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QUANDO OS LOBOS UIVAM / Aquilino Ribeiro
QUANDO OS LOBOS UIVAM / Aquilino Ribeiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUANDO OS LOBOS UIVAM  

 

O meu dia caminha para o ocaso. Dei bem conta quando cheguei ao fim deste trabalho. O amor, razão primordial de tudo, alegria do mundo, encanto da obra de arte, força da natureza, divindade munífica que dotou o grilo com a caixinha de música que lhe vemos às costas, e a borboleta com o motor subtil com que voa da couve galega para uma rosa, passageiro ou apenas fortuito papel desempenha nas suas páginas. É a seiva criadora em transe de estancar.

Todavia continuo a produzir como se me penetrasse um ardente e fecundo Verão. Obriga-me uma espécie de sina, e fugir-lhe seria negar-me. Por isso hei-de morrer com a enxada em punho.

A meia grosa de livros que escrevi foram de facto para mim, em tanto que obra de criação e exalçamento, como igual número de vinhas que plantasse. Nesta faina exaustiva tive de desatender à vida de relações, não cultivar como devia a amizade, remeter os meus à vis própria quando poderia com um pouco de arte, salamaleque, e o quantum satis da desvergonha cívica nacional, consagrada e triunfante, guindá-los a ministros ou banqueiros. Permiti ainda, levado na minha obsessão, que os gatunos oficiais e de mister me metessem as mãos nas algibeiras, os pirangas me ludibriassem, e toda a canzoada humana me ladrasse impunemente. Numa palavra, a vida utilitária, o arranjinho, a conveniência mundana nunca me roubaram um minuto de labor.

Valeu a pena toda esta existência de sacrifício, de que ninguém se apercebeu, que ninguém me agradece, de que aliás ninguém me encomendou o sermão? Em minha consciência não sei responder.

Nesta peregrinação a Compostela, que é a vida, esgotou-se-me o bornal de romeiro e a cabacinha, ou está por pouco. A jornada foi longa e muitos dos que tinham rompido marcha comigo ficaram no percurso, alma em pena e clamorosa. Alguns, vítimas pela liberdade. Quando teremos nós ensejo de prestar honras fúnebres a esses nobres caminheiros?

Dos poucos que vejo de pé, o Professor Pulido Valente é um deles. E antes de mais nada aqui rendo preito ao preux chevalier, que se traduz na linguagem de hoje por gentil amigo. Eu me declaro orgulhoso de há dezenas de anos me ver a seu lado, homem forte que é, extremoso de solicitude, inquebrantável de carácter e sólido de espírito, embora na sua cabeça tenha pousado com a auréola do jubileu a primeira neve do Inverno. A prova do meu asserto está no vigor físico e mental que lhe permite prosseguir na mais intensa actividade, iniciada desde longe, através do longo magistério, nada menos de 35 anos, na Escola Médica de Lisboa, compreendido o entreacto em que dirigiu na primeira Grande Guerra um sector clínico do Corpo Expedicionário Português. Pulido Valente foi um dos que mais contribuíram a elevar a Faculdade ao nível dignamente europeu que manteve durante largo espaço, jamais atingido pelos estabelecimentos docentes nacionais. Ali, devido mais que tudo ao seu influxo, formou-se um corpo de médicos, que são o escol do nosso meio. Era de prever que assim acontecesse com um mestre em que se conjugavam as qualidades sumas da inteligência, como poder de coordenar e de análise, intuição, essa filha primogénita do génio, se não indispensável, de importância primacial em carreiras do teor da medicina. Graças a esses dons, magnificados por uma vasta cultura, tanto literária como científica, força de vontade,

instinto renovador e a mais invejável das memórias, era natural que exercesse o professorado com insólito sucesso. E de facto exerceu, com o melhor fruto e exemplo. Nele, se por vezes acontecia mostrar-se peremptório, nunca deixou de ser o mais compreensivo que é possível com os alunos, do mesmo modo que humaníssimo com os doentes. Uns e outros se consubstanciavam ao que a ética lhe impunha como capital na sua vida. Verdade que os estudantes o temiam, e   temiam-no quanto o consideravam. Temiam sobretudo não poder elevar-se à altitude que punha no ensino e, consequentemente, ao nível a que devia operar-se toda a praxis medical. Mas dada a proficiência e lucidez das suas prelecções — palavra límpida e sugestiva, raciocínio da lógica mais suasória — os receios depressa se dissipavam. Os seus discípulos haviam de ficar-lhe pela vida fora, além de discípulos, amigos leais verdadeiros.

Nada faltava a Pulido Valente para poder desempenhar à perfeição um grande papel na medicina portuguesa e seu magistério. O que o professor da Faculdade de Medicina de Estrasburgo, Leriche, chamou «casos privilegiados» ninguém como ele sabia discerni-los no meio, não raro, duma sintomatologia complicada, com fazer ressaltar por vezes o ponto em aparência insignificante que encerrava a chave do problema. Nesta recherche de la vérité aconteceu-lhe colocar-se em oposição, singularmente, com tal e tal conceito estabelecido.

Que as suas atitudes clarividentes e revolucionárias lhe criassem incompreensões pouco o incomodava, de resto. Na carta do professor Wohlwill a Pulido Valente, publicada no Livro de Homenagem, lê-se: Uma pessoa da sua índole não podia deixar de ter inimigos, e este conceito vale uma escritura. A escola, para ele, foi sempre, porém, terreno neutro quanto a política. O seu escopo essencial estava em subir o nível da cultura médica, começando pelos discípulos, e nesse empenho procedia como quem exerce um apostolado sem se importar com o resto, chuva ou vento, reacções e entraves.

A vocação didáctica sacrificou em Pulido Valente o cientista, como não podia deixar de ser. Iahnel, sábio biologista de Munique, autor de trabalhos muito falados sobre sífilis experimental, dizia ao Dr. Oliveira Machado, um dos discípulos dilectos de Pulido, a propósito da notável tese que o seu mestre apresentara a concurso sobre paralisia geral, que era pena que o autor se não houvesse consagrado à investigação.

Investigação? É sabido que o nosso meio não é favorável à vida especulativa mormente no domínio das ciências. Por falta de aptidão dos portugueses? É discutível. Toda a actividade dentro da família humana supõe uma experiência, sucedendo-se como os elos na cadeia. Mas os laboratórios e sua custosa instrumentação estão banidos dum país que anda descalço. E que galardão compensaria entre nós uma existência de sacrifício, que tal é a dos que se dedicam a semelhantes empresas, de que o indivíduo acaba possesso, endemoninhado contra a família, a vida de relações, os interesses elementares? E mereceria esses holocaustos uma sociedade que aceita viver há tanta soma de anos no fundo duma cisterna?

Apartado tão estúpida como iniquamente da cátedra, Pulido Valente que criou em Medicina uma moral superior, e é certo que na vida das relações outra, a da vera e combativa dignidade humana, continuou fora da Escola a sua obra maravilhosa.

É particularmente ao amigo e ao homem enamorado das artes e letras, cultor exímio de música no seu lar, lido em todas as literaturas, que eu consagro este romance mal alinhavado. Admiro a sua irredutível compleição, intransigentemente liberal, que nada faz arredar da linha da firmeza e coerência que se traçou. Admiro não menos em si o alentejano da fronteira, erecto de cabeça como de consciência, caldeado de sangue espanhol, que, todos reconhecem, avulta corno o representante duma altivez ibérica que vai passando à história. Incapaz de seguir por trilhos ínvios, na vida particular e não menos na vida política de que tem sido mais o espectador puro, ideal mente interessado, do que militante afogadiço, ninguém o supera na bondade e altruísmo. Os amigos são objecto, a cada momento, da sua extremada e rara dedicação. Que horas de carinho e angústia não passou à cabeceira de Carlos Amaro, Bento Caraça, José Cutileiro, Carlos Olavo, naturezas superiores?! Quanto lhe devem, além dos colegas e amigos de todo o quadrante, cá os da sua roda, e que lhe não devo eu?!

Pulido Valente é ainda o homem de são conselho e rectilíneo proceder na plana social. Nesta hora, em que andamos todos com grilhões nos pulsos, fique o seu nome como o de Hermes no marco miliário da estrada e a legenda: adiante, e consideremos que para chegar a bom termo da viagem é preciso ser livres!

 

MANUEL LOUVADEUS de um galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta fechada e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca, achava tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. Tudo na mesma, a velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os ossos de Portugal. Quer à roda, o alpendre de telha-vã e os esteios esgrouviados, a pedra negra da parede em que o musgo pastava seus herpes lucilantes, e ainda o silêncio, ah, este silêncio da moradia rústica, a desoras, humilde, suspicaz e atento como um rafeiro no ninho, quer por largo, os carvalhos do vale e os telhados próximos, se envolviam na antiga paz vesperal do céu e da terra, fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que distância, anos e anos que correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais velhas... Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam, porventura, de resistir aos vaivéns mais que o coirão de um homem, entretanto que se fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?! Este sentimento, a transudar amargor, acabou por confortá-lo e absolver a pobre casa da sua inalterável fisionomia.

Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é o que me prende os dedos? —ouviu uma voz... a voz de Filomena, e estacou.

Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. — Miga bem a tigela ! — dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. — Miga bem, Jaime, que só tens caldo ! Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso.

Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se... Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se:

— Quem está lá?

— Gente...

Notou que o silêncio, um silêncio precaucioso, enchia a casa como a luz da candeia que se acende no escuro. Um segundo... dois... três, nem que passassem as alpoldras dum rio. Então Filomena não reconhecia o metal da sua voz?! Que não lhe havia de parecer de todo estranho, estava em que lhe ouviu proferir subitamente e de afogadilho:

— Vai ver quem é, Jorgina!

Sentiu correr o fecho, e Manuel Louvadeus empurrou a porta. E, sem aguardar sequer que se abrisse de todo, mal lhe ofereceu passagem, de ilharga, quase acotovelando a moça, entrou com uma golfada de vento. Estavam, como palpitara, de malga em punho à roda do lume. O cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde descompunha a claridade da candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho. Viu a todos suspensos. A mulher olhava para ele, atónita. Os filhos olhavam para ele sem o conhecer, pudera! O gato maltês, com o espalhafato da entrada, cobrara medo e pinchara assarapantado para um canto, donde o observava com pupilas a fuzilar de cólera e inquietação. E Manuel Louvadeus, risonho, sem os deixar respirar, lançou de chofre por cima de suas cabeças perplexas:

— Santas noites lhes dê Deus!

Só então Filomena pulou na esteira. Muito pesada tinha a rabadilha! Pois a ela, que era perra fina, não devia saltar ao entendimento que um homem com aquele rompante, aquele traje, em cabelo, não era senão o seu homem que voltava?! Seria que a penumbra da casa o desfigurasse! Qual! De relance, um relance de nada, notou que ela estava ainda a afirmar-se, dir-se-ia incrédula ou meio timorata, olhos postos nele mais fixos que os tições no braseiro. E foi como se lhe dessem com uma moca. Caramba, assim estaria mudado!? Não, não tinha desculpa que, embora andasse há uns dez anos pelo mundo, sem que há uns seis desse novas nem mandatos — morreu, está preso, mataram-no — por muito, mesmo muito que os trabalhos e o trópico picassem a fisionomia de um homem, o coração lhes não advertisse logo quem ali estava. E, cheio de ressentimento, metade mágoa, metade raiva, ia a cometer o despropósito de despir o paletó e pôr à mostra o lanho que uma gadanha antiga lhe deixara no braço: sou o Manuel Louvadeus ou quem sou? — quando ela se atirou para ele:

— Ah, marido da minha alma!

E, ao passo que se lhe enroscava ao pescoço, desengonçada e temível como a onça, gemia num ricto de angústia e vexame:

— Que tonta eu sou que te não reconheci logo à primeira! O coração bem me dizia que eras tu! Mas quem o havia de crer, mudado como tu me vens?! Quem o havia de crer depois de tantos anos sem dares sinal de vida!?

E, a esconder a vergonha, abraçava-o tão abraçado, que toda a sua cabeça se lhe amassagou contra o peito mamaçudo, sob a asa do lenço de ramagens, que se lhe soltara do queixo. Coitada, tresandava ao fumo da lareira e ao feno! E tal impregnação bastou para ressuscitar nele os odores antigos, subir-lhe ao olfacto dormente o aroma da caçoila familiar e da casa paterna, e reviver a lida com pai e mãe, a trabucada dos estábulos pelas sementeiras, aqueles estábulos onde antes de casarem muitas vezes se encontraram a horas mortas. E instantaneamente a sua imaginação desferiu voo para outro quadrante. Bons tempos: raparigas em barda, saúde, sol, a mão calejada do rijo cabo da sachola, sim, mas satisfeito com um pataco no bolso para cigarros e o seu quartilho. E que mais ! ? Depois, outra volta à. imaginação, e, por contraste, perpassou-lhe diante dos olhos Mato Grosso com a lava infernal dos garimpos, as pirogas dos rios de águas verdes improfundáveis, o silêncio das catingas em que o sertanejo, sozinho debaixo do sol a pino, se afoga como num mar morto, o sócio, ladrão na quinta casa! Que relâmpagos na cabeça dum homem!

— Toda a gente a dizer-me que tinhas morrido, que nunca ninguém mais te vira, que botasse luto e te fizesse os responsos... e o coração a dizer-me: não, o meu homem é vivo. Se não fosse vivo, a alma tinha-se botado cá do outro mundo a dizer-mo! — e lambuzava-o com os grandes beiços amorosos, húmidos como uma esponja empapada de água salgada.

— Está bem, mulher, está bem! Deixa-me... Olha que me esganas... O pai?

— O pai está rijo e fero.

Ia fazer-lhe outra pergunta, quando pela espalda desabou sobre ele, rosto, lábios, cabelos de que uma melena fugia para a testa, uma haste florida que adivinhou ser Jorgina.

Ah, pois não tinha ela também os seus direitos? Tinha e ainda os não usara. Um minuto ele a vira meio indecisa. Notou que se pusera a identificá-lo e não quis interrompê-la na operação. Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lurido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?! Por uma nesga, dir-se-ia, da consciência seguira todo o desdobre da fita sentimental. E, zás, vencendo o acanhamento, eis que ela se lhe atirava ao pescoço. Sorrindo à amorosa freima, Manuel Louvadeus apenas sabia dizer-lhe:

— Que moça você está! Que moça!

Com quem se parecia? Com quem se pode parecer a Primavera...? Lembrava-lhe, fragrante e risoteira, a flor dum cacto, de certos cactos martirizados dos chapadões incandescidos, que desatam numa flor tão bonita que fazem pasmar os ares e chamam todos os moscardos à volta.

— Que moça você está!... Este é o mano ?

O mano tinha posto a tigela na pilheira e esperava de pé, os braços a escorrer pelas ilhargas, que o pai se dignasse deitar-lhe os olhos. Mas já ele erguia as mãos:

— A bênção, senhor pai...

Manuel Louvadeus enterneceu-se com aquela prática à antiga da rendição filial e, ao mesmo tempo que admirava a valente racha, cobria-lhe a cabeça com a mão, olhos embaciados de lágrimas, não achando outra palavra:

— Seu capoeira !

— O avô? — perguntou-lhe pela segunda vez, ao cabo da grande pausa que se seguiu.

— O avô está rijo e fero — respondeu ele, repisando as palavras da mãe.

— Já não é criança...!

A exclamação diluiu-se no silêncio, sem eco, desprovida de sentido temporal. Olhavam muito estranhos uns para os outros, ele possuído da estupefacção involuntária de se ver ali e de os ver, ao contrário do resto, bem mudados, eles da sua imprevista e surpreendente presença. A candeia, bafejada pela aragem que se coava da telha-vã, passeava deste para aquele o seu espectro facecioso, carregando-lhes as feições. Foi ao envelhecer mais o pai, que Jaime acordou:

— Pois não, mas é como se fosse. Entrou há muito na casa dos setenta. Olhe que é ele que faz a lavoira quase toda da Rochambana. Eu mal lá meto o arado. Ainda hoje pega dum saco de dez alqueires pela boca, dá-lhe o balanço, e atira com ele para as costas.

— Mas sempre aflito de génio — interpôs Jorgina.

— Quer saber, senhor pai? Doía-lhe um queixal. Em vez de ir ao barbeiro que lho tirasse, não senhor, atou a ponta duma guita a um prego, outra ponta ao dente e, zás, deu tal safanão, que lá o botou fora. Foi o primeiro. Tinha raízes que nem uma giesta! Fartou-se de deitar sangue. Vimos modo de não haver nada que lho vedasse...

— Homens assim estão-se a acabar! — proferiu Manuel Louvadeus.

— Já não quero que haja — tornou o filho.— E correr? Outro dia, pelas neves, atirou a uma lebre. Partiu-lhe a perna. Pois deitou-se atrás dela e foi apanhá-la meia légua mais longe. Dizia o Caxarreto caçador: às vezes as lebres com uma perna partida até escapam aos cães. Um homem danado! Lá está para a Rochambana...

— Sozinho...?

— E não tem medo. Tirá-lo de lá é tirar-lhe a vida — disse Jorgina. — O pai já ouviu que nos querem roubar a serra!? Por esses povos fora, não se fala noutra coisa. Vai correr muito sangue.

Com decantarem os filhos os feitos do avô, tinham-se relaxado as efusões de Filomena. Ela agora recuava o rosto para ver Manuel Louvadeus a seu cómodo. Ele, por sua vez, contemplava-lhe com certa pena e engulho a cara coberta de rugas, sem um dente à frente, o que lhe desfeava a boca. Demais de feia, pareceu-lhe decepada. E ambos que outra coisa eram senão ruína!? Coitaxana, fitava-o, e na sua confusa sentimentalidade não sabia se havia de rir se chorar. A ele davam-lhe ganas de tornar para Mato Grosso, afundir-se pelo chão abaixo, não ser o Manuel Louvadeus, burro das desgraças, virar a jagunço, e levar tudo raso à boca de pistolão. Porque não era um nababo certo com dois ou três arranha-céus no Rio ou em S. Paulo, talho ou duas ou três padarias na Rua da Carioca a render para o meço! Isso ou voltar para a terra, a ladrar como um cão num oiteiro: Sou rico, muito rico, o que é, a riqueza ficou-me no meio do mato! Mas lá está! Juro-vos que está!

Filomena agora aproximava a cara da sua, como se só assim, dada a luz froixa da candeia, aquelas pupilas, tão azuis e tão finas que nunca ele tivera pensares, por muito secretos, que não desvendassem, só assim conseguissem ler o seu drama. Quando se deu por inteirada, talvez desgostosa com o que lera, as pálpebras fecharam-se-lhe dolorosas ou sovacadas de ânsias, que ele estava a ver acumularem-se, como nuvens de procela interior, tangidas por mau pensamento. Tornaram depois a abrir-se, tornaram a fechar-se, e ergueram-se por fim, tais válvulas de sola oleosas e gastas, a dar vau ao choro desfeito. E entre soluços entrecortados choramingava:

— Aqui te tenho, homem da minha alma! Aqui te tenho. Graças, minha Nossa Senhora dos Aflitos! Mas tu vens bom?! Esfalcaram-te as consumações! Fora isso, vens tal-qualzinho. Ai, eu é que estou para aqui um caco, uma rodilhona da lida e mais lida!

E, enquanto a filha tinha nos lábios um sorriso contente, um sorriso pássaro da selva a esvoaçar, e o filho conservava o ar aprumado de plantão, continuou na lamúria:

— Tanta gente a dizer-me que estava viúva, que te fizesse o bem de alma, e o coração a jurar que estavas vivo! Tanto chorei, tanto rezei, que o Céu ouviu-me. Aqui te tenho, marido da minha alma!

— O pai acreditou? — perguntou Manuel Louvadeus.

— Acreditou, quê! — exclamou Jorgina. — Não, o avô nunca acreditou. Tanto ele como o Dr. Rigoberto riam-se mesmo de quem se saía com a parte...

— Como vai ele, o nosso Dr. Rigoberto?

— O Dr. Rigoberto está bom — respondeu Filomena. — Os do Governo têm-lhe feito muitas poucas-vergonhas. Levaram-no preso, mas tiveram que o soltar, que ele também tem amigos. Depois prenderam-lhe os filhos, e ele, ao fim dum tempo, lá os tirou da cadeia. Parece um carvalho dos montes. Nada lhe mete medo. Olha, faz o bem que pode.

Também cá pela serra ninguém toma outro advogado. Ele aqui dita. Não dita leis, leis, mas o que ele diz é o que se faz. Todos aqui no povo metem as mãos no lume por ele, é só mandar.

— Então o Dr. Rigoberto não acreditava que eu tivesse morrido?...

— Não, esse não queria ouvir dizer que tivesses morrido. Quando o levaram preso, viu-me a chorar. Julgou que era por ele. E também era por ele, pois não era, que sempre foi nosso amigo! Mas lá lhe disse que não tinha notícias tuas... que não sabia o que havia de pensar. Voltou-se para mim: — Descansa, rapariga, o mundo dá muita volta. Nem eu me vou ao fundo, nem ele morreu. Torno, pois não torno, e um dia hei-de ter o prazer de abraçar aqui o teu homem. Mas tu vens bom, marido da minha alma! Eu é que estou um caco...

Era a segunda vez que o dizia e Manuel Louvadeus, perante aquela mulher de génio frenético, que apenas guardava um luaceiro da graça primitiva, protestou que não, que estava a mesma. E movido por um rebate de consciência — um silêncio de tantos anos não podia justificar-se pela distância a que ficavam Cuiabá e o Coxipó, lá no calcanhar de Judas, se se lhe não juntasse boa dose de desleixo e fatalismo de pobre diabo, empolgado pela febre de cavar a vida, não falando no prazer mórbido que os malditos haurem da renúncia, gerador de inconsciência — apertou ao peito, dum lado, a mulher, gasta, mas de estrutura sólida como os troncos dos pinheiros, do outro a filha, perfeita madrugada. Reparando depois para Filomena, cabelo sobre o riço e grisalho, mais acutângulo o rosto e as cordoveias a trepar no pescoço como lianas por um ipé, os ossos a fazerem promontório por detrás da pele arregoada, doeu-lhe a alma, e um soluço subiu-lhe à garganta:

— Nem um instante deixei de vos trazer na minha companhia. Você acredita, mulher. Às vezes o coração me andava tão negrinho, tão negrinho, que tudo para mim era noite cerrada. Mas tu estás boa! Mesmo boa...! Pouco envelheceste...

Filomena, felizmente para ela, ver-se-ia raras vezes ao espelho e acreditava. Pois acreditava e ela, que até ali tanto chorava como ria, exultou com a ideia de que não tivesse sofrido quebranto o lume de formosura e exprimiu-o com disfarçado mas risonho requebro:

— Pois, graças a Deus, andei sempre de saúde. Olha, homem, atravessei como S. Ludovico o inferno sem me chamuscar. Assim ou assado, tudo é viver. O relógio do tempo vai dando horas. Enquanto os filhos não foram capazes de enxotar os porcos, vivi acalcanhada, mais acalcanhada que a erva dos caminhos. O passante põe o pé, vai para baixo; levanta o pé, lá se revira, vingando-se à vida que Deus lhe deu, e não morre porque não quer morrer. Depois, quando pilhei os dois crescidinhos, meio teixugos, já pude dormir. Tanto o rapaz como a rapariga não voltam a cara ao trabalho. Mas são uns mafarricos — e olhava amorosamente para eles. — O Jaime lá tem o seu génio... há-de moderar-se com o tempo... Fez-se uma pequena pausa, cada qual reimerso no mar de coisas que trazia no peito. Veio o gato, de rabo no ar, roçar-se às pernas de Louvadeus como se também nele reconhecesse o seu senhor e amo, e quisesse fazer as pazes, ou afirmar-lhe que não tivera medo. O cepo, rilhado pelo fogo, estralejava. Foi Filomena que, em voz tremente, se alçou de novo sobre o pélago:

— E como te correu a vida, homem? Correu-te mal! Sabes que mais, com dinheiro ou sem dinheiro, cá nos havemos de governar.

A Manuel Louvadeus doía-lhe que a sua pessoa incutisse ideia de miséria e ia a retorquir que ganhara boa massa, quando bateram à porta. A mulher, ao ver-lhe esboçar uma topetada de arrelia com a cabeça, carregou o sobrolho. Deixa bater. Tornaram a reboar os golpes: truz, truz. Sussurro. Mais truz, truz. Chamaram:

— Manuel...! Filomena...!

Era voz conhecida — o compadre Justo Rodrigues — a quem se não podiam negar. Pressentiram que trazia atrás uma mó de gente, curiosos uns, noveleiros outros, que o vinham saudar. O Vicente, que lhe oferecera uma boleia na camioneta de carga, passara palavra, e meio povo estava ali botado. Que remédio senão aparecer! A Jorgina abriu ao açude. À frente, de facto, rompia o compadre Justo. Fazia pouca diferença: mais gordo, com as belfas puxadas para a barbela, sempre a arrastar a perna direita, mais comprida que a esquerda, pelo que o alcunharam de Perna Marota. Vinham com ele o tio Zé Grulha e o tio Caries, mirrados, comidos do surro e da velhice, e o Augusto Finote, alontrado. Vivas e mais vivas, o Justo falou das novidades da terra e por fim da rixa do Jaime Louvadeus com os Lêndeas:

— Tens aqui um homem! — proferiu, indicando o moço. — Os Lêndeas são pimpões e mau gado, mas encontraram quem chegasse para eles.

— Eu já sei — disse Manuel Louvadeus, de fisionomia sombreada. — Contou-mo o Luís Barbadinho em Lisboa, na Pensão do Álvaro, antes de tomar o comboio. Os Lêndeas apanharam-no no meio da serra sozinho, não foi? e caíram sobre ele para o desancar. Por modos, a briga começou com uma paulada que aqui o Jaime lhes deu no cachorro...?

— Sim, foi. Foi por causa do cão. Por causa do cão, hum, e pelo mais — corroborou Jaime com transparente secura.

— Iam-se esfandegando — tornou Justo.

Nem Filomena, nem Jorgina despregaram os lábios. Olhavam para o lume, como se tivessem a peito alhear-se do assunto.

— Bah — exclamou Jaime em tom ligeiramente de alarde, mas que se via ter em mira atupir aquela vala que era o silêncio que se fizera. — Paguei-me... andou! Com águas passadas não moem moinhos. Não se fala mais nisso.

Decorreu outra grande pausa, cheia de reservas e inferências mentais duns e doutros. Quando na embrenhada floresta deixaram de soprar os ventos contrários, proferiu Louvadeus:

— A justiça não meteu a pata?

— Não meteu — disse Justo. — Faltavam as testemunhas. O barulho passou-se na Corga, nos altos, ao ir para Valadim das Cabras, onde não botam os rebanhos de Inverno. Os carros é que vão lá carregar mato. Não admira que não andasse ninguém por ali. O Bruno foi a terra... Chegaram a levar-lhe a extrema-unção à cama. Cá este pimpão rodou por seu pé para casa. Vinha com a cabeça rachada, mas nem ao médico quis ir. Por isso lhe ia saindo caro. Agravou-se-lhe a brecha da cabeça e esteve por um cabelo à beira do cachafurdo. Ele que conte... E que me dizes, querem-nos tirar a serra...?

O Justo era um grande tagarela, não sendo para estranhar que desse notícias que competia à mulher e aos seus darem. Tornou Louvadeus:

— E cá a falperra ?

A falperra, mal. Àquela altura já se havia de andar a semear o milho nas terras de sequeiro, mas o codo não o permitia. O calendário há muito que não regulava. Noutros tempos, chegado o mês da Páscoa, cantava o cuco e recantava. Quem o ouvira? O solo não produzia, cansadinho, cansadinho a mais não poder! Chamavam a Portugal a nação das sete sementes como ao mundo de Cristo o mundo dos sete pecados. Qual, quando se semeava um alqueire e se colhiam quatro, era um louvar. Também ninguém mais queria amanhar a terra! O solo era negro e sujava as mãos. A gente boa sumia-se na emigração. O que sobrenadava era o rebotalho. Pudera, tanto o lavradorzinho da arada como o cabaneiro viviam frigidos com tributos, mais escravos que os negros. Davam de comer à cáfila toda. Sustentavam o fidalgo, o ministro, o doutor, o escrivão, o padre; sustentavam o pedinte, o citote, o ladrão; desfaziam-se em maná, e ficavam nus e viviam nus que nem castanheiros depois de abanados. Queria saber o que lhes valia a eles e aos casacas? Era não fazerem contas.

No dia em que viessem a ajuizar quanto custava um bago de pão, acabava-se o mundo. Ah, isso acabava! Permaneceram mudos um pequeno espaço de tempo a reconhecer a roxidão do sudário. Depois, Justo interpelou com entono cordial:

— Olha lá, disse-me o Vicente que vinhas doutor...! Tu já o eras...

Louvadeus sorriu sem fatuidade nenhuma.

— Por modos o padre de Urro, que trazíeis na vossa companhia, teve de meter a viola no saco quando se pôs a discutir contigo. Hã? Viste mundo... Estudaste...

— No sertão alguma coisa se há-de fazer. Sim, li para lá a trouxe-mouxe. Em Cuiabá havia um homem, um santo homem, que tinha um armário de livros e mos emprestava. Era naturalista e ia pelo mato com duas caixas. Numa metia os bichinhos, na outra as ervas. Algumas vezes fui com ele. Só a sua companhia instruía mais que uma aula de lentes...

Depois de o ouvir, abanar com a cabeça, aprobativo e encantado, Justo, vendo-o magro, com certa timidez nos gestos, disparou-lhe em rosto, para epílogo das suas demonstrações de interesse:

— Está bem, está bem. E money? Trazes money? Não trazes, escusas de mo dizer. É pena. Na tua casa, coitados, os abonos também não são grandes...

Louvadeus crispou os lábios, sem responder. Já lá faltava o estúpido com a mania de meter as mãos nos bolsos da gente! Esteve vai-não-vai para mandá-lo à tábua. Limitou-se a desviar os olhos, enjoado com a pergunta. Mas o bigorrilha, interpretando mal o seu acanhamento, reforçou o diagnóstico pejorativo:

— O Brasil, sempre o tenho dito, é para quem é.

— Olha que novidade! Sempre assim foi desde que o mundo é mundo — comentou o Finote.

— Não basta ter unhas, é preciso manha — tornou Justo. — Sabes o que uma vez ouvi ao Contim, de Rebolide, quando lhe perguntei: A Banda de lá a você não o tenta? — Tenta, tenta — respondeu ele — mas a mim não me serve. E sabe vossemecê porquê? Não sou gajo. Um homem lá para remar tem que ser gajo. Não nasci com tais artes. É verdade que lá só os espertos é que ajeitam a vida?

Manuel Louvadeus, penetrando todo o subentendido, replicou com doçura:

— Há de tudo, compadre, há de tudo. Também lá, entre portugueses e nativos, não tem conta a gente séria.

Suspenderam o colóquio, que crescia o monte, em geral engoiados nas capuchas, raro este e aquele em mangas de camisa, ou mulher de xaile — as noites ainda iam frescas — e ele não atinava para onde se havia de virar. E ali andava duns para os outros, de todos para a mulher, que o não largava agora na sua impaciência amorosa.

Atropelava-se gente no patim e tais olharapos, parados no vão da porta, nem deixavam entrar o ar que se respira. A luz era escassa, mas alteara-se a lua cheia e à sua claridade, lembrando-se dos velhos, fazendo-se lembrar dos novos, que deixara meninos, a todos ia distribuindo apertos de mão e abraços, consoante. Depois, passo à direita, passo à esquerda, viu-se estrada fora, com um grande rancho atrás, a caminho do Nacomba. Renovara o estabelecimento, tendo deitado abaixo a casa felugenta e erguido aquela de perpianho, com o reboco branco das juntas cortado à régua. O vinho baptizado dava para tudo. Sórdido, mas melhor cara. O Júlio Nacomba, por sua vez, mais barrigudo e importante, e sempre em mangas de camisa, tomentos, para não gastar a vestia.

À luz do petromax Manuel Louvadeus, espraiando olhos pelo adjunto, distinguiu os manatas com os cotovelos mais rotos e as joelheiras das calças mais empoladas. De ricochete ao que observava, sentiu de salto que, toscado e remirado no fatinho friorento e amarfanhado do Trópico, descia no crédito dos patrícios. Persuadiu-se mesmo que começavam a olhar para ele sem curiosidade. Depois, sem respeito. Embora não valesse a pena gastar cera — palavras, atenções, salamaleques — com ruins defuntos, Manuel Louvadeus, chocado de tal suspeição, rápida como o farpejar duma cobra, envergonhou-se. Se fosse de dia, ter-lho-iam lido no rosto. Toca a remar contra a maré:

— Deita vinho, seu Nacomba, deita! Não tem você biscoito?... Ah, tem bolos da Lapa... e bacalhau frito... Pois ponha bolos da Lapa e bacalhau frito. Ponha, ponha santa trincadeira... ponha tudo que tem...

Ao bródio foi acudindo gente da terra e de fora da terra. Bem sabia ele que não há, para ganhar a simpatia do serrano e fazer-lhe entreabrir a beiceira no franco sorriso fraterno ou exalçá-lo à simpatia e admiração, como uma saúde à boca das pipas. No seu tempo era ali que se selavam alianças para a vida e para a morte e se combinavam até cardanhos e cacetadas. E agora? Agora seria a mesma coisa, que a bola do mundo dava muita volta até uma costumeira se voltar da cabeça para os pés. Sim, senhores! À medida que rodava a caneca com o vinho do Távora, um vinho que arranhava o céu da boca blandiciosamente — aquilo o vendeiro acabara de lhe meter a torneira e não tivera ainda tempo de o baptizar — as línguas desentaramelavam. Veio a talho de foice a semeadura da serra dos Milhafres. Justo Rodrigues, um dos quarenta-maiores, agiota, marchante de gado e com vacas ao ganho em dúzias e dúzias de presépios, que era o presidente da Junta, declarou, e a sua palavra fazia doutrina:

— Já disse, e voltarei a dizê-lo na Câmara segunda-feira que vem, que já fomos chamados: a serra é nossa e muito nossa. Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo. Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal...? Semeiem pinhal nos parques e jardins onde têm empedrado e relva só para vista. — Assim é-vos melhor, dá mais lucro — dizem eles. — Pois dará. São opiniões. — Admitindo que fosse certo, e ainda não o disse nenhum Salomão, nós é que a havemos de semear. Tudo o que seja para fora desta regra é roubo. A serra era de nossos pais e avós, dos nossos rebanhos, dos lobos que no-los comiam, do vento galego que afiava lá pelos descampados as suas navalhas de barba. Pois então?!

Chegou ali um homem de Corgo das Lontras: compra samarras. O Nacomba voltou-se para ele: — E a gente lá da terrinha que diz, tio João do Almagre ?

— Conho, que há-de dizer?! A serra foi dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há-de haver!

Um rapaz novo, de grevas, a mão no guiador duma velha bicicleta, atravessou-se à boca da taverna:

— No Labrujal, está toda a gente a postos. Tirarem-nos a serra é o mesmo que arrancarem-nos coiro e cabelo. Mas falam os trabucos, oh se falam! Estão prontinhos, carregados com sal e cacos de pote!

— Lá os meus rabosanos da Azenha da Moura andam a arder — disse Manuel do Rosário, ferreiro e velho amigalhaço do Louvadeus, ao tempo que riscava no rol a conta dum freguês que acabava de lhe pagar.

— Se nos privam da serra, como nos havemos de governar?! Temos então que nos meter a ladrões dos caminhos?!

— Ao Zé Liró, de Toiregas, ouvi eu que, venha lá quem vier, torna por onde veio a toque de caixa — tornou João do Almagre.

— A serra dos Milhafres há-de botar mais eco que Aljubarrota! — ouviu-se a um mocete de Rebolide da Veiga que trazia namoro em Arcabuzais.

Não compreenderam e passou sobre eles um silêncio oco, cheio de interrogações.

— Em Valadim das Cabras, Sr. Justo — proferiu um sujeito adiantando-se para a roda — os homens, dos dezoito aos trinta anos, fazem exercício tal qual os recrutas na parada. Só queria que os vissem bater o calcanhar! Um antigo cabo da armada é o comandante. É teso e sabe-a toda. Até já arranjou carabinas!

— Onde as foi buscar?

— Sabe-se lá! Chut. Ouvi dizer que eram dos trauliteiros e estavam escondidas num palhal.

Quem assim falava era o Joaquim Pirraça — aliás Piçarra — muito conhecido por aqueles sítios, cabreiro e negociante de cereais, a quem as andanças do comércio traziam de terra em terra, ora a cavalo, ora numa fourgonnette que ele próprio guiava. Foram todos para ele de mão espalmada.

— Vem aí o João Rebordão que diga...

João Rebordão, de Parada da Santa, encarnava a chefia da revolta contra o florestamento da serra. Era um tipo de meia idade, peitaço amplo de batedor de perdizes, assente em pernas que nem varas de calabre. Demais disso, pessoa bem relacionada e amigo do seu amigo. Com a moto a petardear, estacara a dar o recado ao Justo:

— Disseram-me que estavas para aqui. Então o dito dito, na próxima quarta-feira todos na vila?

— Como um só homem!

— Rosna-se que o Barnabé Lêndeas anda para nos tramar, feito com o Dr. Labão. Não se pode contar com semelhante traste!

— Contamos uma nisga! Uma novidade, chegou meu compadre Louvadeus do Brasil. Este era um bom elemento.

Há poucos tão bem-falantes como ele e é homem que sabe onde tem a cabeça. Seria bom puxá-lo cá para a patuleia...

— Chegou o Manuel Louvadeus? Onde está ele que o quero abraçar?

Já Manuel Louvadeus saía da taverna. Deram um estreito abraço. Trocaram suas cortesias, depois impressões. Rebordão inteirou-o da guerra em que se achavam envolvidos. Guerra de vida ou de morte.

— Manuel, tens de ser dos nossos...

— Sou, João, sou. Está aqui o teu cabo de ordens. Mas olha que a violência nunca leva a bom termo.

— Não me digas isso! Muito do que se faz, não se faz ao bem, faz-se ao mal. É velho como o mundo. A maioria dos reinos, das fortunas, dos senhorios, das dominações, foram construídos pela força e argamassados com sangue. É ou não é assim?

— E não brada aos céus que assim seja?

— Os céus estão-se marimbando.

— Tudo é transitório...

— Deixa ser! O minuto para a nossa febre é longo como as léguas-da-póvoa. Contamos contigo. E vou-me lá que se faz tarde. Aparece na vila. Daqui vão o Justo e o Nacomba e não sei quem mais. Adeus, amigo!

Manuel Louvadeus entrou na taverna, cabisbaixo.

— Vai correr sangue, não haja dúvida — proferiu o Nacomba, que estivera a ouvir, dobando com a cabeça e arregaçando a beiceira. — Vai, vai! Se o Governo teima em meter aqui a pata, temo-la tramada ! Mas você, seu Louvadeus, está-se ninando. A Rochambana fica fora do perímetro. Cerce, cerce com a linha da demarcação pela banda do sul, mas fora. Trazem-na de olho por causa da fonte, mas isso de passá-la a bilhestres é lá com vocês...

— A Rochambana é a minha chácara — proferiu Louvadeus com brincada firmeza na voz. — Nem sei se meu pai queria !

— O Teotónio!? Olha, olha! — emitiu o tio Carles em tom de meio sarcasmo. — Já lhe ouviram que o primeiro que se adiantasse de más tenções era o primeiro a patear.

— Quem lhas faz, paga-lhas! — corroborou o Justo.

— Com língua de palmo — disse o Nacomba. — Homem derrancado! Vocês não sabem o que se passou com o Manga Curta, o couteiro? Pois este ladrão, que só serve para desinquietar quem está quedo, levava-lhe um coelho e o ferro que o agarrou. Vai o Teotónio abispou-o a esgueirar-se. Correu-lhe à frente, de espingarda apontada ao peito: Ou pões aí o que levas ou estás aqui estás no inferno! O Manga Curta é farsola, pois até de joelhos se ia deitando.

— Ainda hoje, se é preciso esgalhar um pinheiro, sobe por ele acima como um gato — disse o neto.

— Onde deita a unha é dele — tornou o Nacomba. Falavam ao paladar de Manuel Louvadeus, que, embora homem cordo, não ficava indiferente às façanhas do pai. O velho era um bicho de respeito. E ele, desvanecido sem o dizer, fez sinal ao vendeiro que punha a pachorra toda a servir os bebedores:

— Bota vinho, seu Nacomba, bota vinho! — E volvendo cara ao adjunto: — Muito me contam os meus patrícios. Sim, senhores. Lá na Rochambana não se toca. Quanto à serra, no geral, o Governo não procede bem em violentar as aldeias. Desgraçadamente, por toda a parte o povo é carneiro de tosquia. Mas também sucede ser criança, e não sabe o que quer, nem o que mais lhe aproveita. Estão certos vocês que ficam roubados? Não é para vosso bem que vem arado mecânico rasgar maninho?

— Qual nosso bem?! É para bem deles. Os pinheiros cortam-nos eles, quando forem medrados. As estradas que se propõem fazer pela serra fora só para eles é que servem. As casas constroem-nas para os guardas. Põem telefones, mas é para uso próprio, prevenirem os postos se os mateiros andam à lenha ou lhes cortam uma estaca. Numa palavra, os benefícios só a eles beneficiam. Adeus, adeus, ali ninguém mais entra. Pior que a torre da Madorna! — arengou o moço que pouco antes citara a batalha de Aljubarrota.

Ficaram outra vez calados perante os cadafalsos que se lhes erguiam no horizonte. Modo de se vingarem, bebiam. Saúde, mais saúde, alguns regougavam.

O setestrelo ia a meio quarto do céu e o cajado de volta. Um ventinho arisco ramalhava para os pinheirais.

As canecas de meia canada e os copos de quartilho prosseguiram numa dobadoira, umas cheias, outras despejadas. Nem pretos no alambique da cana! Como sempre, a goela do amigo serrano era um golfo que nada enchia.

Também à força de molhar a boca e escabeçar as canecas, Manuel Louvadeus sentiu que a bebida lhe toldava o juízo. Mas o regalo de se ver na terrinha natal, no meio da malta, acabou por fazê-lo esquecer de si e do mundo. Bebeu, bebeu, e daí a pouco não sabia a quantas andava. O chão dançava-lhe debaixo dos pés. Há uma motilidade nos ébrios fora do arbítrio, ou agindo com um arbítrio atenuado, que lhes faz desatar a língua e mover de modo mais ou menos lógico. Louvadeus tinha o vinho discursivo, menos, porém, que melodramático. Se lhe acontecia pôr a mão na consciência, para abalançar-se a altas congeminações, mal disparatava. A testilha era com Justo:

— Não sabes nada de nada o que é a vida, compadre! És um bolas! Para ti a vida é enceleirar. Fácil operação! A vida, queres tu saber, a vida é ir pelo madeiro fora, por cima do rio, e não deixar molhar os atafais nem deixá-los levar à torrente. Mas se a torrente os há-de levar, alma até Almeida. Que fazias tu, Justo, se te visses senhor de rasas e rasas de oiro e ficasses dum momento para o outro depenado e sem coisíssima nenhuma? Hã? que fazias tu, Justo, se te visses hoje um ricaço, e amanhã acordasses à dependura? Diz-me lá, qual era a primeira coisa que fazias, que sempre quero conhecer a têmpera da tua alma...?!

— É conforme, Louvadeus. Se me visse hoje pobre, e ontem rico, a primeira coisa que fazia era coçar a cabeça. Hem, como é que tinha sido?

— E depois?

— Depois não sei. Depois, tratava de remediar. Suponhamos que me ardia a casa, que havia eu de fazer...?

— E se te roubassem?

— Se me roubassem, se me roubassem, gritava ó da guarda e corria atrás do ladrão.

— Corria atrás do ladrão. E se o ladrão tivesse pés de cavalo?

— Ah, isso, sei lá o que faria... Se lhe pudesse mandar um balázio...

— Mandavas-lhe um balázio. E que valia? Supõe que o ias pilhar com as mãos à dependura...

— Bah, não sei também o que faria! Uma entaladela boa não era coisa que não viesse a tempo. Não sei!

— Não sabes? Sabes, sabes, que és um fonas e onzeneiro. No fundo és tão malandro como esse que roubou. O que tu fazias sei eu, compadre Justo: se o apanhasses a jeito davas-lhe mais que uma boa entaladela... Mandava-lo para o maneta!

O outro pôs-se a rir para tirar o mordente às palavras tontas do Louvadeus, que já estava com um bom grão na asa:

— Talvez. Era um piranga a menos no mundo.

— Pois não devias matar ele. O homem digno não mata outro, nem que seja o mais refinado Caim. Não mata, não.

— Se é um paz de alma como tu!

— O homem honrado mata. Mas há outro que não mata. O homem honrado rege-se pela cartilha do padre, do juiz, do rico, e traz sempre aperrada por baixo do gabinardo uma navalha de ponta e mola. São terríveis os homens honrados, e têm sempre por eles a opinião pública, Deus e a justiça! Os desgraçados e os infames para o caldeirão!

Ficou calado. Em volta bebiam e deitavam sentenças proporcionais. Um que outro apoiava. Um deles dizia:

— Se me roubassem o que tinha ganho com o suor do meu rosto, e eu caçasse o larápio, era também capaz de lhe tirar o chiadoiro.

O Manuel Louvadeus foi para ele, copo meio tombado a verter o vinho:

— Matavas? Olha que matar um homem é coisa muito séria. Mesmo por justo desagravo é sempre vileza que brada aos céus. Tu matavas, moço, porque te tinham roubado o dinheiro e não passavas do pior dos matadores. Destruir esta máquina tão admirável que é a vida de um homem, uma máquina a que ninguém sabe dar corda a valer, tão perfeita se tornou, não há nada no mundo que o justifique. Sim, senhor! Por isso, estoirar com ela antes do tempo é grande pecado perante o sol, as estrelas, as serras ao longe a olhar para nós, os insectos, os corvos que passam no céu e podem ver, oh! oh!

Calaram-se muito azabumbados, que aquilo tinha ares de sermão. Não era preciso compreender tudo. Justo admoestou:

— Compadre, são horas de deitar.

Nacomba viu-se por sua vez obrigado a abanar a cabeça, admirado daquelas sentenças meio sibilinas:

— É homem viajado. Sabe! Sabe!

— Se calhar, torceu por lá o pescoço a algum pilho...— tornou o matador hipotético.

Justo, que era amigo vigilante, veio logo com o paládio:

— Qual, é falar por falar. Não vedes que o homem está tocado...?! Já não diz coisa com coisa...

O outro esboçou um esgar de incrédulo e Louva-deus, a quem não passou despercebido aquele meneio, foi para ele:

— Olha, moço, olha que estas mãos foram sempre honradas. Estão limpas de traição. Sangue quem o não tem nelas? Matei onça... matei fera... matei surucucu... matei animal daninho. Homem não matei. Senão, digam-me lá se se lhe compara matar bicho que é ao mesmo tempo onça, jacaré, surucucu?

Os outros responderam à uma:

— Nunca as mãos lhe doam. Se matou um bicho desses, está muito bem morto.

— Mesmo quis matar, e não matei. Não, senhor! Matou Deus por mim. Deus ou o Diabo negro.

Ficou a olhar para o copo que lhe dançava nas mãos. Depois, dir-se-ia que tomado duma decisão brusca, levou-o à boca e, como quem despacha um remédio, virou-o de um trago.

— Matou-o Deus ou o Diabo negro com a minha faca... a minha faca de mato. Aí está o crime!

Entretanto, cansados com a arenga descosida de Manuel Louvadeus, Jorgina e o irmão tinham-se travado de razões a respeito da Rochambana: Havia vantagem em vendê-la, não havia? A Filomena, que acabara também por sair para a estrada, ouvia sem abrir a boca.

Vendo-se isolado, sem ninguém que lhe prestasse atenção, o Manuel Louvadeus cresceu para o grupo onde se tinham pegado de ditos e razões e, como se se fizesse limpaça no seu cérebro dos fumos do álcool, pronunciou muito sensato, com pausa e repicado acento:

— Na Rochambana não se toca!

— Manuel — volveu Justo — vende a tapada que ficas rico... A Rochambana não te coube em sorte, por morte de tua mãe...?

— Coube, mas meu pai é que manda. Também não preciso da riqueza para coisíssima nenhuma. Sabes tu o que é a riqueza? A semente da leituga. Sopra-lhe o vento e cai onde calha e menos se espera. Cai tantas vezes nas mãos daquele que menos corre. Escapa-se frequentemente das mãos daquele que a leva agarrada. Assim me sucedeu a mim. Mas ela lá está no sertão à minha espera em dois palmos de mato!

— Então não se vende...

— Não se vende. Quero fazer lá uma casa — reatou Manuel Louvadeus num tom em que transluzia pensamento reservado que trouxera a amadurar. — Uma casa para residir. No meio da serra, livre debaixo do Sol e das estrelas, livre na terra e no céu, é que eu gosto de me ver. Amigos, habituei-me a viver sozinho. Vocês nem imaginam a confusão que me causou a cidade de..., a cidade, depois de cinco anos de sertão. Julguei que virava doido !

— Morar na Rochambana, senhor pai?! — exclamou Jorgina em ares de amuo.— Todas as noites uivam para lá os lobos. Têm as madrigueiras mais acima. O avô gosta porque ele e os lobos são amigos.

— Tu tens medo dos lobos, tontinha!? — pronunciou Louvadeus em tom amável de repreensão. — Olha que os lobos são bichos valentes, bichos simpáticos. Comem os carneirinhos? E o prior, e o senhor juiz, o Nacomba, e até aqui o tio Grulha, se lho chegam ao dente, comem carneirinho! Quem é mais lobo? Não tenhas medo dos lobos, tontinha! Connosco não se metem. Para o mau lobo e espantar ele trago ali boa receita... — e apontou a grande mala oblonga de lona, nova em folha, com fasquias pintalgadas, que se descortinava na camioneta, parada diante da taverna, por cima duma rima de telhas. E como todos lhe seguissem o olhar e parecesse terem compreendido, a corrigir a bazófia imprudente de que trazia consigo rifle ou outra arma de bala, proibida: — Medo do homem, sim, do homem ladrão, do homem fera! Os lobos não me metem medo. Quem viveu na mata com a onça e o índio, o índio brabo, que nas suas horas é terrível, não tem medo do bicho nacional, este pobrinho de bicho mesmo que tenha fome!

Movido pelo alembrete, o Vicente subiu acima da camioneta e, sopesando o malão, escorregou-o pelo frontal abaixo. À beira, estava o Jaime com o primo Plácido a ampará-lo. E, mal poisou terra, cada um à sua argola, largaram com ele, à vontade e ligeiros. Justo Rodrigues e os mais viram-nos partir lestos, a grandes pernadas, direitos à casa dos Louvadeus que ficava à desbanda do povo. Pelo rasgo e desembaraço como seguiam, olharam uns para os outros, proclamando com unânime insolência: muita parra e pouca uva. E todos, desde logo, compadre Justo, Manuel do Rosário, João do Almagre, Nacomba, Grulha, Finote, afivelaram um ar despiciendo, aquele ar que anoja mais que cobra a desenrodilhar-se do capim.

E Louvadeus disse em tom encavacado: — A mala traz uma ridicularia. Vocês sabem, pois não sabem, inglês só viaja com mala de mão.

Com tais palavras, comprovativas da impressão detraente, engendrou-se um certo frio entre os paroquianos, embora à claridade equívoca, formada pelo gás do petromax e o luar, se não visse bem nítida a cor dos olhos e os rictos não passassem de sombras fugidiças. Mas ficaram todos calados, a ruminar de certos maus pensares.

— Sim, senhores. Compreendo, não me vêem automóvel?... Ele virá, encomendado de Alemanha. Não duvidem. Deixei nas bandas de lá uma grande fortuna, é só ela vir.

Calou-se. Em volta uns sorriam. Outros estavam assarapalhados na sua miséria ou com medo que viesse, de facto, muito rico. Teve pena deles. Teve pena de si.

— Não vai mais uma pinga, minha gente? Não vai? Então, seu Nacomba, pague-se. Quero ir pedir a bênção a meu pai à Rochambana.

Atirou com uma nota de cem escudos ao balcão.

— A esta hora...? — objectou Justo.— Homem, amanhã tens tempo... Teu pai está fino... não julgues que morre esta noite...

— Há-de ser hoje. O amanhã é com as tavernas, que só fiam ao outro dia. Quero ver como está o homem e como estão crescidas as árvores que plantei!

Recolheu o troco e pediu um pau para se encostar. O Nacomba pôs-lhe à disposição o lódão das romarias. Iam os dois rapazes com ele. Mas Jorgina teimou que também ia. E ele ficou baboso com a decisão da moça, embora a visse pouco antes, à luz do creosene, a percorrê-lo com olhar esperluxador: — Que me traz ele? Vem a tinir? — Puxou-a então para si e, abrindo-lhe os dedos, meteu-lhe no anelar da direita um anel de serpentina, oiro de lei, com dois rubis, à laia de pupilas acesas, e brilhantes de suporte ao engaste. E como visse a sua Filomena parada a observar a manobra, chamou-a com um aceno de cabeça:

— Para você este...— e quis meter-lhe no dedo outro anel em cadenilha, cravejado de gemas, mas o dedo era muito grosso e só pôde caber no meiminho. Ela desatou às gargalhadas tão descompostas como satisfeitas, com que ele muito folgou. Fizera aquilo para que vissem que não vinha tão nu como estavam julgando. Depois, sacou duas libras, e deu uma ao Jaime e outra ao Carlos Plácido, que era como irmão do seu filho.

— Valem trezentos escudos cada uma!

E, para rematar, abriu a bolsa de prata, e semeou pelos rapazes pesos, peças de dez escudos, moedas de cinco escudos, e de vinte e cinco, dez e cinco tostões, até esgotar o cabedal.

Os serranos, depois de encafuarem as moedas no mais fundo das algibeiras, não desse o Diabo na cabeça do homem para tornar-lhas a pedir, ficaram a abanar a cabeça, de boca aberta, olhos arregalados. Que remédio senão corrigir o mau juízo!? Brasileiro que semeia fanfas às rebatinhas, é que não chega tão chocho como isso. E rendidos, cativados de todo, professando sobre ele uma opinião lisonjeira, quando se pôs a caminho da serra porfiaram em o acompanhar. Era uma procissão, à mão direita o compadre Justo, à esquerda o Nacomba, que deixou a mulher a aviar os quartilhos, também ele, o grande judeu, açulado ao faro da bagalhoça.

 

No átrio dos Paços do Concelho de Bouça do Rei, o Dr. Rigoberto, de Arcabuzais, o presidente da Câmara, Dr. Labão do Carmo — para vila e termo, com malícia duns e inocência verbal doutros, o Dr. Lambão — o Dr. Arcângelo, ressurrecto doutor da mula ruça, e gentio, entre o qual Manuel Louvadeus no seu celofane de brasileiro recém-vindo, e Julião Barnabé, por alcunha o Lêndeas, homem importante da serra, faziam roda num cavaco desenfadado. Acabavam de abrir as repartições e a feira estava a encher.

O Dr. Rigoberto, reviralhista notório, que regressara na véspera de Lisboa, contava as anedotas picarescas que arrebanhara pelo Chiado de achincalhe à situação, ou aos seus homens. O Dr. Labão, lídimo representante da política nova e seu arauto, não prestava facilmente o flanco. Mas não gostava da chuchadeira... cá por coisas, dizia ele, as quais coisas consistiam em poder parecer a ouvidos indiscretos condescendente com a má-língua. E, velho macacão, lançou a isca em que o zoilo morderia infalivelmente :

— Sustento os interesses dos povos, não sei se sabe. A serra é-lhes indispensável. Quando chegarem os delegados dos Serviços Florestais, vou dizer-lho.

— Dizer-lho como advogado é bom, como presidente da Câmara, melhor. Eu cá, como presidente da Câmara, nem lhes permitiria pensar que podem fazer o contrário. Sim, porque é que o Município de Bouça do Rei não há-de, segundo o velho direito, arvorar-se em baluarte das aldeias serranas?

O Dr. Labão, que era um oportunista de primeira, dobrado a todos os ventos, embatucou. Teve a sorte, assim acurralado, de surgir naquele instante um grande automóvel de praça dos lados de Trancoso com estreloiçado ímpeto. Ia a afrouxar, mas teve de guinar à esquerda para não colher o Ripopó doidinho, que representava no meio da estrada as suas partes gagas. E foi estacar com estertoroso tumulto debaixo das tílias, entre o edifício camarário e um magote de feirantes que, de saquitel ao ombro, guarda-sol debaixo do braço, deram um salto à banda, assarapantados com o monstro que desabava sobre eles.

— Lá vêm os engenheiros! — proferiu o Dr. Labão no tom desafogado dos gregos diante do mar.

Viram-nos descer do carro, de perna entorpecida, porque a primeira coisa que fizeram foi bater o pé. Enlevaram-se depois no bonito panorama do horizonte próximo. Dos montes, se não escorria o leite e mel das terras da promissão, circunstância de primeira para tais funcionários, um sol regaladamente musical arrancava da terra negra, do arvoredo versicolor e das vinhas retardadas pelo Inverno uma geórgica da mais espectacular agronomia. Uns segundos apenas se detiveram em êxtase. Distraíram-se ainda outros tantos segundos com as roseiras das platibandas, cujas lindas e frescas flores dir-se-ia se tinham postado ali para lhes darem as boas-vindas em nome da botânica local, desvanecida. De olhos arroubados, Suas Excelências avançaram para os Paços do Concelho. Ao seu encontro acudia ofegante o digno e avisado secretário da Câmara, Amaro Rosendo, com um açude de cavalheiros empós. E desatou-se mesmo ao fundo da escadaria a catarata de salamaleques e apresentações.

Estava tudo a postos na sala em que ia celebrar-se a conferência. Contra a cal branca da parede perfilava-se a serranada, grave e em traje de domingo. Caras quase todas rapadas, angulosas, de fundas comissuras, em que haviam trabalhado à compita sol, vento e chuva, ou nariz torcido como as árvores batidas particularmente dum quadrante, camisas de linho caseiro, cóscoras de goma, mãos como pás penduradas das cavas do colete ou a escorrer pelos joelhos, tais les bourgeois de Calais.

Entrementes chegavam açodados os bacharéis da vila, autoridades, pessoas gradas, e ainda os representantes retardios das aldeias, e constituiu-se a mesa.

O senhor engenheiro Lisuarte Streit da Fonseca refastelou-se no cadeirão, compôs com discreto jeito o aparelho acústico, porque era surdo, surdo como sete portas à meia-noite, e afagou as mãos uma contra a outra, à laia de sinal a Fontalva. Este soergueu a ponderosa e magnificente pasta, com fivelas de segurança como coldres antigos, e exumou um monte de processos, que carregariam um galego. Enquanto brunia a luneta, apartava os papéis, desembrulhava os gráficos, e ia pregar dois deles na parede, atrás da mesa, com percevejos, Streit circum-navegava olhos pelo friso gótico dos parranas. Devia dar-lhe no goto Manuel Louvadeus, porque se voltou para o Dr. Labão, manifestamente interrogativo. Rigoberto percebeu que dizia:

— É um brasileirote de Arcabuzais, chegado há pouco. Traz bago, não traz bago, está para se averiguar.

Toda a gente que estava na mesa ouviu a parte cochichada, menos Streit. E tantas vezes este proferiu: quê? quê? aproximando a orelha, que Labão acabou por compreender que era mouco e foi-lhe buzinar ao ouvido o que acabara de proferir em gama baixa. Fontalva entretanto começara a leitura. Matéria sabida. O perímetro a arborizar na serra dos Milhafres alcançava as abas de dez aldeias: Arcabuzais, Urro do Anjo, Corgo das Lontras, Valadim das Cabras, Almofaça, Azenha da Moura, Parada da Santa, Ponte do Junco, Toiregas e Rebolide. Estas aldeias eram, em relação ao planalto maninho, a sua bordadura verde vitalizada. O espaço bravio interjacente representava no plano nacional prejuízos económicos intoleráveis. Não se justificava a sua manutenção, tal qual, a título de que fornecia umas tantas carradas de tojo ou carqueja a este e àquele povo ou pastavam nele umas dúzias de ovelhas tinhosas. Todavia, nas aldeias referidas, condensava-se uma certa resistência, mais latente aqui, mais explosiva além, contra o regime que se pretendia instaurar, regime que, se por agora as privava de certas zonas baldias, lhes trazia vantagens incalculáveis no futuro.

César Fontalva foi durante muito tempo martelando as razões, que poderiam invocar os povos, contra os imperativos do Estado, deus ex machina. Para os serranos, devia aquela perlenda ser música celestial. Aprumados contra o muro, tinham o ar de estátuas, arrumadas provisoriamente num depósito ou essas que se vêem nas arquivoltas das catedrais, possuídas de ar angélico ante os dogmas transcendentes.

O Dr. Labão, reboludo e ancho, lábios de alguidar muito caídos para a barbela, cabeceava. Já a seu lado, o Dr. Basílio Esperança parecia, hermético e fixe, cortado num tabuão de cerejeira. A sua força dentro da União estava naquela tendência para a imobilidade. Não falava, não ria, não deitava vozes a gaiteiros, e consideravam-no, embora o Dr. Rigoberto conhecesse actos seus dum piranguismo exacerbado, um varão de Plutarco.

A leitura do relatório prosseguia com jeito de nunca mais acabar e Rigoberto viu Streit compor na orelha, com certa tremura nervosa, o detector minúsculo, rectificar-lhe a posição com as polpas dos dedos, que eram finos e brancos. Deu conta que o queixo lhe avançava na linha da estatura, impaciente. Pelo volume das folhas não lidas, Fontalva tinha ainda para um bom quarto de hora. E, a meia voz, na qualidade de superior hierárquico, foi-lhe dizendo que saltasse os considerandos e entrasse na matéria propriamente dita. Fontalva virou logo as páginas com gesto expedito e manifesto agrado.

Zumbia no ar a moscaria infernal, atiçada pelo calor e o silêncio. Da feira vinha um sussurro pastoso de mil vozes, relinchos, trompas, entrecortado pelo alto-falante: Cá está o barateiro! Cá está! É hoje, amanhã acabou-se! Amanhã só a preço dobrado. Um pau por um olho! Meias de algodão para homem a 5 escudos. Para senhora a 6 escudos. Barata feira! Está a acabar. Quem leva o resto? Em sua frente, algumas bocas abriam-se até as orelhas. O Dr. Labão fechava agora um olho sonolento e abria outro com envergonhada reboleira. Acabou-se afinal a leitura. E depois duma declaração sumária que Fontalva leu atropeladamente, como gato que salta sobre brasas—: — Os signatários renunciavam, em nome dos povos de que eram os legítimos representantes, a todos os direitos havidos e por haver à parte da serra que entestava com as suas folhas e fora seu logradoiro arbitrário, porquanto não existiam documentos nem actas nos livros das Juntas que comprovassem ser alguma vez coutada ou serventia tradicional da freguesia; em compensação, os Serviços Florestais dispensavam aos povos logradoiros definidos, que eles aproveitariam a seu talante, segundo os hábitos ancestrais— convidou os presentes a subscrever.

O Dr. Labão foi o primeiro a pegar da pena e a rabiscar o nome com visível desafogo, depois o Dr. Basílio homem-lige do Governo, o Sampaio da Fazenda, o Dr. Arcângelo Camarate e o Dr. Coriolano Arruda, causídico da vila. Fontalva ofereceu em seguida a pena a Rosendo, e por último, como mais distante, ao Dr. Rigoberto Mendes. O advogado limitou-se a observar que tinha objecções a fazer. Fontalva chamou na fila dos representantes das aldeias o mais próximo, que era o Justo Rodrigues, de Arcabuzais, e esse, por sua vez, abanou a cabeça. O Manuel Louvadeus murmurou: — É a entrega da galinha de capoeira pelos ovos do gavião! Fontalva, como se se tratasse de imprevista nega, em verdade com um acentozinho de gozo na voz, inquiriu, fitando os inconformistas:

— Não querem então assinar...? E não assinam porquê?

— Como querem os senhores que os povos assinem a sentença de extorsão? —lançou Rigoberto.

