperei minha magia — ele me gira, em seguida me puxa novamente para si —, espero que você me permita outra tentativa em nosso jogo.

— Jogo? — eu pergunto.

— Não sou avesso a um pouco de violência — ele responde, agora não mais cantarolando. Pega minha mão, dá uma mordidinha nas juntas dos dedos e depois os conduz para as marcas vermelhas em seu pescoço. — Rainha raivosa e lacaio voluntarioso... esta será a regra para o nosso jogo de amor. Sem as gavinhas da Vermelha, e nós dois escassamente vestidos.

Eu desdenho.

— Está delirante.

— Prefiro o termo “enlouquecido”.

Eu sorrio para ele, animada por vê-lo provocativo e contente. Pressiono a orelha contra seu peito para poder ouvir as batidas fortes do coração. Tento fazer meu coração duplo se fundir a uma batida e seguir seu ritmo perfeito. Não consigo.

— Alyssa, estou inteiro novamente — ele murmura enquanto o ritmo de nossa dança vai diminuindo até chegar a um mero balançar.

— Eu sei.

— Jebediah está inteiro também.

Não respondo, porque, de alguma maneira, Jeb ainda mantém a magia da Vermelha e não sei direito o que pensar sobre isso.

— Então, você deve convencê-lo a libertá-la de seu voto — Morfeu acrescenta, resoluto.

Começo a me afastar, mas ele me abraça com mais força.

— Você me ama. Você admitiu.

— Eu amo você, sim.

O corpo dele reage tremendo, como se não conseguisse conter as emoções diante de minha resposta.

— Nós dois sabemos que você fez esse voto para tirar seu mortal de Qualquer Outro Lugar. Para dar-lhe fé em sua humanidade e em você. Seu estratagema salvou a vida dele.

Cerro os dentes.

— Não foi a única razão pela qual eu o fiz. — É importante que ele aceite o meu amor por Jeb. Terei de dizer a Jeb a mesma coisa sobre Morfeu antes de ir. Não vou deixá-los com mentiras pairando entre nós. — Eu amo vocês dois.

Morfeu fica tenso e volta a dançar comigo no espaço pequeno, refazendo nossos passos pela neve até nossas pegadas se apagarem. Nós rodopiamos de uma ponta à outra, como se ele achasse que pode me distrair de minha própria verdade.

Por fim, sem fôlego, nós paramos de cara um para o outro. Toda a alegria de antes se apaga como uma vela, e nossas respirações formam nuvens de condensação.

— Já cansei de esperar. É agora ou nunca. E não ouse esquecer que nossa união garantirá que o que aconteceu com seu pai nunca mais aconteça com outro humano. Ninguém mais será aprisionado pela Irmã Dois, porque nós presentearemos o País das Maravilhas com nosso filho capaz de sonhar.

Suas palavras me atingem, fazendo-me perceber que isso ainda não havia passado pela minha cabeça. Como estou morrendo, nosso filho não nascerá. O País das Maravilhas terá de continuar roubando crianças para pegar os sonhos delas para sempre. A não ser que encontremos uma alternativa.

Sinto uma pontada aguda atrás do esterno e um sabor amargo e metálico na garganta.

Pouso o rosto no peito dele, abafando um soluço.

— Eu pensei que estivéssemos dançando.

Em resposta, ele me rodopia. Eu me solto e vou parar diante do tronco de uma árvore. A expressão dela está congelada em uma careta sombria com a boca aberta, igual à da árvore da qual saímos. Eu me afasto e analiso todas as árvores tulgey que consigo ver. Todas têm a mesma expressão, como se o momento em que foram congeladas tivesse sido horrível.

O coração do País das Maravilhas está morrendo. A estagnação está próxima. Venha logo. Vamos aguentar o máximo que pudermos.

— Estagnação — eu murmuro.

— O que disse? — Morfeu pergunta, surgindo atrás de mim.

— Estagnação. Foi a palavra que a mamãe usou quando disse para nos apressarmos. Ela me disse que a estagnação estava se aproximando.

Olho para trás para ver a reação dele. Seu queixo está retesado; o lindo rosto, abatido. Ele analisa as árvores e os dejetos do espelho.

— Eu achava que a Vermelha tivesse somente lançado um feitiço. Mas foi uma praga... um extermínio. Tristeza tóxica.

— Não entendi.

— Os estagnados são criaturas microscópicas. Sua destruição é tão devastadora e completa que eles foram mantidos confinados durante séculos. Cada castelo tem um suprimento deles guardado a sete chaves, como um meio de se manter a paz. De se manterem os dois reinos sob controle.

Balanço a cabeça, compreendendo.

— Destruição Mútua Assegurada... Os dois lados sabem que qualquer ataque ao outro será devastador para eles mesmos. Temos a mesma coisa com armas nucleares em nosso mundo.

Morfeu coça a têmpora.

— A Vermelha deve tê-los tirado de fininho antes de ser destituída do trono. Quando ela lançou sua vingança contra nós, não planejava simplesmente destruir a beleza daqui... ela ia erradicar tudo.

— Mas por quê? Eu achava que ela quisesse o reino dela de volta.

— Deve ter sido um plano alternativo, caso algo desse errado com o plano de Alice. Desse modo, ela poderia nivelar todo o País das Maravilhas, e depois reconstruí-lo a seu bel-prazer.

— É claro. Faz sentido. Ela queria reinar sobre tudo. — Estou prestes a contar a ele como ela pretendia usar nosso filho como moeda de troca para derrotar a Marfim e controlar os dois reinos, mas ele me interrompe.

— Ela deve ter libertado a praga depois que você voltou para o reino humano — ele diz. — Depois que ela encontrou um novo corpo para habitar. Foi aí que tudo começou a desmoronar.

— E foi aí que você tentou me fazer voltar. — Vou até a árvore mais próxima e passo a mão cheia de cicatrizes sobre a casca gelada. Sinto que Morfeu se aproxima, mas não me viro. Estou envergonhada demais. — Eu deveria ter ouvido.

— Você teve a sua curva de aprendizado. — Há certa moderação em sua voz. Ele está bravo. — O que importa é o que vai fazer com o que aprendeu.

— Mas a magia da Vermelha pode reverter isso?

Ele suspira, colocando a mão junto da minha sobre a árvore, de modo que seu corpo e suas asas me resguardem.

— A esta altura, trata-se de mais do que reverter. É preciso renovar. Criar um mundo novo é a única maneira de se deter a infecção, e só o poder daqueles que experimentaram a magia da coroa é capaz disso. É necessário que as linhagens dos dois reinos trabalhem juntas. A Marfim não poderia fazer isso sozinha. Foi por isso que ela congelou tudo. Para impedir que os habitantes fossem infectados até você voltar e ajudá-la. Juntas, vocês recriarão as paisagens e depois, quando elas estiverem puras, a Marfim poderá libertar todos os intraterrenos de sua suspensão em segurança. Pode ser necessário usar cada fagulha do poder deixado pela Vermelha, combinado com o seu e o da Marfim, para controlar uma epidemia tão disseminada.

Lágrimas brotam de meus olhos, porque minha magia só é tão forte quanto eu, e a da Vermelha está diminuindo.

Morfeu afaga meu cabelo no lugar onde ele pousa sobre meus ombros.

— Há um lado bom nisso, amor. Você não precisa expulsá-la. Simplesmente, esgote-a. E, então, ela estará finalmente derrotada. Para sempre.

Ele não percebe que já usei a maior parte do poder dela. Ao tentar me manter viva, condenei o País das Maravilhas à morte. Nunca pensei em quanto nossos destinos pudessem estar interligados.

Eu me contorço, minha mão escorrega pela cara da árvore e desabo ao chão.

— Alyssa? — Morfeu se agacha ao meu lado imediatamente. Ele pega meu queixo e me força a olhar para ele. — Está se sentindo anêmica de novo?

Faço força para respirar. Meu peito é arranhado, como se eu inalasse abelhas furiosas. O sangue sobe à minha garganta e me engasga.

As joias no rosto de Morfeu piscam em um ansioso caleidoscópio de cores. Ele tira o casaco, me envolve nele e arregaça as mangas.

— Tire as botas para que eu possa curá-la.

Meus dentes rangem a qualquer movimento. A única maneira de controlar a dor agonizante, de impedir que meu coração se rasgue ainda mais, é ficar congelada, como tudo à minha volta.

Morfeu se cansa de esperar, tira a minha bota ele mesmo e sobe minha legging. Ele acaricia a tatuagem da qual sempre fala para me provocar, e em seguida pressiona nossas marcas uma contra a outra. Uma faísca se desprende delas, expandindo-se feito uma chama pelas minhas veias. O poder cura seu pescoço e meus braços, mas não chega a atingir meu coração.

Durante a eufórica corrente de calor, o olhar de Morfeu encontra o meu e sinto-me desnudada até os ossos. Ele vê o problema.

— Oh, florzinha. — Sua voz é um poço de desespero. — Por que não me contou?

Fecho os olhos com força.

— Me desculpe. — O pedido de desculpas se transforma em um arquejo.

— Não — ele esbraveja. — Você tentou me contar. Na montanha. E na sala de jogos da Copas. Eu estava preocupado demais para ouvir.

Chega de culpa. Ele precisa se concentrar no nosso lar.

— Encontre um modo. — Engulo outra descarga de sangue e saliva. — Salve o País das Maravilhas.

Morfeu me ergue nos braços, aninhando-me com carinho.

— É exatamente o que pretendo fazer. — Embora eu possa sentir seu calor através de nossas roupas, estou tremendo.

Com os olhos semicerrados, observo um raio azul saindo de seus dedos para os galhos acima de nós. Usando-o como cordas, ele abre a copa ao meio. Suas asas batem, provocando rajadas de neve. Nós saímos do bosque e ganhamos o céu. O solo adormecido do País das Maravilhas passa lá embaixo, a uma altura estonteante — branco e brilhante. Pontos pretos surgem nas bordas de minha visão periférica.

Meu estômago se revira uma vez, lembrando-me de que ainda estou viva. Em seguida, fecho os olhos e encaro a escuridão que me aguarda.

 

 

21


Suturas

O som de pequenos sinos me acorda, retinindo melodiosos. Uma comoção de fadas paira sobre meu corpo. Meus dreadlocks sumiram e o cabelo está solto em leque sobre o travesseiro, em ondas loiras e lustrosas. As fadas manejam pincéis de maquiagem e colocam broches de joias cintilantes no lugar com a precisão e eficiência de um lava-rápido, deixando um aroma de perfume e talco em sua esteira.

Uma fada roça o meu nariz e faz cócegas na ponta. Ela se parece tanto com Nikki que preciso olhar outra vez. A coceira que ela causou evolui para um espirro, o que faz todas as fadinhas se espalharem feito sementes de dentes-de-leão.

Elas soltam trinados, reclamando.

Eu esfrego os olhos, me sento e observo o entorno.

Estou afundada em uma cama enorme, coberta por edredons de plumas tão brancos e fofos que parecem montes de neve. As fadas recolhem cestas do chão de mármore branco, quatro em cada alça, e saem voando pela porta entreaberta.

Eu pisco. Nunca estive aqui, mas conheço este lugar dos esboços que Morfeu desenhou na contracapa do livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas de mamãe. Este é o castelo de vidro da Marfim, e estou em um quarto ornamentado: paredes de vidro cobertas de gelo para dar privacidade e castiçais de cristal sem velas nem pavios. Suas chamas prateadas flutuam, como pirilampos suspensos no ar.

Uma espreguiçadeira cristalizada está diante da lareira, onde crepitam mais chamas. De alguma maneira, elas produzem calor e luz sem derreter o gelo das paredes. Mamãe e papai dormem profundamente sobre as almofadas brancas, ela no colo dele e as pernas dos dois entrelaçadas. O bonito perfil de meu pai está desalinhado, o nariz enfiado no cabelo loiro-avermelhado dela. Os fios se mexem, cheios de magia. Suas asas transparentes estão dobradas atrás dela como uma borboleta que descansa.

Eles são tão adoráveis juntos. O cavaleiro Branco e sua mágica consorte, finalmente nos braços um do outro. Apesar de tudo o que passaram para chegar a este lugar, seu amor nunca vacilou. Eles merecem isso mais do que qualquer pessoa que eu conheça.

Meu coração se incha de felicidade e eu me preparo para a dor lancinante que certamente virá em seguida. Em vez disso, uma pequena onda reverbera a emoção. Parece uma libélula chocando-se contra meu esterno — delicada e vibrante. Respiro fundo, mais forte e mais em paz do que jamais estive desde que comecei esta jornada, quem sabe na minha vida toda.

Alguma coisa me atiça no fundo do crânio. A Vermelha ainda está lá, recolhida em lamentação, mas perdendo poder a cada segundo. É só uma questão de tempo até ela se esvair de mim e murchar até se transformar em nada. Sou a única coisa que a mantém lá dentro, mas posso deixá-la ir quando estiver pronta. Seu feitiço sobre meu coração foi revertido.

Como?

Olho para a camisola que me cobre. É feita de tecido branco puro e renda — transparente como o vidro que cerca esta sala —, com fendas nas costas para as asas. Um collant de renda prateada oferece certo recato.

Uma luz indistinta de cor púrpura pisca por baixo do peito do collant. O brilho irradia de dentro de mim... sob minha pele e de trás do esterno.

