Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
QUANDO CHEGA A HORA
Segunda Parte
No fim da tarde, assim que conseguiu sair, Nico foi até a casa do professor. Gislene abriu a porta, convidando-o a entrar.
Alberto e Liana estavam conversando no escritório. Nico entrou e foi logo dizendo:
- Vim saber como estão as coisas.
- Não muito bem - respondeu Liana, triste.
- Eu sei. A Dona Eulália ficou muito sentida. Mas isso passa, tenho certeza - tornou Nico.
- Essa é minha opinião. Ela está chocada, mas vai passar. Logo tudo ficará bem - disse Alberto.
- Conheço Eulália. Quando diz uma coisa, não volta atrás.
- Ela chamou o Dr. Norberto. Ele vai chegar ainda hoje.
Liana olhou para Alberto preocupada:
- Como será que ele vai reagir?
- Acredito que com mais bom senso que ela. Afinal, já estamos casados, e eles terão de se conformar.
- Como foi o casamento? Os dois lá em casa estão doidinhos para saber todos os detalhes. Querem que eu pergunte tudo.
- Foi uma cerimônia muito bonita. O Dr. Marcílio tirou algumas fotos e vai mandá-las a vocês quando estiverem prontas - contou Liana.
- Oba! Eles vão ficar contentes, mas não vão agüentar esperar pelas fotos para saber tudo. Como é que foi?
Alberto procurou descrever a mesa, os convidados, o bolo, até o vestido da noiva.
- Nós guardamos um pedaço do bolo para vocês - lembrou Liana.
- Vou ter que esconder. Se a Dona Eulália souber, vai brigar comigo - disse Nico.
- Ela não precisa saber. Eu levo você de volta e daremos um jeito - propôs Alberto.
- Ela disse que teremos outro professor. O Eurico está muito revoltado. Garantiu que de hoje em diante vai fazer tudo que ela não gosta.
- Ele não deve fazer isso - disse Liana.
- Foi o que eu disse para ele. Mas sabe como é: toda vez que não fazem o que ele quer, pronto: ele pinta o sete.
- Você, Nico, que é mais ajuizado, converse com ele, diga-lhe que tenha paciência. Vocês não podem parar de estudar logo agora que estão próximos dos exames - aconselhou Liana, preocupada.
- Isso mesmo, Nico. Vocês precisam ter paciência, saber esperar.
Logo tudo ficará bem.
Eles conversaram mais alguns minutos, depois Alberto pegou a caixa em que estava acondicionado um grande pedaço do bolo, dizendo:
- Vou levar Nico até a mansão. Volto logo.
- Cuidado para que ninguém os veja juntos. Se Eulália souber que Nico esteve aqui, pode mandá-Io embora também. Sabe como ela é... - Não se preocupe, ninguém nos verá - garantiu Alberto. Liana levantou-se dizendo:
- Espere um pouco.
Foi até o quarto, apanhou uma pequena caixa e entregou-a a Nico: - Leve para Amelinha. É o enfeite que havia sobre o bolo. Quero que ela guarde como recordação. Que ela não deixe Eulália saber. Diga que estou morrendo de saudade dos dois.
- Direi, sim, Liana.
Quando eles saíram, Liana deixou-se cair pensativa em uma cadeira. Sentia-se triste. Por que se envolvera com o cunhado? Não fora isso, ela ainda estaria em casa com a família. Sentia-se triste e infeliz. Mas preferia isso a que um dia Eulália pudesse descobrir toda a verdade.
E Norberto, como teria recebido a notícia de seu casamento? Teria entendido que ela o fizera para evitar novas tentações e para preservar o bem-estar da irmã e dos sobrinhos? Ou teria acreditado que ela estivesse apaixonada pelo professor? Era difícil dizer. Contudo, ela preferia que ele imaginasse que ela o houvesse esquecido. Dessa forma, nunca mais falaria do passado, e assim seria muito mais fácil esquecer.
Já havia escurecido quando Alberto parou o carro no portão dos fundos da mansão. Nico desceu, e Alberto perguntou:
- Como vai fazer com o bolo?
- Pode me dar a caixa. Tenho um esconderijo aqui, do lado de fora. Eu e o Eurico o fizemos para guardar nosso tesouro. Deixo lá e depois, quando ninguém perceber, pego do lado de dentro.
- Está bem. Sempre que for ver sua mãe, passe em casa para nos contar as novidades.
- Vou ficar atento. Amanhã mesmo eu volto.
- Não. Eulália pode desconfiar. Você tem de fazer tudo como sempre.
Precisamos ter cuidado. Se ela descobrir, você não poderá mais nos visitar.
- Deixe comigo. Farei tudo direitinho. Só achei a Liana meio triste. Tem certeza que ela vai ficar feliz?
- Tenho, Nico. Ela está triste por causa da família. Mas, se Deus quiser, logo tudo estará em paz.
- Vou rezar para vocês serem muito felizes.
- Obrigado, Nico. Você é um bom amigo.
Depois de um abraço, Nico, segurando as caixas com cuidado, dirigiu-se a um ponto do muro, e, afastada uma planta com cuidado, apareceu uma abertura onde ele as colocou. Depois, acenando para Alberto, deu a volta e entrou no portão principal.
Eles já haviam jantado. Sempre que ele ia visitar a mãe, jantava com ela, e por isso não guardaram nada para ele. Mas Nico não se importou. Estava com fome, mas pensava no bolo e sua boca enchia-se de água.
Logo que se viu a sós no quarto de Eurico, este o cravou de perguntas, mas ele respondeu:
- Vamos esperar a Amelinha, senão vou ter que repetir tudinho.
- Vai demorar! Papai chegou e eles ainda estão conversando no quarto. A luz está acesa, dá para ver por debaixo da porta.
- Você ouviu alguma coisa do que eles disseram? Prometi contar tudo que acontecer aqui para a Liana e para o professor.
- Só sei que mamãe estava muito nervosa. Tentei ficar na sala, fingindo que estava brincando, mas ela me mandou embora.
- Você não ouviu nada?
- Ouvi-a reclamando de ingratidão, dizendo que não queria mais ver tia Liana.
- E seu pai?
- Ele dizia que não podia ser assim. Que ela precisava ir conversar com ela, saber a verdade, porque ela nunca dissera que gostava do professor. Sabe de uma coisa?
- Não.
- Ele desconfia que tia Liana se casou enganada. Que o Dr. Marcílio deu alguma droga para ela e quando ela acordou estava casada.
- É nada. Ela se casou acordada, com vestido novo, buquê e tudo.
Ele está enganado.
A porta abriu-se e Amelinha entrou sussurrando:
- Não agüentei esperar que eles apagassem a luz. Não param mais de conversar! Estou morrendo de curiosidade.
- Psiu! - fez Eurico. - Se mamãe vê você aqui, pode desconfiar. - Que nada. Ela está tão preocupada com o caso da tia que nem vai perceber. Depois, se ela vier, eu digo que estava com medo e pronto.
- Vamos para o meu quarto. Fica mais longe do quarto deles - pediu Nico.
- Assim você vai poder contar tudo - disse Eurico.
- É. Vou falar bem baixo. Tem bolo e um presente que a Liana mandou para você, Amelinha. Depois que todos dormirem, iremos buscar. - Puxa, o que será? - exclamou Amelinha curiosa.
- Coisas de mulher, com certeza - adiantou Eurico.
- É. Acho que é.
- Mas conte logo. Vamos... - pediu Amelinha.
Os três sentaram-se na cama de Nico e ele contou tudo, fazendo suspense e detalhando um pouco mais para causar admiração.
Eulália, em seu quarto, estava inconformada. Aquela história da paixão de Liana pelo professor não lhe saía da cabeça.
- Pensando melhor, bem que eu desconfiei que ele andava de olho em Liana. Cheguei a comentar sobre isso. Você me tirou da idéia.
- Não me pareceu verdade.
- Mas era. Pensando melhor, recordo-me que ela vivia defendendo-o, dizendo que era um homem excepcional. Lia seus livros. Ele a envolveu.
- Ainda não acredito que ela estivesse apaixonada por ele.
- Tem de estar! Para ela fazer a loucura que fez... Como explicar essa fuga, assim, na calada da noite? Ela rompeu o noivado, estava livre, poderia ter dito que estava gostando dele. Por que não o fez?
- Ela sabia que você não gostava dele e não aprovaria.
- Se ela me houvesse consultado, eu teria feito tudo para impedir esse casamento. Um homem que já foi casado, que foi até suspeito de causar a morte de sua mulher. .. Acha que servia para marido de Liana?
- Ela não pensava assim, uma vez que fugiu com ele.
- Isso é o que me intriga. Ela estava tão enfraquecida. Não se importava com nada. Como encontrou forças para fazer o que fez?
- É o que me intriga também. A cumplicidade do médico parece-me suspeita. Eles bem podem havê-Ia induzido, forçado o casamento.
- Com que fim? Liana não tem fortuna própria.
- O professor pode ter se apaixonado por ela e ter tramado tudo.
É por isso que você não pode ser tão radical. Tem de procurá-la, saber como aconteceu e por quê.
- Não posso fazer isso.
- É sua única irmã. Você tem o dever de saber como foi. Depois você toma a decisão que quiser. Mas temos de descobrir a verdade. Ela pode mesmo estar sendo uma vítima.
- Você acha mesmo?
- Acho. Amanhã você vai até a casa do professor e conversa com Liana.
- Não. Na casa dele, não.
- Talvez seja melhor chamá-Ia aqui. Ela queria vir e você não permitiu.
- Não mesmo. Mandei arrumar tudo que é dela, e Nequinho vai levar amanhã logo cedo.
- Não faça isso. Mande Nequinho dizer a ela que venha até aqui para conversarmos. Aqui teremos mais liberdade para dialogar.
- Tem razão. Faremos isso.
- Agora estou cansado. Vamos dormir.
- Não sei se vou conseguir. Estou tão nervosa!
- Acalme-se. Amanhã conversaremos com ela. Se o que penso for verdade, se ela foi coagida de alguma forma, trataremos da anulação do casamento.
- Acha possível?
- Acho. Seria a melhor solução. Pode ser até que a estas horas Liana já esteja arrependida e desejando voltar para casa.
- Deus o ouça!
Depois que eles se deitaram e apagaram a luz, Nico entreabriu a porta e, notando que estava tudo às escuras, disse baixinho:
- Vou pegar as caixas.
- Vou com você - respondeu Eurico.
- Eu não fico aqui sozinha. Também vou - exclamou Amelinha. - Psiu!!! Querem acordar todo mundo? Vamos sem fazer barulho. Pé-ante-pé, saíram, apanharam as caixas e subiram novamente para o quarto. Assim que fecharam a porta, Amelinha disse:
- Acenda o abajur. Quero ver o presente de tia Liana.
Eurico obedeceu e ela abriu a caixa: sobre papel de seda branco estava um casal de noivinhos, e Amelinha não se conteve:
- Que lindo! É do bolo da noiva!
- Fale baixo, senão estamos fritos - pediu Nico.
- Eu não disse que era coisa de mulher? - comentou Eurico.
- Eu também gosto. É muito bonito! - respondeu Nico.
- É lindo! Olha só o vestido dela! Tem o buquê, a aliança, tudo. - É... reconheço que é bonito. Para um bolo de noiva até que fica bem - concordou Eurico.
- Vamos comer o bolo. Estou morrendo de fome. Não jantei -lembrou Nico.
Eurico pegou uma faca e cortou um pedaço e experimentou:
- Está uma delícia!
Os outros dois fizeram o mesmo. Comeram até se fartar.
- Estou com sede - disse Amelinha. - Vou descer e beber água. - Não precisa. Escondi aqui duas garrafas de guaraná - tomou Eurico com satisfação.
- Você pensa em tudo! - comentou Nico.
- Bolo tem de ser com guaraná. Por isso, quando subi trouxe estas garrafas. Sabia que você traria o bolo e pensei na sede.
- Fez muito bem - concordou Amelinha, bebendo alguns goles no gargalo da garrafa.
Depois, limparam as migalhas que haviam caído no chão e esconderam no armário a caixa com a sobra que pretendiam comer no dia seguinte. Só depois de tudo arrumado foram cada um para seu quarto, satisfeitos e com sono.
Na manhã seguinte, Nequinho foi à casa do professor levando um bilhete de Eulália para Liana, pedindo-lhe que fosse até lá conversar. - Dona Eulália pediu resposta - pediu Nequinho.
- Espere um pouco. Já volto.
Liana deixou Nequinho esperando na sala e foi falar com Alberto, que estava no escritório entregando-lhe o bilhete.
- Norberto convenceu-a. Iremos, com certeza.
Depois que Nequinho foi embora, Liana procurou Alberto.
- Este bilhete me deixou nervosa.
- Sem razão. Você não queria conversar com eles, tentar convencê-Ios a aceitar nosso casamento?
- O que mais desejo é fazer as pazes com Eulália. Mas, não sei por quê, só em pensar em ir até lá sinto um arrepio... um medo...
- Se eles desejam conversar, é sinal de que desejam entender melhor nossa atitude. É uma boa oportunidade de reconquistarmos a compreensão deles. Não há o que temer. Nossos papéis estão corretos, somos casados legalmente.
- Apesar de desejar muito que eles compreendam, não sinto vontade de ir até lá.
- Hum... Não me parece natural esse seu receio. Pensando bem, talvez não seja ainda o momento de voltarmos à mansão.
- Por quê? Você mesmo disse que é um bom presságio.
- Falar com eles, sim. Mas o espírito do coronel Firmino continua lá. Talvez você sinta receio de tornar a encontrá-Io.
- Credo! Não me fale nesse homem. Não quero vê-Io nunca mais.
Liana estava pálida e seu corpo tremia. Alberto aproximou-se segurando suas mãos geladas, tentando infundir-lhe coragem.
- Acalme-se, Liana. Se você não quiser ir, pediremos a eles que venham aqui.
- Será melhor. Não me sinto com coragem de entrar naquela casa de novo. E se ele estiver me esperando e aparecer?
- Ele não poderia fazer-lhe mal. Estamos protegidos. Vamos conversar com o Dr. Marcílio. Ele nos dirá como agir. O que você não pode é alimentar esse medo. O espírito do coronel Firmino está dementado, preso em um tempo que já passou, tentando manter seu poder sem perceber que isso só aumenta o próprio sofrimento.
- Se ele sofre, deveria aprender a não ser maldoso com os outros. - Ele não pretende ser maldoso. Quer resolver seus problemas pessoais como se estivesse ainda naqueles tempos.
- Se os espíritos bons estão nos ajudando, por que não o esclarecem e acabam logo com o sofrimento dele? Assim nos deixaria em paz.
- Não é assim que as coisas funcionam. Ele precisa perceber a verdade, aprender algumas coisas para evoluir. Esse é um trabalho interior que só ele poderá fazer. Ninguém, por mais poderoso que seja, conseguirá fazer por ele. O amadurecimento do espírito, o desenvolvimento da consciência é trabalho individual e intransferível. Ele tem o dele, eu o meu, e você o seu. Para crescer em espírito, todos teremos de pagar o preço da aprendizagem. Por isso, por mais que os bons espíritos desejem nos ajudar, precisam esperar o momento certo para que obtenham bons resultados. E esse momento depende de nossas atitudes.
- É desanimador. No caso do coronel, então... Ele está morto há tantos anos e continua igual.
- Parece, mas não é. O sofrimento cansa, a alma deseja renovar, crescer. Chega uma hora em que ela atrai situações, pessoas, desafios que provocam as catarses necessárias e a abertura da consciência. Tenho certeza de que todos nós estamos vivendo um momento desses.
- Todos nós?
- Sim. De alguma forma estamos ligados ao coronel.
- Nem o conhecemos!
- Nesta vida.
- Você já me falou nisso. A reencarnação às vezes me parece tão racional, mas outras tão fantasiosa. Não sei como classificar.
- É um fato natural. Todos passamos por várias reencarnações na Terra. Só assim poderemos entender as diferenças sociais e físicas entre as pessoas.
- Esse é o lado racional. Mas o outro, morrer, sobreviver à morte em outro lugar, ficar pequeno de novo e voltar ao mundo como bebê, crescer, fazer tudo de novo, não será uma ilusão criada por nosso desejo de evitar a morte?
- Não. Há muitas provas científicas da sobrevivência do espírito após a morte do corpo. Assim como as há também da volta desses espíritos em outros corpos de carne. Há pessoas que até se recordam de passagens de outras vidas conseguindo provas materiais sobre suas vidas passadas.
- De que forma?
- Investigando se suas recordações de outras vidas são verdadeiras. Verificando nomes, lugares, muitos conseguiram provas irrefutáveis.
- Mesmo que isso seja verdade, não temos nada a ver com o espírito do coronel.
- Aí que você se engana. Se não estivéssemos ligados por laços de vidas passadas, ele não teria se fixado em você. Ele acredita que foi seu marido.
- Que horror! Ele está completamente louco.
- É... pode ser. Mas, se o atraímos em nossas vidas, é porque de alguma forma estamos envolvidos em seu passado.
- Tenho horror desse homem! Não posso recordar sua aparição naquela noite sem sentir muito medo.
- Esse medo pode ter origem em fatos que aconteceram em outros tempos.
- Não gosto de pensar nisso. O que eu quero mesmo é me livrar dele. Que nunca mais me apareça.
- Penso que chegou o momento de desligá-Io de você. Vamos conseguir isso com a ajuda espiritual.
- E se ele não estiver maduro?
- A vida faz tudo certo. Se não houvesse chegado a hora, vocês não teriam se reencontrado. Não se deixe levar pelo medo. Ele agora não tem mais condições de prejudicar ninguém.
Ao contrário, precisa de ajuda. Nós temos de rezar por ele, para que perceba como tem perdido tempo agarrando-se ao passado e para que se disponha a enfrentar o presente, trabalhando pela própria melhoria interior.
- Você acha que vamos nos libertar dele?
- Tenho certeza. Ele vai ser ajudado, e a mansão ficará livre de sua presença.
- Esse pensamento me deixa mais calma.
- Vou conversar com o Dr. Marcílio. A manhã está bonita, quer me acompanhar até lá? Andar um pouco lhe fará bem.
- Não. Ainda me sinto fraca, nervosa. Prefiro ficar em casa. Depois, não estou disposta a enfrentar a curiosidade das pessoas que vamos encontrar pelas ruas.
- Nosso casamento criou uma auréola romântica muito a gosto deles. Tenho certeza de que estão do nosso lado.
- Pode ser. Mas ainda não me sinto forte para enfrentar isso. - Como quiser.
Depois que Alberto saiu, Liana sentou-se pensativa na poltrona da sala. Estava vivendo uma situação que lhe parecia irreal. Não se sentia casada, muito menos com Alberto.
O que fizera de sua vida? Por que se entregara à paixão e pusera a perder sua paz? Até quando viveria uma vida de mentiras tentando acobertar sua traição?
Ela não merecia ser feliz. Se pelo menos conseguisse esquecer, talvez pudesse encarar a irmã com naturalidade, sem se culpar.
Alberto chegou à casa do médico, que, vendo-o, cumprimentou-o com alegria.
- Vim conversar com você - disse ele. - Eulália quer que Liana vá até a mansão para conversar. Não sei se será conveniente Liana voltar lá agora. Ela sente receio.
- Hoje à noite traga Liana para um tratamento espiritual. Assim, perguntaremos o que será melhor.
- Eu já havia mandado o recado de que iríamos hoje até lá.
- Transfira para amanhã. Assim ganharemos tempo.
Alberto despediu-se, havendo combinado de voltar com Liana às sete da noite. Chegando em casa, ficou preocupado com o ar triste e abatido dela.
Sentou-se a seu lado tentando distraí-la, mas Liana sentia-se distante e dispersiva.
Apesar das insistências dele e de Gisele, mal se alimentou, permanecendo prostrada, em grande apatia.
Com paciência, Alberto redobrou a atenção procurando de vários modos interessá-Ia, sem grande sucesso.
- São seis e meia, está quase na hora de irmos à casa do Dr. Marcílio. É melhor ir se arrumar.
Liana balançou a cabeça, dizendo:
- Vá você. Não estou me sentindo bem.
- Nada disso. Você precisa ir. Eles vão rezar para você ficar boa logo. - Não adianta. Por mais que rezem, nunca vou esquecer a mágoa e o remorso que tenho dentro de mim.
- Não diga isso. Você é jovem, tem uma longa vida pela frente. Tudo isso vai passar e você vai ficar bem. Vamos, vá se vestir.
- Não quero! Por que insiste? Só desejo um pouco de paz. Não entende isso?
Vendo as lágrimas que começavam a cair dos olhos dela, seu rosto contraído, Alberto não insistiu. Não poderia levá-Ia à força. Seria melhor ele ir sozinho e pedir ajuda espiritual.
- Então eu vou. Gislene poderá fazer-lhe companhia até eu voltar. - Não precisa. Ela pode ir embora.
- Nada disso. Ela ficará, não é, Gislene?
- Fico sim, professor.
Quando Alberto chegou à casa do médico, já encontrou os quatro médiuns que freqüentavam as sessões. Ele explicou que Liana se recusara a ir, ao que Marcílio respondeu:
- Eu temia isso. O espírito do coronel Firmino a influencia mesmo à distância.
- É possível isso? - indagou Alberto.
- Claro. Ele pensa nela e manda energias controladoras. Pretende chamá-la de volta.
- Ele pode conseguir?
- Se não fosse a proteção que já a envolveu, ela voltaria, ou ele iria até onde ela se encontra. Para o espírito não há distância.
- Nesse caso, sair da mansão não adiantou muito.
- Engana-se, Alberto. Foi muito bom. Lá a ascendência era mais forte. Afastando-a, alguns amigos espirituais conseguiram protegê-Ia, evitando que ele a encontre pessoalmente de novo. Ele não se conforma de havê-Ia perdido de vista. Pensa nela todo o tempo, chamando-a de volta. Isso a perturba, mas por enquanto nossos amigos espirituais estão conseguindo mantê-Ia afastada.
Contudo, é importante iniciarmos logo um tratamento espiritual para que ele não venha a conseguir o que pretende.
- Há esse risco?
- Há. Infelizmente ela se deixa impressionar muito pelo medo, e ele se aproveita disso.
- O que faremos, então? Ela se recusa a vir.
- Vamos pedir ajuda.
Marcílio reuniu os médiuns e pediu:
- Vocês comecem a sessão. Adélia assume a direção. Orem por Liana, pedindo ajuda aos amigos espirituais. Enquanto isso, eu e Alberto iremos buscá-Ia. Ela precisa vir.
Enquanto eles se reuniam ao redor da mesa e iniciavam as orações, os dois foram à casa do professor.
- Onde está Liana? - indagou Alberto a Gislene.
- Foi se deitar. Disse que estava com muito sono.
- Temos de acordá-Ia - tornou o médico.
Os três foram até o quarto. Gislene tentou acordá-Ia, mas não conseguiu. Ela parecia dopada.
- Segurem a mão dela, cada um de um lado, e coloquem a outra mão em minhas costas e rezem.
Gislene postou-se junto à cabeceira da cama e os outros dois fizeram o que ele pediu. Marcílio colocou as mãos sobre a testa de Liana e fechou os olhos em oração. O corpo da moça estremecia de quando em quando, até que ele abriu os olhos dizendo:
- Vamos esperar um pouco. Podem largar.
Alguns minutos depois, Marcílio aproximou-se de Liana chamando:
- Liana! Liana! Acorde.
Ela abriu os olhos, fitando-o admirada.
- Aconteceu alguma coisa?
- Viemos buscá-Ia. Levante-se, vamos.
- Agora?
- Sim. Nós vamos sair e Gislene vai ajudá-Ia a vestir-se.
Assim que se viram fora do quarto, Alberto não se conteve:
- Ela vai obedecer?
- Vai. Conseguimos afastar por um pouco a magnetização do coronel Firmino.
- Era ele que não a deixava ir?
- Sim. Ele a chamava e dominava, mantendo-a sob seu controle.
Foi preciso afastar a força dele para que ela agisse por si mesma.
- Não podemos afastar a energia dele de vez?
- Ainda não. Eles estão ligados pelo passado, por assuntos não resolvidos. Os fatos indicam que está na hora de se libertarem. Mas isso vai ocorrer quando eles aprenderem o que a vida pretende ensinar com essa experiência.
- Nesse caso, o tratamento espiritual pode não surtir o efeito que esperamos.
- Pode. Às vezes até acontece. Principalmente com quem busca a ajuda dos espíritos, acreditando que eles vão intervir, resolver tudo, sem que precisem fazer nada. Basta orar, freqüentar sessões, tomar passes e pronto. Tudo ficará resolvido. Há até quem decida dedicar-se ao trabalho da mediunidade em benefício do próximo, pensando assim livrar-se de todas as dores.
- O trabalho de assistência ao próximo é abnegado. O que vocês estão fazendo por Liana tem grande valor.
- Tem mesmo. Todos nós temos muitos amigos que intercedem em nosso favor no plano espiritual. Entretanto, isso não nos garante o equilíbrio, o bem-estar, a felicidade. É preciso mais. É preciso cada um fazer a parte que lhe cabe no desenvolvimento da própria consciência.
- Concordo plenamente.
- Esse é um trabalho interior de cada um.
- Sinto que os problemas aparecem quando já estamos maduros para enfrentá-los.
- É uma idéia interessante.
- A vida é perfeita, é Deus em ação. Quando podemos agir melhor e teimamos em manter atitudes que não condizem mais com nosso nível de conhecimento espiritual, a vida tenta nos alertar por todos os meios. Se teimamos em não ouvir, então surgem os problemas como desafios que nos empurram para onde temos de ir.
- Quando aprendemos, tudo se resolve.
- Só aprendemos quando identificamos a atitude que está causando nossos problemas e a substituímos por outra melhor.
- A mudança interior, de que os espíritos sempre falam.
- Que depende exclusivamente de nós. Assim como criamos crenças que geram as atitudes, podemos modificá-las em qualquer tempo. Basta querer.
A porta do quarto abriu-se e Liana, pálida, apoiada no braço de Gislene, apareceu. Imediatamente Alberto aproximou-se dela.
- Que bom que você vai!
Vamos embora - disse Marcílio tomando o braço de Liana, fazendo-a apoiar-se nele.
- Você vai ficar bem.
Quando chegaram à casa do médico, entraram na sala iluminada por delicada luz azul, onde as pessoas sentadas ao redor da mesa oravam em silêncio.
Marcílio conduziu Liana para uma cadeira vazia ao redor da mesa, fazendo-a sentar-se. Alberto acomodou-se discretamente em um canto da sala.
- Vamos fazer uma corrente - pediu Marcílio.
As pessoas deram-se as mãos e Liana tentou se levantar assustada. Mas o médico, segurando-a pelos ombros, fê-Ia sentar-se novamente, dizendo:
- Não tenha medo. Relaxe.
- Não quero ficar aqui - respondeu ela. - Preciso ir embora. - Agora não pode. Tenha paciência. Logo, tudo vai passar. Liana caiu em pranto convulsivo enquanto todos, de mãos dadas, continuavam orando silenciosos. Aos poucos os soluços foram diminuindo, até que ela se calou.
De repente um rapaz que estava em oração estremeceu e deu um soco na mesa, gritando enfurecido:
- Finalmente a encontro! Não adianta vocês se meterem entre nós! Não vão conseguir nos separar. Desta vez isso não vai acontecer! Largue-me! Tenho de sair daqui levando-a comigo! Ela é minha, me pertence. Sou seu marido! Vocês não podem impedir.
- Acalme-se! - disse Adélia com voz firme. - Ninguém aqui deseja prejudicá-lo. Ao contrário, queremos que você se liberte do passado. Chega de sofrer! Chega de reviver um tempo que passou e não volta mais.
- É mentira! Quero-a de volta. Tenho esperado durante tanto tempo e agora que a encontrei não vou perdê-Ia.
- O tempo passou. Tudo mudou. Por que resiste e quer continuar sofrendo? Seu corpo já morreu há muitos anos e você continua aqui, resistindo a deixar a casa onde viveu, preso às emoções daqueles tempos, quando as pessoas que você ama já estão em outras experiências, em outros corpos, desejando aprender a viver melhor. Só você continua rebelde, machucando-se, desejando voltar no tempo. Isso é impossível.
- Eu morri, mas continuo o mesmo. Quero minha mulher. Ela morreu antes de mim. Não sei por que se escondeu nesse corpo jovem, mas eu a vejo como sempre foi. Ela se esconde de medo de mim. Mas não desejo fazer-lhe mal. Eu a amo! Só não admito que me contrarie. Ela ficou contra mim, ajudou aqueles dois traidores, e isso não posso perdoar. Eu, o chefe da família, que preciso ser respeitado, fui duas vezes ofendido.
Por minha mulher e por minha filha. Acha que poderia deixar passar? Eu sou o coronel Firmino! O dono destas terras, o homem mais rico deste estado! Todos me temem e respeitam. Como ser traído pela própria filha?
- Sua filha não o traiu. Ela se casou com o homem que amava. - Um camponês miserável, sem eira nem beira. Um aventureiro que estava de olho em nossa fortuna.
- Você se engana. Eles se amavam de verdade.
- Todos eles me pagam! Aqueles patifes se esconderam naqueles corpos de criança, mas não conseguem me enganar. Principalmente aquele Neco malandro. Chamam-no de Nico, mas eu vejo quem ele é! Continua arrogante, enfrentando-me. Vive dizendo que não tem medo de mim. Qualquer hora ele vai ver só.
- Pare de ameaçar os outros. Você precisa mais é cuidar de sua vida, que está muito complicada. Vive infeliz, sente dores, está doente, passa mal, mas ainda assim quer se meter na vida dos outros.
- Foram eles que se meteram na vida de minha família.
- Ninguém é dono de ninguém. A união da família só acontece por meio do amor, nunca com tirania. Vamos, coronel Firmino, pense em quanto tempo perdido na lamentação, na revolta, no ódio. Chega! Está na hora de deixar de sofrer, hora de buscar a felicidade a que tem direito.
- Felicidade! - tornou ele com voz amarga. - Isso sempre me foi negado. Vivi anos de angústia e de solidão. Por que me negam o direito de ficar com minha companheira?
- Porque você ainda não está pronto. Está doente. Precisa tratar-se primeiro. Depois, quando estiver melhor, poderá tomar suas decisões. Olhe, o médico está aí, a seu lado, desejando ajudá-lo. Vá com ele.
- Não vou. Não quero. O que ele quer é me afastar de minha casa, de minha família, e me internar. Não vou ficar preso de jeito nenhum. Logo agora que sei onde os meus se esconderam.
- Ele não deseja prendê-Io, apenas fazer um tratamento. Se for com ele, logo se sentirá aliviado, sem as dores que tanto o atormentam. Deixe o médico cuidar de você.
- Isso é conversa. Sei o que ele quer. Já ouvi essa conversa antes. Ele me leva, depois vem com essa história de perdoar, esquecer tudo, nascer de novo. Isso nunca. Eu não vou nascer outra vez. Ser criança, não poder ter meu poder como sempre. Não, ninguém vai me tirar de minha casa.
- Não pode ficar lá para sempre. Chegará o dia em que a vida o obrigará a deixar tudo isso.
E, quando acontecer, será de uma forma mais dolorosa. Quanto maior a resistência ao bem e ao progresso, maior a dor que você atrairá em seu caminho. Estamos querendo ajudá-Io. Não torne as coisas mais difíceis do que já estão.
- É inútil. Ninguém vai me afastar de minha casa ou de minha família. Deixem-me em paz. Não me provoquem para que nada aconteça com vocês.
- Não temos medo de suas ameaças - interveio Marcílio, colocando a mão direita sobre a cabeça do rapaz. - Estamos no bem e somos protegidos pela luz divina, essa mesma luz que agora está envolvendo você. Sinta a beleza do amor divino, a alegria de viver no bem e na paz.
A cabeça do rapaz pendeu sobre a mesa e Marcílio proferiu uma prece em favor de Firmino. O corpo do moço estremeceu e ele abriu os olhos admirado.
- Está tudo bem - garantiu Marcílio, batendo carinhosamente nas costas do jovem, que o olhava sem entender o que acontecera.
- Já passou - assegurou Marcílio, oferecendo um copo com água ao rapaz. Esperou alguns segundos até que ele estivesse em si, apanhasse o copo e bebesse a água. Depois pediu que duas pessoas fizessem imposição de mãos, doando energias positivas sobre Liana, que durante todo o tempo chorava baixinho.
Quando eles acabaram, ela havia parado de chorar. Bebeu a água que lhe ofereceram e Marcílio fez uma prece encerrando a reunião. Quando as luzes foram acesas, Alberto aproximou-se de Liana perguntando:
- Sente-se melhor?
- Um pouco. Foi terrível. Tive muito medo. Parecia que a qualquer momento ele iria se atirar sobre mim, aprisionando-me. Fiquei tão aterrorizada! Houve uma hora em que me vi deitada em uma cama e amarrada enquanto ele se aproximava e me beijava. Pensei enlouquecer de horror! Nunca mais quero ver esse homem!
Marcílio, que se aproximara com Adélia, colocou a mão sobre o braço de Liana, dizendo sério:
- Você precisa ser forte e enfrentar isso para se libertar.
- Não entendo! Por que ele cismou comigo desse jeito?
- Você foi esposa dele. A seu modo, ele a ama e quer tê-Ia junto. - Não diga uma coisa dessas! Que horror! Não pode ser verdade.
- É melhor aceitar isso e não se impressionar. Aconteceu no passado, não foi uma boa experiência para você. Mas, de alguma forma, vocês ainda permanecem unidos.
- Se isso é verdade, por que ele não me deixa em paz? Eu não gosto dele.
- Não é só o amor que cria laços de união entre as pessoas. O ódio, a revolta também unem. É por isso que precisamos trabalhar nossas emoções e compreender que cada pessoa é como é e só dá o que tem. Geralmente, a revolta, o ódio aparecem quando esperamos das pessoas mais do que nos podem dar.
- Não me conformo em ter de perdoar tudo, agüentar tudo. Isso é se anular.
- Não é isso que estou dizendo. Você não é obrigada a agüentar tudo nem a conviver com pessoas que não aprecia, sejam seus parentes ou não. Defender sua paz é um direito. O que eu disse é que fazer exigências, esperar compensação dos outros, irritar-se quando eles não fazem do jeito que você quer é ilusão. A vida vai destruir todas as ilusões, porque nos levam a uma visão falsa, distorcida, que cria sofrimento.
- Se eu não gosto do coronel Firmino, também não lhe tenho ódio. Só não quero que ele me atormente. Esse é um direito!
- Tem razão. Por isso estamos todos aqui, tentando esclarecer seu espírito para que compreenda a inutilidade de sua atitude.
- Nesse caso, se não o odeio, por que ele se ligou a mim?
- Você não se recorda do passado. Não sabe como foi sua vida ao lado dele. Por sua repulsa, podemos perceber que tiveram problemas dolorosos em comum. Como você teria reagido a eles, ainda não sabemos.
- Alguma atitude sua, na vida atual, o atraiu - interveio Alberto. - A depressão, a culpa, a auto-imagem negativa podem ter acionado esse processo.
- Pode ser. Quando estamos bem, positivos, cheios de vigor e força espiritual, nenhum espírito sofredor consegue nos envolver. Para que ele pudesse envolvê-Ia tão fortemente, se não foi porque você guardava por ele um ódio inconsciente, deve ter sido pela queda de seu padrão energético.
- É o mais provável - concordou Alberto.
- Você entrou em depressão, atraiu problemas do passado. Para sair deles, terá de aprender a fazer o oposto: fortalecer-se através de pensamentos otimistas, cheios de vigor e de alegria.
Liana baixou a cabeça, pensativa. Sabia muito bem como entrara em depressão depois do que lhe acontecera com o cunhado.
- Não fique triste, Liana. Você vai se libertar, ficará bem e terá ajudado a que esse espírito se esclareça - garantiu Adélia com entusiasmo. - Agora vamos tomar nosso café com bolo que já está na copa.
No trajeto de volta para casa, Liana estava pensativa e calada. Foi Alberto quem quebrou o silêncio:
- Como está? Melhorou?
- Um pouco. O peso, o sono irresistível, o atordoamento passaram.
Estou conseguindo pensar com mais clareza. Isso torna mais aguda a sensação de culpa, de que estou sempre fazendo coisas erradas.
- Se continuar pensando assim, será difícil fugir às influências do coronel Firmino.
- Não diga isso, por favor!
- Depois de tudo que conversamos, deve entender que, se deseja libertar-se da influência dele ou até de outros espíritos perturbadores, precisa mudar de atitude. Não ficar contra você, criticando-se, cobrando-se, julgando-se errada apenas porque se deixou levar por um instante de emoção e descontrole.
- Dito assim, parece que não fiz nada.
- Não fez mesmo. Quando aconteceu o fato, você foi envolvida, e nem teve tempo para lembrar-se de sua irmã ou de qualquer compromisso moral. Aconteceu. Não foi uma coisa boa, apesar de ter sido agradável. Mas depois você pesou o fato e decidiu que não deveria continuar.
Essa atitude foi pensada, reflete o respeito e o amor que sente por sua irmã e a vontade de não a prejudicar. Fazendo isso, você manteve sua dignidade. Apesar de amar seu cunhado, renunciou, resistiu a seu assédio, mostrou-se forte. Por que se culpa ainda?
- É difícil apagar essa mancha.
- Isso é só um conceito moral tardio que não resolve nada, uma vez que não dá para voltar atrás e evitar o que aconteceu. Reflita, Liana.
Você errou, agiu impensadamente, mas teve forças para não persistir no erro. Não pode agora continuar punindo-se pelo resto da vida. Você continua digna. Não se anule nem desperdice a oportunidade de uma vida feliz por causa disso.
Liana colocou a mão sobre a de Alberto que estava na direção do carro, acariciando-a.
- Obrigada, Alberto. Você me faz bem. Nunca poderei pagar tudo que tem feito por mim.
- Seja feliz. Essa será minha recompensa.
Ela sorriu. Haviam chegado em casa. Liana entrou e foi para a cozinha, dizendo:
- Vou fazer um chá para nós.
- Acabamos de tomar café com bolo.
- Não faz mal. Esse chá será como um mensageiro da paz. Sabe, quando eu tinha um problema, costumava sempre ir conversar com minha avó. Ela me abraçava, fazia um chazinho, servia e dizia: o chá é um ritual de amizade, ajuda a pensar, toma as pessoas mais íntimas e aconchegadas. E eu sentia que era verdade. Entre os goles de chá eu ia desabafando minhas mágoas e, ao terminar, sempre me sentia muito melhor.
- Que seja. Vamos tomar nosso chá e trocar nossas confidências. Talvez eu também precise esquecer algumas mágoas.
- Dona Eulália, Eurico não quer sair da cama.
Eulália suspirou contrariada, olhando para o marido, que terminava de almoçar.
- Esse menino está me preocupando. Começou tudo de novo. Voltando-se para Hilda, que esperava uma resposta, continuou: - Diga-lhe que se não descer para o almoço não vou deixar Nico ficar no quarto dele hoje.
Hilda saiu apressada, e Norberto tornou:
- Sente-se e termine de almoçar. Ele está fazendo birra.
- Não sei, não. Tem andado deprimido, não se alimenta bem, estou começando a ficar com medo. E se ele piorar de novo?
- Esse menino é muito delicado. Não sei a quem saiu.
- Ele disse que quer que o professor volte. Isso é impossível.
- Infelizmente. Apesar de tudo, Alberto tinha um jeito especial de lidar com ele.
- Ele não é confiável. Não depois do que fez.
- Liana respondeu que viria para conversar, e até agora nada. - É. Ela mandou dizer que viria, mas não disse quando.
- Não podemos ficar sem saber o que está acontecendo com ela.
Pode ser até que esteja mal e não possa vir nos ver.
- Não diga isso. Ela foi embora porque quis.
- Aquele médico anda metido nisso. Ela pode ter sido coagida. - Será?
- Você deveria ir até lá e ver o que está acontecendo.
- Isso não. Depois do que ela fez, seria me rebaixar. Ela é quem deve vir e pedir perdão.
- Bobagem. Nem sabe ao certo o que aconteceu. Se não tomar nenhuma providência, pode se arrepender. E se ela estiver mal? Eulália sobressaltou-se:
- Você acha?
- É uma hipótese.
Ela pensou por alguns instantes, depois decidiu:
- Só se você for comigo. Se estiver acontecendo alguma coisa grave, precisarei de sua ajuda para tirá-Ia de lá.
- Concordo. Iremos logo depois do almoço, sem avisar, para não dar tempo a que tentem alguma coisa.
Hilda reapareceu na porta e Eulália perguntou:
- E então?
- Ele está se lavando e vai descer.
- Onde estão os outros dois?
- Na copa. Não os deixei subir, conforme a senhora mandou. - Muito bem.
Eles terminaram de almoçar. Eulália subiu e arrumou-se para sair.
Quando voltou, as crianças almoçavam na copa.
- Hilda, verifique se Eurico se alimenta direito. Se ele não comer, não vai brincar com Nico nem com Amelinha. Se ele quiser ficar no quarto, ficará sozinho.
Dando uma olhada desafiadora para Eurico, Eulália saiu com o marido. Quando Hilda foi até a cozinha, Nico disse baixinho:
- Acho melhor comer, Eurico. Pelo menos hoje. O dia está bonito e bom para brincarmos no jardim.
- É. Por hoje. Mas amanhã começo de novo.
- Não adianta fazer isso com ela, não vai dar certo - ponderou Amelinha.
- Sempre deu. Você vai ver. Ela vai trazer o professor de volta.
- Se ela descobrir que eu levo comida escondido para você, me manda embora - murmurou Nico.
- Ela não vai saber nunca. Só se alguma linguaruda contar.
- Não olhe assim para mim. Nós temos nossos segredos, e eu nunca contei nada.
- É verdade - disse Nico. - Ela tem sido uma boa companheira. - Você gosta de protegê-Ia só porque é mulher, como todos aqui fazem. Todas as meninas são faladeiras.
- Não eu! - protestou ela.
- Você está sendo injusto. Reconheça que ela nunca contou nada. - Está bem... Até agora ela não contou nada.
- Aonde será que eles foram? Não costumam sair a essa hora lembrou Amelinha.
- Acho que foram ver a Liana - sugeriu Nico.
- Será? Será que vão fazer as pazes? - perguntou Eurico, contente.
- Acho que não. Ainda ontem ela estava muito zangada com o professor. Eu ouvi quando ela disse a papai que ele nunca mais pisaria nesta casa - comentou Amelinha.
- Se ela fizer isso, vai ver só. Vou infernizar a vida dela outra vez. - Não faça isso, Eurico. Minha mãe sempre diz que a mentira dá mau resultado. Você vai fingir de doente e pode acabar doente de novo. Lembra como você passava mal quando chegou aqui?
- Agora estou curado. O professor disse que sou forte como todo mundo.
- Mas não abuse. Sua mãe não merece ser enganada.
- Merece, sim. Ela é muito implicante e mandona. Queria que tia Liana se casasse com quem ela escolheu. Isso é errado.
- Isso é. Ela gosta mais do Dr. Mário. Ele é uma boa pessoa, mas a Liana não gostava dele para casar. Também se casou com o professor só para poder fazer aquele tratamento. Ela não o ama.
- É mesmo - interveio Amelinha. - Mas eles casaram com buquê, até com os noivinhos no bolo de noiva. Acho que eles se gostam, sim.
- Vocês mulheres são tão bobas! O que tem a ver o bolo de noiva com o gostar?- desafiou Eurico.
- Não adianta discutir por isso. O importante é a Liana sarar, ficar feliz. Com o professor e o Dr. Marcílio cuidando dela, vai dar tudo certo. Ela vai ficar boa e, no fim, sua mãe vai compreender, eles vão se entender e pronto.
O carro de Norberto parou em frente à casa do professor. Ele desceu e tocou a campainha. Gislene abriu a porta.
- Viemos falar com Liana - disse Norberto.
- Queiram entrar, vou avisar Dona Liana.
Ele voltou ao carro, abriu a porta e Eulália desceu. Entraram e sentaram-se na sala, tentando controlar a inquietação.
Gislene procurou Liana e Alberto no escritório e disse baixinho: - Eles estão na sala, Dona Eulália e o Dr. Norberto. Perguntaram pela senhora.
Liana olhou apreensiva para Alberto, que respondeu:
- Diga-Ihes que ela já está indo.
Gislene saiu e Liana sussurrou:
- Meu Deus! E agora?
- Acalme-se. Vai dar tudo certo.
- O que diremos?
- Vamos representar o papel de casal em lua-de-mel. Estamos muito apaixonados. Fugimos para não termos de esperar pelo casamento.
- E Norberto? O que vai pensar de mim?
- Que você mudou, deixou de gostar dele e que me ama. Não é isso o que quer?
-É.
- É a maneira de tirá-Io definitivamente de seu caminho e devolvê-Io aos braços de Eulália.
- Tem razão. Estou tão nervosa...
Ele tomou as mão dela e acariciou-as, tentando esquentá-Ias.
- Não vai acontecer nada. Estou do seu lado. Você está pálida. Vamos, vá se pintar um pouco. Tem de parecer uma mulher feliz e amada. - Está bem.
Liana foi até o quarto, arrumou-se um pouco e voltou:
- Estou bem?
- Melhorou. Agora sorria, vamos entrar abraçados e fingir que nos amamos.
Quando os dois entraram na sala abraçados, Eulália e Norberto levantaram-se.
- Sejam bem-vindos à nossa casa - disse Alberto com gentileza, estendendo a mão a Norberto, que fingiu não perceber. Sem perder a compostura, Alberto continuou: - Sentem-se, por favor.
Eles se deixaram cair no sofá, tentando encontrar palavras que expressassem o que sentiam.
Liana aproximou-se de Eulália, dizendo:
- Sinto muito, Eulália, por não haver contado o que pretendíamos fazer.
- Você fugiu de casa, na calada da noite, como uma criminosa.
Não precisava fazer isso.
- Você abusou de nossa confiança, professor - disse Norberto fuzilando-o com os olhos.
- Desculpe, Norberto, mas não fiz nada errado. Nós nos amamos. Liana desmanchou o noivado. Pensamos muito e achamos que, se nos casássemos dessa forma, pouparíamos tempo e comentários.
- Não acredito que tenham se casado. Ninguém pode fazer isso sem o tempo necessário para as providências legais.
Virando-se para Alberto, Liana pediu:
- Meu bem, pode apanhar o comprovante do casamento?
Ele saiu e Norberto não se conteve:
- Liana, estou vendo e ainda não acredito. Como pôde fazer uma coisa dessas depois de tudo? - Ela empalideceu, e ele tentou corrigir:
- Depois de tudo que sua irmã fez por você a vida inteira?
- Foi por amor. Eu amo meu marido. Gostaria que compreendessem e perdoassem a forma como entendi de procurar a felicidade.
Alberto voltou e apresentou o documento a Norberto. Enquanto ele o examinava, sentou-se ao lado de Liana no sofá, abraçando-a com carinho, beijando-lhe a face delicadamente.
Norberto estava pálido e ofendido. Não encontrou palavras para dizer. Em silêncio, passou o documento a Eulália, que o examinou atentamente. Depois, entregou-o a Alberto, dizendo:
- É. Parece que está consumado. Nesse caso, nada mais temos a fazer aqui. Vamos embora.
Levantou-se. Alberto levantou-se também, aproximando-se dela e de Norberto, dizendo:
- Por favor, Eulália. Perdoe nossa atitude. Compreenda. Garanto a vocês que amo muito Liana e que tudo farei para vê-Ia feliz.
- Ela escolheu você, contra nossa vontade. Portanto não precisa de nós para nada. Vamos embora.
Liana colocou a mão carinhosamente sobre o braço da irmã, dizendo com voz súplice:
- Por favor, Eulália! Não se vá. Eu não pretendi magoá-Ia. Fique.
Diga que me perdoa e que poderemos continuar amigas como sempre.
- Não posso. Como voltar a confiar em sua amizade depois do que fez? Você escolheu onde e com quem desejava ficar. De hoje em diante, siga seu caminho, eu seguirei o meu. Espero que não se arrependa do que fez. Vamos embora, Norberto.
Segurou o braço do marido e praticamente o arrastou pela porta afora, lançando um olhar irado sobre Alberto. Liana fez um gesto para impedi-Ia, mas ela se desviou e saiu fechando a porta atrás de si.
Liana, trêmula, deixou-se cair em uma cadeira, chorando copiosamente. Alberto tentou confortá-Ia.
- Eu sabia que ela não ia me perdoar. Eulália sempre foi orgulhosa e determinada. Nunca mais ela vai querer falar comigo! Perdi minha irmã.
- Não diga isso. Com o tempo ela vai refletir, pensar melhor. Sentirá sua falta, voltará atrás. Você vai ver.
- Não creio. Sei como ela é.
- Você tinha o direito de cuidar de sua vida do seu jeito. Por mais que ela tenha cuidado de você, não pode interferir. Você é livre. Vamos, enxugue essas lágrimas. Reaja.
Estendeu o lenço, que ela apanhou enxugando os olhos e tentando parar de chorar.
- Assim é melhor - disse ele quando ela finalmente parou. - Agora sou eu quem vai fazer aquele chá especial de sua avó.
Abraçou-a com carinho, conduzindo-a até a cozinha e fê-Ia sentar-se enquanto colocava a chaleira no fogo, fazendo um sinal para que GisIene os deixasse a sós.
Preparou o chá, serviu e sentou-se a seu lado, sem que ela, abatida e triste, reagisse. Procurou conversar, mas Liana parecia ausente e não respondia ao que ele dizia.
- Vou me deitar - disse ela.
Sem esperar resposta, levantou-se, foi para o quarto e deitou-se. Preocupado, Alberto ligou para o Dr. Marcílio, contando-lhe o sucedido.
- Ela ficou apática. Caiu em funda depressão. Tentei conversar, mas nem sequer me ouviu.
- Vou dar uma passada aí para vê-Ia.
Quando o médico chegou, Alberto já o esperava com impaciência.
Gislene fora ao quarto de Liana e ela caíra em um sono pesado. Quando a chamaram, não quis acordar.
- Ela estava tão bem! - explicou ele. - Foi a intransigência de Eulália que a deprimiu. Disse que havia perdido a irmã.
- Liana está frágil. Tem alguma coisa que a oprime, ainda não sei o que é. Parece que sente prazer em se castigar.
Alberto hesitou alguns segundos, depois respondeu:
- Ela tem um segredo que a oprime. Não estou autorizado a lhe contar, embora pense que, como seu médico, deveria saber.
- Os espíritos perturbadores exploram todas as fraquezas daqueles a quem pretendem dominar. Esse ponto fraco que ela tem permite que o padrão energético dela baixe e assim eles podem atingi-Ia. Por isso, quando não conseguem manter um assédio direto, procuram fazer com que pessoas ligadas a ela toquem esse ponto e assim conseguem obter os resultados que querem.
- Isso está acontecendo com ela.
- Está. No momento, por haver se deprimido, o espírito do coronel Firmino deve tê-Ia dominado, mesmo à distância.
- Deve ser isso. Tentamos acordá-Ia, mas parece que está dopada. - Vamos tentar de novo.
Dirigiram-se ao quarto e aproximaram-se de Liana.
- Vamos orar e pedir ajuda - tornou Marcílio, estendendo as mãos sobre a cabeça de Liana.
Os dois fecharam os olhos e oraram em silêncio.
Vá buscar um copo com água - pediu ele.
Alberto obedeceu e voltou com o copo, colocando-o sobre a mesa de cabeceira. O médico colocou uma das mãos sobre o copo e continuou em oração. Depois se sentou em uma cadeira ao lado da cama, dizendo:
- Ela está sendo atendida. Vamos esperar.
De fato, Liana continuava adormecida, porém seu sono agora parecia regular e seu rosto estava mais corado. Alberto sentou-se também e ambos esperaram em silêncio.
Os minutos foram passando e só se ouvia o tique-taque do relógio na mesa de cabeceira. Passados dez minutos, ela acordou, olhando-os admirada.
Marcílio levantou-se, pegou o copo com água e deu-o a ela dizendo: - Vamos, beba.
Liana obedeceu. Depois respirou fundo e perguntou:
- O que aconteceu? Por que está aqui? Fiquei mal outra vez? - Ficou.
- Sinto muito. Estou dando trabalho a vocês.
- Está mesmo. E porque quer.
Ela olhou assustada para ele:
- Desculpe, não entendi.
- Está na hora de entender. Você se deprime e com isso permite o acesso às energias do coronel Firmino.
- Deus me livre! Foi ele?
- Foi. Mas ele não teria tido acesso se você não lhe abrisse as portas.
- Não diga isso. Não quero nada com ele!
- Mas ele quer. E quando você fica negativa, deprimida, ele consegue envolvê-Ia.
- Estou sofrendo muito. Não posso evitar a tristeza. Eulália não me perdoou. Disse que nunca mais quer me ver.
- Ela disse. Mas quem garante que será assim? - perguntou o médico.