Streit atirou a mão direita ao alto com certo frenesim, mão tão diáfana que naquela hora, espalmando-se a favor do sol, deu o aspecto de uma espada, ao passo que a voz se lhe impregnava dum sotaque de pesar:

— Não vejo onde vai tão lastimoso veredicto!

Os homens permaneciam de boca fechada, à volta do papel, estatelado em cima da mesa. Rigoberto ouviu que o Dr. Labão bordava ao ouvido de Streit, na voz gordurosa, de permeio com um sorriso languinhento, um comentário qualquer em que a palavra «brutos» andava para cima e para baixo como feijões na panela do pobre. Qual brutos, velhacos na quinta casa é que eles me parecem — murmurou Streit em resposta. E retirando com brusqueria a orelha da boca de Labão, assumiu a atitude hierática que convinha a um chefe.

— Vá, senhores, decidam-se! — tornava Fontalva com voz persuasiva, porém não destituída de peremptório. — Não têm razões sérias a opor e calam-se. Portanto vamos dar o caso como encerrado, a menos que se dignem expor as suas dúvidas...

Rigoberto acudiu então na sua voz ampla e folgazona como se realizasse uma interpelação:

— Dá-me licença...? Estes senhores calam-se, não porque lhes faltem razões, mas porque não sabem concretizar essas razões. Bem vêem Vosselências que sempre é mais simples dizer por que se pratica um acto do que dizer por que deixa de se praticar. As aldeias recusam-se a anuir ao plano florestal e têm motivos de sobra para isso. Quais são eles? Eis a questão que lhes deve interessar aos senhores, sendo, como não tenho dúvidas de supor, oficiais de Serviços que, pelo facto de serem de ordem nacional, visam ao bem comum. Antes de mais nada, precisam os meus constituintes de saber que parte da serra lhes tiram e que parte lhes deixam...

Streit, na qualidade de chefe de missão, fez sinal a Fontalva, apontando os mapas, para que os elucidasse. Avançou o agrónomo para os gráficos da parede, seguido dos paroquianos. Fontalva, com eles à roda, dedo em riste, foi contornando o perímetro e dentro do perímetro as áreas de cada povo. Todos falavam, barafustavam, emitiam monossílabos de pasmo ou de indignação perante o destroço que iam sofrer os seus andurriais. De todos apenas o Lêndeas se mantinha sereno, alto, enxundioso e róseo, com subqueixo de muitas roscas, lembrando aqueles porcos que, depois de ganharem os prémios nos concursos de pecuária, estão pendurados e a escorrer do chambaril. Era grande amigo com o Labão, e este chamou por ele. Foi logo. Cochicharam ao ouvido. O Labão mostrou cara de enfado. E depois que o Lêndeas se retirou para o grupo macareno, muito ancho pela importância que acabavam de lhe dar, o Dr. Labão disse a meia voz para Streit, e Rigoberto muito bem ouviu — onde lhe faltava uma palavra, reconstituindo pelo sentido — a leria do maledicente:

— Este quer assinar, mas tem medo. Já o ameaçaram. É o maior finório da serra. Sempre lhe digo: o senhor vá-se enchendo de paciência. O Dr. Rigoberto quando começa a falar tem corda para dois dias.

— Deus me livre de tal cataclismo. À uma hora, hei-de ir tomar o Sud. Diga-me uma coisa, quem paga ao advogado?

— Pagam-lhe como é costume pagarem-lhe. De Urro disse-me o Barnabé que lhe levaram um carro de tocos; de Ponte do Junco, duas carradas de giestas. De Azenha, as raízes de dois carvalhos. Das outras aldeias mimosearam-no com belros de lã, estrume das cortes e até houve quem fosse acurralar-lhe a horta e a terra de batatal.

— Tem graça! O diabo é se me faz perder o comboio!

Rigoberto estava a dois passos e, mesmo que não quisesse, ouvia. Ê provável que Labão não tivesse dado conta quanto a sua voz, no esforço de a contrafazer para se dirigir ao surdo, se tornava metálica e perceptível. Fez-se uma pausa. Fontalva acabava a prelecção e Streit virou-se outra vez para Labão:

— Pelos vistos este homem alto, Lêndeas, a modo de gorila, é seu amigo?

— Somos velhos amigos. Está rico. Era filho dum cardador.

— Ele será homem para mover os labregos a aceitar? Dávamos-lhe meios...

— É capaz — respondeu Labão.

— Tem filhos?

— Tem dois... meios bardinotes. Degeneraram.

— Nomeiam-se guardas. Ele que prometa um subsídio aos lavradores e cortadores do mato, em proporção.

O Presidente chamou Lêndeas para o canto da janela e aí renovaram o colóquio. Entretanto Streit tomava a palavra, antepondo-se ao colega, seu imediato:

— O problema eu o torno a formular: existe neste concelho uma vasta zona, coisa de 10 a 15 mil hectares, meia desértica, meia maninha, parte escalvada pela erosão ou de penedal improdutivo, parte a mato galego, chamada a serra dos Milhafres. Na periferia estão enquistadas com suas folhas uma dezena de aldeias, que lhe são, por um terço mais ou menos, feudatárias em estrumes, chamiça ou lenha de queimar e em pastagens. O Estado diz a estas aldeias: tomo-lhes conta de uma porção, 50 a 70 por cento, suponhamos. Onde hoje cresce apenas uma rabugem vegetal, a que as ovelhas vêm ripar os rebentos e que obriga o roçador a gastar um dia para agenciar uma carrada, dentro de quinze anos têm caruma à farta, a alimpadura e desbaste dos bastios, e todo o matiço que medra à sombra. A essa altura os rebanhos podem voltar a pastar pelas chapadas e devesas. O maciço será ainda cortado por estradas onde podem transitar os automóveis, e as aldeias, até agora ligadas por longos e tortuosos caminhos de difícil trilho, ficam a dois passos umas das outras. Com o revestimento vegetal dos oiteiros, beneficia o regime hidráulico da região. Minas e fontes de superfície adquirem mais constância no seu fluxo, e os rios e corgos inundarão menos os campos e é possível que não arrastem mais as terras. Não se fala nas vantagens de ordem sanitária e climática que resultam daí. São intuitivas. Por outro lado, dentro de vinte, trinta anos, a região, que é pobre, com o trabalho de pinhal, derrubadas, serrações, gemagem, transportes e alimpas, terá aqui uma fonte apreciável de receitas e a ocupação certa de muitos braços.

Neste instante o representante de Arcabuzais, Justo Rodrigues, desencravilhou as manápulas. Com a direita deu uma sapatada na esquerda e esborrachou as duas moscas malditas que lhe chupavam o sangue. Levou depois a mão à testa contra uma terceira mosca, mas essa fugiu a tempo para o nariz do Manuel do Rosário, da Azenha, que não deu logo por ela. Os homens de Almofaça e da Ponte do Junco, de carnes não menos frigidas, animados com o exemplo, desataram também a enxotar as moscas ou a reduzi-las a grude. Aqueles Paços do Concelho, com a feira do gado ao pé, eram um inçadoiro prodigioso de bicharia, a indígena, já por si caudalosa, acrescida da muita que transportavam as bestas, de vária ordem, dum redondo de muitas léguas.

— Ra's parta!— exclamou Justo.— Ainda há mais moscas nesta terra do que ladrões.

O engenheiro silvicultor chefe, como ouvisse o brado destemperado de Justo, pôs a mão em concha detrás do ouvido, voltado para ele. Depois, tendo compreendido que não era nada com a sua pessoa, nem com o assunto, volveu:

— Ainda esta cedência é condicionada. O Estado obriga-se a entrar todos os anos nos cofres das corporações administrativas com a quantia X. Por um lado arrenda-lhes os terrenos, como se fossem proprietários legítimos, o que não está de modo algum provado, por outro fá-los partícipes no rendimento líquido da floresta.

— Se esse dinheiro for às mãos de quem o souber administrar, não é má pechincha — rosnou o Lêndeas no tom do bendito, quando pronunciado para ser ouvido pela igreja toda.— As juntas têm já para águas, têm para calçadas, têm para cemitérios... Bem haja o Governo!

— Se lho meterem na unha, seu Julião, até dá para uma horta que vai logo às carreiras matrizar em seu nome — rosnou o João Rebordão, de Parada da Santa, que fora acusado por ele de inimigo do regime e preso. — Esse, sim, é que era dinheirinho bem empregado!

- Já cá faltava o comunista! — lançou-lhe o Lêndeas.

— Já cá faltava o larapio! — retorquiu-lhe o outro, a meia voz.

— Eu entendo que todo esse maná que vai chover sobre as aldeias — atalhou o Dr. Rigoberto em tom mesurado, fazendo sinal de monitor, meio colérico, meio afectuoso, aos constituintes, pois que o Lêndeas, talvez vendido ao Governo, para empregar a linguagem dos parceiros, da fachada, pelo menos, abraçara o movimento popular — não corresponde ao prejuízo que sofrem. Temem elas, antes de mais nada, que à força de regulamentos, posturas, acabem por ficar desapossadas do que hoje é absolutamente seu. Há tiranete mais despótico nestes tempos que um guarda, um regedor, o simples polícia dum jardim?! Como a ressaca, que deixa o cisco miúdo, isto é, o cisco do cisco, precisamente a partir do ponto mais distante a que chega a ondulação, assim sucede com os abusos da autoridade. Quanto mais reles, mais longe do poder central, mais prepotentes. Por agora, as aldeias é que são as donas absolutas da serra; elas é que mandam, põem e dispõem. Acontece mesmo algumas juntas de freguesia, «prendendo a serra», terem chegado a adoptar um regime que agrícola e florestalmente é digno de apreço. Eu explico: durante certo prazo não entra na serra enxada, roçadoura ou foice.

Fora disso, e elas é que ditam, a serra é franca. O tojo, o sargaço, a bela-luz são da cabra que os esponta ou do ferro que os corta. A lebre, o coelho, a perdiz são do caçador que lhes acerta com dois bagos de chumbo.

— Desde que tenham licença de caça e porte de arma — acrescentou em aparte o Dr. Labão, crónico presidente da Câmara, zeloso de uma formalidade que revinha à sua esfera.

— Livre e plena propriedade! Na serra não existem divisórias, nem muros, nem coutadas, nem empeços. O lavrador chega e ninguém o coíbe de encher o carro; escolhe campo o que mais madruga; o mais operoso; o mais apto. É um prémio ao esforço; os gados pastam à rédea solta sem couteiro que os acoime. Em algumas destas aldeias diz-se: nasce um cordeiro, nasce o pastor que o há-de guardar, tanto a serra é o providencial e oportuno redil. Tirando-lhes a serra que lhes dá o Estado em compensação? Dá-lhes, se der, daqui a dez, quinze anos, lenha; caruma; estacas para feijoeiros e para foguetes; ares impregnados de essências vegetais, quando até agora são de oxigénio puro e ozone dos altos; e sombras, oferece-lhes muito boas sombras. Oferece-lhes também belas paisagens. Que é isto para eles? Pois não são o seu elemento? Pode oferecer-se o céu como prémio ao pássaro, ou a água ao peixe? Nos próximos dez a quinze anos, os moradores terão de andar com a cabra e a ovelha à corda, porque, se caem em deixá-las fugir para o bastio, multa te valha. Levem-nas para os lameiros... Quem os tem suficientes para pasto de bovinos e gado miúdo? Daqui a vinte anos termina a quarentena. B a vida duma geração. Para muitos homens, que vão a trepar da meninice, a quadra florida; para outros, a quadra final; para tais e tais, a do noviciado no mundo. Para todos, pela duração, sempre má quadra. Quantos milhões de metros cúbicos de água deitará o nosso Douro no mar? Ê o renovamento demográfico duma localidade. Este longo período equivale a sete vezes sete anos das vacas magras. Improporcional. Entretanto, onde hão-de ir os serranos buscar a chamiça para se aquecerem e mato com que lastrem os estábulos?...

Streit, com a mão em concha detrás do ouvido, esforçava-se por não perder palavra, que Rigoberto, por o saber atento, procurava modular, sem que de tempos a tempos deixasse de esquecer-se, ora alteando a voz até as notas mais agudas, ora abaixando-as até os confins da surdina, carecedor, na viveza do libelo, do desejável sentido de circunspecção. Streit, ao tempo que escutava, tomado de nervoso, floreava com as mãos, anediando uma com a outra, dobrando os dedos, fazendo-os estalar e reendireitando-os, como quem está a acondicionar objectos numa caixa. Depois, como o advogado se suspendesse de cabeça avançada a fitar os dois funcionários, especialmente ele, materializando num sorriso, que lhe crispava a boca, a impressão de rábula que Rigoberto, ao que parece, lhe sugeria, pronunciou com sardónica pachorra:

— O progresso não é um ferro de engomar. Alguma coisa vai cilindrando na sua marcha. Sempre assim foi. O comboio matou o almocreve; o automóvel está a matar o comboio; amanhã o automóvel será vítima do avião. Entravar a renovação do mundo em nome de coisas que apenas têm de recomendável a poesia de que as cerca a madureza dos nossos hábitos não é de admitir.

Rigoberto estacou um momento, pôs os olhos no tecto da sala e redarguiu, fitando o delegado do Poder absoluto:

— O progresso, senhor engenheiro, é uma operação, mas não é uma moral, convenho. Arborizem a serra e fiquem certos que vão bulir perigosamente com o ethos do serrano. Aos senhores, feitos na Rerum natura, pouco se lhes importa, bem sei. Mas têm esse direito? Reparem que a serra é serra, não selva. A alma do habitante gerou-se desses oiteiros petrificados e corgos cheios de saltos. Mas só assim é que valem, em tanto que conformadores do carácter. A gente passa por eles, divisa-os, define-os, e, se sabe deduzir, conclui: é a Hispânia. Quer dizer, nessas penedias com ar de assombro e ermos que parecem órgãos gelados do nosso planeta, e até nos horizontes que às vezes se põem a faiscar como espadas, há mais do que penha, deserto e deslumbramento espacial. Há um não sei quê de indefinido, um complexo de filáucia ibérica e frenesim que se comunicou ao homem, e parece ser uma involução ao mesmo tempo do seu carácter. Sei que Vosselências ignoram-no, mas eu posso garantir-lhes: o serrano, que os senhores se propõem imolar nas aras dum pretendido progresso, é um misto de desespero, orgulho, mansidão, meio lobo, meio carneiro, formado desta vegetação rastiça e humilde, da paciência imensurável que representa uma rês a encher a barriga percorrendo léguas, aqui esponta um broto, ali apanha uma paveia seca, e de tantas outras coisas que se vêem, calcam e respiram, sem se dar conta. A serra é por assim dizer a extensão universitária destas aldeias rupestres, desabridas e broncas, autênticas terras do Demo. E aldeias e serras estão consubstanciadas até a sua fibra mais íntima.

Streit volvia a afagar as mãos e a suspender-se no manejo; recomeçava, sinal de que o advogado batera no broquel. Sim, pelo menos, o advogado saltara as lindes do poeta e de sorte demonstraria o que disse. Ele próprio convinha. Todavia dava conta que o silêncio que se fizera na mesa o podia interpretar como êxito. Os representantes das aldeias, sem compreender bem, tinham parado com a matança. O bonito é que as moscas abusaram logo da sua contensão. Viam-se agora por miríades, na mais fresca das regaleiras, cobrir as mãos cabeludas e encabarem-se-lhes pela manga dentro das japonas. O requisitório todo, que esguichava ali o seu advogado, embora não lhes custasse um chavo, azabumbara-os, sem que o entendessem. Que azabumbasse os pacabotes do Governo, era o que mais os podia interessar. Ou acaso ter-se-ia ele passado para o inimigo? Os olhos deste e daquele, ao vê-los hirtos e calados, traíam uma desconfiança manifesta. De par as bocas se lhe escancaravam, que é um dos momos da atenção incompreensiva ou soez.

— O espiritual não se pesa, que lá as roçadas de mato, que vão faltar ao serrano, essas contam-se e sabe-se quanto valem — rematou o advogado para recair numa pausa bem merecida, que a todos foi grato saborear.

— Em Parada da Santa o que se queima é lenha da serra — disse ex abrupto João Rebordão.— Nós não temos tapadas nem bosques. Temos umas belgas à beira do rio, que dão centeio e milho, e é a serra que dá o leite e a lã, pois que ali se apascenta o nosso vivo. Quanto a lenha, morando nós lá para os cornos da lua, se não dispusermos da serra, no Inverno morremos entiritados.

Falou com arreganho e decisão, e todos fitaram aquele homem de cara glabra, orelhas despegadas, olhos tão vivos e pequenos que nem de nebri. Esses olhos, depois que se calou, afundiram-se numa ganga esponjosa, açafroada, parecendo que a sua íris se esclarecera e obumbrara instantaneamente como a objectiva duma máquina fotográfica. Tinha fama de grande caçador, benquisto a Pedro e Paulo, com amigas, dizia-se, em todas as localidades da serra. A cara dele, vista no nariz esparramado, nos lábios grossos, na barbela e na cor da face, vermelhuça e cheia de vénulas roxas, era o que se chama uma cara feia, para quem se pusesse a estudá-la. Mas para quem o conhecia e o olhava apenas como se olham as horas do relógio, chamava-se uma simpatia de homem. Ver um velho galaroz quando acaba de apear duma franga, e que parece escorregar-lhe das pupilas e dos barbilhões um inextinguível gozo, era surpreendê-lo no comum. Tinha filhos em toda a parte, até em Lisboa. Capaz de dar o sangue dos braços se lho pedissem, não era o primeiro que lhe fazia o ninho atrás da orelha.

— Sim, senhores — tornou a dizer como se voltasse dum transe — calculamos que entrem no povo, vindas dos picotos, mais de trezentas carradas de carqueja.

— Em Corgo das Lontras, toda a urze nos vem dos picotos. A moreia faz-se de lá — aduziu João do Almagre.

— A nós — adiantou Alonso Ribelas, de Favais Queimados — fornece-nos o sargaço e toda a chamiça miúda. Queimamos chamiça por uma pá velha. Com a cinza adubamos as terras.

— O solo da região é pobre de potássio — instruiu Fontoura.

— A nossa área — informou o delegado de Rebolide, um velhote alto e magro como um junco — produz de tudo pouco. Muita gente vive de arrancar torga e fazer carvão.

O Manuel Louvadeus chegou-se adiante no seu fatinho tropical, todo ele a respirar o embarcadiço. Por baixo dos seus modos acanhados, mesmo tímidos, latejava o homem habituado a lutar contra tudo, a começar pelo langor do tempo, que é o pior inimigo do sertanejo:

— Dão-me licença os senhores? Eu andei por longe muitos anos, mas afinal a minha alma ficou cá nos penedais. Por isso a questão me encontra na primeira fila. Ouvi agora dizer ao senhor Julião Barnabé que os senhores engenheiros encaravam como maneira de resolver este caso, a contento de todos, dar aos lavradores, que têm gado e cortam estrumes na roda do ano para as suas terras, um subsídio proporcional, que os indemnizasse do que perdem temporariamente. Assim não teriam razão de queixa. E aos que não têm gado, que lhes oferecem?

— Esses não contam. No geral são elementos inertes da população — disse o presidente da Câmara.

— No geral são braços ao serviço dos que têm terras, que assim ficariam mais preponderantes, podendo melhor escravizá-los. Note-se, eu falo desinteressadamente. Os Louvadeus são dos que têm gado e solo. Pouca coisa, mas nas terrinhas pobres contamos a par dos ricos. A serra, senhores, não é apenas o estrume que lá se corta e o espaço que calcam de manhã à noite os gados no pastoreio. A serra para uns e outros, especialmente para o pobre, é a possibilidade de fazer o molho, encher o carrinho, que lhe vai buscar o lavrador amigo ou condoído, e a liberdade. Na existência daqueles penedais a nu, daqueles oiteiros sem um feto nem uma urze, se caldeia e mesmo bebe paciência a rijeza e desnudez do proletário. Disso ninguém o indemniza. Riem-se Vossas Excelências, mas parece-me que não é para rir...

— Não, Manuel Eouvadeus tem razão, não é para rir — apoiou Rigoberto com ares de batalha. - Os senhores propõem-se cobrir os penhascos de arvoredo, remover o cascalho dos oiteiros, atulhar as ravinas e os barrancos. Vão destruir o retrato da família. Aquilo é o retrato da família serrana. A sua fisionomia vem-lhe dali. E que mal? — estou a ouvir dizer ali ao Sr. Streit. — O mal é que o serrano nunca mais sabe quem é. Fica desgarrado. Passa a andar a monte. A ser alma penada. Os penhascos são a âncora do seu próprio sentimento. Querem-no esvaziar, querem-lhe lavar o cérebro, como agora se diz, pois tirem-lhe a serra e onde só havia rocha, espanto, miragem, plantem o arvoredo, e terão feito outro homem. Evidentemente que pior. Ouço dizer que a máquina humana tem milhares de anos. Terá. Pois desmontá-la, convertê-la noutra, é tarefa perigosa.

— Suponhamos que está certo. É a gente duma geração que sofre. É a gente que morre numa batalha, uma pequena batalha, D. Afonso Henriques e os mouros, num desastre, a terceira classe do Vera Cruz que vai ao fundo. Não é nada que conte...— gracejou Streit.

Rigoberto sentiu-se tomado de cólera ante as palavras cínicas do engenheiro. Mas já Manuel Louva-deus voltava à atitude de reptador:

— A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade. Era a moral de Cristo: por uma ovelha... Se os sacrificam, cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar por todos os meios contra tal política.

— Pensam todos como o senhor? — inquiriu Streit com um mau pensamento reservado.

— Imagino que sim — respondeu Rigoberto por ele, sem titubear, sentindo todavia até onde o asserto podia atingir. — Se não pensam, está-lhes radicado na massa do sangue.

— Querem então que deixemos a serra como está? — perguntou Streit com ar escarninho, em que latejava a ira.

— Não seria a pior das soluções — respondeu Rigoberto.

— Pois não será essa, não senhor, que seria a pior das piores. O tempo curará os dislates do entendimento que possam surgir em questão tão distante da nossa época. O que me permito recomendar a todos é que não cometam violências. Se as cometem, estamos mal...

Os representantes das aldeias, compreendendo que se tratava de juízo que qualificavam de vida ou de morte, tinham-se imobilizado de todo contra o muro, deixando-se devorar pelas moscas. Em geral de vestias escuras, rostos de arestas rudes e maxilares poderosos, de quando em quando arreganhavam uns para os outros uma dentuça problemática de réus no estarim. Fazia calor na sala e o rumor da feira ia em crescendo com as horas. O alto-falante esporteirava-se por cima do próprio repique dos sinos a chamar os devotos à missa conventual.

O Lêndeas pusera olhos humildes em terra, e, como não era homem para perder um megaciclo de tempo, devia estar a rezar, que lhe buliam os beiços, e por eles gorgolear, conta a conta, a enfiada das aves e padres-nossos. Assim o disse o João Rebordão para Louvadeus:

— O patife está a responsar-se ao Diabo...

— Ai está, está! — proferiu Manuel do Rosário que ouvira a facécia.— Cristo julga ele ter no papo. Não queria mais nada, um subsídio para eles, e os outros ficarem a tocar berimbau!

— Hou! hou!—emitiu o João do Almagre.— Os outros não viam um puto se fosse ele o repartidor.

— Arre com o pirata!

— Não, senhores engenheiros, não!— clamava o Dr. Rigoberto.— A serra, em tanto que realidade geográfica, é uma coisa e — deixem-me empregar um palavrão — em tanto que factor psicológico é outra. A nada disto oferece o Estado uma contrapartida satisfatória. Para Arcabuzais, Corgo das Lontras, Ponte do Junco, Azenha da Moura... a serra é berço, paládio e até altar. Os filhos, julgam Vosselências que eles os fazem na cama, debaixo da fumosa e feia telha-vã?! Não, senhores, os filhos fazem-nos na serra quando a queirós e a giesta estão em flor

Estrugiu uma gargalhada no friso de Zurbaran. Muito teso, o engenheiro Lisuarte Streit deu uma topetada no ar, desdenhoso:

— Tudo isso é lirismo e do mau.

— De facto é lirismo e do mau — replicou o advogado, com um sorriso levemente zombeteiro, sobre o bonacheirão, a quebrar o gume cortante das palavras, não fosse picar-se o urso. — A prosa e da boa está nas coimas que os Serviços Florestais hão-de trazer aperradas contra os transgressores e nos agravos que o labrego, hoje livre de percalços, terá a suportar dos que naturalmente usam a tiracolo uma carabina de guerra. Prosa e da boa é seguir muito direitinho pelas veredas traçadas a cordel quando até aqui cada um arrastava tamancos e botifarras por onde lhe dava a gana. Também o é dar o seu tiro aos coelhos, às lebres e até aos lobos, mesmo que apoquentem os currais, para que o senhor almoxarife possa proporcionar aos figurões de Lisboa, dos Serviços, dos Ministérios, batidas principescas... Sei tudo isso...

— Pois eu, como representante do Estado — contestou Lisuarte Streit em voz espinotada, pegajosa de furor — o que muito bem sei é que o quilómetro da serra como se encontra actualmente não vale um hectómetro da serra como poderá vir a ser. Isto numa escala de valores, que é coisa concreta e não subjectiva. Se o homem se deixasse ilaquear por argumentos sentimentais ou de oportunidade local, ainda hoje andaria de tanga. Quem faz o mundo, quem faz a natureza, quem faz o homem é o homem. Esse que para aí vegeta, filho de penhascos e bamburrais, merece que continue como está, aproveitando apenas a si próprio, confinado em si próprio, dentro de um egoísmo parado, inútil e circunscrito como um ovo que gorou? Se o merece, se alguma filosofia económica defende tal ordem de existência, então que os arados não entrem nos chavascais!

— Não interessa! A aldeia, tal como se acha hoje com um atraso de muitos séculos sobre o mundo civilizado, queda indiferente à aventura. Para o serrano, com a sua casa de colmo ou telha-vã, tamancos de amieiro couraçados de testeiras de ferro, metido dentro da capucha de burel, que, espécie de saco descosido, deve ser ainda o feio e prático manto do turdetano, isto é, do aborígene, assoando-se para o chão com premir uma venta e depois outra, e limpando-se ao canhão da vestia, dormindo numa promiscuidade de cama de barqueiro, com o pesado carro céltico de rodas fixas, panelas de barro em vez de potes de ferro, creosene em vez de luz eléctrica, o que condiz é a serra como está. Doutro modo, para ele é um contra-senso. Sem ele, aceito. Mas joguem-no primeiro ao mar ou desloquem-no para outras paragens, como se fez a muita gente depois da guerra. B verdade, porque não retiram para outras regiões a população dos lugares que pretendem colonizar? Agora, subverter a fisionomia da serra sem mudar a essência do serrano é mais que degradá-lo, é injectar-lhe a peste lenta. A arborização vai fazer do pobre íncola o que a arma de agulha fez do Pele-Vermelha: suprime-o inexoravelmente. Os senhores acham bem? Na minha opinião humilde e desambiciosa, opinião de quem vê o homem através da sua humanidade, o que há a fazer é plantar civilização nas aldeias, uma civilização digna do século XX, antes de pensar em ir para a serra mudar-lhe a natureza.

— Laboramos num círculo vicioso — objectou o engenheiro Fontalva, com brandura.

Streit ergueu-se e dobrando-se para a mesa, apoiado nas falanges dos dedos, exclamou:

— Todos esses argumentos, meu senhor, seriam a considerar nas Cortes de Almacave. A repartição a que pertenço não se preocupa com a «espada de cortiça para matar a carriça». Perante um problema estabelece uma equação. Qual é a resultante? O serrano da serra dos Milhafres é um português como qualquer outro português. Temos de tratá-lo em conformidade.

Vamos educá-lo, subir-lhe o nível de vida, arrancá-lo ao seu marasmático individualismo. Aí está o mal que lhe queremos.

Os representantes das aldeias bárbaras entreolharam-se. Não tendo penetrado bem no fundo da casuística, perceberam à maravilha as conclusões de Streit. Não, os senhores do Governo não queriam saber de desgraças. Pior! Teriam que pagar com língua de palmo as carradas de mato que lhes iam roubar. João Rebordão, que era o mais atrevido, dirigiu-se-lhes afoitamente:

— Pois cá estamos! Topam gente.

E todos à uma, excepto o Lêndeas que parecia a contas com o convolvo de quantos responsos há mais de cinquenta anos lhe tinham atravessado pelos gorgomilos para o canal largo do Purgatório, secundaram:

— Topam gente!

— É pena — tornou Rigoberto, crescendo para os funcionários, um tanto no jeito de lutador que arremanga os braços para brigar — é pena que Vossas Excelências queiram entrever o problema somente pelo lado do aproveitamento. Ainda por este lado há muito que se lhe diga. Mas pois que o lado moral, diremos psicológico, não lhes interessa, essa ignorância é muito susceptível de lhes causar grandes amargos de boca. Outra vez conclamo: aqueles maninhos, que se propõem desbravar, fazem parte integrante, para o montanhês da serra dos Milhafres, da sua carta de suserano como num senhorio as belas sombras fazem parte do seu reguengo. Além da utilidade que a serra representa para ele, homem que se atrasou 500 anos do europeu de verdade, povoou-a com os seus sonhos, os seus medos, as suas prosopopeias de cada hora. Não é nada? Ah, ah, a serra insulando a aldeia séculos e séculos, pode dizer-se, condicionou-a na fantasia popular a seu espaço épico e folclórico. Não se compreende um serrano sem esse imenso descampado à cabeceira, pois que todas as aldeias viram para lá a cabeça.

— Está muito bem — respondeu Streit, levantando-se de chapéu na mão — mas eu é que não me posso perder nas veredas poéticas da serra dos Milhafres. Tenho amanhã reunião do Conselho e hei-de estar impreterivelmente em Lisboa às onze horas. Adeus, meu caro senhor e meus senhores! Tudo o que ouvi é muito bonito, mas cheira-me a metafísica. O assunto nos seus dados objectivos fica suficientemente ventilado. Adeus! Estimei muito conhecê-los e ouvir ao Sr. Dr.... Dr. Rigoberto. Assim eu com igual regalo ouça daqui a meia dúzia de anos os pássaros nos bastios da serra dos Milhafres!

Estendeu a mão ao advogado, que ele, rendido à bonomia, estreitou na sua cordialmente. O Dr. Labão também quis ser comparte daquela graciosidade. Além de presidente da Câmara, era conservador do Registo Predial in partibus infidelium e politicão. Querendo deixar abertas todas as perspectivas à vidinha, pois que Streit era tido por homem influente, e parece que de facto com grande audiência nas esferas governamentais, ronronava agora à sua volta melhor que gato maltês. De chapéu na mão ia exorando:

— Fique Vossa Excelência para o almoço! Vai à tarde pela fresca. Tem a minha casa. Apanha o rápido da noite.

E não o largava obsequioso e melado. Depois, porque não julgasse suficiente aquele caudal de finezas e se imaginasse porventura obrigado a amenizar o que houvera de obstrucionista na gente da sua jurisdição — no fundo, se não açulado por ele, consentido — erguia uma requisitória contra os lapuzes, tão estúpidos como inconsequentes.

Streit, a avaliar pelo luaceiro da fisionomia, teria vontade de lhe dizer: — Bolas, amigo, outra porta!

Sem ir tão longe, respondia-lhe com monossílabos, frases curtas de falsa comiseração: — Coitados dos serranos, defendem as suas conveniências! Tenho muita pena deles, mas nada posso fazer! Eu, no lugar deles, também - não sei se me conformaria! Mas o interesse geral faz o Direito!

E Labão, porque toma, porque deixa: — Ora, ora, o serrano dos Milhafres era um alarve como outro qualquer: Estava farto de os conhecer. Viam-se por dentro nas suas rodagens, e tornava-se menos que problemático julgar o que ia no entendimento do nosso avô troglodita.

Tinham parado à beira da estrada que nascia nos confins do distrito e cortava a vila ao meio. Os paroquianos ajuntavam-se à volta, muito curiosos, a querer ouvir a leria de Labão. Para a feira era compacto o alarido de açude, que o alto-falante cobria de tempos a tempos de sua ressonância estrídula. Perante a selva de varapaus e a grande cáfila de parranas, perna à frente, peito abaulado, Streit revelou a sua estranheza:

— São os feirantes ociosos?

— Não senhor, é a gentinha das aldeias que veio acompanhar os seus embaixadores.

Streit mediria de relance aquela mó de gente, agarrados uns aos lódãos, outros com o bengalão policial de volta ou o sombreiro pendurados do braço, onde não faltavam mulheres, estas aldeãs morenas, à Grão Vasco, que trazem o desespero escrito na cara. Bonito! Os seus olhos de surdo, incisivos e lúcidos; que ouvem nos lábios de quem fala e lêem o que está por detrás das fisionomias apagadas, teriam tido talvez a impressão do alevante que se condensava. Rigoberto descia naquele momento. Streit viu-o correr para os representantes das aldeias a dar instruções. Não ouvia o que dizia, mas compreendeu que martelava as palavras, com certo sobressalto no rosto. E de súbito adivinhou que o homem intervinha a favor da dignidade da sua atitude, que era serem correctos com o emissário oficial.

Streit avançou para o automóvel que lentamente cortava a multidão e se aproximava do passeio quando Rigoberto voltou a acercar-se dele. De parte a parte, o bom sorriso curial era rasgado e sem recessos como ramo de oliveira. O aparelho acústico, com as bolandas, devia ter sofrido vibrações que o incomodavam. Rigoberto ficou pensando com humor que nunca fora mais certa a expressão: matar o bicho do ouvido. O alvoroço, pelos vistos, ia subindo. Streit não seria timorato, mas dos estos da multidão havia que acautelar-se o homem civilizado como duma força indomável da natureza. Na vida social engendra-se por vezes um motim de modo tão imprevisto e incontrolável como a trovoada no céu.

Felizmente o automóvel acostava ao passeio. Streit mais uma vez tirou o chapéu a saudar. À sua volta apinhavam-se os homens que pouco antes defrontara nos Paços do Concelho. Dir-se-iam as personagens dum auto de Gil Vicente que avançavam para representar.

— Faça o senhor doutor engenheiro boa viagem e não nos lance às feras! — exclamou João Rebordão.

— Vossoria lá fará — exprimiu Manuel do Rosário, de Azenha da Moura — mas vá com a certeza de que não damos o braço a torcer!

— Se quiserem guerra, têm-na — acrescentou o delegado da Ponte do Junco, as mandíbulas projectadas num ameaço façanhudo.

— Nós também não vamos a Lisboa cobiçar os relvados, que lá há, para pastagem das nossas vacas — gracejou Ribelas. — Pois podia-se-lhe chamar aproveitar terra!

— Em nossas casas mandamos nós! — bramou Justo.

Streit perante o coro, que crescia em exaltação, empalideceu. Estendeu a mão a Louvadeus, que lha apertou com lealdade e cortesia, e voltou a apertar a mão de Rigoberto com excessiva cordialidade. Reparou que o fizera instintivamente a bem de conciliar o favor da turba, e pareceu indisposto consigo próprio. Ouviu que proferiam impropérios contra ele, e a mostra que dera de pusilanimidade, embora impercebida, acabou por enfurecê-lo. Sentia-se a cólera subir-lhe no peito. Era a crise do mastim que precisa de ferrar o dente. Positivamente de mal consigo, com os parranas incivis, com a vila sertaneja que ficava a desmão do caminho de ferro, olhou para o relógio com olhos de náufrago. Teria tempo de ir apanhar o Sud a Mangualde? E, levantando-se a meio, declarou, entrando no carro, em voz que se ouvisse:

— Eu voltarei. A bem ou a mal, a serra há-de lavrar-se! Fiquem todos certos disso.

Louvadeus adiantou-se e bradou para os serranos:

— Este senhor cumpre o seu dever, como funcionário. Lá tem as suas razões, nós as nossas. Não lho podemos levar a mal.

— É verdade — corroborou Rigoberto a meia voz para Louvadeus. — Passa por bom funcionário. O defeito dele, aqui para nós, é mostrar-se zelota a mais. Judeu de origem alemã, convertido ao catolicismo, vai, ao que dizem, todos os dias à missa. Tenho medo de tal gente...

O carro começara a rodar. Levantara-se imensa assuada. Streit pôde ainda ver os punhos e os varapaus que se hasteavam e ouvir o brado ancestral de fereza:

— Ladrões!

 

JAIME Louvadeus encontrou a irmã a falar com Bruno Barnabé no caminho dos linhares. Jorgina trazia à cabeça um molho de erva e na mão a seitoira. Jaime avançou para ela e ergueu o braço:

— Já, diante de mim!

A rapariga não disse uma, nem duas. Meteu os olhos no chão, e pôs-se a marchar diante dele, deixando o Lêndeas boquiaberto. Cem passos mais longe, tornou o moço:

— Se te apanho outra vez a falar com aquele chibo, mato-te. Mato-te a ti e mato-o a ele. Um dia saberás as minhas razões. Ouviste bem?

Não disse mais palavra e a passo estugado entrou em casa, abandonando a irmã no caminho.

Jorgina não alterou em nada os seus hábitos, mas levou a noite a chorar. Na alba, de lampião aceso por via do escuro, a família Louvadeus abalou para a serra: Filomena e a filha, de cesta aviada com sementes de horta, repartidas por bolsas, bolsinhas, cabaças, mais os comes e bebes e a gorda ancoreta do verdasco. Jaime chamava as vacas, à frente do carro carregado de estrume. A toada das campainhas rompia a mudez cristalizada da noite, mas as sombras, que ainda vinha longe o dia, reformavam-se, compactas e densas, mal descompostas pela luz. Estava o ar manso, muito moroso, e iam fazer a sementeira do milho, que já a poupa, ao florear por cima das paredes velhas o deslavado pente sevilhano, cantava e recantava: Poupa o pão! Poupa o pão!

Os Louvadeus, pai e filho, esperavam já na Rochambana, onde era costume Manuel ficar umas noites por outras. O velho não queria outra casa, nem dormia bem senão ali na sua enxerga de palha. Tirá-lo da serra era roubar-lhe anos de vida. Depois que lhe morrera a mulher, a fazendinha isolada tornara-se a sua madrigueira de bicho. Com setenta e tal anos, leves e espertos que nem de homem de quarenta, rompera a viver uma segunda vida. Também Manuel Louvadeus lá pelos Brasis se deixara tomar muito dos gostos de sertanejo para agora se comprazer mais no ermo do que no pequeno colmeal, por vezes zumbente e incómodo, da aldeia. Adquirido esse vício, o seu regalo era sentir-se em contacto com as coisas de primeiro plano, terra e brutos, longe do autómato, que no geral é o campónio, inquinado por séculos de estupidez e servitude. Debaixo da brasa do sol ou da coberta luminescente das estrelas, é que ele se sentia homem, pequenino ou grande consoante a luzinha interior que na hora o alumiava. Aninhava-se para lá a um canto, umas vezes ao abrigo do penedo, outras à boca da choça, compartindo ainda, se fazia frio, do colmo de seu pai. O velho ajeitara para ele, por cima da enxerga, uma segunda tarimba como nos beliches de terceira:

— Dormes aqui que nem um abade!

— Durmo que nem um bispo...

—... que vivam na graça de Deus.

E de facto dormia, como dois justos, sonos maciços que prenunciavam a beatitude do paraíso. E tanto lhe tomou o gosto que lá ia ficar, além das noites geladas quando bufava o suão, aquelas em que apartar-se do pai seria desamor. Ainda nessas noites, não raro sentia, na presença aliciante do espaço, a voz das catingas longínquas, ligadas por léguas e léguas de silêncio ao silêncio em levitação daquela serra. Essa voz chamava-o com blandicioso entono. Incapaz de lhe resistir, pé ante pé, na mira de não acordar o velho, saía para o terreiro. Mas ele acordava ao bulir o menor cabelo de vento, só lhe dizendo:

— Agasalha-te. Tens aqui a minha capucha...

Os sonos de Manuel Louvadeus eram como cortiça flutuando à superfície duma cisterna, onde não há marulho, nem bafo, sobre a profundidade estática da água. O animal é que lá estava vigilante e pronto a saltar. Por vezes, era o próprio luar e os livores difusos das estrelas que, entrando pelos buracos da parede, o desafiavam para a festa nocturnal da natureza. E ele como um trasgo esgueirava-se para o sereno. De ordinário embrulhava-se, mal se cerrava a noite, na manta e deitava-se à porta da cardenha, em cima dum molho de sargaços ou fieitos. De papo para o ar punha-se a ouvir, se não a música das esferas, que não tinha ouvidos afeitos a tanta subtileza, a cantoria dos ralos, dos sapos, dos abelhões noctívagos, que começam o arraial com a tardinha. Sentia ao mesmo tempo os mil frémitos amaviosos que vegetais e seres exalam de sua obscura existência para a espacidão. Os pirilampos cruzavam-se por cima dele, e certos insectos zumbentes, lançados uns atrás de outros em competição de amor, vinham fustigar-lhe o rosto. Às vezes a raposa regougava para os oiteirinhos, aciumada, ou relatando às suas comadres as descobertas e azares, pelo dia fora, com rebanhos e rafeiros. Uma coruja entoava a canção macarena e despedia subitamente do poiso com grande estreloiçada de asa. Depois tudo voltava ao silêncio, envolto na coberta sedosa, dum negror luzente, que era a noite estirada sobre a terra de monte para monte. Que pulsação era aquela: a água da fonte que nascia a quatro passos e se despenhava rolando dum talhadoiro. E ficava preso dos seus gorgolejos, muito flébeis, indecisos entre soluços e risinhos de criança. Não raro, em menos de três tempos, empolgava-o o sono. Às vezes era com o olhar cravado nas três Marias, que mal pestanejavam no fundo fundeiro do firmamento, ou na lua cheia, levada pelo céu fora como uma piroga de índio no Guaporé. O Farrusco fazia-lhe companhia, animal de ar livre, tão misantropo como ele.

No povo passava às vezes o dia e umas noites por outras, pois que lá era «a casa do engenho», costumava ele dizer abrasileirando as coisas. Mas a Rochambana, que seduzia o pai pela selvagem independência, a ele, se o chamava, era pelos encantos particulares da solidão e meio de entregar-se com toda a alma de sertanejo à cadência musical da noite na sua labilidade misteriosa. Manuel Louvadeus, nesta vida de ermo e monasticidade, retemperava-se. Já tinha melhor pinta.

Aquela manhã de Maio, quando a mulher e filhos chegaram à portaleira, anunciados pela chiada do carro, estava a varrer o lusco-fusco dos cumes para os côncavos e vales onde os córregos correm surdos por entre sangrinos e giestas negrais. Um mocho atirava as últimas colcheias para o cerro, e de lés a lés a terra, em sua soturnidade inconcretizável e negrura vácua, era como os grandes casarões solarengos, sem mobília ou com uns velhos trastes desirmanados e coxos, depois que morreram os donos.

Os dois homens já tinham a obra em andamento, havendo extirpado as silvas que alastravam das paredes para o alqueive e encetado os cadabulhos, que é o roteamento dos ângulos onde não pode virar-se o arado. Ao nascer do Sol — fazia o lavrador o sinal-da-cruz — apareceram Justo e o filho. Vinham dar a sua demão. Um instante depois chegava a esbofar o Manuel do Rosário, ferreiro, com o Calhandro, que era o moço da forja. O velho Louvadeus jogou-lhe uma facécia:

— Então o compadre em vez de fazer relhas vem-nas gastar?

E não faltou o João Rebordão, de Parada da Santa, com dois galeotes.

O Jaime apôs as vacas ao tamoeiro e rompeu a gradar a terra, de pé em cima da grade, dentes para baixo. A Rochambana, composta de horta, seara, terra de cebola, feijão e tomate, sem falar na bouça, punha o ramo na freguesia. Se não chegava para a mantença da casa, não andava longe. Era uma lavoira pequena, mas por aquela corda de povos, devido à pulverização que a terra sofrera de pais para filhos, propriedades assim consideravam-nas de primeira classe.

Como eram oito pessoas e trabalhassem com afinco e certa freima, escarduçaram aquilo em três credos. Gradada a terra, o velho Teotónio enfiou a teiga no braço a semear, tarefa que executava com gesto seguro, e tanta medida e pontualidade como abotoar o colete sem olhar para os botões e armar os ferros aos coelhos. Filomena chamou a sua gente ao arrebenta-diabos, enquanto o lavrador deitava ao gado, que começava a dar sinal de fadiga, um penso de feno. Pão, sardinhas fritas, queijo, azeitonas, comeram-lhe com real apetite, que se tinham erguido com o segundo cantar do galo e lidado duro.

Falou-se na florestação da serra, assunto inevitável de todos os ajuntamentos em todas as horas.

— Esta sua fazenda, compadre — disse o Manuel do Rosário — se a rodeiam de pinhal, arrasam-na. Com a bicharia, não vinga aqui mais uma caneira, nem um pé de couve...

— Essas contas já eu deitei — respondeu o velho Teotónio.

— Vocês lá sabem, mas eu, nos vossos casos, desfazia-me dela a tempo — emitiu o Rebordão. — O Governo não paga bem?

— Vender, não vendo — proferiu Teotónio. — Quero aqui morrer.

— A fazendinha não se vende — confirmou Manuel Louvadeus.

— Dentro de duas, três semanas, temos aí os arados mecânicos — tornou Rebordão depois de uma pausa. — Por modos vão lavrar de alto a fundo, e rompem por dois sítios, Valadim e Almofaça.

— Deus ou o Diabo os leve lá para longe. Ouvi dizer que trazem escolta...

— Trazem, trazem! Vai ser uma açougada. Por essas aldeias há mais de 150 homens armados. Estive a contá-los — referiu Rebordão.

— E que valem 150 reiunas para espingardas de guerra? — objectou Manuel do Rosário.— Deus nos livre.

— Deus livre o quê? — exclamou Rebordão. — Só se morre uma vez. Isto sem sangue já não vai.

— Também digo — murmurou o velho Teotónio. — Se correr sangue, muito sangue, salva-se a serra. Mas só assim com um grande baptismo...

— Pois vai correr. O sangue há-de vir regar-lhe a horta — gracejou Rebordão.

— Não o digas a rir — pronunciou Justo. — Nestas coisas, o Diabo está detrás da porta.

— Você, tio Teotónio, vem connosco...?

— Ai, vou, vou!

— Queremo-lo lá para comandante...

— Para comandante não. Comandante és tu, que és moço, grande caçador, e até tens uma carabina. Eu lá vou, lá vou, mas soldado raso.

— Então temos batalha — disse o Calhandro. — A batalha da serra dos Milhafres com os rifenhos de Lisboa.

— Não zombes.

— Guerrear é mau — pronunciou o Manuel Louvadeus. — Guerra traz guerra. Para isso nem vou, nem dou homem por mim.

O Teotónio Louvadeus piscou o olho a Rebordão e, para desviar, contou, como era balda sua, uma anedota das manhãs de sementeira. E, ala, acabado o piscolábis, meteram de esfuziote para a arada como quem executa uma tarefa de relógio à vista.

O velho Teotónio, depois duma arpentagem sumária da arada, traçou os quartéis do cebolinho, das abóboras e do meloal. Os feijões, que eram umas sanguessugas por água, dispô-los à volta da fonte. Num canto abriu uma meia dúzia de vaiadas para tomates, salsa e mais hortaliça. Antes do meio-dia, davam a tarefa por concluída. Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor. Fartou-se o Farrusco com os ossos. Passara o almoço a bater compasso com o rabo, ora ougado ora agradecido, focinho erecto ora para um ora para outro comensal. Num dado momento o Rebordão agarrou-lhe pelas fúcias, que apertou nos dedos nodosos como num barbilho, e disse:

— Farrusco duma cana, se todos fossem como tu, acabavam-se as perdizes e os coelhos. Felizmente és único!

Cuspiu-lhe nas ventas em sinal de amor e deu-lhe um naco de carne. O podengo tirou essa manhã o ventre de misérias e enrodilhou-se, consolado, a dormir a sesta. Rebordão, Justo, o compadre ferreiro e mais acólitos foram-se dali de barbela untada a cantar o bendito.

Depois que partiu toda a malta, os amigos para os povos, mãe e filha à lida, Jaime com um carro de giestas, de aguilhada no ar à frente das vacas, o velho arranjou uma estaca e com a ponteira começou, pervagante pela lavoira fora, a empurrar os bagos de milho que, havendo ficado a descoberto, reluziam na terra negra. Nem contas de oiro. Se os deixasse, estiolavam-se ao sol, mal germinados, ou vinham a rola, o pombo bravo, a torda e outros pássaros de lúzio hiperlúcido e chamavam-nos ao estreito. Demais, era preciso que não houvesse falhas, para que a seara fosse unida e parecesse bem. O parecer bem, que no saloio é regra, no camponês do Norte nem sempre é letra morta. Com o velho Teotónio não era. Sabia por experiência, além de o instinto o precaver em lances desta natureza, que lavoira feia é lavoira achavascada e de mau produtivo, perfeição acamaradando com fartura.

O Manuel Louvadeus deitara-se sobre os sargaços à boca da cabana. O comer   dera-lhe na fraqueira. O Farrusco estirara-se-lhe aos pés muito camarada, mas comodista. Era hora de boa disposição, e Manuel Louvadeus, de olhos no penedo, ao alto da fazenda, começou a idear a sua casa. Não foi mais longe que o primeiro piso. Caíram-lhe as pálpebras, e afundiu-se no delicioso pego que é o sono para quem é muito pecador ou muito justo.

Quando, ao acordar, esfregou os olhos, deu conta que o pai ainda andava de estaca diligente em punho, dobrado, a enterrar os grãos ralapsos. Que tempo dormira!? Olhou para o relógio do pulso, que trouxera essa prenda de homem viajado, mas não soube averiguar se dormira um minuto se uma hora. Esquecera-se de lhe dar corda. Era preciso ajudar o pai e, uma vez sentado, espreguiçou-se. Estava a tarde morna e foi-lhe grato sentir no sangue, com o sol quentinho, as pulsações dum ritmo saudável. A vida naquela hora não se lhe afigurava de trabalhos forçados à perpetuidade, como tantas vezes cria. Estirando braços e pernas com certo esparrame, no propósito de se erguer e ir ajudar o velho, aconteceu-lhe dar um pontapé no Farrusco que dormia ao seu lado.

O cãozinho, por delicadeza talvez, não se dignou acordar. Deixá-lo dormir, que era bicho melindroso e inteligente! Ergueu-se e dirigia-se para a lavoira, quando lhe pareceu mal ir ter com o pai. Passos e reviravoltas no terreno percorrido eram sinal de estar a despegar. Manuel Louvadeus coçou-se a nuca, descontente consigo. Mas ora, ora, aquilo não era trabalho que derreasse! E voltou a estender-se ao comprido, o queixo sobre as mãos espalmadas, olhos ainda com sobrecenho de sono, a devanear. Segunda vez, involuntariamente, bateu com o joelho no Farrusco que, confiado, tão-pouco se mexeu. Com a barriga cheia, não lhe tornavam a vida má mais boléu, menos boléu. A sua quietude o dizia. Mas barriga cheia era para quem era. Só raramente sucedia aos famintos, lazarentos por natureza. Sonhar, então, ainda quando na alma há chagas cancerosas, sonhar acordado, a perder de vista, valia mais que afundir-se num bom licor.

E Louvadeus voltou a sonhar com a casa, encostadinha ao penedo, mas o sonho não deslizava em absoluta abstracção. Devia ser porque estava com sede, e acentuando-se-lhe desde logo a secura na garganta, foi à ancoreta que estava dentro da cardenha. Empinou, repimpinou, e volveu a deitar-se. O Farrusco nem deu conta.

Estirado como um lagarto ao sol brando, de bruços sobre o coxim de sargaços e fieitos, as pontas dos pés, uma vez por outras, a bater automaticamente um compasso ocioso ou entusiástico, deixou-se levar no rio manso do devaneio. De novo olhava para o penedo que se erguia no topo da fazenda, bronco e imponente, um Pão do Açúcar traduzido para português, e ia botando cálculos. Em sua imaginação chamava à Rochambana Mestre Lara, um pedreiro decidido, que não tinha frio nos olhos, das bandas de Montemuro, com quem suciara umas quantas vezes na venda do Nacomba.—Por quanto me faria você uma casa assim...? — e riscava no chão um quadrilátero, cujo ângulo de nascente topava com o penedo, dois pisos, quatro divisões em baixo, quatro divisões em cima, outras tantas janelas e duas portas.— É acanhada...? Acanhada, quê?! Para mim e os meus é cabonde. Você, seu mestre, aproveita a ilharga do fragão. Esfalca, tosquia ele, de forma que não meta lombo para dentro de casa...

— Não seria melhor retalhá-lo a guilho? Dá pedra para o edifício...

— Não, senhor. A pedra você vai cortá-la a esses cabeços. Não falta. O penedo é sagrado. Seria pena demoli-lo. Veja como é planinho na face que está a olhar para as nuvens... Pode-se lá dançar o samba. Talvez monte em cima um aerodínamo e, nas noites de calmaço, lá é que eu irei dormir. Duas bandeiras em dois mastros nos dias de gala — descoberta do Brasil, implantação da República cá na falperra, Natal ou festança da família — em tais dias, as bandeiras dirão, trapo bate que bate, que mora aqui o raio dum português que andou, e não andou só duas léguas, pelas bandas di lá. Então lhe mete medo o penedo, Mestre Lara?

— O penedo não me mete medo. Mas creia o Sr. Louvadeus que aprumá-lo de modo a servir de empena não é brincadeira. Não, não é brincadeira nenhuma, mas faz-se. Faz-se com tempo e a poder de muita soma de ponteiros. É granito dente-de-cavalo.

— Não me diga a mim que é granito dente-de-cavalo que eu conheço toda a espécie de pedras e minerais à superfície do planeta. Nesse artigo, calejei eu as mãos, meu caro amigo. Sim, senhor! Sim, senhor! Conheço a pedra com que se fazem as paredes e as pedras que se trazem nos anéis. Não se admire, à superfície da terra tudo é pedra. Olé, tudo é pedra. Pois saiba que conheço toda a qualidade de pedra fina e até o que é gema... Este penedo é de pedra corredia, boa de obrar. Corta-se às talhadas como abóbora. É o tal granitão.

— Pois é o tal granitão, rijo que nem os chifres do Diabo! Rompem-se umas arrobas de aço a assoar o penedo.

— Rompem-se ali umas arrobas de aço, estava você dizendo. Não interessa, Mestre Lara, não interessa. Dinheiro tudo paga. Mas deite lá as contas. Por quanto me faz você a casa?

Estava a ver a cara de Mestre Lara, olhos em alvo, rolando e desenrolando a beiçana, a considerar em silêncio o dimensional do trabalho. Este pedreiro não é mau artífice, não senhor, mas casmurro. O seu risco há-de ser sempre o melhor. Põe mais empenho em levar a sua por diante que em tirar um bom lucro...

Coá! Coá! Dois corvos picaram em voo desmanchado para o penedo. Pincharolaram à direita, pincharolaram à esquerda, descrevendo depois um sarambeque, no meio de grande espalhafato de asas. Que nédia casaca preta, de gato-pingado, luzidia, com reflexos roxos, a deles! De repente, suspenderam-se. Olharam para baixo. Nada mais que o cheiro de homem os punha em polvorosa! Não tardou muito que um deles o descobrisse, embora se fizesse morto, teso como um madeiro à beira do mato. E logo o pirata, depois de dar uma bicada no ar, como gente que bate com a mão na testa, desatou a crocitar em grande babaréu e aos pulins: Olha que marau! Olha que marau! A corva — que era o outro senão a corva? — respondia: Bem vejo! Bem vejo! Olha que marau! E, mais medrosa, foi recuando até a aresta do penedo, virada ao norte, sempre de olhos nele. O corvo foi-se-lhe juntar, todo farsoleiro. Um momento ali quedaram a trocar impressões, deram de corpo, e ergueram voo com grande estardalhaço, sem dizer bus. Lá no céu alto, sim, despediram dois coás furiosos, rumo a novas paragens, meio intimidados pela presença do bicho homem nas vizinhanças da sua cidadela. O penedo devia ser um dos seus excretórios, inçado como estava de guano esbranquiçado, à força de aliviarem a tripa por ele abaixo. De Filomena, com quem se tinham familiarizado, conhecendo-lhe de ginjeira os hábitos inofensivos, não tinham medo nem vergonha. Lá pensariam que com o capanga o caso era outro. E arreda!

Atirou duas topetadas com a biqueira dos sapatos, alçando um pé quando baixava o outro, como as batedeiras nos velhos moinhos da cana, o que o reconduziu a Mestre Lara e à obra.

— Dizia você, seu Mestre Lara, que era melhor tirar uma planta... Nada, nada. A planta tenho-a eu na cabeça. Estou a ver a casa com estes que a terra há-de comer. Assentemos mas é nas linhas gerais, pé alto e natureza das paredes, número de portas, e a disposição eu a marcarei de forma que não haja diferença de um palmo.

Outro repiquete com as pernas. Pôs-se a olhar de esguelha, cabeça reerguida sobre o cotovelo:

— Entendamo-nos!... Lá com erros palmares não transige o filho de meu pai, não senhor. Diferença de palmo foi modo de dizer. Também prédios à fia-resga, como esses que se vêem à beira da estrada, arrenego! Olhe que eu não sou tão   passa-culpas como isso, Mestre Lara! Se está nessa crença, engana-se muito enganado. Ah é exacto? Bom! bom! Fica, não diga que não, homem, uma rica vivenda... uma rica vivenda! Cozinha com chaminé, pois. A chaminé é da lei! Despensa e comedor no rés-do-chão, tudo asfaltado para se poder entrar de socos com as neves e os codos. Sobradinho para a saleta e os quartos, virados a sul para acompanhar o sol na contradança pela terra. Uma vivenda, passável, hã, seu Mestre, não diga que não!

Neste momento o Farrusco pulou e veio postar-se mesmo à sua beira, língua de fora e a rir-se. Que raio de veneta lhe havia de dar! Arredou-o com a mão e pôs-se sobre o traseiro, o seu tanto zarro a fingir que deitava os cabelos para trás. E os olhos esbarraram-lhe com a mulher, especada, com a cestinha brês enfiada no braço, à esquina da casota: — Alma do diabo, estavas a escutar?! —Não, homem, não estava. Que valia?! Tu não és tão tolo que deites os segredos ao vento. Soaram-me umas vozes aos ouvidos. Vim-me chegando pela mansa. Que léria era essa?

— Bah, tanto vivi sozinho por aqueles sertões do Brasil, que acabei por arranjar dentro de mim parceiros com quem conversar. São manias! Então sempre estiveste a escutar?

— Não estive, assim Deus me salve! Acabei agora mesmo de cerrar o cancelo. Ouvi-te falar em vivenda. Vivenda para aqui, vivenda para acolá...

— Está bem, está bem. Não te esperava tão cedo. Olha lá... Que dizes tu se mandar fazer aqui uma casa pegada ao penedo...?

— Uma casa pegada ao penedo?!

— Pois então? A casa, sim, a casa pegada ao penedo. Já não é a primeira vez que te falo nela. Escusas de arregalar os olhos. Não sabes o que é uma casa? E pegada ao penedo, pois então, pegada, não se há-de rachar um castelo destes! Não tinha graça nenhuma. Faz-se a casa junto e ganha-se, que uma das faces do penedo serve já de muro. É questão de pico. Não concordas...? Eu não tenho alma de deixá-lo fazer em pedaços. Do alto dele, avista-se meio mundo...

— Ah, lá isso avista! Quantas vezes eu não subi derriba dele a botar olhos: onde andará aquele homem? Mas a gente não come do ver.

— A gente não come do ver, mas alegra-se. Alegra os olhos. É como varrer teias de aranha da alma. Trepei lá acima esta manhã. Lá longe, a serra da Estrela nem sei o que parece... uma gigantona que se cobriu com uma capucha e se deitou ao comprido, cabeça para a Guarda, pés para o mar. Fita a gente, como se a gente olhasse para ela. Quase se podia meter paleio de cá para lá. Havia de dizê-las bonitas se soubesse contar o que tem visto pelos tempos fora em céu e terra!

Filomena contemplava em silêncio o seu homem, imóvel, olhos muito esbugalhados, mãos debaixo do avental, cestinha no braço, a ouvi-lo botar aquelas maluqueiras como um chocalho bota sons. Ele deu conta daquela fixidez pejorativa. Que estava ela a excogitar?! Supunha-o liru ou tocado da videira? Raio da mulher! Na capela do olho aquela esfera-zinha castanha, picada de pontos de oiro, que parecia, com ira, pólvora a arder, e escurecia de todo se tinha alguma pena, sentia-a como a cabeça fina duma cobra-d'água por cima das merugens a procurar. Diabo de mulher, não o conhecia ela por dentro e por fora?! Que tinha a desdenhar!

Disse-lhe como quem sabe que atira uma pedra e bate em cheio:

— A barraca já é estreita para o Farrusco... Quanto mais para meu pai, a cabra, o Farrusco e eu.

O Farrusco com o seu focinho agudo, arraposado, orelhas pequenas e guichas, magro de flanco, flexuoso e vibrátil de espinha, mal ouviu pronunciar com certo vigor o seu nome, desenroscou-se da péla em que, acalorado, se fora enovelar ao abrigo duma giesta, e saltou diante deles, para o espaço intermédio, a dar ao pêndulo com o rabo. Não fizeram caso, ou pareceu não lhe ligarem nenhuma. E passado um migalho voltou a enroscar-se, mas agora com os olhos a fuzilar na cabeça entre as mãos alongadas à frente, quadris erectos, curioso de averiguar a que vinha ali o seu nome, se é que não era para largarem em direcção ao povo, onde tinha certa a tigela do caldo.

— A barraca no Verão é boa para as cobras e os escorpiões. No Inverno acoitam-se lá dentro os texugos mal o pai despega por dois ou três dias — proferiu em voz de agastamento e mofa. — A nossa casa no povo também não é melhor. Uma pocilga. A gente tem de dar um pontapé na macaca e mudar de vida, mulher! Pois o que eu estava cá a magicar, de facto, era fazer a casa ali contra o penedo. Uma casa confortável em que não falte coisa nenhuma: boas barras, mas de ferro, hem, por causa dos percevejos, para a gente dormir a sono solto; lençóis na cama e fronhas — as fronhas fá-las tu em casa com pano-cru que se compra na feira — pratos, guardanapos, mesa para comer. É feio comer da caçoila, pois não é? E então de cócoras! Em Portugal o viver do rústico, vês tu, é uma indignidade. A mim envergonha-me.

— A mim não me envergonha coisíssima nenhuma. Assim nasci, assim quero morrer. A casa do povo não abandono eu.

— Qual não abandonas, temos de sair daquele covil de cerdos. Ali nos degradamos. Vamos vendê-la. O dinheiro que dá quase paga a nova...

— Lá nasceram os filhos... lá se criaram...

— Olha, mulher, é preciso botar sempre adiante. Como estava dizendo, faz-se a casa e a gente vem para cá. O meu regalo e de meu pai é a serra. Sempre foi. Tu não gostas da serra? Não tens os meus gostos, nunca tiveste... Dize lá...

— Não gosto nada da serra, não gosto — e dizendo isto, ela olhava para ele sem pestanejar, na face um meio sorriso enigmático que ele não sabia se era de troça, se de piedade ou de recusa. Lenço deitado para as costas, à flor do rosto os olhos finos como corais, mostrava a sua perna seca e sólida, e uma face em que se liam, a par dos trabalhos — lida, dissabores, talvez farturinha de pão, e sabe Deus quantas privações do mais — um inextinto lume de Primavera. Um resto da boniteza antiga que o cativara. E o Manuel Louvadeus, como um anelídeo, sentiu os músculos, tépidos do sol, distender-se a uma languidez agradável.

— Ah, mulher, quando te achares em casa que se veja, com o boizana do vento a bufar lá fora sem poder entrar, a neve e a chuva a caírem por detrás dos vidros — a casa há-de ter vidraças, fica sabendo — ainda voltas a florir. A florir como uma macieira... Ouve, entra aqui para a barraca...

Filomena limitou-se a fazer com a cabeça sinal de que o pai estava aí a vir sem que se lhe apagasse no rosto o sorriso que agora se lhe afigurou entre amorável e dengoso.