Meu estômago se revira. A última vez que vi esse tipo de magia, ela vinha de dentro de Jeb — uma combinação das magias da Vermelha e de Morfeu.

Passos estalados chamam minha atenção para a porta de cristal. Uma cabeça nua brilha nas sombras. Olhos rosados e orvalhados brilham por dentro da pele albina que pende em camadas de rugas, como um filhote de shar-pei.

— Atrasado, digo. Rainha Alyssa. Atrasado estou eu.

Aliso meu vestido e sorrio.

— Rábido. Fiquei preocupada. Pensei que você estivesse congelado.

— Convidados ao castelo de gelo somos nós. Antes do inverno chamados pela fada Marfim.

Então foi isso que eu vi em meu primeiro sonho com mamãe. A Marfim trouxe Grenadine, minha mãe e meu conselheiro real, o Rábido Branco, para cá, onde estariam protegidos dos estagnados.

A silhueta do Rábido, do tamanho de um coelho, aguarda no corredor, imóvel.

— Por favor, entre. — Aceno para ele. Ele passa pela soleira em um salto. Seus lábios espumantes fazem biquinho de concentração enquanto equilibra a coroa de rubi sobre uma almofada nas mãos enluvadas.

Seu corpo esquelético se chacoalha dentro do fraque vermelho a cada movimento bamboleante. Coloco um dedo sobre a boca para pedir silêncio.

Ele olha para meus pais adormecidos e diminui os saltos para passos desajeitados, intuitivos apesar de sua expressão sinistra com olhos arregalados. É isso que faz dele um conselheiro real formidável. Como a maioria dos intraterrenos, ele é ambíguo. Introspectivo e insondável quando necessário. Foi assim que ele me enganou no ano passado, fazendo-me pensar que queria me matar, quando o tempo todo ele só queria me colocar no trono.

Ele está vestido como da primeira vez que o vi, só que hoje o casaco é flocado e tem botões de veludo preto e uma gola de pele combinando.

Encho-me de compaixão por essa forma hedionda escondida sob roupas extravagantes. Nunca me esquecerei de como a Vermelha o despiu de seu orgulho e de sua pele. Uma parte de mim quer contar-lhe a verdade. Que foi ela quem causou sua deformidade; que, quando salvou a cara dele do ácido, foi somente uma manobra para garantir sua lealdade. Mas de que adiantaria lhe contar que ele foi um peão? A Vermelha não é mais uma ameaça para ninguém. É triste, na verdade, ver como ela está imprestável e impotente agora.

Uma pontada de profundo remorso me cutuca o crânio onde ela se esconde. Ela cresce à medida que o Rábido se aproxima, o bastante para a Vermelha sussurrar dentro de mim:

— Por favor... alivie meu sofrimento. Deixe-me dizer a ele que me arrependo de minhas ações e depois me liberte para que eu não mais exista.

Tarde demais, eu sussurro em resposta lá dentro, resistindo a toda e qualquer propensão à misericórdia. Ainda vou decidir seu destino.

O Rábido aproxima-se da cama e estende a almofada. Suas antenas brancas e peludas quase o fazem tropeçar quando ele se ajoelha. Seguro sua cabeça para equilibrá-lo. Nós vivemos muitas coisas malucas juntos quando ele entrou no reino humano antes do baile de formatura apocalíptico. Ele conquistou minha confiança e afeição eternas.

Ele suspira — um som de contentamento — e continua:

— Hora chegou, diz Rainha Grenadine. — A espuma escorrega dos cantos de sua boca enquanto ele fala. — Coroar Rainha Alyssa, ela ordena.

Intrigada, pego a almofada e coloco-a no colo sobre as cobertas. Enrolada no centro da coroa está uma chave incrustada de rubis com uma corrente filigranada. Eu a coloco no pescoço. Senti falta de usar a chave do reino no peito. Com a ponta dos dedos, percorro a intrincada estrutura dourada da coroa e a ergo, fazendo os rubis cintilarem sob a tênue luz.

— Alyssa, não! — A voz assustada de mamãe faz o pobre Rábido lançar-se de cabeça no chão. Coloco a coroa de lado, afasto as cobertas e viro os pés descalços para ajudá-lo a ficar de pé. Mamãe e papai já estão ao meu lado, piscando os olhos sonolentos.

— Olá? — eu digo, mais como uma pergunta. Eles me abraçam, me espremem entre o perfume floral dela e o cheiro puro de musgo que vem dele. Mamãe beija minha testa e papai roça o nariz em meu cabelo ondulado todo arrumado.

— Ficamos tão preocupados — mamãe sussurra.

— Estou bem — respondo. Olho para papai. — Mas não entendo como...

Ele abre a boca, mas se cala quando o Rábido sobe na cama e escava as cobertas em busca da coroa, estendendo-a uma vez mais.

— Pronto para servir à Rainha Alyssa estou eu. Tempo muito esperei. Muitas dívidas a pagar. Leal, sempre e eternamente.

— Ainda não é o momento. — Mamãe limpa lágrimas de seu rosto e pega a coroa das mãos do Rábido.

Ele silva, mostrando os dentes afiados e os olhos flamejantes.

— Do contrário, a Rainha Grenadine diz.

Coloco a mão sobre sua cabeça e ele se curva outra vez, relaxando, obediente.

— Os planos mudaram — papai diz, movendo-se com cautela ao ajudar o intraterreno a descer da cama. Ele o acompanha até a porta. — Nós enviamos uma mensagem a Grenadine, mas ela deve ter esquecido. Ela não tem mais as fitas para ajudá-la a lembrar as coisas. Por que não vai chamar a Marfim para nós? Ela explicará tudo.

Os olhos cor-de-rosa do Rábido perdem o brilho, ficando nebulosos como algodão-doce. Antes de fechar a porta, ele resmunga:

— Zumbis na Terra dos Brinquedos?

Papai para e troca um olhar preocupado com mamãe.

Eu dou risada.

— É um jogo do meu celular. O Rábido superou meu recorde há algumas semanas. — Sorrio para meu pequeno conselheiro. — Vamos jogar de novo em breve. Vou conseguir minha revanche.

Seus olhos se iluminam.

— Generosa é você! Biscoitos também? Rábido Branco com fome está. Sempre.

Eu rio.

— Sim, sempre. Vou pedir que mamãe faça uns biscoitos para você.

Ele ri e sai pulando pelo corredor, parecendo mais um coelho do que um ser maluco de outro mundo.

Papai fecha a porta e os dois ficam olhando para mim como se eu fosse uma miragem que pudesse desaparecer a qualquer instante.

— Muito bem. — Cansei de ficar no escuro. — O que está havendo?

O olhar de mamãe cai para o brilho púrpura que irradia de meu peito. Eu tinha me esquecido dele com a chegada inesperada do Rábido. Ergo a mão e aperto a chave contra o lugar que brilha, sobre o vestido. Um surto de memórias felizes me toma: Morfeu e eu quando crianças, depois Jeb sempre presente durante meus anos de escola. Ouço suas vozes, misturadas uma com a outra e cheias de amor e estímulo: Você é a melhor dos dois mundos... Vai conseguir, menina do skate e rainha fada.

Olho para meus pais, buscando as respostas que vejo em seus rostos.

— Onde estão Jeb e Morfeu? — pergunto com a garganta seca. — Não acredito que eles não estão aqui. Eu quase morri.

— Eles estariam aqui, mas... a Marfim poderá explicar a ausência deles. — Mamãe volta os olhos para papai. Por trás dos cílios negros e das íris azuis salpicadas de turquesa, há ansiedade.

Ausência? Uma percepção me agita as entranhas. Esta mudança em meu coração é uma combinação deles e sua magia. Ainda não tenho ideia de como Jeb conseguiu manter o poder da Vermelha depois que entramos no País das Maravilhas vindos de Qualquer Outro Lugar, mas a pergunta que mais me angustia é: por que eles não estão aqui?

Eu titubeio quando minha mente é perturbada por cenários horríveis.

— Borboleta, fique sentada. — Papai apoia meu cotovelo e me coloca de volta na cama. Ele me dá seu sorriso à la Elvis, mas não acredito nele, por causa do espasmo na pálpebra que vem a seguir.

— Os rapazes? — pergunto em voz esganiçada.

— Eles estão bem — ele responde. — Vão passar aqui para ver você em breve. Estão ocupados agora.

Solto a respiração, o alívio tão palpável que quase posso sentir seu gosto.

— Ocupados com o quê?

— Recriando o País das Maravilhas — mamãe responde.

Volto a me erguer.

— Eu é que deveria ajudar a Marfim a fazer isso. É preciso duas rainhas trabalhando juntas, dos dois reinos. Este mundo é metade do meu, e de minha total responsabilidade.

O rosto de papai cora. Ele me envolve em uma colcha.

— É necessária a magia da coroa de duas rainhas. A Marfim vai explicar. E você precisa vestir alguma coisa se planeja sair desta sala...

— Ela não pode sair — mamãe interrompe. — Allie, existem instruções para as suturas mágicas.

Fecho a colcha no pescoço, formando um roupão.

— Suturas? — Eu me recosto na cama e apoio os quadris contra a beirada do colchão. — Mas a Vermelha disse que não conhecia nenhuma magia que pudesse me ajudar.

— É verdade. — Ao ouvir o som da voz da Marfim, olho para a porta. Sua pele leitosa e o vestido longo em camadas brilham como o gelo cristalizado nas paredes deste quarto. — Esse tipo de magia nunca foi vivenciado pela Vermelha nem pela maioria dos intraterrenos. — Ela entra no quarto. Chessie está sentado em seu ombro esquerdo e Nikki no direito, confirmando que não imaginei a fadinha antes. Só há uma explicação: Jeb a repintou.

— A magia da Vermelha não saiu de Jeb — eu arrisco.

As asas da Marfim varrem o chão atrás dela, parecendo um manto de plumas.

— A inspiração dele foi alterada para sempre. O vínculo entre seu ímpeto criativo e a obstinação da Vermelha era tão forte que eles se fundiram e se tornaram uma entidade. Então, embora a magia de Morfeu tenha retornado ao seu recipiente original, a da Vermelha permaneceu dentro de seu cavaleiro mortal. Seu talento para a pintura é algo vivo agora, guardado dentro dele. E é mais poderoso aqui do que era no mundo do espelho, pois não há ferro para macular ou enfraquecer suas criações. Elas não desaparecem com a água. Elas se tornam reais, como eu e você.

Por mais extravagante e perturbador que seja o conceito, ele faz sentido.

— Então, porque o poder dele vem da Vermelha, ele retém sua linhagem real e a magia da coroa. Ele ajudou a recriar as paisagens com você.

— Sim — diz a Marfim, sorrindo. — E Morfeu nos guiou, pois ele conhece todos os cantos do País das Maravilhas, até mesmo os lugares inóspitos ocupados pelas fadas solitárias. Foi trabalho dele fazer os esboços para Jebediah segui-los. Agora já terminamos.

Uma estranha onda de tristeza me assola, e eu volto a me sentar.

— Eu deveria ter participado. Era meu dever.

— Não, Alyssa — a Marfim retruca. — Seu dever era descansar e curar-se, pois seu reino precisa de uma rainha, e não de um cadáver. Correto?

Balanço a cabeça, concordando, mas não é totalmente sincero.

Mamãe senta-se junto de mim, com o braço em minha cintura.

— Allie, ainda tem uma coisa muito importante para você fazer. Somente você pode decidir o que acontecerá com a Vermelha. Você vai expeli-la e destruí-la? Ou vai devolvê-la à Irmã Dois como um espírito inquieto?

Espírito inquieto. A Vermelha está muito longe disso. Nunca vi ninguém tão desalentada e exaurida. Suas memórias não esquecidas são correntes imóveis em torno dela.

Ela choraminga dentro de mim, encolhendo-se ainda mais.

Não é fácil esmagá-la agora que ela se lembrou. Agora que ela se arrependeu. Ela até sabe o que foi feito de seu rei, como ele ficou aprisionado para sempre na caixa linguardarte em razão dos eventos que ela desencadeou. Sua vingança perdeu todo o sentido.

Digo a mim mesma que vou mantê-la viva para puni-la, mas não é só isso.

— Eu vim para matá-la — respondo, buscando aconselhamento para meus sentimentos conflitantes.

— Talvez seja o suficiente você ter feito com que ela lembrasse que existem mais coisas na vida do que morte e destruição — papai diz, acariciando o alto da minha cabeça.

— Você precisa decidir logo — a Marfim acrescenta. — Em algumas horas, depois que as paisagens se estabilizarem, despertarei todos os habitantes que dormem sob o meu feitiço. Faremos um banquete e, juntas, asseguraremos a todos que nosso mundo está seguro e forte. O que você escolher fazer com a Vermelha estabelecerá os precedentes de como seus súditos a verão como rainha.

Como se as coisas estivessem muito sérias para seu gosto, Chessie mergulha sobre mim, os olhos transmitindo seu alívio por eu estar bem. Nikki vem em seguida, mas me observa com timidez, com os olhos de uma estranha. Ela não é exatamente a mesma fadinha. É uma versão atualizada, mas, mesmo assim, Chessie está deliciado por tê-la de volta.

Eu sorrio e abro as mãos para ele se aninhar. Nikki se empoleira no polegar, cautelosa e inquisitiva.

Olho para a Marfim.

— E quanto à magia que me curou?