- Eu sei que ela é obstinada. Nunca volta atrás.
- Para conduzir as pessoas ao caminho melhor, a vida tem recursos que desconhecemos. Acho que você deve confiar. Afinal, não fez nenhum mal. Está apenas cuidando de sua cura. Um dia ela entenderá isso. O que não pode é se machucar dessa forma e permitir o envolvimento destrutivo do coronel. Precisa se defender.
- Como?
- Tentando não dramatizar os fatos em sua vida. Nada é definitivo. Você já resolveu que Eulália nunca vai mudar. Quem pode garantir isso? Todos nós mudamos a todo momento.
- Talvez eu não mereça viver em paz.
Alberto fez ligeiro sinal para o médico e levantou-se dizendo:
- Continuem conversando, que vou mandar fazer um cafezinho. Saiu. Queria dar oportunidade a que Liana contasse ao médico o verdadeiro motivo de sua depressão. Mandou preparar o café, mas não mandou servir. Queria dar mais tempo aos dois.
Quando Eulália se sentou no carro ao lado do marido, não conseguiu esconder a indignação.
- Eu não lhe disse? Ela fez tudo de caso pensado. Bem que eu não queria vir. E você pensou que ela estivesse seqüestrada. De onde tirou essa idéia?
- Não sei. Nunca pensei que Liana fosse capaz de fazer uma coisa dessas.
- Pois fez! Talvez a estas horas estejam rindo juntos da peça que nos pregaram. Viu como se abraçavam descaradamente em nossa frente?
Norberto mordeu os lábios nervoso. Essa cena não saía de sua mente. Sentira vontade de esmurrar o professor. Aquele traidor! Com aquela cara de bom homem, respeitador. E pensar que fora ele quem o levara para dentro de sua própria casa!
Cerrou os lábios com raiva. Teve medo de responder e deixar transparecer o que estava sentindo. Ela continuou:
- Prepararam tudo com antecedência. Ninguém se casa de repente. Como são fingidos! Eu não percebi nada. Ela com aquela cara de coitada, sempre deitada, fraca, desvalida. Enquanto isso, estava sabendo muito bem o que queria fazer.
- A culpa é daquele professor de meia-tigela.
- E pensar que nós o colocamos dentro de casa!
- Cale-se. Essa idéia está me mortificando.
- Liana morreu para mim, definitivamente.
Norberto hesitou, depois respondeu:
- Não sei, Eulália. Apesar de tudo que vimos, ainda tenho algumas dúvidas. Liana estava pálida. Pintou-se, mas dava para notar sua palidez. Não está bem como quis parecer.
- O que quer dizer? Ela estava um pouco abatida, mas muito feliz. Claro que ainda não recuperou totalmente a saúde. Mas de resto não há nada para duvidar.
Ela mesma disse que ama o marido e que se casou de livre vontade.
Norberto sacudiu a cabeça pensativo:
- Se pensarmos bem na Liana que conhecemos, que sempre foi cordata, obediente, prezando sua amizade e carinho, não podemos entender por que fez isso. Chego a pensar que por trás há alguma coisa que não sabemos. Aquele médico não sai de minha cabeça. Sobre a mesa da sala havia uma receita dele, eu vi. Se fosse em nossa casa, ele não teria tido acesso. Bem que eu queria levá-Ia a Caldas. Por que não insistiu?
- Eu insisti. Depois, Alberto sempre se deu muito bem com o Dr. Marcílio. Várias vezes tentou me convencer de que eu deveria deixá-Io tratar Liana. Como se ele fosse uma sumidade! Claro que agora, ela sendo sua esposa, faz como quer.
- É por isso que apesar de tudo eu ainda insisto. Não acho uma atitude sensata você fechar a porta a eles.
- Depois do que fizeram?
- Sim. Liana não tem estado bem ultimamente. E se ela estiver com as faculdades mentais alteradas? E se o professor tivesse se aproveitado desse fato para casar-se com ela e tê-Ia sob sua guarda?
- Por que faria isso?
- Por várias razões. Porque se apaixonou, porque pretende ligar-se à nossa família de alguma forma.
- O dinheiro que temos é nosso. Liana não tem nada.
- Então é por paixão mesmo. Um homem faz qualquer coisa por uma paixão.
Eulália olhou-o admirada. Nunca imaginara que o marido pensasse dessa forma, sempre tão pacato, discreto.
- Liana é bonita, mas não tanto a ponto de despertar uma paixão - respondeu ela.
Norberto controlou-se. Estava difícil suportar a situação. Procurou manter a calma ao responder:
- É verdade. Nesse ponto eu concordo. Mas sabe como é: tenho ouvido contar tantas coisas! Há homens desequilibrados.
- Bom, aí eu também concordo. O professor deve ser um desses. Onde já se viu? Casar-se dessa forma, roubar a mulher como se estivesse no tempo das cavernas. Não tem nenhum respeito pela família. Por isso vive sozinho.
Norberto meneou a cabeça, concordando, e, enquanto Eulália discorria sobre como deveria ser o respeito à família e à sociedade, ele pensava em conseguir uma forma de encontrar-se a sós com Liana a fim de descobrir a verdade.
Não acreditava que ela houvesse esquecido o amor que os unia. Tinha certeza de que ela o amava e havia se afastado por causa de Eulália. Na verdade, ela era o maior obstáculo para que eles pudessem ficar juntos para sempre.
Tinha certeza de que, se sua mulher morresse, Liana não hesitaria em casar-se com ele. Essa era sua esperança depois que Liana desfizera o noivado com Mário.
Em seu desespero, pensara algumas vezes em tirar Eulália do caminho, mas como? Não se sentia com coragem de cometer um crime, principalmente com a mãe de seus filhos. Mas desejava de coração que ela morresse, para que pudesse libertar-se desse peso e assumir o amor de sua vida.
Queria que Liana continuasse vivendo com eles na esperança de um dia realizar esse sonho. Enquanto ela era solteira, havia esperança. Agora isso seria impossível. Ela havia preferido outro.
Não podia acreditar. Liana nunca havia amado ninguém antes dele e entregara-se por amor. Precisava vê-Ia, ouvir de seus lábios que se casara apenas para fugir da paixão e do desejo que a atormentavam. Que quando se encontravam, mesmo na presença de Eulália e das crianças, ela sentia, como ele, a vontade de repetir o delírio daquela noite.
Essa lembrança reaparecia sempre que a via, e isso lhe tirava o fôlego. Era a custo que conseguia dominar-se.
Enquanto Eulália continuava falando, ele meneava a cabeça de vez em quando concordando e pensava como conseguir o que desejava. Arranjaria um jeito de tirar férias, ficar algum tempo na mansão, depois encontraria uma forma de encontrar-se com Liana a sós.
Naquela noite, depois do jantar, Norberto voltou ao assunto.
- Estive pensando, Eulália, em tirar umas férias. Estou cansado e penso que passar algum tempo aqui com vocês me fará bem.
Eulália corou de prazer. Preocupado com seus problemas, o marido desejava confortá-Ia. Sorriu e respondeu:
- É uma ótima idéia. Assim me ajudará com Eurico, que tem andado impossível.
- Espero que sua saúde não tenha piorado.
- Piorou. Não se alimenta como antes e vive querendo que eu chame de volta o professor. Temos de arranjar alguém que continue as aulas. Estavam indo tão bem!
- Dessa vez tentaremos uma professora. É mais seguro. Voltarei a São Paulo amanhã, ajeitarei tudo para poder ficar aqui.
Vou ver com nossos amigos se consigo alguma moça boa, de boa família, que possa vir e dar aulas para as crianças.
- Bem pensado. Quem sabe assim Eurico esquece esse assunto e deixa de me preocupar. Ele fica na cama, não come, e, se não fosse Nico, que consegue tirá-Io de lá, seria pior.
Norberto suspirou. Sempre desejara um filho forte, viril, corajoso, inteligente. A vida deu-lhe Eurico, fraco, doente, sem capacidade de sobressair-se em nada. Paciência. Teria de suportar esse fardo pelo resto da vida.
Na manhã seguinte, Norberto partiu prometendo voltar antes do fim da semana. Dois dias depois, ligou dizendo que voltaria no sábado levando uma professora que fora muito bem recomendada e lhe parecera muito culta e preparada.
Na tarde do dia marcado, Norberto chegou, em companhia da nova professora. Na porta de entrada, Eulália examinou-a enquanto descia do carro. Era jovem, pouco mais de vinte anos talvez, pele clara, olhos e cabelos castanhos, bem-feita de corpo. Eulália fixou-a e ela não desviou o olhar.
Aproximou-se da porta e parou, esperando que Norberto a apresentasse. Ele se adiantou e, depois de beijar levemente a face de Eulália, estendeu a mão para a jovem, dizendo:
- Esta é Melissa Duarte, a nova professora.
Eulália estendeu a mão:
- Prazer em conhecê-Ia. Duarte? Por acaso será parente do Dr. Gabriel Duarte?
- Sobrinha - respondeu Melissa com voz firme. - Ele é irmão de minha mãe.
Eulália convidou-a a entrar. Mandou levar a bagagem para o quarto.
- Deve estar cansada da viagem. Hilda é nossa governanta e vai mostrar-lhe seu quarto.
Ela assentiu com a cabeça e depois das apresentações acompanhou Hilda. Assim que se viu a sós com o marido, Eulália comentou:
- Essa professora não vai dar certo.
- Porquê?
- É muito jovem, e além do mais me pareceu um pouco petulante. - Trata-se de uma moça de muito boa educação, de família tradicional. Você conhece muito bem os Duarte. Depois, ela é pedagoga. Acredite que não foi fácil conseguir alguém desse nível que concordasse em vir para o interior, longe dos amigos e da família.
- Era isso que eu estava me perguntando. Por que uma jovem da melhor sociedade deixa a família e vem para o interior morar com estranhos e ensinar três endiabradas crianças? Não arranjaria um emprego muito melhor na cidade?
- É possível. Mas Juca, quando sugeriu que a contratasse, disse-me que ela é do lado pobre da família. Precisa trabalhar para se sustentar.
- Estava com roupas muito finas para ser tão pobre como você diz.
- Não reparei. O que sei é que ela estava com vontade de sair da cidade e vir para o interior. Prefere a vida calma. Conversei com a mãe e com ela, e combinamos tudo. Ela vai ficar pelo menos até os exames do fim do ano. Faltam apenas três meses.
- Se eles conseguirem passar para o quarto ano, será ótimo. Se Eurico tivesse mais saúde, poderíamos interná-Ios em um bom colégio e voltar a morar na cidade.
- Infelizmente isso ainda não é possível. Vou subir para tomar um banho. Estou empoeirado.
Depois do banho, Norberto estendeu-se na cama. Tinha tempo de descansar um pouco antes do jantar. Pretendia ficar o tempo que precisasse para conseguir se encontrar com Liana sem que Eulália soubesse.
Liana! Como esquecer aqueles momentos que haviam passado juntos? Em sua saudade, Norberto visualizava todos os detalhes da conquista, revendo o prazer que havia sentido.
Não percebeu que um vulto escuro se aproximou dele atraído pelo teor de seus pensamentos. Era o espírito do coronel Firmino.
Colou-se a ele e, admirado, começou a sentir o prazer que Norberto estava sentindo ao visualizar aqueles momentos. Delirou com a relação íntima que eles haviam tido, experimentando emoções que ele não se recordava de haver sentido antes.
Suas experiências sexuais com a esposa haviam sido sempre mantidas contra a vontade dela e nunca lhe haviam dado emoções tão fortes como as que experimentava agora.
Num relance, brotou em sua mente a idéia de aproveitar melhor sua descoberta. Ele estava morto e, por mais que se esforçasse, não conseguia contato direto com ela. Contudo, se usasse o corpo daquele homem, poderia tê-Ia de volta mesmo antes de ela morrer.
Assim, ele decidiu não abandonar mais Norberto. Ficaria ligado a ele para saber tudo que ele planejava. Percebeu que ele iria tentar encontrar-se com Mariquita. Que a amava e que era correspondido. Era a maneira de vê-Ia, de tê-Ia de volta.
Norberto passou a mão pelos cabelos nervosamente. De repente, seu desejo de ver Liana ficou insuportável. Fez grande esforço para se controlar. Precisava ter paciência. Não podia dar largas às suas emoções.
Apesar de tudo, não pretendia pôr tudo a perder. Se Eulália descobrisse, seria o caos. Esforçou-se para pensar em outra coisa, mas não conseguiu. Levantou-se e desceu para o jantar. Sua cabeça estava pesada, sentia-se inquieto.
Melissa desceu e Eulália já a esperava.
- Vou chamar as crianças para conhecê-Ia.
Hilda apareceu na sala acompanhada de Amelinha e Nico.
- Onde está Eurico? - indagou Eulália.
- Está deitado. Não quis levantar - esclareceu Hilda.
- Vá lá e diga-lhe que estou esperando.
Enquanto Hilda subia, Eulália fez as apresentações:
- A Srta. Melissa é a nova professora. Esta é Amelinha, minha filha. Este é Nico.
- Como vai? - disse Melissa, olhando-os com interesse e estendendo a mão para Amelinha.
- Bem - respondeu a menina.
- E você, Nico, como vai?
- Bem. Seja bem-vinda, professora.
- Obrigada.
Hilda voltou mais corada do que o costume:
- Ele disse que não vai levantar-se daquela cama nunca mais.
- Está vendo? - comentou Eulália voltando-se para Melissa.
Meu marido deve ter lhe falado sobre nosso filho Eurico.
- Falou, sim.
- Se a senhora quiser, posso subir e ver se consigo trazê-Io - ofereceu Nico.
- É melhor mesmo. Vá lá, Nico, e faça isso. Não desejo perder meu bom humor.
Nico subiu enquanto Amelinha olhava para Melissa com curiosidade. Norberto chegou e Eulália foi logo dizendo:
- Eurico não quer se levantar.
- Você vai falar com ele? - perguntou Norberto.
- Nico já foi. Nesses casos ele é melhor que eu.
Nico entrou no quarto de Eurico, que estava coberto até a cabeça. - Levante, Eurico.
- Não vou. Logo hoje que veio aquela professora horrível. Deve ser velha, feia, malvada e burra, como todas as outras que já tive. Eu quero o professor de volta.
- Pelo que pude ver, ela não parece nada disso que você disse. É moça, bonita e tem boa cara.
- Mesmo assim eu não quero nenhuma professora. Eu quero Alberto.
- Você não está sendo inteligente.
- Está me chamando de burro?
- Não exagere. De que adianta querer uma coisa que agora não é possível? O professor mesmo me disse que precisamos ter paciência por enquanto. Sua mãe não quer fazer as pazes com eles.
- Tem de fazer. Não pode ficar toda a vida de mal com tia Liana.
Ainda mais agora que ela se casou com nosso professor.
- Você não pode obrigar sua mãe a fazer uma coisa que ela não quer. - Mas eu quero.
- Não seja tão mimado. Por que não podemos ficar com outra professora por algum tempo, só enquanto esperamos que eles façam as pazes? - Porque eu queria logo.
- Não seja criança. Minha mãe sempre diz que querer o que não depende de nós é se machucar à toa. É o que está fazendo: se machucando sem nenhum resultado bom. Ao contrário. Irrita sua mãe, fica doente de novo e ela briga mais ainda com o professor e a Liana, pondo a culpa neles.
- Se eu ficar doente de novo, a culpa é só dela. Eles não têm nada com isso.
- A culpa é só sua. Está culpando sua mãe, mas é você quem está se machucando, sendo rebelde, ficando sem comer e sem ir brincar no sol.
- É só por um pouco, até ela fazer o que eu quero.
- Você está desafiando a vida. Está melhor e se finge de doente.
Vai acabar ficando mesmo. A culpa é só sua.
- Não vou ficar doente de novo.
- Se continuar assim, vai. Por isso, levanta dessa cama. Vamos jantar. Como pode falar mal da nova professora sem conhecer?
- Eu sei que ela é ruim e que não vai dar certo.
- Eu só vou aceitar isso e concordar depois que você a conhecer e tivermos algumas aulas. Antes disso, eu não sei.
- Você não acredita em mim.
- Não mesmo. Você não pode saber se vai dar certo ou não sem experimentar. Está só fantasiando.
- Está bem. Eu vou levantar, conhecê-Ia, assistir a algumas aulas, só para provar a você que eu estava certo.
- Isso mesmo. Então vou acreditar, e até ajudar você a fazer uma campanha contra ela.
- Você me ajuda a azará-Ia?
- Só se ela for ruim mesmo. Antes de saber isso, não.
- Está bem... vamos ver...
Ele se levantou disposto a provar a Nico que sabia o que estava dizendo. Observando-o enquanto se vestia, Nico sorriu levemente. Todos na mansão se queixavam de Eurico, dizendo que ele era muito difícil de levar. Nico pensava justamente o contrário. Sabendo conversar com ele, era muito fácil conseguir o que queria.
Eurico olhou para Melissa, que estava falando sobre história, e fechou o caderno. O sol lá fora estava brilhando e ele estava pensando em ir ver o ninho de passarinhos do limoeiro. Já teria filhotes?
Não estava nem um pouco interessado em saber quem foram os presidentes dos países da Europa, nem por que haviam feito a Primeira Guerra Mundial.
Melissa calou-se, observando-o enquanto Amelinha o cutucava por baixo da mesa tentando chamar sua atenção. Eurico, absorto, não percebeu. Continuou pensando nos assuntos de seu interesse, que nada tinham a ver com o que ela desejava ensinar.
Melissa aproximou-se dele em silêncio e sentou-se a seu lado, calada. Os outros dois observavam sem coragem para dizer nada. Eurico demorou alguns segundos para perceber Melissa sentada a seu lado.
Quando notou, olhou para ela com ar de desafio. Se ela tentasse repreendê-Io, sabia muito bem o que fazer. Passaria maI o resto do dia e Eulália acabaria por culpar a professora e mandá-Ia de volta para São Paulo. Ela continuou em silêncio, absorta, sem olhar para ele. O tempo foi passando, e Eurico irritou-se com o mutismo dela.
- Não gosto de história e não vou estudar isso - disse ele.
Melissa levantou-se, colocou-se na frente de Eurico e olhando-o nos olhos disse com firmeza:
- Se não gosta, não faça.
- Você é a professora. Não vai me obrigar?
- Não. É um direito seu.
- Não está sendo paga para me ensinar?
- Estou. Esta é nossa primeira aula. Eu estou fazendo minha parte, ensinando. Cumpro meu compromisso. Ofereço um trabalho e sou paga.
É uma troca digna. Você não pode dizer o mesmo.
- Porquê?
- Sua mãe faz a parte que lhe compete pagando seus estudos. Portanto, você tem tudo a seu favor. Só que, se não estudar, nunca terá independência para se sustentar. Se pretende continuar vivendo às custas de sua família pelo resto da vida, é uma decisão sua que eu respeito. Não pretendo forçá-Io a nada. Se não quiser mais comparecer às aulas, falarei com sua mãe e pronto.
Descontamos uma parte do dinheiro que ela paga e darei aula só para os outros dois.
- Não quer dar aula para mim só porque não gosto de estudar?
- Isso mesmo. Gosto de trabalhar com quem aproveita. Não sou de perder tempo com quem não deseja aproveitar. Sinto-me mal em fazer sua mãe pagar por alguma coisa sem proveito.
- Já que você veio, não pode se recusar a me dar aulas. É sua obrigação.
- Assim como eu respeito você se não deseja estudar, exijo que me respeite quando eu me reservo o direito de ensinar apenas os que desejam aprender. Portanto, se está sem vontade e prefere ir para o jardim, fique à vontade.
- Está me mandando embora?
- Não. Estou dando oportunidade para você escolher o que quer. - E se eu ficar?
- Vou exigir atenção e vontade de aprender.
- Pois eu vou embora mesmo. Você não é como o professor Alberto. Ele, sim, sabia dar aulas.
Eurico levantou-se e saiu. Nico fez um gesto para detê-Io, mas Melissa fez-lhe sinal para que deixasse. Amelinha, que ia levantar-se, sentou-se novamente.
- Muito bem - disse Melissa com voz suave. - Vamos continuar.
Eurico foi para o jardim ver os passarinhos, entretanto não conseguia desviar a atenção da janela da sala de aula. O que estariam fazendo lá tanto tempo? Por que depois que ele saiu os outros dois continuaram lá como se nada houvesse acontecido? E a professora? Ela não sabia que a única razão de ser contratada em casa era porque ele não podia freqüentar uma escola? Se não desse aula para ele, os outros dois poderiam ir para a escola da cidade.
Ela não tinha medo de perder o emprego? Ouvira seu pai dizer que ela precisava trabalhar para se sustentar. O que será que ela estava ensinando?
Hilda, vendo-o, foi ter com ele, perguntando:
- O que está fazendo neste sol? Por que não está na aula? - Por que não quero. Não gosto da aula dela.
- Este sol vai fazer-lhe mal. Vamos entrar.
- Não vou.
- Vou falar com sua mãe. Essa professora não devia tê-Io deixado sair, ainda mais para ficar neste sol.
- Isso mesmo. Vá, sua linguaruda! Diga para ela que é melhor mandar essa professora embora. Ela não serve mesmo.
Hilda saiu e ele se sentou no caramanchão. Essa aula estava demorando muito. Não acabava mais. O que ele iria fazer até que Nico estivesse livre?
Entediado, esperou e, quando os viu sair para o jardim, foi ao encontro deles, que conversavam animadamente.
- Ele tomava banho uma vez por mês, de roupa e sentado na cadeira - dizia Amelinha rindo.
- Que banho? - disse Nico. - Enfiavam a cadeira dele no mar e a tiravam. Isso é banho?
- Do que estão falando? - indagou Eurico.
- De Dom João VI, rei de Portugal - respondeu Nico rindo. - Por que ele fazia isso?
- Não vamos contar nada - disse Amelinha. - Quem mandou você não ficar na aula? Foi tão engraçado!
- Estão falando da aula?
- Estamos - respondeu Nico. - Sempre pensei que um rei fosse muito limpo.
- Não conte nada para ele - disse Amelinha.
- Foi só a primeira aula, e vocês dois já estão puxando saco da professora.
- Não seja despeitado. Ela é boa e eu gosto dela - defendeu ela. - E você, Nico?
- Foi a primeira aula e não nego que foi divertida.
- Ela me mandou embora. Não tem paciência.
- Para falar a verdade, Eurico, ela foi até muito boa. Não deu castigo nem obrigou você a nada. Só deixou você escolher. Foi você quem resolveu sair.
Eurico mordeu os lábios nervoso. Essa Melissa era bem capaz de o fazer até perder o amigo. No dia seguinte iria tentar outra coisa, mas ele haveria de conseguir mandar essa professora embora.
Norberto não havia conseguido dormir. Ficara se revirando na cama só pensando em um jeito de ver Liana a sós. Quando fosse até lá, não queria que o professor estivesse em casa. Ele não ia deixá-Ios sozinhos, tinha certeza.
Liana teria contado ao marido o que acontecera entre eles? Essa dúvida o atormentava. Ardia por estar com ela de novo, e o desejo reacendera de forma insuportável, fazendo com que ele perdesse a vontade de comer, de fazer qualquer outra coisa.
Por que o casamento dela o descontrolara tanto? Ele a amava, mas conseguia se conter. Agora estava sendo difícil. Tinha ímpetos de sair correndo e ir até ela, tomá-Ia nos braços sem se importar com mais nada.
Essa emoção era tão forte que o assustava. Depois do almoço, saiu dizendo que ia a uma loja da cidade, mas foi diretamente à casa do professor.
As janelas abertas indicavam que estavam em casa. Não teve coragem de parar o carro em frente à casa. Deixou-o em outra rua e foi a pé até lá.
A rua estava deserta e ele parou a alguma distância, observando. Viu quando Alberto, segurando um grande envelope pardo, saiu caminhando. Estava com sorte. Liana ficara em casa.
Assim que Alberto virou a esquina, ele se aproximou e tocou a campainha. Gislene abriu e; vendo-o, assustou-se.
- Preciso falar com Liana.
- Ela está descansando. Acho que adormeceu.
- Pois vá e acorde-a. É urgente.
Ela o convidou a entrar na sala e foi ao quarto de Liana. Enquanto esperava, Norberto mal conseguia dominar a ansiedade. Finalmente ia saber a verdade.
Alguns instantes depois, Liana apareceu. Ele teria vindo a mando de Eulália? Ela teria se arrependido?
Gislene esperava na porta da sala, receosa.
- Precisamos falar a sós - disse Norberto.
- Pode ir, Gislene.
Logo que ela saiu, ele se aproximou dela, abraçando-a e dizendo emocionado:
- Liana, estou ficando louco! Como pôde fazer isso comigo? Ela o empurrou aflita:
- Deixe-me. Não quero mais falar nisso.
- Não consigo pensar em mais nada que não seja você. Não posso viver sem você!
Tentava abraçá-Ia, e ela o empurrava nervosa.
- Vá embora. Deixe-me em paz! Não quero nada com você! Olhando para ele, Liana foi tomada de um sentimento de horror. Pálida e apavorada, ela repetia:
- Vá embora. Deixe-me em paz.
- Não posso! Agora que estamos juntos de novo, não mais a deixarei.
- Você enlouqueceu? E Eulália?
- Nada mais importa. Vamos fugir. Ficaremos juntos para sempre.
Nunca mais nos separaremos. Vamos nos amar! Eu preciso de você!
Ele a abraçava e Liana sentia-se sufocar enquanto ele a apertava em seus braços, beijando-lhe o rosto, os cabelos, procurando seus lábios.
Foi aí que Liana deu um grito, seu corpo amoleceu. Norberto segurou-a, deitando-a no sofá enquanto Gislene apareceu assustada, dizendo:
- O que foi, Dona Liana? O que aconteceu?
- Vá buscar um copo de água - pediu Norberto, pálido.
- O que fez com ela? Não sabe que está muito doente e que não pode passar emoções fortes? Vou buscar o remédio dela e chamar o médico.
- Não quero que chame aquele médico. Vou levá-Ia comigo para casa. De lá iremos a São Paulo ver o médico de nossa família.
- O senhor não vai levá-Ia daqui sem avisar o marido dela.
- Eu me responsabilizo. Ela precisa de atendimento, e não vou deixá-Ia nas mãos daquele charlatão. O marido dela que vá depois nos procurar. Vou buscar meu carro, que está na outra rua. Enquanto isso, veja alguma roupa dela. Depois vai me ajudar a colocá-Ia no carro.
Ele saiu e Gislene nervosa trancou as portas e fechou as janelas. Não iria deixar que ele levasse Liana. Tratou de buscar o remédio e tentou acordá-Ia. Ela parecia morta. Não dava acordo de si.
Assustada, Gislene apanhou o telefone e ligou para a casa do Dr. Marcílio. Ele não estava, mas Adélia, informada do que acontecia, resolveu:
- Sei onde Marcílio está. Vou imediatamente chamá-lo. Agüente firme e não abra a porta para Norberto. Seria bom se rezasse enquanto isso. Depois eu explico por quê.
Gislene desligou e vistoriou toda a casa para ver se tudo estava bem trancado. Em seguida, ouviu a campainha. Ela estremeceu. Norberto estava de volta e tocava a campainha insistentemente. Ele entrou no jardim e esmurrou a porta, dizendo:
- Sei que vocês estão aí. Abra a porta, senão eu arrombo. Gislene rezava, conforme lhe fora pedido, mas não conseguia prestar atenção na oração. Seu coração batia descompassado. Vendo que ele não desistia, ela tomou coragem, foi até a porta e gritou:
- Não vou abrir para o senhor. Já chamei a polícia. Se não for embora, vai ter de explicar tudo ao delegado.
- Você me paga, sua vadia. Vou entrar de qualquer jeito.
- Não vai, não. A polícia já está vindo.
Norberto olhou para a rua e viu o médico com a esposa, parando o carro em frente à casa.
Murmurando uma praga, ele saiu, entrou no carro e se foi.
Marcílio bateu na porta, dizendo:
- Sou eu, Marcílio. Pode abrir, Gislene, ele já se foi.
Ela abriu a porta e caiu em pranto.
- Ela está como morta. Ele queria levá-Ia para São Paulo. Foi horrível!
Marcílio correu ao sofá onde Liana estava desacordada e tomou seu pulso. Depois, disse a Adélia:
- Vamos fazer uma corrente para trazê-Ia de volta.
Adélia chamou Gislene, recomendando que estendesse as mãos sobre Liana, e ela fez o mesmo. Marcílio colocou a mão sobre a testa dela, dizendo:
- Liana, volte. Tudo passou. Você está protegida. Ele já se foi.
Repetiu isso algumas vezes, até que um suspiro dorido escapou dos lábios dela. Depois ela abriu os olhos, dizendo apavorada:
- Ele veio aqui para me levar! Foi horrível!
- Quem? - indagou Marcílio.
- O coronel Firmino. Estava aqui, agarrando-me. Fiquei apavorada. - Ela delira - disse Gislene. - Quem esteve aqui foi o Dr. Norberto.
O médico olhou para a esposa e não disse nada. Depois para Gislene: - Faça um café, por favor. Ela precisa de um.
Enquanto ela ia para a cozinha, Marcílio comentou:
- As coisas estão se complicando. Ele agora tomou Norberto. Por isso ele estava tão violento.
- Assim ele se fortaleceu.
Vendo que Gislene voltava, eles se calaram. Liana estava tomando café quando Alberto chegou. Ele havia ido ao correio. Informado do que acontecera, disse emocionado:
- De agora em diante não mais a deixarei só.
- É melhor mesmo.
- Ele veio - disse Liana, apavorada. - O coronel Firmino estava aqui! Queria me levar com ele.
Alberto segurou as mãos dela com força, dizendo:
- Eu estou aqui. Ele não vai poder fazer nada.
- Acalme-se - pediu Marcílio. - Ele envolveu Norberto. Notou que ele a quer e está se aproveitando.
- Meu Deus! Será possível? - murmurou ela assustada. Ele pode perder a cabeça.
Eulália vai perceber! O que faremos? Se ela descobrir tudo, eu não suportarei.
- Não fique assim, Liana. Neste momento temos de ser firmes e ter fé. Deus está nos protegendo. O coronel nada poderá fazer - tornou AIberto, friccionando as mãos geladas de Liana na tentativa de aquecê-Ias.
- De hoje em diante, não sairei de seu lado. Quando precisar sair, levo-a comigo. Se não puder ir, encarrego Gislene de tudo, mas não a deixarei.
- É melhor mesmo - concordou Marcílio. - Pelo menos por enquanto.
- Eu saí da mansão e pensei que tivesse me libertado dele. Agora sei que foi inútil- disse Liana.
- Isso não é verdade - respondeu Adélia. - Lá ele estava dominando a situação. Aqui ele não tem a mesma força.
- Isso mesmo, Liana - reforçou Marcílio. - Depois, nossos amigos espirituais continuam trabalhando em seu favor. O coronel Firmino está resistindo, mas é apenas uma questão de tempo. Por mais que ele lhe pareça assustador pela violência que demonstra, pela determinação que lhe dá muita força, ele nunca vencerá os espíritos do bem que estão apoiados pela força da vida e da luz.
- Se eles têm mais poder - redargüiu Liana -, por que não o dominam e o afastam de vez?
- Porque eles preferem convencê-Io a desistir, a enxergar a verdade. Só assim você estará livre para seguir seu destino. É preciso que entenda, Liana: vocês estão ligados por laços de um passado que os colocou frente a frente. É hora de ambos se libertarem. É hora de compreender e perdoar.
- Só sei que o odeio, que não desejo vê-Io nunca mais. Só em falar nele sinto-me apavorada.
- Seja o que for que tenha acontecido entre ambos, já passou. É preciso entender, Liana, que ele agiu de acordo com sua maneira de ser na época. O ódio é um sentimento terrível porque, ao invés de distanciá-Ia dele, a aproxima mais.
- Deus me livre, Dr. Marcílio.
- Por isso, quando sentir raiva dele, procure lembrar que ele é como é e não como você gostaria que ele fosse. É inútil querer mais de alguém que não tem para dar.
- Eu nem sei por que sinto isso. Não sei se vivi outras vidas antes desta.
- Seu horror por ele é muito revelador. Embora não se lembre, os fatos do passado estão em seu inconsciente e refletem-se em seus sentimentos no presente. Você não precisa saber o que aconteceu, mas sempre que sentir essa repulsa por ele, essa raiva, pense que ele é como uma criança que ainda não tem discernimento para fazer melhor.
- Dizem que ele foi maldoso em vida, morreu velho e até agora ainda pensa em fazer mal aos outros.
- Se você não deixar de lado esse rancor, não vai conseguir livrar-se do coronel Firmino. Apesar de ter vivido muito, ele é um espírito ainda ignorante. Precisa desenvolver a consciência, aprender os verdadeiros valores da vida. Para isso terá de pagar um preço que nós não sabemos qual será. Tenho certeza, entretanto, de que terá de se esforçar, trabalhar muito para conseguir. Já você tem muito mais conhecimento. É um espírito mais lúcido e tem condições de compreender os limites dele. Quando fizer isso, terá condições de perdoá-lo. Então será mais fácil libertar-se de sua influência.
- Não lhe desejo nenhum mal, doutor. Entenda isso. Só não quero tê-Io à minha volta.
- Nesse caso terá mais facilidade em fazer o que estou lhe pedindo. Quando pensar nele, veja-o como alguém necessitado, reze para que ele abra seu entendimento e possa seguir um caminho melhor. Se fizer isso, estará nos ajudando a libertá-la de sua influência.
- Vou me esforçar - garantiu Liana.
- Amanhã desejo vê-la em minha casa para a reunião - interveio Adélia.
- Estaremos lá - prometeu Alberto.
As cores haviam voltado ao rosto de Liana, e o médico tomou-lhe o pulso por alguns instantes. Depois perguntou:
- Sente-se melhor?
- Sim - disse ela.
- Nesse caso, temos de ir - disse o médico.
Gislene, que acabava de entrar, disse:
- Por favor, doutor! Sente-se um pouco pelo menos para um café.
Já vou servir.
- Se tiver aquele bolo de chocolate que você faz, não vou resistir! - respondeu ele sorrindo.
- Pois tenho, sim.
Liana sentara-se no sofá e Alberto continuava segurando sua mão, alisando-a com carinho. Estava ali para defendê-la e cumpriria seu papel.
Norberto saiu da casa do professor tentando controlar o rancor. Tinha ímpetos de voltar e arrancar Liana de lá à força. Não queria promover um escândalo, mas eles não perdiam por esperar. Não ia ceder com tanta facilidade.
Deviam estar cantando vitória. Aquele professorzinho ia ver com quem estava lidando. Ela não disse que amava o marido. Esse casamento era uma farsa, e ele haveria de anular tudo.
Sentia a boca amarga e uma forte pressão na nuca. Seu estômago também estava enjoado. Reconhecia que havia perdido a cabeça. Precisava controlar-se. Sua impulsividade assustara Liana. Esquecera que ela estava fraca e doente.
Da próxima vez seria mais cuidadoso. Tinha certeza de que encontraria um jeito de vê-Ia a sós novamente. Sabia que depois do que acontecera ela seria mais vigiada. Era mais uma prova de que ela bem poderia estar ali a contragosto.
Como conseguir o que pretendia? Daria alguns dias para que eles esquecessem o assunto, e depois encontraria um jeito de vê-Ia outra vez. Ao chegar em casa, Eulália estranhou:
- Aonde você foi? Demorou tanto!
- Fui dar uma volta. Não estava me sentindo bem.
- Hum... Você está pálido. Está doente?
- Não. Apenas ligeira indisposição de estômago.
- Posso preparar um remédio.
- Não é preciso. Já estou melhorando.
Ela olhou para ele e não insistiu. Ele lhe parecia um pouco inquieto, sem o ar costumeiro que ela tão bem conhecia. Sentou-se no sofá da sala, recostou a cabeça e fechou os olhos.
Preocupada, Eulália esperou meia hora e, como ele continuasse do mesmo jeito, aproximou-se e tocou de leve em seu ombro, dizendo: - Está se sentindo melhor?
- Deixe-me em paz - respondeu ele sem abrir os olhos. Eulália ficou chocada. O tom áspero do marido surpreendeu-a. Em tantos anos de casamento, ele nunca se dirigira a ela dessa forma. Sem se dar por vencida, ela retrucou:
- Por que está desse jeito? Aconteceu alguma coisa que eu não sei? - Já pedi que me deixe em paz. Não estou com vontade de conversar.
Ela não insistiu. Afastou-se um tanto magoada. Acontecesse o que acontecesse, Norberto sempre fora educado. Esse era um forte traço de sua personalidade.
Mesmo nos momentos em que estava muito contrariado, conseguia controlar-se e expressar-se de maneira discreta.
Intrigada, Eulália perguntava-se o que ele teria ido fazer naquela tarde que o transtornara tanto. Talvez estivesse doente e escondesse para não a preocupar. Logo afastou essa idéia. Sempre que ele não se sentia bem, ia ao consultório do Dr. Caldas, seu médico e amigo.
Logo ela começou a pensar que era estranho o fato de ele tirar férias naquela época do ano para ficar com a família. Sentia que havia alguma coisa que ele escondia para não a deixar nervosa. O que seria?
A esse pensamento, sentiu o coração oprimido. O que ainda estaria para acontecer? Já não bastava Liana ter-lhe dado tanto desgosto?
Foi arrancada de seus pensamentos por Hilda:
- Eurico está impossível. Foi se deitar e disse que não vai descer para o jantar. Nico está com ele. Mas eu disse que o sol iria fazer-lhe mal.
Ele não me ouviu.
- O que disse?
Hilda contou-lhe tudo novamente, ao que Eulália respondeu:
- Deixe-o por agora. Depois falo com ele.
As coisas estavam se complicando novamente com o filho. Reconhecia que Alberto soubera conquistar a estima de Eurico. Durante aquele tempo ele se tomara mais calmo, mais forte e até mais participativo.
Por que Liana fizera aquilo? Ela poderia ter se casado com Mário e tudo continuaria em ordem, Eurico em paz e eles todos juntos.
Suspirou triste. A calma dos últimos meses fora truncada. Até Norberto estava mudado. Não falaria com ele até que lhe pedisse desculpas pela grosseria de momentos antes. Esse pensamento não a acalmou. Ao contrário, sentiu-se mais angustiada e só.
Não tinha ninguém em quem pudesse confiar. Estava habituada a dividir tudo com Norberto e Liana. Ela a abandonara e ele não parecia disposto a apoiá-Ia.
Eulália reagiu a esse pensamento e tentou sair da depressão. Seu marido estava indisposto, apenas isso. Descansaria um pouco, ficaria melhor e depois lhe pediria desculpas pela atitude grosseira. Nada havia mudado entre eles.
Levantou-se e resolveu ver o que estavam fazendo para o jantar. Se ele não estava bem do estômago, teria de providenciar alimentos leves.
Norberto sentou-se à mesa para o jantar sem dizer nada. Eulália notou que ele parecia melhor, mas não se arriscou a perguntar.
- Onde estão as crianças? - indagou ele com naturalidade.
- Eurico não quis descer e os outros dois jantaram na copa.
- Eurico não jantou por quê?
- Não quis.
- Ele não pode ficar sem se alimentar. Você precisa falar com ele.
Não pode deixá-Io fazer tudo que quer.
- Ele alega que não está bem.
- Mais uma razão para ele não ficar sem comer. Você sabe que ele pode voltar a ficar anêmico.
- Ele não quer aceitar a nova professora. Hoje não quis assistir à aula. - Isso não pode acontecer. Você tem de obrigá-Io a ir.
- Já tentei. Ele não obedece. Por que não fala você com ele? - Falarei, depois do jantar.
Apesar de Norberto parecer melhor, Eulália notou que ele a olhava de um jeito diferente do habitual. Não disse nada. Não queria arriscar-se a ser maltratada de novo.
Depois do jantar, Norberto foi ao quarto de Eurico e mandou que Amelinha e Nico saíssem. Depois se aproximou da cama onde o menino, coberto até o pescoço, fechara os olhos para fingir que estava dormindo.
- Abra os olhos, Eurico. Eu sei que está acordado.
Ele abriu e não disse nada. Norberto continuou:
- O que está acontecendo com você? Por que não foi à aula hoje? - Não gosto dessa professora.
- Como pode saber? Era sua primeira aula com ela.
- Eu sei que ela não é como o professor Alberto. Ele, sim, é que sabia dar aulas.
Norberto trincou os dentes com raiva e respondeu:
- Ela é muito melhor do que ele. Não quero que fale mais o nome dele nesta casa!
- Eu quero que ele volte para dar as aulas. Enquanto ele não vier, não irei a nenhuma aula.
Norberto aproximou seu rosto do de Eurico, olhou-o nos olhos com rancor e disse:
- Irá, porque eu estou mandando. Amanhã cedo vai se levantar e ir à aula da professora.
Eurico começou a chorar, dizendo:
- Eu não quero! Não gosto dela. Eu quero o professor Alberto! Eu gosto dele. Ele tem de voltar aqui com tia Liana!
Norberto enrubesceu. Agarrou Eurico pelos braços e sacudiu-o com força, gritando nervoso:
- Cale a boca! Nunca mais repita isso em minha frente. Aquele professor maldito nunca mais entrará nesta casa! Isso eu juro! Se ele fizer isso, darei cabo da vida dele!
Eurico gritou apavorado:
- Socorro! Nico! Venha me ajudar! O coronel Firmino está aqui e quer me matar!
Nesse momento, Eulália, que escutara os gritos do marido e do menino, subira a escada correndo a tempo de intervir. Segurou o marido por trás, gritando apavorada:
- Norberto! Você enlouqueceu? O que está fazendo? Quer matar nosso filho?
Norberto soltou Eurico, que caiu na cama pálido, sem forças, enquanto Nico o abraçava dizendo baixinho:
- Calma, Eurico. Eu estou aqui. Ele não vai lhe fazer nenhum mal.
Eulália, inconformada, olhava nervosa para o marido, que empalidecera e cambaleara a tal ponto que, se ela não o amparasse, teria caído ao solo. Arrastou-o para uma cadeira enquanto Amelinha chorava assustada e Nico tentava confortá-Ia também.
Hilda apareceu na porta e Eulália disse-lhe nervosa:
- Ajude-me a levar Norberto para nosso quarto.
As duas pegaram seu braço, uma de cada lado. Ele estava alheio e deixou-se conduzir com docilidade até o quarto onde Eulália o obrigou a deitar-se, afrouxou suas roupas e tirou-lhe os sapatos.
Ele fechou os olhos parecendo dormir. Seu corpo estava suado e sua respiração descompassada.
- Ele não parece nada bem - comentou Hilda. - Nunca o vi assim. O que aconteceu, Dona Eulália?
- Não sei. Ele deve estar doente. Muito doente. Acho que teremos de voltar a São Paulo para ele se tratar.
- Acho melhor não esperar. Vamos chamar o Dr. Marcílio mesmo.
- Deus nos livre daquele charlatão! Está resolvido. É melhor preparar tudo. Amanhã irei com ele a São Paulo para uma consulta com o Dr. Caldas. Tonico dirige o carro, você toma conta das crianças.
- Ele está pálido, a respiração esquisita. Desculpe, Dona Eulália, mas médico é médico. Se eu fosse a senhora, chamava o Dr. Marcílio mesmo. Formado ele é.
- Não. Vamos esperar. Prefiro levá-lo amanhã ao médico de nossa confiança.
Hilda calou-se.
No quarto de Eurico, Nico tentava acalmar os outros dois:
- Ele não pode fazer nada. Não precisa ter medo.
- Não era meu pai que estava me sacudindo! Era o coronel. Eu vi! Ele queria me matar! Estou com medo. Ele pegou o corpo de meu pai.
- Não quero que ele pegue o corpo de papai! - disse Amelinha, chorando nervosa. - Ele pode querer levá-Io como quis levar tia Liana.
- Temos que buscar ajuda. Como vocês não podem sair, eu irei.
- Não agora! Você não vai me deixar sozinho com ele!
- Ele já foi embora. Não precisa ter medo.
- Não quero que vá. Perto de você ele não vem. Você vai ficar comigo.
- Está bem, eu fico. Mas tenho que pedir ajuda ao professor.
- Eu também não quero que você vá agora - disse Amelinha.
Estou com medo. E se ele voltar?
Eulália entrou no quarto e eles se calaram. Aproximou-se da cama do filho, dizendo:
- Viu o que você fez? Deixou seu pai perder a cabeça com sua teimosia.
- Eu não fiz nada. Só disse que queria ter o professor de volta.
- É impossível. Ele nunca mais porá os pés aqui. É melhor esquecer isso e não desafiar seu pai como fez hoje.
- Ele quis me matar, mamãe!
- Que loucura é essa, menino? Onde já se viu?
- É verdade. Se você não viesse, ele teria me matado. Olhava para mim com tanto ódio...
Eulália empalideceu e abraçou o filho preocupada. Ela notara isso ao entrar. Ele olhava para o filho com muito ódio. Seu marido estaria enlouquecendo? Ele nunca levantara a voz com o menino, principalmente por sabê-Io tão fraco e delicado. Sacudi-lo com tanta violência foi terrível.
Por mais que pensasse, ela não podia acreditar que ele desejasse matar o próprio filho.
- Isso não é verdade, meu filho. Você está enganado. Seu pai ama-o muito, sempre fez tudo por você. Nunca haveria de querer matá-lo. De onde tirou essa idéia?
- Estava nos olhos dele, mamãe. Eu vi.
Eulália sentiu um aperto no peito e não encontrou palavras para retrucar. Beijou-o na testa com carinho, depois disse:
- Estou começando a desconfiar que seu pai está doente. Hoje não estava se sentindo bem. Esqueça isso. Amanhã irei com ele a São Paulo para uma consulta ao Dr. Caldas.
Vocês ficarão com Hilda até eu voltar. Agora vou fazer um chá para você e vai dormir. Amanhã tudo terá passado. Só lhe peço que não afronte seu pai. Vá assistir à aula, por favor. Não custa nada. Se depois de algumas aulas não gostar da professora, arranjamos outra. Mas faça o que lhe estou pedindo.
- Ele vai, sim, Dona Eulália - garantiu Nico. - Eu o levo.
- Só se você deixar Nico dormir aqui hoje. Estou com medo.
- Eu também quero ficar aqui - disse Amelinha. - Não vou ficar sozinha em meu quarto.
Eulália pensou um pouco e resolveu concordar. Era melhor mesmo que eles ficassem juntos aquela noite. Não sabia como Norberto iria despertar. E se ele ficasse violento novamente?
- Está bem - concordou ela. - Vou mandar pôr dois colchões no chão. Mas cada um vai ficar em sua cama.
- oba! - disse Eurico, satisfeito.
- Amanhã quero ver você na aula - exigiu Eulália.
- Vamos ver - tomou Eurico.
- Ele vai, pode contar - rematou Nico.
Colocaram os colchões, arrumaram tudo, e, quando os viu deitados cada um em seu lugar, Eulália recomendou a Nico:
- É melhor fechar a porta com chave. Assim ficam mais tranqüilos. Se eu quiser entrar, baterei.
Depois que ela se foi, Nico passou a chave na porta e imediatamente os três se uniram na cama de Eurico.
- Você viu mesmo a alma do coronel Firmino em papai? - perguntou Amelinha, preocupada.
- Vi. Era ele. Estava furioso.
- Ele não pode fazer nada, está morto - explicou Nico.
- Você diz que não pode, mas papai estava fazendo o que ele queria. Sacudiu-me que eu fiquei tontinho. Pensei que fosse morrer ali. Se mamãe não chegasse, ele podia mesmo ter me matado.
Apesar de preocupado, Nico não quis dar o braço a torcer:
- Ele não faria isso. Você está exagerando. Ficou com medo porque ele estava junto. Mas seu pai nunca iria matar você. Tenho certeza disso.
- Nós fechamos a porta, mas isso para ele não adianta nada. Ele atravessa pela parede - lembrou Eurico preocupado.
Amelinha encolheu-se mais junto a eles:
- Não diga isso, que estou com medo. Não vou dormir a noite inteira. Se ele vier, tenho de estar acordada para chamar mamãe. Por que não disse para ela que viu a alma do coronel Firmino no corpo de papai?
- Está louca? Se eu dissesse, ela me levaria junto amanhã ao Dr. Caldas e começaria tudo de novo. Aqueles remédios horríveis! Eu nunca mais quero tomar aquelas porcarias. Não adianta nada mesmo. Não estou doente.
- Eurico tem razão. Foi melhor não contar. Amanhã irei procurar o professor e ele nos ajudará.
- Como, se ele não pode vir aqui? - retrucou Eurico.
- Daremos um jeito, você vai ver. O que não podemos é ficar com medo daquela alma penada. Acho melhor rezar. Vamos nos dar as mãos e rezar. Pedir a proteção de Jesus. Assim estaremos protegidos.
Os três deram as mãos e rezaram o pai-nosso. Depois Nico pediu proteção para eles e todos da casa. E finalizou:
- Agora vamos dormir. Podem ficar sossegados, que nada vai acontecer. Vou ficar acordado até vocês pegarem no sono.
- Você não sabe nenhuma história bonita para nos contar? - pediu Amelinha.
- Sei. Vou contar uma que minha mãe sempre contava quando eu era pequeno e estava com medo de assombração. Era uma vez...
Com voz pausada, Nico foi contando sua história enquanto os outros dois ouviam com interesse. Aos poucos foram fechando os olhos. Quando os viu adormecidos, Nico acomodou-se e, agradecendo a proteção de Deus, adormeceu.
Eulália, sentada ao lado da cama do marido, não tinha sono. Ele dormia ainda vestido e ela permanecia em vigília, com medo de que ele acordasse maldisposto.
Parecia-lhe que de repente uma onda de desgraças caíra sobre sua família. Por quê? Eles eram pessoas honestas e de bom comportamento. Não mereciam nada do que lhes estava acontecendo.
Pensamentos desencontrados passavam por sua cabeça, e ela se perguntava de que jeito Norberto iria acordar. Lembrava-se de que durante o jantar, embora ele houvesse se comportado normalmente, havia alguma coisa em seus olhos que o tornava diferente do que sempre fora.
Não podia acreditar que Norberto, um homem equilibrado e correto, enlouquecesse de repente, ficasse violento a ponto de agredir o filho doente.
Não podia conformar-se com isso. Alguma coisa muito grave estava acontecendo com ele e ela tinha de descobrir.
Não podia deixar seus filhos à mercê de uma situação inesperada como a que ocorrera. Precisava protegê-Ios de qualquer forma.
Pretendia levar Norberto a São Paulo no dia seguinte e ter uma conversa muito séria com o médico. Precisava saber até que ponto Norberto estava desequilibrado e se isso poderia pôr em risco a segurança de sua família.
Hilda bateu na porta e Eulália foi abrir:
- Desculpe, Dona Eulália, mas eu não pude dormir. Vim saber como ele está e ver se precisa de alguma coisa.
- Está na mesma, Hilda. Não acordou. Mas pode ir dormir. Se eu precisar, chamo.
- Não, senhora. Estou vendo que ainda nem se trocou. Se a senhora pode ficar acordada, eu também posso. Se me permite, prefiro ficar aqui, a seu lado, a ficar em meu quarto.
Eulália olhou para ela surpreendida. Hilda sempre lhe parecera indiferente e fria. Sentiu-se confortada. Sorriu e respondeu:
- Está bem. Se quer ficar, eu agradeço. Não consigo dormir também.
- Vou buscar um chá de cidreira para nós. Acalma e faz bem.
Ela se foi e alguns minutos depois voltou com a bandeja. Enquanto tomavam o chá, Eulália confidenciou:
- Estava me sentindo muito sozinha. Obrigada, Hilda, por fazer-me companhia.
- Temos vivido juntas tantos anos. Nesta hora temos de nos apoiar - respondeu ela com simplicidade.
Eulália suspirou. Depois disse:
- Como será que ele vai acordar?
- Talvez estejamos preocupadas sem razão. Pode ser que ele esteja bem.
- Deus a ouça. Mas, mesmo assim, amanhã iremos ao médico. Não desejo facilitar.
- Tem razão, Dona Eulália.
As duas continuaram conversando mais algum tempo até que aos poucos, cansadas, reclinaram-se na poltrona em que estavam sentadas e adormeceram.
Eulália acordou sobressaltada e olhou em volta. Estava sozinha. Norberto não estava no quarto, nem Hilda. Apressou-se em descer as escadas. Sentia o corpo doer, certamente por haver passado a noite na cadeira. O dia já havia amanhecido e o cheiro do café indicava que os empregados já haviam levantado. Preocupada, foi à cozinha, onde encontrou Hilda.
- Bom dia, Hilda. Não a vi sair do quarto.
- Eu acordei e resolvi fazer um café. Maria não veio ainda. É muito cedo.
- Você viu Norberto?
- Quando saí do quarto, ainda dormia. Ele não está lá?
- Não. Aonde terá ido?
- Não sei.
- Vou procurá-lo lá em cima. Procure-o aqui embaixo.