— Estou tentado a ajustar a obra com Mestre Lara. Que dizes? Ah, não queres. Queres antes ficar no povo?

— Quero, homem, quero. A casa do povo não dou licença que a vendas...

— A casa é do pai. A última palavra é dele. É ele querer!

— Não quero eu.

— Mas porquê?

— Porque sim. Eu só estou bem na casinha lá em baixo, a ver e ouvir minha mãe, que morreu lá, a comer o caldo, a escutar de noite, nas lojas, as campainhas das vacas, de manhã a acordar ao cantar do galo...

— Aqui também podes ter isso...

— Não quero. Aqui tenho medo. A serra sempre me meteu medo. Arrenego do silêncio destes penedais. Olho lá acima para os penhascos... Com o nevoeiro, parecem-me cocas que se vêm deitar a mim.

Não, homem, se queres que viva mais uns anos não me tires do povo.

— Então não se faz a casa?

— Por minha vontade não se faz. Ai, esta fazenda há-de ser a nossa desgraça!... Não ter o Diabo levado a cardenha! Porque lhe não caiu um raio em cima e não a consumiu?! Na cardenha é que está a origem de todo o mal!

— Foi o pai que a fez. E repara, nem te lembras que vive aqui feliz como um lagarto!

— Deixá-lo viver!

Ficaram a cismar. Como ela conservava nos lábios uma indefinível expressão de rancor, proferiu ao acaso, repisando:

— Não queres! Hum, gostas mais dos cortelhos...!

Manuel Louvadeus viu-lhe, com a braveza interior, as estrelinhas doiradas das pupilas chamejar como brasas quando lhes assesta o vento. Pudesse ela excomungar a cabana, que a excomungava. Não tinha perdão. Fora o pai dele que a construíra de grossas pedras rachadas a guilho, grandes como esteios das orcas. De pé, mal encostadas umas às outras, tecto de uma só água, colmo por cima de giestas seguro por sobrigos, uma porta de couce e um janelo só utilizável nos dias de bom tempo, ali estava o seu covil de muitos anos.

— Põe-lhe telha — disse ela. — Traz uma cama... Dá-lhe uma mão de barro...

— Não, a letra há-de dizer com a careta. A barraca deixa-se como está.

Volveu a estirar-se de bruços, meio inerte, meio sorridente, ao lado do Farrusco. Tinha-lhe passado a onda lasciva e pôs-se a mascar a folha verde dum fiei to. Com o evolar dos fumos capitosos, a começar pelos do verdasco, eclipsou-se-lhe também no horizonte eufórico a casa ambicionada. Filomena quedou-se a observá-lo naquela involução de bicho-de-conta e proferiu, ao passo que desandava levada no torvelinho dos pensamentos:

— Vou-me lá. Está o vivo por acomodar. Vim pelas couves arrancadas na vessada. O Jaime não se lembrou...

Foi pela terra abaixo à recolha dos pés de couve e, entretanto, chegava o velho. Encostou a estaca à parede, sacudiu os tamancos, e disse:

— Vai o ano temporão. Temos graeiro. Ouvi há migalho a codornica. Contei-lhe dez pios e toda se repenicava!

— Sente-se, senhor pai. Não lhe doem as pernas? — disse o Manuel Louvadeus, querendo deste modo, embora platónico, dar-lhe uma demonstração de afectividade.

O velho sentou-se sem responder, mas, pelo cenho que fez, agradado do convite. Dali a pouco, tentado pelo soalheiro, emparceirava com o filho, estirando-se a todo o longo sobre o fofo matiço. Foi então que o Manuel Louvadeus, agora a esgarçar o fieito folícula por folícula, lhe falou no projecto que acalentava de fazer ali uma casa. Porque torna, porque deixa, não se dava no povo, com um pardieiro acanhado, malcheiroso, maus vizinhos sempre de gargalo estendido a ver e ouvir tudo o que se passava. Ali estariam livres também de andaços. O pai ouvia em silêncio, sem pronunciar palavra. E ele, tomando a sua mudez como um assentimento, depois de fazer valer umas razões e outras, esboçou as linhas gerais a que teria de obedecer a construção.

Foi então que Teotónio Louvadeus, erguendo-se sobre o cotovelo, proferiu em voz resmungada:

— Para fazer uma casa é preciso disto...

O filho, que continuava de bruços, não viu o gesto despiciendo.

— Isto quê?

— Isto...— e o pai volveu a rolar o grosso polegar sobre o índex, já o filho, havendo toscado o gesto, escusava bem de lhe ouvir: — Isto... bagalhoça. Tens?

O Manuel Louvadeus olhou para o pai com olhos esbugalhados e pávidos. Era como se lhe metessem uma pistola ao peito.

— Tens uma nisga — acentuava ele. — Para que andas a enganar a gente, meu brasileiro de borra!?

O Manuel Louvadeus deixou-se cair sobre o tórax, sem soltar uma voz, a cara nas mãos, inteiriçado como um morto. O velho permaneceu especado sobre o braço à sua direita, olhos cravados nele, zombadores, também sem bulir, nem pestanejar. Ouviu a água correr no arroio, despenhar-se do arreto e ir pelo lameiro fora ágil e taramela. Um gaio crocitou para o morro, e o vento da tarde, esse vento que nunca falta, como um feitor zeloso, com a sua visita à terra cálida, ramalhou nos vidoeiros, fez-se burburinho e desandou a bailar, primeiro diante deles, depois pela vessada abaixo. Com pernas mais altas que pinheiros velhos e cinta travadinha de vespa, o mafarrão atravessou a terra a farandolar, entre nuvens de pó e o rodopie das folhas e dos ciscos da moreia. Até meter ao mato, pintou o sete. Vira e revira, meia dúzia como ele davam com a sementeira em pantanas. O velho traçou uma figa: Larga, porco-sujo, larga! Viu-o ainda rodopiar por cima das urgueiras até se sumir para a almargem, às upas, a desvanecer-se em vento e bazófia.

O Manuel entretanto não se movia e a alma do velho virou como um cata-vento. Experimentava agora remorso, um grande remorso, que o transfigurava sem ele se aperceber, à beira do filho magoado. Sim, magoara-o a valer. Dava agora conta que fora pior do que malhar-lhe com uma enxada. De resto, sabia ao certo se o filho trouxera dinheiro ou não trouxera? Não o vira puxar por notas de conto, esbanjar, fazer presentes a torto e a direito? Verdade que o dedo mendinho lhe dizia que tudo aquilo era fita, mas quem sabe lá!? A imobilidade do filho prolongava-se e sacudiu-o:

— Manuel, não leves a mal. Se tens dinheiro, se és mesmo rico, melhor para ti. Melhor, melhor! Não te quero nada, mas que sei eu da tua vida?!... Nunca nos contaste...

O filho voltou-se a olhar para ele com pupilas muito paradas, em que, pelo vidrado, reparou que tinha borbulhado uma lágrima.

— Eu sei lá nada da tua vida, homem! Se és rico, melhor. Para mini não te quero nada. Agora bem deves imaginar, uma casa custa muito dinheiro. Só os pregos...! Vendia-se a outra... Sim, vendia-se, e chegava?

O filho, ante aquelas palavras contemporizadoras e depois de esmagar com os punhos fechados segunda lágrima irreprimível, viu-se na obrigação de responder:

— Pois custará. Mas olhe que eu ainda tenho comigo uns contos de réis...

— Pois se tens, bom proveito!

— Tenho — tornou em tom de cólera que já voltavam as lágrimas a perlar-lhe nos olhos. — E saiba, senhor pai, que eu já fui rico... muito rico; tão rico que a freguesia toda valeria menos do que o que eu tive. E posso dizer que torno a sê-lo...

— Pois serias rico, serias. Também o foi Pedro Cem. Aconteceu-te o mesmo?... Mas olha, não te consumas. Com as mãos a abanar ou cheias de contos, um homem que é homem fica de pé.

— Fui muito rico! Muito rico e torno a sê-lo! — e proferia estas palavras por acessos, embargados pelo choro.

— Sossega, sossega. Tanto se é homem com unia rasa de libras como com um chavo.

— O pai não acredita?

O velho não lhe queria dizer que sim, nem sabia dizer que não, para não faltar à consciência, e pôs-se de joelhos à sua beira à espera que se lhe estancassem as lágrimas. Ali empederniu mudo e apiedado, mas inflexível na sua incerteza, e foi o Farrusco que se chegou para o filho, sentado por terra, e lhe pôs a cabeça nos joelhos, a cauda a bater para a esquerda e para a direita, de mansinho, lá na sua linguagem por certo a consolá-lo. Depois, o cãozinho, como visse o velho perplexo, se não apoquentado, foi para ele, e repetiu o gesto do bom samaritano. O velho afagou-o e, afaga não afaga, o filho ergueu-se e pronunciou com ar desenganado:

— Torno-me embora.

— Tornas-te embora?! Chegaste há menos de dois meses e tornas-te embora?! Para que vieste?

— Torno-me embora. E sabe porquê? Eu fui rico e quero tornar a sê-lo. O que para aí tenho é a babugem da riqueza. Sei onde ela pára. Tanto o perguntei a Deus e ao entendimento que acabei por descobrir onde ma arrumaram. Vou buscá-la e há-de ficar assombrado...

— Ó filho, estás a reloucar...

— O pai não acredita. Não acredita não, que eu bem vejo. Pareço-lhe orate. Olhe que eu estou no meu juízo todo!

— Estarás, filho, estarás...

— Estou. Um destes dias eu lhe conto...

O pai, que permanecia de joelhos diante dele, fitava-o com olhos desmesuradamente atónitos.

Anoitecera. Um ralo temporão ensaiava a cantiguinha para o arneiro, e como se houvessem esquecido da Coroada, presa à ferra, ouviram-na balir. Baliu uma, duas, três vezes. Um momento de espera, e lá recorria àquela manha mitrada de se libertar. Atirou de longe, como um aríete que se precipita sobre outro, umas quantas marradas à estaca. Quando a pilhou abalada, chegou-se a ela, meteu os galhos na forquilha, e jogou-a ao ar. Depois, despachadamente, que tinha o cabritinho na cardenha a chamar por ela, atravessou por diante deles, balindo para que lhe fossem abrir a porta.

Em despeito da consternação e embora com olho sonâmbulo, Teotónio seguiu toda a manobra, que para ele não era novidade.

Mas primeiro estava o filho, antes de acudir à cabra, bicho mais inteligente do que a maioria das almas cristãs com quem lidava, de úberes retesos a varrer o chão. Dobrou-se sobre ele, quase suplicante, amedrontado com o seu silêncio:

— Manuel!

O filho agora lançava-lhe um olhar radioso:

— É uma riqueza que não imagina! Com ela compram-se quantas casas, quantas leiras, linhares há na freguesia. Na freguesia quê! No concelho. Mas eu não quero bens. Quero dotar a terra em que nasci com escola digna, hospital, luz eléctrica, telefone, água potável, civilizá-la, pois que está bem na barbárie. Os Governos sórdidos não o fazem, faço-o eu. Está a ver, pai? A fortuna lá está, lá me espera, sei perfeitamente onde está, e vou lá direito de olhos fechados...

 

CÉSAR Fontalva foi surpreender Julião Barnabé em mangas de camisa, fora do balcão, quando acabava de medir duma lata, grande como um alambique, meio quartilho de petróleo para a almotolia duma rapariguita, muito magra e esguedelhada, toda olhos e chispes.

Endireitando-se na troncatura desengonçada de orangotango, deixou os braços no ar, em capricórnio:

— Desculpe Vossa Senhoria, mas tenho as mãos enlabuzadas de creosene. Eu já me lavo...

Ia a entrar para o balcão, mas o engenheiro atalhou-o:

— Não se incomode. Eu não sou para etiquetas. O petróleo, de resto, é um desinfectante... Estou com certa pressa...

— Vossa Senhoria manda. Era um instantinho... — Não vale a pena. O meu director escreveu-me para vir falar com o senhor Barnabé. Vamos começar com os trabalhos e gostávamos de saber qual é ao presente a opinião dos povos...

Dois paroquianos tinham os olhos e os ouvidos marrados neles, e o comerciante fez-lhe um sinal quase imperceptível:

— O senhor engenheiro suba para a sala. Lá está mais a seu cómodo... Ó Bruno! Ó Bruno!...

Veio um homem novo, dos seus trinta anos, bigodinho de cineasta, cabelo à banda, gravatinha vermelha de pintas azuis a descer pelo peito, presa à camisa por uma mola cromada. Calçava sapatos amarelos de calf e mostrava no pulso um bracelete de coiro com relógio de prata. Não era pessoa mal-encarada, feições correctas, mas de lascarinho, destas que não inspiram simpatia espontânea nem confiança. De resto, assim pareceu transparecer das palavras do pai quando disse e desdisse:

— Ficas aqui, Bruno, a aviar os fregueses, enquanto eu dou uma palavrinha ao senhor engenheiro. Não, o melhor é que venha tua mãe. Licínia! Licínia! Deixa lá a peneira e vem cá que já tornas...

Fontalva viu nos lábios de Bruno assomar um sorriso desdenhoso e sacripanta, que não chegou a fixar-se em expressão porque já o velho lhe dizia:

— Sobe com o senhor engenheiro. Eu já lá vou ter.

O engenheiro silvicultor César Fontalva encontrou-se numa peça pintada a alvaiade com alizares e rodapé azuis, que reconheceu, pela mesa e um aparador, ser a sala de jantar. Na prateleira do cimo estavam dois livros sebentos que eram, nem mais nem menos, a Filha Maldita e o rol da baiuca. Através da janela aberta as moscas vinham do chiqueiro e sarabandeavam no ar. Meio debruçado no peitoril e mergulhando a vista para o solo, distinguiu uma égua em pêlo presa à estaca, com um poldrozinho, meio taranta, ao pé, e um bando de galinhas que iam debicando no palhuço, meticulosas e joviais sob os barbilhões do galaroz. Sentou-se e esperou que o sujeito lhe falasse no bom tempo ou qualquer coisa assim curiosa. Um minuto esteve ele engasgado até que lá arrancou dos gorgomilos:

— Ouvi dizer há pouco a Vossa Excelência que os trabalhos na serra dos Milhafres iam breve começar...

— Dentro de uma a duas semanas. Logo que chegue o segundo Caterpillar, que está para o Marão, rompemos.

O homem deslocou-se para diante do peitoril, encostou-se à mesa, desencostou-se, reflectiu, e venceu a onda de timidez em dizer:

— Metem muita gente? O senhor director Streit prometeu a meu pai contratar-nos para guardas, a mim e a meu irmão Modesto... Se fosse possível?!

— Sim, senhor, a proposta está para Lisboa.

— Então posso considerar a coisa como certa? Grande notícia me traz Vossa Excelência!

É sempre agradável ser mensageiro de boas novas e Fontalva confirmou, com um sorriso:

— Julgo que sim.

— Ora, ainda bem! O pai tem boa casa de lavoira e um comerciozito razoável para aldeia. Mas quer ele fazer tudo. Ao balcão só consente minha mãe, e raramente arreda pé. De modo que eu e meu irmão Modesto andamos a tocar o beato, de costa direita, a bem dizer sem ter ofício definido. Nosso pai de princípio ainda pensou em mandar-nos educar. Queria que meu irmão fosse padre e eu professor, e chegámos a ir para Viseu. Logo por desgraça, meu irmão não se deu com a disciplina do Seminário. Puseram-no fora por uma ninharia. Eu fiquei ainda uns meses na cidade. Mas a meu pai lá lhe pareceu que lhe saía caro e tirou-me para a terra. Aqui vim fazer a 3ª classe com o Sr. Professor Madureira. Podíamos ser lavradores, mas nem isso. Meu pai deu a lavoira de meias e de renda a meus cunhados Mexia e Patacão. O resultado foi ficarmos, tanto eu como meu mano, para aqui, nem carne nem peixe, nem trabalhadores nem fidalgos. Ainda o Modesto, como lhe puxasse para a mecânica, tirou carta de pesados. De tempos a tempos, chamam-no daqui, rogam-no dacolá, e vai apelando o seu vintém. Eu não. Já vou nos trinta anos e sinto que é tempo de mudar de vida. Meu pai é bom homem, mas está insuportável e, aqui para nós, muito agarrado. Para me vestir e calçar, para uma borga, que é um modo de dizer, o que vale é minha mãe que sempre vende a sua rasa de cereal às escondidas e pouco a pouco lá coalha o seu níquel. Senão...

Ia continuar, mas ouviu-se chanquelhar pela escada acima o tamanco do senhor Barnabé. No momento de remontar ao último degrau, disse para o filho:

— Vai-me já tratar da égua parida.

Respondeu-lhe Bruno:

— Sim senhor, lá vou. Sabe, pai, o senhor engenheiro disse-me agora que a nossa nomeação é coisa certa...

— Para mim, não é novidade. Já o sabia pelo Dr. Labão. O Dr. Labão, que é amigo às direitas, mandou-mo dizer. Para não deitar foguetes antes do tempo, calei-me com o negócio. O que estou para ver é que conta dais vós do recado. Olhe, senhor engenheiro, estes meus dois filhos não saem nada a mim. Saem, pelo lado da mãe, a um tal Josefino Galvão, que lá anda pelo Brasil feito caipira e cavalheiro de indústria. Ah, mas uma nódoa no bom pano cai!

O filho desceu a escada a arruaçar, e o velho arrepiou de catilinária:

— Não que eu tenha a dizer alguma coisa do moral deles. Tanto o Bruno como o Modesto são capazes de dar o sangue dos braços pelo seu amigo. O coração é bem, mas bom, a cabeça é que é de doidivanas. Ouço dizer que os rapazes de hoje são todos assim. Serão. Os meus além disso são uns estragados. Gastam tudo o que lhes vai às mãos. Quanto amealhei com tanto suor e trabalhinho onde irá parar com tais estoira-vergas?! Olhe, senhor engenheiro, levarem-mos para a floresta para mim ainda é melhor que tirar a taluda na Santa Casa. Bem hajam, bem hajam, e abençoado seja aquele Dr. Labão que deu os nomes deles ao senhor engenheiro-mor... eu...

Fontalva cortou a homília, com dizer:

— Então os nossos serranos acabam por concordar?

— Olhe, senhor, tenho feito quanto é possível por convencê-los. Muito vinho e aguardente tem corrido de borla ao meu balcão! Em algumas terras, como Almofaça e Rebolide, voltou-se tudo. Temos lavradores e cabaneiros por nós. Noutras, como Valadim das Cabras e Azenha da Moura, estão relhos e acarraçados. Nem a cacete!

— Como se compreende?

— Olhe, cizânia! Há lá uns mariolas que espicaçam o povo. São os cabeças de motim. Em Parada da Santa e Valadim das Cabras um tal João Rebordão. Vossa Senhoria deve estar lembrado dele da sessão em Bouça de Rei... homem abitolado, cara feia, costas largas, olhos de boi... Em Azenha, o Manuel do Rosário, ferreiro de maldição. Estes dois são compadres e falam-se por cima dos cabeços, os almas de chicharro, como se tivessem telefone de cá para lá. A esses o que havia a fazer desde já era deitar-se-lhes o gatázio... dá-los como comunistas. Em Arcabuzais também há os Louvadeus em que não há nada a fiar.

— Os Louvadeus? O brasileiro pareceu-me um paz de alma...

— Por fora, senhor, por fora. Com o Dr. Rigoberto à perna, pode tornar-se perigoso e o pior dos cabecilhas.

— Assim será. Eu tenho mesmo que falar hoje com ele. Queremos-lhe comprar o chavascal que tem para a serra, a Rochambana...

— Ah, eles não vendem. Nem que lha cobrissem a notas de conto! Julgam que têm ali a Quinta da Ínsua...

— Paga-se-lhes bem...

— Nem assim. Também se lha pagam bem, boas noites! Aquilo é terra aneira, só dá grama. As perdizes e os coelhos não deixam vingar uma espiga de milho ou de centeio.

— Tem um grande manancial ao cimo que nos é muito preciso...

— Água não falta. Há muitas outras fontes por ali perto.

— E diga-me, senhor Barnabé, enquanto não tivermos instalações próprias, com quartos para dormir e um refeitório, não haveria por estes sítios quem me desse pensão? Sou eu que fico a administrar o perímetro...

— Olhe, senhor engenheiro, sempre que vem professor novo para a terra, em minha casa é que se hospeda. Mandei fazer um quarto de propósito. Quer ver?

Levou-o a um quarto, construído recentemente, paredes a cal, tecto a ripas de pinho, com barra de ferro, mesa, lavatório de espelhinho enforcado ao alto. Estava o céu toldado de moscaria e o tecto sarapintado do muladar das ditas. Mas Fontalva, à falta de melhor, louvou e concertou a hospedagem.

Dado o recado, tratou de retirar-se. O Lêndeas perorava. «Havia de martelar-se até resto com a serranada, fosse descansado! Os inimigos da ordem e do Portugal Novo é que não descansavam. Eram aos cardumes, e estavam a pedir desbaste. Com aquele Rebordão a ferros, a coisa podia mudar de vez. E mil bem-hajas, pelo favor que faziam aos filhos. Grande favor! Aquilo para outra coisa não prestavam. Ali, estavam como sopa no mel! Podiam contar com eles. Lá tesos, disse. Quem lhas fizesse pagava-as. Ainda o pior mal deles era o mulherio. Dali lhes tinham vindo amargos de boca muito sérios... em que haviam jogado a vida. Aparte essas pechas — olhe, não era roubar, nem arrastar o nome de Deus, nem crime contra a pátria — nada havia que lançar-lhes em rosto. Sua Senhoria tinha duas vergastas para a vida e para a morte.»

— Para a vida... para a vida é que nós os queremos!

Quando Fontalva desceu à estrada, depois de muitas zumbaias do velho e da mulher, que saiu ao traço da porta, encontrou o Bruno Barnabé em conversa muito amistosa com o chauffeur. De Urro do Anjo a Arcabuzais eram dois quilómetros. O jeep engoliu a fita da estrada dum jacto. Estacaram poucos passos adiante das primeiras casas. César Fontalva saltou, e dirigiu-se a um homenzinho que ia gingando estrada fora, em mangas de camisa, descalço e roto, sachola ao ombro, a rilhar uma côdea. Um dos milhentos párias povoadores daquela corda de terras.

— Ó patrãozinho, faça favor: onde mora aqui o Sr. Manuel Louvadeus...?

O homem mediu-o dos pés à cabeça, e não lhe vendo, por certo, o ar facinoroso de beleguim ou citote, respondeu, a iludir mesmo assim a pergunta:

— Não sei se a esta hora o topará na terra. Vossemecê queria-lhe falar...?

— Queria-lhe falar.

— Se calha, é por causa dos baldios...?

— É, isso mesmo.

— Vêm para semear...?

— Sim, mais dia, menos dia. Por agora, venho para me entender com os senhores cá da terra — disse a atalhar duma vez por todas às suspeições do homem, que estava a pressentir inconformes na fixidez obsessiva com que o divisava.

Não há nada mais desconfiado que um serrano e colocá-lo perante um facto concreto, embora seja para ele o mais nocivo de todos, e sempre preferível a deixá-lo no balance da dúvida. Sem isso, a que hipóteses de escarmentado a sua imaginação se não arroja?! E acrescentou, como se anediasse um bicho:

— Venho a bem. Havemos de nos acomodar todos...

O homem soltou uma tralhetada de risos:

— Bom acomodo é ele se nos tiram a serra de cabo a rabo...

— Nada disso, nada disso. A serra cá lhes fica...

— Fica, fica, que num saco não a podem levar! A saída inesperada, com o seu faceto à Bertoldinho, encavacou-o. A remar contra a confusão, falou com certa intimativa:

— Vai então chamar-me o Sr. Manuel Louvadeus ou ensina-me a casa...?

— Sim, senhor. Vou-lha ensinar. Venha comigo...

Foram seguindo pela estrada. Depois de atravessar um espaço deserto, apontando uma casa isolada entre hortas, ao fundo duma quelha, disse:

— É aquela casa além. A da direita, a bonita, é do Dr. Rigoberto. A dos Louvadeus é a que tem porteira de carro. Vê? Pode ir afoito e abrir a cravelha que agora não está lá o cão.

César Fontalva foi direito à casa cujo piso se alteava com o seu patim alpendrado ao fundo duma quinta. Do muro beiravam, a secar ao sol, grossas giestas negrais. Rodou a aldraba de pau e pouco adiante do traço da porta viu uma leitoa que refunfunava, estendida por terra, a amamentar a ninhada grulha e vermicular dos bacorinhos. Quer lhe batesse com a porta ou simplesmente se assustasse, a porca ergueu-se de salto, e alguns, deles foram pendurados às tetas, outros ficaram estarrecidos grunhindo e fungando como uma charanga quando, antes de o mestre erguer a batuta, cada músico ensaia a sua nota, verificam uns a afinação e largam outros duas fífias ao desenfado.

— Ó da casa!... — chamou, o seu tanto intimidado pelo desmancho que causara.

Ouviu uma chocalhada de passos e, logo após, um bonito rosto, olhos pretos, dentes brancos, se mostrou à janela na moldura dum lenço vermelho, desapertado das pontas. E foi como se descesse sobre aquele acervo de tintas soturnais uma chuva de rosas.

— Quem pergunta?

— O Sr. Manuel Louvadeus. Não é aqui que mora?

A rapariga estacou um momentinho a fazer como todo o bom serrano uma série de operações mentais. Estava a ler-lho nos olhos, ora brincados, ora sérios: Vem por bem? Parece-o. Conveniência? De sorte. Vem trazer-nos alguma coisa? Nada, nada. Alguma chochice? Sim, a questão dos baldios. E ouviu-lhe responder, como se fosse uma máquina electrónica a equacionar:

— É aqui que mora, mas ele não está. O senhor vem por causa da serra?...

— Precisamente.

— Para lá anda ele, numa fazenda, a Rochambana. Traz pedreiros a fazer uma casa. O senhor, se não queda mal a curiosidade, é do Governo?

— Do Governo, é como quem diz. Recebo ordens, e gostava de me encontrar com alguém de ponderação deste povo. Não queremos violentar ninguém, sossegue, menina. — E depois duma pausa: — Com que sim, o Sr. Manuel Louvadeus não está. E demora-se na fazenda? Ah, se se demora, não posso esperar que me faz grande transtorno. Diga-me, menina, não haverá ninguém que me vá ensinar onde ele pára?... Vim de propósito.

— A esta hora, não é fácil. Anda toda a gente por fora, na lida... Mas eu vou ver... vou ver.

Ia sair de casa por sua causa e perguntou-se: Como será ela de corpo e de maneiras? Estas moças da serra às vezes são umas bisarmas encimadas por um capitel bonito. Mas só com a ideia de que ia poder vê-la à vontade e que ela saía por sua causa, sentiu uma onda cálida brotar-lhe na cabeça, descer ao coração, inundá-lo todo de graça, ternura, voluptuosidade. E, não sabendo interpretar o despacho da rapariga, mas grato e cativo do seu garbo e esbelteza, respondeu pro forma:

— Mas não quero tanto incómodo...

Ela entrou dentro e reapareceu no patamar. No sombreado do alpendre pareceu-lhe mais que meã de estatura, sobre o magro, modesta dos seios, uma cirandinha. Vestia um chambre de ramagens que a empapoilava toda e saia justa na anca, à moda. À moda, hem! Com mão rápida fechou a porta, meteu a chave num buraco da parede, e desceu, mais oportunamente lhe admirando ele os movimentos expeditos e voluntariosos. Na quinta, como ele se embaraçasse na saída, perseguido pela vara de berrelhos, que avançavam em monte de focinho róseo e sujo para as suas calças, depois de sacudi-los, proferiu com modos de congénita delicadeza:

— Tenha a bondade...

Acravelhou a meia porta carreira e pôs-se a marchar, muito expedita, rua e estrada fora. Fontalva emparelhou com ela, lado a lado. À altura dos caminhos, que derivavam para a serra, disse-lhe:

— Espere então um instantinho que eu não tardo...

César Fontalva, como o automóvel estacionasse a pequena distância, foi dar instruções ao Renato Chinchim chauffeur. No seu enternecimento sacou da cigarreira, meteu-lha à cara:

— Pega lá um cigarro...

O homem serviu-se e ele aproveitou para puxá-lo ao paleio:

— Já alguma vez estiveste nesta terra, Renato?

— Mais de quantas vezes. A última, vim aqui com o senhor director. Há-de haver um ano.

— E que tal?

— Hum, é uma terreola como outra qualquer.

— São religiosos?

— Assim, assim. Não vão à missa duas vezes ao dia.

— São ricos?

— Pobres.

— Honrados?

— Lá isso, é um ponto de vista.

— Tens razão. Honradez e santidade são pontos de vista. E em matéria de femeaço, que tal? As raparigas são bonitas?

— Bonitas? Há aqui cada pêssega, santo deus, que é para um homem bradar às armas.

— Fáceis?

Era onde queria chegar.

— Lá isso, não sei. As mulheres são sempre fáceis quando gostam dum homem. Um homem é sempre feliz com as mulheres, quando sabe ser homem, isto é, galaroz.

César Fontalva ficou a admirar a filosofia do sujeito, uns anos mais velho do que ele, e por certo com mais experiência da vida, se não sagacidade.   Sentindo-se apreciado, Renato desatou a contar as aventuras, mas ele só lhe ouvia borbotões da leria. Devaneava por longe. Entretanto chegava à bifurcação a mocinha de face florida e modos donosos que tinha no pensamento, tendo regressado por outro caminho. Fontalva dispunha-se a avançar para ela, que já o aguardava com uma cachopita à beira, quando Renato Chinchim lhe disse:

— Vossa Excelência dá-me licença que vá entregar esta carta àquela moça...?

— Uma carta àquela moça...?

— Sim, senhor, foi o Bruno Lêndeas que me pediu...

— Deixa ver que eu entrego-lha.

Enrolou a carta na mão e foi ao encontro da rapariga.

— Não se arranja ninguém - proferiu ela. — Mas eu vou com esta miúda ensinar-lhe o caminho.

— Mas eu não queria...

— Até me faz jeito. Anda para aquelas bandas o nosso gado e preciso de dizer ao pastor que venha para baixo mais cedo, que tem uma terra a acurralar.

Puseram-se todos três a marchar lado a lado, a miúda, bem ele compreendeu, de custódio. Ao direito da serra lufava em catadupa uma luz puríssima, lés a lés do espaço. Com os dias que tinham vindo de cresta rija andava toda a gente muito atarefada a regar milhos e batatais. Em cada sorte, à banda dos caminhos, viam-se por entre as folhas tombantes e os pendões farfalhudos manchas de estopa alvadias ou lenços vermelhos a esvoaçar. A trovoada condensava-se para as bandas de Montemuro. De vez em quando, um sol bravo desemboscava-se, mais impetuoso que um toiro, duma nuvem parda, e rechinava céu e terra. Os horizontes eram serguilha usada.

A moça calçava tamanquinhas de verniz, já de muito cote, destas que, na ponta do pé, vão sempre de loquela armada, e ia por ali fora altiva e indiferente, como salamandra pelo fogo, quando o regalo dele seria dispor de um sombreiro para se abrigar. Tinha, se queria ombrear com ela, mesmo que abrir o compasso das pernas, e o suor esbagoava-se-lhe do rosto. A pequena, que ia descalça, saltava sobre as pedras e as urzes das rampas melhor que uma cabrita nova. Guardavam silêncio. Que lhe havia ele de dizer ao paladar? Fazer-lhe endechas? Tentou ainda puxar-lhe pela língua, mas, ao cabo de duas ou três frases, a conversa afundiu-se no silêncio, ou melhor numa feira de pensamentos inexpressos e desencontrados, e resolveu calar-se de todo. Mas achava-se o seu tanto perplexo, como quem se sente obrigado a render certas honras, e não sabe como ou se acobarda.

Ao longe, um cercado de pedra meia solta avultou, mais depressa do que ele supunha e talvez desejasse, a deslado do caminho, ali quase plaino, com um alteroso penedo no cimo, tal um trono druídico, onde se viam pedreiros a erguer um muro.

— A Rochambana é lá — proferiu ela apontando.

— Andam a fazer uma casa...?

— Andam sim senhor. Meu pai teimou que se ia embora se a não fizesse ali, e lá levou a sua avante. Meu avô, que não vê mais ninguém no mundo e no íntimo também gosta, acabou por anuir. Ali passam ambos o tempo, mais interessados um que o outro.

— Aqui longe, a construção não há-de ficar barata...?

— Pois não fica, não. Só em carretos custa os olhos da cara — proferiu com desembaraço e uma sem-cerimónia que não desagradou a Fontalva.

— Estamos então a chegar à Rochambana?

— Sim, senhor.

— É por causa desta fazenda que eu venho, mas já vejo que não há nada a fazer...

— Se era para comprar, perdeu o tempo... mas fale com meu pai. Pronto, agora digo-lhe adeus. Não tem que errar. Vá sempre ao direito... Ouço ali para as tapadas uns chocalhos que devem ser os do meu gado.

Em sua alma lamentou-se por aquele inesperado desquite. E esteve tentado a dizer à moça que se não fosse embora, mas também não queria por nada deste mundo que o fizesse à sobreposse. A cortesia mandava-lhe mesmo dizer que não precisava mais do seu socorro e assim fez. Depois, lembrando-se que os tempos eram utilitários, levou a mão ao bolso e tirou uma nota de vinte escudos:

— A menina dá-me licença... É para os biscoitos da primeira romaria.

A rapariga fez um gesto, que lhe pareceu de escandalizada, com que ele se envergonhou ao último ponto. Não insistiu, mas por escrúpulo da sua canhestria, acrescentou:

— Mas há-de permitir que convide a miudinha... Foi para lhe meter a cédula na mão e viu que apequena cedia. Mas a moça proferiu com peremptório e de olhos severos:

— Maria da Luz...!

Não teimou. Despediram-se. Em guisa de cumprimento, sensibilizado, ou coagido por móbil que não saberia deslindar, proferiu:

— Muito obrigado, menina... Menina quê? Diga--me ao menos o seu nome...?

— Para que o quer saber? Chamo-me Jorgina. Adeus!

Viu-a retroceder e marchar imperturbavelmente as três ou quatro vezes que se voltou a vê-la ir. Lembrou-se então da carta, que automaticamente metera para o bolso. Um lapso, diz Freud, implica ainda e sempre um acto da vontade subconsciente. Olhou-lhe para o sobrescrito: um sobrescrito de tela com um passarinho ao canto, e no bico uma mensagem. Letra de quem usa pouco da pena: Inlustríssima Senhora D. Jorgina.

Abro, não abro, uma força maior que a sua delicadeza forçou-o a romper o sobrescrito. Rezava assim a carta, ipsis verbis, àparte a ortografia:

 

Urrô do Anjo, 15 de Julho.

Jovem, minha senhora. É com os maiores sentimentos de um coração pisado que dirijo estas frases complexas e dignas de crédito à mulher que eu amo mais no mundo, e é a Jorgina, como sabe. Entretanto a menina me mergulhou em desespero, me roubou o sol radioso da vida, sendo que eram os seus olhos de Luz divina que me guiavam na terra. Mas Perante os acontecimentos só me resta a morte, e disso tenho a certeza, porque eu lhe escrevi 3 cartas e não tive resposta. Acredito que arranjasse outro namorado, porque o coração de uma jovem é frágil e com pouco se esqueceria daquele que a ama com todas as veras formais, apesar dos estorvos e ameaças da família. Eu, por mais que quisesse, não me podia olvidar de si. Desde a primeira vez que os meus olhos tiveram a ventura de a ver, senti uma bela Ambição de amor.

Serei sempre o mesmo a amá-la e hei-de morrer com a mágoa de não poder ter a felicidade de casar com a mulher dos meus sonhos. Mas perante o amor que julguei um dia poder despertar-lhe, vacila-me ainda na cabeça a ideia de que foi seu irmão que a retirou de mim. Quando no outro dia nos pilhou a conversar me deixou fulminado. Eu queria pedir Perdão a seu pai e propor-lhe o nosso enlace. Jaime se atravessou e se atravessou bem estabanadamente, que era para um de nós não comer mais pão. Mas, olhe, eu não lhe quero mal a ele. Jogamos a pancada e ele ia-me matando. Ouvi dizer que nota uma carta na perfeição. Quanto não daria eu por tirar a prova por meus próprios olhos?! Não terei eu a dita de receber uma letrinha sua que logo meteria em cima do coração que tanto bate por si?

Porque não responde às minhas cartas libidinosas? A menina, se quiser, há-de encontrar no seu ardil modo de mas mandar. Esta lhe há-de chegar às mãos, que hei-de achar pessoa que lha leve por mão própria. Saiba que nenhum impedimento pode haver que me estorve de casar com Jorgina, nem acho contra isso nenhum justificativo no mundo. Com lealdade lhe afirmo ainda que este meu amor é puro e sincero e que nada há debaixo da rosa do sol que me faça mudar de opinião.

Aceite um saudoso abraço deste que tem sempre diante da vista a sua imagem querida e é seu até à morte.

Espero resposta rápido. Adeus, meu amor.

Bruno.

 

Fontalva leu, releu e ficou a mascar o seu conteúdo como um oriental a um foétel amargo e embolorecido.

Ali estava no que vinha a dar um asno depois de passar pelos bancos da escola primária! Grotesco. Apenas um selvagem, envernizado pelo alfabeto, era capaz de alinhar aquelas bacorices piramidais! Ah, muito interessante era a pequena a quem eram dirigidas, para a não tornarem odiosa ora e sempre! Ê certo que daquelas palavras não transluzia aceitação. Antes pelo contrário. Felicitando-se por ter captado missiva tão pandilha, rasgou-a em quatro; depois, cada pedaço em oito; estes oito, singularmente, em quadradinhos menores, e foi-os semeando ao vento pouco a pouco. O vento se encarregou de os sumir pelo mato e o urgueiral, como a farelório das debulhas.

Foi oscilando em pensamentos confusos, meio inebriado, que avançou para a tapada. Subitamente saltou-lhe à frente um cachorro de pêlo crespo, rabo no ar, focinho embirrento: béu, béu! Verificou que tocara no kral dos Louvadeus. Um homem, que viera observar por detrás do muro, chamava o cão:

— Farrusco, aqui! Farrusco! Levou a mão ao chapéu:

— Viva o Sr. Manuel Louvadeus. Lembra-se de mim da reunião na Câmara?

— Muito bem, muito bem. Faz favor de entrar... Abriu-lhe o cancelo e ele entrou. Só agora notava

que o homem usava relógio de pulseira e vestia um velho pull-over. A fazenda, coisa de três a quatro hectares, espraiava-se diante de seus olhos, levemente inclinada, ao alto uma nesga de pinhal e giestas, seguida de terra de restolho, depois várzea de milho e horta a partir do meio para baixo, onde se via relampejar na regueira o aço fino e móvel da água. Ao cimo o piquete de pedreiros construía a casa. Um homem já idoso, mas com ares de robusto, dobrado entre as macieiras, camisa de estopa à volta do tronco, regava o quartel de feijões. Devia ser o pai. Com efeito, quando deu conta do visitante, suspendeu-se e ficou muito aprumado a olhar. Lia-se-lhe na atitude que se encontrava neste estado de indecisão: vou lá, não vou? Também é comigo? Depois, como os dois se metessem a passo lento, tranquilizador, pela carreira, praticando de negócio para dilação ou coisa de somenos, voltou a curvar-se para o solo na tarefa. Agora o Farrusco, à banda, catava as carraças, martelando-as entre os dentes. Dava quatro passos dobrado em serpe e rompia na expurgação feroz. Havia carraças, sobejava matagal e coelhos. Todos estes movimentos não escapavam aos seus cinco sentidos de agrónomo, que ia deitando à direita e à esquerda um olhar aparentemente superficial mas de todo reflexivo.

— Afinal sou eu que fico a superintender no maciço florestal da serra — disse ele. — Sei que o senhor é uma das pessoas mais consideradas por estes sítios e queria pô-lo ao corrente do que o Estado faz ou pretende fazer. Os senhores colocam-nos em postura muito embaraçosa quando julgam que vamos prejudicá-los...

E, porque torna porque deixa, desenvolveu o tema oficial. Manuel Louvadeus ouviu em silêncio e respondeu:

— A pessoa considerada deve ser meu pai. Eu sou um brasileiro de torna-viagem e encontro-me na terra há pouco mais de meio ano. Mas digne-se ouvir o que lhe vou dizer como se fosse pela boca de meti pai. Ele anda lá em baixo, que não me deixaria mentir. Eu conheço as razões que o Estado invoca para arborizar a serra e, decerto, não me são estranhas as razões que animam os serranos a não querer que lhes bulam com o que têm por seu. Fui daqueles que foram à vila representar os interesses dos povos e vi lá Vossa Excelência. Se não reparou em mim é que Vossa Excelência tinha muita gente diante dos olhos e mesmo mais em que pensar para se deter na minha cara. O assunto não me é estranho por conseguinte. E como não é, só lhe direi que, a meu ver, os senhores têm razão e nós também a temos. Como conciliar uma com outra? Aí é que está o busílis, não é isso?

— Realmente.

— Ora, ao ponto a que chegaram as coisas, a minha opinião é que os senhores não devem procurar resolver o negócio de arrepia-cabelos. Se para cá vêm com tractores e tropa a proteger os tractores, como ouvi dizer que vinham, corre sangue. Fique o senhor certo de que corre sangue.

— Pois é isso que nós queremos evitar a todo o custo. É para isso que eu me venho entender com o senhor, como irei entender-me com outros.

O Manuel Louvadeus abriu os braços:

— Eu nada valho. De resto, por nada deste mundo faltarei aos compromissos tomados. Quando as aldeias avançarem contra a tropa, o senhor há-de ver--me na linha, da frente. Mas não para a violência. Se fizerem fogo, um dos primeiros a cair serei eu.

Disse isto com uma certa empáfia romântica e o Fontalva tornou benévolo e sorridente:

— Não se mata ninguém. Se for eu que esteja à testa dos trabalhos não se dá um tiro.

— Pois Deus o ouça. Para desgraças, basta a miséria em que vivem estas terrinhas, que é confrangedora. Acredite, senhor, esta gente é pobre e triste a mais não poder ser. A existência é-lhe amarga...

— Por isso mesmo. Nós o que queremos é levantar-lhes o nível de vida. O senhor não se persuade que, uma vez a serra florestada, o aldeão melhora...?

Manuel Louvadeus esboçou um sorriso vago, menos que céptico, e declarou:

— Conforme. Há quem ganhe: os remediados. No geral, o pobre não fica mais pobre. Não fica mais pobre, mas fica mais preso. Isto é, fica mais escravo. Os fura-bolos das aldeias, que não têm escrúpulos e não sentem a matadura da coleira, ganham, pois não ganham! Por minha parte lhe digo, as melhorias não compensam os danos. Olhe-me para esses cabeços: quanto não vale ir por eles fora, livre como eles são livres, sem que ninguém grite: Volta atrás que é proibido ir mais adiante. Ah, eu detesto esses cordões, esses guardas, esses letreiros, que desviam um homem do seu caminho ou lhe cortam o passo.

— Sim, para algumas pessoas, isso é opressão — concordou o silvicultor. — Para outros não é nada.

— Para nós serranos é sempre opressão, ainda que se não proteste, ainda que não saibamos exprimi-la. Nós somos bárbaros, mas bárbaros sem trela. Temos muito dos lobos que, mesmo nas selvas plantadas a cordel, não aprenderam a moderar os instintos da sua braveza.

— Não é tanto assim. Agora as vantagens materiais é que são indiscutíveis... —julgou-se obrigado a dizer o silvicultor, mudando de página, porquanto naquela estavam mais ou menos de acordo. César Fontalva não chegara a ganhar fama de comunista, apodo que os estúpidos e maus jogam à mão cega, fiados de que a lapada sempre vai quebrar telha?

— Bali, para um pobre, que não sabe o que vale a riqueza, isso pouco interessa. Aqui na terra há ricos e pobres. Há ricos que todos os anos enriquecem um pouco mais adquirindo a belga ou o lameiro que os pobres se vêem na necessidade de alienar. No fundo, riqueza e pobreza, aqui, são equivalentes, se pusermos uma e outra nos pratos da balança, isto é, se atendermos ao nível de vida. Sobe e desce o prato apenas virtualmente. Os ricos mantêm-se no pé em que estavam antes de ser ricos e os pobres igual ou pouco menos. Uns e outros continuam a comer a mesma tigela de caldo e a vestir as mesmas calças de burel no Inverno, de estopa no Estio, e a dormir na mesma enxerga de palha. Mas vivem na santa ilusão, os ricos de que são mais ricos, e os pobres mais pobres, e assim não tomba a aldeia nos seus alicerces.

O agrónomo estava o seu tanto espantado com o poder discursivo do Louvadeus e disse de chofre:

— Mas que aconselha o senhor para que não haja conflito entre o Estado e as aldeias? Bem vê, o progresso tem estas exigências...

—Não aconselho coisa nenhuma a não ser o que o Dr. Rigoberto, nosso advogado e homem de bom entendimento, propôs, que o Estado remeta a melhores dias o seu plano. Quando a aldeia estiver mais adiantada, tenha luz eléctrica, telefone, escolas, assistência, fale o Estado em levar por diante este número do programa. Então, sim, o progresso poderá impor-nos tal exigência. Até lá, com fome, tamancos de amieiro e barbárie em toda a linha, deixem-nos o que temos. Não nos queiram ditar a sua lei pela bala e a baioneta.

— Não senhor, não senhor, desse modo nunca. O pior é que assim não nos entendemos. Sou-lhe antipático como mensageiro duma causa que se recusam a ver com bons olhos e lamento. Eu cumpro ordens. Ah, diga-me outra coisa: vendem esta propriedade?

— Esta propriedade, que teve a sorte de ficar fora do perímetro, não se vende. Vossa Excelência não vê que trazemos obras? Andamos a erguer aqui uma casa. Quando se ergue uma casa na serra, é para se viver, para se pegar de estaca de pais para filhos. A fazendinha só na matriz é deste seu criado; em consciência é de meu pai... É do homem que lá vem. Ele pode falar por ambos...

Apontou o pai que subia o carreiro, pés nus encabados nos socos, calças arregaçadas, a felpa branca do peito a espirrar pelos bofes da camisa, Teotónio Louvadeus. Vinha-se chegando a passo mesurado, olhos fitos no visitante, toda a sua desconfiança em riste que nem aperrada para morder ou arranhar.

À sua frente, alceiro e emitindo de novo grunhidos pouco tranquilizadores, o Farrusco.

— Senhor pai — lançou-lhe à distância de meia dúzia de passos Manuel Louvadeus—este senhor quer-nos comprar a Rochambana. Vende-se?

— Vende-lha — respondeu o velho com voz acidulada. E depois dum silêncio, em que os olhos desceram sobre o solo e se alçaram retemperados: — Quanto dá por ela?

César Fontalva riu-se, proferindo:

— O senhor é que pede. Mas, ainda que não peça, registo a sua palavra. O Estado que mande peritos.

— Perdem o tempo — tornou Teotónio Louvadeus. — Saiba o senhor que a Rochambana, enquanto eu for vivo, não se vende. Daqui hei-de ir para o cemitério. É tudo a descer e quero carregar o menos possível os portadores... que eu sou pesado.

O agrónomo voltou a sorrir, acrescentando:

— E se lhe arrendar coisa de cem metros quadrados, ao pé da fonte, onde construa uma barraca, arrenda? Paga-se bem...

Ficaram um momento a pesar a proposta e o velho respondeu:

— Não senhor. Vossemecês têm o maninho que é largo. Precisam de guarda-costas? Têm a tropa, ponham sentinelas.

— Também digo — corroborou Manuel Louvadeus. — Os senhores dispensam bem a tapadinha. Em qualquer ponto erguem acampamento...

— Era por causa da água...— obtemperou o engenheiro, deitando olhos ao belo e claro manancial que brotava ao fundo da propriedade.

— Não falta água por esses andurriais — murmurou Teotónio.

Caía a tarde. O engenheiro silvicultor deu uns passos hesitantes à direita e à esquerda. Não sabia de que benignidade haviam de revestir-se as razões contra aqueles homens perros e confinados na negativa. Sentia neles uma filáucia contida e, se não se curvava aos seus postulados, também não se julgava com direito a menoscabá-los. Perpassou-lhe pela vista o lenço vermelho de Jorgina, o seu belo riso e dignidade tão consciente, e disse para si: Já sei. Veio-lhe um grande anseio de tornar a vê-la. Despediu-se. O Manuel Louvadeus ofereceu-se para o acompanhar. Escusou-se com razões tão fúteis que era o mesmo que obrigá-lo a vir com ele. Que bússola dirigia a sua vontade? A vaga possibilidade de por aquela forma tornar a ver a rapariga e, ao mesmo tempo, o muito gosto de continuar o diálogo com o homem que lhe parecia razoável, modesto, e um pouco reticente, não sabia porquê, na sua compleição humana. Aprazia-lhe ainda entrar outra vez no pátio onde uma porca fecunda tocava a muinheira maternal aos requinhos recém-nascidos. E quando o Manuel Louvadeus disse para o pai: — Eu vou com este senhor. O pai e o Jaime cá deitam a poçada — não teve mais uma palavra de escusa.

Ombro com ombro desceram ao caminho que vinha de Valadim das Cabras e levava a Arcabuzais, a passo mesurado, praticando sobre frioleiras, o estado do tempo, o ano que corria inclemente para as culturas cerealíferas, os impostos cada vez mais onerosos para o pequeno lavrador, que era a abelha mercê de quem ainda no cortiço havia mel.

O homem pareceu-lhe compreensivo e fugia debaixo de certo aspecto ao padrão clássico do camponês. Quando lhe ouviu comparar aqueles montados aos chapadões mato-grossenses e depois aludir aos rios platinos, não se admirou mais, passando a tê-lo como homem viajado e guardado do que vira. Por isso, para corresponder à amabilidade e por outras razões indefinidas, entendeu que, na condição de engenheiro agrónomo que ia dirigir os trabalhos, devia pôr de lado certas reservas relativas ao problema da serra. Sem ser indiscreto, contou o que ocorria na estrema norte. Tinha-se traçado a linde e metido marcos. Mas, eles a meterem-nos hoje, e pastores e mateiros a arrancá-los e até a parti-los no dia seguinte. Em Rebolide e Azenha, a guarda rondava as estremas, umas noites por outras. Mas nem por isso os malhões ganhavam mais raízes. Ainda com o Verão, a vigilância era possível; com as noites de Inverno era tarefa só para condenados à morte.

Os Serviços Florestais pensavam instalar na serra uma espécie de arraial, com tendas de campanha, donde partissem patrulhas a cavalo. Não ficava barato. Em algumas freguesias, a rogo do ministro, que era grande amigalhaço da Igreja, os padres tinham subido ao púlpito: — Deixem lavrar a serra que é para vosso bem! Não convenceram um só paroquiano.

Leva que leva, o sol apertava e ele que marchava de tola ao léu, em despeito da espessa trunfa preta, sentia-se a arder. As gralhas cirandavam no céu alto, leves como faúlhas, sinal de canícula. Na terra siderada não se ouvia um pipilo de ave e as cigarras tinham já as asas queimadas e preparavam-se para morrer. Era nos últimos dias de Agosto e o sol parecia, com uma radiação fora das marcas, recuperar-se do surto frígido dos meses de Primavera.

Ao passar na testeira de campos em que um dia entrou charrua e volveram a tapera, como outrora a terra das sesmarias, de que se não extinguiram totalmente os sulcos e combros dos regos, disse para Louvadeus:

— Isto já foi terra arroteada? Se não estou em erro está excluída do perímetro...

— Foi, sim senhor, terra arroteada e faz parte do logradoiro que querem deixar a Arcabuzais. Deu-se aqui um caso, que só era possível nestas terras humildes e numa nação de mandantes desabusados como é Portugal. Eu lhe conto...

Ali em Arcabuzais e noutras localidades serranas como Ponte do Junco e Almofaça, os moradores menos ricos — o filho do Louvadeus tinha sido do número— logrados pelo lema capcioso: produzir e poupar, uma bela manhã largaram em chusma para a serra de enxada às costas e de charrua quem a tinha, e entraram a desbravar certas baixadas que lhes pareceram susceptíveis de dar fruto. Viraram o solo, fizeram queimada do ervaçal ruim e rabugem, semearam. Na terra virgem o centeio, que é uma gramínea danada, mas sôfrega, cresceu que envergonhava o gordo alqueive, adubado a estrume de estábulo. Os pobres diabos dos cultivadores é que não contavam com a inveja de Caim. Tinha-se infiltrado, não sabia por que malas artes, na Junta de Freguesia esse mau homem de Urro do Anjo, que tem taverna, empresta a juros altos, e está rico como porco à força de por falcatrua e violência arrancar o coiro e a camisa aos paroquianos: o Lêndeas. Além de a seara privar, com ser terreno comunal, os outros povos da freguesia dos dois fetos e outros tantos tojos que lá vingariam não havendo desbravado, o homem não tinha sido partícipe da melgueira. Como tal, abaixo! De modo que mancomunado com o regedor e couteiro, dois safardanas iguais, autuou os desbravadores do maninho, e a coima, por insolvência, foi deferida a juízo. Era presidente da Câmara, e é, o Labão, essa espécie de manda-chuva dos sítios. Para tanto, não se cansava de oferecer jantares aos magistrados e burocratas do concelho, como não imolava em casa todos os presentes de lamber o beiço que da serra não despegavam de lhe mandar, os palúrdios para serem menos escaldados e os mariolas para levarem a água ao seu moinho. Muitas destas peitas arrepiavam logo marcha para casa do senhor juiz, do senhor delegado, do conservador ou do presidente da União Nacional, que enchiam o barrigão e ficavam a arfar por mais. No concelho, meio serrano meio valejo, assente em arnelas feudais, predominava, como em todos os da mesma índole, o nepotismo obrigado à perna de vitela e ao balaio de trutas. Quem dá é tio, dizia o outro, e nestas terras quem mais dava é que ganhava à vermelhinha. A única diferença que havia das soberanias africanas era aqui os sobas serem muitos e não cortarem cabeças. Mas, para voltar à vaca-fria, a coima foi julgada e o juiz, ou porque tivesse a barbela untada com os salpicões — correu o boato que do fumeiro do Lêndeas, carrilados pela via Labão — ou mal pensado, condenou os arroteadores a custas e selos do processo, imposto de justiça e à perda das benfeitorias. Ouviu-se a um padre, que não era da choldra, chamar àquela terra o campo de Haceldama ou da traição. Como o magistrado não se limitara a condenar o empossamento da terra, o que seria admissível à face dum critério rigorista, mas também a empresa com seus frutos, a familagem do Lêndeas, sequazes e esganados, logo que a sentença se tornou pública, invadiram com os rebanhos a seara viçosa. Assim aniquilaram em poucos dias o trabalho de semanas e o pão para alguns lares em muitos dias do ano. Os impróvidos colonos ficaram a ganir. O Labão ajuntou mais um feito à sua crónica de jagunço. Ao Lêndeas, na parede da taverna caiada de fresco, alguém escreveu a carvão: Gatuno, bebes o suor dos pobres, mas há-de-te sair pela boca o miolo das tripas. Ora, ora, as pragas não fazem mossa. Ainda tempos bem próximos os filhos, dois pirangas tão celerados como ele, e um moço lhe tinham posto o rapaz às portas da morte. Quando passavam por ele, arreganhavam a tacha. Não faziam eles a mínima ideia de cólera que o Jaime e o avô andavam a cozer!

César Fontalva, homem do Sul, bem sabia que forças brutas, anti-sociais, se desencadeavam contra o pobre aldeão naqueles concelhos montesinhos. A lei ou os homens da lei tomavam por via de regra o partido do mais forte, dos Lêndeas. A tacanhez e atraso do homem rural nestas latitudes dava origem a tais monstros. Depois, pela própria condição de caciques muito perto da natureza, volviam a verdadeiras feras. Para cúmulo, eram dos tais que já não acreditavam nas penas do inferno.

A arborização da serra dos Milhafres ia bulir com as forças atávicas deste habitante primário, acrescidas daquelas que ganhavam acuidade na luta pela vida, cada vez mais feroz e incontemplativa. Se em algumas aldeias os moradores eram solidários em face da intromissão do Estado, que consideravam - lesiva ao último ponto, já noutros a cizânia invadira o campo, apartados para uma banda os resistentes, para a outra os contemporizadores. Não faltava a praga dos Judas, que se faziam com os Serviços à espera que a Junta de Colonização, departamento afim, lhes aforasse tal chã por dez réis de mel coado, ou os nomeasse para guardas e capatazes. E havia ainda aqueles povos em que presidentes e vogais, com regedor, estavam hipnotizados a ouvir tilintar a renda que viriam a cobrar as autarquias e a sonhar o salto que, segundo o habitual trancafio, dariam à bagalhoça. Quem lhes ia à mão? De modo que levantarem-se as dez aldeias, empenhadas em conservar a serra dos Milhafres segundo o direito ancestral, como um só homem, não era coisa absolutamente inevitável. Lá que um bom lote de casmurros ia para os cornos do toiro, era de prever com o correspondente risco de hostilidades.

Nos Serviços tinham receio de açular a bicha de sete cabeças. César Fontalva não o quis dizer por palavras expressas, mas foi atraindo com boa e mansa lábia aquele homem, que sê lhe afigurava cavaleiroso, e era o pai da rapariga bonita, ao capítulo das confidências. Fazia-o por uma imperiosa e inexplicável coacção e ainda na mira de o ganhar à sua causa. Ele e outros. A causa era como a estátua de Nabucodonosor: de bronze, mas com pés de barro. Por exemplo: como vir à mão do incendiário que faz uma caminhada de léguas pelo silêncio da noite e acende o fogo em dez, vinte lugares distintos da plantação, o que basta, com vento a favor, para destruir a safra que custou muita soma de homens em muita soma de dias?!

Era no intuito de prevenir esta acção cavilosa inelutável, que ele preconizara se conduzisse o negócio à boa mente. Os Serviços tinham anuído e ali estava ele mensageiro de paz, agitando o ramo de oliveira.

Dize tu, direi eu, reparou que Manuel Louvadeus não ficara de todo insensível à franqueza das suas palavras, se bem que coadas todas elas através dum vivo sentido de oportunidade e diplomacia. Era pela brandura, como lhe ouvira dizer que o coronel Rondon procedera com os índios brabos Nambiquaras, que se dobrava aquela tersa e rude gente. Nem um tiro, nem uma beliscadura. Daquele jeito acabariam por se conformar.

Nas abas já do povo, deram conta, ao ver polvilhada a resteva de pequenas bolas de sombra movediça, que singrava por cima deles uma bandada de gralhas bolinando em grita e dispersas, vindas dos lados de Nascente. Ao atingirem a linha das casas, passava a camioneta da carreira, alterosa, pintalgada e tonitruante, e as aves inflectiram para o Corgo das Lontras. A César Fontalva, que se suspendera a seguir os requebros tão caprichosos como acrobáticos da formação, disse Manuel Louvadeus:

— Ouviu-se o sino de Toiregas como se estivesse ao pé. As gralhas sobem para os altos a catar os vermes e insectos dos almargeais. Temos caloraça!

À beira do jeep, com o dom-juanesco Chinchim espapaçado ao volante, César Fontalva hesitou. Então ia-se embora sem ver esvoaçar mais uma vez o lenço vermelho da pequena adorável?!

Subiu com moleza e pesar para o carro, depois de agradecer a Manuel Louvadeus os oferecimentos formais que ele lhe fizera segundo ordenava a etiqueta. Homem meio civilizado, não era dos serranos que agarravam o forasteiro pelo braço e, a bem ou a mal, de rojo ou às costas, o haviam de conduzir à sua choupana, jurando amavelmente: — Se não vai, é desfeita. A casa é de pobres, mas não dá ar. E era pena que assim não fosse.

Ao despedir-se, já o motor de arranque rompia a inalterável e tórrida modorra do povoado, fez-lhe ainda sinal:

— Ó Sr. Louvadeus, aqui para nós, não me agrada muito ir para casa do Julião Barnabé. Ele costuma dar pensão. Por aqui não haverá? Ficava-me mais perto...

Louvadeus olhou para ele muito sério e retorquiu de fronte vincada:

— Por aqui não sinto.

— Preciso de me aboletar enquanto não construirmos instalações próprias, ainda que provisórias...

— Compreendo. O Lêndeas, de facto, recebe um ou outro que lhe cheire a bom pagante.

— Desagrada-me o tipo. O filho deu-me ares dum perfeito pedaço de asno... e patifório. De tal acha tal racha, ou com mais propriedade no nosso caso: de tal racha tal acha.

— O filho andou à bulha com o meu rapaz, mas isso não põe nem quita... para o juízo que faço deles. Fracos trastes. O Lêndeas pai é, sem favor, um fraco traste. Mas, não tenha receio, não será como o estalajadeiro de Ferreirim que passa por ter matado dois almocreves enliçados no sono e enterrado o corpo no quintal.

Riram-se. Fontalva declarou:

— Tenho o sono leve.

— Mas se quer, casa arranja-se... tem a minha. É velha... acanhada...

Uma breve e remissiva pausa, e disparou-lhe:

— Homem, arrende-nos um canto na Rocham-bana...?

Manuel Louvadeus quedou silencioso, atento ao auditório interior. E, fitando o engenheiro, que não tirava os olhos dele, respondeu:

— Veremos! Meu pai é que manda.

O jeep largou rumo a Bouça de Rei numa nuvem de pó, entre voejos das pitas alvoroçadas, que haviam escolhido a sombra do carro, projectada sobre a valeta, para riçar a pena.