Ela olha para meus pais.

— Eu poderia ficar um momento a sós com a sua filha?

Papai concorda e aperta meu ombro. Mamãe beija minha face, tranquilizando-me. De mãos dadas feito adolescentes, eles saem da sala e fecham a porta.

— Esta magia — a Marfim aponta para meu peito — é feita do amor mais inocente, Alyssa. Do amor das crianças. Puro e incondicional.

Chessie se lança das minhas mãos e sobrevoa a sala, com Nikki em seu rastro. Olho para o brilho suave atrás de meu esterno.

— Eu não compreendo.

— Venha. — A Marfim me conduz até a lareira. As chamas prateadas piscam, pincelando as pálidas íris da rainha, as sobrancelhas e os cílios com brilho, como neve sob o luar. Sentamos juntas na espreguiçadeira de cristal e ela enrola o cabelo prateado, que vai até a cintura, em um lado da almofada branca; Nikki se acomoda no alto da espiral e gira sobre os fios.

A curva graciosa do longo pescoço da Marfim me recorda um cisne, forma que às vezes ela assume. Assim como Morfeu se transforma em uma mariposa. Subitamente, percebo que minha aparência alternativa é a humana... que minha magia nunca terá uma cor reveladora, porque sou mestiça. Isso me torna singular, assim como meus sonhos e minha imaginação. Isso me faz especial para os dois mundos. E é isso que Morfeu tem afirmado o tempo todo. É exatamente isso que a Vermelha esperava conseguir produzindo uma raça de mestiços, antes de perder de vista suas nobres intenções.

A Vermelha se mexe lá no fundo da minha cabeça, encolhendo-se de agonia.

A Marfim estende a palma da mão e surge uma bolha do tamanho de uma bola de softbol, luminosa e transparente.

— Outra visão? — pergunto, lembrando-me muito claramente da última que ela me mostrou e do voto pela magia da vida que se seguiu. Não planejo fazer mais nenhum voto por um bom tempo.

— Não é uma visão. É mais um lampejo de seu passado recente.

Chessie desce e, com um puf, dissipa-se em centelhas alaranjadas e fumaça cinza. Sua névoa vaga ao lado da bolha como uma nuvem, trazendo clareza à imagem borrada que se forma lá dentro.

Sintonizo todos os sentidos: eu vejo, ouço, sinto o cheiro e o gosto do momento:

Morfeu traz meu corpo inconsciente para esta sala e me coloca na cama sobre as colchas brancas. Ele para, olha para meu rosto, e as joias sob seus olhos têm um cinza tempestuoso. Mamãe dá voltas em torno dele, as asas esvoaçando nervosamente. Ele dá um passo para trás enquanto ela limpa o sangue dos meus lábios e desaba sobre mim, aos prantos.

Chessie paira no ar, ansioso.

Morfeu volta-se para ele com as mandíbulas tensas.

— Atravesse a passagem do espelho... traga Thomas e Jebediah. Depressa!

Chessie chispa porta afora.

Há um movimento na porta, e entra a Marfim.

— Só há um meio de salvá-la agora.

Minha mãe levanta os olhos vermelhos. Mesmo em sua tristeza, ela é linda, a pele luminosa e lisa, como se fosse vinte anos mais jovem.

— Não. Ainda, não. Ela ainda tem outra vida para viver.

A Marfim entrelaça as mãos brancas como a neve.

— Se você deseja que ela viva, é a única maneira. Já pedi a Grenadine que envie a coroa por intermédio do Rábido. Eles estão na torre norte, então ele deve chegar logo.

— Não podemos fazer isso. — Mamãe retesa os ombros. Toda e qualquer vulnerabilidade se desvaneceu de seu rosto. As asas se erguem, altivas. Ela está determinada, pronta para lutar.

A Marfim aproxima-se e coloca a mão em seu braço.

— Ao colocar a coroa na cabeça dela, renovaremos seu coração intraterreno. Ela retornará à idade que tinha quando veio no ano passado, a idade de sua coroação. E estará mais forte do que nunca.

Mamãe arruma os dreadlocks em torno da minha cabeça.

— Mas a metade humana dela é fraca demais para resistir a essa tensão. Essa metade vai morrer. E Allie será sempre assombrada pela sua ausência.

— Podemos dar a ela uma poção de esquecimento — a Marfim sugere. — Banir suas memórias. Ela será a Rainha Vermelha, com nada de humano para impedir que reine.

— E nesse processo — Morfeu diz do lado da lareira — destruirão algumas de suas melhores qualidades.

Mamãe e a Marfim olham para ele, tomadas de surpresa por ouvir essas palavras dos lábios dele.

Ele se deixa cair na espreguiçadeira, as asas cobrindo as costas, e apoia os cotovelos nos joelhos. As chamas prateadas piscam em seu rosto decorado por joias.

— O que será dos caprichos e da curiosidade dela, de sua compaixão e lealdade? Da imaginação, dos sonhos? Isso tudo faz parte do lado humano dela.

Minha mãe olha fixamente para ele, incrédula.

— Tudo isso é por causa dos seus estratagemas. Você a pressionou a escolher você... escolher o País das Maravilhas, e não o outro lado. O que você achou que aconteceria?

Morfeu se curva, triste.

— Alison. — A Marfim senta-se ao lado de mamãe no colchão. — Você está sendo dura. Esta brecha não foi causada meramente pelos esforços dela para escolher entre os dois mundos, ou entre o amor dela por Morfeu e o pelo cavaleiro mortal. A Vermelha lançou um feitiço em seu lado intraterreno na esperança de que ele dominasse e destruísse o outro. Não pode culpá-lo por isso.

— Posso, sim, porque tudo começou quando a Allie veio para cá no verão passado. — Mamãe olha novamente para Morfeu. — Agora, finalmente, você vai ter o que queria. Vai mantê-la aqui no País das Maravilhas com você. Vai fazê-la cortar todos os vínculos com os mortais para sempre. Você deveria estar comemorando. Você venceu.

— Venceu o quê? — papai pergunta da porta.

Antes que alguém possa responder, Jeb surge atrás dele. Ele resmunga algo e corre para a cama com papai.

A Marfim se afasta enquanto explica tudo, incluindo o plano que se apresenta.

Papai avança em Morfeu.

— Está contente? Você fez tudo isso por causa do País das Maravilhas. Agora ela será uma rainha sem a família que a ama.

Jeb segura o braço de papai antes que ele possa atravessar a sala.

— Thomas, não foi só ele. Nós também a dividimos tentando convencê-la a ficar no nosso mundo. Temos que nos unir agora, pensar na Al e em como mantê-la viva. — Há um tormento por trás de seus olhos verdes, porque ele sabe que está prestes a me perder para sempre. Mas não há dúvida, somente uma dolorosa resignação.

— Jebediah está certo. — O olhar de Morfeu encontra o de Jeb. Uma compreensão tácita acontece entre os dois. — Mas este não é o caminho para a salvação de Alyssa. Se ela pudesse falar por si mesma neste momento, ela insistiria que deve haver outra maneira.

— Não consigo pensar em nenhuma, e estamos ficando sem tempo — a Marfim responde com tristeza. Suas asas pendem frouxamente das costas, parecendo pesadas.

— Então a congele — Morfeu sugere. — Congele o coração dela e nos dê uma chance de buscar outras opções.

A Marfim concorda.

Uma onda ártica me envolve, e meu sangue corre mais lento nas veias, como neve quase derretida. A dor em meu peito desaparece.

Mamãe afaga meu cabelo gelado e papai cai de joelhos ao lado de Jeb, enfiando o rosto em meu vestido coberto de gelo.

— Se pelo menos ainda tivéssemos o diário — Jeb diz distraidamente, esfregando meus dedos nos dele, como se tentasse me manter aquecida. — Poderíamos usar a magia dele de alguma maneira.

Morfeu inclina o queixo.

— O diário. É claro. — Ele se levanta e olha seriamente para a Marfim. — Estamos olhando as coisas de modo errado. Precisamos pensar no coração dela como um objeto... um brinquedo. O que torna os brinquedos abandonados recipientes poderosos para as almas da Irmã Dois? Não é tanto o que eles são, mas o que é usado para lacrá-los.

— A magia do amor de uma criança. — A Marfim faz beicinho com a boca rosada e pálida. — Poderia dar certo, porque vocês dois compartilharam da infância dela em momentos diferentes.

— Vale a pena tentar, pelo menos — Morfeu acrescenta.

A Marfim concorda, lançando um olhar sábio e compreensivo dele para Jeb.

— O lacre pode ser só um remendo temporário para mantê-la segura até ela sarar. Vocês dois precisam estar dispostos a assumir esse compromisso... ver além de suas necessidades e aceitar que o destino dela é maior do que satisfazer as expectativas que nutrem por ela. Vocês terão que apoiar um ao outro como constantes na vida dela, se vão unir seu coração humano com o intraterreno. Ela deve viver nos dois mundos por períodos iguais. Isso permitirá que seu coração cresça e se recupere, pouco a pouco. Quando ele estiver curado e unido, ela não vai mais precisar das suturas e poderá ser coroada sem perder nenhuma parte do que é agora. Estão dispostos a permitir que ela tenha esse futuro duplo? A decisão é toda de vocês. Ela está fraca demais para tomá-la. A ganância e o desejo de vingança da Vermelha providenciaram isso quando ela fez do coração de Alyssa um campo de batalha.

— Farei o que for preciso — Morfeu e Jeb respondem simultaneamente e sem hesitar.

A bolha nas mãos da Marfim estoura, Chessie se rematerializa e o momento termina.

Franzo a testa, tocada pela devoção de Jeb e de Morfeu, mas ainda confusa.

A Marfim coloca a palma da mão sobre meu coração.

— O que você vê aí dentro?

Fecho as mãos em punho.

— Algumas das memórias mais felizes com cada um deles, quando éramos mais jovens. Mas vejo do ponto de vista deles, não do meu.

— É aí que está a magia. Os dois a amaram com um amor de criança, e agora com o de homens. É o amor de criança que mantém seu coração unido... cimentado pelos momentos que você compartilhou com eles que eles mais apreciam. Tiveram que desnudar a própria mente, coração e alma um para o outro e enviar os sentimentos diretamente a você, através da magia deles, para selar as duas metades de seu coração. São essas as suturas. E o amor deles por você, como homens, lhes deu a força para superar o orgulho e a intransigência. Durante todo o dia, você passará a vida humana no domínio mortal, mas de noite, quando dorme, Morfeu a trará para cá em seus sonhos. Você continuará a aprender a política de nosso mundo e a se familiarizar com seus súditos e seu reinado; aprenderá a confiar, compreender e trabalhar com ele, e um dia — se vocês decidirem se casar e reinar juntos — seu vínculo será inquebrável. E o País das Maravilhas será inexpugnável.

Fico impressionada que os dois tenham concordado com esse acordo. Principalmente Morfeu... porque ele tem de voltar a trabalhar nos meus sonhos e aguardar para ficar comigo na realidade. Ele disse que havia cansado de esperar. Será que realmente adiaria nossa vida juntos e o nascimento de nosso filho? Nosso filho...

Pego a mão da Marfim.

— Espere. A Irmã Dois. Temos que diminuir a necessidade de humanos no cemitério. É preciso haver sonhos para as almas inquietas. Ou então ela vai continuar raptando crianças. Ela não terá escolha.

A Marfim estuda meu rosto.

— Finalmente, você percebeu que as regras existem por um motivo, mesmo que pareçam bárbaras. Mas, na verdade, tanto quanto você, eu gostaria de ver essa prática em particular alterada. Nossa espécie nunca se preocupou em buscar a maneira mais humanitária de fazer as coisas. Nossa mentalidade é que os fins justificam os meios. No entanto, com duas rainhas que se importam o suficiente para encontrar outra forma, isso pode mudar. E o nosso reino será mais forte quando não precisarmos mais depender de artigos de fora. — As marcas pretas de libélula que perfilam suas têmporas se enrugam, um sinal de que ela está pensando. — Por enquanto, temos um compromisso que durará o tempo que seu cavaleiro mortal viver. Ele se ofereceu para ser o sonhador da Irmã Dois.

Meu estômago se revira.

O sonhador da Irmã Dois? Sou confrontada com a imagem do cérebro de meu pai cheio de sifões que retiravam seus sonhos e pesadelos quando ainda criança. Minha alucinação no hospital, um mês atrás, se completa: Jeb encerrado em uma espessa teia de aranha, eu cortando-a e ele olhando para mim com os olhos esbugalhados. Será que era uma visão o tempo todo?

A Marfim não o mencionou em sua explicação do meu futuro, só disse que eu viveria minha vida no reino mortal.

Jeb está planejando sacrificar sua existência para que mais nenhum humano sofra, porque é isso que ele faz. Ele protege os vulneráveis. Não importa quanto lhe custe.

Minha pele faísca, fria e quente. Desta vez, não. Não depois de ele finalmente encontrar seu caminho.

Sem mais uma palavra para a Marfim, eu me ponho de pé e saio correndo pela porta, insistindo com Chessie para que me mostre onde Jeb está. Ele alça voo diante de mim, com Nikki logo atrás. A Marfim nos chama, mas o tempo é precioso demais. Eu não paro.

Viro uma esquina que dá para um corredor comprido e brilhante.