Eulália subiu novamente as escadas com o coração batendo forte. Ao passar pelo quarto de Eurico, verificou que a porta ainda estava fechada à chave.
- Ainda bem - pensou. - Aqui ele não entrou.
Foi para o quarto do casal e verificou que a porta do banheiro estava fechada. Ouvia-se perfeitamente o barulho da água da torneira. Respirou aliviada. Só podia ser ele se lavando.
Olhou-se no espelho da penteadeira e não gostou do que viu. Estava pálida, seu cabelo em desalinho. Tratou de arrumar-se. Foi até o banheiro do corredor, lavou-se, penteou-se e voltou ao quarto. Norberto estava diante do guarda-roupas escolhendo algo para vestir.
- Bom dia, Norberto - disse ela procurando controlar-se. Não queria que ele percebesse seu nervosismo.
- Bom dia - respondeu ele com naturalidade.
- Sente-se melhor?
Ele olhou para ela admirado.
- Estou bem. Por que pergunta?
- Ontem você teve uma crise de nervos e sentiu-se mal. Sacudiu Eurico com tanta força que precisei intervir.
- Aquele menino me tira dei sério. É preciso ser firme com ele. Estou cansado de deixá-lo fazer tudo o que quer.
Eulália sentiu sua preocupação aumentar. Nunca Norberto tivera uma atitude como aquela. Sempre fora afável e cordato. Dava-lhe liberdade para educar as crianças conforme ela quisesse.
- Deixe-o por minha conta. Sei como lidar com ele.
- Tenho minhas dúvidas. Acha bom colocar aquele menino controlador do lado dele?
- Nico? Ele tem sido uma bênção para Eurico. Graças a ele nosso filho melhorou muito.
- Teria melhorado de qualquer jeito. Para isso ele mudou de clima. Se ele não me obedecer e continuar a fazer essa chantagem, mandarei Nico embora.
Eulália sentiu um aperto no peito. Norberto falava com voz dura, muito diferente do que costumava. Era evidente que ele não estava em seu estado normal. Resolveu não o contrariar e respondeu:
- Você é quem sabe. Eu marquei hoje uma consulta com o Dr. Caldas para você. Temos de ir a São Paulo. Pedi a Tonico para dirigir o carro, não quero que você se canse.
- Não vou a lugar nenhum. Estou muito bem. Não preciso de consulta nenhuma. Pode desmarcar. Quem deveria ir é Liana. Essa, sim, eu quero levar a Caldas.
Eulália tentou contemporizar:
- Ela está casada. Não podemos interferir na vida dela. Depois, ela não quer ir ao Dr. Caldas. Está se tratando com o Dr. Marcílio.
- Aquele curandeiro. Não vou permitir que continue tratando dela.
- Calma, Norberto. Não temos como a obrigar a ir conosco para São Paulo.
- Pensando melhor, não precisa desmarcar a consulta. Passarei na casa de Liana e ela irá comigo ver Caldas. Você fica aqui com as crianças, Eulália.
- Não quero que interfira na vida de Liana. Ela escolheu o próprio caminho. Você não está bem e eu vou levá-Io ao médico hoje.
Norberto aproximou-se dela e olhando-a nos olhos disse com raiva:
- Não se meta entre nós! Meu compromisso é com Liana. É ela que eu quero. Tenho de tirá-Ia daquele traidor.
Eulália abriu a boca e fechou-a de novo, sem saber o que dizer. O marido estava fora de si. Sentiu medo. Ele lhe parecia outra pessoa. Norberto havia enlouquecido. O que fazer sozinha com ele e as crianças naquela casa? Eles poderiam estar correndo sérios riscos.
Repugnava-lhe pedir ajuda aos empregados. Pensou em ligar para o Dr. Caldas e pedir-lhe que viesse imediatamente. Pagaria o que ele pedisse. Enquanto isso, tentaria acalmá-Io.
- Está certo - disse ela. - Farei como você quiser. Não precisa ficar zangado.
- Melhor assim. Não tenho nada contra você ainda. Não se meta, e ficará fora disto.
- Está bem. O café está pronto. Quer que eu traga a bandeja aqui? - Por quê? Vou tomá-Io na copa.
Eulália concordou, embora preferisse que ele não deixasse o quarto.
Precisava telefonar ao médico sem que ele percebesse.
- Vou descer e ver se está tudo em ordem.
Ela desceu enquanto ele acabava de vestir-se. As empregadas já estavam na cozinha e ela fez um sinal para Hilda. Quando ela se aproximou, disse nervosa:
- Hilda, ele não está bem. Não está falando coisa com coisa. Parece outra pessoa. Quer ir pegar Liana e levá-Ia para São Paulo. Está fora de si. Preciso de sua ajuda. Você tem de ligar para o Dr. Caldas, sem que ele perceba, e contar-lhe o que está acontecendo. Peça-lhe para vir imediatamente. Pagarei o que ele quiser.
- Está bem. - Vendo que Norberto descia as escadas, continuou em voz alta: - Sim, senhora. Já mandei colocar tudo no lugar. Posso servir o café agora?
- Pode, Hilda.
- As crianças ainda não acordaram.
- Deixe-as dormir mais um pouco - respondeu Eulália. - Ainda é muito cedo. A aula é às nove.
Hilda concordou e voltou à cozinha, enquanto Eulália se sentava com o marido na copa. Enquanto Maria colocava os bules na mesa, Eulália levantou-se, foi à cozinha e aproximou-se de Hilda, dizendo-lhe baixinho:
- Não os deixe sair do quarto. Leve-Ihes o café lá. Diga-Ihes para manter a porta fechada à chave.
Hilda assentiu com.a cabeça e Eulália voltou à mesa, olhando preocupada para o marido. Não queria que ele percebesse o que ela estava tentando fazer. Ele comia em silêncio, olhos fixos em um ponto distante, alheio ao que acontecia à sua volta.
Ela respirou aliviada. Precisava distraí-Io enquanto o médico não chegasse. Na melhor das hipóteses ele demoraria de cinco a seis horas para chegar. Ia ser difícil. Se Norberto tivesse alguma crise, não sabia como agir.
Depois do café, Norberto sentou-se na sala, apático. Hilda fez sinal para Eulália, chamando-a para o jardim. Disse-lhe preocupada:
- Dona Eulália, o Dr. Norberto está muito mal. Precisamos fazer alguma coisa.
- Telefonou para o Dr. Caldas?
- Telefonei. Ele não estava.
- Ligou para a casa dele?
- Sim. Falei com sua esposa. Ela me disse que ele teve um chamado de urgência e saiu ainda de madrugada. Há um cliente dele passando muito mal. Talvez ele não volte logo.
- Deixou o recado para quando ele voltasse?
- Deixei. Expliquei o que está acontecendo. Ela sugeriu que chamássemos outro médico. Acha perigoso esperar. Estamos longe da capital. Mesmo que ele saia logo, até chegar aqui vai demorar muito. Temos crianças em casa.
Eulália juntou as mãos, apertando-as nervosamente.
- Meu Deus! O que vai nos acontecer?
- Se eu fosse a senhora, chamaria o Dr. Marcílio mesmo. Ele nos socorrerá até o Dr. Caldas chegar. Pode dar algum calmante para ele. - Não posso fazer isso depois de tudo que aconteceu.
- Não temos outra saída. Se o Dr. Norberto tiver outra crise de loucura, o que faremos?
- Nem me fale uma coisa dessas! Podemos mandar Tonico a Ribeirão Preto. Lá há bons médicos.
- Ele demoraria pelo menos duas horas. Não conhecemos ninguém lá. Mande buscar o Dr. Marcílio mesmo.
- Ele pode não querer nos atender.
- É um médico, não fará isso. Depois, apesar de tudo, tenho ouvido falar muito bem dele. Salvou a vida de muita gente por aqui.
- Vamos ver. Pode ser que Norberto fique calmo. Vamos esperar. - A professora já está tomando café. Vamos suspender a aula de hoje? De onde estava, Eulália via Norberto sentado na sala. Lançando um olhar para ele, decidiu:
- Melhor irem para aula como sempre. Se suspendermos, eles ficarão soltos pela casa. Não acho isso aconselhável. Vamos mantê-Ios ocupados.
Hilda saiu e Eulália entrou. Estava resolvida a esperar. Se notasse qualquer agitação nele, mandaria chamar o Dr. Marcílio.
Suspirou angustiada. Não lhe restava outra saída. Voltou à sala. Apanhou uma revista, sentou-se no sofá e começou a folheá-la, fingindo interesse. Mas estava observando o marido atentamente.
As crianças acordaram, tomaram o café no quarto e foram avisadas que deveriam descer para a aula. Eurico não estava querendo ir, mas Nico conseguiu convencê-Io:
- Não acho bom provocar seu pai agora. Já pensou se ele fica nervoso e volta com o coronel Firmino?
- Nem fale uma coisa dessas! - disse Eurico, nervoso.
- Eu tenho medo dele! - tornou Amelinha.
- Não precisa. Ele não vai nos fazer nada. Estou pensando uma coisa...
- O que foi, Nico? - indagou Eurico
- Tenho que avisar o professor. Ele entende de alma do outro mundo.
- Não quero que você saia hoje. Já pensou se o coronel aparece de novo? - retrucou Eurico.
- Vou e volto logo. Temos que tomar uma providência.
- Como você vai fazer isso? Minha mãe não vai gostar de você perder aula.
- Ela só vai saber se vocês contarem.
- Eu não conto - prometeu Amelinha.
- Eu também não. Mas e a professora?
- Deixe-a comigo.
- Vai contar para ela? - perguntou Eurico.
- Não. Ela não vai acreditar. Vou dar um jeito. Vocês vão ver. Uma vez na sala de aula, depois de cumprimentarem a professora,
Nico aproximou-se dela dizendo:
- Dona Melissa, pode me fazer um favor?
- Depende. O que é?
- Tenho que ir até minha casa agora. Hoje a senhora vai conferir aquele trabalho, e eu deixei o caderno na casa da minha mãe.
- Você pega à tarde. Eu vejo amanhã.
Nico não se deu por achado:
- Fiz com tanto capricho! Ficou tão bom! Eu quis mostrar para minha mãe e esqueci lá.
- Deveria ser mais atento. Vamos à nossa aula de história. Vou repetir o ponto que dei.
- Oba! - fez Amelinha. - Eu gostei muito daquela história.
- Dona Melissa - tornou Nico -, eu sei essa história na ponta da língua.
Enquanto a senhora dá essa aula, eu vou até em casa, pego o caderno e volto. Quando acabar, já estarei aqui.
- Não acredito que já saiba tudo.
- Eu sei. A senhora pode perguntar.
- Você é insistente. Já vi que está querendo mesmo ir até lá. Confesse que está com saudade de sua mãe!
- Um pouco.
- Está bem, Nico. Peça a Dona Eulália. Se ela deixar, eu deixo. Nico sentou-se desanimado.
- Eu desisto. Ela não vai deixar.
- Quer que eu o deixe sair e não conte a ela? Não posso fazer isso. Nico olhou para os amigos com tristeza. Depois decidiu:
- Está bem. Vou pedir a ela.
Saiu e Hilda segurou-o pelo braço.
- Aonde vai?
- Falar com Dona Eulália.
- Agora não. Ela está com o Dr. Norberto na sala. É melhor voltar para a aula.
Nico não se conformou:
- Sabe o que é? Eu esqueci o meu caderno com o trabalho para hoje lá na casa da minha mãe. Dona Melissa disse que deixa eu ir até lá buscar se a Dona Eulália concordar.
- Não precisa incomodá-Ia para isso. Pode ir. Eu deixo. Diga à professora que eu assumo a responsabilidade por isso.
Nico voltou radiante, deu o recado e saiu pelos fundos para não ser visto por Norberto. Foi o mais rápido que pôde. Chegou eufórico à casa do professor. Gislene abriu a porta, convidando-o a entrar.
- Preciso falar com o professor. É urgente.
Antes que ela fosse dar o recado, Alberto apareceu na sala:
- O que foi, Nico? Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, professor. O Dr. Norberto ficou nervoso com o Eurico e sacudiu ele com força. Parecia louco. Então o Eurico viu que o coronel Firmino estava no lugar dele.
Alberto suspirou preocupado. O que ele temia acontecera.
- Conte-me tudo com detalhes. Não esqueça nada.
Nico contou e finalizou:
- Quando eu saí, a Dona Eulália estava vigiando ele na sala. Ele parecia outra pessoa. Estava calado, cara esquisita. Lá na mansão todo mundo está com medo dele. A Liana está melhor?
- Está, Nico. Agora está. Ele veio aqui e agrediu-a também. Queria levá-Ia com ele.
- Cruz credo!
- Agora não posso sair daqui. Tenho de ficar do lado dela. Ele pode voltar.
- O que vamos fazer? Faço força para mostrar coragem perto do Eurico e da Amelinha, mas tem hora que fico com medo. Ele é muito perigoso e tem força.
- Não precisa ter medo. Ele só tem força com as pessoas que não têm fé e que não se ligam com Deus. Nós temos proteção. Só precisamos estar atentos. Ouça bem. Vou conversar com o Dr. Marcílio. Ele tem uma sessão espírita com pessoas que entendem dessas coisas. Conta com a ajuda de muitos espíritos superiores. Precisamos ficar firmes na fé. Se acontecer alguma coisa, se o coronel Firmino voltar a ameaçar vocês, reze. Peça a ajuda de Jesus. Ele os protegerá. O bem é mais forte que o mal.
- Se ao menos a Dona Eulália acreditasse! Ela estava tão abatida...
Não sabe o que fazer.
- Vamos ajudar, Nico. Fale com as crianças e procurem ficar longe de Norberto. Vão para o jardim, fechem-se no quarto, mas não se aproximem dele.
- Está bem. Agora tenho que ir. Prometi à professora estar de volta logo.
- Vá, Nico. Deus o acompanhe. Obrigado por ter vindo me avisar.
Depois que o menino saiu, Alberto foi para o escritório, apanhou o telefone e ligou para o Dr. Marcílio contando-lhe a visita de Nico. Finalizou:
- Precisamos fazer alguma coisa para ajudá-Ios. O que o senhor me aconselha?
- Prece. Faça prece e continue vigilante. Ele está com idéia fixa em Liana. Não se afaste dela por nada. Conserve as portas da casa trancadas. Vou reunir os médiuns e pedir orientação. Qualquer coisa, comunique-me. Eu farei o mesmo.
Depois de desligar o .telefone, Alberto foi ao quarto ver Liana. Ela estava dormindo. O médico dera-lhe um relaxante. Aproximou-se da cama, curvou-se e alisou o rosto dela com carinho. Estava pálida. Ele se comoveu.
Estava ali para protegê-Ia. Não deixaria ninguém lhe fazer nenhum mal. Sentou-se ao lado da cama, segurou a mão dela e levou-as aos lábios, beijando-a com delicadeza.
Liana abriu os olhos e, vendo-o, sorriu. Acanhado, ele largou sua mão, mas ela se remexeu na cama, procurou a mão dele, segurou-a e fechou os olhos novamente.
Alberto sentiu um calor brando invadir-lhe o peito. Ela confiava nele e sentia prazer ao seu contato. Era muito bom sentir esse aconchego.
Nico voltou à mansão, entrou na casa e apanhou o caderno de que precisava. Desceu, pediu licença e entrou na sala de aula. Enquanto a professora retomava o assunto, Nico fez pequeno sinal afirmativo com a cabeça para os outros dois.
Assim que a aula acabou, eles foram ao jardim e Eurico perguntou: - E então?
- Falei com o professor. Ele pediu para ficarmos o mais longe possível do Dr. Norberto, pelo menos enquanto o coronel estiver com ele. Disse também para não termos medo, para rezarmos, que os espíritos superiores iam nos ajudar. O Dr. Marcílio fala com eles e ia pedir para virem aqui. - Puxa! Como serão esses espíritos superiores? - perguntou Amelinha.
- Só fazem o bem. Trabalham para Jesus - esclareceu Nico. - Eles são anjos? - retrucou ela.
- São pessoas - interveio Eurico. - Aquela mulher que sempre aparece para buscar o coronel Firmino quando ele está me assustando deve ser um espírito desses. Ela é tão bonita! Quando a vejo, eu me acalmo e perco o medo. Às vezes ela sorri para mim.
- Puxa! Que sorte a sua! - exclamou Nico. - Bem que eu gostaria de ver esses espíritos.
- Pois eu não. Se pudesse, trocava com você. Aí eu ia ver se está falando a verdade, se não tem medo mesmo.
- Essas almas não têm poder nenhum. Todo poder vem de Deus.
Como eu estou com Deus, não tenho nada a temer.
Hilda chamou-os para o almoço. Querendo afastar-se de Norberto, eles pediram para fazer o prato e comer na mesa do caramanchão. Hilda conversou com Eulália, que achou até bom, uma vez que Norberto continuava na sala, calado.
Angustiada, ela não o deixava só nem por um instante, com medo de que ele tivesse alguma crise. Almoçaram os dois em silêncio e depois ele se sentou novamente na sala, olhando de vez em quando para o relógio.
Quando o carrilhão da sala bateu duas vezes, ele se levantou dizendo: - Tenho de ir. Mande tirar o carro.
- Aonde você vai?
- A São Paulo. Não temos uma consulta para Liana às cinco? Eulália tentou contemporizar:
- Não. Terá de ficar para outro dia. Infelizmente o Dr. Caldas viajou e não poderá nos atender hoje.
- Não importa. Vou levá-Ia de volta a São Paulo. Lá esperaremos por ele.
Eulália aproximou-se dele, dizendo preocupada:
- Você não pode fazer isso! Ela não quer ir. O marido dela não vai deixar!
Os olhos de Norberto brilharam rancorosos. Ele disse com raiva:
- Pouco me importa o que esse impostor quer. Ela é minha, entendeu? Ninguém a tira de mim!
Eulália empalideceu e não soube o que dizer. Ele continuou:
- Ela é minha! Está na hora de ir buscá-Ia e de ficar a meu lado para sempre. Nosso amor é mais forte que tudo!
- Você está fora de si, não pode sair desse jeito! Meus Deus! Ele está enlouquecendo!
- Não se meta em minha vida. Chega! Saia de meu caminho. - Espere um pouco. Não saia desse jeito!
- Não tente me impedir. Nada vai me fazer desistir agora. Custou muito para conseguir chegar até aqui.
Empurrando-a com força, Norberto saiu e Eulália, apavorada, foi atrás dele chamando por Hilda, que apareceu em seguida.
- Chame o Dr. Marcílio. Peça-lhe que venha imediatamente. Norberto entrou no carro que se encontrava na garagem e deu a partida. Eulália ainda tentou impedi-Io, mas não conseguiu. Vendo o carro arrancar e sair pelo portão principal, em pranto correu para casa. Vendo Hilda ao telefone, perguntou:
- É o Dr. Marcílio?
Hilda fez que sim com a cabeça e ela apanhou o telefone, dizendo:
- Dr. Marcílio, é Eulália. Ajude-nos, pelo amor de Deus. Meu marido enlouqueceu de repente. Saiu com o carro e não consegui segurá-Io. Disse que vai tirar Liana de casa e levá-Ia com ele para São Paulo.
- Acalme-se, Dona Eulália. Vou imediatamente à casa de Liana avisá-Ios. Se sabe rezar, reze. É o melhor que tem a fazer agora.
- Rezar? Quero que o senhor encontre Norberto e lhe aplique uma injeção para fazê-Io dormir. Depois trataremos da saúde dele.
- Sei como agir em casos como o dele. A oração terá o dom de ajudá-Ia a acalmar-se. A fé é alimento da alma. A oração é um santo remédio.
- Está bem. Não temos tempo agora. Vá procurá-Io, por favor. Depois que o médico desligou, Eulália disse com voz desconsolada: - Ele me mandou rezar! Onde já se viu um médico como esse? Como podemos confiar nele?
- Pois eu acho que foi um sábio conselho. Sou pessoa de fé. Acredito que, quando não podemos fazer nada para resolver nossos problemas, Deus pode. Depois, Dona Eulália, a senhora está muito nervosa. A oração faz bem e tem o dom de acalmar.
Eulália andava de um lado a outro inquieta. Depois resolveu:
- Vamos até lá ver o que está acontecendo. Não podemos ficar aqui esperando. Vai ser um escândalo. Ele vai querer tirá-Ia pela força e é claro que o professor não vai deixar. Meu Deus, o que pode acontecer ainda?
- É melhor ficar aqui, Dona Eulália. Não vai acontecer nada. O Dr. Marcílio vai cuidar de tudo. Ele deve saber como lidar com um caso desses. Vai ver que logo estará de volta trazendo o Dr. Norberto.
- Não sei. Tenho medo. Nunca vi Norberto desse jeito. Está fora de si. Seus olhos pareciam de um louco!
- Não diga isso, Dona Eulália. Calma. Vamos esperar.
- Não. Mande Tonico tirar meu carro e vamos até lá. Pediremos a Melissa que faça companhia às crianças.
Marcílio chegou à casa de Liana acompanhado de Adélia e mais dois médiuns que participavam das sessões espíritas em sua casa. Alberto fê-los entrar, e Marcílio tornou:
- Prepare-se. Norberto vem vindo novamente. Eulália ligou-me pedindo ajuda. Ele saiu como louco dizendo que vinha buscar Liana para levá-Ia com ele a São Paulo. Não tenho dúvida de que o espírito do coronel Firmino o está dominando. Como está Liana?
- No quarto. Ainda se sente fraca - respondeu Alberto.
- Vamos nos preparar para recebê-lo. Você, Alberto, vá para o quarto de Liana, tome a mão dela, fique em oração. Se ela acordar, diga-lhe que não tenha medo de nada. Nós estamos cuidando de tudo.
Enquanto Alberto obedecia, ele disse para Gislene:
- Ponha sobre a mesa aquele vaso com flores e uma jarra com água.
Fique observando da janela. Quando o Dr. Norberto chegar, avise-nos.
Depois ele se sentou ao redor da mesa em companhia de Adélia e dos outros dois e pediu:
- Vamos nos ligar com nossos guias espirituais e pedir proteção para Liana e o coronel.
Cada um cerrou os olhos e começou a orar em silêncio. Passaram alguns minutos quando Gislene avisou:
- Parou um carro aqui. É ele. Está descendo.
Norberto bateu na porta, dizendo com voz calma:
- Liana, abra. Precisamos conversar.
Ninguém respondeu. Ele continuou:
- Não tenha medo, Liana. Só quero seu bem. Abra a porta. Sei que está doente e precisando de ajuda! Vamos, abra.
Durante alguns minutos ele tentou, enquanto os três ao redor da mesa oravam em silêncio. Por fim, Marcílio abriu os olhos e pediu a Gislene:
- Abra a porta e deixe-o entrar.
Ela olhou assustada para ele, mas, apesar de estar trêmula, obedeceu.
Abriu a porta e ele entrou rapidamente, dizendo:
- Vá chamar Liana imediatamente.
- Ela está dormindo.
- Acorde-a. Estarei esperando.
Gislene saiu da sala e então foi que Norberto viu os quatro sentados ao redor da mesa na sala de jantar. Estremeceu, olhando-os assustado. Depois gritou:
- O que estão fazendo aqui, tramando contra mim? Saiam de meu caminho se não quiserem ser esmagados por minha raiva. Sei como acabar com todos vocês.
- Você não tem esse poder, coronel Firmino - disse Marcílio com voz firme.
- Quem me desafia? Não sabe que eu mando e todos me obedecem?
- Quando você estava na carne, gostava de mandar em todo mundo. Mas esse tempo acabou. Seu corpo morreu e você não passa de um fantasma sofrido e solitário.
- Não é verdade. Você está querendo me iludir para atrapalhar meus planos. Pensa que não sei?
Algumas pancadas na porta da frente fizeram-no estremecer. Marcílio levantou-se e foi abrir. Vendo Eulália e Hilda, fez-Ihes sinal para que entrassem.
- Vi o carro de Norberto - explicou Eulália.
Marcílio fez-lhe sinal para que se calasse, tomou-as pelo braço e conduziu-as até a sala de jantar indicando as cadeiras para que se sentassem. As duas deixaram-se cair, olhando assustadas para Norberto e os dois em volta da mesa sem entender nada.
Marcílio, voltando-se rara Norberto, tornou:
- Você está enganado. Só queremos ajudá-Io. Não está cansado de tantos anos de sofrimento? Por que teima em querer voltar ao passado, se ele já acabou faz tempo? Não percebe quanto tempo está perdendo?
- Chega de conversa fiada. Onde está Liana? Ela é minha e tem de me obedecer!
- Ela é livre. Aquele tempo acabou. Hoje ela é casada com outra pessoa.
- Isso não vale nada. Ela é minha mulher! Custei a encontrá-Ia. Não vou perdê-Ia de novo.
Marcílio levantou-se e aproximou-se de Norberto, que em pé a um canto da sala, olhos fixos em um ponto indefinido, continuava mergulhado em sua obstinação, e colocou sua mão direita sobre a cabeça dele, que estremeceu e começou a gritar enfurecido:
- Saia daqui. Vá embora. Não se meta em minha vida. Você não vai conseguir nada. Sou mais forte do que você e do que todos os seus asseclas.
Marcílio continuou orando em silêncio com a mão colocada sobre a nuca de Norberto. Depois foi até Felipe, um dos moços que estava sentado ao redor da mesa, e colocou a mão sobre a nuca dele, continuando em oração.
Alguns segundos depois o corpo de Norberto amoleceu e ele caiu ao chão, enquanto o rapaz na mesa agitava-se exclamando:
- O que está fazendo? Que truque é esse? Está tirando minhas forças! Você vai me pagar!
Eulália levantou-se para socorrer o marido, mas um gesto enérgico de Marcílio a deteve.
- Fique onde está! Ajude-nos com suas orações.
Ela se sentou novamente e desta vez começou a rezar de fato. Marcílio, com a mão direita sobre a cabeça do rapaz, continuou:
- Ao invés de querer brigar comigo, por que não aproveita este momento para melhorar sua vida? Não está cansado de viver sozinho, triste, de um passado que nunca mais voltará, ao invés de aproveitar o que pode agora, de encontrar pessoas que gostam de você, que só esperam que aceite as mudanças de sua vida para virem a seu encontro? Por que prefere a infelicidade quando já pode viver melhor e ser mais feliz?
Com voz embargada, Felipe respondeu:
- Você fala isso porque não sabe o que é viver como estou vivendo. Não sabe o que é vagar em busca dos que ama e nunca os encontrar.
Sentir-se sozinho sem que ninguém se importe com sua dor ou com seus sofrimentos.
- Você está assim porque quer. Agarrou-se ao passado, recusa-se a obedecer às orientações daqueles que têm condições de ajudá-lo. Fechou-se em sua teimosia e recusa-se a deixar a mansão, como se ainda fosse o dono dela!
- Eu a construí. Aquela casa é minha!
- Você a construiu. Mas agora ela é do mundo e daqueles que a herdaram. Você não pertence mais a este mundo. Vive em outra dimensão, onde há coisas maravilhosas esperando por você, onde pessoas que o amam esperam que acorde dessa ilusão e possa finalmente deixar o passado, tomando consciência do presente e seguindo adiante para a conquista da felicidade.
- Você diz isso, mas eu sei que fui muito ruim. Cheguei ao crime, minha filha me odeia! Não. Não acredito que haja alguém que goste de mim ainda, mesmo depois de tudo que fiz para a minha própria família.
- Pois há. Aqui mesmo está alguém que espera ansiosamente que você saia dessa ilusão para poder abraçá-Io e ajudá-Io a buscar o caminho do equilíbrio e da renovação. Olhe.
Felipe remexeu-se na cadeira e depois gritou em lágrimas:
- Mãe! É você! Vá embora. Eu não mereço. Fui muito egoísta, mau. Não me abrace, mãe.
O outro moço que estava ao lado disse com voz emocionada:
- Meu filho! Descanse em meus braços, que sempre estarão abertos para recebê-Io! Entregue-se a este momento de amor e venha comigo. Vou levá-Io a um lugar onde você ficará sob meus cuidados. Venha. Perceba que ninguém é culpado pelo que lhe aconteceu. Você plantou e colheu de acordo com sua semeadura. Arranque todas as mágoas de seu coração, perdoe a todos, mas principalmente a si mesmo por ter sido tão resistente.
Felipe soluçava sentidamente. O outro rapaz continuou:
- Isso, meu filho. Extravase toda a sua mágoa. Deixe ir todas as suas dores. Descanse a cabeça em meu colo. Vou levá-Io comigo.
- Mãe, ajude-me a encontrar a paz! Eu quero esquecer!
Felipe respirou fundo e estremeceu. Depois abriu os olhos, ajeitando-se na cadeira. O outro rapaz ainda disse:
- Obrigado, amigos. Voltarei outro dia para conversarmos.
Marcílio sentou-se, fez uma prece de agradecimento a Deus. Quando terminou, levantou-se, aproximou-se de Norberto, que, estendido no chão, parecia dormir, e chamou:
- Acorde, Norberto. Já passou.
Ele abriu os olhos e olhou assustado para todos os presentes, como quem acorda de um pesado sono. Marcílio ajudou-o a levantar-se e fê-Ia sentar-se ao redor da mesa. Apanhou um pouco de água e deu-lhe para beber enquanto os outros dois serviam os demais.
Eulália e Hilda estavam mudas. Não se atreviam nem a perguntar.
Norberto recuperara seu estado normal, olhou-os admirado e perguntou: - Podem explicar-me o que estamos fazendo aqui? O que aconteceu? Marcílio respondeu com simplicidade:
- O espírito do coronel Firmino incorporou em você e tivemos de esclarecê-Ia. Garanto que de agora em diante ele não mais aparecerá a ninguém naquela casa, muito menos a Eurico.
- O coronel Firmino? Estou ouvindo bem? - disse Norberto, admirado.
Desta vez Eulália tomou coragem e interveio:
- Pois foi. Você ficou como louco. Foi horrível. Se não fosse o Dr. Marcílio e essas pessoas aqui, você estaria internado em um hospício.
Meu Deus! Eurico estava dizendo a verdade! Por que não acreditei?
- Ele disse muitas vezes que via espíritos - lembrou Hilda.
- Ele estava certo - esclareceu Marcílio. - Esse menino tem uma sensibilidade especial. Ele vê e ouve os seres de outras dimensões.
- Mas o coronel está morto! - disse Norberto.
- Engano seu. Ele está vivo. Quem morre neste mundo vai para outras dimensões, mas continua vivendo.
- É difícil acreditar.
- Para quem nunca se interessou pelo assunto, pode ser - respondeu o médico. - Entretanto, para os que são chamados a essa realidade, o contato com quem já partiu é natural.
Norberto passou a mão pelos cabelos um pouco inquieto e disse:
- Gostaria de saber como chegaram a essa conclusão. Minha própria mulher, que nunca acreditou nisso, agora está afirmando que a alma do coronel existe mesmo.
- Eu posso esclarecer como foi. Você não se recorda de nada?
- De certa forma, não perdi a lucidez. É difícil dizer. Havia momentos em que me sentia atordoado, fazia coisas desconexas, mas não conseguia parar. Era como se estivesse em um sonho em que as idéias se embaralhavam em minha cabeça. Foi horrível!
- Então você percebeu que sacudiu Eurico com violência, assustando-o? - perguntou Eulália.
- Eu fiz isso mesmo? Houve um momento em que senti muita raiva de Eurico, tive vontade de... - Norberto parou horrorizado.
- De acabar com ele - completou Marcílio, calmo. - Nessa hora, quem sentia toda essa raiva e queria fazer isso não era você, mas o espírito do coronel Firmino. Sempre que ele aparece, demonstra sentir raiva dos meninos, porque de certa forma eles atrapalharam o que ele pretendia fazer.
- Esses sentimentos brotavam dentro de mim e chocavam-me. Eu amo meus filhos. Sempre fiz tudo para que Eurico ficasse bem, com saúde.
- Você se chocava, sentia-se culpado por sentir isso, e o coronel conseguia dominá-lo ainda mais.
- O que me conta é incrível! Nunca pensei que uma situação dessas acontecesse.
- Agora experimentou. Não pode mais duvidar.
- Ainda bem que Eulália interveio. Não sei o que poderia ter acontecido. O que Eurico está pensando de mim? Fui rude demais.
- Ele sabe que não era você. Nessa hora ele viu em seu lugar o coronel Firmino - esclareceu Marcílio.
- Como sabe?
- Ele teve medo de que lhe acontecesse alguma coisa e pediu a Nico que viesse nos procurar e contar tudo - explicou o médico.
- Estou admirado! Quero saber tudo a respeito. Se ele fez isso, foi porque sabia que vocês podiam nos ajudar - disse Norberto.
- Agora não há mais motivo para que não saibam toda a verdade.
Esses meninos são maravilhosos. Seu filho vê e até conversa com os seres de outras dimensões. Ele tem medo, mas Nico não, e o tem ajudado a enfrentar esses encontros com coragem e firmeza. Graças a ele, Eurico está reagindo e melhorando a cada dia.
- É verdade - interveio Eulália. - Você ameaçou mandá-lo embora. Sentia raiva dele também?
- Sim. De repente parecia que ele estava me atrapalhando, que era meu inimigo.
- Ele estava atrapalhando os planos do coronel Firmino, ajudando-nos a libertar Liana da interferência dele - disse Marcílio. Norberto assustou-se:
- Liana? Por que ela?
- Vocês ignoram porque vieram morar naquela casa. Não foi apenas por causa da saúde de Eurico. A vida trouxe-os aqui porque tinha seus motivos. Era preciso que vocês todos se reencontrassem, principalmente Liana com Firmino - esclareceu Marcílio. - Posso contar tudo desde o começo.
- Gostaria de entender - pediu Eulália.
- Por favor - tornou Norberto.
Marcílio falou sobre reencarnação, sobre os laços que uniam Liana e as crianças ao espírito do coronel, a intenção dele de continuar a dominá-Ia.
Eulália não se conteve:
- Por isso você disse que amava Liana!
Norberto empalideceu:
- Eu disse isso?
- Sim. Disse também que ela era sua mulher. Pensei que tivesse enlouquecido. Agora entendo... era o coronel que sentia isso!
- Era - apressou-se a dizer Marcílio. - Mas é preciso lembrar que ele se aproveitou de sua amizade por sua cunhada e por seu interesse em ajudá-Ia levando-a a seu médico de confiança.
- É. Ele dizia que ia levá-Ia ao Dr. Caldas. Tentei impedi-lo, mas não consegui. Você estava como louco!
Norberto remexeu-se na cadeira. Sentia-se envergonhado.
- Isso já passou. Está se sentindo bem agora? - perguntou o médico.
- Sim. Apesar de assustado, estou bem. Quando vocês falam, parece que se referem a outra pessoa.
- Era outra pessoa mesmo - confirmou Marcílio.
- Só não entendo uma coisa. Vocês estavam todos aqui quando chegamos. Como sabiam? - perguntou Eulália.
Marcílio contou a razão pela qual tiraram Liana daquela casa às escondidas para o casamento, mas omitiu o fato de eles haverem se casado apenas na aparência. Explicou também como, com a ajuda dos espíritos superiores, haviam ido até lá naquela tarde para esperá-lo.
- Quando ele saiu de casa como louco e não me deixou acompanhá-lo, não pude suportar. Vim atrás.
- Fez bem. Assim pôde assistir a tudo que aconteceu aqui - disse o médico.
Eulália hesitou um pouco, depois decidiu:
- E Liana, como está?
- Melhor. Está no quarto, e Alberto está com ela. Pedi-lhe que ficasse em prece ao lado dela para fortalecê-Ia. As energias do coronel eram fortes e poderiam envolvê-la. Ela se encontra ainda um tanto debilitada.
A obsessão dele em dominá-Ia fazia-o emitir energias controladoras que sugavam as forças dela, enfraquecendo-a.
- Por isso ela estava sempre deprimida, apática, sem vontade? perguntou Eulália.
- Sim. Esse estado é próprio da subjugação espiritual. O coronel jogou energia de domínio sobre Liana e ela não reagiu. Se tivesse usado sua força para afastá-Io de sua aura, não teria sido tão atingida.
- Ela não sabia de nada disso - lembrou Eulália.
- Tentei avisar. Eurico via. Ela mesma chegou a ver o coronel, lembra-se?
- É verdade! - concordou Eulália.
- Quem poderia imaginar tudo isso? - comentou Norberto, perplexo.
- E agora? - disse Eulália. - Estou com medo de voltar àquela casa. Acho melhor voltarmos para São Paulo.
- Não há mais motivo para isso. Eurico deu-se bem aqui, apesar do que aconteceu. Garanto que o coronel agora não oferece mais perigo. Foi afastado. O espírito de sua mãe sofria muito vendo-o naquele estado. Há muito tentava ajudá-ia. Agora conseguiu que ele compreendesse e resolvesse aceitar afastar-se daquela casa e receber tratamento. Se um dia ele voltar, estará melhor e não prejudicará mais ninguém - esclareceu Marcílio.
- Não sei. Essas coisas de almas do outro mundo me assustam. Antes não tinha medo porque não acreditava nelas, mas agora... - considerou Eulália.
Marcílio sorriu e respondeu:
- Quer saber por que Eurico não se dava bem na cidade grande?
Ele teve dificuldade em reencarnar por problemas de sua vida passada. Estava frágil e sensível. A pressão das energias negativas é muito maior na cidade, onde há muito mais pessoas, mais problemas, mais violência. O acúmulo de gente energeticamente representa acúmulo de problemas. A sensibilidade dele sofria com isso. Aqui, tudo é mais calmo, as energias menos agressivas, ele pode ir aos poucos assumindo melhor a encarnação. Se ele continuar aqui por mais algum tempo, garanto que chegará à idade adulta saudável e recuperado.
- É o que eu mais desejo neste mundo! - tornou Eulália.
- É preciso também cuidar da sensibilidade dele. Precisam aprender as leis que regem o campo das influências, para que ele aprenda a viver bem com a sensibilidade que possui.
- Depois do que me aconteceu, não posso ignorar - disse Norberto. - Desejo saber tudo, estudar o assunto, para que não aconteça novamente. Tremo só em pensar nessa possibilidade
- Faz bem. Tenho estudado sem cessar e possuo em minha casa extensa biblioteca sobre o assunto. Está à sua disposição.
- Obrigado, doutor.
Alberto apareceu na sala e Marcílio chamou-o:
- Aproxime-se, Alberto. Como está Liana?
- Bem. Houve momentos em que ficou inquieta, queria sair do quarto, ir embora daqui, estava apavorada. Com a mão dela entre as minhas, fiz prece e aos poucos ela se acalmou. Agora quer levantar-se. Ouviu vozes e eu lhe disse que era você. Ela quer vê-Io e saber se já pode se levantar.
- Ela deve estar se sentindo muito melhor. Felizmente o coronel Firmino foi afastado. Agora ela ficará bem - disse o médico.
Eulália hesitou um pouco, depois disse:
- Só agora ficamos sabendo a causa da doença dela. Estou arrependida de ter sido tão descrente. Será que eu poderia conversar com ela?
- Claro - respondeu Alberto sorrindo. - Tenho certeza de que sua visita será para ela um excelente remédio.
Eulália olhou para o médico, que disse:
- Pode ir, Dona Eulália. A alegria só faz bem.
Eulália olhou para o marido, que decidiu:
- Vá sozinha. Será melhor. Minha presença agora pode não ser muito agradável.
Eulália foi até lá enquanto Alberto pedia a Gislene que servisse um café com aquele bolo gostoso que ela sabia fazer tão bem.
Eulália empurrou a porta do quarto de leve, enfiando a cabeça para ver se Liana estava acordada. Vendo-a, a moça teve uma exclamação de alegria:
- Eulália! Você veio!
Ela entrou, aproximou-se da cama e disse:
- Eu vim, mas fui empurrada pela vida. Agora eu sei o que se passa com você e estou arrependida de ter sido tão dura. Será que pode perdoar-me?
Liana sentou-se na cama, estendendo os braços:
- Perdoá-Ia? Eu é que tenho de lhe pedir perdão por haver saído de sua casa sem contar a verdade.
Eulália abraçou-a, e a emoção aflorou. Seja por ter estado tensa durante tantas horas, seja pelo reencontro com a irmã que ela queria bem, ou pela realidade espiritual de que estava tomando consciência naquele dia, as lágrimas apareceram e ela começou a soluçar.
Liana abraçava-a com força, impressionada com o volume de suas emoções. Não se lembrava de tê-Ia visto chorar daquele jeito antes. Sempre a julgara rígida e indiferente, mais forte que a maioria das pessoas. Estava enganada. A mulher que a abraçava era tão sensível e frágil como qualquer outra.
Quando se acalmou, ela disse:
- Não foi só com Alberto que fui injusta, com o Dr. Marcílio também. Pensei que Norberto estivesse enlouquecendo, fez coisas terríveis. Veio aqui disposto a levá-Ia com ele. Não quis que o acompanhasse, mas eu vim assim mesmo. Quando cheguei, eles estavam reunidos e falando com Norberto. Ele estava possuído pela alma do coronel Firmino. Quando ele foi afastado, Norberto acordou como se nunca tivesse feito tudo aquilo. Compreendi a verdade. Eurico estava certo quando falava que via os espíritos. Fiquei chocada. Pobre Eurico, vendo esses espíritos sem ninguém que o apoiasse. Já pensou que horror?
- É verdade. Felizmente Nico tem muita força e Alberto entende desse assunto. Foi ele quem orientou os meninos, ajudando-os para que se defendessem e resistissem ao assédio do coronel Firmino.
- Lamento ter sido contra seu casamento. Agora percebo que ele a ama muito e fez tudo para protegê-Ia enquanto nós, sua família, só atrapalhamos.
- Vocês não sabiam a verdade. Estou contente que tenham compreendido. Assim poderão apoiar Eurico. Ele vê mesmo os espíritos!
- Eu sei. Quem diria! Tivemos nossa lição. Norberto agora quer estudar. Ficou de ir à casa do Dr. Marcílio buscar alguns livros.
- Tanto esse médico quanto sua esposa e todos que freqüentam sua casa são maravilhosos. As sessões são verdadeiros bálsamos de paz.
- Vocês têm ido?
- Sim.
- Sente-se melhor?
- Muito. Hoje, por exemplo, parece-me haver acordado de um longo pesadelo. Sinto vontade de cantar, de levantar, ver as flores de nosso jardim, ir à rua.
- De fato, seu aspecto está muito melhor. Está até corada!
O Dr. Marcílio entrou e foi logo dizendo:
- Como você melhorou!
- Ela está corada.
- Posso levantar-me?
- Vim buscá-Ias para o café com bolo de Gislene. É imperdível. Estamos esperando as duas na sala.
Liana levantou-se, trocou de roupa e arrumou-se. Estava renovada e feliz. Antes de sair do quarto, abraçou a irmã, dizendo emocionada: - Que bom que você está aqui! Nunca mais me abandone.
Ao que Eulália respondeu:
- Nunca. De agora em diante voltaremos a ser uma família. O que Alberto fez por você tocou meu coração. Sinto-me envergonhada do que fiz.
Elas foram para a sala, e Norberto, vendo-as, não disse nada. Sentia-se constrangido pelo que fizera. Foi Liana quem se aproximou dele, dizendo:
- Hoje é um dia feliz. Estou contente que estejam aqui. Alberto aproximou-se:
- Tem razão. Desde que nos casamos, vê-Ios aqui era nosso maior desejo. Liana sentiu muita falta da família.
- Lamento que tenha sido dessa forma. Sinto-me envergonhado - respondeu Norberto.
Marcílio interveio:
- Não se preocupe com isso. Todos nós sabemos como a influência desses espíritos pode ser forte.
O que importa agora é conhecer as leis que interferem nesses fenômenos para saber como se defender.
- Sinto que é hora de aprender - tornou Norberto com humildade.
- Tem razão. Sua sensibilidade abriu-se e, se não atentar para essa realidade, o que lhe aconteceu pode se repetir.
- Deus me livre, doutor! Nunca em minha vida fiz papel de louco como hoje. Fico arrepiado só em pensar.
- Gostaria de conversar consigo. Vá em casa qualquer dia desses.
- Se não se importar, gostaria de ir hoje mesmo. Sinto-me inseguro e preocupado. Sempre mantive completo domínio sobre meus atos. É difícil para mim admitir as loucuras que fiz.
- Depois de nosso café, conversaremos.
O lanche decorreu alegre, e tanto Eulália quanto Liana estavam bem-dispostas. Alberto fez as honras da casa, atencioso para com todos.
Quando o médico se despediu, convidou Norberto para acompanhá-lo. Eulália levantou-se, mas Marcílio tornou:
- Fique mais um pouco, Dona Eulália. Depois de tanto tempo, vocês têm muitas coisas para conversar. Nossa conversa será a dois.
- Também gostaria de entender do assunto. Meu filho precisa de minha compreensão - objetou ela.
- Falaremos outro dia. Hoje quero conversar com o Dr. Norberto.
- Nesse caso, ficarei mais um pouco. Hilda me fará companhia na volta.
Eles saíram, e os três sentaram-se na sala enquanto Hilda acompanhava Gislene na cozinha. As duas conversavam animadas, e Hilda queria a receita daquele bolo tão gostoso que ela servira com o café.
Eulália foi a primeira a romper o silêncio.
- Quero pedir-lhe desculpas, Alberto. Fui intolerante e teimosa. As crianças sentiram muito sua falta. Eurico fez de tudo para que o chamasse de volta. Ficou impossível.
- Eu sei. Nico contou-me. Ele se habituou a conseguir tudo que deseja dessa forma. Sabe de sua preocupação com sua saúde e explora isso.
- Já notei. Infelizmente esse é meu ponto fraco. Ele sempre deu muito trabalho. Tinha febre por qualquer coisa, não se alimentava, nunca foi igual às outras crianças. Amelinha sempre foi muito diferente. Eu sentia que ele era muito mais frágil, e tinha medo de perdê-lo.
- Dá para entender. Mas agora ele já superou essa fase. Está mais forte. Precisa aprender a se colocar de outra forma.
Eulália baixou a cabeça e ficou pensativa alguns segundos. Depois disse:
- Talvez eu seja culpada disso também. Sempre impus o que eu queria sem ouvir o que ele dizia. Para mim, ele era incapaz de discernir. Confundi as coisas, pensei isso por causa de sua debilidade física. Agora, com o que aconteceu, percebi que ele sabia mais que eu, pelo menos sobre essa história de almas do outro mundo.
- Ele ficará feliz quando souber que você acredita nele agora - disse Liana.
- E que vocês voltarão a freqüentar nossa casa.
Alberto, pretextando um trabalho a fazer, deixou-as a sós para que pudessem conversar à vontade.
Marcílio chegou em casa e conduziu Norberto a seu escritório, fechando a porta. Depois que se acomodaram, o médico tomou:
- Fico feliz que você tenha compreendido a verdade. Agora já vejo uma saída para os angustiantes problemas de sua família.
Norberto olhou-o preocupado. O que acontecera naqueles dias aparecia em sua mente de maneira obscura. Lembrava-se de ter feito algumas coisas incontroláveis, mas não de tudo que dissera. Eulália contara que ele dissera amar Liana. Era isso que mais o assustava. Por pouco pusera tudo a perder. E se acontecesse de novo? E se ele acabasse revelando o segredo de seu amor por ela?
- Tudo ficará bem se a alma do coronel não voltar.
- Liana foi esposa dele em outra encarnação. Mas não teria conseguido envolvê-Io daquela forma se você não lhe desse oportunidade.
- Eu nem acreditava na existência dele. Você diz que Liana foi casada com ele em outra encarnação. Para mim é difícil acreditar. Ainda agora, apesar do que aconteceu, estou duvidando. O coronel pode ter se enganado. Liana pode ser parecida com a esposa dele.
- Entendo sua dificuldade. Eu afirmo: Liana foi a esposa do coronel, e digo mais. Estou informado pelos espíritos superiores que Amelinha foi a filha que ele perseguiu, Nico o genro que ele queria matar e Eurico o neto que ele impediu de nascer.
Norberto abriu a boca e fechou-a novamente sem encontrar palavras para dizer. O tom de Marcílio era sério e firme. Ele estava afirmando, e Norberto não se sentiu com coragem de contradizer. O médico continuou:
- O espírito de Eurico teve muita dificuldade para reencarnar, por isso a infância difícil. Mas agora a encarnação firmou-se e, com a graça de Deus e a ajuda de vocês, ele reconquistará o equilíbrio.
A ida de sua família para aquela casa não foi por acaso. Para que eles pudessem viver em paz, era preciso que o espírito do coronel Firmino se esclarecesse. Ele, mesmo à distância, continuava envolvendo Eurico, que era inimigo dele de outros tempos. Enquanto ele não desistisse de procurá-los e de persegui-Ios, seria difícil o menino manter a saúde.
Vendo que Norberto acompanhava atentamente suas palavras, continuou:
- Liana foi a mãe de Amelinha e esposa do coronel. Elas sofreram muito ao lado dele e o odiavam profundamente. A vida trabalha para a harmonia do ser. Ninguém pode ter saúde física e mental sem limpar o coração, sem largar o passado e perdoar a ignorância alheia.
- Como pode ser isso? Liana não conhecia o coronel nem se lembrava dele. Como poderia odiá-Io?
- Ela reencarnou e esqueceu. Sempre que renascemos a vida apaga a consciência de nosso passado, mas as energias continuam em nosso inconsciente. A mágoa, a raiva estavam lá todo o tempo, e bastou que ela o reencontrasse para que tudo viesse à tona. Lembre-se que quando ela o viu perto da escada ficou apavorada.
- Qualquer um ficaria, vendo um espírito.
- Com ela foi pior. Sentiu pavor de que ele a dominasse energeticamente.
- De fato, fizemos tudo e ela não reagiu. Nunca entendemos essa atitude. Liana sempre foi forte, determinada, ativa. Ficou completamente deprimida, apática.
- Por isso foi preciso que a tirássemos de casa daquela forma. Se ela ficasse lá, não teríamos como ajudá-Ia, ainda mais que vocês não permitiam nossa presença.
- Sinto que tenhamos sido tão resistentes.
- Quando ela se foi, ele ficou com raiva e percebeu que poderia envolver você. Então começou a pressioná-Io para buscar Liana.
- Ele sabia que eu não aceitei o casamento dela.
- Ele sabia mais. Ele sabia tudo quanto você pensava. Para os espíritos desencarnados, nossos pensamentos são visíveis.
Norberto remexeu-se na cadeira inquieto.
- Ele sabia tudo que eu pensava?
- Tudo. Por isso, descobrindo seus sentimentos para com Liana, viu uma oportunidade de conseguir o que queria.
Norberto baixou a cabeça envergonhado. Como é que o médico podia saber de tudo? Liana teria contado? Não se conteve:
- Liana falou sobre isso?
- Falou. Ela contou tudo que houve entre vocês. Esse é o ponto fraco que facilitou o assédio do coronel. Vive arrependida, não se perdoa pelo deslize, teme que a irmã descubra. Liana tem a alma nobre, é muito honesta. Respeita sua família. Vive se atormentando com o que aconteceu.
- Às vezes também me arrependo. A presença de Liana enlouquece-me. Esse amor está acabando comigo. Depois, sei que Liana também me ama.
- A vida separou vocês. É preciso entender que o momento não é para que fiquem juntos. Por enquanto ainda não nos foi revelado por que você está dentro desta história, que laços do passado existem unindo a família do coronel Firmino, você e sua esposa. Mas, se estão juntos nesse processo, certamente atraíram essa experiência por alguma razão. No universo nada acontece por acaso.
- Acha isso mesmo? Teremos vivido outras vidas também?
- Com certeza. O que sei é que somos responsáveis por nossas atitudes. Há valores essenciais que necessitamos aprender se quisermos viver melhor. Neste mundo somos submetidos a energias perigosas que despertam nossas paixões. Estamos aqui para aprender a dominá-Ias. Ficar cada vez mais forte no bem é nossa garantia de equilíbrio, de saúde e de felicidade. Ninguém pode ficar bem entregando-se às paixões. Elas exacerbam as emoções e são insaciáveis, exigindo cada dia mais. É sofrimento o tempo todo.
- Quanto a isso concordo. Desde que me apaixonei por Liana, minha vida tem sido um inferno. Não tive mais um momento de paz.
- A paz tem o preço da honestidade e do respeito. Você mentiu, desrespeitou sua alma, e a consciência de seu erro não lhe permite desfrutar de paz.
Norberto colocou a cabeça entre as mãos em desespero. Aquelas palavras o emocionavam muito. Ele estava mexido, sensível, e não suportou. As lágrimas desceram por seu rosto e ele rompeu em soluços.
Marcílio deixou que ele desabafasse e ficou em silêncio. Intimamente orava aos amigos espirituais pedindo que o ajudassem a aliviar aquele coração aflito.
Quando serenou, Norberto enxugou os olhos com um lenço e disse: - Desculpe, doutor. Não pude suportar.
- As lágrimas às vezes lavam a alma.
- Se elas pudessem me ajudar a sair dessa confusão em que me encontro, seria bom. Infelizmente, não têm esse poder.