 

«Não sei se se lembra, meu pai, mandar-lhe eu dizer de Campinas que estava decidido a botar adiante, lá mais para o interior? O meu companheiro, Paulo Serôdio, dos lados da Trofa, aquele rapaz que um dia salvei de morrer afogado no rio Tietê, topa-a-tudo como eu, matava-me o bicho do ouvido que para os ribeirões e sangradoiros do Araguaia e Paraguai é que se topava a árvore das patacas. Era muito longe, para lá de vários rios e montes, de sertões e mais sertões, no cabo do mundo, e só a lonjura metia medo. Jesus Maria, nem degradados para o meio do inferno! Mas o Serôdio teimava: Olha que, nos garimpos, podemos ficar ricos dum momento para o outro. É questão de sorte e olho marau. Chamam garimpos à lavra do oiro e, sobretudo, das pedras preciosas, soltas no cascalho dos rios e corgos ou mesmo em minas. Estava farto de S. Paulo até os olhos. De S. Paulo e do Estado de S. Paulo. Ali, naquelas terras de roças e cafezais, nunca passaríamos da cepa torta. É verdade! Agora vivendo poupadinho: pirão e o seu bocado de carne seca, nada de mulheres, nada de farra, uma vez que o salário não era mau, um pândego lá ia ajuntando o seu par de vinténs, e eu, todos os meses, depositava no Banco a minha nota de mil cruzeiros, às vezes duas. Sorria-me a esperança de, quando chegasse a uma certa soma, adeus Brasil por aqui me vou. De repente, catrapás, sucede-me o que sucede ao homem que guarda uma pedra de gelo nos alforges e se mete ao sertão: derreteu-se-me o dinheiro. Derreteu-se nos Bancos, sem eu lhe chegar, sem eu dar conta, duma semana para a outra. Derreteu-se por si, e como foi, nem eu sei bem, nem se perceberia à primeira. Basta que saiba, pai, que um homem deita-se rico ou remediado e, ao acordar, vê-se na rosa divina. Quando me puseram ao corrente, revolvi-me na enxerga noites a fio sem poder dormir, arrepelei-me, chorei. Mas de que valia todo este frenesi? O Serôdio falou em pegar do facão e sacar as tripas ao sol a um daqueles barrigudos que nos Bancos punham e dispunham. — Que adiantavas com isso, homem? — Não adiantava nada e lá o sosseguei. Os financeiros de Diamantina eram como cabos de esquadra da grande ladroeira, que tinha as casas da malta no Rio e em S. Paulo, e rosnava-se que a cabeça no Catete com o Vargas. Sempre ouvi dizer aos antigos que contra a má sorte envidar forte. Chamei Serôdio, o tal camarada. — Ainda estás com ela ferrada de ir tentar a sorte lá para o sertão? — Cada vez mais. — Toque, tens aqui um parceiro. Lá ou em casa do Diabo, onde se ponha pê em ramo verde. — Olha, Manuel, nos garimpos c que um homem pode dar um pontapé à macaca. Tenho cá dentro uma coisa a dizer--me que é a Fortuna que nos chama. Olha que chego a vê-la assim como uma mulher de vida airada, uma desnalgada bonita que nos convida a entrar. Não é ela também um coirão sem vergonha? — Pois vamos lá! — Levo a Maturina, já sabes... — Então tu tens uma noiva na terra, e levas a negra?! Larga semelhante emplastro. Lá não te faltam mulheres. Arranjas uma índia que até lambes os beiços... — Não, a negra há-de ir. Quem me lava e remenda? Quem me faz o comer? - Quem me trata das maleitas? Só para isso é que eu a quero. Para lavar, remendar e fazer-me uma tisana. Acredita que já nem me sirvo dela. — Não é o que ela apregoa... — É uma aldrabona, uma babosa. — Mais uma razão! Queres casar com uma rapariga limpa de Portugal e não te livras do estafermo? — Deixa, homem, preciso da negra. O que te garanto ê que ela não me tira a patrícia do pensamento. Lá está em Portugal. Espera por mim. É neve pura. Aqui não há neve. Há negridão. É tudo a escaldar. Quando voltar à nossa terra, acabou-se. De facto naquelas terras reina outro entendimento entre homem e mulher, e cedi. Mas quer ver o desfaçado!? Esta fulana era um estupor dos seus trinta anos, esbagachada, que lhe punha os cornos com cão e gato. De quem a queria. Ele chegava-lhe surras de criar bicho, mas não tinha emenda. Ouvi dizer, não sei a quem, que ela lhe dera tiborna a beber. Fosse como fosse, andava basta negralhada atrás dela, e até mulatos. Não sei que havia nela de particular e nunca vim ao fundamento de tal engodo. Pois lá fomos os três de rusgata, por Bauru, até Campo Grande, onde se nos acabou a massaroca.   Engajámo-nos numa derrubada, a experimentar, com um sujeito que era cônsul de Portugal e estava podre de rico. Que terra danada aquela! O solo é vermelho como o zarcão e, uma vez que se pega às calças, não sai mais. Quando desata a chover, a gente ensopa-se até aos sovacos. Em certos dias de cacimba, bate-se o dente como lá em riba, para a Nave, se assenta o taro. Tínhamos ali uma trabalheira de seiscentos diabos, a que não compensavam as larguezas do jornal. Passava-se o dia em plena selva, frigido dos mosquitos, de noite em constante sobressalto com olho na onça e outros bichos, que vêm ter com o homem sem se importarem nada com fogueiras acesas à volta do rancho. Um dia que me afastei da derrubada para um ronho do mato, caí num vespeiro de serpentes quando estavam a machear-se. Enroscadas em bola, só se lhes viam as duas cabeças de fora, e nas cabeças as línguas a vibrar. Eram muitas, aqui e ali, e fiquei sem pinta de sangue e anojado. Certas árvores, como o jatobá e o coração-de-negro, eram de cerne tão duro que o machado nos saltava das mãos como se batesse em ferro. Sim, senhor, ao cabo de dois cortes o gume estava esmurrado, bom para cortar sombra de paredes. Tanto valia dar-se-lhe lima, como não. — Andamos aqui a ganhar a morte—disse ao cabo da semana o Serôdio. — Viemos enganados. Este cônsul é um unhas-de-fome. Não sabe o que há-de fazer ao dinheiro, mas não nos aumenta o jornal. Que vá explorar outros! Eu cá largo sem dizer por aqui me vou. — E dois.

Com a pequena tralha às costas fomos dar a Cuiabá, que é a capital de Mato Grosso. Quando me vi, um domingo, à entrada para a missa, que a celebrava um padre polonês, julguei que estava cá na terra. — Kirie eleison, kirie eleison, os santos eram tais quais os nossos e o sacristão lembrava-me o Isidro Capadinho que não fazia outra coisa senão puxar do pigarro e coçar o piolho. Há quantos anos não ouvia missa, santos deuses imortais! O latinório trouxe-nos à terra em pensamento e só por vergonha não chorei. Ao fim da missa retirámo-nos para um jardinzito que ali há logo à mão esquerda a ouvir cantar os passarinhos empoleirados nas palmeiras, que é tão regalado ouvi-los como ao melro e ao rouxinol. Um homem chegou-se a nós muito ronceiro e     disse-nos:

— Estão admirando vocês a solfa do joão-do-barro? É aquele amarelo, um grande tunante e faceiro. Canta que se derrete em música. O outro, aquele à banda, que está a olhar muito concho para nós, é o azulão. Os amigos não conhecem eles?

— Não conhecemos. Na nossa terra não há disto.

— Já vejo que são portugueses... Também eu sou. Por aqui de gargalo no ar é novidade. Se calhar procuram trabalho?...

Lá o informámos e ele nos tornou:

— Olhem, amigos, anda muita gente empregada nas cabeceiras dos rios, tanto nos garimpos, donde sai pedra preciosa, como na faiscação, onde se apanha ouro na babugem da água. Já lá andei, umas vezes contratado e outras por conta própria. Não fiquei avezado. Por minha conta, trabalhei ainda aqui perto no rio Cuiabá, mas não fui melhor assucedido. Matriculei-me depois em Santa Rita do Araguaia e fui garimpar para a Chapadinha numa fazenda muito falada, o Capão Bonito. Vocês nunca ouviram falar? Ali o que havia de bom era fêmea. A negra vinha-se meter connosco à cama e até a mulata. Havia algumas que davam a volta por quantos homens lá trabalhavam e olhem que era uma batelada. A puta era encarregada pelo patrão de segurar homem. E muitos lá deixavam a carne e os ossos! Pois também não aqueci lugar que o filho de meu pai não era tolo. Nesta lavra assisti um dia a uma parte que bastaria para me empontar dali para fora se não fora o mais. Certo camarada, o Rafael, espanhol das Baleares, uma vez, quando removia o cascalho, descobriu uma pedra preciosa de mais de vinte quilates. Não a podendo bifar, que viu muitos olhos em cima, procurou escondê-la, passando adiante e enterrando-a no lodo com o pé. Mas um caboclo viu. Viu mas fez de conta que não tinha visto, também lá com a sua fisgada. A certa hora da noite encontraram-se os dois à volta do diamante. O Rafael andava a procurar com o gadanho, chega o mulato. — Que vem fazer, seu cabra? Vem de ladrão? A resposta foi cair sobre ele. Mas Rafael era homem desembaraçado e esperou-o na ponta do machete. O mestiço, grande capoeira como era, atirou-se tão cego, tão cego, com tal ímpeto que tinha de haver ali homem morto, um ou outro. Ora foi espetar-se pelos mamilos na lâmina que lhe entrou até o cabo. Mas o espanhol teve que dar às trancas e meter cabeça ao mato, que não era só a justiça, mas toda a pretalhada contra ele. Perdeu-se, matou-se, nunca ninguém mais lhe viu o rasto. Há quem diga que ainda é vivo, escravo dos índios brabos que há para a serra dos Parecis e chamam os Nambiquaras, e o têm preso às atafonas. Não sei. Na garimpagem do Capão Bonito eu por mim o que ganhei foi um venéreo que ia dando comigo em casa de Deus verdadeiro e ainda trago no sangue, não falando nas sezões. Larguei o ofício de garimpeiro, fí um ofício para degredados. Não tem a ajuda de Deus. Só ali enriquece quem faz venda da alma ao Diabo. Os amigos querem escrever com sangue uma hipoteca dessas? Arreda, a alma é do Criador do Céu e da Terra, e da Santa Virgem Maria.

— É verdade, é verdade — dissemos nós a um tempo. — A alma é do Criador do Céu e da Terra e da Santa Virgem Maria. Quem vende a troco de quanta riqueza há neste mundo a alma que é divina?

— Se depois de rico a gente pudesse rasgar a Escritura...?! — murmurou o Serôdio que era um perdido de Deus.

— Lá isso não lhe sei dizer — respondeu o homem. — O que sei é onde há um emprego bom para gente desembaraçada. Querem os senhores? Adianta-se--lhes dinheiro e ferramenta. Querem? É irem à poaia ou à goma-elástica para um flamengo que tem balcão em S. Luís de Cáceres. Poiaeiro ou seringueiro, tanto monta. Os senhores trabalham lá para o mato e não lhes falta nada. Mas nadinha. Mulher também lá vai ter, preta, índia e até branca.

O Serôdio redarguiu ao homem aliciador:

— Não senhor, não senhor, obrigado. Já nos matriculámos. Se não nos tivéssemos matriculado, podia ser. Assim não! Nem que nos oferecesse o lugar de tesoireiro no Banco do Brasil. Vamos para o rio das Garças, fazenda do Jaboticabal, e há-de ser o que Deus quiser.

— Vão-se arrepender...

— É connosco.

— Não há como a vida de seringueiro...

A treta do homem sabíamo-la nós de ginjeira... Serôdio conhecera em Campo Grande um caboclo que andava naquela negra vida desde moço. Trabalhava como dez escravos, e todos os anos voltava da safra mais endividado. A miséria tomara conta dele como um cancro. O patrão adiantava arroz, feijão, café, charque, fumo em corda, uns tantos litros de sal, etc. Ano que tirasse pouca seringa, não pagava o comer. Se tirava muita, baixava o seu preço, e a alta dos géneros era tal que não cobria os gastos. Assim ou assado, o seringueiro estava sempre em atraso. O pior de tudo é que, uma vez engajado e feita a primeira safra, nunca mais se via livre da golilha. Aquilo era como uma cadeia de maldição.

— Não há como a vida de seringueiro — tornou ele.

— Pois não haverá, mas já estamos comprometidos. Se não estivéssemos, havia ainda muito que dizer. Adeus, não se mate.

O Serôdio andou a apalpar, e em vez de irmos para o rio das Garças, que era no calcanhar de Judas, longe de vila e termo, onde botava o índio de salto e a onça era sobeja, ficámos mais pertinho da cidade, no rio Coxipó. Também havia garimpagem no mesmo rio Cuiabá, que passava ali a dois passos, mas ouvíramos dizer que o rancho era mau, o comerciante ladro, e matava-se homem por dá cá aquela palha. A safra lá no rio Coxipó passava sobretudo por mais rendosa. Se não havia diamante havia ametista, que também tem muita procura.

Fomos matricular-nos à repartição, dando pois como local de garimpagem o leito do rio Coxipó e dos seus corgos, e atirámo-nos de cabeça. Vida de Satanás. Qual vida de Satanás, qual tanas! Vida de cães dos cães de Satanás. Um homem anda metido nos pegos até a virilha a remoer cascalho, a peneirá-lo nas cirandas, a escolhê-lo com sete olhos como a galinha que bica o grão. Passavam-se dias que não se tirava para a cachaça. Outros dias, vá que escape! A amiga do Serôdio também andava no trapio, mas era uma grandessíssima desenvergonhada e não foi uma vez nem duas que apanhou pedra e foi dá-la aos brancos, porque não havia homem que a fartasse. O rancho andava sempre em zaragata por causa dela.

Quando lhe faltasse macho, ia meter-se com o primeiro que adregasse. Mas era uma mulheraça rija, bem feita, maninha, e não havia, diziam todos menos eu, que nunca me utilizei dela, melhor enxergão para uma noitada de burzunda. A gente trabalhava, trabalhava, e à noite o que queríamos era que nos deixassem de galho ferrado até o amanhecer. Às vezes nem nos podíamos segurar dos rins. Depois doenças? Uma vez Serôdio pegou carrapato e foi um castigo para o tratar.

Ao fim da primeira semana, o resultado fora mais que desalentador. Tirámos para não morrer à fome, se é que, quando há banana e coco, se morre à fome no sertão. Um homem com fome lança mão de tudo, carne de tatu, de lagarto, e sempre há raiz da mandioca. Andavam umas centenas de pessoas no leito do rio, quase seco nos meses que para nós são o inverno. Vossemecê nem imagina como é. Cada um vai apanhando cascalho e lava ele nos poceiros de água que ainda restam aqui e além. Depois sacode-se o conteúdo do crivo ou do alguidar, e quem tem bom lúzio lá descortina o diamante, quando não é a ametista. A negra tinha olho de lince, a alma do diabo. Se lhe dava para trabalhar, o que não era sempre, tinha sorte de cão. Nós, os dois, como os outros garimpeiros, tínhamos montado o nosso ranchinho de pau-a-pique, coberto com palha de aguassu. Num ficava o Serôdio com a negra, noutro eu. Mulheres lá não faltavam. A Maturina era uma cadela aluada e mais de uma vez me veio tentar. Arreda! Mas, como já disse, ia meter-se com branco, com caboclo, com mono, e até o preto mais reles lhe servia à falta daqueles. Quem a deitasse ao desprezo tinha-a à perna. Já dum negralhão que trabalhava no garimpo, Leôncio de Jauru, por ser daquelas paragens, sempre delambido atrás dela, fazia gato-sapato. Era ele um valentaço, mau e fero, com umas ventas tão recuadas do eixo que parecia estarem viradas para as orelhas. Então de lábios, não havia alguidar que lhe ganhasse em grossura. Mas homem com mocotó. À luta ninguém o dobrava. Um manager do Paraguai quis contratá-lo para lutar nas barracas de feira, mas ele negou-se. Despegarem-no de Maturina era matá-lo. Estava ali pegado de raiz para nosso mal.

Eu, mesmo assim, revolvia mais calhau do que ambos eles e, à noitinha, o meu ganho não ficava abaixo. Mas aquilo não era a vida que sonháramos! Um dia tirei-me dos meus cuidados e fui-me por um dos braços do rio acima, que se enterrava torto e feio pelo cerrado dentro. Estes corgos estão infestados de toda a casta de bicho e é preciso muito cuidadinho. No brejo anda a onça e pior que tudo a surucucu e no lodo a piranha. A piranha é a sanguessuga daqueles rios, com a diferença que é grande e tem dentes que cortam como navalhas de barba. Um homem faz sangue e está perdido se dá nele tal peixe. São aos cardumes, e vêm de cascos de rolha num rufo como se lhes dessem sinal por campainha eléctrica. Lá andava eu, trabuca que trabuca, foi ter comigo a Maturina. Quando me viu de traçado a cortar os cipós e as trepadeiras, me disse muito dengosa:

— Manuel, voncê tá é doido...!

— Deixa cá, mulher do diabo.

— Deixo, deixo, mas do diabo é que no sô. Sô de quem me quere bem. Voncê no mi quere...

— Que caceteação!

— Ué, bobage! — e rodou.

À tarde tinha posto a descoberto o álveo do riacho, seco, seco como ossos, mas tão coalhado de seixos pequeninos que seria milagre não houvesse ali pedra preciosa. E havia. Chamei Serôdio pela baixada, do outro lado do Coxipó, de modo que os camaradas não dessem conta, e fui-lhe mostrar o preparo:

— Aqui há molambage. Você amanhã diz no serviço que eu fiquei no rancho a curtir as febres. E eu volto aqui. E voltei. À noite eu só tinha achado mais diamante do que quanto tínhamos descoberto os três até aquela altura. E para não darmos alarme, alternadamente, um dia um, outro dia outro, ora porque tremêssemos as maleitas, ora porque fôssemos chamados à colectoria, atirámo-nos à remelgueira. Mas não houve remédio senão admitir a negra a ternar connosco que não se calava, o estardalho. Ali explorámos o ribeiro. Ao fim de dois anos de muito suor, de muita manha, de muito ardil, tínhamos uma bruaca cheia de pedra, quase toda diamante e alguma ametista. No meio do diamante tinha-nos vindo ao gadanho uma pedra grossa como o ovo duma pomba e outra mais grossa ainda, talvez como duma galinha garnisé. Botámos os cálculos e lá nos pareceu que uma delas teria mais de trinta quilates e, com a outra, que não tinha falhas, estaria ali uma fortuna.

Na noite em que nos saiu a pedra grande, o Serôdio armou danço com o Leôncio do Jauru, Maturina e vigairada. Depois mandou vir cachaça, encharcou-se ele, encharcámo-nos todos, e o preto mais que nenhum. O Serôdio pôs-se a cantar à viola dedilhando às três pancadas:

Minha nêga, minha nêga,

Minha nêga,

Se eu pedi você dá,

Minha nêga,

A boquinha prá beijá,

Minha nêga,

Lá no fundo do quintá.

Minha nêga,

No pé de maracujá,

Minha nêga.

Quando quero, quero já

Minha nêga.

 

E estava tão bêbado que queria à fina força que Maturina fosse dormir com Leôncio:

— Deixa dormir ele contigo, Maturina! Consola-me o pobre pretinho...

— Desenvergonhado, eu sou alguma caçamba que se empreste?!

— És uma pessegona sem caridade...

— Serei, mas no sô muié de porta aberta!

Leôncio, tomando aquela solicitude como uma zomba, indignou-se. Cresceu para Serôdio. Nós, brancos, não podíamos consentir. Deu-se uma surra ao preto que foi preciso conduzi-lo em braços para a tarimba.

Vinham a Cuiabá negociantes de pedra, no geral holandeses e alemães. A gente precisava de vender, mas sabíamos como eles rebaixavam a mercadoria, dizendo umas vezes que tal pedra não tinha boas águas, aquela tinha jacas que prejudicavam o tamanho, aquela outra, depois de talhada, ficava em cisco. Vendia-se-lhes para os gastos o menos que se podia. O mais, arreda de tais galfarros! Estávamos ricos, estávamos, mas havia que liquidar a riqueza. Lá é que batia o ponto e nos dava para matutar. Decidimos então vender o cabonde para não dar nas vistas a nossa retirada e irmos negociar o grande lote a S. Paulo. E, vai, vendemos a miudagem, e só essa, excedendo o produto de dois anos de trabalho nos garimpos conhecidos de dois homens dos mais testos à obra, deu-nos uma boa mancheia de dinheiro que repartimos irmamente. Na véspera do embarque fui a Cuiabá comprar um terno que andava como um ladrão dos caminhos. À volta, encontrei o rancho do Serôdio fechado e ninguém me soube dar razão dele nem da negra. Julguei que tivesse saído como eu saíra, e esperei. Noite cerrada, como não aparecessem e crescesse a minha ânsia, fui à barraca, arrombei a porta, e vi que tinham levado a jorça toda. Deu-me o coração um baque e me disse: — Estás roubado, Manuel Louvadeus!

Corri a informar-me com Pedro e Paulo. Botei alarme e mal fiz. Tinham tomado a direcção de Cáceres pela estrada do picadão, e veio-me logo ao espírito que, havendo ali porto no rio Paraguai, se pisgassem para a República Argentina ou outra terra lá nos cafundós do Demo. Aluguei um cavalo, minto, comprei-o, porque o preço do alquiler era tal que melhor era pago com dinheirinho escarrado na ponta da unha. E, mal despontou a manhã, pois que de noite seria temeridade meter-se um homem ao chapadão, rompi. Ao fim da tarde, ora a trote, ora a galope, cheguei a uma terra que chamam Nossa Senhora do Livramento, e colhi informes. Fui a um lado, fui a outro. Ali não davam razão de ter passado nenhum branco com uma negra.

Voltei atrás. Corri a outra terra para onde poderiam ter metido: Santo António de Leverger. Tão--pouco tinham cortado por ali. Dois dias andados, fui a uma terceira localidade, sita a umas quinze léguas: Poconé. Ná, tais passarões por aquelas paragens não tinham sido vistos nem falados. No meu desespero, andei à direita, andei à esquerda, até que me decidi a meter polícia e caipiras no negócio, pagando bem. Nada mais que da venda que fizéramos ao holandês, coubera-me, como já disse, uma mancheia de dinheiro. Não olhei a gastar. Por fim, a raiva tomou-me a ponto que me deu um febrão que durante dois dias não me pude mexer. Nos meus pesadelos, o Serôdio ora me matava a mim, ora eu o matava a ele. A negra dançava o saricoté nas macumbas e encomendava a minha alma ao Mafarrico. Quando à força de quinino pude erguer cabeça, já não queria saber do que perdera, mas vingar-me. Mas vingar-me como? Eram decorridos mais de dez dias, os dois ladrões onde iam eles! Uma tarde o Leôncio Jauru, que andara de princípio muito triste e azabumbado e tinha o empenho que se imagina em descobrir o rasto dos fugitivos — e que bem ele procurava com as ventas de perdigueiro! — veio-me dizer:

— Nhor Louvadeu, sei onde pára Maturina...

— Sabes onde pára Maturina?!... E o Serôdio?

— O Serôdio, tamém.

— Então onde param?

— Estão lá para o rio das Mortes, onde à nascente.

— Oh, com os diabos, é lá no inferno...

— Num é, siô, mas para se lá ir tem que se passar ao lado duma serra muito alta e terrible, a serra do Roncador...

— Como é que sabes?

— Sei por poaieiro que veio de lá trazer poaia no boi ao flamengo...

— Tens a certeza?

— Certezinha! Pelos sinais não podem ser outros. — Tu eras capaz de me guiar?

— Eu conheço caminho como as minhas mãos até para além do Roncador. Há uma estrada carroçable para Pusoreu, depois picada... Já andei com seringueiro para aquelas bandas. O que é, temos de ir pela baixada. Na serra anda onça e talvez mesmo índio brabo...

— Vai-te arranjar. Pago-te o dia a dobrar. E vamos quanto antes.

— Estou arranjado.

— Se me levas direito tens ainda umas botas e uma requeté...

— Si, siô. Mas olhe que eu mato Serôdio... — Não matas. Isso é comigo.

— Mato, si siô. Serôdio mi tratou mal... Serôdio mi despreza...

Meti o traçado e rifle num alforge, o facão à cinta, e ele a pé e eu a cavalo batemos para a serra do Roncador, que ficava, lá longe, a nordeste, como duas vezes daqui a Chaves, senão mais. Leva que leva, contou-me as voltas que dera e quantas pessoas interrogara para saber do paradeiro dos dois. Afinal topara o sertanejo que lhe satisfizera a curiosidade. E, pelo que me disse e eu adivinhei, concluí que sabendo Serôdio do frenesi com que eu o procurava, indeciso do rumo a tomar, metera cabeça ao mato, tal um cangaceiro. Uns dias vagueara ainda à volta de Cuiabá, escondido nos cerrados, à espera de se decidir. Como eu arribasse da doença e já me não embaraçasse nos cadilhos, depois de dar guita aos meus mastins, lá achou que o melhor era pôr-se de largo. Levara as pedras preciosas? Dizia-me o Diabo ao ouvido que por nada deste mundo as deixaria longe dele. O ladrão leva consigo o que rouba. Interrogava-me:

— Tu que farias, Louvadeus? — Sei lá o que faria! Eu não sei dar respostas de ladrão porque o não sou. Vinham-me às vezes dúvidas sobre a resolução que o larápio tomara, mas o mais certo era ter transportado a melgueira com ele.

— Tu não irás errado, Leôncio?

— Não, siô.

O não siô compreendi-o eu melhor talvez que o próprio. Leôncio Jauru ia na peugada de Maturina. Por isso me deixei guiar pelo preto como um cego pelo moço e, às apalpadelas, pode dizer-se, de noite dormindo entre grandes fogueiras, de dia seguindo pisadas sumidiças feitas pelos poaieiros e seringueiros, comendo mel e palmitos, chegámos uma tarde à serra onde a cada instante se ouvia a onça regougar com o cio. De cada vez que bramia, o cavalo punha-se a tremer, a tremer, como se lhe tocassem com um ferro em brasa. Devia haver por ali grande bicheza, e eu me pergunto se era por causa de tantos uivos e rugidos que lhe chamavam serra do Roncador. Subimos a um alto, escalvado como os nossos montes, e pus-me a observar a espacidão. Olhei a um lado, olhei a outro: tudo arvoredo ou matagal, tudo terra no princípio do mundo. Lá longe, afigurou-se-me ver esvoaçar bandos de garças, e eram-no com certeza; se lhes dava o sol a favor, flocos de neve não se baloiçavam mais fugazes ao vento. Ali parei um bom pedaço, Leôncio atrás de mim com o cavalo à rédea, ora a pedir a Deus do fundo da alma que me aliviasse do meu desespero, ora, testo na minha ideia, a espiar os longes. E, vai, quis não sei se a minha boa, se má fortuna que descobrisse uma coluna de fumo que subia a uns quilómetros à beira dum rio. Chamei a atenção de Leôncio. O preto quedou um momento com os olhos pregados no horizonte e explodiu:

— São eles, siô!

— Pode ser índio... poaieiro...?

— De sorte, nhor Louvadeu. Índio não acende lume fora do seu quilombo. Poaia num há.

Aceitei que fossem os dois, e metemos para lá de espora fita, direitos como gaviões. Levávamos toda a mecha, pois com os rodeios que fomos obrigados a fazer, a sangrar dos picos dos escarapeteiros, gastámos o melhor de duas horas. A certa distância, dei ordens a Leôncio para que ficasse com o cavalo e eu meti pelo mato fora, ao palpite. A certa altura, distingui os bambuzais do rio e plantei-me de tocaia. Santo Deus, nunca o preto fora mais certo: eram eles. Enfolou-se-me o peito: Deus é grande, mas a vontade do homem também não é pequena. O Serôdio estava entretido a tirar a pele a um tatu e a negra ia com um coco para as bandas do riacho por lá a buscar água. Fui-me aproximando, ora a coberto das palmeiras anãs, ora de rastos pelo capinzal fora, com a faca nos dentes. A seis passos, formei o salto, melhor que a pintada. Para o Serôdio, a surpresa foi tal que, segundo muito bem notei, não saberia dizer se estava nas garras de algum índio brabo se nas das feras. Quando me viu por cima dele, o joelho na arca do peito, uma das mãos no pescoço, a outra com a faca erguida, ficou ainda mais transido, olhos esbugalhados:

— Tens a vida na ponta desta faca. Onde está o que roubaste?...

Não proferiu uma nem duas e eu tornei: — Não dizes? Despede-te do mundo... Senti-o revolver-se debaixo do meu joelho, arquejar, com vontade de sacudir-me se pudesse. Mas faltavam-lhe forças para lutar comigo, que estava por cima, armado, e era incomparavelmente mais forte do que ele, o que sabia muito bem por há muito lidar comigo. De modo que o vi descair em quebranto e abandono, pelo que lhe alarguei a turquês das unhas em volta do pescoço. E em voz rouca, meia gemida, lá disse:

— Não me mates. Entrego-te tudo...

— Não quero tudo. Quero só o que é meu... Esta minha palavra era para lhe causar confusão, se no fundo do peito tivesse um pouco de vergonha. Serviu-lhe, bem dei conta, para me querer lograr e ganhar tempo, porque acudiu com toda a pressa dum afogado que agarrou alguma coisa com a mão:

— Só queres a tua parte?! Homem, não me mates e é tudo teu!

— Já disse; manda a negra trazer-me as pedras...

— As pedras ficaram no rancho — e, isto dizendo, pareceu-me que os olhos dele se fixavam no toro dum ipé que ali estava corcomido e imenso, com uma lorga natural tão grande que teriam feito dela cabana.

Leôncio tinha chegado, prendido o cavalo, e olhava pasmado para a cena, depois para Maturina que estacara a distância, indecisa também, sem saber o que fazer.

— Leôncio, vai ao ipé, e vê o que lá está...

O preto foi a correr, olhou, fusgou, e voltou a dizer:

— Ué! Ali não tá nada.

— Vê na bruaca...

A bruaca era a bolsa de coiro em que no Coxipó tínhamos o nosso tesouro. É onde o sertanejo mete tudo, os haveres, as bananas e até a arava madura, que é uma fruta que anda aos pontapés. Mas bruaca que é dela? O Leôncio procurou-a por toda a parte inutilmente.

— Pergunta à Maturina...

O preto correu aonde Maturina e lá se puseram a falar. Para mim, que estava ao corrente do seu facataz, conclui que, mal ele a viu, ela lhe deitasse olhos incendiários, fazendo-lhe perder a cabeça que já não era sólida. Mas ela correu com ele:

— Seu cachorro tinhoso! Qui quer saber?

Quando voltava, Leôncio soltou-lhe uma gargalhada e ergueu o dedo:

— Uiá! ah, ah, ah!

Era a bruaca, à dependura dum ramo do ipé, por cima da cabeça. Despejou-a para o chão ainda menos sofregamente do que os meus olhos lhe seguiam a manobra. Não tinha lá diamante nenhum.

— Serôdio — tornei eu — onde tens as pedras?

— Louvadeus, as pedras ficaram no rancho. Onde estão, estão bem guardadas. Então eu trazia-as para aqui, para caírem nas mãos dos índios ou dos seringueiros?

— Mentes como um cão, Serôdio. O ladrão para onde vai leva o roubo...

— Maturina que diga... ela sabe...

Estive várias vezes, vai-não-vai, para lhe espetar a faca no coração, como quem mata um porco. Debaixo do meu joelho agora gemia, logo chorava e soluçava, e não fazia o mais pequeno esforço para se safar. Era um grande macanjo, nada tolo, e lá lhe pareceu que a maneira de desvencilhar-se da rascada seria aquela. Entretanto, ia ganhando tempo, se é que não esperava surgisse o recurso providencial que à última hora não falta aos canalhas. Viu-me ranger os dentes e redobrou de lamúria, tocando até um segundo bordão:

— Acredita! Por tua mãe, por teu pai, por tua mulher e filhos te peço que me não mates! Eu dou-te o que é teu. Podes tomar também a minha parte. Não a queres? Não me mates! Olha que ficas com as mãos a escorrer sangue do teu irmão e não há água que as lave. Não me mates! Caso com tua filha... serei o teu escravo...

— Onde estão as pedras?

— Ficaram no rancho. Vamos lá e leva-as! Leva tudo...

Raciocinei com os meus botões: mato este ladrão? E, depois, que ganho eu? Não sei o que senti com aquele bandalho debaixo do joelho, o preto ao lado de mãos a abanar, a grande bocarra aberta, a negra, junto do ribeiro meia desdenhosa, meio assarapantada, a ver. Não foi piedade. Um homem, pai, sente piedade quando a sua situação é boa ou, pelo menos, não é nenhum desastre, as coisas lhe correm bem ou prometem vir a correr, os caminhos lhe estão desimpedidos, quando, em suma, não se lhe pôs o sol na existência. Piedade precisava eu que Deus e o Diabo tivessem de mim, quanto mais dispor dela a favor doutros! Eu podia lá ter piedade daquele miserável!? Também não era medo de o mandar para o inferno. E medo de quê? Da lei? No sertão não há rei nem roque. De Deus? Olhe, pai, àquela altura já me não apavorava. Sabe o que foi? Foi o desânimo que se devia ter apoderado de mim. Que valia matar eu o safardana?

Para quê? O desânimo, mais que o resto da esperança de recuperar o que era meu. Lá confiança nas palavras do homem tinha pouca ou nenhuma. Mesmo assim ocorreu-me uma ideia que estava na encruzilhada de todos os meus pensares:

— Só se te deixares algemar. Hás-de ir algemado diante de mim até Cuiabá.

— Algema-me!

— Vê lá!...

— Algema. Olha, aqui te confesso, eu roubei-te porque julguei que tu me querias fazer o mesmo. Fizeste-me desconfiar cá por coisas. Enganei-me, perdoa. Perdoa por alma de tua mãe!

— Não quero cá saber. Deixas-te algemar...?

— Algema!

Acenei a Leôncio para me ajudar. Este quando me viu descer para aquela forma de revindicta, ao tirar do cinto a corda que um sertanejo traz sempre juntamente com a faca, disse-me:

— Nhor Louvadeu, se não tem coragem de matar, mato eu...

Em menos de nada liguei-lhe os pulsos, atei-lhos atrás das costas, e passei a ponta da corda a Leôncio, ao tempo, precisamente, que a preta crescia para nós com a faca do Serôdio em riste:

— Não te escape ele!

— Qual escapar, siô! Nem que fosse um boi!

O estardalho vinha tão cega que foi um brinquedo meter-lhe um pontapé à barriga e atirá-la de escantilhão para o lagoaçal à beira do riacho. Ela,   espolinhando-se sobre a ilharga e acabando por desatascar-se da lama, clamava:

— Ladrão, que mi mataste! Ladrão!

Agora, largueza ao brequefesta. Maturina correu para fora do meu alcance, pela margem do rio acima, e berrava batendo com o punho da mão direita na palma da outra, depois na bunda:

— Malvado, querias pedra? Num hás-de vê-la. Olha, vê-me aqui no olho. Tenho-a aqui... — e reboleava-se a mostrar-me o traseiro.

Deixei serenar, entretanto que passava revista ao ipé, mato e capinzal à roda. A preta, amansada por fim, deixou-me chegar ao pé dela:

— Maturina, tu sabes onde está pedra preciosa? Se sabes! O Serôdio trouxe-a consigo ou deixou ela no Coxipó?

— Num sei, malvado, num sei. Que soubesse não ti dizia.

— Dize lá... Ficas comigo... Não era o que tu querias?

— Num quero mais nada de ti. Nem ver-te, malvado!

— Que mal te fiz? Para que vinhas de faca para mim? Ou era para o Leôncio?

— Qual Leôncio?! Leôncio é um cachorro que num sabe o qui faz.

Fiz sinal a Leôncio, e ele pôs-se a tanger o Serôdio diante dele como um animal de carga. Maturina estava hesitante. Acenei-lhe:

— Vens ou queres ficar aqui nestes ermos? Pusemo-nos a marchar por esta ordem: eu a cavalo, rifle na mão esquerda para fazer fogo sobre Serôdio, caso lhe desse na cabeça para fugir. Para mais seguro, Leôncio não lhe largava a corda. A negra carregava a molambagem.

Assim caminhámos aquele dia e dormimos numa clareira, à beira dum igarapé. Na manhã seguinte, a preta e o preto meteram-se pelo mato a arranjar fruta e mais que comer. Trouxeram umas bananas e mel. Com engulho vi Maturina meter a comida na boca do Serôdio como a um menino. Dois dias depois, sustentando eu esta política contra o meu sentir, o Serôdio disse-me:

— Louvadeus, solta-me! Olha que o Leôncio mata-me. Vi-o estar a cochichar com Maturina e a deitar-me olhos de soslaio. Esta noite meteram-se ambos para o mato e ia jurar que já acasalaram. Eu, se quisesse, podia ter fugido. Tu estavas a dormir como uma pedra.

— Hum, ela não pode ver o preto...

— A preta é uma desenvergonhada, e como há quatro dias lhe falta macho, o Leôncio já lhe serviu.

— É possível. Mas doravante não os deixo mais ir juntos ao mato. Vai cada um por sua vez.

Com efeito no dia seguinte mandei Leôncio arranjar fruta e pus Maturina a lavar as camisas numa poça de água. O preto não trouxe comer que prestasse. Mandei á preta e, como ela tardasse, fui procurá-la. Não a encontrei. Volvi ao rancho com apreensões, a que até eu fugia de dar corpo. Fui encontrar o Serôdio prostrado no solo, com o seu próprio facão enterrado no peito até ao cabo. Tinham-me também levado o cavalo.

Disse mal da sorte. Cão de mim, quando deixaria de ser tanso? Porque me não torcera o pescoço minha santa mãe ao nascer? Chorei-me, arrepelei-me. Reguei com as lágrimas o peito ensanguentado do miserável. Com o quebranto e fadiga, adormeci em cima dele. Quando acordei, disse-me: Louvadeus, és um assassino! Sim, tu é que és o verdadeiro assassino. O sicário procedeu por indústria tua. Foste tu que o armaste! Repara, o teu papel foi pior que o do centurião. O braço do preto deu apenas a lançada! Para que lhe consentiste a faca? Não foi abominável que tratasses assim este branco, este teu irmão, este português, pior que um animal irracional?

Chorei muito sobre a minha maldade. Mas tinha a luz ambiciosa dentro do peito a arder. Enterrei o desgraçado no brejo, onde a terra alagadiça era boa de cavar, e pus-me de retirada pela estimativa. Não estava longe de Puxoreu, onde há uma picada para Cuiabá e outra para Diamantina. Aí disseram-me que passara um negro e uma negra a cavalo a fugir a um branco que os queria matar e já atrás deixara morto no capim a um companheiro. Olhavam para mini de viés e eu disse:

— Foi esse mesmo preto que o matou e eu corro sobre ele para que a justiça lhe deite o baraço.

Em minha sanha, as palavras eram proferidas com tal poder de convicção e sinceridade, que me não levantaram a menor dúvida nem embaraço:

— Foram para Diamantina. A cavalo pega eles. Arranjei ali uma besta no propósito de me dirigir a

Diamantina. Na bifurcação dos caminhos, raciocinei: corro atrás dos dois meliantes, que não valem o peido dum cão? Não é preferível dar volta ao rancho e procurar as pedras preciosas? Adoptei esta resolução. Quatro dias depois estava em Cuiabá e no dia seguinte, com a alva, no Coxipó. Procurei, tornei a procurar, não encontrei nada. Cavei, esgadanhei, subi às árvores, explorei as brenhas. Nada de nada.

Que ficava a fazer em Cuiabá? Meti a S. Luís de Cáceres, onde tem seu ancoradoiro o vapor que faz a carreira do rio Paraguai. Estava a partir. Tomei passagem no velho vapor Ladário, que andava naquela moenga há mais de trinta anos. Os maquinistas eram uns rapazes da Pesqueira e o comandante um velho corso. Em Asunción fiz visar o passaporte pelo cônsul, e vim tomar o paquete a Montevideu para Portugal. Aqui tem, pai. Fui rico e sucedeu-me como a Pedro Cem. Dizem que os mortos acabam por ser vingados. Aquele, mesmo que tenha ficado na lama do brejo, atolado na imensidade, anda por lá, desenterrado talvez o corpo pelos urubus, anda por lá a alma dele a gritar misericórdia! Mas eu tenho as mãos limpas do sangue daquele mau homem. Não fui eu que o matei!

— O Dr. Rigoberto diz que nada paga a vida dum homem — proferiu o velho. — Assim será. Mas eu tinha-lhe arrancado a bochada à borda do regato. Ah, isso tinha! Não me segurava...

O filho não respondeu. Ficaram ambos calados, cada um perdido na selva interior. Era ao entardecer e duas estrelas pequeninas acenderam-se à ilharga de Vésper. Manuel Louvadeus tornou:

— Agora, senhor pai, ouça o resto: já lá vão uns pares de meses e tenho reflectido muito no lugar onde o ladrão poderia ter ido esconder o tesouro. Quer saber onde foi? Pertinho do lugar onde tínhamos a barraca de pau-a-pique, no mesmo rio Coxipó. Na lura dum tatu!

— Na lura dum tatu... Que é isso?

— Um bicho que faz uma cova muito bem feita no chão. Um dia que passámos por ali, ele viu o bicho a cavar a toquinha. Matou-o, aplainou a terra e disse: — Fica a cama feita para outro. — Que raio de ideia! Compreendo agora. Era a nossa sina escrita num palmo do chão. — Foi ali, senhor pai, que ele foi arrecadar o tesouro. Sim, senhor, assim que soube que eu lhe andava na cola, escondeu a pedra preciosa e despediu. Botou o pé no mundo como cangaceiro, esperando que a paixão, o diabo, ou as saudades me atirassem para Portugal duma vez para sempre. Sim, fugiu sem levar nada. Onde havia ele de esconder os diamantes?... Ora, ali na cova do tatu. Não se me tira da cabeça. Foi lá que ele os escondeu! Lá estão, ia-o jurar.

— Quem sabe?! — observou o pai. — Então o homem não se lembrava que tu sabias do covil?...

— Qual o quê?! Era um cabeça no ar. Tenho disso a certeza. — E depois duma pausa: — Ainda um dia, se puder, dou lá um salto...

— Deixa, homem. Essa ambição está para lá do alcance dos teus braços. Ias buscar a morte. Quem sabe se não têm a forca erguida para te apanhar! Podem julgar que foste tu o assassino...

— Lá não há forca.

— Mas há justiça, que as mais das vezes é injusta e cega.

— Há a justiça, sim. O morto chama por ela, bem o ouço. Tenho que lavar as mãos? Fui eu o culpado da morte daquele miserável? Pois quero lavá-las, virando esta aldeia civilizada... Sim, sim, a justiça, se não é sempre injusta, como o pai quer, tantas vezes vai bater onde não deve. Mas a voz do Serôdio pode lá atar-me os movimentos! Note o pai que é uma voz de cachorro, Deus lhe perdoe, e não há que ter medo do seu eco! Mais forte é a voz que me chama a levantar a riqueza que lá jaz soterrada. Olhe que é de valor para comprar esta freguesia... esta freguesia, quê?! o concelho inteiro.

O pai ficou a ruminar e disse:

— Deixa, vive com o que temos. Isso está já fora deste mundo... Deixa! Não tenhas maus pensamentos. A casa nós a acabaremos quando Deus for servido.

— Não posso deixar, pai. Aquele monte de sol cega-me os olhos. Se soubesse o que aquilo vale! O que é de bonito! O que eu farei com ele!

— Coitado de ti, meu filho! A tua desgraça é essa cobiça, mais que qualquer outra. Estás dentro dela como duma penitenciária. O Serôdio, com boa ou má justiça, está vingado.

Os dois desataram a chorar. Mas não viam as lágrimas um ao outro, que anoitecera de todo.»

 

Os roçadores de mato, a rapadoira pendurada do ombro como dum frontal, ferra para as costas, cabo para o peito, entravam na taverna a beber dois decilitros de cachaça, encher a botelha de vinho, comprar um maço de fortes, e ala! Estavam já as manhãs frias e, quando saíam a porta, o seu bafo quente perlava o ar dum halo efémero de névoa. O velho Lêndeas naqueles dias de freima não tinha mãos a medir. Tanto Bruno como Modesto, assalariados pela Floresta, andavam bem longe, na balizagem do perímetro com marcos de cantaria. Ainda que rebeldes e irregulares no trabalho, sempre davam a sua demão, nesta e naquela volta, trazendo-lhe algum alívio, mormente nos cuidados da lavoura. Agora era sozinho e a cada passo ouviam-no praguejar contra a mulher, que era uma pegamassa, os dois filhos, uns malandros da pior espécie, contra Deus e o Diabo, que o tinham tomado de ponta.

Estava-se nos meses das roçadas depois da colheita dos milhos. Havia mais de uma semana que os homens caminhavam para a serra. Como os dias eram pequenos e o tempo de codo e de borrifeiros, os homens largavam de casa pela alba, terçadas as capuchas, o taleigo do almoço a tiracolo, depois dum mata-bicho à toa. Os piteireiros iam-lhe até os dois decilitros virados no mostrador da taverna, que abria meia porta, quando os vendeiros eram da raça do Lêndeas, que não perdia pitada. Depois, lá seguiam singulares ou em rancho, leva que leva, o nimbo que rescendia de suas bocas, salitrado de álcool, empestando a atmosfera à volta. Álcool rasca! O Lêndeas, além da venda ao balcão, armara em negociante por atacado de molhados, e fabricava aquela potreia. Para que lha tirassem dos barris, fiava a toda a gente. Uma das suas indústrias era a aguardente. Destilava-a de tudo no alambique, desde o canganho das latadas, ao pé da porta, e dos cordões de verdasco, que tinha nas fazendas à beira do corgo, à cereja, figo, e diziam que até serradura de madeira. Um ano, os proprietários, que não tinham outros produtos vendáveis que não fossem os cereais e o leite, ficaram muito admirados quando os alfaqueques do Lêndeas lhes tocaram à aldraba:

— Por quanto quer vossemecê arrendar a cerdeira do Casal, tio Manei? Uma quarta de pão, serve-lhe?

As cerejeiras eram a alegria da serra por altura das ceifas. Aquela corda de povos ignorava os mimos vários do vergel, salvo as cerejas. Raro era o linhar e horta que a seu tempo não ostentasse a rica vestimenta de rubis. Generosas e abundantes, comiam todos à farta, desde o rapazio aos pardais, que se pelam por elas, e até estorninhos e tordos que tanto as comem maduras como em passas. Mais bonito em Portugal só as laranjeiras; mais bondoso apenas o mostageiro, que é uma planta que dá uns bagos cor de tijolo, de gosto entre baunilha e broa, a puxar para pêra-pão, meio desconsolados como os horizontes hibernais do planalto em cujo solo e céu se compraz.

A rirem-se e oferecerem-se a toda a gente por cima das paredes e nas demarcações, não podiam as cerejas deixar de atrair o olho lampeiro do Lêndeas, que imaginou explorá-las a bem da sua cupidez. Por este e aquele povo, onde a garoia é de quem a quer, adquiriu dornas e dornas delas por dez réis de mel ceado. E caldeira com elas! Teve para um ano de balcão. Em seguida, como se houvesse saído bem do empreendimento, atirou-se ao figo. Mas a safra dos figos, lampos, moscatéis, vindimeiros, é mais arrastada e vária a sazão, e ele, para que lhe fosse útil, teve de colhê-los ao mesmo tempo. Os seus beleguins levavam tudo a eito. Resultou daí, verdes, podres, fermentados, uma mixórdia enjoativa que os labregos, a emborcá-la, a revessarem em ânsias a cama das tripas. Seria um grande prejuízo se o Lêndeas não soubesse obviar. O parrana chegava a bater o dente, mãos encabadas nos canhões da vestia, nariz pingão, sem um chavo na algibeira:

— Tio Barnabé, bote lá um deçalitro de aguardente, mas não me dê da de figo...

— Da de figo? Onde ela vai, meu homem! Tomara eu cá dez pipas. Quantos passageiros batiam aqui à loja, depois de cheirá-la e prová-la, raro era que não segundassem.

— Pois sim, mas não se me dá com o meu estâmago...

O Julião baixava-se para o servir. Um tubo de borracha vinha sub-reptício, por detrás dos cascos, com a candonga obominável. E o freguês de rol estava com muita sorte se no cálix entrasse meia dose de bagaceira.

Assim enriquecera, à força de alicantinas desta sorte, o tiborneiro. E sempre a coçar-se, e caspa e lêndeas a caírem-lhe como granizo para a gola do casaco, e a dizer mal da porca da vida!

Ora era desta beberagem que os roçadores de Urro do Anjo botavam um rescendor que se sentia à légua. Mas, encravados no planalto, havia muitos povos, e se o Lêndeas conseguia impingir para alguns o seu garrafão da triaga, não alcançava a todos. Sempre havia um ou outro taverneiro refractário à mixórdia ou menos atilado a condimentá-la. Os roçadores, quando iam roçar, é que, se não levavam a ancoreta com o briol, levavam a sua cabacinha da rija.

Aí por começos de Outubro rompia a faina. Socos ferrados, trrap, trrap, repartiam-se por oiteiros e vales como um exército em operações. Côncavos, onde cresce a carpanta e a urze, encostas que aprazem ao fieito, certos alcantis onde o tojo medra em despeito do dente do reixelo ou do coelho que fabrica um corredor por baixo dele e, depois de lhe roer uma ou outra raiz, instala no meio a sua barraca de verão, não escapam ao gume da sachola, afiada como as gadanhas do feno. O roçador vai cortando o mato e deixando-o à retaguarda, engabelado em roçadas. A roçada é a unidade de mato, tão bem cerzidos sargaços, urze, fieitos, tojos, que a forquilha pode pegar-lhe só com um dente que a não estrambalha. Pela tarde é a recolha. O carro vem serra fora, que as rodas maciças e eixo móvel vencem a todo o piso, e toca a carregar.

O serrano desta corda constrói carradas alterosas, sobre o rectangular, que são um assombro de volume. Já o minhoto as encorucha em gume de machado, mais comezinhas. Estas terão graça, mas as beiroas são mais poderosas e, pelos velhos caminhos, onde não passariam duas a par, movem-se como as máquinas de guerra com que os povos belicosos da antiguidade faziam o assédio das fortalezas. Da tarde para a noite, esses vultos lentos, mal anunciados pelo lagrimejar sonoro das campainhas, rasando o solo a modo de tartarugas, recreiam a espacidão morta. Noutros tempos eram seus alvissareiros as chiadas dos eixos, duas até três notas graves e uma semifusa. A bem da acústica automobilística, foi-lhes proibido cantar. Que o gado gcstava de ouvir, como um doce e con-solador estimulante do seu esforço, tal chi-iu-heru, produto das treitoiras abraçando constritivas os moentes, é possível. Foi-se o lado musical da bucólica. Também suprimiram a aguilhada: os cornos dos ibois terá, qualquer dia, algum ministro de condená-los por acintosos?

Chegado pois Outubro, despejavam-se os povos para as portelas da serra, quando uma voz correu: Deixassem-se ficar em casa: o Governo ia já tomar conta da serra e expulsá-los. Acabou-se; nunca mais teriam o direito de lá cortar um chamiço ou levar uma ovelha parida a encher o fole.

Meia manhã, era tudo cheio nas dez aldeias e nos montes, onde alguns roçadores e mateiros tinham rompido na faina sôfrega e desatinada. Quem levou a notícia? Foi este tio, foi aquele recoveiro, foi a Júlia Tanganha, que anda aos ovos, foi o António João que passou com a camioneta, a questão é que era verdade.

Tão verdade que já estavam na vila os carros dos engenheiros e as máquinas de lavrar — informou outra voz. Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia de juízo estava a amanhecer!

Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha do olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora. Ah, cachaporra dum santo! O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam nos ferregiais, e trutas que eles serranos estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!?

Esta era a noção que tinham do Governo. O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual o quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram!

— Morram! — rouquejava a voz irosa pelas vielas das dez aldeias.

Uma vez a correr o rumor de que o Governo ia tomar posse da serra, o problema transcendia para o terreno do assalto e roubalheira à mão armada. Em brejos e chapadas, os roçadores endireitaram a suã e, queixo por cima dos punhos, apoiados ao cabo da roçadoira, olhos em alvo, quedavam-se a considerar. Alguns amortalhavam o seu paivante. Os mais desatinados jogaram fora a enxada:

— Se me hão-de levar o mato, já não roço mais. Puta que os pariu!

Foram-se juntando e alagando os ecos com sua grita de incêndio. Entretanto tais e tais mandavam dizer para casa que viessem buscar as roçadas, que no dia seguinte de sorte as poderiam levantar. E a alturas do meio-dia uma grande febre se tinha apossado da população, em remoinho e zumbente. Depois, com o entrechoque de opiniões e sentenças e os fumos da vinhaça bebida à desmedida, a cólera subiu. De aldeia para aldeia como de homem para homem trocavam-se protestos de tesura. Tudo a postos, sem que soasse o clarim! Ia-se ver quem os tinha no seu lugar. Parada da Santa era a sede do quartel general, uma vez que ali residia o mais afoito e denodado dos serranos, homem de cabeça e de pulso, o João Rebordão. Este, por fas ou por nefas, estava arvorado em caudilho. Mas ele queria e, tomando a investidura a capricho, desatou a dar ordens de alevante. Os mensageiros largaram a todos os horizontes a pé e a cavalo, para trazerem essa noite, a bem ou a mal, a Parada os maiorais das aldeias. Havia que combinar as operações contra o inimigo. Os portadores eram moços de cara direita, prontos como ordenanças, e com todo o recato, sem soprar palavra, a fim de não dar azo a que se esquivassem os medrosos, cumpriram as instruções à risca.

Foi assim que o Manuel do Rosário, alcaide virtual da Azenha, recebeu a parte. Andava ele, ferreiro com larga freguesia de porta e de mercado, a amanhar carvão nas devesas da serra, que lhe faltara de todo na forja, quando se apercebeu de dois homens que cresciam de peito para ele, mato fora. Só o fumo da queimada, encastelando-se direito no céu sereno, os pudera guiar até aqueles andurriais, longe de vila e termo. Viandantes desgarrados, gente com recado, bandoleiros, foi-se pondo de sobreaviso.

— De parte do senhor João Rebordão, de Parada da Santa — disse um dos homens depois de salvar. — Meu amo roga-lhe o favor de chegar lá...

— Chegar lá...? Há novidade em casa do meu compadre?

— Que me conste, não há.

— Vêm de caso feito?

— Saiba vossemecê que sim.

Manuel do Rosário quedou meditabundo, de braços à dependura, rente à cova, redonda como cisterna, que o torgo em brasa enrubescia. Trabalhava-o o incerto motivo daquele passo.

— Não desconfiam para que seja?

— Pergunta bem... — respondeu o que parecia ter a cargo ser o língua da embaixada, abrindo as mãos em sinal de ignorância.

Em volta, suspensos como ele, o Calhandro, moço da forja, e os filhos, Céu, muito amojuda e cheia das ancas, Serafim, ainda com pêlo de rato no pescoço, olhavam admirados. O ferreiro enxotou-os:

— Gira, estes tios não trazem beberas. Rodaram, e ele pegou dum estaqueiro a espertar o fogo que amortecia. E, esquivando a cabeça à labareda que se ateava com a mexida, os dentes em arreganho, murmurou:

— Alguma coisa há... Meu compadre não é homem para panos quentes.

Os recoveiros não descerraram os lábios e ele decidiu-se:

— Pois, amigos, eu amanhã, se Deus quiser, lá apareço.

— O senhor João Rebordão pede-lhe para vir hoje.

— A estas horas? São duas da tarde, para mais que não para menos. Os dias vêem-se fugir...

— Nós fazemos-lhe companhia — pronunciou o que estivera mudo até então. — Os lobos não o comem...

— Assim é sangria desatada?

— Só sabemos que nos mandou dar-lhe este recado, estivesse lá no cabo do mundo.

— Mas é noite, meus santos, é noite! A que horas chegamos lá? E quem me há-de tratar do carvão?... A gente que para aí trago só presta para comer...

— Jurámos que o havíamos de levar... Sem o amigo não entramos a porta do senhor João Rebordão — tornou o segundo num assomo de impaciência, mostrando a dentuça de mastim.

— Boa vai ela — disse o ferreiro em tom sorridente. — Pois já que assim é, vamos lá. Manda quem pode...

Traçou da vestia e, deitando uma derradeira vista de olhos à cova ardente, disse para o Calhandro:

— Ao tempo de abordarmos ao povo, abafai. Mas haveis de pôr mais tocas. Os torrões também não são bastantes...

E despediu de vereda para a aldeia a ensaboar-se e a vestir o fato de ver a Deus, que não parecia bem ao pai dum senhor doutor — trazia um filho em Coimbra — pôr pé em terra alheia, roto, com a roupa de cote e suja à força de bater.

Caminho fora, Manuel do Rosário, sobressaltado, não se lembrando, em seu génio intemporal, que se podia tratar da serra, tentou ainda espreitar para a alma crispada dos estafetas. Com manhoso jeito, de começo; deliberadamente, sem resguardo, depois:

— Amigos, vamos a fumar. Para entreter o caminho...

— Bem haja, foi extravagância que nunca usei — respondeu o mais velho, declinando o cigarro que o Rosário lhe metia pelos olhos.

E não houve modo de lhes abrir a boca.

Foi só perto de Parada da Santa que, topando-se com outros amigos e moradores de Arcabuzais da Fé, Corgo das Lontras, Urro do Anjo, Ponte do Junco, veio ao fundamento do negócio. Quando chegaram à povoação, tendo-se-lhes associado vizinhos daquém e dalém, chamava-se àquilo uma açudada de gente.

Era à noitinha e na casa deste e daquele se deparou agasalho aos forasteiros. Cearam, beberam e, antes de volverem a suas terras, juntos os chefes no alpendre do Rebordão, concertaram a táctica a seguir.

Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars, arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. Da banda do norte, no sector compreendido pelos lugares de Valadim das Cabras, Almofaça, Azenha, Parada da Santa, Rebolide comandava o engenheiro-chefe Streit da Fonseca. Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.

Nas outras aldeias, sul e sudoeste, Arcabuzais da Fé, Urro do Anjo, Ponte do Junco, Favais Queimados, Corgo das Lontras, superintendia César Fontalva. Instalado no jeep com a sua pasta e as suas plantas topográficas, acolhia afável e risonho a quem vinha. Quando este aparato todo, com a sua mecânica infernal e caras que ninguém vira mais gordas, automóveis pejados de ferramentas, uma carrinha alente -jana com sobrecéu amarelo, vozes, petardadas dos motores, subiu de Almofaça para a serra pelo caminho dos gados, o gentio que restava dentro de muros saiu a ver. Igual apenas os cortiços quando enxameiam:

— Excomungados, vêm-nos roubar a serra!

— Oh, malditos eles sejam!

— Onde vão pastar as nossas pobres ovelhinhas?

— Toque-se a rebate! Toque-se a rebate, e vamo-nos a eles!

E, de facto, os sinos de Almofaça desataram a tocar. Estes passaram senha aos outros, e dali a pouco dez, vinte campanários repicavam freneticamente. Pelas aldeias, velhos, mulheres e crianças, depois de atafulharem no caldo mais umas sopetarras, e meterem na algibeira o seu tropeço de broa com meio queijo ou um sal picão, puseram-se em marcha para a serra, a ajuntar-se às hostes. Estava um dia mortiço de inverno, e na luz baça, esvantes, os longes perdiam todo o relevo. Aos engenheiros em seus jeeps devia ter sido assinalado o avanço das várias colunas de povo que marchavam a corta-mato, subindo os cerros, afundindo-se nos vales para reaparecer mais perto, nítidas e truculentas, com seu matiz de horda, estopa, burel, chitas versicolores nas mulheres, mobilidades fugazes de rapazes e rapariguinhas, e uma ou outra voz mais alta, às vezes um rumor de palavras marteladas, trazidas na refega do vento. Eram seis, dez colunas, afora os grupos por detrás dos oiteiros, que se viam crescer. A certa altura, a falange que parecia mais compacta deteve-se, um galope de cavalo à distância dos caterpillars. Logo vultos se entrecruzaram dumas para as outras, por certo no papel de parlamentários.

Streit, que era homem de expediente, deu ordem para que se iniciassem os trabalhos. As escavadoras por um lado, as juntas de bois por outro, romperam. No intuito de averiguar com que fígados vinha aquela gente mandou os dois Lêndeas falar com eles. Bruno chegou e disse:

— Vós que quereis? Medir-vos com a tropa? Estais muito enganadinhos. Não vedes a cavalaria com as clavinas a tiracolo? Reparai bem para o que ides fazer. Depois não vos queixeis!

— Traidor! Fora o traidor! Fora o Lêndeas que se vendeu!

Bruno Barnabé, ante aquela assuada, temeu-se:

— Não me queiram mal, rapazes! Cada um governa a vida como pode. Eu estou convosco, mas é preciso tino. O chefe é o Rebordão, não é? Onde está ele?

O Rebordão apartou-se com Bruno. Lá estiveram em grande cavaco, primeiro contumelioso, depois amainado.

Na outra turma, onde dirigia Fontalva, Modesto Lêndeas não chegou a assentar pé. Correram com ele. O Louvadeus disse-lhe:

— Aqui não se toca em ninguém com um dedo molhado. Vai dizê-lo ao chefe e deixa-nos campo para cebolas. Mas já!...

No primeiro sector já tinham dado uns bons regos e a coorte sem aparecer. O pelotão de cavalaria 7 e a guarda correram a formar em linha avançada horizontal, coisa dos seus cinquenta metros mais longe, num montículo, assim que viram a horda assomar na lomba, ruidosa e caótica, sumir-se depois na baixa do terreno. Porque se detinha tão inesperadamente? O Lêndeas veio dizer que cada cabeça sua sentença. Uns propunham que se deixassem distanciar as máquinas e arados, e, fazendo-se ali o simulacro de brigar, lhes caíssem em cima e lhas destruíssem. Outros lembravam que se deitasse o fogo ao mato que, ainda que ralo aqui e além, havia de obrigá-los a levantar. E ainda uns tantos, mais desesperados, que se avançasse de peito feito e se desfechasse a um tempo sobre a tropa e os ladrões. Traziam muitas armas, algumas de guerra.

Neste meio tempo, pelos cabeços circunjacentes, apareceram mais vultos, dispersos ou aos magotes, e todos confluíam para a coluna. Ali o sussurro refervia. E repentinamente estrugiu no ar o alarido confuso da marcha, balbúrdia de vozes, gritos altos dissonantes, e até matraqueado furioso de caldeiros velhos. À testa João Rebordão e Manuel do Rosário! La iam, um, dois... um, dois... Já os homens do Governo veriam a bicha de sete cabeças reemergir nos visos do cerro que lhes ficava fronteiriço e avançar desenganadamente para eles. Se não tinham medo é porque traziam quem lhes guardasse as costas!

Depois, pouco a pouco, começariam a distinguir na chusma dos varapaus, das sacholas e sacholos, das forquilhas e gadanhas, as espingardas e trabucos. Os gritos bem lhes advertiriam que ia ser ali o fim do mundo: — Leva avante! Leva avante! E marchavam sempre, um, dois... um, dois... meio alentados ou soberbos da sua força, pois seriam mais de mil. Que dessem a impressão de fandangada, ali não se virava a cara! A menos de cem passos, o Rebordão destacou-se da patuleia, caminhou à frente até a cavalaria, e perguntou ao alferes:

— Quem manda aqui?

Streit acorreu a tempo de se interpor à resposta. Mas dirigiu-se-lhe com tal arreganho e cara feia que o cabecilha achou melhor não repetir a pergunta.

Rebordão, encarando nele, reconheceu-o como sendo o engenheiro que presidira à conferência de Bouça de Rei. Todavia, não se deu por achado. Divisava-lhe uma bela fronte lisa e fidalga, o seu tanto obsessiva, acima do nariz esquadriado, boa para receber uma bala de carabina. E assentou para consigo que a táctica mais pertinente seria picar o ilustre mandarim:

— Então aqui não há rei, nem roque? — tornou com voluntário desconchavo.

— Não senhor, aqui não há rei, nem roque. Há praças de pé e de cavalo que lhe darão a resposta devida, se não se mostrar ordeiro e bem-educado — proferiu Streit.

— Em que faltei à boa educação?

— Baixe a grimpa se quiser que se lhe responda. Diga lá, que deseja então saber?

— Desejo saber quem é o primeiro aqui a mandar. É Vossa Excelência?

— Para que o quer saber?

— Vossa Excelência que me responde desse jeito, é porque é o primeiro responsável. Não preciso de fazer mais perguntas.

Streit afirmou-se nele, depois no povo, e teria pena da sua miséria e sobretudo das suas ilusões:

— Olhe, responsável pelo que aqui se está a fazer, pessoalmente, não é ninguém. Quer dizer, é toda a gente, o Estado, o senhor, eu. Que mais?

— Não era isso. O que eu queria saber era quem governa aqui... quem dirige a malhoada...?

— Quem dirige os trabalhos, quer dizer? Suponha que sou eu. Que tem a observar?

— Tenho a observar muita coisa. Mas para nos deixarmos de tretas, tudo se resume no seguinte: em nome de quanta gente ali vê, e são os povos destas serras, intimo-os a que se vão embora. Que ganham os senhores em cavar a nossa ruína?

— Já se cá esperava — disse Streit em voz de troça para o alferes, a cujo lado se postara. — Vão-se embora, hã?! Então não queria mais nada?

— Os senhores praticam um roubo... — tornou Rebordão.

— Homem, não diga asneiras! Nós cumprimos ordens.

— Praticam um roubo! — repetiu Rebordão em voz soturna.

— Praticamos um roubo...— pronunciou Streit em tom de homem impacientado e colérico.—E depois?

— Depois, fique o senhor sabendo: não estamos dispostos a deixar-nos roubar.

— E depois?

— Depois, nós cá estamos. —Nós cá estamos...?

— Sim, hoje levam os senhores a melhor, amanhã, quando nascerem os pinheiros, hão-de por uma praça a cada um se quiserem que ele vingue.

— Não percebo. Explique-se...

— Se não percebe, não tenho culpa que lhe falte o entendimento.