Não consigo tracionar meus pés descalços no piso de mármore branco e escorrego. Endireitando-me, desamarro o roupão improvisado e o deixo para trás, libertando as asas e ganhando o ar para a imensidão. Passo por uma dúzia de cavaleiros élficos que observam com curiosidade, mas não tentam me impedir.

Não me sinto constrangida por estar usando uma camisola transparente. Não preciso ser adequada nem modesta. Sou a Rainha Vermelha: indomada, selvagem e insana. E desafio alguém a questionar minha escolha de roupas.

Estou em uma missão. A Irmã Dois não vai usar Jeb até o coração dele parar e ele se tornar um cadáver inerte.

Esse não é o fim que meu cavaleiro mortal merece.

 

 

22


Paisagens de Sonho

Chessie e Nikki me conduzem para a torre mais alta, que tem vista para todo o reino da Marfim, e saem voando antes que eu possa agradecer.

Arfando para recuperar a respiração, eu aguardo diante da porta aberta e absorvo minhas asas. A sala é grande e não tem janelas. Janelas são desnecessárias em um palácio com paredes transparentes. Ao contrário da câmara em que eu estava, não há gelo ou neve bloqueando a visão. A luz do dia é refletida na neve lá fora e ilumina o entorno com o brilho do sol.

Finley está tirando telas dos cavaletes, de costas para mim. Não há sinal de Jeb.

Entro sem fazer barulho. Há pilhas e pilhas de telas no chão, todas pintadas com paisagens lindamente bizarras. Eu reconheceria o estilo em qualquer lugar.

Olho para o mundo fora da torre de vidro, onde porções coloridas de terra no horizonte dão vida às pinturas de Jeb. A metamorfose fluida me faz me lembrar de quando eu era pequena e fechava lascas de lápis de cera entre duas folhas de papel-manteiga e, com um ferro quente, papai as derretia, formando reluzentes “obras-primas de vitral”. Nunca pensei que veria explosões de cores tão vibrantes e visionárias assim a não ser através de um caleidoscópio, e certamente não nesta escala, cobrindo um mundo todo.

Fico extasiada.

Um movimento no céu chama minha atenção. O arco gracioso de asas negras gigantes investe contra as nuvens, fazendo buracos que se fecham antes que eu possa piscar. Embora esteja oculto pela névoa branca e macia, eu sei que é Morfeu supervisionando o renascimento de seu amado lar. Uma parte de mim anseia por estar com ele. Subir até o alto desta torre e mergulhar no ar para podermos planar juntos, de mãos dadas, sentindo o vento bater no rosto. Quero observar as joias em sua face piscarem naquele excitante arco-íris de emoções.

Contudo, outra coisa me chama agora, um chamado igualmente forte...

Jeb se superou. Recuperou o esplendor excêntrico de nosso mundo, e o País das Maravilhas estará sempre em débito com ele. Não permitirei que se sacrifique mais nada.

Finley para de trabalhar, preocupado com um espelho de chão num canto da sala. Seu corpo bloqueia o reflexo que ele observa.

Assim como em minha visão, ele está usando um uniforme de cavaleiro élfico: calças pretas com o caimento de jeans bem usados, uma corrente de prata ligada a dois passadores de cinto e uma cruz de reluzentes diamantes brancos na parte superior da perna esquerda. A camisa tem mangas compridas e é feita de um tecido elástico que adere aos músculos — prateada com listras verticais pretas.

— Para onde foi o artista? — Minha pergunta sai mais incisiva do que eu queria.

Finley se vira. Ao me ver, ele olha para baixo e passa a mão pelo cabelo loiro-escuro em um gesto constrangido, fazendo-me lembrar que meu vestido deve estar muito transparente sob a luz do sol.

Fico ruborizada, mas não me viro.

— Ele pegou a passagem do espelho. — Finley coloca de lado a tela que está segurando, revelando a superfície do vidro.

Eu me aproximo. Uma amplidão vazia se reflete nele, cheia de salgueiros-chorões cobertos de gelo. Uma variedade infinita de ursinhos e outros animais de pelúcia, palhaços de plástico e bonecas de porcelana está pendurada nas teias dos galhos pendentes.

As almas inquietas.

Falta-me o ar quando a imagem desaparece.

Então Jeb está no cemitério, mais além dos salgueiros mortos e secos, no abrigo de hera onde uma espessa bainha de teia pulsa com luz e respiração. As raízes luminosas talvez já estejam conectadas à sua cabeça e ao seu peito, sugando sonhos e imaginação.

Eu reprimo um gemido. Cada nervo em meu corpo ferve de ódio.

— Visualize aonde você deseja ir — sussurro, e imagino o covil da Irmã Dois: a parte mais profunda, onde ela guarda seu sonhador, o que fornece entretenimento àquelas almas miseráveis e inquietas para mantê-las em paz.

O vidro estala e Jeb aparece no reflexo. Ele ainda não está envolto em teias nem conectado às raízes das árvores, mas a guardiã de túmulos está em cima dele, suas oito pernas a fixá-lo no lugar. O tecido listrado de sua saia forma uma bolha larga como uma argola em volta das fiandeiras. A parte superior do torso, enganosamente humana, se retesa por baixo de um corpete do mesmo tecido. A mão esquerda, formada por tesouras de poda no lugar de dedos, prepara-se para atacar, prestes a torná-lo um vegetal.

Num surto de adrenalina, ergo minha chave para abrir o vidro do espelho.

Finley segura minha mão.

— Não posso deixá-la fazer isso, senhorita. A Marfim pediu que eles não fossem interrompidos.

Com um puxão, solto minha mão. Com um olhar para a sala, invoco uma pilha de tecidos que está no canto para que se levantem e pairem sobre ele feito fantasmas furiosos. Dois deles estendem mãos cheias de garras e prendem seus braços. Os outros lançam sombras azuis sobre seu rosto, aguardando meu comando. Fico surpresa ao ver como foi fácil fazer surgir meu lado selvagem. Surpresa e satisfeita.

— A Marfim abriria uma exceção para a Rainha Vermelha — digo num rugido.

Mesmo com os fantasmas a segurá-lo, Finley não recua. A percepção surge em seu rosto. Ele obviamente não tinha ideia. Não posso culpá-lo. Minha aparência neste momento não está digna da realeza.

— Me perdoe, Majestade. Estarei aqui para abrir o espelho deste lado quando terminar.

Permito que os tecidos caiam no chão enquanto insiro a chave no buraco formado pelo vidro quebrado. O reflexo forma uma onda, como um líquido, e eu entro. Uma névoa sépia rodopia em torno de mim e uma comichão me percorre toda a pele.

Procuro me orientar e então a cena se abre para a realidade. Uma friagem com cheiro de ranço paira no ar e a neve cobre o chão. Os gritos e lamentos dos brinquedos inquietos me perfuram os tímpanos.

Acima de todos, os gritos agonizantes de Jeb me cortam a alma.

Correndo na direção do som, detenho-me a alguns passos da Irmã Dois. Ela ergue a mão de tesoura, escorregadia de sangue. A pele translúcida e o cabelo da cor de grafite têm respingos vermelhos.

Jeb segura o próprio pulso direito. Fios vermelhos e brilhantes saem de sua tatuagem e entram nas fendas entre os dedos, respingando sobre a neve e sobre a túnica manchada de tinta, deixando pingos frescos e reluzentes.

Ele cai de joelhos, gemendo.

— Jeb!

Ele recua, uivando de dor.

Antes que a Irmã Dois possa reagir, convoco o invólucro de teia que ela preparou para ele. Os fios pegajosos se enroscam nela, aprisionando-a dentro da própria armadilha.

Ela luta, mas tudo, das múltiplas pernas aos braços compridos, fica envolto pelo casulo. Suas lâminas nem podem se abrir para cortar as amarras.

— Como ousas pisar neste solo sagrado!

A voz que um dia me percorreu a espinha feito galhos sobre uma vidraça não tem mais poder sobre mim. Em vez de evocar o terror, ela deflagra minha ira, fazendo-me lembrar tudo o que ela fez com as pessoas que amo: planos para tirar todo o sangue de meu pai e deixá-lo morrer, aprisionar minha mãe aqui, ferroar Morfeu e caçar Jeb com o intuito de prendê-lo neste lugar para sempre.

— Eu sou mestiça, bruxa — declaro, fervendo de raiva. — Meus poderes não são afetados por este lugar. Então vai ter que estender o capacho de boas-vindas. Seus dias sem responder a ninguém acabaram. E Jeb não vai ser seu sonhador. — Eu animo outra tira de teia para tapar seus lábios cor de lavanda, silenciando qualquer resposta com eficácia. Os olhos azuis endurecem.

Jeb ainda está agachado, segurando o pulso.

— Não há como reverter o que já foi feito. — Sua voz está rouca e apertada.

O que pensei serem gotículas de sangue vermelho sobre a neve se funde em uma luz pulsante. Ela cava por baixo da teia que cerca a guardiã de túmulos. E não para ali. Serpenteando, fios brilhantes se separam e entram nas raízes por baixo do solo que levam a cada árvore. A luz penetra nos brinquedos que se contorcem, alimentando-os. Um a um, eles se acalmam e ficam perturbadoramente serenos.

Jeb fica de pé. Sua tatuagem, que antes brilhava com poder e magia — e sangrava momentos atrás —, está da cor da pele, curada e saliente feito uma cicatriz. Não há nenhum resquício de luz por baixo dela.

Seus olhos também estão diferentes — de um verde mais escuro, como musgo nas sombras. Alguma parte integral dele foi transformada.

— Jeb. — Cerro os punhos. — Eu fiz uma promessa para você. De uma vida juntos.

Ele balança a cabeça.

— Eu liberto você de seu voto, Al.

Diante dessas palavras, sinto a diferença... o elo que eu construí se quebrou.

— Não! — Pulo no pescoço da Irmã Dois. — O que você fez com ele?

Jeb tira gentilmente minhas mãos da mulher-aranha.

— O que eu pedi para ela fazer. A Marfim não contou a você?

— Que você se ofereceu para ser o sonhador? Como meu pai foi? É por isso que você está me liberando de minha promessa. Para eu não ficar presa a um cadáver. — Minha voz é aguda e desesperada. Nada parecida com o que a voz de uma rainha deveria ser.

Jeb franze a testa.

— Você não deixou a Marfim explicar, não é? Saiu voando do castelo seminua para vir me encontrar aqui sem deixar que ela terminasse.

Reteso a mandíbula.

Ele me vira para encará-lo. O rosto dele fica vermelho, e ele parece forte e saudável novamente. A careta se transforma em um sorriso com aquelas covinhas. Uma visão adorável demais para descrever com palavras.

— É bem a sua cara.

— Não tem graça. O que você fez... nós temos que desfazer. Existe outro modo de dar sonhos ao País das Maravilhas.

Ele estreita os olhos.

— Ter um filho com Morfeu? Está pronta para isso hoje?

Minha garganta se contrai. Finalmente, sei quem eu sou sem nenhuma dúvida, mas ainda estou aprendendo quem Morfeu e eu somos juntos. Não quero trazer nosso filho ao mundo antes de termos tempo para crescer, para trabalharmos juntos e nos aceitarmos.

Quero fazer tudo em seu devido tempo para nunca mais fazer mal ao País das Maravilhas.

Jeb pega as minhas mãos nas dele.

— Você já fez muitos sacrifícios. Seu coração estava se partindo ao meio, tentando apaziguar a todos e a tudo que você ama. Você não pôde escolher onde viver. A escolha foi feita para você. Então, a partir de agora, tudo o que acontecer entre mim e você, ou entre você e o isca de coruja, será uma escolha sua. Não por causa de alguma promessa mágica que você fez quando estava desesperada por salvar minha pele naquela terra de ninguém. Não por causa de uma criança sonhadora que uma visão previu que você traria ao mundo um dia. Nenhuma dessas coisas deve ter importância agora. Tudo já foi arranjado. Então você pode escolher qual papel nós teremos em suas duas vidas, nas suas condições. Sem limite de tempo. Sem pressão.

Aperto os dedos dele.

— Eu posso escolher? Como, se você vai ficar aqui neste cemitério?

— Não é bem assim. A Irmã Dois tem o poder de tirar os espíritos intraterrenos de um corpo possuído. Ela usou o mesmo processo para isolar minha inspiração e retirá-la de mim, porque ela é uma entidade agora... feita dos meus sonhos, pesadelos e imaginação, que ganhou vida graças à magia da Vermelha. É ela que vai tomar o lugar das crianças humanas. — Ele está tentando me confortar, mas suas palavras são tudo, menos reconfortantes. — Ela vai manter o cemitério do País das Maravilhas equilibrado e suprido pelo tempo que eu viver.

Respiro fundo, tremendo. Estou aliviada por ele não ter desistido de sua vida. Contudo, ao imaginá-lo sem sua habilidade de pintar, fico receosa.

— Por que você teria que consertar o meu mundo? Você já o pintou e o ressuscitou. Já basta.

— É o meu mundo também, porque ele é parte da garota que eu amo. Foi por isso que eu fiz o que fiz, Al. O.k.?

— Mas nós podíamos ter encontrado outra forma.

— Não havia outra maneira de eu voltar a ser humano. Estou pronto para voltar... cuidar da minha família. Ser quem eu nasci para ser.

Minha garganta incha.