- É, mas Deus tem. Ele tem a magia do amor e pode não só aliviar mas também curar as feridas do coração.
- Eu gostaria muito de ter essa fé, de poder acreditar que um dia me libertarei desse tormento.
- Se é isso que quer de verdade, se seu coração estiver sendo sincero, tenho certeza de que conseguirá o que pretende.
- Eu gostaria muito de viver para minha família. Quando pensei em me casar, procurei uma moça boa que pudesse ser a mãe de meus filhos. Não pensava em amor, confesso. Nosso casamento foi uma espécie de arranjo. Mas gostei de Eulália. Ela me atraía como mulher. Mas nunca senti por ela o que sinto por Liana. Aliás, nunca havia sentido isso por nenhuma mulher. Arrependi-me de haver casado, mas era tarde. Agora, estou perdido. Eulália tem sido boa companheira, fiel, devotada à família. Eu gostaria de amá-Ia como merece. Liana está casada, sinto que não devo mais infelicitar sua vida. Sei que ela ainda me ama, e é isso que me tira o sossego. Ela não pode amar o marido. Era a mim que ela amava!
- Você está enganado. Liana ama o marido. Eles foram feitos um para o outro. Deixe-os viver em paz.
- Se isso é verdade, eu gostaria de esquecer. Mas como?
- Feche os olhos e vamos pedir a ajuda de Deus. Neste momento, procure esquecer esse problema. Pense que você está cansado e que agora não precisa tomar nenhuma decisão. Entregue-se à paz. Deixe que a luz da harmonia brilhe à sua volta, e peça que Deus o proteja e oriente. Você deseja o bem e só o bem. Vamos orar.
Marcílio proferiu comovida oração e aos poucos Norberto sentiu-se mais calmo.
- O desabafo fez-me bem. Obrigado por ter-me escutado.
- Vou emprestar-lhe alguns livros que estudam os fenômenos de influência e como manter a saúde mental protegendo-se das investidas dos espíritos perturbadores.
- Vou ler com atenção. Nunca mais quero passar por isso outra vez. Marcílio olhou sério para ele e disse com naturalidade:
- Você vai saber como é o processo, mas o importante é descobrir como você está atraindo essas influências. Assim como nossa sociedade tem leis para preservar o próprio equilíbrio, a vida estabeleceu os valores verdadeiros do espírito eterno. Criou leis cósmicas que funcionam naturalmente, respondendo a cada um de acordo com suas atitudes. E, se as leis humanas se modificam conforme a humanidade progride, as leis cósmicas nunca se alteram, porque representam a verdade absoluta.
Por isso, quem quer gozar de saúde física, mental, espiritual, ter felicidade, paz, alegria de viver, precisa estudar a vida, entender como ela funciona. Assim, quanto mais verdadeiro você for dentro dos valores da espiritualidade, mais equilibrado e feliz será.
- A religião está sempre pregando moral, mas tenho visto que mesmo os que cumprem os preceitos de sua religião sofrem muito neste mundo.
- Não estou me referindo às religiões nem à moral humana. Elas estão cheias de preconceitos e inverteram quase todos os valores. Estou falando do que a vida quer, de como ela reage acionando o progresso humano provocando o desenvolvimento da consciência.
- Como posso saber o que a vida quer? Sempre cumpri com meus deveres de cidadão, de esposo e pai. Como foi acontecer comigo essa paixão que não pedi e que está infelicitando toda a nossa família?
- Eis o que você precisa descobrir. Consulte seu coração, peça a Deus para mostrar-lhe a verdade. Jogue fora a culpa. Ela deturpa os fatos e enfraquece o espírito.
- Mas é o que eu mais sinto. Culpa. Por minha causa Liana está sofrendo e estamos nessa confusão.
- Como pode se culpar se reconhece que essa paixão brotou em seu peito sem que planejasse?
- É, foi. Mas agi de forma errada.
- Deixou-se dominar pelas emoções. E o que era atração acabou tomando-se paixão. Assim você acabou descobrindo que, quando não controlamos as emoções, elas acabam por nos controlar. Quando não pisamos no freio, o carro se desgoverna e acabamos por nos machucar.
- E como!
- Você agora está mais forte que antes. Quando sentir atração por alguém, vai dominar-se, porque já sabe a que sofrimentos as emoções descontroladas podem conduzir.
- Concordo, doutor. Nunca mais quero me envolver com ninguém dessa forma.
- Se está decidido a preservar sua paz, não se culpe mais. Reconheça que foi imprudente mas que agora, mais experiente, saberá agir melhor daqui para a frente.
- Suas palavras têm o dom de me acalmar. Sinto como se tivesse tirado um peso enorme de cima de mim.
- A culpa pesa. Liberte-se dela. Você tem uma família linda, está bem financeiramente, agradeça a Deus essa felicidade. Não perca tempo alimentando ilusões que só trazem dores, sofrimentos.
Norberto baixou a cabeça pensativo e ficou calado por alguns instantes. Depois disse:
- Obrigado por haver me mostrado a verdade. Assim como estou tirando o peso da culpa do coração, gostaria que me ajudasse a tirar essa paixão do peito.
- Infelizmente não tenho esse poder.
- Nem eu. Confesso que tenho tentado.
- Amar Liana não é proibido. O amor é e sempre será uma bênção. Se não consegue tirar esse sentimento de seu coração, transforme-o em alguma coisa elevada. Liberte-a definitivamente. Não interfira mais em sua vida, deixe que ela encontre seu verdadeiro destino. A vida separou-os e deve ter seus motivos. Ela sempre faz tudo certo.
- Liana é a mulher da minha vida. Tenho certeza disso.
- No momento estão em lugares opostos, cada um cumprindo seus compromissos. Quem garante que sua felicidade seja ao lado dela? Você gosta de sua mulher. Não estará ao lado de sua família a melhor oportunidade de uma vida mais proveitosa e feliz? São considerações para você pensar.
Norberto suspirou fundo. Sentia que naquele momento era incapaz de decidir qualquer coisa. O médico levantou-se, dizendo:
- Vou apanhar os livros.
Norberto meneou a cabeça, concordando. Pensou que soubesse muito sobre a vida, mas agora percebia que havia ainda muito a aprender.
Quando deixou a casa do Dr. Marcílio, Norberto sentia que precisava reconquistar a paz. As palavras do médico fizeram-no refletir sobre seus sentimentos. Ele amava Liana, mas não queria que Eulália descobrisse que fora traída.
Ao pensar nisso, sentia um aperto no peito e sua inquietação aumentava. Se ela descobrisse tudo, saberia que ele fora um fraco, que não soubera controlar as emoções dentro de sua própria casa.
Ela o julgava um homem correto, admirava-o e respeitava-o. O pensamento de aparecer diante dela como um mau-caráter deixava-o apavorado. Teve de reconhecer que o apoio, a consideração, o carinho de Eulália eram muito importantes em sua vida.
Recordou-se do namoro, do casamento, do nascimento dos filhos, dos problemas que haviam dividido nos doze anos de convivência, e sentiu que não queria mais separar-se da família.
Recordando-se que propusera fugir com Liana, sentia-se nervoso. Felizmente ela tivera o bom senso de não aceitar. Quanto mais pensava, mais se arrependia de ter se envolvido nessa aventura.
Agora ela estava casada e ele poderia esquecer a culpa de a ter deflorado. Se Alberto a aceitara mesmo assim, se eles se amavam como o médico afirmara, ele, Norberto, não tinha mais nenhuma responsabilidade pelo futuro dela.
Essa idéia o preocupava. A perda da virgindade era motivo até de anulação do casamento. Pensando melhor, reconhecia que o casamento de Liana, ao contrário do que pensara, viera em auxílio deles, porquanto o obrigava a controlar a atração que sentia por ela.
Depois do que acontecera, eles freqüentariam sua casa novamente. Teria de conviver com ela. Como se sentiria? Conseguiria controlar suas emoções?
Eulália voltou para casa e, enquanto Hilda ia dar as ordens para o jantar, ela reuniu as crianças na sala. Depois de verificar que haviam estudado e tomado banho, disse:
- Sentem-se e vamos conversar.
Eles se olharam admirados. Ela nunca se dirigira a eles nesses termos. Parecia até que estava falando com visitas. Acomodaram-se logo. Ela continuou:
- Eu sei de tudo.
Eles se olharam e continuaram em silêncio à espera de que ela prosseguisse.
- Não precisam ter medo. Hoje descobri a verdade. A alma do coronel Firmino tomou conta de Norberto e obrigou-o a fazer coisas que ele não queria.
Eurico suspirou aliviado:
- Puxa!! Até que enfim! A senhora também o viu?
- Não fisicamente. Mas vi como seu pai mudou, fez loucuras, parecia outra pessoa. Cheguei a pensar que tivesse enlouquecido, mas o Dr. Marcílio conversou com ele como se fosse com o coronel, e ele respondeu tudo. Depois rezamos e ele acabou se arrependendo e concordando em ir embora. Não sei como é isso, mas parece que veio uma outra alma buscá-lo.
- Eu sei - disse Eurico. - Foi aquela mulher bonita que, sempre, que ele estava em meu quarto e eu rezava, aparecia e o levava embora.
Eulália admirou-se:
- Você a viu também?
- Vi. Ela é muito bonita e sorri para mim. Quando ele está me amolando e ela chega, ele fica como que esquecido de tudo e ela pega no braço dele e o leva.
- Por isso você sentia tanto medo! - considerou Eulália. - Sinto muito, meu filho, por não ter acreditado no que você dizia. Nunca pensei que isso pudesse ser verdade. Se soubesse, não teria vindo morar aqui.
- Não ia adiantar. Eu o via na outra casa também.
- Como assim? Não foi depois que nos mudamos para cá que ele começou a aparecer para você?
- Não. Desde pequeno que ele me persegue.
- Acho que agora ele não vai voltar mais - tornou Nico.
- Como é que você sabe? - perguntou Amelinha.
- Minha mãe sempre dizia que as almas do outro mundo aparecem quando se sentem infelizes e precisam de alguma coisa. Se nós rezamos, conversamos com elas para saber o que desejam, elas vão embora e nunca mais voltam - garantiu Nico.
- Tem certeza? - tornou Eurico. - Você conversou com a alma do coronel muitas vezes e ele sempre voltava.
- Eu conversei, mas ele não me levou a sério. Acho que é porque sou criança. Agora, com o Dr. Marcílio, que entende dessas coisas, vai ser diferente. Acho que estamos livres dele.
- Tomara. Fico arrepiado só em lembrar a cara dele!
Eulália levantou-se e abraçou o filho penalizada. As crianças haviam enfrentado tudo isso sozinhas e com muita coragem. Reconheceu que Nico era um menino especial.
Norberto entrou, colocou os livros sobre a mesinha e disse:
- Posso saber qual é o motivo dessa reunião?
- Eurico está me contando como ele via o coronel - respondeu Eulália. - Eles conversavam com ele e tentavam fazer o que o Dr. Marcílio fez.
Norberto admirou-se:
- Expliquem como é isso. Ele respondia?
- Respondia, sim, papai - confirmou Eurico.
Nico interveio:
- Bom, Sr. Norberto, o Eurico o via, ficava com medo, cobria a cabeça com o lençol, mas continuava vendo assim mesmo. Me chamava, contava o que ele estava lhe dizendo e eu tentava conversar para ver se ele desistia de assustar o Eurico.
- Ele só ia embora quando aquela mulher aparecia e o levava. - Vocês foram muito corajosos.
- Eu tinha muito medo - lembrou Amelinha.
- Eu também - afirmou Eurico.
- Eu não. Minha mãe sempre diz que as almas do outro mundo não podem nos fazer mal. Basta rezar e pedir a ajuda de Jesus, que somos protegidos.
Norberto e Eulália entreolharam-se. Estavam assustados mas ao mesmo tempo interessados em saber mais. A certeza de que depois da morte as pessoas continuavam a viver em outros mundos, de onde podem interferir na vida dos que ficaram, modificava todos os seus conceitos antigos. Indagações novas surgiam e eles queriam respostas. Havia muito que aprender nesse novo caminho, mas uma coisa era certa: as crianças falavam a verdade e, por mais incrível que pudesse parecer, eles acreditavam.
Sentados ao redor da mesa, na casa do Dr. Marcílio, Norberto, Eulália, Liana e Alberto, juntamente com os freqüentadores habituais, oravam na sala iluminada por pequena lâmpada azul.
Depois do que acontecera, Norberto e Eulália iam à casa do médico duas vezes por semana assistir às sessões, de onde saíam cada vez mais interessados. Ele aproveitara aqueles dias de férias para ler os livros que Marcílio lhes emprestara, e, se a princípio o fez movido pelo receio do que lhe acontecera, acabou descobrindo que atrás dos fenômenos que tanto o assustaram havia uma verdade maior revelando segredos da vida que ele nunca supusera possíveis, descortinando toda a perfeição do universo, fazendo-o refletir e compreender sua grandeza.
Estudando a reencarnação, encontrou respostas para todas as suas indagações com relação às aparentes injustiças das desigualdades sociais. Sentiu-se mais respeitoso para com o que ainda não podia compreender, entendeu que as pessoas podiam ser diferentes umas das outras, cada uma dentro do próprio processo de desenvolvimento espiritual.
Era sexta-feira, e no domingo ele teria de voltar a São Paulo. Suas férias haviam terminado. Era com pesar que regressaria à capital. As longas conversas que ele e Eulália mantiveram com o médico durante aquele período haviam esclarecido muito. Eles estavam cada vez mais desejosos de saber detalhes da vida astral, captação de energias, reencarnação, influências dos espíritos desencarnados, etc.
Marcílio sorria observando a euforia deles, comum a todos os que passam pelas primeiras experiências da mediunidade e obtêm provas da vida após a morte. Ele respondia o que podia com paciência, alertando para o uso do bom senso no trato com os desencarnados, com os quais é necessário ter os mesmos cuidados que se têm com as pessoas à nossa volta.
- Não podemos esquecer que nem todos os que estão vivendo na outra dimensão são pessoas elevadas. Os embusteiros, os maldosos que viveram aqui estão lá e continuam iguais ao que eram. A morte do corpo não modifica o nível de ninguém. Cada um continua sendo o que é.
- Não devemos evocar espíritos? - indagou Norberto.
- Nunca. A não ser quando chamamos os que sabemos superiores. Não estou me referindo a parentes nossos, mas a espíritos de alto nível, como Jesus, Maria, S. Francisco de Assis. Esses podemos evocar, a eles podemos nos ligar e pedir ajuda.
- Estava pensando em evocar a alma de minha mãe - disse Eulália. - Por que ela nunca veio às nossas sessões?
- O que sei é que, se lhe fosse permitido vir, ela teria vindo sem que a evocássemos.
Quando a manifestação de alguém que amamos é espontânea, vem acompanhada de sinais que provam sua autenticidade. Quando evocamos, nem sempre podemos afirmar que foi a própria pessoa quem compareceu. Depois, nossa evocação pode perturbá-Ia se estiver em recuperação, em fase de reencarnação ou mesmo já tendo reencarnado. O que acontecerá se pedirmos a ajuda de um parente desencarnado e ele estiver sem condições de nos atender? Ficará em conflito, sofrerá, algumas vezes até tentará nos socorrer e acabará por atrapalhar mais. Por isso, é preciso ter fé. Confiar. O importante é saber que a vida continua, que cada um é responsável por suas atitudes e atrairá para si fatos e pessoas em sua vida, conforme acredita e faz. O resto vai por conta de nossa insegurança, sempre esperando que os outros nos digam como proceder.
- Compreendo o que deseja dizer. Não basta saber, é preciso viver de acordo com o que acreditamos, senão estaremos apenas intelectualizando e não assimilando.
Marcílio sorriu satisfeito:
- Nada como falar com pessoas inteligentes. Você disse em poucas palavras o que eu quis dizer com toda essa conversa.
Sentado ao redor da mesa, Norberto pedia a ajuda de Deus para que ele pudesse encontrar a paz do coração. Naqueles dias em que haviam reatado as relações com Liana e Alberto, vendo-os juntos, muitas vezes ele sentira o coração apertado. Nessa hora se controlava pensando que Liana era feliz e ele desejava viver para sua família dali para a frente.
Depois do que acontecera, Eulália aproximara-se mais dele, interessada em estudar a medi unidade para poder apoiar Eurico. Estava lendo os livros que o Dr. Marcílio emprestara e os dois ficavam horas conversando sobre o assunto.
Norberto surpreendeu-se com a lucidez de Eulália, sua postura firme, interpretando o que liam com inteligência e perspicácia, muitas vezes esclarecendo suas dúvidas com certa facilidade e brilho. Se antes a admirava como esposa, passou a admirá-Ia como pessoa.
Cada dia que passava, mais e mais se arrependia de haver se deixado levar pela paixão a ponto de perder a paz e pôr em risco o futuro de sua família.
Amava os filhos, queria que eles o amassem e respeitassem. Começou a pensar que havia sido um erro ele ter ficado separado da esposa. Enquanto estiveram sempre juntos, ele não sentira nada por Liana. Pela primeira vez começou a duvidar da veracidade do amor que pensava sentir por ela.
Seria bom se ele pudesse ficar ao lado de Eulália o tempo todo. Mas tinha receio de pedir-lhe que voltasse a viver na cidade. E se Eurico piorasse novamente? Ele parecia tão bem! Não se lembrava de tê-Io visto assim tão disposto. Por outro lado, ele não podia abandonar os negócios e ir viver na mansão.
Naquele instante, Norberto pediu a Deus que o ajudasse. Estava arrependido e com vontade de viver em paz.
- Boa noite, amigos! - disse um dos médiuns presentes. - Venho novamente hoje agradecer a ajuda que recebemos de vocês. Finalmente Firmino está aceitando a verdade. Esse está sendo um importante passo para que vocês se libertem do passado e possam seguir adiante. Eu já relatei como começou esta história e hoje quero esclarecer mais alguns pontos. Eu só contei que Liana, que se chamava Mariquita quando se casou com Firmino, era uma jovem de rara beleza e vivia com seus pais e uma irmã um ano mais nova. Foram educadas com muita severidade. Inês, a irmã, não era tão bonita como Mariquita e sofria muito, ouvindo desde cedo as pessoas dizerem que elas nem pareciam irmãs. Sentia muita inveja e fazia o que podia para infelicitar Mariquita. Quando Inês descobriu que o jovem Gilberto estava apaixonado por sua irmã e lhe enviava bilhetes amorosos, pensou logo em conquistá-Io. Se ela o tirasse de Mariquita, certamente ninguém mais diria que ela era mais feia ou menos inteligente.
Para isso arquitetou um plano. Sabia que Firmino, filho de abastada família, estava apaixonado por Mariquita e que ela não o queria. Procurou o pai e contou-lhe que vira a irmã aos beijos com Firmino, dando a entender que tinham intimidade.
Furioso, o pai procurou o rapaz e exigiu uma explicação, e ele, em comum acordo com Inês, aproveitou e pediu a mão de Mariquita. De nada valeu Mariquita chorar, implorar, pedir. Nada demoveu seus pais, e acabaram se casando.
Inês fingiu-se amiga de Gilberto, que estava inconsolável pela perda de Mariquita, e acabou finalmente se envolvendo com ele. Casaram-se. Ela o amava de verdade. Entretanto, sentia que agira errado e, insegura, exigia cada vez mais atenção do marido, querendo que ele provasse constantemente seu amor e sua fidelidade.
A vida deles tornou-se um inferno. O ciúme dela era doentio. Ele queria filhos, mas ela o queria só para si. Não desejava dividir seu amor com os filhos. Foram infelizes, desencarnaram frustrados e angustiados.
Ao se encontrarem no astral depois da morte, souberam de todos os sofrimentos pelos quais Mariquita passara com o marido. Inês sentiu-se culpada pelos sofrimentos da irmã. Foi procurar Gilberto e contou-lhe toda a verdade. Choraram juntos.
- Se você ainda a ama - disse Inês -, estou disposta a ajudá-Ia a reconquistá-Ia.
Quando ele se foi disposto a procurar Mariquita, Inês sentiu-se muito só. Pela primeira vez lamentou-se por não ter filhos. Seus conhecidos tinham pessoas na Terra que eles amavam. Ela não tinha ninguém. Arrependida, lamentou o tempo perdido.
O tempo havia passado, mas Gilberto não havia esquecido o primeiro amor de sua juventude. Foi procurar Mariquita. Ela o recebeu com carinho. Porém, quando ele lhe falou do antigo amor, ela respondeu:
- Sei que está sendo sincero. Mas eu mudei. Depois de tudo que passei, não sou mais a mesma. Aqui, conheci uma pessoa que me tem ajudado a atravessar os desafios que a vida me enviou e me ensinado coisas novas. Eu o amo e é com ele que desejo ficar. Perdoe-me. Tenho certeza de que não sou eu a mulher de sua vida.
- É definitivo?
- É. Devo reencarnar em breve, terei ainda alguns desafios nessa encarnação. Ele vai nascer antes de mim e, quando chegar o momento, estará comigo para ajudar-me. Estou certa de que vamos vencer.
- E eu?
- Não se deixe envolver por uma ilusão. Nós nem sequer chegamos a nos conhecer melhor. Como sabe que nosso relacionamento daria certo? Depois, Inês ainda o ama. Por que não tenta entender-se com ela?
- Viver com ela foi difícil e frustrante. Não desejo viver aquilo tudo novamente. Depois, como pode dizer isso? Ela foi a causa de. sua infelicidade. Fez tudo para nos separar, e você ainda a defende?
- Não a culpo por minha infelicidade com Firmino. Se eu não tivesse necessidade de passar por essa experiência, nem sequer teria me casado com ele. Ela não teria conseguido nada.
- O que quer dizer com isso?
- Que eu precisava aprender essa dura lição, e ninguém a poderia evitar.
- Ela a invejava.
- Ela me amava e admirava tanto que gostaria de ser igual a mim.
Só que ela não acreditava no próprio valor, e por isso queria o impossível, que era ter o meu. Eu sei que ela é uma alma divina e que dentro dela há um ser maravilhoso, cheio de luz e beleza. Quando ela descobrir isso, nunca mais sentirá inveja de ninguém. Será feliz e espalhará a felicidade. Por que não tenta ajudá-Ia a descobrir sua riqueza interior?
Gilberto saiu de lá encantado com o que ouvira. Procurou por Inês para contar-lhe que fora recusado e Mariquita estava amando outro. E finalizou:
- Como vê, fui derrotado duas vezes. Ela garante que não é a mulher de minha vida.
A partir daquele dia eles se tomaram inseparáveis amigos. Inês procurara a irmã sem constrangimento e abraçaram-se com carinho.
Inês foi chamada e disseram-lhe que ia reencarnar. Ela alegou que estava arrependida do que fizera à irmã e desejava ajudá-Ia de alguma forma. Queria ter muitos filhos. Foi informada de que Mariquita seria sua irmã mais nova. Ela se casaria novamente com Gilberto e receberiam como seus filhos Mariinha e o filho dela que não chegou a nascer por causa do atentado que ela sofreu quando estava grávida. Naquele tempo, ela se recuperou, mas não pôde ter filhos. Esse espírito estava em um processo difícil e com muita dificuldade de nascer. Por atitudes que agora não vale a pena mencionar, ele havia lesado seu corpo astral. Por isso deu tanto trabalho desde que nasceu. Mas graças à dedicação de todos, ele melhorou muito e já conseguiu reequilibrar-se.
Temos certeza de que, de agora em diante, sua reencarnação se firmará. Só queremos que ele se dedique à mediunidade. Trouxe essa capacidade e o compromisso de libertar-se através do trabalho em favor dos que sofrem. Doando amor e energias, ele finalmente conseguirá o que tanto deseja: saúde e alegria.
Agradecemos a ajuda e queremos que continuem na fé em Deus e no caminho do bem.
A médium calou-se. Marcílio fez comovida prece de agradecimento e encerrou a sessão. Quando as luzes se acenderam, ninguém comentou. Todos estavam comovidos e pensativos.
Eulália via-se na pele de Inês, a irmã invejosa; Norberto sentia-se como Gilberto. Todos sabiam que o menino doente era Eurico.
Norberto criou coragem e pediu para falar com o Dr. Marcílio em particular, ao que Eulália indagou:
- Posso ir também?
- Claro - respondeu Norberto. - Venha. O que quero falar interessa também a você.
Foram para outra sala, acomodaram-se e Norberto começou:
- Estou muito emocionado, doutor. Esta noite tivemos revelações muito importantes.
- É verdade. Raramente podemos contar com tanta clareza. Se o fizeram, é porque vocês já têm esclarecimento para saber a verdade.
- Está claro que falavam de nós - disse Eulália. - Tenho certeza de que eu fui Inês.
- E eu Gilberto. Isso me explicou muitas coisas. Até a doença de Eurico. Nunca havia entendido por que ele nasceu tão diferente de Amelinha.
- Agora já sabem. Sabem também que ele está recuperado e daqui para a frente gozará de boa saúde.
- É sobre isso que desejo falar. Estou me sentindo muito só na capital.
- Não é bom para um homem ficar sozinho.
- Concordo, doutor. Eulália me faz muita falta. Porém estava disposto ao sacrifício por causa de Eurico. Mas agora. ..
- Depois do que ouvimos hoje, acho que já podem voltar para a capital.
Eulália sentiu-se emocionada com as palavras do marido. Norberto nunca lhe dissera que sentia sua falta. Ela também queria ficar ao lado dele.
- Eu gostaria muito de estarmos todos juntos. Será que Eurico não vai se ressentir?
- Penso que não. Acho que agora está na hora de ter vida normal, de ir para a escola como todos os meninos de sua idade.
- Só há um problema: Nico. Ele não vai querer separar-se dele lembrou Eulália.
- É verdade. Eu também gosto muito desse menino - esclareceu Norberto. - Ele é tão bom, ajudou tanto Eurico. Às vezes diz coisas que estão muito além do que dizem os meninos de sua idade.
- Trata-se de um espírito carismático. De um grande artista, esqueceram?
- Como sabe? - indagou Eulália.
Marcílio contou-lhes o que lhes fora revelado anteriormente sobre a vida de todos eles e finalizou:
- Por que não o levam para a cidade e financiam seus estudos?
Acho que ele merece e vai aproveitar. Seus pais são muito pobres, como sabem. Ele nunca terá chance ficando aqui.
- É uma boa idéia - concordou Eulália, satisfeita. - Ele é muito apegado à mãe. Será que vai aceitar?
- Ela vai aceitar - garantiu Norberto. - Ama o menino, e é o futuro dele que está em jogo. Depois, continuaremos a vir para cá e ele poderá ir ver a família.
- Nesse caso penso que Eurico vai querer ir - concluiu Eulália.
Liana e Alberto saíram da casa do médico em silêncio, sem esperar pelos demais. Cada um ia imerso nos próprios pensamentos, sem coragem para abordar o assunto.
Por fim Alberto disse:
- Esta noite pudemos compreender muitas coisas.
- É verdade.
- Deu para saber que seu antigo apaixonado de outros tempos conserva no coração o mesmo amor. Está claro que se trata de Norberto. Ela baixou a cabeça, pensativa. Chegaram em casa pouco depois. - Vou preparar um chá. Você quer?
Ele concordou e ela foi à cozinha, enquanto ele se sentou na sala pensativo. Por que Liana havia recusado o amor de Norberto antes de reencarnar e depois se apaixonara por ele? A quem ela se referira ao dizer que estava amando outra pessoa? Ao pensar nisso seu coração se descompassava. Teria sido ele? Teriam estado juntos no astral e combinado o casamento? Teria sido por amor?
Ele sempre se sentira atraído por Liana. Fizera grande esforço para banir esses pensamentos, porque não queria mais se envolver com ninguém por amor depois da experiência desastrosa que tivera com o casamento.
A idéia de se casar com Liana para ajudá-Ia teria sido sincera ou apenas um ardil que inconscientemente usara para enganar-se e mergulhar sem medo nesse casamento? Se fosse com outra pessoa, teria se casado?
Estava confuso. Não conseguia encontrar as respostas com clareza. Liana chamou-o para tomar o chá com biscoitos. Ele se sentou à mesa e serviu-se em silêncio. Foi Liana quem falou:
- Não consigo esquecer o que ouvimos esta noite. Deu voltas à minha cabeça. Parece que à sua também.
- Confesso que sim. Há muitas perguntas sem resposta circulando dentro de mim.
Ela pensou alguns instantes, depois respondeu;
- Comigo ocorreu o contrário. Encontrei respostas para muitas coisas que me aconteceram nesta vida.
- Quais, por exemplo?
- Por que Norberto se interessou por mim.
- Ele gostava de você e continua gostando. Mas e você? Por que o recusou lá e o amou aqui?
- Não sei. O fato é que saber tudo me deu calma. Pela primeira vez comecei a pensar que meu amor por ele não passou de uma ilusão. Devo confessar: depois de nossa reconciliação, quando voltamos a freqüentar sua casa, ele me pareceu outra pessoa. Percebi atitudes e particularidades nele que antes não havia observado. Algumas vezes cheguei a questionar meus sentimentos, percebendo claramente que ele não tinha nada para me atrair. Mas eu recusava aceitar esse pensamento. Se não era amor, eu me entregara a ele por atração física. Eu não quero aceitar que posso ser venal.
- Muitas vezes fiquei com receio de que, voltando a conviver com ele, ficasse mais difícil para você esquecê-Io. Se por um lado gostei que fizesse as pazes com sua família, por outro senti muito medo. Cheguei a desejar que as férias dele acabassem e que ele fosse embora.
Liana olhou-o nos olhos e tomou:
- Você sabe o quanto estou arrependida daquela fraqueza. Nunca mais quero passar por isso. Eulália e as crianças merecem respeito. Se eles soubessem a verdade, eu morreria de vergonha. Por haver fraquejado, quase enlouqueci. Minha consciência não suporta uma atitude como essa. Pode ter certeza de que estou imunizada definitivamente. Se fui capaz de resistir ao assédio de Norberto mesmo quando me julgava apaixonada, agora que percebi meu engano posso ficar com ele a sós em qualquer lugar sem que me sinta tentada a nada.
Alberto segurou a mão de Liana, apertando-a com força, e perguntou: - Tem certeza de que não o ama mais?
- Tenho. Esta noite, quando aquele espírito relatou que ele me havia procurado e eu não o aceitara dizendo que amava outro, tudo ficou claro em minha cabeça. Sei que ele não é o homem de minha vida!
Pode imaginar como me sinto feliz? O pensamento de que eu estava roubando o marido de Eulália me esmagava. Agora estou livre. Eu o havia devolvido a ela antes e estou contente porque mesmo sem me lembrar de nada eu me recusei a fugir com ele e a aceitar seu amor. Tenho me sentido muito bem ultimamente. Nossas conversas, seu apoio, seu carinho, sua proteção devolveram-me a alegria de viver.
A ajuda espiritual, o Dr. Marcílio, os amigos têm sido uma bênção que nunca poderei pagar. E esta noite completou minha cura. Não me sinto mais culpada pelo que aconteceu com Norberto. Foi ocasional. Ele estava longe da esposa; eu, carente de afeto.
- Mas ele continua amando você.
- Não creio. Reparou como ele e Eulália conversam e estão sempre juntos?
- É verdade.
- Isso não acontecia antigamente. Penso que eles foram feitos um para o outro e estão descobrindo isso. O casamento deles foi um arranjo em que o amor ficou em segundo plano. Sinto que estão mudando. - Pode ser. Desejo sinceramente que eles se entendam e se amem.
- Eu também.
No domingo, Eulália convidou-os para almoçar na mansão. Norberto iria embora no fim da tarde. As crianças estavam agitadas, e, assim que Alberto chegou com Liana, já os esperavam no jardim.
Foi Amelinha quem falou primeiro:
- Tenho uma novidade, tia...
- Língua comprida! Deixe que eu falo! - gritou Eurico, tentando empurrá-Ia para trás.
- Calma - pediu Liana. - Cada um fala por sua vez!
- Eu sou primeira!
- Nós vamos voltar a morar na cidade! - disse Eurico, eufórico. - Está vendo, tia? Ele não tem educação mesmo. Nem me deixou falar.
- É verdade? - indagou Alberto.
- É - disse Amelinha rapidamente, antes que Eurico respondesse. - E Nico também vai!
- Você tinha de falar, sua linguaruda!
- É verdade, Nico? Você vai para a cidade com eles?
- Vou, Liana. A Dona Eulália foi pedir à minha mãe para eu ir morar com ela na cidade para estudar com o Eurico. Ela deixou.
- Que bom, Nico! - tornou Alberto, contente. - Já resolveu que carreira vai seguir?
- Ainda não sei. Mas estou um pouco nervoso. A vida da cidade é diferente.
- É. Mas é muito boa também - explicou Alberto. - Você vai gostar, tenho certeza.
Depois do almoço, enquanto as crianças brincavam no jardim, eles foram tomar o café na sala de estar, e Eulália comentou:
- Nós vamos voltar a morar em São Paulo.
- As crianças já nos contaram as novidades - disse Liana.
- Norberto sente-se muito só. Está com saudade da família. Falamos com o Dr. Marcílio, que nos garantiu que Eurico já está forte o bastante para levar vida normal. Aliás, ele precisa ir à escola como os outros meninos.
- É verdade - disse o professor. - Ele é muito inteligente e aprenderá depressa. É só vocês não entrarem no jogo dele e tudo irá bem.
- Esse eu conheço bem. Ele se aproveitava de sua debilidade física para nos chantagear. Conseguia porque naquele tempo estava doente mesmo, passava mal, mas agora está saudável. Acabou aquela anemia. Não conseguirá mais nada.
- Eurico é um bom menino. Basta valorizar suas qualidades reais e não dar importância às manifestações de seu mimo - garantiu Alberto.
- Não posso esquecer que foi você quem o ensinou a gostar de aprender. Você e Nico. Esse menino vale ouro - reconheceu Eulália.
- Se depender de mim, pretendo ajudá-Io a progredir na vida interveio Norberto. - Sou muito reconhecido a ele.
- Além de bondoso, tem inteligência acima dos meninos de sua idade. Várias vezes me surpreendeu com suas palavras - tornou Alberto.
- A mãe dele é uma mulher maravilhosa - aventou Eulália.
Adora Nico. Ele sempre foi seu companheiro dedicado. O marido é um inútil e nenhum de seus outros filhos é como Nico. É com ele que ela costuma conversar mais. Mas, quando lhe pedi para deixá-Io mudar-se conosco para São Paulo, ela concordou. Em seus olhos brilhava uma lágrima, mas ela garantiu que a felicidade dele e seu futuro estavam em primeiro lugar. Disse que ele gostava muito de nós e ela tinha certeza de que ele seria muito feliz em nossa casa.
- Comove o amor dessa mulher pela família. Enquanto o marido é um encostado, ela trabalha duro para mantê-Ios. Sem revolta, até com alegria, vai vivendo sua vida - declarou Norberto.
Eulália interveio:
- Não sei se vocês sabem, mas, quando ajustei Nico para fazer companhia a Eurico, ele trabalhava para ajudar a mãe. Fiz um trato com ele, dando-lhe um pequeno salário para que sua mãe não sentisse falta da ajuda que ele lhe dava. Era um valor insignificante. mas ele o aceitou com dignidade e só assim concordou em ficar aqui.
Agora que ele vai conosco, Norberto resolveu mandar uma mesada a Dona Ernestina. Assim ela não precisará trabalhar tanto.
- Vou sentir falta de vocês, principalmente das crianças - disse Liana.
- Por que não voltam a morar em São Paulo? Gostaria muito de ter vocês por perto - sugeriu Eulália.
Foi Alberto quem respondeu:
- Eu gosto daqui. Por enquanto não pensamos em nos mudar.
- É verdade. Agora que estou melhor sinto vontade. de voltar a lecionar.
- Não desejo ser indelicada - tornou Eulália -, mas gostaria de perguntar uma coisa a você, Alberto.
- Pergunte o que quiser.
- Quando você veio para cá, disseram-nos que você aceitou dar aulas para as crianças como um complemento de sua renda mensal. Desde que interrompemos essas aulas, esse dinheiro não lhe tem feito falta?
- Felizmente não. Tenho trabalhado para revistas e jornais, que pagam pelos artigos.
- Não seria melhor você voltar a trabalhar em São Paulo? - indagou Norberto. - Tenho certeza de que ganharia muito mais.
- Mas gastaria muito mais.
- Pretende se enterrar aqui para sempre? - perguntou Eulália.
- Gosto deste lugar. Pode ser que amanhã eu mude, mas no momento a calma, a simplicidade, a paz daqui têm sido inspiradoras. Sinto que estou mais perto de mim mesmo, de meus sentimentos.
- E você, Liana o que diz? - perguntou Eulália.
- Também gosto daqui. Estou me recuperando e essa calma também tem me ajudado a recolocar a cabeça no lugar.
Era noite quando eles se despediram. No trajeto de volta, Alberto não se conteve e perguntou:
- Você gosta mesmo de ficar morando aqui? Agora que a crise passou, não deseja ir viver na cidade, retomar o fio de sua vida normal?
- Não sei se estou pronta para retomar alguma coisa em minha vida. Tenho sentido vontade de voltar a lecionar, de me ocupar. Sempre fui pessoa ativa. Depois, estou sendo pesada a você. Além de me ajudar, tem pago todas as despesas da casa. Não é justo.
- Se é por isso que deseja retomar as aulas, não precisa. O que ganho dá e sobra para as nossas despesas.
- Não é só por isso. Você tem sido bom demais. Não quero abusar. Depois, estava habituada a ter meu próprio dinheiro, a pagar minhas despesas. Já fez muito por mim. Nunca poderei pagar o bem que me fez.
Alberto calou-se.
Chegaram em casa. Ele apanhou um livro e sentou-se no escritório para ler. Porém nem sequer o abriu. Permaneceu assim em silêncio até que Liana o procurou:
- Você quer alguma coisa, um chá ou um café?
- Não, obrigado.
- Já vou dormir. Boa noite.
Ele a olhou sério, depois disse:
- Talvez esteja na hora de conversarmos sobre as nossas vidas. - O que quer dizer?
- Combinamos que, quando tudo estivesse resolvido, nós nos separaríamos.
Ela estremeceu ligeiramente:
- Acha que já está na hora?
- Não sei. Fiquei pensando em suas palavras de há pouco. Não desejo que se sinta tolhida em sua liberdade. Se deseja voltar a São Paulo, recomeçar a vida de outra forma, lecionar, não se prenda por nada. Esse foi o nosso trato. Quando quiser romper, basta falar. É justo que deseje cuidar de seus interesses.
- Não estou aqui me sentindo presa. Ao contrário. A seu lado tenho me sentido livre como nunca havia sido. Antes eu vivia sob os olhos de Eulália, que é muito boa, mas, desde que nossa mãe morreu, assumiu que devia cuidar de mim e tomou conta de minha vida. Depois, vivi esmagada pelo peso da culpa. Você me ensinou a perceber melhor as coisas. Respeitou-me e deu-me toda a liberdade.
- Se é assim, está bem. Quando resolvi cooperar com você, foi de coração. Só não quero que se sinta no dever de ficar a meu lado por gratidão. Quero deixar claro que, quando desejar ir embora, é só falar.
- Talvez esteja na hora de eu ir mesmo. Acho que já lhe dei trabalho demais. Você tem o direito de viver sua vida sem se ocupar com meus problemas. Vou pensar e resolver o que fazer.
- Acho que não entendeu. Gosto de sua companhia. Tenho prazer em que fique aqui para sempre. Estou pensando apenas em você. Desejo que se sinta livre para escolher seu futuro. Agora você pode.
- Vou pensar. Boa noite.
- Boa noite.
Alberto sentiu um aperto no coração, mas controlou-se. Por que tocara naquele assunto? E se ela resolvesse partir?
Percebeu que não queria que ela se fosse. O que faria de sua vida quando ela o deixasse? Estava acostumado a seu sorriso pela manhã, a seu olhar confiante e carinhoso, às conversas inteligentes no aconchego da sala de leitura, onde trocavam idéias a respeito da vida e de tudo.
Reconhecia que sua presença trouxera encanto nas pequeninas coisas, dera-lhe motivação para ornamentar o jardim, a casa, olhar a vida de forma mais otimista, interessar-se pela própria aparência. Quando saía, desejava voltar logo para casa para sentar-se a seu lado, naqueles momentos de intimidade na cozinha, tomando chá e conversando.
Percebeu que uma lágrima caía, e ele a deixou fluir. Liana havia se tomado indispensável em sua vida. Ela era a mulher que sempre desejara ter a seu lado. Lembrou-se com clareza da força que precisava fazer para controlar o desejo de abraçá-Ia, de beijar-lhe os lábios, de se entregar àquele amor que descobria agora em toda a sua plenitude.
Ele amava Liana! Sempre a amara, desde o dia em que a vira pela primeira vez. Como pôde ser tão cego? Como pôde confundir o amor com uma simples atração física e banal?
Ele não podia demonstrar o que sentia. Ela era muito bondosa. Estava frágil e sensibilizada pelas emoções que passara. Se lhe contasse a verdade, ela o aceitaria por gratidão.
Ficou ali, pensando. Se ela o amasse, seria a glória. Mas nunca notara nela nenhum traço desse sentimento. Ele era apenas o amigo que a ajudara no momento difícil. Por isso decidiu: ela nunca saberia de seus verdadeiros sentimentos.
Ouviu o ruído de alguns trovões, a chuva despencou lá fora com força, lavando a poeira dos telhados e das ruas. Ele deixou também que as lágrimas lavassem sua alma naquele momento de descoberta e de amor.
Liana entrou em casa satisfeita procurando Alberto. Ele estava no escritório trabalhando um artigo para o jornal. Vendo-o, ela foi logo dizendo:
- Começo a trabalhar na segunda-feira. Consegui.
- Como você queria?
- Isso. Ficarei como substituta por pouco tempo. Logo reassumirei a cadeira.
Ele a fixou sério e perguntou:
- Tem certeza de que prefere lecionar em Ribeirão Preto? Se desejar, pode pedir transferência para São Paulo.
Ela se aproximou dele sustentando o olhar:
- Você quer que eu faça isso? Ultimamente tem sugerido que eu mude para lá. Tenho impressão de que deseja retomar sua privacidade.
Se for assim, pode dizer que irei embora.
Ele se levantou e colocou a mão no braço dela sem desviar os olhos: - Ao contrário. Se for embora, sentirei muito sua falta. Mas não se trata de mim. Às vezes penso que você fica aqui comigo por gratidão. Notou que gosto de sua companhia, quer cuidar de sua vida, mas fica só para me agradar.
- Você está enganado. Sou grata a você, sim, mas se desejasse ir embora iria. Você me ensinou a viver. A seu lado encontrei carinho, respeito, dedicação. Não penso em ir embora, não. Para onde iria? - Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e ela continuou com voz trêmula: - Não consigo imaginar minha vida sem você. Pode parecer egoísmo, mas esta casa, nossas conversas, as sessões na casa do Dr. Marcílio tornaram-se indispensáveis. Gosto de ficar cuidando de minhas coisas sabendo que você está aqui, trabalhando. Que a qualquer momento vai me chamar para trocar idéias, contar-me alguma coisa boa ou para tomarmos um café juntos...
Ela parou, tentando conter as lágrimas. Alberto olhava-a sustendo a respiração, descobrindo não só em suas palavras mas na emoção que percebia em seus olhos que seu amor tinha chance de ser correspondido.
Abraçou-a, apertando-a de encontro ao peito, sentindo seu coração bater mais forte. Procurou seus lábios e beijou-a, extravasando toda a emoção de seu amor reprimido.
Sentindo que ela correspondia, ele a beijou repetidas vezes.
- Eu amo você, Liana! Muito, muito!
Ela o apertou com força, dizendo baixinho:
- Quanto desejei este momento! Se estiver sonhando, não quero acordar!
Beijaram-se muitas vezes. Alberto puxou-a para o sofá:
- Diga que também me ama! Que deseja viver para sempre a meu lado!
- Amo! Amo! Amo! Tanto que estava difícil ficar perto de você sem o tocar.
- Quando descobriu que gostava de mim?
- Logo depois que Norberto se libertou do espírito do coronel Firmino, comecei a notar que quando você estava ausente eu ficava ansiosa esperando sua volta. Quando você ficava muito próximo ou me tocava de alguma forma, minhas pernas tremiam, meu coração acelerava e eu queria ficar mais perto. Imaginava como seriam seus beijos, e estremecia só em pensar nisso. E você, desde quando soube que me amava?
- Senti-me atraído por você desde que a vi, mas julgava que fosse apenas uma atração física. Você é bonita, inteligente, agradável. Lutei muito para vencer essa atração. Você amava outro homem e eu não queria misturar as coisas. Você estava muito machucada e eu não queria me aproveitar de suas fraquezas.
- Nunca notei seu interesse. Só amizade.
- Fiz tudo para que fosse assim. Depois da mudança de Norberto, quando ele reassumiu a família, seu problema estava resolvido. Ele nunca mais a incomodaria e Eulália nunca desconfiaria de nada. Havíamos alcançado nossos objetivos e você não precisaria mais ficar comigo, estava livre para ir embora. Então descobri que a amava de verdade. Talvez a tenha amado desde o primeiro dia. Se olhar bem no fundo do meu coração, talvez possa até dizer que por trás de minha proposta de casamento já havia a esperança de vir um dia a conquistar seu amor. Só que não confessava nem a mim mesmo.
- Eu quero falar de meus sentimentos.
- Há uma pergunta que sempre tive medo de lhe fazer. Você ainda sente alguma coisa por Norberto?
Ela sacudiu a cabeça negativamente:
- Não. O que eu sentia por ele não era amor. Foi mera atração. Ficamos os dois sozinhos na mesma casa durante algum tempo. Ele longe da esposa e eu sonhando com um amor, querendo descobrir a vida. Não estou querendo justificar minhas fraquezas.
Eu errei e paguei um preço alto por meus erros. Mas hoje já posso compreender como nos deixamos levar em um jogo perigoso e traiçoeiro. Envolvemo-nos em uma paixão que nos tornou infelizes enquanto durou.
- Aconteceu o mesmo comigo e Eugênia. Só que éramos livres e casei-me com ela, para arrepender-me em seguida. Foi paixão, e a paixão provoca sofrimento enquanto dura.
- Senti-me aliviada quando percebi que Norberto havia mudado. Não me olhava mais com aquele fogo de antes, mas até com certa reserva, como querendo dizer-me que não sentia mais por mim nenhuma atração, que eu podia ficar em paz porque ele não iria mais me perturbar.
- Notei isso também. Tanto que às vezes me pergunto até que ponto o que houve entre vocês dois teria sido provocado pelo espírito do coronel Firmino.
- Você acha possível?
- Não quero com isso tirar a responsabilidade que lhes cabe nos fatos. Claro que poderiam não ter se deixado envolver pelas energias dele. Mas ele sabendo que Norberto em outra vida havia se interessado por você pode tê-Io envolvido para conseguir seus propósitos. Quando ele finalmente foi afastado, Norberto voltou ao normal, desejando dedicar-se à sua família.
- Você pode estar certo. Norberto mudou completamente depois que o coronel foi afastado. Voltou a ser como era quando se casou com Eulália. Pelo menos da parte dela, não foi por amor, mas agora acho que ela aprendeu a gostar dele.
- Apesar do que houve, não há como negar que ele tem muitas qualidades.
- Uma família! Vê-Ios bem é meu maior desejo.
- Agora falemos de nós. Preciso saber o que você pensa, se quer ser minha esposa de verdade e ficar comigo pelo resto da vida.
Liana passou as mãos ao redor do pescoço dele e beijou-o nos lábios com amor. Depois disse:
- Quero ficar com você para sempre, seja onde for.
Emocionado, Alberto apertou-a de encontro ao peito, beijando-a nos lábios. Depois se levantou, tomou-a nos braços e levou-a para o quarto de casal, onde ela durante todos os meses de casamento dormira sozinha.
Deitou-a sobre a cama, dizendo emocionado:
- Hoje é o dia mais feliz de minha vida!
Ela o puxou para si e esqueceram tudo o mais, entregando-se completamente aos sentimentos que os uniam, assustados diante da profundidade e do volume das emoções que nunca haviam experimentado antes, percebendo a importância daquele amor em suas vidas.
As semanas que se seguiram foram de encantamento. Estavam felizes e radiosos. O Dr. Marcílio notou a mudança, e, quando eles lhe contaram o que acontecera, comentou:
- Eu sabia que vocês se amavam. Vocês foram feitos um para o outro. Serão muito felizes.
Fazia apenas um mês que Eulália havia voltado com a família para São Paulo e mandava notícias regularmente.
Apesar de estarem no segundo semestre, as crianças haviam conseguido matricular-se em um bom colégio e estavam acompanhando regularmente as aulas.
Tudo para eles era novidade. Principalmente para Nico, sempre entusiasmado com tudo que via. Sua inteligência, alegria, disposição, boa vontade encantavam professores e até colegas. Claro que havia os que o invejavam e tentavam aproveitar-se dele, percebendo tratar-se de um menino do interior que nunca havia estado em uma grande cidade. Mas, apesar de encantado com as novidades, ele era muito arguto, tinha bom senso e não se deixava enganar. Acabava levando a melhor.
Os três eram inseparáveis. Eurico não fazia nada sem ele e às vezes ficava com ciúme dos colegas que, atraídos por seu carisma, estavam sempre à sua volta convidando-o para jogos ou brincadeiras.
Mas Nico não dava importância ao mau humor de Eurico nesses momentos. Ao contrário, conversava com ele, fazendo com que participasse também, colocasse para fora suas idéias, e ficava feliz quando ele conseguia mostrar-se inteligente e criativo.
Eulália sentia-se realizada. Finalmente seu filho estava levando vida normal. À noite, depois que as crianças se recolhiam, Eulália ficava conversando com Norberto.
Falavam dos filhos, dos livros espiritualistas que estavam lendo, comentavam o que lhes acontecera, e Norberto surpreendia-se com a lucidez da esposa. Ela tinha idéias práticas, objetivas e claras. Reconhecendo isso, aos poucos ele começou a conversar com ela sobre seus negócios.
Obteve dela colaboração eficiente, e isso o deixou orgulhoso e agradecido. Nesses momentos, arrependia-se amargamente do que fizera. Tendo a seu lado uma mulher tão maravilhosa como Eulália, por que se deixara iludir, envolvendo-se naquela paixão terrível?
Nesses momentos, olhando-a tão segura, confiante e fiel a seu lado, tão companheira, sentia terrível remorso.
Prometia a si mesmo que nunca mais a trairia.
Uma noite em que ele estava pensando no assunto, Eulália aproximou-se dizendo:
- Há momentos em que me pergunto para onde vai seu pensamento. Você fica tão distante!
- Impressão sua.
- Agora que temos conversado mais, posso dizer que muitas vezes cheguei a pensar que você se arrependeu de haver se casado comigo.
Ele a olhou admirado. Durante todos aqueles anos de casamento, Eulália nunca havia levado a conversa para o lado pessoal. Teria percebido alguma coisa?
- Por que diz isso? Sempre fui dedicado a você e à família.
- Não estou me queixando de nada. Mudemos de assunto.
- Não. Sinto que precisamos conversar sobre nossos sentimentos.
Nunca falamos sobre eles.
- É difícil para mim.
- Posso compreender. Você foi educada de maneira antiquada e muito rígida. Notando isso, nunca toquei no assunto.
- Nem sei por que comecei a falar de nós. Você tem sido um marido muito dedicado e não quero que pense que estou insatisfeita com alguma coisa. O único problema que tínhamos era a saúde de Eurico. Graças a Deus vencemos. Ele está bem.
Norberto aproximou-se dela, segurou sua mão e disse:
- Embora você nunca me tenha dito, sei que se casou comigo sem amor, apenas para obedecer a seus pais.
- É. De fato. Eu era muito nova, tinha a cabeça cheia de ilusões, fazia do amor alguma coisa distante. Não pode considerar isso. Eu não sabia o que queria. Penso que meus pais sabiam o que era melhor e fizeram a escolha certa.
- Eu preferia que tivesse sido diferente.
- Diferente como?
- Que você me tivesse amado desde o princípio. Que houvesse se casado comigo por amor, conforme seus pais me disseram.
- Por quê? Eu não o conhecia como agora. Não podia amá-lo. Era tímida e minha mãe nunca falou comigo sobre o amor, a não ser de maneira superficial durante nosso noivado.
- Alguma vez gostou de alguém, antes de me conhecer?
Eulália corou um pouco mas sustentou o olhar.
- Não. Mas desde que minha mãe falou comigo sobre como deveria ser uma boa esposa, tenho me esforçado para não o decepcionar. Do jeito que fala, você dá a entender que esperava mais... - calou-se, um pouco embaraçada.
- Não nego que tinha minhas ilusões. Sonhava ser amado com paixão. Sabe como é, fantasias da mocidade.
- Eu não sabia.
- Você não me amava mesmo. Percebi logo no início de nosso casamento.