Streit teria dado conta que estava metido com um serrano nada comum, atilado nas suas letras gordas, com lume no olho e o arreganho do homem audacioso ou temerário. Procurou um caminho contornante. Como, dize tu, direi eu, outros sujeitos se tivessem aproximado, dirigiu-se a um deles, que aconteceu ser o Manuel do Rosário, que pelos cabelos grisalhos, o ar cordo, a camisa de goma, lhe pareceu o mais apto para entabular o diálogo:

— Eu sou apenas um mandatário. Os senhores sabem-no muito bem. Não é a mim que se deviam dirigir. Que posso eu? Os senhores deviam dirigir-se às autoridades do distrito, ao administrador, ao governador civil, e expor-lhes as suas razões. A mim não. A mim não, que sou uma espécie de cabo de ordens. Recebo-as, tenho de cumpri-las. Se as não cumpro, caem-me em cima. Compreendem? Eu, pessoalmente, não tenho prazer algum em contrariar a vontade das populações e muito menos em fazer mal a quem quer que seja. Eu não os conheço, moro muito longe daqui. Não me interessam, particularmente. Já vêem que vêm errados e eu não lhes posso aceitar a deprecada. Não é comigo. Vão ao governador civil, porque não vão ao governador civil...?

O Manuel do Rosário deu um passo em frente e retorquiu:

— Vossa Senhoria não pode aceitar a deprecada, está bem, não pode. Mas o que pode é ir-se embora e dizer ao Governo: não me deixaram trabalhar. Caíram na serra as aldeias em peso e não me deixaram. Se teimo, havia ali açougada. Vossa Senhoria entende-me. Não acolhe a nossa deprecada, mas roda para onde veio sem prosseguir nos trabalhos.

No íntimo de Streit teriam calado aquelas vozes ditadas por uma vontade mais ou menos justa e refincada, se não viessem molhadas dum peremptório que ofendia o seu brio. E não sabendo ou não estando para dar o devido desconto à rudeza daquelas palavras, retrucou-lhe com duas pedras na mão:

— Os senhores não sabem o que dizem. Eu cumpro ordens... cumpro ordens. Cumpro ordens! Nada me poderá obrigar a voltar a face, ouviram bem? Agora, quanto a ameaças, há um pouco aquele senhor... senhor quê?

— O nome não quita! — exclamou o indigitado.

— Aquele senhor proferiu palavras que não podem transitar em julgado. Queria o senhor dizer lá na sua que, nós a arrumarmos os trabalhos e os senhores, a título de revindicta ou represália, a vandalizá-los? B isso?

— Conclua como entender — exclamou João Rebordão.

— Mas é uma ameaça que cai sob a alçada do Código. Ouvi eu bem? Quer-se dar ao incómodo de repetir...?

— Não senhor, não repito. Não sou relógio de repetição.

— Só queria saber se mantém o que disse...?

— Não mantenho, nem deixo de manter. Só na cabeça dum tolo caberia ameaçar quem se apoia na força. A cavalaria há-de voltar a quartéis...

Pouco a pouco a horda fora-se conglomerando. Agora fazia corpo com os seus emissários. Mas dali até o ponto onde estivera estacionada havia gente imóvel, indecisa, dispersa, caminhando a medo ou lesta, como numa feira ao encher ou desmanchar. Dos mais próximos partiram vozes desencontradas:

— Sim, senhor, a tropa há-de-se ir embora. E nós cá estamos! Gatunos! Vão roubar para as estradas!

Streit devia ter notado pela segunda vez que errara o caminho. Todas as aproximações que cometera tinham falhado. Acaso aqueles brutos teriam razão absoluta? Não tinham, mas não valia a pena discutir com eles entrincheirados nas suas meias razões e bater e rebater a leria consabida. De princípio dera mostras da maior pachorra a ouvi-los, agora parecia irritado. À volta, todos os do partido da ordem olhavam para ele silenciosos e com imensa curiosidade. Por que porta digna sair-se que não fosse pela porta do mando? Num gesto autoritário, que a seus próprios olhos investiu de maior prestígio, ordenou para a guarda republicana que estacionava a poucos passos hirta e solene, com a atenção redobrada de quem sabe estar prestes a receber ordens graves:

— Prendam-me esse homem!

O homem é que não esperou que as manápulas das praças se ferrassem sobre ele. De dois saltos prodigiosos, dando a impressão, na celeridade com que girou sobre os calcanhares, duma péla que ricocheta, pôs-se a coberto da acometida das praças, uns metros atrás. A gentiaga é que, tendo-se apercebido da manobra em seu início, não correspondeu à sua cinemática com oportuna reacção, dada a rapidez com que evoluíra. Foi assim que cresceu para a guarda e para Streit com grande berreiro e rópia. Alguns soldados tinham corrido atrás de João Rebordão. Como porém ele era lesto e desembaraçado, varredor de feiras a cacete nos seus verdes anos, perna cinegética, esquivou-se-lhes facilmente. Foram engalfinhar-se num homem de Valadim das Cabras que se lhes atravessara no caminho e se debatia. E, como se debatesse, um dos guardas, mais violento ou insofrido, mandou-lhe uma coronhada à cabeça. Um tiro partiu, e o guarda largou a espingarda da mão e caiu de borco.

Os demais guardas dispararam então à carga cerrada sobre o monte. Seguiu-se-lhe o mais desarvorado tumulto. Fugiam uns e iam enrodilhar-se com outros na precipitação da correria; bradavam estes por socorro, estirados por terra ou de rojo, feridos do tiroteio ou apenas lesos dos trambolhões; muitos choravam e ainda alguns mostravam ares de resistir, agarrados a estadulhos e escopetas, encabritando-se contra a tropa.

Streit veria com olhos pávidos a sarrafusca tomar corpo e sabe-se lá em que proporções! Quis atalhar, com recorrer à persuasão e criar uma terra neutra entre o povo e a força, e saltou para o jeep. À sua volta tudo eram clamores, tiros, cacetadas, gente desvairada, no primeiro plano e ao longe. Mandou avançar para o ponto que se lhe afigurou ser o centro do motim, onde os valentões das aldeias se digladiavam com a guarda. Gritou: — Tenham mão! — quando um tiro de arma caçadeira, despedido de flanco, lhe acertou na face esquerda e omoplata. Levou instintivamente as mãos à fronte e caiu cerce sobre o assento sem soltar um gemido.

A cavalaria, que se apercebeu do lance, abateu-se de espada desembainhada sobre os sediciosos. Não foi preciso dar fogo, e pode considerar-se milagre que o alferes se não lembrasse de o fazer. Três ou quatro dos pimpões foram calcados ou acutilados, e a turba derramou-se aos quatro pontos, cada um se chamando às de vila-diogo. Mas no terreno jaziam mortos e feridos. Além de Streit, do cabo da guarda, de três homens e uma rapariga, por sinal uma bonita rapariga, mortos ou com poucos sinais de vida, mais de cinco se rebolavam no chão, implorando que lhes valessem que morriam. Outros, descosendo ao largo a passo incerto, por entre as urgueiras e os penedos, amparados a amigos ou parentes, deviam ir bem provados.

Trataram de acudir aos feridos e, a toda a pressa, de transportar Streit para a aldeia mais próxima que era Arcabuzais. No termo desta localidade não houvera barulho. Com grande espanto de todos, foram encontrar a força pública confraternizando com o povo. Andavam de mão em mãos as borrachas e os salpicões.

César Fontalva, quando viu o seu colega e superior rolando contra as almofadas do jeep um olho vago e átono, que o outro desaparecia debaixo dum penso de emergência, deu graças por lhe ter sido poupado transe igual. Em verdade, também contra ele avançara em vaga alterosa a multidão das aldeias. O comandante do pelotão, para ali destacado, propôs--lhe não permitir ajuntamentos de mais de cinco pessoas e, em última análise, dispersá-los.

— Não, deixe lá vir a gente!

Romperam para ele em pé de guerra as aldeias insurrectas com seus cabecilhas: os Louvadeus, o Justo e o Nacomba por Arcabuzais; o João do Almagre pelo Corgo das Lontras; Afonso Ribelas por Favais Queimados; José Rela pela Ponte do Junco; o Alcides Fidalgo, por Toiregas, etc. etc. E depois que eles formularam, glosaram, retrautearam suas reclamações até à saturação, até ao enfado, despachou-os:

— Os senhores não têm razão, mas julgo-os sinceros, animados por um legítimo espírito de defesa, o que, quanto a mim, quer dizer que não foram assaz esclarecidos. O revestimento florestal das serras só lhes pode ser útil, hão-de acabar por reconhecê-lo. Mas não é agora ensejo de renovarmos a discussão. A obra de convencimento requer vagar e ordem. Suceda o que suceder, adiam-se os trabalhos. Adiam-se na impossibilidade de prosseguirem em boa paz. Por nada deste mundo consentirei que este meu sector se converta em cemitério. Senhor tenente, eu assumo a responsabilidade.

O tenente porém não queria ceder. Tinha vindo para assegurar a liberdade do trabalho; se os condutores de caterpillars e arados mecânicos, bem como o demais pessoal, entendiam que deviam trabalhar, ele estava ali para os proteger.

César Fontalva respondeu-lhe:

— O senhor retira-se com a força e apresenta o seu relatório. Pode dizer que perante a obstinação do povo destas aldeias, que têm sido até à data os donos da serra, fui de parecer ou decidi, melhor, decidi que não era oportuno recorrer à força. Esta contenda há-de resolver-se à boa paz. Eu sei, eu sei muito bem que a tendência hoje é impor a vontade de cima pelas armas e outros meios de violência, pois que partem do princípio que exercem a missão mais esclarecida e patriótica. Uma gradação desta autoridade discricionária vem desde o mais alto, o chefe, até o mais ínfimo, o regedor. Eu, no meu escalão, enquanto que investido desse múnus, entendo que cumpro um dever de cidadão obtemperando a tais desmandos. Estão suspensos os trabalhos!

— Lavro o meu protesto! — exprimiu o tenente.

— Lavre e faça favor de retirar-se com a força.

Ia a despedir, chegou a coluna do Norte com os feridos. Compungido e angustiado, César Fontalva disse para o comandante, no acto de subir para o jeep e acompanhar o colega para hospital de Lamego:

— Viu o que evitámos? O oficial torceu os lábios:

— Quem me garante que foi por não empregar a força a tempo que tal sucedeu?

A turbamulta, perante os desastrosos sucessos, absteve-se de qualquer outra demonstração. Pouco a pouco foi desarvorando. Começou a rorejar do céu uma cacimba álgida, granulosa como missanga, que encurtava os horizontes e veio a talho para estimular a retirada. Quem tinha capucha, envolveu-se nela. As mulheres puxaram o lenço para os queixos.

Muitos embezerrados na paisagem hibernal, os penedos reparavam para a balbúrdia com olhos de princípio do mundo. Acima de um deles perfilou-se um vulto: era o filho do Lêndeas. Para Arcabuzais, os sinos desataram a dobrar a finados e os sons, misturando-se à atmosfera, pareciam precipitar a escumilha que perlava a terra e ia pendurando a cada folhinha do matagal as mais ludibriantes cintilas de prata. Manuel Louvadeus veio para o engenheiro:

— Senhor, dê-me licença que lhe agradeça em nome dos habitantes destas serras. Nós, sim, não teremos razão, mas ainda não nos demonstraram que a não temos. Antes de nos balear, façam o obséquio de nos abrir os olhos.

César Fontalva viu ao lado o lenço vermelho de Jorgina, a ponta a esvoaçar ao vento, e os olhos pretos luminosos que o fitavam. E, só por isso, sentiu-se reconfortado nos riscos que ia correr.

 

Os fígados de Teotónio Louvadeus recoziam em fel e vinagre. Tinha o filho preso como cabeça de motim e hora a hora ressoavam na Rochambana os tractores e caterpillars puxando os arados mecânicos, que revolviam os baldios da serra dos Milhafres. Não ouvia apenas o zumbido dos motores, divisava os homens dos recados subir e descer às suas horas pelos carreiros da serra para: as aldeias, a pé, singularmente, ou nos jeeps, e abanava a cabeça com fereza. Tinham-lhe pedido também autorização para vir buscar água à fonte.. Vontade tinha ele de a envenenar e matar quantos ali trabalhavam, a começar pelo engenheiro. Mas acima de todos os rancores estava a obra de misericórdia: dar de beber a quem tem sede. A água da fonte não merecia ser envolvida nas disputas dos homens. Nascendo tão branca e pura, a obrigação de todo o filho de boa mãe era deixá-la em seu ser.

Quem negava uma sede de água? Viessem pois buscar quanta quisessem e fosse o próprio diabo do inferno. E, afinal, para o seu génio, foi pior que o próprio diabo do inferno, pois que o primeiro a aparecer havia de ser nem mais nem menos o Barnabé a encher dois garrafões. O engenheiro César Fontalva tinha-o despachado para Parada da Santa, lá para a vertente norte da serra, onde não faria mal. O homem, com o engenheiro substituto, tanto se queixou, ou pediu, que foi transferido para o sector de Arcabuzais.

Teotónio desde esse dia ficou com ele debaixo de olho. Quando o vira buscar água, tratou-o porém como ao mais inocente e leal dos empregados da Floresta.

— Malandro, pela manha não me hás-de tu vencer — disse consigo.

Haviam instalado dois campos, um a uns duzentos metros do marco geodésico, talefe como lhe chamavam, num pequeno recosto do oiteiro, com abarracamentos de ripa e lusalite, quartel para a força da G.N.R. e telheiros para as máquinas, perto de Valadim das Cabras. A casa do agrónomo-chefe, bem como a do comandante da força luziam seus panos de tijolo rebocado a cal, mais acima, numa abrigada platibanda.

Superintendia neste sector um engenheiro, transferido da serra da Arga, provado já nesta espécie de trabalhos e com fama de dinâmico. Ter fama de dinâmico na escala das actividades oficiais é suporem-no apto a tudo, vender a alma ao Diabo ou dar um sopapo no cofre e passar as palhetas para as Américas.

O segundo campo ficava a menos dum quarto de hora da Rochambana, a corta-mato, e desse eram os ecos que arrepiavam os cabelos ao velho montanhês, Embora mais diminuto, compunha-se de iguais dependências. À testa estava o engenheiro silvicultor provisório, enquanto não concluía a sindicância a César Fontalva.

O tenente Montalto apresentara um relatório em que era acusado de tíbio e haver pactuado com os desordeiros. Argumentavam os seus superiores hierárquicos, que tinham por ele a maior estima, junto do Ministro:

— Se no sector i houvera que suspender os trabalhos com perda de vidas e derramamento de sangue, decerto que há algum mérito em que no sector 2, posto se não haja obtido melhor resultado prático, não tenha havido distúrbios e, muito menos, morte de homem. Correspondentemente as populações parecem dispostas a uma aceitação.

O argumento calou no ânimo de S. Ex.ª que prezava a dialéctica, ainda quando vinha desaguar a um paradoxo, que não valia a pena destorcer, e era de presumir o reconduzissem ao seu posto. Fosse como fosse, Fontalva passava pelo desaire dum inquérito, de que resultava estar erguida sobre a sua cabeça a espada de Dâmocles.

Streit escapara com vida, mas ficara indelevelmente estropiado, tendo perdido o olho direito, o olho da vidraça. Tal estropiamento, que alguns consideravam, simbólico, em tanto que na qualidade de delegado do Governo ficava como ele ciclópico e unilateral em tudo, era caso candente. Reformado, o seu aleijão e o atentado de que fora vítima reclamavam sanções. Uma horda de agentes foi desaçaimada sobre a serra, com pistolas-metralhadoras no braço e grande cópia de jeeps. Aqueles dos sediciosos, que tinham descido a vias de facto, como ter feito fogo, não obstante o sigilo de que se cercara a expedição repressora, tiveram ventos e puderam esgueirar-se a tempo através de bouças e devesas e por trás das paredes dos quintais. De modo que apenas conseguiram filar aqueles que não receavam ser presos, por isso mesmo que não tinham tomado parte alguma no motim ou o seu papel fora de manifesta cordura. Mas a ordem pública, representada pela polícia secreta, precisava de criminosos, e deitou a mão nas dez aldeias serranas a todos aqueles que, sem deixar de representarem oposição à empresa de repovoamento florestal, punham algum vulto pelos teres, o mester, ou ainda pelo prestígio moral, que é o menos entre bárbaros. Nesta redada, de todo imprevista, a que não pareceram estranhas sugestões locais, foi preso o Manuel Louvadeus, o Nacomba taverneiro, o Justo Rodrigues, presidente da Junta, Manuel do Rosário, Alonso Ribelas, Joaquim Pirraça e os principais de Azenha da Moura, Corgo das Lontras, Valadim das Cabras, Favais Queimados, etc. etc. Ao todo uns vinte e quatro lapónios, que nunca sonharam ir parar com os ossos à cadeia, patudos, sisudos, abelhudos e o mais que comporta o udo em matéria de abdómen, paz familiar e cívica. Fornecera os nomes o Dr. Labão depois de ter ouvido o Lêndeas. Este vingava-se de agravos velhos e varria o seu campo de taverneiro. Os pobres diabos presos arrancaram os cabelos e chamaram-se uns infelizes da sorte. Choraram-se, e alguns tanto se desmancharam de seu pobre ser que foram até denunciar os parentes, exagerando-lhes as culpas, não falando daqueles que efectivamente tinham defrontado a força ou simplesmente aparecido armados. Mas este desvestimento sem pejo, esta rendição moral, esta aviltação do carácter, grata ao poder quando se trata de pessoas de importância ou relevo social, não lhes interessava individualizada nos tristes lapuzes. Eram apenas precisos bodes expiatórios. E de cambulhada deram entrada na cadeia comarca à espera que se decidisse o ulterior destino.

De todos eles, no geral lastimosos, gemebundos, a queixarem-se deste, a arrenegarem daquele, e que agora juravam e trejuravam obediência a rei e a padre, a lamberem as botas do Dr. Labão, Manuel Louvadeus foi um dos que se conservaram mais dignos, imperturbáveis e serenos, não acusando ninguém nem consentindo que os seus o fizessem e tão-pouco o lastimassem. Assim altivo e silencioso se deixara conduzir para a vila entre dois façanhudos e engravatados secretas. E esta atitude singular bastou para o indigitar como um dos chefes da sublevação.

— Chefe? — regougou o pai Teotónio, com manha tirando o gorro para mostrar os cabelos brancos diante dum dos importantes beleguins. — Olhe que não, senhor. Meu filho é apenas um homem honrado e com vergonha na cara.

— Pois desses é que nós precisamos. Desta lama estamos fartos — e apontava o comum de presos, mais lamentáveis que carneiros à porta do açougue.

Após a primeira leva, com o que já davam a primeira satisfação ao Moloch da ordem pública, a bufaria correu as aldeias à busca de mais sediciosos que tivessem praticado actos puníveis pela lei. O João Rebordão teve artes de se homiziar para as Quintas da Penha-Vouga, brenhas e lobos, se é que já não ia a caminho do Brasil como se rosnava. Os outros esparvaram a tempo. Os secretas apalparam o amojo a algumas raparigas e apanharam ainda com algumas fragadas por detrás da orelha, justiça à turdetana ainda em voga nos poviléus de granito. E depois de consumirem as fitas das metralhadoras, terem queimado pólvora aos pardais, retiraram para a arce da Rua Formosa, dando por finda a montaria com porem no tableau, como espécies de primeira envergadura, duas dúzias de pategos, mais inocentes, se é possível, que os primeiros.

Durante um mês, enquanto o poder digeria a sua cólera, Bouça de Rei andou em rebuliço com a assistência e romaria aos presos das populações serranas. Rejubilavam os tendeiros que vendiam a mixórdia, a sardinha frita, e o seu metro de baeta, como nos dias de mercado, e o carcereiro que a troco de concessões sigilosas, como deixá-los sair uma vez na semana a ir ver as vaquinhas e dar uma umbigada nas mulheres, trazia a pata bem untada. Por sua vez advogados e escrivães esfregavam as mãos. O merino serrano, e aqueles eram grados se bem que da espécie inferior, ia fornecer lã à tosquia. As trutas, os cabritos, a cesta de ovos, mesmo a sua perna de vitela começaram a defluir para a sede da comarca no intuito de propiciar o julgamento que se anunciava. Nunca o Lambão teve a copa assim abastecida. E de repente, patratrás, surgiram, uma bela manhã, as camionetas celulares e transportaram para o Porto as vinte e quatro feras. Estavam implicados no art. 17.0, I.°, do Código Penal — crime contra a segurança interior do Estado — e pronunciados pelo Ministério Público. As famílias não tinham sido mesmo prevenidas. Os visitantes ficaram assombrados com sua cestinha de comes e bebes no braço. Algumas mulheres romperam num berreiro tal que o senhor delegado teve de despachar-lhes o oficial de diligências para que calassem a caixa, senão que as metia na casa das ratas. A casa das ratas era a enxovia do concelho.

Quando Teotónio Louvadeus se apresentou, como todos os sábados, para ver o filho, com o farnel aviado, encontrou-lhe o lugar. O velho franziu os lábios, abanou a cabeça, e disse:

— Safadeza! Que mal fez o meu filho? Hão-de mas pagar!

Foi ter com o administrador, que era compadre dum seu compadre, a quem untara a triple barbela, noutros tempos, com trutas do corgo. Por ele soube que o filho era acusado particularmente de cabeça de motim, incitador à desordem no sector 2 do perímetro florestal e de porte de arma de guerra. Em abono, quanto à existência de um rifle em seu poder, citavam-lhe as palavras, ao chegar do Brasil, reportadas por tais e tais testemunhas: o velho Barnabé e o filho, e dois guardas, filhotes de Toiregas, contubernais do Bruno. Antes de lhe bacorejarem os nomes, Teotónio tinha já deitado o palpite no safardana do Lêndeas, como sendo o Judas e o homem protervamente delator. E não se conteve que não rosnasse:

— Ah, cão, cão, que mas pagas!

— Que cão é esse que lhas paga? — perguntou um sujeito que entrara na sala e se pusera a ouvir de soslaio.

— Cão, falei em cão?! — tornou o velho serrano, erguendo a vista para o senhoraço que o fitava muito atento e cuja curiosidade lhe cheirou mal. — Onde anda a minha cabeça!? O ladrão do meu cachorro foi-me ao farnel e larpou-me tudo.

Regressou a Arcabuzais e sem se demorar no povo, mesmo para comer, depois de dar a má notícia e deixar a todos alagados em pranto, subiu à Rochambana. Ia irado e meditabundo. Suspendia as cogitações, encapeladas no peito, para proferir:

— Hás-de mas pagar, cão! Pagas, pagas, que to juro eu!

As ameaças saíam-lhe da garganta involuntariamente como o arruaçar do Farrusco quando sonhava. Uma das vezes, espertou ao seu eco. Não, ninguém estava a ouvir. Podia repetir alto e bom som: — Ah, cão, cão, que mas pagas! Pagas, pagas! O bufo aqui não me ouve. Mas, Teotónio, já tinhas idade para não ser asno! O que tiveres de fazer, alma de Barzabu, não o digas a ninguém. Nem ao teu anjo da guarda, quanto mais em voz alta, como fizeste na vila, a ponto de dares no goto dum bufo!

A casa da Rochambana, que para comprazer com o filho sempre anuíra a que se fizesse e se acabara de paredes na primeira semana em que ele entrara na cadeia, estava pronta de telhado. Manuel Louvadeus, encarcerado como estava, assistia à traça toda, dispondo assim e assado, e tanto criticava como corregia. Afonso Domingues, o arquitecto cego da Batalha, não estaria mais presente. E face à obra de pico grosso, quando na saltada permitida pelo carcereiro, a pôde vistoriar, declarou-se amplamente satisfeito. Os carpinteiros iam agora entrar em cena para soalhos e obra de esquadria. Andavam os serradores a serrar madeira na mata, que a casa possuía pinho velho e de bom cerne nas corgas da serra.

De modo que dentro de breve a moradia estaria habitável. Para o Natal, poderiam mudar para lá. Com as obras e as despesas eventuais da prisão, além de que os advogados tinham já estendido a mão a título de preparos, o pecúlio que o filho trouxera de Mato Grosso tinha ardido. Para acudir a verbas inelutáveis e terminar o edifício, decidiram vender a casa do povo. Um brasileiro, que voltara com dinheiro fresco, pegava-lhe e já a sua oferta não era de quem queria adquiri-la na boca do lobo. Mas Teotónio sentia uma retulância surda de parte da nora e dos netos, e ia adiando dar solução ao assunto, tanto mais que instalarem-se ali levaria o seu tempo. Tirou dinheiro a juros. Esse engulho, dentro do seu peito, assolapava-o. Razão tivera ele quando chegara a observar ao filho:

— Tu, meu homem, que já tens andado pelo mundo, bem sabes: quanto maior é a nau, maior é a tormenta. Contenta-te com a casinha do povo que estás lá bem. Não penses em casa nova. Eu cá onde fico melhor é na cardenha da Rochambana. Ali não se gasta um chavo. Mas faz como te der na cabeça. Com o que Pedro sara, Sancho adoece. Sempre assim foi! A barraca para mim vale o palácio dum rei.

Manuel proferiu em pé de cantiga:

— Olhe, senhor pai, vossemecê lá tem os seus gostos e costumeiras. Por mim não lhe levo a mal. Se quer, não se pensa mais nisso. Lá reza o provérbio: mal vai à corte onde o boi velho não tosse.

— Não, senhor, não, senhor. Tu assim o meditaste, seja. Não faças caso da minha rabugice, deves saber: a perro velho não digas bus, bus!

Estava pois a casa quase feita. Bem ou mal, já não tinha remédio. Mas conservavam a antiga, à espera de melhor lanço — dizia Teotónio.

Entretanto ele repartia-se entre o amanho da terra, as obras e a sua acção vesperal de caçador furtivo. Raramente ia ao povo. Se ia, era quando lhe faltava o pão e uma vez por outra o verdasco na botelha ou o petróleo na candeia. À parte essas surtidas, dali não arredava. Com o Farrusco ao pé, não entrava dianho com ele. A cabra, a Coroada, estabulada ao fundo da palhota, dava-lhe leite suficiente. O seu rescendor atraía por vezes os lobos estramontados de longe e que, ignorantes dos usos e costumes do serrano, vinham uivar para o outeiro. Quando não era a reiuna, era o Farrusco que lhes respondia. Às vezes caíam sobre a serra neves que por muitas horas coalhavam o céu de brancuras aladas, e pouco a pouco revestiam árvores e arbustos duma alva puríssima. Teotónio punha-se à porta da cardenha a vê-la cair. E meditava: Que fizera o seu filho? Uma pessoa tão boa, tão simples, estimado por todos, a começar pelo padre e por aquele santo homem, tão prestável e sabedor, que era o Dr. Rigoberto! E a par e passo que concebia um ódio entranhado contra a iniciativa do Governo, aquele vir meter-se com quem estava quieto, fervia em rancor contra os beleguins da terra que, a soldo, traíam a causa dos seus irmãos serranos como Bruno, filho do Lêndeas. Ah, grandes contas tinha a ajustar com semelhante pandilha, desde as de longe, umas já velhas, muito graves, a respeito dum assunto que lhe dava náuseas revolver, às de agora! E surpreendia-se a regougar como os tais rafeiros de má raça que até no sono persistem hirsutos:

— Ah, cão que mas pagas! Pagas, pagas!

Para não morrer afogado na raiva, com a sede de vingança que o consumia, não obstante aquele ruído dos motores a um quilómetro dali lha alimentar hora a hora, valia-lhe a obrigação de prover às suas coisas, e não ter mãos a medir.

Entrara Outubro de rópia, com as manhãs alvacentas dos codos e os socos serranos pelos caminhos a retumbar como se fosse por cima duma abóbada de pedra.

Não havia para as caçadas furtivas como os dias de caramelo, quando o próprio mato das brenhas parece arreganhar com a algidez insuportável. Os coelhos saíam das luras à beira dos rios e vinham valsar nas clareiras onde há touços de junca e erva viridente. Aliviavam o fole nos cerrinhos em muladares sabidos, depois de fairarem, baterem o talão, terem as suas cismas ou bulhas uns com os outros. Era aí que ele, pelo lusco-fusco, lhes armava os ferros. O frio congelava os rescendores da natureza. Por muito esperto que fosse o seu olfato, nada trairia a passagem do homem ou bichos que se denunciam por uma gama de chulés, inscritos à flor do solo como sinais. Vinham eles aos pulinhos, tep, tep, tep, tep, coçando às vezes o nariz, dando uma sapatada de medo à folha que, tomada do vento, se tornara asa. Acontecia virem com o seu aperto. Depois de se certificarem que não havia inimigo na costa, corriam ao poio. E, catrapás, punham pé na zona minada e os dentes da máquina infernal filavam-nos pelos rins, quando não lhes partiam logo o espinhaço. Nesse dia de regelo e sideração, os animais montesinhos, coitados deles, costumavam também seguir pelos carreiros e linha das estremas. Tinha de ser. Cada ramo, estroncado no mato, tornara-se espeto e os algares estavam cheios de navalhas. Sobre os alagoeiros estendia-se uma vidraça que não dava gosto nenhum atravessar ao que era de atraiçoada. As demarcações para os bichos são como as avenidas para os homens. Quando se vai para longe, quem deixa o caminho certo pelo atalho? No meio das terras, as fibrilhas jaziam dobradas para o chão e tesas como se fossem de lata. Por ali não havia pábulo nem bom andar.

Em dias friorentos ou de céu a ameaçar neve, os coelhos vinham ao toural logo à boquinha da noite, e havia que madrugar a erguer as armadilhas. Senão, o lobo, a raposa, o pilho de dois pés zarpavam com a mamata. Às vezes, rinchava pelos picotos Um vento tão velhaco que nem todos os escrivães de Portugal a borrar papel selado nos cartórios contra um pobre delinquente. Teotónio terçava a capucha para o ombro e afundia o queixo- nas suas dobras. Nem neve nem escuro lhe faziam frente. Se alguém receava era o Zé da Pampolinha, pastor e ratoneiro fino, que não perdia a balda de o espiar, dos altos, a coberto dos penedos, pelo meio das matas, descosendo-se como um trasgo de tronco para tronco, olho gázeo a arder. Só por si este ladronico desinçava a serra de caça, pilhando todas as louras e ninhos de perdiz. Pelos montes, atrás das badanas, sobrava-lhe tempo para armar costilos e esparrelas. E raro era o dia que entrasse em casa sem uma cambulhada de passarinhos.

Uma ocasião Teotónio apanhara-o em lugar escuso e estendera-lhe duas boas cacheiradas pelos lombos à conta dos coelhos que lhe bifara.

Não se passava noite que não armasse os ferros sucedendo, quando Deus queria, todos pegarem caça. De quando em quando, era a raposa que caía no laço. Se a dentuça de ferro não a agarrava pela suã, mas por uma perna, fugia com ela de rastos. Aconteceu--lhe ir topá-la a mais de quinhentos passos, atravessada contra uma urgueira.

Algumas vezes ainda a raposa segava a dente o jarrete filado e ia escoar-se em sangue no brejo, se é que não resistia e ficava perneta para toda a vida. Não andava uma sem uma das patas de trás na serra dos Milhafres? Por sinal que era tão mitrada que dava sinais às outras e a que mais ladrava nos oiteirinhos. Fartava-se de esporteirar e aconselhar as comadres: Vocês façam assim, façam assado. As zorras, quando havia fartura de caça, davam-lhe o seu quinhão. Era uma espécie de rainha mãe.

De ordinário, o açougue cunicular do velho Teotónio procedia das expedições furtivas. Também as lebres, pelas noites de codo e de insensibilidade celeste, largavam da cama no trolho dos centeios e nos lameiros, em que a água é aconchegadora como um tapete, ao abrigo de dois fetos avelados ou de um tojo mortiço. A samarra que Deus lhes deu, mais sedosa que cobertores de papa, defendia-as do codo e do ferrão da neve. Mas, largadas do covil à boa paz, são fidalgas e não gostam de empecilhos. Em vez de azangar os trolhos, tomam o caminho mais directo para as demarcações e vão por ali abaixo direitas à horta ou ao antigo chão de milho onde as couves se desorelham de fartas. À falta de melhor, a lebre come de tudo: mato, erva, serradela, labaças. Mas pelo que elas dão o cavaquinho é pela couve troncha e galega. Para chegarem ao grelo ou às folhas altas, sempre mais tenras, fazem, postando-se nas pernas traseiras, um pino com muita graça, mal equilibrado, como o do canguru ou o dos meninos quando aprendem a andar. Teotónio era mestre em tramóias. Às lebres armava fios de latão, presos a uma pedra por um nagalho. A lebre que, em busca de cibo ou a desenregelar os quadris, rompia pela estrema das belgas ou pelas seitas costumadas, subitamente via-se enredada no arame. Quê? Dava um empuxão e mais o nó corredio a apertava. Em seu desespero debatia-se e tornava a debater-se. Bramaria mesmo. Era a estrangulação inevitável. Na alba Teotónio ia encontrá-la hirta, orelhas caídas, o belo pêlo sedoso revolto como uma fronha amarfanhada. Grande minuto de júbilo esse em que agarrava com manápula nervosa a felpuda samarra da maçarica dum lindo açafroado com zonas de branco puríssimo! Como era caça proibida, toca para baixo da capucha. Entrava em Arcabuzais ou na Rochambana por ínvios caminhos e a recato. Já mais de uma vez estivera a cair nos galfarros da Guarda e dos agentes da venatória. Mas o seu sexto sentido de selvagem prevenia-o a tempo. Sabia que lhe andavam na cola como temível armador de ferros aos coelhos, fios às lebres, e desanichador de ninhos de perdiz na sazão da postura. Os agentes da venatória agora faziam-se acompanhar dos guardas-florestais da serra dos Milhafres, e um deles, dos mais assíduos nestas batidas, era o Bruno Lêndeas. Tinha a favor morar no acampamento, a menos de um quarto de hora da Rochambana, e poder trazê-lo quase debaixo do olho. Mas o velho Teotónio não se dera por achado. E, sentindo-se vigiado, por sua vez espiava o vigia, sem que ele desse conta. A vantagem dele estava neste desentendimento aparente. Em tais manobras, tinha para o auxiliar o Farrusco. Este cãozinho magrizela, sempre a tremer as maleitas, com ar de esfomeado, quando a verdade é que onde comia o amo comia o cão, talvez atormentado pela solitária, a um quilómetro de distância dava conta de quem ia e vinha. Teotónio ensinara-o a não ladrar e só a grunhir, de modo que se tornava a mais preciosa das atalaias.

Foi ele que lhe valeu num daqueles apuros que ficam assinalados na vida dum caçador furtivo, mas que não assoalhou de ninguém, porque o segredo era a sua força, como o andar em pés de lã era a força do lobo, seu irmão mais próximo. Tinha ido armar os fios na folha de Bazulais do Frade entre umas leiras do Lêndeas e o campo do Nacomba. Um ao alto, perto do caminho que levava de Arcabuzais para Urro do Anjo, e outro ao fundo já ao avistar do rio. Quando levantou da cama no lusco-fusco da manhã, com grande espanto seu, deu de cara com uma camada de neve que, embora mansíssima, tão densa viera que estendera sem a mínima quebra o seu lençol pela serra toda. Teotónio não a sentira no seu ninho de feno e o Farrusco parecia tão admirado como ele. De ordinário Teotónio podia de manhã ser surpreendido pela neve, mas não que estivesse inadvertido da sua chegada. Lia-a no cariz do céu, no meneio das aves, nos insectos que suspendiam a zanguízarra, na agitação do cachorro, mais atanazado das pulgas, nas plantas que, muito hirtas e graves, esperam a neve como uma epifania. Já se sabe, não faz barulho nem bate à porta como a chuva, ou como o vento. Mas a ele bastava-lhe o olfacto para a sentir a sete léguas de distância. Observando o horizonte, conhecia se nevava dos lados da Estrela, ou de cantaril, que é a mais dominiosa, ou dos lados de Montemuro a brava e rota. Velhaca e traiçoeira era a que vinha das bandas de suão, tanto assim que lhe chamavam a ladroa. Neve de má raça! Essa não precisava que lhe abrissem as portas, irrompia pelas frinchas e gretas dos telhados sem pedir licença a ninguém. Às duas por três, estava metida na cama com um santo, sem se saber por onde viera. Lá fora, nos braços do cieiro, era uma rascoa de mitra e gaita. Cortava a carne como se trouxesse uma navalha de fadista. Na manhã, o mundo era um lençol de defuntos. O degelo levava às vezes dias. Devagar tornava à sua feição e Teotónio assistia aquilo como ao regresso interessado e impaciente dum cativo.

Às vezes fazia luar e Teotónio especava-se no traço da cabana a vê-la cair, zebrando o céu com a sua farfalha, aquela farinha mal moída que caía sem relego, uma após outra, uma após outra, como se a Lua fosse a moega. Outras vezes, engoiado no casulo de palha, dava fé pelo alicate que lhe apertava a orelha ou pelo abambar das giestas no tecto da cardenha sob o peso desconforme. O Farrusco, pela manhã, botava-se de corrida para o mato para desentorpecer as pernas, atrás dum hipotético laparoto, ou a fazer qualquer necessidade, que era um cão asseado. Mas volvia em continente, que não gostava nada que, sem uma razão poderosa, as moscas brancas lhe poisassem no samarro.

Por via de regra, nesses dias, os coelhos vinham-lhe pandegar para o ferregial, ao fundo da tapada, onde a água de lima não deixava que a neve coalhasse. Era como atirarem-se para dentro da caçoila. Por aqueles cabeços à roda, sabia também o refúgio onde se acoitavam, dormitando com um olho, vendo com o outro sarabandear os flocos. Lá ia fuzilá-los, quando lhe puxava. Não raro, acudiam também à beira do corgo ripar a febrinha verde, que o bafo morno da corrente mantinha em seu desafogo vegetal. Dias de muita bicheza! Os lobos uivavam nos penedinhos. Deixa uivar! Trazia a escopeta bem escorvada e, posto que sozinho naquele ermo, não sentia o menor calafrio ante a aceradíssima lança da voz macarena. A cabra ruminava silenciosamente de joelhos, ou comia o molho de feno e fetos secos que lhe tinha de reserva, em suspensão de duas estacas contra a parede. Só era azevieira no período da sua lua. Fora disso, era inteligente e mais dócil que uma alma verdadeiramente cristã.

Pois fora numa das tais manhãs de neve dissimulada que Teotónio metera a corta-mato para Bazulais do Frade a levantar os fios, o cãozinho à frente de batedor, cheirando aqui, fusgando além, mas sem grande entusiasmo, pois sabia qual a missão em que ia. O primeiro fio estava intacto. Rompendo adiante, pareceu-lhe descobrir na neve, atupido por flocos posteriores, o rasto duma lebre. Assim foi com a venta alçada de caçador que avançou para o segundo fio. Fio que é dele?! Descortinou logo uma rasteira pela testada abaixo e palpitou-lhe que a lebre caíra no laço e se fora arrastando com a pedra em direcção ao rio. E foi andando, excogitando sempre, até perto da margem, e já começava a descoroçoar, receoso que a lebre houvesse acabado por soltar-se, quando a foi encontrar enrodilhada contra um talude, quase rente à água. Bonito bicho! Pegou dela, esticou-a que encorquilhara com o gelo, e leu-lhe o escrito. Era um velho lebrão com guizos maiores que os de um carneiro. E estava neste sanfo enlevo quando o Farrusco o advertiu com os seus ganidos sufocados que vinha lá gente. Olhou. Eram duas praças da Guarda com um guarda-florestal, que desciam do monte em frente a uns quatrocentos metros e cresciam para ele a passo acelerado. E agora, Teotónio? Fugir, nem pensar nisso. Aqueles meninos, se eram os trastes que supunha, não se ensaiariam duas vezes para lhe mandar uma ameixa pelas costas. De resto eram rapagões fortes, ali descampado, para poder largar numa carreira e emboscar-se. Esperar a pé quedo, pior. Enterrar a lebre, na neve, tinha lá jeito?! A multa era certa, com a apreensão e ele conduzido para o chilindró.

— Que hás-de fazer, Teotónio?

Por acaso os olhos caíram-lhe no cancelo da leira, muito esbandalhado, com as tábuas apodrecidas e desconjuntas. Arrancou uma delas, deitou a lebre em cima, ligou-a com os dois fios e, aproveitando o instante em que os três guardas se afundavam na baixa do terreno, empurrou-a para a corrente do rio. O caudal ia grosso e, num abrir e fechar de olhos, a jangada estava longe.

Os guardas chegaram e, inseguros quanto aos* manejos do Teotónio ou não querendo incorrer em logro, não lhe perguntaram pela lebre. Mas sim:

— Deixe lá ver o que traz aí debaixo da capucha?

O velho abriu as duas abas do burel. Eles depois estudaram o chão.

— Que restolhadoiro é este?

— Meus santos, perguntam bem. Bichos que andaram aqui às bulhas, raposa que comeu láparo, sabe-se lá!

— E você que anda a fazer?

— Decerto não ando a roubar. Mas querem-no saber? Para que o querem saber? Escusam de arregalar os olhos que não metem medo a ninguém. Não sabem que tenho ali um lameiro? Pois vim deitar--lhe a água da poça, a ver se a neve derrete que preciso de trazer para lá as vacas.

— E se o levássemos preso?

— Se me levassem preso, haviam de me soltar. Que mal fiz eu?

— E se lhe moêssemos o costelado?

— Isso não fazem os senhores que aqui o meu patrício não deixa...

O patrício era Bruno Lêndeas. Foram-se embora cuspindo ao chão. Antes, Bruno oferecera-lhe um cigarro:

— Tio Teotónio, vai uma cigarrada?

— Bem sabes, amigo, que não fumo.

 

«Escapaste de boa, Teotónio, dizia pouco depois com os seus botões. — E a lebre? Logo, com o pino do dia, trazes as vacas e procura-la, que vais encontrá-la esbarrada contra uma rincolheira.»

Dito e feito.

De tal conjuntura e de outras análogas, não tinham passado a vias de facto, porque lhes incutira medo. Mesmo matá-lo era coisa grave. Ainda morto, havia de dar couce. Agora, enquanto vivo, com aquela ralé toda, tocar-lhe era quase tabu. Dizia-se que nunca ninguém lhe vira uma lágrima e era mais lobo que homem. Não tinha pacto com eles e com o Diabo?

Uns e outros queriam aludir à história do Estudante, que ainda era falada por aquela corda de povos.

Por altura de Agosto, quando os lobos saem com as crias dos covis, devido a uma grande batida que houve nos chavascais de Montemuro, muitos daqueles bichos tinham procurado com os filhotes refúgio na serra dos Milhafres. Foi assim que deu em aparecer com frequência um lobinho de tenros dias perto da Rochambana, provavelmente ao cheiro da cabra do Teotónio. No cerro fronteiriço, suspendia-se a olhar, como se dissesse consigo: Não me darão ali mama? E tão ousadamente se aproximava que um dia o Teotónio, de concerto com o neto e o Farrusco, lhe pôde deitar a unha. Andava cheio de fome, e ofereceu-lhe uma tigelada de leite, que de princípio não soube o que era ou fingiu não saber. Mas ele meteu-lhe o focinho dentro, e imolou-a logo em três tempos. O Farrusco considerava a cena, o seu tanto despeitado, mas como era um cão inteligente e partia do princípio que todas as coisas que o amo fazia as fazia por bem, anuiu, e deixou de encarar o negócio com olhinho rabioso.

O Teotónio Louvadeus arranjou-lhe uma espécie de jaula num canto, encostada à cardenha, e ali ficava de noite e às vezes parte do dia, quando não estavam para o aturar. Pôs-lhe o nome de Estudante, não saberia dizer porquê, talvez porque entrava para a escola do bicho-homem. Comer não lhe faltava, o seu láparo, a sua noitibó morta com uma calhoada, o seu gamelo de caldo, que ele devorava com sofreguidão, pupilas a fuzilar para o Farrusco, fauces arrepanhadas, a pata por cima em sinal de posse. O cãozinho, animal de pouco comer, gostava mais dos ossos temperados, que ia rilhar a Arcabuzais ou ali, pois não era uma só vez nem duas que o amo fritava o seu coelho na sertã. E acabaram por engraçar um com o outro, a pontos de brincarem, medirem-se às lutas, erectos a abraçarem-se e a morderem-se em competições de força. Todavia Teotónio trazia-o preso, com um bom cordel ao pescoço, não fosse por lá fazer das suas, como arremeter à cabra ou fugir. À noite dormia na toca. De dia o Teotónio tirava-o para fora e vinha fazer a sesta ao lado do Farrusco ou pagodear com ele. Em poucas semanas, cresceu e mudou de pêlo. Arranjou uma samarra sedosa que faria inveja à peliça de muita mulher de banqueiro. E, pouco a pouco, tornou-se familiar com o Teotónio. Deixava fazer tudo, como coçar a cabeça, anediarem-lhe o lombo e espapaçado e gozoso, permitir que lhe tocassem no soven-tre. Raro deitava os colmilhos de fora para morder. Vinham das aldeias para o entremez.

Um dia que Nini, filho do Dr. Labão, passou por Arcabuzais, anunciaram-lhe o fenómeno. Quis ver. Não, que o lobo comia os meninos! Tomou tal birra que não houve remédio senão albardarem uma asna e conduzi-lo à Rochambana. A criança ficou muito admirada com o bicho, que a esse tempo tinha deitado uma rica vestimenta de peluche. Primeiramente todo se transiu e só quis vê-lo de longe, depois, como todos os timoratos, lá se animou e acabou em grande reinação. O diabo foi que lhe puxou pelo rabo, que era o ponto sagrado do lobo. E, zás, gramou uma dentada nos dedos. Choros, gritos, recriminações, o Dr. Labão e senhora ficaram muito escandalizados com o Teotónio Louvadeus.

Crise de mau génio o Estudante só teve uma, foi quando o Teotónio veio com um cepo e uma machada, e lhe cortou cerce, subitamente, um terço do rabo. O lobo então deu um salto prodigioso até onde lhe permitiu a corda, e suspendeu-se a certa distância, torcido em crescente, dentes a luzir, focinho arregaçado, olhos maus de soslaio. E esta desconfiança, medo e ódio, durou-lhe enquanto a ferida não cicatrizou. Depois, como o tempo tudo leva e tudo sara, esqueceu-se. Era uma vez a ponta dum rabo que, sempre pendente e comprido, apanhava os argalhos do chão. E o lobo voltou a poisar o focinho nas pernas de Teotónio, mal o via sentado e tinha fome. Teotónio armava os ferros, dois, três, e raro era o dia que não trouxesse caça. Quem padecia agora era a sua casa de Arcabuzais, com a ucharia muito menos abundante de que dantes.

Foram dobando os dias e o lobinho cresceu, sempre amigo de Teotónio, e este meio perplexo quanto ao destino que lhe havia de dar. Disseram-lhe que o oferecesse a um desses campos de concentração chamados Jardins Zoológicos, onde o papel dos bichos é mostrarem-se aos meninos e mirones, com pitança assegurada e muitas horas para dormir. Ao homem de pé leve, que sempre fora, repugnava tal paradeiro. Embora o lobo ali também estivesse preso, não era a mesma coisa. Estava em plena serra, com horizontes livres, os pássaros a voar livres por cima dele, a ouvir o vento dos cumes, ligado não mais que por um cordel, e tinha um amigo, um primo, com quem espairecer.

Fosse como fosse, quando chegaram os dias grandes e o céu despiu a serguilha de inverno e pôs seus brocados, os pássaros começaram a correr com outro espalhafato das paredes para as árvores e das árvores para digressões aventureiras, e se ouviram uivos amaviosos para os altos, Teotónio pressentiu o drama que lhe ia no sangue, e disse-lhe como se falasse a uma alma cristã que o compreendesse:

— Vê lá no que te metes! Tu largas, mas arrependes-te mil vezes. É o que te digo! Olha que o bicho homem é grande traste e mais lobo do que tu.

E, uma vez que voltava de Arcabuzais com o Farrusco, encontrou-lhe o sítio. O patife havia roído a corda, arrombado a jaula e partido à gandaia. Teotónio não estranhou. O bicho tinha atingido a idade da adolescência, e milagre era que resistisse aos apelos surdos que lhe vinham de longe das fêmeas aluadas. Ele decerto os ouvia a cada hora, misturados nas arcadas do vento como fibras do linho no fio da roca, coisas que só ele era capaz de destrinçar. Teotónio vira-o na véspera parado, de focinho ao alto, o dorso tomado dum frémito ligeiro. Foste às putas, ladrão! Deixa-te ir. São cuidados a menos com que fico.

Não pensou mais no caso e parece que o Farrusco também não. Fugiu o Estio e chegou o Inverno. O Inverno trouxe as chuvas, os codos, depois as neves e a bruma. E, certa manhã triste, quem é que o Teotónio avista em frente, um pouco para lá do alcance de tiro, especado nas duas mãos, a olhar para a Rochambana? O amigo Estudante.

Teotónio foi à cardenha, tirou um coelho que ali tinha à dependura pelos jarretes, e na ponta do dedo, para que ele visse, levou-lho. Mas o lobo cobrou-se de medo e fugiu para mais longe. À distância de outro tiro, suspendeu-se e ficou a olhar de revés. Teotónio arrepiou caminho e ele correu a levantar o coelho que se pôs logo ali a imolar. O pobre bicho tinha fome. Tinha fome de rato, que é a fome mais desatinada que há e mexeriqueira, capaz de todas as audácias. Teotónio viu-o do terreiro da cardenha passar aquela parva ao estreito em menos dum credo, pele e tudo, e ficar a lamber os beiços. Fora como uma hóstia, louvado seja Nosso Senhor! E no fundo da sua alma o sentido da queixa mais que as palavras passou como um sal amargo:

— Deus todo-poderoso, já que és tão bom, para que deixas estes bichos ter fome? E, para que a matem, porque hão-de ser maus e ferozes? Porque é que na tua infinita sabedoria os obrigas a actos de bandoleirismo, contra a ovelha sem defesa e o inocente cordeirinho, a menos que estiquem à míngua! - É verdade que muito do que fazes nos é incompreensível, senão seria para dizer que és um tirano absurdo e desmiolado!

Dali em diante a cena repetia-se não todos os dias, mas de quando em quando. Sobretudo nas nevascas lá estava o Estudante sentado sobre o traseiro à espera de víveres. Se o Teotónio se atrasava ou não dava conta, uivava. Soltava um uivo que, dir-se-ia, procurava ser o mais musical possível.

E Teotónio punha-lhe o que tinha à mão de semear: coelhos, se os havia agarrado nos ferros; à falta de coelho, uma malga de leite; se acabara o leite, até um tropeço de broa. Nunca deixava partir aquele mendicante sem esmola.

E tanto se habituou o bicho àquela vida que, se o Teotónio não aparecia, ele chegava-se até o corgo e vinha fairar à porta. A Coroada sentia-o, e lá dentro dava saltos apavorados. Não era também uma só vez nem duas que se ia dessedentar à fonte da Rochambana. Uma nevada, o Estudante veio com outro lobo. Diante de Teotónio, que olhava para eles estupefacto, estiveram um momento imóveis como cortados em bronze. Depois o Estudante alçou a pata por cima do ombro do companheiro, como a dizer:

— Desculpa, amigo, mas é cá a mulher. E, olha, traz tanta fome como eu. Não tens alguma coisinha que nos dês?

Teotónio assim ajuizou e algum tempo, enquanto durou a invernia, teve duas bocas a alimentar. O pior é que os dois romperam a pilhar gados e currais! Os pastores queixavam-se de duas feras corpulentas que assaltavam os rebanhos no pino do dia. Uma delas acabou por ser reconhecida como sendo o lobo que o tio Teotónio tinha criado a leite, porque lhe faltava meio rabo. — Oh! mil raios partissem o matuto, para que lhe havia de dar! — vituperavam uns. — Pudera, não fosse ele meio lobo! — respondiam outros. — O que ele precisava era que a gente lhe desse batida como às feras verdadeiras!

Não faziam batida nenhuma, que o velho não era para graças, mas andavam zaranzas de todo. Como se haviam de livrar de bichos assim, que conheciam as manhas da gente e sabiam torcer-lhe as voltas e cadilhos?! Viam-nos ora num povo, ora noutro, por aquela corda, hoje em Rebolide, amanhã no Corgo das Lontras, depois de amanhã lá para Toiregas. Os dois arrebatavam aqui um recental, além um chibato. Na imaginação do serrano, entravam pelos povos, iam-se aos estábulos, desacravelhavam as portas, e toca para as costas com o reixelo mais gordo que lhes enchesse o olho.

Repentinamente apenas permaneceu em cena o lobo de rabo saracoto. Que seria feito do outro? Tinham-no envenenado, esticara, desertara para outras paragens? Ora, era bem simples — congeminou Teotónio — a loba tinha ido ter a parição lá para as brenhas e guardava as crias. Tanto assim que não decorreram grandes tempos que se não lobrigassem os dois tunantões com três lobatos, ao lado, muito nédios e patudos. A mãe, dos altinhos, ensinava-lhes os gados e a arte de pular ao meio e abarbatar uma ovelha tonta, enquanto o pastor dá um traque. Viu-os o Zé da Pampolinha que pastoreava um rebanho de muitas lojas e era o que mais se aventurava aos picos da serra. Se até ali os currais eram assaltados, que não sucederia para o futuro? O Teotónio, que ouvia as queixas de uns e de outros, sem dar o braço a torcer, jurando e trejurando pelo Pai do Céu e a luz dos seus olhos que aquele lobo não tinha nada o rabo cortado — fossem lá medi-lo! -— quase se arrependeu daquela piedade franciscana com o Estudante.

Um dia que faltou uma cabra e um cordeiro ao Manuel da Obriga, de Arcabuzais, este, no intervalo do pastoreio, pegou da espingarda reiuna e assobiou aos cães da terra que, por ser caçador, vinham ao seu chamo, e correu à Passagem, em cujo carrascal o Zé da Pampolinha situara a açougada do gadinho. O mato crescia ali muito sôfrego e era lá que as feras costumavam refugiar-se quando as perseguiam ou tinham praticado avaria. Ali elegiam acolheitas eventuais e tinham seus gastadouros, embora não a cama, se é certo que o «lobo não dorme onde faz carne».

A certa altura os cães do Manuel da Obriga romperam em grande babaréu à volta dum ronho do matagal. Acorreu o homem, e despachadamente entrou por ele dentro, apartando as frondes. E, vai senão quando, deparou-se-lhe um grande lobo que lhe dardejava, agachado por detrás dos sargaços, olhos sonsos a fuzilar na cabeçorra meio dobrada para o chão. Sem perda de tempo, meteu a espingarda à cara e puxou o gatilho. Chapéu, o tiro moita, e, como o lobo lhe desse a impressão de retesar-se nos jarretes para investir, ficou assustado e sem pinga de sangue. Se a fera dava o pulo?! Desandou, fingindo não o ver, como as vezes que avistava uma lebre na cama e «não trazia com que lhe fazer bem». Quando se apanhou na limpaça, despediu a chamar gente que andava ali perto numa estorgada. Vieram todos, armados de gadanhas e sacholas, com seus cachorros. Entretanto, os rafeiros não tinham desamarrado do barbeito onde se escondia o lobo: béu! béu!

Quando a fera viu a malta toda romper pelo urgueiral dentro, soergueu-se com certa moleza e com moleza se pôs a marchar em direcção a um tufo mais espesso, provavelmente no intuito de emboscar-se. Mas os rafeiros cortaram-lhe a retirada. Os homens então, não tendo a coragem de o acometer de frente, armaram-se de pedras e começaram a lapidá-lo. As mulheres traziam-lhas nas abadas. A primeira pedrada foi do Obriga... Perdeu-se. A outra foi do Pampolinha, e foi acertar na barriga do lobo.

O bicho deu um ronco, mordeu a pedra, e estacou a arruaçar. Uma terceira bateu-lhe na espádua. Depois, como se lhes afigurasse improcedente o tiroteio assim mandado e o lobo num dado momento pudesse recobrar-se e fugir, procuraram atingi-lo nas pernas e quebrar-lhas. Para aí dirigiram a pontaria. Ao ser tocado numa das mãos, dorido, o lobo ergueu a fronte com o ar altaneiro de quem vai carregar os agressores. Mas os podengos, pela retaguarda, atiraram-se a ele. Para os escorraçar, teve de voltar-se. Valeu-lhe os apedrejadores, atemorizados com o seu arreganho, baterem em retirada, tão bem como os cães tresmalharem diante da sua investida. E, apanhando uma entreaberta, meteu para o cerrado com celeridade imprevista. Mas já os rafeiros e podengos tornavam à carga, e por sua vez os homens. Um deles conseguiu acertar-lhe com um calhau acima do olho, e logo a seguir com outro em plena testa. O lobo cambaleou, endireitou-se, e num último arranco caiu sobre a matilha uivando. Mas o Obriga veio com uma pedra às mãos ambas e deixou-lha cair em cima. A fraga resvalou-lhe pela espádua ao tempo que filava um cão pelo cachaço. Era o podengo predilecto do Obriga e este, tirando o gadanho das mãos dum dos estorgadores, cresceu para o lobo. Tenteando-lhe o golpe, descarregou-o com quanta força tinha. E a fera desabou como um roble.

Soltaram grande alarido. Acudiu Teotónio que a Rochambana era ali perto. Viu o bicho no chão e reconheceu o Estudante. Disseram-lhe:

— Era o seu lobo, tio Louvadeus! Raios o partam para a teatrada que armou!

— Era uma nisga! O meu lobo é três vezes maior e mais fino do que este. Haveis de comer muita rasa de sal para lhe deitardes o gatázio! Não? Abram-lhe lá o bandulho...

Abriram-lhe a morca. Tinha dentro meia cabra com cascos, pele e tudo. Faltavam os cornos. E é que a cabra era mocha.

— Comeu tanto que não se podia mexer.

— O meu lobo só come chibo depois de lhe tirar a pele e as tripas. É o que vos digo. Este era estúpido e porco como qualquer um de vós.

— Pois quem dera os outros assim, que são uma alcateia.

Pareceu a Teotónio que o último olhar do lobo era para ele, antes de se vidrar com o frio da morte. O Pampolinha, apoiado pelo Obriga, propôs-se ir buscar um burro a Arcabuzais para o carregar e pedir depois pelas portas.

— Há-de-me render muito ovo, cebolinhas e batatas! — exclamou ele dançando num pé.

Foi pelo burro.

Teotónio juntou três a quatro roçadas de mato seco. Pôs o lobo em cima e deitou-lhes o fogo: — Deixa estar que não te hás-de rir de mim nem fazer pouco do lobo.

O Pampolinha, ao voltar, encontrou um torresmo.

— A d’el-rei que me fizeram uma grande desfeita. Hão-de mas pagar. Quem poderia ter sido o malvado?

Passava com as suas queixas à beira da Rochambana, saiu-lhe Teotónio ao caminho:

— Ó ladrão, tu não sabes que é um grande pecado contra o Criador deixar um lobo morto no meio da serra? Atravessaram por aqui uns romeiros para a Lapa, vindos de Parada da Santa a corta-mato, e assaram-no. Aí tens!

À noite na sua cardenha o velho Teotónio limpou uma lágrima, ainda que compungir-se fosse raro nele.

— Aqui está para que te criei, te salvei da fome! Pagaste caro, Estudante, o amor à liberdade e a dívida a Deus de gostares de comer carne fresca todos os dias, inclusive à sexta-feira, sem tirares bula. O que te sucedeu é o que, mais dia, menos dia, me pode suceder a mim!

Aquele desgraçado mês de Dezembro afundiu-se sem outro rumor no pego sem fundo do tempo. Passou o Natal, com a consoada na casa pobre regada de lágrimas. Manuel Louvadeus da prisão escrevia faceto e confiado:

«Fala-se que brevemente vamos ser julgados. Oxalá que seja breve. A mim, não há juizes que me condenem, dizem os meirinhos do Porto, que são gente prática e sabida. Então o prédio está soalhado? Tratem de vender a casa do povo. Vejam se a vendem em conta. Eu cá tenho botado os meus cálculos, mas por ora guardo-os para mim. Estejam certos que havemos de dar um pontapé na pouca sorte e havemos ainda de ter automóvel, como esses que ouço petardear aqui na rua, tão amiúde que me não deixam dormir.»

O velho não dava um caracol pelos cálculos do filho e continuava a espiar o seu vigia.

Com o carujo a Rochambana tornava-se uma sexta-feira santa. Os corvos vinham pincharolar para cima do penedo, pouco se importando do telhado vermelho da casa. Era o seu trono. Pediam carniça e renteavam as ovelhas ranhosas perdidas pela serra ou lebre que fosse cair chumbada entre o mato. Mas a comadre raposa ria-se deles, mais arteira dez vezes. Quando chegavam, já largava com a presa pelo meio das urzes para a sua cidadela. Muda como o Teotó-nio. Em discrição, quem era mestre?

A certas horas, quando a casa da Rochambana parecia com o seu telhado novinho, acima do monte negro de urgueiral e sargaço, uma papoila viridente, suspirava:

— Se cá estivesse o meu filho!

— O seu filho há-de voltar — rebatia D. Maria Rigoberta. — O julgamento está para breve. Não tenha medo que o condenem. Até se levantavam as pedras das calçadas!

 

A língua tem as suas leprosarias. Reparou o senhor engenheiro que plenário rima com uma série de palavras significando coisas no geral retrógradas embora com o seu pitoresco? Por exemplo, calvário, rosário, bestiário, fundibulário, trintário, antifonário, inclusive prostibulário? Dir-se-ia um bairro da Idade Média, achacado de má nota. Ouço estas palavras e parece-me ouvir um dobre a enforcados e vejo sair da igreja uma procissão, atrás de uma bandeira das Almas, conduzida por um frade negro, e um menino de coro, à frente, com uma campainha rachada: xelão, xelão!

— Absolutamente de acordo. O legislador encontrou o termo que convinha ao odioso tribunal. Melhor só um tricorne de inquisidor.

Assim iam discorrendo o Dr. Rigoberto e César Fontalva, ao palmilharem, no Porto, a Rua de Santa Catarina, a caminho do plenário. Estava uma manhã de sol, fins de inverno, destas que imprimem à cidade uma fisionomia especificamente tripeira, de grande complacência, pondo a cantar as tabuletas, os azulejos nos templos, que dão a impressão duma casaca vestida do avesso, os pregões e pedras da rua, e até os automóveis, que sobem e descem, de kláxon esganiçado: Reparem, caramba, reparem para mim! Nestes dias, o Porto, porque se evade à molinha e à bruma que lhe são peculiares, parece uma cidade que nunca se viu ou desabrochou da terra essa noite. Tal qual um especioso e esquisito cogumelo, destes que surgem da noite para o dia por milagre da terra soalheira. E por muito que o habitante ande castigado dos trabalhos ou da mofina, uma lufada de euforia infiltra-se-lhe no sangue, e adeus atrabílis e negócios mal parados! O portuense é optimista por temperamento.

Rigoberto sentia esta sã influência do meio e caminhava tão bem-humorado como Fontalva. A audiência estava marcada para as dez, e dez horas batiam precisamente na torre da Trindade. Mas com as delongas proverbiais de tais actos, podiam ir de seu mole, que chegavam muito a tempo. Ao lado marchava Teotónio Louvadeus, metido dentro da fatiota dos domingos terceiros, quando pegava à vara do pálio, camisa de linho de seu amanho, fiada, talhada e engomada por Jorgina, sem gravata, que se usava pouco quando começou a ser gente, e nem ele se ajeitava a pôr um traste a que não descobrira utilidade. A gravata era a investidura do rústico em burguês e ele era um parrana acabado e que parrana havia de morrer. Barbeara-se na Rua do Sol com um fígaro de balandrau, que se lhe fartara de puxar pela ponta do nariz para escanhoar o lábio superior em que as comissuras cavavam ravinas difíceis de chegar ao fundo. Acima das maçãs do rosto, subindo para as capelas dos olhos, guardava, escapo à navalha, um matiço virgem, com cerdas negras, zincadas, e das orelhas saíam-lhe tufos tão densos que bastariam para pincéis. Embora as sobrancelhas lhe ensilvassem as arcadas, não projectavam sombra suficiente, para escurecer as pupilas, tão estranhamente vivas que a sua expressão ordinária era a do gato assanhado. Serrano aparentemente tímido, o chão que pisava era seu. Rigoberto via-o à sua esquerda muito teso e senhor de si, e de soslaio ia-o observando. Ao passo que lhe admirava a galhardia de montanhês, que não perdia o equilíbrio como se qualquer parte do mundo lhe servisse para plano de gravidade, no fundo sentia-o morto por se ver entre os penedos, aborrecido daquelas lindezas citadinas. Viera assistir ao julgamento com outros patrícios, que contavam, no regresso, levar absolvidos os filhos e irmãos. Eram mais de trinta pessoas e marchavam atrás em bando e grande grulharia. Tinham-se aboletado numa pensão para os lados do Arco de Vandoma, onde se achavam a seu cómodo, dormitando sobre a mesa das refeições, os dois braços em tentáculos de escorpião por baixo da cabeça, depois do fartote de sardinha assada com verdasco de Santo Tirso. Ali podiam espreguiçar-se à vontade, pôr-se em mangas de camisa e conservar o chapéu na cabeça, que ninguém os repreendia.