— Por duas vezes eu vi você abdicar de sua vida por minha causa. Não posso deixar que você perca seu dom. — Minha voz é severa, escondendo quanto me sinto indefesa.

— Abdicar da magia é a única maneira de eu seguir adiante. — Ele larga minha mão e a Irmã Dois se solta da jaula pegajosa. — A decisão é minha. E está tomada.

A Irmã Dois me olha furiosamente enquanto se liberta, chutando neve com as oito pernas.

— Não serás bem-vinda no jardim das almas, mestiça, a menos que tragas uma alma para cuidar. Rainha ou não, com poder ou não, existem regras e costumes que precisas seguir se desejas viver em nosso mundo.

A fúria me toma, fazendo-me ferver novamente. Minha pele cintila, lançando pequeninos pontos de luz na direção das teias e árvores.

— Muito bem. Mas existe uma nova regra para você também, guardiã de túmulos. Me disseram que está cansada de sair em busca de sonhadores. Bom, o problema está resolvido. Agora que você tem um vasto suprimento, não tem motivo para voltar ao reino humano. Seu lugar é aqui, cumprindo suas tarefas. Os portais do País das Maravilhas estarão fortemente guardados. Se eu encontrá-la mais uma vez perto deles, vou atá-la em sua teia e deixá-la pendurada pelo resto da eternidade.

Ficamos olhando uma para a outra. Ela sibila, mas mantém distância, temerosa de minha magia. Jeb pega minha mão e me puxa na direção da imagem de Finley, que aguarda do outro lado do espelho para podermos entrar no castelo.

No instante em que atravessamos, o vidro estala e torna se sólido novamente. Nele, só resta um reflexo de mim em minha camisola transparente. Jeb pega um dos tecidos aos pés de Finley e me cobre com ele.

— Obrigada por ficar de olho — ele diz, apertando a mão de Finley.

Finley dá uma chave do espelho a Jeb e faz uma reverência para mim. Há serenidade em seu olhar âmbar quando ele diz:

— Espero ver ambos no banquete esta noite.

Para um jovem tão atormentado e suicida no mundo humano, ele parece em paz e sob controle. O tempo todo pensei que ele fosse um refém, mas, ao amá-lo e designá-lo para uma posição em seu exército, a Marfim deu-lhe um propósito... uma razão para viver.

A Vermelha tinha um propósito construtivo também. Se ela não tivesse se distanciado dele, talvez tivesse encontrado a paz. O nó na base de meu crânio não incomoda desta vez. Seu arrependimento a consumiu e a incapacitou.

E se acontecer o mesmo com Jeb? Por tanto tempo sua identidade dependeu de sua arte. Qual será seu propósito agora?

Quando Finley sai da sala, Jeb me puxa para um abraço silencioso. Eu me aninho junto a ele, saboreando seu cheiro de tinta. Um cheiro que em breve se esvanecerá para sempre. Os únicos sons entre nós são nossa pulsação e nossa respiração reprimida. Estou tão arrasada que não consigo falar.

Ele me abraça mais forte, até seu peito comprimir o meu. Meu coração é atraído para o dele, quase como um ímã. É uma inervação ofegante, intensa, quente e maravilhosa, como se explodissem estrelas dentro do órgão. Essa sensação deve ser causada pela ponte de magia que ele e Morfeu construíram dentro de mim, e eu me pergunto se será sempre assim quando um deles me tiver nos braços.

Jeb apoia minhas costas em uma parede transparente e sussurra:

— Olhe para o seu mundo, linda rainha.

Eu viro a cabeça e vejo as estonteantes montanhas lá embaixo, a gênese do País das Maravilhas florescendo em todo lugar. Os brotos de minhas asas coçam, ansiando por voar.

Jeb segura gentilmente o tecido em torno de minha clavícula.

— Tudo se encaixa. Que meu desejo de saber quem você era tenha inspirado minhas primeiras pinturas. E que saber disso tenha inspirado até a última. — Seu olhar está muito estranho, alerta e renovado, como se tivesse acabado de acordar de um sono tranquilizador. Ele não parece estar desistindo de nada. Parece estar começando alguma coisa.

— É tão fácil assim dizer adeus a essa parte de você? Vai se distanciar de mim também?

O mundo lá fora explode em transformação incontrolável de cores e luz, refletindo-se em padrões na pele morena de Jeb.

Ele inclina a cabeça, estudando-me, pensativo.

— Dizer adeus à minha arte é... assustador, Al. A Marfim ofereceu uma poção de esquecimento, se eu quisesse, para eu não ter que viver com essa dor. Mas eu recusei. Não quero esquecer nada, porque foram essas experiências, essas perdas, que me ajudaram a ver que posso fazer muito mais do que só usar um pincel e tintas. Outras partes que ainda não foram anuladas. — Por trás de seus cílios negros e longos os olhos brilham com uma potência que nada tem a ver com magia. Ele me puxa para perto, sua respiração quente dançando junto aos meus lábios. — Podemos descobrir isso juntos.

Seu polegar toca a covinha em meu queixo, arrasta-se para minha boca, enviando sensações provocantes desde meus lábios até o peito e o ventre.

— E, para que fique bem claro, eu nunca me afastarei de você, a menos que me peça. Eu quase fiz isso uma vez, mas só porque pensei que tinha magoado você. — Ele começa a tirar um colar de dentro da camisa.

Eu não havia notado a corrente que brilhava na curva de seu pescoço. Ajudo-o a tirá-la, revelando o anel de noivado que ele derreteu no oceano, o que Morfeu fundiu em um torrão de metal. Ele foi pintado de novo. É indestrutível.

— Oh, Jeb...

— Não posso dar a você todas as coisas que esperava dar — ele diz. — Mas posso lhe dar uma família e um lar. Amo você, Al. Só espero que você consiga amar um reles mecânico.

Passo os dedos pelo cabelo ondulado em seu pescoço. Esse é o lado dele que eu mais admiro... sua fragilidade, suas falhas. Sua força, apesar delas. E agora ele vê essa força com a clareza e a confiança com que eu sempre vi.

— Nunca vai haver nada reles em você — eu sussurro. — E eu já te amo.

Ele me ergue até eu ficar da sua altura, com os pés balançando no ar, e me aperta contra a parede de vidro com seu corpo. Meu coração reage mais uma vez — vibrando de vida. Sua boca e o piercing passam pela minha testa, descendo lentos e persistentes pelo meu rosto.

Minha mente se derrete em uma onda de prazer quando seus lábios macios e cheios fazem contato com os meus. Ele começa a aprofundar o beijo, mas se detém ao olhar para o vidro atrás de mim.

— Só pode ser brincadeira.

Olho para trás. Lá fora, Morfeu está pendurado no vidro, em forma de mariposa, no nível da minha cabeça, encarando-nos com seu olhar bulboso. Mesmo sem um rosto, sua soberba fica aparente. Seu passatempo predileto é interromper os momentos românticos de Jeb. Tento não rir, mas não consigo evitar.

— Que inseto mais petulante. — Jeb me desce ao chão e arruma o tecido em torno de mim.

Uma coruja mergulha do céu e roça o vidro. Com um chilique, Morfeu alça voo e tenta ser mais rápido do que o pássaro. Agora é Jeb quem ri.

Dou um tapinha em seu ombro.

— Não tem graça nenhuma.

— Ah, ele vai ficar bem. — Jeb ergue uma sobrancelha, assistindo à perseguição aérea que acontece do outro lado do vidro. — É uma nova espécie de coruja vegetariana. Elas só gostam da perseguição. E, além disso, o Morfeuzinho pode mudar de forma a hora que quiser.

Eu sorrio.

— Aquela coruja é uma de suas criações?

O sorriso de Jeb se alarga.

— Foi para o próprio bem do caca de inseto. O cara é antigo... precisa ficar em forma.

Dou outra risada. É tão maravilhoso ver seu lado brincalhão novamente.

O sorriso de Jeb fica mais terno, e sua expressão torna-se séria.

— Você, finalmente, consegue admitir seus sentimentos por ele?

Minha euforia se evapora, virando uma espiral nauseante no estômago.

— Eu sempre terei dois lados diferentes. E cada um deles ama você e Morfeu de formas diferentes. — Olho nos olhos dele, sem constrangimento de confessar, por causa da sinceridade que me move. — Eu sei que não é justo pedir a nenhum de vocês que aceite isso.

Jeb vira meu queixo com a ponta de um dedo.

— Você não pediu. E não quero nada justo. E nada fácil também. Quero uma vida com você, com todas as complicações que isso trouxer. Já fomos ao inferno e voltamos, juntos. Já provei que sou mais qualificado do que qualquer outro humano para lidar com o que o destino nos deu. Seja mágico ou não. Além disso, como você tendo duas vidas é diferente de qualquer mulher que se case depois que o marido morre?

— Porque Morfeu virá me visitar em meus sonhos todas as noites. Você confia nele?

— Confio em você. Você é tão forte... não, mais forte do que ele. Ele sabe disso também. É por isso que ele gosta de testar você. Você só precisa provar para si mesma, como eu tive que provar as coisas para mim mesmo. E está prestes a passar vinte e quatro horas sozinha com ele para fazer isso.

Meus ombros desabam. O tecido se enruga entre a parede e as minhas costas. Eu tinha me esquecido do voto que fiz para Morfeu.

— Assim que eu me livrar da Vermelha.

Jeb guarda o colar com o anel debaixo da túnica novamente.

— Vou ficar com isto até você me dizer que está pronta. É um grande sacrifício construir uma família humana e se afastar dela um dia. Se for demais, ou se depois do tempo que vocês passarem juntos você decidir que quer ficar com ele agora, vou mudar para algum outro lugar para que a gente nunca mais se veja. Você precisa de tempo no reino mortal para se curar, e não vou correr o risco de rasgar você ao meio mais uma vez. — Seus olhos são sinceros e intensos; o queixo está tenso, num esforço para ser forte, embora eu perceba que é a coisa mais difícil que ele já disse na vida.

Sua força me impressiona. Eu o puxo para um abraço. Só de pensar em viver uma vida humana sem ele já provoca dor em meu coração recém-consertado. Não é uma dor aguda, mas um peso, como se ele estivesse cheio de pedras. Eu me aconchego em seu peito, puxando-o para mais perto a fim de poder sentir a corrente mágica entre nós mais uma vez... a fim de aliviar esse peso.

Ele afaga meu cabelo.

— Sobre a Vermelha. Você não pode deixá-la adormecida aí dentro para sempre. Qual é o seu plano?

Balanço a cabeça, grata por ele ter mudado de assunto.

— Eu ia libertar o espírito dela. Deixá-la definhar. Mas quero fazer outra coisa. Algo... significativo.

Ele nos separa e estreita os olhos.

— Algo que ela mereça, eu espero.

Traço as manchas de tinta seca e de sangue em sua túnica.

— Ela amou o País das Maravilhas um dia. Antes de se distanciar das boas intenções, ela queria melhorá-lo. Como você disse, a Irmã Dois divide os espíritos em zonas e os extrai. Como a sua inspiração tem resíduos da Vermelha, talvez o espírito dela possa se unir a essa inspiração. Então a Vermelha poderia ajudar a fornecer sonhos. Ela ficará presa, sem nunca poder escapar, mas pelo menos estará contribuindo com alguma coisa. Isso ampliará a vida da sua inspiração. E mandará uma mensagem aos meus súditos, que, se eles saírem da linha, encontrarei uma forma de fazê-los servir ao País das Maravilhas para sempre. E, acima de tudo, isso trará paz à Vermelha.

Os olhos de Jeb se iluminam com algo semelhante ao orgulho.

— Você vai dar uma rainha e tanto, sabia?

Uma descarga de satisfação aquece minhas bochechas.

— Vou fazer o melhor que puder.

Ele beija minha testa.

— Muito bem. Vou ficar de guarda aqui... para deixar você passar quando tiver terminado.

Dirijo-me para o espelho, mas Jeb me detém. Olho para seu rosto preocupado, convencida de que ele mudou de ideia e quer vir comigo, já que ele e a Irmã Dois se entenderam. Estou preparada para discutir, mas ele só levanta uma das minhas mãos e fecha meus dedos num punho.

— Você consegue — ele diz, e bate os dedos nos meus. — Faz um ano que ela quer a Vermelha de volta. Você dá as cartas.

— Foi exatamente o que pensei. — Sorrio para ele.

Ele retribui o sorriso.

— E mais uma coisa...

— Sim?

— Já é hora de você ficar em paz também. O que era ruim já passou.

Eu afago seu rosto e me volto para o espelho. Deixando o tecido escorregar dos ombros e cair no chão aos meus pés, liberto as asas e visualizo o cemitério no vidro. Meu reflexo me olha enquanto aguardo que meu destino apareça: marcas intraterrenas nos olhos, pele reluzente, cabelo selvagem e vivo.

Vejo o que Jeb viu, a razão pela qual ele nunca mais tentará ser meu protetor. É um sentimento incrível saber que sou forte e capaz.

Talvez ele esteja certo. O que era ruim já passou.

Não posso ter certeza até saber como estão as coisas com o meu mentor atormentador; o guardião da sabedoria que salvou minha vida mais de uma vez, que detém a outra metade do meu coração em suas mãos manipuladoras e que fez da minha metamorfose em Rainha Vermelha do País das Maravilhas uma possibilidade, em primeiro lugar.