- Sempre o tratei com carinho e atenção.
- Eu sei. Mas faltava o fogo do amor.
Eulália olhava-o surpresa. Na educação rígida que recebera, sua mãe sempre dizia que a paixão carnal era pecado. Que a mulher precisava preservar sua pureza mesmo no casamento para ser digna da família e dos filhos.
Eulália nunca se permitira qualquer gesto que pudesse revelar seus desejos de contato e relacionamento sexual. Nunca tivera qualquer iniciativa nesse sentido. Esperava que o marido a procurasse e entregava-se a ele preocupada que ele se sentisse satisfeito e feliz.
- Esperava isso de mim?
- No início. Mas não era do seu temperamento.
- Sempre pensei que estivesse sendo uma boa esposa...
- E é. Nem sei por que estou falando isso. Você tem sido excelente mãe, boa esposa e companheira. Talvez melhor do que eu mereça. Estou feliz com a família que construímos.
Eulália não respondeu. Mas a partir daquele dia não podia esquecer aquelas palavras. Norberto estava mudado. Ela sentia. De vez em quando percebia em seus olhos um brilho emotivo diferente do habitual. E pensava: se ela não fora a mulher que ele desejava, ficara decepcionado. Como seria a mulher que ele idealizara? O que ele esperava de uma mulher que o amasse?
Mas ela sentia que amava o marido e o quanto ele era importante em sua vida. Mas seria amor mesmo ou apenas convivência, hábito, apoio?
Eulália, que antes nunca questionara seus sentimentos, que sempre aceitara resignada o que a vida lhe dera, começou a prestar atenção às suas emoções, tentando entender o que o marido dissera.
Tinha vontade de conversar com alguém que pudesse ajudá-la a esclarecer seus sentimentos. Mas não se sentia com coragem de abrir-se.
Antes do Natal eles decidiram passar férias na mansão.
Estavam satisfeitos, porquanto as crianças finalmente haviam conseguido completar o quarto ano primário e preparavam-se para o ginásio.
Foi com alegria que se prepararam para essas férias. Liana, que durante esse tempo supervisava os trabalhos dos caseiros da mansão, sentiu-se feliz com a vinda deles.
Foi com alegria que avisou a mãe de Nico e cuidou de tudo para que eles fossem recebidos com carinho.
No dia da chegada, Liana mandou preparar um bom jantar na mansão e colocou arranjos de flores pela casa. Desde cedo ela e Alberto haviam ido lá cuidar dos preparativos.
Quando os dois carros chegaram com a família, os criados e as malas, eles estavam na porta esperando.
Abraçaram-se contentes. As crianças falavam sem parar, querendo saber como estava tudo, fazendo tanto ruído que Eulália lhes pediu que saíssem e fossem conferir pessoalmente o jardim, os passarinhos, as plantas.
Liana acompanhou Eulália até o quarto, onde as malas já estavam, e, uma vez lá, cobriu a irmã de perguntas, sobre a escola, as crianças.
Eulália contava feliz os progressos dos filhos, dizendo que sua melhor decisão foi colocar Nico ao lado deles. A certa altura, ela perguntou: - E você, como vai? Estou vendo que está muito bem de saúde. - É verdade. Estou feliz.
- Olhando para você posso perceber. Há uma luz em seus olhos que eu gostaria muito de ter.
- Noto que há uma ponta de tristeza em sua voz. O que foi, não se sente feliz?
- Reclamar seria até pecado. Tudo está bem em nossa vida agora. - Então o que é?
Eulália hesitou um pouco, depois respondeu:
- Ultimamente venho questionando muito meus sentimentos.
Sinto-me angustiada, insegura.
- Você? Sempre foi uma pessoa prática, que sabe o que quer.
- Não é bem assim. Sou ignorante em questões de amor. - Seu rosto cobriu-se de rubor e ela continuou: - Viu? Só em falar nisso fico encabulada. Não sei mais o que é certo e o que é errado. Não tenho sido para Norberto a esposa que ele esperava.
Liana sobressaltou-se. Segurou a mão da irmã e disse:
- De onde tirou essa idéia? Você é uma mulher maravilhosa.
- Norberto deu a entender que ficou decepcionado comigo porque eu não o amava como ele deseja.
- Ele não pode dizer isso... Você tem se dedicado exclusivamente a ele. Está sendo injusto.
- Ele não reclamou, e foi isso que mais me impressionou. Ele se conformou em viver com uma mulher que não tem, como ele disse, "o fogo do amor" que ele desejava quando se casou.
- Ele disse que você é uma mulher fria? É isso que ele pensa? - Não disse assim, mas deixou transparecer.
- Pois eu penso o contrário. Você era uma menina tímida e inexperiente quando casou. Ele é quem precisava saber despertar esse fogo de amor que desejava.
Eulália meneou a cabeça negativamente:
- Não sei o que dizer. Ele pode estar certo. Venho tentando descobrir se um dia eu seria capaz de amar da forma como ele gostaria. - É difícil querer ser como os outros desejam.
- Nesse assunto me sinto perdida. Eu mesma não sei como eu sou. - Ninguém pode saber isso se não experimentar.
- Fica difícil. Não teria coragem para tentar uma experiência dessas.
- Por que não?
- Teria vergonha. Ele pode pensar que sou uma mulher vulgar. - Você é ingênua, Eulália. Além de tudo, preconceituosa. Norberto é seu marido. Entre vocês o amor deve ser livre. Não tenha vergonha de mostrar seus sentimentos.
- A vida inteira não me permiti sentir. Quando ele me beija, fico tentando não desagradá-Io. Nunca digo o que sinto.
- Quando ele não a procura, nunca sentiu vontade de fazer amor?
- Bem, já. Mas controlo. Não fica bem a uma mulher procurar. O papel da mulher é ser passiva.
Liana olhou admirada para ela e pensou: se Eulália houvesse sido diferente, o incidente entre Norberto e ela teria acontecido?
- Você está enganada, Eulália. O amor não existe de um lado só.
É uma parceria em que os dois se descobrem e trocam experiências. - Não sei se saberia amar dessa forma.
Liana sorriu:
- Você está longe de ser uma mulher fria. Antigamente eu pensava que você fosse equilibrada, controlada. Mas descobri que é uma mulher forte, cheia de vida e de vontade. Dentro de você há uma fogueira que já começa a arder. Quando ela emergir, não poderá segurar.
- Não diga isso. Não quero fazer nada errado.
- A única coisa errada no amor é tentar impedir sua manifestação.
- Não sei como fazer isso sem ir contra meus princípios.
- É hora de entender seus sentimentos, não de agarrar-se em princípios e regras que a educação errada colocou em sua cabeça.
Eulália baixou os olhos pensativa e Liana continuou:
- O mais importante é saber se você ama Norberto.
- Claro que amo. Não poderia viver sem ele.
- Estou falando de amor, não de companheirismo ou de convivência. Precisa observar o que você sente quando ele a toca, que emoções surgem quando ele a acaricia. Não dar ouvidos aos pensamentos que passam por sua cabeça, mas ao que seu coração está sentindo, o que seu corpo quer nessa hora. Se fizer isso, saberá diferenciar amor de amizade. É isso que precisa descobrir.
- E se for só amizade, e se eu não for capaz de amar?
- Por que se precipita? Não pense nada. Experimente apenas. Sinta. Observe.
- É. Talvez possa fazer isso. Ele nem vai notar.
Liana sorriu ao responder:
- Vamos ver o que acontece. Experiência é experiência. Não deixe que a cabeça interfira. Nessa hora, deixe-se apenas sentir e abra mão de qualquer controle. Permita-se fazer apenas o que sente.
- Não me parece tão fácil como você diz. Às vezes percebo que estou dividida em duas. Sempre que estou fazendo alguma coisa, tomando alguma atitude, há um lado meu observando, criticando, julgando, dando opinião. Mamãe costumava dizer que em tudo precisávamos ter discernimento. Analisar para evitar erros.
- Eu me lembro. Ela dizia que os olhos de Deus estavam sempre nos observando, conhecendo nossos pensamentos mais íntimos. Durante anos me senti como você, dividida entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, entre a crítica e a aprovação.
- Então pode entender como me sinto.
- Entendo e sei que essa maneira de pensar impede nosso progresso como pessoa, apaga nossa luz natural, anula a ousadia, a criatividade, e nos transforma em pobres prisioneiros de nosso próprio juiz. Um juiz severo que a pretexto de evitar erros e sofrimentos futuros nos deixa parados no tempo, fracos e sem coragem de viver.
- Você me assusta.
- Mas é verdade. Eu era assim como você, hoje mudei. Alberto abriu-me os olhos. Por isso me maravilhei quando li seus livros.
Eles me libertaram dessa prisão. A vida é muito diferente dos acanhados e limitantes conceitos que nos ensinaram na infância.
- É, você mudou! Seus olhos brilham, vem de você uma alegria gostosa e uma calma que me encanta. Sua mudança foi como um milagre. Você renasceu!
- Sou feliz. A felicidade é uma bênção. Sei que você também pode transformar sua vida para melhor. Dá para notar que você, apesar de ser mais velha que eu, ser mãe e haver experimentado coisas que nunca experimentei, continua presa às regras aprendidas. Desconhece sua verdadeira natureza e o manancial de forças que estão adormecidas dentro de você.
- Gostaria muito de começar a aprender. Acha que posso?
- Claro. Vou emprestar-lhe um dos livros de Alberto. Fará a você o mesmo bem que me fez. Mostrará com clareza tudo que já pode saber sobre si mesma.
- Lerei com atenção.
- Não basta ler com atenção, é preciso questionar os conceitos, experimentar. Você se surpreenderá com os resultados.
Enquanto elas conversavam no quarto, Norberto já havia descido e estava na sala com Alberto. Apesar de haver mantido contato à distância, era a primeira vez que se encontravam depois que eles havia se mudado para a capital.
Agora, depois do tempo decorrido, Norberto se sentia um pouco tenso tendo de enfrentar novamente o antigo problema que tanto o perturbara.
Bastou um olhar para perceber o quanto Liana mudara. Estava radiante. Não teve mais dúvida de que ela encontrara o amor.
Enquanto esperavam, ele e Alberto conversaram sobre outros assuntos, mas nenhum dos dois conseguia deixar de pensar no passado.
Apesar da tensão, uma coisa estava clara para Norberto. Ele se sentia aliviado com o rumo que os acontecimentos haviam tomado. A única coisa que ainda o incomodava era o receio de voltar a sentir a atração pela cunhada e o ciúme que tanto o perturbara. Estava inseguro, com medo da própria reação.
Elas desceram sorridentes e alegres, e a conversa fluiu com naturalidade. As crianças estavam entusiasmadas e o jantar decorreu agradável. Eles foram para a sala tomar café e as crianças subiram para o quarto.
Passava das dez quando Liana e Alberto se despediram. Depois que eles saíram, Eulália ficou pensativa.
- O que foi? - indagou Norberto.
- Estava pensando em Liana. Estou contente com a melhora dela. - De fato. Ela voltou a ser como antigamente.
- Está melhor do que antes, muito melhor. Irradia felicidade.
Norberto sorriu bem-disposto ao perceber que a felicidade de Liana e Alberto não o incomodava. Ao contrário, dava-lhe uma sensação de alívio, de liberdade. Um pensamento de euforia passou em sua mente. Estaria curado daquela insana paixão? Teria vencido para sempre aquela fraqueza?
Ainda era cedo para dizer, mas ele começava já a acreditar que havia conseguido. Disse apenas:
- Alberto era o marido certo para ela.
- Tem razão. Lamento ter demorado para descobrir isso.
- Cada pessoa tem o direito de decidir e escolher o próprio caminho. Nosso erro foi querer decidir por ela.
- Fui criada assim. Achava que os mais velhos têm mais experiência e por isso podem intervir para ajudar a felicidade dos filhos. Como mais velha, habituei-me a ver Liana como uma filha. Hoje percebi o quanto estava errada.
- Por que hoje?
- Porque conversando com ela aprendi algumas coisas. Ela está mais amadurecida, mais segura de si mesma. Gostaria de ter a mesma clareza de idéias que ela tem.
- Não diga isso, Eulália. Você é uma mulher inteligente, lúcida, prática, segura. Tem me ajudado até nos negócios.
Ela levantou para ele os olhos, que tinham um brilho diferente quando respondeu:
- Falar, elaborar teorias e idéias nunca foi difícil. Mas olhar para dentro de mim e me situar, saber como eu sou de verdade, nunca me pareceu tão difícil.
- Tenho notado que você tem mudado. Eu também mudei. O tempo passa e nós amadurecemos. Houve um tempo em que eu também não sabia analisar meus sentimentos. Esse tempo passou. Agora já me conheço melhor e sei o que desejo da vida.
- Claro que eu desejo a felicidade de nossa família, mas eu, pessoa, às vezes me sinto incapaz de escolher, sabe, pequenas coisas. De sentir prazer com elas ou de não gostar e dizer não. Parece uma coisa boba, difícil de explicar, mas que ultimamente vem me incomodando. Tenho a sensação de que a vida está passando e estou perdendo alguma coisa importante.
- Já me senti assim. Parece que a sensibilidade desaparece. É como se fôssemos um boneco sem sentimentos passando pela vida, obedecendo às regras estabelecidas.
Ela se levantou:
- Vamos subir. Quero ver se as crianças já se deitaram. Se deixar, eles ficam conversando até tarde.
Norberto aproximou-se dela e passou o braço sobre seus ombros com naturalidade. Ele não tinha o hábito de abraçá-Ia dessa forma. Eulália estremeceu.
Foram subindo as escadas abraçados e conversando. Ela sentia a proximidade, e o calor que vinha dele acelerava as batidas de seu coração. Teve medo. Sentiu vontade de esquivar-se, porém lembrou-se das palavras de Liana e controlou-se.
Parou no quarto de Eurico e conforme previra os três estavam juntos na mesma cama conversando animadamente.
- Está na hora de dormir. Vamos. Amanhã vocês têm todo o tempo livre para brincar.
A custo conseguiu que obedecessem. Quando viu cada um em seu quarto, foi ter com Norberto. A sensação de momentos antes perturbava-a. E se ele a abraçasse de novo, o que faria?
Ele já havia vestido o pijama e preparava-se para deitar. Silenciosamente, Eulália procurou sua camisola e foi ao banheiro para se trocar. Ela nunca tirava a roupa na frente do marido. Quando voltou, ele já se havia deitado. Ela se deitou e, vendo que ele não apagava a luz do abajur, perguntou:
- O que foi, está sem sono?
- Estou pensando no que conversamos. Você tem razão.
- Em quê?
- Na dificuldade de discernir nossas emoções. É que elas muitas vezes fogem completamente ao que esperávamos.
- Explique melhor.
- Nós formamos opinião dizendo que diante deste ou daquele fato faríamos isto ou aquilo. Aí acontece alguma coisa e agimos muito diferentemente do que havíamos pensado. Quando acontece, dá para notar o quanto ainda ignoramos a nosso respeito.
Eulália suspirou conformada:
- Ainda bem que não sou apenas eu quem se sente assim. Liana vai emprestar-me um livro de Alberto. Disse que ele é especialista em comportamento e que ela aprendeu muito com ele.
- O que não me surpreende. Lembra-se como ele conseguiu que as crianças tomassem gosto com os estudos? Acho que vou ler também. Vamos dormir. Boa noite.
- Boa noite - respondeu ela, satisfeita com o que ele dissera.
Norberto apagou a luz e acomodou-se virando de lado para dormir.
Eulália, sentindo o calor que vinha do corpo dele, teve vontade de encostar-se, de abraçá-Io, mas não se moveu. Ficou ali, do lado, sentindo esse desejo, lutando para conter-se até que, cansada, virou-se para o outro lado e conseguiu finalmente adormecer.
Eulália queria que Liana e Alberto fossem almoçar todos os dias com eles para passarem juntos o maior espaço de tempo. Eles aceitaram ir no dia seguinte e no domingo, quando teriam também a companhia do Dr. Marcílio e de Adélia.
No domingo, Norberto acordou alegre, bem-disposto, interessando-se até pelas brincadeiras das crianças, entretendo-se com eles como nunca fizera. Apesar de ser um pai responsável e dedicado, habitualmente era formal com os filhos.
Fora criado com disciplina. Na casa de seus pais as crianças não podiam conversar durante as refeições e ninguém lhes dirigia a palavra, a não ser o mínimo indispensável.
Seu pai chamava isso de respeito. Para ele, criança não tinha querer nem opinião. Qualquer manifestação de vontade era considerada rebeldia. Por isso, a figura do pai para Norberto era sisuda, séria, disciplinar. Jamais participava das brincadeiras com os filhos. Conversava pouco com eles e deixava para Eulália participar mais da vida deles. Essa era a parte da mulher. Ela podia transigir algumas vezes, mas ele não. Tinha de manter o respeito e a disciplina em família.
Eulália, vendo-o conversar animadamente com Alberto e as crianças no caramanchão, interessando-se pela opinião delas, trocando idéias, participando, surpreendeu-se muito. Comentou com Liana:
- Norberto está mudado. Veja como ele conversa com as crianças.
Está até brincando com elas.
- É que a alegria deles é contagiante. Alberto adora entreter-se com eles. Norberto está descobrindo esse prazer.
- Sabe que é verdade? Às vezes eles também me surpreendem. Falam cada coisa. Bom, com Nico não estranho. Esse menino sempre foi assim, inteligente, criativo. Mas Eurico você nem imagina. Está cada dia mais surpreendente.
- Ele agora está bem e começando a revelar sua verdadeira personalidade. Vocês ainda vão se orgulhar dele. Alberto sempre diz isso. Um brilho de prazer passou pelos olhos de Eulália:
- Eurico está curado. Esse foi o maior presente que a vida me deu. O médico chegou com a esposa e eles os receberam com alegria. A conversa fluiu agradável.
Depois do almoço foram conversar no caramanchão. Uma brisa fresca soprava, apesar do sol de verão. As crianças brincavam do lado de fora.
De repente, Liana levantou-se e foi até a entrada do caramanchão. Alberto notou que ela empalidecera. Imediatamente foi ter com ela, indagando:
- O que foi? Não se sente bem?
- Fiquei tonta e pensei que fosse desmaiar.
- Dr. Marcílio, Liana não está bem...
O médico levantou-se e tomou-lhe o pulso.
- Está passando. Acho que foi o calor... - disse ela.
- Você está pálida - tomou Eulália, preocupada.
- Vamos entrar - propôs o médico. - Quero examiná-Ia.
As crianças haviam se aproximado, e Eurico disse assustado:
- Ele voltou! A alma do coronel voltou! É ele quem está ao lado dela! Eulália empalideceu. Norberto sobressaltou-se. Liana olhou para o médico aterrorizada.
- Calma - pediu ele. - Não há o que temer. Vamos lá para dentro.
Uma vez na sala, Marcílio examinou Liana cuidadosamente e disse: - Ela não tem nada. Está tudo bem.
- Mas e o coronel? - indagou Eulália, inquieta.
- Acalme-se. Ele não nos pode fazer mal. Chame as crianças, por favor.
Os três estavam do lado de fora da porta tentando ouvir o que se passava lá dentro. Eurico dizia:
- Eu vi. Era ele de novo! O que vamos fazer agora?
- Calma, Eurico. Ele não vai fazer nada. Calma.
Assim que Alberto abriu a porta, eles entraram. Marcílio, dirigindo-se a Eurico, perguntou:
- Você viu o coronel Firmino?
- Vi, doutor. Ele ainda está aí, ao lado dela.
- Vamos descobrir o que ele deseja. Enquanto conversamos com ele, vocês procurem nos ajudar fazendo uma oração.
Vendo que eles fechavam os olhos e rezavam, Marcílio disse:
- Coronel Firmino, por que você voltou?
- Ele está triste - disse Eurico. - Acho até que está com medo. - Ele está diferente do que era?
- Sim. Não me olha mais com raiva. Parece pedir alguma coisa.
- Estamos aqui, coronel Firmino. Pode falar. Por que voltou? - Ele disse que foi para pedir perdão. Está arrependido de tudo que fez. Precisa muito do perdão de tia Liana.
- Se ela o perdoar, ele irá embora? - tornou o médico.
- Vou repetir as palavras dele: "Depende".
- Do quê?
- De ela me perdoar de coração e não para se ver livre de mim. - E você, Liana, o que diz? - tornou Marcílio. - Sente-se capaz de perdoar?
- Sim - respondeu ela. - Quero esquecer. Não lhe desejo mal.
Quero que me deixe em paz.
- Eu preciso de mais. Todas as portas se fecharam para mim. Ninguém mais quer me ajudar. Apesar de tudo que eu fiz e de você haver me rejeitado a vida inteira, ainda a amo. Reconheço meus erros, sofro muito por saber que nunca poderá ser minha esposa outra vez. Seu destino é outro. Mas apesar disso quero provar que estou mudado. Tenho aprendido muito. Por favor, não me negue a oportunidade que lhe peço.
- Ela disse que o perdoa - interveio Marcílio. - O que mais quer? - Preciso voltar! Quero nascer! Por favor, Liana, não feche a porta de seu coração para mim. Você foi mãe amorosa, cuidou de nossa filha com carinho. Já que não posso ter você como mulher, acolha-me em seu coração e permita que seja seu filho!
Grande emoção acometeu os presentes e Eurico disse com voz embargada:
- Aquela senhora veio e o levou! Ele já foi embora.
Marcílio fez comovida prece de agradecimento. Quando se calou, Liana soluçava nos braços de Alberto, as crianças tinham lágrimas nos olhos, Eulália e Norberto entreolhavam-se admirados. A segurança de Eurico transmitindo as palavras do coronel Firmino, o assunto inesperado, deixou-os emudecidos.
Marcílio disse sério:
- O espírito do coronel Firmino deseja uma oportunidade para reencarnar. Compete aos futuros pais decidirem.
- Liana é quem vai decidir. De minha parte, não faço objeção.
- Apesar do que ele disse, ainda sinto medo. Como conviver com ele se sua proximidade já me fez mal? Como tê-Io a meu lado, unido a mim gerando um corpo em minhas entranhas se a simples lembrança de seu nome me aterroriza?
Eurico aproximou-se de Liana, colocando a mão em seu braço:
- Tia, posso falar?
- Fale.
- Eu também sentia muito medo dele. Mas hoje, quando vi como está mudado, triste, senti pena. Está abatido, eu queria que você o tivesse visto. Nem parece o mesmo. Estava com os olhos cheios de lágrimas. Ele mudou, tia, mudou muito.
- Ele tomou consciência da verdade. Arrependeu-se. Apesar disso, é você quem precisa decidir se concorda ou não em tê-lo como filho - esclareceu Marcílio.
Liana olhou-o indecisa:
- Não precisa resolver nada agora. Reflita, ouça seu coração e decida.
- O senhor não acha arriscado ela o ter como filho sabendo de seu temperamento, das coisas que ele fez no passado?
- Se ela se sentir capaz de recebê-lo como um necessitado que precisa de ajuda e o amar de verdade, esquecendo o passado, ajudando-o em sua reeducação, passando-lhe os verdadeiros valores do espírito que ela já possui, só terá a ganhar. Porém, se não conseguir perdoar de verdade, esquecer a multidão dos pecados que ele cometeu, então será melhor adiar esse reajuste para quando se sentir mais forte.
- Da forma como fala, doutor, o senhor acredita que a união entre eles será inevitável. Hoje ela poderá protelar mas um dia terá de acontecer. É isso? - interveio Norberto.
- Os relacionamentos inacabados sempre voltam para que os laços de ligação se desfaçam e os envolvidos se libertem.
- Quer dizer que apesar de ele ter ido embora, de certa forma seu espírito continua ligado a ela. Nesse caso - reconheceu Alberto -, será melhor enfrentar logo do que protelar.
- Enfrentar os medos é o caminho dos vencedores. Pense, Liana. Sinta seu coração. Não se obrigue a fazer nada, mas fique atenta a seus sentimentos. Estou certo de que saberá escolher o melhor a fazer agora - esclareceu o médico.
Eulália abraçou o filho, dizendo comovida:
- Meu filho! Você viu a alma do coronel, conversou com ele! Portou-se como um homem. Muitos não teriam sua coragem.
- Graças a ele pudemos mais uma vez contribuir para a harmonização desta família. Então, Liana, sente-se melhor?
- Sim, doutor. Estou bem. Só um pouco assustada. Pensei que nunca mais teria esses achaques.
- Amanhã vá a meu consultório. Desejo fazer alguns exames. - Irei, pode esperar.
Eulália mandou servir um café com bolo e as crianças foram à copa tomar um lanche. Eurico estava pensativo. Amelinha tomou:
- O que foi agora? Você ficou quieto de repente. Está vendo alguma coisa?
- Não. Estou pensando.
- No quê?
- No que o coronel disse.
- Ele quer nascer outra vez - esclareceu Nico.
- E o pior é que ele quer ser nosso primo. Já pensou? É isso que está me preocupando.
- Ele vai ser criança de novo? - indagou Amelinha.
- Claro. Você sabe o que é reencarnação - disse Eurico e continuou: - Ele vai dar trabalho, vai querer mandar em tudo.
- Bobagem, Eurico. Nós é que vamos mandar nele. Somos mais velhos. Quando ele tiver nossa idade, já seremos adultos, e as crianças precisam obedecer aos mais velhos. Não é isso que nos ensinam todos os dias?
- É mesmo! Vai ser divertido nós mandarmos nele - concordou Amelinha.
- Bom, pensando bem, nós não podemos fazer isso. Os pais é que vão ter que mandar nele. Os primos e os amigos não. Depois, ele vai nascer e esquecer o passado. Não vai saber quem nós somos. Lembra que o professor ensinou que quando reencarnamos nos esquecemos de tudo?
- É mesmo! Eu não lembro nada de minha encarnação anterior concordou Eurico.
- Nem eu - concluiu Amelinha.
- Em todo caso, é bom saber que quando ele tiver nossa idade já seremos adultos, e ele, mesmo que queira ser mandão, não vai poder fazer nada - afirmou Nico, satisfeito.
- Será que tia Liana vai concordar em ser a mãe dele? - indagou Amelinha. - Eu não aceitaria.
- Eu tinha medo dele, mas agora não tenho mais - tomou Eurico.
- Você fala, mas quando ele apareceu ficou tremendo - lembrou Amelinha.
- Fiquei, mas não foi de medo. É que quando vejo uma alma do outro mundo me dá arrepio. Até com aquela senhora bonita eu sinto isso. Eu me alegro quando a vejo, mas me arrepio.
- Você ficou com pena do coronel - observou Nico.
- Fiquei, sim. Ele me olhou pedindo ajuda. Estava acabrunhado, humilde, ele mudou muito. Pensando bem, acho até que, se ele nascer, não vai querer mais mandar em ninguém.
- Não sei, não, Eurico. Se ele vai esquecer o passado, pode esquecer também por que tudo deu errado em sua vida e começar de novo ajuntou Nico.
- Vamos perguntar ao professor o que ele pensa de tudo isso - sugeriu Eurico, ao que Nico respondeu:
- É bom, mas vamos deixar para quando ele vier conversar conosco. Ele está cuidando da Liana.
Apesar de sentir-se melhor, Liana não conseguia esconder a preocupação. Alberto, atencioso, cercava-a de carinho, e os demais não tocaram mais no assunto, porém todos se sentiam um tanto inquietos.
Só o Dr. Marcílio e Adélia se sentiam serenos e, compreendendo o que se passava com os amigos, contavam casos alegres procurando aliviar-lhes a tensão.
À noite, quando Liana voltou para casa, foi logo dizendo:
- Convidei-os para vir almoçar aqui amanhã. Não me sinto com coragem de voltar àquela casa.
- Você está nervosa. Vai passar.
- Eu estava muito bem. Foi só começar a ir lá que o espírito do coronel Firmino voltou. Acho até que ele nunca saiu de lá!
- Não foi isso que o Dr. Marcílio falou. Depois, Eurico constatou que ele está mudado. Não deseja mais obrigá-Ia a nada. Não precisa ter medo.
- Sempre desejei ter filhos, mas agora não quero mais. Só em pensar que ele ficaria muito tempo ligado a mim, fico toda arrepiada. Não posso. Não estou pronta. Não quero.
- Está bem. Faremos como você decidir. Se não quer, não teremos filhos e pronto. O que eu desejo é vê-Ia feliz. Vamos esquecer esta história.
- Dr. Marcílio disse que posso escolher. Já escolhi.
- Tudo bem. Acho que devemos tomar nosso chá e retomarmos nossa paz.
Alberto foi à cozinha, esquentou a água, preparou tudo e chamou-a. Liana sentou-se à sua frente em silêncio. Alberto serviu-a e tentou conversar. Porém Liana não estava prestando atenção ao que ele dizia.
A certa altura, rompeu em soluços e Alberto levantou-se, abraçando-a preocupado:
- O que foi, Liana?
- Estou sendo vingativa, maldosa. Ele pediu perdão e eu perdoei, mas estou me sentindo culpada. Não foi de coração.
- Por que se atormenta dessa forma? Sei que, apesar do que ele fez, você não lhe deseja nenhum mal. Mas tem o direito de preservar sua intimidade se sua presença lhe é penosa. Você ainda não superou o medo que sente dele.
- Mas ele disse que eu sou a única porta para que possa nascer. Terei o direito de fechá-Ia?
- Seu compromisso maior é com o próprio bem-estar. De nada valerá aceitar uma situação e fazer dela um inferno para ambos. Marcílio foi bem claro. Precisa consultar seu coração e aceitar a incumbência se perceber que pode desempenhá-Ia com serenidade. Enquanto sentir medo, horror à simples presença do coronel, não conseguirá ajudá-Io e com certeza estará infelicitando-se também.
- Eu queria que ele me esquecesse, que nunca mais me procurasse. Que fosse feliz longe de mim.
Alberto passou a mão carinhosamente pelos cabelos de Liana, acariciando-a:
- Ele a ama. À sua maneira, é verdade, mas ama. Essa talvez seja a única porta para abrir o coração dele e fazê-Io mudar. O amor tem muita força. Talvez seja por isso que.a vida o esteja colocando novamente em nosso caminho.
- Eu gostaria de poder fazer isso, mas está muito difícil.
- Você não tem de resolver nada agora. Vamos dar tempo ao tempo. Não quero que adoeça novamente. Eu estou aqui e a amo mais que tudo no mundo. Depois, lembre-se que, quando não podemos resolver alguma coisa, Deus pode. Entregue o assunto nas mãos dele e acalme seu coração. Tenho certeza de que a vida já tem uma boa solução para o problema. Vamos guardar serenidade e esperar que ela se manifeste.
Liana abraçou-o um tanto aliviada.
- Bendita hora em que você apareceu em minha vida!
Ele riu bem-humorado e retrucou:
- Eu não disse que a vida faz tudo certo? Juntou-nos para sermos felizes. Não acha que merece um crédito de confiança?
Liana assentiu e sorriu. A crise havia passado. Mas no fundo ambos sabiam que, quando fosse o momento, o assunto voltaria e teriam de decidir.
Nos dias que se seguiram, Liana não quis voltar à mansão. Eulália estava inconformada.
- Liana, pensei que íamos ficar juntas todos os dias e aproveitar esses momentos. Compreendo o que aconteceu, mas não é bom você alimentar esse medo de ir à nossa casa.
- Foi lá que ele apareceu de novo - justificou-se ela.
- Pelo que tenho aprendido nos livros, os espíritos podem ir a toda parte. Ele pode estar aqui sem que nós saibamos.
- Não diga isso. Se ele estivesse, eu sentiria. Depois, Eurico teria visto. Ele gosta é de ficar lá, e eu não desejo encontrá-la.
À noite, reuniram-se na casa de Marcílio para a sessão costumeira, e Eulália voltou ao assunto:
- Dr. Marcílio, Liana não quer mais ir à minha casa com medo do coronel Firmino. Não acho que seja uma boa atitude. Afinal nós estamos lá todo o tempo, inclusive Eurico, a quem ele costumava perturbar, e ele não tem aparecido.
- Se eu for, ele pode voltar.
- Você sabe que o coronel Firmino mudou. Sofreu. Arrependeu-se. Aprendeu. Tornou-se mais humilde. Já não é mais violento e aproximou-se para lhe dizer isso. Não creio que sua presença possa fazer-lhe mal.
- Mas eu me sinto. Pensei que fosse desfalecer quando se aproximou de mim.
- O que está lhe fazendo mal não é a presença do espírito do coronel mas as lembranças desagradáveis que ele desperta em você. Apesar do tempo decorrido, de haver esquecido detalhes de sua vida passada, as energias acumuladas naqueles dias ainda estão aí provocando desequilíbrio e dor. Você também aprendeu, sofreu, está agora desfrutando de uma ótima oportunidade de progresso, mas esses bloqueios energéticos a impedem de alcançar o equilíbrio. Por isso a vida está lhe trazendo a chance de limpar esses resíduos e libertar-se para poder progredir.
- Poderia explicar melhor, doutor? - pediu Liana.
- Quando você foi esposa de Firmino, ele foi violento, arrogante impiedoso. Era sua maneira de ser na época. Você talvez pudesse ter escapado, como fez sua filha, mas, seja pelo que for, não o fez. Ele a dominava pela força física, então você, sentindo-se impotente diante dele, acovardou-se, não assumiu a própria força.
- Como poderia? Ele era mais forte...
- Não falo da força física, mas da força interior que com certeza a faria encontrar uma forma de escapar. Você se acovardou, colocou-se na postura de vítima indefesa, alimentando o ódio como única forma de vingança.
Não era ódio, mas mágoa.
- Se não fosse ódio, não estaria agora vivenciando essa experiência. Reconheça isso, mas não se culpe. Você reagiu como sabia naquela época. Precisa saber que os pensamentos cultivados durante certo tempo, aos quais damos força, nos quais colocamos grande dose de emoção, tomam forma, materializam-se no mundo astral. Ficam colados em nosso corpo astral e interferem em nosso dia-a-dia.
- Está falando das formas-pensamentos? - indagou Norberto com interesse.
- Isso mesmo. Nas sessões espíritas, muitas vezes os médiuns julgam estar incorporando espíritos de pessoas desencarnadas que perturbam os presentes, mas estão recebendo apenas as formas-pensamentos dessas pessoas.
- Como podemos perceber quando isso acontece? - perguntou Eulália.
- Se prestar atenção, perceberá a diferença. Um espírito desencarnado reage diferentemente. Tem mais personalidade. As formas-pensamentos revelam problemas emocionais armazenados durante certo tempo. São resistentes e repetitivas.
- Interessante - tomou Alberto. - Nesse caso, um bom psicólogo também pode ajudar.
- Pode, e a recíproca é verdadeira. Quantas vezes o psicólogo acredita estar trabalhando no paciente seus problemas emocionais e está doutrinando um espírito? Nenhum profissional das áreas humanas pode ser eficiente se desconhecer essas variáveis, porque elas interferem no processo.
- É o meu caso? - indagou Liana.
- É. A causa de seu mal-estar está em você, não na presença do espírito do coronel Firmino. Ele pode evoluir, ficar muito bem, espiritualizar-se, mas, se você não acabar com essas formas-pensamentos, sempre se sentirá mal com a presença dele.
- Mas eu não desejo conservar essas lembranças. Quero esquecer. - Você deseja, mas continua a alimentá-Ias, ainda que inconscientemente.
- Não. Eu não as alimento.
- Você se sentia agredida. Ao invés de reagir e libertar-se, cultivou o medo, e é ele que ainda as está alimentando. Sempre que o coronel Firmino se aproxima, o medo reaparece tal qual era naqueles tempos, reforçando as formas-pensamentos que criou. No momento em que enfrentar o passado, vencer esse medo que a paralisa, você as estará destruindo para sempre, libertando-se.
Então poderá olhar para o passado sem se sentir mal e para Firmino sem ódio.
Liana, pensativa, baixou a cabeça por alguns instantes, depois disse: - Eu não sinto que o odeio. Só desejo livrar-me dele. Não haverá outra maneira de fazer isso?
- Não. Ele já foi embora, mas você ainda está presa a ele.
- É injusto. Se tudo isso aconteceu mesmo, eu fui a vítima. Não deveria ser punida duas vezes.
- Você se engana, Liana. Ninguém é vítima. Se a vida a colocou ao lado de um marido déspota e cruel, foi porque você precisava dessa experiência.
- Para quê? Só consegui sofrer e carregar até hoje esse peso.
- Você colheu os resultados de suas atitudes. Foi o melhor que conseguiu fazer naquele momento. Entretanto, a vida é perfeita e não joga para perder. Se ela a colocou ao lado de um homem como Firmino, foi porque você já tinha elementos não só para enfrentá-Io, mas também para ajudá-Io a tomar-se mais humano, puxando para fora seu lado melhor. Entretanto tal não aconteceu. Você se acovardou, não usou todo o seu poder interior, não acreditou na própria força. Por isso o relacionamento entre vocês continua inacabado. Ainda há muitas coisas que um pode ensinar ao outro até que se libertem. O mais importante agora é que você pense em tudo que conversamos. Faça mais: peça a ajuda de Deus para que consiga ver claro e decidir.
- É o que farei. Alberto me ajudará, estou certa.
Ele a abraçou com carinho, beijando-a na face.
- Pode contar comigo. Estarei sempre a seu lado.
- Lembre-se que essas formas-pensamentos que você criou impedem que possa discernir com lucidez. Firmino mudou, mas você continua vendo-o como ele foi naquele tempo. Quando se livrar delas, conseguirá vê-Io como ele é agora e tomar uma decisão mais clara. Vamos nos acomodar, está na hora de nossa reunião.
Sentaram-se ao redor da mesa orando em silêncio. Marcílio fez uma oração comovida e depois disse:
- Hoje não vamos fazer os estudos de costume. Nossos amigos espirituais já estão presentes.
Na penumbra da sala iluminada apenas por suave luz azul, eles permaneceram em silêncio por alguns instantes. Depois, um dos presentes remexeu-se na cadeira inquieto e começou a falar:
- Hoje eu vim com a permissão dos amigos que estão me ajudando nesta casa.
Por isso peço que me escutem. É difícil encarar a verdade. Há momentos em que minha cabeça roda e tudo se embaralha de tal sorte que tenho receio de enlouquecer. Estou doente. Meu corpo está desgovernado e há momentos em que não consigo controlá-Io. Então, sinto-me inquieto. Vejo-me novamente em minha casa com minha família, sinto seu desprezo, Mariquita, e isso me fere fundo. Eu a amei desde o dia em que a vi. Em meu desespero, sinto medo de perdê-Ia e novamente a amarro no leito à noite para que não escape. Você chorava e me punia com seu ódio e eu sofria. E quanto mais sofria, quanto mais a dor me atormentava, mais eu a fazia sofrer, porque não era justo que eu, que desejava dar-lhe todo o meu amor, fosse tão machucado.
Ele interrompeu o discurso, porquanto os soluços o impediam de continuar. Depois de alguns-instantes ele prosseguiu:
- Mas tudo que fiz foi doloroso e inútil. Atormentou você, aumentou meu sofrimento, mergulhei na loucura. Passei anos dementado circulando pela casa que foi nossa, vendo-a em todos os cantos, sofrida e odiando-me cada vez mais. Às vezes, quando tinha momentos de lucidez, sentia sua falta, sabia que havíamos morrido, mas ficava ali, na esperança de que um dia você reaparecesse. Sempre ouvi dizer que quem morre descansa. Comigo não foi assim. Descobri que continuava vivo depois de meu corpo haver sido roído pelos vermes e que os sofrimentos continuavam.
Estou falando isso não para que você sinta pena de mim, mas para que possa saber que estou pagando caro por meus erros.
Quando você reapareceu em nossa casa, exultei. Tentei conversar, mas você não me ouvia. Com você, todos os outros vieram e me enfrentaram, apesar de estarem em um corpo de criança ainda. Eu não sabia bem o que estava acontecendo. Acreditava que todos se haviam disfarçado em outros corpos para poderem se vingar.
Havia momentos em que eu mergulhava no passado e acreditava que ainda estávamos vivendo naqueles tempos. Quando minha loucura estava no máximo, minha mãe aparecia, falava comigo e me acalmava. Eu dormia algum tempo, mas, quando acordava, o inferno recomeçava.
Depois que resolvi aceitar a ajuda que me ofereceram, fui recolhido a um hospital, e lá tenho sido tratado com consideração e carinho. Entretanto, meu tormento continua. Minha loucura reaparece e perco a noção da realidade. Quando o tratamento que recebo me tira desse estado e tenho como agora momentos de lucidez, sou orientado e procuro obedecer. Quero melhorar, sair desse estado de dependência mental que criei. Não culpo mais ninguém pelo que estou passando.
Sei que a responsabilidade é só minha. Eu escolhi esse caminho e desequilibrei minha vida. Disseram-me que só a reencarnação pode abreviar esse tormento, oferecendo-me um corpo novo, um cérebro virgem para registrar e aprender novos valores para quando eu, aos doze ou treze anos, reassumir de todo minha personalidade anterior, já tenha desenvolvido elementos para reagir de outra forma aos desafios que a vida vai me trazer.
Firmino fez ligeira pausa, depois prosseguiu:
- Terei uma boa chance se você, Mariquita, me aceitar como seu filho. Sei que desfruta agora de uma vida feliz e mais equilibrada ao lado de quem você ama. Eu mudei. Reconheço que não posso mandar em seu coração. Se me aceitarem, serei muito agradecido. Minha maior felicidade será apagar o mal que lhe fiz e conseguir sua estima. Agora preciso ir. Já abusei demais da bondade de vocês. Eu lhe peço: me dê a chance de voltar para aprender.
As lágrimas desciam pelas faces de Liana e ela estremecia de vez em quando, tentando conter os soluços que teimavam em querer sair.
No mesmo instante uma senhora ao redor da mesa começou a falar:
- Boa noite, amigos. Vim agradecer de coração toda a ajuda que temos recebido. Gostaria de esclarecer algumas coisas com relação ao que está se passando aqui.
- Pode falar - disse Marcílio. - Todos desejamos aprender. Ela continuou:
- Firmino, como tantas pessoas ainda pensam, acreditava que a morte fosse o eterno descanso ou o eterno tormento no inferno. Posso adiantar que não é nem uma coisa nem outra. O progresso, a conquista da sabedoria trazem a serenidade e é ela quem leva à conquista de um estado de paz interior que muitos chamam de estado de graça, de elevação espiritual. Só alguns já alcançaram esse bem-estar; para a maioria, o estado de tormento é o mais comum. A morte do corpo muda o cenário externo e torna mais vivo o mundo interior. Entretanto, o mais importante e que poucos sabem é que tanto um quanto outro estado de espírito é criado pela própria pessoa.
Suas atitudes, suas crenças, sua maneira de olhar os fatos do dia-a-dia, à medida que vão se tornando importantes para a pessoa, vão sendo materializadas em seu mundo mental, criando formas que têm vida astral e conservam as emoções e idéias que as caracterizam. Damos a isso o nome de formas-pensamentos. Todas as pessoas que vivem no mundo as têm alimentado e a maioria infelizmente tornou-se prisioneira delas.
São responsáveis por muitos desacertos humanos, e depois da morte do corpo elas continuam a atormentar seu criador, que muitas vezes consome larga cota de tempo no umbral, lutando com elas, acreditando que sejam seres astrais, sem saber que está em suas mãos modificá-Ias, substituindo-as por outras mais otimistas, melhorando sua qualidade de vida.
Por isso aconselhamos os exercícios de pensamentos positivos, os bons pensamentos e a crença no bem maior.
Essa é a causa da loucura de Firmino. Ele criou, alimentou tantas ilusões, e agora vive prisioneiro delas. Já sabe a verdade, mas ainda não consegue fazer a mudança. O medo é um elemento destrutivo e muito forte que o impede de libertar-se.
Devo esclarecer que essas formas estão materializadas no mundo astral e precisam ser desfeitas. Só a própria pessoa pode fazer isso. Claro que nossos terapeutas ajudam e nossos benfeitores espirituais cooperam mandando energias de sustentação e auxílio. Mas é só o que podem fazer.
Cada um precisa aprender a lidar com as energias e descobrir como a vida funciona. Por isso ninguém faz a parte que lhe cabe. Apenas ajudam, esperando que a própria pessoa a faça. Está na hora de falarmos sobre isso. Agora tenho de ir. Se tiverem alguma pergunta, na próxima reunião tragam-na, que procuraremos responder. Até breve.
Marcílio fez ligeira prece de agradecimento e encerrou a sessão. Enquanto tomavam seu copo com água, os presentes comentavam com interesse os ensinamentos.
Havia muita curiosidade. Já tinham ouvido falar das formas-pensamentos, mas não sabiam que podiam ser tão importantes e que influenciavam tanto a vida de cada um.
Liana estava calada e pensativa. As palavras de Firmino haviam-na impressionado muito. Teria sido ele mesmo quem falara? Parecia-lhe tão diferente do Firmino que ela conhecia, sempre ameaçador e agressivo. Comentou com Marcílio:
- Foi o espírito do coronel Firmino que se comunicou mesmo? O senhor o viu?
- Sim. Foi ele. Qual é a dúvida?
- É que ele veio tão humilde, diferente. Não se parece nada com o coronel que conhecemos.
- Com o coronel que você tem em sua mente - esclareceu Marcílio. - Pense em tudo quanto ouviu esta noite. Ele mudou, mas você ainda o vê como ele era. Sua reação é esclarecedora. Fique atenta e vai perceber o que está acontecendo.
Liana calou-se. Depois do café com bolo costumeiro, despediram-se.
Enquanto Eulália e Norberto conversavam sobre as revelações e os ensinamentos daquela noite, Liana seguiu com o marido para casa, calada. Alberto, por sua vez, impressionado com tudo que ouvira, não sentia vontade de comentar. Queria observar melhor, experimentar, saber o que havia de verdade em tudo aquilo.
O tempo correu rápido e as férias da família estavam terminando. Encorajada pelo marido e por Eulália, Liana voltou a freqüentar a mansão. A princípio temerosa, mas notando que nada de novo acontecia, foi ficando mais à vontade.
Havia também Norberto, cuja atitude para com ela se modificara inteiramente. Nunca mais o surpreendeu olhando-a como antigamente. Tratava-a com respeito e amizade, e ela notava com satisfação que ele estava se dedicando mais à esposa e aos filhos, interessando-se mais em participar da vida familiar. Contente, comentou com Alberto, que concordou:
- Tenho observado também que Eulália mudou bastante. Eles conversam muito mais que antes. Estão mais unidos. Notou como ele a ouve com satisfação? Troca idéias com ela até sobre seus negócios. Pelo que observei deles, não era assim antes.
Não mesmo. Sempre foi atencioso, cuidou da família, mas eu sentia que entre eles havia certa distância. Talvez porque ele soubesse que Eulália se casou sem amor, apenas para obedecer aos pais.
- Quero crer que muitas coisas aconteceram também por influência do coronel Firmino.
- Falando assim, dá a impressão de que nós não fomos culpados.
Isso não é verdade.
- Cada um tem sua parcela de responsabilidade. Contudo vocês não entendiam nada sobre espiritualidade. Nem sequer acreditavam na possibilidade de serem influenciados por um espírito desencarnado. Isso fez com que ele pudesse envolvê-Ios sem ser notado, o que o colocou em vantagem. Norberto sentia-se atraído por você, Firmino aproveitava-se transferindo para ele sua paixão, deixando-o enlouquecido. Ele sentia e acreditava que esse sentimento fosse dele.
- Acha mesmo que foi isso?
- Acho. Ele mudou depois que Firmino foi afastado. Quer prova maior?
- Tem razão. Agora percebo que o que houve entre nós foi uma grande ilusão. Felizmente consegui reagir. Tenho pensado muito nisso. A cada dia que passa fico consciente de como somos diferentes. Ele não é o tipo de homem por quem eu me apaixonaria.
- E eu, tenho chance de ser esse homem?
Liana abraçou-o, beijando-o nos lábios com amor.
- Você é exatamente o meu tipo.
Alberto apertou-a nos braços, sentindo que ela estava dizendo a verdade. A cada dia, mais eles notavam o quanto se queriam.
No sábado eles foram cedo para a mansão. Eulália queria passar o dia inteiro com eles.
- É nosso último fim de semana aqui. Segunda-feira voltamos para São Paulo. As aulas das crianças começarão logo. Temos de preparar tudo para a volta à escola - pedira Eulália.
O dia estava bonito e eles passaram momentos agradáveis. As crianças brincaram no jardim o dia inteiro. No fim da tarde, entraram contrariadas para tomar banho enquanto Hilda insistia para que se apressassem.
Liana comentou contente:
- Veja só, Eulália, Eurico está incansável. Estou admirada. O dia inteiro correu, brincou sem se cansar. Comeu de tudo com apetite. Olhando-o agora, não dá para acreditar que tenha sido tão doente.
- Todos os dias agradeço a Deus sua cura. De vez em quando ele ainda tenta me comover fingindo-se de doente. Olho seu rosto corado, e percebo logo sua intenção. Não me deixo influenciar e ele acaba se traindo. Depois, Nico e Amelinha caçoam tanto que ele acaba rindo e acaba o mimo. O jantar decorreu alegre. As crianças recolheram-se cedo. Pretendiam aproveitar ao máximo o domingo, já que era o último dia de férias. Nico acomodou-se e dormiu logo. Acordou com Eurico sacudindo-o: - Nico! Nico! Acorde!
Sonolento, ele balbuciou:
- O que foi? O que aconteceu?
- Ele voltou, Nico. Acorde. Mande-o ir embora.
- Ele quem? O que foi?
- O coronel Firmino.
- De novo? Perguntou o que ele quer agora?
- Eu? Não. Sem você não falo com ele.
Nico sentou-se na cama:
- Onde ele está?
- Aqui. Olhe, nos pés de sua cama. Vou deitar com você...
Ele pulou na cama e cobriu a cabeça com o lençol.
- Deixe de ser medroso. Você não disse que ele está mudado e que não sentia mais medo dele?
- Eu disse, mas agora estou sentindo...
Nico olhou para os pés da cama e, embora não visse nada, disse sério: - Por que você voltou? O que quer?
Como Eurico não dissesse nada, Nico tornou:
- Então, Eurico, o que foi que ele respondeu?
- Ele não disse nada. Está muito triste e abatido. Parece doente. - O senhor não está bem? Nós podemos ajudar em alguma coisa? - indagou Nico.
- Ele pede para rezarmos por ele. Agora aquela senhora bonita chegou. Está do lado dele e sorri para mim.
- Nós vamos rezar por você, coronel Firmino. A senhora pode nos dizer alguma coisa?
- Ela abraçou o coronel com carinho e disse:
- Precisamos da ajuda de vocês.
- O que podemos fazer?
- Dar um recado meu a Liana.
- Pode falar.
- Ela quer que você escreva.
Nico acendeu a luz do abajur, procurou papel e lápis, sentou-se na cama e descobriu a cabeça de Eurico:
- Você disse que não tem medo dela.
- Ela me deixa sentir muito bem. Parece que estou flutuando.
Além disso, tem um perfume agradável. Está sentindo?
Nico aspirou o ar e disse alegre:
- Estou. Parece de jasmim.
- Isso mesmo. Ela está sorrindo. É linda! Você não está vendo? - Não. Mas estou sentindo o perfume.
- Escreva: "Querida Liana. Preciso muito de sua ajuda. Vou procurá-Ia durante o sono para conversarmos. Tenho certeza de que juntas venceremos. Um beijo da amiga de sempre, Amália".
Eurico fez silêncio por alguns instantes, depois continuou:
- Ela está abraçando você. Puxa, como ela é linda! Seu rosto parece de porcelana.
Ele se calou e de repente começou a chorar. Assustado, Nico abraçou-o perguntando:
- O que foi, Eurico? Por que está chorando?
Ele não respondeu logo. Continuou soluçando e Nico olhava-o preocupado. Quando ele se acalmou, disse:
- É que ela me abraçou, beijou a testa e eu senti uma emoção muito forte. Não sei explicar. Não consegui segurar.
Nico respondeu comovido:
- Eu também senti. Parecia que eu estava flutuando, como você disse. Nunca senti isso antes. Puxa, que mulher!
- É mesmo. Ela desapareceu e levou o coronel. Precisamos contar para tia Liana. Que horas são?
- É tarde. Passa da uma. Amanhã entregamos o bilhete. É melhor irmos dormir.
- Ainda me sinto flutuando. Acho que não vou conseguir dormir logo. Fiquei muito emocionado.
- Eu também. Vamos ficar conversando. Quando vier o sono, você vai para sua cama e pronto.
- Às vezes fico pensando: como será a vida no outro mundo?
- O professor disse que há muitos mundos e cada pessoa vai para
O lugar que precisa. Acho que o mundo onde vive essa mulher deve ser muito lindo, cheio de flores e perfumes. Se ela aparecer de novo, vamos perguntar como é lá. Será que ela conta?
- Acho que sim. Ela parece tão boa. Dá vontade de ficar ao lado dela. - Mas você estava com medo.