À porta da Relação notava-se um prolixo serviço de ordem. Dirigia-o um capitão, dólman muito espartilhado na cinta, bota de cano até o joelho, e uma destas caras pergaminhadas antes do tempo, no género dos cossacos de Tolstoi, boémios e batoteiros. O átrio era pequeno para ele, que ia e vinha, deambulava, aproximava-se a reconhecer quem se propunha entrar, detinha-se a ouvir, deferia ou negava a autorização pedida, e volvia a marchar nervoso e epiléptico. Transpor o limiar com este Cérbero, tornava-se um grande negócio, só faltando que exigisse o santo e a senha. Ninguém escapava ao interrogatório. O seu nome? Donde vem? Que deseja? É advogado? É testemunha?

Este tropa ou o poder por ela defendiam-se de quem? De nova Patuleia, de que aqueles fossem a guarda avançada, que descesse a Rua Passos Manuel e, embocando para o casarão, levasse tudo raso? De hipotéticas legiões de comunistas, ao mando dum Estaline ou do Diabo, que abarbatasem os juízes, os burgueses, os padres, os fidalgos e a polícia, e instaurassem a ordem bolchevique? Todos os fenómenos de natureza social têm o seu epicentro e aqui era-o o poder, sempre a tiritar as maleitas da autoridade, distribuindo, às cegas, pancadaria do cobarde. Ora tratava-se de meia dúzia de parranas, arrebanhados a esmo na sarrafusca da serra dos Milhafres, para o Moloch da Justiça ter seu pábulo ou iludir a fome, pouco se importando que pagasse o justo pelo pecador. E, modo de completarem o ramalhete subversivo, haviam-lhes adjungido um feixe de operários de Riba do Pisco, acusados pelos patrões multimilionários de terem, à ordem de Moscovo, pregado a rebelião, tomando como pretexto um bacalhau podre que lhes fora servido na cantina obrigatória e de que morreram envenenados uns tantos deles.

Os filhos de Manuel do Rosário, de Justo Rodrigues, de Rebordão, a troco de dois salpicões e meia rasa de castanhas com que presentearam certo tamanqueiro da Rua dos Carmelitas, oriundo de Arcabuzais e que era cunhado dum secreta, tinham conseguido ficar na bancada donde podiam trocar olhares confortadores com os presos. O velho Louvadeus pôde beneficiar de semelhante fineza, e enquanto o Dr. Rigoberto se dirigia para a bancada dos advogados, César Fontalva para a das testemunhas, ele atravessou as filas da bufaria, cotovelada à direita e à esquerda, com a mesma sem-cerimónia com que na feira penetrava num adjunto para ir apreçar uma vaca. Os senhores juizes estavam em amena conversa com os causídicos, como no botequim. Rigoberto conhecia aquela tropa por dentro e por fora, batido no foro do país há um ror de anos. Nenhum deles era má pessoa, mas o Diabo podia vir e levá-los que não cometia nenhum desacerto. Com a novíssima estrutura judicial dois eram corregedores do crime, e presidente um desembargador. Bastava olhar para eles para se notar que se tratava de homens no pendor da vida, fartos de roçar as calças nas cadeiras curuis, julgadores mecanizados à força de baldear processos para trás das costas. Passavam no entanto por exemplares chefes de família e, no comércio das relações, pessoas nem mais nem menos morais do que qualquer irmão do Santíssimo. Um par de escovas de prata, que recebiam por linhas travessas, um cabrito nas comarcas sertanejas, o apalpão de mamas às criadas, aceito ou repelido, constituíam pecadilhos que os não apeavam do conceito de prudomes, a que eles mesmos se tinham içado, e porventura gratuitos.

Mais chocho e perro que o presidente, aquele Dr. Octávio Rouvinho Estronca Briteiros, não havia no quadro. Era notório que não ouvia bem, mas porque confessá-lo seria diminuir-se, quando lhe falavam deitava-se a adivinhar o que lhe diziam. Daí infinitos e cómicos quiproquós nas audiências. Casara enganado no Alentejo, para onde um ministro amigo o empontara, como a jovem suíno para o montado: — Vá, vá para o Alentejo, que vai casar rico! E casou pobre. Casou com uma saca de trigo, hipotecada, e desde então, de pobretaina que fora, levava vida de futre, inconforme e surdo. Qualidades menos recomendáveis para trepar no escadote do Estado não havia. Mas ele subiu e isso provava a sua tenacidade. Era juiz no Porto e nascera na Maia. Ali deitara abaixo a velha casa do pai, vendedor ambulante, e conseguira erguer um palacete. Se tivesse nascido no Senhor Roubado, era desembargador na Boa Hora. O sucesso nem sempre lhe andava à mercê dos desejos. O seu nome baptismal era Octávio Rouvinho. Por sua conta e risco, duma vaga parentela fidalga de que seu avô paterno fora bastardo, acrescentou ao nome Estronca Briteiros.

Um dos adjuntos, Adalberto Fernandes, reunia em si o tipo do magarefe, alto, membrudo, encarniçado de tez, e até no manejo do cutelo quando se tratava de aplicar a lei. No tempo da forca era homem para, à falta de carrasco, puxar à corda. Quando interpretava o código, tendia para a pejorativa. Punha certa prosápia nas suas sentenças, de resto, transcritas nas gazetas da especialidade e muito apreciadas no Conselho. Corria que a sua vida particular era desastrosa, a mulher ninfomaníaca e perdulária; dois filhos valdevinos; uma filha que não regulava bem do juízo. Por isso, seria fera exacerbada.

O outro assessor, José Ramos Coelho, passava por ser o zero absoluto. Escorregadio e silencioso como o congro. Chegara à cofregedoria pela insignificância, à parte a zumbaia. Pálido, seco, e de olhos gelatinosos. Solteirão e misógino. Prezava a disciplina na secretaria e a compostura na audiência. Réu que se mostrasse incivil ou cuja atitude não fosse de cortesia plena, avaliada pela maneira como se sentava, como abria a boca ou bocejava, como falava, como ria, apanhava a grossa talhada. Deus o livrasse de ser surpreendido por ele a tirar a caca do nariz. Não suportava tão-pouco que estalassem com os dedos; se mexessem no banco; encavalitassem perna sobre perna; fungassem. Eram-lhe intoleráveis os pequenos tiques do seu semelhante, o que constituía já balda. Em contrapartida, réu que lhe aparecesse com submissão de penitente, embora com a humildade do velhaco, só não seria absolvido se tivesse violado alguma freira ou fosse apanhado a surripiar um bolo para matar a fome. Porque se, por um lado, era um catolicão até a medula, por outro, não admitia que se fosse pelintra. A propriedade para ele, homem com uma pequena reserva nos bancos e uma quintalória em Óis, representava a primeira instituição humana, criadora e dignificadora da personalidade, frase que lera algures e invocava a cada passo.

De alta categoria, estrela e beta e pé calçado, o representante do Ministério Público, Ildebrando Soberano Peres, juiz em comissão. Nascera para aterrador. Os advogados temiam-no quanto o detestavam. Igualmente os colegas, que davam jeitos de o estimar e no fundo do peito tinham-lhe azar de morte. Não o criam mensageiro, se não depositário das vontades do Executivo? Ele próprio deixava entender, pelo tendencioso interesse com que amassava os processos, que era o ouvido predilecto do ministro.

De estatura mediana, olhos pequeninos e incisivos de peto, certas visagens que fazia tinham por objecto incutir de si uma ideia, e às vezes surtia efeito, de argúcia e inteligência perspicaz. Rosado e redondo como o tamboril, andava sempre muito asseado, transparecendo o esmero que punha no traje com corrigir a cada momento a linha da calça, o nó da gravata, a própria verticalidade das abas do casaco por baixo da toga. O janotismo nas sociedades primárias é sempre um trunfo certo. Servira-lhe, secundado por outras artes e maneiras, para conquistar a filha dum politicastro da Monarquia, que morrera par do Reino e deixara bom pecúlio. Servira-lhe mais tarde para deslumbrar o mandarim que, ao ajudá-lo a vestir o sobretudo depois do beija-mão, acertara chispar espírito da embotada pederneira:

— Verdadeiramente o casaco dum soberano!

O Dr. Soberano Peres caíra na massa, que a menina era feia que se fartava. Mas ora adeus, adeus, o principal escopo da sua vida estava há muito realizado: enriquecer. Fereza e servidão incondicional ao poder haviam-no remido da miséria de pontos com que se apresentara a concurso, e eram agora o vento rasgado que impelia a sua vela. Ninguém se surpreendia ao ouvir-lhe pedir a pena última, revesso a atenuantes, fossem de que ordem fossem. Parecendo um entendimento atilado, para os verdadeiros jurisconsultos não passava dum intérprete medíocre das leis. Embora, melhores ou piores, o ministério da Justiça precisava de tais instrumentos para as leis celeradas. Este Soberano era o melhor dos piores. O Plenário, pretório baptizado por uma' presciência da língua, segundo Rigoberto, na pia dos gafos, era ele. Os juizes respeitavam-lhe os pareceres. Soberano Peres, podia dizer-se, inspirava, se não ditava, as sentenças.

O Dr. Rigoberto, ainda que advogado no sertão, formava acerca destes julgadores um conceito, que outros colegas seus, com quem se abrira, reputavam «xacto, posto que pejorativo. De modo que, ao anunciar-lhe Teotónio Louvadeus o propósito de assistir à audiência, tendo por certa a absolvição do filho, e poderem regressar juntos, não se sentiu com coragem para desiludi-lo, possuído do mais torvo cepticismo. Que era de esperar daquela árvore judicial, mais-brava que a figueira da Escritura, senão frutos sorvados?

Durante esta ruminação instantânea foram entrando os advogados, uns estreados nestas causas, outros bisonhos, tais e tais seus conhecidos, aqueles-caras estranhas. Apresentações, salamaleques, breve troca de conceitos e anedotas alusivas ao acto, e o oficial de diligências encetou a chamada numa voz que não era apenas fanhosa, mas rangente porta de gonzos, produto da névoa, vinhaça, má hereditariedade.

Seriam ao todo uns vinte e quatro réus, meia dúzia dos quais nada tinham que ver com a questão-dos baldios. Eram os tecelões de Riba do Pisco. Traziam estes numerosas testemunhas, parentes e aderentes, e por seu lado, a favor dos réus da serra dos Milhafres, apesar das trinta léguas de distância, ali. comparecia uma caterva de gente de toda a espécie, burgueses e mecânicos, a assisti-los e defendê-los. Como se tratava dos homens principais das aldeias, tinham fretado uma camioneta e botado por ali abaixo de cambulhada.

A identificação dos réus e mais formalidades processuais decorreram sem nada de realce e com o possível despacho. Apenas o Dr. Rigoberto, na sua contestação, protestou contra aquela homogenização de matéria criminal, os réus da serra dos Milhafres acusados de resistência à autoridade, e os réus de Riba do Pisco incriminados de propaganda subversiva, assim especificada pelos industriais, e atentatória da ordem.

Acudiu com vénia do Presidente o representante do Ministério Público a justificar a acumulação processual. E, como era de esperar, saiu-se com as razões costumadas, já clássicas, próprias do poder discricionário, o pressupor em qualquer levantamento das populações, qualificado em direito de «desobediência colectiva», o dedo de agitadores comunistas. Lá admitir que nas massas pudessem fermentar princípios de revolta, sponte sua, ao sentirem-se lesadas nos interesses ou contrariadas, não queria admitir e negava-se a compreender. Tudo era obra das organizações clandestinas, apostadas a perturbar a leda paz do Eldorado de fartura e de amor. Não se apurara que, depois do encontro em Bouça de Rei dos engenheiros silvicultores com os representantes da serra dos Milhafres, estes haviam efectuado reuniões várias com o fim de assentarem na resistência à mão armada?

Igual delito era de invocar contra os presos de Riba do Pisco, alguns com antecedentes judiciários, mercê da propaganda e assuada dos quais se suscitou num estabelecimento fabril daquela localidade um surto de greve. Em consequência, procedera-se à detenção dos indivíduos indigitados como cabeças de motim e que se verificou serem agentes perigosos, instintivos ou teóricos, da subversão social, membros, segundo boas presunções da polícia, do partido criptocomunista português.

Haviam incorrido os mesmos presos nas penas fulminadas no art. 169.°, n.° I.°, com referência ao art. 168.º do Código Penal que equipara a rebelião os atentados e estragos cometidos contra instalações de utilidade pública ou destinadas ao bem-estar e satisfação das necessidades gerais e impreteríveis das populações, e pertenças do Estado. Verificou-se, ainda, graças aos testemunhos de vária ordem, haverem-se tornado os presos da serra dos Milhafres réus de outros crimes, previstos no Código Penal. (Emprego de armas de toda a espécie, desde a caçadeira à Mauser, da foice encabada num varapau à forquilha).

E, finalmente, culminou a pronúncia, quanto aos mesmos presos da serra dos Milhafres, pelo levantamento popular com mortos, muitos feridos e, em particular, pelo atentado à pessoa de altos funcionários públicos, tudo obra de agitação e propaganda subversiva.

Semelhante rebelião taxou-a o digno Ministério Público como destinando-se em última análise a atentar contra a segurança do Estado: na serra dos Milhafres, oposição dos naturais a uma medida legal, em Riba do Pisco, incitamento à greve. Era a homogeneidade que se observava no trama íntimo dos delitos que induzira o promotor da justiça — e muito acertadamente pelo que vinha facilitar o acto judicial — à apensação de tais processos.

Outros artigos, formulados numa linguagem hotentote, a carácter do tribunal de excepção, embora já pleonásticos quanto ao corpo de delito, leu ainda no processo, folheando-o com mão expedita, o promotor. E rematou, antes de sentar-se, com fátua prosopopeia:

— Como fica provado, o ilustre causídico peca por falta de lógica quando pretende desarticular o crime de sedição da Riba do Pisco do crime de sedição da serra dos Milhafres. Um e outro são filhos da mesma sementeira de dentes de dragão.

Rigoberto torceu os lábios, discorde. Mas não valia a pena malhar em ferro frio. E a identificação de cada réu, com a leitura da respectiva pronúncia, prosseguiu morna e claudicante, menos rápida do que se escoava a longa tarde. Depois, comparável à leitura dos libelos acusatórios apenas a história do rebanho que nunca mais acabava de passar a ponte.

Quando chegou a vez de Manuel Louvadeus, o Presidente voltou-se para ele com um ar de Minos de pechisbeque. Rigoberto que seguia os debates de arco tendido, pronto a mandar a sua flecha, apurou o ouvido, que a voz do magistrado naquela manhã era confusa à força de encatarrada:

— O réu Manuel Louvadeus é acusado de ser o propagandista, entre os povos serranos, da resistência a uma decisão deliberada do Estado. Por onde fosse, a circunstância de haver granjeado algum pecúlio na América e distinguir-se da gente rude por ter visto mundo, saber exprimir-se, possuir cultura invulgar para emigrante, facilitava-lhe pregar a guerra aos Serviços Florestais e seus agentes. Sentava-se numa taberna a título de beber um copo de vinho ou comprar cigarros e formava-se auditório à sua roda. Claro que Manuel Louvadeus não dizia: Esfole-se, mate-se! Pelo contrário, a propaganda fazia-a com pés de lã, palavras brandas, mansissimamente, diremos mesmo cristãmente, e por isso era perigosa em sumo grau. Não envergava a pele do lobo, nada disso. Antes aparecia aos compatriotas serranos com a samarra do cordeiro de S. João pelos lombos. Assim lhe fora possível erguer pouco a pouco a vaga tumultuosa de que resultaram alguns mortos e muitos feridos, entre os quais é de salientar o grande ás da silvicultura nacional Lisuarte Streit da Fonseca, que ficou estropiado para toda a vida. Uma vaga religião, pretensamente científica por um lado, tradicional por outro, a da igreja positivista que lançou raízes na América do Sul, particularmente, no Brasil, infundiu-lhe no espírito um misticismo, em aparência inócuo e condolente para com as misérias do inundo. Dele, como flor dum pântano, emerge uma moral filantrópica — o homem não tem o direito de fazer mal ao semelhante—com que se acoberta para sustentar que, professando tal doutrina, de modo algum advogaria o recurso à violência. Mas além de que lá diz o ditado: bem prega Frei Tomás, fazei o que ele diz, não façais o que ele faz, admitindo por hipótese a sua passividade, tanto prevarica o cidadão que, podendo deter um mau acto, o não faz, como aquele que o comete. A acção do réu, porém, segundo os autos seria de diferente natureza, deletéria de todo, apoiada em máximas sofisticadas de paz e concórdia. Frágil escudo, portanto, é o seu, arrimando-se a uma filosofia banida dos consistórios da ciência e das nossas escolas, em que são formadas as consciências segundo a lei de Deus. Mas, em suma, foi equipado de tais ideias que o réu pôde fomentar, à la longue, não mais que pela untuosidade de missionário, a sedição de que foi teatro uma das serras mais adustas e pertinazmente conservadoras do Portugal laborioso. Tem alguma coisa a alegar em sua defesa?

Levantou-se no banco dos réus, a meio da acicatada curiosidade geral, um homem de estatura mediana, rosto embaciado pela longa permanência nos trópicos, no seu fatinho já coçado de embarcadiço traindo o emigrante que se enfarpela a talho de mão na primeira grande alfaiataria ou algibebe duma cidade cosmopolita:

— As poucas palavras que tenho a dizer são de natureza exclusivamente pessoal. Já que o meu passado veio à berra, quero que o digno tribunal saiba bem quem sou. Pelo crime que pratiquei ou deixei praticar responderá o Sr. Dr. Rigoberto Mendes, grande advogado e meu amigo, que me conhece como as suas mãos enquanto eu mal sei qual é a minha mão direita. Sou um pobre homem que mal soletrava as vinte e cinco letras quando saí de Portugal. Lá fora, através de mil e um cambais, na necessidade de melhorar a minha condição, a reboque ainda da curiosidade, tratei de me instruir. Li quantos livros me caíram debaixo dos olhos, muitos deles passavam porém a minha capacidade de compreensão. Ouvi gente em barda que pregava as suas doutrinas, algumas das quais me pareceram justas e outras desmesuradas. Raciocinei, com as poucas luzes que adquiri, acerca do mundo e da minha pessoa. Aconteceu assim que fui levado a adoptar a igreja positivista por ser aquela que melhor falava ao meu entendimento pouco aberto, não deixo de convir, a respeito do papel que andamos a desempenhar na terra e a sombra que pomos neste trânsito tão rápido da vida.

O representante do Ministério Público trocou um sinal de inteligência com o Desembargador e, talvez porque lhe parecesse a arenga longa e escusada, atalhou:

— Está bem, está bem! Diga-me o réu: acredita na imortalidade da alma?

— Não, senhor.

— Então os actos bons não recebem galardão? E os maus? Quem pune os actos maus?

— Que são actos bons e actos maus? — interveio Rigoberto. — Todos os actos, de modo geral, são bons para mim que os pratico ou pelo menos quando os pratico. São maus aqueles que, vindos de fora, me diminuem ou violentam, posto sejam úteis a Fulano e Beltrano, à sociedade. Em tais situações inverter-se-ia o papel de amigos e de inimigos. Quem tem razão? Onde está o juiz de infinita pureza que nos venha julgar?

— Para mim, magistrado, e não lhe consinto que use de termos retaliadores ao aludir a tal ministério, são actos bons os conformes com a justiça; maus os que infringem o Código. O mais é conversa fiada, que aliás não era com V. Ex.ª Para V. Ex.ª, homem do foro, julguei que a ética era a mesma...!

Rigoberto esboçou um leve sorriso despiciendo que não passou inapercebido ao Dr. Soberano Peres. Em tom de disparo, vingou-se em Louvadeus:

— O réu foi alguma vez a Moscovo?

— Não, senhor.

— Sabe onde é?

— Sim, senhor.

— Ouve Moscovo pela rádio?

— Na minha terra não há electricidade.

— Mas ouviria Moscovo de bom grado?

— Como todas as vozes do mundo, as mais desencontradas, Moscovo e o Vaticano.

— Sabe o que é o comunismo?

— Mal.

— É um sistema político, negador da ordem em que vivemos, cujas bases são Deus, pátria, propriedade e família. Que me diz?

O réu calou-se. O magistrado cobria-o com o seu olhar de águia triunfante. O Dr. Rigoberto pediu licença:

— Que lhe há-de ele dizer, homem simples e leal como é, senhor representante do Ministério Público, que não sirva a V. Ex.ª de malha para o ilaquear nos articulados duma jurisdição de que é arauto? V. Ex.ª tem levado a vida toda a estrear-se nesta dialéctica e ele, grande parte da vida, a cuspir às mãos. Insurjo-me contra a forma por que V. Ex.a procura enredar o meu constituinte. Ele está aqui para responder pelos seus actos e não pelo que faria ou não faria em tal e tal hipótese. O direito moderno não permite um interrogatório confessional que mesmo seria abusivo nos tempos do Cardeal D. Henrique, rei e inquisidor. Lavro o meu protesto.

O representante do Ministério Público deixou cair o processo na mesa como uma lápide e respondeu com altanaria:

— Julguei que seria vantajoso para um réu tão comprometido mostrar os refolhos em que se processaram os actos de que é acusado. A justiça é uma ciência de compreensão. Compreender é procurar o magistrado as atenuantes em que fundamente um veredicto benévolo. Os que se não deixam penetrar, é porque são renitentes em sua malícia e constituem um perigo para a sociedade. Com esses não há que ter contemplações. V. Ex.", seu procurador, acha que não devo preocupar-me com o subjectivo deste réu, vamos adiante. O réu é suspeito de haver trazido um rifle da emigração. Não trouxe? Ouviram-lhe blasonar achar-se bem armado. Ninguém lhe viu tal arma, mas, se a trouxe, tudo leva a crer que armasse com ela alguns dos energúmenos que fizeram fogo contra a força pública e mutilaram de modo irremediável o grande homem de ciência Lisuarte Streit da Fonseca...

— Perdão — interrompeu o Dr. Rigoberto — o meu constituinte não trouxe nenhuma arma do Brasil. Gracejando, invocou uma receita com que lhe seria azado afugentar os lobos da fazenda. Equivale isso a dizer que trazia arma consigo? Para mais, um rifle? Um rifle é arma proibida que de sorte teria escapado à apreensão das alfândegas. Novamente protesto, e protesto indignadamente, que V. Ex.ª transforme meras presunções em certezas. O apuramento de responsabilidades faz-se com realidades tangíveis, não imaginárias. O exame médico afirma-nos categoricamente que ao engenheiro Streit alvejaram com arma de caça. Foi escumilha que lhe extraíram do corpo. Onde passaram as balas do rifle?

— Recapitulando: está provado que o réu foi visto pelas tavernas e logradoiros dos povos, se não a pregar, a aconselhar a resistência...

— Perdão, senhor representante do Ministério Público, não está nada provado—contestou o Dr. Rigoberto. — O meu constituinte, uma vez por outra que lhe aconteceu encontrar-se nos povos vizinhos, aludiu acidentalmente à arborização da serra dos Milhafres. Pela região não se falava noutra coisa. A efervescência que lavrava não permitia que se ficasse de boca fechada. Mas, emitindo o seu modo de ver, nunca acendeu ódios nem fomentou a resistência.

— E pode saber-se qual é a sua opinião em tão gravoso problema? — inquiriu o representante do Ministério Público, voltando-se ora para Manuel Louvadeus, ora para o Dr. Rigoberto.

— Ora essa! — respondeu o Dr. Rigoberto. — A minha opinião e, salvo seja, a do meu constituinte é que a serra arborizada renderia, no futuro, economicamente dez, vinte vezes mais do que tal como está, abandonada à lei das estações, rapada hoje pela sachola dos roçadores, espontada de vegetação nova, na Primavera, pelos gados. Mas havia de ser o povo, guiado pelos Serviços Florestais, assistido em tudo do Estado, que deveria proceder à arborização, sem o obrigarem a perder o sentimento de liberdade que ali desfruta. Condicionassem o aproveitamento das madeiras e mais indústria silvícola, deixassem-no porém ficar, ao menos nominalmente, o dono dela. B um mito como outro qualquer que lhes está na massa do sangue. Ou, então, elevassem os povos a um grau tal de desenvolvimento que essa circunstância se tornasse menos uma conquista sobre a pobreza dos serranos do que uma necessidade ou encontro com a vida melhorada e progressiva. No estado em que a população se acha, rude, penurienta, de nível de vida baixíssimo, a serra é-lhe absolutamente indispensável porque só assim corresponde ao seu atraso. Aqui está o que eu penso. Aqui está, dentro deste esquema, as palavras que poderia ter proferido o meu constituinte. Se isto é crime, ponha-se o padre-nosso no Index, onde se pede novo reino porque o actual não presta.

— Supondo que essa atitude, aparentemente inofensiva, seja bem a de Manuel Louvadeus, como se explica que tenha aparecido no já agora chamado sector 2 a capitanear os protestatários?

— Em termos peremptórios declarou nos autos o engenheiro-chefe, que dirigia os trabalhos do sector, que não ouviu uma palavra mais alta a Manuel Louvadeus, quanto mais capitanear alguém! Antes, pelo contrário, ficou estabelecido que toda a sua acção foi conciliadora. Ali não houve distúrbios de nenhuma espécie! Se não é de admitir que tenha ido de peito feito exercer a missão salutar de pacificador, ocasionalmente exerceu-a. Por outra, não estava no seu direito de manifestar com a sua presença que a arborização, como a intentaram os Serviços, é nefasta aos povos?

— Não senhor, não estava no seu direito, sabido de antemão que espécie de tenções acalentavam os bandos, para demais armados.

— Mas no sector 2 não houve desordens...

— Mas houve no sector 1, e tudo o que ali sucedeu não é acção conexa e solidária? A sementeira da revolta não pegou no sector 2, mercê de contingências que não vêm para o caso, mas foi germinar no sector 1. Os manifestantes e díscolos de um sector não são co-responsáveis do que se passou mais acima? O Dr. Rigoberto torceu novamente os lábios e redarguiu:

— Temos a fábula do lobo e do cordeiro, a eterna história do fraco e do forte, do juiz que procura um responsável, mas agora vai a agarrá-lo pelos cabelos e sai-lhe calva a iniquidade.

— Senhor juiz-presidente, requeiro que se consignem na acta, para efeito de procedimento criminal, as palavras que acaba de proferir o senhor advogado e que reputo ofensivas da minha honra.

— Está suspensa a audiência, para se apreciar o requerimento do digno representante do Ministério Público.

 

LEVANTE-SE o segundo réu! — proferiu na sua voz pastosa e forte, revigorizada pelo descanso da noite, ao abrir às dez da manhã a audiência, o desembargador Octávio Rouvinho. — Alonso Ribelas, não é? Antigo regedor da freguesia. Proprietário, natural de Favais Queimados, casado? Sabe de que é acusado?

— Ao certo não sei, não senhor — respondeu Alonso Ribelas, um homem na força da vida, entroncado, guedelhudo, com grandes e nervosas mãos, as manâpulas do agricultor pobre que tem levado a vida a virar a leiva, a fazer da pedra terra, olhos mansos de boi, dentuça sólida. Bem vestido para o tronco de nozelhas que era, uma gravata rubra, com pintinhas pretas, parecia uma facada aberta na pescoceira de bronze. Na estrutura e nos modos, tipo de Sancho Pança.

— É acusado de ser um dos cabeças de motim no Perímetro Florestal da Serra dos Milhafres. O réu foi um dos que deram fogo...?

— Nunca soube pegar duma arma.

— Não fez o serviço militar?

— Não senhor.

— Com esse corpanzil?

— Livrei-me.

— Remiu-se, quer dizer.

— Não, senhor, livrei-me na Junta. Bem haja quem pôs a mão por mim, que foi o pai do senhor Dr. Labão aqui presente.

Ao corregedor, Dr. José Ramos, pareceu aquele solto falar irreverência ou aleivosia contra o Estado, cominado de venialidade num dos seus órgãos, e acudiu em tom de desfastio:

— Passou-se isso no tempo da outra senhora...?

— Saiba V. Ex.ª que fui casado uma só vez. Estalaram risos na assistência. O próprio senhor

Presidente desanuviou o parecer carrancudo. Ao digno assessor porém o desconchavo soou falso, afigurando-se-lhe o homem zorato ou desbocado.

— O réu está-nos a sair um grande maloio...

— Saloio, não senhor. Sou serrano. Decorreu um pequeno silêncio durante o qual o

corregedor se compenetrou, olhando em face, da atitude hílare do tribunal. E tentou um retruque prudente, cortando todo o campo ao contra-ataque:

— Afinal se o isentaram na Inspecção é porque algum achaque lhe descobriram. Nos miolos ou nos ouvidos. O réu ouve mal. Mas adiante: perguntava-lhe o meretíssimo Presidente se não foi dos que deram fogo...?

— Nem com fuzil e pederneira, que não sou fumador.

— Mas empunhava uma gancha... uma faca de matar os porcos... um estadulho... Viram-no equipado, bota de carda no pé...

— Por essa altura andava descalço, senhor juiz, que trazia um calo assanhado no calcanhar que não me consentiria calçar a botina.

— Não é o que rezam os autos. — Lendo: Marchava à frente do bando, soltando grandes urros e gritos de viva e de morra...

— B falso. Eu nem aos lobos posso berrar que se me abre o peito. Há tempos andava numa propriedade que tenho a um lugar chamado a Cheleira do Negro, veio uma alcateia e levou-me uma borrega mesmo diante dos olhos. Pois com a folha cheia de gente ninguém me ouviu berrar à coa! tão sumida era a minha voz.

— Não é a impressão que dá, ouvindo-o falar.

— Em conversa, dizes tu, digo eu, posso passar um dia inteiro que não me canso.

— Mas que grande ratão! — proferiu o corregedor José Ramos Coelho voltando-se para o Presidente, como quem diz: tome conta dele e meta-lhe bandarilhas de fogo.

De facto o presidente, empertigando-se no cadeiral, fez um cite com a cabeça e lançou:

— Que política é a sua?

— Saiba Vossa Senhoria que eu de polítigas não percebo patavina. Não leio gazetas.

— Já foi regedor.

— Já fui a pedido do pai do Sr. Dr. Labão que me livrou da mochila.

— Nunca votou?

— Ah, lá isso votei, mas agora cortaram-me o nome para não votar contra o Governo. Nós todos na serra estamos à uma contra o Governo.

— Mas sabe quem governa?

— Quem governa? Sei lá quem governa? Quem governa o mundo, sempre ouvi dizer que é o Raimundo; deve ser algum filho de má mãe, que as coisas vão de mal a pior.

— O réu está a ser acintoso. Ê parvo ou faz-se?

— Nasci com os meus sentidos todos. Lá em dizer que quem governa o mundo deve ser algum filho de má mãe, não volto atrás; que hei-de eu dizer, cada vez mais pobre, mais carregado de tributos, mais frigido do arrocho, a soga cada vez mais tesa?

— Não sabe o que diz e é o que lhe vale. À barra da direcção estão grandes homens. Se tivesse uma centelha do senso que neles abunda, não se achava no banco dos réus. Nunca os ouviu falar?

— Nunca ouvi eu outra coisa. Quer que lhe diga, são ladrações num outeiro. Eu quanto mais trabalho e mais poupo, mais miserável me vejo.

— Vamos ao que importa: confessa haver tomado parte no barulho da serra dos Milhafres?

— Confesso, quê? Eu não posso confessar ter feito aquilo que não fiz. Nunca eu veja a luz da salvação se minto.

— Mas foi na turba-multa?

— Fui até certa altura.

— Pois não devia ter ido. Um só passo que deu tornou-o cúmplice.

— Sempre queria ver quem nos roubava...

— Ou quem poderia contribuir para melhorar a sua sorte... Ora diga-me cá: Entraram muitas pessoas no rebuliço?

— Quantos nasceram na malfadada serra dos Milhafres e ouvem pelas noites de inverno uivar o lobo.

— Assistiu à sedição?

— A quê?

— À zaragata?

— Não senhor, a certa altura meu compadre Chico Barreias disse-me: Voltamos para trás, Alonso. Esta gente corre à perdição. Fomo-nos meter na loja do tio Lêndeas a petiscar e a jogar as cartas.

— Foi um dos que andaram a pregar a guerra ao Governo?

— Não, senhor, ninguém pregou a guerra ao Governo. Nós todos somos gente de paz. Tomáramos nós que nos deixassem. O que se dizia de povo para povo é que íamos ficar desgraçados, sem coiro e camisa.

O desembargador Rouvinho Estronca Briteiros abriu os braços, sinal de que instar aquele brutamontes, por jeito ou ronha arvorado em rei da madureza, era o mesmo que malhar em ferro frio. E logo o representante do Ministério Público pediu vénia para duas perguntas.

— O réu sabe ler e escrever?

— Gatafunho o meu nome e, lá de ler, arranho... arranho.

— Que livros lê?

— O Mestre da Vida, o Seringador...

— É por conseguinte um homem mais responsável do que inculca a sua rudeza. Peço aos dignos juizes de tomarem na devida conta a minha observação. Quem disparou contra o engenheiro Lisuarte Streit da Fonseca?... Não sabe quem foi?

O réu abanou a cabeça.

— Não seria o réu? Ribelas deu um salto:

— Eu estava na loja do tio Lêndeas quando se deu o barulho.

— Não é o que se afirma nos autos. Mas pode apurar-se... Senhor Presidente, não haveria maneira de convocar para uma das próximas audiências este tal Lêndeas? Lêndeas quê?

— Lêndeas é a alcunha. O nome é Julião Barnabé, de Urro do Anjo — esclareceu muito solícito o Dr. La-bão, advogado dos dois réus dali naturais, pronunciados no processo.

— De sorte poderá ser convocado — obtemperou o Presidente, Dr. Octávio Rouvinho Estronca Briteiros. — Pertence à comarca de Bouça de Rei. Mas o seu depoimento afigura-se-me suficientemente preciso. Não declara que ignora ter conhecimento de que o réu estivesse na sua loja aquele dia?

— Ouviram-lhe dizer: um já pateou... — tornou o representante do Ministério Público, voltando-se para o réu.

— Se me ouviram dizer: um já pateou, era negócio de chincalhão. Eu estava com uma sorte maluca. Um atrás de outro, abarbatei a meu compadre três quartilhos e um bolo. Como podia eu referir-me ao senhor engenheiro, se em Urro só pela tardinha se veio a saber o que se passou na serra? Daí lavo as minhas mãos.

— Bem vejo que não procura outra coisa, lavar as mãos como Pilatos. Mas não há água que lhas lave...

— Não há dúvida, senhor, têm volteado muito estrume.

— ...Sujas de sangue, digo eu. As testemunhas são formais. Senhor Presidente, insto pela presença do tal Julião Barnabé Lêndeas, se é possível, e por agora ponho ponto no interrogatório deste homem...

Réu atrás de réu, Manuel do Rosário, Justo Rodrigues, Júlio Nacomba, João do Almagre, Joaquim Pirraça, aliás Piçarra, José Rela, etc. etc. foram espiolhados em todos os refolhos com uma minúcia e insistência inquisitoriais. O Ministério Público teimava em forjar comunistas daqueles labregos incultos, lorpas por fora, espertos por dentro, astutos, afirmativos, e, sem medo de mentir, capazes de enganar o Diabo quanto mais rolinhos cheios de quiçás e parágrafos! O fraco deles era saber ainda menos de doutrinas políticas do que do dogma da Santíssima Trindade.

O último a ser chamado foi João Rebordão. Seria julgado à revelia que tivera o descaramento de interpor entre a sua pessoa e aquele tribunal de edificação o mar Atlântico. Tal como os réus da Fé que fugiam para a Holanda. Fora o cabecilha? Talvez. Mas cabecilha de quê? Duma populaça que, errada mas sinceramente, arvorava a bandeira dos seus direitos ancestrais. Era sobre esta base que o Dr. Basílio da Esperança, chefe da Liga em Bouça de Rei, ia pleitear a sua causa a troco, bem entendido, de bons honorários. A família procurava arredar a penalidade do lado propriamente fiscal, e com ele havia fortes probabilidades de o conseguir. Não se chamava Esperança, voz e vontade no concerto das direitas? Vermelhusco, com ares de cortado em tabuão de cerejeira, além das excelências verbais, notava-se pela indiscutível autoridade. Era homem de vida recatada, bastante senhor do seu nariz, violento porém. Celebravam-no os amigos como possuído dum priapismo invencivelmente inflexo e abraâmico, praticado a esmo nas criadas e mulheres do povo. Mas, aparte isso, era um excelente chefe de tribo, pai de muitos filhos, os três mais velhos sentados já à mesa do Orçamento. O seu concorrente na advocacia local, com os butes no palanque, era o Dr. Labão do Carmo. O estilo deste era outro. Mamava pela calada. Quanto a eloquência, correspondentemente um Demóstenes mudo. Sentava-se à barra e, pela bonomia que respirava da sua pessoa, pela atitude de maravilhado ante qualquer tonilho dos juizes, pelos acenos de cabeça e visagens com que os aplaudia, exercia uma útil acção catalítica. Tão reverenciosa natureza, mercê da cordialidade, esse fluido transmissor de simpatia, tornava-se o pára-raios à sombra do qual se abrigavam os seus constituintes dos coriscos fulminados pelos Júpiteres da lei. Para obter tal efeito, era preciso possuir altas qualidades de actor, pertencer à Liga Nacionalista, e ser dotado duma presença ad hoc. E Labão reunia tão eficazes prendas. Pernicurto, cara zodiacal, barbela de regueifas, olhos ladinos e joviais, lábios de alguidar, barrigão que estalava do cós das calças e deixava à mostra, a toda a roda, a virola branca das ceroulas, revestia um ar de soba repousado e enxundioso da mais perfeita inofensividade e doçura humana. Assim se impõe o sapo por sua hediondez afável. Aquele misto de placidez e finura habilitava-o a exercer toda a espécie de tranquibérnias sem desconfiarem dele ou apenas tarde se aperceberem. Pronto a todos os obséquios e fretes ao poder, era o protótipo do ratazana da vila constitucionalmente ancorado na autarquia municipal. Hoje com brancos, amanhã com vermelhos. Mestre da vida, diziam dele os pacóvios escarmentados e admirativos: Sabe-a toda! Os presos de Urro do Anjo não podiam encontrar melhor defensor, posto mal abrisse a boca.

Na audiência do dia seguinte, desfilaram primeiro os declarantes. Rompeu com o inspector Pácomo, homem corpulento, apegado, cabeça de dogue sobre pescoço de touro, olhos glaucos, tipo para as expedições perigosas. Declarou que tivera a impressão, ao pisar os povos da serra, de entrar em apriscos de lobos. Tudo uivava, os cães, as mulheres, os meninos e os próprios velhos. Homens válidos onde iam eles? Tinham-se escamugido. Catrafilaram aqueles que se haviam fiado na sua importância e nos bens da fortuna, porque para o lugar consideravam-se ricos, e esperaram a pé quedo, talvez com receio que lhes roubassem as casas. B muito provável que tal fidúcia os lançasse na rede. Os pirangões e pobretainas haviam-se posto na alheta. Esses, de noite, onde os pressentissem, frigiam-nos à fragada. Muitas vezes foram obrigados a abrir fogo, tantos eram os calhaus que choviam sobre eles. E, nestas pendências, se alguns camaradas tiveram de retirar com a pinha partida, não deram fé que nenhum daqueles trogloditas fosse atingido pelas balas da ordem. Viam às vezes ou parecia-lhes ver vultos enrodilhados nas sombras e visavam. A calhoada continuava a cair sobre eles. Não houve remédio senão desistir de caçar a arraia-miúda e trazer no arrastão aqueles tios que fingiam e, ao que parece, continuam a fingir de inocentes cordeirinhos.

O beluário riu-se, os senhores juizes riram-se, porque tinham de proceder em consonância com o agente da ordem de que eles eram sacerdotes, e o senhor ajudante do Procurador da Republica pediu de novo vénia para formular uma pergunta, que logo se reconheceu ser capciosa:

— Ouvi dizer ao declarante que, à falta dos lobos autênticos, deitaram a mão a estes que, na mesma ordem de animais de presa, se poderiam chamar os zorros. Está persuadido que os réus, quer tomassem ou não tomassem parte nos distúrbios, eram coniventes com os sediciosos?

— Mais que persuadido, certíssimo. Procedemos, por escrúpulo de consciência, a um inquérito demorado e meticuloso. Dos presos, se porventura algum deles não manejou contra os servidores do Estado o trabuco ou a podoa, não deixou de instigar à revolta. E vou mais longe: quisessem eles, ou por outra, usassem eles, no sentido inverso, dos meios de convicção de que dispuseram para os empurrar, que na serra dos Milhafres se não teria erguido uma palavra mais alta de protesto contra os Serviços Florestais. Tudo o que se passou foi política.

— Estou satisfeito — rematou o representante do Ministério Público, fazendo um gesto de placet com a mão flácida. — Como vêem, senhores juizes, estamos diante de réus facciosos, réus pelo que fizeram e réus pelo que não fizeram e lhes incumbia fazer.

Sucederam-se outros oficiais da mesma corporação. Um deles confessou:

— Andámos com a gana toda à cata dos criminosos. Deitou-se a unha ao que se pôde. O maioral de todos, João Rebordão, pisgou-se a tempo. Pois chegámos a pôr-lhe a cabeça a prémio...

Rigoberto levantou-se:

— Pode saber-se quanto davam pela cabeça do caudilho?

O homem hesitou e, como visse os juizes de boca aberta em sinal de curiosidade e, de modo algum, significativo de abafarete, respondeu:

— Cem escudos.

— Cem escudos — tornou Rigoberto. — Barata feira! Para os senhores agentes da Polícia de Segurança Interna um homem vale menos que um carneiro. Um carneiro orça hoje pelos seus duzentos escudos... e marranito. Notem, senhores juizes, a importância que o Sistema, ou a sua orgânica policial, liga à pessoa humana, essa entidade prima duma metafísica com que todos os dias enchem a boca.

Os juizes estremeceram em suas poltronas. O Presidente, atropeladamente, perguntou se tinha mais alguma coisa a declarar.

— Não, senhor juiz Desembargador.

— Pode retirar-se.

Voltava cabisbaixo. O mastodonte, uns segundos depois que ele volvera ao assento, disse-lhe qualquer coisa, que devia ter agido como ferroada, pois que se lhe viu descer o cenho e recalcitrar.

Os declarantes, quanto aos réus do bacalhau podre, trataram de os enterrar o melhor que puderam. Mas foi à Ia minute. Os polícias eram gente de letras gordas e entendimento por vezes confuso e dali podia sair vespeiro. Começaram a ser chamadas as testemunhas de acusação. Os primeiros foram dois guardas do Perímetro Florestal da Serra dos Milhafres. Falhou-lhes a memória, colado com custo o depoimento, e meteram os pés pelas mãos. Ao que tinham ouvido dizer, o culpado de todo o farrobodó teria sido um tal Julião Barnabé...

— Julião Barnabé?! — exclamou o Dr. Labão que ali estava para defender dois paroquianos de Urro do Anjo. — Não pode ser. Julião Barnabé é homem ordeiríssimo, conservadoríssimo, ultramontano de intuição, diamante de primeiras águas do Novo Sistema, pai de dois bons assalariados do Perímetro. A testemunha não conhece Bruno e Modesto Barnabé? Não conhece? Repare que um deles está aí ao seu lado... Pois o Julião Barnabé é pai dos dois.

— É pai do Bruno...?! Mas o pai do Bruno não é o Lêndeas?

— Lêndeas é a alcunha acintosa, mas, em suma, Julião Lêndeas ou Julião Barnabé é a mesma coisa — tornou o Dr. Labão. — A testemunha se não é parva, parece-o!

O depoente vergou a fronte, envergonhado. Andara sempre na parte norte do Perímetro, lá para Valadim das Cabras, e, depois do barulho, só ouvia falar em Lêndeas para aqui, Lêndeas para acolá. Para Rigoberto, o nome de Julião Barnabé devia ter-se interseccionado, por falta de ensaio, entre os nomes importantes que a testemunha havia de enunciar como favoráveis à arborização, pois que pertencia a esse rol. Foi uma dos diabos! Desculpou-se o desastrado alegando ter confundido os nomes. Na bancada dos causídicos e na assistência estalaram risos. O oficial de diligências, a um aceno do Presidente, chamou o público à ordem.

O depoente dava-se já por feliz de ter acabado o recado o melhor que pudera quando o Dr. Rigoberto pediu autorização para instar a testemunha.

— A testemunha não é da região?

— Não senhor, sou de Escurquela.

— Quem o nomeou guarda-florestal?

— Foi o senhor Dr. Basílio Esperança, que me deu uma cartinha para o senhor engenheiro Streit.

— O senhor Dr. Basílio Esperança, meritissimos juizes, é o presidente da Liga Nacionalista. Pessoa de alta influência na comarca. — E voltando ao depoente: — A testemunha encontra-se amiudadamente com o seu protector... não deixa de lhe levar o seu coelho... o seu junco de trutas?

— Por mais convites que lhe leve, nunca eu pagarei o favor que lhe devo. Por ele meto as mãos no lume se me mandar. Eu cá sou um homem agradecido.

— Sim, senhor, sim, senhor, e fica-lhe muito bem. O senhor Dr. Basílio Esperança merece-o. Merece-o e se me disserem que é lamentável que a política local de Bouça de Rei se faça a poder de pernas de vitela, responder-lhes-ei que é um estilo como outro qualquer. Realmente quem manda ali é a peita. Hoje come Beltrano, que é o Presidente; amanhã come Cicrano, que substituiu aquele. O camponês, para ser atendido e na mira de ser menos cardado, farta-se de correr para a vila com cestinha aviada: ovos; o seu fumeiro; os franguinhos para as ervilhas; o chibato.

Aparte do Presidente:

— Ainda não chegámos às alegações. Ou que imagina Vossa Excelência?

— Mas isto é uma ilustração e desculpem que lhes roube o tempo com tais vinhetas à margem. Ora diga-me cá a testemunha: o senhor Dr. Basílio Esperança devia ter ficado muito irritado com o que se passou na serra dos Milhafres... Compreende-se: era no seu feudo; quebrada a placitude velha, solidificada como o terreno terciário. Ouviu-lhe por certo vozes de reprovação...!? Aqueles cães precisavam o pescoço cortado... ah, Teles Jordão! Ora diga...!

— Lá isso ouvi.

— Ouviu-o ao seu protector, por quem é capaz de meter as mãos no fogo. Não quero mais nada da testemunha, estou satisfeito. Senhores Juizes, tenham a bondade de tomar nota.

Rigoberto encavalitou perna sobre perna, cruzou os braços, e esperava novo depoimento, quando viu o Dr. Basilio Esperança avançar para ele e desengulhar:

— O senhor é parvo.

— Parvo de todo. Tanto assim que sei que o sou e não me corrijo. Se o não soubesse, era um homem importante e feliz como você!

A segunda testemunha de acusação, também guarda-florestal, produto da mesma conróbia, quebrou ele por processo análogo. Compareceu finalmente Bruno Barnabé, o mais velho dos dois Lêndeas. Trazia a farda da sua milícia e a barretina na mão. Por baixo do ar pimponaço lia-se-lhe uma certa turvação e nervosidade.

— Jura dizer a verdade...?

Depois das perguntas e respostas do estilo, emitiu uma acusação nem carne nem peixe, no intuito de se desonerar do frete e não se comprometer demasiado. O representante do Ministério Público é que não se deu por satisfeito, e, antes de o advogado dos Milhafres o capear, interveio ele, apercebendo-se-lhe da manha:

— Diga-me a testemunha: algum dos réus é seu parente, seu conhecido de copo ou apenas seu vizinho?

— Saiba Vossa Excelência que nenhum dos réus é meu parente. Da mesma terra, Urro do Anjo, são dois. Os outros são de terras limítrofes, tudo da área da serra. Lá quanto a amigos de copo, não me lembra que alguma vez suciasse com eles.

— Vamos por pontos. Deste Manuel Louvadeus que impressão tem?

— Impressão, sob que aspecto?

— Não foi ele um dos que incitaram os povos à rebelião...?

— Abertamente não foi. Mas como é homem de boas falas podia muito bem tê-lo sido.

— Portanto, quisesse ele, a mortandade ter-se-ia evitado?

— Lá isso, não sei. Era preciso ele querer. Querer ou não querer está na vontade de cada um...— e dava voltas à barretina, de olhos em terra.

— Olhe para mim... Se quisesse...?

— Se quisesse...— ergueu, tornou a baixar a fronte.

— Sim, homem, se quisesse?

— Se quisesse, podia ter feito muita coisa...

— Evidentemente, podia ter feito muita coisa... colheres, por exemplo. — (Frouxos de riso, aqui, além.) — Sem ser colheres? — tornou farisaico de todo.—Teria evitado o barulho e a mortandade ou não teria? Não esteja com panos quentes...

— Quisesse ele — arrancou, rendido àquele sorriso sarcástico e maneiras de alta prestidigitação mental, como se se atirasse duma ponte alta para baixo — ter-se-ia evitado o barulho e a mortandade.

Ouviu-se neste instante uma voz que repercutiu por detrás da teia, como certos trovões que vão estalando pelo céu fora. Era o velho Teotónio Louvadeus-que invectivava o Lêndeas, erguendo acima da turba siderada a sua cabeça de velho Sileno. Todos, voltando olhos, se lembraram do que o beluário pouco antes dissera dos homens da serra, uivadores.

— Quem tem o dia de amanhã fechado nos cinco dedos, ladrão?! Quem? Onde viste o meu filho a pregar a guerra?! Quando voltou do Brasil, não encontrou já a gente serrana danada com o roubo que lhe iam fazer? Deixa estar, cachorro, que mas pagas todas juntas!

Avançaram para ele os guardas e o oficial de diligências. O juiz alçou-se na cadeira curul:

— Metam esse homem no calabouço... Três dias de prisão!

Rigoberto intercedeu, invocando os cabelos brancos do homem e a sua revolta tão legítima de pai contra o conceito tendencioso, que, segundo uma bem compreensível susceptibilidade, puderia lesar o filho no ânimo dos senhores juizes. Nada valeu. Levaram o velho aos empurrões, meio de rastos, a estrebuchar como um possesso.

Bruno ficara Um momento interdito, mas nem por isso deixou de responder ao interrogatório com mesurada e cautelosa perfídia.

— A testemunha ouviu-lhe alguma vez fazer propaganda de ideias subversivas, quer dizer, ideias contra a nossa Santa Madre Igreja, o direito de propriedade, a ordem legal estabelecida pelo consenso da Nação?

— Em tom de conversa com este e aquele ouvi-lhe dizer mal disto e daquilo.

— Diga, diga, mal disto, mal daquilo, mas que mal?

— A seu ver o mundo andava torto, uns tinham muito e outros não tinham nada; uns morriam à fome e outros de indigestão. Mas, verdade seja, que não aconselhava ninguém a usar da violência. Quanto a ser herege, toda a gente sabe que não vai à missa nem se confessa. Mas não é homem para atirar uma pedra a um gato...

— Nunca lhe ouviu dizer que a religião era uma impostura e os padres os funcionários desta impostura?

— Não, senhor.

— Pois está-lhe imputado nos autos — proferiu batendo no imenso bacamarte do processo. — Mas se lho não ouviu, acha que destoa tal dito na boca do réu?

Bruno Lêndeas torceu-se, esboçou um esgar, e acabou por dizer:

— Não, senhor.

— Muito bem! E este outro dito: Cristo nasceu nas palhas, para nos mostrar que somos todos iguais. Que sociedade é esta onde uns têm tudo e outros não têm nada? — ouviu-lhe?

— Também não, senhor.

— Sabe se lia certos autores condenados pelo bom senso, o Estado, e a tradição religiosa, como Lenine, Karl Marx...?

— De Carlos Marques não sei. De Carlos Magnus vi-lhe o alfarrábio na mão.

Os senhores juizes soltaram-lhe uma gargalhada estrepitosa, menos ao alegre desenfado do que para confirmação de suas conspícuas inteligências. O representante do Ministério Público dobrou a cabeça, encantado:

— Estou satisfeito.

Rigoberto propôs-se revoltear na grelha o rebento indegenerado do Lêndeas. Olhou para ele, para aquela cara de lascarinho, crânio pequeno onde devia escassear o senso moral e a vergonha, todo ele bastante reles. O que tinha de acentuado era a fidúcia animal de galo com que seduzia as moças. Para completo deslavamento, só lhe faltavam barbilhões. Contas feitas, que pronunciara ele de comprometedor para Manuel Louvadeus que não fosse o ámen às proposições do Ministério Público? Com um gesto de cabeça, citou-o; com outro, desprezativo, reexpediu-o como quem sacode um insecto nojento que lhe pousou no fato.

O terceiro dia de audiência passou-se em apurar a história do bacalhau podre, causa de greve e motins. Fornecido à cantina pelos próprios donos da fábrica, cujo repasto, obrigatório para o pessoal, era contado no salário ao seu preço estimativo, a eles incumbia toda a responsabilidade. Culpá-los pois de ganância era aliviar os amotinados, e vice-versa. Alegou a primeira testemunha de acusação que o género não era pior, nem melhor do que o que se vendia no mercado. No condimento é que ia tudo. Com um bom golpe de azeite e um dente de alho, chamava-se-lhe um figo. A segunda testemunha, uma rapariga de cara estanhada e caraminhola oxigenada, veio dizer que se comera do tal bacalhau em sua casa e quem lhes dera lá mais!

— Como sabe que era o mesmo? — perguntou o Presidente, cônscio da sagacidade da criatura.

A testemunha sorriu, dobrou a cabeça, e viu-se que tinha certo enleio em confessar.

— Diga, não tenha medo — instou o Ministério Público.

— Foi uma postazinha que o cozinheiro no mesmo dia me deu por baixo de capa.

Compreenderam todos o imbróglio, e o Ministério Público espadelou as mãos uma contra a outra, indício de regozijo judicial. Umas tantas testemunhas mais juraram que, se o bacalhau era podre, os senhores da fábrica tinham sido logrados na boa fé. Se à mesa deles não ia tal artigo, como haviam de saber que era impróprio para consumo?

— Sabe onde o adquiriram? — perguntou um advogado da defesa.

— Não.

— Sabe ao menos o preço?

— Também não, senhor.

— Como os senhores juizes vêem, nada sabem da origem do produto, em que condições chegou à fábrica; por conseguinte tudo o que digam no respeitante à lisura com que se procedeu, é farelório.

As testemunhas de defesa, por sua vez, declararam que era sabido os industriais comprarem o "bacalhau, condenado ao guano, por uma ridicularia. A firma bacalhoeira porém continuara a vendê-lo ao público, com certo resguardo. Se no público se não tinham verificado casos de envenenamento, porque haviam de dar-se na fábrica? Toda a atenuante pelo que respeita aos senhores industriais estaria nisto, o bom estômago do pobre que digere o churro e o putrefacto e lhes serviria de cobaia.

— Como pode isso ser, sabida a honorabilidade inconcussa de tais pessoas, esmoleres ao último ponto, agraciadas pelo Papa com um alto grau de nobilitação, inscritas ao alto da coluna no rol de benemerência do novo Sistema, com um carro de assalto para a Falange, umas centenas de contos para bodos no Natal, a bolsa sempre aberta para festejar os grandes homens da Situação, homenagens, subscrições filantrópicas, solenidades de Igreja, iniciativas que no seu conjunto demandam grosso capital? — contestou o Ministério Público.

As testemunhas, de feição popular, acuaram por cobardia e foram até se desdizerem. Ficou redimido o fiel-amigo, com que se banqueteavam os operários da fábrica, e de que morreram uns tantos, naturalmente, como disse um contramestre, porque tinham de morrer. Em contrapartida, havia que condenar os operários contaminados pelas doutrinas perniciosas da anarquia e do comunismo. Como não podia deixar de ser, força lhes era punir, de modo nenhum espadeirar no vento, uma vez que o lema do tribunal era: carregue-se. E testemunhas de acusação, por um lado, o Ministério Público, por outro, com casuística ad hoc, inventaram e urdiram delitos bem especificados, provados e contraprovados, em agravo dos pobres tecelões, e saiu obra limpa.

No quarto dia voltou-se aos réus da serra dos Milhafres. Abriu-se a cadeia ao velho Louvadeus que teimou em assistir à audiência, prometendo dar um ponto na boca, embora se dissessem no pretório infâmias capazes de sujar com um salpico quanta dignidade há na terra.

Juizes, advogados, réus de Riba do Pisco e acólitos ficaram muito admirados ao ver surgir à barra a defender a lapuzada da Beira Alta um senhor tão diferente deles como era o engenheiro silvicultor César Fontalva. Vestido com elegância mas sem rebusca, maneiras distintas, no todo um halo de civilizado, faltava-lhe o monóculo para embatucar o pretório, que era sensível ao catitismo, a avaliar pelo prestígio de que gozava o juiz Soberano não só à missa dominical dos Congregados como na Pastelaria Atiça, em que acampava a tertúlia.

Depôs Fontalva com lhanura e sinceridade, o que provocou nova comoção. — Falava — começou por dizer — não apenas como engenheiro chefe dos Serviços Florestais na segunda zona do perímetro, mas como pessoa que entrara em contacto, posto que ocasional, com a gente da serra, na esperança de que o seu testemunho servisse a alumiar o caminho a juizes que não tinha dúvida de crer bem-intencionados. Ao contrário da opinião corrente, os habitantes da serra dos Milhafres e o meio donde provinham não lhe pareceram bravios e muito menos improgressivos. Se o serrano levava uma vida bastante primitiva é porque era pobre e pouco favorecido pelo Terreiro do Paço. A região carecia de estradas, de água potável, de comunicações telegráficas e telefónicas, de postos sanitários, em suma, dos rudimentos de que se acham dotados por toda a parte os agregados similares. Não se fala em estabelecimentos de diversão, teatro, cinema, bibliotecas. Isso para a terra é música celestial. Uma escola ensinava o be-á-bá fugiu a burra e o padre prosseguia com seus responsos, suas missas dominicais e pagas, suas bulas, seus latins-latões, como dos primeiros séculos de Cristo para cá, para lhes salvar a alma. Dos corpos, ninguém, através de quatro dinastias gloriosas, se importou. Ora os «misquinhos» eram sôfregos de tudo, invejosos do alheio, logicamente arrebatados na defensão do que sempre consideraram seu. O baixo nível de vida bradava aos céus. Como podia coexistir no nosso tempo a sua miséria com o esplendor, bem que relativo, isto é, segundo a escala portuguesa, do Estoril, Figueira, Lisboa, Espinho, etc. etc.? O atraso da população da serra dos Milhafres vem da sua pobreza, tornou a insistir. Fora disso, figurava-se-lhe do mais esperto que vira em Portugal em artigo de aldeão. E quanto a dureza, não lhe constava que executassem a dança do escalpo em torno das vítimas, nem tão-pouco adubassem a panela com toicinho cortado ao lombo dos oficiais do Estado que se diz eles aborrecem. Alguns indivíduos, com quem fora conduzido acidentalmente a travar relações, revelaram-se-lhes duma inteligência e disposição moral muito além do comum camponês...

— Quer Vossa Excelência referir-se a algum dos réus...? — propôs o Juiz Presidente, vendo delongar-se o preâmbulo.

— Sim... a Manuel Louvadeus, por exemplo, homem cheio de bondade e de sisudez, que se fez por si, se civilizou em contacto com civilizados. A primeira hora que o vi, admirou-me a facilidade com que se exprimia, sem esforço, da forma mais espontânea. Depois admirou-me a sensatez e indulgência, digamos, inata com que explicava os reveses da vida. De modo que ao sabê-lo no banco dos réus surgiu-me ao espírito, a priori, que aqui deve ter havido erro ou parcialidade.

— E Vossa Excelência, como um dos engenheiros silvicultores a quem incumbia a valorização da serra dos Milhafres, que tem a dizer do caso concreto do réu? — tornou o Presidente a fugir ao dissertativo.

— Nessa qualidade posso afirmar pela minha honra que, se vi Manuel Louvadeus na turba que avançou para nós, não lhe ouvi uma só palavra de provocação, nem mesmo de protesto. Pelo contrário...

— Vossa Excelência digne-se explicar esta última frase: pelo contrário... — solicitou o advogado de defesa.

— Da melhor vontade. Manuel Louvadeus dizia para os mais esquentadiços: Vejam lá, rapazes, não se exaltem! Esta gente é mandada; cumpre o seu dever. Calma! Outras vozes desta natureza lhe ouvi proferir como: Viemos aqui, os Poderes Públicos já ficam sabendo que não concordamos com a obra que intentam levar a cabo. E há-de-nos ser feita justiça. Nós também somos Portugal! Cuidado, não se estrague com desmandos o efeito produzido!

— Dá-me licença, senhor Presidente? — interveio o Ministério Público. — Se Manuel Louvadeus tão bem representou na serra o papel de Rainha Santa Isabel, porque é que o não representou antes? Que tinha ali que fazer?

— Dá-me licença, senhor Presidente...? — interpôs o Dr. Rigoberto. — Não sei se ali o exacto papel do meu constituinte era o da Rainha Santa Isabel, se antes dum interessado, que preza a moderação e não desespera da sua causa. Bastaria este móbil, sem se ter investido da missão de árbitro, o que só seria louvável, para estar justificada a sua presença.

O representante do Ministério Público esboçou um esgar dubitativo, havendo engolido em seco. César Fontalva apercebeu-se e recargou:

— Há pessoas para quem fazer bem, engendrar paz, ser elemento de bondade, representam uma função, digamos visceral, sem que anulem em si outras funções. Para estas é um regalo, como para muitas o é fazer o mal. Sadismo e altruísmo não são palavras desprovidas de sentido.

— Parece-lhe então que o réu exerceu ali um papel de generosidade? — volveu o Ministério Público, cedendo pano.

— Perfeitamente. Talvez que sem a boa interferência de Manuel Louvadeus, que goza de certo ascendente nas populações serranas, ali corresse o sangue como na primeira zona. Força e povo confraternizaram. A que visa o espírito da ordem?

— Senhor juizes, peço-lhes o obséquio de registar: o réu goza de tanto ascendente nas populações serranas que as levou a ficar quietinhas.

— E isso pode ser-lhe tomado em desabono? — replicou Fontalva. — Parece-me que, mercê de semelhante influxo, suponhamos, a sua acção seja de enaltecer e não de condenar. Os meritíssimos juizes dignem-se, para que se chegue a um cabal apuramento de responsabilidades, deter-se nestes pontos: porque é que na zona 2 não houve distúrbios nem perigaram vidas? Foi devido a quê ou a quem? Quanto a mim, permitam-me que lhes diga: vir encontrar aqui estes pobres homens, só o explico, no plano das explicações semi-honrosas, por um excesso de zelo da polícia de Segurança. A minha razão insurge-se contra tamanho absurdo, pelo que envolve de iniquidade flagrante.

Fontalva fez menção de haver terminado o testemunho. O patético com que proferiu as últimas palavras não coube na pausa da tabela e encheu o silêncio duma certa solenidade. Ao cabo dum momento, ressarcindo-se, o representante do Ministério Público ergueu as mãos brancas de cima do processo, reviu-se nelas, olhou para qualquer falha impreconcebida das unhas, e prorrompeu:

— Pois que o senhor engenheiro declara ter tido conversas particulares com o réu, diga-me, tenha a bondade, se não se lhe proporcionou o ensejo de lhe ouvir expor as teorias. Porventura se houvesse entabulado entre os dois, já não digo o debate, dado que toda a discussão implica um compromisso, mas o diálogo...?

A testemunha manteve-se calada, revelando com a sua atitude manifesto desprezo pelo interrogatório, que não embaraço.

— Não se lhe afigura — insistiu o Ministério Público, com voz blandiciosa — que estamos perante um criptocomunista...?