 

 

23


Fair Faryn

Gossamer revoa junto ao meu ouvido enquanto estou parada de pé em um canto do enorme e cristalino salão de festas da Marfim. A fada me fez várias visitas ao longo do dia, oferecendo sua agradável companhia, apesar de sua afeição inabalável por Morfeu. Trabalhar juntas para espantar os momirratos do ginásio da minha escola, no mês passado, parece ter criado um vínculo entre nós.

Quanto a Morfeu, não o vejo desde que a coruja começou a caçá-lo na torre. Ele até ficou longe da minha mente. Mas enviou uma mensagem através de Gossamer, informando estar contente com a minha decisão acerca da Vermelha.

Velas de chamas prateadas flutuam de cabeça para baixo no teto, iluminando suavemente o ambiente. Um quarteto de cordas toca sem musicistas; os instrumentos gelados, glaciais, brilham e pulsam com as cores do arco-íris. A música é leve e animada como o ar da manhã, mas baixa, como sussurros melodiosos que ecoam em uma caverna de gelo.

Gossamer e eu ficamos quietinhas ao lado de uma porta aberta, observando mamãe e papai dançarem com a Marfim e Finley. Os quatro — lindos e graciosos — se destacam, como enfeites para um bolo de casamento, entre os bizarros intraterrenos que dançam desajeitadamente em torno deles.

Eu dancei, um pouco antes, com alguns convidados. Chessie, Nikki e o Rábido. Flores zumbis, encolhidas para seu tamanho original. Fadas. Diabretes. Até Herman Chapelão apareceu, com o rosto mudando feito uma tela de televisão entre mim e nossos outros parceiros de dança, o Camundongo e a Lebre Careca.

Jeb me roubou para uma música lenta e romântica. Ele já foi embora e está trancado em seu quarto no castelo. Estava exausto. Tendo se debatido com a magia da Vermelha e a de Morfeu por um mês, sobrevivido a seus próprios demônios interiores em um mundo diferente e bárbaro, dado vida a paisagens moribundas e abandonado sua inspiração para sempre, não estou surpresa. Mesmo assim, não consigo deixar de imaginar se a principal razão para ele se ausentar não foi por não querer estar aqui quando Morfeu chegar para me levar embora.

Fico olhando para a porta pela qual Jeb saiu, incapaz de afastá-lo dos meus pensamentos.

— Seu cavaleiro mortal é singular — Gossamer diz em sua voz tilintada ao perceber para onde estou olhando. Seus olhos bulbosos cor de cobre, a pele verde reluzente e as escamas brilhantes parecem quase fosforescentes sob a luz tênue.

Fico pensativa, analisando suas palavras. Sinto uma ardência gostosa na língua devido ao batom vermelho-canela que as outras fadas me passaram antes, com a maquiagem para a noite.

Pairando diante do meu nariz, Gossamer inclina a cabeça diminuta.

— O que leva à pergunta... Antes de tudo isso. Antes de comprometer seu coração. Você tinha chegado a uma decisão? Qual deles? Qual futuro?

Respondo, olhando-a fixamente, ainda sem saber ao certo se Morfeu está disposto a comprometer-se com alguma coisa:

— Eu ia escolher o País das Maravilhas e ia regê-lo sozinha. Eu não poderia viver uma eternidade sabendo que teria partido o coração de algum deles em detrimento do outro. Principalmente agora, que eu sei como um coração partido pode ser dilacerante. — Solto um suspiro trêmulo. — Talvez eu ainda devesse fazer essa escolha. Parece errado ter que obrigá-los a suportar meus dois lados. Parece que estou sendo egoísta.

A fada produz um som bem leve, algo entre um resfôlego e um espirro. Seus astutos olhos de libélula refletem as luzes dos instrumentos com as cores do arco-íris.

— O quê? — Eu me recosto na moldura gelada da porta, impressionada por perceber como o gelo não é frio ao toque, embora possa congelar as batidas de um coração ou colocar em suspensão uma paisagem que se degrada.

A fada se aninha em meu ombro, e suas asas fazem coceira em minha orelha.

— Você está pensando como uma humana novamente. Vendo as coisas em preto e branco.

É minha vez de resfolegar.

— Certo. Eu esqueci. No País das Maravilhas, tudo é cinza.

— É. Eu lhe disse uma vez que ninguém sabe do que é capaz até as coisas chegarem ao limite. Quando você estava morrendo, seus dois homens encararam aquele momento. Eles uniram suas forças, olharam dentro um do outro, em vez de olharem para si mesmos, e encontraram o cinza: o denominador comum.

Faço uma careta.

— Está dizendo que isso os mudou?

Ela se senta e, apoiada na curva do meu pescoço, ergue uma perna de cada vez para ajustar os sapatos verdes pontudos que tem nos pés.

— Você sempre despertou o lado mais terno em meu mestre. Mas ele não mudou. Ele é tão imutável quanto eterno. Ele sempre será egoísta, manipulador e indomável. Ele não conhece outro modo de ser, pois é todas as coisas do País das Maravilhas. O evento simplesmente deu a ele um novo meio de determinar a direção de suas ações ao lidar com você.

— Como assim?

— Uma bússola moral dos mortais. Assim como o seu Jebediah agora compreende os desejos mágicos e ferais do País das Maravilhas, Morfeu compreende as necessidades e inseguranças emocionais do mundo humano. Ele e seu cavaleiro mortal sempre foram o parceiro perfeito para você, dividido em dois. Mas agora cada um deles tem a percepção necessária para fornecer o que você precisa em qualquer um dos reinos. Não foram eles que uniram seu coração. Foi o seu coração que os uniu. Eles são mais sábios agora por causa do amor que têm por você. Eu ousaria dizer até mais felizes. Sim, eles poderiam sobreviver sem você, mas serão homens melhores com você. São eles que precisam de você para serem completos, para serem tudo o que nasceram para ser. Isso não a torna egoísta. Isso a torna indispensável.

Eu sorrio. A ideia é libertadora, e tão fascinante, excêntrica e bela quanto o próprio País das Maravilhas.

Minha atenção se volta para a pista de dança e para os convidados que representam o reino Vermelho, o Branco e até mesmo os solitários de nossa espécie. Reconheço alguns outros presentes: os mustelas — criaturas parecidas com furões, com presas longas e venenosas e crânios vulneráveis —, um ser parecido com um ouriço com cara de pardal, uma mulher cor-de-rosa com o pescoço comprido como o de um flamingo.

Também estão presentes alguns que não conheço, com asas de morcego e cara de peixe, ou fêmeas sensuais escuras como lama, com plantas anfíbias que crescem em sua pele elástica.

Posso não conhecer todos os intraterrenos, mas conheço seus dons e poderes. Morfeu me ensinou tudo durante a infância.

Os dreadlocks do ogro da ponte são encantados com uma telepatia que faz uma lavagem cerebral em suas vítimas, fazendo com que tenham tanto medo de ficar no lugar que atravessam sua ponte mesmo quando sabem que ele as aguarda do outro lado para transformá-las em pedra. E a raposa marrom que não tem nome e usa uma canção que atrai os seres de mente menos privilegiada para a água, onde suga a vida deles.

Nem todos são letais, mas todos são insanos e estranhos o suficiente para provocar meu lado obscuro com a possibilidade do caos. Estou ávida por começar a visitá-los em meus sonhos para poder aprender suas fraquezas e como manipulá-los, porque ser razoável nunca é lei na terra da Corte Vermelha. Tudo se resume a quem é mais astuto, mais hábil com as palavras. E quem está mais determinado a impor sua vontade.

E é por isso que Morfeu será o Rei Perfeito um dia.

Jeb mencionou antes que ele e Morfeu conversaram enquanto eu estava me recuperando do estado de congelamento. Ele disse a Morfeu que estava me libertando de meu voto, na esperança de que Morfeu tivesse uma atitude de cavalheiro e fizesse o mesmo. Mas não espero que ele jogue limpo. Assim como sei que ele não espera que eu seja um alvo fácil.

Impaciente, brinco com o vestido que ele mandou esta tarde: corpete branco com miniaturas de botões de rosa carmim costuradas no decote e renda acetinada preta que se entrecruza e balança em laços na cintura. Uma saia ajustada vermelha com listrinhas brancas na altura dos tornozelos abraça minha metade inferior, e uma gargantilha presa sobre meu colar com a chave, combinando. Atendendo a um pedido dele, meu cabelo está solto e se enrola nas rosas fixadas em seu lugar. Cada parte do conjunto parece feita para seduzir. Até as mangas compridas — de renda preta e com fitas vermelhas entrelaçadas em toda a sua extensão — se ajustam feito beijos doces aos meus braços.

— Você deu a ele meu último recado? — pergunto a Gossamer no intervalo entre uma música e outra. Mais cedo, fiquei pensando na construção das frases de meu voto pela magia da minha vida: que eu devia dar-lhe um dia e uma noite. Nunca mencionei se seriam consecutivos, nem se seriam passados no País das Maravilhas. Como salientei que nós acumulamos pelo menos doze horas diurnas juntos em Qualquer Outro Lugar, ele não terá escolha a não ser concordar que só falta cumprir a metade noturna do meu voto.

— Eu disse a ele, sim — tilinta a voz de campainha de Gossamer. É óbvio, pelo seu cruzar de braços, que ela não vai me contar qual foi a reação dele.

— E ele ficou amuado, certo? É por isso que não veio à cerimônia — digo, falando mais alto que os instrumentos.

— Ele passou muito tempo longe de casa. Tinha coisas para fazer lá. Preparar-se para a noite que vocês vão passar juntos. — As asas peludas de Gossamer se agitam, erguendo-a de meu ombro.

— É claro. — Eu esboço um sorriso. — Nós duas sabemos que ele não veio porque não queria morrer de tédio. É tudo muito arrumadinho para o gosto dele.

Ela dá risada, concordando — um som metálico que se funde com a música.

Mais cedo, a Marfim fez um discurso me apresentando como a Rainha Vermelha, assegurando a todos que meu sangue está ligado à coroa que o Rábido Branco está guardando a sete chaves até que possa colocá-la sobre minha cabeça.

Dois de meus súditos da Corte Vermelha vieram à frente agradecer a Jeb por sua contribuição ao nosso mundo: Charlie, um pássaro dodô com cabeça de homem e mãos saindo das pontas das asas atarracadas, e sua esposa, Lorina, uma intraterrena parecida com um periquito, de rosto humanoide enfiado no meio de penas carmim, como se fosse uma máscara. Eles honraram Jeb com uma chave dos portões do cemitério entregue por cinco dos duendes fedorentos da Irmã Dois. O fato de um humano ter conquistado o respeito das Irmãs Twid rendeu a ele um séquito de fãs entre os convidados.

Depois disso, a música começou e a comida foi servida.

O aroma de mel do chá que fervilha nos potes é convidativo e a comida cintila de gelo e magia. Travessas cheias de biscoitos de luar e outras guloseimas incomuns, como tortas de marzipã estreladas e merengue de vaga-lumes, todos aguardando para verter uma deliciosa luz na boca dos convidados com uma só mordida.

A ideia de entretenimento da Marfim é diferente dos banquetes que frequentei com Morfeu na realidade, nos sonhos e nas visões. Todos se comportam muito bem graças às centenas de cavaleiros élficos postados em cada entrada e saída. Vários de meus guardas de cartas vieram reforçar a segurança.

A reunião é digna e refinada.

Desconfio que um dia, se Morfeu e eu regermos juntos, terei de comparecer a essas ocasiões sozinha, devido a esse lado perversamente volúvel dele, que tanto me irrita quanto me provoca.

Algo tilinta acima da cabeça. Levanto os olhos e vejo algumas campainhas com sabor de cereja feitas de pingentes de gelo açucarados, suspensos no ar por encantos de fadas. Só é preciso estender a mão para capturar uma. Mas isso não é tão desafiador nem tão divertido quanto perseguir um pato assado com um taco na mão.

— Estou ficando com fome — digo à minha companheira fada.

— Eu já disse. O mestre deseja fazer um piquenique. Valerá a pena esperar. — Seus olhos reluzentes se concentram em mim, repreensivos.

— Você está interpretando mal as insinuações dela, bichinho. — A voz profunda de Morfeu aquece o topo da minha cabeça, vinda de trás. Eu me viro e o pego espiando na porta com aquele sorriso sarcástico. Ele me oferece uma rosa com haste comprida que combina com as que tenho no cabelo. — Alyssa estava se referindo à sua fome de aventuras com mais pancadaria. Não é isso, amor? — Ele estende a mão, com as joias nos olhos piscando entre violeta e rosa.

Em vez de admitir que ele me entende muito bem, aceito sua mão em silêncio. Ao nos dirigirmos para a porta, olho para trás em busca de meus pais, que se perderam na multidão.

— Gossamer — eu começo. — Você se importaria...?

— Direi a todos que você já foi. — Ela abre um sorriso malicioso para mim e Morfeu. — Fennine es staryn, es fair faryn. — Em seguida, sai voando.

Morfeu me conduz para fora do castelo, passando pelos cavaleiros élficos e ganhando o ar fresco da noite. Faço um esforço acentuado para não perceber quanto ele está garboso em seu fraque branco com colete preto de listrinhas vermelhas, nem quanto suas asas estão majestosas e altas nas costas.