- Não era bem medo. É que eu começo a tremer, sinto arrepios, não sei explicar. Já o mundo do coronel deve ser triste. Ele parece tão deprimido. Está acabado. Olhos tristes, rosto abatido. Queria que você visse como ele está diferente.
- Você lembra que o professor explicou que quem morre vai viver no mundo que ele mesmo fez durante a vida? Se fez muitas coisas ruins, está triste, doente, assim será o mundo em que irá viver. Se foi alegre, ficou no bem e viveu contente, viverá em um mundo onde as pessoas também são assim.
- Ainda bem que eu sarei. Vou me esforçar para ser sempre alegre e ficar no bem.
- Eu também.
- Acha que vou conseguir?
- Tenho certeza. Principalmente se deixar de fingir de doente para enganar sua mãe. Já pensou se a doença volta?
- Deus me livre! Agora posso brincar, ir à escola como qualquer um. Nunca mais vou fingir de doente.
Nico riu e considerou:
- Veja bem o que está dizendo. Se esquecer, farei tudo para você se lembrar.
Na manhã seguinte eles acordaram com Amelinha batendo na porta do quarto de Eurico:
- Abra a porta, Eurico. É tarde.
Foi Nico quem acordou primeiro e ouviu. Eurico ainda estava em sua cama, dormindo.
- Acorde, Eurico. Amelinha está chamando.
Ele abriu os olhos e fechou-os novamente:
- Estou com sono. Ontem custei a dormir.
- Eu sei. E você nem foi para sua cama. Já pensou se a Dona Eulália souber? Trate de acordar e vá para o seu quarto.
Ele se levantou contrariado, e como Amelinha insistisse, batendo em sua porta, foi abrir:
- O que você quer cedo desse jeito?
- Passa das nove. O dia está lindo. Hoje é nosso último dia aqui.
Precisamos aproveitar. Depois, mamãe mandou chamar vocês dois. A mesa do café não pode ficar posta o dia inteiro esperando.
- Está bem... eu vou. Pode ir agora.
Amelinha não foi. Ficou esperando até que ele estivesse pronto para descer. Nico entrou no quarto, dizendo:
- Não esqueça o bilhete para a Liana.
- Que bilhete? - indagou Amelinha.
- Como você é curiosa! Vai saber quando chegar a hora.
- Foi um recado daquela mulher bonita que aparece com o espírito do coronel Firmino. Ela quer que entreguemos para Liana - esclareceu Nico.
- Por que não me chamaram? Vocês ficaram conversando e não fiquei sabendo de nada!
- Não era com você que ela queria falar. Vamos descer, que mamãe está esperando,
- Vamos. Depois eu mostro a você.
Eles desceram e Eulália já os esperava.
- Pensei que fossem se levantar mais cedo para aproveitar o dia. O sol está alto. Acho que ficaram conversando no quarto até tarde.
- Não, Dona.Eulália. Nós dormimos cedo. Estávamos cansados. É que no meio da noite recebemos visitas - respondeu Nico.
Eulália olhou-os surpreendida:
- Visitas? Como assim?
- O coronel Firmino voltou - disse Eurico.
- Por que não nos chamaram? Ele tentou algo contra vocês? Eles relataram o que havia acontecido e mostraram o bilhete que Nico escrevera para Liana.
Quando Liana e Alberto chegaram, eles já os esperavam no jardim para contar a novidade. Com mãos trêmulas, Liana apanhou o bilhete e leu. - Amália! É esse o nome dela! Que estranho.
- Você se emocionou. Ela é sua conhecida? - indagou Alberto. - Não. Mas ao ler esse bilhete senti que ela me é muito familiar. Parece-me haver retomado alguma coisa de minha vida, mas não sei o que é. - Tudo indica que seja sua amiga de outras vidas.
- Ela é tão linda! Quando ela conversar com você, verá como ela é. Além disso, tem um perfume delicioso. Nico também sentiu disse Eurico.
- Senti. Parecia de jasmim. Fiquei emocionado.
- Será que ela é uma santa? - indagou Amelinha. - Eu também queria ver!
- Deve ser um espírito bom e iluminado - esclareceu Alberto. - Iluminada ela era -lembrou Eurico. - Em volta dela havia muita claridade e seus olhos eram brilhantes como estrelas. Nunca vi ninguém assim.
- Isso nos deixa felizes - tornou Alberto. - A proximidade de um ser como esse traz energias superiores que nos fortalecem e ajudam.
Liana ouvia calada. Depois considerou:
- Ela disse que vai me procurar durante o sono. Será que vou me lembrar de nossa conversa quando acordar?
- Não sei. A maior parte das experiências que temos quando nosso espírito se desliga durante o sono se apagam de nossa consciência quando retomamos o corpo físico, porém ficam registradas em nosso inconsciente, de onde continuam nos influenciando. É comum pretender mos resolver algum assunto de certa forma e no dia seguinte acordar com uma idéia completamente diferente da anterior.
-Se ela vier mesmo conversar comigo, gostaria de estar consciente e me lembrar de tudo.
- Às vezes isso acontece. Vamos esperar para ver.
As crianças foram brincar e eles entraram na casa onde Norberto e Eulália já os esperavam. Claro que a conversa girou em torno do bilhete de Amália e de como seria possível o encontro dela com Liana.
À tarde, quando o Dr. Marcílio e Adélia chegaram para o chá de despedida com os amigos, foram logo informados do que acontecera. Com naturalidade ele comentou:
- Vocês têm muita ajuda espiritual, Liana. Com essa proteção, tenho certeza de que vencerão todos os problemas do passado.
- Gostaria de ter essa certeza - respondeu Liana. - Há momentos em que me sinto tão insegura.
- Às vezes você não acredita na própria força e sente-se fraca. Essa é sua maior ilusão. Por haver se enganado em algumas escolhas que fez em sua vida, julga-se errada e culpa-se. Daí se ilude acreditando-se incapaz e fraca, o que não é verdade. Coloca-se na posição de vítima da própria incapacidade e subestima suas qualidades reais. Vem o medo, a insegurança, a infelicidade. É preciso sair disso, Liana. A vida está escolhendo você e dizendo que é hora de enfrentar seus medos. Ela não joga para perder. Sabe que você é forte e capaz de vencer todos esses desafios. Por que não confia no que ela está lhe pedindo?
- Será que estou pronta para fazer isso? Não estarei sendo provada para ver se consigo melhorar?
- A vida não está testando você. Ela sabe que é capaz. Quer apenas que você perceba isso, o que só vai acontecer quando decidir enfrentar todas as coisas, guiando-se apenas pelo seu bom senso e pela sua confiança em Deus. Você já possui conhecimento espiritual suficiente para viver melhor.
- Não penso assim. Faz tão pouco tempo que estou estudando esse assunto!
- Não falo de conhecimento técnico, nem do que se pode conhecer através dos livros e das experiências de outros, mas da sabedoria da alma. Você já possui conhecimento do que é bom ou mau para você. Sente quando está agindo bem ou não. Você está tão consciente da ética espiritual que qualquer deslize a incomoda terrivelmente. Isso demonstra o grau de lucidez que seu espírito já tem. Você é completamente capaz de levar a bom termo toda a sua missão terrena, por mais difícil que ela lhe pareça agora.
- O senhor se refere ao caso do coronel Firmino?
- Falo de um modo geral. Não pretendo induzi-Ia a tomar nenhuma decisão. Só desejo que tome consciência de sua própria força e não se julgue menos do que é.
Norberto ouvia calado e recordava-se de como Liana fora mais forte do que ele naqueles momentos de desequilíbrio que tinham vivido. Sentia horror só em pensar o que teria sido de suas vidas se ela houvesse aceitado fugir com ele. Fora a força dela que os salvara. Embora ela tenha fraquejado, sua consciência reta, seu bom senso fizeram-na recuar a tempo de evitar um mal maior.
Agora, havendo modificado sua forma de ver, estava convencido de que ela sempre estivera certa, e agradecia a Deus por isso. Ele era um homem que valorizava a família. Adorava os filhos. Queria ser respeitado por eles. Gostava de desfrutar da calma familiar. Odiava escândalos e situações dúbias. Além disso, descobrira outras qualidades em Eulália e até não acreditava muito que ela houvesse se casado com ele sem amor.
Ela era tímida. Fora educada com rigor, por isso encobria seus sentimentos. Sentia vergonha de mostrá-Ios. Foi lhe ensinado que a mulher precisava manter-se controlada para não parecer vulgar e leviana.
Olhou para ela, que, sentada ao lado de Liana, prestava atenção ao que o médico e ela conversavam. Lábios entreabertos, olhos brilhantes, postura firme, rosto expressivo, toda a sua aparência revelava que ela não era uma mulher fria.
E se ele a provocasse? E se ele tentasse penetrar e conhecer as profundidades daquele coração? Sempre respeitara sua intimidade agindo de acordo com a postura dela. Mas agora se perguntava se isso fora bom. Ele precisava fazê-Ia sentir o calor de um relacionamento mais verdadeiro, sem máscaras nem fingimentos.
Ele era um homem ardente. Desde jovem aprendera que no trato com as mulheres precisava manter diferentes posturas, conforme a posição delas. Com a esposa não podia ser venal como com as amantes. Uma era a mãe dos filhos, a mulher de família. Com as outras ele poderia dar vazão a todas as fantasias amorosas.
Entretanto, Norberto descobrira que o que o fazia feliz seria realizar com a mulher escolhida um relacionamento franco, sem papéis sociais ou preconceitos. Nunca havia sido feliz levando vida dupla. Se por um lado com a esposa continha seus impulsos amorosos com receio de ofendê-Ia, com as outras não se sentia bem. Quase sempre, depois de alguns encontros, acabava indiferente e entediado, com raiva de si mesmo.
Depois da experiência com Liana, do sofrimento daquela desastrada paixão, havia decidido renunciar para sempre esse seu desejo secreto de uma vida regular e plena com uma mulher. Acreditara ser impossível em uma sociedade falsa e tão conturbada realizar esse sonho.
Diante disso havia decidido viver para a família e aceitar os limites da relação íntima com a esposa. Mas o fato é que a descoberta do mundo espiritual, os acontecimentos que os envolveram, os aproximaram muito, tornando-os mais íntimos. Com isso descobriram um no outro qualidades e atitudes que não tinham observado antes. Passaram a sentir prazer em conversar, em estar juntos.
Para Norberto, Eulália havia se tornado uma nova mulher, mais natural e atraente. Haviam modificado a forma quase cerimoniosa com a qual se tratavam até na intimidade. Havia momentos em que ele chegava a esquecer como ela era antes e a abraçava com prazer.
Depois que todos se foram, havendo combinado que Liana e Alberto voltariam na segunda-feira para despedir-se, Norberto comentou:
- Gostaria de poder ficar mais um pouco por aqui.
- Eu também. Sentirei saudade de Liana, apesar de ela estar muito feliz com o marido e não precisar mais de mim.
- Ela valoriza muito sua companhia.
- Eu sei. Gostaria que ela fosse morar mais perto de nós. Mas parece que ambos gostam daqui e não pretendem voltar à capital.
- É compreensível. Isto aqui é um paraíso. Depois, Alberto é um escritor. Pode viver em qualquer lugar.
Depois de verificar se tudo estava fechado, Eulália perguntou:
- Você quer alguma coisa antes de subir?
- Não, obrigado.
Ele se levantou e ficou ao pé da escada esperando. Quando ela se aproximou, ele passou o braço sobre seu ombro para subirem juntos. Eulália estremeceu e ele notou que seu rosto se ruborizou.
Norberto não controlou a curiosidade e pensou: como seria Eulália sem o rígido controle de sempre? Que tipo de mulher se ocultaria atrás daquela postura habitual? Estava decidido a descobrir.
Assim que entraram no quarto, Norberto fechou a porta e, aproximando-se dela, apanhou sua mão e puxou-a apertando-a de encontro ao peito.
Ele notou que ela estava trêmula e sua respiração agitada. Ela sentiu que ele estava diferente. Em seus olhos havia um brilho que ela nunca vira antes. Seu coração descompassou.
Seu relacionamento íntimo com o marido sempre fora embaixo dos lençóis, na escuridão do quarto, e ela ficava o tempo todo esforçando-se para controlar as emoções, preocupada em não o desagradar e não ser vulgar.
Norberto procurou os lábios dela beijando-a com ardor várias vezes. Depois, apertando-a de encontro ao peito, beijou com carinho todo o seu rosto, seu pescoço, como nunca fizeram antes.
Eulália sentiu calor pelo corpo, enquanto uma emoção antes nunca sentida a invadia impedindo-a de raciocinar. Só sabia que queria que ele continuasse a apertá-Ia em seus braços e a beijá-Ia.
Sem pensar em mais nada, entregou-se à emoção.
Quando ela o apertou em seus braços tomada de paixão, Norberto sentiu que naquele momento ela estava se revelando, sem reservas, mostrando seus verdadeiros sentimentos de amor.
Então, inesperadamente ele foi tomado de deliciosa sensação. Ela era sua mulher e eles eram livres para amar. Entusiasmado, ele murmurou em seu ouvido:
- Eulália, meu amor. É assim que sonhei ver você. É assim que eu quero que seja em meus braços.
lnebriada de felicidade, Eulália deixou-se conduzir para a cama, encantada com o carinho que ele demonstrava, cobrindo-a de beijos, despertando seus sonhos adormecidos e suas mais loucas fantasias de felicidade.
Naquela noite, finalmente, os dois se conheceram intimamente e se encontraram.
No dia seguinte, quando Liana e Alberto chegaram para as despedidas, notaram que eles estavam diferentes. Havia um brilho novo nos olhos de Eulália, e Norberto rodeava-a de pequenas atenções, o que não era de seu feitio.
Vendo-se a sós com Eulália enquanto ela arrumava as malas no quarto, Liana comentou:
- Você hoje está diferente. O que foi?
- Nada. Está tudo bem.
- Há um brilho novo em seus olhos. Não sei o que é, mas você está radiosa. Está contente porque vai nos deixar?
- Não diga isso nem de brincadeira. Sabe que eu gostaria que vocês fossem morar bem do nosso lado. Vamos sentir saudade, isso sim.
- Eu também. Adoro essas crianças. Nunca vi ninguém como eles.
Mas, se não é a viagem de volta que a deixou alegre, o que é?
Eulália sentou-se na cama e deu profundo suspiro. Vendo que Liana a olhava curiosa, esclareceu:
- Para você posso contar. Norberto ontem estava particularmente carinhoso. Nunca o vi assim. Vou confessar uma coisa. Eu amo meu marido. Amo muito. Agora entendo por que você saiu de casa para casar com Alberto. Se sentiu o que eu senti esta noite, não dava para segurar.
Liana sorriu com satisfação. Sentia-se aliviada em saber que Norberto finalmente se dera conta do amor que sentia pela esposa. Seu pesadelo havia finalmente acabado para sempre.
- Não há nada que se compare a uma noite plena de amor. Percebi logo ao chegar que Vocês estavam iluminados.
- Eu ouvia falar de amor, imaginava que fosse fantasia. Mas eu senti a força desse sentimento e vi que ele também sentia. Foi maravilhoso. Ele me parece outro homem.
- E você é outra mulher. Mais humana, mais experiente. Que Deus a conserve sempre feliz como hoje.
- E vocês também. Que sejam sempre felizes como até agora.
Norberto estava chamando e perguntando se podia mandar apanhar as malas. Eulália apressou-se a responder.
As crianças faziam mil recomendações ao caseiro para cuidar dos passarinhos, não lhes deixando faltar água com açúcar que eles se habituaram a procurar no caramanchão e comida para que se fartassem.
Chegou a hora das despedidas. Abraçando a irmã, Eulália tinha lágrimas nos olhos quando disse baixinho a seu ouvido:
- Vou sentir sua falta. Você me ajudou a perceber muitas coisas e a aprender a ser feliz sem medo. Sua coragem de defender seu amor por Alberto impressionou-me muito, confesso.
- Também sentirei saudade. Desejo que seja sempre feliz. Não tenha medo de amar, de mostrar seus sentimentos. Vocês se amam. Aproveite as alegrias do amor correspondido - murmurou Liana emocionada.
Norberto aproximou-se dela, abraçando-a e murmurando:
- Obrigado, Liana. Você me ajudou a encontrar a verdadeira felicidade. Sempre lhe serei grato. Que Deus a abençoe.
Ela não respondeu. A emoção era grande e não encontrou palavras. Quando os carros sumiram na curva da rua, Alberto abraçou-a com carinho.
- Você se emocionou. Vamos sentir falta deles.
- Estou feliz. Finalmente eles compreenderam que se amam e estão felizes. Agora posso ficar em paz.
- Eu notei que eles estavam diferentes. Norberto estava mais falante, seus olhos brilhavam e estavam sempre procurando por Eulália. Você está certa. Ele descobriu seu amor pela esposa e ela correspondeu. Que bom.
- Apesar de ter percebido que o interesse dele por mim havia terminado, de vez em quando eu ainda me sentia culpada pensando que por minha causa, por haver despertado essa louca paixão no coração dele, eu havia roubado algo de minha irmã. Hoje, ao despedir-se, ele murmurou palavras a meu ouvido que me devolveram a paz.
- O que ele disse?
- Agradeceu e abençoou-me. Disse que eu o ajudei a encontrar a verdadeira felicidade. Eu compreendi. Senti que ele percebeu a loucura que estava cometendo quando quis deixar a família e fugir comigo. Como eu o repudiei com firmeza, ele agora percebe o quanto foi boa minha atitude. Ele estava descontrolado. Eu consegui colocar cada coisa em seu verdadeiro lugar. Eles estão bem, graças a Deus.
- A Deus e a você. Ele está certo. Você, apesar de perturbada, teve o bom senso de reagir. Hoje ele sabe que, se continua a ter uma vida familiar tranqüila, foi graças a você.
- E à ajuda espiritual, não se esqueça.
- Nunca vou esquecer. Sem falar que eu fui o maior beneficiado.
Se você não tivesse vivido aquela situação em casa, talvez nunca viesse a aceitar-me para marido.
Ela riu com gosto.
- Você teria conseguido de qualquer jeito. Nós estávamos destinados um para o outro. Não foi o que os espíritos disseram?
- Ainda bem. O que seria de minha vida sem você?
Abraçados e alegres, eles foram para o carro conversando com animação. O momento era de calma e de paz, eles queriam aproveitar.
Liana acordou indisposta.
- O que foi? - indagou Alberto, preocupado com a palidez de seu rosto.
- Não sei. Acho que comi alguma coisa que me fez mal.
- Melhor irmos ver o Dr. Marcílio. Você comeu o mesmo que eu.
Não havia nada pesado.
- Isso não é nada. Vai passar logo.
Ela se levantou e foi ao banheiro lavar-se. Era o primeiro domingo de maio. A manhã estava fresca, agradável. Quando ela se sentou à mesa para o café, Alberto notou que as cores haviam voltado a seu rosto e sorriu.
- Sente-se melhor?
- Sim.
- Em todo caso, falaremos com o Dr. Marcílio.
- Não é preciso. Estou muito bem. O cheiro do pão fresco despertou meu apetite.
Comeu com disposição, porém nos dias que se seguiram ela acordava sentindo-se enjoada. Alberto convenceu-a a procurar o médico. Ele a examinou cuidadosamente e indagou:
- Acorda indisposta, mas logo depois passa?
- É.
- Você está muito bem de saúde. Mas preciso fazer um exame. - Exame? - estranhou ela.
- Sim. Acho que está grávida.
Liana levantou-se assustada:
- Grávida? Acho que não. Minha menstruação não está atrasada. Marcílio sorriu e respondeu:
- Há mulheres muito sensíveis que podem sentir a gravidez no momento da fertilização do óvulo.
Liana olhou para Alberto indecisa. Sempre desejara ter filhos, mas, depois que soubera do pedido do coronel Firmino para reencarnar através dela, evitara pensar no assunto.
Alberto abraçou-a emocionado. Ele não tivera filhos do primeiro casamento.
O médico olhou-os com satisfação e esclareceu:
- Compreendo a emoção de vocês. Já presenciei muitos nascimentos, mas o milagre da vida sempre me emociona. Você me parece preocupada. Não está feliz?
- Sempre desejei ser mãe. Contudo, nestas circunstâncias, sinto receio.
- Você está muito bem de saúde e na idade boa para ser mãe. Do que tem medo?
Ela hesitou um pouco e depois respondeu:
- Do coronel Firmino. Será que é ele que vai nascer?
- É cedo para saber - disse o médico.
- Não deve preocupar-se com isso, Liana. Deus sempre faz tudo certo - interveio Alberto.
- Bem, não pensei que fosse acontecer assim, de repente. Os espíritos disseram que ele só nasceria se eu o aceitasse. Nunca sonhei com ele, não me recordo de havermos conversado e de haver concordado em ser sua mãe.
- Nesse caso, pode não ser o espírito dele que vai nascer. Não acha, Dr. Marcílio?
- Pode ser. Entretanto, o mais importante é reconhecer que a vida não erra. Se ela programou esse nascimento, tudo está certo e você não deve preocupar-se. Vamos fazer o exame e confirmar a gravidez. Depois, é cuidar-se bem e esperar o bebê com alegria. Isso é o que importa agora. No caminho de volta para casa, Alberto não escondia o entusiasmo.
Vendo sua alegria, Liana animou-se.
- Vou telefonar para Eulália. Ela será a primeira a saber.
- Estou pensando na casa. Vamos precisar de mais um quarto. O que acha de procurarmos uma maior?
- Não sei. Gosto tanto de nossa casa... Vamos esperar um pouco mais para decidir.
Eulália vibrou com a notícia!
- Que maravilha! Como se sente?
- Por enquanto bem. Um pouco enjoada de vez em quando. - É natural. Meu primeiro sobrinho! Faço questão de comprar um enxoval completo para ele. O mais lindo que encontrar.
- Ainda é muito cedo, Eulália.
- Qual nada. O tempo passa depressa.
- Alberto quer procurar uma casa maior, mas eu gosto tanto da nossa que ainda não decidi.
- Você vai precisar de companhia. Eu gostaria de estar a seu lado agora. Por que não voltam a morar aqui?
- Nós gostamos da calma do interior. Não nos habituaríamos mais com a cidade.
- Nesse caso, por que não se mudam para a mansão?
Liana teve um sobressalto:
- Que idéia, Eulália...
- Por que não? É uma casa linda, com conforto. Mesmo que morem lá, há espaço para nos acolher quando resolvermos passar férias aí. Além de economizarem o aluguel, ficariam mais bem instalados.
- Obrigada, Eulália, mas não podemos aceitar. O que Norberto iria dizer?
- Ficaria muito contente. Em nossas conversas, muitas vezes lamentamos que uma casa tão boa, tão bonita, permaneça fechada tanto tempo. Vocês cuidariam bem de tudo e nos fariam muito felizes.
- Agradeço, mas você sabe: eu não gostaria de voltar a morar lá, por causa do espírito do coronel Firmino. Já pensou se ele me aparecesse de novo?
- Qual nada! Ele já se foi. A casa agora está livre. Converse com Alberto. Prometa pensar no assunto.
- Está bem. Direi a ele. Gosto da casa, é linda, mas não me sinto com coragem de morar lá de novo.
Assim que desligou o telefone, Liana comentou com Alberto, que disse apenas:
- A casa é ótima, mas, se você se sente assim, não vamos aceitar. Quero que se sinta feliz, alegre. Vamos escrever uma carta a eles agradecendo e pronto.
Não falaram mais no assunto. Nos dias que se seguiram, Liana fez todos os exames necessários e o Dr. Marcílio concluiu satisfeito que ela estava muito bem.
No mesmo dia em que soube da novidade, Eulália participou às crianças a chegada do sobrinho.
- É o espírito do coronel Firmino - afirmou Eurico.
- Como é que você sabe? - interveio Amelinha curiosa.
- Isso mesmo - comentou Eulália. - Ninguém sabe. A natureza tem seus segredos.
- Claro que é ele. Estava louco para nascer. Pediu muito, chorou.
Agora conseguiu.
- Isso é você que está concluindo - disse Eulália. - Liana não falou nada a esse respeito. Portanto é melhor não ficar afirmando isso. Ela pode ficar nervosa se achar que é o espírito dele.
- Quem mais pode ser? Ele é que estava querendo... - lembrou Eurico.
- Nem tudo que ele quer pode ter. No lugar onde ele vive agora há disciplina. Para nascer, ele precisaria de permissão superior.
- Acha que ele não conseguiu? - perguntou Nico com interesse.
Não sei. É provável que não. Em todo caso, não acho prudente desde já acreditar que seja ele.
- Mas e se for? - teimou Eurico.
- Se for, um dia saberemos. Tenho estudado sobre a reencarnação e aprendido que não devemos fantasiar sobre o assunto. O espírito que nasce esquece o passado e isso evita problemas, ajuda seu progresso. Não quero que falem com Liana sobre isso. Ela pode ficar nervosa, e não é bom para sua saúde.
Eles prometeram não comentar com a tia, mas quando se viram sozinhos Eurico não se conformou:
- Tenho certeza de que é ele.
- Pensando bem, você pode ter razão - concordou Nico.
- E se for ele, o que faremos? - volveu Amelinha.
- Nada, ora. O que podemos fazer? - respondeu Eurico.
- Se for ele, deve estar do lado dela e você pode ver -lembrou Nico. - É. Mas eu não quero ver nada. Eu posso me assustar e dar com a língua nos dentes. Já pensou se tia Liana passar mal por causa disso? - A não ser que ela já saiba - aduziu Nico.
- Pelo que mamãe disse, não. Depois, ela não o queria, lembra? tornou Eurico.
- Ela pode ter mudado de idéia. Ter visto como ele está diferente - sugeriu Nico.
- Mamãe disse que iremos até lá no fim da outra semana. Poderemos perguntar a ela - disse Amelinha.
- Eu é que não vou perguntar nada - garantiu Eurico.- Logo agora que tudo está tão sossegado.
- Você tem dormido bem. Não me chamou mais durante a noite.
- Eles me deixaram em paz. Não quero que voltem. Mamãe tem razão. Vamos esquecer esta história.
- Se for ele, vai aparecer de novo mesmo - concordou Nico.
- Será que ele vai aparecer como nenê? Isto é, se ele for nascer? - perguntou Amelinha.
- O professor disse que ele pode ser visto como ele era ou como ele vai ser. Depende.
- Chi!!! Nico, você agora está confundindo minha cabeça - tornou Amelinha. - Como pode ser isso?
- Ora, na outra dimensão o tempo é diferente. Quem vê os espíritos está olhando para a outra dimensão. Pode ver o que já aconteceu, o que está acontecendo e o que vai acontecer.
- É isso mesmo - concordou Eurico. - Já aconteceu comigo.
Uma vez eu vi tia Liana como ela era quando foi esposa do coronel.
- Como é isso? - indagou Amelinha.
- Ora, eu olhava para ela, e ela estava com outra cara. Parecia outra pessoa. Uma vez olhei para Nico quando ele dormiu do meu lado, e não era ele. Era um moço bonito, de cabelos castanhos, e que, engraçado, não estava dormindo. Olhou para mim e sorriu. Quase morri de medo! - Como sabe que era eu? Podia ser um espírito que estivesse do meu lado.
- Não. Naquela hora eu sabia que era você. Não dá para explicar. - Puxa! E eu? Você nunca viu como eu era na outra encarnação? - Vi. Você era feia e faladeira. Como agora. Sempre dando palpites em tudo.
- É mentira! Não acredito. Você está querendo debochar de mim - reclamou ela chorosa.
- Ele não viu você - disse Nico com voz conciliadora. - Tenho certeza que você foi uma moça muito bonita e agradável.
Eurico olhou para eles e disse sério:
- Você deve saber mesmo. Naquele tempo andava sempre agarrado a ela!
Os dois olharam-no admirados.
- Por que está dizendo isso? - perguntou Nico.
- Não sei. De repente pareceu-me vê-Ios adultos e abraçados. - Você sabe que às vezes eu também me sinto assim, moço e ao lado de Amelinha? Será que já nos conhecemos de outra vida?
- Acho que de tanto andar juntos acabamos por imaginar coisas. - É mesmo. É melhor deixar esse assunto de lado. Não vamos poder saber ao certo mesmo - concluiu Nico, e os outros dois concordaram.
Quinze dias depois, eles foram passar o fim de semana na mansão. Eulália estava ansiosa para ver a irmã. Comprara já algumas coisas para o enxoval do bebê e não falava em outra coisa.
Norberto, ao saber a notícia, ficara pensativo. Sentiu receio de descobrir que havia dentro de si um pouco do antigo sentimento que nutrira pela cunhada. Mais tarde, sozinho no quarto, resolveu analisar melhor o que ia dentro de seu coração.
Ele e Eulália estavam vivendo uma vida feliz. Ela a cada dia revelava-se a companheira perfeita. Tendo descoberto o amor, tornara-se ardente, apaixonada, e Norberto sentia que a amava mais a cada dia.
Era com ela que ele sentia mais afinidade. Analisando melhor seus sentimentos, ele se sentiu aliviado, e todo o receio desapareceu. A gravidez de Liana não despertara nele nenhum ciúme ou desagrado. Ao contrário, sentia-se alegre, desejava que tanto ela como Alberto encontrassem a felicidade, formando uma família como a que ele possuía.
Foi, pois, com disposição e prazer que participou da alegria de Eulália, ouvindo-a discorrer sobre o que comprara para presentear o futuro sobrinho, elogiando seu bom gosto.
Pouco depois de chegarem à mansão, Liana e Alberto apareceram para abraçá-Ios. O ambiente estava alegre e eles conversavam animadamente.
As crianças estavam entusiasmadas com as roupinhas do bebê que Eulália levara e faziam perguntas querendo saber quando ele chegaria, se ele iria dormir no quarto do casal, como seria o berço.
Estavam tomando o café da tarde quando Maria informou Nico que seu irmão o procurava, muito agitado. Nico atendeu-o imediatamente:
- O que foi, Zé?
- Ainda bem que você veio! O pai teve um ataque e a mãe mandou chamar você. Está muito nervosa.
- O pai? O que é que ele tem? É melhor chamar o Dr. Marcílio. - Ele está lá agora. Acho melhor você ir comigo lá.
- Eu vou. Espere um pouco.
- Eu vou com você - disse Eurico, que ouvira tudo.
- Eu também quero ir - ajuntou Amelinha.
- Sua mãe não vai deixar. Vou falar com ela.
Nico foi até a sala acompanhado dos outros dois.
- O que foi, Nico? - indagou Eulália.
- O Zé veio me chamar. Meu pai sofreu um ataque e o Dr. Marcílio está lá. Preciso ir.
- Eu vou com ele! - decidiu Eurico.
- Eu também - tornou Amelinha.
- Não é preciso. O médico está cuidando dele. Pode ser que já esteja bem.
- Vou mandar o motorista levá-lo para ir mais rápido - determinou Norberto.
- Obrigado.
- Vocês dois ficam aqui - resolveu Eulália. - Nico vai sozinho.
O Dr. Marcílio está lá cuidando. Em todo caso, Nico, pode contar com nossa ajuda. Se precisar, telefone.
Depois que os dois irmãos saíram, Alberto considerou:
- Fiquei com vontade de ir com eles.
- Podemos passar lá quando sairmos - sugeriu Liana.
- Faremos isso.
Ao passarem pela casa de Ernestina, viram o Dr. Marcílio chegando também. Ficaram sabendo que Jacinto havia sofrido um derrame, cuja extensão só um exame especializado poderia informar. O Dr. Marcílio medicou-o e ficou lá observando a evolução da doença. Depois que ele deu ligeiro sinal de melhora, o médico foi até sua casa apanhar alguns medicamentos e voltou para reexaminá-lo.
Nico estava conversando com os irmãos na cozinha e aproximou-se de Alberto e Liana quando entraram na sala.
- O Dr. Marcílio está tratando dele. Vai ficar bom - disse Liana notando o ar preocupado do menino.
- Ele é um grande médico. Vamos confiar - tornou Alberto. - Eu sei disso - respondeu Nico
- Seus irmãos estão assustados e você inquieto, angustiado. Acalme-se. Sua mãe vai precisar de sua ajuda. Como fazer isso se não se acalmar? - lembrou Liana.
- Minha mãe tinha medo que um dia isso fosse acontecer.
- Como assim, Nico? - perguntou Liana.
Ernestina aproximou-se e pediu:
- Nico, vai com as crianças conversar lá fora. - Enquanto o menino obedecia saindo com os irmãos, ela se voltou para o casal e continuou:- Vamos sentar, por favor.
- A senhora está ocupada, não queremos incomodar - respondeu Liana.
- Só viemos saber como ele está e dizer que podem contar com nossa ajuda em tudo que precisar - completou Alberto.
- Obrigada. Sei que são nossos amigos. O doutor está com o Jacinto e pediu que eu saísse. É até bom nessa hora ter com quem conversar.
- Sentem, por favor.
Eles se sentaram e Alberto perguntou:
- Nico disse que a senhora previu que seu marido iria adoecer. Por quê? Ele já havia tido alguns sintomas?
Ela fez um gesto vago e respondeu:
- Não. Mas eu deduzi que ia acabar assim Veja: ele sempre foi muito forte e saudável. Tinha apetite, bons braços, pernas ágeis, mas nunca os usou bem. Não é pessoa má, mas nunca foi disposto pra trabalhar. Vivia se encostando, sentado, tudo pra ele era trabalhoso. Então eu pensei: Deus dá bons braços e pernas, saúde, força pra gente usar. A vida é muito prática e não gosta de coisas inúteis. Tudo na natureza se movimenta, trabalha, produz. Pode ver: a água parada apodrece e cria bicho; se você põe gesso na perna ou no braço, quando tira, não pode movimentar como antes. Leva tempo, precisa exercício pra voltar a ficar bom. Tudo é assim. A vida tem sua linguagem e, quando observamos, podemos sentir o que ela vai fazer com as pessoas que não se importam em usar os bens que ela lhes dá. Com o Jacinto eu sabia que ele não ia ter bons resultados dessa sua atitude. O Dr. Marcílio está lá. O Jacinto acordou, mas não está conseguindo mexer o lado direito do corpo. O braço e a perna estão paralisados.
- Mas hoje em dia a medicina está muito adiantada. O Dr. Marcílio é um médico excelente. Tenho certeza de que o Sr. Jacinto aos poucos vai melhorar - interveio Liana.
- Com a ajuda de Deus, e eu desejo isso. Mas no fundo do meu coração eu sinto que vai ser difícil. Ele sempre gostou de viver parado, a vida está dando a ele o remédio que ele sempre pediu.
Ernestina falava com naturalidade e Alberto olhou admirado para Liana, que comovida abraçou Ernestina, dizendo:
- Vamos esperar que ele se recupere, porque pode ser justo para ele, mas não o será para a senhora, que já luta com tanto trabalho e terá agora de ficar cuidando dele.
- Estou pronta pra fazer o que puder. Ele é meu marido. Tem seus defeitos assim como eu os meus, mas, se ele não se recuperar e eu precisar ajudá-Io, farei de coração. Ele é o pai dos meus filhos e o meu companheiro.
O Dr. Marcílio saiu do quarto e Ernestina voltou-se para ele:
- Como ele está, doutor?
- Na mesma. Amanhã vou conseguir uma ambulância para levá-lo ao hospital em Ribeirão Preto para fazer alguns exames. Depois poderei falar melhor sobre o caso.
- Vou ficar ao lado dele.
- Já dei o remédio e ele vai dormir um pouco. Vou explicar-lhe como dar os medicamentos. Venha.
Eles foram para o quarto e Alberto comentou:
- Que mulher extraordinária!
- É admirável. Acho que Nico vai querer passar a noite aqui a fim de confortá-la.
- É possível. Vamos esperar o Dr. Marcílio. Quero me informar melhor sobre o caso.
Quando o médico voltou, eles se despediram e saíram juntos. Nico pediu a Liana que telefonasse para Eulália e dissesse que ele iria ficar com a família naquela noite.
Uma vez lá fora, Alberto conversou com Marcílio sobre o estado de Jacinto.
- Sua pressão arterial está descompassada. O processo ainda não se estabilizou. Não se pode prever como vai reagir.
- O derrame pode repetir-se? - indagou Alberto.
- Esse é meu receio.
- Nesse caso então seria melhor interná-lo imediatamente?
- A medicação que ele tomaria no hospital, já lhe apliquei. Removê-lo nesse estado pode deixá-lo mais assustado do que já está e provocar exatamente o que desejo evitar. Amanhã faremos a internação com calma, sem nenhum prejuízo para ele e a família.
- Nós desejamos ajudar para que ele tenha todo o atendimento necessário. Norberto também quer colaborar. Portanto, informe-nos o montante das despesas.
- Deixe comigo. Nada faltará a ele, pode ter certeza. Quanto às despesas, depois falaremos. De minha parte tudo farei para que ele seja bem atendido.
Ao chegarem em casa, Liana ligou para Eulália e informou-a sobre a doença de Jacinto e finalizou:
- Nico pediu-me para avisá-la que vai ficar esta noite com a família. Quer confortar a mãe e ajudá-ia. Se tudo correr bem, amanhã ele volta.
- Está bem. Só espero que ele não queira ficar aqui mais tempo. Amanhã teremos de voltar para São Paulo. Ele não pode perder aula. Além disso, se ele ficar, Eurico vai me dar trabalho. Nunca vi coisa igual. Eles não se largam. Os três. Aonde um vai, os outros dois vão.
- É verdade. Nico é muito amoroso e preocupado com a mãe, mas ela tem bom senso. Não vai permitir que ele se prejudique por causa da doença do pai. É uma mulher prática e inteligente. Olhe, amanhã o Dr. Marcílio vai levar Jacinto a Ribeirão Preto para fazer alguns exames. Tenho certeza de que Ernestina vai convencer Nico a voltar com vocês para São Paulo.
- Espero que sim. Esse menino já faz parte de nossa família. Às vezes chego a esquecer que ele não é nosso filho. Até Norberto costuma conversar com Nico sobre os assuntos de família e muitas vezes já o vi fazer as coisas exatamente como ele sugeriu. Não é surpreendente?
- Se fosse com outro menino, eu diria que é. Mas Nico é um menino especial. Sempre percebi isso. É um líder natural. Os outros dois também acabam fazendo o que ele diz. Ainda bem que ele os influencia para melhor. Por isso vocês o estimam.
- De fato. Se depender de nós, ele ficará conosco para sempre. Liana desligou o telefone e comentou com o marido:
- Decididamente Nico já conquistou toda a família. Eulália está com medo de que ele deseje ficar mais tempo com os pais.
- A mãe não vai permitir. Ela sabe o que quer.
Liana sorriu e meneou a cabeça, concordando. Estava se preparando para deitar quando disse:
- Sabe, aquela idéia de ir morar na mansão não é tão disparatada assim. Hoje, quando estava lá, observei como aquela casa é bonita. Dá gosto ver.
- É verdade. Por mim, não tenho objeção. Você é que não gosta de lá.
- Não sei onde eu estava com a cabeça quando disse isso. Por causa de uma bobagem eu estou me privando de ir viver em um lugar espaçoso e bonito como aquele. Afinal, o coronel já foi embora e nunca mais voltará. Não foi isso que o Dr. Marcílio disse?
Alberto, apesar de surpreso, respondeu:
- Foi.
- Há um quarto que pode ser muito bem adaptado para nosso bebê.
Fica logo ao lado do quarto de hóspedes, que seria nosso se nos mudássemos para lá.
- Pelo jeito você esteve pensando nisso.
- É. Hoje me senti bem naquela casa. Acho que as más influências foram embora.
- Ainda bem. Finalmente você se sente livre. Isso é o que importa. Às sete da manhã seguinte, a ambulância chegou para buscar Jacinto, e Ernestina queria acompanhar o marido.
Vou ver se a Dona Ana pode tomar conta das crianças até eu voltar.
- Pode ir, mãe. Eu fico aqui com eles.
- Você precisa voltar para a mansão, Nico. Dona Eulália está esperando.
- Não agora. Você vai e eu fico com eles. A Dona Ana tem muitos filhos e o marido dela é abusado, vai ficar brigando com ela. Deixa que eu fico.
- Está bem. Não sei quanto tempo seu pai vai ficar lá. Mas, se ele estiver bem, eu volto e você poderá ir.
- Eu quero ficar com você. Sei que vai precisar de mim. Ernestina passou a mão de leve na cabeça do filho:
- Nada disso. Acha que não sou suficiente para tomar conta da minha família? Você não pode perder aula. Seu pai está bem assistido. O Dr. Marcílio vai fazer tudo, que puder por ele. Depois, tem o professor Alberto. Ele também vai nos ajudar.
- É meu pai, é minha família. Eu é que tenho que ficar.
- Vamos fazer os exames e seu pai vai ficar bem. Você vai poder voltar pra São Paulo.
- E se ele piorar e eu estiver longe?
- Se ele piorar e eu precisar de você, telefono chamando.
- Promete?
- Prometo. Agora tenho que ir. A ambulância já vai sair. Depois que eles se foram, Nico chamou José.
- Senta aí. Precisamos conversar.
- Acha que o pai vai morrer?
- Não sei. Mas você é o filho mais velho. Se o pai está doente, é você quem tem que cuidar da família.
- Eu?! A mãe nunca me dá ouvidos. Ela só fala no queridinho dela, que é você. Agora que as coisas estão complicando, eu é que tenho que pagar o pato?
Nico levantou-se e aproximando-se do irmão olhou-o firme nos olhos e disse sério:
- Você já fez treze anos. O que quer da vida? Acha que vai levar tudo assim, jogando bola, sem estudar nem trabalhar? Está na hora de começar a ajudar a mãe e a sua família. Viu o que aconteceu com o pai?
- Vi. Mas não foi por minha causa.
- Não? Eu ouvi a mãe falando que o pai ficou doente porque vivia muito parado.
- Isso é bobagem. Ele teve um derrame.
- Mas ficou sem poder mexer o braço e a perna. Se não melhorar, não vai mais poder andar. Já pensou nisso?
José baixou a cabeça e não respondeu, Nico continuou:
- A mãe está certa. Se você observar, tudo se movimenta na natureza. E é isso que garante a vida. A água corre para o rio, o rio corre para o mar, o sol nasce e se põe, até a Terra gira em volta do sol. O vento movimenta as árvores, tudo se move. Quem fica parado emperra. Já pensou se o sol resolvesse parar e não voltar no outro dia? Se as águas não corressem para os rios e o sol, parado no céu, secasse tudo? Em pouco tempo todos nós morreríamos. A vida se sustenta porque cada coisa, cada ser vivo, cada pessoa faz a sua parte. Você recebeu de Deus o dom da vida, precisa fazer a sua parte, contribuir para que a vida seja melhor a cada dia e tudo continue existindo. Esse é o preço que você tem que pagar por estar vivo. José olhou o irmão admirado. Nunca havia pensado nisso. Não se deu por achado:
- Eu não pedi pra viver. Deus me fez nascer porque quis.
- Mas você nasceu, está vivo e com saúde. O que você fez em favor da vida?
- Que idéia! Não preciso fazer nada. Eu quero viver, fazer o que eu gosto. Não sou como você, que vive puxando o saco dos outros.
- Mas enquanto eu estou estudando, me preparando para viver melhor, você está a cada dia mais preguiçoso. Não ajuda a mãe, não estuda, não trabalha. Como pensa que será a sua vida quando crescer?
- Quando chegar a hora vou pensar nisso. Agora sou criança.
- Quando for grande, vai ter que pegar o cabo de enxada se quiser comer. Por enquanto a mãe trabalha e você tem comida todos os dias. Mas, quando ela ficar velha e você tiver que comprar a própria comida, como vai fazer isso?
- Você sempre foi o queridinho dela. Eu sempre fui rejeitado. Você aparece aqui vestido como gente rica, mora na cidade, anda de carro, e ainda se dá o luxo de me chamar de preguiçoso?
Nico colocou as mãos nos ombros do irmão e sacudiu-o com força: - Viu o que está fazendo com você? Você nunca foi rejeitado por ninguém. O que a mãe me ensinou também ensinou a você. Só que eu ouvi os conselhos dela, e você não. Não foi ela quem rejeitou você, foi você quem rejeitou o amor e os conselhos dela. Agora fica dando uma de coitado, mas eu sei que você não é nada disso, que é um menino inteligente, que tem saúde, que se quisesse poderia ser muito mais do que eu e conseguir tudo que precisasse para progredir na vida. Mas prefere dar-se ares de superioridade, de revoltado, não obedece à mãe, não ajuda, não faz nada. Acha que está se beneficiando com isso? Acha que está lucrando? Não, você está se enterrando, se acabando, se tornando um vagabundo. É isso que quer?
José sacudiu o corpo e escapou dele, dizendo:
- Me deixa em paz. Você não manda em mim. O pai fala que eu sou criança para pensar na vida, que quem é esperto não precisa se matar de trabalhar pra viver.
- Você dá ouvidos ao que ele fala e vai acabar como ele, vivendo às custas da mulher e entravado em uma cama. É isso que quer?
- Não fica agourando. Você não tem nada com a minha vida. Dizendo isso, saiu. Nilce, que observava da porta, aproximou-se: - Você está perdendo tempo. A mãe dá tantos conselhos a ele, mas nunca ouve. Esse não tem jeito mesmo.
- Apesar de tudo, ele é um menino inteligente. Um dia vai compreender e mudar.
- A mãe também fala isso. Mas eu duvido. Vem tomar café, Nico.
Eu fiz e tem bolo de milho. O Jaime e a Neusinha já comeram.
- E o Zé?
- Deve estar no quarto. Vou chamar.
Pouco depois ela voltou admirada.
- Ele saiu. Não está em nenhum lugar. Ele é sempre o primeiro a tomar café. Saiu sem comer. Aonde terá ido?
- Foi esfriar a cabeça, mas volta logo, ainda mais que não tomou café. Vamos nós.
Abraçando a irmã, Nico conduziu-a para a cozinha e sentou-se esperando que ela colocasse o bule na mesa. Felizmente Nilce estava crescida e tinha boa disposição para ajudar a mãe nos trabalhos da casa.
Se seu pai estivesse melhor, ele poderia voltar para São Paulo na tarde daquele mesmo dia.
No fim da tarde, Ernestina voltou informando que o marido ficara internado para mais alguns exames, mas que o estado dele havia estabilizado, o que afastava temporariamente a possibilidade de repetição do derrame. Assim, Nico podia voltar para São Paulo com Dona Eulália.
Ele concordou, um pouco hesitante, mas Ernestina insistiu e ele finalmente aceitou ir.
Entretanto, antes de ir embora, aproveitou quando todos estavam tomando um lanche na cozinha e disse:
- Eu vou, mas, agora que o pai não está, o Zé é que tem que tomar conta da família. É o homem da casa.
Todos o olharam admirados. Ernestina olhou para Nico depois para José, e respondeu com voz calma:
- Ainda bem que Deus não me deixou sozinha nesta hora. É bom ter um homem dentro de casa pra me apoiar.
José estremeceu, endireitou o corpo, levantando a cabeça, mas não disse nada. Ernestina continuou tranqüilamente tomando seu café, conversando com os filhos com naturalidade.
Quando acabaram, Nico beijou as crianças e despediu-se da mãe, fazendo-a prometer que o chamaria se precisasse dele. Ao sair, disse para José:
- Eu gostaria de ficar, mas não posso. Confio que você vai ajudá-los mais do que eu. Vamos rezar para que o pai sare logo.
José não disse nada, e Nico apressou-se em ir para a mansão. Eulália havia mandado avisar que partiriam às seis, e ele teria tempo apenas de arrumar suas coisas para a viagem de volta.
Jacinto ficou internado no hospital durante uma semana. O Dr. Marcílio achou melhor que ele ficasse lá para poupar um pouco Ernestina e dar uma assistência intensiva. Seu estado havia se estabilizado, porém não conseguia movimentar os membros do lado direito nem pronunciar as palavras com facilidade, o que o deixava mais nervoso.
Ernestina informava-se do estado do marido pelo Dr. Marcílio. - Amanhã ele vai deixar o hospital e voltar para casa. Por enquanto não consegue andar, mas vou ver se consigo que Nelsinho venha cuidar dele.
Ernestina olhou séria para o médico:
- Ele vai ficar bom? Isto é, vai se recuperar e voltar a ser como era? - A fisioterapia vai ajudá-Io. Vamos ver como reage. Ele está nervoso e rebelde. Tem dado um pouco de trabalho. Mas tenho certeza de que você vai conseguir convencê-Io a fazer tudo direito. É preciso que ele saiba que esses exercícios representam sua oportunidade de cura. Se ele não reagir, se não fizer esse esforço, nunca mais vai andar.
- Deixe comigo. Ele vai ter que fazer.
- Vou ver se consigo também uma cadeira de rodas, pelo menos enquanto ele está assim.
- Isso deve ser caro, doutor. Não sei se terei como pagar.
- Não se preocupe, Dona Ernestina. A senhora tem muitos amigos. O Dr. Norberto e o professor já se prontificaram a pagar o tratamento. Jacinto vai ter tudo que for preciso para ficar bom. O importante agora é fazer com que ele se esforce para aproveitar.
Jacinto voltou para casa no dia seguinte. Alberto e Liana foram visitá-Io. Ernestina recebeu-os com carinho, informando-os sobre o estado do marido, e finalizou:
- O Dr. Marcílio tem sido bom demais. Sem falar de vocês, que vão pagar o Nelsinho. Amanhã o Jacinto vai começar os exercícios. Nem sei como agradecer tudo que têm feito pelo Nico e agora por nós. Só Deus pode lhes pagar.
- Não se preocupe com isso, Dona Ernestina. Vamos rezar para ele ficar bom - respondeu Alberto.
- Pode contar sempre com nossa amizade - ajuntou Liana. - Nico é muito querido por todos nós. Eulália não esquece que ele contribuiu muito para que Eurico ficasse bom. Eu mesma devo a ele muitos favores. Seu filho é maravilhoso.
Os olhos de Ernestina brilharam emocionados quando ela sorriu e disse:
- De fato. Ele sempre foi a luz que Deus colocou em meu caminho.
É um bom menino e merece ser feliz.
Depois de passar ligeiramente pelo quarto do doente e desejar-lhe breve recuperação, despediram-se, oferecendo-se uma vez mais para ajudar Dona Ernestina no que precisasse. Ao sair, viram José sentado em um canto do jardim, pensativo. Alberto aproximou-se:
- Como vai, Zé?
O menino levantou os olhos e Alberto notou que ele havia chorado. - Não fique triste. Tenha fé. Seu pai vai melhorar.
José não respondeu. Limitou-se a baixar a cabeça novamente. Alberto fez um sinal para Liana, que se afastou discretamente, indo esperá-lo do lado de fora. Depois, Alberto abaixou-se e colocou a mão no ombro do menino, dizendo:
- Está sendo difícil para você suportar esse momento. Sei como é, porque já passei por isso também. Gostaria de ser seu amigo e dizer que pode contar comigo para o que precisar.
Um soluço sacudiu o corpo do menino. Ele tentou se conter, levantou os olhos ch€ios de lágrimas e respondeu com voz emocionada:
- Desculpa, professor. Eu não sou um fraco. Meu pai sempre me ensinou que chorar é coisa de mulher.
- Não é verdade, Zé. Há momentos em nossa vida em que chorar alivia a alma. Eu mesmo já chorei muitas vezes. Deixe sair a sua dor.
Chore, se tem vontade.
O menino não conseguiu mais conter o pranto. Seu corpo foi sacudido pelos soluços enquanto as lágrimas lavavam suas faces e, embora ele com as mãos tentasse limpá-Ias, não paravam de cair.
Alberto tirou um lenço do bolso e deu-o a ele. Quando o viu mais calmo, disse:
- Agora enxugue os olhos e não se deixe abater. Seu pai vai melhorar. Você pode ajudá-lo não o deixando perceber sua tristeza. Sua mãe e seus irmãos também precisam de seu apoio.
José suspirou, enxugou os olhos e depois tornou envergonhado:
- Eu não sirvo pra nada, professor. Não sei ler nem trabalhar, como o Nico. Não posso ajudar ninguém.
- Não diga isso, Zé. Tudo que Nico faz você também pode fazer. É só querer aprender.
- Estou muito grande para ir na escola. Tenho vergonha. Depois, estou com muito medo.
- Medo? Por causa da doença de seu pai?
- Por tudo. Eu tenho medo de ficar como ele, .sem poder andar. O pai nem pode mais falar direito. Não quero ficar como ele...
- Você não vai ficar como ele. Não precisa ter medo.
- O Nico disse que sou vagabundo, que não gosto de trabalhar.
Quem fica parado acaba assim, como o pai. Quando eu vi ele desse jeito, pensei que o Nico podia ter razão. Eu não quero ficar assim. Eu ouvi o Dr. Marcílio dizer que não sabe se ele vai ficar bom como era. Eu não ouvia os conselhos da mãe, só os dele. Agora sei que ele estava errado. E eu estou grande demais pra aprender. Estou com medo. O que vai acontecer comigo?
Alberto, penalizado, passou a mão pelos cabelos do menino.