— Não senhor, não se me afigura nada disso. Pelo que lhe ouvi, este homem professa a doutrina do bom senso e dos deveres morais que todos temos uns para com os outros e certa mágoa pela desigualdade das condições humanas. Mas estas doutrinas tanto se podem enxertar nos mandamentos da lei de Deus como nos preceitos de Tolstoi. Não há maneira de ver que se não encontre à margem de qualquer sistema político ou filosófico... o que eu digo... o que V. Ex.a diz. Se isso pode constituir crime, para que não seja possível esse crime, teremos que voltar à pedra lascada, servindo-nos, em vez de razões, do machado de pedra uns para com os outros — respondeu César Fontalva com desabrida impaciência.

O representante do Ministério Público deixou espaçar um minuto de silêncio, frio minuto de contensão em toda a sala, e volveu:

— Hum, então as doutrinas do réu não traziam a marca de qualquer oficina política? Mais clandestina, menos clandestina?

— Não senhor. Pelo menos não reparei.

— Muito afirmativo é V. Ex.ª Permita-me uma pergunta: é político?

— Não pertenço ao Partido Único.

— Mas é funcionário do Estado?

— Sim, sou funcionário da Nação.

— Em resumo, qual foi em seu entender a causa das desordens sangrentas que houve no sector 1?

— Incompreensão de parte a parte dos móbiles com que ali vinham uns e outros. A força arrogava-se de manter uma ordem determinada, os populares uma antiga tradição. No meu sector não permiti que se estabelecesse o conflito, refreando os ímpetos duns e procurando apaziguar outros. Neste papel, foi-me de grande auxílio Manuel Louvadeus.

— Se bem percebi, em seu critério, a primeira responsabilidade do que houve no sector 1 coube à tropa?

— Conclua como entender.

Decorreu novo silêncio, cheio de animadversão de parte a parte. O representante do Ministério Público esfregou as mãos e embeveceu-se na sua brancura. Em voz lenta proferiu:

— Estou inteirado. Só mais uma perguntinha, uma só, para lhe não parecer impertinência o cuidado que ponho em esclarecer a verdade e servir a detestável ordem social: se o réu Manuel Louvadeus tivesse aplicado a influência de que dispõe junto das populações no bom sentido: isto é, que a serra lhes traz muito mais vantagens arborizada e entregue aos Serviços, do que como está desde tempos imemoriais, tê-lo-iam ouvido?

— Talvez.

— Talvez...?! Gosto de lhe ouvir esta palavra. Talvez, na boca de V. Ex.a, testemunha de defesa e homem de vontade, está bem próxima de por certo.

— Por certo seria apenas admissível subentendê-lo, caso ele estivesse convencido que a proposição do Estado era a vantajosa.

— Mas não seria esse o seu dever de cidadão cumpridor das leis e dos desígnios do Estado?

— O Estado não é infalível. O Estado, antes de mais nada, e a não se ter convertido numa quadrilha, sou eu. Eu, indivíduo.

— V. Ex.ª no lugar dele como se comportaria?

— É muito querer saber.

— Perdoe V. Ex.a Sou um instrumento da verdade.

— Perfeitamente, mas não queira ser gazua. Transcorreu novo e sensível silêncio. O rancor

subia nas duas almas.

— Não me quer então dizer qual a atitude que adoptaria no lugar dele? Pregaria a resistência ou adoptaria o papel ambíguo, que parece ter sido o dele?

— Si j’étais roi, conduzir-me-ia como rei. Como o não sou, ignoro como me conduziria.

— Estou satisfeito — proferiu o magistrado, sorrindo com enfatuação.

Aquele remate equivalia à ameaça dum informe pejorativo para os Serviços Florestais e cadastros da Polícia. Corria ainda a sindicância que lhe tinham movido, e César Fontalva encarava com tranquilidade a perspectiva de abandonar o lugar. Não era rico, rico, mas não morreria à míngua. Retirou-se do tribunal, onde continuou o interrogatório latitudinário com o mesmo afinco e gana medieval de forjar um criminoso de corda e alba.

 

Estava-se no oitavo dia de audiência e naquela manhã começavam os debates. Às dez em ponto, os senhores juizes ocupavam os seus lugares, o Presidente Rouvinho Estronca Briteiros mais encatarroado do que nunca e o Dr. Soberano Peres mais aperaltado e pintalegrete na toga impecável. Via-se a bancada dos defensores tomada de lés a lés por seus balandraus pretos. O Dr. Rigoberto Mendes tinha a cargo defender os presos de Arcabuzais da Fé. O Dr. Labão era patrono dos paroquianos processados de Urro do Anjo, e lá estava a intervir de modo permanente e eficaz, nada mais que pela postura,, sempre muito atenciosa, de publicano perante Salomões. O Barnabé premeditara arruiná-los, para lhes ficar com os bens, dizia-se, em perfeito entendimento dos dois. Era sabido que o Lêndeas não andava no mundo senão para enterrar o parceiro, mas fazia-o pela sonsa, com olhos meigos, com tal arte que às vezes os papéis invertiam-se entre os desejos recônditos da sua alma e os actos externos da pragmática, deste modo fugindo-lhe do domínio a própria patifaria. O Dr. Coriolano Arruda e Dr. Arcângelo Camarate completavam o naipe dos defensores quanto à serra dos Milhafres. Para o bacalhau podre do Pisco envergara a beca um jovem e impetuoso causídico do Marco, que ali atraíra grande auditório.

Magistrados e doutores da lei, feita a chamada em grande silêncio, espraiaram mais uma vez automaticamente os olhos pela carneirada humana que ia passar debaixo do seu báculo. Tratava-se de gente simples, de aspecto rude, mesmo humilde, alguns de barba hirsuta de muitos dias, que para eles era letra morta o valor da etiqueta ou do asseio, no semblante entristecido olhos pasmados de animais de canga. Já os operários fabris da vila destacavam deles, menos pela expressão fisionómica, que era igualmente dramática e aviltada, do que pelo traje, gravata, sapatos de calf, todos urbanos no seu cotim e mescla.

Ildebrando Soberano Peres, ajudante do Procurador da República, tomou a palavra. Depois da exposição sucinta dos factos, passou ao libelo de cada um dos réus, estabelecendo o seu cadastro.

Manuel Louvadeus: criminoso manifesto. Fora João Rebordão o executor danado da sedição, como Manuel Louvadeus o seu teórico. Quem era este Louvadeus? Em breves palavras, senhores juizes, lhe traçaria o perfil: Tendo partido de Portugal há uma boa dezena de anos, formado segundo o espírito e a índole da terra-mater, respeitoso das pessoas dignas de respeito por seu nascimento, riqueza, estado, cumpridor dos deveres de católico, obreiro probo, regressara repleto de vícios inerentes às terras novas, desprovidas de tradição, em que actuam toda a sorte de precipitados sociais. Nesses meios descristianizados ou imbuídos duma burundanga inacreditável de religião revelada, feitiçaria e pseudofilosofia de Comte, bebera uma vaga doutrinação acrata que lhe permitia escarnecer dos Evangelhos e dos dogmas sacrossantos da Igreja. Espiritista, pela certa, voltara costas ao credo em que nascera, negação esta que nunca deixa de ser ponto de partida para todos os desvarios do entendimento. Nunca ninguém mais o viu no templo, embora gostasse de meter conversa com os eclesiásticos e se mostrasse mesmo obsequioso com eles. Fazia chacota das práticas do culto, buscando com fácil e barato voltairianismo refutá-las ou acalcanhadas como absurdas e inspiradas dos ritos pagãos. Se transitarmos da aberração moral para o terreno político, vê-lo-emos adepto dos errores económicos de Karl Marx, embora seja de admitir que nunca lesse os tratados subversivos de tal filósofo. Mas essas ideias nefastas andam no ar e não admira que, à semelhança da electricidade das nuvens que deflagra nos pára-raios, se polarizassem em seu cérebro parcialmente culto ou mesmo confuso. A monarquia era um contra-senso histórico, os reis não passavam no geral de capitães de bandoleiros e garanhões disseminadores do bacilo fidalgo. A quem o ouvia pregava a nivelação económica, a título de que a propriedade é um roubo. Exalçava as leis moscovitas como destinadas a ser dentro de breve o código de toda a humanidade culta. Eis em poucas palavras quem é o réu Manuel Louvadeus. Pessoalmente, nem em Bouça de Rei, nem em S. Paulo, a cuja jurisdição se dirigira a intendência policial, existia cadastro contra ele. A conclusão a tirar é que se trata de indivíduo indocumentado, que teve a habilidade de apagar o rasto por onde passou. Supõe-se apenas que trouxera um rifle da América, rifle esse com que teria armado um dos fanáticos, e que fora apreendido na ressaca da rixa sangrenta que se deu na serra dos Milhafres. Havia motivos de sobra e provas insofismáveis para que se lhe aplicasse a pena de 3 anos consignada no § I.° do art.° 173 e no art.° 55, n.° 5, do Código Penal.

«Alonso Ribelas — continuou ele avançando na bancada dos réus — parece desconhecer o que sejam sistemas e partidos políticos, mas por detrás da sua dialéctica tão bárbara como pitoresca poreja um espírito de subversão que seria perigoso menosprezar.

A cada passo se ouvia deblaterar contra estes e aqueles de mãos alvas e papo untado, fidalgo, militar, escrivão, padre-cura, que comem do que o pobre lavrador governa, lhes seduzem as filhas, e só estão satisfeitos se lhes tiverem o pé no cachaço. As sisas e inventários, para ele, eram roubalheiras puras fora da estrada; os tributos equivaliam à ordenhação da vaca leiteira a bem de todos os sugadores; os ricos e mandões tinham inventado a tropa e a polícia para lhes guardar as costas, a quem iam atirando como a fiéis sabujos o osso a esburgar. Nação, quê?! A nação eram eles com seus reis e condes do baralho, e as suas glórias de arraial e fogo de lágrimas e morteiros. O dia em que a Divina Providência colocou o país, em transe de perder-se, na necessidade absoluta de fazer um sacrifício, bem preciso para salvação de nós todos, duplicando-se o montante das contribuições, viram-no dar salto de corço e romper aos gritos na taverna e ainda no adro da igreja ao sair da missa: Rapazes, vamos por essas terras fora, e ajuntemos toda a gente de brio e vergonha na cara. Quem tem uma escopeta, pegue nela; quem não tem, arme-se com um estadulho. Vamos por aí abaixo, de rota batida, e deitemos o fogo às repartições de Bouça de Rei, agências da ladroeira! Para este homem, revoltado génito, envolto numa penumbra estudada de criminoso, atendendo a que o seu cadastro está limpo e é pai de cinco filhos menores, as sanções constantes do art.° 171 (2 anos de prisão e multa correspondente).

(Joaquim Pirraça ou Piçarra, um dos presumidos autores do atentado contra o insigne servidor do Estado Lisuarte Streit da Fonseca. O réu evidenciou--se, enquanto fazia o serviço militar, pela constante indisciplina, tendo a sorte de beneficiar duma amnistia para não ser exautorado e punido com o rigor correspondente. Tomou parte em duas insubordinações do seu regimento contra o poder constituído. Se não foi castigado individualmente, é porque tanto ele como as demais praças se escudaram por detrás dos oficiais, que tiveram de assumir a responsabilidade de haver sublevado a unidade. A sua caderneta é um estendal de opróbrios: quatro semanas de calabouço por ter rejeitado o rancho, a pretexto de que no caldeirão fora encontrado um rato; conselho de guerra e três meses de presídio por ter dado um bofetão num sargento, lá porque lhe chamasse cavalgadura; novo conselho de guerra e transferência para as companhias disciplinares de Penamacor, porque mandou à fava o capitão, que o encarregou de lhe ir comprar um maço de cigarros e a rir acrescentara: Vê lá se me foges com o dinheiro. Cumpriu ainda uma semana de faxina por ter desafiado para a bordoada em sítio onde ninguém visse o primeiro-cabo da companhia, denodado herói situacionista que numa das insurreições, oportunamente sufocada, da plebe de Lisboa, no Rossio fez tal uso da metralhadora que o cano ficou em brasa. Nos verdes anos foi um varredor de feira temível e, bem que hoje seja pai de filhos e as testemunhas de defesa o inculquem como homem que se morigerou, entendo que se lhe deve aplicar a mesma pena do réu antecedente.

«João do Almagre: este réu é uma das más cabeças da serra dos Milhafres. Para amostra da fazenda que ele é, basta citar duas ou três proezas suas. Quando o Dr. Neves, então presidente da Câmara de Bouça de Rei, lançou uma derrama pelas aldeias com o fim de custear a formação do terço legionário na localidade, a título mais ou menos impositivo para que tivesse efeito, recusou-se a dar um ceitil e ameaçou os patrícios — o homem é de Corgo das Lontras — que o muito ou pouco que oferecessem para aquela choldra de vadios — ipsis verbis — haviam de dá-lo dobrado a bem dos velhos inutilizados e mulheres indigentes que houvesse na terra. De contrário, receberiam o catatau. Ao mesmo Dr. Neves, chamando-o de parte, soprou-lhe ao ouvido, de modo a não poder ser incriminado por injúrias e ameaças, que na primeira oportunidade lhe malharia um tiro se usasse para com ele das prepotências em que era useiro e vezeiro. Com efeito, tinha organizado um rol das pretensas arbitrariedades, atropelos e extorsões do Dr. Neves e andava a mostrá-lo por feiras e romarias. O Dr. Neves emboscou a guarda certa madrugada à boqueira da casa e filou-o. Fecharam-no na Casa das ratas, assim se chamava a enxovia da terra; na segunda noite, evadia-se. Passados dias, o Presidente lobrigou a distância um vulto que rondava os caminhos por onde havia de passar e ele à cautela fora trocando. Era o Almagre. O digno Presidente, justamente alarmado perante tal facínora, pediu a demissão e foi viver para uma quinta que tinha no Alto Douro. É muito possível que o tiro que pôs em perigo de vida o engenheiro Streit da Fonseca e o aleijou partisse de espingarda sua. Foi visto no tropel de gente que acudiu ao sector 1 armado e açu-lando a gentalha. Reclamo para ele, nos termos do § I.°do art.° 173 e art.°55, n.°5, 4 anos de prisão maior.

«João Rebordão, a fera à solta. Herdeiro dum património invejável para a região, desbaratou-o em caçadas, festas e bródios com amigos e amigas. Caçador emérito e bailão. Raptou a mulher com quem viria a casar e da qual tem oito filhos, quatro maiores. Não obstante o lance dramático da ligação, dizem que tem pelos filhos um amor de tigre. Teve à morte um vizinho que lhe bateu num dos rapazes. Em despeito deste apego à família legítima, contavam-lhe uma amiga por cada um dos povos da serra dos Milhafres. Inimigo de Deus e da lei. Deus é o meu ventre — ouviram-lhe dizer—e a lei aquela que me faz respeitar do meu próximo e mo faz respeitar a mim, que não faço mal a ninguém. Bom leriante. Andou na escola do Magistério Primário. Em sua casa foram encontrados muitos romances e livralhada de propaganda republicana. Ele é que organizou a insurreição dos serranos no Perímetro Florestal da serra dos Milhafres. Foi, pode-se dizer, quem ergueu a bandeira vermelha. Admitindo que não deu o tiro no engenheiro Streit, tomando à letra as declarações do comandante da força, que alega «não o ter perdido de olho», terá não obstante que pagar como o grande responsável. Tanto assim que, eximindo-se a prestar contas pessoais à digna justiça da sua terra, somos obrigados a julgá-lo à revelia. Como principal fautor, homiziado não se sabe onde, requeiro para ele as penas fulminadas nos art.os 55, n.° 3, e 168 do Código Penal — 12 anos de prisão maior.

«Manuel do Rosário, o trabalhador pervertido para quem a vida representa uma condenação injusta. Insatisfeito e praguento: Raios partam Deus; raios partam o Diabo; Querias ser ladrão como um ministro f Valha-te o couce dum deputado miguelista! etc. etc, impropérios insuportáveis e vergonhosos são estes que reclamam correcção severa. Sempre a dizer: O Padre Eterno é um traste; Satanás é outro; o padre prior vale pelos dois. Jogam os três a bisca! Os governos são uma cambada de ladrões. O que fazem é sugar o sangue dos pobres. ÍC o tipo do eterno e instintivo inconformista, capaz de tudo. Em despeito de ser um óptimo e rendoso boi de nora, tanto muge, que provoca a guerra no mundo. É homem tão perigoso pelo que faz como pelo que não faz à margem do seu desespero. Quando o chamaram para a iníqua batalha, atirou com os malhos de ferreiro ao chão: Pronto, aqui estou! Seria dos que fizeram fogo contra os servidores do Estado no perímetro florestal? As testemunhas deixam em suspenso a interrogação. Reclamo para ele as penas constantes do já citado art.° 171.

Contra Justo Rodrigues, Hilário Nacomba, José Rela, etc. etc, o libelo foi rápido e sucinto, atendendo aos patronos que saíram a defendê-los, o Dr. Labão do Carmo, presidente da Câmara de Bouça do Rei, Dr. Coriolano e Dr. Camarate, afectos ao regime. Todavia não deixou de pedir para uns e outros as penas minoradas dos art.os 171 e 177 do Código Penal, e finalmente para José Liró, da Ponte do Junco, 3 meses de prisão e multa correspondente — oiro sobre azul — na qualidade de protegido do Bispo, através da irmã, criada no Paço.

O primeiro advogado a usar da palavra foi o Dr. Rigoberto Mendes que volveu a refazer a história da serra dos Milhafres e do problema florestal em todos os seus elementos étnicos e fito-económicos. E logo de entrada ousou pôr este dilema: se o Estado com seu projecto de aproveitamento silvícola da serra dos Milhafres tem razão integral, os meus constituintes e mais réus foram vítimas da sua boa fé e ignorância. Porém se os serranos dos Milhafres é que a têm, ainda que relativa—e, diga-se, tudo na vida é relativo—a rebelião era o único recurso contra o Estado prepotente e teimoso, incapaz, segundo o conceito normativo, da menor correcção, e executando à fina força os seus grandiosos planos mistificadores e temerários. Dos mortos que houve e prejuízos não tem nada que responder a colectividade serrana. Culpem-se e chamem-se à responsabilidade, primeiro, os ideadores de tal revalorização, depois, sim, os indivíduos que singularmente ou colectivamente praticaram crimes, se crimes houve. Mas não se arranjem réus a fortiori, deitando a mão ao monte e   pilhando-os à sorte. A tragédia tem os seus passos contados. Em despeito do desagrado latente das aldeias em face do anunciado plano de arborização da serra dos Milhafres, o Estado português, potência hirta, de molde ainda mais faraónico que afonsino, entendeu executar a obra projectada nas carteiras teóricas dos Serviços Florestais. Não que aos desvelados funcionários importasse a fundo valorizar contra ventos e marés aquela parcela de território. Mas o sentido nacionalista de omnisciência de que está imbuído o poder, já há algumas décadas, tolheu-o de procurar um compromisso em que se conciliasse com a letra do seu programa o interesse local. E foi inexorável, mantendo sem a mais pequena emenda o plano concebido. Segundo fora delineado, tinha de se cumprir em harmonia com o conceito-base que faz da arte de governar, mais que um postulado político, um dogma religioso, como se se tratasse, não de povo europeu, civilizado que mais não seja em nome do seu passado histórico, mas de escravos ou súbditos duma sociedade primária, que tivessem a sorte de receber de Deus a oferta dum Salomão.

O representante do Ministério Público e o Desembargador Presidente trocaram um olhar de inteligência. E viu-se o Dr. Rouvinho abrir as fauces num esgar indignado:

— Se o ilustre causídico prossegue nessa ordem de ideias ver-me-ei obrigado a autuá-lo e a retirar-lhe a palavra!

— Que disse eu, senhor Presidente, meritíssimos juizes, que não seja necessário para o esclarecimento da verdade? Não estão V. Ex.as aqui para apurar os móbiles que levaram os povos serranos a insurgir-se contra uma determinação legal? Devo eu, atendendo a melindres inconfessáveis, restringir o direito de defesa que me assiste, a mim, em primeira mão, e, fundamentalmente, aos meus constituintes? Não é exacto que o poder, que dá leis em Portugal, vincadamente teológico por essência e forma, labora, segundo o lema da inalterabilidade, in aetemum? Corrigir a direcção é atraiçoar a sua missão transcendente. Todavia, vai-se apoiando às forças organizadas, como clero e burguesia, a burguesia financeira mormente, e lança uma espia de reboque à nobreza desmantelada. Certa rigidez hierática ou, melhor, incontemplação com o homem nacional dá-lhe uma aparência de tesura, a ponto de se tornar em pensamentos e obras uma caricatura de califato. Que vale que à norma hirta, imota, se oponha o princípio da realidade tangível, segundo o qual nada existe de mais movediço que a gesta humana, espiritual ou física, à superfície da terra?!

— O ilustre advogado está fora do assunto que o traz. Chamo-o à ordem e não me obrigue a retirar--lhe a palavra!

— Proceda V. Ex.ª como entender. Eu apelo para o bom senso dos senhores juizes quanto a saber se devo demonstrar a minha proposição ou não. Quer V. Ex.a condenar os réus a priori? Decerto que V. Ex.ª juiz integérrimo como é, está longe desse pensamento. Conceda-se-me articular que a política deve ser o espelho da realidade ambiente, arvorando-se para isso em seu freio moderador e regulador.

Quando nada disto se vê, imagine-se ao que está sujeita uma mísera nação.

O Dr. Rigoberto, num ápice, circunvagou olhos pela mesa salomónica e viu os juizes mais calmos; ao lado parecia dormir, mas não dormia, ancho e satisfeito, o Dr. Labão; o Dr. Coriolano, Dr. Camarate» Dr. Esperança perfilavam-se muito solenes nos assentos, refrangendo em sua lordose o estrato visigótico do foro rural.

— É lamentável — reatou depois desta tomada de pulso — que o Estado tenha persistido em encarar o problema da serra apenas pelo lado do aproveitamento. Ainda por esse, há muito que se lhe diga. Mas o lado moral, ou mesmo psicológico, não lhe interessou, e essa indiferença foi causa de amargos de boca para muita gente. Fartei-me de clamar: o Estado engana-se se julga que faz vingar o seu plano pela simples coacção. O serrano da serra dos Milhafres é um português muito à parte. Onde se viu já dois conceitos opostos coexistirem num tipo como ele? Dum lado independência, bravura, um gosto pronunciado pela franquia que, se me permitem, chamarei direito espacial, isto é, a faculdade de ir de seu passo para onde lhe apeteça, sem estorvos, defensões, muros ou acesso reservado. O outro conceito assenta num sentido seu muito particular, o de possessão. Que brote dum fundo mais ou menos bárbaro e primitivo, não impede que seja imperioso ao último ponto. Se o serrano soubesse exprimir-se, formulá-lo-ia deste modo: A serra é minha; se lá for cortar um sargaço ou um carro de sargaços, uma carqueja ou um molho de carquejas, ninguém tem nada com isso. Para mim não implica mais que uma questão de tempo e de esforço. Numa palavra, lá sou eu o rei. Semelhante prerrogativa, porque o é, engendrou mesmo certas formas particulares do seu génio: gosto de gandaia, nomadismo de pastor, prazer no espairecimento da altitude, e frugalidade de bicho montesinho. E a evasão ao quotidiano, que parece ser uma necessidade visceral no homem com a sua carga de deveres e obrigações, a cada passo atira-o para a serra. Em suma, a psique do meu serrano precisa de penedos, vales reclusos, penhascais, morros esburgados de vegetação, como um cão precisa de ossos. Foi deles, da sua premente visão, que se lhe formou a cartilagem moral. A censurar os filhos de moleza ou calacice ouvir-se-lhes-á esta frase já proverbial: Queria ver-te na serra a cortar tojo de sol a sol! Para o arreganhado: Bates o dente como se estivesses nos pináculos da serra! E ao importuno: Vá buzinar para o coruto da serra! etc. etc. A serra, insulando a aldeia séculos e séculos, pode dizer-se, acabou condicionada pela fantasia do habitante a seu espaço poético e folclórico. Não se compreende um serrano sem a serra.

Com o decorrer das idades teve o condão de revestir-se duma certa substância heróica. No seu espaço, com efeito, digladiaram-se os íncolas de tempos improfundáveis e invasores incessantes; plantaram, depois, os turdetanos seus castros de brutos paredais. Ali se bateram à pedra, à moca e à acha, o silêncio da morte selando para todo o sempre a carnificina, em que não tinham significado nem dó nem perdão. O nome de tais e tais sítios ainda hoje é como um eco esgarçado ao vento do sucesso que ocorreu e reboou: Salto do Lobo; Cova da Serpe; Oiteiro da Forca; Ladário. Aqui e além: Laja do Algoz, Valdorca, Fojo, Bracejai, o nosso avô, acaçapado nos vidroeiros e urgueirais, frechou o antílope sedento ou a ursa com os cachorrinhos. Vai-se pela serra fora e é o mesmo que ler uma lápide cujas letras se não apagaram de todo. Lá estão as orcas, que os sábios indígenas crismaram com o nome estrangeiro de dólmenes, os cemitérios de campas antropomórficas, por dezenas, nos Covais, nos Cuvos, em Casal de Moiros; as caldeirinhas na face perpendicular dos penedos, que assinalavam a posição dos astros na revolta das estações; as lagaretas nas altas e inacessíveis penhas, provavelmente destinadas a servir de túmulos aos cabecilhas da tribo, a recato do inimigo e das feras; infinito rebotalho arqueológico, machados de pedra e de bronze, pontas de lança, tégulas, terra sigilata, e pedregulhal dos aldeamentos em xadrez e citânias. Do homem que lavrou essa escritura mais ou menos enigmática na terra e na pedra, bárbaro, duro, individualista, corredor de charnecas e bandoleiro ousado, que com um bornal de castanhas fazia uma jornada de muitas léguas, batendo o queixo de fome e de frio, pastoreando duas cabras e duas ovelhas, aquecendo-se à farfalha da queirós ou rosmaninho — arde-lhe o manto, fica o corpo santo — é filho este que ousaram defrontar os replantadores, novos D. Dinises da pacotilha. Querem liquidá-lo como fizeram aos índios nas Américas? ÍC um processo. Acabe-se com o sobrevivente genuíno duma estirpe que emerge da noite dos tempos, dotado das qualidades raciais próprias do ibero, do celta, do lusitano ou galaico, e arrumou-se o assunto!

O Dr. Rigoberto passeou de novo um olhar por toda a sala, desde a assistência, para lá da teia, aos senhores juizes. Pareceu-lhe que estes, recolhidos dentro do seu pensamento como cágados na carapaça, o escutavam com meio ouvido. Com o outro meio, prestavam atenção ao arraial interior, mais imediato: a esposa, a cantata duma possível amiga, que lhes pedia dinheiro para um vestido, a criadita que lhes preferia o moço do merceeiro...

Mas continuou, pois que uma das artes do foro, para o causídico, é bater no bestunto dos julgadores como no pushing-ball:

— Vossências subam ao planalto e ao simples lance de olhos verão como as terras são tristes e inditosas. Porventura uma boa prospecção do terreno venha a indicar um dia riquezas aproveitáveis do subsolo. Com a sua exploração é de crer que a região granjeie a independência económica e possibilidades de se desenvolver. Mas tal campo não foi sequer percutido. Era lícito, à falta de melhores horizontes, fechar a serra à sua necessidade? Os serranos não quiseram praticar a arruaça pela arruaça; muito menos quiseram ofender e que o seu protesto fizesse correr sangue. Quiseram apenas lembrar ao Estado omnipotente e seus homens-lige: Vejam como somos desgraçados! Não nos matem à míngua. Deixem-nos por agora a serra, necessária para estrumar as nossas leiras de centeio, dar pasto aos nossos rebanhos, lume para nos aquecermos nos invernos insuportáveis. Sucedeu uma fatalidade. Eles não são os culpados. Senhores juizes, imploro da vossa alma compreensiva e generosa a absolvição dos réus!

Encerrada a audiência, encontraram-se descendo a Rua de Santo António o Dr. Rigoberto, César Fon-talva e o velho Teotónio Louvadeus. O advogado ia silencioso. Bem adivinhara ele pela fisionomia das coisas, particularmente os modos, jeitos, e a invocatória do Dr. Soberano Peres, que os lapónios seriam castigados com penas severas. Aos defendidos pelos advogados adeptos do Sistema, porventura a pena fosse mitigada. Os outros pagariam implacavelmente o crime de serem pobres e, nada mais que pelo facto de existirem, proclamarem os direitos supremos da sua pobreza.

César Fontalva dizia para o velho:

— Não há justiça que condene o seu filho. A sua inocência ficou clara como a luz do sol.

— Também assim me parece, meu senhor. Mas os homens quando lhes dá para serem ruins são ruins.

— Não, não. Olhem, sigo amanhã para Penedono e passo por Arcabuzais. Querem que os leve?

Rigoberto agradeceu. Teotónio esboçou uma carantonha de contrariado.

— Só daqui a dias será pronunciado o acórdão. O amigo Teotónio tem que esperar! — observou Rigoberto.

— E meu filho?

— O seu filho lá irá ter. Se o deixarem...

— Se o deixarem?! — proferiu rendido à dúvida que a medicina preventiva do advogado misericordiosamente lhe inoculava. — Posso ao menos ir abraçá-lo?

— Imagino que sim.

Não lhe deixaram ver o filho. Não dormiu essa noite. Entrou no automóvel de César Fontalva a chorar. Raio de nação! Então já se não podia dizer adeus a um filho?!

O senhor engenheiro Fontalva deu-lhe razão e, modo de o animar, foi-lhe repetindo que não havia juiz que fosse capaz de condenar Manuel Louvadeus. Não é que, mercê do seu depoimento, lhe varrera toda a água do capote, como se dizia na gíria do foro?

O velho gostou de saber que aquele homem não era por nada nos trabalhos do filho, antes pelo contrário. Pareceu a Rigoberto que alguma razão oculta traçara o itinerário a César Fontalva para, do Porto à sua casa do Sabor, o conduzir pela serra dos Milhafres, alongando-lho de quarenta quilómetros. Mas quê? Quando passaram em Urro do Anjo, estava Julião Barnabé nas vascas da agonia. Em Arcabuzais, houve corrida para o automóvel e grande aperto de gente. E Rigoberto, pelos modos deferentes do engenheiro com os Louvadeus e certo dengue com Jorgina, compreendeu. Entreabria-se o horizonte da felicidade àquela boa e linda rapariga?

Dias andados procedeu o Plenário à leitura do acórdão. Aparte o afilhado do bispo, que se saiu com três meses de prisão a remir, os réus foram condenados a penas variáveis entre 12 anos de prisão, medidas de segurança para João Rebordão, e 1 ano para Justo Rodrigues. Manuel Louvadeus foi condenado a 3 anos e multa, que não era pequena. Os insubordinados contra o bacalhau podre eram operários, gente da vila, susceptível de ser veiculo de contágio, e apanharam ainda talhada maior, todos de 4 anos de prisão para cima. Para que servisse de exemplo! Os advogados foram de parecer que se interpusesse recurso.

— Comem pela medida grande! — soubera augurar Bruno Lêndeas, glorioso, mesmo à beira do pai moribundo.

Rigoberto sentiu o velho Louvadeus a arder numa cólera surda e angustiosa. Sem dizer palavra, refugiou-se na Rochambana. Queria ver-se sozinho, em luta corpo a corpo com a maldade, e gemer, bramir, gritar até a alma lhe ficar fera de todo ou render-se como uma cadela batida.

 

DE mão automática, com a ponta dum pauzinho, que lhe servia de atiçador, Teotónio Louvadeus, sentado no mocho, as pernas escanchadas, mexia e remexia no braseiro. Remexia nas brasas e cismava no filho. Estava na sua cardenha e pela porta entreaberta difundia-se uma nesga de luar, um luar álgido e clarete de fins de Inverno, mole e mormacento, que prateava a terra. Ao lado dele o Farrusco, com as mãos alongadas para o lume, orelhas tombantes, cismava também. Anoitecera há um bom migalho e apenas se ouvia de quando em quando o mocho para os penedais.

— Mais inocente que o meu filho nem o cordeiro de Deus! — saiu-lhe do peito em voz surda, erguendo a cabeça.

Tornou a dobrar-se para o lume, a revolver as cinzas, depois de pôr mais uma toca:

— Que mal fez ele?

Via-o na Penitenciária com um número nas costas, sobre o balandrau de serapilheira, e trabalhando na construção dos paredais que o Governo anda a erguer por esse Portugal fora para arranjar emprego à cáfila de moinas e alimentar a impostura de que a casa lusitana, como ouvira ao Dr. Rigoberto, deu volta.

O Farrusco num dado momento enguichou as orelhas, e a ele pareceu-lhe ouvir chapejar um tamanco. Era o Jaime. Vinha chamá-lo para o caldo, que já estava a arrefecer na malga. Mas o velho recusou:

— Ceiem lá vocês, hoje não me apetece. Comi tarde.

O neto já ceara, confessou. Viera do povo, da casa velha, com uma carrada, arcas e arquetas, tarecos, e agarrara-se à tigela, que sentia uma larota de lobo.

Tinham mudado para a casa nova, na Rochambana, embora as divisões estivessem apenas barradas e houvesse muito a fazer nela. Constara que os Serviços Florestais premeditavam expropriar a fazenda e a conselho de Rigoberto, quer para elevar o montante da expropriação, quer para criar um obstáculo, despacharam-se a vir habitá-la, trasfegando para lá alfaias e gado. Mas conservavam a morada antiga, onde tinham palhal e achamboaria, que lhes eram indispensáveis para as vezes que houvessem de amanhar as terras à volta do povo, se não queriam passar o tempo todo no caminho. O velho é que, embora lhe sobrasse largueza na casa nova, para instalar-se a seu gosto, não quis largar o tugúrio. Acendia dois tanganhos, se as noites eram frias, e, depois de seroar, dar voltas à vida, ruminar o passado e o presente, metia-se para a tarimba, bem calafetada de palha, ele por cima, o Farrusco por baixo. Dali vigiava melhor a fazenda e estava pronto a formar o salto, quer para dar um tiro às perdizes, quer para lançar e erguer as armadilhas de caçador furtivo.

O Jaime sentou-se ao lado do avô, e pôs mais um cavaco por sua conta e risco. Ao cabo dum momento de silêncio, disse:

— O avô deitou os ferros? Está uma linda noite para os coelhos virem aos tourais...

— Deitei. Mas de sorte lá caem. à noitinha ouvi a raposa para os montes, e eles, que têm melhores ouvidos do que nós e são desconfiados, ficam-se na toca.

— Onde os deitou que vou levantá-los?

— Um naquele toural que fica na fonte da Passagem. Sabes? Outro ao cimo do giestal do Barreias. Um terceiro num toural novo que descobri à beira do caminho para Urro. Não eras homem para acertar com ele. Deixa, eu lá vou... Acomodaste tu as vacas? Tem-me cuidado com as portas, que os lobos andam sobejos.

— Descanse, avô, tranquei tudo bem trancado.

Ambos se dobraram em silêncio para a borralheira. Por fim, foi o velho Teotónio que irrompendo duma vereda, na floresta que eram os seus pensares, disse:

— Então o Lêndeas lá ficou na terra da Verdade...?

— Esse não mistura mais água no vinho nem despoja mais os pobres...

— Afinal foi como dizem? Até parece história!

— Olé se foi!

E Jaime pôs-se a contar, como ouvira de Fulano e Cicrano, da boca da Licínia Barnabé, a viúva, e já agora era a versão acreditada.

Estava-se em vésperas do Santo Antão e o Lêndeas se tivera quatro mãos não as tivera a olhar. Quem não havia de comer as batatas em azeite e vinagre com um dente de alho e beber a sua pingo-leta? Demais disso, a loja do tio Lêndeas estava muito bem sortida em arroz, açúcar, bacalhau, massa cortada, e outros artigos de boca, de modo que todo o santo dia foi uma corrida ao estabelecimento.

Que fosse caro, o dono tiborneiro, não havia segundo por aquele redondo, salvo a vila.

Em tais datas, o vendeiro recorria a ajudantes, à mulher e aos filhos. Mas tanto à mulher como aos dois rapazes, seria preciso pôr-lhes um polícia à perna, que era gente que se não ensaiava duas vezes para tirar a sua maquia. Ainda esse expediente lhe falhou. A Licínia andava achacada das cadeiras e não podia erguer o espinhaço; Bruno servia de testemunha de acusação, à ordem dos Serviços Florestais, no Plenário do Porto; e Modesto não pudera largar a sua área ao norte do Perímetro, onde todos os dias apareciam marcos estroncados, sementeiras arrasadas com a água dos enxurros, que abriam para lá de pura má fé, e até os caterpillars avariados.

Viu-se pois sozinho, mas era um velho sólido, apostado à ganhuça, e não largou o balcão. À noite, mal comido, moído que nem palha batida a mangual, com as mãos enlabuzadas da salmoira, do azeite, do toucinho, atirou-se para cima da enxerga e adormeceu como uma pedra. De borco, gâmbias espernegadas cada uma para seu lado, à beirinha por causa da mulher que tinha o mau costume de dormir encavalitada à maneira dos cães das espingardas, braço direito à dependura, podiam passar carros e carretas por ele que nada o acordava. O quarto, para estarem mais à mão, se os chamassem num repente, fora de horas, ficava ao fundo da loja, no esconso. Quem se pusesse de pé ao mostrador via-lhes a cama, sempre mais enrodilhada que o ninho dum cão, esquecidos de fechar a porta. Pois aquele dia, sobre a alva, acordou a uma dor vivíssima nos dedos. Pôs-se de costas, mas a dor não lhe permitiu, mais pregar olho. Deu um abanão à mulher que dormia, voltada para a parede, a sono solto, e quis acender a luz. Ao tocar no petróleo, a dor foi tão aguda que por pouco deixava cair a candeia. Saiu-lhe um grito do peito:

— Ai, mulher, que tenho eu nas mãos!? Estava em dizer que me lancetaram os dedos. Vê se acendes

a luz...

A mulher grunhiu, muito entroviscada com o sono:

— Homem, nem deixas dormir a gente... Temia-se do génio dele e lá se pôs a esfregar fósforos, um atrás de outro, na caixa que tinha a lixa esfarpada até que conseguiu acender a luz. Barnabé olhou para a mão. Era a mão direita, a mão do braço que mergulhava para o sobrado, ensanguentada, a pingar sangue. Aproximou-a mais da claridade e soltou uma praga:

— Raios partam os ratos que me rilharam os dedos! Deitei-me com as mãos besuntadas do azeite, que estive a medir à última hora para a Caxarreta. Restavam só borras no fundo da lata, e foi preciso empiná-la, apanhar com o decilitro. Bonito!

— Jesus Nosso Senhor, iam-te comendo metade dos dedos. Homem, não dares conta!

— Que queres, passei o dia a trabucar, caí na cama como um pinheiro quando o cortam. Mas tu não me dirás: nesta casa havia uma gata...

— Vai lá segurá-la! Passa a noite fora; veio-lhe a lua. Ontem era aí uma gatarrada que fazia mais babaré que a filarmónica do Braço de Pau. Não sabes que estamos no mês dos gatos?

O Lêndeas enfiou as calças, foi ao canto da arca por um farrapinho de estopa, ao balcão pelo decilitro, que meou de aguardente, e pôs-se a lavar os dedos, depois de os mergulhar dentro um instantinho. Em seguida a mulher, acocorada na cama e ele de pé, rasgou uma tira do mesmo farrapo e atou-lha à volta. Volveu a deitar-se, ainda mal corria nos telhados o primeiro lume da aurora, mas sono que é dele! Com as dores eram tantos os queixumes que a mulher lhe disse:

— Vai ao médico...

— Ao médico para quê? Largar-lhe nas unhas uma nota de vinte escudos e outra no boticário? Bem sei o que me vai receitar. Manda vir cinco tostões de álcool e arranja-me para já água de malvas...

Ainda com o lusco-fusco lavou a mão com água de malvas e, quando veio o álcool, pôs um emplastro nos dedos ratados, o braço ao peito, e assim foi para o balcão servir os fregueses. Vinha um:

— Que tem, tio Barnabé?

— Que hei-de eu ter? Uma trilhadela...

— Cinza quente do borralho com vinagre para riba. É um tornadoiro de água. Vinha outro:

— De mão entrapada?

— Não tem importância. Ao pinchar a porta, entalei-me.

Por cálculo e vergonha não confessava a verdade. Se tinham sido os ratos e não dera acordo, podiam vir os ladrões. Lá da porcaria, não era questão nem para ele nem para os fregueses.

— Ponha-lhe lar de trigo ralado em leite. O sangue pisado recolhe num rufo.

No dia seguinte a mão amanheceu-lhe muito inchada. Parecia um tambor. Levara a noite a dormitar, entrecortado o sono de pesadelos. Disse para a mulher:

— Raios partam a gata que não presta para nada. Se a pilho, dou-lhe com uma sachola na cabeça. Lá quanto à mão ter inchado, não há que estranhar. É até bom sinal. Vai no seu caminho...

Tornou ao balcão. Não se servia do braço direito, teso como um madeiro, mas pareceu-lhe que por simpatia ou pirraça o outro braço emperrava e recusava-se a cumprir a faxina que lhe incumbia com a dexteridade, rapidez e vigor costumado.

No terceiro dia o inchaço tomava-lhe o braço todo. Quis estendê-lo a afigurou-se-lhe com os dedos entumecidos o tronco duma oliveira de raízes agarradas ao cepo.

— Vai ao médico — reiterou a mulher.

— Qual médico ou qual diabo! Bem sei o que me vai acontecer. Apanho uma injecção, dessas que custam os olhos da cara, e talvez algum talho. Não estou para isso. Vamos pelos remédios caseiros, que são baratos, e não são menos seguros. E se deitasse bichas?

— Bichas, aqui, meu santo, não sei quem tenha. Espera, pode ser que a senhora D. Maria Rigoberta adregue tê-las. Manda-se a Arcabuzais.

Apanharam a jeito a Chica Beldroega, que andava a pedir, e mandaram-na pelas bichas. A mendicante voltou tarde e às más horas, depois de percorrer Arcabuzais de cima a baixo a rezar de porta em porta o padre-nosso e ave-maria «pelas alminhas de quem lá tem» — que não havia pobre que trauteasse o responsório como ela. Encheu o bornal, mas não trouxe sanguessugas. A senhora D. Maria há que tempos as não tinha! As criadas haviam-se esquecido de lhes mudar a água e esticaram todas.

— Deixa lá, mulher, defuma-se o braço — disse Barnabé.

— Vai ao médico, homem. Quarenta mil réis, mais que seja, não deitam a casa a perder...

— Amanhã, se não estiver melhor, vou ao médico. Encomenda-me, mas é, ao Santo Antão...

— Ao Santo Antão, homem, encomendam-se os animais. Encomendei-te ao padre Santo António e até lhe prometi uma novena na Lapa...

No quarto dia, acudiram muitos fregueses à loja. Era sábado. Não quis perder o lance. No dia seguinte, domingo terceiro, migava-se trigo no caldo e botava-se camisa lavada. O passadio metia tenda. O doutor também de sorte estava. Na segunda de manhã, como a dor passasse para o pescoço e gorgomilos, havia já muitas noites que as levava ora a gemer, ora cabeceando um instante para acordar logo, ora com pesadelos tão grandes na cabeça que nem que fossem casas que se esborralhavam por cima dele, quis levantar-se com o propósito decidido de ir ao médico. O braço direito pesava como vima trave lagareira e teve a impressão que não era seu. Tinham-lho ali soldado os caldeireiros. Apenas lhe sentia o horror do peso. Dobrá-lo na joga, nem pensar nisso. O braço esquerdo negou-se também a trabalhar. Ao mesmo tempo colava-se-lhe a língua no céu da boca, com mais saburra do que a colher do caiador cheia de argamassa. As pernas não lhe aguentaram o edifício do corpo. Tombou para as mantas regougando:

— Manda chamar o doutor. Manda chamá-lo já, que eu morro. Raios partam os ratos! O que Deus havia de deitar ao mundo!

O médico tardou a vir. Andava numa caçada. Quando lhe tomou o pulso, lhe viu o braço, veio ao conhecimento do que sucedera, disse para a mulher:

— Mandem um portador a toda a pressa buscar estas ampolas à vila, mais estas e ainda estoutras.. Têm à mão um automóvel?

— Só se for a furgoneta do Sr. Luís...

— Pois peça ao Sr. Luís que lhe vá buscar estas drogas. Se quer salvar o seu homem, têm de andar depressa...

— Jesus Nosso Senhor!

Desandou. O médico mandou aquecer água e foi espairecer para o caminho. Vieram as ampolas o mais rápido que era possível para terras tão criadoras de lesmas. O doutor entretanto mergulhara-lhe o braço em água quase a ferver.

— Escalda-me o homem! — Se fosse só isso!

Deu-lhe as injecções e retirou dizendo:

— Eu volto amanhã. Fez-se tudo por conjurar a gangrena. Pode ser que se debele com os antibióticos.

De contrário... — e torceu os lábios, sem necessidade de ir mais longe.

Mais dois, três dias o médico caminhou para a cabeceira do Lêndeas e furou-lhe o corpo todo, pernas, nádegas, barriga, com injecções. Chegou o filho do Porto e não o reconheceu. Na sétima noite, rompeu a delirar:

— Os ratos bebem o azeite todo! Raios partam tantos ratos como há em Portugal. Portugal é um cóio de ratazanas. Só se ouvem chiar e rilhar. Machiam-se e comem. Comem e machiam-se. Passam tudo a dente, o vivo e o morto. Diabos consumam tal fadário! Furam as paredes, estercam no açúcar, comem o toicinho, mas do que mais gostam é de azeite. Vão bebê-lo à panela do Santíssimo de gorra com o sacristão. Tanto rato! Tanto rato! Que enormes! Parecem carneiros. Mulher, chega-me cá um sacholo, que quero matar uma ratazana que já sobe por mim acima...

À noite rompeu em grandes e convulsivos soluços. Era o estertor da morte. Ergueu-se-lhe o arcaboiço tanto que parecia o pote grande das viandas. Faleceu à noitinha, roxo como o vinho entornado numa toalha, a murmurar:

— Raios partam tantos ratos como há em Portugal! Que praga Deus havia de deitar a esta terra!

Estão-me a comer vivo! Ui que grande musaranho! É o Dr. Labão...

— Estás a delirar, homem! — pronunciou Licínia. — Chama-te a Nossa Senhora da Lapa que te sossegue o entendimento. Queres tu cá o padre?

— O padre?! Ó raios o confundam, que é o primeiro dos leirões!

Teotónio ouviu de boca aberta a história do biltre, alma atravessada por uma lufada de alegria bárbara. Deste, pai do grande malandro, estavam livres. Àquela hora andaria o diabo a cavalo nele pelas encruzilhadas do inferno. Quando meteria à carreira o meliante do guarda-florestal? Mas não proferiu palavra.

— Ao enterro foi muita gente de Arcabuzais?

— Pouca gente.

— Os filhos ficam ricos?

— São muitos. Rosna-se que a viúva, feita com o genro de Rebolide, o Carvalinho, lhe foi à burra e arpoou quanta massa lá havia.

— Não lhes vai mal! Ouviu-se uivar para os cerros:

— É a raposa — aventurou Jaime.

— Não, são os lobos que farejaram o gado no estábulo.

— Vou-me lá, não seja o diabo tendeiro.

O velho deitou-se. Altas horas ouviu o Farrusco arruaçar. Sinal de moiro na costa. Mas poderia ser o rafeiro com algum mau sonho. Os cães sonham como a gente. Não, o cão sentiu-o mexer na cama e continuou a rosnar.

O velho enfiou as calças, calçou os socos, deitou a mão à reiuna bem escorvada e foi ao postigo. Ao longe, contra a fímbria do pinhal do Nagarelho, onde os Serviços tinham charriscado um atalho para ir de Urro às Barracas, passava um vulto vagaroso como se levasse olho à direita, olho à esquerda. Com o luar que fazia, pela linha estatuária, clavina às costas, fardeta, e aquela camisa feia de sarja, toda gato-pingado, reconheceu o Bruno. Lá em cima, onde o caminho contornava a Rochambana, deteve-se. O velho viu-o parado um momento, hesitar, e depois seguir.

— Hum — disse consigo. — Enterraram-te anteontem o pai e já por aqui andas?! Virás tu à mãe ou à filha? Espera lá que eu te arranjo! B verdade, o homem irá na sua sinceridade para os Serviços! Sim, mas que tinha que parar? Só curiosidade...?

Voltou a deitar-se, mas já não adormeceu. Quando a luz banhou os morros e os urgueirais, pulou e foi erguer os ferros.

No toiral novo estava um grande laparoto, hirto com a geada como um pau, sinal de que caíra na armadilha ao começo da noite. Tornou com ele debaixo da vestia para a Rochambana e entregou-o a Jorgina:

— Esfole para o almoço!

Sobre a tarde apareceu o Dr. Rigoberto com a nota judicial. Seis meses de prisão, que lhe eram levados em conta, a 20 escudos de multa, faziam 3.600$00. Mais selo da justiça, mais alcavalas, bota para cá 4 contos, Manuel Louvadeus ou alguém por ti. Quem quer não é réu e não passa pelo Plenário! Ainda o advogado não lhe levava um ceitil pela defesa, ao contrário dos outros causidicos da vila que enterraram a faca até os punhos. A alguns dos condenados era como se lhes cortassem a arreigada. Para outra vez teriam juízo e ia-se ver como dali para o futuro acatavam de rojo os dogmas do Estado.

O velho Louvadeus proferiu:

— Vende-se a casa do povo.

— A casa do povo, não, senhor avô — suplicou Jorgina. — Quem sabe lá se a gente se dá aqui? Ê tão triste! De noite eu tenho tanto medo!

O velho cismou: «O lobo não vem à borrega. Virá à mãe?»

Evitava falar para a nora. Pouca gente os teria visto face a face. Só em caso de muita necessidade. Mas ela disse:

— Porque se não há-de antes vender a mata?

O velho considerou, pôs os olhos em alvo, depois no Dr. Rigoberto:

— Sim, pode vender-se a mata. Por fortuna as madeiras andam altas. Ao preço que alcançaram, dez pinheiros por agora chegam e crescem.

— Acho preferível — apoiou o advogado. — Tratem de vender e eu requeiro uma moratória ao tribunal.

Em nome do senhor engenheiro director dos trabalhos na parte sul do Perímetro voltaram a pedir licença a Teotónio Louvadeus para vir à Rocham-bana buscar a água potável que consumiam no respectivo abarracamento. Por uma palavra que ouvira a César Fontalva supôs que seria ele que solicitava tal autorização e deu-lha. Logo nessa tarde apareceu um burrinho com suas cangalhas, dispostas para quatro bilhas. Vinha um, vinha outro, enquanto não nomeavam paquete próprio, e veio até Bruno Barnabé. Quando o lobrigou, o velho pôs-se a rosnar para dentro:

«Tu és chegadiço e desenvergonhado, mas a manha pode sair-te cara. Jurei-te pela pele e não volto atrás. Quando puder, paga-las todas juntas com língua de palmo!»

Outra vez viu-o, à frente do jerico, aproximar-se da casa pela banda norte. Jaime, que não sabia moderar a impaciência, dirigiu-se logo para ele, e tanto bastou para que Bruno endireitasse caminho, como se não fosse nada consigo e fortuito aquele desvio.

Teotónio não disse nada ao neto, lamentando para consigo e para com Deus ter-se perdido aquela ocasião de verificar que intuitos o mariola acalentava. Mas ficou de sobreaviso, consoante, aliás, a propensão normal do seu instinto. O Farrusco percebera por seu turno que aquele era o inimigo, ou pelo menos o suspeito, e mostrava-lhe os dentes. Impulsivo como o Jaime, um dia atirou-se a ele quando enchia as bilhas. Bruno deu-lhe um pontapé e o cão retrocedeu a cainhar. O velho estava dentro da cardenha a observar pelo postigo. Ferrou os dentes no pulso para não soltar um grito, e conteve-se. Aquele pontapé, em realidade, para algum bem serviria: granjeara definitivamente no Farrusco uma sentinela irredutível e vigilante.

Entretanto em todo o Perímetro decorriam os trabalhos de decruamento com despacho e truculência. Cem homens ali, outros cem mais longe, capinavam o mato, faziam queimadas, abriam caminhos carroçáveis, desfaziam os grandes arolos dos arados mecânicos onde as grades motorizadas não podiam transitar. De manhã ao sol-pôr era ali uma inferneira ininterrupta, com os motores a atroar a morrinha hibernal do planalto.

O velho ouvia aquela balbúrdia de alma transida e fel nos lábios. Pudesse ele e, como um escrivão rasura com duas penadas a escritura que lavrou, assim anularia o trabalho feito. Mas não estava na sua mão. Puxava-lhe o génio de vieux trappeur e urdia e desurdia ardis vários, alguns dos quais não passavam de fantasia pura. De outros só as estrelas seriam testemunhas. Uma vez por outra, tinham sido acusados danos nas máquinas, que só podiam explicar-se por obra pessoal. Uma noite explodira um motor de Caterpillar e averiguara-se que lhe haviam acendido uma fogueira por baixo. Outra vez declarara-se incêndio na barraca, que servia de despacho e contadoria, e por pouco não ficou reduzida a cinzas. Quem fora?

O fogo era a arma traiçoeira e terrível, mais de temer naqueles empreendimentos. O malfeitor vinha com o escuro da noite, rastejando como uma cobra, contendo o fôlego, acendia a mancheia de caruma ou de ervas secas e punha-se de largo. Só se dava conta quando, com o incêndio a lavrar, irrompiam as labaredas. A malfeitoria pegou de estaca e fez escola. Eram muitos os praticantes. Mandaram vir contra eles cães-polícias, pois que a força, embora em cada sector houvesse um piquete de dez homens com pistolas-metralhadoras, era incapaz de sobrestar estes atentados, ainda com o apoio dos guardas-florestais, temidos e maus, conhecedores do terreno e das manhas dos serranos como de suas mãos. Durante algum tempo, estancaram os desaforos. Depois, da bela matilha de dogues, um após outro, foi-os levando a cramona. Por muito bem alimentados que andassem, o bolo era tão aliciante que os pobres bichos se deixavam cometer. Reforçaram a guarda. O flagelo persistiu ora dum modo, ora doutro. Em Toiregas houve morte de homem, um destes sabotadores por conta própria fuzilado pelas costas quando largava depois de inutilizar um arado mecânico. As aldeias em peso foram acompanhar o morto ao cemitério e novamente se soltaram gritos de: Morra o Governo! Morram os ladrões! A serra dos Milhafres é nossa! No sector 2, as coisas corriam mais pacatas, quer fossem os dirigentes dos trabalhos menos provocadores, quer os povos com quem entestava o perímetro carecessem de nervo. Teotónio ouvia o que se murmurava à boca cheia, averiguava do que ocorria aqui e além, e por entre dentes resmoneava:

— Os serranos daqui para baixo têm alma de cebola. Poltrões!

Arcabuzais estava na zona dos tímidos. E lá continuava ele e o Jaime e as duas mulheres, agora mais que nunca activos, amanhando os bocados que tinham para o povo e acareando a Rochambana com recrescido desvelo. O velho era animal de pouco sono, rijo como o aço, e tinha ainda tempo para lançar fios e armadilhas e caçar de ameijoada e ao chamo. Nesta faina, metia-se para o outro valeiro da serra, nos lameirais, onde sabia que os coelhos vinham bailar e no decorrer da farândola os machos apartar suas damas. Se há bicho que pareça comprazer-se na soledade é este. Descobre-se o covil numa baixada e só dali a longe outro. Por isso, quando se encontram, se desforram em cordialidade. A horas mortas, especialmente, visitam-se, confraternizam e fazem seus relambórios. Então, nas noites de luar, quando não pressentem raposa no termo, ajuntam-se todos como num arraial. B a ocasião de os belos e robustos laparotos terem possibilidade de escolher a boa fêmea. O Teotónio descarregava a sua colubrina para o monte e seria pouca sorte se dois ou três não caíssem para a banda. O Farrusco dava salto e também era raro que não fosse apanhar o seu ferido.

Ao reclamo não era pior sucedido. O Teotónio sabia chiar como as coelhas cachondas. Saía um macho da brenha, pé aqui, pé acolá, orelhas apontadas para a Lua, cofiando o bigode. Onde estava ela, a polha aluada? O Teotónio continuava a chiar, e o láparo desejoso vinha direito à caçadeira meter-se na boca do cano. A caça à lebre era mais fina, embora mais árdua. Havia que deitar os fios com o crepúsculo e erguê-los também à hora dúbia, quando as giestas isoladas nas leiras parecem ladrões à coca. Mas, hoje uma, na quinzena outra, carne de talho no cenóbio dispensavam-na bem.

O Jaime por sua vez ia aprendendo com o avô estas artes defesas, que demandam tanto sigilo como astúcia para com animais e homens, mormente depois que havia umas Juntas Venatórias, a seu ver, no geral, uma grandessíssima corja de piratas. Quando não ia o velho, ia o moço. E levavam a vidinha, por este lado nunca como agora tanto a seu cómodo, na Rochambana. Não era a serra a ucharia inesgotável? Que tinham que sonegar-lhe os produtos os ladrões do Governo?

Bruno, envolvido em graves desavenças, por causa do património, com a mãe e os cunhados, passava muito amiúde no caminho para Urro. Sempre que lhe davam licença nos Serviços, punha-se na alheta. À ida ou à volta, fazia o seu rodeio por debaixo das janelas da Rochambana. O velho calculava as horas em que ele havia de passar e ia-se meter na loja das vacas, donde por uma fresta disfarçada abispava tudo. Foi assim que uma tarde, pouco antes do pôr do Sol, ouviu este diálogo:

— Viva lá, menina Jorgina, ditosos olhos que a vêem!

A rapariga, que estava por lá à janela a fazer meia ou renda, foi tirada — viu-se bem — da sua devoção por semelhante voz. Tanto assim que não respondeu à primeira.

— A menina não me fala e eu não lhe fiz mal nenhum... Que mal lhe fiz eu?... Ao menos restitua-me a carta que lhe mandei pelo Chinchim...

— Não tenho nada a restituir-lhe, que eu não recebi, nem quero receber carta nenhuma do senhor. Fique-o sabendo duma vez para todo o sempre.

— Pois eu escrevi-lhe... Dizia-lhe que andava para bem, e que se a menina quisesse a ia pedir em casamento...

— Pois perdia o latim. Eu nem sequer posso olhar para um homem que ajudou a condenar meu pai. Meu pai é um santo e o senhor não passa dum grande impostor. Eram coisas que se dissessem? Onde tem a consciência?

— Seu pai, antes de se sentar no banco dos réus, já estava condenado. Aquele tribunal foi feito para trincar a gente que o Governo para lá manda. Não tem outro fim.

— Embora, o senhor praticou uma má acção...

— Olhe, menina, eu pouco ou nada agravei seu pai. Se dissesse aquilo que me pediram para dizer?! Queriam que dissesse que seu pai manobrava um rifle à frente dum bando de desordeiros! Queriam mais, muito mais. Vê a menina, eu sou um empregado subalterno dos Serviços... tinha de obedecer.

— Mas foram os que mandam nos Serviços Florestais que lhe ensinaram o recado?

— Não foram propriamente os que mandam nos Serviços, mas os gajos que têm a guardar-lhes as costas. Lá o chefe chamou-me e riscou: Dizes isto e mais aquilo. — Mas é falso — respondi eu. — Para ti não há falso nem verdadeiro. São uma e a mesma coisa. És um assalariado, fazes o que te dizem e dás ao diabo o que sabes. — Custa-me mentir! — Pois se te custa, prepara-te para largar. Há muito quem queira o emprego. Aí tem, menina. Que havia eu de fazer...

Jorgina calou-se. Ele insistia:

— Diga, menina, que havia eu de fazer?

— Que havia de fazer? Ora essa, se gostava de mim, como dizia, a primeira coisa que tinha a fazer era não difamar, nem contribuir para meter meu pai no cadafalso. Ora essa! Que homem de duas caras é o senhor? Morria à fome, se perdesse o lugar?!

— Não morria à fome, mas pelo que respeita à herança de meu pai são mais as vozes que as nozes. O dinheiro que havia em caixa foi um ar que lhe deu. De modo que nós os dois filhos varões, se não fossem as terras que não puderam levar nos bolsos, ficávamos a tocar berimbau.

Jorgina calou-se.

— Aqui está, perdoe. E digo-lhe adeus, até outra vez.

— Rode e não ande a benzer diante de mini. Os nossos caminhos apartaram-se e nunca mais se encontram.

— Não seja má. Adeus!

— Adeus, adeus, deixe-me em paz!

Antes que o homem largasse, batia ela com a vidraça de repelão. A rapariga tinha a sua ralé. Mas, deixá-lo, consentira em ouvir-lhe as explicações. Olho no mariola!

O Farrusco, agora, sempre que estivesse na Rochambana, o que era seguro desde que não caçasse com o velho ou fosse com o Jaime, dava sinal sempre que o Lêndeas passava no caminho para Urro. Conhecia-lhe o vulto e percebia-lhe o passo à légua. Ele a descer a encosta para cá dos abarracamentos, e já eriçava o pêlo e mostrava os dentes. Assim que assomava na lomba, arremetia. Lançava-se para ele e ia-o seguindo pelo espaço duns bons quinhentos metros, ora avançando, ora recuando, quer fizesse menção de lhe atirar uma pedra, quer esboçasse ainda o gesto desarvorado de investir. Só o largava quando se perdia na dobra do terreno.

Entrava na cardenha de pêlo em ouriço. O dono ralhava-lhe e ele gemia:

— Ladrão de cachorro, que tens que ir tentar o homem? Deixa-o lá.

Uma vez, que voltava da refrega, chamou-o e ele veio corcovado, gemendo e chorando. Aos pés do amo rojou-se. O Teotónio, à sobreposse, aplicou-lhe dois pontapés. O cachorro retirou-se de rabo entre as pernas: caim! caim!

Mas o seu ódio recalcitrava à inteligência e aos propósitos de emenda. Mal o Lêndeas aparecia no horizonte, pulava. O amo escusava de chamá-lo. Deixou-o e compreendeu. O animal não podia reprimir a cólera, estancada nele como em si. Era superior às suas forças. Também, consigo, era superior à vontade de fazer bem ao semelhante a osga que nutria pelo traste. Quem sabe se o cãozinho esposara, digamos, a sua cólera e deste modo o odiava, duplamente, por si próprio e o amo? Teotóni pegou do cãozinho ao colo e afagou-o. Ele lambeu--lhe a cara. De parte a parte, estavam perdoados e o cão com alvará de livre arruaça.

Dali em diante o Farrusco passou a ser um desmancha-prazeres para o Lêndeas. O traste vinha com o olho fisgado na janela a que a Jorgina trabalhava de mãos. Ainda a aproximar-se e já o maldito cão a ladrar. A rapariga, por sua vez, como se recebesse uma senha, fechava as janelas. Sucedeu isto duas, três vezes a fio, e Bruno Lêndeas desistiu de rondar à volta da casa.

Certa noite Teotónio foi ajudar à parição duma vaca e esqueceu-se do Farrusco. De manhã cedo, ao sair da cardenha, foi encontrá-lo morto, estirado à beira da fonte.

De princípio não quis crer. Hem? era bem o Farrusco? Aquela coisa bruta, sem mola, sem corda, inexpressiva e feia de todo? Era o Farrusco, bem morto, rígido e inerte como o cabo duma enxada. Rompeu a gritar a voz aflita dos vilões e dos mesquinhos batidos e esfolados pelos fidalgos e mordomos:

— Aqui-d'el-rei! Aqui-d'el-rei, mataram o meu Farrusco!

Alvoroçou-se a Rochambana e o primeiro a aparecer foi o Jaime. Pegou no cão ao colo e desatou a chorar. O velho gania e fazia uma estreloiçada com os dentes como as caravelas que armam aos gaios no meio dos milhos. Filomena e Jorgina debulhavam-se em lágrimas. Que haviam de fazer para lhe dar vida?! Deite-se-lhe aguardente pela boca abaixo, pode ser que volte a si! Foi fava que lhe deram! Ai, se ele vomitasse!