Em vez disso, admiro o entorno. O sol e a lua se trançam no céu purpúreo. Sua luz combinada lança um tom ultravioleta sobre tudo. A distância, para além dos domínios gelados da Marfim, plantas de todas as espécies florescem em cores psicodélicas — arbustos cor-de-rosa, flores amarelas, árvores laranja e relva de arco-íris.

Deleito-me com toda essa beleza. Entrelaçando meus dedos nos de Morfeu, pergunto:

— Então, o que a Gossamer disse?

Ele se inclina para me ouvir por causa da bagunça de alguns convidados elegantes e atrasados que espirram ao passar por nós a caminho da entrada.

— Uma antiga bênção do nosso reino. Que a deusa das fadas ilumine seus passos com estrelas, e que a jornada seja boa, por mais distante que seja seu destino.

— E estamos dispostos a ir muito longe? — pergunto, com meu lado intraterreno quase salivando ao ver nossa carruagem. É uma cópia razoável do “balão de ar quente” de mariposas que ele pretendia usar em Qualquer Outro Lugar. Mas esta cesta feita de um cogumelo gigante é fechada para nos manter aquecidos e puxada por milhares de mariposas cujos arreios são fios de magia azul. A mesma magia forma as rodas luminescentes. Elas me recordam os vidros das placas de néon, moldadas em círculos e raios.

— Todos os cantos e recantos do reino se estenderão aos seus pés esta noite — Morfeu responde. — Com tantos súditos aqui no castelo, é a oportunidade perfeita para se fazer essa excursão. Dos desertos de tabuleiros de xadrez aos penhascos caóticos e as florestas gigantes. Vamos fazer algumas paradas especiais no caminho. Pedi a Jebediah que pintasse algumas cenas do passado tal qual eu as lembro. A caverna em que Alice foi presa... a gaiola de passarinho e tudo o mais. O casulo de onde nasci sob uma nova forma. Tudo isso é parte da história que dividimos. E agora está tudo preservado para sempre.

Fico tocada pelo sentimento e me aproximo para olhar bem sua cartola sob a luz da lua.

— Você está usando seu Chapéu da Sedução. Por que será que não estou surpresa?

Ele oferece um sorriso de pirata.

— Notou... o novo ornamento que coloquei? — Ele exagera o gesto de ajustar uma pena de coruja na faixa do chapéu.

Faço força para não dar risada.

— Uma coruja vegetariana, eu suponho?

— Que não vai me importunar por um bom tempo.

— Posso garantir que não é a única que anda por aí.

Ele envolve meu braço no seu.

— Que bom. Estou sempre pronto para uma caçada digna.

Balanço a cabeça.

— O que nos leva de volta ao Chapéu da Sedução.

Ele sorri com sarcasmo.

— Estou usando este chapéu porque combina com o seu vestido.

— Sei — eu digo, embora sua cartola, metade carmim, metade branca, com uma guirlanda de mariposas pretas e botões de rosa na aba, de fato combine perfeitamente comigo.

— Parece que Gossamer encontrou seus pais. — Morfeu aponta uma das torres, onde mamãe e papai nos observam partir. — Espero que ela tenha dito para eles não esperarem — ele graceja.

Meus pais fizeram as pazes com Morfeu depois que ele provou quanto gosta do meu lado intraterreno e também do humano, mas não ficaram entusiasmados ao saberem do meu voto. Depois, viram o exemplo de Jeb, de como ele confia que eu faça minhas próprias escolhas. Então, só me desejaram força, na mente e no coração. Eu lhes garanti que tenho as duas coisas de sobra, por causa do exemplo deles.

Morfeu me ajuda a subir na carruagem. O compartimento é grande o bastante para acomodar suas asas, e os bancos são forrados de veludo azul. Cortinas de um púrpura surpreendente decoram a janela, e rodamoinhos fluorescentes e animados se movem pelas paredes. O interior é igual a Morfeu, em todos os sentidos... elegante e refinado, mas ao mesmo tempo dissonante e surpreendente. Eu me acomodo no banco em frente a ele, com as mãos cobertas de renda segurando a rosa que ele me deu. A fumaça de um narguilé envolve todo o ar. Dois candeeiros estão montados dos dois lados da janela, cheios de pirilampos que lançam um brilho ultravioleta, colorindo de azul os tons mais claros de nossas roupas e a pele de porcelana e os lindos lábios de Morfeu.

— Então, para onde vamos primeiro? — pergunto. — Não esqueça que só temos doze horas.

Ele fecha a porta e inclina-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos.

— Mais ou menos isso. Quando voltei para casa para me preparar, tive algum tempo para pensar sobre o seu voto. Você, deliberadamente, deixou a cláusula “depois de derrotarmos a Vermelha” de fora em sua recordação. O que, tecnicamente, não abrange nossas horas no mundo do espelho, não é mesmo?

Minha bolha de arrogância estoura.

— Hum....

— Precisamente — diz Morfeu, ajustando as luvas brancas em suas mãos. — Entretanto, para provar que posso ser tão conciliatório quando seu príncipe mortal, e para recompensá-la pelo esforço de me manipular, deixarei passar. Você só será cobrada por uma noite.

— Que generoso — eu resmungo.

Suas joias cintilam da cor de orquídeas na primavera.

— E, de fato, é. Considerando que, originalmente, antes de nossa excursão pelo País das Maravilhas, eu desejava dançar com você nas nuvens e fazer-lhe uma serenata ao vento. E depois jantaríamos aranhas cristalizadas e beberíamos vinho de dente-de-leão para você aplacar suas tendências sádicas com relação a flores e insetos.

Finjo ficar amuada.

— Algum dia você vai permitir que eu esqueça isso?

— Não nesta vida. Talvez na próxima. — Ele afasta as cortinas púrpura, revelando uma janela grande o bastante para nós dois olharmos por ela. — Teremos que abdicar da dança. Aprontei um lanchinho e nós comeremos enquanto exploramos.

Nós subimos ao céu e eu observo a grandeza do País das Maravilhas passar lá embaixo.

Cedo ao roncar do meu estômago e experimento uma aranha cristalizada. Não é ruim, exceto pelo fato de ela se agitar ao descer e deixar um leve gostinho de sabão. Morfeu recompensa minha ousadia com biscoitos de luar e vinho de dente-de-leão. O vinho faz a garganta coçar com bolhas efervescentes, dando-me soluços. Cada vez que minha boca se abre, o interior da carruagem pisca por causa dos raios de luar que cobrem minha língua.

Morfeu ri alucinadamente e só me resta rir com ele.

Em questão de quatro horas, vimos tantas coisas do País das Maravilhas que minha mente está rodopiando em tons resplandecentes de ultravioleta e relevos bizarros. Mal posso esperar para captar tudo com minha arte. Essa ideia me deixa triste, ao pensar em Jeb e em sua inspiração, agora órfã.

Nossa última parada antes da casa de Morfeu é o jardim de flores diante da porta da toca do coelho. A maioria das flores está ausente no castelo da Marfim. As que não estão se acovardam ao me ver, pois ouviram falar de minha vitória sobre a Vermelha e da chacina de centenas de prisioneiros deflagrada por mim em Qualquer Outro Lugar.

Com a paciente preparação de Morfeu, aceito o caos interior e ordeno aos momirratos que vivem no solo que revertam os danos causados à toca do coelho. Em um turbilhão de gemidos que ferem os tímpanos e ciclones de tinta negra que açoitam nossas roupas, eles obedecem, colocando tudo do jeito como era no começo, com a estátua do menino no relógio de sol e tudo o mais.

— O que o reino humano vai pensar quando acordar e vir a mudança amanhã? — pergunto para Morfeu, enquanto subimos mais uma vez na carruagem, alerta e com os nervos ainda agitados. Fiquei um pouco maníaca depois que uni forças com os momirratos. Sinto a pele quente e o rosto corado.

— Quiçá algum bom samaritano tenha chegado de noite e restaurado o relógio de sol — Morfeu responde. — Você foi como eles um dia... facilmente levada à complacência.

— Isso porque acreditar que você está sozinho no universo é menos assustador do que admitir que pode ter uma plateia de outro mundo.

Morfeu me olha como quem está avaliando.

— E essa é uma fraqueza humana. Use-a quando for a hora de limpar toda a bagunça que sua ausência do reino humano causou nos últimos dias. Quando for a hora de explicar onde sua mãe e Jebediah estiveram durante um mês. Sua dualidade lhe dá uma vantagem neste mundo, Alyssa. Mas também no outro. Nunca se esqueça disso.

Nós chegamos ao seu solar e ele me deposita no quarto sem janelas, prometendo voltar em breve trazendo chá.

Eu me viro para admirar a decoração extravagante e formidável. A luz âmbar é produzida pelo candelabro de cristal gigante espalhado pela cúpula do teto. Tapizes de veludo forram as paredes em tons de dourado e púrpura, entrelaçados com fios de hera, conchas e plumas de pavão.

As prateleiras de cristal em vários níveis chamam minha atenção. Toco um dos muitos chapéus decorados com mariposas mortas. Quando criança, eu ficava fascinada observando como ele tecia as guirlandas.

Volto-me para os terrários de vidro que parecem casas de boneca. Casulos cobrem os painéis — lagartas se transformando. Em outros pontos, mariposas rodopiam e se aninham sobre folhas e galhos secos.

Suas graciosas travessuras me recordam de como Morfeu me afeta agora, como mulher e intraterrena. Estar aqui funciona como um tônico... levando-me de volta àquele momento monumental, mais de um ano atrás, quando ele me transformou — despertou meu lado sombrio com chá da tarde e um jogo de xadrez vivo.

A queda-d’água que serve como o dossel de sua cama goteja atrás de mim. Vou até ela e estendo a mão. A cortina líquida reage a mim como fez naquela vez, afastando-se como uma coisa viva para eu poder ver o colchão. Colchas e almofadas de veludo dourado cobrem toda a cama, e centenas de pétalas de rosas vermelhas estão espalhadas sobre ela, enchendo minhas narinas de um delicado perfume.

Eu recuo, deixando a cortina cair, e esbarro na mesa de vidro que também serve de tabuleiro de xadrez preto e prateado. As peças de jade devem estar guardadas em sua caixa; todas, exceto Alice e a lagarta, recém-talhadas, porque estou com as originais em casa.

Uma sentença paira no alto de três quadrados prateados, mágica, em letras pequenas e brilhantes: Dormir com Alyssa.

— Deixe-me tirar a poeira, amor. — A mão de Morfeu aparece por trás e esfrega o vidro, apagando as palavras.

Tensa, viro-me para encará-lo. Ele tirou o casaco, o colete e as luvas. Seu peito torneado e pálido aparece por baixo da camisa branca meio desabotoada. Ele está extasiante e sedutor demais para eu me sentir confortável.

Meu queixo trava.

— Não vou fazer isso.

— O quê? Tomar chá com bolinhos? — Ele equilibra uma bandeja com xícaras e uma chaleira na outra mão e a coloca sobre um canto vazio da mesa. — Por que não?

Mantenho-me firme.

— Jeb quer envelhecer comigo. A humana dentro de mim também quer. Vivenciar o que Alice nunca vivenciou no reino mortal. Ele estava disposto a arriscar sua única vida para enfrentar a Vermelha a fim de que eu pudesse ter um futuro com você. Para ele, a minha felicidade era mais importante do que a dele própria. E você está pedindo que eu me afaste dele depois de todas as coisas das quais ele abdicou pelo País das Maravilhas?

— O que a faz pensar que estou? — Morfeu pendura o chapéu no braço da cadeira e serve um líquido com cor de mirtilo em uma xícara. Anéis de vapor enchem a sala, espalhando notas de menta e lavanda.

— A sentença que você escreveu.

— Ah, isso... — Ele me convida a sentar. Como não me mexo, ele mesmo se senta, cruzando as pernas na altura do tornozelo. Suas asas pendem, largadas dos dois lados da cadeira. — Alyssa, pense. Alguma vez eu tirei vantagem de sua inocência?

— Não.

— Eu tive os meios e oportunidades?

— Muito das duas coisas.

— Muito bem. Você aprendeu tanto em nossa jornada. Certamente ainda não esqueceu a lição mais importante: como as palavras podem dizer uma coisa, mas significar outra. — Ele ergue sua xícara e me olha por sobre a borda enquanto dá pequenos goles, em seguida a colocando sobre o pires com um estalido. — É crucial, como rainha da Corte Vermelha, que você mantenha isso claro e em mente, em todas as situações. Você deve sempre analisar cada ângulo de cada afirmação antes de reagir emocionalmente.

Então, a noite de hoje é, ao mesmo tempo, uma lição e um teste. Ele está me ensinando a política do País das Maravilhas e, ao mesmo tempo, me testando para ver se consigo praticar o que prego: confiar nele como espero que ele confie em mim.

— Agora — ele continua —, eu trouxe o chá para você relaxar. Mas você, definitivamente, não é obrigada a tomá-lo. Embora, no mínimo, depois de tudo o que passamos, era de esperar que você pudesse se sentar e falar abertamente comigo. Se for mais fácil, use as peças do xadrez, como quando éramos crianças.

Respiro fundo, recolho a saia em torno das pernas e me sento na cadeira diante dele.

Concentrando-me na figura de Alice, imagino-a viva. Ela continua diminuta, mas começa a se mover, estendendo os braços e as pernas, como se tivesse dormido durante anos. Ela vai, aos saltos, até a lagarta e faz uma reverência.