- Não vai acontecer nada de mau. Você ainda é criança. Reconhece que não estava agindo da melhor maneira. Mas tem tempo de aprender.
- Não quero ir pra escola com os pirralhinhos. Estou muito grande. - Eu tenho a solução. Se tem mesmo vontade de estudar, posso ensiná-Io.
José levantou para ele os olhos brilhantes de emoção:
- O senhor é professor. Faria isso por mim?
- Farei, se está mesmo disposto a estudar. Posso ensiná-Io e recuperar o tempo perdido.
- Não tenho dinheiro pra pagar.
- Eu exijo pagamento. Só que não precisa ser em dinheiro.
- Como, então?
- Sou pessoa ocupada e não posso perder tempo. Tem de aproveitar bem as aulas, prestando atenção, e estudar de fato. Depois, vai aprender a cuidar do meu jardim.
José coçou a cabeça preocupado:
- Eu quero, só que não sei como se cuida de um jardim. Nunca fiz isso.
- Não importa. Vai aprender. Então, o que me diz?
Ele se levantou e olhando nos olhos de Alberto disse:
- Acha mesmo que posso aprender? Que não sou muito burro? - Tenho certeza. Você pode fazer tudo que eu faço, ou que Nico faz. Basta querer. Podemos começar amanhã. Apareça lá em casa às duas da tarde.
- Sim, senhor! Pode esperar!
Alberto apertou a mão dele, tentando esconder a emoção. Procurou por Liana, que o esperava do lado de fora.
- O que houve com ele? - indagou ela.
- Um milagre. A doença do pai, alguma coisa que Nico disse, não sei bem o que foi, tocou a alma dele e parece disposto a mudar, a estudar e até trabalhar.
- Que bom. Ernestina vai ficar muito contente. Sempre se preocupou com o futuro dele.
- Vamos ver. Vou dar-lhe aulas. Começamos amanhã.
Liana abraçou o marido e sorriu:
- Tenho certeza de que ele vai aprender tudo. Você nasceu para ensinar.
No dia seguinte, José apareceu na casa do professor antes da hora marcada. Havia tomado banho, penteado os cabelos e vestido sua melhor roupa.
Antes do almoço ele já estava pronto e Ernestina, vendo-o limpo e calçado, o que não era seu costume, admirou-se:
- Você vai a algum lugar?
Ele hesitou. Não queria contar que ia começar a estudar. E se não conseguisse aprender? Não queria que os irmãos soubessem e o chamassem de burro.
- Depois eu conto - respondeu olhando para Nilce, que estava ajudando a mãe com o almoço.
Ernestina notou seu embaraço e disse com naturalidade:
- Nilce, vai recolher a roupa do varal. O sol está forte e se secar muito vai ficar ruim pra passar.
Depois que a filha saiu, Ernestina tornou:
- Se é segredo, já pode falar. Estamos sozinhos.
- É que ontem eu estava pensando... isto é... o professor Alberto falou comigo e pediu pra eu ir trabalhar no jardim da sua casa. Disse que me ensina.
- Que bom.
- Se eu limpar bem o jardim, ele vai me ensinar a ler e escrever. Ernestina abraçou o filho com carinho.
- Fico feliz que tenha decidido cuidar do seu futuro. Pode contar comigo pro que precisar: cadernos, lápis, tudo. Acho que vou comprar mais duas mudas de roupas. Vai precisar. Por que não contou isso na frente da sua irmã? Ela sempre quis que você fosse estudar na escola dela.
- Não quero que ninguém saiba. O pai nem os irmãos. E se eu não conseguir aprender?
- Você sempre foi um menino inteligente. Vai aprender tudo muito depressa. O que faltava era só vontade.
- Não sou inteligente como o Nico ou a Nilce. Se eu fosse, não tinha fugido da escola e dado ouvidos às conversas do pai.
- Qualquer pessoa, mesmo sendo inteligente, pode escolher errado. Foi o que aconteceu com você. O importante é que agora você percebeu e quer mudar. O seu sucesso vai depender da vontade que tem de melhorar a sua vida. Aprender coisas é alargar o seu mundo. Tenho certeza de que você vai adorar estudar com o professor Alberto. O Nico adorava.
Gislene fez José entrar e Alberto conduziu-o para o escritório. Notou que o menino estava acanhado e respondendo por monossílabos. Fê-lo sentar-se no sofá e sentou-se a seu lado, dizendo:
- Vamos conversar. Se vamos trabalhar juntos, precisamos nos conhecer melhor. Você já completou treze anos?
- Já.
- Qual é o dia de seu aniversário?
- Dois de setembro.
- O que você mais gosta de fazer?
- Bom... eu acho que... eu gostava de jogar bola, mas agora tenho que mudar.
- Você pode continuar a jogar bola. É um excelente esporte.
- Mas é só o que eu fazia, e por causa disso não fui mais na escola. - Não há nada de errado em gostar de fazer algum esporte, ou se divertir fazendo o que gosta. É uma questão de saber organizar sua vida com inteligência. Se fizer isso, terá tempo para estudar, para trabalhar e para se divertir jogando bola, fazer qualquer outra coisa que lhe dê prazer, ou até não fazer nada.
José arregalou os olhos:
- Será? Eu levantava cedo e só pensava em jogar bola.
- Na vida todos precisamos aprender disciplina. Sabe o que é isso?
- Sei. É ter que fazer tudo que você não gosta.
Alberto riu bem-humorado.
- Quem disse isso a você?
O menino enrubesceu e disse baixinho:
- Foi meu pai... mas agora acho que ele não estava certo.
- Com certeza seu pai não teve quem lhe ensinasse isso. Vamos começar nosso estudo por aí.
Alberto apanhou um livro de gravuras sobre a natureza e os fenômenos do universo e sentou-se novamente ao lado do menino, dizendo:
- Vou chamar você de José. É esse seu nome. Veja esta gravura. É um retrato da Terra, o planeta onde nós vivemos.
Alberto começou a contar ao menino toda a história da dimensão do universo, das galáxias, da formação dos planetas e de seus movimentos em torno do sol.
Ia mostrando no livro e falando do equilíbrio dos planetas e da própria Terra, de como nasce o dia e como o sol se põe.
A certa altura o menino não se conteve:
- Quer dizer que nós estamos em cima dessa bola que gira sem cair? Como pode ser isso?
- É que o planeta Terra tem uma força de atração que nos puxa para ela. Por isso não caímos de sua superfície. É por isso que, quando você joga a bola para cima, ela cai.
- É essa força da Terra que puxa ela?
- É. Isso é uma lei da natureza.
- O que é uma lei?
- É uma força natural a que tudo e todos estamos sujeitos. Essa força a que me referi é própria da natureza e nós a chamamos de lei da gravidade.
- Puxa, professor! Nunca pensei que fosse assim.
- O universo é maravilhoso. Há muito mais.
Alberto descrevia e José ouvia deslumbrado, esquecido de tudo que não fosse o brilho das estrelas, a imensidão dos céus e os mistérios insondáveis dos mundos distantes.
- Desejo que você perceba que Deus fez tudo isso, mas colocou cada coisa em seu devido lugar. Tudo é organizado, tudo se movimenta perfeitamente, dentro de uma ordem sem que os planetas se choquem. Cada coisa cumpre sua função e tudo acontece dentro do plano de Deus. Isso é disciplina, organização. Já pensou se as coisas fossem ao acaso e não houvesse um rumo para elas?
- Ia dar confusão. Os planetas podiam se chocar, ia morrer todo mundo.
- É verdade. Mas a sabedoria de Deus criou o universo e um sistema disciplinar para que ele funcione.
- Deus foi inteligente.
- Isso mesmo. Você acaba de dizer que usar a disciplina é ser inteligente. E eu digo mais: que a disciplina com inteligência serve para facilitar nossa vida.
- Como assim?
- Se nós seguirmos certas normas, embora elas requeiram certo esforço, no fim vão facilitar muito e contribuir para melhorar nossa vida. - O estudo é uma disciplina?
- É. Você percebeu bem. Às vezes você pode achar que é melhor passar o dia inteiro jogando bola, ao invés de dividir se tempo estudando, trabalhando, jogando bola. Mas o estudo vai lhe dar condições de conhecer mais como as coisas funcionam, de trabalhar melhor, de ser mais útil e ter mais realização. Além disso, quem sabe fazer coisas pode obter melhor salário. Quando for jogar bola, estará feliz, com dinheiro para poder comprar o que quiser, ajudar sua família, sentir-se realizado. Não acha que vale a pena aprender a ser disciplinado?
- Acho.
- Todas as coisas que você desejar fazer têm um caminho que você precisa percorrer para chegar aonde pretende. A disciplina é o jeito inteligente de encontrar o caminho mais curto.
- Qualquer um pode aprender a fazer isso?
- Pode, se tiver vontade e for observador.
- Observador como?
- Prestar atenção em como a vida funciona. A vida é a maior professora.
- Como eu posso saber que é ela quem está me ensinando?
- Quando uma coisa complica, pode ter certeza de que está errada. É melhor parar e tentar perceber onde você errou e recomeçar de outra forma. A vida gosta da simplicidade, do jeito prático, fácil.
- O caso do meu pai está complicado, mas agora ele não pode voltar atrás. O médico disse que não sabe se ele vai voltar a ser como antes.
- Ele precisava aprender a enxergar o valor do trabalho, da disciplina. Teve certo tempo para que ele fizesse isso. Como ele não o fez, a vida resolveu aplicar um remédio para curá-Io de vez.
- Não foi remédio, foi doença.
- Para ele a doença é o remédio. Por meio dela ele vai compreender o valor da disciplina e do esforço próprio.
- E se ele não sarar, do que vai adiantar essa doença?
- É bom você saber que a vida não existe só enquanto estamos vivendo neste mundo. Ela continua depois da morte.
- O Nico fala de espírito, mas eu tenho medo.
- Se conhecer a verdade, o medo vai embora. É bom saber que a vida continua. Seu pai vai continuar vivendo mesmo depois que o corpo dele morrer. E, então, ele terá aprendido o que a vida deseja lhe ensinar. Sabe, José, a vida sempre ensina pensando na alma, que é eterna.
- Quer dizer que se eu morrer vou continuar vivendo em outro lugar?
- Vai. Seu espírito é eterno. A vida não tem fim. Você não sente que nunca vai morrer?
- É. Eu sinto. Apesar de ver o cemitério cheio de túmulos, dentro de mim eu acredito que nunca vou morrer.
- É porque o espírito nunca morre. Você já viveu outras vidas antes dessa e ainda viverá outras depois.
- Eu não me lembro de nada antes de agora.
- É assim mesmo. Nós nascemos e esquecemos, mas guardamos em nosso espírito todas as vidas passadas. Quando voltamos para o mundo de onde viemos, recordamos tudo. Assim, de vida em vida vamos aprendendo, experimentando, crescendo.
- Minha avó era muito boa. Fiquei triste quando ela morreu. Quer dizer que ela está viva em outro lugar?
- Está. A morte é apenas uma mudança, uma viagem.
Liana apareceu na porta:
- Vocês estão aí há mais de duas horas. Está na hora do lanche. - Já? - indagou José.
- Vamos parar. Você já tem muito material para pensar. Amanhã continuaremos - resolveu Alberto. - Venha, vamos tomar nosso café. José levantou-se um pouco acanhado. Liana adiantou-se:
- Venha, José. Vou levá-Io para lavar as mãos.
Ele a acompanhou até o banheiro e quando saiu Alberto esperava-o e conduziu-o à copa, onde a mesa posta e o gostoso cheiro do café os esperavam.
- Sente-se, José - pediu Liana.
Percebendo o acanhamento do menino, Alberto disse com naturalidade:
- Amanhã gostaria que você viesse cedo. A que horas levanta? - A hora que for preciso. A que horas posso vir?
- Às nove.
- Eu trouxe caderno e lápis. Minha mãe disse que compra o que for preciso pra que eu faça as lições.
- Por enquanto não vai precisar. Eu tenho aqui algum material. Quero que venha de manhã para trabalhar no jardim e à tarde para estudar. Você concorda?
- Sim, senhor. Nós combinamos que eu devo trabalhar em troca das aulas.
- Isso mesmo.
José remexeu-se na cadeira.
- O que foi, José?
- É que eu não sei lidar no jardim. Está cheio de flores e eu tenho medo de estragar alguma coisa.
- Vou ensinar como você vai cuidar de tudo. Não se preocupe.
Vamos fazer juntos.
Ele respirou aliviado.
- Tome seu café, José - convidou Liana. - Experimente o bolo.
É a especialidade de Gislene. Hoje ela fez em sua homenagem.
José endireitou o corpo, olhou para Gislene, que colocava uma generosa fatia do bolo em seu prato, sorriu e disse:
- Muito obrigado, Gislene. Nunca ninguém fez um bolo em minha homenagem.
- Um menino que trabalha e estuda merece. Eu admiro você disse ela satisfeita.
Quando saiu da casa meia hora depois, José sentia-se muito feliz. Nunca fora tratado com tanto carinho e respeito. Chegou em casa alegre, e Nilce foi logo perguntando:
- E então, como foi?
- Muito bem. Aprendi tudo que o professor ensinou.
- Ele não passou lição de casa?
- Ainda não.
Ernestina entrou na cozinha carregando uma pilha de roupas que recolhera do varal.
- Está com fome, Zé? Tem café no bule e pão no armário.
- Obrigado, mãe, mas já comi. Sabe que na casa do professor a Gislene fez um bolo em minha homenagem?
- Puxa! E você comeu? - interveio Nilce.
- Claro que comi. Dois pedaços. Estava uma delícia.
- Espero que você tenha agradecido e não tenha abusado.
- Não, mãe. Pode ficar sossegada. Eles são muito educados e eu vou aprender a ser como eles.
- Isso mesmo, meu filho. É preciso respeitar as pessoas para ser respeitado. Não quero que nenhum filho meu seja malcriado. Nós somos pobres mas dignos.
Quando começou a escurecer, José sentou-se no degrau da escada do jardim, perdido em seus próprios pensamentos. Olhava o céu, onde as primeiras estrelas já apareciam, e dava largas à imaginação.
Nunca havia reparado na beleza do céu estrelado. Notou que algumas estrelas eram maiores e brilhavam mais do que as outras. Estariam mais perto ou seriam maiores? No dia seguinte perguntaria ao professor.
Ficou ali contemplando o céu até que Ernestina o chamou:
- Está na hora de entrar, Zé. Vamos dormir.
Ele entrou e ajudou a mãe a fechar as janelas. Depois disse:
- Amanhã vou levantar cedo. Preciso estar na casa do professor às nove horas pra trabalhar no jardim. Não quero perder a hora. Já que eu vou levantar mesmo, posso ir até a padaria buscar o pão.
Ernestina concordou. Nilce, que passava pela sala e ouviu as palavras dele, comentou:
- Uma alma se salvou agora. Os milagres podem acontecer! Você se oferecendo pra ir buscar pão?!
- O que é que tem? Eu vou porque quero. Você não tem nada com isso.
Ernestina interveio:
- Ei, vocês dois! Vamos parar com isso. Você deveria agradecer a boa vontade do seu irmão. Se ele não se oferecesse, você é que tinha que ir. - Não está mais aqui quem falou, mãe. O Zé está mudado mesmo. - Isso é só o começo. Você ainda não viu nada.
- Hum... pelo jeito está resolvido mesmo. Só quero ver até quando...
- Deixa ele, Nilce, e vai ver se a Neusinha escovou os dentes. Ela comeu broa, tomou café com leite e foi direto pro quarto. Acho que já se deitou.
Nilce foi para o quarto e José disse sério:
- Mãe, a Nilce não acredita, mas eu estou mudado mesmo. Ainda hoje, lá na casa do professor, eu senti que era isso que eu queria da vida. Eles me chamaram de José, me trataram tão bem que me senti importante. Estou resolvido, mãe. O Nico está certo em querer ser gente. Eu também quero ter uma vida melhor.
Ernestina sorriu e seus olhos brilhavam de felicidade quando ela respondeu:
- Filho, estou muito contente que tenha decidido isso. Eu sabia que um menino inteligente e esperto como você não ia ficar toda a vida se contentando em viver na miséria e na inutilidade. Não me enganei e estou orgulhosa de você. Estou certa que daqui pra frente você vai melhorar a cada dia.
- Obrigado, mãe. Vou mostrar pra todo mundo do que sou capaz. - Isso mesmo, meu filho. Que Deus o abençoe.
Depois que ele foi para o quarto, Ernestina foi ver se os filhos já estavam deitados e se o marido estava bem. Depois, quando viu tudo em silêncio, dirigiu-se a uma imagem de Nossa Senhora colocada em cima da cômoda, acendeu a lamparina como fazia todas as noites e começou a rezar.
Agradeceu a mudança do filho; pediu a ajuda para o marido, que, inconformado com a doença, se tornara irascível e revoltado; pediu proteção para sua família e, por fim, forças para conseguir cuidar de todas as suas obrigações com alegria e coragem.
Para não incomodar o marido, Ernestina colocara um colchão no chão, ao lado da cama do casal, e era lá que dormia desde que ele adoecera. Apagou a luz e deitou-se.
A noite era clara e ela ficou olhando a luz que entrava pelas frestas da veneziana e pensando. O que seria de sua vida se o marido nunca mais pudesse andar?
Nelsinho tentara de todas as formas que Jacinto fizesse alguns exercícios mas ele se recusava. Não queria sentir dor nem fazer nenhum esforço. Não queria cooperar, alegando que isso não iria valer de nada. Dizia que o médico não era bom e exigia que lhe dessem um remédio que o curasse.
Ao sair, depois de muitas tentativas, Nelsinho comentara:
- D. Ernestina, se o Sr. Jacinto não cooperar, não vai se recuperar. - Ele está revoltado. Nunca tinha ficado doente antes. Sabe como é, não tem paciência. Mas temos que insistir. O Dr. Marcílio disse que é preciso.
- Ele tem razão. Por isso, em benefício dele mesmo, vou precisar ser mais duro.
- Coitado. Está tão sofrido!
- Ficar com pena só vai piorar o estado dele. O que ele precisa é tomar consciência de que, se não se mexer, não sara.
Depende dele melhorar ou ficar para sempre naquela cama. É isso que ele precisa saber e eu vou dizer-lhe. A senhora não repare se eu falar firme com ele. Faz parte da cura.
- Eu entendo. O Jacinto sempre foi muito teimoso. Faça o que for preciso.
Ernestina suspirou resignada. O dia seguinte ia ser trabalhoso. Jacinto, quando acordado, chamava-a insistentemente por qualquer coisa e muitas vezes ela só podia dar conta do trabalho nos momentos em que ele dormia.
Ela sentia as costas doendo e o corpo cansado. Mas, apesar disso, estava contente com a atitude de José. Se ele se dispusesse ao trabalho e conseguisse ganhar algum dinheiro para as despesas, ela poderia trabalhar menos e dispor de mais tempo para cuidar do marido.
Agradecia a Deus essa ajuda. Virou-se para o lado e, como estava cansada, logo adormeceu.
O tempo varreu os acontecimentos e dez anos depois vamos encontrar Liana feliz e alegre na mansão preparando tudo para receber Eulália e a família, que lá iriam passar as festas do fim de ano, como sempre faziam.
Eles haviam se mudado para a antiga casa do coronel Firmino, dois meses antes do nascimento de seu primeiro filho. Liana, que a princípio não gostara da idéia, com o passar do tempo começou a sentir uma predileção especial por aquela casa, sentindo prazer em ir lá, em cuidar para que tudo ficasse sempre bem arrumado.
Certa ocasião, Eulália voltou ao assunto, alegando a dificuldade de se encontrar uma casa tão confortável na pequena cidade:
- Fico penalizada de ver uma casa tão espaçosa e bonita vazia quase o ano inteiro. Nosso maior desejo é que vocês se mudem para lá. Assim, em nossas férias ficaremos todos juntos.
- Seria bom. Mas teríamos de fazer algumas mudanças para nos instalarmos e eu não gostaria de tirar o conforto de vocês.
- Está resolvido, Liana. A casa é grande o bastante para todos nós. Como aparecemos de vez em quando, vocês continuarão tendo toda a privacidade.
- Vou pensar.
Uma vez a sós com Alberto, conversaram e resolveram aceitar. A alegria de Eulália deixou-os à vontade. Juntos cuidaram das mudanças necessárias.
João Alberto nasceu dois meses depois, e seu choro forte encheu a casa, causando euforia até nos criados. Era um menino robusto e bonito. Imediatamente Alberto telefonou para Norberto comunicando o nascimento.
No fim de semana eles chegaram para conhecer o novo membro da família, trazendo inúmeros presentes.
Os meninos estavam curiosos, e alvoroçados subiram para o quarto onde ele dormia tranqüilo. Liana acompanhou-os recomendando silêncio para que não o acordassem.
- Tia, eu quero pegá-lo no colo - pediu Amelinha. - Olhem que lindo! Tão pequenininho!
- Deixe-o acordar e eu o colocarei em seu colo um pouco.
- Como pode ser tão pequeno? - indagou Eurico, admirado. - Vocês também já foram assim - comentou Eulália, que os acompanhara.
Amelinha quis ver todas as roupinhas enquanto os meninos corriam para ver o caramanchão e os ninhos de passarinhos.
A certa altura, Eurico ficou pensativo e Nico indagou:
- O que foi, aconteceu alguma coisa?
- A tia Liana não sabe, mas o coronel voltou.
- Lá vem você de novo...
- É ele, sim. Está pequeno, nasceu com outra cara, mas é ele mesmo.
- Você quer dizer que o menino é ele?
-É.
- Você pode estar enganado, cismado.
- Não estou, não. Eu vi direitinho.
- Viu o quê?
- Eu olhava para o rosto do bebê, via a carinha dele, mas atrás da cabecinha dele eu via o coronel Firmino.
- Ele pode estar do lado do menino.
- Não. Ele saía e entrava no rosto dele.
- Chi!!... Você está complicando.
- Não estou, não. É difícil explicar. Ele sumia, parecia que se transformava no rosto do nenê. Depois, ele saía e voltava a ser o coronel de novo. Eu senti que ele e o menino eram a mesma pessoa.
- Acho bom não contar nada para sua tia. Ela pode ficar com medo. Logo agora que ela já esqueceu e até mora aqui na casa.
- Foi ele quem quis morar aqui. Ela sentiu a vontade dele. Começou a gostar da casa depois que ele encarnou.
- Ela se mudou antes do nascimento dele.
- É, mas ele já estava dentro da barriga dela.
- Puxa! É verdade. Vamos perguntar para o Dr. Marcílio sem que a sua tia saiba.
No domingo, quando o médico apareceu para visitá-Ios, os meninos chamaram-no de um lado e contaram o que acontecera.
- O senhor acha que precisamos contar para a tia Liana?
- Eu penso que não - interveio Nico.
- É melhor não - concordou o médico.
- Nesse caso ela nunca vai saber que é ele? - indagou Eurico.
- Nesses casos, precisamos dar tempo ao tempo. Você viu isso e acredita que o menino seja o espírito do coronel Firmino reencarnado. Eu também acho que é. Entretanto, a vida deixou-o esquecer o passado, e ela faz tudo certo. Nós não temos o direito de interferir.
- Nesse caso, não direi nada.
- Será que é ele mesmo? - perguntou Nico.
- Bem, nós não vamos comentar para não interferir na vida dele, mas podemos observar para nosso conhecimento.
- Como assim? - indagou Nico.
- Embora Firmino esteja esquecido do passado e tenha aprendido algumas coisas e se modificado, seu temperamento, sua personalidade ainda são os mesmos.
- Eu sei - interveio Eurico. - Se for ele, vai ser mandão e vai querer comandar tudo.
- Não se precipite - disse o médico sorrindo. - Você o conheceu muito pouco. Ele deve ter qualidades que você não teve tempo de perceber. Não se esqueça de que ele estava desequilibrado, sofrendo muito.
- Duvido que ele tenha qualidades boas - disse Eurico.
- Talvez seja por isso que a vida o colocou em sua família, para que vocês aprendam a conhecer os outros lados dele.
- É. Eu acho que foi isso mesmo. Puxa! Eu nunca pensei nele quando era criança ou moço - comentou Nico.
- Veja o que aconteceu com seu irmão. Ele mudou muito em pouco tempo. Tem ajudado sua mãe, trabalhado e já sabe ler corretamente.
- Quem diria! Você dizia que ele era um vagabundo! - lembrou Eurico.
- É, ele era. Mas agora criou vergonha. Ainda bem.
- Bom, se ele criou vergonha e mudou, o espírito do coronel Firmino pode ter feito o mesmo - lembrou o doutor.
Os meninos concordaram e não falaram mais no assunto.
Dois anos depois, Liana deu à luz uma menina a quem chamaram de Rosa Maria, em homenagem à avó materna. Era linda e saudável como seu irmão. Mas desde cedo revelou um temperamento diferente do dele. Enquanto ele era barulhento e ativo, ela se mostrava doce e tranqüila. Seu sorriso encantava a todos e seu jeitinho carinhoso tornava-a muito querida não só por todos os membros da família mas também pelos amigos.
Em São Paulo, Nico, Eurico e Amelinha continuavam inseparáveis, embora revelando diferentes inclinações. Enquanto Nico revelava sua paixão pelo desenho e pela pintura, Amelinha interessava-se pelo balé e pelo teatro. Eurico preferia matemática e as ciências exatas.
Ao contrário dos outros dois, que em suas horas de lazer procuravam na música e nas artes seu entretenimento, Eurico se sentia inclinado aos estudos da física. Apesar disso, andavam sempre juntos. Enquanto Amelinha, que se matriculara em uma escola de balé, ouvia música clássica, calçava suas sapatilhas e rodopiava pelo salão de festas de sua casa, local onde eles passavam suas horas de lazer, Nico manejava pincéis e tintas nas telas que comprara, e Eurico estudava as leis da gravidade, fazia cálculos imaginativos dos astros e ficava horas manejando alguns instrumentos de medição que conseguira ganhar do pai, anotando tudo e fazendo experiências curiosas com objetos, plantas, etc.
Embora tivessem amigos no colégio, eles passavam a maior parte do tempo entretidos em casa, longe dos divertimentos comuns. Apesar disso, mantinham boas relações com os demais. Recebiam muitos convites para festas, aceitavam alguns, mas o que eles mais gostavam mesmo era de ficar em casa juntos, cada um exercendo as atividades de sua predileção.
Todos sabiam que Nico não pertencia à família dos dois irmãos. Ele nunca escondeu sua procedência humilde e, com dignidade, oferecera-se para dar aulas aos alunos em dificuldade, e assim ganhava algum dinheiro para suas despesas pessoais.
Certa vez uma colega fora até a casa deles em busca de uma matéria cuja aula perdera, e, ao ser conduzida ao salão onde eles se reuniam, encantou-se com uma tela que Nico pintara, oferecendo-se para comprá-Ia. Ele a deu de presente.
A mãe da menina ficou encantada e procurou-o para ver seu trabalho. A partir desse dia ele começou a ser procurado por algumas mães de seus colegas interessadas em adquirir suas telas e ele, animado por Amelinha e Eurico, que vibravam com o sucesso do amigo, estipulava os preços e mostrava os trabalhos.
Assim, ele começou a ganhar mais, a ter dinheiro para comprar material melhor e em maior quantidade, e do dinheiro que sobrava até mandava algum para ajudar a mãe, apesar de Eulália continuar dando a ela uma mesada.
Seus professores interessaram-se por sua pintura, aconselhando-o a cursar uma escola de belas-artes. Ele, porém, não se decidia. Para ele, pintar era fácil e natural, mas, quando pensava em fazer disso profissão, sentia medo, tristeza e vontade de largar tudo.
No momento de escolher uma carreira, Norberto reuniu-os para uma conversa. Amelinha queria ser bailarina e fazer escola de arte dramática. Mas o pai tentou fazê-Ia mudar de idéia. Como ela insistisse, ele propôs:
- Você pode continuar no balé, cursar a escola de arte dramática se quiser, mas, como isso não é profissão, terá de escolher outra coisa também. Ser professora, dentista, médica, vocês precisam se preparar para a vida. Arte é um hobby. Faz bem para a alma, mas é só.
Nico abanou a cabeça, dizendo:
- Dr. Norberto, eu não sei o que escolher. Pintar para mim é como o ar que respiro. Nunca aprendi, mas sempre soube. Mas penso que o senhor tem razão. Não quero fazer disso profissão.
- Ainda bem, Nico. Você pode ser professor, como Alberto. Como eu disse, arte é só para passar o tempo. Por isso, acho bom os três pensarem no assunto e resolver. O ano está no fim e não podemos esperar mais.
Quando ele se foi, os três sentaram-se no salão em meio aos objetos de costume e trocaram idéias sem chegar a nenhuma conclusão.
- O Zé já escolheu o que ele quer ser -lembrou Nico.
- Eu sei, ele disse que vai ser agrônomo. Mas sem fazer faculdade.
Só prático. Estudando nos livros e experimentando. Depois do que ele já fez nas terras de sua mãe, acho que vai dar muito certo - tornou Eurico.
- É mesmo. Aquilo está uma beleza! Minha mãe disse que ele tem uma mão! Tudo que ele planta dá. Ela nem está comprando mais feijão.
- Eu vi o que ele fez no jardim da mansão. Está lindo! - interveio Amelinha.
- O professor ensinou e deu muitos livros a ele. Agora tem até um ajudante.
- Ele já escolheu, mas nós, o que faremos? - indagou Amelinha. - O que eu gostaria mesmo é de ser artista. Mas já sei que papai não vai deixar. Terei de escolher outra coisa. Mas o quê?
- Escolha alguma coisa bem fácil, e assim você vai poder ter tempo de fazer a escola de arte - sugeriu Eurico. - Eu gosto de fazer minhas experiências. Quero escolher uma profissão que me permita fazer isso.
- Eu quero pintar; gosto também de pegar no barro e fazer coisas. Mas isso não é profissão. Professor eu não sei... será que eu podia ensinar pintura?
- Claro que não, Nico. Se pintar quadros não é profissão, quem vai querer aprender? Só se você se tornar pintor de paredes - disse Eurico.
- Não é desse tipo de pintura que eu gosto.
- Você pode fazer arquitetura. Tem de desenhar e criar coisas sugeriu Amelinha.
- É. Talvez. Vamos ver. Amanhã vou conversar com a psicóloga da escola. Ela disse que pode nos ajudar a encontrar nossa vocação profissional.
- É uma boa idéia, Nico. Irei com você.
- Eu também - concordou Eurico.
Assim, Amelinha resolveu fazer pedagogia, Eurico engenharia química e Nico psicologia. Apesar de haverem escolhido carreiras diferentes, eles continuavam a estudar juntos.
Eurico conseguira montar um pequeno laboratório de pesquisas nos fundos da casa, onde realizava suas experiências, nem sempre bem-sucedidas, o que provocava o riso dos outros dois e alguma preocupação de Eulália.
Estavam satisfeitos com os cursos que escolheram, mas nas horas vagas continuavam, Eurico com as experiências, Nico com a pintura, Amelinha com o balé.
Nico granjeara fama no bairro. Certa vez ele pintou o retrato de Amelinha vestida de bailarina para oferecer a Eulália como presente de aniversário.
Eulália notava o movimento que Nico fazia com seus quadros, mas tanto ela como Norberto viam isso como um passatempo e nunca se interessaram em examinar com atenção o que ele fazia.
Porém o retrato de Amelinha impressionou-os. Era óleo sobre tela e era difícil imaginar que ele houvesse sido feito por um jovem que nunca freqüentara nenhum curso de pintura.
No dia do aniversário, ele a procurara e lhe entregara o quadro, dizendo sério:
- Dona Eulália, quero que a senhora saiba o quanto lhe sou grato por tudo que tem feito por mim e pela minha família. Sempre desejei dar-lhe um presente, mas a senhora tem tudo e eu queria oferecer alguma coisa que viesse do meu coração. Então, pensei, o amor de mãe é sagrado, e fiz este trabalho. Quero que saiba que sinto um amor muito grande pela senhora, por Amelinha especialmente, sem falar do meu irmão Eurico e do Dr. Norberto.
Comovida, Eulália abraçou-o e beijou-o na face:
- Obrigada, meu filho. Eu gosto de você como um filho e estou muito orgulhosa por você ter feito um trabalho para mim.
Quando ela retirou as folhas de papel de seda com o qual ele embrulhara o quadro, olhou-o impressionada. Era uma tela de oitenta por setenta centímetros, e parecia haver sido pintada por um mestre.
- Nico, é uma beleza! Vou pôr uma bela moldura e colocar em destaque em nossa sala de estar. Você realmente tem talento. Não sei se foi uma boa idéia estudar psicologia em vez de pintura.
- Pintura eu não preciso estudar, Dona Eulália. Nasci sabendo. Agora, psicologia sim. Eu precisava aprender a lidar com minhas emoções. O Dr. Marcílio sempre diz que a vida nos leva para o que precisamos aprender.
Ela olhou séria para ele. Aquele menino sempre a surpreendia com sua maneira única de dizer as coisas.
Quando ela se foi, interessada em mostrar a tela a Norberto, Nico sentou-se pensativo. Na verdade, nos últimos tempos ele andava preocupado e desejoso de entender o que se passava em seu coração.
Estava terminando o curso e habituara-se a examinar o teor de seus pensamentos para entender melhor seus sentimentos, mas, nos últimos tempos, emoções fortes e imperiosas acometiam-no, e ele não conseguia encontrar, no que aprendera, uma solução.
O que estava acontecendo com ele? Estava com vinte e três anos e prestes a receber seu diploma de psicólogo. Deveria sentir-se realizado. Conseguira estudar, fazer uma universidade, ser respeitado, querido. Uma vez formado, poderia melhorar a vida de sua família, como sempre desejara, ter sua própria casa, comprar o que quisesse.
Ele vencera. Por que então, quando pensava em sua formatura dali a dois meses, sentia um aperto no coração?
A figura bonita de Amelinha surgiu em sua mente e ele se levantou inquieto. Ela se tornara muito bonita. Onde aparecia era sempre requesitada, elogiada. Os rapazes andavam à sua volta como abelhas no mel. Isso o irritava. Ele a vigiava constantemente. Comentava com Eurico:
- Precisamos tomar conta de Amelinha.
Eurico sacudia os ombros e dizia:
- Qual nada! Ela já é grandinha e sabe se conduzir. Não vou perder tempo com isso.
- Mas você não vê o perigo? Aquele malandro do Clóvis estava rodeando. Claro que com má intenção. Ele é o maior cafajeste do clube.
- Ele é, mas Amelinha não vai entrar na dele.
Mas Nico não se conformava. Onde ela andava ele a perseguia com os olhos e quando os rapazes se aproximavam dela Nico encontrava um jeito de intervir, procurando atrair sua atenção para outras coisas.
Ele desejava terminar os estudos, mas ao pensar nisso sentia um aperto no coração. Um dia descobriu o que o angustiava: sentia que, depois de formado, não teria mais motivos para continuar vivendo na casa de Eulália.
Teria de ir embora, cuidar de sua vida. Eles já haviam feito demais. Não seria direito aproveitar-se dessa proteção. Depois, pensava na família, principalmente em sua mãe.
Apesar de seu pai continuar inválido e requisitar muito sua atenção, Ernestina agora já não precisava trabalhar tanto. José tomara-se trabalhador e contribuía para o sustento da família, não só plantando feijão, milho, criando galinhas, que negociava na cooperativa trocando por outros alimentos, mas também cultivando mudas de flores e frutas que vendia a bom preço.
Jaime interessara-se pelo trabalho do irmão e ajudava-o na lavoura, enquanto Nilce e até Neusinha aliviavam o trabalho caseiro de Ernestina, que dispunha de mais tempo para cuidar do marido. Ela continuava a lavar roupas para fora, mas agora ficara apenas com os melhores clientes.
Apesar disso, Nico não esquecera o antigo sonho de oferecer à mãe e a toda família um padrão de vida melhor, em que ela não precisasse mais trabalhar para ninguém e até tivesse uma empregada para cuidar dos serviços domésticos. Além disso, queria que os irmãos continuassem estudando e pudessem tanto quanto ele mesmo desfrutar de uma vida melhor.
Há algum tempo vinha guardando dinheiro para montar um consultório quando se formasse. Seus quadros eram muito procurados e nos últimos tempos havia muitas encomendas, o que possibilitou que ele pudesse ao se formar fazer isso com recursos próprios.
Se por um lado isso era o que sempre sonhara, por outro deixar a casa de Eulália significava perder a convivência diária com Eurico e Amelinha, que já faziam parte de sua vida.
Não podia deixar de pensar nisso, e um dia, quando viu Amelinha deixar a companhia dos dois e sair de mão dada com um rapaz, compreendeu o que o angustiava. Era dela que ele não queria separar-se. Era a presença dela que o fazia sentir-se alegre. Era sua proximidade que o fazia estremecer e seu coração se descompassar.
Claro que ele havia tido algumas namoradas, mas nenhuma delas conseguira fazê-lo sentir-se tocado. Às vezes saía com elas apenas para fazer companhia a Eurico, que sempre arrumava um jeito de sair com alguma moça e o convidava para acompanhar a amiga dela.
A descoberta de que estava apaixonado por Amelinha deixou-o angustiado e nervoso. Ele se tornara seu confidente. Cada vez que algum rapaz se interessava por ela, Amelinha lhe contava, olhos brilhantes de prazer, mas até então não amara ninguém. Esquivava-se, dizia que não pretendia namorar ainda, queria dedicar-se aos estudos.
Até então Nico sentira-se seguro, mas naquela tarde, vendo-a sair para ir a um cinema de mão dada com Raul, irmão de um colega dela, ficou preocupado. A dúvida assaltou-o e ele pensou: será que ela está apaixonada por ele?
Foi para casa e não quis sair, pretextando dor de cabeça. Esperou ansiosamente que Amelinha voltasse. Quando a viu entrar, não se conteve:
- E então?
- E então o quê?
- Esse moço com quem você saiu. Você gosta dele?
- É muito atraente, simpático e culto.
- O que ele faz?
- É engenheiro e tem uma construtora.
Nico mordeu os lábios nervoso. Além de formado, ele deveria ser rico.
Baixou a cabeça pensativo.
- O que foi, aconteceu alguma coisa? - perguntou ela.
- Não. Nada. Estava pensando.
-Em quê?
- Bem, temos vivido juntos nós três todos estes anos e logo teremos de nos separar.
- Separar? Como assim?
- É. Não somos mais crianças. Logo mais cada um irá para um lado e não será mais como até agora.
Amelinha colocou a mão no braço dele, dizendo inquieta:
- Não diga isso! Nós nunca nos separaremos. Viveremos sempre juntos.
Nico suspirou triste:
- Gostaria que isso fosse verdade. Mas veja: quando me formar, terei de me mudar, trabalhar e levar minha vida. Não posso mais viver às expensas de sua família, que já fez muito por mim. Você logo vai encontrar um rapaz rico, de sua classe social, que a amará. Vai se apaixonar, casar e ir viver sua vida. Eurico fará o mesmo.
- Isso não é verdade - disse ela sacudindo a cabeça negativamente, balançando os anéis de seus cabelos dourados que lhe caíam pelas espáduas, emoldurando seu rosto bonito. - Você nunca vai nos deixar. Vai trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar os seus, mas ficará para sempre aqui.
Os olhos dela brilhavam emocionados e Nico sentiu seu coração disparar, encantado com a beleza lírica daquele rosto que ele amava.
- Você sabe que vou montar consultório. Posso me sustentar, e não desejo ser pesado à sua família.
Ela o abraçou, dizendo emocionada:
- Não vou deixar você ir. Falarei com papai, ele não vai permitir. - Você diz isso agora, mas logo vai se apaixonar e então nem vai sentir minha falta.
- Eu não vou me apaixonar por ninguém, e você não vai embora.
- E o moço com quem você foi ao cinema esta tarde? Disse que ele era atraente, cheio de qualidades e, além de tudo, rico. Acho até que está se apaixonando por ele.
- Quem disse isso? Ele pode ser tudo isso, mas quando me deu um beijo senti vontade de sair correndo do cinema. Acho que nunca mais quero sair com ele. Gostou? Acha que sabe tudo e pensa que vou me deixar levar pelo primeiro que aparece? Não é isso que eu quero na vida.
Nico, sentindo a proximidade dela, teve vontade de beijá-Ia, mas conteve-se. Ele não podia demonstrar o que ia em seu coração. Apesar de haver sido criado com eles, sempre entendera a distância social que os separava e não queria que pensassem que estava abusando da bondade deles. Faria tudo para que ninguém nunca soubesse de seu amor por Amelinha.
Não se conteve e indagou: - O que você quer da vida?
- Quero viver, dançar, aprender coisas que embelezem minha vida.
Não penso em ser igual à minha mãe, que se conformou com o horizonte estreito em que vive e nunca desejou mais. Eu nunca me conformaria em tornar-me uma matrona dentro de casa, criando filhos e mais nada.
- E o amor? Toda mulher sonha com o amor, os filhos, uma família. - O amor é um sentimento natural, vai acontecer como o ar que respiro, vai me trazer alegria e vida, prazer e felicidade. Quando aparecer, saberei. Tenho certeza de que não vou precisar das regras da sociedade para ser feliz.
- Do que você precisa?
- Da cumplicidade na intimidade, do prazer de conviver com naturalidade, do companheirismo, da troca de idéias e de atitudes que alimentem a alma. É isso que eu quero. Só assim valerá a pena amar.
- Você se esqueceu do contato físico.
- Também, é claro. Como é possível intimidade com alguém sem isso? Tenho observado que as pessoas se entregam quando sentem atração física e não questionam outros elementos importantes para um relacionamento bom. Para mim é preciso mais que isso. É preciso uma ligação de alma.
- É difícil achar alguém que seja igual a você.
- Você não entendeu. Não pretendo isso. Sei que cada um é um e não existem duas pessoas iguais. Mas o que eu sinto é que no companheirismo, na troca de intimidades, na ligação de almas, existe o respeito, o carinho, a compreensão, a admiração. Onde existe tudo isso, não há manipulação, mentiras ou competição. Apenas amor, troca afetiva, sustentação, paz.
Nico respirou fundo, sentindo-se emocionado. Disse simplesmente: - Puxa, Amelinha, eu gostaria muito de sentir um amor assim.
- Você? Com tantas garotas suspirando por você, nunca o vi interessado em ninguém. Como pode ser tão frio? Eurico já se apaixonou várias vezes, enquanto você não. Às vezes penso que é tão controlado que nunca será capaz de amar. Vai planejar tudo nos mínimos detalhes, como tem feito com esse seu plano de deixar esta casa quando se formar.
- As aparências enganam.
- Pois eu gostaria que se apaixonasse perdidamente a ponto de perder um pouco essa sua compostura bem-comportada.
- O que ganharia com isso?
- Teria certeza de que você não é indiferente, mas de carne e osso, como todo mundo.
- Não diga isso. Sou mais frágil do que supõe.
- Pois não parece. Sempre faz tudo certo, é calmo, muito diferente de mim e de Eurico. Tem sempre a resposta sensata e por isso acaba sempre nos convencendo a fazer do seu jeito.
- Nunca pretendi ensinar nada.
- Mas ensina. Sua segurança torna-o mais lúcido que nós.
- Isso não é verdade. Talvez por eu ser pobre e ter tido desde cedo de lutar para sobreviver, eu possua certa experiência que vocês, que nunca precisaram preocupar-se em ganhar a vida, não têm. Mas, ainda agora, quando você chegou, eu estava mais inseguro que nunca, pensando em nossa separação.
- Pois não pense. Tenho certeza de que nunca nos separaremos. Ele a olhou nos olhos e respondeu:
- Gostaria que isso fosse verdade. Não posso pensar em viver sem você... sem Eurico - emendou.
- Nem eu. Nunca me separarei de você.
- É o que você quer?
-É.
Os olhos dela brilhavam emocionados e Nico sentiu mais que nunca vontade de apertá-Ia de encontro ao peito e dizer o que lhe ia na alma. Não podia fazer isso. Controlou-se e procurou disfarçar.
- Quando você se casar com um moço rico e bem-posto, não se lembrará mais de mim.
- Nico! Estou falando sério. Nem pense em se mudar de nossa casa. Abra seu consultório, faça até uma clínica de psicologia depois que se formar, mas continuará morando aqui. Não abro mão disso. Tenho certeza de que o resto da família também não. O que seria de nós sem você? Eurico não saberia o que fazer da vida; e eu, quem irá me apoiar quando eu resolver ser bailarina? Está decidido. Você não irá embora. Não vou deixar.
Nico sorriu. A veemência com que ela desejava que ele continuasse na casa emocionava-o. Não tocaram mais no assunto, porém apesar disso a sombra da separação rondava os pensamentos de Nico, inquietando-o, fazendo com que ele chegasse a desejar que o tempo não passasse para que esse dia nunca chegasse.
Amelinha entrou em casa eufórica procurando por Nico. A empregada informou que ele não chegara ainda.
- Vou tomar um banho. Assim que ele chegar, avise-me. Não vá esquecer!
Quando ele entrou, Maria deu o recado.
- Está bem. Vou falar com ela.
Fazia seis meses que ele havia se formado, ficara uma semana com a família no interior e voltara a São Paulo para começar a trabalhar.
Alugara duas salas e montara seu consultório, onde já tinha alguns clientes, e o movimento melhorava a cada dia. Começou a ganhar mais, vestia-se melhor. Pensou em mudar-se da casa de Eulália, mas tanto ela quanto Norberto insistiram para que ele ficasse.
Alegavam que o tinham como um filho e não queriam privar-se de sua companhia.
- Enquanto você for solteiro, não o deixaremos sair. Eu só abriria mão se fosse para você morar com sua mãe. Mas sua família não deseja morar em São Paulo e você pretende trabalhar aqui. Portanto só vai se mudar quando se casar, isso se quiser.
- Obrigado, Dona Eulália. Mas vocês já fizeram muito por mim. Não desejo abusar.
- Fizemos uma troca maravilhosa, e nessa troca tivemos mais lucro do que você. Só a recuperação de Eurico vale tudo. E não é apenas isso. Conheço meu filho. É um menino bom, inteligente, mas um tanto fraco. Sem sua constante presença e seu bom senso, talvez ele hoje não estivesse tão bem. Tenho certeza de que tanto ele quanto Amelinha sofreriam muito se você nos deixasse. Por isso, peço-lhe que continue conosco.
- Está bem, Dona Eulália. Para dizer a verdade, eu deveria me sustentar, agora que ganho meu próprio dinheiro, mas sofreria muito se precisasse deixar vocês.
- Ainda bem, meu filho. Fico aliviada. Não se fala mais nisso. Nico tomara-se um moço elegante, bonito, fino. Vestia-se bem e estava economizando. Desejava comprar uma bela casa para a família.
Subiu para o quarto, trocou de roupa, passou pelo quarto de Eurico, que ainda não havia chegado. Ele ainda tinha mais dois anos de faculdade.
Bateu no quarto de Amelinha, que imediatamente abriu:
- Nico, temos de conversar! Aconteceu uma coisa maravilhosa! - O que foi?
- A peça na faculdade. Hoje foi lá aquele diretor de que eu falei.
Ele é profissional mesmo. Já dirigiu muitas peças. Lembra aquela que fomos ver no mês passado?
- Lembro.
- Foi dirigida por ele! O diretor da faculdade contratou-o para nos dirigir. Nem acreditei! Estávamos ensaiando quando ele apareceu, sentou-se lá calado. Ninguém sabia quem ele era. Quando paramos, o Sr. Gabriel nos chamou e apresentou-o.
- Que bom! Essa peça vai ser um sucesso.
- E não é só! Entre e sente.
Amelinha arrastou-o para dentro do quarto e forçou-o a sentar-se. - O que foi? Você me assusta!
- Não via a hora de lhe contar. Sabe o que ele fez? Disse que já havia lido a peça e que eu fui escolhida para o papel principal. Fiquei muda. Minhas pernas tremiam, pensei que fosse desmaiar.
- "Você acha que serei capaz?" - eu disse trêmula.
- Você é perfeita para o papel - respondeu ele.
- Aí me perguntou se eu estava disposta a estudar muito. Disse que eu estava muito crua e precisava treinar bastante. Se eu realmente quisesse me dedicar, ele me ajudaria ensinando o que pudesse. Marcou já um ensaio para amanhã. Já pensou, Nico?
- Parabéns. Esse diretor deve ser muito bom. Viu logo que você tem talento.
- Você acha?
- Claro. Ele não perderia tempo com você se não fosse isso.
- Puxa, Nico. Vou fazer o papel da protagonista. Eu, que me contentaria com uma ponta. Parece um sonho. Trouxe o roteiro para estudar. Você pode me ajudar?
- Claro. Quando quer começar?
- Agora mesmo. Vamos para o salão.
Seu rosto corado e o brilho de seus olhos tomavam-na mais encantadora, e Nico precisou se controlar para não beijar aquele rosto que tanto amava.
A cada dia ficava mais difícil para ele controlar seus sentimentos.
A proximidade dela, sua espontaneidade abraçando-o, segurando seu braço, confidenciando seus pensamentos íntimos atraíam-no cada dia mais.
Dizia para si mesmo que Amelinha o queria como a um irmão e não deveria alimentar nenhuma esperança. Acreditava que, se ela viesse a descobrir o que ele sentia, se afastaria. A esse pensamento, Nico estremecia de pavor.
Ele haveria de sepultar esse amor no coração, porque só assim poderia continuar a desfrutar não só do carinho dela mas também da amizade de toda a família.
A partir daquele dia eles começaram os ensaios. Ela ia para a faculdade de manhã, almoçava lá mesmo e ficava para os ensaios com o diretor e com o elenco. Depois do jantar, ela e Nico iam para o salão de festas da casa e ensaiavam.
Eurico divertia-se vendo-os representar, porque, enquanto Amelinha fazia somente a protagonista, Nico era forçado a fazer todos os outros personagens, inclusive os femininos.
A princípio eles haviam insistido para que Eurico participasse, mas ele recusara:
- Não tenho paciência para esses salamaleques de teatro. Estou ocupado com um teste importante que ocupa todo o meu tempo disponível.
- Mas você tem algumas noites livres - disse Nico.
- Você disse bem. Eu tenho algumas noites livres e não vou gastá-Ias dessa forma. Prefiro a companhia de Elvira. Aliás, esta noite vamos ao cinema e Dalva irá com ela. Eu contava que você fosse conosco. Afinal ninguém gosta de segurar vela!
- Nada disso - protestou Amelinha. - Nico vai ficar comigo ensaiando.
- Veja como ela fala! E você deixa? Ela manda e você não reage? - provocou Eurico.
- Não estou mandando. Acontece que Nico combinou comigo de ensaiar sempre que ele pudesse. Depois, se fosse para sair com alguém interessante eu entenderia, mas com Dalva...
- O que é que tem Dalva? É bonita e educada. Além de tudo, EIvira disse-me que ela está caidinha por Nico. É sopa no mel!
- Não acredito que ele se interesse por aquela lambisgóia. Eurico sacudiu os ombros e tentou ignorar as palavras dela:
- E então, você vem comigo?
- Não, Eurico. Eu prometi ensaiar com ela. Não temos muito tempo. Falta apenas um mês para a estréia.
Fingindo não perceber o olhar triunfante da irmã, Eurico comentou: - Puxa! Até parece que é você quem vai trabalhar na peça! Por que não fala com o diretor? Pode ser que ele o deixe fazer uma ponta.
Sem se aborrecer com o tom maldoso dele, Nico tornou:
- Não fique zangado comigo. Explique a Dalva que hoje não poderei ir. Irei outro dia.
- Nesse caso também não vou. Telefonarei para Elvira.
Nico colocou as mãos nos ombros de Eurico, olhando-o nos olhos enquanto dizia:
- Comigo não pega. Conheço muito bem esse seu jeito de coitado. Não vou me sentir culpado de nada. Por isso, é melhor não entrar nessa. Vá com elas ao cinema, divirta-se e pronto. Não vou sair com você apenas para que não perca sua noite. É você quem deve se dar ao prazer de fazer o que gosta. Não eu.
Eurico começou a rir, depois comentou:
Sei porque gosto de sair com você. Depois, Dalva vai ficar decepcionada.
- Agora você quer que eu me sinta culpado e fique com pena dela. Não temos nenhum compromisso, nem sequer a convidei para sair. E se ela ficar frustrada é porque criou expectativas sem fundamentos. Eu vou ensaiar com Amelinha e está decidido.
- Está bem. Pelo que estou vendo, você leva esse negócio de teatro a sério mesmo. Nesse caso, vou indo.
Ele saiu e os dois continuaram ensaiando. A estréia da peça no teatro da faculdade foi um sucesso, a tal ponto que o grêmio decidiu repetir o espetáculo vários sábados seguidos. Por causa disso, começaram a pensar em levar a peça a outras faculdades.
Amelinha não pensava em outra coisa, e perdeu completamente o interesse pelos estudos.