Estava morto e bem morto. Torpe coisa. A bela e incompreensível máquina parara para todo o sempre. Não havia nada a fazer, já o corpo enregelara.

O velho, recalcando a mágoa e furor, mandou as mulheres para casa. Pegou do cão e levou-o para a cardenha. Com o Jaime examinou-o e volveu a examiná-lo. Tinha a barriga como um bombo e nenhum sinal de ferida. Abriu-lhe a boca já enfechelada e pareceu-lhe descobrir restos duma massa de aparência pouco comum.

— Abre-se — disse o rapaz.

— Não é preciso — respondeu o velho. — O cão morreu envenenado.

— Quem seria?

— Não é necessário perguntar. Mas boca calada. Ele há-de pagá-lo. Façam correr que morreu com a esgana.

— O avô não se derranque o sangue. Eu encarrego-me de ajustar contas com o patife...

— Chut, o negócio é comigo. O cão era meu. Era o fiel companheiro há nove... não, há mais de dez anos. E ainda estava para durar. Melhor amigo nunca encontrei!

— Ele paga-as...

— Paga, paga, mas a mim. Ouviste bem? Eu estou velho, se for parar às cadeias celulares é por pouco tempo. Tu tens o mundo todo e a vida diante de ti. Eu é que vingo o Farrusco... e o mais que está na lousa. Foi acusar teu pai... que é um bom-serás. Borrou... Olha, Jaime, se for preciso, peço-te que me dês uma demão, mas há-de ser de tal jeito que te não comprometas. Eu cá estudo...

Calaram-se cada um a ver fuzilar nos olhos do outro perspectivas ferozes. Perspectivas e o estendal de agravos que tinham do meliante. Não abusara de Filomena, uma vez que a pilhara sozinha na Rochambana? Depois, julgando o marido morto, com promessa de casamento, a pobre humilhara-se mais de uma vez ao malandro. Ela contara tudo ao Jaime por miúdos, quando o viu às portas da morte, desconfiada que ele soubesse, como de facto, e na sua dor lhe pedia perdão. Por isso fora a rixa. Quem o sabia já a esse tempo era o velho, que os vira sair dum urgueiral e aguardava apanhá-los outra vez juntos para os matar.

— Mas nunca mais os cacei, por mais que os espreitasse. Tua mãe emendou-se, a alma do diabo. Mas as barbas estavam sujas e sujas estão.

O velho disse por fim:

— Vai em paz, meu rapaz, e não sonhes sequer o que me disseste e acabas de me ouvir. Faz correr que o cão morreu com esgana. Percebes? Deixa o malvado comigo.

Queria ver-se sozinho. Quando o neto voltou costas, agarrou-se ao cadáver do cão a beijá-lo, a arrepelar-se e a chorar, mas a medo, que tinha vergonha de que o vissem.

Teotónio Louvadeus, serrano duro e impiedoso, de modo geral, não professava grande estima pelo seu semelhante. As misérias alheias não o afligiam sobremaneira , posto que não ficasse indiferente à injustiça. O seu calcanhar era vulnerável a este sentimento. E seria capaz de tirar as tripas a um injusto. Amor, verdadeiro amor do fundo da carne e do fundo da alma, tinha-o ao filho, que sabia ser um paz de alma, bastante desarmado contra as perfídias do mundo, sonhador, sem ódio até contra um sicário. Os netos mereciam-lhe um acrisolado interesse. Eram carne da sua carne, vinculados do lar a que se aquecera, da cepa donde brotara, seres do seu entendimento e do seu coração. Mas era já o sol coado pelos ramos altos do castanheiro. Jaime conquistara-o ainda pelo seu desengano e coragem. — É da minha raça — magicava nas horas de exaltação.

Quem recebia boa parte da sua afectividade, depois que lhe morrera a mulher, eram os bichos. Gradativamente, o Farrusco, o Estudante, a Coroada, a cabra que lhe dava o leite. Por isso, ao ver o Farrusco cadáver, varreu-se-lhe a luz dos olhos. Abraçou-o, abanou-o, chamou-o pelos nomes mais amaviosos, pôs-se a falar para ele ora através da linguagem muda da sua alma, ora com palavras tolas.

«Não precisava falar, para que aquele bichinho o compreendesse! Mal lhe via fazer tais e tais gestos, adivinhava a sua vontade. Era igualmente pronto a responder. Dava à cauda, de modo especial, e percebia-se logo tudo o que lhe ia no entendimento. Era mais esperto que muitos animais de vinte unhas. Tomara o Dr. Labão ser finório como ele era! Sabia mais de caça do que ele de leis. Em faro e diligência dava sota e ás a esses cachorros bonitos, filhos de algo, com papíis de família como os viscondes verdadeiros. Os coelhos com ele viam uma fona. Numa volta de mão, desentocava da brenha o orelhudo mais mitrado. Conhecia os soalheiros onde vão erguer a tendinha no Inverno e os lugares frescos em que assentam o panagal pelo Estio. Até com as perdizes, que são as aves mais finas da criação, era sabido! Durante o tempo que tivera o perdigão cantor, nunca os dois o deixaram sem meia dúzia de perdizes que levava à feira. Não fora preciso dizer-lhe muitas vezes que estas aves não se caçam como o coelho, latindo e lançando-se-lhes no rasto. Cachorro que pica uma perdiz comete um crime que não tem perdão, a menos que seja um sabujo de pastor ou de caçarreta de moca e polainos de junco. O Farrusco era rafeiro, mas resgatara-se da condição e tornara-se mais destro que um podengo, um desses cães de rabo em leque, ruivos e peludos, ou esses outros que têm a venta rachada e são capazes de farejar bicho montesinho em casa de Deus verdadeiro».

— Cãozinho da minha alma, eu te vingarei! Eu te vingarei de maneira que o diabo no inferno há-de dizer para os ajudantes: quem ensinou tais malas artes àquele safado!?

Chorou, tornou a chorar, e só teve coragem de o enterrar no segundo dia, quando começava a feder. Ao voltar de sepultá-lo deu de cara com o Dr. Rigoberto, a única pessoa de fora com quem o cãozinho caçava. Soubera pelo Jaime e vinha consolar o velho.

— Morreu-lhe o cão, Louvadeus?

— Morreu sim, senhor doutor, com a esgana...

— Com a esgana e ainda anteontem andou a caçar comigo? Pareceu-me fero. Hum!

— Pois de que outra coisa havia de morrer? Rigoberto olhava para ele muito sério e intrigado.

— Encontrei-o morto. Mas não seria esgana, não seria. A gente também não cai às vezes varada sem saber porquê?

Rigoberto compreendeu que por baixo daquela explicação, decerto sofisticada, o velho devia esconder qualquer inumano propósito de brio antigo e vingança. Era mais que certo que lhe tinham matado o cão. E foi-lhe dizendo, sem confiar muito no poder de persuasão das suas palavras:

— Se morreu, não há que pedir contas a ninguém. Se o mataram, quem foi ao certo? Sabe? Veja lá, não se deite a adivinhar. Entre morreu e mataram-no há um espaço tão longo que só um louco o passa de olhos fechados. Um homem vinga-se. A vingança é sempre possível, mas digo-lhe também eu que acaba sempre, mais tarde, ou mais cedo, por voltar-se contra o vingativo. E quando se vem a saber, se foi de tomo, paga-se a dobrar.

— Não, senhor, não, senhor, o cão morreu com a esgana. Não penso em vingança nenhuma.

— Não pensa o Louvadeus noutra coisa.

O velho calou-se. Rigoberto demorou o olhar sobre ele e disse gracejando:

— Veja lá o que vai fazer! Olhe que eu não quero ser o defensor encartado da família L,ouvadeus!

— Não há-de ser, descanse. Eu sou homem cordo, com os pés para a sepultura. A defesa está-me lavrada pelos anos. Não há-de ser preciso que o senhor doutor intervenha com a sua sabença em leis. Da cadeia quem melhor que a morte pode livrar um homem?! Aqui está a sentença. Nesta altura, que mais tenho eu a fazer do que apelar para tal salvatério?!

 

Teotónio Louvadeus levou uma broca de aço a Azenha da Moura à forja do Rosário para que lha cortasse em guilhos.

— Quantos hão-de ser, tio Teotónio? — perguntou o Calhandro, a grande dentuça engatilhada, olhos de boi manso fitos no velho, todo farófia com os plenos poderes, pois que o amo estava a cumprir pena na Penitenciária de Coimbra.

— Quantos der, meu homem, a dois palmos cada um.

— Tão compridos, para quê?

— Para saibrar. Tenho lá um salão que não descose a dente de picareta.

O Calhandro cortou-lhe a broca e meteu os troços ao lume.

— Bem aguçados — recomendou Teotónio, ao fim de tocar o fole.

— Quer tirar espinhos com eles?

— Isso mesmo. Que sejam capazes de fazer as vezes de alfinete.

Ficaram cinco guilhos apontados em rectângulo, bico tão fino como o ferrão duma piasca.

Na Rochambana o Teotónio meteu-se com o Jaime a saibrar um pedaço de solo, rente à cardenha, com ideia de dispor uns baceleiros. O aço dos guilhos era fino, e aguentaram a marreta sem se esmurrar nem fazer rebarbas. Breve, estavam polidos como se tivessem sido passados ao esmeril. Pela tarde, Jaime despediu a levar as vacas para o pasto, e Teotónio pegou dum daqueles guilhos, afiou-lhe mais a ponta no rebolo e dirigiu-se ao pinhal do Carreira. Depois de verificar que não andava ninguém pelos sítios, ensaiou-se ao arremesso do guilho no tronco dum pinheiro.

Teotónio ouvira ao Dr. Rigoberto, se não é que o sonhou, que, mutatis mutandis, era aquela a arma branca mais comum de que andavam providos os campónios antes de se terem vulgarizado as armas de fogo. Assim se defendiam das feras e dos maus encontros pelos caminhos. Se lho não ouvira, fora uma. reinvenção do seu espírito fecundo, a memória adormecida da espécie tendo acordado nele e sugerido a ideia do dardo.

Teotónio lançava nos seus bons tempos de rapaz a navalha espanhola com tal ou qual dexteridade.

Ganhara muitos quartilhos a mandá-la, em competição com outros, a uma porta em que traçavam um círculo a giz. Dava agora conta que o seu braço não estava menos firme, a vista porém começava-lhe a falhar. Ao fim duma meia hora de exercício, acertava com o guilho no tronco, sucessivamente, a quatro, seis, oito passos, com pequena variação de pontaria. Contudo não se deu por satisfeito e, nos dias seguintes, mal o neto largava do desmonte, ele a renovar o ensaio. E escondeu o guilho. Continuaram a saibrada.

— Falta aqui um guilho. Onde é que o meteu, avô? — perguntou-lhe o neto.

— Olha, desapareceu. O mais provável é ter ficado no desmonte.

— Procura-se...

— Não vale a pena... Quem sabe se não seria preciso revolver a terra toda?

Uma dessas manhãs, Jaime que costumava discorrer pelos serões das aldeias até Parada da Santa, onde tinha uma namorada, a filha do João Rebordão, veio dizer ao avô:

— Ontem a Rosinha do Rebordão contou-me, muito indignada, diga-se, que ouviram ao Bruno Lêndeas uma bacorice que era para lhe arrancar o coração pelas costas. Até coro de a lembrar.

— Dize lá...

— Foi na festa de S. Salvador, em Corgo das Lontras. O alma de cerdo por modos andava bêbedo e gabou-se...

— Imagino de quê...

— Foi a mãe e há-de ir a filha. Anda-se-me a fazer fina, mas pássaras mais ariscas do que ela caíram no laço. Ladrão, excomungado!

— Deixa! Ele paga-as todas juntas.

Ia um Inverno benigno, nem frio, nem chuvoso. Mesmo assim, o serrano desconfiado de Deus e do tempo engoiava-se na capucha. Fevereiro quente traz o diabo no ventre. Às noites negras, com um brilho no céu profundo de água em cisterna, sucedeu um quarto crescente, largo e inflamado como uma espadana erguida a tascar o linho. Estava à porta a lua cheia marcelina que alumia melhor que um farol. Aos sábados, o pessoal da Floresta distribuía-se à direita e à esquerda, pelos povos circunvizinhos os que eram da serra. Havia uma certa relaxidão na vigilância. Também os guardas, com licença ou sem ela, navegavam cada qual a seu destino no vasto planalto.

À ida para Urro com o descanso semanal, que por direito ou mercê de troca com outros lhe caía no domingo, Bruno Barnabé fazia o seu rodeio pela Rochambana. Teimava em desinquietar a moça, e ele trazia-o sob a mira bem vigiado. O velho punha para consigo que a neta era segura, mas logo a sua filosofia de velho Salomão retrucava que nunca fiar. Realmente ela, se parecia estar sempre na retranca, alguma trela lhe dava. Alturas, não esquecer que são mulheres — comentava para os seus botões. — Por aí se começa... Mas ná, a pequena tem lume no olho. Anda a desfrutá-lo. Com efeito, uma tarde, escondido no estábulo, ouviu este colóquio:

— Se a Jorgina gostasse de mim, dava-me uma prova. Oh se dava...

— Que prova?

— Vinha ter comigo.

— Não queria mais nada?

— Era alguma coisa do outro mundo?

— Não era, pois era lá coisa do outro mundo?!

— Ainda bem que o diz.

— E para que havia de eu ir ter com o senhor, não me dirá?

— Para quê? Então não era capaz de me dar um beijo? Ai se a menina soubesse o gostinho que os meus beijos têm...!

— Calculo. Beijos que valem dentadas de burro. Tenha juízo, homem! E sabe que mais: desampare-me a porta!

Fechou-lhe a vidraça no focinho. Era a mesma coisa que mandá-lo abaixo de Braga, por isso o ladrão andava a difamá-la. Por onde ia propalava que se gozara dela. De Filomena, não se pejava também que não contasse, verdade ou mentira:

— Apanhei-a na barraca, um dia à noitinha que o sogro fora deitar os ferros aos coelhos. Primeiramente a cabra gritou, depois quando lhe falei em casar com ela, porque supunha o homem morto lá para os Brasis, acolheu-me bem acolhido. Eu é que não quis mais nada com a velha zarga.

Teotónio, que bebia os ecos destas indecências aqui e além, abanava a cabeça:

— Pagas quanto dizes e fazes ou eu perca o nome que tenho!

Depois de estudar as idas e vindas de Bruno Lêndeas, as rectas e dobres do terreno, esperou por ele aquele sábado ao escurecer no trajecto dos abarra-camentos para Urro do Anjo. Viu-o assomar na lomba, inflectir para a casa da Rochambana, no fito, é provável, de reatar o paleio com Jorgina. Mas Jorgina empontara-a ele para a casa velha de Arcabuzais com a mãe e o Jaime, que os caiadores da Tabosa haviam começado a rebocar os quartos na Rochambana. E, logrado nos propósitos, retomara o itinerário. Quando Bruno assomou na canada, à desbanda da qual o esperava por detrás duma urgueira, e lhe pareceu boa a distância, descobriu-se. Sacou de debaixo da capucha o braço com o dardo. Mas ele deu conta do movimento de agressão e foi a tirar a clavina da bandoleira. Não teve tempo. O ferro, despedido por mão irada e com o alento todo, ia-se-lhe cravar no peito e lá ficava plantado. Sem perder um minuto, o velho arrastou-o pelos pés para a beira do córrego, a uns cem passos dali. Volveu a desfazer com uma giesta o restolhadoiro que deixara no caminho. Tornando ao corpo, tirou-lhe o ferro do peito que foi esconder com a carabina, perto, debaixo duma lapa. Essa noite, antes do cantar dos galos, quando Jaime voltava da rambóia dos serões, ao entrar a porta para dentro da quinta, uma garra de ferro que saía da sombra filava-o pelo braço. Passado o primeiro movimento de surpresa, reconheceu o avô que lhe dizia:

— Anda já comigo. Por onde ninguém nos veja...

Meteram a corta-mato para a serra. Na Rochambana muniram-se de duas enxadas, de uma pá e de um ferro do monte. Por única explicação, o avô disse--lhe:

— Vem-me ajudar a enterrar uma besta que caiu ali em baixo a uma cáfila. Se fica à de cima da terra, infecta todo o monte a começar pela Rochambana.

— Podia ser logo de dia...

- É domingo e parece mal. Nos dias do Senhor não se mexe com ferramenta.

Diante do cadáver que, pela camisa funerária e o mais, logo identificou, o rapaz ficou boquiaberto.

— Parece que te agoniaste — disse-lhe o avô. — Olha que já não morde!

— Não senhor, e teve bem o pago. Se imagina que tenho nojo desta morte, tire-lhe lá os fígados que eu como-os fritos em azeite.

— Está bem, está bem, vamos à obra. Torna-me a água do corgo para os lameiros. Corta-a lá em cima, no açude... Sabes onde é o talhadoiro? Não sabes tu outra coisa...

— Sim, senhor.

— Então cospe-me às mãos.

Entretanto ele, com o ferro, pesquisava o leito da torrente. Pedra, pedra, lamaço, terriço. Dois a três palmos de profundura. Um lordeiro que, mal atalhasse a água, esvaziaria facilmente, se com duas enxadadas se lhe abrisse um dreno. Como de facto. Dali a pouco estava seco.

Um luar muito claro fazia reluzir os seixos e o lume de água cintilava que nem um espelho. Enxergava-se como de dia. Os dois homens começaram a abrir uma cova. Segundo a sondagem do ferro, poderiam descer a mais de metro até topar duro. Era quanto bastava. À enxada e à pá, como se estivessem na fazenda a abrir um valado para bacelo, procederam à operação. Tiraram algum cascalho, arrancaram uma lancha que os estorvava, e em menos de hora e meia escancarava-se a sepultura necessária. Mas o suor pingava-lhes do rosto em bagadas.

Jaime e o velho agarraram no cadáver pelos pés e pela cabeça e atiraram-no para dentro. Quedou de cara para o céu como os fiéis defuntos na terra santa. Contemplaram-no pela última vez, mas os olhos abertos, no fundo do buraco, não lhes disseram nada. Tão-pouco a face descerrava a expressão dos assassinados, que às vezes é pavorosa, com medo do inferno ou saudades da vida, e outras vezes sarcástica, certos de que lhes há-de soar a hora da vingança. Tanto a fisionomia do Lêndeas como as meninas dos olhos ficavam mudas, condenadas, dir-se-ia, ao apagamento eterno, sem uma palavra de piedade ou de maldição. Jaime despejou-lhe sobre o corpo a primeira pàzada.

— Suspende... — disse o velho.

Foi debaixo da lapa buscar a carabina e o guilho e deitou-os à ilharga do morto.

— Deixe a espingardinha de fora, senhor avô. Pode ser precisa!...

— Estás doido. Para te perguntarem onde a foste arranjar?

Cobriram o corpo com uma camada de terra.

— Agora pedras...

Procuraram pedras, algumas que custavam a transportar, e calhaus do corgo, e forraram a campa com o seu ladrilho.

— Agora mais resulho — volveu Teotónio.

Calcaram a terra com a ferra das sacholas, semeando a sobrante pelo leito do ribeiro e embutiram a seixada, por aqui e por ali, sobre a fossa. Tornaram depois a água ao seu curso. Represada, breve volveu, fluiu de ímpeto, arrastou a terra solta, expungiu a coroa dos calhaus miúdos, lavando assim a malfeitoria humana.

— Eu, logo, quando romper a manhã, apago quantos vestígios, sangue, rastejadoiro, pegadas, ficaram do funeral. Vamos lá embora — proferiu Teotónio depois de lavarem a ferramenta. — Agora ouve bem o que te digo: Hoje, domingo, mal estranham, tanto em Urro como nos Serviços, não verem o homem. Amanhã, segunda, hão-de perguntar: onde pára ele? Na terça-feira deitam alarme. Começam a procurá-lo. Por essa semana fora, não farão outra coisa. Vão revolver tudo, bulir em tudo, cavar onde lhes parecer a terra mexida. Vão virar a Rochambana de baixo para cima. Mas quer-me parecer que só o Diabo será capaz de vir dar com o corpo onde ele está. Podemos dormir a sono solto que não o descobrem, não, onde está. Mas, olha, se descobrissem, que é uma hipótese, tu falas a verdade: vieste aqui ao engano. Chamei-te e não sabias para o que era. Diante do cadáver, que havias tu de fazer senão ajudar teu avô a sair da enrascada? Escusas de confessar que lhe tinhas tanta osga como eu. Deus te livre de ser tanso. Eu é que fui o autor exclusivo, eu é que pago, eu que daqui a pouco tenho os dias cheios. Compreendes?

— Compreendi, avô, mas...

— Ouve... Pode ser que te prendam. Então é que eu quero ver que homem tu és. Tens que dar um nó na língua...

— Descanse, avô, nem que me deitem numa grelha me obrigarão a dizer o que não quero.

— Vais daqui ao direito meter-te na cama. Não tarda muito que rompa a manhã. Vestes o teu fatinho de domingo e vais à missa de corpo bem feito. Eu lá me vou mostrar. Levas a roupa cheia de lama, mas um trabalhador, ainda mais quando andou a saibrar, retira sempre embodegado. O melhor é que não te vão dar com a roupa suja. Esconde-a. E, olha, antes de mais nada que não te pressintam agora ao entrar em casa. Arranja-te como puderes! Amanhã, segunda-feira, com o nascer do Sol, aparece-me para recomeçarmos com a bacelada.

— O fato vou metê-lo no palhal. Amanhã, com o desmonte, o saibro come a lama. De sorte me perguntam hoje por ele.

— Lá farás. Larga que são horas! Eu levo a ferramenta.

Com o nascer do Sol, andava Teotónio a varrer o teatro da sua avaria de todo o argalho perigoso. Já era manhã alta e chocalhavam os gados pelos montes, reparou que um vulto o observava, encostado a um penedinho. Era a Leocádia pastora, uma raparigaça com a sua cestinha da meia, o seu rafeiro e a vergasta de tocar as ovelhas em punho. Chegou-se a ela:

— Raios te partam que me havias de tirar da minha devoção...

— Eu, tio Louvadeus, eu?

— Sim, os teus olhos. Ando à procura de volfro por estes andurriais...

— Ninguém o empece...

— Pois não, mas sempre me viste. Não digas nada e vou mostrar-te o mineral. Terás a tua parte. Chega aqui, não tenhas medo...

Ela seguiu-o, meia desconfiada, meia crédula, mas cobiçosa. À entrada do urgueiral recusou-se a ir mais longe. Ele agarrou-a pelo braço:

— Vem que tens o teu quinhão... Nem imaginas a riqueza que é!

Puxou-a, e nem lhe deu tempo a esquivar-se. Tombou entre as giestas, sobre um sargaço, meio embrulhada na capucha. Foi tão rápido que mal se apercebeu do desacato. Mentira que nenhum até a data lhe fora ao poleiro. Mas, deixá-lo! Dali já lhe não vinha mal. Estava vacinado contra aquelas bexigas. A Leocádia agora cofinhava.

— Cala-te que hás-de ter um cordão de oiro.

— Tenho uma nisga! Homem mais malvado nunca se viu!

— Fez-te mal? Se te fez mal, vai-te queixar—e voltou-lhe as costas, aliviado dos nervos, tranquilo por outro lado dos seus feitos.

Aquele domingo transcorreu absorto e cismático, com um solzinho brando em Arcabuzais e desde uma ponta a outra do planalto. A gentinha ouviu missa; tocou o harmónio na venda; no terreiro os rapazes jogaram o pino; o João Mota emborrachou-se.

Toda a segunda labutaram os dois Louvadeus no desmonte da saibreira. Na terça, pela tarde, apareceram dois guardas-florestais à cancela da Rochambana.

— Boa tarde!

— Boa tarde!

— Não me saberão dar razão do Bruno Barnabé...?

O velho ergueu-se de mão sobre o cabo da enxada, enquanto o Jaime se aprumava:

— Não, meus santos, não.

— Saiu no sábado à noite, com o sol-pôr, do abarracamento e nunca mais se lhe pôs a vista em cima...

— Eu às vezes via-o passar lá fora, na encosta, para Urro. Pelo menos parecia-me o vulto dele, que já não enxergo bem. No sábado, estive metido para a cardenha a fazer a ceia, que trago há uma semana os caiadores em casa, e a família recolheu a Arcabuzais, e não dei fé.

Um dos guardas olhava muito fito para ele, mas o Teotónio fez-se desentendido e voltou à tarefa, com os homens parados a dois passos. Despediram-se e comentou:

— Mais dia menos dia, temos aí a Guarda. Rapaz, boca cispada.

Andava o povo todo de Urro à procura de Bruno Barnabé pelos montes. Procuraram-no sobretudo à volta do caminho que levava do abarracamento para Urro. Bateram as brenhas, exploraram os penedais, espreitaram os fundões do corgo. Modesto Barnabé, uma tarde, entrou pela Rochambana dentro de peito feito, carabina a tiracolo. Dirigiu-se a Teotónio:

— Seu velho duma figa, onde enterrou meu irmão? Foi você o assassino. Há-de dar contas dele...

Teotónio fez-se mula velha e respondeu em voz humilde, acobardado:

— Eu, Modesto, eu matar teu irmão?! Tira isso do entendimento. Com que cara havia eu de comparecer no tribunal de Deus! Eu matar o meu semelhante?!

Foi-se aproximando muito ronceiro e vergado. Quando lhe pôde deitar a mão direita à carabina, ferrou-lhe a esquerda nas goelas:

— Repete outra vez, repete, meu bandalho!

— Disse o que ouço...

— Ouviste uma grande calúnia. Não queres repetir?

Acudiram a toda os dois caiadores, que trabalhavam no reboco da casa, e as mulheres deles, que lhes tinham vindo trazer o comer, e apartaram-nos. Modesto foi-se embora, meio tartaranha e envergonhado.

Mas o rumor de que tinham sido os Louvadeus que haviam estrafegado o Lêndeas e feito desaparecer o cadáver tornou-se insistente. Invocou-se a briga que Jaime noutros tempos tivera com Bruno, as gabarolices desbocadas deste, e o grito do velho em pleno tribunal do Porto, divulgado pelo Dr. Labão: Ah cão, que mas pagas! Escoltado por duas praças da guarda, um piquete de homens, dispensado pelos Serviços Florestais, revolveu a terra toda de desmonte na Rochambana. Perante o insucesso, contra o palpite de muita gente, puseram-se a cavar aqui, além, na fazenda. Entraram em casa e ergueram o soalho. Prosseguiram nas buscas pelos outeiros. Escavaram por toda a parte e por toda a parte saíram a fazer cruzes na boca, mas não desenganados. Deitaram bando por várias terras do concelho, e as gazetas deram a notícia: DESAPARECIMENTO MISTERIOSO DUM GUARDA NO PERÍMETRO FLORESTAL DA SERRA DOS MILHAFRES. Um guarda desapareceu dos Serviços como um trasgo. Há quem emita a hipótese que o mataram, vítima de vingança pessoal ou vingança das populações, e quem diga que se raspou para lugar seguro. Sustentam esta versão a titulo de que o homem era aventureiro e ainda aqueles que o inculcam como pessoa de mau carácter, insidioso, difamador e homem de todas as tranquibérnias e, portanto, receoso da integridade do seu físico. Recentemente depusera no Plenário do Porto contra os habitantes da serra dos Milhafres num processo que deu brado e aqueles juraram-lhe pela pele. Seria a fugir à vendata, que ali ê uma magistratura implacável desde tempos imemoriais, que o guarda se volatilizou? Não há voltas que se não tenham dado, nem terreno pelos sítios em que era assíduo que deixassem de palpar. As bruxas consultadas pelos parentes dizem, umas, que está vivo e bem vivo, às vezes a ouvir os seus farejadores, outras, morto e bem morto, e que já prestou contas a Deus.

Intriga, com tanto mistério, para uma novela à Ponson du Terrail.

Uma bela manhã, prenderam os dois Louvadeus. Todas as suspeitas convergiam sobre Jaime que deu conta do seu tempo desde sábado à noitinha até segunda-feira de manhã: ceia em Arcabuzais: testemunhas X e X, seus vizinhos; depois, uma partida de chincalhão na taverna do Nacomba com os seguintes parceiros, Fulano e Beltrano; em seguida à jogatilha, serão das Cardosas, até passar da meia-noite: testemunhas, quantas pessoas de Arcabuzais seroavam naquela loja. Foi-se deitar ao direito para se levantar às 7 horas ao tanger do sino. Por sinal que ajudou à missa do senhor padre Abúndio... O domingo passou-o na terra — taverna, adjunto no largo, tocata, duas voltas à chula.

O sargento olhou para o administrador e para o Dr. Labão que assistia ao interrogatório como advogado da família.

— Está bem, não foste tu que mataste nem fizeste desaparecer o Bruno, mas sabes quem foi. Confessa!

— Não sei, não tenho nada que confessar!

— Olha para mim...

O rapaz olhou para o sargento sem pestanejar.

— Tão certo saberes o que é feito do Bruno Barnabé como eu chamar-me Pedro. Estou a ler na tua alma, mas a mim não me comes tu.

Pegou do cavalo-marinho, que a violência e os castigos corporais eram o processo corrente de averiguação ressurgido pelo aparato judicial, e caminhou para o rapaz.

— Confessas?

— Não tenho nada que confessar. Assestou-lhe a primeira azorragada, puxada à mão-tente, pelas costas:

— Confessas?

— Não tenho nada que confessar. Descarregou-lhe segunda, terceira, quarta vergalhada; à quinta, a ponta do cavalo-marinho, cim-brando, respingou para a cara e logo ali lhe implantou um gordo e tumefacto vergão. A fera legal ia prosseguir, mas Labão deitou-lhe o braço:

— Deixe o rapaz. Já está convidado. Não saberá... não saberá!

Pasaram para o velho. Em voz submissa, apagada, declarou Teotónio que não era capaz de molestar ao seu semelhante, quanto mais matá-lo. Tinha grandes agravos, lá isso tinha, do Bruno Lêndeas, e no Porto saíra-lhe do peito um grito de revolta quando vira aquele mau homem desfazer no seu filho, empurrando-o para a cadeia. Mas lá de atentar contra a vida dele, não senhor, não senhor! Deus dá a vida e dá a morte. Seria roubar o pai do Céu.

As cantigas meladas do velho não pareceram convencer os inquiridores pois que o submeteram a um severo e caviloso interrogatório. Presidia o Dr. Labão, que se prezava de mestre em tais artes. Perante a ineficiência absoluta de semelhante tentativa, o administrador fez sinal ao sargento Pedro, carrasco oficial de Bouça de Rei. Este pegou do cavalo-marinho e avançou para Louvadeus:

— Não sabe o que é feito de Bruno Barnabé?

— Não sei, não senhor.

— Sabe, sabe e vai dizê-lo...

Descarregou-lhe a primeira vergalhada. Ia a brandir o cavalo-marinho para a segunda, mas nem ensejo teve de dar balanço à mão. O velho saltava-lhe ao pescoço como um tigre assanhado. Em menos tempo do que se leva a dizer, prostrava-o no chão, e joelho na arca do peito, a mão na garganta, os dentes ferrados no queixo, matava-o se lho não tiram de baixo. Mas foi preciso crivá-lo de murros, de pontapés, de coronhadas com a espingarda, que ali estava da praça, para o obrigar a ceder. O sargento ficou no chão exangue, a arfar, a mandíbula desmantelada. O velho, às pancadas que lhe deram, sangrava da cabeça e tinha o fato em tiras.

— Caramba, nem uma besta feroz! Metam-no na Casa das ratas.

— Metem-me na Casa das ratas, mas vejam lá o que fazem! Vejam lá! — regougou o velho, com os olhos a fuzilar.

O Dr. Labão teve medo, porque para semelhante animal o medo valia um decreto:

— Levem estes dois brutos à farmácia e deixem --nos ir embora. Não é, senhor administrador?

Viram sair da Administração, esfandegados, rotos, sangrentos, os dois serranos e o povo da vila confrangeu-se. Foi-se ajuntando gente, e de vagos zunzuns passou a gentiaga aos morras!

— Morra o Dr. Lambão! Assassino! Morra o Cancela administrador! Morra!

O Dr. Labão viu crescer o monte e o alarido. Mandou postar a guarda à porta dos Paços do Concelho e encomendou um automóvel que transportasse aqueles dois demónios a Arcabuzais. Entretanto ele, o presidente da Liga e o administrador escamugiam-se pela porta falsa que dava para a feira.

Uma voz, que não se sabe onde se ergueu, começou a correr: o Bruno Barnabé, pelos sinais, era um tipo que ia com um bando de ciganos para bandas de Trancoso. Uma mulher dera-lhe botijada a beber e ficara doido por ela. Era galaroz, pagou. Corria o seu fado. Coitadinhos dos inocentes que pouco faltou para serem esfolados vivos nos Paços do Concelho de Bouça de Rei! Malandros!

A voz engrossou. Ninguém se deu mais ao incómodo de desvendar o mistério. Bruno Barnabé, vagabundo do amor, patife de primeiro calibre, passou à história.

 

Nasceram menos anhos e cabritos na serra dos Milhafres e alargaram-se mais nos cotovelos e rótulas os rasgões da miséria ancestral, mas o Estado todo-poderoso, absoluto, levou a sua avante. A todo o lés do Perímetro florestal o penisco germinou, cresceu e em poucos anos lombas e valeiros revestiam uma linda e uniforme capa de asperges, de veludo esmeralda. Caminhos, com pontoes aqui e além, onde poderia transitar o automóvel, cruzavam-se de monte para monte. Nos recostos, aos quatro ventos, erguiam-se as casas dos guardas, com seu telhado vermelho e linha simples, escarolada e exótica na terra troglodítica, e os postos de vigilância, ligados telefonicamente. Um engenheiro silvicultor reinava em toda a extensão como em domínio feudal. Convidava os nobres amigos para montarias no couto como os reis para as tapadas, onde inçava o veado e o cervo. Na serra dos Milhafres faltavam estas espécies venatórias, mas, com o tempo e extensão dos poderes, lá se chegaria. E os povos? Os povos tiritavam encardidos de pobreza e barbárie, incrustados nas suas orlas. Mas que importavam as vicissitudes dos velhos aglomerados e que fossem dignos de lástima os netos dos iberos e turdetanos?

A Rochambana foi expropriada pelos Serviços, que a floresta alastrara, desenvolvendo-se a todo o quadrante. Com os Louvadeus foi quase providencial, pois que para pagar a multa judiciária não chegariam todos os seus bens em Arcabuzais. Mesmo assim, foi preciso acrescentar à importância aviltada o mais possível pelos síndicos do Estado, que ainda e sempre se mostraram as células vorazes duma canceração, indiferentes à saúde e bem-estar do corpo social, embora nutrindo-se-lhe da seiva e ferradas nele com ventosas de polvo. Ainda o valimento do Dr. Ri-goberto contribuiu a que o preço não fosse equiparado ao da uva mijona. Mas não bastou.

Teotónio e os seus regressaram à velha moradia da aldeia, a sachar duas vezes o centeio das terras vãs, a cavar a horta pequenina, a dispor duas molhadas de cebolinho na Primavera, e a cuidar de manhã à noite do milho que se colhe em Setembro e há que embebedar de água para com ajuda do sol produzir grão. Teotónio dava ideia de um velho açor sem penacho e desplumado em muitos pontos, que andasse a refazer-se num retirado barrocal duma chumbada que lhe deram. Mas a sua alma refervia em ódio, e a ânsia da vingança, que foi sempre o primeiro estímulo dos bárbaros, dava-lhe fôlego e ralé, dir-se-ia, cada vez mais mordente e atrevida.

Antes de completar os três anos e meio de Penitenciária, o meio ano representando o agravo de pena com que o Supremo Tribunal, olho atento da Ordem, entendeu gratificar os delinquentes, Manuel Louva-deus beneficiou duma amnistia, muito simbólica, significativa de exemplar bom comportamento. E ao homem, que nunca fora outra coisa senão um bem-comportado, mandaram-no em paz a pretexto do exercício duma virtude que deixara de ser inibitória para a sua condenação. Apresentou-se inesperadamente em Arcabuzais, mais velho, mais macilento, mais lido e sabedor das coisas do mundo, e mais idealista. E foi uma epifania. Tinha-se por causa dele arruinado a casa, mas não tivera raça de culpa, nem ninguém lha lançava em rosto. Ele, coitado, propunha-se recuperar tudo a breve prazo. Ia exumar as riquezas que jaziam enterradas à sua espera no chão misterioso de Mato Grosso. Era tão certo lá estarem como estarem sentados à volta do cepo, malga do caldo na mão, por cima deles a candeia a bailar, tal como no dia em que chegara com seu fatinho de embarcadiço e exclamara, surpreso que o não houvessem reconhecido:

Não sabes quem eu sou, mulher? Tão certo que bastava ouvi-lo para ficarem todos presos da sua palavra e acreditarem. E até o velho, sempre raposo desconfiado, sentia na alma o afago da aragem messiânica.

— Hei-de comprar-lhes uma quinta, onde haja tudo, desde pátio de sombra a cocheira. Ainda hoje se encontram pela província dessas casas apalaçadas, em mãos de trolhas que não raro as aviltam, e que pertenceram a fidalgos que deram em droga. Já repararam como são bonitas as escadarias, às vezes de dois lanços, as janelas com alizares caprichosos, cornijas bojudas, telhados com caleiros reforçados a argamassa?! Dessas é que eu gosto e que eu estimaria possuir. Claro que casas assim hoje em dia pedem um bom espada, mas compra-se o bom espada!

- Ora, ora, para mim já vem tarde! — exclamava Filomena. — Estou velha e o que peço a Deus é que me deixe morrer em sossego.

— Aí vem vossemecê, senhora mãe! — interpunha Jorgina. — Prefere continuar entre mondongos?

— Nesta aldeia miserável -— prosseguia o ex-penitenciário — que décadas da era nova tornaram mais pobre, mais fanática, mais desoladora, hei-de criar uma Escola de Artes e Ofícios. Uma escola para lavrantes da pedra. Que belas padieiras se não tiram nesses balcões de granito, e nas penedias encasteladas como nuvens de trovoada! Andam por esse mundo a construir capelas e mais capelas, igrejas e mais igrejas, casernas, presbitérios, nesta altura da civilização e quando os moradores vivem em choças, tão desgraçados que carecem do mais rudimentar dispensário, de correio, de escola em termos, de chafariz! Que aberração! Que erisipela nos corpos e nas almas! Como é possível que na Kuropa, a mais douta e bela porção do mundo, se reacenda uma febre da Idade Média!

— Os rapazes e a mais gente válida desertaram. Para quem há-de ser tal escola?

— Está sempre gente a nascer...

— Parece que nem presta a miudagem que aí medra, pernas de guita, só ranho, peitinho para dentro...

— Hei-de oferecer lactário... hospital...

— Bem é preciso. Anda tudo achacado, de espinhela caída...

— Hei-de fazer cantina, onde se dê de comer às crianças...

— Venha ela, que nunca se viram mais famintos.

— Hei-de pôr telefone, luz eléctrica...

— Para quê, meu filho, para se verem melhor os nossos piolhos e farrapos?!

— Deixe, pai, que eu hei-de resgatar a terrinha em que nascemos!

Tinha o seu passaporte de emigrante, foi a Lisboa revalidá-lo. Voltou à aldeia triste, em que agora, com a invasão da floresta, se ouviam todas as noites uivar os lobos, esperar que lhe chegasse vez no barco negreiro. Não tardou que recebesse o aviso. Despediu--se, rosto iluminado por um clarão, que irradiava como uma aurora.

— Aperta-me bem ao teu coração, meu filho, que não o tornas a ouvir bater! —gemeu o velho.

— Qual, em menos de seis meses estou de volta.

— Não te vejo mais! — e carpia-se e quase o estorcegava nos braços. Como era mais alto, regava-o ao mesmo tempo com lágrimas.

Embarcou na camioneta da carreira, com a malinha de fibra como viera, estranho, corajoso, possuído duma serenidade fora do seu lugar e do tempo.

— Desgraçado de quem é português! — exclamou o Jaime.

— Mil diabos te levem! — redarguiu o avô. — A vida fazemo-la nós. Quem diz vida, diz nação. À morte os vendilhões!

Ficaram na casinha velha, em suspenso, à espera como no cimo dum cabeço, cercado pelas cheias, de olhos arregalados para o horizonte. Dois meses rolaram, e a esperança a bruxukar como uma brasa no escuro. Depois, três meses: ainda não está fora de prazo! Mais quatro: teria por lá os seus contratempos!

Ao quinto mês, corriam a ver a bolsa do correio com certo desespero interior. —Não escreve o seu filho, tio Louvadeus! Vão daqui e esquecem-se! Aquilo são outras terras. Sete, oito, nove, dez meses, um ano: cansaram-se. Esgotou-se, à força de correr, o manancialzinho da esperança. Era como se o homem adorado tivesse morrido. E quem sabe?! Tê-lo--ia retomado o sertão, penetrando-o com o seu silêncio, a sua imensidade, o seu desprezo por tudo o que fica para lá da orla insondável do horizonte.

Teotónio uma tarde que virava a gleba, a alma carregada de fel, teve uma crise de fúria e desespero. Caiu sobre a enxada a enterrar as mãos no solo, a gemer e a sacudir sobre a cabeça terra e esterco. Levaram-no à força e passou a noite a soluçar. De manhã, ergueu-se com olhos enxutos e perguntou a Jaime:

— Quando te casas?

— Na semana que vem.

— E quando vai Jorgina para Lisboa?

— Depois do meu casamento. Ficou de vir a senhora buscá-la.

— Estou morto pelos ver arrumados, longe dos meus olhos.

— Assim o aborrecemos?

O velho não tornou resposta. Efectivamente Jaime casou com a filha de João Rebordão, uma bonita e sólida moça de Parada da Santa, onde passou a viver, que a casa era boa e carecia dum braço de agenciador, alimentada de fartos recursos pelo emigrado que soubera ressarcir-se e lançar seguro pé no Estado de S. Paulo.

— Venha para a nossa beira, senhor avô — instava com ele tanto Jaime como a mulher.

— Não, quero morrer em Arcabuzais, na terra onde nasci.

— O avô está para durar...

— Louvores a Deus, acho-me rijo e fero. Ficou com Filomena e a neta. Mas com a nora não trocava palavra. Para pagarem as despesas feitas com a viagem de Manuel Louvadeus, tiveram que vender. Estavam reduzidos à horta e à casinha. O velho continuava pelo lusco-fusco ora a armar os ferros aos coelhos, ora os fios às lebres, e caça não faltava na sua mesa. Finalmente retirou Jorgina para Lisboa e ficou o velho com a nora. Eram como dois mudos. Filomena escreveu à filha que a vida se lhe tornava impossível e se ia deitar a um pego se a não mandava ir. Entretanto passou por ali César Fon-talva e bateu à porta dos Louvadeus. Saberia das calamidades que tinham chovido sobre aquela casa, mas fez-se de novas. Finalmente disse para Filomena:

— Eu levo-a para Lisboa, que bem adivinho a vontade da sua menina. Levo-a e nada lhe há-de faltar. Mas antes, há-de seu sogro, o senhor Teotónio Louvadeus, ir viver com o neto. Entendido? Não souberam que dizer.

— Passo por aqui amanhã. Preparem as suas coisas. Conduzo o senhor Teotónio a Parada da Santa e volto a buscar a senhora Filomena e partimos para Lisboa. Adeus!

Rodou. Filomena deitou-se aos joelhos de Teotónio:

— Perdão, senhor pai, perdão! Fui fraca, fui mulher. Perdoe e ponho a minha língua no chão para o senhor passar.

O velho viu-a tão atribulada, com a pobre alma sincera às escâncaras, e não se conteve que a não abraçasse:

— Eu te perdoo, Filomena, eu te perdoo. Vamos para os nossos filhos, de bem uns com os outros.

E assim foi. Em Parada da Santa, Teotónio embrenhava-se pela floresta nova, corria balsas e cerros, linhas de divisão e arrifes, palmilhava as estradas e sendas abertas de posto para posto de aldeia para aldeia, como um prospector que bate o terreno, mas procurando sempre desencontrar-se de gente. Saía de manhã para voltar com a noitinha. Uma tarde, ao cabo de oito dias, o velho, que pegara do varapau, disse para a neta:

— Deixa-me ir a Arcabuzais, que não ficou bem decidido o arrendamento da horta. Preciso também de dar uma volta ao telhado. Saímos à pressa...

— Então não quer vir connosco à Senhora dos Remédios?

— Vão, vão vocês, e divirtam-se muito. Chego a Arcabuzais.

— E há-de ir a pé? Nós dispensamos-lhe a jumenta...

— Vou melhor assim. A corta-mato, ponho-me lá em menos de hora e meia.

— Que não vai dizer o Jaime quando chegar e não o vir...?

Meteu uma bucha à boca com um cibo de queijo, e não queria levar merenda, nem pouca, nem muita. Mas Rosa ajeitou-lhe um bom farnel, que atafulhou para o surrão, e abalou. Corria a primeira semana de Setembro, e com a estiagem os caminhos ao primeiro bafo tornavam-se bulcões de pó. As plantas estiolavam no solo abrasido, e a floresta, queimada aqui, alampanhada ali pela cresta, revestia os tons doirados do feno maduro. Chegou a Arcabuzais com trindades. A gente tinha largado para os Remédios e a maior parte das portas e janelas estavam fechadas. A aldeia parecia deserta. Encerrou-se em casa sem que ninguém o toscasse. Comeu, bebeu-lhe a sua pinga, deitou-se na enxerga sem mantas, com um olho fechado, outro aberto, como dormem os animais do monte. Quando lhe pareceu que na aldeia até os velhos morfanhos dormiam, entrou no quintal do Dr. Rigoberto. Espreitou para umas vidraças e outras e não viu luz. Deviam estar a dormir ou o mais provável é que tivessem ido para a festa. Quem num redondo de dez léguas não ia ver o fogo de artifício na Senhora dos Remédios? Estaria ele a égua na loja? Estava, estava, que os amos iam de automóvel e os criados de camioneta.

Encontrou a Bicha, égua corredora e criadeira, à manjedoira. Tirou-a para fora em pêlo, só com a cabeçada de corda, devagarinho, que não dessem conta. Ao chegar à rua, estacou, de orelha fita. Na aldeia continuava a não bulir vivalma. Quem não fora para o arraial, dormia, bem enliçado no sono. Ouvia-se apenas nos estábulos um ou outro chocalho, lá de quando em quando. Andariam também para as bandas da ribeira, onde era o melhorio dos agros, a guardar os meloais dos ratoneiros, que costumam ser sobejos nas terras da fome em dias de festa. Atravessou a estrada a medo e num relâmpago. Se pudesse, levava a égua às costas. Uma vez do outro lado, saltou-lhe em cima, de escancha-perna; deu-lhe duas chibatadas mansas com a extremidade do rabeiro e ala! Meteu a passo, primeiro, depois onde o caminho era recto e areado a galope. À desbanda de Urro, dentro do Perímetro, entrou por um atalho e suspendeu-se numa clareira. Apeou-se e prendeu a égua. Ajuntou mato, carquejas, ramos secos, que havia por um lado e outro em pleno bastio. Acendeu um fósforo, viu as primeiras flamechas, voltou a cavalgar, e toca rumo ao Norte. Repetiu a cena em Azenha. Tomou em seguida o caminho da floresta e, inflectindo a Rebolide, acendeu nova fogueira. Depois, por ali fora, pôs-se a contornar o Perímetro. Em Valadim das Cabras, olhando dum alto, lobrigou na noite o clarão dos incêndios. Exultou. A atmosfera enrubescia. Só Corgo das Lontras ficava numa baixa e não pôde ver se ali o fogo pegara. Cavalgou de novo e repetiu a façanha sucessivamente em Ponte do Junco e Favais Queimados. Nas vizinhanças de Almofala apercebeu-se dum alarido crescente, em catadupa. Eram os socorros que partiam exaustinados, sem objectivo certo, para Cheleira do Negro e Fusos do Bispo. Esgueirou-se para dentro do pinhal, lá longe, onde a égua punha um vulto confuso ou se desvanecia nas sombras da noite. Assim que passaram, volveu à sua rota. Seriam quatro horas da manhã e o setestrelo já virara no céu. Faltava-lhe Bonfim das Pegas e torceu para lá de rédea solta por uma ensarilhada de caminhos que tivera tempo de estudar e conhecia como as palmas das mãos. Arrebanhou como das outras vezes carqueja, giestas secas, caruma e sargaços, e acendeu o morouço de mato a meio do bastio. Quando viu os pinheirinhos a estoirar e arder como archotes, toca mais adiante!

Nas vizinhanças de Portela do Beltrão, a três quilómetros de Arcabuzais, a selva crescera tanto que lhe dava muito por cima da cabeça. O tojo era alto e ressequira no pé. E nem se deu ao cuidado de amontoar a lenha. Pegou o fogo a uma tojeira e dali a pouco a chama difusa corria a toda a frente, alterosa ou baixa, tocada pelo vento. Ao volver à estrada da floresta a égua relinchou. Respondeu-lhe outro relincho bem perto. Com mil diabos, era a guarda montada! Meteu pelo pinhal fora e sentiu que o perseguiam. Não faltava muito para chegar à estrema com Arcabuzais, onde havia uns barrocos incorporados no Perímetro. O galope atrás dele repercutia. Alma, Teotónio! Afinal chegou. Apeou, atou a corda à volta do pescoço da égua, e deu-lhe uma chibatada valente. O animal disparou, escandalizado ou havendo compreendido o intento do cavaleiro. Teotónio escondeu-se numa furna. Deu conta que marchavam em pós três cavaleiros, que breve se perdiam nas direituras de Toiregas, à mão esquerda, relativamente à sua marcha.

Assim que deixou de ouvir os ruídos do trote, saiu do esconderijo e, a aproveitar o lusco-fusco da manhã, meteu para Arcabuzais. Mal avistou dum oiteiro a mole escura do povo, disse consigo: — Malandros, estou pago!

Encontrou a égua parada à porta do Dr. Rigoberto, com tanta sorte que não se pressentia vivalma, e em casa do dono era mais que certo não terem notado o desvio. Foi prendê-la à manjedoira tão jubiloso que, agarrando-lhe no focinho, se pôs a beijá-la, ao que de dócil e inteligentemente se associara â sua vingança.

Fechou-se em casa magicando, inundado de mais regozijo e tumulto que um bando de pássaros ao respigo duma cerejeira. Quantas léguas percorrera naquelas seis horas? Umas vezes a trote, outras a galope, devia ter cursado adentro do Perímetro um dédalo de veredas que somaria mais de trinta quilómetros. A horas de sair dos gados, depois de comer e beber do surrão, foi ter eom o rendeiro da sua horta. Regateou com ele, ajustou, beberam o alvaroque. Chegou um passageiro que falou do incêndio que lavrava de lés a lés da floresta. Se lhe não acudissem, era a ruína total duma obra custosa de alguns anos e muito dinheiro. Mas os Serviços abstiveram-se de pedir socorro às aldeias, supondo-as conjuradas na malfeitoria. Apelaram, sim, para quantos bombeiros havia em vilas e cidades, desde a Guarda a Vila Real. À noitinha, a serra dos Milhafres era um pavoroso mar de chamas. O calor sufocava.

Já os primeiros rescaldos, empestando a atmosfera, exalavam um hausto envenenado, que era molesto respirar.

Anos andados, depois de longa estiagem à feição do Ceará, desabou sobre a serra dos Milhafres trovoada nunca vista. A corda de água levou pontes e alpoldras, arrastou as terras aráveis, socavou os maninhos, e teve assediados nos redis e em perigo a gados e homens. O mundo anda fora dos eixos! — clamavam os curas do alto dos púlpitos.

Acima da Rochambana, um casal de lobos saiu com o claro sol do matagal que havia escapado ao dilúvio. Lá vinham defluir os mansos enxurros da encosta e giestas e urgueiras alcançavam uma opulência e altura paradisíacas. Aqui, além, no assomo dos cerros e lombas estiradas, os pinheirinhos, tendo despido a rama abanados pelo ciclone, perfaziam, negros e convulsos, uma lamentosa paisagem de guerra. Salvaram-se as aves, que dispunham de asa para remontar no céu até as distantes paragens, que dos animais monteses sucumbiram muitos, apanhados nos cambos da serpente líquida que varreu a comarca.

Os dois lobos deixaram muito pausadamente a brenha e, pata aqui, pata acolá, treparam a ladeira para se irem alapardar ao alto entre dois penedinhos.

Que regalo o sol da manhã, mormente depois da tempestade e duma noite de codo! Oh, que rica quentura!

Breve lhes descaiu o focinho entre as mãos, e se deixaram como dois tios pegar do sono e da mandria. Olho aberto, olho fechado, vigiavam o horizonte, embora ao desdobre da vista nada se oferecesse de especial. Contra a brancura leitosa do céu, atravessava-se lá longe a barra roxa da serra da Estrela, e as colinas, perto umas, remotas outras, encadeavam-se com as curvas dormentes dos vales, baças ou mais azul-escuro que lagoas de tinta. Era a hora de os gados descerem para os currais da pastagem matutina. Os lobos davam muito bem conta da manobra pelo sonido dos chocalhos que, pouco a pouco, se ia diluindo na distância até se desvanecer no ar como poeira fina assoprada. Mas este sonido, quando repicava ao sabor do eco, levava-os a erguer a cabeça e ficar atentos, de pupilas acesas para a extensão. Não distinguindo vivalma, nem ovelha nem pastor, voltavam a cabecear.

Na escarpa, entre calhaus de vário tamanho, desde a pedra, que rola ao tocar-se-lhe com o pé, ao penedo que daria carradas, a camada de terra é tão superficial que apenas sustenta magras urzes e sargaços. Vêm ali fazer ninho as perdizes e os coelhos montam a tenda de inverno ao soalheiro consolador.

Os lobos podiam aproveitar do ripanço que ninguém os incomodava e, hausto após hausto, iam-se embebedando de sossego e de amplidão. O manto do sol acalentava-os em sua miséria crónica. A vida sempre lhes fora ingrata, mas não faziam reparo. Se não fosse assim, obrigados a mexer-se, saltar, arriscar-se a um tiro, ficariam ali beatificamente até o fim dos tempos.

Uma lagartixa saiu do buraquinho e veio de cabeça pesquisadora, azougada, passar junto. Por uma frestazinha imperceptível da capela ocular, a loba viu-a discorrer ao alcance duma patada. Podia esmigalhá-la, mas para quê? A sonolência aliviava-a da fereza. Vai senão quando, o lobo estremeceu e lançou um gemido. Sonho que o pungia. Tanto lhe não ligou importância que, estirando-se a todo o longo do corpanzil, se pôs com a língua a anediar no ventre arruçado o círculo lunar das tetas onde colavam a boca os cachorrinhos. Era evidente que estava a sonhar. E a loba, confiada, deitou-se a dormir. Na imaginação perpassaram-lhe reixelôs e mais reixelos, cães e pastores. Que ricos manjares! Que voluptuo-sidade quebrar um borrego pela espinha e largar com ele nas fauces, feito troixa! Depois matar a sede no sangue doce das suas veias! Modorra sem nenhuma espécie de paisagem. O calor ia-a penetrando, retemperando da abstinência original. Através da dentuça aberta, a língua pendia-lhe, entretanto que arfava brandamente. Aí voltavam a relembrar-lhe os dias de comezaina, com fressura a rodos e pernas de carneiro planturosas. Caía-lhe a saliva para as mãos, e, quando deu conta, pôs-se a lambê-las muito bem lambidas, que se tratava de um asseio próprio a que por nada faltaria.

O lobo dormia, dormia, enchendo o fole de sono e de oxigénio, fole surdo que se abaixava e empolava com ondulações suaves de preia-mar. Uma laverca veio de súbito descer em cima dum penedo e, depois de se inteirar do panorama, largou pelo carreirinho fora saltitando e saracoteando a cauda. Andava aos bichinhos... à vida. A seguir foi um corvo que botou para ali do penhasco da Rochambana, zangarelhão e gritador. Que queria ele? Estava-se no tempo morto. Não havia castanhas nos soutos, nem bolotas nos carvalhos. Também eles padeciam de fome ancestral e morriam a suspirar por carniça. Quando apanhavam um coelho morto no caminho ou na sua cela de monge era milagre.

Nos giestais, por ali abaixo, ouvia-se estalar a vagem; das urgueiras, quando as roçavam, chovia uma poalha roxa cineraria. Nos corgos, a água estanhada saltava um degrauzinho e parecia rir-se como uma menina.

A loba ia observando a extensão pelo canto do olho. Que rica, tumultuosa e tentadora aquela aldeia lá em baixo com as casas apinhadas e nos estábulos tanta cabra, tanta ovelhinha que dariam para matar a fome de todas as alcateias da serra durante um ano! Mas estavam sob telha, bem defendidas pelos rafeiros, com as portas acravelhadas. Quem lhes chegava!?

A loba cismava. Ouviu a água a taramelar e com ouvi-la e a caloraça veio-lhe sede. Ergueu-se para ir beber. Num olhar disse-o ao lobo, que alçou a cabeça. Ele foi-a seguindo, seguindo com olho mortiço, a caminho do corgo. Deixá-lo em paz! Não tinha sede, para que havia de a acompanhar?! Mesmo assim ficou, fronte solevantada, com olhos nela. A loba caminhava mansarronamente. Ao fundo da encosta pulou para cima do muro que delimitava o lameiro. Ali permaneceu um migalho, orelhas fitas a colher os rumores dos longes. Que podia ouvir senão o ramalhar das frondes ao vento que às vezes se erguia ponteiro? De sorte se tratava de balido de ovelha transviada ou cabrito a esbarregar-se pela mãe. A loba espraiava olhos pelo terreno imediato. A última trovoada tinha ravinado o solo, entumecido o ribeiro, mudando-lhe a madre aqui e acolá, esgaivando nas arribas covões e braços absurdos. Agora ia cheio e sussurrante, tão cheio que nem todos os pontos da margem eram bons para beber, sem se molhar. Mas lá descobriu um lugar a jeito e despediu. Mergulhou o focinho no veio da corrente e, mais fluida que uma cobra a esgueirar-se para o seu agulheiro, a água fria e deliciosa escorregou-lhe no canal. Parou um momento. Tornou a beber. Satisfeita, depois de uma pausa durante a qual aspirou os ventos, enristando o focinho, rompeu a uivar. Um uivo agudo como uma lança.

Que queria ela dizer? Que farejava? Chamava o lobo. O lobo, com efeito, levantou-se e, a passo o seu tanto despachado, foi ter com ela. À beira do corgo, olhou para a água que ia atropelando-se uma à outra, roçando os seixos e as raízes dos arbustos meios arrancados, mal dormida à sombra das rincolheiras e nas lorgas que abrira o temporal dos dias anteriores, fazendo ondinhas nos remansos se os insectos lhe tocavam com as asas do sarambeque. E, sem objectivo, ao desenfado, o lobo foi-se deixando levar pela margem abaixo. A loba seguiu-o, e breve marchavam os dois, mudos, par a par, com o regato à vista, em direcção à aldeia, donde subia um fartum ténue. Era lá que se acolhiam os rebanhos gordos e palonços, com a problemática açougada. Leva que leva, de passagem, não deixavam de rusgar à porta das lapas e nos recantos, debaixo dos fetos, onde poderia ter-se acolhido coelho ou lebre. Mas não davam com coisa em que ferrar o dente. Os pássaros voavam por cima deles tão longínquos como as nuvens. Entretanto as folhas puseram-se a bulir mais forte e a sombra que projectavam no chão advertiu-os de que o Sol estava a virar no arco celeste. Avançaram mais rápido, talvez por isso e porque, nas baixas, o instinto de perigo os obrigava a andar depressa. Mais longe, a loba voltou a beber. Mas, agora só foi a molhar a boca ao desfastio. Era vezo. O lobo seguira adiante, molengão, não-te-rales, espera que não espera.

Passaram à beira da Rochambana onde dantes havia bulício, gado, sempre gente a levar e trazer e cães ladradores. O sítio agora estava silencioso como um fojo. Cautela! Aproximaram-se da fazenda, sempre de pé atrás e desconfiados. De animais, nem raça! Apenas um eflúvio muito ténue, que só a eles não escapava, se erguia ao sopro do vento, é provável que da cardenha onde anos e anos dormira a cabra que tinha amojos grandes como odres. A paz do ermo, guardada, dir-se-ia, pela loquela da água quando deixava a cerca para cair no corgo, afoitou--os. Saltaram o muro e meteram pela terra fora; espreitaram para- a cabana que tinha a porta às escâncaras, depois, a meio chouto, foram até a casa, junto do penedo. Muda, portas cispadas. Desandaram. Acabavam ali as suas sondagens de bichos escarmentados tão rápidas como cavidosas. Tornaram pelo corgo abaixo. A torrente, ensoberbecida, esgaivara as margens, atupindo uns pegos e solapando outros. Difundira-se até longe, pelo mato fora, a lambugem da cheia. Ah, mas que era aquilo, branco, cuspido da água, depositado pela aluvião, entre folhedo, contra uma touceira de juncos?... Ossos, um braçado de ossos que o refluxo desenterrara, e que, lavados da ganga, reluziam como a neve.

Lobo e loba, como lhes pedia o estômago ávido e lazarento, cheiraram, deram a sua focinhada ao esqueleto, baralharam-no, volveram a cheirar. No crânio, as mandíbulas parecia terem sido pouco antes apartadas dos encaixes. Mexeram mais uma vez com os ossos, bacia, tíbias, reviraram, fizeram a maior barafunda, para tornar de novo à caveira, que particularmente lhes solicitava, como coisa hermética, a atenção.

Os dentes, aperrados, davam ideia de que iam morder. Dentes feios, em lanceta, de mau arreganho, não entrara com eles a carcoma. E descarnados e sem gengivas, como rebolassem mais uma vez a caveira, puseram-se a chocalhar e a rir-se deles. Um vago miasma coava-se das fossas. Era ilusório que tivesse carnes. Toda a massa aderente compunha-se de restos da sânie, coalhada com lama. Mesmo assim a loba, que era glutona e aproveitadiça com a criação dos cachorros, deu-lhe ainda dois tombos. Não tinha com que entreter a fome dum verme.

O lobo farejou, volveu a farejar, abocanhou um dos fémures por vicieira, e não foi mais longe. Aconteceu-lhe então reparar que jazia a poucos passos a coisa fria, negra, perigosa, que manobrada pelo bicho-homem produzia um bruto e pavoroso estrondo. Ventas medrosas, a arfar, de princípio com certo respeito, depois com empolgante curiosidade, tomou contacto com ela. Inofensiva de todo. Mas rescendia a uma acritude que lhe espertava os humores.

Depois de se aliviar quedou-se, sentado sobre o traseiro, a desfrutar a loba encanzinada com a carcaça na esperança de que lhe oferecesse coisa que roer.

De repente teve um sobressalto... Aprumaram-se-lhe as orelhas, e nelas, pequenas mas bem campanuladas, caíram como granizo os sons do largo, desde os mais ténues. Para o povo parecia condensar-se um sussurro qualquer e desenvolver-se compacto e subtilmente roleiro. Olá! Contudo, não quis dar alarme à loba sem real motivo, e perfilou-se à escuta, especado nas gâmbias, cabeça alta. O rumor foi engrossando... tornou-se cascata. Não havia mais dúvida: avançavam em tropel e solto falatório pelos corcovos da serra.

Bufava o vento em sentido contrário e, meio irresoluto, viu a súbitas surgir nos visos um bando de homens, os implacáveis inimigos. Mas já a loba se apercebera, e só tiveram tempo de largar e subir a encosta, dissimulados com os penedos. Do alto, seguros de que não haviam sido notados, espreitaram. Faziam roda ao esqueleto na margem do corgo. Depois, pelo alarido, vozes disparadas, exclamações idiotas, capacitaram-se que tinham dado conta da sua recente passagem. E intranquilos, em despeito da distância que os separava da malta, foram-se pondo na alheta.

Ao dobrar a lomba, deitaram ainda o rabo do olho: uns homens de cócoras pelo chão, outros a ver e a mandar, empertigados e patudos como carneiros, ou lustrosos e a refulgir como mastins de puas no cachaço — a alçada recolhia aquela cainheza de ossos.

 

                                                                                Aquilino Ribeiro  

 

                      

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