— Como está passando esta noite, Sr. Lagarta? — ela diz com a voz suave da inocência. — Eu gostaria de lhe agradecer por não ter me coroado antes, por encontrar outro caminho. Foi muito nobre de sua parte.

Morfeu sorri. A luz azul na ponta de seus dedos se liberta e envolve a peça da lagarta, agitando-a diante da caricatura de Alice como se estivesse se movendo. Ele é um mestre titereiro, exatamente como era em nossos jogos infantis. Exatamente como foi no reino humano. Exatamente como sempre será.

— Não foi nada nobre, minha rainha. — Sua voz é cômica e esganiçada. — Na verdade, o benefício foi meu. Sem nenhuma lembrança de sua humanidade, você não seria a menina com quem dividi toda uma infância. E eu odeio admitir, mas passar a vida com os humanos que você ama fará de você uma regente melhor aqui. Você sabe que eu sempre faço o que é melhor para o País das Maravilhas.

Essas palavras nunca soaram mais lindas ou pungentes. Estimulo minha pequena Alice a arrastar um pé pelo tabuleiro.

— O senhor disse que já estava cansado de esperar — ela murmura sob meu comando. — E tem razão. Não posso pedir que espere ainda mais. O senhor deve encontrar outra pessoa. — Por mais que doa ouvir tais palavras saindo de seus lábios, Morfeu merece ser feliz.

Ele deita sua peça, como se estivesse se recostando, e responde naquela voz anasalada:

— Me perdoe, pequena majestade, mas já esqueceu o que eu sou? Como um ser mágico e solitário, não necessito de companhia. Na verdade, acho o constante dar e tomar da companhia tedioso, mesmo no melhor dos dias. Embora espere descobrir o encanto disso daqui a uns sessenta anos, mais ou menos.

Lágrimas me ardem nos olhos, mas não permitirei que caiam. Em vez disso, minúsculas gotas correm pela face de Alice.

— Então eu gostaria de acrescentar que sinto muito. Sinto que tenha que esperar tanto por tantas coisas.

O olhar de Morfeu reluz dentro do meu e volta para as peças de xadrez tomadas por sua magia.

— Pare de chorar — sua voz excêntrica repreende. — As rainhas não choram. Eu pensei que tinha lhe ensinado isso.

Mordo um lábio trêmulo, e a pequena Alice afaga o rosto da lagarta.

— Mas o senhor está chorando...

Morfeu abaixa uma asa e cobre o rosto, e também o brilho transparente de suas joias.

— Bem — a voz esganiçada vacila —, apesar das minhas preferências por renda e veludo, não sou a rainha. Então, posso chorar quanto quiser.

Minha resposta é fungar, e soluçar também. Cubro a boca com a ponta dos dedos, instruindo Alice a secar o rosto com seu avental.

— Eu amo você. Não quero magoá-lo — eu murmuro atrás da mão.

O queixo de Morfeu se contrai e sua magia sobre a lagarta se intensifica até ela rodopiar sobre o tabuleiro como um pião colocado para girar.

— Sua piedade está mal dirigida. — Seu tom infantil abaixa uma oitava. — Como eu sempre lhe disse, o tempo não tem limites no País das Maravilhas. Jebediah pode ficar com você durante o dia, por enquanto. Mas uma eternidade nos aguarda. Ele é que vai ficar com a parte mais curta. — Os cantos da boca de Morfeu se contraem com um quê maldoso. — O que é adequado, considerando-se que ele é menos qualificado em muitos outros aspectos.

— Cale a boca! — eu digo, rindo histericamente. Alice volta a ser uma peça inanimada de jade quando eu a jogo. Faço a mira e ela cai dentro do chá de Morfeu, respingando sobre ele e o tabuleiro.

Com um gracioso movimento da mão, ele retira a magia. O chá escorre por seu rosto enquanto os olhos escuros se voltam para mim, acesos por algo que é ao mesmo tempo perigoso e ousado, mudando de humor mais rápido do que consigo piscar.

— Cuidado, florzinha. — Agora ele fala com seu sotaque britânico. Ele limpa o rosto com um guardanapo. — Não comece algo que não tem intenção de terminar.

— Ah, eu vou terminar, sim — respondo, incitada pela sombria confiança que paira na beira da minha psique. O lado meu que sabe que sou páreo para ele em todos os sentidos. — E você sabe que eu vou ganhar. — Levanto-me da cadeira para vasculhar a sala em busca de armas, vagamente ciente dos prismas de luz refletindo de minha pele para tudo à minha volta.

— Eu sei que vou deixar você ganhar — Morfeu diz, levantando-se. — Nem vou revidar. — Seu sorriso que deixa à mostra os dentes brancos denota um presságio de provocação, como se ele estivesse imitando a extensão de suas asas. — Bem, talvez revide um pouquinho, só para me divertir.

Eu avanço lentamente para o meio da sala, lutando contra o sorriso que tenta se abrir em meu rosto. Meu coração se enleva, em uma tentativa de me aproximar dele, aquela mesma sensação magnética revigorante que senti no peito quando Jeb me abraçou. Mas Morfeu nem sequer me tocou.

Ele me analisa como se estivesse me entendendo, como se pudesse ver a reação de meu coração.

— Pensando bem, a hora do recreio pode esperar. — Ele arrebata meu pulso com seus fios azuis eletrificados antes que eu possa libertar minha magia. — Você se distrai muito facilmente, amor. Isso é algo que teremos que praticar. — Ele me puxa para si, me pega no colo e me leva para a cama.

— Morfeu — eu alerto, debatendo-me em seus braços. Sei que com um só pensamento posso fazer o candelabro cair sobre ele e formar uma gaiola.

— Não, não se precipite — ele ralha, como se lesse minha mente. Afastando a cortina de água, ele me coloca sobre as fragrantes pétalas de rosas. — Só peço uma coisa de você esta noite. E não comprometerá seu futuro humano. Vamos ficar vestidos. Nenhuma atividade suspeita. — Ele coloca a palma da mão junto ao coração, fazendo um juramento. — Eu juro pela magia da minha vida que nunca mais me colocarei entre você e Jebediah Holt.

Fico atônita. A profundidade de tal gesto vindo de um ser mágico que só pensa em si mesmo toca minha alma. A única coisa previsível acerca do meu futuro rei é sua imprevisibilidade.

— Você me disse uma vez que nunca seria um cavalheiro. Você mentiu.

Ele se inclina e acaricia meu rosto com as costas dos dedos de modo tão terno que até dói.

— Ah, e reitero o que disse, florzinha. Pois veja, existe uma chance de você não resistir e se colocar entre vocês dois. Todas as noites em que estivermos juntos, eu a tentarei ao limite da loucura. Eu a provocarei e a atormentarei. Você vai ter que se esforçar para ter uma vida feliz com Jebediah. Vai ter que ser forte e firme, como todas as boas rainhas devem ser. Mas esta noite vou lhe dar uma trégua.

Essas palavras são as mesmas que ele disse na tarde que passamos dentro da montanha: Sim, teremos discussões sem fim e lutaremos por poder. E, sim, teremos arroubos de paixão, mas também suavidade e calmaria. É assim que somos quando estamos juntos.

— Da próxima vez que eu a vir em seus sonhos — Morfeu continua, trazendo-me de volta ao presente —, nossa prova de fogo começará. Você a queria, e a terá. Pretendo pressioná-la e enfurecê-la para obter o melhor e o pior de você. É a única maneira de reinar sobre um mundo de criaturas loucas e astutas.

Permito que o sorriso que eu suprimia se liberte, porque estou aberta a qualquer desafio que ele colocar em meu caminho. A chance de provar isso me empolga além de toda racionalidade.

— Agora eu compreendo o que a sentença no tabuleiro queria dizer. Que você quer dormir comigo...

Ele se arrasta sobre meu corpo e se deita do outro lado da cama, deixando a cortina líquida aberta atrás de mim.

— Diga-me.

Cobrindo-me com uma de suas asas, eu me envolvo em seu aroma de alcaçuz e mel.

— Você quer ficar abraçado comigo enquanto durmo. Você quer observar meu rosto enquanto eu durmo como você nunca fez... do exterior.

Ele percorre as marcas em meus olhos com a ponta de um dedo.

— Esta será uma lembrança à qual me apegarei até que você seja finalmente minha, nas horas despertas e adormecidas. A pergunta é: confia em mim o suficiente para me propiciar isso? Para descansar em meus braços esta noite?

Coloco a palma macia de sua mão junto ao meu rosto.

— Você vai cantar a minha canção de ninar?

Ele passa os dedos pelos meus cabelos e toca a minha testa com a sua.

— Para todo o sempre — sussurra.

Enquanto ele entoa a melodia que esteve dentro de minha mente e de meu coração a vida inteira, fecho o dossel de água, envolvendo-nos em um casulo dentro de nosso próprio bolsão congelado de tempo.

 

 

Epílogo

Jeb e eu passamos toda a nossa vida em Pleasance, e mamãe e papai nos visitavam com frequência, quando não estavam em Londres com os Skeffingtons.

Não mencionarei outros detalhes: quantos filhos e netos, as sobrinhas e os sobrinhos que Corbin e Jenara nos deram, nem que idade tinha Jeb quando morreu. Só direi que nossa vida mortal juntos foi tudo ou mais do que eu esperava. Mesmo quando a morte levou os membros de minha família — um a um —, a felicidade logo retornava, uma enxurrada de memórias e risos que perdura feito inestimáveis obras de arte nas paredes do meu coração.

Consegui construir uma reputação com meus mosaicos, enquanto Jeb ficou famoso por fazer labirintos de brinquedo, percorridos por bolinhas, feitos de modo tão engenhoso e intrincado que foram comparados às obras de Rube Goldberg. Contudo, o verdadeiro legado que ele deixou a nossos filhos e netos não foi a fortuna, nem os prêmios obtidos com suas proezas mecânicas. Foram sua gentileza, seu senso de humor e seu amor incondicional.

Mamãe e eu queríamos que nossos descendentes tivessem a vida normal que nunca tivemos, e consegui silenciar os insetos e as flores em seus ouvidos simplesmente ordenando — um benefício da magia da minha coroa. Mesmo assim, deixei a eles uma oportunidade de tropeçarem em seu legado do País das Maravilhas: centenas de mosaicos repletos de paisagens místicas e bizarras, e uma caixa cheia de relíquias, junto a um mapa e uma chave. Escondi tudo no sótão para que eles encontrem e, quem sabe, saiam a buscar respostas.

Talvez eles pensem que são simples elucubrações de uma mente senil. Ou talvez acreditem e se lancem, seguindo a mesma fé que um dia me moveu, e a uma menina curiosa chamada Alice, a me aventurar na toca do coelho.

Estarei lá para recebê-los, se o fizerem...

Abandonar minha família humana é a coisa mais difícil que já fiz. Depois de forjar minha morte, minha última viagem à toca do coelho não é tanto um salto, mas uma queda. Morfeu está lá para me pegar. Ele toma minha mão enrugada e cheia de manchas senis e me ajuda a entrar, limpando com beijos as lágrimas da mulher velha, grisalha e frágil que me tornei.

Ele não recua nem pestaneja. Vê através da minha idade o que sou por dentro. Vê a regente que ele ajudou a formar em meus sonhos desde a infância: adepta do pandemônio e da manipulação, temperados pela sabedoria.

Ele coloca a coroa sobre minha cabeça e meu cabelo fica mais forte e se aquece com o loiro-claro da juventude, cheio de magia. Meus ossos, pele e músculos voltam a ficar lisos e torneados. Minhas asas brotam novamente.

Volto a ter dezesseis anos.

— Dar-lhe-ei tempo para lamentar suas perdas — ele sussurra, mas o desejo que queima em seus olhos contradiz qualquer paciência.

Embora meu coração esteja pesaroso, ele também é forte e inquebrantável, graças aos dois homens que colocaram as minhas necessidades acima de suas próprias.

Morfeu e o País das Maravilhas aguardaram tempo suficiente por sua rainha, por sua criança sonhadora. Toco o rosto decorado por joias que eu aprendi a amar tanto, não apesar de suas táticas enfurecedoras, da manipulação das palavras, da suave malícia... mas por causa de tudo isso.

— A Corte Vermelha precisa de um rei — é a minha resposta.

Nós nos casamos, rodeados por uma salada de criaturas: algumas vestidas, outras nuas, todas mais bestiais do que humanoides. São nossos súditos, e meu coração transborda de afeição — por sua estranheza, sua loucura e sua lealdade.

Morfeu e eu vestimos vermelho: eu, um vestido de rosas verdadeiras, tule e renda; e ele, um lindo terno carmim.

Quando chega o momento, eu digo com orgulho:

— Aceito.

Ele ergue minha mão e toca com os lábios macios as cicatrizes que a marcam.

— Eu sempre soube que aceitaria — ele provoca. Em seguida, sorri, e suas joias brilham em dourado reluzente.

Ostentando coroas de rubi, voamos juntos para o céu.

— Vamos dançar nas nuvens, amor? — meu rei pergunta.

Lembro-me da visão que tive uma vida atrás — nossas almas e corpos desnudados diante de um inferno brilhante — e respondo:

— Quero dançar no sol.

E lá, em meio às ofuscantes chamas laranja, amarelas e brancas, começa nossa eternidade...

 

  

 

                                                                  A.G. Howard

 

 

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