- O que eu quero mesmo é ser atriz! - confidenciou a Nico entusiasmada. - Você não sabe o que é pisar naquele palco, representar, sentir o interesse da platéia, seus aplausos.
Nico coçava a cabeça e dizia:
- Pelo menos termine a faculdade. Assim seu pai não ficará tão contra.
- Ele pode ficar contra, mas sei o que quero!
Nico olhava e não respondia. Por um lado não queria que Norberto se aborrecesse e implicasse com a vocação dela, mas por outro, quando a via representando com naturalidade, como se sempre houvesse feito isso, vivendo seu papel com brilho e capacidade, olhos brilhantes de excitação ao colher os aplausos entusiasmados da platéia, sentia que essa era sua vocação. Sabia que chegaria um dia em que ela seguiria esse caminho e que ninguém a deteria.
O problema apareceu no fim do ano, quando ela não conseguiu aprovação e o pai descobriu o quanto ela havia faltado às aulas. Irritado, chamou-a para uma conversa na qual tentou fazê-Ia compreender a necessidade de terminar os estudos.
Amelinha, entretanto, havia tomado uma decisão. Recebera um convite para ingressar no teatro profissional. O diretor reservara-lhe um papel que não era o principal, mas tinha boas possibilidades, e ela, entusiasmada, aceitara-o. Não disse nada aos pais, na tentativa de retardar o conflito que sentia inevitável, mas aproveitou a ocasião para se colocar.
- Papai, vou deixar a faculdade. Desejo ser atriz.
- Nada disso, Amelinha! Você vai terminar os estudos. Se tivesse estudado, teria apenas mais um ano para concluí-Io. Mas, como foi reprovada, terá dois.
- Não adianta, papai. Não sinto vontade de estudar. Não tenho vocação para lecionar. Escolhi essa carreira só para fazer a vontade de vocês, mas a cada dia percebo que não é isso que desejo fazer.
- Ser educadora é uma nobre profissão, muito diferente do que ser uma atriz de segunda categoria de teatro.
- É uma nobre profissão para a qual não tenho nenhuma inclinação. Eu tenho alma de artista, papai. Sempre senti desejo de trabalhar as emoções, de transmitir sentimentos, de entender os problemas de relacionamento, de experimentar situações como se fossem minhas, de compreender como a vida funciona.
Norberto olhou-a admirado com sua veemência. Mas foi irredutível: - Você não vai abandonar os estudos.
- Papai, é inútil gastar mais dinheiro com essa faculdade. Eu aceitei um convite para ingressar no teatro profissional, já tenho os documentos. É minha vocação e preciso dedicar todo o meu tempo a ela. Não terei condições de estudar nem de freqüentar as aulas.
- Eu a proíbo de fazer isso.
- Sinto que não aprove, papai, mas eu já o fiz.
Norberto tentou de todas as formas convencê-Ia, inutilmente. Inconformado, procurou Eulália, para quem apelou a fim de conseguir o que pretendia. Amelinha estava decidida e não voltou atrás.
Norberto, nervoso, pretendia impedi-Ia a todo custo, mas Eulália conseguiu contornar, afirmando que era um capricho da filha. Era uma carreira difícil e são raros os que conseguem sucesso. Por isso achava melhor dar tempo a que ela compreendesse e voltasse atrás. Quando percebesse que o sucesso não vinha, certamente perderia o entusiasmo e essa ilusão passaria.
Mas não passou. Amelinha dedicou-se inteiramente ao trabalho, freqüentando cursos com grandes atores, levando muito a sério sua carreira. Levantava cedo, ia para o curso de dança. Quando não estava no teatro ensaiando, estava estudando não só suas falas na peça mas também a vida dos grandes atores, seus sucessos e fracassos.
Nico era seu companheiro habitual. Eurico ia com eles de vez em quando, mas preferia dedicar-se a outros entretenimentos.
Bonita, com talento e carisma, ela brilhou nos palcos e o sucesso apareceu, ao contrário do que seus pais esperavam. Surgiram viagens, contratos, fotos em revistas da moda, e Amelinha viu-se envolvida em muitos compromissos.
Por causa disso, aos poucos foi se afastando não só da família mas também de Nico, que vibrava com cada sucesso dela, mas sentia muita falta de sua companhia.
Ele estava indo bem no trabalho, era muito procurado como psicólogo. Nos dois anos de formado, ele economizara mas ainda não juntara o suficiente para comprar a tão sonhada casa para a mãe.
Amelinha ausentava-se, e ele se sentia sozinho. Eurico convidava-o para sair, mas ele recusava. Não encontrava prazer longe de Amelinha, e sofria em silêncio seu amor inconfessado.
Fechava-se no salão, onde costumavam estudar juntos, montava o cavalete, escolhia tintas, pincéis e passava o tempo pintando. Era a forma de extravasar suas emoções, e suas telas ganhavam expressão, luz e força.
Estavam no fim do ano e Eurico conseguiu formar-se. Alberto, Liana e os dois filhos chegaram para a solenidade. Amelinha, em viagem pela Argentina, onde estava se apresentando com a companhia, telefonara dizendo que ia fazer o possível para estar presente no grande dia.
Nico colocou seus quadros em um canto e cobriu-os com panos.
Deixou espaço livre para João Alberto e Rosa Maria brincarem.
Alberto interessou-se em vê-los e não conteve sua admiração. Chamou Liana e comentou:
- Veja que maravilha! Ele é um gênio. Como pode pintar um quadro assim sem nunca haver aprendido?
Liana lembrou:
- Você sabe que ele foi pintor famoso em outra vida. Isso confirma as informações que temos.
- É verdade. Isso não pode ficar oculto. Vou conversar com um amigo do jornal e vamos ver o que acontece.
Alberto conversou com o colega, que foi até lá e ficou tão impressionado que em seguida levou um especialista, dono de uma galeria de arte, para vê-los. Depois de conversar com Nico, ele o convidou a fazer uma exposição.
Para surpresa de todos, Nico hesitou.
- Não sei se vale a pena. Para isso eu teria de me dedicar mais, talvez estudar um pouco. Acho que não estou pronto.
- Nada disso. Você está mais do que maduro. Há muitos pintores formados em escolas de belas-artes que não têm sua força. Faço questão de organizar uma exposição.
Ele ainda hesitava.
- Eu terei de pintar mais alguns, e pintura para mim não é obrigação. Não sei se quero fazer isso.
- Façamos uma coisa. Daqui a quinze dias tenho uma exposição em que apresentarei vários artistas. Se me permitir, podemos expor alguns de seus trabalhos e vamos ver como o público vai recebê-Ios.
- Está bem. Se insiste... Escolha os que quiser e pode levar. Depois que eles se foram, Alberto considerou:
- Pensei que você fosse ficar contente em fazer uma exposição. Entretanto, notei que ficou hesitante. Por quê? Não confia em sua arte?
- Não sei. Mas ao pensar em expor meus quadros sinto um aperto no coração! Pintar para mim é tão natural como respirar. Sempre que olho as coisas à minha volta, até as pessoas, vejo-as retratadas em cores, como se ganhassem forma, força, colorido, expressão. A pintura para mim é um canal para extravasar meus sentimentos, minhas emoções. Se estou alegre, eu pinto; se estou triste, eu pinto também. E dessa forma. consigo equilibrar meu espírito.
- Talvez você tenha muito de sua intimidade nessas telas e não deseje que os outros .as vejam.
- Pode ser.
- Você é alegre, bem-disposto, nunca o vi queixar-se, mas reconheço que nunca fala de seus sentimentos. É fechado. Não troca confidências, como Eurico ou Amelinha.
- Não acredito que alguém sinta interesse em saber o que vai em meu coração.
Alberto colocou a mão em seu ombro e, olhando-o nos olhos, respondeu:
- Eu sinto, Nico. Saiba que o admiro muito. Queria que soubesse que tudo quanto se relaciona à sua felicidade me interessa de verdade. E várias vezes tenho sentido que há alguma coisa dentro de você que coloca um brilho triste em seus olhos. O que é?
Nico baixou a cabeça pensativo, ficou calado por alguns segundos, depois considerou:
- Está dando para notar?
- Você disfarça bem, mas eu o conheço muito.
- É, deixar de ser criança tem seu preço.
- Você é um vencedor. Nasceu em uma família pobre e conseguiu subir na vida graças a seu esforço, seu trabalho, sua determinação e coragem. Você só tem motivos para alegrar-se. Além disso, é estimado e respeitado.
- Eu sei. Todos os dias agradeço a Deus e a todos vocês que me ajudaram a conseguir o que possuo. Saiba que sou muito agradecido à vida, que me deu muito mais do que mereço.
- Se não é isso, o que é?
Pelos olhos de Nico passou um brilho de emoção.
- Minha mãe sempre dizia que, quando o mal não tem remédio, remediado está. Portanto, não adianta falar sobre isso.
- Sua mãe é sábia e sabe o que diz. Contudo, nós nos enganamos muitas vezes quando acreditamos que um mal não tem remédio. E nisso é que reside o perigo. Eu já vi muitos doentes desenganados curarem-se enquanto outros aparentemente saudáveis morriam de repente.
Nico sorriu:
- Eis aí nosso querido professor que assume a antiga posição. - Não fuja do assunto, nem queira me confundir. Habituei-me a ler você como um livro aberto, e nunca vai poder me esconder nada.
- Agradeço seu interesse, mas, creia, estou bem e não precisa preocupar-se.
- Está bem. Não deseja falar, eu respeito. Mas saiba que estarei sempre aqui do seu lado para o que der e vier. Quando quiser conversar, serei todo ouvidos.
O dono da galeria escolheu cinco quadros, mandou colocar neles luxuosas molduras e os expôs. O sucesso foi absoluto. Alguns críticos que a princípio haviam ignorado o novo pintor começaram a interessar-se.
Houve um dos quadros que saiu em importante magazine e, desde então, Nico não teve muito tempo para trabalhar em seu consultório. As encomendas sucediam-se e, por fim, ele achou que estava abusando fazendo o salão da casa de Eulália de ateliê e alugou uma pequena casa para onde levou seu material de pintura.
Nesse tempo, absorveu-se inteiramente pela pintura, porque, enquanto pintava, sentia-se relaxado, esquecia o resto do mundo e também seu amor por Amelinha.
Ela voltara a São Paulo e continuava cada dia mais conhecida como atriz. Foi folheando uma revista de moda na casa de Eulália que Nico foi tomado de pânico. Havia uma foto de Amelinha ao lado de um ator famoso e a notícia dizia que eles estavam apaixonados.
O que ele sempre temera acabou acontecendo. Procurou controlar-se. Sabia que um dia ela se apaixonaria e ele teria de se conformar. Mas, apesar de seu esforço, não se conformou.
Da janela de seu quarto viu quando ela chegou, depois da meia-noite, acompanhada pelo moço do retrato. Ele abriu a porta para ela descer, abraçaram-se e beijaram-se. Nico pensou que fosse desmaiar de angústia. Afastou-se da janela tentando acalmar-se. Sentiu vontade de ir falar com ela, dizer que ela não podia amar outro homem, que era a ele que ela pertencia.
Passou a mão pelos cabelos tentando controlar-se. Ouviu os passos dela na escada e o barulho da porta de seu quarto fechando. Respirou fundo, resolveu deitar-se. Mas ficou revirando-se na cama.
Eram duas da madrugada quando Nico, insone, nervoso, se levantou e foi à cozinha para tomar água. Sentia o peito oprimido e a respiração agitada.
Apanhou o copo, encheu-o e sentou-se na copa tomando a água devagar, respirando fundo. A dor era muito grande. Ele percebeu que não poderia suportar ver sua amada nos braços de outro. Então resolveu afastar-se, ir embora dali. Já economizara o suficiente para construir uma nova casa para a família no terreno que possuíam.
Iria para Sertãozinho. Não pretendia morar com a família. Estava disposto a viver sua vida a seu modo, manter sua privacidade. Lá, no sossego da pequena cidade onde nascera, continuaria pintando seus quadros, mandando-os para a galeria em São Paulo.
Ficar longe de Amelinha seria um sacrifício doloroso, mas vê-Ia nos braços de outro seria um tormento maior. Não se sentia com forças para enfrentar isso.
Ouviu passos, e Amelinha envolta em um robe apareceu na copa. Vendo-o, assustou-se:
- Puxa! É você? O que está fazendo aí, sentado no escuro?
- Tomando água e pensando na vida.
A claridade que vinha do jardim entrava pelo vitrô e ela não acendeu a luz.
- Também senti sede.
Apanhou um copo de água, sentou-se ao lado dele e continuou: - Foi bom encontrá-Io. Quero conversar. Preciso tomar uma decisão.
Nico estremeceu. Tentou desviar o assunto:
- É tarde. É melhor irmos dormir.
- Estou sem sono. E, pelo jeito, você também. Faz tempo que não conversamos. Tenho sentido saudade.
Ela havia colocado a mão sobre o braço dele e aproximado seu rosto a tal ponto que ele podia sentir seu hálito. Falava baixinho para não acordar o resto da família.
- Eu também. Pensei que fosse só eu a sentir falta de estarmos juntos. Você tem andado tão ocupada...
- Você também. É bom estarmos aqui, na penumbra, conversando como antigamente. Você se lembra quando íamos conversar no quarto de Eurico lá na mansão?
- Foram os melhores dias de minha vida. Nunca esquecerei. Gostaria que o tempo não houvesse passado e fôssemos crianças ainda.
- Pois eu não. Gosto de ser adulta, independente. Por mais saudade que tenha, agora estou fazendo o que quero, consegui seguir a carreira que sempre sonhei e meus pais estão conformados. Eu seria uma péssima professora. Do jeito que você falou, deu-me a impressão de que se sentia mais feliz naqueles tempos do que agora.
- É verdade.
- Não entendo. Você é um vencedor. Está ficando famoso. Tenho ouvido comentários elogiosos sobre suas telas. Você é um bom psicólogo, mas como pintor é um gênio. Não está contente?
- Estou. É que, quando me recordo de nossa infância, sinto saudade. É só.
- Você estava pensando na vida. Fazendo projetos para o futuro? - É. Decidi voltar para Sertãozinho.
- Você?! No momento em que está conquistando fama e reconhecimento quer enterrar-se no interior? Pensei que planejasse viajar, ir para a Europa, ver o mundo como sempre sonhou, e você quer fazer o contrário? Não acredito. Alguma coisa errada está acontecendo. O que é?
- Não está acontecendo nada. Estou um pouco cansado da cidade. Creio que no interior terei mais inspiração para trabalhar. Vamos falar de você. Até quando a peça ficará em cartaz? Li que está nos últimos dias.
- Ficaremos mais duas semanas. Para dizer a verdade, também ando um pouco cansada. Gostaria de tirar umas férias. Mas não para ir ao interior. Gostaria de ir para um lugar calmo e em boa companhia.
Nico estremeceu. Ela prosseguiu:
- Hoje Wilson me pediu em casamento. Faz algum tempo que estamos saindo juntos. Ele sugeriu aproveitarmos essas férias para firmarmos nosso compromisso. Quer aproximar-se da família e convidou a todos para irmos a uma fazenda de seu pai.
Nico ficou calado. Tinha receio de que, se falasse, ela notasse sua emoção. Não conseguindo dominar a pressão, levantou-se de repente e ela fez o mesmo dizendo admirada:
- O que foi? Está sentindo alguma coisa?
Nico sentiu um nó na garganta, e, seja pela cumplicidade da penumbra ou pela proximidade dela, não conseguiu conter-se. Abraçou-a com força, beijando-a apaixonadamente nos lábios. Ela estremeceu, e ele, sentindo toda a força de sua paixão contida, beijou-a diversas vezes apertando-a de encontro ao peito.
Ela se surpreendeu, mas não o repeliu. Ao contrário, correspondeu, e Nico, sentindo-a trêmula em seus braços, esqueceu todos os receios e ponderações a que se habituara.
Quando conseguiu acalmar-se, largou-a dizendo baixinho:
- Desculpe, mas não pude conter-me. Eu amo você, sempre amei.
Sei que é impossível. Reconheço a distância que nos separa. Mas, quando você falou que ia casar-se, não pude controlar-me.
Amelinha aproximou-se dizendo com doçura:
- Nico, por que nunca me disse? Por que deixou que eu pensasse que éramos como irmãos?
- Porque é como você me vê. Sei que não me ama. Nunca percebi nada que pudesse fazer-me acreditar que isso fosse possível. Mas fique tranqüila. Irei embora e nunca mais a incomodarei com meus sentimentos.
- Nico, eu disse que fui pedida em casamento, mas não que havia respondido sim. Gosto de Wilson, ele é atencioso, agradável, carinhoso.
Mas, amor, não sinto por ele. Por isso hesitava em aceitar seu pedido. Não quero que vá embora por minha causa. Agora sei que não vou aceitar esse casamento.
- Não confunda seus sentimentos, Amelinha. Minha falta de controle perturbou-a.
Ela se aproximou ainda mais dele, olhando-o nos olhos e dizendo:
- Nico, já tive alguns namorados, já me entusiasmei e pensei até estar apaixonada algumas vezes. Fui beijada, mas nunca senti com nenhum deles a emoção que seu beijo despertou. Ainda não sei o que é, mas foi como se uma força maior me arrebatasse e eu queria que nunca acabasse.
Ele a abraçou novamente e a beijou com paixão. Naquele momento esqueceram-se de tudo que não fosse aquele calor no corpo, transbordando, o coração batendo forte e descompassado e a vontade de que aquele momento fosse eterno.
Então Amelinha puxou Nico pela mão e levou-o até seu quarto. Fechou a porta e lá se entregaram inebriados às emoções que os uniam.
O dia estava amanhecendo quando Nico abriu os olhos. Amelinha, cabeça encostada em seu peito, estava adormecida e ele ficou alguns minutos prendendo a respiração, comovido com a proximidade dela, olhando o rosto que amava, sem se mexer, com receio de acordá-Ia e acabar com aquele encantamento.
Recordando-se do que acontecera, sentiu uma onda de pavor. Ele sucumbira e arrastara Amelinha com sua paixão. O que diria ela quando acordasse e se desse conta do que acontecera?
Eles haviam se amado com paixão, mas ele temia que quando o entusiasmo do momento passasse ela o odiasse. Por que não pôde controlar-se? Ele fora recebido naquela casa como um filho e estava traindo a confiança das pessoas que tanto amava.
Remexeu-se inquieto, e Amelinha ainda adormecida abraçou-o com carinho, apertando-o de encontro ao peito. Emocionado, Nico beijou seus cabelos com amor, depois delicadamente a afastou, ela se virou para o outro lado e continuou dormindo.
Com cuidado, Nico levantou-se e foi para seu quarto. Sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo as lembranças dos momentos de amor que haviam vivido emocionavam-no.
O que faria quando todos acordassem? Não se sentia com coragem de aparecer diante de Norberto e Eulália depois do que havia feito. O melhor era ir embora.
Escreveria uma carta a Dona Eulália avisando que fora até Sertãozinho ver a família. Era o melhor a fazer, porque dali para a frente não se sentia com forças de conviver com Eurico como um irmão, nem com Amelinha.
Agoniado, sentindo o peito oprimido, Nico arrumou uma mala, escreveu a carta, colocou-a sobre a mesa da sala de jantar. Depois apanhou a mala e saiu sem fazer ruído, levando a tristeza e o remorso no coração.
Nico levantou-se e foi até a janela. O jardim da mansão estava lindo como sempre e ele se recordou quando pela primeira vez havia entrado lá, com o coração cheio de curiosidade, desejoso de conhecer o interior da casa.
Fazia um mês que ele estava hospedado lá a convite de Liana e AIberto, que não o deixaram procurar outro lugar para ficar.
Nico falara de sua intenção de morar em Sertãozinho durante algum tempo e de alugar um lugar para montar seu ateliê. Agradecia o convite e o aceitaria enquanto procurava um espaço só seu. Agora que tinha recursos, desejava realizar esse sonho.
Sua mãe não quisera mudar-se das terras da família e Nico construíra graciosa casa já em fase de acabamento, e eles estavam muito contentes. Cada filho teria seu quarto, e eles não viam a hora em que a casa ficasse pronta.
Depois que deixou São Paulo, Nico nunca mais viu Amelinha. A princípio esperava que ela desse notícias, que o procurasse, ainda que fosse para reprovar sua atitude, mas ela não fez nada, nem um telefonema, nem um bilhete.
Seu silêncio aumentava sua sensação de culpa, tornando-o triste e calado. Diante dos outros fazia o possível para esconder seus sentimentos, e, se conseguia diante de algumas pessoas, não enganava sua mãe.
Uma noite em que não conseguira conciliar o sono, ao ouvir o galo cantar levantou-se e foi até a casa da mãe. Queria sentar-se mais uma vez a seu lado em baixo da mangueira, naquele caixão tosco que continuava no mesmo lugar, tomar aquele café gostoso e conversar com ela como nos tempos de infância.
Como foram bons aqueles momentos de intimidade e confidência, só os dois no silêncio da manhã que despontava, ouvindo o chilrear dos pássaros e o cacarejar das galinhas, deixando o pensamento fluir, sonhando com o futuro.
O futuro havia chegado, ele conseguira realizar muitas coisas com as quais havia sonhado. Entretanto, embora elas fossem boas, não haviam conseguido dar-lhe a felicidade que acreditaria obter com elas.
É que ele não pensara no amor, nem como esse sentimento o deixaria vulnerável, estabelecendo outros objetivos que se tornariam importantes para a conquista da felicidade. Agora ele sabia, mas não via possibilidades de realizar o que sonhava.
Chegou à casa da mãe sentindo o cheiro do café que vinha da cozinha. Entrou, beijou-a e, como fazia antigamente, apanhou uma caneca, serviu-se direto do coador e foi sentar-se em seu lugar preferido.
Ficou lá, sorvendo pequenos goles de café, observando os primeiros raios de sol que coloriam o céu e as últimas estrelas que desapareciam conforme a claridade aumentava.
Ernestina logo foi sentar-se a seu lado, e ali, juntos como antigamente, Nico não teve receio de falar sobre o amor que tumultuava seu coração, os motivos que o fizeram voltar para sua cidade e o que ele pensava fazer no futuro.
Ela escutou em silêncio, olhando-o com carinho, sem perder uma palavra. Quando ele terminou, disse apenas:
- Você estudou, melhorou de vida, tem diploma de faculdade, é um artista de nome, mas ainda não deixou de ser aquele menino pobre que ia na porta da venda do Seu Nicolau à espera de carregar alguma compra e ganhar alguns níqueis. Na verdade, Nico, você nunca saiu daqui.
- Por que está dizendo isso?
- Porque essa é a verdade. Embora você hoje pareça outra pessoa, seja instruído, ganhe dinheiro, se vista como um doutor, nunca deixou de ser o Nico, o menino pobre, cuja mãe é lavadeira e o pai um incapaz. Então eu pergunto: de que te serviu tanto esforço? De que te serviu trabalhar tanto se o teu coração continua o mesmo?
- Mãe, não estou entendendo.
- Está, sim. Você fez tudo pensando em nos ajudar, em conquistar o respeito dos outros, e conseguiu. Mostrou que é inteligente, capaz, honesto e trabalhador. Mas se esqueceu de ver todas essas qualidades em você. O tempo todo ficou se sentindo menos do que o Eurico ou a Amelinha, pensando que estava com eles de favor.
- Mas essa é a verdade. Eles foram muito bons comigo, me respeitam e me estimam.
- Não estou dizendo o contrário. Eles são maravilhosos. Durante anos me ajudaram com uma mesada generosa que aliviou o sofrimento da nossa família. Sou eternamente grata a eles por isso e considero eles amigos de coração. Entretanto, você só vê esse lado. Esquece como retribuiu ajudando o Eurico a recuperar a saúde, sendo sempre sincero e amigo. Meu filho, o teu orgulho está te cegando, e isso é que está te infelicitando.
- Orgulho?! Não, pelo contrário. Estou considerando minha real posição.
- Qual é a tua real posição? Você é ainda aquele menino pobre, sem estudos, precisando da ajuda dos outros? Claro que não. Você hoje é um psicólogo, tem diploma universitário, é um artista de nome. Talvez até mais nome do que a Amelinha, que está lutando pra conquistar um lugar de atriz, mas que apesar de ser relativamente conhecida ainda não atingiu fama igual à tua como pintor.
- Não é tanto assim.
- É, sim. Tenho acompanhado pelos jornais e revistas. O Dr. Marcílio sempre me traz as reportagens sobre você. Não que eu dê importância a isso, porque a fama é uma ilusão passageira, mas você está se colocando no lado oposto, como se fosse um fracassado, e isso não é verdade. Você é um vencedor e é digno de se casar com a mulher que ama, se ela te quiser.
- Está falando como mãe.
- Não, meu filho. Você sabe que eu sempre digo a verdade. Nunca menti pra você. Repito, o teu orgulho está te confundindo. Você não é mais o Nico daqueles tempos, você agora é o Antônio Juventino dos Santos, psicólogo, pintor famoso. Está construindo uma casa pra tua família. Essa é a realidade. Mas, enquanto fica se depreciando, com medo de assumir aquilo que é, de deixar ir embora aquele menino pobre que você foi, não merece conquistar a felicidade. Vai ficar aqui, enterrado nessa pequena cidade, sofrendo, se machucando, perdendo tudo que conquistou. Você conseguiu progredir, isso pode acontecer a qualquer um, com esforço, perseverança e trabalho, mas manter esse progresso só será possível quando aceitar no teu coração que você é tão bom como qualquer pessoa.
- Talvez tenha razão, mas para a família de Amelinha sempre serei Nico, o menino que eles ajudaram por caridade.
Ernestina colocou a mão no braço do filho ao responder:
- É você quem está se colocando nessa posição. Pensando dessa forma, nunca chegará a ocupar o lugar que gostaria naquela família. Nunca te ocorreu que eles podem te ver de outra forma? Que não fariam objeção e até se sentiriam felizes em casar a filha com você?
Nico sobressaltou-se:
- Eles nunca consentiriam.
- O preconceito é teu. Como pode saber se nunca perguntou pra eles? Nem sequer teve coragem pra se abrir com o Eurico, que é mais do que um irmão pra você.
- Não teria coragem de tocar nesse assunto com ele.
- Por quê? Onde está a tua sinceridade?
- Depois, Amelinha não me ama. De que serviria falar sobre meus sentimentos?
- Você me decepciona. Nunca pensei que fosse covarde.
Nico endireitou-se no banco. Ela continuou:
- Por que será que essa moça se entregou a você depois de alguns beijos? Será que ela é assim tão fácil?
- Claro que não! - objetou ele. - Eu fui o primeiro... E é isso que me está atormentando.
Ernestina foi à cozinha e voltou logo em seguida com mais café na caneca.
- Quer mais um pouco?
Como ele fez que sim com a cabeça, ela despejou um pouco na caneca dele.
- Tem bastante açúcar. É bom pra acalmar. Então essa moça, que nunca tinha tido um homem, se entregou a você. Por que será? Não é curioso?
- Acho que a perturbei com meus beijos, ela me tem amizade, ficou confusa...
- E arrastou você pro quarto em seguida. Pelo que contou, foi ela quem te levou lá, não foi?
- Foi.
Ernestina suspirou. Meneou a cabeça negativamente várias vezes, depois tomou:
- Você gosta mesmo dela?
- Gosto. Sem ela a vida não tem mais valor.
- Custo a acreditar.
- Eu a amo mais que tudo neste mundo. Por que diz isso?
- Porque se amasse mesmo não tinha desistido sem ao menos tentar. Fica aqui perdendo tempo sem saber a verdade. Fugindo como se tivesse praticado um crime.
- O que posso fazer? Não tenho coragem para olhar Dona Eulália e o Dr. Norberto. Se souberem o que eu fiz, vão ficar furiosos.
- Mais furiosos ficarão se descobrirem através de outras pessoas.
- Ninguém sabe, a não ser ela e eu.
- E se ela contar?
- Não se atreveria. Teria vergonha.
- Não sei. Ela pode ser mais corajosa do que você.
Nico remexeu-se no banco, inquieto.
- Ela teria coragem?
- Não sei. O que sei é que você gosta da Amelinha, dormiu com ela. Ao invés de fugir, o mais decente era pedir a moça em casamento pros pais.
- Não teria coragem.
- Pois ia ser o mais digno.
- Ela não me ama.
- Tenho minhas dúvidas. Mas o correto era pedir a moça em casamento. Se ela não aceitar, não vai ser culpa tua. Eles não vão ficar magoados com você.
- Isso é verdade. Estou começando a pensar que tem razão.
- Pensa, meu filho. Vai pra casa e reflete em tudo que eu disse. Consulta o teu coração e não fica com medo de fazer o que tem vontade. A sinceridade é sempre a melhor escolha. Quantas vezes perdemos a chance de felicidade com medo de enfrentar algumas dificuldades? Você ama a Amelinha. Desejar casar com ela é natural.
- Ela vai recusar...
- Se recusar, pelo menos você tentou. Não fugiu nem perdeu por omissão.
Nico deu um beijo no rosto da mãe e levantou-se:
- Vou pensar. Prometo.
Ele mal dormiu naquela noite, mas, quando voltou para a mansão, não sentiu sono, ficou pensando em tudo quanto Ernestina lhe tinha dito. Reconheceu que era verdade. Apesar das conquistas que fizera na vida, no fundo continuava vendo-se como o menino pobre e desvalido que precisava da ajuda dos outros para sobreviver.
Reconheceu que estava vivendo um momento decisivo: ou assumia e via-se como uma pessoa que subira na vida e poderia ainda progredir mais, ou continuaria a julgar-se socialmente inferior. Nesse caso, sua mãe tinha razão: de nada lhe valera ter conquistado o diploma e o sucesso.
As palavras dela continuavam se repetindo em seus ouvidos e ele não conseguia esquecê-Ias. Por fim decidiu. Voltaria a São Paulo e falaria com Amelinha.
Afinal, havia se afastado sem nenhuma palavra sobre o que acontecera entre eles. Ela deveria estar magoada. Poderia estar pensando que ele desejava escapar à responsabilidade. A esse pensamento, sentiu-se inquieto. Sim, ele precisava voltar e enfrentar as conseqüências do que fizera.
Preparou a bagagem, despediu-se de Liana e Alberto e passou pela casa de Ernestina para contar-lhe sua resolução.
- Estou contente que tenha decidido enfrentar a situação. Não é bom deixar mal resolvido um assunto tão importante como o teu.
- É. Foi o que pensei. A senhora estava certa. Sei que Amelinha não me ama, acredito que Dona Eulália e o Dr. Norberto não gostariam que ela se casasse comigo, mas diante do que aconteceu, tenho de me posicionar. Primeiro, falarei com ela para dizer que não pretendo fugir à minha responsabilidade. Vou pedi-Ia em casamento. Desejo saber também o que ela pensa sobre o que aconteceu entre nós, se devo confessar a seus pais ou se ela prefere manter em segredo.
- Você fala como se ela já tivesse recusado o teu pedido de casamento. E se ela aceitar? Se disser que gosta de você?
Nico passou a mão pelos cabelos inquieto e suspirou fundo.
- Claro que ela vai recusar. Durante tantos anos de convivência sempre me viu como um irmão. Ninguém deseja casar-se com um irmão.
Ernestina sorriu.
- Se eu fosse você, Nico, não tinha tanta certeza. As mulheres são imprevisíveis.
- Nesse caso acho difícil. Apesar disso, estou disposto a enfrentar seja o que for. Afinal, aconteça o que acontecer, pelo menos as coisas se definem, é melhor do que ficar aqui me culpando.
- Vai com Deus, meu filho.
- Obrigado, mãe.
Beijou Ernestina e saiu. Dirigindo seu carro de volta à capital, Nico ia pensando no que poderia estar acontecendo na casa de Eulália. Eurico ligara quase todas as noites contando as novidades e perguntando quando ele voltaria. Chegaria de surpresa.
Passava das duas da tarde quando Nico chegou. Foi recebido com alegria por Eulália, que comentou:
- Ainda bem que voltou. Espero que resolva ficar, porque Eurico anda impossível. Fala em você o tempo todo. "Porque vou ligar para Nico e contar isso... Vou perguntar quando ele estará de volta..." Vivia me pedindo para ir buscar você. Quanto a Amelinha, parece uma sombra. Não sei que bicho a mordeu. Anda de mau humor, quieta, o que não é seu costume. Ando desconfiada de que é alguma coisa de namorado.
- Vai ver que brigou com ele.
- Pode ser. Ele não tem aparecido para buscá-Ia. Acho que sua presença poderá ajudá-Ia. Comigo ela nunca se abre. Com você sempre foi diferente. Sei que conta todos os seus segredos. Por isso lhe peço: veja se consegue saber o que está acontecendo com ela. Não agüento mais vê-Ia tão apática, distraída e triste.
Tentando esconder a preocupação, Nico respondeu:
- Conversarei com ela quando chegar.
- Ela está no salão. Devia ter ido ensaiar, mas disse que não estava muito bem e queria descansar um pouco. Isso me deixou mais desconfiada de que algo não vai bem com ela.
- Vou levar a bagagem para o quarto e depois falarei com ela.
- Isso, meu filho. Você tem feito muita falta aqui em casa, viu? Todos sentimos saudade dos tempos em que estávamos todos juntos.
- Eu também sinto saudade. Foi um tempo bom.
- Foi, sim. Agora vá, meu filho. Deve estar cansado da viagem, com fome. Deixe a mala no quarto e venha tomar um lanche antes de falar com Amelinha.
- Obrigado, mas eu comi na estrada. Estou bem. Não se preocupe. Nico subiu, deixou a mala, lavou-se, trocou a camisa um tanto suada e empoeirada da viagem e procurou Amelinha no salão.
Abriu a porta e espiou. Ela estava deitada no sofá tendo ao colo um maço de papéis, olhos fechados. Estaria dormindo?
Ele entrou e aproximou-se dela, chamando:
- Amelinha.
Ela abriu os olhos e disse:
- Você! Você voltou!
Colocou os papéis sobre a mesinha e sentou-se olhando para ele.
- Voltei porque precisamos conversar.
Ele se sentou ao lado dela no sofá.
- Por que foi embora sem dizer nada?
Sem desviar os olhos dos dela, que o fitavam firmes, ele respondeu:
- Porque estava com medo. Senti-me culpado. Por não haver controlado minhas emoções, arrastei você a uma situação delicada. Devo-lhe desculpas por isso.
- É só o que tem para me dizer? Que está arrependido?
- Não. Vim para dizer-lhe que, se me aceitar, poderemos nos casar, embora seus pais possam se opor.
- Por que se oporiam?
- Você sabe. Não pertenço à mesma classe social que vocês.
- E isso lhe dá o direito de decidir por nós? Você disse que me amava. Beijou-me com paixão. Está arrependido disso também?
Nico colocou a mão sobre o braço dela, dizendo nervoso:
- Sabe, Amelinha, seus pais receberam-me nesta casa como um filho, e vocês me trataram como um irmão. Eu não tinha o direito de trair essa confiança.
- Desde quando o amor acontece de acordo com as regras convencionais? Desde quando o amor entre duas pessoas livres e adultas é proibido? Se reconhece que o queríamos como se fosse da família, porque ocultou seus sentimentos e agora se envergonha deles? Será que esse amor não é uma ilusão? Será que não está confundindo nossa proximidade, nosso carinho, com amor?
- Você está sendo cruel comigo. Eu gostaria de sentir por você apenas um carinho de irmão, mas o que fazer se quando me aproximo de você meu corpo treme, sinto desejo de abraçá-la, de beijá-la, de guardá-la em meus braços para sempre? Como posso explicar o que sinto e como me foi difícil ocultar esses sentimentos por perceber que você não sentia a mesma coisa?
As lágrimas corriam pelo rosto de Amelinha, e Nico passou a mão pelo rosto dela como querendo enxugá-Ias e continuou:
- Estou fazendo você sofrer. Não queria isso.
Ela o fitou com os olhos molhados e rompeu em soluços. Nico não esperava por isso. Nervoso, abraçou-a dizendo:
- Não chore mais, por favor. Não posso vê-la assim.
Ela encostou a cabeça em seu peito e continuou soluçando. Ele alisava seus cabelos tentando acalmá-Ia. Por fim, Amelinha passou as mãos em seu pescoço, levantou sua cabeça e beijou os lábios dele, que inebriado retribuiu apertando-a de encontro ao peito, sentindo novamente dentro de si aquele turbilhão de emoções.
Beijaram-se várias vezes. Nico estava trêmulo, emocionado. Notou que Amelinha, tanto quanto ele, não conseguia falar. Fez um esforço, tentou acalmar-se. Quando serenou um pouco, disse:
- Eu amo você, Amelinha. Não é pela proximidade, nem pelo fato de estarmos sempre juntos. É amor de verdade. Faz tempo que descobri isso. Mas me contive porque você nunca demonstrou sentir atração por mim.
- É que eu não sabia. Naquela noite, quando você me beijou, tudo ficou claro. Senti que o amava e foi por isso que o levei para meu quarto. Foi por amor!
- Não está confundindo seus sentimentos, o carinho de irmão, a afinidade espiritual que sempre tivemos, com amor?
- Por que duvida de mim? Já lhe dei a maior prova que uma mulher pode dar. Depois, quando eu estava feliz, sonhando com nosso futuro, você foi embora sem uma palavra. Fiquei triste, cheia de dúvidas. Por que fez isso?
- Senti-me culpado. Achei que a tinha induzido a fazer o que fez. Pensei na bondade e na confiança de seus pais que eu tinha traído. Fui embora com o coração partido. Sofri muito todo esse tempo.
- E agora, por que voltou?
- Porque resolvi deixar de ser aquele menino pobre que sempre fui e assumir o que sou hoje. Como pessoa que tem um diploma, uma profissão, que conseguiu realizar seu sonho proporcionando conforto e bem-estar à sua família, que tem, além de muito amor e carinho, condições de formar uma família e sustentá-la. Vim para pleitear a conquista mais importante de todas. Casar-me com você.
Amelinha passou novamente os braços em torno do pescoço dele e beijou-o nos lábios com carinho. Depois se afastou um pouco e disse alegre:
- Agora está falando verdade. Sempre admirei sua postura firme, sua lucidez, sabendo o que queria da vida, trabalhando para conquistar seus objetivos de maneira clara. Por isso, quando se colocou abaixo de mim, falou de diferença de classes, não entendi. O importante é o que você é, o que conquistou, com esforço, trabalho, perseverança e boa vontade.
- Você se casaria comigo?
- Depende.
- Do quê?
- De ver como encara esse casamento. Se for por amor, para ficarmos juntos toda vida, eu aceitaria; mas, se for apenas por causa do que aconteceu naquela noite, só para "reparar um erro", eu sofreria, mas diria não.
Nico abraçou-a, beijando delicadamente seus lábios.
- Passar o resto da vida com você é meu maior sonho.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Nesse caso, se me pedir, eu aceito.
Beijaram-se longamente. Depois ele disse:
- Bom, e agora? Terei de falar com seus pais.
- É o primeiro passo.
- Você acha que me aceitarão?
- Vai ter de descobrir. - Vendo que ele franziu o cenho preocupado, ela sorriu e continuou: - Do jeito que eles gostam de você, será fácil.
A porta do salão abriu-se e Eulália entrou. Vendo-os abraçados, parou surpresa. Foi Amelinha quem falou primeiro:
- Mamãe, Nico pediu-me em casamento e eu aceitei.
Eulália abriu a boca e fechou-a de novo sem saber o que dizer. Nico interveio:
- Dona Eulália, nós nos amamos. Descobrimos isso há algum tempo. Por isso fui embora. Pensei que estava abusando da confiança que tanto a senhora quanto o Dr. Norberto depositaram em mim. Mas, lá longe, sozinho, sofrendo, resolvi lutar por esse amor. Por isso voltei. Estou aqui. Conversamos, e Amelinha garantiu que também me ama. Pretendia conversar com a senhora e o Dr. Norberto juntos e falar de meus sentimentos e do que eu posso oferecer para a mulher que for minha esposa. Porém, já que fomos surpreendidos, acho melhor abrir meu coração.
Eulália aproximou-se, olhando-os com interesse. Seus olhos brilhavam emocionados. Quando Nico se calou, ela disse:
- Fez muito bem, meu filho, em voltar. Se vocês se amam de verdade, se pensam em casar-se, têm todo o meu apoio. Para ser bem sincera, ultimamente o futuro de Amelinha tem me preocupado. Ela foi sempre ajuizada, mas o ambiente onde trabalha é muito liberal. Há pessoas de todos os tipos. Várias vezes Norberto e eu conversamos sobre isso, sentindo receio de que um dia ela se apaixonasse pela pessoa errada e viesse a sofrer. Nós a amamos muito. Ela é nosso raio de sol, com sua alegria e beleza. Deixá-la com você, a quem amamos e confiamos, é para mim uma grande alegria e até certo alívio.
Nico esforçou-se por segurar as lágrimas que estavam prestes a cair, mas não conseguiu. Elas lhe desceram pelas faces. Eulália abraçou-os com carinho.
- Sejam felizes, meus filhos. Tenho certeza de que Norberto vai concordar comigo.
- Obrigado, Dona Eulália. Depois de tudo quanto recebi da senhora nestes anos todos, ainda tenho este presente. Só Deus pode pagar o que tem feito por mim. Desde já tem minha promessa de que tudo farei pela felicidade de Amelinha. Eu a amo muito.
- Eu sei, meu filho. Para dizer a verdade, estou me sentindo muito feliz.
- Hoje, quando o Dr. Norberto chegar, farei o pedido.
- Vou mandar fazer um jantar especial. Tenho certeza de que teremos muito a comemorar. Espere até Eurico saber! Ele vai ficar muito feliz. Estava reclamando tanto sua ausência.
- Também sinto falta dele.
- Vamos tomar um café na copa. Quero saber tudo exatamente como aconteceu.
Abraçados e alegres, eles foram até a copa, sentaram-se ao redor da mesa, trocando idéias, planejando o futuro.
O dia amanheceu lindo e todos na mansão acordaram cedo. Os empregados iam e vinham cuidando dos preparativos. Era o grande dia do casamento de Amelinha e Nico.
Eles haviam decidido casar-se na igreja de Sertãozinho e depois a recepção seria na mansão. O ambiente era alegre e a expectativa grande.
Norberto e a família haviam chegado na véspera. Os preparativos foram feitos por Alberto e Liana. Nico chegara dois dias antes e hospedara-se na casa de sua família.
A casa que Nico mandara construir era espaçosa, arejada, mobiliada com conforto. Ernestina não lavava mais roupa para fora, mas não havia parado de trabalhar. Fazia doces tão gostosos que em pouco tempo sua fama ultrapassou os limites da pequena cidade e várias pessoas que passavam por Sertãozinho paravam em sua casa para comprá-Ios.
Nico mandava-lhe dinheiro todos os meses e José havia tomado gosto pela plantação e pela criação de galinhas, ganhava dinheiro e contribuía para as despesas.
Vendo a mãe às voltas com os doces na cozinha, Nico meneava a cabeça e dizia:
- Você já trabalhou muito. Agora é hora de descansar.
Ao que ela respondia:
- Deus me livre de ficar preguiçosa! Não é do meu feitio. Depois, o Jaime já ajuda o Zé, mas a Nilce e a Neusinha não podem crescer sem trabalhar. Precisam aprender para valorizar a vida que têm. Você viu como elas já sabem fazer de tudo na cozinha? A Neusinha tem um gosto pra enfeitar os potes de doce que você precisa ver!
Nico sorria feliz. Ele sabia que Ernestina nunca iria ficar sem trabalhar. O único que não havia mudado era Jacinto. Preso à sua cadeira de rodas, continuava mais do que nunca pendurado na família.
A princípio, mostrara-se revoltado com a nova situação e com a dieta que o Dr. Marcílio o obrigara a fazer. Reclamava de tudo, dizendo-se vítima da fatalidade.
Ernestina, entretanto, não se deixou impressionar pelas lamúrias do marido. Traçou para ele férrea disciplina no cumprimento do tratamento médico e, sempre que ele se queixava, ela argumentava:
- Queixar-se não vai melhorar o teu estado. A culpa do que te aconteceu é só tua. Não movimentava o corpo, comia muita gordura, e estragou a saúde. Depois, não quis fazer os exercícios que o médico mandou. Se tivesse feito tudo direito, teria voltado a andar.
- Não tenho ânimo. Estou sofrendo muito.
- E se continuar assim vai continuar sofrendo. Não se esforça para melhorar!
- Você não tem pena de mim.
- Não tenho mesmo. Você escolheu a tua vida. Nunca me ouviu.
Agora me diga: por que eu tenho que ficar ouvindo as tuas queixas todo dia? Faz o favor de parar com isso! De agora em diante, toda vez que se queixar, deixo você sozinho. Cuido de você, mas não vou ficar me aborrecendo com as tuas reclamações. Eu e as crianças temos o direito de viver alegres dentro de casa.
Ela disse e fez. Aos poucos, Jacinto deixou de se queixar e nos últimos tempos chegava a participar das brincadeiras e da alegria dos filhos. Jaime tocava violão e os outros cantavam.
Nico sentia-se feliz observando o progresso dos irmãos e a alegria que reinava em sua família.
Na mansão, Eurico conversava com Alberto, dizendo de sua satisfação de ter Nico como cunhado.
- Para mim foi natural. Os dois não se largavam. Depois, Nico sempre teve uma queda por ela. Quando éramos crianças e brigávamos, ele sempre a defendia. Eu ficava louco de raiva.
- Eles estavam destinados um para o outro. Anos atrás tivemos uma revelação sobre o passado de sua família. Eles se amavam desde aqueles tempos.
- Puxa! Nunca ninguém me contou isso.
- Temos de ser discretos com as revelações de nossas vidas passadas. Há de se ter bom senso e não fantasiar. As pessoas costumam exagerar esses fatos e acabam desiludidas quando as coisas não acontecem como elas esperavam.
- Não se pode confiar nessas revelações?
- Não se trata disso. Ocorre que elas registram parte de alguns fatos do passado. Querer adivinhar o futuro é ilusão. No presente as coisas mudaram, as pessoas mudaram, as oportunidades são outras, além de haver o livre-arbítrio de cada um, escolhendo a todo momento.
- Mas você disse que estavam destinados um para o outro. Poderia ter se enganado.
- Poderia. Por isso nunca toquei no assunto. Mas, já que aconteceu, tenho certeza de que serão felizes.
Liana entrou na sala acompanhada de João Alberto.
- Vocês estão com fome? Vou mandar preparar um lanche. Alberto segurou-a pelo braço:
- Não vá ainda. Sente-se um pouco conosco. Descanse. Está andando de um lado para o outro desde cedo.
Ela se sentou no sofá ao lado do marido e João Alberto ficou em pé do lado dela.
- Por que não vai brincar com Rosa Maria? - indagou Liana - Quero ajudar você.
- Já ajudou. Agora vá brincar. Vou descansar um pouco conversando com eles.
- Por que não conversa comigo? Eles estavam conversando muito bem.
Liana franziu o cenho.
- João Alberto, chega de ficar colado em mim. Acho que está na hora de tomar banho e se aprontar para o casamento. Aproveite que agora o banheiro está vazio.
- Só se você for comigo para escolher a roupa que vou vestir.
- Você está grande e sabe muito bem que vai vestir a roupa que compramos para o casamento.
- Eu só vou se você for comigo.
Liana levantou-se, dizendo:
- Vou com ele até lá em cima, mas volto logo.
Quando eles saíram, Eurico estava sério.
- O que foi? - indagou Alberto.
- O coronel Firmino. Continua o mesmo.
Alberto sobressaltou-se:
- Como assim? Você o viu?
- Sim. Hoje ficou bem claro.
- O quê?
Eurico respondeu:
- Ele agora se chama João Alberto, mas continua apegado a Liana. Seu filho é o coronel Firmino reencarnado. Penso que vocês já sabem disso.
- Já. Mas com o tempo nos esquecemos. Você tem razão: ele é muito apegado a Liana e tem muito ciúme dela. Tanto que evitamos nos abraçar sempre que ele está perto.
Quando ele era menor e nos via abraçados, chorava, tinha crises, suava frio.
Por causa disso, diante dele temos evitado manifestações de carinho.
- A reencarnação é um fato. Tenho estudado esses fenômenos e freqüentado uma sessão de estudos na casa de um professor meu.
- É bom ouvir isso. Nós também continuamos estudando e freqüentando as sessões do Dr. Marcílio.
- Gostaria de ir também, antes de voltar a São Paulo.
- Boa idéia. Ele vai ficar muito feliz. E você, não pensa em se casar? - Por enquanto não. Quem sabe um dia, se aparecer alguém que valha a pena...
Alberto sorriu malicioso. Eurico havia se tornado um rapaz bonito e simpático. Já havia notado que as mulheres olhavam para ele com interesse.
- Vai aparecer, estou certo. Está quase na hora. Acho que vou subir para me preparar.
- Eu também.
Quando Nico desceu do carro em frente à igreja da cidade, já o povo se aglomerava à espera.
Ele estava bonito, muito elegante, e os que o haviam conhecido desde criança olhavam-no com entusiasmo, admiração e respeito. Ele entrou procurando a sacristia. Minutos depois Eurico apareceu abraçando-o emocionado.
Aquele casamento era o acontecimento importante da cidade e o povo se comprimia lotando a igreja, olhando com curiosidade e alegria a beleza dos arranjos de flores dispostos em profusão e os candelabros com todas as velas acesas. Os convidados haviam chegado e lotavam os lugares que lhes foram reservados.
Nico olhava o relógio com certa impaciência e comentou:
- Espero que Amelinha não atrase.
- O que é isso? Nunca vi você tão ansioso. Calma. Ela virá. Acha que o deixaria escapar? Está louquinha para agarrar você.
Logo depois Nico foi convidado para dirigir-se ao altar, onde o padre já se encontrava. Nico sentia-se muito feliz. Parecia um sonho, e intimamente ele agradecia a Deus tanta felicidade.
A música tocou, as portas principais abriram-se e Amelinha, de braços dados com o pai, entrou dirigindo-se a passos lentos até o altar, onde os membros das duas famílias já se encontravam.
Nico aproximou-se para receber a noiva e os dois postaram-se diante do padre, que imediatamente iniciou a cerimônia.
A tarde estava linda e os presentes assistiam emocionados, vibrando pela felicidade do jovem casal.
Em um canto da igreja, um casal assistia emocionado, sem que ninguém os pudesse ver. Era o espírito de Anita, acompanhada por seu amigo Neves.
Quando a cerimônia terminou, os dois acompanharam os noivos até entrarem no carro que os levaria de volta à mansão. Neves perguntou:
- Você deseja ir até lá?
- Não. Temos de voltar. Estou contente e aliviada. Sei que eles desfrutarão de um período de tranqüilidade e progresso. Finalmente conseguimos nossos objetivos. Helena está feliz em companhia de Amadeo e não há nada que os possa atrapalhar. Sou muito grata a você e ao grupo de Marcílio. Sem vocês, teria demorado mais e o sofrimento deles teria sido maior.
- Você sabe, Anita, como é o processo. Depende exclusivamente do esforço de cada um. Deus espera que as pessoas amadureçam para dar-lhes a felicidade. Nós os protegemos sugerindo bons pensamentos, idéias do bem, mas estamos proibidos de fazer a parte que lhes cabe.
Anita sorriu, seus olhos brilharam emocionados e ela respondeu com voz suave:
- Eu sei, Neves. Embora a felicidade seja nosso objetivo maior, ainda não sabemos distinguir o falso do verdadeiro. Criamos ilusões, perseguimos objetivos falsos e colhemos sofrimentos. Mas é por meio deles que aprendemos a conhecer a vida, a melhorar atitudes. É possível que venhamos a nos enganar outras vezes. Esse é o preço do progresso. Apesar disso, meu coração está em paz por saber que, acima de todas as nossas falhas e até de nosso livre-arbítrio, está a vida nos protegendo, conduzindo nossos passos para o bem maior.
- A ansiedade atrapalha. As pessoas estão tão voltadas ao mundo material, não têm paciência de esperar, querem fazer tudo sozinhas. Não se ligam com a fonte de vida. Nem sequer percebem que um objetivo não alcançado, ao invés de ser um fracasso, pode ser uma ajuda. Em tudo só os valores verdadeiros permanecem. Assim, é preciso não esmorecer, fazer sempre o melhor que souber, confiar na sabedoria divina e esperar.
- Essa é a lição que estou aprendendo agora. Há muito deixei a ansiedade. Decidi servir à vida, libertar minha alma das prisões do passado. Hoje consegui uma grande vitória.
- Você mereceu, não se desesperou. Esforçou-se, trabalhou, soube esperar.
- É que eu sei que quem decide é a sabedoria divina, e ela, meu amigo, só faz acontecer quando chega a hora!
Neves sorriu, colocou o braço dela no seu e disse:
- Vamos embora.
Os dois deslizaram para cima, desaparecendo na distância. No céu, as primeiras estrelas começavam a brilhar, iluminando a Terra e revelando a grandiosidade do universo e o poder de Deus.
Zibia Gasparetto
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